Ao terminar de escrever “Malhação: intensa como a vida” para a TV Globo, em 2012, a roteirista estreante em novelas Rosane Svartman disse para a supervisora do texto, Ana Maria Moretzsohn, que nunca mais repetiria a experiência. A autora veterana de folhetins, então, previu:
— Tarde demais... Tenho certeza de que a mosquinha te mordeu.
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Ana Maria estava certa. Nestes 11 anos, Rosane não somente repetiu a experiência outras vezes como assinou sua primeira novela solo, “Vai na fé”, na faixa das 19h, que termina no dia 11 de agosto como sucesso de crítica e público.
Mal dá tempo de celebrar. A autora já entregou todos os capítulos e virou a chave. Na próxima quarta-feira, entra no ar no Globoplay sua série infantojuvenil “Vicky e a musa”, o primeiro musical da plataforma, que vai ter também uma versão editada para o Gloob, para ganhar tom mais infantil. Na terça-feira, lança no Rio o livro “A telenovela e o futuro da televisão brasileira” (Editora Cobogó), fruto de sua tese de doutorado na UFF. Na ocasião, haverá um bate-papo entre Rosane e a novelista Gloria Perez, mediado pela escritora e pesquisadora Bia Corrêa do Lago.
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Faz sentido que as duas novas obras cheguem ao grande público juntas.
—“Vicky e a musa”, que tem duas versões, veio de uma ideia que surgiu dentro do doutorado, de pensar como que esse conteúdo desliza entre várias telas — diz Rosane. —Acho que outras coisas que ando fazendo, de histórias a personagens, vêm das reflexões da academia. Tudo me ajuda a escrever.
Retrato de uma época
Filha de brasileiros, mas nascida em Memphis, nos Estados Unidos, quando o pai estudava no país (“vim para o Brasil aos 4 anos”), Rosane começou a carreira no cinema, nas áreas de roteiro e direção. Entre seus principais longas estão “Como ser solteiro” (1998), “Mais uma vez amor” (2005) e “Desenrola” (2010), filme adolescente que fez com que recebesse o convite para desenvolver a sinopse de “Malhação”.
Antes de “Vai na fé”, Rosane já havia passado pelo horário das 19h duas vezes, em parceria com Paulo Halm. Primeiro, em 2015, com “Totalmente demais”; depois, em 2019, com “Bom sucesso”. Nesta última, trabalhou com Sheron Menezzes, a protagonista de “Vai na fé”, pela primeira vez. Na época, ela foi a vilã Gisele. Agora, é a evangélica Sol, que começa a trama como entregadora de quentinhas e vira backing vocal e dançarina do astro da música pop Lui Lorenzo (José Loreto).
— Neste trabalho, me senti mais confortável de estar em contato com Rosane, embora ela sempre tenha sido uma autora muito acessível e aberta para conversar com os atores — diz Sheron. — Temos nos encontrado bastante, o que é superimportante. Isso é novo para mim. Nunca tive esse contato tão próximo com um autor.
Alternando humor escrachado com temas sérios, como assédio, importunação sexual, cotas raciais e ascensão social, “Vai na fé”conquistou o público e os anunciantes. A novela chegou a bater 33 pontos de audiência no Rio, a maior desde julho de 2021, e atraiu 15 parcerias com marcas, um recorde histórico para o horário, segundo a emissora.
— O desafio de “Vai na fé” foi a conexão com o espírito da época. Como autora, faz parte do meu trabalho testar assuntos — diz Rosane.
Renata Sorrah, que interpreta a atriz e empresária Wilma, estrela no passado e hoje esquecida, celebra esses “testes”.
— Rosane compartilha com os melhores autores o fato de trazer a realidade para dentro da novela — diz Renata, que trabalha com ela pela primeira vez. — O núcleo do qual faço parte tem humor, mas trata da importância do teatro e do cinema, e traz a realidade do meio artístico quando, por exemplo, discute o etarismo.
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Uma das principais autoras da casa hoje, Rosane não se sente atraída pelo horário das 21h, o espaço mais nobre para novelas na grade de programação da TV Globo. Ela acredita que seu tipo de humor rasgado é típico da faixa das 19h.
