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Vivian Patricia Peron Vieira

O lugar da cultura na ação do comando brasileiro no Haiti


segundo os enquadramentos nos proferimentos oficiais e no
jornal Folha de São Paulo

Belo Horizonte
2010
Vivian Patricia Peron Vieira

O lugar da cultura na ação do comando brasileiro no Haiti


segundo os enquadramentos nos proferimentos oficiais e no
jornal Folha de São Paulo

Dissertação apresentada ao Curso de


Mestrado do Programa de Pós-Graduação
em Comunicação Social da Faculdade de
Filosofia e Ciências Humanas da
Universidade Federal de Minas Gerais,
como requisito parcial à obtenção do título
de Mestre em Comunicação Social.
Área de Concentração: Comunicação e
Sociabilidade Contemporânea
Linha de Pesquisa: Processos
Comunicativos e Práticas Sociais

Orientadora: Prof. Dra. Simone Maria


Rocha

Belo Horizonte
2010
Aos meus queridos Madeleine, Aécio e Vanessa,
com o amor que construímos juntos.
AGRADECIMENTOS

Agradeço primeiramente a Deus, pela paz e discernimento.

À querida Simone Maria Rocha por sua orientação decisiva para que esse trabalho se
concretizasse, ensinando-me novos caminhos acadêmicos com tanta competência e
dedicação exemplares. A delicadeza e a seriedade de Simone acompanharam cada etapa
deste mestrado, refletindo não apenas nesta pesquisa, pois sempre as trarei comigo, com
carinho e admiração.

Ao nosso grupo de pesquisa COMCULT, que com o trabalho conjunto de Simone,


Vanessa, Fernanda, Carol, Mariana e Daniela construímos um ambiente de discussão,
inquietações e leituras que contribuíram de forma muito importante para o caminhar
desta dissertação. E compartilhamos muito além de teorias e autores, COSTURAmos
amizades.

Aos dedicados professores do Ppgcom, por trazerem novos olhares e inspirarem


reflexões, em especial ao Prof. Bruno Leal, à Profa. Vera França e à Profa. Rousiley
Maia.

À profa. Bete Sanches Rocha, do curso de Relações Internacionais da UNESP, por nos
apresentar Bakhtin, a importância do diálogo e todo o poder da cultura e da linguagem.

A Daniela Matos e Sivaldo Pereira, pela forma tão atenciosa e generosa que
contribuíram com importantes leituras, críticas e sugestões durante a construção e
finalização desta dissertação.

Ao CNPQ, por auxiliar no financiamento desta pesquisa.

À turma do mestrado 2008, aos novos amigos belorizontinos e a toda boa mineiridade,
que sempre me fez sentir bem-vinda. A Lucilene, Isabela, Bento, Alice, Aquilino,
Daniela, Yasmine, Oswaldo, Ana, Diógenes, Rafael, Érica, Juliana e Silvia. A Iara
Duque, Jefferson e Carminha, que me surpreenderam com bonitas atitudes. A Thomas
Burtscher por ouvir as minhas idéias quando dissertar era uma possibilidade.

Aos queridos boludos – Fabrício Carrijo, Leandro Scavacini, Paula Facci, Luana
Gouveia – por compartilharem de maneira tão especial essa jornada que começou bem
antes, lá na “Escola de Franca”, com nossos ideais transformados em modos de vida.
Vê-los praticar aquilo que construímos juntos me dá mais vontade de continuar. Eles
são feitos de poesia e esperança: “Caminho por uma rua/ que passa em muitos países/ se
não me vêem, eu vejo/ e saúdo velhos amigos” (Drummond)

A Sivaldo Pereira por trazer mais sol e clarear os meus dias escritos... “Felicidade se
acha é em horinhas de descuido” (Guimarães Rosa).

À minha maravilhosa família – Vanessa, Aécio, Madeleine – que estiveram com todo
amor sempre presentes, incondicionalmente... e isto me bastava.
Devo dizer, com toda a honestidade e franqueza,
que o Haiti é um pouco daquilo que o Sócrates
dizia: quanto mais sei, mais sei que não sei. O Haiti
é tão complexo que, cada vez que nos aproximamos
mais do quadro haitiano, vemos mais complexidades
adicionais. Mas isso não deve ser um desestímulo,
mas sim, ao contrário, um estímulo para atuarmos
positivamente.

Celso Amorim, 02/12/2004

Não conheço nenhuma outra realidade que se


aproxime tanto do caos absoluto como a haitiana.
Porto Príncipe, a charmosa capital entre o mar e as
montanhas, parecia uma cidade devastada quando o
meu avião se preparava para aterrissar, em
fevereiro de 2007.

A imensa maioria das casas em condições


precaríssimas; a maioria das pessoas sem emprego,
tentando vender alguma coisa nas ruas; a maior
parte da cidade com esgoto a céu aberto e sem
eletricidade; uma infinidade de crianças descalças e
com algum tipo de doença; gangues com armas
pesadas disputando espaço e influências; um calor
arrasador.

Ainda não consigo acreditar que tamanha tragédia


tenha acontecido sobre o que já era trágico na
essência e nos detalhes.

Luis Nachbin, 14/01/2010, 2 dias após o terremoto


RESUMO

Esta dissertação investiga qual o lugar da cultura na atuação do comando brasileiro na


Missão de Paz da ONU no Haiti (MINUSTAH) frente ao campo político e ao campo
midiático. A análise da assunção brasileira neste proeminente assunto de política
externa é feita sob a abordagem dos Estudos Culturais. Desta forma, a centralidade da
cultura na vida social trazida por este debate teórico permite ver o processo tido como
eminentemente político à luz de sua dimensão cultural. Sob o entendimento da
conveniência da cultura – em que a cultura é avaliada como um recurso a ser
gerenciado, seja para desenvolvimento econômico, para a cidadania, para a amenização
de conflitos políticos etc. – buscou-se compreender a cultura como um recurso acionado
publicamente pelo Estado e pelos media, seja para estreitar estrategicamente os vínculos
identitários entre o Brasil e o Haiti, seja para conformar uma atitude adequada e
concernente aos ditames do cenário internacional e da própria ONU. Especificamente, o
corpus de análise foi definido em dois eixos: um jornal impresso de grande circulação
nacional, neste caso a Folha de S. Paulo (representando a visibilidade midiática do
tema); e proferimentos oficiais de autoridades governamentais brasileiras, do Presidente
Luis Inácio Lula da Silva e do Ministro Celso Amorim, dispostos no site do Ministério
das Relações Exteriores (representando a voz oficial do Estado brasileiro). Utilizou-se
como desenho teórico-metodológico a análise de conteúdo conjugada com a dos
enquadramentos, organizando-se o período recortado dos 4 anos e 2 meses da missão
segundo três estágios operacionais. São eles: 1. Chegada dos capacetes azuis da ONU
no Haiti e estabilização; 2. Preparo para a eleição democrática no país; 3. Situação pós-
eleição e desenvolvimento de outras dimensões da missão – projetos infra-estruturais,
desenvolvimento do país e ajudas frente aos desastres naturais. Assim, aventaram-se
cinco categorias de análise que serviram para filtrar todo o material e identificar o lugar
da cultura nos enquadramentos sobre a MINUSTAH. Consideraram-se inclusive as
diferenciações trazidas em cada fase por influenciarem na análise final, dado o
fortalecimento ou o enfraquecimento no decorrer dos estágios de uma dada categoria e
não outra, trazendo o peso e o lugar da dimensão cultural no processo. As cinco
categorias aventadas foram: Cultura como recurso na estratégia de vinculação
identitária; cultura como recurso de legitimação no Brasil; cultura como recurso da
política para empreender uma cooperação internacional, altiva e adequada às novas
orientações do cenário global; cultura como recurso de uma construção pacífica e
solidária; cultura como recurso de conquista da legitimidade haitiana. Verifica-se que a
cultura foi acionada como um recurso político central neste processo, predominando a
“cultura como recurso da política para empreender uma cooperação internacional, altiva
e adequada às novas orientações do cenário global”.

Palavras-chave: comunicação e cultura; relações internacionais; MINUSTAH; cultura


como recurso.
LISTAS DE ILUSTRAÇÕES

Gráfico1: Distribuição de categorias nos textos jornalísticos .......................................................165


Gráfico 2: Distribuição de categorias nos proferimentos políticos ...............................................167
Gráfico 3: Comparação dos discursos por categoria .....................................................................177
LISTA DE TABELAS

Tabela 1: Textos/discursos separados a partir das três fases delineadas na missão ......................99
Tabela 2: Mapa de codificação das notícias do jornal Folha de S. Paulo .....................................111
Tabela 3: Mapa de codificação dos documentos oficiais ..............................................................111
Tabela 4: incidência de categorias nos textos jornalísticos ...........................................................166
Tabela 5: incidência de categorias nos proferimentos ..................................................................168
Tabela 6: textos jornalísticos e proferimentos segundo as categorias ...........................................169
SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ..................................................................................................................... 10

1 MISSÕES DE PAZ DA ONU E O HAITI: UMA ATUAÇÃO BRASILEIRA E A


CONSTRUÇÂO DO DISCURSO ........................................................................................ 20
1.1 Contexto contemporâneo: Centralidade da paz e mudança de paradigmas nas
Relações Internacionais......................................................................................................... 20
1.2 A visível face da ONU: Missões de Paz .......................................................................... 25
1.3 Novas expectativas para a reconstrução de um velho país: Missão de Paz da
ONU no Haiti ......................................................................................................................... 28
1.4 Especificidades e implicações da liderança militar na MINUSTAH: Por que o
Brasil? ..................................................................................................................................... 33
1.4.1 Aspectos culturais na relação Brasil-Haiti e o discurso brasileiro para o
cenário externo....................................................................................................................... 42
1.5 Campo dos media e campo político no entendimento sobre a MINUSTAH .............. 47
1.5.1 Os proferimentos oficiais dos gestores da missão ...................................................... 47
1.5.2 O discurso do jornal impresso como construto social da realidade ......................... 51

2 COMUNICAÇÃO, CENTRALIDADE DA CULTURA E SUA ATUAL


CONVENIÊNCIA ................................................................................................................. 56
2.1 Comunicação e cultura: Caminhos suturais ................................................................. 57
2.2 A trajetória da cultura: Dos Estudos Culturais à sua atual conveniência ................. 61
2.3 Cultura e política: Uma articulação de meios e fins ..................................................... 73
2.4 Cultura e identidade ........................................................................................................ 81
2.4.1 Transculturação, hibridismo, mestiçagem e crioulidade: modos de olhar para
a América Latina ................................................................................................................... 88
2.4.2 Identidade, imaginário e outras construções ............................................................. 93

3 UMA PROPOSTA METODOLÓGICA INTEGRADA ................................................. 102


3.1Corpus de todo o material................................................................................................ 102
3.2 Dois movimentos para uma análise teórico-metodológica ........................................... 108
3.2.1 Primeira abordagem: o aporte da análise de conteúdo ............................................ 108
3.2.2 Segunda abordagem: o prisma teórico do enquadramento ...................................... 113

4 TEXTOS JORNALÍSTICOS E PROFERIMENTOS POLÍTICOS:


POROSIDADES E OPACIDADES ..................................................................................... 119
4.1 Cultura como recurso na explicitação e aplicação das categorias .............................. 120
4.1.1 Cultura como recurso na estratégia de vinculação identitária................................. 124
4.1.2 Cultura como recurso de legitimação no Brasil......................................................... 136
4.1.3 Cultura como recurso para empreender uma cooperação internacional, altiva
e adequada às novas orientações do cenário global ............................................................ 143
4.1.4 Cultura como recurso de uma construção pacífica e solidária ................................ 150
4.1.5 Cultura como recurso de conquista da legitimidade haitiana .................................. 155
4.2 Análise dos enquadramentos: Qual o lugar da cultura? ............................................. 161
4.2.1 Primeiro estágio da MINUSTAH ................................................................................ 171
4.2.2 Segundo estágio da MINUSTAH ................................................................................ 173
4.2.3 Terceiro estágio da MINUSTAH ................................................................................ 173

CONCLUSÃO: A cultura como um recurso da política ................................................... 175

REFERÊNCIAS .................................................................................................................... 185

ANEXOS I – TEXTOS JORNALÍSTICOS ........................................................................ 190

ANEXOS II – PROFERIMENTO ....................................................................................... 242


10

INTRODUÇÃO

Estudar o Brasil em suas relações internacionais contemporâneas nos convida a


vê-lo ora como espectador, ora como ator, pois múltiplos contextos e situações
atravessam o nosso país invocando-o para participações mais ativas ou mais figurantes.
A despeito de todo o avanço conquistado em matéria de minimização da pobreza 1 em
nosso território e em participações proativas em fóruns multilaterais, como a questão do
desarmamento global, é por razões militares e estratégicas que se evidencia certa
limitação de uma ação mais efetiva do país, ainda que seja esta circunscrita no contexto
microrregional da América Latina. Como foi dito por Almeida (2008) se não há
obstáculos para o Brasil em ascender na ordem econômica mundial devido ao sistema
globalizado, o mesmo não ocorre com a ordem política, a qual exige “capacitação
específica no plano estratégico e militar, o que ainda parece distante de ser atingido pelo
Brasil” (p. 162). Consciente disso, o país concentra interesse em reverter esta condição
de papel secundário na cena internacional, participando neste novo momento do século
XXI de diversas arenas de cooperações internacionais, elaborando pronunciamentos a
favor do desarmamento e combate à fome global, gestando proeminência em assuntos
de defesa e segurança internacionais, dentre muitas outras ações nessa mesma direção.
No espaço ocupado pelo sistema político multilateral, no qual circunstâncias
históricas e interesses específicos se justapõem a necessidades e poder, marcado por
múltiplos atores além dos Estados, como organismos internacionais e movimentos
sociais, a pedra de toque é a Organização das Nações Unidas (ONU). Desde a metade
do século passado ela tem atuado em assuntos de autodeterminação e soberania do
Estado – princípios fundamentais – além da resolução pacífica dos conflitos, defesa dos
Direitos Humanos e cooperação em prol do desenvolvimento econômico, político e
social. Apesar das suas limitações e contradições, a ONU é o único organismo que
harmoniza, de certa maneira, este espaço tão heterogêneo do palco mundial
(ALMEIDA, 2008).

1
Os níveis de pobreza diminuíram substancialmente no Brasil nos últimos anos. Dados da FGV
(Fundação Getúlio Vargas) demonstram que “A proporção de pessoas abaixo da linha de miséria passou
de 27,26% em 2003 para 25,08% em 2004. Em 1992, a proporção de miseráveis era de 35,87%. Apesar
da melhora, uma a cada quatro pessoas no país viviam com uma renda inferior a R$ 115 por mês no ano
passado.” (ver em <http://www1.folha.uol.com.br/folha/dinheiro/ult91u102805.shtml>). Essas mudanças
ocorreram no bojo de uma série de políticas públicas federais como, por exemplo, o “Fome Zero” (ver em
<http://www.fomezero.gov.br/programas-e-acoes>) e mais recentemente o PAC - Programa de Aceleração
do Crescimento (ver em <http://www.brasil.gov.br/pac/>).
11

O Brasil, enquanto um ator responsável e ativo neste espaço, condizente com o


interesse de ser uma figura regional preponderante, bem como em satisfazer ainda mais
os objetivos prementes e multilaterais da ONU, aceita a proposta da organização em
desempenhar uma importante tarefa de segurança internacional e manutenção da paz
regional. Assim, em junho de 2004 o país emerge como responsável pelo comando
militar multilateral da Missão de Paz da ONU no Haiti, denominada pelas siglas em
francês de MINUSTAH – Mission des Nations Unies pour la stabilisation en Haïti.
Esta atuação permanece até a presente data, desenvolvendo-se por três fases
notadamente marcadas: Manutenção da segurança, transição política e reconstrução
material e estrutural. A intervenção busca, num caráter mais geral, reconstruir o país
tanto em suas estruturas institucionais políticas, quanto na própria infra-estrutura das
cidades mais afetadas, seja por causa do colapso interno de ataques entre grupos
armados rivais, seja pelas catástrofes naturais que assolaram o país nestes últimos anos,
como os furacões, enchentes e, mais recentemente, o terremoto de janeiro de 2010.
Nesse país do Caribe, considerado o mais pobre das Américas, as duas últimas décadas
condenaram-no a um profundo enfraquecimento de seus alicerces, sejam estes de
sustentação das instituições públicas – a começar pelo próprio sistema judicial – ou das
infra-estruturas básicas como saneamento básico e rede de comunicações.
Conforme apresentado, a MINUSTAH é um evento predominantemente político,
ancorado pelos ditames da Política Externa Brasileira (PEB), gestado por um general
brasileiro e atravessado pela autorização da posição máxima do Presidente da República
Luís Inácio Lula da Silva, mas que obedece, sobretudo a predisposições onusianas.
Tendo isso como base, nota-se que diferentes foram os enfoques trabalhados pelos
media como um todo e pelos discursos de gestores políticos, em particular. Em especial
observaram-se apelos, invocações e tons culturais em ambos. A exemplo do excerto
abaixo recortado do discurso de chegada do presidente Lula ao Haiti para o amistoso de
futebol entre a seleção brasileira e a haitiana: “Com emoção e alegria, chego ao Haiti
para um dia histórico nas relações entre este país e o Brasil. É a primeira vez que um
Presidente da República brasileiro vem ao Haiti, nação com a qual compartilhamos
raízes africanas comuns” 2 (Grifo nosso).
A presença da natureza cultural num discurso como esse, no qual é invocado
raízes africanas comuns, aproximando os dois países, pode ser justificada e
2
Saudação do Presidente da República, Luiz Inácio Lula da Silva, na chegada ao Aeroporto Internacional
Toussaint Louverture. Porto Príncipe, Haiti, 18 ago. 2004.
12

argumentada por diversos motivos, o que incita a investigar qual o lugar da cultura nesta
missão de paz. Diante do fato de que a cultura é hoje considerada elemento central na
fundamentação da vida social, conforme será apresentado e sustentado no decorrer da
dissertação, investiga-se em que medida um evento, um processo político, comporta,
articula e se relaciona com essa dimensão. Isto reivindica uma nova compreensão das
relações entre política e cultura, remodelando a abordagem sobre a referida missão de
paz e demonstrando a importância da esfera cultural num processo de intervenção
político-militar como esse.
Assim, partindo do caráter singular do Brasil em participação tão ativa em
missões de paz desse gênero, observa-se que as questões culturais emergem ora como
protagonistas, ora como pano de fundo de tal atuação político-militar. Acerca disso,
problematiza-se sobre o papel da dimensão cultural referente a MINUSTAH e como ele
é apresentado no discurso do jornal Folha de S. Paulo e nos proferimentos oficiais
governamentais brasileiros sobre a missão. Possibilitando, a partir disso, que sejam
analisados diversos enquadramentos da cultura.
Nesta pesquisa estes enquadramentos são balizados pela contribuição teórica dos
Estudos Culturais, considerando a compreensão de como a cultura permeia todas as
arenas e relações de maneira intrínseca, presente em toda prática social e, portanto,
inerente ao ato comunicativo. Segundo esta perspectiva, o cenário contemporâneo de
formação e discussão das arenas que envolvem a dimensão da cultura com o campo
político tem vivido uma ampliação considerável no que diz respeito aos temas que aí
adquirem relevância. Vários autores – Hall (2008), Williams (1969), Yúdice (2004),
Denning (2005), Canclini (1999), Martin-Barbero (2001) etc. – têm apontado para esse
fenômeno de ampliação da dimensão da cultura para um novo e destacado lugar,
direcionando inclusive suas reflexões para o que eles consideram ser uma relação
constituinte, onde a cultura rearticula e é acionada por outros campos, como a política e
a economia, e não se apresenta, conseqüentemente, como um fator exógeno a eles.
Entrelaçando-se com este debate e compondo o cerne dessa dissertação, parte-se
especificamente do conceito trazido e desenvolvido por Yúdice (2004) a respeito da
conveniência da cultura, a qual é avaliada como um recurso a ser gerenciado, seja para
desenvolvimento econômico, para a cidadania, para a amenização de conflitos políticos
etc. Ele observou que as agências nacionais e internacionais de fomento da cultura e da
13

arte não mais associavam a cultura à elite, mas como um bem comum a todos,
atrelando-a ao desenvolvimento urbano e econômico.
Assim, um órgão tal como a UNESCO – Organização das Nações Unidas para a
Educação, a Ciência e a Cultura – por causa de seu potencial em conceder
financiamentos é também responsável por criar o discurso sobre “para quê” a cultura
deve servir e como ela deve ser incentivada e subsidiada. Porém, ao contrário de ser a
cultura reduzida ao seu caráter instrumental, trata-se de um avanço sobre a sua simples
representação simbólica. Pois, a cultura deve estar vinculada a todas as outras áreas e
setores da vida social, da vida prática e ordinária (YÚDICE, 2008). Então ao dizer que a
cultura não pode ser negligenciada em temas de desenvolvimento urbano e econômico
significa entender que ela converte o discurso puramente retórico em algo efetivo e de
ordem prática, provocando mudanças substanciais, ou seja, é trazida e invocada
enquanto um recurso a ser gerenciado.
Yúdice (2008) acredita que a cultura é uma arena de dimensão universal quando
se torna um valor para compreender a totalidade da sociedade em relação às suas
diferenças, mas não em torno de um valor único. Assim, ele aborda que o aclamado
discurso da diversidade cultural deve incluir no debate uma multiplicidade de
experiências ao contrário de trazer apenas questões étnicas ou lutas de identidade,
promovendo para isso os atores sociais e criando condições de inserção destes no
desenvolvimento como um todo. Logo, a diversidade cultural deve ser pensada num
contexto mais amplo que englobe desenvolvimento político e econômico, coadunando
com a sua tese da cultura como um recurso. Notadamente, o autor não apresenta um
conceito definido de cultura, e reconhecemos a própria dificuldade geral encontrada por
outros autores ou estudos para a definição, delimitação e conceituação do termo.
Considerando isto, o sentido de cultura para esta dissertação está diretamente atrelado à
discussão que ocorre dentro dos Estudos Culturais e a qual é referenciada, sobretudo no
capítulo 2. Pois, analisando-se os textos jornalísticos e os proferimentos sobre a
MINUSTAH observa-se que o emprego da cultura ainda está fortemente ligado a
determinadas concepções, as quais permeiam o imaginário do que é cultura, a exemplo
de que ela estaria arraigada nos objetos, nos costumes, nas tradições e também nas
relações simbólicas. E, partindo disso pretende-se investigar quanto e como ela é
invocada, seja para justificar ou amenizar a ação da MINUSTAH.
14

Assim, vemos em Yúdice (2004) a abertura de um caminho para que possamos


inferir que o próprio gerenciamento da cultura a ser analisado condensaria o
entendimento que ele faz sobre ela. Isto é mais bem esclarecido quando o autor constrói
seu argumento sobre cultura como recurso ao mesmo tempo em que aborda o
neoliberalismo – com a desregulamentação do Estado e a retomada do controle por
parte de outras instituições e atores – e a nova emersão da sociedade civil e de
organizações não-governamentais (ONGs) no cenário global. Dentro disso, a cultura é
vista como uma ferramenta estratégica para justificar políticas públicas em programas
sociais, políticas afirmativas como forma de amenizar desigualdades, investimentos
financeiros capazes de trazer resultados efetivos para uma pacificação regional etc. Por
esse modo, a cultura não é vista isoladamente, condensando em sua prática outros
interesses e instrumentos de ação.
Assim, apropriando-se desse debate sobre como a cultura passou a ser
gerenciada na contemporaneidade, propõe-se construir a maneira como ela é acionada
enquanto recurso de uma atuação política. Pois, se os discursos dos próprios gestores
brasileiros da MINUSTAH conferem certo gerenciamento estratégico da cultura
invocada, justamente quando ela aparece atravessada por interesses de ações políticas e
econômicas, acaba por adequá-la como um recurso. De igual maneira, a reflexão sobre o
lugar que a cultura ocupa nas matérias do jornal Folha de S. Paulo confirma que ela se
dirige a outras dimensões, como das esferas política e social. Sendo possível perceber,
inclusive, que os mesmos enquadramentos da cultura podem servir para a análise de
ambos, o que indica a porosidade.
Lembra-se que não é um evento por total distante do cidadão brasileiro, o qual
consegue ter acesso aos acontecimentos de atuação externa do nosso país através do que
é tematizado nos media, já que em grande parte dos casos somente assim é possível. Por
isso esse mesmo cidadão ao tomar conhecimento da MINUSTAH quer compreender a
razão de o Brasil se prontificar a exercer tal função numa missão de paz, a qual agrega
uma dispendiosa operação. E não só financeira por empreender recursos militares
(incluindo a manutenção dos soldados), bem como também o dispêndio de atenção dos
dirigentes públicos que já são tão necessários à administração de nosso próprio país, e
que são responsáveis por causa disso, de outros interesses nacionais que tramitam
paralelamente. Naturalmente, como endossa Oliveira (2007) “neste início do século
XXI a política internacional tende a influenciar e a condicionar, cada vez mais, a
15

política doméstica e, portanto, influenciar diretamente no cotidiano dos cidadãos” (p.


276).
As palavras do ministro das Relações Exteriores Celso Amorim ilustram essa
crescente necessidade de justificar e fazer compreender a atuação de política externa
para o cidadão comum:
Até mesmo com relação ao Haiti, ouvimos isso, era um pouco a
dúvida de vários setores da sociedade brasileira sobre se caberia
realmente uma ação tão presente. A tendência das pessoas era um
pouco como “mas por que o Brasil está se metendo nisso?” E eu fiquei
até satisfeito de ouvir uma cobrança no sentido de que o Brasil deve se
meter ainda mais. Então eu acho que isso, digamos, revela que há um
amadurecimento também na sociedade brasileira, que tem a sua
correlação na percepção da sociedade que o mundo tem em relação ao
Brasil, de que nós temos que ter um envolvimento maior, nos temas
não só regionais, mas globais. 3

Esta representação que é feita sobre a MINUSTAH em território nacional é


extremamente importante, pois para a gerência ou resolução de um conflito a
característica do Estado interventor enquanto neutro e imparcial é decisiva tanto para
conseguir ser delegado como agente responsável pela missão pelo Conselho de
Segurança das Nações Unidas, quanto para ser efetivo na resolução prática deste
conflito, junto à população local. Por conseguinte, a conquista do apoio popular é
fundamental para qualquer intervenção desse tipo (AGUILAR, 2008). O trecho a seguir
de uma matéria do jornal Folha de S. Paulo corrobora para criar esta imagem pacífica
do Brasil: “Em discurso, Lula chamou o trabalho das Forças Armadas de ‘exemplar’ e
disse que o Brasil está provando que é possível ter uma força de paz que não seja
‘truculenta’” 4 .
No novo contexto das relações internacionais a ONU “representa a diversidade
cultural, a interdependência global e o papel cada vez mais dinâmico das organizações
civis planetárias” (BRIGAGÃO, 2004, p. 33). Em função dessa dinâmica as missões de
paz contemporâneas e resoluções de conflitos por ela regulados não mais primam pela
imposição da paz, mas principalmente pela manutenção da mesma. Mais do que uma
mudança meramente nominal, veio acompanhada por alterações estruturais no modo de
conceber e desenvolver uma missão de paz, invocando a cultura nessa nova

3
Aula Magna do Ministro das Relações Exteriores, Embaixador Celso Amorim, aos Alunos do Instituto
Rio Branco. Brasília, 04 ago. 2006. Disponível em:
<http://www.mre.gov.br/espanhol/politica_externa/discursos/discurso_detalhe3.asp?ID_DISCURSO=292
7>. Acesso em: 28 mar. 2008.
4
SANDER, Letícia. Lula anuncia obras de infra-estrutura e diz que não quer "tutelar" o Haiti. Folha de S.
Paulo, São Paulo, 29 maio 2008. Caderno Brasil.
16

configuração. Nesse sentido, aproxima-se do debate acerca da centralidade da cultura,


pois questões da ordem simbólica e da construção de sentido passaram a fazer parte
intrinsecamente de uma operação militar como esta. A cultura entrou em suspensão para
adquirir um patamar regulador, e que por tal motivo atingiu uma importância
fundamental para estas novas mediações. Segundo Cruz Jr (2008):
O fortalecimento dos estudos de paz é um fenômeno, portanto, que
decorre de clara conciliação entre inovação teórica do campo [...] e um
inequívoco movimento ético-político, em escala global, que passou a
repudiar a guerra como forma de mudança social no plano
internacional. O conceito teórico-filosófico da justificação passou a
operar em sintonia com o ético-político da legitimação (p. 110).

Assim, se a premissa básica de uma operação de paz é a mínima utilização da


força militar inversamente à maximização do diálogo para se intervir na zona de
instabilidade, torna-se natural pensar-se na relação entre cultura e comunicação dentro
de seu objeto de estudo.
Em certa medida e em consonância com a própria natureza do objeto, trata-se de
uma pesquisa circunscrita pelo recém-chamado Estudos e Pesquisa de Paz, “uma
disciplina que tenta ‘agarrar’ os significados do complexo jogo de interações,
provisionando uma coerência ontológica para o corpo da área, por excelência,
interdisciplinar e multidisciplinar, e internacional por vocação” (BRIGAGÃO, 2004, p.
13). A temática de estudos em conflitos internacionais, cultura e discurso abrange, por
assim dizer, um leque multidisciplinar por natureza. Atravessa áreas como ciência
política, ciências sociais, antropologia, comunicação e, naturalmente, relações
internacionais.
Dentro desta globalidade oferecida pela temática, tanto a escolha do objeto – a
Missão de Paz da ONU no Haiti (MINUSTAH) –, bem como da área que o alicerçará –
Comunicação Social: Processos e Práticas Sociais – são determinantes para direcionar o
caminho percorrido pelo pesquisador e suas expectativas. Em especial, sedimenta-se tal
campo de estudos por possibilitar o imbricamento da estratégia política e ordenamentos
culturais nas suas repercussões nos media, adequando-se à teorização contemporânea da
comunicação, no intuito de apreender essa relação, ora conflitante, ora recíproca, mas
sempre “simbiótica”, presente entre política, comunicação e cultura.
Partindo-se da grande área da Comunicação, este objeto atravessa certas
constrições caras à própria área, ao mesmo tempo em que lhe é permitido dialogar com
outras disciplinas na medida em que tal locução é chamada durante o próprio
17

desenvolvimento da pesquisa. De todo modo, a linha mestre a conduzir esta pesquisa


costura os estudos concernidos à comunicação e cultura.
No que se referem aos estudos de relações internacionais atualmente, a
relevância da cultura na mediação de conflitos e intervenções, como as missões de paz,
tem se apresentado um debate bastante pertinente. Ainda que a cultura fosse um fator
presente desde as primeiras agregações sociais, ela foi relegada à apêndice na relação
entre os Estados. Haja vista que existe, em estudos e teorias dessa área, um nítido
primado do militar, do político e do econômico em comparação com certa invisibilidade
dos aspectos culturais. Por isso a validade de pesquisas que tratem as questões culturais
não de maneira negligenciada, mas determinantes em estabilizações políticas
internacionais, a exemplo da MINUSTAH. Como afirma Sanches Rocha (2009):
Com a capacidade de construção e consolidação de idéias e conceitos,
as formações culturais também guardam o poder de forjar identidades,
conforme os interesses que estejam em jogo. É no mínimo instigante
pensar nas razões que levaram a equação cultura/poder a ocupar um
exíguo espaço na agenda da disciplina relações internacionais, se for
considerado com clareza e sem mistificações o alcance de ações
culturais das mais diversas formas ao longo da História. 5

Isto corrobora para conferirmos à cultura e à sua natureza comunicacional um


dos elementos centrais nesta abordagem investigativa. De maneira que a pesquisa
percorre determinadas lacunas em áreas correlatas tangentes à comunicação e às
relações internacionais, e que podem ser preenchidas, a partir do problema levantado e
da metodologia proposta, justamente através dos proveitos desta interface.
Assim, a estrutura da pesquisa segue, além desta introdução, por mais quatro
capítulos que serão descritos abaixo, no intuito de diminuir o hiato encontrado na
análise de temas semelhantes sobre missões de paz que muitas vezes postergam uma
análise discursiva e cultural para o primado do campo econômico e militar.
Em razão da força que o objeto tem para esta pesquisa ele recebe espaço logo no
primeiro capítulo. Após apresentar o contexto maior onde está inserida a MINUSTAH,
traça-se brevemente o nascimento da ONU e, por conseqüência, a conformação das
operações de manutenção da paz sob a responsabilidade desse organismo internacional
que, dentre outras importantes contribuições, remodelou as relações de força no sistema
internacional. Pois, dado o novo panorama da cena entre os países e as relações
estabelecidas com os novos atores internacionais que emergiam, acrescentando o final

5
Citação sem página, pois o texto está disponível em versão virtual.
18

da segunda Guerra Mundial, a situação de paz foi dada como central, realocando o lugar
antes instável e previsto da guerra iminente. Ainda considerando esta ampliação do
campo onde o objeto desta pesquisa se desenvolve, percebeu-se necessária uma
interlocução com teóricos das Relações Internacionais e de Estudos de Segurança e Paz
devido à permeabilidade e porosidade com que este objeto atravessa tais áreas de
estudo. Para arrematar este capítulo, a própria MINUSTAH é descrita segundo os
acontecimentos históricos e políticos e a relação com o comando brasileiro, colocando
em relevo os principais fatores que suscitaram o problema central de identificar o lugar
da cultura na MINUSTAH. Deste modo, prepara-se o terreno para a discussão teórica
do capítulo subseqüente.
O segundo capítulo é marcado por um adensamento teórico basilar para esta
pesquisa, pois se discute a tese da centralidade da cultura segundo perspectiva dos
Estudos Culturais acrescido da importante tese de Yúdice (2004) sobre a cultura como
recurso. Procura-se ampliar a discussão para evidenciar o modo como as políticas
culturais, de identidade e diversidade fazem parte do processo político o qual é
pesquisado.
No terceiro capítulo o substrato da análise é mais bem desenvolvido. Na
composição do material empírico apuram-se notícias do jornal Folha de S. Paulo
relacionadas a MINUSTAH durante o período de maio de 2004 a julho de 2008, bem
como com os discursos de políticos brasileiros disponibilizados pelo site oficial do
Ministério das Relações Exteriores 6 nesse mesmo período. Este corpus é refinado a
partir da análise de conteúdo conjugada com a teoria do enquadramento, conformando
uma articulação teórico-metodológica considerada adequada ao objeto e problema
levantado. Além disso, delimitou-se a MINUSTAH em três fases: 1. Chegada dos
capacetes azuis da ONU no Haiti e estabilização; 2. Preparo para a eleição democrática
no país; 3. Situação pós-eleição e desenvolvimento de outras dimensões da missão –
projetos infra-estruturais, desenvolvimento do país e ajudas frente aos desastres
naturais. Sendo assim, as notícias e os proferimentos, a fim de serem comparados para o
destaque do lugar da cultura, terão sobre os seus respectivos discursos igual tratamento
de análise. O discurso do jornal prevê uma interação diferida e difusa – devido ao
distanciamento temporal entre produção e recepção –, mas igualmente recíproca, conexa
e porosa com a vida social (BRAGA, 2006). Por isso a articulação entre os discursos e o
6
Disponível em: <http://www.mre.gov.br/portugues/politica_externa/discursos/procura3.asp>. Acesso em
10 mar. 2009.
19

jornal compõe âmbitos distintos para a análise do acontecimento, permitindo que os


enquadramentos feitos no jornal sejam problematizados quando na confrontação com o
próprio discurso dos gestores da MINUSTAH.
Dito isto, completam-se as principais bases teóricas empregadas neste trabalho,
fruto dos estudos que contemplam a posição fundamental da cultura na teoria social
juntamente com a teoria do enquadramento, por permitirem estabelecer uma relação
consistente para atender à demanda do nosso problema de pesquisa. Embora não seja o
foco norteador, o dispositivo do veículo impresso será examinado com mais atenção já
no primeiro capítulo, uma vez que este é tido aqui como o locus privilegiado para se
olhar o acontecimento da MINUSTAH. Inclusive, foi a partir de sua representação nos
media que se inferiu o problema da pesquisa.
Com o desenvolvimento da análise teórico-metodológica possibilitada pelo
capítulo anterior, no capítulo quatro deu-se a criação de cinco categorias de análise que
emergiram das próprias matérias e proferimentos: Cultura como recurso na estratégia de
vinculação identitária; cultura como recurso de legitimação no Brasil; cultura como
recurso da política para empreender uma cooperação internacional, altiva e adequada às
novas orientações do cenário global; cultura como recurso de uma construção pacífica e
solidária; cultura como recurso de conquista da legitimidade haitiana. Com esta
distinção é possível perceber qual categoria tem maior incidência, e por conseqüência,
quais enquadramentos da cultura são identificados nos textos jornalísticos e nos
discursos governamentais. Resguarda-se uma análise acurada para cada fase da
MINUSTAH, divisão esta já elaborada no capítulo três. Busca-se, por fim, compreender
as porosidades e as divergências encontradas na comparação entre os dois campos:
político e midiático.
A condensação destes enquadramentos e o arremate dos resultados obtidos é
concernente à conclusão final, o que possibilita diagnosticar o lugar que a cultura ocupa
nos textos analisados sobre a missão de paz no Haiti, pontuando criticamente esta
reflexão segundo os três estágios. Ao que se refere às relações que os media
estabelecem com a vida social, a partir de seus modos próprios de apresentar temas e
questões, podemos compreender em que medida a porosidade entre aquilo que o
governo brasileiro quer dar a ver através de seus discursos e aquilo que os textos do
jornal Folha de S. Paulo conferem visibilidade são articulados.
20

1 MISSÕES DE PAZ DA ONU E O HAITI: UMA ATUAÇÃO BRASILEIRA E A


CONSTRUÇÃO DO DISCURSO

Apresenta-se neste capítulo o contexto internacional de atuação da ONU,


considerando a regência dos paradigmas das relações internacionais e o desempenho
específico das missões de paz. Após a preparação deste pano de fundo, a MINUSTAH é
trazida e explicada a partir do seu vínculo brasileiro nos âmbitos governamental e
militar, atrelando a sua construção enquanto acontecimento ao campo político e ao
campo dos media. No caso desta dissertação, abarca-se a visibilidade durante quatro
anos trazida sobre a MINUSTAH através dos proferimentos de políticos, de um lado, e
do jornal Folha de S. Paulo, de outro, ambos analisados segundo os aspectos dos seus
discursos.
Portanto, é abordando esta produção discursiva que este capítulo se encerra.
Tendo como horizonte as especificidades de cada campo, apropria-se primeiramente de
autores concernentes ao meio da comunicação para apresentar a importância dos media
na construção social da realidade, marcando as características do jornal impresso, e, em
seguida, concentra-se na importância do discurso dos representantes do Estado
brasileiro, observando o modo como eles próprios, oficialmente, dão a ver o processo de
intervenção.

