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X Encontro Nacional da Anpur | 1

Cidades imaginárias:
utopia, urbanismo e quadrinhos
Adriana Mattos de Caúla
PRUB/FAU -USP

Introdução
Este trabalho tem por objetivo o estudo das cidades imaginárias, identificando
pressupostos teóricos e possíveis influências na concepção destas através da
análise da corrente de pensamento utópico na história do urbanismo e das
concepções espaciais dos quadrinhos. Não assumimos uma perspectiva única,
procuramos por uma visão múltipla sobre as cidades imaginárias. Ao nos de-
pararmos com estas cidades, o pensamento se ramificava em diversas dire-
ções então, apresentamos análises gráficas, onde este pensamento múltiplo e
inevitável na leitura das cidades imaginárias é mostrado.
O fio condutor do trabalho é o constante exercício sobre o imaginário ur-
bano - apresentado sob a forma de cidades imaginárias - presente na história
do urbanismo desde a Antigüidade, tendo como elemento central as repre-
sentações gráficas destas cidades.
Nossa hipótese é a de que as cidades imaginárias vinham sendo criadas
por arquitetos e urbanistas no desenvolvimento da história do urbanismo como
crítica, desafio intelectual e como contribuição ao planejamento das cidades.
Este exercício crítico veio desaparecendo em prol de uma prática construtiva,
ou seja, a própria crítica desenhada do urbanismo esmorece por volta dos
anos 80 e vem ganhar força fora da disciplina, particularmente através das ci-
dades dos quadrinhos, que já vinham desde o séc. XVIII, desenvolvendo um
papel crítico importante ao apresentar comentários sobre política, sociedade e
a vida nas cidades.
As linhas de abordagem enfatizam a imagem, descrita e/ou desenhada
tendo o percurso histórico como linha de força. Percorremos as cidades imagi-
nárias seguindo uma linha cronológica base, mas esta se torna na verdade
uma linha que de certos pontos partem outras linhas, e a partir destas surgem
outras novas linhas e assim sucessivamente, como reações em cadeia. Associ-
amos ao percurso evolutivo da Arquitetura e Urbanismo e dos Quadrinhos a
ida e vinda de teorias, imagens e idéias que nos fazem andar não apenas na
chamada espiral história ascendente, mas andar por várias espirais e nos
transpor de uma para outra quando estas se tocam.
O enfoque principal está no entendimento de como este exercício crítico
de criação de cidades imaginárias traz grandes contribuições através das análi-
ses, da opção pela mudança, do inconformismo com o estático na condição
humana, das análises críticas que revolucionaram e podem vir a revolucionar
os caminhos do pensamento e do comportamento humano. A idéia principal do
trabalho é explicitar a interpenetração, relações influências de linguagens

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gráficas e concepções espaciais de arquitetos e urbanistas, artistas plásticos e


desenhistas de quadrinhos em suas cidades imaginárias.

Utopia
O termo e o conceito de utopia é múltiplo e ambíguo. Toda a problemática de
definição do termo está diretamente ligada com a etimologia da palavra uto-
pia. Utopia deriva do substantivo grego topos, que significa lugar; e existem
duas possibilidades a serem consideradas com relação ao prefixo. O “u” pode
ser considerado como prefixo grego negativo “ou”, que significa lugar nenhum;
como também pode ser considerado o emprego de outro prefixo grego “eu”,
que significa “boa qualidade”. Assim, utopia significa ao mesmo tempo, o “lu-
gar que é bom”, de certo modo “o lugar da felicidade”, e “o lugar que não
1
existe”, “o lugar que não tem lugar”, ou seja sem existência geográfica real.
2
Segundo Choay, utopia é o inverso especular de um referente “real” . As
utopias são reflexões, críticas sociais, políticas e espaciais. Segundo B. Baczko,
não há utopia sem uma representação totalizante e irruptiva da alteridade so-
cial. O grau dessa alteridade poderia, de alguma forma, servir de escala para
uma classificação das utopias. A utopia seria a representação global de uma
Cidade Nova em ruptura radical com a sociedade existente, que recusasse
3
toda continuidade e imaginasse um recomeço da história a partir do zero .

