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Belo Horizonte
2010
Vivian Patricia Peron Vieira
Belo Horizonte
2010
Aos meus queridos Madeleine, Aécio e Vanessa,
com o amor que construímos juntos.
AGRADECIMENTOS
À querida Simone Maria Rocha por sua orientação decisiva para que esse trabalho se
concretizasse, ensinando-me novos caminhos acadêmicos com tanta competência e
dedicação exemplares. A delicadeza e a seriedade de Simone acompanharam cada etapa
deste mestrado, refletindo não apenas nesta pesquisa, pois sempre as trarei comigo, com
carinho e admiração.
À profa. Bete Sanches Rocha, do curso de Relações Internacionais da UNESP, por nos
apresentar Bakhtin, a importância do diálogo e todo o poder da cultura e da linguagem.
A Daniela Matos e Sivaldo Pereira, pela forma tão atenciosa e generosa que
contribuíram com importantes leituras, críticas e sugestões durante a construção e
finalização desta dissertação.
À turma do mestrado 2008, aos novos amigos belorizontinos e a toda boa mineiridade,
que sempre me fez sentir bem-vinda. A Lucilene, Isabela, Bento, Alice, Aquilino,
Daniela, Yasmine, Oswaldo, Ana, Diógenes, Rafael, Érica, Juliana e Silvia. A Iara
Duque, Jefferson e Carminha, que me surpreenderam com bonitas atitudes. A Thomas
Burtscher por ouvir as minhas idéias quando dissertar era uma possibilidade.
Aos queridos boludos – Fabrício Carrijo, Leandro Scavacini, Paula Facci, Luana
Gouveia – por compartilharem de maneira tão especial essa jornada que começou bem
antes, lá na “Escola de Franca”, com nossos ideais transformados em modos de vida.
Vê-los praticar aquilo que construímos juntos me dá mais vontade de continuar. Eles
são feitos de poesia e esperança: “Caminho por uma rua/ que passa em muitos países/ se
não me vêem, eu vejo/ e saúdo velhos amigos” (Drummond)
A Sivaldo Pereira por trazer mais sol e clarear os meus dias escritos... “Felicidade se
acha é em horinhas de descuido” (Guimarães Rosa).
À minha maravilhosa família – Vanessa, Aécio, Madeleine – que estiveram com todo
amor sempre presentes, incondicionalmente... e isto me bastava.
Devo dizer, com toda a honestidade e franqueza,
que o Haiti é um pouco daquilo que o Sócrates
dizia: quanto mais sei, mais sei que não sei. O Haiti
é tão complexo que, cada vez que nos aproximamos
mais do quadro haitiano, vemos mais complexidades
adicionais. Mas isso não deve ser um desestímulo,
mas sim, ao contrário, um estímulo para atuarmos
positivamente.
Tabela 1: Textos/discursos separados a partir das três fases delineadas na missão ......................99
Tabela 2: Mapa de codificação das notícias do jornal Folha de S. Paulo .....................................111
Tabela 3: Mapa de codificação dos documentos oficiais ..............................................................111
Tabela 4: incidência de categorias nos textos jornalísticos ...........................................................166
Tabela 5: incidência de categorias nos proferimentos ..................................................................168
Tabela 6: textos jornalísticos e proferimentos segundo as categorias ...........................................169
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO ..................................................................................................................... 10
INTRODUÇÃO
1
Os níveis de pobreza diminuíram substancialmente no Brasil nos últimos anos. Dados da FGV
(Fundação Getúlio Vargas) demonstram que “A proporção de pessoas abaixo da linha de miséria passou
de 27,26% em 2003 para 25,08% em 2004. Em 1992, a proporção de miseráveis era de 35,87%. Apesar
da melhora, uma a cada quatro pessoas no país viviam com uma renda inferior a R$ 115 por mês no ano
passado.” (ver em <http://www1.folha.uol.com.br/folha/dinheiro/ult91u102805.shtml>). Essas mudanças
ocorreram no bojo de uma série de políticas públicas federais como, por exemplo, o “Fome Zero” (ver em
<http://www.fomezero.gov.br/programas-e-acoes>) e mais recentemente o PAC - Programa de Aceleração
do Crescimento (ver em <http://www.brasil.gov.br/pac/>).
11
argumentada por diversos motivos, o que incita a investigar qual o lugar da cultura nesta
missão de paz. Diante do fato de que a cultura é hoje considerada elemento central na
fundamentação da vida social, conforme será apresentado e sustentado no decorrer da
dissertação, investiga-se em que medida um evento, um processo político, comporta,
articula e se relaciona com essa dimensão. Isto reivindica uma nova compreensão das
relações entre política e cultura, remodelando a abordagem sobre a referida missão de
paz e demonstrando a importância da esfera cultural num processo de intervenção
político-militar como esse.
Assim, partindo do caráter singular do Brasil em participação tão ativa em
missões de paz desse gênero, observa-se que as questões culturais emergem ora como
protagonistas, ora como pano de fundo de tal atuação político-militar. Acerca disso,
problematiza-se sobre o papel da dimensão cultural referente a MINUSTAH e como ele
é apresentado no discurso do jornal Folha de S. Paulo e nos proferimentos oficiais
governamentais brasileiros sobre a missão. Possibilitando, a partir disso, que sejam
analisados diversos enquadramentos da cultura.
Nesta pesquisa estes enquadramentos são balizados pela contribuição teórica dos
Estudos Culturais, considerando a compreensão de como a cultura permeia todas as
arenas e relações de maneira intrínseca, presente em toda prática social e, portanto,
inerente ao ato comunicativo. Segundo esta perspectiva, o cenário contemporâneo de
formação e discussão das arenas que envolvem a dimensão da cultura com o campo
político tem vivido uma ampliação considerável no que diz respeito aos temas que aí
adquirem relevância. Vários autores – Hall (2008), Williams (1969), Yúdice (2004),
Denning (2005), Canclini (1999), Martin-Barbero (2001) etc. – têm apontado para esse
fenômeno de ampliação da dimensão da cultura para um novo e destacado lugar,
direcionando inclusive suas reflexões para o que eles consideram ser uma relação
constituinte, onde a cultura rearticula e é acionada por outros campos, como a política e
a economia, e não se apresenta, conseqüentemente, como um fator exógeno a eles.
Entrelaçando-se com este debate e compondo o cerne dessa dissertação, parte-se
especificamente do conceito trazido e desenvolvido por Yúdice (2004) a respeito da
conveniência da cultura, a qual é avaliada como um recurso a ser gerenciado, seja para
desenvolvimento econômico, para a cidadania, para a amenização de conflitos políticos
etc. Ele observou que as agências nacionais e internacionais de fomento da cultura e da
13
arte não mais associavam a cultura à elite, mas como um bem comum a todos,
atrelando-a ao desenvolvimento urbano e econômico.
Assim, um órgão tal como a UNESCO – Organização das Nações Unidas para a
Educação, a Ciência e a Cultura – por causa de seu potencial em conceder
financiamentos é também responsável por criar o discurso sobre “para quê” a cultura
deve servir e como ela deve ser incentivada e subsidiada. Porém, ao contrário de ser a
cultura reduzida ao seu caráter instrumental, trata-se de um avanço sobre a sua simples
representação simbólica. Pois, a cultura deve estar vinculada a todas as outras áreas e
setores da vida social, da vida prática e ordinária (YÚDICE, 2008). Então ao dizer que a
cultura não pode ser negligenciada em temas de desenvolvimento urbano e econômico
significa entender que ela converte o discurso puramente retórico em algo efetivo e de
ordem prática, provocando mudanças substanciais, ou seja, é trazida e invocada
enquanto um recurso a ser gerenciado.
Yúdice (2008) acredita que a cultura é uma arena de dimensão universal quando
se torna um valor para compreender a totalidade da sociedade em relação às suas
diferenças, mas não em torno de um valor único. Assim, ele aborda que o aclamado
discurso da diversidade cultural deve incluir no debate uma multiplicidade de
experiências ao contrário de trazer apenas questões étnicas ou lutas de identidade,
promovendo para isso os atores sociais e criando condições de inserção destes no
desenvolvimento como um todo. Logo, a diversidade cultural deve ser pensada num
contexto mais amplo que englobe desenvolvimento político e econômico, coadunando
com a sua tese da cultura como um recurso. Notadamente, o autor não apresenta um
conceito definido de cultura, e reconhecemos a própria dificuldade geral encontrada por
outros autores ou estudos para a definição, delimitação e conceituação do termo.
Considerando isto, o sentido de cultura para esta dissertação está diretamente atrelado à
discussão que ocorre dentro dos Estudos Culturais e a qual é referenciada, sobretudo no
capítulo 2. Pois, analisando-se os textos jornalísticos e os proferimentos sobre a
MINUSTAH observa-se que o emprego da cultura ainda está fortemente ligado a
determinadas concepções, as quais permeiam o imaginário do que é cultura, a exemplo
de que ela estaria arraigada nos objetos, nos costumes, nas tradições e também nas
relações simbólicas. E, partindo disso pretende-se investigar quanto e como ela é
invocada, seja para justificar ou amenizar a ação da MINUSTAH.
14
3
Aula Magna do Ministro das Relações Exteriores, Embaixador Celso Amorim, aos Alunos do Instituto
Rio Branco. Brasília, 04 ago. 2006. Disponível em:
<http://www.mre.gov.br/espanhol/politica_externa/discursos/discurso_detalhe3.asp?ID_DISCURSO=292
7>. Acesso em: 28 mar. 2008.
4
SANDER, Letícia. Lula anuncia obras de infra-estrutura e diz que não quer "tutelar" o Haiti. Folha de S.
Paulo, São Paulo, 29 maio 2008. Caderno Brasil.
16
5
Citação sem página, pois o texto está disponível em versão virtual.
18
da segunda Guerra Mundial, a situação de paz foi dada como central, realocando o lugar
antes instável e previsto da guerra iminente. Ainda considerando esta ampliação do
campo onde o objeto desta pesquisa se desenvolve, percebeu-se necessária uma
interlocução com teóricos das Relações Internacionais e de Estudos de Segurança e Paz
devido à permeabilidade e porosidade com que este objeto atravessa tais áreas de
estudo. Para arrematar este capítulo, a própria MINUSTAH é descrita segundo os
acontecimentos históricos e políticos e a relação com o comando brasileiro, colocando
em relevo os principais fatores que suscitaram o problema central de identificar o lugar
da cultura na MINUSTAH. Deste modo, prepara-se o terreno para a discussão teórica
do capítulo subseqüente.
O segundo capítulo é marcado por um adensamento teórico basilar para esta
pesquisa, pois se discute a tese da centralidade da cultura segundo perspectiva dos
Estudos Culturais acrescido da importante tese de Yúdice (2004) sobre a cultura como
recurso. Procura-se ampliar a discussão para evidenciar o modo como as políticas
culturais, de identidade e diversidade fazem parte do processo político o qual é
pesquisado.
No terceiro capítulo o substrato da análise é mais bem desenvolvido. Na
composição do material empírico apuram-se notícias do jornal Folha de S. Paulo
relacionadas a MINUSTAH durante o período de maio de 2004 a julho de 2008, bem
como com os discursos de políticos brasileiros disponibilizados pelo site oficial do
Ministério das Relações Exteriores 6 nesse mesmo período. Este corpus é refinado a
partir da análise de conteúdo conjugada com a teoria do enquadramento, conformando
uma articulação teórico-metodológica considerada adequada ao objeto e problema
levantado. Além disso, delimitou-se a MINUSTAH em três fases: 1. Chegada dos
capacetes azuis da ONU no Haiti e estabilização; 2. Preparo para a eleição democrática
no país; 3. Situação pós-eleição e desenvolvimento de outras dimensões da missão –
projetos infra-estruturais, desenvolvimento do país e ajudas frente aos desastres
naturais. Sendo assim, as notícias e os proferimentos, a fim de serem comparados para o
destaque do lugar da cultura, terão sobre os seus respectivos discursos igual tratamento
de análise. O discurso do jornal prevê uma interação diferida e difusa – devido ao
distanciamento temporal entre produção e recepção –, mas igualmente recíproca, conexa
e porosa com a vida social (BRAGA, 2006). Por isso a articulação entre os discursos e o
6
Disponível em: <http://www.mre.gov.br/portugues/politica_externa/discursos/procura3.asp>. Acesso em
10 mar. 2009.
19
7
A Carta foi assinada no dia 26 de junho de 1945 em São Francisco, nos Estados Unidos, ao final da
Conferência das Nações Unidas.
21
8
A Liga das Nações, ou sociedade das nações, é considerada antecessora da ONU. Foi idealizada pelos
vencedores da I Guerra Mundial, em Versalhes, no ano de 1919. Com o Tratado de Versalhes, entrou em
vigor em 1920, na intenção de assegurar a paz entre os países. Porém, com a II Guerra Mundial, a Liga
demonstrou pouco êxito em seu intuito, e, já praticamente extinta, logo cedeu lugar a ONU, dado que seu
fim formal foi em 18 de abril de 1946.
9
Desde a chamada “redescoberta da sociedade civil”, a partir da década de 1970, a correlação de forças
no cenário político – nacional e transnacional – foi reconfigurada. Isto se deve, em grande parte, à
articulação de organizações cívicas convergindo interesses e direcionando a atuação no espaço público.
Remodelando este espaço, numa relação de constante tensão e interdependência, estão a sociedade civil e
o Estado. Importante, nesse caso, vincular que “a noção de ‘movimentos sociais’ tem uma dupla
dimensão: ela é tanto uma forma de ação como um tipo de ator social.” (MENDONÇA, 2007, p. 2).
Assim, num caráter reflexivo entre o agente e a ação, os movimentos sociais se constroem enquanto
atores, ao mesmo tempo em que engajam por diversas lutas e transformações, sejam de ordem política,
econômica ou cultural.
10
Sítio oficial das Nações Unidas no Brasil. Disponível em: <http://www.onu-brasil.org.br/>. Acesso em
15 mar. 2009.
22
regime cumprem este papel prático, ainda que elas não estejam explicitamente
referenciadas na Carta das Nações Unidas (GARCIA, 2004; BRIGAGÃO, 2004).
Entende-se como única exceção para o uso da força por parte dos Estados,
prevista na Carta da ONU (2009), no caso de legítima defesa individual ou coletiva e no
emprego coletivo de força para manter ou restabelecer a paz e a segurança
internacionais. O Conselho de Segurança (CS) 11 da ONU é competente para
“determinar a existência de qualquer ameaça à paz, ruptura da paz ou ato de agressão”
(GARCIA, 2004, p.70), dado que o uso da força é apenas pautado e cogitado quando
revestido de caráter de sanção, isto é, quando houver infração do direito internacional
ou quando estiver sob o argumento de instauração da paz numa determinada zona de
conflito. Ambos são casos que devem ser bem analisados numa intensa deliberação 12
entre os membros do Conselho, porém, em certos casos, os países diretamente afetados
são convidados também a participar da decisão do Conselho.
Nesse último caso de restabelecimento da paz, a Carta da ONU (2009) não a
trata explicitamente, mas abre a prerrogativa para um espaço costumeiramente
intitulado de “Capítulo VI e meio”, o qual abarca as chamadas operações de
manutenção da paz, pois “se situaria entre a adoção de medidas direcionadas à solução
pacífica de controvérsias (Capítulo VI) e a utilização de medidas coercitivas (Capítulo
VII)” (GARCIA, 2004, p. 71). Sendo assim, o capítulo VI comporta as ações
consentidas, enquanto o VII as ações impositivas, o que torna compreensível uma
missão de paz se situar no entrelaçamento dos dois.
Conforme é visto, a imposição da paz é regulamentada na Carta das Nações
Unidas, mormente no capítulo VII, prescrevendo o respeito aos Direitos Humanos, a
proteção da população civil, o restabelecimento do governo da área ocupada pela
sociedade autóctone e, por fim, que a ação das forças de ocupação seja estritamente nos
termos do mandato de que foram investidas. Entretanto, a questão do uso da força por
11
O Conselho de Segurança é formado por cinco membros permanentes: China, Rússia, Estados Unidos,
Alemanha e França. Costuma-se dizer que cada membro do Conselho tem poder de veto, entretanto, o
texto da Carta não fala diretamente em veto, mas em voto afirmativo de nove membros, incluindo os
cinco membros permanentes. Subentende-se o veto no caso de um voto negativo por um de seus
membros.
12
A concepção de deliberação é cara a diversos autores da área de Comunicação e Política, como
Habermas (1997), que a entende como uma discussão entre indivíduos iguais através de trocas
argumentativas e uso das razões moralmente motivadas, numa busca cooperativa de solução para
problemas políticos e da ordem da esfera pública. Entretanto, por não ser objetivo deste trabalho tratar
deste tema, a palavra deliberação adquire um sentido mais amplo e menos conceitual, isto é, de discussão
e debate.
23
parte das missões de paz é impossível de ser delimitada e regulada, uma vez que não se
pode definir quando a força é potencialmente impositiva ou não, isto é, torna-se difícil
prever quando é necessário o uso mais efetivo do poderio militar (GARCIA, 2004;
PROENÇA JR, 2006).
É preciso entender este espaço criado dentro da ONU para a imposição da paz
frente a conflitos ou instabilidades do globo, imposição esta caracterizada através de
controle de meios militares multinacionais, partindo não apenas das críticas feitas no
que tange a atuação e pouca efetividade da ONU, mas também considerando sua
evolução enquanto um organismo vivo nas relações internacionais. Inserindo a ONU,
desse modo, em um fenômeno reflexivo de um contexto histórico mais amplo. Decorre-
se que na nova agenda internacional o poder é exercido, justificado e compartilhado
entre não somente os Estados soberanos, mas incluindo também outras instituições.
Assim, a partir dos anos 90 tanto a Assembléia Geral da ONU quanto o Conselho de
Segurança passaram da simples retórica para uma atuação mais ativa na cena
internacional, haja vista as pressões exercidas por diversos âmbitos, alguns mais
institucionalizados do que outros, porém todos conscientes de sua própria legitimidade e
direitos no novo cenário (CRUZ JR, 2004).
As críticas mais contundentes no que tange a ausência de legitimidade, a pouca
eficiência e inoperância da ONU em grande parte não vislumbram como um todo o
cenário em que ela atua, pois ainda que o multilateralismo seja a expressão do
consentimento mútuo no cenário internacional, a ONU não é a única fonte de
legitimação de processos de paz. Tão logo, a debilidade e impotência deste organismo
são compartilhadas por todas aquelas – organizações e instituições formais ou não – que
lutam contra a guerra e a violência. Na realidade, o grande avanço da ONU está em
desautorizar o uso da força unilateral como opção legítima da política internacional. Se,
por um lado “há consciência de que o sistema de solução de conflitos das Nações
Unidas – que continua sendo uma construção político-diplomática e, portanto, ajurídica
– deva adquirir maior eficácia” (SEITENFUS, 2009, p. 11), por outro lado a impotência
da ONU é mais da ordem involuntária do que inoperante. Isto porque ela não é
responsável única por todas as situações lamentáveis de guerras e mortes, uma vez que
nem sempre dispõe de condições efetivas (tropas próprias) para intervir, e nem mesmo
autonomia para decidir sobre qualquer tipo de intervenção (ALMEIDA, 2008;
SEITENFUS, 2009).
24
13
O referido Tratado estabeleceu que nenhuma entidade, inclusive religiosa, poderia interferir em
assuntos domésticos dos Estados, de modo que este exerceria sua soberania de forma irrestrita e
incondicional (OLIVEIRA, 2007).
25
14
Nicolau Maquiavel (1469-1527) e Carl Clausewitz (1780-1831) são autores clássicos da corrente
realista nas relações internacionais. Eles prescrevem o uso da força pelo Estado seja em suas relações
internas ou externas. São responsáveis pelas respectivas máximas, as quais ilustram um pouco do
pensamento que os norteavam: “Os fins justificam os meios”, do livro “O príncipe”, publicado
postumamente em 1532, e “A guerra é a continuação da política por outros meios” do livro “Da guerra”,
também publicado postumamente em 1832.
26
Nos anos de 2003 e 2004, o Haiti atravessou uma séria crise em função da
desestruturação do governo de Aristide, o então presidente daquele país, envolvendo
inclusive acusações de fraude em sua eleição, cujo colapso ocorreu com a renúncia do
presidente haitiano, precipitada pela atuação da ONU 18 . Em seqüência foi conduzida
pelos países do Cone Sul – Brasil, Argentina e Chile – uma iniciativa regional de ação
multilateral regida pelas Nações Unidas. Configurada tal iniciativa na MINUSTAH em
28 de maio de 2004, esta representou a quinta Missão de Paz gestada no Haiti desde
1993, todas com o intuito de restabelecer a ordem institucional e democrática nesse
país. Ela foi criada pela Resolução 1.542 do Conselho de Segurança, em substituição à
força multinacional de emergência – firmada na Resolução 1.529/2004 do CS –, a qual
havia sido organizada de forma premente em razão da vacância do poder no Haiti
decorrente da partida, em 29 de fevereiro de 2004, do Presidente Jean-Bertrand Aristide
(SEITENFUS, 2009).
Em realidade, o Haiti não tem tradição democrática. A colônia francesa no
Caribe conquistou independência através da revolta de sua majoritária população negra
em 1794 19 . Promulgou a primeira Constituição em 1816, feita pelo então presidente na
época Alexandre Pétion. Porém, tantas eram as restrições para participação do voto que
apenas 3% da população – basicamente elite e militares – é que monopolizavam a
17
Palavras do Ministro das Relações Exteriores, Embaixador Celso Amorim, na abertura do Seminário
“As Nações Unidas: Paz, Direitos Humanos e Desenvolvimento em um Novo Cenário Internacional”, por
ocasião do 61° aniversário das Nações Unida. Brasília, 24 out. de 2006.
18
Há autores que consideram a renúncia de Aristide uma forte articulação política com a participação dos
Estados Unidos e da França, acompanhada de um golpe de estado (CHOMSKY; FARMER; GOODMAN,
2004).
19
A emancipação política do Haiti é datada de 1804. Esta emancipação é suis generis na medida em que
foi conquistada por uma revolta de escravos descendentes de africanos, cujo processo de libertação
ocorreu em 1794, quando então pertenciam à metrópole francesa (desde 1630), já que foi abandonada
pela sua primeira metrópole, a Espanha. É importante lembrar que no final do século XV, com o início da
dominação espanhola na região começou também o processo de dizimação de toda a população indígena
local, de modo que para atender à rentável monocultura da cana-de-açúcar empenhada pela metrópole foi
necessária a ampla introdução dos escravos negros africanos. No final do século XVIII, 90% da
população da colônia de Saint Domingue – assim denominada enquanto colônia francesa – era composta
por negros (GRONDIN, 1985).
30
escolha dos dirigentes. Diante disso, o poder sempre foi concebido como centralizado
em uma única figura personificada no interior da política do Haiti (SEITENFUS, 2009).
E, embora tenha sido o segundo país independente das Américas, tardando apenas para
os Estados Unidos, o povo ainda luta por construir o país de forma verdadeiramente
livre.
Neste processo que vem desde a época colonial, marcado por interesses externos
de ordem geoestratégica e econômica, além da própria luta interna pelo poder, acentua-
se em 1986 a crise haitiana – acrescida pela corrupção, centralização de poder,
repressão, desrespeito aos princípios básicos da democracia representativa e do Estado
de Direito etc. Tal situação desestabilizava a organização interna do país de modo a
parecer latente uma guerra civil, a qual uma vez desencadeada desestabilizaria toda a
Bacia do Caribe. Em 1986, o ditador Jean-Claude Duvalier 20 foi deposto e embora o
povo comemorasse as possibilidades de redemocratização do país, a instabilidade
permanecia. Em 1990, eleições livres conduziram ao governo o padre Jean Bertrand
Aristide, deposto no ano seguinte através de um golpe, com indícios de participação
norte-americana. A partir da década de 1990, o governo de Washington e a ONU
passaram a exercer fortes pressões sobre o governo militar haitiano, exigindo o respeito
à democracia instaurada na mesma década. Os EUA, ainda que tivessem tentado um
acordo pacífico, só conseguiram estabilizar parcialmente o Haiti através do comando de
uma força militar multinacional sob o aval da ONU (CAMARA, 1998). No entanto,
diante da permanente instabilidade política haitiana, novamente apresentavam-se
pequenas as chances da normalidade democrática do país, com eleições livres e a
alternância de presidentes segundo as normas constitucionais.
Entendendo o reflexo desse ambiente, a MINUSTAH, criada em maio de 2004,
orientou a sua ação na manutenção da ordem e da segurança; no incentivo ao diálogo
político para a reconciliação nacional; e na promoção do desenvolvimento econômico e
social. Além disso, a questão cultural também é considerada e desenvolvida como um
importante aspecto a ser trabalhado nesse âmbito, prescrita inclusive nos preceitos da
forma de gerir uma Missão de Paz da ONU (HIRST, 2007; SEITENFUS, 2007).
Cabe ressaltar que a MINUSTAH está vinculada à “expansão das operações de
paz com o fortalecimento do primado da paz inter-democrática na comunidade
20
A deposição de Jean-Claude Duvalier foi estimulada pela opinião pública internacional e por
movimentos populares internos, e pôs um fim à dinastia sangrenta de pai e filho, ocorrida entre os anos de
1957 e 1986 (MARTINS, 2006).
31
internacional” (HIRST, 2007, p. 3), pois, supõe-se que os regimes democráticos seriam
menos propensos a deflagrarem guerra. Além de tais regimes disporem de meios
políticos mais adequados para participarem desse tipo de operação. Nesse contexto
político circunscreve as Forças Armadas Brasileiras.
Em geral, a evolução das missões de paz demonstra amadurecimento frente às
críticas recebidas, e assim elas consideram cada vez mais evidente que “o processo de
desenvolvimento precisa ter bases genuinamente endógenas, do contrário ele não seria
capaz de gerar efeitos indutores extensivos para o resto da economia e para a sociedade
como um todo” (ALMEIDA, 2008, p. 177). Em outras palavras, é preciso germinar no
seio interno da política do país que recebe a missão a própria capacidade de
desenvolvimento. A respeito disso passa a ser compreensível o delongar da atuação que
foi estendido, no intuito de a MINUSTAH deixar o Haiti apenas quando este for capaz
de gerir autonomamente, sem qualquer dependência externa de alguma atividade vital.
Assim, logo no início de 2004, os responsáveis da missão consideravam
verdadeiras as críticas e controvérsias que analistas internacionais do âmbito político e
acadêmico inferiam sobre as dificuldades da operação, uma vez que os desafios eram
múltiplos. Pois, primeiramente, era preciso lidar com as condições políticas do Haiti,
que o governo de transição da ONU pretendia, porém era pouco factível dada a situação
crítica deste país. Segundo, havia pressão dos Estados Unidos para a implementação
imediata de eleições democráticas no Haiti. Terceiro, era preciso lidar com a
morosidade do apoio internacional, incluindo a própria estrutura da ONU. E, por fim,
atender à opinião pública dos respectivos países engajados na missão, dentre eles, e com
principal importância por ser o líder da missão, o Brasil.
Após sucessivos adiamentos, no dia 7 de fevereiro de 2006 ocorreu o primeiro
turno das eleições haitianas. Foi considerada uma vitória “de todos aqueles que
trabalharam com denodo para que o povo haitiano se auto-determinasse” (SEITENFUS,
2009, p. 9), já que as eleições são facultativas e contou com 63% do total dos inscritos,
dobrando a média histórica. O Brasil teve papel ativo neste pleito e foi firme para
manter a confiança depositada em sua gestão tanto por parte da comunidade
internacional quanto do povo haitiano. E assim o governo provisório cedeu lugar à nova
representação fruto da vontade dos eleitores. “Houve uma dupla reconquista da
soberania: a do povo que manifestou sua vontade de maneira livre e ordeira e a do
Estado que poderá auto-administrar-se” (SEITENFUS, 2009, p. 10).
32
Entretanto, este representante da ONU não detém comando direto das forças de
paz, por isso que o Brasil não apenas influencia no desenrolar da missão, como também
partilha de considerável responsabilidade por ela (PROENÇA JR, 2006).
Ainda que a MINUSTAH não represente uma situação propriamente de guerra,
pelo contrário, aproxima-se de uma missão de cooperação internacional, ela requer um
posicionamento ideológico, subjazido por relações de poder, claramente incutido de
acepções culturais, efetivado pelo Brasil ao comandar a força de paz. Tal fato exige uma
explicação plausível para a sociedade sobre o comportamento brasileiro nesta arena
internacional. Assim, como será visto no final deste capítulo, tanto as notícias de um
lado, quanto os discursos e proferimentos oficiais, de outro, trabalham em conjunto na
construção social de tal acontecimento, incluindo aí a visibilidade e a dimensão que a
MINUSTAH alcança frente à sociedade brasileira.
21
Audiência do Ministro das Relações Exteriores, Embaixador Celso Amorim, em Sessão Conjunta das
Comissões de Relações Exteriores e Defesa Nacional do Senado Federal e da Câmara dos Deputados.
Brasília, 02 dez. 2004.
34
É por isso que “após mais de 50 anos de presença nas operações de paz, houve a
formação de uma “cultura brasileira em operações de paz”, um modo diferente de agir
que dá uma identidade pessoal ao brasileiro quando investido da função de
peacekeeper” (AGUILAR, 2008, p. 2). A política externa brasileira considera a
participação em operações desse tipo como um meio pacífico para a solução de
controvérsias, de maneira que a justificativa do “discurso brasileiro sobre PKOs é
imbuído de altruísmo, o que não significa que o governo brasileiro não tenha interesses
pragmáticos em suas participações nas missões onusianas” (SOUZA; ZACCARON,
2006, p. 216).
A cultura brasileira interfere substancialmente no jeito das tropas brasileiras
fazerem a paz. Aguilar (2008) elenca inúmeros atributos característicos do povo
brasileiro que são utilizados em prol da paz. Alguns deles são: Caráter negociador,
22
Missão das Nações Unidas no Congo (ONUC), ocorrida entre 1960 a 1964, com participação de 179
militares brasileiros.
35
23
Este convite foi sustentado pelo consentimento explícito dos Estados Unidos, França e Chile (SOUZA,
ZACCARON, 2006).
36
24
“A ONU aos 60”, Artigo do Embaixador Celso Amorim, Ministro das Relações Exteriores. Brasília, 03
out. 2005.
37
Importante observar que grande parte dos ministros ou outros gestores que
discursam nos media sobre a ação no Haiti não menciona os elementos prioritários
marcadamente econômico e político da missão, deixando transparecer uma relação de
interesse mais solidária do Brasil na operação de paz (PROENÇA JR, 2006).
Analisando as missões anteriores nas quais o Brasil foi ativo, observa-se que
96% eram em países membros da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa
(CPLP), evidenciando que “Esta concentração de atividades é um indicativo da
preferência do governo brasileiro em participar de missões em países com que haja
afinidades histórico-culturais, políticas e econômicas” (SOUZA; ZACCARON, p. 217).
No caso específico da MINUSTAH, Seitenfus (2009) desnuda alguns laços que
unem o Brasil com o Haiti, e que podem, por sua vez, terem colaborado para o
engajamento brasileiro, tais como “o terrível tráfico de escravos que assolou as duas
sociedades durante séculos; similitudes das estruturas de produção econômica durante o
38
custos da liderança, por criar afinidades entre as nações, baseadas na imagem que lhes é
transmitida pela nação que deseja ser líder” (SOUZA; ZACCARON, 2006, p. 220).
Sanches Rocha (2009) traz uma leitura interessante sobre o soft power, dividindo em
duas acepções principais. A primeira, mais próxima da definição clássica de poder entre
os politólogos, coloca o poder brando a serviço do hard power, como ferramenta para
auxiliar no poder de coação. A segunda, mais próxima do entendimento de Nye (2002) é
vista “como sendo um efetivo e independente poder informal, por assim dizer, que
reside nos meios de comunicação social, nos organismos não governamentais, nos
movimentos sociais, entre tantos outros exemplos” 25 (SANCHES ROCHA, 2009).
Sem entrar propriamente no mérito de o Brasil fazer uso do poder brando nesta
cena regional, mostra-se clara a intenção do país em rearranjar a relação Brasil-Haiti
através de certas referências culturais, tal qual o emblemático caso do “jogo da paz”
ocorrido entre os dois países, caracterizado por um amistoso ocorrido no próprio Haiti.
Além disso, o próprio comportamento dos soldados encarregados pela missão são
diferenciados dos demais contingentes estrangeiros, firmando um contato mais próximo
e solidário junto à população haitiana. Eles doam camisas da seleção brasileira e
também itens da ração alimentar pessoal para a população, tais como caramelo e cacau
em pó. Com condutas como essa, torna-se evidente que o importante
É ganhar a confiança dos haitianos, é mostrar que o pessoal da ONU
não constitui força de repressão inimiga, é cativar a população. Esses
objetivos somente podem ser alcançados através de uma atuação mais
ampla, de assistência humanitária e de ações cívico-sociais, como o
jogo de futebol Brasil-Haiti promovido pela CBF (Confederação
Brasileira de Futebol), que tinha por objetivo chamar a atenção da
comunidade internacional para as necessidades do país mais pobre do
ocidente e ganhar a simpatia dos haitianos. (SOUZA; ZACCARON,
2006, p. 225).
25
Citação sem página, pois o texto está disponível em versão virtual.
41
Se por um lado os laços culturais que permeiam os dois países – Brasil e Haiti –
devem ser olhados com cautela quando se trata da análise dos proferimentos de políticos
brasileiros, pois se observa que estes tentam mais que nivelar traços heterogêneos,
possivelmente criar uma realidade de compartilhamento de valores culturais e
identitários, por outro lado isto pode forjar o aparecimento de uma raiz cultural comum.
Ainda que esta exista, não se deve ignorar até que ponto esta característica pode ser
utilizada na reconstrução do Haiti ou como ela tem sido aportada para contemplar os
interesses brasileiros na consolidação de sua política externa. Sanches Rocha (2009)
salienta a importância da dimensão cultural em matérias das relações internacionais ao
dizer que:
Fatores culturais comuns podem ser facilitadores, evidentemente, nas
trocas comerciais e políticas. Não há dúvida quanto a isso e as
tentativas integracionistas, como o Mercosul e a União Européia, dão
claras demonstrações nesse sentido, apesar das dificuldades que
também enfrentam e das gigantescas diferenças culturais que ambos
demonstram em sua constituição.
26
“A ONU aos 60”, Artigo do Embaixador Celso Amorim, Ministro das Relações Exteriores. Brasília, 03
out. 2005.
27
DIANNI, Cláudia. Brasil pede que conselho da ONU avalie Haiti. Folha de S. Paulo, São Paulo, 14
fev. 2006. Caderno Mundo.
45
28
Trata-se de um termo recorrentemente usado no discurso do presidente Lula ao se referir ao Haiti, tal
qual é visto neste excerto: “A comunidade internacional reconheceu a capacidade e a vontade de nosso
país de dar a sua contribuição para a paz no mundo. Também tenho orgulho e satisfação de ver que nossas
Forças Armadas estão preparadas e dispostas a ajudar um país irmão” (Discurso do Presidente da
República, Luiz Inácio Lula da Silva. Brasília, 31 maio 2004. Grifo nosso).
29
Discurso do Presidente da República, Luiz Inácio Lula da Silva, na 59ª Assembléia-Geral da ONU.
Nova York, EUA, 21 set. 2004.
46
centralidade da paz nos estudos de defesa e segurança como não mera coincidência com
a centralidade da cultura desenvolvida pelos teóricos de Estudos Culturais e outros que
pautaram a relação entre cultura e sociedade numa mesma época de inflexão do
conceito cultura. Isto é, ambos emergiram na segunda metade do século XX,
compartilhando do mesmo contexto político e social. Pois, se a guerra e o uso da força
renderam lugar a uma diplomacia solidária de diálogo e disseminação da paz, grande
interferência nesta arena é a cultura, agindo a partir de sua nova posição mais destacada.
Este pode ser entendido então como o ponto de entrelaçamento de um afinamento das
teorias das relações internacionais com o cenário que emergiu após a chamada “virada
cultural”, no qual se redimensionou a relação da cultura na vida social. Discussão esta
que será arrematada adiante, no capítulo seguinte, de forma apropriada.
Antes de conduzir ao próximo capítulo é preciso distinguir esta construção
discursiva oficial daquela realizada pelos meios de comunicação, especificamente o
jornal impresso. Isto porque, os discursos brasileiros apresentados nesta primeira
abordagem são predominantemente respaldados por fontes oficiais do governo, como o
Celso Amorim, Celso Lafer, o presidente Lula ou mesmo o pesquisador contratado pelo
Brasil para auxiliar na intervenção, Ricardo Seitenfus. Estes discursos foram acionados
para mostrar, em linhas gerais, a conduta de política externa brasileira aliando às
atitudes presentes e descritas nos referentes discursos. Esta é a maneira como o
acontecimento é concebido pelos dirigentes políticos, e é, portanto, a forma oficial dada
a ver pelos mesmos. Entretanto, o alcance da visibilidade pública não é atingido tão
somente por tais discursos, os quais podem ficar inclusive restritos ao circuito interno
das relações políticas, ou os media especializados ou institucionais, tal qual é o caso dos
proferimentos encontrados disponíveis no site do Ministério das Relações Exteriores 30 .
Desse modo, os media detêm um papel de importância ímpar na circulação e amplitude
do acontecimento MINUSTAH, incluindo outras vozes além das fontes oficiais. É por
isso que o lugar preferencial para localizar toda a problemática e implicações do
comando militar brasileiro sobre a missão é demarcado em dois campos: O político e o
midiático, partilhando do entendimento de Foucault (2008) que os discursos são o
mesmo que acontecimentos discursivos e, assim, mais produzem do que refletem os
seus próprios objetos de referência.
30
Disponível em: <http://www.mre.gov.br/portugues/politica_externa/discursos/procura3.asp>. Acesso
em 10 mar. 2009.
47
O discurso dos gestores políticos tem importância basilar sobre os fatos nele
presentes, quais seja a Missão de Paz da ONU no Haiti. Pois, como dito anteriormente,
é através destes que o discurso oficial brasileiro é construído. E como diz Foucault
(2008) todo discurso institui prática, condensa em si uma ação. Também por isso o
mesmo teórico adverte que é no discurso que a política exerce um dos seus mais
temíveis poderes, considerando que “o discurso não é simplesmente aquilo que traduz
as lutas ou os sistemas de dominação, mas aquilo por que, pelo que se luta, o poder do
qual nos queremos apoderar” (p. 10). A instância política situa-se entre o conceito e
prática de política, isto é, sob um enfoque idealizante com criação de valores, de um
lado, e um enfoque pragmático, de outro, que se sustenta pela relação de influência com
o outro (CHARAUDEAU, 2006a).
Nos proferimentos políticos estão evidenciados as relações de poder, as marcas
ideológicas, as relações históricas, a construção de legitimidade, as marcas de
48
Dito isto, torna-se clara a importância da relação dos proferimentos dos políticos
com os media no entendimento de como a visibilidade pública pode dar a ver questões
de âmbitos culturais, a considerar o enquadramento que marca tanto a matéria
jornalística quanto os discursos do presidente Lula e do Celso Amorim.
Segundo Charaudeau (2006a) o discurso político estabelece uma relação com a
ação, o poder e a verdade. Se a ação política está inserida numa organização social
visando o bem comum
A palavra intervém no espaço de discussão para que sejam definidos o
ideal dos fins e os meios da ação política; a palavra intervém no
espaço de ação para que sejam organizadas e coordenadas a
distribuição das tarefas e a promulgação das leis, regras e decisões de
todas as ordens; a palavra intervém no espaço de persuasão para que
a instância política possa convencer a instância cidadã dos
fundamentos de seu programa e das decisões que ela toma ao gerir os
conflitos de opinião em seu proveito (CHARAUDEAU, 2006a, p. 21).
Os proferimentos políticos podem não ser dirigidos para os media, porém eles
têm em mente que ao final, eles podem se tornar material para o discurso midiático.
Nesse sentido os media assumem, pela amplitude e visibilidade, uma maneira
determinante na união da instância política com a instância cidadã (CHARAUDEAU,
2006a).
Independente de qual conteúdo encontrado no jornal, ou da porosidade com os
proferimentos oficiais, é trazido em alguns de seus textos a citação de nossos dirigentes
políticos para construir o seu próprio discurso. Se é do interesse do jornal trazer a fonte
legítima e oficial que fala sobre a MINUSTAH, existe também o interesse do próprio
político: “Os políticos sempre tiveram necessidade de visibilidade (devem ter acesso à
cena pública), de imagem (devem seduzir) e de legibilidade de seu projeto político
(devem ser compreendidos)” (CHARAUDEAU, 2006a, p. 287).
Uma matéria jornalística composta por um discurso direto, utilizando as aspas,
por exemplo, é capaz de produzir um efeito de sentido de verdade. Como indica Fiorin
(2004) “É como se ouvisse a pessoa falar com suas próprias palavras e, portanto, com a
mesma carga de subjetividade” (p. 51). É necessário atentar-se para a força do
argumento que se cria, pois há o compromisso com a veracidade e não com a verdade,
já que é preciso parecer verdade aquilo que se crê como tal (CHARAUDEAU, 2006a).
As aspas também distanciam palavras ou expressões daquele discurso que faz uso delas,
51
de maneira que o discurso não assume como suas. As aspas podem também ter caráter
aproximativo naquilo que se pretende dizer.
Por outro lado, há o discurso indireto – de conteúdo ou de expressão. Aquele
que analisa o conteúdo é carregado de um efeito de objetividade analítica. Assim,
eliminam-se expressões de natureza emocional focando na objetividade, sendo bastante
usado na construção de textos filosóficos, científicos ou políticos, na função de “criticar,
rejeitar ou acolher as posições expressas pelos outros” (p. 51). Já o discurso indireto,
que analisa a expressão, preocupa-se com o modo de dizer, mais do que o conteúdo,
revelando peculiaridades e a própria posição do narrador em razão do que este que fala.
Para tanto, o enunciador pode fazer uso das glosas, que são comentários e explicações,
na tentativa de distinguir as interpretações.
Os media podem se apropriar de uma dada frase, descontextualizá-la e inseri-la
na sua produção jornalística, e os políticos reconhecem a interferência desse artifício
jornalístico (CHARAUDEAU, 2006a). Há casos dentre os textos analisados em que o
enviado especial da Folha de S. Paulo viajou a convite do Exército brasileiro, e o jornal
distingue quando isso ocorre, qualificando explicitamente junto ao autor da matéria.
Viabilizar e financiar viagens como essa, por exemplo, é uma forma de o país incentivar
formalmente a difusão sobre a missão, tornando público aspectos que julga relevante ou
importante para ser propagado.
31
A escolha pelo jornal Folha de S. Paulo será mais bem justificada no capítulo três, referente ao
conteúdo metodológico do item 3.1 Corpus de todo o material.
53
32
É assim chamada por afirmar que a mídia refletiria a realidade, de maneira objetiva e imparcial – já que
os jornalistas seriam neutros. Esta teoria surgiu nos Estados Unidos, tendo dois momentos históricos: No
século XIX com o jornalismo de informação; e em meados do século XX, quando o jornalismo estava
arraigado ao conceito de objetividade (fatos versus opiniões) (TRAQUINA, 2004).
54
A ênfase do capítulo anterior foi no modo como o objeto desta pesquisa interage
no cenário mais amplo, trazendo a evolução histórica da missão, a inserção do Brasil no
cenário regional latino-americano, e a relação entre interesses brasileiros e discursos
oficiais, acrescentando, por fim, a cobertura jornalística referente ao processo político
de ingerência da MINUSTAH. Dialogou-se, portanto, com teorias, conceitos e
abordagens que a própria força do objeto invoca, dada a sua natureza de ser um
acontecimento com repercussões nacionais e internacionais, de dimensões políticas,
econômicas e culturais.
Este capítulo sustenta, por seu modo, a evolução do problema central da
pesquisa ao sedimentar o terreno teórico dos Estudos Culturais, juntamente com as
determinantes contribuições de George Yúdice (2004) sobre a conveniência da cultura.
Se a questão que instiga a desenvolver esta pesquisa emergiu naquele primeiro
momento capitular, de conceituação da MINUSTAH no cenário, é neste capítulo que é
possível configurar a problemática, por fornecer os instrumentos necessários de análise
através dos caminhos sobre o entendimento do lugar central da cultura na vida social.
Assim, divide-se este capítulo em dois momentos de discussão. O primeiro
momento, mais breve, demonstra o entendimento da cultura na área comunicacional,
apontando a relação constitutiva entre elas. Já o momento subseqüente traz o
desenvolvimento da cultura como recurso e da relação mais afinada que esta estabelece
com a política e com a identidade, em função de vários interesses e questões, como a
importância de ver que raízes culturais são invocadas pelo Brasil para buscar
estreitamento direto com o seu desempenho político no Haiti, tanto que há uma ênfase
de o Brasil ter uma conduta diferenciada na missão de paz, entendida como especial
principalmente por suas ações cívico-sociais integradas que envolvem um concerto
entre militares, ONGs, missionários e arranjo político institucional. Discute-se por esta
razão vinculações mais estreitas do recurso político em torno da identidade cultural,
identidade nacional e as marcas da identidade da América Latina, permeados pelo
conceito de imaginário coletivo já que influencia na conceituação do modo de agir
brasileiro e da importância e responsabilidade regional no comando da missão.
57
33
Citação sem página, pois o texto está disponível em versão virtual.
58
34
Segundo Braga (2001), o objeto comunicacional é mais complexo do que simplesmente um objeto
interdisciplinar, pois o importante é “observar o funcionamento do que há de comunicação no campo
mesmo das diversas disciplinas humanas e sociais – e ver como essa diversidade pode ser percebida como
atravessada por uma mesma ordem de reflexões que as faz interessantes de um outro ponto de vista:
enquanto objetos comunicacionais” (p. 40).
59
Por tal razão, a concepção mais recente de cultura de que ela estaria em suas
conformações simbólicas e práticas sociais vêm a ser o modo como intercepta o
paradigma relacional 35 , respaldado no campo teórico da comunicação, uma vez que a
comunicação nesse paradigma não ocorre como transmissão direta de sentidos, mas
como troca de experiências. Logo, isto vai ao encontro também da definição já evocada
de cultura, que se faz sob o domínio da língua, no terreno da linguagem. Neste ponto é
possível abrir a interlocução com Castells (1999) a respeito de língua, identidade
nacional e cultura, discussão que será adensada no tópico mais adiante. Pois “sob uma
perspectiva histórica, a língua estabelece o elo de ligação [sic] entre a esfera pública e a
privada, e entre o passado e o presente, independentemente do efetivo reconhecimento
de uma comunidade cultural pelas instituições do Estado” (p. 70). Isto significa dizer
que a língua enquanto expressão direta da cultura representa uma resistência real contra
35
Chamado de esquema constitutivo ou praxiológico, este esquema conceitual parte do fato de que “a
comunicação é essencialmente um processo de organização de perspectivas compartilhadas, sem o que
nenhuma ação, nenhuma interação é possível” (QUERÉ, 1991, p.7), portanto, explica uma forma de
perceber a ação e interação no discurso.
60
os aparatos de poder dominante. Corporifica-se ela num último bastião de uma história
compartilhada, de modo que apesar da interferência da ideologia da modernização e do
poder dos media global é capaz de ser construída por bases comuns, pelo povo. Isto
indica que:
O gesto de cultura (fala, dança, criação, comportamento), em situação
de auto-explicitação, já não é apenas movimento de participação e de
identificação do indivíduo na sociedade. É também expressão
consciente desse identificar-se – é comunicação (aos iguais e aos
diferentes) da opção feita. Corresponde a uma seleção entre diversos
jogos e atuação consciente sobre suas regras, via interação social
(BRAGA, 2001, p. 47).
36
No período após a Segunda Guerra Mundial convergiram diferentes intelectuais que se preocuparam
em estudar as novas transformações que marcavam o emergente contexto mundial - reprodução
(Bourdieu), hegemonia (Hall), ideologia e aparelhos ideológicos do Estado (Althusser), disciplina
(Foucault), formação do sujeito e imperialismo cultural (Dorfman e Mattelart). Eles foram os
responsáveis, ainda que sob perspectivas distintas, pela “virada cultural”. (ROCHA, 2008).
62
E, mais do que isso, a cultura também reordenou a sua relação com as esferas da política
e da economia, pois uma vez considerada como central, ela rearticula todas as demais
polarizações, conferindo um novo lugar para antigas discussões firmadas nas ciências
econômicas, políticas ou sociais 37 . Como explica Hall (2008), o contexto da “virada
cultural” deve ser visto não como:
uma ruptura total, mas como uma reconfiguração de elementos [...] em
particular o foco na linguagem e na cultura como área substantiva, e
não simplesmente como aquela que servia de elemento de integração
para o restante do sistema social. 38
37
Embora tratemos especificamente de autores dos “Estudos Culturais”, outros debates também foram
travados de diferentes lugares teóricos, pois partilharam das discussões da “virada cultural” na medida em
que pautaram, em momento concomitante, elementos que revisavam a relação entre cultura e sociedade.
Isto demonstra a ampla discussão alçada por tal movimento e seus aspectos globais, de anseio
transnacional, não mais retido simplesmente a um contexto nacional. Vertentes dos Estudos Culturais
sejam norte-americanas, britânicas ou latino-americanas podem divergir em variados pontos, mas todas
“configuram um pensamento político-cultural que se indaga sobre o lugar que ocupam as atividades
relacionadas aos media na compreensão do campo cultural contemporâneo” (ESCOSTEGUY, p. 121,
2001).
38
Citação sem página, pois o texto está disponível em versão virtual.
39
Ibdem.
40
Relativamente recente, o conceito de reconhecimento foi construído a partir do valor moderno de
igualdade entre os indivíduos (FRASER, 1987; TAYLOR, 1994). Há diversas teorias e debates sobre o
reconhecimento, dentre os quais se têm aqueles desenvolvidos por Taylor (1994) e Fraser (1987). Sem
adentrar nas especificidades teóricas de cada autor, pode-se dizer que em uma concepção mais ampla elas
prescrevem que a construção da identidade, seja coletiva ou individual, é intersubjetiva e relacional com
os padrões culturais, com as estruturas políticas e com as instituições sociais, de maneira que além dos
aspectos culturais de justiça, há também os aspectos econômicos a serem conquistados através de lutas
sociais, entendidas como lutas pelo reconhecimento.
63
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Citação sem página, pois o texto está disponível em versão virtual.
65
haver também uma determinação recíproca entre a cultura e essas demais instâncias.
Sendo o Estado ou o mercado a regular a cultura, o ponto importante a observar é que
são modos diferentes de regulação e se ocorre uma desregulamentação, em breve ela é
retomada por outro agente regulador.
Quanto mais importante — mais “central” — se torna a cultura, tanto
mais significativas são as forças que a governam, moldam e regulam.
Seja o que for que tenha a capacidade de influenciar a configuração
geral da cultura, de controlar ou determinar o modo como funcionam
as instituições culturais ou de regular as práticas culturais, isso exerce
um tipo de poder explícito sobre a vida cultural (HALL, 2008). 42
42
Citação sem página, pois o texto está disponível em versão virtual.
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68
trazido pelo autor envolvendo o Festival Cultural Anual na Colômbia, no qual músicos
vindos de diferentes partes do país, inclusive oriundos de regiões controladas por
guerrilhas e paramilitares, criavam um ambiente de contato e troca. Isto contribuía para
um processo de pacificação, conformando um ambiente seguro e confiável para
investimentos financeiros. A transformação nesse caso é a de que através do ambiente
de músicas compartilhadas é construído um ambiente mais propício para o bom
desempenho financeiro e comercial, apesar de todo o contexto regional de conflito
guerrilheiro da Colômbia.
Argumenta o mesmo autor que menos do que pensar no conteúdo, o que se deve
fazer agora é refletir sobre o seu gerenciamento, o seu papel na condição de recurso,
deslocando esse terreno da ação que a cultura pode promover justamente para a forma
em que ela é aplicada. Canclini (1999), um importante interlocutor de Yúdice (2004) na
América Latina, corrobora isto ao descrever que:
O aumento de exposições artísticas e traduções literárias nos últimos
anos, desenvolvido sob critérios de marketing e buscando a difusão de
massa [...] também deve ser analisado como parte da industrialização
da cultura para captar uma das dimensões fundamentais de seu
significado. Algo semelhante acontece com a utilização do patrimônio
histórico no turismo e a circulação de músicas étnicas ou nacionais,
que contribuem para reproduzir e renovar os imaginários das
Américas do Norte e do Sul (p. 20).
É por tal motivo que o conjunto dos conteúdos folclóricos locais, a cultura
popular, e até mesmo a dita “arte culta” ou erudita é apropriado como recurso, ganhando
mais força ou enfraquecendo junto às instituições que centralizam o gerenciamento da
cultura. Pois gerenciar a cultura é uma forma de filtrá-la, definindo aquilo que é cultura
do que não é segundo os padrões e concepções de tais instituições. Diante da
dificuldade ainda encontrada junto a estas na ampliação do entendimento de cultura,
Canclini (1999) considera:
Difícil que os Estados intervenham nestas áreas estratégicas se a
maioria dos ministérios e conselhos de cultura continuam acreditando
que a cultura e a identidade se limitam às belas-artes, e um pouco às
culturas indígenas e rurais, a artesanatos e músicas tradicionais (p.
189).
Este exemplo no qual o filme indiano foi afetado em seu país por uma crítica
ocidental mostra como o gerenciamento da cultura obedece também a questões
econômicas e políticas dentro do jogo das relações internacionais e de poder, expondo a
determinação que um festival no ocidente tem para o restante do panorama cultural
mundial.
Retornando para a discussão da tese de Yúdice (2004) percebe-se que ela dá um
passo à frente do conceito trazido pela “virada cultural” – bem definida por Denning
(2005) como quando a cultura saiu do pano de fundo para ser a protagonista – e norteia
uma nova forma de analisar o papel cultural. Inovando sobre a premissa da centralidade
da cultura, o autor nos atenta sobre como ela é gerenciada tanto para assuntos de
desenvolvimento, economia, cidadania etc., resvalando a sua utilidade dentro de um
novo contexto global mais amplo.
45
Citação sem página, pois o texto está disponível em versão virtual.
70
Pois considerando que foi extinta a distinção entre alta cultura, cultura de massa
e a própria concepção antropológica a que a cultura esteve apoiada por muito tempo,
engloba-se todas elas quando se analisa no contexto contemporâneo o papel dos
museus, do turismo, do patrimônio cultural e das indústrias da cultura de massa. A
relação passou a ser entre os bens – materiais ou simbólicos que circundam a cultura – e
aqueles que detêm os instrumentos capazes de gerenciar, seja em escala local ou global,
os recursos da cultura. Incluem-se aí os setores não-governamentais, as grandes
corporações transnacionais, as instituições governamentais, os poderosos veículos de
comunicação e os próprios atores da sociedade civil que ganharam destaque a partir do
contexto neoliberal. São todos esses níveis, alguns mais e outros menos, que regulam e
ditam a forma que a cultura deve ter.
Grandes fundações internacionais – Banco de Desenvolvimento Mundial, Banco
Interamericano de Desenvolvimento, Banco Mundial – tratam a cultura como um tipo
de investimento. Elas balizam-se pelos ganhos que o desenvolvimento cultural é capaz
de trazer, valores tais como confiança e cooperação, já que estes, por seu turno,
potencialmente resultam numa impulsão da economia como um todo (YÚDICE, 2004).
Há dificuldades encontradas pelo fato de nesse modelo a cultura cunhar-se em
indicadores econômicos e dados quantitativos, requisitos comuns de avaliação
requeridos pelos bancos de desenvolvimento. Porém, baseando-se, por exemplo, no
critério de justiça social, é preciso considerar também a maneira como a comunidade
será beneficiada, já que é um critério que não se restringe ao simples desenvolvimento
do capital financeiro, mas a uma questão, embora objetiva e clara, pouco quantificável.
Isto pode conduzir a determinadas simplificações que neutralizam importantes questões
que envolvem a cultura e seus resultados.
72
Pensar na cultura como um recurso revela também o modo como ela ao ser
apropriada é redimensionada. Bhabha (1998) inclusive indica que ela não é fixa
primordialmente ou fechada numa unidade, pois até mesmo os signos, os significados e
os símbolos da cultura podem ser lidos, traduzidos ou re-historicizados de diferentes
maneiras, considerando as condições discursivas da enunciação. É desse modo que o
gerenciamento cria uma enunciação para a cultura, conferindo-lhe um sentido que a
imbui de utilidade.
Se a teoria de Yúdice (2004) regulamenta a maneira de se gestar a cultura dentro
de interesses estratégicos nacionais ou transnacionais, Canclini (1999) operacionaliza
isso com sua discussão a respeito dos Estados latino-americanos. Ele reivindica que
estes assumam o interesse público e regulem a cultura em função dos interesses de
desenvolvimento econômico e social “numa promoção pública da cultura latino-
americana” (p. 195). Canclini (2003) mostra inclusive como “muitos componentes
étnicos entram no patrimônio de outros grupos, através de práticas lúdicas e rituais, mas
também mediante políticas culturais, passando a formar parte do seu horizonte” (p.
108). Isto esclarece pontualmente como um determinado processo étnico e/ou cultural é
modelado e forjado para que possa ser gerenciado politicamente, adentrando-se na
discussão da conveniência da cultura e demonstrando como ela é apropriada para
estabelecer conexões que sirvam de alguma maneira para um determinado fim. Nesse
sentido estreita-se ainda mais com a discussão de Yúdice (2004) e com o objeto de
estudo sobre o fato de a cultura não ser auxiliar, mas essencial aos processos de
globalização e das relações internacionais contemporâneas. Ao incluir a interferência
dos meios de comunicação (CANCLINI, 1999), pode-se analisar também a porosidade
dentro dos media com o que é construído oficialmente pelo discurso brasileiro, o que
revela em conjunto traços sobre a possível interferência da cultura do Brasil na
MINUSTAH.
A fim de contemplar isto, parte-se de um princípio derivado do caminho aberto
por Yúdice (2004) de que a cultura pode ser tratada enquanto um recurso político,
aplicando em nosso caso para a MINUSTAH. Quando se trabalha a cultura dentro de
questões discursivas, políticas ou sociais, é preciso também olhar para estas questões e
suas mediações, considerando a contribuição de Martín-Barbero (2001) para o termo, e
não se restringir somente à cultura que está sendo invocada. Pois, como sugere o autor,
73
a mediação é uma instância dentro dos Estudos Culturais onde condensa a relação
constitutiva entre cultura e política.
46
Citação sem página, pois o texto está disponível em versão virtual.
47
Ibdem.
74
Estado passou a ter uma preocupação maior com questões de cultura e política social,
inclusive porque estes eram também pautados e reivindicados pela sociedade civil.
Por isso esta relação entre política e cultura está tão arraigada ao conceito
contemporâneo de Estado, no qual se usa o terreno da cultura para estabelecer as ações
práticas da política. Isto fica bastante claro ao examinar o Estado brasileiro, que no final
da década de 80 após superar o período de ditadura militar e promover uma
redemocratização no país alçou um papel mais ativo e alerta na participação, tornando-
se inclusive mais cauteloso em suas adesões políticas, buscando sempre um respaldo
sócio-econômico para apoiar suas decisões e justificar comportamentos. Chauí (1995)
ao elencar as principais modalidades da relação do Estado com a cultura no Brasil
comenta que na época do Estado autoritário este “se apresenta como produtor oficial de
cultura e censor da produção cultural da sociedade” (p. 11). Obviamente, ao contrário
desse período anterior, o novo contexto democrático passou a implicar em sérias
medidas de transparência com a população e coerente com o plano de um novo Estado,
no qual o debate no espaço público tornou-se parte essencial do agir político,
concedendo inclusive legitimidade ao Estado. Tem-se como exemplo de novas medidas
adotadas no final dos anos 80 os orçamentos participativos, as audiências públicas e os
comitês consultivos, ainda que estes sejam casos pontuais e restritos a dadas regiões do
país, mas já se trata de um importante avanço (VITALE, 2004; WAMPLER;
AVRITZER, 2004).
A abordagem cultural neste momento emergiu como um forte argumento de
pauta política, pois nos sistemas democráticos contemporâneos considerar a diversidade
cultural implica em atender ao requisito da pluralidade, ao respeito a minorias e à
criação de espaços de debates públicos mais legítimos.
Um exemplo bastante emblemático está na tematização do direito indígena.
Antes da Constituição de 1988 o contato do Estado com comunidades indígenas era
regulado por uma atitude de inseri-las num contexto socioeconômico nacional. De
maneira que as terras onde os índios viviam poderiam lhes ser concedidas pelo Estado,
na medida em que atendesse aos interesses da nação como um todo, ao contrário de lhes
ser um direito garantido. Porém,
A Constituição Federal Brasileira de 1988 reconhece aos índios os
direitos de manter suas culturas, tradições e organizações sociais, a
posse permanente das terras tradicionalmente ocupadas – mas a
propriedade e a competência da demarcação cabem à União -, e a
possibilidade de iniciar processos judiciais com o auxílio do
76
48
Citação sem página, pois o texto está disponível em versão virtual.
49
A notícia a seguir ilustra o caso da hidrelétrica do Rio Xingu, que só pôde ser construída com a garantia
de que a obra respeitaria o meio ambiente e a cultura local: “O Ministério de Minas e Energia divulgou
nesta quarta-feira resolução do CNPE (Conselho Nacional de Política Energética) que determina que
apenas a hidrelétrica de Belo Monte será construída no rio Xingu, no Pará [...]. A resolução pede ainda
que a Eletrobrás conclua os estudos de viabilidade de Belo Monte e faça estudos antropológicos em
relação às comunidades indígenas, devendo ainda ser [sic] ‘ouvidas as comunidades afetadas’"
(GOVERNO DETERMINA, 2008).
