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Cultura

Semana de Arte Moderna de 1922: especialistas põem em xeque hegemonia historiográfica do evento

Pesquisadores criticam o 'paulistocentrismo' do movimento quase centenário, que desprezou iniciativas anteriores de renovação das artes e ignorou as diferenças regionais em nome de uma 'cultura brasileira'
Pesquisadores fazem balanço crítico da Semana de Arte Moderna de 1922, evento, que reuniu escritores, pintores e músicos, em São Paulo Foto: Arte de Telio Navega sobre foto / Editora de Arte O GLOBO
Pesquisadores fazem balanço crítico da Semana de Arte Moderna de 1922, evento, que reuniu escritores, pintores e músicos, em São Paulo Foto: Arte de Telio Navega sobre foto / Editora de Arte O GLOBO

“Para nós do Recife, essa Semana de Arte Moderna não existiu”, afirmou o escritor José Lins do Rego, em 1935. A caminho do centenário da Semana, em fevereiro de 2022, pesquisadores e críticos têm recordado a frase de Lins do Rego para questionar o “paulistocentrismo” da historiografia modernista. Segundo eles, o ponto de vista que elegeu a Semana como o marco zero do modernismo no país despreza as iniciativas de renovação das artes anteriores a 1922 e ignora as diferenças regionais em nome do “Brasil brasileiro” criado pelo evento, que reuniu escritores, pintores e músicos como Mário de Andrade , Oswald de Andrade , Di Cavalcanti , Anita Malfatti e Heitor Villa-Lobos , entre outros.

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Crítico da “modernistolatria”, o escritor Luís Augusto Fischer, professor da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), afirma que a Semana se tornou, definitivamente, o “Big Bang” do modernismo brasileiro já cinquentona, em 1972.

— Macunaíma já tinha virado símbolo nacional (o filme de Joaquim Pedro de Andrade a partir do romance de Mário de Andrade estreara em 1969) , saíram as obras completas de Mário e Oswald de Andrade e os tropicalistas apresentaram a antropofagia à classe média — explica Fischer, que prepara um livro sobre a história do modernismo, a ser lançado pela Todavia.

Visão de um ‘país dual’

Ele também lista um fato inusitado que teria contribuído para a vitória do mito “paulistocêntrico”: a criação do vestibular, no início da mesma década de 70. Para explicar aos vestibulandos o modernismo brasileiro, decidiu-se pela interpretação formulada na Universidade de São Paulo (USP) pelo crítico Antonio Candido e seus discípulos, que enfatizavam a importância da Semana de 22. Fischer ainda lembra que, como o evento de 22 se apresentou como um “movimento de ruptura”, outros modernismos com menos “sangue nos olhos” acabaram relegados à categoria indistinta de “pré-modernos”.

Para a crítica de arte Heloisa Espada, curadora do Instituto Moreira Salles (IMS), descartar os modernismos que ocorreram longe de São Paulo, antes ou depois de 1922, resulta numa historiografia mais “pobre”. Como exemplo, ela cita o modernismo goiano, que floresceu bem depois, nos anos 1950.

— Debater o modernismo e seus significados é debater os desejos e rumos deste país tão complicado. É uma pauta problemática e fértil — afirma Heloisa. — Pôr em xeque a hegemonia da Semana na nossa historiografia nos permite olhar para ela a partir do nosso presente e questionar, por exemplo, como o modernismo representou os corpos e se apropriou das culturas afrobrasileiras e indígenas.

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Como seus pares do Recife, os integrantes do Vândalos do Apocalipse, grupo modernista paraense, se ressentiam por não serem citados pelos colegas “do Sul”. Segundo o historiador Aldrin Figueiredo, da Universidade Federal do Pará (UFPA), a Semana reforçou a visão do Brasil como um “país dual”, onde a Amazônia e o sertão representariam o arcaico e o Sul urbano seria o retrato da modernidade.

— Quando Mário de Andrade veio para cá, em 1938, não quis falar com nossos intelectuais, que eram anomalias aos olhos paulistas, mas foi atrás do seringueiro, do caboclo, do “Brasil autêntico” — diz Figueiredo, citando a célebre viagem feita pelo escritor ao Norte e Nordeste do país em busca da genuína cultura popular. — A intelectualidade amazônica não foi incorporada ao debate sobre a modernidade porque a região era vista como um repositório de tradições nas quais se buscava a nacionalidade brasileira.

No bojo das discussões sobre a multiplicidade dos modernismos, a “cultura brasileira” criada pelo evento paulista a partir da mistura de referências folclóricas, negras e indígenas tem sido amplamente questionada . Segundo o historiador da arte Rafael Cardoso, que está lançando um livro sobre o tema, a nacionalidade forjada em São Paulo “abafa as diferenças regionais, étnicas e sociais”.

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Anos depois da Semana, a ideia de um Brasil autêntico e miscigenado foi apropriada pela ditadura do Estado Novo (1937-1945), que propagou o mito da democracia racial e abafou as diferenças regionais. Para Pedro Duarte , professor da PUC-Rio e autor de “A palavra modernista”, o projeto de “pavimentar a formação de um Brasil pacífico por meio da miscigenação e do sincretismo” já esgotou.

— Hoje é necessário marcar as diferenças, porque a ideia de “mistura” serviu para adiar indefinidamente a resolução de conflitos — afirma Duarte, que também questiona a ideia de que o modernismo teria nos legado noções bem acabadas de brasilidade. — O modernismo percebeu a impossibilidade de uma identidade nacional única. Macunaíma é o herói sem nenhum caráter porque não tem uma característica definidora. O herói da nossa gente é identitariamente indefinido.

Autor de livros como “A brasilidade modernista” e “Eu sou trezentos” (biografia de Mário de Andrade) , o filósofo Eduardo Jardim espera que as revisões da Semana de 22 não sejam apenas “reativas”.

— O modernismo visava incorporar o Brasil ao concerto das nações cultas, o que implicou renovar a estética e reafirmar traços da cultura nacional. Hoje não faria sentido escrever “Macunaíma” ou compor como Villa-Lobos — explica.

O filósofo também lembra que um dos primeiros a fazer um balanço do modernismo foi o próprio Mário. Numa conferência em 1942 ele afirmou: “Eu creio que os modernistas da Semana de Arte Moderna não devemos servir de exemplo a ninguém. Mas podemos servir de lição.”