Considerando o objetivo do trabalho, a utopia que nos interessa é


aquela que se configura, como utopia crítica, como uma cidade imagi-
nária. As utopias que interessam na composição deste trabalho são as
caracterizadas como não-lugar - não por estar em lugar nenhum ou ser
um lugar qualquer, mas por antes criticar um lugar existente - e que
não tem a intenção de construção.

A utopia é um esquema da imaginação, e como tal, se já é produzida


como ficção, é como ficção que produz significados a partir de uma figuração
do imaginário. As utopias não são um projeto, e por isso não supõe qualquer
estratégia de realização. Sua eficácia está em sua eventual força crítica, na
sua capacidade de consumar, no conceito, o que expõe de forma ambígua,
plural, polivalente, na representação.
Produzidos desse modo, os conceitos ocupam os lugares deixados vazios –
neutros – entre a positividade do real e sua negação absoluta. A utopia não se
afirma objetiva, existente, diz apenas que não se encontra no espaço. De outro

1
PAQUOT, T. 1998, p.8
2
CHOAY, F. 1980, p.233
3
BACZKO, B. 1978, p.30

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modo, podemos dizer que sua espacialidade é múltipla, e é por isso que não ad-
mite sua sobreposição a qualquer suporte espacial restrito e pré-existente.

“O princípio da utopia consiste em circunscrever um lugar que não existe em


nenhuma outra parte: trata-se de delimitar um espaço no qual e com o qual
uma comunidade vai viver seguindo novas regras. Trata-se de fato, de uma
ruptura com o mundo circundante, de um desligamento espacial.”4

A utopia é um ato ou exercício de construir uma representação, de pro-


jetar na linguagem imagens de lugar algum. Como imagem, a descrição da
utopia é interminável e por mais que se tenha o que dizer, jamais se esgotará
o que ver através da construção destas cidades imaginárias. “Consideramos
utópicas todas as idéias situacionalmente transcendentes (não apenas proje-
ções de desejos) que, de alguma forma, possuam um efeito de transformação
sobre a ordem histórica-social existente.”5
A utopia é uma abordagem crítica de uma realidade presente e a espacia-
lização desta crítica. Esta elabora numa perspectiva não-prática, em termos
imaginários, um instrumento que serve para avaliar, criticar e até mesmo ins-
pirar a concepção dos espaços reais.

Considerando a representação gráfica questão vital para este trabalho e


que permeará todo o seu desenvolvimento, interpretamos os desenhos
de cidades imaginárias como desenhos utópicos, ou seja, o desenho
como manifesto crítico, o desenho como utopia.

O exercício crítico de criar cidades imaginárias sempre esteve presente na


história da Arquitetura e do Urbanismo, esses desenhos críticos de cidades
imaginárias são encarados como desafio intelectual e como contribuição ao
planejamento das cidades: consideramos estas cidades imaginárias como utopias.
Como disse Lebbeus Woods, “os arquitetos são criaturas gráficas e visu-
ais”6 e é através da representação gráfica, do desenho, da construção de ima-
gens que explicitamos a nossa inquietude e insatisfação ao existente, a nossa
crítica e também as nossas aspirações e esperanças criando novos espaços,
novas arquiteturas, novas utopias, novas cidades imaginárias. É através da re-
presentação gráfica que atingimos o observador, transformamos vagas idéias
em ambientes visionários que se tornam reais através de persuasivas e hipno-
tizantes representações. A imagem fala por si só e não fala pouco, é por isso
que este trabalho mostra-se tão cuidadoso com as imagens apresentadas e
com a forma de apresentação gráfica, já que a imagem é ponto central do estudo.

4
PAQUOT, T. Op.cit. p.91
5
MANNHEIM, K. 1960, p.229
6
WOODS, L. Entrevista disponível na INTERNET via www.columbia.edu. Arquivo consultado em junho de 2001.

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As cidades utópicas que surgem no decorrer da história vão formando um


repertório visual e imaginário que vai estar presente tanto no desenvolvimento de
novas cidades imaginárias, novas utopias, quanto na concepção das cidades
dos quadrinhos. É importante ressaltarmos a interessante circulação de idéias
e imagens que vai se desenvolvendo nos campos do urbanismo e da arquite-
tura e o alcance destes referenciais e influências no campo dos quadrinhos.

