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Conselho Editorial
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Augusto Mussi
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Carlos Gerbase
Carlos Graeff-Teixeira
Clarice Beatriz da Costa Shngen
Cludio Lus C. Frankenberg
rico Joo Hammes
Gilberto Keller de Andrade
Jorge Campos da Costa Editor-Chefe
Jorge Luis Nicolas Audy Presidente
Lauro Kopper Filho
Para Simone,
que sempre faz meu corao sorrir.
Sumrio
Prefcio....................................................................................... 11
Prof. Dr. Joo Batista Freitas Cardoso
Introduo................................................................................. 13
O Humor no Imprio e na Repblica..................................... 19
Contracultura e contestao nos anos de chumbo............. 49
O riso em tempos de crise..................................................... 69
Histrias em quadrinhos no sculo XXI.............................. 107
Consideraes finais............................................................. 119
Referncias.............................................................................. 123
Sobre o autor......................................................................... 127
Prefcio
Prof. Dr. Joo Batista Freitas Cardoso1
o faz muito tempo e isso ns leitores de histrias em quadrinhos sabemos as HQs eram vistas com certo preconceito
pelo meio acadmico. De modo geral, as revistinhas eram consideradas um tipo de produo cultural inferior destinada a um pblico
infantojuvenil alienado. No final do sculo XX, pesquisadores de diferentes centros de estudos pleitearam por espaos nas universidades
pelo que entendiam ser um tipo especfico de produo artstica que
atravessava os diversos sistemas sociais e culturais. Nesse contexto,
surgiu em 1999, na Escola de Comunicao e Artes da USP (ECA), o
Observatrio de Histrias em Quadrinhos. De l pra c, no s nos
estudos do Observatrio da ECA, mas tambm no interior de muitos
programas de ps-graduao em comunicao, observa-se o desenvolvimento de pesquisas que buscam compreender os variados gneros de histrias em quadrinhos (aventura, terror, humor etc.) em suas
relaes com a sociedade e produes culturais como, por exemplo, os quadrinhos na sala de aula; as transposies de histrias em
quadrinhos para o cinema e televiso; o uso de elementos das histrias em quadrinhos na comunicao mercadolgica; o licenciamento
de personagens de histrias em quadrinhos em produtos diversos.
Na presente obra, Roberto Elsio dos Santos evidencia as inovaes narrativas e estticas nos quadrinhos de humor brasileiro desde o tempo do imprio at os dias de hoje. Ao trilhar rotas no muito
comuns entre autores, publicaes e perodos, Santos nos mostra a
riqueza e variedade de estilos cmicos que caracterizam uma identidade genuinamente brasileira.
Professor do Programa de Ps-graduao em Comunicao da Universidade
Municipal de So Caetano do Sul (USCS).
1
Introduo
A partir do sculo XVIII, quando as tcnicas de impresso foram aprimoradas, o humor grfico se disseminou em jornais e panfletos impressos vendidos ou distribudos gratuitamente, muitas vezes
de forma clandestina. Na viso de Fonseca (1999, p. 13): Ningum
pode negar a importncia do desenho humorstico na imprensa, seja
como documento histrico, como fonte de informao social e poltica, como termmetro de opinio, como fenmeno esttico, como
expresso artstica e literria ou como simples forma de diverso e
Introduo
passatempo. As principais formas desse tipo de produo humorstica foram a caricatura, a charge, o cartum e a histria em quadrinhos.
Representao da figura humana (normalmente de pessoa conhecida pelo pblico) composta por traos anatmicos exagerados
e distorcidos, a caricatura no tem inteno de contar uma histria,
pois se trata de uma ilustrao e no de uma narrativa pictrica. No
entanto, a caricatura se faz presente em formas narrativas humorsticas, como a charge, o cartum e a histria em quadrinhos de humor,
seja pela estilizao do trao do desenho, seja pelo retrato deformado de alguma personalidade transformada em personagem cmico
ou ridculo.
De acordo com Fonseca (1999, p. 17), a caricatura constitui
uma representao plstica ou grfica de uma pessoa, ao ou ideia
interpretada voluntariamente de forma distorcida sob seu aspecto
ridculo ou grotesco. Para esse autor, trata-se de um desenho que,
pelo trao, pela seleo criteriosa de detalhes, acentua ou revela
certos aspectos ridculos de uma pessoa ou de um fato. Na maioria dos casos, uma caracterstica saliente apanhada ou exagerada.
Segundo Srbek (2007, p. 7), esse gnero de desenho ligado ao humor poltico moderno (...) tem razes histricas bem antigas, que remontam Grcia arcaica. Esse tipo de retrato distorcido e exagerado das pessoas e das coisas antecede a criao de meios impressos,
em pinturas e esculturas.
Normalmente uma stira ou crtica poltica, a charge um comentrio ilustrado feito com base em um fato recente que tenha se
tornado notcia publicada em jornais dirios e revistas semanais ou
veiculada em telejornais. A fora da gag de uma charge, que pode
ter uma ou mais vinhetas (assemelhando-se narrativa sequencial
da histria em quadrinhos), limitada ao tempo de sua veiculao,
perdendo a graa com o tempo, uma vez que retrata um evento de
curta durao.
A relao entre a charge e a notcia jornalstica, mesmo quando h oposio de enfoques, de complementaridade. Na viso de
Romualdo (2000, p. 86), as relaes intertextuais da charge jornalstica podem se estabelecer com textos verbais, visuais, verbais e visuais
conjuntamente (incluindo aqui os textos sincrticos, que unem o elemento verbal e o visual). Passado algum tempo do acontecimento que
gerou a notcia ou com o deslocamento da charge do contexto em que
dialoga com os outros textos jornalsticos, ela perde sua comicidade.
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O cartum, ao contrrio da charge, permanece engraado mesmo depois de dcadas de sua publicao, porque aborda situaes
atemporais, privilegiando o comportamento humano e suas contradies. Desenho acrescido de um sentido cmico, normalmente causado pela reverso de uma expectativa (o fato natural que deveria
ocorrer d lugar a outro, inesperado e contrrio), o cartum se desvincula do contedo dos outros textos do veculo em que publicado. Sua compreenso independe de fatores externos e seu contedo
humorstico emana apenas das imagens e/ou textos (h cartuns sem
texto e os que contam com dilogos, postos em bales ou na parte
inferior da vinheta) contidos no cartum.
Narrativa grfica sequencial, a histria em quadrinhos desenvolve uma histria por meio de sucesso de imagens e textos, que devem
ser lidos em uma ordem determinada. O contedo mais comum deste produto miditico o humorstico. Acompanhando ou no temas
de fundo poltico ou social, as imagens satirizam ou criticam as atitudes dos homens pblicos e do ser humano comum. Segundo Cirne
(1982, p. 11), no existem quadrinhos inocentes. Para este terico,
os quadrinhos procuram ocultar sua verdadeira ideologia atravs de
frmulas temticas muitas vezes simples ou simplistas, fazendo da redundncia (a repetio em srie imposta pela engrenagem operacional
da cultura de massa) o lugar de sua representao.
Dessa forma, este trabalho tem como objetivo apresentar um
panorama do humor nos quadrinhos feitos no Brasil e sua relao
com o contexto histrico em que foram criados (embora sejam citadas algumas tiras publicadas em jornais, o corpus deste estudo foi
tirado principalmente de suplementos, revistas e livros de quadrinhos), procurando entender como representam o pas e os brasileiros. Trata-se do resultado de uma pesquisa qualitativa de nvel exploratrio4 que empregou as tcnicas do levantamento documental (em
acervos pblicos e privados) e da anlise de contedo.
