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Universidade Estadual de Campinas Instituto de Filosofia e Cincias Humanas Sidnei Clemente Peres Cultura, poltica e identidade na Amaznia: o associativismo

indgena no Baixo Rio Negro.

Tese de Doutorado em Cincias Sociais apresentada ao Departamento de Antropologia do Instituto de Filosofia e Cincias Humanas da Universidade Estadual de Campinas, sob orientao do Prof. John Manuel Monteiro. Este exemplar corresponde a verso final da tese defendida e aprovada pela Comisso Julgadora em 11/08/2003. Banca Examinadora: Prof. Dr. John Manuel Monteiro. Prof. Dr. Robin Wright. Prof. Dr. Joo Pacheco de Oliveira Filho. Prof. Dr. Mrcio Silva. Profa. Dra. Priscilla Faulhaber. Prof. Dr. Mauro Almeida (suplente). Profa. Dra. Vanessa Lea (suplente).

FICHA CATALOGRFICA ELABORADA PELA BIBLIOTECA CENTRAL DA UNICAMP

P415c

Peres, Sidnei Clemente. Cultura, poltica e identidade na Amaznia : o associativismo indgena no Baixo Rio Negro / Sidnei Clemente Peres. Campinas, SP : [s.n.], 2003. Orientador : John Manuel Monteiro. Tese (doutorado) - Universidade Estadual de Campinas, Instituto de Filosofia e Cincias Humanas. 1. Indgenas brasileiros. 2. Identidade tnica. 3. Movimentos sociais Amaznia. 4. Cultura Amaznia. 4. Globalizao Aspectos polticos. 6. Polticas pblicas Brasil. I. Monteiro, John Manuel. I. Universidade Estadual de Campinas. Instituto de Filosofia e Cincias Humanas. III. Ttulo.

RESUMO No Brasil aps a Constituio Federal de 1988 a configurao de uma esfera pblica indgena em mbito nacional ocorreu concomitantemente ao surgimento de uma extensa rede de associaes civis conectando necessidades e demandas locais a circuitos polticos globais. O Rio Negro situado no noroeste amaznico, no estado do Amazonas a regio onde mais se desenvolveu o fenmeno associativo. No decorrer da ltima dcada esta malha associativa cresceu aceleradamente aps a sua incluso na agenda das preocupaes ambientalistas do primeiro mundo com as mudanas climticas do planeta e com a preservao das florestas tropicais. A ltima zona alcanada na regio pelo associativismo indgena o Baixo Rio Negro, no municpio de Barcelos, cujo estudo demonstrou a coexistncia de um arranjo altamente democrtico, participativo e eficiente de promoo de direitos, com uma acentuada dependncia das associaes ao rgo federativo (a Federao das Organizaes Indgenas do Rio Negro, a FOIRN) para captar recursos e firmar parcerias seja no plano transnacional ou nacional. Por outro lado, as comunidades s adquirem visibilidade na esfera pblica regional quando inseridas na estrutura associativa que culmina nas instncias decisrias mximas da Federao. Esta situao evidenciou, portanto, um tipo de militncia que remete aqui a figura do ndio cidado, isto , a um ativismo etnopoltico estreitamente conectado a um desenho horizontal e descentralizado mas tambm hiper formalizado de ao coletiva e a uma sociedade civil transnacional em franco desenvolvimento.

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ABSTRACT Following Brazils 1988 Federal Constitution, the configuration of an indigenous public sphere emerged alongside an extensive network of civil associations, linking local demands to global political circuits. Located in the Northwest Amazon, the Rio Negro region is where this phenomenon has developed the most. Over the last decade, this web of associations grew rapidly, especially once they became included within the scope of First-World environmentalist concerns regarding global climate change and rain forest preservation. This study examines the last zone of this region to be affected by this process, the lower Rio Negro, in the municipal district of Barcelos. Our research focuses on the local-level structures that have proven to be highly democratic, participative, and efficient in securing rights, while remaining dependent upon the regional Federation of Rio Negro Indigenous Organizations (FOIRN) for access to financial resources and for establishing partnerships whether on the nation or transnational level. At the same time, local communities only gain visibility within the regional public sphere when they become involved in the associations, in a web culminating at the highest decision making level of the Federation. As a result, this situation puts a premium on the kind of militancy protagonized by the Citizen-Indian, that is, an ethnopolitical activist engaged, on the one hand, in the type of collective action that is horizontal and decentralized but also hyperinstitutionalized, while on the other is part of a broader transnational civil society that is expanding.

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Para Maria de Ftima, Letcia e Sidney. Em memria de Lourival Clemente Peres, meu pai (30/04/1929-12/02/2001).

AGRADECIMENTOS
Essa parte da apresentao de uma tese de doutorado no apenas o cumprimento de uma obrigao formal, mas a expresso de que o processo de produo do conhecimento depende da construo pelo pesquisador de uma rede de colaboradores sem a qual a pesquisa seria impossvel. A pesquisa se compe de fases de acentuado isolamento individual quando estamos absorvidos com leituras, processando dados, redigindo projetos, artigos, planos de investigao, relatrios, preenchendo formulrios e escrevendo a tese propriamente dita. Por outro lado, esta etapa centrada na textualizao e no poder de sntese e de distanciamento reflexivo do pesquisador se sustenta em operaes que so fundamentalmente interativas, precisam da cooperao de vrias outras pessoas que influenciaro decisivamente na configurao do material de anlise tornado assim disponvel e com o qual o pesquisador construra o desenho final de todo o seu trabalho. Sendo assim, agradeo ao apoio financeiro e institucional da CAPES que concedeu a bolsa de doutorado, durante o perodo de setembro de 1998 a fevereiro de 2002, no mbito do Programa Institucional de Capacitao de Docentes (PICD) vinculado a PrReitoria Ps-Graduao e Pesquisa da Universidade Federal Fluminense (PROPP-UFF), com a qual arquei com as despesas para realizar atividades necessrias em diversos lugares do Brasil (So Paulo-SP, Manaus-AM, Barcelos-AM e So Gabriel da Cachoeira-AM). Carminha, funcionria da PROPP-UFF, os meus agradecimentos pela forma atenciosa e gentil com que sempre me atendeu, me orientando na soluo de problemas referentes ao encaminhamento burocrtico de relatrios e pareceres. Aos meus colegas professores do Departamento de Sociologia e Metodologia das Cincias Sociais da UFF, onde leciono a mais de dez anos, que me concederam a licena de afastamento por quatro anos (maro de 1998 a fevereiro de 2002) das minhas obrigaes docentes a fim de me dedicar exclusivamente ao doutorado. Aos professores do curso de doutorado em Cincias Sociais do IFCH/UNICAMP John Manuel Monteiro, Vanessa Lea, Mauro Almeida, Mrcio Campos e Tom Dwayer agradeo a oportunidade e o privilgio de ter sido aluno nas brilhantes disciplinas por eles ministradas, contribuindo enormemente para minha formao profissional e recebendo seus preciosos ensinamentos e orientao acadmica. A John Manuel Monteiro pela confiana VI

que sempre demonstrou na minha capacidade de levar adiante o projeto de tese, pela compreenso e tranqilidade com que sempre lidou para com as minhas limitaes de ordem pessoal, e pela competente orientao do meu projeto de tese. Aos professores Robin Wright e Vanessa Lea os meus agradecimentos pelas preciosas consideraes ao meu plano de tese feitas durante o meu exame de qualificao do qual integraram a banca examinadora. No poderia deixar de apontar a importncia na minha formao acadmica do Programa de Ps-Graduo em Antropologia do Museu Nacional-PPGAS/MN onde obtive o meu ttulo de mestre e ao Projeto de Estudos sobre Terras Indgenas-PETI, coordenado pelos professores Joo Pacheco de Oliveira Filho e Antonio Carlos de Souza Lima, onde aprendi a fazer pesquisa. Aos funcionrios da secretaria de Ps-Graduao em Cincias Sociais do IFCH-UNICAMP sou grato pelo indispensvel auxlio nas questes administrativas e institucionais da ps-graduao. Aos meus colegas do doutorado com quem compartilhei na condio de aluno a experincia de aprendizado e aperfeioamento profissional no seio da dinmica vida acadmica desta prestigiosa Universidade. Nos dois anos em que permaneci em Campinas, cursando as disciplinas do doutorado, cabe uma lembrana especial aos meus trs colegas Gilton Mendes, Alexandro Namem e Geraldo Andrello, pela afetuosa amizade a mim dedicada e pelas valiosas contribuies com que fui agraciado nas nossas conversas sobre os nossos respectivos planos de pesquisa. A Geraldo Andrello, ento sub-coordenador do Programa Rio Negro do ISA, devo a minha indicao para participar do Levantamento das Comunidades Indgenas do Municpio de Barcelos, promovido pela FOIRN e ISA, que possibilitou a minha entrada em campo. A antroploga Ana Gita de Oliveira, que integrou a equipe do levantamento acima mencionado, pelas importantes observaes sobre a situao intertnica do Rio Negro baseadas nos seus enormes e profundos conhecimentos e experincia na regio. A Carlos Alberto Ricardo, coordenador do Programa Rio Negro, e ao Instituto scio-ambiental pela acolhida na base desta organizao no-governamental em So Gabriel da Cachoeira e pela colaborao ao tornarem disponvel para consulta o seu acervo de documentos sobre o movimento indgena no Rio Negro. Ao Carlo, administrador, pela sua competncia em providenciar as condies prticas da estadia dos pesquisadores hospedados no ISA-SG nos brindando com seu excelente bom humor e tornando mais agradvel a nossa permanncia. Os meus agradecimentos tambm aos diretores, tanto da gesto anterior quanto da atual, da

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FOIRN pela enorme contribuio para minha pesquisa ao me concederem acesso aos documentos arquivados na sede da Federao e pela disposio em compartilhar comigo as suas experincias e os seus conhecimentos sobre o movimento indgena no Rio Negro. Aos funcionrios da secretaria da FOIRN que muito me ajudaram na consulta ao arquivo desta organizao. Sou extremamente grato aos lderes e militantes indgenas que me premiaram com narrativas riqussimas sobre a histria do movimento indgena no Rio Negro. Nesta tese tentei ao mximo demonstrar a importncia das aes e decises deles e aos significados por eles atribudos na cadeia de eventos e processos que desaguaram na vibrante e dinmica esfera pblica regional indgena. Dedico este trabalho a eles. Ana Lcia Abrahim, minha conterrnea e chefe da Superintendncia do IPHAN em Manaus, pela concesso de cpias de documentos, fotografias e fitas cassete referentes ao processo de criao da ASIBA e pelas relevantes informaes prestadas em conversas informais e numa entrevista. A Ismael Moreira, Tariana, pela maneira amistosa com que sempre me atendeu e sua total disposio em fornecer relatos esclarecedores sobre sua participao na deflagrao do associativismo no Baixo Rio Negro. Em Barcelos, foi fundamental a contribuio de todos os moradores indgenas tanto da cidade quanto das comunidades e stios do interior, concedendo entrevistas e depoimentos sobre aspectos das suas vidas e da situao social em que vivem e fazendo denncias sobre suas carncias e privaes. Muito obrigado por terem deixado que eu vivenciasse uma pouco das suas aflies, dos seus sonhos e dos seus planos. Fui recebido com imenso carinho e ateno em todas as circunstncias e quero aproveitar a oportunidade para expressar publicamente o meu eterno agradecimento belssima e emocionante homenagem de despedida que fizeram para mim no ltimo dia da III Assemblia Geral da ASIBA. Conheci pessoas dotadas de imensa generosidade, sabedoria e bondade. Falar da minha admirao e dizer que aprendi muito com elas e que me tornei uma pessoa melhor mera redundncia. Esta tese tambm dedicada a todas elas. Cabe destaque para algumas pessoas. A D Dilsa, a Seu Dad e a sua famlia a minha gratido infinita pela calorosa hospedagem na casa deles durante toda a minha estadia em Barcelos. O carinho e afeto que me dedicaram so indescritveis. A contribuio do Seu Clarindo me acompanhando nas entrevistas e visitas s casas dos moradores indgenas do bairro So Sebastio e adjacncias ao meu trabalho foi fundamental, mas partilhar um pouco do seu profundo

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conhecimento dos mitos e histrias Tariana como tambm da realidade do Rio Negro foi uma verdadeira ddiva para mim. Sua dedicao e abnegado engajamento a associao indgena so admirveis. D Ceclia tambm me ajudou muito nas entrevistas no bairro Aparecida; a ela tambm ofereo a minha gratido. A Jos Alberto Peres e sua famlia o meu muito obrigado pela hospitalidade e amizade que sempre me dedicaram. A Pedro Albajar, pesquisador da FIOCRUZ, pelo seu firme empenho em contribui para a consolidao da ASIBA. Em suma, esta tese dedicada a todos os indgenas de Barcelos que esto lutando por uma vida melhor num lugar secularmente conhecido pelo extermnio e expulso dos povos indgenas, antiga sede do poder colonial na Amaznia ocidental. Dedico especialmente esta tese a Maria de Ftima, minha esposa, a Letcia e ao Sidney, meus filhos, cujo apoio e compreenso apesar das ausncias freqentes me deram as foras e o nimo indispensvel para continuar. Merece meno tambm a contribuio valiosa de Maria Lcia, minha sogra, cujos cuidados com os meus filhos me deram a tranqilidade necessria para cumprir esta rdua etapa da minha trajetria acadmica. Aos meus pais porque sempre me incentivaram a estudar mesmo nos momentos mais difceis de uma famlia numerosa. Todavia, a homenagem maior eu ofereo ao meu saudoso pai, falecido em 12/02/2001, que sempre me apoiou em tudo e sonhava ter um filho doutor. Esta tese um presente para ele, atrasado porque a vida no pra e a morte no espera.

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CULTURA, POLTICA E IDENTIDADE NA AMAZNIA: O ASSOCIATIVISMO INDGENA NO BAIXO RIO NEGRO.

SUMRIO
RESUMO .......................................................................................................................... III ABSTRACT ...................................................................................................................... IV AGRADECIMENTOS ..................................................................................................... VI LISTA DE SIGLAS ....................................................................................................... XIII FIGURAS, GRFICOS E TABELAS ..........................................................................XVI INTRODUO CIDADANIA, GLOBALIZAO E MOVIMENTO INDGENA NO BRASIL ...................................................................................................................... 17 PARTE I. O CAMPO DE AO MISSIONRIA NO RIO NEGRO (1970-1990). DO COMBATE PRESERVAO DA CULTURA INDGENA. CAPTULO I. PREPARANDO BONS CRISTOS E HONESTOS CIDADOS PARA DEUS E PARA A PTRIA ............................................................................................................ 55 CAPTULO II . OSSATURA ADMINISTRATIVA DO PODER SALESIANO NOS ANOS 70 E 80 ................................................................................................................................69 CAPTULO III. EM BUSCA DAS SEMENTES DO REINO DE DEUS CONTIDAS NAS CULTURAS INDGENAS ............................................................................................... 79 CAPTULO IV. O CAMPO DE DISPUTAS RELIGIOSAS NO IANA E A NOVA PROPOSTA PASTORAL ....................................................................................................................... 99

PARTE II: O MOVIMENTO INDGENA NO RIO NEGRO. A FOIRN E A LUTA POR UMA CIDADANIA DIFERENCIADA. CAPTULO V.

A UCIRT, O GARIMPO E AS MINERADORAS ....................................................... 119 CAPTULO VI. O PROJETO CALHA NORTE E A CRIAO DA FOIRN ..................................... 139 CAPTULO VII. A EXPANSO DO ASSOCIATIVISMO CONTRA AS COLNIAS INDGENAS (1987-1992) ............................................................................................. 155

CAPTULO VIII. COSMOPOLITIZANDO OS PROBLEMAS LOCAIS: A ALIANA PELO CLIMA E O NOVO FLEGO DA FOIRN (1993-1996) .......................................... 169 CAPTULO IX. DOS PEQUENOS EXPERIMENTOS DE DESENVOLVIMENTOSUSTENTVEL AO GRANDE PROGRAMA DE SADE INDGENA (1997-2000) ......................... 185 CAPTULO X.

A V ASSEMBLIA GERAL ELETIVA DA FOIRN .................................................. 217

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PARTE III: MIGRAO E ASSOCIATIVISMO INDGENA. INDIANIDADE E O CAMPO SEMNTICO DA ETNICIDADE NO BAIXO RIO NEGRO. CAPTULO XI .

BARCELOS: PLURALISMO TNICO, MULTILOCALIDADE INDGENA E CAPITALISMO VERDE ............................................................................................... 241 CAPTULO XII. GENTIOS, TAPUIOS E CABOCLOS: MIGRAO INDGENA E EXTRATIVISMO ........................................................................................................... 281 CAPTULO XIII. FIGURAS DE ALTERIDADE, MEDIADORES E ESTRATGIAS PARA ENTRAR E SAIR DA INDIANIDADE E DA CIVILIZAO: O CAMPO SEMNTICO DA ETNICIDADE ............................................................. 311 CAPTULO XIV. O NOSSO DIREITO: A CRIAO DA ASIBA E A EMERGNCIA DE UMA CONSCINCIA REFLEXIVA DA ETNICIDADE ................................... 355 CAPTULO XV. CALDES SOLIDRIA E DSEI: CONSOLIDANDO UMA ESFERA PBLICA INDGENA LOCAL ....................................................................................................... 381

PARTE IV: CONCLUSO ........................................................................................... 420 DOCUMENTOS CONSULTADOS .............................................................................. 425 BIBLIOGRAFIA ............................................................................................................. 432

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LISTA DE SIGLAS AANA Associao de Artesos de Novo Airo. ABA Associao Brasileira de Antropologia. ABI Associao Brasileira de Imprensa. ACEPOAM Associao de Criadores e Exportadores de Peixes Ornamentais do Amazonas. ACIBRN Associao das Comunidades Indgenas do Baixo Rio Negro. ACIMRN Associao das Comunidades Indgenas do Mdio Rio Negro. ACIPK Associao das Comunidades Indgenas Potira-Kapuamo. ACIRA Associao das Comunidades Indgenas do Rio Aiari. ACIRI Associao das Comunidades Indgenas do Rio Aiari. ACIRI Associao das Comunidades Indgenas do Rio Iana. ACIRNE Associao das Comunidades Indgenas do Rio Negro. ACIRU Associao Indgena do Rio Umari. ACIRX Associao das Comunidades Indgenas do Rio Xi. ACITRUT Associao das Comunidades Indgenas de Taracu, Rio Vaups e Rio Tiqui. AINBAL Associao Indgena do Balaio. ALIDI Associao de Lideranas Indgenas do Distrito de Yauaret. AMARN Associao de Mulheres do Alto Rio Negro. APPOMB Associao dos Pescadores e Criadores de Peixes Ornamentais do Municpio de Barcelos. ASAREAJ Associao dos Seringueiros e Agricultores da Reserva Extrativista Alto Juru. ASIBA Associao Indgena de Barcelos. ATRIART Associao das Tribos Indgenas do Alto Rio Tiqui. AYRCA Associao Yanomami do Rio Cauburis. BEC Batalho de Engenharia e Construo. BID Banco Mundial. BIRD Banco Interamericano de Desenvolvimento. BIS Batalho de Infantaria de Selva. CACIR Conselho de Articulao das Comunidades Indgenas e Ribeirinhas. CAF Conselho Administrativo da FOIRN. CAPOIB Coordenao dos Povos Indgenas do Brasil. CEB Comunidades Eclesiais de Base. CEDI Conselho Ecumnico de Documentao e Informao. CESE Coordenadoria Ecumnica de Servios. CIMI Conselho Indigenista Missionrio. CIMI Conselho Indigenista Missionrio. CIPAC Conselho Indgena de Pari-Cachoeira. CMA Comando Militar do Amazonas. CNBB Conferncia Nacional dos Bispos do Brasil. COGIRC Cooperativa de Garimpeiros Indgenas do Rio Castanho. COIAB Organizaes Indgenas da Amaznia Brasileira. COICA Coordenao das Organizaes Indgenas da Regio Amaznica.

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COIDI Coordenao das Organizaes Indgenas do Distrito de Yauaret. COIMRN Comisso Indgena do Mdio Rio Negro. CPI Comisso Pr-ndio. CRETIART Conselho Regional das Tribos Indgenas do Alto Rio Tiqui. CRIVA Consejo Regional Indgena del Vaups. CSN Conselho de Segurana Nacional. CTM Comrcio para o Terceiro Mundo. DEPI Departamento de Polticas Indigenistas. DNER Departamento Nacional de Estradas e Rodagens. DNPM Departamento Nacional de Pesquisa Mineral. DNPM Departamento Nacional de Pesquisas Minerais. DSEI Distrito Sanitrio Especial Indgena. DSEI-RN Distrito Sanitrio Especial Indgena do Rio Negro. EIT Empresa Tcnica Industrial. ESA Escola Superior de Agricultura. FAB Fora Area Brasileira. FEBEM Fundao Nacional de Bem-Estar do Menor. FIDA/CAF Programa Regional de Apoyo a Pueblos Indgenas del Amazonas. FIOCRUZ Fundao Instituto Oswaldo Cruz. FLONAS Florestas Nacionais. FNS ou FUNASA Fundao Nacional de Sade. FOIRN Federao das Organizaes Indgenas do Rio Negro. FUA Fundao Universidade do Amazonas. FUNAI Fundao Nacional do ndio. FUNASA Fundao Nacional de Sade. FUNRURAL Fundo de Amparo ao Trabalhador Rural. FVA Fundao Vitria Amaznica. FVA Fundao Vitria Amaznica. GTI Grupo de Trabalho Interministerial. GTZ Sociedade Alem de Cooperao Tcnica. IBAMA Instituto Brasileiro de Proteo ao Meio Ambiente e aos Recursos Naturais Renovveis. IBGE Instituto Brasileiro de Geografia e Estatstica. ICCO Comit Inter-Igrejas de Cooperao. ICMS Imposto sobre Circulao de Mercadorias. IIZ Instituto de Cooperao Internacional da ustria. ILV Instituto Lingstico de Vero. INCRA Instituto Nacional de Colonizao e Reforma Agrria. INPA Instituto Nacional de Pesquisas da Amaznia. IPAAM Instituto de Proteo Ambiental do Amazonas. IPHAN Instituto do Patrimnio Histrico e Artstico Nacional. ISA Instituto Socioambiental. ITERAM Instituto de Terras do Amazonas. JUPAC Juventude Unida Pelo Amor de Cristo. MEAF Ministrio Extraordinrio de Assuntos Fundirios. MEC Ministrio da Educao. MINTER Ministrio do Interior. XIV

MIRAD Ministrio da Reforma e Desenvolvimento Agrrio. MNT Misso Novas Tribos. MS Ministrio da Sade. NDI Ncleo de Direitos Indgenas. NEAC Ncleo de Estudos Amaznicos da Catalunha. OCIARNE Organizao das Comunidades Indgenas do Alto Rio Negro. OCIDAI Organizao das Comunidades Indgenas do Distrito de Assuno do Iana. OAB Ordem dos Advogados do Brasil. OIBI Organizao Indgena da Bacia do Iana. OIBIQUEVA Organizacion Indgena Binacional del Querari y Vaups. OIBV Organizao Indgena Bela Vista. OMT Organizao Mundial de Turismo. ONG Organizao No Governamental. ONU Organizao das Naes Unidas. PC do B Partido Comunista do Brasil. PCN Projeto Calha Norte. PDPI Projetos Demonstrativos dos Povos Indgenas. PGC Programa Grande Carajs. PGR Procuradoria Geral da Repblica. PIB Programa Povos Indgenas no Brasil. PMDB Partido do Movimento Democrtico Brasileiro. PP-G7 Programa Piloto para Proteo das Florestas Tropicais Brasileiras. PPTAL Programa de Proteo das Florestas Tropicais da Amaznia Legal. PRN Programa Rio Negro. PROPICA Programa Pueblos Indgenas de la Cuenca Amaznica. PT Partido dos Trabalhadores. SDS/RN Sociedade Para o Desenvolvimento da Sade Indgena do Alto Rio Negro. SECOYA Servio de Cooperao com o Povo Yanomami. SEDUC Secretaria Municipal de Educao e Cultura. SIVAM Sistema de Vigilncia da Amaznia. SOCITRUT Sociedade Indgena de Taracu, Rio Vaups e Rio Tiqui. SSL Sade Sem Limites. SUDAM Superintendncia do Desenvolvimento da Amaznia. UCID Unio das Comunidades Indgenas de Iauaret. UCIDI Unio das Comunidades Indgenas do Distrito de Yauaret. UCIRT Unio das Comunidades Indgenas do Rio Tiqui. UCSAL Universidade Catlica de Salvador. UFAC Unio Familiar Crist. UFF Universidade Federal Fluminense. UJS Juventude Socialista. UNCED Conferncia das Naes Unidas sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento. UNI Unio das Naes Indgenas. UNICAMP Universidade Estadual de Campinas. UNIDI Unio Indgena do Distrito de Iauaret. UNIRT Unio das Naes Indgenas do Rio Tiqui. UPC Universidade Politcnica da Catalunha.

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FIGURAS, GRFICOS E TABELAS. FIGURAS. 1. Mapa da diocese de So Gabriel da Cachoeira ....................................................... 70 2. Alunos do internato salesiano de Santa Isabel ......................................................... 90 3. Grupos tnicos do Alto e Mdio Rio Negro .............................................................138 4. Sede da FOIRN ...........................................................................................................177 5. Centro Cultural Maloca ............................................................................................177 6. Distrito Sanitrio Especial Indgena .........................................................................203 7. Mapa do municpio de Barcelos ................................................................................242 8. Mapa da cidade de Barcelos ......................................................................................247 9. Esquema das comunidades do Baixo Rio Negro .....................................................257 10. I Encontro Indgena de Barcelos (comisso) ...........................................................370 11. Pajs benzendo a II Assemblia Geral da ASIBA ...................................................380 GRFICOS. 1. Filiao tnica dos residentes indgenas da cidade de Barcelos ............................ 244 2. Famlias e moradores indgenas por bairro da cidade de Barcelos ...................... 245 3. Tempo de residncia dos migrantes indgenas na cidade de Barcelos ................. 245 4. Municpio de origem dos migrantes indgenas para a cidade de Barcelos .......... 246 5. Origem municipal dos chefes de famlia indgena por etnia ................................. 246 6. Casamentos envolvendo indgenas na cidade de Barcelos ..................................... 250 7. Casamentos envolvendo ndios na cidade ............................................................... 250 8. Etnias nas comunidades e stios indgenas .............................................................. 252 9. Casamentos envolvendo indgenas nas comunidades e stios ................................ 252 10. Casamentos envolvendo indgenas nas comunidades e stios ................................ 253 11. Fluxo migratrio da populao indgena para a cidade de Barcelos ................... 256 12. Municpios de origem dos chefes de famlia indgenas da cidade de Barcelos .... 299 13. Municpio de origem dos chefes de famlia indgenas por etnia .......................... 299 14. Municpio de origem dos chefes de famlia indgenas por grupo tnico ............. 304 TABELAS. 1. Associaes indgenas/Projetos ................................................................................ 183 2. Projetos de auto-sustentao e fontes de financiamento ....................................... 196 3. Grupos tnicos/lnguas faladas em Barcelos ........................................................... 244

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17 INTRODUO. CIDADANIA, GLOBALIZAO E O MOVIMENTO INDGENA CONTEMPORNEO NO BRASIL. Antes de viajar para o Rio Negro no final de abril de 2000, consultei alguns documentos no Instituto Socioambiental, em So Paulo, sobre as associaes e a demarcao das terras indgenas jusante de So Gabriel da Cachoeira. As atividades de pesquisa implementadas diretamente na regio abrangeram um perodo no consecutivo de onze meses (maio, junho, agosto, setembro e outubro de 2000 e fevereiro, maro, julho, agosto, setembro e outubro de 2001). A etnografia do associativismo indgena no Baixo Rio Negro foi realizada atravs de pesquisa em arquivos e observao participante. Esta caracterizada pelo envolvimento intenso do pesquisador nas situaes estudadas foi realizada junto s populaes indgenas que vivem na cidade de Barcelos, palco principal do movimento indgena local, com algumas incurses em quase todas as comunidades e stios do interior. Neste perodo, foram realizadas tambm entrevistas para levantar dados sobre histrias de vida, migrao, representaes sobre o contato intertnico e sobre o movimento indgena. Na Superintendncia do Amazonas do Instituto do Patrimnio Histrico e Artstico Nacional/IPHAN, em Manaus, tive acesso a documentos (relatrios, fotografias e fitas cassete) relativos ao contexto de criao da Associao Indgena de Barcelos/ASIBA. Participei da aplicao de um survey nas comunidades e stios indgenas de Barcelos sobre distribuio populacional (por etnia, sexo e idade); movimentos migratrios; competncia lingstica; atividades de subsistncia (agricultura, pesca, extrativismo, caa e coleta) e comerciais; equipamentos e esquema de acesso a servios de sade, educao, comunicao e transporte; insero na estrutura ocupacional da regio; cargos de representao poltica e gesto comunitria; festas e celebraes coletivas; e conflitos de terra. Este levantamento foi realizado no ms de maio de 2000 por iniciativa da FOIRN e do ISA, como fase inicial do processo de ampliao do Distrito Sanitrio Especial Indgena do Rio Negro/DSEI-RN. Alm de mim, a equipe foi integrada pela antroploga Ana Gita de Oliveira, por representantes da FOIRN, ACIMRN (Associao das Comunidades Indigenas do Mdio Rio Negro), CACIR (Conselho de Articulao das Comunidades

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18 Indgenas e Ribeirinhas) e ASIBA (Associao Indgena de Barcelos) e pessoal de apoio (um prtico, um motorista e duas cozinheiras). Em Barcelos, levantei dados sobre a trajetria de ativistas, filiao tnica, sexo, idade, profisso, histria de vida, insero na comunidade de origem e nas relaes intertnicas regionais e suas representaes sobre polticas de preservao e resgate cultural. Atravs dos relatos sobre histria de vida, indaguei tambm sobre as experincias dos ativistas indgenas no sistema de aviamento da produo extrativista e nos internatos salesianos. Abordei, atravs de entrevistas com pajs e rezadores, os paradigmas de poder e conhecimento ligados s prticas de mediao com a alteridade e possveis conexes semnticas com a militncia indgena. Consultei os documentos existentes na sede da ASIBA sobre a sua criao e atuao posterior, assim como os formulrios aplicados pelos seus fundadores junto populao indgena da cidade. Estes formulrios atualmente so preenchidos pelos associados na sede da ASIBA enquanto um procedimento formal de filiao organizao e de identificao tnica. Abarcam uma parcela considervel da populao indgena (mais de 50%) e trazem dados importantes sobre etnia, lngua, idade, sexo, casamentos intertnicos, composio e tamanho das famlias, escolaridade dos filhos, tempo de permanncia na residncia atual, local de origem, lugares aonde morou, atividades econmicas, religio, etc. Baseado nessa fonte eu elaborei algumas representaes quantitativas (tabelas e grficos) da populao indgena do municpio de Barcelos. Realizei tambm algumas entrevistas com famlias indgenas residentes nos bairros So Sebastio e Aparecida, principalmente, para acrescentar um verniz qualitativo quele quadro estatstico. Coletei informaes em So Gabriel da Cachoeira, atravs de documentao existente na sede da FOIRN e entrevista com lideranas, sobre a histria do movimento indgena no Rio Negro, sobre parcerias institucionais e assessorias contratadas, sobre fontes de financiamento, sobre a atuao recente e os projetos futuros desta organizao. Preservei o anonimato dos trechos de entrevista transcritos nesta tese quando considerei que o seu contedo pudesse de alguma maneira trazer transtornos ou constrangimentos para o depoente. Como o leitor poder observar houve pouca necessidade de fazer isto. Nos demais casos eu cito a fonte, pois so figuras pblicas, todos foram informados sobre o objetivo da entrevista e muitos se mostraram interessados mesmo em registrar sua verso

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19 sobre eventos e processos importantes para a histria do movimento indgena no Rio Negro. A documentao sobre a atividade salesiana foi consultada no Arquivo da Diocese de So Gabriel da Cachoeira, na cidade de mesmo nome. Privilegiamos os documentos referentes aos internatos e prticas pastorais desenvolvidas nas comunidades e stios do interior nos anos 1970 e 1980, devido a sua conexo com a formao da militncia indgena na regio. Esta tese est divida em trs partes. As duas primeiras partes correspondentes a metade da tese apresentam o contexto mais abrangente da configurao do movimento indgena no Rio Negro fundamental para entender o fenmeno associativo em Barcelos, que constitui a outra metade do texto. Na primeira parte eu considero a mudana da perspectiva de ao pastoral dos missionrios salesianos: variando do ataque violento s instituies e valores indgenas a sua defesa inveterada. Neste novo modelo o internato substitudo pela atuao mais constante nas povoados com o objetivo de aproximar mais a igreja dos seus fiis e organiza-los para se tornarem os sujeitos da sua libertao material e espiritual. A inculturao pretendia incorporar elementos da cultura anteriormente reprimida na liturgia dos rituais catlicos. Ao mesmo tempo os alunos indgenas nos colgios das sedes missionrias continuavam sendo proibidos, sob pena de sofrerem castigos corporais e morais, de conversar na sua prpria lngua com os colegas. Incentivando a participao leiga na gesto da vida e dos assuntos paroquiais os salesianos inverteram os sinais de sua poltica cultural (esforos deliberados de mudana ou preservao da cosmologia e organizao social nativas), mas ainda preocupados com o controle eclesistico do cristianismo indgena, criando espaos pblicos (apesar de ainda dentro da estrutura da igreja) de discusso e reflexo em torno da cultura e da identidade. Foi assim deflagrado um processo de inverso do estigma, o qual os prprios missionrios promoveram, em orgulho tnico, preparando involuntariamente o terreno para o florescimento de uma esfera independente de politizao da etnicidade no idioma da cidadania diferenciada. Este o objeto da segunda parte da tese. Em meados dos anos 80 este movimento de construo de um projeto de autonomia indgena estava sendo absorvido segundo os objetivos estratgicos do Estado para a regio (o Projeto Calha Norte) quando alguns militantes indgenas com o apoio do CIMI (Conselho Indigenista Missionrio) e da UNI-Norte I (Unio das Naes Indgenas)

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20 conseguiram reverter o fluxo dos acontecimentos no que se refere tentativa de tutela estatal do movimento indgena. O associativismo indgena se ampliou na luta contra as colnias indgenas e o Projeto Calha Norte. No incio dos anos 90, depois dos primeiros anos difceis, a FOIRN foi se consolidando ao adentrar no mundo da cooperao internacional tendo como principal aliado o CIMI e a valorosa dedicao de Brs de Oliveira Frana, ento na presidncia da Federao. Foram feitos outros estudos de identificao nos quais foram propostas cinco terras indgenas contguas, incluindo o Mdio Rio Negro, totalizando mais de dez mil hectares. Logo aps a realizao da Conferncia Mundial sobre Desenvolvimento e Meio Ambiente (ECO/92), promovida pela ONU (Organizao das Naes Unidas) no Rio de Janeiro, a FOIRN se desloca de uma rede transnacional de cunho humanitrio e religioso para uma outra de perfil ambientalista, a Aliana pelo Clima, em parceria com o CEDI/Programa Povos Indgenas no Brasil (Centro Ecumnico de Documentao e Informao) e com a ONG austraca IIZ (Instituto de Cooperao Internacional da ustria). Isto propiciou a FOIRN uma base de sustentao estvel para a sua consolidao e desenvolvimento posterior. O ano de 1998 marcou uma grande conquista do movimento indgena no Rio Negro: foram homologadas pelo presidente Fernando Henrique Cardoso as cinco Terras Indgenas contguas, apesar de no ter atendido integralmente as demandas territoriais existentes na regio. No perodo 19972000 teve destaque o ritmo acelerado de crescimento quantitativo das associaes; a implementao de pequenos projetos de desenvolvimento sustentvel e de valorizao cultural de carter experimental; e a formao de uma ampla rede interinstitucional de ateno sade para implementar o DSEI (Distrito Sanitrio Especial Indgena) no Rio Negro. Estes trs eventos convergiram na Assemblia Geral Eletiva de outubro de 2000 quando toda a diretoria da Federao foi renovada. Em 1999, foi criada a Associao Indgena de Barcelos (ASIBA), filiada a FOIRN, no bojo dos esforos de ampliao do DSEI/RN para os municpios de Santa Isabel do Rio Negro e Barcelos e da execuo de um projeto de resgate da memria regional, para registro e preservao como integrantes do patrimnio cultural da nao, pelo Instituto do Patrimnio Histrico e Artstico Nacional, IPHAN. Esta microrregio desde o incio da colonizao recebe uma populao indgena descida do Alto Rio Negro para formar os ncleos missionrios e prover com mo de obra os povoados que se instalavam no processo

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21 de ocupao dessa parte mais ocidental da Amaznia. No sculo XIX, a represso cabanagem e o recrutamento forado para o servio militar foram fatores de despovoamento adicionados guerra de extermnio dos Manao e fuga dos Tarum que subiram o rio Branco, no sculo XVIII. No final do sculo XIX o ciclo da borracha trouxe muitos imigrantes nordestinos e indgenas do Alto Rio Negro, deu um novo impulso na sociedade local e fez emergir o caboclo sertanejo. Os descendentes dos Tapuios, ndios aldeados e aculturados, ou caboclo amaznico, desapareceram ao se fundirem com os arigs ou brabos. Foi proclamado o completo branqueamento no Baixo Rio Negro, apesar do reconhecimento difuso de traos ou vestgios de vida indgena nas habitaes, nas comidas, nos artesanatos, nas tcnicas agrcolas, de pesca, de caa, etc, daqueles caboclos nascidos da miscigenao. A migrao indgena para a cidade de Barcelos a cidade dos brancos se intensificou nas duas ltimas dcadas e no final do penltimo ano do sculo XX estes ndios destribalizados reapareceram no cenrio pblico local contrariando aqueles que sentenciaram a inexorvel fatalidade do processo de assimilao num campesinato amaznico marginalizado e miservel. este implacvel destino que os ativistas indgenas da ASIBA esto recusando veementemente atravs da sua agncia para retomar as rdeas do seu futuro; um futuro somente possvel atravs de atos deliberados de reinveno da ancestralidade em moldes associativos e que os capacitaram a enviar mensagens audveis no mundo da cooperao internacional. este processo de reemergncia tnica o objeto da terceira e ltima parte da tese.1 As etnografias produzidas sobre a regio do rio Negro privilegiaram os grupos indgenas situados montante da cidade de So Gabriel da Cachoeira, incluindo os lados colombiano e venezuelano da fronteira. Alguns estudos sobre relaes intertnicas e mudana scio-cultural (Galvo, 1955 e 1959; Adrio, 1991; e Oliveira, 1995) foram feitos, mas a regio entrou no centro do debate antropolgico com as etnografias sobre organizao social e cosmologia.2 Elas muito contriburam com o vertiginoso crescimento
Para anlise de outros processos de re-emergncia tnica na Amaznia vide Faulhaber, 1997 e Baines, 1997. Para o nordeste vide Arruti, 1999; Barreto, 1999; Grnewald, 1999; e Oliveira Filho, 1999. 2 Os anos 60 caracterizaram-se por monografias (de Goldman sobre os Cubeo, 1963; e Reichel-Dolmatoff sobre os Desana, em 1968) que se tornaram clssicas e consagraram a etnografia do Noroeste Amaznico nos crculos do americanismo tropical. Nesta dcada comea a imensa obra etnolgica de Gerardo ReichelDolmatoff, que atravessou as dcadas posteriores, e a publicao na Colmbia da sua monografia sobre os Desana. Nos anos 70, aparecem as etnografias clssicas do casal Hugh-Jones sobre os Barasana do Vaups colombiano. Temos tambm, em 1972, a tese de Jean Jackson sobre os Bar e de Silverwood-Cope sobre os
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22 da etnologia das sociedades indgenas das terras baixas sul-americanas, a partir dos anos 70. Estas pesquisas no consideravam a no ser superficialmente a insero dos povos indgenas em contextos intertnicos mais abrangentes regionais, nacionais e mundiais. As sociedades amerndias foram tratadas como unidades isoladas e autoexplicveis. No mximo foram consideradas suas conexes com outros povos vizinhos. Em geral, os antroplogos escolhiam aquelas aldeias que estivessem menos atingidas pelas frentes de expanso da sociedade nacional, para estudar as culturas indgenas em estado quase originrio, isto , intocadas por foras exgenas. O Noroeste Amaznico tornou-se uma unidade cultural distinta de outras duas unidades, designadas como Guiana e Brasil Central. Nos anos 80, este quadro alterou-se com as investigaes sobre mito e histria desenvolvidas por Robin Wright (1981, 1986, 1988, 1992, 1996 e 1999). Nesta abordagem, os grupos indgenas foram tratados como personagens ativos do drama histrico do contato, e no como meros espectadores de um processo assimilacionista irremedivel. As interpretaes nativas do contato intertnico eram fatores fundamentais para entender o modo como os Baniwa interagiam com o mundo dos brancos. A cosmologia foi entendida como o registro simblico no qual as mudanas histricas intensas adquiriam sentido para os sujeitos e a partir do qual formulavam suas respostas aos acontecimentos.3 Entretanto, o mdio e o baixo curso do rio Negro continuam fora das pesquisas etnogrficas na regio. Existe, portanto, um enorme desconhecimento antropolgico das comunidades indgenas que vivem jusante de So Gabriel da Cachoeira.4 O Rio Negro atualmente a regio do Brasil onde os movimentos e polticas de identidade indgena mais cresceram, onde existe uma ampla rede de ONGs e agncias
Maku da Colmbia. No incio dos anos 80, surgiram as etnografias do Vaups brasileiro, Dominique Buchillet (1983) para os Desana e Janet Chernella (1983) para os Wanano. 3 Outros antroplogos passaram tambm a abordar as relaes intertnicas como as anlises de Jean Jackson (1989, 1995a e 1995b) sobre os processos de inveno de tradies, e as de Chernela (1988) e Stephen HughJones (1988) sobre as representaes indgenas do contato com os "brancos". Jonathan Hill desenvolveu pesquisa nesta linha entre os Wakuenai da Venezuela (1983, 1988, 1990, 1993a e b). Alis, um dos artigos deste autor foi publicado em coletnia dedicada a este tema (Terence Turner. Cosmology, Value, and InterEthnic Contact in South America. Bennington: Bennington College, 1993). 4 No caso do Mdio Rio Negro j foram produzidos dados etnogrficos importantes pelos antroplogos Mrcio Meira (1991 e 1994), Ana Guita de Oliveira (1994) e Jorge Pozzobon (1994), mas ainda nenhuma pesquisa sistemtica e de maior flego. A mesma constatao valida para o relatrio produzido pelos antroplogos Ana Guita de Oliveira e Sidnei Peres, sobre o levantamento das comunidades indgenas e ribeirinhas de Barcelos, realizado por iniciativa conjunta da FOIRN (Federao das Organizaes Indgenas do Rio Negro) e do ISA (Instituto Socioambiental) (Oliveira & Peres, 2000).

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23 governamentais, onde existe uma forte tendncia de conquistas territoriais e que congrega uma maioria absoluta das associaes indgenas existentes no Brasil. O associativismo uma nova forma de conectar as demandas locais aos circuitos transnacionais de defesa dos direitos humanos e do meio ambiente. Verificou-se nos ltimos 15 anos um intenso movimento de redefinio das fronteiras tnicas no Rio Negro; acompanhado de um processo de expanso do campo de mediao intertnico. Associaes indgenas e ONGs indigenistas e ambientalistas constituem novos atores acrescentados aos militares, missionrios, antroplogos, garimpeiros e mineradoras que atuam em um fluxo transnacional de signos, interesses e recursos. Neste contexto, demandas e conflitos locais foram traduzidos como problemas globais atravs do vocabulrio da indianidade, alterando os esquemas cognitivos cotidianos de concepo das diferenas sociais, transformando o estigma em orgulho coletivo e reformulando identidades atravs das categorias contrastivas ndio e branco ou civilizado. A projeo espacial deste processo manifestou-se nas demarcaes de terras indgenas que vm descendo o rio Negro. A regio do Rio Negro integrada por uma complexa rede de relaes intertnicas, (que inclui brancos e diferentes povos indgenas), formada por laos de parentesco, religiosos, econmicos e polticos que ultrapassam at as fronteiras nacionais com a Colmbia e a Venezuela. Os deslocamentos pelas distintas localidades so freqentes. As migraes indgenas para os centros urbanos regionais (como So Gabriel da Cachoeira, Santa Isabel do Rio Negro, Barcelos, Novo Airo e Manaus) constituem uma alternativa s condies de vida nas aldeias. O emaranhado de associaes indgenas pode ser pensado no interior desta complexa e dinmica malha pluri-tnica. O espao das associaes, tomado como instncia privilegiada de interlocuo com os brancos e de representao da autenticidade cultural indgena, desenha as condies propcias para investimentos polticos e atos refletidos de reformulao cultural. Este um novo contexto institucional e valorativo de inverso do estigma e, logo, de reavaliao dos registros simblicos cotidianos de orientao do contato intertnico. Esta tese ento aborda o movimento indgena na Amaznia, atravs do enfoque sobre o fenmeno associativo no Baixo Rio Negro. Esta escolha orientou-se pela possibilidade de fazer a etnografia de um processo de reafirmao da identidade indgena em andamento. Por outro lado, permitiu estabelecer semelhanas e diferenas com o fenmeno associativo ocorrido no Alto Rio Negro,

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24 jogando alguma luz tambm sobre a diversidade dos cenrios de emergncia e desenvolvimento dos movimentos indgenas no Rio Negro. Antes, porm, farei algumas consideraes sobre as abordagens recentes dos movimentos sociais na Amrica Latina fazendo algumas correlaes com o movimento indgena neste mbito intercontinental. Em seguida, apresentarei um quadro sinttico do processo de emergncia do movimento indgena no Brasil. O objetivo fornecer ao leitor tanto um contexto histrico quanto terico da abordagem aqui desenvolvida sobre a dinmica de construo social do associativismo indgena no Baixo Negro. As pesquisas recentes sobre os movimentos sociais na Amrica Latina destacam a contribuio deles no processo de democratizao ocorrido em diversos pases, a partir de meados dos anos 80, marcando o fim de perodos mais ou menos longos de governos militares ditatoriais. Opem-se a uma linha de estudos sobre tal fenmeno que concentra a ateno na arena poltica formal dos Estados, partidos e sindicatos. Alguns, inclusive, negam a existncia de democratizao da esfera pblica indicando a permanncia de prticas autoritrias, clientelistas, nepotismo, fisiologismo e corrupo com o conseqente acirramento da crise de legitimidade ou descrdito geral nas instncias oficiais de representao de interesses e demandas coletivas. Entretanto, os movimentos sociais defrontam-se, na verdade, com as prticas discriminatrias e excludentes arraigadas no tecido social como um todo. Transformam os padres existentes de percepo das privaes humanas, construindo e dando visibilidade a demandas antes ausentes na esfera pblica, seja a nvel local, regional, nacional ou mundial (Melucci, 1994 e Offe, 1994). Novos atores polticos e identidades coletivas reinventadas ampliam a noo de cidadania, baseada na postulao de que os direitos no se restringem queles que so definidos nas instncias legais e jurdicas formais, mas so gerados nos embates cotidianos contra as desigualdades e injustias sociais. As aes coletivas e manifestaes contestatrias assumem novas modalidades organizativas, fundindo funes representativas e propositivas, e re-injetando vigor e dinamismo a institucionalidade poltica vigente. Portanto, pressionam as polticas pblicas governamentais, assim como as arenas legais e judicirias de regulao dos conflitos sociais no sentido da democratizao, inscrevendo nelas os novos significados da noo de direito. Logo, a sociedade civil e o Estado e

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25 mercado tambm, como veremos adiante no so termos intrinsecamente opostos e no podem situar-se em uma topografia social do bem e do mal, como pensaram alguns estudiosos do terceiro setor, mas designam realidades distintas e articuladas diversamente conforme a situao. Virtudes e vcios polticos podem ser encontrados tanto de um lado quanto de outro. No caso da Amrica Latina, os movimentos sociais surgiram no bojo de um campo poltico asfixiado por governos autoritrios, ampliao do abismo entre ricos e pobres, sistemas partidrio e sindical fortemente controlados, meios de comunicao censurados e escassez de canais de dilogo com o Estado. Houve, portanto, necessidade de criar novas formas de expresso do descontentamento e dos interesses coletivos, fortalecer a sociedade civil, enquanto espao pblico de visibilidade das necessidades e demandas de grupos organizados (favelados, negros, mulheres, homossexuais, ndios, ambientalistas, moradores, etc.) a partir da sua insero em situaes diversificadas de vulnerabilidade material e/ou moral. A heterogeneidade, fragmentao, horizontalidade destes movimentos e organizaes, em contraposio ao formato unificador, vertical e centralizador do sistema de partidos e sindicatos, levou muitos socilogos e cientistas polticos a lamentar a incapacidade deles em romper e transformar o sistema social vigente na Amrica Latina e no mundo, proveniente do capitalismo informacional globalizado, causador do aumento da misria e da excluso nos pases perifricos. A diversidade poltica, ideolgica, de interesses e estratgias no exclui, porm, aes conjuntas de durao varivel5 baseadas em alianas e coalizes pontuais construdas circunstancialmente em torno de objetivos, demandas e identidades comuns. Por outro lado, os novos movimentos sociais estruturamse mais permanentemente em redes setoriais, e s vezes intersetoriais, que os conectam em planos trans-locais de interao, discusso e interveno (Scherer-Warren, 1996). As novas tecnologias de comunicao principalmente a internet e a mdia eletrnica so utilizadas estrategicamente como meios de obter adeso moral e afetiva, costurar alianas,

Como dois exemplos podemos citar a aliana de povos indgenas com grupos extrativistas da Amaznia em torno da categoria povos da floresta e a Coalizo de Operrios, Camponeses, e Estudantes do Istmo/COCEI na Colmbia (Rubin, 2000).

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26 promover campanhas, fazer denncias e contestaes, difundir demandas, etc, no interior destas comunidades virtuais, eletrnicas.6 Ficou difcil compreender este novo contexto atravs de uma viso totalizante de mudana social, traduzida na idia de revoluo promovida pelo proletariado e liderada por uma vanguarda esclarecida, detentora da cincia do materialismo histrico. Os cientistas sociais latino-americanos reformularam conceitos e paradigmas tericos para abordar fenmenos inditos com os quais se depararam no complexo cenrio poltico estabelecido aps o fim das ditaduras militares. A queda do muro de Berlim e a derrocada da Unio Sovitica tambm contriburam para reforar esta tendncia em rever o instrumental terico do marxismo ortodoxo. Os conceitos de classe social, Estado e ideologia foram substitudos, enquanto categorias-chave de entendimento, pelos de movimento social, sociedade civil e hegemonia7 (Dagnino, 2000). O Estado deixou de ser pensado como o palco privilegiado ou exclusivo das lutas sociais, o poltico foi ampliado para as relaes de poder difusas nas instituies em geral no consideradas polticas e nas prticas cotidianas da vida social. Vislumbra-se a possibilidade de repensar as relaes entre a poltica e a cultura. A questo da identidade de classe vis a vis a identidade tnica importante em pases como o Mxico, o Equador, a Guatemala e a Bolvia cuja populao indgena corresponde a parcelas importantes do conjunto dos seus habitantes, e mesmo assim s recentemente conquistaram visibilidade perante o Estado enquanto povos ou nacionalidades diferenciadas e no como uma massa homognea de camponeses como nos demais pases latino-americanos. So situaes em que os povos indgenas mobilizados para a ao coletiva podem pressionar diretamente o Estado no sentido de mudanas mais amplas, universais, e no s em prol das demandas particularistas sustentadas em polticas de identidade. J no Brasil, com uma pequena populao indgena, o destino dos ndios importante pelas terras que ocupam (11% do territrio nacional) em reas protegidas e onde h maior preservao ambiental no pas, apesar dos problemas existentes de invases, reas
O levante do Exrcito Zapatista de Libertao Nacional/EZLN em Chiapas, Mxico, foi encarado pelos estudiosos como um novo movimento social, entre outras coisas, porque enfatizou o uso de diversas mdias, e da internet em particular, como principal frente de batalha, instrumento de conquista da adeso e solidariedade de um pblico difuso e conectado s teias eletrnicas de comunicao. 7 Estes conceitos tm uma inspirao Gramisciana, mas serviram de base para a incorporao de outras abordagens, como as de Alan Touraine, Pierre Bourdieu, Michel Foucault, Cornellius Castoriadis, Jrgen Habermas, Anthony Giddens, etc.
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27 degradadas antes da demarcao, implantao de projetos de engenharia civil patrocinados pela Unio (rodovias, hidreltricas, linhas de transmisso, etc). Como a preocupao com o meio ambiente no est amplamente difundida entre os cidados brasileiros, a lio dada pelos ndios de manejo sustentvel dos recursos naturais no lhes conferiu solidariedade automtica e incondicional de outros setores da sociedade nacional. Por outro lado, Mxico, com o levante Zapatista, e Equador, com as marchas e a participao no golpe de Estado relmpago de 2000, so duas claras ilustraes de que mesmo as manifestaes contestatrias indgenas de massa se sustentam na linguagem da autodeterminao cultural e dos direitos originrios ainda quando desempenhando o papel de porta voz das necessidades e privaes de toda a nao. O pleito por maior participao e visibilidade dos povos indgenas nos processos de deciso dos assuntos nacionais compreendido e apoiado pela populao em geral como uma luta pela democratizao. Isto faz com que aqueles mais apegados a movimentos populares unificados, homogneos e centralizados no consigam captar a eficcia simblica de apelos morais por dignidade e respeito, principalmente se projetados na sociedade civil global, no bojo dos quais so formuladas inclusive reivindicaes materiais (Levi, 2002 e Macdonald Jr, 2002). Vista do prisma da ideologia, determinada pela infra-estrutura, a cultura era encarada como falsa conscincia, como viso deturpada da realidade, manipulada pelas classes dominantes para perpetuar as relaes de produo vigentes. Em contrapartida, a cultura passou a ser abordada como a estrutura de significados subjacente s prticas sociais, mas a construo simblica da realidade pressupe, por seu turno, um campo de lutas e de relaes de poder. Entra em cena ento a capacidade dos movimentos sociais de injetar novos significados no terreno social e poltico. Da a nfase na poltica cultural deste tipo de ao coletiva como forma de intervir na cultura poltica prevalecente. Interessante como a cultura entra na agenda terica e metodolgica da sociologia e da cincia poltica latino-americana, e na agenda poltica desta nova esquerda, no momento em que os antroplogos em vrias partes do mundo questionam a neutralidade cientfica deste conceito, acentuando a sua condio de inveno colonialista do extico, para domesticar a alteridade conhecendo-a e atuando sobre ela. Destacam o carter conservador da cultura, pois reifica relaes sociais e significados construdos pelos sujeitos em condies especficas e pressupe um consenso generalizado e esttico muitas vezes

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28 baseado em um inconsciente impermevel s mudanas histricas , sobre o ordenamento cognitivo da realidade, menosprezando as mltiplas interpretaes subjetivas e as disputas entre os diversos atores em torno do sentido do mundo. Todavia estas crticas no impediram que muitos antroplogos no abrissem mo da cultura, argumentando que nada disto inviabilizava a continuidade da sua utilizao como instrumento heurstico estratgico da disciplina (Sahlins, 1998). Enquanto socilogos e cientistas polticos promoveram uma culturalizao da poltica, os antroplogos politizam a cultura, e ambos redefinem as formas de manejo destas noes possibilitando formataes inditas para a pesquisa. Todavia, a esquerda latino-americana em alguns pases continuou refratria s polticas culturais dos novos movimentos sociais. Na Guatemala, por exemplo, ativistas Maia foram acusados de incentivarem o separatismo tnico, baseados em concepes essencialistas de identidade, e assim obstruindo a possibilidade de um movimento popular unificado de mudana social e poltica do pas. Um amplo setor da esquerda no pas resistente s discusses levantadas pelos ativistas Maia sobre revitalizao cultural, direitos e autodeterminao indgena, bem como s propostas de formao de uma nao efetivamente multicultural e pluritnica.8 Alguns socilogos utilizaram at o vocabulrio e a argumentao ps-modernos em prol do hibridismo e da mistura, provenientes da integrao em uma cultura de consumo globalizada, apontando o carter miscigenado da nao e qualificando a identidade Maia como inveno de uma elite intelectualizada e urbana (Warren, 2000). Na Colmbia, nos anos 90, o movimento das comunidades negras do Pacfico ao formular as suas demandas e reivindicar direitos em termos de singularidade cultural e polticas de identidade colidiu com a viso de diversos setores da esquerda sobre a necessidade de um ataque unificado contra as classes dominantes e o Estado (Grueso, Rosero & Escobar, 2000). Aqui se est operando tambm com a oposio entre poltica e cultura, categorias equacionadas a processos opostos de libertao e opresso, respectivamente. Cultura, enquanto ideologia, dissimulao orquestrada pelos dominadores para deturpar uma viso realista das condies de vida dos dominados. Tal

Os lderes Maias realizam uma srie de estudos sobre os seus dialetos, elaboram dicionrios, tentam padronizar as suas formas escritas, a fim de produzir uma lngua unificada e assim difundir todo um aparato cultural composto de peridicos, textos literrios e escolares. Reivindicam a utilizao da lngua Maia nos tribunais e na administrao pblica, e tambm a descentralizao do sistema educacional.

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29 concepo pressupe uma elite militante esclarecida para tirar o vu posto sobre os olhos dos oprimidos. A cultura no pensada como um espao de investimento poltico, de luta por significados e pelo estabelecimento de novos parmetros de formulao do consenso e do dissenso, de uma nova formatao institucional e valorativa para a legitimidade poltica, de inveno e negociao de identidades que alimentam movimentos de contestao s desigualdades e injustias sociais; assim como elo de aproximao, comunicao e dilogo entre os ativistas e seu pblico. No Mxico a esquerda se tornou menos reticente quanto aos pleitos indgenas com o levante do Exrcito Zapatista de Libertao Nacional/EZLN de Chiapas, em meados dos anos 90, no qual as reivindicaes tnicas de autonomia cultural e territorial combinaram-se e foram estratgicas para a produo de um sentimento globalmente difuso de solidariedade com as aspiraes de outros setores da sociedade civil pela democratizao do pas (Slater, 2000). Vale destacar que, nos anos 80 e 90, a diversidade cultural - ao lado da biodiversidade - assumiu o status de valor universal, de direito humano inalienvel, a ser zelosamente protegido de violaes perpetradas principalmente por Estados-Nao, motivados seja pelo desejo de impor homogeneidade cultural dentro das suas fronteiras ou por interesses econmicos ligados a projetos desenvolvimentistas. O etnocdio constitudo em crime contra a humanidade, usurpao de um dos seus mais apreciados patrimnios. Esta situao diametralmente oposta daquela onde as polticas integracionistas de Estados nacionais eram legitimadas em circuitos transnacionais de regulao do relacionamento com os povos existentes nos seus limites territoriais.9 Com a expanso mundial do campo poltico e ideolgico ambientalista, o ndio ser retratado como defensor por excelncia do meio ambiente. Quando a noo de desenvolvimento sustentvel passou para o primeiro plano na agenda do movimento ecolgico, os povos indgenas principalmente aqueles que vivem nas florestas tropicais ampliaram sua visibilidade pblica como heris ecolgicos, guardies da biodiversidade. Os sinais so invertidos, os grupos indgenas no figuram mais como a mxima manifestao do anti-Eu moderno seja na sua verso religiosa como obstculo propagao da f crist, ou laica como empecilho ao progresso. O selvagem ps-moderno representa a manifestao mais

Conveno no 107 da Organizao Internacional do Trabalho/OIT apud Carneiro da Cunha, 1987; e Maybury-Lewis, 1985.

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30 pura de modalidades no predatrias de uso dos recursos naturais, ele o agente estratgico de promoo da biodiversidade. Mediadores indgenas e indigenistas incorporaram a agenda e a linguagem ambientalistas e constituram o elo de ligao entre as demandas de conservao da natureza e as de defesa dos direitos humanos, conectando lutas locais e globais e fundindo as noes de cultura, poltica e natureza no bojo de associaes inditas entre sociedade civil, Estado e mercado.10 Mesmo assim os estudiosos dos problemas ambientais ou dos movimentos ecologistas no Brasil no se interessaram mais detidamente sobre os nexos entre conservao da biodiversidade, desenvolvimento sustentvel e os povos e terras indgenas. Um amplo setor da esquerda brasileira, e dos pesquisadores dedicados aos novos movimentos sociais, no presta a devida ateno para a relevncia da questo e do movimento indgenas no processo de democratizao do pas, ao contrrio de perodo do regime ditatorial quando a questo indgena teve alguma visibilidade porque era um dos poucos canais de contestao relativamente liberados pelos militares. A antropologia, por sua vez, retomou uma discusso fundamental para a sua constituio11, a relao entre cultura e natureza, a partir de distintos pontos de vista: antropologia ecolgica, anos 60 e 70; etnobiologia e ecologia simblica, anos 80; e perspectivismo, anos 90. Os povos indgenas vo deixando de ser percebidos como vtimas passivas de polticas assimilacionistas empreendidas pelos governos ou de processos aculturativos inerentes expanso da sociedade nacional, para serem pensados como atores histricos e sujeitos polticos atuantes em contextos assimtricos de interlocuo cultural. Os antroplogos abandonaram as previses catastrficas concernentes ao inexorvel extermnio dos grupos indgenas, seja pela via do genocdio ou do etnocdio, e redirecionaram o foco para os movimentos de resistncia tnica, re-elaborao de significados e negociao de
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Podemos citar, em meados dos anos 80, a conjugao de interesses entre os ndios ecolgicos paradigmticos do momento, os Kayap, e uma indstria estrangeira de cosmticos. Esta ligao generalizouse em polticas pblicas de gesto das terras demarcadas, orientadas pela concepo do estreito vnculo entre manejo sustentvel de recursos naturais, direitos territoriais e afirmao tnica, baseadas na cooperao entre organizaes indgenas, ONGs, Estado, agncias financiadoras multilaterais e empresas privadas, nacionais ou estrangeiras. A expresso mais completa deste fenmeno o Projeto Demonstrativo dos Povos Indgenas/PDPI, projeto setorial inserido no mbito do Programa de Proteo das Florestas Tropicais da Amaznia Legal/PPTAL. Cabe mencionar tambm a recente criao de um Centro de Produo e Artesanato por uma importante organizao indgena amaznica, a Coordenao das Organizaes Indgenas da Amaznia Brasileira/COIAB. 11 Fio condutor nos anos 40 e 50, dos estudos da ecologia cultural e, nos anos 50 e 60, dos estudos da etnocincia.

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31 identidades. Os estudos sobre etnicidade, principalmente a partir do re-posicionamento clssico do tema em Barth (1969), acentuaram esta tendncia. A imbricao entre poltica e cultura o cerne tambm das pesquisas antropolgicas sobre movimentos e polticas de identidade em vrias partes do mundo. A chamada teoria da inveno de tradies explorou as contradies entre as retricas ou ideologias tnicas formuladas por uma elite nativa, urbana e intelectualizada e as ontologias tnicas vivenciadas pelas pessoas comuns na vida cotidiana. As tradies no correspondem a conjuntos de valores e instituies existentes desde sempre, desde tempos remotos, imutveis, intocados pelas dinmicas histricas, mas construes coletivas, imaginaes sociais elaboradas para lidar com questes e demandas atuais, e referentes em geral a contextos politicamente carregados. Esta abordagem no implica um modelo de ator orientado exclusivamente por uma lgica pragmtica ou instrumentalista, que os sujeitos no possam acreditar sinceramente na autenticidade de costumes e crenas inventadas, mas que lhe fornecem os parmetros normativos e comunicativos com os quais se formam suas concepes do mundo e de si mesmo. As tradies so genunas exatamente na medida em que os agentes assim a consideram, ao se engajarem afetivamente com elas, constituindo sua experincia cotidiana, seus projetos de vida, suas certezas, seu senso de normalidade; e no por qualquer vnculo entre uma cultura e uma coletividade, determinado previamente pelo pesquisador. O problema reside no fato do antroplogo separar formas culturais autnticas daquelas que no so, produzindo a imagem de uma sociedade depurada de elementos exgenos e esprios, advindos do contato com os brancos. No a causalidade que rege a relao entre os dois termos, mas sim a imanncia; as fronteiras entre ns e eles estabelecida no bojo das operaes simblicas atravs das quais os sujeitos (re)definem o real, em condies de circulao de significados mais ou menos intensa. Logo, so os prprios atores sociais que decidem quais os signos que expressam os limites, flexveis e mutveis, definidores do pertencimento coletivo. Mas a contribuio antropolgica fundamental para os estudos sobre as conexes entre cultura e poltica nos movimentos sociais a anlise da dinmica comunicativa estabelecida entre os militantes e o seu pblico. Isto permite relativizar avaliaes etnocentricas, baseadas em modelos supostamente universais de cidadania e democracia,

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32 sobre a contradio entre os velhos hbitos polticos das bases e os novos hbitos propostos pelos mediadores; menosprezando a diversidade de experincias participativas dos atores sociais que tais combinaes podem forjar (Rubin, 2000).12 No caso do associativismo indgena do Rio Negro, por exemplo, merece destaque o entrelaamento entre princpios hierrquicos e igualitrios, holsticos e individualistas; clientelistas e participativos em um cenrio dinmico, contraditrio e transnacional de articulao entre redes de organizaes ambientalistas e indgenas, Estado, empresas privadas e agncias de financiamento multilaterais. Socilogos e cientistas polticos priorizaram a contribuio das polticas culturais dos movimentos sociais cultura poltica da sociedade como um todo; redimensionando as noes de direito, cidadania, sociedade civil e democracia. Alguns antroplogos privilegiaram as divergncias entre as tradies inventadas por uma elite nativa intelectualizada e urbana, e as concepes e as maneiras de viver enraizadas nas comunidades ou aldeias do meio rural, em geral iletradas. Dependendo do autor este dualismo pode significar a localizao da verdadeira cultura no cerne da sociabilidade regulada pelas relaes interpessoais de parentesco, vizinhana e amizade, em contraste com a experincia desenraizada de jovens nativos assimilados pelo mundo moderno e que, portanto, assume uma postura distanciada e externa de preservao ou resgate de valores no mais vivenciados por eles (Jackson, 1991 e 1995; Spencer, 1991; e Rogers, 1996). Outros no operam com esta dicotomia, mostrando como as aldeias rurais, onde imperam os contatos face a face, onde a comunicao rotineira acontece predominantemente em relaes marcadas pela co-presena dos interlocutores, podem se constituir tambm em cenrio para criao de novos significados, adaptao de valores e instituies antigos a situaes inusitadas, etc (Linnekin, 1983). At porque os mais isolados ou afastados assentamentos humanos so abarcados, em algum nvel, na malha globalizada de poderes e conhecimentos da (ps)modernidade contempornea. As identidades so sempre situacionais e dinmicas, isto , so forjadas e negociadas na interao com outros atores sociais, se constituem reciprocamente a partir das expectativas

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Muitas vezes padres autoritrios, clientelistas, verticais de comportamento poltico das bases dos movimentos populares so considerados oriundos da sua situao de pobreza, misria, em contraposio ao padro democrtico, igualitrio e horizontal dos mediadores e lideranas (Scherer-Warren, 1996).

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33 de uns sobre outros, como num jogo de espelhos. Por isso Barth (1969) fala de fronteiras e que a identidade tnica contrastiva. A anlise dos processos de inveno de tradies deve buscar a compreenso do modo como as racionalizaes discursivas da identidade esto imbricadas nos esquemas e disposies que orientam as experincias compartilhadas do Self e do mundo das pessoas comuns. Entender a estreita conexo entre ideologias e ontologias identitrias remete s maneiras como a abordagem reflexiva dos militantes sobre a cultura reformula e se alimenta das noes de senso comum dos seus conterrneos leigos (Kapferer, 1989 e 1990; e Spencer, 1990). No basta dizer que programas de ao formulados por uma intelectualidade indgena a partir de uma linguagem importada dirigidos para suas comunidades de origem divergem da cosmologia e organizao social genunas do grupo, mas perguntar porque so aceitos ou recusados. Como as lideranas esto inseridas nas esferas de sociabilidade da(s) coletividade(s) que pretendem representar e quais as imagens e paradigmas de poder e alteridade, ligadas a figuras de mediao com universos estranhos, foras potenciais de destruio e regenerao, que podem orientar as interpretaes sobre tais negociadores secularizados de benefcios coletivos? Isto no significa pressupor um fundo cultural esttico, coerente e unificado, um alicerce social e simblico essencialista, de sustentao das fices tradicionalistas motivadas por demandas polticas circunstanciais. Os esquemas e disposies constituintes da conscincia prtica da vida cotidiana no formam uma estrutura atemporal, uniforme e fechada, mas sim um universo cognitivo heterogneo, dinmico e aberto; permeado por consensos setoriais e mutveis, onde coexistem mltiplas possibilidades de atribuio de sentido pelos sujeitos, que podem at entrar em conflito com alguns postulados inquestionveis de apreenso da realidade, colocando-os em zonas reflexivas de dvida e incerteza. Sendo assim, o campo semntico da etnicidade pressupe a possibilidade de emergncia de vrias polticas tnicas e nesta perspectiva que pretendo enfocar as conexes complexas entre cultura e poltica para entender o associativismo indgena do Baixo Rio Negro. Sendo assim, entendo a indianidade no Brasil contemporneo remetendo-o ao campo das prticas e estratgias representacionais de construo social da etnicidade indgena. Pressupe um complexo articulado de redes transnacionais por onde circulam fluxos de significados e formas culturais. no bojo deste aparato cognitivo que as

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34 identidades tnicas so re-elaboradas continuamente. Indianidade no remete a um ncleo identitrio substancial, mas a um quadro multidimensional de prticas discursivas referenciais para a formao e desenvolvimento de identidades coletivas locais (territorialmente orientadas). A indianidade aproxima-se mais de um princpio de disperso e de mltiplas possibilidades de identidades do que por uma totalidade integrada de onde elas derivam mecanicamente. Porm, isto no significa ausncia de relaes de poder, conflitos e contradies entre os atores envolvidos no trabalho de gerao das identidades, e projetos de hegemonia em torno da demarcao legtima das imagens que configuram as abordagens sobre o problema indgena. Afirma-se assim a necessidade de uma reorientao epistemolgica das etnografias clssicas. Esta perspectiva enfatiza a importncia de perceber o processo de disperso das identidades (coletivas ou individuais), que envolve uma dinmica complexa de interao entre distintos atores sociais e mltiplos mecanismos de constituio da alteridade, referenciados a contextos espaciais configurados em diferentes escalas (Marcus, 1991). Esta abordagem sobre os fenmenos contemporneos de produo da diversidade cultural ope-se a uma concepo substancialista que no apreende a simultaneidade das mltiplas possibilidades disponveis de configurao da identidade coletiva ou individual; fragmentos mltiplos e sobrepostos (contraditrios, concorrentes, convergentes, etc.) de identidade gerados nos encontros, fluxos e metamorfoses constantes que ela experimenta. Este projeto de pesquisa, portanto, filia-se a uma concepo de macro-antropologia como estudo dos processos contemporneos de formao das identidades. Nesta perspectiva, os grupos sociais esto imersos num redemoinho de identidades e de fluxos culturais (convergentes, contraditrios, conflitantes, mutveis, etc.), onde suas formas de sociabilidade so feitas e refeitas incessantemente. No cenrio intertnico contemporneo o Estado no exerce mais o monoplio das prticas e representaes formadoras da indianidade, embora ainda detenha atribuies e competncias legais que condicionam esta arena poltica. Ampliou-se a esfera de interlocuo na qual os ndios elegem suas estratgias de negociao da identidade e afirmao de direitos territoriais. Neste sentido, as noes de tutela e territorializao (Oliveira Filho, 1988 e 1998) precisam ser complementadas e combinadas com as noes de cidadania e etnificao, para entendermos este novo palco, constitudo pela articulao

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35 de redes transnacionais de movimentos sociais e de organizaes civis, no qual ocorrem fenmenos recentes de re-emergncia tnica no Brasil. Num contexto de tutela a etnicidade indgena construda em dilogo assimtrico com os procedimentos normativos e rotineiros de projeo espacial de poderes estatais. Em um contexto de plena capacidade civil, a indianidade definida em um campo multisituado de foras e lutas simblicas ancoradas em prticas de politizao da cultura (Turner, 1993)13, ou seja, de manipulao deliberada e calculada de traos de tradio para legitimar reivindicaes coletivas. O ndio cidado pressupe um espao pblico no-estatal globalizado, convergente com a difuso social de disposies favorveis diversidade cultural, de uma vontade cultivada de convivncia com a alteridade (Hannerz, 1992).14 O ndio cidado por excelncia o ativista indgena e se aproxima em alguns aspectos do cosmopolita definido por Hannerz (op. cit.), pois ele portador de uma competncia cultural, de uma capacidade cultivada de manipular conscientemente outras provncias de significado, mantendo uma atitude de distanciamento e uma adeso calculada tanto frente a sua cultura de origem quanto cultura aliengena. Ele uma caixa de cmbio, uma correia de transmisso, enfim, um dos canais de circulao de significados e formas culturais entre centro e periferia. Eles so ao mesmo tempo abertos aos fluxos de significado oriundos do centro e crticos frente a eles. Como eles tem maior acesso cultura metropolitana, eles selecionam o que deve ser conhecido do mundo exterior. So os guardies da cultura genuna dos grupos locais, porm a sua perspectiva da cultura nativa diferente daquela dos seus conterrneos. As fontes de inspirao da sua pregao ou cruzada tradicionalista so parcialmente domsticas, e parcialmente oriundas dos recentes debates culturais do centro.

Turner (1991) menciona o processo de surgimento de uma conscincia reflexiva da cultura entre os Kayapo, quando o repertrio de costumes, instituies e valores, que antes constituam elementos inconscientes (no sentido Bourdiano de conscincia prtica) de estruturao da vida social, tornam-se instrumentos emblemticos de manifestao da identidade tnica e das reivindicaes de autonomia coletiva; esforos conscientes de produo, preservao e defesa da singularidade. 14 Esta figura do movimento indgena contemporneo difere da categoria de ndio funcionrio formulada por Alcida Ramos (1988), cooptado pelo Estado ao inseri-lo na sua malha burocrtica indigenista ou no, que privilegia seus interesses de manuteno do cargo oficial que ocupa em detrimento dos interesses da sua comunidade ou povo de origem. Um mesmo ativista indgena pode transitar entre as duas categorias durante sua carreira no movimento. A partir do incio dos anos 1990 quando as relaes das organizaes indgenas com o Estado e com o mercado sofreram alteraes a incompatibilidade entre os interesses de ocupao de cargos oficiais, seja no executivo ou no legislativo, com as demandas dos povos indgenas nem sempre observada. Esta categoria de ndio funcionrio ento deve sofrer alteraes ou no deve se aplicar a muitos casos.

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36 As diferenas nas formas de atuao dos mediadores indgenas dependem tanto do grau de insero deles nos espaos institucionais transnacionais de produo e circulao da cultura, quanto do cenrio intertnico local. Sendo assim, o discurso etnopoltico das lideranas indgenas no uma simples reproduo das categorias de construo da indianidade forjadas pelas agncias indigenistas, mas emerge de constantes atos de reinterpretao oriundos de um campo complexo e assimtrico de dilogo e negociao intercultural. Assim, as estratgias representacionais disponveis e acionadas pelos mediadores indgenas dependem das modalidades de atuao possveis nas instncias locais e supra locais de produo da identidade. Nesta perspectiva podemos entender o processo de etnificao da conscincia social de grupos indgenas
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, isto , de elaborao de

retricas e polticas tnicas a partir de um campo semntico da etnicidade, isto , de um universo simblico constitudo em contextos intertnicos localizados16. No devemos, entretanto, separar etnicidade e cosmologia, ou relaes intertribais e intertnicas, ou ainda discursos cosmolgicos sobre a auteridade e discursos tnicos sobre a identidade, pois os fenmenos tnicos abrangem ambas as dimenses de construo dos critrios de pertencimento coletivo. A etnicidade um processo de organizao das diferenas sociais, portanto dinmica, situacional e relacional. Os grupos tnicos no deveriam ser reificados pelo pesquisador em etnias fechadas e definitivas como se fosem divises naturais do mundo social, pois as fronteiras entre ns e eles so maleveis e mveis, possibilitando trnsitos, comunicaes e metamorfoses; ou seja, trocas de identidade. Contudo, tal definio essencialista da etnicidade pode ser acionada pelo sujeitos, sejam ou no indgenas. O que estou chamando de etnificao refere-se a este congelamento da identidade no mbito de ideologias tnicas que podem inscrever-se na ossatura institucional do Estado e das redes de movimentos sociais e organizaes civis, baseadas em uma conscincia reflexiva da cultura e que fundamentam esforos deliberados de revitalizao cultural promovidos em comunidades argumentativas em que a

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Albert (1995) faz uma anlise muito interessante da retrica poltica de Davi Kopenawa, lder indgena Yanomami cuja trajetria est associada s ONGs indigenistas e ambientalistas, a partir desta perspectiva. Vide tambm Turner (1991) sobre o processo de etnificao da conscincia social Kayap. 16 Utilizo a palavra localizado, ao invs de local, para indicar relaes sociais caracterizadas pela proximidade fsica entre os agentes, porm atravessadas por determinaes e processos que transcendem a escala espacial das interaes face a face.

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37 ancestralidade precisa ser representada convincentemente diante de interlocutores difusos. Os mediadores indgenas vinculam-se a projetos de mudana dirigida da posio do grupo que ele representa e se constitui em porta-voz no espao social nacional. A sua mensagem postula uma reformulao parcial do mapa social no que se refere ao acesso a recursos simblicos e materiais valorizados pelo grupo ao qual pertence. O movimento indgena constituiu-se ento como um canal institucionalizado de recursos de mediao entre provncias de significado distintas, num contexto histrico mundial de produo generalizada de sensibilidades coletivas da diversidade cultural. Este cenrio favorece o surgimento de agncias associativas modernas, cujo recrutamento ocorre em bases voluntrias, orientadas para a construo e difuso de direitos de autodeterminao e resistncia tnica. neste sentido que entendo o fenmeno associativo indgena como um desenho participativo, horizontal e descentralizado de implementao de polticas tnicas de mobilizao coletiva, mas tambm altamente formalizado (diretoria, conselho fiscal, assemblia) e dependente mesmo de uma base cartorial (registro no Cadastro Nacional de Pessoas Jurdicas/CNPJ), enquanto modalidade de reconhecimento oficial, e de assessoria profissional como condies de acesso a redes de cooperao internacional. A associao indgena uma forma voluntria de engajamento, com diferentes nveis de adeso, baseada na livre deciso em assumir publicamente uma ancestralidade pr-colombiana ou prcolonial, nos esforos altamente reflexivos de gesto da tradio e da identidade tnica num campo de produo da indianidade marcado por estratgias de politizao da cultura e formao de alianas nas esferas pblicas no-estatais globalizadas. Uma grande parcela da histria da poltica indigenista brasileira caracterizou-se pela constituio do Estado enquanto principal interlocutor na negociao da indianidade dos grupos que pleiteavam tal status, uma pea fundamental no processo de re-elaborao da identidade tnica. O cdigo estatal de definio dos direitos indgenas era hegemnico. O Estado monopolizava os instrumentos de percepo e produo da condio indgena, constituindo-se no espao institucional privilegiado de consagrao deste tipo de demanda coletiva. Exercia uma violncia simblica legtima sobre as ferramentas cognitivas de construo da questo indgena. De modo algum estaramos aqui postulando a inexistncia

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38 de outras categorias de atores neste cenrio da poltica indigenista brasileira (padres, jornalistas, antroplogos, etc), mas que o fluxo de significados e formas culturais que orientavam a conduta dos vrios agentes envolvidos com grupos indgenas era acentuadamente influenciado pelo discurso indigenista estatal. A prtica indigenista oficial constituiu-se, neste sculo, no bojo do processo de absoro no aparato estatal brasileiro de um complexo ideolgico ligado a setores marginalizados da oligarquia agro-exportadora: o ruralismo. Esta frao da burguesia latifundiria antes representada pela Sociedade Nacional de Agricultura/SNA s ir constituir uma rede de difuso do seu projeto poltico aps a criao do Ministrio da Agricultura, Indstria e Comrcio/MAIC. Diversificao e mecanizao agrcolas, alm da formao da fora de trabalho rural, eram os itens bsicos da plataforma ruralista. Nesta perspectiva, o iderio nacionalista assumiu como principais tarefas a ampliao do permetro cultivado e o aumento da produtividade agrcola do pas. E o principal agente desta misso cvica era o Estado (Mendona, 1990). Portanto, uma agncia estatal especialmente dedicada ao governo (proteo fraternal) da populao indgena nasce com a atribuio adicional de gerir os processos de ocupao fundiria: o Servio de Proteo aos ndios e Localizao de Trabalhadores Nacionais/SPILTN. Tal dualidade de funes impregnar a prtica tutelar indigenista, durante o perodo de existncia do SPI, constituindo-se como um elemento estrutural dos procedimentos de governamentalizao dos ndios, tornando compreensvel as contradies, os paradoxos e ambigidades que eles constantemente manifestaram.17 Antes mesmo da criao da Fundao Nacional do ndio (FUNAI), ganhou relevo a idia de valorizao do Patrimnio Indgena, quando foi criada em 1963 uma instncia especfica (a Seo do Patrimnio Indgena) na ossatura burocrtica do SPI dedicada a tal finalidade (Lima, 1992). A FUNAI seria desde o incio de sua existncia integrada perspectiva desenvolvimentista de ao governamental instaurada aps o golpe militar de 1964. Da a sua vinculao institucional a um ministrio (do Interior) completamente
Na minha dissertao de mestrado (Peres, 1992) procurei mostrar como agentes indigenistas do SPI (inspetores e encarregados) mobilizavam elementos do complexo ideolgico e poltico indigenista em situaes particulares de interveno onde eles eram reinterpretados, emergindo distintas modalidades de construo social da indianidade. As propostas de resoluo do problema indgena eram elaboradas em ntima conexo com as formas de objetivao do terceiro termo da relao tridica estabelecida a partir do trabalho de mediao indigenista: as diferentes categorias de populao no-indgena (colonos, arrendatrios e intrusos).
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39 sintonizado com tal lgica de atuao. Conseqentemente era mister regularizar a ocupao fundiria, reservando um montante de terras para o uso das populaes indgenas, e estabelecendo o estoque de recursos disponveis para os empreendimentos empresariais pblicos ou privados. Porm, foi durante a dcada de 70 que adquiriu impulso a normatizao da ao fundiria do rgo indigenista (Lima, 1989). At ento no havia uma preocupao em estabelecer definitivamente o estoque de terras disponveis para o mercado, pois a relao ndio/Terra no era pensada como permanente, mas provisria devido ao carter civilizador da poltica indigenista. Aps a instaurao da ditadura militar em 1964, a regio amaznica passou a integrar projetos destinados a expanso da fronteira de recursos a partir de algumas frentes privilegiadas: colonizao dirigida e implantao de grandes empreendimentos agropecurios, hidreltricos, de transporte e de extrao mineral. A tica estatal para o incremento da ocupao da Amaznia submetia a uma lgica autoritria e concentracionista a racionalidade inerente s modalidades de apropriao do espao dos atores locais. Porm, foi na dcada de 70 que os dirigentes militares implementaram medidas diretas de controle dos fluxos migratrios e de formao de uma reserva de mo de obra na regio. Isto foi feito em articulao com medidas de expanso da rede viria j implantada (rodovias Belm-Braslia/1958 e Cuib-Porto Velho/1960), ou seja, atravs da construo da rodovia Transamaznica, ao longo da qual seriam organizadas as unidades de assentamento de pequenos produtores rurais. Houve, contudo, uma mudana na estratgia de interveno agrria, ao serem privilegiados os empreendimentos privados de colonizao e ocupao fundiria. As grandes empresas agropecurias receberam incentivos fiscais e creditcios do Estado, para investirem na regio amaznica. Emergiram assim as condies favorveis para uma concentrao ampliada de terras, proporcionada pela transferncia de um montante vultoso de capitais provenientes da regio sudeste e do exterior, originalmente comprometidos com outros setores da economia (industrial e comercial). Neste contexto de tutela da sociedade civil pela ditadura militar, de fechamento de qualquer possibilidade de dilogo democrtico sobre os rumos do pas, a questo indgena emerge como uma via de oposio ao regime poltico coercitivamente instalado.18 A

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As outras opes como sabemos eram a luta armada ou a participao atravs do sistema bi-partidrio extremamente restritivo.

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40 situao dos povos indgenas recebe uma ateno indita pelos rgos de imprensa brasileiros. Conseqentemente, se abre um flanco para as denncias sobre violao dos direitos humanos que atingem a mdia norte-americana e europia. Neste momento, o ndio emerge como uma figura sntese, um signo metonmico, da cidadania aviltada de todos os brasileiros. O Estatuto do ndio emergiu assim, em 1973, como uma estratgia para melhorar a imagem do regime autoritrio no exterior, pois a poltica indigenista brasileira estava sendo muito criticada por antroplogos e por organizaes indigenistas estrangeiras.19 Este ordenamento jurdico das relaes do Estado brasileiro com os povos indgenas foi sagazmente elaborado em uma linguagem protecionista, mas ainda repleto de categorias e noes que possibilitavam a implementao de polticas assimilacionistas e desenvolvimentistas.20 Alis, tal capacidade das elites dirigentes do pas de traduzir a retrica transnacional dos direitos indgenas segundo interesses geopolticos do Estado pode ser verificada at recentemente, como mostraremos adiante. Mas, por outro lado, o Estatuto do ndio forneceu tambm o referencial simblico e legal a partir do qual as demandas identitrias e territoriais indgenas se constituiram nos anos 70 (Albert, 1997). Um personagem fundamental na produo de uma nova retrica baseada na etnicidade indgena foi o Conselho Indigenista Missionrio (CIMI), criado em 1972 por setores progressistas da Igreja Catlica, adeptos da Teologia da Libertao21, como um rgo ligado Conferncia Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB). Esta agncia fruto de tentativas de reavaliao da prtica pastoral implementada junto aos povos indgenas. Nesta nova concepo evangelizadora, a cultura indgena no mais

[...] From 1970-72, several international organizations including the newly formed Primitive Peoples Fund (later, Survival International) of London, sent fact-gathering missions to Brazil to observe the conditions of the Indians. Brazilian social cientists and North-American anthropologists critized official Brazilian policy towards the Indian, as proposed in the 1970 version of the Indian Statute. [...] (Wright, 1988: 373). 20 Para uma anlise das armadilhas conceituais do Estatuto do ndio, vide: LIMA, 1999. A categoria da imemorialidade, por exemplo, s ser superada com a promulgao da Constituio Brasileira de 1988, atravs da idia de ocupao tradicional (Santilli, 1996). A imemorialidade atravs da alegada impossibilidade da sua comprovao foi utilizada muitas vezes para negar as demandas territoriais indgenas. 21 Este segmento da Igreja Catlica foi fundamental, direta ou indiretamente, na formao de vrios movimentos sociais na Amrica Latina com pesos diferentes em cada um deles claro durante os perodos de vigncia dos regimes ditatoriais que assolaram todo o continente. O novo modelo de militncia poltica baseado na noo de comunidade, povo e trabalho de base tem fortes conotaes oriundas das Comunidades Eclesiais de Base (CEBs) (Fernandes, 1994).

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41 incompatvel com os princpios cristos, mas, pelo contrrio, uma das suas expresses.22 O ndio objetivado como oprimido, que deve tornar-se sujeito da sua libertao, organizando-se autonomamente. A mstica da reunio um componente bsico deste tipo de ao coletiva, pois atravs da conversao e dos encontros face a face, da identificao atravs do ato de compartilhar os sofrimentos alheios, que geram a conscientizao da prpria condio. As assemblias tornam-se um ritual secularizado, uma celebrao da cidadania usurpada pelos aparelhos de Estado, uma esfera comunicativa igualitria onde a fora da palavra e a livre troca de idias criam a verdadeira comunho entre os interlocutores. claro que tal simetria deve ser relativizada, pois tal comunidade argumentativa era dirigida e patrocinada pelo CIMI. Este modelo de organizao poltica foi a base do movimento indgena dos anos 70 e a chave da atuao indigenista do CIMI.23 Esta agncia contribuiu consideravelmente na configurao do campo discursivo da indianidade no Brasil, nos ltimo trinta anos. Investiu na formao de lideranas e foi um ator fundamental no processo de imaginao de uma comunidade indgena trans-local. Propunha um projeto uniforme de confrontao, baseado em duas grandes categorias tnicas: ndios e brancos. Na verdade, as assemblias indgenas, ao transferirem o modelo das reunies para um nvel supra-local, foram pensadas como mecanismo de criao de atores na arena poltica nacional a partir de uma modalidade particular de identidade tnica. O resultado foi a emergncia de uma elite, uma intelectualidade, uma vanguarda nativa; comprometida mais com a causa indgena enquanto uma plataforma poltica abrangente, tecida a partir do (re)conhecimento mtuo das privaes ou infortnios de cada povo especfico.24 As narrativas sobre as experincias intertnicas singulares de cada participante serviam para montar a imagem contrastiva do ndio frente ao branco e ao mesmo tempo vivenciar as suas diferenas culturais. Mas a diversidade tnica no mera coadjuvante neste drama intercultural, pois constitutiva do prprio discurso da indianidade. A ao destes militantes ser doravante informada por este jogo de espelhos onde a unidade refletida e confirmada na multiplicidade e vice-versa.

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Para uma anlise mais detalhada desta nova perspectiva pastoral, vide: Matos, 1997. Foram organizadas 53 assemblias indgenas no perodo de 1974-84. 24 O CIMI patrocinou tambm viagens de lideranas a eventos indgenas no exterior.

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42 Uma no a negao da outra, mas a condio de existncia da outra.25 Assim como as misses, as assemblias tambm pretendiam inculcar um certo habitus civis (Fgoli, 1982), mas em torno da noo de indianidade e no em torno da noo de civilizao. Alm de propiciar as condies para a mobilizao poltica unificada dos ndios no Brasil, o CIMI pretendia promover a solidariedade de todos os povos indgenas da Amrica Latina e com os demais movimentos populares (a unio de todos os oprimidos e marginalizados), visando a concretizao de um mega-projeto de mudana social em escala transnacional (Matos, op.cit.). A reformulao da prtica missionria catlica frente aos povos indgenas foi influenciada pela redefinio anloga das atitudes dos antroplogos ou pelo menos de um significativo segmento da comunidade antropolgica mundial no sentido de embutir na sua prtica profissional uma forte conotao tica de apoio s lutas indgenas, no final dos anos 60 e incio dos anos 70 (Wright, 1988 e Albert, 1995). Surgiu uma corrente de reflexo crtica sobre os laos existentes entre as condies de nascimento e desenvolvimento da antropologia e o colonialismo.26 Este foi um perodo de aparecimento de vrias ONGs indigenistas norte-americanas e europias, como tambm de organizaes e eventos indgenas transnacionais. Os povos indgenas foram concebidos como Quarto Mundo, ou seja, como um ncleo de resistncia cultural e poltica s instituies e valores opressores do Primeiro Mundo capitalista e colonialista.27 Era a partir dessas sociedades que se poderia vislumbrar um processo civilizatrio alternativo e um projeto revolucionrio para a humanidade. Atribuiu-se ao movimento indgena emergente em vrios pases e principalmente nos pases da Amrica Latina com grandes populaes indgenas uma tarefa de redeno e regenerao global do Mundo Civilizado em perigo de degradao e/ou destruio moral.

Preferimos falar de etnicidade multisituada, e no de ndio genrico, identidade supra-tnica ou panindgena, mas de e de um campo discursivo onde proliferam enunciados sobre o ndio. O conceito de transfigurao tnica de Darcy Ribeiro pressupe um lao necessrio entre indianidade e homogeneidade cultural, e se sustenta em uma concepo reificada de cultura e grupos tnicos. 26 Uma das inovaes epistemolgicas importantes ocorridas na antropologia neste perodo foram os estudos sobre etnicidade; compreendida como um fenmeno historicamente construdo em oposio cultura dominante e fruto de ideologias nativas de resistncia ou movimentos utpicos indgenas. 27 As categorias de situao colonial e colonialismo interno caracterizam a relao entre povos indgenas e o Estado na Amrica Latina em termos anlogos a relao de dominao, explorao e dependncia nas quais estes mesmos Estados esto submetidos frente s grandes potncias imperialistas do 1o Mundo (Wright, op.cit. e Albert, op. cit.).

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43 A Declarao de Barbados foi o resultado de um Simpsio sobre Contato Intertnico na Amrica do Sul, organizado por antroplogos da Universidade de Berna, em 1971, convidados pelo Conselho Mundial de Igrejas. Neste evento as prticas dos Estados, dos missionrios e dos antroplogos foram duramente criticadas. Os antroplogos foram convocados a engajarem-se nas lutas dos povos indgenas por autodeterminao e a colaborarem enquanto consultores tcnicos e no como dirigentes de movimentos de libertao que deveriam ser conduzidos pelas prprias lideranas nativas (Wright, op. cit.). No Brasil, em meados dos anos 7028, alguns antroplogos que procuravam aliar ao seu trabalho acadmico as preocupaes com a situao e destino dos povos estudados optaram por participar e coordenar os projetos de desenvolvimento comunitrio, propostos pela FUNAI. Estes programas pretendiam romper com os esquemas tutelares e assimilacionistas inerentes atuao da FUNAI, promovendo formas de controle indgena sobre a situao de contato. Os resultados estiveram muito aqum do esperado pelos seus coordenadores, devido a problemas viscerais da FUNAI (oramentrios, disputas entre funcionrios e antroplogos, etc.) e ao regime poltico ditatorial vigente no Pas. O Estado atravs da agncia indigenista oficial era uma das poucas instncias nas quais era possvel ao antroplogo executar atividade de assessoria, com a finalidade de realizar alguma ao positiva no sentido de atender s demandas de educao, sade, capacitao tcnica e poltica, gesto territorial, etc. O universo das ONGs indigenistas era ainda muito restrito no Brasil. Neste momento ainda no se falava em etnodesenvolvimento ou em projetos de desenvolvimento sustentvel em terras indgenas. Se no incio dos anos 70, os pronunciamentos e investigaes dos antroplogos giravam em torno das noes de colonialismo interno e etnicidade, na segunda metade desta dcada as anlises voltaram-se para o impacto das polticas desenvolvimentistas sobre as minorias tnicas. No incio dos anos 80, o campo transnacional de produo da indianidade (ONGs de apoio, planos de interveno, eventos e propaganda militante, pesquisas antropolgicas, etc.) desloca-se da crtica para a reflexo sobre os modelos alternativos e sustentveis de desenvolvimento. Proteger as tradies nativas passa a ser tambm respeitar as suas formas especficas de manejo de recursos naturais, cuja racionalidade ecolgica ser enfatizada em contraposio
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Gesto do General Ismarth Arajo de Oliveira (1974-1979) na presidncia da FUNAI.

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44 transposio de modalidades de desenvolvimento inadequadas e degradantes dos ecossistemas locais.29 J podemos verificar uma primeira traduo da retrica indigenista segundo a gramtica ambientalista de contestao ao capitalismo e modernizao imposta globalmente. Dois eventos foram emblemticos de uma nova fase de institucionalizao do campo intertnico em escala mundial: o Quarto Tribunal Russell sobre Direito dos ndios das Amricas, realizado em Rotterdam/Holanda, em 1980; e a Conferncia sobre Etnocdio e Etnodesenvolvimento, da UNESCO, em San Jos/Costa Rica. Completa-se um ciclo no processo de emergncia de um circuito transnacional de defesa dos direitos indgenas: o ndio passa da condio de heri revolucionrio e vtima do neocolonialismo imperialista, depositrio das esperanas de mudana social global do capitalismo, condio de sujeito de direitos humanos universais, cidado do mundo. Logo, o etnocdio (junto com o genocdio) assume o carter de crime contra a humanidade, usurpao de um dos seus patrimnios mais prezados: a diferena cultural. Neste novo contexto semntico da indianidade a noo de desenvolvimento transforma-se de objetivo estratgico de polticas etnocidas em uma demanda, um direito fundamental, um fator de fortalecimento da cultura quando implementado com a plena participao do grupo tnico e segundo seus prprios valores e crenas.30 No Brasil, foram as manifestaes de entidades da sociedade civil contra o Decreto de Emancipao, em 1978, que deflagraram o processo de multiplicao das ONGs de

Na segunda metade dos anos 70, surge uma srie de estudos sobre a racionalidade ecolgica dos costumes aparentemente exticos e absurdos (tabus alimentares, infanticdio, guerra, xamanismo, etc.) de grupos indgenas amaznicos. Esta linha de investigaes foi designada como antropologia ecolgica e significou uma tentativa radical de importao de categorias e noes da ecologia humana de naturalizao da cultura para a antropologia (Gross, 1975; Mcdonald, 1977; e Ross, 1978). Esta corrente terica originou-se nos EUA e seus fundadores foram os antroplogos Andrew Vayda e Roy Rappapport (Orlove, 1980). 30 Para uma das formulaes antropolgicas mais conhecidas sobre etnodesenvolvimento, vide: Stavagen, 1984. Darrel Posey publicou muitos textos na dcada de 80 (1984, 1987a, 1987b, e 1987c, por exemplo), onde formulou a sustentabilidade das prticas de manejo de recursos dos Kayap do Brasil Central. No se tratava mais de representar os amerndios como personagens passivos que acionariam mecanismos adaptativos diante de enormes fatores limitativos, mas sim como atores ativos que manipulariam os recursos naturais, criando micro-habitats e impulsionando a biodiversidade. O ndio no era mais concebido apenas como algum que, para sobreviver, elaborava respostas adequadas ao cenrio ecolgico no qual estava inserido, conservando o meio ambiente. Ele emerge dos estudos de etnoecologia (ou etnobiologia) modificando criativamente a natureza a seu favor, alterando a configurao dos fatores limitativos e, alm de no degrad-lo, aperfeioando-o e promovendo o bem-estar social.

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45 apoio.31 Esta foi mais uma tentativa dos governantes militares de abafar o ativismo indgena, retirando a tutela do Estado e os direitos especficos correspondentes de lideranas e grupos ameaadores segurana nacional, imputando-lhes a condio de integrados, alm de retirar os empecilhos legais para a liberao de terras para os empreendimentos desenvolvimentistas estatais ou particulares. Por mais paradoxal que parea, a tutela era o a espinha dorsal de uma ossatura institucional que permitia a garantia de direitos aos ndios mesmo que vrias vezes violados por quem deveria respeit-los e proteg-los. Tal ato angariou a oposio de vrias associaes civis (OAB, ABI, ABA, CIMI, etc.) e trouxe uma ampla visibilidade pblica para as reivindicaes indgenas, de tal modo que o governo foi obrigado a recuar.32 Obviamente que, posteriormente, outros expedientes mais sutis foram utilizados para minar as demandas territoriais indgenas. Dois anos depois, em 1980, ocorreram duas tentativas rivais de centralizao do movimento indgena, baseadas no modelo hierrquico e verticalizado das Federaes Indgenas de outros pases sul-americanos. As formaes tanto da UNI quanto da UNIND orientaram-se pelo paradigma ocidental expresso no sistema poltico representativo e na organizao jurdico-territorial do Estado-Nao. As duas atribuam-se o papel de porta-voz legtimo dos ndios frente s autoridades governamentais brasileiras. No ano seguinte, em uma reunio em So Paulo, convocada pela Comisso Pr-ndio (CPI/SP) para discutir as propostas governamentais de mudana no Estatuto do ndio, as duas organizaes fundiram-se, mantendo a sigla UNI. Fica evidente a inspirao na proposta do CIMI de elaborao de um movimento unificado, aglutinador e dirigente das demandas locais e especficas como instrumento eficaz para negociar com os agentes do mundo dos brancos.33 Apesar de todos os problemas gerados por este formato de ao coletiva (como a disputa por cargos e prestgio, distanciamento dos movimentos locais, etc.), a sua importncia reside na demonstrao da necessidade de construo de uma estrutura autnoma independente do Estado, mas tambm da Igreja e de outros personagens do cenrio
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Os anos 70, foram marcados no Brasil e na Amrica Latina por um crescimento do associativismo civil (associaes de moradores, sindicatos, movimento feminista, negro, etc.) enquanto um novo desenho de participao poltica e ao coletiva, ou seja, um movimento difuso de democratizao da esfera pblica, de reconstruo da cidadania, em um perodo de governos autoritrios (Fernandes, 1994). 32 Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), Associao Brasileira de Imprensa de Imprensa (ABI) e Associao Brasileira de Antropologia (ABA). 33 Aconteceram outras tentativas de unificao do movimento indgena, como a criao do Conselho de Articulao dos Povos Indgenas do Brasil (CAPOIB), apoiada pelo CIMI, em 1992.

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46 indigenista como advogados, jornalistas, antroplogos, etc. de mobilizao poltica da identidade tnica, na qual a assemblia constituiu-se em espao privilegiado de representao (no sentido goffmaniano de dramatizao) da indianidade. O incio da dcada de 80 representou tambm uma nova fase nas prticas de governamentalizao dos processos de expanso da fronteira na Amaznia. Com a instaurao dos Grandes Projetos Econmicos (GPEs), institucionalizaram-se circuitos autnomos de exerccio de poder diretamente subordinados a centralidade governamental sediada em Braslia. Amplia-se a rede de unidades territoriais federais, justapondo-se aos (e restringindo os) domnios estaduais e municipais de organizao do territrio. Os GPEs caracterizam-se fundamentalmente por uma mobilizao de capital, mo-de-obra e extenses territoriais em grande escala; assim como pela sua imposio autoritria centralizao/monoplio das decises em instncias superiores do aparato estatal sobre as foras sociais locais. O Projeto Grande Carajs (PGC) inaugurou um programa de explorao dos recursos minerais, articulado a ampliao das malhas viria (ferrovia Carajs conectada s hidrovias da bacia dos rios Tocantins e Araguaia), urbana e de fontes de energia (hidreltrica de Tucuru) (Becker, 1988, 1990a e 1990b; Vainer, 1990 e Vainer & Arajo, 1992). Toda esta imensa operao de constituio de espaos perifricos subordinados aos centros de acumulao do capital no pas (localizados principalmente nas regies sul e sudeste), ou fora dele, proporcionou muitos conflitos envolvendo os atores sociais locais. At a dcada de 80, estes confrontos no foram incorporados pelas estratgias territoriais destes mega-projetos desenvolvimentistas. Foram criadas ento instncias decisrias (o GETAT e o GEBAM), onde foram formulados os planos de regularizao fundiria, que criaram territrios diretamente subordinados ao centro de poder hegemnico do aparelho estatal (Almeida, 1990). O esquadrinhamento da Amaznia em pontos crticos e plos de desenvolvimento inseridos num conjunto articulado de aes estratgicas pertinentes ao Plano de Integrao Nacional prosseguiu com a edio do Projeto Calha Norte (PCN), aps a instaurao da Nova Repblica. O PCN congregava uma srie de medidas de cunho desenvolvimentista (expanso das malhas viria, hidreltrica, urbana e empresarial) com preocupaes geopolticas de defesa das fronteiras internacionais (construo de quartis, aeroportos e embarcaes fluviais) (Oliveira, 1990).

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47 Foi neste contexto de re-estruturao global do espao amaznico, de integrao multisetorial do pas nos circuitos transnacionais de acumulao do capital, sob forte orientao do Estado, que se constituiu uma rede de organizaes associativas indgenas e de entidades de apoio s suas demandas, a partir de meados da dcada de 80. As associaes indgenas estabeleceram os canais de mediao (planejamento e execuo) entre as fontes financiadoras de projetos de desenvolvimento (ONGs e governos norteamericanos e europeus) e as comunidades locais. Articulam-se em estruturas horizontais e fragmentadas, cuja ao conjunta espordica no implicando a necessidade de qualquer instncia permanente de unificao , estabelecida em torno de tpicos e em contextos especficos. Continuam existindo algumas organizaes que procuram coordenar as aes das vrias associaes em uma escala regional, porm atuam mais como ONGs prestadoras de servios pblicos do que como um rgo central de representao de interesses e mobilizao de uma totalidade coletiva rigidamente formulada. Cabe destacar a importncia da Constituio de 1988 como um fator de propulso do associativismo indgena e do aumento de demarcaes dos anos 90. O fim do regime tutelar e a autonomia para se fazer representar diretamente na arena judiciria atravs dos seus prprios meios de mobilizao coletiva foram vitrias importantes neste perodo. A possibilidade de recorrer, atravs das associaes, a outros poderes da repblica como o Ministrio Pblico em situaes em que o Estado viola ou deixa de cumprir seu dever de garantir os direitos constitucionais dos povos indgenas foi fundamental para a ampliao das suas conquistas territoriais. Por outro lado, a prpria dinmica de produo dos relatrios de identificao e delimitao torna-se mais democrtica, na medida em que a participao dos ndios na deciso sobre os limites das suas terras e no acompanhamento das atividades de levantamento de dados emergiu como ingredientes essenciais deste procedimento administrativo.34 significativo que a maioria absoluta destas agncias de mediao direta estejam sediadas e construam seu espao de interveno em localidades ou regies da Amaznia. Cabe destacar a importncia que a Amaznia assumiu neste ltimo quartel de sculo como fronteira tecno(eco)lgica (Becker, 1990b). A Amaznia considerada o maior reservatrio

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Para uma anlise da feio autoritria dos Grupos de Trabalhos (GTs) num momento anterior, vide: Oliveira Filho & Almeida, 1989.

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48 de biodiversidade do planeta, tornando-se assim uma regio estratgica para o desenvolvimento da engenharia gentica e da biotecnologia. Nos ltimos anos uma profuso discursiva vem re-atualizando a antiga imagem da regio como um Eldorado, uma gigantesca fonte de investimentos capitalistas multisetoriais. Uma complexa rede de agentes e agncias (instituies cientficas, mdia, agncias ambientalistas transnacionais, etc) e de organismos financeiros multilaterais tomaram a Amaznia como problema central para a operacionalizao de seus objetivos estratgicos (Brigago, 1991; Gray, 1995; e Silva, 1994). O campo ideolgico e poltico transnacional ambientalista se ampliou interferindo nos processos decisrios de Estados, bancos mundiais e instituies polticas supra-nacionais quanto a implementao de programas desenvolvimentistas, ambientalistas e indigenistas. Nos ltimos 15 anos, houve uma presso das organizaes ambientalistas no-governamentais sobre os rgos financeiros multilaterais como o Banco Mundial, por exemplo que municiavam o oramento dos Grandes Projetos. Em conseqncia, os gestores destes mega-investimentos passaram a incorporar estudos sobre impacto scioambiental (Brigago, Op. cit. e Vainer & Arajo, 1992). A partir de meados dos anos 80, o indigenismo assumiu novas feies concomitantemente ao processo de expanso transnacional da rede ambientalista (Ribeiro, 1991 e Viola & Leis, 1991). Neste cenrio, as prticas e estratgias representacionais que compem as imagens da indianidade no Brasil ficaram estreitamente conectadas ao sistema semico que estrutura o movimento ecolgico. Organizaes e lideranas indgenas assumem categorias e problemas do discurso ecologista como forma de legitimar demandas de afirmao da identidade tnica. Constituem assim, um circuito onde a indianidade construda em ntima conexo com questes globais ligadas aos destinos do planeta e da humanidade (Fisher, 1994; Conklin & Graham, 1995; Conklin, 1997; Albert, 1995 e 1997). As novas condies de existncia social dos povos nativos em escala supra local, isto , o reconhecimento dos seus direitos especficos na esfera pblica depende do modo como so redefinidos os seus interesses atualmente em circuitos transnacionais (regionais, continentais ou planetrios) de defesa da cidadania. Os modelos cosmopolitas de ativismo poltico, principalmente aqueles fornecidos pelos movimentos ambientalistas, apresentam o ndio como o agente ecolgico por excelncia, o protetor natural do planeta, o guardio

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49 da biodiversidade. Ele portaria espontaneamente a conscincia ecolgica por causa do seu modo de vida, da sua cultura, das suas formas auto-sustentadas de lidar com a terra. A regularizao das terras indgenas e a proteo ao meio ambiente constituram-se ento em condies fundamentais exigidas pelos organismos multilaterais de fomento para o financiamento de projetos desenvolvimentistas.35 O Estado brasileiro, ento, conferiu uma roupagem ambientalista s suas estratgias desenvolvimentistas e assimilacionistas de regularizao fundiria das terras indgenas. Desde o incio dos anos 80, ocorreu um maior controle das demandas territoriais indgenas pelos generais instalados na cpula de poder do Estado atravs de uma completa subordinao do processo de criao desta modalidade de terras pblicas pelo Conselho de Segurana Nacional (CSN) bem como a gesto dos conflitos agrrios e a regularizao fundiria nos Vales do Araguaia e Tocantins e no Vale do Baixo Amazonas. A deciso sobre demarcao foi deslocada da alada do Presidente da FUNAI para o Grupo de Trabalho Interministerial (GTI); um degrau administrativo adicional antes de chegar aos ministros responsveis. No governo do General Joo Batista de Figueiredo, isto ocorria atravs da participao de um representante do Ministrio Extraordinrio de Assuntos Fundirios (MEAF) rgo sob o comando dos militares do CSN no GTI36, que emitia o parecer sobre a proposta de identificao e delimitao encaminhada pelo Presidente da FUNAI. No governo do primeiro presidente civil depois do Golpe de 64, Jos Sarney, a ingerncia do CSN era direta, pois um representante deste rgo integrava o GTI, juntamente com um representante do Ministrio do Interior (MINTER), um representante do Ministrio de Reforma Agrria e do Desenvolvimento (MIRAD) e o Presidente da FUNAI (Oliveira Filho, 1993). Em 1991, o grupo foi eliminado pelo Decreto 22 e apenas o Ministro da Justia ficou encarregado de emitir portaria declaratria, apesar dele poder solicitar informaes de outros rgos pblicos.
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claro que o governo brasileiro tentou ao mximo no cumprir as metas dos programas de preservao ambiental e proteo s comunidades indgenas e ao mesmo tempo convencer a opinio pblica internacional de que estes mega-projetos de desenvolvimento e integrao nacional eram verdadeiras vitrines de ambientalismo e indigenismo. Entretanto, a capacidade de presso das organizaes indigenistas e indgenas aumentou consideravelmente neste espao de negociao no qual o Estado no era mais o nico interlocutor relevante, pois passava a ser monitorado por agncias supra-nacionais que detinham um poder (econmico) efetivo sobre ele. Vide Aquino, (1991) e Aquino & Iglesias (1996) para o caso do PMACI/BR-364 no Acre e Sul do Amazonas; Ferraz (1991) para o caso do PGC no Sudeste do Par; Mindlin & Leonel (1991) para o caso do Polonoroeste em Rondnia e Norte do Mato Grosso e Seilert (1996) para o caso do PRODEAGRO no Mato Grosso. 36 Os outros integrantes do GTI ou o famigerado Grupo eram o representante do Ministrio do Interior (MINTER) e o Presidente da FUNAI.

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50 As terras indgenas afetadas pelo Projeto Calha Norte/PCN foram agraciadas com propostas de fragmentao em pequenas ilhas territoriais, classificadas como colnias indgenas e circundadas por Florestas Nacionais (FLONAS). A colnia indgena era uma modalidade poltico-administrativa destinada aos ndios aculturados e as FLONAS eram reservatrios de recursos naturais abertos ao uso racional por no ndios. Em outros termos, eram projees espaciais de uma lgica de expropriao fundiria dissimulada sob uma linguagem ambientalista.37 Tais tentativas de insulamento ocorreram tambm em regies no abrangidas pelo PCN, como no Acre e Sul do Amazonas (Aquino, 1991 e Aquino & Iglesias, 1996). Estava sendo gerado um padro de criao de terras indgenas para todo o Brasil. Alis, isto foi feito em franca contradio com a Constituio de 1988, na qual no consta qualquer classificao dos ndios atravs de graus de aculturao e no restringiu a definio das terras indgenas s reas de ocupao permanente ou seja, s aldeias consideradas como unidades isoladas mas como aquelas necessrias para sua reproduo fsica e cultural e conservao do meio ambiente. Exemplo mais recente de criao de uma sistemtica de procedimentos administrativos de reconhecimento legal das terras indgenas ao arrepio da Carta Magna de 1988 condizente com os interesses anti-indgenas o Decreto 1775/96, elaborado pelo ento Ministro da Justia, Nelson Jobim, do governo de Fernando Henrique Cardoso.38 A conciliao entre crescimento econmico e preservao da natureza, sintetizada na noo de desenvolvimento sustentvel, constituiu-se no eixo da ao ecologista nos anos 90, principalmente aps a Conferncia das Naes Unidas sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento/UNCED, em 1992, no Rio de Janeiro. Nesta dcada proliferaram as ONGs ambientalistas, que se profissionalizaram e consolidaram laos com as megaagncias de defesa ecolgica do primeiro mundo e com organismos e programas multilaterais de financiamento. Formaram parcerias com rgos governamentais municipais, estaduais e federais e se transformaram em peas da engrenagem estatal de formulao das polticas ambientais (Viola, 1992). No mbito do Estado foram criados vrios mecanismos administrativos, legais e jurdicos de regularizao sobre as formas de uso do meio ambiente. Outros movimentos sociais (feminista, moradores, trabalhadores
Vide Ricardo (1991) e Buchillet (1991) para o Alto Rio Negro/AM; Albert (1991) para os Yanomami, em Roraima; Gallois (1991), para os Waipi, no Amap. 38 Para uma anlise detalhada do Decreto 1775/96 e da era Jobim, vide Ricardo & Santilli, 1997.
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51 rurais sem terra, seringueiros, indgenas, atingidos por barragens) articularam a questo ambiental com as suas demandas e agendas especficas. Os organismos multilaterais de fomento exigiram maior participao da sociedade civil nas decises sobre as polticas governamentais por eles patrocinadas. A importncia da Amaznia para a crise ecolgica global, desde meados dos anos 80, adquire ampla visibilidade mundial devido ao vnculo entre o desmatamento e as queimadas com o efeito estufa. A luta dos seringueiros no Acre em defesa da sua atividade extrativista, ligando-a a preservao da floresta, e sua aliana com os povos indgenas, sob a categoria de Povos da Floresta, teve repercusso mundial e possibilitou a formulao indita de um novo instrumento legal de garantia de direitos territoriais para populaes tradicionais; as reservas extrativistas (Scherer-Warren, 1996). Nos anos 90, as ONGs indigenistas constitudas nos anos 70 e 80 se transformaram em canais imprescindveis de interlocuo nos programas governamentais de cunho desenvolvimentista financiados pelos organismos transnacionais. O desenvolvimento sustentvel tornou-se um tema paradigmtico em torno do qual as ONGs passaram a elaborar seus objetivos estratgicos e as respectivas modalidades de operacionalizao, e o caminho das pedras para chegar aos recursos oferecidos pelas agncias de fomento.39 Em suma, se o discurso ecolgico fornece hoje os principais paradigmas de construo da cidadania, o ndio seria o espelho no qual todo ecologista deveria mirar-se. Se antes os povos indgenas constituam entraves para a civilizao, para o desenvolvimento das zonas de expanso das fronteiras econmicas das sociedades modernas, agora eles representam o principal modelo para experincias ps-modernas de gerao de riquezas sem degradao ambiental. No se trata de um simples resgate de modalidades pretritas de uso da terra, e sim de processos e mecanismos de reconstruo social da territorialidade indgena, cujo principal referencial no mais o Estado-Nao, mas uma rede transnacional de redes ambientalistas e de defesa dos direitos humanos. Nos governos de Fernando Collor e Itamar Franco uma poca de cortes no oramento da Unio foram estabelecidos convnios e parcerias entre FUNAI e ONGs para viabilizar a demarcao de reas indgenas (Oliveira, 1993 e ISA, 1996: 67).40

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Algumas ONGs indigenistas antigas e outras novas incorporaram a temtica ambiental na sua linha programtica de interveno (Albert, 1995). 40 A UNCED (Reunio de Cpula das Naes Unidas sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento), a ECO-92, realizada no Rio de Janeiro, repercutiu no mpeto demarcatrio do governo Collor. Este ex-presidente

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52 Ocorreram muitas manifestaes de entidades de apoio e de organizaes indgenas pelo cumprimento do prazo constitucional para a demarcao de todas as terras indgenas. Formou-se inclusive um Comit Europeu para Demarcao das Terras Indgenas Brasileiras integrado por 70 organizaes de todo o mundo dedicadas defesa dos direitos humanos que tinha a inteno de fazer uma campanha no exterior para angariar fundos para a finalidade definidora da sua existncia. ilustrativo que concomitantemente s mobilizaes em torno da resoluo do problema das demarcaes tenha surgido um programa destinado aos ndios da Amaznia, inserindo-os no bojo das preocupaes dos sete pases ricos (EUA, Canad, Inglaterra, Frana, Alemanha, Itlia e Japo) com a preservao e o desenvolvimento sustentvel das florestas tropicais. O Projeto Integrado de Proteo de Terras e Populaes Indgenas da Amaznia Legal (PPTAL), componente do Programa Piloto para Proteo das Florestas Tropicais Brasileiras (PP-G7) financiado por um banco estatal alemo (o KFW, com uma participao muito maior), o Banco Interamericano de Desenvolvimento (BIRD) e o governo brasileiro. Todavia, as verbas s comearam a ser liberadas em 1995 pelo BIRD e pelo KFW (ISA, 1996). O PPTAL um plano de investimentos vultosos na rea indigenista subordinado a um mega-projeto ambientalista, diversamente daqueles submetidos aos interesses e estratgias geopolticos dos grandes programas. Em contrapartida, o PCN caminhava em marcha lenta apesar das tentativas no Congresso Nacional e no Poder Executivo para ressuscit-lo e o Sistema de Vigilncia da Amaznia (SIVAM) enfrentava uma srie de percalos e atropelos para sua implementao por causa de irregularidades administrativas na contratao da empresa executora (ISA, 1996). Sinal dos tempos! O Decreto 1775/96 foi, portanto, mais uma artimanha do governo brasileiro para atender aos interesses anti-indgenas frente a um novo cenrio institucional e semntico da indianidade. Devido s manifestaes contrrias ao Decreto de ativistas ligados a ONGs de apoio, nacionais e estrangeiras, o torpedo jogado pelo ministro Jobim (inclusive contra a imagem do governo FHC no exterior) no fez o estrago temido (reviso e reduo territorial das terras indgenas demarcadas e homologadas e paralisao do
homologou vrias demarcaes com o intuito de melhorar a imagem do governo no exterior um pouco antes da Rio-92. Collor determinou que fossem priorizadas as reas passveis de maior repercusso internacional. Cabe lembrar ainda a homologao de uma extensa rea contnua para os Yanomami, que naquele momento tinha maior visibilidade na mdia internacional, mandando dinamitar pistas de pouso de garimpeiros e revogando o Decreto anterior que a reduzia e fragmentava (ISA, 1996: 68).

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53 processo de regularizao das outras)41. Por outro lado, o Projeto Calha Norte foi revigorado na Cabea do Cachorro42, concomitantemente ao vultoso investimento do governo norte-americano para coibir a produo e o trfico de drogas na Colmbia (o Plano Colmbia), e o SIVAM superou os atropelos iniciais e j se encontra em operao. Nos ltimos anos vrios grupos indgenas, atravs de suas associaes, participam de projetos (contando com a colaborao de assessores de ONGs, rgos governamentais municipais, estaduais e federais, bancos nacionais, estrangeiros e multilaterais, empresas, etc.) para obter fontes alternativas de renda para as comunidades.43 Tais empreendimentos visam fundamentalmente o fortalecimento da identidade tnica, valorizao das tradies e o desenvolvimento sustentvel. As condies de comercializao dos produtos so mais favorveis aos ndios. Estamos diante de novas relaes econmicas entre ndios e brancos, baseadas no consumo de bens exticos, naturais ou culturais, e no fascnio secular exercido pela Amaznia nos cidados do primeiro mundo; mas principalmente na idia mundialmente propagada sobre a possibilidade de usar os recursos naturais, e at lucrar com eles, sem degradar o meio ambiente e violentar os direitos e o modo de vida dos povos da floresta. Acrescente-se que com o avano significativo da regularizao das terras indgenas na Amaznia durante o governo Fernando Henrique Cardoso (1994-2002), a palavra de ordem agora a gesto territorial, atravs da fiscalizao e implementao de projetos de desenvolvimento sustentvel (e recuperao de reas degradadas, nos casos pertinentes) nas terras demarcadas e de valorizao e resgate cultural. Para tanto foi criado em 1999 o Projeto Demonstrativo dos Povos Indgenas (PDPI) no mbito do PPTAL/PPG7.
Somente a Terra Indgena Potiguara de Monte-Mor, na Paraba, recebeu um despacho ministerial (do ento ministro da justia Renan Calheiros), em 1999, acatando os argumentos dos contestantes e determinando FUNAI a elaborao de novos estudos de identificao. 42 Regio do Noroeste Amaznico constituda pelos limites entre o municpio brasileiro de So Gabriel da Cachoeira e a Colmbia, e que tem o formato de uma cabea de cachorro. Existe uma proposta de construo de uma estrada que liga um trecho (o Km 112) da estrada So Gabriel da Cacheira/Cucu (BR 307), na fronteira com a Colmbia, at Maturac, onde existem aldeias Yanomami; e outra proposta de instalar um quartel numa comunidade Baniwa, no rio Iana. Os Yanomami e os Baniwa so contra tais pretenses do exrcito, representado na regio pelo 1o Batalho de Engenharia e Construo (1o BEC) e pelo 5o Batalho de Infantaria de Selva (5o BIS), sediados em So Gabriel da Cachoeira. 43 A exportao de guaran em p pelos Sater-Mau para o mercado europeu atravs da rede de vendas Comrcio para o Terceiro Mundo (CTM) (Sater-Mau apostam na fora do guaran. Amaznia Vinte Um. No 8, Maio/2000. Reportagem de Rosngela Alans e fotos de Maurcio Fraboni); a venda de artesanato Baniwa atravs de uma parceria comercial com a Tok & Stock (FOIRN/ISA. Arte Baniwa. Cestaria de Arum. So Gabriel da Cachoeira/So Paulo, 2000); a venda de sementes de urucu pelos Yaminawa da Terra Indgena Rio Gregrio, em Tarauac/AC, para a empresa norte-americana de cosmticos Aveda Corporation (ndios da Amaznia aderem economia global. Gazeta Mercantil. Nacional A-7, 28/06/2000); so apenas alguns exemplos.
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54 Veremos mais adiante como esta dinmica institucional da indianidade no Brasil repercutiu no Rio Negro.

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PARTE I. O CAMPO DE AO MISSIONRIA NO RIO NEGRO (1970-1990). DO COMBATE A PRESERVAO DA CULTURA INDGENA. CAPTULO I. PREPARANDO BONS CRISTOS PARA DEUS E HONESTOS CIDADOS PARA A PTRIA. A atuao missionria no Rio Negro foi precria at o incio do sculo XX, 1910, quando o papa Pio X concedeu a regio do Vaups brasileiro aos Salesianos. Jesutas, Carmelitas, Capuchinhos, Franciscanos, Monfortianos e Javerianos em geral estavam associados s formas coloniais de recrutamento da mo de obra indgena (tropas de resgate ou descimentos), nos sculos XVI ao XVIII, ou s polticas nacionais de catequese e civilizao dos povos indgenas, nos sculos XIX e XX (Jackson, 1984 e Cabalzar Filho, 1998). Na poca de auge do extrativismo da borracha, diminuiu a influncia missionria na regio, que foi retomada nas dcadas de 20 e 30 com a crise do caucho. No lado brasileiro, esta hegemonia enfraqueceu-se novamente nos anos 80 com a intensificao da presena militar, por causa do Projeto Calha Norte, e a formao de uma densa rede de organizaes indgenas. Tornaram-se os principais mediadores entre os ndios e o mundo dos brancos: [...] Tradicionalmente han dirigido el comercio, establecido negocios, comprado los productos excedentes (sobre todo alimentos), dirigido las escuelas y, ocasionalmente, empleado a los Tukano (Jackson, 1984: 54). Em 1953, o governo colombiano outorgou aos salesianos o pleno controle da educao em terras indgenas. Tal predomnio foi abalado nos anos 50 e 60 com a entrada de dois novos atores neste cenrio religioso: a Misso Novas Tribos (MNT) e o Instituto Lingstico de Vero (ILV). As estratgias utilizadas pelas agncias catlicas e protestantes variaram. Os salesianos privilegiaram a concentrao de populao indgena em postos de ao, atacaram s vezes at violentamente algumas instituies sociais, insistiram em impor o uso da lngua espanhola ou portuguesa e investiram na educao de crianas em internatos. A lgica subjacente deste ltimo procedimento era converter e civilizar as crianas, formando uma gerao futura de novos cristos e um elo estratgico uma caixa de reverberao para convencer os mais velhos a abandonar a sua vida pecaminosa (Cabalzar Filho, 1999). Tais internatos constituram o bero de muitas lideranas indgenas, principalmente na rea da educao. 55

A destruio das Casas Comunais assim como os ataques contra o xamanismo, as festividades, os adornos corporais, o casamento entre primos cruzados, a ingesto das plantas alucingenas, etc. era um procedimento crtico para o programa de salvao daquelas almas, pois, considerada como o templo do Mal, era o modelo do cosmos e o eixo do simbolismo nativo (Cabalzar Filho, 1999).1 Para Jackson (1984), o padro de moradia centrado na famlia nuclear foi amplamente aceito e tinha como efeito inevitvel a destruio da cultura indgena devido ao fim das incurses vingativas e das lutas violentas entre parentes e afins.2 Sophie Muller organizou a primeira conferncia de crentes em uma aldeia situada num lugar considerado como o centro ou umbigo do mundo pela fratria Hohodene dos Baniwa, percebendo a sua importncia mtica e elegendo-a como um ponto estratgico para uma primeira grande tentativa de converso (Wright, 1999). Todavia, a insistncia catlica em destruir as grandes malocas no Rio Negro (Cabalzar Filho, 1999) e a Casa dos Homens Bororo no Brasil Central (Novaes, 1999) pressupunha tambm algum conhecimento da centralidade delas para a organizao social e para a cosmologia indgena. Por outro lado, os missionrios catlicos revelaram-se tambm perspicazes etngrafos, produzindo um acervo imenso de dados e interpretaes sobre os modos de vida destes povos. Eles foram personagens importantes na constituio de uma rede etnogrfica no Rio Negro, em particular, e na Amaznia, em geral (Cabalzar Filho, 1999 e Falhauber, 1997).
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Os Jesutas, nos sculos XVI e XVII, elegeram o canibalismo e a vingana Tupinamba como os principais obstculos para a converso. O apego a estes costumes diablicos era o alicerce da alma inconstante dos "ndios". A morte do inimigo era um fator fundamental para o fluxo da memria coletiva e um mecanismo de produo da pessoa. Era o corpo do outro, inserido neste fluxo de mortes recprocas, que propiciava a vitalidade social e o destino pstumo do indivduo como ser humano pleno indissocivel da humanidade da vtima, atestada pela coragem diante do seu carrasco e pela honra de acabar no estmago do inimigo (Viveiros de Castro, 1992). 2 importante olhar a relao entre converso e conflitos internos ao grupo indgena no como de causa e efeito entre variveis objetivas, mas como de interconexo semntica estabelecida pelos sujeitos. Os Wari, por exemplo, interpretaram a proposta missionria da MNTB de uma comunidade de irmos em Cristo ou pela f como um modelo de sociedade onde estariam ausentes as brigas entre parentes e afins. Logo, a converso era interessante nos termos de uma utopia indgena e, conseqentemente, de um desejo coletivo de eliminao da afinidade (relao tensa, geradora de roubos, adultrio, vingana, etc.). Ao contrrio dos Tupinamb, para quem a converso estava inscrita na cosmologia, para os Wari estava na sua sociologia, isto , em um modelo de sociedade onde a consanginidade produzida atravs da reciprocidade de alimentos (na comensalidade). Partilhar uma mesma dieta alimentar (comida verdadeira) configura um espao de sociabilidade autntico, de convivncia plenamente humana, que delimita o universo da identidade e da alteridade. Este ideal aparece na concepo Wari do mundo pstumo onde s h consangneos. O inferno Wari a afinidade e o deus cristo foi humanizado e afinizado. A humanidade no concebida como um estado irreversvel do ser, mas sempre construda socialmente e pensada como uma srie de englobamentos sucessivos e mutveis (Villaa, 1996).

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Jackson (1984) afirma que, apesar da proibio de certas prticas tradicionais como beber chicha, mastigar coca, danar e ingerir alucingenos pelos missionrios da MNT, alguns elementos do protestantismo atraram os Cubeo. Sem aprofundar este interessante postulado, acaba caindo na explicao mais fcil embora limitada para a converso, qual seja: Sin embargo, es probable que la principal razn de tan numerosas conversiones sea la desorganizacin y desmoralizacin que hacia esa poca estaban sufriendo los pueblos de habla arawak y cubeo, tal como los indios del lado brasileo haban respondido a los cultos mesinicos en el siglo anterior, debido a su extremo sufrimiento y dislocacin [...] (Idem: 56). J o ILV se apresentava como uma organizao eminentemente tcnica: uma promotora do conhecimento cientfico sobre as lnguas e culturas nativas. Todavia, seu objetivo principal era traduzir a bblia para vrias lnguas como um expediente fundamental para difundir a f crist. Recebeu ajuda substancial do governo colombiano, como a construo de pistas de pouso e fornecimento de gasolina. Os missionrios da MNT, por sua vez, receberam um tratamento diametralmente oposto no Brasil. Foram hostilizados pelo governo brasileiro, nos anos 50, e foram expulsos, com a participao do SPI e dos militares, sob a acusao de perturbarem a ordem social atravs de propaganda anticatlica e por causa da sua condio de estrangeiros vivendo em regio de fronteira (Wright, 1999). A equipe do ILV era composta de duas pessoas, que passavam somente parte do seu tempo nas aldeias. Atuavam atravs de tradutores-lingstas e eventualmente levavam alguns ndios at a sede para que regressassem s aldeias e espalhassem a Boa Nova guardada nas escrituras. Por esta razo a influncia dos membros do ILV foi menor em comparao com os catlicos que passavam mais tempo nas aldeias e contavam com os internatos. Segundo Jackson (citando Irving Goldman) o sucesso da MNT entre os Cubeu deveu-se ao faccionalismo que ajudou a criar. Por seu turno, o ILV impressionava aos indgenas pelo seu aparato tecnolgico (rdios transmissores, avies, etc.) e fazia com que eles questionassem [...] la validez de su estilo de vida tradicional y de su identidad como indios (Jackson, op.cit: 65).

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O principal inimigo a ser combatido pelos missionrios era aquela cultura, que condenava aquelas almas infelizes danao eterna e os impedia de ver as luzes das virtudes crists, concebida como sistema fechado e esttico de crenas e valores, reificada como um conjunto fixo de traos, como algo que se preserva ou se abandona, se guarda ou se perde; mas tambm como uma fora que coage o esprito humano, como uma entidade poderosa e malfica que est alm da vontade individual.3 Para desviar estes pobres incrdulos do caminho da perdio, somente os destemidos e abnegados bandeirantes de cristo (Novaes, 1999). Logo, qualquer violncia cometida era para o bem daqueles seres indefesos diante do e escravizados pelo pecado; e, por outro lado, no se dirigia queles indivduos, mas ao mal que os aprisionava em uma vida contrria s leis de Deus. Pretendia-se atingir o seu ntimo, isto , a sua alma; despertar a razo adormecida em cada um daqueles seres embrutecidos pela servido s necessidades da carne e s paixes inconstantes, impostas pelo ambiente inspito da floresta. Compreende-se assim a conexo entre salvao e civilizao. preciso, portanto, investigar tambm o imaginrio cristo, as convices e valores ltimos atravs dos quais os sujeitos conferiam legitimidade e sensatez4 aos atos aparentemente mais absurdos e cruis dos missionrios. No so, portanto, apenas os nativos que interpretam e definem a situao sua maneira. Um caso exemplar a chegada de Sophie Muller em uma aldeia quando se deparou ento com um grupo de indivduos cujos rostos estavam riscados com carvo, signo de luto. Segundo a missionria da MNT, os ndios lhe contaram que aquelas eram pessoas ms e que tinham nascido assim. Robin Wright (1999: 185) argumenta que: [...] a palavra maatchi para mau, diabo, poderia referir-se desventura que as pessoas sofrem com a morte de um parente, mas sua interpretao da palavra adaptava-se s suas noes preconcebidas da onipresena do diabo. Segundo esta missionria o demnio havia fixado moradia permanente entre os ndios. H empreendimentos mtuos de traduo de noes de um universo semntico a
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No contexto de sua misso, Sophie via os Baniwa como literalmente nas garras de Sat, rodeados pelos demnios, encaixados na bruxaria e com medo, que ela atribua cultura deles. Sua tarefa era libertlos, ou seja, destruir sua cultura [...] para que pudessem assimilar a f evangelista (Wright, 1996: 189). 4 Utilizo este termo aqui conforme a noo de senso comum de Geertz (1998), que delineou os mtodos cognitivos de construo social da realidade da vida cotidiana enquanto sistemas simblicos elaborados em contextos histricos e culturais particulares. Esta formulao fundamental para entender as operaes semnticas atravs das quais tanto os "ndios" quanto os agentes de contato atriburam significados a situaes de mudana acentuada, que de outro modo apareceriam como eventos absurdos e imprevistos.