Os Quadrinhos, desde o seu surgimento, sempre apresentaram forte


caráter crítico e questionador, além do humor. O desenho, a repre-
sentação gráfica é mais forte que a palavra - assim como acontece na
Arquitetura – este é um ponto fundamental para a compreensão deste
trabalho. Percebemos um intercâmbio de imagens e idéias entre os
campos dos Quadrinhos e da Arquitetura e do Urbanismo que são ex-
plicitados através das analises gráficas.

Aproximação e chegada do século XX


A Colonização do Novo Mundo e as transformações sociais e tecnológicas se
sobrepõem às utopias. Passamos por um grande vazio na tradição utópica
entre os séculos XVII e XIX. Um novo tipo de atividade vem a se tornar centro
de interesse, a exploração e descoberta de novas terras não instigavam mais a
imaginação dos homens, um novo mundo surgia com o aparecimento de cen-
tenas de invenções durante o final do século XVIII e início do século XIX, um
mundo no qual a energia derivava não mais do homem e sim da queima de
carvão e da força da água.
Com o processo de industrialização impulsionado por inventos como o
sistema de irrigação de Arkwright, a máquina de fiar de Hargreaves e a má-
quina de vapor de Watt a Revolução Industrial estava acontecendo e afetando
toda a estrutura social e econômica. Neste novo mundo industrializado, afeta-
do pelas transformações sociais e políticas, ressurge a utopia.
Durante o século XIX, na Europa principalmente, as cidades se transfor-
maram rapidamente, adaptando-se ao intenso fluxo de pessoas vindas dos
campos. Todas as grandes capitais tiveram sua imagem transformada, prepa-
rando-se para as transformações da vida moderna. As utopias acompanham
neste período as esperanças, os temores e as transformações não só sociais,
políticas e urbanísticas, mas principalmente os avanços tecnológicos.

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A crítica é a característica mais latente nas utopias e como diz Servier:


”os autores das utopias não guardam nenhuma ilusão de ver sua obra
posta em prática tendo plena consciência da impossibilidade de sua ma-
terialização”.1 O choque intencional provocado pelos autores das utopias
ao confrontar mundos perfeitos, com homens perfeitos em cidades per-
feitas às cidades vistas por eles como degradadas, às sociedades corrom-
pidas e ao mundo que vem sendo destruído pelo imperfeito homem, bus-
ca levar o homem à reflexão através destas críticas, muitas vezes
encobertas e disfarçadas.

No final do século XIX, todas estas cidades utópicas e iniciativas continu-


am em circulação: mas seus efeitos sobre a sociedade porém, segundo Mun-
ford, são praticamente inexistentes7. À medida que a civilização se alarga, a
tecnologia aperfeiçoa-se, as cidades crescem rapidamente transformando-se
em megalópoles e o avanço da ciência parece ameaçador com suas descober-
tas, aumentam as críticas à civilização e multiplicam-se os sonhos e os temo-
res com relação ao futuro. A invenção do automóvel e a sua produção em es-
cala industrial transformaram o pensamento urbano no século XX,
transformando as cidades e interferindo diretamente em seu planejamento e
concepção, principalmente por permitir uma descentralização acessível e uma
maior extensão de ocupação do território.

A imagem, a representação gráfica dentro da representação utópica é


vital. A construção da imagem utópica vai além das palavras, faz com
que através da observação percebamos a crítica, a espetacular criação
e composição daquele novo mundo. É entre elementos visuais, é por
entre a imagem que podemos viajar ultrapassando todos os outros
sentidos, liberando sem restrições a imaginação.