1.1 Contexto contemporâneo: Centralidade da paz e mudança de paradigmas nas


Relações Internacionais

Nós não podemos nos concentrar somente na


negatividade da guerra, mas também na
positividade da paz.
Martin Luther King

A Organização das Nações Unidas (ONU) corporifica a maior organização


multilateral formal das relações internacionais atuais. Ela é composta por 192 Estados
soberanos, todos em aquiescência sobre os direitos e deveres previstos no texto da Carta
das Nações Unidas (2009). Escrita na criação da ONU 7 , a Carta – que juridicamente
equivale a um tratado internacional – entrou em vigor através do tratado constitutivo no

7
A Carta foi assinada no dia 26 de junho de 1945 em São Francisco, nos Estados Unidos, ao final da
Conferência das Nações Unidas.
21

dia 26 de outubro de 1945. Nesta data de promulgação o referido documento foi


ratificado por 51 países, entre eles o Brasil. A partir deste momento legitimou-se uma
força coletiva – não apenas militar, mas também simbólica –, expressão de um poder
comum consensualmente compartilhado, em contraposição ao equilíbrio de forças
unilaterais que outrora imperava na arena internacional.
Notadamente, com o estabelecimento da ONU no decorrer do século passado
houve não somente uma clara reconfiguração da relação entre paz e guerra, bem como
um novo entendimento a respeito de cada um desses dois clássicos conceitos antitéticos.
A tradição de um sistema interestatal antes da Liga das Nações 8 era marcada por
ausência de regras reguladoras da ação dos Estados, por isso mesmo anárquico, onde
estes detinham soberania plena para agir de acordo com seus próprios interesses
particulares, devido à grande ênfase na representação basicamente do Estado dentro dos
mecanismos internacionais. Atualmente, na política internacional contemporânea há
uma presença de representantes diversos no cenário, conferindo uma relação
complementar e constitutiva entre Estado, mercado e sociedade civil 9 . Esta última
emergiu na década de setenta, tematizando uma agenda transnacional de questões como
meio ambiente, democracia, direitos humanos, terrorismo, direitos de minorias etc.
(OLIVEIRA, 2007).
A ONU foi fundada primordialmente “[...] para manter a paz e a segurança no
mundo, fomentar relações cordiais entre as nações, promover progresso social, melhores
padrões de vida e direitos humanos” 10 . Em consonância com isto, sua atuação centra-se
em questões de paz e segurança internacionais, resolução de conflitos e política de
cooperação multilateral. Uma vez que a bandeira por ela levantada é a de buscar
soluções pacíficas perante as controvérsias internacionais, as Missões de Paz sob o seu

8
A Liga das Nações, ou sociedade das nações, é considerada antecessora da ONU. Foi idealizada pelos
vencedores da I Guerra Mundial, em Versalhes, no ano de 1919. Com o Tratado de Versalhes, entrou em
vigor em 1920, na intenção de assegurar a paz entre os países. Porém, com a II Guerra Mundial, a Liga
demonstrou pouco êxito em seu intuito, e, já praticamente extinta, logo cedeu lugar a ONU, dado que seu
fim formal foi em 18 de abril de 1946.
9
Desde a chamada “redescoberta da sociedade civil”, a partir da década de 1970, a correlação de forças
no cenário político – nacional e transnacional – foi reconfigurada. Isto se deve, em grande parte, à
articulação de organizações cívicas convergindo interesses e direcionando a atuação no espaço público.
Remodelando este espaço, numa relação de constante tensão e interdependência, estão a sociedade civil e
o Estado. Importante, nesse caso, vincular que “a noção de ‘movimentos sociais’ tem uma dupla
dimensão: ela é tanto uma forma de ação como um tipo de ator social.” (MENDONÇA, 2007, p. 2).
Assim, num caráter reflexivo entre o agente e a ação, os movimentos sociais se constroem enquanto
atores, ao mesmo tempo em que engajam por diversas lutas e transformações, sejam de ordem política,
econômica ou cultural.
10
Sítio oficial das Nações Unidas no Brasil. Disponível em: <http://www.onu-brasil.org.br/>. Acesso em
15 mar. 2009.
22

regime cumprem este papel prático, ainda que elas não estejam explicitamente
referenciadas na Carta das Nações Unidas (GARCIA, 2004; BRIGAGÃO, 2004).
Entende-se como única exceção para o uso da força por parte dos Estados,
prevista na Carta da ONU (2009), no caso de legítima defesa individual ou coletiva e no
emprego coletivo de força para manter ou restabelecer a paz e a segurança
internacionais. O Conselho de Segurança (CS) 11 da ONU é competente para
“determinar a existência de qualquer ameaça à paz, ruptura da paz ou ato de agressão”
(GARCIA, 2004, p.70), dado que o uso da força é apenas pautado e cogitado quando
revestido de caráter de sanção, isto é, quando houver infração do direito internacional
ou quando estiver sob o argumento de instauração da paz numa determinada zona de
conflito. Ambos são casos que devem ser bem analisados numa intensa deliberação 12
entre os membros do Conselho, porém, em certos casos, os países diretamente afetados
são convidados também a participar da decisão do Conselho.
Nesse último caso de restabelecimento da paz, a Carta da ONU (2009) não a
trata explicitamente, mas abre a prerrogativa para um espaço costumeiramente
intitulado de “Capítulo VI e meio”, o qual abarca as chamadas operações de
manutenção da paz, pois “se situaria entre a adoção de medidas direcionadas à solução
pacífica de controvérsias (Capítulo VI) e a utilização de medidas coercitivas (Capítulo
VII)” (GARCIA, 2004, p. 71). Sendo assim, o capítulo VI comporta as ações
consentidas, enquanto o VII as ações impositivas, o que torna compreensível uma
missão de paz se situar no entrelaçamento dos dois.
Conforme é visto, a imposição da paz é regulamentada na Carta das Nações
Unidas, mormente no capítulo VII, prescrevendo o respeito aos Direitos Humanos, a
proteção da população civil, o restabelecimento do governo da área ocupada pela
sociedade autóctone e, por fim, que a ação das forças de ocupação seja estritamente nos
termos do mandato de que foram investidas. Entretanto, a questão do uso da força por

11
O Conselho de Segurança é formado por cinco membros permanentes: China, Rússia, Estados Unidos,
Alemanha e França. Costuma-se dizer que cada membro do Conselho tem poder de veto, entretanto, o
texto da Carta não fala diretamente em veto, mas em voto afirmativo de nove membros, incluindo os
cinco membros permanentes. Subentende-se o veto no caso de um voto negativo por um de seus
membros.
12
A concepção de deliberação é cara a diversos autores da área de Comunicação e Política, como
Habermas (1997), que a entende como uma discussão entre indivíduos iguais através de trocas
argumentativas e uso das razões moralmente motivadas, numa busca cooperativa de solução para
problemas políticos e da ordem da esfera pública. Entretanto, por não ser objetivo deste trabalho tratar
deste tema, a palavra deliberação adquire um sentido mais amplo e menos conceitual, isto é, de discussão
e debate.
23

parte das missões de paz é impossível de ser delimitada e regulada, uma vez que não se
pode definir quando a força é potencialmente impositiva ou não, isto é, torna-se difícil
prever quando é necessário o uso mais efetivo do poderio militar (GARCIA, 2004;
PROENÇA JR, 2006).
É preciso entender este espaço criado dentro da ONU para a imposição da paz
frente a conflitos ou instabilidades do globo, imposição esta caracterizada através de
controle de meios militares multinacionais, partindo não apenas das críticas feitas no
que tange a atuação e pouca efetividade da ONU, mas também considerando sua
evolução enquanto um organismo vivo nas relações internacionais. Inserindo a ONU,
desse modo, em um fenômeno reflexivo de um contexto histórico mais amplo. Decorre-
se que na nova agenda internacional o poder é exercido, justificado e compartilhado
entre não somente os Estados soberanos, mas incluindo também outras instituições.
Assim, a partir dos anos 90 tanto a Assembléia Geral da ONU quanto o Conselho de
Segurança passaram da simples retórica para uma atuação mais ativa na cena
internacional, haja vista as pressões exercidas por diversos âmbitos, alguns mais
institucionalizados do que outros, porém todos conscientes de sua própria legitimidade e
direitos no novo cenário (CRUZ JR, 2004).
As críticas mais contundentes no que tange a ausência de legitimidade, a pouca
eficiência e inoperância da ONU em grande parte não vislumbram como um todo o
cenário em que ela atua, pois ainda que o multilateralismo seja a expressão do
consentimento mútuo no cenário internacional, a ONU não é a única fonte de
legitimação de processos de paz. Tão logo, a debilidade e impotência deste organismo
são compartilhadas por todas aquelas – organizações e instituições formais ou não – que
lutam contra a guerra e a violência. Na realidade, o grande avanço da ONU está em
desautorizar o uso da força unilateral como opção legítima da política internacional. Se,
por um lado “há consciência de que o sistema de solução de conflitos das Nações
Unidas – que continua sendo uma construção político-diplomática e, portanto, ajurídica
– deva adquirir maior eficácia” (SEITENFUS, 2009, p. 11), por outro lado a impotência
da ONU é mais da ordem involuntária do que inoperante. Isto porque ela não é
responsável única por todas as situações lamentáveis de guerras e mortes, uma vez que
nem sempre dispõe de condições efetivas (tropas próprias) para intervir, e nem mesmo
autonomia para decidir sobre qualquer tipo de intervenção (ALMEIDA, 2008;
SEITENFUS, 2009).
24

Destoando da construção dos pilares da ONU está a emblemática invasão do


Iraque em 2003, por parte dos Estados Unidos, sem o consentimento do CS das Nações
Unidas. Nesta ocasião, sob alegação de defender os interesses nacionais, o então
presidente vigente G. W. Bush infringiu as regras da política internacional, regras que
os EUA compartilhavam, expondo por esta ação as suas pretensões claras de se orientar
na cena internacional apenas por conveniência própria.
Em oposição ao desequilíbrio provocado por esta atitude unilateral, uma
convergência entre China, Rússia, Alemanha e França foi inevitável, reequilibrando a
relação que parecia ter-se tornado desigual por causa da intenção hegemônica por parte
dos EUA (ALMEIDA, 2008; OLIVEIRA, 2007).
O diplomata e teórico das relações internacionais Roberto Almeida (2008)
ressalta que a paz não pode ser plenamente assegurada, embora o uso ilegítimo da força
seja cada vez menos encorajado e raro na cena contemporânea internacional.
Partilhando de uma visão mais dura em relação ao que o cenário interestatal pode ainda
configurar, a depender da relação de forças e interesses entre os Estados, e
possivelmente sustentando esta atitude unilateral norte-americana, Almeida (2008)
posiciona-se que
não quer dizer que o direito internacional – e suas manifestações
institucionais, como a ONU e outras agências intergovernamentais –
venha prevalecer sobre a vontade dos Estados-nacionais e, sobretudo,
acima desses impérios: a ameaça do uso da força deve permanecer
como a ultima ratio da política internacional durante um bom tempo
ainda, enquanto, pelo menos, a lógica westfaliana continuar a
prevalecer (p. 153).

Partilhando disto, pode-se apreender que as missões de paz se apóiam no


emprego de força militar respaldada como necessidade última na resolução do conflito,
dado que outros meios já não seriam mais efetivos. E, embora não possam negar que
atuam como intervenções militares, tais missões procuram se firmar como solução
pacífica e positiva das controvérsias internacionais, já que, desde o advento da Paz de
Westfália 13 em 1648 até o final da Guerra Fria em 1989 trabalhou-se com a definição de
paz negativa ou restritiva, “identificada como a mera ausência de guerra” (CRUZ JR,
p.88, 2004). E por isso é possível associar à idéia de paz, dentro dessa concepção,

13
O referido Tratado estabeleceu que nenhuma entidade, inclusive religiosa, poderia interferir em
assuntos domésticos dos Estados, de modo que este exerceria sua soberania de forma irrestrita e
incondicional (OLIVEIRA, 2007).
25

autores como Maquiavel e Clausewitz 14 , pois neste período a segurança pública só


existia dentro da jurisdição e soberania de cada Estado. Já no cenário externo o espaço
era disputado entre os Estados de forma anárquica, onde tudo valia sob o argumento da
proteção nacional. O antípoda para a paz neste contexto não é a guerra, mas a anarquia,
sendo, portanto, o combate ao anarquismo o objetivo primordial da atividade política.
Contrário a isso, passou-se então a associar, após a segunda Guerra Mundial, a
questão da paz à autonomia e cooperação, mais do que mera questão de estabilidade,
reconfigurando a guerra como ato ilícito. Pois, “até 1945 a guerra é justa ou injusta.
Desde então ela é lícita ou ilícita. Há uma importante mudança de perspectiva. É
consolidado o princípio de cooperação que se torna fundamento do multilateralismo das
Nações Unidas” (SEITENFUS, 2009, p. 12).
Diante desse novo parâmetro criado a respeito do uso da força, os mecanismos
multilaterais das missões de paz receberam outra envergadura no interior do debate das
Nações Unidas. Envergadura esta que extravasa o uso da força militar para atravessar
outras questões, como assuntos humanitários e de cooperação, incluindo o respeito às
relações interculturais. Por tal contexto, as missões de paz engendram intensos, amplos
e múltiplos debates e são, sem dúvida, a face mais visível da ONU para a opinião
pública geral.

1.2 A visível face da ONU: Missões de paz

As missões de paz, em concordância com os ditames das Nações Unidas, agem


em dadas regiões do globo cujos princípios básicos de orientação do cenário
internacional estejam em desarmonia. Isto é, quando ocorre desrespeito aos Direitos
Humanos sob a cobertura de um Estado ou, por exemplo, quando perpetrações militares
são geridas por iniciativa de outro Estado (ou uma coalizão de Força multinacional) em
regimes de Estados democraticamente já estabelecidos, pois nesse caso há um
desrespeito à soberania nacional.

14
Nicolau Maquiavel (1469-1527) e Carl Clausewitz (1780-1831) são autores clássicos da corrente
realista nas relações internacionais. Eles prescrevem o uso da força pelo Estado seja em suas relações
internas ou externas. São responsáveis pelas respectivas máximas, as quais ilustram um pouco do
pensamento que os norteavam: “Os fins justificam os meios”, do livro “O príncipe”, publicado
postumamente em 1532, e “A guerra é a continuação da política por outros meios” do livro “Da guerra”,
também publicado postumamente em 1832.
26

As missões possuem condições de atuação intrínseca e extrínseca a ONU. A


primeira condição abarca a legalidade interna a ONU, em relação à Carta das Nações
Unidas e suas resoluções, ao passo que a segunda condição trata do respeito à soberania
dos países que serão objeto do mandato das forças de paz. Dado que o princípio basilar
do Direito Internacional calca-se na igualdade soberana entre Estados e considerando o
princípio da territorialidade, compreende-se que “Como as forças de paz não se
amparam em normas excludentes, apenas quando o Estado-alvo da missão de paz
estiver disposto a ceder o seu território para a presença estrangeira é que isso poderá ser
feito” (BORGES; GOMES, 2004, p. 311).
Segundo Borges e Gomes (2004) as operações de paz 15 estão a serviço da ONU
para imposição de suas prerrogativas constitutivas, correspondendo a “intervenções de
terceiros, com organização e direção internacional, fazendo uso de forças multinacionais
para restaurar ou manter a paz entre Estados ou no interior desses” (p. 304). Mais
adiante os mesmos autores complementam que “missões de paz são todas as missões
destinadas a promover, manter ou construir a paz, lançadas e aprovadas pelo Conselho
de Segurança das Nações Unidas (CSNU) sob abrigo de dispositivos da Carta da ONU
que não os contidos no Capítulo VII” (BORGES; GOMES, 2004, p. 307).
O termo correto adotado dentro das Nações Unidas, ainda que não seja
explicitado na Carta, é o termo em inglês peacekeeping operations (PKO) – Operações
de manutenção da Paz – as quais funcionam tal qual uma medida provisória, com
fundamento no artigo 40 e seguindo os ditames do capítulo VI, além de considerar
outros preceitos contidos no capítulo IX, uma vez que desempenham funções de cunho
humanitário e social. Em razão dos ataques de 11 de setembro 16 e seus desdobramentos
houve uma alteração política das missões de paz de maneira a não serem vistas apenas
como uma força de estabilização pontual, mas cada vez mais multidimensional e
multidisciplinar, possibilitando que o apoio à paz crie uma solução sustentável. Pois
O mandato de uma missão tem que dar base à construção do
monopólio da força por parte de quem venha a assumir a tarefa do
governo. Mais ainda, um governo que tem resultados dos mecanismos
15
Alguns autores diferenciam a nomenclatura operações de paz, missões de paz e forças de paz.
Entretanto, os teóricos aqui trabalhados fazem menção explícita de que na abordagem que desenvolvem
são concebidas como sinônimos. Em consonância, esta é a mesma semântica adotada nesta pesquisa.
(BORGES; GOMES, 2004).
16
Estudos de relações internacionais, principalmente os que tangenciam a temática de paz e segurança,
não podem negligenciar a reconfiguração do cenário internacional em decorrência aos ataques terroristas
nas torres gêmeas no dia 11 de setembro de 2001 e a atitude subseqüente do maior poderio militar da
atualidade, os Estados Unidos, os quais desencadearam, dentre outros, a “luta contra o terror” e a invasão
do Iraque.
27

e expectativas que conformam a agenda comum dos estados-membros


da ONU (PROENÇA JR, 2006, p. 234).

Até o final dos anos 80 as missões cumpriam a função de cessar-fogo em áreas


de conflito, promover tréguas e armistícios, patrulhar fronteiras e zonas de exclusão
militar, auxiliar na assinatura de tratado de paz em definitivo, apoiar a retirada de
tropas. Estas são as chamadas PKO de primeira geração. Enquanto as PKO de segunda
geração são também responsáveis pela ajuda humanitária (comida, remédio, água etc),
realocação de ex-combatentes, policiamento ostensivo e controle da ordem em áreas
civis, realização e observação de eleições, assumindo em alguns casos efetivamente a
autoridade governamental transitória. Nesta segunda geração, que vigora desde a década
de 90, há também um conjunto de atores institucionais mais amplos vinculados nas
missões de paz e que agem em colaboração com as responsabilidades previamente
determinadas pela operação. No caso da MINUSTAH, por exemplo, há empreiteiras e
construtoras associadas à construção civil recuperando a infra-estrutura do país, bem
como a vigilância in loco de organismos internacionais a zelarem pelo respeito aos
Direitos Humanos durante atuação das tropas militares no Haiti.
Ainda que um dos princípios fulcrais das referidas missões da ONU seja o
consentimento dos países monitorados buscando o consenso das principais partes
envolvidas, o prosseguimento da operação pode ocorrer a despeito de algum membro
litigante secundário que se posicione contrariamente. Um dado interessante a ser
considerado é que “metade das PKO foram convocadas por um terceiro país que
intermediou um acordo para o fim das hostilidades, apenas um quarto foi convocado
pelas partes diretamente interessadas, ao passo que o restante derivou de iniciativas do
CSNU” (BORGES; GOMES, 2004, p. 312). Isto indica a pequena proporção no
panorama geral das operações em que há nítida iniciativa da ONU, apontando que ela
não é a única instância para resolver pacificamente as controvérsias internacionais.
Outra informação que também surpreende é o fato de ainda que seja o Conselho
de Segurança o responsável a deliberar sobre as operações, a operacionalização em si é
feita por aqueles que não participaram das decisões, isto é, a maioria é realizada por
países em desenvolvimento (SEITENFUS, 2009). Avaliando-se caso a caso destes
países isto pode ser interpretado de diversas maneiras, como interesses estratégicos,
tentativa de demonstração militar aos demais atores efetivamente mais poderosos,
solidariedade e cooperação com as missões etc.
28

No caso do Brasil, a dinâmica em participações de missões de paz começou


tímida, porém marcou certa continuidade nas relações que se fortaleciam do Brasil com
a ONU, indicando que a conduta da política externa ainda que pequena ou secundária,
agia em consonância com os processos de paz que se iniciaram na segunda metade do
século passado.
O país [Brasil] tem participado de operações de paz quando estas
possibilitam: apoio à ONU como legítimo foro internacional para
dirimir controvérsias globais, manutenção da estabilidade política
regional (afirmando seu poder e prestígio relativos), ou suporte para
os países que partilham de laços históricos e culturais conosco,
notadamente os de língua portuguesa (BORGES; GOMES, 2004, p.
322).

A justificativa brasileira considerada pelos autores Borges & Gomes (2004),


marcada por certas razões como estabilidade política e partilha de laços culturais e não
outras, como poderia ser da ordem de interesses econômicos, mostra que a decisão em
fazer parte de uma PKO não é centrada nos aspectos político-econômicos somente,
embora tais aspectos comumente balizem a política externa brasileira. Então:
Consciente de sua obrigação frente aos dramas que penalizam a
sociedade internacional, especialmente seus integrantes mais frágeis –
os Estados desestruturados e a população civil – o Brasil estipulou
como princípio constitucional – entre os princípios que regem a
atuação brasileira no sistema internacional, segundo a Constituição
Federal de 1988, estão « a defesa da paz, a solução pacífica de
conflitos e a cooperação entre os povos para o progresso da
Humanidade » (artigo 4°) – o que já havia adotado como prática de
sua atuação externa: a efetiva contribuição para a solução pacífica dos
conflitos internacionais (SEITENFUS, 2009, p.2).

Com este posicionamento, o nosso país demonstra interesse e responsabilidade


para atuar a serviço de um ambiente internacional estável, pacífico e cooperativo.

1.3 Novas expectativas para a reconstrução de um velho país: Missão de Paz da


ONU no Haiti

O Haiti que hoje vemos e o qual apoiamos sob o guarda-chuva da


ONU – que é o único guarda-chuva que queremos usar. Como estaria
sendo resolvida a questão do Haiti? Talvez por uma ex-potência
colonial, por uma outra potência hemisférica. E graças aos esforços da
humanidade, temos hoje as Nações Unidas, que nos fornecem um
quadro adequado para agirmos não apenas para preservar a paz, mas
também para construir o futuro, construir o desenvolvimento. As
pessoas criticam a ONU – às vezes eu também critico –, todos
criticamos, porque todos queremos mais, e queremos mais agilidade,
29

queremos que a ONU ajude a combater a fome de maneira mais


eficaz, como o Presidente Lula pediu e como o apoiou o Secretário-
Geral Kofi Annan. Todos queremos mais, mas pensemos, por um
momento, em um mundo sem a ONU e teremos um panorama
certamente muito mais sombrio que aquele em que vivemos. Até
porque, como se disse várias vezes, é possível fazer a guerra sem a
ONU – não é justo, mas é possível –, mas construir a paz sem a ONU
não é possível. 17

Nos anos de 2003 e 2004, o Haiti atravessou uma séria crise em função da
desestruturação do governo de Aristide, o então presidente daquele país, envolvendo
inclusive acusações de fraude em sua eleição, cujo colapso ocorreu com a renúncia do
presidente haitiano, precipitada pela atuação da ONU 18 . Em seqüência foi conduzida
pelos países do Cone Sul – Brasil, Argentina e Chile – uma iniciativa regional de ação
multilateral regida pelas Nações Unidas. Configurada tal iniciativa na MINUSTAH em
28 de maio de 2004, esta representou a quinta Missão de Paz gestada no Haiti desde
1993, todas com o intuito de restabelecer a ordem institucional e democrática nesse
país. Ela foi criada pela Resolução 1.542 do Conselho de Segurança, em substituição à
força multinacional de emergência – firmada na Resolução 1.529/2004 do CS –, a qual
havia sido organizada de forma premente em razão da vacância do poder no Haiti
decorrente da partida, em 29 de fevereiro de 2004, do Presidente Jean-Bertrand Aristide
(SEITENFUS, 2009).
Em realidade, o Haiti não tem tradição democrática. A colônia francesa no
Caribe conquistou independência através da revolta de sua majoritária população negra
em 1794 19 . Promulgou a primeira Constituição em 1816, feita pelo então presidente na
época Alexandre Pétion. Porém, tantas eram as restrições para participação do voto que
apenas 3% da população – basicamente elite e militares – é que monopolizavam a

17
Palavras do Ministro das Relações Exteriores, Embaixador Celso Amorim, na abertura do Seminário
“As Nações Unidas: Paz, Direitos Humanos e Desenvolvimento em um Novo Cenário Internacional”, por
ocasião do 61° aniversário das Nações Unida. Brasília, 24 out. de 2006.
18
Há autores que consideram a renúncia de Aristide uma forte articulação política com a participação dos
Estados Unidos e da França, acompanhada de um golpe de estado (CHOMSKY; FARMER; GOODMAN,
2004).
19
A emancipação política do Haiti é datada de 1804. Esta emancipação é suis generis na medida em que
foi conquistada por uma revolta de escravos descendentes de africanos, cujo processo de libertação
ocorreu em 1794, quando então pertenciam à metrópole francesa (desde 1630), já que foi abandonada
pela sua primeira metrópole, a Espanha. É importante lembrar que no final do século XV, com o início da
dominação espanhola na região começou também o processo de dizimação de toda a população indígena
local, de modo que para atender à rentável monocultura da cana-de-açúcar empenhada pela metrópole foi
necessária a ampla introdução dos escravos negros africanos. No final do século XVIII, 90% da
população da colônia de Saint Domingue – assim denominada enquanto colônia francesa – era composta
por negros (GRONDIN, 1985).
30

escolha dos dirigentes. Diante disso, o poder sempre foi concebido como centralizado
em uma única figura personificada no interior da política do Haiti (SEITENFUS, 2009).
E, embora tenha sido o segundo país independente das Américas, tardando apenas para
os Estados Unidos, o povo ainda luta por construir o país de forma verdadeiramente
livre.
Neste processo que vem desde a época colonial, marcado por interesses externos
de ordem geoestratégica e econômica, além da própria luta interna pelo poder, acentua-
se em 1986 a crise haitiana – acrescida pela corrupção, centralização de poder,
repressão, desrespeito aos princípios básicos da democracia representativa e do Estado
de Direito etc. Tal situação desestabilizava a organização interna do país de modo a
parecer latente uma guerra civil, a qual uma vez desencadeada desestabilizaria toda a
Bacia do Caribe. Em 1986, o ditador Jean-Claude Duvalier 20 foi deposto e embora o
povo comemorasse as possibilidades de redemocratização do país, a instabilidade
permanecia. Em 1990, eleições livres conduziram ao governo o padre Jean Bertrand
Aristide, deposto no ano seguinte através de um golpe, com indícios de participação
norte-americana. A partir da década de 1990, o governo de Washington e a ONU
passaram a exercer fortes pressões sobre o governo militar haitiano, exigindo o respeito
à democracia instaurada na mesma década. Os EUA, ainda que tivessem tentado um
acordo pacífico, só conseguiram estabilizar parcialmente o Haiti através do comando de
uma força militar multinacional sob o aval da ONU (CAMARA, 1998). No entanto,
diante da permanente instabilidade política haitiana, novamente apresentavam-se
pequenas as chances da normalidade democrática do país, com eleições livres e a
alternância de presidentes segundo as normas constitucionais.
Entendendo o reflexo desse ambiente, a MINUSTAH, criada em maio de 2004,
orientou a sua ação na manutenção da ordem e da segurança; no incentivo ao diálogo
político para a reconciliação nacional; e na promoção do desenvolvimento econômico e
social. Além disso, a questão cultural também é considerada e desenvolvida como um
importante aspecto a ser trabalhado nesse âmbito, prescrita inclusive nos preceitos da
forma de gerir uma Missão de Paz da ONU (HIRST, 2007; SEITENFUS, 2007).
Cabe ressaltar que a MINUSTAH está vinculada à “expansão das operações de
paz com o fortalecimento do primado da paz inter-democrática na comunidade

20
A deposição de Jean-Claude Duvalier foi estimulada pela opinião pública internacional e por
movimentos populares internos, e pôs um fim à dinastia sangrenta de pai e filho, ocorrida entre os anos de
1957 e 1986 (MARTINS, 2006).
31

internacional” (HIRST, 2007, p. 3), pois, supõe-se que os regimes democráticos seriam
menos propensos a deflagrarem guerra. Além de tais regimes disporem de meios
políticos mais adequados para participarem desse tipo de operação. Nesse contexto
político circunscreve as Forças Armadas Brasileiras.
Em geral, a evolução das missões de paz demonstra amadurecimento frente às
críticas recebidas, e assim elas consideram cada vez mais evidente que “o processo de
desenvolvimento precisa ter bases genuinamente endógenas, do contrário ele não seria
capaz de gerar efeitos indutores extensivos para o resto da economia e para a sociedade
como um todo” (ALMEIDA, 2008, p. 177). Em outras palavras, é preciso germinar no
seio interno da política do país que recebe a missão a própria capacidade de
desenvolvimento. A respeito disso passa a ser compreensível o delongar da atuação que
foi estendido, no intuito de a MINUSTAH deixar o Haiti apenas quando este for capaz
de gerir autonomamente, sem qualquer dependência externa de alguma atividade vital.
Assim, logo no início de 2004, os responsáveis da missão consideravam
verdadeiras as críticas e controvérsias que analistas internacionais do âmbito político e
acadêmico inferiam sobre as dificuldades da operação, uma vez que os desafios eram
múltiplos. Pois, primeiramente, era preciso lidar com as condições políticas do Haiti,
que o governo de transição da ONU pretendia, porém era pouco factível dada a situação
crítica deste país. Segundo, havia pressão dos Estados Unidos para a implementação
imediata de eleições democráticas no Haiti. Terceiro, era preciso lidar com a
morosidade do apoio internacional, incluindo a própria estrutura da ONU. E, por fim,
atender à opinião pública dos respectivos países engajados na missão, dentre eles, e com
principal importância por ser o líder da missão, o Brasil.
Após sucessivos adiamentos, no dia 7 de fevereiro de 2006 ocorreu o primeiro
turno das eleições haitianas. Foi considerada uma vitória “de todos aqueles que
trabalharam com denodo para que o povo haitiano se auto-determinasse” (SEITENFUS,
2009, p. 9), já que as eleições são facultativas e contou com 63% do total dos inscritos,
dobrando a média histórica. O Brasil teve papel ativo neste pleito e foi firme para
manter a confiança depositada em sua gestão tanto por parte da comunidade
internacional quanto do povo haitiano. E assim o governo provisório cedeu lugar à nova
representação fruto da vontade dos eleitores. “Houve uma dupla reconquista da
soberania: a do povo que manifestou sua vontade de maneira livre e ordeira e a do
Estado que poderá auto-administrar-se” (SEITENFUS, 2009, p. 10).
32

Este momento após as eleições e mais recente da missão é apontado por


Seitenfus (2009) como uma cooperação que possa “ir além das legítimas preocupações
securitárias e comporte uma dimensão sócio-econômica, de reconstrução da
infraestrutura e das instituições públicas” (p. 10). Vários desafios são, portanto,
encontrados frente à situação do país mais pobre das Américas, e considerado o único
país do continente a integrar a lista dos Países Menos Avançados (PMA), elaborada sob
critérios da ONU.
Por isso, de maneira apropriada descreve Seitenfus (2009) que esta última fase
deve ajudar a fechar as quatro janelas abertas pela crise:
- a questão da segurança interna: restauração das Forças Armadas haitianas, já
que os militares haviam sido extintos e a demanda pública (8 milhões de pessoas) era
servida por apenas 4000 policiais. Tematizar a questão dos Direitos Humanos, e
promover uma ruptura com a herança da era Duvalier.
- a reconstrução da infraestrutura: Rede de comunicações, energia, saneamento
básico e vias de transporte.
- a reconstrução do Estado: O Haiti representa o único exemplo atual de uma
sociedade sem Estado, por causa do desgaste provocado pelos 20 anos anteriores de
crise. Precisa, portanto, refazer o sistema judicial e o conjunto de suas instituições
públicas. E, necessariamente, criar uma cultura política baseada em valores
democráticos, solidificando a sociedade civil.
- reconhecimento dos princípios básicos da democracia: No Haiti a transição
política sempre foi marcada pelo candidato no poder subjugar os demais, e a oposição
questionar a legitimidade do candidato eleito, ou seja, não há respeito da alternância do
poder. “Portanto torna-se indispensável a assinatura e o respeito à um pacto de garantias
e liberdades democráticas, proposto e incentivado pelo Presidente da República eleito”
(p. 11).
Desde o início da missão, em junho de 2004, o Brasil assumiu a liderança da
operação multilateral. Claramente, assegura-se uma projeção internacional do Brasil em
seu interesse em gerir a MINUSTAH, demonstrando ser capaz de administrar conflitos
internacionais e atender a contextos humanitários. E assim estava em jogo para o Brasil
“o acesso a uma nova fonte de prestígio político e institucional” (HIRST, 2007, p. 3).
Por fortes razões, o Haiti não prometeu ser uma missão fácil, haja vista que a ONU, a
33

OEA e outras coalizões de voluntariosos já tentaram frustradamente resolver os


problemas daquele país em momentos anteriores, mas não menos complexos.
Por isso, o Brasil enquanto ator principal nesta intervenção multilateral precisa
ser capaz de sustentar a responsabilidade de no caso de ser bem-sucedido, poder
concretizar-se como um ator proeminente no cenário regional, tornando a sua conduta
externa influente em relação a todo o contexto sul-americano.
Grande responsabilidade pelo sucesso ou fracasso pertence ao Representante
Especial do Secretário Geral da ONU, já que a MINUSTAH
É não só aprovada pelo Conselho de Segurança como constituída
pelas Nações Unidas. É uma operação de estabilização – assim é o
nome – das Nações Unidas; não é nem uma força criada à margem das
Nações Unidas, nem uma força autorizada pelas Nações Unidas
composta de maneira unilateral ou com mandato exercido por outros
países. Então, ela é uma força das Nações Unidas. 21

Entretanto, este representante da ONU não detém comando direto das forças de
paz, por isso que o Brasil não apenas influencia no desenrolar da missão, como também
partilha de considerável responsabilidade por ela (PROENÇA JR, 2006).
Ainda que a MINUSTAH não represente uma situação propriamente de guerra,
pelo contrário, aproxima-se de uma missão de cooperação internacional, ela requer um
posicionamento ideológico, subjazido por relações de poder, claramente incutido de
acepções culturais, efetivado pelo Brasil ao comandar a força de paz. Tal fato exige uma
explicação plausível para a sociedade sobre o comportamento brasileiro nesta arena
internacional. Assim, como será visto no final deste capítulo, tanto as notícias de um
lado, quanto os discursos e proferimentos oficiais, de outro, trabalham em conjunto na
construção social de tal acontecimento, incluindo aí a visibilidade e a dimensão que a
MINUSTAH alcança frente à sociedade brasileira.

1.4 Especificidades e implicações da liderança militar na MINUSTAH: Por que o


Brasil?

Na segunda metade do século XX, especificamente entre 1961 e 1964, conforme


“o crescimento do movimento neutralista e não-alinhado tenha contribuído para criar no
país [Brasil] propostas de uma diplomacia alternativa, materializada na chamada

21
Audiência do Ministro das Relações Exteriores, Embaixador Celso Amorim, em Sessão Conjunta das
Comissões de Relações Exteriores e Defesa Nacional do Senado Federal e da Câmara dos Deputados.
Brasília, 02 dez. 2004.
34

Política Externa Independente” (ALMEIDA, 2008, p. 162) já ficou patente a


intensificação das participações brasileiras em missões de paz, principalmente entre os
anos de 1957 e 1967, quando o país contribuiu de sobremaneira para seis missões das
Nações Unidas.
Em Congo 22 por exemplo, houve uma atitude marcadamente humanitária da
participação do Brasil na missão de paz, com entrega de alimentos, suprimentos e
medicamentos para a população civil. Durante o período militar ocorreu um hiato na
participação, com retomada quando os civis voltaram a controlar o governo brasileiro
(SEITENFUS, 2009).
Então, desde 1989 a 2004 foram 25 participações brasileiras em operações de
paz, participações estas de caráter abrangente e multifacetado, com destaque às
participações em Moçambique, Angola e Timor Leste. Seitenfus (2009), um estudioso
das relações internacionais em especial no que se refere à evolução do Brasil em
missões de paz, além de ter sido enviado especial do governo brasileiro ao Haiti, explica
que em nossas participações em missões:
Adicionamos às operações militares clássicas de separação de
combatentes e de controle securitário, outros ingredientes tais como o
apoio à população civil, o diálogo político, medidas para aumentar o
nível de confiança entre as partes envolvidas no conflito, a
reconstrução da infraestrutura de comunicações e a distribuição de
víveres e de medicamentos (p. 5).

É por isso que “após mais de 50 anos de presença nas operações de paz, houve a
formação de uma “cultura brasileira em operações de paz”, um modo diferente de agir
que dá uma identidade pessoal ao brasileiro quando investido da função de
peacekeeper” (AGUILAR, 2008, p. 2). A política externa brasileira considera a
participação em operações desse tipo como um meio pacífico para a solução de
controvérsias, de maneira que a justificativa do “discurso brasileiro sobre PKOs é
imbuído de altruísmo, o que não significa que o governo brasileiro não tenha interesses
pragmáticos em suas participações nas missões onusianas” (SOUZA; ZACCARON,
2006, p. 216).
A cultura brasileira interfere substancialmente no jeito das tropas brasileiras
fazerem a paz. Aguilar (2008) elenca inúmeros atributos característicos do povo
brasileiro que são utilizados em prol da paz. Alguns deles são: Caráter negociador,

22
Missão das Nações Unidas no Congo (ONUC), ocorrida entre 1960 a 1964, com participação de 179
militares brasileiros.
35

facilidade de comunicação, não-segregação, espírito de solidariedade, confiança, bom


humor e facilidade de entrosamento em ambiente multinacional.
Claramente, o Brasil tem consciência de que atuações do gênero da missão de
paz aumentam o prestígio nacional, e facilitam maior projeção do país nos foros
multilaterais. Se, por esse lado, as estratégias construídas pela política externa brasileira
balizam o comportamento para servir tais missões, é de igual maneira indispensável
considerar outros fatores internos ao Brasil no momento de decidir gestar recursos
militares e políticos em empreitadas multilaterais de paz, principalmente no que tange a
busca pelo apoio da própria opinião pública interna. Já que como
Componente importante do cálculo da participação nacional em
missões de paz, é indispensável que se destaque a política interna.
[...] cada contingente que se pretende enviar deve ser aprovado pelo
Congresso Nacional. Essa aprovação, para ser obtida, necessita de
justificativas que sejam aceitáveis não só em termos estratégicos e de
política exterior, mas também sob o prisma nacional, e para aceitação
da população, que é eleitora de deputados e senadores e deseja
entender porque os recursos do governo são despendidos com missões
no exterior e não com questões locais. Dado o maior engajamento da
mídia, então, a partir de 1994, no acompanhamento das participações
brasileiras, a dimensão da política interna ganha ainda mais
importância (SOUZA; ZACCARON, 2006, p. 216, 217).

A assunção do Brasil na missão de paz no Haiti representa uma nova posição da


política externa brasileira, antes neutra no que tangenciava a interferência em assuntos
internos de outros Estados. O discurso brasileiro era conhecido por não admitir missões
de paz segundo as prerrogativas do capítulo VII, isto é, de ação impositiva. A
MINUSTAH, em contrapartida, faz uso da força em sua operação.
Claramente, o convite 23 pela ONU feito ao país foi uma forma de coroar os
esforços, dinamismos e maturidade conquistados pela política externa brasileira durante
as anteriores participações em missões de paz e também devido ao seu centrado
posicionamento em foros multilaterais. Nesse novo contexto, o país assentiu às decisões
do CS e resolveu auxiliar a integração do Haiti na comunidade dos Estados
democráticos da América. Apesar deste altruísmo regional da decisão brasileira, há
nítida preocupação também com a opinião pública ao se posicionar sobre quais missões
participar, dado que a PEB faz parte do programa de governo e, assim, política interna e
externa estão indubitavelmente imbricadas. É nas palavras do próprio Ministro Celso

23
Este convite foi sustentado pelo consentimento explícito dos Estados Unidos, França e Chile (SOUZA,
ZACCARON, 2006).
36

Amorim que se firma a conduta na MINUSTAH sob a ressalva de se tratarem condições


novas e especiais numa missão de paz:
O caso do Haiti é ilustrativo. Entre as considerações que levaram o
governo brasileiro a decidir assumir o comando da Missão das Nações
Unidas para a Estabilização do Haiti (Minustah), está a convicção de
que se trata de uma operação de paz diferente. Em nosso
entendimento, a ação da ONU no Haiti deve assentar-se em um tripé:
a estabilização do país; a promoção do diálogo entre as diversas
facções políticas e a capacitação institucional, social e econômica.
Não haverá paz duradoura no Haiti se não adotarmos essa perspectiva
integrada. 24

Em realidade, qualquer decisão de política pública, até a internacional, prevê a


consulta de diversos atores subnacionais, grupos de interesse, lobby etc., assim, “é
afastada a possibilidade de a política doméstica não influenciar a política internacional
porque uma torna-se extensão da outra” (OLIVEIRA, 2007, p. 286). Nesse panorama, a
cooperação torna-se a regra de um jogo para ganhos mútuos, onde os conflitos são
resolvidos através do diálogo e da negociação. Nesse sentido, a cooperação – ou mesmo
possível divergência ou conflito – ocorre não apenas numa relação interestatal, mas
numa interação entre esfera doméstica e internacional, demonstrando a influência desta
última em assuntos domésticos e dos Estados (OLIVEIRA, 2007).
Kant (1989), por sua vez, ao fundar a teoria da paz perpétua democrática na
política internacional, ainda no século XVIII, contrariava a teoria realista das relações
internacionais, teoria esta que, conforme explica Oliveira (2007) “questões de política
internacional, por não estarem associadas diretamente ao cotidiano doméstico, são
exclusivamente prerrogativas do Estado e da sua burocracia especializada, devendo
então estar totalmente dissociadas dos interesses dos cidadãos, da opinião pública e bem
distante da prática democrática” (p. 285). Em contrapartida a isto, Kant (1789)
estabeleceu uma relação causal entre política interna e internacional, demonstrando a
importância em matéria de apreciação pública sobre acontecimentos internacionais pela
comunidade como um todo. Isto evidencia que os acontecimentos na cena externa
resvalam interesses não apenas do Estado, mas de todos aqueles que se sentem direta ou
indiretamente implicados por suas atitudes e seus resultados, incluindo aí os cidadãos
comuns.

24
“A ONU aos 60”, Artigo do Embaixador Celso Amorim, Ministro das Relações Exteriores. Brasília, 03
out. 2005.
37

Tendo em mente esta perspectiva, há um debate dentro da sociedade brasileira se


tal engajamento compensa a relação custo-benefício – uma vez que o investimento
brasileiro nessa operação é de aproximadamente 150 milhões de reais – e se condiz com
os interesses nacionais. A MINUSTAH tornou-se alvo de algumas críticas que alegam
que este valor poderia ter sido revertido em benefícios para a população brasileira, como
em prol da campanha do combate à fome, por exemplo, e não direcionado a uma ação
internacional de resultado incerto. Porém, como ressalvam alguns analistas, parte do
investimento será reembolsada pela ONU (60 a 90 milhões), há treinamento das tropas
num contexto que não teriam oportunidade nacional, além de o Brasil se reafirmar como
potência regional e exercer papel de referência e influência na America Latina
(SOUZA; ZACCARON, 2006).
Os próprios autores Souza e Zaccaron (2006) utilizam como referência a Folha
de S. Paulo para retratar a maneira como a solidariedade do Brasil com a MINUSTAH
justifica a busca de prestígio e credibilidade do Brasil nas relações internacionais:
Em entrevista à Folha de São Paulo, publicada no dia 18 de agosto de
2004, ao ser indagado sobre como esses gastos com o Haiti vão ser
revertidos aos brasileiros, o Ministro da Defesa, José Viegas,
respondeu: “Há coisas que não se pode quantificar. Melhor imagem
do país pode não significar US$ 1.000 nem US$ 1 milhão. Mas o país
ser visto como construtivo é bom ou ruim? Aumenta respeito,
interesse e confiabilidade”. Ou ainda, o ex-ministro Celso Lafer,
dizendo que essa missão no Haiti “é também uma operação de
marketing político” (SOUZA; ZACCARON, 2006, p. 226).

Importante observar que grande parte dos ministros ou outros gestores que
discursam nos media sobre a ação no Haiti não menciona os elementos prioritários
marcadamente econômico e político da missão, deixando transparecer uma relação de
interesse mais solidária do Brasil na operação de paz (PROENÇA JR, 2006).
Analisando as missões anteriores nas quais o Brasil foi ativo, observa-se que
96% eram em países membros da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa
(CPLP), evidenciando que “Esta concentração de atividades é um indicativo da
preferência do governo brasileiro em participar de missões em países com que haja
afinidades histórico-culturais, políticas e econômicas” (SOUZA; ZACCARON, p. 217).
No caso específico da MINUSTAH, Seitenfus (2009) desnuda alguns laços que
unem o Brasil com o Haiti, e que podem, por sua vez, terem colaborado para o
engajamento brasileiro, tais como “o terrível tráfico de escravos que assolou as duas
sociedades durante séculos; similitudes das estruturas de produção econômica durante o
38

período colonial; muitas crenças e valores compartilhados nas artes, na religião, no


desporto e na cultura” (p. 8).
Tais laços culturais, econômicos e políticos podem ser compreendidos dentro de
argumentos principalmente no que tange ao envolvimento em dadas missões e não em
outras, considerando a justificativa para um público crítico formado tanto pelo povo
brasileiro, quanto pela comunidade internacional. Este público questiona a participação
e o dispêndio financeiro do Brasil, por isso o discurso brasileiro afirmativo sobre a
missão também prevê contemplar a busca por prestígio nacional para aumentar sua
credencial de “se manifestar em temas como direitos humanos, desarmamento e
segurança internacional, mesmo não tendo poder militar que o torne figura
preponderante, em termos globais, em nenhum dos temas mencionados” (SOUZA;
ZACCARON, 2006, p. 218). Este é um exemplo de como o poder brando, conforme
será abarcado adiante, pode ser articulado para se atingir outros interesses.
O reconhecimento do engajamento do Brasil por parte do presidente haitiano
eleito, René Préval, foi demonstrado ao escolher o nosso território como o segundo país
a ser visitado (o primeiro foi a República Dominicana) após sua assunção no governo
em 2006. Trata-se de um gesto simbólico e revelador. Isto reforça também a construção
do caráter solidário na relação entre os dois países. Pois,
Para tentar romper o ciclo marcado pela indiferença e/ou pela
ineficácia das soluções sugeridas frente aos conflitos que afligem os
países em desenvolvimento é indispensável um repensar sobre os
próprios mecanismos de solução e mediação de conflitos. Em outras
palavras, para dotá-los de um nível de capacidade de intervenção nos
conflitos que os afetam é necessário que eles demonstrem capacidade
de elaboração de uma nova matriz ideológica e operacional capaz de
fornecer uma alternativa ao atual sistema de solução de litígios. A
mediação brasileira no Haiti é o exercício de uma diplomacia solidária
e insere-se nesta perspectiva (SEITENFUS, 2009, p. 12).