O primeiro captulo trata do surgimento e do desenvolvimento do humor grfico no Brasil, principalmente na obra de Angelo
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Introduo
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Captulo 1
O Humor no Imprio
e na Repblica
ompendo com o silncio e o controle imposto pela Coroa portuguesa durante o perodo colonial embora a circulao clandestina de livros e jornais fosse abundante, como afirma Sodr (1983,
p. 12-14) , o sculo XIX assistiu proliferao de jornais e outros
materiais impressos, tendo como ponto de incio a imprensa oficial
instaurada em 1808, aps a chegada da famlia real ao pas com a
Gazeta do Rio de Janeiro, que era a voz do governo.
Ao contrrio deste ttulo, Hiplito da Costa editava na
Inglaterra o Correio Brasiliense, que conclamava a populao a modernizar as instituies polticas de acordo com o iderio liberal francs.
A crtica administrao pblica, aos escndalos e prepotncias dos
governantes foi a tnica dos jornais que se multiplicaram em vrios
pontos do pas ao longo daquele sculo. Ao lado de textos acusatrios e contundentes, charges e caricaturas faziam coro indignao
dos editores e articulistas. Esse tipo de procedimento j era comum
na Europa: em 1832, o artista francs Charles Philipon lanou a revista La Caricature e, nove anos depois, surgiu na Inglaterra o peridico
ilustrado Punch, ttulos que influenciaram os primeiros caricaturistas
brasileiros.
No h consenso entre os pesquisadores brasileiros a respeito
do incio do emprego da caricatura como desenho impresso, at porque, antes da veiculao em jornais, elas eram vendidas de forma avulsa. Mas a publicao da caricatura do poltico Justiniano Jos da Rocha,
feita em 1837 pelo pintor e poeta Manoel de Arajo Porto-alegre, pode
ser tomada como marco inicial. Segundo Lago (1999, p. 12):
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Sempre crtico, Agostini satirizou a vida no Rio de Janeiro, defendendo o fim da escravido e do regime monarquista fez charges
e caricaturas de Dom Pedro II mostrando a decadncia do regime e,
depois, censurou os descaminhos da recm-proclamada Repblica.
Sobre o cartunista, Balaban (2009, p. 28) afirma: Em geral, h um
consenso que faz dele um misto de artista e poltico, associao que
definiria a arte da caricatura no sculo XIX. Esse autor acrescenta
que ele seria um dos pais da caricatura brasileira por ter sido feliz
em aliar seu talento manejando o crayon com a militncia poltica,
sobretudo no que tange abolio da escravatura e mudana de
regime poltico que se seguiu.
Sua colaborao para os quadrinhos brasileiros pode ser constatada, tambm, por sua participao na primeira publicao com
quadrinhos dedicada ao pblico infantil, a revista O Tico-Tico, lanada em 1905 pela mesma editora de O Malho. Para esse peridico,
Agostini elaborou o cabealho, capas, ilustraes e algumas histrias em quadrinhos, ainda seguindo sua tica crtica, como evidencia
Maringoni (2011, p. 230):
Para O Tico-Tico nmero 5, de 8 de novembro [de 1905],
Agostini cria uma das mais sintomticas histrias em quadrinhos sobre a escravido. (...) O ambiente no mais o da denncia a quente do flagelo do trabalho servil. (...)
Os meninos sabem que o Brasil j teve escravos?, a pergunta
estampada na primeira linha da narrativa de Histria do Pai
Joo (cenas do tempo da escravido), histria de duas pginas
e doze estampas [vinhetas]. Os quadrinhos so a melhor forma
de expresso de Agostini. Aqui seu trao no vacila, os quadros
e o roteiro, embora lineares, so compostos com segurana e ritmo. O escravo no era pessoa, era coisa que se vendia como se
fosse um animal irracional, prossegue o texto, descrevendo rapidamente as tragdias, que tal condio impunha aos cativos. O
nariz de cera serve de Pai Joo, um negro de meia-idade, pernas
tortas, frequentemente atormentado pela garotada do terreiro.
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Depois de Agostini, a charge poltica e a crtica social e de costume encontraram novos empreendedores. No final do sculo XIX,
o desenhista Rafael Bordalo Pinheiro fazia comentrios crticos na
imprensa por meio do personagem Z Povinho, que inspirou outro
parecido, o Z Povo, editado a partir de 1910 em diversas publicaes, a exemplo da revista Fon-Fon!, e realizado por diferentes artistas
(entre eles Raul Pederneiras, Kalixto, J. Carlos). De acordo com Silva
(1990, p. 9), Z Povo reclamava de sua situao social, de desrespeito a seus direitos e de outros problemas que sofria ou via ao seu
redor.
Jos Carlos de Brito e Cunha, mais conhecido pelo nome artstico J. Carlos, foi o ilustrador exclusivo da revista de humor Careta de
1908 a 1922, para a qual fez capas e charges polticas. Na opinio de
Cavalcanti (2005, p. 109): Em todos seus anos de atividade, J. Carlos
retratou em ilustraes, vinhetas decorativas ou caricaturas polticas,
seu tempo e o desenvolvimento da histria poltica do pas. Esse
artista deixou impressa sua viso satrica sobre fatos que impactaram o Brasil e o mundo, como a ditadura Vargas e a Primeira Guerra
Mundial, e as mudanas sociais e comportamentais, a exemplo dos
desenhos das sensuais melindrosas que desfilavam pelas ruas atraindo os olhares masculinos nas caladas e nos bondes apinhados. Alm
do humor poltico, ele tambm elaborou peas publicitrias e criou
quadrinhos infantis para a revista O Tico-Tico (como ser visto no prximo tpico).
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O Brasil, recm-sado da monarquia, entrava no novo sculo enfrentando os primeiros desafios da Repblica, assim como o processo
de industrializao recente e incipiente, que agravaria ainda mais as
discrepncias regionais. O cinema, imagens em movimento narrando
histrias, torna-se, ento, um fenmeno cultural popular. nesse momento, tambm, que a imprensa passa a se profissionalizar, ganhando
o reforo econmico da publicidade de produtos e segmentando-se
para atender a demandas de diferentes leitores. Nesse sentido, a histria em quadrinhos (especialmente a de humor) se aperfeioa (principalmente graas ao aprimoramento das tcnicas de impresso), desenvolve sua linguagem e sua narrativa e conquista o pblico.
Uma das publicaes nacionais mais importantes nesse
perodo foi a revista O Tico-Tico, lanada em 1905 pela Sociedade
Annima O Malho. Alm de quadrinhos protagonizados por crianas
(Chiquinho, Lamparina, Rco-Rco, Bolo e Azeitona, entre outros) e
narrativas de aventura e de humor, oferecia aos leitores contos, jogos
e informaes. A inteno de seu criador, Lus Bartolomeu de Souza e
Silva, era difundir educao e entretenimento para os leitores infantis. De acordo com Vergueiro e Santos:
A revista O Tico-Tico um marco entre os ttulos regulares
dirigidos infncia no Brasil. Em primeiro lugar, por ter sido
a pioneira em trazer regularmente histrias em quadrinhos,
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Aps o suicdio de Pricles, no ltimo dia de 1961, outro colaborador de O Cruzeiro, Getulio Delphim, assumiu a produo do personagem por dois anos, sendo substitudo por Carlos Estvo, que
fez a srie at 1972, quando faleceu. Este cartunista tambm criou
outros tipos, como o detetive Sharleck Halmes, pardia de Sherlock
Holmes. Tambm so de sua autoria as histrias As aparncias enganam, em que mostrava a sombra e, na vinheta subsequente, o que
realmente estava acontecendo, e Ser Mulher (onde pretensamente
ensinava as mulheres a ser submissas).