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outro. Muller identificou a categoria mtica Baniwa referente aos espritos dos mortos com a idia crist do diabo e os Baniwa, por seu turno, redefiniram o destino final das almas inimigas e de feiticeiros em oposio aos parentes cujas almas terminam a sua viagem pstuma em casas patrilineares coletivas na aldeia de Iaperikuli, Jesus Cristo. As figuras da alteridade Baniwa, assim como as esferas de sociabilidade verdadeira (de existncia plenamente humana), foram inscritas em uma teia semntica e social de mediao intertnica, onde o simbolismo cristo do mal passou a constituir um referencial relevante de interlocuo. Estes procedimentos de demonizao do estranho, portanto, defrontaram-se com as representaes indgenas sobre a alteridade dos missionrios, em particular, e dos "brancos", em geral. Em muitos casos os "brancos" e missionrios foram identificados com espritos malficos, algumas vezes at canibais, e tambm com poderosos xams inimigos (Albert, 1992; Hill & Wright, 1988 e Wright, 1992). Foras perigosas e ameaadoras, mas que poderiam ser controladas e transformadas em foras regeneradoras se domesticadas para o benefcio da ordem social e simblica indgena. O engajamento com estas figuras da alteridade (deuses, animais, afins, inimigos, estrangeiros e espritos) pode tambm significar uma vontade de ultrapassar a condio humana, de ir alm de Si Mesmo. A abertura e a captura do para o Outro pode ser um princpio vital da sociedade e do cosmos (Viveiros de Castro, 1992). Tanto a converso quanto a resistncia ao cristianismo podem ser compreendidas nestes termos. Os tukano na Colmbia situam os seringalistas em uma categoria cosmolgica de alteridade absoluta, um esprito da selva e demnio canibal que usa utenslios e roupas ocidentais, chamado Kusir (um neologismo nativo oriundo da palavra espanhola cauchero). Esta figura provoca grande temor e faz os ndios se enclausurarem nas malocas ou fugirem para a selva como acontecia quando os caucheros chegavam.5 Este ser tambm est associado ao rio, para onde ele chama os Tukano amedrontados diante da possibilidade de encontr-lo. No registro mtico e ritual Tukano um sacerdote catlico expulsa esta terrvel criatura, obrigando-a a abandonar a regio colombiana do rio Papuri.

Infelizmente, a meno a tal imaginrio indgena do contato intertnico no analisada mais detidamente por Jackson (1984) que a reduz a penetrao de elementos do dogma catlico [...] en las historias que la gente cuenta sobre lo sobrenatural [...] (p. 73).

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Podemos perceber aqui o entrelaamento complexo e dinmico entre conscincia mtica e histrica, pois os missionrios colocaram-se, em diversos momentos, contra os sistemas de recrutamento compulsrio da fora de trabalho indgena. O auge do extrativismo da borracha o ponto focal em vrias representaes indgenas sobre o contato intertnico na Amaznia. O terror e a violncia praticados pelos seringalistas assim como as mercadorias controladas pelo patro e pelos comerciantes eram compreendidos atravs das categorias mticas e do aparato ritual disponveis nos distintos contextos histricos e scio-culturais. Os brancos foram associados pelos Baniwa com morte, doenas, feitiaria, destruio e com os espritos dos troves e das guas localizados no mundo perifrico. Kuwai, um heri cultural ligado aos tempos primordiais de criao da humanidade, um instrumento cognitivo empregado para atribuir sentido a figura do branco e de outros personagens; um ser intermedirio entre mundos distintos (assim como o xam), dotado de poderes extraordinrios e ameaadores, mas quando domesticados atravs de interveno ritual adequada transforma-se nas foras de sustentao e regenerao da ordem social e csmica (Wright, 1996). Os missionrios foram encarados como manifestaes histricas de Kuwai. Os poderes excepcionais atribudos a Sophie Muller, por exemplo, eram considerados como de origem divina e seus ensinamentos eram a chave de acesso ao conhecimento dos brancos e o desenho ritual necessrio para a superao de um momento de crise. Sua pregao e suas prticas eram equiparadas ao desempenho dos especialistas rituais, cuja funo era produzir jovens adultos atravs das palavras. A converso era um rito de passagem histrico cujo modelo nativo era a iniciao: um perodo de transio mediado por proibies e restries que marca uma separao de um estado anterior para uma nova sociedade. Na memria coletiva Baniwa h referncias a movimentos coletivos baseados em esforos deliberados de mudana atravs do abandono de crenas e costumes. Como nos diz Wright (1996: 188): [...] Evidentemente, na poca que Sophie chegou, os Baniwa de Iarakaim estavam espera de intermediao xamnica para resolver seus problemas. Por outro lado, os ex-crentes e os catlicos elaboraram a imagem de Sophie atravs de outras imagens de alteridade, mencionando as suas andanas noturnas na floresta para atestar a sua condio de bruxa e sua capacidade de transformar-se num demnio especfico do imaginrio Baniwa. Os crentes, por sua vez, ressaltavam a aptido dela em falar vrias lnguas ou a fala de Deus,

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transcendendo a variedade de dialetos locais, como faziam os lderes messinicos. Temos assim possibilidades interpretativas alternativas no prprio seio da conscincia mtica dos atos e feitos missionrios, em consonncia com duas linhas de clivagem social justapostas: a religiosa entre catlicos e protestantes e aquela entre sibs estratificados hierarquicamente. Neste regime de desconfiana e medo generalizados, caracterstico do perodo de extrao da borracha, desenvolvem-se movimentos utpicos cujo projeto a inverso das relaes assimtricas entre ndios e brancos, mobilizaes coletivas baseadas em previses catastrficas do fim do mundo, sucedido por uma poca de regenerao. Surgem profetas e pregadores, indgenas ou no, cuja retrica apreendida conforme os esquemas ontolgicos existentes em uma dada situao histrica. O missionrio e os signos verbais, escritos e materiais cristos concebido como o grande mediador com as fontes de poder e riqueza do mundo civilizado; logo, aliado estratgico e canal privilegiado de comunicao com potncias destrutivas, mas tambm possivelmente restauradoras. Da o emprego indgena de elementos das cerimnias crists (oraes, incensos, gua benta, cruzes, etc.), mas segundo a gramtica de seus prprios rituais e da sua cosmologia. Mas tambm houve contestao propriamente dita dominao dos "brancos" e atuao missionria. Embora muitas vezes as assemblias de crentes fossem adequadas ao modelo nativo de celebrao de aliana e solidariedade entre parentes e afins, esta nova religio era criticada por alguns Baniwa pelos seus meios precrios para gerar a felicidade, isto , a solidariedade social promovida pelas festas em que era consumido o caxiri, interditado pelos pastores. O fundamentalismo evanglico acentuou conflitos j existentes antigas hostilidades, feitiaria e assassinatos por vingana sob a roupagem de lealdades catlicas e protestantes e, ao mesmo tempo, minou alguns canais institucionais para a sua soluo.6 Por outro lado, as campanhas dos missionrios contra o xamanismo e o tabaco deixaram os Baniwa vulnerveis feitiaria e bruxaria. Houve entre meados dos anos 50 e 70 um xam poderoso e famoso no Rio Negro, chamado Kudui, que era identificado com a entidade mtica suprema Iaperikuli e tambm com Jesus Cristo, que defendeu as crenas e rituais Baniwa contra a ameaa dos crentes. Por este motivo, os Hohodene do alto Aiari opuseram-se s investidas dos missionrios protestantes. Ex-xams,

No caso da converso Wari a perspectiva de uma sociedade harmnica, isenta dos conflitos oriundos da afinidade, foi um motor tanto de converso quanto de abandono do cristianismo (Villaa, 1996).

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que abandonaram o ofcio por causa das presses dos crentes, afirmaram no terem perdido totalmente o conhecimento mtico e de cura. Esta luta pela preservao de costumes, agora considerados como patrimnio coletivo, recurso estratgico para a fabricao e apresentao pblica de autenticidade, uma riqueza expropriada e possivelmente recuperada ou preservada, pressupe a formao de uma conscincia reflexiva da cultura. No caso dos movimentos milenaristas do sculo XIX, o que estava em jogo era o controle sobre os sacramentos catlicos por parte de reputados xams, cujo objetivo era inverter a relao de foras entre ndios e brancos. Kamiko e outros lderes messinicos, ou Venncio Cristo, foram apreendidos como manifestaes histricas de Yaperikuli, personagem mtico responsvel pela criao e regenerao csmica, como tambm com Jesus Cristo. Os feitos de Kamiko observados na histria oral apresentam uma gritante homogeneidade estrutural com as faanhas de Yaperikuli verificados na narrativa mtica (Hill & Wright, 1988 e Wright, 1992). Podemos constatar nesta modalidade de mobilizao coletiva uma conscincia reflexiva da cultura como algo cuja perda conduziria a uma situao catastrfica para a ordem social e csmica, e por outro lado, como [...] a vitria do poder nativo contra a destruio ocidental [...] (Wright, 1992: 216). Esta manifestao contestatria congregou vrios povos do Noroeste Amaznico e parece j se constituir com base em um acentuado senso de indianidade, ou seja, de pertencimento a uma comunidade imaginada atravs da oposio entre grandes entidades tnicas: ndios e brancos. Como nos conta Jean Jackson (1984): [...] los Tukano estn comprensiblemente intrigados respecto de la riqueza material que vem y de la seguridad que poseen los misioneros. Algunos Tukano se precipitan a adquirir los smbolos de riqueza y poder que asocian con los misioneros [...] (p. 70) [...] Los Tukano confan en que, al imitar a los blancos, se suavizarn algunas de las discriminacion que los aquejan y adquirirn el sentido de seguridad y autoconfianza que vem, a veces equivocadamente, en los blancos [...] (p. 71) Mas explica o fascnio dos ndios pelos bens civilizados e a vontade de imitar os brancos como um mero resultado da influncia missionria, como se os ndios fossem

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meros expectadores passivos da histria e condenados a um processo inevitvel de aculturao e dependncia ao mercado: 7 Al despertar en los Tukano el anhelo de bines materiales que slo puden adquirirse por intermedio de las estaciones missioneras, se crea una dependencia que ayuda al logro de otros objetivos [...] (p. 70) [...] Com la emulacin de los signos externos que los missioneros refuerzan intermitentemente comienza un processo de deculturacin que puede producir algunos de los seres humanos ms desdichados y lamentables de la Tierra (pp. 70-71).8 claro que a atuao missionria trouxe mudanas nas sociedades indgenas do Rio Negro, mas os ndios intervieram ativamente no curso deste processo. Um tema muito comum nas ideologias dos movimentos milenaristas na Amaznia, como afirma Robin Wright (1996), a transformao dos ndios em brancos e vice-versa. Muitos grupos indgenas nutrem grande interesse pelo mundo civilizado, principalmente pelas mercadorias provenientes das cidades e transportadas pelos rios.9 Tal fato, contudo, algo a ser
O mimetismo indgena remete a modos de comunicao com a alteridade acionados e redefinidos em contextos histricos especficos. Sendo o idioma corporal o principal eixo para construo do Self e do Alter, usar a roupa no sentido mais amplo de imitar do branco romper com as barreiras lingsticas que impedem o dilogo e conseqentemente controlar os poderes perigosos e destruidores que emanam do contato com tais seres estranhos (Viveiros de Castro, 1996 e Descola, 1989). 8 A dependncia dos Bororo aos bens civilizados fornecidos pelos missionrios e outros brancos inscreve-se na linguagem ritual e mtica onde a mediao do Outro fundamental para a reproduo da ordem csmica e social. Assim como um Bororo tem o dever de representar os espritos aroe de membros de cls de metades opostas e em troca tornam-se seus credores, assumem esta mesma condio frente aos missionrios e aos "brancos" ao representarem o papel de civilizados. [...] Os Bororo podem ser o outro, no caso o civilizado, sem que por esta razo deixem de ser eles mesmos. Quanto mais tentam agir seguindo o modelo dos civilizados, maior a conscincia de sua identidade Bororo (Novaes, 1999: 357-358). 9 No Mdio Solimes, em diversas verses do mito do Navio Encantado/Cobra Grande, o rio o mundo privilegiado de alteridades, povoado por seres espirituais antropofgicos e, ao mesmo tempo, a via de conexo com os agentes e objetos da civilizao e do terror. As metamorfoses que envolvem artefatos, animais e espritos apontam para os constantes intercmbios entre estes domnios ontolgicos; possibilitados pela pajelana. O paj, xam ou feiticeiro o detentor do conhecimento dos mistrios do fundo e no acesso ao mundo dos encantados; poderes extraordinrios que lhe distinguem dos outros indivduos comuns. Os bens manufaturados controlados pelos brancos, e a violncia inerente s instituies do barraco e da dvida, eles esto entrelaados com os poderes mgicos que criaram a sociedade de fronteira. O fascnio pelas mercadorias reside no domnio necessrio de uma linguagem misteriosa de signos para sua aquisio nas trocas monetarizadas do sistema de aviamento. A correlao entre o barco de mercadorias e a Cobra Grande alude dimenso sobrenatural e aos poderes mgicos atribudos ao patro, tornando-o capaz de controlar o acesso ao mercado. H uma identificao entre os mundos dos brancos e dos mortos, o reino dos encantados composto por imagens referentes a escurido da noite, ao mundo submerso e subterrneo, a profundidade das
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explicado e no um dado a priori como se fosse o resultado de um magnetismo natural de uma cultura mais forte sobre outra mais frgil. preciso superar a dicotomia entre assimilao e resistncia cultural, ainda muito presente em muitas anlises antropolgicas. Para tanto se deve compreender como as fronteiras tnicas emergem, persistem e modificam-se considerando os processos e modalidades de comunicao com o Outro.10 O consumo da modernidade ansiosamente perseguido por povos indgenas aponta para uma vontade de absorver o poder ameaador do Outro e convert-lo em fora restauradora dos princpios ontolgicos culturalmente definidos. Parecer fisicamente com o Outro, em alguns casos at aderir sua lngua e s suas crenas religiosas, indicam estratgias comunicativas (e no s instrumentais) e no se ope a afirmao (dinmica e complexa) da viso de mundo nativa (Friedman, 1994). [...] Assim, tornar-se branco significava que o conhecimento dos brancos deveria ser incorporado ao modelo atravs do qual a sociedade baniwa reproduzida. Isso no necessariamente significava que a estrutura e os processos do cosmos dos Baniwa fossem alterados de um modo fundamental. Foram repensados, ou seja, a importncia das dimenses verticais e horizontais do cosmo e de sua dinmica deveria ser reconceitualizada sob a nova ordem. Evidentemente, isso no ocorreria da noite para o dia, e envolvia uma negociao complexa entre o que poderia ou no poderia ser mantido ou transformado a partir do velho e o que deveria ser aprendido a partir do novo (Wright, 1999: 211). Por isso fundamental compreender o registro nativo do contato intertnico e da histria. A converso, portanto, no apenas a incorporao de crenas e costumes
guas e a toda uma simbologia da morte. A lgica das metamorfoses opera tanto na aquisio de poderes mgicos para transitar no mundo dos mortos quanto para explicar o controle dos brancos sobre os meios de violncia e as fontes de aquisio de mercadorias (Faulhauber, 1998). 10 No Acre, por exemplo, os Cashinaua concebem estrangeiros como fonte de bens e conhecimento necessrios para a continuidade da vida social, assim como de doenas e destruio. Sendo bons para trocar so maus para casar, ficando afastados da sociabilidade real gerada pelos processos de fabricao do parentesco. Mas tal excluso da alteridade do circuito de sociabilidade real no absoluta, pois existe a possibilidade de deslocamento do relacionamento de troca predatria, passando pela amizade jocosa acompanhada de eventuais conotaes sexuais, at chegar ao parentesco atravs do casamento. Os "brancos" so assim domesticados quando transformados em pais potenciais de crianas Cashinahua (McCallum, 1997).

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estrangeiros pela tradio, nem mera assimilao inabalvel de uma cultura dominante. Em uma inverso da retrica culturalista missionria, setores do clero catlico, sobretudo depois do Conclio Vaticano II/1962, passam a estimular muitas vezes informados pela crtica antropolgica os ndios a defenderem, preservarem e resgatarem a sua tradio (reconstruo das malocas, restabelecimento das cerimnias tradicionais, fabricao de instrumentos musicais, reutilizao de adornos, etc.), que antes era reprimida e negada.11 Uma nova estratgia missionria surge com a proposta de usar smbolos indgenas nas celebraes catlicas e a formao de agentes pastorais indgenas, cujo objetivo estabelecer uma melhor comunicao e assim evangelizar mais eficientemente. Um pressuposto fundamental desta atitude a imagem do ndio como um bom cristo ou da essncia crist da sua alma, da sua cultura; isto sem entrar em contradio com a especificidade e autenticidade dos seus costumes e crenas (Cabalzar Filho, 1999). Conseqentemente, o movimento de reconstruo das malocas no se defronta com a participao nas instituies catlicas, ou como Cabalzar Filho (1999: 374) sintetiza pertinentemente: [...] O retorno da maloca est longe de significar a recusa capela [...]. A maloca deixa de ser o templo da malignidade e torna-se o templo da indianidade. Isto no quer dizer que estejamos diante de um mero estratagema para satisfazer demandas e interesses polticos atravs da manipulao de signos de etnicidade indgena, pois o abandono da arquitetura das malocas no significa necessariamente o esquecimento coletivo do seu simbolismo cosmolgico e social. Os Tuyuka que vivem no Brasil, por exemplo, ao mudarem-se para a Colmbia voltam a construir a sua maloca. Acrescente-se que os prprios povoados correspondem a um leque de novos arranjos espaciais organizados conforme os princpios semnticos subjacentes s grandes casas coletivas. H uma dinmica complexa entre mudana e continuidade, uma combinao entre padres mentais e comportamentais Tuyuka e cristos em que aspectos de ambos so alterados e modificados mutuamente. O resultado de tal processo varia nas distintas comunidades deste grupo tnico. [...] O movimento de retomada explcita de tradies que os salesianos visaram extinguir [...] (p. 392), entretanto, no objeto de anlise de
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No Brasil Central, os padres arrogam-se o papel de guardies da genuinidade Bororo. Estes missionrios salesianos zelam por artefatos e adornos rituais para evitar que sejam vendidos pelos prprios "ndios" (Novaes, 1999).

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Cabalzar Filho (1999). Seria interessante investigar a ao de outros atores como os novos missionrios, entidades de apoio e organizaes indgenas neste processo de reelaborao das fronteiras tnicas. Quando aborda tal assunto em uma nota, manifesta uma viso substancialista ao considerar as malocas-museu como uma marca de identidade a ser exibida para os de fora, deslocadas e dispensveis na vida cotidiana. Ser que inexistem conexes entre os esforos deliberados de representao da autenticidade e as esferas de sociabilidade rotineira? Esta questo deveria orientar novos desenhos de pesquisa, ao invs de ser rapidamente descartada ou simplesmente desprezada. Segmentos da Igreja contriburam consideravelmente para a formao de organizaes indgenas em vrios pases da Amrica Latina, sem mencionar a origem de muitas lideranas nos internatos implantados pelos missionrios. Os missionrios catlicos na Colmbia mudaram suas estratgias educacionais, contratando os egressos dos internatos como professores nas escolas primrias das comunidades indgenas, implementando programas de capacitao de evangelizadores indgenas, alm de advogarem o ensino bilnge. Este relativismo tem provocado novos conflitos entre catlicos e integrantes do ILV e da MNT menos dispostos a aderir a tal proposta missionria, pois tal disputa religiosa j ocorria, porm com um outro perfil (Wright, 1999). Toma corpo, ento, uma retrica missionria cujo ncleo a facticidade12 da noo de cultura, que se torna a base subjacente s auto-representaes de Si Mesmo e do Outro, uma conscincia reflexiva do Self e do Alter. Neste campo autnomo de interveno deliberada, planejada e informada, a identidade adquire (re)conhecimento pblico atravs da exposio em contexto dialgico de convencimento e justificao, negociada em comunidades argumentativas, redes de interlocuo e fluxos de mensagens e signos de autenticidade, permeadas por ticas especficas e competncias interpelativas assimtricas. Mas e os salesianos que atuavam no lado brasileiro da bacia hidrogrfica do rio Negro, como se conduziram frente a tal contexto? Simplesmente recusaram-se a qualquer reformulao no seu discurso e na sua prtica pastorais ou assumiram a perspectiva da inculturao integralmente, sem maiores problemas? Acredito que o processo foi mais complexo: os salesianos introduziram elementos novos sem abandonar completamente uma

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Ver Latour (1986) sobre a produo social dos fatos, isto , o processo de endurecimento de enunciados atravs de sucessivos deslocamentos semnticos em redes de interlocuo especficas.

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estrutura antiga de interveno missionria. Como ocorreu isto? o que pretendo apresentar em linhas gerais a seguir.

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CAPTULO II. OSSATURA ADMINISTRATIVA DO PODER SALESIANO NOS ANOS 70 E 80. O processo de territorializao do poder salesiano comeou, em 1914/1915, com a criao da Prefeitura Apostlica (depois transformada em Prelazia) em So Gabriel da Cachoeira (Jackson, 1984). Depois o seu domnio se alargou com a fundao de vrias unidades pastorais: Manaus (1922), Barcelos (1925), Taracu (1929), Iauaret (1929) e Pari-Cachoeira (1940), Tapuruquara (1942), Iana (1950), Cauburis (1958), Cucu (1967) e Maturac (Vide o mapa das sedes missionrias abaixo). Em 1925 a Prefeitura Apostlica do Rio Negro foi elevada Prelazia, subordinada Inspetoria Missionria em Manaus, e em 1981 tornou-se Diocese. A prelazia mantinha cinco hospitais fora da sede: em Barcelos, Santa Isabel, Taracu, Pari-Cachoeira, Iauaret e um ambulatrio no Iana e outro em Maturac. Firmou convnio com o INAMPS conseguindo um mdico para Barcelos, uma mdica para Yauaret, um dentista itinerante para os hospitais de Taracu, Pari-Cachoeira e Yauaret. Cada hospital possua uma enfermeira e ajudantes que prestavam atendimento em tempo integral. A Misso Salesiana So Gabriel situa-se margem do rio Negro, na sede do municpio e da diocese, em So Gabriel da Cachoeira. A Misso dirigida por padres Salesianos e Irms Filhas de Maria Auxiliadora. Os meios de transporte disponveis so: lancha motorizada, caminhes, motores de popa e caminhonete. Eles Definem, no incio dos anos 70, a populao abrangida pela sua atuao como Tucano, Piratapuia e caboclos ou mestios. Estes provavelmente sejam Bar. As lnguas faladas so assim apresentadas: tukano, portugus e tupi-guarani (provavelmente nheengatu ou lngua geral). Classificam a populao indgena desta rea como 80% integrados e 20% semi-integrados.

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Figura 1: Mapa da Diocese de So Gabriel da Cachoeira. Fonte: Arquivo da Diocese de So Gabriel da Cachoeira.

No mapa acima as misses indicadas com um nmero so as seguintes: Barcelos (1), Santa Isabel do Rio Negro (2), So Gabriel da Cachoeira (3), Taracu (4), Yauaret (5), Pari-Cachoeira (6), Assuno do Iana (7), Maturac (8) e Cauburis (9). interessante como os salesianos vo mudando a definio das metas estratgicas da Misso. Em um relatrio de 1981 definem como seu objetivo o desenvolvimento e a evangelizao. Observamos que a finalidade religiosa alia-se a outra categoria de interveno secular; agora no mais a civilizao dos indgenas. Est estruturada da seguinte forma: 1. 2. 3. O Centro Paroquial na sede da Diocese; Duas capelas nos bairros das cidades; Capelas espalhadas nas comunidades do interior, as quais so assistidas e orientadas pelo padre itinerante e duas irms que as visitam constantemente;

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4.

Colgio So Gabriel onde os alunos estudam em regime aberto e de internato. Os cursos ministrados nesta unidade escolar so os seguintes: jardim da infncia, alfabetizao, 1o grau (1a a 8a sries), educao integrada, 2o grau (magistrio e contabilidade).

Segundo o depoimento de um senhor Tukano o ginsio foi criado pelo Bispo Dom Miguel Allagna em 1968. Foi a primeira unidade escolar onde os meninos estudaram junto com as meninas. No relato deste senhor este fato foi representado como uma ruptura radical com a rgida moral salesiana, que teria provocado um enorme impacto psicolgico nos adolescentes indgenas que ficaram desorientados diante de tal situao inusitada.

No final de 1967 que Dom Miguel foi consagrado bispo e trouxe a notcia que em 1968 j estaria funcionando o ginsio para todos os jovens do Alto Rio Negro. Seria a escola mista: meninos e meninas. Esse foi outro problema que enfrentamos. Todo tempo a igreja separou os meninos das meninas. Na igreja tinha que ficar de palmas fechadas, olhando para a frente. Se olhasse para o lado das meninas, aquele molho de chave caa aqui. Era pecado, era incrvel. Ento quando o bispo disse que aqui haveria o ginsio misto, veio dentro de cada jovem aquela perturbao. Era a mesma coisa que pegasse voc e tirasse do fogo de 360 graus e jogasse abaixo de zero grau. Ningum usou psicologia, informao, esclarecimento, nada. A mesma igreja que colocou um sistema, de repente chega outro e diz que vai ser de outro jeito agora. De repente sentar perto de uma menina seria uma coisa de outro mundo, no seria a mesma coisa que se estivssemos vivendo normalmente. Isso foi um fator psicolgico muito pesado (Trecho de entrevista gravada com um Tukano, em outubro de 2001, em So Gabriel da Cachoeira). A parquia de So Gabriel cobre desde a comunidade de So Francisco (na foz do rio Xi, no alto rio Negro), incluindo um pequeno trecho dos rios Iana e Vaups, at a foz do rio Mari.1 Os padres salesianos da Misso de So Gabriel exerciam as seguintes

Resumos das Estatsticas da Parquia de So Gabriel, 1970.

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funes: bispo prelado, diretor da Misso, vigrio, vice-diretor da escola de 1o Grau, tesoureiro; j as irms de Maria Auxiliadora exerciam os cargos de diretora da Misso, cozinheira, auxiliar de tesoureiro, lavadeira, diretora da escola de 1o Grau, secretria da Unidade Educacional D. Pedro Massa, Mdica no Hospital So Paulo, diretoria da Unidade Educacional D. Pedro Massa e coordenadora das escolas na prelazia. A escolarizao est estreitamente ligada tarefa civilizatria e catequtica da Igreja: As escolas distritais so o ponto de segurana para os nossos indgenas, pequeno centro luminoso a irradiar a luz da civilizao crist. O colgio tambm buscava incentivar o associacionismo entre os jovens, organizando grupos de escoteiros, cruzada, sociedade da alegria, vocacional, mariano, esportivo.2 A ampliao da rede escolar destacada, alcanando um nmero maior de crianas e jovens indgenas na cidade e no interior, e a formao de 22 de professores indgenas que concluram o curso de magistrio em So Gabriel da Cachoeira. A prelazia firmou convnios com as secretarias municipais de educao de Santa Isabel e So Gabriel, a Fundao Nacional de Bem-Estar do Menor (FEBEM), Fundao Nacional do ndio (FUNAI) e a Superintendncia do Desenvolvimento da Amaznia (SUDAM), para manter em funcionamento os internatos e escolas distritais. A FEBEM fornecia 100 bolsas para os alunos do internato, em geral vindos do interior, enquanto a FUNAI fornecia 30 bolsas. Em 1982 estudavam no Colgio So Gabriel 1.135 alunos enquanto as bolsas eram apenas 130. No ano seguinte diminuiu o nmero de alunos para 1.040 e as bolsas para os internatos permaneceram em 130. Deduz-se que a maior parte dos alunos morava na cidade. Sendo a nica escola de 2o grau da regio, nela estudavam jovens de todos os distritos do municpio, inclusive de Santa Isabel do Rio Negro. Este convvio, entretanto, entre jovens pertencentes a diferentes grupos tnicos no era pacfico. Na sede salesiana e municipal havia discriminao contra aqueles que vinham dos povoados e stios da bacia do Vaups e do Iana. Estes eram classificados como ndios, enquanto aqueles que moravam na cidade de So Gabriel ou nas comunidades situadas jusante dela, principalmente os Bar, jogavam toda ancestralidade indgena para um passado remoto e definitivamente superado, consideravam-se caboclos e superiores queles ndios que vinham do

Relatrio das Atividades da Misso Salesiana de So Gabriel da Cachoeira, 1982; e Relatrio das Atividades do Colgio So Gabriel, 1983.

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interior: [...] Eram todos indgenas, mas os daqui se achavam superiores porque tinham uma misturazinha de caboclo, ento se achavam como seres superiores [...] (Depoimento de um senhor Tukano em outubro de 2001, So Gabriel da Cachoeira). A sede da Misso Salesiana So Joo Bosco localiza-se em Pari-Cachoeira, sede do distrito de mesmo nome, no alto rio Tiqui. Fundada em 1940 por Dom Joo Marchesi, por D. Jos Domitrovics, pelo Padre Antonio Giaconne e pelo irmo coadjutor Ladislau Aurer. Foram chamados pelos indgenas de Pari-Cachoeira para instalar uma Misso, a exemplo da j existente em Taracu. Contava, em 1970, com o seguinte quadro de recursos humanos: 1 padre, 3 coadjutores, 7 irms (uma religiosa leiga), 7 professores (2 assistentes), 3 mestres de oficinas e 47 catequistas. Em 1983 tinha o auxlio, alm das doaes, das seguintes instituies: Legio Brasileira de Assistncia/LBA (dinheiro), FUNAI (dinheiro), SEDUC (remunerao dos professores do ensino de 1o grau e merenda escolar), Projeto ELO (material esportivo), Projeto Casulo (gneros alimentcios, material didtico e escolar) e Projeto TSG (material para clube de mes: fazendas, tesouras, alimentos, etc.). Segundo dados de 1992, a populao estava assim distribuda: 866 Tukano, 707 Maku (hupde), 479 Desana, 375 Tuyuca, 70 Miriti-Tapuias, 42 Hiepah Mahsa, 20 Bara e algumas mulheres Tariana, Piratapuia e Micura provenientes do distrito de Yauaret. O idioma falado majoritariamente o Tukano, mas algumas famlias falam o Desano e o Tuyuca. Os Maku falam o Hupde. O portugus falado por quase todos que freqentam a escola, principalmente em situaes de interao com os brancos. Segundo dados de 1980, a Misso abrangia 35 povoados (29 de grupos Tukano e 6 de grupos Maku) e 33 stios (17 de grupos Tukano e 16 de grupos Maku). Implantou 22 capelas (todas em comunidades Tukano), 17 escolas (12 em comunidades Tucano e 5 em comunidades Macu) e 13 clube de mes (todas em comunidades tucano). Na sede o colgio masculino se constitua de quatro salas de aula, dois dormitrios, seis quartos para salesianos sem gua encanada, teatro, refeitrio e oficinas (de mecnica, de alfaiataria e de carpintaria). O colgio feminino dispunha de quatro salas de aula, dois dormitrios, trs quartos para as irms, refeitrio, sala de costura e tecelagem, lavanderia, cozinha, galinheiro e casa dos coelhos. No setor da sade a Misso possua um ambulatrio onde trabalham uma irm enfermeira e dois ajudantes. Os meios de transportes disponveis eram os seguintes: motor de centro de 27 HP (capacidade at oito toneladas), um motor

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Jonson de 25 HP (com bote de alumnio), motores de popa de pequena potncia, e tem o apoio dos vos semanais da Fora Area Brasileira (FAB). Conta com um campo de pouso. A parquia So Miguel Arcanjo, cuja sede est localizada em Yauaret, no mdio Vaups, foi fundada em 1927. Segundo a verso oficial salesiana o Padre Joo Machesi subiu o Vaups em uma canoa e que escolheu Yauaret, onde existia uma antiga maloca Tariana, como o melhor local para estabelecer uma Misso. Dois anos depois este salesiano fixou residncia permanente na Misso e em 1935 foi construda a igreja, inaugurada em 24 de maio de 1936. A sua rea de atuao o rio Papuri at a ltima comunidade dentro de territrio Brasileiro, Melo Franco, na fronteira com a Colmbia o Alto e o Mdio Vaups. O grupo tnico majoritrio Tariana, seguido pelo Tukano, que juntos equivalem a quase metade da populao. Enquanto a populao Tariana concentra-se no Vaups porm montante de Yauaret a populao Wanana um pouco superior os Tukano concentram-se no rio Papuri. Em 1989, a Misso contabilizou os habitantes indgenas da seguinte maneira: 1.242 Tariana (26,4%), 1.047 Tucano (22,1%), 603 Peon3 (12,8%), 572 Piratapuia (12,1%), 410 Wanana (8,7%), 320 Desana (6,8%), 177 Arapao (3,7%), 173 Cubeu (3,7%), 77 Tuyuca (1,6%), 49 caboclos (1%), 21 Baniwa (0,4%), 12 Juruti (0,3%), 12 Siriano (0,3%), 7 Karapan (0,1%), 4 Barasana (0,1%), 1 Tatuyo (0,02%) e 1 Micura (0,02%). O prdio da Misso constitudo de residncia dos salesianos e irms, escola (1o Grau completo e Pr-Escolar), oficinas de trabalho, dependncia, igreja e ambulatrio. A equipe pastoral, em 1970, era composta por 15 missionrios (salesianos e irms), 21 professores (16 nas escolas do interior) e 46 catequistas. Uma enorme parcela (83,7%) dos 319 alunos estudavam na Misso em regime de internato. Neste mesmo ano apenas 22 povoados contavam com escola e 47 com capela, de um total de 75 povoados. Quinze anos depois havia mais 11 escolas para os 83 povoados e stios espalhados pelo interior. No final da dcada de 70 a Misso conseguiu um ndice de escolarizao (843 estudantes) da ordem de 67% de crianas e jovens (1.266) e de 19% da populao total (4.531). A Misso de Taracu foi fundada em 1923 no local em que havia uma antiga Misso franciscana, regio tradicional dos Arapao e prximo cachoeira de Ipanor, local de origem dos povos Tukano conforme contam seus mitos. O relato oficial sobre a histria
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Designao local atribuda pelos outros povos aos Maku Hupde.

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desta Misso expressa o modo como muitos missionrios ainda viam os povos indgenas do Rio Negro na dcada de 70: Os intrpidos missionrios comearam sua obra de Evangelizao, ensinando a viverem como criaturas humanas, preparando-os para o trabalho que exigia muitas fadigas e virtudes, pois estes pobres nativos viviam em extrema pobreza. Evangeliz-los era humaniz-los, tir-los da sua condio selvagem, quase animal. Tal estado identificado como uma situao de extrema escassez material, proporcionada pela ausncia das virtudes (crists) necessrias que lhes seriam incutidas pelos salesianos de modo a apreciarem o trabalho. No se fala explicitamente de preguia como marca inerente condio indgena esteretipo muito difundido no senso comum , mas implicitamente a ausncia de nimo para as atividades produtivas concebida como um defeito prprio da cultura nativa. Da a nfase na educao como principal instrumento de catequese e civilizao dos ndios. Muitos esforos foram concentrados na construo de uma rede de escolas ligando as comunidades do interior aos centros missionrios nas sedes das misses. As escolinhas rurais representaram um adiamento do deslocamento para as sedes missionrias ou municipais e conseqente afastamento da vida comunitria das crianas indgenas que buscavam uma formao escolar. Grande destaque era conferido nos relatrios anuais sobre a atuao missionria nas diversas parquias ampliao da estrutura escolar e do nmero de alunos. Constata-se uma forte justaposio entre ensino laico e doutrinao religiosa, pois eram considerados como inextricavelmente ligados, para cumprir a tarefa de preparar bons cristos e honestos cidados para Deus e para a ptria. Em 1950, o diretor da Misso de Yauaret, mostrando uma percepo realista sobre a adequao dos ensinamentos ministrados para a vida dos alunos nos seus povoados e stios de origem, assim definia os resultados da atuao salesiana no alto rio Vaups: [...] O sistema de Dom Bosco produz os seus frutos em todos os climas do mundo. pena que o que os indgenas aprendem durante seu curso na Misso de 5 ou 6 anos, em pouco tempo vai se apagando, no tendo mais o exerccio l nas suas casas e nas selvas. Mas sempre algo fica e aos poucos a civilizao vai entrando

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juntamente com a religio, tornando a estes filhos das selvas, filhos de Deus e cidados do Brasil [grifos SCP] [...].4 No Iana, por exemplo, nas seis escolas rurais existentes em 1982 os professores tambm eram responsveis pela formao religiosa dos alunos, pois [...] No esto somente para instruir as crianas, mas tambm para promover uma educao da f no povoado onde est a escolinha [...].5 importante sublinhar que nesta regio era necessrio congregar todos os esforos disponveis devido presena ameaadora dos protestantes, porm tal fuso entre ensino laico e catequese na figura do professor tambm ocorreu em outras parquias. Por outro lado, constatamos uma preocupao maior com a evangelizao, pois em todas as parquias foram implantadas mais capelas do que escolas nas comunidades. Em algumas povoaes a capela e a escola eram uma s edificao durante um certo tempo. A assimilao do ndio nao brasileira, incutindo-lhe a firme disposio ao trabalho e o amor ptria, era inseparvel da sua transformao num bom cristo. Cabe destacar a nfase no ensino profissional agrcola para os meninos e agrcola e domstico para as meninas. Preocupao com atividades cujo aprendizado seria provavelmente mais eficaz em suas comunidades ou stios de origem. Isto coerente com a antiga imagem salesiana da propenso do indgena para as tarefas agrcolas, apropriadas sua natureza, assim como ginstica e msica.6 As meninas estavam sendo formadas para serem boas donas de casa e potenciais empregadas domsticas para as famlias da elite local no indgena (comerciantes e militares).7 A distribuio dos alunos nos cursos profissionalizantes era condizente com a concepo de gnero dos padres e irms. Na

Resumo da Crnica da Misso Salesiana de Iauaret. Rio Negro Amazonas Brasil. Iauaret, 31 de dezembro de 1950. Pe. Luiz Pasinelli. 5 A Evangelizao no Rio Iana. Misso Assuno do Rio Iana, 31 de julho de 1982. Padre Afonso Casasnovas. 6 Do total de 101 alunos internos da Misso de Taracu 80 recebiam ensino agrcola, enquanto os outros 21 foram distribudos nos cursos de alfaiate (9), mecnico (4), carpinteiro (3) e empalhador (5). Considerados ofcios mais complexos e, portanto, menos acessveis aos indgenas comuns, excetuando-se uma minoria mais habilitada para tais atividades. Em 1950, o diretor da Misso de Yauaret afirmou que [...] o selvcola [sic] era inconstante nos estudos e especialmente para matrias abstratas. A cabea dele no feita para muito raciocnio. [...] Observou ainda que os indgenas tm inclinaes especiais para a ginstica e a msica (Resumo da Crnica da Misso Salesiana de Iauaret. Rio Negro. Op. Cit.). 7 Do total de 106 alunas 66 recebiam capacitao em agricultura e tarefas domsticas, enquanto 10 aprendiam o ofcio de costureira, 10 de bordadeira e 20 de tecelagem.

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Misso tinha plantaes de macaxeira, arroz, feijo, batata, verduras, tomate e frutas. Eram criados bois, porcos e galinhas. A parquia de Santa Isabel do Rio Negro abrange desde a foz do rio Jurubaxi at a foz do rio Mari, afluentes do lado direito do rio Negro e a foz do rio Padauiri at a foz do rio Cauaburi, afluentes do lado esquerdo do rio Negro. Atendia ainda quatro comunidades do municpio de Barcelos: Tapera, Santa Luzia, So Francisco e Acariquara. Era um antigo ponto de apoio entre as misses de So Gabriel da Cachoeira e Barcelos para os missionrios. Em 1948 foi fundada pelo Pe. Jos Schneider, segundo a memria oficial, para proteger os indgenas que eram explorados e escravizados pelos patres do extrativismo. Inicialmente dispunha de dois padres e dois coadjutores apenas. As freiras chegaram para desenvolver seu trabalho nas reas de educao, sade e catequese em 1950. Em 1970 a Misso contava com 13 agentes pastorais: dois padres, dois coadjutores, nove freiras e cinco professores. Estudavam no colgio 170 alunos internos e 150 externos, nos cursos primrio e ginasial. A parquia, em 1980, constitua-se de 50 povoados (33 deles organizados em comunidades) e vrios stios, 33 escolas rurais e 7.500 habitantes. Esta populao era caracterizada pelos salesianos como uma mistura de brancos, mestios e ndios. O quadro de recursos humanos aumentou substancialmente em dez anos: 5 padres, 1 coadjutor, 8 freiras, 31 catequistas e 37 professores. Em seis anos o nmero de professores cresceu para 58. Lecionavam nas 2 escolas da sede paroquial 25 professores para 620 alunos da Misso e 72 da prefeitura; enquanto nas 33 escolas rurais lecionavam 33 professores para 746 alunos.8 A Misso salesiana de Nossa Senhora da Conceio foi criada em 1924 pelo Padre. Joo Balzola. Em 1930, foi concluda a construo da igreja e inaugurada por Dom Pedro Massa. O colgio para os meninos foi inaugurado em 1933 e o colgio para as meninas em 1934, quando chegaram as freiras de Nossa Senhora Auxiliadora. A parquia coincide territorialmente com o imenso municpio de Barcelos, que cobre desde a margem direita do rio Jurubaxi, at a foz do rio Ja, afluentes do lado direito do rio Negro, e no lado esquerdo deste mesmo rio, desde a foz do rio Padauiri at a foz do rio Jufariz. A populao atendida
Relatrio das Atividades das Misses de Santa Isabel em 1970; Misso Salesiana de Santa Isabel do Rio Negro Estatstica de 1980. Pe. Alberto Brescioni. 03 de janeiro de 1980; Dados Estatsticos da Parquia de S. Isabel do Rio Negro. Ano de Referncia 1986. Pe. Bruno Bianchi. S. Isabel, 01 de abril de 1987; Histrico da Parquia de Santa Isabel do Rio Negro; Estatstica Paroquial do Ano de 1987. Parquia de Santa Isabel. Pe. Bruno Bianchi. 28 de janeiro de 1988.
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classificada como cabocla e de ndios oriundos dos rios Vaups e Iana, dispersa em povoaes e stios e parcialmente concentrada na cidade.9 O quadro pastoral em 1983 estava composto por 3 padres (1 itinerante), 2 coadjutores, 7 freiras e 18 professores. A escola So Francisco de Sales freqentada por 701 alunos (519 do 1o grau e 182 do prescolar). Estudavam em regime de internato 100 alunos, todos moradores dos povoados e stios do interior. Em 1977 existiam quatro escolas de alvenaria e oito escolas de palha onde lecionavam 24 professores.10 Na medida que se implantaram capelas e escolas as famlias espalhadas nos inmeros stios pelo interior, em busca de uma instruo escolar mnima para seus filhos e da assistncia mais regular da parquia, concentraram-se em torno de pequenas povoaes organizadas segundo o modelo de comunidade crist de base. Uma grande preocupao dos salesianos, tanto em Barcelos quanto em Santa Isabel do Rio Negro, era com a extrema explorao e a submisso dos trabalhadores extrativistas (sorva, castanha, seringa, piaava, etc.) aos patres. Este mal que os missionrios pretendiam extirpar era atribudo ignorncia e falta de conscincia crtica dos ribeirinhos. Povoados inteiros ficavam periodicamente esvaziados devido a este flagelo, trazendo prejuzos morais, sociais, polticos e econmicos. Tal situao s poderia ser superada com a substituio de uma religiosidade de fachada e das atitudes individualistas alimentadas pelo assistencialismo religioso por comunidades crists vivas onde a Palavra de Deus anima os esforos mtuos em direo ao desenvolvimento e promoo de todos. Neste sentido, a parquia de Barcelos props as seguintes medidas: implantao de roas e casas de farinha comunitrias; organizao de clube de mes para a produo de artesanato; e incentivo horticultura atravs do fornecimento de sementes, adubos, insumos e de ferramentas.11 Outro problema apontado era a disseminao do alcoolismo, muitas vezes incentivado pelos patres para recrutar trabalhadores, fazendo da cachaa a principal

Em 1990 existiam 43 povoaes e estimava-se a populao total do municpio em torno de 15.000 habitantes: 3.000 na cidade e 12.000 no interior. 10 Relatrio das Atividades da Misso de Barcelos Ano de 1983. Ir. Edite Gonalves Ferreira. Barcelos, 07 de dezembro de 1983; e Relatrio das Escolas Rurais do Municpio de Barcelos. Pe. Francisco Laudato. Barcelos, 14 de janeiro de 1978. 11 Projeto de Desenvolvimento Comunitrio: Parquia de Barcelos Amazonas. Pe. Jos Sags. Barcelos, setembro de 1986. Esse projeto foi enviado ao CEBEMO e solicitava recursos (Cz $ 3.806,00) para a montagem de 20 casas de farinha. Em uma primeira fase de execuo foram escolhidas quatro comunidades: Piloto, Baturit, So Domingos e Samama. Para a segunda fase do projeto foram escolhidos os seguintes povoados: Canaf, Tapera, Campina, So Lus, Cauburis e Carvoeiro. Foram distribudos nas povoaes 35 fornos de farinha, 35 raladores de mandioca e 35 motores de 3 HP.

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mercadoria na engrenagem do endividamento que transformava ribeirinhos em fregueses, mas tambm pelas festas em homenagem aos santos padroeiros dos povoados quando muitos se embriagavam, provocando brigas entre parentes e vizinhos. Os remdios indicados para curar tal chaga no organismo social e moral da parquia eram os seguintes: formao de comunidades eclesiais de base; capacitao de agentes pastorais e valorizao dos leigos; e as pastorais juvenil e familiar.12

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Pedidos de Co-Financiamento a Adveniat. Projeto 01/89: Catequese Paroquial (Formao de Catequistas). Pe. Humberto Ribeiro da Costa. Barcelos AM, 02 de fevereiro de 1989; Relatrio da Itinerncia Parquia de Barcelos 1981; Relatrio da Misso de Barcelos 1981.

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CAPTULO III. EM BUSCA DAS SEMENTES DO REINO DE DEUS CONTIDAS NAS CULTURAS INDGENAS. Nos anos 1970 surgiram srios questionamentos prtica missionria implementada no Rio Negro pelos salesianos, por eles mesmos formulados. Em um documento1 de avaliao enviada ao Conselheiro Regional, Padre Bini apesar de ressalvar a boa vontade e sacrifcio dos trabalhos missionrios aponta as seguintes falhas dos ltimos 60 anos de atuao salesiana na regio: 1. No promoveu a auto-suficincia das misses e das povoaes, reforando a dependncia aos militares; 2. nfase demasiada em grandes construes, feitas em estilo pessoal e sem consulta e discusso sobre sua necessidade e finalidade; 3. Falta de interesse em conhecer a lngua, a religio e a cultura indgenas;2 4. Falta de criatividade, fruto do cansao e frustrao; 5. Falta de orientao pastoral e missionria clara e de execuo dos planos elaborados; 6. Falta de renovao no ensino e nos internatos; 7. Falta de programao nos cursos de capacitao profissional e agrcola, que resultaram na qualificao tcnica de poucos indgenas, devido ao fato dos coadjutores atuarem mais como substitutos do que formadores de agentes indgenas nas reas mencionadas. A ignorncia da religio das tribos do Rio Negro duramente reprovada por implicar o pressuposto de que esses povos so tabula rasa para a converso. Tal constatao coloca um obstculo para a cristianizao desses povos, pois a doutrina crist pode no penetrar nas camadas profundas da religiosidade indgena apesar da aparente adeso e assimilao de elementos externos da liturgia catlica.

Sem data e assinatura, mas com uma observao manuscrita identificando como data provvel o ano de 1982. Todavia, considero como data provvel o ano de 1975, devido aos 60 anos de atividade missionria mencionados no texto. 2 [...] Creio que o mximo sinal de desprezo para com essa raa justamente essa habitual indiferena para com a lngua e o patrimnio cultural deles.

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[...] E sobre um substrato ancestral, desconhecido e desconsiderado por ns, mas que permanece fortssimo at nos catequistas, at nos ministros da Eucaristia, at nos nossos aspirantes indgenas, colocam-se camadas de doutrina crist, que receio eu no chegam a penetrar. Este espesso substrato ancestral subjacente a uma fina camada de verniz cristo, que antes era necessrio dar combate frontal, agora necessrio conhecer para identificar o verdadeiro fundamento cristo presente nestas religies autctones. Em ambos os casos a cultura indgena concebida como um imponente substrato espiritual que cabe destruir, atacar, apagar ou defender, respeitar, resgatar, para a propagao da f verdadeira. Esta segunda posio admite uma conciliao no s possvel, mas essencial entre o cristianismo e as cosmologias nativas. Temos aqui implcita uma das idias fundamentais da inculturao: a variedade de religies indgenas unificada enquanto manifestaes particulares dos princpios e valores universais do cristianismo. No faltaram crticas s autoridades municipais como a baixa remunerao dos professores e o atraso no seu pagamento. A Diocese foi acusada de omisso frente a este problema. Por outro lado, apontou-se a inadequao dos currculos do 1o Grau que no so adaptados aos lugares e grupos humanos da regio. Nem sequer existe qualquer discusso entre os responsveis pelo ensino sobre o assunto. A criao e proliferao das escolas rurais foram elogiadas, assim como a extino do internato, todavia tais medidas esbarravam nos equvocos acima indicados. Sugeriu-se a transformao do Centro Missionrio de Taracu em um centro de formao de lderes, que receberiam treinamento tcnico (agricultura, enfermagem, mecnica de motores, etc.), e religioso (catequistas) e ao mesmo tempo serviria como palco para mobilizao e organizao coletiva (reunies gerais e assemblias de tuxauas e retiros). Est implcita a inteno de tornar o suporte institucional da ao missionria um apoio efetivo para um movimento indgena ainda embrionrio. A poltica missionria salesiana, nos anos 70 e 80, respondeu a tais crticas reformulando seus princpios e programas. Tinha como uma das suas principais estratgias atuar na formao moral e intelectual dos povos indgenas da regio, definindo sua prtica como pastoral educativa-evangelizadora, reunindo seus agentes periodicamente na sede

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em So Gabriel para avaliar seu trabalho. Dentro desta perspectiva enfatizava o desenvolvimento comunitrio atravs de cursos para formao de professores, lderes locais (capites, administradores ou presidentes, conforme a regio do Rio Negro) e agentes pastorais. A palavra de ordem era organizar os povoados considerando os seguintes planos: social, escolar, sanitrio, recreativo e agrcola. Tal projeto totalizador, pois visava operar em todas as dimenses da vida social, a partir da imposio de um modelo de sociabilidade concebido como bom para indgenas e ribeirinhos. Neste kit missionrio da boa vida em comunidade: O centro social, a escola e a capela so as trs pilastras que sustentam o edifcio do desenvolvimento no RIO NEGRO.3 A reformulao da prtica missionria concedeu um papel relevante capacitao de agentes pastorais leigos e catequistas; s atividades localizadas nos assentamentos indgenas (itinerncias); e participao dos leigos no planejamento e avaliao dos trabalhos paroquiais (conselhos paroquiais); em detrimento do internato e da limitao do raio de ao s sedes.4 As festas, tanto nos centros missionrios como nos povoados, so consideradas, junto com o jornal paroquial, instrumentos para romper o isolamento dos povoados e para circular as informaes em toda a parquia. Temos a combinao e no a substituio entre um modo de atuao baseado no carisma atribudo s manifestaes materiais e espaciais do poder salesiano (grandes construes, sacramentos e festas religiosas), expresso de um poder monumental ou espetacular, encenao da soberania missionria; com um outro mais regular e insidioso, cujo alvo a conscincia e o comportamento cotidiano, uma modalidade disciplinar de poder religioso, cujo conhecimento da lngua e da cultura indgenas (inseridos na linguagem litrgica crist) assumem um carter estratgico para uma intensa e profunda assimilao das crenas e valores catlicos. Estimula-se o associativismo, principalmente entre os jovens, seja para fins estritamente religiosos (organizao e participao de eventos da agenda paroquial) ou para promover benefcios pblicos (sade, educao, sustentao econmica, poltica, lazer,

Relatrio das atividades da prelazia do Rio Negro, Amazonas, 1978. O catequista tinha as seguintes incumbncias: organizam grupos de crianas para a catequese dominical; preparam para a 1a Eucaristia; ajudam o dirigente de culto na preparao e execuo do culto dominical; fazem os ensaios e iniciam os cantos nas celebraes; cuidam das crianas durante as celebraes; recolhem donativos e objetos para o leilo nas festas.
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etc.). 5 A itinerncia combina a sacramentalizao espordica dos ciclos de vida individual (batizado, 1a comunho, crisma, casamento, extrema uno, missas pelas almas, etc.), cujos relatrios paroquiais mostram como um item da produtividade pastoral, e coletiva (festas comemorativas do calendrio catlico) com a implementao de um modelo de sociabilidade local centrado na escola, na capela e no centro comunitrio, estabelecendo um esquema de mediao missionria (de distribuio de capital social e poltico) em torno das figuras do professor, do catequista e do capito (administrador ou presidente, conforme a regio do Rio Negro). As festas, celebraes e sacramentos continuaram sendo os principais meios de encenao do pertencimento comunidade eclesial, cuja realizao passou a ser compartilhada com os agentes leigos locais, associadas organizao da vida rotineira nos assentamentos segundo uma tica associativista. H inclusive uma ntida distribuio de responsabilidades atravs de uma estrutura formal de cargos, cujos ocupantes so eleitos e a durao dos mandatos decidida pela comunidade.6 Ela [a comunidade] se organiza pelas reunies e se desenvolve pela ATIVIDADE COMUNITRIA, combinada e aceita em comum. Nas reunies a Palavra de Deus ajuda a descobrir a caminhada da comunidade (a leitura da Sagrada Escritura fundamental para as reunies).7 O smbolo arquitetnico desta micro-esfera pblica, cenrio de uma atividade coletiva peridica de reflexo sobre a realidade, onde so discutidos os problemas e
Nos anos 80, monitores indgenas de sade so capacitados pelos missionrios e seu trabalho acompanhado nas itinerncias. As parquias So Miguel Arcanjo e Assuno do Iana incentivaram a criao da Unio das Comunidades Indgenas do Distrito de Yauaret (UCIDI) e a Associao das Comunidades Indgenas do Rio Iana (ACIRI), respectivamente. No caso da ACIRI, o seu primeiro presidente, Gersen Luciano dos Santos, foi tambm dirigente de uma organizao que promovia o associativismo religioso entre os jovens Baniwa, a JUPAC (Juventude Unida Pelo Amor de Cristo). 6 Coordenador, tesoureiro, secretrio, dirigente de culto dominical e novenas, catequista, animador, atendente de primeiros socorros, orientador da medicina caseira, parteira leiga, professor e conselheiro (Vamos organizar a nossa comunidade? Diocese de So Grabriel da Cachoeira. Parquia de Nossa Senhora da Conceio. Barcelos Amazonas). 7 As reunies deveriam ser organizadas da seguinte forma: canto (orao); leitura da Palavra de Deus (reflexo); avaliao das atividades anteriores (corrigindo o que foi negativo); programao das prximas atividades; distribuio dos encargos nas atividades; avisos, orao e cantos (Ibdem). Porm, os usos indgenas do centro social redefiniram suas funes realizando festas de santos padroeiros, dabucuris, bailes ao som de forr e msica tecno, recepcionando autoridades e visitas ilustres.
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propostas as solues, o centro social ou sede comunitria. Neste espao a comunidade se atualiza em forma de assemblia, ncleo de uma concepo sobre a convivncia humana baseada no poder unificador, gerador de identidade e consenso, do livre dilogo, da comunicao no distorcida por qualquer tipo de coero e alicerada pela Palavra de Deus. Na assemblia a palavra de qualquer membro da comunidade tem o mesmo valor, a capacidade interpelativa dos interlocutores constituda no intercmbio de idias e argumentos fundamentados luz do Evangelho. a unio de pessoas, ou de famlias, que juntos procuram solucionar os problemas que todos sentem em comum, luz do Evangelho de Cristo, sobre o qual refletem, como a base da comunidade. importante a PARTICIPAO de todos os moradores e a SOLIDARIEDADE entre todos, para que haja comunidade. [...] A comunidade busca a soluo dos problemas em comum e trabalha pelo bem-estar e a salvao de todos, visando a felicidade de cada um, porque esta a vontade de Deus.8 A comunidade pensada como uma unidade autnoma, homognea, harmnica e cooperativa, como uma fraternidade de iguais, e tudo que contradiz tal concepo (brigas, interesses divergentes, clivagens internas, assassinatos, feitiaria, alcoolismo, etc.) deve ser combatido.9 H a preferncia por atividades que envolvam a ampla colaborao de todo um povoado e a permanncia das famlias no assentamento, como as roas ou as criaes comunitrias, em detrimento de atividades que se afastam deste modelo, como as extrativistas por exemplo. Na parquia de Barcelos, como j vimos atrs, um dos problemas que os projetos elaborados pelos salesianos procuravam resolver era o esvaziamento dos povoados causados pela subordinao das famlias ao sistema de aviamento nos sorvais, seringais e piaabais. Na rea de abrangncia da Misso So Joo Bosco, em meados dos anos 80, os projetos implementados nos povoados visavam: restringir o uso do timb na
Ibidem. Atividades comunitrias: culto dominical, catequese, escola, roas comunitrias, feiras de trocas, horta comunitria, time de futebol, clube de mes, farmcia comunitria, limpeza das ruas e portos, construo, cooperativa, transporte comunitrio, artesanato, colheitas, pescaria comunitria, recreao, festas, grupos de dana ou de teatro, novenas, etc. (Ibdem).
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pesca; desenvolver roas comunitrias e individuais, mas feitas comunitariamente; construo de casas de farinha; criao comunitria de gado e peixes; fornecimento de energia eltrica e sementes. A parquia So Miguel Arcanjo desenvolveu (1985-6) um programa para introduzir a criao de gado. Trs tcnicos agrcolas indgenas visitavam os povoados, junto com a equipe de itinerncia, e orientavam sobre os cuidados necessrios com os animais. Um dos tcnicos, Pedro Garcia, se tornaria pouco tempo depois membro da primeira diretoria da federao indgena recm criada, e em 1996 seu presidente.10 No incio dos anos 80, os salesianos tambm incentivaram a criao de gado em seis povoados na Parquia do Sagrado Corao de Jesus, por causa da precariedade da terra para a agricultura e para introduzir a carne e o leite na dieta alimentar indgena. Alm disso, estimularam tambm o cultivo de seringueiras.11 A inculturao era o componente mais polmico da nova proposta pastoral entre os prprios ndios. Havia uma variedade de posies sobre a necessidade do aprendizado pelo missionrio da lngua indgena e sobre a introduo de elementos das tradies indgenas (objetos, instrumentos musicais, danas, cantos, etc.) na liturgia catlica. Vejamos abaixo um quadro dos principais argumentos apresentados na Ia Assemblia Paroquial de Yauaret, 24 a 28/05/198712, a favor e contra:

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Of. No 1. De Responsable per la Itinerncia Y Coordenador del Programa Agropecuria A Campanha Contra El Hambre. Finalidade: Pedido de Uma Ayuda Econmica. Iauaret, 21.02.86. Padre Miguel Angel Garcia; Programa dos Tcnicos em Agropecuria. Iauaret, 21/02/1986. Geraldo Veloso Ferreira, Pedro Garcia e Padre Miguel Angel Garcia; Relatrio Final de Assistncia e Acompanhamento aos Gados dos Tcnicos em Agropecuria, 1985. Pedro Garcia, Arlindo Maia e Geraldo Veloso Ferreira. 11 Projeto: Iniciar a Criao de Gado em 6 Povoados da Regio de Taracu, no Rio Tiqui e Vaups; e Relatrio das Atividades Pastorais 1982. 12 Primeira Assemblia Paroquial. Misso Salesiana Distrito de Yauaret. Neste evento foram discutidos vrios temas importantes para a ao missionria no Rio Negro: ministrio, famlia, jovens, vocaes e catequese. Os 76 participantes se dividiram em grupos para discutir estes temas, apresentar suas concluses e coloc-las em debate no plenrio. Tambm foram enviados antecipadamente questionrios aos povoados sobre os seguintes assuntos: caminhos de inculturao, dimenso proftica e reveladora, ecumenismo, catequese e escola. As respostas foram comentadas pelos salesianos e irms luz de documentos da Igreja. Os delegados dos povoados foram divididos em onze grupos de povoados: Centro (5), So Francisco (3), Marabitana (2), Loiro (3), Vila Nova (5), Alto Papuri (5), Pato (4), Baixo Papuri (4), Alto Vaups (4), Caruru (4) e Rio Vaups de Cima Abaixo (4). Cabe assinalar as participaes de Clarindo Campos, futuro presidente da ASIBA, representando o povoado de Marabitanas, e de Jos Maria de Lima, futuro diretor da FOIRN, convidado como Ministro da Eucaristia do povoado So Francisco. Ficou resolvida a criao da equipes pastoral familiar, juvenil, vocacional, de evangelizao e catequese (na qual o tema da inculturao ficou includo) e social (terra, sade e meios de comunicao social). Deu-se prioridade a formao da equipe de pastoral familiar. A organizao da assemblia estava sob a responsabilidade do Conselho Paroquial. Deste modo, os salesianos coletam um conjunto fundamental de informaes sobre a receptividade das suas polticas pastorais, orientam lideranas leigas frente aos problemas detectados e estimulam a contribuio dos

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indgenas, atravs de representantes dos povoados, no planejamento e avaliao do programa missionrio implantado na parquia.

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Aprendizado pelo missionrio das lnguas indgenas. Favorveis Contrrios 1. O missionrio ter mais facilidade de 1. Os agentes pastorais e catequistas j evangelizam na lngua indgena e os conviver com todas as tribos que encontra missionrios sabendo a lngua inventariam nos povoados. muitas coisas. 2. Para o missionrio anunciar a Boa Nova e porque os antigos no falam a lngua 2. Os missionrios podem anunciar a Boa Nova de Cristo com as suas prprias palavras. nacional. 3. importante, mas sem exageros. 4. Conhecer tambm os costumes regionais das tribos.

Os salesianos perguntam sobre as prticas de piedade no oficiais, isto , alternativas s celebraes catlicas, existentes. As respostas mencionam os benzimentos13 para curar as doenas, para viajar, para derrubar uma roa, para ajudar no parto, o dabucuri. Conforme o modo como a pergunta foi formulada os ndios traduzem as prticas que envolvem o sistema da pajelana nos termos catlicos, ou seja, classificadas sob o rtulo prticas de piedade: tudo isso nos d umas prticas da nossa origem. Quanto aos traos das tradies indgenas que poderiam ser incorporados na liturgia catlica, as opinies tambm divergiram. Vejamos o quadro abaixo:
Introduo de elementos da cultura indgena nos cultos e sacramentos catlicos. Favorveis 1. Os instrumentos musicais indgenas (mavaco, japurutu, cario e outros) podem ser utilizados na liturgia desde que seja explicado ao povo para evitar mal entendidos. 2. Traduo de cantos da missa para as lnguas indgenas. 3. O dabucuri sim, porque oferta para pessoas estimadas e queridas.14 Contrrios 1. Falar das culturas em Yauaret ser atrasado, por isso muitos receiam combinar a tradio com a liturgia catlica. 2. Preferem que a liturgia continue como est. 3. Nada mais resta da nossa cultura e os velhos tambm no sabem mais. 4. A liturgia iria parecer brincadeira. 5. Ser nossa destruio como povo e como igreja. 6. O que Cristo nos deixou j est tudo feito. Se quiserem uma Igreja mundana a f se perder.

Prefiro utilizar nesta tese o termo local benzimento e no o termo consagrado na lngua culta portuguesa benzedura. 14 Em Taracu as coisas que simbolizam a cultura sugeridas para integrar os rituais catlicos foram: traduo do Evangelho, dos cantos, oraes e catequese na lngua Tukano; durante a missa, constituir o ofertrio com os produtos do trabalho indgena (beiju, farinha, peixe, atur, maniva, remo, canio, machado, vasos de cermica, terado, etc.). Propuseram a introduo de elementos da cultura que os nossos antigos usavam e agora esto extintos na celebrao dos casamentos, como o Karayur e o cigarro benzidos pelo

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Constatamos uma forte resistncia em aceitar este aspecto da inculturao. Mesmo aqueles que a admitem apresentam ressalvas. Os argumentos contrrios se dividem basicamente entre aqueles que afirmam a inexistncia de qualquer elemento da cultura tradicional e aqueles que consideram tais inovaes um desrespeito aos cultos e sacramentos, e at f catlica. Tal combinao destas formas mais reificadas de cultura lhes parece estranha. Cabe assinalar tambm a meno a uma concepo entre os moradores indgenas da sede missionria que contrapunha as tradies indgenas ao progresso.15 H muitos anos os salesianos estavam tentando estimular uma atitude de valorizao de um patrimnio cultural ameaado, enquanto os militares do Projeto Calha Norte vo explorar tal associao entre a ancestralidade tnica e o atraso, a selvageria, a misria. Trava-se um embate em torno da memria pblica legtima dos povos do Rio Negro, no qual os salesianos procuram redefinir a sua prpria memria e a sua imagem institucionais assim como suas relaes com os ndios e com o Estado. no bojo deste imaginrio intertnico complexo, constitudo de representaes divergentes e at contraditrias sobre o passado e o presente, sobre Si Mesmo e o Outro, que surge a FOIRN. Por outro lado, a recusa em resgatar costumes antigos no exclui a existncia de uma identidade positivamente formulada com base nos mesmos. Os missionrios catlicos estimularam um dilogo e uma reflexo com os ndios sobre sua prpria cultura, e sobre a situao intertnica, diante de dvidas sobre como implementar uma evangelizao inculturada.16 Percebem que tais tentativas de adaptao
paj. Alm disso, o padre abenoaria os noivos na igreja e o paj com suas cerimnias faria o mesmo (Respostas do Levantamento Comunitrio Assemblia 1991 Taracu; e Assemblia Paroquial de Taracu. 03 a 05 de outubro de 1993). Aqui temos uma demanda implcita de reconhecimento de uma autoridade paralela ao sacerdote catlico. Do ponto de vista missionrio tal possibilidade de conciliao devese minimizao, ou at ignorncia das diferenas existentes entre as concepes crists e xamnicas dos mundos espiritual e material, das suas relaes e formas de comunicao. 15 Em 1980, lideranas indgenas de Iauaret fizeram uma denncia ao inspetor salesiano contra a maneira autoritria e arrogante pela qual o diretor da Misso pretendia valorizar as suas tradies ancestrais. Consideravam um desrespeito com os antepassados tentar resgatar costumes antigos que eles no conheciam mais, deturpando-os para satisfazer os delrios de padres aventureiros. Repudiavam veementemente tal atitude de regresso ao passado, identificado uma condio de misria, pois dificultava o desejo e os esforos do povo de Iauaret rumo ao progresso: A partir de hoje olhamos para frente. Queremos levar a nossa comunidade cada vez Iauaret melhor e progressivo tanto como material e espiritual. [...] Este diretor espera que sejamos reduzidos na misria, como ramos antigamente, deixando-nos nus. [...] Os que preferiram da dana no precisaro sal, sabo e nem fsforo, tampouco as roupas para vestirem, porque os nossos antepassados nunca precisaram destes objetos. Carta enviada pela diretoria de capites ao Padre Inspetor. 07 de dezembro de 1980. Este documento no tem assinatura. 16 Buscam saber quais as coisas boas e ruins dos seus costumes. Os indgenas presentes na Assemblia Paroquial mencionaram como aspectos positivos de sua cultura tudo que proporciona uma convivncia

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litrgica no podem ser impostas atravs de aes subjetivas e isoladas, mas devem emergir em processos de dilogo nos quais missionrios e indgenas se conscientizaro da sua necessidade. claro que tal interlocuo proposta segundo a agenda, os valores e os interesses salesianos. Apesar da relevncia conferida religiosidade popular, enquanto manifestao autentica da criatividade do povo e das culturas na religio, ela tambm encarada como fruto do subdesenvolvimento e, portanto deve ser objeto da prtica libertadora crist. No conseguem detectar nem sinais do processo de manipulao indgena do imaginrio cristo, na qual smbolos catlicos so inseridos e reinterpretados segundo o cdigo do xamanismo. Em lugar de termos um programa de inculturao da cultura indgena, cujas premissas foram construdas de cima para baixo, ns temos uma deturpao semntica de elementos da tradio catlica inscritos na prtica de pajs e rezadores. Todavia, este era um perodo em que o olhar crtico dos salesianos sobre si mesmos buscava superar os limites impostos pelos seus pressupostos irrefletidos: [...] H muitas coisas que acontecem na base e que no vemos, porque fomos deformados institucionalmente [...].17 Alguns duvidavam que a inculturao tivesse o status de uma poltica missionria e estivesse reduzida a sugestes ou orientaes esparsas a serem implementadas segundo a disposio e capacidade subjetivas do mediador religioso. Num relatrio pastoral da Misso de Taracu chamou-se a ateno para a ambigidade de uma ao pastoral nas sedes missionrias baseada no conservadorismo da organizao eclesial (estruturas ministeriais, dogmas, smbolos, sacramentos, prticas de piedade, liturgia, textos, cantos, oraes), enquanto nos povoados se prega o respeito e a incorporao da lngua e da linguagem da religiosidade popular como condio da evangelizao libertadora. Portanto, teramos a coexistncia de duas tendncias missionrias no Rio
harmoniosa entre as pessoas: danas de cario, dabucuris, trabalhos comunitrios, cooperao mtua entre as famlias em certas atividades econmicas, acolher bem os visitantes, benzer os doentes, transmitir a sabedoria dos antigos. Como pontos negativos dos seus costumes: perda de cultura, brigas, intrigas, alcoolismo, separaes das famlias ou da tribo, omisso nos trabalhos e na vida comunitria, malefcios, envenenamento. Incentivaram uma reflexo sobre as relaes com os brancos pedindo que indicassem os aspectos positivos e os negativo deste contato. Os efeitos nocivos foram mais destacados, como: alcoolismo, principalmente entre as mulheres, adultrio, prostituio, aborto, divrcio, tabagismo, consumo de drogas, desrespeito dos jovens pelos mais velhos, anticoncepcionais, assassinatos, porte de armas, namoro pblico, explorao com mercadorias e entre os prprios indgenas. Esta identificao entre degradao cultural e moral, ambas geradas pelo contato com os brancos, tambm partilhada pelos salesianos, pois segundo a perspectiva da inculturao, em todas as culturas autenticas podem ser encontradas as sementes do Verbo, ofuscadas pelo materialismo predominante na civilizao ocidental. 17 Relatrio Pastoral de Taracu. Encontro dos missionrios e missionrias. So Gabriel da Cachoeira, 19 a 22 de julho de 1988.

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Negro: uma colonialista ou pr-Conclio e outra revolucionria ou ps-Conclio (Vaticano II). Os internatos impunham uma rgida disciplina s atividades dirias dos internos, alm de proibir e castigar os alunos indgenas que eram surpreendidos falando a sua lngua. Vejamos como era a organizada a rotina nesta instituio total. De segunda-feira ao sbado: Das 7:30 s 11:45 aulas. s 12:00 almoo; recreao com atividades diversas: jogo de futebol de salo e de campo, voleibol, handebol, domin, domas e ping-pong. s 13:30 banho e estudo. s 15:00 merenda e trabalho em vrias atividades, tais como: tcnicas agrcolas (horticultura e fruticultura), agro-pecuria (bovinocultura, guinocultura e cumicultura), curso de avicultura (apirio e apicultura), prticas de comrcio e industriais (aprendizagem de fabricao de vassouras, chapus e objetos com material regional). s 17:15 banho, jantar, recreio com corrida de esquetes, jogos de futebol de salo, domin, dama, ping-pong, cnticos recreativos e instrutivos. s 19:30 missa com palestra e aulas de religio. s 20:15 estudo. s 21:30 repouso. atividades para todos os alunos: campeonatos de futebol de campo e de salo, e voleibol. Alm disso, havia a preparao para as festas religiosas e celebraes em homenagem a santos catlicos. As comemoraes cvicas, nas quais procurava-se incutir o sentimento de nacionalidade, ocupava uma parte importante do tempo. A bandeira brasileira era hasteada semanalmente diante dos alunos e professores e havia ensaios de desfiles, cantos patriticos, poesias e outras manifestaes de amor ptria. O folclore nacional tambm no era esquecido, como as festas juninas, quando eram montadas as barraquinhas, tinha o concurso para rainha do milho e eram apresentadas danas tpicas (quadrilha, tipiti, cacetinho, tangar, dana do coco, gamb, dana dos ndios e chimarrita). No dia do ndio a exibio das danas, comidas, artesanato e objetos especficos dos povos

Feriados e dias santos:

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rio negrinos era concebida como folclore regional, isto , como celebrao de um passado morto e distante, e no como memria viva, integrada na identidade coletiva e na viso de mundo do presente.18 Pedro Garcia, ex-presidente da FOIRN (1996-2000), comparou o internato a um quartel: Na misso em Iauaret era o sistema de internato, que era cpia do quartel. Para cada coisa tinha os horrios definidos: para tomar banho, para brincar, estudar, para dormir e acordar... Recebia punies de acordo com as falhas, com os erros de cada um. Para cada coisa que agente ia fazer tinha um assistente [supervisor], como os patres usavam com os capatazes, o capataz para cuidar dos trabalhadores, o sistema do internato era mais ou menos isso. Como no quartel tem o cabo do dia que observa tudo. [...] [...] Para tudo era hora de rezar: para tomar banho tinha que rezar, para sair da gua tinha que rezar, antes de dormir tinha que rezar, para levantar tinha que rezar, antes de comer, depois de comer, antes de ir para o campo, para voltar tinha que rezar, antes e depois do estudo, entrou em sala de aula, saiu de sala de aula tinha que rezar... toda hora. A orao era mais que tudo (Pedro Garcia, entrevista. So Gabriel da Cachoeira, 08/10/2001). A constante afirmao da religiosidade catlica, atravs das rezas, conferia a este conjunto de tarefas dirias intensamente cronometradas um certo teor asctico. A passagem de uma atividade a outra era sempre mediada por mltiplos atos de comunicao com Deus e elevao espiritual. No h registro nos documentos das Misses, referente aos anos 70 e 80, dos castigos e da proibio de falar qualquer lngua indgena. Esta a parte sombria e oculta da memria oficial dos internatos, porm esta censura no opera na memria dos exinternos, pelo menos daqueles que atualmente esto engajados no movimento indgena. Cabe observar que ao se referir s punies Pedro Garcia faz uma analogia com o sistema de explorao dos extrativistas subordinados ao regime de aviamento, aproxima os assistentes aos capatazes dos patres que vigiavam os trabalhadores. Quando os alunos

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Relatrio das Atividades dos Alunos Internos e Externos da Escola de Santa Izabel do Rio Negro Ano de 1983.

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no conseguiam dormir e ficavam se mexendo na rede, o assistente batia pensando que estavam brincando ou conversando. Mesmo no tendo sono tinham que ficar quietos.

Figura 2: Alunos do Internato Salesiano de Santa Isabel do Rio Negro. Fonte: Arquivo da Diocese de So Gabriel da Cachoeira. No internato de Iauaret, quem fosse surpreendido falando na sua prpria lngua era obrigado a ficar com um chaveiro pendurado no pescoo. Este por sua vez tinha que surpreender algum falando, ou for-lo a falar, em tukano ou outra lngua indgena da regio para passar o chaveiro e assim por diante. Era um sistema de violncia simblica no qual o prprio transgressor era investido do papel de delator, ou seja, de produo de novos culpados, participava ativamente do esquema de represso. Como em toda instituio total os internos aproveitavam as brechas do sistema para manipular as regras, tornando-o mais suportvel. Os alunos mais velhos ajudavam os mais novos, que quase no falavam o portugus, a encontrar algum para por o chaveiro ou eles mesmos ficavam com o chaveiro pois sabiam se livrar dele mais rapidamente. Quando terminava uma atividade (trabalho no

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campo, recreao, etc.) o assistente que em geral era indgena tambm passava pelas turmas das diferentes sries e perguntava quem estava com o chaveiro. O aluno levantava o brao e ele anotava o nome do infrator. Aqueles que fossem flagrados trs vezes durante a semana com o chaveiro pendurado no pescoo ficavam impedidos de passear ou assistir os filmes que os padres passavam. Pedro Garcia vislumbrou um aspecto positivo nesses castigos, pois o aluno ficava trancado na sala para estudar e aproveitava para cumprir suas obrigaes escolares. Outras vezes a punio era ler um livro todo sobre a vida de um santo enquanto os outros estavam dormindo. S podia dormir quando terminasse a leitura. Alguns no agentavam e adormeciam. Nesses casos, o assistente ficava ouvindo a leitura em voz alta com a porta do dormitrio aberta. Nesta poca no existiam castigos corporais. Em Pari-Cachoeira e em So Gabriel da Cachoeira era retirada a carne do almoo daqueles que eram descobertos falando a lngua indgena.19 No incio dos anos 80 no havia mais castigos, mas o uso exclusivo da lngua portuguesa ainda era obrigatrio. Em Taracu, os alunos eram verbalmente repreendidos de maneira rspida pelos assistentes se fossem surpreendidos falando sua prpria lngua. As punies ento existentes eram expulso e no passear no fim de semana por causa de brigas ou notas ruins.20 Desde a criao do ginsio na Misso de So Gabriel como j vimos, no final dos anos 60, a extrema separao entre meninos e meninas foi atenuada. Em sala de aula j ficavam juntos e nos finais de semana os meninos podiam assistir os jogos das meninas e vice-versa. Na igreja ficava um de cada lado, mas um jovem olhar para uma jovem ainda era pecado e passvel de punio. Tinha a hora de lazer: meia hora depois do almoo e meia hora depois do jantar. O esporte era obrigatrio: futebol, voleibol, atletismo... S no participava quem estava doente ou tinha um trabalho muito urgente para fazer. Um grupo de alunos selecionados pelos padres para os cursos profissionalizantes (marcenaria, carpintaria, alfaiataria...), dedicava-se no perodo da recreao a trabalhos remunerados (vassouras, banquinhos, armrios, cadeiras, etc.), independentes das outras atividades concernentes ao aprendizado deles. A grande maioria dos alunos ficava na roa plantando mandioca, arroz, feijo, milho, batata, car, hortalias. O trabalho era dividido em grupos: um ficava encarregado do pasto para a criao de gado bovino e suno; e os outros

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Entrevista gravada com Pedro Machado, em 18/10/2001, em So Gabriel da Cachoeira. Depoimento de Bonifcio Jos, Baniwa, ex-secretrio da FOIRN (1996-2000), em 31/10/2001, em Manaus.

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cuidavam da plantao de cada produto agrcola. Esta era uma base importante de sustentao do internato como pode ser observado tambm nos relatrios anuais das parquias , alm das doaes recebidas de organizaes religiosas internacionais. Segundo Pedro Garcia, os alunos eram obrigados a trabalhar na roa, sob a vigilncia dos assistentes: [...] Ento na verdade agente era aluno quando estava na sala de aula e escravo quando ia para o campo. Era um trabalho braal mesmo. [...]. Mencionou uma conversa recente entre ele e um ex-assistente em Yauaret na qual identifica o trabalho na roa empreendido pelos alunos com o regime de explorao dominado pelos patres no extrativismo: [...] Quando eu era aluno aqui no internato voc me mandava trabalhar. Eu sempre pensei que voc tinha uma formao, que estava com a vida ganha. Foi quando entendi que ningum era superior a ningum, mas ns ramos dominados com o sistema que foi montado. Ento voc para mim era patro, voc mandava eu trabalhar. Na poca em nenhum momento vocs nos defendiam, porque ns ramos escravos, trabalhvamos sem ganhar nada para poder pagar o prato de cada dia, embora esse prato fosse doado, trabalhando duro de manh ou tarde, dependendo do tempo que agente fosse para a sala de aula.[...] (Pedro Garcia, Tariana, Entrevista. So Gabriel da Cachoeira, 08/10/2001). Cabe assinalar tambm que aps a denncia apresentada por lvaro Sampaio Tukano no Tribunal Russel, em 1980, contra os salesianos21 sua famlia sofreu represlias. Seus irmos foram impedidos de estudar no internato em Pari-Cachoeira e seu pai at

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Lideranas da Unio Familiar Crist (UFAC) escreveram uma carta de apoio aos salesianos e solicitaram a permanncia deles em Pari-Cachoeira. Frisaram que os missionrios foram chamados pelos antigos tuxauas e capites mencionaram os nomes de Jlio e Manoel Machado para protegerem os ndios da escravizao imposta pelos comerciantes, que levavam seus filhos para trabalhar nos seringais e piaabais onde morriam por causa dos maus tratos sofridos e das doenas contradas (Histrico Geral dos Primeiros Missionrios do Rio Tiqui. Presidente da UFAC, enviada para Dom Miguel Allagna. Pari-Cachoeira, 06 de abril de 1980). Este documento no tem assinatura, mas na sua margem inferior existe uma observao manuscrita dizendo que o autor da carta Henrique Castro, presidente da UFAC. Um senhor Tukano me disse que a denncia no Tribunal Russel foi uma iniciativa isolada de lvaro Tukano, no era fruto de uma deciso das lideranas e comunidades de Pari-Cachoeira: [...] ele fez as coisas sozinho, agente s veio a saber quando estourou o negcio [...]. Ele ficou impossibilitado de voltar para So Gabriel da Cachoeira pois seu acesso aos avies da Fora Area Brasileira (FAB) no existiam empresas areas comerciais operando na regio foi proibido.

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pensou em migrar para Barcelos, onde no tinha parentes e no conhecia ningum, mas foi convencido de fixar residncia em So Gabriel da Cachoeira por Pedro Machado. Algum tempo depois, o pai de lvaro aceitou a sugesto da cunhada Desana de Pedro Machado, esposa de Germano Machado, de irem para o Balaio, s margens da estrada que liga So Gabriel a Cucu. Algumas famlias Desana, parentes da cunhada de Pedro Machado, provenientes do distrito de Taracu j tinham se estabelecido devido fartura de peixes do local. Os parentes de lvaro foram passar uma temporada, acabaram gostando do lugar e ficaram. De todo modo, em 1983 lvaro Sampaio continuava a fazer acusaes pblicas contra os salesianos no Rio Negro. Em uma carta endereada a Dom Paulo Evaristo Arns, Cardeal Arcebispo de So Paulo, classifica os missionrios como inimigos que usam a Palavra de Deus para castrar o esprito dos ndios atravs de uma educao alienante que os obriga a abandonar e desprezar a sua cultura. Acusou os padres e freiras de receberem muitos recursos e construrem obras faranicas na sua regio para empreender uma evangelizao domesticadora e reformista.22 Os salesianos, por seu turno, pretendiam entrar em sintonia com as mudanas ocorridas na Igreja catlica a nvel mundial, continental e nacional, expressa de maneira sinttica na famosa opo preferencial pelos pobres, fio condutor de uma poltica evangelizadora renovada. Nesta perspectiva a ao pastoral deve entender a realidade na qual est inserida e posicionar-se diante dela. A salvao no tem uma dimenso exclusivamente espiritual, mas tambm social, poltica e econmica, pois a realizao do Reino de Deus deve ser antecipada, mesmo que parcialmente, neste mundo atravs da conscientizao, mobilizao e luta contra todas as formas de discriminao, injustia e

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Diante disso apresentou propostas para regular as relaes entre a Igreja e os povos indgenas no Brasil: os missionrios no utilizassem a religio como instrumento ideolgico para dividir as aldeias e tribos indgenas; informassem sobre os convnios que firmam com o Estado, pois recebem muito dinheiro em nome dos ndios desperdiados em obras que no redundam em benefcios concretos para estes povos; entendessem melhor a problemtica scio-cultural indgena para orientar a ao pastoral no respeito mtuo; incentivassem a participao indgena nos planos e programas elaborados; apoiassem as organizaes indgenas e sua luta pela garantia da terra; abandonem sua atitude paternalista na qual os ndios so vistos como incapazes; no explorem a imagem do ndio em publicaes (revistas, cartes postais, folhetos, etc.) com fins lucrativos; e, finalmente, no ataquem as organizaes indgenas qualificando-as como subversivas e comunistas, levando confuso e discrdia para as aldeias (Carta enviada por lvaro Fernandes Sampaio, Tukano, para Dom Paulo Evaristo Arns, Cardeal Arcebispo de So Paulo. So Paulo, 12 de abril de 1983. C/C Dom Toms Balduno, Dom Jos Gomes, Dom Miguel Alagna, Dom Ivo Lorscheiter, Dom Alosio Lorscheiter, Dom Luciano Mendes, Dom Helder Cmara e Dom Avelar Brando).

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desigualdade.23 Temos um ascetismo politicamente engajado, no qual se combinam duas formas de militncia: o combate contra as privaes seculares assume uma legitimidade espiritual e a guerra contra os malefcios que afligem a alma do o nimo e os meios necessrios para os esforos direcionados promoo humana. As lutas sociais se enquadram em uma linguagem religiosa, enquanto as demandas religiosas se enquadram no cdigo do ativismo em defesa dos direitos universais do homem. Nesta configurao simblica emerge uma tica da contestao que ser, com a formao do movimento indgena, despida de qualquer roupagem religiosa, isenta de qualquer referncia a um estado de perfeio supramundano, e reformulada em uma linguagem poltica de afirmao de uma cidadania etnicamente diferenciada. A evangelizao dirigida a todos os homens mas o mesmo Jesus Cristo mostrou a predileo pelos pobres assumindo a condio de pobre e a partir da pobreza promovendo a converso de todos. A opo evanglica parte da encarnao do mundo dos pobres. Todo o povo indgena vive numa situao de pobreza, insegurana e ameaas por causa dos grandes projetos que se precipitam sobre a Amaznia. O posicionamento da parquia e dos missionrios em particular ser ao lado dos ndios, e entre eles daqueles que querendo preservar a prpria identidade so vtimas de presses de toda ndole [grifos SCP]. A salvao de Jesus Cristo no se reduz ao plano espiritual, mas atinge a pessoa na sua totalidade incluindo as dimenses social, poltica e econmica. A
O Reino de Deus j est sendo realizado aqui na terra, embora a sua realizao no seja plena por causa do pecado. Por isso a parquia, como comunidade crist, quer ser um sinal daquilo que se realiza de forma plena no Reino definitivo que ns s temos condies de ver atravs de sinais. [...] A vida crist no pode ser uma forma de colonizao espiritual, que facilmente se converteria em colonialismo econmico e social. [...] A libertao integral do homem leva construo de uma sociedade sem classes sociais, onde todos possam viver como irmos, e onde cada um ponha as suas qualidades a servio da transformao do mundo. Esse tipo de sociedade vai contra a corrente formada pelas foras dominantes na cultura que est em expanso por todo o mundo ocidental. Ao mesmo tempo a parquia est pronta a colaborar com todas as foras civis e religiosas que visam esta sociedade embora no estejam em plena comunho eclesial (Projeto Pastoral da Parquia de So Miguel Arcanjo de Iauaret. Iauaret, 23/07/1989). A noo de pecado reformulada sob o prisma de um discurso sociologizante, ele tem um sentido coletivo enquanto ferida aberta na convivncia entre os homens pelo capitalismo, baseado na nsia de lucro e no materialismo. Para uma anlise do carter anticapitalista da Teologia da Libertao: Lwy (2000). Por isso a Igreja catlica aqueles imbudos desta perspectiva pastoral, claro prope uma aliana ampla com os segmentos da sociedade, independentemente de sua filiao religiosa, dispostos a erradicar os obstculos que impedem a redeno total do homem, cuja essncia espiritual. Neste sentido a opo evangelizadora pelos pobres tambm se pretende universalizante, como no poderia deixar de ser qualquer teologia crist, pois os opressores e exploradores tambm so libertados dos pecados que exercem.
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ao dos missionrios desde o incio da sua presena no rio Vaups caracterizou-se pela preocupao com a educao, a sade e o desenvolvimento do povo. Nas mudanas que esto acontecendo, a Parquia dever prestar ateno para que as novidades que se introduzem nesta sociedade no levem o povo da regio a uma escravido que possa terminar com a aniquilao desses povos e culturas.24 Os povos indgenas so includos na medida em que se encontram em uma situao comum aos demais setores marginalizados: a pobreza iguala a todos e os qualificam como protagonistas de um mundo espiritual e materialmente melhor. Assim como Cristo encarnou em Si Mesmo a humanidade para tornar a sua mensagem de salvao mais compreensvel, os missionrios devem salvar os povos indgenas encarnando em si mesmos inculturando a indianidade. Da a opo preferencial por aqueles que querem manter a sua identidade, pois eles so mais atingidos pelos processos vigentes de violao de direitos. uma declarao firme de apoio ao movimento indgena emergente e de julgamento diante da polarizao de opinies existente entre os ndios sobre o Projeto Calha Norte. Por isso reprovam a conduta daquelas lideranas que buscam uma promoo individual, negando sua identidade, obtendo vantagens pessoais e falando em nome do seu povo, cujos interesses prejudicam com tal atitude. Verifica-se a tentativa de traar uma linha de continuidade entre a atuao missionria passada e presente no Rio Negro luz das novas orientaes pastorais. Confere-se grande relevncia ao conhecimento das mudanas em curso na Amaznia, no Rio Negro e nas parquias em particular para formular um juzo de valor que fundamente posturas crticas diante das possveis conseqncias futuras.25 O problema da garantia legal das terras indgenas torna-se um item importante da ao pastoral em meados dos anos 80: [...] Nosso trabalho ser traduzir-lhes o sinal dos

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Ibidem. No caso do Alto Vaups/Papuri os problemas apontados foram os seguintes: mudana no estilo de vida indgena causada pela chegada de estranhos (comerciantes, militares, funcionrios de rgos governamentais) e crescimento de Yauaret; abandono do modo de vida tradicional e conseqente dependncia de empregos recentemente introduzidos na regio; contatos com costumes dos brancos, trazidos pela ampliao do acesso televiso, afetando a famlia, os jovens e provocando o consumismo; procura desenfreada ao garimpo como meio de prover demandas provenientes do consumismo; desprezo dos brancos para com a religio, exercendo m influncia sobre os jovens; protestantismo comea a rivalizar com o catolicismo e romper com a situao anterior de unidade religiosa; precrio conhecimento do povo sobre a situao vigente provoca confuso e desunio (Ibidem).

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tempos. Orient-los e Conscientiz-los, sem Manipul-los [...]26. Os missionrios consideram imprescindvel formar uma conscincia crtica e organizam reunies nos povoados para falar da demarcao da terra, dos direitos indgenas estabelecidos no Estatuto do ndio, do cenrio poltico nacional (principalmente da Constituinte), da poltica indigenista dominada pelo Conselho de Segurana Nacional (CSN), das enormes transformaes sociais e econmicas por que passava a regio com a implantao de grandes projetos e da interferncia nociva de grandes interesses capitalistas nacionais e estrangeiros, da sade e da educao. Partem da premissa de que junto com o progresso material vem a aceitao ingnua da ideologia desenvolvimentista que cobra o alto preo do abandono da identidade e dos valores culturais nativos. A f verdadeira tambm prejudicada pois nesta situao impera uma total secularizao da vida, um desprezo generalizado pela religio, empurrando os jovens assim desorientados para o abismo moral e social (delinqncia, drogas, alcoolismo, etc.). Tal processo incapacita os jovens moradores dos povoados de ver a sua situao real, estimulando-os a deixar seu modo de vida tradicional e a migrar para a cidade em busca de emprego e de prazeres fteis (festas, brincadeiras, televiso, drogas, e prostituio) e ilusrios. Da todas as aes deveriam ser coordenadas e coerentes (pastorais familiar, juvenil, vocacional, de evangelizao e catequese e social), pois a poltica missionria tem como objeto a alma humana, ou seja, a libertao, a salvao do homem na sua integridade, do homem completo, total.27 Em 1989, os ventos da teologia da libertao continuavam soprando em direo ao Rio Negro. Em outro documento de avaliao da ao missionria na regio provavelmente oriundo da Inspetoria Salesiana em Manaus28 as crticas vo mais no sentido da redefinio dos princpios pastorais mais gerais de orientao da atuao evangelizadora e esto dirigidas a um passado mais distante. O texto est divido em termos

Pari-Cachoeira. Planejamento 1985. No planejamento da Misso So Joo Bosco de 1985 o momento foi considerado oportuno para implementar esforos pela demarcao da terra, pois haveria mais unio entre os ndios na regio por causa do garimpo e por causa da ocupao do posto de presidente da repblica por um homem experiente, humano e cristo, Tancredo Neves. Menciona a realizao de reunies de lideranas em Pari-Cachoeira para discutir a questo e a disposio dos salesianos para dar-lhes assessoria tcnica e jurdica e a ida de representantes Braslia para conversar com autoridades sobre o assunto, onde teriam a orientao do Conselho Indigenista Missionrio (CIMI). 27 Relatrio Pastoral de Taracu. Encontro dos missionrios e missionrias. So Gabriel da Cachoeira, 19 a 22 de julho de 1988. 28 Carta a Respeito da Situao Missionria do Rio Negro. Manaus, 15 de Setembro de 1989. Ir. Maria de Lourdes Barreto e Padre Benjamim Morando.

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temporais, diagnosticando situaes passadas e presentes e apresentando propostas para o futuro. Apesar de sublinhar a abnegao e herosmo dos salesianos no passado, condenou a identificao entre evangelizao e aculturao que caracterizou sua ao frente aos povos indgenas. Relativiza o julgamento inserindo-o em uma perspectiva histrica, pois atuaram com a mentalidade e com a teologia e pastoral da sua poca. Todavia, a referncia do veredito a valores universais, portanto atemporais, combinando um vocabulrio cristo ao vocabulrio dos direitos autodeterminao cultural: definiram a agresso cultural como pecado e elevaram o respeito cultura e originalidade de cada povo ao status de princpio da verdadeira evangelizao. Apontaram como conseqncia de uma prtica missionria distorcida: desinteresse em aprender as lnguas indgenas; ausncia do clero e igreja autctones; e liturgia alheia s culturas indgenas. No quadro sombrio elaborado sobre o presente cabe destacar a preocupao com a expropriao das terras indgenas e com o seu no reconhecimento jurdico. Outros itens apresentados da situao atual foram os seguintes: os programas desenvolvimentistas contrrios aos interesses indgenas, falta de leis que garantam seus direitos, projetos educativos alienantes. No aspecto religioso admite a ao dominadora da Igreja por participar de sociedades que implementam projetos contrrios aos povos indgenas. Constata a existncia na Igreja de uma corrente que ainda legitima esta dominao e de outra que a critica. Faz uma referncia implcita ao Projeto Calha Norte ao postular que a antiga aliana entre Igreja, Exrcito e FUNAI, respondia a uma mentalidade de cristandade, mas atualmente no poderia ser preservada para perpetrar as violaes aos direitos indgenas. Lista ainda como graves problemas da regio: a febre do ouro, o alcoolismo e a prostituio. Aplaude a diminuio ou fechamento dos internatos, mas lastima a ausncia de um servio pastoral mais adequado s necessidades locais. A proposta de uma nova evangelizao no Rio Negro confronta-se com os objetivos governamentais traados para a regio, pois pretendia: resgatar as culturas indgenas; contribuir com os ndios para a elaborao de uma educao condizente com os seus interesses culturais, sociais e de intercmbio com o pas; apoiar a luta pela afirmao da identidade tnica, estreitamente ligada a posse da terra; apoiar a unidade do movimento e das organizaes indgenas; estimular a atualizao dos missionrios e agentes pastorais; rejeitar e denunciar polticas indigenistas etnocidas que pregam a utilizao racional da

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terra (colnias indgenas), a segurana nacional (Projeto Calha Norte) e a integrao comunho nacional (educao alienante). Temos aqui explicitado e sistematizado o conjunto articulado de novas orientaes e princpios pelos quais os salesianos e as filhas de Maria Auxiliadora deveriam pautar sua atuao frente nova situao vigente no Rio Negro.29

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No devemos esquecer que nestes quatorze anos que separam os dois documentos temos a denncia aos salesianos feita por lvaro Sampaio no tribunal Russell e a carta que o mesmo enviou para D. Paulo Evaristo Arns em So Paulo.

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CAPTULO IV. O CAMPO DE DISPUTAS RELIGIOSAS NO IANA E A NOVA PROPOSTA PASTORAL. A atuao salesiana nesta regio vale uma ateno especial porque constituiu uma situao em que sua poltica missionria encontrava-se em posio desfavorvel frente a uma alternativa religiosa concorrente. O quadro seria incompleto se no abordssemos como a nova proposta pastoral catlica foi pensada para resolver os problemas especficos de combate heresia protestante. A parquia de Assuno do Iana tem uma extenso de 25.000 km2, que abrange uma populao Baniwa e Curripaco, que vivem no rio Iana e seus afluentes Cubat, Aiari e Cuiari, cuja expressiva maioria protestante.1 A populao em sua absoluta maioria protestante. A atuao salesiana foi espordica no rio Iana at a fundao da misso, em 11 de fevereiro de 1951, pelo Padre Jos Schneider, que dominava a lngua nheengatu. Esta Misso localizou-se no limite dos assentamentos Baniwa que falam o nheengatu e daqueles que falam o baniwa. O estabelecimento deste centro missionrio ocorreu principalmente por causa da preocupao com as atividades de Sophia Muller designada como uma invaso protestante , cujas estratgias de converso religiosa foram consideradas pelas autoridades salesianas muito eficientes. Em uma reunio de diretores das misses do Rio Negro realizada em 1955 a expanso protestante no Iana foi o tema mais discutido. Decidiu-se ento a formao de uma comitiva para verificar a situao e responder se a construo de uma escola resolveria os problemas. Tal delegao foi composta pelos padres: Joo Marchesi, vigrio geral da Prelazia do Rio Negro; Carlos Galli, substituto do Padre Jos Schneider; e Luiz Pasinelli, diretor da Misso de So Gabriel da Cachoeira. Segundo o Padre Joo Marchesi estavam todos os ndios da bacia do Iana contaminados pela seita batista.2 A difuso do
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Dados provenientes de censos salesianos apontam uma proporo de 70% (1987) a 72% (1989) de protestantes. Os dados do censo de 1987, entretanto, referem-se ao ano de 1980. Um relatrio paroquial de 1974 apresenta uma particularidade, pois aponta uma proporo bem menor de protestantes (55% para 26% de catlicos). Isto ocorreu porque apresenta uma outra categoria censitria: os religiosamente indiferentes (19%). Como veremos adiante, estes so aqueles que retomaram seu antigo modo de vida (rituais, festas, danas, etc.) aps trabalharem por um perodo nos piaabais da Colmbia e da Venezuela. 2 Correspondncia enviada pelo Padre Joo Marchesi para Dom Pedro Massa. Vaups, 01 de maro de 1955. Documento manuscrito. 99

protestantismo associada imagem de uma epidemia, de uma doena que se alastra. No alto Iana a maioria absoluta dos povoados tornara-se crente. No baixo Iana somente trs povoados conservavam a capela sinal de que ainda se mantinham catlicos. A comisso constatou que at mesmo no seu prprio quartel general em Assuno do Iana os muitos (falam de centenas) indgenas que acorriam para l eram motivados apenas pelas suas necessidades (acesso a mercadorias). Muitos deles realizavam os cultos protestantes secretamente, at mesmo nas dependncias da Misso. Apenas no rio Aiari a hegemonia salesiana estava preservada. O discurso salesiano aqui se apresenta com tonalidades fortemente militares, no qual os povoados indgenas so equiparados a territrios conquistados, conservados ou perdidos pela f catlica. Aponta como uma importante explicao para tal situao a localizao inadequada da Misso onde existiam poucos moradores e longe do foco de irradiao do protestantismo. Sugere a localizao de uma nova Misso na boca do Cuiari, acima da cachoeira de Tunu, onde havia um acampamento da Comisso de Limites e o Coronel Themistocles Brazil aconselhara a instalao de uma Misso.3 Vemos aqui mais uma demonstrao da convergncia das preocupaes com a segurana das fronteiras nacionais do Estado brasileiro e das fronteiras religiosas da Ordem Salesiana no Alto Rio Negro. Esta parceria para usarmos um termo em voga atualmente entre soberania estatal e eclesistica ser uma das condies da atuao missionria Salesiana at a implantao do Projeto Calha Norte. A terceirizao da ao indigenista um elemento bsico do campo de mediao intertnico nesta regio do Noroeste Amaznico. O perfil do sacerdote e a estratgia adotada para realizar tal eminente tarefa demonstram a percepo ento vigente sobre a eficcia da atuao missionria protestante, cujo modelo deveria ser seguido: deveria dominar a lngua geral e a lngua Baniwa, nas quais faria as suas pregaes e prepararia o catecismo; e atuar mais freqente e permanentemente nos stios e povoados. Estas seriam as bases de uma verdadeira e profunda converso, isto , que consolidaria a presena catlica no Iana, to precria naquele momento. Os slidos e duradouros resultados desta perspectiva pastoral eram ntidos no fervoroso e pleno compromisso religioso dos Baniwa crentes:

Assuno do Iana, onde existiam edificaes para a residncia dos padres e freiras, serviria como um

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[...] Vimos muitos templos de culto onde se recolhem diariamente e permanecem horas a fio lendo trechos da Bblia e cantando hinos, traduzidos num dialeto baniwa e at alguns em lngua geral. Se mostram convencidos e fazem este atos de culto com muita seriedade. [...] (Ibidem). Outra evidncia de bons frutos desta linha de interveno era o poder de mobilizao e persuaso dos lderes protestantes. O Padre Marchesi mencionou uma ocasio (15/02/1955) em que um pastor reuniu em Tunu 680 adultos e realizou 60 batizados (rito de iniciao, consagrao, plena aceitao na comunidade de crentes). Ele sugere a Dom Pedro Massa que intervenha junto ao Padre Inspetor que indique o Padre Galli por preencher aqueles requisitos mencionados acima ao Iana, em vez do Padre Guilherme Galibinelli, que seria indicado para So Gabriel da Cachoeira. Props-se a acompanhar a construo da nova Misso, que deveria iniciar suas atividades em 1956, na boca do rio Cuiari. Este centro missionrio na foz do rio Cuiari nunca foi implantado, apesar de ter sido proposto por uma comisso de respeitveis salesianos atuantes no Rio Negro. Muitos anos depois o Padre Carlos Galli, integrante da comisso, atribuiu interferncia do funcionrio do SPI, Atayde Cardoso, o insucesso da proposta de implantao desta nova unidade missionria devido aos seus interesses comerciais junto aos protestantes. A soluo ento considerada inadequada, a construo da escola, acabou prevalecendo: [...] o internato, oficina maravilhosa, transformadora da mentalidade e dos costumes4. Em seguida, o Padre Galli afirma que a Misso era sinnimo de internato e que mais recentemente o itinerante levou a Misso s famlias catlicas do alto Iana, demonstrando assim a limitao do raio da ao evangelizadora representada pelo internato. Mesmo nos anos 70 em que a idia da inculturao j era moeda corrente no discurso salesiano o internato ainda era objeto de venerao como uma espantosa e quase mgica fora de transformao moral, promotora de uma verdadeira converso religiosa e de uma slida postura civilizada, inerentes vida urbana e opostos aos nocivos costumes inculcados pelo protestantismo:

entreposto para o descanso das constantes viagens aos stios e povoados realizadas pelos salesianos. 4 Crnica Resumida da Misso de Assuno do Rio Iana 1974. Padre Carlos Galli. 101

[...] O elemento feminino cuidado esmeradamente, constata-se mesmo uma transformao moral adeso moral a tudo quanto da misso. uma alegria comunicativa, uma expanso que encanta boas maneiras asseadas limpas respeitosas parecem moas educadas na cidade bem o revs da medalha do ambiente protestante acanhados tristes inseguros sombrios sujos ftidos esfarrapados nunca se atrevem a enfrentar algum fixando os olhos (Ibidem). Civilizar aqui desenvolver a capacidade de se relacionar com os outros, expandir a civilidade, a boa convivncia, o respeito mtuo em contraposio hostilidade e imundice incentivadas tanto pela cultura indgena quanto pela protestante. interessante observar o papel atribudo aos hbitos de higiene na formao desta civilidade catlica. Padre Galli descreve o estado de ignorncia religiosa que grassava no Rio Negro antes da viagem do Monsenhor Loureno Giordano que ao constatar a deplorvel situao moral e intelectual dos ndios sugeriu a ao missionria salesiana na regio identificando as antigas festas indgenas a verdadeiras orgias, quando centenas de ndios seminus, incluindo mulheres e crianas, se aglomeravam na maloca durante dias e consumiam bebidas e drogas, danando e cantando num ambiente infectado pela fumaa e pelo mau cheiro.5 O modo como os salesianos representam as Conferncias protestantes tambm bastante sombrio: aglomerao desordenada, favorecendo a propagao de doenas, brigas e assassinatos por envenenamento. Ao mesmo tempo o Padre Galli lastima o retorno das antigas orgias, as quais se entregavam os crentes indgenas que abandonavam o protestantismo. Prefere tambm as festas dos caboclos que, apesar de apresentar muitos abusos, uma oportunidade para a demonstrao de devoo e f religiosas.

Vejamos a descrio do primeiro encontro do Monsenhor Giordano com os indgenas provavelmente Arapao de Taracu, durante a viagem ao Rio Negro, que durou trs anos, em 1916: [...] l chegaram pela tardinha existia ento uma nica maloca, de propores enormes [...] ao chegar nica porta, viu l dentro mais de 400 pessoas s de coeio homens mulheres crianas uns deitados outros cantando, acol gargalhando mais alm chorando todos caracterizados: uma fumaceira enorme, dos mltiplos fogos uma catinga insuportvel, ofendia as narinas. Imediatamente veio o Tuchaua todo enfeitado, com os maiorais, nas mesmas condies, pedindo que entrasse, para passar a noite com eles. [...] Do terceiro dia em diante a bebida e todas as drogas eram fortes e vontade. Nestas reunies decidiam tudo quanto se relacionava tribo. Ento homens, mulheres mulheres moos moas e at crianas, todo mundo entregava-se bebedeira dana desenfreada devassido j muitos no podiam mais se aguentar de p, j no saiam mais da maloca, nem para as primeiras necessidades tudo era despejado a mesmo. [...] 102

Em 1957, foi inaugurado o internato feminino, no qual se inscreveram 50 meninas. Cinco anos mais tarde, 1962, implantou-se o internato masculino, com 29 alunos inscritos. Todavia a transferncia das irms para a misso recm criada em Cucu (1967), ocasionou o fim do internato. As irms retornaram em 1976, porm o internato no foi reativado. Os alunos do Iana que completavam a 4a srie eram encaminhados para o internato de Taracu (Cf. caso do Bonifcio que estudou neste internato), onde a absoluta maioria de alunos era de grupos tukano. O Bispo Dom Pedro Massa acatou a alternativa que mantinha o modo tradicional de ao missionria, que tambm no deu certo, em detrimento daquela que pressupunha uma autocrtica, formulada a partir da comparao com as estratgias protestantes de converso.6 O Iana era o laboratrio onde a eficcia da prtica pastoral salesiana estava sendo testada pela existncia de um campo de disputa religiosa, onde no havia um monoplio catlico patrocinado pelo Estado brasileiro. Dom Jos Domitrovics qualificou como doloroso, vergonhoso e humilhante o quadro religioso daquela regio para os salesianos.7 Delineou com traos fortes a inoperncia da estrutura missionria recm estabelecida naquelas paragens. Contrasta a profunda religiosidade dos indgenas protestantes, contrariando a opinio ento vigente entre os salesianos, ao envolvimento superficial e aparente dos indgenas catlicos. Mencionou a existncia de 40 casas de orao, [...] que se enchem todos os dias para o culto, sem nenhum elemento estrangeiro no meio deles [...], no se importam com o bem estar material8 e fogem para a roa ou
Ento, qual a importncia em reportar fatos que no tiveram conseqncia histrica? Por vrias razes: em primeiro lugar, para no silenciar agentes, atos, representaes e projetos que foram silenciados mas que poderiam ter modificado uma cadeia de eventos posterior ou toda uma lgica institucional; em segundo lugar, para mostrar os conflitos internos e espaos (limitados) de manipulao de significados capazes de gerar mudanas, manifestados conforme os meios convencionais de expresso e os consensos bsicos (as certezas inabalveis da conscincia prtica) vigentes, censurados pela histria oficial; em terceiro lugar, porque a compreenso dos fatos consumados inclui a pergunta sobre os outros cursos de ao possveis (possibilidade objetiva e causalidade adequada, Max Weber), pois o que passado para ns era to indeterminado para aqueles que nele viveram como o presente e o futuro nos so agora. 7 Correspondncia enviada por Dom Jos Domitrovics ao Exmo. Senhor Bispo Dom Pedro Massa. Vaups, 02 de maro de 1955. Encaminha em anexo o Relatrio sobre o Iana, datilografado, do Padre Joo Marchesi. Este relatrio datilografado um pouco diferente do manuscrito, mas a essncia da proposta de criao de uma nova Misso na foz do Cuiari permanece. Tanto o documento manuscrito quanto a sua verso datilografada so assinados apenas pelo Padre Joo Marchesi e no pelos dois outros padres integrantes da comisso. Dom Jos Domitrovics acrescenta no final do documento uma observao sobre a necessidade de autorizao de Dom Pedro Massa, mas no encontramos nenhum documento sobre a resposta do bispo proposta de implantao de um outro centro missionrio no Iana. 8 Este aspecto do relatrio datilografado do Padre Joo Marchesi inexistente no relatrio manuscrito no qual descreve o precrio estado material dos assentamentos, devido intensa vida religiosa dos crentes, denota a diferena com relao prtica pastoral salesiana, vinculada civilizao do indgena atravs do trabalho, formao de bons cidados para a ptria transformando-os em trabalhadores. [...] No fumam, 103
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para o mato quando avistam a chegada dos padres. Ou seja, a f teria sido to firmemente arraigada no esprito e na vida cotidiana dos ndios, repletos de vcios e pecados no passado, que eliminaria a necessidade da presena constante de qualquer agente externo de evangelizao para mant-los no caminho reto e seguro das virtudes crists e da salvao eterna.9 Temos uma certa autonomizao no nvel discursivo entre os interesses geopolticos do Estado e os interesses da poltica missionria. Neste sentido, relativiza argumentos que buscavam apoio do Estado para eliminar a invaso protestante equiparando-a a uma ameaa estrangeira integridade territorial do pas. A perplexidade deste sacerdote carrega uma velada crtica aos mtodos dispendiosos e improdutivos, que mobiliza uma ampla engrenagem institucional, se comparados aos resultados obtidos pela ao isolada de uma pessoa, Sophie Muller, munida de poucos recursos financeiros, materiais e humanos. [...] Este mistrio torna-se ainda mais ttrico, quando a gente toma em considerao que os ndios do Iana eram os mais viciados em embriagues, roubos e desordens. Os dabucuris do Iana eram famosos at ao baixo Rio Negro. Tudo isso fez uma mulher que no deu aos ndios uma agulha sequer. Ora, ns tambm trabalhamos no Iana h bem seis anos, j gastamos centenas de contos, e agora a comisso que mandei para l constatou que os homens da mais ntima confiana e confidncia do Padre, que trabalharam meses e at anos com ele, so corifeus protestantes, que faziam escondidamente o culto protestante nos barraces da

no bebem, no trabalham, s tem uma roa para alimentao da famlia; o resto do tempo esto lendo e cantarolando. Os povoados e as casas so descuidados, serrados e sujos, a no ser o quarto de domir. [...] Deste modo, o crente aproxima-se mais da figura do renunciador, de uma atitude de acentuado afastamento dos assuntos mundanos, do que o catlico. 9 No final dos anos 60 a Misso do Iana volta a ser o principal foco de crticas ao modelo pastoral salesiano, baseadas na comparao com a eficaz ao missionria protestante. O diagnstico apresentado, em termos resumidos, o seguinte: ao limitada sede, enquanto o pastor percorre os assentamentos indgenas organizando-os em pequenos ncleos populacionais e formando agentes pastorais indgenas para evangelizar na lngua nativa, ministrar ensinamentos sanitrios e agrcolas; a Misso recebe vastos recursos governamentais e de organizaes internacionais, s beneficiando, contudo os ndios que se dirigem sede; desperdcio de remdios pois no so distribudos nos stios pelo interior; os rituais e costumes condenados tanto pelo padre quanto pelo pastor persistem entre os indgenas catlicos; a converso protestante sincera e profunda enquanto a catlica interessada e superficial. Este documento uma transcrio de um relatrio original sobre as Misses, no consta a autoria e a data (janeiro de 1968) foi acrescentada margem do texto. Parece que um documento mais extenso, uma avaliao interna, sobre a atividade missionria no Rio Negro, tendo sido transcrita a parte relativa Misso do Iana. 104

Misso, enquanto o Padre celebrava a Missa na capela. Quem compreende tudo isso? [...] (Ibidem). Todavia, no devemos exagerar tal suspenso das certezas salesianas, pois a necessidade da nova Misso justifica-se para [...] impedir que aquela gente se envenene, continuando a beber as guas ptridas dos erros protestantes (Ibidem). A metodologia missionria rival tinha seus mritos, mas os fins ltimos aos quais servia continuavam condenveis e ainda motivavam o infatigvel combate por parte dos sacerdotes catlicos. Um setor do arsenal de certezas inabalveis desta ordem eclesistica foi posto em dvida, transformado em objeto de debate em uma comunidade de argumentao restrita, formada pelos dirigentes das Misses. No ano seguinte, porm, 1956, o diretor da Misso de Assuno do Iana, Padre Jos Leo Schneider, investe pesadamente contra os abusos e desordens cometidos pela seita americana.10 A simbiose entre Catequese e Nacionalidade, Estado e Igreja, eixo da estrutura missionria hegemnica no Rio Negro, acionada para reconquistar um territrio perdido pelo poder salesiano no Iana. As condies materiais precrias definidas um ano antes pelo Padre Domitrovics como desapego ao bem estar material, indcio de uma vida completamente dedicada ao bem estar espiritual, torna-se fruto do fanatismo, concebido como deturpao mental, inoculado pelos pastores americanos11, produzindo nos Baniwa uma averso ao trabalho, contrria tanto sua condio indgena quanto sua genuna brasilidade. Os Banivas [sic, aspas do autor] so ndios inteligentes e conhecidos como intrpidos trabalhadores na agricultura, abastecendo, nos anos passados, todo o comrcio do alto rio Negro e os numerosos internatos das Misses
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Graves desordens nas fronteiras do Brasil. Padre Jos Leo Schneider. Assuno do Iana, 27 de janeiro de 1956. 11 Este associao entre misria e fanatismo recorrente nos documentos em que aparecem juzos depreciativos sobre as ms conseqncias da converso ao protestantismo no rio Iana e seus afluentes. Outro evento freqentemente citado a profanao de smbolos catlicos, principalmente o ato de pendurar medalhas com a imagem de santos em ces e gatos. Estes fatos presentes em vrios relatos nos faz perguntar se foram testemunhados diretamente por todos os narradores ou foram transcritos de um imaginrio catlico do terror protestante. Isto no significa que no tenham ocorrido e tenham sido comunicados por algum, mas sua facticidade foi sendo produzida pela enunciao repetida por autoridades catlicas (salesianos) e governamentais (Relatrio do Agente do SPI, Lino Alves de Oliveira, encaminhado ao Chefe da 1a I.R. do SPI, Alpio Edmundo Lage. Manaus, 05 de janeiro de 1954. No est assinado.), cujas descries so auto-evidentes, pois inseridas em discursos dotados de intocvel credibilidade. 105

Salesianas, com a farinha de mandioca, grandes peritos na extrao de produtos, na indstria caseira de tecidos de arum e de Tucum. Uma grande parte destes genunos brasileiros, batizados na religio catlica, ficaram vtimas de uma perniciosa seita protestante, americana, que transtornou a mentalidade dos mesmos, inoculando-lhes um louco fanatismo religioso, alheio a toda a brasilidade, afastando-os do trabalho produtivo e progressista [...] (Ibidem) Se os ndios antes eram conhecidos pelos seus vcios (embriagues, roubos e desordens), extirpados pela ao benigna de uma herica missionria, agora os ndios so descritos como ardorosos trabalhadores, valorosos colaboradores com o progresso econmico regional e a sustentao material das Misses. Sua contribuio como habilidosos extrativistas e produtores de farinha fundamental para o comrcio no Rio Negro no associada ao sistema do aviamento, cruel regime de submisso da fora de trabalho baseado no endividamento, mecanismo de troca que perpassa toda uma rede hierarquizada de relaes entre patres e fregueses. Violentados pela influncia maligna de uma seita estrangeira, so destitudos das virtudes caractersticas das suas tradies (simbolizadas aqui pelos seus dons artesanais) autctones e da sua autntica brasilidade, reforadas pela catequese catlica. A atuao missionria concebida como um instrumento para estimular e desenvolver o esprito cvico, existente em estado embrionrio na cultura indgena. Os pastores estrangeiros12 estariam minando o sucesso desta tarefa patritica ao disseminar o dio e o desprezo religio oficial do pas, trazendo caos social (inclusive propagando doenas como a tuberculose atravs das suas Conferncias, onde se planejava o assassinato dos padres e se formava um exrcito revolucionrio de ndios americanizados para expulsar definitivamente os salesianos do rio Iana), profanando smbolos catlicos e desrespeitando as autoridades nacionais, ameaando assim a soberania nacional nestas longnquas fronteiras do territrio brasileiro.13

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E muitos padres salesianos que atuavam no Rio Negro no eram estrangeiros, principalmente italianos? Em Tunu encontrei a bela imagem de Santo Antnio, padroeiro daquela povoao e do exrcito brasileiro, coberto de imundices e de barro; mais acima desta povoao, no rio Cuiari, andavam os cachorros com colares de medalhas de Nossa Senhora no pescoo, fatos que no s encheram o corao dos missionrios catlicos de profunda mgoa e tristeza, mas revoltaram a alma ntima de qualquer Brasileiro. [...] Os ndios seguidores desta seita se chamam, no brasileiros, mas americanos, tendo em pouca considerao as nossas autoridades [...] (Ibidem). 106

Em suma, transferido ao Estado brasileiro, atravs de suas autoridades civis e militares, a tarefa de remediar o duro golpe aplicado hegemonia salesiana no Rio Negro pela expanso protestante no rio Iana.14 Dom Pedro Massa alguns meses depois, em correspondncia enviada ao Ministro das Relaes Exteriores15, chega a afirmar no se tratar mais de uma questo religiosa, mas de soberania nacional. Alguns anos depois, 1960, o bispo solicita a expulso dos inimigos do Brasil ao Conselho de Segurana Nacional, denunciando: os conflitos gerados entre catlicos e crentes, as ameaas de invaso dos centros missionrios e de assassinato dos padres, a queima da bandeira nacional e um plano de anexao de toda a regio do Rio Negro, desde as suas cabeceiras, Amrica do Norte.16 Medidas de represso foram executadas em virtude de to graves denncias. Em uma Conferncia no povoado Pupunha-Rupit, em dezembro de 1960, por exemplo, pastores americanos foram presos por uma patrulha do Peloto de Fronteira de Cucu e levados Manaus para responder s acusaes feitas contra eles. Entretanto, oito meses depois o processo judicial foi arquivado e os pastores envolvidos retornaram ao alto Iana, passando a agir de forma mais cautelosa e discreta. Nos anos 60, segundo o Padre Galli, ocorreu uma certa decadncia da Misso devido a migrao de vrios indgenas, tanto catlicos como protestantes, para trabalhar nos piaabais da Colmbia e da Venezuela. No caso dos catlicos tal fato teria ocorrido por causa da mudana de atitude pastoral salesiana, supostamente inspirada no Conclio Vaticano II, que buscava uma unidade imediata com os protestantes e reprimia aqueles atos (embriagues, o fumo e as danas) antes tolerados. Por outro lado, como a Misso recusavase a fornecer as mercadorias aos indgenas, eles foram buscar outra fonte: os patres colombianos e venezuelanos. Quando retornavam aos seus stios j tinham retomado seu antigo modo de vida, renovando estas tristes antiguidades, pervertendo-se s antigas prticas pags, convivendo catlicos e protestantes neste estado primitivo de pecado.
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Tal apelo no era indito, pois Sophia Muller alguns anos antes recebeu ordem de priso das autoridades locais, por solicitao do Inspetor do SPI, refugiando-se na Colmbia e Venezuela, de onde continuou a atuar atravs de seus seguidores mais prximos e dedicados da povoao Curripaco de Seringa-Rupt, no alto Iana. Ela comeou a pregar na regio em 1945. 15 Correspondncia enviada pelo Bispo Prelado do Rio Negro, Dom Pedro Massa, ao Ministro das Relaes Exteriores, Embaixador Macedo Soares. Rio de Janeiro, 19 de maro de 1956. Este documento apresenta uma indicao manuscrita de outros dois destinatrios deste apelo do Bispo salesiano: para o Ministro da Guerra, Marechal Henrique Teixeira; e para o Ministro da Justia e Negcios Interiores, Dr. Nereu Ramos.

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Comenta com uma certa reprovao a m fama adquirida pelos Ianeiros nos piaabais venezuelanos e colombianos por fugirem sem pagar as dvidas contradas sob o regime de aviamento. Neste perodo, a Misso contava com apenas um padre residente, um externato e um ambulatrio na sede, seis capelas e seis escolas no interior (Iaucan e Assuno, no baixo Iana; Tapira-Ponta, no alto Iana; Loiro, Camaro, Uapu e Jerusalm, no Aiari). O total de alunos destas unidades escolares era de 197. A partir de 1974, um coadjutor e duas freiras, residentes em So Gabriel da Cachoeira, visitavam periodicamente os assentamentos indgenas. Completavam o quadro de recursos humanos disponveis: duas enfermeiras, dez professores e oito catequistas. Dispunha ainda de dois motores de popa (25 HP) e um de centro. Apesar da precariedade de recursos materiais e humanos, o Padre Galli estava otimista, principalmente com os mtodos da itinerncia que, devido ao amplo conhecimento dos povoados, das lnguas e costumes indgenas, possibilitava ao missionrio enxertar o Evangelho nas crenas bsicas conservadas pelos Baniwa. Todavia, a diferena das lnguas faladas no Iana (o baniwa e o nheengatu) dificulta a promoo de uma ao pastoral e litrgica unificada. Apesar do propalado respeito s culturas dos povos como eixo da renovao missionria a heterogeneidade cultural e tnica ainda pensada como um obstculo interveno eclesistica. O discurso do Padre Carlos Galli recheado de noes e categorias contraditrias do ponto de vista de uma concepo oficial de inculturao, mas que ele articula em um relato logicamente coerente na sua Crnica. Eu diria que tal procedimento bsico tambm da prtica salesiana nestes conturbados anos 70 e 80 no Rio Negro, quando setores da Igreja catlica procuram reformular seus postulados elementares de ao frente a um contexto amaznico em ritmo acelerado de transformao. Tal ambigidade encontra-se presente no modo como o Padre Afonso Casasnovas, ento diretor da Misso, representa o estado do campo religioso no Iana nos anos 80. Sua preocupao principal com a troca de religio e o abandono do cristianismo. Poderamos esperar uma reedio da tese jesuta sobre a alma inconstante do selvagem, entretanto ele compreende tais fenmenos sublinhando a profunda religiosidade dos Baniwa, que seria

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Correspondncia enviada pelo Bispo Prelado do Rio Negro, Dom Pedro Massa, ao Secretrio Geral do Conselho de Segurana Nacional, General Nelson de Melo. Dom Pedro Massa. Rio de Janeiro, 24 de outubro de 1960. 108

incompatvel com a idia do pluralismo religioso, dificultando assim a coexistncia entre os adeptos de credos diferentes. [...] O Baniva [sic] profundamente religioso, tudo o que faz tem um sentido religioso; ele no tem a dicotomia dos brancos: profano religioso. Por isso no comeo da pregao protestante houve vrios casos de morte por envenenamento. Como conviver no mesmo povoado, e pior ainda, na mesma famlia, ndios de religio diferente. Esta mesma incapacidade de conviver com a diferena explica as constantes mudanas de filiao religiosa observadas entre os Baniwa. Louvvel tentativa em entender as respostas dos Baniwa situao missionria vigente no Iana nos termos culturais deles. A hiptese da no dicotomia entre os planos profano e religioso interessante, porm est mal fundamentada. A religio est inserida nos assuntos prticos da vida cotidiana. A conseqncia que eles no concebem a religio como um campo social relativamente autnomo, cujo eixo a adeso voluntria e consciente a um sistema de crenas. A converso encarada pelos missionrios como um ato solitrio e definitivo mesmo quando abrange muitas pessoas considerado um agregado de decises isoladas de escolha e avaliao diante de mensagens transmitidas por porta-vozes autorizados da palavra de Deus. [...] Houve algum povoado que devido s discusses religiosas, se separaram e foram viver bem longe, no rio Negro, no stio chamado Ipad. Ali os encontrei no ambiente de caboclos, porm falando a sua lngua baniva e desfeitos religiosamente: nem crentes, nem catlicos, relembrando e querendo reviver a religio dos antigos. Ainda h uma relativa freqncia de troca de religio; as causas so vrias, mas a principal o casamento. O rapaz casa com uma moa de religio diferente e a leva a viver no seu povoado, onde so todos da religio do marido. Ipso fato a moa vira da religio do seu marido da sua nova comunidade. s vezes os catlicos vo visitar seus parentes crentes e ficam vrios meses no meio deles. Ali fazem

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culto todos os dias, repetindo sempre as mesmas coisas: os crentes somos melhores que os catlicos porque no bebemos, no fumamos nem danamos, ns j estamos salvos; e assim vo fazendo um lavado cerebral at que o catlico se batiza pelo ancio (chefe religioso), seu parente [grifos SCP]. H tambm vrios crentes que viraram catlicos ou ficaram sem nenhuma religio por discusses que costumam fazer nas suas reunies: conferencias, santa ceia; ficam com medo de envenenamento e abandonam povoado e religio [aspas do autor]. Esta perspectiva implica tambm a possibilidade de algum ser vtima de propaganda enganosa, ou seja, ser influenciado pela habilidade oratria, pela competncia retrica de falsos profetas. Neste caso, a deliberao no orientada pelo uso da razo, que permite detectar as verdades imanentes pregao autenticamente crist, genuna evangelizao, pois a conscincia confundida com argumentos falaciosos, elaborados com o objetivo de levar ao erro, ao engano.17 Na interpretao salesiana acima apresentada, apesar de oferecer alguns indcios das teia de relaes sociais nas quais ocorrem as mudanas de religio ou abandono do cristianismo, o foco se dirige para o uso de supostas tcnicas de manipulao mental (da conscincia e da vontade) baseadas na repetio intensa dos mesmos enunciados que vo minando gradativamente a capacidade reflexiva do indivduo e criando automatismos de conduta e de pensamento. O que o prprio relato do salesiano aponta, entretanto, que a profunda religiosidade Baniwa est estritamente conectada s redes sociais relevantes (como aquelas formadas pelo parentesco exogamia e patrilocalidade), com sua dinmica e estruturas simblicas inerentes (como o xamanismo), cuja lgica preside as tomadas de deciso frente aos cristianismos disponveis na regio. Os padres de relacionamento que sustentam a sociabilidade no podem ser ameaados por divergncias religiosas agudas, quando isto acontece a comunidade se desfaz, pois quando os conflitos so acirrados a possibilidade de envenenamentos e feitios se acentuam. Diante desta complexa situao, qualificada atravs da freqente troca de religio, os salesianos decidem incentivar uma convivncia pacfica com os protestantes, em vez de convert-los estimular a vivncia autntica da religio entre os catlicos. Buscavam,

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portanto, intensificar sua ao pastoral entre os prprios catlicos em lugar de ampliar sua rea de atuao em direo aos crentes. Seria mais adequado criar meios de impedir a transferncia de catlicos para o protestantismo e esperar que o fluxo de protestantes para o catolicismo seguisse o curso normal ou esperado, caracterstico do quadro acima delineado de determinao da religiosidade local. Deste modo, a avaliao de uma situao especfica do campo religioso no Iana tornava ainda mais necessrio e urgente implementar a nova orientao pastoral preconizada para o Rio Negro como um todo: a inculturao. A dificuldade que sentimos como apresentar a mensagem libertadora da Boa Nova para que possam entende-la e eles mesmos confrontar seus valores atravs do prima da mensagem de Cristo. Eles tm direito a receber a Palavra em suas categorias mentais para que possam viver comunitariamente a f em seus prprios contextos culturais, por isso sentimos a necessidade do leigo ndio na evangelizao. Estamos sempre estudando a sua cultura atravs da lngua, das lendas, da mitologia, do contato pessoal. Acreditamos que so eles, os banivas, que nos vo dar a sua liturgia e o modo de transmitir e viver a mensagem libertadora do Cristo que vive encarnado na sua cultura. Se os valores universais do cristianismo esto presentes em todas as culturas, preciso entender as categorias atravs da qual cada povo confere um contedo particular a esses valores e assim descobrir os meios mais adequados de faz-los vivenciar a f verdadeira nos seus prprios termos. Neste sentido o Evangelho no est preso nem a servio de qualquer cultura ou civilizao, por isso ope-se a qualquer projeto de dominao cultural, a qualquer poltica etnocida. O fermento do Evangelho, penetrando na cultura, no a destri, mas a purifica, a eleva, pois o pecado tambm existe em qualquer cultura. Esse novo missionrio deve ter a capacidade de perceber (contemplar, escutar, sentir) a forma singular em que Deus se faz presente em uma determinada sociedade. Em vez de privilegiar a fala, transmitindo mensagens em uma linguagem imposta, deve estar
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Isto vale tambm, guardadas as devidas diferenas, para uma interpretao equivocada dos processos de

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aberto para novas possibilidades de traduo da Boa Nova aprendendo os cdigos nativos de apreenso do mundo. Para tanto confere valor estratgico capacitao de agentes pastorais indgenas, os catequistas, enquanto elemento que permite esse canal de dilogo entre os mundos cristo e indgena; pea indispensvel desta nova engrenagem missionria. O Padre Afonso Casasnovas atribui mais importncia aos cursos de formao de catequistas do que aos Conselhos Paroquias (reunio em que so programadas e avaliadas as atividades da parquia) e as Itinerncias (visitas dos padres e irms aos povoados para ministrar os sacramentos e estimular o associativismo para realizar atividades religiosas e comunitrias) como meios de aumentar a participao dos leigos na vida paroquial e resolver os problemas de evangelizao. Os salesianos estabeleceram um campo de mediao cujas repercusses foram profundas nos processos de construo social e simblica da etnicidade no Rio Negro. Um fluxo constante de mensagens e imagens atravessou as interaes entre ndios e missionrios, e neste trnsito significados foram elaborados e re-elaborados. A cultura tornou-se objeto de interveno calculada, de esforos deliberados e planejados de ao religiosa. Do ponto de vista catlico, durante muitas dcadas deste sculo, ela concebida como um substrato espiritual maligno, um instrumento diablico para escravizar a alma indgena ao reino do pecado, assim como seu corpo ao reino da escassez e da misria. Com a razo assim embaada a nica chance de libertao dos silvcolas atravs da prtica educativa-evangelizadora crist, porm primeiro necessrio eliminar este terrvel obstculo. Tal reificao da cultura relaciona-se utilizao da estratgia multissecular na Amrica Latina de combate s imagens pags, a ofensiva iconoclasta aos dolos nativos, s formas materiais (objetos, edificaes, etc.) de adorao de divindades oriundas das artimanhas demonacas para levar a uma falsa concepo do sagrado.18 As idolatrias mais difceis de confrontar como as imagens imateriais subjacentes aos sonhos, mitos, vises provocadas pela ingesto de plantas alucingenas, ao mundo dos encantados e espritos da floresta, enfim, da prtica da pajelana, ficaram ao abrigo de tais ataques catlicos. claro que o imaginrio indgena rio negrino foi alterado, pois o principal cenrio de sua reproduo social foi eliminado, a maloca, mas os smbolos, personagens e mensagens

deciso e modalidades de participao vigentes nas assemblias indgenas. 18 Kruzinski, 1988, 1992 e 2000. 112

catlicos sofreram deslizamentos semnticos ao serem reinterpretados segundo os cdigos das cosmologias rio negrinas.19 No Rio Negro uma incisiva e violenta poltica civilizatria foi acompanhada de uma conotao e eloqncia religiosa que no podem ser desprezadas para o seu entendimento. Junto com o sistema de subordinao da fora de trabalho extrativista atravs do aviamento a ao missionria salesiana constituiu uma fora importante na formao social intertnica regional. A imposio de uma identidade e territorialidade indgenas baseava-se na tutela de povos em vias de extino fsica ou cultural destino irreversvel, inevitvel cuja ocorrncia cabe ao Estado gerir para torn-lo menos traumtico provocado pelo advento do progresso e expanso da sociedade nacional. A misso salesiana era outra: retirar os ndios das garras de satans e conseqentemente do estado de atraso civilizacional no qual encontravam-se presos, afastando-os da comunho nacional; transformar aqueles filhos da selva em filhos de Deus e da Ptria. Formar bons cristos para Deus e bons cidados para a Ptria eram duas faces de uma tarefa de converso tanto religiosa quanto cvica. Poderamos falar de uma tutela eclesistica, em comparao a uma tutela estatal, devido ao seu carter autoritrio e paternalista, cuja singularidade estaria no seu repertrio articulado de valores, traduzido em uma determinada ossatura poltico-administrativa, cujo pilar principal era o internato. O lado negativo foi quando os padres chegaram condenando tudo que era tradio, festas indgenas; o dabucuri, as danas tradicionais, as festas, o folclore como um todo. Eles condenaram dizendo: Isto a coisa do demnio, coisa de satans. Teve alguns padres que chegaram l quebrando os potes de caxiri, quebrando os instrumentos musicais... Tentaram transformar o ndio da noite para o dia em um ser branco, em um cristo santo. Que na realidade nem o prprio padre que estava chegando era santo. Os ndios ficaram com medo, automaticamente subalternos, em todos os sentidos, e comearam a fazer tudo que o padre determinava. De repente o padre chega l invade no s o territrio, como a vida da integridade da tradio e dos costumes dos ndios. Ento, o que o padre
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Taussig (1993) mostra as incorporaes de smbolos cristos ou do imaginrio colonial , e seus novos significados, nas vises provocadas nas sees de cura xamnica nos Andes colombianos e tambm no processo histrico de construo da identidade tnica ligado ao culto de santos catlicos. 113

falava era lei. At hoje tem muitos que o padre falou, amm. Ainda bem que hoje isto est j sendo superado. No incio foi isso: a igreja destruiu ns todos, destruiu as tradies indgena. (Pedro Machado, entrevista. So Gabriel da Cachoeira, 18/10/2001).20 Em primeiro lugar, na tutela estatal o progresso encarado de uma perspectiva moralmente neutra: fato irremedivel, baseado em uma lgica universal e abstrata, ao qual se deve controlar, aproveitando os efeitos benficos e reduzindo os nocivos. No universo simblico do indigenismo tutelar de Estado tal imparcialidade valorativa pode oscilar para uma aprovao ou recusa do progresso, mas sempre a partir de uma tica na qual a modernidade vista como um fenmeno homogneo, unilinear e unvoco. Na tutela eclesistica o progresso visto positivamente como um destino concomitante preparao da entrada no Paraso, convergindo os objetivos estratgicos de ampliao das fronteiras da nacionalidade brasileira e da cristandade catlica. O progresso no inevitvel nem irreversvel, deve ser construdo herica e corajosamente, atravs dos recursos cristos de salvao da alma, para romper as fortes amarras malignas que submetem os ndios ao reino do pecado e do atraso civilizatrio. A indianidade um obstculo tanto para a elevao espiritual quanto para a promoo humana. Em tal conscincia reflexiva da cultura a ancestralidade indgena concebida como uma condio relegada a um passado irrecupervel e superado definitivamente, identificado com atraso, selvageria e misria; enfim, um estigma a ser apagado, uma carga da qual todos querem se livrar. Ns vimos como esta concepo gerou resistncia ou uma adeso hesitante, relativamente distanciada, s iniciativas dos padres no sentido de implementar a inculturao. Os salesianos foram acusados de tentar jog-los novamente em uma situao de precariedade material, impedindo-os de usufruir os benefcios trazidos pelo progresso, e desrespeitarem as tradies dos antigos deturpando-as e transformando-as em brincadeira. O campo de mediao missionria no Rio Negro no ficou inclume s transformaes da Igreja catlica latino-americana aps o Conclio Vaticano II. O progresso passou a ser identificado com um imenso obstculo busca do Reino de Deus,
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Pedro Machado foi um dos fundadores da Unio das Comunidades Indgenas do Rio Tiqui (UCIRT) e foi um personagem importante no processo de surgimento da Federao das Organizaes Indgenas do Rio Negro (FOIRN). 114

estimulando o materialismo e o egosmo, gerando misria e excluso social. Tais feridas abertas na convivncia humana pelo capitalismo se traduziam no Rio Negro pela predominncia dos interesses do capital estrangeiro e nos projetos desenvolvimentistas implantados ou projetados pelo Estado brasileiro. Tal situao levou os ndios a menosprezarem suas autnticas tradies, portadora de princpios cristos universais, e a assimilar ingenuamente crenas e comportamentos externos. Caberia, portanto, descortinar a realidade encoberta pela ideologia desenvolvimentista. O discurso missionrio incorpora a retrica de defesa dos direitos humanos, situando os povos indgenas na categoria dos oprimidos. O etnocdio foi definido simultaneamente como crime contra a humanidade, um atentado ao direito internacional, e como pecado, uma ofensa s leis e vontade divina. Indianidade e cristianismo aliam-se para promover a libertao integral (social, cultural, poltica, econmica e religiosa) do homem neste recanto amaznico. A adoo destas novas bases teolgicas implicou um esforo de reformulao na estrutura organizacional da prtica pastoral: itinerncias, assemblias e conselhos paroquiais, criao de diversas categorias de agentes pastorais, implantao de escolas e capelas nos povoados, clube de mes, comunidade eclesiais de base, projetos de desenvolvimento, etc. Todavia, isto no significou o desaparecimento total da mentalidade pastoral anterior, pois os internatos continuaram sendo considerados uma fbrica maravilhosa de bons costumes e de virtudes crists, onde o uso das lnguas indgenas era proibido aos alunos.21 Vimos tambm como estas mudanas foram entendidas para solucionar os problemas especficos da bacia do Iana, onde os salesianos no detinham o monoplio do controle dos bens de salvao. Segundo o ponto de vista dos sacerdotes catlicos a profunda religiosidade dos Baniwa explicava as suas constantes trocas e abandonos de religio. A nova metodologia pastoral conteria o fluxo de catlicos para o protestantismo e seria favorecida pelo fluxo em direo inversa, dispensando assim tentativas incuas de converso dos crentes. Mesmo antes do Conclio Vaticano II, alguns salesianos da Misso de Assuno do Iana fizeram algumas autocrticas diante do sucesso maior dos pastores protestantes em vez de simplesmente

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Tal experincia, por outro lado, foi marcante na vida de vrios militantes indgenas e o conhecimento adquirido nos internatos, principalmente o aprendizado da lngua portuguesa, reconhecido como elemento importante para sua capacitao como lderes, para o exerccio da mediao entre universos simblicos diferentes. 115

pedirem a interveno do Estado brasileiro, alardeando uma temvel ameaa segurana nacional, para reprimir a atuao deles. A mudana nos rumos da ao missionria visava tambm um maior controle eclesistico do catolicismo indgena. Da toda a concentrao das atenes para a educao e formao religiosa dos leigos, agora no mais s na sede da misso, mas em toda a parquia. Esta nova proposta teolgica, cujo eixo a inculturao, pretende fazer convergir mais os interesses e prticas religiosas do clero e dos indgenas, diminuir os rudos na comunicao entre eles e a tenso constitutiva da prpria tutela eclesistica.22 Os salesianos admitiram a necessidade de conhecerem a cosmologia indgena para intervir melhor no modo como o catolicismo era compreendido e atualizado pelos ndios, gerando novos conflitos. Proclamaram a autenticidade da religio popular, depositria da criatividade do povo, mas discriminaram nela aspectos positivos e negativos, pois fruto do subdesenvolvimento e como toda cultura portadora do bem e do mal, do pecado e da virtude. Sendo assim, no hesitaram em propor modelos de vida religiosa e comunitria enquanto prtica libertadora crist. Se muitos ingredientes desta receita no perduraram at hoje (catequistas, clubes de mes, ministros de eucaristia, etc.), o desenho formal de organizao dos assentamentos indgenas em comunidades cujo eixo a capela, a escola e o centro social persistiu. Passamos de uma atitude iconoclasta para uma postura iconosfica, de defesa das imagens indgenas e sua introduo na liturgia catlica. A inculturao focalizava principalmente a dimenso mais tangvel do imaginrio nativo (peas artesanais, instrumentos musicais, cantos, danas, lngua, etc.), isolados do contexto histrico e do campo semntico complexo de significao de objetos e comportamentos, selecionados para servir como cones de ancestralidade e alteridade. Os ndios foram conclamados pelos salesianos a participarem da elaborao destes signos de autenticidade tnica em espaos catlicos de interlocuo (assemblias paroquiais, encontros e cursos de lideranas pastorais leigas, etc.). Elementos da memria inscrita na conscincia prtica (mtica e
Esta tenso, ou complementaridade contraditria para Maus (1999), entre sacerdotes e leigos, constitutiva da prpria essncia do catolicismo. Este o parodoxo da tutela eclesistica, para se reproduzir ela oscila entre uma interveno reformadora, muitas vezes violenta e repressora, da conduta religiosa dos leigos (baseada na devoo aos santos, no ldico e na troca, qualificada algumas vezes pela cpula eclesistica catlica como idolatria), e uma postura mais tolerante. A teologia da libertao pode ser compreendida nesta
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histrica), como o xamanismo e as festas em homenagem aos santos padroeiros dos povoados, foram relegados para uma zona de penumbra religiosa ou tornaram-se objetos de ataque pastoral. A cultura indgena a ser resgatada e preservada situa-se dentro da agenda e da linguagem missionrias e no remete a um programa autnomo e secular de reinveno de tradies, a um conjunto relativamente articulado de polticas tnicas, mas vai conduzir a ele em uma determinada conjuntura histrica.23 Em um primeiro momento, se formou um contexto de fortes presses sobre os recursos naturais e acesso a terra no Alto Rio Negro, monitorado e estimulado pelo Estado brasileiro atravs da militarizao do espao social e geogrfico, em conjuno insero da regio na agenda de um movimento indgena a nvel nacional ainda bastante marcado por uma orientao verticalizada e centralizadora. Num segundo momento, a Constituio Federal de 1988 que forneceu um quadro jurdico-legal favorvel para a organizao do movimento indgena em bases mais horizontais e descentralizadas ao lado da visibilidade nas esferas pblicas transnacionais alcanada pelas demandas e direitos indgenas principalmente a partir do seu vnculo s preocupaes com a crise ecolgica planetria forneceram o quadro propcio para a proliferao do associativismo indgena no Rio Negro. Temos assim a confluncia de processos que remetem a diversas escalas espao-temporais. A relao entre as misses salesianas e o movimento indgena no Rio Negro no a de uma causalidade conscientemente planejada pelos agentes religiosos, mas de convergncia imprevista pelos sujeitos entre o esforo de reforma pastoral e o surgimento de uma conscincia reflexiva da etnicidade. Mudanas ocorridas na Igreja catlica nos planos mundial, continental e nacional (Conclio Vaticano II, Puebla e Teologia da Libertao, criao do CIMI), rumo a uma evangelizao politicamente engajada em favor dos excludos e marginalizados, sintetizada pelo termo opo pelos pobres, (que pressupunha um modelo de mobilizao social para promoo humana), deu nova orientao para estmulos religiosos j existentes que colocavam a cultura como objeto de
lgica de reproduo social do catolicismo que assimila religiosidades desviantes da ortodoxia em comparao a uma maior inflexibilidade do protestantismo, mais propcio segmentao. 23 Os milenarismos indgenas ocorridos no Rio Negro durante o sculo XIX constituram-se como movimentos contrrios ao controle dos sacerdotes sobre os instrumentos de salvao catlicos, implicaram o uso e redefinio dos significados do imaginrio cristo e uma conscincia reflexiva da etnicidade baseada na inverso do poder colonial dos brancos e na defesa das tradies. O contexto histrico ao qual nos referimos, entre outras diferenas, remete iniciativa dos sacerdotes catlicos com as suas ambigidades e lacunas j mencionadas no sentido da reformulao do controle eclesistico sobre o catolicismo indgena. 117

poltica missionria, chamando os indgenas a participarem do debate pblico sobre sua prpria cultura e sobre as relaes intertnicas nas quais estavam inseridos.