A influência do ambiente técnico do fim do século XIX e início do século


XX é refletida em diversas concepções de cidades imaginárias da ficção, dos
quadrinhos e do urbanismo como o projeto da Cidade Industrial de Tony Gar-
nier, apresentado pela primeira vez em 1904. O projeto era a projeção de
uma cidade organizada e desenvolvida em função da indústria, visão de seu
autor para as cidades do futuro.
Também apoiada pelo crescimento e desenvolvimento técnico é criada a
teoria da “rua em níveis múltiplos” utilizada por diversos arquitetos, cineastas

7
MUNFORD, L. 1966, p.394

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e artistas de quadrinhos, elaborada pelo arquiteto francês Eugène Henàrd e


publicada no ano de 1910. Esta teoria vai muito mais longe propondo como
solução ao problema de circulação: a construção de toda a cidade sobre um
plano artificial – inaugurando a idéia de uma urbanização sobre uma laje, dis-
tribuindo em cada nível sobreposto o fluxo de trens, de metrô, de pedestres e
bicicletas, etc8.

A Cidade Contemporânea de Le Corbusier, assim como as cidades apre-


sentadas por diversos quadrinhos como os de Moebius, Schuitten e Pee-
ters, Enki Bilal, Druillet, Motter e Lark, Jodorowsky, e nos filmes de Fritz
Lang (Metropolis), Ridley Scott (Blade Runner), George Lucas (Guerra
nas Estrelas I – A Ameaça Fantasma) e Luc-Besson (O Quinto Elemen-
to), exploram o multi-nivelamento, como Perret, Henàrd, Wells, e os fu-
turistas. A sedução pela velocidade e pela tecnologia toma conta do de-
senho e provoca a concepção de estruturas inimagináveis, tão
minuciosamente integradas que parecem formar uma espécie complexa
de caleidoscópio constituído por veículos, pessoas e estruturas que se
entrelaçam e se cruzam numa ordenação fantástica.

Os projetos apresentados neste período não se situam nem no passado,


nem no presente, nem no futuro, mas entre eles... Entre o real e o imaginário,
o figurativo e o abstrato, o movimento e o repouso, os projetos apresentavam
cidades sugestivas ao observador, aglutinando diferentes estilos, não permi-
tindo a definição de tempo e lugar, transformando espaços em cenários de di-
versas imagens. Assim como alguns quadrinhos que apresentam cidades onde
são “costurados” diversos estilos, embaralhando toda e qualquer referência
temporal, com transportes futurísticos e antigos, cidades com traçados questi-
onadores às cidades existentes, cidades imaginárias inventadas da realidade
apresentando qualidades mágicas e ilusórias baseadas nas infinitas possibili-
dades do desenho e de vida social, humana e urbana. São cidades imaginárias
que surgem em campos diferentes mas que apresentam inspirações comparti-
lhadas e imagens complementares.

A imagem nos oferece o devaneio e o desvelamento daquele espaço, perce-


bendo os estratagemas e o infindo mundo contido naquela imagem, des-
pertando elucrubações e incentivando a análise, a comparação e a discussão
das inúmeras informações apresentadas. “A imaginação não é, como sugere
a etimologia, a faculdade de formar imagens da realidade; ela é a faculdade
de formar imagens que ultrapassam a realidade, que cantam a realidade. É
uma faculdade de sobre-humanidade.” 1

8
Estas soluções são igualmente estudadas na mesma época nas cidades americanas.

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Os arquitetos futuristas preocupavam-se com a cidade do futuro, já os


arquitetos modernos, preocupam-se com materialização imediata do futuro,
com a construção da cidade do futuro no presente. A preocupação com a ma-
terialização, com a construção imediata, faz desaparecer o exercício de con-
cepção e desenho de cidades imaginárias, é dada então, uma extrema atenção
ao aqui e agora, ao presente.
Impulsionados por descobertas de novas terras, novas tecnologias, por
avanços tecnológicos e científicos, pelo comportamento da sociedade, por re-
voluções e rupturas, por novas técnicas e novas tendências artísticas, pela su-
peração e pela desgraça humana, pelo inconformismo ou conformismo com o
estado das coisas, por todo e qualquer fato relacionado ao homem, arquitetos
e urbanistas e artistas dos quadrinhos criavam e recriavam cidades imaginárias
que de alguma maneira explicitavam toda a problemática da época. Eles esta-
vam respondendo aos mesmos fatos, às mesmas crises e sendo ambos “criaturas
gráficas”, as respostas vinham como imagem, como cidades imaginárias.