O personagem mais importante de Carlos Estvo foi o convencido e faroleiro Dr. Macarra, que vivia se gabando de mentiras que
inventava para impressionar seus crdulos ouvintes. A estrutura narrativa era invarivel: na primeira vinheta, Macarra vangloriava-se e,
na seguinte, um flashback revelava ao leitor a verdade: o personagem
distorcia ou ampliava um fato para tornar-se importante para seu
interlocutor, seu ufanismo o transformava em outra pessoa, algum
que jamais poderia ser de fato. Surgido nos anos 1950 na revista O
Cruzeiro, ganhou revista prpria em 1962, que teve um total de nove
edies.
Em 1948, em parceria com o escritor e jornalista Millr
Fernandes, Estvo produziu para o jornal Dirio da Noite a tira humorstica diria Ignorabus, o Contador de Histrias. Em forma de metanarrativa, os dois autores (Millr usava o pseudnimo de Vo Gogo)
participavam da histria, cujo protagonista ignorante, imbecil, estpido analfabeto, qualidades de um romancista nato, que vive na
misteriosa cidade maravilhosa de Bagd e veste turbante e colares.
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A dcada de 1950 caracterizou-se pelo populismo, viso poltica ambgua que se posiciona a favor da parcela mais pobre e explorada
do povo, embora procure preservar a sociedade como um todo, para
que no haja rupturas radicais. Houve, tambm, o fortalecimento da
ideologia nacionalista, que no se restringia ao incentivo produo
industrial local, mas tambm se espraiava para a cultura (teatro, cinema, msica). Nesse contexto, teve incio o movimento para ampliar a
presena de quadrinhos brasileiros nas publicaes nacionais. Para os
editores, o material estrangeiro, notadamente o estadunidense distribudo pelos syndicates, tinha um custo bem menor, uma vez que j
dera lucro a seus produtores nos pases de origem.
Para evitar a aprovao de uma lei que obrigasse a publicao de quadrinhos brasileiros, os editores passaram a dar mais espao para artistas que atuassem no Brasil. Assim, em 1960, a editora
O Cruzeiro (que publicava revistas infantis como Guri, Luluzinha e
Bolinha) lanou Perer, com os personagens criados por Ziraldo, inspirados no folclore e na fauna brasileira, uma clara adeso viso
populista da poca, que valorizava temas relacionados cultura do
pas e ao povo brasileiro.
Inicialmente feitas na forma de cartum para a revista semanal
de informao O Cruzeiro, essas histrias so ambientadas no interior e so protagonizadas pelo esperto saci e seus amigos, o ndio
Tininim, a ona Galileu, a menina negra Boneca-de-Pixe, o macaco
Alan, entre outros, que tinham como antagonistas os caadores
Compadre Tonico e Seu Nenm. De acordo com Pimentel (1989, p.
59-66), o discurso populista nessas narrativas perceptvel pela mistura de elementos culturais e pelas referncias tpicas sociedade
urbana, com nfase no consumo, em pleno meio rural. Ao tentar ser
uma sntese do pas, as aventuras de Perer pem em evidncia as
contradies da sociedade brasileira daquele momento.
Na dcada de 1970, Ziraldo participou do jornal alternativo
Pasquim, criou personagens como a Superme e Jeremias, o Bom e,
em 1980, voltou aos quadrinhos infantis com o Menino Maluquinho.
Os enredos das histrias de Superme tm como base os esforos de
uma matrona superprotetora para proteger seu filho, um marmanjo
mulherengo. Lanadas em 1969, no Jornal do Brasil, no ano seguinte
as aventuras dessa mezona extremada passaram a ser publicadas na
revista feminina Claudia, da editora Abril, cujas leitoras so donas de
casa e, em sua maioria, mes. Jeremias (referncia ao profeta bblico),
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Captulo 2
Contracultura e contestao
nos anos de chumbo
Uma das publicaes alternativas mais importantes daquele momento foi o semanrio Pasquim, lanado em junho de 1969, que reuniu,
alm de jornalistas, intelectuais e desenhistas como Jaguar, Ziraldo e
Henfil. s vezes censurados e at detidos por causa da mordacidade de
seus trabalhos, estes artistas conseguiram manter vivo o esprito crtico
durante o perodo de exceo. Para Chinem (1995, p. 43):
O Pasquim no era um jornal poltico, era apenas um jornal debochado, de contestao, indignado, que queria sair do sufoco, um
jornal que no suportava mais ver os outros jornais como a primeira pgina do Jornal do Brasil, cheia de insinuaes e legendas, e
o censor dentro da redao. O Pasquim saiu sem nenhum projeto.
Irreverente, moleque, com uma linguagem desabrida, bastante
atrevido para os padres de comportamento da imprensa na poca e com boa distribuio. Fez sucesso extraordinrio. Os leitores
acreditavam no que o Pasquim dizia. Cada pessoa que estava na
oposio, inconformada com aquele estado de coisas, via nele o seu
jornal. E assim o jornal conquistou vrias faixas de leitores.
Alm de ter exercido a funo de editor dessa publicao alternativa (ou nanica, como era denominada na poca, devido sua
abrangncia, se comparada da grande imprensa), Jaguar tambm
contribuiu com charges e tiras de quadrinhos. Entre seus personagens destacam-se Boris, o homem tronco, Gasto, o vomitador, e o
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Outra publicao de quadrinhos alternativos, O Bicho, foi editada de 1975 a 1976. Alm de quadrinhos feitos no exterior, que se
aproximam do cartum seja pelo estilo grfico ou por tratarem de
assuntos da contemporaneidade, abriu espao para a produo de artistas nacionais, como Guidacci (autor de Os Subterrqueos) e Fortuna
(realizador das histrias de A senhora e seu bicho muito louco). Segundo
Cirne (1990, p.72), O Bicho, revista idealizada pelo cartunista Fortuna
para a Codecri (editora do jornal Pasquim),
(...) foi igualmente importante por sua pesquisa arqueolgica
do saber quadrinheiro brasileiro. No primeiro nmero, as caricaturas de costume de Seth (lvaro Marins), no terceiro nmero o antolgico Luiz S, no 4 nmero, Vo Ggo (Millr
Fernandes) e Carlos Estevo so lembrados com Ignorabus, o
Contador de Histrias; no ltimo nmero, em novembro de
1976, o pouco conhecido Max (Jaguar), com O Capito, tiras
publicadas inicialmente na revista Senhor, em 1962.
Entre os cartunistas que participaram da revista O Bicho, destacam-se Guidacci (autor das tiras protagonizadas por Os subterrqueos,
seres que lembram caveiras, vivem em mundo cheio de vermes e
insetos e fazem uma alegoria realidade social do Brasil), Coentro
(realizador da srie Bumb, que apresenta elementos da cultura popular entrando em choque com a cultura de massa) e Nani (criador
da histria Vereda Tropical, na qual os colonizadores europeus tentam
espoliar os nativos e precisam enfrentar figuras mticas, como o saci).
Respaldando-se na leitura feita por Cirne (1982), Magalhes
(2006, p. 48) v a opo formal do quadrinho cartunstico feita pelos
trs cartunistas citados acima como uma proposta de atuao cultural que rejeita as frmulas prontas dos quadrinhos estadunidenses.