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PARTE II. O MOVIMENTO INDGENA NO RIO NEGRO: A FOIRN E A LUTA POR UMA CIDADANIA DIFERENCIADA. CAPTULO V. A UCIRT, O GARIMPO E AS MINERADORAS. O Alto Rio Negro delimitado a oeste e norte pelas fronteiras com a Colmbia e Venezuela, leste pelo curso superior do rio Negro e ao sul pelo rio Curicuriari. habitada por vrios grupos indgenas pertencentes s famlias lingsticas. Aruak, Tukano e Maku, quais sejam: Tukano, Bar, Tuyuka, Desana, Arapao, Kubeo, Pira-tapuia, Barasana, Werekena, Miriti-Tapuia, Wanana, Karapan, Baniwa, Bar, Tariana, kuripaco, MakuHupda, Maku-Yuhupde (ISA, 1996). Totalizam mais de 30.000 indivduos, distribudos em 433 povoados (comunidades e stios) e na cidade de So Gabriel da Cachoeira, sede do municpio de mesmo nome. H 66 comunidades, localizadas na margem esquerda do alto rio Negro, que esto fora da Terra Indgena Alto Rio Negro, homologada em 1998. Os povos falantes de lnguas Tukano Oriental concentram-se nas bacias hidrogrficas dos rios Vaups (ou Caiari), Tiqui e Papuri1; enquanto os falantes de lnguas Aruak (Baniwa, Kuripako, Werekena e Bar) localizam-se nas bacias dos rios Iana, Xi, Aiari2, Cubate e alto rio Negro3; com exceo dos Tariana. Estes residem predominantemente em comunidades e stios no mdio Vaups, baixo Papuri e algumas famlias no alto Aiari. A populao indgena da bacia do Vaups (incluindo os rios Tiqui e Papuri, seus afluentes, e demais igaraps), distribuda em 200 povoados, majoritariamente Tukano, cuja lngua, junto com o portugus, a mais falada. Alguns grupos tnicos no falam mais a sua lngua de origem ou apenas algumas famlias ainda a preservam, enquanto que outros usam o tukano apenas como lngua franca, como os Hupda, por exemplo. So predominantemente Baniwa e Kuripaco os 93 povoados dos rios Iana, Aiari e Cubate. Os assentamentos no rio Xi e no alto rio Negro so majoritariamente Werequena e Bar,
No interflvio destes rios encontram-se os Hupda e Yuhupde, povos da famlia lingstica Maku. No alto Aiari encontram-se tambm alguns Kubeo, povo da famlia lingstica Tukano. Entretanto, assim como os povos Aruak, a exogamia ocorre entre os conjuntos de sibs ou fratrias e no com outros grupos lingsticos. 3 Utilizo letras maisculas para designar a regio, que inclui as bacias hidrogrficas dos principais afluentes, o Vaups e o Iana, e letras minsculas para designar apenas o alto curso do rio, montante de So Gabriel da Cachoeira. Isto vale tambm para o Rio Negro como a regio da bacia hidrogrfica e rio Negro como o rio que cruza o noroeste Amaznico. Vide no final do captulo o mapa do Alto e Mdio Rio Negro.
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respectivamente, e totalizam 140 povoados. Algumas famlias Tukano e Desana, unidas por laos matrimoniais, fixaram-se nas margens da rodovia que liga So Gabriel da Cachoeira a Cucu, na Terra Indgena Balaio, ainda em fase de demarcao. No Iana e no Aiari fala-se tanto o baniwa quanto o nheengatu ou lngua geral, no Xi falam-se o werequena e o nheengatu, e no alto rio Negro fala-se proponderantemente o nheengatu. Em todos esses rios o portugus tambm falado. Os Bar abandonaram sua lngua de origem e atualmente falam o nheengatu e o portugus (Cabalzar Filho & Ricardo, 1998). O Mdio Rio Negro localiza-se jusante da cidade de So Gabriel da Cachoeira, passando pela cidade de Santa Izabel do Rio Negro/AM, abrangendo os dois municpios de mesmo nome, at as bocas dos rios Jurubaxi e Padauiri, na margem esquerda e direita do rio Negro, respectivamente. Os grupos indgenas que habitam esta regio pertencem a quatro famlias lingsticas: Aruak, Tucano, Maku e Yanomami4. Quase a totalidade da populao indgena, e est distribuda em 299 povoados e na cidade de Santa Isabel do Rio Negro, sede municipal do municpio de mesmo nome. Um contingente expressivo desta populao oriundo do Alto Rio Negro (rios Iana, Vaups e Xi). Segundo a antroploga Ana Gita de Oliveira (1995), esta migrao teria ocorrido para fugirem dos comerciantes brancos (colombianos e brasileiros) e dos missionrios; por causa de disputas territoriais entre os povos Aruak e Tukano, e porque procuravam terras mais frteis e guas mais piscosas. As lnguas mais faladas so o tukano, o nheengatu ou lngua geral5 e o portugus. Os grupos tnicos majoritrios so os Tukano, Bar e Baniwa. Os Maku constituem uma parcela mnima da populao indgena e s existe um nico grupo lingustico no Mdio Rio Negro, os Dw. Em 1998 foram homologadas as T.I. Rio Apaporis, T.I. Rio Ta, T.I. Mdio Rio Negro I e T.I. Mdio Rio Negro II. A extenso total delas de 26.110 km2 ou 2.611.157 ha, que abrange uma populao de 2.860 indgenas. Entretanto, no foram atendidas as demandas territoriais de muitas comunidades e stios indgenas localizados nas circunvizinhanas da cidade de Santa Isabel. Os povos Aruak e Tukano vivem nas margens dos grandes rios ou afluentes, em assentamentos permanentes que vo desde stios familiares at comunidades compostas de
Os Yanomami vivem em aldeias na T.I. Yanomami, homologada em 1992. Uma parte desta terra indgena situa-se ao norte dos municpios de So Gabriel da Cachoeira, Santa Isabel do Rio Negro e Barcelos. A outra parte da sua extenso territorial est no estado de Roraima. 5 Forma adaptada do tupi-guarani, gramatizada e difundida pelos missionrios para lidar com uma diversidade linguistica constituda por vrios dialetos indgenas existentes no Rio Negro.
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vrias famlias. A atividade econmica principal destes povos a agricultura, complementada pela pesca, a caa e a coleta. Os Maku habitam nas florestas interfluviais, em pequenos assentamentos temporrios, e so caadores e coletores seminmades. Os padres de descendncia, casamento e residncia dos Tukano e Aruak baseiam-se na patrilinearidade, na exogamia e na patrilocalidade, respectivamente. Contudo, a organizao social Tukano estrutura-se pela exogamia entre grupos lingsticos, enquanto entre os Aruak a exogamia regula as trocas entre as fratrias, conjuntos de sibs classificados como irmos. Grupos lingsticos e fratrias dividem-se em sibs, classificados hierarquicamente segundo a ordem de emergncia dos seus ancestrais mticos. J as sociedades Maku caracterizam-se pela endogamia (os cnjuges pertencem ao mesmo grupo lingstico), associada residncia uxorilocal e descendncia colateral. Os Hupda e os Yuhupde, na bacia do Vaups, desenvolvem relaes de troca com os povos da famlia lingstica Tukano Oriental6, que os consideram irmos menores, categoria que pressupe obrigaes de obedincia e prestao de servios. O processo de ocupao do Rio Negro marcado, desde fins do sculo XVII at meados do XVIII, pela transferncia forada de populaes indgenas para perto dos centros coloniais (como Belm e So Lus) atravs das tropas de resgate, das guerras justas e dos descimentos. Militares e missionrios (jesutas e carmelitas) atuavam em prol dos interesses dos colonos em obter fora de trabalho atravs da escravizao indgena. O decrscimo do contingente populacional indgena decorreu no s por causa da escravizao, mas tambm das epidemias trazidas pelos brancos. Durante a segunda metade do sculo XVIII intensificaram-se os descimentos e foram estabelecidos assentamentos coloniais s margens do rio Negro, que foram defendidos por fortalezas, onde eram formados os antigos aldeamentos missionrios; como Airo, Moura, Carvoeiro, Tomar, Barcelos, So Gabriel da Cachoeira, Marabitanas, Cucu. No sculo XIX, muitas comunidades dos rios Uaups, Iana, e Xi foram despovoadas. A prtica de captura de ndios no alto rio Negro para explorar a sua fora de trabalho nos seringais localizados jusante contou com a colaborao dos missionrios capuchinhos, carmelitas e franciscanos. O governo imperial apoiou a atuao missionria tambm para conter os movimentos

Caam e trabalham nas suas roas para adquirir produtos cultivados e beneficiados, especialmente derivados de mandioca (farinha, beiju, tapioca, etc.), assim como bens civilizados (fumo, fsforo, roupas, rede, etc.).

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milenaristas indgenas freqentes no Alto Rio Negro, durante a segunda metade do sculo XIX.7 No sculo XX este retrato no mudou muito. Alm da continuidade do deslocamento forado de populao indgena do alto rio Negro, os regates trouxeram a violncia do trabalho compulsrio aos seringais, piaabais e balatais do Baixo Rio Negro, atravs do sistema de aviamento (Meira, 1991). Todavia, a agncia de contato mais importante na primeira metade do sculo XX foi a Misso Salesiana.8 A ao indigenista direta do Estado na regio foi muito limitada frente poderosa concorrncia missionria. Nos anos 20 deste sculo, o Servio de Proteo aos ndios foi instalado a partir dos objetivos geopolticos de integrao nacional desta rea de fronteira. Suas tarefas eram controlar o trfico de mo de obra indgena, os conflitos envolvendo as atividades de comerciantes colombianos no Brasil e monitoramento das atividades catequticas. Por isso o foco de atuao escolhido foi o Vaups e seu afluente Papuri. Os salesianos tambm incorporaram o discurso estatal de civilizao ou nacionalizao das fronteiras para legitimar a sua presena. Sendo assim, eles atribuam para si as seguintes tarefas: saneamento rural, ensino elementar e agrcola, assim como melhorar as possibilidades de comunicao com o pas. Nos anos 1930 e 1940 os funcionrios do SPI denunciaram os missionrios de serem cmplices dos comerciantes colombianos ou de explorarem diretamente os ndios. Nos anos 50, perodo do segundo ciclo da borracha, a ajudncia de Yauaret foi transferida para o Vaups, o SPI assumiu o controle da produo indgena e toda a rea ocupada pelos ndios foi considerada limite internacional (Oliveira, 1995). Porm, os Salesianos confirmaram o seu monoplio de atuao indigenista, quando em meados desta dcada a estrutura indigenista oficial consideravelmente reduzida. Nos anos 60, mais especificamente aps o Golpe Militar de 64, o Estado Brasileiro acionou uma outra estratgia de territorializao da soberania nacional no Rio Negro: cria a Reserva Florestal do Rio Negro, que cobria toda a extenso do municpio de So Gabriel da Cachoeira e constitua um enorme reservatrio de recursos naturais para futura explorao econmica. Este expediente ser reeditado e adaptado em outro contexto histrico: aquele de implantao do PCN e reduo de reas indgenas, nos anos 80. Ainda no era o tempo
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Para uma anlise antropolgica do profetismo indgena no Alto Rio Negro neste perodo, vide: Wright, 1986; Wright & Hill, 1988 e Wright, 1992. 8 Vide o captulo anterior.

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dos movimentos de identidade indgena, baseados na conquista e defesa de demandas territoriais particularistas, a partir de uma linguagem universalista de direitos, ou seja, modelados pela noo de cidadania global. Este campo discursivo comeou a se formar no fim dos anos 60, a nvel mundial, e em meados dos anos 80, no Rio Negro, com o aumento das presses sobre a terra e seus recursos naturais e com a autonomizao e secularizao do projeto etnopoltico indgena frente tutela salesiana. A construo da Perimetral Norte (BR-307), que atravessaria a reserva florestal, intensificou a presena de agncias estatais e do contingente militar no Alto Rio Negro. A rede indigenista oficial recebeu um novo impulso com a reativao dos postos indgenas do antigo SPI pela Fundao Nacional do ndio (FUNAI)9. A possibilidade de trabalhar na construo da rodovia e adquirir um lote a ser distribudo pelo INCRA ao longo da BR307, ocasionou um enorme fluxo de migrantes nordestinos (oriundos do Cear e Maranho). Os deslocamentos populacionais no Rio Negro tambm incluram os ndios, principalmente rumo a So Gabriel da Cachoeira, que se tornou um ponto regional de convergncia das atividades econmicas e das possibilidades de acesso a servios pblicos.10 [...] Em junho de 1973 chegaram aqui as empresas para construir a grande rodovia Perimetral Norte. Chegaram aqui as empresas... O 1o Batalho de Engenharia e Construo veio carregando todo o pessoal, militares e civis, Queiroz Galvo, uma empresa construtora, Empresa Tcnica Industrial/EIT, DNER, LASA, e outras empresas, aqui encheu de gente, principalmente de homens. So Gabriel no suportou, estufou. A regio enfrentou e viu a mudana no comportamento social. Ento as meninas daqui no queriam nada com os jovens indgenas, s com os de fora. Foi horrvel! Foi quando as jovens comearam a engravidar pra c e pra l. [...] (Pedro Machado, entrevista. Op. cit.).

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Substituiu o SPI, quando este foi extinto em 1967. A migrao de famlias indgenas das comunidades e stios para a sede municipal ocorreu tambm por causa do fechamento dos internatos salesianos a partir do final dos anos 70. Estabelecer moradia em So Gabriel tornou-se necessrio a fim de viabilizar a continuidade dos estudos para os filhos.

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A construo de uma estrada envolvia a implantao de toda uma infra-estrutura na qual estavam estreitamente ligados rgos governamentais e empresas privadas de construo, alm de unidades tcnicas (engenharia) das foras armadas, e programas de colonizao agrria. Este tipo de interveno caracteriza-se por um alto grau de autoritarismo, pois ignora as necessidades e demandas das populaes locais. Ao ser planejado segundo objetivos estranhos e concepes arbitrrias sobre os benefcios gerados, no considera os possveis efeitos nocivos provocados. Era uma grande operao de ocupao que unia as preocupaes com o desenvolvimento e a segurana nacional, caractersticas dos projetos da ditadura militar para a Amaznia. Este foi um primeiro momento de militarizao do Alto Rio Negro, isto , de imposio de um controle direto do Estado sobre o espao social e geogrfico regional, concorrente ao controle eclesistico ainda predominante. No alcanou o sucesso esperado, a rodovia no foi concluda, mas proporcionou algumas novas oportunidades de emprego e gerao de renda. Tais ocupaes no remetem a atividades que produzam benefcios para as comunidades indgenas, mas a uma insero individualizada nos fluxos materiais e simblicos da modernidade. Lembremos que a tutela eclesistica equiparou a ancestralidade indgena como um estgio humano a ultrapassar (como atraso, selvageria e misria) e no qual os ndios estavam encarcerados devido sua cultura inerentemente pecaminosa. De certa maneira os salesianos incentivaram a demanda de bens materiais e simblicos da modernidade, dificultando como j vimos a sua proposta pastoral posterior baseada na idia de inculturao. Cabe salientar no depoimento acima o destaque chegada macia de estranhos, principalmente do sexo masculino, na cidade, provocando escassez na oferta de potenciais parceiras conjugais devido a mudanas no comportamento social vigente. Enquanto para os homens indgenas a perspectiva de ascenso social naquele contexto intertnico estava no aumento da oferta de possibilidades de obteno de renda monetria para as mulheres era o aumento na oferta de futuros cnjuges, surgimento de um novo grupo de afins potenciais. So duas estratgias distintas de insero no mundo civilizado. Para as mulheres o casamento sempre significou a entrada em um universo de alteridade (relativa) devido combinao entre exogamia e patrilocalidade. A biografia de personagens importantes da histria do movimento indgena no Rio Negro remete a tais deslocamentos em busca de ascenso social ou de uma qualidade

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melhor de vida, associada s condies mais favorveis de acesso modernidade (mercadorias, moradia, equipamentos e servios pblicos).11 Brs Frana, ex-presidente da FOIRN (1990-1996), trabalhou entre 1974 e 1978 na construo da Perimetral Norte. Ele j tinha experincia no ramo da construo civil, pois participou da construo da estrada Manaus-Caracara, que atravessa as terras dos Waimiri-Atroari, atualmente j regularizada. Era uma obra tambm includa nos planos governamentais de integrao nacional da Amaznia e executada pelo 6o Batalho de Engenharia e Construo (BEC). Eram os anos do governo Mdici e do milagre econmico no qual a FUNAI, subordinada ao Ministrio do Interior, estava encarregada de liberar terras para a implantao dos projetos desenvolvimentistas. Os povos indgenas representavam um empecilho marcha inexorvel do progresso naqueles confins atrasados do pas. Logo, o cenrio intertnico constitudo em torno da implantao desta rodovia no Baixo Rio Negro era extremamente conflituoso. [...] A eu fui para a linha de frente, fui anotar a produo na linha de frente onde os tratores comeam a derrubar paus para a fotografia entrar e planejar a estrada. Por que era quente, ns estvamos muito prximos da regio dos [Waimiri] Atroari, no quilmetro 140, faltava 60 Km para a serra dos ndios l. Ningum queria ir para l porque os ndios estavam ameaando [...] [grifos SCP] (Brs de Oliveira Frana, entrevista. So Gabriel da Cachoeira, 30/10/2000). Migrou no final dos anos 60 para Manaus, onde se dedicou a ocupaes mal remuneradas at conseguir o emprego no 6o BEC. Seu grau de escolaridade (ginsio incompleto) constituiu um recurso que o colocou em situao vantajosa no processo de recrutamento de trabalhadores. O cargo ao qual foi admitido (anotador de campo) exigia um certo grau de instruo. Aprendeu a dirigir trator e a funo de operador de mquinas. Em 1974 pediu demisso e retornou a So Gabriel da Cachoeira, trabalhando na construo da Perimetral Norte. Em 1978, Brs Frana decidiu continuar sua aventura como operrio annimo das grandes obras de engenharia patrocinadas pelo Estado brasileiro.
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Como veremos adiante, no caso da migrao para Barcelos, a cidade como principal cone da modernidade ser re-significada no imaginrio indgena atravs de uma linguagem mtica, vinculando-a ao mundo dos encantados e ao universo do xamanismo.

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At o seu definitivo regresso para o Alto Rio Negro em 1982, passou por vrias empresas de construo civil, grandes e pequenas, trabalhou na edificao da hidreltrica Itaipu Binacional no Paran e da estrada Manaus-Porto Velho em Rondnia, entre outras obras. Ao perceber que no conseguia a autonomia to desejada, continuava empregado dos outros, sendo mandado, voltou para sua comunidade no rio Curicuriari, afluente do rio Negro. O jovem Brs saiu da sua regio para fugir da dependncia pessoal aos patres, na qual estavam presos os extrativistas da seringa, piaava, cip, sorva... sob o regime de aviamento. Seu pai operava como intermedirio (um pequeno patro) entre o patro e os extrativistas, arregimentando a mo de obra necessria para a empresa.12 Pedro Machado tambm migrou ainda jovem de Pari-Cachoeira para a cidade de So Gabriel da Cachoeira nesta poca com o intuito de mudar de vida, no agentava mais a rotina extenuante de trabalho na roa, pescando, fazendo farinha e beiju. Considerava limitada a perspectiva de futuro daquele modo de existncia identificado como indgena. Pegava seu faco, pegava sua farinha para merendar no trabalho, e saia bem cedo, para longe de casa, depois do aeroporto. Levava seu irmo pequeno, Carlos, que mora atualmente no Rio de Janeiro, para acompanh-lo. Roava, roava... cansado, suado, sentava-se e pensava: Esta vai ser sua vida, Pedro, se voc no estudar. O resto da sua vida vai pegar faco, machado, pegar linha de pesca para poder pegar peixe para comer, e trabalhar para poder ter farinha e beiju. Que a vida do ndio isso mesmo. Ser que eu vou agentar? A veio na minha cabea: no, eu vou estudar, eu tenho que estudar, custe o que custar [grifos SCP] (Pedro Machado, entrevista. Op. cit.). Este jovem Tukano escolheu o estudo como o melhor meio de enfrentar o contexto intertnico em mudana no Alto Rio Negro. Conhecer o mundo dos brancos para melhor
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Brs Frana nasceu em 1948 na comunidade Curicuriari, no rio Curicuriari. Seu pai Bar e sua me Desana. Seu bisav era natural de Marabitanas, alto rio Negro, e desceu para o rio Curicuriari. Brs j faz parte da terceira gerao que mora no rio Curicuriari. Seu pai poderia ser enquadrado na categoria do empreiteiro, que aquele que recruta mo de obra tomando crdito em mercadorias de um patro tanto para si, que tambm extrator, quanto para aqueles que trabalham com ele. O empreiteiro arregimenta trabalhadores no povoado onde mora e em povoados prximos, dentro do seu crculo de parentes e vizinhos (Oliveira, 1981). Adlia de Oliveira (1981) o inclui no patamar mais baixo da cadeia vertical de patres, mas cabe salientar que um patro singular, pois tambm trabalhador e serve como intermedirio entre o aviador e os aviados.

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atuar nele. A escolarizao considerada um processo no qual se adquirem os recursos simblicos e sociais indispensveis para se conduzir neste universo estranho. De tal modo que, apesar de muitas ativistas indgenas denunciarem a poltica missionria etnocida posta em prtica pelos salesianos, reconhecem tambm a importncia do ensino recebido com destaque para o aprendizado da lngua portuguesa nas suas trajetrias e formao como lideranas. Em 1960, Pedro Machado ingressou com oito anos de idade no internato salesiano. No sabia falar o portugus, no sabia nem se era ndio. S falava tukano, para ele todo mundo era tukano, todo mundo era igual a ele, o mundo era simples como o que ele vivia. Quando viu o padre... padre era diferente, falava lngua diferente, comia comida diferente, a comeou a verificar que tambm ele era diferente. Entrava em um universo completamente estranho, no qual comeava a ter conscincia ainda no reflexiva das fronteiras tnicas que delimitam a indianidade atravs de dois modos fundamentais de comunicao e reciprocidade (o cdigo lingstico e o alimentar). Esta foi sua primeira experincia em que suas certezas bsicas foram abaladas de uma maneira imediata. Depois elas seriam atravs da mediao do ensino salesiano, temperado com atos de violao e represso culturais. Concluiu o primrio no internato de Pari-Cachoeira em 1965. Na poca este era o mais alto nvel de escolarizao a ser atingido. [...] Por isso que foi esse atraso todo, porque o governo deixou nas mos da igreja. O indgena estudava at a 5a srie e depois voltava para a sua aldeia, para fazer o qu? Para pescar, caar, fazer sua roa... [...] Ento nesse ponto a igreja destruiu, no ajudou a destruir, destruiu; os padres brancos [...] (Pedro Machado, entrevista. Op. cit.). A perspectiva de continuar os estudos era tornar-se padre. No final de 1965 Pedro Machado foi escolhido pelos salesianos e viajou para Manaus com este objetivo: [...] Pela primeira vez eu estava indo para longe, porque Manaus longe, estava indo para a aspirantada, So Domingos Svio [...] No foi aprovado no processo de admisso e voltou a Pari-Cachoeira em dezembro de 1966. Se no fosse a matemtica talvez tivesse se tornado padre. Todavia, no foi s isso, pois poderia ter retornado para fazer a recuperao, mas Pedro no era suficientemente submisso s autoridades eclesisticas, angariando

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antipatias: [...] Para ser padre, salesiano, tinha que ser calado, subalterno, e eu no era comportado. O padre-diretor ento mudou o tratamento dispensado a mim [...] (Pedro Machado, op. cit.). Em 1968 foi para a cidade de So Gabriel da Cachoeira estudar no ginsio recm criado pelo bispo Dom Miguel Allagna. Trabalhava como alfaiate ofcio que estava aprendendo no internato. No foi fcil para este jovem indgena conseguir a vaga. Pedro se apresentou como candidato quando o diretor do internato de Pari-Cachoeira estava escolhendo aqueles que iriam estudar no ginsio em So Gabriel. O diretor disse que no tinha mais vagas, porque ele no estava entre os dez escolhidos por ele. Pedro respondeu que s queria o transporte para So Gabriel, no iria atrapalhar os dez que j estavam escolhidos. Ele queria a passagem, e se o diretor do colgio em So Gabriel dissesse que no o queria, ele se conformaria. Se no fosse, perguntaria ao bispo se ele no tinha direito. O diretor de Pari-Cachoeira concedeu-lhe ento uma vaga, mas recomendou que ele se comportasse. Pedro concluiu seu ginsio em 1972. Lecionou durante o ano de 1973 em Pari-Cachoeira e em 1974 estabeleceu residncia definitivamente em So Gabriel da Cachoeira. Morava na casa de amigos, pois no tinha parentes na cidade. So Gabriel era uma vila ainda. Ao mesmo tempo em que cursava o 2o grau trabalhava no 1o BEC. Ganhava um bom salrio, mas decidiu mudar de emprego e foi para a RADIOBRAS onde a remunerao era menor. Estavam ampliando o sistema de rdio na Amaznia. Pedro passou em segundo lugar no concurso realizado para recrutar trabalhadores. Seu cargo era operador de udio-transmissores. Foi para Manaus fazer um curso, durante seis meses, de aperfeioamento na Escola Tcnica Federal do Amazonas. Quando retornou no havia mais emprego. Sua irm comprou um automvel (um fusquinha) para ele trabalhar como taxista. Em 1979 fez estgio em Macap/AP e quando retornou a So Gabriel finalmente foi contratado na rdio, onde trabalhou durante quatro anos. Em 1983 foi demitido e retornou a Pari-Cachoeira. Foi ento que decidiu: Vamos trabalhar da nossa maneira, a FUNAI est a, o governo esta a, ento vamos trabalhar. Pedro Machado viajou para Manaus com seus dois irmos. No incio de 1984, conversaram com o prefeito de So Gabriel, Dagoberto Pinto de Albuquerque, que estava em Manaus. Ele os apresentou a um senador que lhes deu a passagem para Braslia. Seu

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irmo, Benedito Fernandes Machado (mais novo que Pedro, o mais velho o Germano), era presidente da UCIRT e foi um dos fundadores, criada no incio dos anos 80. Benedito voltou de Manaus enquanto Pedro e Carlos Machado foram para Braslia para solicitar recursos para a comunidade. Quando chegaram em Braslia o presidente da FUNAI estava viajando. S ia chegar no final da outra semana. Pedro disse ao irmo: Sabe de uma coisa, ningum veio aqui para passear s no, viemos para conversar com quem tem dinheiro, com polticos, com empresrios que queiram nos ajudar. Resolveram ento ir para o Rio de Janeiro. Conseguiram a passagem de nibus para o Rio com a FUNAI. No Rio de Janeiro no conheciam ningum e foram apenas com 25 mil cruzeiros. Hospedaram-se em um hotel no centro da cidade. Contatou com uma empresa apresentando-se como um cidado do Amazonas, um indgena, que estava de passagem no Rio e queria conversar com empresrios que tivessem interesse em negociar com ouro. O nome da empresa era New Gold. Mandaram um empregado para So Gabriel, percorreu a regio do rio Tiqui com os Machado, levou 30 gramas de ouro, para avaliao, e informaes sobre a rea. Depois disso os irmos Machado no conseguiram mais fazer contato com a empresa, apesar de enviarem telegramas. A empresa pagou o retorno dos Machado para Braslia. Na FUNAI conseguiram recursos no valor de 15 milhes de cruzeiros para a comunidade. Segundo Pedro esta verba foi diretamente para a FUNAI de So Gabriel, na poca apenas um ncleo do apoio subordinado administrao regional de Manaus. Em 1985 os Machado assumiram o controle do garimpo na serra do Trara. Pedro Machado foi trabalhar l com seu irmo Carlos, aps ter trabalhado na campanha do candidato Raimundo Quirino, ento eleito prefeito de So Gabriel. Neste mesmo ano a Paranapanema e a Gold Amazon penetraram no Trara, munidas de alvars de pesquisa e explorao mineral concedidos pelo Departamento Nacional de Pesquisas Minerais (DNPM), ocasionando conflitos com ndios e garimpeiros. Os militares do PCN apoiaram a presena de tais empresas mineradoras porque acreditaram que coibiria a invaso de garimpeiros e guerrilheiros colombianos (Buchillet, 1991). Cabe salientar tambm a ocupao por militares em postos de direo nestas empresas. Quem descobriu a existncia

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de ouro foi o Cludio Barreto, Tukano, mas a diretoria da UCIRT deliberou da seguinte maneira: O garimpo nosso, ns sempre trabalhamos em comunidade, no s particular. No adianta dizer que particular, porque l o acesso difcil, o cara tem que ter estrutura para dizer que dono. Trabalhava toda a comunidade de Pari-Cachoeira e depois foi aberto aos habitantes de Taracu, Yauaret e So Gabriel tambm. Um dos motivos de tal medida, em 1989, foi a preocupao com a intruso de garimpeiros brancos, reforando assim um senso de indianidade que englobava as diferenas tnicas: [...] Embora de diversos lugares, tribos diferentes, existe um forte sentido comunitrio nos trabalhos, nas reunies e at no uso das ferramentas de extrao. [...] O indgena tem conscincia de que o garimpo seu. Eles dizem: o nosso garimpo [...] (Relatrio da visita ao garimpo tukano. Pari-Cachoeira, Maio de 1989. Padre Gensio Savassa). O garimpo da Serra do Trara fora fechado para quem no era de Pari-Cachoeira (distrito) exatamente por causa dos conflitos ocorridos com garimpeiros brancos em 1984. Estes navegavam o rio Ira e depois percorriam por terra varavam conforme o vocabulrio local at a Serra do Trara. Naquele rio a corrido do ouro j tinha comeado. Maximiliano Menezes, Tukano, ex-secretrio da FOIRN (1993-2000), integrara uma das equipes pioneiras, que foi chefiada por Jos Augusto Fonseca, Arapao, que procurava ouro naquela localidade.13 Em 1983, quando Maximiliano cumpria o servio militar, ouvia comentrios sobre a existncia de grande quantidade de ouro no rio Cauburis, mdio rio Negro. Ele saiu do exrcito e em 1984 o Jos Augusto Fonseca, Arapao, chegou

Maximiliano tem 40 anos, nasceu na comunidade de Anans, rio Vaups, distrito de Taracu. Sua me Tariana. Ela fala Tukano e algumas palavras de Tariana (nomes de alguns tipos de peixes, de frutas, etc.). Seus filhos falam tukano. A esposa de Max Desana. Ela fala tukano e desana tambm. Os Desana da regio do Umari e do Papuri ainda falam a lngua desana. Os Desana do mdio Vaups, do mdio Tiqui j no falam mais, s tukano. Maximiliano estudou durante oito anos (desde a alfabetizao at a 8a srie) no internato salesiano de Taracu. Jos Augusto Fonseca foi o primeiro presidente da Comisso Indgena do Mdio Rio Negro/COIMRN, organizao indgena com sede na cidade de Santa Isabel do Rio Negro, criada em 1994. Em 1997 passou a chamar-se Associao das Comunidades Indgenas do Mdio Rio Negro/ACIMRN.

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na sua comunidade e o convidou para ir serra do Taquari, no mdio Vaups, em busca de ouro. Foram para Ipanor. [...] l comeou a aparecer alguns fagulhinhos de ouro, enquanto isso o Z Antenor de Taracu entrou para a regio do Ira, abriu uma picada at certa altura. A comea a aparecer vrias equipes. Tinha a equipe do Z Antenor e a equipe do Z Augusto [da qual Max fazia parte]. Em julho de 1984 a equipe de Z Augusto encontrou em Taracu com a equipe do Z Antenor, que estavam regressando do mato tambm. Promoveu uma grande reunio, disse que tinha encontrado ouro; uma mentira absurda, no era ouro, era um metal. Parece que algum do Tiqui mesmo entregou a ele, que tirou l do Castanho para ver se era ouro. Todo mundo se animou e o Z Antenor chamou a equipe do Z Augusto (eram quatro pessoas), o nico que conhecia bem era o Z Augusto que lhe disse que aquilo no era ouro. A equipe do Z Antenor tinha feito o caminho s at o p da serra do Ira. Em setembro de 1984 a equipe do Z Augusto partiu para a serra do Ira. Chegaram onde Z Antenor tinha cavado e no tinha nada mesmo, seguiram mais cinco dias de distncia e encontraram uma rica grota. Voltaram para comprar rancho em So Gabriel e retornaram para o Ira no final de outubro de 1984; era para fazer uma experincia de trabalho, depois iam dizer se dava para ir vrias pessoas. Passaram uma semana, mas cada qual s tinha uma batia, e ningum sabia bateiar bem. Conseguimos 200 e poucos gramas cada um. Venderam para o Ernesto Tavares, que na poca ningum encontrava ouro, ningum falava de ouro. Mandou para Manaus e passou quase uma semana para chegar o dinheiro. [...] (Maximiliano Menezes, entrevista. So Gabriel da Cachoeira, 04/04/2001) Quando retornaram para a Serra do Ira j encontraram muita gente: indgenas de Yauaret, do Iana, Pari-Cachoeira, de So Gabriel, garimpeiros vindos de fora. Maximiliano ficou l uma semana e voltou para sua comunidade, onde lecionava na escola. Os garimpeiros que foram para o Ira aprenderam a trabalhar com o ouro e comearam a explorar no Iana, principalmente em Panapan e Tunu. Os moradores de Pari-Cachoeira aprenderam a trabalhar no Ira e foram para a regio do Trara. Nesse perodo a Gold

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Amazon instalou-se no Iana e a Paranapanema na Serra do Trara, para onde Maximiliano se encaminhou, mesmo sabendo que a entrada estava restrita aos indgenas de PariCachoeira. Logo que chegou no porto o administrador do garimpo mandou-o trabalhar na Paranapanema. No queria trabalhar como segurana da empresa, queria trabalhar como operador de moto-serra para ajudar a construir a pista de pouso. Foi para l e depois de 90 dias voltou para o garimpo do Trara. Ficou trabalhando l em 1985 e 1986. Maximiliano afirma que foi ento que descobriu que houve uma negociao com os Machado que do igarap Abiu para cima, afluente situado na metade do rio Castanho, seria dos ndios e da para baixo da Paranapanema: [...] Esse foi o acordo feito verbalmente, s que no mapa era tudo da Paranapanema. A esta empresa coloca um deles l para comprar o ouro, para no sair para outros cantos. [...] (Maximiliano Menezes, entrevista. Op. cit.). Henrique Castro, Tukano, ex-presidente da antiga UFAC, afirmou que os indgenas concordaram com a permanncia da Paranapanema devido s suas promessas de demarcar as terras. Foi ento que propuseram um acordo no qual se comprometeram a defend-los dos invasores brancos. A contrapartida indgena seria a cesso da rea s para pesquisar e no para explorar: [...] Ento a comunidade abriu mo outra vez e disse: t bom, abrimos outra vez pr vocs pesquisarem, no para trabalhar. Quando vocs acabarem de pesquisar a gente vai se encontrar outra vez, a a gente vai ver a possibilidade de fazer por cento, a a gente vai entender, partir metade-metade, se voc no concordar com isso ento cai fora. Voc tem que fazer conforme pedir a comunidade. [...].14 Dirigentes da UCIRT fizeram contato com o escritrio da Paranapanema em Manaus para discutir normas de convivncia e obtiveram a promessa da empresa de facilitar suas viagens a Braslia para negociarem com autoridades federais benefcios no

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Os Colonos so Vocs, disse o Coronel. Depoimento de Henrique Castro concedido a Carlos Alberto Ricardo, do Centro Ecumnico de Documentao e Informao/CEDI, em maio de 1987, apud CEDI, 1991, pp. 116-117.

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mbito do Programa Calha Norte.15 Em abril de 1987, foi formalizado o acordo no qual a mineradora assegurava livre circulao dos indgenas nas reas de pesquisa e extrao mineral; comprometia-se com o desenvolvimento de projetos agropecurios e de extrao mineral e vegetal; apoiar a explorao manual ou com equipamentos simples; colaborar financeiramente ou com servios em projetos comunitrios. Todos estes benefcios no se aplicavam s reas onde existissem atividades de construo ou industriais da empresa. Em documento complementar a este a UCIRT decide explorar os recursos minerais existentes nas terras indgenas autorizando empresa nacional privada a realizar pesquisas para a consecuo de tal finalidade; firmar contrato para concesso de lavra e garantir a percepo de taxa sobre a produo.16 A Constituio Federal de 1988 colocar impedimentos legais s pretenses expressas neste contrato. A explorao do subsolo em terras indgenas passou a depender de autorizao do Congresso Nacional. A direo da UCIRT coordenava quem entrava, quem saa, e cobrava uma taxa do garimpeiro sobre a sua produo. Esta organizao foi criada em 1984, e seu primeiro presidente foi Benedito Fernandes Machado. At o incio dos anos 90 os irmos Machado ocuparam a presidncia da organizao, quando foram suspensas as suas atividades, posteriormente restabelecidas com um novo nome, CIPAC (Conselho Indgena de PariCachoeira). Pedro Machado recorre ao argumento da tradio, acionando o princpio hierrquico que rege a cosmologia e a organizao social dos povos rio negrinos, para legitimar a liderana atribuda sua famlia, cujo questionamento implica um desrespeito prpria cultura indgena genuna: [...] O nome indgena [do indivduo] refere-se ao nvel de hierarquia familiar. Isto muito importante na comunidade indgena, porque da que se v quem so os chefes, as cabeas. Para o ndio no existe eleio de novo lder como vocs fazem. Para eles o lder tradicional, aquele que vai ser igual ao imprio, de pai para o filho, e vai indo. A hierarquia superior vem por a. Hoje no. Hoje j est muito atrapalhado, porque a sociedade envolvente colocou na cabea do ndio

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Canal direto com o CSN e com a Paranapanema (PIB/CEDI) e Acordo de honra divide a Serra do Trara (PIB/CEDI, 16/08/86) apud CEDI, 1991, p. 118. 16 Paranapanema e UCIRT assinam acordo para viabilizar pesquisa e explorao mineral na Serra do Trara. (PIB/CEDI, 12/04/1987) apud CEDI, 1991, p. 120.

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que ele tem que mudar o sistema, ento hoje em dia alguns que no entendem muito j no levam muito a srio esse lado. Mas os que entendem e levam a srio o lado cultural indgena, ainda eles respeitam muito neste sentido da hierarquia tradicional: quem so os lderes tradicionais, o que eles pensam. At hoje, por mais que eu no moro em Pari-Cachoeira, o pessoal sempre procura a gente. Ns somos quatro irmos e uma irm. O Germano Machado o mais velho, depois vem eu, depois de mim vem o Benedito Machado, e vem o mais novo que o Carlos que est no Rio [de Janeiro]. Esta a famlia tradicional hierarquicamente superior. Depois de ns vem os outros, a vai descendo. Ento essa linha no passado que determinava a poltica, econmica, tudo. Hoje infelizmente as coisas mudaram, os tempos mudaram e ns respeitamos... temos que conviver com o tempo presente tambm. No podemos dizer que tem que ser assim desde que a pessoa saiba o que est fazendo. Logicamente quando a gente est vendo que a comunidade indgena, a tribo nossa, o nosso pessoal, est chegando a um limite que ns no vamos suportar o que est acontecendo ento a gente entra, a gente entra para dizer que no por a. [grifos SCP] (Pedro Machado, entrevista. Op. cit.). Quando foi criada a UCIRT sofreu a oposio dos salesianos que apoiaram a antiga UFAC (Unio Familiar Animadora Crist), fundada no incio dos anos 70 e extinta em 1984 aps divergncias entre lideranas de Pari-Cachoeira por causa das denncias de lvaro Tukano no Tribunal Russell em 1980 contra a atuao dos missionrios catlicos no Rio Negro (Ricardo, 1991). [...] De um lado os Salesianos comearam a criar seus lderes indgenas. Achavam que os Machado queriam mandar sozinhos. Ento tinham alguns que no gostavam do nosso trabalho [...] (Pedro Machado, entrevista. Op. cit.). Vimos no captulo anterior que os dirigentes da UFAC manifestaram-se publicamente contra a iniciativa de lvaro Sampaio e que os salesianos, inspirados pela nova orientao do Conclio Vaticano II, estavam investindo na formao de agentes pastorais indgenas e aproximando-se mais das comunidades atravs das itinerncias, implementando diversos instrumentos de participao leiga nos destinos da parquia como os conselhos e assemblias paroquiais. No seu novo programa missionrio incluram a conscientizao sobre as mudanas em curso na regio, a defesa da cultura indgena e a demarcao das

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terras. Atriburam a si mesmos o papel de agentes da mobilizao indgena contra o Programa Calha Norte e a proposta de criao de colnias indgenas e florestas nacionais. O garimpo foi uma expresso local das transformaes profundas pelas quais a Amaznia estava passando e por isso a itinerncia estendeu-se a ele e constituiu-se uma pastoral especfica para a igreja lidar com tal situao. Seguia a orientao do Encontro dos Bispos da Amaznia em Santarm/PA, em 1972, na qual a evangelizao deveria adequarse s novas realidades paroquiais criadas pelo acelerado processo de mudanas econmicas e sociais pela qual passava a regio. A igreja deveria tornar-se mais presente nas diversas frentes pioneiras de integrao e desenvolvimento como as mineraes, garimpos, fazendas agropecurias, olarias, usinas de acar e pau-rosa, ncleos de colonizao, etc. O objetivo era promover uma espiritualidade comprometida e em sintonia com a realidade e uma evangelizao libertadora, proclamando o dever da igreja de se pronunciar contra tudo que agrida a dignidade e liberdade humana (Documento de Santarm/1972, apud Oliveira & Guidotti, 2000). A viagem do Padre Gensio Savassa, em abril de 1989, a Serra do Trara era imperiosa, pois [...] preciso visitar com mais freqncia o garimpo, pois l que vive atualmente a maior parte dos nossos paroquianos [...] (Relatrio da visita ao garimpo tukano. Pari-Cachoeira, Maio de 1989. Padre Gensio Savassa). Era mister plantar as sementes de uma conscincia crtica, para que saibam discernir os benefcios e os malefcios trazidos pela aquisio do ouro, entre aquela gente mais animada nas coisas da religio, pois como esto vivendo [...] nas alturas das montanhas, lugares sacros dos antigos, parece que a gente est mais perto de Deus (Ibidem). Parece que a animosidade entre salesianos e os dirigentes da UCIRT tinha arrefecido, pois o padre participou da assemblia, promovida por Carlos Eugnio Machado e Miguel Pena, em que um dos itens da pauta era a eleio da nova diretoria. claro que permanecia uma certa tenso, tanto que corriam boatos sobre um apoio dos padres a algum candidato. Possibilidade negada pelo itinerante. Neste ano Benedito Machado foi novamente eleito presidente da UCIRT. Em 1989, cada garimpo tinha uma equipe administrativa indgena composta de um chefe, dois auxiliares e um segurana, que controlava a chegada e sada dos garimpeiros, organizava os trabalhos comunitrios, promovia reunies, resolvia os problemas e prestavam contas diretoria da UCIRT. Existiam dois garimpos: um tukano e outro colombiano. Neste os indgenas adquiriam mercadorias e se endividavam com os

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comerciantes colombianos. Todos os garimpeiros eram brancos e os indgenas trabalhavam como carregadores e pescadores. As principais inquietaes apresentadas nas assemblias eram a dvida com os colombianos, a necessidade de assessoria tcnica, as difceis condies de acesso, insegurana quanto invaso dos brancos e esgotamento das reservas de ouro. Temiam a sada da Paranapanema, com sua milcia privada, pois tal fato acarretaria o aumento do clima de insegurana vigente na rea, alm de reivindicarem o seu auxlio em termos de transporte e de apoio tcnico. Esta mineradora abandonou a sua rea porque o ouro encontrado (duas toneladas a 300 m de profundidade) no era vantajoso do ponto de vista empresarial. O meio de troca utilizado exclusivamente para todas as mercadorias industrializadas e para a produo local (carne, farinha, peixes, etc.) era o ouro, inflacionando os preos. Surgiram assim pequenos comerciantes indgenas cuja atividade se apresentava como mais promissora do que o prprio garimpo, pois acabavam gastando mais do que produziam.17 Entretanto, os preos dos produtos regionais no acompanharam a elevao dos preos das mercadorias industrializadas. Deste modo os comerciantes que possuam capital para se abastecer em Pari-Cachoeira ou So Gabriel e transportar serra do Trara eram os mais beneficiados. O grande fluxo de pessoas em direo ao garimpo em busca de uma alternativa mais promissora de renda foi altssimo, provocando o esvaziamento temporrio de muitas comunidades. A ausncia de homens adultos e jovens alterava a organizao cotidiana das tarefas de subsistncia e mesmo quando eles estavam presentes a fora de trabalho familiar era ocupada demasiadamente com os preparativos da viagem ao garimpo. Este tomou a forma de uma comunidade, que ficou com o nome de Vila Jos Mormes, com 45 casas, hortas, uma palhoa, uma cantina, doze famlias residindo permanentemente perfazendo 80 habitantes estveis. A explorao manual, sem a utilizao de dragas, no incio era compensadora, mas depois se mostrou inadequada. No incio dos anos 90, aps a demarcao da rea indgena Pari-Cachoeira III, os garimpeiros indgenas formaram uma cooperativa (Cooperativa de Garimpeiros Indgenas do Rio Castanho COGIRC) que passou a administrar o garimpo tukano junto com outras associaes recm criadas no alto Tiqui.18 O garimpo colombiano ficou sob o controle dos irmos Carlos e Benedito
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Ibidem. Conselho Regional das Tribos Indgenas do Alto Rio Tiqui (CRETIART), Associao Indgena do Rio Umari (ACIRU) e Unio das Naes Indgenas do Rio Tiqui (UNIRT).

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Machado, ento funcionrios da FUNAI, aps operao empreendida pelo exrcito brasileiro para expulsar os colombianos (Cabalzar, 1996; Grunberg, 1995 apud Calbalzar, 1996; e OESP, 03/02/91, apud Socioambiental, 1996). Desde os anos 70 que em Pari-Cachoeira os povos indgenas reivindicam uma rea nica e no a fragmentao de suas terras tradicionais. Depoimentos de militantes indgenas e documentos salesianos referentes as itinerncias e s assemblias paroquiais destacam a relao entre a formao desta demanda e a nova orientao pastoral implementada no Rio Negro nas dcadas de 70 e 80. Havia uma militncia indgena, materializada institucionalmente na UFAC, como j vimos; uma sensibilidade difusa e explicitamente formulada de direitos ligados afirmao da etnicidade indgena. Havia tambm respostas institucionais da FUNAI a tal contexto: o envio de um grupo de trabalho (GT) de identificao, em 1976, que formulou uma primeira proposta de rea. Esta seguiu o modelo de territorializao do poder salesiano, propondo a demarcao de trs unidades distintas e contguas: Pari-Cachoeira (1.020.000 ha), Iauaret (990.000 ha) e Iana-Aiari (896.000 ha). Em 1978, a UFAC convocou as lideranas de Taracu, Iana, Iauaret e Pari-Cachoeira para produzirem uma proposta de territrio nico para todo o Alto Rio Negro. Esta iniciativa no deu certo devido a disputas entre as lideranas, evidenciadas nas negociaes com a FUNAI, e aos conflitos com os salesianos depois das denncias no Tribunal Russell. Os lderes de Pari-Cachoeira resolveram ento lutar separadamente pela demarcao de uma rea especfica. Em 1985, outro GT props a incluso das jazidas da Serra do Trara na A. I. PariCachoeira (cuja extenso aumentaria para 1.418.000 ha). No ano seguinte, uma nova proposta da FUNAI ampliou ainda mais os limites desta terra indgena (para 2.069.000 ha). Continuou englobando a Serra do Trara, reconhecida como territrio tradicional dos Maku. Em 1986 lderes da UCIRT viajaram a Manaus para obter informaes junto ao administrador regional da FUNAI sobre o PCN. Em uma reunio com o Secretrio Geral do Conselho de Segurana Nacional, o general Bayma Denis na qual estavam presentes o Ministro do Interior, Ronaldo Costa Couto, e o presidente da FUNAI, Romero Juc Filho , em Braslia, foram pressionados a aceitar a proposta de demarcao em colnias indgenas e florestas nacionais.

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[...] Ns vimos que o governo no ia demarcar nunca, nem em colnias nem em terra contnua. Ns queramos, sempre sonhvamos com terra contnua, no terra esquartejada, mas o governo no queria. Eles alegaram que 150 Km da fronteira para c no poderia haver rea indgena. A condio imposta para a demarcao era a colnia agrcola indgena. Ento pega e tira a palavra agrcola. [...] (Pedro Machado, entrevista. Op. cit.). Neste mesmo ano aconteceu uma assemblia em Pari-Cachoeira na qual decidiram manter a reivindicao de um territrio contnuo. A UCIRT firmou acordo com a Paranapanema e cedeu as jazidas da Serra do Trara. Tal negociao envolvia a promessa de implantao de uma infra-estrutura de prestao de servios, de desenvolvimento econmico e, obviamente, de garantia da terra, mesmo que reduzida.

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Figura 3: Grupos tnicos do Alto e Mdio Rio Negro.


Fonte: Cabalzar & Ricardo, 1998.

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CAPTULO VI. O PROJETO CALHA NORTE E A CRIAO DA FOIRN.

No incio dos anos 80 vrios personagens importantes na histria do movimento indgena no Rio Negro estavam retornando para suas comunidades de origem, aps um perodo de experincias em Manaus ou outros lugares distantes. Pedro Garcia depois de trs anos (1979, 1980 e 1981) estudando na Escola Agrotcnica de Manaus retornou para casa de seus pais em Yauaret. L permaneceu durante dois anos (1982 e 1983) trabalhando na roa com a famlia.1 Ao concluir o ginsio comunicou ao diretor da misso de Yauaret que queria continuar os estudos, porm no queria ser padre. O diretor fez contato com o diretor da Escola Agrotcnica de Manaus conseguindo que o jovem Tariana fizesse o concurso de seleo para aquela instituio de ensino. Apesar de alguns problemas com a matemtica, como obteve bom desempenho em outras matrias, conseguiu ingressar neste curso profissionalizante. Resolveu ento aplicar seus conhecimentos agrotcnicos para orientar as comunidades a criar o gado que fora distribudo pelos padres. Durante trs anos (1984, 1985 e 1986) atenderam as comunidades da parquia de Yauaret, aproveitando as visitas de itinerncia. Estas atividades foram subsidiadas durante os anos de 1985 e 1986 por recursos destinados a projetos de desenvolvimento e promoo

Pedro Garcia Tariana, integrou a primeira diretoria da FOIRN logo que foi criada em 1987 e foi presidente da mesma organizao de 1997 a 2000. Nasceu no distrito de Taracu, na comunidade Uriri, mas passou sua infncia e adolescncia em Yauaret, porque seus pais moravam l. Quando nasceu seu pai estava visitando uma irm que tinha casado com um morador do Uriri. Seu pai Tariana e sua me Piratapuia. Tem 39 anos (40 incompletos) e fala tukano, piratapuia e wanano. Da lngua tariana entende algumas coisas, como nomenclatura de peixes, por exemplo. Estudou o primrio e o ginsio no internato salesiano de Yauaret. Os pais de Pedro continuaram trabalhando na extrao da seringa para os patres colombianos mesmo depois da fundao da misso de Yauaret. Eles passavam um ano, s vezes dois anos, na colmbia e depois voltavam. Ia toda a famlia para Miraflores. O sistema era o aviamento, adiantava mercadorias em troca do produto. [...] Dava para pagar as dvidas, dependendo do esforo de cada um e da produo que obtinha diariamente. Dependia muito tambm da quantidade de mercadoria que o trabalhador pegava em adiantamento. Tinha pessoas que pegava mercadorias para pagar durante um ano. No conseguia e ficava mais outro ano para pagar. Em vez de pagar em um ano, pagava as mercadorias em dois anos. Meu pai conta que ele preferia pegar bem pouco para poder pagar logo. [...] Muitas vezes meu pai trabalhou como capataz com os patres colombianos. Ele cuidava da turma que ele levava. No canteiro de trabalho deles meu pai era chefe deles l. Ele conseguiu organizar a turma dele. Eles trabalhavam de segunda a sexta e sbados e domingos eles no trabalhavam; iam caar, pescar ou descansar. s vezes, o patro subia junto com o meu pai e ia recolhendo junto [recrutando trabalhadores]. [...] Muita gente fugia quando via que no ia pagar. Enquanto estivesse endividado o patro no deixava ir embora. Aqueles que fugissem o patro no podia encontrar mais, porque corriam risco de vida. Tinha que procurar outro lugar onde o patro no pudesse v-lo, seno o patro mandava matar; o cara tinha que sumir mesmo. [...] (Pedro Machado, entrevista. Op. cit.).

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social oriundos de instituies eclesisticas estrangeiras.2 No incio Pedro Garcia e mais dois colegas que estudaram com ele na Escola Agrotcnica acompanhavam o padre intinerante como prtico3. No existiam ainda organizaes indgenas consolidadas para proporcionar uma estrutura autnoma de sustentao de aes nos povoados. A ALIDI (Associao de Lideranas Indgenas do Distrito de Yauaret) criada nos anos 70, quando as demandas pela garantia da terra j estavam aparecendo, era um grupo de pessoas dispersas, no se reuniam regularmente nem entre si, nem com a base para discutir os problemas e elaborar um plano de interveno minimamente consensual. Mesmo nestas condies Pedro Garcia pretendia fazer um trabalho independente do esquema pastoral salesiano. [...] Os padres tinham suas viagens de itinerncia, de visitas nas comunidades. Ento a gente para poder chegar nas comunidades a gente embarcava na voadeira do padre como marinheiro, como prtico. Alm de ser marinheiro, a gente tinha um objetivo na nossa viagem. Chegava na comunidade o padre fazia a reunio e depois a gente chamava a turma e comeava a conversar como a gente queria, o que a comunidade achava daquele trabalho que a gente estava pensando fazer. [...] [...] A equipe dizia que se as pessoas das comunidades concordassem a gente ia organizar melhor o trabalho, a gente no ia viajar mais com os padres, ia dar um jeito de viajar por nossa conta mesmo, nem que fosse a remo de comunidade em comunidade. A gente pensou no jeito que a Sofia chegou no Iana, um pessoal de uma comunidade nos levasse e deixasse na outra comunidade, a gente passaria o tempo que fosse necessrio trabalhando com eles. De fato a gente fez isso. Os padres notaram que o nosso esforo era grande, mas no tnhamos condies. Alm de conversar com os padres, a gente conversava com a FUNAI tambm. Muitas vezes os padres no nos arranjavam o motor, a gente pedia um motorista da FUNAI, um servidor da FUNAI para nos levar para as comunidades. Todas as comunidades do distrito de Yauaret. Aproximadamente quarenta ou um
Ver captulo anterior. Termo local para designar aquele que guia a embarcao, conhece os rios, lagos e igaraps, os caminhos fluviais e suas condies de navegao conforme os perodos de vero (vazante) ou inverno (cheia).
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pouquinho mais. A gente parava em todas elas. O mnimo que passvamos em uma comunidade era uma semana. Dependia muito do trabalho e do planejamento da comunidade, se tinha muita coisa para fazer, o que eles queriam fazer. Onde tinha gado bovino, por exemplo, eles trabalhavam muito na limpeza do pasto, orientar como fazer os primeiros socorros nos animais, como domar o animal, como fazer um curral para tratar os animais, como tratar da bicheira, como tratar da mamite, como assistir o parto de um animal... Eram as primeiras noes que a gente dava para a comunidade. Aplicar um vermfugo, vitamina, acompanhava o tratamento. A gente trabalhava muito com a roa da escolinha, organizar, a gente mostrava como plantar, como adubar... Essa foi a poca que Yauaret produziu melhor. [...] Ns comeamos a trabalhar com 120 cabeas, depois de trs anos estvamos com 420 animais. Eram 15 ou 25 comunidades que tinham gado bovino e havia grande mortalidade de bezerros; somente dois bezerros que nasciam em um ano sobreviviam. A gente conseguiu reverter esse quadro. Tinha muitas matrizes, mas faltava muito cuidado. (Pedro Garcia, entrevista. Op. cit.). No final de abril de 1987, Pedro Garcia foi indicado pela sua delegao para compor a primeira diretoria da FOIRN. Ele teve que deixar sua atividade de assessoria agropecuria nas comunidades, mas seus dois colegas continuaram o trabalho. Em 1986 Orlando Melgueiro4 conclua seus estudos na Universidade Catlica de Salvador e fazia propedutica em Filosofia. No final de 1979, quando terminou a oitava srie, conversou com o Bispo Miguel Allagna, que lhe sugeriu fazer uma experincia vocacional para ser padre salesiano, neste caso ele teria lugar para se hospedar, fora disso no. Orlando foi para So Gabriel e ficou morando durante um ano na Diocese. No segundo

Bar e nasceu em Cucu, em 22/07/1961. Fala a lngua geral (nheengatu), seus pais so Bar, nascidos em Cucu. Orlando estudou no internato salesiano em Taracu, porque em Cucu no tinha de quinta a oitava srie. Passou o ano de 1979 em Taracu. Estudou da 1a a 4a sries em Cucu, ia de remo porque mesmo tendo casa l moravam no stio, acima de Cucu prximo fronteira. Estudou da 5a a 7a sries em Manaus e a oitava srie em Taracu. Ele foi interno tambm em Manaus no CMM (colgio militar). [...] Que era outra situao complicada, dificlima, o perodo de adaptao cruel, um sofrimento. Voc acaba com as razes e tenta se adaptar noutro lugar, em um regime cruel. Sa desse regime cruel, militar, e entrei em outro, o missionrio. Esse meu perodo de formao foi bastante controlado. Quando voltvamos nas frias... eu no perdi a lngua geral, a minha forma de trabalhar na roa, etc. E eu s estudava. Na verdade eu queria estudar, mas tinha que me submeter a uma linha, a uma ideologia tambm. E voltava para Cucu, pro stio, e no mudava nada, eu me adaptava normalmente. [...] (Orlando Melgueiro, entrevista. Op. cit.).

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ano se afastou da Diocese, mas continuou estudando. No terceiro ano do segundo grau, magistrio, voltou e disse que queria continuar e fazer uma experincia vocacional. No ano seguinte o bispo disse para Orlando que ele e o Jos Maria de Lima, Piratapuia e membro (tesoureiro) da atual diretoria da FOIRN, iriam para a Bahia, estudar l. Jos Maria de Lima ficou at maio de 1983 e voltou alegando que no estava se adaptando bem. Orlando ficou. [...] Olha j passei pelo inferno da doutrina militar pesada, fui interno nas misses, ento com certeza no teria dificuldade mais de permanecer na Bahia, no Instituto de Teologia da Universidade Catlica de Salvador/UCSAL. L tambm sofri preconceito, discriminao, porque ndio aqui no entra, sofri muito l, mas fui persistente [...] (Orlando Melgueiro, Bar, entrevista. So Gabriel da Cachoeira, 21/10/2001). Em fins de 1983 prestou o exame vestibular e passou. Estudou durante dois anos (1984 e 1985), em 1986 retornou para So Gabriel da Cachoeira. Fez filosofia e depois fez teologia na UCSAL. Voltou por falta de apoio financeiro, pois era uma universidade particular e o bispo achou que ele estava dando muita despesa. A Diocese de So Gabriel pagava uma parte e outra parte era o prprio Orlando, que trabalhava para se sustentar. Foi quando entrou no movimento estudantil, conheceu um grupo da UJS (juventude socialista), conheceu o pessoal do PC do B. [...] Eu me identifiquei muito com os movimentos populares da Bahia [...]. No final do ano trancou a matrcula em Salvador e retornou para So Gabriel, mas sua inteno era voltar para l quando se indgena, j em fins de 1986 e incio de 1987. Retornando para So Gabriel em novembro de 1986 soube do Projeto Calha Norte. De passagem por So Gabriel, conversando com os salesianos, o bispo, etc., lhe informaram que o presidente Sarney estava realmente com este projeto para a regio. Em maro de 1987, j retornando para Manaus, a sua inteno era terminar os estudos. Passando por Manaus encontrou com um grupo de colegas, no aeroporto Ponta Pelada, que lhe disseram: So Gabriel vai se desenvolver, vai receber projetos de governo. integrou ao movimento

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Passou a integrar este grupo, do qual faziam parte Ismael Moreira, lvaro Sampaio, Manuel Moura, entre outros. [...] Sentamos nesta mesma tarde, no centro de Manaus, talvez em um restaurante e levantamos essa preocupao com este grupo. [...] Ento sentamos com esse grupo e levantou uma proposta de fazer uma assemblia, seria a segunda assemblia, j tinha acontecido a primeira, e no me lembro quem... conhecemos um colega que viajou para os Estados Unidos e ia levar uma proposta de projeto para esta assemblia. Esta pessoa nunca mais voltou, no tiveram mais notcias dele. A nica maneira de trazer o povo para So Gabriel... muito difcil, tem que ter recursos, tem que ter grana, tem que ter combustvel, e alimentar esse povo. Isso foi incio de maro, no final de maro de 1987, o lvaro retornando de Braslia disse que tinha conseguido os recursos para a assemblia [...] (Orlando Melgueiro, entrevista. Op. cit.). No ms de abril foram para So Gabriel e encaminharam junto FUNAI o projeto para a assemblia. Pedro Machado j ocupava o cargo de administrador regional da FUNAI em So Gabriel da Cachoeira. Em agosto de 1986 Benedito Machado foi contratado como assessor na administrao regional da FUNAI em Manaus, que na poca transformou-se em 5a Superintendncia, e em So Gabriel da Cachoeira o ncleo de apoio transformou-se em uma administrao regional. A realizao de uma assemblia indgena foi o ato inaugural de um processo de democratizao, com todos as suas contradies e ambigidades, da esfera pblica local. [...] O mago da questo era o Projeto Calha Norte, mas a nossa inteno era mobilizar a sociedade, o povo indgena, para criar um movimento. Ento houve um pouco uma costura ali. [...] (Orlando Melgueiro, ibidem). O eixo foi um movimento de forte politizao da identidade tnica no qual foram formuladas as demandas de participao nas decises sobre os destinos do Alto Rio Negro, ampliando o campo social de visibilidade trazendo para o cenrio local o debate sobre um plano geopoltico e desenvolvimentista do Estado brasileiro elaborado sigilosamente nos bastidores da cpula governamental.

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[...] Quando veio o Calha Norte todos falavam em construo de quartis nas fronteiras, aqui em So Gabriel. Falavam de ndios (a igreja, o exrcito...), mas ningum perguntava do ndio a sua opinio. J que ningum quer nos perguntar vamos perguntar do governo. Quando eu era administrador da FUNAI e meu irmo era assessor, fizemos este preparo para a assemblia. Vamos ter que fazer um encontro, vamos querer ouvir do governo o que tem na estrutura real do Projeto Calha Norte, o que nos trar de bom e de ruim na prtica. Por que desenvolvimento infelizmente sempre traz tambm a parte destrutiva; tem que tirar alguma coisa boa para colocar outra. Fizemos o oramento financeiro de quanto iria precisar e chegamos concluso de que precisaramos de um milho de cruzados na poca. Mandamos para a UCIRT, Pari-Cachoeira, para o governo dizendo que precisaramos de uma assemblia que se chamaria a 2a Assemblia Indgena do Alto Rio Negro. O governo aceitou e deu a resposta atravs da FUNAI e aprovou o oramento financeiro. Esse recurso de um milho era para manter os convidados, manter o transporte areo dos convidados, porque vinham todos os ndios do Alto Rio Negro, as autoridades estaduais, federais e imprensa falada e escrita, como a Rede Amaznica. Veio a Rede Globo, a Bandeirantes, at essa internacional [no soube dizer o nome]. [...] (Pedro Machado, entrevista. Op. cit.). Se de um lado a perspectiva era negociar recursos e o reconhecimento legal das terras indgenas, enfim as prprias condies de implantao do PCN; de outro era redirecionar uma estrutura estatal que estava sendo implantada para a consecuo de objetivos no previstos nela: a organizao do movimento indgena segundo um modelo federativo, vertical e centralizado. [...] A idia de criar a FOIRN foi de ns mesmos, porque estvamos fazendo um encontro grande, aquele encontro poderia ser til, mas muito pelo contrrio seria o comeo de uma nova fase para muitas coisas. [...] Pensamos em fundar uma coisa mais ampla, uma coisa mais centralizadora da poltica indgena do Alto Rio Negro. [...] (Pedro Machado, ibidem).

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A Federao seria o elo de ligao entre governo, comunidades e movimento indigena. A autoria da idia de criao da FOIRN disputada pelo grupo do CIMI, aqui representado pelo testemunho de Orlando Melgueiro, para quem a proposta de formar uma organizao para articular os vrios povos, os vrios rios, por isso deveria chamar-se Federao, foi formulada em Manaus e levada para a Assemblia onde foi aprovada. O contexto era difcil mesmo entre os prprios indgenas, pois a ancestralidade indgena era fator de descrdito social nos contextos urbanos do Alto Rio Negro, ou seja, nas antigas sedes das Misses salesianas. Volto a lembrar a resistncia ou no mnimo a estranheza, a perplexidade com que foi encarado por muitos indgenas o esforo missionrio em valorizar as antigas tradies nativas no mbito da prpria liturgia catlica. Quando a UCIRT organizou a I Assemblia Indgena do Rio Negro, em Taracu, a indianidade era predominantemente um estigma ligado s noes de atraso, selvageria e misria. [...] Nesse primeiro encontro foram muito discriminados, todos riam de ns. Convidamos o prefeito, o comandante do quartel, as igrejas catlicas e evanglicas, as lideranas indgenas, algumas no vieram. Em Taracu disseram: O pessoal de Pari-Cachoeira quer fazer encontro de ndios, querem ser ndios eternamente. Ningum mais ndio aqui no. O prefeito, o exrcito, falaram que iriam ajudar, mas no tinha aquele peso. [...] (Pedro Machado, ibidem). As concepes rotineiras sobre a indianidade ainda estavam carregadas com a noo de um estgio humano inferior que no era possvel nem desejvel recuperar. Este era o grande obstculo simblico para a reformulao da arena poltica local a partir de um discurso de valorizao da tradio como eixo para as demandas coletivas de redistribuio dos benefcios gerados pela modernidade. Esse encontro [a II Assemblia dos Povos Indgenas do Rio Negro] foi realizado entre 28 e 30 de abril de 1987. Onde o filho de So Gabriel s porque tinha um traosinho diferente se achava superior quele que vinha l de Taracu, de Pari-Cachoeira, de Yauaret, Iana, Maturac. Eles chamavam ndios aqueles

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que vm l de cima. Daqui de So Gabriel no so ndios; so filhos de brancos, descendentes de portugueses, espanhis, ou descendente de cearense, maranhense. Quem falava lngua geral era superior queles l de cima. E eles tinham moradias piores do que a minha l de Pari-Cachoeira. Eu no entendia em que eles eram superiores. Ento nesse encontro (a 2a Assemblia) que ns fizemos derrubar a parede discriminativa e da vergonha que os ndios tinham de si mesmos (Pedro Machado, ibidem). [...] Foi nesse momento que comeou a discutir a questo de demarcao de terras indgenas, principalmente no Rio Negro. Da Ilha das Flores para cima era conhecido como indgenas, como ndios, e quem j pertencia para baixo j no queria ser indgena. Quando a FOIRN foi criada havia muita discriminao, a gente ainda tinha at medo de falar nossa prpria lngua, nessas ruas aqui, o prprio parente tinha que falar o portugus porque se falasse a lngua indgena era discriminado: Olha s o ndio a que come tapuru. Ento era uma coisa assim que muita gente tinha vergonha, ento muita gente tinha medo de assumir sua identidade cultural. Tapuru so larvas, em lngua geral chama-se mochila, normalmente extradas da buritizeira, das palmeiras em geral. (Maximiliano Menezes, entrevista. Op. cit.). Os prprios militares tentaram restringir a demarcao para as terras montante da Ilha das Flores, situada um pouco acima da cidade de So Gabriel da Cachoeira, com argumentos baseados nesta topografia imaginria da indianidade. O segmento liderado pelos irmos Machado pensava a assemblia indgena como um espao de negociao com os brancos, no qual eles representavam suas agncias governamentais e no qual a assimetria do contexto de interlocuo s seria reduzida com a apropriao indgena dos signos de poder do mundo civilizado, neste caso o vesturio tpico do mundo empresarial, o terno e a gravata.5

Para uma discusso antropolgica sobre as relaes intertnicas enquanto comunidades de comunicao na qual os interlocutores se encontram em posies assimtricas que determinam capacidades interpelativas desiguais no jogo intercultural vide Oliveira, 1996.

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Para esse encontro foram convidados todos os rgos do governo: IBAMA, DNPM, polcia federal, a igreja, o exrcito, pessoal do Calha Norte, comerciantes, polticos, todo mundo. Vieram da FUNAI de Braslia, reprteres... Foi um encontro que marcou. Fizemos uma abertura grande. Nos vestimos como executivos. Eu concordo que o ndio mostre como ele , como ele vivia, tanguinha aqui, penazinha ali, tudo bem, eu respeito. Mas nosso encontro era de ndios polticos, de ndios que queriam mudanas, que queriam se atualizar, ento tnhamos que estar altura. Ento ns nos vestimos como brancos, porque amos tratar de terras, de negcios. Por que eu no vou chegar com arco e flecha e o cara vem com metralhadora, e o que eu vou fazer? Ento tem que ir com arma de potncia. Ento ns fomos a rigor, eu, meus irmos. Falvamos o portugus no fluente, mas quase fluente, para que possam entender, para mostrar que somos ndios capazes, para que vejam que somos ndios preparados, para que vejam que ns temos inteligncia desenvolvida. No como a lei diz que o ndio uma criana eterna; no . O ndio um ser humano como qualquer outro, que tem sentimento, tem seu plano de vida; pode no ser muito grande, mas tem. [grifos SCP] (Pedro Machado, ibidem). Deste ngulo a assemblia o cenrio da apropriao indgena dos emblemas da modernidade para conquistar direitos territoriais originrios, legitimados pelo recurso a uma ancestralidade indgena cuja encenao constitui demonstrao de fragilidade e no de fora. Ao contrrio das concepes predominantes posteriormente em que a assemblia ser um palco privilegiado de representao da tradio, principalmente atravs do uso dos idiomas nativos, lngua portuguesa conferida a propriedade de equilibrar a correlao de foras de tal cenrio comunicativo. O domnio, mesmo precrio, da linguagem do Outro relevante (nos seus planos diversos: lngua, vesturio, tecnologias, conhecimentos, etc.) uma demonstrao da capacidade e da inteligncia indgenas para gerir seus prprios assuntos e determinar seu destino em um mundo irremediavelmente transformado pela civilizao. Ato de re-interpretao reflexiva, invertendo alguns sinais e deixando outros intactos, do imaginrio intertnico local no qual a indianidade e a modernidade so reconciliadas. Este elemento da retrica tnica no Rio Negro atravessar as clivagens

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polticas aqui sintetizadas atravs da oposio entre o grupo do CIMI e os irmos Machado. A cultura poltica na qual os sujeitos estavam engajados nos seus relacionamentos intertnicos ser confrontada com movimentos e polticas culturais que possibilitem a expanso de uma conscincia discursiva de cunho emancipatrio ou contestatrio sobre as diferenas tnicas.6 O desafio era gerar um sentimento difuso de auto-estima baseado no orgulho tnico para fundamentar exigncias de uma cidadania diferenciada, cujos princpios ticos so forjados em diversas escalas (local, regional, nacional e mundial) e cujas imagens e mensagens so heterogneas e at contraditrias. As assemblias e associaes, e no nvel regional maior a prpria Federao, constituiro o espao institucional propcio para o fortalecimento da capacidade interpelativa da retrica tnica e para a etnificao do campo poltico no Alto Rio Negro. Isto ser concomitante projeo na regio de uma sociedade civil global, principalmente do setor dedicado preservao ambiental. no interior deste circuito relativamente autnomo e globalizado de prticas e representaes da indianidade que considero a formao de lideranas indgenas como intelectuais, como mediadores interculturais, agentes dos esforos deliberados de localizao, traduo segundo esquemas locais de significao, destas prticas e representaes. Os militares se dispuseram a colocar avies disposio, barcos, tudo. Os avies da fora area transportaram as lideranas das sedes distritais para a sede municipal. Foram enviados convites para vrios distritos: Yauaret, Pari-Cachoeira, Taracu, Assuno do Iana, Cucu. Orlando Melgueiro viajou uns quinze dias antes pelo alto rio Negro, informando sobre a assemblia, porque no havia acesso a rdio, era tudo muito difcil.

Como vimos na primeira parte, a nova orientao missionria implantada pelos salesianos nos anos 70 e 80 contribuiu, apesar de suas limitaes e ambigidades prprias do campo religioso, para a formao desta conscincia reflexiva da cultura de carter emancipatrio, que estimulam atitudes de afirmao e ativismo tnicos. Vimos tambm que durante a primeira metade do sculo XX os salesianos investiram na formao de uma conscincia reflexiva da cultura de carter no emancipatrio, que incentivam uma atitude de negao e submisso tnicas, que interferiu consideravelmente nas concepes cotidianas do Self e do mundo. Para formulaes tericas sobre esta complexa relao entre ideologias e ontologias tnicas vide (Kapferer, 1989 e Friedman, 1994 e 1996), abordada na introduo desta tese. Para a discusso sobre o carter emancipatrio ou opressor de movimentos e polticas de identidade (ou multiculturais) vide Souza Santos, 2003. Para uma anlise de poltica de produo de identidade implementada pela FUNAI, no bojo da Frente de Atrao Waimiri-Atroari, vide Baines, 1997. Para a discusso mais geral dos movimentos sociais em termos de cultura poltica e poltica cultural, tambm sintetizados na introduo desta tese, vide ALVAREZ, Sonia; Dagnino, Evelino & Escobar, Arturo, 2000.

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Pegou uma carona no barco da prefeitura, quando o prefeito era o Raimundo Quirino. O barco foi at Cucu e na volta j foi pegando o pessoal. Conseguiram trazer umas 60 a 70 pessoas do rio Negro. lvaro Sampaio viajou para o rio Tiqui, Ismael Moreira viajou para Yauaret. A proposta de pauta foi elaborada em Manaus. A II Assemblia dos Povos Indgenas do Rio Negro foi realizada entre 28 e 30 de abril de 1987. A importncia do Alto Rio Negro para a consecuo dos objetivos governamentais para a regio pode ser avaliada pela presena do Secretrio Geral do Conselho de Segurana Nacional, o General Bayma Denis, ao evento. Estavam presentes representantes de vrios rgos governamentais (MIRAD, INCRA, FUNAI, CSN, exrcito), de organizaes indgenas e entidades de apoio (UNI, CIMI e CEDI), das mineradoras (Paranapanema e Gold Amazon) assim como comerciantes e polticos locais. A mesa fazia a proposta de pauta e os representantes da FUNAI faziam alteraes. Compareceram aproximadamente 300 lderes indgenas, predominando as delegaes dos rios Vaups e Tiqui. No primeiro dia as delegaes de Pari-Cachoeira, Taracu, Yauaret, Iana, Maturac, Balaio, rio Negro e da cidade de So Gabriel da Cachoeira apresentaram os problemas e reivindicaes das suas comunidades. No segundo dia o ginsio lotou, porque alm das pessoas que estavam chegando do interior vieram os moradores da cidade: curiosos, professores, missionrios, muitos nem sabiam exatamente o que estava acontecendo. O segundo dia foi dedicado para discutir o Projeto Calha Norte. No final do terceiro dia elegeu-se a diretoria da Federao, cujo mandato seria de trs anos (at 1989), que ficou assim constituda: Edgar Fernandes (Bar); presidente; Orlando Melgueiro (Bar), vice-presidente; e Pedro Garcia (Tariano), secretrio e Edna Trindade, tesoureira. Nenhum representante de Pari-Cachoeira aceitou a indicao de sua delegao alegando que tinham experincia de organizao que lhes proporcionava muitos inimigos. Os irmos Machado por sua vez eram funcionrios da FUNAI. Antes de terminar a Assemblia o General Bayma Denis declarou que iria ajudar a Federao recm criada e apoiar a demarcao da terra indgena. Em seguida a FUNAI financiou a viagem de Edgar Fernandes7 a Braslia para apoiar a minerao em terras indgenas durante a Assemblia Nacional Constituinte. Ele
Tem 38 anos de idade, fala lngua geral, nasceu na cidade de So Gabriel da Cachoeira. Seu pai Bar, nasceu no stio Cachimal, em frente cidade, na outra margem do rio Negro. Sua me Piratapuia e nasceu em um stio no mdio Tiqui, perto da comunidade Bela Vista e de Pari-Cachoeira. Seu pai trabalhava na
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concordou com a proposta das colnias indgenas e da explorao mineral em rea indgena desde que tivesse o consentimento da comunidade envolvida. Ele achava que este seria o nico meio de trazer investimentos para a regio, que estava abandonada, no existiam alternativas no-governamentais de acesso a recursos. Os demais membros da diretoria no concordaram e resolveram fazer uma assemblia extraordinria para discutir o assunto. Orlando Melgueiro e Pedro Garcia viajaram para So Paulo, buscaram assessoria atravs da UNI e obtiveram apoio do CIMI e do CEDI. Organizaram a reunio que ocorreu em setembro de 1987 no ginsio do colgio salesiano. Ao mesmo tempo o prefeito Quirino fez outra assemblia na Escola Agrotcnica para a qual convidou militares de Braslia. [...] Houve um fracasso da assemblia, porque muita gente ia para a assemblia da escola agrotcnica e quando voltavam j chegavam no ginsio com dio de ns. Nos acusavam de querermos voltar para trs, que ramos contra o progresso, esse pessoal da FOIRN so antiprogresso e no podemos aderir. [...] (Orlando Melgueiro, entrevista. Op. cit.). Decidiram ento sair do ginsio e foram para o Clube Rio Negro, onde participaram em torno de 200 pessoas. Ocorreram manifestaes contrrias ao presidente da FOIRN e ele renunciou. Ele mesmo declarou-se na ocasio sem condies de conduzir a organizao naquele clima conflituoso. Em recente depoimento concedido a mim Edgar Fernandes declarou que foi pressionado tanto pelo grupo do CIMI quanto pelo grupo dos Machado, os tukanos, que queriam centralizar todas as decises. Na sua opinio seu ato contribuiu para uma maior democratizao do movimento indgena no Alto Rio Negro. [...] Eu fiquei chateado... j para ter uma reunio extraordinria e eu renunciar, que eu estava vendo que eu estava criando um conflito l dentro. Tinha
antiga SUCAM, atual FUNASA. Edgar estudou em regime de semi-internato, de manh estudava e de tarde voltava para casa e trabalhava com seu pai na roa, no stio. Formou-se no magistrio em 1981 e estudou no colgio salesiano de So Gabriel da Cachoeira desde a primeira srie. Nunca lecionou, logo que se formou foi servir o exrcito, passando trs anos l. Trabalhou como civil no exrcito, na poca em que foi implantado o BEC (Batalho de Engenharia e Construo) que construiu a estrada para Cucu. Trabalhou durante um ano como civil e dois anos como militar. Foi cabo e saiu em 1984 como 3o Sargento da Reserva. Trabalhou na prefeitura em 1985, gesto do Raimundo Quirino, como secretrio de administrao. No colgio So Gabriel ele estudava no curso de magistrio de manh e noite contabilidade. Depois de sua renncia presidncia da FOIRN afastou-se definitivamente do movimento indgena.

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presso da igreja progressista e do CIMI, pressionaram muito j para eu renunciar. E tambm os tukanos disseram que iam centrar muito o movimento indgena na mo deles. O meu objetivo era democratizar o movimento, sabe como todo o comeo difcil, mas eles (os Tukano) queriam centralizar tudo, tipo assim um regime autoritrio, s eles mandarem, eu renunciei. Foi bom ter renunciado porque deu maior abertura para o movimento indgena. A turma do Gersen, o Orlando Bar, eram da minha chapa, mas ficaram revoltados comigo. [...] O vicepresidente, Orlando Bar, comeou a articular a minha sada, a minha renncia. Para no ter muito atrito, muita briga, eu renunciei. Os tukanos queriam que eu ficasse, com o apoio do governo, davam todo o apoio para mim, mas s que eu renunciei por causa disso, para dar mais abertura para a FOIRN. [...] (Edgar Fernandes, entrevista. So Gabriel da Cachoeira, 22/10/2001). Nas reas de implementao do Projeto Calha Norte o rgo indigenista recebeu uma certa injeo de recursos e estava nomeando funcionrios. A estrutura administrativa em So Gabriel era pequena, era um ncleo de apoio subordinado a superintendncia regional de Manaus. Em 1988 tornou-se administrao regional. Em junho de 1987, Edgar Fernandes foi contratado pela FUNAI como tcnico de contabilidade, cargo que ainda ocupa atualmente. Este foi mais um elemento na sua deciso de renunciar presidncia da FOIRN, pois como funcionrio pblico no teria mais tempo para dedicar ao movimento indgena. Por outro lado, a estrutura da Federao ainda era muito precria, recebia um pequeno apoio da FUNAI e dos salesianos, no tinha sede e a diretoria no era remunerada. lvaro Sampaio teve um desempenho ambguo devido sua dupla ligao com o movimento indgena nvel nacional e com os irmos Machado, ligados cpula militar do governo Jos Sarney, o Conselho de Segurana Nacional.8 lvaro Sampaio representou a UNI-Amazonas e estava acompanhado do presidente da UNI, Ailton Krenak. H militantes indgenas que qualificam esta sua maleabilidade poltica como diplomacia, busca do

O prprio Pedro Machado declarou para mim, em entrevista concedida em So Gabriel da Cachoeira, que quando ia a Braslia tinha contato direto com o General Bayma Denis. Deu a entender que sua demisso da FUNAI em 1990, injusta do seu ponto de vista, s ocorreu quando o Bayma no estava mais no poder, no governo Collor. Seu irmo Benedito ainda funcionrio da FUNAI.

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dilogo e da conciliao entre posies opostas. Sua importncia atribuda a sua experincia, circulao e contatos com organizaes indgenas e entidades civis de apoio. O lvaro foi uma figura-chave neste processo porque antes de 1986 ele j viajava, s ele tinha conhecimentos fora daqui, de liderana indgena. Ele trazia informaes e conhecia alguns canais; ele j conhecia o CEDI e o CIMI. E ele j era membro da UNI de So Paulo, ele foi um dos diretores. Depois disso ele preferiu que a FOIRN, a UNI-Amazonas, que ento existia que estava com o Manoel Moura, caminhasse sem ele, mas ele foi um dos que orientou em parte. lvaro na poca foi a favor do Calha Norte e das colnias agrcolas, mas ele foi a favor mas muito diplomtico, diferente de outros Tukano que eram muito radicais. Os outros Tukano chegaram a brigar fisicamente: Voc no concorda, ento caia fora daqui. lvaro no, ele costurava, conversava, dialogava. Teve uma poca que ele foi pressionado pelos outros Tukano: Como voc Tukano, ento vai defender a bandeira dos Tukano. A houve o afastamento dele do nosso grupo. Antes disso ele fez uma denuncia contra a igreja l na Holanda, e mesmo tendo feito isso ele manteve boas relaes com o CIMI, e segundo informaes teve pessoas do CIMI que o orientou no caso da viajem dele para a Holanda. Houve um afastamento de lvaro com o CIMI depois [da denncia] na imprensa das articulaes dos Tukano com o Calha Norte. [...] (Depoimento de um militante que participou do processo de criao da FOIRN, entrevista). Outros o classificam como oportunista, o acusam de buscar vantagens pessoais e no se comprometer sinceramente com a luta do seu povo. Um dos entrevistados me disse que ele falava em tukano, na II Assemblia, contra os militares e em portugus defendia o Projeto Calha Norte. uma figura polmica, que destoa do modelo de liderana que discute os problemas e solues em assemblias e defende as decises geradas nestes espaos em que a combinao entre democracia representativa e participativa depende da escala de ocorrncia deste tipo de organizao do debate pblico.9 Pretende exercer uma liderana na
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No estou idealizando os comportamentos e atitudes dos ativistas indgenas, que nem sempre seguem tal modelo, mas referindo-me a uma idealizao da conduta vigente no campo social da indianidade correspondente a um dos elementos da tica que preside a organizao e mobilizao da identidade tnica nos

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qual se assume como a personificao dos verdadeiros interesses dos povos indgenas, seu porta-voz permanente e inquestionvel. Estamos falando na verdade de um momento em que ainda no est plenamente institudo tanto no Rio Negro quanto no Brasil o ndio cidado, aquele tipo de militante indgena estreitamente vinculado ao associativismo globalizado, isto inserido numa esfera pblica no-estatal e transnacional, a partir de estruturas altamente reflexivas e formalizadas de mobilizao e formulao de polticas tnicas. Um ms aps a realizao da II Assemblia lvaro Sampaio renunciou ao cargo de coordenador da UNI, que ocupava desde 1984, e investiu em uma campanha de convencimento no Alto Rio Negro, pela demarcao em colnias indgenas e florestas nacionais (A Crtica, 28/05/87, apud CEDI, 1991).

moldes do associativismo. Esta tica pode entrar em conflito ou combinar-se com esquemas locais de liderana baseados em hierarquias prevalecentes fora do modo associativo de estruturao das decises coletivas. Existem reivindicaes de reconhecimento da condio de lder recorrendo a princpios tradicionais de hierarquia social, cuja negao remeteria a influncia da sociedade envolvente. Cabe lembrar, entretanto, que alguns ativistas reconhecem no viver mais como ndio, ou seja, tradio e modernidade no so categorias to rigidamente delimitadas e equivalentes a passado e presente. O fato de morar na cidade, viver como branco, no se ope s demandas de legitimidade, fundadas nos costumes nativos autnticos, da sua liderana. Podemos remeter a estilos diferentes de liderana, como o estilo aguerrido e herico, mais voltado para atos de encenao da tradio e que tem um apelo miditico maior, vigente no Brasil Central (cujos exemplos mais impressionantes vem dos Xavante e dos Kayap), e o estilo discursivo e reflexivo, mais voltado para a conciliao entre indianidade e modernidade e menos espetacular, vigente no Noroeste Amaznico.

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CAPTULO VII. EXPANSO DO ASSOCIATIVISMO X COLNIAS INDGENAS (1987-1992). No incio de 1988, foram criadas trs colnias indgenas (Pari-Cachoeira I, II e III) e duas florestas nacionais. No ano seguinte, o quadro se completa com o reconhecimento oficial no Alto Rio Negro de duas reas indgenas, nove colnias indgenas e nove florestas nacionais. Em 1990, as colnias indgenas foram homologadas como reas indgenas, rodeadas pelas florestas nacionais. Neste percurso poltico-administrativo, desapareceu tanto a necessidade de autorizao das comunidades indgenas (atravs de contratos de explorao celebrados entre as empresas, associao indgena, FUNAI e CSN) para o uso econmico destas reservas de recursos naturais por no ndios quanto a sua destinao para a execuo de projetos de desenvolvimento e assistncia s comunidades indgenas (Buchillet, 1991). Lideranas indgenas, sob os auspcios da FUNAI, foram a Braslia apoiar a minerao em terras indgenas durante o processo parlamentar de elaborao da Constituio Federal e a fragmentao do territrio indgena. Os dirigentes da FOIRN foram acusados de ser contra o progresso e de fazer campanha contra o governo e o PCN. Este momento foi marcado pelo confronto entre as lideranas da FOIRN, que at foram proibidas de embarcar nos avies da Fora Area Brasile0ira, com representantes locais do Estado (exrcito e FUNAI). Uma rede permanente e consolidada de alianas e parcerias ainda no existia. A Federao recebia apenas algum apoio da UNI, de onde vinham os recursos para viagens para outros estados do pas, da UNI-Amazonas e do CIMI-Norte I. Pedro Garcia assim caracterizou este perodo herico: [...] O movimento indgena comeou assim com muita misria e muita dificuldade; com muita coragem de levar o trabalho para frente [...] (Pedro Garcia, entrevista. Op. cit.). O CIMI assessorava tambm as assemblias de algumas associaes como as da ACITRUT e da UNIDI contrrias s mineradoras, ao PCN e ao insulamento de suas terras. Os dirigentes da UCIRT, da SOCITRU1 e da UCIDI aceitaram as colnias indgenas em vista das promessas de projetos de desenvolvimento acenadas pelos militares e pela FUNAI.

Esta organizao foi substituda pela ACITRUT em 1990 que passou a opor-se s colnias indgenas.

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Orlando Melgueiro (Bar) foi eleito presidente na Assemblia Extraordinria de setembro de 1987, em substituio a Edgar Fernandes. Pedro Garcia (Tariana) ocupou o cargo de secretrio e Sebastio Maia (Tukano) o de tesoureiro. Em 1989 Orlando Melgueiro e Pedro Garcia, acatando a sugesto de Ailton Krenak, ento presidente da UNI, foram estudar direito na Universidade Catlica de Goinia/GO. No permaneceram nem um ano e retornaram. Orlando ficou em Manaus at 1992, integrando a diretoria da Coordenao das Organizaes Indgenas da Amaznia Brasileira (COIAB), criada em 1989, e Pedro Garcia retornou a So Gabriel da Cachoeira, mas s reassumiu seu cargo de secretrio em agosto de 19912. Juscelino Gonalves (Bar)3 permaneceu no cargo de presidente da FOIRN em 1989, mas logo se afastou para candidatar-se vice-prefeito, tendo sido eleito. Orlando Melgueiro em 1992 foi para Braslia integrar a diretoria da tambm recm criada Coordenao dos Povos Indgenas do Brasil (CAPOIB). Em 1982, Brs Frana voltara para sua terra natal, o rio Curicuriari, encerrando suas andanas pelas obras de engenharia civil implantadas em diversos lugares na Amaznia. Esteve presente na II assemblia, mas no como convidado nem como delegado, sua motivao foi apenas a curiosidade. At aquele instante ele ignorava a FOIRN. Na poca s existiam duas associaes indgenas: a UCIRT e a SOCITRU (Sociedade das Comunidades Indgenas de Taracu-Rio Uaps). Havia uma delegao de comunidades do Mdio Rio Negro (Cayuri, Jupati, Curicuriari, Tancredo Neves, Camanaus e Tapojs) na assemblia (II Assemblia dos Povos Indgenas do Alto Rio Negro apud CEDI, 1991: 128-134). Como esta comisso apresentou-se com uma identificao tnica mais restrita (Comunidades Indgenas da Tribo Tukano do Baixo Rio Negro), Brs Frana, por ser Bar, no a integrou. Sua comunidade, Curicuriari, foi representada por Napoleo Garcia. Destaque-se que um ano depois foi criada a ACIBRN e seu primeiro presidente foi Brs Frana. O vicepresidente era Alberto Garcia, Tukano, o secretrio era Gregrio Maia4, Tukano, e o tesoureiro era o Casemiro Fonseca, Arapao. Em 1989, a mesma diretoria foi reeleita. A criao da FOIRN, os processos novos e conflituosos de ocupao e uso dos recursos naturais no Alto e Mdio Rio Negro e o reconhecimento pela Constituio Federal
Relatrio Geral das Atividades da Federao das Organizaes Indgenas do Rio Negro, no perodo de maro de 1990 a setembro de 1992. 3 Alguns lderes indgenas negam a sua ascendncia Bar. 4 Pai de Miguel Maia, que posteriormente tornou-se membro da diretoria (tesoureiro) da FOIRN (1997-2000), e principal articulador da sua candidatura na Assemblia Geral Eletiva de 1996.
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de 1988 do direito dos povos indgenas e suas organizaes de se fazerem representar diretamente nos tribunais e perante o Estado brasileiro, deflagraram a expanso do associativismo como forma privilegiada de mobilizao e organizao poltica da etnicidade. [...] O problema que realmente despertou a revolta da populao do mdio rio Negro foi quando a Paranapanema entrou, invadiu para l, no Trara, tudo, eles colocaram tambm uma equipe de seguranas l dentro do Curicuriari e do Mari. Ningum podia entrar l para pescar, tirar material de casa... era sempre empatado pela segurana. Isto foi um impacto muito grande a para a sociedade. Foi quando a gente reforou realmente a criao da ACIBRN, para a gente lutar contra isso a, defender nossos direitos. Foi o nosso objetivo de criar a associao: combater esta situao que estava a na nossa calha. [...] (Brs Frana, entrevista. So Gabriel da Cachoeira, 30/10/2001) De 1985 a 1988 as mineradoras Gold Amazon e Paranapema operavam nos rios Curicuriari e Mari, restringindo a livre circulao e uso das riquezas da floresta pelos moradores indgenas das comunidades e stios devido ao estabelecimento de um esquema privado de segurana na regio. Garimpeiros vindos de Roraima e expulsos do territrio Yanomami, em busca das reservas minerais da Serra do Trara, dirigiam-se para as cabeceiras do Curicuriari e Mari, perturbando a vida rotineira nos povoados indgenas. Como no bastasse o presidente da repblica Jos Sarney criou uma gleba militar nesta zona interfluvial, satisfazendo as demandas do slido e amplo setor militar da cpula governamental em Braslia de controle dos processos de distribuio dos recursos na Amaznia. Acrescente-se a tudo isto o antigo problema da explorao extrema da fora de trabalho extrativista sob o regime de aviamento (Meira, 1991). Na assemblia extraordinria de maro de 1990 a ACIBRN solicitou ao Ministrio Pblico a realizao de um levantamento antropolgico no Mdio Rio Negro. Os militares, os funcionrios da FUNAI, os salesianos, os garimpeiros e os comerciantes no consideravam a existncia de populao indgena jusante da Ilha das Flores, excetuando os grupos Maku, logo o aparecimento da ACIBRN no cenrio intertnico do Rio Negro

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expressou a culminncia de um fenmeno de transformao do estigma da ancestralidade nativa em orgulho tnico, de recuperao moral da etnicidade indgena como elemento positivo de construo social do Self individual e coletivo no Mdio Rio Negro. Os esforos deliberados e reflexivos de redefinio das fronteiras tnicas so gerados em um espao discursivo emergente e relativamente autnomo, no mais ligado exclusivamente ao campo semntico da ao missionria salesiana e das suas novas e sutis estratgias de controle eclesistico. A diminuio da importncia da nova embalagem assumida pelos bens de salvao da alma e afirmao da dignidade humana, dentre os quais o resgate e valorizao da tradio foram enfatizados, foi dissociando as figuras do agente pastoral leigo especialmente o catequista e do ativista indgena. A lealdade e o compromisso com a preservao de um patrimnio cultural genuno foram despidos dos signos da religiosidade catlica. 5 O associativismo ps Constituio Federal de 1988, cujo eixo a noo de reconhecimento universal de uma cidadania diferenciada, substituiu o cristianismo ps Conclio Vaticano II de 1962, cujo princpio central a opo preferencial pelos pobres. Novos aliados surgem: as ONGs, no lugar das Misses; e um novo mediador no indgena: o antroplogo-assessor (principal autoridade acadmica em povos indgenas, mas que no exclui a contribuio de outros peritos como advogados, mdicos, agrnomos, jornalistas, educadores... em geral sob orientao ou inspirao antropolgica), no lugar do padre itinerante; e um novo tipo de ao: a colaborao cientfica ou tcnica no lugar da pregao religiosa, mas ambas politicamente engajadas. Sendo assim, o levantamento antropolgico coordenado pelo antroplogo Mrcio Meira, indicado pela Procuradoria Geral da Repblica (PGR) aps consulta Associao Brasileira de Antropologia (ABA), e a assemblia indgena da ACIBRN, na comunidade Curicuriari, realizados em 1990, constituram palcos privilegiados para a demonstrao de autenticidade cultural (uso de lnguas indgenas, apresentao de danas, cantos, rituais como o dabucuri e referncia a mitos para articular e legitimar um discurso em defesa de direitos baseados na etnicidade indgena) diante de interlocutores, autoridades, relevantes
No caso das parquias de So Gabriel da Cachoeira, Santa Isabel do Rio Negro e Barcelos principalmente a ausncia ou escassez de registros nos documentos salesianos sobre a implementao de uma pastoral baseada na inculturao, apesar do reconhecimento da existncia de comunidades formadas por migrantes indgenas provenientes dos rios Vaups e Iana, sugere uma percepo diferente das necessidades e privaes como a explorao pelos patres do extrativismo de populaes caboclas ou de ndios aculturados.
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do mundo dos brancos. Neste contexto caracterizado por prementes demandas de direitos territoriais as visitas do antroplogo aos povoados tambm se depararam com procedimentos explcitos de representao da tradio. Elementos do universo cristo como as festas em homenagem aos santos padroeiros dos povoados foram mobilizados pelos Bar para estabelecer fronteiras simblicas com outros grupos tnicos indgenas ou no.6 Emerge uma esfera pblica em torno da indianidade, uma incipiente sociedade civil local e indgena pressiona os agentes governamentais a dialogar. Estes por sua vez, diante desta demanda de participao, estrategicamente recrutaram lderes para o seu quadro de funcionrios e tentaram direcionar o movimento indgena emergente para os seus objetivos geopolticos. Manipularam categorias do imaginrio intertnico regional interpretando-os segundo os conceitos oficiais ento vigentes de ndio isolado ou arredio e ndio integrado ou aculturado. Neste contexto desenvolvimento e garantia plena de direitos territoriais apresentavam-se para muitos como incompatveis; a tradio e a modernidade no poderiam ser conciliadas. [...] Para mim o pessoal de Yauaret dizia que eu era contra o progresso, que eu ia fazer uma maloca e viver nu dentro dela [...] (Pedro Garcia, entrevista. Op. cit.). No perodo entre 1987 e 1992 surgiram doze novas associaes7 em um clima de agudo conflito entre a populao indgena em torno das propostas alternativas de demarcao em colnias indgenas ou territrio contnuo. O critrio aglutinador era geogrfico (um conjunto de povoados localizados em um trecho de rio, em um ou mais rios, ou em um distrito), e sua composio era etnicamente diversificada. Isto demonstra que a atual distribuio dos grupos tnicos ao longo dos rios, a interdependncia existente entre eles (cujo eixo o princpio da exogamia) e os problemas comuns de um conjunto de comunidades estabelecidas em uma determinada localidade configuram o modelo associativo de mobilizao poltica da etnicidade no Rio Negro. Algumas motivaes mais imediatas podem ser identificadas: dissidncia a alguma associao j existente, demanda de representao e mobilizao polticas de um grupo de comunidades ainda no integradas
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Para a anlise de outro contexto onde signos cristos so utilizados como fontes carismticas que conferem vitalidade e visibilidade indianidade, vide: Taussig, 1996. 7 Organizaes Indgenas do Rio Negro apud ISA, 2000: 267-268. Quatro destas associaes surgiram nas calhas do Iana/Xie, quatro na calha do rio Negro, trs no Baixo Vaups/Tiqui e uma no Alto Vaups/Papuri. No estou considerando a CIPAC (1989) porque ela o resultado de uma reformulao da antiga UCIRT.

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na estrutura associativa emergente ou inseridas em uma associao onde no tem visibilidade prpria (ACIRU) e expresso de interesses setoriais (gnero, ocupacionais, etc.). [...] A luta principal nos primeiros momentos foi a demarcao, nos encontros, nas reunies, aqui na sede do municpio, nas bases, tudo rolava em torno de demarcao. Era uma bandeira principal que a gente levantou. A gente dizia ns vamos conseguir a demarcao. No meio desse discurso algumas lideranas viajaram para Braslia e negociaram o tipo de demarcao que foi feito aqui para a regio: colnias indgenas (1988/9). O nosso discurso l da base era pela terra contnua. [...]. [...] Criaram treze ilhas [reas indgenas] aqui na regio e a gente ficou meio dividido. Ns dissemos no, no queremos este tipo de demarcao, e comeou a luta de novo, e a luta foi muito maior quanto teve essa demarcao. O pessoal da minha comunidade arrancou os marcos que foram colocados na beira do Vaups, inclusive na rea do Capauari, afluente do Curicuriari, rea tradicional de pesca do pessoal de Anans, e l tinha um marco e ns pegamos e jogamos fora, pelo menos para dizer que estvamos contra este tipo de demarcao. Tiramos vrias lideranas que estavam coordenando algumas associaes de base e que foram cooptados tambm pelas autoridades e colocamos o nosso pessoal que estava na luta, na mesma caminhada. [...] (Maximiliano Menezes, entrevista. Op. cit.). Em maro de 1990 ocorreu uma assemblia extraordinria, convocada por alguns membros da diretoria provisria, que teve o apoio da UNI-Amazonas cujo coordenador era Manoel Moura (Tukano), na qual Brs Frana foi indicado para a presidncia da FOIRN. Estavam presentes dois Procuradores da Repblica. Encaminhou-se um documento para o Ministrio Pblico reivindicando a demarcao do Alto Rio Negro como territrio contnuo, em contraposio a insulamento oficial das suas terras, rodeadas por florestas nacionais. Os coordenadores do evento perguntaram s lideranas presentes quem estava disposto a assumir provisoriamente a presidncia da FOIRN. Ningum se apresentou, exceto Brs Frana que recebeu a aprovao da assemblia. Gersen Luciano (Baniwa) foi

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indicado como tesoureiro. As condies fsicas e logsticas (sede, equipamentos de administrao, comunicao, transporte, etc.) da FOIRN eram extremamente precrias: s uma casinha (onde hoje o almoxarifado), uma mesa e uma mquina de escrever manual emprestada. At ento s havia um mimegrafo a lcool. A nvel local s quem apoiava a organizao era a igreja catlica de So Gabriel. Eles forneciam o material necessrio para as atividades rotineiras da diretoria. Brs Frana morava prximo da sede e no final de semana ia para o seu stio, onde ele tinha roa, criao de animais, fruteiras, etc. Quando retornava cidade vendia a produo do stio (bananas, ovos, etc.) obtendo assim uma renda monetria razovel para sua subsistncia e para comprar algum material de escritrio para a Federao. A nova diretoria fez imediatamente um diagnstico do movimento indgena no Rio Negro at aquele momento e elaborou um planejamento bi-anual (1990/1991). Contaram com a assessoria da seo Norte I do CIMI. Tal plano de trabalho, divulgado junto s entidades de apoio, obteve o auxlio financeiro de uma agncia belga de fomento, a Broederlijk Delen, no valor de U$ 30.000,00.8 [...] Elaboramos um projeto de quinze mil dlares, para dois anos, encaminhamos e devolveram solicitando que procurssemos um assessor para detalhar mais o projeto. Fui para Manaus duas vezes detalhar esse projeto, em maro e abril, eu fora convocado para criar a COIAB. Depois em final de junho desci novamente para dar os ltimos detalhes em Manaus e em setembro este projeto foi aprovado. Em novembro veio o cheque de dezenove mil dlares. Foi quando a gente comeou a trabalhar: montar uma agenda de trabalho, permanecer com o escritrio aberto, j comeou a ficar a mais claro. [...] Ento deu para trabalhar mais um pouco a partir do final de 1990 quando vieram os primeiros recursos. O projeto era para dois anos: dezenove num ano e dezesseis [mil dlares] no outro ano. J estvamos mais ou menos com os recursos garantidos, ns s
Correspondncia da FOIRN para a CESE (Coordenadoria Ecumnica de Servios). So Gabriel da Cachoeira, 01 de Fevereiro de 1992. Assina: Brz de Oliveira Frana, presidente; e Carta no 018/92. Da Federao das Organizaes Indgenas do Rio Negro para a Fundao Nacional do ndio. Assunto: comunicao e esclarecimento. So Gabriel da Cachoeira, 19 de Fevereiro de 1992. Assina: Brz de Oliveira Frana, presidente. A aproximao da FOIRN s entidades de apoio estrangeiras comeava a ser alvo de acusaes de entreguismo e internacionalizao da Amaznia, o que motivou a prestao de esclarecimentos FUNAI sobre o assunto.
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tnhamos que priorizar algumas atividades para que os recursos fossem suficientes. O projeto era para fazer articulao poltica: fazer reunies, conscientizao poltica, um pouco assim de administrao (compra de material)... Nem mquina de escrever no tnhamos, no tnhamos nada, s tnhamos a casinha da sede. [...] (Brz Frana, entrevista. Op. cit.). A FOIRN comeava a fincar os ps no terreno da cooperao internacional. Este era apenas o primeiro passo da estratgia maior para ampliar o leque de conexes e buscar parcerias mais duradouras com organizaes indgenas e entidades de apoio em mltiplas escalas (regional, nacional e mundial). A consulta de correspondncias da diretoria da FOIRN neste perodo9 causa a impresso de que esta organizao belga era considerada a principal fonte financiadora, pois para ela eram enviados relatrios gerais sobre as atividades da Federao e ela era o objeto de tticas de aproximao (convite de visitas ao Rio Negro e envio do informativo AYURI) cuja finalidade era consolidar tal parceria institucional. Dois objetivos foram privilegiados neste momento: montar uma infraestrutura administrativa (fax, telefone, mimegrafo, mquina de escrever, material de escritrio... enfim, organizao da sede) e estreitar os laos entre a Federao, as comunidades e associaes em formao (edio e divulgao do informativo peridico AYURI, viagens pelo interior e participao, s vezes at buscando recursos para sua realizao, nas assemblias das organizaes locais). Esta ltima finalidade era urgente por causa das circunstncias: a campanha empreendida pelos candidatos a cargos do executivo e legislativo municipal durante as eleies de 1989 com o objetivo de desacreditar a FOIRN. Outros projetos menos urgentes eram encaminhados para outras organizaes. Marcar presena diretamente nas comunidades e associaes foi considerado imprescindvel. No final da gesto 1990-1992 s faltava visitar o Alto Iana e o Baixo Rio Negro. As viagens para estas reas foram consideradas como prioritrias para o planejamento do ano de 1992 e foram feitos esforos junto a entidades de apoio (CESE e

Correspondncia da FOIRN para Broerdelijrk Delem. So Gabriel da Cachoeira, 13 de Junho de 1991. Assinam: Brs de Oliveira Frana, presidente; Gersen dos Santos, tesoureiro; e Mirian Ambrsio de Sousa, secretria; e Correspondncia da FOIRN para Broerdelijrk Delem. So Gabriel da Cachoeira, 13 de Junho de 1991. Assinam: Brs de Oliveira Frana, presidente e Gersen dos Santos, tesoureiro.

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FAFO-Internacional) para atingir tal intento.10 Cabe destaque para as reunies convocadas pela diretoria com os dirigentes das associaes locais para avaliar a situao do movimento indgena, levantar prioridades e propor encaminhamentos futuros.11 Podemos ver nestes eventos o prenncio do Conselho Administrativo que ser criado na Assemblia Geral Eletiva de dezembro de 1992. Em fins de 1991 a FOIRN encontrava-se novamente na situao de incerteza institucional, tendo de sair cata de aliados na rede transnacional de apoio ao movimento indgena. O esquema de prioridades naturalmente foi um pouco alterado. Os quatro principais eixos de atuao eram os seguintes: comunicao, centro de cultura indgena (U$ 57.000,00), reforma e estrutura do escritrio (U$ 13. 721,00) e assemblia geral de 1992 (U$ 9.352,00).12 O oramento total ia alm dos U$ 80.000,00. A montagem de uma boa estrutura administrativa persistiu. O primeiro e o quarto item programtico remetem a alteraes na maneira de intensificar contatos com as comunidades e organizaes locais, atravs da implantao de uma malha radiofnica no interior e do grande encontro peridico da Federao na sede municipal. E o terceiro item corresponde a uma nova demanda: resgate e valorizao das tradies indgenas. Alguns mediadores foram selecionados (como o Ailton Krenak, por sua experincia e prestgio neste campo, por exemplo) para conseguir o acesso a fontes de financiamento nacionais ou estrangeiros. Em meados de 1992 a Broerdelijk Delem continuava sendo considerada a principal parceira, pois a diretoria da FOIRN solicitou-lhe em maio deste ano os recursos financeiros mais volumosos (U$ 74.911,00) para cobrir os gastos com as atividades regulares. Os projetos mais especficos (infra-estrutura, centro de cultura, comunicao, transporte, assemblias) eram encaminhados a outras organizaes: CESE13, ADVENIAT14, CEBEMO, CARITAS

Correspondncia da FOIRN para o CESE (Coordenadoria Ecumnica de Servios). So Gabriel da Cachoeira, 01 de Fevereiro de 1992; e Correspondncia da FOIRN para FAFO-Internacional. So Gabriel da Cachoeira, 02 de Fevereiro de 1992. 11 Relatrio de Atividades da FOIRN Federao das Organizaes Indgenas do Rio Negro. Maro/1990 a Junho/1991. So Gabriel da Cachoeira, 15 de Junho de 1991. Assinam: Brz de Oliveira Frana, presidente e Gersen Jos dos Santos, tesoureiro. 12 O oramento do projeto de comunicao no foi mencionado (Correspondncia de Brs Frana para Ailton Krenak. So Gabriel da Cachoeira, 22 de Outubro de 1991). 13 Esta entidade financiou em meados de 1991 o Encontro de Lderes Indgenas do Rio Negro e as viagens da diretoria para o Alto Iana e para o Baixo Rio Negro em 1992 (Carta No 19/06/91. So Gabriel da Cachoeira, 19 de Junho de 1991. Assinam: Brz de Oliveira Frana, presidente, e Mirian Ambrsio de Sousa, secretria; e Correspondncia de Gersen Luciano para Paulo Maldos. So Gabriel da Cachoeira, 08 de Setembro de 1992. Assina: Gersen dos Santos Luciano, tesoureiro).

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(Sua)15, OXFAM16 (EUA), FAFO-Internacional (Noruega), Po Para o Mundo (Alemanha)17, Manos Unidas (Espanha), ICCO (Holanda), IIZ (ustria), etc.18 O CEDI assessorou o projeto de aquisio de barcos junto ICCO, que prontificou-se a apreci-lo e a intervir junto a outras organizaes para apoiar o projeto de aquisio dos equipamentos de radiofonia. A obteno de verba para a realizao da III Assemblia Geral Eletiva foi uma preocupao constante durante todo o ano de 1992, e no deve ter sido fcil, pois o evento foi adiado em um ms (de 08 a 11/11 para 09 a 11/12/1992). A Aliana Pelo Clima exigiu a mediao da COICA para apreciar o pedido de auxlio. A diretoria da FOIRN recorreu ao CIMI-Nacional para encaminhar o projeto da assemblia junto a entidades de apoio.19 A III Assemblia Geral ocorreu nos dias 09, 10 e 11 de dezembro, contou com a participao de 276 delegados das 16 associaes indgenas filiadas, alm de representantes da COIAB, CIMI-Norte, CIMI-Nacional, NDI (Ncleo de Direitos Indgenas) e CEDI. Houve uma reformulao das instncias de participao e tomada de decises da
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Esta entidade financiou a III Assemblia Geral da ACIBRN (Correspondncia da FOIRN para Alberto Padilha Garcia, presidente da ACIBRN. So Gabriel da Cachoeira, 10 de Agosto de 1992. Assina: Brz de Oliveira Frana, presidente). 15 CEBEMO e a CARITAS foi encaminhado o projeto do Censo Indgena. Foram indicados os antroplogos Mrcio Silva (Universidade Estadual de Campinas) e Mrcio Meira (Museu Emlio Goeldi) para assessorar a sua execuo, que comeou em agosto de 1992 e contou com a colaborao das associaes locais (Correspondncia da FOIRN para CERIS. So Gabriel da Cachoeira, 06 de Maio de 1992. No tem assinaturas e o documento um manuscrito; e Relatrio Geral das Atividades da Federao das Organizaes Indgenas do Rio Negro, no perodo de maro de 1990 a setembro de 1992). 16 Esta entidade financiou assemblias indgenas no Rio Negro em 1991 (Correspondncia da FOIRN para OXFAM-Amrica. So Gabriel da Cachoeira, 18 de Fevereiro de 1992. Assina: Brz de Oliveira Frana, presidente). 17 Esta entidade financiou o I Encontro de Professores Indgenas do Rio Negro (U$ 15.000,00) (Correspondncia da FOIRN para Po Para o Mundo. So Gabriel da Cachoeira, 25 de Junho de 1992). 18 O Centro de Cultura, cujo oramento estava dividido em trs parcelas, totalizava em torno de U$ 22.500,00 e s a primeira parcela de U$ 9.000,00 (construo da sede) estava garantida pela ONG alem Po Para o Mundo. A aquisio de um barco comunitrio para a ACIRX (U$ 20.237,00) foi encaminhada a Manos Unidas da Espanha que naquele momento ainda no tinha respondido. A assemblia geral da FOIRN ainda estava sem financiamento e seu projeto fora encaminhada apenas a COICA (Coordenao das Organizaes Indgenas da Regio Amaznica). O projeto de comunicao ainda estava sem apoio e o de transporte foi encaminhado Holanda (ICCO), estava em estudo e sem oramento definido (Correspondncia da Diretoria da FOIRN para a Aliana Pelo Clima). Este documento no tem as assinaturas dos diretores nem data. Deduzse a data aproximada em meados de 1992 pela referncia no texto a UNCED. 19 Carta Circular. Assunto: apoio financeiro para a III Assemblia Geral da FOIRN. So Gabriel da Cachoeira, 24 de Junho de 1992. Assina: Gersen dos Santos Luciano, tesoureiro; Correspondncia da FOIRN para a COICA. So Gabriel da Cachoeira, 03 de Junho de 1992. Assina: Gersen dos Santos Luciano, tesoureiro; Correspondncia da FOIRN para Marta Azevedo, Setor de Documentao do CIMI-Nacional. So Gabriel da Cachoeira, 28 de Junho de 1992. Assina: Brz de Oliveira Frana, presidente; e Correspondncia de Gersen Luciano para Paulo Maldos. So Gabriel da Cachoeira, 08 de Setembro de 1992. Assina: Gersen dos Santos Luciano, tesoureiro.

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Federao. Foi criado o Conselho Administrativo, aumentado para quatro anos o mandato da diretoria que ficou constitudo por mais um cargo (vice-presidente20) e ficou estipulada a realizao da assemblia geral a cada dois anos. O Conselho Administrativo foi formado por um representante de cada associao filiada (16 membros), por elas mesmas indicados, e ficou incumbido de reunir-se duas vezes por ano com o objetivo de avaliar, fiscalizar o trabalho da diretoria e apontar caminhos para o aperfeioamento administrativo da FOIRN. Os fruns de discusso, planejamento e execuo da poltica indgena no Rio Negro ficaram assim hierarquizados: assemblia geral, conselho administrativo e diretoria executiva. Os quatro dirigentes eleitos foram os seguintes: Brz Frana (Bar/ACIBRN), presidente21; Gersen dos Santos Luciano (Baniwa/ACIRI), vice-presidente (57 votos); Maximiliano Menezes (Tukano/ACITRUT)22, secretrio (55 votos); e Flvio Carvalho (Desana/UNIDI), tesoureiro (67 votos). A votao foi organizada em trs momentos distintos: primeiro para presidente e vice-presidente, em seguida para secretrio e depois para tesoureiro. Concorreram 16 candidatos, um de cada organizao local; Pedro Garcia estava entre eles.23 Apesar de no haver ainda representao obrigatria de cada calha de rio na diretoria, que ser criada quatro anos depois, cada diretor era oriundo de uma calha diferente. Podemos observar tambm que, ao contrrio dos anos anteriores, a boa gesto de Brz Frana e Gersen Luciano, e as perspectivas promissoras abertas para o futuro, transformou os cargos diretivos da Federao em objeto de disputa, em meio de ascenso
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Este cargo foi extinto na assemblia geral de 1989. No temos informao sobre a votao obtida por Brz Frana. 22 Maximiliano Menezes trabalhava na escolinha da sua comunidade em 1988, 1989 e 1990, aps retornar da sua experincia no garimpo. Em Anans o catequista Pedro Meireles, Tukano, tinha contatos com o CIMI e recebia vrias informaes sobre o movimento indgena nos outros estados, como tambm sobre o prprio movimento indgena no Rio Negro, e repassava no domingo, depois da reza da manh. Foi quando surgiu a ACITRUT (Associao das Comunidades Indgenas de Taracu, Rio Vaups e Tiqui). Maximiliano participava desta organizao, mas nunca integrou a sua diretoria. Em uma das assemblias regionais promovidas pela FOIRN foi indicado como delegado para a assemblia extraordinria em 1989. Maximiliano foi convidado a escrever sobre o que acontecia nas comunidades no informativo AYURI da FOIRN, que ainda existe atualmente. No houve continuidade porque o presidente eleito naquela assemblia, o Jorge Pereira, no assumiu. Em janeiro de 1992 Maximiliano foi convidado pela diretoria provisria eleita em 1990 para fazer parte como colaborador nas viagens de articulao e ajudar na elaborao e divulgao do AYURI, o jornal da federao. 23 Carta Circular No 15/12/92. Assunto: III Assemblia Geral da FOIRN. So Gabriel da Cachoeira, 15 de Dezembro de 1992. Assinam: Brz de Oliveira Frana (presidente) e Maximiliano Corra Menezes (secretrio); e Relatrio da III Assemblia Geral da Federao das Organizaes Indgenas do Rio Negro, 09 a 11/12/92. O oramento total da assemblia ficou em U$ 16.856, 35 (Projeto Financeiro de Apoio Realizao da III Assemblia Geral da FOIRN).

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poltica no campo social da indianidade. Durante os trs primeiros anos (1987-1989) houve uma grande instabilidade no quadro dirigente da organizao, poucos desejavam assumir o leme de uma embarcao cuja estrutura era frgil para navegar em mar revolto. Em 1992, se o processo eleitoral foi tranqilo porque todos queriam a continuidade do trabalho, traduzido na boa votao obtida pelos eleitos (20 a 25% dos votos), a apresentao de 16 candidatos demonstra a existncia de alguma concorrncia.24 Infelizmente, no sabemos se a apresentao de candidatos por cada associao foi obrigatria e a votao dos demais concorrentes para avaliar melhor, mas podemos inferir pelo menos que estava longe de existir qualquer unanimidade em torno dos nomes escolhidos para comandar o movimento indgena no Rio Negro. Portanto, se havia uma parcela significativa de ativistas que queriam ver o crescimento do movimento, havia outra parcela tambm considervel que, apesar de aprovar no geral a gesto 1990/2, expressou um conjunto de demandas ainda no satisfeitas.25 Muitas delas sero alvo da ateno da diretoria nos prximos quatro anos, cujos esforos para concretizar tais expectativas apresentaro resultados positivos. O planejamento para o quadrinio 1993-1996 elaborado no ltimo dia do evento ressaltou os seguintes pontos: demarcao das terras do Alto Rio Negro em territrio contnuo; efetivao do Centro de Cultura para promover e resgatar a cultura indgena (lnguas, danas, costumes, etc.); elaborao de projetos especficos de auto-sustentao para cada sub-regio; na rea de sade e educao as reivindicaes apontaram para uma discusso ainda emergente sobre polticas mais democrticas e culturalmente diferenciadas de prestao destes servios pblicos.26 Como objetivos imediatos, alm do encaminhamento das demandas territoriais no Alto e Mdio Rio Negro, destaco o reconhecimento da urgncia em providenciar uma assessoria qualificada. Isto decorre da

[...] A segunda eleio foi muito pouco disputada, o pessoal estava mais interessado em ver o crescimento do movimento e fomos reeleitos tranqilamente, sem nenhuma polmica, foi rpida. [...] (Brz Frana, entrevista. Op. cit.). 25 Maior presso sobre o governo para demarcar as terras, mais apoio s assemblias e projetos das organizaes locais, maior ateno aos problemas de sade e educao, mais apoio participao de lderes locais a eventos fora do Rio Negro, maior divulgao de informaes nas bases e maior participao das associaes na administrao da federao (Relatrio da III Assemblia Geral da Federao das Organizaes Indgenas do Rio Negro, 09 a 11/12/92). 26 Cursos de formao de agentes de sade, remunerao dos agentes de sade, barco hospital administrados pelos ndios, bolsas de estudos para formar mdicos e outros profissionais indgenas de sade, o incentivo medicina tradicional e dos pajs, implantao de escolas de 1o grau no Alto Iana, apoio a uma educao bilnge e intercultural nas escolas rurais, elaborao de currculos e regimentos das escolas indgenas condizentes com as realidades locais, melhoria do salrio do professor.

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percepo da alta complexidade do contexto intertnico contemporneo que exige estratgias discursivas sofisticadas para fortalecer a capacidade interpelativa das demandas e polticas de identidade tnica. Com a ampliao da rede associativa indgena as demandas de acesso a benefcios pblicos ficaram estreitamente ligadas a atos reflexivos de preservao do patrimnio cultural e natural dos povos rio negrinos. A cosmo-politizao de suas demandas locais entrou em sintonia com a preocupao mundial em torno da crise ecolgica planetria e dos destinos da Amaznia conectando a FOIRN a esferas pblicas transnacionais, ampliando sua visibilidade, sua capacidade interpelativa e seu leque de alianas em vrios fruns polticos, conferindo ao movimento indgena no Rio Negro um novo flego. No bojo deste processo a agenda das lutas indgenas ampliou-se substancialmente abarcando os temas de transporte e de comunicao, de educao e de sade, de valorizao cultural e de alternativas econmicas.