A diplomacia solidária pode ser descrita como um mecanismo de intervenção em


conflitos internos ou internacionais que, sob os auspícios do CS, não revelam ganhos
reais para os países interventores, de modo que apenas a formação de um sistema
multilateral, consciente e assumindo uma autoridade moral e política maior são
estimulantes para a realização da mesma.
Segundo a teoria realista das relações internacionais, um Estado decide pela
intervenção em outro Estado seguindo dois critérios: interesses objetivos ou pressionado
por uma opinião pública. No primeiro caso, os interesses podem ser estratégicos,
39

militares, financeiros, políticos, diplomáticos ou de prestígio. No segundo caso, há uma


comoção da opinião pública geral para mobilizar o Estado-sujeito a resolver o problema
de um outro Estado, em especial quando este problema envolve danos à sociedade civil.
(SOUZA, ZACCARON, 2006). Porém, Seitenfus (2009) revela que a ação do Estado-
sujeito interventor no caso do Haiti não seguiu nenhum desses dois critérios.
O chanceler brasileiro, embaixador Celso Amorim, fornece uma
valiosa e original contribuição à teoria da diplomacia solidária ao
declarar que o Brasil está “profundamente comprometido no Haiti,
política e emocionalmente, e isso no longo prazo”. Ao fazê-lo indica
que os parâmetros sobre os quais o Brasil tomou a decisão de intervir
devem ser compreendidos à luz de critérios outros que os decorrentes
da fria razão (ou interesse) de Estado (SEITENFUS, 2009, p. 13).

No caso da MINUSTAH, muitos Estados latino-americanos estão compondo a


missão, inclusive o chefe diplomático da missão é chileno, Juan Gabriel Valdez, ao
passo que não há nenhuma potência militar participante, a não ser a China com 125
policiais (SEITENFUS, 2009). Isto aponta, por um lado, uma nova forma de mediação,
criada a partir de um instrumento coletivo desinteressado, ao menos diretamente, na
missão, aproximando-se da diplomacia solidária. Por outro lado, há aliado à imagem de
grandes potências certo desgaste em relação à sua participação em operações de paz,
pois muitos representantes de Estados – no Haiti, por exemplo, tem-se a França e os
Estados Unidos – já atuaram em negociações anteriores e remetem a um passado de
intervenções e interesses particulares escamoteados de boas intenções (AGUILAR,
2008).
Na condição de que inerentemente a ação da MINUSTAH carrega estratégias
militares, de modo que são tropas armadas que intervém no país, ainda que sob a forte
“bandeira branca”, dado tratarem-se das tropas de paz da ONU, a outra estratégia
política adicionada à ação aproxima-se daquilo que o teórico Joseph Nye (2002)
denomina de poder brando ou soft power. Seria este aquele poder mais sutil e complexo
das relações internacionais, em oposição ao poder duro, hard power, o qual está
presente nos planos militar e econômico. Esta dicotomia entre hard power e soft power
não suscita dúvidas no entendimento de qual lugar que a cultura e o papel simbólico
ocupam neste emaranhado jogo de poder. Em outras palavras, é claro que é justamente
na maneira em que elas partilham do poder brando, ou suave, ainda que se utilizem de
meios do próprio hard power. Pois o intuito é o de “atrair aliados de ideologias
semelhantes, sem o uso de ameaças. O poder brando, quando bem utilizado, reduz os
40

custos da liderança, por criar afinidades entre as nações, baseadas na imagem que lhes é
transmitida pela nação que deseja ser líder” (SOUZA; ZACCARON, 2006, p. 220).
Sanches Rocha (2009) traz uma leitura interessante sobre o soft power, dividindo em
duas acepções principais. A primeira, mais próxima da definição clássica de poder entre
os politólogos, coloca o poder brando a serviço do hard power, como ferramenta para
auxiliar no poder de coação. A segunda, mais próxima do entendimento de Nye (2002) é
vista “como sendo um efetivo e independente poder informal, por assim dizer, que
reside nos meios de comunicação social, nos organismos não governamentais, nos
movimentos sociais, entre tantos outros exemplos” 25 (SANCHES ROCHA, 2009).
Sem entrar propriamente no mérito de o Brasil fazer uso do poder brando nesta
cena regional, mostra-se clara a intenção do país em rearranjar a relação Brasil-Haiti
através de certas referências culturais, tal qual o emblemático caso do “jogo da paz”
ocorrido entre os dois países, caracterizado por um amistoso ocorrido no próprio Haiti.
Além disso, o próprio comportamento dos soldados encarregados pela missão são
diferenciados dos demais contingentes estrangeiros, firmando um contato mais próximo
e solidário junto à população haitiana. Eles doam camisas da seleção brasileira e
também itens da ração alimentar pessoal para a população, tais como caramelo e cacau
em pó. Com condutas como essa, torna-se evidente que o importante
É ganhar a confiança dos haitianos, é mostrar que o pessoal da ONU
não constitui força de repressão inimiga, é cativar a população. Esses
objetivos somente podem ser alcançados através de uma atuação mais
ampla, de assistência humanitária e de ações cívico-sociais, como o
jogo de futebol Brasil-Haiti promovido pela CBF (Confederação
Brasileira de Futebol), que tinha por objetivo chamar a atenção da
comunidade internacional para as necessidades do país mais pobre do
ocidente e ganhar a simpatia dos haitianos. (SOUZA; ZACCARON,
2006, p. 225).

Um ponto relevante para ser tangenciado é de a intenção política do Brasil estar


também atrelada ao interesse em assentar numa cadeira permanente do CS, onde Índia e
Japão já figuram como candidatos potenciais, caso isso ocorra. Tal reforma da ONU –
ampliação do CS – é uma das pautas da política externa brasileira de maneira que não é
um desejo recente, dado que desde a formação original da estrutura das Nações Unidas
o Brasil é candidato a ingressar neste seleto grupo de cinco países. Entretanto, apesar do
“alegado desejo dos países membros e dos candidatos em promover uma
‘democratização’ das estruturas de poder internacional não passa de uma hipótese pouco

25
Citação sem página, pois o texto está disponível em versão virtual.
41

credível para quem acompanha a realidade das relações internacionais. Os cinco


permanentes atuais não desejam a reforma e não pretendem diluir o seu poder com
novos candidatos” (ALMEIDA, 2008, p. 158).
Assim, Almeida (2008) antevê que se já “Durante algum tempo, se considerou
que sua [Brasil] participação em missões de paz da ONU, a exemplo da Minustah, no
Haiti, poderia representar uma espécie de bilhete de ingresso no CSNU, o que não é
obviamente o caso” (p. 188), pode-se pensar em outros interesses subjacentes nesta
intenção de comandar a missão. No contexto da América Latina onde ainda prevalecem
desafios de evolução democrática e desenvolvimento de integração econômica, a
atuação brasileira parece fortemente estar vinculada àquilo que o ex-presidente
brasileiro José Sarney pronunciou na Assembléia Geral de 1989 ao delinear a pretensão
do “país assumir maiores responsabilidades com a cooperação e a manutenção da paz
no âmbito internacional, sem que tal postulação significasse a exigência de concessão
do direito de veto no CSNU” (ALMEIDA, 2008, p. 169).
Todos estes fatores implicados demonstram que entender o papel do Brasil na
MINUSTAH requer uma disposição para olhar na direção de outras dimensões que a
cerca. Num primeiro momento a MINUSTAH trata-se de um acontecimento
eminentemente político, porém, propõe-se olhá-lo através de seu viés cultural e
discursivo, justamente por causa da importância do papel da visibilidade pública
ancorado à cultura. Esta deixa então de ser um apêndice e emerge com um papel mais
central nas relações sejam elas políticas, sociais ou econômicas. Esta posição é
sustentada por diversos autores, conforme foi apresentado na introdução, e é cada vez
mais partilhada por teóricos da comunicação, corroborando para o seu fôlego
explicativo, como veremos mais detalhadamente no próximo capítulo.
Por isso, deve-se levar em conta que se
A cultura é agora um dos elementos mais dinâmicos – e mais
previsíveis – da mudança histórica do novo milênio. Não deve nos
surpreender, então, que as lutas pelo poder sejam, crescentemente,
simbólicas e discursivas, ao invés de tomar, simplesmente, uma forma
física e compulsiva, e que as próprias políticas assumam
progressivamente a feição de uma ‘política cultural’ (HALL, 2008).

Assim, se a pesquisa aqui desenvolvida trata sobre o aspecto cultural da


MINUSTAH, é por causa também da confluência de que a cultura representa um dos
pilares da ONU nas intervenções de paz. E uma vez que os discursos tematizam neste
sentido, entende-se que os media têm função primordial sobre isto ao tornar visível tal
42

acontecimento, e por enquadrar inclusive a própria dimensão cultural em seu discurso


sobre a Missão no Haiti, citando fragmentos do próprio discurso oficial brasileiro para
compor a notícia.

1.4.1 Aspectos culturais na relação Brasil-Haiti e o discurso oficial brasileiro para


o cenário externo

Se por um lado os laços culturais que permeiam os dois países – Brasil e Haiti –
devem ser olhados com cautela quando se trata da análise dos proferimentos de políticos
brasileiros, pois se observa que estes tentam mais que nivelar traços heterogêneos,
possivelmente criar uma realidade de compartilhamento de valores culturais e
identitários, por outro lado isto pode forjar o aparecimento de uma raiz cultural comum.
Ainda que esta exista, não se deve ignorar até que ponto esta característica pode ser
utilizada na reconstrução do Haiti ou como ela tem sido aportada para contemplar os
interesses brasileiros na consolidação de sua política externa. Sanches Rocha (2009)
salienta a importância da dimensão cultural em matérias das relações internacionais ao
dizer que:
Fatores culturais comuns podem ser facilitadores, evidentemente, nas
trocas comerciais e políticas. Não há dúvida quanto a isso e as
tentativas integracionistas, como o Mercosul e a União Européia, dão
claras demonstrações nesse sentido, apesar das dificuldades que
também enfrentam e das gigantescas diferenças culturais que ambos
demonstram em sua constituição.

Através da conduta de sua política externa o Brasil tem intenção de utilizar a


própria imagem pacífica, baseada em seu histórico das relações internacionais, bastante
firme e coerente, fiel ao multilateralismo, atitude transparente e aberta ao diálogo ante a
comunidade internacional. Estes ditames o inserem na estratégica posição de potencial
mediador de relações interestatais, em especial podendo ser trabalhada a fim de
influenciar e interferir nos outros países latino-americanos. Como relata Fonseca Jr.
(1997), para o atual ministro brasileiro das Relações Exteriores Celso Amorin, devido a
sua importância política e tamanho, o Brasil já tem uma grande responsabilidade nas
Américas.
Assim, o Brasil objetivava promover a coerência entre discurso e prática na ação
definida pela Política Externa Brasileira (PEB) em sua ingerência no Haiti, já que o
nosso país lidera a bandeira do desenvolvimento socioeconômico dos países pobres, e
43

promove a campanha mundial do presidente Lula na criação de um mecanismo


internacional de financiamento no combate à miséria mundial. Portanto, o sucesso na
MINUSTAH confirmaria a exeqüibilidade das predisposições brasileiras para o cenário
internacional, em destaque na América Latina, o que promoveria a imagem externa do
Brasil, dando-lhe maior respaldo e credibilidade, beneficiando assim sua posição
perante outros organismos internacionais – a exemplo da OEA e da ONU, adquirindo
então um multilateralismo mais consistente.
A transmissão dos valores democráticos e prioridades sociais internos ao Brasil
para o plano externo consiste numa das vertentes da PEB, segundo é reiterado em
diversos discursos de Celso Amorim. O país que quer ser representante da democracia,
do pluralismo e da dignidade social deve possuir responsabilidade no cenário externo
em função pautada nestas mesmas características, que devem ser compartilhadas com
outros países caso isto se faça necessário. E deve ser capaz de demonstrar que a
disciplina autoritária precisa ser substituída pela exaltação de um sentimento
democrático, a fim de reverter o desequilíbrio social de um Haiti assolado pela miséria e
violência.
Uma vez que desenvolvimento, democracia e Direitos Humanos correspondem à
tríade da agenda internacional, um comportamento brasileiro desempenhado neste
sentido corresponderia às expectativas de outros atores, explícitas principalmente nas
organizações internacionais, promovendo consequentemente o status brasileiro no
panorama externo ao conferir-lhe maior respaldo e credibilidade por parte dos grandes
atores.
Nesse contexto, o Brasil argumenta que o alcance da representatividade no
Conselho de Segurança da ONU será a democratização das relações internacionais,
conferindo ao Conselho maior legitimidade e eficácia, no intuito de não agravar o
desequilíbrio entre os países desenvolvidos e subdesenvolvidos no processo decisório
das Nações Unidas. Na argumentação do próprio ministro das Relações Exteriores
justifica-se que:
O Brasil, cuja candidatura a membro permanente foi seriamente
considerada em 1945 – com o apoio do presidente Roosevelt – tem
defendido a necessidade de um Conselho de Segurança renovado, que
reflita a emergência de países em desenvolvimento como atores
globais. Nossa percepção é de que, tal como hoje composto, o
Conselho é incapaz de articular uma visão equilibrada e inclusiva da
44

ordem internacional que reflita de forma satisfatória as percepções do


mundo em desenvolvimento. 26

Dentro da capacidade de ser um ator global efetivo, o Brasil ao demonstrar a


importância de um diálogo com o nosso país na obtenção de avanços no âmbito político-
militar haitiano é um exemplo da força que tal atitude ganha no cenário externo. Tal qual
é evidenciado no trecho abaixo do jornal Folha de S. Paulo, que demonstra o papel do
Brasil na efetivação do processo eleitoral no país:
O governo brasileiro defende maior empenho da comunidade
internacional para que a solução dos conflitos no Haiti passe por ajuda
econômica e projetos de desenvolvimento social, e não apenas a
presença militar de capacetes azuis. ‘É uma situação de desafio para
os próprios haitianos, e não podemos fazer pelo Haiti o que eles não
puderam fazer por eles próprios. O que podemos fazer é viabilizar o
que eles quiserem fazer e, nesse caso, encontrar uma solução pelo
diálogo, respeitando as leis e terminando adequadamente a contagem
dos votos’, disse Amorim [Ministro das Relações Exteriores do
Brasil]. 27

Concentrando-se em atingir as prerrogativas defendidas nesta pesquisa, torna-se


válido contemplar todo este processo sob a ótica de como a cultura perpassa certos
interesses dados como meramente políticos ou estratégicos. A almejada cadeira
permanente no Conselho de Segurança, por exemplo, ao invés de ser razão fundamental
para o bom desempenho militar na MINUSTAH, resultaria de uma decorrência natural
da atuação polivalente brasileira, marcada por uma cultura de nosso país em tratar
conflitos através de diálogo e cooperação, preocupando-se com a nossa região e
respeitando a soberania estatal.
Não se trata de dar vazão a sentimentos ufanistas do Brasil, já que as dificuldades e
desequilíbrios internos são graves e é preciso melhorar a articulação e implementação do
projeto nacional. Entretanto, a presença internacional ativa do país quanto à comunhão e
propagação de valorização da paz, da cultura democrática, da justiça social, capazes de
traduzir uma política pública orientando as necessidades do país através das
possibilidades de ganhos em atuações externas pode agregar uma excelente justificativa
frente a conduta no plano externo (LAFER, 2001).

26
“A ONU aos 60”, Artigo do Embaixador Celso Amorim, Ministro das Relações Exteriores. Brasília, 03
out. 2005.
27
DIANNI, Cláudia. Brasil pede que conselho da ONU avalie Haiti. Folha de S. Paulo, São Paulo, 14
fev. 2006. Caderno Mundo.
45

Principalmente no caso específico em relação a países também subdesenvolvidos,


mas com necessidades prementes de ajuda, como o Haiti, o qual, mesmo num grau
diferente, tem a realidade próxima da nossa. Isto é, trata-se de um país, tal como o
Brasil, também ex-escravista, sofrido com a instabilidade política e com a ausência de
democracia, aspirante por desenvolvimento econômico, afetado com a influência norte-
americana e com a dependência econômica externa. Enfim, com este discurso o Brasil
enfatiza que por ter relativamente conseguido avançar em alguns desses aspectos tem a
obrigação de empregar sua experiência na solução da tensão e crise presentes no país
cujas raízes dos problemas são similares aos que já enfrentamos. E é também por tal
motivo que o Haiti é entendido como um “país irmão” 28 .
Na perspectiva da América Latina, este mesmo tipo de discurso brasileiro tenta
demonstrar que o sucesso no Haiti direcionará o fortalecimento regional para um
desenvolvimento e crescimento de forma integrada. Afirmando ainda ser possível
através do diálogo de experiências compartilhadas, tendo em vista a comunhão cultural,
contornar uma grave situação política, econômica ou social, no intuito de promover a
inserção internacional da região numa globalização não mais assimétrica, mas
preferencialmente benéfica e pacífica. Nas palavras do Lula há inclusive uma
contribuição brasileira para novos paradigmas nas relações internacionais:
Precisamos desenvolver estratégias que combinem solidariedade e
firmeza, mas com estrito respeito ao Direito Internacional. Foi assim
que atendemos, o Brasil e outros países da América Latina, à
convocação da ONU para contribuir na estabilização do Haiti. Quem
defende novos paradigmas nas relações internacionais, não poderia se
omitir diante de uma situação concreta. Promover o desenvolvimento
com eqüidade é crucial para eliminar as causas da instabilidade
secular daquele país. Em nossa região, apesar dos conhecidos
problemas econômicos e sociais, predomina uma cultura de paz.
Vivemos um período de amadurecimento democrático, com uma
vibrante sociedade civil. 29

Inclusive, esta importância global da solidariedade e da paz encontrada nos


discursos dos representantes do Brasil, ancorada por uma cobrança de cooperação entre
os atores no cenário internacional, move-nos a refletir esta questão mais ampla de

28
Trata-se de um termo recorrentemente usado no discurso do presidente Lula ao se referir ao Haiti, tal
qual é visto neste excerto: “A comunidade internacional reconheceu a capacidade e a vontade de nosso
país de dar a sua contribuição para a paz no mundo. Também tenho orgulho e satisfação de ver que nossas
Forças Armadas estão preparadas e dispostas a ajudar um país irmão” (Discurso do Presidente da
República, Luiz Inácio Lula da Silva. Brasília, 31 maio 2004. Grifo nosso).
29
Discurso do Presidente da República, Luiz Inácio Lula da Silva, na 59ª Assembléia-Geral da ONU.
Nova York, EUA, 21 set. 2004.
46

centralidade da paz nos estudos de defesa e segurança como não mera coincidência com
a centralidade da cultura desenvolvida pelos teóricos de Estudos Culturais e outros que
pautaram a relação entre cultura e sociedade numa mesma época de inflexão do
conceito cultura. Isto é, ambos emergiram na segunda metade do século XX,
compartilhando do mesmo contexto político e social. Pois, se a guerra e o uso da força
renderam lugar a uma diplomacia solidária de diálogo e disseminação da paz, grande
interferência nesta arena é a cultura, agindo a partir de sua nova posição mais destacada.
Este pode ser entendido então como o ponto de entrelaçamento de um afinamento das
teorias das relações internacionais com o cenário que emergiu após a chamada “virada
cultural”, no qual se redimensionou a relação da cultura na vida social. Discussão esta
que será arrematada adiante, no capítulo seguinte, de forma apropriada.
Antes de conduzir ao próximo capítulo é preciso distinguir esta construção
discursiva oficial daquela realizada pelos meios de comunicação, especificamente o
jornal impresso. Isto porque, os discursos brasileiros apresentados nesta primeira
abordagem são predominantemente respaldados por fontes oficiais do governo, como o
Celso Amorim, Celso Lafer, o presidente Lula ou mesmo o pesquisador contratado pelo
Brasil para auxiliar na intervenção, Ricardo Seitenfus. Estes discursos foram acionados
para mostrar, em linhas gerais, a conduta de política externa brasileira aliando às
atitudes presentes e descritas nos referentes discursos. Esta é a maneira como o
acontecimento é concebido pelos dirigentes políticos, e é, portanto, a forma oficial dada
a ver pelos mesmos. Entretanto, o alcance da visibilidade pública não é atingido tão
somente por tais discursos, os quais podem ficar inclusive restritos ao circuito interno
das relações políticas, ou os media especializados ou institucionais, tal qual é o caso dos
proferimentos encontrados disponíveis no site do Ministério das Relações Exteriores 30 .
Desse modo, os media detêm um papel de importância ímpar na circulação e amplitude
do acontecimento MINUSTAH, incluindo outras vozes além das fontes oficiais. É por
isso que o lugar preferencial para localizar toda a problemática e implicações do
comando militar brasileiro sobre a missão é demarcado em dois campos: O político e o
midiático, partilhando do entendimento de Foucault (2008) que os discursos são o
mesmo que acontecimentos discursivos e, assim, mais produzem do que refletem os
seus próprios objetos de referência.

30
Disponível em: <http://www.mre.gov.br/portugues/politica_externa/discursos/procura3.asp>. Acesso
em 10 mar. 2009.
47

1.5 Campo dos media e campo político no entendimento sobre a MINUSTAH

Partindo da relevância e importância do estudo do campo discursivo para esta


pesquisa na relação de produzir sentido sobre a MINUSTAH restringiu-se, de um lado,
aos discursos construídos no campo dos media, e de outro, aos discursos construídos no
campo político. Esta diferenciação entre os dois campos discursivos leva em
consideração as constrições, especificidades e delineamentos compatíveis a cada campo.
Como mencionado no final do item anterior, os discursos mais constroem do que
refletem o objeto de referência, de maneira que a MINUSTAH sob a análise dos
proferimentos de políticos é definida de uma dada maneira, enquanto o jornal impresso
Folha de S. Paulo é de maneira distinta. Importante perceber que mais do que
considerar a MINUSTAH como um fato externo aos dois discursos, ambos são capazes
de constituí-la enquanto tal. Pois, como define Charaudeau (2006a), estudar os
discursos é estudar os “atos de linguagem que circulam no mundo social e que
testemunham, eles próprios, aquilo que são os universos do pensamento e de valores
que se impõem em um tempo histórico dado” (p. 37).

1.5.1 Os proferimentos oficiais dos gestores da missão

O discurso dos gestores políticos tem importância basilar sobre os fatos nele
presentes, quais seja a Missão de Paz da ONU no Haiti. Pois, como dito anteriormente,
é através destes que o discurso oficial brasileiro é construído. E como diz Foucault
(2008) todo discurso institui prática, condensa em si uma ação. Também por isso o
mesmo teórico adverte que é no discurso que a política exerce um dos seus mais
temíveis poderes, considerando que “o discurso não é simplesmente aquilo que traduz
as lutas ou os sistemas de dominação, mas aquilo por que, pelo que se luta, o poder do
qual nos queremos apoderar” (p. 10). A instância política situa-se entre o conceito e
prática de política, isto é, sob um enfoque idealizante com criação de valores, de um
lado, e um enfoque pragmático, de outro, que se sustenta pela relação de influência com
o outro (CHARAUDEAU, 2006a).
Nos proferimentos políticos estão evidenciados as relações de poder, as marcas
ideológicas, as relações históricas, a construção de legitimidade, as marcas de
48

autoridade e de credibilidade (CHARAUDEAU, 2006a). Fazendo uso das palavras de


Fiorin (2004)
Com a concepção dialógica da linguagem, a análise histórica de um
texto deixa de ser a descrição da época em que o texto foi produzido e
passa a ser uma fina e sutil análise semântica, que leva em conta
confrontos sêmicos, deslizamentos de sentido, apagamentos de
significados, interincompreensões etc. Em síntese, a história não é
algo exterior ao discurso, mas é interior a ele, pois o sentido é
histórico (p. 65).

Para Bakhtin (1992), trabalhar com os fatos sociais é prioritariamente analisar os


discursos que os permeiam, entendendo como foram construídos e retransmitidos; a
linguagem, portanto é tratada como fato social. Nessa direção, a pesquisa tem como
ponto de partida o diálogo enquanto interação e construção de sentido, uma vez que “A
enunciação enquanto tal é um puro produto da interação” (BAKHTIN, 1992, p.121).
No caso do discurso político, Charaudeau (2006a) indica que alguns autores
conferem tanta importância ao discurso, pois justamente é ele que motiva a ação política
e confere sentido a ela. É a situação de comunicação que torna o discurso político e não
simplesmente o seu conteúdo, de modo que o discurso é constitutivo do político, e não o
contrário. Para o mesmo autor, as significações do discurso político são dadas por esta
situação de comunicação e pelos próprios atores. Inclusive é preciso acrescentar às falas
das pessoas, as instâncias institucionais que elas são filiadas. Isto é, Lula e Celso
Amorim são personalidades psicológicas e sociais, mas representantes do Brasil na
gestão da MINUSTAH. Em seus discursos especificamente para o nosso caso, eles
justificam as ações e decisões para melhor defender a legitimidade, assim como tentam
conclamar um apoio dos cidadãos, construindo estratégias dentro do discurso para isso.
Bakhtin (1992) argumenta que “qualquer que seja a enunciação [...] é certo que
ela, na sua totalidade, é socialmente dirigida” (BAKHTIN, 1992, p.113). Isto implica
que os discursos sobre a MINUSTAH estão, em última instância, em interlocução com
o cidadão brasileiro, na medida em que dialogam a partir de um espaço simbólico
comum – a identidade nacional –, buscando coesão e construção de um sentido que seja
compartilhado principalmente por aqueles que são representados pelo Estado: a
população brasileira. Logo, a invocação da cultura nacional em proferimentos destes
gestores sobre a MINUSTAH revela uma construção coerente entre o novo que se
pretende justificar – a intervenção político-militar onusiana – e aquilo que é
compartilhado pelo povo enquanto uma cultura comum, que invoca a paz e a
49

solidariedade imiscuída na nossa cultura, em meio ao contraponto de tantas


adversidades internas ao nosso país. Outra interlocução também identificada são as
próprias tropas militares brasileiras, o povo haitiano, os políticos que aprovam as leis
concernentes aos interesses dos dirigentes da MINUSTAH e a comunidade
internacional como um todo, dentre ela, as Nações Unidas.
Confirmando-se assim que “a própria realização deste signo social na
enunciação concreta é inteiramente determinada pelas relações sociais” (BAKHTIN,
1992, p. 113). Pois a palavra é a ponte entre o “eu e o outro” (idem), os quais podem
estar simbolizados coletivamente, considerando o meio social em que se determinam e
atualizam a enunciação, uma vez que as palavras só significam nos respectivos
contextos de uma dada interação social. Desde que considerando que “a análise do
discurso, assim entendida, não desvenda a universalidade de um sentido; ela mostra à
luz do dia o jogo da rarefação imposta, com um poder fundamental de afirmação”
(Foucault, 2008, p. 70)
A comunicação considera necessariamente a existência do “interlocutor” junto
ao locutor e, mais do que uma expressão unilateral do locutor, ela se estende à
comunicação verbal como um todo, e não apenas à face a face. Logo, o “discurso escrito
é de certa maneira parte integrante de uma discussão ideológica em grande escala: ele
responde a alguma coisa, refuta, confirma, antecipa as respostas [...]” (BAKHTIN,
1992, p. 123). Faz-se esta referência ao discurso escrito, principalmente porque é
exatamente este que antecede um proferimento. É comum os proferimentos serem
anteriormente preparados para depois ser apresentado ao público.
Os discursos oficiais legitimam de certa forma aquilo que é dito, pois são
respaldados pela sua fonte institucional, a qual no caso desta dissertação é oriunda do
poder executivo do Estado brasileiro responsável pela missão, personificados pelo
presidente Lula e pelo Ministro das Relações Exteriores Celso Amorim.
Na medida em que os jornais também constroem quadros de sentido a partir de
suas notícias, os discursos oficiais possibilitariam evidenciar, por comparação, a
maneira como o jornal enquadra a temática da cultura, de modo a reportar – ou não –
àquilo trazido pelos referidos proferimentos oficiais. A considerar que
É pelo prisma bakthiniano que percebemos os discursos não como
espaço de entendimento, mas de confronto de interesses. Discursos
são a parte mais visível – e talvez a mais decisiva – de um jogo
incessante de relações de poder do qual participa toda a sociedade,
seja na esfera privada como da pública (ARAÚJO, 1995, p. 176).
50

Dito isto, torna-se clara a importância da relação dos proferimentos dos políticos
com os media no entendimento de como a visibilidade pública pode dar a ver questões
de âmbitos culturais, a considerar o enquadramento que marca tanto a matéria
jornalística quanto os discursos do presidente Lula e do Celso Amorim.
Segundo Charaudeau (2006a) o discurso político estabelece uma relação com a
ação, o poder e a verdade. Se a ação política está inserida numa organização social
visando o bem comum
A palavra intervém no espaço de discussão para que sejam definidos o
ideal dos fins e os meios da ação política; a palavra intervém no
espaço de ação para que sejam organizadas e coordenadas a
distribuição das tarefas e a promulgação das leis, regras e decisões de
todas as ordens; a palavra intervém no espaço de persuasão para que
a instância política possa convencer a instância cidadã dos
fundamentos de seu programa e das decisões que ela toma ao gerir os
conflitos de opinião em seu proveito (CHARAUDEAU, 2006a, p. 21).

Os proferimentos políticos podem não ser dirigidos para os media, porém eles
têm em mente que ao final, eles podem se tornar material para o discurso midiático.
Nesse sentido os media assumem, pela amplitude e visibilidade, uma maneira
determinante na união da instância política com a instância cidadã (CHARAUDEAU,
2006a).
Independente de qual conteúdo encontrado no jornal, ou da porosidade com os
proferimentos oficiais, é trazido em alguns de seus textos a citação de nossos dirigentes
políticos para construir o seu próprio discurso. Se é do interesse do jornal trazer a fonte
legítima e oficial que fala sobre a MINUSTAH, existe também o interesse do próprio
político: “Os políticos sempre tiveram necessidade de visibilidade (devem ter acesso à
cena pública), de imagem (devem seduzir) e de legibilidade de seu projeto político
(devem ser compreendidos)” (CHARAUDEAU, 2006a, p. 287).
Uma matéria jornalística composta por um discurso direto, utilizando as aspas,
por exemplo, é capaz de produzir um efeito de sentido de verdade. Como indica Fiorin
(2004) “É como se ouvisse a pessoa falar com suas próprias palavras e, portanto, com a
mesma carga de subjetividade” (p. 51). É necessário atentar-se para a força do
argumento que se cria, pois há o compromisso com a veracidade e não com a verdade,
já que é preciso parecer verdade aquilo que se crê como tal (CHARAUDEAU, 2006a).
As aspas também distanciam palavras ou expressões daquele discurso que faz uso delas,
51

de maneira que o discurso não assume como suas. As aspas podem também ter caráter
aproximativo naquilo que se pretende dizer.
Por outro lado, há o discurso indireto – de conteúdo ou de expressão. Aquele
que analisa o conteúdo é carregado de um efeito de objetividade analítica. Assim,
eliminam-se expressões de natureza emocional focando na objetividade, sendo bastante
usado na construção de textos filosóficos, científicos ou políticos, na função de “criticar,
rejeitar ou acolher as posições expressas pelos outros” (p. 51). Já o discurso indireto,
que analisa a expressão, preocupa-se com o modo de dizer, mais do que o conteúdo,
revelando peculiaridades e a própria posição do narrador em razão do que este que fala.
Para tanto, o enunciador pode fazer uso das glosas, que são comentários e explicações,
na tentativa de distinguir as interpretações.
Os media podem se apropriar de uma dada frase, descontextualizá-la e inseri-la
na sua produção jornalística, e os políticos reconhecem a interferência desse artifício
jornalístico (CHARAUDEAU, 2006a). Há casos dentre os textos analisados em que o
enviado especial da Folha de S. Paulo viajou a convite do Exército brasileiro, e o jornal
distingue quando isso ocorre, qualificando explicitamente junto ao autor da matéria.
Viabilizar e financiar viagens como essa, por exemplo, é uma forma de o país incentivar
formalmente a difusão sobre a missão, tornando público aspectos que julga relevante ou
importante para ser propagado.

1.5.2 O discurso do jornal impresso como construto social da realidade

Os media são acionados enquanto locus privilegiado para se olhar as relações


construídas entre a cultura e a MINUSTAH, uma vez que os media ampliam horizontes
de entendimentos, repercutem na sociedade em função de sua visibilidade, permitem o
conhecimento de realidades distantes etc. Segundo diversos autores – Johnson-Cartee
(2005), Thompson (1998), Braga (2006), Silverstone (1994), Verón (2001) etc. – grande
parte do conhecimento é construída pelos media, sendo estes os responsáveis por
tornarem reais experiências que na prática poderiam não se concretizar, como, por
exemplo, saber da existência do prefeito ou do presidente, sem nunca ter se encontrado
com eles; ou ainda, o conhecimento de culturas e terras distantes nunca visitadas, sem
colocar em dúvida a existência destas. Os meios de comunicação permitem que se
52

entronizem realidades no conjunto de experiências de um sujeito, construindo e


ordenando a realidade, incorporando, portanto, um papel de prática social.
Hirst (2007) observa que, dentre outros fatores, a MINUSTAH “se destaca no
âmbito da ação latino-americana por sua abrangência e visibilidade” (HIRST, 2007, p.
7), as quais, indubitavelmente, são corroboradas e viabilizadas pelos meios de
comunicação. Por ser um processo político, ressalta-se a influência que os media
exercem sobre a opinião dos cidadãos e são também por isso alvo das estratégias de
comunicação dos políticos, em razão da potente repercussão midiática em transmitir os
seus discursos e atos políticos (CHARAUDEAU, 2006b).
Como a preocupação principal desta dissertação não envolve apenas identificar o
lugar da cultura nos discursos governamentais, mas também naqueles expostos ao
debate público através dos media, toma-se como objeto de pesquisa um jornal impresso
de grande circulação no Brasil e consolidado dentro de certa credibilidade junto aos
leitores e ao cidadão brasileiro, o jornal Folha de S. Paulo 31 .
É adequado ao se enveredar para a abordagem do jornalismo impresso respeitar
os seus modos operatórios próprios e levar em consideração que ele constrói uma
narrativa do real de maneira bastante forte – ao escolher determinados temas, selecionar
discursos, enquadrar.
Nesse horizonte, entendem-se as notícias, em seu conjunto, enquanto narrativas
da realidade – as quais constituem um elemento importante para analisar o processo
jornalístico e o fenômeno social – ao mesmo tempo em que interagem com a sociedade
através dos valores sociais, e por tal motivo, e, em grande parte, são instituidoras do real
(ALBUQUERQUE, 2000). O texto jornalístico é de caráter reflexivo com a vida social
e o mundo político, recebendo pressões externas dos acontecimentos (guerras,
catástrofes naturais) e da agenda política (decisões e tratados). Ainda assim, há uma
seleção da realidade por parte da instância midiática, pois depois de terem selecionado
os fatos devem hierarquizá-los e descrevê-los, ocorrendo uma construção parcial da
realidade (TRAQUINA, 2004; CHARAUDEAU, 2006a). As narrativas então surgem
dada a necessidade de explicação do acontecimento, ainda que muitas vezes desprovida
de perspectiva histórica, mas que pareça evidente. Por isso, não se pode negligenciar o
fato de que a produção da notícia respeita uma série de constrições caras à rotina

31
A escolha pelo jornal Folha de S. Paulo será mais bem justificada no capítulo três, referente ao
conteúdo metodológico do item 3.1 Corpus de todo o material.
53

jornalística de um determinado veículo midiático, que envolve as intenções e


procedimentos daquele que informa – composta de diferentes atores como jornalistas
locais, enviados especiais analistas, chefes de redação etc. (CHARAUDEAU, 2006a).
Em oposição à teoria do espelho 32 , conduz-se esse entendimento do jornal como
uma narrativa de construção social da realidade, imiscuído, claro, a outras diversas
formas contemporâneas de construção, em função das experiências compartilhadas de
mundo que sua narrativa conforma (COSTA; MOTTA; SILVA, 2004). Haja vista que
“o acontecimento nunca é transmitido à instância de recepção em seu estado bruto; para
sua significação, depende do olhar que se estende sobre ele, olhar de um sujeito que o
integra num sistema de pensamento e, assim fazendo, o torna inteligível”
(CHARAUDEAU, 2006, p. 95).
Ao aproximar-se, destarte, das teorias construcionistas, que consideram a
narrativa do jornal uma construção social, não significa dizer que esta distorça a
realidade. Logo, considerar tal paradigma não subtrai das notícias a capacidade de
informar, nem mesmo a própria capacidade de representação da realidade que elas
conformam, mas as trata por sua vez como uma narrativa do real, a única ressalva é de
não confundir com o que seria uma cópia fidedigna do real (TRAQUINA, 2004). Isto
permite arrematar melhor a construção da notícia feita pelo jornal com a teoria do
enquadramento, uma vez que os media constroem os universos de discurso do espaço
público. Além disso, a midiatização contemporânea alcançou um lugar específico de
mediação social, na medida em que faz partilhar um sistema de valores e desempenha
um papel de cimento identitário (CHARAUDEAU, 2006a; CHARAUDEAU, 2006b).
Considera-se, também o papel informativo do jornal, despretensioso de uma
objetividade pura e, ressoando, pois, no aspecto narrativo da notícia, que considera a
subjetividade. Isto não invalida a credibilidade da instância, pois ela usa de outros
artifícios tais como a investigação crítica de acontecimentos políticos, na tentativa de
mostrar a verdadeira realidade denunciando aquilo que é escamoteado. E assim “As
notícias produzidas e veiculadas pelos meios de comunicação de massa não apenas
trazem à audiência informação, mais que isso, atualizam a realidade social” (COSTA;
MOTTA, SILVA, 2004). De forma que

32
É assim chamada por afirmar que a mídia refletiria a realidade, de maneira objetiva e imparcial – já que
os jornalistas seriam neutros. Esta teoria surgiu nos Estados Unidos, tendo dois momentos históricos: No
século XIX com o jornalismo de informação; e em meados do século XX, quando o jornalismo estava
arraigado ao conceito de objetividade (fatos versus opiniões) (TRAQUINA, 2004).
54

Os atores que compõem a instância midiática estão legitimados de


antemão em seu papel de informantes, mas, ao mesmo tempo, estão
em busca da credibilidade dos cidadãos (e dos políticos) – o que
inscreve essa instância em uma lógica democrática – e de captação do
maior número de adeptos, dada sua situação de concorrência com
outros órgãos de informação – o que a inscreve em uma lógica de
sedução comercial (CHARAUDEAU, 2006a, p. 62).

Aponta-se neste sentido a necessidade de se entender as narrativas, uma vez que


o discurso “abarca os acontecimentos do mundo, mas estes só ganham sentido por meio
de uma estruturação que lhes é conferida pelo ato de linguagem através de uma
tematização” (CHARAUDEAU, 2006b, p. 95). Neste caso, parte-se de um apanhado
abrangente de várias notícias – a seqüência dos quatro anos de matérias relativas a
MINUSTAH – para apreender melhor a narrativa construída pelo jornal. É claro que
para os media (não confundido com os casos dos regimes militares, ou os meios de
comunicação militantes, como panfletos e jornais partidários) está num jogo de
cooptação de leitores e de credibilidade junto a eles, e justamente por isso cria uma
narrativa instigante ao mesmo tempo em que muitas vezes critica e revela aspectos
obscuros do poder político, principalmente demonstrando que não tem influência direta
da instância política, e assim posiciona seu lugar de fala na construção da opinião
pública (CHARAUDEAU, 2006a).
É comum o jornal partir de excertos políticos para a construção de sua matéria.
Inclusive em muito dos momentos nos quais se observa a vinculação da cultura no
jornal Folha de S. Paulo encontram-se citações diretas dos discursos de agentes do
Estado versando sobre a MINUSTAH. Por outro lado, embora os media apresentem
fontes oficiais, procura se distanciar do poder político diversificando as fontes e
realizando pesquisas próprias de investigação por uma questão de credibilidade, como
se observa na Folha ao enviar alguns correspondentes internacionais para acompanhar
os acontecimentos diretamente no Haiti. Isto tenta mostrar que estão desvinculados da
influência do poder estatal, principalmente quando criticam ou revelam experiências
políticas ilegais (CHARAUDEAU, 2006a).
Existe certa responsabilidade dos media por serem estes uma instância
relativamente determinante na produção de um fato social, principalmente quando eles
intervêm no campo do discurso político. Charaudeau (2006a) critica a maneira de
seleção e construção das informações políticas pelos media por acreditar que eles
55

trabalham no tempo do efêmero, e por isso possuem um tempo diferente do político e


do jurídico:
As mídias são uma máquina sem memória que tende a construir uma
consciência cidadã também sem memória. Assim, a opinião pública
construída pelas mídias escapa ao político, pois apenas raramente ele
corresponde ao que deveria ser o alvo do discurso político: uma
consciência política (p. 295).