77
inclusive dizer que o discurso sobre respeito cultural que antes era chamado de
“politicamente correto” – optativo e condicionado aos interesses próprios de quem agia
–, passou a ser aquele “politicamente legal” – legalmente obrigatório e independente de
posicionamentos puramente estratégicos ou econômicos.
É possível entender então como a nova concepção de cultura, a qual avança de
um sentido passivo ao receber uma adicional idéia de ação a partir de sua conveniência,
foi capaz de intervir no curso da história e dos fatos. Pois, se “a cultura é uma região de
sérias disputas e conflitos acerca do sentido” (ESCOTESGUY, 2001, p. 122) está,
justamente por causa disso, intimamente ligada ao poder.
Considerando todo o contexto da “virada cultural” já tracejado, diversos autores
anunciaram a teia complexa que se formou entre cultura, política e economia. Para
Escosteguy (2001) tratava-se de uma relação interdependente; para Hall (2008) é uma
constituição mútua, Martins (2002), por seu turno, afirma que
é inegável que a referência cultural desempenha um papel
determinante nos processos pessoais, grupais, comunitário, sociais,
nacionais e internacionais de (des)entendimento e negociação. A
aproximação culturalista de origem antropológica tem por objetivo
apenas referenciar este dado, tornado incontornável também no
aspecto político, interna e externamente aos estados-nação instalados
no cenário mundial (MARTINS, 2002, p. 61).
Ainda que a dissertação avance além do que este autor define enquanto cultura,
e muitas vezes discorde dessa posição tão determinante dela, partilha-se com ele a idéia
de que a cultura engloba o Estado e o mercado, ou seja, a política e a economia, e não se
apresenta, portanto como um elemento estranho a eles, mas constituinte nesta relação.
Sem tentar rotular o que consiste este novo encadeamento entre os domínios, claramente
é visto que se perde (em comparação com a definição moderna de cultura) uma nítida
hierarquização entre os âmbitos, ao mesmo tempo em que permite à cultura assumir um
lugar de projeção, de destaque, que passa a ser vista e considerada em espaços nos quais
outrora fora ignorada. Pois “ao romper com o discurso homogeneizante e modernista da
cultura, a cultura enquanto híbrido se torna uma arena antagonística de diversas formas
de conflitos e agências culturais” (SOUZA, 2004, p. 126).
Conforme exposto no item anterior, a respeito de Yúdice (2004) em sua tese da
“cultura como recurso”, é também proposto um novo modo de pensar o imbricamento
entre as relações políticas, econômicas e culturais no cenário global. Rocha (2009)
esclarece que “para Yúdice a cultura tornou-se um recurso conveniente aos diversos
78
campos e situações da sociedade global e tem sido convocada para resolver questões
que antes eram dos domínios econômico e social.” (p. 1). Acrescentando-se também aí o
domínio político, já que investir em cultura fortalece a base da sociedade civil, a qual
por sua vez serve de terreno e luta para o desenvolvimento político e econômico.
(ROCHA, 2009; YÚDICE, 2004). Dado que:
A cultura, tal como se encontra hoje nos ministérios culturais, nas
instituições intergovernamentais, como a Unesco e o Banco Mundial,
é justamente isso: a cultura como recurso para fortalecer o tecido
social. Em muitos lugares pobres, fornece oportunidades de emprego
e a produção cultural é organizada para a sustentabilidade, não apenas
cultural, mas da sociedade em geral. Os funcionários que se
especializam em política cultural estão buscando uma nova maneira
de expandir o setor, com políticas muito mais abrangentes que antes.
Hoje não se pode pensar em cultura sem pensar em economia e em
bem-estar social. E isso não está somente nas mãos do governo,
também ocorre nas articulações entre instituições do governo e
organizações da sociedade civil (YÚDICE, 2009, grifo nosso). 50
50
Citação sem página, pois o texto está disponível em versão virtual.
79
De maneira que cabe a uma atitude do gestor, ou gestores, da missão e dos meios
competentes com largo alcance junto à população local esclarecerem a política de
intervenção adotada numa dada região, considerando a realidade cultural que esta
compartilha. Pois, como dito acima nos exemplos de políticas públicas que não
reconheceram, ou negligenciaram, o compartilhamento de sentido de uma dada região, o
mais provável é incorrer em medidas que não se realizam. Isto é, são medidas que
81
51
Para Taylor (1994) a cultura é a narrativização do “eu”, do sujeito. Por isso, ela é sinônimo de
identidade, o que torna a linguagem o substrato essencialmente importante para o seu estudo de políticas
de reconhecimento. Uma crítica dos Estudos Culturais ao Multiculturalismo – vertente a qual Taylor é
referência fundadora –, é justamente em relação a esta narrativização, questionando a essencialização da
identidade para o sujeito estar pronto no momento da luta política pelo reconhecimento.
82
resistente, pois referentes tais qual língua, objetos e costumes são compartilhados, e
embora:
Historicamente mutáveis, foram embalsamados pelo folclore em um
estágio ‘tradicional’ de seu desenvolvimento, e foram declarados
essências da cultura nacional. Ainda hoje são exibidos nos museus,
transmitidos nas escolas e pelos meios de comunicação de massa,
fixados dogmaticamente através dos discursos religiosos e políticos, e
defendidos, quando cambaleiam, pelo autoritarismo militar
(CANCLINI, 1999, p. 145, grifo nosso).
O nacionalismo é visto, portanto, como uma ideologia52 que origina a nação, por
trazer idéias fortes narrativizadas, criando uma cultura pública comum em que todos se
sintam pertencentes. Por ser um discurso como tal, em função de sua amplitude de ação
e poder, é necessário, como expôs Foucault (2008), questionar a “soberania do
significante” nele difundido.
É, por tal razão, que buscamos compreender o discurso nacional dentro da
relação entre identidade e cultura nesta pesquisa, considerando a importância da posição
brasileira no cenário internacional e a relação intercultural Brasil-Haiti.
Canclini (1999) problematiza a aparente tranqüilidade homogênea da identidade
nacional ao dizer que “a cultura nacional não se extingue, mas se converte em fórmula
para designar a continuidade de uma memória histórica estável, que se reconstrói em
interação com referentes culturais transnacionais” (p. 60). É aquilo que Bhabha (1998)
aponta como um profundo processo de redefinição do conceito de cultura nacional
homogênea, que envolvia o tradicional comparativismo cultural e que não é mais
adequado frente aos processos transnacionais de hibridização.
Assim, as identidades nacionais vêm sendo cada vez mais reafirmadas e
questionadas em tempos hodiernos. E embora se pretenda totalizante, ela nunca o pode
ser por natureza, pois um discurso de identidade – nacional ou não – nunca contempla
inteiramente as necessidades do sujeito, já que este é interpelado por múltiplos discursos
de forma concomitante. Pois:
Além de um grande bombardeio de informações, o encolhimento do
mundo propicia um aumento de alteridades reais ou virtuais com as
quais se interage. Isso ocorre não apenas simbolicamente pelo
dramático aumento do fluxo de informações, mas também pelo
encontro com outros radicalmente diferentes [...] (RIBEIRO, 2000, p.
28).
52
Para Althusser (1974) a ideologia funciona como um cimento de unidade social, dotada de certa
materialidade já que pode ser identificada nas práticas sociais. Os aparelhos ideológicos de Estado (o
funcionamento de igreja, escola, meios de comunicação) são efeitos da ideologia dominante. Por isso a
ideologia envolve a relação do sujeito com o mundo, isto é, uma relação imaginária de como conviver em
suas relações sociais e de produção. Charaudeau (2006a) define a ideologia como “um modo de
articulação entre significação e poder”.
87
Para ele, a nação por ocupar o lugar deixado pelas comunidades desenraizadas, é
muito mais temporal do que histórica, apontando, para isso, as estratégias complexas de
identificação cultural presentes, sobretudo, nas narrativas. Pois, a problemática está no
fato de que se a nação é uma construção contingente de símbolos e signos, como
explicar a historicidade da idéia de nação? Dado que ao tematizá-la como narração,
fragmentos são reunidos para dar existência a uma cultura nacional coerente. A nação,
segundo Anderson (1989), é uma comunidade política imaginada e implicitamente
limitada e soberana. Contrariamente, Bhabha (1998) aponta para conexões cada vez
mais estabelecidas internacionalmente, complementado que “as culturas ‘nacionais’
estão produzidas a partir da perspectiva de minorias destituídas” (p. 25) e não mais
significa a soberania da cultural nacional concebida pelo Estado.
As fronteiras de uma nação mais do que acolher problemas com a alteridade em
relação a outras nações, evidencia a heterogeneidade em seu próprio interior através dos
“discursos de minorias, pelas histórias heterogêneas de povos em disputa, por
autoridades antagônicas e por locais tensos de diferença cultural” (BHABHA, 1998, p.
210). Inclusive, é através do movimento unificador em torno do signo nacional, que as
diferenças internas podem emergir com mais força, na medida em que fica claro a que
elas se opõem ou contestam. Reconhece-se o poder e a influência da cultura nacional,
ainda que questionada, e assim, a comunidade nacional e os discursos de minoria são
concebidos mutuamente. E onde o primeiro prega homogeneidade, o segundo fala
através dos espaços intermediários dentro do que seria uma predominância homogênea.
Tão logo, diante dos antagonismos sociais que resulta, a diferença cultural deve ser
negociada ao invés de negada, já que pode gerar identidades abertas à tradução cultural.
Fantini (2004) mostra que “Stuart Hall propõe o conceito de ‘tradução’ enquanto
instrumento para melhor compreensão de identidades móveis” (p. 174). A tradução
significa que as pessoas exiladas ainda que mantenham vínculos com a cultura de
88
Por isso um dos grandes problemas do hibridismo é permanecer como uma força
política em grande parte ainda presente no interior da política hegemônica. Moreiras
(2001) inclusive afirma que tal qual a transculturação, a qual foi responsável
90
Outro termo que é muito criticado, por vezes confundido, e por outras vezes
assemelhado ao hibridismo é a mestiçagem. Haydée Coelho (2001) ao tratar da
mestiçagem no contexto da historiografia brasileira revisita diversos autores para
abordar o assunto. A autora destaca inicialmente o teórico Karl Von Martius sobre a
formação da nacionalidade brasileira sob o tripé das três raças: branca, indígena e negra.
Baseando-se neste fundamento para demonstrar a importante transição do enfoque da
raça para o da cultura, Coelho (2001) destaca o livro de Gilberto Freyre “Casa grande e
senzala” e a questão de “democracia racial” no Brasil. A crítica de Bernd (2004) à
Gilberto Freyre vai na direção de que a mestiçagem apenas escamoteia o processo de
homogeneização, já que
o conceito de mestiçagem pode servir de camuflagem à manutenção
de uma identidade calcada na homogeneidade, preocupada em integrar
os grupos marginalizados, mas sempre de acordo com as concepções
dominantes da nação. A pós-modernidade, ao trazer à tona o conceito
de híbrido, enfatiza acima de tudo o respeito à alteridade e a
valorização do diverso (p. 100).
91
Essa discussão é importante para entendermos que para além da história oficial,
de criação de países e fronteiras isoladoras, há na América Latina um mundo
compartilhado de construção de sentidos e de origens que precisam ser retomados para
o entendimento desta relação que tem sido aproximada pelos discursos políticos sobre o
Brasil e o Haiti. Há fundamentos nestes discursos por causa de certas origens que nos
são semelhantes, como a escravidão e a colonização européia, por exemplo. E assim a
questão cultural ganha proeminência nos processos políticos, pois também é
conformadora destes, e existe para além destes, ou ainda, tanto podem ignorar como
podem fazer uso dela como um recurso estratégico de vinculação.
93
Perceber para esta investigação, ainda que de forma pouca adensada e mais
ensaística, aspectos que permeiam a identidade e o imaginário do Brasil e do Haiti em
meio a esse contexto de transformações globais e locais, auxiliam a compreensão de
como certos laços culturais podem ser evocados para justificar a participação ativa do
Brasil, discussão esta que servirá de apoio para a análise do último capítulo. Guimarães
et al (2002) diz que “Um povo se constitui enquanto tal ao construir uma imagem de si
95
53
A criação do Centro Cultural Brasil-Haiti em Porto Príncipe, por exemplo, cumpre a função além de
aproximar as atividades e práticas culturais de ambos, também desenvolver debates para questões que
atritam o Haiti em razão da intervenção brasileira. Isto significa esclarecer sobre melhorias trazidas pela
MINUSTAH na ordem de infra-estrutura e saneamento básico, bem como ao auxílio na reorganização das
estruturas políticas do país, que estavam deterioradas antes da chegada das tropas onusianas.
54
O créole foi reconhecido como língua oficial, juntando-se ao francês, somente em 1961.
97
língua dos negros é vista pela elite mulata como o “vulgar dialeto de uma população sem
cultura” (GRONDRIN, 1985, p. 73). Na realidade, como expressão e transmissão
cultural, esta língua representa o caráter de unidade e identidade do povo bem como a
unidade religiosa é evidente no culto do vodu 55 , o qual é um dos parcos aspectos
remanescentes da cultura africana e que gera bastante discussão, sendo em muitos casos
mal-interpretado e associado à bruxaria, com a possibilidade deste preconceito ter
ocorrido justamente por causa de seu poder de coesão cultural e social que promovia. A
principal religião é o catolicismo, e, como sinais de resistência cultural podem ser vistos
os católicos que se definem também adeptos ao vodu, pois uma religiao não exclui a
outra para os haitianos.
Canclini (2003) ao analisar os aspectos socioculturais brasileiros afirma que o
Brasil está impregnado de uma cultura africana transclassista e transétnica, assim como
uma tradição afrocaribenha transita na sociedade, sem esquecer o sincretismo com o
europeu. Tudo isto dita o tom de uma identidade naturalmente híbrida, o que certamente
torna mais fácil e possível a aproximação cultural com o Haiti, um país de composição
multiétnica, predominantemente de africanos e europeus (ex-colonizadores franceses e
espanhóis).
Propõe-se colocar em suspensão, sem avançar no debate já que isto trata de uma
discussão paralela ao que se pretende esta pesquisa, sobre se realmente existe uma
identidade nacional num país em que o próprio Estado ainda está em processo de
configuração, embora toda a população responda de algum modo por essa identidade,
como é o caso do Haiti. O relatório Misión (2006, p.7) responde parcialmente isto ao
afirmar que o “Haití manifiesta hoy, como lo ha hecho históricamente, la capacidad de la
resistencia social y cultural, la fuerza de su identidad, su dignidad de pueblo y su
esperanza de poder revertir la situación actual”.
No que tange aos aspectos socioculturais verifica-se que o Brasil é singular na
sua possibilidade de atuação no país caribenho. Isto porque a história e literatura
brasileiras compuseram o nosso país de uma pluralidade cultural e multiplicidade étnica,
cuja formação parte romanticamente de processos de miscigenação e mestiçagem –
55
Voduísmo é a religião oficial no Haiti, sendo similar a outras religiões da diáspora africana nas
Américas, como o Camdomblé e a Umbanda brasileiros. É geralmente relacionado ao boneco vodu, ao
zumbi (“morto-vivo”) e à magia-negra, entretanto, são mais mitos que propriamente a religião, esta é bem
mais forte e mais abrangente representada através do sincretismo entre o africano, o indígena, e os
antepassados europeus, e não apenas com o catolicismo romano. (LAENNEC, 1993).
98
56
O preconceito racial brasileiro existe e é bastante forte. Gilberto Freyre (1992) expõe sobre o mito
racial pacífico, mas não se pode confundir com o imaginário que é criado do Brasil. Inclusive há
vertentes como a de Octavio Ianni (2004) que problematiza essa questão da “democracia racial”,
desmascarando-a como um “preconceito racial constitutivo da sociabilidade na sociedade brasileira”
oriundo da história escravagista.
99
verdadeiro. Assim ocorre uma dupla interação: do homem com o mundo e entre os
próprios homens (CHARAUDEAU, 2006a).
Trazendo isto para o objeto da pesquisa observa-se que o discurso, seja
jornalístico ou político, busca na cultura brasileira características que possam ser
vinculadas com uma raiz haitiana, na tentativa de referenciar uma história e cultura
comuns, mesmo que estas não estejam tão solidificadas na chamada identidade nacional
brasileira. Lembrando que esta é multifacetada por natureza, conforme corrobora nossa
literatura e história. O imaginário trazido pelo discurso nacional tem fins identitários
construindo uma cultura nacional, porém é na alteridade, no reconhecimento de outras
culturas, que se potencializa a tomada de consciência de nossa cultura. O imaginário da
pluralidade de raças, mestiçagem no Brasil, é identificável por uma abordagem
antropológica e histórica, constituindo uma memória coletiva nesses termos, que pode
ser invocada e referenciada.
Sem desconsiderar então todas as desigualdades econômicas e sociais que
marcam o Brasil, este apresenta uma sociedade nacional mais disposta à hibridação,
inclusive
Os antropólogos ressaltam as múltiplas interpenetrações que existem
entre os contingentes migratórios que formaram esse país. Não raro,
os líderes políticos e culturais falam de seus ancestrais africanos ou
indígenas, e vêem as filiações étnicas como algo voluntarista, que
pode ser mesclado (CANCLINI, 2003, p. 108, grifo nosso).
refere ao domínio de uma consciência política forte, que os define enquanto cidadãos, o
que favorece para sua incapacidade de concretizar a democracia em função destas
defasagens presentes.
Assim confirma a asserção de Roberto Abdenur (1997) em que “a riqueza e a
diversidade de nossa formação étnica e cultural são fatores que ampliam as
oportunidades de interlocução internacional” (p. 35). O Brasil busca então explorar esta
potencialidade da diversidade cultural, do dinamismo histórico e do peso econômico
regional ao conduzir a força de paz no Haiti, a qual não deve ser equivocadamente
traduzida como uma força de ocupação, cautela esta já precavida por nossos dirigentes,
já que ainda seria contrária ao próprio ditame que rege uma missão de paz da ONU. E
assim ser traduzida como uma missão de reconstrução plena do país.
O exacerbado prestígio que o país do futebol tem perante os haitianos, que
idolatram tal esporte, confere uma relação intensa de admiração com o Brasil e que é
relevante para o fato de este ter sido indicado a coordenar a operação. Houve o famoso
“jogo da paz” ocorrido em agosto de 2004, no qual a seleção brasileira entrou em campo
com a seleção haitiana, fazendo uso da evidente atração que desperta o futebol brasileiro
naquele país, o que ilustra a argumentação anterior. Foi um jogo amistoso, em que as
duas seleções entraram em campo para celebrar a nova relação – também amistosa – que
se iniciava num outro campo, o político. Através desse episódio o Brasil conseguiu certo
êxito político com a MINUSTAH, apoderando-se desta afinidade esportivo-cultural, ao
conseguir maior respaldo da população haitiana quanto ao comando da missão. Esta
identificação do povo haitiano com a seleção verde-amarela está além do futebol e
atinge aos integrantes da seleção, a qual é formada em sua maioria por jogadores negros
e de origem social modesta, que servem de inspiração para a ascensão social pela qual
luta e sonha cada haitiano (SILVA, 2004).
Revelar aspectos de como analisar uma intervenção dentro da relação identitária
engloba o aspecto multidimensional da missão de paz, isto é, atua além do político e
militar, abarcando questões sociais e culturais. Ampliar esta questão identitária com o
apoio da tese de Yúdice (2004) nos faz perceber claramente como as relações
identitárias funcionam enquanto recursos importantes e úteis para que determinadas
ações sejam compartilhadas como naturais, razoáveis e necessárias. As identidades são
conformadoras de um discurso de pertencimento que compartilha posições e olhares
sobre o mundo, e que podem ser construídos por interesses por vezes ocultos e bastante
101
Porém, como ressalva do próprio ministro, não são três passos distintos ou
cronologicamente demarcados, por isso deve ter uma aplicação simultânea se o Brasil
quiser garantir a reconstrução, de fato, do Haiti. É claro que, para fins de análise foram
divididos os três estágios, já que em cada um há preponderância de um dos pilares,
entretanto, isto não significa que os outros âmbitos sejam esquecidos, dado que “o que
necessitamos é de um acordo entre todos, que una a comunidade internacional e as
forças políticas haitianas em um compromisso de longo prazo” (idem). Tanto que o
próprio material revela a presença concomitante dos três no decorrer da atuação
brasileira.
Parte do corpus a ser analisado é retirada do jornal impresso Folha de S. Paulo,
totalizando 161 textos jornalísticos, incluindo matérias, entrevistas, artigos e editoriais,
incluindo-se ainda nesta etapa as notas e as cartas do leitor. A outra parte advém dos
discursos políticos brasileiros e somam 14 discursos, pronunciados especificamente
pelo presidente Lula e pelo ministro das Relações Exteriores Celso Amorim.
104
A escolha pelo jornal não foi aleatória, pois este dispositivo quando comparado
nos media como um todo (como a internet, a televisão e o rádio) é o que apresenta o
acontecimento com maior complexidade, devido ao espaço ampliado de discussão e
abordagem e à característica da própria construção da notícia e do dispositivo midiático,
que veicula a informação alicerçada por certa crítica imbricada ao discurso jornalístico.
Claramente não se hierarquiza a importância deste dentre os outros meios, cada qual
com suas particularidades, inclusive a internet é um veículo bastante complexificador
também do acontecimento, além de sua própria atualização virtual constante.
A escolha pela mídia impressa se dá por duas razões fundamentais: Primeiro,
historicamente o jornal impresso tem sido espaço importante de construção da opinião
pública e de mediação do discurso governamental para o público. Segundo, seu formato
escrito tende a dar maior profundidade interpretativa e analítica das coberturas
jornalísticas e isso o torna mais adequado para averiguar como os discursos estão sendo
mediados para opinião pública. Deste modo tratamos especificamente da mídia
impressa e não do conjunto dos media (que incluiria outros, como televisão, rádio etc.).
Feita esta primeira delimitação geral da escolha pelo jornal impresso especifica-
se qual veículo será analisado, uma vez que existem dezenas de veículos de jornal
impresso de grande circulação no país. Optou-se pelo jornal Folha de S. Paulo devido
às seguintes características: (a) é o jornal diário em formato tradicional (vendido em
banca) de maior circulação por edição 57 ; (b) tem hoje abrangência nacional e superou o
status de mídia regional, portanto, faz coberturas integrais da esfera nacional do debate
público, correspondendo ao de maior visibilidade no Brasil; (c) apresenta matérias e
textos de política internacional sem resumir-se apenas em notícias compiladas com
agências internacionais, pois é capacitado a realizar coberturas externas com próprios
jornalistas enviados para cobrirem certos acontecimentos in loco, incluindo o Haiti; (d)
em sua trajetória este jornal alcançou um grau de respeitabilidade entre os leitores
principalmente de classe média, um extrato com forte influência na opinião pública
principalmente por conter profissionais liberais, especialistas, professores, técnicos etc.
57
Segundo dados do IVC (Audited Newspapers Circullation) a Folha circulou em 2004 uma média de
307,7 mil exemplares por edição; em 2005 foram 307,9 mil/por edição e em 2006 circulou em média
309,4 por edição (contra 257,5 em 2004; 275 mil em 2005 e 276,4 mil em 2006 do segundo colocado, o
Globo (GRUPO DE MÍDIA SAO PAULO, 2007, p. 346).
105
Acrescenta-se a isso, o fato de que os proferimentos são oriundos dos próprios gestores
da missão de paz, o que confere grande credibilidade e legitimidade, pois eles estariam
autorizados a falar sobre o acontecimento que participam e atuam diretamente, ajudando
inclusive a configurar e a construir o que é a própria MINUSTAH.
Os pronunciamentos dos gestores da missão foram selecionados através do site
do Ministério das Relações Exteriores 58 (MRE). Trata-se de um site oficial do governo,
que corresponde a uma vitrine da visibilidade pública sobre os acontecimentos da
política externa e internacional brasileira. É um repositório de arquivos e documentos
oficiais, servindo como um meio de comunicação oficial e público daqueles que
gerenciam o Estado. O filtro utilizado para selecionar os discursos políticos foi em
relação àqueles que tratavam especificamente da MINUSTAH, pois, ainda que outros
pronunciamentos fizessem referência à missão, evocavam-na de forma secundária e, por
tal motivo não enriqueceriam o material que já a tematizava em primeiro plano, embora
corroborassem quantitativamente com os enquadramentos sobre cultura que foram
localizados nos discursos ditos preferenciais. Como exceção a este filtro aos que tratam
especificamente do Haiti, tem-se os proferimentos pautados em Conferências Gerais da
ONU, por causa da relevância nos quais os mesmos versam sobre a atuação no Haiti
perante o cenário internacional, lembrando que a ONU é o órgão que regula, em última
instância, a referida missão coordenada militarmente pelo Brasil.
Além do site do MRE verificou-se a existência de um livro editado pelo próprio
Itamaraty – Resenha de política exterior do Brasil –, onde semestralmente são
compilados os discursos, proferimentos, entrevistas e artigos publicados a respeito da
política externa brasileira. Este livro condensa o mesmo material disponível on line no
site do MRE, porém, pela facilidade de consulta através do site, preteriu-se o livro de
Resenha de PEB, por se apresentar neste momento como uma fonte redundante.
Assim, considerando um horizonte de 141 proferimentos que citavam o Haiti e a
MINUSTAH, recortou-se apenas 14 discursos, cujos temas principais trazidos estava a
MINUSTAH, e não apenas tangenciando-a, como se verificou em grande parte destes
141 proferimentos. Dentre os gestores políticos considerados estão o presidente Luiz
Inácio Lula da Silva (65 proferimentos/7 considerados), o ministro das relações
exteriores Celso Luiz Nunes Amorim (69 proferimentos /6 considerados), e outros (7
proferimentos/0 considerados), a exemplo do Senador Eduardo Suplicy.
58
Disponível em: <http://www.mre.gov.br/portugues/politica_externa/discursos/procura3.asp>. Acesso
em 10 mar. 2009.
107
59
Citação sem página, pois o texto está disponível em versão virtual.
109
centrais nele presentes (PATTON, 2002). Para tanto, o respaldo tanto da teoria dos
enquadramentos quanto dos Estudos Culturais serão buscados.
Embora o mapeamento facilite a análise final, o conteúdo não deve ser isolado,
isto é, não podemos contabilizar as categorias e desconsiderar, no caso do jornal, o
caderno de onde elas apareceram, ou, no caso dos discursos, qual o mote de um dado
proferimento, onde foi realizado e qual era, naquela ocasião, os principais
interlocutores. Atitudes nessa linha incorreriam no risco de ignorar a estrutura narrativa,
já que esta
[...] se refere ao formato de uma história, no sentido de que ela possui
um começo identificável onde a situação da peça muda, um meio onde
as diferentes forças desempenham seus papéis, e um fim onde temas
importantes são articulados (ROSE, 2002, p. 355).
cultura é trazida enquanto recurso da MINUSTAH por diversas razões, lançando luz das
teorias sobre os textos analisados.
Por se tratar de uma codificação semântica de elementos a serem analisados
posteriormente, estes elementos são por nós traduzidos do texto, já que no caso desta
pesquisa são textos produzidos para outra finalidade, especificamente, jornais e
proferimentos públicos. Por não serem, portanto, textos produzidos exclusivamente para
esta pesquisa, tem-se o cuidado de trabalhar com o “mapa” que faremos emergir a partir
da análise de conteúdo, pois este sim é feito para atender aos anseios do problema de
pesquisa.
Em articulação com a teoria do enquadramento, o embasamento teórico sobre a
centralidade da cultura permitirá interpretar o conteúdo identificado no corpus, dado
que
A operação de ‘interpretação’ permite sintetizar e organizar os
elementos ‘inventados’ de acordo com quadros teóricos mais
articulados e mais complexos e, portanto, mais adequados para
satisfazer as numerosas perguntas plantadas no começo da
investigação (CASETTI; CHIO, 1999, p. 247).
Para este autor a instituição, seja ela material ou simbólica, política, econômica
ou cultural, se autodenominaria a única responsável por dar o poder ao discurso. Tão
logo, uma diferenciação cautelar será dada de acordo com as especificidades de cada
meio no próximo capítulo, momento este da análise mais aprofundada das categorias
dos enquadramentos.
Antes disso, a fim de tornar fecunda e sustentar a abordagem do problema, o
segundo momento do tratamento metodológico percorre os estudos de enquadramentos,
na medida em que, conforme acionou a análise de conteúdo, categorias específicas de
enquadramentos serão criadas para abranger o olhar sobre o objeto, refinando-o. Alguns
teóricos pertinentes a serem adotados para o percurso investigativo são: Goffman
(2004), Porto (2004), Entman (1993), Reese (2003), Scheufele (2007), Simon e Xenos
(2000), entre outros.
Inicia-se esta seção com o prisma do enquadramento de forma mais geral, sem
adentrar à sua relação com os media, para atender à análise dos enquadramentos de
alguns dos proferimentos políticos, quais sejam aqueles que foram feitos para uma
platéia presente. Trabalha-se com os marcos interpretativos definidos por Goffman
(2004), o qual é tido com um precursor 60 do termo frame, ou quadro, ao designar
enquadramento enquanto quadros de referência geral para organizar e orientar o sentido
dos acontecimentos (GOFFMAN, 1974). Embora Goffman (1974) utilize as interações
sociais em situações de co-presença para elaborar o conceito de quadros interpretativos,
o que se aproximaria da abordagem aqui proposta para analisar alguns dos
proferimentos de políticos, pode-se transpor também os estudos dele para um
enquadramento feito pelos media, como já vem sendo feito desde Gitlin (1980), autor
responsável por abrir caminho na relação do enquadramento dos media com os
movimentos sociais (PORTO, 2004).
Os quadros de sentido citados “abarcam um conjunto de sentidos socialmente
compartilhados, organizam nossos processos de interpretação e orientam nossas ações,
pois permitem aos sujeitos enquadrar as situações sociais e configurar modos coerentes
60
Originalmente, o termo frame foi empregado por Gregory Bateson, em seus estudos de comportamentos
de lontras (Goffman, 1974).
115
de agir nesses contextos” (SILVA, 2008, p.31). Baseado nisso, enquadramento funciona
então como a ação de estimular um dado padrão de interpretação e não outro, por isso
Goffman (1974), segundo ponderação de Porto (2004), “define enquadramentos como
os princípios de organização que governam os eventos sociais e nosso envolvimento
nesses eventos” (p. 78).
A comunicação, enquanto este processo de construção social, é bastante
estudada por Goffman (1999), inclusive isto é aplicável em sua análise de quadros de
sentido, já que estes quadros são princípios organizativos que auxiliam na estruturação
dos elementos de uma dada situação – em interação –, isto é, confere inteligibilidade a
um dado acontecimento. É preciso uma base de compartilhamento para que a
construção de um sentido seja efetiva. Segundo Johnson-Cartee (2005) “frequentemente
o construcionismo social foca na linguagem usada em uma dada cultura, a linguagem da
cultura determina uma ampla extensão que pode ser conhecida e realizada por uma
sociedade” 61 (p. 3, tradução nossa).
Se Goffman diferencia a interação nos media tanto pelo distanciamento temporal
entre produção e recepção, quanto pela linguagem configurada por meios técnicos,
assim o faz para situar uma nova forma do espaço interacional midiático, que é sui
generis. Logo, ao nos apoderarmos para o referente objeto o conceito de quadros como
um conjunto de dispositivos interpretativos, converge este trabalho para o fato de que o
quadro é capaz de moldar a interpretação, isto é, estabelecer um determinado
significado em dentrimento de tantos outros (GOFFMAN, 1974; 1999).
A este esquema mental negociado entre os atores dá-se o nome de framing –
enquadramento –, onde o signo pode ser deslocado em funçao do contexto em que é
aplicado. Dito isto, o aporte cultural para o qual se tensiona olhar aqui toma ainda mais
fôlego explicativo, pois este aporte também funciona como compartilhamento dos
“quadros possíveis” a serem apropriados pelos sujeitos para compor o contexto de
sentido que o jornal deseja focar. Nota-se que o framing remete à relação dimensional
do significado, no qual os quadros possíveis são permeados pela cultura (GOFFMAN,
1974).
Claramente observa-se uma negociaçao de sentidos, numa intersecção com o
desdobramento do tema a partir de Hall (2003b), o qual afirma que as pessoas negociam
os significados dos textos e das enunciações, expressos no processo de codificar e
61
“Often social construcitionism focuses on the language used in a given culture, for the culture’s
language determines to a large extent what can be known and what can be achieved by a society”
116
62
Citação sem página, pois o texto está disponível em versão virtual.
118
63
“if participants were discussing na international crisis, it was far more likely that they would rely on
media frames and popular wisdow than on their experiential knowledge, for they had no personal
experience with the issues at hand”.
119
análise fidedigna e ampla. Para organizar melhor esta análise, separaram-se as cinco
categorias ordenando-as em itens para em cada uma delas decupar o mapa descritivo,
sempre se atentando à distinção do material jornalístico do proferimento. Em seguida,
buscou-se apreender em linhas gerais o enquadramento dado à cultura em ambos,
apontando as porosidades entre os campos político e midiático.
64
SEITENFUS, Ricardo. É hora de o Brasil encerrar a missão no Haiti? NÃO. O Haiti não é aqui. Folha
de S. Paulo, São Paulo, 24 maio 2008. Seção Opinião.
124
Para suporte teórico a essa categoria será de apoio basilar a discussão trazida no
tópico “Cultura e identidade” presente no capítulo terceiro, dado que esta categoria
explica a vinculação identitária entre o Brasil e o Haiti considerando as aproximações e
entendimentos comuns entre os dois sob aspectos culturais e identitários de formação e
construção. Esta categoria abarca estrategicamente esta relação cultural tanto na
construção do Centro Cultural Brasil-Haiti, quanto na vinculação identitária criada pelo
“jogo da paz” de futebol ocorrido com a seleção brasileira no Haiti, bem como no
reconhecimento da importância da cultura local haitiana no processo de gestar a missão
ou no diferencial por serem tropas brasileiras, acionando semelhanças ainda que
superficiais ou simplesmente comparativas com a nossa cultura.
Tem-se, por exemplo, a comparação do hibridismo religioso prevalecente no
Haiti – vodu e catolicismo – com o sincretismo da religião afro-brasileira conhecida
como candomblé. Esses são modos de acionar em conjunto com o simbólico, o
imaginário, as tradições e a cultura compartilhados entre Brasil e Haiti. Canclini (2003)
já desnuda essa característica afrobrasileira através do que ele chama de identidade
africana transclassista e transétnica e que compartilha de uma herança afrocaribenha.
Estas raízes africanas comuns são retratadas no artigo seguinte escrito por Boris Fausto
a Folha:
O Haiti tem um lugar na nossa realidade e na nossa imaginação, por
várias razões. Entre elas, a controvertida presença das tropas
brasileiras na ilha, sob a bandeira da ONU, e a atração de seus rituais
de origem africana, que guardam parentesco com os nossos. Além
disso, podemos sempre nos consolar das mazelas nacionais
abandonando a ambigüidade proposta numa canção de Caetano e Gil,
para afirmar, com boas razões: “O Haiti não é aqui”. Entretanto o
Haiti foi o primeiro país do continente americano a proclamar sua
independência pela via de uma longa insurreição de negros e mulatos
(1804), que deixou profundas marcas entre dominantes e dominados. 65
Se o “Haiti não é aqui”, por que possuímos características tão fortes desse país e
ainda insistimos em aproximar os dois segundo aspectos históricos e culturais? A
resposta está neste mesmo trecho que aproxima certos traços culturais, revelando uma
tendência para positivar o fato das semelhanças serem somente de ordem simbólica, o
que situa numa posição de alívio o fato de o Brasil não padecer dos mesmos males que
65
FAUSTO, Boris. A ilha sem fantasia. Folha de S. Paulo, São Paulo, 12 ago. 2008. Caderno Mais.
125
o país haitiano tanto sofre. Há de se lembrar que o Haiti, encravado no Caribe, poderia
ter tido um destino semelhante à vizinha República Dominicana, com a qual divide a
ilha chamada Hispaniola, pois o país já foi também tão rico de belezas naturais. Porém,
devastações e catástrofes naturais, poluição desmedida, assim como o completo
abandono do governo haitiano dentro de uma seqüência de ditaduras transformaram
aquilo que, num passado remoto agregaria enorme potencial turístico, em um
aglomerado de casas sem qualquer infraestrutura, com intensa violência urbana que
justifica o monitoramento permanente das tropas azuis da ONU.
É interessante salientar que este excerto começa com o lugar que o Haiti tem em
“nossa realidade e imaginação”. Realidade porque o Brasil é o comandante das tropas
que se instalaram lá no país desde 2004; imaginação porque há um conjunto de idéias
que são acionadas quando se pensa no Haiti e numa missão de paz. Esta relação entre
realidade e imaginação é o que compõe o imaginário compartilhado, seja pelo discurso
da Folha de S. Paulo, seja pelos proferimentos políticos.
Manter este imaginário ambíguo é justamente aquilo que sustenta a vinculação
estratégica desta categoria, afinal, não é interessante nivelar ou eliminar as diferenças
que situam o Brasil como um país diferente e melhor, no quesito desenvolvimento
econômico e social, uma vez que ele é o responsável pelo comando da missão e deve,
por isso mesmo, trazer novos horizontes para a realidade haitiana. É a experiência do
Brasil como um modelo de desenvolvimento na América Latina, e ainda com origens e
compartilhamentos culturais comuns entre os dois países, que faz do Brasil o país capaz
de atuar positivamente e de forma diferente dos outros que já estiveram no Haiti. Como
afirmado no proferimento, o segundo motivo além da convocação e legitimidade da
ONU está expresso nas palavras de Celso Amorim:
66
Discurso do Ministro das Relações Exteriores, Embaixador Celso Amorim, na sessão de abertura da
Reunião Internacional de Alto Nível sobre o Haiti. Palácio Itamaraty, Brasília, 23 maio 2006.
67
MAISONNAVE, Fabiano. Favorito defende que missão fique no Haiti. Folha de S. Paulo, São Paulo,
06 fev. 2006. Caderno mundo.
127
68
Palavras do Ministro das Relações Exteriores, Embaixador Celso Amorim, na sessão de abertura do
Painel Internacional “Ações Afirmativas e Objetivos do Milênio”, Brasília, 29 jun. 2005.
69
STOCHERO, Tahiane. Após pacificação, Itamaraty promove arte brasileira no Haiti. Folha de S. Paulo
on line, São Paulo, 26 fev. 2008. Disponível em:
<http://www1.folha.uol.com.br/folha/mundo/ult94u376238.shtml>. Acesso em 05 jul. 2008.
128
70
DANTAS, Iuri. ONGs acusam Brasil de violações no Haiti. Folha de S. Paulo, São Paulo, 16 nov.
2005. Caderno Mundo.
71
Brasil ignora pedido e goleia por 6 a 0. Folha de S. Paulo, São Paulo, 19 ago. 2004. Caderno Brasil.
129
72
MICHAEL, Andrea. Seis estrelas, seis estrelas", celebram haitianos após o jogo do Brasil na Copa.
Folha de S. Paulo, São Paulo, 28 jun. 2006. Caderno Mundo.
73
Votação foi "revolucionária", diz rapper. Folha de S. Paulo, São Paulo, 09 fev. 2006. Caderno Mundo.
74
Saudação do Presidente da República, Luiz Inácio Lula da Silva, na chegada ao Aeroporto
Internacional Toussaint Louverture. Porto Príncipe - Haiti, 18 ago. 2004.
130
Tal acréscimo de “um sentido identitário regional” aos discursos oficiais, por
exemplo, possibilita compreender a maneira em que ocorre a passagem de justificativas
meramente políticas para então jutificativas e aportes culturais nesta intervenção
comandada pelo Brasil. Pois as tropas brasileiras não podem se esquivar e serem
indiferentes às diferenças culturais, é preciso estabelecer relações com o lugar e as
pessoas, como bem demonstra o jornal numa matéria onde a experiência e o
conhecimento de um médico brasileiro, o único a participar das missões militares
131
75
BONALUME NETO, Ricardo. Pobreza haitiana impressiona brasileiro. Folha de S. Paulo, São Paulo,
31 maio 2004. Caderno Mundo.
76
Discurso do Presidente da República, Luiz Inácio Lula da Silva, na cerimônia de embarque das tropas
militares para missão de paz no Haiti. Brasília, 31 maio 2004.
132
77
Audiência do Ministro das Relações Exteriores, Embaixador Celso Amorim, em Sessão Conjunta das
Comissões de Relações Exteriores e Defesa Nacional do Senado Federal e da Câmara dos Deputados.
Brasília, 02 dez. 2004.
133
Nesse sentido também se verifica uma aproximação regional por oposição, isto é,
salientam-se características positivas latino-americanas na missão em oposto ao mau
desempenho das violentas tropas jordanianas, já que somente as tropas compostas por
latino-americanos, devido à sua origem e história, seriam capazes de administrar melhor
a região e estarem em contato com a população haitiana. Segundo a matéria do jornal:
Relatório divulgado ontem pelo International Crisis Group, ONG que
estuda a prevenção de conflitos, apontou a retirada do contingente
jordaniano de Cité Soleil e sua substituição por tropas de origem
latino-americana como uma "contribuição significativa para a melhora
das relações entre a população local e as autoridades". "Diferenças de
língua, cultura e abordagem têm tornado difícil para os jordanianos
lidar com as complexidades urbanas, particularmente quando eles têm
sido alvo de ataques de franco-atiradores e de outros", diz a ONG. 78
Tal comparação com a periferia brasileira de forma estética e pouco adensada pode
ser um dos problemas decorrentes de uma aproximação identitária-cultural enfraquecida,
que pouco adensamento traz em função da própria liquidez e erosão das identidades
nacionais, afinal, a aproximação entre os habitantes de favela de um e de outro país
poderia ter outro enfoque que não fosse a questão da vaidade pessoal, mas neste caso
seria complexificar esta relação. Em Hall é vista a tensão quando se procura entender a
formação nacional vinculada a uma identidade unificada caminhando lado a lado do
processo de globalização a todo vapor. Se por um lado há diluição do Estado-Nação –
não apenas enquanto instituição política, mas também enquanto idéia simbólica de
78
VILA-NOVA, Carolina. Brasil se prepara para assumir área mais violenta do Haiti. Folha de S. Paulo,
São Paulo, 12 maio 2006. Caderno Mundo.
79
MICHAEL, Andréa. Haiti não é pior que periferia no Brasil, diz Pires. Folha de S. Paulo, São Paulo,
30 jun. 2006. Caderno Mundo.
134
80
Lula planta pau-brasil em visita a soldados. Folha de S. Paulo, São Paulo, 19 ago. 2004. Caderno
Brasil.
135
De outro lado, há exposição da fala de Amorim afirmando que a busca pela paz
tem um preço e que a omissão no Haiti significa também uma perda de influência nos
assuntos internacionais:
o chanceler Celso Amorim voltou a defender a participação brasileira
na missão da ONU: "A paz tem um preço. A paz não é de graça e, se
você se omite na defesa da paz, vai pagar um preço também, nem que
seja perdendo influência nos assuntos internacionais. Às vezes sinto
no Brasil um sentimento de isolacionismo. Mas ninguém existe fora
do mundo", disse, em entrevista. 82
81
Para Lafer, política de Lula é a do espetáculo. Folha de S. Paulo, São Paulo, 18 ago. 2004. Caderno
Brasil.
82
MAISONNAVE, Fabiano. Haitiano espancado passa bem; ONU considera o caso superado. Folha de S.
Paulo, São Paulo, 23 out. 2004. Caderno Mundo.
83
Discurso do Presidente da República, Luiz Inácio Lula da Silva, perante a Brigada Brasil da Missão das
Nações Unidas para o Haiti. Porto Príncipe, Haiti, 18 ago. 2004.
138
É notório que justamente por ser visto o Brasil como o país interventor, a
situação caótica no Haiti é capaz de ser revertida tendo o nosso país como salvador da
84
Audiência do Ministro das Relações Exteriores, Embaixador Celso Amorim, em Sessão Conjunta das
Comissões de Relações Exteriores e Defesa Nacional do Senado Federal e da Câmara dos Deputados.
Brasília, 02 dez. 2004.
139
pátria haitiana, o herói, como revelou Charaudeau na passagem anterior, sendo o único
capaz de reconstituí-lo e de reintroduzir a paz naquele país. Condizente no discurso 1-b
com a linha de interesses e valores internos, Lula aciona questões de vínculo identitário
também para convencer as tropas de que é legitimo, possuindo o direito de comandar a
missão segundo as normas da ONU e também porque a intenção e ação da MINUSTAH
é coerente com nossas questões internas, e de que o Brasil tem credibilidade, ou seja,
capacidade de fazer e realizar a operação de paz.
Neste ponto é que se situam as críticas de que há claro uso da legitimidade para
atender aos anseios e prerrogativas puramente do Itamaraty, incluindo a demonstração
brasileira de força militar e regional para se conquistar uma cadeira no Conselho de
Segurança das Nações Unidas, exatamente como se observa na insistência da matéria
seguinte em mostrar que o interesse brasileiro de arriscar soldados em uma operação de
paz é destinada a uma conquista de política externa, mostrando lacunas sobre o que se
justificaria à população e ao congresso:
Liderada pelo Brasil, a missão de paz da ONU no Haiti tem servido
como um dos alicerces do Itamaraty para vender ao mundo a
possibilidade de o país obter um assento permanente no Conselho de
Segurança das Nações Unidas. Em 2004, ao receber dos EUA o
comando da missão haitiana, o Brasil passou a liderar pela primeira
vez uma força da ONU justamente para chamar a si uma maior
responsabilidade nas ações da instituição. Agora, com a morte de
Bacellar, o governo sabe que aumentarão as críticas e terá de dar
explicações cada vez mais constantes, principalmente no Congresso,
se vale a pena arriscar a vida de homens brasileiros em troca de uma
aspiração da política externa [...] Lula "reitera sua plena confiança no
trabalho desenvolvido pelas tropas brasileiras no Haiti e reafirma a
determinação do governo brasileiro de continuar apoiando o povo
haitiano na construção da paz e normalização política" do país. 85
85
CASTANHEDE, Eliane; SCOLESE, Eduardo. Morte abala política externa de Lula. Folha de S. Paulo,
São Paulo, 08 jan. 2006. Caderno Mundo.
140
86
Audiência do Ministro das Relações Exteriores, Embaixador Celso Amorim, em Sessão Conjunta das
Comissões de Relações Exteriores e Defesa Nacional do Senado Federal e da Câmara dos Deputados.
Brasília, 02 dez. 2004.
141
Não é por acaso que a fala de Ricardo Seitenfus está em harmonia e consonância
com o proferimento de Celso Amorim. Este pesquisador das relações internacionais foi
selecionado para auxiliar a negociação política junto ao embaixador chileno Juan
Gabriel Valdez, que é o Chefe-Geral da MINUSTAH. Amorim situa o papel de
Seitenfus em trecho do mesmo discurso que contém o excerto anterior:
87
SEITENFUS, Ricardo. É hora de o Brasil encerrar a missão no Haiti? NÃO. O Haiti não é aqui. Folha
de S. Paulo, São Paulo, 24 maio 2008. Seção Opinião.
88
Audiência do Ministro das Relações Exteriores, Embaixador Celso Amorim, em Sessão Conjunta das
Comissões de Relações Exteriores e Defesa Nacional do Senado Federal e da Câmara dos Deputados.
Brasília, 02 dez. 2004.
142
para esse trabalho, o Professor Ricardo Seitenfus, que está aqui e vai
participar de uma outra audiência, também foi enviado, não como um
enviado do Brasil para atuar no Haiti, mas como alguém para
colaborar com os esforços das Nações Unidas no Haiti. 89
89
Ibdem.
90
Ibdem.
91
Os ônus do Haiti. Folha de S. Paulo, São Paulo, 17 nov. 2005. Seção Opinião.
143
4.1.3 Cultura como recurso para empreender uma cooperação internacional, altiva
e adequada às novas orientações do cenário global
92
MAISONNAVE, Fabiano. Contra críticas, ministro de Lula voa para o Haiti. Folha de S. Paulo, São
Paulo, 11 jun. 2005. Caderno Mundo.
144
E por causa disso, tratar a atuação do Brasil como uma ajuda a um país irmão,
endossada pela ONU, é outra maneira de dizer que o nosso país está cada vez mais
ciente da responsabilidade no cenário internacional e do seu papel especial em assuntos
e problemas da região. É por este caminho que esta categoria se forma, dando vazão a
assuntos de estratégia de política externa brasileira tangenciada por temas da ordem
cultural. Em outro artigo escrito pelo general Heleno, assim que terminou seu mandato
como comandante da MINUSTAH, resumiu isto ao dizer que:
No caso do Haiti, inegavelmente um grande desafio, até os pessimistas
de plantão reconhecem que, sem a intervenção da ONU, teria
explodido uma sangrenta guerra civil. [...] Como insiste o embaixador
Valdés, não serão eleições austríacas nem suíças. Esperamos dos
julgadores a mesma tolerância demonstrada ao analisar pleitos
efetuados, recentemente, em outras zonas "quentes". Penso que o
futuro do Haiti depende, fundamentalmente, da participação solidária
dos países latino-americanos. Nossa familiaridade com problemas
semelhantes poderá ajudar o futuro governo na busca de soluções
viáveis e duradouras. 94
93
SEITENFUS, Ricardo. Haiti, ano 1? Folha de S. Paulo, São Paulo, 06 mar. 2005. Seção Opinião.
94
PEREIRA, Augusto Heleno Ribeiro. Folha de S. Paulo, São Paulo, 11 set. 2005. Seção Opinião.
95
Discurso do Presidente da República, Luiz Inácio Lula da Silva, na 59ª Assembléia-Geral da ONU
Senhor. Nova York, EUA, 21 set. 2004.
145
Há momentos em que o Brasil deixa claro querer transformar estes ditames que
já orientam as relações internacionais atuais ao se atentar para as novas necessidades do
cenário global, avaliando aquilo que se defende como “novos paradigmas”. No caso das
missões de paz, especificamente, o país é adepto a enfatizar os objetivos de cooperação
– ampliando o setor de desenvolvimento econômico e social dentro do sistema de
segurança coletiva –, evidenciando, nesse sentido, os esforços das autoridades
brasileiras em ressignificar este tipo de operação, antes calcada principalmente no uso
da força, conforme regulamentado pelo capítulo VII da Carta das Nações Unidas
(HIRST, 2008). Outro motivo que se insere nesse interesse de reformular o regimento
entre os atores internacionais e transnacionais está a clara bandeira levantada pelo Brasil
em reformar o Conselho de Segurança da ONU. Sutilmente este aspecto é visto na fala a
seguir do presidente Lula:
Ao refletirmos sobre a ação externa do Brasil, não poderia deixar de
me referir aos desafios que se colocam no plano da paz e da
segurança. [...] Temos liderado o esforço das Nações Unidas no Haiti,
na esperança de que possamos criar um novo paradigma para as
operações de paz. [...] Para afirmar a democracia no plano
internacional, é preciso reconhecer que a pluralidade de visões é
legítima e que há um espaço crescente a ser dado à ação diplomática. 96
96
Discurso do Presidente da República, Luiz Inácio Lula da Silva, na abertura do Colóquio “Brasil: Ator
Global”. Paris, França, 13 jul. 2005.
146
97
Discurso do Presidente da República, Luiz Inácio Lula da Silva, na 59ª Assembléia-Geral da ONU
Senhor Luiz Inácio Lula da Silva. Nova York, EUA, 21 set. 2004.
98
DÁVILA, Sérgio. Brasil precisa ampliar base de apoio, afirma secretário da ONU. Folha de S. Paulo,
São Paulo, 11 nov. 2007. Caderno Brasil.
147
E isto está dentro do que se entende por nova adequação do cenário global, pois
significa incluir também os problemas endógenos de um país como implicados a todos,
dentro de uma responsabilidade coletiva que extravase fisicamente aquele país. Assim
se propõe a substituição do termo não-intervenção para o de responsabilidade de
proteger:
Quando as populações sofrem por causa de guerras internas,
repressão, ou falência do Estado, e o Estado em questão não pode ou
não quer agir para diminuir tal sofrimento, o princípio da não-
intervenção deve ser substituído pelo princípio da responsabilidade de
proteger. Em caso de conflito ou uso da força, isto implica um
compromisso internacional real para com a reconstrução e
consolidação da paz (MELLO, 2005, p. 22).
Por outro lado, há implicações que são ligadas a esta substituição, como
problemas da ordem de imposição de concepções claramente ocidentais, como
governança democrática e direitos humanos; assim como considerações estratégicas
podem vir a determinar a interferência em outro país, ou só acontecer mediante
consonância aos interesses vitais dos Estados interventores. Entretanto, nas palavras de
Amorim, o que justifica o interesse brasileiro é outro, mais da ordem da proximidade
histórica, geográfica. Isto é o que nos impinge para uma responsabilidade maior com o
país irmão:
99
MAISONNAVE, Fabiano. Apesar da ONU, Haiti vira "terra de ninguém". Folha de S. Paulo, São
Paulo, 12 jun. 2005. Caderno Mundo.
148
100
Discurso do Ministro Celso Amorim na Reunião Especial do Conselho de Segurança das Nações
Unidas sobre o Haiti. Nova York, 12 jan. 2005.
101
SCOLESE, Eduardo. Rumsfeld se diz preocupado com Venezuela. Folha de S. Paulo, São Paulo, 24
mar. 2005. Caderno Mundo.
149
Esta fala traz o jogo da paz como um gesto da comunidade internacional ativar a
confiança dos haitianos e demonstrar a solidariedade. Apesar de atos como esse, as
críticas são bem evidentes, sobretudo nos textos jornalísticos, a exemplo deste:
A diplomacia brasileira, dita "ativa e altiva", vem intensificando suas
ações e trabalhando em ritmo acelerado. [...] Como documentamos no
recente relatório "Mantendo a Paz no Haiti?", baseado em nossas
visitas ao Haiti ao longo dos últimos meses, a atuação da ONU
naquele país, para a qual o Brasil contribui decisivamente, é
lamentável. [...] Apesar de receber relatórios e mais denúncias sobre
os problemas no Haiti, o governo brasileiro mostra uma reação que
tem sido nula em termos práticos. 103
102
Discurso do Ministro Celso Amorim na Reunião Especial do Conselho de Segurança das Nações
Unidas sobre o Haiti. Nova York, 12 jan. 2005.
103
GAIO, Carlos Eduardo; CAVALLARO, James Louis. Conselho de Segurança a qualquer custo? Folha
de S. Paulo, São Paulo, 29 maio 2005. Seção Opinião.
150
dos anos 1980 pelas praias, pela pintura naïf e pelo vodu, os turistas
desertaram o Haiti [...]. Depois de sofrerem inúmeras frustrações em
seu relacionamento com a França e os Estados Unidos, os haitianos
esperam forte cooperação dos países latino-americanos. 104
Esta categoria diz respeito a uma nova maneira de conduzir uma missão de paz
inaugurada pelo Brasil, calcada principalmente em seu viés não-violento e voltado para
a construção da paz em amplo sentido, intitulada de “cultura como recurso de uma
construção pacífica e solidária”. Isto advém de uma cultura brasileira de não-violência,
de respeito à cultura política local, em que o desenvolvimento da região está relacionado
mais ao que o próprio Haiti pode sustentar, do que propriamente a um modelo trazido
pelo Brasil em nome da ONU, trata-se do chamado desenvolvimento sustentado
(RIBEIRO, 2000).
Difere-se da categoria anterior principalmente por avançar na ênfase de que a
colaboração brasileira na MINUSTAH pode alterar a maneira de gerir uma missão de
paz, privilegiando o diálogo, a paz e a solidariedade. Segundo Charaudeau (2006a)
sobre os discursos políticos que tematizam a solidariedade de um modo geral: “De fato,
os discursos fazem a noção de solidariedade deslocar-se de um ‘direito de intervenção’
104
CAROIT, Jean-Michel.Haiti: rude transição para a democracia. Folha de S. Paulo, São Paulo, 26 fev.
2006. Caderno Mundo.
151
para um ‘dever de intervenção’ em virtude de uma causa humanitária” (p. 237). E nesse
caso, não se trata de uma escolha, mas de uma obrigação; uma responsabilidade que
deve guiar as ações do Brasil perante as atrocidades e mazelas que foram e são
enfrentadas pelo povo haitiano. Como diz Amorim:
A cooperação internacional na esfera dos direitos humanos e da
assistência humanitária deve orientar-se pelo princípio da
responsabilidade coletiva. Temos sustentado - em nossa região e fora
dela - que o princípio da não-intervenção em assuntos internos dos
Estados deve ser acompanhado pela idéia da “não-indiferença”. [...] A
mesma solidariedade inspira a participação do Brasil nos esforços de
paz das Nações Unidas no Haiti. 105
105
Discurso do Ministro de Estado das Relações Exteriores, Embaixador Celso Amorim, na abertura do
debate geral da 60a Sessão da Assembléia Geral das Nações Unidas. Nova York, 17 set. 2005.
106
Discurso do Presidente Luiz Inácio Lula da Silva na Reunião de Cúpula do Conselho de Segurança das
Nações Unidas.Nova York, 14 set. 2005.
107
Discurso pronunciado pelo Ministro Celso Amorim, em sessão do Conselho de Segurança das Nações
Unidas sobre Aspectos Civis da Gestão de Conflitos e a Construção da Paz. Nova York, 22 set. 2004.
152
Isso diz da forma como os políticos tentam fazer entender uma participação
dessa envergadura no Haiti, a fim de cumprir um modelo de Estado e de paz condizente
108
Ibdem.
109
Discurso do Ministro de Estado das Relações Exteriores, Embaixador Celso Amorim, na abertura do
debate geral da 60a Sessão da Assembléia Geral das Nações Unidas. Nova York, 17 set. 2005.
153
110
Discurso do presidente da República, Luiz Inácio Lula da Silva, na XV Cúpula Ibero-Americana: “A
Projeção Internacional da Comunidade Ibero-Americana”. Salamanca, Espanha, 15 out. 2005.
111
SCOLESE, Eduardo; Rangel, Sérgio. Presidente visita time antes do jogo. Folha de S. Paulo, São
Paulo, 18, ago. 2004. Caderno Brasil.
154
Haiti’” 112 . Na fala do chanceler Celso Amorim, presente em outra matéria do jornal, ele
afirma que:
Não é possível resolver os problemas de segurança do Haiti
isoladamente da situação política, humanitária, social e econômica.
Ao estilo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, Amorim usou uma
metáfora para dizer por que países em desenvolvimento, na sua visão,
são mais solidários. "Você vai no interior do Brasil e vê gente pobre
adotando crianças enquanto as classes média e rica são mais
hesitantes." 113
112
MAISONNAVE, Fabiano. "Existe muita resignação e pouco desespero”. Folha de S. Paulo, São
Paulo, 21 set. 2004. Caderno Mundo.
113
KRAKOVICS, Fernanda. Para Celso Amorim, nações ricas têm concepção diferente do Haiti. Folha
de S. Paulo, São Paulo, 03 dez. 2004. Caderno Mundo.
114
Discurso do presidente da República, Luiz Inácio Lula da Silva, na XV Cúpula Ibero-Americana: “A
Projeção Internacional da Comunidade Ibero-Americana”. Salamanca, Espanha, 15 out. 2005.
155
população. É o caso trazido na notícia 115 em que se diz que todos haitianos reconhecem
a diferença entre a marinha americana da brasileira, por que no passado os EUA teriam
usado alto calibre junto à população quando não havia necessidade de tanto armamento,
inclusive com a exemplificação de uma freira, diretora de uma escola haitiana, a qual
explica que somente por causa dos “brasileiros” a escola pôde permanecer aberta com
segurança.
Outra comparação, que também coloca em posição mais pacífica o Brasil e, por
isso, melhor visto pela população haitiana, é entre os brasileiros e os jordanianos. Estes
são taxados pelo excesso de violência empregado durante a atuação militar:
Enquanto os militares jordanianos sofrem para controlar a favela de
Cité Soleil, os capacetes azuis brasileiros têm recebido elogios no
Haiti pelo trabalho realizado em Bel Air, até há pouco considerada
uma das zonas proibidas de Porto Príncipe. Localizada num morro
perto do centro da cidade, a favela deixou de ser evitada pelos
motoristas de outras partes da cidade, que hoje cruzam sem receio
suas ruas antes interditadas por carcaças de automóveis. 116
Isto reforça a conquista da receptividade do povo haitiano por parte dos soldados
brasileiros, facilitando a atuação do Brasil como frente da operação de paz no referido
país. A realização de obras como a praça e a escola, sublinhado pela própria matéria,
trará, sem dúvida, repercussão social positiva, amenizando o estranhamento que uma
115
MAISONNAVE, Fabiano. Um ano depois, Haiti amarga incertezas. Folha de S. Paulo, São Paulo, 27
fev. 2005. Caderno Mundo.
116
Trabalho de brasileiros é elogiado em Porto Príncipe. Folha de S. Paulo, São Paulo, 07 fev. 2006.
Caderno Mundo.
117
MICHAEL, Andréa. Brasileiros tentam pacificar a maior favela de Porto Príncipe. Folha de S. Paulo,
São Paulo, 02 jul. 2006. Caderno Mundo.
118
Ibdem.
157
ação militar provoca em meio a uma vida cotidiana da sociedade haitiana. O teórico
Aguilar (2008) explica essas benfeitorias destinadas à população local:
É interessante destacar que essa atuação junto às comunidades
carentes tem sido comum na atuação de tropas brasileiras nas diversas
operações de paz é também uma aplicação da experiência que as
Forças Armadas adquiriram ao longo de sua própria história por conta
das hoje denominadas Ações Cívico-Sociais (ACISOs) e que são
executadas por todas as unidades militares, em qualquer região do
Brasil em que se encontrem, nas mais diversas áreas como saúde,
educação, cultura, etc., mas sempre voltadas ao apoio às
comunidades carentes. A utilização dessas ações durante a
manutenção de paz, não almeja substituir as agências que têm essas
missões específicas, mas usá-las para a conquista do apoio popular,
fundamental para o sucesso de qualquer operação desse tipo (p. 5).