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CAPTULO VIII. COSMO-POLITIZANDO OS PROBLEMAS LOCAIS, A ALIANA PELO CLIMA E O NOVO FLEGO DA FOIRN (1993-1996). Em 1992 Pedro Garcia retornou a Yauaret para assessorar a UNIDI, pois estavam ocorrendo muitos conflitos entre os prprios indgenas por causa da demarcao em reas reduzidas e cercadas por florestas nacionais. At 1995, dividia o seu tempo lecionando e colaborando com as associaes do distrito. A FOIRN comeou a ter visibilidade em alguns pases europeus com a visita, em 1988, da neta do antroplogo alemo Theodor KoschGrunberg ao Rio Negro com o objetivo de refazer o itinerrio percorrido pelo seu av e comparar a situao dos povos indgenas descrita por ele no incio do sculo XX com a aquela vista por ela. Pedro Garcia e sua esposa a conduziram durante 25 dias no rio Iana at Tunu, no rio Vaups at Yauret, e no rio Tiqui at So Domingos, acima de PariCachoeira, com todas as despesas pagas por aquela senhora. Ela ficou impressionada com a forte presena militar, era o auge da implantao do PCN, e com a preocupao dos militares diante da sua presena. Ao retornar para a Sua ela fez um relatrio sobre a viagem e divulgou na Europa. [...] Logo depois da viagem da neta do Kosch-Grunberg chegou uma outra... Clarita Goltemberg, se no me engano, uma alem, professora da Universidade de Kas. Ento essa idia de aliana pelo clima, vamos defender o ar e tal, essa idia comeou da Alemanha. Ento os pases europeus quase todos: a ustria... Ela chegou para conhecer o Amazonas: o desmatamento, como viviam os povos indgenas... Falou da Aliana pelo Clima, tinha interesse em trabalhar junto com os povos nativos, j trabalhava em outras regies do mundo, e grande parte era a preservao das matas, das florestas, dos rios, dos lagos... A negociamos com ela. Fiz uma viagem com ela, at Tunu e depois at Ipanor, depois at PariCachoeira, Taracu. Mostrei para ela qual era o alimento bsico, o que a gente plantava, as dimenses do nosso roado, a forma de utilizao, quanto tempo. Ela gostou e eu falei que se a gente tivesse financiamento, alguma ajuda, poderamos melhorar o regime alimentar mesmo sem acabar com a natureza, com a mata,

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seguindo a nossa tradio, a nossa forma de uso do solo. Desde milhares e milhares de anos que sempre estivemos aqui e nunca conseguimos acabar com a mata, ao contrrio, sempre preservamos. E que ultimamente com essa idia de criao de gado tinha aumentado o desmatamento para o plantio de pastos, mas a comunidade j viu que no dava certo, acabaram com isso, e continuavam pensando em outras coisas (criao de peixes e outros animais menores, ou at espcies silvestres mesmo). [...] (Pedro Garcia, entrevista. Op. cit.). A conexo dos problemas locais dos povos indgenas do Rio Negro com os interesses dos cidados do primeiro mundo pela preservao das florestas tropicais forneceu a FOIRN o capital simblico que foi convertido em parcerias institucionais com organizaes ambientalistas estrangeiras. [...] A partir da ela conseguiu fazer uma campanha na Alemanha e quem comprou foi a ustria, a Aliana pelo Clima da ustria ganhou a parada. Na poca foram apresentadas propostas de projetos. Foi quando o Brz foi fazer a primeira viagem como presidente da FOIRN para a ustria [1993], fazer a campanha, e com isto depois da viagem dela aqui e a do Brs consolidou. A gente vendeu algumas propostas de projetos e l eles fizeram o projeto, e o Brs foi l fazer a campanha em cima do projeto. Conseguiu recursos e a partir da a FOIRN despencou, cresceu de forma muito rpida, muitos compromissos... [...] (Pedro Garcia, entrevista. Op. cit.) [...] Ento resolvemos fazer um mega-projeto, mesmo sem assessoria, sem nada, vamos escrever o que a gente pensa. Esse projeto acabou rolando pelas agncias internacionais de direitos indgenas, inclusive naquele mesmo perodo estava sendo criada a Aliana pelo Clima [...] Como a FOIRN estava sediada em plena selva amaznica tinha tudo para participar desta aliana, s que teramos que ter o aval da COICA. Foi por isso que o nosso projeto foi bater l na Aliana pelo Clima e veio uma senhora chamada Clarita, representando a Aliana, para conversar com a gente. Andou pela regio. Ela veio duas vezes e orientou como

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deveria fazer. Sugeriu que deveramos ter mais ligao com a COICA para poder analisar melhor os nossos projetos, que foram parar l na Aliana pelo Clima na ustria. Foi quando eles comearam a ter uma ligao com os programas que tnhamos elaborado mesmo sem muita tcnica. [...] (Brz Frana, entrevista. Op. cit.) No final de 1992 foi aprovado pela Broerdelijk Delem o plano trienal de atividades (1993/1994/1995) apresentado pela FOIRN no incio deste mesmo ano, cujo oramento total era de U$ 47.000,00, liberados em trs parcelas anuais de U$ 19.000,00 (1o ano), U$ 16.000,00 (2o ano) e U$ 12.000,00 (3o ano). Tais recursos destinavam-se a um ncleo de aes e condies consideradas essenciais: manuteno do escritrio, despesas com pessoal, viagens s sub-regies e cursos de capacitao. O plano voltado para a infraestrutura foi enviado para a COICA a fim de conseguir o aval institucional necessrio para ter acesso aos fundos dos municpios europeus envolvidos na Aliana Pelo Clima.1 Uma comisso do Instituto de Cooperao Intenacional da ustria/IIZ fez uma excurso pelo Rio Negro em maio de 1993 junto de representantes do CEDI e da FOIRN, cujo resultado foi a assinatura de um protocolo de cooperao entre as trs entidades para planejar e executar projetos no mbito da rede ambientalista Aliana Pelo Clima, incluindo tambm fundos do governo austraco.2 Alguns meses depois Brz Frana visitou os municpios europeus envolvidos na campanha da Aliana Pelo Clima, sacramentando a insero do movimento indgena do Rio Negro na campanha europia em defesa do equilbrio ecolgico do planeta.3 O eixo da estrutura de apoio (poltica, administrativa, financeira, logstica, cientfica, tcnica, etc.) da FOIRN deixou ento de ser o CIMI/Broederlijk Delen e passou a ser o CEDI/IIZ. CEDI e IIZ assumiram de forma mais regular e permanente a assessoria e
Correspondncia da Diretoria da FOIRN para a Aliana Pelo Clima. Documento sem assinaturas e data. O Protocolo de Cooperao FOIRN/IIZ/CEDI expressa os termos bsicos de referncia para a cooperao entre as trs entidades para 1993 e 1994, como resultante do diagnstico da situao atual e projetos de futuro da prpria FOIRN e das associaes locais a ela filiadas. Em termos gerais, dentro do programa, cabe FOIRN e associaes apresentar e executar projetos de acordo com seus objetivos fundantes, cabe IIZ avaliar esses projetos nos marcos de referncia da Aliana Pelo Clima, repassar e prestar assessoria tcnica realizao dos trabalhos e, finalmente ao CEDI, prestar servios de assessoria tcnica nas reas de sua competncia. (Relatrio Narrativo de Atividades da FOIRN em 1993. Federao das Organizaes Indgenas do Rio Negro. Assina: Brz de Oliveira Frana, presidente). 3 No qual a conservao das florestas tropicais e em particular da Amaznia considerada estratgica (por sua alta capacidade de absoro de CO2 e de emisso de Oxignio) para a reduo do efeito estufa (aquecimento global) provocado pela poluio da atmosfera.
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financiamento de amplos setores de atividades do movimento indgena no Rio Negro. Ampliando-se e consolidando-se o quadro de sustentao financeira da Federao redefinese o ncleo de aes e condies para o fortalecimento institucional da FOIRN, comparado ao plano aprovado pela Broederlijk Delen, incluindo-se outras frentes de ao antes consideradas como projetos especficos.4 Todavia, nem sempre o IIZ conseguia captar integralmente os recursos solicitados ou aprovava todos os itens dos planos anuais apresentados pela FOIRN e por isso foi preciso preservar ou restabelecer contato com aliados antigos (CESE, PROPICA, Misereor, Manos Unidas, Po Para o Mundo) e atrair novos (Amigos da Terra, SSL, Universidade Federal do Amazonas) para suprir os enormes compromissos que se apresentavam.5 O leque de parceiros tornou-se ento mais diversificado, englobando agncias religiosas, rgos governamentais, ONGs nacionais e estrangeiras e centros universitrios de pesquisa e ensino.6 Cabe destaque neste perodo para a criao do Instituto Socioambiental em 22/04/1994, pois esta ONG constituir o sistema perito essencial para a permanncia da FOIRN na agenda do ambientalismo globalizado. O ISA originou-se num duplo movimento tanto de autonomia do Programa Povos Indgenas no Brasil/PIB do CEDI/SP, coordenado por Carlos Alberto Ricardo, como de fuso com o Ncleo de Direitos Indgenas/NDI, coordenado por Mrcio Santilli, de Braslia. Resultou da iniciativa de vrios profissionais e militantes dotados de larga experincia nas arenas indigenista e ecologista. uma ONG de porte considervel, considerando o volume de recursos materiais, humanos e financeiros que mobiliza. Sua capacidade de captao de recursos (no pas e no exterior, pblicos e privados) vem aumentando cada vez mais desde a sua
Assim alm da manuteno do escritrio, gastos com pessoal, articulao e formao foram includos transporte e comunicao, censo populacional indgena autnomo do Rio Negro, visita Federao Shuar, construo da sede e do centro cultural, apoio bsico s associaes filiadas e estudo de mercado. 5 Correspondncia de FOIRN para CESE. So Gabriel da Cachoeira, 17 de Agosto de 1995. Assina: Brz de Oliveira Frana, presidente. 6 Veja a lista de parceiros da FOIRN em 1995: Amigos da Terra FOE, Rio de Janeiro; Broederlijk Delen, Bruxelas; Comit de Apoio Rio Negro, Zurich; Conselho Indigenista Missionrio CIMI Norte I, Manaus; Comit Inter-Igrejas para a Cooperao ICCO, Zeist; Coordenadora Ecumnica de Servio CESE, Salvador; Diocese de So Gabriel da Cachoeira; Fundao da Universidade do Amazonas FUA, Manaus; Fundao Nacional de Sade FNS, Braslia; Fundao Nacional do ndio FUNAI, Braslia; Instituto Socioambiental ISA, So Paulo e So Gabriel da Cachoeira; Instituto Nacional de Pesquisas da Amaznia INPA, Manaus; Instituto para a Cooperao Internacional IIZ/Aliana para o Clima, Viena; Ministrio da Educao MEC, Braslia; Programa Regional de Apoyo a Pueblos Indgenas del Amazonas FIDA/CAF, La Paz; Sade Sem Limites SSL, So Paulo (Relatrio Geral das Atividades da FOIRN no Ano de 1995. So Gabriel da Cachoeira, 25 de Maro de 1996. Assinam: Brz de Oliveira Frana, presidente, e Maximiliano Menezes, secretrio).
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fundao. A sua receita total cresceu em mais de 500% desde a sua criao. Sua fonte financeira principal compe-se de doaes externas, cujos recursos cresceram num ritmo muito maior (mais de 600%) do que a receita proveniente de outras fontes; como as doaes nacionais (mais de 300%), aplicaes financeiras (9,3% negativos); s perdendo para as vendas de produtos e servios que cresceram mais de 1.000%.7 Nos seus poucos anos de existncia (1994-2001) o ISA montou um leque amplo e diversificado de colaboradores e financiadores, composto por 70 entidades; congregou aproximadamente 150 especialistas, mais ou menos permanentes, de reas diversas8 em torno de mais de 80 projetos9. Sua sede localiza-se em So Paulo, onde se concentra quase todo o seu pessoal administrativo (19), mas possui tambm duas outras unidades de apoio; uma em Braslia/DF e outra em So Gabriel da Cachoeira/AM, onde trabalham duas pequenas equipes administrativas compostas por quatro e por trs funcionrios respectivamente. Suas reas de atuao so as seguintes: produo e divulgao (em suportes udio visuais, impressos e digitais) de dados sobre a temtica scio-ambiental, incluindo a produo e difuso de informaes cartogrficas e desenvolvimento de sistemas de informao geogrfica; elaborao de diagnsticos scio-ambientais para subsidiar propostas de desenvolvimento sustentvel regional; monitoramento sobre as reas protegidas (Terras Indgenas, Unidades de Conservao e outros tipos de terras pblicas) do Brasil; monitoramento, anlise e interveno sobre legislao e polticas pblicas que interferem de algum modo em direitos coletivos e difusos sobre o meio ambiente; monitoramento, anlise e interveno sobre formas de uso dos recursos naturais na Mata Atlntica; promoo de projetos de desenvolvimento sustentvel e afirmao cultural junto a
Aproximadamente 80% das receitas do ISA provm da cooperao internacional: 40,1% de ONGs estrangeiras; 15% de rgos pblicos estrangeiros; 13,8% de instituies multilaterais e 11,5% de fundaes estrangeiras. As participaes das fontes nacionais de receita so as seguintes: 7,4% de fundos pblicos administrados pelo governo federal; 3,8% de empresas privadas; 2,0% da venda de produtos; 1,9% ONGs; 1,8% de fundos pblicos administrados pelo governo estadual; 1,2% recuperao de despesas; 0,9% instituies de pesquisa; 0,5% de rendimentos de aplicaes financeiras; 0,05% de scios contribuintes; 0,01 venda de servios (Instituto Socioambiental. Relatrio Financeiro 2001. Plano Trienal 1999-2001. Encarte do Relatrio de Atividades 2001). 8 Administradores, contabilistas, produtores grficos, jornalistas, documentalistas, programadores, administradores de rede, tcnicos de suporte, gegrafos, advogados, bilogos, arquitetos, engenheiros florestais, engenheiros de pesca, agrnomos, antroplogos, socilogos, pedagogos, eclogos, botnicos, geneticista, demgrafos, historiadores, fsicos, lingistas, matemticos, compositores musicais, pintores, fotgrafos e enfermeiros. 9 Instituto Socioambiental. Relatrio Anual de Atividades 2001. Abril de 2002.
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populaes tradicionais e povos indgenas; fortalecimento institucional de organizaes indgenas; formulao de sistemas de fiscalizao e vigilncia de terras indgenas.10 Para cumprir esta agenda o ISA se estrutura em setores de servios permanentes, ou seja, que constituem a sua base de sustentao administrativa, financeira e logstica (administrao, comunicao, informtica, desenvolvimento institucional e geoprocessamento), e de programas (aes de mbito nacional e regional), projetos (aes de mbito local e de consolidao institucional do ISA), grupos de trabalho (participao em fruns de debate e redes de cooperao e de intercambio de informaes com outras agncias da esfera scioambiental), temas (compilao, sistematizao e divulgao de dados sobre questes especficas), e campanhas (produo e anlise de dados sobre uma realidade scioambiental para subsidiar propostas de interveno).11 O Programa Rio Negro (PRN), coordenado por Carlos Alberto Ricardo, uma das plataformas de ao mais importantes do ISA em termos do contingente profissional que mobiliza e do volume dos recursos financeiros alocados. O PRN visa proporcionar as condies para a formulao de um Projeto Regional de Desenvolvimento Sustentvel Indgena no Rio Negro, costurado a partir de um conjunto de pequenos projetos demonstrativos. Seus componentes so: pesquisa, documentao e mapeamento (formas de uso dos recursos e de ocupao da terra, condies sanitrias, nutrio, demografia, doenas, etc.); experincias de manejo sustentvel dos recursos naturais; educao, valorizao cultural e afirmao tnica; e consolidao institucional da FOIRN e associaes filiadas. Dentro desta linha de atuao esto: a Estao experimental de piscicultura no alto Tiqui; as escolas indgenas Baniwa/Curipaco no alto Iana, Tuyuca no alto Tiqui e o centro cultural Tariana no alto Vaups; e a produo e comercializao de cestaria de arum Baniwa no alto Iana. Est envolvido na consecuo das metas do PRN o maior contingente de profissionais (40), aproximadamente 25% de todos os especialistas envolvidos em todas as atividades do ISA. A maior parcela do oramento do Instituto
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Vide tambm o site: www.sociambiental.org, acesso em 03/05/2003. Os programas so os seguintes: Brasil Socioambiental, Direito Socioambiental, Mata Atlntica, Rio Negro e Parque Indgena do Xingu. Os projetos so: Panar, Xikrin, Capacitao em Gesto para Organizaes Parceiras Locais, Rede de Cooperao Alternativa e Avaliao Institucional. Os grupos de trabalho: Avaliao e Identificao de Aes Prioritrias para a Conservao, Utilizao Sustentvel e Repartio dos Benefcios da Biodiversidade da Amaznia Brasileira; e Rede Amaznica de Informaes Socioambientais Georreferenciadas. Os temas: Povos Indgenas no Brasil e Biodiversidade. A campanha e a seguinte: Diagnstico Socioambiental da Bacia do Xingu.

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destinada ao Rio Negro (quase 20%). Este percentual ainda maior (26,6%) se excluirmos os gastos com as condies de sustentao institucional do ISA, isto , se considerarmos somente a distribuio de despesas nas atividades fim (programas, projetos, temas, campanhas e grupos de trabalho).12 A estrutura administrativa da FOIRN cresceu devido ao novo contexto de gesto de montantes cada vez maiores de recursos financeiros e materiais e necessidade de registrar, arquivar e processar informaes referentes ao planejamento, execuo, avaliao e divulgao de um conjunto crescente e complexo de tarefas e demandas. Tambm se investiu na logstica de transporte e comunicao (embarcaes e motores, sistema de radiofonia) requerida para vencer os obstculos geogrficos que dificultam a aproximao e sintonizao polticas da Federao com as associaes filiadas e comunidades indgenas.13 Outras agncias de fomento (Misereor da Alemanha e Manos Unidas da Espanha) colaboraram para suprir algumas organizaes locais com meios de transporte para desenvolverem tanto suas atividades polticas nas comunidades e stios quanto para a melhoria das condies de comercializao da produo local (farinha, piaava, artesanato, etc.). O sistema de radiofonias tambm foi ampliado com o apoio de outros parceiros como da organizao Amigos da Terra. A construo da nova sede e do centro cultural tambm recebeu uma injeo maior de recursos oriundos do Protocolo de Cooperao. Alm da primeira parcela recebida da

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O oramento do Programa Rio Negro em 2001 chegou muito perto de um milho e meio de reais (R$ 1.499.490,91). Instituto Socioambiental. Relatrio Financeiro 2001. Plano Trienal 1999-2001. Encarte do Relatrio de Atividades 2001. 13 Em janeiro de 1997 o patrimnio da FOIRN alcanava a cifra de R$ 978.409,00, computados tanto os bens mveis e imveis lotados na sede (R$ 739.639,00) quanto os equipamentos (de escritrio, transporte e comunicao) destinados para as associaes filiadas (R$ 238.770,00). Uma grande parte deste valor (R$ 692.000,00) correspondia ao investimento nos dois imveis onde se situa a sede da organizao: um terreno de 27 metros de frente por 54 de fundo, no qual foram construdos um prdio de alvenaria com trs pisos (no primeiro piso: cozinha, dois banheiros, sala de artesanatos; no segundo piso: uma loja de artesanato, seis salas de servios e arquivo, uma sala de reunio, copa e banheiro; no terceiro piso: dois apartamentos, duas salas de servios e sala para alojamentos) e uma maloca de 17 x 24 metros, e outro terreno de 24 x 30. Em mveis e equipamentos a sede estava bem provida de trs aparelhos telefnicos, um de fax, uma copiadora xerox, dois micro-computadores, duas mquinas de escrever (uma manual e uma eltrica), um aparelho de radiofonia, escrivaninhas, armrios de ao, cadeiras, ventiladores, estantes de madeira, etc. A FOIRN tinha ento sete funcionrios: um no setor de finanas, um na secretaria, um encarregado de servios gerais, dois vigias noturnos e um operador de rdio. A sede contava com uma pequena frota composta por quatro motores de popa (trs de 25 hp e um de 40 hp) e trs botes de alumnio (dois de 8,40 m e um de 6,40 m). Distribudos para as associaes locais foram: oito barcos com motor de centro, oito motores de popa, um motor rabeta e quatro botes de alumnio (Relatrio Geral de Atividades. Perodo de 01 de Janeiro a 31 de Dezembro de 1996).

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entidade alem Po Para o Mundo para a compra do terreno onde se localizava o escritrio foi possvel comprar o terreno contguo para a viabilizao do projeto de edificao do complexo formado pela sede e pelo centro cultural, que alm de um local para as atividades de secretaria, administrao e documentao serviria tambm para a realizao de encontros, conferncias, cursos, assemblias, biblioteca, exposies, artesanatos, eventos culturais, etc. Outros objetivos estratgicos eram imprimir no espao fsico da cidade de So Gabriel da Cachoeira a marca da presena e da fora dos povos indgenas e da sua luta em defesa de seus direitos constitucionais assim como a autonomia do movimento indgena frente estrutura material, institucional e valorativa salesiana.14 O CEDI encarregou-se da assessoria de um arquiteto enquanto as associaes em contrapartida incumbiram-se de fornecer materiais e mo de obra para a construo. Foram solicitados recursos ao FIDA/CAF/PROPICA para o transporte de materiais (madeira e palhas) das comunidades para So Gabriel e para alimentao durante os trabalhos de mutiro.15 No caso das malocas indgenas do alto Tiqui contriburam com seu conhecimento sobre a arquitetura e a simbologia das antigas casas comunais. Algumas comunidades do alto Tiqui e alto Vaups se animaram com este movimento de reinveno de tradies e construram nos povoados antigos as antigas casas comunais, s quais foram atribudas novas funes como realizao de assemblias, dabucuris, festas, apresentao de danas, etc. A sede e o centro cultural/maloca foram inaugurados em abril de 1995 junto s comemoraes do dia do ndio.16

Com o aumento considervel das atividades da FOIRN, e considerando que o problema de infra-estrutura sempre foi o grande desafio do movimento indgena do Alto Rio Negro por sempre depender das estruturas da Igreja Catlica ao longo de sua trajetria passada para realizar seus encontros, assemblias e cursos ou outros eventos, desde os anos anteriores veio se discutindo alternativas para o problema. No que a igreja esteja negando atualmente o apoio neste sentido, mas a necessidade de ter ambientes para desenvolver livremente suas programaes coletivas na cidade que o centro irradiador e cultural da luta indgena que foi sempre um sonho de todos, ter este espao na cidade de So Gabriel da Cachoeira. [...] (Relatrio Narrativo de Atividades da FOIRN em 1993. Federao das Organizaes Indgenas do Rio Negro. Assina: Brz de Oliveira Frana, presidente). Sabemos que os salesianos simbolizaram a supremacia e grandeza do seu poder no Rio Negro atravs da edificao dos grandes monumentos arquitetnicos das sedes missionrias. 15 Correspondncia da FOIRN para Jorge da Silva Terena, FIDA/CAF/PROPICA. So Gabriel da Cachoeira, 10 de Dezembro de 1993. Brz de Oliveira Frana, presidente, Gersen Luciano, vice-presidente, e Maximiliano Menezes, secretrio; e Correspondncia da FOIRN para Jorge da Silva Terena, FIDA/CAF/TCA. So Gabriel da Cachoeira, 07 de Fevereiro de 1994. Brz de Oliveira Frana, presidente. 16 Relatrio Geral das Atividades da FOIRN do Perodo de Maio a Setembro de 1995. So Gabriel da Cachoeira, 17 de Outubro de 1995. Brz de Oliveira Frana, presidente; e Relatrio Geral das Atividades da FOIRN no Ano de 1995. So Gabriel da Cachoeira, 25 de Maro de 1996. Assinam: Brz de Oliveira Frana, presidente, e Maximiliano Menezes, secretrio.

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Figura 4: Sede da FOIRN.

Figura 5: Centro Cultural Maloca.

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No campo da cooperao e solidariedade com as organizaes indgenas locais, regionais, nacionais e estrangeiras tambm ocorreram esforos significativos: viagens s sub-regies, apoio (financiamento e assessoria) s assemblias das associaes filiadas, cursos de formao (poltica ou tcnica) de lderes, promoo de eventos sobre assuntos especficos (encontro de professores e de agentes de sade) de interesse de profissionais indgenas, apoio participao em fruns regionais e nacionais de debate pblico (conferncias e reunies de educao e sade indgenas), contatos com organizaes indgenas da Amaznia Consejo Regional Indgena del Vaups/CRIVA no brasileira (Federao Shuar no Equador, e Organizacion Indgena Binacional del Querari y Vaups/OIBIQUEVA). Enfim, a FOIRN procurou intensificar sua visibilidade nos vrios nveis e esferas da multifacetada e dinmica arena institucional da cidadania indgena. Na escala local a frente de expanso do movimento indgena no Rio Negro deslocava-se para zonas pioneiras como o rio Papuri, o Alto Iana/Aiari, o Alto Tiqui e as reas mais distantes do Mdio Rio Negro (mais prximas da cidade de Santa Isabel do Rio Negro) onde algumas associaes estavam sendo criadas. O problema da invaso de enormes contingentes de garimpeiros no Alto Iana e no rio Cauaburis, no mdio rio Negro, aumentou a preocupao com a demarcao das terras indgenas do Alto e do Mdio Rio Negro e impulsionou a criao de associaes indgenas seja como fenmenos de diviso de associaes que tinham um escopo de representao mais abrangente (OIBI e ACIRA frente a ACIRI) ou ampliao do circuito associativo para novas reas (CACIR e COIMRN). Neste contexto os dirigentes da FOIRN investiram no Mdio Rio Negro como uma das reas prioritrias de interveno. Na rea de visitas, no ano de 93, foi priorizada a regio do Mdio Rio Negro, por razes especficas das invases de garimpeiros na rea e pela grande e urgente necessidade de apoiar e incentivar o surgimento de uma forte organizao das comunidades indgenas daquela regio em defesa de seus direitos, como nico instrumento capaz de evitar novas tragdias ecolgicas e sociais na regio.17

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Relatrio Narrativo de Atividades da FOIRN em 1993. Federao das Organizaes Indgenas do Rio Negro. Assina: Brz de Oliveira Frana, presidente.

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Alm dos incentivos consolidao institucional da CACIR (criada em 1992) colaborou decisivamente para a criao da Comisso das Organizaes Indgenas do Mdio Rio Negro, sediada na Cidade de Santa Isabel do Rio Negro. A ACIMRN surgiu atravs de algum interesse da nossa parte. A gente teve conhecimento que a FOIRN tinha sido instalada aqui em So Gabriel e o Brs na poca era o presidente. Eu conheci o Brs quando ele no estava ainda neste movimento, mas em outros trabalhos aqui na regio de So Gabriel. A vim para c. Conversei com ele na FOIRN. Disse para ele: Bom Braz, voc o presidente, nosso trabalho lutar pela causa indgena. Voc sabe que o nosso trabalho at em Barcelos. justamente nisso que eu vim me informar, porque em Santa Isabel a gente tem tambm uma grande etnia indgena l e ns precisamos do seu apoio l. Inclusive, dava para voc dar uma volta por l, uma circulada por l. A partir daquele momento ficou aberto ele dar uma viagem por l. Ele foi, deu uma volta por l, e quando viu que realmente tinha povos indgenas l, viu que realmente desceram daqui para l... Todos que esto por a vieram... desceram daqui. Daqui do Vaups, Tiqui, Xi... Tem muito Baniwa por a. Ento primeiro encontro, primeira assemblia, foi no dia 04, 05 de abril de 1994. Primeiro Encontro de Povos Indgenas de Santa Isabel do Rio Negro, com o apoio da FOIRN, do ISA [CEDI], dos salesianos na poca, tivemos apoio do Padre Carlos, diretor l da parquia. (Jos Augusto Fonseca, Entrevista. So Gabriel da Cachoeira, 30/10/2000). No I Encontro de Povos Indgenas de Santa Isabel foi criada uma comisso provisria, composta por dez membros, encarregada de mobilizar as comunidades do interior no prazo de um ano. Cada um ficaria responsvel por um conjunto de comunidades: [...] reunir o povo e contar o que significava o movimento indgena, a poltica indgena aqui no estado. [...] (Jos Augusto Fonseca, entrevista. Op. cit.). Tal estratgia no deu certo por falta de recursos para visitar os assentamentos indgenas. Alm disso, apesar dos militantes indgenas receberem o apoio dos salesianos sofreram a intransigente oposio do prefeito, conhecido como Brigadeiro, e dos vereadores. Outra dificuldade referia-se ao

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campo semntico da etnicidade caracterizado pela disjuno entre identidade tnica e indgena ainda pouco permevel aos esforos de constituio de uma conscincia discursiva das relaes intertnicas. A oposio entre o passado indgena e o presente civilizado, baseado na submerso no fluxo da modernidade, era o ncleo de uma cultura poltica refratria a implementao de polticas culturais fundamentadas na ancestralidade nativa enquanto capital simblico estratgico na luta por direitos. [...] A gente chegava o povo no sabia o que era o movimento indgena, ser ndio. Ah, ndio ns j fomos l, aquele negcio j ficou para l, hoje ns j no somos mais, hoje ns falamos [a lngua portuguesa], usamos roupa, usamos relgio, hoje ns somos brancos. Era tudo isso que a gente via l. E nossos parentes l... era assim. E para completar soframos presso do poder pblico que era da prefeitura. O prefeito era o Brigadeiro Srgio. [...] (Jos Augusto Fonseca, ibidem). De todo modo, aconteceu em 1995 a I Assemblia Geral Eletiva, no ginsio esportivo da misso, na qual foi eleita uma diretoria provisria formada por Jos Augusto Fonsca (Arapao), presidente; Orlando Jos de Oliveira (Bar), vice-presidente; Ana Ceclia, secretria; e Rosilene Fonseca (Piratapuia), tesoureira. Esta diretoria era formada basicamente por professores residentes na cidade de Santa Isabel, ligados por estreitos laos de parentesco. O mandato foi estabelecido em dois anos, mas ainda no havia estatuto. A COIMRN conseguiu dois aparelhos de radiofonia atravs do projeto de comunicao que estava sendo implantado pela FOIRN. Um deles ficou na sede municipal e outro seria instalado em uma comunidade no rio Preto. Receberam tambm um bote de alumnio (seis metros) e um motor de popa (15 hp) atravs do projeto de transporte financiado pelo IIZ. Quase todas as associaes foram equipadas com motores, botes de alumnio, barcos, aparelhos de radiofonia, materiais de escritrio e auxlio para realizao de assemblias. Algumas associaes foram contempladas com projetos auto-sustentao econmica. No Mdio Rio Negro a ACIBRN recebeu o apoio da PROPICA para um projeto de incentivo agrcola. Para Jos Augusto Fonseca a COIMRN teve apoio substancial da FOIRN durante a gesto de Brz Frana.

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E hoje a gente est com esse problema a de que... a ACIMRN j teve uma articulao na... 32 comunidades que congregam ela. Ela esteve na poca viajando, porque logo no comeo a gente fazia planejamento e o Brs investia certos recursos justamente para articulao nas comunidades. A pegava a voadeira, comprava combustvel e ia embora. Fazia reunio, entrar em contato com eles, marcar alguns encontros, fazer mini-assemblias, nos povoados, reunia quatro ou cinco comunidades a gente fazia palestra (Jos Augusto Fonseca, ibidem). Em maro de 1997 foi eleita uma diretoria permanente com mandato de quatro anos, foi aprovado o estatuto da organizao que passou a se chamar Associao das Comunidades Indgenas do Rio Negro (ACIMRN). O presidente eleito foi Orlando Jos de Oliveira. A diviso do trabalho poltico de representao da etnicidade indgena foi reconfigurada por dinmicas que s vezes escapavam capacidade de monitorao altamente reflexiva do movimento indgena e do contexto intertnico regional pela FOIRN, apesar do crescimento acelerado dos instrumentos disponveis para tal acompanhamento.18 O fenmeno associativo estava em marcha e suscitou expectativas crescentes de participao e demandas de visibilidade na rede em formao de agncias de construo social da cidadania indgena. Por outro lado, uma outra modalidade de representao de interesses baseada em categorias ocupacionais como professores e agentes de sade comeou a subir ao palco das polticas tnicas no Rio Negro. Todavia, neste perodo a garantia jurdica do usufruto exclusivo e pleno dos recursos naturais expressa na Constituio Federal de 1988 como um direito coletivo inalienvel e imprescritvel dos povos indgenas, violado pela demarcao de 1989 era o tema central que jogava os dirigentes da FOIRN no debate nacional sobre a Reforma Constitucional, o Novo Estatuto do ndio, o Decreto

18

At o final de 1992 a FOIRN congregava 15 associaes indgenas. Com a intensificao das atividades de articulao atravs de visitas, encontros e cursos, esse nmero aumentou para 18 associaes atualmente. As trs ltimas associaes criadas nas reas mais distantes e de difcil acesso da regio, onde a FOIRN ainda [no] tinha alcanado at ento, como o rio Papuri, o Alto Tiqui e a regio do Mdio Rio Negro. O surgimento dessas associaes so expontneas [sic], levadas pelas necessidades sentidas e pelo exemplo de outras comunidades que vo alcanando conquistas importantes ao longo de suas lutas organizadas. Alm dessas articulaes formais, a FOIRN conseguiu tambm sensibilizar alguns setores das comunidades como os professores e agentes indgenas de sade. [...] (Relatrio Narrativo de Atividades da FOIRN em 1993. Federao das Organizaes Indgenas do Rio Negro. Assina: Brz de Oliveira Frana, presidente).

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1775/96 e regional sobre a criao do Territrio Federal do Alto Rio Negro e do municpio de Yauaret. Com a perspectiva de um quadro mais positivo, em 1996, quanto garantia oficial das terras indgenas do Alto e Mdio Rio Negro19 a criao de alternativas econmicas comeou a receber maior ateno atravs da elaborao de projetos-piloto20: incentivo agrcola, pesca e comercializao de piabas (peixes ornamentais), piscicultura, minerao, comercializao de artesanato, ecoturismo (Veja o quadro abaixo). A principal agncia de fomento neste caso foi o Instituto Inter-Igrejas de Cooperao Internacional (ICCO), complementado por outros organismos de cooperao como o Programa Pueblos Indgenas de la Cuenca Amaznica
21

(PROPICA)

que

financiou

algumas

iniciativas

de

desenvolvimento agrcola. Foram priorizados no ano de 1996 os projetos de piscicultura no alto Tiqui e minerao no alto Iana, que receberam apoio tcnico da Universidade Federal do Amazonas, no mbito de um convnio firmado com a FOIRN em 10 de janeiro de 1996. Na rea de sade foram assinados convnios com a Fundao Nacional de Sade (FNS), rgo subordinado ao Ministrio da Sade, e com a ONG Sade Sem Limites j vislumbrando a implantao de um Distrito Sanitrio Especial Indgena no Rio Negro.

19

Delimitao (emisso de portaria ministerial) das T.I. Alto Rio Negro, Mdio Rio Negro I, Mdio Rio Negro II, Apapris e Ta. 20 [...] A FOIRN agora tem plenas condies com a garantia da terra (fechando o mapa desejado pelos ndios) de perseguir o seu segundo grande objetivo que autonomia dos povos indgenas que passa pela autosustentabilidade econmica dos povos indgenas sem desarticular o universo cultural que distinguem esses povos entre si e com a sociedade. [...] (Relatrio de Atividades dos Primeiros Cinco Meses de 1996). 21 Relatrio Geral de Atividades. Perodo de 01 de Janeiro a 31 de Dezembro de 1996.

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Quadro
Associao/Projetos ACIBRN ACIRNE AIP AINBAL AIP CACIR COIMRN CRETIART ACIRU UNIRT ACITRUT ACIRI AMAI OIBI ACIRA ACIRX ONIARP UCIDI ONIARP ONIRVA AMIDI UNIDI Agricultura Tem (PROPICA) Tem (ICCO) Tem (PROPICA) No tem No tem No tem No tem Tem (ICCO) Tem (ICCO) No tem No tem No tem No tem Tem (ICCO) No tem No tem Tem (ICCO) No tem No tem No tem No tem No tem Piscicultura No tem No tem No tem Tem (PROPICA) No tem No tem No tem Tem (FUA) No tem Tem (S/I) No tem No tem No tem No tem No tem No tem No tem No tem No tem No tem No tem No tem Minerao No tem No tem No tem No tem No tem No tem No tem No tem No tem No tem No tem No tem No tem Tem (ICCO) No tem No tem No tem No tem No tem No tem No tem No tem Artesanato No tem No tem No tem No tem No tem No tem No tem No tem No tem No tem No tem No tem Tem (S/I) Tem (FVA) No tem No tem No tem No tem No tem No tem No tem No tem

OBS: As entidades que apoiam os projetos esto indicados entre parenteses. Esto sombreadas as associaes que foram contempladas com projetos de auto-sustentao econmica.

Durante V Assemblia Geral da FOIRN (11 a 14 de Dezembro de 1996), realizada na maloca localizada na sede, foi eleita a nova diretoria para o quadrinio 1997-2000. Poderamos supor que face ao grande fortalecimento institucional da Federao a diretoria seria naturalmente reeleita, porm devemos considerar que exatamente por isso aumentou a disputa pelos cargos de direo da organizao. Dos quatro diretores somente um foi mantido, Maximiliano Menezes, que de secretrio passou a vice-presidente. Gersen Luciano no concorreu, pois foi eleito coordenador geral da COIAB em maio de 1996. Flvio Carvalho tambm no porque foi eleito vereador. Braz Frana concorreu aos postos de direo do movimento indgena no Rio Negro, mas no foi eleito. 183

O processo eleitoral foi regulamentado da seguinte maneira: as delegaes de cada calha de rio (Alto Vaups/Papuri, Baixo Vaups/Tiqui, Iana/Aiari/Xi e Rio Negro) indicaram os seus candidatos; em seguida ocorreu uma primeira votao na qual foram eleitos os quatro membros titulares e suplentes da diretoria, sem determinao dos respectivos cargos; depois em uma segunda votao foram definidas as posies (presidente, vice-presidente, secretrio e tesoureiro) dos quatro mais votados de cada regio na primeira eleio; as votaes foram secretas e os delegados eram chamados nominalmente para votar. O objetivo foi garantir a presena de um representante de cada calha de rio na diretoria. Os membros da diretoria foram considerados delegados naturais e foram apontados como requisitos para os candidatos saber ler, escrever e fazer contas, formalizando a necessidade de um certo nvel de escolarizao para desempenhar as funes exigidas pelos cargos diretivos da Federao. Apresentaram-se dezesseis candidatos: seis da calha do Rio Negro, quatro do Baixo Vaups/Tiqui, trs do Iana/Xi e trs do Alto Vaups/Papuri. Na primeira votao foram eleitos os seguintes candidatos: Pedro Garcia (Tariana), com 89 votos; Maximiliano Menezes (Tukano), com 62 votos; Bonifcio Jos (Baniwa), com 52 votos; e Miguel Maia (Tukano), com 43 votos. Na segunda votao Pedro Garcia conquistou a presidncia com 113 votos, Maximiliano Menezes a vice-presidncia com 77 votos, Bonifcio Jos a secretaria com 68 votos e Miguel Maia a tesouraria com 58 votos. Os candidatos no podiam prometer nada, pois se eleitos eles devem cumprir o planejamento proposto pela sua delegao. Isto no implica que no ocorreram conversaes para influenciar a inteno de voto dos eleitores. Miguel Maia, um jovem ainda novato no movimento indgena do Rio Negro, venceu por apenas um voto de diferena do experiente Brz Frana. Os votos dos delegados de outras calhas de rio so importantes para eleger candidatos de uma calha especfica. Sendo assim, a campanha empreendida por Gregrio Maia em favor de seu filho, Miguel Maia, pedindo votos aos seus parentes do rio Papuri, sua terra natal, e da regio de Yauaret pode ter sido o fiel da balana.

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CAPTULO IX. DOS PEQUENOS EXPERIMENTOS DE DESENVOLVIMENTO SUSTENTVEL AO GRANDE PROGRAMA DE SADE INDGENA (1997-2000). Miguel Maia Tukano e nasceu na comunidade Cajuri, no mdio rio Negro. Ele no fala a lngua tukano, mas a entende. Seu pai, Gregrio Correa Maia, nasceu no rio Papuri, comunidade Melo Franco. Sua me, Carapan, nasceu no rio Curicuriari, onde hoje Tumbira, mas seus pais vieram do rio Vaups. A famlia dela se estabeleceu l, onde ainda permanecem. Migraram na dcada de 60. Gregrio Maia estudou no internato salesiano em Yauaret, algumas irms em So Gabriel da Cachoeira e outras em Santa Isabel do Rio Negro. Uma vez por ano seu pai os visitava. Havia um posto da FUNAI em Melo Franco, ento tudo o que eles produziam eles tentavam vender no posto. Decidiram ento vender em Manaus. Fizeram uma canoa grande e desceram o rio Vaups, desceram o rio Negro e chegaram em Manaus a remo. Foram mais de trinta dias viajando. Foi uma viagem lenta, pescando, coletando castanha, cip, seringa, sorva. Venderam toda a produo, ficaram animados e voltaram. Pararam em frente do lugar onde atualmente a comunidade Cajuri, na outra margem do rio Negro. Roaram um pedao de terra, pensando em queimar e plantar depois de trs meses quando estivesse descendo novamente para Manaus. Fizeram isso: voltaram, queimaram a roa, ficaram l uns quinze dias, j trouxeram mandioca e formaram um pequeno stio. Durante trs ou quatro anos moravam l por algum tempo quando iam para Manaus uma vez por ano. Resolveram ento fixar residncia definitiva no local porque era mais farto, tinha mais peixe do que em Melo Franco, tinha menos cachoeiras... Atravessaram o rio, vistoriaram a rea. Encontraram uma terra boa para fazer roa e que poderia futuramente tornar-se uma comunidade. Era um antigo stio. Era uma capoeira bem na beira do rio. Atravessaram, fizeram um roado, construram uma casa... [...] Na poca meu pai j era capito tradicional, meu av era capito n, meu pai era vice, era uma tradio assim de liderana. Meu av tambm desceu, todo mundo veio embora. Ele era um lder tradicional de peso, chamado de Kumu, um benzedor. Pelo benzimento eles levam toda fora poltica de benzimento, ento quando o pessoal percebeu que ele estava vindo disseram que ele estava indo de

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vez. Ento quando o pessoal se assentou l, se assentaram com toda aquela questo tradicional, com benzimento, estabeleceu a comunidade e tal. Por isso que a comunidade em dez anos cresceu, ficou bem grande, chegaram muitas famlias, chegou um tempo que tinha mais de 150 alunos. Chegou a at quase vinte famlias. Nesse processo a escolarizao ia aumentando. So Gabriel ia crescendo, as pessoas iam terminando a quarta srie e iam para l, porque era mais perto do que Santa Isabel (So Gabriel so duas horas de viagem a motor e um dia e meio de canoa, remando direto). Na regio ns conseguimos fazer magistrio antes das outras comunidades. Talvez Camanaus... outra comunidade que teve professores locais. A gente que fez magistrio bem antecipado, com professores da prpria comunidade, desde de 1977 a minha tia j estava l, a outra minha tia, em 1980 meu irmo j estava dando aula como... a minha prima estava dando aula como magistrio, ela tinha magistrio, depois o meu irmo. Foi uma das escolas que... parece que na poca eram professores qualificados, que as outras ainda estavam com professores leigos. [...] (Miguel Maia, entrevista. So Gabriel da Cachoeira, 24/10/2001). Temos aqui os trs alicerces de uma comunidade, agncias de mediao com alteridades estratgicas para a domesticao de foras potencialmente destrutivas: o benzedor (ou o paj ou o rezador), o professor e o catequista. Gregrio Maia era catequista, ento todo domingo ele reunia a famlia e celebrava o culto dominical, catlico. O seu stio tornou-se o ponto de atrao de muitas famlias, ncleo de to intensa sociabilidade religiosa que estimulou o padre Joo Marquesi, diretor da parquia de So Gabriel, a fundar a comunidade com uma missa solene. A partir da comeou a funcionar uma escola, na dcada de 70, e despontou como comunidade: [...] Desde 1977 mais ou menos, a nossa famlia comeou j a produzir professores [...] (Miguel Maia, entrevista. Op. cit.). Seu pai e seu av s trabalharam para patro depois de se estabelecerem no rio Negro. [...] Era difcil ter uma grande produo... no tinha esse comrcio direto com Manaus... Na poca veio um grande comerciante chamado Gonalo Leite, de Manaus, tinha um grande barco e tal. Meus tios j estavam casados, se

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estabeleceram, j tinham famlia. Pensaram em adquirir um barco, mas para isso tinham que trabalhar, e a foram para o rio Mari na extrao da piaava. No incio a gente nem entrou, porque tinha a escola e ele [seu pai] era capito, no podia deixar o colgio abandonado. Meu av no trabalhou na empresa de extrativismo, quem trabalhou foi a partir do meu pai, os meus tios, os moradores da comunidade, eles acabaram entrando. Conseguiram comprar um barco, mas no conseguiram comprar o motor. O patro acabou indo embora. Era esquema de aviamento. Chegava na comunidade era terado, panela... fazia uma conta enorme, marcava um perodo e o patro levava l para dentro. Ficava sempre devendo. Chegava l produzia, s vezes a produo no era boa, tinha que voltar, ficava sempre devendo alguma coisa. Alguns tiravam o chamado saldo, a o cara botava de novo outras mercadorias. Eles ficavam por um perodo (por exemplo, dois meses) produzindo no rio Mari e depois voltavam para a comunidade. Eles nunca [seus tios] foram dominados mesmo, porque tinha gente que ficava l direto. Eles tinham um objetivo (comprar um material de cozinha, por exemplo), compravam, pagavam e saam. A ficavam na comunidade, tinha que cuidar da comunidade, tinha trabalho comunitrio. E quanto achavam que tinham que ir de novo, iam com o patro e pediam um aviamento, a sumiam dois ou trs meses, depois de um tempo voltavam. [...] (Miguel Maia, ibidem). O relato acima destaca a existncia de um espao de manipulao do sistema de aviamento que permite a flexibilizao da dominao ao patro, na qual os fregueses so forados a permanecer durante longos e ininterruptos perodos de tempo nos piaabais. Em vrias narrativas sobre o trabalho nos piaabais h esse esforo em se diferenciar atravs desta relativa autonomia frente ao patro em contraposio situao de extrema explorao e subordinao sofrida pelos outros fregueses. Em geral no se admite a supresso da sua humanidade pela perda total do controle sobre si mesmo e a insero idealizada no regime de aviamento aquela na qual o acesso a bens industrializados uma forma de integrao na sociedade da afluncia no implica uma completa anulao da subjetividade do trabalhador, ou seja, dos seus projetos e interesses. Miguel Maia nesta poca tinha uns seis ou sete anos e nunca trabalhou na extrao de piaava. Estudou da

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primeira a terceira srie na sua comunidade. Na quarta srie, em 1979, foi para o internato em So Gabriel, onde um irmo e uma irm, no internato de meninas, j estudavam. Este foi o ltimo ano deste regime de ensino. Quando terminaram o internato, Miguel, sua irm e seu irmo, moraram com sua tia que tinha uma casa em So Gabriel. Seu irmo terminou o magistrio e retornou para a comunidade, enquanto Miguel e sua irm continuaram a estudar. Sua tia comprou um terreno e construiu uma casa, em So Gabriel, onde passou a morar. Em 1988 terminou o magistrio. Em 1989 e 1990 exerceu vrias atividades na cidade: frentista, em escritrio de posto de gasolina, em bares... Durante os anos 1991 e 1992, prestou o servio militar no Batalho de Engenharia e Construo/BEC. No incio de 1993 saiu do exrcito. Seu pai foi um dos fundadores da ACIBRN e integrou sua primeira diretoria como secretrio. Miguel no se interessava pelos assuntos da associao. Seu pai comentava com ele, mas no buscava um maior entendimento das discusses. Quando voltou para a comunidade em 1993, comeou a ajudar sua irm, que lecionava na escolinha, a organizar os eventos. Seu pai sempre realizava encontros, reunia vrias comunidades, conhecia moradores da cidade, onde tambm articulava. No final de 1993 e incio de 1994, a associao j tinha um barco que viajava pelo Mdio Rio Negro. Miguel comeou a acompanhar as visitas s comunidades, quando foi convidado para uma reunio da ACIBRN e nem sabia ainda o que era o movimento indgena. As reunies geralmente eram no Curicuriari, na sede da organizao. Comeou a conhecer mais, conversou com o presidente da ACIBRN, na poca era o Alberto Padilha, de Curicuriari, ele perguntou quais eram as discusses e deu sugestes. Participou de uma assemblia em 1996 no Curicuriari familiarizando-se cada vez mais com as questes em pauta. Em setembro/outubro de 1996 estavam discutindo a participao da delegao da ACIBRN na assemblia geral da FOIRN. Miguel pouco sabia sobre a FOIRN ainda. Conversaram com ele sobre a indicao de pessoas para concorrer diretoria da Federao, para representar a ACIBRN, propor projetos de apoio para a regio. Fizeram um documento e indicaram o seu nome e o de Josu, da comunidade Livramento. Seu pai no queria ser indicado e fez todo o trabalho de convencimento para a eleio de Miguel Maia a diretoria da FOIRN.

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[...] O nico novo que entrou sem experincia de associao de base fui eu. Era um membro da associao. O meu trabalho era passar pela associao, ia ser eleito em alguma parte da diretoria, de l ia articular para ir para a FOIRN. Mas vim como membro da diretoria, isso deu um reflexo muito grande no meu trabalho, no meu entendimento. Em trs meses de trabalho a gente conseguiu entender e acompanhar as demandas que existiam aqui, porque aqui a coisa muito maior do que se pensa quando se est na base: articulao interna com as comunidades, articulao externa, polticas pblicas, a poltica indgena... Ento tudo isso tem que entender e responder a estas demandas. J existia a sede, j estava estruturada, estava comeando a funcionar, e quando a gente chegou, a gente implementou. A gente chegou com vrios projetos j encaminhados, j existia a maloca. O nosso trabalho foi estruturar com equipamentos: foi tudo informatizado, telefones... Era s uma secretria e um contabilista. Contratamos mais pessoas porque aumentou a demanda, vrios projetos: de educao, demarcao de terras, motores, carga, artesanato... [...] (Miguel Maia, ibidem). O outro novo integrante da diretoria, Bonifcio Jos, tinha mais experincia acumulada no movimento indgena. Nasceu na comunidade Tucum, em 1969, no alto Iana. Pertence a fratria Waripeledakina, cunhados dos Dsauinai e dos Hohodene. Sua esposa Dsauinai. Sua me Hohodene. Fala baniwa, curripaco, nheengatu, portugus, espanhol. S entende o tukano, mas no fala. Tem um irmo mais velho, outro mais novo e mais trs irms mais novas. Quando tinha dois anos seu pai trabalhou no extrativismo de piaava para os colombianos que vinham para o Iana em busca de mo de obra indgena. Toda famlia acompanhava seu pai, eles subiam o alto curso do rio Negro e cruzavam a fronteira com a Colmbia. Nas cabeceiras deste rio tem muitos piaabais. Os patres colombianos no prendiam ningum l se no tivesse dvida. [...] Por questo cultural dos Baniwa, difcil ver um Baniwa amarrado num patro. Ele tira, paga, ou trabalha antes para ter coisa. [...] (Bonifcio Jos, entrevista. Manaus, 31/10/2001). A afirmao da autonomia frente ao patro concebida como um marcador das fronteiras tnicas com outros grupos. O av de Bonifcio morreu quando o seu pai era criana e por isso ele se afeioou muito ao homem que se tornou depois seu sogro. Quando sua av paterna morreu

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seu pai foi morar com este senhor, pois no tinha irmo mais velho para cuidar dele. O sogro desceu o rio Iana e fixou moradia no alto rio Negro, na comunidade Ipadu. Seu pai quando foi visitar o sogro acabou ficando durante doze anos neste povoado. Por isso Bonifcio fala o nheengatu. Foi criado ali com os vizinhos Bar, mas ao mesmo tempo falando o baniwa porque sua comunidade era toda Baniwa. No Ipadu trabalhavam na roa, artesanato... e tambm retornavam para a Colmbia para trabalhar com piaava. Visitavam regularmente os parentes no Iana. Estudou o primrio em uma comunidade Bar, chamada Tarcira Ponta. A maioria Bar, mas tambm moram l alguns Desana, todos falantes da lngua geral. Seu pai decidiu ir para o Vaups para os filhos estudarem no internato de Taracu por incentivo dos salesianos. Em taracu tinha o curso ginasial. Por este motivo que ele entende a lngua tukano. Em So Gabriel da Cachoeira tinha que ter casa para morar, porque j tinha acabado o internato. S foram Bonifcio e seu irmo mais velho. Havia os Baniwa que falavam nheengatu, provenientes de Assuno do Iana. Bonifcio e seu irmo eram considerados como se fossem do rio Negro, porque foram do rio Negro para l. Ficou s um ano em Taracu, em 1981. Nas frias retornaram para o rio Negro e de l para o Iana. Permaneceram em 1982 e 1983 no Iana quando soube que existiam vagas destinadas aos indgenas, pela FUNAI, para estudar em Manaus. A FUNAI dava passagem e bolsa de estudos. Bonifcio e seu irmo mais velho foram para Manaus, entretanto, com apoio da Misso Novas Tribos, protestante, que atuava no Iana. Eles levavam at Manaus e l deixavam sob a responsabilidade da FUNAI. Seus pais eram protestantes no Iana, depois quando foram para o rio Negro tornaram-se catlicos e depois ao retornarem para o Iana tornaram-se protestantes novamente. Em Manaus ingressou em uma escola agrcola. De l ele e seu irmo acompanhavam as notcias pelos jornais e pelas cartas da famlia sobre a invaso dos garimpeiros no Iana. [...] E j no ano 1975, na minha adolescncia a gente j escutava a luta do pessoal do rio Vaups, que so os Tucano, que so os cunhados dos Baniwa. Ento meu tio e meu pai envolviam-se muito com Bene Tukano, com Pedro Machado, o Carlos Machado que era muito forte na poca, na liderana. Teve vrios

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movimentos, reunio grande que teve em So Gabriel, antes da fundao da FOIRN. [...] (Bonifcio Jos, entrevista. Manaus, 31/10/2001). Havia muitos indgenas na escola, provenientes do Rio Negro, do Solimes, do Madeira, do Baixo Amazonas. Nesta ocasio comeou a acompanhar e entender as leis que existem na Constituio Federal sobre os direitos indgenas e a observar como os polticos falavam dos ndios. Isso foi aguando o seu interesse em participar das lutas do seu povo: [...] A gente j escutava muito os velhos discutirem isso na regio. [...] (Bonifcio Jos, informao verbal). Quando Bonifcio voltou ao Iana em 1987/88 havia uma ciso entre aqueles que apoiavam o Projeto Calha Norte e aqueles que no apoiavam. Bonifcio voltou de Manaus para sua regio no ano em que a FOIRN foi fundada, como tambm a primeira associao do Iana (a ACIRI), presidida por Gersen Luciano. Seu pai participou da ACIRI como membro, no na direo. [...] Os estudantes que estudavam na escola agrotcnica, na escola de minerao... as pessoas que criaram a FOIRN, outras organizaes ao nvel da Amaznia, criaram a COIAB logo em seguida (em 1989). Quando eu voltei em 1987 tinha os colegas nossos que tinham desistido da FOIRN, que faziam parte da diretoria, ento a gente participava como amigo mesmo. [...] Ento a gente participava mais talvez pela amizade mesmo, no pela associao, porque tinha a diretoria da associao (ACIRI). Foi quando houve o primeiro curso de capacitao de lideranas na rea de administrao, a foi o incentivo para aumentar o nmero de associaes. A gente entrou na luta quando o Calha Norte junto com a FUNAI dividiu as terras do Rio Negro em ilhas, colnias. A gente entrou para defender independente da associao, com a comunidade mesmo, fazendo reunies, fazendo cartas, para encaminhar. (Bonifcio Jos, entrevista. Op. cit.). No incio seu compromisso com o movimento indgena era mais informal, motivado pela amizade com seus ex-colegas da escola agrotcnica e da escola de minerao em Manaus, que contriburam para a criao da FOIRN, da COIAB e de vrias organizaes na Amaznia. No atuava em posies de direo da ACIRI, mas participou das manifestaes 191

contrrias demarcao em colnias indgenas na sua regio, quando havia profundas discordncias sobre as comunidades do alto e do baixo Iana sobre o assunto. Os dirigentes da ACIRI e as comunidades do Baixo Iana eram contra o Projeto Calha Norte e as mineradoras, em sintonia poltica com a FOIRN, enquanto no alto Iana havia uma maior divergncia de opinies. L no Iana tinha gente a favor do Calha Norte, outros contra e outros ainda a favor das empresas de minerao (Paranapanema, Taboca). Ento dividiu trs grupos. Antes da criao da ACIRI os Baniwa tinham um representante tipo um tuchaua geral, mas l a gente no chama assim, um lder Baniwa, um cara bastante considerado [...]. Esse velho sentiu que estava cansado e que tinha muitos que estavam entrando: empresas, Calha Norte. Quem falava pelo Calha Norte parecia que era um programa fantstico, que vinha muita coisa, ento por isso muita gente se colocou pro lado. E tinha empresas de minerao que puxou muita gente pra l. Esse velho fez uma assemblia grande para escolher o sucessor dele. A uma pessoa jovem foi escolhida que caiu na mo da empresa (mineradora), comprado. O velho lder era contra o Calha Norte e as mineradoras. Esse Baniwa se vendeu totalmente. Viajou para Manaus, Braslia, acompanhou o Calha Norte, assinou documentos. [...] A, com a criao da ACIRI, dividiu os Baniwa em trs blocos, pessoal de baixo, pessoal que ficava a favor dos garimpeiros e ns que ficvamos pra cima sem bem dizer pra onde ns ramos. O pessoal do baixo estava na ACIRI que apoiava a FOIRN, ento eles estavam... S que tinha metade da nossa regio (alto Iana) que estava a favor dos garimpeiros. L para cima estava dividido, a favor do Calha Norte e a maioria contra. A diretoria da ACIRI era contra o Calha Norte, a minerao, chegamos at a brigar fisicamente contra os garimpeiros, ainda pelo ACIRI.[...]. Em 1989, no estouro do Calha Norte, quando estava chegando bem, um pastor achava que a gente tinha que aproveitar o Calha Norte. Ento, ns... um grupo de Baniwa entrou com um projeto, atravs da FUNAI, para ter escola, posto de sade, e tambm foi construdo uma pista de pouso. Ento isso nossos parentes brigaram com a gente. S que nosso entendimento no era ser a favor do Calha

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Norte, mas aproveitar do benefcio que eles tinham. No deu certo, praticamente foi cortado este projeto. Dois anos depois, em 1992, quando foi mobilizado o alto para criar a OIBI... eu fui o primeiro presidente da OIBI. Mesmo com o racha, a briga que teve, dois anos depois eu assumi a presidncia da OIBI, que trabalha com 56 comunidades. Passei ento quatro anos dentro da OIBI (1992/6). A sim eu comeo a participar como associao junto a FOIRN em vrios eventos. [...] (Bonifcio Jos, ibidem). A Organizao Indgena da Bacia do Iana (OIBI) surgiu em 1992 da necessidade de uma associao para representar os interesses especficos dessa regio e Bonifcio foi seu primeiro presidente. Posteriormente foram criadas outras associaes no Alto Iana a partir desta mesma demanda por maior visibilidade para as necessidades e reivindicaes de comunidades situadas em um determinado rio ou trecho de rio como a Associao das Comunidades Indgenas do Rio Aiari (ACIRA), por exemplo. Por outro lado, esta crescente descentralizao da representatividade etnopoltica correspondia tanto busca de maior participao nos projetos de mudana do cenrio intertnico do Rio Negro quanto ao aprofundamento de disputas por recursos (materiais, simblicos e sociais) cujo acesso era definido nas instncias decisrias da Federao. Entre 1993 e 1996 Bonifcio atuou junto Fundao Vitria Amaznica (FVA) na promoo de melhores condies de comercializao do artesanato Baniwa. Em meados de 1996, com a eleio de Gersen Luciano para a coordenao da COIAB, Bonifcio o substituiu, mas no como vicepresidente. Maximiliano Menezes assumiu o cargo de vice e Bonifcio o de secretrio. Na assemblia geral eletiva de 1996 ambos foram confirmados nas respectivas posies dirigentes da federao. Na gesto do Brs, de 1993 para c, entrou o IIZ e o ISA [CEDI] tambm entrou em parceria, a comeou mais a discusso dos projetos. Praticamente inicia no final do mandato deles, quando a gente entra de 1996 para 2000. A gente entrou numa poca que era mais de execuo, desenvolvimento destes projetos. Ainda a gente continuava estes projetos que hoje so desenvolvidos. A sade, por exemplo, a gente continuava discutindo muito a sade, mas no tinha nenhum projeto. Eles

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assinaram e deixaram o convnio para a gente, o primeiro convnio que a gente teve com a FUNASA. Discutiram o projeto de alternativa econmica apoiado pelo ICCO, tambm assinaram e deixaram o segundo ano do projeto para a gente implantar vrios projetinhos piloto que teve. O prprio IIZ que apoiou mais, primeiramente na rea de infra-estrutura (transporte, comunicao, radiofonia). Os projetinhos bem iniciais. Na nossa poca as discusses j estavam um pouco maduras. A gente conseguiu dar continuidade a estes projetos, concretizar estes projetos, que hoje esto mais maduros inclusive, no realizado ainda, no chegaram no objetivo que se pretende chegar, mas j est bastante encaminhado. Conseguimos dar procedimento, no s no nvel do Rio Negro, como tambm no nvel de discusso poltica, no nvel da regio, no nvel do estado como da COIAB, e em nvel nacional, como tambm em nvel internacional que a gente teve bastante ao. (Bonifcio Jos, ibidem). O primeiro ano de atividades da nova diretoria privilegiou a demarcao fsica das cinco Terras Indgenas, delimitadas no ano anterior.1 Esta atividade estendeu-se durante o
Em 1991, as associaes indgenas do Alto Rio Negro recorreram ao Ministrio Pblico pleiteando uma rea contnua (8.150.000 ha) atravs de ao declaratria contra a Unio, a FUNAI e o IBAMA. A FUNAI determinou a elaborao de outro estudo de identificao, cuja proposta de delimitao unificou as 14 reas indgenas e as 11 florestas nacionais em uma nica rea indgena, que foi aprovado pelo Presidente da FUNAI, Sidney Possuelo, em 1993 (Andrello, 1996). Ainda ficaram excludos os Maku do rio Apporis, o Mdio e o Baixo Rio Negro. Em 1990, a diretoria da ACIBRN, por intermdio da FOIRN, acionou o Ministrio Pblico a fim de obter a demarcao de uma rea contnua no Mdio Rio Negro e a revogao do Decreto que instituiu uma gleba militar dentro do territrio pretendido. A elaborao de um laudo tcnico sobre o Baixo Rio Negro foi solicitada em uma assemblia extraordinria da FOIRN, em So Gabriel da Cachoeira, onde se discutia o processo judicial iminente para a demarcao da AI Alto Rio Negro. O relatrio antropolgico reconheceu a existncia de ndios e props a identificao da rea (Meira, 1991 e 1996; e Oliveira et alli, 1994). A ao declaratria pleiteou a supresso da gleba militar, qualificando-a como um ato inconstitucional, pois feria os direitos de uso exclusivo das terras tradicionalmente ocupadas por grupos indgenas.1 A FUNAI, antes mesmo da ao declaratria impetrada contra a Unio Federal, j havia includo desde 1991 o Mdio e Baixo Rio Negro na sua programao de estudos de identificao a serem realizados no ano de 1992. Entretanto, o grupo de trabalho para o cumprimento de tal tarefa s foi formado em 1993. A equipe foi composta por dez membros e efetuou o trabalho em janeiro de 1994. Trs antroplogos com vasta experincia de pesquisa na regio assumiram a coordenao, quais sejam: Mrcio Meira, Ana Gita de Oliveira e Jorge Pozzobon. O grupo de trabalho props a demarcao das A. I. Mdio Rio Negro I e II, Rio Apapris e Rio Ta. As duas ltimas reas indgenas foram excludas da rea contnua do Alto Rio Negro e se compem de terras ocupadas pelos Yuhup, Yep Mahs, Nadb, Desana, Tukano, Tuyuka, Piratapuya, Bar (Meira, 1996 e Oliveira et alli, 1994). Em 1994 a T.I. Alto Rio Negro foi objeto de contestao judicial pelo governo do Estado do Amazonas, atravs de mandado de segurana. O Superior Tribunal de Justia (STJ) inicialmente acatou a ao, mas depois julgou improcedente o pedido do governo amazonense. A prefeitura de Santa Isabel do Rio Negro contestou a identificao da T.I. Mdio Rio Negro I, com base no Decreto 1.775/96, mas o Ministro da Justia no considerou pertinentes os argumentos apresentados (Ricardo, 2000). Em fins de 1995
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ano de 1998, incluindo a avaliao tcnica da demarcao, palestras proferidas fora da regio sobre o tema e viagens a Braslia para tratar da transferncia de equipamentos para a FOIRN. A FUNAI renunciou administrao da demarcao que ficou com o Instituto Socioambiental. Os recursos financeiros foram providos pelo PPTAL e a fiscalizao tcnica ficou sob a responsabilidade do GTZ (Sociedade Alem de Cooperao Tcnica). FOIRN e ISA mobilizaram seus arsenais administrativos, tcnicos e logsticos para o cumprimento da tarefa. A participao indgena foi constante em todas as fases dos trabalhos, desde a coordenao geral (formada pelos diretores da FOIRN e uma equipe do ISA) e operacional (integrada por indgenas escolhidos nas instncias de deciso da Federao) at as atividades de campo (abertura de picadas, plaqueamento, etc.). Vrios pesquisadores associados ao ISA percorreram mais de 300 comunidades e stios, junto com lideranas indgenas, fazendo reunies e distribuindo informaes. Aplicaram um questionrio para coletar dados sobre o perfil socioeconmico da regio e montar um banco de dados georeferenciados que serviu para elaborar um Plano de Proteo e Fiscalizao das Terras Indgenas do Alto e Mdio Rio Negro, aprovado em assemblia da FOIRN, enquanto um dos componentes de um Projeto Regional de Desenvolvimento Indgena Sustentvel.2 Este plano foi entregue FUNAI para avaliao e inclui a criao de um fundo de pequenos projetos comunitrios (educao, sade, transporte, comunicao, segurana alimentar, gerao de renda e valorizao cultural) alm da ampliao (para dez)

e incio de 1996 estes territrios indgenas foram delimitados, em 1997 aconteceu a demarcao fsica deles e em 1998 foram homologados pelo presidente da repblica Fernando Henrique Cardoso, totalizando uma extenso de 10.610.538 ha. Todavia, ainda faltam obter pleno reconhecimento oficial as terras situadas na margem esquerda do alto rio Negro, onde existem comunidades indgenas ou so ocupadas por roas de moradores do lado direito do rio Negro, j demarcado e homologado; as comunidades do Balaio, situada nas margens da estrada So Gabriel-Cucu; e as terras ocupadas por povoados e stios indgenas no Mdio que ainda no foram demarcadas e no Baixo Rio Negro. Estas reas esto em fase de identificao ou delimitao, exceto no municpio de Barcelos onde, apesar da ASIBA (Associao Indgena de Barcelos) ter encaminhado uma solicitao para providenciar a identificao das terras indgenas l existentes, foi feito apenas uma verificao preliminar por um antroplogo da FUNAI. Existem tambm vrias sobreposies das terras indgenas com unidades de conservao: o Parque Nacional Pico da Neblina, a Reserva Biolgica Estadual Seis Lagos e as onze Florestas Nacionais que no foram revogadas depois da homologao da T.I. Alto Rio Negro. 2 Este Projeto foi entregue ao ento presidente da FUNAI Carlos Frederico Mars, scio-fundador do ISA, em dezembro de 1999, que se comprometeu em apresentar um oramento para a implementao do mesmo em uma semana (Programa de Desenvolvimento Indgena Sustentvel. ISA, 15/12/1999 apud ISA, 2000). Alguns meses depois, em abril de 2000, pediu demisso do cargo em razo da sua firme oposio represso militar autorizada pelo Presidente da Repblica contra os manifestantes indgenas em Porto Seguro/BA que marchavam para o local das comemoraes oficiais dos 500 anos do descobrimento do Brasil.

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da quantidade de projetos demonstrativos j existentes, cobrindo as diferentes calhas da bacia do Rio Negro (Ricardo, 2000). O atendimento ao restante do amplo leque de demandas (demarcao, alternativas econmicas, educao, sade, transporte, comunicao, valorizao cultural, e acompanhamento poltico s entidades de base) foi prejudicado, porm no interrompido. O quadro de assessores e parceiros diminuiu: ISA, SSL, UA e IIZ (ustria) ICCO (Holanda), Broederlikj Delem (Blgica), MISEREOR (Alemanha), Rainforest (Noruega) e FNS (Brasil). O convnio com o IIZ foi renovado para o perodo de 1997-1998. A estratgia para a rea de auto-sustentao das comunidades foi claramente definida no sentido de selecionar algumas delas para o desenvolvimento de experincias (piscicultura, agricultura, avicultura, minerao, artesanato e ecoturismo) que seriam difundidas caso fossem bem sucedidas os projetos pilotos. Estes foram financiados principalmente pela agncia holandesa ICCO e tiveram a assessoria tcnica do ISA e da Universidade do Amazonas. Veja o quadro abaixo.

Projetos de auto-sustentao desenvolvidos pelas associaes e fontes financiadoras em 1997. Associao CRETIART e UNIRT AIP e ACIBRN OIBI e ACIRNE OIBI, UNIARP e ACIRI OIBI e UNIRT FOIRN, OIBI e AMAI CRETIART Projeto Piscicultura Agricultura Agricultura Agricultura Minrio Artesanato Ecoturismo Financiamento ICCO/IIZ FIDA ICCO ICCO/IIZ ICCO ICCO/IIZ -------------

As iniciativas que foram consideradas como laboratrios para futuras propostas de um macro-programa de desenvolvimento sustentvel regional foram as de piscicultura no

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alto Tiqui3, artesanato no alto Iana e educao no alto Iana e no alto Tiqui. Outras iniciativas continuaram recebendo financiamento, principalmente atravs do ICCO, porm montou-se uma estrutura permanente de apoio tcnico, logstico e financeiro, que concentrou os investimentos mais intensivos e sistemticos da parceria FOIRN/ISA/IIZ em algumas poucas reas selecionadas.4 O projeto de piscicultura no Alto Tiqui assumiu um alto valor demonstrativo a ponto de constituir um componente especfico, intitulado Projeto de Manejo Sustentvel dos Recursos Naturais nas Terras Indgenas do Alto Rio Negro, do Programa Rio Negro. Trata-se de um conjunto articulado e extremamente complexo de aes de monitoramento das prticas de manejo de recursos pesqueiros e agrcolas, sustentado pelo intercmbio de tecnologias e conhecimentos cientficos e indgenas que geram novos conhecimentos e tecnologias que circulam em fluxos transnacionais de informao entre as aldeias, as agncias de cooperao5 e o universo acadmico.6 Devido aos bons resultados obtidos com esta experincia cogitou-se a sua

O projeto de piscicultura comeou a partir de iniciativas autnomas de algumas comunidades no Alto Tiqui, desde 1992, sem nenhum apoio tcnico ou financeiro, para melhorar as condies de alimentao diante da escassez de peixes existente nesta regio. Posteriormente receberam a assessoria de um professor da Universidade do Amazonas, que ministrou cursos sobre criao de peixes em cativeiro e construo de viveiros. 4 Em contrapartida foram includos os seguintes itens programticos: a criao de um fundo para incentivar os pequenos projetos das comunidades e a capacitao dos militantes indgenas em gesto de associaes e formulao, execuo e administrao de projetos (Convnio para execuo do projeto de cooperao entre o Instituto para Cooperao Internacional da ustria/IIZ e a Federao das Organizaes Indgenas do Rio Negro/FOIRN. So Gabriel, 14 de outubro de 1997. Assinam: Brunhilde Hass de Saneux, coordenadora de projetos da Aliana Pelo Clima/ustria e Pedro Garcia, presidente da FOIRN; e Programa Rio Negro. Relatrio de Atividades 1998. Verso de 21/02/99). 5 Um dos resultados esperados da cooperao entre a FOIRN e o IIZ fomentar o conhecimento dos membros da Aliana pelo Clima sobre o processo de destruio da floresta tropical, o modo de vida e a situao sciopoltica dos povos indgenas da Amaznia. O objetivo difundir as experincias da seo austraca tanto na colaborao com os povos indgenas do Rio Negro quanto com a proteo do clima a nvel local a fim de serem aproveitadas a nvel europeu para ampliar a plataforma global (Convnio para execuo do projeto de cooperao entre o Instituto para Cooperao Internacional da ustria/IIZ e a Federao das Organizaes Indgenas do Rio Negro/FOIRN. So Gabriel, 14 de outubro de 1997. Assinam: Brunhilde Hass de Saneux, coordenadora de projetos da Aliana Pelo Clima/ustria e Pedro Garcia, presidente da FOIRN). 6 O projeto estabeleceu como local principal de execuo a comunidade Caruru-Cachoeira, onde foi instalado em 1999 um centro de experimentao e pesquisa (a Estao Caruru) na reproduo de peixes em cativeiro. Em outros seis povoados foram construdos viveiros comunitrios. A expectativa num futuro prximo construir viveiros familiares. Novas tcnicas foram testadas com razovel sucesso. Como a experincia anterior, assessorada por um professor da Universidade do Amazonas, baseada na importao de alevinos (tambaqui) oriundos de Pirassununga/SP, assim como de rao proveniente de Recife/PE, fracassou porque implicava em despesas muito altas com transporte, optou-se por utilizar duas espcies de aracu existentes no Alto Tiqui. Pescadores indgenas colaboraram com seu conhecimento sobre o alimento dos peixes para a combinao da piscicultura com sistemas agro-florestais ictioforrageiros, para os quais a criao de aves fundamental ao fornecimento de adubos orgnicos. As savas constituram um grande obstculo para o bom desenvolvimento das plantaes de rvores frutferas de igap. Uma alternativa foi buscar sementes de milho

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ampliao para outras reas crticas em termos de disponibilidade de peixes7: o alto Vaups, cujo levantamento sobre iniciativas comunitrias j existentes em piscicultura e sobre a viabilidade de tal empreendimento comeou a ser realizado em 2000, o alto Iana e o entorno da cidade de So Gabriel da Cachoeira. Algumas pautas de discusso adquirem maior destaque, como aquelas referentes ao manejo sustentvel dos recursos naturais, proteo da biodiversidade e dos conhecimentos indgenas sobre o meio ambiente; assim como preservao, recuperao e registro escrito das lnguas e demais tradies nativas. Surgiram ento novas possibilidades de articulao entre o mercado, o Estado, as entidades civis de apoio e a sociedade indgena organizada em moldes associativos. O projeto de artesanato no alto Iana constituiu um outro componente fundamental do
na Colmbia, pois no Alto Tiqui o milho no mais cultivado, para resgatar esta plantao cuja vantagem sua pouca demora em produzir. Pensou-se em implantar um sistema de captao de gua por gravidade, pois as condies topogrficas favorecem, para contornar o problema de abastecimento. Apesar das dificuldades a produo de alevinos foi razovel uma parcela serviu at para repovoar os rios e igaraps , considerando o ineditismo desta experincia em piscicultura tanto em termos das tcnicas empregadas quanto em termos da espcie que foi objeto desta tentativa de manejo sustentvel de recursos aquticos. Logo, a importncia da Estao Caruru pode ser vista tambm pela sua contribuio cientfica. Monitores indgenas locais foram capacitados tanto para dominar as tcnicas utilizadas quanto para administrar o projeto. Foi feito tambm um levantamento dos nomes indgenas dos peixes a fim de elaborar um catlogo bilnge da ictiofauna da regio e um inventrio das prticas tradicionais de pesca cujo impacto ao meio ambiente menor. Esta atividade remete ao temas da educao e da valorizao moderna das tradies nativas, pois gera materiais para reformulao de currculos e de instrumentos didticos. Outros componentes foram agregados ao projeto de piscicultura por solicitao dos ndios, ou seja, no estavam inicialmente previstos e no constituam atividades necessrias aos seus objetivos especficos: manejo sustentvel de plantas teis (arum, caran, madeiras, etc.) para fabricao de objetos caseiros e construo de canoas, expanso da rea cultivada e diversificao de plantaes introduzindo o cultivo de pomares para a melhoria da merenda escolar (Programa Rio Negro. Projeto Manejo Sustentvel de Recursos Naturais nas Terras Indgenas do Alto Rio Negro. Relatrio de Atividades. Perodo Ano 2000. Parceria ISA/FOIRN. Maio de 2001; Programa Rio Negro. Relatrio de Atividades 1998. Verso de 21/02/99; e Relatrio de Atividades 2000. Verso de 25/08/01). 7 O rio Negro, seus afluentes e subafluentes (maior bacia de guas pretas do mundo) no so ricos em biodiversidade e so pobres em biomassa, porm abrigam espcies vegetais e animais de alto valor gentico por representarem exemplos de adaptao ecolgica em condies adversas. Suas guas tm as seguintes caractersticas: temperatura elevada, baixos teores de oxignio dissolvido, so pobres em nutrientes, e so muito cidas, o que provoca escassez de material orgnico e populao relativamente baixa de peixes. A maior parte das terras demarcadas composta de campinaranas (tipo de vegetao tambm chamada de caatinga), cujos solos so arenosos, cidos e pobres em nutrientes. Em algumas sub-regies, como o Alto Tiqui, a situao mais problemtica por causa da ausncia de igaps (trecho de floresta situado em terreno menos elevado que fica alagado durante o perodo de inverno), onde os peixes buscam alimento (insetos e frutas) durante as cheias dos rios. Por isso muitos povoados concentram-se nos pequenos pedaos de terra firme onde o solo propcio agricultura. Mesmo assim os grupos indgenas manejavam seus recursos aquticos de modo sustentvel. Este tipo de ocupao foi reforado pelos missionrios que incentivaram a formao de assentamentos mais habitados, ocasionando uma presso antrpica acima da capacidade de suporte da ictiofauna local. O uso de instrumentos modernos e predatrios de pesca (malhadeiras) pelos ndios foi outro fator agravante (Programa Rio Negro. Projeto Manejo Sustentvel de Recursos Naturais nas Terras Indgenas do Alto Rio Negro. Relatrio de Atividades. Perodo Ano 2000. Parceria ISA/FOIRN. Maio de 2001).

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Programa Rio Negro e estava assim constitudo: transporte para articular as comunidades envolvidas e melhorar as condies de comercializao, construo de uma casa de artesanato na sede da ACIRA, pesquisa de mercado para comrcio justo de cestaria Baniwa, manejo sustentvel da fibra de arum, campanhas de venda em grandes feiras e eventos realizados em Manaus e So Paulo e oficinas de artesanato para levantamento de viabilidade econmica e de desenhos tradicionais. Esta atividade est diretamente ligada ao resgate e valorizao da identidade tnica e no s gerao de fontes alternativas de renda.8 Arte Baniwa foi registrada como uma marca empresarial, ou seja, a OIBI e os artesos do Alto Iana detm direitos de exclusividade (propriedade) sobre sua utilizao para fins comerciais e publicitrios. A OIBI e a FOIRN firmaram um contrato, nos termos do comrcio justo9, de fornecimento para a loja de objetos de decorao domstica TOK & STOCK de So Paulo. A FOIRN montou tambm uma loja de artesanato na sede para facilitar o escoamento da produo proveniente das comunidades e da cidade de So Gabriel. As peas eram enviadas para serem vendidas na feira de artesanato indgena em Manaus, sob os cuidados da COIAB ou da AMARN (Associao de Mulheres do Alto Rio Negro). Na rea da educao escolar indgena os projetos-piloto localizaram-se no Alto Iana (Escola Baniwa/Curipaco) e no Alto Tiqui (Escola Tuyuka), alm da criao de um centro cultural Tariana em Yauaret, no Alto Vaups, para resgatar a lngua Tariana a partir de algumas famlias que ainda falam o seu prprio idioma. Comeou em 1999 e
Este projeto se insere em articulaes da sociedade civil global em busca de uma outra economia, ou seja, em trocas de bens e servios baseadas na solidariedade entre produtores, comerciantes e consumidores, em vez de orientadas pela disputa de vantagens concorrentes e pela reproduo do capital. Nesta perspectiva os atos de compra e venda esto imersos em laos sociais (de cooperao) mais amplos e duradouros, baseado no respeito mtuo aos valores e interesses dos agentes envolvidos, em compromissos ticos ligados a plataformas polticas orientadas para um outro tipo de regulao do mercado, cujo eixo seria a promoo da justia social, do reconhecimento das diferenas e da preservao ambiental. Ao pressupor canais de comunicao e dilogo entre distintos modos de vida e vises de mundo, benefcios (materiais e/ou simblicos) recprocos e relaes simtricas entre as partes engajadas esta proposta confronta-se com uma concepo assimtrica, autoritria e paternalista da cooperao internacional na qual os doadores impem modelos de desenvolvimento estranhos aos receptores, no bojo de polticas de eliminao da pobreza, como condio para o acesso aos recursos disponibilizados (Sachs, 2000). Consumidores adquirem produtos de maior qualidade e satisfazem suas demandas de colaborao e sua simpatia com grupos explorados, excludos ou marginalizados do mercado capitalista e com certificao scio-ambiental, enquanto os produtores obtm um preo maior pelos seus produtos devido aos valores culturais, ecolgicos e ticos neles agregados. Esta concepo oscila entre aqueles que lhe atribuem um carter substitutivo ou antagnico e aqueles que lhe conferem um carter alternativo ou conciliatrio, ou seja, o comrcio justo seria ou no compatvel com os fluxos econmicos hegemnicos do sistema capitalista. Tais posies se traduzem na admisso ou impedimento da participao de empresas que atuam segundo os paradigmas predominantes no mercado rede do comrcio justo (Cattani, 2003). 9 Ver nota anterior sobre este conceito.
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implementou cursos de capacitao de professores; encontros pedaggicos com a comunidade; oficinas lingsticas, etno-matemticas, de msica, canto e dana; e produo de material didtico. Estas escolas oferecem formao de 5 a 8 srie, satisfazendo uma demanda das famlias indgenas que moram no interior onde a educao escolar limita-se s quatro primeiras sries do ensino fundamental, obrigando-as a migrar para as sedes distritais ou para a sede municipal para dar continuidade aos estudos dos filhos. A poltica pedaggica orientada pelos Parmetros Curriculares da Educao Escolar Indgena do Ministrio da Educao, elaborado com a assessoria de antroplogos e lingistas dedicados ao tema, e pela legislao especfica que resultou da luta empreendida pelas organizaes de professores indgenas em mbito nacional. Neste contexto, a elaborao de um diagnstico scio-ambiental da Bacia do Rio Negro, no bojo das atividades de pesquisa e documentao sob a responsabilidade do ISA, visa fornecer valiosos subsdios para a formulao de um Programa Regional de Desenvolvimento Indgena Sustentvel para as Terras Indgenas demarcadas e homologadas. Este passou a ser o objetivo estratgico do Programa Rio Negro, cuja elaborao definitiva ocorreria em cenrios dialgicos e participativos envolvendo a FOIRN, as associaes filiadas, o ISA e FUNAI.10 O contrato de cooperao celebrado entre a FOIRN e o IIZ, em 14/10/97, alocava aproximadamente 50% do oramento total (US$ 206.300,00) em gastos na sede (pr-labore e moradia dos diretores, loja de artesanato, pagamento de funcionrios, despesas correntes, manuteno de motores e outros equipamentos, reunies do CAF e participao em fruns polticos estaduais, regionais e nacionais). Se somarmos o montante destinado infraestrutura das associaes filiadas (transporte, comunicao, reunies e assemblias, cursos de capacitao, participao em fruns polticos estaduais, regionais e nacionais), o percentual corresponde a aproximadamente 80%, ficando os restantes 20% reservados para as demais atividades (seminrios, cursos e encontros, eventos polticos e culturais, publicaes e alternativas econmicas). Nota-se que as despesas com a montagem das condies polticas, logsticas e administrativas de funcionamento da Federao (FOIRN e associaes filiadas) so muito altas, comprometendo substancialmente as verbas disponveis no mbito da Aliana Pelo Clima. Apesar da agncia holandesa ICCO
Programa Regional de Desenvolvimento Indgena Sustentvel para as Terras Indgenas do Alto e Mdio Rio Negro. Oramento para detalhamento das linhas de ao. Federao das Organizaes Indgenas do Rio Negro (FOIRN). Janeiro de 2000.
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encarregar-se da maior parcela do apoio financeiro aos projetos de auto-sustentao econmica, o IIZ e o ISA passaram a colaborar mais incisivamente com algumas iniciativas locais, pois, como j vimos, com a demarcao das terras a gesto dos direitos territoriais garantidos constitucionalmente assumiu grande relevncia. Tal estratgia deve-se a constatao de que a disperso dos recursos fornecidos sem um acompanhamento tcnico adequado e sem capacitao indgena local para gerir e executar as atividades pertinentes dificultava o pleno cumprimento das metas previstas.11 Isto provocava um estado de desorientao e frustrao que estimulava o desvio dos recursos para finalidades alheias aos projetos, fossem de interesse coletivo ou pessoal. Por outro lado, fortaleceu tambm a percepo entre os diretores da Federao de que o fluxo de recursos oriundos do circuito transnacional da ajuda humanitria no ilimitado e no substitui a responsabilidade do Estado em promover polticas pblicas mais abrangentes de desenvolvimento sustentvel assim como de educao e de sade na regio. Neste sentido, a funo representativa (contestatria e reivindicativa) da FOIRN, atravs da sua participao nos fruns estaduais, regionais e nacionais de debate sobre temas relevantes para os povos indgenas, no deixa de ser combinada com a sua funo proposicional (prestao de servios pblicos) em mbito local. A formulao e a implementao de um programa regional de sade diferenciado para os povos indgenas no Rio Negro baseou-se em um leque diversificado de parcerias da FOIRN que envolveu uma organizao religiosa (Diocese/Centro de Sade Escola), uma entidade civil (SSL)12, um rgo governamental municipal (secretaria municipal de sade/SEMSA-SG) e um federal (Fundao Nacional da Sade/FNS). A FOIRN desde 1996 firmou convnio com a FNS e depois com as entidades prestadoras de servios de

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A crescente demanda dentro da Federao em torno da gerao de alternativas econmicas se expressou na sugesto do coordenador do CAF, Estevo Barreto (Tukano), em uma reunio do conselho, de criao de um departamento de elaborao de projetos na FOIRN (Relatrio da Reunio do Conselho Administrativo da FOIRN/CAF, 14 a 16 de janeiro de 1999). 12 A associao Sade Sem Limites (SSL) organizao no-governamental de cooperao ao desenvolvimento sem fins lucrativos [com sede em So Paulo/SP] e parceira no Brasil da agncia inglesa Health Unlimited (HU), que atua como prestadora de servios de assistncia sade de populaes carentes em 12 pases, concentrando esforos especialmente na construo de servios de ateno primria sade em regies isoladas geograficamente ou privadas de assistncia em funo de conflitos ou discriminao [...] (Sade Sem Limites. Programa Rio Negro). Atua no estado do Acre desde 1989, em parceria com a UNI-Acre e com a Associao dos Seringueiros e Agricultores da Reserva Extrativista Alto Juru (ASAREAJ). Desde 1994 a FOIRN estabeleceu contato com a SSL para a implementao de um Sistema Local de Sade Indgena no Rio Negro, de forma articulada a outras instituies prestadoras de servio.

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ateno sade citadas acima com o objetivo de implementar aes destinadas a capacitao de recursos humanos, superviso dos agentes indgenas de sade, mobilizao comunitria, educao sanitria e incentivo medicina tradicional. A FOIRN, o Centro de Sade Escola, a SSL, a Associao de Agentes Indgenas de Sade do Alto Rio Negro (AAISARN) e a Associao dos Trabalhadores de Enfermagem de So Gabriel fundaram a Sociedade para o Desenvolvimento da Sade Indgena do Alto Rio Negro (SDS/RN), formando um mutiro interinstitucional para modificar a precria situao sanitria da regio.13 O setor sade foi adquirindo espao crescente na estrutura organizacional, financeira e operacional da Federao: criao do departamento de sade, aumento do volume oramentrio destinado a tal finalidade (de R$ 360.000,00/ano para R$ 500.000,00/ano) e multiplicao das iniciativas voltadas para a capacitao (cursos e oficinas) e das oportunidades de participao e discusso dos lderes comunitrios, dirigentes das associaes e agentes indgenas de sade (encontros, reunies, conselhos, etc.). Neste momento os mecanismos de monitoramento da sociedade civil local sobre as polticas pblicas de sade comearam a se constituir, os conselhos locais, e a se fortalecer, como o conselho municipal de sade. Nas assemblias das organizaes filiadas e da prpria FOIRN este tema adquiriu cada vez mais ateno. Este processo se acentuou e culminou nas discusses, principalmente a partir de 1999, em torno da criao do Distrito Sanitrio Especial Indgena do Rio Negro/DSEI-RN.
[...] O perfil epidemiolgico apresentado indica como os principais agravos sade doenas endmicas de natureza infecto contagiosa tais como as parasitoses intestinais, a turberculose, a malria, DSTs, tracoma e hansenase, bem como revela altas taxas de morbimortalidade devida doenas agudas diarricas e respiratrias. A cobertura vacinal na regio revela baixas taxas de cobertura, principalmente em relao s vacinas que necessitam de doses sucessivas, em virtude da escassez de recursos materiais e humanos disponibilizados para esta atividade. O acesso aos servios de sade vm sendo nos ltimos anos, intermediado por uma rede de AIS que, at o presente momento, trabalha em condies precrias, geralmente sem superviso e sem as demais condies de apoio necessrias para a boa execuo de suas atividades, tais como meios de transporte e comunicao, fornecimento regular de insumos e medicamentos bsicos. [...] os servios de sade operantes no alto Rio Negro sempre se caracterizaram, fundamentalmente, por privilegiar a atuao nos ncleos urbanos constitudos ou em constituio na regio, gerando o vazio na grande maioria das quase 500 comunidades indgenas do Rio Negro. Em geral estes servios tendem valorizar aes restritas cura e recuperao de casos emergenciais ou, regra geral, resultantes da ausncia de medidas preventivas, do atraso no diagnstico e na execuo de intervenes precoces, que deveriam ser garantidas no mbito das prprias comunidades indgenas. Os servios de sade ainda tendem a desconsiderar e sub-aproveitar o potencial dos AIS e demais profissionais locais, bem como dificilmente comportam modalidades de gesto participativa, o que resulta, freqentemente, na inadequao cultural das aes de sade e, portanto, na ineficincia, do ponto de vista da sade pblica, em relao reverso dos indicadores epidemiolgicos que caracterizam a regio, geralmente mais graves que a mdia nacional (Federao das Organizaes Indgenas do Rio Negro FOIRN. Proposta de Apoio Implementao do Distrito Sanitrio Especial Indgena do Rio Negro So Gabriel da Cachoeira/Amazonas 1999).
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O Distrito Sanitrio Especial Indgena (DSEI) um programa do governo federal de atendimento diferenciado sade dos povos indgenas, isto , que deve respeitar as suas culturas, as suas concepes particulares sobre o corpo, a doena e a morte. Este programa foi o resultado de muitos anos de luta dos ndios no Brasil por um sistema de sade mais digno. O DSEI foi proposto na I Conferncia Nacional de Proteo Sade Indgena, em 1986. Em 1999, os servios relativos promoo da sade dos povos indgenas passaram da FUNAI para a FUNASA, sendo transferidos todos os recursos humanos e materiais concernentes de um rgo para o outro (Pellegrini, 2000). Para a implantao deste sistema, iniciada no mbito do Ministrio da Sade no segundo semestre de 1998, o territrio brasileiro foi dividido em 34 distritos; o Rio Negro um deles. O Distrito Sanitrio Especial Indgena do Rio Negro (DSEI/RN), cuja sede em So Gabriel da Cachoeira, foi criado em 1998 e s abrangia o municpio de mesmo nome.

Fonte: FUNASA/Ministrio da Sade.

A proposta de distrito sanitrio elegeu os seguintes princpios fundamentais de orientao para o seu funcionamento: interiorizao (preveno, diagnstico e antecipao do atendimento nas comunidades e stios) dos servios sanitrios; capacitao de recursos humanos; condies administrativas, logsticas e financeiras adequadas; integrao e

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cooperao de todos os agentes e instituies envolvidos; controle social e participao dos beneficirios na gesto dos servios; o intercmbio entre saberes e habilidades indgenas e modernos; dilogo e colaborao intercultural dos profissionais de sade com pajs e benzedores; e respeito pelas prticas tradicionais de cura, assim como pelas concepes nativas sobre a doena, a morte e o meio ambiente. Foi montado um complexo sistema perito (informado por conhecimentos cientficos, mas tambm gerador de novos conhecimentos), um conjunto articulado e altamente reflexivo de aes de induo e gesto de mudanas no quadro sanitrio vigente no Rio Negro. Trata-se de um ambicioso programa regional de desenvolvimento na rea da sade indgena, inserido em um programa maior formatado em grandes linhas de mbito nacional, mas adequado (planejado e executado) s singularidades regionais e locais, sustentado por uma rede de parceria interinstitucional (envolvendo Estado, sociedade civil, cooperao internacional, igreja e organizaes indgenas) e pela mobilizao de vultosos recursos materiais, financeiros e humanos. A FNS ficou encarregada da coordenao e as entidades colaboradoras ficaram encarregadas da execuo; relacionamento formalizado atravs de convnios. O critrio estabelecido para uma instituio integrar a rede do DSEI/RN foi o conhecimento e a experincia acumulada no campo da sade e do meio ambiente no Rio Negro, alm de no ter fins lucrativos. O distrito uma unidade administrativa autnoma e por isso conta com um fundo e um conselho distritais. A FOIRN e as associaes filiadas ficaram incumbidas do controle social e da formao dos conselhos distrital instncia de aprovao do planejamento distrital elaborado pelas entidades prestadoras de servios e locais. Devido imensido geogrfica e heterogeneidade ambiental, cultural e lingstica a regio foi divida em sub-distritos: unidades de apoio logstico s aes distritais em um conjunto delimitado de assentamentos no interior. A rea dos rios Tiqui e Vaups ficou sob a responsabilidade da SSL, o Centro de Sade Escola ficou com o rio Negro, BR 307, Cada de Sade do ndio e com a capacitao de agentes indgenas de sade e a SEMSA ficou com a rea dos rios Iana, Aiari, Cuiari, Xi e Papuri. Em cada um deles foram instalados plos-base, sediados em comunidades determinadas, providos com uma edificao que inclui apartamento para moradia de um tcnico de enfermagem alm das instalaes e equipamentos destinados ao atendimento mdico e odontolgico, alm de aparelho de

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radiofonia funcionando 24 horas/dia. Este profissional tem sua disposio uma voadeira (embarcao movida com motor de popa) de 40 hp para, junto com o agente de sade, dar assistncia aos moradores das comunidades e stios inseridos na sua rea de abrangncia. Alm disso, periodicamente uma equipe composta por mdicos, enfermeiros e dentistas, percorre aquele sub-distrito para prestar assistncia e avaliar o desempenho dos profissionais permanentes nos plo-base. Os Yanomami mais prximos da regio do Rio Negro ficaram sob a jurisdio do DSEI/RN, em vez de ficarem no DSEI/Yanomami, enquanto que em Santa Isabel do Rio Negro e Barcelos foi prevista a realizao de levantamentos antropolgicos e epidemiolgicos para subsidiar, com informaes sobre a populao indgena e sua situao sanitria, uma proposta de expanso do distrito para estas reas. Veja a figura abaixo.14 O DSEI tanto uma conquista derivada da luta do movimento indgena por um sistema diferenciado de promoo de sade para os povos indgenas ampliando o canal de comunicao com o Estado e democratizando mais a formulao de polticas pblicas quanto um exemplo de terceirizao das responsabilidades governamentais, ditada pela poltica neoliberal de ajuste estrutural implantada pelo presidente Fernando Henrique Cardoso. As linhas gerais de uma proposta de DSEI elaborada no primeiro trimestre de 1999 pelos vrios atores envolvidos na promoo da sade e do etnodesenvolvimento no Rio Negro enfatizaram a necessidade de implantar uma slida poltica de recursos humanos que garanta condies dignas de trabalho (um plano de carreira, funes, salrios, benefcios e estabilidade mnima) aos profissionais envolvidos, em contraposio descontinuidade, rotatividade e incerteza at ento vigentes nos convnios firmados com a FNS e FUNAI.15 Tal desestatizao da prestao de servios pblicos trouxe problemas ao impor uma excessiva burocratizao da FOIRN, pois com a considervel ampliao do seu departamento de sade, a acentuada elevao do seu quadro de funcionrios e do volume de recursos materiais e financeiros16 disponveis (mdicos, enfermeiros, tcnicos de

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Para uma descrio oficial da situao do DSEI/RN no ano de 2000, acompanhada das metas projetadas para o ano de 2002, ver o documento em anexo, acessado no site da FUNASA/MS em . 15 Proposta de Organizao dos Servios de Sade na Regio do Rio Negro. So Gabriel da Cachoeira FEV/MAR 1999. 16 A FOIRN props um oramento de R$ 3.886.986,09 (R$ 3.641.986,09 oriundos do Ministrio da Sade e R$ 245.000,00 era a contrapartida da Federao), entretanto recebeu do Ministrio da Sade R$ 2.193.341,55 no ano de 2000.

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enfermagem, dentistas, etc.), as tarefas administrativas tomaram uma dimenso monumental. [...] Na poca j tnhamos muitos funcionrios, trabalhvamos com cem agentes indgenas de sade e mais 70 profissionais. Todos os funcionrios da SEMSA eram funcionrios da FOIRN. Ela tinha autonomia para definir os planos de atividade (oramento para comprar gasolina, etc.), a gente s pagava os funcionrios. A FOIRN ficou com quase duzentos funcionrios. Isso complicou a vida da FOIRN. Quando apresentamos a nova proposta a gente tinha certeza que se continussemos nunca mais amos aceitar isso, a gente mais uma vez apresentou uma proposta somente para o controle social e combustvel para os agentes de sade, como tnhamos trabalhado nos projetos pequenos. Desta forma o oramento da FOIRN tinha reduzido bastante (em 40% aproximadamente) e no iramos aceitar mais os funcionrios, e ser mais exigente no controle, e estreitar as relaes da FOIRN com o Ministrio da Sade. [...] A gente ficou muito preso no distrito... porque na nossa gesto usamos como departamento de sade. Demos carta branca para esse departamento, para os quatro coordenadores do departamento. Eles podiam representar a FOIRN nas discusses do Ministrio da Sade, tomar decises, mas se fosse uma deciso que precisasse do visto da diretoria eles tinham que comunicar antecipadamente. Eles discutiam a situao financeira que o distrito estava passando, faziam seus planos e sentavam com a diretoria, que discutia com eles e dava as linhas finais. [...] (Pedro Garcia, entrevista. Op. cit.). Concretamente a FOIRN no ficou restrita ao controle social e encarregou-se da edificao dos plos-base, ou seja, ocupou-se de aes relativas prestao de servios. Em uma regio em que as vias de locomoo so basicamente os rios que so navegveis apenas por pequenas embarcaes e em alguns trechos de cachoeiras at por eles difcil o transporte de materiais de construo, em boa parte comprados em Manaus, para as comunidades onde as sedes dos plos-base fora implantados complicado e dispendioso.

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[...] A partir de 1996 o Brs tinha acabado de assinar o convnio com o Ministrio da Sade, foi o primeiro convnio com este ministrio, ele assinou e quem executou fomos ns. Isto em 1997, e em 1998 a gente renovou o convnio. Em 1999, de novo o terceiro convnio, mas parcerias pequenas, era s para aquisio de medicamentos bsicos e treinamento para os agentes de sade, e pequena ajuda de custo para os agentes, um salrio mnimo. Em 2000 comeou o DSEI. A a gente teve um erro na hora definir o distrito, ou melhor, na definio do papel da FOIRN dentro do distrito. A nica falha que tivemos na primeira gesto do distrito foi isso, como diretoria da FOIRN. A gente sempre dizia que o movimento indgena no Rio Negro seria um agente do controle social, mas acabamos aceitando ficar com a construo dos plos-base, ficamos tambm como executor. No tivemos condio de avaliar realmente a ao dos outros profissionais de sade porque estvamos no mesmo nvel de execuo. A FOIRN em vez de fazer o controle social virou empresa de construo. Passamos o ano de 2000 construindo os plos-base. Essa poltica do governo atrapalha muito e muito complicada a burocracia que eles pem em cima de ns, principalmente um projeto grande como o distrito sanitrio muito mais complicado ainda. Na proposta inicial dissemos que no primeiro ano s construiramos trs plos-base: um em cada regio; no segundo ano mais trs; e no terceiro ano mais um e com uma sede mais especfica no centro, na sede do distrito (So Gabriel). Eles aceitaram. Comeamos primeiro a equipar as equipes com transporte e tal. Consultamos os engenheiros para fazer a planta, um trabalho demorado na hora de construir, e tambm devido a distncia e dificuldades houve muito atraso. Quando estavam iniciando as construes muda a poltica e o governo queria que os sete plos fossem construdos de uma s vez, para no ficar nenhuma construo para os anos seguintes. Foi uma trapalhada total assim, em cima da hora... Quando era prazo de fechar o projeto, o ano estava terminando, eles queriam que a gente entregasse os plos-base depois de 120 dias. Uma construo grande agente no pode... Daria certo se fosse aqui na sede, faltando material ns temos onde comprar. Tinha muita coisa que dependia de Manaus (material de construo... ), fazer compra em Manaus, chegar aqui, enviar para os

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locais onde os plos estavam sendo construdos, passava assim de vinte a trinta dias at o material chegar no local da construo. Acho que esse foi o nosso erro gravssimo em relao a isso, em vez de ficarmos s no controle social, para ver se o pessoal estava realmente trabalhando, a FOIRN virou uma empresa de construo ento perdemos o ritmo do controle, a gente vinha andando certo. Nos ltimos meses em vez de nos preocuparmos com o controle social, estvamos mais preocupados com as construes, com as obras. [...] [grifos SCP] (Pedro Garcia, ibidem). Isto prejudicou o exerccio da funo precpua da FOIRN de acompanhar e avaliar o trabalho das entidades prestadoras de atendimento sade e, em contrapartida, a prpria diretoria da FOIRN ficou sob a mira das crticas ao confundir-se com os agentes de execuo e distanciar-se do seu papel fiscalizador.17 Por outro lado, o DSEI/RN exigiu uma ateno desproporcional frente complexa gama de responsabilidades da diretoria.18 Esse

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Esta situao se agravou em 2001, quando uma nova diretoria j tinha sido eleita, com a sada da secretaria municipal de sade (SEMSA/SG) da rede de parceiros do distrito por causa de denncias de irregularidades. A rea atendida pela SEMSA/SG era Aiari, Iana, Xi e Papuri. No deram assistncia durante quatro meses. Uma equipe da FUNASA de Manaus foi a So Gabriel para verificar a situao e constatou m aplicao de recursos e superfaturamento na compra de medicamentos e equipamentos. Foi o prprio corpo tcnico da SEMSA quem denunciou no incio de 2001. Estava no incio de vigncia do convnio e a primeira parcela dos recursos foi suspensa. Houve uma manifestao dos beneficirios em prol da retirada da secretaria do convnio e solicitaram que a FOIRN assumisse. Em uma reunio com a diretoria da FOIRN, na ocasio da 1 Conferncia Municipal de Sade em So Gabriel da Cachoeira, Ubiratan Moreira, Chefe do Departamento de Sade Indgena da FUNASA/MS, props a unificao do projeto de controle social com o convnio da SEMSA/SG. Isto correspondeu a um acrscimo no oramento gerido pela FOIRN de quatro milhes de reais, somados aos R$ 972.000,00 alocados para o controle social. Ubiratan Moreira comprometeu-se com a liberao imediata de R$ 400.000,00 para colocar os profissionais em campo o mais rpido possvel. O oramento ficou um pouco acima dos quatro milhes de reais porque foi introduzido um projeto de educao ambiental que foi entregue pessoalmente por Orlando Oliveira, presidente da FOIRN, a Ubiratan Moreira em Braslia. Demorou sete meses para a FUNASA em Braslia responder. Durante este perodo s foi possvel colocar uma equipe em campo por dois meses: [...] Todo esse tempo parado, e s bronca pra cima da FOIRN. [...] Todos os profissionais passaram para a folha de pagamento da FOIRN, assim como os equipamentos tambm foram transferidos para a sua responsabilidade. Continuam fazendo parte do patrimnio da FUNASA servio da sade indgena. O pagamento de encargos sociais abarca uma parcela considervel do oramento, cujo atraso no cumprimento implica no aumento da dvida por causa dos juros, e se a FUNASA demora em repassar os recursos a FOIRN corre o risco de ser processada judicialmente. Os diretores da Federao esto pensando em passar a gesto do DSEI/RN Sociedade para o Desenvolvimento da Sade no Rio Negro/SDS, assim a FOIRN se limitaria novamente fiscalizao da aplicao dos recursos e da prestao dos servios (Entrevista com Orlando Jos de Oliveira, Bar, presidente da FOIRN, realizada em So Gabriel da Cachoeira/AM, 08/10/2001). 18 Ao lado disso, as insatisfaes quanto ao pequeno nmero de projetos-piloto e ao seu reduzido raio de abrangncia, provocando a sensao entre vrios militantes indgenas de que algumas associaes estariam sendo privilegiadas pela diretoria repercutiram no processo de escolha dos novos dirigentes da Federao.

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dilema entre fiscalizar ou executar foi um ponto de divergncia importante sendo que alguns militantes indgenas, por outro lado, cobraram uma deciso da diretoria da FOIRN em assumir a gesto do DSEI/RN, em vez de deixar nas mos das ONGs, para resolver os problemas existentes. Estou me referindo a I Reunio das Associaes Indgenas da Calha do Rio Negro, realizada na comunidade Tapereira, situada no mdio rio Negro, nos dias 11 e 12/10/2000.19 Um funcionrio indgena, Tukano, da FUNASA acusou a diretoria de ter medo de assumir a gesto do DSEI em Santa Isabel do Rio Negro e em Barcelos. [...] A diretoria no pode restringir-se ao controle social, deve assumir a sade realmente, entrar na rea de atendimento, assistncia. [...] determinao de Braslia, Ubiratan, chefe do Departamento de Sade Indgena da FUNASA, fazer convnios com organizaes indgenas e segunda opo com prefeituras municipais. A FUNASA no est disposta a fazer convnios com ONGs noindgenas, ONGs estrangeiras. No caso especfico do Rio Negro, entretanto, a FOIRN no assumiu desde o incio esta responsabilidade. [...] Talvez fique complicado a FOIRN assumir o DSEI/RN como um todo, mas se ela assumir a assistncia em Santa Isabel e Barcelos e mostrar que tem competncia, em 2002 poderia assumir todo o distrito. Depende da diretoria da FOIRN e das associaes de base de l apresentarem um plano de trabalho coerente para a FUNASA. O nosso ministro [da Sade] economista e o presidente da FUNASA contador, auditor fiscal. O diretor executivo outro economista, os mdicos trabalham muito com dados, apesar de ser um rgo de sade, no segundo e no terceiro escalo trabalham muito com dados numricos, no trabalham muito com essa questo social, so bem tcnicos. Ou seja, mostrem uma coisa bem enxuta e contratem um corpo administrativo bom que o convnio ser de vocs e vocs que vo administrar. isso que a FUNASA coloca para vocs (Trecho de um
Estiveram presentes delegados das nove associaes indgenas da calha do rio Negro: Associao das Comunidades Indgenas do Baixo Rio Negro (ACIBRN), Associao das Comunidades Indgenas do Mdio Rio Negro (ACIMRN), Associao das Comunidades Indgenas Potira-Kapuamo (ACIPK), Associao das Comunidades Indgenas do Rio Negro (ACIRNE), Associao Indgena do Balaio (AINBAL), Associao Indgena de Barcelos (ASIBA), Associao Yanomami do Rio Cauburis (AYRCA), Conselho de Articulao das Comunidades Indgenas e Ribeirinhas (CACIR) e Organizao das Comunidades Indgenas do Alto Rio Negro (OCIARNE). Nesta ocasio foram indicados os 60 componentes da delegao da calha do rio Negro para a Assemblia Geral Eletiva da FOIRN. A ASIBA, por ser a organizao mais recente, ficou com quatro delegados enquanto cada uma das outras oito organizaes ficaram com sete delegados.
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pronunciamento durante a I Reunio das Associaes Indgenas da Calha do Rio Negro, Tapereira/SGC, 11 e 12/10/2000). necessrio caracterizar em linhas gerais o contexto de enunciao do discurso acima transcrito parcialmente para entendermos um pouco melhor o seu contedo. Foi decidido em reunio do Conselho Administrativo que trs candidatos direo da Federao seriam indicados por cada uma das sub-regies em reunies de representantes das associaes existentes em cada uma delas. Logo todos os assuntos em pauta de discusso e principalmente a sade nesta reunio se desenrolaram em um clima extremamente sensvel posto que sua referncia bsica era a disputa eleitoral pelos cargos da diretoria. Estvamos a poucos dias do processo de escolha da nova diretoria da FOIRN, logo alguns pronunciamentos j carregavam um teor de campanha muito forte, seja a favor ou contra a diretoria da Federao. Miguel Maia rebateu as crticas alegando que a viso apresentada pelo funcionrio da FUNASA era convergente com a poltica do governo federal de terceirizao dos servios pblicos de assistncia sade, transferindo responsabilidades para as ONGs e organizaes indgenas. Sendo assim, defendeu a limitao da atuao da FOIRN ao controle social do DSEI/RN, deixando sua gesto aos parceiros governamentais ou no-governamentais, mas as lideranas deveriam discutir se querem ou no que a FOIRN assuma o atendimento de sade. Carlos Nery (Piratapuia) delegado da ACIMRN e vereador eleito em Santa Isabel declarou que sem o apoio da prxima diretoria da FOIRN o distrito no ser implantado em Santa Isabel e Barcelos. Braz Frana destacou a presena da FUNAI nas reunies da FOIRN e das associaes filiadas, expressando uma mudana na direo da Administrao Executiva Regional de So Gabriel (AER/SG). Fez uma exposio sobre o processo de demarcao das terras indgenas no Rio Negro e sobre a proposta de transformao dos postos indgenas em postos de vigilncia e fiscalizao. Braz foi indicado nas instncias de deciso do movimento indgena para ocupar um cargo na AER/SG/FUNAI cuja nomeao ocorreu em 08/09/1999 para participar das atividades de instalao dos postos de vigilncia e fiscalizao, que ainda no tinha sido iniciadas. O objetivo da sua indicao foi ocupar espaos nos rgos pblicos atravs de parentes com larga experincia no movimento indgena para expandir o canal de dilogo com o governo federal. Expressou seu desnimo

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em ocupar um cargo num rgo governamental completamente desprestigiado, desacreditado, sucateado, corrodo pela ineficincia e pela corrupo. Destacou sua atitude crtica, corajosa e autnoma frente paralisia da agencia indigenista oficial. [...] Um parente chega na AER/SG pedindo uma ajuda e ns no podemos fazer nada porque no temos recursos. Ele pergunta ento o que ns estamos fazendo l. A gente precisa colocar isso na cabea do presidente do rgo e eu tenho coragem para fazer isso, porque o meu papel defender o povo. Eu fui indicado atravs da FOIRN, pelo movimento indgena, para um cargo na FUNAI foi para trabalhar da melhor forma possvel ou pelo menos para limpar um pouco a imagem da FUNAI local. Eu no estou podendo fazer isto e por isso estou disposto a entregar meu cargo neste dia, mas dizer para ele que no venha mais nenhum presidente da FUNAI aqui fazer promessas. Diga a verdade: a FUNAI est falida, est decada, os postos no sairo, porque no tem dinheiro. Vamos ter que questionar isto e as lideranas tero que reforar nossa situao porque precisamos destes postos de vigilncia. [...] (Brs Frana, pronunciamento durante a I Reunio das Associaes Indgenas da Calha do Rio Negro, Tapereira/SGC, 11 e 12/10/2000). Braz Frana pediu que todos continuassem a discutir e pressionar porque a FUNAI viciou-se a funcionar sob presso. [...] Mas a FUNAI est precisando desta presso. Temos que nos mobilizar e botar o cacete para funcionar. Eu quero caminhar junto com vocs. Quero ajudar, contribuir. At porque a experincia que eu adquiri no movimento foi na prtica mesmo e eu no quero jogar esta experincia fora, eu quero aplica-la dentro do prprio movimento, dentro da populao indgena. [...] (Trecho de pronunciamento durante a I Reunio das Associaes Indgenas da Calha do Rio Negro, Tapereira/SGC, 11 e 12/10/2000).

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O recado no poderia ser mais claro. Seu capital poltico a sua experincia de seis anos dirigindo a FOIRN e o mrito de ter sido um dos principais responsveis pela montagem de sua estrutura poltica, administrativa, logstica, financeira e normativa. Esse era seu principal trunfo argumentativo para convencer uma parcela substantiva da plenria a indic-lo para concorrer a uma vaga na diretoria da Federao. Fez um resumo das conquistas da sua gesto. Sublinhou a diviso de competncias dos quatro diretores pelas suas sub-regies de origem, devido ampliao da rea de atuao e, conseqentemente, pela necessidade de estarem presentes em toda regio. Foi transformado em norma o fato de cada diretor ser oriundo de uma das quatro calhas de rio e, portanto, conhec-la mais e falar a lngua predominante nela. Recorreu ento ao argumento tnico, a distribuio geogrfica dos diferentes grupos, para enfraquecer a posio de Miguel Maia como representante da calha do rio Negro na diretoria, eleito na eleio de 1996, quanto sua pretenso de ser reeleito. [...] Agora a gente viu que s o rio Negro desviou um pouco desta meta. Por que, por exemplo, jamais os Baniwa l no Iana vo indicar um Tukano ou um Bar para ser representante deles. Um Bar ou Tukano no vai entender a linguagem deles, os conhecimentos, as tradies deles l. Ento eles tem que manter: ns queremos uma pessoa que seja nossa, daqui, da nossa regio, que fala e conhece a nossa lngua e conhece a nossa tradio. A mesma coisa as outras regies. Ento esse foi o critrio passado. Agora pode mudar, por causa a democracia que vale, a discusso, etc. Ento eu acredito que prevaleceu naquela poca... porque fica realmente difcil... acho que o Miguel sentiu a dificuldade desta vez, porque quando se vai l pra barra do Xi, pro alto rio Negro, eles falam muito a lngua geral l, discurso l lngua geral mesmo. E se a gente no tem fica difcil compartilhar com a discusso, porque muitas vezes tem argumentos importantes que a gente no sabe traduzir. Ento foi isso um pouco a histria da questo, a gente est discutindo aqui justamente para quando vocs indicarem os candidatos para concorrer, ver tambm esta forma, esta possibilidade e este perfil do elemento. [...] (Brs Frana, pronunciamento. I Reunio das Associaes Indgenas da Calha do Rio Negro, Tapereira/SGC, 11 e 12/10/2000)

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Miguel Maia no podia deixar de responder. Refutou os argumentos de Brs dizendo que um dirigente da FOIRN tem que atuar em contextos polticos mais abrangentes do que o sub-regional da calha do rio Negro, ou seja, deve estar apto a participar destes fruns mais amplos de discusso e no somente no meio do seu povo de origem. Por outro lado, a nvel local definiu como requisitos de uma boa liderana a humildade e a popularidade, que se traduzem em disposio e abertura para conversar com todos, mais do que falar a lngua predominante ou ter habilidades retricas e boas idias. E, finalmente, lembrou que na calha do rio Negro no vivem s os Bar, mas tambm os Tukano, Desano, Arapao, Piratapuia... Ambos definiram uma imagem de liderana que mais se aproximava da representao que faziam de si mesmos e da sua carreira particular no movimento indgena. [...] Eu queria s dizer o seguinte: toda essa estrutura que se fala da FOIRN ela no se resume em votar na assemblia e s falar da FOIRN. Toda articulao, representao do trabalho no movimento, eu falo regional, no caso o rio Negro, ela tende a imaginar... vocs podem a ver pessoas esto participando num mbito muito mais amplo. No se resume a essa articulao interna. Vale muito voc falar a lngua realmente da populao da qual voc participa, s que no suficiente. [...] Temos que estar sintonizados com o contexto poltico muito mais amplo do que o regional. [...] Ento todo esse cuidado, na hora da indicao de vocs importante vocs verem. E colocar para vocs essas pessoas, lideranas, alm de ter essa linha de defender, de propor, tem que ter humildade. [...] O discurso muito bom realmente, mas essa linha de humildade, de conversa, de popularidade, vale muito. Eu no sei falar a lngua geral, mas entendo perfeitamente. Tukano, entendo perfeitamente tukano. Vou aqui no barco, qualquer lugar ali... eu s no entendo Baniwa, mas lngua geral e tukano eu entendo. Ento eu tenho meio de comunicao, embora no sou Bar. E no d para dizer na calha do rio Negro tem que ser Bar. Embora que a imemorialidade da... so os Bar, mas a calha do rio Negro basicamente povoado pelos Tukano, Desano, Piratapuia. [...] (Miguel

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Maia, pronunciamento. I Reunio das Associaes Indgenas da Calha do Rio Negro, Tapereira/SGC, 11 e 12/10/2000) Outros expressaram a opinio de que deveria haver uma renovao no movimento indgena, apostando em pessoas novas para trazer experincias novas, porque todos so capazes e ningum insubstituvel. Outros ainda sugeriram uma soluo conciliatria atravs da mescla de lideranas experientes, histricas, com jovens militantes que podem aprender com os mais velhos, possibilitando uma renovao gradativa. Brs Frana manifestou-se dizendo que no estava impondo a sua candidatura, mas fora chamado por outras lideranas para levar o movimento indgena em frente. Salientou veementemente, em tons quase messinicos, que o momento era muito difcil, pois muita gente (brancos, polticos, ONGs, etc.) estava interessada nas eleies da FOIRN, estavam mais preocupadas at do que com as eleies municipais. Por esta razo pediu muito cuidado na escolha dos candidatos da calha do rio Negro, pois a situao exigia uma pessoa firme e corajosa para enfrentar a batalha. Chegou at a condicionar a sua indicao existncia de um consenso em torno do seu nome; que se existisse corresponderia a uma quase garantia de vaga na diretoria da Federao. Braz pretendia ocupar nada menos do que a presidncia da organizao. [...] Mas por outro lado eu vejo... quando eu sinto que as lideranas do prprio movimento me procuraram para continuar levando o movimento em frente, eu jogo a minha pessoa disposio. Vocs me tiraram da diretoria, mas no me tiraram do movimento porque eu sou membro efetivo do movimento. Vocs querem que eu volte, depende de vocs. Se vocs quiserem que eu volte eu estou disposto a enfrentar mais essa batalha. Eu acho que isso uma conscincia de todos as organizaes que me procuraram e me propuseram essa situao. Ento, poxa, eu no quero atropelar, achar que eu estou impondo minha candidatura. No, pelo contrrio, eu estou aceitando o convite de vrias pessoas que sugeriram meu nome, de outras organizaes inclusive que no so da minha rea. E hoje exatamente ns estivemos conversando justamente para apoiar a minha indicao e a minha

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candidatura. (Brs Frana, pronunciamento. I Reunio das Associaes Indgenas da Calha do Rio Negro, Tapereira/SGC, 11 e 12/10/2000) lvaro Sampaio no estava presente, mas enviou uma carta atravs da delegao da AINBAL, candidatando-se para uma das trs indicaes da calha para a eleio da diretoria da FOIRN. Justificou seu nome pela necessidade de algum com experincia e trnsito em Braslia no Congresso Nacional para defender os interesses e os direitos dos povos indgenas. Um integrante Bar da delegao da ACIPK sugeriu que fosse limitado o nmero de votantes por delegao para no haver favorecimento das delegaes que conseguiram levar mais pessoas para a reunio.20 Como tal proposta foi acatada pela plenria, foi definido o nmero de quatro votos por delegao, baseado no tamanho das menores delegaes presentes (ASIBA e ACIMRN) com exceo da CACIR que tinha apenas dois integrantes. Cada delegao indicou um nome21 e os trs mais votados atravs de eleio secreta em Tapereira foram indicados para concorrer vaga da calha do rio Negro na diretoria da FOIRN. Os trs mais votados foram: Braz Frana com 12 votos; Miguel Maia com 7 votos e Orlando Jos de Oliveira com 6 votos. Como veremos adiante os apelos tnicos, para buscar sustentao poltica na disputa pelos cargos executivos da Federao como base para uma reao Bar frente a uma suposta hegemonia Tukano , no surtiram os efeitos eleitorais esperados.

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Outra proposta por ele sugerida foi que a votao fosse dividida por grupos de associaes do baixo, do mdio e do alto rio Negro, de modo que cada uma destas sub-regies ficasse com um candidato garantido para a diretoria da FOIRN. Esta sugesto no foi aprovada pela plenria. 21 Veja as indicaes de cada associao: ACIBRN, Miguel Maia e Braz Frana; ASIBA, Benjamin; OCIARNE, Braz Frana; ACIMRN, Orlando Jos de Oliveira; AINBAL, lvaro Sampaio; AYRCA, Braz Frana; ACIPK, Alvacy; ACIRNE, Bento; e CACIR, Orlando Jos de Oliveira.

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CAPTULO X. A V Assemblia Geral Eletiva da FOIRN. A V Assemblia Geral Eletiva da FOIRN aconteceu nos dias 23, 24 e 25 de outubro de 2000, no ginsio coberto das Misses Salesianas, na cidade de So Gabriel da Cachoeira. Estavam presentes na abertura do evento: o prefeito de So Gabriel, Hamilton Gadelha; o Bispo da Diocese do Rio Negro, Dom Walter Ivan de Azevedo; o coordenador do Programa Rio Negro/ISA, Carlos Alberto Ricardo; a coordenadora de projetos da Aliana Pelo Clima/ustria, Brunhilde Hass de Saneux; o administrador regional da FUNAI, Henrique Veloso Vaz; o presidente da Cmara de Vereadores de So Gabriel, Jos Pereira dos Santos; os comandantes do 5 Batalho de Infantaria de Selva (5 BIS), Tenente-Coronel de Infantaria Humberto Madeira, e do 1 Batalho de Engenharia e Construo (1 BEC), Major Lcio Batista Guaraldi Ebling; o juiz da comarca de So Gabriel, Ernesto Gomes da Silva Junior; o promotor de justia, Jos Alves de Arajo; e o coordenador dos Projetos Demonstrativos para os Povos Indgenas (PDPI), Gersen Luciano dos Santos. O ento presidente da FUNAI, Glnio Alvarez da Costa, chegou logo depois de desfeita a mesa de abertura dos trabalhos. O advogado Paulo Pankararu, do Instituto Socioambiental, prestou assessoria jurdica Assemblia. A mesa que conduziu a assemblia durante os trs dias foi constituda por lvaro Sampaio, presidente; Orlando Melgueiro, vice-presidente; Amarildo Machado, secretrio; e Regina Duarte, vicesecretria.1 Em uma das suas primeiras intervenes lvaro Sampaio fez uma crtica velada aos atuais diretores da FOIRN dizendo que os seus substitutos iriam consertar a organizao em vez de ficarem no escritrio apenas ocupados com as atividades administrativas rotineiras. Outro petardo jogado por ele foi proclamar o desatino de defender a ecologia sem promover condies ao desenvolvimento da regio. Algumas vozes se levantaram para defender a elegibilidade de parentes que contribuem com o movimento indgena em instncias fora de So Gabriel enquanto outras vozes no concordavam que um ndio que est em Braslia, longe da nossa realidade, possa ser eleito. As pretenses daqueles que pretendiam concorrer diretoria sem indicao das assemblias sub-regionais foram frustradas com a
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Relatrio da V Assemblia Geral Eletiva da FOIRN.

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confirmao pela plenria da regulamentao do processo eleitoral formulada pelo Conselho Administrativo. Neste primeiro dia de assemblia as discusses giraram principalmente em torno do relacionamento das agncias militares implantadas na regio (batalhes de fronteira e de engenharia) com as comunidades e organizaes indgenas. Pedro Garcia e Braz Frana pronunciaram-se contra a instalao de um quartel na comunidade Baniwa de Tunu, no alto Iana, e contra a construo de uma estrada para o povoado Yanomami de Maturac. Ambos ressaltaram os impactos prejudiciais cultura e organizao social destes povos proporcionados pelo maior acesso de estranhos, perturbando o curso normal da vida nas suas comunidades. Acrescentaram que tanto os Baniwa quanto os Yanomami so contrrios a tais medidas. O Tenente-Coronel Madeira respondeu que tanto a estrada quanto o quartel em pauta esto sendo objeto de estudos ambientais e antropolgicos e as comunidades envolvidas esto sendo consultadas e inclusive j teriam se manifestado favoravelmente. Por outro lado, tais pelotes de fronteira levariam benefcios para as comunidades, tais como: atendimento mdico para os 400 soldados indgenas e familiares, maior presena de profissionais de sade (mdicos, enfermeiros, farmacuticos e dentistas) construo de dez poos artesianos nas comunidades prximas e de uma ponte ligando os povoados Ariab e Maturac, disponibilidade de transporte areo e fluvial, construo de uma pequena hidreltrica e criao de postos de emprego. lvaro Sampaio lembrou as promessas no cumpridas de desenvolvimento feitas pelos militares na poca do Projeto Calha Norte e de supostos cem milhes de reais tambm prometidos pela FUNASA que nunca teriam chegado regio. Um representante do distrito de Yauaret falou que os militares l no permitem aos indgenas o uso do transporte areo, nem para deslocamento de doentes e de mulheres grvidas. O TenenteCoronel Madeira justificou o fato dizendo que o embarque de civis em avies da FAB foi restringido por causa do trfico de drogas e necessita de autorizao do Comando Militar do Amazonas (CMA) em Manaus. Valdir Yanomami, presidente da AYRCA, leu um documento da sua associao no qual fizeram uma projeo dos malefcios ao meio ambiente e aos costumes e tradies Yanomami que sero causados pela construo da estrada: aumento da presena de estranhos (garimpeiros e turistas), estimulando o alcoolismo e trazendo doenas; e invaso das terras pelos caboclos Tukano, que fariam

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suas roas nas margens da estrada engendrando a escassez de caa e pesca, prejudicando rios, lagos e igaraps atravs do uso do timb. Em contrapartida, suas prioridades so as seguintes: roas comunitrias, perfurao de poos artesianos, construo de quatro pontes ligando comunidades, atendimento mdico permanente, aquisio de tratores e equipamentos para transportar e facilitar cultivo nas roas, aquisio de um caminho para transportar seus produtos e de uma casa de apoio em So Gabriel e auxlio para a AYRCA. lvaro Sampaio no gostou da referncia feita aos Tukano e disse que o seu povo no caboclo e est ajudando os Yanomami. Condenou comerciantes Yanomami que incentivam o alcoolismo e aliam-se a garimpeiros e chefes de posto da FUNAI, declarando-se contra qualquer tipo de timb ideolgico. Para Bonifcio Jos os povos indgenas que vivem nas fronteiras com outros pases sempre defenderam a integridade territorial do Brasil muito antes da chegada dos militares e que a funo constitucional das foras armadas limita-se a segurana nacional, sade e educao so atribuies de outras instituies. Pediu mais respeito com as lideranas indgenas, eleitas em assemblias das associaes filiadas e da Federao, pois os comandos militares em So Gabriel e o Comando Militar da Amaznia em Manaus tm dificultado o dilogo com os legtimos representantes dos povos indgenas no Rio Negro. Reivindicou programas para a formao de oficiais indgenas, seguindo o exemplo da igreja que j tem sacerdotes indgenas. Neste momento o volume dos rudos de comunicao parecem ter aumentado, pois o comandante Madeira sugeriu que os diretores da FOIRN consultem suas bases garantindo que a comunidade de Tunu concorda com a instalao do peloto. Reafirmou a estratgia militar de negao de qualquer mediao politicamente organizada nas negociaes de um certo modo atenuada pela prpria presena dos comandantes na assemblia com os moradores das povoados para concretizar os objetivos de segurana nacional. Tunu um local relevante em termos geopolticos porque ultima comunidade do rio Iana antes de chegar fronteira que permite acesso com pequenas embarcaes, onde j existe pista de pouso asfaltada, para prover apoio logstico para os habitantes e para o peloto e controlar o rio Cuiari. lvaro Sampaio considerou incua a proposta de formao de oficiais indgenas, pois eles da mesma forma que os oficias brancos estaro subordinados s rgidas disciplina e hierarquia corporativas, obrigados, portanto, a obedincia irrestrita aos seus superiores. Os dois comandantes

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presentes convidaram as lideranas indgenas para visitar o 1 BIS a fim de derrubarem a mstica de que os militares so maus, pois eles querem os mesmos benefcios para a regio, remam na mesma mar e jogam no mesmo time da populao local. Incitaram a todos a refletirem sobre o fato de que o exrcito a instituio federal mais presente na regio e instou a quem quisesse a ir s unidades militares para tirar qualquer dvida. O tema de debate principal do segundo dia foi o Distrito Sanitrio Especial Indgena/DSEI. Compuseram a mesa com representantes da FUNASA/SG, do Centro de Sade Escola, da SSL e da SEMSA/SG, integrantes da rede interinstitucional de gesto e execuo deste programa promoo sade indgena. Fizeram um relato das atividades desenvolvidas por cada organizao nas suas reas de atuao correspondentes e em seguida prestaram esclarecimentos a partir das avaliaes, reclamaes e reivindicaes dos usurios indgenas. Membros da delegao da ACIMRN e da ASIBA se pronunciaram sobre a ampliao do DSEI para o Baixo Rio Negro. Perguntaram quem assumiria a gesto do distrito em Santa Isabel, pois as ONGs l s trabalham com os Yanomami. Pedro Garcia atribuiu a demora na implantao do DSEI em Santa Isabel s autoridades municipais responsveis pela sade que s consideram os Yanomami como indgenas. Miguel Maia informou que foram feitos os levantamentos antropolgico e epidemiolgico em Santa Isabel, cujos relatrios foram encaminhados para a FUNASA que no deu nenhuma resposta at aquele momento. Orlando Melgueiro props o encaminhamento de um documento com as reivindicaes da populao indgena do Baixo Rio Negro ao Distrito e cobrando uma posio da FUNASA sobre os relatrios. Tal documento deveria ser enviado tambm para as SEMSAs e FUNASAs de Santa Isabel e de Barcelos. Orlando Jos de Oliveira assegurou que a ACIMRN assumiria a gesto do DSEI em Santa Isabel se contasse com parceria e assessoria tcnica e lembrou que o plano distrital apresentado pela SEMSA/SI foi elaborado sem consulta s comunidades. Benjamin disse que quando foi realizado o levantamento antropolgico das comunidades indgenas em Barcelos a ASIBA no recebeu apoio algum das instituies municipais, principalmente do prefeito que trabalhou contra a implantao do Distrito. A FUNASA/Barcelos no colabora com a organizao indgena local. Clarindo Campos acrescentou que durante o levantamento antropolgico o prefeito e a secretaria de sade de Barcelos alegavam que o municpio no precisava do DSEI porque o atendimento sade era muito bom, mas os moradores

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indgenas do interior so discriminados na cidade quando vo busca de assistncia mdica. Dois membros da delegao do Baixo Vaups/Tiqui lanaram crticas indiretas a diretoria da FOIRN, nos seguintes termos: h muitos interesses no-indgenas sobre os recursos do governo federal enviados para os povos indgenas do Rio Negro; movimento quer dizer renovao e no continusmo; alm das aes foram terceirizadas tambm a burocracia e a acomodao; houve falha no controle social; as decises tomadas nos conselhos locais e assemblias deveriam ser postas em prtica; e a FOIRN necessita de pessoas mais preparadas. Um lder Yanomami pediu que a FOIRN no esquecesse seu povo, que tambm deveria ser beneficiado com os recursos do Distrito. Pedro Garcia respondeu salientando que a FOIRN no apenas a diretoria e todos devem fiscalizar, pois se algo no funcionar bem a culpa no s dos diretores. Admitiu as falhas, mas que no prximo convnio poderiam ser sanadas. Explicou que no houve esquecimento de nenhum povo, mas o oramento insuficiente para atender a todos. Em seguida houve uma refinada e ampla discusso sobre a educao escolar indgena, abrangendo suas variadas e complexas dimenses, tais como: definies, conceitos, discriminao e etnocdio, valorizao e resgate de lnguas e outras tradies, cidadania e direitos, legislao, polticas pblicas e projetos demonstrativos. Ademir Ramos, professor da Universidade do Amazonas e coordenador do Departamento de Polticas Indigenistas (DEPI) do Estado do Amazonas, fez uma exposio sobre a legislao e as polticas pblicas implementadas pelo governo estadual neste setor. Destacou a criao do Conselho de Educao Indgena do qual participam trs representantes do Rio Negro (Miguel Maia, Joo Bosco Marinho e Orlando Jos de Oliveira), ligado ao Conselho Estadual de Educao e do DEPI. Pedro Garcia iniciou ento as explanaes sobre os projetos-piloto considerando que eles so diferentes do programa do DSEI em termos de abrangncia, pois correspondem a experincias pequenas e pontuais sobre as possibilidades de uso dos recursos naturais que gerem benefcios para as comunidades. Este tipo de atuao foi pensado depois da conquista do grande objetivo do movimento indgena no Rio Negro: a demarcao das terras. Cabe salientar a apresentao sobre o projeto de Escola Tuyuca porque sintetizou claramente uma aguda percepo poltica sobre a educao escolar como um instrumento de afirmao da cidadania baseado no direito de reconhecimento das

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diferenas tnicas e em demandas de justia social ou de reproduo social da discriminao e do etnocdio; e no como mera prestao de servios destinados satisfao de projetos individuais de ascenso social, coerentes com polticas estatais de integrao subordinada de minorias tnicas. Sendo assim, a reivindicao por um sistema de ensino culturalmente singular, mas que propicie relacionamentos interculturais mais equilibrados. A escola, portanto, deve ser um lugar para intercmbios positivos entre tradio e modernidade, sabedoria e artes ancestrais e conhecimentos cientficos e tecnologias digitais2, entre o local e o global, flexibilizando as fronteiras entre estes termos. Por outro lado, a Escola Tuyuca est inserida em uma proposta de empoderamento3 de grupos minoritrios que ao viverem e casarem com grupos majoritrios como os Tukano vm perdendo suas lnguas e tradies especficas. Carlos Alberto Ricardo, coordenador do Programa Rio Negro do ISA, fechou o ciclo de exposies sobre os projetos demonstrativos apontando para a perspectiva de apoio a outras iniciativas, provenientes de outras sub-regies e associaes. Conversou com algumas lideranas sobre a possibilidade do ISA assessorar a implantao de projetos nas suas reas, respondendo que depende da captao de recursos para ampliar a equipe permanente estabelecida no Rio Negro. Lastimou a inexistncia de iniciativas planejadas no Mdio e no Baixo Rio Negro, pois como so regies cujo acesso mais fcil poderiam ser implementadas experincias em eco-turismo, extrativismo de piaava e cip, pesca esportiva e principalmente captura e comercializao de peixes ornamentais, pois os pescadores indgenas ainda trabalham neste setor em regime de aviamento. Enfatizou que um projeto-piloto deve ser realizado com calma, cuidado e at o fim. D muito trabalho, pois deve ser constantemente avaliado. Considerou necessrio mais dez anos de implantao de projetos-piloto para a elaborao e concretizao de um programa regional de desenvolvimento sustentvel indgena para o Rio Negro.