E assim, a responsabilidade dos media interfere na chamada consciência cidadã,


pois este é o lugar onde a maioria da população busca se interar dos fatos sociais e
políticos.
Em função disso buscou-se trazer para a análise os próprios proferimentos dos
representantes do Estado que gerenciam a missão a fim de identificar também como
estes discursos se referem ao papel desempenhado pela dimensão cultural possibilitando
ver na análise final desta dissertação se há porosidade ou cruzamento de enquadramento
entre ambos.
56

2 COMUNICAÇÃO, CENTRALIDADE DA CULTURA E SUA ATUAL


CONVENIÊNCIA

A ênfase do capítulo anterior foi no modo como o objeto desta pesquisa interage
no cenário mais amplo, trazendo a evolução histórica da missão, a inserção do Brasil no
cenário regional latino-americano, e a relação entre interesses brasileiros e discursos
oficiais, acrescentando, por fim, a cobertura jornalística referente ao processo político
de ingerência da MINUSTAH. Dialogou-se, portanto, com teorias, conceitos e
abordagens que a própria força do objeto invoca, dada a sua natureza de ser um
acontecimento com repercussões nacionais e internacionais, de dimensões políticas,
econômicas e culturais.
Este capítulo sustenta, por seu modo, a evolução do problema central da
pesquisa ao sedimentar o terreno teórico dos Estudos Culturais, juntamente com as
determinantes contribuições de George Yúdice (2004) sobre a conveniência da cultura.
Se a questão que instiga a desenvolver esta pesquisa emergiu naquele primeiro
momento capitular, de conceituação da MINUSTAH no cenário, é neste capítulo que é
possível configurar a problemática, por fornecer os instrumentos necessários de análise
através dos caminhos sobre o entendimento do lugar central da cultura na vida social.
Assim, divide-se este capítulo em dois momentos de discussão. O primeiro
momento, mais breve, demonstra o entendimento da cultura na área comunicacional,
apontando a relação constitutiva entre elas. Já o momento subseqüente traz o
desenvolvimento da cultura como recurso e da relação mais afinada que esta estabelece
com a política e com a identidade, em função de vários interesses e questões, como a
importância de ver que raízes culturais são invocadas pelo Brasil para buscar
estreitamento direto com o seu desempenho político no Haiti, tanto que há uma ênfase
de o Brasil ter uma conduta diferenciada na missão de paz, entendida como especial
principalmente por suas ações cívico-sociais integradas que envolvem um concerto
entre militares, ONGs, missionários e arranjo político institucional. Discute-se por esta
razão vinculações mais estreitas do recurso político em torno da identidade cultural,
identidade nacional e as marcas da identidade da América Latina, permeados pelo
conceito de imaginário coletivo já que influencia na conceituação do modo de agir
brasileiro e da importância e responsabilidade regional no comando da missão.
57

Pontuam-se as inflexões que o conceito da cultura sofreu, desde seu


entendimento moderno até o uso como recurso, para se adequar ao modo como é
apreendido para o caso específico desta dissertação, sem a pretensão de apresentar
detalhadamente este processo. Desse modo, partiremos das discussões desenvolvidas
dentro dos Estudos Culturais sobre o conceito de cultura e em seguida abordaremos o
entendimento da cultura como um recurso, e, mais adiante, a cultura como um recurso
político.

2.1 Comunicação e cultura: Caminhos suturais

Os Estudos Culturais sustentam a problemática desta pesquisa na medida em que


foi com a instauração de seu campo teórico que passou a ser possível estabelecer novas
relações entre cultura e sociedade, e, principalmente, como estas relações recaíam sobre
os meios de comunicação de forma reflexiva, isto é, numa dupla afetação onde um
interfere no outro, um constitui o outro. Por se tratar de um campo naturalmente de
interface, utilizar esta abordagem permite também acionar teorias da cultura, da política,
da sociologia, pois, como sumarizou Canclini (1999) “Aquele que realiza estudos
culturais fala a partir de intersecções” (p. 27).
Diante do novo movimento da cultura em se tornar fundamental na abordagem
contemporânea, ela atende, em conseqüência, uma dimensão comunicacional, ou seja,
deixa de ser representada apenas por artefatos materiais e concepções abstratas
destituídas de materialidade e temporalidade, para significar também um modo de vida,
arraigada, produzida e reafirmada nas relações sociais. Nessa perspectiva, a cultura pode
ser entendida como o conjunto de práticas sociais que instituem significados. Para
Stuart Hall (2008), isso não significa dizer que “tudo é cultura”, mas que toda prática
social depende e tem relação com o significado. Conseqüentemente, a cultura é uma das
condições constitutivas de existência dessa prática, ou seja, “toda prática social tem uma
dimensão cultural” 33 (HALL, 2008). Pois “a comunicação, pensada na sua interação
com a cultura, é o movimento da vida social, o que significa dizer que as práticas
comunicativas são constituidoras da vida social” (PERULOZZO, 2006, p. 178).
Logo, em razão do caráter simbólico que a cultura desempenha em conjunto com
a linguagem, conferindo sentido e nomeando as práticas culturais, ela firma-se como

33
Citação sem página, pois o texto está disponível em versão virtual.
58

objeto comunicacional na medida em que constitui o vínculo interacional entre o eu e o


outro, já que esta relação só existe quando compartilha significados, e, portanto, está
sob o domínio da língua (BRAGA, 2006; FRANÇA, 2002a; PERULOZZO, 2006;
WILLIAMS, 1969). França (2002a, p.27) sintetiza o processo comunicativo como “algo
vivo, dinâmico, instituidor – instituidor de sentidos e de relações; lugar não apenas onde
os sujeitos dizem, mas também assumem papéis e se constroem socialmente; espaço de
realização e renovação da cultura”.
A cultura é vista então como uma construção em processo, ao contrário de uma
conclusão estática do termo, de maneira a ser entendida como uma produção comum de
significado. E ainda, mais do que significar o artefato em si mesmo, ela passa a ser uma
resultante do processo atravessado pelas novas significações modernas que sofreu,
adquirindo inclusive o conceito de “todo um modo de ser”, no qual a cultura é realizada
por todos na vida ordinária, sem hierarquizar ou homogeneizar, pois caso contrário,
seria a imposição de uma cultura dominante, reconhecimento de uma cultura elitizada,
ou aniquilamento das diferenças (WILLIAMS, 1969).
É neste momento que a cultura equipara-se ao mesmo patamar do mundo das
Artes, Literatura e Música (ESCOSTEGUY, 2001) adentrando ao terreno da
comunicação, dado que ela permeia todo processo comunicativo, costurando as relações
sociais (WILLIAMS, 1969; BRAGA, 2001). Tal qual o debate trazido por Martín-
Barbero (2001) onde se supera a oposição de cultura dada entre os antropólogos e os
sociólogos, no qual para os primeiros a cultura é tudo, “tanto o machado quanto o mito”
(p. 13), e para os sociólogos que vêem a cultura somente em práticas e produtos
relacionados às Artes e Letras. Já que ele acredita que “a cultura escapa toda
compartimentalização, irrigando a vida social por inteiro” (p. 14).
Ao se localizar neste terreno, a cultura é então tratada dentro das interações
múltiplas, sendo uma delas, os media. Os media concebem diversas interlocuções com a
teoria social, assim tal objeto de estudo conforma instrumentos adequados para o
desenvolvimento de uma pesquisa transdisciplinar 34 – aquilo que se ocupa de várias
disciplinas em conjunto. Isto potencializa e enriquece o estudo, “deixando que o
conceito de comunicação ganhe variáveis que se atualizam em objetos disciplinares e

34
Segundo Braga (2001), o objeto comunicacional é mais complexo do que simplesmente um objeto
interdisciplinar, pois o importante é “observar o funcionamento do que há de comunicação no campo
mesmo das diversas disciplinas humanas e sociais – e ver como essa diversidade pode ser percebida como
atravessada por uma mesma ordem de reflexões que as faz interessantes de um outro ponto de vista:
enquanto objetos comunicacionais” (p. 40).
59

transdisciplinares, em ressonância com a indagação do problema complexo” (DUARTE,


2007, p. 13).
É natural que “os estudos culturais ficam, então, obrigados a fundamentar-se em
métodos e princípios de outros campos para descrever e dar conta dos processos e
instituições e, ainda, condições sociais e políticas particulares” (ESCOTESGUY, 2001,
p. 122), e por isso extravasa a simples metateoria para atingir um projeto propriamente
político, de ação.
Sobre o alargamento deste terreno, avalia Escosteguy (2001) que “todas as
expressões culturais devem ser vistas em relação ao contexto social das instituições, das
relações de poder e da história” (p. 26), enfatizando o caráter constitutivo da cultura em
esferas de política, poder e dominação. Complementa-se este raciocínio com a
consideração da interferência direta com que as instituições mediáticas atuam sobre a
cultura. Pois, conforme a própria autora define:
A investigação da cultura mediática, incluindo tanto os meios, os
produtos e as práticas culturais – ou seja, refere-se tanto à natureza e à
forma dos produtos simbólicos quanto ao circuito de produção,
distribuição e consumo – está inserida numa concepção mais
abrangente de sociedade vista como o terreno contraditório de
dominação e resistência onde a cultura tanto se engaja na reprodução
das relações sociais quanto na abertura de possíveis espaços para a
mudança (p. 17).

Por tal razão, a concepção mais recente de cultura de que ela estaria em suas
conformações simbólicas e práticas sociais vêm a ser o modo como intercepta o
paradigma relacional 35 , respaldado no campo teórico da comunicação, uma vez que a
comunicação nesse paradigma não ocorre como transmissão direta de sentidos, mas
como troca de experiências. Logo, isto vai ao encontro também da definição já evocada
de cultura, que se faz sob o domínio da língua, no terreno da linguagem. Neste ponto é
possível abrir a interlocução com Castells (1999) a respeito de língua, identidade
nacional e cultura, discussão que será adensada no tópico mais adiante. Pois “sob uma
perspectiva histórica, a língua estabelece o elo de ligação [sic] entre a esfera pública e a
privada, e entre o passado e o presente, independentemente do efetivo reconhecimento
de uma comunidade cultural pelas instituições do Estado” (p. 70). Isto significa dizer
que a língua enquanto expressão direta da cultura representa uma resistência real contra

35
Chamado de esquema constitutivo ou praxiológico, este esquema conceitual parte do fato de que “a
comunicação é essencialmente um processo de organização de perspectivas compartilhadas, sem o que
nenhuma ação, nenhuma interação é possível” (QUERÉ, 1991, p.7), portanto, explica uma forma de
perceber a ação e interação no discurso.
60

os aparatos de poder dominante. Corporifica-se ela num último bastião de uma história
compartilhada, de modo que apesar da interferência da ideologia da modernização e do
poder dos media global é capaz de ser construída por bases comuns, pelo povo. Isto
indica que:
O gesto de cultura (fala, dança, criação, comportamento), em situação
de auto-explicitação, já não é apenas movimento de participação e de
identificação do indivíduo na sociedade. É também expressão
consciente desse identificar-se – é comunicação (aos iguais e aos
diferentes) da opção feita. Corresponde a uma seleção entre diversos
jogos e atuação consciente sobre suas regras, via interação social
(BRAGA, 2001, p. 47).

O domínio da linguagem ao ser relacionado ao entendimento de cultura como o


“conjunto de processos de produção, circulação e consumo das significações na vida
social” (CANCLINI, 2003, p. 78) implica numa construção que, simbioticamente, é do
domínio comunicacional. Pois, pensar na construção do lugar da cultura num processo
discursivo atravessado por relações de poder, de interesse e de grande interferência
política rescinde, sobretudo, em sua face que interage com a vida social. E este lugar só
é demarcado a partir da construção discursiva, do embate de sentidos e do
compartilhamento da concepção de cultura como um campo a ser preenchido na
dinâmica interacional.
Atenta-se por isso ao imbricamento da cultura em esferas da economia e da
política, no modo em que elas se articulam e “se constituem mutuamente” (HALL,
2008). Esse encadeamento recíproco entre as arenas confere a premissa para esta
pesquisa, pois se o papel da cultura já mantém, por si, relação direta com a política,
abre-se um caminho para pensar de que forma esta relação é pautada. E, principalmente,
quais os mecanismos são acionados nesta vinculação. É preciso, portanto, “o esforço
por desentranhar a cada dia mais complexa trama de mediações que a relação
comunicação/cultura/política articula” (MARTÍN-BARBERO, 2001, p. 13).
Mediações são mais do que pontes nesta articulação, uma vez que interferem
diretamente nas próprias relações, regulando o processo da construção de sentido. São
elas as responsáveis por intensificar e dar coesão a estas relações, de maneira
constitutiva, isto é, não cabe somente uma leitura fixa e limitada ao texto cultural, mas
estendida às relações que a circunscreve, já que “a comunicação se tornou para nós
questão de mediações mais que de meios, questão de cultura e, portanto, não só de
conhecimentos, mas de re-conhecimento” (MARTÍN-BARBERO, 2001, p. 28), e para
61

haver o reconhecimento é pressuposto que se acione elementos que a comunicação em


si cria, através da mediação e da cultura.
Próximo dessa discussão tem-se o entendimento de “fronteiras da cultura” de
Bhabha (1998). Ele explica que os também chamados de “entre-lugares” não são
simplesmente conseqüência de um passado ou resultante de um presente, mas é a
criação de um novo lugar, um novo tempo, o da tradução cultural, renovando o passado
e inovando o presente, e por isso a aproximação disto como uma forma de mediação.
Assim, para este autor: “A complementaridade da linguagem como comunicação deve
ser compreendida como algo que emerge de um estado constante de contestação e fluxo
causado pelos sistemas diferenciais de significação social e cultural” (p. 313), e que só
podem existir a partir da tradução cultural.
Com os olhos voltados para isto, retoma-se a questão da reflexividade das trocas
sociais, pois “Quando comunicamos, dizemos alguma coisa; e dizemos também algo
sobre o que dissemos” (FRANÇA, 2003, p. 9). Esta relação complementar e por vezes,
paradoxal, já que se pode refutar aquilo que é dito, engendra o caráter complexo e
global da linguagem, numa relação que extravasa o próprio ato comunicativo e relega ao
papel da cultura uma relação intrínseca ao próprio ato. E desta maneira tem-se as
interações sociais interconectando-se num sistema ainda mais amplo – a cultura –
característica que garante a globalidade da comunicação (WINKIN, 2001).

2.2 A trajetória da cultura: Dos Estudos Culturais à sua atual conveniência

A ascensão da cultura para o centro da vida política, econômica e intelectual a


partir de transformações ocorridas desde o início do século XX, foi descrita por diversos
autores – Michael Denning (2005), Stuart Hall (2008), Raymond Williams (1969) etc. –
como o ponto de inflexão teórico dado pela “virada cultural” da Nova Esquerda 36 , na
segunda metade do século XX (DENNING, 2005). Esta guinada representou para o
debate um novo conceito de cultura, onde, segundo Williams (1969), a cultura
readquiriu um ar comum, partilhada por todos na vida ordinária, e não apenas restrita à
elite, e vista dentro de uma concepção sócio-histórica (MATTELART; NEVEU, 2004).

36
No período após a Segunda Guerra Mundial convergiram diferentes intelectuais que se preocuparam
em estudar as novas transformações que marcavam o emergente contexto mundial - reprodução
(Bourdieu), hegemonia (Hall), ideologia e aparelhos ideológicos do Estado (Althusser), disciplina
(Foucault), formação do sujeito e imperialismo cultural (Dorfman e Mattelart). Eles foram os
responsáveis, ainda que sob perspectivas distintas, pela “virada cultural”. (ROCHA, 2008).
62

E, mais do que isso, a cultura também reordenou a sua relação com as esferas da política
e da economia, pois uma vez considerada como central, ela rearticula todas as demais
polarizações, conferindo um novo lugar para antigas discussões firmadas nas ciências
econômicas, políticas ou sociais 37 . Como explica Hall (2008), o contexto da “virada
cultural” deve ser visto não como:
uma ruptura total, mas como uma reconfiguração de elementos [...] em
particular o foco na linguagem e na cultura como área substantiva, e
não simplesmente como aquela que servia de elemento de integração
para o restante do sistema social. 38

Na definição antes ditada pelo conceito moderno de cultura há uma clara


distinção e hierarquização da cultura, na qual a erudita prevaleceria em qualidade e
reconhecimento sobre tudo aquilo que era entendido como popular, das massas. Por isso
o considerável avanço ao pensar numa cultura produzida e compartilhada pelo povo, por
todos. Este foi o novo pensar discutido pelos teóricos da “virada”.
O sentido de cultura comum trazido por Williams (1969) aproxima-se da cultura
popular de Hall (2003) à luz do que este diz sobre as “relações absolutamente essenciais
do poder cultural – de dominação e subordinação – que é um aspecto intrínseco das
relações culturais” 39 . E assim, a luta política é aplicada ao lugar onde a cultura virou o
substrato, ou seja, a instância fundamental para que a luta seja travada, reverberando,
inclusive, nas lutas de identidade e pelo reconhecimento 40 . E isto só é possível ocorrer
na medida em que a cultura popular é trazida para um contexto mais amplo, de relações
culturais e compartilhamentos comuns, mesmo com a presença hierarquizada do poder
cultural, e que seria um obstáculo difícil de ser transposto se partisse da concepção

37
Embora tratemos especificamente de autores dos “Estudos Culturais”, outros debates também foram
travados de diferentes lugares teóricos, pois partilharam das discussões da “virada cultural” na medida em
que pautaram, em momento concomitante, elementos que revisavam a relação entre cultura e sociedade.
Isto demonstra a ampla discussão alçada por tal movimento e seus aspectos globais, de anseio
transnacional, não mais retido simplesmente a um contexto nacional. Vertentes dos Estudos Culturais
sejam norte-americanas, britânicas ou latino-americanas podem divergir em variados pontos, mas todas
“configuram um pensamento político-cultural que se indaga sobre o lugar que ocupam as atividades
relacionadas aos media na compreensão do campo cultural contemporâneo” (ESCOSTEGUY, p. 121,
2001).
38
Citação sem página, pois o texto está disponível em versão virtual.
39
Ibdem.
40
Relativamente recente, o conceito de reconhecimento foi construído a partir do valor moderno de
igualdade entre os indivíduos (FRASER, 1987; TAYLOR, 1994). Há diversas teorias e debates sobre o
reconhecimento, dentre os quais se têm aqueles desenvolvidos por Taylor (1994) e Fraser (1987). Sem
adentrar nas especificidades teóricas de cada autor, pode-se dizer que em uma concepção mais ampla elas
prescrevem que a construção da identidade, seja coletiva ou individual, é intersubjetiva e relacional com
os padrões culturais, com as estruturas políticas e com as instituições sociais, de maneira que além dos
aspectos culturais de justiça, há também os aspectos econômicos a serem conquistados através de lutas
sociais, entendidas como lutas pelo reconhecimento.
63

moderna de cultura. Claramente, em casos como o da luta pelo reconhecimento a


cultura está marcada por uma concepção instrumental, como salienta Martín-Barbero
(2001), o qual justifica a vantagem de tal instrumentalização justamente por ser uma
primeira forma de valorização possível da cultura, traduzida nestas lutas e práticas. Por
isso é preciso reconhecer que este primeiro passo de instrumentalização corresponde a
um avanço para o papel da cultura na vida social, dado que a instrumentalização está
relacionada à “percepção da cultura como espaço não só de manipulação, mas de
conflito, e a possibilidade então de transformar em meios de liberação as diferentes
expressões ou práticas culturais” (p. 46). É preciso acrescentar também que o caráter
instrumental é apenas uma das facetas da cultura, as quais são reveladas por autores
como Martín-Barbero (2001) e Bhabha (1998) em discussões menos instrumentais da
cultura.
Para Martín-Barbero (2001) as práticas populares e a mestiçagem – entendida
como uma reordenação cultural em que passado e presente são vistos dentro de relações
interculturais locais, regionais e globais – são formas de preservação da identidade
cultural ao mesmo tempo em que são adaptadas a necessidades modernas, e ele assim
alega que a cultura popular seria capaz de modificar as formas de expressão da cultura
de massa, isto é, influenciar na própria maneira de manifestação da cultura de massa
(ESCOSTEGUY, 2001). A cultura de massa seria mais uniforme que a cultura popular,
pois esta pode ser expressa em vários âmbitos micros ou mesmo macro, mas não é tão
homogêneo quanto o é a cultura de massa. Bhabha (1998) também apresenta seu
entendimento sobre a importância da cultura criar uma textualidade simbólica e ser
capaz de promover mudanças no compartilhamento social de sentidos ao dizer que:
Há mesmo uma convicção crescente de que a experiência afetiva da
marginalidade social – como ela emerge em formas culturais não-
canônicas – transforma nossas estratégias críticas. Ela nos força a
encarar o conceito de cultura exteriormente aos objets d'art ou para
além da canonização da “idéia” de estética, a lidar com a cultura como
produção irregular e incompleta de sentido e valor, frequentemente
composta de demandas e práticas incomensuráveis, produzidas no ato
da sobrevivência social (p. 240).

Williams (1969) já apontava, em suas discussões a respeito da comunicação de


massa, a disritmia entre a técnica da cultura e os usos que se faz dela, estabelecendo que
a cultura estivesse mais nas conformações simbólicas do que restrita em sua própria
produção ou mercadoria. Seria, pois, obsoleto pensar no sentido inerente relativo ao
produto ou mercadoria, já que o sentido é dado e conferido pelo sujeito e não
64

proveniente dos materiais, produções, objetos ou expressões em si. Dentre as


transformações advindas com a virada cultural no final dos anos 40, 50 tem-se que o
sentido extravasa a expressão ou objeto. Renovando a própria concepção de cultura
enquanto comunicacional, onde a construção de sentidos ocorre na interação social
(BENHABIB, 1996; BRAGA, 2001; FRANÇA, 2002a).
Pizarro (2004) pontua os atuais estudos de cultura dentro daquilo que considera
a cultura além de um adorno ou de um setor da atividade social, aplicando-a “como um
elemento estrutural da organização da sociedade, o nexo que lhe confere coesão e que
necessita estar no centro das políticas públicas” (p. 35).
Trazer a cultura para o centro de políticas públicas pode não ser uma tarefa
evidente e nem mesmo fácil. Como avalia Martín-Barbero (2001)
Se falar de cultura política significa levar em conta as formas de
intervenção das linguagens e culturas na constituição dos atores e do
sistema político, pensar a política a partir da comunicação significa
pôr em primeiro plano os ingredientes simbólicos e imaginários
presentes nos processos de formação do poder (p. 15).

A dificuldade está justamente na aproximação da atividade bastante pragmática


da política com os aparatos simbólicos que constituem o universo da cultura. Os autores
dos Estudos Culturais, por sua vez, demonstram que essa relação não apenas existe, mas
reconhecem que é cada vez mais difícil distinguir na política até que ponto a dimensão
simbólica direciona a sua ação, e vice-versa quando se pensa na cultura. Assim, nas
palavras de Hall (2008) “a ‘cultura’ não é uma opção soft” 41 , já que apresentaria caráter
constitutivo e fundamental na vida social, por isso a regulação da cultura, isto é, o
governo pela e através da cultura torna-se tão importante. Uma vez que é a própria
cultura capaz de regular as demais práticas sociais, conseqüentemente, quem por sua
vez a regula, é detentor do poder simbólico, trazendo à tona a relação entre cultura e
poder. Regular a cultura para o Hall (2008) é a maneira como o Estado, mercado ou
forças políticas e sociais cerceiam esta dimensão sendo capazes de definir práticas,
regulamentando e regulando através da política cultural, dado que esta atividade
consiste em regular os meios de comunicação, o sistema educacional, as formas de
conduta sexual e comportamental, os procedimentos administrativos e legislativos etc.
Ao mesmo tempo em que a cultura, assim como a sua transformação, pode ser
determinada pelo Estado, pelo mercado, ou por outras forças políticas e sociais, pode

41
Citação sem página, pois o texto está disponível em versão virtual.
65

haver também uma determinação recíproca entre a cultura e essas demais instâncias.
Sendo o Estado ou o mercado a regular a cultura, o ponto importante a observar é que
são modos diferentes de regulação e se ocorre uma desregulamentação, em breve ela é
retomada por outro agente regulador.
Quanto mais importante — mais “central” — se torna a cultura, tanto
mais significativas são as forças que a governam, moldam e regulam.
Seja o que for que tenha a capacidade de influenciar a configuração
geral da cultura, de controlar ou determinar o modo como funcionam
as instituições culturais ou de regular as práticas culturais, isso exerce
um tipo de poder explícito sobre a vida cultural (HALL, 2008). 42

A cultura é então vista como o amálgama central das políticas públicas,


estruturante da organização e coesão social, bem como determinante para o sucesso
econômico (ABDALA, 2004; HALL, 2008).
Isto abre caminho para introduzir o desenho apresentado por George Yúdice
(2004), o qual demonstra em sua obra A conveniência da cultura um lugar inaugural
para se pensar a cultura no novo contexto global. Esse contexto é marcado por
mudanças advindas com a política econômica do neoliberalismo, de repercussões macro
a inferirem sobre as contingências locais, mudanças refletidas, sobretudo pela condição
do Estado mínimo, por diminuir a interferência do governo em questões de ordem
econômica e legitimar de certa forma a sociedade civil - emersão de organizações não-
governamentais (ONGs) e movimentos sociais - para atuar em espaços que antes eram
delegados ao governo.
Ao mesmo tempo esse é o contexto que cimentou a liberalização do comércio,
estimulou a privatização, acirrou a desigualdade econômica etc. Esta situação prevista
dentro da corrente neoliberal cria, por sua vez, novos espaços de manobra pública
através de uma reorganização dos atores da sociedade civil, na qual para estes a cultura
tornou-se um importante recurso de promoção da mudança social e, conseqüentemente,
de desestabilização do status quo (ROCHA, 2009; YÚDICE, 2004).
Nesta conjuntura marcada pela globalização acelerada, de desregulamentação e
de retomada da regulamentação, a cultura cada vez mais se expandiu para as esferas
política e econômica, uma vez que se tornou um meio para se atingir o progresso social
e o desenvolvimento econômico (HALL, 2008; YÚDICE, 2004). Isto porque o
“movimento em direção às ‘forças libertadoras do livre mercado’ e a estratégia de
‘privatização’ tornou-se [sic] a força motora de estratégias econômicas e culturais tanto

42
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66

nacionais quanto internacionais” 43 (HALL, 2008). Logo, a relação da cultura com as


forças do mercado e com as relações de poder ficou ainda mais explícita.
Estudos recentes, conforme já mencionado, têm apontado o imponderável lugar
da cultura em processos que antes eram considerados fundamentalmente de outra
natureza. Um exemplo que vai ao encontro desta reconfiguração é observado quando:
Em recente encontro internacional de especialistas em política
cultural, uma funcionária da UNESCO lamentou o fato de que a
cultura é invocada para resolver problemas que anteriormente eram da
competência das áreas econômica e política. No entanto, ela
prosseguia, o único meio de convencer os líderes governamentais e
empresariais de que vale a pena apoiar a atividade cultural é
argumentando que ela reduz os conflitos sociais e promove o
desenvolvimento econômico (YÚDICE, 2004, p. 13).

Segundo Yúdice (2004), a emergência de um novo contexto histórico pós-


Guerra Fria suscitou a possibilidade de pensar a cultura em função de sua utilidade, isto
é, ela é legítima na medida em que serve para alguma finalidade, enquanto recurso.
Entretanto, não se trata da cultura reduzida a um recurso material ou simplesmente
instrumental, mas dotada de um papel intrínseco tanto à política quanto à economia, e
que não pode ser negligenciada, pelo contrário, é considerada em seu elemento
estratégico. Embora Yúdice (2004) pareça incorrer neste erro de redução da cultura que
ele próprio critica, pode-se inferir que só não é uma total instrumentalização da cultura
pelo motivo de haver uma determinação mútua, relembrando o que diz Hall (2008)
sobre a relação da cultura com os demais domínios das forças econômicas ou políticas.
Se há uma relação mútua, envolve paridade entre os domínios, e ainda que um domínio
possa parecer mais determinado pelo outro, não corresponde a uma sujeição de
instrumentalização completa.
É diferente da crítica que envolve a cultura e a comunicação de massa de que
haveria uma completa instrumentalização quando a cultura fosse transformada em
mercadoria, alienando pessoas e auxiliando na manutenção da dominação. Na verdade
George Yúdice (2004) quer indicar a passagem de uma atividade cultural que não
poderia ser estimada, ainda que já fosse reconhecida, para outra que reteria um dado
valor comercial ou que se tornasse capaz de provocar considerável mudança no curso
social. Nos últimos vinte anos, a importância do chamado capital do conhecimento,
fortaleceu a cultura como recurso (ROCHA, 2009; YÚDICE, 2009), já que:

43
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67

Ao mesmo tempo, surgiram novas tecnologias de informação e


comunicação, nas quais o capital mais importante não é só o
financeiro e econômico, mas também o capital do conhecimento: as
idéias, a informação. É a desmaterialização dos recursos. O capital de
investimento numa empresa não é dinheiro necessariamente ou infra-
estrutura. São idéias. É conhecimento, informação (YÚDICE, 2009). 44

A valorização do conhecimento está intimamente ligada com a nova dimensão


da cultura e o seu gerenciamento na medida em que mostra o seu imbricamento em
áreas como da economia e da política. Estas duas últimas, inclusive, também mantêm
clássicas controvérsias em suas determinações mútuas. Portanto, não significaria que
neste momento começa a haver uma total submissão à cultura, já que tanto o campo
político quanto o econômico manteriam suas respectivas importâncias e especificidades
no todo, porém, tais áreas devem admitir como peso providencial o viés cultural, assim
como os dois já se reconheciam reciprocamente. O papel cultural conquista então a sua
proporção nas relações de forças com os outros campos:
Os mesmos administradores de recursos globais ‘descobriram a
cultura’, e referiram-se, pelo menos verbalmente, às noções de
manutenção cultural e investimento cultural. [...] Nem sempre é fácil
fazer com que ambos os aspectos – sociopolíticos e econômicos – de
gerenciamento cultural cheguem a um acordo sem problemas ou
contradições (YÚDICE, 2004, p. 14, grifo nosso).

Este mesmo posicionamento de “descoberta da cultura”, ainda que simplesmente


restrito à menção verbal da cultura, pode ser visto nos mais variados discursos, inclusive
naqueles referentes às intervenções internacionais gerenciadas pela ONU. Nesses casos
a evidência cultural é uma maneira de amenizar toda a carga militar envolvida e de
humanizar a atuação. É capaz de promover o encontro de culturas bastante distintas ou
de revelar aspectos de uma dada região que ficaram camuflados pela violência, tragédia
e pobreza. Tudo isto condiciona à cultura um papel transformador na intervenção
militar, contribuindo de maneira efetiva para a aceitação e o entendimento amplos de
dada intervenção como se verifica na MINUSTAH.
Se para os Estudos Culturais apenas as expressões ou as práticas culturais em si
poderiam conduzir à mudança, Yúdice (2004) ressalta que tal assertiva não é suficiente,
indicando que se deve acrescentar o fator “para quê”, isto é, para qual finalidade tais
expressões culturais são aplicadas, engajadas ou apropriadas, e desta maneira poder-se-
ia visualizar a transformação, seja ela em qual ordem for. Tal qual é visto no exemplo

44
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68

trazido pelo autor envolvendo o Festival Cultural Anual na Colômbia, no qual músicos
vindos de diferentes partes do país, inclusive oriundos de regiões controladas por
guerrilhas e paramilitares, criavam um ambiente de contato e troca. Isto contribuía para
um processo de pacificação, conformando um ambiente seguro e confiável para
investimentos financeiros. A transformação nesse caso é a de que através do ambiente
de músicas compartilhadas é construído um ambiente mais propício para o bom
desempenho financeiro e comercial, apesar de todo o contexto regional de conflito
guerrilheiro da Colômbia.
Argumenta o mesmo autor que menos do que pensar no conteúdo, o que se deve
fazer agora é refletir sobre o seu gerenciamento, o seu papel na condição de recurso,
deslocando esse terreno da ação que a cultura pode promover justamente para a forma
em que ela é aplicada. Canclini (1999), um importante interlocutor de Yúdice (2004) na
América Latina, corrobora isto ao descrever que:
O aumento de exposições artísticas e traduções literárias nos últimos
anos, desenvolvido sob critérios de marketing e buscando a difusão de
massa [...] também deve ser analisado como parte da industrialização
da cultura para captar uma das dimensões fundamentais de seu
significado. Algo semelhante acontece com a utilização do patrimônio
histórico no turismo e a circulação de músicas étnicas ou nacionais,
que contribuem para reproduzir e renovar os imaginários das
Américas do Norte e do Sul (p. 20).

É por tal motivo que o conjunto dos conteúdos folclóricos locais, a cultura
popular, e até mesmo a dita “arte culta” ou erudita é apropriado como recurso, ganhando
mais força ou enfraquecendo junto às instituições que centralizam o gerenciamento da
cultura. Pois gerenciar a cultura é uma forma de filtrá-la, definindo aquilo que é cultura
do que não é segundo os padrões e concepções de tais instituições. Diante da
dificuldade ainda encontrada junto a estas na ampliação do entendimento de cultura,
Canclini (1999) considera:
Difícil que os Estados intervenham nestas áreas estratégicas se a
maioria dos ministérios e conselhos de cultura continuam acreditando
que a cultura e a identidade se limitam às belas-artes, e um pouco às
culturas indígenas e rurais, a artesanatos e músicas tradicionais (p.
189).

É por isso que a discussão do conceito de cultura deve permear as tomadas de


ações políticas, uma vez que estas detêm controles estratégicos na vida pública
imprescindíveis para a transformação social.
69

Uma discussão próxima é realizada também por Hall (2008) a respeito do


“governo pela cultura”, apresentado anteriormente neste mesmo capítulo, ao demonstrar
que se torna tão importante regular a cultura quando se considera que ela própria regula
as demais esferas. Assim, o governar pela cultura é a forma de se empenhar em “influir,
moldar, governar e regular — mesmo que indiretamente”, mas não se trata também de
“coerção, influência indevida, propaganda grosseira, informação distorcida ou mesmo
por motivos dúbios” 45 (HALL, 2008).
É por isso também que Bhabha (1998) se atenta para avaliar a importância do
emprego da política no processo de produção cultural – a qual abrange um modo de
controlar o modo de fazer e de disseminar as práticas culturais –, pois esta “estende o
domínio da ‘política’ em uma direção que não será inteiramente dominada pelas forças
do controle econômico ou social” (p. 44), atravessando, para tanto, as práticas culturais.
Nessa linha, o teórico revela a interferência de condutas políticas, no caso com marcas
ocidentais, na constituição do cultural e na sua propagação para outras regiões do globo:
Um grande festival de cinema no Ocidente [...] nunca deixa de revelar
a influência desproporcional do Ocidente como fórum cultural, em
todos os três sentidos da palavra: como lugar de exibição e discussão
pública, como lugar de julgamento e como lugar de mercado. Um
filme indiano sobre as agruras dos sem-teto de Bombaim ganha o
Festival de Newcastle, o que então abre possibilidades de ampla
distribuição na Índia (BHABHA, 1998, p. 45).

Este exemplo no qual o filme indiano foi afetado em seu país por uma crítica
ocidental mostra como o gerenciamento da cultura obedece também a questões
econômicas e políticas dentro do jogo das relações internacionais e de poder, expondo a
determinação que um festival no ocidente tem para o restante do panorama cultural
mundial.
Retornando para a discussão da tese de Yúdice (2004) percebe-se que ela dá um
passo à frente do conceito trazido pela “virada cultural” – bem definida por Denning
(2005) como quando a cultura saiu do pano de fundo para ser a protagonista – e norteia
uma nova forma de analisar o papel cultural. Inovando sobre a premissa da centralidade
da cultura, o autor nos atenta sobre como ela é gerenciada tanto para assuntos de
desenvolvimento, economia, cidadania etc., resvalando a sua utilidade dentro de um
novo contexto global mais amplo.

45
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70

Esse novo contexto age sobre o gerenciamento cultural reutilizando certos


padrões canônicos de uma cultura metropolitana e dominante, ainda que dentro de
necessidades nacionais ou mesmo transnacionais, estabelecendo por sua vez uma
interdependência assimétrica, característica nodal desta época de globalização
(CANCLINI, 1999; 2003). Se em meio à globalização acelerada a cultura cada vez mais
se expande para as esferas políticas e econômicas (YÚDICE, 2004), não corresponde
por sua vez à garantia de homogeneidade e equilíbrio dentro do novo espaço ocupado
por ela. Pode-se, pelo contrário, acentuar diferenças crônicas como, por exemplo, “as
controvérsias sobre a autonomia dos povos indígenas [zapatismo em Chiapas] mostrem
aspectos não-resolvidos das relações entre independência cultural ou política e a
participação em processos nacionais e globais” (CANCLINI, 1999, p. 25), alijando,
portanto, os povos indígenas de participação política mais efetiva. Pois, como Hall
(2003) evidencia “deve-se tentar construir uma diversidade de novas esferas públicas
nas quais todos os particulares serão transformados ao serem obrigados a negociar
dentro de um horizonte mais amplo” (p. 87). E isto sim garantiria a inclusão e igualdade
de um gerenciamento da cultura que não apenas a utilizasse para manter uma situação
política de status quo, mas, pelo contrário, que proporcionasse um novo contexto de
inserção de questões culturais em esferas econômicas e políticas de forma equânime e
menos hierarquizada.
Dentro desse ponto de acionamento da cultura por outros campos sociais, onde
há certas áreas e temas em que a cultura é regulada pelo Estado, e outras que é regulada
pelo mercado, pode haver uma dupla determinação entre cultura e política, mercado e
forças sociais, como lança em debate Hall (2008). Porém, quando se afina até chegar na
cultura como uma determinação da política na intervenção militar há uma certa
determinação da política na cultura, regulando-a de algum modo, não que a mesma não
interfira, pois não é necessariamente uma questão de fraca determinação. No caso da
MINUSTAH a cultura interfere porque a ação política não é colocada de forma dura
pelo Brasil. Poderia ocorrer de ser uma política externa competente, representante das
condutas adequadas no cenário internacional, mas sem que houvesse um apelo cultural
no discurso, como ocorre em muitos acontecimentos dessa mesma magnitude e
ocasionado por diversos países. Mas no caso do comando brasileiro no Haiti é diferente,
justificada em sua maior parte pela conduta cultural brasileira, que também interfere no
modo de fazer política.
71

Somente compreendendo esta perspectiva e problemática de interdependência


assimétrica que vigora no cenário macro e micro que é possível trazer o conceito de
cultura à luz do que Yúdice (2004) entende como conveniência. Nas palavras dele:
O conteúdo da cultura foi perdendo importância com a crescente
conveniência da diferença como garantia de legitimidade. Pode-se
dizer que as compreensões anteriores – os cânones de excelência
artística; os padrões simbólicos que dão coerência e conferem valor
humano a um grupo de pessoas ou sociedade, ou a cultura como
disciplina – cedem lugar à conveniência da cultura (YÚDICE, 2004,
p. 454).

Pois considerando que foi extinta a distinção entre alta cultura, cultura de massa
e a própria concepção antropológica a que a cultura esteve apoiada por muito tempo,
engloba-se todas elas quando se analisa no contexto contemporâneo o papel dos
museus, do turismo, do patrimônio cultural e das indústrias da cultura de massa. A
relação passou a ser entre os bens – materiais ou simbólicos que circundam a cultura – e
aqueles que detêm os instrumentos capazes de gerenciar, seja em escala local ou global,
os recursos da cultura. Incluem-se aí os setores não-governamentais, as grandes
corporações transnacionais, as instituições governamentais, os poderosos veículos de
comunicação e os próprios atores da sociedade civil que ganharam destaque a partir do
contexto neoliberal. São todos esses níveis, alguns mais e outros menos, que regulam e
ditam a forma que a cultura deve ter.
Grandes fundações internacionais – Banco de Desenvolvimento Mundial, Banco
Interamericano de Desenvolvimento, Banco Mundial – tratam a cultura como um tipo
de investimento. Elas balizam-se pelos ganhos que o desenvolvimento cultural é capaz
de trazer, valores tais como confiança e cooperação, já que estes, por seu turno,
potencialmente resultam numa impulsão da economia como um todo (YÚDICE, 2004).
Há dificuldades encontradas pelo fato de nesse modelo a cultura cunhar-se em
indicadores econômicos e dados quantitativos, requisitos comuns de avaliação
requeridos pelos bancos de desenvolvimento. Porém, baseando-se, por exemplo, no
critério de justiça social, é preciso considerar também a maneira como a comunidade
será beneficiada, já que é um critério que não se restringe ao simples desenvolvimento
do capital financeiro, mas a uma questão, embora objetiva e clara, pouco quantificável.
Isto pode conduzir a determinadas simplificações que neutralizam importantes questões
que envolvem a cultura e seus resultados.
72

Pensar na cultura como um recurso revela também o modo como ela ao ser
apropriada é redimensionada. Bhabha (1998) inclusive indica que ela não é fixa
primordialmente ou fechada numa unidade, pois até mesmo os signos, os significados e
os símbolos da cultura podem ser lidos, traduzidos ou re-historicizados de diferentes
maneiras, considerando as condições discursivas da enunciação. É desse modo que o
gerenciamento cria uma enunciação para a cultura, conferindo-lhe um sentido que a
imbui de utilidade.
Se a teoria de Yúdice (2004) regulamenta a maneira de se gestar a cultura dentro
de interesses estratégicos nacionais ou transnacionais, Canclini (1999) operacionaliza
isso com sua discussão a respeito dos Estados latino-americanos. Ele reivindica que
estes assumam o interesse público e regulem a cultura em função dos interesses de
desenvolvimento econômico e social “numa promoção pública da cultura latino-
americana” (p. 195). Canclini (2003) mostra inclusive como “muitos componentes
étnicos entram no patrimônio de outros grupos, através de práticas lúdicas e rituais, mas
também mediante políticas culturais, passando a formar parte do seu horizonte” (p.
108). Isto esclarece pontualmente como um determinado processo étnico e/ou cultural é
modelado e forjado para que possa ser gerenciado politicamente, adentrando-se na
discussão da conveniência da cultura e demonstrando como ela é apropriada para
estabelecer conexões que sirvam de alguma maneira para um determinado fim. Nesse
sentido estreita-se ainda mais com a discussão de Yúdice (2004) e com o objeto de
estudo sobre o fato de a cultura não ser auxiliar, mas essencial aos processos de
globalização e das relações internacionais contemporâneas. Ao incluir a interferência
dos meios de comunicação (CANCLINI, 1999), pode-se analisar também a porosidade
dentro dos media com o que é construído oficialmente pelo discurso brasileiro, o que
revela em conjunto traços sobre a possível interferência da cultura do Brasil na
MINUSTAH.
A fim de contemplar isto, parte-se de um princípio derivado do caminho aberto
por Yúdice (2004) de que a cultura pode ser tratada enquanto um recurso político,
aplicando em nosso caso para a MINUSTAH. Quando se trabalha a cultura dentro de
questões discursivas, políticas ou sociais, é preciso também olhar para estas questões e
suas mediações, considerando a contribuição de Martín-Barbero (2001) para o termo, e
não se restringir somente à cultura que está sendo invocada. Pois, como sugere o autor,
73

a mediação é uma instância dentro dos Estudos Culturais onde condensa a relação
constitutiva entre cultura e política.

