Publicado em livro em 1955, o poema “Morte e vida severina”, de João Cabral de Melo Neto, é daquelas obras literárias que ficam encravadas no imaginário do país — mesmo entre aqueles que ainda não a leram.
- Erotismo, depressão e abuso emocional: Nova leva de mangás de suspense mostra que não há assunto proibido na HQ japonesa
- Parabéns, Mickey: álbum reúne 47 quadrinistas para homenagear o ratinho criado por Walt Disney
Ainda extremamente populares, os versos já chegaram ao público via inúmeras adaptações. Pode remeter a imagens, como as versões para o cinema (o filme de Zelito Vianna de 1977) e para o teleteatro (o especial da TV Globo de 1981). E também soam familiares aos ouvidos, relembrando os trechos que Chico Buarque musicou para o icônico espetáculo de Roberto Freire, encenado em 1965.
Por essas e outras razões, a recriação em quadrinhos do clássico se mostrou um desafio especial para o ilustrador gaúcho Odyr Bernardi, que assina apenas como Odyr. O autor do recém-lançado álbum “Morte e vida severina” (Quadrinhos na Cia.) ignorou adaptações anteriores para impor a sua própria visão da obra-prima do pernambucano. Na HQ, combina a poética enxuta de João Cabral com uma pintura realista e elegante.
— Vi o filme muitos anos atrás e não revi para fazer a adaptação, mas lembro de procurar na internet a cena do enterro, por alguma insegurança minha, e de fato me serviu para seguir o caminho oposto: a cena no filme tem uma agressividade na recitação, uma coisa de teatro engajado. Escolhi fazer o contrário: uma cena quieta, contida. Uma questão de temperamento, talvez — conta Odyr, que já adaptou outros livros seminais para o quadrinhos, como o “A revolução dos bichos” de George Orwell.
Narração e poesia
Em anexo, ao fim da edição, o texto integral e sem ilustrações de “Morte e vida severina” expõe o contraste entre as 20 páginas da poema dramático em redondilha maior (sete sílabas métricas) e as 150 da sua versão ilustrada que o precede.
Ver isoladamente o trabalho de João Cabral também dá uma ideia do processo criativo de Odyr. Em vez de sintetizar as visões poéticas de Cabral, ele as dilatou. Algumas poucas palavras são traduzidas em imagens potentes em uma página inteira. A HQ é ao mesmo tempo narrativa e poética — como o original.
— Essa é minha forma favorita de trabalhar nos quadrinhos: expandindo — diz o autor. — Sempre me pareceu uma impossibilidade, ou uma possibilidade indesejável, essa coisa de pegar um livro de 400 páginas e fazer uma HQ de 150. É uma compressão absurda, você acaba passando correndo pelas situações do livro. Então tendo a escolher ou aceitar projetos onde eu possa desenvolver, abrir, criar espaço para o texto respirar e os personagens existirem.
A história do retirante nordestino que deixa sua terra em busca de uma vida melhor ganhou mais de cem edições. Severino, o protagonista, tem medo de se perder, já que o seu guia, o rio Capibaribe, cortou no verão. Odyr traduz a passagem com a imagem poderosa do rio seco e, depois, com outra de Severino olhando resignado para o vazio. “Mas não vejo almas aqui, / nem almas mortas nem vivas; / ouço somente a distância/ o que parece cantoria”.
O caminho só complica a partir daí. Odyr e João Cabral acompanham o suplício de Severino, que interrompe sua jornada, procura emprego, dialoga com coveiros, e volta a caminhar até Recife. Sem conseguir melhores condições, busca em vão argumentos para não se suicidar (“é difícil defender/ só com palavras, a vida, / ainda mais quando ela é/ esta que vê, severina”). Mas sobrevive e se torna pai. Ainda que magro e fraco, o recém-nascido comprova a força da vida, “tão belo como as crianças em sua adição infinita”.
Quando João Cabral começou a escrever “Morte e vida severina”, em 1954, o Brasil vivia a realidade da seca no Nordeste e acabava de sair do último governo de Getúlio Vargas. A obra não indica o período em que transcorre. Mas era atual na época — e assim continua.
Odyr faz associações inevitáveis com tragédias recentes, como uma pintura que remete às imagens aéreas das valas anônimas na pandemia. A representação visual do quadrinista também não marca temporalidade de forma definida: a paisagem duradoura da seca dá lugar, na reta final, à arquitetura contemporânea dos arranha-céus.
— Não vi necessidade de atualizar a obra, ela é atemporal — diz Odyr. — Mas as imagens contemporâneas me surgiram de imediato, na primeira leitura que fiz depois do convite da editora: um migrante é um migrante, aqui, na África, na Palestina ou na Ucrânia. As dores e perdas são as mesmas. São todos Severinos.
Da ideia para o papel
Odyr se diz um um “minimalista de coração”. Na prática, porém, admite que nem sempre tem controle sobre seu método, que define como “um pouco caótico”. Nessa mesma linha, ele publicou outros dois quadrinhos de grande fôlego, “Copacabana” (2009) e “Guadalupe” (2012). Este último teve roteiro de outra poeta, a sua conterrânea Angélica Freitas.
— Os resultados (dos seus trabalhos) nunca são tão puros e exatos como gostaria — diz Odyr —Tem o artista que a gente quer ser e o artista que você é de fato. Minha pintura sempre acaba sendo um pouco mais selvagem do que eu imagino.
Ilustrador para veículos como O GLOBO e Público, de Portugal, e capista dos livros de Millôr Fernandes entre 2005 e 2008, Odyr se desdobra em diversos formatos.
— Não é versatilidade, é mais uma questão de linguagens: para cartuns e tirinhas, você precisa de menos desenho, de uma leveza — explica. — É uma coisa quase caligráfica, a linha é uma escrita. A pintura tem um peso, que funciona melhor para coisas mais dramáticas, como essas adaptações literárias.
“Morte e vida severina”
Autores: João Cabral de Melo Neto e Odyr (adaptação e ilustração). Editora: Quadrinhos na Cia. Páginas: 176. Preço: R$ 119,90.
Outras adaptações de 'Morte e vida severina'
- Quadrinhos: o poema dramático de João Cabral de Melo Neto já havia ganhado uma releitura em quadrinhos, lançada em 2010. Com desenhos de Miguel Falcão, a edição preserva o texto integral utilizando uma boa dose de ironia ao usar como modelo para os coadjuvantes da história alguns conhecidos personagens da política e literatura.
- Teleteatro musical: Exibido em 1981, o especial da TV GLOBO teve direção de Walter Avancini e composições de Chico Buarque. Nos papéis de Severino e Severina, foram escalados, respectivamente, José Dumont e Elba Ramalho.
- Cinema: O mesmo José Dumont já havia encarnado Severino quatro anos antes no longa dirigido por Zelito Viana, e lançado em 1977. Ele é apenas um dos atores a assumir o personagem no filme, que também conta como Jofre Soares e Stênio Garcia no papel.