Rio Bairros

Eventos de arte urbana celebram o movimento que se percebe nos muros da Zona Sul

Grafiteiros da região falam sobre seus processos criativos, paixões e trabalhos expostos em feiras e galerias

Pintura de Marcelo Ment, na esquina entre as ruas Voluntários da Pátria e Sorocaba. em Botafogo: personagens femininas inspiradas em referências fotográficas híbridas
Foto: Leo Martins / Agência O Globo
Pintura de Marcelo Ment, na esquina entre as ruas Voluntários da Pátria e Sorocaba. em Botafogo: personagens femininas inspiradas em referências fotográficas híbridas Foto: Leo Martins / Agência O Globo

RIO - Flanar pelas ruas da Zona Sul é uma atividade que afaga os olhos: para além das celebradas paisagens naturais, os espaços urbanos repletos de intervenções artísticas fazem a região se destacar como uma verdadeira galeria a céu aberto. Nesse cenário, o grafite emerge como uma manifestação que, outrora estigmatizada, hoje, enfim, colhe os frutos de seu reconhecimento como arte. Inclusive nos meios mais tradicionais.

— O respeito aos grafiteiros só cresce. Eles abrem portas para a democratização da arte, uma bandeira que me é muito cara. A Zona Sul do Rio, principalmente, é o novo celeiro de grafite no Brasil, uma grande vitrine para o mundo — avalia o marchand Ricardo Kimaid, da galeria Movimento, em Copacabana, que apostou no talento de Toz, hoje um dos grafiteiros com obras mais bem cotadas no mercado de arte.

Eventos de arte urbana como o Art Rua, que acontece em paralelo à feira ArtRio, a partir desta quarta-feira na Zona Portuária; e o Arte Core, que tem início em outubro no MAM, vêm comprovar e celebrar o movimento que se percebe dia a dia nos muros. Na Zona Sul, as pinturas formam uma rota do grafite, que passa especialmente por Santa Teresa, Botafogo, Humaitá, Lagoa, sem contar o muro do Jockey Club, no Jardim Botânico, que recentemente recebeu uma grande intervenção feita por 18 expoentes do grafite do Rio (como Marcelo Eco e Bruno Br), com curadoria do Instituto Rua.

Os sprays e tintas trabalhando a todo vapor, para fins autorais e comerciais, rendem aos artistas uma produção que ganha destaque em exposições individuais e coletivas, sobretudo em redutos de street art, como a Homegrown, em Ipanema.

Diante do sucesso ascendente da cena, O GLOBO-Zona Sul entrevistou cinco grafiteiros da região — Acme, Marcelo Ment, Marcelo Jou, Meton Joffily e Toz — a respeito de suas trajetórias, processos criativos e projetos. Entre os caras que dão nova cara à cidade, o coro é uníssono: todos vivem de sua arte hoje em dia. Mas nem sempre o caminho foi favorável: no início, nos anos 90, os artistas enfrentavam dificuldades que iam desde a busca por referências (sem internet, acabavam descobrindo tendências pelo boca a boca, em escassas revistas vindas de fora, e alguns videoclipes) até a falta de aceitação das pessoas (“a gente tinha que pedir pelo amor de Deus por um muro”, diz Acme).

As parcerias e atividades paralelas ao grafite também engrossam a renda — como a ourivesaria, no caso de Marcelo Jou e a animação, a exemplo de Meton Joffily.

Em comum, todos têm mostras em curso, ou engatilhadas, e trabalham para reforçar sua identidade e território não só nos muros quanto no imaginário afetivo das pessoas, uma vez que todos ressaltam o amor envolvido em suas respectivas carreiras. O time garante, ainda, que uma arte com origem na transgressão também pode conter mensagens de alegria, claro, não sem pertinentes críticas humanas e sociais.

O raio-x a seguir mostra o que move essas pessoas que estampam paredes com beleza e conteúdo e onde encontrar o trabalho delas que, há mais de dez anos, provam que a “moda” do grafite é uma corrente permanente. E têm como seu melhor palco a urbe, que os presenteia com seus espaços e que, em troca, é agraciada com suas cores e valores.