2.3 Cultura e política: Uma articulação de meios e fins

Em estudos de política é relativamente comum a cultura responder a um papel


pouco privilegiado. Nesta direção revela Sanches Rocha (2009) que “embora se esteja
falando de um elemento que é parte integrante da política, a cultura sempre foi tratada –
não de modo ingênuo, mas proposital – como um acréscimo, um adendo, pelas
principais teorias das relações internacionais” 46 .
Entretanto, dentro da perspectiva dos Estudos Culturais aqui abordada baliza-se
pela “forma como a cultura penetra em cada recanto da vida social contemporânea,
fazendo proliferar ambientes secundários, mediando tudo” 47 (HALL, 2008). Pois o
grande avanço dado por Williams (1969) não se restringe somente à crítica da maneira
de como a cultura era estabelecida enquanto um domínio distinto acima da sociedade
como um todo, separado dos trabalhadores e dos assuntos políticos, já que a
contribuição deste autor está justamente em perceber o colapso desta distinção da
cultura, entendendo-a de forma imbricada em relação aos outros domínios como
indivíduos e política. Atado a isso, uma “cultura comum”, segundo termos reunidos
pelo próprio teórico, estaria mais adequada dentro de uma comunidade de experiência
do que propriamente como cânones a serem absorvidos, produzidos em outra esfera e
que estariam, portanto, numa posição em paralelo com a vida social.
Para o melhor entendimento da cultura como parte da prática política, e vice-
versa, é mais coerente ter em mente um diálogo dentro do que Williams (1969) traz
como cultura e o conceito da cultura como conveniência de Yúdice (2004). Esta busca
dentro do diálogo entre os dois autores nos impulsiona a perpassar o novo modo de ver
as práticas estatais e o modelo democrático de governo, já que somente estaria garantida
uma cultura a ser produzida em outros domínios se houvesse em curso um processo
democrático natural e efetivo, pois, do contrário, a hierarquização entre os domínios e as
suas respectivas produções culturais fatalmente ocorreria. Afirmam Lloyd e Thomas
(1998) que:

46
Citação sem página, pois o texto está disponível em versão virtual.
47
Ibdem.
74

Enquanto a função do Estado é mediar conflitos entre grupos de


interesse, a função da cultura é interpelar indivíduos em direção a
disposição para reflexão desinteressada que torna a mediação do
Estado possível. Cultura produz a base consensual para o Estado
formar a democracia representativa ao provocar a disposição formal
ou representativa em todo indivíduo à parte da particularidade
concreta de cada pessoa (p. 14, tradução nossa).

Em posição complementar a dos autores acima, Martín-Barbero (2001) trata da


mediação cultural como a razão para que a política não seja apenas uma imposição do
Estado, de maneira que ao partilhar da cultura popular a política passe a ser além de
efetiva, construída em conjunto com a vida social. Deve-se considerar então, segundo o
autor, a pluralidade étnica e cultural nas políticas públicas e não simplesmente “a
concepção de democracia baseada na aplicação do estatuto do cidadão a cada indivíduo
e a visão homogênea e centralizadora da Nação” (p. 276).
Num contexto nacional, não é surpreendente que os interesses de uma dada
cultura partilhada por uma elite política dominante tentem escamotear a problemática
cultural – incluindo todos os problemas de uma sociedade multifacetada culturalmente –
, tentando deslegitimar a força social, mesmo as de caráter representativo conforme dito
acima. Porém se “a cultura é política porque os significados são constitutivos dos
processos que, implícita ou explicitamente, buscam redefinir o papel social”
(ALVAREZ; DAGNINO; ESCOBAR, 2000 p. 25), confere o fato de que outros atores,
além do Estado, são também capazes de desestabilizar os significados culturais
dominantes, rearticulando política e cultura. Assim, o Estado deve reconhecer
aspirações e interesses internos da população, para que possa agir em nome dela num
cenário mais amplo, como o contexto de política externa.
Em realidade, conforme os próprios autores Lloyd e Thomas (1998) defendem é
que a teorização da cultura como um papel mais central abarca várias possibilidades de
estruturas representacionais que são encontradas tão somente dentro de arranjos
previstos no contexto do Estado moderno, e dentre essas estruturas encontram-se as
advindas e conformadas dentro da própria força social. Isto foi potencializado no Brasil
principalmente na década de 80 com o surgimento de novos atores da sociedade civil, já
que estes colocaram em xeque a cultura política tradicional (ESCOTESGUY, 2001). O
Estado diminuiu o seu espaço do fazer político nesse momento em que a força social
cresceu e ampliou a atuação. Mas não foi somente uma transferência de
regulamentação. Foi também, e principalmente, uma mudança qualitativa, em que o
75

Estado passou a ter uma preocupação maior com questões de cultura e política social,
inclusive porque estes eram também pautados e reivindicados pela sociedade civil.
Por isso esta relação entre política e cultura está tão arraigada ao conceito
contemporâneo de Estado, no qual se usa o terreno da cultura para estabelecer as ações
práticas da política. Isto fica bastante claro ao examinar o Estado brasileiro, que no final
da década de 80 após superar o período de ditadura militar e promover uma
redemocratização no país alçou um papel mais ativo e alerta na participação, tornando-
se inclusive mais cauteloso em suas adesões políticas, buscando sempre um respaldo
sócio-econômico para apoiar suas decisões e justificar comportamentos. Chauí (1995)
ao elencar as principais modalidades da relação do Estado com a cultura no Brasil
comenta que na época do Estado autoritário este “se apresenta como produtor oficial de
cultura e censor da produção cultural da sociedade” (p. 11). Obviamente, ao contrário
desse período anterior, o novo contexto democrático passou a implicar em sérias
medidas de transparência com a população e coerente com o plano de um novo Estado,
no qual o debate no espaço público tornou-se parte essencial do agir político,
concedendo inclusive legitimidade ao Estado. Tem-se como exemplo de novas medidas
adotadas no final dos anos 80 os orçamentos participativos, as audiências públicas e os
comitês consultivos, ainda que estes sejam casos pontuais e restritos a dadas regiões do
país, mas já se trata de um importante avanço (VITALE, 2004; WAMPLER;
AVRITZER, 2004).
A abordagem cultural neste momento emergiu como um forte argumento de
pauta política, pois nos sistemas democráticos contemporâneos considerar a diversidade
cultural implica em atender ao requisito da pluralidade, ao respeito a minorias e à
criação de espaços de debates públicos mais legítimos.
Um exemplo bastante emblemático está na tematização do direito indígena.
Antes da Constituição de 1988 o contato do Estado com comunidades indígenas era
regulado por uma atitude de inseri-las num contexto socioeconômico nacional. De
maneira que as terras onde os índios viviam poderiam lhes ser concedidas pelo Estado,
na medida em que atendesse aos interesses da nação como um todo, ao contrário de lhes
ser um direito garantido. Porém,
A Constituição Federal Brasileira de 1988 reconhece aos índios os
direitos de manter suas culturas, tradições e organizações sociais, a
posse permanente das terras tradicionalmente ocupadas – mas a
propriedade e a competência da demarcação cabem à União -, e a
possibilidade de iniciar processos judiciais com o auxílio do
76

Ministério Público, sem a intermediação da FUNAI. As conquistas da


Constituição são consideradas bases legais apropriadas para as
reivindicações indígenas mais fundamentais (SIMONI, 2009). 48

Isso demonstra que o Estado passou a respeitar a cultura e organização política


dos povos indígenas, de modo a lhes garantir não apenas terras, mas também o direito
de reivindicação das necessidades por eles mesmos definidas, e não pelo Estado, como
até então ocorria.
A cultura passou a fazer parte do discurso político tanto pela importância que
agregou nas próprias ações políticas no decorrer do tempo, quanto pela função de
legitimar democraticamente a ação. Ignorar as implicações de uma cultura local, por
exemplo, no caso de mudança no curso de um rio em função da instalação de uma
hidrelétrica 49 representa declinar o projeto político ao fracasso. Pois, não se sustentam
publicamente argumentos somente que impliquem em desenvolvimento econômico e
social, e que desconsiderem, por sua vez, os impactos culturais que poderiam gerar entre
os ribeirinhos afetados, dado que tal atitude iria contra todo o discurso da cultura
democrática a que estava ancorado este novo momento.
É trazido por Yúdice (2004) um evento interessante ocorrido nos Estados Unidos
sobre como o contexto cultural influencia na maneira como é recebida pela população
uma nova obra pública. Ele comenta que a notícia a respeito da instalação de câmeras na
cidade de Peekskill resultou numa reação inesperada por parte da população. Ao
contrário de ser vista positivamente como uma melhoria para a cidade por ser um
instrumento para resguardar a segurança coletiva, a população enxergou aquilo como
uma forma de controlar a circulação dos residentes negros, encarando o
desenvolvimento urbano de infraestrutura em termos raciais. Por isso, o conteúdo de
uma política pública não pode negligenciar o meio social e suas particularidades e
compartilhamentos culturais.
E ainda, o espaço da cultura em meio à política foi não apenas conquistado – por
lutas sociais, em pontos específicos, e pelo movimento democrático do contexto
político, de maneira mais ampla –, mas assegurado sob princípios normativos. Pode-se

48
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49
A notícia a seguir ilustra o caso da hidrelétrica do Rio Xingu, que só pôde ser construída com a garantia
de que a obra respeitaria o meio ambiente e a cultura local: “O Ministério de Minas e Energia divulgou
nesta quarta-feira resolução do CNPE (Conselho Nacional de Política Energética) que determina que
apenas a hidrelétrica de Belo Monte será construída no rio Xingu, no Pará [...]. A resolução pede ainda
que a Eletrobrás conclua os estudos de viabilidade de Belo Monte e faça estudos antropológicos em
relação às comunidades indígenas, devendo ainda ser [sic] ‘ouvidas as comunidades afetadas’"
(GOVERNO DETERMINA, 2008).
77

inclusive dizer que o discurso sobre respeito cultural que antes era chamado de
“politicamente correto” – optativo e condicionado aos interesses próprios de quem agia
–, passou a ser aquele “politicamente legal” – legalmente obrigatório e independente de
posicionamentos puramente estratégicos ou econômicos.
É possível entender então como a nova concepção de cultura, a qual avança de
um sentido passivo ao receber uma adicional idéia de ação a partir de sua conveniência,
foi capaz de intervir no curso da história e dos fatos. Pois, se “a cultura é uma região de
sérias disputas e conflitos acerca do sentido” (ESCOTESGUY, 2001, p. 122) está,
justamente por causa disso, intimamente ligada ao poder.
Considerando todo o contexto da “virada cultural” já tracejado, diversos autores
anunciaram a teia complexa que se formou entre cultura, política e economia. Para
Escosteguy (2001) tratava-se de uma relação interdependente; para Hall (2008) é uma
constituição mútua, Martins (2002), por seu turno, afirma que
é inegável que a referência cultural desempenha um papel
determinante nos processos pessoais, grupais, comunitário, sociais,
nacionais e internacionais de (des)entendimento e negociação. A
aproximação culturalista de origem antropológica tem por objetivo
apenas referenciar este dado, tornado incontornável também no
aspecto político, interna e externamente aos estados-nação instalados
no cenário mundial (MARTINS, 2002, p. 61).

Ainda que a dissertação avance além do que este autor define enquanto cultura,
e muitas vezes discorde dessa posição tão determinante dela, partilha-se com ele a idéia
de que a cultura engloba o Estado e o mercado, ou seja, a política e a economia, e não se
apresenta, portanto como um elemento estranho a eles, mas constituinte nesta relação.
Sem tentar rotular o que consiste este novo encadeamento entre os domínios, claramente
é visto que se perde (em comparação com a definição moderna de cultura) uma nítida
hierarquização entre os âmbitos, ao mesmo tempo em que permite à cultura assumir um
lugar de projeção, de destaque, que passa a ser vista e considerada em espaços nos quais
outrora fora ignorada. Pois “ao romper com o discurso homogeneizante e modernista da
cultura, a cultura enquanto híbrido se torna uma arena antagonística de diversas formas
de conflitos e agências culturais” (SOUZA, 2004, p. 126).
Conforme exposto no item anterior, a respeito de Yúdice (2004) em sua tese da
“cultura como recurso”, é também proposto um novo modo de pensar o imbricamento
entre as relações políticas, econômicas e culturais no cenário global. Rocha (2009)
esclarece que “para Yúdice a cultura tornou-se um recurso conveniente aos diversos
78

campos e situações da sociedade global e tem sido convocada para resolver questões
que antes eram dos domínios econômico e social.” (p. 1). Acrescentando-se também aí o
domínio político, já que investir em cultura fortalece a base da sociedade civil, a qual
por sua vez serve de terreno e luta para o desenvolvimento político e econômico.
(ROCHA, 2009; YÚDICE, 2004). Dado que:
A cultura, tal como se encontra hoje nos ministérios culturais, nas
instituições intergovernamentais, como a Unesco e o Banco Mundial,
é justamente isso: a cultura como recurso para fortalecer o tecido
social. Em muitos lugares pobres, fornece oportunidades de emprego
e a produção cultural é organizada para a sustentabilidade, não apenas
cultural, mas da sociedade em geral. Os funcionários que se
especializam em política cultural estão buscando uma nova maneira
de expandir o setor, com políticas muito mais abrangentes que antes.
Hoje não se pode pensar em cultura sem pensar em economia e em
bem-estar social. E isso não está somente nas mãos do governo,
também ocorre nas articulações entre instituições do governo e
organizações da sociedade civil (YÚDICE, 2009, grifo nosso). 50

Pode-se afirmar que dentro do espaço público a cultura se instala entre o


individual e o Estado, conformando o cidadão segundo certos preceitos e sentidos
compartilhados (LLOYD; THOMAS, 1998), em função de que “o papel político da
sociedade civil não está diretamente relacionado com o controle ou conquista do poder
mas com gerar influência no debate que se dá na esfera pública cultural”
(ESCOSTEGUY, 2001, p. 203).
Para não recair numa separação nítida entre cultura e política, e delegar para esta
última isoladamente a ordem prática de ação, é adequado rever aquilo que Cevasco
(2003) exprime que
A função social da política e da cultura são distintas. A cultura é a
instância da construção de significados e da veiculação de valores,
tudo isso impregnado de valores políticos, mas a política é a instância
da deliberação, do que deve ser feito para assegurar um determinado
estado de coisas: se não o consegue por consenso o faz por coerção. É
na política e não na cultura que a sociedade deve buscar respostas para
a pergunta fundamental: ‘Que fazer?’ (p. 97).

Pois, coadunando com o que vem sendo apresentado no decorrer desta


dissertação, é preciso impingir sobre a política a ordem cultural em seu aspecto ativo,
isto é, influente e também tendo seu peso providencial na ordenação política.
Por outro lado, frente à centralização da cultura na perspectiva adotada é
importante não incorrer, equivocadamente, numa supervalorização da cultura em

50
Citação sem página, pois o texto está disponível em versão virtual.
79

detrimento de outros domínios de poder, como a própria política. Em realidade, dentro


desta perspectiva teórica a cultura é vista mais como uma questão de método do que
definição peremptória de qualquer análise. Isto significa que pautar a cultura como
central significa apenas direcionar o olhar para a dimensão cultural do processo e
entender de que maneira ela assume o seu lugar, considerando todo o contexto histórico
e dos próprios avanços teóricos sobre isso. Deve-se realizar também o exercício inverso,
ou seja, mais do que pensar a cultura embrenhada na política, considerar o avanço desta
em arenas antes consideradas como não-políticas (ESCOTESGUY, 2001).
Pois uma vez que a dimensão cultural é vista como um espaço de luta política e de
poder, os campos político e cultural se entrelaçam mais do que se sobrepõem. Por esse
ângulo os Estudos Culturais não se limitam a um projeto teórico, de constituição e
consolidação de um campo de estudos, mas também político, por desenvolver projetos
de política cultural, conferindo um caráter mais ativo e menos analítico
(ESCOSTEGUY, 2001). Permite também que os processos de transformação política e
social não sejam retidos somente à política formal e estatal, mas que possam ser
oriundos de camadas mais internas à sociedade, isto é, de indivíduos isolados ou
agrupados em organizações. Assim, as próprias pessoas e movimentos sociais são
dotados de mecanismos de transformação (CEVASCO, 2003).
Canclini (1999) expõe ser comum encontrar estudos sobre política cultural, no
qual estão presos a definições fechadas de identidade nacional ou demasiadamente
atreladas a um território específico. Considerando que para ele a identidade não se
define enquanto um bloco compacto homogêneo, de maneira que o culto e o popular se
desenvolvem mutuamente, sem distinção, tal qual o regional e o global, numa narração
contínua, nunca essencializada, a política cultural não pode se restringir ao Estado ou à
identidade nacional rígida (CANCLINI, 1999; ESCOSTEGUY, 2001).
Nessa tangência de política descentralizada, com o Estado pouco delimitado em
suas fronteiras físicas ou simbólicas, e a identidade nacional, ainda que problemática em
definição e bastante porosa face ao processo de globalização, permite que seja traçada
uma aproximação sobre como se deu a política cultural no cenário sócio-cultural
contemporâneo. A respeito dela tem-se que:
Esse laço constitutivo significa que a cultura entendida como
concepção do mundo, como conjunto de significados que integram
práticas sociais, não pode ser entendida adequadamente sem a
consideração das relações de poder embutidas nessas práticas. Por
outro lado, a compreensão da configuração dessas relações de poder
80

não é possível sem o reconhecimento de seu caráter “cultural” ativo,


na medida em que expressam, produzem e comunicam significados.
Com a expressão “política cultural” nos referimos então ao processo
pelo qual o cultural se torna de fato político. (ALVAREZ;
DAGNINO; ESCOBAR, 2000, p. 17).

Para Canclini (1999) a cultura está muito atrelada às relações de produção e


consumo, já que ela mais do que interferir simplesmente nas razões econômicas, age
diretamente no exercício da cidadania e da construção da identidade. Refletindo então
sobre o campo político, ele prevê uma revisão do papel da cidadania cultural, dado que
esta não se limitaria às fragmentações étnicas ou regionais. Yúdice (2004) também
discute cidadania cultural, considerando o respeito aos direitos políticos e a tarefa de
aplicar o universal ao relativismo cultural (abarca a discussão do multiculturalismo),
especificamente nos casos de política de identidade. Por isso Canclini (2003) vê que
processos como a integração cultural e a globalização requerem novas políticas culturais
que possam abarcar essa dinâmica (ESCOSTEGUY, 2001).
Revendo isto à luz de como a relação entre política e cultura dentro do Estado pode
ditar o ordenamento no cenário internacional, e, especificamente em missões de paz da
ONU, é interessante observar se o país responsável pela missão respeita uma
determinada cultura ou realidade local na qual intervém, criando políticas culturais no
país ajudado que realmente auxiliem na manutenção da paz como um todo, e não sejam
simplesmente medidas paliativas ou esvaziadas de ação junto ao desenvolvimento
econômico. Pois isto inclusive rescinde sobre o julgamento local de a missão ser
legítima ou não. Haja vista que:
em várias situações as populações locais acabam se encontrando sob o
fogo cruzado de um sem número de entidades governamentais e não-
governamentais que supostamente estão ali para fazer com que elas
tenham desenvolvimento nos seus próprios termos. Os locais
frequentemente não estão preparados para entender a fusão de
interesses nacionais e transnacionais dos mais diversos matizes
políticos (RIBEIRO, 2000, p. 23).

De maneira que cabe a uma atitude do gestor, ou gestores, da missão e dos meios
competentes com largo alcance junto à população local esclarecerem a política de
intervenção adotada numa dada região, considerando a realidade cultural que esta
compartilha. Pois, como dito acima nos exemplos de políticas públicas que não
reconheceram, ou negligenciaram, o compartilhamento de sentido de uma dada região, o
mais provável é incorrer em medidas que não se realizam. Isto é, são medidas que
81

invertem a intenção original, criando problemas posteriores, ao invés de resolver aquilo


a que determinada política pública, cultural ou não, foi proposta.
No caso da ação brasileira no Haiti observam-se medidas que buscam
reconhecer de algum modo a realidade cultural local. A criação do Centro Cultural
Brasil-Haiti, por exemplo, cumpre a função além de aproximar as atividades e práticas
culturais de ambos, também desenvolver debates para questões que atritam o Haiti em
razão da intervenção brasileira. Isto significa evidenciar nesses debates melhorias
trazidas pela MINUSTAH na ordem de infra-estrutura e saneamento básico, bem como
ao auxílio na reorganização das estruturas políticas do país, que estavam deterioradas
antes da chegada das tropas onusianas.

2.4 Cultura e identidade

Primeiramente, é importante não confundir e nem considerar o conceito


identidade como sinônimo de cultura, apesar de ser a primeira um elemento constitutivo
da segunda, e embora também alguns autores trabalhem como se fossem o mesmo, a
exemplo de Charles Taylor 51 (1994). Nessa direção constitutiva, Castells (1999) define
a identidade como “[...] o processo de construção de significado com base em um
atributo cultural, ou ainda, um conjunto de atributos culturais inter-relacionados, o(s)
qual(ais) prevalece(m) sobre outras fontes de significado” (p. 22).
Canclini (2003) inclusive indica que a cultura ao tornar-se objeto de estudo
consistente nas ciências sociais durante a segunda metade do século XX distingue-se dos
discursos sobre identidade, já que “uma parte do que chamamos cultura é explicada
como comportamentos – dos produtores, dos intermediários e dos consumidores – que se
desenvolvem com certa regularidade” (p. 78). E estes discursos sobre identidade são
narrativas em conflito e não se configuram rigorosamente enquanto objeto de estudo,
determinadas apenas dentro de processos e construções históricas. Dado que
As pesquisas sobre identidades não fornecem um conjunto de traços
que possam ser apontados como a essência de uma etnia ou de uma
nação, e sim uma série de operações de seleção de elementos de
diferentes épocas articulados pelos grupos hegemônicos numa

51
Para Taylor (1994) a cultura é a narrativização do “eu”, do sujeito. Por isso, ela é sinônimo de
identidade, o que torna a linguagem o substrato essencialmente importante para o seu estudo de políticas
de reconhecimento. Uma crítica dos Estudos Culturais ao Multiculturalismo – vertente a qual Taylor é
referência fundadora –, é justamente em relação a esta narrativização, questionando a essencialização da
identidade para o sujeito estar pronto no momento da luta política pelo reconhecimento.
82

narração que lhes dá coerência, dramaticidade e eloqüência


(CANCLINI, 2003, p. 78).

Há conceituações de culturas regionais, nacionais, híbridas, transnacionais,


globais assim como existem identidades diaspóricas, nacionais, étnicas etc. Essa
coexistência de diversas culturas e identidades gera barreiras, embates, reconhecimentos
e desconhecimentos, negações e assimilações. Não significa, portanto, que uma
identidade se sobrepõe a outra, ou são excludentes, mas também não quer dizer que
convivem pacificamente sem lutas ou instabilidades. Este terreno da cultura e identidade
é bastante estudado, mas por vezes, ignorado, principalmente no que se refere às suas
problematizações e extrapolações. Diante disto, nos atrelamos a discutir de forma mais
atenciosa principalmente a identidade e a cultura nacionais, apresentando outras também
pertinentes, mormente por desestabilizarem a questão nacional.
A cultura, seja no plano nacional ou internacional, é capaz de nortear a formação
identitária, instrumentalizada como meio de mobilização econômico-político cultural, e
desta maneira aproxima-se da definição da cultura como um recurso (MARTINS, 2002;
YÚDICE, 2004).
Retorna-se ao que Williams (1969) desenvolve sobre a percepção materialista da
cultura, vinculado aos seus estudos sobre o nacional-popular da Inglaterra, em resposta
ao hiato deixado pelo papel da cultura dentro da luta por uma sociedade igualitária do
materialismo histórico marxista. Neste as posições de poder estão fixadas nos detentores
do meio de produção e que refletiriam na cultura. Enquanto no materialismo cultural
estas posições não são estanques ou tão nítidas, pois a cultura estaria diluída entre todos,
resultando numa cultura comum e num poder menos centralizado. Martín-Barbero
(2001) analisa como sendo as produções, isto é, olhar para o que é produzido, a chave
de entrada para compreender a relação entre cultura e sociedade, onde o produto é a
mediação numa possível relação entre sujeito e produção. Destarte, a luta política usa
como objeto a cultura, entendendo-a como dotada de capacidade de transformação
social e política (CEVASCO, 2003).
É preciso inserir a esta discussão a superação do marxismo clássico a respeito da
relação entre base e superestrutura, onde não mais a identidade, ou a cultura – marcas da
superestrutura – seriam mero reflexo da base – relações econômicas e os seus meios de
produção –, mas justamente o lugar onde o sentido é produzido. E por razão disso, é
também onde ele pode ser transformado (ESCOSTEGUY, 2001).
83

Haja vista este novo entendimento marxista, de contribuições gramscianas, fruto


da superação da relação considerada ultrapassada entre economia e cultura, na qual esta
fica subjugada à primeira, e onde os conceitos de cultura e ideologia se equiparariam
(MARTÍN-BARBERO, 2001), pode-se avançar para a questão da centralidade da
cultura.
A centralidade da cultura evidenciou a natureza discursiva da produção de
identidade, descaracterizando-a de algo essencializado ou dado como natural, inerente e
intrínseco, uma vez que são os próprios discursos sociais que a constitui, na medida em
que o sujeito social é posicionado pelo e no discurso. É uma relação entre sujeito e
dimensão discursiva, estruturas e instituições, contrariando a idéia de identidade como
algo rígido ou naturalizado. Justamente por isso Hall sente-se mais confortável em
assinalar o termo identidade “sob rasura”, para que o qual possa ser entendido sob um
novo aspecto em relação ao que já vem sendo discutido. Por isso ele retifica que o termo
processos de identificação é mais adequado para a conceituação feita. (HALL, 2000;
HALL, 2008).
A identidade é produzida socialmente através de diversos discursos e
representações quase nunca harmoniosos, bem como pela interação social. As
representações precisam de investimento do próprio sujeito ou grupo para que sejam
validadas, de modo que ocorre a luta simbólica de resistências e negociações diante das
formas em que são representados, chamadas políticas da representação. O sujeito é
posicionado pelo discurso, porém, cabe à agência do sujeito investir ou não neste,
explica Hall (2008). Há, portanto, uma apropriação social do discurso (FOUCAULT,
2008). Segundo Foucault (2008) o discurso pode ser uma troca, uma leitura e uma
escritura, que colocam em jogo os signos, por isso afirma ser preciso “questionar nossa
vontade de verdade; restituir ao discurso seu caráter de acontecimento; suspender,
enfim, a soberania do significante” (p. 51). Transpondo isto para a construção do
discurso sobre identidade e considerando evidente a atualização constante do discurso,
confere também uma não fixidez da identidade, pois essa construção de discurso e
identidade é um movimento contínuo e sempre atualizável, passivo e ativo em relação
aos agentes e contextos externos.
Por isso que o reconhecimento teórico do “espaço-cisão da enunciação” (p. 69)
de Bhabha (1998) coloca em suspensão o significado identitário, principalmente em
função dos contatos híbridos, pois
84

é capaz de abrir o caminho à conceitualização de uma cultura


internacional, baseada não no exotismo do multiculturalismo ou na
diversidade de culturas, mas na inscrição e articulação do hibridismo
da cultura. Para esse fim deveríamos lembrar que é o “inter” – o fio
cortante da tradução e da negociação, o entre-lugar – que carrega o
fardo do significado da cultura (p. 69).

É importante chamar a atenção neste ponto sobre a dimensão transnacional e


tradutória da cultura definidas por Bhabha (1998), pois complexifica a questão do que
significa cultura ou o que é significado por cultura, situando um lugar híbrido sobre o
valor da cultura. Uma vez que se tem os deslocamentos espaciais – materiais e
simbólicos –, incluindo as migrações e os alcances globais dos media, retiram-se as
referências imediatas das particularidades de cada cultura no momento em que esse
transnacional complexifica as características de tradução da cultura, revelando os
aspectos “da construção da cultura e da invenção da tradição” (p. 241). Tradução esta
que significa o contato com outra cultura sem se render por completo a ela, mas
traduzindo-a de maneira que não se tem mais a mesma cultura que existia antes do
contato, mas uma outra.
Quando se parte da tradução cultural concebida por Bhabha (1998) é o mesmo
que considerar toda a cultura como uma formação híbrida, embora ele foque
especificamente nos deslocamentos pós-coloniais, envolvendo a escravidão e as
migrações entre colônias e metrópoles, evidenciando que este processo transnacional
carrega marcas dos deslocamentos de origens ao mesmo tempo em que sofre tradução.
E assim ele ressignifica o conceito de cultura, isto é, os símbolos culturais tradicionais,
sob a releitura da diferença cultural dentro de um duplo processo transnacional e
tradutório. “Para Bhabha, a vantagem desse movimento tradutório de símbolos culturais
em signos é que traz à tona o fato de que as culturas são construções e as tradições são
inventadas” (SOUZA, 2004, p. 126), entendendo que os símbolos são estáticos e os
signos mais dinâmicos.
Uma forma de compreender essa “invenção” da qual se refere Bhabha (1998) é
rever a cultura dentro de um sentimento de identidade nacional. Ela é capaz de dar o
alicerce buscado em meio às inconstâncias hodiernas, pois “É uma cultura única e
partilhada que nos permite saber ‘quem somos’ no mundo contemporâneo. Ao
redescobrir essa cultura, ‘redescobrimo-nos’ a nós próprios [...]” (SMITH, 1991, p. 31).
Claramente, essa cultura é posta em estanque para que seja concebida como sólida e
85

resistente, pois referentes tais qual língua, objetos e costumes são compartilhados, e
embora:
Historicamente mutáveis, foram embalsamados pelo folclore em um
estágio ‘tradicional’ de seu desenvolvimento, e foram declarados
essências da cultura nacional. Ainda hoje são exibidos nos museus,
transmitidos nas escolas e pelos meios de comunicação de massa,
fixados dogmaticamente através dos discursos religiosos e políticos, e
defendidos, quando cambaleiam, pelo autoritarismo militar
(CANCLINI, 1999, p. 145, grifo nosso).

Por isso, um discurso considerado bastante forte e agregador, inclusive por


transparecer essa imagem coesa e de certa forma naturalizada é o discurso nacional,
estreitando e conformando as relações entre um Estado forte com uma cultura unificada.
Esse discurso funda uma coletividade entre os sujeitos dentro das fronteiras de um
mesmo país sob um sistema sociocultural estável.
Um mundo em que o nacionalismo – a ligação entre o Estado e uma
cultura ‘nacionalmente’ definida – é disseminado e normativo é muito
diferente de um mundo em que ele é relativamente raro, sem
entusiasmo, não sistematizado e atípico. Há uma enorme diferença,
entre, de um lado, um mundo de padrões complexos, entremeados,
mas não perfeitamente superpostos de poder e cultura e, de outro, um
mundo que consiste em unidades políticas claras, sistemática e
orgulhosamente diferenciadas entre si pela ‘cultura’, todas lutando,
com bastante sucesso, por impor internamente a homogeneidade
cultural. Essas unidades que ligam a soberania à cultura são
conhecidas como Estados nacionais (GELLNER, 2000, p.107, grifo
nosso).

Smith (1991) evidencia que a função política da identidade nacional é legitimar


os direitos e deveres consolidando a ordem social e a solidariedade no interior das
fronteiras de um Estado. Assim, dentro desta perspectiva, indivíduos membros de uma
mesma nação compartilham tradições, símbolos e valores, complementando que:
Independentemente do que possa ser aquilo que entendemos por
identidade nacional implica uma consciência de comunidade política,
por mais tênue que seja. Uma comunidade política, por sua vez,
subentende pelo menos algumas instituições comuns e um único
código de direitos e deveres para todos os membros da comunidade.
Sugere também um espaço social claro, um território bastante bem
demarcado e limitado, com o qual os membros se identificam e ao
qual sentem que pertencem (SMITH, 1991, p. 22).
86

O nacionalismo é visto, portanto, como uma ideologia52 que origina a nação, por
trazer idéias fortes narrativizadas, criando uma cultura pública comum em que todos se
sintam pertencentes. Por ser um discurso como tal, em função de sua amplitude de ação
e poder, é necessário, como expôs Foucault (2008), questionar a “soberania do
significante” nele difundido.
É, por tal razão, que buscamos compreender o discurso nacional dentro da
relação entre identidade e cultura nesta pesquisa, considerando a importância da posição
brasileira no cenário internacional e a relação intercultural Brasil-Haiti.
Canclini (1999) problematiza a aparente tranqüilidade homogênea da identidade
nacional ao dizer que “a cultura nacional não se extingue, mas se converte em fórmula
para designar a continuidade de uma memória histórica estável, que se reconstrói em
interação com referentes culturais transnacionais” (p. 60). É aquilo que Bhabha (1998)
aponta como um profundo processo de redefinição do conceito de cultura nacional
homogênea, que envolvia o tradicional comparativismo cultural e que não é mais
adequado frente aos processos transnacionais de hibridização.
Assim, as identidades nacionais vêm sendo cada vez mais reafirmadas e
questionadas em tempos hodiernos. E embora se pretenda totalizante, ela nunca o pode
ser por natureza, pois um discurso de identidade – nacional ou não – nunca contempla
inteiramente as necessidades do sujeito, já que este é interpelado por múltiplos discursos
de forma concomitante. Pois:
Além de um grande bombardeio de informações, o encolhimento do
mundo propicia um aumento de alteridades reais ou virtuais com as
quais se interage. Isso ocorre não apenas simbolicamente pelo
dramático aumento do fluxo de informações, mas também pelo
encontro com outros radicalmente diferentes [...] (RIBEIRO, 2000, p.
28).

Este novo contexto contemporâneo provoca avanços e recuos das identidades


nacionais, por vezes em extremos xenófobas, numa reafirmação constate da diferença,
em outros momentos híbridas e multiculturais, com focos de resistência e também de
tradução cultural. Ao entender melhor os processos de enunciação das diferenças
culturais, Bhabha (1998) percebe que a enunciação desafia a noção de identidade

52
Para Althusser (1974) a ideologia funciona como um cimento de unidade social, dotada de certa
materialidade já que pode ser identificada nas práticas sociais. Os aparelhos ideológicos de Estado (o
funcionamento de igreja, escola, meios de comunicação) são efeitos da ideologia dominante. Por isso a
ideologia envolve a relação do sujeito com o mundo, isto é, uma relação imaginária de como conviver em
suas relações sociais e de produção. Charaudeau (2006a) define a ideologia como “um modo de
articulação entre significação e poder”.
87

histórica da cultura enquanto unificadora de um passado autêntico e vivo na tradição


nacional de um povo, deslocando o conceito de nação ocidental narrativizada, conceito
caro ao Benedict Anderson (1989). Pois, para Bhabha (1998):
É apenas quando compreendemos que todas as afirmações e sistemas
culturais são construídos nesse espaço contraditório e ambivalente da
enunciação que começamos a compreender porque as reivindicações
hierárquicas de originalidade e “pureza” inerentes às culturas são
insustentáveis, mesmo antes de recorrermos a instâncias históricas
empíricas que demonstram seu hibridismo (BHABHA, 1998, p. 67).

Para ele, a nação por ocupar o lugar deixado pelas comunidades desenraizadas, é
muito mais temporal do que histórica, apontando, para isso, as estratégias complexas de
identificação cultural presentes, sobretudo, nas narrativas. Pois, a problemática está no
fato de que se a nação é uma construção contingente de símbolos e signos, como
explicar a historicidade da idéia de nação? Dado que ao tematizá-la como narração,
fragmentos são reunidos para dar existência a uma cultura nacional coerente. A nação,
segundo Anderson (1989), é uma comunidade política imaginada e implicitamente
limitada e soberana. Contrariamente, Bhabha (1998) aponta para conexões cada vez
mais estabelecidas internacionalmente, complementado que “as culturas ‘nacionais’
estão produzidas a partir da perspectiva de minorias destituídas” (p. 25) e não mais
significa a soberania da cultural nacional concebida pelo Estado.
As fronteiras de uma nação mais do que acolher problemas com a alteridade em
relação a outras nações, evidencia a heterogeneidade em seu próprio interior através dos
“discursos de minorias, pelas histórias heterogêneas de povos em disputa, por
autoridades antagônicas e por locais tensos de diferença cultural” (BHABHA, 1998, p.
210). Inclusive, é através do movimento unificador em torno do signo nacional, que as
diferenças internas podem emergir com mais força, na medida em que fica claro a que
elas se opõem ou contestam. Reconhece-se o poder e a influência da cultura nacional,
ainda que questionada, e assim, a comunidade nacional e os discursos de minoria são
concebidos mutuamente. E onde o primeiro prega homogeneidade, o segundo fala
através dos espaços intermediários dentro do que seria uma predominância homogênea.
Tão logo, diante dos antagonismos sociais que resulta, a diferença cultural deve ser
negociada ao invés de negada, já que pode gerar identidades abertas à tradução cultural.
Fantini (2004) mostra que “Stuart Hall propõe o conceito de ‘tradução’ enquanto
instrumento para melhor compreensão de identidades móveis” (p. 174). A tradução
significa que as pessoas exiladas ainda que mantenham vínculos com a cultura de
88

origem, negociam simbolicamente com as culturas que se agregaram. Isto é importante


no entendimento da desconstrução dos conceitos de pátria e sujeito nacional, indo
contra as representações simbólicas e hegemônicas de certas políticas nacionais
ocidentais sobre pertencimento, identidade cultural e unidade nacional (FANTINI,
2004).

2.4.1 Transculturação, hibridismo, mestiçagem e crioulidade: modos de olhar para


a América Latina

Considerando o amplo debate que envolve os termos transculturação,


hibridismo, mestiçagem e crioulidade é importante situá-los enquanto conceitos
complementares e que se somam, mais do que conflitam, já que diversas são as
apropriações teóricas para tais categorizações. Em nosso caso, é importante trazer certas
definições para satisfazer o debate da construção de identidade nacional e também
regional, considerando a América Latina. Pois em diversos momentos do discurso
pesquisado nesta dissertação este é o laço cultural compartilhado invocado para
engendrar um vínculo identitário na missão de paz.
Em relação aos Estudos Culturais latino-americanos, o conceito de hibridismo
está relacionado genealogicamente às noções históricas de transculturação e
heterogeneidade. Transculturação foi cunhada pelo sociólogo cubano Fernando Ortiz,
nas décadas de 30 e 40, como conceito chave na criação de uma ideologia de integração
social, incluindo as trocas culturais e econômicas resultantes do período colonial, que
concebesse, portanto, as bases para a construção do Estado nacional populista pós-1929.
(MOREIRAS, 2001; AGUIAR; VASCONCELOS, 2004).
O reconhecimento da transculturação como processo inerente à cultura
pode ter desdobramentos positivos no campo político e acadêmico [...]
a transculturação pode virar transculturalismo, ou seja, processo,
projeto e política, acadêmica e/ou pública, favorecendo o
reconhecimento das diferenças, mas sob a ótica da integração, da
convivência, da tolerância e portanto da possibilidade de troca
(AGUIAR; VASCONCELOS, 2004).

Interessante pensar que se transculturação foi utilizada para ser a base da


construção do estado nacional nas décadas de 30 e 40, ela já recontextualizou, dentro do
processo de troca e trânsito de conteúdos culturais, as novas relações que se
estabeleciam com as migrações e a heterogeneidade demarcadas no interior de uma
89

fronteira nacional, temas que são complexificados ao serem associados à configuração


de um Estado nacional forte e unificado.
Diante do processo tradutório e transnacional pelo qual passa a cultura, Bhabha
(1998) aborda o hibridismo a partir da perspectiva da linguagem e da identidade. Isto
quer dizer que ao propor a teorização que leve em conta um discurso híbrido e libertário
Bhabha se afasta do pluralismo e do sincretismo dado que
O pluralismo postula, muitas vezes, a existência simultânea e pacífica
de vários grupos, culturas, línguas etc. na qual cada um se insere num
conceito de homogeneidade; cada um se vê como autêntico, presença
plena, independente dos outros, existindo num espaço vazio e
homogêneo – situação que geralmente acaba beneficiando apenas o
mais forte entre eles. O sincretismo, por sua vez, postula a superação
da diferença pela qual os contrários se unem num terceiro termo,
transformando, paradoxalmente, a heterogeneidade em
homogeneidade (SOUZA, 2004, p. 131).

Com o trabalho do antropólogo argentino sediado no México, Néstor Garcia


Canclini, a noção de hibridismo como pensamento social latino-americano é
desenvolvida no final da década de 1980. Na sua busca por compreender a cultura
urbana, Canclini faz uma relação entre consumo de bens simbólicos e a hibridação
cultural, considerando os impactos da globalização e das políticas econômicas
neoliberais e trans-estatais. Foi na apropriação dos bens simbólicos junto com as
tradições populares que ele chamou de “culturas híbridas”. (FANTINI, 2004;
MOREIRAS, 2001).
As formações híbridas estão presentes em todos os extratos sociais da América
Latina numa inter-relação da cultura indígena, colonial e a elite moderna. Segundo o
hibridismo cancliniano o conceito sofre a partir daí uma transformação, recaindo num
programa político coordenado por elites intelectuais (MOREIRAS, 2001), pois
as práticas culturais passam a ocupar um lugar proeminente no que diz
respeito ao desenvolvimento político, já que, quando se fecham ou
enrijecem as vias político-sociais, elas constituem vias de expressão
simbólica com ação e atuação efetivas. A eficácia dos processos de
hibridismo reside principalmente na sua capacidade de representar o
que as interações sociais têm de oblíquo e simulado, autorizando,
portanto, repensar os vínculos entre cultura e poder, os quais, sem
dúvida, não são verticais (FANTINI, 2004, p. 170).

Por isso um dos grandes problemas do hibridismo é permanecer como uma força
política em grande parte ainda presente no interior da política hegemônica. Moreiras
(2001) inclusive afirma que tal qual a transculturação, a qual foi responsável
90

ideologicamente pelo processo de integração cultural em sociedades nacional-


populistas, o hibridismo também apresenta o seu papel ideológico na reterritorialização
capitalista e no processo de naturalização de exclusão do subalterno, criando, nesse
caso, uma política identitária. Ele diz que “o subalternismo encontra seu campo de
incidência no estudo de formações culturais ou experienciais que são excluídas de
qualquer relação hegemônica em qualquer dado momento de sua história”
(MOREIRAS, 2001, p. 332). Porém, a relação hegemônica só existe através da presença
das subalternidades, já que é sobre estas que a política hegemônica pode se constituir, e
ainda que tente anulá-las, não poderá aboli-las por completo, pois seria o mesmo que se
auto-anular.
O hibridismo parte do fato de que a ressignificação da cultura constrói valores
nos interstícios das próprias culturas, pois todas as culturas são de fronteira, numa
ressignificação que constitui todos e ao mesmo tempo não pertence a nenhuma cultura
específica (FANTINI, 2004; SOUZA, 2004). Tão logo, o hibridismo
é então sinônimo de qualquer posição no jogo (dialético) de identidade
e diferença que determina a localidade no mundo contemporâneo:
todas as localidades são híbridas, uma vez que todas as localidades são
interseção de determinados particularismos e aquilo que os nega
(MOREIRAS, 2001, p. 348).