"O trabalho feito em Bel Air é um modelo que seria muito interessante
para Cité Soleil e também para o Brasil, embora não precise ser feito
necessariamente pelos militares", disse à Folha o deputado Fernando
Gabeira (PV-RJ), que está no Haiti e tem sido crítico da participação
brasileira na missão de paz da ONU. "A brigada fez trabalhos
concretos que o Estado não supre, como pavimentação, assistência
médica, ainda que precária, e a coleta do lixo." "Na época, havia uma
situação muito caótica por causa do movimento das gangues. Com os
brasileiros, a situação melhorou completamente", afirmou um técnico
em informática desempregado de 30 anos, que preferiu o
anonimato. 120
119
STOCHERO, Tahiane. Comandante brasileiro no Haiti vê favela mais segura. Folha de S. Paulo, São
Paulo, 01 mar. 2008. Caderno Mundo.
120
Trabalho de brasileiros é elogiado em Porto Príncipe. Folha de S. Paulo, São Paulo, 07 fev. 2006.
Caderno Mundo.
158
121
SEQUEIRA, Cláudio Dantas. Atividades não militares ocupam tropa. Folha de S. Paulo, São Paulo,
19 maio 2008. Caderno Brasil.
122
MAISONNAVE, Fabiano. Violência reacende em Porto Príncipe. Folha de S. Paulo, São Paulo, 17
jun. 2006. Caderno Mundo.
159
Ainda que esta categoria se utilize de algumas falas de dirigentes oficiais, não há
nenhum proferimento enquadrado nesta categoria, pois o mais importante nos discursos
políticos é mostrar que o Brasil tem o apoio da população haitiana, mas como um
apêndice para satisfazer melhor outra categoria. É como se identifica em determinados
proferimentos a presença de traços e momentos em que isto fica evidente, como no
discurso abaixo de Amorim dirigido ao Senado:
Há também um projeto saído da nossa área cultural; tivemos que
operar com certa largueza, mas esperemos que seja compreendido
pelos órgãos que controlam a contabilidade, como divulgação cultural
123
MICHAEL, Andréa. Brasileiros tentam pacificar a maior favela de Porto Príncipe. Folha de S. Paulo,
São Paulo, 02 jul. 2006. Caderno Mundo.
124
População elogia força, mas pede fim da miséria. Folha de S. Paulo, São Paulo, 01 mar. 2007.
Caderno Mundo.
125
ABDENUR, Roberto. É hora de o Brasil encerrar a missão no Haiti? SIM. Novos desafios para as
Forças Armadas. Folha de S. Paulo, São Paulo, 24 maio 2008. Seção Opinião.
160
126
Audiência do Ministro das Relações Exteriores, Embaixador Celso Amorim, em Sessão Conjunta das
Comissões de Relações Exteriores e Defesa Nacional do Senado Federal e da Câmara dos Deputados.
Brasília, 02 dez. 2004.
127
BONALUME NETO, Ricardo. Haitianos pedem emprego para soldados brasileiros. Folha de S.
Paulo, São Paulo, 04 jun. 2004. Caderno Mundo.
128
BONALUME NETO, Ricardo. Tropa da ONU usa gás para dispersar haitianos famintos. Folha de S.
Paulo, São Paulo, 25 set. 2004. Caderno Mundo.
161
orientação do governo para o qual representam. Pois, já que os discursos têm funções
restritivas e coercitivas, como bem indica Foucault (2008), “ninguém entrará na ordem
do discurso se não satisfizer a certas exigências e se não for, de início, qualificado para
fazê-lo” (p. 37).
Vê-se que os discursos são alinhados com as práticas políticas justamente porque
um define o outro, isto é, discurso institui prática. Ocorre nos proferimentos, portanto,
que os políticos ao direcionarem a intencionalidade de uma instituição “Não são as
pessoas de carne e osso, mas as entidades humanas, cada qual sendo o lugar de uma
intencionalidade, e categorizadas em função dos papéis que lhe são destinados”
(CHARAUDEAU, 2006a, p. 55). Conforme preconiza o autor, é na maneira de se
apresentar os valores institucionais que os gestores passam a adquirir sentido no espaço
político, acrescentando-se também no espaço público, pois é quando ele é dado a ver
junto à argumentação que o circunda.
Fiorin (2004) relembra que “o enunciador, para constituir um discurso, leva em
conta o discurso de outrem, que está presente no seu” (p. 37) – referenciando Bakhtin
(2002) no que tange a heterogeneidade da linguagem, isto é, o dialogismo. Fiorin (2004)
faz a diferenciação entre a heterogeneidade constitutiva e a mostrada. Na constitutiva a
presença de outros discursos é implícita, mais escamoteada, isto é, incorporada e
disfarçada no interior do texto discursivo. Já na heterogeneidade mostrada o discurso é
trazido de forma mais explícita, com presença de aspas ou discurso indireto. No jornal é
visto as duas, seja nos editoriais, a constitutiva, seja nas matérias, com a mostrada. Já
nos proferimentos a constitutiva é dominante, pois quando o discurso é escrito e
proferido tem-se a particularidade de parecer ser original, autêntico, pertencente à
representação governamental que o transmite. E ainda que o seja, o discurso político
não transparece o retalho de discursos do qual é construído.
Por isso o discurso é um dizer e um dito, de modo que “O discurso é um objeto
integralmente lingüístico e integralmente histórico, o que significa que ele é uma
estrutura lingüística gerada por um sistema de regras que define sua especificidade, mas,
ao mesmo tempo, que nem tudo é dizível” (FIORIN, 2004, p. 39). É tecido o discurso
de acordo com aquilo que se pretende dizer e contradizer:
Um discurso remete a duas concepções diferentes: aquela que ele
defende e aquela em oposição à qual ele se constrói. O fato de o ponto
de vista defendido num discurso constituir-se em oposição a outra
perspectiva, de a maneira de ver um assunto gerar-se numa relação
164
Esta oposição explícita se observa, por exemplo, entre as falas de Celso Lafer e
de Celso Amorim no que tange a política externa e o empenho na missão. Para o
primeiro é um ônus com poucos frutos, para o segundo, representa uma inserção mais
concreta no multilateralismo. Para além desse exemplo explícito, indiretamente também
é identificável a oposição nas relações estabelecidas entre argumentos jornalísticos, com
uso de relatórios e as falas de organizações sociais que criticam a atuação brasileira, e,
de outro lado, explicações de defesa e de ênfase na importância do comando brasileiro
por parte dos proferimentos, ou mesmo na voz do pesquisador Ricardo Seitenfus em
artigos ou editoriais da Folha de S. Paulo.
Quanto à qualidade heterogênea do discurso, dita acima por Fiorin (2004), é
possível fazer uma aproximação ao conceito dos enquadramentos e, em seguida,
adentrar na análise do material pesquisado. Um dado discurso, seja o midiático, seja o
proferimento político, pode ser composto por enquadramentos concorrentes que se
equilibram no todo, ou que simplesmente revele a predominância de um
enquadramento. Nesse caso o discurso é imbuído deste enquadramento dominante,
prevalecendo certo posicionamento.
O discurso é sempre a arena em que lutam esses pontos de vista em
oposição. Um deles pode ser dominante. Isso, no entanto, não elimina
o fato de que concepções contrárias se articulam sobre um
determinado assunto (FIORIN, 2004, p. 46).
categoria 5 categoria 1
(13) (10)
categoria 4
(4)
categoria 2
( 9)
categoria 3
(12)
Estágio II 3 5 3 0 5
Estágio III 3 1 2 1 5
categoria 3
categoria 2 (4)
(3)
categoria 4
(3)
categoria 1 categoria 5
(3) (0)
Já em relação a cada estágio, a tabela seguinte mostra que a quase totalidade dos
proferimentos são apresentados no primeiro estágio. É nesse momento em que a
construção discursiva dos proferimentos políticos confere o lugar da cultura enquanto
um recurso fundamental ao modo de se fazer entender a missão no Haiti. Sem tal
conformação as primeiras diretrizes brasileiras frente ao novo projeto dentro da política
externa concentrariam as razões da MINUSTAH apenas em questões pragmáticas de
corresponder a uma demanda internacional, que pouco ou nada poderia partilhar ou
relacionar ao Brasil e à sua cultura. Por isso, todos os 14 discursos que tematizam a
MINUSTAH fazem uso da cultura como um recurso. Mais adequadro à análise da
categoria de número 2, mas que se estende de alguma maneira às demais, tem-se que o
sujeito político da instância pública que ele representa é legitimado pelo consentimento
e de pleno acordo dos cidadãos, que inclusive são alvos do seu discurso. Ele só é
soberano porque foi imbuído de poder para tal status, nao sendo, portanto a entidade
política em si, mas é porta-voz dos valores que constituem o poder dela.
Assim, segundo a tabela 5 há predominância da categoria 3 no primeiro estágio,
da categoria 4 no segundo e da categoria 1 no terceiro, conforme segue:
168
Estágio II 0 0 0 1 0
Estágio III 1 0 0 0 0
nacionais, pois é formado por representantes dos próprios Estados, e por outro lado,
certa autonomia de ação, já que pode pressionar um dado Estado a agir conforme as
prerrogativas ditadas pela organização ou por outro acordo internacional vigente e
acertado entre as partes, agindo como instâncias capazes de controlar o próprio Estado.
É por isso que as instâncias supranacionais estão numa relação de autonomia e
dependência quanto às instâncias nacionais (Charaudeau, 2006a). Segundo Charaudeau
(2006a) “as instâncias nacionais sofrem a pressão regional dos que se encontram entre o
desejo de marcar sua especificidade ante o Estado, e o de serem diretamente
reconhecidos pelas instâncias supranacionais por meio de uma recomposição regional
que supere os Estados” (p. 30).
Já nos textos jornalísticos há uma tendência de enfocar o caráter de autoridade
da missão, insistindo na imagem da MINUSTAH como uma intervenção militar, dotada
de tropas, forças, tanques de guerra e armamentos militares, humanizando alguns atos
isolados dos soldados brasileiros, mas não destituindo da atuação brasileira o seu caráter
autoritário. Pois se a legitimidade é um direito atribuído, a autoridade é o processo de
submissão pelo qual o outro é condicionado, isto é, quando alguém é conduzido a fazer
algo por imposição de outrem. Naquela diferenciação de Nye (2002) entre soft power
(poder brando, onde se localizaria a cultura) e hard power (poder duro, impositivo),
pode-se entender que o primeiro estaria mais relacionado a atitudes calcadas na
legitimidade, enquanto o segundo na autoridade, através do uso da força e do poder
econômico e militar. Porém, “se, entretanto, a autoridade se confunde às vezes com a
legitimidade, é com a finalidade de se fazer prevalecer. A autoridade vem então se
somar à legitimidade. Ela decorre do fato de que um sujeito, para confirmar sua posição
de legitimidade, necessita exercer uma sanção sobre aqueles que não querem se
submeter, recorrendo, eventualmente, à violência para se fazer obedecer”
(CHARAUDEAU, 2006a, p. 68). E assim se dá o desdobramento da atuação de forma
legítima e autoritária, considerando a leitura trazida pela categoria de número 3,
pendendo ora para uma, ora para outra a depender do meio para o qual se olha.
Dentro desta análise de condensação dos resultados é desenvolvida uma
interpretação do enquadramento da cultura sobre a MINUSTAH referente a cada
estágio, na medida em que permite avaliar tanto a porosidade quanto as discrepâncias
encontradas dentro dos dois campos discursivos – textos jornalísticos e proferimentos
políticos. Para tanto, é de suma importância retomar os três estágios da MINUSTAH:
171
Este é o período mais curto dentre os três estágios, com menos de um ano de
recorte temporal. Entretanto, no caso dos textos jornalísticos, ainda se mantém um
volume alto de textos que convocam a dimensão cultural.
Isto se deve, em grande parte, por ser um estágio importante, marcado pelos
processos de transição política no Haiti, com a preparação das eleições democráticas.
Apesar de ter culminado com a vitória de Préval, o que efetivava na prática a transição
democrática, foi um momento conturbado, que colocou em xeque a capacidade
brasileira de comandar a missão, dado que as dificuldades de realizar a eleição foram
muitas: Adiamentos, vazamentos de informações sigilosas, ataques violentos que
incutiam medo na população etc. Tudo retratado pelo jornal.
Mas o forte argumento de que era preciso o Brasil atuar na MINUSTAH, a fim
de garantir a ordem no Haiti naquele momento, sob a bandeira da paz e de garantia da
solidariedade foi representativamente visto no único proferimento realizado neste
período, reafirmando a consolidação da paz e da democracia, numa verdadeira e
pacífica construção social e econômica daquele país.
Contrariamente a este discurso, o enquadramento do jornal nesse período não
traz nenhuma incidência da categoria de número 4 – a qual melhor expressa o
proferimento de mesmo período. Os textos jornalísticos vão é na direção de justificar,
seja perante o povo haitiano ou o povo brasileiro, os pilares, argumentos e
características da intervenção da missão. Muito provavelmente rebatendo esta
instabilidade pelo qual o comando brasileiro passava no Haiti, haja vista as críticas e as
visões desacreditadas perante o desempenho do Brasil na missão. Assim os textos do
jornal se incumbiram de mostrar a busca pela legitimidade das atitudes e embasamentos
da atuação brasileira na MINUSTAH, sob argumentos e exemplos de dimensão cultural.
CONCLUSÃO
A cultura como um recurso da política
dos proferimentos com proporção bem maior que a dos discursos. E na categoria de
número 5 não há nenhum proferimento que a enquadre, de modo que, inversamente, no
caso dos textos jornalísticos, é o enquadramento predominante:
que emergem. E por isso, seja nos proferimentos, seja nos textos jornalísticos, a cultura
é dada como um recurso capaz de transformar a triste realidade haitiana, promovendo
uma mudança política, econômica e social. Haja vista que esta foi justamente a
categoria que prevaleceu no primeiro estágio, num momento em que a cautela, o
convencimento e a legitimidade eram fundamentais para a difusão da assunção do
comando brasileiro na MINUSTAH.
Sendo a cultura regulada, nos moldes em que entende Hall (2008), pelos
discursos brasileiros – que por sua vez são regulados pela ONU – como uma maneira de
regular a própria intervenção em si, já que nas palavras dele:
Isto explica por que a regulação da cultura é tão importante. Se a
cultura, de fato, regula nossas práticas sociais a cada passo, então,
aqueles que precisam ou desejam influenciar o que ocorre no mundo
ou o modo como as coisas são feitas necessitarão — a grosso modo —
de alguma forma ter a “cultura” em suas mãos, para moldá-la e regulá-
la de algum modo ou em certo grau (HALL, 2008).129
129
Citação sem página, pois o texto está disponível em versão virtual.
179
pois é uma missão multilateral da ONU, que pretende reconstruir o Estado sob moldes
que a cena internacional julga adequados. E mais uma vez se recai na categoria de
número 3.
É natural que a cultura entre com força nos argumentos brasileiros da missão,
uma vez que ela pertence ao que Yúdice (2004) chama de “desmaterialização do
recurso”. E por isso é ativada como capaz de orientar uma espécie de missão de paz em
que se respeita o local, reconhece as particularidades e promove uma troca positiva
entre o país interventor e aquele que recebe as tropas. Desse modo, o papel da cultura é
redescoberto dentre os recursos outros que tornam efetiva e viável a missão, como o
militar, a ajuda econômica, doações de alimentos e remédios etc., recursos esses que são
materiais. Então dentro das prerrogativas teóricas da tese da cultura como um recurso, a
cultura serve para criar um ambiente favorável para a mudança política e econômica no
Haiti, reestruturando o país naquelas três fases da missão. A mudança da preocupação
que era com o conteúdo e passa para o gerenciamento da cultura fica evidente nos
discursos dos políticos. Pois embora o imaginário e os trabalhos artístico-culturais
sejam invocados, como na fala de Amorim sobre a cultura naïf, este conteúdo é
gerenciado para mostrar uma vinculação identitária que justifica o comando brasileiro e
ao mesmo tempo ameniza a atuação dos brasileiros junto ao povo irmão. Tal qual se
observa na categoria de número 1, a qual tem considerável predominância no estágio
terceiro, dado que este estágio prevê reformas sociais e de desenvolvimento, cujas
invocações culturais diante desses procedimentos são ainda maiores.
É claro que este gerenciamento da cultura obedece também às constrições e
regulações da ONU, já que é uma missão por ela determinada. Não se pode esquecer
todo o contexto de interdependência assimétrica que cerca as relações internacionais e
que definem também que esse gerenciamento não se distribua equitativamente por todo
o globo. Com vistas à realidade presenciada no plano internacional, apenas alguns
detêm o poder de gerenciar a cultura. Isto quer dizer, principalmente de acordo com a
categoria de número 3, que o Brasil conhece o potencial do uso de sua cultura e de seu
imaginário frente a este cenário, tendo pleno conhecimento de como isto é visto pelos
outros países para empreender uma missão adequada. Porém, em última instância é a
ONU que detém a regulação, já que é ela a determinar qual país assume a missão de paz
segundo motivações próprias que a leva a uma escolha e não outra.
180
A natureza simbólica constitui grande parte daquilo que se invoca como cultura
dentro dos discursos. É ela que amarra no discurso político toda a legitimidade e
justificativa que invocam as cinco categorias. Se a imagem simbólica construída pelos
discursos políticos é bastante forte, deve-se também os mesmos discursos mergulharem
nos imaginários populares amplamente compartilhados, pois são reconhecidos por
grande parte do público o que torna mais fácil a compreensão do que se pretende dizer
com aquele conteúdo (CHARAUDEAU, 2006a). Os rituais brasileiros mais comumente
compartilhados nos proferimentos e nos textos jornalísticos são de certa forma quase
estereótipos da cultura brasileira, pois dessa maneira diminui o risco de interpretações
dúbias sobre o imaginário acionado, já que o estereótipo costuma ser amplamente
conhecido e reconhecido por todos.
Os media constroem uma visão de mundo “inscrevendo-nos em um espaço
duplo que hesita sempre entre o local, quando se trata de defender as identidades do
torrão, e o global (nacional, europeu, internacional, civilizacional), quando é o caso de
promover uma transcendência identitária” (CHARAUDEAU, 2006a, p. 284). No caso
das categorias depara-se com a de número 1, que vincula mais ao local, e as de número
3 e 4 que fazem referência ao global. Esta hesitação da qual fala Charaudeau (2006a) é
dada pelo imbricamento entre elas, que podem acontecer em momentos diferentes no
mesmo discurso ou em textos distintos.
Na vinculação identitária da categoria 1, embora se projete uma troca cultural, é
o comando brasileiro que a define como ocorre, se aporta ou não à dimensão cultural,
por possuir os instrumentos capazes de a gerenciar (YÚDICE, 2004). Como diz
Canclini (2003), as práticas e ritos culturais quando gerenciados por determinações
políticas podem passar a ser compartilhados por um mesmo horizonte. Estas
determinações são vistas nas falas de Lula e Amorim, assim como em notícias
reincidentes da Folha que relacionam os aspectos latino-americanos, o comando
brasileiro e o Haiti como uma fórmula tríade que envolve a cultura e garante o sucesso
de reestruturação social e política daquele país.
O conjunto dos proferimentos que compõe o material desta pesquisa não
conforma uma estratégia de comunicação política propriamente, mas representa, todos
juntos, a maneira pública dirigida sobre a MINUSTAH, dado que são discursos públicos
na íntegra que tematizam a participação brasileira no comando militar. Todos eles, sem
181
exceção, trouxeram à tona o papel cultural que envolve a missão, possivelmente uma
das razões para isto é que, nas palavras de Charaudeau (2006a) a comunicação política
Deve tentar fazer re(soldar) o sentimento identitário, enquanto o
espaço social se fragmenta mais. É que é difícil conceber a existência
de um grupo social, qualquer que seja sua dimensão, sem a existência
de uma mediação forte que constitui o cimento identitário
(CHARAUDEAU, 2006a, p. 318).
130
Citação sem página, pois o texto está disponível em versão virtual.
182
reconstrução do país Haiti. Dito isto, ao se buscar identificar o lugar da cultura segundo
os enquadramentos dos discursos compilados abre-se um leque de sugestivos lugares
onde a cultura está. Isto significa que, nessa investigação em que o intuito foi localizar a
dimensão cultural na ação brasileira durante a MINUSTAH deparou-se com diferentes
lugares, trazidos pelas categorias, que convergem para o mesmo horizonte: Da cultura
como um recurso político, de transformação, reconfiguração e determinação das
relações nacionais e internacionais.
A cultura como um recurso para o Yúdice (2004) é uma via de mão dupla: Ao
mesmo tempo em que ela passou a trafegar em lugares antes ocupados somente pela
economia e pela política, ganhando novo status nesses âmbitos, ela também precisou se
sujeitar a determinados moldes, que a enquadra em parâmetros delimitados, como se o
lugar mais centralizado tivesse sido conquistado por uma negociação na qual ela
também precisou ceder. Isto significa que, a cultura brasileira, ou a vinculação
identitária tão explícita com a categoria 1 só é estimulada nos discursos porque funciona
como um recurso capaz de alterar o próprio desempenho e reconhecimento do comando
brasileiro na MINUSTAH. Dizer que não seja instrumentalizar a cultura, como defende
Yúdice (2004), pode parecer mais uma forma eufêmica de não aceitar esta condição
dada à cultura. Porém, por outro lado pode-se inferir que é uma maneira de conferir um
sentido mais pragmático a ela, e de trazê-la para o processo efetivo da missão de paz.
Portanto, a ênfase somente na “cultura pela cultura” no caso da MINUSTAH não
receberia destaque discursivo nem pelo campo midiático, nem pelo campo político, e,
muito provavelmente, não seria empregada na atuação militar. Entretanto, com a
vinculação da cultura como um recurso político gera-se ganhos para a promoção da
relação intercultural, que muito provavelmente não se obteria de outra forma. Isto é
legitimar a cultura no espaço político. Em outras palavras, as trocas culturais e dados
compartilhamentos simbólicos de fato acontecem entre o Brasil e o Haiti, são reais, mas
nem por isso deixam de ser instrumentalizadas e capitaneadas pelo e no discurso.
Nesta análise conclusiva é importante ainda enfatizar a abertura de caminhos e
pesquisas que esta dissertação se deparou durante o percurso teórico e analítico. Pensar
na relação tríade entre cultura, comunicação e relações internacionais é instigante ao
mesmo tempo em que se avistam lacunas espalhadas pelo caminho. Os pares de estudo:
relações internacionais e mídia, centralidade da cultura e as missões de paz são arenas
pouco exploradas, principalmente na literatura nacional, embora alguns estudos recentes
183
já despontem nesse sentido. Como afirma Sanches Rocha (2009) a respeito do papel da
cultura nas relações internacionais: “O que não se pode negar, porém, é que esta
discussão não ocupou nunca a periferia das decisões políticas, de fato. Ela nunca foi,
realmente, posta de lado, porque se trata de uma importante ferramenta para o poder
político”. Para ela a simplificação do problema cultural em pura geração de conflitos e
de criação de inimigos para fortalecer o Estado, ao invés de se buscar o entendimento da
diferença identitária e cultural pode trazer revelações que por muito tempo quiseram ser
mantidas de forma silenciosa, velada. Está, portanto, nesse poder suave, brando, como
diria Nye (2002), que a força da cultura se mostra dentro do recurso político.
Assim o processo desta pesquisa nos estimulou a refletir também sobre outros
caminhos de investigação e questões vinculadas ao tema que podem ser trilhados a
partir daqui, pois embora não fossem o intuito de averiguação presente, outros
pesquisadores ou trabalhos futuros poderiam vir a se debruçar. A exemplo de se aplicar
o mesmo problema de pesquisa para outras mídias, como a televisão, por esta ser capaz
de editar imagens simbólicas e de apelos culturais bastante fortes. Ou ainda aproveitar o
mote já desenvolvido neste trabalho para estabelecer comparações com alguns jornais
regionais, no intuito de identificar se a dimensão cultural é diferente daquela tratada em
veículos nacionais. Outro objeto de pesquisa que também se mostra bastante
interessante e pertinente seria o de avaliar as mudanças trazidas pelos discursos,
sobretudo após o período temporal recortado, por apresentar principalmente os
resultados práticos do intento brasileiro em promover o desenvolvimento econômico e
social, bem como a consolidação das instituições políticas e estruturais do Estado
haitiano antes da retirada da MINUSTAH no país, incluindo aí as interferências e
repercussões do terremoto de janeiro de 2010.
Pois, nos momentos de encerrar a escrita desta dissertação fomos surpreendidos
pela catástrofe do terremoto que atingiu o Haiti, em janeiro de 2010, afetando mais
diretamente a capital Porto Príncipe. A estimativa é de mais de 200 mil mortos e de
destruição imensurável de prédios, igrejas, escolas, casas. Se por um lado a repercussão
deste país no cenário mundial tomou um rumo amplificado, com ajudas financeiras e de
solidariedade humana nunca antes ocorridas no Haiti, projetando o país e alertando o
mundo sobre a sua condição inaceitável; por outro lado, aflora um problema grave que
infelizmente vem acompanhando este país do Caribe muito antes dessa tragédia e que
184
sempre demandou total atenção, embora não a tenha recebido com merecida
responsabilidade:
"O problema de Cité Soleil não é de polícia. É social", diz o general
José Elito Siqueira, o comandante militar da Minustah, composta por
7,2 mil soldados de oito países. [...] No país de 8,2 milhões de
habitantes -70% abaixo da linha da pobreza-, os homens arriscam os
dentes para escapar da fome quando comem um biscoito feito com
argila e sal. Nas ruas de Porto Príncipe, cuja população soma 2
milhões, as crianças pedem "comida", "one dollar, please", ou, mudas,
simplesmente estendem a mão em busca de uma esmola. 131
É a miséria, a violência e o abandono que ainda convive um país cujo desejo que
sobrevive continua sendo apenas o de se reconstruir.
131
MICHAEL, Andréa. Brasileiros tentam pacificar a maior favela de Porto Príncipe. Folha de S. Paulo,
São Paulo, 02 jul. 2006. Caderno Mundo.
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2008.
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definidos os detalhes da participação. O contingente brasileiro deve ser dividido em dois
batalhões, um de tropas do Exército, outro de fuzileiros navais e companhias de outros países
latinos, uma das quais do Paraguai.
Folha de S. Paulo
Editoria/caderno: Mundo
Título: Pobreza haitiana impressiona brasileiro
Data: 31/05/2004 – segunda‐feira
Crédito: Ricardo Bonalume Neto, enviado especial a Porto Príncipe
MISSÃO NO CARIBE
Capitão‐médico que participou de missões humanitárias relata a recém‐chegados as condições
do país
Um médico brasileiro está há dois meses no Haiti vivendo em uma tenda militar e foi o único
entre dez colegas das Forças Armadas dos EUA que participou das seis missões humanitárias
realizadas no país. O paulistano Gilson Girotto tem dupla nacionalidade e hoje é capitão‐
médico da Força Aérea dos EUA, a Usaf.
"Vocês não imaginam a pobreza que vão encontrar no país", disse ele a um grupo de soldados
brasileiros da força de paz da ONU no Haiti. Parte da tropa chegou no sábado e o restante
deve vir na metade de junho. A data da transição formal da responsabilidade da força
multilateral comandada pelos EUA para a da ONU, comandada pelo Brasil, é amanhã, 1º de
junho.
Os médicos militares dos EUA trataram cerca de 1.900 pacientes, dos quais 500 em um só dia.
As consultas tendem a ser demoradas pela necessidade de tradução.
Na capital, a maioria da população fala tanto francês como creole. Nas cidades menores do
interior, praticamente só se fala a língua criada pelos escravos africanos que tomaram a
metade da ilha colonizada pelos franceses no fim do século 18.
A experiência de Girotto é útil aos brasileiros, pois ações cívico‐sociais e missões humanitárias
devem fazer parte do repertório de atuação da força de paz.
Por enquanto, o maior contato dos mais de 50 soldados brasileiros foi ou com o pessoal do
aeroporto e do hotel. Os oficiais e soldados que chegaram anteontem em avião da FAB estão
abrigados em um galpão abandonado no terreno do aeroporto. Os oficiais de Estado‐Maior
ficam em hotéis.
"Não tomamos a água local. Até escovar os dentes e fazer suco, a gente faz com água mineral
importada", diz Girotto, que deu uma boa notícia a seus colegas médicos e enfermeiros
brasileiros: não houve nenhum caso de malária ou outras doenças tropicais entre os quase
2.000 homens da tropa americana de intervenção, a maioria fuzileiros navais.
"Não houve nenhum problema sério de saúde, os maiores problemas que enfrentamos foram
infecções com fungos", diz o médico brasileiro da Usaf. O motivo é o calor e a umidade
equatoriais e o uso constante de uniformes dentro dos quais suar muito é praxe.
Girotto vai estar entre os últimos a sair do país. EUA, França e Canadá, principais fornecedores
de tropa para a força multinacional de intervenção, devem ser paulatinamente substituídos
pelos capacetes azuis da ONU, constituídos principalmente por soldados latino‐americanos.
O grupo da Força Aérea dos EUA cuida da movimentação do pessoal do seu país por via aérea.
Por isso, sai por último. Mas parte das barracas já foi desarmada.
Girotto foi em 1983 para os EUA estudar inglês. Ficou lá, formou‐se em informática e
trabalhou sete anos na empresa área IDS. Aos 29 anos, entrou em uma escola de medicina,
com os estudos pagos pela Usaf, a qual ele agora serve. Depois de cumprir seus quatro anos
obrigatórios, planeja talvez se especializar em medicina aeroespacial. Ele pertence ao 82º
Grupo Médico e serve na base aérea Sheppard, perto de Dallas.
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A vida nas tendas americanas não é tão ruim assim. Há tenda de recreação com TV a cabo,
bebida gelada à vontade e cada militar tem 30 minutos de telefone gratuito por dia.
Como acabaram de chegar, os brasileiros, por ora, só têm água mineral morna e quente e não
tem comunicação com o país.
Avião retardatário
Um avião de transporte da FAB C‐130 Hércules, que estava 24 horas atrasado, desembarcou
ontem mais oito toneladas de equipamento para o pessoal brasileiro da força de paz da ONU
no Haiti. Os pouco mais de 40 oficiais e soldados só almoçaram às 17h30, depois de levar o
equipamento para o galpão em que estão alojados.
Quatro outros C‐130 trouxeram anteontem cerca de 20 toneladas de carga, além do chamado
"escalão precursor". O primeiro escalão chega amanhã, em outros C‐130 com 150 homens e
pouco material. O segundo escalão é o pessoal que está no mar em navios da Marinha. O
terceiro virá em aviões contratados pela ONU. No total, o Brasil terá 1.200 homens no país. O
comandante da missão da ONU (Minustah, na sigla em francês), o general Augusto Heleno
Ribeiro Pereira, deve chegar hoje. Amanhã ele deve receber o comando da missão na
Academia de Polícia do Haiti.
Folha de S. Paulo
Editoria/caderno: Mundo
Título: Haitianos pedem emprego para soldados brasileiros
Data: 04/06/2004 ‐ sexta‐feira
Crédito: Ricardo Bonalume Neto, enviado especial a Porto Príncipe
MISSÃO NO CARIBE
Metade do país não tem ocupação; oficial diz que há risco de decepção da população com a
força de paz
Um caminhão com militares brasileiros da força de paz no Haiti fez ontem um rápido contato
com a população. Foram bem recebidos, e a vitória da seleção por 3 a 1 sobre a Argentina,
anteontem, foi comemorada, mas os haitianos aproveitaram para pedir emprego.
Não existem estatísticas confiáveis, e há muito trabalho informal, mas possivelmente metade
da população ativa do país não tem ocupação. Era o caso do também pequeno grupo de
desempregados que tentou falar com os brasileiros. Eram cerca de meia dúzia em uma praça
perto do aeroporto.
Jean‐Jean Robert logo perguntou se haveria trabalho para haitianos na Minustah, sigla em
francês da Missão da ONU de Estabilização no Haiti. O coronel Luiz Felipe Carbonell, oficial de
comunicação social da Brigada Haiti, respondeu que certamente haitianos seriam contratados,
mas que a principal função da tropa brasileira era prover segurança.
Robert é motorista, trabalhava em uma indústria que fechou. Sua mulher hoje é quem ganha
dinheiro, vendendo frituras na rua. O casal tem quatro filhos. Como a maioria dos haitianos,
ele torceu para o Brasil. "Adoro o Ronaldo."
Outro que gostaria de trabalhar como chofer é seu amigo Moise Murat. "Estou sem trabalho,
só como uma vez por dia", diz ele.
Comer, para os haitianos mais pobres, significa basicamente arroz com feijão, às vezes só
arroz, e, de vez em quando, complementos. No momento vive‐se a época das mangas, e os
vendedores nas calçadas estão repletos delas.
"Sua presença aqui é necessária", disse Jean‐Jacques Foresmy, outro que gostaria de ter
emprego, reconhecendo que a missão de segurança é fundamental.
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Existe um grande risco de decepção dos haitianos com a substituição da força multilateral
interina, liderada pelos EUA, pela força de "capacetes azuis" da ONU, comandada pelo Brasil.
"A parte humanitária e de desenvolvimento econômico está mais afeita a outros
departamentos da Minustah", disse o coronel Carbonell. Ele concorda que há o risco de
decepção, e que é importante "transmitir a esperança de que é possível melhorar". "Mas não
podemos fazer promessas."
Os primeiros haitianos que deverão ser contratados pela força de paz são os mais necessários
a princípio: tradutores. O francês e inglês macarrônico de muitos oficiais e soldados pode
servir para as comunicações mais simples, mas é claramente insuficiente para a obtenção de
inteligência sobre eventuais grupos armados.
Cada brasileiro recebeu dois livrinhos. Um deles aborda como se comportar com a população
local; o outro traz frases para o dia‐a‐dia em várias línguas, notadamente o créole, a língua
misto de francês com dialetos africanos.
"Palé dousman" é "fale devagar" em créole (do francês "parlez doucement"). "Mete za'am ou
até" é "abaixe suas armas".
Mas, assim como acontece nas favelas brasileiras, recolher as armas dos bandidos é algo
dificílimo. Apenas 200 foram encontradas pela força liderada pelos EUA, das mais de 20 mil
ilegais no Haiti.
Não é nada difícil esconder armas no labirinto das favelas locais ‐as "bidonvilles". E é preciso
um bom sistema de informações para saber onde achá‐las, algo que ainda parece estar fora do
alcance da pequena polícia local. A Minustah incluirá também um contingente de 1.622
policiais estrangeiros para auxiliar a polícia do Haiti.
A força da ONU ainda vai demorar para entrar em operação. O grosso da tropa brasileira só
chega depois do dia 20. Está prevista para o dia 18 a chegada dos navios da Marinha trazendo
a maior parte do equipamento. Só depois de recebido esse equipamento é que os cerca de 200
soldados e fuzileiros navais hoje no Haiti terão condições de preparar devidamente o
acantonamento para os outros mil militares que chegarão até o final do mês.
Folha de S. Paulo
Editoria/caderno: Mundo
Título: Para general, força brasileira não é ocupante
Data: 03/08/2004 – terça‐feira
Crédito: Ricardo Bonalume Neto, da reportagem local
O general‐de‐divisão brasileiro Augusto Heleno Ribeiro Pereira nega que as tropas da ONU que
ele comanda no Haiti sejam uma força de ocupação.
"Somos hóspedes de um país soberano e independente", disse Heleno à Folha, por telefone.
"Nossa missão é ajudar o Estado haitiano a atuar."
O general comanda os capacetes azuis da Minustah (Missão da ONU de Estabilização no Haiti).
A ONU autorizou 6.700 militares e 1.622 policiais para a missão, que também deve ajudar a
reconstruir o país.
Para ele, um sinal claro dessa intenção de ajudar e de respeitar a soberania haitiana é o apoio
da ONU às eleições previstas para 2005.
A missão do Brasil foi uma decisão de governo, diz o general, respaldada em resoluções da
ONU. Se a princípio a ONU agiu para legitimar a intervenção multinacional liderada por EUA e
França, depois houve a decisão de substituir essa tropa por capacetes azuis, força composta
até agora sobretudo por latino‐americanos.
"Alguns interesses foram contrariados, e qualquer história tem dois ou três lados", declara
Heleno. "Toda a atuação do Brasil é no sentido de ajudar o Haiti."
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Heleno discorda de que a situação de segurança em Cabo Haitiano tenha piorado. A região é
patrulhada por tropas chilenas. "Existe ali uma concentração de ex‐militares que foram
desmobilizados e que pleiteiam seus direitos. É um problema que vem desde 94", disse o
general. A ONU tem procurado fazer uma intermediação entre o governo interino e os ex‐
militares para efetuar sua desmobilização.
Folha de S. Paulo
Editoria/caderno: brasil
Título: Para Lafer, política de Lula é a do espetáculo
Data: 18/08/2004 ‐ quarta‐feira
Crédito: da sucursal de Brasília
O ex‐chanceler Celso Lafer, 63, professor titular da Faculdade de Direito da USP (Universidade
de São Paulo), criticou ontem o jogo da seleção brasileira de futebol no Haiti. "É a expressão da
política externa como política espetáculo, que é a dimensão do estilo da atual administração",
disse.
Ex‐ministro das Relações Exteriores nos governos Fernando Collor de Mello (92) e Fernando
Henrique Cardoso (2001‐02), não é contra o país integrar forças de paz no exterior, mas acusa
a atual política externa de estar sendo "direcionada a dar satisfação ideológica interna". (EC)
Folha ‐ Por que é importante para o Brasil gastar recursos, quadros e energia para liderar uma
força de paz no Haiti?
Celso Lafer ‐ A participação do Brasil em forças de paz não é novidade, o que há agora é
participação mais ampla. Em tempos recentes, enviamos tropas a Angola e Moçambique, que
têm a mesma língua, e Timor Leste, país da Ásia com origem portuguesa e em fase de
reconstrução. No caso do Haiti, há, de um lado, o elemento de solidariedade e, de outro, o uso
de nossos recursos, já tão limitados, em ações internacionais.
Folha ‐ Por que o Brasil acertou a liderança da força de paz com os EUA, mas fez questão de
divulgar que o pedido foi da França? Não ficaria bem fazer uma aliança com os EUA, acusados
de interferência nas questões internas do Haiti?
Lafer ‐ Não tenho informações precisas sobre isso, mas parece claro que há interesse tanto dos
EUA quanto da França de que haja um terceiro atuando no país, com as características do
Brasil. Se essa informação que você dá é correta, o governo preferiu aceitar um pedido francês
a um norte‐americano porque, para suas bases, ficaria melhor assim. A política externa deste
governo tem sido direcionada a dar satisfação ideológica interna. É também uma operação de
marketing político.
Folha ‐ Qual o objetivo de assumir uma política externa ""agressiva" e de disputar liderança
mundial? Faz sentido?
Lafer ‐ O Brasil sempre teve atuação importante no plano internacional, e ela sempre foi
exercida com cuidado. Receio que a retórica de uma política agressiva, com aspas, mais
atrapalhe do que ajude o Brasil a exercer um papel de destaque.
Folha ‐ Por quê?
Lafer ‐ Nós somos um país de escala continental e de recursos limitados. Temos crescido no
cenário internacional pela confiabilidade, não pela agressividade. Além do interesse específico
em exportar e importar mais, o Brasil também tem interesse geral no funcionamento do
multilateralismo. O que é preciso saber é se essa ação no Haiti vai ou não ajudar essa nossa
presença nos foros internacionais.
Folha ‐ O jogo no Haiti pode ser incluído em que categoria: política externa, injeção de ânimo
interno, marketing brasileiro no exterior?
Lafer ‐ É a expressão da política externa como política espetáculo, que é a dimensão do estilo
da atual administração.
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Folha de S. Paulo
Editoria/caderno: brasil
Título: Presidente visita time antes do jogo
Data: 18/08/2004 ‐ quarta‐feira
Crédito: Eduardo Scolese e Sérgio Rangel, dos enviados a Santo Domingo
Diante de dirigentes, jogadores e comissão técnica da seleção brasileira de futebol, o
presidente Luiz Inácio Lula da Silva afirmou ontem que o amistoso entre Brasil e Haiti, o "jogo
da paz", hoje à tarde, em Porto Príncipe, irá "marcar" a sua passagem pela Presidência. "Esse
gesto vai marcar muito a minha passagem pela Presidência, mas certamente marcará a de
vocês", afirmou o presidente aos jogadores, após ter cumprimentado um a um.
Assim que chegou, o presidente recebeu do atacante Ronaldo um par de chuteiras douradas.
"Isso não é uma sapatilha, é uma chuteira", disse o presidente.
Lula disse que os brasileiros não são bons apenas para "jogar" e assinar "bons contratos", mas
também no momento de fazer um "gesto de solidariedade".
O atacante Ronaldo falou em nome dos jogadores: "Estamos completamente à disposição do
governo para qualquer projeto social", disse o atacante.
O encontro com Lula emocionou alguns jogadores. ""Na hora que ele veio na minha direção, a
minha voz não saía", disse o zagueiro Cris. No encontro, Lula também gravou com os jogadores
o programam semanal "Café com o presidente".
Como adversário, o Haiti é um dos mais fracos da história ‐o país é o 95º no ranking da Fifa,
liderado pelo Brasil desde 2002.
A tradição do país no esporte é pequena. Os haitianos só disputaram uma Copa do Mundo (em
1974, na Alemanha), e foram eliminados na primeira fase.
O Haiti só enfrentou uma vez o Brasil, pouco antes da Copa da Alemanha, e foi goleado por 4 a
0, em Brasília. Para a partida de hoje, os jogadores brasileiros dizem que vão se divertir e
prometem uma goleada. Por questões de segurança, a delegação brasileira desembarcará
apenas duas horas antes da partida. Logo após o jogo, deixará o país.
Folha de S. Paulo
Editoria/caderno: brasil
Título: Brasil ignora pedido e goleia por 6 a 0
Data: 19/08/2004 ‐ quinta‐feira
Crédito: do enviado a Porto Príncipe
O JOGO
A seleção brasileira não atendeu o presidente Luiz Inácio Lula da Silva e goleou ontem o Haiti
por 6 a 0 no "jogo da paz". Lula havia pedido ao time que não goleasse o adversário na partida
que teve um caráter mais humanitário e diplomático do que esportivo.
Antes do jogo, que teve atraso de quase 20 minutos, os atletas do Haiti se esforçavam para
tirar fotos com os pentacampeões.
Na precária arquibancada do estádio Sylvio Cator, muitos haitianos ostentavam bandeiras
brasileiras. Lula acompanhou o jogo da tribuna e sorriu bastante quando Ronaldinho fez um
golaço.
Além de vários militares brasileiros, o jogo teve a presença do árbitro Paulo César de Oliveira.
Ele até poderia ter dado um pênalti para o Haiti aos 13min, mas não teve piedade do time da
casa.
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A primeira chance do Brasil saiu logo aos 6min, quando a zaga haitiana cometeu erro
grosseiro. Belletti desperdiçou chutando para fora. Roger abriu o placar após receber passe de
Ronaldo aos 20min ‐o atacante do Real Madrid teve antes duas boas oportunidades.
Mesmo em ritmo lento devido ao forte calor, o Brasil não teve dificuldades para ampliar.
Ronaldinho se livrou de dois adversários com um giro de corpo em cima da bola e depois
passou pelo goleiro para fazer 2 a 0 aos 33min.
Roger fez seu segundo gol aos 42min após receber outro passe açucarado de Ronaldo.
No segundo tempo, o Brasil diminuiu mais o ritmo, e o técnico Carlos Alberto Parreira colocou
alguns reservas. Para a tristeza do público, Ronaldo, embaixador da ONU, foi um dos
substituídos.
Ronaldinho, porém, ficou em campo. Marcou mais dois gols: um de falta, aos 22min, e o outro
após aproveitar cruzamento da direita aos 37min. Nilmar ainda teve tempo de fazer o sexto
aos 41min. Mesmo com o pedido de Lula, o Brasil venceu o Haiti com mais facilidade do que
em 1974 ‐no primeiro jogo entre os países, o placar foi "só" 4 a 0. (SR)
Folha de S. Paulo
Editoria/caderno: brasil
Título: Lula planta pau‐brasil em visita a soldados
Data: 19/08/2004 ‐ quinta‐feira
Crédito: do enviado a Porto Príncipe
No dia em que o presidente Lula visitou a sede da brigada brasileira no Haiti, integrantes das
Forças Armadas admitiram que o atual número de soldados do país em território haitiano é
"insuficiente" e que uma ajuda humanitária precisa chegar "rapidamente" ao Haiti.
A força militar da Minustah (Missão das Nações Unidas de Estabilização no Haiti) conta hoje
com pouco menos de 3.000 homens, dos 6.700 autorizados pela ONU. Militares brasileiros
estão há dois meses no país. Na semana que vem, 20 delegados chegam ao Haiti para iniciar
um estudo em termos de cooperação.
Na visita, Lula cumprimentou oficiais de alta patente, ajudou a plantar uma muda de pau‐
brasil, ouviu detalhes da ação brasileira e visitou as tendas onde funcionam o restaurante, o
posto médico e o dormitório de cerca de 250 soldados. (EDS)
Folha de S. Paulo
Editoria/caderno: mundo
Título: "Existe muita resignação e pouco desespero"
Data: 21/09/2004 ‐ terça‐feira
Crédito: Fabiano Maisonnave, da redação
Quase toda a cidade embaixo d"água. Milhares de haitianos andando por ruas e estradas
alagadas guiados apenas pela linha de postes. Pais carregando corpos de filhos e centenas de
feridos esperando a vez de ser atendidas com profundos cortes, sobretudo nos pés. O general
brasileiro Augusto Heleno Ribeiro Pereira viu tudo isso e muito mais na visita à desolada
Gonaives anteontem. Mas quase não presenciou desespero ‐o que havia era resignação.
"Foi o espetáculo mais dantesco que vi e que não quero ver outra vez. É indescritível", disse o
general Heleno, 56, comandante da Minustah (Missão da ONU de Estabilização no Haiti).
O general Heleno chegou à cidade no domingo de manhã, logo depois da inundação que
matou cerca de 500 pessoas durante a noite. Quase toda a cidade estava submersa ‐nas áreas
mais baixas, a altura da água chegava a 2,5 metros. Até ontem à tarde, ainda havia regiões de
Gonaives que ainda não haviam sido alcançadas pelas equipes de resgate.
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"É uma tristeza enorme ver as águas arrastarem o pouquinho que essas pessoas tinham", disse
o brasileiro. "Não há bairro tão pobre no Rio de Janeiro como os que existem por aqui. Os
brasileiros não têm idéia de como é o Haiti".
A situação é tão precária que não há prédios em condições para colocar os refugiados. Mesmo
a chegada dos helicópteros está limitada a uma parte pequena da cidade.
"Há muitas famílias vivendo na laje das próprias casas com o pouco que conseguiram salvar."
No domingo, cerca de 450 feridos foram atendidos pelas cerca de 20 pessoas da equipe
médica da ONG Médicos Sem Fronteira e da ONU. A maioria tinha cortes profundos nos pés
por não saberem onde estavam pisando.
A enchente também levou os objetos pessoais dos 454 soldados argentinos na cidade.
Folha de S. Paulo
Editoria/caderno: mundo
Título: Tropa da ONU usa gás para dispersar haitianos famintos
Data: 25/09/2004 ‐ sábado
Crédito: Ricardo Bonalume Neto, enviado especial ao Haiti
TRAGÉDIA NO CARIBE
Multidão toma posto que fazia distribuição de comida
Tropas da ONU no Haiti tiveram de disparar ontem bombas de gás lacrimogêneo para tentar
dispersar uma multidão de haitianos desesperados em um posto de distribuição de alimentos
em Gonaives. A cidade foi a mais atingida pela tempestade tropical Jeanne, há uma semana.
Morreram ao menos 1.160 pessoas e ainda há 1.250 desaparecidos. Os desabrigados chegam a
300 mil.
Cerca de 500 pessoas invadiram uma escola onde uma ONG distribuía alimentos. Soldados
argentinos dispararam as bombas e conseguiram dispersar os haitianos, mas eles voltaram
assim que a fumaça baixou.
"Loucura"
"Quando chega um comboio [de ajuda], é uma loucura, os argentinos têm trabalho para
organizar a distribuição", disse o tenente‐coronel brasileiro Hudson Marques Júnior, que fez
uma visita de helicóptero ontem à cidade inundada.
A emergência em Gonaives afetou pesadamente a atuação da força de paz, que está com o
efetivo bem aquém do previsto. "Militar não reclama", diz o general‐de‐divisão brasileiro
Augusto Heleno Ribeiro Pereira, comandante das forças militares da Minustah (Missão da ONU
para a Estabilização do Haiti).
Heleno pediu ao representante do secretário‐geral das Nações Unidas e ao comando das
forças de paz que acelerassem o envio de novas tropas.
Hoje estão no país caribenho apenas 2.800 dos 6.700 soldados autorizados pelo Conselho de
Segurança da ONU, além de 480 dos 1.622 policiais civis previstos. Dos militares, 1.197 são
brasileiros.
Futebol
O último jogo de futebol no principal estádio do Haiti foi pela paz; o próximo vai ser para
arrecadar dinheiro para as vítimas de Gonaives.
Desde o jogo da seleção brasileira (6 a 0 sobre o Haiti, em 18 de agosto) que o estádio Sylvio
Cator não é usado. Mas um torneio com oito times haitianos deve começar no dia 1º de
outubro para angariar dinheiro para ajudar os desabrigados, segundo o responsável pelo
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estádio, Gerson Edee (cujo nome em homenagem ao ex‐jogador brasileiro Gerson, tricampeão
mundial no México, em 1970).
Gerson ainda se lembra com emoção do jogo. "Havia gente que dizia que queria ver o jogo e
morrer, de tanta felicidade."
Heleno disse que "perdeu dez anos de vida" no evento da seleção, em razão da necessidade de
reforçar as medidas de segurança.
Mas o futebol não apaga a crise política nem substitui a falta de patrulhas ‐2.300 das quais já
foram realizadas em três meses de atuação da brigada brasileira, segundo o seu comandante,
o general‐de‐brigada Américo Salvador de Oliveira.
Folha de S. Paulo
Editoria/caderno: mundo
Título: Haitiano espancado passa bem; ONU considera o caso superado
Data: 23/10/2004 ‐ sábado
Crédito: Fabiano Maisonnave, da redação
MISSÃO NO CARIBE
Força de paz deve dobrar até novembro
O policial haitiano Jean Macion continuava internado ontem num hospital de Porto Príncipe,
dois dias depois de ter se envolvido num incidente no qual acusa soldados brasileiros de o
terem espancado. A Minustah (Missão da ONU de Estabilização no Haiti) e a Polícia Nacional
Haitiana abriram investigações sobre o caso, mas consideram o assunto como superado.
Em entrevista à Folha, ontem, o médico que atendeu Macion, Hans Larsen, disse que ele está
bem, mas deve ficar no hospital Canapé Vert até segunda‐feira. Segundo Larsen, ele apresenta
ferimentos na mão esquerda, no joelho direito e nas costas.
Larsen disse que o ferimento mais grave foi na cabeça, onde sofreu uma pancada. "Temos de
observar para ver se não haverá seqüelas."
Muciel disse que estava dirigindo seu carro na região central de Porto Príncipe, na quarta‐feira
à tarde, quando foi parado por soldados brasileiros num ponto de bloqueio. Ele afirma que,
apesar de ter se identificado como policial, foi retirado do carro e espancado.
A missão brasileira nega o espancamento e diz que Muciel tentou furar o ponto de bloqueio,
não se identificou inicialmente como policial e se negou a sair do carro, do qual foi retirado
com "força moderada".
O chefe da polícia haitiana, Léon Charles, disse que o incidente foi uma "infelicidade", que não
afetará as relações com a missão militar brasileira, composta por 1.200 homens e responsável
pela região de Porto Príncipe. "Precisamos dos brasileiros."
"Estamos fazendo uma investigação para entender o que aconteceu", disse Charles, que
visitou Macion no hospital.
A Minustah também abriu um inquérito para apurar o caso. Segundo o porta‐voz da missão,
Damian Onses‐Cardona, a investigação será encabeçada pelo general brasileiro Augusto
Heleno Ribeiro Pereira, comandante das tropas de paz da ONU.
O Itamaraty informou que, com base nas informações recebidas pela Minustah, considera o
incidente superado.
Ontem, em Paris, o chanceler Celso Amorim voltou a defender a participação brasileira na
missão da ONU: "A paz tem um preço. A paz não é de graça e, se você se omite na defesa da
paz, vai pagar um preço também, nem que seja perdendo influência nos assuntos
internacionais. Às vezes sinto no Brasil um sentimento de isolacionismo. Mas ninguém existe
fora do mundo", disse, em entrevista.
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Reforço a caminho
O chefe diplomático da Minustah, o embaixador chileno Juan Gabriel Valdés, disse ontem que
até o final de novembro haverá 6.200 militares sob a bandeira da ONU, contra os cerca de
3.000 atuais. O Brasil tem reclamado da demora no envio da força total.
Folha de S. Paulo
Editoria/caderno: mundo
Título: Para Celso Amorim, nações ricas têm concepção diferente do Haiti
Data: 03/12/2004 ‐ sexta‐feira
Crédito: Fernanda Krakovics, da sucursal de Brasília
Em audiência pública sobre a missão de paz no Haiti, o ministro Celso Amorim (Relações
Exteriores) fez novas críticas às nações desenvolvidas e disse acreditar que a permanência das
tropas brasileiras naquele país será prorrogada. Também há a possibilidade do envio de mais
homens.
Segundo Amorim, uma das dificuldades de atuação da Minustah (Missão da ONU de
Estabilização no Haiti) é que, embora coloquem dinheiro, os países desenvolvidos têm uma
concepção diferente do trabalho.
"Aquilo ali para eles é um problema de segurança, um problema de migração e de
narcotráfico. Então, na medida em que esses problemas estejam assegurados, com algumas
tropas lá e a guarda costeira tomando conta, essas outras questões que envolvem um
movimento financeiro de mais longo prazo não se obtêm com facilidade", disse ele, no
Senado.
Para o chanceler, não é possível resolver os problemas de segurança do Haiti isoladamente da
situação política, humanitária, social e econômica.
Ao estilo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, Amorim usou uma metáfora para dizer por
que países em desenvolvimento, na sua visão, são mais solidários. "Você vai no interior do
Brasil e vê gente pobre adotando crianças enquanto as classes média e rica são mais
hesitantes."
O ministro afirmou que, pela sua experiência na ONU, a Minustah será prorrogada. Já houve
uma prorrogação de seis meses, até julho, mas, segundo Amorim, o desejo era que esse prazo
fosse maior. Ele ressaltou que uma permanência maior das tropas vai depender de as "coisas
caminharem na direção certa". Para ele, há possibilidade de enviar um batalhão de engenharia
adicional.
Ao discorrer sobre as dificuldades enfrentadas no país do Caribe, o ministro afirmou que há
preocupação da comunidade internacional com a aplicação do montante de U$ 1,2 bilhão
doado. "Para que haja uma confiança na boa gestão dos recursos, é preciso que o governo
provisório aceite algum nível de co‐gestão, o que não é fácil", disse ele. O próprio premiê do
Haiti, Gerard Latortue, mencionou, segundo Amorim, a corrupção como um problema grave
no país.
Amorim aproveitou para pedir aos senadores que aprovem autorização para o Brasil tomar um
empréstimo‐ponte no Banco Mundial para o Haiti, no montante de US$ 150 milhões. "Como o
Haiti é inadimplente, não pode pegar o empréstimo", disse. A operação já teria o aval do
Ministério da Fazenda.
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Folha de S. Paulo
Editoria/caderno: mundo
Título: Um ano depois, Haiti amarga incertezas
Data: 27/02/2005 ‐ domingo
Crédito: Fabiano Maisonnave, enviado especial a Porto Príncipe
CARIBE
Missão da ONU, enviada logo após a queda de Aristide, não garante segurança; condições para
eleição são precárias
Há um ano, todos os 3.000 presos das penitenciárias haitianas ganharam as ruas em meio ao
caos espalhado pelo país durante a última semana do então presidente Jean‐Bertrand Aristide.
Oito dias atrás, apesar da presença dos quase 8.000 militares e policiais das forças da ONU,
uma invasão na Penitenciária Nacional, na capital Porto Príncipe, proporcionou a fuga de 481
presos, o equivalente a 20% da população carcerária haitiana.
A fuga em massa expôs a fragilidade da área considerada como a que mais avançou nos
últimos meses ‐a da segurança pública‐ e traz dúvidas sobre as condições nas quais os
haitianos irão às urnas no final deste ano e, eleito o novo governo, se o Haiti conseguirá
romper o ciclo de governos autoritários, de intervenções estrangeiras e, sobretudo, da miséria
extrema.
Localizado no centro de Porto Príncipe, o maior presídio do país é um símbolo da falência
institucional do país. Dos 1.257 detidos que havia ali antes da fuga, apenas 14 haviam sido
condenados. A fuga também evidenciou a fragilidade da polícia. "Você pode botar todo o
Exército americano em volta do presídio que, se envolver conivência policial, eles vão fugir",
disse à Folha o general Augusto Heleno Pereira, comandante militar da Minustah (Missão de
Estabilização da ONU no Haiti).
Há também relatos de que menores de idade estejam presos lá dentro. No domingo passado,
o artesão Pierre Beausejour, 42, pedia de joelhos informações sobre dois filhos que estariam
detidos: Chloé, 21, e Michel, 17.
Mas os presos mais visíveis da penitenciária são o ex‐premiê Yvon Neptune e o ex‐ministro do
Interior Joséleme Privert, acusados de comandar a repressão no governo Aristide. Eles estão
presos há dez meses, mas até agora não foram julgados.
"O meu marido se considera um preso político da comunidade internacional", disse à Folha
Jinette Privert, 45. Carregando uma sacola com uma marmita, esperava a chance de entregá‐la
ao marido, como faz diariamente. Era a única bem vestida entre as dezenas de familiares, a
maioria mulheres, diante do prédio.
"É evidente que, enquanto não forem comprovados os crimes, eles são presos políticos",
afirma Ricardo Seitenfus, que, no final do ano passado, esteve durante um mês no país como
enviado do governo brasileiro para a equipe de consultores políticos do chefe diplomático da
ONU no Haiti, Juan Gabriel Valdés.
Bel Air, Cité Soleil
Palco de conflitos sangrentos em outubro que deixaram mais de 200 de mortos, as favelas
mais famosas da capital haitiana estão mais seguras, segundo a brigada brasileira, responsável
pela segurança da maior parte da cidade, mas ainda oferecem perigo. Nos dois últimos dias
quatro soldados brasileiros ficaram feridos ao acompanhar a polícia em Bel Air. Nenhum corre
risco de morte.
"Mas não matamos ninguém até agora", afirma o general João Carlos Vilela Morgero,
comandante da brigada brasileira. Há quem duvide. "Eles usam armamento de calibre grosso
em missões às 4h da manhã. É difícil usar tanto poder sem vítimas civis", diz Patrick Elie, ex‐
201
membro do gabinete de Aristide. Mas ele faz uma ressalva: "Todo mundo sabe a diferença
entre o marine americano e o militar brasileiro".
No fim de semana passado, a reportagem da Folha acompanhou uma patrulha brasileira em
Bel Air. Em meio às pilhas de lixo, havia uma intensa movimentação de ambulantes, mulheres
transportando água em baldes na cabeça e outras pessoas perambulando, sem motivo
aparente.
Em outubro, o cenário era diferente: durante a revolta supostamente promovida por
partidários de Aristide, o comércio e as escolas permaneceram fechadas.
"Graças aos brasileiros, estamos abertos", disse a irmã Renné, diretora da escola Notre Dame,
que tem 700 alunos. "Em outubro, não saíamos de casa."
Folha de S. Paulo
Editoria/caderno: opinião
Título: Haiti, ano 1?
Data: 06/03/2005 ‐ domingo
Crédito: Ricardo Seitenfus
TENDÊNCIAS/DEBATES
A complexidade da transição política no Haiti não deve camuflar os verdadeiros e inadiáveis
desafios do país. A indispensável realização de eleições competitivas e leais, previstas para o
final do ano, constitui uma etapa, e não um objetivo isolado e conclusivo. A democracia
representativa, desprovida de conteúdo capaz de resgatar um mínimo de dignidade a milhões
de haitianos que sobrevivem em condições subumanas, será um simples jogo de cena dos 80
partidos políticos locais sob o olhar conivente da comunidade internacional.
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Os reiterados fracassos da comunidade internacional exigem um repensar de sua estratégia de
ação no Haiti
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A intransigente defesa do multilateralismo ‐desafio maior das atuais relações internacionais‐
não pode ser divorciada dos princípios éticos da responsabilidade e da eficácia. A tarefa de que
se auto‐incumbiu o sistema das Nações Unidas é plena e indelegável. Quando, em 29 de
fevereiro de 2004, Jean‐Bertrand Aristide galgou os degraus da escada do avião que o
conduziu a um triste e incerto exílio, ele já o fez na condição de ex‐presidente do Haiti. Poucas
horas antes, "Titid" havia firmado uma carta de renúncia, a fim de evitar "um banho de
sangue".
Pressionado internamente por uma poderosa, embora díspar, oposição, composta por ex‐
militares e ex‐policiais, por supostos representantes da sociedade civil organizada (Grupo dos
184), pelo alto clero e, sobretudo, por antigos companheiros de caminhada, desiludidos com
seu desgoverno, o ex‐padre dos pobres se fez vítima de um incêndio que ele mesmo havia
ateado.