— Uma novela das sete tem um pouco de tudo: humor, drama, emoção. No livro, falo que o horário das 21h é o dos grandes temas. Há uma expectativa disso. Mas estou fazendo o que gosto. Entendo que, para o restante do planeta, seria uma ascensão, mas estou feliz.
A satisfação de Rosane está muito ligada às salas de roteiro que consegue montar para suas produções. Em “Vai na fé”, tem seis colaboradores, de idade, orientação sexual e raça diversas. Quando uma cena recebe elogios da crítica, ela faz questão de mencioná-los nas redes sociais.
—O roteirista não pode ser vaidoso — defende. — Tem que saber falar “desculpa, eu estava errado” e “sua ideia é melhor que a minha”. Afinal, a boa ideia sempre vence.
Olho nas redes e no censo
Na prática e na teoria do fazer televisivo, Rosane Svartman aprendeu a observar com parcimônia as redes sociais. Este assunto, inclusive, é parte importante de seu livro, com perspectivas sobre a real força desses ambientes no trabalho dos roteiristas e dos atores e na percepção da própria audiência. Usuária assídua do Twitter e do Instagram, ela sabe que, na rede de Elon Musk, por exemplo, estão os fãs mais apaixonados, mas não um retrato fidedigno de quem vê novela hoje no Brasil.
— O público do Twitter é de 18 a 29 anos e o da novela, 35 em diante. Então, muita calma nessa hora, porque uma produção desse tipo fala para 28 milhões de pessoas diariamente. Entendo que as redes sociais e a facilidade da hashtag pautem a mídia e, aí sim, isso pode afetar ou não o produto e os atores, que dependem das redes sociais como fonte de renda. Mas temos um laço social com um país imenso — diz. — É muito interessante ver que, nos focus groups (grupos de discussão organizados pela emissora com pessoas que assistem à novela assídua e eventualmente), as pautas, os personagens e as impressões das redes sociais não são mencionadas.
Isso não significa que, da estridência do Twitter, não possa sair uma ideia de cena, de personagem, de história. Ela anota tudo — antes era num caderninho, agora é no celular. Como boa pesquisadora, diz estar louca para destrinchar o mais recente censo do IBGE e, quem sabe, de lá tirar alguma grande inspiração. Com a personagem Sol, de “Vai na fé”, foi assim. A ideia de uma protagonista evangélica veio depois de observar a quantidade de pesquisas que apontavam o aumento de brasileiros declarando seguir a religião.
— Se faz diferença para a política pública, não vai fazer diferença para a arte? — indaga. — Nós que escrevemos novela falamos para uma nação, não é para um estado, para um governo, para uma rede social. Entender os movimentos de um país é muito caro e importante para mim. Antes de pensar na próxima história, quero ver o censo.
Na tela de Rosane Svartman
- Hit favorito do cantor Lui Lorenzo, personagem de “Vai na fé” interpretado por José Loreto: “Pool party”.
- Personagem favorita da história das novelas que Wilma (Renata Sorrah), de “Vai na fé”, diz ter quase interpretado: “Jade, de ‘O Clone’, e Carminha, de ‘Avenida Brasil’”.
- “Vale a pena ver de novo” sempre: “Adoraria rever ‘Estúpido cupido’ (novela exibida em 1976)”.
- Reality show favorito: “‘Os Lorenzos’ (história criada em ‘Vai na fé’ para o personagem de Lui Lorenzo) e ‘Tudo é possível’”.
- Sucesso de audiência na minha casa nos anos 1980:“‘Roque Santeiro’ (novela exibida em 1986)”.
- Última maratona no streaming: “A série ‘Silo’, da Apple TV+.
- Um filme que sabe as falas de cor: “‘A rosa púrpura do Cairo’ (dirigido por Woody Allen, de 1985)”.
- Na última vez em que foi ao cinema, assistiu a...: “‘Pluft, o Fantasminha’(filme dirigido por ela e lançado em julho do ano passado). Aliás, sei as falas de cor também”.