ENTREVISTA

Eu vivo basicamente da venda dos meus livros

Júlio Emílio Braz é um dos maiores escritores infanto-juvenis do Brasil. Nessa conversa com a nossa equipe ele contou como vive apenas da venda de livros, como é sua rotina de escrita e como foi sua experiência como roteirista dos Trapalhões.

1) Como foi a sua relação como os livros na infância? Como você adquiriu o hábito da leitura? Qual o livro que mais te marcou neste período?

Eu nasci em Minas Gerais e vim para o Rio de Janeiro quando tinha cinco anos. Depois de uns tempos morando em Duque de Caxias, fui morar na favela da Maré. A família era pobre e não tínhamos acesso algum a livros até que uma tia (Tia Geralda) começou a levar para mim e para minha irmã livros e revistas que eram do patrão dela e dos filhos dele, e que eles não queriam mais. Como sou o mais velho, comecei a me interessar pelos livros (admito que as revistas me interessavam mais, pois eu ainda não sabia ler e ficava olhando as ilustrações).Foi assim que aprendi a ler antes de entrar na escola. Minha tia era analfabeta e por conta disso, vinha todo tipo de livros, desde os que diríamos que eram indicados para crianças (nesta época, os que mais me marcaram foram uma tradução de A Ilha do Tesouro de Robert Louis Stevenson, Memórias de Um Cabo de Vassoura, de Orígenes Lessa, A Ilha Perdida de Maria José Dupré, e O Cão dos Baskervilles, de Conan Doyle, com Sherlock Holmes, até hoje meu personagem favorito). Outra fonte de leitura era o velhinho da banca de jornais que ficava na entrada da favela. Eu comprava um gibi no início do mês e passava a conversa no velhinho, que era muito gente boa, e ia trocando a revista ao longo do mês (desde que estivesse com aspecto de nova). Minha terceira fonte era a Dona Bela, uma amiga de minha mãe, que levava as revistas do filho dela para eu ler, mas eu acabava não devolvendo. Na escola mesmo, só os livros que a Dona Solange, que cuidava da biblioteca, conseguia ou levava da casa dela para ler para nós. Livros que eu comprei para ler, apenas quando comecei a trabalhar, lá pelos quatorze, quinze anos.

2) Hoje, muitos autores têm o desafio da publicação. Como foi a publicação do seu primeiro livro? Quais as dificuldades que você encontrou?

Eu comecei profissionalmente escrevendo roteiros para histórias em quadrinhos na Editora Vecchi do Rio de Janeiro e posteriormente, livros de bolso de bang bang para editores como Cedibra, Monterey e Nova Leitura (sob pseudônimos). Na literatura infanto-juvenil, eu comecei quase por acaso: um amigo meu, o desenhista Roberto Kussumoto, ilustrava meus roteiros de quadrinhos, quando eu ia a São Paulo, me levava as editoras e em certa ocasião, me levou a FTD, onde o editor, que era o autor Lino de Albergaria, me pediu para enviar um original. Quando enviei, ele havia saído e a pessoa que ficou no lugar dele não se interessou pelo livro. Eu fui peregrinando por várias editoras até que a sexta, a Atual Editora, aprovou para publicação e o livro saiu em 88 para ganhar o Prêmio Jabuti de Autor Revelação em 1989. O prêmio ajudou e facilitou um pouco a que eu apresentasse e tivesse outros originais publicados.

3) Você ganhou um Jabuti, maior prêmio literário do Brasil, logo no seu primeiro livro infanto-juvenil. Como isso influencia sua escrita? Qual a importância que você dá aos prêmios literários?

Prêmio no início é complicado, pois você fica pensando bobamente que tem a obrigação de ganhar sempre prêmio e não é por aí. Se não desencana, acaba inviabilizando sua escrita, pois deixa de ser prazer para ser a obrigação de ser perfeito, maravilhoso, para ganhar outros prêmios. Prêmio é legal, mas vamos ser sinceros: se você for um mau escritor, ele não vai te tornar um bom escritor, e se for um bom escritor, não ficará melhor (pelo menos não por conta do prêmio mas de um constante e necessário aprimoramento).

4) Você começou escrevendo western e histórias de terror. Por que você decidiu fazer essa mudança para os livros infanto-juvenis?

A mudança se deu basicamente por que eu estava cansado de escrever a mesma coisa e já não encontrando prazer o que fazia.Sou inquieto e por conta disso, não me fixo em gênero e sempre busco fazer coisas novas (agora mesmo, cinquentão, estou querendo voltar a escrever para outra de minhas paixões, que é a televisão e o cinema).

5) Você aborda muitos temas sociais. Como é a preparação para isso? Você realiza algum tipo de pesquisa antes de começar a escrever?