Do exterior não poderia vir sua salvação. Ao contrário. Capitaneado pela França, ultrajada pela
acusação de um débito de US$ 22 bilhões oriundo da época da Independência haitiana (1804),
o grupo de países ocidentais influentes abandonou o ex‐prelado por razões específicas: os
Estados Unidos pretendiam evitar uma guerra civil que fizesse ressurgir o fantasma dos "boat
people"; o Canadá, por sua vez, demonstrou uma compreensível fadiga em face da violência
governamental e do poço sem fundo provocado pela corrupção e pelos desmandos
recorrentes.
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A vacância da cadeira presidencial obrigou o Conselho de Segurança das Nações Unidas a
enviar com urgência uma Força Multinacional Provisória, composta pelos três países acima
citados, afastando assim o golpe militar em curso. Em 30 de abril, o CS criou, através da
resolução 1.542, a Missão das Nações Unidas para a estabilização no Haiti (Minustah).
Imensa é, portanto, a responsabilidade da comunidade internacional no deslinde da atual
crise. Contudo o caso haitiano abriga singularidades e sofisticações a exigir uma nova
concepção de intervenção e de cooperação internacional. Sejamos claros e diretos: o Haiti ‐um
país sob transfusão‐ é economicamente inviável e politicamente impossível, se deixado à
própria sorte. Todavia a cooperação estrangeira, que fez do Haiti o país com o maior índice de
auxílio recebido por habitante no mundo, colhe somente amargos frutos.
As frias estatísticas mostram a cruel realidade: apesar de paupérrimo, o Haiti conseguiu a
proeza de empobrecer ainda mais ao longo das últimas décadas. O imenso inventário dos
descalabros é proporcional à lista dos responsáveis.
Os reiterados fracassos da comunidade internacional, dividida entre indiferença e intervenção
paternalista, exigem um repensar de sua estratégia de ação no Haiti. É bem verdade que as
deploráveis condições sociais conduzem naturalmente à comiseração. Ora, o curto prazo
torna‐a má conselheira. Assim, uma intervenção que se sustente unicamente na indignidade
da miséria será uma política miserável.
Para reverter um quadro secular que conduziu um povo irmão, digno e extraordinário à espiral
infernal de descaso e de incúria, é indispensável recriar o Estado, responsabilizar seus
dirigentes e soltar as múltiplas amarras que sufocam os projetos de desenvolvimento
socioeconômico. Somente assim poderá surgir um diálogo nacional que desemboque na
aceitação das diferenças e no gerenciamento dos conflitos. Todavia, para alcançar esses
objetivos mínimos, além de recursos financeiros e do apoio técnico provenientes do exterior, o
Haiti clama pela "aretê" grega, ou seja, por homens e mulheres orientados pela busca do bem
comum.
Esperemos que a comunidade internacional, sob inspiração da América Latina e liderança do
Brasil, consiga reverter o tenebroso quadro haitiano, colocando um termo ao caos e à extrema
dependência que precipitaram a antiga "pérola das Antilhas" aos baixios da desumanidade.
________________________________________
Ricardo Antônio Silva Seitenfus, 56, doutor em relações internacionais pelo Instituto
Universitário de Altos Estudos Internacionais da Universidade de Genebra (Suíça), é professor
titular de direito internacional público e de organizações internacionais na Universidade
Federal de Santa Maria (RS). Foi o mediador político enviado pelo Brasil ao Haiti, em 2004.
Folha de S. Paulo
Editoria/caderno: mundo
Título: Rumsfeld se diz preocupado com Venezuela
Data: 24/03/2005 ‐ quinta‐feira
Crédito: Eduardo Scolese, da sucursal de Brasília
VISITA AO BRASIL
Secretário afirma que militarização venezuelana pode gerar instabilidade e elogia atuação
brasileira no Haiti
O secretário da Defesa dos EUA, Donald Rumsfeld, expressou ontem, em Brasília, a
preocupação americana com a estabilidade da América Latina diante do governo venezuelano
de Hugo Chávez.
203
Para Rumsfeld, as recentes negociações da Venezuela com a Rússia para a aquisição de 100 mil
fuzis para suas Forças Armadas devem ser vistas com cautela e como um possível ponto
negativo.
No Ministério da Defesa, Rumsfeld disse: "Certamente, estou preocupado. Se alguém presta
atenção na discussão, ela diz respeito à importação de 100 mil fuzis AK‐47 que saíram da
Rússia possivelmente para a Venezuela. Não sei se isso já está firmado, mas eu li a respeito e
fiquei sabendo não apenas na imprensa mas também em contatos bilaterais".
Rumsfeld admitiu torcer contra a oficialização do acordo, que prevê ainda a aquisição de
helicópteros e caças russos. "Não posso imaginar o que vai acontecer com 100 mil fuzis. Não
posso imaginar o porquê de a Venezuela precisar deles. Eu só espero que isso não aconteça. E,
se isso por acaso acontecer, não sei se será positivo para o hemisfério", disse.
Para os EUA, parte das armas poderia acabar com a guerrilha terrorista Farc (Forças Armadas
Revolucionárias da Colômbia), vista pelos EUA como uma organização terrorista internacional.
Após ouvir Rumsfeld, o vice e ministro da defesa do Brasil, José Alencar disse: "O Brasil sempre
defendeu e continua defendendo a autodeterminação dos povos e a não‐intervenção".
Haiti
Rumsfeld, que também esteve com o presidente Luiz Inácio Lula da Silva, enalteceu a atuação
do Brasil desde o ano passado no comando da Minustah (Missão da ONU de Estabilização no
Haiti).
"Gostaria de mencionar particularmente o papel de liderança do Brasil no Haiti, coordenando
o apoio ao país na ONU. O Brasil tem dado uma contribuição bem‐vinda à estabilidade no
nosso hemisfério, e isso é, certamente, um crédito para o povo brasileiro."
Mas o secretário se esquivou ao ser indagado se a atuação no Haiti fortalece a obsessão
brasileira de ocupar um assento permanente no Conselho de Segurança da ONU. "O
Departamento da Defesa não tem voz ou qualquer papel no CS. Isso é atribuição do presidente
[George W. Bush] e do Departamento de Estado."
Temas espinhosos, como o suposto foco terrorista na região da Tríplice Fronteira entre Brasil,
Argentina e Paraguai e um eventual monitoramento dos EUA do espaço aéreo sul‐americano,
não faziam parte do encontro de ontem, segundo o secretário americano.
Rumsfeld agradeceu a "hospitalidade brasileira", enalteceu a colaboração do país com as ações
mundiais de combate ao terror após o 11 de Setembro e disse que os brasileiros deveriam ter
"orgulho" do trabalho do assessor especial da ONU para o Iraque Sérgio Vieira de Mello, morto
em 2003.
Folha de S. Paulo
Editoria/caderno: opinião
Título: Conselho de Segurança a qualquer custo?
Data: 29/05/2005 ‐ domingo
Crédito: Carlos Eduardo Gaio e James Louis Cavallaro
O Itamaraty finalmente vê seu pleito de um assento permanente no Conselho de Segurança
(CS) da ONU começar a ser discutido seriamente. Desde que o secretário‐geral da ONU, Kofi
Annan, publicou o relatório "Por Maior Liberdade", propondo mudanças concretas para as
Nações Unidas, praticamente todas as atenções do governo brasileiro estão voltadas para esse
assunto.
A idéia de que o Brasil merece uma cadeira permanente no Conselho de Segurança já vinha
sendo discretamente perseguida pelo governo Fernando Henrique Cardoso. Desde 2003, no
204
entanto, a diplomacia brasileira, dita "ativa e altiva", vem intensificando suas ações e
trabalhando em ritmo acelerado.
Deixando de lado a histórica rivalidade com a Argentina no tocante à liderança regional do
Brasil, aflorada e calorosamente debatida nas últimas semanas, não há dúvidas sobre a
necessidade de uma representatividade regional mais balanceada naquele órgão. Desde logo,
é preciso deixar claro que apoiamos a iniciativa brasileira em pleitear seu ingresso, bem como
defendemos a revisão do direito exclusivo de veto, um poder desequilibrado que permite a
imposição de posições arbitrárias por um grupo limitado de países. No entanto, é preciso
questionar o que parece ser a política brasileira a esse respeito: a de buscar uma vaga
permanente no Conselho de Segurança a qualquer custo.
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Tudo leva a crer que o Brasil, com a mirada no CS, estaria sendo omisso e conivente com
desrespeito aos direitos humanos
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Como parte dessa política, o governo brasileiro decidiu liderar a missão de estabilização da
ONU (Minustah), criada com a resolução 1.542/2004 do Conselho de Segurança, adotada no
dia 30 de abril de 2004. Como documentamos no recente relatório "Mantendo a Paz no
Haiti?", baseado em nossas visitas ao Haiti ao longo dos últimos meses, a atuação da ONU
naquele país, para a qual o Brasil contribui decisivamente, é lamentável.
O resultado dessa falha é trágico: grupos armados continuam a espalhar terror na capital,
Porto Príncipe; membros do antigo exército haitiano ‐que fora desmantelado em 1995‐, que
participaram na recente rebelião que levou à saída de Aristide, continuam controlando
importantes áreas do planalto central do país, atuando ilegalmente como força de ordem e
segurança. Enquanto isso, a polícia nacional haitiana continua perseguindo, violentando e
assassinando haitianos, muitas vezes até com cobertura de tropas da ONU.
Apesar de receber relatórios e mais denúncias sobre os problemas no Haiti, o governo
brasileiro mostra uma reação que tem sido nula em termos práticos.
Em 31 de março de 2005, numa decisão histórica, o Conselho de Segurança decidiu
encaminhar a crítica situação de Darfur, no Sudão, para o recém‐criado Tribunal Penal
Internacional (TPI).
Essa é a primeira vez que o CS envia um caso para o TPI, vencendo inclusive a resistência de
seu principal opositor, os Estados Unidos da América. O resultado dessa votação mostrou que
apenas Estados Unidos, China, Argélia e Brasil se abstiveram. Facilmente deduzível por que
Argélia e China, dois países com violações massivas e sistemáticas de direitos humanos e bons
candidatos a terem os seus nacionais processados pelo TPI, se opõem à decisão.
Mas por que o Brasil não quer que o TPI investigue denúncias de genocídio, crimes contra a
humanidade, no Sudão? Apesar da declaração do embaixador Sardenberg, de que o Brasil não
estaria de acordo com uma concessão técnica feita aos EUA, parece que a razão para a posição
brasileira pode ser outra.
Há poucas semanas, o jornalista Joel Brinkley afirmou em artigo no New York Times que uma
delegação brasileira em visita ao Sudão, em fevereiro, teria prometido ao governo daquele
país não apoiar punições da ONU contra o Sudão em troca de apoio à pretensão brasileira no
Conselho de Segurança.
Se a informação do jornalista for de fato verídica, o Brasil estaria ignorando dezenas de
milhares de mortes e o sofrimento de vítimas inocentes, mulheres violentadas e estupradas,
crianças órfãs e sem perspectivas. É dizer: se o governo brasileiro não desmentir publicamente
o que foi divulgado pelo jornal americano, tudo leva a crer que o Brasil, com a mirada única na
hipotética cadeira no grupo dos países mais poderosos, estaria sendo omisso e conivente com
uma terrível situação de desrespeito aos direitos humanos.
205
A Organização das Nações Unidas foi erigida sobre princípios de humanidade, respeito aos
direitos humanos e à liberdade. Tanto a tragédia no Haiti como o genocídio de Darfur, que o
governo brasileiro parece ignorar e usar como barganha, não nos deixam esquecer das
questões práticas e prementes a serem analisadas vis‐à‐vis ao Conselho de Segurança da ONU.
Diante de tão delicadas questões, é imprescindível que a sociedade brasileira indague: a que
custo o Brasil está buscando seu assento no Conselho de Segurança?
________________________________________
Carlos Eduardo Gaio, 27, advogado, é coordenador de relações internacionais da ONG Justiça
Global.
James Louis Cavallaro, 41, advogado, é diretor de relações internacionais da ONG Justiça
Global e diretor do Programa de Direitos Humanos e membro do corpo docente da Harvard
Law School. @ ‐ global@global.org.br
Folha de S. Paulo
Editoria/caderno: mundo
Título: Contra críticas, ministro de Lula voa para o Haiti
Data: 11/06/2005 ‐ sábado
Crédito: Fabiano Maisonnave, da redação
CARIBE
O presidente Luiz Inácio Lula da Silva envia hoje ao Haiti o ministro‐chefe do GSI (Gabinete de
Segurança Institucional), general Jorge Armando Felix, para demonstrar apoio ao trabalho do
comandante da missão de paz da ONU, o general brasileiro Augusto Heleno Pereira, alvo de
duras críticas nos últimos dias.
O principal assessor militar da Presidência também recolherá informações sobre a situação do
país, que enfrenta uma nova onda de seqüestros e violência em sua capital, para repassar a
Lula. É provável que ele se encontre com o primeiro‐ministro haitiano, Gérard Latortue. Ao
todo, Felix ficará cerca de um dia e meio no que será sua primeira viagem ao Haiti.
"Na condição de comandante‐em‐chefe das Forças Armadas, desejo reiterar o meu orgulho
pelo modo como as tropas brasileiras e as de outras nacionalidades sob o comando de Vossa
Excelência têm desempenhado uma missão de grande delicadeza política e de enorme
complexidade militar. Estou certo de que a opinião pública brasileira está consciente dos
desafios enfrentados por todos os oficiais e praças da Minustah [missão de paz da ONU]", diz a
mensagem assinada por Lula.
A missão de paz da ONU tem sido criticada por não deter a recente onda de violência em Porto
Príncipe, quase toda sob a responsabilidade das tropas brasileiras. Em mais um incidente na
capital envolvendo tropas da ONU, um militar boliviano, um jordaniano e dois voluntários
locais da Cruz Vermelha haitiana foram baleados anteontem de manhã na favela de Cité Soleil.
Um dos voluntários está em estado grave.
Folha de S. Paulo
Editoria/caderno: mundo
Título: Apesar da ONU, Haiti vira "terra de ninguém"
Data: 12/06/2005 ‐ domingo
Crédito: Fabiano Maisonnave, da redação
MISSÃO NO CARIBE
Haitiano já não distingue crimes comuns da violência por motivação política; crescem ataques
a capacetes azuis
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Sob crescentes críticas dentro e fora do país, a missão de paz da ONU no Haiti comandada pelo
Brasil está completando um ano neste mês envolta em mais uma onda de violência na capital,
Porto Príncipe, o que ameaça inviabilizar as eleições gerais marcadas para o segundo
semestre.
Depois de um período relativamente calmo no início do ano, a capital haitiana voltou a viver
dias de violência semelhantes a setembro do ano passado, quando um levante promovido por
partidários do ex‐presidente Jean‐Bertrand Aristide provocou dezenas de mortes na capital e o
fechamento do comércio e das escolas.
Desta vez, além dos tiroteios constantes, a cidade sofre com uma epidemia de seqüestros.
Segundo a polícia haitiana, foram ao menos 350 casos entre os dias 25 de fevereiro e 31 de
maio.
"A situação tem piorado nos últimos meses", disse à Folha Ali Besnaci, chefe da missão da ONG
Médicos Sem Fronteiras em Porto Príncipe, que trata apenas casos de violência, como pessoas
baleadas e vítimas de abuso sexual.
Localizada dentro de um hospital haitiano, a missão recebe pacientes da favela de Cité Soleil.
Com 500 mil habitantes, é tida como a região mais violenta do país.
Na semana passada, o Comitê Internacional da Cruz Vermelha (CICV) divulgou uma nota na
qual diz que o país atravessa uma "crise humanitária crônica, provocada por uma conjunção de
fatores como instabilidade política, violência e desastres naturais recorrentes".
Segundo o CICV, cerca de 200 corpos são encontrados abandonados todos os meses em Porto
Príncipe, conseqüência da violência "política e criminal".
"Os haitianos (...) vivem amedrontados pela violência motivada por razões políticas e pela
criminalidade comum. A linha que separa as duas formas de violência está cada vez mais difícil
de ser distinguida", afirma o CICV. Essa interpretação é praticamente consensual entre
analistas e organizações humanitárias.
A violência contra as tropas da ONU também aumentou no primeiro semestre deste ano,
quando cinco capacetes azuis foram mortos a tiros. Nos primeiros seis meses da missão,
ninguém havia sido morto.
Os militares brasileiros têm sido cada vez mais alvo de disparos. No primeiro contingente, que
atuou até dezembro, apenas um soldado havia sido ferido. No segundo contingente, esse
número subiu para cinco. E o terceiro contingente, que acaba de chegar, teve o primeiro caso
na semana passada. Nenhum brasileiro foi ferido com gravidade. Cada contingente permanece
cerca de seis meses no país.
A Folha solicitou à Brigada Brasileira, responsável por parte da segurança da região de Porto
Príncipe, estatísticas sobre a evolução mensal dos registros de violência, mas foi informada de
que os números estão atualmente indisponíveis por causa do processo de troca de
contingente.
"Posso adiantar que nossos dados estatísticos demonstram melhora sensível na situação na
área sob a responsabilidade do batalhão", afirmou o ex‐comandante Luciano Puchalski, que
até a semana passada coordenava a coleta e análise de informações sobre a violência na área
de atuação dos 1.200 soldados brasileiros.
Pressão americana
Acostumados a intervir no Haiti, os Estados Unidos têm demonstrado impaciência com a falta
de resultados no país. Há uma semana, o jornal "Washington Post" noticiou que a embaixada
norte‐americana no país havia recomendado ao governo de George W. Bush o envio de
marines para garantir a segurança nas eleições de outubro e novembro.
Em visita ao Haiti na última quinta‐feira, o subsecretário de Estado dos EUA para a América
Latina, Roger Noriega, exortou a missão liderada pelo Brasil a ser mais "pró‐ativa" no combate
207
às gangues, mas negou especulações de que Washington poderia enviar militares para reforçar
a segurança do país.
O chefe‐de‐gabinete do governo haitiano, Michel Brunache, disse que a chegada de marines
americanos seria "bem‐vinda" e que a população tem "cada vez menos" confiança nos
capacetes azuis.
O especialista em relações internacionais Ricardo Seitenfus, que no ano passado foi enviado ao
Haiti pelo Itamaraty para acompanhar as negociações políticas, defende o trabalho brasileiro.
Segundo ele, "evitamos o pior, que seria uma guerra civil".
"O nosso modelo é de diálogo, com baixo índice de intervenção militar, de associar a presença
militar à tentativa de resolver as questões socioeconômicas e o diálogo político", afirma.
"Devemos continuar prestando esse serviço, mas colocando como condição dois elementos: o
diálogo político e a questão socioeconômica como problemas a serem enfrentados."
Como resposta às críticas, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva enviaria ontem ao Haiti o
ministro‐chefe do GSI (Gabinete de Segurança Institucional), general Jorge Armando Felix, que
levou uma mensagem de apoio ao comandante da Minustah (missão de paz da ONU), o
general brasileiro Augusto Heleno Pereira.
Folha de S. Paulo
Editoria/caderno: opinião
Título: Haiti: um grande desafio
Data: 11/09/2005 ‐ domingo
Crédito: Augusto Heleno Ribeiro Pereira
Desculpas adiam providências urgentes e obrigam os militares a ações humanitárias que
fogem a sua alçada
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Há 11 dias, passei o comando da força militar da Missão da ONU para Estabilização do Haiti
(Minustah) ao general Urano Bacellar. Vivi, durante 15 meses, uma experiência fantástica,
pessoal e profissional. Comandei um efetivo de 6.250 militares "capacetes azuis", reunindo
contingentes de 13 países, sete deles latino‐americanos, e oficiais de Estado‐maior de 23
nações. Todos deram tudo de si para cumprir cabalmente as missões recebidas.
A caótica realidade socioeconômica do país levou‐me a concluir, de imediato, que construir um
ambiente seguro e estável seria viável se combinássemos segurança com projetos de infra‐
estrutura e desenvolvimento. A doação de mais de US$ 1 bilhão, na Conferência de
Washington, em julho de 2004, fez‐me crer que canteiros de trabalho, tropas e polícia
desdobrar‐se‐iam, simultaneamente, pelas diversas regiões do país.
Entretanto desculpas inconsistentes continuam adiando providências urgentes no campo
econômico e social, obrigando os militares a realizar ações humanitárias que fogem a sua
alçada.
Várias vezes, expressei minha discordância quanto à estratégia adotada pela "comunidade
internacional" em relação ao Haiti. Fazia eco às manifestações de desapontamento do
embaixador chileno Juan Gabriel Valdés, representante especial do secretário‐geral da ONU e
chefe da missão, e dos governos de países latinos. O Brasil e a Espanha ameaçaram, inclusive,
retirar seus efetivos militares. Até agora, pouquíssimo aconteceu de prático e visível.
Deixei o Haiti convicto de que somente a geração maciça de postos de trabalho melhorará as
condições de vida e criará uma esperança de futuro para os jovens haitianos. Exigir uma
segurança impecável para aplicar recursos quando 80% da força de trabalho não possui
emprego formal e 70% do povo sobrevive miseravelmente com uma refeição diária soa
utópico e até mesmo cruel.
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Até agora, cabe quase que exclusivamente aos vetores de segurança criar condições para o
cumprimento da resolução do Conselho de Segurança da ONU. Um desses vetores, a Polícia
Nacional do Haiti (PNH), única força legal do país, reconhecidamente destemida, enfrenta
sérios problemas de equipamento, pessoal e adestramento, além de ser alvo de acusações
freqüentes de envolvimento em atos ilícitos. Por isso, operações conjuntas, necessárias e
inevitáveis, constituem, sempre, fator de risco para os capacetes azuis.
Li e ouvi acusações contra a Minustah. Injustas e precoces, esquecem que a instalação de uma
missão de paz advém de uma série crise e da necessidade de evitar um mal maior. No caso do
Haiti, inegavelmente um grande desafio, até os pessimistas de plantão reconhecem que, sem a
intervenção da ONU, teria explodido uma sangrenta guerra civil.
A Minustah, apenas em dezembro de 2004, atingiu um efetivo próximo do previsto pelo
mandato. Ainda assim, realiza um profícuo trabalho. Há cinco meses, o interior do Haiti
encontra‐se inteiramente calmo. Porto Príncipe, capital do país, viveu, em maio e junho, um
pico de violência. O número de seqüestros cresceu, e ações de gangues armadas contra
estabelecimentos comerciais e industriais ameaçaram a frágil economia haitiana. Por
coincidência, renovávamos, à época, os contingentes responsáveis pela segurança da cidade:
Brasil, Jordânia, Peru e Sri Lanka.
Graças à atuação conjunta de militares, PNH e polícia internacional, controlamos a situação, e
a cidade retomou a tranqüilidade. O terceiro contingente brasileiro, melhor treinado e
valendo‐se da experiência dos anteriores, restabeleceu, apoiado pela população, a lei e a
ordem no bairro crítico de Bel Air. Resta, ainda, uma única área problema: a paupérrima e
gigantesca favela de Cité Soleil, com cerca de 300 mil habitantes, isolada e subjugada a
gangues que, diariamente, enfrentam, à bala, as patrulhas de capacetes azuis.
A situação exigirá um trabalho duro, persistente e demorado, incluindo ações de governo, em
uma solução compatível com uma força de paz, sem o uso indiscriminado da violência, como
desejam alguns inescrupulosos.
As eleições acontecerão, com certeza. Mais de 400 postos, espalhados em todo o país, já
acolheram mais de 2 milhões de inscritos, sem qualquer incidente relevante. Como insiste o
embaixador Valdés, não serão eleições austríacas nem suíças. Esperamos dos julgadores a
mesma tolerância demonstrada ao analisar pleitos efetuados, recentemente, em outras zonas
"quentes".
Penso que o futuro do Haiti depende, fundamentalmente, da participação solidária dos países
latino‐americanos. Nossa familiaridade com problemas semelhantes poderá ajudar o futuro
governo na busca de soluções viáveis e duradouras.
Espero que o fantástico e sofrido povo haitiano, pioneiro na conquista da sua independência,
assuma o papel que lhe cabe, esqueça as desavenças do passado, aproveite a presença
estrangeira (bem‐intencionada e financeiramente poderosa), escolha bem os seus futuros
governantes e se una em torno de um pacto de governabilidade, capaz de restabelecer a
democracia e o Estado de direito, reconstruir o país e pavimentar um futuro melhor.
Augusto Heleno Ribeiro Pereira, 57, general‐de‐divisão combatente do Exército brasileiro, foi
comandante militar da Missão das Nações Unidas para Estabilização do Haiti (Minustah) de
junho de 2004 a setembro de 2005.
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Folha de S. Paulo
Editoria/caderno: mundo
Título: ONGs acusam Brasil de violações no Haiti
Data: 16/11/2005 ‐ quarta‐feira
Crédito: Iuri Dantas, de Washington
MISSÃO NO CARIBE
Grupo de ativistas americanos diz à OEA que soldados brasileiros da ONU participaram de
massacre
O Brasil foi denunciado ontem à Comissão Interamericana de Direitos Humanos da OEA
(Organização dos Estados Americanos) sob a acusação de participação ativa e omissão em
supostas chacinas no Haiti. A denúncia é de grupos de ativistas americanos. O Brasil lidera os
militares da Missão de Estabilização da ONU no Haiti (Minustah), sob o comando do general
Urano Bacellar.
"Aqueles mortos pelas forças da Polícia Nacional Haitiana e pela Minustah incluem uma longa
lista de homens, mulheres e crianças desarmados. Nenhum esforço foi feito para reduzir as
mortes de civis e transeuntes. Em muitos casos, essas vítimas não são "dano colateral" das
operações, acidentalmente surpreendidas em fogo cruzado, mas intencionalmente visadas e
mortas pela polícia e/ou forças da Minustah", diz a petição entregue à comissão.
O lingüista Noam Chomsky também apóia as denúncias, de acordo com os organizadores, mas
ele não assina a petição.
O grupo responsável pela denúncia disse ter obtido gravações em vídeo e depoimentos de
haitianos que comprovariam os incidentes. O material, porém, não foi repassado à imprensa
ontem.
Depois de analisar os dados, a comissão deve solicitar uma resposta oficial do Brasil a respeito
das supostas violações de direitos humanos, antes de decidir se inicia um processo contra o
país.
"As informações e relatos vêm de diferentes fontes, de diferentes classes sociais, de diferentes
bairros. É implausível que tenham organizado uma versão", disse Seth Donelly, da ONG US
Labor.
Um suposto massacre no dia 6 de julho de 2004 compõe a base da denúncia. No episódio, a
Minustah contabiliza cinco mortos. Já moradores e médicos ouvidos na denúncia encaminhada
dizem que 63 pessoas morreram e 14 desapareceram. A maioria dos mortos teria recebido
tiros na cabeça.
Dias antes, em 29 de junho, uma outra ação dos capacetes azuis teria resultado na morte de
um haitiano em cadeira de rodas, William Merci, em Bel Air, com um tiro na cabeça. Um vídeo
do corpo e depoimentos indicariam a participação de tropas brasileiras.
"Não importa quem esteja no comando. Os brasileiros são adorados pela população haitiana
por conta do futebol. Quem lidera as tropas vai aplicar a política da ONU que é ditada pelos
EUA. Está tudo errado desde o início", afirmou Lionel Jean‐Batiste, vereador em Illinois.
Na denúncia, o Brasil é considerado culpado pela ação direta de seus soldados em mortes de
civis e também por omissão frente à ação violenta da Polícia Nacional Haitiana. De acordo com
o relatório, integrariam a polícia grupos de criminosos locais que agora se vingam contra a
população.
Contabilizam 14 as assinaturas na petição. Entre os que endossam estão as ONGs Global
Exchange, Irmandade de Reconciliação, Instituto para a Justiça e Democracia no Haiti e US
Labor, a Associação Nacional de Advogados, o professor de geologia Joseph Nevins, do Vassar
College e a Conferência de Advogados Negros de Chicago.
A equipe responsável pela denúncia foi a Cité Soleil no dia seguinte às mortes de 6 de julho.
210
Os EUA também foram denunciados sob a acusação de "armar e apoiar diplomaticamente" a
polícia haitiana após a queda do então presidente, Jean‐Bertrand Aristide, em fevereiro de
2004
Folha de S. Paulo
Editoria/caderno: opinião
Título: Os ônus do Haiti
Data: 17/11/2005 – quinta‐feira
Crédito: editorial não‐assinado
A denúncia de que militares brasileiros estariam envolvidos em chacinas no Haiti,
independentemente de ser ou não verdadeira, corrobora a tese de que a paupérrima ilha
caribenha transformou‐se num atoleiro para o Brasil.
As acusações, feitas por ativistas norte‐americanos à Comissão Interamericana de Direitos
Humanos da OEA (Organização dos Estados Americanos), precisam ser investigadas, embora
outras fontes abalizadas sustentem que, se a Minustah (Missão de Estabilização das Nações
Unidas no Haiti), cujo comando militar é do Brasil, errou, foi mais por omissão do que por
ações concretas.
De toda maneira, a denúncia funciona como um termômetro da deterioração tanto do cenário
político como do prestígio das forças estrangeiras. Uma acusação como essa teria sido
impensável durante os primeiros meses da missão, que teve início em junho do ano passado.
Esta Folha foi favorável à colaboração do Brasil com as forças da ONU, mas já há meses vem
alertando para os problemas ocasionados pela falta de uma ação conjunta da comunidade
internacional. Ao que tudo indica, à medida que o tempo passa, a situação tende a piorar. A
eleição presidencial, que deveria ser o início da normalização do Haiti, já sofreu quatro
postergações ‐estando prevista, agora, para meados de dezembro.
É também desalentador que grande parte da ajuda prometida por diversos países em 2004
jamais tenha chegado à ilha. E dificilmente chegará. O Haiti não é o único país miserável do
planeta que cobra apoio externo, e os EUA, potência que realmente faz a diferença, têm
outras prioridades internacionais no momento.
Diante desse quadro, o Brasil vê‐se na incômoda posição de comandar uma missão que vai se
tornando cada vez mais impossível. Sendo assim, os brasileiros ficam com os ônus políticos
pelo fracasso. Para não torná‐los muito evidentes, o país permanece no Haiti apenas fingindo
que tudo corre bem.
Folha de S. Paulo
Editoria/caderno: mundo
Título: Morte abala política externa de Lula
Data: 08/01/2006 ‐ domingo
Crédito: Eliane Castanhede, colunista da folha; Eduardo Scolese, da sucursal de Brasília
A morte do general Urano Bacellar, ontem, em Porto Príncipe (Haiti), foi um duro golpe tanto à
política externa do governo Luiz Inácio Lula da Silva como ao Exército, como instituição.
Liderada pelo Brasil, a missão de paz da ONU no Haiti tem servido como um dos alicerces do
Itamaraty para vender ao mundo a possibilidade de o país obter um assento permanente no
Conselho de Segurança das Nações Unidas.
Em 2004, ao receber dos EUA o comando da missão haitiana, o Brasil passou a liderar pela
primeira vez uma força da ONU justamente para chamar a si uma maior responsabilidade nas
ações da instituição.
211
Agora, com a morte de Bacellar, o governo sabe que aumentarão as críticas e terá de dar
explicações cada vez mais constantes, principalmente no Congresso, se vale a pena arriscar a
vida de homens brasileiros em troca de uma aspiração da política externa ‐desgastada na
semana passada pelo fato de o Japão ter desistido de assinar o projeto de reforma do
Conselho de Segurança apoiado por Brasil, Índia e Alemanha.
Já no Exército o desgaste pode vir da eventual confirmação de que o comandante da Minustah
cometeu suicídio em seu alojamento em Porto Príncipe.
Casos de suicídio são comuns nas Forças Armadas, mas não entre oficiais generais. Tal
confirmação ocorreria no momento em que a auto‐estima dos militares não é das melhores. O
próprio comandante do Exército, general Francisco Roberto de Albuquerque, tem admitido
publicamente o sucateamento da Força e a impossibilidade de seus comandados fazerem três
refeições diárias.
Até o início da tarde de ontem o Itamaraty não tinha a confirmação do motivo da morte de
Bacellar porque o exame de balística ainda estava sendo efetuado. No Haiti, as tropas
brasileiras foram informadas do fato durante uma missão numa favela da capital.
Na tarde de ontem, eram aventadas duas possibilidades. Uma, que o Exército encampou
rapidamente, de que a morte foi acidental, e a outra, também considerada no Itamaraty, que
era a de suicídio. Mas os diplomatas não queriam falar nada oficialmente por falta de
confirmação técnica.
O ministro Celso Amorim (Relações Exteriores), que estava no Rio com a família, retornou a
Brasília, onde se reuniu com o ministro da Defesa e vice‐presidente, José Alencar, e com
assessores do Ministério da Defesa e do comando do Exército no fim da tarde.
O chanceler também conversou sobre o fato com o secretário‐geral da ONU, Kofi Annan, e
com a secretária de Estado americana, Condoleeza Rice.
Em nota, o Itamaraty afirmou que o general era "conhecido por seu preparo e competência" e
"vinha conduzindo com excelência e grande responsabilidade a difícil tarefa de comandar o
componente militar da missão", e disse que Lula "reitera sua plena confiança no trabalho
desenvolvido pelas tropas brasileiras no Haiti e reafirma a determinação do governo brasileiro
de continuar apoiando o povo haitiano na construção da paz e normalização política" do país.
Por fim, o texto pede que a ONU "conduza imediata e ampla investigação sobre o assunto" e
dispõe que autoridades da Defesa, das Relações Exteriores e do Gabinete de Segurança
Institucional acompanhem o processo.
Amorim conheceu pessoalmente o general Bacellar na última vez em que esteve em Porto
Príncipe, após voltar de Nova Iorque, no final do ano passado. A assessores, o ministro
descreveu o general como "uma pessoa muito afável, gentil e que parecia muito satisfeito com
o trabalho que desempenhava em nome do governo brasileiro".
Folha de S. Paulo
Editoria/caderno: mundo
Título: Emoção marca homenagem a general Bacellar
Data: 10/01/2006 ‐ terça‐feira
Crédito: do enviado a Porto Príncipe
Um grupo de soldados brasileiros da Minustah (Missão de Estabilização da ONU no Haiti)
interrompeu ontem a rotina de patrulhas nas ruas de Porto Príncipe para assistir a uma breve
cerimônia religiosa fúnebre em homenagem ao general Urano Bacellar.
Muitos se emocionaram ao ver o caixão deixar o pavilhão do hospital argentino ‐ao som do
toque de silêncio, executado, com cornetas, por homens das Forças Armadas.
212
"Pedimos a Deus que o acolha para a eternidade porque ele era um excelente profissional",
disse o capelão do Exército brasileiro Marcos Marques, antes de rezar o Pai‐Nosso e ungir o
caixão que levava o corpo do general, coberto com as bandeiras do Brasil e da ONU.
A solenidade foi simples. Discursaram o embaixador Paulo Pinto, além do responsável das
Nações Unidas no Haiti, Juan Valdés, e o general chileno Aldunate, que assumiu o comando da
missão da ONU interinamente em conseqüência da morte do general brasileiro.
"Queria que o exemplo de vida que ele [Bacellar] deixou servisse de inspiração para o moral
das tropas e dos funcionários no país", afirmou o embaixador Paulo Pinto.
Greve
O clima em Porto Príncipe parecia refletir a solenidade: havia poucos automóveis nas ruas,
mas o motivo era a greve convocada pelo setor patronal em protesto contra a falta de
segurança na cidade.
Na caótica região das Delmas, onde trânsito no domingo fazia com que se perdessem dez
minutos para percorrer dois quilômetros, ontem havia praticamente apenas carros das Nações
Unidas. "Respeitamos o direito de greve dos haitianos", disse Valdés em coletiva anteontem,
acrescentando que a segurança hoje é bem maior do que no passado.
Cité Militaire
A seção de Relações Públicas do Exército brasileiro levou a reportagem da Folha e outros
jornalistas ontem para conhecer os avanços obtidos na Cité Militaire, região separada da
perigosa Cité Soleil por apenas uma avenida.
Os militares criaram dois postos avançados de vigilância, mas ainda enfrentam diariamente
trocas de tiros com supostos bandidos. "Ontem à noite houve disparos com freqüência, mas
não com muita intensidade", relatou o tenente Giuseppe Pizzolatto, 28, do telhado de uma
antiga fábrica de gelo utilizada por traficantes haitianos até dezembro passado como
esconderijo.
A tática quando se ouvem tiros é "se abrigar e responder", segundo o jargão militar.
Nas ruas, as crianças corriam para pedir doces aos soldados do Brasil. Os mais velhos, por
medo, evitavam responder às perguntas dos jornalistas. (ID)
Folha de S. Paulo
Editoria/caderno: mundo
Título: Por que o Brasil deve permanecer no Haiti
Data: 15/01/2006 ‐ domingo
Crédito: Michael Deibert, especial para a Folha, tradução de Clara Allain
ARTIGO
A morte trágica do general brasileiro Urano Bacellar, que comandava a missão das Nações
Unidas no Haiti (Minustah), deve ter levado alguns setores no Brasil a questionar a
conveniência da missão brasileira no país caribenho de 8 milhões de habitantes, dilacerado
pela violência.
Na condição de jornalista que trabalha no Haiti há quase uma década e que já trabalhou
também no Brasil, acredito que o Brasil deva manter‐se firme em seu apoio à população
haitiana, mesmo após esse acontecimento, e levar adiante sua missão, no mínimo até a posse
do novo governo que sairá das eleições presidencial e legislativa marcadas para 7 de fevereiro
(primeiro turno).
Quando primeiro cheguei ao Haiti, em 1997, encontrei o país na metade da Presidência de
René Preval, o único presidente de sua história a ter concluído seu mandato e a ter presidido a
213
transferência de poder a um sucessor eleito. Apesar dos muitos problemas que acometeram
sua administração, Preval trabalhou em colaboração com organizações internacionais de
desenvolvimento, iniciou o processo de integração do Haiti na comunidade caribenha maior e
avançou na reforma da força policial que, durante o domínio do Exército haitiano, desfeito em
1995, havia sido apenas mais uma ala da repressão.
Tudo isso acabou com a posse de Jean‐Bertrand Aristide, em 2001. O presidente, que havia
sido padre católico numa favela de Porto Príncipe, fora eleito pela primeira vez em 1990, mas
expulso sete meses depois por um golpe de Estado. Conduzido de volta ao poder por tropas de
uma força internacional, em 1994, se tornou um espelho dos ditadores que muitos esperavam
que sua eleição fosse afastar da Presidência.
A partir do verão de 2002, quando o governo de Aristide tentou assumir o controle do sistema
universitário estatal do Haiti e ocorreu a queda de um esquema cooperativo de investimentos
em pirâmide que tinha ligações estreitas com setores fiéis ao regime, observei o Haiti
retroceder para a ditadura, e as rachaduras na casa do governo começaram a aumentar muito
antes de Aristide fugir do país, em 2004, em meio a uma insurreição armada e a maciças
manifestações de rua contrárias a seu governo.
Aristide deixou para trás um rastro de cadáveres e sonhos despedaçados. Entre os tópicos
sobre os quais escrevi, como jornalista, estavam a brutal expulsão de camponeses da planície
de Maribaroux, em março de 2002, realizada por forças de segurança do governo para abrir
caminho para a instalação no local de uma fábrica que pagaria baixos salários a seus
funcionários, e um ataque lançado em dezembro de 2003 contra um grupo de universitários
por gangues agindo em visível conluio com a polícia, durante o qual o reitor da universidade foi
espancado com barras de ferro até ficar incapacitado de andar.
Durante as freqüentes visitas que fiz ao enorme distrito de Cité Soleil, na capital, onde mais de
250 mil pessoas sobrevivem em condições de miséria e carência absolutas que só podem ser
descritas como criminosas, assisti a jovens sendo armados pela força policial de Aristide.
Equipados com armas e munição e reportando‐se ao presidente, esses jovens, que durante
anos haviam sido excluídos do processo político haitiano, puderam ter a honra de um encontro
com Aristide no Palácio Nacional haitiano. Ouviram a promessa de que sua comunidade
receberia ajuda se eles atacassem as manifestações da oposição.
Em várias ocasiões, perguntei a líderes de gangues por que razão se prestavam a defender um
governo que parecia ter feito tão pouco. Pelo contrário, eles me responderam várias vezes ‐
algum outro governo haitiano teria sequer reconhecido sua existência, muito menos os
convidado a entrar no palácio?
Em momentos mais sombrios, porém, eles admitiam que achavam que seriam mortos pela
polícia se não obedecessem às ordens do governo. Muitos no Haiti acusam Aristide de
continuar a desestabilizar a situação no país, coordenando as ações das gangues
remanescentes desde seu exílio na África do Sul.
No verão passado, quase dois anos após a fuga de Aristide para o exílio, quatro das
organizações mais politicamente progressistas do Haiti ‐a Plataforma Haitiana de Defesa do
Desenvolvimento Alternativo (Papda), o Grupo de Apoio aos Repatriados e Refugiados (Garr),
o Solidariedade das Mulheres Haitianas (Sofa) e o Centro Nacional e Internacional de
Documentação e Informação da Mulher no Haiti (EnfoFanm)‐ assinaram uma declaração em
que pediam que Aristide fosse julgado pelo que qualificaram como seus crimes contra a
população haitiana, mencionando por nome o assassinato de outro jornalista haitiano, Jacques
Roche, e a campanha de estupros travada contra mulheres pobres das favelas, entre outros.
É exatamente desse tipo de violência atroz que a população haitiana procura se afastar, e é
por isso que a presença de tropas brasileiras no país, revigorando uma força das Nações
Unidas composta de 9.000 soldados e policiais de 21 países, é tão importante.
214
Os avanços ainda frágeis obtidos pela maioria pobre haitiana e o frágil processo de construção
de suas instituições ‐o Judiciário, a polícia, o funcionalismo público‐ foram quase inteiramente
destruídos durante os anos do governo Aristide, e os haitianos vão precisar do apoio e da
ajuda de seus irmãos latino‐americanos se quiserem construir uma paz mais justa e eqüitativa
no futuro.
Apesar de seus problemas sociais e políticos próprios, o Brasil já demonstrou como um país
pode fazer a transição de ditadura para democracia e como os marginalizados do poder
político podem começar a abrir caminho, mesmo que apenas de maneira frágil, para uma
forma de governo mais responsável. Os haitianos não pedem menos do que uma democracia
real e não merecem menos do que isso. Um país que já sofreu tanto ficaria feliz em contar o
Brasil entre seus amigos.
________________________________________
Michael Deibert é autor de "Notes from the Last Testament: The Struggle for Haiti" (notas do
último testamento: a luta pelo Haiti) e foi correspondente da Reuters no Haiti entre 2001 e
2003.
Folha de S. Paulo
Editoria/caderno: mundo
Título: Só 2% dos militares brasileiros sofreram de estresse no Haiti
Data: 16/01/2006 ‐ segunda‐feira
Crédito: Eduardo Scolese, da sucursal de Brasília
MISSÃO NO CARIBE
Suicídio pôs em xeque psicologia do Exército
Um levantamento do Exército com base em testes psicológicos, entrevistas e dinâmicas de
grupo mostra que apenas 2% dos militares brasileiros das tropas do Haiti sofreram ou
perceberam algum nível de estresse durante a missão de paz da ONU.
Entre os fatores de estresse relatados pelos militares que retornam da missão está o assombro
diante da violência haitiana, a necessidade de lidar com cadáveres expostos nas ruas, o risco
diário de morte e ferimentos e o choque cultural com o grau de miséria no país mais pobre das
Américas.
Na semana passada, o suicídio do general Urano Bacellar, então comandante da Minustah
(Missão das Nações Unidas de Estabilização no Haiti), colocou em xeque o trabalho psicológico
do Exército, que, nos bastidores, aponta possíveis problemas pessoais para a morte do militar.
Desde meados de 2004, quando o Brasil enviou seu primeiro efetivo à Minustah, cerca de
4.000 militares brasileiros já passaram pelo país. Tanto na ida como na volta são submetidos a
uma bateria de testes físicos e psicológicos coordenados pelo Cepaeb (Centro de Preparação e
Avaliação para Operações de Paz do Exército).
Na volta, os militares têm de encarar uma espécie de quarentena, quando ‐por um período
que varia de uma semana a dez dias‐ ficam isolados num quartel do Exército. Lá passam por
exames médicos, físicos e psicológicos. Até agora, apesar de relatos de perturbações, nenhum
deles atingiu níveis mais graves, como a "síndrome de estresse" ou o chamado "transtorno de
estresse pós‐traumático".
Chefe‐adjunto do Cepaeb, o major José Carlos Teixeira Júnior, 40, avalia que os militares
retornam melhores do Haiti. "Passam a valorizar mais a família e o país e ficam mais
comprometidos com a democracia e orgulhosos do Exército brasileiro." Segundo ele, cada R$ 1
investido no Cepaeb representa uma economia de R$ 15 de possíveis despesas com seqüelas
da missão.
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Folha de S. Paulo
Editoria/caderno: mundo
Título: Para general, favela concentra mortes
Data: 20/01/2006 ‐ sexta‐feira
Crédito: Leila Suwwan, de Nova York
O general José Elito Carvalho Siqueira viaja hoje ao Haiti, onde assume o comando militar da
missão de estabilização das Nações Unidas (Minustah) na segunda‐feira. Após passar o dia em
reuniões preparativas na ONU em Nova York, o brasileiro se declarou "absolutamente
otimista" com o desafio de garantir as eleições haitianas, marcadas para 7 de fevereiro.
Além disso, Siqueira rejeitou que esteja ocorrendo uma "escalada de violência" no Haiti e
insistiu que o foco de mortes e seqüestros é a favela de Cité Soleil. "A situação lá e séria, mas
não é um retrato do país", disse.
Sobre o aumento das mortes de civis por arma de fogo, conforme relatado pela organização
Médicos Sem Fronteiras, disse que a missão terá senso de riscos.
"É difícil dizer que há uma "escalada'; ainda não estive lá. Mas danos colaterais podem
acontecer quando a população está muito próxima. Cabe planejar muito bem e, se houver
dúvidas, evitar a operação. A missão é de estabilização. Teremos o bom senso de reavaliar
operações quando houver riscos considerados fora de controle", disse.
Siqueira negou que faltasse policiamento civil: "Há polícia. É a Guarda Nacional Haitiana, tem
um efetivo até razoável". E rebateu as pressões internas contra o trabalho militar de
policiamento urbano, que a população considera inadequado. "A população vai nos apoiar.
Sabe que estamos lá para ajudar", disse.
Porém afirmou que não haverá surpresas no cargo, já que acompanhou de perto o trabalho
dos ex‐comandantes e amigos próximos, generais Augusto Heleno Ribeiro e Urano Bacellar ‐
que cometeu suicídio no início deste mês, no Haiti.
Siqueira não quis discutir a fundo o elemento político da violência local, cujo objetivo, segundo
a ONU, é evitar eleições inclusivas.
Folha de S. Paulo
Editoria/caderno: mundo
Título: Haiti votará sob violência, prevê Elito
Data: 25/01/2006 ‐ quarta‐feira
Crédito: da redação
MISSÃO NO CARIBE
General brasileiro que comanda força da ONU espera problemas
O Haiti deve realizar eleições gerais no próximo dia 7 de fevereiro, mas a votação não deverá
ocorrer sem problemas de violência. A avaliação foi feita pelo general brasileiro José Elito
Carvalho Siqueira, que assumiu anteontem o comando militar da Missão de Estabilização da
ONU no Haiti (Minustah), em entrevista à BBC Brasil.
"É bem provável que tenhamos alguns problemas. Vamos torcer apenas para que esses
problemas não interfiram [nas eleições] a um ponto considerável", afirmou o general. A nova
data do pleito foi definida após quatro adiamentos.
Elito foi designado como o novo comandante militar das tropas da ONU no país caribenho na
semana passada, para substituir o general Urano Bacellar, que se suicidou no início do mês, em
Porto Príncipe, capital haitiana.
O general, que nunca havia estado no Haiti, disse que ficou positivamente surpreso com a
situação do país, que julgou melhor do que imaginava. "Assim como o nosso país, [o Haiti] é
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um lugar de contrastes, mas de um modo geral a situação está calma. O que existem são
problemas pontuais, como em Porto Príncipe", disse.
O general avaliou ainda que a atuação dos capacetes azuis no Haiti não deve terminar com a
realização das eleições.
"No período pós‐eleições talvez tenhamos de continuar com missões tão importantes quanto
as de hoje. É uma missão de estabilização. Tem ainda o segundo turno [previsto para março], a
posse do novo presidente. Acredito que durante este ano as tropas permaneçam com seu
efetivo integral."
O Brasil comanda um contingente militar de 7.500 homens, dos quais 1.200 são brasileiros,
além de cerca de 2.000 policiais. O mandato atual vai até 15 de fevereiro, mas deve ser
renovado.
"Essa renovação vai acontecer "n" vezes. Pode ser uma renovação ou duas ou três ou quatro,
vai depender justamente dessa evolução depois das eleições", disse.
Em reportagem publicada ontem, o diário "New York Times" detalhou as dificuldades
enfrentadas pelos soldados jordanianos, que hoje são o maior contingente militar estrangeiro
no país, com 1.500 homens, e estão responsáveis pela segurança na favela de Cité Soleil, o
principal foco de violência na capital haitiana.
O jornal aponta o aumento dos seqüestros ‐uma média diária de 14 incidentes‐ e as pressões
da população por uma atuação mais ofensiva das tropas.
Folha de S. Paulo
Editoria/caderno: mundo
Título: Soldados revelam o horror da vida no Haiti
Data: 29/01/2006 ‐ domingo
Crédito: Laura Capriglione, da reportagem local; Marlene Bergamo, repórter‐fotográfica
MISSÃO NO CARIBE
Para brasileiros que estiveram no país caribenho, o termo "missão de paz" não retrata a
realidade
A câmera digital registrou 17 minutos de agonia do haitiano. De uma rua atulhada de lixo em
Bel Air, favela na capital haitiana considerada reduto de partidários do ex‐presidente Jean‐
Bertrand Aristide, sai o homem, tiro no pescoço. A blusa listrada empapada de sangue, ele
agacha ao lado do blindado brasileiro Urutu, dez homens a bordo. Pede socorro. Os soldados
sacam suas câmeras digitais e começam a fotografar. Ninguém desce para ajudar.
O Urutu não leva pessoal médico, e o homem pode ter sido mandado para servir de isca aos
militares da Missão de Estabilização da ONU no Haiti (na sigla em francês, Minustah). Pode ser
emboscada. "Chama alguém do corpo médico", grita um.
O homem arfa, tira a camisa, rola na rua. Moradores da favela cercam‐no, enquanto os
brasileiros tiram mais fotos. Um quarto de hora depois, ouve‐se um ronco e cessam os
movimentos. O homem parece morto. Outro carro vem atrás, com enfermeiro. O homem é
levado ao hospital. Não se sabe mais dele. O Urutu retoma a jornada e segue em frente,
patrulhando.
A cena está entre os mais de 5.000 arquivos de fotos e filmetes gravados no laptop do soldado
S., 22, que esteve no Haiti entre dezembro de 2004 e junho de 2005, como parte do segundo
contingente de militares brasileiros enviados na missão de paz da ONU.
Há 20 meses, a ONU mantém tropas no país para, no jargão militar, "estabilizar" a situação ‐
desarmar as gangues e os partidários de Aristide, cujo governo caiu em fevereiro de 2004‐ e
garantir a transição democrática.
217
As eleições gerais marcadas para o próximo dia 7, depois de quatro adiamentos, podem até
dar a impressão de que esses objetivos estejam em via de ser cumpridos. Mas o país está
longe da paz.
Segundo o chefe do Escritório de Comunicações da Minustah, David Wimhurst, a área de Cité
Soleil, a maior favela de Porto Príncipe, segue como condomínio fechado por bandidos
armados. A polícia da ONU não entra, os soldados não se arriscam.
Há apenas seis meses, disse Wimhurst em entrevista telefônica de Porto Príncipe, a favela
estava aberta, mas a ação das tropas brasileiras em Bel Air levou a bandidagem a migrar para
os becos e vielas estreitas de Cité Soleil, onde um carro não passa.
A rotina de seqüestros na capital haitiana é outro indicador de violência que segue impávido ‐
ONGs contam 12 novos casos por dia apenas em Porto Príncipe. Na quinta‐feira, dois
missionários franceses acompanhados por dois haitianos foram emboscados perto de Cité
Soleil.
Fotos, filmes e carteirinhas
Para entender a rotina dos soldados brasileiros naquela que é a maior missão de paz já
enviada pelo Brasil ao exterior, a Folha reuniu oito soldados, idades entre 22 e 25 anos, em um
bar e pizzaria na periferia de São Paulo. Os rapazes chegaram carregando fotos e filmes de sua
estadia de seis meses no Haiti, além das carteiras de identidade da Minustah. Eles brincam
quando mostram uma foto do grupo na Cantina de Bombagay ‐em francês crioulo, língua
oficial do país, "bom companheiro". A pedido dos entrevistados, as identidades deles não
serão divulgadas.
Em duas horas de entrevista, os rapazes dizem que o nome "missão de paz" dá uma impressão
errada sobre o que está acontecendo no Haiti. Um soldado explica o ponto de vista dos
demais: "Até parece que esse nome é para tranqüilizar as pessoas no Brasil. Na verdade, não
há dia em que as tropas da ONU não matem um haitiano em troca de tiros. Eu mesmo, com
certeza, matei dois. Outros, eu não voltei para ver". O soldado não tem remorso: "Chora a mãe
dele, não a minha", diz.
Os militares contam que cada vez que um soldado sai em patrulha leva seu fuzil FAL e quatro
carregadores de 20 tiros. Como os confrontos com gangues são rotineiros, é comum os
soldados voltarem sem parte da munição. "Só quando acontece alguma coisa excepcional é
que a gente declara que matou. Comigo, nunca aconteceu essa tal coisa excepcional. Quando
voltava sem parte da munição, dizia ter trocado tiros, não atingindo ninguém, e os S‐2 [oficiais
da inteligência] deixavam por isso mesmo."
O grupo mostra fotos e mais fotos de cadáveres. Estão jogados pelas ruas transformadas em
lixões a céu aberto de Porto Príncipe. Boa parte está decapitada (costume dos bandos). Cães
aparecem disputando a carniça. Há uma série de fotos de um cadáver que primeiro aparece
sem cabeça. Com os dias passando, o corpo incha ao mesmo tempo que mingua. Cachorros
devoram‐lhe a caixa torácica, então uma perna, um braço, outro e outro e resta a carcaça.
Cabe à Polícia Nacional Haitiana recolher os corpos. Mas o trabalho demora às vezes mais de
semana para ser realizado.
A abundância de fotografias decorre do fato de a maioria dos soldados ter câmeras digitais e
laptops, comprados nas folgas em Miami ou na República Dominicana. Eles fotografam e
baixam os arquivos nas suas máquinas.
No laptop de S., a pasta "Fotos Chocantes" mistura doses diversas de horror. Outra pasta,
batizada de "É Nóis", mostra a rotina dos rapazes. Na foto que registra, por exemplo, o
embarque de soldados em um Boeing KC‐137 da Força Aérea (eles se preparavam para voltar
ao Brasil), vêem‐se sete câmeras digitais focadas em grupos de amigos.
Letalidade
218
"É muito fácil matar no Haiti, apesar de o soldado brasileiro ter um grande respeito pela
população civil", diz um. "É que os fuzis FAL têm um alto índice de letalidade." Enquanto a bala
de uma pistola 9 mm viaja a 1.440 km/h em média desde o cano até o alvo, a velocidade
média dos projéteis FAL (com 7,62 mm de diâmetro) é de 2.880 km/h, o dobro.
Um sargento explica o poder do FAL: "A bala entra com um movimento de rotação em torno
de seu próprio eixo. Mas, ao encontrar um obstáculo [um osso, por exemplo], ela se
desestabiliza e pode sair de lado, arrombando a carne". Outro soldado completa: "Às vezes, no
meio de um tiroteio, um cara vindo em nossa direção pode parecer uma ameaça. Se a gente
pede para ele parar e ele não pára, o jeito é atirar. Só que, com os FAL, quase sempre acaba
em morte. É um fuzil de guerra, não de patrulha urbana como as que fazemos no Haiti".
Mais do que contar, um dos rapazes mostra o momento mais apavorante em toda a missão.
Para isso, abre o arquivo "pânico", um filminho que o flagra "histérico", como ele mesmo
reconhece, envergonhado. Ele relata a cena: "A patrulha brasileira ia dentro de um Urutu [com
duas esquadras de quatro homens cada], quando foi cercada [por supostos bandidos
haitianos]. Se eles conseguissem arremessar um só coquetel molotov dentro da viatura, não
sobrava um de nós. E eles iam se aproximando perigosamente do carro, e nós não tínhamos
mais munição para responder." O vídeo mostra o soldado berrando para o sargento que
comandava as duas esquadras: "Vam'bora. Tá esperando o quê? Vamo morrê. Vamo morrê.
Vamo morrê".
Mulher por comida
De volta ao Brasil, todos os soldados passaram uma semana de quarentena. Depois de
examinados para malária, dengue, tifo, HIV e distúrbios psicológicos, e de ser advertidos (de
novo) de que não deveriam divulgar fatos militares ocorridos no Haiti, um deles soube ter sido
infectado pelo plasmódio causador da malária.
"Eu fiquei chateado porque a gente tomava mefloquina duas vezes por semana no Haiti",
lembra o soldado. A mefloquina é uma droga que reduz, mas não elimina, os riscos de contrair
a malária. Quando chegou ao Brasil, ele começou a sentir as febres, os calafrios e as dores
associados à doença, ainda sem cura.
S. diz ter arrumado uma namorada na República Dominicana, onde passou as férias de 15 dias
a que todo soldado tem direito nos seis meses em que está na missão. No Haiti, garante, não
manteve relações sexuais, apesar da rotina de haitianos indo para o acampamento brasileiro
oferecer suas mulheres em troca de comida.
"A gente não podia nem ter relações sexuais com haitianas [por causa do risco de Aids e outras
doenças sexualmente transmissíveis] nem dar alimentos para quem quer que fosse sem
autorização da ONU. Se déssemos, no dia seguinte não haveria um homem, mas o Haiti inteiro
oferecendo suas mulheres e pedindo comida em nossa porta."
No último dia de serviço, os brasileiros romperam a regra e, pelos vãos da cerca de concertina
(fita farpada com lâminas ultra‐afiadas que protege a base), entregaram a famílias haitianas os
itens do café da manhã: sucrilhos, cereais, mel, manteiga de amendoim, creme de chocolate,
leite de caixinha e café. "Era um senhor café da manhã", lembra um soldado. "Tanto que
engordei sete quilos na missão", diz.
Todos os entrevistados disseram que voltariam ao Haiti. O caso de um rapaz que voltou com
saldo de R$ 10 mil no banco, um laptop, uma câmera digital Sony Cybershot de 5,2 megapixels
e ainda com fama de herói no bairro explica o desejo coletivo.
A poupança cresceu graças à complementação do soldo. Quando em missão de paz, um
soldado que no Brasil ganha pouco mais de R$ 500 por mês passa a receber quase R$ 2.700.
"Depois tem outra. Se a saudade aperta, o rum haitiano é bom demais. Anota aí o nome: é
Barbancourt. Rum Barbancourt, um santo remédio contra a saudade", diz S.
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Folha de S. Paulo
Editoria/caderno: mundo
Título: Favorito defende que missão fique no Haiti
Data: 06/02/2006 ‐ segunda‐feira
Crédito: Fabiano Maisonnave, enviado especial a Porto Príncipe
MISSÃO NO CARIBE
Ex‐presidente, René Préval defende presença da ONU com mandato modificado e propõe
governo de transição
Líder em todas as pesquisas eleitorais, o ex‐presidente René Préval, 63, (1996‐2001) aposta na
vitória ainda no primeiro turno das eleições presidenciais, que ocorrem amanhã após quatro
adiamentos e em meio a um clima de desconfiada tranqüilidade.
Em entrevista à Folha anteontem à noite, Préval disse que pretende "fazer um governo de
transição" e que não impediria a volta do ex‐presidente Jean‐Bertrand Aristide, que deixou o
país em fevereiro de 2004 após violentos protestos. Para muitos analistas, o fim do exílio na
África do Sul deixaria o país novamente à beira de uma guerra civil.
Os dias que precedem a eleição têm sido considerados calmos pela missão de paz da ONU
(Minustah). As tropas brasileiras, responsáveis por parte da capital, Porto Príncipe, não
registraram nenhum incidente grave nos últimos dois dias.
Já os organizadores têm tido bastante trabalho para distribuir o material eleitoral. Dezenas de
mulas foram contratadas para vencer regiões montanhosas de difícil acesso. Na base militar
brasileira, funcionários da ONU trabalhavam à noite dentro de uma barraca plástica, iluminada
apenas pelos faróis de um carro.
Leia a seguir, a entrevista de Préval à Folha, em sua casa, na região nobre de Porto Príncipe.
Folha ‐ O sr. acredita na vitória no primeiro turno?
René Préval ‐ Sim, há pesquisas que nos dão 60%, 65%. Não sei qual é a confiabilidade dessas
pesquisas, mas, quando vejo o fervor da população, o número de pessoas que vem me
escutar, eu penso que é bastante possível.
Folha ‐ Quando o sr. se tornou presidente, havia uma missão da ONU no Haiti que saiu durante
seu mandato. Agora, há uma nova missão. O que esta missão tem de fazer para evitar a
repetição desse ciclo?
Préval ‐ A pergunta é: o que os haitianos devem fazer para evitar uma nova missão? Acredito
que sobretudo os haitianos devem fazer alguma coisa em vez da ONU. Isso quer dizer colocar o
país sob um caminho de estabilidade para evitar mais uma missão no Haiti. Se ganhar,
pretendo fazer um governo de transição nesse sentido.
Folha ‐ Quais foram então os erros cometidos pelos haitianos que provocaram a nova missão?