Como a gravao de msicas indgenas em CD e registro de cantos e danas em CD-ROM. [...] preciso buscar meios tecnolgicos para preservar a cultura dos povos indgenas. Para isso necessrio usar computador. Aos que pensavam que a criao de escolas indgenas era um retrocesso por utilizar as maneiras de pensar dos indgenas, est sendo mostrado que no , pois em um mundo globalizado o ndio precisa desenvolver coisa boa para ele. [...] (Higino Tuyuca, pronunciamento. V Assemblia Geral Eletiva da FOIRN). Esta concepo no Rio Negro importante porque ns vimos quanto a indianidade era e ainda em certa medida identificada com atraso, misria e selvageria. 3 Neologismo muito utilizado atualmente nos estudos sobre movimentos sociais no Brasil devido dificuldade de traduzir a categoria empowerment da lngua inglesa para a lngua portuguesa. 222

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A principal questo debatida no terceiro dia de assemblia se referiu a alterao do estatuto da FOIRN para a incluso de mais um cargo na diretoria. Duas propostas foram apresentadas na ltima reunio do CAF e reapresentadas na assemblia. Em uma delas este quinto cargo serviria para coordenar as atividades da diretoria, atender os associados e lideranas das associaes filiadas na sede da Federao, e estabelecer contatos com financiadores, ONGs, organizaes indgenas e rgos governamentais. Este diretor ficaria permanentemente na sede e se justificaria pelo enorme crescimento das demandas a serem administradas pela diretoria. A outra proposta postulava um cargo reservado para as mulheres como uma forma de incentivar a participao delas nas esferas decisrias, principalmente nos nveis superiores, da rede associativa indgena do Rio Negro. uma reivindicao baseada na idia de discriminao positiva para combater desigualdades de gnero4 na esfera pblica regional da indianidade, que foi ostensivamente defendida por uma professora Piratapuia nascida em Santa Isabel do Rio Negro, Rosilene Fonseca.5 Ela
Existem interpretaes antropolgicas divergentes sobre a posio da mulher nas sociedades indgenas patrilineares do Rio Negro. H aqueles que destacam o fato das mulheres, por causa da exogamia lingstica, virem de fora do crculo de parentes ligados agnaticamente pelo lado paterno, tornando irredutvel em ltima instncia seu estatuto de estrangeira. Por outro lado, recentemente existe uma linha de estudos de gnero na antropologia que enfatiza a complementaridade e interdependncia entre homens e mulheres indgenas na produo do parentesco, do grupo domstico e da prpria sociabilidade em geral. A condio da mulher ambgua, pois simultaneamente traduz alteridade e mediao necessria com o exterior para a reproduo da ordem patrilinear. Stephen Hugh-Jones enfoca as ressonncias femininas da simbologia da grande casa comunal e o importante papel mediador das mulheres nos rituais de interao entre afins e consangneos. Eu constatei em relatos biogrficos de migrantes indgenas em Barcelos um certo desconforto e tenso manifestada pelo marido nas suas relaes com os parentes da esposa nos perodos em que viveu na comunidade de origem dela. Quero lembrar tambm que os povoados tornaram co-residentes membros masculinos de diferentes grupos tnicos, ampliando as oportunidades corriqueiras de convivncia com estranhos entre os homens. As instncias de militncia indgena na rede associativa so espaos de interao com a alteridade por excelncia. So, portanto, lugares de adaptao dos padres de relacionamento com o outro. Da a possibilidade de mudana dos padres de relacionamento de gnero ao transp-los de uma linguagem da reciprocidade (orientado pelas prestaes e contra-prestaes) para um idioma contratual (orientado por interesses e regras explicitamente formulados, negociados e convencionados). 5 Nasceu na cidade de Santa Isabel do Rio Negro, que na poca chamava-se Tapuruquara. Seu pai Piratapuia, natural da comunidade de Umari-Cachoeira, no alto Vaups. Sua me Arapao, natural da comunidade Loiro, antigo povoado dos Arapao, perto de Taracu. Seus avs maternos migraram para o rio Uneuixi, por causa da escassez de peixes da regio onde moravam e procuraram outro rio que tivesse mais peixes e terra para plantar. Fizeram um stio e ficaram l. Rosilene estudou no colgio salesiano de Santa Isabel at concluir o primeiro grau. Cursou o magistrio no colgio salesiano de So Gabriel da Cachoeira, durante trs anos (1991-1993). Em 1995 as freiras a convidaram para lecionar em um colgio em Santa Isabel. Fez um curso em Manaus, treinamento em Histria e Geografia do Amazonas, e quando retornou a Santa Isabel lecionou esta matria para a sexta srie durante os anos 1995 e 1996. [...] Quando eu fui trabalhar em sala de aula eu j colocava isso. [...] Eu falava mais dessa questo cultural mesmo, de identidade, afirmao da prpria identidade. Fazia com que eles contassem um pouco da histria... porque da mesma forma que meus avs foram para l [Santa Isabel do Rio Negro] os avs deles tambm tinham descido. Ento eu queria que eles comeassem a saber, a dizer... perguntar dos pais porque eles foram l, qual o motivo que os levou, para ver se conseguia assim pensar mesmo na identidade cultural deles. Era muito difcil porque para os 223
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fez um trabalho de mobilizao com as militantes das associaes de mulheres do Alto Rio Negro. [...] Essas mulheres so de associaes de mulheres do alto rio Negro, filiadas a FOIRN. [...] Em janeiro foi a primeira reunio que ns fizemos com elas. Como essa idia era j antiga, desde janeiro, depois daquela assemblia, ns colocamos que queramos que tivesse participao das mulheres. Da eu e a Eliana conversamos com elas novamente que queramos uma chance de colocar uma mulher na diretoria, assim para disputar junto n. Elas acharam legal a idia. Por que o pessoal j tinha falado em colocar uma quinta pessoa na diretoria, porque os quatro viajam e no tem ningum para responder aqui na sede, em janeiro [de 2000] ainda. A j vrios quiseram isso para a assemblia do CAF, Conselho Administrativo da FOIRN. Eu e a Eliana reunimos as mulheres e falamos para elas que ia ter mais um diretor para responder quando os outros diretores no estivessem, ele ficava praticamente com tudo. Esse quinto diretor seria para responder tudo: convnios, projetos, tudo. [...] Eu falei para elas isso. Se vai precisar de um quinto diretor, ns vamos lutar ento para que as mulheres entrem, que este quinto diretor seja uma mulher. Eu joguei para elas isso. Nesse conselho de janeiro ns levamos isso para frente, inclusive a Dona Judith foi l e falou. Eu s fui l e defendi. Da fizeram uma votao tambm l e surgiram vrias propostas. [...] (Rosilene Fonseca, entrevista. So Gabriel da Cachoeira, 27/10/2000). Se a proposta de criao de um quinto cargo na diretoria fosse aprovada faltava ainda decidir como seria o processo de escolha deste diretor. Foram apresentadas duas propostas: em uma delas ele seria indicado pela diretoria eleita e ratificada pelo CAF e na
alunos ndios eram os Yanomami. Eu falava para eles que no, que no era assim, que Yanomami era um povo, mas que existiam vrios outros povos. Eles comearam a perceber que no era assim como eles pensavam. Eles me chamavam de professora Indgena, porque eu falava muito da cultura indgena, e tinha outro professor que eles chamavam de professor Burguesia, porque falava muito da burguesia quando dava aula de histria. [...] (Rosilene Fonseca, entrevista. So Gabriel da Cachoeira, 27/10/2000). Em 1995, quando a COIMRN tornou-se ACIMRN, Rosilene Fonseca integrou a sua diretoria como tesoureira. Na Assemblia Geral Eletiva da FOIRN de 1996 foi eleita suplente do tesoureiro Miguel Maia. Em 1997 no lecionou mais porque as freiras alegaram impossibilidade de contrat-la. Voltou ento para So Gabriel onde trabalhou na prefeitura, na poca do prefeito Hamilton Gadelha, na comisso de organizao do Festribal. Em 1999 e 2000 trabalhou na secretaria da FOIRN, acompanhando os projetos de educao. 224

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outra ele seria eleito na assemblia. Neste momento o clima ficou tenso e a maioria dos delegados defendeu a eleio em assemblia. Alguns aproveitaram a oportunidade para sugerir a reduo do mandato da diretoria para dois anos e outros advogaram a supresso da possibilidade de reeleio dos diretores, mas tais mudanas no estatuto no foram aprovadas pela plenria. Neste momento, algumas mulheres manifestaram-se pela garantia da quinta vaga na diretoria para as mulheres. A cena foi impressionante: falaram nas suas prprias lnguas, com grande eloqncia em contraste com o dia anterior em que a presena delas foi muito discreta e s Rosilene Fonseca se pronunciou sobre o tema , exibindo pinturas faciais. [...] As mulheres do Aiari estavam chegando [para a Assemblia Geral] e no tinha ningum para receber, ento ns fomos l ajudar voluntariamente, eu e a Eliana. Foi mera coincidncia, no foi porque ns queramos pegar... Da chegou mais o pessoal l de Yauaret, a Dona Regina que no de uma associao s de mulheres, ela presidente da ACITRUT. Ento conversamos: tem essa idia a, vamos colocar na assemblia. A Judith, a Maristela, a Dona Bibiana... so presidentes de associaes de mulheres. Conversamos com as lideranas, diretoras de associaes e com outras mulheres na assemblia. Ns no conseguimos na assemblia que a quinta vaga fosse exclusivamente para as mulheres, o que a gente conseguiu foi que cada calha indicasse uma pessoa. O que ns queramos era que fosse indicado pelas bases, porque para ns seria muito assim... quer dizer, somos feministas n, mas seria muito assim antidemocrtico, no sei se seria essa palavra, dizer assim que essa quinta vaga seria exclusiva da mulher. O que a gente queria era concorrer, porque teramos possibilidade de vencer, queramos uma presena feminina na diretoria da FOIRN. Por que s aqueles homens l, puxa vida ser que eles no percebiam isso? No houve articulao das lideranas femininas nas calhas para a indicao de mulheres, durante a assemblia. Eu poderia ter ido l na frente, quando o Paulinho [Pankararu] disse que podia usar o microfone, na hora de defender essa proposta, e ter dito para a assemblia o seguinte: vocs aprovam ou no aprovam que esse quinto lugar seja para as mulheres? E da as quatro associaes [calhas] iriam indicar essa pessoa. Mas eles iam pensar que ia

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ficar exclusivamente. Ns estvamos querendo lutar para que alcanasse mesmo, mas que fosse votado pela assemblia, tanto pelas mulheres quanto pelos homens, porque teria muito mais respaldo do que s pelas mulheres. [...] (Rosilene Fonseca, informao verbal). A plenria aprovou a proposta segundo a qual a escolha do quinto diretor ocorreria atravs de eleio em assemblia. Um dos argumentos contrrios ao pleito feminino questionava a necessidade de tornar cativa uma vaga na diretoria para as mulheres, pois elas poderiam concorrer aos cargos em todas as instncias de deciso da Federao. Esta posio foi majoritria e em compensao aprovou-se a criao de um departamento feminino. Tornou-se premente ento decidir como seria a eleio do secretrio executivo assim foi designado o novo cargo de diretor depois de alguma discusso sobre suas atribuies: se atravs de uma nova indicao pelas delegaes das quatro calhas de rio ou votando-se nos candidatos j apontados pelas assemblias sub-regionais.6 Quando parecia que a derrota da reivindicao feminina era certa, ocorreu uma reviravolta. Se a segunda proposta vencesse nenhuma mulher disputaria a vaga, pois em nenhuma das assemblias sub-regionais foram indicadas candidatas. No s a primeira proposta foi amplamente vitoriosa (por 167 votos contra 46) como todas as quatro delegaes escolheram mulheres para concorrer ao cargo de secretrio executivo.7 E mais, as quatro candidatas disputaram votos em uma eleio separada dos demais treze candidatos.8 No faltaram surpresas nesta assemblia da FOIRN. Nenhum dos diretores foi reeleito. Pedro Garcia recebeu apenas dois votos a menos do que o seu concorrente eleito. Os quatro candidatos eleitos conseguiram uma expressiva votao: Domingos Barreto9, Tukano, com 107 votos (47% dos votos
Neste ltimo caso existiam duas alternativas: os segundos mais votados de cada calha concorreriam separadamente em outro turno eleitoral ou simplesmente o eleito seria o quinto candidato mais votado no segundo turno que define as posies dos diretores. 7 Alto Vaups/Papuri indicou Judith Teixeira; o Baixo Vaups/Tiqui, Regina Duarte; Iana/Xi, Maristela Fontes e apoio a Rosilene Fonseca; e o rio Negro, Rosilene Fonseca. 8 Os diretores so candidatos natos, ou seja, no precisam de indicao nas assemblias sub-regionais. Dos quatro diretores s Bonifcio Jos estava concorrendo nesta condio, por isso a delegao do Iana/Xi apresentou um candidato a mais (quatro) do que as outras delegaes. 9 Mora na comunidade So Domingos, acima de Pari-Cachoeira, e tem 32 anos. Seu pai, Tukano, natural de So Domingos tambm e sua me Tuyuca, natural de uma comunidade da Colmbia, chamada Bela Vista. Estudou no internato dos padres em Pari-Cachoeira, entre os dez e quatorze anos. Fez o segundo grau em Manaus, onde morou durante nove anos. Ele trabalhou em Porto Velho, em Ariquenes, em Juparan, em Belm, em So Paulo, Minas Gerais e Recife. Participava dos cursos que os padres ofereciam. Voltou para casa com 26 anos, quando foi chamado pela associao local (ATRIART) e trabalhou como assessor 226
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vlidos); Edlson Martins10, Baniwa, com 93 votos (41% dos votos vlidos); Jos Maria de Lima11, Piratapuia, com 92 votos (41% dos votos vlidos); e Orlando Jos de Oliveira12,

(orientava, fazia documentos, etc.). Integrou a diretoria da ATRIART ao substituir o secretrio que deixou o cargo. No foi eleito, foi indicado. No mandato seguinte todos os diretores da associao renunciaram e Domingos assumiu o cargo de presidente. Nas eleies de 1996 Domingos foi eleito novamente presidente da ATRIART e reeleito em 1998. Terminaria o seu mandato na ATRIART em maio de 2001. 10 Nasceu em Assuno do Iana, no mdio Iana, e tem 31 anos. Seus pais, Baniwa, moravam no stio Santana, um pouco abaixo de Assuno do Iana. Estudou da primeira a quarta srie em Assuno do Iana. Cursou o ginsio em Taracu, durante quatro anos em regime de internato. Depois retornou para Assuno do Iana onde lecionou na escola de l durante um ano. Estudou na Escola Agrotcnica de Manaus, durante trs anos. Ao concluir o segundo grau retornou mais uma vez para Assuno do Iana, em 1989, onde lecionou e integrou a diretoria, como vice-presidente, da ACIRI (Associao das Comunidades Indgenas do Rio Iana), durante quatro anos. Esta associao recentemente mudou o nome para OCIDAI (Organizao das Comunidades Indgenas do Distrito de Assuno do Iana). Sua esposa Bar e tambm lecionava em Assuno do Iana. Com a extino do ginsio neste antigo centro missionrio tiveram que mudar para Camanaus, primeiro, e depois para So Gabriel da Cachoeira. Conseguiu um terreno no Bairro Dabaru, onde mora, e foi eleito presidente da associao de moradores de l em 1999. Como o mandato de dois anos entregaria o cargo em 2001. Em 1997 integrou a Comisso Operacional de Demarcao das Terras Indgenas do Alto e Mdio Rio Negro, na funo de vice-coordenador. Trabalhou no ISA em So Gabriel da Cachoeira como auxiliar administrativo durante o ano de 2000. Concorreu nas eleies para a diretoria da FOIRN em 1992 e 1996. 11 Nasceu na comunidade de So Francisco, no rio Papuri. Fala tukano e um pouquinho de piratapuia que entende bem. Sua esposa Tukano. Seu pai natural do rio Papuri, comunidade Japim. Sua me Tariana, da comunidade Ilha de Besouro, que tem o nome tambm de Japur, na boca do rio Papuri. Estudou nos internatos salesianos de Yauaret, Taracu e So Gabriel, onde terminou o primeiro grau e em seguida voltou para sua comunidade. Foi um dos fundadores da UNIDI (Unio Indgena do Distrito de Yauaret) e integrou sua primeira diretoria como vice-presidente. O presidente era Flvio Carvalho, que ocupou o cargo de tesoureiro da FOIRN entre 1992 e 1996. Jos Maria de Lima foi presidente da UNIDI e no ano de 2000 era presidente da COIDI (Coordenao das Organizaes Indgenas do Distrito de Yauaret), uma organizao que congrega as associaes indgenas do alto Vaups e rio Papuri. Concorreu nas eleies para a diretoria da FOIRN em 1992 e 1996. 12 Nasceu no stio Cumaru, atualmente comunidade da Ilha de Ubada, stio Cartucho. Seu pai nasceu no rio Cauburis e sua me na comunidade Massarabi, no Mdio Rio Negro. Na escolinha rural onde estudou antes de entrar para o internato o professor ensinava em portugus, mas os alunos conversavam com ele e entre si em nheengatu. Estudou no internato salesiano de 1966 a 1973 (1a a 8a sries). Em seguida permaneceu durante dois anos no stio dos seus pais trabalhando na extrao de sorva e seringa. Foi convidado por um padre, que foi diretor do internato de Santa Isabel durante nove anos, a aprender meteorologia para ajud-lo neste ofcio. Quando este salesiano foi para So Gabriel em 1977 chamou Orlando para acompanh-lo, arranjou-lhe um quarto no internato de l e um emprego de meteorologista. Orlando trabalhava e estudava, pois foi nesta poca que implantaram o 2o grau no colgio de So Gabriel. Algum tempo depois fez um curso de datilografia e atravs da intermediao de um padre mexicano conseguiu trabalhar na secretaria do colgio. Fez curso de educao fsica e foi contratado pela prefeitura de So Gabriel e pelos padres como professor. Incentivado pelos padres e pelas freiras em 1980 viajou para Belm/PA onde fez um curso de licenciatura curta para o magistrio. Resolveu prestar o exame vestibular e foi aprovado no curso de letras da Universidade Federal do Par/UFPA. Apoiado por um convnio da Diocese de So Gabriel com a SUDAM e a FAB, Orlando recebeu uma bolsa de estudos e hospedou-se num quartel, em apartamento separado, mas as refeies ele fazia junto com os soldados nos fins de semana. Durante a semana alimentava-se regularmente na escola. Como retribuio foi solicitado a lecionar durante trs anos no internato em Santa Isabel pelo seu diretor. Lecionou vrias disciplinas nas turmas de 5a a 8a sries (educao fsica, artes industriais, agricultura, histria, geografia e portugus) at tomar posse da presidncia da FOIRN em janeiro de 2001. Foi eleito vereador, em 1982, em Santa Isabel pelo Partido do Movimento Democrtico Brasileiro (PMDB). Foi um dos fundadores do Partido dos Trabalhadores (PT) em Santa Isabel, partido pelo qual candidatou-se a vereador novamente, mas no se 227

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Bar, com 91 votos (40% dos votos vlidos).13 As quatro posies ficaram assim definidas: Orlando Jos de Oliveira, presidente, com 58 votos; Domingos Barreto, vice-presidente, com 51 votos; Edlson Martins, secretrio, 49 votos; Jos Maria de Lima, tesoureiro, com 47 votos; e Roselene Fonseca, secretria executiva, com 127 votos.14 Cabe destaque para a calha do rio Negro, posto que o candidato menos cotado venceu. Ele mesmo no esperava este resultado eleitoral, acreditava que seus rivais eram muito mais fortes. Seu desempenho no segundo turno de votao para definio dos cargos da diretoria foi ainda melhor e mais surpreendente: de quarto mais votado passou a primeiro. Na reunio das associaes da calha do rio Negro, em Tapereira, a delegao da ACIMRN iria votar em Braz Frana, mas na ltima hora informaram que todas as associaes deveriam apresentar um candidato, ento indicaram o Orlando. Depois da votao em que ficou em terceiro lugar, Braz Frana o procurou e sugeriu-lhe que retirasse sua candidatura, seno os votos dos Bar ficariam divididos entre os dois, diminuindo suas chances de vitria. J em So Gabriel, no primeiro dia da assemblia, Braz Frana convocou uma reunio da delegao da calha do rio Negro na casa de seu tio, noite. Miguel Maia, obviamente, no estava presente. Edlson Martins estava presente com alguns delegados do Iana e havia a expectativa de acertar uma transferncia de votos dos seus eleitores para o Braz e vice-versa no primeiro turno. Braz Frana clamava por uma unio dos Bar e do Mdio e Baixo Rio Negro para acabar com a hegemonia Tukano e do Alto Rio Negro na FOIRN. Orlando, por sua vez, manteria sua candidatura, porm os votos da ACIMRN, da CACIR e da ASIBA seriam destinados a Braz Frana. Ao sair da reunio
elegeu. Em 1992 candidatou-se a prefeito, mas tambm no foi eleito. Fez nova tentativa em 2000 como vicepresidente, fracassando mais uma vez. Foi presidente da ACIMRN entre os anos 1997 e 2001. 13 Foram 226 votos vlidos, 6 votos nulos e 234 votantes. Dois delegados assinaram a lista de eleitores, mas seus votos no foram encontrados na urna. bom registrar que neste primeiro turno os delegados votam em um candidato de cada calha, em quatro candidatos, portanto. Por esta razo a proporo de votos recebidos por um candidato de uma calha no exclui a parcela de votos de um candidato de outra calha. Os candidatos concorrem apenas com os outros dois candidatos da sua calha. Na votao seguinte que os quatro mais votados concorrem uns contra os outros para definir os cargos da diretoria. 14 Foram 216 votos vlidos, 2 votos nulos e 218 votantes. bom lembrar que o nmero maior de votos de Roselene Fonseca refere-se a uma votao separada para o cargo de secretrio executivo. Na sua reunio de agosto de 2002 o CAF transformou-se em um Conselho Diretor, cujos integrantes foram reduzidos para quatro de cada associao. O objetivo foi restringir as pretenses polticas do CAF no sentido de tornar-se um poder paralelo diretoria. Outra deciso importante foi a diviso da calha do rio Negro em Alto e Mdio, ficando cada uma destas unidades com um representante na prxima diretoria eleita. Cada calha indicar cinco candidatos e o mais votado compor a diretoria. Os outros quatro candidatos integraro o Conselho Diretor. No haveria mais os cargos de vice-presidente, secretrio e tesoureiro, mas s de presidente. 228

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Orlando encontrou por acaso com lvaro Sampaio que prometeu apia-lo, pois se opunha s pretenses tanto de Braz quanto de Miguel. Isto resultaria em votos do Balaio e do Alto Tiqui, que muito dificilmente votariam em Braz. Aiton, vereador e delegado da ACIPK, tambm empenhou sua adeso desde Tapereira. A OCIARNE e a ASIBA, que tinham votado em Braz no primeiro turno, votaram no Orlando no segundo turno. Quais seriam as motivaes de tais escolhas eleitorais? Existia uma forte convico entre muitos delegados sobre a necessidade de renovar a diretoria da FOIRN.15 Representantes de algumas associaes do Alto Tiqui principalmente expressaram essa posio em alguns momentos durante a assemblia. Agente viu... vrias lideranas conversando, a necessidade de renovao. O prprio movimento est encarando com relao a isto... ento no foi idia de uma pessoa no, mas a maior parte da regio achava que precisava de mudanas. No para tirar algum de l, mas foi a prpria caminhada do movimento que exigiu que acontecesse isso. Eu avaliei e vi que o que eu escutava era verdade mesmo: Tem que colocar gente nova, essas pessoas j trabalham, j tem experincia, tem que voltar para suas associaes. E tambm por em prtica o que eles aprenderam. Foi isso que aconteceu, para mim foi uma prova disso. (Militante indgena do Alto Tiqui, entrevista. So Gabriel da Cachoeira, 28/10/2000). Tambm houve esforos de convencimento nos bastidores da assemblia neste sentido. Uma idia muito recorrente da retrica da renovao postulava o retorno dos militantes que ocupavam os cargos mximos da Federao s suas organizaes de base, investindo nelas toda sua experincia e conhecimento acumulados. A trajetria, entretanto, de ex-dirigentes da FOIRN aponta em direo oposta, no sentido da ascenso para instncias cada vez menos locais, seja no bojo da prpria rede das organizaes indgenas,
Acho difcil falar de uma tradio de renovao, como alguns observadores na ocasio postularam. Ocorreram poucas eleies de diretoria at agora para confirmar com alguma segurana tal hiptese. Nas eleies de 1992 podemos dizer que predominou a tendncia de continuidade com a eleio de Braz Frana e de Gersen Luciano, alm do mais Maximiliano Menezes j colaborava com a diretoria antes de ser eleito. Nas eleies de 1996, apesar de s um dos quatro diretores (Maximiliano Menezes) ter permanecido no cargo, dois deles (Gersen Luciano e Flvio Carvalho) no se candidataram, logo no podemos saber se seriam reeleitos ou no, e Bonifcio Jos eleito na ocasio substitura Gersen Luciano um ano antes. No estou
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das ONGs de apoio ou da estrutura estatal (FUNAI, prefeitura, secretarias municipais, cmara de vereadores), ou fruns permanentes de discusso e deciso situados nos pontos de interseo do Estado com a cooperao internacional (PPTAL, PDPI, etc.) ou com a sociedade civil (conselhos municipais, estaduais e federais de educao, sade, meio ambiente e desenvolvimento sustentvel, etc.). De modo anlogo a uma outra categoria fundamental de mediao indgena, o xam, imprescindvel ao ativista indgena transitar entre provncias de significado diferentes, mas para adquirir poder e conhecimento que devem ser domesticados em benefcio das comunidades locais, e correndo sempre o risco de transformar-se definitivamente no Outro. No pode haver relao abstrata entre benfeitor e benefcio, entre a coisa e a pessoa, nos circuitos de reciprocidade entre lderes e comunidades, ambos so indissociveis, o benfeitor e o benefcio devem percorrer simultaneamente o ciclo de prestaes e contra-prestaes, deve tecer pessoalmente os laos de lealdade e reciprocidade na calha de rio que representa na diretoria. A presena permanente de um diretor nas comunidades e assemblias das associaes filiadas renova constantemente alianas e compromissos atentando aos pequenos problemas cotidianos de indivduos, famlias ou povoados , valem mais do que o pronunciamento impessoal do inventrio das realizaes (captao e distribuio de recursos na forma de equipamentos e/ou projetos) de uma diretoria em benefcio de uma comunidade indgena regional imaginada. Nesta rede associativa os militantes indgenas vm adquirindo visibilidade regional e nacional, porm ao custo do ostracismo local. Este fenmeno gera um fluxo constante, sepultamento e nascimento, de lideranas locais. Apesar da representao difusa entre vrias lideranas que distingue a poltica indgena da poltica partidria dos brancos a partir do pressuposto de que no se faz campanha para ser eleito, pois o trabalho realizado que deve ser avaliado, houve conversaes entre os delegados de calhas diferentes para votarem em candidatos especficos de suas respectivas calhas. Estavam em jogo as retricas concorrentes da experincia (realizaes pretritas) e da renovao (novas idias). Alguns achavam que deveria haver uma mescla de experincia e renovao na composio da nova diretoria. Conforme a situao indivduos ou grupos podem utilizar uma ou outra retrica, com variaes de contedo, para justificar seus projetos. Inclusive o argumento da experincia
considerando as mudanas na diretoria em 1987, 1989 e 1990 porque ocorreram em contextos de indefinio

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foi acionado por aqueles que defendiam a renovao contra a pretenso das mulheres de ter um lugar reservado na diretoria, durante as conversaes nas delegaes das sub-regies para escolher um candidato, adiando seu pleito por mais quatro anos e indicando um lder masculino mais experiente.

[...] Nesta assemblia a maioria teve esse pensamento que uma mulher deveria ocupar a funo de quinta pessoa. Eu no estava to favorvel assim que nesta assemblia j surgir uma mulher na diretoria da FOIRN, mas a maioria aprovou e agente tem que apoiar. Para mim foi uma surpresa mesmo, eu no esperava. Eu estava mais preparado para apoiar essa idia de uma mulher para fazer parte da diretoria para a prxima eleio [2004]. A idia de que as mulheres ainda no esto preparadas correu, eu ouvi vrios comentrios entre eles na assemblia. [...] A calha do Baixo Vaups/Tiqui indicou a Regina Duarte, mas no foi to assim unanimidade no. Foi uma coisa assim to rpida, que a maioria entendeu que tinha que ser mulher. Uma parte da nossa calha estava a favor de um homem e outra parte a favor da Regina. A no final desistiram pela metade: se um homem no pode ser ento vocs indicam uma mulher. Custou para aceitar... o pessoal da Regina n, demorou, e mesmo assim nada: ento vamos ter que sentar... ento no foi assim todo mundo apoiando. (Militante indgena do Alto Tiqui, entrevista. So Gabriel da Cachoeira, 28/10/2000). Outra justificativa para a renovao da diretoria teria sido o distanciamento e desateno dos membros da diretoria para com os associados, por causa das constantes viagens e atividades exigidas de um diretor da FOIRN. Um dos requisitos de um lder a habilidade no trato com as pessoas, facilitando ao mximo o acesso e o dilogo nas interaes diretas, face a face. Nunca transferir uma iniciativa de contato para o mbito impessoal e burocrtico da organizao.

institucional da Federao. 231

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[...] No d para propagar tambm, porque quando muitas lideranas comeam a falar eles respondem logo que no deve propagar porque isso no poltica partidria, isso aqui poltica indgena. Mas mesmo assim a gente conversa como vamos fazer, o que vamos colocar... [...] Mas atualmente eles vem mais pelo procedimento: na viagem, no comando de trabalho... [...] ento esse foi um motivo tambm para trocar toda a diretoria antiga. [...] devido ao modo de conversar, alegre com todo mundo, cumprimentando... Na nossa cultura quando no cumprimenta falta de respeito. Na nossa cultura quando a gente chega em uma casa tem que cumprimentar todo mundo. Quando a pessoa engana, diz espera depois que eu venho depois. s vezes a pessoa no gosta. melhor dizer a verdade logo, em vez de mandar a pessoa esperar. [...] (Militante indgena do Alto Vaups/Papuri, entrevista. So Gabriel da Cachoeira, 28/10/2000). Outra razo apresentada por vrios participantes da assemblia com os quais conversei (eleitores, eleitos e no eleitos) foi o alto nvel de escolarizao dos diretores eleitos. Esta explicao estaria ligada a uma demanda por mais projetos de auto-sustentao e a uma viso crtica sobre uma alegada dependncia excessiva da diretoria frente aos assessores. Neste sentido a opinio sobre a urgncia de maior capacitao dos diretores, entendida como formao universitria, teria favorecido aqueles que apresentavam tal requisito, como Orlando de Oliveira, o nico portador de um diploma universitrio. Muitos outros candidatos, inclusive os membros da diretoria, possuem nvel secundrio de instruo escolar e so professores.

Consideraes finais. A descrio do processo de construo social do associativismo indgena no Rio Negro no poderia descartar a trajetria de alguns importantes ativistas indgenas. Sem cairmos na iluso biogrfica apontada por Pierre Bourdieu (2002) no podemos deixar de atentar para o peso dos valores, interesses e identidades que orientaram as tomadas de

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deciso dos sujeitos em contextos histricos e sociais particulares.16 Sem dvida que as experincias subjetivas so determinadas por processos dos quais os indivduos no tm plena conscincia, mas estes processos tambm so parcialmente monitorados conscientemente mais ou menos reflexivamente, mediados ou no pelo discurso e, portanto, so determinados tambm pelo complexo entrelaamento de intenes dos agentes envolvidos nas interaes locais. Neste momento vamos apenas traar alguns elementos comuns nas carreiras destes militantes indgenas. Todos estudaram nos internatos salesianos. Vivenciaram os castigos (morais e/ou corporais) e proibies de falar suas prprias lnguas, mas reconheceram tambm que as habilidades adquiridas no domnio da lngua portuguesa (ler e escrever) foram fundamentais na sua formao como liderana. No caso de alguns mais jovens estas punies eram menos freqentes e menos ostensivas, mas ainda ocorriam. No caso daqueles que s falam o portugus esta experincia no ocorreu. Todos tiveram alguma experincia, direta ou indiretamente (somente os pais ou parentes trabalharam), com o extrativismo praticado sob regime de aviamento, no Brasil ou na Colmbia. Todavia, nos relatos biogrficos minimizaram a situao de explorao e subordinao ao patro, seja porque seus pais ocupavam a posio do empreiteiro (intermedirio entre o patro e os extrativistas que recruta uma equipe de parentes e/ou vizinhos), seja porque manipulavam as regras do sistema (no adquirindo muitos bens para no ficar preso pelo endividamento contnuo). O fato de no ficar amarrado a patro foi at apresentado em um dos relatos como um marcador de identidade tnica. almejada pelos ativistas indgenas. As relaes com os salesianos constituram-se em capital social atuaram como padrinhos para terem acesso a instituies de ensino secundrio ou superior fora de So Gabriel da Cachoeira. Alguns investiram mais e outros menos no campo da educao escolar, porm quase todos exerceram a docncia nas escolinhas das suas comunidades de origem ou nos internatos. O ofcio de professor configurou uma
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Mesmo assim, a dependncia aos patres foi

apontada em geral como a situao paradigmtica de negao da autonomia

Na qual uma vida, um encadeamento de aes e eventos selecionados em referncia a um indivduo,

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oportunidade de auferir uma renda regular17 para aqueles jovens que no queriam continuar dependendo das alternativas econmicas de sustentao (agricultura, caa, pesca, coleta, extrativismo) nas comunidades e stios. A ocupao de cargos na diretoria da FOIRN configurou um novo elemento no horizonte de possibilidades de ascenso social, ao possibilitar uma futura carreira no amplo e complexo universo social de construo da cidadania indgena. Como j vimos na primeira parte desta tese, os anos 70 e 80 prepararam o processo de formao de uma conscincia tnica altamente reflexiva no Rio Negro e, conseqentemente, de um campo autnomo de polticas pblicas destinadas a reformulao positiva da memria e da ancestralidade indgenas, nos anos 90. Assim como ocorreu com a Igreja, as relaes dos povos indgenas, mediadas principalmente por um ativismo indgena em formao, com o Estado brasileiro, mediadas principalmente pelos comandantes dos batalhes do exrcito instalados na regio, oscilaram entre a subordinao, a conciliao e o confronto. Os ltimos anos da dcada de 80 do nosso sculo XX j terminado caracterizaram-se no Rio Negro por grandes presses sobre os recursos naturais e por um ambicioso esforo de territorializao do poder militar ao norte das calhas dos rios Amazonas e Solimes, conhecido como Programa Calha Norte (PCN). O seu carter explicitamente militar elaborado para cumprir objetivos geo-estratgicos concebidos no mbito do Conselho de Segurana Naciona acentuava ainda mais o carter autoritrio e excludente dos outros programas de investimento de grande porte (mobilizador de montantes de recursos materiais, humanos e financeiros) destinados ao desenvolvimento da Amaznia sob os auspcios do Estado. Todavia, o cenrio poltico nacional marcado por uma ampla democratizao da esfera pblica. Devido visibilidade mundial dos direitos indgenas e das demandas ambientalistas de preservao da Amaznia as polticas desenvolvimentistas implementadas por um governo civil sob regime de tutela militar adquiriram uma roupagem democrtica e ecologista.18 Por outro lado, j existia uma rede de organizaes indgenas e entidades de apoio de mbito nacional, inseridos em uma teia

unificada e coerentemente representada por um projeto subjacente. 17 Vimos no captulo anterior como os salesianos contriburam para ampliar a rede escolar no Rio Negro, nos anos 70 e 80, que depois foi assumida pelas prefeituras. 18 Para uma anlise da Nova Repblica como um regime de tutela militar, ps-ditadura militar, vide Moraes, 2001. 234

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j transnacionalizada de agenciamento de direitos culturais, com os quais os agentes governamentais tinham que dialogar. Por outro lado, no Rio Negro os militares se depararam com um ativismo indgena em formao, ainda inserido na ossatura missionria renovada pelos ventos teolgicos do Conclio Vaticano II. Tiveram que negociar e usar a fora do argumento para legitimar a implementao do Projeto Calha Norte. Tentaram controlar o movimento indgena emergente no Rio Negro, acenaram com o desenvolvimento (traduzido como acesso ao fluxo de bens e servios da modernidade) e com um aparente reconhecimento oficial de direitos territoriais, baseados em categorias poltico-administrativas inconstitucionais e condizentes com representaes locais das fronteiras tnicas. No plano ordinrio da conscincia tnica dos grupos Aruak e Tukano os Maku so o paradigma da indianidade associada misria, ao atraso e selvageria; figurados em posio de acentuada alteridade nos relatos mticos. As colnias indgenas destinadas aos ndios integrados convergiam com a concepo na qual progresso e ancestralidade nativa eram termos excludentes, apesar dos esforos inerentes a um novo modelo de ao pastoral que incluiu o progresso e o etnocdio na simbologia crist do mal. Os ativistas indgenas tiveram dificuldades no s de ordem econmica e poltica, mas tambm de ordem semntica. Ns vimos como a assemblia indgena foi concebida como espao de apropriao dos signos de poder do mundo civilizado a fim de encenar uma interlocuo equilibrada com os brancos. O Estado emergiu como o principal interlocutor poltico na regio em detrimento da fora social dos salesianos no passado. Os militantes indgenas elegeram como estratgia negociar as condies de realizao dos objetivos governamentais para a regio e redirecionar recursos para uma finalidade no prevista oficialmente, a formao de uma organizao de mobilizao e representao poltica de todos os povos indgenas do Rio Negro. Neste perodo as organizaes indgenas e as entidades de apoio atuavam em franca oposio aos grandes programas governamentais de integrao dos recursos naturais da Amaznia ao mercado. Em termos mais gerais no havia possibilidade de conciliao entre os valores e princpios ticos de sustentao da sociedade civil com os procedimentos normativos/coercitivos do Estado e com a lgica instrumental do mercado. Esta tendncia repercutiu no Rio Negro atravs da reorientao da FOIRN rumo a uma obstinada resistncia ao PCN e s mineradoras, aproximando-se do CIMI, da UNI e do CEDI.

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Este foi um momento caracterizado pelos prprios ativistas indgenas que participaram do processo de criao da Federao como herico, ou seja, marcado por embates travados em uma correlao de foras desfavorvel. As condies materiais da FOIRN eram precrias, o apoio recebido dos aliados mencionados acima incluindo os salesianos era muito limitado e espordico. Mesmo assim a criao da FOIRN constituiu um evento paradigmtico que estimulou a difuso do associativismo como mtodo coletivo de monitoramento reflexivo do imaginrio e das relaes intertnicos. A demarcao da terra foi o principal motivo de confronto com o Estado e de conflitos entre as comunidades e associaes indgenas e de mobilizao poltica da etnicidade. Depois de alguns anos de incerteza institucional, durante a gesto de Braz Frana e Gersen Luciano a FOIRN fincou p no terreno da cooperao internacional. Foram tecidas alianas com vrias agncias estrangeiras, principalmente religiosas, de ajuda humanitria, cujo eixo era o CIMI e a entidade belga Broederlijik Delen. Todavia no existia ainda uma estrutura permanente de colaborao interinstitucional como base de uma fonte regular de receita. Com a entrada mais constante de um volume razovel de recursos foi possvel constituir uma slida estrutura administrativa, financeira e logstica. Priorizou-se o apoio consolidao institucional das associaes filiadas e a expanso das fronteiras do movimento indgena no Rio Negro, buscando atingir reas mais distantes da sede como o alto Iana e o baixo rio Negro. As assemblias emergem como palcos privilegiados para a representao da ancestralidade nativa base de legitimidade de direitos originrios legalmente estabelecidos e da demanda de acesso a bens e servios da modernidade , concebida como fator de fortalecimento da capacidade interpelativa frente aos interlocutores brancos. Consolidou-se ento uma sociedade civil local alicerada no campo poltico transnacional da indianidade. O associativismo indgena Ps-Constituio Federal de 1988, cujos valores centrais so o respeito diversidade e a responsabilidade universal para com a justia social e a conservao ambiental, substituiu o comunitarismo cristo baseado na conjuno entre os instrumentos de salvao da alma e de emancipao social, poltica e cultural de povos oprimidos. Novos agentes e agncias de mediao noindgena protagonizaram a cena: os assessores (entre os quais os antroplogos tm uma posio privilegiada) no lugar dos padres itinerantes; as ONGs no lugar das Misses

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salesianas. Emerge tambm um novo tipo de ao: a colaborao tcnica ou cientfica, no lugar da pregao religiosa; porm ambas politicamente engajadas. O contrato de cooperao entre a FOIRN, o CEDI e o IIZ, no mbito da Aliana pelo Clima, inseriu as demandas das comunidades e associaes indgenas do Rio Negro na agenda do ambientalismo transnacional e da sociedade civil globalizada. CEDI e IIZ tornaram-se o ncleo de assessoria e financiamento de vastos setores de atividades da FOIRN, no se restringindo a sua sustentabilidade institucional, abarcando reas antes reservadas a projetos especficos como comunicao e transporte, por exemplo. A criao do Instituto Sociambiental em 1994 consolida a relevncia da regio como importante laboratrio de medidas preventivas contra o aquecimento global, empreendidas no bojo da aliana entre povos indgenas amaznicos e cidados do primeiro mundo cujo objetivo proteger as florestas tropicais. O Programa Rio Negro o principal componente da pauta de aes do Instituto. Neste novo contexto o leque de parceiros da FOIRN expandiu-se e diversificou-se e as demandas e responsabilidades tambm (educao, sade, alternativas econmicas, valorizao cultural). Como a garantia da terra ainda era um problema crucial o Mdio Rio Negro recebeu um enfoque especial devido invaso de garimpeiros, favorecendo a criao de associaes indgenas como a CACIR e a COIMRN. Duas demandas comeam a adquirir mais destaque: gerao de renda e alternativas econmicas, cujas iniciativas de associaes e comunidades se multiplicaram neste momento e receberam o apoio principalmente da organizao holandesa de cooperao ICCO; e a sade, cujos convnios com a FUNASA e com a SSL deflagram a discusso sobre um sistema diferenciado de prestao de servios e inauguram uma nova relao com o Estado. A garantia legal da terra, em fase adiantada em 1996 com a autorizao ministerial demarcao fsica, e a perspectiva de seu usufruto exclusivo pelos ndios para melhorar suas condies de vida traduzida nas vrias iniciativas espontneas de gerar alternativas de auto-sustentao parecem ter impulsionado o ritmo acelerado de crescimento do associativismo indgena no Rio Negro. Entre 1995 e 2000 dobrou o nmero de organizaes locais existentes at ento (de 23 para 46). Cabe lembrar que assumiu carter normativo o papel mediador das associaes entre as comunidades e a FOIRN, tanto na participao nas instncias de deciso (diretoria executiva, assemblia e conselho

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administrativo)19 quanto nos fluxos de recursos captados atravs do esquema de parcerias para a regio. Ou seja, o asssociativismo o mtodo legtimo de conquistar visibilidade e espao poltico na estrutura organizacional da Federao.20 O ano de 1997 foi dedicado demarcao fsica das Terras Indgenas do Alto e do Mdio Rio Negro. Passa ento para o primeiro plano a vigilncia e gesto das terras homologadas em 1998 pelo governo federal e ganham relevo temas novos como desenvolvimento ecologicamente responsvel, proteo biodiversidade, direitos referentes ao uso dos recursos genticos e aos conhecimentos tradicionais sobre o meio ambiente, recuperao e registro das lnguas e tradies indgenas. Das vrias iniciativas de criao de alternativas econmicas algumas so selecionadas para a realizao de experincias paradigmticas de manejo sustentvel dos recursos naturais e de valorizao cultural, cuja funo gerar as condies prticas e cognitivas para a formulao de um Projeto Regional de Desenvolvimento Sustentvel Indgena. Em torno delas foram montadas estruturas permanentes de assessoria e financiamento e todo um conjunto articulado e complexo de medidas que envolvem o intercmbio entre conhecimentos indgenas e cientficos e a circulao de informaes entre as aldeias, a rede de parcerias e o mundo acadmico. Emergem novas possibilidades de relacionamento entre organizaes indgenas, o Estado e o mercado. A constituio de vnculos mais permanentes de colaborao com a SSL e a FUNASA expandiu o espao das aes direcionadas para a sade indgena na ossatura administrativa, logstica e financeira da FOIRN que vai culminar com a implementao do Distrito Sanitrio Especial Indgena do Rio Negro. Este complexo sistema interinstitucional de monitoramento altamente reflexivo das condies sanitrias da populao indgena envolveu um volume grande de recursos materiais, humanos e financeiros acarretando uma excessiva burocratizao da FOIRN. O desvio da responsabilidade fundamental com o controle social para tarefas de execuo como a construo de plos-base trouxe conseqncias polticas para a diretoria em ano de eleio na Federao. A FOIRN capta recursos das fontes financiadoras e servios das entidades de apoio e distribui entre as 46 associaes filiadas, que por sua vez transfere estes recursos e
Vide o Estatuto Social da Federao das Organizaes Indgenas do Rio Negro - FOIRN. Isto se torna mais evidente quando constatamos o caso extremo de uma associao representando apenas uma comunidade: a Organizao Indgena Bela Vista (OIBV), criada em 1997, no rio Tiqui. O reconhecimento social de uma comunidade dentro da Federao depende de sua insero na rede associativista.
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servios para as comunidades e para os setores organizados da populao indgena por gnero ou ocupao, na organizao de assemblias e reunies do CAF. As associaes por sua vez enviam para a diretoria planos anuais de atividades, relatrios descritivos e prestao de contas que tambm so elaborados pela diretoria e encaminhados para as agncias financiadoras. Por outro lado, as comunidades e setores indgenas so representados por associaes que constituem o canal de acesso e participao nas instncias de deciso da Federao, assemblia e conselho administrativo, que elegem os membros da diretoria, elaboram periodicamente a programao de atividades e avaliam o desempenho da diretoria. Temos sim um belo exemplo de democracia participativa e pluritnica que deveria ser observado com mais ateno em nos vrios pases na Amrica Latina cujos governos reconheceram seu perfil multicultural e plurinacional.21 Todavia, isto no significa que no existam problemas. Neste esquema de fluxo de decises, recursos, servios e informaes as associaes ficam inteiramente dependentes da FOIRN, pois no desenvolvem esquemas prprios de captao de recursos e servios, apesar de serem as bases de participao e sustentao poltica nas assemblias gerais, nos conselhos administrativos e da diretoria executiva. Veja a figura abaixo.

FOIRN Diretoria Executiva Assemblia Geral Conselho Administrativo

Associaes Professores, Agentes de Sade, Mulheres, etc.

Comunidades

21

Para anlises sobre a situao contempornea, paradoxalmente nem sempre animadora, dos povos indgenas em vrios pases da Amrica Latina que conquistaram um amplo espao na cena poltica nacional e um elevado grau de reconhecimento social de diretos culturais vide: Maybury-Lewis, 2002; Warren & Jackson, 2002; e Langer & Muoz, 2003. 239

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Assessoria Tcnica e Financeira (Aliana pelo Clima)

Fluxo das decises

Fluxo de recursos e servios

Fluxo de planos de atividades, relatrios descritivos e prestao de

Para finalizar vamos esquematicamente caracterizar este novo cenrio de negociao e mediao intercultural, inerente a um contexto altamente complexo de relaes intertnicas no Rio Negro da seguinte maneira: cooperao internacional como um importante reservatrio de recursos para suprir os altos custos (comunicao, transporte, administrao, etc.) de montagem e gesto de uma estrutura permanente de ao rumo a uma cidadania diferenciada; domnio de procedimentos normativos de encaminhamento de demandas (projetos) que exigem acmulo considervel de informaes, reflexo sobre a situao intertnica vivenciada e competncia argumentativa para firmar alianas no campo da ajuda humanitria e das preocupaes ecolgicas; mltiplas escalas (local, regional, nacional e planetria) das esferas pblicas onde se desenvolve a luta pelos direitos indgenas e diversificao dos interlocutores; heterogeneidade e transversalidade temticas (preservao e justia ambientais, direitos humanos, feminismo, populaes tradicionais, povos da floresta, desenvolvimento, biodiversidade, democracia, discriminao, pobreza, etc.) que perpassam o campo de construo social e simblica da cidadania indgena; cosmo-politizao da militncia indgena: ampliao do horizonte dos deslocamentos espaciais e semnticos, capacidade de transitar por diversas provncias de significado e de processar e traduzir as mensagens geradas nestes sistemas de codificao diferenciados, atitude cultivada de distanciamento frente prpria cultura e s culturas alheias, esforos deliberados de produo e exibio da autenticidade tnica atravs de

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polticas de reformulao (recuperao ou preservao) de um acervo selecionado de tradies considerado emblemtico da ancestralidade nativa. estrutura descentralizada e horizontal de organizao do movimento indgena, na qual o desenho associativo de politizao da memria tnica torna-se predominante; articulao em rede com outros movimentos sociais, ONGs, organismos e fruns multilaterais e agncias governamentais, com agendas e ticas divergentes que s vezes entram em contradio e requerem uma ao deliberada de conciliao.

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CAPTULO XI. Barcelos: pluralismo tnico, multilocalidade indgena e capitalismo verde. Os limites atuais do municpio de Barcelos so os seguintes: a leste com o estado de Roraima, a oeste com o municpio de Santa Isabel do Rio Negro, ao norte com a Repblica da Venezuela e ao sul com os municpios de Mara e Codajs e a sudeste com o municpio de Novo Airo. Sua extenso territorial de 121.617 Km2. Est localizado na mesorregio Norte Amazonense, e na microrregio Rio Negro, conforme definio do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatstica (IBGE). Para os fins deste projeto definimos uma unidade territorial menor do que a microrregio: o Baixo Rio Negro. O Baixo Rio Negro refere-se regio localizada dentro dos limites do municpio de Barcelos, incluindo-se a a bacia do rio Negro e seus afluentes: Jurubaxi, Arirah, Quiuini, Caurs e Unini, pela margem direita, e os rios Jufaris, Arac, Demeni, Erer, e Padauiri, pela margem esquerda.1 A sede municipal situa-se na margem direita do rio Negro e dista da capital do estado do Amazonas (Manaus) a 390 Km em linha reta e 490 Km por via fluvial. Segundo dados da Secretaria Municipal de Sade, referentes ao ano de 1999, moram 4.607 pessoas (848 famlias) em rea urbana e 2.670 pessoas (497 famlias) na zona rural. Aproximadamente 70% da populao so naturais do municpio, 25% veio de outras localidades do Amazonas e apenas 5% vieram de outros estados do Brasil. Os dirigentes da ASIBA estimam que a populao indgena corresponde a aproximadamente 40% da populao total do municpio. A cidade cresceu nos ltimos vinte anos, principalmente na ltima dcada, e a migrao de famlias indgenas, provenientes de comunidades e stios de So Gabriel da Cachoeira, de Santa Isabel do Rio Negro e de Barcelos contribuiu muito para este fenmeno. A populao indgena do Rio Negro extremamente mvel, ou seja, ela desloca-se constantemente por vrios motivos: visitas a parentes, conflitos internos nas comunidades, acusaes de feitiaria, escassez de recursos naturais (peixes ou terrenos agricultveis), proximidade de escolas e hospitais, busca de emprego; enfim, buscam aquilo
1

Esta caracterizao relativa aos objetivos deste trabalho, pois o Baixo Rio Negro abarca a extenso do rio Negro desde os limites entre os municpios de Santa Isabel do Rio Negro e Barcelos at a sua foz no rio Amazonas, quando se encontra com o rio Solimes nas proximidades de Manaus/AM. O rio Negro atravessa

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que consideram uma melhor condio de vida. Geralmente so os centros urbanos regionais (sedes dos municpios) os principais alvos destes deslocamentos. Entretanto, muitas famlias antes de chegarem s cidades do Rio Negro residiram em vrias comunidades e stios do interior. O municpio de Barcelos e a sua sede tem atrado uma parcela significativa da migrao indgena no Rio Negro, nos ltimos vinte anos. Este processo forneceu as condies sociais para o surgimento de um movimento indgena na cidade que se alastra pelo interior; ao contrrio do que ocorreu no Alto Rio Negro.2

Figura 7: Mapa do Municpio de Barcelos.

quatro municpios do estado do Amazonas, quais sejam: So Gabriel da Cachoeira, Santa Isabel do Rio Negro, Barcelos e Novo Airo. 2 No Mdio Rio Negro existe uma associao indgena (a Associao das Comunidades Indgenas do Mdio Rio Negro/ACIMRN) cuja sede na cidade de Santa Isabel do Rio Negro, mas representa comunidades que so muito prximas da cidade. J em Barcelos uma grande parcela das comunidades indgenas e ribeirinhas fica longe da sede municipal.

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O grosso dos moradores indgenas da sede municipal chegou h menos de vinte anos e uma grande parcela h menos de dez anos. A maioria destes adventcios nasceu no municpio de Santa Isabel do Rio Negro com predominncia para os Bar. Entre aqueles que se deslocaram do interior para a sede do municpio de Barcelos esto mais os Baniwa. Entre os que nasceram no municpio de So Gabriel da Cachoeira existe uma ligeira predominncia de Tukano, acompanhados logo a seguir de Baniwa (grficos abaixo). A populao indgena residente na cidade encontra-se distribuda nos bairros da Aparecida, So Sebastio, So Lzaro, So Francisco ou Sororocal, Nazar, Mariu e Centro. Os moradores indgenas esto concentrados principalmente nos bairros da Aparecida, So Sebastio e So Francisco (grfico abaixo). No centro a ampla maioria de moradores indgenas Bar. A atual rea do bairro So Sebastio pertenceu Prelazia do Rio Negro, que vendeu lotes pagos com paneiros de farinha. Os ndios fazem suas roas ao lado da estrada Barcelos/Caurs, em terras prximas cidade ou em stios localizados no interior. Em geral eles no tm ttulos de propriedade destes terrenos nem daqueles onde constroem suas casas. Depois de obterem a autorizao da ocupao com o prefeito solicitam ao Departamento Municipal de Terras a medio e delimitao do terreno. Quando estes lotes so vendidos aos comerciantes locais, os indgenas tm que procurar outro lugar para estabelecerem suas roas. A agricultura a principal atividade econmica, mas alguns tambm se dedicam ao extrativismo da piaava e a pesca de peixes ornamentais em ambos os casos subordinados ao regime de aviamento3. Na cidade os peixes so comprados no mercado municipal, entre 4:00 e 6:00 da manh. Quando os pescadores no conseguem vender todo o peixe no mercado, eles percorrem as ruas de bicicleta com tal objetivo. Esses pescadores moram nas comunidades prximas (Marar e Santo Antnio) e na cidade. Os moradores das comunidades trazem farinha, derivados de mandioca, frutas, hortalias, etc., para vender na feira, aos sbados. Carnes de frango e de gado so oriundos de Manaus e vendidos nos aougues e estabelecimentos de estivas. Encontram-se morando na cidade famlias pertencentes s seguintes etnias: Tukano, Baniwa, Bar, Desana, Piratapuia, Tariana, Arapao, Cabar, Yanomami, Canamar, Lanaua e Cubeu. Os Bar, Baniwa e Tukano constituem os grupos tnicos majoritrios (grfico abaixo). Uma ampla proporo catlica e dedica-se a agricultura como atividade
3

Veja mais adiante a definio deste termo.

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econmica principal. O nheengatu a lngua indgena predominante. As lnguas indgenas faladas pelas etnias numericamente mais importantes so as seguintes: Etnia Bar Baniwa Tukano Tariana Desana Tuyuca Arapao Piratapuaia Cubeu Lnguas indgenas mais faladas Nheengatu (lngua geral) Baniwa e/ou Nheengatu (lngua geral) Tukano e/ou Nheengatu (lngua geral) Tukano e/ou Nheengatu (lngua geral) Tukano e/ou Nheengatu (lngua geral) Tukano e/ou Nheengatu (lngua geral) Tukano e/ou Nheengatu (lngua geral) Tukano e/ou o Nheengatu (lngua geral) Tukano e/ou o Nheengatu (lngua geral)

Obs: Alguns falam tambm a lngua da sua me. Por exemplo, um Tariano que fala a lngua Tucano e a Piratapuia, porque sua me falava este idioma. Os mais jovens falam somente a lngua portuguesa, mas muitos deles entendem a(s) lngua(s) indgena(s) falada(s) pelos pais.Outras lnguas faladas so as seguintes: Curripaco, Desana, Piratapuia, Werequena, Lanaua e Canamari.

Tabela 3: Lnguas Indgenas Faladas em Barcelos.

Filiao tnica dos Residentes Indgenas da Cidade de Barcelos

1% 2% 1% 2% 4% 20%

1%

3%

37%

29% Bar Piratapuia Baniwa Canamari T ucano Apurin Desana Lanaua T ariana Outras etnias

Grfico 1.

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Famlias e moradores indgenas por bairro da cidade de Barcelos.

450 400 350 300 250 200 150 100 50 0

Mariu S. Sebastio Centro Nazar S. Francisco S. Lzaro Aparecida

Famlias

Moradores

Grfico 2.

Tempo de residncia dos migrantes indgenas na cidade de Barcelos.


8% 0% 1%

Entre 0 e 10 anos Entre 11 e 20 anos Entre 21 e 30 anos Entre 31 e 40 anos Mais de 40 anos

37%

54%

Grfico 3.

245

246

Municpio de Origem dos Migrantes Indgenas para a cidade de Barcelos.

26%

28%

46%
Barcelos S. Isabel S. Gabriel

Grfico 4.

Origem municipal dos chefes de famlia indgena por etnia.

35 30 25 20 15 10 5 0

Bar Baniwa Tucano Desana Cubeu Piratapuia Tuyuca Tariana Arapao Yanomami

Barcelos

S. Isabel

S. Gabriel

Grfico 5.

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Fonte: Oliveira & Peres, 2000. Figura 8: Mapa da Cidade de Barcelos.

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Mais de dois teros dos casamentos envolvendo indgenas (126) da cidade ocorreram dentro de um mesmo grupo indgena ou entre grupos diferentes e um pouco mais de um tero (49) com brancos. Em 5% dos matrimnios (9) no foi possvel obter informao sobre a filiao tnica de um dos cnjuges (grficos abaixo). Apesar de ocorrer um maior nmero de casamentos entre os Bar e os brancos, a percentagem de casamentos em que um dos cnjuges branco para cada um dos trs maiores grupos indgenas muito prxima (para os Bar, 24%; para os Tukano, 22%; e para os Baniwa, 20%). No estou postulando nenhuma relao necessria entre casamento com brancos e perda ou degradao da cultura tradicional, pois os casamentos entre os membros de um mesmo grupo tnico (Tucano/Tucano, Tariana/Tariana, por exemplo) ou entre etnias que se consideram primoirmos (Tariana/Desana, Tariana/Tuyuca), por exemplo, so considerados mais eloqentemente como smbolos do enfraquecimento dos costumes e valores ancestrais, principalmente por aqueles que vieram da bacia do Vaups.4 Por outro lado, a percepo subjetiva sobre a mudana entre alguns indgenas toma como uma referncia importante o desrespeito generalizado das regras de exogamia. Os dados apresentados abaixo mostram, contudo, que este desprezo pela tradio no tem a dimenso que os sujeitos lhe atribuem. Isto aponta para o parentesco como uma esfera social importante de representao das transformaes vivenciadas subjetivamente nesta situao urbana.5 Observando os dois grficos abaixo percebemos que os grupos tnicos majoritrios (Bar, Baniwa, Tucano e brancos) casam-se entre si com mais freqncia, pois oferecem maior contingente de futuros parceiros. No s a proporcionalidade populacional entre as etnias que parece contar nas escolhas matrimoniais, pois do contrrio seria maior a parcela de casamentos com brancos, amplamente mais numerosos do que todos os outros grupos. O estigma ligado categoria ndio pode contribuir para esta taxa menos elevada. Os Bar
Alguns moradores indgenas de Barcelos no deslocaram-se do Alto Rio Negro, mas descendem daqueles que migraram (pais ou avs). 5 Tal representao sobre a mudana no recente, pois era compartilhada pelos Tariana da comunidade Santa Maria, Distrito de Yauaret, municpio de So Gabriel da Cachoeira, no final dos anos 70 (Oliveira, 1981). Ana Gita afirma que devido s mudanas lingsticas no Vaups, onde a lngua Tucano tornou-se a lngua franca, a exogamia determinada pelos princpios da patrilinearidade e da hierarquia de status. Berta Ribeiro (1995) questionou a validade da exogamia lingstica ao constatar que os grupos tnicos que os Desana classificavam como primos-cunhados (Siriana, Tukano, Bar, Tuyuca) e aqueles que entravam na categoria de primos-irmos (Tariana, Baniwa, Arapao, Bar, Cubeu, Micura, Makiritare, Yahuana, Iebahana), com os quais evitava-se o casamento e que ela chamou de fratrias, no seguiam critrios de proximidade ou distncia lingstica. Tanto os grupos da famlia Tucano quanto os da famlia Aruak, Karib e at Maku integravam a mesma fratria dos Desana.
4

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casam-se mais entre si mesmos (28), depois casam com os Tucano (20), com os brancos (16) e com os Baniwa (15). Os Baniwa tambm se casam mais com os membros de sua prpria etnia (19), depois com os Bar (15), com os brancos (11) e com os Tucano (10). J os Tucano casaram-se mais com os Bar (20), depois com os brancos (13) e com os Baniwa (10). importante destacar a peculiaridade dos Tucano. Se por um lado vemos confirmado o princpio exogmico no fato de casarem-se menos com membros do prprio grupo (7), por outro lado verificamos na mesma medida poucas unies (7) com seus tradicionais cunhados, os Desana. A distribuio populacional, isto a abundncia ou escassez de cnjuges potenciais dos diversos grupos tnicos, explica muitas alianas matrimoniais incomuns na bacia do Vaups (com os Bar, os Brancos e os Baniwa), porm, apesar da oferta de jovens Tucano solteiros no ser pequena, parece haver uma certa disposio dos Tucano em preservar o princpio da exogamia, mantendo como interdio ao estabelecimento de vnculos matrimoniais os parentes paternos e alguns grupos reconhecidos como primos-irmo, porm alargando o crculo de afinidade. Condicionamentos demogrficos combinam-se com fatores culturais (memria de alianas permitidas e proibidas), adequao da exogamia ao contexto urbano de Barcelos, gerando um entrelaamento dinmico entre continuidade e descontinuidade no quadro da composio tnica dos casais indgenas residente na cidade de Barcelos. Os Baniwa casaram predominantemente entre si mesmos e com os Bar, com os quais muitos Baniwa compartilham a lngua geral; entretanto, tambm ampliaram o leque de alianas possveis ao incluir os Tucano e os brancos. Cabe aqui destacar que uma parcela considervel das unies matrimoniais formou-se antes da migrao para a cidade, constitudas assim nos contextos demogrficos diferentes do Alto e do Mdio Rio Negro. Um outro aspecto relevante a verificar refere-se aos arranjos conjugais na gerao anterior, isto , dos pais de ambos parceiros. Tambm no estou considerando os laos matrimoniais anteriores, mas s os laos atuais. Os dados disponveis so muito precrios ainda, comearam a ser levantados pela organizao indgena local recentemente e quem estava processando estas informaes era eu. Eles ainda esto coletando estes dados, mas com a minha sada do campo foi interrompida a sistematizao deles. Quanto s unies conjugais dos pais dos migrantes indgenas

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podemos constatar, mas sem afirmar nada em definitivo, uma configurao mais prxima das unies matrimoniais observadas entre os residentes indgenas das comunidades. O perfil dos casamentos entre os moradores indgenas do interior do municpio pode evidenciar algumas diferenas com relao ao meio urbano.

Casamentos envolvendo indgenas na Cidade de Barcelos


27% 5%

68%

ndio/ndio

ndio/Branco
Grfico 6.

ndio/?

Casamentos Envolvendo ndios na Cidade.

Bar/Bar Bar/Tucano Baniwa/Baniwa Bar/Branco Bar/Baniwa Tucano/Branco Baniwa/Branco Baniwa/Tucano Tucano/Desana Tucano/Tucano Bar/? Bar/Piratapuia Baniwa/?

30 25 20 15 10 5 0 1

Desana/Branco Outros

Grfico 7. 250

251

251

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No interior (comunidades e stios) h menos casamentos com brancos (6%) do que na cidade. Uma enorme parcela dos casamentos intertnicos (82%) ocorre entre os membros de um mesmo grupo indgena ou de grupos diferentes (grficos abaixo). Em 12% dos matrimnios no foi possvel saber a filiao tnica de um dos cnjuges. provvel que exista maior concentrao de brancos na sede municipal, logo uma escassez maior de futuros cnjuges brancos no interior. No existem dados censitrios dos rgos governamentais (federais, estaduais ou municipais) distinguindo a populao indgena e a no-indgena. A ASIBA recentemente fez um recenseamento no interior cujo resultado possibilitar a formulao de representaes quantitativas sobre as famlias indgenas e no indgenas no interior. No momento posso dizer que existem comunidades onde o contingente de moradores predominantemente ou completamente indgena (Bacuquara, Acuquaia, Tapereira, Santa Luzia, Santa Rita, Canaf, Baturit, Cumaru, Elesbo, Samama, Bacuquara, etc.), outras em que uma ampla maioria das famlias no indgena (Tomar, So Luz, Pedro II, Moura), e outras em que h uma distribuio mais equilibrada entre as duas populaes (Floresta, Marar, Santo Antnio, Piloto, Carvoeiro). A proporo de Bar frente aos Baniwa e Tucano maior no interior e constitui o principal grupo fornecedor de maridos e esposas (grfico abaixo). Os casamentos entre os Bar ou deles com membros de outros grupos tnicos so amplamente majoritrios. Os Bar casaram mais entre si mesmos (41), como na cidade, depois com os Baniwa (13), com os Tucano (12), e com os brancos (4). Os Baniwa casaram mais entre si (14), depois com os Bar (13), com os Tucano (5) e depois com os brancos (2). J os Tucano casaram mais com os Bar (12), depois com os Desana (7), e com os Baniwa (5). O casamento dos Tucano com seus primos-cunhados tradicionais, os Desana, est em segundo lugar nas suas escolhas de parceiros em outros grupos tnicos, apesar de numericamente igual mesma categoria de casamento intertnico na sede municipal. Diferentemente da cidade, nas comunidades e stios no h muitas unies matrimoniais entre os Tucano e os brancos (3), porm este grupo indgena o que apresenta um ndice um pouco maior de unies com brancos (9%) em relao aos Bar (5%) e aos Baniwa (5%). O princpio da exogamia parece estar mais preservado, pois h poucos casamentos entre os membros deste grupo tnico (3). Aqui tambm os Tucano ampliaram seu crculo de afins incluindo os Bar principalmente. J entre os Baniwa a ampliao da esfera de afinidade no foi significativa.

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Etnias nas comunidades e stios indgenas.


Bar
2% 2% 5% 14% 3% 2% 48%

Baniwa Tucano Desana Piratapuia Tariana

24%

Werequena Outras etnias

Grfico 8.

Casamentos Envolvendo Indgenas nas Comunidades e Stios


6% 12%

82% ndio/ndio ndio/Branco ndio/?

Grfico 9.

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Casamentos Envolvendo Indgenas nas Comunidades e Stios


50 40 30 20 10 0 1

Bar/Bar Baniwa/Baniwa Baniwa/Bar Bar/Tucano Bar/? Tucano/Desana Baniwa/Tucano Bar/Branco Baniwa/? Bar/Piratapuia Tucano/Tucano Tucano/Branco Bar/Desana Baniwa/Branco Baniwa/Tariana Werequena/Werequena Tucano/?

Grfico 10. A Fundao Nacional de Sade (FUNASA) executa o Programa de Combate Malria incluindo diagnstico, tratamento, levantamento clnico-epidemiolgico entomolgico continuado e controle com borrifao e aes informativas e educativas. Existe um hospital da SUSAM com 20 leitos, um laboratrio, uma sala de odontologia, uma sala de vacinas e um ambulatrio. A Secretaria Municipal de Sade (SEMSA) contava, no ano de 2000, com dois postos de sade urbanos (localizados nos bairros Aparecida e So Sebastio) e 38 rurais. Gerencia tambm o PACS-PSF com o mdico do municpio, uma enfermeira e 50 agentes comunitrios de sade/ACS (38 rurais e 12 urbanos). Dispe de um bote-ambulncia fluvial com motor de popa de 115 HP e um barco regional com 18 metros de comprimento e motor MWM114. A incidncia de malria no municpio durante o ano 2000 foi de 42/1000 habitantes. Estudos feitos por equipes do Departamento de Medicina Tropical do Instituto Oswaldo Cruz/FIOCRUZ constataram uma freqncia extremamente elevada de parasitoses intestinais predominando aquelas de transmisso hdrica e/ou por alimentos mal lavados e/ou por higiene inadequada de mos e

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unhas.6 A prevalncia da doena de chagas constatadas em estudos realizados em 1991, 1993, 1997 e 1999 foi de aproximadamente 13%. Quando passaram a utilizar uma tcnica mais sensvel e especfica a prevalncia encontrada ficou entre 3 e 5%.7 De acordo com os profissionais de sade da SEMSA/Barcelos os principais motivos de consultas mdicas so: diarrias, insuficincias respiratrias (IRAs), malria, dermatomicoses, intercorrncias da gravidez e do parto. No existem dados epidemiolgicos sobre mortalidade, assim como de morbidade, no municpio, mas os profissionais de sade mencionam como principais causas de morte os acidentes traumticos, afogamentos, doenas infecciosas graves e complicaes de parto.8 Os fatores mais citados de risco sade foram os hbitos higinicos e de alimentao (acar e outros produtos industrializados que substituram a dieta alimentar regional), suplementos alimentcios ou substituio do leite materno no perodo de amamentao, ausncia ou deteriorao das condies de saneamento bsico; e inundao de algumas comunidades na poca de cheia dos rios (Plano de Sade 2002. Populao Indgena de Barcelos AM). Nas comunidades o atendimento mdico precrio. H um agente comunitrio de sade, responsvel por uma caixa de remdios que, na maioria dos casos, inadequada ou insuficiente para a satisfao das necessidades locais. A busca por atendimento mdico constitui outro fator que impulsiona o deslocamento de famlias para a cidade. Durante o ano de 2000, existiam dois mdicos, uma enfermeira e um dentista no hospital de Barcelos.

Uma equipe de pesquisado da FIOCRUZ fez um estudo, no ano de 2000, na creche municipal de Barcelos examinando 233 crianas e 45 funcionrios. O resultado foi calamitoso: 85% das crianas estavam infectadas e 52% delas estavam infectadas por dois ou mais parasitos. Dentre os funcionrios examinados 84,4% estavam parasitados. A principal causa apontada por um dos pesquisadores da FIOCRUZ (o mdico Pedro Albajar) foi o deficiente sistema de gua e esgoto da cidade que devido a rachaduras permite o contato entre os fluxos de gua potvel e o de detritos orgnicos. 7 Foi observado um forte vnculo entre os infectados e as condies de trabalho nos piaabais, pois o inseto transmissor da doena de chagas (o barbeiro, conhecido localmente como piolho da piaava) encontra um abrigo natural no meio desta palmeira, juntamente com outros animais como escorpies, cobras, aranhas, etc. Diferentemente de outras regies do Brasil, no Baixo Rio Negro apenas uma minoria de infectados com a doena de chagas apresenta os sintomas respectivos (Pedro Albajar, mdico e pesquisador do Departamento de Medicina Tropical da FIOCRUZ, informao verbal). 8 A maioria dos nascimentos acontece em casa, com a ajuda de parteiros(as) e rezadores(as) que s vezes so a mesma pessoa. importante destacar que, conforme as concepes de senso comum sobre o corpo e a doena, o parto um momento muito delicado para a mulher e para a criana, pois ambos esto extremamente vulnerveis ao ataque de encantados ou de feitiaria. Requer ento procedimentos de proteo providenciados atravs de rezas e benzimentos menosprezados no ambiente hospitalar devido a uma incapacidade institucional de dialogar com prticas teraputicas alternativas. Por outro lado, a predominncia de uma atitude negligente dos profissionais de sade diante dos pacientes indgenas contribui para a relutncia generalizada em procurar os servios pblicos que deveriam ser prestados no hospital.

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De modo geral, os agentes de sade esto insatisfeitos com os servios prestados pelas instituies responsveis no municpio. O barco da SEMSA fazia poucas visitas pelo interior. Nos casos mais graves, os moradores do interior tm que se deslocar para receber os cuidados mdicos no hospital. Em vrios casos, viajam muitas horas para chegar cidade e freqentemente no so atendidos no mesmo dia. Aqueles que no tem lugar (casa de parentes) para ficar na cidade e nem dinheiro para alimentar-se voltam para o interior sem receber atendimento. Em suma, no h nenhum programa srio de sade pblica. A perspectiva de expanso do Distrito Sanitrio Especial Indgena do Rio Negro/DSEI-RN, no ano de 2001, para Barcelos melhorou um pouco a situao com a entrada de mais recursos para a secretaria municipal de sade, mas o desconhecimento da secretaria sobre as discusses, a legislao e o aparato governamental das polticas de sade indgena, aliado a uma atitude meramente oportunista frente a possibilidades de acesso a verbas pblicas, impediu melhorias mais significativas na situao sanitria da populao indgena.9 As escolas atendem as crianas da prpria comunidade e dos stios mais prximos, da alfabetizao quarta srie do 1 grau. O professor mora no povoado durante o perodo letivo, devido a distancia da sede municipal, e retorna para a cidade de Barcelos durante as frias onde geralmente reside. A continuidade do ensino formal ocorre na cidade de Barcelos, o que leva famlias a se estabelecerem, temporariamente ou definitivamente, na sede municipal. Algumas famlias instalam-se provisoriamente na cidade10 durante os quatro ltimos anos (5 a 8 srie) de formao escolar dos filhos e depois retornam a viver nas comunidades ou stios quando os jovens so reincorporados nas tarefas rotineiras e sazonais de reproduo do grupo domstico. Muitas famlias resolvem se estabelecer em definitivo na cidade. As escolinhas rurais resultaram do esforo dos salesianos em difundir entre a populao dispersa nos assentamentos mais distantes sua ao pastoral e pedaggica antes centralizada nos internatos e nas sedes missionrias. Depois estas escolas passaram para a gesto da secretaria municipal de educao. A acelerao do fluxo migratrio para a cidade de Barcelos foi maior nos anos 1980-198911, logo aps o fim do

O processo de implementao do DSEI em Barcelos descrito e analisado mais adiante. Durante as frias escolares retomam sua vida nas comunidades e stios onde deixam as suas casas e roas. 11 Na dcada seguinte (1990-1999) o fluxo migratrio cresceu, porm num ritmo menos acelerado em comparao com a dcada anterior.
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internato e a implantao e difuso de escolas nas comunidades nos anos 1970-1980 ampliando a demanda por instruo escolar (grfico abaixo).

Fluxo Migratrio da Populao Indgena para a Cidade de Barcelos.


120 100 80 60 40 20 0 -20 0 1950-1959 1 1960-1969 2 3 1970-1979 4 5 6 1980-1989

1990-1999

Grfico 11. O atrativo das demandas urbanas (hospitais e escolas) gera um aparente esvaziamento nas comunidades e stios, aumentando o adensamento humano na sede municipal. Por outro lado, as relaes sociais ordenadoras das comunidades e o uso econmico das terras favorecem um movimento de disperso populacional ao longo do rio Negro e seus afluentes, formando novos assentamentos no interior. Essa dinmica mantm uma circulao constante de indivduos pela regio, produzindo uma populao flutuante nas comunidades. Outros fatores contribuem para isso: a escassez de reas de terra firme, adequadas para moradia e uso agrcola; alm das atividades sazonais de extrativismo. Por outro lado, muitas famlias que moram na cidade mantm fortes laos econmicos e sociais com as comunidades e stios, produzindo uma slida conexo entre cidade e interior na vida de indgenas e ribeirinhos. Conseqentemente, novos bairros surgiram e, outros, mais antigos, adensaram-se, alm da incorporao de comunidades prximas cidade, como o caso de Mariu.

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CASA FUTEBOL ESCOLA ROA

R I
VOLEIBOL

CENTRO SOCIAL GERADOR DE ENERGIA ELTRICA

CAMINHO CAPELA

O
ROA

CASA DE FARINHA

POSTO DE SADE RADIOFONIA TELEVISO COLETIVA ANTENA PARABLICA COLETIVA

Figura 9: Esquema das Comunidades do Baixo Rio Negro.

Atualmente as comunidades do Marar e Santo Antnio esto muito prximas sede municipal, utilizando-se da sua infra-estrutura urbana. Mariu considerado um bairro da cidade, pois est separado dela apenas pelo igarap do Salgado. Diferentemente das comunidades, est organizado em lotes, regularizados atravs de licenas de ocupao concedidas pelo Instituto de Terras do Amazonas (ITERAM), que a transformou na Gleba Santa Ins, desde meados da dcada de 1980. Conta atualmente com 98 edificaes. A prefeitura est construindo uma estrada que ligar o bairro de So Sebastio at a comunidade de Piloto. As comunidades so unidades residenciais situadas fora das sedes municipais; a distncias variadas, mas em geral ficam longe dos ncleos urbanos. Possuem escola, posto de sade, capela (catlica ou evanglica), centro comunitrio (tambm chamado de sede), campo de futebol e voleibol. A maioria possui radiofonia, instalada pela parquia de Barcelos h uns seis anos atrs. Congregam vrias famlias. J os stios renem um pequeno nmero de famlias que acessam aos servios de educao, religio e sade nas comunidades. Os habitantes das comunidades e stios se afiliam s seguintes etnias: Bar, Baniwa, Tucano, Piratapuia, Desana, Tariana, Arapao, Tuyuca e Werequena. Existem comunidades onde toda a populao indgena sejam os moradores identificados com

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uma ou vrias etnias e outras onde a populao indgena convive com no-indgenas; s vezes desenvolvendo laos de parentesco entre si. Existem 44 comunidades e 52 stios espalhados pelo rio Negro e seus afluentes.12 A figura acima mostra apenas um modelo dos assentamentos que concretamente variam em diversos aspectos. Nem todas as comunidades tm todos os elementos apresentados e em algumas tem radiofonia ou gerador de energia eltrica, mas no funcionam. Os prefeitos doam estes equipamentos em perodo de campanha eleitoral, mas no provem as condies para a sua manuteno permanente. Os moradores em geral no tm recursos para manter o gerador em operao durante todo o dia e todos os dias. Pode existir mais de uma casa de farinha no povoado. Como j foi dito, o posto de sade pequena construo de madeira em geral desprovido ou tem muito poucos remdios e medicamentos. A quantidade e a disposio espacial das casas varia conforme o nmero de famlias, em geral aparentadas. difcil encontrar alguma comunidade com mais de 15 famlias. As roas podem situam-se em distncias variveis dependendo da disponibilidade de solo frtil e de terra firme para a agricultura. Em alguns assentamentos, como Santa Rita do Erer, por exemplo, o solo arenoso e por isso utilizado apenas para as plantaes de mandioca e abacaxi. Em alguns poucos povoados a escola de alvenaria, como D. Pedro II, por exemplo, mas freqentemente uma construo de madeira com teto de brasilit, como a maioria das outras edificaes. Em algumas delas o teto de palha. Este esquema geral que orienta a formao dos povoados oriundo de uma intensa atividade dos missionrios salesianos nos anos 70 e 80 no Rio Negro no sentido de organizar indgenas e ribeirinhos em Comunidades Eclesiais (ou Crists) de Base. Inspirados em uma nova orientao pastoral baseada na famosa opo pelos pobres, as

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Apesar de haver alteraes na composio destas unidades residenciais (algumas desaparecem e outras so criadas), o seu montante no muda significativamente, a curto prazo. S para citar alguns exemplos, recentemente o stio do Romo, localizado no rio Arac e onde morava apenas uma famlia, tornou-se uma comunidade, constituda por sete famlias de piaabeiros. A comunidade de So Lzaro, localizada no rio Unini, foi desmantelada por causa da morte misteriosa de quatro crianas no ano passado. Uma equipe da Fundao Oswaldo Cruz (FIOCRUZ) foi ao local, mas no puderam determinar a causa das mortes, pois as crianas j tinham sido enterradas, impossibilitando exames nos cadveres. Hoje est instalado no local da comunidade um campo de pouso de um hotel de selva construdo na mesma poca no rio Preto, afluente do rio Unini. Algumas famlias indgenas residentes em Carvoeiro pretendem fundar uma nova comunidade, separada dos moradores no indgenas, em terreno vizinho. H alguns anos atrs, a comunidade So Domingos, situada na margem direita do rio Negro, acabou por causa de desavenas entre os seus moradores. Era composta preponderantemente por Baniwa e Tucano. A maior parte deles agora mora no bairro So Sebastio, na cidade de Barcelos.

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CEBs deveriam ser a unidade bsica de uma vida verdadeiramente crist e da conscientizao do povo de Deus sobre seus problemas como o caminho para a sua salvao, autonomia e promoo social. Os pilares da organizao comunitria estavam fundamentados num trip: a capela, a escola e o centro social. Estas trs instncias de modelagem do convvio coletivo so imprescindveis, eram as expresses arquitetnicas das trs posies de autoridade tambm essenciais personificadas nas figuras do presidente, do professor e do catequista. Este ltimo perdeu sua importncia nos ltimos anos devido diminuio do mpeto da atuao missionria nos povoados. Um povoado comea quando uma famlia ou um grupo de famlias ligadas pelo parentesco encontra um local com um bom pedao de terra firme (onde o solo frtil para a agricultura) e com abundncia de peixes, faz uma roa e comea a construir uma moradia. Depois, mais parentes vo chegando e o stio vai aumentando. Ns vimos atrs que as rezas e benzimentos estabelecem as bases slidas de um assentamento com vistas futuramente se tornar uma comunidade. Isto somente acontece quando so fixados os outros dois pilares que sustentam a prosperidade e a sociabilidade de um povoado: a capela e a escola. Juntamse ao benzimento inaugural as oraes catlicas e o conhecimento civilizado, portanto a relao com poderes e conhecimentos externos fundamental para a noo de sociedade e de pessoa no Baixo Rio Negro (Gow, 1992). As itinerncias (administrando sacramentos catlicos e promovendo a organizao do povoado) configuravam situaes cclicas de restaurao da comunidade (de efervescncia social no sentido Durkheimiano) impregnando-a com a fora da civilizao e da modernidade, atravs do contato com estes saberes e poderes estranhos. As festas anuais em homenagem ao santo padroeiro do povoado constituem os momentos de renovao ritual deste ato de domesticao/humanizao de um nicho da floresta. Algumas comunidades se instalaram onde eram antigas vilas (como Tomar, por exemplo) que decaram no sculo XIX e depois se transformaram em fazendas de comerciantes ligados ao extrativismo e depois foram abandonados novamente. Os rezadores se apropriaram dos poderes de regenerao (as preces catlicas) dos padres inserindo-os no cdigo do xamanismo e os benzedores e pajs constituem, por outro lado, instrumentos essenciais para forjar e preservar pessoas etnicamente diferenciadas alimentando-as com as foras da ancestralidade, da ordenao primordial da vida narrada nos mitos de origem: os caboclos (Tukano, Desana, Arapao,

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Piratapuia, Baniwa...) ou ndios civilizados. Neste caso o uso da gria (uma lngua indgena) um instrumento fundamental de comunicao com o tempo dos antigos e de afirmao da esfera humana. Como veremos, ancestralidade e civilizao no so termos excludentes seja na conscincia histrica seja na conscincia mtica dos migrantes indgenas. A autonomia almejada construda neste jogo com alteridades (e autoridades, as nossas autoridades como eles dizem), que implica em habilidades no manejo das interaes estabelecidas com estranhos (caruas), saberes sobre como amansar prefeitos, vereadores, funcionrios da FUNAI, padres, antroplogos, mdicos... em benefcio da prpria comunidade. O presidente do povoado formalmente encarregado de exercer tal funo. Nesta gramtica de construo da boa sociedade autonomia no sinnimo de isolamento e de ruptura de relacionamentos com os Outros, mas muito pelo contrrio.13 Nunca ningum chegou por aqui para orientar, para perguntar como , como tem que fazer. Aqui ns estamos quase assim tapados. E a gente no procura sair. Eu no tenho educao de nada, s de casa mesmo. Quando eu me entendi no mundo nunca tive essa escola a em Barcelos, nem essa escolinha. Ento meu pai nunca procurou me educar, nem eu nem o resto da minha famlia. O que meu pai fez comigo: ele ensinou trabalhar s o servio do mato: cortar castanha, trabalhar em roa, cortar seringa, alguma sorvazinha pelo meio. [...] [grifos SCP] (Moradora Baniwa da comunidade Santa Rita, informao verbal). Este depoimento revela a representao de um passado no qual no existiam as escolas nos povoados, e o horizonte de entendimento das pessoas estava restrito ao servio do mato, assim como a sensao atualmente difusa de decadncia e abandono das comunidades. No Baixo Rio Negro o lder da comunidade, escolhido pelos habitantes do povoado, chamado de presidente enquanto no Mdio e no Alto Rio Negro ele chamado de administrador e de capito respectivamente. Foi um dos poucos cargos formais que restaram do amplo conjunto proposto pelo modelo salesiano das CEBs para organizar e

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Mais adiante veremos como esta noo central ao entendimento das representaes sobre o contato intertnico aparece no registro simblico que define as figuras dos pajs e dos rezadores/benzedores como agentes de mediao na convivncia com foras supra-humanas.

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desenvolver os assentamentos. Ns vimos em captulo anterior que no Mdio e Baixo Rio Negro, nos anos 1970 e 1980, uma grande preocupao dos salesianos era com a dependncia dos caboclos aos patres do extrativismo e com o esvaziamento decorrente dos povoados.14 O incentivo criao de gado, combinada agricultura, foi pensado como uma alternativa econmica para fixar os ribeirinhos a terra instituindo as condies materiais para uma vida estvel e verdadeiramente comunitria. No era s o patro, mas o seminomadismo inerente ao extrativismo era considerado um srio obstculo ao projeto cristo de vida coletiva e dificultava a ao pastoral desenvolvida nas itinerncias. Era a multilocalidade (na qual combinam-se mobilidade espacial e aproveitamento das possibilidades plurais existentes diante das limitaes do ecossistema local) enquanto modo de ocupao da terra e manejo dos recursos naturais que estava sendo posta em cheque ao serem desprivilegiadas alternativas econmicas importantes para as relaes sociais de sustentao do grupo domstico, a partir de uma viso idealizada e restrita da terra como solo agrcola. Todavia, a comunidade foi englobada pela multilocalidade nos processos atuais de construo social do espao.15 Dependendo da qualidade do solo os produtos plantados podem ser: mandioca, abacaxi, car, cana, melancia, macaxeira, banana, batata. Fazem as roas em capoeiras, apesar do mato primrio ser melhor, porque mais fcil e mais rpido para derrubar com machado. Outra razo pode ser a escassez de terra firme, elevada, que no inunda no

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As festas de santo tambm se constituram num grande motivo de inquietao missionria devido ao alcoolismo supostamente fomentado nestas ocasies, provocando brigas e desavenas contrrias a uma concepo crist de vida comunitria. As festas de santo atualmente continuam sendo bastante prestigiadas inclusive pelos jovens porque foram modernizadas com bailes de msicas tecno, forr e brega. Veremos mais adiante que no senso comum e no imaginrio intertnico vigentes no Baixo Rio Negro a harmonia e o controle de si constituem elementos essenciais das concepes do Self e da sociabilidade vigentes no mundo da vida cotidiana onde a autonomia da vontade e a conduta normativa se contrapem aos estados de alienao subjetiva e agressividade inerentes embriagues, s vtimas dos ataques antropofgicos dos curupiras e encantados e excessiva submisso dos fregueses aos maus patres. Liberdade individual e conformidade coletiva no se excluem nesta perspectiva da agncia humana, mas so mutuamente imanentes, pois a precria ordem social e csmica pode ser abalada por decises e atos subjetivos. Por outro lado, as sanes (doenas) queles que se afastam da esfera da sociabilidade so implementadas por poderes supra-humanos atravs de reaes violentas motivadas pela vingana e pela raiva. 15 Agradeo ao antroplogo Carlos Alberto Ricardo, coordenador do Programa Rio Negro do ISA, por ter me chamado ateno para esta idia que eu procuro desenvolver e analisar suas repercusses para a compreenso das relaes intertnicas no Baixo Rio Negro. Bruce Albert (2000) tambm menciona esta noo no seu breve e excelente artigo sobre movimento indgena e desenvolvimento sustentvel na Amaznia sem maiores aprofundamentos interpretativos e analticos. claro que a delimitao conceitual desta noo e sua aplicao, com suas possveis falhas, ao contexto social do Baixo Rio Negro so da minha inteira responsabilidade.

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inverno.16 Outra alternativa derrubar a mata virgem nos terrenos elevados mais distantes da comunidade. Trabalham dois anos consecutivos no mximo com uma roa e depois deixam crescer uns cinco anos e ento derrubam novamente, todavia nem sempre esperam todo esse tempo para roar outra vez. Nos meses de agosto e setembro deve-se roar para plantar no incio do vero. O dono de uma roa convida outros moradores do povoado para ajudar na consecuo de algumas tarefas agrcolas mais pesadas como derrubar e capinar em troca oferece o almoo ou alguma refeio aos participantes da adjunta (termo local pelo qual eles tambm designam este tipo de mutiro). Planta todo mundo, a cava e outras pessoas plantam, depois a gente toma um chib e come um pouco, de tarde vai terminar o trabalho (Morador de Acucu, rio Padauiri, informao verbal). Cada famlia tem sua roa independente e no existem roas comunitrias.17 Cada comunidade tem uma ou duas casas de farinha, cuja produo familiar e destinada em geral ao consumo domstico. A coleta da castanha uma atividade que determina a mobilidade espacial de indivduos e famlias na regio, constituindo-se em fonte de renda eventual. No perodo da chuva a castanha o principal produto coletado. Parte da castanha conduzida cidade para comercializao e outra parte utilizada para consumo domstico. Existem intermedirios nas comunidades que compram a castanha para revend-la na cidade. Em Barcelos, uma caixa de castanha (equivalente a duas latas de vinte litros), custa R$ 15,00.18 Outros produtos de coleta (tucum, aa, patau, bacaba, piqui, pupunha, etc.) so utilizados para consumo domstico, sendo sua comercializao eventual. Frutas (laranja, limo, cupua, ing, etc.) so cultivadas nos quintais das casas ou nas roas, mas no constituem fonte de renda para as famlias. As atividades de caa e de pesca so, essencialmente, de subsistncia. Para quase toda a populao os animais como paca, cotia, veado, porco do mato, anta, inambu, mutum, quelnios ou bichos de casco (tartaruga, tracaj, cabeudo, irapuca) constituem fonte de protena complementar, alm de peixes diversos (tucanar, pirarucu, aracu, pacu, piranha, mandub, surubim, acar16

Outro fator de limitao da agricultura a disponibilidade de solos frteis. Na comunidade Santa Rita, no rio Erer, por exemplo, a terra arenosa e por isso eles s cultivam a mandioca e o abacaxi. H 25 anos eles moravam no alto curso do rio Erer, onde o solo era mais frtil, mas resolveram morar mais prximo da foz do rio porque estavam muito isolados, muito distantes, de outros povoados e dos ncleos urbanos regionais. 17 Nos anos 70 e 80 os salesianos tentaram incentivar este tipo de trabalho comunitrio, no bojo da proposta de organizao das Comunidades Crists de Base, mas no teve efeitos duradouros. 18 Em Barcelos, uma lata de castanha - 20 litros- custa entre R$ 6,00 e R$ 8,00. Em So Gabriel da Cachoeira a mesma lata custa R$ 15,00 e a caixa custa R$ 30,00.

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peneira, acar-bicudo, acar-baru, azulo, jacund, trara, jandi). A criao de animais domsticos (ces, gatos, galinhas, porcos, patos, papagaios, etc.) destinada ao consumo da famlia ou servem como bens de estimao (Oliveira & Peres, 2000). As atividades sazonais do extrativismo so outros fatores condicionantes da mobilidade e da multilocalidade dos padres de ocupao da terra e de assentamento vigentes na regio, uma vez que deslocam das comunidades e da sede municipal os homens adultos e/ou famlias inteiras, para os locais onde estas atividades se desenvolvem.
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Alguns nasceram, cresceram e casaram nos piaabais sem nunca, ou apenas em pocas eleitorais conduzidos pelo patro, terem visitado as cidades de Barcelos e Santa Isabel do Rio Negro. Os agentes intermedirios entre o local de extrao e o local de comercializao do produto so conhecidos na regio como patres. Eles organizam a empreitada trazendo os homens adultos das comunidades e stios (e tambm da cidade de Barcelos) para os piaabais localidades onde se encontram as piaabeiras , onde so subordinados ao regime de aviamento.20 As colocaes localizam-se, principalmente, nas

Nas comunidades localizadas nos rios onde esto os piaabais, como Acuquaia e Acuacu no rio Padauiri, alguns moradores declararam a sua preferncia em viver apenas da agricultura, fazendo e vendendo farinha em Barcelos, abandonando a extrao de piaava se tivessem condies. Em Acuquaia alegaram como impedimento a falta de um barco para comercializar a produo de farinha da comunidade, o baixo preo pago pelo saco de farinha em Barcelos e o fato da demanda deste produto ser muito limitada l. Cabe assinalar que muitos moradores da cidade produzem sua prpria farinha para consumo domstico e os comerciantes vendem farinha, proveniente de Manaus, mais barato do que a farinha produzida na regio. Em Acuacu apontaram como o principal obstculo a falta de uma moto-serra para roarem maiores extenses de terra e plantarem mandioca com mais rapidez e menor esforo. Com uma produo maior de farinha seria rentvel vender em Barcelos e em outras cidades como Novo Airo e Santa Isabel do Rio Negro, pois a venda de maior quantidade compensaria os baixos preos. Mencionaram o caso das comunidades do rio Unini que produzem 600 a 700 sacas de farinha e vendem para Barcelos 300 ou 400 sacos. [...] Vo para Novo Airo e vendem o restante. No tem dificuldade de vender. Eles pem, usando moto-serra, 3 ou 4 quadras por famlia, eles vo roando e atrs vo derrubando com 3 ou 4 moto-serras [...] (Morador de Acuacu, informao verbal). No ano de 2000 o prefeito doou um barco para os habitantes de Acuacu, e Acuquaia. A terceira comunidade do rio Padauiri, Tapereira, tem um barco prprio. 20 O aviamento uma forma de recrutamento da fora de trabalho extrativista atravs do fornecimento de mercadorias (alimentao, roupas, combustvel, etc.), em adiantamento, para o sustento do trabalhador enquanto est em atividade. A relao entre os preos das mercadorias e os produtos da floresta trocados com os extrativistas sempre excessivamente prejudicial para os ltimos. Estes, portanto, esto sempre endividados. Este comrcio desigual e injusto o principal instrumento de subordinao da mo de obra aos patres, comerciantes locais ou seus intermedirios nas colocaes ou barraces (onde ficam armazenadas as mercadorias). Em Acuquaia, no rio Padauiri, quase todos os moradores estavam com dvidas que variavam entre R$ 450,00 e R$ 5.000,00. Esta rede de aviamentos estende-se at Manaus, pois as casas comerciais desta capital amaznica fornecem adiantamentos em mercadoria aos comerciantes locais encarregados de organizar a produo extrativista no interior do estado. Os patres que atuam no rio Preto so Marat Mendona, Mesquita, Valdeci Moraes, Tonico Lacerda (o Saracura) e o Carlos Leite (tambm conhecido como carioca, pois natural do Rio de Janeiro). No rio Padauiri tem o Ivo Milito e o Tonico Lacerda, considerado como um patro que paga melhor pelo produto. No rio Arac atuam o Marinho e o Tio (aviado

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cabeceiras dos rios Arac, Erer, Padauir, Preto e Curudur, na margem esquerda do rio Negro.21 Existe um acordo tcito entre os patres sobre a distribuio das reas exploradas por cada um. Um patro afirmou ter autorizao do IBAMA e da prefeitura, cuja taxa uma quantia irrisria, para explorar seus piaabais. Mencionou tambm um intermedirio proveniente do Rio de Janeiro que atua como um regato, ou seja, no tem fregueses, ele compra a produo de quem quiser lhe vender por preos melhores do que os pagos em mercadoria na regio, quebrando o monoplio comercial dos patres e conseqentemente minando o esquema do aviamento. Na poca eu ouvi boatos em Barcelos sobre a insatisfao dos patres com a atuao deste carioca. O que existe aqui, vamos supor, quem tem seus igarap, porque tem o rio, mas tem os afluentes, como eu tenho, o Seu Mar, o Tonico Lacerda tem, Seu Raimundo Rodrigues tem, o Seu Mocinho tem, ento cada qual tem o seu igarap para trabalhar. S que esse igarap agente paga ele ao IBAMA em Manaus. Todo ano vem a... uma taxa que a gente paga no valor de R$ 4,00. uma taxa fixa e no por produto. anual e agora passou para R$ 7,00. Eu tenho minha firma. Eu tenho licena da prefeitura para trabalhar tambm. Tenho meu igarap tambm, registrado no IBAMA tudo direitinho. Cada pessoa tem seu igarap para trabalhar. Podemos navegar 500 patres aqui, mas no momento cada qual tem seu igarap. Quando no vai comprando dos outros. Como tem um carioca, rapaz agora que
do Baro do Ara; no consegui saber o nome deste patro). No rio Erer atuam o Carlos e o Betinho (Alberto Monteiro). Existem outros mas so patres pequenos, aviados destes que foram mencionados. 21 H ocorrncia de piaabais tambm nos rios Tia, Mari, I, Curicuriari (todos no Mdio Rio Negro) e no rio Xi (no Alto Rio Negro). A nica regio do Brasil onde existem piaabais nativos no Rio Negro, em reas de vegetao do tipo campinarana (ou campina ou caatinga amaznica), caracterizada por florestas baixas, arbustivas (variando entre 6 e 20 metros) que crescem em solos arenosos e inundveis no perodo das chuvas. Os outros dois tipos principais de vegetao no Rio Negro so: a floresta densa (ou de terra firme) e o igap (ou rea de refgio) (Cabalzar & Ricardo, 1998). Segundo um ex-piaabeiro Bar a fibra de piaava cultivada na Bahia de qualidade inferior, mais rgida, e misturada piaava amaznica na fabricao das vassouras. A maior parte da produo nacional do produto proveniente do nordeste. As fibras de piaava constituram matria-prima para a confeco de cordas para as embarcaes que trafegavam na bacia amaznica desde o perodo colonial. Nos anos 1960 foram substitudas pelas cordas fabricadas com nylon. Na fabricao de vassouras a piaava continua sendo utilizada apesar da crescente utilizao a partir dos anos 1950 e 1960 de materiais sintticos nesta indstria. As palmeiras novas tm at dez anos e so mais rentveis comercialmente. Depois de explorada necessrio um intervalo de dez anos para as fibras atingirem um tamanho economicamente interessante. Nem sempre se espera todo esse tempo para sua reutilizao, apesar da produtividade ser menor. A extrao da piaava no elimina a planta matriz, sendo assim uma atividade econmica sustentvel, porm pode se tornar predatria na medida em que no respeite o tempo de recuperao total da palmeira (Meira, 1993).

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comprador de piaava do Rio de Janeiro. Ele compra de um, compra de outro, comerciante n. Tipo regato, quem chegar ele compra. Ele comprador, ele vem do Rio de Janeiro para comprar. No tem esse negcio de voc vai para l, eu vou para c no. S no pode trabalhar no meu igarap. O meu meu, o seu seu. Isso da agente respeita, todos os patres respeitam. (Patro que atua no rio Preto, informao verbal). Nas comunidades dos rios Padauiri e Erer (Acuquaia, Acuacu, Tapera e Santa Rita) somente os homens adultos cortam piaava, as mulheres e as crianas ficam nas comunidades cuidando da roa e dos afazeres domsticos.22 Em Acuquaia, no rio Paudairi, por exemplo, alguns moradores permanecem durante duas semanas cortando piaava e retornam para a comunidade. Passam dois ou trs dias na comunidade e voltam ao piaabal.23 Produzem um pacote de piaaba por dia (30 a 40 kg) e doze pacotes em duas semanas.24 O patro passa a cada dois ou trs meses para pegar a piaava. Em Tapera, no mesmo rio, os moradores ficam em mdia trs meses consecutivos por ano no piaabal, no inverno ou no vero conforme a preferncia do extrativista. A extrao da piaava ocorre durante todo o ano, porm existem vantagens e desvantagens no desempenho desta atividade no inverno (abril/setembro) e no vero (outubro/maro). No inverno o acesso aos piaabais mais fcil porque os igaraps esto cheios e se pode chegar at eles em pequenas embarcaes, enquanto no vero o caminho por terra, se perde mais tempo e o esforo maior at chegar ao local de trabalho. Em compensao no vero chove menos, a
Esta associao entre extrativismo, comrcio, floresta, exterior e masculinidade em contraposio a agricultura, consumo, comunidade, interior e feminilidade no recorrente em outras comunidades ou mesmo na cidade onde constatei o deslocamento de famlias inteiras para os piaabais. Todavia, o trabalho das mulheres e das crianas referido como ajuda e as mulheres muitas vezes acompanham para fazer os servios domsticos nas barracas construdas para moradia. Cuidar das hortas tarefa feminina enquanto a caa uma atividade masculina e a coleta desempenhada por ambos. Na agricultura os homens roam e limpam enquanto as mulheres plantam. Nem sempre existe uma clara diviso baseada em identidades de gnero das tarefas de reproduo do grupo domstico, pois encontramos homens fazendo farinha e mulheres pescando. Em uma comunidade afirmaram que as mulheres so marupiara (so boas, tem sorte) na pesca enquanto os homens so panema (so ruins, tem azar). 23 Em Santa Rita, no rio Erer, os moradores preferem cortar piaava no inverno porque no vero eles se dedicam a pesca de piabas (peixes ornamentais), tambm sob o regime de aviamento. 24 Para uma descrio pormenorizada do processo de produo, das relaes sociais e das condies ecolgicas dos piaabais, tomando como objeto de anlise as colocaes do rio Xi, no Alto Rio Negro, cujos fregueses so predominantemente Werequena: Meira, 1993. Estou abordando apenas os aspectos do regime de aviamento vigente no extrativismo da piaaba mais diretamente ligados ao padro multilocal de
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produo maior porque poucos dias so perdidos e o preo da piaava melhor porque a oferta menor por causa da dificuldade de transporta-la. No inverno mais fcil devido ao transporte, mas no vero tambm se corta piaaba. [...] A piaaba no vero bom de trabalhar porque seco, no tem chuva n. O preo no maior porque ela fica presa. Durante os cinco meses de vero eu vou comprar umas trs ou quatro aviaes e vou trabalhar. Quando chega o inverno a gente vai fazer o transporte do produto para tirar as contas. s vezes a pessoa tira um saldo e desce pra cidade. [...] No vero produz mais piaaba porque todo dia trabalha, no tem problema de atrapalho de chuva. Eu gosto de trabalhar no vero. No vero d mais porque o tempo limpo e o mato enxuto e o camarada todo dia vai l. No inverno a canoa encosta no porto e no vero por terra, tem que andar mais com bagagem nas costas, o esforo maior. [...] (Morador Baniwa da comunidade Acuquaia, informao verbal). Nas colocaes do rio Erer e do rio Padauiri o quilo da piaava era vendido por R$ 0,50 em julho de 2001. No rio Arac o quilo vendido por R$ 0,40 e o preo das mercadorias adquiridas pelo fregus mais alto. Um trabalhador produz sozinho entre 500 e 800 quilos por ms. Os patres pesam o produto nos barraces e descontam a tara termo regional para designar a parte da produo no paga ao piaabeiro. Esta mais uma forma de explorao da fora de trabalho nos piaabais. A tara um desconto de 10% no peso da piaava se ela estiver seca, se estiver molhada equivale a 20% pois ela estaria mais pesada.25 Se o fregus conseguiu obter algum saldo o que geralmente no acontece ele est liberado, se continuou endividado (sua produo menor do o valor das mercadorias consumidas) ele ter que trabalhar para aquele patro at a sanar. O piaabeiro no pode vender a sua produo para nenhum outro patro e um patro pode transferir um fregus seu para outro patro se este pagar a dvida do extrativista ou se um patro comprar do outro o direito de explorar seus piaabais. Parte dos patres so comerciantes residentes

assentamento e manejo dos recursos naturais inerentes s estratgias e clculos de reproduo dos grupos domsticos. 25 Segundo um ex-piaabeiro Bar o patro aumenta ainda mais o seu ganho vendendo a piaava molhada porque assim mais fcil de pente-la. Alm do mais no lhe cobrada a tara.

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na cidade de Barcelos26, ou so parentes deles. A piaava comercializada em Barcelos, de onde segue para Manaus capital do estado do Amazonas. Existem patres menores que agenciam trabalhadores atravs do aviamento, os leva aos locais de extrao, transporta o produto at Barcelos e entregam a patres maiores dos quais so fregueses. Esses patres grandes ou comerciantes que transportam a piaava para Manaus onde eles tm depsitos e vendem s indstrias de vassouras da capital do Amazonas. Alguns tm contato com compradores no Rio de Janeiro, So Paulo, Bahia e outros estados do pas; e outros at mesmo possuem depsitos nestas cidades.27 No rio Unini os patres so regates que mantm o endividamento atravs da venda de mercadorias levadas em barcos s comunidades e stios. Entre os produtos negociados esto o cip e as piabas termo regional para os peixes ornamentais. No rio Unini h intensa extrao de cip com fins comerciais. De modo geral, o cip vendido para regates de Novo Airo e/ou comerciantes de Manaus, variando seu preo entre R$ 1,00 e R$ 1,20/kg. As comunidades do rio Unini, alm daquelas situadas prximo sua foz no rio Negro, tm contato mais intenso com o municpio de Novo Airo, devido a sua proximidade. Grande parte dos patres que atuam neste rio comerciante da cidade de Novo Airo. O ecoturismo a proposta mais recente de insero da amaznia no mercado mundial. Em 1998, esta atividade movimentou US$ 4.000.000.000,00 (quatro trilhes de dlares) em todo o mundo. Em abril deste ano foi realizado um congresso mundial sobre ecoturismo, o World Ecotur 2000, em Salvador/BA.28 Segundo a Organizao Mundial de Turismo (OMT), o ecoturismo movimentou, em 1996, mais de R$ 475 bilhes, cerca de 20% da cifra total com turismo no mundo. No Brasil, no mesmo ano, o ecoturismo representou 3% dos R$ 2,5 bilhes gastos por turistas, sendo o Amazonas e o Pantanal os lugares preferidos pelos visitantes. O estado do Amazonas recebe 160 mil turistas por ano;
Na cidade predominam os estabelecimentos dedicados ao comrcio de estivas (alimentos e produtos de higiene) e de bebidas alcolicas (bares); mercadorias estratgicas para a reproduo do regime de aviamento. 27 Um patro me relatou que geralmente s manda a piaava para Manaus se no encontrar comprador em Barcelos, pois as despesas com o frete do recreio (embarcao de grande porte que transporta cargas e passageiros entre Manaus e as cidades do Rio Negro) desestimulam tal iniciativa mesmo que venda o produto mais caro. Enviar para o Rio de Janeiro tambm no vale a pena, as despesas so maiores, alm do frete do recreio tem a estiva e o frete do caminho (R$ 5.000,00 em agosto de 2001). Este investimento s economicamente vivel se envolver grandes quantidades de piaava (80 a 100 toneladas). Ele negocia geralmente de 15 a 20 toneladas. 28 Congresso discutiu ecoturismo brasileiro. Estados da Amaznia mostraram diversidade em atrativos tursticos. Amaznia Vinte Um. No 8, Maio/2000, pp. 24-27. Reportagem de Luiza Elayne Azevedo e fotos de Luiz Diogo.
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50 mil so estrangeiros. Investimentos previstos para o turismo, oriundos do governo estadual, chegam aos U$ 250 milhes.29 Maior reserva de gua doce do mundo, a pesca esportiva um fator importante de expanso do turismo na regio e apresenta uma taxa mdia de crescimento anual equivalente a 30%.30 O municpio de Barcelos reconhecido como uma das reas mais promissoras para a prtica deste esporte. O tucunar altamente apreciado pelos pescadores esportivos e Barcelos tem um dos maiores reservatrios do mundo desta espcie de peixe.31 Aproveitando este fluxo de capitais destinados ao turismo de natureza, a prefeitura de Barcelos apresentou um projeto para a implantao de um complexo ecoturstico a SUFRAMA, orado em R$ 1,1 milho; que prev a construo de um museu temtico, um ancoradouro, treinamento de pessoal e organizao das empresas tursticas instaladas no municpio. O projeto prev tambm a elaborao do Plano Diretor de Turismo para implementar aes municipais e da iniciativa privada, infra-estrutura de apoio e recepo de turistas e o plano de gesto do arquiplago fluvial de Mariu. Barcelos foi includo como rea piloto no Amazonas do Programa Nacional de Municipalizao do Turismo, do governo federal.32 H dois programas de implantao do ecoturismo e da pesca esportiva. Um deles, o PROECOTUR, financiado pelo Banco Interamericano de Desenvolvimento (BIRD). O total de recursos para os governos estaduais (Amazonas, Par, Acre, Rondnia, Roraima, Amap, Mato Grosso e Tocantins) repassarem s prefeituras que compem os plos ecotursticos atingem a cifra de US$ 11.000.000,00 (onze milhes de dlares), em uma primeira fase de pr-investimentos. Sero destinados para Barcelos a quantia de US$ 60.000,00 (sessenta mil dlares), que sero aplicados na criao de infra-estrutura composta de um centro de atendimento ao turista, um porto fluvial e sinalizao turstica. O outro programa refere-se ao convnio de cooperao tcnica estabelecido entre a Secretaria de Cultura, Turismo e Desporto do estado do Amazonas, o Instituto de Proteo Ambiental do Amazonas (IPAAM), o Instituto Brasileiro de Meio Ambiente e Recursos Naturais Renovveis (IBAMA) e a prefeitura de Barcelos, para organizar a pesca esportiva no
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Desenvolvimento via ecoturismo. Gazeta Mercantil, 26/11/1998. No Brasil este setor movimenta aproximadamente U$ 2 bilhes. Ver: A aposta do Amazonas na pesca. Gazeta Mercantil, 04/07/2000. 31 Operadores ampliam investimento em pesca esportiva no Amazonas. Gazeta Mercantil, RG/Amazonas, 14/06/2000.

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municpio. Atualmente, esto sendo feitos estudos para definir reas destinadas a prtica da pesca esportiva, no mbito deste convnio. Todavia, estes projetos no esto sendo discutidos, em todas as suas fases de implementao, com os grupos indgenas e ribeirinhos envolvidos e suas entidades de representao porventura existentes, correndo-se o risco deles tornarem-se meros canais para captao de verbas pelas elites polticas regionais e municipais, que reverter para a sua perpetuao no poder em detrimento dos direitos de uso coletivo da terra de populaes tradicionais amaznicas. A infra-estrutura turstica do municpio muito precria. Na cidade existem apenas dois pequenos hotis que no oferecem muito conforto, trs restaurantes pequenos e simples e nove lanchonetes tambm pequenas. Est sendo construdo mais um hotel, um pouco maior do que os outros. Existe um hotel de selva chamado Rio Negro Lodge, localizado na margem direita do rio Negro, entre as comunidades Baturit e Cumaru. Este alojamento dispe de restaurante e chals (sutes) muito confortveis. Este complexo turstico conta tambm com o barco Amazon Queen (com oito quartos e um restaurante), uma frota de 30 lanchas (motor de 90 Hp), que conduz os turistas estrangeiros para praticar a pesca esportiva, principalmente do tucunar. Entretanto, indgenas e ribeirinhos que moram nas comunidades e stios reclamam que estas lanchas afugentam os peixes, prejudicando a pesca artesanal e de subsistncia. O proprietrio do hotel, Phillipe Marsteller, representante da empresa Amazon Tours no Brasil, proibiu os moradores dos stios vizinhos de caar, ameaando-os de chamar a polcia e tomar as suas espingardas. Ele expulsou uma famlia indgena Werequena do seu stio e l construiu uma escola, alm de pressionar outras famlias indgenas a abandonarem os seus stios. J ocorreram vrios conflitos entre ele e os moradores da comunidade Cumaru que composta por ndios Tucano, Desana, Baniwa e Bar. O atual prefeito Jos Ribamar Fontes Beleza33 (reeleito em 01/10/2000), ao ser solicitado por comunitrios e sitiantes a tomar providncias sobre o assunto, afirmou que o hotel estaria em rea fora de sua alada. Por outro lado Phillipe Marsteller doou uma lancha, cujo combustvel tambm fornecido por ele, para a secretaria municipal de meio ambiente; ou seja, o rgo responsvel para fiscalizar empreendimentos
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Prefeitura de Barcelos quer construir complexo ecoturstico. Gazeta Mercantil, RG/Amazonas, 25/11/1999.

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como o dele. Cabe assinalar ainda que a campanha do candidato a prefeito Jos Beleza contou com o avio e as lanchas do hotel de selva para visitar os eleitores residentes nas comunidades mais distantes da sede municipal. Mais dois alojamentos tursticos de selva foram implantados recentemente: um no rio Unini, o Unini Park Hotel; e outro no rio Arac, o Arac River Camp. Os peixes ornamentais (piabas), principalmente o cardinal e o acar-disco, constituem outra fonte alternativa de renda para uma parcela substancial (em torno de 1.000 pessoas diretamente envolvidas na atividade) da populao indgena e ribeirinha; assim como o suporte econmico mais importante, responsvel por 60% da renda municipal, de Barcelos (Prang, 1999).34 Esta atividade a maior fonte municipal de arrecadao de impostos (Imposto sobre Circulao de Mercadorias/ICMS) para o estado do Amazonas. Cabe observar que uma parcela considervel destes produtos (piaba e piaava) no registrada na coletoria estadual de Barcelos; deixando assim de pagar os impostos devidos. Existem aproximadamente 700 espcies de peixes na regio; incluindo comestveis e ornamentais. Anualmente so comercializados em torno de 200 milhes de peixes ornamentais e o Amazonas contribui com 10% (20 milhes de unidades) deste setor de exportao. Este o 14 produto de exportao do Estado do Amazonas num ranking composto por 32 produtos (Fonseca, 1999). Gerou uma receita em 1997 de U$ 2.654, 92 enquanto que a exportao anual total do estado do Amazonas atingiu U$ 138.000.000,00. Dos 34 pases importadores os maiores so: Estados Unidos (25%), Alemanha (19%) e Japo (17%). Os estabelecimentos de exportao ativos no ano de 1999 em Barcelos so os seguintes: Aqua Amazon, Aquarium Corydoras Tetra, Prestige Aquarium, Talism Aquarium, Turkys Aquarium e Wild Amazon. Estas empresas esto sediadas em Manaus e tem autorizao do IBAMA para comercializar animais aquticos vivos.35 O risco envolvido neste empreendimento grande devido aos cuidados necessrios para manter viva a maior quantidade possvel de animais durante o transporte de Barcelos at Manaus. Este um ramo de negcios que requer para ser bem sucedido um considervel
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Beleza fornecia autorizaes ilegais para garimpeiros exercerem a sua atividade, quando foi prefeito de Santa Isabel do Rio Negro (1989-1992) e perdeu uma fazenda com a demarcao da Terra Indgena Mdio Rio Negro I, em 1998. 34 Os restantes 40% esto divididos com a extrao de piaava (20%), a coleta da castanha, a pesca comestvel, a produo de farinha destinado ao mercado local e atividades comerciais.

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investimento cientfico para criar tecnologias de manejo sustentvel deste recurso aqutico no seu prprio ambiente natural ou de reproduo em cativeiro. Os peixes ficam aprisionados em locais conhecidos como depsitos de piabas, espcie de currais aquticos, instalados nos rios e igaps36. O milheiro de peixes ornamentais comercializado na cidade ou nas comunidades entre R$ 8,00 e R$ 10,00 de onde seguem para Manaus para serem revendidos, inclusive para o exterior. Os piabeiros que moram na cidade permanecem meses nos locais de pesca (rios Ta, Jurubaxi, Caurs, Unini e seus afluentes), s vezes acompanhados dos filhos maiores, enquanto a esposa fica com os filhos menores sustentando, precariamente, a famlia atravs da venda de doces, picols ensacados (dindins), pes, etc, feitos em casa.37 A temporada de pesca comea no final da estao chuvosa e termina no final da estao seca. Esta atividade organizada tambm sob o regime de aviamento. Os extratores residem num povoado ou num stio prximo de reas de pesca, residem nas cidades de Barcelos ou de Santa Isabel do Rio Negro se deslocando para as reas de pesca nos perodos determinados ou residem em povoados e stios e deslocam-se para as reas de pesca do patro.38 O direito de explorar estas reas reconhecido e respeitado por todos os patres sob a forma de um acordo tcito. Os patres so compradores locais ou representantes das casas exportadores de Manaus para as quais vendem o produto. Os piabeiros so muito explorados pelos patres que cobram uma produo enorme de piabas em troca das mercadorias (cujos preos so muito inferiores quando compradas nos estabelecimentos comerciais em Barcelos) fornecidas em adiantamento. Se obtiver saldo o pescador pode recebe-lo em dinheiro e procurar outro patro que pague melhor ou adquirir mais bens manufaturados novamente se comprometendo com uma prxima empreitada. Na Amaznia o Mdio e Baixo Rio Negro constituem grandes reservatrios naturais de peixes ornamentais: 90% dos peixes comercializados so capturados entre a foz do rio Branco e a cidade de Santa Isabel do Rio Negro; o cardinal corresponde a 70% de toda a

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Existe uma lista do IBAMA de espcies de peixes ornamentais que podem ser capturados, comercializados e exportados (Chao, 1999). 36 So terrenos planos e baixos, prximos dos rios, que alagam na poca da cheia. Os peixes aproveitam para se alimentarem de frutas e insetos que caem dos galhos das rvores nessas reas. 37 Acontece o mesmo com a famlia dos piaabeiros que permanecem por longos perodos nos piaabais. 38 Isto vale tambm para a extrao da piaava.

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exportao.39 Esta atividade no Rio Negro remonta iniciativa pioneira de um comerciante norte-americano, Herbert Axelrod40, que transportou pela primeira vez 10 milheiros de cardinais aos Estados Unidos, em 1956. O sucesso do seu empreendimento foi to grande que ele contratou 50 pescadores, principalmente em Barcelos, e associou-se a um grande empresrio do mercado mundial de animais silvestres, Willi Schwartz. Eles pagaram em dinheiro pelo produto, no reproduzindo assim as relaes tradicionais de aviamento nem assumindo a posio de patro. O Mdio e o Baixo Rio Negro estavam entrando no processo de valorizao capitalista do exotismo amaznico, no qual a mercadoria um valor de uso eminentemente simblico destinado a prestao de um servio esttico e afetivo atravs de um consumo intangvel. Por isso, como afirma Prang (1999) o peixe ornamental ao contrrio do peixe comestvel valioso vivo. Neste momento o cardinal ingressou na comunidade cientfica sendo reconhecido como uma nova espcie de peixe e numa rede de agentes e instituies acadmicas, exportadoras e hobbystas. Axelrod ficou famoso como o descobridor de centenas de espcies de peixes ornamentais impulsionando ainda mais este setor empresarial. Apesar de atribuir o mrito ao saber dos ndios e caboclos poderamos verificar aqui um dos primeiros registros na regio de apropriao dos conhecimentos locais segundo a lgica do mercado sem beneficiar os seus depositrios. Nos anos 1960 esta atividade se tornou to importante, sendo comercializados outras
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O ento prefeito de Barcelos Valdeci Raposo (1993-1996), considerando a importncia econmica deste tipo de extrativismo animal para a regio, criou o Festival do Peixe Ornamental de Barcelos (FESPOB), para atrair turistas ao municpio, realizado anualmente na ltima semana do ms de janeiro. Inspirados no festival do Boi-Bumb de Parintins se formaram dois grupos de dana cujos nomes remetem s duas principais espcies de peixe ornamental do Rio Negro: o cardinal e o acar-disco. Foi construdo um piabdromo (designao referente ao sambdromo do Rio de Janeiro/RJ e ao bumbdromo de Parintins/AM), um estdio para apresentao dos grupos de peixes. Nos ltimos anos esta festa municipal entrou em decadncia devido ao menor incentivo dado pelo prefeito Jos Beleza (1997-2000) ao evento. A secretria municipal de turismo, Josely Macedo Bezerra, considera o festival, organizado com recursos pblicos da prefeitura, um empreendimento pblico deficitrio, pois freqentado na sua maioria por turistas mochileiros, provenientes dos municpios vizinhos, so pobres, consomem pouco, dormem nos barcos, se embriagam, brigam e depredam a cidade. Os peixes recebem verbas da prefeitura e no podem receber financiamento do MEC porque no desenvolvem nenhum projeto social. A secretria pretendia redirecionar o turismo peridico baseado em eventos para um turismo mais regular baseado na memria histrica e cultural barcelense. Neste sentido, ela pensou em construir com recursos da prefeitura um museu indgena e pediu a contribuio da ASIBA para executar tal intento. Mais adiante voltaremos a esse assunto quando falarmos da reverso do estigma tnico ligado condio indgena proporcionada com o aparecimento da ASIBA. mister salientar que o prefeito Beleza disputava a prefeitura com o ex-prefeito Valdeci Raposo nas eleies municipais de 2000 e por isso a sua negligncia diante do festival foi interpretada principalmente pelos seus adversrios polticos como um expediente para desprestigiar a grande realizao alardeada pelo candidato concorrente. Os dirigentes destas associaes de entretenimento cerraram fileiras com os candidatos de oposio ao prefeito Beleza vislumbrando dias melhores com a vitria do pai do FESPOB.

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espcies alm do cardinal, que Anildo Macedo41 mandou construir uma pequena pista de pouso, onde se localiza atualmente o aeroporto da cidade, para facilitar o transporte dos peixes ornamentais. Nas duas ltimas dcadas a economia extrativista dos peixes ornamentais cresceu gradativamente com a queda dos preos de outros produtos da floresta como a balata, a sorva e a seringa, superando atualmente inclusive o corte de piaava. Estamos diante de uma modalidade de insero da Amaznia nos circuitos globais de acumulao capitalista na qual o desenvolvimento sustentvel no apenas uma bandeira de luta motivada pelo idealismo ecolgico, mas uma estratgia de sobrevivncia econmica. Neste contexto a combinao entre mercado, produo de conhecimento, preservao ambiental e sistema de aviamento que sustenta o extrativismo de peixes ornamentais no Rio Negro fundindo o global e o local, o moderno e o tradicional, o tico e o til motivo de preocupao entre exportadores e pesquisadores. No foi casual a criao de um ncleo de pesquisas (o Projeto Piaba) em Barcelos cuja principal tarefa era investigar e propor as condies para um sistema economicamente e ecologicamente sustentvel de pesca ornamental.42 Para cumprir tal tarefa se deve atuar em trs frentes estreitamente ligadas: 1. o estudo da diversidade ictiolgica e suas condies ecolgicas de manuteno e incremento;

Este homem se tornou o maior exportador de cardinais do mundo. Membro de uma famlia tradicional de Barcelos, foi representante de um exportador italiano de peixes ornamentais em Barcelos nos anos 1960 e depois montou o seu prprio empreendimento independente de exportao (Prang, 1999). 42 O Laboratrio de Ictiologia da Universidade do Amazonas, coordenado por Ning Labbish Chao, foi criado em 1989. Durante a gesto do prefeito Valdeci Raposo o Projeto Piaba (como foi denominado posteriormente) recebeu apoio da prefeitura atravs da cesso de local e instalaes. Obteve auxlio do CNPq, da Fundao Universidade do Amazonas, do IBAMA, da Bio-Amaznia Conservation, da Associao de Criadores e Exportadores de Peixes Ornamentais do Amazonas (ACEPOAM) e de outras instituies. Atualmente o Projeto tem sua sede no prdio do antigo hospital da Misso Salesiana de Barcelos, que funcionou entre as dcadas de 1930 e 1970. Ocupa trs salas onde fica a sala de exposio permanente, contendo mais de trinta aqurios com vrias espcies da regio; o almoxarifado onde so guardados material de pesca e pesquisa, comidas artificiais de fabricao estrangeira e outros instrumentos; e a sala de educao ambiental onde podem ser encontradas muitas espcies conservadas em formol (Fonseca, 1999). O projeto serviu como intermedirio entre os piabeiros e o Estado, intervindo no campo das classificaes oficiais de uma categoria ocupacional e na regulamentao do acesso e uso a recursos naturais da floresta tropical ao cadastrar e expedir carteiras de pescadores junto ao IBAMA. Os pescadores gostaram desta atuao, pois implicou a distribuio de direitos profissionais garantidos legalmente.
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2. campanhas de educao ambiental para divulgar aspectos deste conhecimento junto populao em geral do municpio e aos piabeiros43 no sentido de gerar um consenso sobre a necessidade de preservar esta fauna aqutica; 3. propor medidas mais eficientes para diminuir a taxa de mortalidade das espcies quando so capturadas e durante seu transporte entre os locais de pesca, Barcelos e Manaus.44 4. administrar cursos e treinamentos sobre criao de peixes ornamentais em cativeiro. Podemos entender ento porque durante o I FEPOB no ano de 1994 o pioneiro exportador norte-americano Herbert Axelrod anunciou a doao de dez mil dlares ao Projeto Piaba dizendo ganhei muito dinheiro com os peixes ornamentais de Barcelos. Gostaria de devolver um pouco populao (Fonseca, 1999). A insatisfao do grupo dos patres/intermedirios com o no cumprimento do terceiro objetivo estratgico do Projeto e sua concentrao apenas na pesquisa cientfica revela a ntima associao, no realizada ainda neste caso, entre cincia e lucro nesta verso de capitalismo verde. [...] Na minha opinio o Projeto no contribuiu em nada, nem na melhoria do comrcio, da pesca ou do transporte. A mortalidade ainda grande e, para combate-la uso um antibitico conhecido por tetraciclina. Eu acho o que o projeto j deveria ter descoberto outro remdio melhor para ser usado, principalmente durante o transporte. Sei que o projeto faz pesquisas, mas no tem chegado ao meu conhecimento nenhum resultado dessas pesquisas (Patro de piaba apud Fonseca, 1999). Compradores no estavam apenas preocupados com a mortalidade como tambm com a criao de peixes ornamentais no Sudeste Asitico. Para solucionar o problema pensou-se em esterilizar os animais exportados para impedir sua reproduo em cativeiro
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Apesar da ambigidade do termo piabeiro remetendo tanto ao coletor quanto ao intemedirio que nem sempre se encaixam nas categorias de patro e fregus de outros sistemas extrativistas respectivamente mencionada por Gregory Prang (1999) eu mantenho esta designao para o extrator em contraposio ao patro ou representante de uma casa exportadora em Barcelos. Sendo assim no precisarei evitar o termo ou explicar a quem ele se refere sempre que usa-lo. 44 Foram identificadas trs causas para a mortalidade dos peixes durante o transporte: o stress provocado nos peixes durante a viagem; a quantidade excessiva de unidades colocadas nas bacias, provocando a

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fora do Brasil a partir de matrizes amaznicas. Traando um paralelo com a decadncia da extrao da borracha provocada pela plantao de seringueiras na sia, intermedirios e exportadores expressam seu desejo de ver os piabeiros criando as piabas em vez de pescando-as. Seria ainda sob o regime de aviamento? Outro filo de investimento capitalista do ambiente aqutico combinado com a pesquisa cientfica seria o ecoturismo, explorado atravs da montagem de um grande aqurio pblico no qual estariam expostas as diversas espcies da fauna ictiolgica regional. Em alguns documentos do Projeto aparece a inteno de melhorar a qualidade de vida e entender as relaes sociais nas quais est inserido o piabeiro, mas ignora o regime de aviamento como um obstculo para a consecuo de tal finalidade. O resultado desta viso a formulao de metas que visam agradar a piabeiros e compradores/exportadores como se fossem categorias portadoras de interesses convergentes, parceiros complementarmente beneficiados neste sistema extrativista. Em maro de 2001, foi criada uma associao de piabeiros45, independente da Associao de Pescadores que reunia os pescadores de peixes comestveis e de peixes ornamentais. Todavia, esta organizao civil j nasceu subordinada aos patres e exportadores que manipularam a assemblia na qual ela foi fundada. Nenhum dos membros do Conselho Fiscal piabeiro. Gregory Prang, antroplogo integrante do Projeto Piaba, reconhece as enormes desigualdades na distribuio dos rendimentos auferidos, mas a considera como remunerao proporcional aos custos diferenciados assumidos e conseqentemente ao volume e risco dos investimentos aplicados pelos diferentes agentes envolvidos nas etapas do empreendimento.46 No h dvida que tentar diminuir a distncia entre o extrator e o consumidor final extremamente difcil, porm isto no implica justificar tal estado de coisas minimizando ou at negando a sua face injusta, geradora de privaes.

contaminao da gua acmulo de fezes depositadas; e falta de oxigenao e variao da temperatura da gua (Fonseca, 1999). 45 Associao dos Pescadores e Criadores de Peixes Ornamentais do Municpio de Barcelos (APPOMB). No existem criadores de peixes ornamentais em Barcelos. 46 A diferena do preo pago pelo peixe ornamental ao revendedor varejista (U$ 2.000,00/milheiro ou U$ 2,00/peixe) nos Estados Unidos e ao piabeiro (U$ 5,00/milheiro ou U$ 0,005/peixe) no Rio Negro/Amazonas de 40.000% (Prang, 1999). Entre as duas pontas da cadeia econmica de valorizao capitalista do peixe ornamental existem mais quatro categorias de intermediao: o comprador (patro/representante), exportador (estabelecimento comercial localizado em Manaus), importador (estabelecimento comercial localizado nos pases importadores) e o atacadista (estabelecimento comercial que compra grandes quantidades de peixes e vendem para outros estabelecimentos comerciais que revendem a varejo).

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Considera o patro como imprescindvel na estrutura socioeconmica do extrativismo do peixe ornamental, sendo inclusive um fator essencial para o desenvolvimento sustentvel (economicamente vivel e ecologicamente responsvel) desta atividade.
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Constri uma

imagem idealizada do patro como aquele que promove o bem estar dos fregueses satisfazendo as demandas por bens e informaes do mundo l fora para populaes isoladas no meio da floresta. Sem este mediador poltico, social, econmico e cultural o fluxo migratrio para os centros urbanos seria muito maior. A ausncia de uma estrutura de prestao de servios pblicos bsicos (educao, sade, transporte, comunicao, justia e

Segundo seus clculos o piabeiro aufere uma renda mensal um pouco superior a um salrio mnimo. Estaria em melhores condies do que muitos outros brasileiros desempregados que moram em condies precrias nas grandes e mdias cidades brasileiras. Desta constatao conclui que o fim desta importantssima fonte alternativa de renda teria efeitos sociais e ambientais nocivos, aumentando a migrao para Manaus e a presso antrpica sobre outros recursos naturais mais vulnerveis de forma predatria. Este esforo em mostrar a contribuio social e ambiental do extrativismo da piaba provvel, mas no pode ser exagerado. Ainda no existem estudos conclusivos sobre o impacto ambiental da retirada de peixes ornamentais em grande quantidade, inclusive sobre o prprio ciclo reprodutivo das espcies e sobre possveis mudanas nos ecossistemas aquticos. Em segundo lugar existem outras fontes de subsistncia como a prpria extrao da piaava e renda para onde os atuais pescadores poderiam recorrer, inclusive algumas que so alternadamente aproveitadas por eles. Logo, a superestimao de um determinado setor da economia local subestima a versatilidade existente para transitar nas diferentes oportunidades disponveis de sustentao aos grupos domsticos, diversificando as bases de composio da receita familiar. O fato dos pescadores/agricultores usufrurem uma condio levemente superior a da grande massa de brasileiros desempregados no pode encobrir ou ofuscar a precria capacidade remunerativa nas camadas mais baixas da atual estrutura piramidal da exportao de peixes ornamentais que opera no Rio Negro. Iniciativas voltadas para a implementao de comrcio justo (sobre este conceito vide o captulo IX desta tese) entre produtores locais do terceiro mundo e consumidores residentes nas metrpoles do primeiro mundo como a comercializao de artesanato Baniwa no rio Iana e a exportao de guaran Sater-Mau para a Europa, por exemplo demonstram que possvel diminuir os intermedirios e aumentar a remunerao na base produtiva do empreendimento (agregando valor ecolgico, social e cultural ao produto), de modo a converter os ganhos auferidos em benefcio s comunidades locais envolvidas. Tudo isso obviamente no fcil, depende da reestruturao e reorientao da trama social, cultural, poltica e econmica do extrativismo da piaba atravs da formao de uma rede transnacional de cooperao na qual a Associao Indgena de Barcelos poderia ser o eixo institucional local de coordenao e articulao de apoio financeiro, assessoria profissional e participao ampla em todas as instncias decisrias dos grupos e coletividades engajadas. Gregory Prang admite parcialmente, nos seus prprios termos, a necessidade destas condies para a melhoria da situao dos piabeiros. O Projeto Piaba poderia direcionar suas conexes nacionais e internacionais com instituies de fomento e de desenvolvimento de pesquisa cientfica, exportadores, hobbystas e fundaes privadas para junto com a ASIBA e seus parceiros (FVA, IPHAN, Ncleo de Apoio da FUNAI, FIOCRUZ, Caldes Solidaria, Ncleo de Estudos Amaznicos da Catalunha/NEAC e Universidade de Barcelona) colaborar no planejamento e execuo de experincias de desenvolvimento sustentvel junto aos extratores de peixes ornamentais. Para isso o Projeto Piaba deveria rever ou renegociar algumas de suas alianas, que seus representantes insistem em negar qualquer conotao poltica enfatizando apenas sua frrea racionalidade prtica em prol da sustentabilidade do extrativismo e comercializao dos peixes ornamentais, principalmente com patres e intermedirios locais e talvez com alguns exportadores recalcitrantes diante desta nova proposta recrutando outros exportadores de menor porte que ainda no operam no Rio Negro e teriam todo interesse de penetrar neste mercado. Para tanto o Projeto Piaba teria que superar constrangimentos e determinaes transepistmicos que orientam a sua prtica de produo do conhecimento, subjacente a retrica das intenes proclamadas e a imagem pblica projetada dentro e fora da comunidade acadmica.

