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Ed Motta admite erros e se diz dependente químico do Rio

Um ano após confusão na Internet, músico desabafa em entrevista exclusiva

Ed Motta Foto: Fernando Lemos / Agência O Globo
Ed Motta Foto: Fernando Lemos / Agência O Globo

RIO — De volta de três meses em Berlim, onde lançou “Perpetual Gateways”, primeiro disco com letras de próprio punho, todas em inglês, o cantor e compositor conta como superou as confusões em que se meteu no Facebook e encontrou a paz.

Como anda a vida?

Na ponte aérea Rio-Berlim. Acabei de passar três meses lá, onde lancei o novo CD. Nunca tinha feito tantas turnês na Europa. Tem sido minha segunda casa.

Você tem sido crítico ao Rio... A saída é o aeroporto?

Não, rapaz. Depois de três meses na Alemanha, não tenho crítica nenhuma (risos). Só elogios! O Rio lava a minha alma. Sinto falta dessa coisa de “Aí, rapaz; aí, maluco”. Sou dependente químico daqui. Vou no Talho pegar um pão e posso falar: “Seguinte, bicho, hoje é quinta, sábado venho de manhã te pagar.”

Difícil viver sem o fiado...

E eu tenho fiado no Rio inteiro. Faz parte do meu código tijucano de entender a vida. O fiado é uma declaração de amor. Muito mais que de confiança.

Mas a Alemanha está sendo legal?

Abriram um espaço incrível. Meu CD não foi Lei Rouanet, não. Foi dinheiro alemão. Fui capa da principal revista de jazz de lá, tipo uma “DownBeat”. Eles me deram um visto bacana de trabalho.

E o mundo das redes? Você teve perrengues depois de um show na Europa, quando pediram a música “Manuel”, e que cantasse mais em português.

O ano de 2015 foi horrível. Em seis meses, perdi pai e mãe, e virei o neojudas. Parte do que escrevi não estava errado. Mas me expus de um jeito muito ruim.

Você escreveu: “O mundo inteiro fala inglês, não é possível que o imigrante brasileiro não saiba um básico.” E já tinha rolado o post sobre as mulheres...

“Não. Com eloquência, nunca fui consumido pelas classes C e D. Mesmo meu som suburbano era curtido mais em Ipanema, Gávea. Muito pouco na periferia. Muito menos do que eu gostaria, infelizmente”

Ed Morra
Músico

O post das mulheres foi um equívoco tétrico, e vim a público me desculpar. O negócio dos brasileiros foi outra coisa. Foram maldosos. O target era: “Ed Motta não quer cantar para brasileiros.” Não foi nada disso! A maldade foi assustadora. Não foi esse o meu discurso.

Qual foi?

O mal de hoje não é o politicamente correto. É o politicamente ingênuo. Achar que tudo está ao dispor de todos. Não é assim. Stravinsky não está no meio da rua para todo mundo ouvir. Poderia estar, mas não está, idiomaticamente. Eu estava reclamando de uma ala, de um tipo de pessoa que não faz parte do meu público.

Mas você foi e é, de certa forma, um artista popular. “Manuel” é popular.

Não. Mesmo quando fiz meus discos mais populares, nunca fui artista popular. Nunca toquei na antiga Rádio 98.

Músicas como “Tem espaço na van?” não atraem a galera do subúrbio?

Não. Com eloquência, nunca fui consumido pelas classes C e D. Mesmo meu som suburbano era curtido mais em Ipanema, Gávea. Muito pouco na periferia. Muito menos do que eu gostaria, infelizmente. Eu sempre quis que minha arte fosse mais popular, chegasse no povão. Quem não quer ser como um Hitchcock? Fazer uma coisa altamente sofisticada que todo mundo quer ver! São raros. Stevie Wonder, Burt Bacharach.

O rolo do Facebook não ajudou.

Eu reagi muito mal. Comecei a responder irado, atacar. É pena. Quem me conhece sabe que no dia a dia sou um cara das ruas, um bonachão. Fico horas conversando com meu porteiro, o cara da obra. Tenho uma ligação forte, um fascínio pela cultura popular. Isso ficou numa sombra de uma cara sofisticado, elitista e babaca. Ficou fácil e confortável me colocarem nesse lugar.