A característica comum latente entre as cidades imaginárias dos qua-


drinhos e da arquitetura e urbanismo é a utilização da imagem como
crítica. A construção da imagem nos dois campos são de extrema im-
portância, sendo a representação gráfica, o meio de expressão e comunica-
ção, fato que evidencia a estreitamento das relações entre os campos.

As imagens apresentadas neste trabalho evidenciam a circulação de


idéias, as influências comuns e a interpretação e reação dos profissio-
nais de quadrinhos e da arquitetura e urbanismo em relação aos fatos
e acontecimentos, não só dentro de seus campos, mas em toda a
história da humanidade.

Somos espectadores das cidades imaginárias, que identificamos, analisamos,


nos relacionamos e quem sabe nos tornamos também autores a partir do mo-
mento que decidirmos não só pensar, não só imaginar, mas também agir.

Anos 60-vanguardas e grupo Archigram


Marcados pela critica radical dos meios, da moda, das instituições, os anos 60
são permeados, dentro de um contexto da cultura de consumo iconoclasta, por
movimentos Pop que surgem cada vez com mais freqüência e mais força. Sur-
gem grupos de vanguarda e projetos críticos de projeções irrealizáveis e táti-
cas subversivas: a tecnolatria de Archigram, as propostas revolucionárias dos
Situacionistas, as megaestruturas dos metabolistas japoneses, o humor e lin-
guagem pop de Archizoom, as impactantes intervenções do Superstudio e etc.
Encontramos concepções de cidades imaginárias através da modificação
do espaço, da velocidade e da mobilidade. Surge uma infinidade de cidades

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cibernéticas, cinéticas, flutuantes, subterrâneas, lineares, flexíveis, que se su-


cedem durante os anos 60 numa resposta direta ao formalismo racional das
cidades apresentadas pelo Movimento Moderno.
A poética das grandes dimensões resurgida nos anos 50 e 60 apresenta
projetos de macroestruturas que coincide exatamente com a reconstrução pós-
guerra na Europa, o início da grande produção em massa e vinculada com o
desenvolvimento da atividade terciária que fez crescer rapidamente as metró-
poles modernas, como fruto da cultura de massas. Questionando a ideologia
do Movimento Moderno e muitas das ideologias políticas, surgem projetos ar-
quitetônicos e urbanísticos como mass-medium.
Voltando à questão das megaestruturas, um dos seus precursores é Bu-
ckminster Füller. Buckminster Füller é um inventor visionário, designer, pes-
quisador e cientista. Ele considerava como formalistas todas as investigações
dos racionalistas dos nos 20, já que no mesmo período, Füller se esforçava por
traduzir fielmente a edificação resultante dos processos de produção industrial sem
preocupar-se com a estética; ele estrutura uma filosofia que envolve distintos fenô-
menos e disciplinas do mundo contemporâneo, apresentando conceitos inéditos so-
bre o homem, sua evolução e a relação do desenhista urbano como modifica-
dor do meio. Para ele, “o arquiteto não se completa no simples fato de
construir e sim quando se torna responsável pelo organismo metabólico extra-
corporal do homem, sendo o desenho capaz de transformar a ecologia humana”9.
Preocupados com as questões de mobilidade e circulação, os metabolistas
elaboram propostas com vias de automóveis, monotrilhos e trens bala fazendo
parte do sistema de circulação formado por estas malhas altamente especiali-
zadas que se intermeiam com construções em diversos níveis. Vemos aqui a
relação com a circulação em níveis já mencionada introduzida por Henàrd e re-
adotada pelos futuristas, Le Corbusier, Team X, nas HQs por Dean Motter, Jodo-
rowsky, Moebius e no cinema por Fritz Lang, Ridley Scott e George Lucas.