Adoro temas sociais. Mesmo quando é uma história de terror ou policial, por exemplo, sempre há um viés social em meus textos. Não há uma preparação específica, mas pesquisa permanente. Converso com pessoas que trabalham, por exemplo, com crianças de rua, se o tema for este; adolescentes grávidas, quando o tema é gravidez na adolescência, e por aí vai.

6) Você tem mais de 170 obras publicadas. Como é seu método de escrita? Você escreve todo dia? Tem algum ritual? Tem alguma meta diária de laudas?

 Eu escrevo o tempo todo. Minha mochila carrega sempre muitas canetas e vários bloquinhos onde faço anotações, anoto diálogos e rascunho histórias. Eu anoto tudo e ~como adoro transporte público, passo o tempo todo observando as pessoas, ouvindo a conversa dos outros e olhando. Usando um termo bem antigo, eu me considero um flaneur, um observador. Como me considero um profissional, algo raro no país, onde escrever é diletantismo ou visto como tal (as pessoas aqui acham que arte tem que ser de graça, a começar por nossos políticos), me obrigo a escrever o tempo todo. Tem sempre um livro sendo iniciado e outro a concluir. Na minha mesa de trabalho, por exemplo, o lado esquerdo tem uma pequena pilha de livros começados (é, eu tenho esse hábito meio louco de escrever vários livros ao mesmo tempo).

7) Você vive exclusivamente dos direitos autorais dos seus livros ou tem alguma atividade que gera renda extra?

Eu vivo basicamente de direitos autorais. Claro que é bem difícil e volta e meia enfrento dificuldades. A contabilidade tem que ser bem cuidada para não dar zebra e mesmo assim já tenho a minha cota de inserção nos SPCs da vida, protestos e coisas comuns a quem vive do seu trabalho e procura ser honesto. Devo agradecer muito inclusive por ter editores muito pacientes, pois volta e meia a coisa aperta e eu aporrinho mesmo, pois sem falsa modéstia, vendo bem e não dou prejuízo a quem confia em mim ao ponto de publicar meus livros. Outra renda que vem surgindo agora são as palestras pagas e estou criando uma pessoa para consegui-las para mim.

8) A Amazon entrou com muita força no Brasil. Como você vê o mercado de e-books? Acredita que as crianças estão migrando do livro físico para o livro digital?

Acredito que os e-books serão mais uma maneira de ler, mas não substituirão totalmente o livro impresso ou mesmo, o audiolivro. Ultimamente estamos nos tornando pessoas muito reducionistas, ou seja, se tem samba não pode ter funk, se há cinema, acabou a televisão, e como sabemos, a vida não é tão simples assim. Hoje em dia, rádio, tv, cinema, tv a cabo, Netflix, convivem muito bem, obrigado, ao lado do teatro, e de outras tantas manifestações artísticas. Eu pessoalmente não me sinto à vontade com e-book, mas existem pessoas que gostam. O importante é que, de um jeito ou de outro, estamos lendo.

9)  Você trabalha com algum agente literário? Acha importante ter esse profissional auxiliando o autor?

Até o ano passado, não trabalhava com agente literário, mas como são muitos livros, muitos editores, muitas escolas e viagens, estava sobrando pouco tempo para escrever. Aí eu joguei a toalha e estou me acertando com uma agente literária de São Paulo. Acho um trabalho muito importante, pois o autor, com raras exceções, não tem muita habilidade nas relações com editores que demanda um tempo que o autor usaria melhor escrevendo. Eu envio os originais pelos Correios ou via e-mail. Não gosto de fazer visita nem ficar de mimimi a não ser, claro, com aqueles com que tenho uma relação mais pessoal e sem interesse profissional, que não são muitos. O agente pode ser ponte mas também é parede (principalmente quando a relação entre autor e editora se torna conflituosa).Agente? Eu apoio!

10) Você trabalhou como roteirista do programa dos Trapalhões. Como foi essa experiência? Por que você deixou de escrever roteiros?

Confesso que eu não estava preparado para trabalhar na televisão quando fui convidado para escrever sketches para os Trapalhões. Eu queria ser um Neanderthal, ou seja, escrever os roteiros, entregar e só ficar por lá quando tivesse algum quadro meu sendo gravado, e não funciona assim. Vivemos num país onde as relações são muito valorizadas e eu não aprecio essas coisas. Por isso, não criei raízes, apesar de ter conseguido que os capítulos de uma novela que escrevi para uma emissora paraguaia fossem analisados e a pessoa que analisou ter me indicado para ser dialoguista. Foi uma oportunidade perdida, mas é algo apaixonante e se tiver a oportunidade, gostaria de retornar. Vou continuar o Neanderthal de sempre, mas agora um pouquinho mais esperto e com uma agente para cuidar da ponte (ou da parede).

11) Muitos autores têm uma relação de amor e ódio com seus editores. Como é seu trato com seus editores? Eles interferem muito na sua obra?

