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Cultura

'Meu tio José' leva a Annecy história de militante contra a ditadura brasileira pelo olhos de uma criança

Selecionado para o mais imporante festival de animação do mundo, filme do cineasta baiano Ducca Rios conta a história verídica do tio que participou do sequestro do embaixador americano Charles Elbrick
Cena do longa de animação "Meu tio José" Foto: Reprodução
Cena do longa de animação "Meu tio José" Foto: Reprodução

RIO - Cabia ao artista gráfico José Sebastião Rios de Moura levantar um jornal quando o carro do embaixador americano Charles Elbrick passasse pelo Largo dos Leões, no bairro do Humaitá, no Rio, e entrasse na rua Marques naquele 4 de setembro de 1969. Nela, estariam de tocaia seus companheiros da Dissidência da Guanabara para raptar o diplomata, que posteriormente seria trocado por presos políticos da ditadura militar.

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A participação de José no sequestro e na luta armada fez do piauiense um exilado que só voltou ao Brasil, mais especificamente a Salvador, onde estava a família, depois da anistia promulgada no governo do general João Figueiredo, em 1979. Foi aí que ele conheceu o sobrinho Ducca, então com 10 anos, que agora conta a história do tio no longa de animação “Meu tio José”. A obra será exibida esta segunda-feira na categoria Contrechamp do Festival Internacional de Annecy, na França, um dos mais importantes do mundo no segmento. Outro brasileiro que concorre é “Bob Cuspe — Nós Não Gostamos de Gente”, de Cesar Cabral.

— Eu e meu irmão tínhamos uma expectativa grande de conhecer aquela figura misteriosa — diz Ducca Rios. — No tempo em que ele ficou lá em casa, começamos a nos aproximar. Ele tinha um jeito doce, me ensinou a nadar no mar, a fazer pipa, pescar.

A convivência com José durou apenas dois anos. O tio foi assassinado num crime até hoje não solucionado, mas possivelmente relacionado à abertura política.

— Eu entendi o que era ditadura a partir daquele momento, com o sofrimento da minha família — lembra o diretor.

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Depois de trabalhar com publicidade, curtas e séries de animação, Ducca pensou na história de José para seu primeiro longa-metragem. A ideia era tirá-lo da clandestinidade.

— O objetivo desse filme é tornar José visível. Ele sempre esteve em duas linhas, entrelinhas. Até mesmo para a irmã dele, a minha mãe, já que ele entrou para a clandestinidade muito jovem.

Ducca Rios, diretor da animação "Meu tio José" Foto: Maria Luiza Barros / Divulgação
Ducca Rios, diretor da animação "Meu tio José" Foto: Maria Luiza Barros / Divulgação

Misturando a realidade dolorida com elementos ficcionais da imaginação infantil de Adonias (o alter-ego de Ducca), o cineasta não pretende apenas fazer um acerto de contas com o passado familiar. Quer também jogar luz sobre um período sombrio da história brasileira, que ainda nos assombra no momento atual.

— O filme tem uma comunicação direta com nosso período político. Trata de fatos históricos entre os anos 1960 e 1980, mas toca no presente porque há grupos minoritários que tomam parte de passeatas de direita com pautas de ultradireita — diz Ducca. — Ele serve para abrir uma reflexão. A juventude não sabe o que foi a ditadura militar. Eu, que estava com dez anos, também não entendia. É para abrir os olhos de quem não viveu e de quem viveu e está de olhos fechados.

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“Meu tio José” é uma animação em 2D com full animation, que custou R$ 1,5 milhão. O baixo orçamento é inversamente proporcional ao talento dos atores escolhidos para a dublagem dos personagens e a pujança da trilha sonora. No elenco, Wagner Moura, Tonico Pereira, Evelin Buchegguer, Lorena Comparato. Embalam a história canções clássicas de Chico Buarque como “Roda viva”, “Construção”, “Deus lhe pague” e “Apesar de você”, esta última regravada especialmente para o filme por Lirinha, do Cordel do Fogo Encantado.

Voz do personagem principal, Wagner recebeu o convite para dublar José quando estava começando a produzir “Marighella”, seu primeiro filme como diretor. A agenda apertada era uma questão.

— A voz do Wagner é muito parecida com a do José Sebastião. Achei que ia ser fantástico e falei para ele: “Espero dois anos, o quanto for”.

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Quem também está no filme, como personagem, é Torquato Neto, porque foi amigo de José. Quando Ducca foi procurar a família do poeta, para ter mais informações sobre a relação dele e do tio, ganhou um poema inédito, guardado para o ex-guerrilheiro.

— George, primo do Torquato, fez essa surpresa. Me disse: “Descobri um poema nominal ao José, batido à máquina”.

A homenagem de Torquato e Ducca a José e o resgate desse pedaço sangrento da história do Brasil chegam às salas de cinema no ano que vem. Depois o plano é levá-lo para streaming. Nesse meio tempo, o cineasta já está com dois longas em andamento, um deles em co-produção com o México.

— A maioria dos filmes selecionados para grandes festivais vem de uma política (do passado) que permitiu que estúdios conseguissem se estruturar com projetos de todos os tipos — diz o baiano, que começou a fazer o filme sobre José há três anos. — Hoje, o presente é muito incerto. Vamos ter que aprender a nos desenvolver por caminhos alternativos, pelo menos até que chegue um olhar mais responsável, criativo e não anacrônico.