Préval ‐ [Pausa de 20 segundos] Vou dar a minha opinião: fui contra a saída do presidente
Aristide. Isso não quer dizer que estivesse o apoiando. Mas penso que é saudável que um
presidente termine seu mandato. Agora, a Minustah está aí e tem de permanecer. Vamos
pedir a prolongação da Minustah com um mandato modificado. São necessários menos
militares e mais policiais porque não estamos em guerra. É necessário reforçar a polícia e a
Justiça ‐a polícia é apenas uma auxiliar da Justiça. Temos de atrair investimentos estrangeiros
ao Haiti, para as pessoas trabalharem em paz.
Folha ‐ A Minustah intensificou as relações entre o Brasil e o Haiti. O que esperar dessa
relação?
220
Préval ‐ Acredito muito na cooperação Sul‐Sul. Acredito que países como o Brasil e a Venezuela
são muito mais próximos como modelos de desenvolvimento e podem compreender melhor
um país como o Haiti.
Folha ‐ O sr. tem origem na esquerda, e hoje há uma onda de governos de esquerda na região.
O sr. foi um dos primeiros ou pode se tornar o último dessa onda?
Préval ‐ É muito perigoso colocar etiquetas, não? Não sei se sou o primeiro ou o último. Estou
determinado a ajudar o povo haitiano a encontrar educação, saúde, trabalho. Se isso é ser de
esquerda, tudo bem.
Folha ‐ Hoje [sábado], o sr. faria o encerramento de campanha, mas cancelou alegando
questões de segurança. O que ocorreu? Houve segurança o suficiente na campanha?
Préval ‐ Durante toda a campanha, fomos atacados verbalmente. Fomos acusados de tudo: de
seqüestradores, de ter financiamento do narcotráfico etc. Mas essa campanha de agressão
assumiu uma forma física: tivemos uma tentativa de incêndio, três caminhões nossos foram
destruídos em Gonaives, fomos impedidos de entrar numa cidade. Em vez de nos expormos,
preferimos cancelar o comício porque havia informações sérias sobre a possibilidade de um
ataque.
Folha O sr. tem alguma crítica à atuação da Minustah?
Préval ‐ Não gosto de criticar a ação dos outros. Creio que a resposta mais pertinente é colocar
a seguinte questão: o que teria acontecido se a Minustah não estivesse aqui?
Folha de S. Paulo
Editoria/caderno: mundo
Título: Trabalho de brasileiros é elogiado em Porto Príncipe
Data: 07/02/2006 ‐ terça‐feira
Crédito: do enviado a Porto Príncipe
Enquanto os militares jordanianos sofrem para controlar a favela de Cité Soleil, os capacetes
azuis brasileiros têm recebido elogios no Haiti pelo trabalho realizado em Bel Air, até há pouco
considerada uma das zonas proibidas de Porto Príncipe. Localizada num morro perto do centro
da cidade, a favela deixou de ser evitada pelos motoristas de outras partes da cidade, que hoje
cruzam sem receio suas ruas antes interditadas por carcaças de automóveis.
"O trabalho feito em Bel Air é um modelo que seria muito interessante para Cité Soleil e
também para o Brasil, embora não precise ser feito necessariamente pelos militares", disse à
Folha o deputado Fernando Gabeira (PV‐RJ), que está no Haiti e tem sido crítico da
participação brasileira na missão de paz da ONU. "A brigada fez trabalhos concretos que o
Estado não supre, como pavimentação, assistência médica, ainda que precária, e a coleta do
lixo."
"Na época, havia uma situação muito caótica por causa do movimento das gangues. Com os
brasileiros, a situação melhorou completamente", afirmou um técnico em informática
desempregado de 30 anos, que preferiu o anonimato. Nascido em Bel Air, ele foi contratado
no ano passado pelos brasileiros como informante. Durante as patrulhas, usando capacete azul
e uma máscara para esconder seu rosto, identificava criminosos para os militares.
O ex‐informante estima que, desde que chegaram a Bel Air, os brasileiros mataram de 20 a 30
membros de gangue nos tiroteios e outras dez pessoas inocentes.
Segundo o batalhão brasileiro no Haiti, os soldados encontraram 14 "corpos de elementos de
forças adversas", mas estima que os mortos possam chegar a 46. O batalhão admite apenas
uma menina de dois anos ferida à bala por um membro de gangue.
"Mataram mais bandidos do que inocentes aqui, mas, em Cité Soleil, os jordanianos mataram
mais gente inocente do que bandidos", diz o ex‐informante.
221
Por causa do sucesso em Bel Air, circula dentro da Minustah uma proposta para que os
brasileiros passem a atuar em Cité Soleil. Seriam substituídos por chilenos e argentinos em Bel
Air, enquanto os jordanianos seriam mandados para o mais calmo interior do país. O chefe
militar da Minustah, general José Elito Siqueira, no entanto, descartou essa alteração no
momento.
Com o maior contigente da missão da ONU ‐1.500, contra 1.200 brasileiros‐, os jordanianos
têm sido os mais criticados, inclusive dentro da Minustah, pelo excesso de violência. "Eles
atiram quando estão felizes, quando estão tristes, eles acordam com o dedo no gatilho", diz
uma ativista haitiana de direitos humanos. (FM)
Folha de S. Paulo
Editoria/caderno: mundo
Título: Votação foi "revolucionária", diz rapper
Data: 09/02/2006 – quinta‐feira
Crédito: do enviado a Porto Príncipe
O ASTRO HAITIANO
Wyclef Jean alerta sobre perigo de revolta e frustração da população com missão da ONU
Se existe uma unanimidade no dividido Haiti, chama‐se Wyclef Jean. Astro da música pop
americana, o rapper se tornou nos últimos anos uma das principais lideranças políticas e uma
fonte inspiração para os milhões de jovens do país mais pobre do hemisfério.
Conhecido por ter fundado o grupo Fugees junto com Lauryn Hill, Jean visita sempre o seu país
natal, onde tem uma fundação mantida por generosas doações de amigos famosos, como Brad
Pitt e Angelina Jolie, que visitaram recentemente Porto Príncipe a convite do cantor.
Jean disse, antes de começar a entrevista, que não falaria em quem votou, mas brincou com
uma amiga: "Eu não vou dizer: "Votei em Préval". Mas também vou dizer que não conheço
nenhum outro candidato".
Irreverente, fez questão de mostrar aos repórteres da Folha que sabia jogar capoeira, sob o
olhar atento dos funcionários do hotel. Em seguida, tirou a roupa e entrou na piscina de cueca.
Eis a entrevista. (FM)
Folha ‐ Como foram as eleições em termos de comparecimento e organização?
Wyclef Jean ‐ Em termos de organização, foi um saco. Mas o comparecimento foi lendário e
superou os problemas de organização.
Folha ‐ Por que houve tantos problemas?
Jean ‐ Porque havia um certo grupo de pessoas que se sabia que não conseguiriam votar. Por
exemplo, veja a imensa população de Cité Soleil. Deveria ter havido centros de votação lá. Pô,
há mais de 300 mil pessoas lá. Mesmo assim, as pessoas foram aonde foram enviadas e,
apesar dos problemas, votaram.
Folha ‐ Como você coloca essas eleições nos 202 anos de história haitiana?
Jean ‐ Independentemente do resultado, o que aconteceu foi revolucionário. As pessoas
queriam votar e conseguiram.
Folha ‐ Como está o trabalho da ONU com relação à segurança e à pobreza?
Jean ‐ Tive um encontro com Kofi Annan e estava muito preocupado sobre a situação da ONU
no Haiti. Alguém tem de explicar às pessoas o que a Minustah está fazendo. Eles chamam a
Minustah de turista. Por quê? Porque alguém disse que essas tropas deveriam dar segurança.
São mantenedores da paz, não deveriam se envolver em batalhas de gangues. Precisa haver
um cessar‐fogo de Cité Soleil e da Minustah. Os dois lados estão dispostos a atirar neste
222
momento, e isso não faz nenhum sentido. As bandeiras brancas precisam ser levantadas.
Mesas redondas para negociar. Isso não é difícil.
Folha ‐ Mas Bel Air não está melhor?
Jean ‐ Estava em Bel Air no seu pior momento. O líder de gangue naquela época era o Dread
McKenzie. Bel Air baixou as armas e disse: "A ONU pediu para baixarmos as armas, mas as
promessas não foram cumpridas". A frustração está crescendo de novo. Se nada mudar nos
próximos oito, dez meses, Bel Air vai se levantar. Eles estão apenas se segurando com base no
que foi dito a eles.
Folha ‐ Você acha que a aproximação do Brasil com Haiti por causa da origem africana, do
futebol e do Carnaval influencia na participação do país aqui?
Jean ‐ O Brasil tem um lugar especial no coração do Haiti. Quando houve a partida de futebol
entre o Brasil e o Haiti, foi uma demonstração de como os haitianos idolatram os jogadores
brasileiros. Mas isso não é no sentido militar. O Brasil sensibilizou o Haiti, colocou a mão sobre
o povo haitiano e disse: "Queremos vê‐los melhor". Quando vocês fizeram aquele jogo, vocês
sensibilizaram o Haiti.
Folha ‐ Já esteve no Brasil? O que acha da música?
Jean ‐ Conheço o samba, a bossa nova e adoraria ir no Carnaval. Estive em São Paulo, na Bahia.
Sou bom em capoeira. Sou muito bom. Quer ver o meu estilo de capoeira?
Folha de S. Paulo
Editoria/caderno: mundo
Título: Brasil pede que conselho da ONU avalie Haiti
Data: 14/02/2006 – terça‐feira
Crédito: Cláudia Dianni, da sucursal de Brasília
MISSÃO NO CARIBE
Celso Amorim sugere a Condoleezza Rice que a crise no país seja discutida pelo órgão máximo
da entidade
O governo brasileiro quer que o Conselho de Segurança das Nações Unidas se reúna para
discutir ajuda ao Haiti após as eleições presidenciais do dia 7 passado.
De acordo com o Itamaraty, a secretária de Estado dos EUA, Condoleezza Rice, telefonou
ontem para o ministro Celso Amorim (Relações Exteriores) e ele, entre outros assuntos, propôs
que o caso do Haiti fosse levado ao Conselho de Segurança.
O ministro, porém, não foi específico sobre que tipo de proposta levar ao Conselho de
Segurança. Como Reino Unido, França, Rússia e China, os EUA são os membros permanentes
do conselho, todos com direito a veto e, portanto, com forte influência na pauta da
organização.
O governo brasileiro defende maior empenho internacional para que a solução dos conflitos
no Haiti passe por ajuda econômica e projetos de desenvolvimento social, e não apenas a
presença militar de capacetes azuis.
"É uma situação de desafio para os próprios haitianos, e não podemos fazer pelo Haiti o que
eles não puderam fazer por eles próprios. O que podemos fazer é viabilizar o que eles
quiserem fazer e, nesse caso, encontrar uma solução pelo diálogo, respeitando as leis e
terminando adequadamente a contagem dos votos", disse Amorim com relação à tensão no
Haiti por causa do resultado das eleições ‐até ontem, a indefinição sobre se haveria ou não
segundo turno permanecia. Para o ministro, o Haiti precisa manter "firmeza e prudência" para
superar a violência.
A possibilidade de que haja segundo turno, em lugar da esperada vitória do favorito René
Préval, provocou uma nova onda de protestos e violência no país. Em nota, o Itamaraty disse
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que o governo brasileiro "conclama a classe política haitiana a buscar o entendimento dentro
do respeito à lei e em um espírito de conciliação".
Préval é aliado do ex‐presidente Jean‐Bertrand Aristide, que renunciou em fevereiro de 2004
em meio a uma conflagração armada e sob pressão de EUA e França, a antiga metrópole
colonial do Haiti. A instabilidade política e a violência desde então levaram à interferência da
ONU, que enviou ao país a Missão de Estabilização das Nações Unidas no Haiti (Minustah),
comandada pelo Brasil.
Segundo o Itamaraty, Amorim conversou ontem também com os chanceleres da França e do
Canadá e o arcebispo sul‐africano e Prêmio Nobel da Paz em 1984, Desmond Tutu, que está no
Haiti, sobre a ampliação do apoio internacional ao país.
Ajuda internacional
Segundo Amorim, o conselho eleitoral será a instância que terá a última palavra sobre o
resultado da eleição no Haiti, mas, "se ainda houver alguma margem de dúvida sobre a vitória
de Préval no primeiro turno, o importante é chamar a atenção das forças políticas no Haiti
para que mantenham a paz, como fez Desmond Tutu".
A visão do governo brasileiro de que apenas o envio de tropas não é suficiente para ajudar o
Haiti e de que é preciso recursos financeiros da comunidade internacional é compartilhada
pelos EUA.
Recentemente, o secretário‐adjunto de Estado americano para Assuntos do Hemisfério
Ocidental, Thomas Shannon, disse, em Brasília, que a comunidade internacional prometeu US$
1 bilhão para ajudar o Haiti, mas que, até agora, apenas o governo americano cumpriu sua
parte, com uma doação de US$ 400 milhões.
Folha de S. Paulo
Editoria/caderno: mundo
Título: Brasil defende vitória de Préval no 1º turno
Data: 16/02/2006 – quinta‐feira
Crédito: Cláudia Dianni, da sucursal de Brasília; colaborou Fabiano Maisonnave, da
Reportagem Local
MISSÃO NO CARIBE
Idéia de Marco Aurélio Garcia é mudar regras da eleição; divulgação do plano irrita Itamaraty,
que teme reação
O governo brasileiro defendeu ontem a proclamação do candidato de centro‐esquerda René
Préval, o mais votado na eleição do dia 7 no Haiti, como presidente eleito. De acordo com o
assessor especial da Presidência para Assuntos Internacionais, Marco Aurélio Garcia, ontem
houve uma reunião de embaixadores em Porto Príncipe para discutir uma fórmula que
precipitasse a proclamação de Préval.
"O ideal seria que os candidatos, além de reconhecer sua derrota no primeiro turno,
reconhecessem que a situação configura claramente a vitória do Préval, mas é uma coisa que
não se pode impor. É uma questão de convencimento político que pode ser feito se o
candidato vencedor souber estabelecer conversações com outros candidatos", disse Garcia.
As declarações caíram como uma bomba no Itamaraty. Diplomatas ouvidos pela Folha
reagiram com perplexidade à iniciativa de Garcia de revelar a estratégia da comunidade
internacional para levar o processo eleitoral haitiano a um final rápido e pacífico.
À noite, o ministro Celso Amorim (Relações Exteriores) afirmou que o Brasil não vai decidir por
ninguém e que caberá ao povo haitiano essa decisão. Ele evitou comentar as declarações de
Garcia, que disse não ter ouvido.
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Para Amorim, as denúncias de fraudes nas eleições devem ser investigadas. Ele disse que,
como o primeiro turno pode ser decidida por uma pequena margem de votos, a apuração das
denúncias de fraude é importante.
Ontem havia duas preocupações urgentes no Itamaraty: como evitar que a pública tomada de
partido de Garcia provocasse uma reação violenta contra o Brasil, que comanda a Missão de
Estabilização das Nações Unidas no Haiti (Minustah), e como neutralizar as declarações de
Garcia sem desautorizar o assessor especial da Presidência. O Itamaraty teme que as
declarações de Garcia sejam interpretadas como ingerência sobre a soberania do Haiti.
Garcia afirmou que uma das possibilidades que estão sendo consideradas pela comunidade
internacional é mudar as regras e desconsiderar os votos brancos e nulos. Essa mudança faria
com que Préval obtivesse mais de 50% dos votos, condição para que ele seja considerado
vitorioso já no primeiro turno. A apuração até agora lhe dá 48,7%.
"Não estamos fazendo essa proposta porque não podemos interferir no processo legal do país,
mas nos parece que, tendo em vista o clima existente, essa seria a melhor solução", disse.
Pedido de calma
Segundo Garcia, o embaixador brasileiro no Haiti, Paulo Pinto, "tem insistido com Préval que
ele não deve jogar mais lenha na fogueira, porque já tem combustível o suficiente". Para ele, o
pedido foi feito depois das declarações "meio explosivas" feitas na segunda, denunciando
fraudes.
Garcia disse ainda que Préval deveria ser flexível e aceitar o segundo turno, em 19 de março,
caso seja difícil chegar a um consenso entre todas as forças políticas.
Ontem, o embaixador brasileiro no Haiti, Paulo Pinto, disse que a "questão‐chave" é a
interpretação sobre os votos em branco, mas que um acordo político vem sendo dificultado
pela intransigência do segundo colocado, Leslie Manigat, e pelo Conselho Eleitoral Provisório,
descrito como "disfuncional e pouco profissional".
Folha de S. Paulo
Editoria/caderno: mundo
Título: Haiti: rude transição para a democracia
Data: 26/02/2006 – domingo
Crédito: Jean‐Michel Caroit, do “Le Monde”, tradução de Paulo Migliacci
ARTIGO
Tanto Washington quanto o governo francês não demoraram a reagir. Menos de uma semana
depois do anúncio oficial de que havia sido eleito, René Préval confirmou com o apoio da
Constituição haitiana que o presidente deposto Jean‐Bertrand Aristide, de cujo governo Préval
foi primeiro‐ministro por sete meses em 1991, estaria autorizado a retornar de seu exílio na
África do Sul. Em 22 de janeiro, Aristide se apressou em declarar à imprensa internacional que
tinha "o direito de voltar" ao país e que planejava, ao fazê‐lo, consagrar seus esforços "à
educação".
"Estou convencido de que posso servir o meu país (...) sem ser presidente", acrescentou
Aristide sem que ninguém perguntasse. As autoridades norte‐americanas e francesas ainda
assim deixaram claro que, em sua opinião, o retorno do ex‐presidente talvez não fosse a
melhor maneira de preservar a frágil estabilidade política que o Haiti reencontrou.
O maciço comparecimento ao pleito presidencial de 7 de fevereiro demonstrou, porém, que os
haitianos, a despeito das decepções acumuladas nos 20 anos desde que o país retornou à
democracia, não perderam a fé.
Para os haitianos, a esperança renovada está nas mãos do presidente eleito, René Préval, mas
também nas de seus oponentes, que precisam provar sua maturidade democrática e aceitar
225
plenamente os resultados do escrutínio, antes ainda que se realize o segundo turno das
eleições para o Legislativo, marcado para o dia 19 de março. Essa esperança depende,
igualmente, da comunidade internacional, que precisa repensar a estrutura de sua
cooperação, reduzir os desperdícios e as disfunções e trabalhar de maneira mais eficiente para
beneficiar os haitianos mais pobres.
Nos últimos 20 anos, ou seja, a partir de fevereiro de 1986, quando o ditador Jean‐Claude
Duvalier fugiu do país, "a transição para a democracia" no Haiti vem sendo uma dolorosa
cadeia de dramas sangrentos e desencantos. A despeito de considerável assistência
internacional, cujo montante atinge a casa das centenas de milhões de euros, a primeira
república negra continua um dos países mais pobres da América.
A população não obteve nenhum benefício dessa cooperação que, em muitos casos, tomou a
forma de "assistência técnica", um eufemismo que designa pagamentos elevados pelo
trabalho de especialistas cujos relatórios se empilham sem nenhum resultado prático. O êxodo
dos haitianos que escapam do país em barcos e se dirigem às Bahamas, Flórida e às Antilhas
continua inalterado. Milhares de cidadãos do país continuam a cruzar clandestinamente a
fronteira com a vizinha República Dominicana. Atraídos até o início dos anos 1980 pelas praias,
pela pintura naïf e pelo vodu, os turistas desertaram o Haiti. Os parques industriais que
exportavam produtos têxteis e eletrônicos aos Estados Unidos se esvaziaram. As únicas
estatísticas que cresceram no país são as referentes à Aids, ao desflorestamento e às favelas,
que agora vivem sob o controle de quadrilhas armadas muitas vezes conectadas ao tráfico de
drogas.
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As únicas estatísticas que cresceram são as referentes à Aids, ao desmatamento e às favelas,
que vivem sob o controle de quadrilhas
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Em dezembro de 1990, quando os haitianos compareceram em número maciço às urnas para
eleger Jean‐Bertrand Aristide, este se havia aproveitado de sua imagem de benfeitor dos
favelados para encarnar a idéia de mudança democrática. "Todas as pessoas são humanas",
ele costumava dizer às massas miseráveis do país, reconhecendo pela primeira vez sua
condição de cidadãos. Derrubado pelo Exército, pelos políticos que sentiam nostalgia por
Duvalier e por parte da burguesia, depois de nove meses de governo, "Titid" voltou a ser
conduzido ao poder pelas tropas dos Estados Unidos, em 1994. Ao "restaurar a democracia", o
presidente norte‐americano Bill Clinton esperava deter a onda de refugiados haitianos que
vinha ameaçando a Flórida.
Logo em seguida, começaria a primeira intervenção da ONU, que terminaria esquecida depois
de sofrer uma sucessão de revezes. Voltando ao poder em 2000, como resultado de eleições
cujos resultados foram muito contestados, Aristide mergulhou num período de exercício
autoritário do poder e práticas mafiosas.
Conter a insegurança
Asfixiado pelo congelamento de toda assistência internacional, seu regime passou a depender
cada vez mais das chamadas "chimères", milícias armadas recrutadas nas favelas. Privadas dos
subsídios que recebiam do governo central na era Aristide, essas quadrilhas são as principais
responsáveis pela violência que ensangüentou o país nos últimos meses. Depois de receberem
a adesão de dezenas de policiais corruptos, elas fizeram dos seqüestros uma das poucas
atividades florescentes no Haiti.
________________________________________
Até o momento, nem o Brasil nem o Chile nem a Argentina conseguiram se sair melhor do que
fizeram as antigas potências coloniais
226
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A vitória de René Préval surpreendeu àqueles que preferiam ignorar as realidades
socioeconômicas do Haiti e as conseqüências dos revezes sofridos durante o período de
transição iniciado depois do exílio de Aristide. Préval se dissociou de seu antigo mentor.
Mas ele continua a ser o portador da parte positiva da herança de Aristide ‐o reconhecimento
da cidadania‐ junto aos camponeses e aos moradores miseráveis das grandes cidades, a
grande maioria da população haitiana. Incapaz de fechar acordo em torno de um candidato de
coalizão, repleta de conflitos e cisões, a antiga oposição a Aristide terminou associada, em
termos de opinião pública, tanto à incapacidade do governo de transição quanto ao fracasso
da comunidade internacional no que tange a melhorar o desempenho econômico e conter a
ascensão da insegurança.
Ao retomar a legitimidade democrática, o Haiti espera se desembaraçar da sombra de Jean‐
Bertrand Aristide, que continua a pesar sobre o país. Mas o desafio será ainda mais difícil de
enfrentar caso o antigo presidente, que envida esforços muito ativos de lobby nos Estados
Unidos, decidir retornar do exílio, situação que obriga Préval a oferecer sinais quanto à
evolução do respeito à democracia sob seu governo.
Para neutralizar os bandos armados e responder às exigências de seus eleitores mais pobres,
ele além disso necessitará de cooperação internacional reforçada.
O presidente solicitou que a Missão das Nações Unidas para a Estabilização do Haiti (Minustah)
fosse prorrogada e que houvesse um reforço no número de policiais estrangeiros presentes
em seu país, com uma redução concomitante no número de soldados. O reforço da polícia e a
reconstrução do Judiciário são duas das prioridades mais urgentes.
O novo presidente conta também com o apoio de alguns dos membros mais influentes da
diáspora haitiana. Depois de contatos conduzidos em Washington, Dumarsais Siméus, um
bilionário nascido no Haiti e naturalizado norte‐americano que tentou se candidatar sem
sucesso à presidência do Haiti, deu a entender que apoiaria o governo do novo presidente.
O superastro da música Wyclef Jean, que votou em Préval, se declarou disposto a emprestar
sua imensa popularidade à causa da pacificação das favelas.
Depois de sofrerem inúmeras frustrações em seu relacionamento com a França e os Estados
Unidos, os haitianos esperam forte cooperação dos países latino‐americanos.
Até o momento, nem o Brasil‐ que assumiu o comando militar da Minustah na esperança de
obter um assento permanente no Conselho de Segurança das Nações Unidas‐ nem o Chile nem
a Argentina conseguiram se sair melhor do que fizeram as antigas potências coloniais. As
afinidades do presidente eleito com a esquerda latino‐americana, muito bem‐sucedida nos
últimos anos, talvez ofereçam a esses países uma oportunidade de agir melhor.
Folha de S. Paulo
Editoria/caderno: mundo
Título: Brasil se prepara para assumir área mais violenta do Haiti
Data: 12/05/2006 – sexta‐feira
Crédito: Carolina Vila‐Nova, da redação
MISSÃO NO CARIBE
Hoje sob responsabilidade da Jordânia, favela de Cité Soleil será comandada por tropas de paz
brasileiras
O batalhão brasileiro no Haiti está se preparando para assumir a responsabilidade pela
segurança da favela de Cité Soleil, a área mais violenta da capital haitiana, Porto Príncipe.
Ontem, capacetes azuis do Brasil fizeram pela primeira vez o reconhecimento da área.
227
Atualmente, a favela está sob comando do contingente da Jordânia que faz parte da Minustah
(Missão de Estabilização da ONU no Haiti). O Brasil exerce o comando militar da missão, sob a
figura do general José Elito Siqueira. São ao todo 7.500 militares, dos quais 1.200 são
brasileiros.
A data de transmissão de comando não está definida. Segundo informou à Folha a assessoria
de imprensa do Batalhão do Haiti, isso depende de uma reestruturação das forças jordanianas,
cujo contingente está sendo reduzido.
"Não se sabe ainda [quando o Brasil vai assumir], isso está em estudo. Mas [o reconhecimento]
é uma medida de precaução para que, caso seja determinado isso, já tenhamos o
conhecimento necessário da área", disse à Folha por telefone o capitão‐de‐fragata Rogério
Teixeira, assessor de imprensa adjunto do Batalhão Haiti.
Com cerca de 300 mil habitantes, paupérrima e praticamente isolada pelas gangues, Cité Soleil
é o principal foco de violência no Haiti. Durante as eleições deste ano, os grupos armados
acordaram uma trégua tácita, situação que pode se manter graças ao apoio do qual o
presidente eleito René Préval, que toma posse neste domingo, goza entre os líderes
comunitários e de gangues locais.
A atuação das tropas jordanianas na região foi alvo de diversas denúncias de grupos de direitos
humanos, principalmente de uso excessivo de violência e de morte de civis durante as
operações.
Relatório divulgado ontem pelo International Crisis Group, ONG que estuda a prevenção de
conflitos, apontou a retirada do contingente jordaniano de Cité Soleil e sua substituição por
tropas de origem latino‐americana como uma "contribuição significativa para a melhora das
relações entre a população local e as autoridades".
"Diferenças de língua, cultura e abordagem têm tornado difícil para os jordanianos lidar com
as complexidades urbanas, particularmente quando eles têm sido alvo de ataques de franco‐
atiradorese de outros", diz a ONG.
"Como resultado, eles [jordanianos] têm sido criticados por fazer uso excessivo de poder de
fogo em áreas densamente povoadas, particularmente depois do assassinato de dois de seus
membros", acrescenta o relatório.
Rodízio
De acordo com o batalhão brasileiro, no entanto, esse rodízio de tropas é uma rotina, e haverá
uma redefinição das atuações de todas as áreas na capital. O Brasil, por exemplo, deve deixar
de atuar na favela de Bel Air, também em Porto Príncipe.
Segundo Teixeira, já era previsto que a Jordânia ficaria em Cité Soleil até o período eleitoral.
Ele lembrou ainda que o 1º e o 2º contingentes brasileiros no Haiti foram responsáveis
inicialmente pela favela.
Folha de S. Paulo
Editoria/caderno: mundo
Título: Violência reacende em Porto Príncipe
Data: 17/06/2006 – sábado
Crédito: Fabiano Maisonnave, da reportagem local
Aumento de ataques, seqüestros e confrontos aumenta temor de que Haiti perca momento
favorável após posse de Préval
Para comandante brasileiro das tropas, general Elito, piora não é sistemática, e desarmamento
depende de ação do governo haitiano
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A posse do presidente René Préval e a transferência da perigosa região de Cité Soleil para os
capacetes azuis brasileiros, ocorridas há um mês, não impediram que a capital haitiana
voltasse a registrar um aumento do número de ataques contra policiais, de confrontos entre
gangues armadas e de seqüestros, segundo a Polícia Nacional Haitiana (PNH), a missão militar
brasileira e organizações não‐governamentais.
Embora esteja muito longe dos índices de dezembro, quando havia até dez seqüestros diários,
o aumento de casos de violência tem gerado o temor de que o Haiti perca o momento
favorável criado pela vitória de Préval, em fevereiro ‐em grande parte, decorrente de sua
imensa popularidade nas regiões mais pobres e violentas de Porto Príncipe.
Os episódios mais graves dos últimos dias incluem o assassinato de três policiais, a tentativa de
seqüestro de um deputado, na segunda‐feira, e a disputa territorial entre gangues na violenta
Cité Soleil.
"Esses ataques não foram aleatórios", disse o porta‐voz da polícia haitiana, Frantz Leurebours,
à agência de notícias Reuters. "A polícia tem sido alvo específico neste aumento de atividades
criminais."
Segundo o tenente‐coronel Dos Anjos, responsável pela comunicação social da missão
brasileira, houve um recrudescimento nas últimas duas semanas, motivado sobretudo pela
disputa de pelo menos três gangues na região de Cité Soleil e na vizinha Cité Militaire, também
sob responsabilidade do Brasil.
Ele afirma que houve troca de tiros com membros de gangues, mas sem o registro de feridos
ou danos militares entre os capacetes azuis.
A avaliação da missão brasileira coincide com a da ONG Médicos Sem Fronteira, que mantém
um hospital em Cité Soleil. Para a organização, houve de fato um aumento nos confrontos,
mas de forma esporádica e em intensidade bem menor do que a verificada meses atrás.
Sem lua‐de‐mel
O aumento da disputa entre gangues após uma relativa calma obtida desde fevereiro contraria
o clima mais otimista que havia durante a campanha eleitoral, quando vários líderes de gangue
haviam prometido abandonar as armas caso Préval vencesse, o que não ocorreu até agora,
apesar da posse em 14 de maio. Três dias mais tarde, ocorreu outra outra mudança
importante, com a saída das impopulares tropas jordanianas de Cité Soleil, consideradas
violentas e hostis à população.
"Havia muita esperança de que, com a chegada do novo governo, esses grupos se
desmobilizariam", disse ontem à Folha Félix Ulloa, diretor no Haiti do Instituto Democrático
Nacional para Assuntos Internacionais, ONG presidida pela ex‐secretária de Estado dos EUA
Madeleine Albright. Ulloa citou os recentes confrontos entre gangues, que classificou como
delinqüentes comuns. "Mas o governo é recém‐formado, é preciso ver como reagirá."
Ele diz, no entanto, que, até agora, não há nenhum sinal público de que um plano de
desarmamento esteja em elaboração e cobra da ONU mais transparência sobre o assunto.
Para Ulloa, a posse de Préval e a chegada dos brasileiros a Cité Soleil podem ser desperdiçadas
caso não haja um plano imediato e efetivo de desarmamento. "A primeira reação que se
esperaria era que a comunidade internacional, por meio da missão das Nações Unidas, fizesse
uma proposta séria, avalizada pelo novo governo e por sua capacidade de interlocução com
esses grupos", afirmou.
"Definitivamente, com a presença brasileira em Cité Soleil, há mais capacidade de negociação
e sobretudo de aceitação, mas não se deve desperdiçar esse capital político deixando passar o
tempo. São necessárias medidas concretas rumo ao desarmamento e ao ataque às raízes da
violência", disse.
Tarefa do governo
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O comandante militar da Minustah (Missão de Estabilização da ONU no Haiti), o general
brasileiro José Elito Siqueira, discorda de que haja um aumento sistemático da violência e disse
que um plano de desarmamento depende da iniciativa do governo Préval.
"O termo não seria aumento de violência. Houve uma noite ou outra em que teve mais tiros
do que o usual. Mas não foram operações ou ações, foram tiros dados por gangues, isso não
caracteriza aumento de violência", afirmou Elito à Folha. Segundo ele, esses episódios
ocorreram com mais freqüência em Cité Militaire, e não na vizinha Cité Soleil.
O general brasileiro discordou da avaliação da polícia haitiana sobre aumento de seqüestros.
"Desde janeiro, tem havido entre e 15 e 20 seqüestros por mês, quando em dezembro houve
cerca de 200. Continua assim, nada diferente dos últimos meses."
Sobre o desarmamento, o general Elito disse que o tema "é um projeto de governo, e não uma
ação militar". "O desarmamento é uma conseqüência de ações de governo, e nós torcemos
para que isso aconteça. Há um momento favorável."
Folha de S. Paulo
Editoria/caderno: mundo
Título: "Seis estrelas, seis estrelas", celebram haitianos após o jogo do Brasil na Copa
Data: 28/06/2006 – quarta‐feira
Crédito: Andrea Michael, enviada especial a Porto Príncipe
O jogo está quase no final, quando Zé Roberto marca o gol que sacramenta o placar de 3x0
contra a seleção de Gana. É o sinal, em Porto Príncipe, capital do Haiti, para os festejos na rua.
"Seis estrelas, seis estrelas", comemora a torcida visivelmente pró‐Brasil na região central da
cidade, próximo a sede do governo.
Em frente a um bar, o dono providenciou a alegria dos convivas: uma televisão de 29
polegadas movida a gerador, o suficiente para os presentes dançarem e cantarem a vitória do
Brasil. Nas ruas de Porto Príncipe, Ronaldo e Ronaldinho são reis.
As tropas brasileiras que integram a força de paz da ONU observam a festa, atentas aos
jornalistas que acompanham a visita do ministro Waldir Pires (Defesa) ao país. O Brasil tem o
maior contingente e também o comando militar da missão.
Desempregado, o mecânico Gardy Jovin, 26, acha que Ronaldo é o melhor "porque tem mais
técnica". Em 2004, Jovin esteve no jogo que a seleção brasileira disputou no Haiti. "Foi
maravilhoso."
Com uma pulseira verde e amarela, o ex‐militar ‐o Exército do Haiti foi dissolvido no governo
de Jean‐Bertrand Aristide‐ Naval Vernard, 43, saúda os brasileiros: "Bom Baguy, Brasil".
Traduzindo: brasileiro, boa gente, frase comum ouvida pelas tropas nacionais.
Comum como o cumprimento, feito com o punho direito cerrado sobre o coração, é o pedido
que surge depois: um emprego.
O jogo acaba. Ao lado da rua Champs de Mars, as tropas brasileiras que são responsáveis por
proteger o palácio do qual o presidente René Préval governa o país também comemoram.
O quinto contingente mandado pelo Brasil ao Haiti é de nordestinos.
Na torcida, que assistiu ao jogo com transmissão em português, chama a atenção o sargento
Lindolpho Barbosa, 29. Cearense, ele, que está há um mês no Haiti, acompanhou à partida
com um típico chapéu de couro.
Para dar sorte? "Não. É porque é uma tradição mesmo", diz.
230
Folha de S. Paulo
Editoria/caderno: mundo
Título: Haiti não é pior que periferia no Brasil, diz Pires
Data: 30/06/2006
Crédito: Andréa Michael, da Sucursal de Brasília
MISSÃO NO CARIBE
Depois de dois dias de visita ao Haiti, o ministro da Defesa, Waldir Pires, chegou à conclusão de
que as ruas daquele país têm muito das periferias brasileiras. "Eu esperava uma coisa pior. Se
eu for para a periferia de uma cidade brasileira, qual é a diferença? Não tem. Pelo contrário,
eu até vi o pessoal mais ou menos arrumadinho, com uma certa vontade de estar limpos e
apresentáveis, as mulheres penteadas. São vaidosos."
Pires entende que a ONU, responsável pela força de manutenção da paz no Haiti, deve ir mais
a fundo em sua missão. "Por que pensar só na força de paz como segurança pública? Como
não ter um diagnóstico total, sobre todo o processo que está nas raízes dessas dificuldades?"
O histórico militante de esquerda foi recebido com honras militares pelas tropas brasileiras,
que compõem o maior contingente na força de paz da ONU.
"O Haiti tem o que o Brasil tem: áreas da população nas quais, se você não tiver um aporte,
você não come. E, se não come, morre de desnutrição, e acabou. Mas é preciso estabelecer
mecanismos para que o dinheiro não seja desviado", disse ainda o ministro, que retornou
ontem ao Brasil.
Folha de S. Paulo
Editoria/caderno: mundo
Título: Brasileiros tentam pacificar a maior favela de Porto Príncipe
Data: 02/07/2006 – domingo
Crédito: Andréa Michael, enviada especial a Porto Príncipe, a repórter viajou a convite do
Ministério da Defesa.
Soldados que integram o contingente das Nações Unidas no Haiti assumiram em maio a
responsabilidade por Cité Soleil, a região mais violenta da capital
As tropas brasileiras em ação no Haiti concluíram nesta semana o asfaltamento de um trecho
de 500 metros da rua Soleil 9. Aparentemente modesta, a obra tem um grande valor
simbólico: a via fica no coração de Cité Soleil, a maior e mais violenta favela da capital, Porto
Príncipe, e que desde 17 de maio passou à guarda das tropas brasileiras da Minustah (Missão
das Nações Unidas de Estabilização no Haiti).
O trabalho foi conduzido pela Companhia de Engenharia Haiti, que pertence ao Exército e
conta com 150 profissionais que integram o efetivo militar brasileiro. A um custo de R$ 20
milhões, que serão reembolsados pela ONU, a empresa teve seu maquinário renovado para
atuar na missão.
A via recuperada dá acesso ao Ponto Forte 16, a base brasileira, um prédio que em outros
tempos servia como mercado central de Cité Soleil, onde vivem 250 mil pessoas.
Seguindo a linha "conquistar corações e mentes haitianos", as tropas brasileiras se preparam
para dois outros projetos de repercussão social na favela. Vão iluminar a praça central e
recuperar a principal escola da favela, atualmente fechada.
Os muros e casas de alvenaria ‐madeira é artigo de luxo no Haiti‐ abrigam, além de miseráveis
ou subempregados, gangues armadas e violentas que se digladiam entre si. Em dezembro,
231
segundo contabilidade oficial do Exército, houve 10 mil disparos em um único dia na favela ‐as
gangues fizeram barulho para marcar a morte do líder Emmanuel Wilmer.
Diante do Ponto Forte 16, os olheiros das gangues seguem os passos dos soldados de perto,
dia e noite. Os brasileiros trabalham com cautela. A preferência, em caso de necessidade, é
usar o arsenal de bombas de efeito moral e balas de borracha. Querem evitar o acirramento
das relações com a população, como ocorreu com as tropas jordanianas, que atuavam ali antes
dos brasileiros.
Problema social
"O problema de Cité Soleil não é de polícia. É social", diz o general José Elito Siqueira, o
comandante militar da Minustah, composta por 7,2 mil soldados de oito países.
A receita parece ter funcionado em Bel Air, zona também conturbada que foi pacificada pelas
tropas nacionais. Lá realizou‐se em 27 de junho, depois de dois anos de jejum por conta da
violência, a cerimônia religiosa em homenagem a Nossa Senhora do Perpétuo Socorro,
padroeira do Haiti.
No país de 8,2 milhões de habitantes ‐70% abaixo da linha da pobreza‐, os homens arriscam os
dentes para escapar da fome quando comem um biscoito feito com argila e sal. Nas ruas de
Porto Príncipe, cuja população soma 2 milhões, as crianças pedem "comida", "one dollar,
please", ou, mudas, simplesmente estendem a mão em busca de uma esmola.
Segundo o embaixador brasileiro no Haiti, Paulo Cordeiro, de um modo geral as tropas
nacionais têm uma boa receptividade. "Mas ainda assim a presença do Brasil é uma
intromissão. Os haitianos entendem a necessidade de nossa presença, mas vivem o dilema de
um país que conquistou sua independência, mas não conseguiu exercer sua soberania", diz.
O Haiti foi o segundo país das Américas, depois dos EUA, a se tornar independente, em 1804.
Desde fevereiro, após a eleição do presidente René Préval, o Haiti vive um período de calmaria
‐o coronel Paulo Humberto, que comanda as tropas brasileiras, prefere o termo "sob
controle", por precaução.
O número de seqüestros, que chegou a 100 por mês, está em 15 ocorrências. As ruas, antes
cercadas de montanhas de lixo, estão mais limpas. Também diminuiu o cheiro de esgoto, um
tempero quase que inevitável do ar, pois não há saneamento básico em Porto Príncipe.
O governo Préval anda a passos lentos, principalmente pela falta de recursos. Só para fechar as
despesas de custeio, o país precisa de US$ 20 milhões até setembro. Para 2007, outros US$
100 milhões são necessários em caráter emergencial.
Ainda é cedo para apontar as razões, mas o fato é que o risco persiste no país, conforme
registrou Loris de Filippi, da organização Médicos Sem Fronteiras, que atua em Cité Soleil.
Para Filippi, que reconhece a situação do país como "estável", a população talvez esteja dando
sinais de que pretende cobrar uma fatura eleitoral.
"O governo fez muitas promessas. A eleição aconteceu em fevereiro. Passaram‐se quatro
meses, e a população, que votou em massa, pensa que fez sua parte e quer o retorno", disse.
Folha de S. Paulo
Editoria/caderno: mundo
Título: Haiti mergulha em novo surto de violência
Data: 23/12/2006 – sábado
Crédito: Carolina Vila‐Nova, da redação, com agências internacionais
Tiroteio entre gangues e forças de paz durante ação comandada pelo batalhão brasileiro deixa
ao menos cinco mortos
Seqüestros aumentam em dezembro; chefe da missão da ONU se diz "alarmado", e presidente
lamenta "Natal triste para as crianças"
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Uma operação conjunta da força de paz da ONU e da Polícia Nacional Haitiana contra a
recente onda de seqüestros em Porto Príncipe, coordenada pelo Brasil, acabou ontem em
trocas de tiros com gangues armadas na favela de Cité Soleil. Houve ao menos cinco mortos e
vários feridos.
A porta‐voz da Minustah (Missão de Estabilização da ONU no Haiti), Sophie Boutaud‐de‐la‐
Combe, confirmou os confrontos e disse à Folha "ser possível" que mortes tenham ocorrido,
sem, porém, dar números.
Na ação, o 3º sargento Gilson Clemente Fonseca foi ferido levemente. Ele não corre perigo.
Em uma ação preliminar na tarde de anteontem, um veículo blindado do Paraguai teve uma
pane mecânica e foi alvo de coquetéis molotov.
Cité Soleil, uma das zonas mais violentas de Porto Príncipe, com cerca de 250 mil habitantes,
está sob responsabilidade dos capacetes azuis brasileiros desde maio.
Segundo nota divulgada pelo Batalhão Brasileiro no Haiti, a operação teve início às 5h10 da
manhã (2h10 em Brasília), com a ocupação de posições estratégicas por tropas brasileiras.
Participaram cerca de 300 militares de Bolívia, Brasil, Chile e outros países, além de 40 policiais
da ONU, policiais haitianos e 20 blindados.
De acordo com Boutaud‐de‐la‐Combe, a ação teve por objetivo reabrir uma importante via de
acesso na zona de Bois Neuf, que havia sido bloqueada pelas gangues. Ela não pôde confirmar
se reféns estavam sendo mantidos nessa região.
"As gangues se protegem bloqueando as ruas e impedindo o acesso da população."
Já o Batalhão Brasileiro afirmou que o "principal objetivo foi fortalecer a presença da Minustah
em Bois Neuf e oferecer melhores condições de segurança para a população".
A nota diz ainda que a força de paz atuou "dentro das regras de engajamento preconizadas
pela ONU, para sua autodefesa e somente quando identificadas as ameaças".
A France Presse afirmou que várias vítimas foram levadas a um hospital da organização
Médicos Sem Fronteiras.
Onda de seqüestros
Comuns no Haiti, os seqüestros foram especialmente numerosos neste mês. Apenas na capital,
Porto Príncipe, 29 crianças foram seqüestradas em um período de três dias, na semana
passada. No início desta semana, cerca de sessenta passageiros de dois ônibus também foram
feitos reféns.
Segundo o general brasileiro José Elito Siqueira, comandante militar da missão, a média de
janeiro a junho foi de entre 15 e 20 seqüestros por mês. Já em dezembro do ano passado,
houve cerca de 200 casos.
"Natal triste"
"É um Natal triste para as crianças", disse o presidente do Haiti, René Préval, numa cerimônia
ontem com centenas de crianças, sem comentar a ação. "Vou lhes dar brinquedos, mas o
presente mais bonito que eu poderia prometer é que os seqüestros acabassem e que se
pudesse celebrar o Natal em outras condições em 2007."
Anteontem, o chefe diplomático da Minustah, Edmond Mulet, se disse alarmado com a onda
de seqüestros e afirmou que eles podem ter motivação política. "Há alguém por trás que quer
gerar temor no país."
Mulet disse ainda que as forças da ONU receberam "luz verde" do governo haitiano para
incrementar suas ações anti‐seqüestros e se comprometeu a apresentar resultados "no menor
tempo possível".
Segundo a ONU, desde o início das operações, 24 supostos seqüestradores foram detidos e
seis reféns foram libertados.
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Folha de S. Paulo
Editoria/caderno: mundo
Título: População elogia força, mas pede fim da miséria
Data: 01/03/2007 – quinta‐feira
Crédito: do enviado especial a Porto Príncipe
A favela Bois Neuf, na Cité Soleil de vielas miseráveis, valas negras e mau cheiro constante,
acompanhou calma e sem surpresa a presença das tropas de paz. Alguns reclamavam do
atraso que causava ao trabalho ou à escola. A maioria ouvida pela Folha, porém, defendia a
atuação da ONU.
"Gosto muito da missão, pois traz a paz, sem a qual não podemos viver. Mas o governo tem de
fornecer também segurança, educação e saúde, porque é muita miséria aqui", disse Ricot
Magene, 25, que trabalha em um colégio.
"Fale com eles que temos que ir à escola. Somos estudantes, não bandidos", reclamou um
rapaz de uniforme que não quis se identificar. Ele estava na fila para a identificação de
eventuais criminosos por informantes das forças de paz.
Para o jornalista haitiano Daniel St. Helaine, da Rádio Tropical, da capital, a população está
"contente" com a presença da Minustah, pois reduz o crime nos locais que controla.
A maioria dos sorrisos para os brasileiros era de crianças e mulheres. Os homens ficavam mais
reservados, observando os militares à distância.
Há quem tema represálias dos criminosos, embora a Folha tenha presenciado um morador se
oferecer para colaborar com a Minustah.
Nervosa e chorando, uma mulher abordou o comandante do batalhão do Brasil, coronel
Barroso Magno, pedindo por seu marido, preso pelas tropas. Temia que fosse entregue à
Polícia Nacional Haitiana, acusada por organizações internacionais de desrespeitar os direitos
humanos.
Com quase todas as casas de mais de um andar destruídas pelas gangues para impedir a
eventual utilização pela Minustah como pontos de apoio, as poucas ruas asfaltadas e as muitas
de terra lembram uma favela brasileira.
As crianças sorriam para militares brasileiros. Meninos e meninas descalços passavam a mão
na barriga para pedir comida. "Grangou, grangou [fome, fome]", diziam, em créole.
A única casa nova em Bois Neuf é a do líder rebelde Belony. Pintada recentemente na cor
telha, com portas novas e muros de pedra nos fundos, tem uma boate contígua, com o nome
"A Nova Geração".
Um portal com pinturas do líder rebelde Dread Wilman ‐morto pela Minustah‐ ao lado de Che
Guevara e o texto "Herói do 21º século" adornam a avenida principal da favela, pavimentada e
ampla. Fuzileiros navais, com uma picareta, tiraram o pôster de Belony. (RG)
Folha de S. Paulo
Editoria/caderno: mais
Título: A ilha sem fantasia
Data: 12/08/2007 – domingo
Crédito: Bóris Fausto, colunista da Folha
Primeira colônia americana a se tornar independente por revolução popular, Haiti antecipou
problemas atuais de vários países
O Haiti tem um lugar na nossa realidade e na nossa imaginação, por várias razões. Entre elas, a
controvertida presença das tropas brasileiras na ilha, sob a bandeira da ONU, e a atração de
seus rituais de origem africana, que guardam parentesco com os nossos. Além disso, podemos
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sempre nos consolar das mazelas nacionais abandonando a ambigüidade proposta numa
canção de Caetano e Gil, para afirmar, com boas razões: "O Haiti não é aqui".
Entretanto o Haiti foi o primeiro país do continente americano a proclamar sua independência
pela via de uma longa insurreição de negros e mulatos (1804), que deixou profundas marcas
entre dominantes e dominados. Assim, um sentimento de temor tomou conta dos senhores de
escravos, do sul dos EUA ao Rio de Janeiro, diante da possibilidade de que novas insurreições
viessem a ocorrer, resultando, em certos casos, no estabelecimento de controles ainda mais
repressivos sobre a população escrava.
Por outro lado, na região do Caribe, as notícias sobre a longa e vitoriosa insurreição haitiana
alentaram outras rebeliões, embora esmagadas, como ocorreu nas plantações de açúcar da
Venezuela.
Origem
Duas questões são básicas na história haitiana. Como se explica a "independência precoce" e
ainda mais pela forma como se deu? O que ocorreu, ao longo de dois séculos, para que o Haiti
se notabilizasse, tristemente, pela miséria e pela degradação? Neste texto, me dedico mais à
primeira questão e me limito apenas a algumas indicações sobre a segunda. Nos últimos anos
do século 18, a ilha Hispaniola, onde arribou Colombo, estava dividida em duas partes
geograficamente desiguais: uma a leste, sob domínio espanhol, e outra a oeste, sob domínio
francês.
Haiti foi o nome ameríndio adotado pela ex‐colônia francesa, substituindo a denominação
"Saint Domingue", a partir da Independência, e que, para maior facilidade, vou doravante
utilizar. Por volta de 1789, a então colônia era uma grande produtora de bens primários, a
ponto de suas exportações de café corresponderem a metade das exportações mundiais e as
de açúcar aproximarem‐se das exportações combinadas de Brasil, Cuba e Jamaica.
Socialmente, a população haitiana compunha‐se de quase meio milhão de escravos; cerca de
30 mil "pessoas de cor" livres ou libertas, em grande maioria mulatos, muitos deles
possuidores de plantações e de escravos; e algo em torno de 40 mil brancos ‐grandes senhores
num extremo e gente pobre no outro.
Personagens
A insurreição iniciada em agosto de 1791, nas plantações de açúcar, prolongou‐se até
dezembro de 1803, envolvendo, de parte a parte, massacres e destruições em grande escala.
No curso da luta, ganhou grande destaque a figura de Toussaint L'Ouverture (a abertura, a
liberdade), cujo verdadeiro nome era Toussaint Bréda.
Filho de um príncipe africano escravizado e enviado para a ilha, Toussaint não era um rude
escravo, mas um liberto, membro respeitado da franco‐maçonaria, leitor de Maquiavel, senhor
de propriedades e de escravos, como mostra o livro de Madison Smartt Bell "Toussaint
Louverture ‐A Biography" (Pantheon Books, 352 págs., US$ 27, R$ 51), resenhado por David
Brion Davis em "The New York Review of Books", de 31/5, em que me apóio substancialmente.
Brilhante estrategista, Toussaint comandou as forças rebeldes, derrotando tropas invasoras da
Espanha e da Inglaterra. Afinal, preso numa cilada armada pelo general Leclerc, cunhado de
Napoleão, em 1803, quando sua vitória já se delineava, foi enviado à França, onde morreu
numa masmorra gelada, nas montanhas do Jura, pouco tempo depois.
Um conjunto de razões explica o êxito dessa guerra de independência igualitária e feroz. Não
necessariamente pela ordem de importância, destaquemos a elevadíssima concentração de
escravos num pequeno território; a divisão entre os vários setores da população branca; o
papel desempenhado por Toussaint; uma conjuntura internacional favorável.
235
Sobre o último aspecto, lembremos que, na metrópole, os líderes da Revolução Francesa
(1789) ziguezaguearam em torno do problema haitiano, deixando de atuar como um poder
colonial unificado.
Papel negativo dos EUA
Por sua vez, os EUA, durante a presidência de John Adams [1979‐1801], forneceram armas aos
rebeldes, com o objetivo de eliminar o poder da França nas Antilhas. Semelhante atitude
tiveram os espanhóis da parte leste da ilha (Santo Domingo), que cruzaram a fronteira e deram
apoio a Toussaint, em um primeiro momento.
O desastre haitiano posterior à Independência tem a ver, sem dúvida, com o papel negativo
desempenhado pelos EUA, que ocuparam o país entre 1915 e 1934, a pretexto de instaurar "a
lei e a ordem", sem conseguir nem uma coisa nem outra. Entretanto, ao mesmo tempo, é
necessário considerar, guardadas episódicas exceções, a incapacidade, a corrupção, a
insensibilidade da elite haitiana, de que a família Duvalier [dos presidentes François e Jean‐
Claude] é a pior, mas não a única, expressão.
O Haiti é um bom exemplo premonitório do que viria a acontecer em alguns países da África
pós‐colonização: se o imperialismo tem aí grandes responsabilidades pela existência de um
quadro dramático, em toda a extensão da palavra, outros vilões concorreram e concorrem
para a existência desse quadro.
________________________________________
BORIS FAUSTO é historiador e preside o conselho acadêmico do Gacint (Grupo de Conjuntura
Internacional), da USP. É autor de "A Revolução de 1930" (Cia. das Letras). Ele escreve
mensalmente na seção "Autores", do Mais!
Folha de S. Paulo
Editoria/caderno: brasil
Título: Brasil precisa ampliar base de apoio, afirma secretário da ONU
Data: 11/11/2007 – domingo
Crédito: Sergio Dávila, enviado especial a Nova York
ENTREVISTA: BAN KI‐MOON
Para o sul‐coreano, o assento permanente no Conselho de Segurança exige expansão de
diálogo com países‐membros
Secretário‐geral das Nações Unidas, que chega hoje ao país, defende o programa do etanol,
que é criticado por relator da ONU para a fome
Se quiser conseguir um assento permanente no Conselho de Segurança da Organização das
Nações Unidas, a instância mais importante da ONU, o Brasil tem de aumentar sua base de
apoio entre os países‐membros. Esse é o conselho dado pelo secretário‐geral da entidade, Ban
Ki‐moon. Em entrevista à Folha, o sul‐coreano de 63 anos elogiou o programa do etanol
brasileiro ‐ele começa seu primeiro tour oficial ao país hoje com uma visita a uma usina de
álcool em São Paulo‐ e diminuiu a importância do pedido de seu relator para a fome, que quer
moratória de cinco anos na produção de biocombustíveis. Na segunda‐feira, Ban Ki‐moon
(pronuncia‐se "ban gui‐mun") recebeu a Folha no último andar do prédio‐sede das Nações
Unidas, em Nova York.
Leia a entrevista a seguir:
FOLHA ‐ O Brasil quer um assento permanente no Conselho de Segurança. Muitos dizem que é
um pleito justo ou mesmo apóiam a entrada, como a França. Minha pergunta é: o que está
faltando?
236
BAN KI‐MOON ‐ Todos os países‐membros da ONU concordam com o fato de que o Conselho
de Segurança precisa passar por uma reforma que aumente seus assentos permanentes.
Considerando as mudanças dramáticas por que passamos nas últimas seis décadas, é
absolutamente necessário que o CS reflita mais realisticamente o que aconteceu na
comunidade internacional.
O que está faltando são os países‐membros conseguirem concordar sobre uma mesma
fórmula para a mudança. Na América Latina, há muitos países que desejam se tornar membros
permanentes. Também na África e na Ásia. Temos de lidar com essas questões de maneira
harmoniosa, por meio de diálogo e consultas.
FOLHA ‐ Qual é a sua opinião?
KI‐MOON ‐ Como secretário‐geral, não estou em posição de expressar minha posição pessoal
publicamente. Meu papel é facilitar o diálogo e a consulta entre os países‐membros. O Brasil é,
claro, um país‐membro muito importante, foi um dos fundadores da organização. Mas deveria
tentar expandir seu apoio entre os outros países‐membros.
FOLHA ‐ Esse é seu conselho para o país?
KI‐MOON ‐ Sim.
FOLHA ‐ A ONU avalia positivamente o papel do Brasil à frente da missão de paz no Haiti
(Minustah). A favela Cité Soleil foi supostamente "tomada" e "pacificada" sob o comando dos
militares brasileiros. Ao mesmo tempo, há um relator especial da ONU investigando o
problema de violência no Brasil, assim como denúncias de execuções e corrupção policial. O sr.
consegue enxergar a ironia dessa situação?
KI‐MOON ‐ [Pausa] Sou muito grato quanto ao papel do Brasil na Minustah. Quando visitei o
Haiti, vi junto à população um sentimento muito positivo. Andei pela Cité Soleil, o que não
seria possível há sete meses. Os brasileiros prenderam todas as gangues, a segurança foi
restaurada, e as pessoas puderam voltar às suas atividades econômicas e sociais. Isso é uma
mudança completa, liderada pela Minustah.
Quanto à corrupção, infelizmente, é um problema disseminado e mundial. A ONU, com outras
organizações e a sociedade civil, está trabalhando para que os governos sejam mais
transparentes. Acredito que dar mais poder à sociedade civil está no centro do esforço de
corrigir a corrupção. A ONU também apóia programas na América Latina, incluindo o Brasil,
para combater a insegurança social e promover a reabilitação dos jovens.
Folha de S. Paulo
Editoria/caderno: mundo
Título: Comandante brasileiro no Haiti vê favela mais segura
Data: 01/03/2008 – sábado
Crédito: Tahiane Stochero, da folha on line
"O Brasil já faz parte de Cité Soleil e Cité Soleil faz parte do Brasil. A segurança lá está
associada à confiança que a população tem no soldado brasileiro. Quando eu for tirar o Brasil,
vai ter de se bem planejado." A frase é do comandante da missão de paz da ONU no Haiti
(Minustah), o general brasileiro Carlos Alberto dos Santos Cruz, que diz acreditar ser esta a
explicação para o sucesso na pacificação da favela mais pobre e violenta do Haiti.
A pacificação da região de 300 mil habitantes na capital haitiana é consolidada exatamente
quatro anos após a queda do ex‐presidente Jean‐Bertrand Arisitide, deposto em 29 de
fevereiro de 2004. Reduto de grupos armados, o bairro foi alvo de operações comandadas pelo
Brasil em 2007 em que foram presos ou mortos mais de 500 criminosos e revoltosos.
Sem Estado
237
"Nestes quatro anos, conseguimos estabilidade, houve eleições, não há mais áreas
comandadas pelos criminosos. Mas onde 80% da população não têm emprego, onde não
existe água, energia elétrica, polícia nem a presença do Estado, como se vai acabar com a
violência?", questiona Cruz.
Pelo segundo ano no comando da Minustah, o general diz que os principais desafios deste ano
são manter a segurança, reforçar a vigilância na fronteira e a geração de empregos.
Folha de S. Paulo
Editoria/caderno: brasil
Título: Atividades não militares ocupam tropa
Data: 19/05/2008 – segunda‐feira
Crédito: Claudio Dantas Sequeira, da reportagem local
Soldados brasileiros distribuem comida, jogam bola e até apóiam segurança de autoridades
estrangeiras
Os militares brasileiros no Haiti vêm sendo usados em diversas ações não previstas no
mandato da Minustah, definido pelo Conselho de Segurança da ONU, na resolução 1.542, de
abril de 2004. Para ganhar a confiança dos haitianos e dar status internacional ao Brasil, as
tropas erguem escolas, pavimentam ruas, distribuem alimentos e até jogam futebol.
Além dessas atividades, classificadas como "cívico‐sociais", o batalhão brasileiro celebra
feriados, presta homenagens e garante a segurança de autoridades estrangeiras. Em março, os
soldados participaram do esquema de proteção da primeira‐dama dos Estados Unidos, Laura
Bush, no Haiti.
Em fevereiro, o batalhão brasileiro disputou uma partida de futebol com a comunidade de Bel
Air ‐venceu por 3x2. Um dia depois, o contingente foi ao bairro de Citè Soleil e lá montou
oficinas de pintura e confecção de pipas para crianças.
Pesquisa realizada pela Folha sobre as ações desenvolvidas no Haiti revela que, de 235
atividades relatadas pelo batalhão brasileiro em 2007, apenas 15% tiveram cunho militar.
Cerca de 55% foram ações cívico‐sociais, e 40% envolveram atos oficiais e celebrações.
O gasto com essas festividades chegou a R$ 236,9 mil, aumento de quase 600% sobre o ano
anterior. Estão incluídas as comemorações de feriados nacionais, promoções de efetivos,
passagens de comando, recepções a autoridades, datas militares e homenagens.
Levantamento feito pelo site Contas Abertas, no Sistema Integrado de Administração
Financeira do governo federal (Siafi), a pedido da Folha, mostra que os gastos com material
educativo e esportivo caiu de R$ 217 milhões para R$ 209 milhões, enquanto as diárias
subiram de R$ 3,14 milhões para R$ 3,99 milhões, entre 2006 e 2007. O gasto com passagens
quase dobrou, de R$ 1,16 milhão para R$ 2,29 milhões.
"Fizemos de tudo, até atendimento médico. Só partos foram 25 em três meses", diz o sargento
Romulo Bandeira, integrante do 5º contingente.
Mesmo com a redução das ações militares, o Ministério da Defesa gastou mais em armas para
o Haiti em 2007: R$ 3,7 milhões ‐aumento de 27% sobre o executado em 2006.
No Siafi, constam ainda gastos com a compra de carros de combate (R$ 4,7 milhões), veículos
de tração mecânica (R$ 13,4 milhões), embarcações (R$ 1,6 milhão), aparelhos de
comunicação (R$ 1,5 milhão) e equipamentos de proteção e socorro (R$ 1,16 milhão).
"Com a desculpa do Haiti, eles aproveitam para reaparelhar as Forças Armadas", disse
Expedito Carlos Stephani, pesquisador de assuntos militares da Universidade Federal de Juiz de
Fora (UFJF).