Acredito-me possuidor de muita sorte, pois tive editores maravilhosos que interferiam o mínimo no que eu escrevia e quando o faziam, davam toques magistrais. Mesmo correndo o risco de ser injusto ao esquecer algum, posso citar Maurilo Sampaio, um baita editor e amigo, que viabilizou minhas publicações na FTD e a quem devo (tanto a ele quanto a editora), uma conta que jamais conseguirei pagar (a ambos); Maristela Petrili, que me levou para a Moderna e deu dicas preciosas para tornar meu livro favorito, Crianças na Escuridão, uma obra maravilhosa, premiada fora do Brasil e publicada também (agora mesmo está saindo a edição digital no México); Rogério Gastaldo, meu editor na Saraiva, e Sérgio Alves, mais do que um editor, um inestimável amigo, um verdadeiro Muro de Lamentações que tem uma paciência de Jó para ouvir as minhas lamúrias e a quem devo, inclusive, a agente literária.

12) Como você vê o mercado editorial hoje em dia? Você acha que melhorou ou piorou, desde que você começou a publicar?

Claro que ele está bem melhor e muito maior e diverso de quando eu comecei. Hoje ele está tão bom que o autor não precisa necessariamente se sujeitar a editoras, pois com o advento da Internet, muitos autores, grandes autores, têm conseguido se publicar e adquirir uma visibilidade que antes tinha que passar forçosamente por algum editorial mais tradicional. Temos mais bibliotecas, blogs ligados em literatura, gente falando, gente lendo (meu termômetro são os ônibus e trens em que viajo, onde vejo cada vez mais gente lendo, mesmo nas telas de seus celulares, e com a boca fechada – ainda somos um povo exageradamente oral e essa oralidade me cansa às vezes, pois é demasiada porém rasa e tola). A crise atrapalhou bem, mas ela será superada. Hoje em dia o dilema é outro: quando eu era criança, o dilema eram as prateleiras vazias ou cheias de livros velhos que ninguém queria ler; hoje, são as prateleiras cheias de livros que ninguém quer ler e sendo sincero, mesmo correndo o risco de aborrecer a muitos professores, por que muitos professores também não gostam de ler. A criança não tem leitura como cotidiano familiar e chega na escola é também não a vê acolhida pelo seu professor, como podemos esperar que ele seja um leitor? Quer saber? Por conta disso, acho até que temos um número apreciável de leitores.

13) Como você a divulgação dos livros através de blogueiros e booktubers? Acha que a crítica literária está morrendo?

Acho o trabalho dessa galera que está pela Internet, escrevendo e falando sobre literatura, imprescindível no que tange a aumentar o interesse pela leitura e a quantidade de leitores. No entanto, quando se tem muita gente fazendo a mesma coisa, inevitável que apareçam excelentes críticos e outros menos interessantes ou superficiais. Acredito que o público naturalmente acabará fazendo a necessária depuração e os melhore se mais interessantes permanecerão.

14) Você tem livros publicados no exterior. Como foi essa transição? E em que país você tem um retorno mais positivo das suas obras?

Não houve nenhum trabalho coordenado e cada caso foi diferente: uns, através do contato entre editores brasileiros e estrangeiros, outros, através da divulgação de orgãos como a FNLIJ (na Feira de Bolonha, por exemplo), que foi o caso da publicação em alemão de meu livro Crianças na Escuridão, e muitas vezes, são agentes  literários (no caso da edição italiana de Crianças na Escuridão, a responsável foi a agente literária Ana Maria Santeiro) ou o autor, na cara e na coragem (a edição em espanhol de Crianças na Escuridão foi negociada por mim diretamente com a editora). A língua em que sou mais bem-sucedido é a alemã e o livro mais destacado, Crianças na Escuridão (“Kinder im Dunkeln ” em alemão). Em 1997, ganhei o Austrian Children Book Award, na Áustria, o Blaue Brillenschlange, na Suíça, e menção honrosa no Kinderbuchpreis der Berliner Ausländerbeauftragten, na Alemanha.

15) Qual seria a sua dica para um escritor iniciante?

O conselho é o mais óbvio possível: leia muito, leia sempre, leia até o que não goste, e escreva sempre. Outra: não peça a amigos para dar opinião sobre o que escreve, mas mande periodicamente para editores. A maioria devolve com a protocolar cartinha de recusa, mas sempre tem um mais generoso que te dá excelentes dicas mesmo na recusa.

16) Sabemos que você tem um projeto de seu próprio “Harry Porter”. A quantas anda esse livro?

Chama-se SAGAS SELVAGENS e eu lancei o primeiro volume (são seis) por conta própria, mas não gostei do resultado final. Por isso, vou reescrevê-lo e tentar novamente, agora através de minha agente.

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