Um quilombo no meio da cidade

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Após um longo percurso pela extensa Rua Filomena Zupardo na cidade de Itatiba, SP, eu me deparo com uma grande porteira. De longe já percebo que aquele lugar não é comum, devido a sua grande porteira azul com um enorme rosto de mulher negra grafitado.

Acredito que quem faz esse percurso e avista de longe essa porteira azul, nem imagina o que há por detrás dela. Talvez desperte curiosidade em alguns e cause estranheza em outros. Mas com certeza, à primeira vista, saber que aquele é um sítio em que diversas famílias compartilham o mesmo território por mais de um século, isso só quem mergulha nessa história pode conhecer! Esse é o Sítio Brotas nome popular entre os mais velhos. Ou Condomínio Quilombo Brotas (QB), nome que os moradores mais jovens deram para o lugar.

Até o limite da porteira, o caminho é traçado por ruas de asfalto, com casas de alvenaria e portões altos, postes de iluminação, saneamento básico, coleta de lixo, ou seja, todas as políticas públicas oferecidas para moradores de perímetros urbanos, mas da porteira para dentro, a história é outra.

image3037Quem adentra a porteira azul com um pensamento urbano pode até questionar o porquê das ruas não serem asfaltadas. O porquê daquela parte da cidade não ter acompanhado o progresso, a modernidade. Quem for mais a fundo, vai conhecer o lado perverso do preconceito que maltrata uns e privilegia outros. Pode ser até que as ruas de terra, dentro desse sítio, façam parte de um desejo de seus moradores. Mas a falta de saneamento básico, água tratada, iluminação nas ruelas, necessidades básicas para a sobrevivência humana, coisas que seus vizinhos possuem sem precisar implorar ao poder público, com certeza não faz jus ao conceito de igualdade de direitos.

Ao entrarmos pela grande porteira azul com a figura da mulher negra, imediatamente tiramos o pé do asfalto e pisamos em uma ruela de terra. Ali já se veem muitas casas, a maioria delas construída com simplicidade, ou melhor, dizendo, construídas da forma que fora possível na época. Quem precisa de um teto para se abrigar, não fica pensando no luxo ou no que é esteticamente correto para quem vai olhar de fora.

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Por todos os cantos se vê muitos cachorros e muitas crianças também. Algumas vezes, os latidos se misturam aos gritos, choros e risos de crianças, e isso tudo se transforma em uma melodia atrapalhada, misturada ao som de um rádio, que sempre está com o volume alto. São tantos os sons que, muitas vezes, não se consegue distinguir de onde veem, mas são eles que dão o ritmo dessa comunidade.

 

 

image3015Na entrada do sitio Brotas há uma árvore muito grande, provavelmente deve estar lá faz muito tempo. Suas raízes, extensas e grossas, servem de banco e apoio, e sua copa de proteção contra o sol. À direita se vê uma casinha com uma placa bem grande onde está escrito: “Associação Cultural Quilombo Brotas”. Ali é a sede da associação, que nem sempre está aberta. Lá dentro há uma sala de aula com algumas cadeiras onde, à noite, por meio de um convenio firmado com o Senac Rural, são dadas as aulas para aqueles que ainda não terminaram o ensino fundamental. Há também o telecentro, com computadores e acesso à Internet.

Algumas casas na parte de cima possuem cercados imponentes causando receio em quem se atreva a atravessar. Mas a maioria das casas não possuem muros, cercas ou portões, pois ali esse cuidado e preocupação com a segurança e privacidade não existe, são todos parentes, amigos, companheiros. Para que esconder o seu cotidiano, se quando o calo aperta, nos olhos dos que ficam em frente é de onde vem o socorro?

Imagem2As portas das casas sempre estão abertas, não há muita cerimônia, mesmo porque o vizinho de frente é um primo, o de trás é um cunhado ou um tio. Não há a necessidade de esconder o seu modo de vida. Sempre se vê uma mulher lavando a roupa ou um grupo de pessoas sentadas, conversando.

