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Rio Show

Em resgate ao passado de fotógrafo carioca, série percorre rotas da escravidão na África

Disponível em streaming no app Box Brazil Play, 'Sankofa' traz registros de costumes locais, monumentos e personagens históricos
Registro em Moçambique: saga por nove cidades integrantes da rota da escravidão já virou exposição, livro e, agora, série de TV Foto: César Braga
Registro em Moçambique: saga por nove cidades integrantes da rota da escravidão já virou exposição, livro e, agora, série de TV Foto: César Braga

RIO — Na filosofia nativa de povos da África Ocidental, a palavra “sankofa” quer dizer “volte e pegue”. Ela é simbolizada por um pássaro com duas cabeças, uma olhando para frente e outra voltada para trás, representando um retorno ao passado para ressignificar o presente e construir o futuro.

Não à toa foi o termo escolhido para dar nome à série documental “Sankofa — A África que te habita” , que estreou na sexta-feira (1) no canal a cabo Prime Box Brazil, disponível também no aplicativo Box Brazil Play (na TV, a exibição é às sextas, às 20h30m).

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Em dez episódios, César Fraga , fotógrafo, e Maurício Barros de Castro , doutor em História pela USP e professor do Instituto de Artes da Uerj, peregrinam por nove cidades do continente africano, seguindo o trajeto das quatro rotas transatlânticas da escravidão: Guiné, Mina, Angola e Moçambique.

Em cada destino, César registrou vestígios de monumentos e tradições e a beleza dos povos em fotografias, nesta jornada que virou exposição em 2016 e ilustra o livro “Do outro lado” (Editora Olhares), com pesquisa histórica escrita pelo professor Maurício.

César Fraga: fotógrafo carioca partiu em busca de suas raízes no continente africano Foto: Divulgação
César Fraga: fotógrafo carioca partiu em busca de suas raízes no continente africano Foto: Divulgação

Para além de um registro documental, a ideia de “Sankofa” é resgatar a própria história de César, bisneto de uma beneficiária da Lei do Ventre Livre , que garantiu a liberdade aos filhos de mulheres escravizadas, a partir da data de sua promulgação, em 1871. Em sua viagem por solo africano, o fotógrafo não conseguiu descobrir o local exato onde viveram seus ancestrais, mas tem um palpite.

— Fui reparando em detalhes fisionômicos e comportamentais que faziam com que eu me perguntasse: “Será que foi daqui que eu vim?” Na Nigéria, conheci os iorubás. Se tivesse que apostar, acho que minha origem vem de lá. Ô, povo encrenqueiro! — brinca César, cuja curiosidade pelo próprio passado não se mostra como fato isolado.

Olhar de retorno

Segundo Maurício, desde a década de 1960, impactada pelas lutas anticoloniais de libertação dos países da África e pelo movimento Black Power, é crescente o interesse pelo estudo dos movimentos de diáspora africana.

Ele afirma que, a partir dos anos 2000, o debate racial se tornou incontornável , na medida em que as reivindicações por representatividade nos espaços da arte e da cultura passaram a ser expostas de forma contundente, denunciando a invisibilidade de artistas e intelectuais negros.

Maurício (à esquerda) e César (à direita): problemas de logística superados pelo acolhimento dos povos africanos Foto: Divulgação
Maurício (à esquerda) e César (à direita): problemas de logística superados pelo acolhimento dos povos africanos Foto: Divulgação

Todos esses movimentos de luta são acompanhados por um olhar de retorno à África, envolvendo uma reflexão sobre ancestralidade e suas construções contemporâneas . O Brasil não fica à margem deste processo.

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— Existem muitas similaridades entre nosso país e o continente africano, principalmente quando pensamos nas religiões afrodiaspóricas, como o candomblé , e em expressões culturais como o samba e a capoeira — analisa Maurício. — Ao mesmo tempo, é possível perceber que há uma imensa diversidade nas culturas africanas e que muitas reconfigurações ocorrem neste movimento da diáspora, principalmente em países como o Brasil, constituídos por heranças daquele continente.

Entre outros elos que unem brasileiros e africanos, estão as correntes dos negros escravizados que aqui desembarcaram. Um milhão deles chegaram aqui pelo Cais do Valongo , na Zona Portuária do Rio.

O espaço, que recebeu da Unesco o título de Patrimônio Histórico da Humanidade em 2018, é protagonista do primeiro episódio de “Sankofa”, quando César e Maurício explicam as dificuldades de viabilização da viagem dos navios negreiros.

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Em seguida, a dupla conhece a África muçulmana da colorida Dakar , no Senegal. Surpreendem-se com a beleza e a tranquilidade da Ilha de Gorée , rota com menor número de escravos vindos para o Brasil, em sua maioria destinados ao Maranhão. Conhecem, em Angola, a história da rainha Ginga , símbolo da resistência feminina à colonização portuguesa. E também identificam a influência árabe em Moçambique .

Mãos dadas com o povo

Uma viagem marcada por dificuldades de logística já esperadas, uma vez que boa parte do continente tem chagas de décadas marcadas por guerras civis . Porém, em sua memória, o que César guarda é o carinho dos povos que conheceu no caminho. Especialmente depois de entenderem a motivação da viagem dos dois.

— Passavam a nos tratar como se fôssemos da família. Em Guiné-Bissau, me apresentei a um grupo de jovens sentados em roda na grama. Um deles me disse: “Já que somos irmãos, você vai sentar e comer com a gente.” — relata César. — Foi quando uma senhora colocou uma tigela de arroz no meio da roda, e todos comemos com as mãos. Quando me deparava com um interlocutor intransigente, que se negava a nos deixar registrar algo importante, tinha que usar a minha frase mágica: “Meu sangue é o teu sangue.” Quase sempre funcionava.