Outro termo que é muito criticado, por vezes confundido, e por outras vezes
assemelhado ao hibridismo é a mestiçagem. Haydée Coelho (2001) ao tratar da
mestiçagem no contexto da historiografia brasileira revisita diversos autores para
abordar o assunto. A autora destaca inicialmente o teórico Karl Von Martius sobre a
formação da nacionalidade brasileira sob o tripé das três raças: branca, indígena e negra.
Baseando-se neste fundamento para demonstrar a importante transição do enfoque da
raça para o da cultura, Coelho (2001) destaca o livro de Gilberto Freyre “Casa grande e
senzala” e a questão de “democracia racial” no Brasil. A crítica de Bernd (2004) à
Gilberto Freyre vai na direção de que a mestiçagem apenas escamoteia o processo de
homogeneização, já que
o conceito de mestiçagem pode servir de camuflagem à manutenção
de uma identidade calcada na homogeneidade, preocupada em integrar
os grupos marginalizados, mas sempre de acordo com as concepções
dominantes da nação. A pós-modernidade, ao trazer à tona o conceito
de híbrido, enfatiza acima de tudo o respeito à alteridade e a
valorização do diverso (p. 100).
91

Ciente de que o termo mestiçagem é muito preterido pelos críticos


contemporâneos, os quais preferem “transculturação” ou mesmo o mais recente
“hibridação”, Coelho (2001) avança na sua conceituação dentro da nova seara de
debate, na qual diversos autores contemplam a questão da mestiçagem na construção da
cultura e identidade brasileiras, como é o caso de Darcy Ribeiro (1995) no livro “O
povo brasileiro” e demonstra a importância de se entender o processo da mestiçagem.
Ainda que os mesmos críticos acusem o termo mestiçagem de retrógrado e
incapaz de abarcar a pluralidade identitária atual, a autora expõe o problema de se
ignorar a categoria mestiçagem, pois “Olhar fora sem olhar o dentro suscita problemas
de várias ordens, desde uma construção teórica que desconhece sua própria história
cultural até a manutenção discursiva crítica na margem, na fronteira, no meio do
caminho, no “entre lugar”, ou na “terceira margem” do terceiro ou décimo mundo” (p.
65). Assim, Coelho (2001) defende o quanto o termo mestiço é muito caro ao
entendimento da América Latina e representa um primeiro passo para compreender a
formação cultural, para depois poder ser aplicada uma abordagem mais ampla, que
implique no uso de categorias como transcultural ou híbrido.
Para Abdala Jr (2004) tanto o hibridismo cultural quanto a mestiçagem rompem
com as concepções fixas, seja da cultura ou da identidade. Por conseqüência, ajuda a
desenvolver uma identidade coletiva que tende a adotar aspectos supranacionais, onde o
Estado continua a ser legítimo por garantir o bem-estar social, mas mantém as suas
fronteiras como espaços de contato e não de separação com as outras culturas. Na
realidade, ao invés de tais conceitos – hibridismo e mestiçagem – nivelarem as
diferenças e abafarem os conflitos, como poderia propor as noções brasileiras
predominantes no século XIX tais quais a mestiçagem sincrética, a cordialidade e a
democracia racial, estes dois conceitos abordam, por sua vez, a aproximação de traços
culturais, mas sem ignorar as tensões que isto acarreta. Assim, é preciso pensar por
híbrido como uma ressimbolização em que se preserva a memória das culturas originais,
desde que passe também pelo processo de tradução, onde se cria uma outra cultura
(ABDALA JR, 2004).
Bernd (2004) parte do sentido de Canclini para mestiçagem, de que estaria
principalmente associado à mistura de raças, por isso ele não compartilha o mesmo
fundo conceitual de Coelho (2001), a qual faz a superação desta relação racial para
alcançar a questão cultural. Bernd (2004) entende então que o deslocamento do tópico
92

de raça para o da cultura só vem a ocorrer dentro do conceito de transculturação,


afastando-se da mestiçagem. E para ele a crioulidade é uma excelente forma de pensar
este deslocamento, tratando das margens, fronteiras, tudo aquilo que tange a hibridação.
A cultura crioula é uma cultura sincrética, de um processo de adaptação de
europeus, africanos e asiáticos no Novo Mundo, isto é, América. Para Bernd (2004), por
ser impossível os caribenhos se reconhecerem numa raiz única, “a crioulização torna-se
a única maneira de abordar a questão identitária” (p. 103). O Haiti, por sua vez, se
localiza no Caribe e possui de forma bastante forte este processo de crioulização,
marcado por fortes influências francesas e africanas. Assim, estes processos, tal como a
mestiçagem, embora Bernd (2004) discorde desta, mostram a história cultural comum
que pode ser compartilhada na América Latina, referenciando elementos que
compartilhamos.
Esta breve referência aos termos procurou assinalar algumas aproximações e
divergências para imprimir principalmente a complementaridade que eles estabelecem,
mais que os distanciamentos. Por isso, atentou-se para a forte relação entre
transculturação, hibridação, mestiçagem e crioulização e que resulta na cultura das
Américas, pois estas ao compartilharem
Os vestígios (traces), os restos e os fragmentos das culturas de
tradição oral (indígenas e africanas), bem como as manifestações das
produções culturais subalternas, minimizadas no interior do sistema
dominante, ressoam na articulação cultural de diferentes países
(BERND, 2004, p. 109).

Essa discussão é importante para entendermos que para além da história oficial,
de criação de países e fronteiras isoladoras, há na América Latina um mundo
compartilhado de construção de sentidos e de origens que precisam ser retomados para
o entendimento desta relação que tem sido aproximada pelos discursos políticos sobre o
Brasil e o Haiti. Há fundamentos nestes discursos por causa de certas origens que nos
são semelhantes, como a escravidão e a colonização européia, por exemplo. E assim a
questão cultural ganha proeminência nos processos políticos, pois também é
conformadora destes, e existe para além destes, ou ainda, tanto podem ignorar como
podem fazer uso dela como um recurso estratégico de vinculação.
93

2.4.2 Identidade, imaginário e outras construções

A identidade haitiana é apresentada ao cidadão brasileiro de maneira mediada,


construída no discurso, seja pelos veículos de comunicação, seja pela voz dos próprios
políticos do nosso país, seja na imbricação entre os dois, e seja ainda com a literatura e
através de debates acadêmicos. No caso inverso, os haitianos estão em contato direto
com soldados brasileiros que lhes ensinam o português e distribuem voluntariosamente
parte da ração alimentar que recebem para seu próprio sustento, ao mesmo tempo em
que, contraditoriamente a estas atitudes solidárias, são eles que carregam armas e
dirigem tanques de guerra. O haitiano assiste também a jogos de futebol do Brasil pela
televisão. É neste embate de um lado e do outro que se forja a relação identitária Brasil-
Haiti.
No caso da MINUSTAH apreendida pelos brasileiros observa-se que a
representação midiática e também aquela presente nos proferimentos agem no mesmo
sentido, potencializando-se em seu apelo no caso destes últimos. Pois elas posicionam e
justificam a própria atuação das tropas brasileiras, demonstrando a importância, ou os
problemas, de o Brasil intervir no Haiti. Na fala do presidente Lula, por exemplo,
observa-se a ênfase dada à cooperação internacional e aos laços culturais, conforme
veremos no capítulo cinco, onde há explicitação das categorias de análise.
Por meio de discursos como esse se apresenta não apenas a maneira como o
governo brasileiro enxerga a missão, mas também como que ele quer compartilhar e dar
a ver no espaço público, dirigindo-se aos cidadãos em última instância.
Compreender a construção de identidades – identidade nacional, identidade
étnica, identidade cultural – nesta dissertação possibilita compreender as articulações da
MINUSTAH enquanto força mantenedora de paz (peace keeping), e não impositora
(peace making). Já que neste novo padrão internacional formalizado pelas missões de
paz da ONU o segundo já não teria mais espaço de manobra, enquanto o primeiro ainda
carece de um amadurecimento principalmente relacionado à cooperação intercultural e
de desenvolvimento socioeconômico local que deve ser estabelecida e respeitada.
Diante do fenômeno da globalização as fronteiras estão sendo paulatinamente
demolidas e a identidade nacional enfraquecida e fortalecida, ao mesmo tempo. Pois, ao
receberem uma delimitação tênue, as identidades nacionais ficam ora mais fluidas, ora
recrudescidas e estigmatizadas, estas últimas na tentativa de se ancorarem em algum
94

porto mais seguro. Pois, se há mecanismos internos e divergências a um grupo que


interferem na constituição de um “nós” identitário, há mecanismos também
desencadeados pela identificação e diferenciação em relação ao outro, ao externo; se há
fatores espontâneos, há também de indução ou construção intencional (GUIMARÃES et
al, 2002).
Por um lado, estas relações entre culturas proporcionadas pelo fenômeno da
grande circulação global instaram uma total insegurança e fluidez nas identidades
nacionais. Por outro lado, as integrações globais e regionais permitiram um
conhecimento mais seguro do outro, e nessa busca por uma convivência das diferenças
reordena a produção cultural numa relação em concorrência e intercâmbio com as
demais (CANCLINI, 2003; HALL, 2000). Assim, não apenas a identidade é
requestionada – e seus instrumentos analíticos –, como também a cultura assume um
novo terreno de produção e prática.
Se antes “as culturas nacionais pareciam sistemas razoáveis para preservar,
dentro da homogeneidade industrial, certas diferenças e certo enraizamento territorial,
que mais ou menos coincidiam com os espaços de produção e circulação de bens”
(CANCLINI, 1999, p. 40), a partir da ampla gama de interesses angariados por diversos
setores da sociedade civil, e também conjugando os interesses de outras organizações
industriais, a situação mudou. As identidades passaram a ser reconstruídas sob um novo
papel do Estado-Nação, o qual para continuar legítimo transferiu parte de seu poder
político para instâncias locais e regionais, permitindo o aparecimento de múltiplas
identidades, que antes eram apagadas sob o discurso nacional (CASTELLS, 1999). Pois,
como desnuda Escosteguy (2001)
É nesse novo contexto de crise do âmbito da Nação, da identidade e de
paradigmas, em especial aqueles fundamentados em “grandes
narrativas”, que emerge uma nova valorização do cultural. [...] De
toda forma, é dentro desse espectro que se inicia a configuração de um
olhar que vê a comunicação na cultura e se associa aos estudos
culturais (p. 47).

Perceber para esta investigação, ainda que de forma pouca adensada e mais
ensaística, aspectos que permeiam a identidade e o imaginário do Brasil e do Haiti em
meio a esse contexto de transformações globais e locais, auxiliam a compreensão de
como certos laços culturais podem ser evocados para justificar a participação ativa do
Brasil, discussão esta que servirá de apoio para a análise do último capítulo. Guimarães
et al (2002) diz que “Um povo se constitui enquanto tal ao construir uma imagem de si
95

mesmo; quando se vê enquanto corpo coletivo, elege símbolos de reconhecimento e


identificação, partilha valores e traços de comportamento” (p. 10). E é nesse mote que se
encaixa a busca por evidenciar certos valores e traços que são atribuídos como comuns
ou semelhantes segundo os discursos, seja do jornal Folha de S. Paulo ou dos políticos,
estudados aqui.
Há diferentes modos de acionar valores que pertençam aos imaginários de
tradição e cultura de um povo. E assim o recurso ao passado e à história do povo
brasileiro e haitiano, buscando uma vinculação, delineia uma aproximação que, ao
mesmo tempo considera os dois estados soberanos, carregados por suas próprias
culturas e história, e também demarca uma relação identitária comum. Esta relação é
capaz de compor os argumentos que justificam o interesse, a responsabilidade e a
legitimidade do Brasil em ascender neste papel interventor. Ao mesmo tempo cria,
constrói, uma relação que pode não obter respaldo. Afinal, esses vínculos identitários
existiam antes da MINUSTAH ou foram construídos principalmente para tal? Ou só
emergiu mediante este acontecimento extraordinário?
Corroborando isto tem-se o entendimento de Martín-Barbero (2001) de que a
identidade é uma mediação forte para se entender a dinâmica social como um todo em
que ela está inserida. Assim ela pode facilitar, por exemplo, o próprio processo de
intervenção, ao ajudar na conquista da legitimidade junto aos haitianos e junto aos
brasileiros. Portanto, é de suma importância entender:
O poder que as construções imaginárias exercem sobre a identidade, a
própria e a dos outros, para recortar e manipular os processos sociais.
Do mesmo modo, surgem os obstáculos para fundar, nessas
concepções identitárias, políticas mais ou menos realistas de interação
(CANCLINI, 2003, p. 94).

O imaginário social permeia e está intimamente atrelado a um sistema de


representações simbólicas, que fazem parte, por sua vez, da constituição da identidade,
inclusive a nacional. Por isso se diz que “uma nação não é somente uma entidade
política; é produtora de significados que conformam uma idéia de nação representada
nas diferentes manifestações culturais” (GUIMARÃES et al, 2002, p. 10).
É pela reiterada invocação discursiva de brasileiros e haitianos como “povos
irmãos” que se instiga pensar na relação identitária entre Brasil e Haiti, sob o pano de
fundo da MINUSTAH. Logo, conforme o caso da construção física de um centro
96

cultural Brasil-Haiti 53 deixa evidente, o encontro intercultural Brasil-Haiti tal qual é


construído no discurso prevê certo entendimento dessa relação como de mestiçagem, no
caso do Martín-Barbero, ou de hibridismo, próprio do Stuart Hall, já que ambos
entendem de maneira próxima a construção da identidade de forma negociada, e não de
uma simples assimilação cultural ou uma mistura de culturas que concorrem entre si
(ESCOSTEGUY, 2001).
Pizarro (2004) está entre os autores que já anunciam a proximidade histórica
entre os dois países ao listar do ponto de vista geográfico que “Trata-se de um espaço
cultural com vestígios africanos cuja origem, como sabemos, encontra-se no chamado
comércio triangular, a escravidão, e, [...] na economia de plantation” (p. 29).
No Haiti a escravidão misturou etnias distintas e foi capaz de desarticular e de
“triturar” a população deslocada da África, que perdeu a identidade étnica num processo
de “desconstrução”/reconstrução cultural em conjunto com a seqüências de colonização
que sofreu, culminando com a determinante colonização francesa (JAMES, 2000). Em
virtude da dispersão étnica e da marginalização social que todo este processo gerou, o
resultado foi tão crônico e devastador que se perpetua até hoje. Neste quadro é pertinente
a abordagem de Benedict Anderson (1989) quanto ao sentimento de pertencer à
determinada identidade nacional ao mesmo tempo em que abrange as dimensões
culturais do fenômeno. O Haiti é bastante rico para este apontamento haja vista o
sentimento nacional que estava presente na independência feita pelos negros e a situação
decorrente de desintegração social e cultural logo após a emancipação, e que ainda
prevalece. Esta perda da coesão entre os indivíduos é de valor significativo para o
entendimento dos problemas políticos e econômicos subseqüentes.
Para melhor compreender isto basta observar as línguas que prevalecem no Haiti.
A cultura da antiga metrópole se mantém atualmente para uma pequena elite que ainda
fala o francês, enquanto a língua créole 54 , ou o crioulo haitiano, já no período colonial
difundiu-se para a grande massa. Esta língua possui bases no francês apresentando
ínfima constituição por parte do vocábulo africano assim como do idioma nativo da ilha.
Na prática, subjugar o créole significa subjugar as massas populares, pois ao ser uma

53
A criação do Centro Cultural Brasil-Haiti em Porto Príncipe, por exemplo, cumpre a função além de
aproximar as atividades e práticas culturais de ambos, também desenvolver debates para questões que
atritam o Haiti em razão da intervenção brasileira. Isto significa esclarecer sobre melhorias trazidas pela
MINUSTAH na ordem de infra-estrutura e saneamento básico, bem como ao auxílio na reorganização das
estruturas políticas do país, que estavam deterioradas antes da chegada das tropas onusianas.
54
O créole foi reconhecido como língua oficial, juntando-se ao francês, somente em 1961.
97

língua dos negros é vista pela elite mulata como o “vulgar dialeto de uma população sem
cultura” (GRONDRIN, 1985, p. 73). Na realidade, como expressão e transmissão
cultural, esta língua representa o caráter de unidade e identidade do povo bem como a
unidade religiosa é evidente no culto do vodu 55 , o qual é um dos parcos aspectos
remanescentes da cultura africana e que gera bastante discussão, sendo em muitos casos
mal-interpretado e associado à bruxaria, com a possibilidade deste preconceito ter
ocorrido justamente por causa de seu poder de coesão cultural e social que promovia. A
principal religião é o catolicismo, e, como sinais de resistência cultural podem ser vistos
os católicos que se definem também adeptos ao vodu, pois uma religiao não exclui a
outra para os haitianos.
Canclini (2003) ao analisar os aspectos socioculturais brasileiros afirma que o
Brasil está impregnado de uma cultura africana transclassista e transétnica, assim como
uma tradição afrocaribenha transita na sociedade, sem esquecer o sincretismo com o
europeu. Tudo isto dita o tom de uma identidade naturalmente híbrida, o que certamente
torna mais fácil e possível a aproximação cultural com o Haiti, um país de composição
multiétnica, predominantemente de africanos e europeus (ex-colonizadores franceses e
espanhóis).
Propõe-se colocar em suspensão, sem avançar no debate já que isto trata de uma
discussão paralela ao que se pretende esta pesquisa, sobre se realmente existe uma
identidade nacional num país em que o próprio Estado ainda está em processo de
configuração, embora toda a população responda de algum modo por essa identidade,
como é o caso do Haiti. O relatório Misión (2006, p.7) responde parcialmente isto ao
afirmar que o “Haití manifiesta hoy, como lo ha hecho históricamente, la capacidad de la
resistencia social y cultural, la fuerza de su identidad, su dignidad de pueblo y su
esperanza de poder revertir la situación actual”.
No que tange aos aspectos socioculturais verifica-se que o Brasil é singular na
sua possibilidade de atuação no país caribenho. Isto porque a história e literatura
brasileiras compuseram o nosso país de uma pluralidade cultural e multiplicidade étnica,
cuja formação parte romanticamente de processos de miscigenação e mestiçagem –

55
Voduísmo é a religião oficial no Haiti, sendo similar a outras religiões da diáspora africana nas
Américas, como o Camdomblé e a Umbanda brasileiros. É geralmente relacionado ao boneco vodu, ao
zumbi (“morto-vivo”) e à magia-negra, entretanto, são mais mitos que propriamente a religião, esta é bem
mais forte e mais abrangente representada através do sincretismo entre o africano, o indígena, e os
antepassados europeus, e não apenas com o catolicismo romano. (LAENNEC, 1993).
98

conforme abordado na seção anterior – entre o índio, o escravo negro e o europeu.


Incluindo personagens referenciais e heróicos tais como Jeca Tatu, Macunaíma e Peri
(GUIMARÃES et al, 2002). Ainda que as questões raciais no Brasil sejam um tema
latente e sensível, com grandes contradições 56 , esta base ajuda a construir uma
identidade multifacetada por excelência, e bastante definida a partir da visão do outro,
do estrangeiro, o qual se torna referência para nossa própria constituição. Na leitura de
Souza (2004) sobre Bhabha:
Em termos de representação do colonizado, qualquer imagem – seja
ela feita pelo colonizado ou pelo colonizador – é híbrida, isto é,
conterá traços de outros discursos à sua volta num jogo de diferenças e
referências que impossibilita a avaliação pura e simples de uma
representação como sendo mais autêntica ou mais complexa do que
outra (p. 117).

Com a divulgação da MINUSTAH pelos veículos de comunicação brasileiros o


imaginário pode ter sofrido modificação, porém, ao mesmo tempo, reforça outras
características também de compartilhamento do imaginário, além ser construído no
próprio discurso midiático. Isto porque os media são portadores de imaginários sociais
que exercem certa influência sobre as opiniões da comunidade onde está inserida. Por
isso se os discursos invocam imaginários, os media são capazes de sustentá-los ou até
de criar outros, incluindo transformações na ordem do imaginário que afetem as
condições de reprodução cultural das sociedades (CHARAUDEAU, 2006a).
Acionar, pois, o imaginário significa alcançar um conjunto de referências que
nem sempre correspondem a aspectos fidedignos, porém ajudam a construir um
entendimento, uma significação, conferem sentido a uma realidade por vezes nebulosa.
Ao contrário de ser algo em oposição à realidade, como se fosse fictício ou fabuloso, o
imaginário é, nas palavras de Charaudeau (2006a), “efetivamente uma imagem da
realidade, mas imagem que interpreta a realidade, que a faz entrar em um universo de
significações” (p. 203).
As relações estabelecidas dentre os indivíduos de um mesmo grupo são capazes
de construir um universo de valor, um imaginário comum que se pretende como

56
O preconceito racial brasileiro existe e é bastante forte. Gilberto Freyre (1992) expõe sobre o mito
racial pacífico, mas não se pode confundir com o imaginário que é criado do Brasil. Inclusive há
vertentes como a de Octavio Ianni (2004) que problematiza essa questão da “democracia racial”,
desmascarando-a como um “preconceito racial constitutivo da sociabilidade na sociedade brasileira”
oriundo da história escravagista.
99

verdadeiro. Assim ocorre uma dupla interação: do homem com o mundo e entre os
próprios homens (CHARAUDEAU, 2006a).
Trazendo isto para o objeto da pesquisa observa-se que o discurso, seja
jornalístico ou político, busca na cultura brasileira características que possam ser
vinculadas com uma raiz haitiana, na tentativa de referenciar uma história e cultura
comuns, mesmo que estas não estejam tão solidificadas na chamada identidade nacional
brasileira. Lembrando que esta é multifacetada por natureza, conforme corrobora nossa
literatura e história. O imaginário trazido pelo discurso nacional tem fins identitários
construindo uma cultura nacional, porém é na alteridade, no reconhecimento de outras
culturas, que se potencializa a tomada de consciência de nossa cultura. O imaginário da
pluralidade de raças, mestiçagem no Brasil, é identificável por uma abordagem
antropológica e histórica, constituindo uma memória coletiva nesses termos, que pode
ser invocada e referenciada.
Sem desconsiderar então todas as desigualdades econômicas e sociais que
marcam o Brasil, este apresenta uma sociedade nacional mais disposta à hibridação,
inclusive
Os antropólogos ressaltam as múltiplas interpenetrações que existem
entre os contingentes migratórios que formaram esse país. Não raro,
os líderes políticos e culturais falam de seus ancestrais africanos ou
indígenas, e vêem as filiações étnicas como algo voluntarista, que
pode ser mesclado (CANCLINI, 2003, p. 108, grifo nosso).

Em termos de construção discursiva política, a diversidade brasileira é bastante


referenciada e serve como palco para o projeto de uma identidade nacional plural que,
para exemplo e espanto do mesmo olhar estrangeiro que ajudou a defini-la, se diz
também “pacífica”, uma autodenominação presente nos discursos brasileiros, e que não
deve ser entendida aqui como neutra, mas recebida com bastante cautela. Inclusive,
como Chauí (1995) afirma
O grande mito que sustenta a imaginação social brasileira é o da não-
violência. Nossa auto-imagem é a de um povo ordeiro e pacífico,
alegre e cordial, mestiço e incapaz de discriminações étnicas,
religiosas ou sociais, acolhedor para os estrangeiros, generoso para
com os carentes, orgulhoso das diferenças regionais e destinado a um
grande futuro (p. 3).

Esse caráter pode ser determinante ao comandar a estabilização política e social


de um país que, como o Haiti, além de ter alarmantes índices de desenvolvimento
econômico e social, carece de um sentimento nacional coeso, principalmente no que se
100

refere ao domínio de uma consciência política forte, que os define enquanto cidadãos, o
que favorece para sua incapacidade de concretizar a democracia em função destas
defasagens presentes.
Assim confirma a asserção de Roberto Abdenur (1997) em que “a riqueza e a
diversidade de nossa formação étnica e cultural são fatores que ampliam as
oportunidades de interlocução internacional” (p. 35). O Brasil busca então explorar esta
potencialidade da diversidade cultural, do dinamismo histórico e do peso econômico
regional ao conduzir a força de paz no Haiti, a qual não deve ser equivocadamente
traduzida como uma força de ocupação, cautela esta já precavida por nossos dirigentes,
já que ainda seria contrária ao próprio ditame que rege uma missão de paz da ONU. E
assim ser traduzida como uma missão de reconstrução plena do país.
O exacerbado prestígio que o país do futebol tem perante os haitianos, que
idolatram tal esporte, confere uma relação intensa de admiração com o Brasil e que é
relevante para o fato de este ter sido indicado a coordenar a operação. Houve o famoso
“jogo da paz” ocorrido em agosto de 2004, no qual a seleção brasileira entrou em campo
com a seleção haitiana, fazendo uso da evidente atração que desperta o futebol brasileiro
naquele país, o que ilustra a argumentação anterior. Foi um jogo amistoso, em que as
duas seleções entraram em campo para celebrar a nova relação – também amistosa – que
se iniciava num outro campo, o político. Através desse episódio o Brasil conseguiu certo
êxito político com a MINUSTAH, apoderando-se desta afinidade esportivo-cultural, ao
conseguir maior respaldo da população haitiana quanto ao comando da missão. Esta
identificação do povo haitiano com a seleção verde-amarela está além do futebol e
atinge aos integrantes da seleção, a qual é formada em sua maioria por jogadores negros
e de origem social modesta, que servem de inspiração para a ascensão social pela qual
luta e sonha cada haitiano (SILVA, 2004).
Revelar aspectos de como analisar uma intervenção dentro da relação identitária
engloba o aspecto multidimensional da missão de paz, isto é, atua além do político e
militar, abarcando questões sociais e culturais. Ampliar esta questão identitária com o
apoio da tese de Yúdice (2004) nos faz perceber claramente como as relações
identitárias funcionam enquanto recursos importantes e úteis para que determinadas
ações sejam compartilhadas como naturais, razoáveis e necessárias. As identidades são
conformadoras de um discurso de pertencimento que compartilha posições e olhares
sobre o mundo, e que podem ser construídos por interesses por vezes ocultos e bastante
101

estratégicos. Nesses termos a questão da identidade cultural representa um fator de


poder. Pode ser delimitada ou construída pelo Estado, mas também pode ser utilizada
como forma de organização política, como movimento social; isto demonstra como a
identidade pode refletir na política e trazer resultados significativos, alterando o rumo
dos acontecimentos (MARTINS, 2002). É a identidade que sutura e sedimenta o
compartilhamento cultural comum de sentido, com a potencialidade de estabilizar
conflitos e amenizar certas ações.
102

3 UMA PROPOSTA METODOLÓGICA INTEGRADA

Neste capítulo será apresentado o escrutínio de todo o material pesquisado,


atentando-se para as etapas que filtraram tanto as matérias do jornal Folha de S. Paulo
quanto os proferimentos dos representantes do Estado. Assim, após o recorte do corpus,
são trazidos os dois movimentos teórico-metodológicos: Análise de conteúdo conjugada
com a teoria dos enquadramentos. Esta discussão, além de refinar adequadamente o
objeto de estudo, fornece o subsídio necessário para ser possível distinguir as categorias
analíticas que consideram a cultura como recurso político do comando do Brasil na
MINUSTAH. Esta análise será feita no capítulo subseqüente, onde serão apresentadas
as explicitações das categorias e a partir das quais será possível identificar os
enquadramentos predominantes no que tange a invocação cultural no discurso.

3.1 Corpus de todo o material

Considera-se o acontecimento da Missão de Paz da ONU no Haiti


(MINUSTAH) como recorte epistemológico para abarcar as dimensões do objeto
discutido. A missão foi estabelecida no final de maio de 2004 e perdura até o presente
momento. Entretanto, o período a ser analisado data-se entre os dias 1 de maio de 2004,
a fim de acompanhar os primeiros movimentos dos media e dos gestores relacionados,
até o dia 01 de julho de 2008, por captar o desenvolvimento da missão até o seu estágio
mais avançado. Compatibiliza-se ao todo uma análise de quatro anos e dois meses,
podendo ser dividida nos seguintes estágios:
1º) 01 maio 2004 a 11 set. 2005: Chegada dos capacetes azuis da ONU. A
situação no Haiti não era propriamente de uma guerra civil, mas atravessava um
descontrole institucional que gerava ondas de extrema violência. Este é o momento da
chegada das tropas militares multinacionais no Haiti, comandadas pelo Brasil a fim de
garantir estabilidade – principalmente no que tange a segurança pública – para a
transição política. Buscou-se a rendição das armas dos grupos armados e a reintegração
social dos mesmos. Em síntese, as tropas foram então responsáveis por manter a ordem
e segurança locais logo após a falência e desestruturação do governo de Aristide –
governante haitiano que renunciou (SOUZA; ZACCARON, 2006);
103

2º) 12 set. 2005 a 12 maio 2006: Garantia do processo de eleição democrática no


Haiti, incentivado sob o argumento de que o regime democrático é menos propenso à
guerra e por isso garante a paz na comunidade nacional e internacional. Possibilitou-se
assim programar a infra-estrutura e a segurança necessárias para operacionalizar o
exercício da democracia. Este processo culminou com as eleições presidenciais e a
vitória de Préval (HIRST, 2007; SEITENFUS, 2009);
3º) 13 maio 2006 a 01 jul. 2008: Situação pós-eleição. A MINUSTAH se
incumbe de assegurar condições de governabilidade ao novo governo haitiano.
Reduzindo assim a intervenção militar direta no país ao mesmo tempo em que garante a
estabilidade para que o processo democrático se firme a longo prazo, articulando, em
conseqüência, com a cooperação internacional. Essa cooperação envolve políticas
públicas, atuação de alguns organismos internacionais e a remessa de financiamento que
viabilize a concretização desta etapa no Haiti.
Tais estágios estão propriamente articulados aos três pilares apresentados pelo
Ministro das Relações Exteriores do Brasil:
O sucesso da Missão de Estabilização das Nações Unidas no Haiti se
baseia em três pilares interdependentes e igualmente importantes: a
manutenção da ordem e da segurança; o incentivo ao diálogo político
com vistas à reconciliação nacional; e a promoção do desenvolvimento
econômico e social (AMORIM, 12/01/2005).

Porém, como ressalva do próprio ministro, não são três passos distintos ou
cronologicamente demarcados, por isso deve ter uma aplicação simultânea se o Brasil
quiser garantir a reconstrução, de fato, do Haiti. É claro que, para fins de análise foram
divididos os três estágios, já que em cada um há preponderância de um dos pilares,
entretanto, isto não significa que os outros âmbitos sejam esquecidos, dado que “o que
necessitamos é de um acordo entre todos, que una a comunidade internacional e as
forças políticas haitianas em um compromisso de longo prazo” (idem). Tanto que o
próprio material revela a presença concomitante dos três no decorrer da atuação
brasileira.
Parte do corpus a ser analisado é retirada do jornal impresso Folha de S. Paulo,
totalizando 161 textos jornalísticos, incluindo matérias, entrevistas, artigos e editoriais,
incluindo-se ainda nesta etapa as notas e as cartas do leitor. A outra parte advém dos
discursos políticos brasileiros e somam 14 discursos, pronunciados especificamente
pelo presidente Lula e pelo ministro das Relações Exteriores Celso Amorim.
104

A escolha pelo jornal não foi aleatória, pois este dispositivo quando comparado
nos media como um todo (como a internet, a televisão e o rádio) é o que apresenta o
acontecimento com maior complexidade, devido ao espaço ampliado de discussão e
abordagem e à característica da própria construção da notícia e do dispositivo midiático,
que veicula a informação alicerçada por certa crítica imbricada ao discurso jornalístico.
Claramente não se hierarquiza a importância deste dentre os outros meios, cada qual
com suas particularidades, inclusive a internet é um veículo bastante complexificador
também do acontecimento, além de sua própria atualização virtual constante.
A escolha pela mídia impressa se dá por duas razões fundamentais: Primeiro,
historicamente o jornal impresso tem sido espaço importante de construção da opinião
pública e de mediação do discurso governamental para o público. Segundo, seu formato
escrito tende a dar maior profundidade interpretativa e analítica das coberturas
jornalísticas e isso o torna mais adequado para averiguar como os discursos estão sendo
mediados para opinião pública. Deste modo tratamos especificamente da mídia
impressa e não do conjunto dos media (que incluiria outros, como televisão, rádio etc.).
Feita esta primeira delimitação geral da escolha pelo jornal impresso especifica-
se qual veículo será analisado, uma vez que existem dezenas de veículos de jornal
impresso de grande circulação no país. Optou-se pelo jornal Folha de S. Paulo devido
às seguintes características: (a) é o jornal diário em formato tradicional (vendido em
banca) de maior circulação por edição 57 ; (b) tem hoje abrangência nacional e superou o
status de mídia regional, portanto, faz coberturas integrais da esfera nacional do debate
público, correspondendo ao de maior visibilidade no Brasil; (c) apresenta matérias e
textos de política internacional sem resumir-se apenas em notícias compiladas com
agências internacionais, pois é capacitado a realizar coberturas externas com próprios
jornalistas enviados para cobrirem certos acontecimentos in loco, incluindo o Haiti; (d)
em sua trajetória este jornal alcançou um grau de respeitabilidade entre os leitores
principalmente de classe média, um extrato com forte influência na opinião pública
principalmente por conter profissionais liberais, especialistas, professores, técnicos etc.

57
Segundo dados do IVC (Audited Newspapers Circullation) a Folha circulou em 2004 uma média de
307,7 mil exemplares por edição; em 2005 foram 307,9 mil/por edição e em 2006 circulou em média
309,4 por edição (contra 257,5 em 2004; 275 mil em 2005 e 276,4 mil em 2006 do segundo colocado, o
Globo (GRUPO DE MÍDIA SAO PAULO, 2007, p. 346).
105

Em relação aos textos jornalísticos veiculados pelo jornal Folha de S. Paulo


partiu-se de um espectro de 161 que tematizavam a MINUSTAH, durante os quatro
anos e dois meses. Diversos foram os cadernos que as contemplaram, tais como Mundo,
Cotidiano, Brasil, Editorial e Opinião. Dado que a fonte de coleta do material foi em
função do jornal impresso disponível on line, acesso somente mediante assinatura,
possibilitou-se refinar a pesquisa do período através da palavra-chave “MINUSTAH”.
Interessante que, se para filtrar os proferimentos foi necessário utilizar a palavra-chave
“Haiti”, no caso do jornal esta palavra foi considerada ampla, pois na primeira tentativa
resultou-se em mais de 10.000 textos jornalísticos. Já a palavra MINUSTAH trouxe
maior precisão à busca detalhada e refinou, conforme dito, apenas 161, incluindo-se as
notas e as frases. Naquela amplitude das 10.000 matérias a grande maioria comentava
aspectos outros do Haiti e não propriamente a missão, o que não interessava à pesquisa.
É importante justificar que, por serem textos do jornal impresso, mas coletados
mediante pesquisa on line, não há a presença da página do caderno, pois nesta
disponibilização virtual o jornal Folha de S. Paulo não identifica a partir das páginas,
apenas elenca os textos segundo o título e o nome do caderno em que está localizado,
omitindo a página.
Lidos um a um dentre os 161 textos, descartou-se numa primeira instância as
pequenas notas e as frases, que superdimensionavam o volume do material buscado e
nada acresciam, por não terem problematização ou apresentação de outras falas dentro
de seu texto, tornando-as puramente descritivas. Com esse descarte, resultou-se em
apenas 146 textos jornalísticos. A partir destes reduziu-se para somente aqueles que
convocaram de alguma maneira a dimensão da cultura, ou seja, 48 textos. Esses textos
foram destacados de diferentes cadernos:
- mundo: 34
- brasil: 7
- opinião: 6
- mais: 1
Os proferimentos, por seu turno, foram escolhidos para participarem do corpus
na medida em que eles representam um outro âmbito importante para se olhar o
problema proposto. Carregados, naturalmente, de aspectos formais e públicos, por causa
de seu vínculo institucional e governamental, permitem ampliar o objeto – abrangendo a
porosidade entre os media e a vida social – e abarcar melhor o problema da pesquisa.
106

Acrescenta-se a isso, o fato de que os proferimentos são oriundos dos próprios gestores
da missão de paz, o que confere grande credibilidade e legitimidade, pois eles estariam
autorizados a falar sobre o acontecimento que participam e atuam diretamente, ajudando
inclusive a configurar e a construir o que é a própria MINUSTAH.
Os pronunciamentos dos gestores da missão foram selecionados através do site
do Ministério das Relações Exteriores 58 (MRE). Trata-se de um site oficial do governo,
que corresponde a uma vitrine da visibilidade pública sobre os acontecimentos da
política externa e internacional brasileira. É um repositório de arquivos e documentos
oficiais, servindo como um meio de comunicação oficial e público daqueles que
gerenciam o Estado. O filtro utilizado para selecionar os discursos políticos foi em
relação àqueles que tratavam especificamente da MINUSTAH, pois, ainda que outros
pronunciamentos fizessem referência à missão, evocavam-na de forma secundária e, por
tal motivo não enriqueceriam o material que já a tematizava em primeiro plano, embora
corroborassem quantitativamente com os enquadramentos sobre cultura que foram
localizados nos discursos ditos preferenciais. Como exceção a este filtro aos que tratam
especificamente do Haiti, tem-se os proferimentos pautados em Conferências Gerais da
ONU, por causa da relevância nos quais os mesmos versam sobre a atuação no Haiti
perante o cenário internacional, lembrando que a ONU é o órgão que regula, em última
instância, a referida missão coordenada militarmente pelo Brasil.
Além do site do MRE verificou-se a existência de um livro editado pelo próprio
Itamaraty – Resenha de política exterior do Brasil –, onde semestralmente são
compilados os discursos, proferimentos, entrevistas e artigos publicados a respeito da
política externa brasileira. Este livro condensa o mesmo material disponível on line no
site do MRE, porém, pela facilidade de consulta através do site, preteriu-se o livro de
Resenha de PEB, por se apresentar neste momento como uma fonte redundante.
Assim, considerando um horizonte de 141 proferimentos que citavam o Haiti e a
MINUSTAH, recortou-se apenas 14 discursos, cujos temas principais trazidos estava a
MINUSTAH, e não apenas tangenciando-a, como se verificou em grande parte destes
141 proferimentos. Dentre os gestores políticos considerados estão o presidente Luiz
Inácio Lula da Silva (65 proferimentos/7 considerados), o ministro das relações
exteriores Celso Luiz Nunes Amorim (69 proferimentos /6 considerados), e outros (7
proferimentos/0 considerados), a exemplo do Senador Eduardo Suplicy.
58
Disponível em: <http://www.mre.gov.br/portugues/politica_externa/discursos/procura3.asp>. Acesso
em 10 mar. 2009.
107

Por razões claras e já apresentadas, a missão deve ser o objeto do


pronunciamento, o que não impede, porém, que sejam convocados outros
pronunciamentos úteis para a análise, conforme já foi inclusive utilizado como
exemplos no decorrer desta pesquisa. Tal qual observamos no Discurso do Presidente
da República, Luiz Inácio Lula da Silva, durante discussão sobre temas de interesse
global (2008):
No Haiti, nossa participação na MINUSTAH evidencia a importância
que concedemos à solidariedade regional. Os avanços democráticos e
sociais indicam que estamos exercendo influência positiva na
recuperação da estabilidade do país. É fundamental que a comunidade
internacional mobilize recursos para seguir apoiando a recuperação e
o desenvolvimento do Haiti (Grifo nosso).

Neste excerto é evidente a vinculação regional, isto é, países latino-americanos


devem se doar para resolver problemas concernentes ao hemisfério, dentro da chamada
“solidariedade regional”, onde se concilia afinidades e diferenças em prol do apoio a
países com grave crise econômica e social, tal como o caso do Haiti. Apenas para citar
como exemplo uma matéria que venha a ser referenciada, ainda que não usada dentro da
avaliação do corpus.
Os textos jornalísticos do jornal Folha de S. Paulo e os discursos políticos, antes
de passarem pelo filtro de identificação daqueles que de alguma maneira reportam a
cultura, foram separados a partir das três fases delineadas na missão, delimitadas do
seguinte modo:

Tabela 1: Textos/discursos separados a partir das três fases delineadas na missão


FASE I FASE II FASE III
01/05/2004 a 12/09/2005 a 13/05/2006 a
11/09/2005 12/05/2006 01/07/2008
TEXTOS 59/52 (sem as 56/51(sem 46/43(sem
JORNALÍSTICOS notas) as notas) as notas)

12/12 1/1 1/1


DISCURSOS
POLÍTICOS
108

3.2 Dois movimentos para uma análise teórico-metodológica

O material apresentado para se tornar potencial objeto de análise precisa ser


organizado conforme aquilo se intenta com esta pesquisa, isto é, identificar qual o papel
desempenhado pela dimensão cultural no discurso do texto jornalístico e dos
proferimentos políticos sobre a MINUSTAH. Por esta razão, neste item são
apresentadas as características gerais da teoria dos enquadramentos e da análise de
conteúdo, e seus preceitos teóricos, montando um movimento conjugado de análise
teórico-metodológica, uma vez que este movimento cria categorias analíticas viáveis de
serem aplicadas no corpus, e que mais adiante permitirão identificar os enquadramentos
do texto jornalístico e dos discursos políticos, tornando-os passíveis de comparação.