E acrescenta: Esse quadrinho crtico encontra maior significao esttica, social e semiolgica no panorama do nosso humor grfico:
um humor vivo em todas as ocasies, agressivo quando necessrio,
metacrtico em vrias oportunidades.
o caso do trabalho do cartunista Nani (Ernani Diniz Lucas),
que tambm colaborou com o jornal Pasquim. Para Santos e Vergueiro
(2010, p. 28), nas tiras intituladas Vereda Tropical, esse artista recria,
de forma satrica, a histria do Brasil, distanciando-se da historiografia consagrada e repetida nas escolas, na qual prevalece a viso
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Ainda no que refere temtica poltica, a tira O Pato, elaborada pela quadrinista e ilustradora Cia (Ceclia Whitaker Vicente de
Azevedo Alves Pinto) na dcada de 1970 e publicada em diversos dirios e lbuns, apresentava, segundo Magalhes (2006, p. 54), a realidade custica, irnica, criativa e engraadssima do mundo de Cia.
Ainda na opinio desse terico, O Pato possua um desenho simples,
quase infantil, com a inteno de passar despercebidos pelos censores, que no encobre a fora explosiva de sua crtica. O Pato foi ampliando seu universo para outros bichos formigas, galos, galinhas,
sabis e at ovos , criando personagens e papis que representavam
as relaes sociais e o jogo de poder. Como a maioria dos animais
falantes dos quadrinhos, os personagens dessa tira so seres humanos representados por bichos, que se mostram atnitos e s vezes
revoltados com a realidade que os cerca.
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Nas artes grficas, Ziraldo Alves Pinto foi um dos artistas brasileiros que produziram cartuns e quadrinhos que tratavam de sexo. Ao lado
das histrias de Perer, o saci que habita a Mata do Fundo junto com
animais da fauna brasileira (jabuti, ona, macaco, entre outros), o cartunista tambm criou personagens cmicos, a exemplo de Jeremias o Bom,
Superme e Mineirinho, sendo este o esteretipo do mineiro (como o
seu criador) que faz tudo em surdina, sem ostentar, principalmente no
que diz respeito a suas conquistas amorosas. As histrias da Superme
tambm possuem um contedo malicioso e fazem uma stira aos super-heris (o autor j havia parodiado os heris dos comics estadunidenses
em Os Zeris), uma vez que a protagonista usa capa vermelha, botas e, no
peito do vestido azul, um escudo com a letra S na cor amarela, que remete ao uniforme do Superman e de outros personagens desse gnero.
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Humor mainstream
Durante os anos 1970, os artistas brasileiros tambm encontraram espao em publicaes comerciais, editadas por grandes editoras.
Isso se deve porque, em meados da dcada de 1970, houve a retomada
do movimento em prol dos quadrinhos brasileiros nas revistas editadas
no pas. Essa reivindicao teve incio no final dos anos 1950 e mobilizou vrios artistas. Temendo que essa iniciativa virasse lei, as grandes
editoras passaram a utilizar material nacional e at a criar publicaes
especficas para veicular histrias produzidas no Brasil. Esse foi o caso
da editora Abril, que lanou em 1974 a revista Crs!. Um dos idealizadores desse ttulo foi o escritor e editor Cludio de Souza, funcionrio
da empresa desde a dcada de 1950 e que, naquele momento, dirigia
as edies infantojuvenis da Abril. De acordo com Gonalo Junior:
Cludio decidiu, ento, que chegara a hora de abrir espao para
artistas brasileiros e suas criaes prprias um antigo projeto
seu na Abril. E passou a defender aquela que talvez tenha sido
sua proposta mais pessoal na editora: a Crs!. O formato da
revista era europeu tipo Veja e que se transformara num
sucesso em pases como Itlia, Frana e Espanha, onde se consagraram ttulos como Linus, Eureka, Pilote e Metal Hurlant.
Essas publicaes tinham uma frmula aparentemente confusa,
mas que se confirmou eficiente: misturava histrias antigas e
novas, personagens srios e infantis, nacionais e estrangeiros,
engraados e dramticos. No caso da Crs!, alm de dar uma
panormica da produo atual brasileira, pretendia servir de laboratrio para que os personagens de maior destaque em suas
pginas ganhassem revistas prprias.
Com o crescimento da Abril nos ltimos anos, Cludio acreditava que a editora poderia se dar ao luxo de bancar uma publicao que no tivesse o propsito de somente atingir tiragens
de centenas de milhares de exemplares (GONALO JUNIOR,
2003, p. 186-188).
ca ruiva e dentadura e fazer um furinho no queixo (referncia ao ator estadunidense Kirk Douglas) para se transformar no pistoleiro Kactus Kid.
cones e os clichs do gnero western e das sries televisivas
estadunidenses so objeto das piadas presentes nas histrias de
Kactus Kid: o ator de cinema estadunidense John Wayne era caricaturado em uma das histrias; j o bandido Billy The Kid foi satirizado
com o nome de Bli Toquinho e confundido com um garoto. Em outra
histria, o heri descobre que os ndios no atacam noite porque
ficam assistindo a filmes de western transmitidos pela TV. A metalinguagem utilizada constantemente, como na histria em que ndios
desenhados de forma realista contrastam com o estilo cartunesco de
Canini, mas o protagonista tranquiliza: No se preocupe! Eles no
so da nossa histria!. Durante o tiroteio, a arma do caubi dispara
mais de quarenta tiros sem precisar ser recarregada. Kactus Kid justifica: Arma de mocinho assim mesmo! No final da aventura, para
terminar a contenda, o negociador Henry Kissinger, vestido como
caubi, lanado de paraquedas sobre o heri e seu cavalo.
As histrias em quadrinhos protagonizadas pelos personagens Disney tambm foram a porta de entrada do ilustrador paulista
Carlos Edgard Herrero na Editora Abril. Esse artista realizou narrativas, publicadas inclusive no exterior, com Pato Donald e Mickey, e foi
cocriador do personagem Morcego Vermelho, alm de desenhar as
histrias cmicas e metalingusticas em que Peninha cria quadrinhos
para o jornal de Tio Patinhas (SANTOS, 2002, p. 263-265).
Metalinguagem e autoironia tambm so a tnica das histrias
do Lobisomem, que Herrero criou em parceria com o roteirista Jlio
Andrade Filho, dando continuidade a uma colaborao j anteriormente bem-sucedida, quando juntos fizeram As aventuras de Vavavum,
um piloto de corridas cujo carro viaja no tempo. Ambientadas em um
burgo europeu durante a Idade Mdia, as narrativas publicadas pela
dupla na revista Crs! so protagonizadas por um lobisomem atrapalhado que no consegue assustar e atacar suas vtimas. Ao tomar
uma poo preparada por uma feiticeira para curar sua bronquite, o
lobisomem transforma-se em outros personagens da revista, como
o pssaro Onofre (personagem de autoria de Jlio Andrade e Michio
Yamashita) e o caubi Kactus Kid.
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cional, por exemplo). O sucesso desse ttulo forjou a criao de veculos que exploravam o mesmo filo, sendo o principal Cracked, aqui
chamada de Pancada, que teve 33 nmeros produzidos pela Editora
Abril entre 1977 e 1980, nos quais havia bastante trabalhos de cartunistas brasileiros, entre eles o veterano Renato Canini.
A Editora Abril tentou, no final da dcada de 1970, distribuir
tiras de quadrinhos de autores brasileiros para jornais de vrias partes do pas. O Projeto Tiras, que durou pouco mais de um ano, revelou novos talentos e divulgou novos personagens, a exemplo do
indiozinho Tibica, criado por Renato Canini (que tratava de questes ambientais), e do cangaceiro Carrapicho, concebido por Carlos
Avalone, que nos anos 1980 editou a revista protagonizada por seu
personagem pela editora Noblet, que trazia tambm as travessuras
do garoto Espoleta.