238
Como exemplo, ele citou o caso da compra de blindados suíços Piranha III, para o transporte
de tropas. "Eles já enviaram quatro para o Haiti, mas são muito grandes para operar nesse tipo
de terreno e sabem disso", disse.
Folha de S. Paulo
Editoria/caderno: brasil
Título: Falta de consenso impede a criação do Conselho de Defesa
Data: 24/05/2008 – domingo
Crédito: Cláudio Dantas Sequeira, enviado especial a Brasília; Fernanda Odilla, da sucursal de
Brasília
Presidentes sul‐americanos criam a Unasul, nova organização do subcontinente
Colômbia e Venezuela apresentam restrições à proposta para novo órgão de defesa, defendido
pelo ministro Nelson Jobim
A falta de consenso sobre o papel que deverá ter o Conselho de Defesa da América do Sul
impediu a assinatura de um acordo para a criação do órgão ontem, em Brasília. O impasse
levou a presidente chilena, Michelle Bachelet, a sugerir que seja formado um grupo de
trabalho no âmbito da Unasul (União das Nações Sul‐americanas), criada ontem e que terá o
Chile ocupando pela primeira vez a presidência rotativa.
"Num prazo de 90 dias vamos revisar a proposta de Lula, recolher as preocupações dos outros
países e apresentar uma proposta definitiva", disse Bachelet. Mas os próximos três meses não
deverão ser suficientes para garantir consenso.
O presidente da Colômbia, Álvaro Uribe, condicionou sua adesão ao órgão de segurança a que
todos os países da região reconheçam as Farc (Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia)
como grupo terrorista. "Num país que tem sofrido tanto como a Colômbia, o continente deve
atrever‐se a qualificar como terrorista a todo grupo violento que atenta contra a democracia",
disse. Uribe expôs ao presidente Lula o que chamou de "ponto de reflexão ao diálogo".
O adiamento foi um revés para o ministro da Defesa, Nelson Jobim, principal entusiasta do
projeto e que esperava a aprovação imediata do acordo.
Segundo a Folha apurou, não foi apenas a negativa da Colômbia de se unir aos demais países
que inviabilizou temporariamente o projeto. Enquanto o governo brasileiro prefere dar um
status de foro político ao órgão, Venezuela e Bolívia defendem que o conselho tenha um papel
operacional e amplo, abrangendo áreas como segurança energética e combate ao
narcotráfico.
Para tanto, o presidente Hugo Chávez sugeriu a Lula que o futuro órgão tenha capacidade de
ação regional e orçamento próprio. "Não queremos que seja uma Otan do Sul", disse à Folha o
ministro da Defesa venezuelano, Gustavo Rangel.
Segundo ele, os países da região deveriam resolver seus problemas internamente, sem
precisar recorrer a potências estrangeiras. "Por que teríamos que recorrer a um Plano
Colômbia norte‐americano, se pudéssemos fazer algo com nossos próprios meios?".
Uribe, Chávez e o presidente equatoriano, Rafael Correa, estão em conflito desde que militares
colombianos invadiram o território do Equador, no início do ano, para eliminar o guerrilheiro
Raúl Reyes, porta‐voz das Farc. A crise piorou depois que o colombiano acusou os dois vizinhos
de apoiarem a guerrilha.
O assessor do Planalto para Assuntos Internacionais, Marco Aurélio Garcia, considerou o
debate um "pequeno passo", uma vez que "outros processos de integração regional até hoje
não conseguiram resolver esse problema da defesa comum".
O ministro da Defesa venezuelano falou também do desacordo de Chávez com a atividade do
Brasil na missão de paz no Haiti (Minustah). "A fase de garantia da segurança já está superada.
239
É preciso mudar o perfil dessa missão, substituindo as ações de polícia por atividades sociais e
desenvolvimento de projetos", afirmou.
Lula, por sua vez, não admite críticas à participação brasileira na operação de paz no Haiti e fez
questão de ressaltar isso no discurso de abertura do evento. "Nossas Forças Armadas estão
comprometidas com a construção da paz. A presença de muitos de nossos países na Minustah,
forças da ONU que garantem a segurança no Haiti, é exemplo dessa determinação."
Folha de S. Paulo
Editoria/caderno: opinião
Título: É hora de o Brasil encerrar a missão no Haiti? SIM. Novos desafios para as Forças
Armadas
Data: 24/05/2008 – sábado
Crédito: Roberto Abdenur
FOI ACERTADO e oportuno o envio de tropas ao Haiti. Deu‐se no contexto da intensificação de
nossa atuação no continente e no plano global em geral, entre outras razões com vistas a
reforçar nossas credenciais para a obtenção de assento permanente no Conselho de
Segurança da ONU ‐objetivo de todo válido, em que nossa diplomacia cedo ou tarde terá êxito
(talvez mais cedo, em eventual governo Obama nos EUA).
Enche‐nos de orgulho o notável desempenho de nossos soldados. Com a responsabilidade de
liderar missão de extrema delicadeza, deram nossas Forças Armadas contribuição decisiva para
a difícil transição política de que necessitava o Haiti para o apaziguamento das tensões, a
recuperação da economia e a construção de instituições democráticas.
Para esse sucesso no campo militar muito contribuiu o empenho do Itamaraty na sustentação
política da missão, com gestões no mais alto nível no Conselho de Segurança, no Banco
Mundial e no BID e intensa movimentação para o êxito de duas conferências de países
doadores.
Foi intenso o diálogo com os EUA, dada sua influência nos processos decisórios sobre a
questão (a propósito, esclareço que nossa inclusão na Missão das Nações Unidas para a
Estabilização no Haiti ‐Minustah‐ não se fez a pedido ou a serviço dos EUA).
No que a mim dizia respeito, fui certa feita interpelado por altos funcionários norte‐
americanos que instavam as forças brasileiras a serem mais agressivas. Dei‐lhes a resposta que
daria qualquer brasileiro: não temos a tradição guerreira dos EUA. Preferimos prudência e
comedimento, recorrendo à força apenas em última instância. A prioridade era a conquista da
simpatia da população.
Tive mais tarde a satisfação de homenagear o general Heleno, cuja passagem por Washington
se devia ao desejo das autoridades norte‐americanas de recolher ensinamentos a partir da
experiência vivida por nossas tropas, as quais vinham atuando por vezes mais na imposição do
que apenas na manutenção da paz (observo que os EUA haviam fracassado em intervenções
unilaterais no Haiti).
A Minustah foi profícua iniciativa também por seu caráter predominantemente sul‐americano.
A nós juntaram‐se Argentina, Bolívia, Chile, Equador, Paraguai, Peru e Uruguai.
Essa inédita experiência pode servir para avanços na articulação das forças da região para
futuras operações de paz, objetivo que, suponho, recaia sob a égide de iniciativas como o
Conselho de Defesa Regional e a Unasul (União das Nações Sul‐Americanas).
Não obstante tudo o que se conseguiu, o Haiti por muito tempo necessitará de apoio externo,
possivelmente com sucessivas extensões da Minustah (estiveram no país, entre 1993 e 2001,
quatro outras operações semelhantes). Vale notar que a situação continua incerta, como
ilustram as recentes manifestações de protesto contra os preços de alimentos.
240
Os gastos com a Minustah até agora foram investimento frutífero a serviço de nossos
interesses e responsabilidades no plano internacional. Mas, a essa altura, novos desafios se
apresentam a nossas Forças Armadas (e à diplomacia) ‐a proteção das águas territoriais em
marco de virtual nova crise dos preços do petróleo; melhor defesa do espaço aéreo; e o
resguardo da soberania sobre a Amazônia, quando preocupações internacionais com questões
ambientais (e sua correlação com a escalada no preço de alimentos) trazem de novo à baila no
exterior descabidas, inquietantes e inaceitáveis idéias sobre a região.
Acresce o notório sucateamento de parte substancial dos equipamentos das Forças Armadas,
justamente quando mais urgente se faz sejam elas reforçadas e modernizadas.
O atual mandato da Minustah se esgota em 15 de outubro vindouro. A data é próxima, e
naturalmente não caberia retirada abrupta a essa altura.
Mas, sim, é preciso estar preparado para, no caso de nova prorrogação, podermos gradual,
mas rapidamente acertar com a ONU cronograma de retirada. Passando adiante o bastão que
nossas Forças Armadas souberam empunhar de tão honrosa forma.
________________________________________
ROBERTO ABDENUR, 66, diplomata de carreira aposentado, foi embaixador do Brasil no
Equador (1985‐1988), na China (1989‐1993) e nos EUA (2004‐2006), entre outros países, além
de secretário‐geral do Itamaraty (1993‐1994). É conselheiro do Cebri (Centro Brasileiro de
Relações Internacionais).
Os artigos publicados com assinatura não traduzem a opinião do jornal. Sua publicação
obedece ao propósito de estimular o debate dos problemas brasileiros e mundiais e de refletir
as diversas tendências do pensamento contemporâneo. debates@uol.com.br
Folha de S. Paulo
Editoria/caderno: opinião
Título: É hora de o Brasil encerrar a missão no Haiti? NÃO. O Haiti não é aqui
Data: 24/05/2008 – sábado
Crédito: Ricardo Seitenfus
A HIPOTÉTICA retirada do Brasil das forças que compõem a Missão das Nações Unidas para a
Estabilização no Haiti provocaria dois desastres e uma constatação.
O primeiro dos desastres afetaria de modo direto e profundo o que foi até então arduamente
construído no Haiti. Os países latino‐americanos contribuem com 50% dos efetivos militares,
civis e policiais. Parte deles, por certo, revisaria sua posição, abandonando à própria sorte
aquele país.
Comprometida a presença da ONU na parte ocidental da ilha de Ispaniola, o recrudescimento
da instabilidade política desembocaria no retorno ao autoritarismo, como tem ocorrido desde
1986, salvo se a idéia esdrúxula e imoral de submeter o Haiti ao regime de protetorado das
grandes potências venha a ser admitida.
Para a população do país mais pobre das Américas, a ausência da Minustah significaria o
retorno a um passado de repressão, ausência de liberdades mínimas, desrespeito aos direitos
humanos fundamentais e maior retrocesso econômico. A porta estaria escancarada para que
os eternos aventureiros e opressores do povo, entre eles notórios traficantes, torturadores e
assassinos, retomassem as rédeas do poder. O segundo desastre seria brasileiro.
Qual seria a justificativa ‐a não ser o decantado egoísmo nacional‐ apta a explicar o abandono
de um povo cujas raízes são compartilhadas por ponderável parcela de nossa população?
Como explicar às opiniões públicas nacional, internacional e haitiana que o Brasil, respeitado,
amado e venerado pelo povo mártir da antiga pérola das Antilhas, dê‐lhes as costas num
momento de tal gravidade? O que seria da diplomacia cooperativa e solidária brasileira? Qual
241
seria o futuro do enfoque Sul‐Sul, dos projetos do Ibas e da respeitabilidade cada vez maior da
palavra brasileira no concerto das nações? A resposta é uma só: após a surpresa, a decepção e,
a seguir, o menosprezo com que seria avaliado o conjunto da nossa atuação internacional.
Além dos desastres, o abandono do Haiti traria uma constatação: nossa incapacidade de
resolver problemas regionais. Desde 1945, o fenômeno da guerra, sob todas as suas formas,
migrou do Norte para o Sul do hemisfério, sem com ela aportar os mecanismos para preveni‐la
e solucioná‐la, que continuam com as potências. Os países do Sul seguem oferecendo o palco e
as vítimas dos conflitos atuais.
A crise do Haiti, se resolvida, poderia constituir novo modelo de solução de conflitos em que,
pela primeira vez, nós exercemos o papel central.
Há muito, propugno que a crise haitiana, antes de ser política e securitária, é provocada pela
desesperança, pela miséria, pelo descalabro administrativo, pela ausência de Estado, pelo
vazio jurídico‐institucional e pelas condições infra‐humanas em que vegeta parte ponderável
da população. Três dados ilustram a situação: dos 3.341 detentos da Penitenciária Nacional,
em Porto Príncipe, tão‐só 112 foram condenados. O restante está em "detenção provisória
prolongada", que pode estender‐se por vários anos; 80% da população ativa está
desempregada; há 250 mil crianças em regime de escravidão (os pouco conhecidos e
abandonados "restavecs"). Ante esse doloroso quadro, as características da presença brasileira
e da comunidade internacional no Haiti devem ser repensadas. Em paralelo à formação da
Polícia Nacional Haitiana e à garantia de um nível mínimo de segurança, é fundamental e
urgente empreender ações que reavivem a economia da ilha. Às duas dezenas de projetos
brasileiros bem‐sucedidos devem se somar outras centenas. Porém, é indispensável que sejam
auto‐sustentáveis e se beneficiem da cooperação financeira dos países desenvolvidos. A
cooperação triangular é a chave do sucesso e da solidariedade.
Há quem diga que o Brasil deve prioritariamente olhar para seus próprios problemas sociais.
Quem já foi ao Haiti, porém, do soldado ao ministro, sabe que uma luta contra a pobreza não
exclui a outra e que a solidariedade internacional só reforça a interna. A pergunta talvez não
seja se o Haiti "é aqui" ou "não é aqui", como no verso de Gil e Caetano, mas, sim, onde se
encontra o Brasil em relação ao mundo, que necessita, mais do que nunca, de nossa
participação pacífica e criativa.
________________________________________
RICARDO SEITENFUS, 60, doutor em relações internacionais, integrou várias missões ao Haiti. É
coordenador do projeto www.brasilhaiti.com e autor do livro "Haiti, a Soberania dos
Ditadores", entre outras obras.
Os artigos publicados com assinatura não traduzem a opinião do jornal. Sua publicação
obedece ao propósito de estimular o debate dos problemas brasileiros e mundiais e de refletir
as diversas tendências do pensamento contemporâneo. debates@uol.com.br
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ANEXOS II – PROFERIMENTOS
Discurso do Presidente da República, Luiz Inácio Lula da Silva, na cerimônia de embarque das
tropas militares para missão de paz no Haiti
Senhor Luiz Inácio Lula da Silva
Presidente da República Federativa do Brasil
Base Aérea de Brasília, 31/05/2004
Excelentíssimo senhor José Alencar, vice‐presidente da República e sua esposa, dona Mariza,
Meu caro embaixador José Viegas Filho, ministro da Defesa,
Meu caro embaixador Celso Amorim, ministro das Relações Exteriores,
Meu caro Agnelo Queiroz, ministro dos Esportes,
Meu caro Waldir Pires, controlador‐geral da União,
Meu caro general Jorge Armando Félix, chefe do Gabinete de Segurança Institucional,
Meu caro Álvaro Costa, advogado‐geral da União,
Minha querida companheira Marisa,
Almirante‐de‐esquadra Roberto de Guimarães Carvalho, comandante da Marinha,
General de Exército Francisco Roberto de Albuquerque, comandante do Exército, e senhora
Marina Antonina Teixeira Pinto de Albuquerque,
Tenente brigadeiro‐do‐ar Luiz Carlos da Silva Bueno, comandante da Aeronáutica, e senhora
Sônia Maria Martins Bueno,
Meus caros deputados,
Deputado Luizinho,
Deputado Arlindo Chinaglia,
Paulo Delgado,
Ricardo Zaratini,
Deputado Francisco Rodrigues,
Senhores oficiais‐generais,
General Américo Salvador de Oliveira,
Dom Geraldo Ávila, arcebispo militar,
Senhores integrantes da brigada do Haiti,
Militares da Marinha, Exército e Força Aérea Brasileira que embarcam para essa missão de paz
das Nações Unidas,
Meus amigos e minhas amigas, familiares dos integrantes da brigada do Haiti,
Meus amigos e minhas amigas que vieram a essa solenidade,
É com sentimentos elevados que venho me despedir de parte do contingente brasileiro que vai
participar da missão de paz das Nações Unidas no Haiti.
Trago a mensagem de apoio e confiança a todos o senhores e peço‐lhes que a transmitam aos
que já partiram do Rio de Janeiro, no navio da Marinha do Brasil.
O Brasil sente grande orgulho pelo convite que lhe foi feito para acomodar a missão de paz no
Haiti.
A comunidade internacional reconheceu a capacidade e a vontade de nosso país de dar a sua
contribuição para a paz no mundo. Também tenho orgulho e satisfação de ver que nossas
Forças Armadas estão preparadas e dispostas a ajudar um país irmão.
O Haiti é o terceiro país com a maior população negra nas Américas. O Brasil compartilha
dessa herança africana e não poderia ficar indiferente diante dos problemas que o povo
haitiano está enfrentando.
A paz e a democracia são conquistas das quais os governos e os povos latino‐americanos
devem orgulhar‐se. Isso nos estimula a trabalhar pela promoção da paz em nível global. A
243
instabilidade, ainda que longínqua, acaba gerando custos para todos nós. A manutenção da
paz tem seu preço, e esse preço é o da participação.
Ao nos manifestarmos diante de uma crise como a que está acontecendo no Haiti, estamos
exercendo nossa responsabilidade no cenário internacional. No caso do Haiti, consideramos
que foram preenchidas as condições para uma operação da ONU. Como membro do Conselho
de Segurança, o Brasil buscou refletir as preocupações de nossa região e interpretar os
interesses do povo haitiano e da comunidade internacional.
Por esta razão, decidimos também aceitar o comando da operação de paz estabelecida pelo
Conselho de Segurança que terá, entre outras tarefas, a responsabilidade de proteger civis sob
ameaça, de apoiar instituições que defendam os direitos humanos, de promover a
reconciliação nacional do Haiti. São desafios importantes, mas não nos intimidam.
A coragem, o sentido de dever e solidariedade e o elevado profissionalismo de nossas Forças
Armadas, os preparam para enfrentar os árduos trabalhos que os esperam.
O mandato que, legitimamente, nos confere a sociedade internacional coincide com as causas
que, no Brasil, defendemos.
Nosso compromisso com a paz e o desenvolvimento de um país irmão também foi bem
traduzido pelo Congresso Nacional, que reconheceu a importância desse momento ao aprovar
o envio de tropas brasileiras para o Haiti.
Saúdo a pronta decisão de vários países latino‐americanos, sobretudo da América do Sul, de
participarem dessa missão. A situação de crise no Haiti vai exigir um compromisso de longo
prazo por parte da comunidade internacional em apoio à sua reconstrução econômica e
institucional. Nosso objetivo é que os haitianos encontrem, no mais breve prazo, um ambiente
propício à consolidação de sua democracia.
Ao longo dos próximos meses, suas famílias e amigos sentirão a distância e a saudade, mas
terão também a íntima satisfação de saber que seus esposos e pais, filhos e amigos são parte
de uma luta justa. Em mais algum tempo estaremos todos aqui, outra vez, reunidos. Ao seu
regresso, trarão consigo a certeza de terem prestado, com honra e dedicação pessoal, a sua
contribuição e a sua solidariedade a um povo amigo. Partem com o apoio de toda nossa gente,
regressarão com a alegria de cada um de nós.
Meus amigos,
Há 59 anos, nesse mesmo mês de maio, terminava a Segunda Guerra Mundial. Naquele
terrível conflito, a Força Expedicionária Brasileira construiu as mais belas páginas da história de
nossos homens de armas. Depois disso, nos engajamos sucessivamente em missões de paz
com o mesmo ardor, coragem e compromisso de nossos pracinhas. Estamos seguros que cada
um de vocês, inspirados em nossas melhores tradições, será capaz de manter alto, em terras
haitianas, o nome do Brasil e os valores da paz e da solidariedade que tanto inspiram o nosso
povo.
Boa sorte e que Deus os protejam.
Saudação do Presidente da República, Luiz Inácio Lula da Silva, na chegada ao Aeroporto
Internacional Toussaint Louverture
Senhor Luiz Inácio Lula da Silva
Presidente da República Federativa do Brasil
Porto Príncipe ‐ Haiti, 18/08/2004
Com emoção e alegria, chego ao Haiti para um dia histórico nas relações entre este país e o
Brasil.
É a primeira vez que um Presidente da República brasileiro vem ao Haiti, nação com a qual
compartilhamos raízes africanas comuns.
Venho a Porto Príncipe para contatos com o Primeiro‐Ministro Latortue e com o Presidente
Alexandre, em um momento em que a comunidade internacional se une para prestar apoio à
democracia, à estabilidade e à reconstrução nacional do Haiti.
244
Participei ontem, em São Domingos, de reunião com líderes caribenhos e centro‐americanos, à
margem da posse do Presidente Leonel Fernández, da República Dominicana, e com a
presença do Presidente Boniface Alexandre. Na reunião, destacamos a importância de um
esforço de longo prazo para o desenvolvimento institucional, econômico e social do Haiti.
Dentro de uma semana, estará em Porto Príncipe uma missão brasileira, coordenada pela
Agência Brasileira de Cooperação e integrada por mais de 20 pessoas, que contribuirá para o
desenvolvimento de projetos envolvendo vários ministérios, em áreas como saúde, agricultura
familiar, infra‐estrutura e transporte urbano.
Venho confraternizar com as Forças de Paz sob comando brasileiro e com o batalhão Brasil.
Nossa participação na Missão das Nações Unidas para a Estabilização no Haiti – a MINUSTAH ‐
reflete o compromisso brasileiro com a ONU, com o multilateralismo e com a estabilidade
regional.
Chego ao Haiti em companhia do Presidente Jorge Batlle do Uruguai, nação irmã, sócio no
MERCOSUL e agora também parceiro nos esforços de estabilização do Haiti. Alegra‐me a
circunstância de vários países sul‐americanos estarem trabalhando juntos por um futuro de
paz e desenvolvimento no Haiti.
Venho, enfim, participar de um encontro pela paz entre haitianos e brasileiros. O jogo entre a
Seleção do Brasil e do Haiti permite que celebremos juntos a nossa paixão pelo futebol.
Esperamos que este jogo possa se transformar em símbolo de nossa amizade e em estímulo
para intensificarmos os contatos entre nossas sociedades
Muito obrigado.
Discurso do Presidente da República, Luiz Inácio Lula da Silva, perante a Brigada Brasil da
Missão das Nações Unidas para o Haiti
Senhor Luiz Inácio Lula da Silva
Presidente da República Federativa do Brasil
Porto Príncipe, Haiti, 18/08/2004
Meu querido companheiro Celso Amorim, ministro das Relações Exteriores,
Meu querido companheiro Agnelo Queiroz, ministro dos Esportes,
Minha querida companheira Marisa Letícia,
Meu caro senador Eduardo Suplicy,
Senador Hélio Costa,
Senador Leomar Quintanilha
Senador Maguito Vilela,
Meu caro deputado Luiz Eduardo Greenhalgh,
Embaixador Juan Gabriel Valdez, representante especial do secretário‐geral das Nações Unidas
para o Haiti,
Embaixador Armando Cardoso, embaixador do Brasil no Haiti,
Oficiais‐generais do Ministério da Defesa da Marinha do Brasil, do Exército brasileiro e da
Força Aérea brasileira,
General de Divisão Augusto Heleno Ribeiro Pereira, comandante da Força da Missão das
Nações Unidas de Estabilização do Haiti,
General de Brigada, Américo Salvador de Oliveira, comandante da Brigada Brasileira de Paz no
Haiti,
Senhores militares da Brigada Brasileira de Paz no Haiti,
Senhores e senhoras jornalistas,
Nossos convidados,
Venho ao Haiti para celebrar a paz. A paz que vocês, integrantes da Brigada Brasil da Missão
das Nações Unidas para o Haiti, estão ajudando a devolver ao povo haitiano.
Quero, em primeiro lugar, expressar que a decisão brasileira de enviar tropas ao Haiti foi
tomada em atendimento a um chamado do Conselho de Segurança das Nações Unidas.
245
É ele o órgão que tem um mandato para definir ações em favor da preservação da paz e da
segurança internacionais.
Oficiais e praças da Brigada Brasil, sua missão é difícil.
Um grande desafio nos trouxe ao Haiti. Viemos ajudar a restabelecer a ordem e a segurança e
a reconstruir a paz no Haiti. Mas, sobretudo, viemos ajudar a lançar a semente de uma paz
duradoura.
Estamos solidários à nação haitiana em sua luta pela reconciliação e reconstrução nacional.
Queremos que o Haiti volte a ser a nação que inspirou gerações e produziu heróis. Queremos
que o Haiti volte a levantar‐se em defesa de seu destino.
Quando anunciamos a decisão de mandar tropas para este país, com o apoio do Congresso
Nacional, reconhecemos que o Brasil não poderia ficar alheio ao sofrimento e à dor de um
povo irmão. Um povo cuja suprema bravura deu início à emancipação colonial e pôs fim à
escravidão. Um povo com o qual compartilhamos raízes africanas comuns.
Soldados do Brasil,
Seus familiares, amigos e todos nós, brasileiros, temos orgulho da missão que vocês estão
desempenhando aqui. Essa é a maior missão de paz de que o Brasil já participou.
A ação das Forças Armadas brasileiras, aqui, no Haiti demonstra que a comunidade
internacional confia na nossa capacidade de contribuir para a paz. A presença brasileira no
comando, seguramente, estimulou outros países de nossa região a participarem desta Missão.
O Brasil acredita em um Haiti melhor para o seu povo.
Não podemos nos resignar a assistir, com impotência e fatalismo, à escalada da instabilidade e
do medo. Queremos ajudar este país a reerguer‐se, a reconstruir suas instituições, a cicatrizar
suas feridas, a reencontrar o caminho do desenvolvimento e da justiça social.
Enquanto houver fome, miséria, crianças sem educação, epidemias e tantos outros males que
afetam grande parte da humanidade, não haverá segurança. Em lugar da segurança, surgirão a
revolta, a intolerância, o fanatismo, que são os verdadeiros alimentos do conflito, da violência
e do terrorismo. Não há maior terror do que a exclusão social e a perda de perspectiva de um
futuro melhor.
Não podemos nos omitir. A Brigada Brasil e a contribuição de cada um de vocês refletem o
nosso engajamento.
É preciso que o povo haitiano saiba que a comunidade internacional não o abandonou. Ela está
presente nas muitas nacionalidades que compõem a Missão das Nações Unidas. Está presente
também nas decisões esclarecidas dos países que participaram da recente reunião de
doadores.
Queremos que os haitianos sintam que podem contar com a amizade e a solidariedade do
povo brasileiro e de meu governo.
Uma delegação técnica virá, na próxima semana, a Porto Príncipe para definir projetos de
cooperação. Nossos técnicos da Embrapa virão colaborar na valorização da agricultura. Vamos
também ajudar o governo haitiano a treinar policiais para proteger vidas humanas; assistir às
autoridades locais na reabilitação do poder judiciário; treinar professores para educar os
jovens; ajudar a reconstruir instituições e recuperar escolas.
Soldados do Brasil, soldados da paz,
Aproveito esta oportunidade para render homenagem ao Cabo Rodrigo Duarte Azevedo, que
nos deixou enquanto cumpria seu dever.
Quero reiterar a cada um de vocês que o Brasil e o meu governo estão ao seu lado e farão
todo o necessário para que voltem para casa com segurança e o sentimento de missão
cumprida.
Daqui a pouco, terei a alegria de assistir ao Jogo da Paz. Nossos melhores talentos vão estar
em campo, celebrando a paixão de haitianos e de brasileiros pelo futebol.
Nos nossos jogadores vejo a realização de aspirações que dependem da capacidade de cada
um, de perseguir seus ideais com confiança e determinação. Nossos jogadores nos mostram
que não devemos dar ouvidos aos que dizem que os sonhos são inatingíveis. Nenhum deles
246
teria a alegria de ouvir seus nomes aclamados pela torcida após o gol consagrador, se tivessem
abandonado os seus sonhos.
Oficiais e praças das Forças Armadas do nosso querido Brasil,
Tenho certeza de que ao ver nossos craques em campo, todos sentirão um pouco mais a
saudade de nossa pátria.
Mas os nossos jogadores não são os únicos craques brasileiros no Haiti. Parabéns, pois vocês
também estão fazendo um gol de placa.
Meus caros amigos,
Estamos aqui para ajudar a reconciliação nacional do Haiti. Precisamos extirpar as raízes da
violência, a exclusão social, a miséria e a fome.
Não devemos esquecer nunca que o verdadeiro nome da paz é a justiça social.
Muito obrigado e boa sorte.
Discurso do Presidente da República, Luiz Inácio Lula da Silva, na 59ª Assembléia‐Geral da
ONU Senhor Luiz Inácio Lula da Silva
Presidente da República Federativa do Brasil
Nova York, EUA, 21/09/2004
Senhoras e senhores,
Chefes de Estado e de Governo,
Senhor Jean Ping, presidente da 59ª Assembléia‐Geral da Organização das Nações Unidas,
Senhor Kofi Annan, secretário‐geral das nações unidas,
Senhor Jian Chen, subsecretário‐geral para assuntos da Assembléia‐Geral,
Senhoras e senhores,
Saúdo, na pessoa do chanceler Jean Ping, os representantes de todos os povos aqui reunidos.
Cumprimento fraternalmente o secretário‐geral Kofi Annan, que tem conduzido as Nações
Unidas com sabedoria e abnegação.
Senhoras e senhores,
Pela segunda vez, dirijo‐me a esta assembléia universal para trazer a palavra do Brasil. Carrego
um compromisso de vida com os silenciados pela desigualdade, a fome e a desesperança.
A eles, nas palavras tremendas de Franz Fanon, o passado colonial destinou uma herança
comum:
“Se queres, aí a tens: a liberdade para morrer de fome”.
Hoje somos 191 Estados‐nação. No passado, 125 deles foram submetidos ao jugo de umas
poucas potências que originalmente ocupavam menos de 2% do globo. O fim do colonialismo
afirmou, na esfera política, o direito dos povos à autodeterminação.
Esta Assembléia é o signo mais alto de uma ordem fundada na independência das nações. A
transformação política, contudo, não se completou no plano econômico e social. E a história
demonstra que isso não ocorrerá espontaneamente.
Em 1820, a diferença de renda per capita entre o país mais rico e o mais pobre do planeta era
inferior a cinco vezes. Hoje, essa diferença é de 80 vezes.
Os antigos súditos converteram‐se em devedores perpétuos do sistema econômico
internacional.
Barreiras protecionistas e outros obstáculos ao equilíbrio comercial, agravados pela
concentração dos investimentos do conhecimento e da tecnologia, sucederam ao domínio
colonial.
Poderosa e onipresente, uma engrenagem invisível comanda à distância o novo sistema. Não
raro, ela revoga decisões democráticas, desidrata a soberania dos Estados, sobrepõe‐se a
governos eleitos, e exige a renúncia a legítimos projetos de desenvolvimento nacional.
Manteve‐se a lógica que drena o mundo da escassez para irrigar o do privilégio.
Nas últimas décadas, a globalização assimétrica e excludente aprofundou o legado devastador
de miséria e regressão social, que explode na agenda do século XXI. Hoje, em 54 países a renda
247
per capita está mais baixa do que há dez anos. Em 34 países, a expectativa de vida diminuiu.
Em 14, mais crianças morrem de fome.
Na África, onde o colonialismo resistiu até o crepúsculo do século XX, 200 milhões de seres
humanos estão enredados num cotidiano de fome, doença e desamparo, ao qual o mundo se
acostuma, anestesiado pela rotina do sofrimento alheio e longínquo.
A falta de saneamento básico matou mais crianças na década passada do que todos os
conflitos armados desde a II Guerra.
Da crueldade não nasce o amor. Da fome e da pobreza jamais nascerá a paz. O ódio e a
insensatez que se alastram pelo mundo nutrem‐se dessa desesperança, da absoluta falta de
horizontes para grande parte dos povos.
Apenas neste ano, mais de 1.700 pessoas já morreram vítimas de ataques terroristas ao redor
do mundo; em Madri, Bagdá, Jacarta.
Tragédias que vêm somar‐se a tantas outras, na Índia, no Oriente Médio, nos Estados Unidos,
e, recentemente, ao sacrifício bárbaro das crianças de Beslan.
A Humanidade está perdendo a luta pela paz.
Só os valores do Humanismo, praticados com lucidez e determinação, podem deter a barbárie.
A situação exige, dos povos e dos seus líderes, um novo senso de responsabilidade individual e
coletiva.
Se queremos a paz, devemos construí‐la. Se queremos de fato eliminar a violência, é preciso
remover suas causas profundas com a mesma tenacidade com que enfrentamos os agentes do
ódio.
O caminho da paz duradoura passa, necessariamente, por uma nova ordem internacional, que
garanta oportunidades reais de progresso econômico e social para todos os países.
Exige, por isso mesmo, a reforma do modelo de desenvolvimento global e a existência de
instituições internacionais efetivamente democráticas, baseadas no multilateralismo, no
reconhecimento dos direitos e aspirações de todos os povos.
Mais do que quaisquer estatísticas sobre a desigualdade social, o que deve interpelar nossas
consciências é o olhar torturado dos que hoje estão do lado de fora da vida.
São olhos que vigiam em nós o futuro da esperança.
Não há mais destino isolado, nem conflito que não irradie uma dimensão global. Por mais que
nos apontem o céu entre as grades, é preciso não confundir a gaiola de ferro com a liberdade.
Temos conhecimento científico e escala produtiva para equacionar os desafios econômicos e
sociais do planeta. Hoje, é possível reconciliar natureza e progresso por meio de um
desenvolvimento ética e ambientalmente sustentável.
A natureza não é um museu de relíquias intocáveis. Mas, definitivamente, ela não pode mais
ser degradada pela espoliação humana e ambiental, na busca da riqueza a qualquer custo.
Minhas senhoras e meus senhores,
Mede‐se uma geração não só pelo que fez, mas também pelo que deixou de fazer. Se os
recursos disponíveis são fantasticamente superiores às nossas necessidades, como explicar às
gerações futuras por que fizemos tão pouco, quando tanto nos era permitido?
Uma civilização omissa está condenada a murchar como um corpo sem alma. As exortações do
grande artífice do “New Deal”, Franklin Roosevelt, ecoam com atualidade inescapável:
“O que mais se necessita hoje é de audácia na experimentação.”
“O que mais se deve temer é o próprio medo”.
Não se trata da audácia do instinto. Mas da coragem política. Sem voluntarismo irresponsável,
mas com ousadia e capacidade de reformar.
O que distingue civilização de barbárie é a arquitetura política que promove a mudança
pacífica e faz avançar a economia e a vida social pelo consenso democrático.
Se fracassarmos contra a pobreza e a fome, o que mais poderá nos unir?
Minhas senhoras e meus senhores,
248
Creio que é o momento de dizer com toda a clareza que a retomada do desenvolvimento justo
e sustentável requer uma mudança importante nos fluxos de financiamento dos organismos
multilaterais.
Estes organismos foram criados para encontrar soluções, mas, às vezes, por excessiva rigidez,
tornam‐se parte do problema.
Trata‐se de ajustar‐lhes o foco para o desenvolvimento, resgatando seu objetivo natural.
O FMI deve credenciar‐se para fornecer o aval e a liquidez necessários a investimentos
produtivos, especialmente em infra‐estrutura, saneamento e habitação, que permitirão,
inclusive, recuperar a capacidade de pagamento das nações mais pobres.
Meus senhores e minhas senhoras,
A política externa brasileira, em todas as suas frentes, busca somar esforços com outras
nações em iniciativas que nos levem a um mundo de justiça e paz.
Tivemos, ontem, uma reunião histórica com mais de 60 líderes mundiais, para dar um novo
impulso à ação internacional contra a fome e a pobreza.
Acredito firmemente que o processo desencadeado ontem elevará o patamar da luta contra a
pobreza no mundo. Na medida em que avançarmos nessa nova aliança, teremos melhores
condições de cumprir as Metas do Milênio, sobretudo a erradicação da fome.
Foi com esse espírito que África do Sul, Índia e Brasil estabeleceram, no ano passado, o fundo
de solidariedade – IBAS. Nosso primeiro projeto, em Guiné‐Bissau, será lançado amanhã.
Também priorizamos o tema do HIV‐AIDS, que tem perversa relação com a fome e a pobreza.
Nosso programa de Cooperação Internacional no combate ao HIV‐AIDS já opera em seis países
em desenvolvimento e brevemente chegará a mais três.
Minhas senhoras e meus senhores,
Constato, com preocupação, que persistem graves problemas de segurança, pondo em risco a
estabilidade mundial.
Não se vislumbra, por exemplo, melhora na situação crítica do Oriente Médio. Neste, como em
outros conflitos, a comunidade internacional não pode aceitar que a violência proveniente do
Estado, ou de quaisquer grupos, se sobreponha ao diálogo democrático. O povo palestino
ainda está longe de alcançar a auto‐determinação a que tem direito.
Sabemos que as causas da insegurança são complexas. O necessário combate ao terrorismo
não pode ser concebido apenas em termos militares.
Precisamos desenvolver estratégias que combinem solidariedade e firmeza, mas com estrito
respeito ao Direito Internacional.
Foi assim que atendemos, o Brasil e outros países da América Latina, à convocação da ONU
para contribuir na estabilização do Haiti. Quem defende novos paradigmas nas relações
internacionais, não poderia se omitir diante de uma situação concreta.
Promover o desenvolvimento com eqüidade é crucial para eliminar as causas da instabilidade
secular daquele país. Em nossa região, apesar dos conhecidos problemas econômicos e sociais,
predomina uma cultura de paz. Vivemos um período de amadurecimento democrático, com
uma vibrante sociedade civil.
Estamos aprendendo que o desenvolvimento e a justiça social devem ser buscados com
determinação e abertura ao diálogo. Os episódios de instabilidade na região têm sido
resolvidos com respeito às instituições.
Sempre que chamado, e na medida de nossas possibilidades, o Brasil tem contribuído para a
superação de crises que ameaçam a ordem constitucional e a estabilidade de países amigos.
Não acreditamos na interferência em assuntos internos de outros países, mas tampouco nos
refugiamos na omissão e na indiferença diante de problemas que afetam nossos vizinhos.
O Brasil está empenhado na construção de uma América do Sul politicamente estável,
próspera e unida, a partir do fortalecimento do Mercosul e de uma relação estratégica com a
Argentina.
249
O surgimento de uma verdadeira Comunidade Sul‐Americana de Nações já não é um sonho
distante graças à ação decidida no que se refere à integração física, econômica, comercial,
social e cultural.
O Brasil tem atuado nas negociações comerciais multilaterais para alcançar acordos justos e
eqüitativos. Na última reunião da Organização Mundial do Comércio, deu‐se um grande passo
para a eliminação de restrições abusivas que prejudicam os países em desenvolvimento.
A articulação de países da África, América Latina e Ásia no G‐20 foi decisiva para manter a
rodada de Doha na trilha da liberalização do comércio com justiça social. O sucesso de Doha
representa a possibilidade de livrar da pobreza mais de 500 milhões de pessoas.
É fundamental continuar desenhando uma nova geografia econômica e comercial, que,
preservando as vitais relações com os países desenvolvidos, crie sólidas pontes entre os países
do Sul, que por muito tempo permanecem isolados uns dos outros.
Senhoras e senhores,
O Brasil está comprometido com o êxito do Regime Internacional sobre Mudança do Clima.
Estamos engajados no desenvolvimento de energias renováveis. Por isso, seguiremos
trabalhando ativamente pela entrada em vigor do Protocolo de Quioto.
A América do Sul responde por cerca de 50% da biodiversidade mundial. Defendemos o
combate à biopirataria e à negociação de um regime internacional de repartição dos benefícios
resultantes do acesso a recursos genéticos e conhecimentos tradicionais.
Senhoras e senhores,
Reitero o que disse no ano passado desta Tribuna: uma ordem internacional fundada no
multilateralismo é a única capaz de promover a paz e o desenvolvimento sustentável das
nações.
Ela deve assentar‐se sobre o diálogo construtivo entre diferentes culturas e visões de mundo.
Nenhum organismo pode substituir as Nações Unidas na missão de assegurar ao mundo
convergência em torno de objetivos comuns.
Só o Conselho de Segurança pode conferir legitimidade às ações no campo da paz e da
segurança internacionais. Mas sua composição deve adequar‐se à realidade de hoje, e não
perpetuar aquela do pós‐Segunda Guerra ou da Guerra Fria.
Qualquer reforma que se limite a uma nova roupagem para a atual estrutura, sem aumentar o
número de membros permanentes é, com certeza, insuficiente.
As dificuldades inerentes a todo processo de reforma não devem fazer com que percamos de
vista a urgência das mudanças.
Senhoras e senhores,
Não haverá segurança nem estabilidade no mundo enquanto não construirmos uma ordem
mais justa e mais democrática.
A comunidade das nações precisa dar resposta clara e inequívoca a esse desafio.
Haveremos de encontrá‐la nas sábias palavras do profeta Isaías: “A paz só virá como fruto da
Justiça.”
Muito obrigado.
Discurso do Presidente da República, Luiz Inácio Lula da Silva, na abertura do Colóquio
“Brasil: Ator Global”
Senhor Luiz Inácio Lula da Silva
Presidente da República Federativa do Brasil
Paris, França, 13/07/2005
Não se assustem com a quantidade de papel, porque é um parágrafo por folha.
Primeiro, dizer às autoridades francesas, aos reitores, aos ministros brasileiros e a todos os
professores e alunos que estão aqui, da minha alegria de poder estar, outra vez, em Paris e
poder falar um pouco da participação do Brasil neste mundo globalizado e o que achamos que
pode acontecer nos próximos anos.
250
Queria apenas que vocês compreendessem que estamos com o fuso horário de cinco horas na
cabeça, e que por mais que eu viaje de avião, eu não perdi o medo de viajar de avião, e eu
tenho dificuldade de dormir no avião. Portanto, vou me segurar aqui para não ter problema de
sono.
Queria dizer a vocês que está comigo o nosso querido governador do estado do Amapá, que
logo, logo será o governante da América do Sul mais próximo da França e, portanto, poderá ser
um canal muito importante para o desenvolvimento daquela região, sobretudo, o estado do
Amapá que tem, praticamente, 80% do seu território como área de preservação e isso, se tem
custado ao longo do tempo – difícil – o desenvolvimento do estado, certamente, nós agora
temos que tirar proveito da intenção mundial de preservação para que os estados que
preservem mais a sua fauna, a sua floresta, possam ganhar alguns recursos adicionais.
Meu agradecimento à Universidade de Paris pela organização deste encontro consagrado à
política externa do Brasil e pelo convite que me foi feito para aqui apresentar algumas
reflexões.
O título do colóquio “Brasil: ator global" aponta para um problema central: qual o sentido e as
possibilidades da presença e ação de meu país no cenário internacional?
A expressão "ator global" pode provocar mal‐entendidos. O primeiro é o de acreditar que o
Brasil, um país com problemas sociais e sem meios importantes de projeção de poder militar
no plano internacional, não poderia aspirar a ser globalmente um ator pleno. Somente países
ricos, socialmente mais desenvolvidos e dotados de meios militares mais expressivos teriam
capacidade de atuar de forma independente e eficaz na cena mundial.
É evidente que riqueza e força militar são expressões de poder. Elas não esgotam, no entanto,
a capacidade de ação e de influência de que pode dispor um país. O segundo equívoco é o de
pensar que o Brasil, somente por possuir vasto território, abundantes recursos naturais e
população numerosa, terá automaticamente papel de relevo na esfera internacional.
O Brasil está, felizmente, longe dessas duas perspectivas extremas. Nossa diplomacia é
experiente, bem preparada e suficientemente lúcida para não ser nem tímida nem temerária.
Minha experiência pessoal, como líder operário, ensinou‐me que em qualquer negociação a
credibilidade é um fator fundamental. E para ter credibilidade é preciso conhecer as forças de
que dispomos.
Não fugimos a nossas responsabilidades, por timidez ou por temor aos mais poderosos. Nosso
desafio é o de tentar entender, e de afirmar, como o Brasil pode colaborar para a construção
de uma nova relação de forças internacional. Necessitamos de um mundo mais democrático,
justo e pacífico, mas isso não depende somente de nós, tampouco pode nos conduzir à
passividade.
Abrir mão da idéia de uma "ação global" seria deixar o futuro ao sabor das forças de mercado,
onde prolifera enorme desordem econômica e financeira, ou ao sabor de políticas de poder,
dominadas por posturas unilaterais.
O Brasil nasceu, 505 anos atrás, fruto das grandes explorações marítimas, a primeira onda de
“globalização”, empreendida pelo capitalismo mercantil.
Como colônia, depois como país politicamente independente sofremos, por séculos, os
constrangimentos que condicionaram a vida dos países da periferia.
Em nossa história vivemos momentos de submissão e de reação a esses constrangimentos.
Hoje, o que importa é buscar espaço neste mundo globalizado, por meio de uma ação política
que preserve a soberania nacional, garanta a soberania popular e contribua para o
aprofundamento da solidariedade internacional.
A “mundialização”, como se diz aqui, nos colocou diante de uma nova obrigação: a de
fazermos com que as forças que ela desencadeia sejam canalizadas para o interesse da
maioria. Não tenho me omitido a esse respeito.
Fui a Porto Alegre e a Davos. Defendi nos dois encontros as mesmas idéias: aquelas que
expressei também em minhas intervenções em Evian e na Escócia, quando me reuni com os
líderes do G‐8.
251
Acredito que se pode estabelecer pontes entre foros e grupos de países que antes pareciam
irreconciliáveis. Vejo uma crescente disposição em estreitar esse diálogo. Até porque as
grandes questões com que nos confrontamos na atualidade, desde a pobreza na África, às
mudanças climáticas, até o terrorismo, só poderão ser resolvidas efetivamente por uma ação
concertada, multilateral.
Um país como o Brasil não tem a opção de viver à margem dos processos globais. Dou um
exemplo. Temos um programa de combate à Aids que é mundialmente reconhecido como
resposta a um dos piores dramas vividos pela humanidade em nossos dias. Realizamos, em
ampla escala, a distribuição de remédios retrovirais. Mas, para que seja viável em um país com
recursos escassos, esse programa depende de que os preços dos medicamentos não
ultrapassem certos limites razoáveis.
Torna‐se essencial, portanto, estabelecer um equilíbrio entre o interesse legítimo das
empresas farmacêuticas, que se beneficiam de patentes, e o interesse maior de salvar quantas
vidas pudermos.
As normas sobre patentes já não são definidas isoladamente em cada país, são normas globais.
Participamos todos de sua elaboração, de sua interpretação e de sua execução. No caso da
Aids, essa participação é, sem exagero, uma questão de vida ou morte.
Outro exemplo, a que tenho mais me dedicado, é o do combate à fome e à miséria. Pela minha
própria trajetória de vida e experiência política, essa é uma prioridade pessoal. Sempre tive
consciência de que essa tarefa não era apenas dos brasileiros, mas de todas as nações. A fome
e a pobreza têm determinações internacionais.
Isso não quer dizer que os países não devam assumir suas responsabilidades para reduzir as
desigualdades e garantir a todos uma vida digna. Mas é inegável que o esforço de cada país,
principalmente dos menos desenvolvidos, ganhará muito se for respaldado
internacionalmente. Não falo apenas de ações compensatórias, necessárias, mas não
suficientes. Falo de iniciativas de fundo, que lidem com as causas estruturais da fome e da
pobreza no mundo. Por isso, defendo um sistema mais eqüitativo, onde os fluxos financeiros e
o comércio internacional criem oportunidades e não sejam fatores de desagregação
econômica e social. O problema da fome e do subdesenvolvimento não será resolvido apenas
pelas forças de mercado.
Muitos agricultores pobres na periferia do mundo teriam, hoje, condições de competir
internacionalmente e de ter uma vida mais condigna, não fossem as barreiras que os impedem
de vender o que produzem aos consumidores nos países mais ricos.
Precisamos encarar esse problema de frente. É intolerável que 1 bilhão de dólares seja gasto a
cada dia em subsídios à exportação e em medidas de apoio doméstico à produção agrícola.
Não é humano e racional que uma vaca tenha um subsídio superior à renda individual de
centenas de milhões de homens e mulheres.
Segundo o Banco Mundial, uma efetiva liberalização do comércio agrícola poderia gerar cerca
de US$ 200 bilhões de dólares de renda global adicional, o suficiente para retirar mais de 500
milhões de pessoas da situação de pobreza.
Posso citar muitos outros exemplos, todos apontando para a mesma direção: esses problemas
não se resolvem sozinhos, nem pela iniciativa de alguns países. Exigem a participação ativa dos
países em desenvolvimento. É o que o Brasil tem feito nos últimos dois anos e meio. Temos
realizado intenso trabalho diplomático de aprofundamento de vínculos tradicionais em nosso
Continente e de maior aproximação com regiões do mundo em desenvolvimento, como a
África e o Oriente Médio.
O Brasil quer que sua voz seja cada vez mais ouvida no plano internacional. Mas queremos
também ouvir a voz de outros países, para identificar interesses comuns e intensificar o
diálogo e a cooperação.
Há dois meses tivemos a satisfação de sediar, em Brasília, uma pioneira Cúpula que reuniu
países árabes e sul‐americanos e abriu novas e promissoras avenidas de aproximação entre
estas duas regiões do mundo em desenvolvimento.
252
Com a Índia e a África do Sul estabelecemos um foro de diálogo trilateral. Além de estreitar
nossa coordenação política, criamos um fundo inédito, administrado por essas três grandes
democracias do mundo em desenvolvimento. Um primeiro projeto já está beneficiando Guiné‐
Bissau.
Senhoras e senhores,
Nos planos econômico e comercial, trabalhamos para aprofundar a integração e a unidade de
nossa região, a América do Sul, assim como para ajudar a construir uma economia
internacional que proporcione melhores oportunidades de crescimento para todos.
O Brasil tem feito um grande esforço para retomar o crescimento econômico, reduzir o
desemprego, melhorar a distribuição da renda e aumentar sua capacidade de competição
externa.
Em 2004, nosso comércio exterior totalizou quase US$ 160 bilhões de dólares, com mais de
US$ 96 bilhões de exportações. Esse valor foi o dobro do total das exportações registradas em
1999.
O saldo comercial, que no final dos anos 90 era deficitário, chegou em 2004 a um superávit de
quase US$ 34 bilhões de dólares. As previsões para 2005 – e o Furlan que confirme aí – são de
um superávit de quase US$ 40 bilhões de dólares.
Nosso comércio com o mundo tem caráter "global". A distribuição de nossas exportações
entre os principais mercados mantém um notável equilíbrio geográfico entre a União Européia,
os Estados Unidos, a América do Sul e a Ásia. Outras áreas, como a África e o Oriente Médio,
revelam sinais promissores de crescimento. Tudo isso significa que o Brasil está mais aberto ao
mundo.
A relação comércio exterior‐PIB passou de menos de 15%, nos anos 90, para mais de 26% em
2004. A estabilidade macroeconômica que conseguimos, somada ao fortalecimento da
capacidade exportadora, reduziu nossa vulnerabilidade externa. Em 1999, o pagamento de
juros pelo Brasil representou mais de 33% do total de nossas exportações. Hoje, não passam
de 16%.
O Brasil reúne todas as condições para tornar sua inserção na economia internacional cada vez
mais proveitosa e, o que é muito importante, preservando nossa autonomia para executar
políticas públicas indispensáveis para um desenvolvimento sustentável, com justiça social.
Senhoras e senhores,
A esta altura de minha exposição muitos poderão estar se perguntando se uma ação mais
destacada do Brasil no cenário internacional é compatível com um estreito relacionamento
com nosso entorno imediato, a América do Sul. Penso que não só é compatível como
absolutamente indispensável.
A parceria estratégica com a Argentina, a consolidação do Mercosul e a integração sul‐
americana são para nós prioritárias. Mais que isso: são inseparáveis de nosso projeto nacional
de desenvolvimento. E isso não é retórica; é realidade, é fato.
Nenhum outro governo brasileiro buscou a aproximação com nossos vizinhos com tanta
intensidade. Os contatos no mais alto nível se avolumaram.
Temos acelerado projetos para a integração da infra‐estrutura física regional, para o que
contamos, inclusive, com recursos do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social.
Possivelmente, no próximo ano, nós teremos pelo menos uma obra de infra‐estrutura
financiada pelo Banco de Desenvolvimento brasileiro em cada país da América do Sul,
tornando realidade o sonho histórico que motivou tantas e tantas lutas na América do Sul.
A partir dessa base avançamos na consolidação do Mercosul, apesar das dificuldades e das
crises de crescimento que, como sabem os europeus, são comuns nos processos de
integração.
O Mercosul é uma realidade e uma promessa cada vez mais importante para nossos povos.
253
Trabalhamos agora para reforçar suas instituições e dotá‐lo de um Parlamento que reforçará
sua vocação democrática e permitirá enraizar de forma mais profunda a construção de um
destino comum.
O Mercosul não pode reduzir‐se apenas a uma zona de livre comércio ou mesmo a uma união
aduaneira. Ele tem a vocação de ser um efetivo espaço de integração econômica, política,
cultural e de construção de uma nova e ampliada cidadania.
Avançamos na direção de uma integração mais solidária, com a criação do Fundo de
Convergência Estrutural do Mercosul, voltado para a redução das assimetrias entre os países
membros e suas regiões, promovendo a competitividade e a coesão social.
Paralelamente, e uma coisa reforça a outra, estamos construindo a Comunidade Sul‐
Americana de Nações. Os países do Mercosul estão a cada dia mais próximos da Comunidade
Andina, porque acreditamos que ambos os processos são complementares e convergentes.
Lançada em dezembro último, realizaremos, em Brasília, daqui a dois meses, a primeira
reunião de Presidentes da Comunidade.
A América do Sul toma consciência de sua identidade e de sua vocação para a integração. Em
poucos dias serão iniciadas as obras de construção da rodovia interoceânica, que ligará o Brasil
aos portos peruanos de Ilo e Matarani. Será um avanço decisivo para o comércio não apenas
entre o Brasil e o Peru, mas também de ambos com a Bolívia.
Este é apenas o mais recente exemplo de um amplo conjunto de iniciativas que vêm
delineando a América do Sul como espaço integrado na área de transportes, comunicações e
energia.
Aqui eu queria dar um outro dado. Em 500 anos de história nós construímos a primeira ponte
entre Brasil e Bolívia, no ano passado. Inauguramos no estado do Acre. E estamos fazendo a
primeira ponte entre Brasil e Peru, em Assis‐Brasil, também no estado do Acre, que será essa
rodovia interoceânica. E vamos fazer, se Deus quiser, depois do acordo que firmarmos na
sexta‐feira, a primeira ponte ligando o Brasil e a América do Sul à Europa, via Guiana Francesa,
com o estado do Amapá.
Isso demonstra apenas que em 500 anos, apesar de todos os grandes intelectuais brasileiros
terem escrito sobre a necessidade de integração, apesar de Bolívar e outros revolucionários na
América do Sul terem passado parte da sua vida falando em integração, apesar de todos os
políticos em época de campanha eleitoral falarem de integração, a verdade nua e crua é que a
integração física – aquela que se preocupa com a energia, com a comunicação, com a estrada,
com a ferrovia, com a hidrovia e com a parceria efetiva entre empresários brasileiros e
empresários de cada país – está se consolidando nesse momento, e não por obra apenas do
Brasil, mas por uma compreensão de todos os países de que, se durante 500 anos acreditamos
que os benefícios para o nosso desenvolvimento viriam do Norte, agora há a consciência de
que nós precisamos começar a resolver os nossos problemas e não ficar dependentes, tanto,
das promessas dos países desenvolvidos que, dificilmente, chegam a se concretizar.
Esse grau de consciência que os governantes estão tomando é que está fazendo com que haja
uma profunda mudança no comportamento dos países da América do Sul.
Senhoras e senhores,
O Brasil tem procurado dar nova qualidade e novo impulso à sua ação no âmbito das
negociações multilaterais de comércio, na Organização Mundial do Comércio, OMC. Já foi dito
que a OMC tem procedimentos "medievais". Talvez efetivamente o seja em alguns aspectos,
particularmente no que diz respeito à transparência.
Demos um passo importante para mudar o quadro em que se davam efetivamente as
negociações naquele foro, restritas a alguns poucos interlocutores do mundo desenvolvido.
Tomamos a iniciativa, ao lado de outros países em desenvolvimento, de criar o G‐20, que se
afirmou como um ator respeitado na atual rodada de negociações comerciais.
Hoje, todos reconhecem que esse mecanismo de coordenação entre países do Sul adquiriu um
papel da maior importância na viabilização de um acordo que possa fazer com que a Rodada
de Doha seja, de fato, voltada para o objetivo do desenvolvimento.
254
Outro campo em que conseguimos avanços importantes foi o de nosso esforço conjunto pela
erradicação da fome e da pobreza.
O presidente Jacques Chirac entendeu a sensibilidade desse tema e tem sido um parceiro
essencial, desde a reunião do G‐8 ampliado, em Evian. Ajudou a dar força à iniciativa,
acrescentando o prestígio da França, que é grande, e trazendo idéias inovadoras. O presidente
Lagos, do Chile, e Zapatero, da Espanha, logo se juntaram a nós, seguidos pelo chanceler
Schröder, da Alemanha, e pelo presidente Bouteflika, da Argélia.
Em setembro do ano passado, conseguimos reunir, em Nova Iorque, mais de 100 países, com a
presença de mais de 50 chefes de Estado e Governo.
Hoje, temos um processo em marcha, em busca de novos mecanismos de financiamento do
desenvolvimento e do combate à fome e à pobreza.
O tema vem ganhando destaque nas Nações Unidas, nas reuniões do FMI e do Banco Mundial,
e no próprio G‐8, como vimos há pouco, na reunião de que participamos, na Escócia.
Esperamos que até a Cúpula das Nações Unidas de setembro, quando passaremos em revista
as Metas do Milênio, algumas idéias possam vir à luz, como a de uma pequena taxa sobre as
passagens aéreas, baseada, aliás, em uma proposta da França, que apoiamos firmemente. Ou,
ainda, a redução dos custos de remessas de emigrantes, que aportam recursos vultosos, com
importante incidência sobre as economias dos países em desenvolvimento.
Outra importante iniciativa é a conversão do serviço da dívida, ou parte dela, em
investimentos na Educação proposta por Brasil, Espanha e Argentina, que se encontra em fase
de elaboração e viabilidade técnica. Menos consensuais, mas em discussão, estão propostas
sobre a taxação de paraísos fiscais ou de venda de armas.
Senhoras e senhores,
Ao refletirmos sobre a ação externa do Brasil, não poderia deixar de me referir aos desafios
que se colocam no plano da paz e da segurança. É fundamental que a comunidade
internacional disponha dos meios necessários para responder às ameaças à paz. Esses meios
devem ser eficazes, mas devem também ser legítimos. A história nos ensina que não serão
eficazes se não forem legítimos. Daí nossa profissão de fé no multilateralismo.
Com a criação da ONU, há exatos 60 anos, a comunidade internacional encontrou um novo
caminho para enfrentar os problemas da paz e da segurança. Um caminho fundado no diálogo,
na decisão coletiva e no princípio de que o uso da força só se faria no interesse comum. Esses
princípios são, hoje, mais válidos do que nunca. O mundo está diante de situações e ameaças
graves. Prolongadas injustiças, não raro em um contexto de pobreza e de privação, continuam
a desestabilizar regiões inteiras, como é o caso do Oriente Médio ou de extensas áreas do
continente africano.
Em nossa própria região, preocupa‐nos, em especial, a situação do Haiti, país tão sofrido, que
necessita o apoio da comunidade internacional.
Temos liderado o esforço das Nações Unidas no Haiti, na esperança de que possamos criar um
novo paradigma para as operações de paz.Não visamos apenas à segurança da população e à
estabilização do país. Queremos que no Haiti se criem condições para uma efetiva
reconciliação política e o reencontro do país com a esperança de seu desenvolvimento
econômico e social.
Os terríveis atentados em Londres na semana passada nos mostraram, que aos conflitos
externos e internos somam‐se legítimas preocupações com a expansão de redes terroristas.
Sabemos, além disso, que tais redes podem vir a ganhar um poder destrutivo sem
precedentes, se tiverem acesso a armas de destruição em massa.
Brasil e França compartilham a visão de que é preciso revitalizar o multilateralismo.
Encontramo‐nos diante de uma oportunidade histórica para dar vida nova aos instrumentos
coletivos de que dispomos. Sem o multilateralismo, estaremos condenados à instabilidade
crônica e aos riscos de uma escalada da violência no plano global.
A tarefa mais imediata é concluir, com êxito, uma reforma corajosa das Nações Unidas uma
reforma voltada para o futuro.
255
Nesta semana, os países‐membros das Nações Unidas discutem um projeto de resolução
visando à reforma do Conselho de Segurança, órgão central do sistema de segurança coletiva.
Nesse projeto, juntamos forças com a Alemanha, a Índia e o Japão, no chamado "G‐4", e temos
obtido o apoio de muitos países, alguns mesmo, como a França, na condição de co‐
patrocinadores.
Outro aporte importante, na mesma direção do projeto do G‐4, foi recentemente aprovado
pela União Africana.
Queremos levar ao Conselho a visão de um país do Sul, que fez soberanamente a opção de não
produzir armas nucleares, que atribui importância especial à relação entre a paz e o
desenvolvimento e aos meios pacíficos de solução de controvérsias.
Esperamos que a reforma do Conselho possa ter um desfecho favorável no futuro próximo,
abrindo caminho para a consideração de outras mudanças não menos cruciais. Entre elas,
estão o fortalecimento dos demais órgãos principais, e a revisão e eventual criação de novas
instâncias para lidar com a construção da paz e o respeito aos direitos humanos.
Senhoras e senhores,
Ao considerar esses temas que dizem respeito ao ordenamento internacional, permito‐me
fazer um recuo histórico e falar um pouco da convergência de pontos de vista entre o Brasil e a
França.
Nossa crença na liberdade como valor fundamental vem de longe. As idéias do iluminismo
francês e a própria Revolução Francesa (ao lado da Revolução Americana) tiveram impacto
direto no Brasil.