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desenvolvimento) e a incapacidade das redes tradicionais de parentesco e dos laos de coresidncia nos povoados e stios para proporcionar segurana e mobilidade sociais torna legtima a figura do patro e o aviamento enquanto formas locais de resoluo destas carncias. Deste modo o escambo mais adequado do que o pagamento em dinheiro, ou de salrio, pois onde ele seria gasto em lugares to afastados das praas comerciais? H uma contradio no argumento deste antroplogo, pois ele enfatiza a singularidade do extrativismo de peixes ornamentais precisamente pelo seu grau de monetarizao descaracterizando o clssico sistema amaznico de aviamento baseado no recrutamento e reteno compulsria da fora de trabalho pelo mecanismo do endividamento e, portanto, de flexibilidade e abertura nas relaes entre patro e cliente no encontrados em outras atividades extrativistas. Alm disso, a modernizao do extrativismo estaria ligada s novas tecnologias de comunicao e transporte, ampliando a autonomia dos moradores dos assentamentos mais afastados da cidade diante da circulao de informaes e bens industrializados, enfraquecendo a funo mediadora do patro. No seria ento exatamente esta possibilidade de receber o saldo em dinheiro e de transitar entre patres diferentes conforme a vontade do fregus o atrativo deste setor da economia micro-regional?48 Um elemento essencial da economia moral do aviamento no foi considerado por Prang, qual seja: a utopia da auto-suficincia do extrator subjacente a sua mobilidade espacial e a sua transversalidade ocupacional (componentes da multilocalidade), sua disposio de estabelecer mltiplos laos de interagir com estranhos redefinindo fronteiras e identidades sociais mantendo um espao considervel de manobra em todos eles. Nesta perspectiva se compreende o significado conferido s instalaes nas comunidades de televisores e antenas parablicas coletivas, equipamentos de radiofonia, motores de gerao de energia eltrica e redes de transmisso, a escola, a capela e o posto de sade: so cones prximos de autonomia e meios materiais e simblicos de aproximao e comunicao entre povoado e cidade, que so inseridos no esquema poltico-eleitoral local, paternalista e clientelista, cuja dinmica controlada pelos patres e
Tambm no extrativismo da piaava observamos mudanas no regime clssico de aviamento no sentido de um maior espao de manobra para os fregueses, principalmente os que moram na cidade de Barcelos, que passam a encarar o trabalho nos piaabais como um emprego temporrio para adquirir algum bem industrializado especfico ou mesmo um motor de embarcao. O cativeiro da dvida flexibilizado apesar do patro ainda relutar em liberar este tipo de trabalhador, ainda operar na base da permuta de produtos
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comerciantes. As embarcaes constituem um imponente instrumento de prestgio e poder e uma demanda tambm relacionada s aspiraes de autonomia dos povoados. Constitui tambm uma aspirao de autonomia individual (predominantemente familiar), expresso de ascenso social, que paradoxalmente motiva muita gente a entrar nos regimes de aviamento da piaaba ou da piaba, s vezes nos dois.49 O prefeito Beleza doou barcos para alguns povoados, todavia sem as condies de manuteno e funcionamento (consertos, troca de peas, operao adequada e combustvel) eles ficam muitas vezes encostados no porto sem utilidade. Este item pode, cabe sublinhar, ser realmente um fator de autonomia se for inserido em projetos diferenciados de desenvolvimento sustentvel das comunidades. Com seus prprios meios de locomoo fluvial, encurtando a distncia at Barcelos, as comunidades ficariam menos dependentes do patro para terem acesso a mercadorias e por outro lado poderiam receber pagamentos em dinheiro pelo seu trabalho extrativista. Prang no acredita na viabilidade de uma cooperativa de piabeiros para substituir os patres porque seus dirigentes necessitariam de capacitao e de assessoria tcnica (um nvel mnimo de escolaridade) com conhecimentos sobre as condies ambientais, sociais e culturais do extrativismo e sobre o mercado mundial de peixes ornamentais. No final das contas, a cooperativa seria constrangida a atuar como um patro. Por outro lado o patro est imerso na vida scio-cultural dos piabeiros atravs de laos de compadrio, participao em rituais e festas, auxiliando, prestando favores e provendo segurana em tempos difceis, etc; detendo por isso o respeito e a confiana deles, forjando assim compromissos permanentes e duradouros fundamentais ao engajamento dos extratores no empreendimento. Concordo parcialmente com esta descrio das relaes entre patres e fregueses, porm ela carrega muita tinta ou dgitos na cumplicidade, cooperao e

manufaturados por produtos florestais e travar com ele algum tipo de relacionamento pessoal ou mesmo de compadrio (Prximo captulo). 49 Algumas famlias possuem motores de baixa potncia (designadas como rabetas), mais baratos, que so acoplados na popa de canoas de madeira fabricadas artesanalmente. O preo de uma rabeta comprada nos piaabais em setembro de 2000 equivalia a R$ 1.900,00 (4 HP) e R$ 2.500,00 (5 HP). Estas embarcaes se deslocam lentamente, mas reduzem enormemente o esforo fsico da navegao a remo. Mesmo demorando horas ou dias, dependendo da distncia do povoado at a cidade, indgenas e ribeirinhos durante o percurso param nos povoados para pernoitarem e colocarem a conversa em dia com vizinhos mais longnquos. Cabe mencionar a ostentao de poder, riqueza e o prestgio assim angariado pelo empresrio norte-americano Fellipe Mastteler cujo investimento no turismo de selva conta com trinta lanchas superpotentes (90 HP), um barco requintado para transportar e hospedar confortavelmente turistas estrangeiros para se dedicarem pesca esportiva, sem contar um avio utilizado para o mesmo fim.

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aliana descurando do conflito, da explorao e da dominao que mostram a outra face e a ambigidade desta relao.50 O patro detm e controla as condies objetivas (principalmente, os meios de transporte fluvial) e subjetivas (conhecimento sobre o fluxo das mercadorias e domnio sobre uma rede de extratores dispersa pela sede municipal, comunidades e stios) locais de acesso ao mercado mundial do peixe ornamental; e isto lhe confere poder e prestgio no contexto social local. Alguns patres acumularam um capital suficiente e se tornaram proprietrios de estabelecimentos comerciais e de imveis (casas e fazendas) na cidade de Barcelos. O padro de vida de alguns deles muito superior ao dos seus fregueses. Gregory Prang (1999) no aborda os conflitos e tenses da relao entre patres e fregueses, a sua ambigidade e a utopia da autodeterminao do extrator. Ele no menciona a tara, cobrada tambm em outros setores do extrativismo, justificada pelos patres como uma compensao antecipada pelos peixes mortos durante o transporte para Manaus. Mas porque os riscos referentes falta de tecnologias de preservao dos animais ou at negligncia dos patres (tratamento da gua, quantidade adequada de unidades por bacia, etc) numa fase na qual o produto no est mais sob a responsabilidade do fregus devem ser pagos por ele? Existem custos e riscos (entre eles a morte de peixes at a entrega ao patro, doenas ou acidentes) com os quais eles lidam durante o trabalho de coleta que no so cobertos pelo patro. E aqueles que so cobertos como sabemos so pagos pelo extrator com a sua produo a preos absurdos.

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Da mesma forma so equivocadas as interpretaes restritas ao plano instrumental da disputa por recursos materiais e dos interesses antagnicos respectivos. No prximo captulo me dedicarei mais a este dualismo do sistema de aviamento no qual o plano comunicativo, o normativo e o instrumental esto entrelaados. As reflexes de Prang so vlidas tambm para no se deixar atrair por atitudes de cidadania herica e autoritria (orientada por uma viso romntica baseada em uma vocao pessoal uma misso concebida num idioma poltico e secular, um chamado interior, da conscincia de defesa incondicional dos fracos e oprimidos) prprias de um ativismo etnocntrico, apressado e acusatrio desprovido de uma anlise mais cuidadosa das conseqncias desastrosas da mera denncia do sistema de aviamento sem referncia viso dos sujeitos envolvidos, complexidade dos relacionamentos em foco e sem a proposio de alternativas situao existente.

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CAPTULO XII: Gentios, Tapuios e Caboclos. Migrao Indgena e Extrativismo no Baixo Rio Negro. Como os povos indgenas foram extintos ao longo de toda a margem direita do baixo rio Negro, onde se localizam Airo e Tauapessassu, e como poucas viagens realizadas nesse perodo posterior crise da borracha foram feitas por antroplogos e funcionrios do Servio de Proteo ao ndio, compreensvel que sejam raros os documentos escritos sobre o baixo curso e mais freqentes sobre o alto curso do rio Negro e seus afluentes Vaups e Iana, onde at hoje vivem vrios povos indgenas Tukano, Maku, Bar e outros.1 O Tratado de Tordesilhas, 1494, pretendeu limitar as pretenses expansionistas de outros reinos europeus no continente recm conquistado traando uma linha vertical cuja referncia no continente americano acabou sendo a foz do rio Amazonas, portanto excluindo todas as terras da sua enorme bacia fluvial do domnio portugus. No entanto, permaneceu como uma zona de disputa no apenas entre portugueses e espanhis, como tambm envolveu as pretenses holandesas, francesas e inglesas. Com a unificao ibrica nas primeiras dcadas do sculo XVII a Coroa espanhola preocupou-se em garantir suas possesses nos Andes, enquanto os portugueses efetivamente estenderam seu domnio at a Amaznia ocidental. O Tratado de Madrid, firmado em 1750, selou a conquista lusitana de grande parte da Amaznia. Isto no implicou, entretanto, o fim das disputas entre as duas potncias nas calhas dos rios Solimes e Negro, resultando na criao da Capitania de So Jos do Rio Negro, em 1757, cuja capital foi estabelecida no antigo aldeamento indgena denominado Mariu, transformado em Vila de Barcelos. A poltica de consolidao da ocupao colonial portuguesa da Bacia Amaznica frente aos interesses ingleses, franceses, holandeses e espanhis comeou no incio do sculo XVII com o estabelecimento de uma fortificao prxima ao seu esturio, em 1616, denominado Prespio, atual cidade de Belm, capital do estado do Par. A afirmao do
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poderio portugus se iniciou com a vitria sobre holandeses, ingleses e franceses no litoral amaznico para depois se internar rumo a oeste para confrontar-se com as ambies territoriais espanholas no rio Negro e no Solimes. As principais modalidades de imposio da soberania lusitana foram: as tropas de resgate, as fortificaes e as misses religiosas2, que originaram vrias cidades espalhadas pelo grande rio e seus afluentes. Foram organizadas expedies que subiram o rio Amazonas em busca das drogas do serto (cacau, baunilha, canela, cravo, salsaparrilha, razes, cascas amargas, etc.), madeiras e de escravos indgenas. O seu contingente era constitudo por alguns soldados, uns poucos sacerdotes e grande nmero de ndios flecheiros, guias, lnguas e remadores.3 Em meados do sculo XVII foram formadas as primeiras tropas de resgate que adentraram o rio Negro.4 Nos sculos XVII e XVIII a coroa portuguesa disseminou fortificaes pela bacia amaznica, junto aos quais foram fundados povoados e misses, demonstrando um claro objetivo de povoar a colnia at os seus confins mais distantes. Em 1669 foi construda a primeira fortaleza na boca do rio Negro, em local que ficou conhecido como Barra do Rio Negro, atual cidade de Manaus. Durante o sculo XVIII foram edificadas vrias fortalezas em todo o curso do rio Negro. A conquista das almas era a outra face s vezes confundindo-se com ela da subordinao militar, poltica e econmica dos povos e terras da Amaznia. Os ndios descidos para os aldeamentos missionrios e para os assentamentos coloniais ficavam sob a administrao dos sacerdotes, que disputaram com os colonos o
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A classificao dos ndios como aliados ou inimigos, ou seja, entre aqueles que contribuam e aqueles que dificultavam a imposio da soberania da Coroa portuguesa, orientou a poltica e a legislao coloniais frente aos povos indgenas, apesar de todas as suas variaes de contedo. Os primeiros eram os ndios aldeados nas misses, recrutados atravs de descimentos, para converte-los ao cristianismo e tranform-los em sditos do rei lusitano. Constituam a base do sistema de defesa militar e de sustentao econmica da colnia. Era garantida a liberdade aos ndios aldeados, porm foram criados vrios artifcios legais para favorecer formas compulsrias de utilizao da mo de obra indgena em benefcio dos colonos ou em servios e nas obras pblicas do Estado. Os descimentos eram deslocamentos de contingentes indgenas de suas aldeias assentando-os prximos de povoados e fortificaes coloniais. Os inimigos eram os povos que no estavam inseridos nos projetos da colonizao, vivendo nas suas aldeias de origem segundo suas crenas e costumes, isto , que eram avessos aos modos cristos e civilizados de existncia. Estes gentios bravos eram passveis de escravizao atravs de dois procedimentos bsicos de conquista: o resgate e a guerra justa. Esta se aplicava aos grupos indgenas que se recusavam converso ao cristianismo, impediam a propagao da F ou hostilizavam os sditos ou aliados da Coroa lusitana. O resgate justificava a escravido de ndios capturados em guerra com tribos inimigas. O cativeiro neste caso seria uma compensao pela salvao de uma vida, teria um tempo determinado e os colonos portugueses estavam obrigados a catequizar, civilizar e tratar bem os ndios resgatados (Perrone-Moiss, 1992). 3 Monteiro, 2000. 4 S entre 1651 e 1657 foram descidos cinco mil ndios do rio Negro para Belm (Freire, 1993/1994).

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controle da mo de obra indgena. Em 1757 os missionrios perderam o poder temporal sobre os ndios aldeados com a criao do Diretrio.5 No final do sculo XVII o trabalho missionrio na Bacia Amaznica foi dividido, por deciso do rei de Portugal, do seguinte modo: os jesutas ficaram com a enorme rea dos afluentes da margem direita do rio Amazonas (Xingu, Tocantins, Tapajs, Madeira) e as outras ordens ficaram com a margem esquerda. No rio Negro atuaram os mercedrios e os carmelitas. Fundaram vrios aldeamentos como: Santo Elias do Ja, Aracari, Cumaru, Mariu, So Caetano, Cabuquena, Bararu e Dari. No incio do sculo XVIII, o aldeamento dos ndios Tarum era o posto mais avanado da colonizao portuguesa no rio Negro. Em 1759, a aldeia Santo Elis do Ja foi elevada categoria de vila, com o nome de Ayro. Mas o sculo XVIII foi tambm o sculo de guerras prolongadas contra alguns povos indgenas insubmissos; entre eles estavam os Manao que, junto com os Tarum e os Bar, constitua parte da populao indgena do baixo rio Negro.6 Muitos Bar emigraram para o alto rio Negro, fugindo dessas guerras. Os Tarum ainda no aldeados, e talvez mesmo aqueles que viviam na misso carmelita de Santo Elias do Ja, subiram o rio Branco e se refugiaram na Guiana. Alguns Manao resistiram por algum tempo nas imediaes de Barcelos, mas foram massacrados e os sobreviventes foram aldeados em Airo, Moura e Barcelos (Leonardi, 1999). Ocorreu uma violenta batalha entre os Manao e os portugueses em Carvoeiro. A derrota dos Manao frente s tropas portuguesas a guerra justa foi declarada por Dom Joo V, rei de
Durante quase todo o perodo colonial a legislao oscilou seja em favor dos missionrios, principalmente dos jesutas, seja em favor dos colonos, atribuindo a uns ou a outros a administrao secular dos aldeamentos e assim o controle sobre o acesso a fora de trabalho indgena (Perrone-Moiss, 1992). No final do perodo colonial, fins do sculo XVIII, com o Diretrio pombalino, o poder temporal sobre os ndios aldeados foi retirado definitivamente dos missionrios instituindo a figura do diretor de ndios, os aldeamentos foram transformados em vilas e receberam denominaes de cidades existentes na metrpole, incentivou-se o intercasamento entre colonos e ndios, o uso e ensino da lngua portuguesa tornou-se obrigatrio e foi proibida a escravizao indgena. O objetivo era eliminar todas as barreiras existentes para a imediata transformao dos ndios aldeados em sditos da coroa portuguesa. 6 Estes povos que habitavam a regio do rio Negro pertenciam, em sua grande maioria, ao tronco [sic] lingstico Aruak. [...] Os Mano constituam o grupo tnico mais importante da rea, habitando as duas margens do baixo rio Negro, desde a foz do rio Branco at a ilha Timoni. No momento da invaso colonial pareciam estar em pleno processo de expanso territorial em direo a Oeste, espalhando-se pela regio do rio Japur. Sua populao foi estimada, j decrescida aps os violentos choques armados com os portugueses no sculo XVIII, em mais de10 mil almas. Os Tarum, visitados em 1657 pelos jesutas Francisco Veloso e Manoel Pires na primeira entrada histrica do vale do rio Negro, constituam uma tribo pequena, assentada nas proximidades da atual cidade de Manaus, nos rios Tarum e Ajurim, ambos afluentes esquerdos do baixo rio Negro. Eram conhecidos pelos ralos de mandioca que fabricavam. Os Bar dominavam a parte superior do rio Negro e ocupavam ainda uma rea vizinha aos Mano, situando-se mais acima da cidade de Moura, num territrio extenso que abarcava grande populao. Produziam bebidas fermentadas e em suas festas danavam com o corpo pintado de genipapo (Freire, 1993/1994).
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Portugal em 1728 marcou a memria da populao indgena no Baixo Rio Negro e contribui muito, ao lado das epidemias e do comrcio de escravos, para o despovoamento nesta regio. Viajantes e naturalistas registraram a crena milenarista dos ndios aldeados na volta de Ajuricaba. Em 1728 foi fundada a aldeia de Nossa Senhora da Conceio do Mariu, pelo Frei Carmelita Matias So Boa Ventura. O local chegou a ter uma populao estimada em 2.000 pessoas, de diversas origens tnicas, tais como: Werekena, Baniwa, Bar e Pass. Em 06 de maio de 1758 foi elevada Vila e recebeu o nome de Barcelos, tornando-se sede da Capitnia de So Jos do Rio Negro. O noroeste amaznico era uma fronteira colonial preocupante para a coroa portuguesa devido s atividades missionrias ligadas ao reino espanhol e s negociaes dos limites territoriais entre as duas colnias. Por outro lado, desde o incio do sculo XVIII, o circuito comercial no qual estavam engajados holandeses e grupos indgenas no alto rio Branco estendia-se at o baixo rio Negro atravs das mercadorias trazidas por aqueles indgenas aos povoados desta regio. Por este motivo implantou-se uma slida estrutura governamental, ou seja, a presena maior do Estado colonial portugus atravs da criao da capitania. Barcelos recebeu melhoramentos urbanos e incentivos econmicos, pois tambm foi escolhida como local do encontro das comisses portuguesa e espanhola de demarcao de fronteiras, instalando por dois anos o prprio governador da capitania do Gro Par e Maranho, Francisco Xavier de Mendona Furtado irmo do Marqus de Pombal , que presidia a delegao lusitana. Outras aldeias que se transformaram em vilas como Carvoeiro, Moura, Moreira, Tomar e Airo , serviram como pontos estratgicos na conquista e ocupao da Amaznia pelos colonizadores portugueses. Tomar, por exemplo, era a antiga aldeia de Bararo e tornou-se vila em 1758. Em 1757 eclodiu ali uma revolta indgena contra a presena missionria. Os revoltosos invadiram e destruram a casa do missionrio, destruram a capela e incendiaram toda a povoao. Juntaram-se a esses outros ndios, conhecidos como Poiares, que invadiram Moreira, matando um missionrio carmelita e ateando fogo igreja. Os relatos dos viajantes desta poca mencionam constantes fugas de ndios das povoaes, devido ao trabalho escravo a que estavam submetidos. Este foi um perodo em que ocorreram vrias revoltas de ndios aldeados, definidos ento como aliados. Os Waimiri-Atroari, gentios bravos, tambm constituram um duro obstculo colonizao jusante de Barcelos,

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atacando durante trs sculos (XVII, XVIII e XIX) as povoaes de Carvoeiro, de Moura e de Airo. Em contrapartida foram alvos de expedies militares que deixaram um rastro de muitas mortes neste povo. Ao estudar o processo de estagnao da antiga vila de Airo o historiador Victor Leonardi apresentou um retrato precioso da lgica autofgica da colonizao e do processo histrico de construo social do caboclo amaznico no Baixo Rio Negro. Os descimentos continuaram acontecendo durante a passagem do sculo XVIII ao XIX. Os aldeamentos do Baixo Rio Negro reuniam contingentes indgenas de vrias etnias, inclusive oriundos de outras bacias hidrogrficas. O recrutamento de ndios vindos de lugares distantes era uma estratgia dos colonos para dificultar as fugas para suas terras de origem. Entretanto, o recrutamento forado de ndios para lutar na Guerra do Paraguai motivou o esvaziamento de vrios povoados seja por causa dos jovens que no mais regressariam ou por causa do clima de terror instalado que incentivou a fuga de muitos moradores. Muitos se embrenhavam nas matas ou subiam o curso dos rios menores e igaraps, em busca de uma vida autnoma e livre (plantando, pescando, caando e extraindo os produtos da floresta). Fugiam tambm da pesada carga de explorao da fora de trabalho indgena pelos colonos, imposta mais brutalmente com o fim dos aldeamentos missionrios e a criao do Diretrio. No final do sculo XVIII, o fim do Diretrio no significou uma melhor situao para a populao indgena que era recrutada fora nos povoados e nos assentamentos mais afastados nos rios menores e igaraps para trabalhar nos servios e obras pblicas, nas empresas extrativistas dos comerciantes ou nas fazendas dos colonos. Este tipo coercitivo de mobilizao da fora de trabalho, no bojo do qual eram praticados castigos corporais aos trabalhadores indgenas, ficaram conhecidos localmente como agarraes e tiveram a cumplicidade dos diretores. A proibio de autoridades coloniais de nada adiantou para impedir esta retirada compulsria de homens e mulheres indgenas dos cuidados com as suas prprias roas e famlias. Estavam dadas as condies propicias para o engajamento de muitos moradores indgenas dos ncleos coloniais do Baixo Rio Negro na revolta dos cabanos. A decadncia das principais vilas (Airo, Moura, Carvoeiro, Barcelos, Moreira e Tomar) mesmo daquelas no envolvidas diretamente no evento , reduzidas a algumas casas de taipa e a igrejas em runas, deve-se tambm a Cabanagem, pois este movimento

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poltico prejudicou o comrcio, a navegao, o extrativismo, a produo de alimentos e o abastecimento. Em meados do sculo XIX desapareceram onze povoados em todo o curso do rio Negro: Poiares, Lamalonga, Boa Vista, Nossa Senhora de Loreto, So Jos, Castanheiro Velho, Nossa Senhora de Nazar de Curiana, So Miguel, So Jernimo, So Joo Batista do Mab e So Marcelino. Os povoados e vilas remanescentes foram os seguintes: Barra do Rio Negro, Airo, Moura, Carvoeiro, Barcelos, Moreira, Tomar, Santa Isabel, Castanheiro, Santa Brbara, Santa Ana, So Joaquim de Coani, So Felipe, Senhora da Guia e So Joo de Marabitanas. Totalizavam uma populao de 7.650 habitantes, dos quais 450 eram escravos. A implacvel represso aos cabanos aps a derrota do movimento atingiu muitos caboclos tapuias7 que se envolveram no conflito, provocando o abandono de muitos povoados e vilas. Um viajante considerou a existncia de apenas duas nicas vilas no rio Negro, Barra do Rio Negro8 e Barcelos, e ambas apresentavam condies extremamente precrias conforme os padres de vida urbana vigentes na poca. Transcrevo um trecho do testemunho deste viajante, citado pelo historiador Victor Leonardi, pelo quadro desolador por ele descrito da antiga capital da capitania do Rio Negro, qual seja: Uma pequena igreja construda de madeira j desmoronada; uma casa velha que servia de residncia ao proco; uma outra semelhante que serve para os trabalhos da Cmara Municipal; outra que tal em que reside e d aula o professor de primeiras letras, que, alm de ser provido definitivamente desamparou a cadeira e retirou para esta cidade [Manaus], e algumas mais muito ordinrias, pertencentes aos moradores daquele distrito, que me disse o respectivo vigrio, o reverendo Padre Felipe de Santiago Pinto, estarem a maior parte do ano desocupadas, porque seus donos apenas se recolhiam vila nos dias festivos do ano.9

Designao genrica conferida neste perodo aos descendentes dos antigos ndios aldeados. Em 1850, o Amazonas tornou-se provncia, separando-se do Par. Em 1856 a antiga vila da Barra do Rio Negro recebeu o nome definitivo de Manaus. Neste ano contava com uma populao de quatro mil habitantes e 243 casas, das quais a metade era construda de taipa e coberta de palha, uma praa e 16 ruas (Freire, 1993/1994). 9 Jos Henrique de Matos. Relatrio do estado de decadncia em que se encontra o Alto Amazonas. In: Revista do Instituto Histrico e Geogrfico Brasileiro. Rio de Janeiro, 1979, n 325, p. 147, apud Leonardi, 1999.
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Em cinqenta e dois anos (1790-1842) a quantidade de habitaes (fogos) em Barcelos caiu de 640 para 74. As agarraes, alm da represso aos cabanos, constituram um importante fator de deslocamento de populaes no rio Negro. Entre 1806 e 1818, o Capito de Mar e Guerra Jos Joaquim Victoria da Costa, governador da capitania do Rio Negro, levou fora um enorme contingente indgena para trabalhar nas suas propriedades em Manaus. Foi no seu governo, em 1808, que a sede da capitania foi transferida definitivamente de Barcelos para Barra do Rio Negro. Atribui-se a esta medida um grande peso para a decadncia de Barcelos.10 Este mesmo governador mandou o seu genro demolir as edificaes pblicas existentes em Barcelos, em 1818, exceto o palcio, a igreja e a provedoria. Na segunda metade do sculo XIX, porm, apareceu uma nova possibilidade de reabilitao dos precrios ncleos urbanos do Baixo Rio Negro devido introduo da navegao a vapor na Amaznia em 1854. A implantao de uma linha de transporte regular de mercadorias e pessoas de Manaus at Santa Isabel do Rio Negro impulsionou o extrativismo da piaava, do breu, da estopa, do peixe seco e da salsa. Outras atividades econmicas tambm foram beneficiadas como a fabricao de leo e de manteiga de tartaruga e a produo de lenha para as embarcaes movidas a vapor, assim como a extrao do breu e da estopa estava estreitamente relacionada com a navegao fluvial e a industrial naval. Num primeiro momento s havia uma embarcao a cada dois meses transportando cargas e passageiros. Em 1885 transitavam mensalmente pelo rio Negro cinco vapores. Com o incremento da extrao e comercializao da borracha o nmero de embarcaes movidas a vapor aumentou ainda mais. No incio do sculo XX o trfego fluvial neste rio se tornou mais intenso com a Amazon River e a firma J. G. Arajo colocaram seus barcos em operao. S no final do sculo XIX, com o ciclo da borracha, que a elite social e poltica do Baixo Rio Negro vislumbrou uma possvel recuperao econmica e demogrfica na regio. O auge desta nova frente de expanso econmica no Baixo Rio Negro foi retardado porque ela se localizou algumas dcadas atrs nos rios onde era maior a quantidade desta espcie de rvores: a Hevea brasiliensis. Os seringais no rio Negro nunca produziram tanto quanto os seringais de outros rios amaznicos (Xingu, Tapajs, Madeira, Juru, Purus e o
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Em 1791, a sede da capitania j tinha sido transferida para Barra do Rio Negro, mas retornara para Barcelos em 1799. Estes dois atos foram realizados no governo de Manuel da Gama Lobo DAlmada.

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Javari), mas foram capazes de redefinir as relaes sociais, polticas, econmicas e culturais em toda a sua extenso e ofuscar todas os outros empreendimentos extrativistas, exceto a produo de lenha devido intensificao da navegao fluvial. A composio populacional mudou drasticamente com a intensa imigrao de nordestinos (cearenses, paraibanos, etc.) que fugindo das secas calamitosas de 1877 e de 1888 forneceram a mo de obra necessria assim como os pequenos comerciantes para suprir de matria prima s casas exportadoras e ao capital financeiro ingls, ambos situados em Manaus, enfim ao mercado mundial da borracha e incipiente indstria automobilstica na Europa e nos Estados Unidos. Foi nesta poca que se implantou a rede de aviamento ligando as grandes lojas comerciais de Manaus, os comerciantes dos pequenos ncleos urbanos no rio Negro, os comerciantes menores situados nas embocaduras de afluentes e igaraps e os extrativistas. As novas condies de transporte fluvial foram fundamentais para a organizao social deste tipo especial de comrcio em que bens industrializados circulam em uma direo (sobem o rio Negro at as colocaes no meio da mata) e os produtos da floresta circulam em outra direo (descem o rio Negro at o mercado nacional e/ou mundial) seguindo uma dupla trajetria traada em uma escala vertical de posies de poder, de autoridade e de prestgio. As novas tecnologias de navegao (principalmente as mquinas de propulso, os motores) aumentam a velocidade dos deslocamentos de cargas e passageiros. O controle do fluxo de mercadorias conecta a propriedade dos barcos ao comrcio atravs de um leque variado de tipos de embarcaes, de possibilidades e saberes de navegao estreitamente ligados a posies no relacionamento entre os patres e os fregueses. Peculiaridades ecolgicas (distncia dos locais de extrao; nvel dos rios, lagos e igaraps; e ciclo produtivo) dos produtos da floresta (borracha e piaava, por exemplo) se traduzem em diferentes relaes de aviamento e em funcionalidades diversas propriedade e uso de embarcaes distintas em capacidade de carga e velocidade de deslocamento.11
Para uma anlise sobre a importncia das vias fluviais na organizao social do espao na Amaznia e suas modalidades de reproduo das relaes sociais, vide: Nogueira, 1999. Enfocar os rios e as tecnologias de navegao e transporte fluvial no implica em determinismos ecolgicos ou tecnolgicos, mas sim apreender as formas sociais de apropriao do espao e da tecnologia. Cabe destacar a questo da singularidade e das diversas modalidades de valorizao capitalista do meio aqutico, de uma renda da gua, que ainda no objeto de propriedade individual como a terra, cujos direitos de acesso aos recursos ainda so difusos e coletivos, e sua confluncia ou divergncia com outras formas sociais de uso dos rios, lagos e igaraps.
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A casa de aviamento J. G. de Arajo estendeu por vrios rios Amaznicos uma ampla malha de interdependncia comercial e poltica.12 No rio Negro foi o principal agenciador da produo e circulao do ltex, ao fornecer o volume de mercadorias imprescindvel para o funcionamento do regime de aviamento. Seu monoplio das trocas de mercadorias por produtos da floresta inclua comerciantes da Venezuela; como um tal de Rafael Calderon, de San Carlos del Rio Negro, que negociava com piaava. Muitas casas comerciais se instalaram nos principais aglomerados urbanos do Baixo Rio Negro, introduzindo novos integrantes para a elite local assim como um novo estilo de vida no qual o consumo de bens conspcuos (batons, vinhos, xcaras de porcelana, pentes de marfim, tecidos, instrumentos musicais, fogos de artifcio, espingardas e munies, etc.), vindos da capital (Manaus) dava um tom de refinamento e superioridade que marcava a distncia social entre patres e fregueses, entre civilizao e atraso. Estes sim ficavam restritos ao consumo de bens indispensveis sobrevivncia na selva (sal, acar, tabaco, caf, querosene, etc.), adquiridos por altssimos preos pagos em produtos, atolando o trabalhador em dvidas infindveis. Caboclos e nordestinos no se fala mais em Tapuias, presumivelmente diludos entre os imigrantes no tinham mais tempo para fazer roas, pescar, caar ou exercer outras atividades extrativas, devido pesada carga da extrao do ltex regido pelo endividamento e subordinado s demandas do mercado internacional. J os donos das casas comerciais de Airo, de Carvoeiro, de Moura, de Barcelos, de Tomar, de Moreira, de Santa Isabel e de Cucu tentavam imitar a vida faustosa da oligarquia manauense.13 Todavia, a categoria dos patres ou comerciantes no era
Considerando apenas os anos 1879 at 1886, a firma Arajo Rozas & Irmos, constituda em 1877 e pertencente aos irmos Jos Gonalves de Arajo Rozas e Joaquim Gonalves de Arajo alm de mais dois scios menores, tinha negcios em 16 localidades no rio Negro, 15 no rio Solimes, 6 no rio Branco, 4 no rio Madeira, 4 no rio Purus, uma no rio Maus-Au e duas na Venezuela. Em 1904 foi extinta a firma Arajo Rozas & Cia., antiga firma Arajo Rosas & Irmos, e formada a J. G. Arajo, com a sada da sociedade de Jos Rozas e ficando como principal scio Joaquim Gonalves de Arajo, que agregou ao empreendimento outros parentes portugueses. Joaquim Gonalves de Arajo era membro de uma famlia de comerciantes portugueses e foi tecendo seus contatos comerciais pelo interior desde 1871, quando fez uma viagem pelo alto rio Negro e tinha apenas quinze anos de idade. Os Gonalves Arajo, desde a chegada de seu primeiro membro em Manaus no ano de 1863, ampliaram seus empreendimentos comerciais aumentando substancialmente seu patrimnio e expandindo suas atividades atravs da incorporao de empresas, compra de imveis, navegao fluvial, exportao de produtos da floresta (castanha, borracha fina, pirarucu e sarnambi) e importao de mercadorias provenientes dos Estados Unidos (New York) e da Europa (Manchester, Liverpool, Hamburgo, Paris, Lisboa, Porto, Gnova, etc.) (Carvalho Junior, 1993/1994; e Alves, 1993/1994). 13 A populao de Manaus em 37anos cresceu extraordinariamente, passando de cinco mil habitantes em 1870 para sessenta mil habitantes em 1907. Neste perodo a cidade recebeu vultosos investimentos em urbanizao
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homognea, como atestam as diferenas no volume e no tipo de mercadorias solicitadas por eles s casas aviadoras de Manaus, na quantidade de borracha remetida, no grau de instruo e tambm no contingente de fregueses a eles submetidos. Os intermedirios locais espalhados pelos diversos rios estavam integrados em uma teia de relacionamentos personalistas, por onde circulava obrigaes e favores mtuos, cujo centro era a firma deste imigrante portugus. Joaquim Gonalves de Arajo era solicitado para cuidar de filhos de seus prepostos no interior que iam estudar na capital, enquanto estes prepostos denunciavam aqueles que negociavam seus produtos com outras firmas comerciais de Manaus. Estes compromissos de lealdade no eram apenas econmicos e J. G. Arajo controlava assim uma importante clientela poltica, arregimentando os coronis de barranco em torno de seus objetivos eleitorais, que lhe permitiu estabelecer alianas com segmentos oligrquicos da provncia do Amazonas. Com a queda progressiva dos preos da borracha no mercado internacional, a partir de 1914, e a concorrncia da produo gumfera do sudeste asitico muitos nordestinos retornaram para suas terras de origem despovoando os seringais do Baixo Rio Negro. A navegao fluvial se retraiu consideravelmente e outras alternativas econmicas, antes abandonadas ou relegadas a um segundo plano, foram retomadas, como a extrao de castanha e de piaava.14 Conforme o censo demogrfico de 1950 Barcelos era um dos menos populosos municpios do Amazonas (4.911 habitantes), sendo o mais extenso municpio amazonense e talvez de todo o Brasil.15 Moravam na sede municipal menos de mil pessoas (970 habitantes). A piaava se tornou o principal produto extrativo, estimulando o recrutamento de mo de obra nas
(rede de servios e edifcios pblicos). A oligarquia regional construiu esplendorosos palacetes, instalaram-se estabelecimentos bancrios, lojas, restaurantes, bares, cabars e hotis. Entretanto, Manaus no era um paraso urbano para todos, mas apenas para uma elite. Menos da metade das casas eram de alvenaria, o restante era composto de casebres, barraces, estncias e casas de taipa ou de madeira. Mais de 60% das casas eram de taipa nua, com cobertura de zinco ou de palha, pequenas, de cho batido e socado, localizadas prximo a charcos, igaraps, rios e alagadios, sem qualquer urbanizao, sem esgoto, periodicamente invadidas pelas guas (Freire, 1993/1994). 14 As atividades econmicas mais importantes de Barcelos, em 1956, em termos do valor da produo foram a castanha, a piaava e a borracha; com 46%, 29% e 20% do valor total da produo proveniente do extrativismo vegetal, respectivamente. Percebe-se que a borracha continuava sendo uma atividade econmica importante, porm suplantada pela extrao da castanha e da piaava (Enciclopdia dos Municpios: 114). 15 A cidade de Barcelos contava com 17 logradouros pblicos, mas apenas dois so pavimentados, arborizados e ajardinados e cinco parcialmente pavimentados. Contava tambm com 139 prdios e fornecimento de energia eltrica, que apenas atingia 16 domiclios, um templo catlico, trs colgios e um hospital (Enciclopdia dos Municpios: 113 e 114). A maioria desta populao foi classificada como pardo (4.297 ou 87%), o que nos faz acreditar que uma parcela substantiva daqueles que assim se identificaram

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comunidades indgenas do Alto Rio Negro para as colocaes dos rios Arac, Padauiri e Preto, devido escassez de trabalhadores provocada pela decadncia da extrao da borracha.16 Nos anos 1940, durante a Segunda Guerra Mundial, a extrao da seringa readquiriu um novo flego com a chegada dos soldados da borracha oriundos do Rio de Janeiro e do Nordeste. O mecanismo do endividamento se constituiu no pilar de todas as outras atividades extrativistas, inclusive a captura de peixes ornamentais que surgiu recentemente. No caso da extrao da piaava, devido a peculiaridades ecolgicas desta atividade, o regime de aviamento foi ainda mais cruel.17 Este amplo circuito de trocas e de ddivas, de dvidas e de generosidades, de favores e obrigaes, de coeres e negociaes, frustraes e esperanas, violncia e proteo, explorao e doao, desprezo e considerao, estruturase em relaes hierrquicas fundadas em duas categorias bsicas: o patro e o fregus. No estou atenuando a assimetria, a violncia e a explorao (a sua explcita gramtica da predao) do sistema de aviamento, porm se no olharmos para a simetria, a proteo e a doao como o seu reverso (a sua gramtica da ddiva subjacente), no se percebe a perspectiva dual em operao, que no se trata apenas de mercado e de interesses, mas tambm de reciprocidade e de alianas. um comrcio que se sustenta em princpios alheios lgica do mercado, em laos e compromissos duradouros e pessoais, numa economia moral que define o bom e o mau patro assim como o bom e o mau fregus. O endividamento permanente, assim como o crdito e o risco envolvido nele, no pode ser entendido num cdigo puramente econmico, pois smbolo e base de
fossem indgenas. Para uma anlise das categorias censitrias de identificao da populao indgena, vide: Oliveira Filho. 16 Eduardo Galvo constatou, em meados do sculo XX, a preferncia dos fregueses pela extrao da piaava por ser mais rentvel apesar do alto preo das mercadorias aviadas pelos patres. Mencionou tambm a vigncia de um regime cruel de explorao da fora de trabalho sublinhando os castigos corporais impostos aos fregueses, como a utilizao da chibata (Galvo, 1959). 17 Diferentemente dos outros produtos, como a seringa e a castanha cujos locais de extrao se localizam nas margens dos grandes rios, os piaabais mais produtivos situam-se nas cabeceiras dos afluentes e igaraps muito distantes dos ncleos de povoamento (povoados e cidades). A extrao da piaava pode perdurar durante todo o ano enquanto outros produtos s podem ser coletados durante o vero quando os igaps esto secos (seringa) ou durante o inverno (castanha). Sendo assim, os fregueses podem retornar para seus locais de moradia quando termina o perodo de coleta da seringa e da castanha, enquanto os piaabeiros permanecem nas colocaes cortando piaava onde estabelecem residncia definitiva devido precariedade das condies de acesso ao transporte fluvial. A dependncia ao patro muito maior como tambm a explorao e a violncia vigentes nas relaes de trabalho. O fregus aproveita a poca das chuvas para transportar em pequenas canoas as pirabas at o barraco, localizado na boca do igarap, aonde o patro periodicamente chega para pegar o produto e suprir os trabalhadores com mercadorias.

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manuteno de uma aliana entre o fregus laborioso e o patro generoso. Voltaremos a esta discusso mais adiante. Aos caboclos tapuias e sertanejos amaznicos vieram juntar-se estes nordestinos, e alguns comerciantes de outras nacionalidades (portugueses, chineses, libaneses, etc.) para selar o desaparecimento to alardeado dos povos indgenas no Baixo Rio Negro. A partir deste momento o nheengatu que era a lngua franca, falada no s pelos Tapuias, comeou a ser substitudo pelo portugus como meio de comunicao nas interaes cotidianas.18 Entretanto, Eduardo Galvo em meados do sculo XX assinala ainda a forte predominncia da lngua geral entre caboclos e ndios descidos (Galvo, 1959). Carlos Arajo de Moreira Neto (1988), renomado historiador da Amaznia, anunciou a transformao, num perodo de cem anos (1750 a 1850), da populao indgena de maioria em uma minoria de grupos tribais isolados na floresta e afastados dos centros de civilizao. Victor Leonardi (1999) inseriu sua abordagem sobre a decadncia da antiga vila de Airo nesta perspectiva da dizimao ou expulso de povos autctones deflagrada pelos sistemas coloniais predatrios de recrutamento e explorao da fora de trabalho indgena. [...] Contudo esses povos foram exterminados (Manao), ou expulsos (Tarum) da margem direita do baixo rio Negro, ou, ento, passaram por profundos processos de deculturao (Tucum, Bar), dando como resultado os tapuios, destribalizados, e, logo depois, os caboclos regionais, os quais, apesar de semelhantes aos ndios, na aparncia, no pertencem mais s culturas indgenas. [...]. (Leonardi, 1999: 197). Este longo processo histrico de construo social do caboclo no Baixo Rio Negro, constitudo de uma srie de violncias materiais e simblicas contra os povos indgenas, resultou na diluio dos tapuias (ndios genricos descendentes dos ndios aldeados nas
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O nheengatu, ou lngua geral como conhecida na regio do Rio Negro, uma lngua inventada pelos missionrios jesutas para comunicar-se mais eficientemente com os indgenas e lidar com o multilinguismo vigente. O rei de Portugal oficializou, em 1689, o nheengatu na Amaznia e determinou o seu ensino pelos missionrios, inclusive para os filhos dos colonos. Com a implantao do Diretrio em 1755 foi proibido o uso da lngua geral e tornou-se obrigatrio o ensino do portugus (Adrio, 1991).

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misses antes da criao do Diretrio)19 no seio da populao amaznica miscigenada com os migrantes nordestinos. A mistura de elementos das tradies do caboclo tapuia, do sertanejo amaznico e do imigrante nordestino resultou em um novo tipo de caboclo amaznico, eliminando quaisquer expresses culturais tangveis de diferenciao cultural. Mesmo quando se distinguem pela aparncia fsica do restante da populao local, no so considerados verdadeiramente indgenas. Excetuando-se os Waimiri-Atroari e os Yanomami, enclaves de autntica cultura amerndia, no existiriam mais povos indgenas no Baixo Rio Negro, conforme uma viso substancialista.20 Seria possvel para estes caboclos tornarem-se novamente ndios? No de um ponto de vista evolucionista e aculturativo.21 Ocorreu um processo recente de reindigenizao no Baixo Rio Negro, no qual a memria e o imaginrio intertnicos so reformulados no bojo de um movimento de construo social de demandas por cidadania amparadas em polticas de identidade, contrariando o suposto caminho inexorvel que conduz as sociedades tribais, passando por ndios genricos (aldeados, destribalizados ou tapuias), aos caboclos plenamente integrados
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O tapuio pode ser definido como membro de um grupo indgena que perdeu socialmente o domnio instrumental e normativo de sua cultura aborgine, substituindo-a por elementos de uma ou vrias outras tradies culturais, que se misturam aos traos residuais da lngua e da cultura originais. (Moreira Neto, 1988: 79). 20 No foi por mero acaso que os antroplogos e os funcionrios do SPI que viajaram pelo Rio Negro deixaram poucos registros sobre o seu curso inferior, dedicando-se a relatar exclusivamente a situao existente no seu curso superior, onde realmente existem povos indgenas em vez de caboclos. Poderamos mencionar como exceo os trabalhos da antroploga Adlia Engrcia de Oliveira sobre um povoado Baniwa do Mdio Rio Negro, porm eles dependeram de circunstncias casuais que a impossibilitaram de prosseguir sua viagem ao Alto Rio Negro, seu destino original. 21 Para a anlise das polticas etnocidas empreendidas pelos governos coloniais, imperiais e nacionais no nordeste e do processo regional de emergncia tnica vide Arruti, 1995. A formulao de homologias estruturais, que preservam as singularidades histricas, com os processos de emergncia tnica no nordeste pode ser bastante esclarecedora dos mesmos fenmenos no Baixo Rio Negro. A homologia estrutural um instrumento de ordenamento lgico de uma realidade emprica, serve para inseri-la num contexto de significado mais amplo para torn-la inteligvel sociologicamente. O mtodo de anlise comparativo fundamental neste procedimento interpretativo. No pressupe regularidades baseadas em nenhuma lgica universal, muito menos se refere a regras de variao dos fenmenos postuladas sobre estruturas mentais, sociais ou culturais inconscientes e a-histricas. No implica tambm em vinculaes histricas entre as situaes comparadas. Aproxima-se da construo Weberiana de tipos ideais, pois o resultado de operaes conceituais, derivadas de escolhas tericas e que devem ser constantemente refinadas, nos quais as semelhanas e diferenas com outros casos includos sob um ponto de vista abrangente iluminam a compreenso do objeto (construdo) em estudo. Logo, estamos longe de uma concepo empiricista de conhecimento, baseado em uma correspondncia absoluta com a realidade (seja qual for o modo como ela representada), mas como um construto do pensamento formulado com base em princpios de racionalidade cientfica, vigentes e transmitidos em uma comunidade especfica de pesquisadores (Bourdieu, 1989).

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nos setores marginalizados e atrasados da sociedade nacional como camponeses excludos dos principais fluxos polticos e econmicos do pas.22 A.C. tem 77 anos de idade, ele mora no bairro de So Francisco, na cidade de Barcelos, nasceu em Manacapuru/AM, casado com L.C., rezadora.23 Ela Bar e fala nheengatu e portugus. A histria deste casal retrata com grande riqueza o perodo posterior decadncia do extrativismo da borracha e a diversificao deste setor, as relaes entre patro e fregus e os casamentos entre arigs e caboclos. A.C. afirma que sua av era cabocla e seu av era cearense. Quando tinha quinze anos de idade um parente da sua me, que vendia frutas nas cidades situadas s margens do rio Solimes, para lev-lo a Manaus. L resolveu subir o rio Negro para coletar castanha, pois a comercializao deste produto era rentvel, carregando consigo o menino. Prometeu ao rapaz que logo voltariam para casa. Eles se ligaram a um patro chamado Augusto Lacerda, homem poderoso no rio Negro, tinha muitos fregueses, que os recrutou para trabalharem no rio Ara. O parente de A.C. foi a Manaus para trazer rancho (mantimentos para o sustento dos trabalhadores), mas no retornou mais. O patro impediu que o jovem A.C. fosse embora, pois seu pai deixou dvidas que ele deveria pagar. Ao sarem do rio Arac foram para a fazendo do patro, So Joaquim. O coronel Lacerda criou o menino como um verdadeiro pai, conforme o relato de A.C., que o chamava de arigzinho. Desde jovem trabalhou nos piaabais: essa foi a minha vida. E eu no sabia quanto ganhava. S tinha o caf, almoo e a janta. Como ele era obediente conquistou a confiana do coronel, circulava livremente na sua casa. Na fazenda havia muitos caboclos, tanto gente de fora como do rio Negro. Na sua maioria falavam a lngua geral: falavam atrasados. Estes no entravam na casa, s em horrios determinados: para tomar caf, almoar e jantar. Eu tomei liberdade. Entrava e saia como filho. E essa foi minha salvao, exclamou A.C.. Em uma ocasio o patro mandou que fizesse a sua nota,
Esta abordagem predomina na linha de estudos da mudana cultural, no Rio Negro, proposta por Eduardo Galvo em meados do sculo XX, apesar dele admitir que o processo de assimilao e destribalizao nunca completo, pois as identidades tribais persistem seja por simples inrcia cultural (incapacidade de adaptao s novas condies e apego emocional aos costumes ancenstrais) ou pela conscincia de prerrogativas legais referentes ao status jurdico de ndio que causam a discriminao no seio da sociedade regional dominante. Todavia, o destino fatal a aculturao provocada principalmente por fatores demogrficos concebida como a perda de instituies e valores autnticos, ou seja, imaculados pelas influncias do contato intercultural com a sociedade nacional (Galvo, 1959). 23 Estou preservando o anonimato do casal neste caso porque utilizo muitos aspectos privados da vida deles, alm do que no se trata aqui de personalidades pblicas na regio.
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a sua lista de mercadorias, para ir ao um castanhal no rio Ararih. O seu rancho tinha os seguintes itens: 2 kg de acar, meia barra de sabo, 1 kg de farinha, 2 kg de sal, anzol e linha de pescar e munio. Seu patro o acompanhou, e depois foram mais vinte ou trinta fregueses. O chefe da equipe era cearense e criava um menino Yanomami que fora raptado em uma aldeia. Era freqente o ataque s aldeias Yanomami para pegar crianas indgenas que eram adotadas por fregueses e at mesmo por patres. A.C. pegou malria, quando coletava castanha no rio Arirah. Foi quando conheceu o pai de sua atual esposa, o rezador Joo da Silva, um caboclo civilizado, segundo as palavras de A.C.. Ele era Venezuelano, falava castelhano e morava no Chibaru. Ele o tratou pela parte de Deus: eles preparam uma poo e do para beber com gua morna at provocar [vomitar]. Joo da Silva o levou para Cucu, no alto rio Negro, fronteira com a Venezuela, mas Augusto Lacerda exigiu o seu retorno e a palavra do patro era lei. A.C. resolveu ento casar com uma filha adotiva do patro, ela era a cozinheira da casa. Era uma cabocla do Iana, provavelmente era Baniwa, era bem civilizada. Eles tiveram dois filhos. Ela morreu devido a uma doena por ele ignorada. Aps dois anos ele se casou novamente. Esta sua segunda esposa morreu subitamente, o que o fez acreditar que tenha sido envenenada, isto , enfeitiada. Com trinta anos de idade casou-se com L.C., sua atual esposa, rezadora Bar do bairro de So Lzaro. Ela tinha quinze anos de idade e era maltratada pela cunhada, a mulher do seu irmo. A.C. a pediu em casamento ao irmo dela. O patro foi o padrinho do primeiro filho deles. A.C. trabalhou durante muitos anos para Augusto Lacerda, cortando piaava, coletando castanha, sorva, cip e borracha. A seringa era colhida nas margens do rio Negro e a piaava nos rios Arac, Demeni, Padauiri e Preto. O coronel Augusto Lacerda era um dos intermedirios de J. G. Arajo. [...] A seringa definitivamente direto nas margens do rio Negro. Piaava cortava dentro do Arac. Seringa era em Vista Alegre, propriedade do chefe do rio Negro, J. G. Arajo, l em cima. Ele era grande empresrio do rio Negro, governava todo o rio Negro; comerciante. Aquela casa era muito forte, aviava o rio Negro todinho. Levava mercadoria de Manaus e despachava l [em Santa Isabel]. Dos aviados passava para a mo dos fregueses. Agora, o patro media cada com a

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sua parte[igarap], piaava. [...] Da costa de Vista Alegre pra c [para baixo], tanto de um lado como de outro, tudo era do coronel, que era propriedade de J. G. de Arajo, grande homem do rio Negro. Ele aviava o rio Negro inteiro. Essa rea era do coronel Augusto Lacerda. Ele mandava tudinho. Mandava aqui em Barcelos. Era tempo que mandava na cidade. Tinha o coronel Albino Pereira, Antonio Silva, eles que mandavam. A maioria do povo desses homens era caboclo. S o coronel Augusto Lacerda que trabalhava com uns 60 a 70 homens de fora (cearenses, paraibanos, pernambucanos...). Mas a parte maior era do Alto Rio Negro, caboclos de l. Do Iana, Caiari... Eles iam diretamente buscar esse povo l. Falavam l com os tuxaua deles, traziam 40, 50 pessoas. Botavam pra dentro dos piaabais junto com os arig, como chamavam agente, brabos. Os caboclos falavam lngua geral e aprenderam o portugus para falar com os arig. E estes aprenderam a lngua geral (Entrevista com A.C.).24 As categorias de caboclo e de arig ou brabos estabelecem uma ntida linha de demarcao entre os fregueses oriundos do Alto Rio Negro e imigrantes nordestinos ou amaznicos. Muito provavelmente estes fregueses do Iana e do Caiari (rio Vaups) aprenderam no s o portugus, mas tambm a lngua geral neste contato com gente de fora e com os Bar. A oligarquia local era formada por estes coronis que organizavam a produo extrativista na base do regime de aviamento que os conectava com as casas comerciais de Manaus. Confirmamos no relato acima o monoplio de J. G. de Arajo no rio Negro. Neste perodo, anos 1930 e 1940, os produtos negociados eram mais diversificados. A fora de trabalho era parcialmente constituda de imigrantes (nordestinos ou de outros lugares da Amaznia), mas era na sua maioria constituda de caboclos do Alto Rio Negro. Os patres iam pessoalmente negociar o recrutamento destes fregueses nas aldeias. Com a 2 Guerra Mundial a borracha readquiriu a importncia que tinha algumas dcadas atrs na
Um senhor Tuyuca, morador da comunidade Samama, no rio Demeni, foi trazido pelo patro Ludovico, junto com mais quinze parentes (Tukano e Desana), de Pari-Cachoeira para trabalhar no extrativismo (piaava, sorva, seringa, castanha) no Baixo Rio Negro. Eles cortavam piaava no igarap Peixe-Boi, ficavam l expostos a doenas e sem remdios. Aqueles que morriam eram enterrados enrolados em redes. O patro prometeu que os levaria de volta para o Alto Rio Negro, mas no cumpriu. Alguns conseguiram retornar por sua prpria conta e outros no. Este senhor fala as lnguas tuyuca, tukano, barasana, miranha e nheengatu.
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economia do Baixo Rio Negro. Foi em 1942 que A.C. comeou a cortar seringa. No sabia trabalhar, se esforava muito e produzia pouco. Cortava 400 seringueiras para tirar um galo (cinco litros) de ltex. Um compadre caboclo lhe ensinou e ele passou a coletar 80 kg de borracha e 70 kg de sernambi. Entre 1945 e 1947 o patro passou a exigir mais dos fregueses, dizia que tinham que aumentar a produo, pois no podiam perder nenhum dia da semana, eram os soldados da borracha. Eram obrigados a cortar no mnimo 300 madeiras (seringueiras) por dia, para tirar trs ou quatro gales (16 litros ou uma lata), considerando que algumas seringueiras rendem e outras menos. Trabalhavam das 4 horas da manh at s 18 horas quando acabavam de defumar. Interrompiam o trabalho s 11 horas para almoar. A.C. produzia 1.200 a 1.500 kg de borracha em seis meses. Seus dois filhos pequenos j o ajudavam. Ele e seus filhos cortavam uma estrada de 400 a 500 rvores por dia, tirava uma lata e meia do produto. Entre duas e trs horas da tarde cortavam madeira para fazer a fumaa e defumar. Trabalhavam a semana toda e no segundo domingo deveriam estar na casa do patro entregando o ltex. A famlia de A.C. levava 15, 20, 22 latas na embarcao a remo. Quem produzisse pouco (4 ou 5 latas) era acusado de vender o produto para outros, rompendo o monoplio do patro. A partir de 1945 a concorrncia aumentou com a entrada dos regates. Eles vinham de Manaus. Antes era s a casa de J. G. Arajo. No regato se pagava em dinheiro ou em mercadorias, conforme a vontade do fregus. A.C. era leal ao coronel Augusto Lacerda: no gostava de ouvir grito. Esta lealdade estava misturada com o medo de ser envergonhado, humilhado pelo patro. A sua honra estava em jogo: [...] Por outro lado doutor, o patro ajudava o caboclo a viver. Mas no sabia o que era dinheiro. Sabia o que era mercadoria [...] (A.C., entrevista). Seus filhos cresceram coletando seringa e quando ficaram rapazes queriam ser pagos em dinheiro, pois desejavam ir para festas, comprar perfumes, roupas, passear, se divertir. A.C. relutou no incio, a fidelidade ao patro falava mais forte na sua conscincia, e ele advertia os filhos: Mas o homem no d dinheiro, meu filho. Pra que tu quer dinheiro, rapaz. Tem tudo aqui. O que falta aqui? A lojona est a de cima a baixo. A.C. acabou cedendo aos apelos dos filhos e autorizou que eles vendessem uma pequena parte da produo aos regates. Os tempos eram outros, os regates representavam

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uma brecha no rgido controle sobre a produo extrativista, e os pais comeavam a ver na escolarizao uma outra perspectiva de futuro para os seus filhos. A que o povo foi mantendo outro sistema de viver. Ficando mais liberto. Tambm todo mundo j sabia estudar. Meus filhos pelo menos j eram rapazes, j sabiam ler e escrever. [...]. Com todo a minha pobreza eu jogava eles pro internato. (A.C., entrevista). Os filhos em idade escolar ingressaram no internato salesiano em Santa Isabel do Rio Negro. Sua esposa L.C. morou durante oito anos com o filho e a filha caulas em Santa Isabel para eles continuarem seus estudos. Depois A.C. foi morar com sua famlia no stio Janauari, a duas horas de distncia de Santa Isabel, onde viveram durante trinta anos. Mudaram de residncia para a cidade de Barcelos por causa de uma enfermidade de L.C. e do assassinato de um dos seus filhos em Santa Isabel. A.C. aposentou-se pelo FUNRURAL (Fundo de Amparo ao Trabalhador Rural) em Santa Isabel, por invalidez. Conseguiu uma outra aposentadoria como soldado da borracha em Barcelos, na poca em que o prefeito era Valdeci Raposo (1992-1996). A maioria absoluta (74%) dos chefes de famlia indgenas25 da cidade de Barcelos descendente (filhos ou netos) daqueles caboclos do Alto Rio Negro (rios Vaups, Tiqui, Papuri, Iana, Aiari, Xi e alto rio Negro) que foram recrutados pelos patres para trabalhar no extrativismo sob o regime de aviamento (Vide os grficos abaixo). Suas histrias de vida so marcadas por constantes deslocamentos por colocaes, stios, povoados e cidades do rio Negro, evidenciando uma memria biogrfica cujas referncias so as experincias vivenciadas no sistema extrativista regional. Antigos patres subiam o rio Negro e traziam jovens solteiros ou casados, acompanhados ou no das suas famlias e parentes mais prximos, para trabalhar nos seringais, castanhais, piaabais, sorvais, balatais, etc. Depois de trabalharem por um perodo, dependendo da boa vontade do patro, retornavam para suas comunidades ou stios no Alto Rio Negro at serem recrutados novamente para outra empreitada. Nessas constantes idas e vindas alguns se estabeleceram definitivamente no
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Estou considerando como chefe de famlia indgena o homem ou mulher que preencheu o formulrio de associado da ASIBA.

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Mdio ou no Baixo Rio Negro, para ficar mais prximo dos locais de extrao, na medida em que esta atividade constituiu-se em principal, ou at exclusiva, atividade econmica de sustentao da famlia. Outros patres impuseram coercitivamente a permanncia definitiva do extrativista atravs do mecanismo do endividamento, assim como o monoplio da comercializao dos produtos da floresta: [...] S que naquele ano conta no acabava no. No acabava de jeito nenhum. Podia trabalhar o ano inteiro, dois anos, conta ficava (Morador Baniwa do bairro da Aparecida, entrevista).

Municpio de Origem dos Chefes de Famlia Indgenas da cidade de Barcelos. 26% 28%

46%

Barcelos

S. Isabel

S. Gabriel

Grfico 12.

Municpio de Origem dos Chefes de Famlia Indgenas por Etnia. Bar

35 30 25 20 15 10 5 0

Baniwa Tucano Desana Cubeu Piratapuia Tuyuca Tariana Arapao Yanomami

Barcelos

S. Isabel

S. Gabriel

Grfico 13

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Vrios moradores indgenas do bairro da Aparecida26, na cidade de Barcelos, me disseram que seus pais ou avs deixaram suas moradias nos rios Iana, Vaups, Tiqui, Papuri e alto rio Negro; e vieram cortar piaava, coletar sorva, borracha e castanha nas empresas dos patres Joaquim Ugarte, Hamilton Ugarte, Antonio da Silva, Augusto Lacerda, Isack, o velho Marat, Adolfo Padro, Joo da Lapa, etc. Alguns destes moradores Baniwa nasceram em stios prximos de colocaes situadas nos igaraps do rio Preto. Quando um patro vendia as suas colocaes a outro patro ele transferia tambm o seu contingente de fregueses a ele submetido. Hamilton Ugarte, depois que seu pai Joaquim Ugarte morreu, vendeu suas colocaes no rio Malalah para o velho Marat. Os fregueses de Hamilton passaram a dever a Marat e trabalhar para ele. Os filhos herdavam as dvidas dos pais quando estes morriam, ou seja, os laos e compromissos de subordinao entre patro e fregus atravessavam geraes. Um senhor Baniwa, de 54 anos de idade, que nasceu na comunidade de Camissa, um pouco abaixo da boca do rio Xi, no alto rio Negro, quando tinha 15 anos de idade foi obrigado a assumir a dvida (vinte contos de rs) contrada pelo seu falecido pai com o patro Adolfo Padro. Foi ento coletar sorva, seringa e castanha no rio Jurubaxi. Se o fregus no atendesse as expectativas do patro recebia veementes advertncias e punies, inclusive castigos corporais. Uma senhora relatou que quando seu marido coletava seringa para Hamilton Ugarte foi grosseiramente advertido por ele (ralhava com ele) porque vendia sernambi aos regates. Um patro tomava as mercadorias mais apreciadas (rdio, motor, etc) de um fregus e dava para outro. O velho Marat tinha dez arig s para dar surra, at de terado, em quem no quisesse trabalhar (Morador Baniwa do bairro Aparecida, entrevista). Podemos observar aqui a base emprica da identificao entre as categorias de arig e de brabo. Joaquim Ugarte e o velho Marat no permitiam a seus fregueses retornarem aos seus locais de origem enquanto no pagassem suas dvidas. Pela lgica do aviamento era muito difcil adquirir um saldo, mas nem todos os patres agiam da mesma maneira neste aspecto e nem todos os fregueses eram tratados igualmente.

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Alguns falam as lnguas nheengatu e baniwa, outros falam o nheengatu e s entendem o baniwa e outros s entendem o nheengatu e o baniwa. Quanto aos filhos em geral s entendem o nheengatu, e alguns poucos falam tambm esta lngua. Alguns no lembravam em qual lugar no rio Iana seus pais tinham nascido, ou porque saram de l com pouca idade ou porque j nasceram no Mdio ou no Baixo Rio Negro.

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Trabalhei com o finado Joaquim [Ugarte], sempre tirava algum saldinho na mo dele. Da fui embora com Francisco Carvalho, patro bom. A passei para o finado [Antonio] Morais. Tambm no era ruim no, s se o cara no trabalhasse. Agora, Marat no, pode trabalhar como for, mas... (Morador Baniwa do bairro da Aparecida, entrevista). De forma que o produto no pode combinar com... a mercadoria mais cara que o produto. A gente pode trabalhar o ano todo e nunca paga a conta. porque a gente no tem condio de pagar a conta. O patro no ajuda. Ao invs de ajudar acaba com o fregus. (Morador Baniwa do bairro da Aparecida, entrevista). O mau patro, portanto, aquele que nunca deixa acabar a conta, nunca faz saldo com ele, berra muito com o fregus, como tambm aquele que fornece poucas mercadorias para o fregus, sempre deixa ficar sem farinha, sabo, sal, sem tudo.27 O bom fregus aquele que produz muito e consome pouco, no preguioso, tambm aquele que respeita o monoplio comercial exercido pelo patro. Tinha muita gente com dvida porque no sabia regular, no sabia economizar. O que o patro levava eles iam n. Passavam bem porque o patro levava de tudo. No faziam roa, o patro levava farinha. Pescavam para comer, mas no caavam (Morador Tukano do bairro da Aparecida, entrevista). Depende muito do fregus. Tem fregus que vai para pagar a conta e tirar saldo e tem fregus que vai s para comer e dormir, a difcil ele pagar a conta dele. Voc avia um fregus geralmente para um ms... Tem fregus como esse rapaz aqui ele bate quatro, cinco toneladas por ms com a famlia dele. Qual a tendncia dele? pagar a conta e tirar saldo. Mas tem uns que compram uma tonelada de piaaba, que o rancho dele, ele come aquilo e passa o ms todo trabalhando e
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Adlia Engrcia de Oliveira (1979) apresenta vrios depoimentos de moradores Baniwa da comunidade So Joo, no Mdio Rio Negro, nos quais se destacam suas experincias no extrativismo, que confirmam tais representaes sobre o aviamento e a tica que lhe subjacente.

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entrega 200, 300 Kg. Acaba o rancho, ele j quer outro rancho. A tendncia a conta s... ela nunca diminui, s aumenta (Patro que atua no rio Preto, entrevista). As expectativas das duas categorias bsicas de agentes do regime de aviamento so antagnicas. O mau patro rompe com um modelo de reciprocidade idealizado pelo fregus indgena em que ele seria o provedor de bens industrializados em abundncia, mas ao mesmo tempo coerente com uma tica na qual o fregus deve retribuir com grandes quantidades de produtos da floresta. O patro ao enfatizar a unilateralidade da dvida nega a possibilidade de transformar o aviamento em um ciclo de prestaes e contra-prestaes (baseado nos atos ao mesmo tempo voluntrios e obrigatrios de dar, receber e retribuir), pois a dvida como um elemento imanente da ddiva agonstica (que garante sua continuidade) torna as posies de credor e devedor constantemente intercambiveis entre os parceiros envolvidos.28 O saldo neste modelo no retira o fregus da relao, mas ao contrrio o insere nela segundo a lgica arriscada da ddiva, sem as garantias oferecidas pela lgica do interesse e da obrigao. O carter paradoxal do regime de aviamento no qual laos de lealdade e dependncia pessoal so selados no idioma impessoal das trocas comerciais e as interaes entre as pessoas esto embebidas no fluxo de objetos pode ser compreendido melhor nesta tenso estrutural entre lgicas distintas de ao que coexistem: a instrumental, a normativa e a comunicativa. claro que h uma sobre-determinao da primeira e da segunda sobre a terceira. A ambigidade da figura do patro que oscila entre o aliado e o inimigo, o parente e o estranho, a famlia e o mercado, a proteo e a predao, a doao e a explorao, a generosidade e o terror, a comunho e o contrato29 e o complexo simbolismo30 expresso nas representaes dos atores
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Esta interpretao sobre a lgica dual do aviamento est baseada na abordagem sobre o paradigma da ddiva desenvolvida por Allain Caill e por J.T. Godbout (Caill, 1998 e Godbout, 1998). Eles compreendem a ddiva como um modelo universal de sociabilidade, contraposto aos modelos orientados pelo interesse (mercado) e pela coero (Estado), que pode assim ser encontrado sob formas modernas (nas quais se amplia acentuadamente a esfera de aproximao, de lealdade e de engajamento com estranhos), tais como a doao de rgos ou a circulao de bens e servios nas redes transnacionais de solidariedade e de ajuda humanitrias. A ddiva considerada tambm como uma alternativa ao individualismo e ao holismo metodolgicos vigentes nas cincias sociais. 29 Estas noes no se referem a oposies complementares que contribuiriam para a reproduo de uma totalidade, ao modo de um funcionalismo durkheimiano ou de um estruturalismo levi-straussiano, mas a oscilao entre polaridades semnticas, formuladas para conferir um ordenamento lgico a um conjunto paradoxal e dinmico de prticas e representaes.

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envolvidos no podem ser adequadamente interpretados seno como uma modalidade muito especial de (i)mobilizao da fora de trabalho, na qual a acumulao capitalista se articula com a economia moral do extrativismo no bojo da qual h negociaes e disputas sobre as fronteiras do humano (Taussig, 1993).31 Um outro tipo de migrantes indgenas (26%) (Grfico 1) constitudo por aqueles que vieram de comunidades e stios do Alto Rio Negro, em geral residindo durante algum tempo em So Gabriel da Cachoeira e algumas vezes at em outras cidades amaznicas, seja para morar em comunidades e stios do Baixo Rio Negro e depois se estabelecendo na cidade de Barcelos. Este grupo formado por imigrantes de primeira gerao oriundos predominantemente (50%) do rio Vaups, do rio Papuri e do rio Tiqui, ou seja, pertencentes a etnias de fala Tukano (Tukano, Desana, Tariana, Piratapuia, Apao e Tuyuca) (Grfico abaixo). Alguns migraram h mais tempo e outros mais recentemente. Obviamente existem casos que no se encaixam nestes dois tipos acima mencionados (os outros 50%), como o de uma moradora Tukano do bairro da Aparecida, casada com um branco, que fala o nheengatu e no o tukano, cujos pais moravam no rio Papuri e se fixaram no Mdio Rio Negro para extrair piaava no rio Preto, subordinados ao patro Policarpo Braga. Depois seus pais retornaram para o rio Papuri, mas o patro os recrutou novamente e eles se tornaram fregueses de outro patro, o Isack. A principal motivao alegada para migrao dos pais a escassez de alimentos: [...] As pessoas comiam l no Papuri maniuara, sava, at mesmo essas lagartas do pau. Ento ele no quis os filhos comendo aquelas coisas [...] (Moradora Tukano do bairro Aparecida, entrevista).32 Cabe mencionar tambm algumas famlias Baniwa que migraram para o Baixo Rio Negro mais
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As operaes e dinmicas simblicas do regime de aviamento no podem remeter, pelas mesmas razes, ao conceito de ideologia que pressupe a idia de falsa conscincia, seja na sua verso instrumentalista ou normativa, logo um dualismo entre representao e realidade. Trata-se de um campo semntico no qual as relaes sociais constitutivas do aviamento se fundam e no qual ocorrem as lutas e disputas pela definio do real. 31 Vide no prximo captulo as conexes simblicas do patro e do branco com outras figuras de alteridade como o curupira e os encantados. 32 Como j vimos em captulos anteriores, concepes sobre a construo social e corporal da pessoa atravs da dieta alimentar comida de gente podem mudar numa situao intertnica onde a indianidade associada s noes de selvageria, atraso e misria. Como veremos no prximo captulo a ingesto destas espcies de formigas considerada, em uma narrativa mtica sobre o Dono do Alimento (Barbosa & Garcia, 2000), uma chancela de humanidade. Um morador Tariana do bairro So Sebastio, entretanto, descreveu a coleta de maniuaras como uma tarefa eminentemente feminina um componente na formao das identidades de gnero ligada a situaes em que a mulher no dispe de homens para pescar, seja por causa de viuvez ou viagem do marido.

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recentemente. Eles falam as lnguas Baniwa e Curripaco e so estigmatizados como ianeiros, situados em um patamar elevado de alteridade, considerados perigosos e detentores de poderes extraordinrios, como os matis ou maquiritares, ou como pajs que estragam, que jogam malefcios. Em geral, so mais retrados, lacnicos e desconfiados diante de estranhos, o que muito provavelmente refora a imagem formada em torno deles.33 Alguns membros dessas famlias pertencem ao cl Hohodene e so provenientes da comunidade Pupunha-Rupit, rio Iana.

Municpio de Origem dos Chefes de Famlia Indgena por Grupo tnico.


50 40 30 20 10 0 Barcelos e S. Isabel Bar Baniwa 10 15

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So Gabriel Tukano

Obs: A categoria Tukano engloba outras etnias provenientes da bacia do rio Vaups.

Grfico 14. So, portanto, dois fluxos de deslocamento sustentados por motivaes e contextos histricos diferentes: num deles o eixo o extrativismo diversificado posterior ao perodo ureo da borracha e no outro a busca pelo acesso a equipamentos e servios urbanos (sade, educao, emprego, sistema de gua e esgoto, fornecimento de energia eltrica, transporte, comunicao, etc) durante as ltimas dcadas. Estas duas correntes migratrias correspondem a experincias coletivas distintas de contato intertnico, sobrepostas s diferentes experincias individuais. Alguns destes migrantes de primeira gerao tambm adentraram no regime de aviamento do extrativismo, porm no Alto Rio Negro e na
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A antroploga Adlia de Oliveira tambm observou este temperamento entre os Baniwa residentes na comunidade de Nazar, rio Iana (Oliveira, 1979).

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Colmbia durante a infncia ou adolescncia, que no durou por toda a vida, ou mesmo j nas colocaes do Baixo Rio Negro. Para os migrantes de segunda ou terceira gerao morar na cidade de Barcelos significou libertar-se do cativeiro da dvida. A mudana de residncia para a cidade de Barcelos significou uma libertao do cativeiro da dvida, passando a ter como principais atividades econmicas de reproduo do grupo domstico a agricultura e o artesanato, algumas vezes complementada com pequenos rendimentos provenientes de aposentarias adquiridas junto ao FUNRURAL ou FUNAI.34 Estabeleceram suas roas nas margens da estrada que liga Barcelos ao rio Caurs ou em stios, onde esto situadas suas casas de farinha, prximos a cidade. Deslocam-se para os seus stios em canoas movidas a remo ou por motores de popa de baixa potncia (rabetinhas de 4, 5 ou 6 hp). Os produtos agrcolas (mandioca, milho, cana, banana, abacaxi) so destinados predominantemente ao consumo domstico, sendo algum excedente de farinha de mandioca comercializado para auferir alguma renda familiar. Uma outra alternativa de renda a fabricao de peas artesanais (balaio, peneira, tup, abano, tipiti...) que so vendidas para a Associao de Artesos de Novo Airo (AANA), alm da produo para uso domstico. Mesmo nos casos em que no houve completa ruptura, as relaes do fregus com o patro se modificaram, tornando o extrativismo uma alternativa econmica adicional s outras fontes de sustentao acima mencionadas. Nesta situao o espao de manobra do trabalhador quanto s condies de entrada e sada do sistema se amplia, inclusive considerando a possibilidade de denunciar privaes e injustias junto a instituies oficiais ou civis (Promotoria Pblica, FUNAI e ASIBA mais recentemente). Um morador Bar do bairro da Aparecida (60 anos de idade) obteve a permisso do patro Rui Macedo (genro de Adolfo Padro), em 1985, para estabelecer uma roa no seu terreno situado no lugar chamado Tocandira, prximo da cidade de Barcelos, e como pagamento foi coletar sorva no rio Quiuini para ele. Quando a sorva tornou-se um produto invivel comercialmente foi cortar piaava no alto rio Arac, pois contrara uma dvida de R$ 1.500,00 juntamente com seu irmo, referente ao uso agrcola de uma parte do terreno do patro. Ficou sete meses no rio Arac cortando piaava e conseguiu pagar a dvida e ainda
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A demarcao da T.I. Yanomami, em 1992, contribuiu para o abandono de muitos indgenas do extrativismo, pois impossibilitou a extrao de piaava no alto rio Padauiri. Os patres impedidos de atuarem naquela parcela do territrio indgena deslocaram suas atividades para outros rios e igaraps ou simplesmente abandonaram a empresa.

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tirar um saldo de R$ 276,00. Rui Macedo no lhe pagou, entretanto, dizendo-lhe que ele ainda estava em dbito e no poderia sair do piaabal sem pagar a conta. Esta uma prtica muito comum deste patro: no paga o saldo aos seus fregueses. De todo modo, este senhor Bar h dois anos no corta mais piaava e est pagando a sua roa com farinha, que o patro avia aos seus fregueses, alm de cuidarem do terreno de Rui Macedo. Merece destaque um outro caso no qual moradores indgenas da cidade recorrem ao sistema de aviamento para adquirir bens industrializados (eletrodomsticos) para a casa e um motor de popa para melhorar os meios de navegao fluvial da famlia. Um senhor Baniwa de 54 anos de idade, morador do bairro da Aparecida35, no cortava piaava h trinta anos quando um dos seus filhos, no inverno de 2000, lhe comunicou: Papai, o meu padrinho deu um fogo para eu dar para minha me. Eu vou pagar na piaava. Seu pai respondeu: Ah, meu filho, tu no conhece nem piaabeiro. Nunca voc trabalhou. Vai ficar muito difcil. Este senhor resolveu ento ajudar o seu filho, que tem 20 anos de idade, acompanhando-o ao piaabal de Rui Macedo, no igarap Cabeudo, no rio Arac para lhe ensinar a trabalhar. Sua esposa decidiu ir junto. Chegando l seguiram para o barraco do patro. Ele despachou os outros fregueses. Na ltima viagem o patro falou que no tinha mais gasolina e mandou que aquele senhor Baniwa ficasse na corda (nome de uma colocao), pois havia muita piaava l. S encontraram algumas piaabeiras depois de dois
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Os seus pais desceram o rio Iana ele no soube dizer o nome dos locais de origem deles para extrair seringa, sorva, castanha no rio Jurubaxi, no Mdio Rio Negro. O patro era Adolfo Padro que os estabeleceu no lugar chamado Camissa, no alto rio Negro. Ele os trazia e levava de volta ao alto rio Negro, at que resolveram fixar-se no Jurubaxi e fizeram um stio. Este morador indgena do bairro da Aparecida trabalhou muitos anos para este patro, assim como seus pais, e quando Adolfo Padro morreu tornou-se fregus do seu genro, Rui Macedo, para quem cortava piaava nos rios Marie, Darah, Preto e Arac. No rio Anau coletou castanha e balata. Ele no fala a lngua baniwa, s entende, mas fala a lngua nheengatu. Sua esposa Bar, fala o nheengatu, e seus filhos tambm falam esta lngua. Este senhor Baniwa deixou o rio Jurubaxi, onde morava, e transferiu sua residncia para uma fazenda de Rui Macedo chamada Tocandira. Durante dez anos ele plantou mandioca e fez farinha para abastecer o barraco do patro: Chegava da empresa e mandava o motor ir l pegar a farinha. Levava para o pessoal dele [os fregueses]. Moravam vrias famlias nesta fazenda, mas atualmente no mora mais ningum, s o zelador. Resolveu morar na cidade de Barcelos, onde tem vrios parentes, por causa do estudo dos filhos. Conseguiu o terreno da sua casa com o presidente do bairro da Aparecida, irmo da atual secretria municipal de educao, mas a propriedade da COMARA. O forno de torrar farinha foi doado pelo prefeito Jos Beleza, mas a produo s para o consumo domstico, no comercializa. A base de sustentao da sua famlia a agricultura e sua roa est localiza em um igarap a mais de uma hora de canoa.

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dias de caminhada. Cortaram 240 Kg de piaava, nove pacotes em nove dias. Entregaram aquela pequena produo e se aviaram mais um pouco. De l foram para a tristeza, outra colocao. Trabalharam durante quinze dias e extraram 44 pacotes, mas perderam nove cabeas (pacotes) quando a embarcao em que estavam afundou. Entregaram 35 pacotes ou 330 Kg de piaava somente. Resolveu trabalhar por mais algum tempo para comprar uma televiso. Seus dois filhos ficaram com ele e decidiram encomendar ao patro um motor de popa Yamaha de 8 hp. O patro prometeu um motor melhor, de 15 hp. Subiram o igarap no motor (15 hp) de Rui Macedo. Fizeram uma barraquinha. Cortaram 40 pacotes de piaava. O chefe da equipe sugeriu que fosse para o igarap Grande, onde tinha mais peixe para se alimentarem. Produziram 60 pacotes (uma tonelada e 60 Kg). O patro chegou ento para pegar a produo. Eles ficaram com o chefe. Subiram o igarap mais um pouco, at chegarem em outra barraca, e encontraram uma ponta de piaava bonita. Esta colocao foi uma descoberta deles, no pertencia ao patro. Produziram mais 34 pacotes, completando 94 pacotes de piaava. Desceram para o barraco e perguntaram a Rui Macedo pelo motor prometido por ele. Poxa, meu compadre, ainda no deu para comprar o motor. Sabe que eu tenho conta para pagar. Respondeu o patro. Aquele senhor Baniwa e seus dois filhos discutiram com Rui Macedo. J tinham transcorrido seis meses desde que saram de casa. Voltaram ento para a cidade de Barcelos. O patro ficou furioso quando soube que eles foram embora, disse que eles ainda tinham conta [dvida] grande. Em Barcelos, Rui Macedo apresentou o peso da produo destes fregueses, 90 pacotes ou 2.020 Kg, todavia o montante verdadeiro da produo em seis meses foi cinco toneladas. O fregus Baniwa ficou devendo ainda R$ 400,00. O dbito foi reduzido para R$ 350,00 devido a um saldo anterior ainda no pago a ele. Ao ser solicitado a entregar a conta (o registro escrito da contabilidade referente aos valores da piaava entregue e das mercadorias adquiridas) Rui Macedo relutou, mas cedeu e reduziu a dvida para R$ 245,00. O seu compadre indgena queria mostrar a conta para seus filhos conferirem, pois eles sabiam ler e escrever. Fica claro aqui um dos motivos por que os indgenas valorizam tanto a instruo escolar dos seus filhos. A aquisio de um fogo deflagrou uma cadeia de aes e tomadas de deciso que lanou novamente toda uma famlia nas relaes sociais do endividamento, evidenciando algumas estratgias de

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manipulao dos sonhos de consumo dos extrativistas acionadas pelo patro para arregimentar um contingente de trabalhadores, inserindo-os esporadicamente ao regime de aviamento. O idioma da afinidade (compadrio) utilizada nesta relao situa o patro na posio liminar entre o aliado e o inimigo, o prximo e o distante, o parente e o estranho, o protetor e o predador. O vnculo de dependncia pessoal entre patro e fregus transcende o mero plano econmico do extrativismo, pressupe a possibilidade de sua contnua reatualizao sob modalidades distintas, inclusive no espao social urbano.36 Para aqueles que residem na cidade, onde a escassez de emprego crnica, o extrativismo encarado como uma alternativa de renda, ou seja, como uma das poucas modalidades disponveis de aquisio de bens industrializados, destinados ao uso individual ou familiar. Um morador Desana do bairro da Aparecida, tem 67 anos de idade e casado com uma senhora Tukano, comprou os utenslios, mveis e eletrodomsticos da sua casa com a ajuda dos filhos que cortam piaava no rio Arac. Esse que trabalha aqui [na cidade] no d pra ele comprar as coisas, s d pra ele comprar comida. Agora at que ns j recebemos dinheiro. Dava pra gente viver a vida. [...] Eles no acostumam mais viver aqui [os filhos piaabeiros], diz que tem demais carapan, tem que comprar comida, aqui no tem emprego. Pra l no. Mata, caa porco e anta, a gente come. Eles no gostam de morar aqui. Eles gostam mais do piaabal. Pra l diz que mais fcil pra comer: a gente mata, caa, come. Aqui s com dinheiro, a gente compra pra comer [Morador Desana do bairro da Aparecida, Barcelos, entrevista]. Este senhor Desana nasceu em Taracu, no rio Vaups, Alto Rio Negro, e baixou para trabalhar na extrao da piaava. Morava em uma ilha em frente comunidade de Tapereira, no Mdio Rio Negro, onde ainda tem roa. rezador e mora a oito anos na cidade de Barcelos. Ele e sua esposa so aposentados pela FUNAI e pelo FUNRURAL respectivamente. Tem roa no igarap Taiana, uma hora a remo no inverno e mais de duas horas no vero: o stio fica l pro centro. Um dos seus filhos leciona na escola da
Nesta perspectiva podemos entender melhor a permanncia deste sistema de penhora de pessoas no Baixo Rio Negro em novas atividades extrativistas como a captura e comercializao de peixes ornamentais.
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comunidade Baturit, outro trabalha na olaria em Barcelos e outros trs filhos cortam piaava. Eles moram no igarap, no rio Arac, prximo dos piaabais. Vo cidade uma vez por ano, permanecendo um ms em visita aos pais. No cultivam nada, o patro leva a farinha alm de outros itens de alimentao, higiene, vesturio... que so aviados. Como vimos no depoimento transcrito acima, eles preferem a dependncia ao patro no meio da floresta dependncia do dinheiro para viver na cidade. Neste caso, o extrativismo sob o sistema de aviamento apreendido pelos fregueses como uma opo de emprego: no recebem salrio nem h contrato formal de trabalho, a explorao da fora de trabalho ainda acentuada, mas h uma relativa autonomia e maior margem de negociao face aos laos tradicionais de sujeio ao patro. A percepo desta diferena na economia moral do aviamento foi expressa em termos temporais, confrontando um passado de sujeio a um presente de autonomia: Naquele tempo a gente s subia [retornava para o Alto Rio Negro] quando o patro quisesse. No como hoje em dia, a gente j mais ou menos procura o caminho da gente do patro (Morador Baniwa do bairro Aparecida, entrevista). Cabe destacar alguns elementos no caso descrito acima que auxiliam no entendimento desta nova situao: jovens indgenas que ingressam voluntariamente e tardiamente no aviamento (no faz parte de suas experincias de vida desde o nascimento); possuem algum nvel de escolarizao (estudaram da 1 a 4 srie nas escolas das comunidades, nem sempre concluindo esta fase elementar, sabem ler e escrever pelo menos), podendo, portanto, conferir as notas apresentadas pelo patro e controlar despesas; a residncia dos pais ou de outros parentes na cidade como uma base de apoio no caso do fregus abandonar as colocaes mesmo sem a permisso do patro e a existncia de instituies para reclamar contra privaes, violncias e injustias. Para ilustrar com mais um exemplo menciono o caso de um morador Baniwa do bairro da Aparecida que abandonou a empresa de piaava de Edson Marat no Malalah (rio Ara), considerado um dos patres mais tiranos e agressivos da regio, deixando toda a sua produo no barraco, aproveitando um convite da irm para passear na cidade de Barcelos e se estabelecendo definitivamente na casa dela. Edson Marat quando soube que ele havia baixado com sua famlia sem sua autorizao mandou prende-lo, juntamente com seu irmo. Joo Mineiro, funcionrio do ncleo local da FUNAI, intercedeu a seu favor advertindo o patro que o caboclo no voltaria mais ao piaabal porque ele no tinha

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mais dvida. importante notar, contudo, que a dvida como uma forma de reteno compulsria da fora de trabalho no foi questionada. De todo modo, este senhor Baniwa foi obrigado a retornar duas vezes trabalhando durante um ms na primeira ocasio e por dois meses na segunda com toda a famlia ao Malalah para pagar a conta que o patro alegava ainda existir. Desde que foi morar na cidade de Barcelos, h dez anos, no corta mais piaava, passando o sustento da famlia a depender principalmente da agricultura. No incio, morou com sua famlia na casa da irm que depois cedeu parte do seu terreno para ele construir sua casa. Tem uma roa no igarap Taiana, onde sua irm tambm tem roa, subindo o seu curso, o terreno no tem dono. Utiliza o forno da irm para fazer farinha e tapioca, cujo excedente vende. Fabrica peas de artesanato somente para o consumo domstico. Antes de morar em Barcelos este senhor Baniwa no conhecia esta cidade nem Santa Isabel do Rio Negro, pois os fregueses eram proibidos de passear na cidade, se fossem eram presos. Ainda tem parentes, todos Baniwa, trabalhando para Edson Marat: Eles tm medo do patro, dele mandar prender ou dar surra neles. Ele manda pegar o cara pra ele bater, manda os fregueses dele mesmo [Morador Baniwa de Barcelos, entrevista]. Muitos extrativistas ainda vivem e trabalham nestas condies nos altos cursos dos rios e igaraps onde se localizam as colocaes de piaava. Muitos no tm carteira de identidade, nem certido de nascimento, apenas o ttulo de eleitor. Em perodos de eleies descem para Barcelos ou Santa Isabel junto com o patro para votar nos candidatos por ele indicados. Durante as entrevista que eu fiz com moradores do bairro da Aparecida relataram-me um caso em que dois irmos Baniwa foram presos porque fugiram das colocaes de piaava de Edson Marat. O patro teve a colaborao de policiais militares e a anuncia do delegado de Barcelos. Os dois fregueses adquiriram uma rabetinha (por R$ 160,00), trabalharam durante vrios meses e no conseguiram quitar a dvida. Edson Marat confiscou a rabeta e mandou prender os dois. Depois de liberados foram obrigados a voltar ao piaabal. Um deles estava doente e morreu no meio do caminho. mais precria, portanto, a situao daqueles fregueses que moram em stios prximos das colocaes e constituem uma reserva de mo de obra permanente e cativa ao regime de aviamento por estreitos laos de dependncia e subordinao ao patro. A dedicao de famlias inteiras ao extrativismo exclusiva e total; no h comunidades, nem geradores de energia eltrica,

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nem equipamentos de radiofonia, nem antenas parablicas e tvs coletivas, nem escolas e nem sequer atendimento mdico. Paradoxalmente o regime de aviamento uma porta de entrada ao mundo civilizado (representado emblematicamente pela afluncia de bens industrializados) que afasta os homens de outros smbolos prximos de modernidade e joga-os no universo perigoso da selva. Tais foras potencialmente malficas, porm, podem ser domesticadas assim como a prpria voracidade do patro por produtos da floresta.

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311 CAPTULO XIII. Figuras de alteridade, mediadores e estratgias para entrar e sair da indianidade e da civilizao: o campo semntico da etnicidade no Baixo Rio Negro. Ns podemos considerar o Baixo Rio Negro como uma zona fronteiria, no sentido atribudo por Ulf Hannerz (1997), como um lugar entre lugares, formado pela sobreposio de fluxos de significados e formas culturais, por diferentes provncias de sentido, mltiplos referenciais simblicos disposio dos sujeitos nas operaes cognitivas cotidianas de apreenso do mundo. Cidade e interior, civilizado e indgena, moderno e tradicional, global e local so categorias que se mesclam de modo a tornar estril qualquer tentativa de estabelecer fronteiras rgidas e ntidas entre os universos de ao e atribuio de identidades.1 Com a ampliao do uso de novos meios de transporte e comunicao se tornou mais intensa a circulao de pessoas, objetos e signos. claro que isto ocorreu em toda a regio do rio Negro, mas este processo acentuou a vocao do baixo como ponto de encontro de movimentos migratrios oriundos de diversas localidades amaznicas e at de outras regies do Brasil. Eduardo Galvo (1959) expressou espacialmente o processo de aculturao dos povos amerndios do seguinte modo: o mundo indgena representado pelas aldeias do Alto Rio Negro e o civilizado representado pela vida urbana de Manaus. E no meio do caminho... [...] Entre a cidade de Manaus e as malocas do alto Rio Negro, vive uma sociedade cabocla, mestia de ndios e brancos. As comunidades tribais que no sculo XVII ocupavam toda a extenso do rio, foram, em grande parte, dizimadas ou absorvidas pelos colonizadores. Os remanescentes de vrias tribos, antes
Esta abordagem difere, portanto, da definio do Rio Negro como uma regio de fronteira apresentada por Eduardo Galvo no sentido de [...] uma rea onde ainda se processa um encontro de culturas, e a emergncia de uma nova sociedade mestia e campesina (Galvo, 1959: 7), formando um ethos regional caracterizado pela combinao de elementos culturais indgenas e modernos definidos previamente, em vez de construdos e reformulados pelos sujeitos em processos de identificao social. Esta perspectiva pode ser encontrada em anlises posteriores sobre a realidade intertnica do Rio Negro, como nos trabalhos de Oliveira (1979) e de Adrio (1991), por exemplo. Quero deixar claro que isto no implica em diminuir o valor de suas contribuies para a compreenso da complexa realidade do Rio Negro. Tanto Engrcia de Oliveira quanto Denise Adrio fizeram as primeiras etnografias sobre os caboclos indgenas do Mdio e do Baixo Rio Negro respectivamente, constituindo-os como objetos dignos de investigao antropolgica. Talvez tenha sido Adrio quem chamou a ateno pela primeira vez para o processo de reemergncia tnica na Amaznia, quando os trabalhos sobre o tema tambm estavam se desenvolvendo no nordeste onde se consolidaram.
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312 numerosas, somam hoje pouco mais de trs mil ndios, localizados em sua maioria nos rios Iana e Uaups, ou para o interior das margens do Negro, a montante do rio Branco. Essa populao indgena, pela convivncia e pela mesclagem com o colono, imprimiu sua marca na moderna sociedade cabocla (Galvo, 1959: 4). Temos uma realidade mais difcil de enquadrar pelas classificaes do senso comum, uma sociedade mestia e campesina, definida negativamente pelo cruzamento entre o que ela deixou de ser e pelo que ainda no . Na topografia imaginria das relaes intertnicas no alto a cultura, as tradies, esto mais preservadas a partir da referncia a elementos emblemticos de autenticidade como o caxiri e o dabucuri e l o ponto focal da memria (histrica e mtica) coletiva. O alto o centro carismtico da indianidade rio negrina; l est concentrado o campo de mediao indigenista e indgena (rgos governamentais, entidades de apoio, ONGs ambientalistas, sanitrias, organizaes indgenas e terras demarcadas, etc.), como tambm o missionrio. Quanto mais se desce o rio mar menor a institucionalizao de direitos baseados em movimentos e polticas de identidade tnica conectados em circuitos polticos transnacionais, menos a tradio e a ancestralidade so modernamente defendidas na esfera pblica local. Se num extremo temos a tenacidade cultural e a resistncia tnica, no outro temos a perda das tradies autnticas e genunas, a assimilao passiva ao mundo civilizado. Durante muito tempo e at muito recentemente tais dicotomias formaram os pressupostos implcitos das aes e representaes de diversas categorias de agentes do campo intertnico local. A emergncia tnica no Baixo Rio Negro subverteu tal esquema de classificao do real. Mas o alto tambm definido localmente como um lugar de escassez de peixes, terras frteis e mulheres; em contraposio imagem de fartura do baixo. Esta a motivao simblica e material dos deslocamentos populacionais jusante do principal eixo fluvial. Por outro lado, a cidade de Barcelos atualmente o principal paradigma da vontade indgena de acesso civilizao, aos confortos e vantagens da vida urbana, sociedade da afluncia, ao consumo de cones prximos de modernidade, de contato e comunicao com a alteridade. Mas tambm o cenrio de um forte impulso coletivo de reafirmao tnica; incentivado e gerido atravs de formas associativas de organizao de demandas coletivas (culturais, polticas, econmicas, sanitrias, educacionais, etc.), de

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313 reconstruo de laos de parentesco, de aliana e vizinhana, de uma sociabilidade pluritnica; enfim, de criao de um modo especfico de insero no tecido social citadino. Quanto mais se urbaniza, mais a cidade torna-se indgena; isto , mais esta sociabilidade adquire visibilidade pblica, sai da penumbra a que estava relegada inclusive atravs de tentativas de cooptao pela elite poltica local. No baixo rio Negro as relaes sociais so forjadas sob o signo da ambigidade e da mistura o que fez com que a categoria de caboclo oscilasse entre a indianidade e a civilidade, ou at fundisse as duas quando equivalente noo de ndio civilizado , abrindo um amplo leque de possibilidades para a inovao cultural. Um dos melhores exemplos deste fenmeno proporcionado pela rede de pajs e rezadores, atravs da qual uma complexa economia simblica da alteridade permeia a periferia dos espaos urbanos e modernos rio negrinos. J existem alguns estudos sobre a importncia dos pajs e dos rezadores enquanto elemento de um universo teraputico alternativo medicina ocidental na cidade de So Gabriel da Cachoeira (Souza Santos, 1991 e Menezes Bastos, 1991). Tambm se apontou a relevncia das acusaes de feitiaria e dos conflitos internos s comunidades como fatores de motivao, entre outros, dos deslocamentos tanto pelo interior quanto para as cidades (Brandhuber, 1999). O meu objetivo abordar a pajelana (ou o xamanismo, se quisermos utilizar um termo mais recorrente na antropologia) como o eixo da ontologia tnica no bojo da qual os sujeitos concebem e interagem com as categorias de Outros relevantes, definindo assim crculos cujos limites so circunstancialmente estabelecidos de incluso e excluso sociais. Cabe lembrar que estamos tratando de esquemas e disposies mentais incorporados nos processos cotidianos de socializao, de uma conscincia prtica do Self e do mundo; em contraposio s prticas e estratgias representacionais de construo do Self e do mundo vinculados a uma atitude cultivada e reflexiva de dilogo com diferentes provncias de significado, de polticas de identidade inseridas em contextos de interlocuo cultural assimtricos (Kapferer, 1989; Hannerz, 1992). Neste sentido, a pajelana coloca em foco o registro simblico do contato intertnico no mbito dos procedimentos de fabricao social do corpo e de relacionamento com outras figuras de alteridade, alm dos brancos (Albert, 1992). Nesta abordagem fenmenos tnicos no se restringem a prticas conscientes de construo de identidades em contextos de demanda por direitos ou bens materiais; e, por

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314 outro lado, no se limitam anlise das relaes com o mundo dos brancos, muitas vezes enfatizando a artificialidade dos conjuntos identitrios assim estabelecidos. Esta uma nova verso da dicotomia estabelecida entre relaes intertribais e intertnicas, entre um domnio onde impera a lgica comunicativa ou normativa da cultura e outro onde predomina a lgica instrumental ou pragmtica da poltica. De um lado temos prticas e representaes consideradas autnticas, verdadeiras expresses inconscientes do ethos de um povo, da sua essncia, em contraposio quelas concebidas como artificiais, como manipulaes conscientes de sujeitos movidos por interesses e demandas materiais. A etnicidade opera tanto na esfera ontolgica quanto ideolgica de construo social e simblica das experincias do Self e do Alter; um fenmeno tanto cultural como poltico de comunicao com diversas categorias de Outros. O xam um personagem estratgico na confeco de alianas com agentes supra-humanos, na tarefa de domesticao de poderes potencialmente destrutivos. Por isso deve dominar os esquemas de convivncia com foras csmicas perigosas, para tecer novamente as condies de uma sociabilidade rompida entre humanos e no-humanos. As formas cotidianas de vida e de organizao social so periodicamente reinventadas no bojo destas engrenagens mimticas de negociao da realidade com subjetividades outras que so os rituais e os tabus alimentares e sexuais.2 O ativista indgena, por seu turno, transita entre universos semnticos concebidos como distintos; e o associativismo e as assemblias indgenas podem ser vistos como cenrios onde operam mecanismos de comunicao e domesticao/localizao de foras globais oriundas do mundo dos brancos. A identidade ao mesmo tempo aproximao e distanciamento, mistura e separao (tanto simblica como material), diante de Outros significativos.3

O carter mimtico dos rituais remete a uma potica (poesis, um fazer, um poder criativo), enquanto mobilizao de uma essncia comum, e das possibilidades que ela encerra (Turner, 1993). Os procedimentos simblicos, constitudos de encenaes de dramas cujos personagens so animais, no podem ser compreendidos como meras representaes de um passado mtico inacessvel e periodicamente trazido memria, mas como tcnicas de comunicao com um mundo intersubjetivo primordial de seres que viabilizam assumir o ponto de vista de outras corporalidades objetivas. no campo de uma economia simblica da alteridade (cujo prottipo so os grandes animais predadores) que a linha demarcatria entre humanos e no-humanos se retrai e se expande circunstancialmente e relacionalmente, evidenciando um srio problema existencial, qual seja: a necessidade da comunicao com o Outro para a constituio de Si Mesmo frente possibilidade de ser plenamente absorvido por Ele. 3 O consumo da modernidade ansiosamente perseguido por povos indgenas aponta para uma vontade de absorver o poder ameaador do Outro e convert-lo em fora restauradora dos princpios ontolgicos culturalmente definidos. Parecer fisicamente com o Outro, em alguns casos at aderir sua lngua e s suas

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315 Os xams so abordados como especialistas na arte da metamorfose, em transitar pelas fronteiras das diversas configuraes do ser, reformulando o imaginrio do contato, articulando significados multireferenciados atravs de inusitadas combinaes. No cabe distinguir previamente nesta viso os elementos indgenas dos catlicos, os tradicionais dos modernos, os internos dos externos, os genunos dos deturpados, os originais dos assimilados.4 O xam (pajs e rezadores) cosmopolita no nvel ontolgico do campo semntico da etnicidade, enquanto o ativista indgena cosmopolita no nvel ideolgico. Ambas as figuras so tradutores, esto abertas para outros horizontes (corporais e mentais) de compreenso do mundo (Carneiro da Cunha, 1998). A tarefa de ambos intervir nestes espaos intersubjetivos, repletos de perigo e de foras potencialmente destrutivas, em benefcio da sua coletividade de origem. Da provm a credibilidade, o reconhecimento social, dos dois. No exerccio do seu ofcio de conectar o local com foras globais ou csmicas, ambos correm o risco extremo de transformar-se definitivamente no Outro (brancos ou encantados e outros espritos malficos da floresta). Estas duas esferas de poder e conhecimento imbricam-se em determinados contextos. Em torno dos encantados, matis, maquiritares, curupiras e brancos, foras perigosas e potencialmente destrutivas com as quais os humanos interagem, emergem representaes sobre o passado e o presente, sobre tradio e modernidade, indianidade e civilizao, cuja dinmica de articulao configura as categorias espaciais interdependentes de floresta, aldeia ou maloca, povoado ou comunidade e cidade no imaginrio intertnico regional. Em sociedades complexas, como definida por Barth (1989), os fluxos de significados e processos sociais nos quais os sujeitos fabricam simbolicamente a realidade geram combinaes imprevistas, inovadoras, variadas e at contraditrias de elementos concebidos como oriundos de tradies distintas. A coerncia das representaes elaborada pelos prprios sujeitos, condicionados pelos seus pertencimentos coletivos e pelas suas trajetrias biogrficas, nos seus empreendimentos cognitivos para dar sentido s situaes especficas de interao. Pajs e rezadores so
crenas religiosas, indicam estratgias comunicativas (e no s instrumentais) e no se ope a afirmao (dinmica e complexa) da viso de mundo nativa (Friedman, 1994). 4 Estas divises so teoricamente relevantes na medida em que so as ferramentas cognitivas dos prprios agentes para mapear os cenrios de interao no qual esto engajados e no como instrumentos do pesquisador para impor uma interpretao da realidade sem um mnimo de relativizao das suas noes.

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316 especialistas na arte da metamorfose (Viveiros de Castro, 1996), cultivam habilidades para transitar pelas fronteiras das diversas configuraes do ser, reformulando o imaginrio do contato, articulando significados multi-referenciados atravs de inusitadas combinaes. No cabe distinguir previamente nesta viso os elementos indgenas dos catlicos, os tradicionais dos modernos, os internos dos externos, os genunos dos deturpados, os originais dos assimilados.5 Pajs, rezadores eu diria tambm os ativistas indgenas so tradutores, esto abertos para outros horizontes (corporais e mentais) de apreenso do mundo (Carneiro da Cunha, 1998 e Brunelli, 1996). A tarefa de ambos intervir nestes espaos intersubjetivos, repletos de perigo e de foras potencialmente destrutivas, em benefcio da sua coletividade de origem6. Da provm o reconhecimento social de tais mediadores. No imaginrio intertnico regional compartilhado inclusive por no-indgenas a mata, os rios, os lagos e os igaraps so habitados por foras malfazejas (curupiras, espritos dos mortos e encantados) e humanos dotados de poderes sobrenaturais e ameaadores (matis e maquiritares), tornando necessria uma srie de cuidados especiais no manejo dos recursos naturais e no trato com os viventes. O homem precisa controlar os meios adequados de comunicao e relacionamento com estes seres potencialmente predadores, causadores de doenas e morte. As rezas e os benzimentos so mecanismos de proteo que servem para domesticar, acalmar, entabular um dilogo com os senhores das matas, dos rios e dos lagos, a fim de transformar poderes ameaadores em benefcios para os humanos. Ns sabemos tambm que conforme as nossas tradies, ns sabemos que a natureza tem suas leis, a gua tem suas leis, o ar tem suas leis, o mato tem suas leis, suas normas, os lagos, os rios. Muitas vezes ns abusamos essas leis e atramos esses tipos de doenas. Por que esses espritos donos dessas leis se aborrecem, porque abusamos estas leis. A d o castigo na pessoa. Por exemplo, quando a gente vai no mato tem certas normas, certas leis que a gente deve
Estas divises so teoricamente relevantes na medida em que so as ferramentas cognitivas dos prprios agentes para mapear os cenrios de interao no qual esto engajados e no como instrumentos do pesquisador para impor uma interpretao da realidade sem um mnimo de relativizao das suas noes. 6 Gow (1991) compreende a figura do professor indgena a partir dos paradigmas de poder e conhecimento que configuram a figura do xam entre os Piro do Baixo Urubamba.
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317 obedecer, e se a gente bobear ou no cumprir as normas da natureza, do mato, o esprito do mato fica brabo, ele bota doena na gente. Por exemplo, antes de ir no mato tem que manter o seu corpo assim bastante puro, no ter contatos sexuais, no procurar comer coisas frias, no esquentadas, tambm ter um pensamento melhor, no ir atrs de estragar as coisas, de matar animais toa. A gente tem que pensar estou indo no mato atrs de uma caa pra alimentar a famlia, por necessidade. Ento o esprito percebe que a pessoa vai com boa inteno, no acontece nada. Agora, ns falhamos muitas vezes, queimamos muita comida, quer dizer assando, e solta aquele cheiro de queimado (suja o ambiente) e o esprito no gosta desse tipo de cheiro, a aparece curupira, porque ele fica brabo, ele no gosta desse cheiro, abusivo pra ele (Morador Tariana do bairro de So Sebastio, cidade de Barcelos, entrevista). O curupira no propriamente um guardio da floresta pelo menos no no sentido ambientalista vulgar recorrente nos registros folclricos deste personagem , ele zela por um patrimnio que no um bem da humanidade, mas sim da supra-humanidade. A moderao, o controle de si, um valor muito recorrente em vrias situaes sociais de contato com alteridades. Cabe lembrar a tica do fregus que condena aqueles trabalhadores que no sabem regular o seu consumo, ampliando assim a dvida com o patro. As leis que vigoram na mata no so naturais, so convencionadas e sancionadas por estes espritos encantados. Existe todo um conjunto de condutas padronizadas, uma etiqueta, composto de aes e interdies, estratgias de aproximao ou de relativizao da diferena para evitar os ataques destes seres. Em contraposio, o Outro representado pelo excesso, pela incapacidade de conter sentimentos violentos, ficar brabo. Todo tipo de interveno na floresta um risco, pois se deve respeitar certas regras e procedimentos estabelecidos por eles para no ofender tais interlocutores invisveis deixando-os brabos. Os extrativistas estabelecem relaes muito delicadas, que requerem habilidades de relacionamento, com os donos dos produtos da floresta (curupiras e encantados) e de bens industrializados (os patres), cones locais da selvageria e da civilizao, com os quais ele

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318 deve negociar. O curupira tambm chamado de me da seringa.7 Um senhor Baniwa relatou uma histria em que encontrou um curupira quando ainda era criana e j trabalhava na extrao da borracha. O curupira estava cortando seringa e ficou com pena dele ao ver a explorao a que estava submetido sob as ordens do patro: Ele estava com pena de mim porque viu aquele cara estava judiando de mim, mandando cortar... Ele queria conversar comigo, mas eu no tinha coragem, era criana n (Morador Baniwa do bairro de Aparecida, entrevista). O fregus, portanto, fica sob a mira de duas perspectivas opostas, a do patro que quer mais produtos e a dos curupiras e encantados que so ciosos dos seus pertences.8
Num registro simblico diferente os Tukano, do lado colombiano do rio Papuri, situam os seringalistas em uma categoria cosmolgica de alteridade absoluta, um esprito da selva e demnio canibal chamado Kusir (um neologismo nativo oriundo da palavra espanhola cauchero), que usa utenslios e roupas ocidentais. Esta figura provoca grande temor e faz os "ndios" se enclausurarem nas malocas ou fugirem para a selva como acontecia quando os caucheros chegavam. Este ser tambm est associado ao rio, para onde ele chama os Tukano amedrontados diante da possibilidade de encontr-lo. No registro mtico e ritual Tukano um sacerdote catlico expulsa esta terrvel criatura, obrigando-a a abandonar a regio do rio Papuri. Podemos perceber aqui o entrelaamento complexo e dinmico entre conscincia mtica e histrica, pois os missionrios colocaramse, em diversos momentos, contra os sistemas de recrutamento compulsrio da fora de trabalho indgena. O auge do extrativismo da borracha o ponto focal em vrias representaes indgenas sobre o contato intertnico na Amaznia. O terror e a violncia praticados pelos seringalistas (assim como as mercadorias controladas pelo patro e pelos comerciantes) foram compreendidos atravs das categorias mticas e do aparato ritual disponvel e modificados nos distintos contextos histricos e scio-culturais (Jackson, 1984). No Mdio Solimes, em diversas verses do mito do Navio Encantado/Cobra Grande, o rio o mundo privilegiado de alteridades, povoado por seres espirituais antropofgicos e, ao mesmo tempo, a via de conexo com os agentes e objetos da civilizao e do terror. As metamorfoses que envolvem artefatos, animais e espritos apontam para os constantes intercmbios entre estes domnios ontolgicos; possibilitados pela pajelana. O paj, xam ou feiticeiro o detentor do conhecimento dos mistrios do fundo e no acesso ao mundo dos encantados; poderes extraordinrios que lhe distinguem dos outros indivduos comuns. Os bens manufaturados controlados pelos brancos e a violncia inerente s instituies do barraco e da dvida esto entrelaados com os poderes mgicos que criaram a sociedade de fronteira. O fascnio pelas mercadorias reside no domnio necessrio de uma linguagem misteriosa de signos para sua aquisio nas trocas monetarizadas do sistema de aviamento. A correlao entre o barco de mercadorias e a Cobra Grande alude dimenso sobrenatural e aos poderes mgicos atribudos ao patro, tornando-o capaz de controlar o acesso ao mercado. H uma identificao entre os mundos dos brancos e dos mortos, o reino dos encantados composto por imagens referentes a escurido da noite, ao mundo submerso e subterrneo, a profundidade das guas e a toda uma simbologia da morte. A lgica das metamorfoses opera tanto na aquisio de poderes mgicos para transitar no mundo dos mortos quanto para explicar o controle dos brancos sobre os meios de violncia e as fontes de aquisio de mercadorias (Faulhauber, 1998). 8 Em uma histria relatada por dois Tariana do cl Kabana-idakena-yanapere, registrada em um dos livros da coleo Narradores Indgenas, o curupira bebe o leite das seringueiras extrado pelos fregueses no lugar chamado Lago de Prata, jusante da cidade de Barcelos, onde moram os curupiras. O patro cearense desistiu de trabalhar naquele local. Outro patro branco levou fregueses Desana do rio Papuri porque eles conheciam benzimentos. O curupira assumiu a forma do patro e chupou as entranhas de um fregus Desana, deixando apenas o couro e os ossos, soprando em seguida dentro do corpo dele. O Desana voltou a sua casa, estava cambaleando como se estivesse embriagado, e acusou o seu patro de t-lo maltratado. O patro explicou que no tinha feito nada e que o curupira agira tomando a sua aparncia, decidindo ento abandonar aquele lugar tambm (Barbosa & Garcia, 2000). Cabe salientar esta possibilidade de um patro branco ser um curupira disfarado para sugar as entranhas dos fregueses indgenas, explorando-os at acabar com todas as
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319 No muito difcil em Barcelos coletar histrias sobre encontros com curupira, seja de algum que presenciou pessoalmente os acontecimentos narrados ou porque ouviu de terceiros. Mesmo entre aqueles que nunca o viram no h dvidas sobre a existncia dele, inclusive muitos jovens engajados no extrativismo. O curupira descrito como uma criatura extraordinria, inserido em uma economia simblica da alteridade que o aproxima de outras figuras dotadas da capacidade de transitar entre formas corporais e universos cognitivos estranhos como os animais, os pajs, as almas pecadoras e os brancos. A sua aparncia a de um homem peludo e alto, cujos ps so virados para trs, gentiso. Um senhor Baniwa me disse que a metade do seu corpo preta e a outra metade branca. Existem benzimentos para se proteger dele cujo conhecimento no monoplio dos pajs. Um morador Tariana do bairro So Sebastio narrou uma histria na qual um homem branco e alto, parecido a um alemo, se transforma (veste a capa) em curupira e enganado por um ndio, de pele escura e baixa estatura. Temos aqui os prottipos do branco e do ndio, ambos definidos por categorias fsicas opostas: Porque ns indgenas, como dizem os brancos, somos pequenininhos comparando com os outros; que tem os brancos grandes, alemes, por exemplo. O curupira capturava alguns cabeudos (uma espcie local de quelnio) num lago quando deixou a sua roupa de esprito-animal pendurada no galho de uma rvore. O ndio ao ver aquela capa a roubou e ao vesti-la transformou-se no curupira. Em seguida fez um buraco na cabea do homem branco, o verdadeiro curupira, e chupou o contedo do corpo dele deixando-o vazio como se fosse um couro. Geralmente esta criatura da floresta aps sugar as entranhas da vtima sopra o seu esprito dentro dela, a pessoa depois vai para a casa e quando todos esto dormindo chupa as vsceras dos seus prprios parentes. Em outras verses o curupira apenas devora a sua vtima. O ndio, todavia, no soprou seu esprito de curupira para dentro do corpo do

suas energias, e incutir neles um esprito que os destitui de vontade prpria, de autonomia subjetiva, tornandoos completamente submissos; um outro sinal de no-humanidade. Uma outra aproximao entre o carter predatrio destas duas figuras de alteridade, presente no registro simblico do extrativismo, o expediente empregado pelo patro de incentivar o consumo de bebidas alcolicas, iniciando ou ampliando o endividamento (um mtodo de recrutamento e reteno de trabalhadores), e a associao entre a embriagues e o estado de alienao provocado pelo sopro do curupira dentro do corpo da sua vtima. Vale lembrar que a embriagues pode conduzir o indivduo da alegria para a agressividade, ele fica brabo, o deslocando da esfera da sociabilidade (da festa) para a da alteridade (da briga) (Vide a histria do Dono da Alimentao em Barbosa & Garcia, 2000).

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320 homem branco e foi para casa da esposa do verdadeiro curupira, o tamandu-bandeira.9 Este senhor Tariana me explicou que no existem tamandus machos, pois esses animais so as esposas dos curupiras, racionalizando sua conscincia prtica das transformaes na cultura indgena do Rio Negro no idioma das relaes e identidades de gnero, manifestadas pela atribuio de tarefas econmicas distintas e complementares na produo do parentesco e do grupo domstico. Merece destaque a oposio entre tradio e modernidade, passado e presente, discursivamente elaborada em termos de ruptura pelas mulheres indgenas de Barcelos com os padres de comportamento baseados em diferenas de gnero vigentes no Alto Vaups. [...] No existia tamandu macho, s fmea. Isto porque tamandu mulher do curupira. Como curupira homem ele caa caranguejo, camaro, nos igaraps; mete a mo nos buracos. A mscara dela de tamandu. Ela bota a mscara e sai atrs das maniuaras, formigas. As mulheres indgenas quando ficam vivas, ou no tem quem pesque pra ela, ou o marido viaja, ela v falta de comida ento a mulher indgena no vai pescar. Agora, as mulheres modernas por a pescam, aqui de Barcelos geralmente pescam. Mas l antigamente no pescavam. Ento ela parte para pegar maniuara. Ela tira uns talos de arum e fica furando com uma varinha, fura na terra onde tem aqueles sinais de maniuara, e logo que percebe os caminhos no fundo da terra a gente cava e enfia aqueles talos de arum naqueles caminhos. A puxa pra fora e vai botando as formigas nas panelas, nos aturs, nas vasilhas. E pega muito, pode pegar 20 kg, 30 kg, de maniuaras. Em casa elas so lavadas, torradas (bota no forno), depois seca no pilo, bota um pouco de sal, j tem comida pra uma semana. O tamandu alimenta-se de maniuara, mas ela no est comendo, ela est colhendo pra levar pra casa, botando dentro da mscara. Em vez de talos
Num outro momento desta narrativa o autor apontou o alto rio Papuri, na Colmbia, como morada dos verdadeiros curupiras, ou seja, so permanentemente curupiras: Tem um lugar na cabeceira do rio Papuri que o central dos curupiras.Parece que fica pro lado da Colmbia. [...] Esses so curupiras mesmo, todo tempo, no coloca roupa. Neste caso, este esprito predador destitudo de seu poder de transformao. A transio de um estado do ser para outro, as metamorfoses ou mudanas de formas corporais assumindo a aparncia, as capacidades e o olhar do Outro, codificada sem estabelecer limites intransponveis, precisos e estticos entre o plano natural e o artificial (fabricado) de realidade. Em outra verso Tariana desta mesma histria a casa dos curupiras foi localizada no Lago de Prata, jusante da cidade de Barcelos, no Baixo Rio Negro (Barbosa & Garcia, 2000). Um rezador no indgena apresentou o tamandu-bandeira como uma forma corporal alternativa do curupira, e no como sua esposa.
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321 de arum ela bota a lngua dela. Tem tamandu, mulher de curupira, braba [grifos SCP] (Morador Tariana do bairro de So Sebastio, entrevista). Ns j vimos atrs que a ingesto desta espcie de inseto um estigma regional ligado a indianidade, os ndios comedores de maniuara do alto Vaups em contraposio aos caboclos do rio Negro, e s noes correlatas de misria, atraso e selvageria.10 Uma mulher Tukano, residente no bairro Aparecida, alegou como principal motivao da migrao dos seus pais do rio Papuri para o Mdio Rio Negro a escassez de alimentos, principalmente de peixes, e a conseqente constncia de uma situao que deveria ser transitria, a ingesto de formigas. Descer o rio significa percorrer o caminho que leva para a civilizao, um deslocamento no meramente espacial, mas uma aventura em provncias de significado estrangeiras. A coleta de formigas para fins alimentares o trao determinante da condio eminentemente feminina do tamandu, que veste a sua roupa de animal para suprir a sua casa com alimentos em uma circunstncia socialmente anormal da mulher, ou seja, quando circunstancialmente no h disponibilidade de um homem para pescar, atividade que lhe vedada. O casal formado pelo curupira e pelo tamandu reproduz aspectos do modelo de sociabilidade humana, o que reduz o abismo que os separam dos homens e possibilita a comunicao e, portanto, a inteligibilidade mtua entre homem e esprito canibal. O falso curupira teve relaes sexuais com a mulher do curupira na casa dele, uma gruta de pedra. Ela antes disso estranhou que ele era pequeno e pretinho, ao contrrio do marido verdadeiro que era grande e branco. Ela tambm era uma mulher grande e gorda. Ela sentiu o pnis dele como se fosse uma pimenta.11 Com o marido no era assim (Morador Tariana do bairro So Sebastio, entrevista).

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Em uma histria narrada por dois senhores Tariana que moram no alto Vaups a ingesto destes insetos um item (juntamente com a farinha, o beiju, a tapioca) de dieta alimentar que define a humanidade, ou seja, a comida de gente. O dono da alimentao ensinou ao seu sogro, a sua esposa e s suas cunhadas que moravam na serra da Bela Adormecida a produzirem e preparem os alimentos de gente, pois antes s comiam frutas e tubrculos silvestres; comida de bicho (Barbosa & Garcia, 2000). 11 Em narrativas mticas Hohodene o uso da pimenta um meio de socializao de foras perigosas para a transformao de crianas em adultos (Wright, 1996).

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322 Quando o ndio saia da casa, a mscara de curupira, que ficava pendurada numa viga, automaticamente o vestia. Chegando no lago para pegar os cabeudos, a mscara automaticamente saiu do corpo dele e ficou pendurada num galho de rvore. Ele mergulhou no lago e quando voltou para pegar a mscara ela se transformara em um ninho de cupins. Vemos aqui a tentativa de um ndio astuto de assumir a posio deste personagem, o branco-curupira, que sintetiza dois mundos estranhos e ameaadores e a impossibilidade de tornar-se o Outro definitivamente. A narrativa destaca a identificao entre duas figuras de alteridade, o branco e o curupira, em contraposio a condio indgena. Dois seres temveis, mas ao mesmo tempo fundamentais para a vida indgena, pois administram o fluxo de riquezas da civilizao e da floresta, respectivamente. Este ser hbrido congrega em torno de si condies existenciais dspares, porm no inconciliveis: esprito, animal do mato, gente mesmo; e, alm disso, funde as perspectivas simblicas da proteo e da predao. Um imigrante Tariana do alto Vaups afirmou que na sua localidade de origem os curupiras no aparecem para os Tariana de Marabitanas, s aparecem para estranhos, porque os seus parentes respeitam as regras de convivncia com tais criaturas, no suscitando sua feio de inimigo/predador trazendo-os ao domnio da aliana/proteo.12 Ele contou que seu pai, o tuxaua da comunidade na poca, deu permisso para um grupo de Hpda se estabelecerem nos arredores do povoado. Este relato evidencia, apesar da tentativa de relativizao do narrador, tambm algumas noes de distancia social de
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O pai do narrador tratava o curupira como av. Em outro relato o tamandu, a esposa do curupira, aparece como av de um caador Wanano do alto Vaups. O ndio e sua esposa se perderam na floresta e depararamse com o stio do curupira. Curupira estava aborrecido com o Wanano porque ele estava jogando troves nos seus animais dando a entender que se tratava de um paj e por isso devorou a esposa. Em contrapartida, o Wanano envenenou a esposa do curupira e a cortou em pedaos que foram colocados em uma panela para cozinhar. O curupira comeu a carne da sua esposa sem saber. Como o caador Wanano colocara uma quantidade excessiva de pimenta e escondera todas as cuias de gua da casa, o curupira correu para o lago a fim de beber gua quando foi mortalmente ferido por flechas venenosas lanadas pelo ndio. claro que no estou descrevendo a histria em todos os seus pormenores. A narrativa mostra um relacionamento aparentemente cordial entre o indgena e o curupira, regado por tratamentos de parentesco, porm carregado de artimanhas e traies, uma situao de guerra dissimulada que no final se torna explcita. Isto demonstra que mesmo trazendo o estranho para a esfera da comunicao e da afinidade (da consubstancialidade) a alteridade assim como o clima tenso pela possibilidade do retorno da guerra nunca completamente eliminada. Por outro lado, podemos constatar que o ndio utiliza flechas venenosas como arma de combate enquanto o curupira devora suas vtimas, um confronto entre o guerreiro indgena e o esprito canibal. Cabe assinalar que esta histria foi contada por um Tariana que considera os Wanano como cunhados e especialistas na arte de envenenar pessoas, um grupo, portanto que est situado em uma posio de alteridade relativa do ponto de vista do narrador. Numa verso Arapao por mim registrada no bairro de So Sebastio no h meno sobre a etnia do personagem indgena que mata o curupira. J em outra verso Tariana, publicada na coleo Narradores Indgenas do ISA, o personagem indgena um Maku e a histria apresenta algumas diferenas quanto a alguns detalhes, mas a estrutura do enredo a mesma.

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323 identidade e alteridade diante de povos classificados hierarquicamente em posies inferiores. [...] Tentaram morar logo dentro do igarap Tamandu, pertinho. O meu pai que nunca discriminou pessoas, vocs so inferiores, no; disse: Morem com a gente, tem lugar pra fazer casa aqui, podem fazer. Nosso costume [dos Hdpa] no morar numa comunidade, ns queremos morar separados, mas ns queremos morar com vocs, nesta regio de vocs. Tentaram fazer uma tinguejada nos igaraps e queimaram peixe. Curupira detesta esse cheiro. A rapidinho escureceu o cu, comeou a trovejar, a relampejar, chover. Eles correram e o curupira atirando em cima deles. Era um curupira jovem, de estatura mdia. Quando chegaram perto do barraco ele voltou. Ento os Hpda retornaram para onde eles vieram, l de Santo Atansio. Eles falam tukano, quase todos os Hpda falam tukano ( Morador Tariana do bairro So Sebastio, entrevista). Outra caracterstica corporal do curupira que o aproxima dos brancos a espingarda que ele carrega embutida no antebrao. A associao simblica entre a arma de fogo e o homem branco claramente expressa em uma verso do mito de origem dos povos rio negrinos, por mim registrado de um morador Tukano do bairro So Sebastio. A histria conta assim. Deus escolheu qual tribo ia ser superior, qual tem mais coragem pra tomar banho, escolheu. Quem vai cair nesta bacia, ningum teve coragem, todos ficaram recuados. Ento, o branco ndio que estava l no canto. Ele saiu e mergulhou na bacia, tomou banho e virou ndio. Ele era Maku. O branco foi o ltimo a sair da cobra-grande, mas ficou na ponta da cabea. Tinha flecha, tinha espingarda, tinha tudo, tinha motor no porto n... pro barco. Ento, o Maku, o ndio, que caiu na gua, na bacia branca, virou branco, pegou a arma e atirou logo, foi l no porto, puxou logo e fugiu mesmo, baixou. Depois superior dele queria flechar ele, matar ele, no conseguiu. Por isso que os brancos fazem os

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324 maquinrios, todas essas coisas [grifos SCP] (Morador Tukano do bairro So Sebastio, entrevista).13 O evento histrico da colonizao adquire sentido ao ser inserido no registro mtico dos acontecimentos primordiais. A narrativa descreve a origem dos brancos no momento em que as tribos ou classes (termos locais) emergiram da cobra-canoa e se transformaram em gente, antes eram peixes. O Criador ordenou ao ancestral dos Tukano, os primeiros a sarem da cobra-canoa, que mergulhasse em uma bacia de gua branca, mas foi um servo Maku quem teve coragem e mergulhou, transformando-se em branco. Depois, pegou a espingarda, deixando o arco e a flecha para as tribos do rio Negro, e embarcou em uma voadeira (embarcao movida com um motor de popa) estacionada no porto descendo o rio. Muito tempo depois eles subiram o rio e dominaram os povos que ficaram. Todos os brancos so descendentes daquele servo Maku que, originalmente situado na escala mais baixa da hierarquia assumiu o topo dela. A categoria tnica que personifica a civilizao indelevelmente carimbada com o esteretipo regional de selvageria, inferioridade e infra-humanidade. O poder e a agressividade14 do homem branco, que o aproximam da figura do curupira, so compreendidos a partir de um ato original de coragem, audcia e ambio que inaugurou o estado posterior de desordem das relaes intertnicas no Rio Negro.15 A civilizao emergiu da indianidade16 e ambas se contrapem sociabilidade do caboclo ribeirinho (Tukano, Desana, Arapao...).
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A narrao deste mito de origem bem mais extensa e detalhada, porm no cabe aqui reproduzi-la nem analisa-la mais detidamente, pois minha inteno destacar seus aspectos referentes s representaes sobre o contato intertnico. 14 Selvageria, descontrole de si, ferocidade, brutalidade; enfim, caractersticas inerentes alteridade, tanto infra quanto supra-humanidade. Um morador Tariana do bairro So Sebastio fez o seguinte comentrio sobre o mito de origem dos povos no Rio Negro: No comeo quando saiu aquele cabea [o ancestral, o primeiro, o av] dos Tukano, ele era um homem muito feroz. A lngua dele... saia fogo na boca dele. A Deus que estava acompanhando a transformao da humanidade no gostou, ele era muito feroz, ento ele no gostou e pisou ele pra dentro. Ele voltou de novo. A ele voltou pra ficar l no ltimo [...] (Morador Tariana do bairro So Sebastio, entrevista). Observamos a ferocidade como um atributo que impediu a transformao do ancestral de um cl Tukano ao qual pertencem alguns moradores indgenas do bairro So Sebastio e que foi rebaixado para a terceira posio dos cls deste povo , em humano ao desagradar o Criador. Saia fogo da sua lngua, da sua boca, deste veculo corporal de comunicao, de emisso de palavras e mensagens inteligveis. Sabemos que no Rio Negro a lngua (no sentido de idioma) ainda um importante marcador de pertencimento tnico, e conseqentemente ndice de humanidade, sem desconsiderar as transformaes nos processos de identificao social. 15 Para uma anlise de um outro contexto no qual o poder apreendido simbolicamente como um ato originrio de usurpao por estranhos, vide: Sahlins, 1988. Este autor tambm mostra os esforos contnuos de domesticao do poder estrangeiro.

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O senhor pode ver, chegar l na maloca diferente de ndio, todo furado e tal. Eram Yanomami, ndio, Maku, tem de tudo, que vivem no meio da floresta. Por isso eles gostam da floresta, assim da mata [grifos SCP] [...]. Por que o ndio quando fica com raiva no tem pena de ningum, ele vai e mata. Mas caboclo no, agente fica com medo... com medo no, respeito (Morador Arapao do bairro So Sebastio, entrevista). Por isso que os brancos no tm juzo. Ns caboclos respeitamos as pessoas muito. ndio no, quando quer vai mesmo. Assim tambm os brancos, quando quer tomar a terra do ndio vai matar. Porque j desde o incio ele roubou a arma. Por que Deus abenoou. Era para pegar a pessoa que surgiu primeiro, que saiu da terra, Deus queria assim. Cada tribo tinha sua terra, tudo colocado, ningum mexeu um do outro. At hoje existe isso l no alto [rio Negro]. Aqui [em Barcelos] no tem essa conversa. L pro alto, onde me criei, tem as pessoas at hoje aquela terrazinha, desde o comeo do av at hoje [grifos SCP] (Moradora Tukano do bairro So Sebastio, entrevista). Vemos o entrelaamento entre as conscincias histrica e mtica, nas quais a dominao, a violncia e a ganncia dos colonizadores j estavam pr-figurados no ato inaugural de inverso da ordem primordial do mundo. Duas figuras de alteridade, situadas em plos opostos (inferior/superior), so aproximadas para tecer um lao de continuidade entre histria e mito, atribuindo sentido experincia traumtica da chegada (ou retorno, conforme a concepo mtica) dos brancos ao Rio Negro. Por outro lado, o alto aparece como o lugar onde esta ordem original, tomando a distribuio de terras entre as tribos como parmetro, teria sido preservada. A categoria de ndio situacional e relacional. Quando serve para estabelecer sinais diacrticos diante de outros tipos de gente, de outras raas, dos ndios verdadeiros, daqueles que vivem no mato e moram em aldeias e malocas e eram originalmente empregados, servos, como os Maku e os Yanomami, a categoria de caboclo acionada para singularizar-se no cenrio intertnico local.
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Neste mito de origem o meio aqutico o principal ambiente de transformao.

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Ns no temos aldeia no, s povoados. Na beira dos rios mesmo. Eu conheci meus pais, meus avs nunca usaram essas aldeias. aquelas tribos derradeiras que moravam nas malocas. Pra c que a gente veio saber que usa brejeira e desse que o nariz furado. Nossos antepassados no usavam isso no, nunca furaram a orelha. Quem usa so os Yanomami. Meus pais e meus irmos, quando eu entendi, nunca vi eles comerem ipadu tambm [grifos SCP] (Moradora Tukano do bairro So Sebastio, entrevista). O povoado expressa o modo de ser caboclo que no exclui referncias tnicas precisas, como caboclo Tukano, Desana, Arapao... que os distingue dos ndios, mas tambm dos brancos. Estes esto classificados pelo descontrole das suas aes e emoes, que os torna violentos e os faz perseguir os seus objetivos sem considerao e respeito pelos outros. Caracterstica que os distancia da humanidade, sem exclu-los completamente dela.17 O curupira um esprito canibal da floresta, que tem raiva de outro grande predador (a ona), portador de diversas faces conforme as suas relaes com outras figuras inerentes ao simbolismo da predao vigente no imaginrio intertnico do Baixo Rio Negro. A sua origem foi atribuda tambm a um ato imprudente e desmedido de algum desprovido da capacidade de controlar a si mesmo: da ambio desmesurada de um homem de se tornar paj ou do ato inconseqente de desobedincia de uma criana de uma ordem paterna. Ele cheirou paric em excesso, enlouquecendo e correndo para dentro do mato.18 Uma verso Piratapuia aponta o filho de um paj como o autor de tal desatino, com a anuncia da sua me, ao desobedecer ao pai pegando seu paric para cheirar sem a sua permisso.

