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Quase aos 80 anos, artista naïf reinventou sua história e passou a pintar diariamente

Dez anos depois, Glória Barbosa agora se prepara para inaugurar exposição no Centro Cultural Correios
Glória Barbosa pinta quadros de arte naïf em seu ateliê na Vila do Largo Foto: Bruno Kaiuca / Agência O Globo
Glória Barbosa pinta quadros de arte naïf em seu ateliê na Vila do Largo Foto: Bruno Kaiuca / Agência O Globo

RIO — Glória Barbosa, aos 89 anos, se dedica a pintar telas inspiradas na arte naïf . Não faltam a ela o amor pela arte e a disposição para uma incansável produção. Trabalha todos os dias e se inspiram na natureza e nos costumes da cidade que escolheu para viver, enxergando um Rio de Janeiro ainda maravilhoso. Dona Glória Barbosa tem muitas histórias para contar. E boa parte delas é narrada por meio de seu trabalho. Pintora de arte naïf, ela retrata em suas telas um pouco do passado dos cariocas, desde o tempo dos bondes e dos corsos de carnaval. A fé, as tradições, as moradias e as festas são temas das obras que pinta.

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Para festejar os seus 90 anos, que serão completados no dia 14, ela ganhará uma exposição que será um verdadeiro presente para os admiradores da sua arte criativa, lúdica e colorida. De 26 de setembro a 3 de novembro, no Centro Cultural Correios, a mostra “Vamos cirandar” reunirá 38 quadros e painéis sobre as cirandas de roda e brincadeiras infantis. Além dos quadros, o espaço terá uma ambientação que remete à infância à moda antiga, trazendo memórias que fazem parte da cultura brasileira.

— Pinto as coisas que vi e vivi na infância, numa grande casa na Tijuca, na Rua Dona Delfina. Ia também muito ao sítio do meu avô italiano, em Jacarepaguá. Minhas irmãs foram normalistas do Instituto de Educação, mas eu não quis ser. Aos poucos, o passado foi aflorando e sendo colocado nas minhas telas.

Ela lembra que, aos 10 anos, viu uma fotografia em que todos os familiares apareciam vestindo roupas pretas.

— Estavam todos de luto e muito sérios. Aquilo me impressionou muito. Anos depois, a cena voltou à minha cabeça e pintei uma tela. Gosto muito de retratar figuras humanas — conta, mostrando o quadro em que aparecem quatro adultos e quatro crianças, em um ambiente caseiro, sob a mira de um fotógrafo lambe-lambe.

Carnaval: corso retratado por Glória Barbosa Foto: Bruno Kaiuca / Agência O Globo
Carnaval: corso retratado por Glória Barbosa Foto: Bruno Kaiuca / Agência O Globo

Uma vez por semana, quase sempre às terças-feiras, ela vai ao Atelier Casa4 de Arte e Filosofia , em Laranjeiras, espaço que divide com uma de suas quatro filhas, Claudia Barbosa, na charmosa Vila do Largo, na Rua Gago Coutinho. No mezanino, são realizados cursos de arte e filosofia, orientados por especialistas. Lá, na casinha com cortinas rendadas, chega a emocionar observar a pintora em seu ofício, criando, no cavalete, uma cena. Sempre que possível, com um copo de vinho tinto como companhia:

— Gosto de pintar ouvindo música e tomando um vinhozinho.

Moradora do Leblon, dona Glória conta que se casou aos 22 anos com um tenente. Tiveram quatro filhas.

— Morei no Brasil todo, de Norte a Sul. Depois, no final dos anos 1960, passamos três anos vivendo em Paris. Fui uma e voltei outra da capital francesa. Depois, fiz um curso de arte no Parque Lage — conta.

Festa de São João pelas mãos da artista naïf Glória Barbosa Foto: Bruno Kaiuca / Agência O Globo
Festa de São João pelas mãos da artista naïf Glória Barbosa Foto: Bruno Kaiuca / Agência O Globo

Dona Glória lembra que começou a pintar de forma autodidata:

—Eu pintava sem saber que era arte naïf. Antigamente, era considerada uma arte menor. Hoje, está muito mais valorizada

Até a morte do marido, há cerca de dez anos, ela morou em Brasília. Viúva, decidiu mudar de cidade e viver toda a sua paixão pela arte, voltando ao Rio de Janeiro.

— Eu vivi a vida toda para ele e para a família. Aos 80, resolvi recomeçar e ter uma outra vida. Vendi o apartamento em Brasília e comprei um no Leblon, onde sou muito feliz. Comecei tudo de novo e hoje, se me deixarem, pinto o dia inteiro. Os tempos mudaram e fico orgulhosa da independência que as mulheres conquistaram. Elas estão conseguindo se impor — diz dona Glória, que tem seis netos e uma bisneta.

Autora do livro “Vozes e imagens perdidas”, da Folha Carioca Editora, lançado em 1985, ela lembra com carinho que mereceu elogios de Carlos Drummond de Andrade que, entre outras coisas, ressaltou a capacidade da autora de registrar as “(...) figuras do Brasil de ontem!”.

— Meu irmão mostrou o livro e Drummond devolveu com uma carta muito bonita — recorda dona Glória, que tem três obras no acervo do Museu Internacional de Arte Naïf, criado por Lucien Finkelstein e fechado por falta de recursos.

Dona Glória termina a entrevista recitando uma de suas frases favoritas: “Se a juventude soubesse, se a velhice pudesse”, de Henri Estienne.

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