Foram fontes de inspiração para idéias republicanas e movimentos de rebeldia contra o
colonialismo, como a Inconfidência Mineira, a Revolução dos Alfaiates, na Bahia, ou a
Revolução de 1817, em Pernambuco, o meu estado natal.
Esses movimentos foram duramente reprimidos, mas deixaram uma herança de lutas que
contribuiu para acelerar nossa independência.
Joaquim Nabuco, outro pernambucano, chegou a afirmar que "todas as nossas revoluções
(antes da Independência) foram ondulações que começaram em Paris". Os que reprimiam os
movimentos nativistas e republicanos falavam em erradicar "os abomináveis princípios
franceses". São os princípios que se celebram no 14 de julho, não apenas pela França, mas por
todos os que amam a liberdade e crêem na solidariedade humana.
A França foi para o Brasil, em muitos momentos, uma inspiração de liberdade. Durante os anos
de autoritarismo, muitos brasileiros, injustamente perseguidos em nosso país, encontraram
refúgio e proteção em terras francesas. Guardamos uma dívida de gratidão com o povo
francês por essa solidariedade em uma hora difícil de nossa vida nacional.
Orgulhamo‐nos, ao mesmo tempo, de ver que as atividades do Ano do Brasil na França
incluem homenagens a dois brasileiros que lutaram lado a lado com o povo francês em
momentos difíceis para a França. Na clandestinidade e com grande sacrifício pessoal, meu
amigo e companheiro Apolônio de Carvalho deu contribuição destacada à resistência e à
libertação da França do jugo nazista.
Na diplomacia, a coragem do embaixador Luiz Martins de Souza Dantas ajudou a salvar
centenas de vítimas inocentes. São exemplos dos laços humanos que vinculam a França e o
Brasil.
Isso confere à nossa parceria um significado muito especial, porque a defesa dos direitos
humanos e a consolidação da democracia são hoje tarefas inadiáveis no plano internacional.
Sabemos que a liberdade e a prática da democracia não podem ser trazidas de fora. Não são
produtos de exportação, menos ainda, produtos de imposição. Só podem ser o que sempre
foram para todas as nações que as alcançaram: uma conquista de seus povos. A comunidade
internacional pode e deve ajudar nesse processo, mas deve fazê‐lo sem arrogância.
Na América do Sul, vivemos um momento que é de consolidação das democracias.
256
As dificuldades econômicas são, como sempre foram, fator de instabilidade social e política.
Mas o amadurecimento dos povos de nossa região faz com que, em nossos dias, o horizonte
das alternativas políticas já não contemple soluções que não passem pelos canais
democráticos.
O Brasil tem procurado contribuir para fortalecer a estabilidade democrática da América do
Sul, e o faz com o espírito fraterno, respeitoso da autodeterminação dos povos e da soberania
nacional.
De nossa parte não haverá interferência, mas tampouco indiferença para com a sorte de
nossos irmãos. O Brasil continuará a estender sua mão, em favor do fortalecimento desse
patrimônio de liberdade. Mas a democracia não é apenas uma aspiração isolada de cada país.
É também uma tarefa a ser realizada nas relações entre os países.
Um mundo plural ‐ ou "multipolar", como às vezes se diz ‐ não é um desejo piedoso de
diplomatas ou acadêmicos idealistas. É uma exigência dos dias que correm. A negação da
pluralidade de pólos, pretensamente "realista", reduz as relações internacionais apenas à
expressão da força militar.
Para afirmar a democracia no plano internacional, é preciso reconhecer que a pluralidade de
visões é legítima e que há um espaço crescente a ser dado à ação diplomática.
Ser democrata no plano global é acreditar que todos têm direito a ser atores, que cada ator
tem suas razões e que, enfim, nem sempre a razão do mais forte é a mais forte das razões.
Muito obrigado.
Discurso do Presidente Luiz Inácio Lula da Silva na Reunião de Cúpula do Conselho de
Segurança das Nações Unidas
Senhor Luiz Inácio Lula da Silva
Presidente da República Federativa do Brasil
Nova York, NY, 14/09/2005
Senhor Presidente,
Desejo congratulá‐lo pela iniciativa de convocar esta reunião, em um momento crucial para o
futuro das Nações Unidas.
Intensificam‐se os esforços para fortalecer a ONU e seus órgãos principais.
Precisamos adequar o Conselho de Segurança às exigências políticas e econômicas de um
mundo em profunda transformação.
Esta é a terceira reunião de Cúpula do Conselho em 60 anos de existência.
Em 1992, os Chefes de Governo dos membros do Conselho se reuniram para celebrar o fim do
confronto Leste‐Oeste e os novos horizontes que se abriam para uma ação efetiva em favor da
estabilidade internacional.
Havia motivos para confiar no futuro da segurança coletiva.
Em 2000, o encontro de Cúpula coincidiu com atos de brutal violência movidos pela
intolerância racial e religiosa.
Buscava‐se aprender as lições das guerras civis na ex‐Iugoslávia e em Ruanda para recuperar a
capacidade da Organização de conter abusos maciços aos direitos humanos.
Hoje, estamos confrontados a ameaças cada vez mais complexas.
Os dois projetos de resolução sobre a mesa são uma tentativa de dar resposta a esses desafios.
Atos bárbaros de terrorismo continuam sendo perpetrados contra inocentes e indefesos.
O combate a esse flagelo exige firmeza.
Mas não o derrotaremos apenas pela repressão.
Precisamos evitar que o terrorismo crie raízes em meio à desesperança.
Temos de rejeitar o preconceito e a discriminação, sob qualquer disfarce ou pretexto.
No combate à violência irracional nossas melhores armas são a cultura do diálogo, a promoção
do desenvolvimento e a defesa intransigente dos direitos humanos.
Senhor Presidente,
257
O Conselho deve continuar a dedicar também amplo espaço em sua pauta às questões
africanas.
Nos 14 países africanos que já visitei e nos numerosos contatos em Brasília com lideranças do
Continente, pude comprovar o importante progresso institucional e econômico em curso na
região.
A decidida vontade política de suas lideranças de superar os conflitos do presente e lidar com a
herança de um passado de dependência tem sua melhor expressão na criação da União
Africana.
Esse exemplo merece ser acompanhado por todas as regiões que almejam integrar‐se de
forma soberana e pacífica na comunidade internacional.
No Haiti, a América Latina quer demonstrar que as Nações Unidas não estão condenadas a
simplesmente recolher os destroços dos conflitos que não pôde evitar.
A Missão de Estabilização das Nações Unidas está oferecendo um novo paradigma de resposta
aos desafios da solução dos conflitos e da reconstrução nacional.
Estamos contribuindo para a estabilização duradoura do país – sem truculências ou
imposições.
Estamos estimulando o diálogo e apoiando a reconstrução institucional e econômica.
O estabelecimento de uma Comissão de Construção da Paz mostra que a comunidade
internacional partilha essa mesma visão.
Uma melhor coordenação entre o Conselho de Segurança e o ECOSOC assegurará que
situações como as do Haiti ou da Guiné‐Bissau recebam tratamento adequado.
São crises profundas de sociedades que buscam reencontrar o caminho do desenvolvimento.
Nessas questões, a ação das Nações Unidas é insubstituível.
É o caso do conflito no Oriente Médio, onde questões políticas sensíveis precisam ser
equacionadas com credibilidade e transparência.
Com esse espírito, o Brasil apóia os esforços do “quarteto” para implementar o Mapa para a
Paz.
Senhor Presidente,
O projeto de reforma das Nações Unidas, hoje em discussão, é indissociável da atualização do
Conselho de Segurança.
Sua agenda cada vez mais ampla e ambiciosa implica responsabilidades diversifica‐das –
muitas vezes em áreas não previstas pela Carta.
Não é admissível que o Conselho continue a operar com um claro déficit de transparência e
representati‐vidade.
A boa governança e os princípios democráticos, que valorizamos no plano interno, devem
igualmente inspirar os métodos de decisão coletiva e o multilateralismo.
Temos diante de nós uma oportunidade histórica para ampliar a composição do Conselho de
forma eqüitativa.
Para a maioria dos países membros da ONU, isto significa aumentar o número de membros
permanentes e não permanentes, com países em desenvolvimento de todas as regiões nas
duas categorias.
Senhor Presidente,
Estou convencido de que não haverá um mundo com paz e segurança enquanto 1 bilhão de
pessoas forem oprimidas pela fome.
Insisto que este mal é a mais devastadora arma de destruição em massa.
A fome e a pobreza afetam a capacidade de trabalho, as condições de saúde, a dignidade e as
esperanças.
Desagregam famílias, desarticulam sociedades, enfraquecem a economia.
Desatam um círculo vicioso de frustração e indignidade, que é terreno fértil para a violência, as
crises e conflitos de toda ordem.
258
Reitero que o Brasil deseja que este Conselho continue a ser o foro multilateral por excelência
para a promoção da paz e da segurança internacional ‐ papel maior que lhe reserva a Carta das
Nações Unidas.
O Brasil assume plenamente suas responsabilidades na promoção das reformas necessárias ao
fortalecimento desta instituição, que deve estar no centro das complexas decisões que o
momento histórico exige.
Muito obrigado.
Discurso do Presidente da República, Luiz Inácio Lula da Silva, na abertura do Debate‐Geral
da 62ª Assembléia‐Geral das Nações Unidas
Senhor Luiz Inácio Lula da Silva
Presidente da República Federativa do Brasil
Nova York, 25/09/2007
Senhoras e Senhores Chefes de Estado e de Governo,
Senhor Srgjan Kerim, Presidente da Assembléia‐Geral das Nações Unidas,
Senhor Ban Ki‐moon, Secretário‐Geral das Nações Unidas,
Senhoras e Senhores delegados,
Cumprimento‐o, senhor Secretário‐Geral, por ter sido escolhido para ocupar posição tão
relevante no sistema internacional.
Saúdo sua decisão de promover debates de alto nível sobre o gravíssimo problema das
mudanças climáticas. É salutar que essa reflexão ocorra no âmbito das Nações Unidas.
Não nos iludamos: se o modelo de desenvolvimento global não for repensado, crescem os
riscos de uma catástrofe ambiental e humana sem precedentes.
É preciso reverter essa lógica aparentemente realista e sofisticada, mas na verdade
anacrônica, predatória e insensata, da multiplicação do lucro e da riqueza a qualquer preço.
Há preços que a humanidade não pode pagar, sob pena de destruir as fontes materiais e
espirituais da existência coletiva, sob pena de destruir‐se a si mesma. A perenidade da vida
não pode estar à mercê da cobiça irrefletida.
O mundo, porém, não modificará a sua relação irresponsável com a natureza sem modificar a
natureza das relações entre o desenvolvimento e a justiça social.
Se queremos salvar o patrimônio comum, impõe‐se uma nova e mais equilibrada repartição
das riquezas, tanto no interior de cada país como na esfera internacional.
A eqüidade social é a melhor arma contra a degradação do Planeta. Cada um de nós deve
assumir sua parte nessa tarefa. Mas não é admissível que o ônus maior da imprevidência dos
privilegiados recaia sobre os despossuídos da Terra. Os países mais industrializados devem dar
o exemplo. É imprescindível que cumpram os compromissos estabelecidos pelo Protocolo de
Quioto.
Isso contudo não basta. Necessitamos de metas mais ambiciosas a partir de 2012. E devemos
agir com vigor para que se universalize a adesão ao Protocolo. Também os países em
desenvolvimento devem participar do combate à mudança do clima. São essenciais estratégias
nacionais claras que impliquem responsabilidade dos governos diante de suas próprias
populações.
O Brasil lançará em breve o seu Plano Nacional de Enfrentamento às Mudanças Climáticas. A
Floresta Amazônica é uma das áreas que mais poderão sofrer com o aquecimento do Planeta,
mas há ameaças em todos os continentes: elas vão do agravamento da desertificação até o
desaparecimento de territórios ou mesmo de países inteiros pela elevação do nível do mar.
O Brasil tem feito esforços notáveis para diminuir os efeitos da mudança do clima. Basta dizer
que, nos últimos anos, reduzimos a menos da metade o desmatamento da Amazônia. Um
resultado como esse não é obra do acaso. Até porque o Brasil não abdica, em nenhuma
hipótese, de sua soberania e nem de suas responsabilidades sobre a Amazônia.
259
Os êxitos recentes são fruto da presença cada vez maior e mais efetiva do Estado Brasileiro na
região, promovendo o desenvolvimento sustentável – econômico, social, educacional e
cultural – de seus mais de 20 milhões de habitantes.
Estou seguro de que nossa experiência no tema pode ser útil a outros países. O Brasil propôs
em Nairobi a adoção de incentivos econômico‐financeiros que estimulem a redução do
desmatamento em escala global.
Devemos aumentar igualmente a cooperação Sul‐Sul, sem prejuízo de adotar modalidades
inovadoras de ação conjunta com países desenvolvidos. Assim, daremos sentido concreto ao
princípio das responsabilidades comuns, mas diferenciadas.
É muito importante o tratamento político integrado de toda a agenda ambiental. O Brasil
sediou a Conferência das Nações Unidas para o Meio Ambiente e o Desenvolvimento, a Rio‐92.
Precisamos avaliar o caminho percorrido e estabelecer novas linhas de atuação. Por isso,
proponho a realização, em 2012, de uma nova Conferência, que o Brasil se oferece para sediar,
a Rio + 20.
Senhoras e Senhores,
Não haverá solução para os terríveis efeitos das mudanças climáticas se a humanidade não for
capaz também de mudar seus padrões de produção e consumo. O mundo precisa,
urgentemente, de uma nova matriz energética. Os biocombustíveis são vitais para construí‐la.
Eles reduzem significativamente as emissões de gases de efeito estufa. No Brasil, com a
utilização crescente e cada vez mais eficaz do etanol, evitou‐se, nesses 30 últimos anos, a
emissão de 644 milhões de toneladas de CO2 na atmosfera.
Os biocombustíveis podem ser muito mais do que uma alternativa de energia limpa. O etanol e
o biodiesel podem abrir excelentes oportunidades para mais de uma centena de países pobres
e em desenvolvimento na América Latina, na Ásia e, sobretudo, na África. Podem propiciar
autonomia energética, sem necessidade de grandes investimentos. Podem gerar emprego e
renda e favorecer a agricultura familiar. E podem equilibrar a balança comercial, diminuindo as
importações e gerando excedentes exportáveis.
A experiência brasileira de três décadas mostra que a produção de biocombustíveis não afeta a
segurança alimentar. A cana de açúcar ocupa apenas 1% de nossas terras agricultáveis, com
crescentes índices de produtividade. O problema da fome no Planeta não decorre da falta de
alimentos, mas da falta de renda que golpeia quase um bilhão de homens, mulheres e
crianças. É plenamente possível combinar biocombustíveis, preservação ambiental e produção
de alimentos.
No Brasil, daremos à produção de biocombustíveis todas as garantias sociais e ambientais.
Decidimos estabelecer um completo zoneamento agroecológico do País para definir quais
áreas agricultáveis podem ser destinadas à produção de biocombustíveis. Os biocombustíveis
brasileiros estarão presentes no mercado internacional com um selo que garanta suas
qualidades sócio‐laborais e ambientais.
O Brasil pretende organizar em 2008 uma conferência internacional sobre biocombustíveis,
lançando as bases de uma ampla cooperação mundial no setor. Faço aqui um convite a todos
os países para que participem do evento.
A sustentabilidade do desenvolvimento não é apenas uma questão ambiental, é também um
desafio social. Estamos construindo um Brasil cada vez menos desigual e mais dinâmico. Nosso
país voltou a crescer, gerando empregos e distribuindo renda. As oportunidades agora são
para todos.
Ao mesmo tempo em que resgatamos uma dívida social secular, investimos fortemente em
educação de qualidade, ciência e tecnologia. Honramos o compromisso do Programa Fome
Zero ao erradicar esse tormento da vida de mais de 45 milhões de pessoas. Com dez anos de
antecedência, superamos a primeira das Metas do Milênio, reduzindo em mais da metade a
pobreza extrema no nosso País.
260
O combate à fome e à pobreza deve ser preocupação de todos os povos. É inviável uma
sociedade global marcada pela crescente disparidade de renda. Não haverá paz duradoura
sem a progressiva redução das desigualdades.
Em 2004, lançamos a Ação Global contra a Fome e a Pobreza. Os primeiros resultados são
animadores, principalmente a criação da Central Internacional de Compra de Medicamentos.
Meus amigos e minhas amigas,
A Unitaid já conseguiu reduções de até 45% nos preços dos medicamentos contra a Aids, a
malária e a tuberculose destinados aos países mais pobres da África. É hora de dar‐lhe um
novo impulso. Idéias que tanto mobilizaram nossos povos não podem perder‐se na inércia
burocrática.
Mas a superação definitiva da pobreza exige mais do que solidariedade internacional. Ela
passa, necessariamente, por novas relações econômicas que não penalizem os países pobres.
A Rodada de Doha da OMC deve promover um verdadeiro pacto pelo desenvolvimento,
aprovando regras justas e equilibradas para o comércio internacional.
São inaceitáveis os exorbitantes subsídios agrícolas, que enriquecem os ricos e empobrecem
os mais pobres. É inadmissível um protecionismo que perpetua a dependência e o
subdesenvolvimento. O Brasil não poupará esforços para o êxito das negociações, que devem
beneficiar sobretudo os países mais pobres.
Senhor Presidente, senhor Secretário‐Geral,
A construção de uma nova ordem internacional não é uma figura de retórica, mas um requisito
de sensatez. O Brasil orgulha‐se da contribuição que tem dado para a integração sul‐
americana, sobretudo no Mercosul.
Temos atuado para aproximar povos e regiões, impulsionando o diálogo político e o
intercâmbio econômico com os países árabes, africanos e asiáticos, sem abdicar de nossos
parceiros tradicionais.
Criamos – Brasil, África do Sul e Índia – um foro inovador de diálogo e ação conjunta, o IBAS.
Temos realizado inclusive projetos concretos de cooperação em diversos países, a exemplo do
que fizemos no Haiti e em Guiné‐Bissau.
Todos concordamos ser necessária uma maior participação dos países em desenvolvimento
nos grandes foros de decisão internacional, em particular o Conselho de Segurança das Nações
Unidas. É hora de passar das intenções à ação.
Notamos, com muito agrado, as recentes propostas do Presidente Sarkozy, de reformar o
Conselho de Segurança, com a inclusão de países em desenvolvimento. Igualmente necessária
é a reestruturação do processo decisório dos organismos financeiros internacionais.
Senhor Presidente,
As Nações Unidas são o melhor instrumento para enfrentar os desafios do mundo de hoje. É
no exercício da diplomacia multilateral que encontramos os meios de promover a paz e o
desenvolvimento.
A participação do Brasil, em conjunto com outros países da América Latina e do Caribe, na
Missão de Estabilização no Haiti simboliza nosso empenho de fortalecer o multilateralismo. No
Haiti, estamos mostrando que a paz e a estabilidade se constróem com a democracia e o
desenvolvimento social.
Senhoras e Senhores,
Ao entrar neste prédio, os delegados podem ver uma obra de arte presenteada pelo Brasil às
Nações Unidas há 50 anos. Trata‐se dos murais “Guerra” e “Paz”, pintados pelo grande artista
brasileiro Cândido Portinari. O sofrimento expresso no mural, que retrata a guerra, nos remete
à alta responsabilidade das Nações Unidas de afastar o risco de conflitos armados.
O segundo mural revela que a paz vai muito além da ausência da guerra. Pressupõe bem‐estar,
saúde e um convívio harmonioso com a natureza. Pressupõe justiça social, liberdade e
superação dos flagelos da fome e da pobreza.
261
Não é por acaso que o mural "Guerra" está colocado de frente para quem chega, e o mural
“Paz”, para quem sai. A mensagem do artista é singela, mas poderosa: transformar aflições em
esperança, guerra em paz, é a essência da missão das Nações Unidas.
O Brasil continuará a trabalhar para que essa expectativa tão elevada se torne definitivamente
realidade.
Muito obrigado.
Discurso pronunciado pelo Ministro Celso Amorim, em sessão do Conselho de Segurança das
Nações Unidas sobre Aspectos Civis da Gestão de Conflitos e a Construção da Paz
Embaixador Celso Luiz Nunes Amorim
Ministro de Estado das Relações Exteriores
Nova York, EUA, 22/09/2004
(Tradução para o português do original em espanhol)
Desejo felicitar meu amigo, o Ministro das Relações Exteriores da Espanha, Miguel Ángel
Moratinos, por promover este oportuno debate sobre os aspectos civis da gestão de conflitos
e da construção da paz.
O Presidente Lula abriu o debate geral da 59a Assembléia Geral com uma ampla apresentação
da percepção que o Brasil tem dos desafios mais urgentes do mundo de hoje. O ponto central
dessa visão é a noção de que o fundamento da paz é a justiça social. Como disse em suas
palavras, "um mundo onde a fome e a pobreza prevalecem não pode ser um mundo pacífico".
Não posso deixar de expressar o apoio enfático do Brasil à intervenção do Secretario Geral
ontem na Assembléia Geral sobre a importância fundamental do Estado de Direito. O direito, e
não o poder, deve ser o ordenador da convivência social, tanto no contexto doméstico quanto
no internacional.
A experiência recente nos oferece vários exemplos de conflitos em países marcados por níveis
muito baixos de desenvolvimento, que ilustram os limites de uma perspectiva puramente ou
preponderantemente militar da construção da paz. Sem um enfoque mais amplo, que
incorpore variáveis econômicas e sociais ‐ e que esteja centrado no bem estar dos civis –
fracassaremos na promoção de soluções duradouras.
As Nações Unidas devem desenvolver instrumentos e mecanismos que traduzam essa
consciência em estratégias concretas. O artigo 65 da Carta nos abre una janela para aumentar
a cooperação entre o Conselho de Segurança e o ECOSOC, ampliando o escopo de la
cooperação multilateral para a gestão de conflitos e a construção da paz. Não esqueçamos que
o ECOSOC – e não o Conselho de Segurança – é o órgão da Carta com responsabilidade em
assuntos relativos ao desenvolvimento social. E do que mais falamos quando nos referimos aos
esforços de construção da paz duradoura – ou reconstrução – se não é do desenvolvimento
social e econômico?
No passado, tentamos utilizar a base que proporciona esse dispositivo da Carta em situações
como as do Burundi e de Guiné‐Bissau. No entanto, enquanto nossos esforços demonstraram
ser experiências úteis, não representaram uma resposta suficientemente articulada frente às
demandas enfrentadas em muitas partes da África, do Oriente Médio, em Timor Leste, na
violência crônica no Haiti, entre outras.
O Brasil aceitou a responsabilidade de comandar a Missão das Nações Unidas para a
Estabilização do Haiti – com uma forte participação de outros países latino‐americanos,
inclusive Chile – segundo o claro entendimento de que a paz dessa nação irmã porém à
margem de nosso continente requer um compromisso de longo prazo da comunidade
internacional, não só para a paz e segurança, como também para progresso sócio‐econômico.
A ONU falhou junto ao povo do Haiti no passado ao interpretar seu papel de maneira
demasiadamente estrita. Desta vez, paralelamente aos esforços para assegurar um ambiente
mais seguro, temos que por em marcha um programa sustentável para ajudar a sociedade do
262
Haiti nas esferas política, social e econômica. São tarefas que extrapolam o âmbito do
Conselho de Segurança. Requerem a participação de outras agências e órgãos.
Temos que tirar proveito do atual ambiente favorável a reformas na ONU para começar a
conceber novas maneiras para enfrentar tais situações. Devemos assegurar a continuidade
entre ações de prevenção, esforços de manutenção da paz e a etapa pós‐conflito de
construção da paz. Temos também que enfrentar a questão de duração e intensidade desses
esforços. Naturalmente, há que se deslocar rapidamente todas as tropas requeridas pelas
resoluções do Conselho de Segurança. Vemo‐nos confrontados com essa necessidade no Haiti
nesse exato momento.
No entanto, é particularmente importante proporcionar todos os recursos humanos,
financeiros e materiais para a reconstrução física e institucional. Apreciamos a generosidade
dos países doadores e instituições financeiras internacionais, porém estas devem se coordenar
com os organismos multilaterais, cuja competência primária em definir o quadro geral deve
ser reconhecida.
Falar dos aspectos civis da manutenção da paz equivale a voltar a atenção para a importância
fundamental de restabelecer a dignidade humana, muitas vezes a primeira vítima de situações
de conflito. Posso bem imaginar que as discussões hoje vão estabelecer algumas
especificidades técnicas dos esforços de manutenção da paz e sua interseção com a agenda
humanitária, o papel das organizações regionais e outros. São todos aspectos relevantes e
merecem nossa consideração.
De minha parte desejo insistir sobre a necessidade de desenvolver novas e melhores
ferramentas para enfrentar os problemas estruturais que estão na raiz das tensões que
conduzem à violência e ao conflito. Pobreza, doença, ausência de oportunidades,
desigualdade. Essas são algumas das causas de conflitos, particularmente aqueles no interior
dos países, que cada vez mais, lamentavelmente, são parte de nossa agenda.
De acordo com as práticas prevalecentes, uma vez que os membros do Conselho de Segurança
considerem que um ponto da agenda não mais representa uma ameaça à paz, a situação é
colocada em um limbo, sem um acompanhamento intergovernamental dos processos de
reconciliação e reconstrução. Esta lacuna em nossos métodos pode fazer com que recomece o
conflito, como demonstra o trágico exemplo do Haiti.
Senhor Presidente,
Não importa quão sofisticadas sejam as nossas ações militares de manutenção da paz,
somente saberemos enfrentar eficazmente os desafios da segurança que se apresentam se
integrarmos os elementos políticos, sociais e econômicos em nossas estratégias. Com esse fim,
podemos extrair inspiração do disposto no Artigo 65, redigido em 1945, que evoca a absoluta
necessidade de se enfrentar questões de segurança em seu contexto sócio‐econômico e nos
brinda, inclusive, com orientação sobre a maneira de fazê‐lo do ponto de vista institucional.
Muito obrigado.
Audiência do Ministro das Relações Exteriores, Embaixador Celso Amorim, em Sessão
Conjunta das Comissões de Relações Exteriores e Defesa Nacional do Senado Federal e da
Câmara dos Deputados
Embaixador Celso Luiz Nunes Amorim
Ministro de Estado das Relações Exteriores
Brasília, Distrito Federal, 02/12/2004
Ministro CELSO AMORIM – Obrigado, Senhor Presidente, Senador Eduardo Suplicy; Senhora
Deputada Maninha; Senhor Deputado Doutor Rosinha; Senhores Senadores, Líderes, Senhores
Deputados, para mim é, naturalmente, sempre uma honra vir ao Congresso Nacional discutir
temas que são de grande relevância para a política externa brasileira.
São três os assuntos, efetivamente muito diferentes entre si, para os quais Vossa Excelência
me convocou. O Haiti é um tema típico de política externa envolvendo aspectos de segurança
263
e os outros dois são temas de política comercial, mas ainda assim bem diferentes: a questão
da União Européia e a da China. Eu me proponho a falar um pouco sobre o Haiti, inicialmente,
porque acho que é uma questão, digamos, talvez mais palpitante, a curto prazo, e mencionarei
os outros dois rapidamente. Naturalmente, estarei aberto às perguntas que sejam feitas.
A minha tendência é sempre ser um pouco prolixo, Senhor Presidente, de modo que Vossa
Excelência se sinta à vontade para interromper. É porque sempre há muito mais a falar do que
o tempo de que se dispõe.
Mas eu começo pela questão do Haiti, evitando também fazer uma cronologia de todos os
acontecimentos. Naturalmente, se houver curiosidade sobre algum aspecto mais do passado,
eu estarei pronto a tentar responder. Mas como eu estive aqui no Senado, na Câmara e
também com os Líderes falando sobre esse tema, na época em que se tratou da aprovação do
envio de tropas, juntamente com o Ministro José Viegas, eu creio que poderia, digamos, tentar
abordar uma visão da situação atual e, naturalmente, se for necessário fazer algum recuo no
tempo, para se entender melhor algum aspecto, evidentemente eu procuraria fazer.
O tema do Haiti, evidentemente, nunca esteve tão presente na nossa política externa. É quase
óbvio dizer isso. A presença dos mil e duzentos soldados brasileiros lá não só é uma indicação
disso, mas também é um motivo adicional para que assim ocorra.
No momento, não vou me ater, de forma específica, sobre os problemas de segurança,
embora todos os problemas sejam ligados, vou me referir a eles também até porque o General
Heleno terá ocasião de falar mais especificamente sobre aspectos específicos da questão de
segurança.
Mas eu queria dizer que, desde o início, quando nos envolvemos nessa questão do Haiti e
contamos aqui com a compreensão e o apoio do Congresso Nacional, desde o início o que o
Governo do Presidente Lula tinha em mente era uma ação de uma natureza diferente da que
foi feita no passado por outros países que estiveram presentes no Haiti. Diferente no sentido
de possibilitar uma efetiva regeneração do tecido político e, ao mesmo tempo, um
lançamento, porque não se pode nem falar de relançamento do desenvolvimento econômico
no Haiti.
É claro que tudo isso pode parecer excessivamente pretensioso, dadas as condições do Haiti. E
é natural que esses objetivos sejam conseguidos de maneira gradual e parcial e não se pode
ter a ilusão de que se conseguirão todos esses objetivos a curto prazo.
Penso que, relatando um pouco o que temos feito, os senhores verão que há uma mobilização
intensa hoje da comunidade internacional, talvez num nível nunca visto antes, para completar
esses outros aspectos.
Isso se revelou inclusive agora na discussão da prorrogação do mandato da Minustah na ONU,
o que acabou sendo por seis meses, mas desejávamos que fosse por um período maior, mas,
naturalmente, poderá e será prorrogado, pela minha experiência nas Nações Unidas. Mas se
nota que o Brasil e outros países em desenvolvimento, no caso, o Chile, que também está
muito envolvido, são países que têm realmente uma visão mais marcadamente voltada para a
reconciliação política e para o crescimento econômico. Isso ocorre, em parte, pela nossa
própria índole; em parte, porque não temos nenhum passado colonial ou um passado de
outras ações no Haiti, que, digamos, cria uma hipoteca ou uma visão antagônica da população
do Haiti. Em parte também porque não temos nenhum “parti pris” por nenhuma das correntes
políticas no Haiti e toda a nossa visão é baseada no desejo de que todas essas correntes
participem do processo.
E também porque temos uma concepção, que é verdadeira e que agora tem uma chance de
ser posta em prática, de que os problemas de segurança, que existem, indiscutivelmente, no
Haiti, não podem ser resolvidos isoladamente da situação política nem isoladamente da
situação humanitária, da situação social, da situação econômica.
264
Em suma, como foi dito aqui por mim, pelo Ministro Viegas e pelo Presidente Lula, essa
presença brasileira no Haiti tem uma natureza diferente das presenças que anteriormente lá
estiveram.
E talvez isso tenha até causado, em parte, em algum momento, alguma decepção, seja ao
governo provisório, seja a outras potências externas que viam essa função da missão de paz
mais como uma missão de polícia, quase. E não é essa a nossa visão. O General Heleno terá
ocasião de falar como tem agido. Os depoimentos que tenho recebido são muito positivos
sobre a ação dos militares brasileiros e de outros militares envolvidos, como os militares
argentinos, que colaboraram de uma maneira extraordinária durante as recentes enchentes no
Haiti. Essa é a concepção.
O que temos procurado fazer? Poder‐se‐ia argumentar: o Brasil poderia ter defendido essa
concepção sem mandar os mil e duzentos soldados. Creio que nós não teríamos autoridade
moral para fazer a mobilização que estamos fazendo hoje se não houvesse essa presença ali.
Evidentemente, não quero voltar a todos os detalhes que conversei antes aqui, mas vale
lembrar que essa operação é totalmente diferente de outras que algumas vezes foram usadas
como comparação, por dois motivos: primeiro, ela é não só aprovada pelo Conselho de
Segurança como constituída pelas Nações Unidas. É uma operação de estabilização – assim é o
nome – das Nações Unidas; não é nem uma força criada à margem das Nações Unidas, nem
uma força autorizada pelas Nações Unidas composta de maneira unilateral ou com mandato
exercido por outros países. Então, ela é uma força das Nações Unidas.
O Brasil tem um apego muito grande ao sistema multilateral e isso completa, digamos, a razão
das motivações. Esse é um caso que se verifica no nosso Continente, com um país que tem
uma composição étnica muito parecida com a nossa e é o terceiro em população negra do
Continente, com raízes culturais semelhantes à nossa, como se vê na pintura, se ouve na
música e também no amor ao futebol, para mencionar outro aspecto que ali esteve presente.
Então, seria muito importante que o Brasil, em um caso como esse, demonstrasse a sua
disposição de participar. E é o que nós temos feito.
Bem, a nossa ação política se tem desenvolvido em relação a três aspectos principais que são
inter‐relacionados: a questão da estabilidade e da ordem, a questão política e da reconstrução
institucional – digamos assim – e a questão econômica, humanitária e social.
O tema Haiti tem ocupado uma parcela importante do tempo das conversas internacionais,
tanto do Presidente Lula quanto minha e de outros funcionários que participam de discussões
sobre o tema. Foi objeto de conversas com o Presidente Jacques Chirac; com o Secretário de
Estado Colin Powell; com o Primeiro‐Ministro do Canadá, que esteve aqui recentemente; com
o Presidente do Governo da Espanha e com o Ministro da Espanha mais extensamente. E
também foi levada a fóruns importantes.
O Grupo do Rio, que reúne dezenove países latino‐americanos e do Caribe, aprovou uma
resolução muito importante de apoio às ações no Haiti, com essa ótica sempre nos três pilares.
Também a Conferência de Cúpula Ibero‐Americana, que se realizou recentemente em Costa
Rica, aprovou uma decisão de teor muito semelhante. Então, o tema está sempre presente em
conversas minhas e do próprio Presidente da República com o Secretário‐Geral da ONU.
Em relação ao primeiro pilar, o da estabilidade e segurança, que, repito, está ligado aos outros
mas tem a sua dimensão própria, o fundamental é completar as tropas que estavam previstas.
O número de que se dispõe hoje é muito próximo do que havia sido previsto. Há mais de seis
mil integrantes das tropas. Pelo menos são os dados que eu tenho e seria até interessante
conferir com o General Heleno, porque às vezes há uma pequena disparidade entre os
números das pessoas que foram mandadas, mas ainda não chegaram. Enfim, estamos
próximos dos seis mil e contaremos com seis mil e duzentos soldados até dezembro, um
número bastante próximo do que as Nações Unidas previram.
É possível que seja necessário mais. Fala‐se agora, por exemplo, em um batalhão de
engenharia, adicional a esses seis mil e duzentos. Mas durante muito tempo nós estivemos
praticamente sozinhos, inicialmente, e depois somente com a Argentina e o Chile. Portanto,
265
com um efetivo muito inferior àquele que era previsto. Isso, naturalmente, dificultou ações
que têm relação com a estabilidade e a ordem.
Então, essa é uma das dimensões. Insistimos muito. Foi objeto de conversas com todas as
pessoas a que me referi, muito especialmente com o Secretário‐Geral da ONU, com quem eu
estive e falei por telefone. E se logrou, finalmente. O nosso temor é porque esses assuntos,
muitas vezes – tendo vivido na ONU, sei como isso se passa –, saem do radar. Quer dizer, entra
um outro assunto, não que seja menos importante, mas entra o Sudão, digamos, com a
questão de Dafur; ou entra um outro tema. Não é o caso agora, mas no passado foi Serra Leoa.
Então você sai do radar; nunca chega a completar a presença das tropas em uma determinada
situação, e já está tratando de uma seguinte. Mas felizmente nós conseguimos. Graças a uma
intensa ação diplomática que contou com o apoio desses países que eu mencionei.
Agora, é claro que nós não resolveremos o problema de paz e segurança no Haiti só com
presença militar. Primeiro que, como bem disse o General Heleno, as nossas forças não são de
polícia. Claro que, eventualmente, têm que apoiar alguma ação de polícia, porque há um
aspecto ligado à posse e ao uso das armas que tem que ser coibido. Mas elas não são forças de
polícia, e sim forças de estabilização, para a qual se pressupõe que haja o mínimo de
entendimento político entre as várias correntes políticas no Haiti. E isso, desde o início, foi algo
muito precário.
Evidentemente, o próprio governo provisório não é representativo de todas as forças políticas,
o comitê eleitoral não é representativo de todas forças políticas, em parte porque os
integrantes do Lavalás, inicialmente, não quiseram participar, no caso do conselho eleitoral,
mas depois também não houve interesse.
Segue havendo prisões de opositores do governo provisório, sobretudo do Lavalás, o que,
evidentemente, torna impossível uma reconciliação que possa caminhar em paralelo com o
esforço de estabilização, do ponto de vista de segurança.
Por essas razões, nós enviamos sucessivamente várias pessoas ao Haiti com missões algo
diversas. Além do nosso Embaixador, sempre muito ativo, mas enviei o Embaixador Felício,
que trabalha no meu gabinete e, por uma coincidência histórica, tinha sido colega do Primeiro
Ministro Latortue, na Costa do Marfim e em Viena. O Latortue, antes de se aposentar, era
funcionário internacional.
Então havia um bom diálogo. Isso foi logo depois de uma declaração crítica do Latortue em
relação a Minustah, quando chegou a dizer, depois desmentiu, romantizou, então vamos dizer
de uma maneira mais cuidadosa, porque também não tenho certeza das palavras dele.
Chegou‐se a dizer que ele tinha dito que preferiria ter tropas americanas a tropas brasileiras
ou argentinas ou chilenas da Minustah. Ele depois desmentiu. Disse que não era intenção dele,
que tinha sido mal interpretado.
Outra preocupação nossa é dar apoio político às nossas tropas, para que elas possam agir no
melhor ambiente possível. Então essa foi a missão do Embaixador Felício.
Temos trabalhado sempre em proximidade com o representante do Secretário‐Geral da ONU,
que é o Embaixador chileno Juan Gabriel Valdez, que é o Chefe‐Geral da Minustah, que é civil –
o seu componente militar é comandado por um brasileiro. Então, sempre em contato com ele,
percebendo que havia interesses em ter pessoas com conhecimento em negociação política, e
pensando em pessoas que pudessem ter esse conhecimento, e, ao mesmo tempo, dispor de
algum tempo e também ter um bom conhecimento de francês, que, no caso, é indispensável
para esse trabalho, o Professor Ricardo Seitenfus, que está aqui e vai participar de uma outra
audiência, também foi enviado, não como um enviado do Brasil para atuar no Haiti, mas como
alguém para colaborar com os esforços das Nações Unidas no Haiti. É possível que ele continue
até o ano que vem, já como totalmente de contratado pelas Nações Unidas. Então, essa é
outra preocupação.
Mais recentemente, como devem ter lido no jornal, o Presidente Lula mandou também o
Conselheiro Diplomático Marco Aurélio Garcia, que esteve lá e manteve contato com todas as
forças políticas do Haiti.
266
Todos esses contatos têm sido muito importantes para termos uma idéia mais clara do que se
passa lá, mas eles não se limitaram a esses.
Ainda no plano mais político, digamos assim, tivemos um diálogo importante com o Primeiro‐
Ministro Latortue, nessa reunião de Costa Rica, da Cúpula Ibero‐Americana, à qual o
Presidente Lula não pôde ir, devido ao grande número de visitantes estrangeiros, em
novembro, aqui em Brasília, e representei Sua Excelência.
Houve um diálogo interesse, porque ele fez uma exposição bastante positiva, talvez
influenciado pela audiência, no sentido de que está pronto. Primeiro, disse que as eleições
marcadas para o início do ano que vem serão realizadas. Em segundo lugar, que nem ele nem
outro membro do Governo integrará o governo que se seguir a essas eleições. Portanto,
considera a tarefa dele encerrada com o Governo provisório. Em terceiro ‐ isso é muito
importante e procurarei reproduzir, tanto quanto possível, as palavras que ele usou ‐, que ele
estaria disposto a fazer um diálogo amplo com todas as forças políticas, inclusive, – e cito,
creio –, com os seguidores de Aristide. Essas foram as palavras que ele usou. Em outro
momento, usou a palavra Lavalas, como fazendo parte desse diálogo. Isso foi muito
importante.
Vários Presidentes e representantes de Presidentes ali falaram. Dado o envolvimento do Brasil
no Haiti, fui o primeiro a falar e procurei sublinhar, novamente, os pontos que ele havia
destacado, que são importantes, e acrescentei dois outros que, a meu ver, são também
importantes. Um deles tem relação mais direta com esse aspecto político que estou
comentando agora, e o outro, com o aspecto humanitário e econômico, que deixarei para o
final. Contudo, repito, todos ligados.
Com relação ao aspecto político, chamei a sua atenção, em função de outras dificuldades
existentes no passado com outros países do Caribe ‐ dificuldades de parte a parte, por várias
razões, sobretudo com o Caribe britânico, que tinha ligações mais próximas com o Governo do
Aristide, em alguns casos –, e procurei dizer‐lhe que era muito importante que o Governo
Provisório tivesse um entendimento com os países do Caribe e que, como se trata de um país
que não é enorme nem continental – na minha opinião, isso vale até para países grandes, mas,
no caso, um país não vive fora da sua região ‐, seria fundamental que ele tivesse um bom
entendimento com os países da Caricom, ao que ele assentiu. Inclusive disse‐lhe claramente
que eu estava saindo de lá para me encontrar com Ministros da Caricom, que se reuniam
especialmente para esse fim, em Barbados. Ele foi gentil e cordial, tendo mandado não apenas
lembranças, mas também palavras positivas para a Ministra do Exterior de Barbados, que
havia estado no Brasil, coincidentemente, junto com o Secretário de Estado Collin Powell, há
um mês e meio ou dois meses.
Também procurei fazê‐lo ver um ponto delicado que existe em toda relação desse tipo e que
se relacionará com o terceiro pilar – ao que vou me dedicar em seguida. O terceiro ponto tem
relação com a questão da administração dos recursos da comunidade internacional, porque
essa comunidade, teoricamente ou na prática – porque não ainda houve o desembolso –, já
comprometeu recursos da ordem de US$ 1,2 bilhão em relação ao Haiti, quantia bastante
elevada, superior às estimativas iniciais em relação às necessidades imediatas do Haiti, que
eram da ordem de pouco mais de US$ 900 milhões. Então, é um compromisso muito grande.
Além dos emperramentos burocráticos que existem sempre em todas as entidades que lidam
com esse tema, há também questões políticas e preocupações com a boa gestão dos recursos.
Assim, para que haja confiança na boa gestão dos recursos, é preciso que o Governo do Haiti ‐
até mesmo porque é provisório e, embora tenha legitimidade razoável, não é um Governo que
veio do povo – aceite algum nível de co‐gestão desses recursos por parte da comunidade
internacional.
Evidentemente, isso não é fácil, porque se tem que trabalhar dos dois lados. Há dificuldades,
às vezes, até de se conseguir que representantes do Pnud vão para lá. Por outro lado, em cada
país há sempre o desejo forte de defender a sua soberania, o que é natural, mas há situações
em que é preciso entender que uma certa dose de co‐gestão dos recursos é indispensável,
267
para que haja confiança dos doadores e para que os recursos possam chegar ao país em
questão.
Essas foram as duas colocações que fiz para o Latortue, depois de sublinhar as que ele próprio
havia feito e que eram positivas. E, como já mencionei, eram do diálogo inclusivo. Aliás, ele foi
muito franco e novamente mencionou problemas de corrupção no Haiti como sendo muito
graves. Disse que era preciso a ajuda da comunidade internacional para a reconstituição
institucional. Enfim, ele fez uma apresentação muito franca e sincera. Precisamos garantir que
os comportamentos práticos, não só do Primeiro‐Ministro, mas de outros membros do
governo, continuem na linha anunciada por ele, com esses complementos que procurei fazer.
Antes de passar ao terceiro pilar, rapidamente mencionaria a reunião de Barbados como algo
extremamente importante, porque, em primeiro lugar, penso que é a primeira vez que o Brasil
mantém um diálogo dessa profundidade política com países do Caribe – alguns são muito
pequenos, mas têm elites altamente bem formadas, com pessoas de grande capacidade
intelectual e técnica. Em geral, a maior parte deles são democracias razoavelmente estáveis –
é o caso de Barbados, de Trinidad e Tobago e da Guiana – que têm realizado eleições
regularmente. Esses países têm uma influência muito grande na região, até porque, pela
composição étnica, têm uma presença natural no Haiti maior do que a de outros, que podem
ser vistos, ainda que de maneira indireta, como reflexos do antigo colonizador ou de outras
potências que lá estiveram.
O Caribe é muito importante. Por isso, não só falamos com o Latortue, mas tivemos a
preocupação, o tempo todo, de manter um contato estreito com o Caribe. Ficamos muito
gratificados porque, poucos dias antes dessa reunião com a Ministra de Barbados e com vários
outros ministros do Caribe, a reunião de chefes de Governo do Caricom emitiu uma nota em
que eles, independentemente das críticas que possam ter feito no passado à maneira como foi
deposto o Aristide, diziam‐se dispostos a trabalhar com a comunidade internacional e a
Minustah, sob a liderança do Brasil – essa palavra aparece claramente na declaração dos
chefes de Estado –, para cooperar com o futuro do Haiti não só politicamente, mas também
em projetos específicos em que eles estão empenhados, como na parte eleitoral e outras. Não
preciso entrar em muitos detalhes agora.
Essa reunião foi extremamente importante, porque pudemos confirmar essa disposição
positiva, um desejo efetivo de ter essa colaboração, naturalmente sempre sujeita a uma
conversa com o General Heleno – ainda não tive ocasião de falar diretamente com ele –,
oferecendo, se for necessário, segurança para o representante do Caricom, cuja presença é
fundamental, pois não se conseguirá fazer um diálogo político envolvendo todas as partes se o
Caricom não estiver presente. O Caricom é a garantia, do ponto de vista internacional, de que
o Lavalas será ouvido e participará das discussões.
Outra coisa interessante que percebi lá – mais uma vez digo que foi uma percepção minha,
pois não compete a mim pôr palavras na boca de ninguém – é que atualmente há uma
percepção que, de fato, é fundamental que o Lavalas participe, que os partidários do Aristide
participem, mas isso não implica necessariamente a volta do Aristide nem neste momento,
nem em algum momento futuro. Isso é algo que tem de ficar entre colchetes – é como
dizemos na diplomacia quando estamos negociando textos. Refiro‐me a isso porque houve
antes alguma interpretação de que o Brasil poderia enviar um emissário – penso que há essa
possibilidade sempre –, mas, se o fizermos, será para tratar de aspectos humanitários ou até
mesmo para fazer um apelo ao Aristide que contenha seus seguidores, pelo menos os mais
radicais, já que outros estarão participando do processo político.
Queria rapidamente passar para a vertente humanitária, econômica e social, pois, na
realidade, as três se compõem. Cito um exemplo de como as duas primeiras se compõem.
Desarmamento. Ontem mesmo o Colin Powell passou por lá, aliás, creio que teve o dissabor de
ouvir algum tiroteio. Mas não terá sido um atentado a ele, pelo que deduzi. De qualquer
maneira, houve um tiroteio próximo ao Palácio que foi objeto de resposta. Graças a Deus,
aparentemente, ninguém foi ferido, mas demonstra‐se que é uma situação que tem certa
268
instabilidade. Ele mencionou o desarmamento – vi pela televisão – como um aspecto
importante.
Todos concordamos, creio, que o desarmamento tem um aspecto fundamental no Haiti. Há
uma dificuldade, aparentemente legal, ou até mesmo constitucional: os haitianos teriam
direito de ter arma, desde que nas suas casas. É um complicador. Mas, independentemente
dessa complicação, não há possibilidade de se fazer desarmamento sem, digamos, algum
diálogo político porque para isso seria preciso uma força de 100 mil homens que estivessem
dispostos a prender, matar em grande quantidade. Não é o nosso caso, não queremos isso,
nem a força que existe lá permite que isso ocorra. Nem sequer a força que estava lá antes da
nossa, força de intervenção – como foi chamada a força composta pelos Estados Unidos e
outros países –, fez isso tampouco porque sabem que é complexo. Então não se pode esperar
que 6 mil homens numa força de estabilização vão proceder a um desarmamento, a não ser
num contexto político em que várias correntes políticas criem um mínimo de confiança e
percebam que é no interesse recíproco e de todos se desarmarem. Não é fácil, não é uma
coisa que provavelmente vá ocorrer a curtíssimo prazo, mas é algo que tem que estar no
horizonte, conjugado com esse aspecto político.
Com relação ao aspecto econômico e humanitário, o Estado brasileiro enviou uma missão de
cooperação técnica com mais de 20 pessoas dos mais variados órgãos. Vários órgãos têm
voltado ao Haiti depois disso, incluindo Embrapa, saúde, defesa civil, desenvolvimento rural
etc. Desenvolvimento rural, estou dizendo, não só o lado tecnológico, como a Embrapa, mas
também o lado de posse da terra, de exploração da terra. Muito amplo. Daí nasceram vários
projetos, mas é claro que sabemos que os recursos brasileiros são relativamente limitados.
Serão assinados dois projetos muito brevemente – não sei se o embaixador já estará de volta
ao posto, creio que sim, também o Embaixador Rui Nogueira, que tem coordenado toda a
parte de cooperação, poderá estar lá – um na área de castanha de caju, se não me engano, e o
outro na área de mandioca. Foram pedidos deles mesmos, ambos com a Embrapa, entendo
eu.
Então já há duas ocorrências concretas e há outras que estão sendo trabalhadas na área de
saúde, de combate à Aids. Há também um projeto saído da nossa área cultural; tivemos que
operar com certa largueza, mas esperemos que seja compreendido pelos órgãos que
controlam a contabilidade, como divulgação cultural – era onde tínhamos recursos. Estamos
fazendo material escolar, cadernos e lápis para serem entregues à população pobre do Haiti,
com o mapa do Brasil e o do Haiti, com as duas Bandeiras, de modo que é efetivamente uma
divulgação cultural, mas, ao mesmo tempo, é algo extremamente útil não só para as
populações e as crianças do Haiti, mas também para que a nossa tropa que está lá apareça não
só com ações que possam ser vistas como de natureza repressiva, mas também como ação
positiva, o que, aliás, a tropa tem feito já em vários outros setores também.
Além desses projetos que não são baratinhos, são altos para os nossos recursos, US$300 mil,
US$400 mil em alguns casos, US$200 mil em outros, para os recursos de que o Itamaraty
dispõe, que são ridiculamente pequenos, como V. Exªs conhecem; são altos, mas, para
projetos de maior envergadura, não nos permitem que façamos sozinhos. Então fizemos um
grande trabalho, intenso, junto ao Banco Mundial, ao Banco Interamericano, à União Européia
e a outros países doadores para que recursos possam ser enviados ao Haiti. E temos sido
relativamente bem‐sucedidos. Com o Banco Mundial, há dois projetos. Um, aliás, depende dos
Senadores para se concretizar, e eu ficaria extremamente grato se conseguíssemos.
Espero que de hoje para amanhã, ou se possível hoje, nós consigamos mandar para o Senado
um pedido de autorização para um empréstimo‐ponte ao Haiti. Eu vou explicar rapidamente o
que isso significa. Depois, naturalmente, vamos pedir autorização e todas as cifras serão
detalhadas.
O Banco Mundial tem uma quantia de R$150 milhões aproximadamente para emprestar ao
Haiti, dos quais R$60 milhões poderiam ser emprestados imediatamente. Mas como o Haiti é
devedor do Banco Mundial e está inadimplente, não pode obter o empréstimo, porque as
269
regras do Banco Mundial não o permitem. Então, com o dinheiro de que o Haiti dispõe hoje –
talvez proveniente de outros doadores –, e com o empréstimo‐ponte, se pagaria a quantia
mínima que permitiria desencadear os empréstimos. E o Brasil não teria nenhum risco porque
a primeira parcela do desembolso seria justamente para pagar o nosso adiantamento, digamos
assim, do empréstimo‐ponte.
Então, mediante essa ação financeira conjugada, com a qual o Ministério da Fazenda está de
acordo – aliás, lá foi desenvolvido todo o detalhe técnico – nós conseguiríamos liberar
imediatamente uma quantia importante para o Haiti, na ordem de R$25 a R$30 milhões,
líquidos, depois de o Brasil ter sido ressarcido do seu empréstimo‐ponte.
Isso é algo de grande importância. Não é uma medida provisória; é um pedido de autorização
ao Senado. Contamos, e muito, com a compreensão dos Senadores para que isso possa
ocorrer logo. Se isso não ocorrer até 6 de janeiro, quando haverá uma reunião da Diretoria do
Banco Mundial, só acontecerá em março. Dois meses para um país pobre, como o Haiti... A
Deputada Maninha esteve lá e sabe como as coisas acontecem.
Esse é um aspecto.
Há vários projetos do Banco Mundial que são a fundo perdido, mas eles exigem contrapartida
de países. E nós estamos discutindo dois deles com o Banco Mundial: um, na área de merenda
escolar; o outro, recolhimento de lixo, se não estou enganado. O de merenda escolar é o mais
imediato e o Brasil entraria com recursos próprios da Agência Brasileira de Cooperação do
Itamaraty, também, da ordem de US$300 mil mais ou menos e o Banco Mundial entraria com
mais US$700 mil. Então, você completaria um projeto de US$1 bilhão.
Algo parecido nós queremos fazer com o recolhimento de lixo. Estamos conversando com
outros países. Na ONU há um fundo, que é administrado pelo Brasil, África do Sul e Índia, que
também poderia ser usado para um desses projetos. Aí também a importância do diálogo com
o Caribe ressalta. Ontem conversei com a Ministra da África do Sul, que estava em viagem,
sobre a possibilidade de usarmos esses fundos. A pergunta que ela me fez, foi a seguinte: O
que o pessoal do Caribe está pensando? É interessante notar que esse aspecto do Caribe é
fundamental em nosso processo. Então, esses são alguns exemplos.
Com relação ao Banco Interamericano, eles dizem que estão prontos para liberar recursos.
Depende apenas da criação de uma estrutura, no Haiti, da própria Minustah, para que esses
recursos possam ser geridos de maneira adequada. Estamos conversando com o PNUD sobre
isso. Não é fácil. Não é nada fácil.
Também devo dizer, com toda a franqueza, que percebemos que no caso dos países mais
desenvolvidos e mais ricos, embora ponham dinheiro, embora estejam dispostos a colocar
dinheiro, esse nível de envolvimento com a reconstrução das instituições foge um pouco ao
padrão a que eles estão normalmente acostumados. Aquilo para eles é um problema de
imigração, é um problema de “boat people”, ou problema de narcotráfico. Então, na medida
em que o problema de “boat people” ou o de narcotráfico estejam assegurados com algumas
tropas lá e a guarda costeira tomando conta, essas questões que demandam o envolvimento
financeiro de mais longo prazo não serão resolvidas com facilidade.
Temos conseguido alguma coisa, repito. Acho que são muito eloqüentes os exemplos que eu
mencionei aqui, do Banco Mundial, do Banco Interamericano, mas tudo requer um trabalho
constante da nossa missão em Nova York e também do Presidente Lula, que, em encontro com
outros governantes, tem falado muito desse assunto.
O Canadá, por exemplo – talvez, com isso eu encerro, porque são tantos outros temas –,
Senador Pedro Simon, meu querido amigo aqui presente, não posso deixar de reconhecê‐lo
logo após tantas décadas... A embaixadora do Canadá veio me visitar. Falamos sobre a
importância de melhorarmos a visão pública das relações Brasil‐Canadá, e eu disse que vejo
que algumas coisas, que há coisas na área cultural que podem ser feitas. Naturalmente, o
Canadá é um país tão simpático, que tem o Cirque Du Soleil e outras coisas que podem vir para
o Brasil.
270
Agora, o que, de imediato, terá um impacto na visão dos políticos, da elite, do Governo
brasileiro? Fazermos juntos um projeto no Haiti e fazermos juntos um projeto para o qual o
Brasil não tem recursos. Se conseguirmos montar um posto de saúde para valer ou um hospital
no Haiti e disser lá que é do Brasil e do Canadá, isso terá um impacto melhor nas relações
entre Brasil e Canadá do que duzentos discursos de amizade. Penso que é uma prova de que
estaríamos agindo juntos, de uma maneira solidária, num terceiro país, que necessita de ajuda.
Eu diria que isso é a essência do que eu teria a dizer sobre o Haiti. Há muitos outros aspectos.
Conversei ontem longamente com alguns parlamentares, com a Deputada Maninha, que
esteve lá, e creio que aprendi mais ainda. Essa visão vai se enriquecendo na medida em que se
conversa. Aliás, devo dizer, com toda a honestidade e franqueza, que o Haiti é um pouco
daquilo que o Sócrates dizia: quanto mais sei, mais sei que não sei. O Haiti é tão complexo que,
cada vez que nos aproximamos mais do quadro haitiano, vemos mais complexidades
adicionais. Mas isso não deve ser um desestímulo, mas sim, ao contrário, um estímulo para
atuarmos positivamente.
Queria terminar esta conversa, terminar este tópico dos Ministros do Caribe. Um Ministro das
Bahamas disse que não podemos ter ilusões, que não vamos resolver o problema do Haiti, até
porque não se pode resolver o problema de nenhum país do dia para a noite. Disse ele que
vamos ajudar a administrar o problema do Haiti para que ele encontre uma rota positiva. Essa
é a nossa tarefa. Ninguém pode achar, quando se fala em “nation building”, que é só trabalhar
lá dois anos, deixar o país pronto e ir embora. Não é assim. E ele, por isso mesmo, nos
perguntou: qual é o compromisso do Brasil? É só até o mandato? É até as eleições? Ou é um
compromisso em longo prazo?
Eu disse a ele a única coisa que poderia dizer: que isso dependeria da própria evolução da
situação do Haiti e de vermos que os nossos esforços estão sendo correspondidos, estão tendo
resultado. Mas acho, pelo sentimento do povo brasileiro, pelo que já pude conversar com os
congressistas – e o Senador Eduardo Suplicy esteve lá antes, com outros parlamentares, com
parlamentares brasileiros, com outras pessoas da sociedade civil brasileira – vejo um desejo
real de ajudar um país irmão, que não é pobre, mas miserável. Quer dizer, nossos níveis de
pobreza, nas piores favelas do Brasil, não se comparam ao que há no Haiti.
Então, isso é, mais ou menos, o que há no Haiti.
Devo passar direto para os outros pontos? Vamos passar rapidamente, porque pode ser meio
anticlimático, digamos, dado o interesse que tem o tema do Haiti, falar, neste momento, de
União Européia, de Mercosul ou falar mesmo da China. Bom, China nunca é anticlimática.
Quanto à União Européia e ao Mercosul, na realidade, penitencio‐me, pois havia dificuldade de
datas. Na realidade, quando fui, inicialmente, chamado pelo Presidente da Comissão, pouco
depois do Encontro de Lisboa, o assunto era mais atual. Ele vai voltar a ser atual, até porque as
conversações continuam e amanhã mesmo estarão se encontrando, no Rio de Janeiro, os
Coordenadores Nacionais dos países do Mercosul e da União Européia para, digamos assim,
traçar um mapa da continuação das negociações.
Sobre isso, sem querer entrar em temas técnicos e para, digamos, resumir o que penso –
evidentemente, estarei aberto a perguntas sobre meu pensamento –, há, muitas vezes, a
leitura de que o Brasil ou não tem interesse ou fracassou em certas negociações. Cita‐se
também a Alca também neste caso. Eu desmentiria cabalmente qualquer das duas versões. O
Brasil tem interesse e continua empenhado em negociar, mas negociar em termos que sejam
vantajosos para o Brasil e no caso para o Mercosul como um todo.
O que ocorreu no caso da União Européia e do Mercosul é que, na realidade, até outubro do
ano passado, não tinha havido negociação real, mas tinha havido, digamos, jogo de cena. Diz‐
se: vamos fazer isso, vamos incluir a agricultura, vamos ter um acordo‐quadro, vamos ter um
acordo político ao lado do acordo comercial... Mas era, basicamente, jogo de cena. Ninguém
tinha chegado e dito que estava trocando um relógio por óculos. Eu estou trocando carne por
serviços “a”, “b” ou “c”. Não havia nada disso.
271
Foi a partir de outubro que nós fixamos um cronograma, em Bruxelas, com o Comissário Lamy,
o qual começou a se realizar em final de janeiro, início de fevereiro. Na realidade, o que houve
com a União Européia foram seis meses de negociação. V. Exªs não podem imaginar o que é a
complexidade de uma economia como a européia, não podem imaginar as grandes
dificuldades que eles têm na área agrícola e que são conhecidíssimas, como os subsídios. O
fato é que nós estávamos percorrendo em muitos casos, como tenho dito, terra incógnita,
porque estávamos pela primeira vez, efetivamente, negociando áreas como serviços
financeiros, serviços de telecomunicações, serviços de transportes marítimos. Por isso, chegar
aonde chegamos em seis meses foi um avanço extraordinário, para falar a verdade.
No caso da União Européia – deixemos a Alca para outra audiência –, temos hoje um quadro
conceitual relativamente claro. Por isso a reunião de Lisboa foi importante para firmar esse
quadro conceitual, onde estamos operando, o que estamos negociando, que é basicamente
uma negociação de acesso a mercados. Não vamos negociar com a União Européia regras que
cabem melhor na OMC. Da mesma maneira, eles não vão negociar conosco eliminação de
subsídios no acordo bilateral com o Mercosul. Isso é óbvio. O que podemos fazer é excluir
esses produtos das nossas degravações, porque produto subsidiado não tem por que obter
vantagens em nossos mercados. Pelo contrário, aplicaremos a eles, para usar uma expressão
antiga, o rigor da lei. O rigor da lei nos permite aplicar direitos compensatórios, enfim, tudo
que a OMC nos reserva. Não vamos ter a ilusão de que eles vão eliminar subsídios internos ou
subsídios à exportação numa negociação conosco, porque isso é uma coisa que envolve
interesses com os Estados Unidos, com o Japão, com a Austrália. Da mesma maneira, eles não
podem ter a ilusão de que vamos negociar com eles propriedade intelectual, um regime de
compras governamentais que impeça o uso das compras governamentais para o
desenvolvimento da indústria brasileira, um regime de serviços que seja diferente daquele do
GATT. Nós podemos negociar acesso em setores e serviços, mas não ter uma modalidade de
negociação que seja totalmente diferente daquela que existe na OMC.