Outro personagem que retrata o serto nordestino Chico
Peste, cangaceiro criado pelo roteirista Paulo Paiva e pelo desenhista Paulo Csar Munhoz, cujas tiras foram editadas nas pginas da
revista Gibi em meados da dcada de 1970 e tiveram uma revista
lanada pela editora Press em 1986. Esses quadrinhos fazem parte
da iniciativa da revista da RGE de mesclar material produzido por
artistas brasileiros (Watson Portela, Pitliuk, Novaes, entre outros) a
tiras clssicas estadunidenses (Spirit, Popeye, Terr etc.) e europeias
(Iznogud, Lucky Luke). Tratava-se de tiras humorsticas, como 1923, de
Watson (tambm estrelada por cangaceiros), Olimpo, de Xalberto (que
satirizava os deuses gregos), Zig e Zag, de S. Miguez (protagonizada
por dois rabes perdidos no deserto) e Ming-Au (sobre um monge), de
Sinfrnio de Souza Lima Neto.
Na dcada de 1980 Miguel Paiva retratou a mulher moderna,
emancipada e problemtica, com sua personagem Radical Chic (que
chegou a ser adaptada para a TV), e o homem maduro descasado
nas tiras de O Gato de Meia Idade, alm das aventuras do detetive
noir do terceiro mundo Ed Mort (criao do humorista Luis Fernando
Verissimo, que tambm desenha As Cobras e Famlia Brasil, um perfil
da pequena burguesia brasileira). No caso da segunda tira, o foco
cai sobre uma famlia tpica da classe mdia, composta por pai, me,
filho caula, filha mais velha e seu namorado, que evita o trabalho e
vive tirando dinheiro do patriarca, que procura sobreviver em meio
s turbulncias da economia brasileira. No que concerne primeira
tira, Nicolau (2007, p. 35) afirma tratar-se de:
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A produo regional
H tambm quadrinhos humorsticos produzidos e publicados
regionalmente no Brasil. So exemplos Pindorama a outra histria do
Brasil, idealizado por Lailson de Holanda Cavalcanti, e o morador das
serras gachas Radicci, do quadrinista Iotti. O primeiro, publicado no
jornal Dirio de Pernambuco, reconta a descoberta do Brasil a partir
das cartas encerradas em garrafas jogadas ao mar pelo nufrago portugus Vasco Cunas Del Mangue. J o segundo uma das criaes
do desenhista Carlos Henrique Iotti: o protagonista de suas tiras e
histrias um gacho descendente de italianos grosseiro e autoritrio, mas que padece com a mulher mandona e o filho desocupado.
Esse cartunista tambm autor da histria Deus e o Diabo, na
qual as duas entidades, sempre com opinies divergentes, formam
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Captulo 3
Entre as vrias editoras paulistas surgidas nos anos 1980, esto Circo Editorial, Press Editorial, Vidente e VHD-Diffusion. Esta ltima pertencia a Vincent Henry Ducarme e iniciou suas atividades em
1983. Inicialmente, essa casa publicadora colocou nas bancas lbuns
de quadrinhos de aventura e western realizados por artistas europeus, como o brbaro Thorgal (cujas histrias eram escritas pelo belga Jean Van Hamme e desenhadas pelo polons Grzegorz Rosiski) e
Durango (criado pelo belga Yves Swolfes). Essas publicaes, contudo, tiveram vida efmera quatro e trs edies, respectivamente.
Mas, em 1988, o editor Rogrio de Campos convenceu o proprietrio da VHD a criar uma revista para apresentar aos leitores brasileiros o melhor do quadrinho de vanguarda europeu daquela poca.
Foi dessa forma que surgiu a revista Animal, que tinha o subttulo
Feio, forte e formal. Suas pginas traziam trabalhos de artistas alternativos italianos (Milo Manara, Tamburini e Liberatore etc.), espanhis
(Daniel Torres, Max, Jaime Martn), ingleses (como Hunt Emerson),
estadunidenses (a exemplo de Jaime Hernandez) e brasileiros (Andr
Toral, Priscila Farias, Osvaldo Pavanelli, Ado Iturrusgarai e Jaca). Ao
lado de Campos, que ocupava a funo de editor da revista, tambm
colaboravam os artistas Fabio Zimbres (editor de arte), Priscila Farias
e Newton Foot, dentre outros. Cada edio oferecia ao pblico, alm
de histrias em quadrinhos, a seo Tam-Tam, com notcias e matrias sobre quadrinhos, e o encarte Mau, que tinha como subttulo
Feio, sujo e malvado. Similar a um fanzine, esse suplemento tratava
de msica e dava espao para desenhos e tiras feitos pelos leitores e
por artistas iniciantes ou consagrados, a exemplo de Hunt Emerson,
Fernando Gonsales e Loureno Mutarelli. Pela VHD, tambm saram
duas edies da Coleo Animal, de 1990 a 1996, e 15 edies da
revista Nquel Nusea, rato criado por Fernando Gonsales. Na mesma
linha, o cartunista Spacca utiliza animais (dos mais comuns aos mais
inusitados, como centauros) em seus quadrinhos.
Marcatti editou, ao lado do quadrinista e escritor Loureno
Mutarelli, a revista Tralha, publicada pela editora Vidente, responsvel
pela revista Porrada!. Alm dos dois artistas, Marcio Baraldi tambm
participou dessa publicao, que contou com dois nmeros em 1989.
A Press Editorial iniciou suas atividades em 1984, inicialmente para
publicar quadrinhos erticos, seguindo a linha da extinta editora curitibana Grafipar. Essa casa publicadora lanou em 1986 dois nmeros
de Bundha, protagonizada por um negro africano bastante estereotipado criado por Newton Foot. Outro ttulo dessa editora foi Monga
a Mulher Gorila, que reuniu quadrinhos de Alain Voss, Jaguar, Fortuna
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etc. Dr. Baixada & Cia., de Luscar (Luiz Carlos dos Santos), por sua vez,
teve duas edies lanadas pela Editora Hamasaki, e era protagonizada por um matador impiedoso, uma referncia aos esquadres da
morte que atuam nas periferias das cidades. Todo vestido de preto,
usando culos escuros e tnis nos ps, infligia seu terror a comerciantes, prostitutas e pessoas comuns. Alm dessa histria, tambm eram
editadas tiras dos menores abandonados Piva e Mosquito.
Com a redemocratizao da sociedade brasileira, o humor poltico, contudo, no desapareceu: est presente nos trabalhos dos
irmos Paulo e Chico Caruso, que captaram com seus traos os casusmos e as arbitrariedades cometidos pelos governantes. Em 1982,
a revista Careta foi relanada pela Editora Trs e abrigava em suas
pginas cartuns e quadrinhos produzidos pelos melhores cartunistas
da poca (Paulo e Chico Caruso, Laerte, Jaguar, Glauco, entre outros),
que jogavam luz sobre as contradies de um pas que tentava voltar
normalidade democrtica. A mesma editora publicou em 1984 Bar
Brasil, coletnea de histrias escritas por Alex Solnik e desenhadas
por Paulo Caruso, em que os principais nomes da poltica nacional
frequentam ou trabalham no boteco com o nome do pas. Dois anos
mais tarde, a editora gacha L&PM produziu o lbum Bar Brasil na
Nova Repblica, dando sequncia s stiras realizadas pela dupla.