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Para os Hohodene autocontrole e autonomia constituem elementos bsicos na construo social da pessoa em contraposio a desordem e a morte atribudas a personagens e cenrios de alteridade (Wright, 1996). 18 Numa verso Tariana registrada no livro publicado pelo Instituto Socioambiental o curupira, junto com outros espritos da floresta (o tamandu, a ona e o diabo-abacate), se originou da desobedincia das ordens do Trovo que proibiu que eles tivessem relaes sexuais depois de cheirar paric. Deveriam passar por um perodo de abstinncia depois do qual o prprio Trovo providenciaria mulheres para eles casarem. Ou seja, deixaram seus impulsos, desejos e afetos dominarem as suas vontades, a capacidade humana de agir normativamente, transformando-os em bestas, bichos do mato. O curupira, a ona e o diabo-abacate foram condenados a viver na mata, enquanto o tamandu foi condenado a viver nos buracos (Barbosa & Garcia, 2000).

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327 [...] Mas essa histria eu vou contar outra, no comeo do mundo o pai dele [do curupira] era paj, mas criana bicho danado, a ele deixou o paric dele pendurado, e foi embora na roa, a comearam, mame quero cheirar o paric de papai?. Ento bota. Cheiraram, cheiraram, e a que ele no agentava mais, a ia correndo pra c, pra li, pra c, que demais atacou ele, ele correu no mato, esse curupira que falam era gente ele. [...] A o pai dele chegou e cad, ele tava corre, no corre, ele tinha corrido j para o mato esse curupira que eu falo, a puta merda criana, eu no mandei vocs cheirarem isso, eu ia dar depois, vocs j esto sabendo j, eu ia dar para vocs essa coisa, agora tudo ficou no mato. Agora o qu que tu foi fazer? [...] (Tuyuca, residente na comunidade Samama, no rio Demeni, entrevista). A metamorfose primitiva, neste caso, ocorreu no registro do xamanismo, mas em outras verses ela formulada incorporando elementos do campo semntico cristo, como a noo de pecado.19 um castigo para pessoas muito perversas cujas almas, depois que elas morrem, so enviadas por Deus para a mata e viram bichos. Sobreposta noo de
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No posso deixar de lembrar o paralelo com a idia crist medieval do poder estabelecida por Santo Agostinho, no sculo V, que aproximava os pecadores dos animais, pois aps a queda (a falta universal cometida por Ado e Eva que maculou e degradou toda a humanidade) os homens tornaram-se escravos das suas paixes em detrimento do uso da razo. O Estado ento se tornou necessrio para conter as paixes humanas, ou seja, um poder externo ao livre-arbtrio do sujeito guiado pela razo (Bobbio, 1997). A economia simblica crist da alteridade durante vrios sculos reforou a animalidade das suas figuras do mal, como a prpria imagem do diabo (criada no sculo XI) enquanto uma criatura composta de partes de vrios animais diferentes e as bruxas. No Brasil a representao dos povos indgenas como bestas de carga (pecados, idolatria...) sob o jugo dos demnios um fenmeno de mentalidade inserido na escala da longa durao, remetendo principalmente chamada gentilidade resistente colonizao e catequizao (Raminelli, 1996). Os grupos indgenas do Baixo Rio Negro reformularam tal configurao simblica da indianidade atribuindo ao branco incluindo a a figura do patro a ferocidade, a bestialidade caracterstica, com graus e contedos diferenciados, de outras categorias de estranhos (curupiras, maquiritares, matis, encantados, sakakas, espritos dos mortos e ndios verdadeiros). Uma rezadora Bar, residente na comunidade Floresta, fez o seguinte comentrio ao constatar o meu interesse e respeito pelos seus valores e crenas: esse cariua [termo nheengatu para designar o homem branco] ns estamos amansando ele. Em contraposio a este leque de seres perigosos e sobre-humanos esto os caboclos ou ndios civilizados, cuja moderao e controle de si constituem elementos bsicos do modelo local de humanidade e sociabilidade, logo princpio de formulao das diferenas tnicas. O campo semntico da etnicidade assim delineado ajuda a compreender a suposta passividade dos ndios diante das violncias perpetradas pelos brancos (inclusive as relaes entre fregueses e patres), pois o sujeito de agresses e perversidades que se avilta e degrada, evidenciando a sua inferioridade/alteridade, saindo ou situando-se na periferia da esfera humana, na posio do inimigo/predador. Demonstraes ostensivas de poder provocam temor nos outros, mas colocam o indivduo nas franjas ou fora da sociabilidade verdadeira, sustentada pela reciprocidade e pelo parentesco. As estratgias intertnicas indgenas privilegiam a domesticao do Outro ao confronto aberto e manifesto; o que no significa a excluso absoluta desta possibilidade quando ela considerada inevitvel. Para a implementao das duas estratgias (aliana ou guerra), que s vezes se confundem, existem os mediadores adequados.

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328 culpa opera aqui a idia de um destino pstumo no qual o esprito de uma fera encerrado anteriormente em um corpo humano retorna para a sua verdadeira casa e veste a sua roupa adequada. Estas almas desafortunadas transformam-se tambm em animais que estragam as plantaes ou atacam animais domsticos. Devido a uma superpopulao de pessoas ms, pecadoras, no mundo quando estas pessoas morrem suas almas no so aceitas nem no inferno e por isso ficam vagando na floresta. Estes espritos de mortos sentem fome e para se alimentarem precisam assumir a forma de animais. que o inferno est muito cheio, ento o diabo no aceita mais ningum l. Ento eles ficam vagando por aqui nesse mundo. Chega l no cu tambm Deus no aceita. Vai l no inferno tambm o diabo no aceita. Ento eles ficam por aqui. So esses que mesmo depois de mortos eles sentem fome, frio, mesma necessidade de comer, mas s que eles no podem ser como humanos, para poder comer eles tem que virar animais. E a eles vo estragar a roa de vocs. cotia, porquinho, todo tipo de... A vai ter essas pragas. Isso no maldio de Deus. porque est muito cheio... existem muitos pecados no mundo. Muitas pessoas esto caminhando para o mal, porque o bem no muito bem visto [grifos SCP] (Morador Tariana do bairro So Sebastio, entrevista).20

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O destino pstumo da alma, segundo uma verso Tariana, a maloca de transformao localizada no lago de leite, de onde o Criador retirou o barro para fazer a humanidade. O lago de leite est situado na Baa da Guanabara, no Rio de Janeiro, local do qual partiu o navio-cobra que navegou pela costa brasileira at chegar na foz do rio Amazonas e da subindo at chegar na cachoeira de Ipanor, no rio Vaups, Alto Rio Negro, desembarcando os ancestrais de todas as tribos, de todas as raas de gente, do Rio Negro. A alma do morto retorna ento para esta maloca de transformao atravs de benzimentos (reza no breu e incensa a casa), depois do sepultamento, para no ficar rondando a casa, perturbando os parentes, e para no aparecer para eles em sonho e jogar neles a doena que causou o seu falecimento. Com o poder da orao, que pode ser pronunciada por qualquer um que saiba e no somente por pajs ou rezadores, o esprito do falecido embarcado com muita regalia e festa num navio todo enfeitado. [...] Ento onde eles foram feitos, onde Deus tirou o barro, aquele criador, tirou o barro, foi o comeo tambm da vida deles, quando eles morrem retornam para aquele mesmo lugar de origem de onde eles foram tirados, onde se chama lago de leite, se chama maloca de transformao. L ele retorna. Ento quando uma pessoa morre, para ele no ficar rondando perto da casa, jogando umas pedras, fazendo barulho, ento agente manda, bota todas as coisas dele... na orao n. Bota ferramenta dele, canio, anzis, roupas, tudo que ele tem... A gente reza no breu e bota naquele cobra a alma dele l, todo enfeitado, todo direitinho, com banco, pintado, tudo direitinho. E a gente manda para aquela maloca de transformao, maloca de origem. E a gente manda e aquele navio leva ele. E aqui a gente no tem nenhum esprito que fica l, no tem quem moleste, no tem perigo nenhum de fazer barulho, no tem nada. Aquela tranqilidade. [...] Quando a gente no faz isso a gente comea a sonhar com o morto. Um dia ento ele acaba botando tua doena e voc acaba morrendo tambm. Ele quer te levar tambm. Para evitar tudo isto a gente tem que afastar o esprito, tem que rezar, defende tudo e manda ele com calma. No porque a gente no quer mais ele, mas assim que ele vai descansar. isso que a gente faz.

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Alguns Tariana apontaram como um dos motivos da migrao das suas comunidades de origem, no alto Vaups, para Barcelos a inexistncia destas pragas de bichos do mato que estragam as roas e atacam os animais domsticos. Ningum consegue matar estes porcos do mato, nem paj resolve com benzimentos e jogando gua na terra. Eles se transformavam em pequenos macacos, faziam buracos e saiam no meio da roa: [...] Eram espritos dos mortos, pois tinham a inteligncia de uma pessoa [...] (Morador Tariana do bairro So Sebastio, entrevista). J em Barcelos os porquinhos so verdadeiros, criaturas de deus, eles comem patau, comem caroo, no comem mandioca, no saem no meio da roa. Suas comunidades tambm estavam sendo atacadas por onas que no eram criaturas de Deus, eram maquiritares. So pessoas que se transformam em ona utilizando uma raiz, uma batata chamada Piripiriaca. Alguns dizem que o modo de preparar o remdio fazendo um suco e bebendo, outros dizem que tomando um banho com ele e outros afirmam que esfregando a planta no corpo. uma famlia de onas, andam em bando; se o animal estiver sozinho criatura de Deus, do mato mesmo. A metamorfose descrita em uma linguagem artesanal (o corpo concebido como um artefato, uma vestimenta): veste a camisa, vira ona; ele tira e ele pe o couro de ona, como se fosse um palet, uma capa de chuva. O homem assume a aparncia de um dos mais temidos predadores amaznicos, um cone vigoroso de alteridade, usando um vegetal que atua como instrumento de comunicao e possibilita entrar e sair da animalidade. No mundo humano vemos aquela pessoa como uma ona, enquanto aquele indivduo na pele de ona nos v como presa (cotia, paca, queixada, tatu, porco, etc), como alimento.21

Ns Tariana fazemos isso, no sei dos outros, mas ns fazemos isso. [...] por meio de oraes mesmo. Por meio de oraes a gente pronuncia, a gente bota no navio, como se a gente fosse pessoalmente levando ele. A gente arruma bagulho dele e tal. um navio bem enfeitado, um navio de festa, com bandeirinhas, tudo, com pessoas assim animando ele, conversando com ele, contando histria, com rancho, bebidas, vinhos de uva, de frutas doces, de abiu. Vinhos de todo tipo, que sejam os melhores vinhos a gente porque cada um ns temos... a alma precisa de um tipo de vinho que alimenta, que d sade. Ento agente bota com essa mesma vasilha, enche com todos aqueles tipos de vinho e manda. Ento ele fica tomando l no navio e esquece para c, ele vai embora para l. [...] (Morador Tariana do bairro So Sebastio, entrevista). Ao chegar no destino, ele escolhe se quer subir nas escadas de ouro, de prata e de cobre, colocadas para ele, ou se deseja permanecer na maloca. 21 Um morador Baniwa do bairro So Sebastio narrou a histria de um menino que se transformou em maquiritare e devorou o prprio pai, quando ele voltava da roa, pensando que ele era um porco do mato. [...] Um dia o menino viu como o pai fazia [para se transformar em ona]. Quando o pai foi arrancar mandioca,

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330 Existe um outro ser que tambm assume a forma de animais (boto, morcego, ona, cobra, coruja, borboleta, rato, etc) utilizando uma planta (chamada Taj): ele conhecido como mati. So pessoas ms, vingativas, andam em bando para matar aqueles que eles odeiam. So pagos tambm para matar tambm. Ele fica invisvel e coloca veneno na comida, na roupa ou na roa das suas vtimas. Emite um som bem agudo, como se fosse um passarinho. O veneno mata rpido, nem paj consegue curar, pois ele mais ruim do que paj, ele mais forte do que paj. A planta empregada para realizar a metamorfose tem um dono (um esprito). Esta figura rene em torno de si alguns atributos do universo semntico da alteridade: a vingana, o veneno, a animalidade, a raiva, o descontrole de si, a indianidade, a selvageria. O mati tem o corpo todo pintado de urucu, tipo assim ndio da aldeia mesmo. O lugar originrio dos matis apontado foi o rio Iana. A indianidade neste contexto no uma referncia moralmente positiva e abrangente de identidade tnica, um ndice de alteridade, de distncia social conferida a outros grupos tnicos.22 Na cidade de Barcelos os Baniwa que imigraram recentemente do alto Iana (falam baniwa ou curripaco em vez do nheengatu) so chamados de ianeiros e so identificados pelos seus vizinhos de fala Tukano com os matis inclusive por alguns Baniwa que j nasceram no Mdio ou no Baixo Rio Negro23. Um grupo de seis famlias Baniwa, formadas por membros dos cls Hohodene e Curripaco, residentes no rio Aiari, afluente do rio Iana, foi morar na comunidade Ipadu, cujos moradores so predominantemente Bar, no alto rio Negro para ficar mais perto da cidade de So Gabriel da Cachoeira. Em 1986 eles mudaram de
ele foi tirar aquela plantinha, passou nos braos, nas pernas, e pulou trs vezes, e l ele virou ona. Nessas alturas, o pai dele vinha j deixar o primeiro paneiro de mandioca em casa. O velho vinha andando com o paneiro de mandioca nas costas quando o filho, transformado em ona, topou com o pai dele. L ele matou o pai dele. A voltou. Quando chegou em casa a av dele j estava e ele contou para ela que tinha matado um porco ainda agorinha no meio do caminho. A a av disse: Quer saber que esse menino j foi matar o pai dele. Ele viu o pai dele como um porco, como caa. No era mais ele, foi aquela capa de ona (Morador Baniwa do bairro So Sebastio, entrevista). Para uma abordagem terica abrangente sobre o intercmbio de perspectivas com outras figuras de alteridade nas cosmologias indgenas, vide: Viveiros de Castro, 1996. 22 Um senhor Tukano mencionou a existncia de pajs na comunidade Marar, um povoado muito prximo da cidade de Barcelos, quando indaguei se existem pajs no bairro So Sebastio onde mora, porm acrescentou que eles no curavam e s jogavam malefcios, so icaneiros. [...] Tem paj, mas no cura. ianeiro. Eles so pessoas que sabem tudo, eles so cheios de histria. Sabem de tudo, tudo que presta e o que no presta. Pra matar a gente no custa nada. Eles tm veneno. muito perigoso. Eles so cheios de pinta no corpo. [...] No so todos os Baniwa que tem essa doena [...] (Morador Tukano do bairro So Sebastio, entrevista). Eles carregariam um estigma, manchas brancas na pele que eles transmitiriam aos visitantes de outras etnias que se recusam a compartilhar a sua comida. 23 [...] Esse pessoal, esses Baniwa, tm esse remdio de virar mati, que quando usa esse remdio muda, vira, voando mesmo, andam a noite. Mati cada gente dessa tribo tm. Agora ns Tariano mesmo no tm nada. Tukano tambm no tm nada. s dos Baniwa. [...] (Morador Tariana do bairro So Sebastio, entrevista).

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331 residncia novamente migrando para a cidade de Barcelos, cujo motivo teria sido o assassinato de um dos seus parentes. Chegando em Barcelos eles queriam ir para Manaus, mas como no falavam bem o portugus Joo Mineiro, funcionrio do ncleo de apoio da FUNAI, e o Padre Pedro sugeriram que eles se instalassem na comunidade Samama, uma antiga fazenda da parquia no rio Demeni. O agente indigenista e o sacerdote estavam adotando este procedimento de encaminhar os migrantes indgenas do Alto Rio Negro para estas comunidades no rio Demeni, pois em Samama j moravam algumas famlias provenientes da bacia do rio Vaups, grupos tnicos de fala Tukano que se opuseram a conviver com os Baniwa e indicaram uma comunidade prxima, Pai Raimundo, para eles ficarem.24 Depois de passarem alguns anos em Pai Raimundo mudaram-se para a cidade de Barcelos. Existe uma histria Hohodene no qual Barcelos aparece como o local onde os filhos de um ancestral guerreiro foram transformados em soldados, em brancos. Esta transformao foi sublinhada pelo ato de jogarem fora seus ornamentos cerimoniais, situando-se na periferia da sociabilidade Baniwa, na esfera do inimigo. A distncia social frente aos povos do rio Vaups foi confirmada, pois os Tariana e os Bar se aliaram aos brancos para prender os Hohodene. Portanto, Barcelos o lcus da alteridade absoluta, mas no um caminho sem volta como demonstra um outro episdio da narrativa no qual o chefe ancestral decide fugir e retornar ao Iana e restaurar a sociabilidade ameaada reconstituindo suas aldeias, casas e roas. Em outro episdio seus filhos recusam o convite dos brancos de irem para o mundo catico do Baixo Rio Negro priorizando a vida pacfica da aldeia longe dos brancos (Wright, 1996). Podemos deduzir que acompanhar os patres rumo s colocaes extrativistas no Baixo Rio Negro uma sria deciso e uma aventura na qual existe a expectativa de retorno, mas tambm o risco de assumir definitivamente a condio do estranho. Aqui no se apresenta a alternativa de domesticar a esfera de convivncia com os brancos, pacificar o espao da guerra e amansar o inimigo,
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Ento quando estava nesse tempo l chega essa turma de Baniwa. Outros migrantes. Seis famlias chegaram, justamente aqui com os padres. Os padres sempre os ampararam n. Ampararam eles e levaram pra l com ns, pra ver o que a gente vai fazer, pra ver se a gente tinha condies de sustenta-los para morar junto conosco; a turma de baniwas. J ns vendo que mistura nunca d certo n... Eles so ndios, mas outro padro de ndio. No vamos aceita-los no, deixa eles viverem separados. Eles vo viver no Pai Raimundo. Agora, o que eles precisarem, negcio da comida, farinha, deixa fazerem aqui conosco. Somente ns vamos dar para eles, mas eles vo ter que morar l que fica melhor [...] (Morador Tariana do bairro So Sebastio, entrevista).

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332 possibilidade almejada pelos migrantes, pelos fregueses e pelos ativistas indgenas de outras etnias e/ou que j convivem h mais tempo no mundo-sem-forma rio abaixo. Talvez por esta razo as famlias Baniwa recentemente migradas do rio Iana hesitem bastante em participar do movimento indgena em Barcelos. A nica possibilidade de retomar tradies, a identidade e a sociabilidade verdadeira e no se transformar no branco retornando ao Iana.25 Um rezador Arapao me relatou o caso de um paj de uma destas famlias Baniwa que soprava (colocou feitio) na sua prpria roa para estragar (provocando dores ou entortando o brao, quebrando os dentes) o pessoal de Taracu porque eles arrancavam e comiam os seus abacaxis e chupavam as suas canas.26 Disse ter quebrado a fora do feitio daquele paj e alegou que a esposa dele morreu por causa do prprio malefcio por ele jogado na sua roa, razo pela qual nada pode ser feito por ela no hospital.27 A esposa do paj no sabia que seu marido havia soprado na roa e pisou num espinho venenoso. Esta senhora, segundo a verso de alguns dos seus vizinhos, teria contrado ttano e teria recebido no hospital um tratamento inadequado. Ela foi internada vrias vezes, pois seu estado de sade no melhorava e sua famlia foi proibida de visit-la. Os profissionais que a atenderam justificam o impedimento da visita dos familiares porque eles causavam confuso e queriam retir-la do hospital constantemente. Alguns vizinhos desta famlia
O mito de Kuwai (prottipo Baniwa da alteridade), entretanto, cujo foco privilegiado o amansamento de poderes ameaadores em benefcio da reproduo social remete expanso dos crculos de identidade enquanto a histria dos antepassados Hohodene levados como prisioneiros para Barcelos remete reduo dos crculos de identidade (Wright, 1996). Temos ento duas possibilidades semnticas de interao com estranhos, lembrando que o mito de Kuwai foi central na formao do movimento milenarista em meados do sculo XIX no rio Iana incorporando elementos do imaginrio cristo. Robin Wright apresenta uma terceira alternativa, presente nos cnticos Kalidzamai, referente socializao de um poder estrangeiro e regenerao de povos colocados em uma situao de vulnerabilidade. Talvez no seja improvvel esta abertura do crculo de identidade entre os Hohodene e Curripaco fazendo com que a utopia de reconstruo da sociabilidade verdadeira em um ambiente hostil e estranho possa ser traduzida no envolvimento, mesmo que seja nos termos de uma adeso passiva, com as polticas de identidade e reinveno de tradies promovidas no bojo do ativismo indgena local. 26 Narrou uma disputa com o paj Baniwa para verificarem quem tinha mais sabedoria e era mais forte, quando acalmou um trovo lanado por ele. A transferncia desta batalha intertnica do plano do xamanismo para o plano do movimento indgena foi constatada pela declarao de um militante Baniwa ligado a ASIBA na qual justificou a no participao deste rezador Arapao do cerimonial de benzimento da assemblia desta organizao em junho de 2000 porque ele reza para fazer o mal e no se reconhece como indgena. Um filho seu teria tentado o suicdio porque tinha vergonha de ser reconhecido como indgena. 27 O prprio rezador Arapao afirmou ter tentado cura-la, mas observou que a doena lanada por um paj somente pode ser curada quando ele morre. Um rezador Tukano, entretanto, me disse que pode curar com suas rezas malefcios jogados por um paj, excetuando os casos em que ele j tenha morrido. Outros rezadores disseram ainda que a doena causada por um paj s pode ser curada por ele mesmo. Temos definies concorrentes sobre as foras patognicas e curativas de pajs e rezadores, respectivamente.
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333 Baniwa recorreram ao funcionrio do ncleo de apoio da FUNAI, Joo Mineiro, solicitando-lhe a sua interveno junto direo do hospital para acompanhar a paciente e informar aos seus parentes sobre o seu estado de sade e sobre o tratamento que estava recebendo. A relao com os profissionais de sade tensa, h muitas acusaes de discriminao com os indgenas, que so tratados com negligncia.28 O hospital e os dois postos de sade existentes na cidade so locais evitados ao mximo, so territrios estrangeiros, pois reina um clima de desconfiana quanto medicina ocidental e ao empenho dos profissionais para curar os doentes pobres (leia-se indgenas). O problema do acesso aos servios de ateno sade no apenas de escassez de recursos financeiros, materiais e humanos, mas tambm de despreparo dos profissionais para lidar com populaes culturalmente diferenciadas e de responsabilidade dos agentes e rgos governamentais competentes perante o interesse pblico. Na verdade a prpria definio de interesse pblico est em jogo. Este quadro agravado pela persistncia de uma mentalidade colonial na qual a populao indgena considerada como mo de obra ou instrumento de manobra para a realizao das aspiraes polticas do segmento etnicamente dominante; e por uma elite local (formada principalmente por comerciantes, patres do extrativismo e por seus descendentes educados em Manaus) no-indgena que trata a estrutura estatal municipal, incluindo suas conexes com os circuitos estaduais e federais de poder, como patrimnio pessoal e exclui o setor indgena cada vez mais proeminente da sociedade barcelense da esfera pblica assim como da memria oficial do municpio. As secretrias municipais de turismo e de educao de Barcelos me explicaram e justificaram tal situao dizendo simplesmente que os ndios no tem
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Eis um caso, ocorrido em janeiro de 2001, que evidencia o desrespeito com o qual os profissionais de sade tratam os indgenas. Uma menina Baniwa, 14 anos de idade, moradora do bairro Aparecida, morreu com suspeita de cncer no hospital de Barcelos. A necropsia, para determinar a causa da morte, foi feita sem autorizao formal (por escrito) dos pais da jovem. O mdico que realizou o procedimento me disse que a secretria municipal de sade, Anita Katz Nara, lhe garantiu ter a autorizao dos pais e como ele estava h pouco tempo na cidade acreditou na sua palavra. O pai da menina alegou terem-lhe dito apenas que o corpo da sua filha ficaria no hospital at que o caixo estivesse pronto. O corpo da menina foi entregue na sua casa sem roupa, sem nenhum curativo na inciso feita para a necropsia, da qual ainda jorrava sangue. O fato gerou tamanha comoo nos moradores indgenas do bairro Aparecida que eles pensaram em fazer uma manifestao pblica em desagravo secretria municipal de sade e aos funcionrios do hospital, mas foram demovidos de tal intento pelo agente da FUNAI, Joo Silvrio Dias, mais conhecido como Joo Mineiro. Em compensao a ASIBA e o ncleo local da FUNAI encaminharam um documento conjunto solicitando esclarecimentos secretria de sade sobre o acontecido e que futuramente quando procedimentos semelhantes envolvendo indgenas forem necessrios a direo do hospital entre em contato com a ASIBA e a FUNAI para acompanharem o processo de consulta aos responsveis para concesso de autorizao.

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334 pacincia29 para permanecer por muito tempo no hospital ou seguir corretamente em casa as recomendaes mdicas propostas. Neste contexto, o corpo, a morte e a doena tornamse arenas importantes de manifestao das relaes e dos conflitos intertnicos, evidenciando uma semntica da etnicidade onde imperam modalidades simblicas de construo do Self vigentes nas experincias da vida cotidiana. O descrdito frente s instituies oficiais de promoo sanitria refora ainda mais o prestgio e a autoridade, o que no significa que o inverso seja necessrio, de rezadores e pajs juntamente com as correspondentes formulaes sobre os agentes e processos patolgicos existentes no mundo. Observamos em Barcelos uma classificao em trs categorias de mediadores entre o mundo humano e o supra-humano: o paj, o rezador e o sakaka. Eles so identificados basicamente pela forma como atuam para curar. O paj benze (sopra a fumaa de um cigarro) diretamente sobre o corpo do paciente ou em uma bacia com gua que ele joga sobre o mesmo e chupa a doena do corpo do enfermo (retirando objetos que so a materializao do mal).30 Ele tem o poder de se transformar em animais e controlar as foras da natureza (trovo, o vento, etc). Alguns pajs usam uma pedra, um esprito que o auxilia nas curas, transmitida hereditariamente ou doada por um paj mais antigo.31 Alguns rezadores admitiram possuir esta(s) pedra(s) ou ter possudo no passado, no havendo nenhuma conseqncia danosa para a sade ou a vida daquele que a perder em alguma eventualidade. O paj expressa no mais alto grau um atributo elementar de humanidade j enfatizado aqui: o controle de si mesmo; pois uma condio do seu treinamento como mediador com o mundo da alteridade uma rgida obedincia a normas (interdies alimentares e sexuais). Vimos que a origem do curupira, um dos cones mais eloqentes de alteridade no Baixo Rio Negro, remete exatamente a incapacidade de um aprendiz de paj
Realmente, a pacincia deles chegou a um tal grau de esgotamento que eles resolveram criar uma alternativa para superar tais privaes e injustias atravs de uma agncia promotora de discursos e polticas de afirmao tnica: a Associao Indgena de Barcelos/ASIBA, como veremos adiante. neste terreno simblico das concepes e disputas em torno do corpo, da doena e da morte que podemos compreender a importncia do esforo e da iniciativa da FOIRN em expandir o Distrito Sanitrio Especial Indgena/DSEI para Barcelos no surgimento recente de um movimento indgena no Baixo Rio Negro. 30 Um paj Baniwa, residente na comunidade Santo Antonio, no chupa mais as doenas por causa das cries nos seus dentes que possibilitariam a entrada da enfermidade no seu prprio corpo. 31 [...] Essa pedra no comum, um talism, que tem esprito, uma coisa assim sobrenatural, que tem fora. As pedras que meu pai tinha ou tem quando o temporal avana, quando um relmpago, troves essas pedras se movem por si mesmas, se mexem, a o trovo no cai em cima daquele local, ele se afasta, porque as pedras defendem. [...] (Morador Tariana do bairro So Sebastio, entrevista).
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335 de controlar sua vontade, seja na verso Tukano sobre o consumo exagerado de paric ou na verso Tariana da quebra de uma interdio ligada a sua inalao. O paj tanto pode curar como estragar algum. [...] Com trovo so os pajs. diferente, pessoa que trabalha com marac. Ento eles trabalham com trovo, com vento, com sol, com cigarro. Eles sopram cigarro no sol, chamam o nome da pessoa e d trovo e vai no local que a pessoa estiver. Pode estar aqui pra Santa Isabel, em qualquer cidade, mas se ele tiver o nome, ele chama o nome da pessoa e vai, pega o esprito da pessoa pelo vento, pelo trovo, pelo raio (Rezadora Bar, entrevista). O poder dos seus malefcios considerado por alguns como insupervel, cuja possibilidade de anulao adviria da iniciativa do paj causador da doena32 ou da sua morte, e para outros, ao contrrio, a sua morte impossibilitaria a cura pelos rezadores. O rezador cura apenas com as rezas. Alguns benzedores empreendem simbolicamente procedimentos teraputicos caractersticos dos pajs, como um Arapao que mencionou chupar a doena com as suas rezas e no com a boca. Alguns utilizam oraes catlicas e usam imagens de santos e plantas. Fazem remdios com plantas medicinais e banhos com ervas. Outros benzem com cigarro ou breu na gria (lngua indgena dos parentes paternos). H aqueles que misturam ambos os procedimentos: o indgena e o catlico ou civilizado. Uma rezadora Bar, residente no bairro So Francisco, benze com cigarro e reza com a bblia se a doena for grave. Se o enfermo for branco usa tabaco industrializado
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Em uma das visitas em povoados indgenas do municpio de Barcelos, em julho de 2001, das quais participei junto com militantes da ASIBA, no bojo das atividades polticas desta organizao, nos deparamos com o caso de uma senhora Siusi-Tapuia que foi enfeitiada pelo prprio sogro Curripaco na comunidade de Santa Luzia, por causa de desavenas pessoais entre ambos. Este povoado se localiza em uma ilha do rio Negro, jusante da foz do rio Jurubaxi, e a maioria dos seus moradores Siusi-Tapuia. Ela sofria de uma grave doena, que eu no verifiquei diretamente, mas cujo sintoma mais visvel foi descrito como um grande tumor na boca que no diminua apesar de vrias tentativas mdicas. O rezador que estava presente na comunidade foi quem revelou a causa da doena, porm no podia fazer nada, nem mesmo quaisquer outros rezadores ou pajs e muito menos a medicina ocidental, a no ser o autor daquele estrago, o prprio sogro daquela senhora enferma. O seu marido Curripaco, que tambm rezador, solicitou ao presidente da ASIBA para rezar na sua esposa. Clarindo Campos Tariana concordou, mas avisou que no surtiria efeito, pois deveria para ser bem sucedido usar as oraes Curripaco de quem jogou o malefcio. A nica possibilidade de salvao daquela senhora era trazer o seu sogro de volta comunidade para cura-la, ele estava morando na cidade de Santa Isabel do Rio Negro, e por isso o presidente da ASIBA cedeu ao pedido para levarmos a filha dela para buscar o av; dispnhamos para a nossa locomoo fluvial de um bote de alumnio (voadeira) equipado com um motor de popa de 25 hp.

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336 (Hollywood) se for indgena utiliza tabaco retirado do mato (tauari).33 Um rezador Tucano, morador do bairro da Aparecida, s usava a gria, quando a doena era muito forte e a reza catlica, com santinho de Santo Antnio, no dava certo. Um rezador Tariana por outro lado, morador do bairro So Sebastio, disse-me que foi perdendo a sua fora (capacidade de curar) quando passou a freqentar a igreja catlica, como se cristianismo e xamanismo fossem incompatveis. J o sakaka34 foi caracterizado pela posse de poderes provenientes de uma aliana com o esprito de uma planta. Com esta plantinha o sakaka pode se transformar em animais. Este esprito cobra do curandeiro as almas dos seus parentes pelo servio prestado, deixando-os enfermos. O sakaka oferece espritos de animais, como se fossem dos seus parentes, para satisfazer ao seu auxiliar. Ningum se identificou como sakaka, pois parece que tal condio deve ser mantida em segredo e estigmatizada. Entretanto em alguns casos esta figura pintada com tonalidades menos sombrias. Uma rezadora Bar, moradora do bairro So Lzaro, alegou que incorporava espritos de antigos sakakas para curar, inclusive seu prprio pai falecido. Um rezador Tukano, que reside na comunidade Canaf e revelou ser neto de um sakaka, o definiu como aquele que complementa a ao teraputica do paj, pois ele junta a doena para o paj chupar. Para ele o paj e o sakaka se transformam em animais para descobrir onde est a molstia para mata-la. Algumas pessoas detm um conhecimento de rezas, benzeduras, plantas medicinais e tratamentos teraputicos, mas no se consideram nem pajs, nem rezadores, mas podem ser solicitados a curar alguma enfermidade. Este o caso, por exemplo, de Clarindo Campos, Tariana, presidente da ASIBA.
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As doenas mais brandas so tratadas da seguinte forma: garrafada com as plantas do mato; oraes catlicas em portugus, com o evangelho e com a fita vermelha de Santo Antonio na cabea do doente; corta o mal com a tesoura tambm. Incorpora um esprito (ela chama de vovozinha), que s vem quando ela chama (reza). Ela coloca uma toalha e um tero com crucifixo na cabea do doente e reza em espanhol, depois chupa a doena (fitas, pedaos de vela, ossos, etc). D banho de ervas e faz massagem com plantas do mato. 34 Ningum soube me dizer a origem do sakaka. Uma vez me responderam que ele no tem origem porque ele existe por meio de uma planta. Entretanto, h uma histria Tariana registrada num livro da coleo Narradores Indgenas sobre a origem do paj-sakaka. Um comerciante branco caminhou at a maloca da Gente-Peixe, situada jusante de Santa Isabel do Rio Negro, e l eles mandaram que ele pescasse traras. As traras da Gente-Peixe eram jacars e por isso a mulher que levara o comerciante maloca dos seus pais foi ao igarap ajuda-lo. Levou uma planta da sua roa, ralou e preparou um lquido que eles beberam e com o qual se banharam tambm. Os dois se transformaram em onas para pegar os jacars. O comerciante branco se casou com aquela mulher, com quem teve quatro filhos. Com o nascimento do seu ltimo filho o seu sogro o mandou voltar para perto do seu patro e contar-lhe tudo o que tinha acontecido. Quando j estava trabalhando com o patro novamente foi picado por uma cobra e morreu. O seu esprito retornou para a casa do sogro, na maloca da Gente-Peixe. A planta usada atualmente para se transformar em sakaka antigamente era utilizada apenas para caar jacars (Barbosa & Garcia, 2000).

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337 O encontro com os espritos ocorre em algum momento crtico da infncia do rezador, geralmente quando acometido repentinamente por alguma doena grave, cuja causa desconhecida.35 O seu poder/conhecimento adquirido atravs do encontro em sonhos com um esprito (ou espritos, encantados) que o ensina a curar36, apesar de alguns rezadores mencionarem seus pais e avs como rezadores e at pajs tambm. Esses espritos que ensinam as rezas podem continuar a se comunicar em sonho ou so incorporados pelo rezador nas sees de cura.37 A atuao de rezadores tambm chamados de benzedores em sua prpria lngua indgena (na gria) se baseia em oraes oriundas dos tempos de criao do mundo e remetem aos acontecimentos primordiais narrados nos mitos de origem: [...] O caboclo aprende as rezas com livro. Caboclo cruzado. E o ndio aprende da natureza, aprende com dom, dos pais, dos avs. J vem aquele conto j, desde os primitivos, j era natureza, vem dos antigos isso (Morador Tukano do bairro So Sebastio, entrevista). H uma ntida contraposio entre o branco ou o caboclo que necessita da escrita e, acrescentaramos, de outros suportes materiais ou meios de exteriorizao das memrias oral, visual e sonora: papel, fitas cassete, filmes fotogrficos e cinematogrficos, cd-rooms, disquetes, etc para preservar seus saberes mais apreciados coletivamente e a capacidade cognitiva superior do ndio que grava no pensamento, constitui um arquivo vivo das suas tradies.38 Todavia, nem todos tm essa capacidade cognitiva, esse dom do entendimento, essa fora na memria, como

Um rezador Baniwa, morador do bairro So Sebastio, foi o nico que sonhou quando j era adulto (38 anos de idade). Desde ento ele continua sonhando e aprendendo a curar. O esprito de um paj tinha aparecido para ele num sonho com o objetivo de ensinar-lhe a jogar gua para que ele pudesse curar adultos tambm, pois ele s tratava de crianas. Entretanto, recentemente um paj do rio Demeni fechou o seu corpo a pedido de sua esposa e ele no consegue mais sonhar, os espritos [...] De l pra c posso dormir no sonho mais nada, no vejo mais nada tambm [...] (Rezador Baniwa, entrevista). 36 Existe uma histria Tariana sobre o lder milenarista Baniwa Kamiko na qual encontramos esta mesma estrutura de composio da figura do rezador: doena, sonho, comunicao com um esprito, ensinamentos e poder de cura. Kamiko se tornou profeta depois de ficar doente e receber num sonho uma mensagem de Jesus Cristo que lhe ensinou as rezas para ele curar os doentes. Kamiko construiu uma capela dentro da qual tinha um altar e uma torneira de onde jorravam os remdios vindos do cu para aliviar os sofrimentos dos enfermos. Ele atraiu grande multido proveniente dos rios Vaups, Papuri, Tiqui, Negro, etc. Seu filho que o sucedeu aps sua morte tambm foi um grande profeta, mas os outros eram falsos, enganavam as pessoas (Barbosa & Garcia, 2000). 37 Uma rezadora Bar, moradora do bairro So Lzaro, incorpora o esprito de seu finado pai, tambm um rezador, e de outros rezadores falecidos. Outra rezadora Bar, moradora do bairro So Francisco, incorpora o esprito de uma velha (a vovozinha), que fala espanhol e se veste com uma roupa toda branca. 38 Entre os Hohodene do rio Aiari, Alto Iana, h uma estreita associao entre a escrita, os brancos e os espritos dos mortos; em contraposio oralidade concebida como suporte da sociabilidade e da identidade (Wright, 1996).

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338 tambm ela deve ser cultivada atravs da dedicao a treinamentos para mant-la vigorosa. O rezador Arapao, morador do bairro So Sebastio, acorda de madrugada e fica meditando, lembrando das rezas ensinadas pelo seu pai. J o paj alimenta a sua memria, revigora o seu pensamento, com a fumaa do cigarro. Enquanto ele fuma, ele lembra das rezas.39 Tanto pajs como rezadores enfatizaram a memria como reservatrio do conhecimento transmitido no passado e base do poder de cura: [...] aprende no sonho, vem na pessoa mesmo, e acordou e pronto, s na cabea mesmo. [...] o dom do entendimento da pessoa, a pega o seu dom e faz o trabalho [...] (Rezador Tukano, entrevista). Com suas oraes o rezador v a doena e depois reza para matar a molstia. Algumas pessoas aprendem rezas em livros (como o de So Cipriano) para fazer o mal. Categorias abrangentes de demarcao das fronteiras tnicas e da autenticidade indgena so acionadas para diferenciar o poder das rezas dos benzedores verdadeiros, registradas na mente e transmitidas oralmente atravs das geraes desde os tempos primordiais de origem do mundo, das rezas dos caboclos ou ndios cruzados, aprendidas nos livros. O aprendiz sonha com as histrias contadas por um paj ou benzedor experiente, seja ou no um parente prximo, inscrevendo-as no seu pensamento.40 Alguns aprenderam as rezas e benzimentos com antigos pajs; o que no implica hereditariedade nem iniciao atravs da inalao de substncias alucingenas e de proibies alimentares e sexuais. Um benzedor pode rezar numa outra pessoa para ela adquirir a capacidade de aprender a curar. No caso do paj este conhecimento repassado hereditariamente (para algum filho ou neto) ou
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[...] Por que o paj, os verdadeiros pajs tm essa capacidade de fumar o cigarro, o pensamento dele fumando. Esse cigarro nunca foi usado pra viciar, pros antigos. Eles usavam mais pra pensar, pra colocar as idias no lugar, pra pensar as oraes de reza, [...] (Morador Tariana do bairro So Sebastio, entrevista). 40 Um benzedor Arapao mencionou uma pesquisadora que queria aprender como ele curava e anotar tudo para escrever um livro. Ele se recusou a fornecer as informaes porque ela ia ganhar muito dinheiro curando os doentes com as rezas registradas no seu livro: [...] Ento pra l ela ia perguntar qual a doena, dor de cabea, a ia ver no livro e ia ganhar muito dinheiro. Se ela l no livro, ela realiza, ela decora tudinho e depois vai rezar [...] (Rezador Arapao, entrevista). A transferncia de um suporte imaterial, intangvel (o pensamento) para um suporte material, tangvel (o livro) no retiraria a fora das palavras proferidas nas rezas, mas mudaria as condies de acesso e captao do poder de cura separando o agente e a ao, a fala e a mensagem. Neste caso o livro no considerado uma fonte de poder maligno, de foras patognicas, mas um instrumento de apropriao e explorao de conhecimentos tradicionais e de direitos csmicos (de prerrogativas de controle sobre foras supra-humanas). Eu o tranqilizei dizendo que no tinha vontade de ser rezador, e muito menos de ganhar dinheiro com isso, e ele respondeu que se eu quisesse ele rezaria em mim para me tornar um rezador. Eu agradeci, mas recusei a oferta. Aqueles que rezam com o auxlio de livros arriscam-se a contrair a doena que esto tentando curar se no conhecem as oraes de defesa da sua prpria integridade fsica e espiritual.

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339 ensinado para algum fora do crculo mais restrito de parentesco. Durante a fase de iniciao o novio cheira paric, faz viagens ao mundo dos espritos durante as quais ele adquire seu poder de curar e de estragar e obedece a interdies alimentares e sexuais. Apenas um rezador, Tukano de Canaf, ligou sua fora como curador ao impedimento de se relacionar sexualmente.41 Outra diferena mencionada entre o paj e o rezador se refere cobrana de pagamento pelos servios prestados; o que seria exigido pelo primeiro, movido pelo desejo egosta do enriquecimento, e no pelo segundo, pois este seria motivado apenas pelo sentimento altrusta da caridade. Todavia, h rezadores que cobram pelas consultas e tratamentos administrados. Algumas pessoas garantiram no existir mais pajs em Barcelos ou que os verdadeiros pajs, os mais poderosos, se encontram no alto rio Negro. De acordo com a topografia imaginria mas que apresenta efeitos de realidade muito contundentes do contato intertnico no Rio Negro, o alto o lcus dos poderes genunos de cura dos pajs. Todavia, nenhum curandeiro utiliza qualquer vnculo com esta regio para auferir credibilidade junto aos seus clientes. Vale destacar, entretanto, que os limites entre estas trs figuras de mediao com a dimenso supra-humana da realidade so flexveis, pois existem rezadores que chupam a doena, outros sopram; enfim muitas vezes os entrevistados em alguns casos o prprio curandeiro ficaram em dvida ao serem solicitados a rotular um curandeiro como paj ou rezador. Poderamos considerar a
Na poca que o entrevistei, 14/08/2000, ele tinha 29 anos de idade e era solteiro. Afirmou poder se casar apenas com 34 anos de idade, quando no rezar mais. Somente ento poder gerar filhos e transmitir a eles suas oraes. [...] Mulher atrapalha as rezas, d um grande desastre na memria. A no faz efeito logo, custa [...] (Rezador Tukano, entrevista). Este foi o nico rezador com quem travei conhecimento que se dedica apenas a curar pessoas, levando uma vida de renncia s tarefas cotidianas dos homens adultos comuns (agricultura, pescaria, caa, coleta, extrativismo), referentes reproduo de um grupo domstico. Ele perambula pelas cidades e comunidades do Rio Negro para atender a quem precisa. Um rezador Arapao atestou esta incompatibilidade entre as mulheres e o poder de cura dizendo que elas no podem rezar, [...] elas no podem saber mais do que os homens. [...] Em Barcelos tem rezadora, mas a maioria homem, porque desde o incio tem que ser homem. (Rezador Arapao, entrevista). A esposa deste rezador, uma mulher Tukano, narrou um trecho de um mito de origem no qual o seu cl caiu da primeira posio para a terceira a ltima antes do cl Maku de servidores porque o seu ancestral emergiu do buraco de transformao acompanhado de sua irm que estava mais enfeitada do que ele, demonstrando possuir mais poder do que o irmo. O Criador no gostou e pisou nos dois que saram em outro buraco e no lugar deles saiu o ancestral de um cl no qual a mulher no estava enfeitada, por isso ele ficou na cabea, na primeira posio. [...] Ns ramos da primeira classe. Ns que ramos mais primitivos dentro da cobra, os Tukano. A mulher j tinha poder de algumas coisas, o homem ficou j segundo n. A Deus, Jesus, no gostou. Por isso que ele no quis, por causa da mulher ele pisou. A irm dele se enfeitou mais do que o homem. A ele no gostou. Depois de trs vezes que pisou, a veio outro, era Tukano tambm, era de outra classe. A depois a mulher no usou mais enfeite e a este cl ficou em cima, na cabea. E ns j samos no outro buraco j, formamos gente. [...] (Moradora Tukano do bairro So Sebastio, entrevista).
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340 existncia de quatro categorias de especialistas espirituais se distinguirmos o benzedor do rezador ou duas categorias bsicas (paj e rezador) que se subdividem em duas outras derivadas delas (sakaka e benzedor, respectivamente). Alguns foram indicados por uns como paj e por outros como rezador, e ningum foi indicado como sakaka apesar de vrias pessoas garantirem a existncia de muitos em Barcelos, mas a designao genrica de todos como rezadores predomina. No devemos interpretar isto como resultado de um processo de deturpao do xamanismo autntico, mas como uma situao complexa caracterizada por entrecruzamentos de registros divergentes de construo social e simblica da realidade. O xamanismo como esquema ontolgico de interpretao do mundo dinmico, isto , persiste exatamente porque muda com a incorporao de significados oriundos de outros sistemas cognitivos. Pajs e rezadores sobrepem, de modo particular, elementos das cosmologias indgenas e do cristianismo. Os dois esto includos na categoria antropolgica do xam, porque esto imersos em uma concepo em que relaes sociais, corpo, alma, plantas, animais e espritos esto mutuamente referenciados em um simbolismo da predao/proteo, que define as interaes entre estes elementos ora nos termos da reciprocidade ora nos termos da agresso (Cf. quadro abaixo sobre o sistema de pajelana no Baixo Rio Negro).

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Tabela 1: O Sistema de Pajelana no Baixo Rio Negro.


Paj ou Rezador
Amlson Baslio Brazo. Tukano, 35 anos. Rezador. Mora na comunidade de Canaf, onde nasceu. Seu pai era Tukano e sua me Baniwa. Solteiro. S entende as lnguas tukano, baniwa e nheengatu. Ivo Gomes Melgueiro. Baniwa, 49 anos. Rezador. Mora no bairro de So Sebastio, Barcelos. Fala e entende um pouco de nheengatu. Seus pais eram do rio Iana, no lembra a comunidade de origem deles. Feliciano Matos Lemos, Papaguara, Arapao. Seu pai era Arapao e sua me era Tukano. Fala a lngua Tukano. No fala a lngua Arapao. Sua esposa Tukano. Define-se como rezador e mora no bairro S. Sebastio. Lucimar da Silva, 61 anos, Bar. Rezadora. Mora no bairro So Lzaro. Seus pais eram Bar. Fala a lngua nheengatu. Seu marido branco.

Origem
Quando criana ficou doente, apareceu o anjo Gabriel em sonho que lhe ensinou a curar. O anjo o levou a um velhinho, que usava roupas rasgadas, que o crucificou.

Cura
Oraes catlicas em portugus. Reza com plantas (molhadas em uma vasilha com gua e sal) e com tesoura para cortar a doena.

Doena

Categorias
Sacaca: chupa a doena, transforma-se em animal e em Mati. Rezador: v a doena e a mata com o poder da orao. Paj: junta a doena no corpo, transforma-se em animal, sopra (joga doena). Paj: joga gua, chupa, benze com cigarro, cura com uma pedra. No se transforma em bicho. Rezador: poder da orao.

Espritos apareceram em sonho e o ensinaram a curar. Comeou quando tinha 38 anos de idade. Um morador do Demeni fechou seu corpo e ele parou de sonhar.

Herana dos pais, dos avs, vem dos antigos, desde as origens. Seu pai era benzedor. Comeou a rezar com doze anos de idade. Seu pai explicava e ele sonhava.

Malefcios: inveja faz feitio com velas e imagens. Encantados: espritos em forma de animais que atacam as pessoas. Involuntrio: adulto com fome quando olha para criana d quebranto. Oraes catlicas em portugus. Involuntrio: adulto com fome No usa plantas para rezar. quando olha para criana d Tambm chupa a doena. quebranto. Vento forte: quebranto. Fome: me do corpo nas parturientes. Plantas medicinais: causas naturais. Encantados: ataca as pessoas. Reza na gria (lngua tukano). Encantados: espritos que Toda reza uma histria, atacam as pessoas. referem-se a feitos e eventos de um tempo primordial. Reza com a mo ou coloca gua onde o doente sente dores. Chupa com a reza. Sopra com cigarro no parto. Faz defumao, faz remdio, usa plantas para rezar, faz ch e faz banho com ervas medicinais. Quando reza, em portugus, incorpora o esprito de seu pai, grande curador, sacaca, e de outros rezadores falecidos.

Comeou a rezar com 12 anos de idade. Ela tinha vises. Sonhava com rezadores que lhe pediram para comprar sete velas. Iam chegar canoas do interior em 15 dias e ela deveria colher ervas no mato. Estes rezadores que lhe ensinaram a curar.

Rezador: poder da orao. Paj: benze com cigarro, chupa a doena, joga gua e usa uma pedrinha. Paj e sacaca transformam-se em animais. Sacaca: esprito auxiliar exige a vida de parentes em troca pelas curas. Rezador que faz mal com livro Paj: joga gua e sopra (benze) de caravaca, livro de So com cigarro; tambm faz mal e Cipriano. cobra em dinheiro pelo seu servio. Sacaca: cura, reza e faz remdio com erva do mato.

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Tabela 1: O Sistema de Pajelana no Baixo Rio Negro (continuao).


Origem
Com sete anos adoeceu (sentia fortes dores de cabea), quando comeou a ter vises. Via uma mulher vestida de branco e s vezes vestida de azul, a vovozinha. Com 16 anos as crises pararam de repente. Maldade e por vontade de Deus. Malefcios (trabalho diablico) podem ser feitos com cabelo, com taj (batatinha que corta), raspa e passa na roupa ou no calado de algum. Podem ser feitos tambm com casca de pau (raspado), com vela, cigarro, com orao (pelo trovo, pelo vento, com raio). Com trovo, com vento... so os pajs, que trabalham com marac.

Paj ou Rezador

Cura

Doena

Categorias
Paj: joga gua, sopra com cigarro e usa marac. Rezador: s com orao da igreja.

Maria Etelvina Pessoa, 44 anos, Bar, rezadora. Moradora do bairro de So Francisco, Barcelos. Seu pai era Bar e sua me era Baniwa. Fala nheengatu. Nasceu na Ilha de Piracema, em Santa Isabel do Rio Negro. O marido (falecido) era branco.

Ricardo Estevo Marcelino, Desana, 67 anos, rezador. Morador do bairro da Aparecida. Nasceu em Taracu. Seu pai era Desana e suame era Tukano. Sua esposa Tukano. Fala tukano e nheengatu. Define-se como benzedor.

Aprendeu a rezar com Amrica Pari (de Pari-Cachoeira). Ele sonhava bem, porque tinha duas pedras que lhe foram dadas por um macumbeiro de Manaus. Ele no cuidou as pedras fugiram dele. Ele benzia com as pedras, sonhava o que os doentes tinham. Ensinava como curar, dizia qual era o remdio. As pedras viravam gente no sonho.

Faz garrafada com as plantas do mato. Oraes catlicas em portugus. Reza com a bblia, com o evangelho e com a fita vermelha de Santo Antonio na cabea do doente. Corta o mal com a tesoura tambm. Incorpora o esprito da vovozinha, que s vem quando ela chama (reza). Coloca uma toalha e um tero com crucifixo na cabea do doente. Reza em espanhol. Depois chupa a doena (fitas, pedaos de vela, ossos, etc). Tambm sopra com cigarro na cabea do doente. D banho de ervas e massagem com plantas do mato. Reza com imagem de santo catlico (So Joo), benze em tukano, com gua para tomar e com vela. Matauari benzimento de paj em tukano com cigarro, com ch, com mingau... Reza primeiro com imagem de santo, se no der resultado reza em tukano. Estrago no sabe tirar.

Paj: joga gua, tira estrago; controla as foras da natureza (trovo, vento, etc); benze com cigarro, cheira paric e usa o marac. Paric cobra a vida dos parentes do paj, quanto mais morrem seus parentes mais o paj ficar poderoso, curador. Sacaca: igual a paj, dono de paric, s que ele diferente do paj do paric, sabe outras coisas; usa planta para sonhar, se transforma em animal e o paj no.

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Tabela 1: O Sistema de Pajelana no Baixo Rio Negro (continuao). Origem Cura Doena Categorias
Sacaca: macumbeiro, usa orao forte, sacaca, uma planta esprita, s usada na lua nova. Jogam relmpagos, troves quando brigam.

Paj ou Rezador

Amrico Augustinho Tio paterno de sua esposa, que Reza com cigarro ou breu, Ferreira, Tariana, 59 anos, era paj, ensinou-lhe a curar. sopra dentro de uma cuia, rezador. coloca o esprito das pessoas Residente no bairro de So l dentro para fechar o corpo Sebastio, cidade. dela para no doena. Fecha Nasceu em Pino-Pino, rio tambm corpo da casa, pra Vaups, So Gabriel. no cair o raio. Fala tukano e nheengatu. A reza em lngua tukano. Sua esposa Tukano. As rezas so da natureza, do tempo dos antigos, passa de pai para filho, ficam registradas na memria. Usa plantas tambm: para fazer massagem, frico. Aprendeu com o paj Wilson. Aprendeu com um colombiano, Luiz Peres, orao para encantado. Benze com cigarro e oraes catlicas. Benze (com a orao adequada, vela e cigarro) para descobrir quem jogou malefcio no doente. A doena volta para quem enfeitiou.

Joaquim Maia, 60 anos. Nasceu na comunidade Acarabixi, Santa Isabel. Seu pai nasceu em Santa Isabel e sua me era colombiana. Define-se como paj. Sua primeira esposa era Tukano. Fala nheengatu e castelhano.

Fora de orao dos pajs. Estrago no tem cura. O bicho tambm estraga na vez dele, todo bicho tem raiva da gente (porco, cotia, tatu, paca...), eles so encantados. Na vez dele ele tambm gente. Eles tm armas (flechas, arpo, faca...), s no tem espingarda, todo veneno eles tem. Tambm sabem soprar, eles sopram em ferramentas at que forem deixadas no mato. Os peixes estragam tambm, e todos estes pssaros do rio. Sereno: roupas no varal noite pode pegar cobreiro. Feitio: malefcio jogado por algum. Sonhar mau e for tomar banho no rio o piolho dgua pica. Encantado: ataca a pessoa.

Sacaca: chama, atravs da reza, encantado para estragar. Ele benze com cigarro e cura tambm. Tambm se chama macumbeiro.

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Tabela 1: O Sistema de Pajelana no Baixo Rio Negro (continuao).


Origem
Aprendeu com seu av, durante cinco anos ficava isolado numa cabana morando com ele, afastado dos parentes. Durante esse tempo no brincava com mulheres e cheirava paric. No comia peixe bonito (pacu, aracu), s peixe bonito (car). Reza (benze) com cigarro (tauari e breu que tira no mato) e planta (vassourinha). Joga gua: coloca umas folhas em uma bacia, reza e joga a gua no doente. Reza em nheengatu, uma reza indgena. Chupava a doena, mas parou porque seus dentes esto estragados, a doena pode entrar por eles. Usa plantas medicinais (chs) para doenas como malria. Curava com pedrinhas tambm, mas perdeu no rio Preto. Seu av que lhe deu. Encanto: bichos (espritos) do mato que flecham as pessoas que sonham feio (pesadelo) ou comem coisa fria. Malefcio jogado por paj.

Paj ou Rezador

Cura

Doena

Categorias
Rezador s reza mesmo. Paj: reza, joga gua e benze com cigarro. Sacaca anda com maquiritare.

Roberto Serafim Loureno, Baniwa, 26 anos de idade. Mora na comunidade Santo Antonio. Fala nheengatu. Seus pais vieram do rio Iana, perto da Venezuela. Sua esposa branca.

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As doenas podem se originar do descontentamento de algum encantado com o comportamento dos humanos em certos momentos do ciclo de vida (como nascimento dos filhos, parto, menstruao, etc.), ou que impliquem alguma interveno na floresta ou nos rios e igaraps.42 [...] Na menstruao e na gravidez a mulher tem que se controlar, porque seno os encantos perseguem. Ela sente dor de cabea e frio. Os botos a esto atingindo, pegaram o seu esprito. Ela sempre tem seus horrios de comida, de trabalho, de fazer oraes. Da mesma forma eles tambm, sentiu que to assim, temos que maneirar pra no sofrer. Evitar certos horrios de andar, ficar parado, quem est menstruada. Os botos so espritos que a gente quase no olha mesmo. Por exemplo, andando no sol que clareando, o boto da gente, o vento da gente n, a sombra, fica pra trs da pessoa. Nesses casos que eles vm e pega a gente, os botos, os encantos. A pega o esprito da pessoa. A vai ficar com dor de cabea, frio, febre, a vai se agoniando. Depois que se agoniar, vo chegar pra perto dela, puxar o punho da rede, chamar o nome dela, vo ver ela j, vo perturbando e se no tiver o que afasta logo eles levam (Rezador Tukano, entrevista). Os encantados so seres perigosos e vingativos, entretanto os humanos podem ser atacados por eles sem motivo algum. Controlam as interaes dos homens com os outros seres da natureza (animais, vegetais e minerais), assumem a forma deles e a humana tambm e so seus guardis e donos. Punem aqueles que exploram excessivamente as matas e os rios ou no seguem certas regras (como as proibies de comer alimento frio ou assado em demasia, de ter relaes sexuais, etc). S o paj e o rezador tambm para alguns pode identificar quando um animal um encantado ou uma criatura de deus e se uma doena foi causada pelo ataque de um deles. Estes espritos moram em um mundo invisvel que acessvel atravs do uso de uma planta ou por pessoas que sabem rezas e so
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Os outros fatores patognicos so os malefcios jogados por pajs por sua prpria conta ou por encomenda de algum; envenenamento por mati; e causas naturais (quebranto, picada de piolho dgua quando algum sonha mal e toma banho no rio, cobreiro, me do corpo, vento cado, rama do ar, etc.). As motivaes em geral mencionadas para estragar os outros foram a inveja e a vingana. As doenas provocadas pelas foras da natureza so tratadas com remdios feitos com plantas medicinais, banhos de ervas e rezas.

346 dotadas de habilidades mentais (concentrao) especficas para esta finalidade. Este um mundo subterrneo, representado como uma realidade paralela onde o que ns vemos e vivenciamos como florestas, serras e rios so vistos e vivenciados como cidades (com edifcios imensos, agncias bancrias, grandes avenidas, muitos automveis, etc.), prdios e estradas pelos encantados. Nas serras (lugares sagrados e misteriosos) esto depositadas muitas riquezas em ouro ou em dinheiro que o Criador deixou quando distribuiu os bens para toda a humanidade. interessante notar como este elemento do imaginrio partilhado por vrios grupos indgenas do rio Negro confere um status supra-humano e, portanto, acentuado nvel de alteridade civilizao, caracterizada por suas manifestaes no espao (cidade) e nos objetos (mercadorias); sendo o grande centro urbano um cone vigoroso do poder extraordinrio, fantstico e monumental do branco. Existe um vnculo estreito entre a cidade e a floresta, a civilizao e a selvageria, a doena e os encantados. Pajs e rezadores so os mediadores fundamentais neste cenrio perigoso para a convivncia humana. Em tal registro simblico talvez encontremos uma das motivaes para a migrao s cidades regionais (So Gabriel da Cachoeira, Barcelos e Manaus) e as atitudes dos migrantes indgenas neste novo ambiente social e geogrfico. Mesmo entre aqueles que moram em comunidades ou stios do interior existem muitos indivduos e famlias que j viveram algum tempo no meio urbano em algum momento da sua trajetria. A viagem e a prpria cidade situam-se em dois planos, o supra-humano/invisvel e o humano/visvel, e podem ser realizadas pela mediao com alteridades, sejam encantados ou brancos. Estas duas categorias de alteridade, inclusive, esto intimamente associadas numa variante do mito de origem dos povos indgenas do Rio Negro. Na verso Tariana os brancos no so descendentes dos Maku43, eles foram transformados em gente pelos Diros em outros
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Todavia os Maku no deixam de ser uma referncia tambm para os Tariana quando querem atribuir alteridade a outros grupos tnicos. Um morador Tariana do bairro So Sebastio narrou uma histria sobre a origem Maku de todos os Arapao. Em sntese, os Arapao estavam tinguijando em um lago e foram surpreendidos por uma grande inundao enquanto estavam dormindo. Sobreviveu apenas o servo Hpda (Maku) que no dormiu porque estava cuidando do fogo e no comeu os peixes assados que seus donos Arapao pegaram. Ele subiu em uma rvore e sobreviveu. Os Arapao ancestrais transformaram-se em encantados e estavam fazendo festa debaixo da terra. O empregado retornou para a maloca onde estavam as duas mulheres do tuxaua Arapao. Ele casou com as mulheres e benzeu com oraes e batizou com nomes Arapao os filhos gerados por eles. Todos os Arapao atuais so descendentes deste servo Maku. Uma outra histria Tariana registrada por mim em Barcelos conta a histria da origem de um dos cls Tukano. [...] Eles so doidos pra ter escravos, os tukanos eram orgulhosos, eles comandavam aquele Hpda l, os escravos deles, os macus [...]. O filho do tuchaua Tukano, o seu herdeiro, deste cl seria criado pelos servos Maku at

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347 continentes enquanto na Amrica os seres de terra (de barro) foram criados no Lago de Leite, Baa da Guanabara, no Rio de Janeiro44, que embarcaram na cobra-canoa e navegaram pela costa brasileira at chegar na foz do rio Amazonas e da subiram at chegar em Ipanor, onde os ancestrais desembarcaram e se transformaram em gente. No caminho entre o Lago de Leite e Ipanor o navio-cobra passou por muitas malocas habitadas por encantados (Gente-Peixe) que entravam na embarcao para se tornarem humanos. Ns tarianos no temos essa histria de que os brancos descendem de Maku. E tambm esse negcio de que eles atiravam com espingarda tambm no existe em nossa histria. S sabemos que os Diros, depois que eles foram elevados aos cus, eles desceram l do outro lado do mar, criaram com terra outras personagens, mandaram pelo fundo do mar, no rio Leite, outras criaturas tambm feitas de terra, e mais que vieram recolhendo nos lugares encantados pra transformar tambm pra c, enquanto eles estavam criando l. Essa a nossa histria. Aqueles seres que foram criados l, eles so de l, e ns que nos transformamos aqui somos daqui. Foi numa mesma poca. Pra ns a histria nossa essa, e at a (Morador Tariana do bairro So Sebastio, entrevista).45
ficar adulto. Num certo dia a criana sofreu um ferimento fatal e os escravos Maku atemorizados resolveram guardar segredo sobre a morte do garoto Tukano e o substituram por uma das suas crianas da mesma idade, estatura, peso, enfim, bem semelhante fisicamente. Ningum percebeu a troca e a criana Maku cresceu e foi enviada para a famlia do chefe Tukano falecido, ele teve muitos filhos e netos, formou um povo muito grande. Os membros atuais deste cl no sabem desta sua descendncia, isso um segredo, nunca foi revelado para eles. [...] uma classe de tukanos. Um cl que considerado quase cabea deles [...]. Mas eles acreditam que eles so tukanos. No verdadeiro mesmo [...]. [...] parece como ndio mesmo, de cabelo durosinho, bem fino mesmo. Os Hpda so assim [...] (Morador Tariana, entrevista). 44 Ento nossa histria diz que o Rio de Janeiro, Baa de Guanabara, coisa assim n, ns ndios Tariana dizemos que l um lago de leite, um rio de leite, onde desemboca que vem l, o rio de leite. [...] Ento as pedras l so formadas somente em aparncia de seio de mulher. A gente v nos livros que uma grande pedra, o Po de Acar, ns dizemos que so os seios de mulher, que tem origem o rio de leite que vara a [...] (Morador Tariana, entrevista). 45 Os Diros decidiram criar seres de terra depois de terem criado seres de madeira e seres de pedra, que se rebelaram contra eles e foram destrudos nos cataclismos enviados pelos heris culturais. por esta razo que as rochas e as rvores tem espritos, encantados; nos tempos primordiais elas eram gente, tinham inteligncia e vontade, apenas sua configurao material era diferente da dos homens atuais. Compreendemos assim porque os homens devem fazer oraes e benzimentos pedindo permisso aos encantados antes de derrubar uma roa, de caar, de pescar e de viajar pelas serras. Esta uma histria longa e rica de detalhes at chegar na partida do navio-cobra do Lago de Leite, no Rio de Janeiro, rumo a Ipanor, no Alto Rio Negro. Os Tariana (originalmente um povo de fala Aruak) no foram criados como os outros povos de fala Tukano. Seus ancestrais tambm vieram dentro da cobra-canoa, porm no emergiram dos buracos de transformao na cachoeira de Ipanor, tornaram-se humanos atravs dos troves lanados pelo Criador na cachoeira de Ayari; eles so descendentes do trovo. [...] Enquanto eles encostaram l [Ipanor], o Criador, o chefe que foi

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348 Alguns encantados que perderam a oportunidade de entrar na cobra-canoa e se transformarem em humanos. Por isso eles hoje tm raiva dos humanos, pois so descendentes dos encantados antigos que entraram na cobra-canoa quando foram criados os vrios grupos indgenas do Rio Negro.46 Estes espritos que no conseguiram tornar-se gente so descritos como tendo a aparncia dos brancos. No, l nos encantados no tem indgenas. Todos os encantados so brancos. A cobra grande, qualquer animal so brancos. [...] So brancos, eles so espritos que no conseguiram transformar junto com a gente ento ficaram l. Porque ns tambm antigamente ns fomos de l, surgimos de l, o mundo surgiu, numa terra que dizem que a terra pura, e para l o mundo mais puro do que essa terra aqui, eles queriam tambm passar pra c, mas tem muitos grupos de povos que no conseguiram no momento de transformao no conseguiram sair, mas eles queriam, mas eles ficaram l como animais. Depois desse momento de transformao, ele no tem mais condio de transformar como ns humanos, eles continuam animais, mas eles tm corao humanos, mas eles no podem mais ser gente, so um mundo invisvel no mundo que as pessoas transformaram, mas esse mundo do encantado diferente, quer dizer, no princpio a gente era desse mundo encantado. Ento, esses encantados so os restos daqueles que no conseguiram

encantado das pessoas que ia transformar, que ia sair por esta parte da terra, ento ele disse assim pra ns que viemos ser os tarianos, ele disse: Olha, vocs, porque so descendentes diferentes, vocs so carne do trovo, vocs tarianos nunca sero filhos assim feitos com a terra, mas vocs so carne do trovo. E nesse caso a transformao no ser compartilhada com essas outras tribos, mas vai ser diferente a transformao de vocs. A ele mandou pelas nuvens [...] E na hora que eles estavam saindo daqueles buracos de transformao ns estvamos tambm numa noite de tempestade, de temporal, era trovo pra todo lado. Ento cada trovoada era um grupo de tarianos, um cl, que aparecia. Aquela pedra, tinha uma pedra l, uma cachoeira, Ayari, cabeceira tem uma cachoeira l, ento cada trovoada era um cl que descia, primeiro, segundo grupo... [...] (Morador Tariana do bairro So Sebastio, entrevista). 46 Temos aqui uma verso Tariana sobre a origem do curupira bastante diferente daquela narrada por moradores Tariana do Alto Vaups (Vide a nota n 33). Ele era um encantado que no embarcou, perdendo a oportunidade de tornar-se humano, quando passou a cobra-canoa na maloca onde morava porque estava embriagado. Por isso o curupira tem raiva de todos os humanos e prometeu devorar o primeiro que encontrasse, e todos os outros desde ento. [...] Por exemplo, o curupira ele queria se transformar tambm, mas s que no momento que o barco de transformao passou ele estava meio bbado, embriagado, quando ele soube o barco j tinha passado. Ento ele disse: a primeira pessoa que se transformar eu vou comer. Ento ele ficou inimigo da gente ento ele come pessoas [...] (Morador Tariana do bairro So Sebastio, entrevista). Encontramos os mesmos elementos estruturais da formulao deste cone da predao e da alteridade existentes em outras verses: canibalismo, descontrole de si, vingana, embriagues, encantado, brancos, espritos, animalidade.

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349 transformar no momento que ns nos transformamos em seres humanos, no conseguiram se transformar em seres humanos. Ento quer dizer, ns ramos do mundo encantado, mas ns viemos pra c, a gente ficou por aqui. (Morador Tariana do bairro So Sebastio, entrevista). No mundo invisvel os encantados so pessoas, quando eles vm para o mundo humano eles aparecem sob a forma de animais e quando os humanos vo para o mundo deles so vistos como animais. No existem povos (Tukano, Tariana, Arapao, Desana, Piratapuia, etc) no mundo dos encantados, todos so brancos. Esta categoria, portanto, remete neste contexto a uma identidade puramente negativa, a eliminao de todas as fronteiras tnicas. O risco de tornar-se um branco, ter o seu esprito arrebatado pela civilizao, anlogo a migrar definitivamente para o mundo dos encantados, perdendo suas referncias tnicas, sua humanidade. Este re-encantamento das pessoas indgenas est ligado aos estados de enfermidade e morbidade.47 Os brancos so parentes dos
Este relato de uma moradora Bar da comunidade de Floresta muito ilustrativo para entendermos a ntima conexo simblica entre a doena, a morte, os encantados e a cidade: Eu via pessoas diferentes, me atacou quando eu estava com 18 anos, a primeira vez que eles me atacaram, a eu estava na beira lavando a minha mo eram seis horas da tarde, trabalhava na seringa, a quando eu estava lavando a minha mo eu escutava uma pessoa dizer assim pra mim: cuida-te, vai-te embora que vem um homem te pegar. Aquilo para mim eu ouvia, mas aquilo para mim era na minha mente eu acho. A eu sa, o porto era apraiado, quando eu cheguei no meio da praia eu olhei para trs, a vi aquele homem que vinha no meu rumo, eu corri, mas eu no me lembro como cheguei, eu cheguei na porta de casa assim eu ca [...] Mas eu estava desmaiada, porque parece que ele entrou sei l no meu corpo no sei, a quando eu acordei, quando eu me alertei eu estava na rede. Comeou assim para mim. A depois o rezador que a mame mandou chamar disse que era isso que eu tinha, e no ia me atacar s aquela vez no, ia continuar, e todas as sextas feiras, quando chegava sexta-feira eles me atacavam. [...] Sempre quando vinham era com roupa branca, tipo um terno assim, bem vestido era uma pessoa normal, s que eles ficavam me aperriando todo o tempo, primeira vez s foi s um, depois eram dois, depois eram trs e depois eram quatro, e esses quatro iam me matando. [...] Eles ficam me convidando para ir com eles para passear, iam me levar para passear na cidade, conhecer a cidade deles, eles ficavam me convencendo sabe. A foi na poca que eu me casei com esse meu marido a foi pior, a que me tentavam mesmo. A ns fomos embora, ele me levou l para o Igarap para cortar piaava, mas foi em vo, que eu no fazia mais nada no, a me atacava dor de cabea que eu gritava de dor de cabea. Antes ainda eu fazia fora com eles, eles diziam que iam me levar, a eu tinha vontade de ir sabe, a eu disse que ia, eu fazia fora para ir e juntava um bocado de homem para me agarrar para no deixar eu escapulir mas eles quase que no conseguiam, so eles que entram no corpo da gente. A com o tempo um curador disse que ia tirar isso de mim, porque eles estavam me matando, eles me convidavam para eu ir, eu ia com eles por a, andava numa cidade como se fosse Barcelos, eu andava por a com eles, s no comia. [...] A diziam que se eu comesse da comida deles eu no voltava mais eu tinha que ficar com eles. A eu no comia no, mas s que em casa eu no comia, eu ficava s dormindo, para eles eu estava dormindo aqui nessa rede, mas eu no estava a, meu esprito estava por a com eles no sonho, e com essa arrumao eu ia morrendo, eu j no comia mais nada, no tinha mais prazer para nada. [grifos SCP] (Moradora Bar da comunidade Floresta, entrevista). A morte neste contexto significa tornar-se um encantado e viver na cidade deles e a comensalidade, como nas relaes sociais humanas, uma forma de extrema sociabilidade com estes espritos, de captura/domesticao da alteridade atravs da consubstancializao dos parceiros engajados em
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350 encantados, por esta razo so mais facilmente curados pelos pajs: no existe raiva nem inveja neste relacionamento. Temos aqui a correspondncia entre indgenas e brancos os primeiros precisam de rezas para viver, de meios de defesa contra os ataques dos encantados , corpo e alma, diversidade e universalidade. As rezas so especficas para cada etnia e sua eficcia pode depender at do conhecimento do nome tribal do enfermo. As rezas (veculos da memria mtica e da memria histrica) constituem um meio de continuar o trabalho de transformao original (humanizao), alimentando o esprito com as marcas distintivas da tradio para fortalecer um corpo vulnervel ao pathos da homogeneizao e do caos. Um fundo comum civilizado (alteridade) sustenta as diversas possibilidades de ser indgena (identidade). O grande desafio o seguinte: como transitar nos planos de realidade equivalentes dos encantados e dos brancos e continuar sendo uma pessoa indgena? A resposta est na condio de caboclo ou ndio civilizado; cujas alternativas locais de implementao so o extrativismo, o xamanismo e o associativismo. [...] Porque nossa alma sempre branca, l no tem distino, nosso corpo aqui humano se distingue em povo tariano e tal, l no mundo dos encantados, como invisvel, no mundo dos encantados, no mundo dos espritos ns temos uma aparncia s [...] mais fcil de curar, para ns mais difcil, porque desde criana ns recebemos reza, a gente nasceu com a reza e a gente vive na reza. Agora vocs no, nunca tiveram essa reza, ento quando fica doente tem mais facilidade. Agora quando reza para uma pessoa indgena, tem at que saber o nome tribal da pessoa (Morador Tariana do bairro So Sebastio, entrevista).48 Os encantados, aqueles que no embarcaram na cobra-canoa, tambm moram em malocas no fundo dos rios. H relatos em que pessoas desapareceram em redemoinhos
uma interao. A relao sexual com algum encantado, em outros relatos, tambm constitui uma modalidade de consubstancialidade que confina o esprito de uma pessoa definitivamente na cidade deles. 48 Os Hohodene associam a alma dos mortos aos brancos. As almas so purificadas no buraco de breu fumegante e ficam brancas (Wright, 1996). Temos tambm a conexo simblica entre o branco e a morte, porm na narrativa Tariana aqui apresentada a brancura no um destino pstumo de todos os humanos e sim uma origem prstina de toda a humanidade que deve ser evitada enquanto possibilidade de destino pstumo da alma capturada pelos encantados, situao traduzida por uma doena neste mundo. Constatamos do mesmo modo uma equivalncia semntica entre a assimilao csmica dos humanos na cidade dos encantados e a assimilao histrica das pessoas indgenas na cidade dos brancos.

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351 prximos de cachoeiras no alto rio Negro, quando tentavam ultrapass-las com suas embarcaes, transformando-se assim em encantados e fadados a morar junto com eles nas suas malocas submersas.49 O tempo dos antigos est presente na memria e no imaginrio nos termos de uma conscincia mtica de residentes indgenas de Barcelos e constitui modelo de vida tradicional, mas representado tambm como um passado que no volta mais, que no pode ser objeto de prticas de resgate cultural proposta pelos missionrios salesianos adeptos da inculturao. Este posicionamento acompanhado de uma viso crtica da antiga prtica repressiva salesiana ao antigo modo de vida indgena. Quem acabou muito tambm com os antigos foram os padres. Eles no acreditavam a f da pessoa, no acreditavam nas rezas, nas crenas, no acreditavam em nada. O que aconteceu? Os velhos ficaram tristes, a foram... morreu. Falavam que era o diabo. E agora os padres esto querendo renascer novamente. Agora no adianta mais. Uma vez vieram me convidar para falar isso. Eu falei: Isso a j acabou, muito tempo atrs. Se vocs quisessem at hoje existia isso, hoje em dia comeava pela raiz. Mas agora muita gente no entende mais. Cada tribo que nasceu tinha a sua msica, fazia bebida, eles danavam, tudo isso (Rezador Arapao, morador do bairro de So Sebastio, entrevista). Naquele tempo estava bem organizado. Respeitavam as classes superiores. Os membros da mesma classe no podiam casar entre si, s com os de outra tribo, so irmos. Mas agora esse tempo no tem mais esse regulamento no. Isso acabou. Tukano casava com Baniwa se o pai quisesse, se no... casava no. Casava com as primas. Tinha direito de casar com a filha da irm [...]. Agora ningum

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Ento esses que a gente v que existem realmente no fundo das guas, esses tipos de malocas que existem ainda. Muita gente ficou, no saram todos pra transformar. [...] Os pajs dizem que so aqueles que ficaram, que no saram daquele buraco de transformao, que iam sair, mas ficaram. Ento eles ficam olhando j quem alaga, antes de alagar algum ento ele j v, ele comea a fazer aquela festa, porque ele j sabe a alma que vai chegar l. J conhece o nome, j sabe tudo l. Eu no sei como esse negcio, mas dizem que todas as pessoas que passaram l foi chamado pelo nome dele l. nomes benzidos, nome tribal. Eles conhecem l. E essa maloca realmente existe. Parece uma fora de um ventilador que te empurra l pra fora, a vai como uma bala. (Morador Tariana do bairro So Sebastio, entrevista).

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352 conhece mais. Isso acabou. Os padres acabaram. Hoje em dia ningum sabe mais quem tribo. Depois que os padres surgiram acabou tudinho. Os padres querem que volte tudo como antigo, j est tudo atrapalhado. Chegaram aqui os primeiros missionrios dizendo que era tudo diablico. Vocs so pagos, vocs tm que benzer como os brancos, tomar caf, trabalhar, roupa, tem que aprender a falar o portugus, essa lngua de vocs coisa feia. Mas os brancos tambm tm coisa feia, de macumba, rezas, arma de guerra. Tudo coisa que deveria jogar fora e conservar coisa boa, como benzimento, fazer bem e rezar. Padre mesmo tava falando essas coisas, pros branco no tem pecado. Porque os padres vieram dizendo que o ndio tem pecado, pro ndio no multiplicar, pra depois do casamento ficar s com uma mulher, pra acabar essa raa, pra o ndio no multiplicar mais que o branco (Morador Tukano do bairro So Sebastio, entrevista).

As malocas no acabaram exclusivamente por causa da represso truculenta dos missionrios salesianos. Esta violncia iconoclasta s foi tolerada porque os indgenas tambm atriburam significados que proporcionaram sua aceitao. A grandiosidade e imponncia arquitetnica dos prdios salesianos, em contraposio s malocas, constituiu um investimento simblico fundamental na construo social do carisma e da dominao missionrias na regio (Geertz, ); miniatura (Levi-Strauss, 1962) e signo metonmico da civilizao naquele momento. A maloca se tornou sinnimo de alteridade, de atraso, misria e selvageria, cone do modo de vida do ndio verdadeiro; relegada a um passado definitivamente ultrapassado ou at mesmo expulsa de uma condio pretrita e transferida para outros grupos expandindo assim a distncia social frente a eles. Os padres trouxeram a civilizao, mas trouxeram tambm a desordem, o caos, desrespeitaram o regulamento, estabelecido quando os ancestrais das classes e das tribos se transformaram em gente. O presente concebido como um tempo em que a vida segue sem rumo, sem lei, sem controle: acabaram as festas, as danas, as msicas, hoje em dia ningum sabe mais quem tribo, agora est tudo atrapalhado, o ndio j virou branco. Esta sensao expressa principalmente em termos de ruptura com as regras de exogamia. Ns vimos tambm, por outro lado, que este estado de desregramento j estava prefigurado nos tempos 352

353 primordiais; e a cidade a sua traduo espacial e por isso lugar perigoso onde os homens esto sob constante risco de serem atacados pelos encantados. Da a necessidade dos pajs e rezadores, pois so eles que costuram constantemente os rasgos feitos pelos homens no tecido social e cosmolgico (Reichel-Dolmatoff, 1976).50 Todavia, se o cristianismo o mal, a doena, pode ser tambm o bem, a cura: a alteridade pode ser fonte de destruio e de regenerao. Smbolos cristos so incorporados e reinterpretados no sistema de pajelana vigente no Baixo Rio Negro. A configurao dos povoados segundo o modelo de comunidade (com o seu desenho formal de organizao das relaes de co-residncia fundamentada em uma linguagem polticoreligiosa), proposta pelos salesianos no bojo de uma prtica missionria renovada pelos ventos da teologia da libertao, emergiu como uma nova possibilidade de superao de um mundo desgovernado. Os moradores indgenas dos bairros perifricos da cidade de Barcelos reproduziram o modelo das comunidades no seu novo contesto urbano de vida. A memria seletiva, implica em zonas de esquecimento coletivo geradas em distintas experincias do contato intertnico, pois um rezador Desana, morador da comunidade Carvoeiro, evidenciou a preservao da imagem da maloca como signo absoluto desta ordem violentada e cuja reconstruo acarretaria a possibilidade do seu retorno.51 Nesta perspectiva a grande casa coletiva o smbolo mximo dos esforos de domesticao do

As jovens que no ficam de resguardo, por exemplo, durante a menstruao, vo para a roa, vo tomar banho no rio, danar, comem carne, ficam doentes, o esprito pega o corao delas. Terminando o resguardo o pai que souber reza, sopra com cigarro e libera aquela pessoa para desempenhar qualquer atividade. O jovem que namora moas em perodo de menstruao vem o encanto e d uma surra nele. Quando algum vai derrubar uma roa deve usar a orao adequada para se defender dos encantados. Fazendo isso no vai sentir nenhuma dor no corpo, parece at que nem trabalhou. Alguns rezadores alegaram fechar os corpos dos seus filhos, assim eles podem fazer tudo sem problema porque esto protegidos. Um rezador Tariana afirmou colocar o esprito da sua famlia em uma cuia, com a orao, escondendo-o dentro das rvores de modo que as enfermidades que andam procurando algum para atacar no o encontram. A doena no encontra a alma da pessoa, ela no est sem alma, mas como se estivesse vazia espiritualmente. Explicou o significado da cuia na manuteno da sade se referindo ao tempo em que Deus criou o esprito de vida rezando e soprando um cigarro sobre uma cuia cheia dgua. Os benzedores utilizam, nas preces, os objetos que Deus deixou desde o incio dos tempos para os ndios se defenderem das doenas. Estes objetos so a cuia, o banco, o cigarro, a bengala, a tocha e o tapete. Com as rezas as foras vitais contidas na cuia so mobilizadas, somente falando na orao com cigarro e com bebida, para proteger o corpo das pessoas. 51 Este benzedor props a construo de uma maloca em Carvoeiro com a finalidade de preservar o conhecimento dos antigos, seria um local de formao de novos pajs e contaria com a colaborao de pajs do Alto Tiqui que seriam convidados. Por sugesto de militantes da ASIBA, com a concordncia deste rezador, ficou decidida aps a discusso do assunto numa reunio da organizao a construo desta maloca na cidade de Barcelos ampliando suas funes (museu, loja de artesanato, turismo tnico, assemblias) e inserindo-a em um projeto de edificao de um Parque Indgena. Este projeto tem o suporte tcnico de arquitetos do Instituto do Patrimnio Histrico e Artstico Nacional/IPHAN.

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354 espao urbano de Barcelos, a ponto dos militantes indgenas que fundaram a ASIBA pretenderem imediatamente criao da organizao construir uma sede no estilo arquitetnico de uma maloca. Duas alternativas de reinveno da tradio: uma, prtica, implementada nos atos de cura xamnicos utilizando elementos do simbolismo cristo; e outra, reflexiva, implementada atravs de polticas de identidade utilizando elementos de uma ancestralidade imaginada. A representao local do espao urbano assumida como modelo para a organizao dos povoados indgenas. Isto implica uma viagem sem sair do lugar. A escola, a capela, a sede (ou centro social), os campos de futebol e voleibol52 so os signos espaciais prximos do mundo civilizado no Rio Negro, e so reproduzidos nos bairros da periferia da cidade de Barcelos. Nas comunidades esto impressas as marcas urbanas para a criao de nichos de sociabilidade humana na floresta, interligados pelo rio e domesticados pelo parentesco.53 No mundo visvel a cidade institui a sua presena na floresta pelas comunidades, no mundo invisvel dos encantados a floresta revela a sua fisionomia urbana. Privilegiamos aqui a construo simblica do espao (da cidade, da maloca, do povoado e da floresta) no imaginrio indgena para entender os movimentos migratrios rumo aos ncleos urbanos a partir das concepes indgenas de sociedade, poder e alteridade. Por outro lado, a necessidade de domesticar os poderes perigosos e potencialmente destrutivos do mundo urbano, tornando-o habitvel, explica a proliferao de pajs e rezadores. Situao de convivncia ampliada com estranhos e que impem a expanso dos crculos de afinidade, a inveno de novos mecanismos de relativizao da alteridade absoluta.54 O movimento indgena emerge como outra possibilidade de insero no espao urbano atravs da re-elaborao das fronteiras tnicas, portanto de comunicao e negociao de valores materiais e simblicos com alteridades imprescindveis para a afirmao da identidade. Constitui um canal paralelo de transformao do ambiente urbano em um espao possvel de existncia de uma sociabilidade pluritnica, no qual so
Poderamos acrescentar as radiofonias, postes de transmisso e geradores de energia eltrica, antenas parablicas e televises coletivas como os signos mais recentes deste modelo de assentamento indgena no Rio Negro, e que explica as relaes estabelecidas com os polticos locais como canal de acesso a estes bens simblicos e materiais. 53 Peter Gow (1991) estabelece as conexes entre os assentamentos Piro, a produo do parentesco e a concepo nativa de sociedade no Baixo Urubamba, Peru, onde a escola o elemento central da construo de uma sociabilidade sedimentada em torno da noo de civilizao. 54 Para anlises da dimenso histrica dos processos sociais de produo do parentesco e que operam com a noo de sociabilidade, ver McCallum, 1997 e Gow, 1991.
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355 redefinidas as regras de exogamia, o princpio da hierarquia, as relaes de parentesco e as relaes intertnicas de um modo geral.

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355 CAPTULO XIV. O Nosso Direito: a criao da ASIBA e a emergncia de uma conscincia reflexiva da etnicidade. Eu nasci em Barcelos, no era ndio. ndio era aquele que vivia l no mato, sem roupa, aquela coisa toda. Isso que eu aprendi: a no ser ndio (Tukano, ex-morador da comunidade Cumaru, entrevista). Esse encontro que teve pra mim deixou uma coisa bem clara, eles querem ser indgena, querem fazer coisa boa, eu acho que agora voc tambm pode notar isso (Ismael Moreira, Tariana, entrevista. Manaus, 05/07/2001). No ramos a FUNAI, mas trabalhamos com cultura e cultura uma coisa sria, a cultura sempre uma bomba (Ana Lcia Abrahim, entrevista. Manaus, 11/07/2001). Organizados vocs conquistam os seus direitos: sade, educao, projetos alternativos e tal (Miguel Maia, entrevista. So Gabriel da Cachoeira, 24/10/2001). O surgimento da Associao Indgena de Barcelos/ASIBA est inserido neste movimento maior de retomada de identidade tnica, associativismo indgena1 e conquista de direitos territoriais no Rio Negro, mas apresenta algumas particularidades. No Alto e Mdio rio Negro o movimento indgena surgiu no contexto de lutas por demarcao de terra indgena e as associaes originaram-se principalmente nas comunidades do interior. No baixo rio Negro o movimento indgena emergiu no seio de demandas por melhores condies de insero no tecido social urbano, seja atravs da comercializao da produo artesanal e valorizao de bens culturais seja atravs do acesso aos servios de atendimento de sade, e desenvolveu-se a partir de um processo de reafirmao tnica que envolveu moradores indgenas da cidade de Barcelos.2
Atualmente existem aproximadamente 43 associaes indgenas no rio Negro. Todas so filiadas a Federao das Organizaes Indgenas do Rio Negro (FOIRN), fundada em 1987, com sede na cidade de So Gabriel da Cachoeira, no municpio de mesmo nome, no estado do Amazonas, Brasil. A ASIBA filiada tambm a Coordenao das Organizaes Indgenas da Amaznia Brasileira (COIAB), cuja sede localiza-se em Manaus, estado do Amazonas. 2 No municpio de Barcelos no existem ainda reas indgenas demarcadas; diferentemente dos municpios de Santa Isabel do Rio Negro e So Gabriel da Cachoeira. Na assemblia da ASIBA, realizada em outubro de 2001 os moradores indgenas das comunidades e stios situados montante da cidade de Barcelos encaminharam solicitao FUNAI, representada pelo administrador regional de Manaus, a garantia de seus
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356 O fenmeno de re-emergncia tnica em Barcelos foi deflagrado pela interseo de processos distintos. Em primeiro lugar nas duas ltimas dcadas do sculo XX a cidade cresceu com a migrao de um grande contingente populacional indgena. Novos bairros foram formados na periferia do espao urbano, cujos moradores so preponderantemente oriundos das comunidades e stios do Alto e Mdio Rio Negro. Estes migrantes dirigiramse a Barcelos porque esta cidade amaznica um signo vigoroso no Rio Negro de abundncia de recursos naturais e urbanos, alm de ser um cone prximo de modernidade e civilizao. A meio caminho entre Manaus e os confins mais distantes do territrio brasileiro, constituiu-se como ponto de convergncia de fluxos migratrios oriundos de vrios lugares do estado do Amazonas. Nas imagens cultivadas pelo segmento no-indgena sobre o municpio e a cidade so minimizadas as referncias, passadas ou presentes, a realidade pluritnica rio negrina, ao contrrio de Santa Isabel do Rio Negro e So Gabriel da Cachoeira. As condies para representao pblica de uma ancestralidade indgena so extremamente desfavorveis, devido a uma situao onde reina a discriminao contra qualquer manifestao de identidades subversivas imagem que proclama a homogeneidade cultural branca da sociedade barcelense. Estes ndios urbanos se esforavam em no serem vistos entrando ou saindo do ncleo da FUNAI em tais ocasies, para no serem identificados como ndios. Como pde ento surgir um movimento de afirmao da etnicidade indgena? Em 1999, foi realizado um levantamento sobre bens culturais a serem preservados em Barcelos, a partir do registro e reconhecimento como patrimnio nacional, por uma equipe da 1a Superintendncia Regional do Instituto do Patrimnio Histrico e Artstico Nacional/IPHAN, sediada em Manaus e com jurisdio sobre os Estados do Acre, Amazonas, Rondnia e Roraima. Barcelos foi selecionada como experincia-piloto para o Inventrio Cultural da Amaznia Ocidental. Esta atividade estava inserida no projeto Inventrio do Rio Negro: Rota Cultural de Iauaret a Manaus (Abrahim, 2001). Ana Lcia Abrahim, Chefe da 1 Superintendncia do IPHAN, natural do Rio de Janeiro, e
direitos territoriais proclamados na Constituio Federal de 1988. H uma forte presso sobre suas terras tanto por parte de empreendimentos de pesca comercial em grande escala (os geladores), pela expanso do turismo de natureza e da pesca esportiva, alm do antigo problema do trabalho semi-escravo ao qual as famlias indgenas so submetidas no extrativismo da piaava. Estes processos de ocupao e uso do solo esto ocorrendo sem nenhuma regulao e controle por parte dos poderes pblicos (municipais, estaduais ou federais), ocasionando srios danos ambientais e sociais s populaes locais.

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357 formada em Planejamento Urbano pela Universidade Santa rsula. Trabalhou no Instituto Brasileiro de Administrao Municipal/IBAM no Rio de Janeiro e depois na prefeitura de Manaus onde participou dos primeiros inventrios de arquitetura urbana da cidade. Sua trajetria profissional no ramo do planejamento urbano a tornou sensvel questo da memria e da paisagem como o resultado de um conjunto de representaes (imagem) do passado. Considera restritivo considerar o patrimnio histrico apenas o conjunto do espao construdo excluindo a natureza na formao da memria urbana. Por isso Manaus deveria na sua opinio ser compreendida na sua ntima relao com o meio ambiente no qual est incrustada, de modo at mais radical do que o Rio de Janeiro. Era uma casa [IBAM] de quem queria estudar na prtica, porque era s para quem atuava j no planejamento. Ento na verdade eu sou bem municipalista, minha formao, eu gosto de trabalhar com cidade, com essa parte de planejar a cidade, essa histria. A gente acaba entrando nesse acervo antigo e acabo vindo trabalhar com essa questo da memria por causa do planejamento, por causa da imagem, porque eu venho da questo do paisagismo, do planejamento uma coisa macro. Ento a metodologia que eu uso muito do planejamento urbano. E o planejamento tem toda essa metodologia de abordagem da realidade que uma coisa assim, voc chegar e vai fazer o inventrio, levantamento de dados, diagnstico. A eu fao os primeiros inventrios aqui, no havia nada em Manaus, quando eu me mudo pra c eu comeo a trabalhar com essa questo por causa da prefeitura, eu trabalhava na prefeitura municipal de Manaus. [...] E a ns comeamos a fazer os primeiros inventrios de arquitetura urbana, histricos urbanos. Mas eu sempre fui mais holstica nessa viso do planejamento, eu j achava que tinha que ser um inventrio ambiental urbano, no podia ser s urbano construdo, porque Manaus ela uma cidade engastada numa paisagem e o resto tudo natural. a cultura engastada na natureza, muito mais que no Rio de Janeiro, o Rio de Janeiro tambm... a gente vem de uma cidade com uma natureza muito forte, isto est muito introjetado na gente, voc reconhece isso aqui tambm (Ana Lcia Ibrahim, entrevista. Manaus, 11/07/2002).

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358 Esse olhar sobre a memria, o espao urbano e a cultura lhe proporcionou uma disposio cognitiva favorvel para ver a face indgena de Barcelos e utilizar uma nova metodologia de trabalho recentemente estabelecida no IPHAN. Ao buscarem a memria oficial da colonizao pretrita encontraram a memria subterrnea da discriminao e da marginalizao indgenas presente. Inicialmente o enfoque seria na preservao da memria reificada em edificaes (o prdio da antiga Misso Salesiana, a igreja de Nossa Senhora da Assuno e a capela de So Caetano) que remetem a um passado histrico valorizado coletivamente. Em julho de 1999 uma equipe de arquitetos e estagirios deste rgo governamental de registro e catalogao e, portanto, de imaginao da nacionalidade atribuindo reconhecimento oficial ao imprimir um selo de qualidade cvica a certas manifestaes das tradies populares da cultura nacional fez o levantamento arquitetnico das edificaes mais antigas do municpio (produo de fotografias, plantas cadastrais e desenhos de situao, cobertura, plantas baixas).3 Nesta mesma ocasio foi realizado o inventrio das referncias culturais da cidade atravs de entrevistas com os seus moradores indgenas.4 A introduo deste ltimo tipo de atividade se deveu a uma revelao surpreendente surgida em uma conversa entre Ana Abrahim e a dona de uma loja de artesanato no ltimo dia da visita da equipe do IPHAN, duas horas antes de embarcarem no avio para Manaus, em maio de 1999. Esta visita foi programada para gerar dados preliminares para iniciar o Inventrio do Patrimnio Cultural e Edificaes do Centro Histrico da Sede do Municpio de Barcelos, e contou com a colaborao do prefeito Jos Beleza e da secretria de turismo, Josely de Macedo Bezerra, que acompanhou os trabalhos dos funcionrios do IPHAN.5 O objetivo era firmar um convnio de cooperao tcnica com a prefeitura de Barcelos para treinamento de pessoal a fim de implementar uma metodologia de inventrios e futuros projetos de otimizao do Complexo Histrico Arquitetnico de Barcelos. Cabe salientar que a secretria de turismo em nenhum momento conduziu os ilustres
Este processo complementado pelo Estado com a difuso nas escolas atravs dos livros didticos e nos empreendimentos editoriais privados ou estatais (revistas, lbuns de figurinhas, cd-rooms, colees, enciclopdias, etc) dirigidos a um pblico infantil. 4 Projeto Integrado de Barcelos. Programa de Preservao do Patrimnio Cultural. S/d; e Ofcio 091/99/IPHAN/1 SR. Manaus, 09 de novembro de 1999. 5 Relatrio de Viagem. Visita Tcnica do IPHAN ao Municpio de Barcelos. Manaus, 04 de abril de 1999. Assassinado: Ana Lcia Abrahim, Superintendente da 1 SR/IPHAN; e Edunyra Maria das Graas de Magalhes Assef, Arquiteta.
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359 visitantes para conhecer os pobres habitantes dos bairros predominantemente indgenas da periferia da cidade, nem sequer se referiu existncia deles, pois importava mostrar os poucos e decadentes monumentos histricos (antiga Misso, cemitrio e capelas) e outras construes recentes (fbrica de palmitos da Sharp, piabdromo, Projeto Piaba, farmcia caseira), pretensas atraes tursticas, componentes da auto-representao oficial do municpio. A fisionomia indgena do contexto urbano barcelense deveria manter-se na invisibilidade para no macular a imagem acalentada pelo segmento no-indgena, poltica e economicamente dominante, que exclui a indianidade procurando talvez apagar simbolicamente os estigmas do atraso, da misria e da selvageria associadas com tal condio para as cabeceiras distantes dos rios Arac e Padauiri onde vivem os Yanomami. [...] Ora, ns estvamos numa cidade, a nica no Rio Negro que se considera branca, porque Manaus tem muito pouca, mas Barcelos tem um trauma de no ter sido, eu estou falando de memria agora da minha parte. Ento em cima disso que eu ia trabalhar, de provar os vestgios de batalha, memrias. Mas uma coisa fato: eles tm muito claramente conscientizado esse trauma de no ter sido a capital, eles foram, deixaram de ser e no voltaram a ser, chegaram a tacar fogo nos prdios para que no tivesse onde... [...] E eles se acham, um dos raros municpios em que eles no dizem eu sou do Rio Negro, eles dizem: eu sou Barcelense. Isso um indcio para ns de apropriao dessa coisa, h pouqussimos adjetivos aqui no Amazonas, voc diz eu sou do Rio Juru, do Purus, do Mdio Negro, do Alto Negro, voc pertence a um rio, o teu lugar uma calha, o que te auto-denomina aqui isso (Ana Abrahim, entrevista) A dona da loja de artesanato com quem Ana Abrahim conversou Piratapuia, casada com o dono de um pequeno hotel da cidade. Esta senhora no expe sua filiao tnica em situaes pblicas de interao.6 Ela compra e revende o artesanato feito pelos

Isto confirma a observao de Denise Adrio (1991) sobre a negao da origem tnica pelos indgenas mais abastados em meados dos anos 1980 e que moram no centro da cidade ou prximo dele. Todavia como

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360 moradores indgenas da cidade. Ana Abrahim identificou caractersticas das peas artesanais feitas no Alto Rio Negro e indagou como foram obtidos aqueles objetos, pois Barcelos no um ponto de parada deste comrcio, cujos produtos seguem direto de So Gabriel da Cachoeira para Manaus. Ainda perplexa com a assombrosa novidade inquiriu Josely Bezerra sobre o assunto e esta lhe confirmou a informao dada pela dona da loja acrescentando que o prefeito estava oferecendo casa em troca da transferncia do ttulo de eleitor para quem migrasse para Barcelos. Ele concedia o uso do terreno e material para a construo da moradia. Outro atrativo era a fama do municpio no Rio Negro pela sua abundncia de alimentos, ao contrrio de So Gabriel da Cachoeira. Jos Fontes Beleza foi prefeito de Santa Isabel do Rio Negro (1993-1996) e estava investindo na sua reeleio, que ele conseguiu com ampla margem de votos de vantagem sobre seu concorrente em outubro de 2000.7 No h registro na prefeitura sobre este processo, foi tudo feito na base das relaes pessoais e informais com o prefeito ou com os secretrios municipais, no abrigo dos seus gabinetes: ns acolhemos e damos. Estavam jogando com a concepo regional sobre as funes bsicas de uma cidade do interior, como Ana Abrahim captou com grande perspiccia: morar, comer e votar.8 Atravs do IPHAN este processo poderia ser documentado, inserir a memria dispersa e oral desta migrao nos arquivos da instituio transformando-a num bem pblico nacional. Ao constatar a presena de famlias indgenas oriundas do Alto Rio Negro a superintendente do IPHAN decidiu redirecionar o levantamento para o patrimnio cultural indgena, tomando como pretexto a produo artesanal existente na cidade de Barcelos, onde a arquitetura enquanto suporte material da memria no oferecia boas condies aos esforos de registro e produo oficial do passado.9 Neste sentido, o trabalho se voltou para

veremos adiante o surgimento do movimento indgena vem alterando este fenmeno na medida em que alguns dos seus lderes esto nesta categoria, como alguns comerciantes e professores. 7 Ns j vimos nos dois captulos anteriores que as motivaes da migrao indgena para a cidade de Barcelos so complexas, implicam em fatores de ordem simblica e econmica, e anteriores a tal manipulao poltica com fins eleitorais. Todavia, no perodo da gesto Beleza (1993-2000) a estratgia por ele acionada para realizar o seu projeto de permanncia por mais um perodo no cargo mximo do executivo municipal foi um elemento adicional de incentivo migrao para Barcelos. 8 O movimento indgena abalou profundamente esta concepo ampliando o escopo das demandas (sade, educao, garantia da terra, desenvolvimento sustentvel e justia ambiental), transformando-as em direitos, e a configurao da relao com a prefeitura, atravs da noo de uma cidadania etnicamente referenciada. 9 Como j vimos no captulo XII, na segunda metade do sculo XVIII quando a vila de Barcelos se tornou a sede da Capitania do Rio Negro as construes pblicas erguidas foram demolidas depois que a capital foi transferida definitivamente para Barra do Rio Negro (atual Manaus), no incio do sculo XIX. Atualmente

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361 uma memria mais difcil de captar, para uma memria inserida e rotineiramente reproduzida no fluxo contnuo das interaes cotidianas e modificada no curso dos processos sociais presentes. Tal escolha privilegiou assim a pesquisa sobre as referncias culturais intangveis e invisveis, ou seja, no materializados no espao fsico, reconhecendo, atravs do registro escrito e audiovisual e conferindo-lhes o ttulo de patrimnio nacional, as expresses da memria inscritas nos corpos, nos comportamentos, no vesturio, nos hbitos alimentares, na lngua.10 Tentaram primeiro identificar de onde vieram atravs de perguntas sobre seus avs.11 E a ao reformular o questionrio a pergunta chave era se ele conhecia o av. Por que? Por que de alguma maneira eles sabiam que ter av era ndio que tinha. Ento eles simplesmente diziam que no tinham. Perguntava: tem av? Qual o nome do seu av? No, no tenho. E tinha, pra virar branco naquele lugar em que eles no sabiam como iam ser aceitos, se eles iam ser maltratados ou no, porque Barcelos pequena, o prefeito o dono da cidade, como eles iam ser tratados l? Ento eles ficaram com uma vida assim mais, como vamos dizer, uma vida discretssima sem aparecer, como um habitante normal do municpio. S que a viemos ns e falamos: voc ndio. Como fazer? Como eles iam lidar com isso de repente? Quem ramos ns? Eles no comeo mentiram, esconderam, ocultaram isso, a ns vimos que o fulano tinha av. E a resolvemos parar isso, no fazer, reformulamos a proposta (questionrios e tal) e a fomos pra campo com uma nova abordagem, sabendo j, mas queramos quantificar, saber como eles viviam, do que eles viviam, e a de uma outra maneira, com um outro tempo, voc tem que trabalhar num outro time [grifos SCP] (Ana Lcia Abrahim, entrevista). No tiveram xito; brancos estranhos querendo saber sobre suas origens, qual a sua tribo, trazer luz, ao centro do palco, para o meio da rua sua memria cuidadosamente
uma das poucas edificaes remanescentes de perodos histricos pretritos em Barcelos o conjunto arquitetnico da antiga misso salesiana. 10 O habitus Bourdiano: histria incorporada (feita corpo) e histria reificada (feita coisa), inconsciente, conscientemente verbalizada ou monitorada reflexivamente. 11 O uso da categoria av recorrente em situaes nas quais os moradores indgenas de Barcelos expressam a sua ancestralidade tnica. No I Encontro Indgena de Barcelos, realizado em novembro de 1999, um Tariana se apresentou da seguinte maneira: Eu sou bisneto do Trovo.

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362 guardada (a lngua, o caxiri, a farinha, o beiju, o chib, a quinhanpira, as rezas e benzimentos, os mitos de origem, as histrias de encantados e curupiras, de matis e maquiritares, etc) no seio do grupo domstico, diferenciando-os do restante da populao de Barcelos, contrariava uma poderosa razo deles estarem naquele lugar: virar branco.12 O escritor Tariana e militante indgena Ismael Moreira, residente h muitos anos em Manaus, foi convidado para estabelecer um clima de confiana e viabilizar o trabalho entre os moradores indgenas de Barcelos. Ele j havia publicado um dos seus livros pelo IPHAN. Seu pai Tariana e sua me Piratapuia. Ele nasceu na comunidade Japur, prximo de Yauaret, em 1963. Estudou no internato salesiano de Yauaret, onde ele era assistente e cuidava de 200 adolescentes, e depois com 19 anos de idade entrou para o seminrio em Manaus a fim de ser padre.13 No seminrio ele ficou at os 23 anos de idade quando percebeu que no tinha vocao para seguir a carreira eclesistica. Arranjou um emprego no distrito industrial em Manaus, na fbrica de componentes eletrnicos da CCE. Foi um dos fundadores da COIAB, quando tambm participava do movimento dos estudantes indgenas de Manaus. Durante o ano de 2001 estava contratado como agente de cultura indgena e trabalha no Centro de Produo e Cultura da COIAB. Ele foi integrado equipe do IPHAN, aplicou questionrios e coordenou reunies nas casas de 131 famlias indgenas, de 27/10 a 10/11/199914, aflorando um sentimento latente de pertencimento coletivo a partir da afirmao pblica da sua origem tnica diferenciada e da experincia
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Eles usam termo tribo para designar tanto o que os antroplogos convencionaram chamar de cl ou fratria quanto para designar a etnia, grupos exogmicos e patrilineares mais abrangentes (Tukano, Desana, Arapao, Piratapuia, Baniwa, Bar...). 13 Sua motivao para ser padre estava na admirao que sentia pelo salesiano Antonio Scollari, que morreu afogado, devido ao seu respeito pela cultura indgena, pois ele no proibia as festas e as danas. [...] Um pouco da minha vida, porque eu fiz um curso de primeiro grau na poca do internato, os ltimos internatos que eu tive estudando, porque eu tinha objetivos, eu acho que eu tinha um dos melhores padres que tinha l, padre Antonio Scolari que morreu afogado em Yauaret, porque ele era uma pessoa que respeitava a cultura indgena. Por que eu digo isso? Por que quando eu digo que respeita a cultura indgena, porque ele fazia o seguinte: todas as festas que tinha, os povos danavam a sua dana indgena, como Piratapuia, Tukano, Wanano, assim os tarianos danavam sua prpria dana, porque era uma diversidade, uma riqueza cultural muito grande. Ento cada povo danava a sua cultura. Mas s que para mostrar tambm em tariano, a outra diretora espanhola eles tambm mostravam sua cultura atravs da dana, atravs da histria de cada padre, ento cantava e tambm danavam, as irms tambm danavam para mostrar sua cultura. Ento cada povo danava sua cultura todo tipo Tukano, danante, cantos, todos, todos. Eu achava to interessante e isso para mim uma vida, uma coisa interessante e diferente, at eu pensei em ser padre tambm porque eu queria fazer alguma coisa boa, porque eu via que aquele padre era muito bom, trabalhava, fazia alguma coisa de bom para o povo, reunir com todo mundo fazer esse tipo de coisa muito bonito no meu ponto de vista. A um dia, porque eu assistia muito esses pequenos filmes que o padre mostrava, a eu fui l e falei que queria ser padre. Ele falou: t bom (Ismael Moreira, Tariana, entrevista. Manaus, 05/072001). 14 Relato Atividades Desenvolvidas. Manaus, s/d. Assinado: Ismael Pedrosa Moreira.

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363 comum de privaes e discriminaes no contexto urbano do Baixo Rio Negro. Explicava o que era uma organizao indgena e qual a sua finalidade. [...] Quem jogou um pouco da idia de como so as organizaes indgenas foi... eu joguei, explicava para todo mundo, de casa em casa eu explicava como uma organizao indgena funciona, para que vai servir, qual a finalidade, eu expliquei muito essa parte. [...] At eu falei para os outros indgenas que quem quiser ser ndio seja, no obrigado ser, se mesmo sendo ndio quer ser caboclo seja. [...] Esse encontro que teve, pra mim deixou uma coisa bem clara, eles querem ser indgena, querem fazer coisa boa, eu acho que agora voc tambm pode notar isso (Ismael Moreira, Tarina, entrevista. Manaus, 05/072001). A deciso no era fcil; implicava na apresentao pblica de uma identidade ligada a uma condio repleta de conotaes pejorativas no cenrio intertnico local e atribuda aos longnquos Yanomami das cabeceiras dos rios Arac e Padauiri, que ficavam sob os cuidados e a responsabilidade do ncleo de apoio da FUNAI quando visitavam Barcelos, e aos ndios do Alto Rio Negro enquanto permanecem l nas suas terras demarcadas pelo governo federal.15 Vimos tambm no captulo anterior que a emergncia de tal conscincia reflexiva da cultura e da identidade no se encaixa completamente na conscincia prtica da etnicidade na qual a categoria de caboclo sntese simblica da aspirao de autonomia serve para fixar fronteiras tanto diante dos brancos como diante dos ndios, da civilizao e da selvageria, ambos aproximados pela ausncia de autocontrole. Foi um professor Baniwa, Benjamin de Jesus, que sugeriu a idia de fazer uma reunio com os moradores indgenas para discutir seus problemas. Ao mesmo tempo ia ser uma ocasio de despedida da equipe do IPHAN. Benjamin estava cursando a graduao em Cincias Sociais pela Universidade Federal do Amazonas em So Gabriel da Cachoeira e j estava
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Ismael mencionou um Tariana residente no bairro So Sebastio, tio do atual presidente da ASIBA, que expressou uma opinio contrria organizao de um movimento indgena em Barcelos: Ele achou que era muito chato a gente fazer movimentos indgenas l porque no tem nada a ver com os ndios, porque Barcelos no era terra dos ndios era de caboclo [...] (Ismael Moreira, entrevista. Op. cit.). O funcionrio da FUNAI em Barcelos, Joo Mineiro, declarou que antes da criao da ASIBA estes ndios urbanos se esforavam em no serem vistos entrando no escritrio da instituio, chegavam s 7:00 horas, quando iam pedir remdios ou o encaminhamento de aposentadoria. Alis, a agncia da FUNAI restringia sua atuao a tais medidas, direcionando sua ateno predominantemente aos Yanomami. Alguns ativistas indgenas alegam que Joo Mineiro no os reconheceu como indgenas no incio do movimento, mas ele depois se constituiu como um dos importantes apoios organizao na cidade.

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364 entrosado com militantes da FOIRN que eram seus colegas de turma. Ismael ajudou a organizar o 1o Encontro Indgena de Barcelos.16 D Ceclia (Tukano)17 e D Virglia (Bar), duas lideranas dos bairros Aparecida e So Sebastio respectivamente, j vinham conversando com Ismael sobre a possibilidade de mobilizar os parentes e foi D Virglia quem convidou o professor Benjamin de Jesus para ajudar na criao de uma associao, pois tal tarefa precisava de algum com mais capacidade. Elas, junto com D Dilsa18 e com a professora Maria Cristina19, foram as principais articuladoras de um levantamento da populao indgena da cidade proposto por um dos diretores da FOIRN, Miguel Maia, para subsidiar uma proposta de ampliao do Distrito Sanitrio Especial Indgena do Rio Negro/DSEI-RN.

No prximo captulo abordaremos a trajetria deste e de outros lderes indgenas locais para entendermos suas aes e decises no contexto de formao do associativismo indgena no Baixo Rio Negro. 17 Nasceu no stio Vista Alegre, em Santa Isabel do Rio Negro. Era uma antiga comunidade, onde moravam muitas famlias e um patro de piaava, cearense, que tinha colocaes no igarap Ia, rio Mari. Esse patro tambm atuava na extrao de seringa e o pai de D Ceclia era um dos seus fregueses. Seu pai, Tukano, nasceu no rio Papuri, assim como sua me que era Desana. Eles migraram por falta de comida (peixes e caa) para trabalhar no corte da piaava no rio Preto, Mdio Rio Negro. Depois, resolveram mudar de patro e de residncia e se deslocaram para o rio Darah, na ilha de Bela Vista. D Ceclia estudou durante trs anos (1960 a 1962) no internato salesiano em Santa Isabel. O marido dela no indgena, nasceu em So Tom, jusante de Santa Isabel do Rio Negro. Ela fala o nheengatu ou lngua geral. Mora a treze anos na cidade de Barcelos, vindos de Tapereira, no municpio de Santa Isabel, onde moraram por cinco anos. Mudaram para Barcelos por causa dos estudos do filho mais velho, pois em Santa Isabel no havia 2 grau na poca. Atualmente sua famlia vive da venda de artesanato, no fazem mais roa, e ela e seu marido so filiados a Associao de Artesos de Novo Airo. 18 D Virglia e D Dilsa so irms, as duas so Bar e moram no bairro So Sebastio. O pai delas, que faleceu em janeiro de 2001 com 71 anos de idade, nasceu na comunidade So Felipe no alto rio Negro perto da foz do rio Iana. Ele falava nheengatu e identificou a origem da sua esposa como venezuelana. D Dilsa nasceu no rio Jurubaxi, no municpio de Santa Isabel do Rio Negro. Antes de morar em Barcelos, para onde foi h cinco anos, morou durante quatro anos em Santa Isabel e morou tambm em Carvoeiro, no baixo rio Negro, onde era professora e tinha um stio prximo deste povoado. D Dilsa entende, mas no fala o nheengatu, enquanto sua irm Virglia entende e fala o nheengatu. O marido de D Dilsa Bar e o marido de D Virglia Tukano. 19 Ela nasceu em Mitu, sede do departamento do Vaups na Colmbia. Seu pai Desana e sua me Tukano. Quando ela tinha um ano de idade mudou de residncia para So Gabriel da Cachoeira, porque seu pai era pedreiro e l ele conseguiu emprego. Permaneceram l durante trs anos at migrarem direto para a cidade de Barcelos: descendo o rio, procurando mais recurso, mais melhoria na famlia. Morou nas margens do igarap Salgado, junto com um empregado da Misso Salesiana que cuidava do gado. Depois morou no Mariu e viveram durante 17 anos na cidade. Resolveram ento ir para o interior e aceitaram a oferta dos salesianos para tomarem conta de uma fazenda da parquia no rio Demeni que estava abandonada. Os pais de Maria Cristina foram os primeiros moradores da atual comunidade de Samama. Depois outros migrantes indgenas (Tukano, Desana, Tuyuca, Piratapuia) que trabalhavam na extrao da piaava no rio Arac e moravam na cidade em Barcelos se estabeleceram l tambm convite da sua me. Ela s fala o portugus, ao contrrio de seus pais que falavam o tukano e o nheengatu. Seu marido no indgena, nasceu em Manaus. Ela estudou durante seis anos no internato em Barcelos e dois anos em Manaus, retornando ento para Barcelos onde se empregou na prefeitura. Como professora leciona em comunidades do interior do municpio.

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365 Ns vimos como no captulo IX a implementao de um sistema de atendimento diferenciado sade no Rio Negro se constituiu em uma forte preocupao na FOIRN, ocupando um espao cada vez maior na sua estrutura organizacional. No plano microrregional os convnios de parceria firmados com a SSL e a FUNASA, a partir de 1996, uma aproximao maior com a associao de agentes indgenas de sade, a proposta em 1999 e a implementao em 2000 da grande rede interinstitucional de ateno sanitria do Distrito Sanitrio Especial Indgena do Rio Negro culminaram no estabelecimento de um novo tipo de relacionamento com o Estado brasileiro. Pela primeira vez vultosos recursos pblicos estavam sendo direcionados para a promoo da sade indgena no Rio Negro, e no Brasil, respeitando suas diferenas culturais e com uma considervel participao e organizao dos beneficirios.20 Em 1998 comearam as discusses sobre o Distrito Sanitrio Especial Indgena/DSEI. Os encontros foram realizados em Manaus. Nessa poca Bonifcio Jos, ento secretrio da FOIRN e responsvel na diretoria pelas questes de sade, estava ocupado com outras atividades e por esta razo Miguel Maia o substituiu em uma das reunies, em setembro de 1998, cujo tema era a abrangncia geogrfica do programa. Estavam presentes: o Ubiratan Moreira, o pessoal do ministrio da sade, a chefe da FUNASA/SGC, as secretrias municipais de sade. As secretrias de Santa Isabel e Barcelos no foram para a reunio.O distrito iria at acima de Santa Isabel, onde terra demarcada. Miguel ento falou da existncia de populaes indgenas em Santa Isabel e inclusive em Barcelos, mesmo sem conhecer este municpio. Eu disse isso porque o Boni [Bonifcio Jos] j falava que tinha parentes Baniwa21, tinha Tukano... em Barcelos. A D. Diva [esposa de Orlando Oliveira, presidente da ACIMRN na ocasio] confirmou dizendo que era discriminao, pois
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Esta afirmao no implica em ignorar os problemas existentes no planejamento e execuo deste ambicioso programa proporcionado pela luta do movimento indgena e patrocinado pelo Ministrio da Sade, atravs da Fundao Nacional de Sade, como a excessiva burocratizao de organizaes indgenas devido ao desvio da sua responsabilidade essencial com a fiscalizao para a execuo (captulo IX desta tese) e convnios com prefeituras (prximo captulo). Tambm no se pode negar a ntima relao entre a tendncia neoliberal do governo Fernando Henrique Cardoso (implementando polticas de ajuste estrutural da economia no pas propostas pelas agncias financeiras multilaterais como o Fundo Monetrio Internacional/FMI e o Banco Mundial) e as medidas de transferncia de programas de promoo social para as ONGs e organizaes de base. Isto foi observado por vrios pesquisadores em vrios pases latino-americanos, inclusive no cenrio contemporneo de desenvolvimento do movimento indgena em contextos de transio democrtica do sistema poltico nacional (Mayburi-Lewis, 2002). 21 Bonifcio Jos tem um tio (irmo da sua me) e primos que moram na cidade de Barcelos.

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366 a maioria da populao em Santa Isabel era indgena e tambm em Barcelos, por isso estes municpios devem ser contemplados. Fomos l e conseguimos... articulamos com o pessoal do Rio Negro aqui... Ambrsio que era presidente da associao dos agentes [de sade] estava discutindo de maneira direta esse assunto. Acabamos amarrando ali. Tinha missionrios de Santa Isabel e Barcelos que confirmaram a existncia de populao indgena (Miguel Maia, entrevista. Op. cit.). Santa Isabel e Barcelos foram includos na proposta final, concluda em 1999, do distrito para o Rio Negro, mas seria implementado primeiro em So Gabriel da Cachoeira onde o processo estava mais avanado e nos outros dois municpios seriam realizados levantamentos antropolgicos e epidemiolgicos. Em Santa Isabel j havia o levantamento antropolgico, feito em 1994, pelo antroplogo Mrcio Meira. Mas antes da formulao final do plano distrital, encaminhado para a FUNASA de Braslia, houve uma reunio entre representantes da FOIRN, da FUNASA com as secretrias municipais de sade em Santa Isabel e Barcelos sobre a populao indgena e a ampliao de DSEI/RN. Comeou por Barcelos, em agosto de 1999, a reunio foi na creche municipal. Pela FOIRN foi o Miguel Maia e o Ambrsio, presidente da Associao dos Agentes Indgenas de Sade do Alto Rio Negro (AAISARN). Estavam presentes Pedro Frana (FUNASA/Barcelos), Anita Katz Nara (SEMSA/Barcelos), Joo Mineiro (FUNAI/Barcelos), o Padre Francisco (Parquia de Nossa Senhora da Conceio), Da Dilsa, Da Virglia, Da Ceclia, a professora Maria Cristina (Desana) e mais quatro ou cinco pessoas representando a populao indgena. A exposio comeou pela FUNASA sobre a ampliao do DSEI/RN, da necessidade de fazer a identificao da populao indgena nas comunidades e stios do interior. Anita Katz Nara falou que realmente existiam ndios no municpio mencionando apenas os Yanomami, l na cabeceira do rio Arac. Miguel objetou que existem tambm os Tukano, os Baniwa, Desana, Arapao..., mas a secretria de sade negava categoricamente. O diretor da FOIRN retorquiu que depois de realizado o levantamento o resultado seria mostrada para ela. Ento eu chamei o pessoal e falei que para essa assistncia chegar vocs tem que se fortalecer, se organizar, hoje existe a FOIRN que apia esse tipo de

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367 iniciativa, a gente pode at subsidiar uma assemblia, pagar alimentao, combustvel para vocs realizarem, comecei a dar modelos de organizaes, falei da COIAB, que era uma coisa bem mais ampla, mas depende... eu no posso chegar aqui e criar uma associao para vocs, posso chegar aqui e conversar, mas a iniciativa de vocs. Organizados vocs conquistam os seus direitos: sade, educao, projetos alternativos e tal (Miguel Maia, ibidem). Miguel Maia se reuniu, ainda em agosto de 1999, separadamente na creche com algumas lideranas locais (Da Dilsa, Da Virglia, Da Ceclia, Maria Cristina) que trouxeram mais pessoas. Na sua maioria eram mulheres. Ficou combinada a realizao de um levantamento da populao indgena de Barcelos, utilizando formulrios da FUNAI, ento Joo Mineiro se props a apoiar. Miguel Maia sugeriu que eles se reunissem para ver quem estava interessado, formassem uma comisso, indicassem um responsvel, fizessem o trabalho e comunicassem a FOIRN. Seguiu ento para Santa Isabel com o objetivo de l discutir a mesma temtica.22 Em outubro de 1999 foram encaminhados de Barcelos 180 formulrios preenchidos para a FOIRN. Aquelas mulheres responsveis pelo levantamento fizeram vrias reunies com Joo Mineiro na casa de D Virglia. D Ceclia explicou da seguinte maneira a razo pela qual seus vizinhos se identificavam como indgenas diante dela: [...] Eu sou parecera deles, eu falo a lngua geral, eu sento e converso e explico na lngua geral. Isto eles j pensaram: Pelo que eu entendi que ela explicou pra mim (quando eu fiz levantamento) serve pra duas coisas: em caso de justia, em caso de pobreza, em caso de aposentadoria. Cheguei, conversei com eles, expliquei na lngua geral, a todo mundo aceitou (D Ceclia, Tukano, entrevista).

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Em 1998, a prefeitura de Santa Isabel do Rio Negro encaminhou ao Ministrio da Sade um projeto que se mostrava desvinculado da realidade das comunidades indgenas existentes neste municpio e que no fora discutido com a associao indgena local. O projeto foi rejeitado pelo Ministrio da Sade e enviado a Federao das Organizaes Indgenas do Rio Negro (FOIRN). Lideranas da FOIRN solicitaram a ACIMRN que formulassem um projeto mais adequado s suas necessidades.

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368 No dia 05 de novembro de 1999, no salo paroquial de Nossa Senhora da Conceio, aconteceu a primeira grande reunio com a participao de um total de 90 pessoas de vrias etnias. Essa reunio foi dirigida pelos lderes: Virglia Bar, Ceclia Tucano, Benjamin Baniwa e Professor Ismael Tariano. A abertura foi dirigida pelo professor Benjamin de Jesus. Estava presente o representante da FUNAI local, Joo Silvrio Dias; o padre Francisco, da Parquia Nossa Senhora da Conceio; e a secretria de Turismo, Josely Macedo Bezerra. Ou seja, trs importantes instncias da estrutura de poder municipal estavam ali inseridas: o governo federal, a prefeitura e a igreja. A assemblia indgena estabelece uma esfera de dramatizao do poder e da autonomia indgenas diante das nossas autoridades como num ritual de inverso e domesticao das relaes de fora ordinrias. Este aspecto estrutural da assemblia como um espao extraordinrio (no sentido de fora do cotidiano) de manifestao da soberania dos povos indgenas sobre seus assuntos e destinos foi garantido por Ismael Moreira, devido a sua experincia militante acumulada, se tornou evidente num incidente em que a secretria de turismo foi duramente repreendida por ele ao expressar seu descontentamento com as reclamaes dos participantes quanto ao tratamento que recebem nos diversos rgos da prefeitura. Ismael Moreira exigiu que ela se calasse, pois estava numa reunio dos ndios e s poderia se manifestar quando solicitada. Outro fato que expressou com vigor esta idia da assemblia como um espao dos ndios, de afirmao da sua identidade e de respeito e valorizao dos costumes dos antigos foram os discursos proferidos nas lnguas indgenas construindo um espao pblico regido por modos de comunicao relegada ao domnio domstico. A ancestralidade foi uma referncia recorrente neste novo cenrio de visibilidade e reformulao da indianidade. Um participante Tariana apresentou seguinte maneira: Eu sou tariano (Kama deneh), bisneto do trovo, sa da fumaa do cigarro, vamos todos procurar a nossa origem para revitalizar a nossa cultura do passado e aprender a nossa lngua materna, dana, xamanismo, paj, costumes (alimentao, bebidas e outros). Assim ns levaremos melhor a nossa poltica indgena para frente formando a nossa associao, lutando para conseguir o orgulhosamente, fazendo meno implcita ao mito de origem do seu povo, sua singularidade tnica da

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369 nosso direito de indgena (Amrico Agostinho, Tariana, apud Relatrio do I Encontro Indgena de Barcelos).23 O momento foi marcado por manifestaes contundentes e sinceras de apego s tradies. No podermos pensar, portanto, que eram apenas esforos calculados de manipulao de elementos culturais reificados para encaminhar demandas por recursos materiais e simblicos, mas tambm como prticas historicamente situadas de domesticao do estranho, reformulao de identidades e de percepes cotidianas sobre autenticidade e ancestralidade tnicas. Ideologia e ontologia tnicas no so planos da conscincia separados to radicalmente, mas entrelaados e mutuamente determinantes. O principal assunto abordado no encontro remete a necessidade dos ndios se organizarem para que sejam valorizadas e preservadas a sua cultura e a sua identidade. Dois outros termos recorrentes nesta ocasio sintetizam as aspiraes e expectativas ali geradas: respeito e direito. Ns indgenas vamos vencer de mos unidas, se organizando uma associao [com o] objetivo de buscar o nosso direito, unido para conquistar. Assim trabalharemos e fortaleceremos a nossa sobrevivncia, o po de cada dia. Vamos buscar a nossa identidade e ns seremos respeitados e valorizados, mostrando nossa cultura como lngua materna, costumes, danas e outros (Virglia Toms, Bar, apud Relatrio do I Encontro Indgena de Barcelos). Sendo assim, reivindicaram o direito de serem indgenas e o respeito s suas diferenas. Ao mesmo tempo afirmaram uma identidade ampliada pela experincia comum de vida naquele pequeno contexto urbano amaznico, expandindo o termo de incluso parente a todos os ndios da cidade. A imagem da maloca surgiu como o cone arquitetnico do processo de revitalizao da cultura dos antigos. Outro aspecto marcante se refere meno ao artesanato como uma atrao turstica e fonte de rendimentos para a sustentao das famlias indgenas. Houve consenso sobre a necessidade de que o levantamento e a articulao poltica da populao indgena fosse estendido para as comunidades e stios do interior do municpio. Foi marcada uma nova reunio para os dias 10, 11 e 12 de dezembro de 1999. Aps vrias discusses foi criada uma comisso
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Este depoimento no est destacado em itlico porque no uma transcrio literal de uma gravao em fita cassete, mas uma citao retirada do Relatrio do I Encontro Indgena de Barcelos elaborado por Ismael Moreira. Mantive a grafia do cl Tariana mencionado como est no relatrio de Ismael Moreira.

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370 provisria, constituda pelos seguintes lderes: Ceclia Tucano, Virglia Bar, Claudino Baniwa, Clarindo Tariano, Romilda Baniwa, Edgard Bar, Benjamin Baniwa, Amrico Tariano, Dilsa Bar e Maria Miguel Baniwa (Fotografia abaixo). Estava criada a Associao Indgena de Barcelos/ASIBA. O trabalho de levantamento das referncias culturais indgenas do municpio no tinha nenhuma inteno de incentivar a criao de uma organizao indgena obviamente, porm como Ana Abrahim sintetizou muito bem: a cultura uma coisa sria, a cultura sempre uma bomba. No contexto urbano de Barcelos permeado por conflitos e antagonismos tnicos uma agncia governamental com agenda, interesses e princpios norteadores de atuao especficos que toma a cultura e a memria como objeto de poltica pblica suscitou involuntariamente um movimento de reinveno da identidade tnica, de monitoramento reflexivo da tradio e da ancestralidade indgenas. A necessidade de alterar a metodologia de ao para melhor atingir os seus objetivos motivou a integrao na equipe do IPHAN de um militante do movimento indgena na Amaznia que, jogando por gua abaixo a neutralidade intencionada diante dos problemas locais e pressionado pelas prprias demandas das famlias envolvidas, politizou a situao gerada pela realizao do projeto Inventrio Cultural do Rio Negro. Convergiu para este processo de emergncia de uma esfera pblica indgena local o esforo de um representante da calha do rio Negro na diretoria da FOIRN de estender os benefcios de um sistema diferenciado de ateno sade, uma carncia fortemente sentida em Barcelos e atribuda a atitudes discriminatrias perante suas origens tnicas, para os parentes invisveis e marginalizados dos circuitos governamentais e no-governamentais de afirmao e produo de direitos. Logo, foi neste momento que as condies e conexes institucionais trans-locais viabilizaram o surgimento do associativismo indgena no Baixo Rio Negro.

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Figura 10: I Encontro Indgena de Barcelos (comisso provisria).

O 2 Encontro da Comisso Provisria Indgena ocorreu nos dias 10, 11 e 12 de dezembro de 1999, no salo da escola municipal Padre Clemente Salleri, no bairro Aparecida. Estavam presentes em torno de 40 participantes das seguintes etnias: Bar, Baniwa, Tukano, Desana, Piratapuia, etc. Miguel Maia e Bonifcio Jos no puderam comparecer ao evento e foram substitudos pelo Edlson Martins Melgueiro (Baniwa). Esta reunio contou com a colaborao de representantes da FOIRN e do ISA, Edlson Melgueiro; da COIAB, Ismael Moreira; e do CIMI (Conselho Indigenista Missionrio), Benedito Maciel. Cabe salientar a ausncia de qualquer representante da prefeitura e a presena de representantes de organizaes indgenas e entidades de apoio. Edlson Melgueiro orientou a organizao do processo eleitoral e ficou decidido consensualmente que apenas os dez membros da comisso provisria seriam candidatos diretoria da ASIBA. Formou-se uma comisso para elaborar o estatuto da ASIBA24 e foi eleita a diretoria provisria, que ficou assim constituda: Clarindo Campos Tariana (Presidente), Ceclia Tukano (Vice-Presidente), Benjamin Baniwa (1 Secretrio), Romilda Baniwa (2

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Leonel Bar, Peres Bar, Edgard Bar, Flvio Baniwa, Graciliano Bar, Dilsa Bar, Romilda Baniwa, Cecilia Tukano, Martinho Bar e Claudino Baniwa.

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372 Secretria), Claudino Baniwa (1 tesoureiro) e Dilsa Bar (2 Tesoureira). A assemblia geral do ano 2000 foi marcada para os dias 23, 24 e 25 de maro.25 No final do encontro todos foram conclamados a manterem e cultivarem a unio para o fortalecimento da organizao de modo a que ela alcance seus objetivos e foi enfatizado que a ASIBA diferente das outras associaes existentes na cidade subordinadas prefeitura. Benjamin de Jesus apontou a construo da sede para exposio de artesanato e realizao das assemblias e eventos culturais promovidos pela entidade como prioridade. Props o encaminhamento de solicitao para que a FOIRN inclusse a verba necessria para a consecuo de tal objetivo no seu planejamento oramentrio do ano 2000. Edlson Melgueiro prontamente advertiu que a prioridade deveria ser a elaborao do estatuto a fim de implementar a regularizao da associao diante do Estado brasileiro e depois deveria ser feito um documento de doao do terreno cedido pela parquia para a edificao da sede validando assim juridicamente o ato. S ento a sede poderia ser construda. Esta reunio foi menos carregada de demonstraes emocionadas de valorizao da ancestralidade e foi mais orientada para os aspectos instrumentais de estruturao da organizao. claro que estou falando de nfase, pois o aspecto comunicativo que engendra a unidade e a solidariedade coletivas, o senso de pertencimento e lealdade tnicos ampliados, nunca est completamente ausente em uma assemblia indgena. O espao discursivo foi ocupado predominantemente pelos enviados dos potenciais rgos de cooperao mais permanente ou mais espordica. Foi encarada pelos lderes da ASIBA como uma oportunidade de aprendizado sobre os direitos e a situao jurdica dos povos indgenas no Brasil. Este evento marcou ento a entrada e reconhecimento da ASIBA na rede do movimento de direitos indgenas nos mbitos mesorregional e macrorregional. Apesar de nenhum diretor das duas organizaes indgenas terem comparecido, porm sem deixarem de marcarem uma presena institucional e demonstrarem inteno de apoiar a nova associao, o emissrio da FOIRN transmitiu uma mensagem de vinculao mais direta e decidida. Edlson Melgueiro destacou nas suas intervenes a importncia de uma associao para ter voz em instncias de interlocuo com diversas agncias e para solicitar

Relatrio do II Encontro da Associao Indgena de Barcelos. Realizado no Perodo de 10 a 12/12/99. Assinado: Clarindo Campos Tariano.