RUMOS ARTÍSTICOS: DOS QUADRINHOS PARA OS QUADROS


Tomaz Viana, o Toz, é presença confirmada no Art Rua e no Arte Core, que acontecem, respectivamente, em setembro e outubro
Foto: Felipe Hanower
Tomaz Viana, o Toz, é presença confirmada no Art Rua e no Arte Core, que acontecem, respectivamente, em setembro e outubro Foto: Felipe Hanower

Baiano de Salvador, Tomaz Viana, o Toz, mudou-se para o Rio nos anos 90. Desde então, dissemina suas cores pelas paredes da cidade, com claras referências às HQs, uma de suas paixões. Os personagens que criou, como o Insônia e o Vendedor de Alegria, são xodós que acabaram virando sucesso de público. E de crítica. Toz é uma das apostas certeiras do marchand Ricardo Kimaid, da galeria Movimento, e vem conquistando colecionadores, que já fazem fila de espera por suas telas. Mas, na visão dele, ainda há barreiras a serem rompidas no universo da arte:

— O preconceito da sociedade em geral em relação ao grafite já se atenuou muito. Hoje, o pé atrás vem é da arte contemporânea, que muitas vezes tem dificuldade em nos aceitar como parte do movimento. Pois eu digo que o grafite ajuda a arte contemporânea justamente a reconquistar o público, por mostrar que ela pode ser para todo mundo, não só para uma minoria que teve bagagem acadêmica privilegiada.

Morador de Santa Teresa e membro do Fleshbeck Crew, ao lado de outros nomes como Piá e BrunoBr, Toz faz trabalhos para grifes e festivais, mas também realiza mutirões de grafite para intervenções em seus muros preferidos — estar em constante contato com os amigos, a quem ele chama de família, é essencial para seu processo criativo. Presença garantida no ArtRua, Toz atualmente também é professor de street art no Istituto Europeo di Design (IED), na Urca.

COLORINDO SANTA TERESA

Marcelo Jou, formado em Desenho Industrial pela UFRJ, se dedica ao grafite há 15 anos Foto: Leo Martins / Agência O Globo
Marcelo Jou, formado em Desenho Industrial pela UFRJ, se dedica ao grafite há 15 anos Foto: Leo Martins / Agência O Globo

Formado em Desenho Industrial pela UFRJ, Marcelo Jou se dedica ao grafite há 15 anos. Os muros de Santa Teresa, onde mora, são um portfólio ao ar livre do artista, que aposta num estilo menos figurativo.

— Meu grafite remete à raiz nova-iorquina, mais tipográfica. Mas desconstruo essas letras, e estimulo novas interpretações: meus desenhos são o que as pessoas quiserem que sejam – conta ele, que vai expor no ArteCore.

Um dos criadores do Santa Crew, coletivo que desde 2005 faz a cultura urbana circular em Santa Teresa, Marcelo aproveita a “a calmaria quase interiorana em meio a uma cidade babilônica” também como inspiração para seus projetos comerciais, que incluem esculturas e joias personalizadas. Já o grafite, para ele, é, acima de tudo, uma experiência que não tem preço:

— Não é só uma escola de arte, mas de formação de caráter, pelas lições de ética que me trouxe.

ANIMAÇÕES E EXPOSIÇÕES

Meton Joffily, grafiteiro e morador do Leblon Foto: Leo Martins / Agência O Globo
Meton Joffily, grafiteiro e morador do Leblon Foto: Leo Martins / Agência O Globo

Bem antes de sua graduação em Desenho Industrial, Meton Joffily já sonhava em ter o grafite e a ilustração como suas principais fontes de renda e realização pessoal como, de fato, hoje são. Com traço elogiado desde a adolescência, o artista tem no currículo badalados curtas-metragens de animação cujos personagens acabaram repercutindo nas paredes da Rocinha ao Alto Leblon, onde vive. Os mais famosos, como o morador de rua Ninho e o irônico Ratones, carregam críticas ao consumismo e à desigualdade social.