Por que tornar você um vilão seria algo confortável?

É que sou um cara opinativo, e isso incomoda. Mais a mídia que o público, diga-se. Pô, vem um garotão me entrevistar e pede dez vezes para soletrar John Mayall. “Soletra aí: J-o-h-n M-a-y-a-l-l" (risos). Passa um tempo e você vai tendo, erroneamente, comportamentos um pouco, digamos, de saco cheio.

Aí o pessoal não perdoa...

Um colega seu veio numa boa conversar comigo, me censurar porque numa entrevista para um cara da “Billboard” completamente despreparado eu disse que ele precisava ler uma enciclopédia de música pra trabalhar no ramo.

Também, pudera...

Sabe o que é? Nos anos 1980, eu tava ali naquele pós-punk. Enquanto o pessoal ouvia New Order, Echo and the Bunnymen, eu pesquisava cultura do subúrbio, Banda Black Rio, black americano. Aquela mentalidade do pós-punk é a mesma que rege as redações no mundo inteiro hoje. O pessoal que descobriu a música negra lá de fora ouvindo Talking Heads. Os repórteres hoje, com algumas exceções, são os filhos desses caras. A matéria que deu a confusão era de um repórter que nasceu em 1993. Eu não soube falar.

Ed Motta Foto: Ilustração de Edna Lopes / EL
Ed Motta Foto: Ilustração de Edna Lopes / EL

Você deu um tempo, fugiu das redes sociais depois desses episódios?

Nada! As redes sociais são para mim uma rádio independente, onde posso trocar coisas e aprender. Para muita gente, é uma nova TV, alienante... Essa mentalidade careta que diz que o mundo era muito melhor sem a rede social, que a gente se encontrava mais... Ao contrário! Era muito pior. Eu não quero encontrar ninguém (gargalhadas)! Uma das melhores coisas das redes sociais é você não ter que encontrar ninguém! Economizou o tempo da festa. Decantou. Mas tem o lado obscuro de cada um, o ego exacerbado.

A rede virou sua nova obsessão?

Já tive tempo de ficar meio pirado. Era uma esquizofrenia de ter o som ligado aqui, e o laptop em cima do piano acústico. Ouço um disco, pesquiso sobre o disco, toco um acorde no piano, posto a informação. Mas parei com isso.

“Tenho gostado muito mais de fazer shows sozinho, uns de piano e guitarra, alto nível de concentração, e umas piadas para cortar a tensão, o pessoal sai achando que é stand up comedy. Queria muito fazer um DVD disso”

Ed Motta
Músico

Você não sofre muito com essa coisa maníaca da informação?

Sou um viciado em informação. Isso envolve uma grande sofreguidão, mas muito prazer. Sou assim desde antes da internet. De ler catálogo de disco, de decorar que tal CD só existe na Holanda e o outro na Áustria.

Sua casa é compartimentada. Quarto dos quadrinhos, coleção de filmes do Jacques Tati, vitrolas, instrumentos vintage, adega. Tudo é útil?

Extremamente útil. Claro que dentro dos interesses há subinteresses que cavalgavam numas áreas menos pragmáticas (risos). Tipo qual o número de série do disco com a capa tal. Uma masturbação que servia como prática da memória. Tinha uma enciclopédia, Rock Record, ainda tenho, do Terry Hounsome, que criou o site do AllMusic Guide. Eu só ia ao banheiro de manhã com ela. Sofreguidão e prazer.

Você disse que show não dá prazer...

Com banda dá menos prazer, tudo muito formatado, mas estou aprendendo a curtir. Tenho gostado muito mais de fazer shows sozinho, uns de piano e guitarra, alto nível de concentração, e umas piadas para cortar a tensão, o pessoal sai achando que é stand up comedy. Queria muito fazer um DVD disso.

Você é engraçado quando fala.

Ruy Guerra queria fazer um filme comigo. E tem o show para empresas em que apresento quatro vinhos, espumante, branco, tinto e de sobremesa, o pessoal abre um salão para duas mil pessoas, umas papazinhas pra cada vinho, umas músicas que têm a ver... O pessoal pira e é parte importante do meu sustento.

Como anda a degustação?