Voltando à rua principal, da entrada do quilombo avistamos alguns bancos, uma espécie de praça, onde muitas vezes vi tia Aninha, neta de Amélia, a moradora mais velha do quilombo, sentada contando histórias para a criançada ao seu redor. Ao lado dessa pracinha está a casa dessa senhora, que eu aprendi a chamar carinhosamente de tia. A casa fica escondida no meio de muitas árvores, arbustos e galhos que se elevam até o teto do casebre. De frente, há um córrego onde muitas famílias despejam o esgoto não tratado. Isso faz exalar um cheiro muito forte em alguns momentos do dia, principalmente nos horários de sol mais ardente.

Em outra ruela, à direita, encontram-se outras casinhas modestas, de construção antiga. Há também outra pracinha onde é comum avistarmos saguis e esquilos passeando com toda a família.

Imagem6Novamente seguindo a rua principal, tomamos um caminho estreitado por grandes árvores, com ladrilhos no chão que são um convite a escorregar. O percurso é escuro, pois as grandes árvores escondem o sol. Logo ao final desse caminho encontrasse a casa da vó Amélia. Ela está bem diferente do que era quando a grande matriarca da família morava no sítio, pois foi reformada por um de seus netos, que não mora no sítio e passa apenas alguns finais de semana nessa grande casa.

Seguindo a rua de terra principal há uma bifurcação e se for o caso de seguir à direita há uma subida muito íngreme que, em dias de sol forte, fica difícil de encarar, mas que todos sobem e descem destemidamente. Ao subir, encontramos outras casinhas modestas.

Imagem5Caso pegue o caminho da esquerda, você vai encontrar a Tenda de Umbanda de tia Lula. Ela já faleceu, mas os moradores do quilombo mantêm a casa, a tenda e seus objetos por lá. Percebe-se, pelo mau estado de conservação, que nunca mais adentraram esse lugar. Apesar da ausência de vida, é notório o respeito – as imagens de santo e objetos pessoais dela continuam no mesmo lugar. Na casa há ainda, pendurada na parede, a grande coleção de xícaras, algumas comuns, outras muito raras.

 

 

image3026Ao lado da tenda está sendo construída uma réplica da primeira casa de vó Amélia, uma casa de taipa feita com bambus e barro. Quem está reconstruindo a casa é Fábio, neto de Amélia, e alguns poucos moradores do sítio. O objetivo é que aquele lugar venha a ser um museu no futuro.

 

 

Imagem4Mais acima há outras casas de outras famílias do quilombo. Próxima a essas casas, há uma trilha no meio da mata e ao final dessa trilha é possível encontrar o Córrego Brotas. Através da água cristalina que corre pelo riacho podemos ver pequenos peixes.

Andando mais um pouco, há o início do córrego e, dentro dele, a boca da tubulação que assoreou o córrego e que joga ali a água pluvial, vinda do loteamento que fica acima do terreno da comunidade, e que por diversas vezes ameaçou a paz do quilombo.

 

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É quase impossível caminhar à noite pelas ruas do quilombo, o que impede é a falta de iluminação nas ruazinhas. Quem sai para trabalhar na escuridão da madrugada reclama que é difícil andar por ali, e tudo piora quando chove, pois o córrego transborda e uma parte do caminho vira um lamaçal.

Dentro da comunidade apenas duas casas são de pessoas que não têm nenhuma ligação familiar com os moradores. Essas duas famílias já moram lá há mais de dez anos e quando o sítio passou a ser quilombo, eles não perderam o direito da moradia. Foram inseridos no documento de reconhecimento como agregados.

A Comunidade de Brotas continua prosperando. O relato acima foi realizado em 2007, quando eu escrevi o livro reportagem Brotas – O Primeiro Quilombo Urbano do Brasil. Hoje muita coisa mudou, a comunidade foi contemplada com algumas políticas públicas que os fizeram avançar em seus diretos e se articular com outras comunidades que trouxeram a consciência e a cultura negra para serem compartilhadas com seus moradores.

Uma coisa mudou, hoje não há mais a porteira grande, azul com o rosto da mulher negra grafitado. Mas o privilégio de murar em uma comunidade familiar rica na sua história e na natureza que a envolve, isso é um direito que ninguém vai conseguir tirar desses filhos da África

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