3.2.1 Primeira abordagem: o aporte da análise de conteúdo

A técnica da análise de conteúdo ampara a pesquisa na medida em


operacionaliza o enquadramento de elementos no interior do corpus separando-os em
categorias, as quais depois receberão adequada análise não apenas quantitativa, mas,
sobretudo qualitativa, bastante usual no caso de análise de textos. Além disso, este
método é carregado por certa objetividade, por requerer uma clara idéia do problema da
pesquisa e definições precisas dos termos transformados em categorias, além de ter
validade justamente por utilizar os mesmos instrumentos de categorias sobre todo o
material pesquisado, evitando assim uma equivocada análise guiada por diferentes
parâmetros. É somente por isso que mais adiante será possível comparar o
enquadramento dos proferimentos políticos com o dos textos jornalísticos, atentando-se
para a porosidade entre eles.
É preciso salientar que a análise de conteúdo é utilizada aqui somente para se
refinar todo o material levantado, já sob a lente do problema que norteia a pesquisa.
Portanto, configura-se um mapeamento conforme define Ringoot (2006) de que “o
objetivo da análise de conteúdo é colocar em evidência os assuntos e os temas mais
importantes difundidos nas mensagens mediáticas” 59 . Diante do volume de elementos
extraídos pelo mapeamento, debruça-se para identificar os significados e consistências

59
Citação sem página, pois o texto está disponível em versão virtual.
109

centrais nele presentes (PATTON, 2002). Para tanto, o respaldo tanto da teoria dos
enquadramentos quanto dos Estudos Culturais serão buscados.
Embora o mapeamento facilite a análise final, o conteúdo não deve ser isolado,
isto é, não podemos contabilizar as categorias e desconsiderar, no caso do jornal, o
caderno de onde elas apareceram, ou, no caso dos discursos, qual o mote de um dado
proferimento, onde foi realizado e qual era, naquela ocasião, os principais
interlocutores. Atitudes nessa linha incorreriam no risco de ignorar a estrutura narrativa,
já que esta
[...] se refere ao formato de uma história, no sentido de que ela possui
um começo identificável onde a situação da peça muda, um meio onde
as diferentes forças desempenham seus papéis, e um fim onde temas
importantes são articulados (ROSE, 2002, p. 355).

Decerto, “as narrativas midiáticas não são apenas representações da realidade,


mas uma forma de organizar nossas ações em função de estratégias culturais em
contexto.” (MOTTA, 2005, p.15). Isto denota a narrativa como uma construção social,
pois envolve a produção e a recepção em interação mútua e notadamente reflexiva. A
partir desta relação, bastante porosa, o acontecimento é construído. Condição esta que já
é atendida ao se ter o cuidado de analisar a narrativa da notícia do jornal Folha de S.
Paulo. Entendendo esta narrativa como pano de fundo onde se realizam os
proferimentos políticos.
A ressalva de Rose (2002) sobre o problema relacionado à análise de conteúdo
no que tange a contagem de palavras, já que “sentidos não podem ser contados” (p.
358), é válida para nosso estudo. As categorias analíticas servirão como categorias de
sentido sobre como a cultura é invocada num dado texto. Uma vez que não cabe a nós
contar o número de palavras em que a cultura é citada, mas os diferentes sentidos em
que ela é “auto-explicitada” se fossemos classificar em mais de uma categoria um único
texto jornalístico correria o risco de inflacioná-lo. Isto ganha validade quando damos
importância à narrativa do jornal e à qualidade semântica dos proferimentos.
Há uma discussão clara sobre cultura que baliza esta pesquisa, entretanto, nesse
momento de categorizar cabe silenciar parcialmente sobre isso para deixar emergir
como ela é dita e trazida pelos discursos do jornal e dos proferimentos, para não se
tornar tendencioso. Não há ingenuidade, por outro lado, em esperar que o conceito da
cultura como recurso esteja explícito, desenvolvendo um esforço em identificar como a
110

cultura é trazida enquanto recurso da MINUSTAH por diversas razões, lançando luz das
teorias sobre os textos analisados.
Por se tratar de uma codificação semântica de elementos a serem analisados
posteriormente, estes elementos são por nós traduzidos do texto, já que no caso desta
pesquisa são textos produzidos para outra finalidade, especificamente, jornais e
proferimentos públicos. Por não serem, portanto, textos produzidos exclusivamente para
esta pesquisa, tem-se o cuidado de trabalhar com o “mapa” que faremos emergir a partir
da análise de conteúdo, pois este sim é feito para atender aos anseios do problema de
pesquisa.
Em articulação com a teoria do enquadramento, o embasamento teórico sobre a
centralidade da cultura permitirá interpretar o conteúdo identificado no corpus, dado
que
A operação de ‘interpretação’ permite sintetizar e organizar os
elementos ‘inventados’ de acordo com quadros teóricos mais
articulados e mais complexos e, portanto, mais adequados para
satisfazer as numerosas perguntas plantadas no começo da
investigação (CASETTI; CHIO, 1999, p. 247).

Os operadores descritivos são construídos antes da análise de conteúdo. Isto


porque, eles possibilitam a criação de um novo “texto”, uma nova estrutura, cujo
problema de pesquisa é refletido. Assim, a estrutura do texto é compreendida na análise
de conteúdo; já o posicionamento de que parte tal texto é percebido através da
interpretação do mesmo, considerando as linhas teóricas de fundo (BAUER, 2002).
Pois, “Se a linguagem é, porém, um sistema, então os signos pertencentes a um
contexto, quando presentes em um outro contexto completamente diferente, irão ainda
carregar consigo algum peso do sentido original” (ROSE, 2002, p. 348). Isto vale para o
mapa, que não deixa de referenciar o lugar de onde for retirado.
Deste modo, essa primeira abordagem da análise consiste em decupar o material
já especificado, isto é, textos jornalísticos da Folha de S. Paulo e os discursos de
políticos brasileiros sobre a missão, dividindo-os em três operadores descritivos: a.
Chegada dos capacetes azuis da ONU no Haiti e a estabilização; b. Preparo para a
eleição democrática no país; c. Situação pós-eleição e desenvolvimento de outras
dimensões da Missão – projetos infra-estruturais e ajudas frente aos desastres naturais.
Estes correspondem aos três estágios nos quais a missão do comando brasileiro no Haiti
pode ser dividida, conforme descrito no capítulo II, onde é apresentada a empiria.
111

Em seguida, o procedimento envolve escrutinar este levantamento indicando


tanto a quantidade de notícias que se referem à dimensão cultural, quanto a quantidade
específica desta em cada um dos estágios da missão. Abaixo se apresentam os mapas
iniciais de codificação da análise de conteúdo:

Tabela 2: Mapa de codificação das notícias do jornal Folha de S. Paulo


Estágios de PRIMEIRO: SEGUNDO: TERCEIRO:
desenvolvimento da Chegada dos capacetes azuis da Preparo para a eleição Situação pós-eleição e
MINUSTAH ONU no Haiti e estabilização democrática no país desenvolvimento de outras
dimensões da Missão – projetos
infra-estruturais e ajudas frente
aos desastres naturais
Textos veiculados em N= 52 N= 51 N= 43
cada estágio
Textos que convocam a (n= 20) (n=16) (n= 12)
dimensão da cultura no 41,7% 33,3% 25%
processo em relação ao
estágio

Tabela 3: Mapa de codificação dos documentos oficiais


Estágios de PRIMEIRO: SEGUNDO: TERCEIRO:
desenvolvimento da Chegada dos capacetes azuis da Preparo para a eleição Situação pós-eleição e
MINUSTAH ONU no Haiti e estabilização democrática no país desenvolvimento de outras
dimensões da Missão – projetos
infra-estruturais e ajudas frente
aos desastres naturais
Documentos produzidos (n= 12) (n=1) (n= 1)
em cada estágio
Documentos que (n=12) (n=1) (n=1)
convocam a dimensão 100 % 100 % 100 %
da cultura no processo
em relação ao estágio

Observamos tanto nas notícias, quanto nos discursos, a proliferação de palavras


a exemplo de “povos irmãos”, “solidariedade hemisférica”, “reconstrução democrática”,
“missão de estabilização da paz”, “laços culturais entre Brasil-Haiti”, configurando a
cooperação internacional do Brasil em moldes pacifistas e politicamente atendentes aos
anseios da comunidade internacional. Claramente confere-se nos dois mapas que a
dimensão cultural é abordada nos três estágios, porém, no primeiro estágio nota-se que
ela é bastante invocada possivelmente para amenizar o processo militar de uso da força,
além de ter sido cautelosa para não impactar o cidadão brasileiro. Ao mesmo tempo em
que no terceiro, dada a natureza deste estágio, o papel da cultura será firmado
principalmente no ordenamento prático da missão, através de cooperação de infra-
estrutura e educacional, reiterando dentro de um espaço cultural os aspectos positivos da
doação brasileira para este processo. Não se pode ignorar a tendência apresentada nos
três estágios da cultura ser apresentada e dimensionada dentro do discurso.
112

E no intuito de abarcar todo o processo, a análise de conteúdo será fundamental


para subsidiar a investigação uma vez que ajudará na organização desse material a partir
das categorias analíticas aventadas.
É através desse método que é possível verificar a predominância de frases,
palavras, invocações, referências explícitas e também as implícitas sobre a cultura, pelo
fato de que todos os proferimentos e discursos do período demarcado foram lidos
atenciosamente e analisados sob um olhar investigativo de como a cultura está atuando
como recurso da missão, dado que este é o leme teórico da pesquisa. Assim, nesse
momento de decupagem do material as categorias analíticas emergem, o que possibilita
a posteriori um mapeamento da incidência das categorias dentro de um contexto mais
amplo. Estreitando o método, será possível também verificar como cada fase da missão
reage a esse respeito segundo o papel de cada elemento da categoria enquadrada.
(PATTON, 2002).
Assim, num segundo momento da análise, destinada ao capítulo quarto, o quadro
a ser montado apresentará detalhes sobre a incidência de certa categoria e não outra para
um dado estágio, ou mesmo a coincidência de uma categoria ou mais num dado estágio.
Isto é assim realizado dado que a mesma categoria pode ser enquadrada em outras
matérias ou em certos proferimentos políticos, por exemplo. Isto é verificado na medida
em que todo o material que invoca a dimensão cultural é examinado e submetido aos
critérios de análise aqui empregados.
Para não superdimensionar o material, cada texto do jornal ou proferimento foi
classificado conforme uma categoria apenas, embora na leitura detalhada possa ter
aparecido mais de uma categoria para cada um dos textos, inclusive todas como foi o
caso de dois discursos políticos e uma matéria. Porém, para essas ocorrências o critério
adotado para restringir em uma única categoria foi segundo a predominância de uma
categoria sobre as outras naquele texto. Em alguns casos fica clara a intenção e para
quem aquele discurso é dirigido, já que há marcas lingüísticas evidentes, tais como a
invocação dos nomes, entidades e grupos dos interlocutores, colocando em relevo uma
dada categoria e obscurecendo as outras que eventualmente apareceram. Nos textos
jornalísticos embora não existam marcas explícitas do público para o qual são dirigidos,
há outras marcas que facilitam captar o intuito daquele discurso e, conseqüentemente,
identificar a categoria, podendo-se inferir a melhor categoria a ser classificada a partir
113

da prevalência de uma sobre as demais através do sentido mais geral trazido no


conteúdo destes textos.
É importante esclarecer que as intenções dos discursos identificadas aqui não são
aquelas centradas em aspectos pessoais e dentro de uma análise subjetiva, baseada na
intuição, na preferência ou qualquer outro atributo, mas sim resultado de uma análise e
interpretação criteriosa feita à luz dos marcos teóricos que orientam essa pesquisa. Há,
portanto, um contexto, um quadro teórico que orienta na leitura e seleção do material,
situado fora dos textos dos proferimentos e jornalísticos.

3.2.2 Segunda abordagem: o prisma teórico do enquadramento

Os acontecimentos, sejam eles construídos e referenciados por políticos ou pelos


media, sofrem adequações nas suas construções de modo que aqueles que o recebem
através de uma mediação discursiva têm contato com uma parcela da realidade, aquela
permeada segundo as constrições, interesses e relevâncias que intrinsecamente envolve
a mediação. De maneira mais geral, a isso é chamado de enquadramento.
Toda representação social é construída através de um processo de
seleção e esquematização, de modo que, neste sentido, é um
reducionismo. Por outro lado, entretanto ‘é impossível atingir um real
social anterior à simbolização’ (RICOUER, 1977), isto é, a realidade
não pode ser tomada em si mesma para ser conhecida, devendo
necessariamente passar pelas idéias, referências culturais,
representações sociais. Assim sendo, qualquer conhecimento do ‘ser’
é uma interpretação, e ‘o mundo é de tantas maneiras quanto ele possa
ser [...] descrito, visto, retratado, etc., e ‘não existe uma coisa tal como
o modo ou a maneira como o mundo é (GOLDMANN, 1967)’
(RICOUER, 1977; GOLDMANN, 1967apud BARROS, 1994, p.
127).

No caso das matérias jornalísticas, as rotinas e os princípios reguladores do


jornal, a interferência do jornalista ou convidado que a escreve, são exemplos de
constrições caras ao meio e dispositivo utilizados. Igualmente ocorre com os
proferimentos, havendo também uma série de fatores que definem a construção do
mesmo. Interesses e objetivos para o que deve ser dado a ver na atuação do Brasil são
determinantes, por exemplo, quando se revela um determinado aspecto do comando
brasileiro na Missão de Paz no Haiti, como o cultural, e não a questão política ou
econômica, dado que
114

Em toda sociedade a produção do discurso é ao mesmo tempo


controlada, selecionada, organizada e redistribuída por certo número
de procedimentos que têm por função conjurar seus poderes e perigos,
dominar seu acontecimento aleatório, esquivar sua pesada e temível
materialidade (FOUCAULT, 2008, p. 9).

Para este autor a instituição, seja ela material ou simbólica, política, econômica
ou cultural, se autodenominaria a única responsável por dar o poder ao discurso. Tão
logo, uma diferenciação cautelar será dada de acordo com as especificidades de cada
meio no próximo capítulo, momento este da análise mais aprofundada das categorias
dos enquadramentos.
Antes disso, a fim de tornar fecunda e sustentar a abordagem do problema, o
segundo momento do tratamento metodológico percorre os estudos de enquadramentos,
na medida em que, conforme acionou a análise de conteúdo, categorias específicas de
enquadramentos serão criadas para abranger o olhar sobre o objeto, refinando-o. Alguns
teóricos pertinentes a serem adotados para o percurso investigativo são: Goffman
(2004), Porto (2004), Entman (1993), Reese (2003), Scheufele (2007), Simon e Xenos
(2000), entre outros.
Inicia-se esta seção com o prisma do enquadramento de forma mais geral, sem
adentrar à sua relação com os media, para atender à análise dos enquadramentos de
alguns dos proferimentos políticos, quais sejam aqueles que foram feitos para uma
platéia presente. Trabalha-se com os marcos interpretativos definidos por Goffman
(2004), o qual é tido com um precursor 60 do termo frame, ou quadro, ao designar
enquadramento enquanto quadros de referência geral para organizar e orientar o sentido
dos acontecimentos (GOFFMAN, 1974). Embora Goffman (1974) utilize as interações
sociais em situações de co-presença para elaborar o conceito de quadros interpretativos,
o que se aproximaria da abordagem aqui proposta para analisar alguns dos
proferimentos de políticos, pode-se transpor também os estudos dele para um
enquadramento feito pelos media, como já vem sendo feito desde Gitlin (1980), autor
responsável por abrir caminho na relação do enquadramento dos media com os
movimentos sociais (PORTO, 2004).
Os quadros de sentido citados “abarcam um conjunto de sentidos socialmente
compartilhados, organizam nossos processos de interpretação e orientam nossas ações,
pois permitem aos sujeitos enquadrar as situações sociais e configurar modos coerentes

60
Originalmente, o termo frame foi empregado por Gregory Bateson, em seus estudos de comportamentos
de lontras (Goffman, 1974).
115

de agir nesses contextos” (SILVA, 2008, p.31). Baseado nisso, enquadramento funciona
então como a ação de estimular um dado padrão de interpretação e não outro, por isso
Goffman (1974), segundo ponderação de Porto (2004), “define enquadramentos como
os princípios de organização que governam os eventos sociais e nosso envolvimento
nesses eventos” (p. 78).
A comunicação, enquanto este processo de construção social, é bastante
estudada por Goffman (1999), inclusive isto é aplicável em sua análise de quadros de
sentido, já que estes quadros são princípios organizativos que auxiliam na estruturação
dos elementos de uma dada situação – em interação –, isto é, confere inteligibilidade a
um dado acontecimento. É preciso uma base de compartilhamento para que a
construção de um sentido seja efetiva. Segundo Johnson-Cartee (2005) “frequentemente
o construcionismo social foca na linguagem usada em uma dada cultura, a linguagem da
cultura determina uma ampla extensão que pode ser conhecida e realizada por uma
sociedade” 61 (p. 3, tradução nossa).
Se Goffman diferencia a interação nos media tanto pelo distanciamento temporal
entre produção e recepção, quanto pela linguagem configurada por meios técnicos,
assim o faz para situar uma nova forma do espaço interacional midiático, que é sui
generis. Logo, ao nos apoderarmos para o referente objeto o conceito de quadros como
um conjunto de dispositivos interpretativos, converge este trabalho para o fato de que o
quadro é capaz de moldar a interpretação, isto é, estabelecer um determinado
significado em dentrimento de tantos outros (GOFFMAN, 1974; 1999).
A este esquema mental negociado entre os atores dá-se o nome de framing –
enquadramento –, onde o signo pode ser deslocado em funçao do contexto em que é
aplicado. Dito isto, o aporte cultural para o qual se tensiona olhar aqui toma ainda mais
fôlego explicativo, pois este aporte também funciona como compartilhamento dos
“quadros possíveis” a serem apropriados pelos sujeitos para compor o contexto de
sentido que o jornal deseja focar. Nota-se que o framing remete à relação dimensional
do significado, no qual os quadros possíveis são permeados pela cultura (GOFFMAN,
1974).
Claramente observa-se uma negociaçao de sentidos, numa intersecção com o
desdobramento do tema a partir de Hall (2003b), o qual afirma que as pessoas negociam
os significados dos textos e das enunciações, expressos no processo de codificar e
61
“Often social construcitionism focuses on the language used in a given culture, for the culture’s
language determines to a large extent what can be known and what can be achieved by a society”
116

decodificar, os quais estão situados em momentos distintos. Além disso, as pessoas


acionam códigos diferentes. Assim, a linguagem implicaria em regras e relações sociais
que necessariamente perpassam os quadros de sentido para se traduzirem em práticas
sociais.
Mais do que a negociação de sentidos entre os profissionais dos media e os
agentes sociais, os enquadramentos também negociam sentido com os agentes políticos,
e, principalmente com o público que apreende a notícia e o seu respectivo
enquadramento. Importante considerar que tal público pode dialogar não apenas com
um enquadramento, mas com múltiplos enquadramentos, devido à gama de
possibilidades de entendimento dos quais ele se depara (MAIA, 2007).
No que tange os processos de enquadramentos – a essa altura entendidos como
“marcos referenciais significativos” (MAIA, 2007, p.11) – percebe-se o papel de
influência dos media no processo de construção social, ao tematizarem questões que são
elencadas aos cidadãos como de grande importância para a esfera pública, não apenas
legitimando a discussão trazida em pauta, mas também delineando certa forma de
compreendê-la. E embora não se possa considerar como fonte única e primeira as
notícias sobre política oferecidas pelos media, é praticamente impossível que as pessoas
ignorem a forma do discurso midiático enquadrar uma dada questão pública, de modo
que este discurso é capaz de determinar o conhecimento de política compartilhado pelos
cidadãos (JOHNSON-CARTEE, 2005).
De acordo com Reese (2003) “framing tem sido particularmente usado para o
entendimento do papel dos media na vida política” (p.7, tradução nossa). Para Porto
(2004), um estudioso brasileiro do assunto: “Enquadramentos são entendidos como
marcos interpretativos mais gerais, construídos socialmente, que permitem às pessoas
dar sentido aos eventos e às situações” (p. 78). É o processo de selecionar e salientar
aspectos da realidade em “esquemas interpretativos” (ENTMAN, 1993; REESE, 2003;
PORTO, 2004).
Framing estrutura simbolicamente o mundo social, num compartilhamento de
nível cognitivo e cultural, focando as relações sociais. Assim, “Os enquadramentos são
quadros interpretativos que fornecem “pistas” para os leitores produzirem interpretações
específicas dos eventos e assuntos políticos. Por se tratar de construções sociais, nem
sempre os jornalistas e o público se dão conta de tal ordenamento implícito presente nos
textos jornalísticos” (MAIA, 2004, p.91).
117

Nesta relação entre notícias e proferimentos oficiais possibilitadas pela


perspectiva do enquadramento sobre os dois, é possível compreender melhor
características próprias do fazer jornalístico, a exemplo de como este seleciona os
temas, como organiza e estrutura o conteúdo.
Entendendo que “o jornalismo é o produto de vários discursos que o elaboram e
o estruturam. A tensão entre ordem e desordem do discurso, a priori paradoxal, é o que
explica o conceito de dispersão” 62 (RINGOOT, 2006). Esta dispersão compreende
também a porosidade que existe entre o jornal e a vida social, a qual particularmente
atinge inclusive os discursos políticos aqui recortados, e que estariam implícitas,
transbordando o ato enunciativo. O mais interessante ao olhar para os enquadramentos é
que o discurso é capaz de criar situações que pareçam o mais normal e natural possíveis,
de modo que a construção social é invisível. Assim, a criação de mecanismos culturais
nos discursos, como a linguagem, os símbolos, mitos e imaginários, são dados como se
fossem reais. Além disso, é muito difícil para as pessoas verificarem de maneira
independente a veracidade daquilo que é trazido pelos media (JOHNSON-CARTEE,
2005).
Um compartilhamento de um mesmo horizonte de sentidos possíveis é
necessário e fundamental para que sejam realizados os quadros de experiência. Pois “O
saber das determinações contextuais de sentido não diz portanto apenas respeito às
manifestações atuais do sentido, mas também às manifestações possíveis e virtuais”
(RODRIGUES, 1994, p. 117). É a partir de condições pressupostas de sentido que
podemos inferir certas categorias e não outras. Dado que são elas que possibilitarão o
entendimento do lugar da cultura no discurso sobre a missão, ponto a que esta pesquisa
está destinada a investigar.
Grande importância destinada aos discursos é que eles conferem sentido aos
acontecimentos justamente por acionarem certos quadros interpretativos. A missão
poderia ser vista como uma atitude intervencionista, de caráter puramente militar e
quiçá movida sob o interesse de outros Estados. Desse modo, distanciar-se-ia de uma
atitude pacífica, cooperativa e solidária, razões inclusive pelas quais o discurso
brasileiro vem reiteradamente justificado. Por isso o discurso tem peso decisivo sobre o
norteamento do acontecimento, pois “Quando os quadros de experiência comum que
delimitam o sentido dos comportamentos falham ou se tornam indecidíveis, é ao

62
Citação sem página, pois o texto está disponível em versão virtual.
118

discurso que compete vir assegurar a sua constituição, ajustamento e restabelecimento”


(RODRIGUES, 1994, p. 118).
Logo, pensar o acontecimento político em questão a partir de balizadores
discursivos, cujas marcas salientadas são da ordem cultural, interpela um contexto mais
amplo, entendido como quadros de sentido e experiência. Estes são, não apenas
invocados, como construídos no próprio discurso. E criam, por sua vez, uma
interpretação orquestrada, de um mesmo acontecimento, entre os profissionais dos
media e os próprios gestores brasileiros da MINUSTAH. Interpretação esta que se torna
visível ao domínio público, alcançando a população. Como diz Johnson-Cartee (2005)
“se os participantes estiverem discutindo sobre uma crise internacional, é mais provável
que eles irão acreditar nos enquadramentos dos media e na sabedoria popular do que em
suas conhecidas experiências, já que não possuem experiência pessoal sobre este
assunto” 63 (tradução nossa, p. 29).
Por isso é preciso olhar nesta dissertação para o enquadramento mais amplo de
todo o material pesquisado, envolvendo os quatro anos e dois meses da missão, segundo
os dois âmbitos: Político e midiático. Esta escolha deve ser feita uma vez que o
enquadramento tem vários níveis a partir do conglomerado de textos para os quais se
olha. É possível encontrar o enquadramento de cada texto em si, de uma matéria ou
proferimento, por exemplo; enquadramento do conjunto de apenas os textos
jornalísticos de um lado, e dos proferimentos, de outro; enquadramento por fases da
missão no material todo e também, de um e de outro campo analisado separadamente
segundo cada fase. Entretanto, é somente com a análise de todo o material a partir das
cinco categorias aventadas que nos é permitido identificar o lugar da cultura na
MINUSTAH.

63
“if participants were discussing na international crisis, it was far more likely that they would rely on
media frames and popular wisdow than on their experiential knowledge, for they had no personal
experience with the issues at hand”.
119

4 TEXTOS JORNALÍSTICOS E PROFERIMENTOS POLÍTICOS:


POROSIDADES E OPACIDADES

No decorrer da dissertação foram apresentadas e discutidas diversas maneiras


nas quais o domínio cultural atravessa um processo político, precisamente tendo em
vista o objeto desta pesquisa – a MINUSTAH. A análise prossegue neste capítulo,
guiada por este embasamento, cujo norte foi feito no capítulo anterior, no qual matérias
e proferimentos receberam aplicação teórico-metodológica a partir de uma análise de
conteúdo conjugada com a teoria do enquadramento.
Destacou-se assim a interferência dos enquadramentos dos media para a vida
social e a aproximação disto com a tese da centralidade da cultura, em função do fato de
haver “consciência de que os meios de comunicação de massa – os jornais, as
televisões, os rádios – são uma instituição política, com o poder de selecionar, enfatizar
e excluir temas de acordo com interesses particulares” (CEVASCO, 2003, p. 96). Porém
há os interesses públicos também, que são demandados pela população, ou que são
tematizados pelos dirigentes políticos, interesses que podem ser permeáveis aos meios
de comunicação dentro de um discurso midiático concordante ou não com tais
interesses. Neste trabalho de aproximação entre os textos jornalísticos e os
proferimentos políticos a moldura buscada nos enquadramentos possíveis é a cultura,
observando que esta teria o poder não apenas de impingir sobre outras esferas, como
também remodelar a própria prática ordinária (HALL, 2008).
Este procedimento teve o intuito de condensar todo o material que, dentro do
corpus estabelecido, servisse para atender à investigação. Isto é, foram refinados apenas
aqueles que invocavam a dimensão da cultura em seu discurso. Com esse material em
suspensão foi possível inferir as categorias que permitem detectar o lugar da cultura na
específica missão de paz. E retomando a conceituação teórica de Yúdice (2004), o lugar
da cultura a ser localizado está na maneira como ela, enquanto invocada nos discursos e
nos textos jornalísticos apresenta-se como um recurso político da MINUSTAH. Nesta
direção esse capítulo faz o entrelaçamento do material empírico com as proposições
teóricas discutidas no capítulo terceiro.
A parte que se segue apresenta as cinco categorias que foram apreendidas da
análise de todo o material, explicitando-as. Este momento oscila entre o caráter
descritivo e o analítico, pois se buscou apresentar o material para proporcionar uma
120

análise fidedigna e ampla. Para organizar melhor esta análise, separaram-se as cinco
categorias ordenando-as em itens para em cada uma delas decupar o mapa descritivo,
sempre se atentando à distinção do material jornalístico do proferimento. Em seguida,
buscou-se apreender em linhas gerais o enquadramento dado à cultura em ambos,
apontando as porosidades entre os campos político e midiático.

4.1 Cultura como recurso na explicitação e aplicação das categorias

As categorias foram refinadas de acordo com a percepção de como a cultura é


nomeada e performada no texto, em outras palavras, concebidas na medida em que a
cultura apresenta diferentes usos, descrições e relações estabelecidas, todas atreladas, no
caso, aos diversos interesses envoltos na atuação brasileira diante do comando da
MINUSTAH. Por isso, a categoria é textual. Porém, a análise balizada por tais
categorias extravasa no entendimento de cultura para além daquilo que é retido no texto.
É preciso, pois, considerar o contexto social mais amplo, conforme o debate teórico
sustentou no decorrer dos capítulos.
O trabalho de examinar o lugar da cultura na MINUSTAH ancorado nas
categorias que emergem do corpus considera a pontuação de Proença Jr (2006) de que
Qual seja a rationalle que preside as atividades brasileiras em termos
de paz e segurança internacional é um tema de relevância e constante
oportunidade. A fragilidade do que se pode obter pela simples análise
do que se apresenta na mídia exige um tratamento mais aprofundado.
A imperenidade do que se pode inferir a partir dos discursos e
pronunciamentos, a seu turno, demanda um enquadramento mais
conceitual, em que os elementos de uma moldura teórica possam
iluminar, ou até preencher, os claros de raciocínios deixados
implícitos ou vagos (p. 231).

Pois o autor ao evidenciar as possíveis lacunas e falhas encontradas numa


análise do desempenho brasileiro dentro da política internacional, e que seja feita
somente a partir dos discursos dos media e dos pronunciamentos políticos, diretamente
nos alerta sobre as limitações que isto cerceia. Como ele mesmo disse, é preciso buscar
o apoio de uma “moldura teórica”. Está claro que a moldura que percorre e engendra
esta pesquisa é a tese da centralidade da cultura e o arcabouço teórico dos Estudos
Culturais. Assim, a vacância revelada pelo teórico supracitado é ocupada pela análise
aqui proposta, sem a intenção de esgotar o estudo, haja vista as próprias limitações de
tal abordagem.
121

Por conseguinte, nesta etapa serão apresentadas as categorias inferidas, bem


como a maneira de se compreender cada uma delas para que possa ser compartilhado o
mesmo fundo interpretativo utilizado. Exemplos das categorias são expressos através de
recortes do material não apenas para ilustrar descritivamente, mas principalmente por
demonstrarem a construção do lugar da cultura como recurso naquele discurso, que,
seguindo a tese de Yúdice (2004), o próprio fenômeno ao ser analisado permite que seja
inferida a maneira como a cultura é empregada e utilizada. Por fim, apresenta-se uma
tabela que mapeia quantitativamente o aparecimento das diversas categorias.
Visualizando a tabela é possível compreender em que medida, e sob o alicerce de quais
categorias, o evento político teve acionada a cultura na construção de seu discurso.
Ponderam-se as distinções e especificidades caras aos discursos do jornal, de um lado, e
dos gestores políticos, de outro, de modo a ser possível observar confluências,
porosidades, contradições e até mesmo tendências entre os dois, resguardando, também,
o momento de cada estágio da Missão.
Assim, foram cinco as categorias que emergiram da leitura e interpretação mais
detalhada das 48 matérias e dos 14 proferimentos:
1) Cultura como recurso na estratégia de vinculação identitária;
2) Cultura como recurso de legitimação no Brasil;
3) Cultura como recurso para empreender uma cooperação internacional, altiva e
adequada às novas orientações do cenário global;
4) Cultura como recurso de uma construção pacífica e solidária;
5) Cultura como recurso de conquista da legitimidade haitiana.
Todas elas convergem para o entendimento da cultura como um recurso político
da MINUSTAH, mas cada uma aborda especificidades junto ao público e/ou
interlocutor para o qual é dirigido, bem como qual o aspecto da cultura que é invocado
apropriadamente naquele contexto, considerando intenções, interesses e construções.
Não se poderia desconsiderar esta etapa do processo de distinção em categorias e
avançar no tratamento direto da cultura como um recurso político como um todo, pois
este atalho ignoraria aspectos importantes que são revelados na leitura guiada em cada
categoria. Aspectos estes da cultura que são bastante caros a esta pesquisa e para
entender esta importância é preciso apresentar a categoria e as peculiares que engloba,
incluindo o próprio público a que são direcionadas.
122

A primeira categoria invoca a relação Brasil-Haiti, referindo-se a laços culturais,


trajetórias históricas, raízes étnicas comuns e realidades sócio-econômicas próximas ou
de entendimento entre os dois países. A segunda trata especificamente da maneira como
a cultura é trazida no discurso para legitimar ao povo brasileiro a atuação e dispêndio do
esforço material e financeiro do Brasil no Haiti. A terceira, por sua vez, apresenta a
maneira de o Brasil se portar frente a responsabilidades requisitadas pelo cenário
internacional, transpassando em última instância os interesses e ditames da ONU,
demonstrando capacidades e atitudes da política externa brasileira perante o normativo
internacional. A quarta, embora próxima desta categoria anterior, diferencia-se pela
questão de a cultura ser usada como recurso de uma diplomacia de caráter solidário,
desprovido de interesse, inclusive independente do próprio interesse no interior do
organismo das Nações Unidas, e se justifica em razão de uma atuação não violenta e
voltada para a construção da paz, não necessariamente sob a regulação da ONU ou
qualquer outro acordo entre estados, que é o que marca a terceira categoria. Por fim, a
última categoria expressa a cultura segundo a captação de apoio e legitimidade perante a
população local, isto é, o Brasil conquistando a confiança haitiana e reforçando a
credibilidade da intervenção brasileira dentro do país através de medidas de
desenvolvimento locais, a exemplo de construção de escolas e outras obras de positiva
repercussão social, bem como frisando aspectos culturais nossos, como o futebol, para
angariar uma imagem positiva no país receptor da missão.
A linha que separa uma categoria da outra é, por vezes, muito tênue, já que é
possível ver imbricações entre elas. Até mesmo a presença de várias delas em apenas
um proferimento ou texto jornalístico, por exemplo, denuncia a sua característica fluida.
Como se observa no artigo publicado no ano passado, de autoria de Ricardo Seitenfus, o
qual se manifesta contrário diante da cogitação da retirada das tropas brasileiras
reiterando diversos apelos culturais, nos quais podemos notar algumas das categorias de
análise supracitadas. Pois, considerando se o Brasil deveria permanecer ou não no Haiti,
o que incomodava naquele momento era pensar:
Qual seria a justificativa - a não ser o decantado egoísmo nacional-
apta a explicar o abandono de um povo cujas raízes são
compartilhadas por ponderável parcela de nossa população? Como
explicar às opiniões públicas nacional, internacional e haitiana que o
Brasil, respeitado, amado e venerado pelo povo mártir da antiga pérola
das Antilhas, dê-lhes as costas num momento de tal gravidade? O que
seria da diplomacia cooperativa e solidária brasileira? Qual seria o
futuro do enfoque Sul-Sul, dos projetos do Ibas e da respeitabilidade
cada vez maior da palavra brasileira no concerto das nações? A
123

resposta é uma só: após a surpresa, a decepção e, a seguir, o


menosprezo com que seria avaliado o conjunto da nossa atuação
internacional. Além dos desastres, o abandono do Haiti traria uma
constatação: nossa incapacidade de resolver problemas regionais
(Grifo nosso). 64

Neste fragmento, que mostra nitidamente a preocupação com a imagem


brasileira frente ao que representaria publicamente o mau desempenho na MINUSTAH,
é afirmado que o Haiti é “um povo cujas raízes são compartilhadas por ponderável
parcela de nossa população”, explicitando aí a categoria da “cultura como recurso na
estratégia de vinculação identitária”. Quando se lê “que o Brasil, respeitado, amado e
venerado pelo povo mártir da antiga pérola das Antilhas” torna-se nítida a categoria de
“cultura como recurso de conquista da legitimidade haitiana”. Já o trecho da
“diplomacia cooperativa e solidária brasileira” reforça a categoria da “cultura como
recurso de uma construção pacífica e solidária”. Ao contrário destas categorias
identificadas, este artigo foi classificado como adequado à categoria da “cultura como
recurso de legitimação no Brasil” porque se observou que Seitenfus elencou estas
categorias para conferir sentido legítimo do Brasil não só para participar, mas
permanecer no comando da MINUSTAH, justificando sob diversos apelos para a
população brasileira em geral.
Entretanto, discursos como este, tão rico em categorias, não invalida este esforço
em identificá-las de acordo com a mais adequada dentro da avaliação do texto todo, já
que é através deste empenho que podemos inferir o papel predominante da cultura nos
discursos analisados. O critério adotado em casos como esse para classificar conforme
as categorias, já que em vários exemplos houve ocorrência de mais de uma categoria de
maneira bem equilibrada, com casos mais complexos em que apareceram as cinco, foi a
intencionalidade e o intuito do discurso. Neste raciocínio, parte-se de que todo discurso
tem um propósito, e é sobre ele que nos guiamos. Pois seria incoerente
superdimensionar e fragmentar o material, já que é sobre o todo que nos debruçamos.
Uma vez que são bastante sutis as especificidades que distinguem cada
categoria, bem como a classificação delas no material, a seguir será mais bem exposta
cada uma das cinco compostas pela análise do material presente nos itens.

64
SEITENFUS, Ricardo. É hora de o Brasil encerrar a missão no Haiti? NÃO. O Haiti não é aqui. Folha
de S. Paulo, São Paulo, 24 maio 2008. Seção Opinião.
124

4.1.1 Cultura como recurso na estratégia de vinculação identitária

Para suporte teórico a essa categoria será de apoio basilar a discussão trazida no
tópico “Cultura e identidade” presente no capítulo terceiro, dado que esta categoria
explica a vinculação identitária entre o Brasil e o Haiti considerando as aproximações e
entendimentos comuns entre os dois sob aspectos culturais e identitários de formação e
construção. Esta categoria abarca estrategicamente esta relação cultural tanto na
construção do Centro Cultural Brasil-Haiti, quanto na vinculação identitária criada pelo
“jogo da paz” de futebol ocorrido com a seleção brasileira no Haiti, bem como no
reconhecimento da importância da cultura local haitiana no processo de gestar a missão
ou no diferencial por serem tropas brasileiras, acionando semelhanças ainda que
superficiais ou simplesmente comparativas com a nossa cultura.
Tem-se, por exemplo, a comparação do hibridismo religioso prevalecente no
Haiti – vodu e catolicismo – com o sincretismo da religião afro-brasileira conhecida
como candomblé. Esses são modos de acionar em conjunto com o simbólico, o
imaginário, as tradições e a cultura compartilhados entre Brasil e Haiti. Canclini (2003)
já desnuda essa característica afrobrasileira através do que ele chama de identidade
africana transclassista e transétnica e que compartilha de uma herança afrocaribenha.
Estas raízes africanas comuns são retratadas no artigo seguinte escrito por Boris Fausto
a Folha:
O Haiti tem um lugar na nossa realidade e na nossa imaginação, por
várias razões. Entre elas, a controvertida presença das tropas
brasileiras na ilha, sob a bandeira da ONU, e a atração de seus rituais
de origem africana, que guardam parentesco com os nossos. Além
disso, podemos sempre nos consolar das mazelas nacionais
abandonando a ambigüidade proposta numa canção de Caetano e Gil,
para afirmar, com boas razões: “O Haiti não é aqui”. Entretanto o
Haiti foi o primeiro país do continente americano a proclamar sua
independência pela via de uma longa insurreição de negros e mulatos
(1804), que deixou profundas marcas entre dominantes e dominados. 65

Se o “Haiti não é aqui”, por que possuímos características tão fortes desse país e
ainda insistimos em aproximar os dois segundo aspectos históricos e culturais? A
resposta está neste mesmo trecho que aproxima certos traços culturais, revelando uma
tendência para positivar o fato das semelhanças serem somente de ordem simbólica, o
que situa numa posição de alívio o fato de o Brasil não padecer dos mesmos males que

65
FAUSTO, Boris. A ilha sem fantasia. Folha de S. Paulo, São Paulo, 12 ago. 2008. Caderno Mais.
125

o país haitiano tanto sofre. Há de se lembrar que o Haiti, encravado no Caribe, poderia
ter tido um destino semelhante à vizinha República Dominicana, com a qual divide a
ilha chamada Hispaniola, pois o país já foi também tão rico de belezas naturais. Porém,
devastações e catástrofes naturais, poluição desmedida, assim como o completo
abandono do governo haitiano dentro de uma seqüência de ditaduras transformaram
aquilo que, num passado remoto agregaria enorme potencial turístico, em um
aglomerado de casas sem qualquer infraestrutura, com intensa violência urbana que
justifica o monitoramento permanente das tropas azuis da ONU.
É interessante salientar que este excerto começa com o lugar que o Haiti tem em
“nossa realidade e imaginação”. Realidade porque o Brasil é o comandante das tropas
que se instalaram lá no país desde 2004; imaginação porque há um conjunto de idéias
que são acionadas quando se pensa no Haiti e numa missão de paz. Esta relação entre
realidade e imaginação é o que compõe o imaginário compartilhado, seja pelo discurso
da Folha de S. Paulo, seja pelos proferimentos políticos.
Manter este imaginário ambíguo é justamente aquilo que sustenta a vinculação
estratégica desta categoria, afinal, não é interessante nivelar ou eliminar as diferenças
que situam o Brasil como um país diferente e melhor, no quesito desenvolvimento
econômico e social, uma vez que ele é o responsável pelo comando da missão e deve,
por isso mesmo, trazer novos horizontes para a realidade haitiana. É a experiência do
Brasil como um modelo de desenvolvimento na América Latina, e ainda com origens e
compartilhamentos culturais comuns entre os dois países, que faz do Brasil o país capaz
de atuar positivamente e de forma diferente dos outros que já estiveram no Haiti. Como
afirmado no proferimento, o segundo motivo além da convocação e legitimidade da
ONU está expresso nas palavras de Celso Amorim:

Também nos animou o natural sentimento de solidariedade regional, e


afinidades de natureza cultural e étnica que justificam um maior
envolvimento de países da América Latina e do Caribe no Haiti. [...]
Por isso também defendemos a presença da ONU no Haiti, e
defendemos que essa presença se caracterizasse por um forte
componente latino-americano e caribenho. [...] Nossa cooperação com
o Haiti não se deu sem alguma resistência interna. Afinal, o Brasil é
também um país com enormes carências sociais. Com grandes
dificuldades, inclusive na área de segurança. Mas essa é uma lição que
aprendi com os próprios brasileiros de origem mais humilde. Não é
preciso ser rico para ser solidário. [...] A presença da Minustah no
Haiti continuará sendo necessária. O próprio Presidente Préval
afirmou desejar que as tropas da ONU permaneçam no País. Mas o
Presidente Préval também deixou claro que os termos do mandato da
126

Minustah devem ser reformulados, tendo em mente a nova situação.


Nas palavras do presidente, “bulldozers e betoneiras devem ocupar o
lugar dos carros de combate”. [...] Creio que este é um exemplo
daquilo que nós dissemos em muitas ocasiões, inclusive nos
momentos mais difíceis dessa operação, que é preciso latino-
americanizar o Haiti. Naturalmente quando digo latino-americanizar
isso inclui o Caribe. O Haiti não pode, não deve e não é mais visto
como o filho enjeitado da América Latina e do Caribe. [...] O Haiti
pode contar com o Brasil. O Presidente Lula assegurou pessoalmente
ao Presidente Préval, em sua recente visita ao Brasil, na condição,
então, de Presidente eleito, que o compromisso do Brasil com o Haiti
é duradouro. Estaremos ao lado do Haiti enquanto for o desejo do seu
governo, do seu povo 66 (Grifo nosso).