Não sou nacionalista, sou universalista, e francófilo, mas defendo que o vinho mais francês do mundo hoje, além do francês, é o brasileiro. Em termos gustativos e de complexidade. É menos uniforme. Os chilenos e argentinos estão muito americanos, tecnicamente perfeitos mas cheios de química. No Brasil, os grandes imitam isso, mas os pequenos estão fazendo joias. Tem um branco nacional tão bom que, quando levo minha bolsa de 12 garrafas pro exterior, na volta só trago tinto.

Que vinho é esse?

É o Âmbar, de um produtor pequeno da cidade de Canela, RS, Marco Danielle. Vinho de autor. É daqueles brancos que o pessoal chama de vinho laranja, feitos com vinificação de tinto. E digo mais: ninguém faz Pinot Noir como os brasileiros, depois da Borgonha, claro.

Ed Motta Foto: Fernando Lemos / Agência O Globo
Ed Motta Foto: Fernando Lemos / Agência O Globo

Esse é o primeiro disco com letras suas, e nenhuma fala de amor.

Pois é... Apesar de eu ser um cara extremamente romântico, que vive com a mesma mulher há 26 anos (a designer Edna Márcia Lopes), os letristas de que mais gosto tratam de outros assuntos. Quis fazer uma coisa de storytelling, inspirada em seriados de TV, em cinema. Outras músicas têm uns personagens meio Woody Allen, ou sartrianos: o inferno são os outros. Letras de quem não se vê muito encaixado na sociedade da forma que é.

Tudo meio audiovisual.

“O pessoal fala muito de sair da zona de conforto, que precisa sair. Tudo que eu não quero é sair da minha zona de conforto! Sou conservador. Leonino. Sair da zona de conforto é... desconfortável.”

Ed Motta
Músico

Nunca fui forte na literatura, sempre fui do cinema e dos quadrinhos, mas sempre que vejo umas frases de Nietzsche fico pensando que tinha que ter mais tempo para isso, ou que deveria ter olhado mais para a literatura. O problema é que, como tenho esse negócio de ir muito no específico, no detalhe, ia complicar mais minha vida.

Aí você ia ficar só lendo...

Sim! Aí eu só vou ler! Eu sei disso (risos)! Como faço com outras coisas. Claro que não fico só no universo de um estudo mais sério. Adoro séries de TV. Mas não as novas. Sei que são fortes, mas fico vendo mesmo coisas como “Hawai 5.0” . Essa eu vejo religiosamente todos os dias um episódio. Tenho as 12 temporadas completas em caixas. Meu Rivotril é o “Hawai 5.0”. Mas vejo outras, sobretudo as que têm aquele som de dublagem em português dos anos 1960 e 1970.

Eram boas aquelas dublagens.

Maravilhosas! Eu compro bootlegs no Mercado Livre de séries de TV dubladas, “O agente da Uncle” e o “Kolchak”, que passava aos domingos na Globo, sabe? O personagem era um jornalista exorcista e fotógrafo (risos). Adoro aquele timbre “versão brasileira Herbert Richards” e “AIC São Paulo”. Aquilo para mim é bife à a milanesa com salada de batatas. É um pudim de leite. É zona de conforto mil. O pessoal fala muito de sair da zona de conforto, que precisa sair. Tudo que eu não quero é sair da minha zona de conforto! Sou conservador. Leonino. Sair da zona de conforto é... desconfortável.

Mas, paradoxalmente, você, tão crítico, aposta muito no desconforto.

É um impulso. Eu critico o lugar, o momento em que estou. Agora, ao voltar, estou cheio de críticas a Berlim enquanto compro um queijo no Rio e começo a chorar da saudade que senti.

E ao mesmo tempo você adora a Europa. E os EUA?

Estive em Los Angeles gravando parte do disco. Aquele mito todo... Não gosto, é bem chato. Eu me identifico mais mesmo é com a Europa, que é aquela Petrópolis enorme. Comida boa, friozinho, tudo meio lento...

Ed Motta Foto: Fernando Lemos / Agência O Globo
Ed Motta Foto: Fernando Lemos / Agência O Globo

Você falou que é leonino. Jura que você acredita em astros? Em horóscopo? Você?

