Malandro light. É assim que Roberto Elísio, um dos maiores especialistas em quadrinhos do país, define o Zé Carioca oitentão. Único personagem da Disney a viver numa cidade real, com avenidas, praias, prédios e favelas, Joe, depois José (pronunciado como no espanhol) e finamente Zé Carioca, foi gestado em 1941 em meio à “política de boa vizinhança” do governo Franklin D. Roosevelt, eufemismo diplomático que se traduziu, na área cultural, em ações de pro
paganda do Escritório para Assuntos Interamericanos (OCIAA, na sigla em inglês), criado um ano antes pelo governo americano para exportar valores ianques para os vizinhos em momento de expansão do nazi-fascismo.
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— O papagaio mais famoso da cultura pop nasceu em um exercício do que hoje chamamos de soft power — diz o pesquisador, um dos coordenadores do Observatório de História em Quadrinhos da ECA/USP.
Em 24 de agosto de 1942, dois dias depois de o Brasil declarar guerra à Alemanha e Itália, “Alô, amigos” teve sua estreia mundial no Rio. As quatro animações de 42 minutos são, reunidas, o longa mais curto da Disney e um sucesso de bilheteria à época. Zé Carioca aparece no derradeiro segmento, quando recebe o Pato Donald no Rio ao som de “Aquarela do Brasil”, de Ary Barroso e “Tico-Tico no fubá”, de Zequinha de Abreu.
— A senha para a dimensão que ele terá está logo na primeira cena com Donald, quando o Pato lhe estende a mão e o papagaio lhe dá um ‘abraço de quebrar costelas’. Ele representa, já ali, a visão do brasileiro cordial que tanto encantou Walt Disney— diz o jornalista Paulo Maffia, editor-chefe da Culturama, que hoje publica as tirinhas do Zé no Brasil.
Reza a lenda que Disney, em sua visita ao Rio, após ouvir mais uma piada de papagaio, rabiscou o que seria o personagem em um guardanapo de papel do Copacabana Palace. Pediu então a cartunistas locais desenhos do que já voava em sua cabeça. O de J.Carlos incluía, inclusive, o abraço a Donald. Mas, diz Elísio, “ficou muito formal”.
O modelo para a fala rápida e a simpatia do Zé da animação teria sido o músico José do Patrocínio Oliveira, o Zezinho do Bando da Lua de Aloísio de Oliveira, que assina a trilha sonora de “Alô, amigos”. Paulista de Jundiaí, é de Zezinho a voz do Zé Carioca no filme.
— O Walt conheceu e gostava do Zezinho, assim como tinha predileção especial pelo personagem. Tanto que Zé Carioca apareceria novamente em “Você já foi a Bahia?” (1944) e “A culpa é do samba” (1948), além de pelo menos três animações da TV americana. Mais tarde, fez uma ponta em “Uma cilada para Roger Rabbit” (1988) e está nos parques temáticos— conta Becky Cline, diretora há três décadas do Walt Disney Archives. Ela segue: — Há muitas versões para a gênese do personagem, mas o essencial, para Walt, era que Zé Carioca complementava Donald, trazia suavidade, vivência e ritmo que faltavam ao americano — aponta.
Sensibilidade Social
Os quadrinhos começaram a ser publicados logo após o sucesso do filme. Nos EUA, a partir de outubro de 1942, nas "Silly simphonies", encartadas em vários jornais. No Brasil, o primeiro registro é de fevereiro do ano seguinte, na revista O Globo Juvenil. Entre 1944 e 1945, eles também apareceram neste O GLOBO, no caderno especial dedicado à Força Expedicionária Brasileira, que lutava na Europa contra o Eixo.
Criticado dentro e fora da academia por apresentar uma visão estereotipada negativa dos brasileiros, caracterizada pelo personagem folgazão, que sobrevive à base de cambalachos, Zé Carioca já nasceu , no entanto, inovador, defende seu atual editor no Brasil.
— Walt Disney queria transportar a realidade dos cidadãos comuns para a fantasia pop. Se Donald anda de ônibus e trabalha para cuidar dos três sobrinhos, Zé Carioca se vira nas onze para, sem buscar trabalho, sobreviver na rotina mais colorida, porém socialmente precária do Rio — diz.
O papagaio passou por mutações sensíveis em oito décadas. A mais significativa, para leitores brasileiros, se deu quando deixou de ser desenhado e roteirizado por profissionais americanos, no fim dos anos 1950. Seu primeiro desenhista brasileiro foi Jorge Kato, presente na primeira história, de 1961, de “O essencial do Zé Carioca”, coletânea de 14 HQs lançada por Maffia na Bienal do Livro de SP e pontapé inicial das comemorações dos 80 anos da ave.
— Ele foi o primeiro personagem da cultura pop brasileira a ter histórias ambientadas em uma favela, a fictícia Vila Xurupita. Lá, retrata a dificuldade dos moradores, a falta de serviços básicos e a importância de se agir em prol da comunidade — diz Maffia.
O editor revela como algumas das histórias de Zé em seu período de ouro nos quadrinhos nacionais — entre 1970 e 1982, quando publicado pela editora Abril, onde trabalhava— nasceram da experiência direta do roteirista paulista Ivan Saidenberg com a realidade dos morros da Zona Sul carioca, onde vivia à época:
— Ele ouvia causos sentado em botequins na subida do Cantagalo. Gente que falava da falta d’água e de luz, por exemplo. Em uma de suas tiras, “Papagaio Disco Clube”, de 1980, Zé tenta organizar uma festa, mas se enrola com a quantidade de gatos na área.
Neste Zé mais abrasileirado, o humor se revela, diz Roberto Elísio, justamente nos golpes que não dão certo. E o personagem criado originalmente para servir de exótico guia ao americano interessado nas belezas do Brasil se torna crítico bem-humorado das mazelas do país.
— As complicações do governo militar com o FMI, por exemplo, foram traduzidas na Anacozeca, a Associação Nacional de Cobradores do Zé Carioca. Desta época também são os desenhos do Renato Canini, com ônibus lotados, mulheres subindo o morro com trouxa de roupa na cabeça e criança de mãos dadas ao lado— diz.
Desistir, jamais
Os quadrinhos do Zé Carioca passaram por um período de entressafra no fim dos anos 1990, com a interrupção da produção pela Abril. Depois de um breve retorno em 2014, desde 2020 estão sob a batuta de Maffia na Culturama, que publicou no ano passado a primeira graphic novel do papagaio, “Viagens fantásticas”.
O Zé 8.0 que aparece no quadrinho inédito abaixo produzido pela Culturama se moldou aos novos tempos. O jogo de cintura segue, mas golpes como a venda do Pão de Açúcar a gringos incautos foram aposentados. Diretora Criativa da Disney Brasil, Tokie Esaka enfatiza que o Zé de 2022 está todo trabalhado no otimismo, na solidariedade, na nostalgia de um país menos polarizado e no brasileiro que não desiste nunca.
Além do licenciamento comercial da imagem do personagem — com expectativa de crescimento de 250% este ano — a Disney produz para os 80 anos um livro de Eduardo Bueno com o papagaio dando sua versão a episódios da história brasileira e um single e clipe, “Os Zés do Brasil”, com Xande de Pilares. A letra do samba de Leandro Lehart diz que “tô na rua, na luta, com amor, nascido e criado no Brasil, sou do povo, festeiro e vencedor”.
— O bem-vindo politicamente correto não asfixia o humor do personagem. Octogenário, ele aprende com a sociedade e segue exalando o melhor dos Zés e dos cariocas: generosidade e sagacidade. — aposta Maffia.