— Sou muito observador das dinâmicas da rua e aplico às minhas pinturas o que essas percepções me despertam — diz ele, que está na Homegrown até o dia 27 com a exposição “Atenção obras”, sua primeira individual, com intervenções de grafite em placas de trânsito.

CONTRASTES INSPIRADORES

A identidade artística de Marcelo Ment é fruto de suas andanças pelo Rio de Janeiro e pelo mundo. Nascido na Vila da Penha, hoje morando no Humaitá, ele já expôs na Europa e nos EUA e tem como inspiração os contrastes urbanos e sociais que fazem parte de sua realidade. Confirmado no ArteCore, o grafiteiro acaba de ter seu trabalho estampado em uma linha de tênis femininos.

Marcelo Ment, morador do Humaitá, teve seus trabalhos estampado s em uma linha de tênis femininos Foto: Leo Martins / Agência O Globo
Marcelo Ment, morador do Humaitá, teve seus trabalhos estampado s em uma linha de tênis femininos Foto: Leo Martins / Agência O Globo

— Assim, atinge-se um outro perfil de consumidor de arte urbana. Nem todo mundo pode comprar uma tela de grafite, mas pode ter o produto — destaca ele, que tem como uma das marcas registradas as mulheres cheias de personalidade que pinta, como essa da foto, em Botafogo — Elas são um híbrido de referências fotográficas, não necessariamente pessoas que existem — esclarece.

Independente de galerista, Marcelo faz quadros sob encomenda, inclusive para o exterior, e mostra-se profícuo ao transitar entre o autoral e comercial:

— O que eu pinto nos muros é feito com sobras dos trabalhos que fiz. Já que o meu reconhecimento veio da rua, nada mais justo que eu devolva para elas o meu respeito e gratidão em forma de arte.

HISTÓRIAS DE VIDA ESTAMPADAS NOS MUROS

Guiado pelas paixões por skate e hip hop e pelo talento nato para o desenho, Carlos Esquivel, o Acme, ingressou no grafite aos 18 anos, após se desiludir com o trabalho no quartel. Nascido e criado no Pavão-Pavãozinho, onde mora até hoje, o artista tem suas lutas pessoais e histórias de vida como matéria-prima.

— Coloco nos desenhos a minha alma, meus afetos, e a importância que dou à família. A arte tem um conteúdo muito mais especial e consistente quando apoiada nesses alicerces — afirma ele, que participará da ArtRua.

Um dos primeiros grafiteiros a expor em galeria (sua estreia foi no Cassino Atlântico, em Copacabana, há mais de dez anos), Acme é um veterano atento ao potencial das novas gerações e ligado à arte-educação em sua comunidade:

— Fui presidente do Museu de Favelas por dois anos, e me envolvo em oficinas de grafite, prestando assistência a quem tem interesse em começar. Rola um intercâmbio legal sempre que pinto no morro, mantenho a arte viva em mim fazendo a arte viver neles.

Acme destaca o grafite no Brasil como instrumento de resgate social, sendo ele próprio exemplo de quem teve a vida transformada pela arte.

— A águia que aparece em minhas pinturas é o símbolo da minha renovação. Tenho um passado de mazela que consegui superar — conta ele, que também trabalha com esculturas, serralheria e marcenaria.

ONDE ENCONTRÁ-LOS

ART RUA

De hoje a domingo, no Centro Cultural Ação da Cidadania — Avenida Barão de Tefé 75, Saúde. De meio-dia às 20h. Entrada gratuita.

ARTE CORE

Dias 18 e 19 de outubro, no MAM — Avenida Infante Dom Henrique 85, Glória. Entrada gratuita.

GALERIA MOVIMENTO

Avenida Atlântica 4.240, loja 212, Copacabana. Tel.: 2267-5989.

HOMEGROWN

Exposição “Atenção Obras” de Meton Joffily, até o dia 27, das 10h às 20h, de segunda a sexta; e sábado do meio-dia às 18h. Rua Maria Quitéria 68, Ipanema. Entrada gratuita.