O movimento aéreo e terrestre é outra característica que aproxima os dois


campos. Tanto os autores das HQ’s como arquitetos e urbanistas como o gru-
po Archigram, que em todas as suas cidades apresenta balões e zepelins,
como Le Corbusier e sua imensa plataforma de aterrissagem no centro da Ci-
dade Contemporânea, Fritz Lang em Metrópolis, Ridley Scott e seus congestio-
namentos aéreos de Blade Runner, George Lucas e seu ordenamento aéreo e
suas plataformas de pouso no topo das edificações em Guerra nas Estrelas I,
IV e V, no caótico tráfego de Luc-Besson em o Quinto Elemento, os aero-táxis
(homônimo aos de Le Corbusier) de Enki Bilal em A Mulher Enigma, as espeta-
culares aeronaves que decolam e aterrissam trazendo pessoas para o planeta
Delirius de Phillipe Druillet, os nostálgicos zepelins e balões de Schuitten e Pe-
eters nas Cidades Obscuras e etc.

9
FÜLLER, B. Apud BANHAM, R. 1979, p.510

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O grupo Archigram explorava a poética das grandes dimensões, utilizava


características da cultura arquitetônica urbanística britânica e inspirava-se de
uma forma humorada na maquinolatria contemporânea. As grandes dimensões
também foram utilizadas por grupos como os Metabolistas e o grupo Supers-
tudio e estas também são muito exploradas pelos quadrinhos nas suas cida-
des, como por exemplo, em Visões de 2020 de Jamie Delano.
Assim como Lichtenstein, Archigram utilizava a reprodução quadros de
histórias em quadrinhos substituindo as frases dos balões com a intenção de
criticar e transmitir de maneira rápida a mensagem que eles objetivavam,
através da mesma linguagem de reprodução da Pop Art.
Os projetos em si têm características lúdicas e irônicas, eles estavam
sempre em “busca de uma idéia, de uma nova linguagem, de algo que possa
alinhar-se ao lado das cápsulas espaciais, dos ordenadores eletrônicos e das
embalagens sem retorno da era eletro-atômica”10.
Archigram combinava complexidade visual e dedicação ao uso e prazer.
As colagens, que tornaram-se um meio de comunicação incrivelmente popular
entre artistas e designers, implicavam em uma autodidática e numa posição
polissêmica, nas quais as novas configurações criadas faziam inteiro sentido.
Alguns dos projetos do Archigram referem-se ao futurismo. A duração
prevista de estruturas propostas relaciona-se diretamente com o efêmero e o
consumo próprio do Manifesto de Marinetti e Sant’Elia e também com a produ-
ção industrial moderna de bens de consumo. Todo o conceito de movimento
do Futurismo é levado ao “pé-da-letra” e não no sentido da transformabilidade
e intercambialidade de células residenciais ou dos elementos arquitetônicos no
interior da macro-estrutura (como fazem outros autores).
Archigram juntou o urbanismo unitário dos Situacionistas ao urbanismo
indeterminado de Yona Friedman, que colocava o indivíduo como centro do
processo de concepção e de evolução da cidade sua noção de acontecimento.
Suas obras figuravam como verdadeiros happenings.
O grupo desenvolveu radicais e chocantes alternativas para todas as for-
mas arquetípicas de arquitetura, inspirados pelas viagens espaciais, pelos no-
vos desenvolvimentos em ciência e tecnologia, pelos Beatles, pela cultura pop,
pelo pouso na lua, pela ficção científica, pela utilização de novos materiais.
Criaram estruturas orgânicas, flexíveis, nômades, utlizando alta tecnologia, as-
sim como fizeram Buckminster Füller, Bruno Taut e mais tarde, na década de
80, Frank Miller apresenta uma espetacular interpretação de uma estrutura
bio-tecnológica em seu quadrinho Ronin.
Utilizando-se de técnicas exploradas pelo Archigram como a fotomonta-
gem, os conjuntos de pranchas apresentados simulam uma hiper realidade,
um grande monumento (influência de Archizoom e Superstudio) implantado
sobre a cidade existente compõe um cenário contraditório.

10
SOLA-MORALES, Op.cit.

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Após os anos 60...