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Surgia, assim, a revista Balo (na verdade, um fanzine, embora o termo no fosse utilizado na poca), cujo primeiro nmero, lanado em novembro de 1972, apresentava a histria de trs
pginas Traquinadas do Amadeu (e seu frango, Jos Dolores), desenhada por Laerte. Trata-se de uma kid-strip protagonizada pelo garoto
Amadeu, que, como o ttulo informa, faz peraltices acompanhado
por seu galo. Luiz G (autor da capa da primeira edio) participa
com Spermex, quadrinho experimental de sete pginas no estilo do
trabalho que Victor Moscoso e Rick Griffin editavam na revista underground americana Zap Comix. Nesse sentido, o quadrinista Laerte3
ressalta a importncia dos autores americanos e da revista Zap Comix
em sua formao artstica: Tudo me fazia a cabea, mas a pirao do
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underground era especial. Outra influncia que teve foi do cartunista Henfil. Sobre ele, Laerte tambm recorda:
O trabalho dele (...) uma mistura superentrosada entre recado
poltico e humor. Todo o trabalho do Henfil necessrio. O primeiro parmetro do trabalho do Henfil a necessidade, a oportunidade poltica, o que est ali, sendo dito num determinado
momento poltico. E o outro parmetro o humor, a graa, a
audcia, a falta de decoro...
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Na entrevista concedida para a revista Caros Amigos nmero 50 (So Paulo: Casa
Amarela, maio de 2001), perguntado sobre o nome da tira e da revista, Angeli declara: Foi em homenagem ao Jackson do Pandeiro e quela msica maravilhosa
Chiclete com Banana, que tem tudo a ver com o conceito da revista, a msica fala de
misturar bebop com samba, rock tocado com zabumba e tamborim... quer dizer,
uma cultura rock, universal, sem deixar de ser uma coisa tipicamente brasileira.
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Outros smbolos e tipos da modernidade urbana so encontrados nas histrias e tiras de Laerte publicadas nas revistas Piratas
do Tiet e Striptiras. Na srie dedicada ao Condomnio (espao tpico
dos centros urbanos), o edifcio se torna um microcosmo do Brasil,
onde vivem personagens que sintetizam o pas: o Zelador preguioso
e submisso ao autoritrio Sndico, o severo e conservador Capito
Douglas, militar aposentado, mas sempre alerta (uma aluso ditadura militar que havia terminado h pouco), preocupado em evitar
que as hordas brbaras acabem com a civilizao, o mafioso Don
Luigi e sua filha pervertida Rosa, o puxa-saco Fagundes, entre outros.
As neuroses e paranoias dos tipos que habitam o prdio (como a mania de segurana do Sndico) so indcio das relaes conturbadas resultantes de uma sociedade subdesenvolvida que sofreu um processo
de urbanizao acelerado e desordenado, e na qual ainda imperam
posturas marcadas pelo atraso e pelo totalitarismo.
Tipicamente urbanos tambm so os personagens concebidos
por Glauco para tiras e histrias em quadrinhos: no haveria espao
melhor para Geraldo e para o moderno Casal Neuras e suas crises
de cime do que uma metrpole, lugar em que o comportamento
individualista estimulado. Da mesma forma que os tipos criados
por Angeli e Laerte, as criaes de Glauco moram e so frutos da
cidade grande.
Ilustrao 41 As tiras de Laerte focalizam o cotidiano de um condomnio, microcosmo que se torna uma metfora ao Brasil.
Embora os quadrinhos de humor publicados nas revistas da
Circo Editorial tenham como caracterstica a stira social e a crtica
do comportamento da classe mdia urbana, como ser visto adiante,
no deixaram de lado a stira poltica, uma vez que, apesar do trmi88
Vinculado mais aos problemas externos do que poltica interna brasileira, o psictico Rigapov personagem criado por Angeli e
publicado na revista Chiclete com Banana era a sntese dos dois principais lderes mundiais da poca, o presidente estadunidense Ronald
Reagan e o primeiro-ministro sovitico Yuri Andropov, polaridades da
Guerra Fria. Na poca, as divergncias entre as duas potncias poderia
levar a uma guerra nuclear de escala planetria (o cinema da poca
explorou mais de uma vez esse tema, como no filme O dia seguinte).
Nesse caso, os estranhos sujeitos pilhria esto alm do alcance
do leitor brasileiro, mas suas aes poderiam ter consequncias na
vida desse pblico. Rigapov, sempre segurando um controle-remoto
nas mos, com o qual pode lanar msseis e acabar com a vida na Terra,
89
ele se recusa a cortar, uma recordao dosanos de represso poltica (cada fio simboliza um presidente militar do Brasil).
a da madrasta de Branca de Neve, responde a suas perguntas, reforando seu narcisismo. Quando pergunta garota com a qual passara
a noite sobre sua atuao na cama e ela responde ter achado horrvel,
ele se desespera e busca o espelho.
interlocutora limita-se a responder, laconicamente, em todos os quadrinhos, a expresso Podis cr!. Portanto, com a afirmao social
das mulheres, os homens se retraem. Se passaram a frequentar os
ambientes outrora destinados apenas aos homens, elas sofrem com
a solido resultante do afastamento masculino.
Emblemtica, tambm, R Bordosa, garota que passa a noite
bebendo nos bares e, no dia seguinte, instalada em sua banheira,
tenta recordar o que aconteceu. Eleita em 1984 a Pin-up do Final
do sculo pela revista Around, a personagem idealizada por Angeli
representa a desiluso sentida pela gerao de mulheres que se
emancipou da famlia e dos homens, mas no conseguiu estabilidade emocional. No primeiro nmero da revista Chiclete com Banana,
Angeli apresenta um verbete de dicionrio com a palavra rebordosa,
que tem entre seus significados a ideia de reincidncia de molstia,
que se aplica personagem, que, noite aps noite, repete o mesmo
ritual, descrito por ela prpria: Bebo feito uma vaca... depois acabo
dormindo com o primeiro idiota que pinta!. Para purgar seu sentimento de culpa, deita na banheira e fica se achando uma infeliz, um
poo de amarguras. De acordo com Nery (2006, p. 58):
R Bordosa tem uma viso da sociedade de seu tempo como
algo decadente e coloca suas atitudes em um universo muito
restrito, no indicando comportamento semelhante a outras
pessoas; no se reconhece como esteretipo forjado no interior
da sociedade que nega. Ela mesma aborda questes fundamentais ao status quo casamento, integrao s normas como
positivo, mas no para ela.
Nas tiras em que R Bordosa contracena com a me, o leitor pode perceber a diferena entre as duas geraes de mulheres.
Em uma delas, a velha senhora recomenda: Filha... uma mulher no
pode esperar da vida apenas uma banheira!. Na segunda vinheta,
pergunta: E o que ela pode esperar?, o que leva a me a responder,
no terceiro e ltimo quadrinho: Uma pia de cozinha, um tanque de
lavar roupa, um fogo.... Ao ouvir a resposta da me, R Bordosa
afunda na banheira cheia de gua. Para uma, a vida desregrada e solitria; para a outra, a vida domstica e rotineira. A mulher precisa,
ento, escolher entre duas alternativas desagradveis. Quando entra
em cena seu pai, ela relata sua vida cheia de aventuras sexuais, mo95
A vida familiar possibilita que os quadrinistas explorem comicamente os hbitos e as neuroses da classe mdia urbana. Em Os
dilemas do Aderbal um idiota como todos ns, publicada na revista
Chiclete com Banana nmero 9, Angeli flagra Aderbal, o tpico pai de
famlia pequeno-burgus, tendo uma crise existencial no banheiro.