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373 recursos financeiros para seus projetos, para se consolidar e crescer. Delineou a perspectiva de imerso na rede associativista da federao ao informar que depois da ASIBA formar sua diretoria, elaborar e aprovar seu estatuto e se inscrever no Cadastro Nacional de Pessoas Jurdicas (CNPJ), adquirindo respaldo jurdico, ficar habilitada a encaminhar seus projetos para serem includos nos planos oramentrios anuais da FOIRN. Em dezembro de 1999 militantes indgenas de Barcelos j foram convidados e atenderam a um curso de capacitao de lideranas promovido pela FOIRN em So Gabriel da Cachoeira. Como j apontei na parte II desta tese, comunidades ou segmentos indgenas no Rio Negro adquirem visibilidade, direito de acesso e participao nas decises e benefcios por ventura decorrentes, ao adentrar no esquema associativista da Federao. No caso da ASIBA este esforo inicial para se qualificar enquanto um personagem na trama do movimento indgena do Rio Negro foi empreendido com os recursos (materiais e simblicos) disponveis localmente. Os laos estabelecidos com a FOIRN se estreitaram mais com o levantamento das comunidades indgenas do municpio de Barcelos realizado em maio de 2000. Quando retornamos da reunio em Manaus, 1998, no qual discutiu-se a abrangncia geogrfica do DSEI/RN, solicitamos ao ISA para auxiliar na elaborao do projeto do levantamento em Santa Isabel e Barcelos. Apresentamos uma proposta para a FUNASA de levantamento em duas etapas. Parte dele foi aprovado. Tivemos que reescrever o projeto e finalmente foi aprovado, com o oramento em torno de sessenta mil reais, no lembro bem. Beto Ricardo e Geraldo que assessoraram a elaborao do projeto, porque tinha as questes tcnicas que a gente no domina (tem que ter um antroplogo, um epidemiologista, um nutricionista...). Porque tinha duas situaes: em Santa Isabel o levantamento era epidemiolgico e em Barcelos era demogrfico e antropolgico. So etapas diferentes. A o pessoal organizou a equipe, fui convidado a ir para Santa Isabel, mas tinha essa outra demanda, eu preferi ir para Barcelos. A gente montou a equipe. Houve indicaes. A Ana Guita eu no conhecia pessoalmente, mas j conhecia de nome. A voc foi indicado [eu] e tal. (Miguel Maia, ibidem).

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374 Geraldo Andrello integra a equipe permanente do Programa Rio Negro26 do Instituto Socioambiental. Eu e ele somos colegas do curso de doutorado em Cincias Sociais da Universidade Estadual de Campinas/UNICAMP, em 1998 e 1999. Sabendo do meu interesse em pesquisar sobre o movimento indgena no Rio Negro, particularmente no Baixo Rio Negro, Geraldo Andrello me convidou para integrar a equipe do levantamento das comunidades indgenas do municpio de Barcelos. Seria uma tima oportunidade de acesso ao campo de investigao, estabelecer contato com os lderes indgenas do Rio Negro e coletar dados preliminares, logo aceitei a oferta sem hesitar. A antroploga Ana Guita de Oliveira tambm foi convidada a compor a equipe. A realidade indgena de Barcelos era uma incgnita, portanto a estratgia empregada foi a seguinte: descer o rio Negro pela sua margem direita a partir de Santa Isabel do Rio Negro e parar nas comunidades ao cruzar o limite com Barcelos, fazer o levantamento e obter informaes sobre os povoados e stios prximos. Na sede do ISA em So Paulo eu, Geraldo Andrello e Ana Gita por telefone demos os retoques finais no formulrio (vide em anexo) que foi utilizado no levantamento alguns dias antes de viajarmos para Santa Isabel. Chegamos em Santa Isabel s 9:30 horas do dia 25/04/2000 e nos dirigimos para a casa de Orlando de Oliveira, ento presidente da ACIMRN. Miguel Maia chegara na noite anterior para providenciar a logstica do levantamento. Fomos informados que o barco da CACIR estava avariado e alugaramos o barco dos salesianos, porm ele estava a servio da Misso e s retornaria no dia 27/04/00 s 17:00 horas. s 13:15 horas no dia 28/04/2000 partimos do porto de Santa Isabel rumo s comunidades e stios de Barcelos para realizar o levantamento. Alm dos dois antroplogos, eu e Ana Gita de Oliveira, indicados pelo ISA, a equipe foi composta por um representante da FOIRN, o Tukano Miguel Maia, um da Associao das Comunidades Indgenas do Mdio Rio Negro (ACIMRN), o Arapao Jos Augusto Fonseca (prtico); um do Conselho de Articulao das Comunidades Indgenas e Ribeirinhas de Santa Isabel (CACIR), o Tariana Rivelino de Oliveira Braso (apoio); o Bar Justino Bruno Horcio (motorista); a Bar Eleomar Cipriano Ventura (cozinheira); a Bar Clara Cruz de Braga (cozinheira); e o Bar Sebastio Palheta Souza Filho (apoio).27 O
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Sobre o Programa Rio Negro/ISA vide o captulo VIII desta tese. O trabalho foi realizado em um barco com motor de centro (55 hp), alugado da Misso Salesiana em Santa Isabel, alm de duas voadeiras e dois motores de popa (15hp e 40 hp). Para os procedimentos

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375 trabalho de levantamento, nas duas fases, identificou 53 comunidades e stios correspondentes a uma populao de 2.662 indivduos.28 Estima-se um total de 64 comunidades para todo o Municpio de Barcelos (vide mapa em anexo e tambm Oliveira & Peres, 2000). Durante as visitas nas comunidades Miguel Maia, Jos Augusto Fonseca e Rivelino Brazo palestravam sobre suas associaes, sobre o movimento indgena e as terras demarcadas no Rio Negro, sobre os direitos indgenas assegurados aps a promulgao da Constituio Federal de 1988 e sobre o DSEI/RN. Era um assunto desconhecido da maior parte das pessoas que nem sequer sabiam da existncia da FOIRN. As nossas visitas tambm constituram um meio para divulgar a existncia da ASIBA no interior e a realizao da sua assemblia geral na cidade de Barcelos. Como muitas vezes encontrvamos as comunidades esvaziadas por causa das variadas atividades extrativistas, de pesca ou mesmo a idas ou permanncias na cidade durante o ano letivo por causa dos estudos dos filhos algumas entrevistas foram feitas ou com os presidentes, professores ou agentes de sade das comunidades que em geral ficam mais tempo no povoado. Estes s vezes negavam a existncia de ndios alegando serem todos caboclos. Depois ficamos sabendo que existiam famlias Baniwa, Tukano, Bar, Arapao... em vrias comunidades. s vezes no decorrer da entrevista as pessoas se identificavam com um grupo tnico. No dia 03/05/2000 chegamos na cidade de Barcelos e no dia seguinte nos reunimos com algumas lideranas da ASIBA. Eles decidiram adiar a realizao da assemblia geral por causa de problemas de organizao. Alguns lderes importantes como o presidente e o secretrio da ASIBA ficaram durante o ms de abril daquele ano participando da Marcha
metodolgicos do trabalho em campo foram utilizados: a) questionrio, abordando, para cada comunidade e stio: informaees sobre a histria da Comunidade/Stio (populao, n de famlias etc); situao da entrevista, infra-estrutura escolar; servios de sade; patrimnio, atividades econmicas (caa, pesca, coleta, roa, extrativismo, comrcio); fonte de renda da comunidade; produo artesanal. b) Trabalho conjunto em mapa - antroplogos e moradores - para reconhecimento e localizao, em carta, dos locais utilizados para caa, pesca, coleta, alm dos limites percebidos pela comunidade no desenvolvimento de suas atividades cotidianas. c) Tomada de Coordenadas UTM, com GPS. d) Contatos formais com setores da Prefeitura de Barcelos tais como: Secretaria de Sade, Secretaria de Educao, Departamento de Terras, FUNASA e FUNAI, alm da Associao das Comunidades Indgenas de Barcelos ASIBA. e) Conversas informais com moradores das comunidades e stios, comerciantes de Barcelos e membros da ASIBA. 28 Por motivo de pouco combustvel disponvel e devido s grandes distncias separando as comunidades, deixaram de ser identificadas as seguintes comunidades: a) 2 no rio Jufaris (Caju e So Luis); b) 4 no rio Unini; c) 2 no rio Arac (Bacuquara e Cachoeira); d) 1 stio no rio Demeni; e) stios temporrios localizados nas colocaes de piaava. Importante ressaltar que o levantamento no computou a populao ausente das comunidades e stios, por ocasio da identificao. As atividades sazonais de coleta e extrativismo, alm da migrao temporria (perodo letivo) para a cidade de Barcelos, produzem um aparente esvaziamento das unidades residenciais rurais.

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376 dos 500, uma ampla manifestao indgena a nvel nacional em homenagem aos 500 anos de resistncia e contrria s comemoraes oficiais do descobrimento do Brasil, atrapalhando assim o encaminhamento das providncias necessrias para a viabilizao do evento. Este era o segundo adiamento; prevista no II Encontro Indgena de Barcelos para o ms de maro (23 a 25) de 2000 foi postergada para o incio de maio (05 a 07) e finalmente para o ms de julho (09 a 11). Esta data foi decidida em uma reunio no dia 04/05/2000 da diretoria da associao e militantes mais engajados com a equipe do levantamento. Nesta ocasio Miguel Maia dissertou sobre a implantao do DSEI em So Gabriel da Cachoeira e das discusses nas quais ele, enquanto representante da calha do rio Negro na diretoria da FOIRN props a incluso de Santa Isabel e Barcelos devido existncia de populao indgena nestes municpios. Ana Gita relatou sobre o andamento do levantamento que estvamos realizando. O professor Benjamin indagou como estvamos registrando as auto-atribuies de identidade. Ana Gita respondeu que anotvamos exatamente o que nos diziam. Benjamin de Jesus replicou que se deveria reproduzir o que elas realmente so. Ana Gita observou que era importante retratar este momento do processo de identificao tnica. Eu apontei a importncia da questo colocada pelo professor e sugeri que fizemos um comentrio na introduo do relatrio sobre o carter circunstancial e provisrio dos dados sobre auto-identificao a fim de que ele no seja lido como um veredicto definitivo da condio indgena ou no-indgena dos moradores das comunidades e dos stios. Um trabalho posterior poderia demonstrar um quadro bastante diferente at devido prpria consolidao do movimento indgena em Barcelos. Nos perguntaram tambm se algum que se diz descendente de nordestinos deve ser aceito como membro da associao indgena. Jos Augusto advertiu sobre a incluso de pessoas oportunistas que se dizem indgenas apenas para satisfazerem certos interesses (eleitoreiros, por exemplo) e depois deixam de apoiar o movimento ou as necessidades dos povos indgenas. Benjamin de Jesus estabeleceu uma distino entre ser membro da associao e da coletividade indgena. Fazendo uma analogia com o sindicato de trabalhadores rurais, disse que qualquer um pode se identificar como ndio, assim como poder ser trabalhador rural ou membro de qualquer outra categoria profissional, porm s pode ser considerado membro da associao aquele que concorda com as idias difundidas

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377 e as aes empreendidas por ela. Tentou delimitar as esferas de afiliao prvia29 das esferas de afiliao voluntria baseada na adeso consciente e refletida a valores e crenas. No caso do associativismo indgena em Barcelos e da sua poltica de atribuio de identidade correspondente a linha de delimitao destas duas esferas no to ntida. Os ativistas presentes nesta reunio demonstraram grande preocupao e incerteza quanto questo da identificao tnica e como a ASIBA deveria conduzir este processo. A ateno a este tema tambm foi objeto de reflexo no II Encontro Indgena ocorrido na cidade em dezembro de 1999. Estavam diante da tarefa de decidir sobre as demandas de identidade dos seus vizinhos, algo extremamente indito, num cenrio intertnico dinmico e complexo. Esperavam uma resposta de supostos especialistas em definir precisamente a indianidade de algum. importante destacar como o processo de reformulao das fronteiras tnicas em Barcelos foi suscitado por levantamentos de dados sobre autoidentificao coletiva empreendidos pelas lideranas utilizando formulrios do rgo indigenista oficial como um requisito para obter um sistema melhor de atendimento sade ou por profissionais no-indgenas interessados em resgatar a memria daqueles informantes instituiu tal expediente de produo social e objetivao do Self como o mtodo de atribuio (assumindo um sentido mesmo de averiguao) por excelncia da indianidade. O resultado foi um alto grau de formalizao dos procedimentos de reconhecimento pela comunidade trans-tnica imaginada no contexto urbano de Barcelos no qual o preenchimento do formulrio de adeso associao, que assim exerce um certo controle sobre as demandas e sobre o processo de indigenizao da populao do municpio, se tornou um requisito para o acesso ao espao social recm criado do associativismo indgena, que gera solidariedades mais abrangentes e redefine o senso de pertencimento coletivo (reunies, assemblias, apresentaes de danas e artesanato, projetos de desenvolvimento, servios pblicos diferenciados patrocinados pelo governo federal, qualificao para aposentadorias, insero no movimento de direitos indgenas no Rio Negro, na Amaznia e no Brasil, etc). A carteira de associado indgena a manifestao mais evidente deste fenmeno, apesar de no ser obrigatria a sua aquisio e o seu uso pelos associados. Voltaremos a esta questo no prximo captulo. Por outro lado,
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importante notar que ele tomou o universo do trabalho como referncia que no Baixo Rio Negro no remete necessariamente, principalmente se considerarmos o extrativismo, a um campo de ao marcado pelo livre arbtrio das modernas relaes de mercado.

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378 retira da FUNAI o monoplio do poder designativo ou de nomeao (no sentido Bourdiano) sobre a indianidade barcelense. No dia 09/05/2000 foi realizada outra reunio da equipe do levantamento com os militantes da ASIBA para tratar da organizao da assemblia geral de junho de 2000. O principal assunto tratado remeteu ao apoio logstico da FOIRN (rancho, transporte, combustvel, contatos, etc) e a distribuio de tarefas aos lderes locais (entrega de convites s autoridades municipais, divulgao nas comunidades, local, equipamento de som, etc). No dia 25/05/2000 encerramos o levantamento e subimos o rio Negro rumo a Santa Isabel para devolver o barco dos salesianos e deixar a maior parte da equipe que mora nesta cidade ou prximo dela. Eu, Miguel Maia e Orlando de Oliveira viajamos de voadeira no dia seguinte para So Gabriel da Cachoeira. Permaneci em So Gabriel, hospedado na base do ISA, consultando a documentao sobre os salesianos nos anos 70 e 80 no arquivo da Misso, at a data da assemblia de Barcelos, realizada nos dias 09 a 11/06/2000, para onde regressei. A Assemblia Geral aconteceu nos dias 10, 11 e 12 de junho de 2000, no ginsio da escola estadual Angelina Palhetta, e teve a presena de 300 pessoas aproximadamente, pertencentes s etnias Bar, Baniwa, Tukano, Desana, Piratapuia, Tariana, Canamari e Yanomami. Estavam presentes representantes da FUNAI local, Joo Mineiro; da FOIRN, Miguel Maia (tesoureiro) e Estevo Barreto (membro do Conselho Administrativo); e o nico vereador de oposio, Joo Eneci. Nenhuma autoridade municipal compareceu ao evento. Eu estava representando o ISA como antroplogo integrante da equipe do levantamento das comunidades indgenas de Barcelos. Foram discutidos os seguintes temas: implantao do DSEI/RN em Barcelos; educao indgena, aprovao do estatuto; eleio para a diretoria permanente da ASIBA; indicao de delegados para a assemblia geral eletiva da FOIRN; indicao de delegados para a oficina dos Projetos Demonstrativos dos Povos Indgenas (PDPI); questes relativas a invases, conflitos e concesso de terras pelo prefeito. Trs pajs benzeram o ginsio esportivo do colgio para afastar todos os males e buscar foras com os ancestrais para que a reunio seja de unio e consiga alcanar os objetivos esperados. Eles rodearam a assemblia com defumador e ao som de marac. Esta assemblia contou com um considervel contingente de moradores das comunidades e stios do interior, ao contrrio das reunies precedentes. O levantamento

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379 contribuiu para o comparecimento de pessoas residentes em lugares distantes assim como o apoio logstico da FOIRN financiando o combustvel para o retorno aos povoados e garantindo alimentao durante os trs dias de assemblia. Por outro lado, houve a contrapartida dos moradores indgenas do interior ao irem com seus prprios recursos, enfrentarem com toda a famlia longas viagens pelos rios em embarcaes simples e lentas, alm de pernoitarem nelas aqueles que no tem parentes morando na cidade at o regresso. Em geral foram as lideranas locais (presidentes, professores e agentes de sade) que atenderam o chamado da ASIBA, pois esto encarregadas de buscar benefcios para suas comunidades. Isto denota que a ASIBA criou uma nova motivao para o deslocamento cidade: expressar suas carncias e privaes, reclamar de injustias sofridas e exigir coletivamente solues como um direito e no como um favor concedido em troca de votos em perodos eleitorais. claro que este processo estava comeando, mas demonstrava sinais de que havia espao para tornar ainda mais audvel a voz de setores marginalizados e vulnerveis no cenrio social e poltico barcelense. A nfase desta assemblia no foi nem a expresso emocional de apego s tradies e ancestralidade tnica nem o aspecto organizacional do associativismo, que no deixaram de estar presentes, mas a criao de um espao pblico de contestao e o encaminhamento de demandas traduzidas para a linguagem da violao de direitos originrios. Podemos notar pelos convidados presentes uma acentuada insero da ASIBA na agenda e na estrutura associativista da FOIRN, evidenciada mais ainda pela ausncia de qualquer representante da COIAB, recebendo recursos30 e enviando delegados para participar de fruns, cursos, eventos, etc, promovidos pela Federao ou acessveis atravs dela. Outro ponto importante a atitude de desconfiana e de m vontade das autoridades municipais frente a uma situao indita de mobilizao coletiva e reivindicao de direitos, em suma a uma demanda de cidadania sustentada em atos de manifestao pblica de uma identidade anteriormente depreciada e negada. A discusso sobre o Distrito Sanitrio Especial Indgena do Rio Negro (DSEI/RN) no municpio de Barcelos abordou questes relativas ao quadro atual do atendimento mdico e as dificuldades de acesso, de seu gerenciamento at a implantao dos DSEI, da
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O bote de alumnio e o motor de popa (15 HP) utilizados no levantamento foram doados a ASIBA pela FOIRN. Esta embarcao foi empregada por militantes da ASIBA para divulgar a assemblia e convocar os habitantes indgenas das comunidades e stios do interior do municpio a comparecerem ao evento.

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380 logstica e infra-estrutura do DSEI no atendimento mdico local (locomoo de doentes, por exemplo), do papel dos agentes de sade, etc. A proposta aprovada na assemblia organizou o municpio de Barcelos em seis microregies, abrangentes de todas as comunidades e stios. Houve um reconhecimento geral quanto precariedade do quadro de sade atual. Apesar da existncia de postos de sade, as comunidades raramente dispem de remdios e de orientao adequada para seu uso, alm de enfrentar dificuldades para a remoo de doentes. Assim, a implantao do DSEI em Barcelos, na forma como vem sendo discutida pela ASIBA e pela FOIRN, contribuiria para ampliao e melhoria dos servios de sade oferecidos no municpio. Foram discutidos tambm conflitos de terra envolvendo comunidades indgenas do interior e um hotel de selva (Rio Negro Lodge) do empresrio norte-americano Phillippe Marsteller, localizado na margem direita do rio Negro.31 Tambm foi debatido o problema dos conflitos urbanos em torno das terras onde vrias famlias fazem suas roas prximas da estrada Barcelos-Caurs e da dificuldade de legalizao de terrenos de moradia, enquanto os comerciantes e empresrios obtm facilmente a titulao dos seus terrenos pela prefeitura. Outro grave problema abordado foi o regime compulsrio de recrutamento e reteno da fora de trabalho (sistema de aviamento) que os patres impem a vrios indgenas como tambm a ribeirinhos que se dedicam ao extrativismo da piaava. Sade e terra foram dois temas ausentes nos encontros indgenas anteriores e marcaram a presena dos moradores das comunidades e stios, pois intimamente ligados a suas demandas. No terceiro dia o estatuto foi aprovado e foi eleita a diretoria permanente da ASIBA pelo perodo de quatro anos, ficando assim constituda: Clarindo Campos (Presidente), Benjamin Baniwa (Vice-Presidente), Marinete Luciano Baniwa (1 Secretria), Luciano Cordeiro Bar (2 Secretrio), Jos Alberto Peres Bar (1 Tesoureiro) e Dilsa Toms Peres Bar (2 Tesoureira). A ASIBA constituiu-se em um importante rgo de defesa dos ndios contra as arbitrariedades cometidas contra eles. Vrios indgenas que trabalham nos piaabais tm recorrido a ela para reclamar de dvidas absurdas impostas pelos patres, sendo encaminhados para a Promotoria de Justia de Barcelos. A ASIBA tambm solicitou

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Em outubro de 2000, durante a Assemblia Geral Eletiva da FOIRN, os delegados da ASIBA denunciaram os abusos praticados por este empresrio de turismo e passaram um abaixo-assinado pedindo providncias, que foi encaminhado ao presidente da FUNAI e ao Procurador da Repblica em Manaus.

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381 explicaes e providncias a dirigentes de rgos pblicos municipais que atendem mal (de maneira displicente ou at discriminatria) a populao indgena.

Figura 11: Pajs benzendo a assemblia.

Figura 12: Presidente da ASIBA discursando na assemblia.

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CAPTULO XV. Caldes Solidria e DSEI: consolidando uma esfera pblica indgena local. [...] E tivemos tambm as mini-assemblias, com nosso prprio recurso ns organizamos, ns no pedimos ao nosso querido prefeito, ns no corremos atrs do nosso governador e de nenhum poltico, mas ns alcanamos graas a Deus o recurso suficiente para ns organizarmos nosso trabalho e aproveitamos tambm de conscientizar as pessoas para que elas comecem a se organizar, comecem a organizar a sua prpria pessoa, a sua prpria identidade, porque ser uma pessoa nativa, ser uma pessoa indgena no uma vergonha, ter orgulho, porque sabemos que a nvel mundial existe povos com suas lnguas, com seus costumes e eles no so discriminados por causa de suas lnguas, nunca jamais nesse mundo se viu uma lngua atrasada, nunca se viu um povo atrasado porque eles esto usando o seu idioma, pelo contrrio, um povo que usa o seu idioma, que vive dentro da sua cultura um povo rico, um povo realmente organizado, mas nunca atrasado, e ns povos indgenas no somos atrasados, porque cada povo nosso teve nossas lnguas, nossa cultura, nossas festas, nossas religies, nossos acessrios, isso desde 40 mil anos atrs [...] [grifos SCP] (Clarindo Campos. Reunio entre representantes da ASIBA e a secretria municipal de sade. Barcelos, 05/10/2001).

Clarindo Chagas Campos o atual presidente da ASIBA. Como j vimos ele foi eleito presidente da diretoria provisria em dezembro de 1999 e reeleito como presidente da diretoria definitiva para o perodo de 2000 a 2004 na assemblia de junho de 2000. um dos principais responsveis pelo crescimento da ASIBA devido extrema dedicao com que desempenha o seu cargo. tambm grande conhecedor dos mitos e histrias do seu povo. Tem carisma, aguado senso da realidade a sua volta e grande capacidade oratria, incorporando criativamente a retrica mais abrangente do movimento indgena ao contexto local. Ele Tariana, nasceu na comunidade Marabitanas, no rio Vaups. Ele fala tukano, piratapuia, castelhano e portugus. Seu pai Tariana e sua me Piratapuia. Sua esposa Tukano, com quem tem nove filhos sendo que um deles adotado. Quando tinha trs anos de idade seus pais o levaram para a Colmbia. Depois de algum tempo sua me ficou doente e eles foram para Santa Isabel do Rio Negro, porque no tinha mais paj em Marabitanas, foram procurar algum que a curasse. Seu av j era falecido, seu pai era s 383

rezador, seu tio que era paj. Foi uma mulher Wanano da mesma comunidade quem a envenenou (enfeitiou) por inveja. Quando sua me morreu Clarindo tinha trs anos de idade. O seu irmo foi estudar no internato salesiano de Taracu. Ele queria ir, mas no o aceitaram porque ele era muito novo. Ficou muito triste em Taracu, no retornou com seu pai para a comunidade Buzina. Andou jogado no rio Tiqui, como ele mesmo disse, durante um ano. Retornou para Taracu com a sua tia, a irm mais velha do seu pai, que atualmente vive em Manacapuru. O pai dele foi busca-lo e ele no queria ir, mas foi levado para Buzina. Um patro colombiano apareceu por l procurando pessoas para extrair seringa no seu pas. Como o colombiano trouxe muita mercadoria e seu pai j estava com outra mulher resolveu ento andar pela Colmbia. Ele foi junto com o pai e a madrasta. Passou a maior parte da infncia na Colmbia. Um primo de Clarindo, de Santa Isabel, construa botes e vendia na Colmbia. Tornou-se um homem poderoso e rico, vendia os botes caro para os seringueiros. Ele tinha muitos motores e muitos seringueiros. O pai dele era primo do av de Clarindo. Tratava bem a sua freguesia, pagava-os bem e no meio assim escravizados. Ele pagou a dvida do pai de Clarindo ao patro colombiano de Barranquilha. Ficaram trabalhando para o primo no rio Idara na Colmbia vendendo lenha. Conseguiu pagar sua conta com o primo extraindo seringa e assim ficaram independentes do patro. Seu pai construiu uma canoa e foi para Mitu, capital do departamento Vaups na Colmbia, onde moraram durante muito tempo. Depois viagem a remo at Yauaret. Clarindo ento j tinha dez anos de idade e foi estudar no internato salesiano de Taracu. Teve dificuldade no incio, pois mal sabia falar o portugus, pois usava mais a lngua castelhana para se comunicar. Como no internato o grau de escolaridade era apenas at a 4 srie foi para So Gabriel da Cachoeira procurar emprego a fim de conseguir dinheiro e continuar os estudos. Trabalhou durante um curto perodo na prefeitura, mas a remunerao era baixa e se demitiu. Passou a vender lenha junto com seu pai para a CELETRA (Companhia Estadual de Eletricidade). No conseguiu economizar dinheiro para se matricular no colgio salesiano, mas como no tinha toda a quantia para pagar a matrcula o bispo Dom Miguel Allagna recusou sua entrada foi recusada. Voltou para Marabitanas e depois retornou a So Gabriel para tentar estudar novamente. Descarregava as balsas da prelazia; as mercadorias eram enviadas para todas as misses no Rio Negro: Taracu, Pari-Cachoeira, Assuno do Iana, Yauaret, etc.

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Dom Miguel Allagna que conseguiu este emprego para Clarindo. Conseguiu com muito esforo terminar a stima srie, no turno supletivo. Deixou esta ocupao por causa de desavenas com o chefe salesiano dos estivadores. Clarindo ento conheceu um empreiteiro e foi trabalhar com ele para a empresa Queiroz Galvo. Faziam cercas para os quartis, construam casas, etc. Nesta poca, anos 1970, o Batalho de Engenharia e Construo (BEC) estava sendo instalado, uma subsidiria do DNER (Departamento Nacional de Estradas e Rodagem) e outras firmas industriais e tcnicas incumbidas da construo da Perimetral Norte. Clarindo morava no alojamento junto com a peozada. Seu pai o procurou e o convidou para lecionar em Marabitanas, pois faltava professor l, onde ele permaneceu durante seis anos. Em 1982, viajou para Barcelos, em busca de emprego. Recebeu uma proposta de emprego na retransmissora de TV, iria atender telefonemas e fazer outros servios. Retornou para sua comunidade no rio Vaups para avisar a seu pai que iria trabalhar em Barcelos, queria ficar somente por uma ou duas semanas, mas os pajs fizeram um cigarro, benzeram o corao dele e o prenderam na comunidade. Mas eles fizeram um cigarro l e me seguraram, me prenderam. Eles tm esses costumes. Os pajs, eles prendem. [...] Eles benzem o corao da gente tambm pra se acostumar, tudo, tudo eles fazem. Parece que voc est na sua casa, mesmo se for de fora. (Clarindo Campos, entrevista). Fez concurso para agente de sade e foi aprovado. Quando concluiu o estgio de trs anos abriram vagas no SUS (Sistema nico de Sade). Ficou como funcionrio efetivo, com carteira de trabalho assinada. Trabalhou durante dez anos na rea de sade, atendia a quatorze comunidades do rio Vaups, de Marabitanas at abaixo de Taracu. Mesmo assim viajou por oitenta comunidades no distrito de Yauaret dando remdios, fazendo reunies e dando palestras sobre preveno de sade, higiene, nutrio, etc. Clarindo pediu demisso devido a um desentendimento com a diretoria da FNS (Fundao Nacional de Sade) em So Gabriel da Cachoeira porque ela no providenciou a remoo do seu pai a Manaus para fazer uma cirurgia. J estava casado. Mudou sua residncia para So Gabriel da Cachoeira onde permaneceu durante um ano na casa de um tio, no bairro Boa Esperana. Quando acabou o dinheiro que tinha poupado quebrou pedras para vender. Mudou-se para o bairro Dabaru, construiu mais um cmodo na casa de uma av Tukano (me de um primo do seu pai, aquele que pagou a

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dvida dele com o patro colombiano) que ainda mora l atualmente. Resolveu ento ir para o Balaio. Deram a ele um terreno muito bonito para sua famlia fazer roa, mas Clarindo no se adaptou bem ao lugar. Tinha muita malria, era muito isolado, o preo da passagem de nibus para So Gabriel era alto. Moravam separados da comunidade durante trs anos, quando chegou por l um funcionrio da SUCAM (atual FUNASA) que ficou surpreso em encontra-lo ali. Seu Clarindo, mas est por aqui? Aqui no teu lugar no, rapaz. Voc tem que sair daqui, voc no pra isso no. Foi se meter numa estrada assim. J andou muito, j andou nas organizaes, viajou... pra qu? Esse aqui no teu lugar. Voc tem que sair daqui. Voc no nasceu pra viver nesse tipo de vida. Voc nasceu pra viver numa sociedade maior, uma localidade onde tem mais gente, porque aqui eu acho que no pra ti. Esse comentrio causou uma forte impresso em Clarindo e ele comeou a pensar em ir para um lugar grande, mais movimentado. No cogitava ainda em Barcelos, mas admitiu que mudar novamente de residncia. A visita de uma tia sua que mora no Rio de Janeiro foi decisiva para convenc-lo a viver novamente numa sociedade grande. A trajetria biogrfica de Clarindo ilustrativa da aspirao de autonomia recorrente no imaginrio e nas estratgias individuais e coletivas de insero nos contextos intertnicos do Rio Negro, subjacente a uma concepo de bem viver contraposta a isolamento. Ns j vimos tambm em vrias outras biografias de ativistas indgenas apresentadas nesta tese que autonomia implica neste constante movimento de sada e retorno para a comunidade de origem assim como entrada e sada da civilizao trazendo algo adquirido l fora em seu benefcio. Os limites e a lealdade a esta comunidade de origem podem ser redefinidos em certos momentos biogrficos principalmente vinculados a militncia indgena e abranger os parentes de toda um calha de rio (ou um trecho dela) ou at de todo o Rio Negro. Clarindo Campos vendeu alguns pertences para viajar logo para Barcelos, mas seus filhos pegaram gripe e por isso ficou ainda por trs meses em So Gabriel da Cachoeira na casa de um tio no bairro Boa Esperana. Gastou todas as suas economias enquanto esperava o restabelecimento da sade dos filhos e por isso teve que pedir uma passagem de recreio para Barcelos a um funcionrio da FUNAI que era seu amigo, pois j tinha feito as

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transferncias das vagas dos filhos para o colgio salesiano de Barcelos. Este conseguiu a autorizao no barco para a viagem de Clarindo com a sua famlia. Chegaram em Barcelos em maro de 1998. Dois tios dele j moravam l. Um deles h mais de trinta anos e tem uma pequena padaria. Foi este que cedeu um pedao do seu terreno para Clarindo construir a sua casa. Sua esposa fazia bolsas de croch e outras peas de artesanato e vendia para aquela senhora Piratapuia mencionada no captulo anterior que revendia na sua loja situada no centro da cidade. Como o prefeito Jos Beleza estava dando material para as pessoas construrem as suas casas, Clarindo o procurou. Beleza falou para ele cortar madeira, paus rolios, travesses, esteios e no se preocupasse com o restante (pregos, ripas e zinco) que ele providenciaria. Ele tirou todo o material, mas o prefeito s adiava a entrega do que havia prometido. Decidiu ento cortar palha de coro e fez o teto da sua casa. Eram muito precrias as condies de sustento da famlia. Ele tem oito filhos. Os maiores vendiam dindim (picol ensacado) para ajudar e ajudavam a fazer o artesanato. Ele solicitou tambm ao prefeito um terreno para fazer roa. Beleza inventou algumas desculpas para no conceder dizendo que tinha que ter um projeto, mas Clarindo acabou conseguindo o terreno na margem da estrada do Caurs. Depois de cinco meses j colheram a mandioca e fizeram farinha para vender em casa. A clientela foi crescendo e a situao melhorando. [...] E foi quando surgiu esse movimento indgena aqui em Barcelos. Lugar que eu nunca esperava ter movimento indgena [...] (Clarindo Campos, entrevista). Clarindo Campos participou ativamente da criao da Unio Indgena do Distrito de Iauaret (UNIDI) e das manifestaes organizadas por esta organizao contra a demarcao em colnias agrcolas e o Projeto Calha Norte, apesar de no ter exercido nenhum cargo de direo, no final dos anos 1980 e incio dos anos 1990. Eu cansado de trabalhar na poltica indgena decidi migrar para Barcelos, me tornar annimo, me esconder por a, me tornar branco (Clarindo Campos, pronunciamento na mini-assemblia de Tapera, no rio Padauiri, 21/09/2001). Clarindo Campos contrape o tempo em que morava na sua comunidade de origem e era um participante ativo do movimento indgena ao momento inicial de residncia em Barcelos quando pretendia viver desapercebido e confundido no meio dos brancos. O seu tio Elpdio que tambm mora em Barcelos foi quem lhe avisou sobre a reunio indgena ocorrida no salo paroquial no dia 05 de novembro de 1999. Clarindo resolveu ento comparecer ao evento somente para ver o que

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estava acontecendo. No pretendia mais se envolver com movimento indgena, ser uma pessoa pblica, queria permanecer escondido, sem aparecer, discreto, queria mudar o rumo da sua vida. Seu objetivo era apenas sustentar sua famlia, trabalhar ao lado dos filhos para educa-los. Barcelos era o lugar ideal para isso. Na reunio Ismael Moreira que o conhecia l de Yauaret e Tariana como ele o convidou a participar da comisso provisria. Clarindo aceitou. Benjamin de Jesus Andrade de Oliveira Baniwa, vice-presidente da ASIBA e professor. No fala o nheengatu. Sua esposa no indgena. graduado em Cincias Sociais. Integrou a comisso provisria formada em novembro 1999 e a diretoria provisria como secretrio eleito no ms seguinte daquele mesmo ano. Nasceu na ilha de Samama, no rio Negro. Ele morou l com seus pais at os quatro anos de idade. Cortavam seringa para o patro chamado Caminhas. No inverno iam para o stio em terra firme, no rio Arirah. At os quinze anos de idade trabalhou em vrios seringais at estabelecerem residncia na cidade de Barcelos em 1988. Antes disso em 1979 Benjamin morou em Barcelos na casa do seu padrinho. Benjamin tem ambies polticas no sentido de ocupar cargos no legislativo ou no executivo municipal seja no prprio movimento indgena. Concorreu duas vezes a presidncia da ASIBA, mas no conseguiu. Pensou em disputar uma vaga na diretoria da FOIRN como um dos candidatos da calha do rio Negro nas eleies de outubro de 2000, mas acabou desistindo. Chegou a conversar sobre o assunto com membros da diretoria da ACIMRN, mas no compareceu a assemblia regional em Tapereira onde foram indicados os candidatos. Ele tem habilidade oratria e contribui muito com a imagem da ASIBA em eventos polticos e fruns de debate de mbito regional ou nacional. Alias a ASIBA se ressente deste tipo de competncia entre seus lderes. Entretanto ele no tem investido tanto na consolidao do movimento no plano local. Em 1984 entrou no internato salesiano para estudar da 1 a 4 srie com dez anos de idade. Morou no internato durante um ou dois anos, quando mudou o diretor este benefcio lhe foi retirado. Passou a residir ento com uma prima at seus pais se fixarem definitivamente em Barcelos. Ele continuou os estudos (5 a 8 srie) no colgio dos padres. Em 1988 comeou a cursar o magistrio no colgio Padre Joo Badallotti interrompendo no ano seguinte. Prestou servio militar na marinha em Belm em 1992 e no ano seguinte fez o primeiro ano do curso de administrao na Escola Castelo Branco em Manaus. Retornou

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para Barcelos no ano de 1994 e em 1996 retomou o curso de magistrio. No ano seguinte foi aprovado no concurso para professor municipal passando a lecionar para turmas de 2 srie nas escolas da cidade. Foi aprovado no exame vestibular em 1997 para o curso de Cincias Sociais do campus de So Gabriel da Cachoeira da Universidade Federal do Amazonas que iniciou no ano seguinte. O curso organizado em mdulos que acontecem durante as frias (janeiro, fevereiro, maro, junho, julho e agosto), pois a maior parte dos alunos se constitui de professores. O seu interesse nas Cincias Sociais se direcionou para a Cincia Poltica e secundariamente para a Sociologia. A antropologia nem sequer foi mencionada numa conversa em que abordamos este assunto. Sua monografia de concluso de curso foi sobre a cmara municipal de Barcelos tendo como foco de anlise a questo da democracia e da representatividade. Foi a partir da sua aproximao com a FOIRN proporcionada pelo contato com colegas universitrios a ela ligados que ele passou a assumir a sua prpria origem indgena e a pensar na possibilidade da formao de uma organizao em Barcelos. Na verdade a gente comea a ter uma preocupao com Barcelos, a gente estava praticamente isolado do movimento indgena de So Gabriel e outros lugares, e a gente se sentia isolado e discriminado, essa era a preocupao, a gente olhava para os lados e no tinha apoio. A de repente a gente comea conversar um com o outro, um ndio com o outro e comea a perceber que a gente tinha que comear a se movimentar. [...] A gente estava sem saber por onde comear e a aparece o Ismael Tariano que trabalhava na COIAB e que fez uma visita aqui e a gente conversou e tal, ele estava fazendo uma pesquisa, depois apareceu o Miguel Maia tambm [...] (Benjamin de Jesus, entrevista. Barcelos, 11/09/2001). A conexo a redes trans-locais de produo e defesa de direitos indgenas atravs do Ismael Moreira e do Miguel Maia deflagrou o processo em Barcelos. Peres, como conhecido em Barcelos, Bar. comerciante. Fala o nheengatu. Sua esposa Bar tambm. Atualmente o representante da ASIBA no conselho consultivo da COIAB. Nasceu no igarap Guar, durante sua infncia trabalhava na extrao de seringa no vero e sorva no inverno. Aos nove anos de idade ele foi com seus pais e irmos cortar

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piaava no rio Padauiri para o patro Sebastio Macedo. Quando seu pai morreu tinha dez anos de idade. Com a morte do pai o patro tomou tudo que ele e sua me possuam (canoa, espingarda...). Fixaram moradia ento em So Tom. Extraiam a piaava num igarap perto que eles tinham acesso no inverno e no vero eles coletavam seringa. Neste caso no trabalhavam para nenhum patro e vendiam o produto por conta prpria para comprarem o que precisassem. Somente 17 anos de idade foi estudar no internato salesiano de Santa Isabel, mas foi por dois anos apenas. Foi ento para Manaus onde estudou durante dois anos no colgio Nilo Peanha. Trabalhava como ajudante de caminho e depois de trs anos nesta ocupao conseguiu economizar algum dinheiro e se estabeleceu no comrcio em 1980. Recentemente comeou a pensar em melhorar sua qualidade de vida, pois numa cidade grande como Manaus tem muita violncia, pobreza, prostituio... e considerou Barcelos o lugar ideal para viver resolvendo voltar em 1999. Ele no estava presente no I Encontro Indgena realizado no salo paroquial, mas compareceu ao II Encontro ocorrido na escola Padre Antonio Scollari, no bairro Aparecida e integrou a comisso encarregada de elaborar o estatuto da associao recm criada. Logo que ele soube do I Encontro procurou D Ceclia e D Virglia para se identificar como indgena e se cadastrar como associado da ASIBA. Joo Mineiro se ops a sua filiao a associao alegando que ele no era ndio. Todavia, ele contou com o testemunho a seu favor de D Dilsa e D Virglia, lideranas fortes do movimento como j vimos, que so suas primas; sua me irm da me delas. Ento houve essa resistncia, mas depois foi entendida, de alguma forma foi explicada, at porque pra voc se cadastrar realmente tem que ter algum que te conhea, tem que ter um aval, ningum cadastra ningum que quer ser ndio, tem que ter etnia mesmo, mas tem que ter uma histria de algum que te conhea (Peres, entrevista. Barcelos, 01/10/2001). Jos Alberto Peres tem fornecido algum apoio logstico (uso do fax e do telefone da sua loja) a ASIBA, importante em um momento no qual a organizao sofre de uma quase total carncia de recursos e equipamentos permanentes de comunicao e transporte. Fornece a merenda (um lanche composto de biscoitos e refresco ou refrigerante) para as reunies da ASIBA; um item fundamental localmente para este tipo de evento. Ele

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juntamente com Clarindo Campos tem mostrado intensa dedicao consolidao organizacional da ASIBA e vem representando-a em fruns de debate e instncias de deciso sobre os direitos indgenas fora do municpio. vereador, eleito em outubro de 2000 pela frente de oposio ao prefeito, e foi o nico candidato a apresentar-se como indgena e a utilizar a retrica do orgulho, da identidade e dos direitos tnicos originrios na sua campanha. No deixou de utilizar tambm o jeito e o discurso clientelistas de obteno de votos baseado em favores e obrigaes recprocas, comuns no cenrio poltico municipal. Cabe assinalar que estamos falando de disposies profundamente arraigadas e difusas de ao poltica a fim de no nos deixarmos levar por anlises maniquestas nas quais as estratgias se constituem no jogo da disputa por recursos materiais e simblicos em Barcelos. Vrios estudiosos esto mostrando a complexidade das relaes entre os processos mais amplos de transio democrtica nos vrios pases latinoamericanos como os movimentos indgenas, suas lutas e conquistas (Maybury-Lewis, 2002). Para citar um exemplo, lderes dos Guarani durante a ditadura no Paraguai adotavam estratgias adaptadas ao esquema clientelista e personalista do cenrio poltico nacional, regional e local para obter benefcios para o seu povo, mesmo que irrisrios. Um processo de democratizao, depois da queda do ditador em 1989, que veio acompanhado de medidas de incentivo ocupao das suas terras e intensificao da migrao para a regio onde elas se localizam agravou a presso e os conflitos agrrios envolvendo os Guarani. Este fluxo de pessoas e a instalao de uma estrutura de transporte para reas do territrio paraguaio antes menos povoadas e acessveis tambm enfraqueceram a eficcia eleitoral das prticas clientelsticas tradicionais (Reed, 2002). Neste novo cenrio poltico os ativistas Guarani precisam remodelar suas estratgias no sentido da formao de um movimento indgena orientado para polticas de identidade projetadas em planos transnacionais. O que interessa ento neste trabalho avaliar a potencialidade do associativismo indgena recm surgido em mudar tal quadro das relaes intertnicas e oferecer novos parmetros de construo da esfera pblica local. Quando retornei a Barcelos em agosto de 2000 a disputa eleitoral j determinava o clima de discusso dos principais problemas do municpio. Quanto mais se aproximavam as votaes mais os temas municipais foram polarizados entre as frentes de apoio e as de oposio ao prefeito. Quase toda a opinio sobre qualquer assunto tinha uma grande

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probabilidade de ser rotulada como sendo favorvel ou contrria a um ou outro dos candidatos. O turismo era um deles. Jos Beleza foi em 1996 o candidato a sucesso do seu concorrente em 2000 e ex-prefeito Valdeci Raposo. Haveria um acordo estabelecido entre eles de apoio inverso nestas eleies que foi rompido pelo prefeito Beleza. Cabe mencionar que naquele momento no havia a possibilidade de re-eleio a mandatos consecutivos referentes a cargos dos poderes executivos municipais, estaduais e federais. A candidatura re-eleio do atual prefeito contava com o aval de comerciantes, patres e empresrios de turismo. O Padre Francisco Dezen e os pastores evanglicos tambm apoiavam a candidatura Beleza, que venceu as eleies com uma ampla margem de votos (o dobro) a seu favor. Nas ruas da cidade havia mais carros equipados com equipamento de som de alta potncia fazendo campanha para os candidatos da situao e a distribuio de camisetas, santinhos e cartazes de propaganda tambm era maior. Todavia, a entrada de Valdeci Raposo na competio provocou um re-arranjo na composio de foras dentro da cmara de vereadores, pois o nmero de parlamentares de oposio subira de um para quatro ocupantes das nove cadeiras do poder legislativo. Nos comcios e reunies (termo local para pequenos comcios) dos candidatos da situao Valdeci Raposo era adjetivado como sovina, avarento; um defeito horrvel pelos padres morais regionais, pois o ato de reteno ou continncia implica em negao de convivncia, de sociabilidade com os outros, afastando as pessoas em vez de aproxima-las. No cerne desta cultura poltica os poderosos devem ser generosos, sustentar a sua liderana na abundante distribuio de bens materiais e simblicos aos subordinados, mesmo que seja em momentos espordicos rigidamente pr-estabelecidos, assumindo um desenho quase ritual em situaes de confirmao ou fortalecimento de laos de aliana e lealdade para contornar sua essncia paradoxal na qual as estratgias de acumulao de poder e riqueza devem ser atualizadas no idioma da prodigalidade. Em contrapartida nos comcios da oposio o prefeito era identificado como algum de fora, no era um barcelense, e chamavam a ateno para o fato de que ele nem sequer morava na cidade, passando a maior parte do ano na sua residncia em Manaus. A identidade barcelense cuja referncia o municpio e no uma calha de rio, uma ilha ou um igarap, um modo muito difundido de indicar a prpria origem entre indgenas e ribeirinhos se expressou acentuadamente durante a disputa eleitoral. No discurso populista dos candidatos o alcance semntico do

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termo caboclo foi alterado para designar o barcelense genuno, foi despido de seu tom pejorativo para corresponder idia de um nativismo municipalista, para distinguir aqueles que so da terra frente queles que so de fora em uma cidade localizada no meio do trfego entre o Alto Rio Negro e Manaus. Os discursos de campanha se caracterizaram por tentativas de desqualificao pessoal dos concorrentes, em geral carregadas com fortes conotaes morais na medida em que se aproximavam as eleies, em vez de buscar argumentos para discutir os problemas dos diversos segmentos da populao. Alguns se apresentavam como representantes de certas categorias (agricultores, pescadores, piabeiros, extrativistas, funcionrios pblicos...) sem oferecer propostas concretas; no mximo faziam referncias amplas a incentivar a formao de cooperativas e associaes. No existem propriamente categorias, pois ns vimos que tais atividades em geral no constituem ocupaes exclusivas que definam a identidade de um grupo de interesses bem definido, mas so estratgias complementares de sustentao do grupo domstico, compreendidas pelo conceito de multilocalidade. Isto se traduz no desejo amplamente difundido de obter e acumular todo tipo de carteira: de agricultor, de pescador, de piabeiro, de arteso, de indgena, etc. A concepo local de cidadania, status de algum reconhecido na esfera pblica como uma pessoa digna e respeitvel, est ligada ao porte de documentos, ou seja, de instrumentos de comprovao deste status seja qual for a instituio emissora, e por outro lado a carteira encarada como um canal para a obteno de direitos e benefcios, ela te d poderes e confere acesso a autoridades e rgos pblicos. Temos aqui um fetichismo burocrtico da cidadania. A documentao da identidade indgena, manifesta na emisso da carteira de associado da ASIBA, se constituiu numa estratgia para fomentar a adeso ao movimento e trazer pessoas para o espao pblico indgena local. O documento escrito (concebido localmente como um instrumento fundamental de reconhecimento de status e de obteno de benefcios no mundo dos brancos) ao constituir um dos suportes de objetivao da indianidade na forma da carteira conferiu uma chancela formal s demandas de aceitao como indgena entre os parentes de Barcelos. A deflagrao do movimento de re-emergncia tnica no bojo de levantamentos sobre a populao indgena atravs da aplicao de formulrios institucionalizou-se como um procedimento de reconhecimento da indianidade, equiparada condio de associado, altamente controlado pela ASIBA. Um

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dos requisitos indispensveis para ser ndio em Barcelos ter um etnnimo e quem no souber o seu tem que descobri-lo e comprova-lo atravs dos seus laos de parentesco ou, em ltimo caso, do seu local de nascimento. Nem todos na ASIBA exigiam rigidamente a obedincia ao princpio da patrilinearidade na atribuio de afiliao tnica. Deste modo, aqueles cujo pai era branco e a me era indgena foram admitidos sem problemas como membros da associao. O associativismo existente at a criao da ASIBA estava inteiramente atrelado ao esquema clientelista da prefeitura; constituindo o brao civil do executivo municipal. Cabe uma ressalva para a Associao de Pescadores que estava procurando tornar-se mais independente na medida em que seus dirigentes se posicionaram explicitamente ao lado dos candidatos de oposio. Isto se explica pelos constantes conflitos deste segmento com o empreendimento turstico do Felipe, que probe a pesca nos locais de interesse para a prtica da pesca esportiva. Como o prefeito estava estreitamente ligado a este empresrio, utilizando inclusive as lanchas e o avio dele na sua campanha pelas comunidades mais distantes do interior. A cmara de vereadores aprovou a sua solicitao da concesso de terreno para a construo do hotel de selva Rio Negro Lodge na condio de apresentar um projeto com uma anlise de impacto ambiental que nunca foi atendida por ele. Felipe fornecia duas lanchas e combustvel para a secretaria do meio ambiente, certamente para impedir a pesca (principalmente os geladores, atividade de grande escala promovida por barcos vindos de Manaus para fornecer pescado quele mercado), a caa e inclusive qualquer atividade de sustento (agricultura, coleta, extrativismo) das famlias indgenas e ribeirinhas na sua rea de atuao. Em 2001 a secretaria do meio ambiente e turismo, Josely Macedo Bezerra, me disse que estava sendo elaborado um plano de zoneamento para regularizar a pesca esportiva no municpio. Os dirigentes da Associao de Pescadores de Barcelos reivindicavam a instalao de um posto do IBAMA na cidade para coibir os abusos cometidos por aquele empresrio norte-americano. A sua condio de estrangeiro realada nas reclamaes feitas contra ele. Obviamente o candidato Valdeci Raposo procurou capitalizar tal descontentamento a seu favor, divulgando a sua disposio de conter se fosse eleito o caos estabelecido pelo aumento desordenado do eco-turismo, resolvendo os problemas por ele gerados e obrigando a trazerem algum benefcio em compensao pela explorao das paisagens naturais maravilhosas do municpio.

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A ASIBA vinha recebendo vrias reclamaes de seus associados sobre conflitos em torno do acesso e uso a recursos naturais envolvendo a pesca esportiva e seu impacto scio-ambiental. Aps discutir o assunto, inclusive a possibilidade destes empreendimentos atravs da prefeitura receberem indiretamente recursos para suas atividades do Banco Interamericano de Desenvolvimento/BID (captulo XI desta tese) sem a devida verificao sobre os custos e benefcios sociais e ambientais causados por eles. Resolvemos ento coletar informaes fazendo visitas a algumas comunidades envolvidas (So Luiz, Cumaru e Baturit). Depois, nas mini-assemblias organizadas pela ASIBA em algumas comunidades em meados de 2001 tivemos mais relatos de muitos outros povoados prejudicados pelo eco-turismo. Todavia, o fato ligado ao aumento do turismo florestal que mais chamava a ateno neste perodo de disputa eleitoral se referia morte misteriosa de trs crianas na comunidade So Lzaro, no rio Unini, em junho de 2000 onde foi instalado um hotel de selva logo aps o abandono do lugar pelos seus moradores. Um mdico da FIOCRUZ, Dr. Mrcio Bia, que esteve no local acompanhado da secretria municipal de sade levantou duas hipteses sobre a causa dos falecimentos: meningite ou intoxicao. Considerava mais provvel, segundo informaes obtidas por mim em uma conversa com outro mdico da FIOCRUZ, o Dr. Pedro Albajar, a hiptese de intoxicao devido aos sintomas relatados pelos moradores. Porm, para determinar com mais segurana a causa das mortes seria necessria uma necropsia, cuja autorizao dos pais seria muito difcil de conseguir, pois estavam bastante assustados. Valdeci Raposo prometia se fosse eleito solicitar aos mdicos da FIOCRUZ a realizao da necropsia para esclarecer os fatos, pois seus correligionrios divulgavam a suspeita de intoxicao criminosa com o objetivo de liberar o local onde estava estabelecida a comunidade para a instalao do hotel de selva. Representantes deste empreendimento teriam ido levado um abaixo-assinado em branco para os moradores da comunidade no qual eles cederiam o terreno. Esta verso tambm imputava ao prefeito uma visita a So Lzaro antes deste acontecimento oferecendo indenizaes pelo abandono do povoado. Em suma, as propostas de campanha deste candidato o aproximavam muito das posies crticas e independentes assumidas pela ASIBA diante das autoridades municipais. Um candidato a vereador da oposio chegou a dizer que se Valdeci Raposo fosse eleito doaria uma sede para a ASIBA, para que sasse do prdio da FUNAI que qualificou como

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um rgo viciado, e a prefeitura colaboraria com a FOIRN em projetos executados pela organizao indgena. A ASIBA conquistara alguma visibilidade enquanto uma pea importante do jogo poltico microrregional. A retrica dos direitos indgenas ainda no penetrara na cultura poltica subjacente trama personalista da disputa eleitoral em Barcelos. Entretanto, sua voz comeava a ser ouvida na esfera pblica municipal, pois ambos os lados da competio tentavam angariar a simpatia dos ativistas indgenas. Josely Bezerra, secretria de turismo, tentou conversar com Clarindo Campos a construo de um museu indgena na cidade para exposio de artesanato. Ela queria criar produtos tursticos mais permanentes em vez de um turismo de eventos, fazendo referncia ao festival de peixes ornamentais que na sua opinio era deficitrio para a prefeitura, alm do mais os grupos de dana estavam na oposio devido ao pouco incentivo dado ao evento pela administrao de Jos Beleza. Estava tocando em uma forte aspirao dos moradores indgenas de Barcelos, mas um museu indgena mais do que uma loja de artesanato e deve estar ligado a projetos e polticas de afirmao da identidade tnica. A sua proposta no era totalmente motivada pelo contexto eleitoral e ela nem era candidata, estava vinculada a seus objetivos quanto ao desenvolvimento do turismo no municpio, ela tem se dedicado a esta rea fazendo cursos e participando de eventos em vrias cidades do pas, mas Clarindo acertadamente preferiu deixar passar aquele momento politicamente carregado para tratar do assunto com seus companheiros de movimento. Os partidrios do prefeito demonstravam uma certa preocupao com a deciso de destacados membros da ASIBA em engrossar a ala da oposio. Peres era candidato pela oposio e Benjamin, apesar de no ter se candidatado, subia nos palanques e discursava nos comcios fazendo duras crticas ao Beleza e aos seus adeptos declarando e participando da campanha da frente Valdeci Raposo. Clarindo Campos se manteve mais neutro na medida do possvel. Eu mesmo tentei me manter ao mximo em uma atitude neutra diante das partes concorrentes, sugerindo inclusive esta posio aos lderes da ASIBA quando indagado sobre minha opinio. Eu lhes dizia que poderiam apoiar pessoalmente qualquer candidato, porm nunca falar em nome da associao porque seus membros votariam em candidatos das duas correntes adversrias e no houve nenhuma discusso e deliberao em assemblia sobre o processo eleitoral. Alis, havia reclamaes de alguns militantes neste sentido, inclusive um deles se afastou da organizao porque era candidato pela coligao

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de partidos da situao. Mesmo assim eu fui considerado um oposicionista por algumas pessoas mais prximas do prefeito devido a minha estreita ligao com militantes indgenas que participavam ativamente da campanha da frente Valdeci Raposo. O ponto a destacar se refere ao fato da abertura de um espao de reconhecimento por um governo que negava categoricamente a existncia de ndios em Barcelos excetuando os Yanomami que viviam nas malocas distantes das cabeceiras dos rios Padauiri, Arac e Demeni. Neste caso este reconhecimento ainda resultado de uma iniciativa individual, contudo quando a secretaria municipal de sade assumiu a gerncia do DSEI em Barcelos este reconhecimento se torna institucional. O que no significa que o processo de implantao deste sistema no esteja sendo problemtico e viciado por atitudes, da parte dos responsveis pela prestao dos servios, extremamente incompatveis com a proposta de DSEI. Vimos no captulo anterior que a prpria criao da ASIBA iniciando um processo de redefinio das relaes e das fronteiras tnicas se insere na proposta da FOIRN de ampliao do DSEI/RN para os outros dois municpios vizinhos. O DSEI se constituiu na porta de entrada da ASIBA na rede associativista da Federao, dando visibilidade aos parentes do Baixo Rio Negro e ampliando o escopo regional do movimento indgena. Em dezembro de 2000 a secretria municipal de sade Anita Katz Nara recebeu um convite para ir a Manaus pela Fundao Nacional de Sade/FUNASA conversar com o chefe do Departamento de Sade Indgena, Ubiratan Pedrosa. Mostraram a ela o relatrio sobre o levantamento das comunidades indgenas de Barcelos elaborado por mim e por Ana Gita e lhe perguntaram se a SEMSA/Barcelos poderia assumir a gerncia do DSEI no municpio. A secretria de sade aceitou. Em Barcelos ela convocou uma reunio do Conselho Municipal de Sade (CMS) e convidou Jos Alberto Peres, Clarindo Campos e Joo Mineiro da FUNAI para participar. Indicou Clarindo Campos para integrar o CMS a fim de legitimar o controle social provisrio que seria exercido por esta instncia na proposta de plano distrital que ela elaborou a toque de caixa. Membros da diretoria da associao, com a assessoria de Joo Mineiro, com mais alguns militantes se reuniram para sugerir alguns itens que deveriam integrar o plano distrital no sentido de satisfazer algumas demandas de promoo da sade indgena em Barcelos. O leque de reivindicaes era amplo correspondendo a um oramento de R$ 1.503.608,00 e um custo de R$ 510,20/pessoa

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beneficiada. Anita Katz Nara reuniu todas as fontes de informaes disponveis (levantamento das comunidades indgenas, planos distritais de vrias instituies que atuam em So Gabriel da Cachoeira, da SECOYA que atua com os Yanomami, etc.) fazendo um grande esforo, mobilizando inclusive funcionrios da SEMSA, encaminhando de maneira apressada para no perder a oportunidade acesso aos recursos correspondentes. Quando eu retornei a Barcelos em fevereiro de 2001 estava acontecendo um problema de comunicao entre a diretoria da ASIBA e outros militantes indgenas fundadores da organizao que me procuraram e relataram que o fluxo de informaes da cpula do movimento para a base no estava ocorrendo adequadamente, ou seja, havia uma presso por mais transparncia na conduo dos assuntos da ASIBA. H alguns meses no havia reunies da diretoria com os associados. Desde sua criao a ASIBA promove esses constantes encontros na cidade infelizmente no era possvel fazer no interior devido ao seu alto custo como um canal permanente de dilogo e aproximao entre a diretoria e os associados, resolvendo os problemas internos existentes e mantendo uma dose considervel de adeso e identificao com a organizao. O comparecimento a estas reunies muito bom, em torno de cem pessoas. Eu sugeri ento a diretores e a este grupo de militantes a realizao de um encontro primeiro entre eles para esclarecimento de dvidas, discusso e formulao de propostas de encaminhamento da questo do distrito. Depois de aparadas estas arestas marcar uma outra reunio com a secretria de sade onde seria apresentada a avaliao dos lderes da ASIBA sobre o plano distrital em foco. Em seguida providenciar uma terceira reunio mais ampla com os associados levando os resultados da conversa com a secretria municipal, debater, avaliar e decidir sobre qual a postura da associao diante da situao. Todos estes fruns de dilogo foram abertos aos associados que quisessem participar e devidamente divulgados atravs de cartazes e pelas rdios da parquia e da igreja evanglica. Eu no estava inventando nada, mas apenas propondo reativar um circuito local de democracia participativa que eles mesmos j tinham montado e que estava inativo por um curto perodo de tempo. Por que motivo isto teria acontecido? D Anita, como a secretria de sade conhecida, atropelou o modo e o ritmo de tomada de decises em desenvolvimento desde o encontro indgena organizado pelo Ismael Moreira, aperfeioado nas assemblias seguintes com a assessoria do Miguel Maia e da

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minha tambm, mas cujos princpios j esto presentes no desenho comunitrio dos povoados promovido pelos salesianos. Este modelo de comunidade reproduzido na cidade onde a capela e o centro social (ou sede) foram transferidos como as marcas fundadoras dos bairros que tem nomes de santos catlicos como os ncleos de residncia espalhados pelo interior. A justificativa alegada pela secretria: a urgncia em elaborar o plano distrital dentro do prazo exigido pela FUNASA, fevereiro de 2001. O processo de implantao do DSEI em Barcelos j comeava deturpando completamente os princpios sobre os quais ele foi concebido nas conferncias nacionais de sade indgena na dcada anterior. Ele no deveria ser imposto de cima para baixo conforme uma lgica autoritria e paternalista, mas incentivar a participao direta dos beneficirios em todas as etapas de sua implementao. Foi jogada a responsabilidade da organizao deste sistema sobre uma pessoa totalmente inexperiente e sem um mnimo de conhecimento sobre os povos indgenas, as polticas indigenistas estatais em geral e a sade indgena em particular no Brasil. Acrescente-se que esta senhora como o prprio prefeito Beleza que perdeu terras com a demarcao do territrio indgena do Mdio Rio Negro negava a existncia de ndios em Barcelos alm dos Yanomami e no via com bons olhos a criao da ASIBA. De repente ela apareceu tecendo elogios ao movimento indgena, o nosso movimento indgena, de Barcelos e dizendo que ficava aborrecida com o fato dos ndios terem vergonha da sua origem, porque uma rvore sem raiz no fica em p. Chegou a afirmar uma descendncia indgena respaldada apenas na sua suposta vontade e que atribua ao tempo em que permaneceu no posto Ajuricaba, no alto rio Arac, onde lecionava para os Yanomami. Como em Barcelos so todos misturados, miscigenados com brancos e caboclos, no existem aldeias indgenas como no Alto Rio Negro. Ela quer definir quem e quem no indgena em vez dos sujeitos do movimento social de redefinio das fronteiras tnicas fazerem isso. Tentou diluir a fora e a importncia do fenmeno de re-emergncia tnica e suas possibilidades de democratizao do tecido social invertendo os sinais da atitude discriminatria da elite local, transformando a frmula no existem ndios em Barcelos em todos so ndios em Barcelos, logo ningum , no existem direitos especficos, pois eles valem para todos. Ela repetia quase obsessivamente:

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[...] Ento o indgena local est muito misturado com a populao, est entranhado, no est isolado em coletividades essencialmente indgenas, e essa situao nossa muito diferente de So Gabriel, Santa Isabel eu no sei muito, tem umas comunidades que so tudo indgena, mas tm outras que no so, agora aqui que brabo, porque aqui... [...]. [...] Ento esse recurso vai desafogar o atendimento dos outros e vai ser um atendimento diferenciado e vai atender tambm muitos ribeirinhos que na verdade nem so to indgenas, mas porque tem um primo indgena, o primo casado com indgena, ou porque a me no sei o que, porque todo mundo parente nesse municpio [...] (Anita Katz Nara, Secretria Municipal de Sade de Barcelos. Reunio com a diretoria e representantes da ASIBA. Barcelos, 01/03/2001). Ela torcia o argumento da discriminao positiva transformando-o em argumento da discriminao invertida. Este esforo pretendia descaracterizar o DSEI como resultado de das lutas e uma conquista por direitos dos povos indgenas. Se o atendimento fosse destinado especialmente aos indgenas os ribeirinhos seriam discriminados. Claro que em casos graves de doena ou acidente todos devem receber ateno imediata, porm o direito do indgena e assim os enfermos no-indgenas em busca de tratamentos regulares devem ser encaminhados para os postos e para o hospital da prefeitura. Os dois sistemas no devem ser confundidos e sim articulados. At porque os recursos so limitados e o distrito no pode ser considerada uma tbua de salvao para resolver os problemas concernentes m gesto do sistema municipal de sade. Pois bem, se todos so indgenas os recursos do DSEI seriam utilizados para toda a populao do municpio, desafogando a secretaria de sade. Por outro lado, cogitava aumentar o salrio de funcionrios da SEMSA ou pag-los em dia com a verba do distrito empregando-os nele. Em suma, em vez de uma ateno de sade diferenciada e de qualidade para a populao indgena o distrito sanitrio se transformou em um expediente para a prefeitura, a SEMSA em particular, captar mais recursos do governo federal. Anita Katz Nara agora dizia que a populao indgena deveria ser maior do que aquela registrada no levantamento das comunidades indgenas de Barcelos porque muitos no reconhecem ainda sua origem. A deduo deste postulado no me parece difcil de ser tirada: quanto maior a populao indgena maior o oramento do DSEI.

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O plano distrital indicava o Conselho Municipal de Sade como responsvel pelo controle social (fiscalizao dos servios prestados e da aplicao dos recursos), em vez da ASIBA, uma associao indgena filiada a FOIRN e devidamente legalizada (registrada em cartrio). As reunies deste conselho eram na casa da secretria e constitudo por pessoas da sua confiana. O oramento para a formao do conselho local no estava discriminado, estava inserido no oramento das viagens do barco-hospital da prefeitura para prestar atendimento s comunidades. Sendo assim, no haveria liberdade de ao para os ativistas da ASIBA investirem na formao do conselho local nas comunidades, informando e debatendo sobre os direitos e sobre a sade indgena, capacitando-os para o exerccio da cidadania etnicamente diferenciada, ou na linguagem militante conscientizando as bases. Uma atividade atinente e fundamental ao controle social ficaria atrelada agenda e a lgica da prestao de servio. Alm disso, a liberao de recursos que no so diretamente e explicitamente destinados a esta atividade dependeria da boa vontade da secretria municipal de sade. E a questo que gerava as mais acerbas crticas por parte dos representantes da ASIBA era a reforma do posto de sade do bairro Aparecida, que seria transformado em Casa de Sade do ndio. Eles pleiteavam a construo da Casa de Sade do ndio em terreno separado de qualquer edificao da prefeitura e doado a FUNASA. Temiam que com a mudana da responsabilidade pela gesto da SEMSA para outra instituio, e eles pretendem que seja a ASIBA futuramente, o distrito perdesse as construes situadas em patrimnio da prefeitura. Anita Katz Nara estava irredutvel quanto a qualquer tipo de mudana no plano distrital alegando que ele j fora aprovado pela FUNASA/Ministrio da Sade em Braslia e que as reunies com a ASIBA visavam apenas fornecer esclarecimentos da parte da secretaria. O plano no havia sido aprovado ainda, estava em avaliao, fora aprovado apenas no Conselho Distrital. Alguns dias depois, em 30/03/2001, em uma reunio no hospital entre representantes da ASIBA, da FOIRN, da FUNASA/Barcelos, da FUNASA/So Gabriel e da SEMSA/Barcelos os representantes da ASIBA foram mais taxativos nas suas crticas e reivindicaes. A discusso neste dia foi acirrada, vrias questes tcnicas e polticas foram colocadas e a filha da secretria ficou nitidamente atordoada, sem saber como responder s perguntas. No final deste encontro a ASIBA obteve um ganho importante: tornar visvel nas instncias decisrias do DSEI/RN suas demandas e inquietaes. A representante da

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FUNASA/So Gabriel garantiu que poderiam ser feitas alteraes ainda no planto distrital e se comprometeu a encaminhar as propostas da ASIBA, porque no interferiam no oramento previsto e provinham dos usurios. Os representantes da ASIBA fizeram um documento expondo a situao do DSEI em Barcelos e apresentando suas reivindicaes para ser enviado s vrias instncias superiores da FUNASA. No incio de abril de 2001, em So Gabriel da Cachoeira, por coincidncia conheci na unidade do ISA em So Gabriel, onde eu estava hospedado, Alba Figueroa, antroploga do Departamento de Sade Indgena do Ministrio da Sade, que estava averiguando as denncias de irregularidades cometidas na SEMSA/SG, uma das instituies prestadoras de servio no Alto Rio Negro pelo DSEI. Fiz uma exposio sobre o quadro problemtico de implantao do DSEI no Baixo Rio Negro. Ela sugeriu que os diretores da ASIBA enviassem uma carta para o Ministrio da Sade em Braslia sobre o assunto. Entrei em contato por telefone com Jos Alberto Peres e sugeri que mandassem o documento da ASIBA sobre o DSEI/Barcelos por fax para o ISA/SG para que eu entregasse a Alba Figueroa e assim ela o levasse pessoalmente aos rgos e autoridades competentes em Braslia. Todo um conjunto de manifestaes da ASIBA em diferentes pontos do circuito decisrio do distrito provocou a visita do diretor-geral do Departamento de Assuntos Indgenas/MS, Ubirat Pedrosa a Barcelos, em meados de junho de 2001. Por isso esse recurso s poderia ser disponibilizado via a secretaria municipal de sade. Sendo assim, no estava vigorando ainda nenhum convnio entre FUNASA e SEMSA/Barcelos referente a atendimento diferenciado de sade a populaes indgenas. Houve uma disputa pela organizao da programao do visitante entre a ASIBA e a SEMSA que comeou desde a sua chegada no aeroporto, pois era uma tima oportunidade para cada uma das agncias tentar a sua definio da situao. No se tratava mais de dialogar, negociar ou at exigir qualquer coisa junto secretaria e sim de marcar e defender posies, mostrando o estado calamitoso dos servios pblicos de sade no municpio. Isto se tornou evidente com a definio de duas reunies separadas, uma s 13:30 na SECOYA e outra s 15:00 horas na escola Angelina Palheta, com Ubirat Pedrosa no mesmo dia pela ASIBA e pela SEMSA. Na primeira reunio toda a srie de irregularidades existentes na secretaria municipal de sade foi descrita: atraso no pagamento de funcionrio, a falta de equipamentos e medicamentos no hospital e nos postos de sade, etc. Clarindo Campos fez um relato sobre

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a diversidade tnica e lingstica do Baixo Rio Negro, sobre a discriminao e o preconceito vigentes que abafam a expresso pblica da identidade tnica, a histria da associao indgena, seus projetos e parcerias com outras organizaes, terminando com a apresentao e entrega do Plano Distrital elaborado pela ASIBA para o ano de 2002. Nesta oportunidade ficou esclarecido que na verdade os recursos que viriam para o municpio no eram provenientes do programa dos DSEIs, mas uma verba adicional do Sistema nico de Sade conseguida atravs do empenho pessoal de Ubirat Pedrosa, como ele mesmo sublinhou. Anita Katz Nara e seus convidados ficaram esperando durante uma hora at a reunio com a ASIBA terminar. Em seguida todos os presentes nesta reunio se dirigiram para a outra reunio junto com Ubirat Pedrosa. O clima ficou muito tenso porque a secretria de sade foi alvo de muitos questionamentos relativos a irregularidades na SEMSA e Ubirat Pedrosa pediu que ela se retirasse. Em seguida, abandonaram o recinto os seus convidados e Ubirat Pedrosa permaneceu montando o oramento dos recursos que viriam dali para frente. A ASIBA obteve o atendimento de trs reivindicaes: a indicao do assessor indgena, pois a secretria queria nomear este representante dos usurios na fiscalizao direta da prestao dos servios; a responsabilidade pela formao do conselho local e a construo de quatro plos-base em vez de reforma dos postos das comunidades. Uma outra vitria da ASIBA, desta vez imbuda de fortes conotaes simblicas, ocorreu durante a visita de Clcia Alves Padilha Dantas, chefe do DSEI/RN e coordenadora da FUNASA/So Gabriel da Cachoeira, a Barcelos no incio de julho de 2001. Nesta ocasio estavam presentes Clarindo Campos e Jos Alberto Peres pela ASIBA, a secretria de sade Anita Katz Nara, e a vice-prefeita Alberta de Oliveira e os tcnicos de enfermagem. Num determinado momento a vice-prefeita declarou que no existiam ndios em Barcelos ou ento, por outro lado, seriam todos indgenas no municpio porque ningum veio de fora. Clarindo fez um eloqente pronunciamento afirmando sua identidade tnica, sua competncia em vrias lnguas e conversou em Tukano com os tcnicos de enfermagem. A prpria vice-prefeita ficou perplexa com o que testemunhava. Tambm nesta reunio o quadro lastimvel dos servios de sade (como o funcionamento problemtico do conselho municipal de sade e do programa de agentes comunitrios de sade, por exemplo) foi mostrado pelos diretores da ASIBA presentes e por Pedro Albajar.

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Em suma, a ASIBA foi minando a posio e a imagem da SEMSA como instituio idnea e eficiente para administrar o DSEI em Barcelos. O associativismo indgena abalou o associativismo atrelado prefeitura, brao civil do executivo municipal, predominante em Barcelos. Para um caso ilustrativo mais recente basta citar a criao da Associao de Criadores e Pescadores de Peixes Ornamentais do Municpio de Barcelos (APPOMB) controlada pelos patres e exportadores, cuja assemblia de criao foi dirigida por um intermedirio e vereador e pelo secretrio municipal de abastecimento e agricultura. O estatuto foi elaborado em Manaus e j chegou pronto na assemblia para ser aprovado e sua sede foi estabelecida numa das dependncias da prefeitura. Uma organizao civil tem poucas chances de sobrevivncia neste contexto se no estiver acoplado aos interesses do governo municipal ou dos patres, que em geral so convergentes, ou de ambos como no caso mencionado. A ASIBA teve a possibilidade de surgir e se desenvolver independentemente porque desde o incio estava vinculada a agendas e demandas de organizaes exteriores s relaes de fora locais e que tomam a cultura como objeto de poltica. O IPHAN tem uma lgica especfica demais que permitiu apenas deflagrar de modo imprevisto o movimento indgena enquanto a FOIRN atua orientada por princpios mais prximos fornecendo uma base de sustentabilidade maior ao associativismo. Contudo, a ASIBA poderia ser apenas mais uma entre a maioria das associaes indgenas do Rio Negro que gravitam em torno da FOIRN para ter acesso a parceiros e captar recursos externos, quando no dependem diretamente da sua boa sade financeira. Com a mudana da diretoria em 2001 foi decidido que apenas as assemblias eletivas das associaes filiadas seriam financiadas pela FOIRN. Todavia, como mobilizar, informar e dialogar com as comunidades aproximando-as das associaes sem esta oportunidade anual de celebrao e fabricao reflexiva da etnicidade. A tendncia ser a cada assemblia da FOIRN a disputa por vagas na diretoria tornar-se mais acirrada e concorrida, surgirem mais iniciativas de articulao entre associaes em nveis mais abrangentes e mais presso por projetos de desenvolvimento e assessoria permanente. No alto Vaups j surgiu a Coordenao de Associaes Indgenas do Distrito de Iauaret, num processo inverso a tendncia predominante de segmentao da representativa peculiar ao associativismo da dcada passada, e no rio Negro vrios militantes esto pensando em criar uma Coordenao das Associaes Indgenas da Calha do Rio Negro,

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como uma instncia de articulao e encaminhamento de demandas neste nvel intermedirio entre a associao e a federao. Membros da diretoria da ASIBA comentam que membros de outras associaes do rio Negro atribuem o seu rpido crescimento organizacional porque tem um antroplogo alm de outros assessores ao seu lado. Cabe notar como o antroplogo se tornou o profissional por excelncia encaixado na figura do assessor. Invertendo ou subvertendo a frmula profissional na qual cada antroplogo tinha ou tem o seu grupo, os ativistas da ASIBA se referem a mim como o nosso antroplogo, eu fui apropriado por eles e no o contrrio como um elemento na construo da imagem da associao em uma calha de rio carente de assessoria; so os tempos ps-malinowskianos ou ps-modernos do trabalho de campo. Eu diria talvez tempos ps-tutelares para o caso do Brasil, na qual o antroplogo troca a sua roupa de porta-voz e veste a de parceiro dos ndios, na qual muitos deles tm seus prprios instrumentos e estratgias para projetar autoimagens pblicas. De salvador e denunciante das ameaas de genocdio e etnocdio ele se torna colaborador perito em projetos de autonomia e etnodesenvolvimento. A voz do antroplogo no detm mais exclusividade, mas continua sendo importante, para que as demandas dos povos indgenas atinjam audincias nacionais ou estrangeiras no momento em que sua competncia reconhecida pelo Estado brasileiro como elemento indispensvel do processo oficial de criao de territrios indgenas. Eu acessei ao campo de pesquisa j investido no papel de assessor, com uma imagem vinculada a uma ONG, o Instituto Socioambiental, a uma categoria profissional (antroplogo) e ao mesmo tempo engajado politicamente, pois inserido em um contexto de ao de uma organizao indgena (a FOIRN). Atualmente a ASIBA conta com parceiros importantes como a FUNAI/Barcelos, a FUNASA/Barcelos, a Fundao Vitria Amaznica/FVA, o Instituto do Patrimnio Histrico e Artstico Nacional/IPHAN, a ONG catal Caldes Solidaria, a Universidade de Barcelona, o Ncleo de Estudos Amaznicos da Catalunha/NEAC. A projeo internacional da ASIBA o diferencial entre os dois cenrios descritos acima: o das eleies municipais de 2000 no qual j se vislumbrava alguma visibilidade da ASIBA figurada nas tentativas de aproximao das duas frentes adversrias, mas sem interferncia expressiva da retrica tnica na cultura poltica microrregional; e o da implantao do DSEI em 2001 no qual a secretria municipal finge absorver e de fato nega a introduo da sade

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na linguagem dos direitos indgenas com o fito de captar recursos pblicos, entretanto acaba sendo suplantada pela eficcia simblica da poltica de identidade. Neste segundo momento o associativismo j estava enredado em alianas trans-locais para alm da FOIRN que alteraram a correlao de foras do contexto intertnico local. Diferentemente da FOIRN no incio da dcada passada que buscou deliberadamente conexes com o mundo da cooperao internacional, a cooperao internacional veio at a ASIBA. A ponte foi estabelecida pela visibilidade conferida a populao indgena de Barcelos por mim na condio de antroplogo quando entrei em contato com tais futuros parceiros institucionais e assessores, estabelecidos a partir de motivaes inerentes minha pesquisa e ao desejo de produzir informaes teis para as tomadas de deciso no mbito da ASIBA. No final de agosto de 2000, eu procurei o mdico da FIOCRUZ Pedro Albajar Vias, hospedado em um dos quartos da antiga Misso salesiana, para conversar sobre a morte misteriosa de trs crianas na comunidade So Lzaro, no rio Unini. Como j mencionei algumas pginas atrs, corriam boatos na cidade sobre uma suposta ligao deste fato com interesses de empresrios de turismo em estabelecer um hotel de selva na localidade e uma equipe da FIOCRUZ fora verificar a situao sem tirar concluses seguras sobre o episdio. Uma das minhas motivaes para procurar saber mais sobre o assunto era por causa do crescimento dos empreendimentos de ecoturismo em Barcelos e os conflitos scio-ambientais decorrentes com as comunidades indgenas e o outro motivo era subsidiar a ASIBA com dados para que ela pudesse se posicionar sobre tal problema. No curso da conversa eu a fim de explicar a minha preocupao com o caso falei sobre a diversidade tnica e lingstica, sobre o movimento indgena e o surgimento da ASIBA no Baixo Rio Negro. Pedro Albajar mostrou-se ento extremamente interessado em conhecer aquela organizao e declarou que daquele momento em diante mais nenhum pesquisador da FIOCRUZ poderia trabalhar na regio sem conhecer a sua realidade indgena. Ele me pediu para tirar uma cpia do relatrio sobre o levantamento ISA/FOIRN, razo pela qual me procurou na casa da D Dilsa Toms, onde eu estava hospedado, para pegar emprestado este material. Eu fiquei um tanto perplexo diante daquele entusiasmo dele com o quadro por mim descrito. O departamento de medicina tropical, j h dez anos atuando em Barcelos, desta instituio de pesquisa nunca se envolveu direta e deliberadamente com os problemas sociais e polticos locais. Sendo assim, a referncia aos princpios ticos

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subjetivos e a trajetria profissional deste mdico at ele chegar em Barcelos me parecem esclarecedoras do seu engajamento no movimento social em foco apesar de trabalhar num rgo cuja agenda e demandas so nitidamente independentes e especficas em relao agenda e s demandas das organizaes indgenas. Pedro Albajar Vias graduou-se em medicina na Universidade de Barcelona, Catalunha, na Espanha. Ele se interessou pela medicina tropical, pois o Brasil (sua terra natal) proporcionava um excelente campo nessa rea de pesquisa e os estudos na Espanha sobre este objeto ou eram tericos ou abordavam populaes de migrantes, viajantes que percorrem o mundo. Depois de concluir a graduao em medicina entrou em contato com duas ONGs (Amigos da Misso e Servio do Terceiro Mundo/SETEM) de Barcelona patrocinando um projeto em vrios municpios de Rondnia de promoo de sade (formao de agentes comunitrios, educao sanitria, etc), de organizao de um sistema popular de sade numa rea onde existiam poucos mdicos e as condies sanitrias eram muito precrias. Em 1992 visitou o projeto em Rondnia, foi convidado a coordenar o projeto e aceitou. Prestou servios com vrias ONGs brasileiras (entre elas o CIMI) e estrangeiras nesta regio. Visitou reas indgenas em Rondnia e freqentou um curso promovido pelo CIMI em Porto Velho onde era abordada a legislao e a sade indgena, antropologia, sociologia... Considera como sendo o seu mergulho no mundo indgena. Em 1995, foi para Londres onde fez seu curso de mestrado aproveitando os dados sobre gestantes e desnutrio para redigir sua dissertao, cujo tema versava sobre as variveis scio-econmicas de gestantes de Rondnia. Fez concurso para o estado do Amazonas e trabalhou num hospital, em Manaus, atendendo a pacientes na enfermaria. Estava buscando uma formao prtica em doenas tropicais (malria, ttano, picada de cobra, etc). Nesta poca conheceu o diretor do Instituto Oswaldo Cruz que o convidou para assumir a parte clnica e epidemiolgica de um projeto sobre doena de chagas em Barcelos junto a populaes de piaabeiros. Estes extrativistas constituem uma categoria ocupacional de risco porque o inseto transmissor (o barbeiro ou o piolho da piaava como conhecido localmente) se esconde entre as fibras das palmeiras. [...] A nessa procura de candidatos me chegou a oferta se eu queria assumir isso e eu disse que sim, eu assumia porque era uma oferta tambm mpar,

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porque eu podia ter a formao terica, a FIOCRUZ me oferecia poder me formar em questes de sade pblica, epidemiologia, estatstica, sistema de formao geogrfica e ao mesmo tempo vir trabalhar numa rea, e trabalhar com uma populao de piaaveiros uma populao realmente com as condies scioeconmicas ruins, uma populao carente. Realmente o sacrifcio pessoal que supe uma dessas aventuras assim de anos tem que ter muita lgica, tem que fazer sentido, para mim fazia sentido a renncia a esses anos aqui e ficar trabalhando na medida que pudesse ter um retorno til para a populao. Desde junho de 99 que estou nesse projeto de chagas na Amaznia [...] (Pedro Albajar, entrevista. Barcelos, 01/10/2001). Pesquisar a doena de chagas em Barcelos lhe proporcionava a chance de combinar interesses acadmicos e ticos novamente. Alis, este um trao marcante da sua trajetria profissional. Em 1999 e durante o primeiro semestre de 2000 Pedro Albajar ficava mais no Rio de Janeiro cursando as disciplinas do doutorado em Doenas Tropicais na FIOCRUZ. Em meados de 2000 ele se instalou de forma mais permanente no municpio para dar continuidade a uma pesquisa que j vem se desenrolando h dez anos sob os auspcios desta instituio. Ele, junto com outros professores, criou na Universidade de Barcelona um curso de Geoepidemiologia das Doenas Tropicais da Amaznia, que tem um perfil interdisciplinar e uma abordagem sobre as condies sociais das doenas tropicais. Os professores que lecionam neste curso so bilogos, mdicos, antroplogos, socilogos, etc. Os alunos so predominantemente da Europa, mas tem alunos tambm da frica e da Amrica Latina. A partir desta experincia acadmica e do material acumulado sobre a Amaznia decidiram criar uma ONG, o Ncleo de Estudos Amaznicos da Catalunha (NEAC), no ano de 2001. Ela presta servios variados relacionados Amaznia: consulta para roteiros de documentrios de televiso, organizao de cursos, buscar contatos para projetos, formar membros de ONGs que vo atuar na regio. Depois da minha primeira conversa com Pedro Albajar ele encaminhou a partir dos seus contatos com ONGs da Catalunha e assessorou um projeto da farmcia de plantas medicinais, localizada em uma sala do prdio da antiga Misso salesiana, cuja elaborao utilizou os dados do relatrio do levantamento ISA/FOIRN.

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No final de 2000 e incio de 2001 Pedro Albajar se reuniu vrias vezes com a diretoria da ASIBA para elaborao de projetos a serem encaminhados para a Espanha. Duas demandas foram privilegiadas: uma delas consistiu na consolidao da associao e outra se referiu a situao do agricultor indgena residente na cidade. A construo da sede da organizao teve que ser adiada para o ano seguinte, pois ficou decidido que poderia esperar mais um pouco frente s outras duas prioridades. Pedro Albajar levou para Barcelona esboos de projetos que foram feitos e a receptividade foi muito boa. A motivao maior para cooperar com a associao indgena de Barcelos era a experincia vivenciada pelos cidados da Catalunha durante longos anos de violenta represso cultural e lingstica durante a ditadura de Franco. Neste caso a solidariedade e a cooperao de cidados do primeiro mundo com povos da floresta no terceiro mundo no foram erigidas sobre preocupaes com o meio ambiente ou com os direitos humanos de um modo genrico e sim sobre uma identidade transnacional imaginada tomando como referncia experincias compartilhadas de discriminao cultural e dominao tnica, em contextos histricos e sociais muito distintos. Ficou assim reservada uma parcela do oramento de 2001 da Caldes Solidaria para a promoo da cidadania etnicamente diferenciada em Barcelos. um pouco aquela coisa que eu comentava, agente fala em Espanha como uma coisa... mas Espanha de fato se falam quatro lnguas, e tem Catalunha que mesmo tendo passado por um Estado independente, tem uma lngua prpria que o Catalo, no se fala Espanhol l, e eles sofreram uma ditadura de 40 anos, na Espanha houve um ditador de 40 anos, e uma das primeiras medidas que o ditador tomou quando entrou na ditadura foi proibir falar o Catalo, se voc falava Catalo voc ia para priso. E o atual presidente da Catalunha uma pessoa que esteve na priso por ter feito coisas em Catalo, era proibido publicar em Catalo etc. J naquela poca quando agente falava do projeto eu disse que com Barcelona eu acho que agente vai ter uma receptividade muito boa, porque agente vai falar de uma coisa que eles vivenciaram, eles vivenciaram isso durante 40 anos, uma represso cultural, etc, etc. A realmente a coisa entrou muito bem, quer dizer, eles viram que realmente falava de cidadania, de recuperao de identidade cultural,

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de lngua, etc. E a eles disseram: vai l trabalhem fundo isso [...] (Pedro Albajar, entrevista. Barcelos, 01/10/2001). Os projetos ento teriam que ser mandados para Barcelona at a primeira quinzena de abril no mximo. Quando eu retornei para Barcelos em fevereiro de 2001 esses projetos ainda estavam em fase de discusso. No ms de abril de 2001 os dois projetos foram concludos e encaminhados para as fontes financiadoras: Caldes Solidaria, Escola Superior de Agricultura (ESA) e Universidade Politcnica da Catalunha (UPC). O projeto de agricultura se comps de um levantamento sobre a agricultura indgena na cidade. Foi patrocinado pela Escola Superior de Agricultura e pela Universidade Politcnica da Catalunha. Vimos no captulo XI que quase todas as famlias indgenas residentes na cidade de Barcelos tem uma roa seja nas margens da estrada do Caurs, seja num stio prximo ou distante da cidade, geralmente na comunidade onde morou antes. O objetivo do projeto ento era verificar, junto com os indgenas, quais eram os principais problemas da agricultura e quais as alternativas de soluo localmente viveis e sustentveis. Este projeto tambm se desenvolveu nos meses de julho, agosto e setembro de 2001 e contou com o empenho de dois engenheiros agrnomos de Barcelona, Csar Caparroz Lara e Incio Oliete Rosa. Eles organizaram vrias reunies com os agricultores indgenas e fizeram entrevistas nas suas casas. Acompanharam as visitas nas comunidades do rio Padauiri no mbito do projeto de consolidao para obter dados sobre a agricultura desenvolvida nas comunidades e stios. Interessaram particularmente nestas comunidades porque seus habitantes alternam a atividade agrcola com o extrativismo da piaava em regime de aviamento. Como conseqncia foi criado um departamento de agricultores indgenas dentro da estrutura organizacional da ASIBA. O projeto de consolidao, patrocinado pela Caldes Solidaria, se originou de um plano anual que alguns integrantes da ASIBA elaboraram em 2000 a fim de apresentar para a FOIRN incluir no seu planejamento anual de 2001. Um dos associados que ficou encarregada de entregar o plano para a diretoria da FOIRN quando foi para So Gabriel participar de um evento no o fez e voltou com o mesmo. Com a mudana da diretoria da FOIRN os apoios financeiros ficaram restritos a assemblias eletivas das associaes. Logo, a realizao da assemblia geral da ASIBA estava comprometida. Por outro lado, os

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recursos do DSEI para a formao do conselho local que poderia ser justaposto mobilizao para a assemblia estavam muito incertos ainda pelas razes que j vimos algumas pginas atrs. Sendo assim, a captao direta de recursos junto cooperao internacional mostrou que a ASIBA estava traando um caminho de relativa autonomia financeira frente a FOIRN. Um dos componentes da consolidao se referiu constituio de uma infra-estrutura administrativa e logstica: computador, impressora, scanner, mesas, cadeiras, arquivos, material de escritrio, mquina fotogrfica, gravador e uma lancha com motor de popa 40 HP. Um outro componente importante do projeto de consolidao era a aproximao com as comunidades do interior e a mobilizao para a assemblia geral da ASIBA. Foram programadas quatro mini-assemblias: uma em Cumaru, no rio Negro montante de Barcelos; uma em Tapera, no rio Padauiri; uma no Elesbo, no rio Arac; e outra em Carvoeiro, no rio Negro jusante de Barcelos. As comunidades do rio Unini no foram includas porque no se identificaram como indgenas durante a realizao do levantamento ISA/FOIRN em maio de 2000. Em uma fase anterior todas as comunidades foram visitadas como uma forma de preparao e mobilizao para as mini-assemblias, que foram realizadas em comunidades localizadas estrategicamente em um dos afluentes do rio Negro ou num trecho dele mesmo. Estas duas fases foram cumpridas em julho, agosto e setembro de 2001 e eu acompanhei os membros da ASIBA nestas viagens. Os principais assuntos tratados foram direitos indgenas, terra, o DSEI/Barcelos e a formao do conselho local de sade indgena. Logo, impedidos pela indisponibilidade de recursos ou pela demora na sua liberao e pela m vontade da secretria municipal de sade, os militantes da ASIBA exerceram na prtica o direito de monitorar a constituio da instncia fiscalizadora do DSEI, para garantir o seu perfil democrtico, com recursos prprios, ou seja, adquiridos atravs da parceira com agncias de cooperao internacional. Na discusso sobre direitos, terra e conflitos scio-ambientais os representantes da ASIBA sugeriram e orientaram solicitaes de demarcao de territrio indgena que foram entregues ao administrador regional da FUNAI/Manaus presente na assemblia geral. Suas demandas territoriais foram traduzidas na linguagem da poltica de identidade tnica e inseridas na esfera pblica do movimento indgena.

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As mini-assemblias corresponderam a uma preparao, a uma divulgao e a uma convocao para a assemblia geral nas comunidades. Foi tambm um evento indito nos povoados e ao mesmo tempo apresentou um elemento bsico das festas de santo: a constituio de um palco de sociabilidade entre vrios povoados vizinhos, evidenciado na comunho ou consubstancialidade expressa no ato de comer junto, na comemorao. Os militantes da ASIBA levavam os gneros alimentcios (o rancho ou as mercadorias) adquiridos nos estabelecimentos comerciais da cidade enquanto as comunidades forneciam a farinha de mandioca, o peixe e a carne de animais provenientes da floresta, mas processados no ambiente domstico do povoado. Este aspecto no me parece irrelevante porque expressou uma relao de reciprocidade entre a ASIBA e as comunidades nos moldes locais, como um fluxo de mercadorias da cidade de um lado e de produtos da floresta de outro, todavia convergindo ambos para a construo social da cidadania. A imagem da lancha da organizao estacionada no porto do povoado repleta de mercadorias evocava os smbolos de poder firmemente estabelecidos na memria, no imaginrio e na experincia do extrativismo e apresentava a ASIBA atravs de operaes semnticas intensas e no controladas completamente pelos sujeitos envolvidos como um forte obstculo dominao do patro e uma nova possibilidade de realizao das aspiraes de autonomia profundamente acalentadas. Nestes termos se sobrepunha um outro fluxo manifestado nos discursos emitidos nestas ocasies: o esforo e a dedicao dos membros da associao em troca da identificao as suas origens tnicas e da adeso ao movimento indgena da parte das comunidades. Uma outra estratgia implementada pelos militantes da ASIBA foi deixar marcas, vestgios tangveis e mais permanentes da sua presena, enfim ampliar o campo de visibilidade no interior, e assim simbolizar concretamente a identificao da comunidade com a associao atravs da distribuio de cartazes e do uso de camisetas pelos ativistas com o logotipo da organizao, e tambm da entrega solene das carteiras de associado. Sendo assim, a ampla receptividade s mensagens transmitidas pelos ativistas indgenas e pelo assessor-antroplogo, eu mesmo, que os acompanhou nas miniassemblias se deve a um complicado jogo de ressonncias simblicas, em grande parte imprevistas, das aes dos sujeitos envolvidos nos eventos, que remetem a contextos mais abrangentes das relaes intertnicas no Baixo Rio Negro, cabendo destaque especial ao

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extrativismo. O entrelaamento entre prticas e representaes inerentes a culturas polticas (o campo semntico mais amplo das concepes difusas de poder e sociedade) consideradas incompatveis (qualificadas pejorativamente como paternalistas, clientelistas, autoritrias) com o surgimento e consolidao de movimentos sociais emancipatrios deve ser um foco de anlise cuidadosa porque pode configurar uma condio particular e historicamente contextualizada de possibilidade dos esforos de promoo da cidadania e de democratizao de esferas pblicas locais. O outro componente do projeto de consolidao consistia na realizao da prpria assemblia geral, que aconteceu entre os dias 26 e 28 de outubro de 2001. O comparecimento indgena foi muito bom, variando entre 100 e 267 participantes, habitantes da cidade, das comunidades e dos stios, das seguintes etnias: Bar, Baniwa, Tukano, Desana, Werequena, Tariana, Arapao, Tuyuca, Piratapuia, Lanaua, Canamari, e Apurin. Os convidados presentes foram: Ismael Moreira Tariana (COIAB e Centro de Produo e Cultura Yakino), Cludio Mura (vice-presidente da COIAB), Orlando de Oliveira (presidente da FOIRN), Edilson Melgueiro (secretrio da FOIRN), Bonifcio Jos (COIAB e Centro de Produo e Cultura Yakino), Dlia Veloso Fonseca (ACIMRN), Jorge Terena (Fundao Estadual de Poltica Indigenista/FEPI), Paulo Pankararu (advogado do Instituto Socioambiental/ISA), Ana Lcia Abrahim (IPHAN) e Luiz Fernando de Souza Santos (Fundao Vitria Amaznica/FVA). As autoridades municipais presentes: a vice-prefeita Alberta de Oliveira, a secretria de sade Anita Katz Nara e a secretria de educao Rosely. No primeiro dia Paulinho Pankararu palestrou sobre cidadania e direitos indgenas, Jorge Terena falou sobre o rgo indigenista criado pelo governo estadual do Amazonas, Ana Lcia Abrahim abordou o trabalho do IPHAN de levantamento e registro da memria do Amazonas, que contribuiu para a deflagrao do movimento indgena em Barcelos e dissertou tambm sobre eco-turismo. Nesta oportunidade vrios participantes fizeram denncias e perguntaram quais as providncias mais imediatas poderiam ser tomadas quanto s invases do turismo de pesca, dos geladores e quanto a superexplorao dos patres, enquanto no forem atendidos seus pedidos de demarcao de terras indgenas. No segundo dia Edlson Melgueiro e Orlando Oliveira abordaram os temas da sade e da educao indgenas. Edlson Melgueiro explicou o que era o Distrito Sanitrio Especial Indgena e os Conselhos Distritais e Locais de Sade Indgena. A secretria de sade

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palestrou sobre o DSEI/Barcelos. A vice-prefeita se pronunciou. Bonifcio Jos tambm abordou o DSEI e sobre a experincia de educao escolar indgena Baniwa/Curripaco. Nesta ocasio houve vrios questionamentos sobre a implementao do DSEI em Barcelos pela SEMSA. noite, depois do trmino do segundo dia da assemblia as mulheres indgenas presentes se reuniram e formaram um departamento de mulheres na ASIBA. No terceiro dia as alternativas econmicas motivaram as discusses. Bonifcio Jos e Ismael Moreira falaram sobre o Centro de Produo e Artesanato Yakino, Amrico Agostinho explanou sobre a criao do Departamento de Artesanato da ASIBA coordenado por ele. Esta assemblia expressou a visibilidade conquistada pela ASIBA no cenrio poltico local. O comparecimento de dois secretrios municipais e da vice-prefeita evidenciou que a associao indgena se tornou um interlocutor relevante e independente na correlao de foras microrregional. Como num ritual de inverso a vulnerabilidade social e a identidade deteriorada, quando portadoras de mensagens relevantes para audincias distantes, so convertidos em motivo de orgulho e auto-estima ampliando a capacidade interpelativa neste contexto argumentativo e colocando os poderosos locais debaixo de uma saraivada de demandas por dignidade e respeito. A terra uma demanda predominantemente dos moradores das comunidades e dos stios, ausente nas assemblias anteriores passa a integrar a agenda de uma organizao civil de promoo da cidadania surgida por causa das privaes sofridas no meio urbano. A assemblia foi tambm uma demonstrao condensada da nova esfera pblica local constituda pela poltica de identidade tnica, projetada em escala transnacional, organizando uma percepo difusa de privaes e injustias no idioma da cidadania indgena. Uma novidade notvel diante das assemblias anteriores se refere presena substancial de lderes indgenas da Amaznia, sinalizando ao maior acesso e visibilidade da ASIBA no movimento indgena no plano macro-regional em relao aos dois anos anteriores. Demonstrou sua capacidade de tecer parcerias e alianas constituindo assim uma slida base de apoio de suas demandas. Caldes Solidria/Universidade Politcnica da Catalunha e Distrito Sanitrio Especial indgena projetaram a poltica de identidade da ASIBA em planos regionais, nacionais e transnacionais, mudando qualitativamente os termos das relaes intertnicas no nvel local. Ainda no ocorreram ganhos materiais importantes e abrangentes como a demarcao de terras indgenas, por exemplo , contudo as concepes e atitudes

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discriminatrias frente a indianidade sofreram um grave abalo, apesar de ainda se manter de p de forma dissimulada s vezes, e os representantes do segmento dominante no-indgena que controlam o executivo e o legislativo municipais foram obrigados a dialogar e ouvir os clamores de caboclos ignorados e invisveis no quadro da gesto dos assuntos pblicos. Incorporar a retrica e a poltica da identidade potencialmente inverte o estigma da ancestralidade tnica e transforma demandas em direitos cujo reconhecimento, e no concesso, um dever do Estado. No caso de Barcelos isto significa impor um jogo cujas regras no so dominadas pelos donos do poder. Neste aspecto os assessores dentro de suas distintas especialidades profissionais, todavia no bojo de uma perspectiva mais abrangente de ateno e respeito ao complexo mosaico cultural rio negrino tm um papel a desempenhar na capacitao dos ativistas indgenas para manejar os recursos e os significados deste campo de lutas. Vocs tm provas, aqui esto nossas grandes autoridades, por isso que ns chamamos eles, pra mostrar para essas pessoas que diziam que ndio no tem valor, mas realmente ns vamos mostrar que ns temos sim valor, ns somos tambm autoridades, ns tambm temos direito, temos capacidade de administrar [...]. [...] J chega de sermos enganados, ns no temos olho tapado, ns tnhamos quando agente no conhecia, porm a partir de hoje ns vamos tentar conhecer os nossos direitos para agente no ser mais enganado por ningum. [...] Ningum sabia isso, porm agora ns j sabemos o que projeto, ns j sabemos o que convnio porque ns estamos aprendendo. Ento agora os brancos no vo mais nos enganar, ns vamos aprender tambm isso, ns temos capacidade de aprender (Dilsa Toms, Bar, pronunciamento na III Assemblia Geral da ASIBA. Barcelos, 27 a 29/10/2001). Os desafios colocados diante da associao indgena so imensos: o regime de aviamento mostra sinais de uma sobrevida considervel e adaptvel s mudanas, apesar de todas as sentenas sobre a sua decadncia e eliminao iminente continua gerando efeitos catastrficos para a qualidade de vida dos extrativistas; o turismo de selva e a pesca

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esportiva esto ampliando seus domnios; e os geladores atuam sem nenhum controle de qualquer rgo governamental acabando com as reservas de peixes no Baixo Rio Negro para abastecer o mercado consumidor da capital do Estado. O associativismo indgena se apresentou como uma possibilidade alternativa de realizao das aspiraes de autodeterminao suprimidas pelos patres, apesar de paradoxalmente orientar a procura por eles na expectativa de tornar a dvida intercambivel e assim o suporte de uma reciprocidade simtrica, e um novo modelo de ordenamento de um mundo mergulhado no caos pela civilizao revigorando e reinventando as tradies com os instrumentos modernos de emancipao social. Ns estamos aqui nessa assemblia para ns unirmos nossa fora, para ns termos nossa conscincia de que o ndio no daqueles que eles pensam que ns somos, ignorantes, incapazes. Ns somos capazes, ns indgenas ns nunca fomos empregados de ningum, ns nunca dependemos de patres e isso tem que comear de novo a existir, no corramos mais atrs dos patres, ns mesmos vamos desenvolver o trabalho, ns mesmos vamos elaborar nossos projetos, agente vai criar a nossa autonomia, porque ns podemos claro agente pode trabalhar, ns temos condies de trabalhar, ns sabemos trabalhar, porque nossos pais, nossos avs nunca dependeram de ningum, nunca dependeram dos patres sempre fomos independentes, sempre ns tivemos em nossas comunidades sempre usamos as coisas em coletividade, mas patres nunca resistirem nossa sociedade indgena. isso que estamos querendo, queremos a nossa liberdade, queremos a nossa autonomia, vamos meus irmos, procuremos isso, procuremos ser fortes, vamos lutar para conquistar nossos direitos, vamos nos livrar dos patres, nunca mais vamos depender deles, est na hora de ns revermos isso e comearmos a levantar nossas cabeas e comearmos a caminhar com passos firmes, porque ns temos uma Associao que defende, luta ao nosso lado, que valoriza a nossa sociedade (Maria Aparecida Campos, Tukano, pronunciamento em tukano, traduzido por Clarindo Campos, Tariana, na III Assemblia Geral da ASIBA. Barcelos, 27 a 29/10/2001).

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O outro grande desafio com o qual o associativismo indgena em Barcelos se depara est no terreno da memria e do imaginrio das relaes intertnicas. Ns vimos, em diferentes narrativas mticas, que o branco e a civilizao apresentam os atributos da desordem e do descontrole de si mesmo, da violncia, da brutalidade, da vingana, da animalidade, da selvageria, dos encantados e at da indianidade, que se contrapem esfera da sociabilidade. O curupira um ser hbrido e um esprito canibal da floresta, cone por excelncia da alteridade associado de diversas maneiras ao branco, e algumas vezes a figura do patro mais especificamente. Os matis constituem tambm um referencial simblico para demarcar fronteiras sociais frente aos ianeiros (termo no correspondente a todos os Baniwa) no contexto urbano do Baixo Rio Negro e tambm remetem a noes locais de indianidade inerentes a esfera da predao e da vingana. A cidade territrio estrangeiro: aqui [Barcelos] cidade dos brancos, no mais dos ndios, meu filho s vai falar simplesmente o portugus, mas agora hoje em dia eles vem que o ndio est despertando, ele sabe conviver tambm, ele sabe se entrosar no mundo branco tambm. O espao da cidade, assim como o da floresta, se projeta e se configura em relao ao mundo dos encantados, fonte de doena e destruio se ficarem brabos com alguma ao dos homens ou pela sua raiva e inveja primordial da condio humana, assim como de cura e regenerao se for estabelecida uma boa convivncia com eles segundo regras prvias conhecidas por todos. Para cumprir esta tarefa concernente ao restabelecimento da boa vizinha com estes seres ameaadores existem alguns mediadores dotados de poderes e conhecimentos especiais, so eles: pajs, sakakas, rezadores e benzedores. As rezas constroem e restauram corpos e pessoas etnicamente diferenciadas em contraposio a universalidade e homogeneidade dos brancos e dos encantados, cujo parentesco se baseia na transparncia de suas almas. Em outro registro mtico da origem do contato intertnico os brancos compartilham a sua ancestralidade com os ndios verdadeiros emergindo a civilizao da selvageria e do descontrole, transformao mediada pela gua branca e transparente. A civilizao na conscincia histrica e mtica trouxe o caos e a desordem, fato representado pela memria da violncia iconoclasta impetrada pelos salesianos contra as tradies dos antigos ou pela experincia urbana atual na qual os jovens e as mulheres indgenas ignoram e rompem com os costumes ancestrais, ficando assim vulnerveis aos ataques dos encantados e a doena. A noo de

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autonomia assim est diretamente vinculada a capacidade de domesticao destas foras perigosas num relacionamento permanente, altamente arriscado e precrio com elas, e de modo nenhum a isolamento. No campo semntico da etnicidade a conscincia prtica, nas concepes cotidianas do Self e do mundo, das diferenas sociais a categoria do caboclo (que no exclui a referncia s identidades Tukano, Baniwa, Bar, Arapao, Piratapuia, Tuyuca, etc) remete a esta noo de autonomia, de sociabilidade baseada no controle de si mesmo num mundo ordenado e oposto aos ndios verdadeiros (Maku e Yanomami), que vivem nas malocas nas cabeceiras dos rios e igaraps. Da a prevalncia da noo de organizao e da nfase na capacidade de aprendizado do conhecimento dos brancos na retrica tnica dos ativistas indgenas em Barcelos, reforada pela necessidade de saber fazer projetos, recentemente vivenciada por eles, como meio de acesso ao mundo da cooperao internacional. Por outro lado, procuram extirpar discursivamente adaptando as formulaes e o monitoramento reflexivo da autenticidade e da identidade no movimento indgena a nvel nacional a conexo local entre indianidade e atraso/selvageria/misria tornando ao contrrio um elemento inerente a indianidade a capacidade de conviver no mundo dos brancos, ou seja, de promover autonomia se apropriando dos poderes e saberes da civilizao em benefcio da regenerao das tradies e da ancestralidade, antes atribuda condio de caboclo. Logo, a retrica e a poltica da identidade tnica no so necessariamente discrepantes com a conscincia prtica da etnicidade, no constituem apenas uma construo artificial dos ativistas urbanizados e instrudos a partir de concepes autnticas, como em algumas abordagens de Jean Jackson, por exemplo. Ideologias e ontologias tnicas devem ser abordadas tanto nos termos das suas descontinuidades quanto das suas continuidades, pois a conscincia reflexiva da etnicidade no somente deturpa como tambm se nutre, redefinindo claro, e se constitui no bojo das concepes cotidianas do Eu e do Outro, que no correspondem a nenhum padro cultural resistente mudana, mas historicamente determinado pelo contexto intertnico (Kapferer, 1989). Em se tratando de disputas pela definio da autenticidade de traos de tradio e de esforos deliberados de construo de identidade frente a agncias estatais ou em cenrios de acentuado conflito ou antagonismo intertnico o antroplogo deve tomar cuidado para no incorporar o papel de fiador de demandas de pureza cultural, que emergem em processos nos quais os sujeitos

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utilizam e combinam elementos considerados muitas vezes os mais disparatados. Sendo assim, os ativistas da ASIBA se esforam em restaurar a imagem da maloca, no projeto do Parque Indgena Urbano que conta com a colaborao de um arquiteto do IPHAN, inserindo-a em polticas de resgate e valorizao da ancestralidade com o auxlio de saberes e tcnicas modernos como mais uma tentativa de domesticao do espao urbano. A insero dos pajs de um modo mais acentuado, alm da sua atuao na abertura das assemblias, na esfera social do associativismo como guardies da tradio, das memrias tnicas expressas nas narrativas sobre os tempos primordiais e nas rezas e procedimentos de cura, restaurada e conservada atravs da reconstruo da maloca como um lugar essencial para cultivar intensamente o senso da indianidade, traz o xamanismo para contribuir diretamente com os ativistas indgenas na tarefa de construo de um espao multifuncional e pluritnico de sociabilidade indgena no meio urbano. A maloca um lugar especfico para se reunir. Quando entrar na maloca a gente vai sentir a diferena. A gente vai se sentir povo indgena. Um lugar onde a gente poder se identificar. um refugio, um lugar sagrado, como uma igreja para os cristos. E o corao do povo vai sentir um ambiente fraterno. Na maloca cada etnia poder ter um espao: os bar, os tukanos, os baniwas... Um lugar tipo um museu, onde a gente possa guardar as nossas coisas, os nossos instrumentos musicais, as nossas bebidas depois de prontas... Um lugar para trabalhar com medicina tradicional, recuperando os rituais para purificar... Um lugar para que qualquer que sabe danar possa ir l. A gente pode se reunir uma vez por semana, com comida, bebidas, para tocar instrumentos, para danar. Para que quando ns precisemos apresentar uma dana, no precisemos ensaiar. Que danar seja uma atividade normal. Que no haja timidez. Que quando algum entrar na maloca possa pegar os instrumentos e comear a tocar. [grifos 419

SCP] (Trechos de depoimentos dos participantes indgenas da Assemblia Extraordinria da ASIBA. Barcelos, 05/12/2001, para discutir o projeto de construo da maloca apud Projeto de Reconstruo da Maloca no Parque Indgena Urbano). Estratgias e polticas modernas baseadas em um monitoramento altamente reflexivo da cultura recorrendo aos pajs em um espao concentrado, uma escola, de formao e aprendizado de futuros pajs, aliado a objetivos destinados promoo do ecoturismo, um parque indgena urbano, pode parecer um absurdo e pode ou no fortalecer o movimento de re-emergncia tnica e o associativismo indgena no Baixo Rio Negro, mas na medida em que foi inicialmente uma idia de um paj Desana e foi amplamente discutida em uma assemblia extraordinria no devemos condena-la a priori, pois o fracasso de empreendimentos do mesmo tipo no deve impedir de v-la como uma experincia interessante de dilogo intercultural, uma aposta, cujo sucesso s o futuro dir.

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Concluso. A internacionalizao da luta pelos direitos indgenas (Brysk, 1997), convertendo fragilidade e marginalidade nas sociedades nacionais em capital simblico nos circuitos polticos mundiais, expandiu a capacidade interpelativa do discurso indgena nos cenrios intertnicos contemporneos (Oliveira, 1996). O prprio conhecimento antropolgico defronta-se com uma nova situao quando os seus antigos informantes elaboram representaes sobre si mesmos e buscam controlar as narrativas produzidas pelos Outros sobre a sua autenticidade. H a necessidade de elaborar uma nova base epistemolgica para as etnografias futuras dos processos sociais de construo da indianidade no Brasil. Entender a indianidade no Brasil contemporneo abord-la como uma arena complexa e multisituada de lutas e alianas forjadas pela emisso de mensagens, pela projeo de identidades e significados em esferas pblicas globais. Nas suas relaes com as sociedades mais amplas, com o Estado e o com o mercado os povos indgenas h sculos foram violentados fsica e moralmente. A emergncia de uma vigorosa sociedade civil em vrias partes do mundo e transnacionalmente repercutiu no campo da indianidade com a entrada de novos atores ou a mudana nos padres de atuao daqueles que j faziam parte da trama. Os ndios transformaram-se de objeto de polticas de integrao em sujeitos de direitos auto-derminao. Cabe assinalar, entretanto, que na Amrica Latina tais direitos advindos com a democratizao ainda no garantiram efetivamente a realizao plena das aspiraes de autonomia dos povos indgenas, pois ainda so vtimas de invases de terra, violaes de direitos humanos, da pobreza, de doenas, etc. Acrescente-se que as polticas neoliberais de ajuste estrutural da economia reduziram substancialmente o j precrio sistema de assistncia social existente em muitos pases; o que afetou fortemente os grupos indgenas situados nos segmentos mais vulnerveis e marginais das respectivas sociedades nacionais (Maybury-Lewis, 2002). A globalizao econmica ampliou o quadro das injustias e das desigualdades, mas tambm gerou as condies para o que alguns estudiosos chamam de globalizao desde baixo, ou seja, a formao de uma pujante sociedade civil planetria cujo desenho uma rede e no uma pirmide. Neste novo cenrio poltico a fora do argumento busca equilibrar e at ultrapassar o argumento da fora. Mesmo aes coletivas aparentemente

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sustentadas na fora das armas, como o movimento Zapatista, foram amparadas mais em estratgias miditicas e na agenda multicultural dos grupos indgenas de Chiapas. Os povos indgenas conquistaram direitos e conseguiram mudar a linguagem institucional dos poderes que os afetavam direta ou indiretamente: agncias religiosas, acadmicas, estatais e empresariais. Alison Brysk (2000) delineou extensivamente e brilhantemente estes dois fatores de empoderamento das sociedades nativas contemporneas: internacionalizao e poltica de identidade. Portanto, no a grandeza numrica da populao indgena nem o acesso a qualquer arsenal blico, mas a capacidade de sacudir coraes e mentes, de persuadir e assim suscitar solidariedade e forjar alianas. Para isto o domnio das novas tecnologias de comunicao fundamental. De modo que apesar da Federao Shuar ser considerada a mais antiga organizao indgena existente segundo parmetros atuais a manifestao Kayap de Altamira, manejando astutamente tecnologias de comunicao, mobilizando a mdia e tirando vantagem de assessores altamente qualificados, evidenciou pela primeira vez a capacidade do campo de foras da indianidade em alterar as orientaes do Banco Mundial, de programas de desenvolvimentistas, enfim tornou os direitos indgenas visveis diante de objetivos estratgicos do Estado e do mercado. Isto consolidou a imagem dos povos indgenas no Brasil como pequenos e dispersos aglomerados humanos habitantes da floresta, porm dotados de enorme apelo nos circuitos internacionais de ajuda humanitria, de direitos humanos e de defesa do meio ambiente. Neste sentido, um olhar mais atento ao movimento indgena no Rio Negro pode ser interessante. Sabemos bem quanto os lderes indgenas souberam e sabem manipular e criativamente re-interpretar as demandas simblicas do mundo dos brancos sobre o palco da indianidade (Conklin, 1995 e Albert, 1995). O processo de criao da FOIRN foi deflagrado por forte interesse indgena difuso no desenvolvimento, e no contra ele em nome de uma cultura genuna e de uma natureza intacta ameaadas. Mesmo os ativistas ligados ao CIMI e a UNI no estavam contra o desenvolvimento, eles queriam discutir sua implementao e o seu perfil, ou seja, participar das decises e evitar um desenvolvimento que os deixasse de fora. O movimento indgena foi pensado eminentemente como um modo de obter acesso a benefcios da modernidade ou da civilizao. Em segundo lugar os ativistas indgenas atuaram num contexto semntico adverso quanto a movimentos

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etnopolticos baseados na ancestralidade indgena. Trata-se sim de um fenmeno de reemergncia tnica que vinha ocorrendo a alguns anos antes da criao da FOIRN no seio institucional do poder salesiano. Aos trancos e barrancos conquistaram autonomia frente igreja e ao Estado ao penetrar no universo transnacional das ONGs de cooperao. Esse processo somente se acentuou, a FOIRN acumulou foras e realizaes na medida em que foi se consolidando como um parceiro relevante de uma rede ambientalista global, cosmopolitizando suas demandas locais e associando seu destino ao destino do planeta. A meu ver o fenmeno associativo se evidenciou na sua plenitude no Rio Negro. Retomo a idia do ndio cidado como a manifestao acabada do ativismo indgena contemporneo que no estava presente na manifestao Kayap em 1989 e nem poderia estar, pois a febre associativa lhe posterior. Estou falando do militante preso a uma teia de organizaes de base tnica altamente formalizadas, a esferas pblicas e atores globais no-estatais, de cujo processo de deliberao e ao depende a sua carreira no movimento indgena. A singularidade do cidado ndio que o seu cosmopolitismo no personalizado e sim institucionalizado, ele apenas um funcionrio do movimento indgena e no um heri que sintetiza em torno de si, do seu carisma frente a platias do primeiro mundo, o movimento indgena ou todo o seu povo. A atuao do cidado ndio mais discreta e discursiva em vez de ostensiva e espetacular. O associativismo indgena de Barcelos ps mostra o forte desenho participativo da Federao, mas por outro lado a reduzida autonomia institucional das associaes filiadas, ao abrir o seu prprio leque de aliados e parceiros. Neste sentido proponho que uma definio completa, ou seja, que incorpore todos os seus elementos essenciais e ideais, no sentido weberiano, do movimento indgena contemporneo apresenta os seguintes elementos: 1. Internacionalizao (esfera pblica global ou transnacional: agncias e fruns no-estatais, interestatais e multilaterais). 2. Poltica de identidade. 3. Organizao em rede (fragmentao, horizontalidade e descentralizao). 4. Coalizes circunstanciais de durao varivel com outros movimentos sociais. 5. Universalizao das demandas. 6. Novas tecnologias e conhecimentos, em geral combinados com o saber tradicional. 7. Ofensiva miditica. 8. Parceria com o Estado e com agentes do mercado (convnio e comrcio justo).

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A etnografia do associativismo indgena no Baixo Rio Negro mostrou as potencialidades e limitaes deste tipo de mobilizao poltica da etnicidade, mas fundamentalmente evidenciou que ao lado das discrepncias entre ideologia e ontologia tnica, entre as concepes de identidade e de autonomia em ambos os planos simblicos e sociais, devemos pensar tambm na dinmica interconexo que os prprios sujeitos constroem para conferir sentido ao contexto em que vivem. Os moradores indgenas da cidade de Barcelos esto reescrevendo a histria do municpio e reinterpretando (indigenizando) o espao urbano de Barcelos. A ASIBA fruto de um processo de interveno nas relaes intertnicas em bases reflexivas, no bojo do qual destaco a concepo do Parque Indgena Urbano (no qual ser erguida uma maloca). Formularam um programa ambicioso de reinveno do seu cotidiano, fazendo emergir novas facetas de sua identidade tnica renovada. Esto passando do plano da astcia ttica para a operao estratgica, no qual esto ocupando o territrio inimigo nos seus prprios termos, domesticando (amansando) um universo estrangeiro e hostil, invertendo o processo de colonizao do imaginrio, da geografia e da sociabilidade no Baixo Rio Negro. Dos usos silenciosos, invisveis e desconexos (cuja expresso maior a pajelana) de apropriao prtica do mapa social imposto pelos brancos, passaram a usos estrondosos, visveis e coordenados de monitoramento reflexivo do tecido social barcelense.

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DOCUMENTOS DOS SALESIANOS CONSULTADOS Resumos das Estatsticas da Parquia de So Gabriel, 1970. Relatrio das Atividades da Misso Salesiana de So Gabriel da Cachoeira, 1982. Relatrio das Atividades do Colgio So Gabriel, 1983. Resumo da Crnica da Misso Salesiana de Iauaret. Rio Negro Amazonas Brasil. Iauaret, 31 de dezembro de 1950. Pe. Luiz Pasinelli. A Evangelizao no Rio Iana. Misso Assuno do Rio Iana, 31 de julho de 1982. Padre Afonso Casasnovas. Relatrio das Atividades das Misses de Santa Isabel em 1970; Misso Salesiana de Santa Isabel do Rio Negro Estatstica de 1980. Pe. Alberto Brescioni. 03 de janeiro de 1980. Dados Estatsticos da Parquia de S. Isabel do Rio Negro. Ano de Referncia 1986. Pe. Bruno Bianchi. S. Isabel, 01 de abril de 1987. Histrico da Parquia de Santa Isabel do Rio Negro; Estatstica Paroquial do Ano de 1987. Parquia de Santa Isabel. Pe. Bruno Bianchi. 28 de janeiro de 1988. Relatrio das Atividades da Misso de Barcelos Ano de 1983. Ir. Edite Gonalves Ferreira. Barcelos, 07 de dezembro de 1983. Relatrio das Escolas Rurais do Municpio de Barcelos. Pe. Francisco Laudato. Barcelos, 14 de janeiro de 1978. Projeto de Desenvolvimento Comunitrio: Parquia de Barcelos Amazonas. Pe. Jos Sags. Barcelos, setembro de 1986. Pedidos de Co-Financiamento a Adveniat. Projeto 01/89: Catequese Paroquial (Formao de Catequistas). Pe. Humberto Ribeiro da Costa. Barcelos AM, 02 de fevereiro de 1989. Relatrio da Itinerncia Parquia de Barcelos 1981; Relatrio da Misso de Barcelos 1981. Relatrio das atividades da prelazia do Rio Negro, Amazonas, 1978. Of. No 1. De Responsable per la Itinerncia Y Coordenador del Programa Agropecuria A Campanha Contra El Hambre. Finalidade: Pedido de Uma Ayuda Econmica. Iauaret, 21.02.86. Padre Miguel Angel Garcia.

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Programa dos Tcnicos em Agropecuria. Iauaret, 21/02/1986. Geraldo Veloso Ferreira, Pedro Garcia e Padre Miguel Angel Garcia; Relatrio Final de Assistncia e Acompanhamento aos Gados dos Tcnicos em Agropecuria, 1985. Pedro Garcia, Arlindo Maia e Geraldo Veloso Ferreira. Projeto: Iniciar a Criao de Gado em 6 Povoados da Regio de Taracu, no Rio Tiqui e Vaups; e Relatrio das Atividades Pastorais 1982. Respostas do Levantamento Comunitrio Assemblia 1991 Taracu; e Assemblia Paroquial de Taracu. 03 a 05 de outubro de 1993. Relatrio Pastoral de Taracu. Encontro dos missionrios e missionrias. So Gabriel da Cachoeira, 19 a 22 de julho de 1988. Relatrio das Atividades dos Alunos Internos e Externos da Escola de Santa Izabel do Rio Negro Ano de 1983. Histrico Geral dos Primeiros Missionrios do Rio Tiqui. Presidente da UFAC, enviada para Dom Miguel Allagna. Pari-Cachoeira, 06 de abril de 1980. Carta enviada por lvaro Fernandes Sampaio, Tukano, para Dom Paulo Evaristo Arns, Cardeal Arcebispo de So Paulo. So Paulo, 12 de abril de 1983. C/C Dom Toms Balduno, Dom Jos Gomes, Dom Miguel Alagna, Dom Ivo Lorscheiter, Dom Alosio Lorscheiter, Dom Luciano Mendes, Dom Helder Cmara e Dom Avelar Brando. Projeto Pastoral da Parquia de So Miguel Arcanjo de Iauaret. Iauaret, 23/07/1989. Pari-Cachoeira. Planejamento 1985. Relatrio Pastoral de Taracu. Encontro dos missionrios e missionrias. So Gabriel da Cachoeira, 19 a 22 de julho de 1988. Carta a Respeito da Situao Missionria do Rio Negro. Manaus, 15 de Setembro de 1989. Ir. Maria de Lourdes Barreto e Padre Benjamim Morando. Correspondncia enviada pelo Padre Joo Marchesi para Dom Pedro Massa. Vaups, 01 de maro de 1955. Documento manuscrito. Crnica Resumida da Misso de Assuno do Rio Iana 1974. Padre Carlos Galli. Correspondncia enviada por Dom Jos Domitrovics ao Exmo. Senhor Bispo Dom Pedro Massa. Vaups, 02 de maro de 1955. Graves desordens nas fronteiras do Brasil. Padre Jos Leo Schneider. Assuno do Iana, 27 de janeiro de 1956.

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Relatrio do Agente do SPI, Lino Alves de Oliveira, encaminhado ao Chefe da 1a I.R. do SPI, Alpio Edmundo Lage. Manaus, 05 de janeiro de 1954. Correspondncia enviada pelo Bispo Prelado do Rio Negro, Dom Pedro Massa, ao Ministro das Relaes Exteriores, Embaixador Macedo Soares. Rio de Janeiro, 19 de maro de 1956. Correspondncia enviada pelo Bispo Prelado do Rio Negro, Dom Pedro Massa, ao Secretrio Geral do Conselho de Segurana Nacional, General Nelson de Melo. Dom Pedro Massa. Rio de Janeiro, 24 de outubro de 1960. Relatrio da visita ao garimpo tukano. Pari-Cachoeira, Maio de 1989. Padre Gensio Savassa.

DOCUMENTOS DA FOIRN CONSULTADOS. Relatrio Geral das Atividades da Federao das Organizaes Indgenas do Rio Negro, no perodo de maro de 1990 a setembro de 1992. Correspondncia da FOIRN para a CESE (Coordenadoria Ecumnica de Servios). So Gabriel da Cachoeira, 01 de Fevereiro de 1992. Assina: Brz de Oliveira Frana, presidente. Carta no 018/92. Da Federao das Organizaes Indgenas do Rio Negro para a Fundao Nacional do ndio. Assunto: comunicao e esclarecimento. So Gabriel da Cachoeira, 19 de Fevereiro de 1992. Assina: Brz de Oliveira Frana, presidente. Correspondncia da FOIRN para Broerdelijrk Delem. So Gabriel da Cachoeira, 13 de Junho de 1991. Assinam: Brs de Oliveira Frana, presidente; Gersen dos Santos, tesoureiro; e Mirian Ambrsio de Sousa, secretria. Correspondncia da FOIRN para FAFO-Internacional. So Gabriel da Cachoeira, 02 de Fevereiro de 1992. Relatrio de Atividades da FOIRN Federao das Organizaes Indgenas do Rio Negro. Maro/1990 a Junho/1991. So Gabriel da Cachoeira, 15 de Junho de 1991. Assinam: Brz de Oliveira Frana, presidente e Gersen Jos dos Santos, tesoureiro.

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Correspondncia de Brs Frana para Ailton Krenak. So Gabriel da Cachoeira, 22 de Outubro de 1991. Carta No 19/06/91. So Gabriel da Cachoeira, 19 de Junho de 1991. Assinam: Brz de Oliveira Frana, presidente, e Mirian Ambrsio de Sousa, secretria. Correspondncia de Gersen Luciano para Paulo Maldos. So Gabriel da Cachoeira, 08 de Setembro de 1992. Assina: Gersen dos Santos Luciano, tesoureiro. Correspondncia da FOIRN para Alberto Padilha Garcia, presidente da ACIBRN. So Gabriel da Cachoeira, 10 de Agosto de 1992. Assina: Brz de Oliveira Frana, presidente. Correspondncia da FOIRN para CERIS. So Gabriel da Cachoeira, 06 de Maio de 1992. No tem assinaturas e o documento um manuscrito. Correspondncia da FOIRN para OXFAM-Amrica. So Gabriel da Cachoeira, 18 de Fevereiro de 1992. Assina: Brz de Oliveira Frana, presidente. Correspondncia da FOIRN para Po Para o Mundo. So Gabriel da Cachoeira, 25 de Junho de 1992. Correspondncia da Diretoria da FOIRN para a Aliana Pelo Clima. Carta Circular. Assunto: apoio financeiro para a III Assemblia Geral da FOIRN. So Gabriel da Cachoeira, 24 de Junho de 1992. Assina: Gersen dos Santos Luciano, tesoureiro. Correspondncia da FOIRN para a COICA. So Gabriel da Cachoeira, 03 de Junho de 1992. Assina: Gersen dos Santos Luciano, tesoureiro. Correspondncia da FOIRN para Marta Azevedo, Setor de Documentao do CIMINacional. So Gabriel da Cachoeira, 28 de Junho de 1992. Assina: Brz de Oliveira Frana, presidente. Correspondncia de Gersen Luciano para Paulo Maldos. So Gabriel da Cachoeira, 08 de Setembro de 1992. Assina: Gersen dos Santos Luciano, tesoureiro. Carta Circular No 15/12/92. Assunto: III Assemblia Geral da FOIRN. So Gabriel da Cachoeira, 15 de Dezembro de 1992. Assinam: Brz de Oliveira Frana (presidente) e Maximiliano Corra Menezes (secretrio). Relatrio da III Assemblia Geral da Federao das Organizaes Indgenas do Rio Negro, 09 a 11/12/92.

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Projeto Financeiro de Apoio Realizao da III Assemblia Geral da FOIRN. Relatrio da III Assemblia Geral da Federao das Organizaes Indgenas do Rio Negro, 09 a 11/12/92. Correspondncia da Diretoria da FOIRN para a Aliana Pelo Clima. Relatrio Narrativo de Atividades da FOIRN em 1993. Federao das Organizaes Indgenas do Rio Negro. Assina: Brz de Oliveira Frana, presidente. Correspondncia de FOIRN para CESE. So Gabriel da Cachoeira, 17 de Agosto de 1995. Assina: Brz de Oliveira Frana, presidente. Relatrio Geral das Atividades da FOIRN no Ano de 1995. So Gabriel da Cachoeira, 25 de Maro de 1996. Assinam: Brz de Oliveira Frana, presidente, e Maximiliano Menezes, secretrio. Relatrio Geral de Atividades. Perodo de 01 de Janeiro a 31 de Dezembro de 1996. Correspondncia da FOIRN para Jorge da Silva Terena, FIDA/CAF/PROPICA. So Gabriel da Cachoeira, 10 de Dezembro de 1993. Brz de Oliveira Frana, presidente, Gersen Luciano, vice-presidente, e Maximiliano Menezes, secretrio. Correspondncia da FOIRN para Jorge da Silva Terena, FIDA/CAF/TCA. So Gabriel da Cachoeira, 07 de Fevereiro de 1994. Brz de Oliveira Frana, presidente. Relatrio Geral das Atividades da FOIRN do Perodo de Maio a Setembro de 1995. So Gabriel da Cachoeira, 17 de Outubro de 1995. Brz de Oliveira Frana, presidente; e Relatrio Geral das Atividades da FOIRN no Ano de 1995. So Gabriel da Cachoeira, 25 de Maro de 1996. Assinam: Brz de Oliveira Frana, presidente, e Maximiliano Menezes, secretrio. Relatrio Narrativo de Atividades da FOIRN em 1993. Federao das Organizaes Indgenas do Rio Negro. Assina: Brz de Oliveira Frana, presidente. Relatrio de Atividades dos Primeiros Cinco Meses de 1996. Relatrio Geral de Atividades. Perodo de 01 de Janeiro a 31 de Dezembro de 1996. Convnio para execuo do projeto de cooperao entre o Instituto para Cooperao Internacional da ustria/IIZ e a Federao das Organizaes Indgenas do Rio Negro/FOIRN. So Gabriel, 14 de outubro de 1997. Assinam: Brunhilde Hass de Saneux, coordenadora de projetos da Aliana Pelo Clima/ustria e Pedro Garcia, presidente da FOIRN.

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Relatrio da Reunio do Conselho Administrativo da FOIRN/CAF, 14 a 16 de janeiro de 1999. Sade Sem Limites. Programa Rio Negro. Federao das Organizaes Indgenas do Rio Negro FOIRN. Proposta de Apoio Implementao do Distrito Sanitrio Especial Indgena do Rio Negro So Gabriel da Cachoeira/Amazonas 1999. Proposta de Organizao dos Servios de Sade na Regio do Rio Negro. So Gabriel da Cachoeira FEV/MAR 1999. Relatrio da V Assemblia Geral Eletiva da FOIRN. Estatuto Social da Federao das Organizaes Indgenas do Rio Negro - FOIRN.

DOCUMENTOS CONSULTADOS DO ISA. Instituto Socioambiental. Relatrio Financeiro 2001. Plano Trienal 1999-2001. Encarte do Relatrio de Atividades 2001. Instituto Socioambiental. Relatrio Anual de Atividades 2001. Abril de 2002. Programa Rio Negro. Relatrio de Atividades 1998. Verso de 21/02/99 Programa Rio Negro. Projeto Manejo Sustentvel de Recursos Naturais nas Terras Indgenas do Alto Rio Negro. Relatrio de Atividades. Perodo Ano 2000. Parceria ISA/FOIRN. Maio de 2001. Relatrio de Atividades 2000. Verso de 25/08/01. Programa Regional de Desenvolvimento Indgena Sustentvel para as Terras Indgenas do Alto e Mdio Rio Negro. Oramento para detalhamento das linhas de ao. Federao das Organizaes Indgenas do Rio Negro (FOIRN). Janeiro de 2000.

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