A busca dos quadrinhos por uma expressão diferenciada, indo contra uma uni-
dade formal, enriquece cada vez mais a visão das cidades que ganham inter-
pretações particulares merecedoras de atenção. Assim como o arquiteto, o de-
senhista de quadrinhos desenvolve uma capacidade de apreensão e criação do
espaço que só vem beneficiar e enriquecer as propostas de novos espaços,
sejam eles reais ou imaginários.
A linguagem gráfica apresentada pelo arquiteto Lebbeus Woods é muito
semelhante à linguagem dos quadrinhos, principalmente a linguagem dos qua-
drinhos europeus. Seus projetos são ilustrados com visões magníficas e mag-
netizantes, tão etéreas, tão reais e tão atemporais que tornam fácil a imersão
numa dimensão espaço-tempo criada por ele.
Lebbeus Woods trabalha em todos os seus projetos a relação entre cul-
tura e política. Seus projetos não são só arquitetônicos, mas políticos, por re-
chaçar as formas sociais existentes e por propor outras novas. Em seus pro-
jetos a arquitetura é um instrumento de tato, buscando sempre os extremos
da plástica e a variação, estabelecendo um diálogo social, pessoal e político
entre arquitetura e tecnologia, assim como preconizou Buckminster Füller e
seguiram Yona Friedman, Archizoom, Superstudio, Archigram entre outros.
Para ele, passado e futuro são abstrações remotas comparadas com o
imediato do presente e os conceitos de passado e futuro só são válidos na me-
dida em que se convertem ou permanecem no presente. Lebbeus Woods res-
ponde a isto através de uma arquitetura de formas infinitamente variadas,
com um vocabulário só utilizado uma vez, uma arquitetura em contínua e
permanente luta contra tudo.
As cidades dos quadrinhos, assim como a arquitetura de Woods, criticam
abertamente a sociedade e as cidades de hoje, apresentando espaços onde
são exacerbados e agravados os problemas sociais, políticos e físicos ou então
contrapondo o caos das cidades a lugares calmos e plácidos, quase etéreos
com cidades perfeitas e sociedades perfeitas.
Para um melhor esclarecimento sobre a cronologia, a imagem da cidade
começa a ganhar força dentro dos quadrinhos gradativamente e a partir da
década de 70 dá-se uma proliferação de histórias em ambientes urbanos ter-
restres ou interplanetários cheios de crítica ao existente. Grandes nomes dos
quadrinhos europeus e americanos como Moebius, Enki Bilal, Schuitten e Pee-
ters, Frank Miller e Alan Moore presenteiam-nos com quadrinhos de narrativas
complexas e surpreendentes e desenhos mostrando cidades minuciosamente
compostas e cuidadosamente trabalhadas que transbordam em críticas e fi-
guram como cidades utópicas cheias de referências arquitetônico-urbanísticas
e históricas.
Estas cidades imaginárias decadentes dos quadrinhos vestem o inconsci-
ente, transformam-se, desfiguram-se, plasmam o invisível, o indizível e tra-
zem para o ambiente imaginado a fantasia experimentada, uma geração infi-
nita de imagens não-vistas, imaginadas, criadas, complexas e extremamente

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críticas e obscuras. Metropolis de Fritz Lang, a Nova Yorque de Blade Runner,


a Metrópole do Futuro de Hugh Ferris, a Cidade Genérica de Rem Koolhaas,
todas transparecem como cidades decadentes.

Quadrinhos e Urbanismo
Nas análises gráficas em anexo, mostramos as configurações, os ambientes,
as imagens criadas através de diferentes olhares e diferentes projeções das ci-
dades nos quadrinhos. Através de constante pesquisa e levantamento de ima-
gens, foram selecionadas algumas destas cidades e no anexo que vem logo
em seguida, elaboramos uma série de análises gráficas destas cidades.
A partir da análise de cada imagem, um “universo desconhecido” foi sen-
do revelado. Cada detalhe, cada forma, cada fragmento trazia inúmeras refe-
rências e vestígios de épocas distintas, compondo um espaço repleto de força,
arte, simbolismo e memória, uma inexplicável sensação de dejá vu, percorreu
todo o processo de leitura das cidades.
Planejamento e criação de espaços, cidades e paisagens por não urba-
nistas, ambientes tão densos e complexos que despertam em nós, arquitetos,
urbanistas e planejadores a sensação de vazio pela diminuição, senão desa-
parecimento, do maravilhoso e instigante exercício de elaboração e criação de
cidades utópicas e imaginárias como reflexão sobre o presente de nossas cidades.

Bibliografía
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X Encontro Nacional da Anpur | 13

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