Com a toalha enrolada na cintura e diante do espelho, ele reflete
sobre sua situao: Nunca foi um bruta homem. O Rambo das mulheres. Muito menos sensvel, inteligente... delicado... Sabe o que
voc , Aderbal? Um tremendo babaco! isso! Um babaco! Tenha
vergonha na cara e tome uma atitude. Rompa com os medocres.
Brigue com a famlia... esmurre seu patro. Faa alguma coisa na vida.
Seno, continuar sendo o mesmo banana de sempre... o mesmo
imbecil!. Surpreendido pela mulher e pelos filhos, ele arranja uma
desculpa para o barulho, dizendo estar espremendo espinhas. Essa
narrativa exemplifica a inrcia desse setor da sociedade.
J a histria Hora do jantar, que integra a edio nmero 5 da
revista Chiclete com Banana, aborda o conflito de geraes. Aps a
refeio, o filho jovem surpreende os pais, dizendo querer um baseadinho pra digesto. Chocada, a me cobre os olhos com as mos e
chora, enquanto o pai, enraivecido e indignado, expulsa o rapaz de
casa. Na ltima vinheta, o homem coloca bebida alcolica no copo
e desabafa: S enchendo a cara, mesmo!. A mulher, estendendo o
copo, solicita: Opa! Estou nessa!. Angeli desmascara a hipocrisia
dos valores familiares burgueses. O pai est preocupado com o que a
sociedade vai pensar dele por ter um filho que fuma maconha e, no
final, anuncia que vai se embriagar com uma droga consentida, sendo
seguido pela esposa.
At mesmo os velhos hippies Wood e Stock (nomes que remetem ao festival de rock realizado no final da dcada de 1960 nos
Estados Unidos, que reuniu jovens que assistiram aos shows, praticaram amor livre e usaram drogas abertamente) enfrentam o conflito de geraes. Overall, o filho adolescente e skatista de Wood
e da ex-hippie Lade Jane, discorda do modo de vida dos pais. Mais
integrado, o garoto gostaria que o pai deixasse de utilizar drogas o
dia todo e arranjasse emprego, como os pais de seus amigos. Stock,
por sua vez, no consegue entender sua namorada jovem, que no
conhece os Beatles.
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Esta outra semelhana entre Os Skrotinhos e O Amigo da Ona, que se apresentava na forma de fantasma, demnio, criana (branca ou negra), como um
ladro ou exercendo a profisso de mdico ou reprter.
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histrica em que a editora atuou no mercado editorial de quadrinhos, de meados da dcada de 1980 at meados dos anos 1990.
O contedo informacional contido nos quadrinhos humorsticos editados pela Circo Editorial desvela, de maneira crtica e satrica,
os impasses e os dilemas enfrentados pela classe mdia urbana brasileira naquele momento histrico: a redefinio do papel do homem
e da mulher no mbito social, a reconfigurao da poltica em um
contexto de redemocratizao da sociedade, a possibilidade de uma
guerra nuclear, a mudana nas relaes familiares, a difcil superao
de paradigmas comportamentais e ideolgicos, a crise econmica, a
deteriorao das condies de vida, a padronizao dos hbitos, a
imposio do consumo de bens e de ideias, entre outras dificuldades
vividas pelas pessoas na poca.
Utilizando um humor transgressor, caracterstico dos quadrinhos underground ou alternativos, os artistas que publicaram seus trabalhos nas revistas editadas pela Circo Editorial conseguiram captar e
expor em suas histrias e tiras de quadrinhos as contradies sociais
e existenciais da poca. Apesar de o Brasil j no viver sob as imposies da ditadura militar, os polticos ainda continuam incompetentes, corruptos e vaidosos. A mulher ocupou espaos no mercado de
trabalho, mas sua vida pessoal passou a ser vazia e solitria (como
no caso de R Bordosa, Mara Tara e Dona Marta). Embora no sejam
considerados mais tabus, sexo e drogas continuam a constranger e a
causar problemas aos indivduos. Mesmo com tantas mudanas ocorridas na sociedade, os conflitos familiares e amorosos continuam e se
tornam cada vez mais violentos (a exemplo do Casal Neuras).
Se a gerao anterior mostra-se defasada em seu comportamento e em suas ideias (este o caso do macho Bibel, do militante
Meiaoito e dos velhos hippies Wood e Stock), os jovens dos anos 1980
e 1990 vivem perdidos em um mundo hostil. Eles deixam-se levar
pelos modismos, so guiados pelo consumismo, procuram uma identidade aliando-se a determinadas tribos urbanas e, desiludidos,
adotam comportamentos e vises de mundo superficiais. As concepes polticas perderam seu apelo utpico, desmanchando-se como
o Muro de Berlim ou esfacelando-se como a Unio Sovitica, em um
mundo dominado por pessoas que usam a poltica para atender a
seus prprios interesses. Nem mesmo as posturas metafsicas mostram-se isentas de manipulao e de distores (como nas pregaes
de Rhalah Rikota e de Z do Apocalipse).
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Captulo 4
Histrias em quadrinhos
no sculo XXI
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artistas. Mais uma edio saiu em formato menor pela Conrad, que
foi responsvel pela publicao de dois nmeros da revista Crocodilo
em 2003, ttulo que mesclava material de artistas de estrangeiros e
brasileiros, como Sieber. Esse artista tambm participou do fanzine
Tarja Preta, que totalizou sete edies de 2004 a 2011.
O gacho Allan Sieber um dos quadrinistas que despontaram no sculo XXI. As tiras da srie Preto no Branco, fortemente
influenciadas pelos comix underground, mostram personagens indignados (muitas vezes o prprio autor caricaturado), que esto fora da
normalidade aceita pela sociedade. Os quadrinhos intitulados Talk to
himself show mostra um talk show (programa televisivo de entrevistas)
em que o artista entrevista a si mesmo, expondo suas opinies e
fazendo autocrtica. J Vida de estagirio acompanha um jovem em
incio de carreira que trabalha em uma agncia de publicidade e precisa conviver com um chefe incompetente e colrico, alm de outros
colegas implicantes. Diretor do curta-metragem de animao Deus
Pai, teve seus trabalhos reunidos em lbuns publicados por vrias
editoras, como a Desiderata, que lanou em 2009 tudo mais ou menos verdade, com o subttulo O jornalismo investigativo, tendencioso e
ficcional de Allan Sieber, que satiriza o jornalismo e as autobiografias
em quadrinhos.
Na mesma linha de Sieber, o carioca Andr Dahmer criou para
a tira Malvados personagens cnicos e crticos com a aparncia de
girassis, que vivem situaes esdrxulas e falam de religio, relacionamentos amorosos e desgastados, bebida e conflitos existenciais,
normalmente tratados com humor negro. Seu personagem Rei Emir
Saad, conhecido como o Monstro de Zazarov, o monarca dspota
e cruel de um reino fictcio da Europa. Seu nome e sua aparncia
roupa vermelha e longos bigodes remetem aos czares russos. Na
srie A cabea a ilha, os protagonistas so atormentados, como o
jovem Ulisses, que rouba um navio com dez mil garrafas de vinho
para se esquecer de sua amada Rebeca que o havia abandonado, ou a
infeliz Sara, a Sofrida. Tanto Sieber como Dahmer passam, com seus
quadrinhos, uma viso niilista.