Assim, acho que isso ficou claro. As dúvidas também ficaram bastante claras. Em muitos casos
em que me parecia que havia um conflito de natureza negocial, o conflito era muitas vezes de
entendimento. Isso poderá ser trabalhado nesses dias agora para preparar o caminho para o
futuro.
Falei hoje mesmo com o Comissário Mandelson – uma boa coincidência, porque estava para
falar com ele nesses dias, mas falei hoje – e ambos temos como prioridade um a OMC. Quanto
a isso não há dúvida. Eu posso falar em nome de todos, e posso falar por que eles agiram, na
prática, assim. Tanto os Estados Unidos, quanto a União Européia, quanto o Brasil, ou seja,
qualquer país que tenha uma inserção global no mundo tem que ter como prioridade a OMC.
Não estou falando de América do Sul e Mercosul, porque aí se trata de uma questão política.
Mas quando se fala predominantemente de comércio, a OMC tem que ser prioridade. Não se
pode resolver questões transcendentais, como subsídios ou antidumping, ou questões como o
nosso direito de poder usar incentivos a investimentos que possam fazer exportações, em
conversas bilaterais. Isso tem uma implicação sistêmica.
Por isso é natural que tanto o Zoellick, quanto antes o Lamy e agora o Mandelson, eu próprio,
o Ministro da Índia e o Ministro da Austrália concentremos a nossa atenção na OMC, porque
ela é a principal. Isso não quer dizer que a gente vá deixar de lado o acordo bilateral Mercosul‐
União Européia, nem o acordo da Alca.
A minha impressão – comentei isso ontem com alguém – é que os três vão caminhar em
paralelo, mas sempre tendo como âncora a OMC. Se não soubermos o que vai acontecer na
OMC, corremos o risco de assumirmos compromissos no acordo da Alca ou no acordo da
União Européia pelos quais não teremos contrapartidas adequadas.
Dito isso, vamos continuar. Há uma reunião ministerial prevista para março. É possível que
antes disso eu me encontre com o Comissário em algum outro contexto, em alguma discussão
que pode envolver a OMC.
Essa é a situação, Sr. Presidente. Não vou me alongar em detalhes.
272
Com relação à China, como V. Exª me pediu para incluir esse tema na agenda. Eu diria, em
duas palavras, o seguinte: a China, evidentemente, começa a ser um parceiro estratégico não
só no nome, mas na realidade. A China hoje rivaliza com a Argentina como o segundo maior
mercado para as exportações brasileiras. Contrariamente ao que vi ontem na televisão, tenho
a impressão de que este ano a Argentina será o nosso maior parceiro comercial. Aliás, fica aqui
uma mensagem para os detratores do Mercosul. Uma manchete na edição de hoje da Gazeta
Mercantil notícia que a Argentina nunca comprou tanto do Brasil. Então, com todos os
problemas que podem eventualmente existir, há essa boa notícia, digamos, de que a
Argentina, nosso principal parceiro no Mercosul, nunca comprou tanto do Brasil. Mas, enfim, a
China tem rivalizado com a Argentina e é possível até que passe, pois, como é um país de
potencialidades enormes, o nosso comércio, nos dois sentidos, deve chegar a cerca de 10
bilhões. As nossas cifras dão sempre um pouco menos do que as chinesas. Creio que eles
incluam também Hong Kong ou outras re‐exportações, mas estará por volta de 10 bilhões, nos
dois sentidos. O Brasil deve exportar uns 6 bilhões, creio eu, para a China, o que é uma
quantidade fenomenal se imaginarmos o que era o comércio há dez anos. Tenho possibilidade
de comparação porque fui ministro há dez anos e o nosso comércio, na época em que a
parceria estratégica foi declarada, era de 1 bilhão, nos dois sentidos, e hoje é de 10 bilhões.
Quer dizer, não é difícil presumir que nos próximos cinco ou seis anos chegue a 20 bilhões, o
que abre oportunidades para setores altamente competitivos do Brasil, como é o caso da
carne, das aves e de outros produtos agrícolas. Mas não só isso. Claro que se observarmos o
conjunto do comércio as “commodities” tomam a maior parte, mas temos também os aviões,
em “joint venture” com a China.
Há entendimentos muito produtivos em setores como software. Há investimentos que se
realizam nos lugares mais variados no Nordeste. No caso do aço, por exemplo, creio que é no
Maranhão que eles estão estudando. Tenho medo de confundir porque houve muitos
visitantes no Brasil. A Coréia também está no Maranhão. Mas creio que há outro interessado
no Ceará, não sei se é a China ou a Coréia. De qualquer maneira, a siderurgia tem um acordo
entre a Bao Steel e a CVRD. Há acordos também na área de alumina e há uma produção de
vagões no Espírito Santo. São contratos; não estou falando de convênio, nem de memorando
de entendimento. Há financiamento chinês do Gasene, que é o gasoduto do Nordeste, em
condições muito vantajosas para nós. Enfim, vejo, digamos, realmente uma relação
estratégica.
Quero fazer duas ou três observações – a meu ver importantes – sobre quando o Brasil
reconheceu o status de economia de mercado da China, que é o elemento polêmico. Primeiro,
esse é um reconhecimento de natureza política, faz parte de um memorando de
entendimento, que é um documento político, não jurídico. Isso não significa que não o
queiramos cumprir. É evidente que queremos cumpri‐lo, mas na medida em que os outros
elementos do memorando também estejam sendo cumpridos, e esses outros elementos
envolvem acordos na área sanitária que permitam que a nossa carne e as nossas aves tenham
acesso mais fácil ao mercado chinês, que permitam que setores de grande interesse, como é o
caso da aviação, mas também de automação, onde o Brasil tem desenvolvido muito, também
possam ser objeto de cooperação intensa. Um outro aspecto muito importante, observado por
várias das empresas brasileiras que operam na China e que têm tido ações conjuntas, é
lembrar que todos esses empreendimentos, Inclusive os investimentos no Brasil, devem ser na
base de “joint ventures”. Assim é na China, e é importante que assim seja no Brasil: que o
investimento chinês não seja de controle total da produção, mas que tenha participação de
empresas brasileiras. Isso também faz parte do memorando. Além disso, por que esses pontos
são importantes? Porque o preâmbulo do memorando de entendimento que contém a
questão da economia de mercado diz que ele tem que ser aplicado de forma equilibrada.
Portanto, todas aquelas cláusulas e não apenas uma.
Com relação especificamente à economia de mercado, além do fato de ser um compromisso
de natureza política, que presume uma aplicação equilibrada, eu chamaria a atenção para os
273
seguintes fatores: o principal impacto que isso poderia ter, o principal efeito é sobre uma única
posição do protocolo de exceção da China, que é a questão do antidumping, porque, pelo
atual protocolo de exceção, o que se faz numa medida antidumping?
Não é preciso procurar os custos na China; pode‐se buscar um custo comparativo de outro
país. Digamos que a Espanha produza o mesmo produto que a China. Então se apura o preço
espanhol. Se o preço chinês de exportação para o Brasil for inferior ao preço espanhol, aplica‐
se uma dinâmica.
Em princípio, não se deverá mais fazer isso, mas, ainda assim, o próprio art. 2.2 do acordo
antidumping prevê que, quando os mercados tiverem algumas anomalias especiais ou
particulares, você pode construir o preço. Não se deve necessariamente aceitar o preço que é
dado pela China.
Então, se houver algum tabelamento de produto e, com isso, uma redução artificial do preço,
o Governo brasileiro poderá construir o preço a partir dos seus cálculos de custo.
É claro que terá que ser feito de boa‐fé, mas isso é possível. Na realidade, é isso que tem
permitido que até hoje o acordo antidumping seja usado com grande liberalidade, o que tem
ocorrido a nosso favor e contra nós.
Dentre todos os acordos da OMC, o acordo antidumping é, provavelmente, aquele mais frouxo
na sua aplicação.
Então, quando se diz que o Brasil perdeu a possibilidade de ter defesa comercial contra a
China, isso não é verdade, por vários motivos. Primeiro, porque, com relação aos direitos
compensatórios, onde se identificar subsídio, aplicaremos o direito compensatório. Da mesma
maneira, o protocolo de ascensão não se refere a direitos compensatórios e subsídios.
Segundo, no que diz respeito, por exemplo, a salvaguardas... Digamos que haja um surto de
exportação chinesa de determinado produto, independentemente de haver dumping ou não.
Não só podemos usar o acordo de salvaguardas do antigo GATT, da OMC, art. 19, mas
podemos usar as cláusulas de salvaguarda do acordo de ascensão, que se prolongam por mais
oito anos, creio eu. Então isso não é afetado pelo nosso acordo.
No que diz respeito especificamente a têxteis, há também um prazo adicional de quatro anos
para todos, em que se podem usar cláusulas especiais. Então nada disso foi afetado.
A única coisa que muda é o antidumping, e ainda assim com duas importantes qualificações:
uma, como eu já disse, que continuamos a nos valer da possibilidade de construir o preço. E
todos que têm familiaridade com a aplicação do acordo antidumping sabem que é muito difícil
derrotar um caso desses.
O caso que derrotamos recentemente, da Emenda Byrd, americana, foi porque eles praticaram
uma coisa totalmente absurda, que viola não só o acordo antidumping, mas qualquer preceito
da OMC, que foi pegar o recurso do antidumping e dar para a empresa que está sendo
protegida. Em inglês, há uma palavra para isso, que significa prejuízo duplo. Quer dizer, eles
aplicam um imposto e dão para a empresa protegida, para ajudá‐la. Por isso nós ganhamos.
No mérito da aplicação do dumping, é muito difícil ganhar para quem for da indústria
siderúrgica. Todas as indústrias brasileiras sabem disso. Então continuaremos a aplicar isso.
Segundo, uma coisa importante que quero explicar com clareza: o Brasil não fez nenhuma
renúncia jurídica a nenhum de seus direitos e obrigações. Certamente não do acordo
antidumping, mas nem sequer dos acordos de exceção. Nós temos um compromisso político e
pretendemos honrá‐lo. Não quero dizer nem desdizer o que foi dito, que é o reconhecimento
do status da China como economia de mercado, mas pretendemos honrá‐lo dentro do quadro
do nosso memorando. Ele faz parte do memorando, que é um conjunto, e deve ser aplicado de
maneira equilibrada. Esta palavra “equilibrada” foi muito discutida, até as duas e meia da
manhã, porque aplicação equilibrada é fundamental.
Se, digamos, não for aplicado aquilo que nos interessa em relação à Embraer ou à área
fitossanitária, reconhecendo o direito natural de cada um de proteger a sua saúde, se houver
alguma aplicação abusiva, enfim, se todos os demais pontos – os senhores têm acesso ao
memorando; ele está na Internet, na página do Itamaraty, mas podemos mandar cópia para
274
quem quiser – não estiverem sendo cumpridos, o nosso quesito, que é um compromisso de
natureza política, porque não houve nenhuma renúncia jurídica aos direitos e obrigações da
OMC, ele deixa de existir. Espero que não seja necessário isso, porque espero que os
investimentos chineses venham para o Brasil e que se façam na base de “joint ventures” com
empresas brasileiras. E espero que tudo isso traga prosperidade ao nosso País.
Queria completar essa questão da China só para dizer também que é preciso ver isso de uma
maneira estratégica mais ampla. A China será certamente o terceiro grande bloco mundial
econômico. Hoje em dia, há dois blocos: os próprios Estados Unidos, o segundo é a União
Européia, ou melhor, economicamente é o inverso: o primeiro é a União Européia, o segundo,
os Estados Unidos e o terceiro vai ser a China.
Ontem, vi uma discussão na televisão, se a China vai passar ou não vai passar os Estados
Unidos em vinte ou trinta anos, não sei, mas certamente vai ser um dos maiores blocos do
mundo.
Para o Brasil, que tem uma vocação de ser, digamos, um jogador no cenário internacional de
múltiplas jogadas, não ficar preso a um único mercado, é importante que o mercado chinês
seja acessado de maneira ampla, porque isso nos ajuda inclusive uma inserção múltipla no
mercado internacional.
É óbvio que a China vai ser um ator cada vez mais importante na OMC. E talvez uma última
palavra para se entender como essas coisas são.
A China já tinha sido reconhecida como economia de mercado por cerca de vinte ou vinte e
três países; alguns outros estavam à beira de fazê‐lo, como a Austrália. Então, fazer isso nesse
momento traz para nós, esperamos, um benefício. E esperar mais dois ou três anos, quando
algum outro país, por alguma outra negociação qualquer... Isso aconteceu. Como é que se
fechou a negociação de acensão da China à OMC? Eu estava lá, vi isso.
Quando os Estados Unidos fecharam o acordo de salvaguardas que lhes interessava, porque
eles nem estavam com a intenção de multirateralizar, isso teve que ser meio à força, para eles
estava encerrada a negociação. E todo mundo conhece o peso dos Estados Unidos, da União
Européia. Então, quando um desses países fizesse, a adesão ou não do Brasil a esse princípio
seria irrelevante. Então, fizemos, a meu ver, no momento certo.
Não vou ignorar que não haja cuidados especiais com certos setores, mas como essa foi uma
decisão de governo, não foi uma decisão do Ministério das Relações Exteriores – claro que
participei e defendo essa decisão –, com participação dos ministérios setoriais, de todos os
ministérios envolvidos e do próprio Presidente, naturalmente, se houver um problema grave
num setor afetado, encontraremos um meio de proteger esse setor, de uma maneira ou de
outra.
Então esse é o terceiro tópico, Sr. Presidente, que V. Exª me deu, e com isso encerro a minha
exposição.
Discurso do Ministro Celso Amorim na Reunião Especial do Conselho de Segurança das
Nações Unidas sobre o Haiti
Embaixador Celso Luiz Nunes Amorim
Ministro de Estado das Relações Exteriores
Nova York, 12/01/2005
(versão em português do original em espanhol)
Senhor Presidente,
Gostaria, antes de mais nada, de felicitá‐lo, meu amigo Rafael Bielsa, pela brilhante condução
dos trabalhos e, em especial, pela iniciativa de convocar esta reunião pública sobre o Haiti.
Permita‐me também assinalar a cooperação exemplar entre as nossas delegações no Conselho
de Segurança com a experiência inédita da participação de um diplomata argentino na
delegação brasileira, experiência sem precedentes no Conselho e testemunho do grau de
confiança entre os nossos povos e governos. Agora que tenho o satisfação de saudar o
275
regresso da Argentina à condição de membro do Conselho, permita‐me estender‐lhe todo o
apoio do Brasil ao êxito desta reunião e do período da sua Presidência.
Senhor Presidente,
A independência do Haiti, a primeira na América Latina, demonstrou a força e o valor dos
milhões de africanos que haviam sido trasladados às Américas como escravos. Desde então,
por várias razões que apenas começamos a tratar, a esperança que representava o Haiti não se
realizou. Ao contrário, o país foi às vezes tratado com arrogância ou negligência.
Nós – as Nações Unidas, os países da América Latina e do Caribe e os próprios haitianos ‐
temos o dever de contribuir para a realização dessa esperança. O futuro do Haiti tornou‐se
hoje um tema de interesse do conjunto da comunidade internacional; a MINUSTAH e as
iniciativas de cooperação técnica e financeira constituem um teste da mais alta importância
para que as Nações Unidas demonstrem a sua capacidade de atender a situações cuja solução
se situa além da simples estabilização político‐militar e envolve uma verdadeira reconstrução
nacional.
Muitas vezes repeti que o sucesso da Missão de Estabilização das Nações Unidas no Haiti se
baseia em três pilares interdependentes e igualmente importantes: a manutenção da ordem e
da segurança; o incentivo ao diálogo político com vistas à reconciliação nacional; e a promoção
do desenvolvimento econômico e social.
Não se trata de três “passos” diferentes, nem podem seguir‐se uns aos outros no tempo. O
atendimento simultâneo aos três pilares é condição indispensável para a reconstrução do
Haiti. O que necessitamos é de um acordo entre todos, que una a comunidade internacional e
as forças políticas haitianas em um compromisso de longo prazo.
Os ingredientes mais importantes para a paz no Haiti são a esperança, a confiança e a
legitimidade. A prioridade no Haiti é o desarmamento, como forma de restabelecer as
condições mínimas de segurança para a consolidação institucional. Mas buscamos ao mesmo
tempo o desarmamento dos espíritos, por meio do diálogo político. A estabilidade no Haiti não
poderá ser alcançada somente através da repressão.
Os desafios que enfrentamos no Haiti são extremamente complexos. A responsabilidade
crucial do Governo é criar as condições básicas para o êxito dos três pilares. Saudamos a
libertação de três políticos da Família Lavalas como um passo fundamental no sentido de
envolver todos os haitianos no esforço de reconstrução nacional.
A reconciliação nacional recebeu, além disso, um importante impulso com o lançamento do
Diálogo Político pelo Presidente Boniface Alexandre. Incentivamos todos os partidos políticos,
as organizações da sociedade civil e os grupos de interesse no Haiti a que se juntem a esse
esforço e encorajamos as autoridades a que assegurem condições que permitam a todos
participar do debate político e eleitoral sem temores quanto à sua segurança.
Gestos simples da comunidade internacional podem, ademais, constituir incentivos
importantes à normalização da vida no Haiti. O Jogo da Paz, realizado no último mês de
agosto, entre as seleções do Brasil e do Haiti, por exemplo, ajudou os haitianos a retomar a
esperança, ao ver que era real a atenção e a boa vontade dos países da região.
O progresso alcançado nos últimos três meses demonstrou o quanto eram infundadas as
análises pessimistas sobre a capacidade da MINUSTAH em matéria de segurança. Os primeiros
meses foram marcados por atrasos na chegada do contingente planejado, pela falta de diálogo
político e pela deterioração da economia, agravada por desastres naturais. No entanto, foram
alcançados progressos à medida que o número de soldados e policiais em campo aumentava e
que os primeiros projetos de reconstrução começavam a ser implementados.
Devemos o nosso reconhecimento à MINUSTAH pelas provas que deu da sua capacidade de
reduzir a violência no cumprimento do seu mandato, de acordo com a Resolução 1542.
Está claro que a normalização no Haiti não se dará sem a decidida participação da comunidade
internacional na promoção do seu desenvolvimento econômico e social. Esta é a área em que
menos fizemos e em que o Haiti mais necessita do nosso apoio.
276
Por piores que sejam outras tragédias, as quais acompanhamos atentamente e que merecem
uma resposta urgente e coordenada da comunidade internacional, não nos podemos permitir
baixar o grau de prioridade que assumiu o Haiti na agenda internacional.
Se considerarmos as taxas de mortalidade infantil, por exemplo, não é exagero dizer que o
Haiti sofreu os efeitos de um verdadeiro tsunami econômico e social nos últimos dois séculos.
O Haiti é uma prova contundente da necessidade de desenvolver mecanismos adequados para
impedir a deterioração das situações nacionais e para assistir os países recém‐saídos de
situações de conflito ou mesmo para evitá‐las.
O papel do Conselho Econômico e Social e de seu Grupo Ad Hoc sobre o Haiti pode ser crucial
para garantir a necessária coerência à ação das agências, dos fundos e dos programas das
Nações Unidas, bem como dos principais países doadores.
Devemos conjugar os projetos de impacto imediato, que devolvam a esperança aos pobres e
desempregados, com a assistência às instituções haitianas para o planejamento de uma
estratégia de longo prazo.
Temos de acelerar o pagamento dos fundos prometidos na Conferência Internacional de
Doadores, facilitando os trâmites necessários para a execução de projetos. No caso do Haiti, a
ajuda que atrasa é uma ajuda que se perde.
Sob as instruções do Presidente Lula, fizemos tudo o que se encontrava ao nosso alcance. No
último dia 20 de dezembro, assinei no Haiti três acordos de cooperação, dois dos quais se
concentram no apoio à agricultura familiar em matéria de processamento de mandioca e de
castanha de caju. Os recursos serão financiados pelo Governo brasileiro, no valor de 250 mil
dólares. Concluí, também, com o Banco Mundial e com o Governo do Haiti um acordo de mais
de um milhão de dólares para oferecer merenda escolar a 35 mil crianças. Entendemos que
esta foi a primeira vez em que o Banco Mundial assinou um acordo com um país em
desenvolvimento para apoiar um outro país do Sul. Na recente Cúpula do Mercosul, em Ouro
Preto, firmei com o Presidente Enrique Iglesias, do BID, Memorando de Entendimento sob o
qual se desenvolverão projetos de cooperação técnica, inclusive para viabilizar a utilização dos
fundos já disponíveis no Banco.
O uso indiscriminado dos recursos naturais no Haiti gerou graves conseqüências ecológicas.
Uma campanha nacional de reflorestamento deve fazer parte de qualquer estratégia para o
desenvolvimento sustentável do Haiti.
O destino do Haiti é inseparável do destino dos seus vizinhos. O isolamento regional do Haiti
não interessa a ninguém. Da nossa parte, desde o princípio da nossa participação na
MINUSTAH, definimos o diálogo com a CARICOM como uma prioridade e enviamos várias
missões especiais aos seus países membros para procurar conhecer melhor as suas posições.
No último mês de novembro, tive a oportunidade e a honra de reunir‐me com quatro
Chanceleres e outros altos representantes de países caribenhos durante minha visita a
Barbados, sob a coordenação da Ministra Billie Miller. Hoje mesmo viajarei a Trinidad e Tobago
para dar seguimento às conversações com as autoridades locais.
Gostaria de dizer que a terrível crise pela qual passou o Haiti em 2004 nos aproximou e
ensinou muitas lições sobre o nosso próprio passado e presente. Levou os países latino‐
americanos a cooperarem de maneira mais estreita em prol da segurança regional.
Cabe aos haitianos a responsabilidade de reinventar o seu futuro. A comunidade internacional
não pode substituí‐los nessa tarefa, mas seria irresponsável da nossa parte não lhes oferecer
toda a assistência possível.
Os povos da América têm, todos, uma grande dívida histórica com o Haiti. O mundo tem o
dever de ajudar os haitianos a recuperar o controle da sua própria segurança e do seu futuro.
Estamos diante de um difícil desafio, mas, se tivermos sucesso, teremos contribuído não
somente para a redenção econômica de um país irmão, mas também para o fortalecimento do
sistema das Nações Unidas.
Muito obrigado.
277
Palavras do Ministro das Relações Exteriores, Embaixador Celso Amorim, na sessão de
abertura do Painel Internacional “Ações Afirmativas e Objetivos do Milênio”
Embaixador Celso Luiz Nunes Amorim
Ministro de Estado das Relações Exteriores
Brasília, Auditório Finatec, Campus da Universidade de Brasília, 29/06/2005
Ministra Matilde Ribeiro, Embaixadores de outros países, líderes religiosos e participantes
deste Seminário,
Queria, em primeiro lugar, parabenizar a Ministra Matilde e seus colaboradores da Secretaria
Especial para a Promoção da Igualdade Racial pela realização deste Painel Internacional que é
extremamente oportuno. Este é um debate que devemos desenvolver e aprofundar em nosso
país. Eu dizia antes ‐ a um jornalista que me perguntava o que nós esperávamos como
resultado desse Painel ‐ que na área de direitos humanos, e também na área de convivência
dos povos, das religiões, das culturas e das raças, não há aqueles que ensinam e aqueles que
aprendem. Todos ensinam e todos aprendem e é somente demonstrando nossa capacidade,
nossa abertura para o pleno entendimento do problema do outro que nós teremos condições
de fazer reais progressos.
Os Senhores já terão ouvido, ou ouvirão durante o dia de hoje, sobre a importância que a
Secretaria da Promoção da Igualdade Racial tem no Brasil. Aqui no Brasil sempre tivemos a
pretensão de dizer que éramos uma democracia racial e nos orgulhávamos de não termos
dispositivos legais ou dispositivos regulamentares que criassem diferenças entre raças ou
entre credos religiosos ou entre culturas. Mas todos nós sabemos que há formas, algumas
delas bem sutis, outras nem tanto, de manter sempre presente a discriminação. A criação da
Secretaria da Promoção da Igualdade Racial pelo Presidente Lula, com nível de Ministério, foi
algo excepcionalmente importante porque deu status político a um problema que existia de
forma latente na sociedade, o qual muitos de nós reconhecíamos, mas que a sociedade como
um conjunto procurava disfarçar. A criação dessa Secretaria e o trabalho que a Ministra
Matilde e seus colaboradores têm feito é de extrema importância, não só para aqueles que
podem se beneficiar da promoção da igualdade racial, mas para todos os brasileiros. Usando
uma expressão do filósofo, que agora faria cem anos, Jean‐Paul Sartre, “você não tem o
homem integral enquanto não tiver todos os homens”, ou mulheres, no caso também. Nós,
brasileiros, independentemente da origem e do nível escolar que tenhamos, só poderemos
nos sentir integralmente brasileiros quando todos estivermos totalmente participantes na
sociedade brasileira.
Embora o Brasil seja um país em que curiosamente o convívio, sobretudo nos momentos de
lazer, entre as raças e os povos sempre foi muito fácil, na hora do trabalho, na hora das
posições políticas, na hora das posições elevadas na burocracia civil e militar as diferenças
apareciam. Basta olhar para o serviço diplomático brasileiro onde até hoje a presença de
negros é muito pequena e não decorreu isso, pelo menos no período da minha vida
profissional, de nenhuma discriminação ativa, mas de formas sutis de discriminação, de formas
que se baseiam, inclusive, em diferenças sociais e em diferenças de formação cultural e
educacional. Isso, a meu ver, justifica a ação afirmativa. A ação afirmativa nada mais é do que
tentar igualar as possibilidades daqueles que tiveram condições menos favoráveis durante a
sua infância e adolescência.
Como todos sabemos por várias pesquisas feitas no Brasil, se você é mulher e negra a chance
de ser pobre é muito maior. Na minha geração havia uma crença, mesmo das pessoas que se
consideravam progressistas, de que no Brasil não há um problema racial, e sim um problema
social, e que se resolvermos o problema social nós resolveremos o problema racial. Creio que a
questão é mais complexa e que, hoje em dia, ela se coloca mais no sentido inverso: se você
resolver o problema racial você resolve em grande parte o problema social, porque número
significativo dos pobres são negros ou são de origem indígena ou são de outras origens. Por
278
esse motivo, introduzimos no Ministério das Relações Exteriores um programa de ação
afirmativa. Para ser justo, esse programa se iniciou no Governo anterior, mas nós o temos
desenvolvido com afinco.
E, quando digo isso, não é porque as pessoas de origem africana precisam ter acesso ao
Ministério das Relações Exteriores. Nós no Itamaraty é que precisamos que elas façam parte
do nosso Ministério, para que nosso país esteja adequadamente representado. Eu me lembro,
quando jovem ainda, de que tinha colegas de colégio que eram judeus e eles achavam que não
podiam entrar no Ministério das Relações Exteriores porque seriam discriminados. Nunca vi
efetivamente discriminação ativa nesse caso, mas se a percepção existe é porque algo estava
errado. Precisamos vencer os elementos que levam a essas percepções. Muitas vezes, a
sensação de que existe ou de que pode existir uma discriminação já é, em si mesmo, uma
forma de discriminar, de fazer com que o outro tenha essa sensação. Quando desenvolvemos
a ação afirmativa no Itamaraty por um sistema de bolsas, um sistema que eu acho que ajuda
inclusive na própria auto‐estima dos candidatos, estamos realmente atacando diretamente
esse ponto.
Queria dizer que a parceria entre o Ministério das Relações Exteriores e a Secretaria da
Promoção da Igualdade Racial tem sido intensa, dentro e fora do Brasil. Eu e a Ministra Matilde
visitamos vários países; ela também participou de visitas do Presidente da República e fez suas
próprias visitas em que eu não estava. Nossa intensa relação com a África hoje em dia tem um
aspecto muito importante que é a dimensão interna. E talvez o momento de auge desse
sentido de que a nossa relação com a África não é apenas uma relação com um outro
continente, mas uma relação conosco mesmo, foi dada quando o Presidente Lula esteve no
Senegal e lá, em nome dos brasileiros, em nome de todos nós, independentemente da nossa
cor, independentemente do nosso credo religioso, independentemente do nosso passado
cultural, mas todos nós que de alguma maneira fazemos parte da elite econômica, comercial,
política, cultural deste país, salientou que temos uma dívida muito forte com a África. Foi por
isso que o Presidente Lula pediu perdão aos africanos, aos descendentes daqueles que foram
escravos e que ajudaram de maneira dramática por vezes, de maneira muito importante, a
construir este país.
A mesma coisa eu diria sobre nossa relação com o Haiti. Recomendaria muito aos que estão
aqui, se tiverem a ocasião, de irem ver uma exposição de pintura que está no Centro Cultural
Banco do Brasil, que tenho certeza enriquecerá a alma de todos. Trata‐se de uma exposição
sobre pintura naïf do Brasil e do Haiti. E é muito difícil distinguir o que é do Brasil e o que é do
Haiti nessas pinturas. Essas aproximações que têm como instrumento a política externa nos
ajudam a nos redescobrir a nós próprios, a nos orgulharmos da contribuição africana, da
contribuição indígena, como também da contribuição de árabes, de judeus, de todas as
religiões que formam este nosso país tão rico, tão diversificado, mas um país onde há muito
por fazer para chegarmos à sociedade sempre diversificada e harmoniosa que desejamos.
Queria com muita alegria saudar os Ministros e Vice‐Ministros que estão aqui. Fico muito feliz
de ver, por exemplo, os Ministros do Senegal e do Cameroun, países que visitamos
recentemente, e também o Ministro de Cuba e outras autoridades. Queria dizer que esse
encontro internacional é parte de iniciativa maior ainda: uma grande Conferência Nacional
sobre essas questões. Ele testemunha a vitalidade da Secretaria da Promoção da Igualdade
Racial como uma Secretaria que certamente tem lugar importante no nosso Governo, uma
Secretaria que nos orgulha porque não podemos olhar a existência de Ministérios ou de
Secretarias apenas pelo volume de recursos que eles movem. Creio que muitas vezes é até o
contrário, você pode ter Secretarias, Ministérios e Ministros que movem recursos
relativamente pequenos comparados com o conjunto do orçamento do país, mas que movem
idéias, sentimentos, relações sociais, e certamente esse é o papel da nossa Secretaria, da
Ministra Matilde e de toda a equipe que ela chefia.
Espero que neste dia de hoje quem tiver também ocasião de ficar para a Conferência Nacional
possa se beneficiar um pouco das experiências que nós temos tido e, ao mesmo tempo, que
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nós possamos também ouvir um pouco da experiência de outros porque, como disse há
pouco, nessas questões de direitos humanos, de direitos sociais, ninguém pode se arrogar a
posição de estar ensinando para outro que estaria aprendendo. Todos nós estamos ensinando
e todos nós estamos aprendendo. Então muito obrigado. Parabéns Matilde, parabéns a todos.
Discurso do Ministro de Estado das Relações Exteriores, Embaixador Celso Amorim, na
abertura do debate geral da 60a Sessão da Assembléia Geral das Nações Unidas
Embaixador Celso Luiz Nunes Amorim
Ministro de Estado das Relações Exteriores
Nova York, 17/09/2005
Senhor Presidente,
Senhor Secretário‐Geral,
Excelências,
Congratulo calorosamente o Embaixador Ian Eliasson, da Suécia, por sua assunção à
Presidência da 60ª Assembléia Geral. Saúdo fraternalmente o Secretário‐Geral Kofi Annan, cuja
sabedoria e compromisso com o multilateralismo têm contribuído imensamente para o avanço
das Nações Unidas. O Chanceler Jean Ping, do Gabão, merece um reconhecimento especial
pela forma competente e dedicada como presidiu a 59ª sessão da Assembléia Geral.
A história nos oferece uma rara oportunidade de mudança. Não a desperdicemos. Paz,
Desenvolvimento, Democracia, Respeito aos Direitos Humanos são os objetivos que nos unem.
Reforma deve ser a nossa palavra de ordem.
O documento final da Cúpula certamente ficou aquém de nossas ambições. Mas fornece as
diretrizes para levar a termo nossa tarefa.
A Assembléia Geral precisa ser fortalecida. Mais do que nunca, precisamos de um foro de
representação universal onde as questões cruciais da atualidade internacional possam ser
democraticamente debatidas. A Assembléia Geral deve prover liderança e direção política à
Organização como um todo. Ao defendermos a autoridade da Assembléia Geral, mediante
mudanças que a tornem mais ágil e produtiva, estamos defendendo a essência mesma das
Nações Unidas.
O Conselho Econômico e Social deve voltar a ser um órgão vivo e influente. Deve servir para
que encontremos convergências para questões relacionadas a comércio, finanças e
desenvolvimento, em um ambiente livre de preconceitos e dogmatismos. O ECOSOC deve ser a
instância deliberativa privilegiada na busca da conciliação entre os objetivos do crescimento
econômico e da redução das iniqüidades de uma globalização assimétrica. O Presidente Lula
sugeriu neste ano, na Cúpula do G‐8 em Gleneagles, que poderíamos começar a elevar a
estatura do ECOSOC, organizando um segmento de alto nível com a participação, por exemplo,
do Ministro da Economia da presidência rotativa do G‐8. O ECOSOC deve também prestar sua
contribuição na promoção da estabilidade e da paz, em parceria com o Conselho de
Segurança, como estabelece o artigo 65 da Carta.
O estabelecimento de uma Comissão para a Construção da Paz preencherá uma lacuna
institucional importante. Será o elo, hoje inexistente, entre segurança e desenvolvimento.
As estruturas e mecanismos da Organização na esfera dos direitos humanos devem ser
reforçados e aperfeiçoados. Apoiamos a criação de um Conselho de Direitos Humanos que se
baseie nos princípios da universalidade, do diálogo e da não seletividade. A elaboração de um
relatório global sobre direitos humanos, a cargo do Alto Comissariado, que cubra todos os
países e situações, contribuirá para aumentar a credibilidade do sistema de proteção dos
Direitos Humanos das Nações Unidas.
O Secretário‐Geral instou‐nos a trabalhar de forma mais coordenada com vistas à proteção das
vítimas de violações graves e sistemáticas dos direitos humanos. A cooperação internacional
na esfera dos direitos humanos e da assistência humanitária deve orientar‐se pelo princípio da
responsabilidade coletiva. Temos sustentado ‐ em nossa região e fora dela ‐ que o princípio da
280
não‐intervenção em assuntos internos dos Estados deve ser acompanhado pela idéia da “não‐
indiferença”.
Lidamos, hoje, com conceitos novos como “segurança humana” e “responsabilidade de
proteger”. Concordamos que devem ter um lugar adequado em nosso sistema. Mas é ilusório
pensar que podemos combater os desvios políticos que estão na origem de violações graves de
direitos humanos por meios exclusivamente militares, ou mesmo por sanções econômicas, em
prejuízo da diplomacia e da persuasão.
A segurança humana resulta, principalmente, de sociedades justas e eqüitativas, que
promovem e protegem os direitos humanos, fortalecem a democracia e respeitam o estado de
direito, ao mesmo tempo em que criam oportunidades de desenvolvimento econômico com
justiça social. As Nações Unidas não foram criadas para disseminar a filosofia de que a ordem
deve ser imposta pela força. Esse recurso extremo deve ser reservado a situações em que
todos os demais esforços tenham sido esgotados e as soluções pacíficas sejam realmente
inviáveis. E o julgamento sobre a existência dessas condições excepcionais há que ser sempre
um julgamento multilateral. A Carta contempla dois tipos de situação para o uso da força: a
necessidade de manter ou restaurar a paz e a segurança internacionais, e o direito de legítima
defesa. Esses dois conceitos não podem ser confundidos, sob pena de embaralharmos as bases
doutrinárias da Organização.
Senhor Presidente,
A reforma do Conselho de Segurança destaca‐se como peça central do processo em que
estamos envolvidos. A necessidade de fazer com que o Conselho se torne mais representativo
e democrático é reconhecida pela imensa maioria dos Estados‐membros.
No horizonte histórico em que vivemos, nenhuma reforma do Conselho de Segurança será
significativa se não contemplar uma expansão dos assentos permanentes e não‐permanentes,
com países em desenvolvimento da África, da Ásia e da América Latina em ambas as
categorias. Não podemos aceitar a perpetuação de desequilíbrios contrários ao espírito do
multilateralismo.
Um Conselho mais eficaz deve ser capaz, acima de tudo, de assegurar o cumprimento de suas
decisões. Não parece razoável imaginar que o Conselho poderá continuar ampliando sua
agenda e suas funções sem que se resolva seu déficit democrático.
Há dois anos, o Presidente Lula declarou, perante esta Assembléia, que toda nação
comprometida com a democracia, internamente, deve lutar ‐ em suas relações exteriores ‐ por
processos decisórios transparentes, legítimos e representativos. No mesmo espírito, o
Secretário‐Geral Kofi Annan apontou para as contradições a serem superadas, e cito: “Somos
nós que vamos ao redor do mundo pregando a democracia. Acredito ter chegado a hora de
aplicarmos isso a nós mesmos e assim mostrarmos que existe representação efetiva”.
Senhor Presidente,
Estamos ainda distantes dos objetivos da Declaração do Milênio. A Sessão de Alto Nível
destacou a importância de compromissos renovados com a Assistência ao Desenvolvimento e
contribuiu para promover uma aceitação mais ampla da destinação de 0,7 porcento do
produto nacional bruto como ajuda ao desenvolvimento. Ao mesmo tempo, devemos
continuar a trabalhar com fontes inovadoras e adicionais de financiamento. Noto com
satisfação que, desde o Encontro de Líderes Mundiais para a Ação Contra a Fome e a Pobreza,
convocada pelo Presidente Lula há um ano, obtivemos progressos significativos. Um número
crescente de Governos e de grupos não‐governamentais se está juntando ao esforço para pôr
fim à fome e à pobreza. Esta é a única guerra em que estamos empenhados. A única em que
todos poderemos, um dia, declarar vitória.
No último ano, testemunhamos novamente atos brutais de terrorismo. Civis, mulheres e
crianças inocentes são hoje vítimas de grupos adversários dos valores que compartilhamos.
Como país cuja identidade não pode ser dissociada das noções de tolerância e diversidade, o
Brasil rejeita de maneira veemente esses atos abomináveis, que atentam contra a própria
noção de humanidade. Continuaremos a prestar nosso apoio a uma maior cooperação
281
internacional para o combate ao terrorismo e para a eliminação de suas causas profundas.
Esses esforços devem respeitar o direito internacional e os direitos humanos. A luta contra o
terrorismo não pode ser vista estritamente em termos de repressão por instituições policiais.
Não podem tampouco tais ações resultar em mortes tão absurdas e indiscriminadas como as
provocadas pelo próprio terrorismo. Apesar de não haver vínculo automático entre pobreza e
terrorismo, problemas socioeconômicos severos ‐ em particular, quando combinados com a
ausência de liberdades civis e políticas ‐ são fatores que podem expor as comunidades a
atitudes extremas de grupos fanatizados. Expresso, desde já, a disposição brasileira de
trabalhar intensamente com vistas à pronta conclusão de uma convenção abrangente sobre
terrorismo.
Reconhecemos os riscos da proliferação de armas de destruição em massa. Não podemos,
entretanto, deixar de lembrar a importância de reduzir e desmantelar os arsenais existentes de
todas essas armas. Lamentamos profundamente que a VII Conferência de Revisão do Tratado
de Não‐Proliferação Nuclear não tenha produzido resultados tangíveis. Ao lado dos esforços
para a não‐proliferação, devemos continuar a trabalhar incansavelmente para o
desarmamento nuclear.
Enfrentamos, além dos desafios a que já me referi, duas crises com impacto global: a explosão
pandêmica do HIV/AIDS; e as trágicas ameaças derivadas das mudanças climáticas. O Brasil
continuará mobilizado para promover a implementação dos instrumentos multilaterais para
combater esses flagelos.
Senhor Presidente,
O Brasil está comprometido em reforçar a aliança estratégica com o principal parceiro em
nossa região ‐ a Argentina ‐ e em construir uma América do Sul próspera, integrada e
politicamente estável, a partir de nossa experiência no MERCOSUL, cujo aperfeiçoamento, nos
planos econômico e político, continuaremos a buscar incessantemente. A Comunidade Sul‐
Americana de Nações, fundada em Cuzco, Peru, no ano passado, será um fator de
fortalecimento da integração de toda a América Latina e do Caribe.
Nosso esforço de estabelecer alianças com outros países e regiões estende‐se além do
horizonte regional.
A criação do IBAS ‐ grupo que compreende a Índia, o Brasil e a África do Sul ‐ aliou três
democracias da África, Ásia e América Latina, desejosas de estreitar os vínculos econômicos,
políticos e culturais entre si e suas regiões.
Empenhamo‐nos, junto com outros países, a formar o G‐20, que colocou os países em
desenvolvimento no centro das negociações agrícolas da Rodada de Doha. A ação do G‐20
permitiu, pela primeira vez, no quadro do GATT ou da OMC, associar liberalização comercial
com justiça social.
Fortalecer os laços com a África tem sido uma antiga aspiração brasileira. Nenhum outro
governo no Brasil perseguiu esse objetivo com a determinação do Presidente Lula. O comércio
e a cooperação entre o Brasil e a África cresceram de forma significativa. O diálogo
intensificou‐se. Temos contribuído para a consolidação da paz e da democracia em países
como Guiné‐Bissau e São Tomé e Príncipe. Ajudamos a combater a fome, a desenvolver a
agricultura e, com grande empenho, a lutar contra o flagelo do HIV‐AIDS em vários países
irmãos do continente africano.
Tivemos a honra de, pela primeira vez, ter o Presidente da Nigéria e da União Africana nas
comemorações da nossa data nacional.
A mesma solidariedade inspira a participação do Brasil nos esforços de paz das Nações Unidas
no Haiti. O envolvimento do Brasil, bem como de outros países latino‐americanos, no Haiti não
tem precedentes tanto em termos de presença de efetivos militares quanto de articulação
política. Animam‐nos três objetivos principais: 1) a criação de um ambiente de segurança; 2) a
promoção do diálogo entre as forças políticas, com vistas a uma verdadeira transição
democrática; e 3) o efetivo apoio internacional para a reconstrução social e econômica do
282
Haiti. O Haiti será, possivelmente, o primeiro caso‐teste para a Comissão de Construção da
Paz.
No Brasil, há um renovado interesse pelo mundo árabe, inspirado por fortes laços históricos e
culturais. Além de iniciativas de cunho bilateral, temos procurado fortalecer laços com
entidades regionais, como a Liga dos Estados Árabes e o Conselho de Cooperação do Golfo. Em
maio de 2005, uma inédita Cúpula de países da América do Sul e dos países árabes foi
realizada em Brasília. A Cúpula constitui um evento pioneiro que reuniu duas grandes regiões
do mundo em desenvolvimento, em uma demonstração concreta e efetiva de harmonia entre
civilizações.
Durante diversas viagens ao Oriente Médio, tive a oportunidade de conversar com uma
variedade de interlocutores, incluindo as lideranças israelenses e palestinas. Essas liderabças
estão cientes da disposição brasileira de apoiar o trabalho do Quarteto, como parceiro para a
paz. A prática efetiva da tolerância e do respeito ao outro, e a convivência harmoniosa das
diversas comunidades constituem, talvez, a nossa vantagem comparativa. Percebi que esta
convicção é compartilhada por importantes personalidades e líderes políticos tanto em Israel
quanto na Palestina.
Senhor Presidente,
No limiar de um novo capítulo na vida das Nações Unidas, o Brasil estará comprometido com
os ideais que levaram à criação da única Organização de vocação universal, a única que poderá
garantir um futuro de paz e prosperidade, não para uns poucos, mas para todos.
Muito obrigado.
Discurso do Ministro das Relações Exteriores, Embaixador Celso Amorim, na sessão de
abertura da Reunião Internacional de Alto Nível sobre o Haiti
Embaixador Celso Luiz Nunes Amorim
Ministro de Estado das Relações Exteriores
Palácio Itamaraty, Brasília, 23/05/2006
Excelentíssimo Senhor Roland Pierre, Ministro do Planejamento e Cooperação Internacional do
Haiti,
Embaixador José Miguel Insulza, Secretário‐Geral da OEA,
Embaixador Juan Gabriel Valdés, Representante Especial do SGONU para o Haiti,
Embaixador Edmond Mulet‐Lesieur, Representante indicado pelo SGONU para o Haiti
Senhores Representantes de governos amigos,
Senhores Diretores de Organismos e Bancos internacionais,
Senhoras e Senhores,
É com grande satisfação que o Brasil acolhe esta primeira reunião de representantes de países
e organismos internacionais doadores depois da posse do Presidente Préval.
O Brasil foi dos primeiros países a responder ao chamado das Nações Unidas para a
estruturação de uma presença internacional no Haiti. Naquele momento, há cerca de dois
anos, o Haiti enfrentava, uma vez mais, uma situação de profunda instabilidade, com grandes
custos econômicos, sociais, e, principalmente, humanos. Era imperativo retomar o processo
democrático, com a realização de eleições livres, gerais e transparentes.
Ao responder ao chamado da ONU, o Brasil entendeu que a situação do Haiti não se resumia a
um problema de restauração da segurança pública. Na origem da crise de segurança existia, a
nosso ver, um problema mais sério de pobreza, injustiça social e debilitação das estruturas do
Estado.
Diferentemente de ocasiões anteriores, desta vez procuramos trabalhar simultaneamente em
três vertentes interdependentes e igualmente importantes: a manutenção da ordem e da
segurança; o diálogo político, com vistas à reconciliação nacional; e a promoção do
desenvolvimento econômico e social. Creio que estamos no caminho certo.
283
O Brasil aceitou enviar tropas e assumir o comando militar da Minustah em primeiro lugar por
tratar‐se de uma operação decidida pelo Conselho de Segurança, único órgão com
legitimidade para determinar a presença de tropas estrangeiras em um país soberano.
Também nos animou o natural sentimento de solidariedade regional, e afinidades de natureza
cultural e étnica que justificam um maior envolvimento de países da América Latina e do
Caribe no Haiti.
O Brasil sempre buscou estabelecer pontes para a retomada do diálogo entre o Haiti e os
países da região, muito especialmente os países do Caribe. Por isso, saúdo a decisão da
CARICOM de reintegrar o Haiti à Comunidade, já na sua próxima reunião de Cúpula, no mês de
julho.
Por isso também defendemos a presença da ONU no Haiti, e defendemos que essa presença se
caracterizasse por um forte componente latino‐americano e caribenho. Creio que esse mesmo
sentimento animou países como a Argentina, o Chile, o Peru, o Uruguai, a Guatemala, o
Equador, Paraguai e El Salvador a enviarem tropas para o Haiti.
Quero aproveitar esse momento para transmitir nosso reconhecimento pelo valioso trabalho
do Embaixador Valdés à frente da Minustah ao longo dos últimos dois anos. Gostaria de
saudar, também, a indicação do Embaixador Edmundo Mulet, da Guatemala, para sucedê‐lo. A
escolha de um ilustre guatemalteco reforça nossa convicção sobre a importância do apoio de
nossa região para a reconstrução do Haiti.
Paralelamente à nossa participação na Minustah, começamos a trabalhar em projetos de
cooperação e nos engajamos em uma intensa campanha internacional pela obtenção dos
fundos necessários e a liberação dos fundos já existentes, mas ainda bloqueados, à retomada
do desenvolvimento no Haiti.
De nossa parte, além de contribuir com fundos para a organização das eleições, realizadas sob
a eficiente supervisão da OEA, estamos implementando treze projetos setoriais de cooperação
em áreas de imediato impacto social, como o desenvolvimento da produção agrícola, a
distribuição de merenda escolar, o combate à discriminação de gênero, e o treinamento de
bombeiros, entre outros.
Gostaria de destacar, por um aspecto pioneiro que tem como cooperação Sul‐Sul, o projeto
financiado pelo Fundo IBAS, que reúne Índia, Brasil e África do Sul, de combate à fome e à
pobreza, na área de manejo de dejetos urbanos. Este projeto já começa a dar seus primeiros
passos.
Outra ação inédita que tomamos foi com o Banco Mundial, que, pela primeira vez, está co‐
financiando um projeto de cooperação envolvendo dois países em desenvolvimento.
Nossa cooperação com o Haiti não se deu sem alguma resistência interna. Afinal, o Brasil é
também um país com enormes carências sociais. Com grandes dificuldades, inclusive na área
de segurança. Mas essa é uma lição que aprendi com os próprios brasileiros de origem mais
humilde. Não é preciso ser rico para ser solidário.
Creio que a contribuição do Brasil foi importante para que, hoje, o Haiti tenha uma perspectiva
de futuro.
Nada mais natural, portanto, do que o Brasil acolher esta reunião, que buscará avaliar a
cooperação internacional no Haiti nos últimos dois anos, e definir rumos a serem seguidos, a
partir das prioridades definidas pelo novo governo haitiano.
Esta reunião também deverá preparar a Conferência de Doadores, a ser realizada em julho, em
Porto Príncipe. É fundamental manter essa dinâmica e demonstrar que a comunidade
internacional continuará ao lado do Haiti.
A presença da Minustah no Haiti continuará sendo necessária. O próprio Presidente Préval
afirmou desejar que as tropas da ONU permaneçam no País. Mas o Presidente Préval também
deixou claro que os termos do mandato da Minustah devem ser reformulados, tendo em
mente a nova situação. Nas palavras do presidente, “bulldozers e betoneiras devem ocupar o
lugar dos carros de combate”.
284
O Haiti precisa de um novo paradigma de cooperação internacional, com ênfase em projetos
que produzam resultados focalizados no combate à pobreza e fortaleçam a capacidade do
Estado de prestar serviços à população. Ao mesmo tempo, a comunidade financeira
internacional deve compreender a especificidade da situação haitiana, e adaptar certos
requisitos burocráticos, talvez em si mesmo válidos, mas que no passado freqüentemente
sacrificaram as possibilidades de uma real cooperação com este que é o único país de menor
desenvolvimento relativo do nosso continente.
Acreditamos que um bom caminho para o aperfeiçoamento do Quadro de Cooperação Interina
seja o Programa de Parceria Sustentável proposto pelo novo governo haitiano. Também é bem
vindo o documento sobre a Estratégia Interina para a Redução da Pobreza preparado pelas
novas autoridades haitianas.
Queria dizer também que nós no sul do continente ‐ em breve estará se juntando a nós o
Ministro argentino, como está aqui também o Vice‐Ministro chileno ‐, um grupo de três países,
Brasil, Argentina e Chile, estamos muito empenhados em contribuir. Há outros ainda, vejo aqui
a Vice‐Ministra do Uruguai, o Paraguai também ‐ mas Brasil, Argentina e Chile recentemente
enviaram uma missão ao Haiti com o objetivo de ajudar na própria organização administrativa,
a pedido do Presidente Préval. Creio que este é um exemplo daquilo que nós dissemos em
muitas ocasiões, inclusive nos momentos mais difíceis dessa operação, que é preciso latino‐
americanizar o Haiti. Naturalmente quando digo latino‐americanizar isso inclui o Caribe. O
Haiti não pode, não deve e não é mais visto como o filho enjeitado da América Latina e do
Caribe.
Senhoras e Senhores,
O povo e as forças políticas haitianas deram uma demonstração exemplar de que estão
dispostos a enfrentar os desafios para a renovação de sua sociedade. Cumpriram amplamente
sua parte, por meio da realização de eleições presidenciais e legislativas justas e livres. O
comparecimento às urnas, principalmente nas eleições presidenciais, demonstrou o
compromisso dos haitianos com um futuro de paz e democracia. Recebemos, também, com
satisfação a abertura que o Presidente Préval tem dado às diversas lideranças do país,
essencial para um verdadeiro processo de reconciliação nacional com espírito pluralista.
O Haiti pode contar com o Brasil. O Presidente Lula assegurou pessoalmente ao Presidente
Préval, em sua recente visita ao Brasil, na condição, então, de Presidente eleito, que o
compromisso do Brasil com o Haiti é duradouro. Estaremos ao lado do Haiti enquanto for o
desejo do seu governo, do seu povo.
Não há tempo a perder. Existe, hoje, talvez, uma chance única de reconstrução e reconciliação
nacional desse país irmão. Esse é um teste para o povo e o governo haitianos, mas é também
um teste para a comunidade internacional.
O mais famoso romance haitiano, “Gouverneurs de la Rosée”, de Jacques Roumain, termina
com uma frase de um extraordinário otimismo, quase que um hino à vida, que eu gostaria que
nos inspirasse neste esforço conjunto pelo desenvolvimento do Haiti. Depois de grandes
sofrimentos e da morte do herói, sua viúva consegue realizar os sonhos pelos quais ele lutou e,
respondendo aos lamentos da mãe do marido morto, diz “Não, ele não morreu. E pega na mão
da velha senhora e a pressiona levemente contra seu próprio ventre, onde se agitava a vida
nova”. A comunidade internacional está aqui, como a heroína de Jacques Roumain, sentindo
agitar‐se a vida do novo Haiti.
Muito obrigado.
285
Discurso do presidente da República, Luiz Inácio Lula da Silva, na XV Cúpula Ibero‐
Americana: “A Projeção Internacional da Comunidade Ibero‐Americana”
Senhor Luiz Inácio Lula da Silva
Presidente da República Federativa do Brasil
Salamanca, Espanha, 15/10/2005
Circunstâncias muito especiais marcam nosso encontro. Estamos comemorando o trigésimo
aniversário do Reinado de Juan Carlos I, hoje nosso anfitrião.
O reencontro da Espanha com a democracia e o desenvolvimento marcou as últimas décadas.
Esse processo teve em Sua Majestade um defensor intransigente e líder clarividente.
A transição espanhola para a democracia repercutiu profundamente em nosso Continente.
Inspirou os democratas latino‐americanos em suas lutas pela liberdade.
A decisão do governo espanhol de sediar esta Cúpula na Universidade de Salamanca possui
significado particular. Antes mesmo dos descobrimentos, esta cidade simbolizava o encontro
harmônico de culturas. Nela conviveram árabes, cristãos e judeus. Esta Universidade foi
responsável por uma das primeiras reflexões humanistas sobre a colonização e suas
conseqüências. Aqui prevaleceu a coragem de pensar livremente e de desafiar interesses
estabelecidos.
Nossa Cúpula coincide, também, com o lançamento da Secretaria‐Geral Ibero‐Americana. Essa
iniciativa confirma o compromisso de fortalecer nossa coordenação. Favorece e amplia nossa
voz coletiva.
Estou certo de que meu amigo Enrique Iglesias trará à Secretaria a competência e a capacidade
de trabalho que marcaram sua gestão no BID. Na pessoa da embaixadora Maria Elisa
Berenguer, o Brasil terá a honra de ocupar a Secretaria‐Adjunta e colaborar para dar estrutura
à nossa Organização.
Senhoras e senhores,
A Comunidade valoriza nossa presença coletiva num mundo em profunda transformação.
Aqui podemos discutir sobre os desafios contemporâneos com que se defrontam nossos
países. Aumentam as possibilidades de coordenarmos posições. Estamos unidos pelos ideais
ibero‐americanos. É uma rica experiência política e cultural, em que convivem a latinidade com
os valores e culturas de nossas populações pré‐colombianas e dos afro‐descendentes.
Debatemos, há pouco, a realidade sócio‐econômica de nossos países. Avaliamos como
podemos unir capacidades para atender aos legítimos anseios de nossos cidadãos. Estaremos,
assim, nos habilitando a contribuir para um objetivo ainda maior, a luta contra a fome em
escala mundial.
É essa a razão que levou meu governo a propor uma série de iniciativas dentro e fora de
nossas fronteiras. São ações que buscam promover o desenvolvimento com dignidade e
distribuição de renda.
Nossa Comunidade não está partindo do zero. Vários projetos em curso entre nossos países
testemunham o potencial dessa cooperação. Ressalto, em particular, a iniciativa para
identificar fontes inovadoras de financiamento para o combate à pobreza extrema que
lançamos em setembro passado, em Nova Iorque. Esse movimento, com forte participação
ibero‐americana, recebeu amplo apoio da comunidade internacional.
Isso nos estimula a continuar amadurecendo estudos e propondo medidas concretas. Estamos
contribuindo, assim, para o cumprimento de várias das metas adotadas na Cúpula do Milênio.
O debate ibero‐americano, no entanto, pode e deve ser mais ambicioso. Nossa diversidade nos
permite uma visão mais abrangente e, sobretudo, mais solidária, da complexa relação entre
pobreza, desesperança e violência.
Foi também sob o signo da solidariedade que abordamos o tema da migração. Entre nós, o
fluxo de gente em busca de um novo lar e de novas oportunidades não constituiu,
historicamente, um problema. Contribuiu, seguramente, para a diversificação da paisagem
humana de uma região marcada pelo “encontro de civilizações”.
286
Fiquei feliz que, em nosso debate anterior, fossem apresentadas soluções criativas, permitindo
que o tema migratório em nossos países possa ser resolvido de forma justa e democrática.
Penso, sobretudo, na necessidade de garantir condições dignas aos trabalhadores,
independente de seu status migratório.
Senhoras e senhores,
Há um fio condutor que vincula nossos países e distingue nossa atuação internacional. É a
“afinidade na diversidade”. Ela se alimenta da riqueza de nossas diferenças e nos permite dar
resposta eloqüente às ameaças do mundo contemporâneo. O nome dessa resposta é
tolerância.
Promover a paz, democratizar o sistema internacional, lutar contra o terrorismo, impulsionar o
desenvolvimento sustentável, o combate à fome e à pobreza. Só venceremos esses desafios se
soubermos derrotar preconceitos e desconfianças. É essa a maior contribuição que nós, ibero‐
americanos, podemos prestar. Somos exemplo de que as fronteiras entre Norte e Sul, entre
ricos e pobres, entre religiões, culturas e civilizações, podem e devem ser superadas pelo
diálogo e conhecimento mútuo. Nossa história de lutas também foi escrita em momentos de
convívio e de conciliação.
Senhoras e senhores,
Já estamos mostrando o que podemos fazer nas áreas da cultura e da educação. Trabalhamos
na preservação de nossa herança comum e na valorização de nossas individualidades. Esse é o
objetivo da Carta Cultural, cujas bases estamos adotando.
Investimos em nosso futuro coletivo. Vários dos projetos que estamos implementando
dirigem‐se às nossas crianças e jovens.
O crescimento sustentável deve ser nosso legado para essa nova geração. Dele, dependem
nossas esperanças de paz, democracia e segurança para todos.
Por essa razão, apoiamos com entusiasmo a iniciativa do governo espanhol de converter
dívidas de países mais pobres em investimentos em educação. Recursos desse programa
poderão ajudar na expansão do ensino do castelhano em nossas escolas públicas, onde a
oferta já é obrigatória no ensino médio. Como credor, o Brasil somou‐se a essa idéia dispondo‐
se a perdoar a dívida de Cabo Verde em troca da constituição da primeira universidade pública
daquele país.
As instituições financeiras internacionais têm um papel insubstituível no financiamento do
desenvolvimento, dentro do espírito das decisões de Monterrey. Devemos exigir delas, mais
firmemente, compromissos com o financiamento de programas de infra‐estrutura
indispensáveis à distribuição de renda e ao crescimento.
Por sua vez, gastos com educação, saúde e infra‐estrutura devem ser, em realidade,
caracterizados como investimentos. Somente assim asseguraremos nível adequado de bem‐
estar e de prosperidade para todos os povos ibero‐americanos.
A trajetória recente de nossos parceiros ibéricos, no seio da União Européia, nos serve de
estímulo e inspiração. Vemos, com muita confiança, as parcerias econômicas que estamos
desenvolvendo no âmbito da Comunidade.
Com nossos vizinhos do Mercosul, da América do Sul e com o conjunto da América Latina,
estamos engajados em um processo de integração sem precedentes. Assim como os homens
de negócios, toda a sociedade civil é chamada a participar de nosso esforço de concertação.
Queridos amigos,
A solidariedade que inspira nossa Comunidade Ibero‐Americana leva a marca da inclusão.
Queremos fazer valer nossa visão participativa no cenário internacional, seja nas discussões
sobre a democratização da ONU, seja em favor de negociações comerciais mais justas e
equilibradas.
A luta contra os subsídios que países desenvolvidos dão à produção e às suas exportações
agrícolas deve fazer parte de nossa agenda. Não podemos perder a oportunidade que nos
oferece a Rodada de Doha para construir um mundo mais justo e equilibrado.
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A atuação conjunta de vários de nossos países no Haiti é emblemática do que podemos
realizar. Deve e pode tornar‐se paradigma de um novo modelo de resolução de conflitos e de
apoio a países em grave crise econômica e social. Sem truculência ou hegemonismos,
queremos contribuir para a paz e a reconstrução econômica e social do Haiti.
Nossa ambição e nossa vontade política condicionarão nossa projeção na cena internacional. E
o alcance de nossos projetos estará sempre determinado por nossa capacidade de conciliar
afinidades e diferenças.
Nossa Comunidade deve ampliar seu diálogo internacional, em particular com a África.
Poderíamos começar pelos países de língua portuguesa e pela Guiné Equatorial, de expressão
castelhana, que já manifestaram esse interesse.
Nossa proximidade não é medida apenas em valores e aspirações. Nessa jornada, estou seguro
de que saberemos utilizar, a nosso favor, as maiores virtudes que possuímos: a riqueza
inesgotável de nossa gente e a certeza de que compartilhamos uma história e um destino
comuns.
Muito obrigado.
Embaixador Celso Luiz Nunes Amorim.