Eu acredito. Não dependo disso. Mas sei que sou leão com ascendente em câncer e justifico todo meu egocentrismo maluco com a coisa do leão. Sou de leão, então tá valendo a “leoninice”, fica tudo em casa, tá confortável.

Você está superando bem a repercussão do Face?

“A arte não deve ser punida pelas opiniões ou pelos erros de verbo. Mas o que ficou plantado? Virei um Pedro de Lara real, ainda mais louco, que odeia os queridinhos da nova geração. O que não é de todo mentira”

Ed Motta
Músico

Sim, mas tem uns reflexos bem desagradáveis, principalmente no trabalho aqui no Brasil. No Facebook mesmo já serenou. Tipo, de umas mil pessoas que comentam, uma volta ao assunto. É desprezível, mas, do jeito que eu sou, fico cismado com aquele um cometariozinho, fico chateadão, bolado.

Explique melhor a coisa do trabalho.

Na hora que a bomba estoura, as coisas vão piorando em volta. Todo mundo desmarca seu show. Ninguém quer falar contigo. Você vira persona non grata. Quando critiquei os queridinhos, a geração nova, assinei uma sentença de morte e estou ainda sendo extremamente boicotado.

Como funciona esse boicote?

É tudo meio ligado. Por exemplo, o cara que fez a primeira matéria que deu confusão, num grande jornal de São Paulo, é ligado hoje à Secretaria de Cultura do município. Saiu do jornal e está na esfera pública da cultura. Desde que ele entrou lá, estou fora de tudo. Nem Virada Cultural rola mais.

Você quer restaurar esse espaço?

Só gostaria de ter o que me é de direito, tendo um público maravilhoso, que está superativo na minha homepage e esperando os shows. A arte não deve ser punida pelas opiniões ou pelos erros de verbo. Mas o que ficou plantado? Virei um Pedro de Lara real, ainda mais louco, que odeia eles, os queridinhos da nova geração. O que não é de todo mentira.

Há uma recompensa nesse rolo?

“Fui presenteado com uma coisa legal. Poderia ter virado um mega, tocar pra 50 mil pessoas, ter aquela casa no Recreio com chafariz. Optei por outras coisas. Minha diversão é a arte, eu vivo dela e gasto tudo nela”

Ed Motta
músico

A gente paga um preço por ser opinativo. Frank Zappa era um cara muito de opinião que pagou um preço alto. Os menos opinativos são os que ficam para a História. O mundo é feito para as vaquinhas de presépio...

Será que não dá para moderar?

Na hora em que a gente faz, sabe que vai ter eco. Mas vem como uma composição, infelizmente. A criação é muito parecida com a destruição. Elas vêm de forma muito genuína e pura. Positivo e negativo o tempo todo. Sou uma pessoa que vive muito os extremos. Amo muito e detesto muito. Sou extremamente contra o equilíbrio. O equilíbrio namora muito com a mediocridade. Ele tem uma paz humana, mas intelectualmente é medíocre.

Ser Buda não é fácil...

Aí já é outro departamento... Esses caras, Gandhi, Osho, são revolucionários, subversivos quase. Quando falo de equilíbrio é aquele da classe média, do gado, do senso comum. Vamos todos gostar disso agora? Vamos! Vamos todos odiar aquilo? Oba! Isso é diferente na Alemanha. Há artistas extremamente provocadores que vão à TV bêbados soltar o verbo. Não tem esse estereótipo de tudo está bem, estou superfeliz, somos pessoas maravilhosas, só vemos o lado positivo... Mas, no fundo, o brasileiro é mais inteligente. A inteligência não é um artigo fácil. Num país mais abastado talvez as pessoas sejam mais adestradas. Aqui pode faltar cultura, mas o pessoal é sagaz, pega rápido as coisas.

Você está é parecendo superfeliz.

Eu gosto da minha vida. Sou um felizardo. Fui presenteado com uma coisa legal. Poderia ter virado um mega, tocar pra 50 mil pessoas, ter aquela casa no Recreio com chafariz. Optei por outras coisas. Minha diversão é a arte, eu vivo dela e gasto tudo nela. Se eu fosse mega, seria como um chef de cozinha abrindo uma cadeia de fast food. Ia ter que me desinformar para aguentar o tranco. Os mega em geral não são artistas. São empresários da arte, que a exploram sem amor.