Cultura

Pioneiro do grafite no Brasil, Alex Vallauri recebe homenagens

Morto em 1987, artista plástico é lembrado em mostra no MAM-SP, biografia e livro infantil

Nascido na Etiópia, criado na Argentina e radicado no Brasil até sua morte, em 1987, aos 37 anos, Vallauri posa num banco em São Paulo, ao lado de uma bota desenhada por ele
Foto: Divulgação
Nascido na Etiópia, criado na Argentina e radicado no Brasil até sua morte, em 1987, aos 37 anos, Vallauri posa num banco em São Paulo, ao lado de uma bota desenhada por ele Foto: Divulgação

RIO - Um dos papas do kitsch no cinema, Pedro Almodóvar lamberia os beiços se tivesse conhecido a Rainha do Frango Assado. Onipresente nos muros de São Paulo no final dos anos 1970, a criação de Alex Vallauri (1949-1987) — artista plástico e um dos pioneiros do grafite no Brasil — era um misto de pinup e vedete, com suas curvas destacadas, roupas extravagantes (salto alto e vestido de oncinha) e latinidade à flor da pele, sem mencionar a referida ave, (bem) servida numa bandeja de prata. Após as primeiras aparições “solo”, ela começou a ser acompanhada por um utilitário visual que incluía mesas, geladeiras, ventiladores e até mesmo um automóvel, numa bem-humorada crítica aos sonhos de consumo da classe média naquele período.

Antes dessa figura — que chegou a ser vivida por Cláudia Raia, em 1985, numa performance durante a 18ª Bienal Internacional de São Paulo — houve xilogravuras, aquarelas, a paixão por Picasso e a misteriosa imagem de uma bola preta, também feita nos muros da capital paulista. Depois, veio o “desbunde” de Vallauri — tema de dois livros, uma biografia e um álbum infantil, que saem em junho —, com desenhos, recortes, caveiras dançantes, subversões de ícones das histórias em quadrinhos, instalações, trabalhos em placas de PVC e obras em Nova York com gente como Andy Warhol, Keith Haring e Jean-Michel Basquiat.

— Além de um talento fora do normal, Vallauri tinha uma versatilidade impressionante — conta João Spinelli, amigo do artista e curador da exposição “Alex Vallauri: São Paulo e Nova York como suporte”, que tem abertura na próxima terça-feira, no Museu de Arte Moderna de São Paulo. — Ele nunca ficava muito tempo numa obra, numa área ou num trabalho só. Estava sempre avançando, buscando novos universos e novos desafios.

Espírito anárquico

Colorido e variado, o universo de Vallauri tinha semelhanças com suas origens e sua própria trajetória, descritas no livro “Alex Vallauri — Da gravura ao grafite”, de Beatriz Rota-Rossi. Por vezes, dizia, brincando, ser “ítalo-africano”; em outras ocasiões, se apresentava como “argentino-brasileiro”, numa referência ao fato de ter nascido na Etiópia, passado o começo da adolescência em Buenos Aires e se mudado para Santos, aos 16 anos, e depois para São Paulo, onde viveu até a morte precoce, aos 37 anos.

— A família dele saiu sempre de um conflito para o outro, desde a Etíópia, convivendo com a ditadura na Argentina e depois com a ditadura no Brasil — conta Beatriz, que era prima do artista. — Talvez por isso Vallauri tenha desenvolvido um espírito anárquico e ao mesmo tempo muito respeitador do gosto popular, sem problemas com diferenças de raça, religião ou sexo.

No livro, é contada a evolução do artista, por meio de imagens e, principalmente, cartas, dirigidas a amigos e familiares, como a própria autora. “Alex Vallauri — Da gravura ao grafite” segue, por exemplo, seus primeiros traços, quando ele fazia aquarelas e xilogravuras, reproduzindo as figuras que via ao seu redor, como os estivadores e as prostitutas, no cais de Santos; passando depois pela entrada no curso de Comunicação Visual da Faculdade de Artes Plásticas da Faap (onde conheceu Spinelli), em 1968; pela primeira das quatro participações na Bienal de São Paulo (em 1971); e pela apropriação de personagens de quadrinhos, como o Mandrake (de Lee Falk) e a pantera de Jim das Selvas (de Alex Raymond).

— Os quadrinhos eram uma paixão que ele carregava desde pequeno, já que a televisão não era muito atrativa na época — explica Beatriz. — Quando começou a desenhá-los, não se limitava a copiá-los e imprimia seu toque pessoal.

Um marco nessa trajetória foram as viagens que Vallauri realizou para Nova York, no começo dos anos 1980, quando o grafite virou sua paixão.

— Nas primeiras cartas enviadas de Nova York, ele contava que, depois de conhecer Andy Warhol, passou a achar Picasso chato — relata a prima. — Ele mudou completamente com essas novas ferramentas, que permitiam uma linguagem mais contemporânea. E começou a pintar freneticamente nos muros de Nova York, sendo rapidamente reconhecido. Isso o fascinou, já que deu a ele um retorno popular que só tinha provado com a Rainha do Frango Assado.

É justamente a conexão entre essas duas partes da vida de Vallauri — os primeiros desenhos nos muros de São Paulo e os grafites em Nova York — que dão o tom da mostra do MAM-SP, que inclui cerca de 170 obras, passando também por fotografias, estampas em camisetas, fotocópias coloridas, entre outros meios e suportes, além de lembranças de sua participação em momentos como a histórica mostra “Como vai você, Geração 80?”, no Parque Lage, em 1984.

— Foi nos muros dessas duas cidades que ele realmente se expressou como um artista do grafite — diz Spinelli. — A exposição vai trazer também muitas coisas inéditas, conseguidas com colecionadores do Brasil e do exterior, além de fotografias e projeções de vídeos, por exemplo.

O que talvez escape da exposição, mas as cartas no livro de Beatriz revelam, é a disposição de Vallauri, já em seus últimos dias, em abraçar o universo infantil, através de recortes e painéis gigantescos. Nesse sentido, “Já era jacaré — Rolê pelo grafitti de Alex Vallauri”, de Renata Sant’Anna, serve como um prova de como poderia ter sido mais essa transição na carreira do artista.

— Hoje o grafite é muito presente no olhar das crianças, que veem essas obras por toda a parte. E Vallauri foi um pioneiro nessa arte — conta Renata. — Uso um texto mais poético do que formal para contar a sua história e a trajetória. O próprio projeto gráfico do livro simula, em muitos momentos, um mural, facilitando essa compreensão. O que não entra em palavras, entra em imagens. Acho que ele gostaria do resultado.