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Tiras potico-filosficas
Livres da necessidade de serem engraadas e de obedecer
estrutura tradicional dos quadrinhos humorsticos (que apresentam
um elemento disjuntor que surpreende o leitor e causa o efeito cmico), as tiras potico-filosficas abordam temas pouco usuais, normalmente dilemas existenciais. Esse tipo de quadrinhos, que foge da
narratividade convencional, uma influncia dos comix underground
da dcada de 1970. Na definio de Santos Neto (2009, p. 89-90):
(...) histrias em quadrinhos potico-filosficas so aquelas que
apresentam, de maneira explcita em sua arte, a inteno de
que seja feita uma reflexo potica, enquanto aberta criativamente ao contnuo movimento da vida, e filosfica, enquanto
provocao a um pensar aprofundado sobre a condio humana. As histrias em quadrinhos potico-filosficas tendem a ser
apresentadas em histrias curtas que, muitas vezes, rompem
com a linearidade convencional das narrativas em quadrinhos
usando, para tanto, de criativos recursos seja no trao do artista seja em novas propostas de utilizao dos requadros.
So, portanto, trs as caractersticas que principalmente definem uma histria em quadrinhos potico-filosfica: 1. A intencionalidade potica e filosfica; 2. Histrias curtas que exigem
uma leitura diferente da convencional; 3. Inovao na linguagem quadrinstica em relao aos padres de narrativas tradicionais nas histrias em quadrinhos.
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O quadrinista Angeli, por exemplo, faz uma srie de tiras intituladas Caderno de rascunhos, as quais trazem desenhos e esboos,
eliminam o compromisso com a narrativa ficcional, cujo propsito
mostrar o estilo grfico e o processo criativo do autor. As tiras de
Laerte, por outro lado, apresentam um enredo que busca levar o leitor a refletir sobre um assunto, embora nem sempre apresente uma
concluso. Alm disso, seus trabalhos evidenciam uma busca formal
em relao arte e s convenes da linguagem quadrinstica. Na
ilustrao 54, um homem nu caminha lendo um livro o personagem
no tem cor e o fundo azul claro quando esbarra em um crculo
azul escuro... era o mundo. O significado desta pequena histria,
relatada em apenas quatro vinhetas, depende de quem a l.
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Webcomics
Se o mercado editorial de histrias em quadrinhos brasileiras
impressas resume-se s revistas com os personagens de Mauricio de
Sousa, lbuns ocasionais (normalmente com tiragem baixa e preo
elevado) e publicaes alternativas sem periodicidade e que totalizam poucos nmeros, a internet tornou-se principalmente aps
a criao da web 2.0 um espao para divulgao do trabalho de
quadrinistas, principalmente os iniciantes.
Blogs e sites so usados para reunir trabalhos de um ou mais
artistas e manter contato direto e imediato com os leitores, que postam suas opinies e crticas. As redes sociais tambm auxiliam a circulao de quadrinhos. No entanto, a durabilidade deste material
curta, uma vez que pode ser retirado do espao virtual a qualquer
momento, enquanto os impressos so preservados por mais tempo,
mantidos em colees particulares ou em acervos pblicos.
Empregando ou no os recursos possibilitados pelas ferramentas digitais (insero de som, movimento, paleta de cores, efeitos visuais), que aproximam as webcomics dos games e dos desenhos
animados, e caractersticas do suporte (tela infinita, barra de rolagem
etc.), essas histrias em quadrinhos tambm no sofrem as restries
impostas sobre a mdia impressa: determinaes editoriais arbitrrias, entraves econmicos, limitao quanto distribuio e divulgao, prazos apertados, custo de produo alto, que eleva o preo
do produto, ou necessidade de seguir um estilo consagrado ou um
gnero que tem grande apelo diante dos leitores. Na viso de Santos,
Corra e Tom (2012, p. 135):
Apesar das controvrsias sobre as contribuies que os quadrinhos disponibilizados pela internet podem trazer para a ampliao da linguagem e da esttica das narrativas sequenciais,
para os artistas e para os leitores, inegvel que esse novo
produto cultural miditico se diferencia dos quadrinhos impressos. A mdia digital cria um espao para a experimentao por
parte dos quadrinistas e gera formas inovadoras de divulgao
dos quadrinhos e de seus autores; para as editoras, abre um
novo mercado.
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No possvel analisar todo o material disponvel no ciberespao. Por esse motivo, foram estudadas algumas histrias em quadrinhos
humorsticas, inclusive as que apresentam um contedo potico-filosfico, encontradas no momento desta pesquisa na internet. O blog
http://www.umsabadoqualquer.com/, criado em 2010, apresenta tiras
e animaes elaboradas pelo designer carioca Carlos Ruas. Os enredos
tm Deus como protagonista e contam com a participao de outras
divindades (Ilustrao 57) e de seu filho, com quem tem divergncias.
O autor lanou trs coletneas impressas desses quadrinhos, sendo a
mais recente em 2014, com o ttulo Um sbado qualquer Fique com os
deuses!, lanada pela editora Grande Batata Me.
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Consideraes finais
Assim, o objeto de estudo desta pesquisa, a histria em quadrinhos de humor produzida no pas, pode ser considerado um retrato das limitaes e dos desacertos do povo, seja das elites, da
classe mdia ou dos setores que mais sofrem com a desigualdade do
sistema. Se o humor poltico, que emerge em momentos cruciais da
histria (nos estertores da monarquia ou durante os momentos mais
duros da ditadura, nos anos 1970), foca aqueles que usam o poder
para oprimir, a crtica aos costumes aps a redemocratizao dos
Consideraes finais
anos 1980 volta-se para os que levam uma vida medocre, embalada
pelas modas geradas e reforadas pela mdia, pelos consumidores
insaciveis e alienados, e at para quem assume o papel de crtico
a essa situao, j que, na totalidade, todos os seres humanos so
ridculos e passveis de gozao.
Qual a face do brasileiro que o humor grfico revela: a do
interiorano atrapalhado Nh Quim, do traioeiro Amigo da Ona ou
do generoso Jeremias o Bom, do miservel e famlico Rango, do loroteiro Dr. Macarra, do arrivista e adulador Fagundes, ou do preguioso
e machista Radicci? No caso das mulheres, da solteirona e carente
Marly, da bomia R Bordosa, da moderna e sofisticada Radical Chic
ou da contestadora Maria? No caso das crianas, so mais reconhecveis no travesso Chiquinho, nos excludos Piva e Mosquito, na Turma
da Mnica ou na do Xaxado?
De fato, cada um desses personagens representa uma faceta
de um povo heterogneo. Em seu conjunto, eles formam um painel
da diversidade do brasileiro termo que se refere a pessoas diferentes quanto origem, posio social e econmica, localizao
geogrfica e cultura. A sensibilidade dos artistas de enxergar as
contradies de ser brasileiro ao longo do tempo, e, mais do que causar o efeito cmico, o riso, leva o leitor a refletir sobre sua realidade
cada vez mais complexa.
Do ponto de vista esttico, os quadrinhos de humor feitos no
Brasil apresentam desenhos realistas (como os de Angelo Agostini)
ou caricaturais (a maioria), a presena/ausncia de cenrio depende
do estilo do autor, assim como o uso de linhas finas ou grossas e
hachuras. A influncia do comix underground, a partir da dcada de
1970, levou a uma representao pictrica mais suja, ou seja, com
manchas de tinta propositais em diversos pontos das vinhetas, estilo
que refora o tom irnico, contestador e alternativo do humor grfico brasileiro.
interessante notar que h dois personagens que aparecem
em vrias histrias: o cangaceiro e Deus. O primeiro protagonista
da tira Z Candango, de Canini, como uma agente anti-imperialista, do
trabalho de Henfil (o habitante do serto Zeferino) e das narrativas
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Referncias
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Sobre o autor
Editorao Eletrnica
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Francielle Franco
14 x 21 cm
Amerigo
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