O presidente Préval quando ainda estava em campanha, confirmou este apoio às


tropas brasileiras em entrevista ao jornal Folha de S. Paulo dizendo: “Acredito muito na
cooperação Sul-Sul. Acredito que países como o Brasil e a Venezuela são muito mais
próximos como modelos de desenvolvimento e podem compreender melhor um país
67
como o Haiti” . Nessa fala tem-se o que Charaudeau (2006a) explica como o
imaginário enquanto construção de significado de uma realidade. Isto é, aquilo que o
Brasil representa enquanto um modelo latino-americano de desenvolvimento, ao mesmo
tempo em que reafirma valores culturais de compartilhamento, funciona como uma
concretização de que o Brasil pode ser capaz de transformar a história de um povo e de
um país como o Haiti. São aspectos simbólicos a conferirem significação real ao
processo da MINUSTAH.
Charaudeau (2006a) traz uma versão de imaginário chamado sócio-discursivo e
que ajuda a ilustrar bem esta vinculação identitária trazida nessa categoria. Segundo o
autor esse tipo de imaginário além da sustentação racional discursiva é também
materializado nos comportamentos diversos da vida ordinária, nas atividades coletivas,
na produção de objetos manufaturados, na construção de objetos que funcionam como
símbolos etc.
Isto é mais bem esclarecido mediante os exemplos que são transparecidos no
material. Tem-se a aproximação de ritos religiosos que são da prática cotidiana, como o
candomblé brasileiro e o voduísmo haitiano; as celebrações entre Brasil e Haiti exaltadas
em atividades de comunhão pela paixão do futebol; a vinculação da arte naïf durante
exposição promovida para aproximar a produção artística e cultural entre os dois países

66
Discurso do Ministro das Relações Exteriores, Embaixador Celso Amorim, na sessão de abertura da
Reunião Internacional de Alto Nível sobre o Haiti. Palácio Itamaraty, Brasília, 23 maio 2006.
67
MAISONNAVE, Fabiano. Favorito defende que missão fique no Haiti. Folha de S. Paulo, São Paulo,
06 fev. 2006. Caderno mundo.
127

é um bom exemplo trazido pelas palavras de Celso Amorim em explicação sobre a


importância que tem no Brasil a criação da Secretaria da Promoção da Igualdade Racial:
Foi por isso que o Presidente Lula pediu perdão aos africanos, aos
descendentes daqueles que foram escravos e que ajudaram de maneira
dramática por vezes, de maneira muito importante, a construir este
país. A mesma coisa eu diria sobre nossa relação com o Haiti.
Recomendaria muito aos que estão aqui, se tiverem a ocasião, de irem
ver uma exposição de pintura que está no Centro Cultural Banco do
Brasil, que tenho certeza enriquecerá a alma de todos. Trata-se de uma
exposição sobre pintura naïf do Brasil e do Haiti. E é muito difícil
distinguir o que é do Brasil e o que é do Haiti nessas pinturas. Essas
aproximações que têm como instrumento a política externa nos
ajudam a nos redescobrir a nós próprios, a nos orgulharmos da
contribuição africana, da contribuição indígena, como também da
contribuição de árabes, de judeus, de todas as religiões que formam
este nosso país tão rico, tão diversificado, mas um país onde há muito
por fazer para chegarmos à sociedade sempre diversificada e
harmoniosa que desejamos. 68

Assim, este proferimento invoca a pintura naïf do Brasil e do Haiti como


similitudes difíceis de distinguir, além de mostrar como a cultura brasileira é rica,
diversificada e compactua pela busca de uma verdadeira democracia racial diante da
criação da Secretaria da Promoção da Igualdade Racial. Ou seja, apresenta uma íntima
relação calcada em questões raciais e culturais e de expressões artísticas entre os dois
países, ao mesmo tempo em que o Brasil cultiva grande respeito e promove políticas
afirmativas para com a cultura afrobrasileira.
A dimensão simbólica que abrange a construção de uma relação intercultural
com a inauguração no final de fevereiro de 2008 do Centro de Estudos Brasileiros no
Haiti é também conformadora de um imaginário coletivo, que passa a ser compartilhado
entre haitianos e brasileiros. Segundo a notícia do jornal on line, já que o jornal
impresso que é alvo desta dissertação não noticiou este evento, toma-se como exemplo
este outro veículo simplesmente para explicar que neste Centro
Serão oferecidas aulas de português, culinária e cultura brasileira,
além da exibição de filmes e mostra de artistas, fotógrafos e
escultores. No próximo semestre, haverá também aulas de relações
internacionais, informa o diretor do centro, o diplomata Antonio Jorge
Ramalho. 69

68
Palavras do Ministro das Relações Exteriores, Embaixador Celso Amorim, na sessão de abertura do
Painel Internacional “Ações Afirmativas e Objetivos do Milênio”, Brasília, 29 jun. 2005.
69
STOCHERO, Tahiane. Após pacificação, Itamaraty promove arte brasileira no Haiti. Folha de S. Paulo
on line, São Paulo, 26 fev. 2008. Disponível em:
<http://www1.folha.uol.com.br/folha/mundo/ult94u376238.shtml>. Acesso em 05 jul. 2008.
128

E assim este Centro é a concretização daquelas primeiras declarações políticas


no início da atuação do Brasil no Haiti, quando se intentava firmar o caráter cultural da
ajuda brasileira em meio à intensa atuação militar. Dado que o início da missão foi
marcado pelo momento onde a atividade propriamente militar foi mais necessária, e
assim nesta nova fase que abarca a existência deste centro há comportamentos que
amenizam e justificam aquele momento mais duro de intervenção, construindo
fisicamente e simbolicamente um novo vínculo.
Outro vínculo que é diversas vezes reiterado é a paixão comum pelo futebol.
Esta conexão é também acionada ainda que signifique simplesmente a única relação
realmente existente entre os dois países, como em algumas críticas do discurso
jornalístico isto emerge. Num desses casos vê-se uma matéria contendo fortes denúncias
de abuso dos Direitos Humanos por parte das tropas brasileiras, e por isso o mesmo
gosto compartilhado pelo futebol é trazido como contrasenso que não justifica o
comando do Brasil na MINUSTAH:
"Não importa quem esteja no comando. Os brasileiros são adorados
pela população haitiana por conta do futebol. Quem lidera as tropas
vai aplicar a política da ONU que é ditada pelos EUA. Está tudo
errado desde o início", afirmou Lionel Jean-Batiste, vereador em
Illinois. Na denúncia, o Brasil é considerado culpado pela ação direta
de seus soldados em mortes de civis e também por omissão frente à
ação violenta da Polícia Nacional Haitiana. 70

Quando o jornal, em outro momento, indica que a bandeira brasileira era


sacudida por mãos haitianas é mais do que a paixão pelo futebol que está ali
representado. É a paixão pelo futebol e pelos craques brasileiros, onde o importante
símbolo nacional do Brasil é, naquele momento, orgulho para os haitianos: “Antes do
jogo, que teve atraso de quase 20 minutos, os atletas do Haiti se esforçavam para tirar
fotos com os pentacampeões. Na precária arquibancada do estádio Sylvio Cator, muitos
haitianos ostentavam bandeiras brasileiras” 71 . Em outra matéria, o jornal divulga a
alegria dos haitianos com a conquista do hexacampeonato mundial de futebol pelo
Brasil, salientando um haitiano que usava pulseira verde e amarela e que torcia como se
fosse seu próprio país a conquistar o título, o qual ainda se relembrava do jogo que a
seleção brasileira havia disputado no Haiti como “maravilhoso”. Este mesmo haitiano,

70
DANTAS, Iuri. ONGs acusam Brasil de violações no Haiti. Folha de S. Paulo, São Paulo, 16 nov.
2005. Caderno Mundo.
71
Brasil ignora pedido e goleia por 6 a 0. Folha de S. Paulo, São Paulo, 19 ago. 2004. Caderno Brasil.
129

que era um ex-militar, “saúda os brasileiros: ‘Bom Baguy, Brasil’. Traduzindo:


brasileiro, boa gente, frase comum ouvida pelas tropas nacionais.” 72
Essa mesma relação cordial, amigável e de identificação entre os brasileiros e os
haitianos é percebida na entrevista de um famoso rapper chamado Jean – um haitiano
que vive nos Estados Unidos. Segue um trecho da entrevista:
Folha - Você acha que a aproximação do Brasil com Haiti por causa
da origem africana, do futebol e do Carnaval influencia na
participação do país aqui?
Jean - O Brasil tem um lugar especial no coração do Haiti. Quando
houve a partida de futebol entre o Brasil e o Haiti, foi uma
demonstração de como os haitianos idolatram os jogadores brasileiros.
Mas isso não é no sentido militar. O Brasil sensibilizou o Haiti,
colocou a mão sobre o povo haitiano e disse: "Queremos vê-los
melhor". Quando vocês fizeram aquele jogo, vocês sensibilizaram o
Haiti. 73

O rapper também alerta sobre a necessidade de que alguém diga o que a


MINUSTAH está fazendo no país, ou seja, é preciso uma explicação de legitimidade
perante o povo haitiano, conforme a categoria de número 2 irá desenvolver. Jean foi
votar nas eleições, embora more nos EUA, e parabenizou o comando militar pelas
eleições terem se realizado, por conta da ampla presença e participação dos haitianos
como um resultado positivo, embora tenha criticado a organização, que segundo ele "foi
um saco".
No discurso de saudação na chegada ao Haiti para o emblemático amistoso de
futebol intitulado de “jogo da paz” em agosto de 2004, proferido pelo presidente Lula,
expõe-se uma propensão brasileira em querer acirrar laços culturais com o povo local,
entendendo que a afinidade do interesse pelo futebol representa uma janela para que um
compartilhamento comum possa vir a se intensificar:
Com emoção e alegria, chego ao Haiti para um dia histórico nas
relações entre este país e o Brasil. É a primeira vez que um Presidente
da República brasileiro vem ao Haiti, nação com a qual
compartilhamos raízes africanas comuns. [...] Venho, enfim, participar
de um encontro pela paz entre haitianos e brasileiros. O jogo entre a
Seleção do Brasil e do Haiti permite que celebremos juntos a nossa
paixão pelo futebol. Esperamos que este jogo possa se transformar em
símbolo de nossa amizade e em estímulo para intensificarmos os
contatos entre nossas sociedades. 74

72
MICHAEL, Andrea. Seis estrelas, seis estrelas", celebram haitianos após o jogo do Brasil na Copa.
Folha de S. Paulo, São Paulo, 28 jun. 2006. Caderno Mundo.
73
Votação foi "revolucionária", diz rapper. Folha de S. Paulo, São Paulo, 09 fev. 2006. Caderno Mundo.
74
Saudação do Presidente da República, Luiz Inácio Lula da Silva, na chegada ao Aeroporto
Internacional Toussaint Louverture. Porto Príncipe - Haiti, 18 ago. 2004.
130

Esta predisposição em intensificar os “contatos entre nossas sociedades” também


valida oficialmente as trocas culturais resultantes do contato entre nações e povos, de
modo que especificamente entre o Brasil e o Haiti há uma abertura para aproximar
imaginários, assim como um reconhecimento maior de um pelo outro que tal troca
provoca e favorece, segundo, claro, aquilo que os discursos apresentam. Por isso, neste
excerto há uma evidência explícita da relação identitária-cultural relacionada ao
interesse pelo futebol de ambos os países, ainda que seja esta relação forjada e pouco
sólida. Aguilar (2008, p.8) chama a atenção sobre a influência do apelo cultural para a
efetividade da Missão e para ampliar a visibilidade do Brasil:
Como os haitianos veneram nosso futebol, a realização do evento
atuou como facilitador da aproximação das tropas brasileira com a
população civil do País e, por conseguinte, de todos os componentes
da ONU. Um evento dessa natureza serve ainda para chamar a atenção
para o conflito e os esforços internacionais, podendo, inclusive,
facilitar a obtenção de recursos para desenvolvimento de projetos de
construção da paz.

É através de exemplos como esse que, distinta das outras experiências de


ocupação externa perpretadas no Haiti, entendemos como a MINUSTAH lança uma
imagem mais benigna, menos impositora, pois, apesar de ser de fato uma força de
ocupação, ela se modela e se explicita a partir do uso moderado dessa força,
questionando a repressão da violência no país através da utilização da força como meio
de pacificação. Segundo Hirst (2007)
A MINUSTAH compreende uma dimensão simbólica e histórica na
qual se reúnem elementos de memória coletiva latino-americana,
referências ideológicas comuns e antecedentes políticos e
diplomáticos. A peculiaridade desta sobreposição contribuiu
enormemente para a construção do discurso oficial dos países sul-
americanos, no qual se buscou somar um sentido identitário regional
às motivações políticas e humanitárias normalmente presentes na
participação em operações de paz (p. 9).

Tal acréscimo de “um sentido identitário regional” aos discursos oficiais, por
exemplo, possibilita compreender a maneira em que ocorre a passagem de justificativas
meramente políticas para então jutificativas e aportes culturais nesta intervenção
comandada pelo Brasil. Pois as tropas brasileiras não podem se esquivar e serem
indiferentes às diferenças culturais, é preciso estabelecer relações com o lugar e as
pessoas, como bem demonstra o jornal numa matéria onde a experiência e o
conhecimento de um médico brasileiro, o único a participar das missões militares
131

anteriores no país, são importantes quando agregadas às tarefas da missão: “A


experiência de Girotto é útil aos brasileiros, pois ações cívico-sociais e missões
humanitárias devem fazer parte do repertório de atuação da força de paz” 75 .
É interessante observar que são agentes da diplomacia, em casos de missões de
paz, também os militares e policiais participantes da operação, de maneira que eles
também reportam e dialogam como representantes do país em cena (AGUILAR, 2008).
Por isso pode ser visto no discurso político que se incute valores e reafima conceitos
tanto de nosso país, quanto do Haiti, a fim de que sejam dirigidos ou retransmitidos
àqueles que poderão ser porta-vozes nesta representação diplomática.
Isto diz respeito aos imaginários sócio-discursivos desenvolvidos por
Charaudeau (2006a), que circulam no espaço da interdiscursividade e podem se
sobrepor e construir arquétipos coletivos inconscientes. Esses arquétipos podem dizer,
por exemplo, da maneira como o brasileiro comum se comporta ou mesmo do
comportamento das tropas militares, que, como visto, são tidas como agentes da
diplomacia. É como se verifica no discurso do presidente Lula, onde ele incute valores
de proximidade cultural e solidariedade, na ocasião da cerimônia que antecedeu o
embarque da primeira tropa de militares para o Haiti:
Também tenho orgulho e satisfação de ver que nossas Forças Armadas
estão preparadas e dispostas a ajudar um país irmão. O Haiti é o
terceiro país com a maior população negra nas Américas. O Brasil
compartilha dessa herança africana e não poderia ficar indiferente
diante dos problemas que o povo haitiano está enfrentando. 76

Esta fala do presidente é um potente exemplo da sua permeabilidade de valores e


questões culturais ao discurso dos media, pois este fator é bastante reproduzido nos
textos jornalísticos quando se aborda a MINUSTAH. Considerando a questão da
visibilidade pública, Martín-Barbero está imerso no debate sobre como os meios de
comunicação e a indústria cultural participam da mediação do projeto de construir um
sentimento identitário (ESCOSTEGUY, 2001). No caso da identidade nacional, que faz
parte de um projeto político, tanto é atravessada como comprimida pelos meios, por
marcar “a crise do político como dimensão fundamental da vida social”
(ESCOSTEGUY, 2001, p. 158), e assim, outras dimensões são tidas como interferências

75
BONALUME NETO, Ricardo. Pobreza haitiana impressiona brasileiro. Folha de S. Paulo, São Paulo,
31 maio 2004. Caderno Mundo.
76
Discurso do Presidente da República, Luiz Inácio Lula da Silva, na cerimônia de embarque das tropas
militares para missão de paz no Haiti. Brasília, 31 maio 2004.
132

na vida social, incluindo os meios de comunicação. Inclusive, o autor questiona a


validade de categorias como nação e Estado enquanto sintomas das experiências
culturais contemporâneas.
Se há este questionamento é porque existe certo esmaecimento dessas categorias,
porém, ao mesmo tempo provoca nos proferimentos uma necessidade de que estes
continuem a sustentar bastante o conceito de nação, inclusive demarcando o forte papel
de uma nação brasileira no comando da missão, como um esfoço extra em resposta ao
esmaecimento. Isto significa que não se aborda a fluidez da nação, pelo contrário,
exacerba justamente a cultura brasileira em sua relação com o Haiti, aproximando-as,
desde que demarcado bem o terreno de estado-nação de cada um nesta vinculação:
O Brasil tem um apego muito grande ao sistema multilateral e isso
completa, digamos, a razão das motivações. Esse é um caso que se
verifica no nosso Continente, com um país que tem uma composição
étnica muito parecida com a nossa e é o terceiro em população negra
do Continente, com raízes culturais semelhantes à nossa, como se vê
na pintura, se ouve na música e também no amor ao futebol, para
mencionar outro aspecto que ali esteve presente. Então, seria muito
importante que o Brasil, em um caso como esse, demonstrasse a sua
disposição de participar. E é o que nós temos feito. 77

Porém, seguindo a linha dos Estudos Culturais, a identidade latino-americana, que


é reiteradamente reforçada nesta categoria, trata-se de uma mistura, uma mestiçagem,
onde “as culturas rurais, urbanas, raciais, locais, regionais, nacionais e transnacional
interagem” (ESCOSTEGUY, 2001, p. 160). E embora as fronteiras que demarcam uma
cultura nacional estejam cada vez menos visíveis, além da efetividade estar
proporcionalmente menor das políticas públicas em impor uma coesão identitária,
Martín-Barbero ainda considera importante pensar a identidade nacional dentro do
contexto de uma mediação histórica, num diálogo entre gerações e de resistência à
investida global. Como diz Charaudeau (2006a) referenciar o passado nos discursos de
retorno às tradições é uma forma de fincar relação com a coletividade e com a história. E
assim é percebível nos discursos, mais dos gestores políticos do que do jornal, que se
invoca o fato de participar ativamente da missão componentes latino-americanos e
caribenhos, indicando que pela relação identitária comungada na região é uma grande
conquista os próprios países gerirem a força de paz, estendida, portanto, a uma conquista
regional.

77
Audiência do Ministro das Relações Exteriores, Embaixador Celso Amorim, em Sessão Conjunta das
Comissões de Relações Exteriores e Defesa Nacional do Senado Federal e da Câmara dos Deputados.
Brasília, 02 dez. 2004.
133

Nesse sentido também se verifica uma aproximação regional por oposição, isto é,
salientam-se características positivas latino-americanas na missão em oposto ao mau
desempenho das violentas tropas jordanianas, já que somente as tropas compostas por
latino-americanos, devido à sua origem e história, seriam capazes de administrar melhor
a região e estarem em contato com a população haitiana. Segundo a matéria do jornal:
Relatório divulgado ontem pelo International Crisis Group, ONG que
estuda a prevenção de conflitos, apontou a retirada do contingente
jordaniano de Cité Soleil e sua substituição por tropas de origem
latino-americana como uma "contribuição significativa para a melhora
das relações entre a população local e as autoridades". "Diferenças de
língua, cultura e abordagem têm tornado difícil para os jordanianos
lidar com as complexidades urbanas, particularmente quando eles têm
sido alvo de ataques de franco-atiradores e de outros", diz a ONG. 78

Em meio à fragilidade de se definir a identidade, pode ser criada uma relação


entre Brasil e Haiti de forma que privilegie o reconhecimento de certas similitudes da
realidade haitiana com a brasileira, ainda que por comparação superficial e pouco
enraizada, pois são facilitadoras dessa comunhão, assim podemos ver abaixo no
fragmento retirado da Folha de São Paulo:
Depois de dois dias de visita ao Haiti, o ministro da Defesa, Waldir
Pires, chegou à conclusão de que as ruas daquele país têm muito das
periferias brasileiras. "Eu esperava uma coisa pior. Se eu for para a
periferia de uma cidade brasileira, qual é a diferença? Não tem. Pelo
contrário, eu até vi o pessoal mais ou menos arrumadinho, com uma
certa vontade de estar limpos e apresentáveis, as mulheres penteadas.
São vaidosos. 79

Tal comparação com a periferia brasileira de forma estética e pouco adensada pode
ser um dos problemas decorrentes de uma aproximação identitária-cultural enfraquecida,
que pouco adensamento traz em função da própria liquidez e erosão das identidades
nacionais, afinal, a aproximação entre os habitantes de favela de um e de outro país
poderia ter outro enfoque que não fosse a questão da vaidade pessoal, mas neste caso
seria complexificar esta relação. Em Hall é vista a tensão quando se procura entender a
formação nacional vinculada a uma identidade unificada caminhando lado a lado do
processo de globalização a todo vapor. Se por um lado há diluição do Estado-Nação –
não apenas enquanto instituição política, mas também enquanto idéia simbólica de

78
VILA-NOVA, Carolina. Brasil se prepara para assumir área mais violenta do Haiti. Folha de S. Paulo,
São Paulo, 12 maio 2006. Caderno Mundo.
79
MICHAEL, Andréa. Haiti não é pior que periferia no Brasil, diz Pires. Folha de S. Paulo, São Paulo,
30 jun. 2006. Caderno Mundo.
134

comunidade imaginada –, por outro lado ocorre um fortalecimento das relações


transnacionais bem como das identidades locais, um remodelando o outro. Uma
identidade híbrida reconhece, portanto, o passado, sem ignorar experiências históricas,
mas circula no presente em meio a novos discursos compartilhados. Isto é resultado das
observações do autor a respeito do homem que migra e traz consigo as experiências
diaspóricas (ESCOSTEGUY, 2001).
Avalia-se que na invocação desta categoria ocorre certo embate, de um lado, a
respeito da discussão trazida pelos Estudos Culturais latino-americanos de erosão tanto
do conceito de nação quanto de uma identidade nacional, e, de outro lado, o
entendimento de nação que instala o discurso no qual “exprime um laço cultural e
político, que une numa só comunidade política todos aqueles que partilham uma mesma
terra de origem e cultura histórica” (SMITH, 1991, p. 29).
Pois, se de algum modo tenta-se invocar uma identidade mais rígida,
delimitando bem uma cultura e outra, por outro lado há permeabilidade para que seja
construída uma identidade brasileira que dialogue culturalmente com o país caribenho.
Torna-se mais fácil esse entendimento com a definição de “entre-lugares” trazida por
Bhabha (1998). Estes são momentos ou processos que são produzidos na articulação de
diferenças culturais, por assim dizer, nas relações entre as práticas culturais e os
acontecimentos discursivos, nas fronteiras e entre aquilo que é rígido e permeável,
simultaneamente, ou seja, na vinculação proposta nesta categoria.
Canclini traz justamente o ponto comum de Hall e Bhabha ao entender a
negociação de sentidos entre uma cultura global e uma identidade mais particular, local,
pensando através do hibridismo, onde “Esse novo regime cultural vive através da
diferença” (ESCOSTEGUY, 2001, p. 148), mas que não se trata de reduzir a uma
assimilação cultural. É, por exemplo, o simbolismo presente no ato de Lula plantar uma
árvore de pau-brasil, expressando a metáfora de criar raízes e firmar vínculos com a terra
haitiana. 80
O próprio Bhabha (1998) faz uma ressalva que também nos cabe, isto é,
distingue diferença cultural da noção de diversidade cultural:
A diversidade cultural é um objeto epistemológico – a cultura como
objeto do conhecimento empírico – enquanto a diferença cultural é o
processo da enunciação da cultura como “conhecível”, legítimo,
adequado à construção de sistemas de identificação social (p. 63).

80
Lula planta pau-brasil em visita a soldados. Folha de S. Paulo, São Paulo, 19 ago. 2004. Caderno
Brasil.
135

Assim, nessa relação de alteridade das características culturais entre Brasil e


Haiti, cada qual estabelece um processo de significação cultural que os diferenciam e os
legitimam, separando-os, num primeiro momento, em campos de força distintos. Mas é
a diversidade cultural que traz o intercâmbio, no reconhecimento de costumes culturais
pré-dados e estabelecendo uma relação de respeito e reconhecimento mútuos. A
problemática está no fato de que a diversidade cultural trabalha radicalmente com a
“separação de culturas totalizadas que existem intocadas pela intertextualidade de seus
locais históricos, protegidas na utopia de uma memória mítica de uma identidade
coletiva única” (BHABHA, 1998, p. 63).
A respeito dos debates críticos contemporâneos que tematizam a cultura, se para
Bhabha (1998) o importante é perceber que existem apropriações equivocadas a respeito
de valores, significados e signos presentes nas fronteiras culturais; focar na diversidade
cultural, e não na diferença cultural, é como se esquivar do problema, já que a
diversidade descreveria apenas o efeito e não a estrutura deste, rejeitando então a
questão do limite da cultura como um problema de enunciação da diferença cultural.
No hibridismo há um deslocamento entre o enunciado e a enunciação,
demonstrando uma visão sociodiscursiva da linguagem para Bhabha (1998): “Enquanto
a enunciação se refere ao contexto sócio-histórico e ideológico dentro do qual um
determinado locutor ou usuário da linguagem está sempre localizado, o enunciado se
refere à fala ou ao texto produzidos por esse locutor nesse contexto” (p. 118). Por isso,
valoriza-se nesta categoria tanto um, como outro, pois assim se torna perceptível
entender do que tratam a diversidade e as diferenças culturais nos discursos analisados.
Nenhuma cultura é unitária – tida como homogênea –, ou dualista – tal como
numa relação simplificada de alteridade de um Eu com o Outro – por isso, processos de
enunciação de uma dada cultura devem ser observados com cuidado, pois este processo
pode, por exemplo, fazer uso de efeitos homogeneizadores de símbolos e ícones
culturais apenas como estratégia de remissão a um passado que pode não ser fidedigno à
memória histórica, principalmente quando se analisa os enunciados (BHABHA, 1998).
Por isso é muito comum observarmos que no campo discursivo político os “imaginários
são freqüentemente instrumentalizados com fins de persuasão” (CHARAUDEAU,
2006a,p. 208), já que eles funcionam como amálgama para selar uma união, um
compartilhamento de valores, ou ainda um reconhecimento de sua legitimidade e
credibilidade cultural que podem influenciar diretamente o processo para o qual é
136

instrumentalizado. No caso em específico, o imaginário acionado vinculando os dois


países aproxima o Brasil do Haiti, naturalizando a intervenção, que poderia ter um
impacto mais negativo e duro para uma força de paz, o que não ocorre.

4.1.2 Cultura como recurso de legitimação no Brasil

Na análise do material como um todo se nota que é bastante evidenciada a


importância de um comportamento político interno destinado a explicar, argumentar e
justificar a força de estabilização comandada pelo Brasil, conforme é apresentado
inclusive no capítulo 2 dessa dissertação. Esta demanda reivindicada propiciou o
ambiente para que proliferassem os discursos que legitimavam a MINUSTAH dentro do
Brasil, e assim foi necessário criar uma categoria que abarcasse isso, o que originou a
“cultura como recurso de legitimação no Brasil”. Tendo como base esta categoria,
encontra-se nos discursos de forma reiterada esta preocupação com a visibilidade que a
MINUSTAH tem no cenário brasileiro, fazendo uma conexão de política externa com
política interna. No jornal Folha de S. Paulo há certa inversão desta relação, como se
houvesse uma dada subjugação de valores e interesses internos em prol de uma
desenvoltura exemplar no cenário internacional. Isto é trazido em várias falas, como na
de Celso Lafer – ex-ministro das Relações Exteriores nos governos de Fernando
Henrique e de Fernando Collor –, ou simplesmente na construção de notícias que
evidenciam aspectos negativos ou interesses puramente da política externa do governo,
sem tangenciar qualquer relevância e acréscimo nacionais.
É interessante observar a presença de uma nítida interlocução entre Celso Lafer
e Celso Amorim em momentos distintos dentro do discurso do jornal. De um lado tem-
se a fala de Lafer criticando o fato da política externa do governo Lula concentrar-se em
dar satisfação ideológica interna, insinuando que esta preocupação de marketing político
tem pouco peso nos foros internacionais, afinal, em nome da solidariedade o Brasil
gasta muito de seus parcos recursos:
[Lafer] criticou ontem o jogo da seleção brasileira de futebol no Haiti.
"É a expressão da política externa como política espetáculo, que é a
dimensão do estilo da atual administração", disse. No caso do Haiti,
há, de um lado, o elemento de solidariedade e, de outro, o uso de
nossos recursos, já tão limitados, em ações internacionais. [...] A
política externa deste governo tem sido direcionada a dar satisfação
ideológica interna. É também uma operação de marketing político. [...]
Nós somos um país de escala continental e de recursos limitados.
Temos crescido no cenário internacional pela confiabilidade, não pela
137

agressividade. Além do interesse específico em exportar e importar


mais, o Brasil também tem interesse geral no funcionamento do
multilateralismo. O que é preciso saber é se essa ação no Haiti vai ou
não ajudar essa nossa presença nos foros internacionais. 81

De outro lado, há exposição da fala de Amorim afirmando que a busca pela paz
tem um preço e que a omissão no Haiti significa também uma perda de influência nos
assuntos internacionais:
o chanceler Celso Amorim voltou a defender a participação brasileira
na missão da ONU: "A paz tem um preço. A paz não é de graça e, se
você se omite na defesa da paz, vai pagar um preço também, nem que
seja perdendo influência nos assuntos internacionais. Às vezes sinto
no Brasil um sentimento de isolacionismo. Mas ninguém existe fora
do mundo", disse, em entrevista. 82

Em realidade, o que ocorre é que se antes os Estados agiam em sua política


externa de forma independente, como se assuntos de participação em uma missão de paz
não fossem pertinentes à grande maioria da população, as novas configurações das
relações internacionais não prevêem mais esse tipo de conduta deliberada, quanto
menos de forma não-justificada na própria política interna. Há, portanto, uma
preocupação e uma clara imbricação da esfera doméstica na internacional e vice-versa
(OLIVEIRA, 2007; SOUZA, ZACCARON, 2006). No proferimento do presidente Lula
para as tropas brasileiras estão presente aspectos que dizem respeito ao cidadão
brasileiro, por convocarem a solidariedade e a compaixão diante de um povo irmão:
Estamos solidários à nação haitiana em sua luta pela reconciliação e
reconstrução nacional. Queremos que o Haiti volte a ser a nação que
inspirou gerações e produziu heróis. Queremos que o Haiti volte a
levantar-se em defesa de seu destino. Quando anunciamos a decisão
de mandar tropas para este país, com o apoio do Congresso Nacional,
reconhecemos que o Brasil não poderia ficar alheio ao sofrimento e à
dor de um povo irmão. Um povo cuja suprema bravura deu início à
emancipação colonial e pôs fim à escravidão. Um povo com o qual
compartilhamos raízes africanas comuns. [...] Não podemos nos
omitir. A Brigada Brasil e a contribuição de cada um de vocês
refletem o nosso engajamento. [...] Queremos que os haitianos sintam
que podem contar com a amizade e a solidariedade do povo brasileiro
e de meu governo. 83

81
Para Lafer, política de Lula é a do espetáculo. Folha de S. Paulo, São Paulo, 18 ago. 2004. Caderno
Brasil.
82
MAISONNAVE, Fabiano. Haitiano espancado passa bem; ONU considera o caso superado. Folha de S.
Paulo, São Paulo, 23 out. 2004. Caderno Mundo.
83
Discurso do Presidente da República, Luiz Inácio Lula da Silva, perante a Brigada Brasil da Missão das
Nações Unidas para o Haiti. Porto Príncipe, Haiti, 18 ago. 2004.
138

Vêem-se ecos de um discurso dramatizado, sensibilizado com a realidade


haitiana, um país rico em mazelas, relegado ao próprio abandono, que já não tem
esperanças. Mas que nas palavras de Lula há um reiterado, e emocionado, foco na
transformação deste país destituído através da atuação das tropas militares brasileiras.
Estas sim, apesar de todas as outras tentativas remotas de reconstrução daquele país,
serão capazes de mudar substancialmente o Haiti. Porque o Brasil está calcado em
novas diretrizes de desenvolvimento econômico e social, porque os brasileiros são
afáveis, saberão tratar com respeito, dignidade, compreenderão a realidade e serão mais
“humanos” com a população local etc. Nas palavras de Amorim dirigidas ao senado
mostra porque o Brasil é capaz de provocar uma regeneração do tecido político e um
real desenvolvimento econômico no Haiti, diferente de outros países que lá já
intervieram, pois isto se deve em grande razão:
Pela nossa própria índole; em parte, porque não temos nenhum
passado colonial ou um passado de outras ações no Haiti, que,
digamos, cria uma hipoteca ou uma visão antagônica da população do
Haiti. Em parte também porque não temos nenhum “parti pris” por
nenhuma das correntes políticas no Haiti e toda a nossa visão é
baseada no desejo de que todas essas correntes participem do
processo. [...] Em suma, como foi dito aqui por mim, pelo Ministro
Viegas e pelo Presidente Lula, essa presença brasileira no Haiti tem
uma natureza diferente das presenças que anteriormente lá estiveram.
[...] O que temos procurado fazer? Poder-se-ia argumentar: o Brasil
poderia ter defendido essa concepção sem mandar os mil e duzentos
soldados. Creio que nós não teríamos autoridade moral para fazer a
mobilização que estamos fazendo hoje se não houvesse essa presença
ali. 84

E assim o público visado pelo discurso é conduzido a aderir ao projeto brasileiro


de comandar a MINUSTAH. Todos se sentem engajados para reverter a situação de
desordem do “país irmão” através das medidas salvadoras propostas pela missão de paz.
É nesse sentido que
O discurso político – mas ele não é o único – realiza a encenação
seguindo o cenário clássico dos contos populares e das narrativas de
aventura: uma situação inicial que descreve o mal, a determinação de
sua causa, a reparação desse mal pela intervenção do herói natural ou
sobrenatural (CHARAUDEAU, 2006a, p. 91).

É notório que justamente por ser visto o Brasil como o país interventor, a
situação caótica no Haiti é capaz de ser revertida tendo o nosso país como salvador da
84
Audiência do Ministro das Relações Exteriores, Embaixador Celso Amorim, em Sessão Conjunta das
Comissões de Relações Exteriores e Defesa Nacional do Senado Federal e da Câmara dos Deputados.
Brasília, 02 dez. 2004.
139

pátria haitiana, o herói, como revelou Charaudeau na passagem anterior, sendo o único
capaz de reconstituí-lo e de reintroduzir a paz naquele país. Condizente no discurso 1-b
com a linha de interesses e valores internos, Lula aciona questões de vínculo identitário
também para convencer as tropas de que é legitimo, possuindo o direito de comandar a
missão segundo as normas da ONU e também porque a intenção e ação da MINUSTAH
é coerente com nossas questões internas, e de que o Brasil tem credibilidade, ou seja,
capacidade de fazer e realizar a operação de paz.
Neste ponto é que se situam as críticas de que há claro uso da legitimidade para
atender aos anseios e prerrogativas puramente do Itamaraty, incluindo a demonstração
brasileira de força militar e regional para se conquistar uma cadeira no Conselho de
Segurança das Nações Unidas, exatamente como se observa na insistência da matéria
seguinte em mostrar que o interesse brasileiro de arriscar soldados em uma operação de
paz é destinada a uma conquista de política externa, mostrando lacunas sobre o que se
justificaria à população e ao congresso:
Liderada pelo Brasil, a missão de paz da ONU no Haiti tem servido
como um dos alicerces do Itamaraty para vender ao mundo a
possibilidade de o país obter um assento permanente no Conselho de
Segurança das Nações Unidas. Em 2004, ao receber dos EUA o
comando da missão haitiana, o Brasil passou a liderar pela primeira
vez uma força da ONU justamente para chamar a si uma maior
responsabilidade nas ações da instituição. Agora, com a morte de
Bacellar, o governo sabe que aumentarão as críticas e terá de dar
explicações cada vez mais constantes, principalmente no Congresso,
se vale a pena arriscar a vida de homens brasileiros em troca de uma
aspiração da política externa [...] Lula "reitera sua plena confiança no
trabalho desenvolvido pelas tropas brasileiras no Haiti e reafirma a
determinação do governo brasileiro de continuar apoiando o povo
haitiano na construção da paz e normalização política" do país. 85

Estas palavras do Lula dentro da matéria refletem a preocupação sempre de


mostrar que, apesar das críticas e acontecimentos negativos, é uma ação de natureza
diferente das que já foram perpetradas no Haiti, enfatizando uma real construção da paz
e ajuda a um povo irmão. E isto é um bom exemplo da clara porosidade observada
quando se olha para os proferimentos, já que estes se recalcam bastante neste ponto de
reconfiguração da imagem que se tem sobre o que é uma missão de paz que utiliza
meios militares, reforçando para isso os aspectos positivos e os resultados benéficos.
Especificamente nesta categoria são os proferimentos políticos, na maioria, endereçados

85
CASTANHEDE, Eliane; SCOLESE, Eduardo. Morte abala política externa de Lula. Folha de S. Paulo,
São Paulo, 08 jan. 2006. Caderno Mundo.
140

às tropas brasileiras ou então ao senado/congresso, para que estes sejam convencidos a


liberarem financiamentos ou facilitar trâmites burocráticos para a missão. No caso dos
textos jornalísticos, há, por razões óbvias do amplo público de cidadãos brasileiros, uma
posição de problematização do discurso político para a população como um todo, isto é,
através da compilação de outras vozes para comporem o texto, como de ONGs que
criticam a missão e revelam desrespeito aos direitos humanos, ou de outros políticos
contrários que acusam a missão de atender apenas aos interesses de política externa do
Brasil, ou ainda concedendo espaço para contrapontos de artigos que trazem a visão do
ônus econômico e político ao empreendimento brasileiro no Haiti.
É considerando estas diversas formas de críticas que o discurso de justificação
pode ser formulado a priori ou a posteriori. No primeiro caso, supõe-se
antecipadamente a ocorrência de uma crítica, enquanto no segundo caso simplesmente
se reconhece a existência da crítica. A respeito disso diz Charaudeau (2006a) que
O discurso de justificação equivale a navegar entre a intenção e o
resultado. Ele é o contrapeso à crítica que o provocou. Efetivamente, a
crítica pode dizer respeito tanto aos motivos que levaram à ação, e
então o ataque visa à intenção do sujeito, quanto ao resultado da ação,
e então é sua falta de competência que é atacada (p. 126).

Por isso, a MINUSTAH quando justificada segundo a sua intenção, calca em


primeiro lugar na legitimidade de ação garantida pela ONU, e em segundo nas
possibilidades de resultados benéficos que podem ser obtidos, como quando Amorim
explica sobre a MINUSTAH ao senado de que ela é diferente das outras missões por
“possibilitar uma efetiva regeneração do tecido político e, ao mesmo tempo, um
lançamento, porque não se pode nem falar de relançamento do desenvolvimento
econômico no Haiti”. 86
Porém, quando a MINUSTAH é justificada a partir dos seus resultados, isto é,
falta deles ou problemas a eles relacionados, há uma forte argumentação em torno da
intenção em ser solidário a um país irmão, associando ao fato de que um país mais
pobre é capaz de entender e se sensibilizar com um país que também atravessa
dificuldades econômicas. Abaixo Seitenfus posiciona-se contrariamente ao debate que
surgiu frente à permanência ou não das tropas brasileiras no Haiti.

86
Audiência do Ministro das Relações Exteriores, Embaixador Celso Amorim, em Sessão Conjunta das
Comissões de Relações Exteriores e Defesa Nacional do Senado Federal e da Câmara dos Deputados.
Brasília, 02 dez. 2004.
141

Há quem diga que o Brasil deve prioritariamente olhar para seus


próprios problemas sociais. Quem já foi ao Haiti, porém, do soldado
ao ministro, sabe que uma luta contra a pobreza não exclui a outra e
que a solidariedade internacional só reforça a interna. A pergunta
talvez não seja se o Haiti "é aqui" ou "não é aqui", como no verso de
Gil e Caetano, mas, sim, onde se encontra o Brasil em relação ao
mundo, que necessita, mais do que nunca, de nossa participação
pacífica e criativa. 87

Em seguida, tem-se a fala de Amorim dada em contexto semelhante, colocada na


seqüência para que as proximidades entre os dois possam ser visualizadas:

Queria terminar esta conversa, terminar este tópico dos Ministros do


Caribe. Um Ministro das Bahamas disse que não podemos ter ilusões,
que não vamos resolver o problema do Haiti, até porque não se pode
resolver o problema de nenhum país do dia para a noite. Disse ele que
vamos ajudar a administrar o problema do Haiti para que ele encontre
uma rota positiva. Essa é a nossa tarefa. Ninguém pode achar, quando
se fala em “nation building”, que é só trabalhar lá dois anos, deixar o
país pronto e ir embora. Não é assim. E ele, por isso mesmo, nos
perguntou: qual é o compromisso do Brasil? É só até o mandato? É até
as eleições? Ou é um compromisso em longo prazo? Eu disse a ele a
única coisa que poderia dizer: que isso dependeria da própria evolução
da situação do Haiti e de vermos que os nossos esforços estão sendo
correspondidos, estão tendo resultado. Mas acho, pelo sentimento do
povo brasileiro, pelo que já pude conversar com os congressistas – e o
Senador Eduardo Suplicy esteve lá antes, com outros parlamentares,
com parlamentares brasileiros, com outras pessoas da sociedade civil
brasileira – vejo um desejo real de ajudar um país irmão, que não é
pobre, mas miserável. Quer dizer, nossos níveis de pobreza, nas piores
favelas do Brasil, não se comparam ao que há no Haiti. 88

Não é por acaso que a fala de Ricardo Seitenfus está em harmonia e consonância
com o proferimento de Celso Amorim. Este pesquisador das relações internacionais foi
selecionado para auxiliar a negociação política junto ao embaixador chileno Juan
Gabriel Valdez, que é o Chefe-Geral da MINUSTAH. Amorim situa o papel de
Seitenfus em trecho do mesmo discurso que contém o excerto anterior:

Percebendo que havia interesses em ter pessoas com conhecimento em


negociação política, e pensando em pessoas que pudessem ter esse
conhecimento, e, ao mesmo tempo, dispor de algum tempo e também
ter um bom conhecimento de francês, que, no caso, é indispensável

87
SEITENFUS, Ricardo. É hora de o Brasil encerrar a missão no Haiti? NÃO. O Haiti não é aqui. Folha
de S. Paulo, São Paulo, 24 maio 2008. Seção Opinião.
88
Audiência do Ministro das Relações Exteriores, Embaixador Celso Amorim, em Sessão Conjunta das
Comissões de Relações Exteriores e Defesa Nacional do Senado Federal e da Câmara dos Deputados.
Brasília, 02 dez. 2004.
142

para esse trabalho, o Professor Ricardo Seitenfus, que está aqui e vai
participar de uma outra audiência, também foi enviado, não como um
enviado do Brasil para atuar no Haiti, mas como alguém para
colaborar com os esforços das Nações Unidas no Haiti. 89

Retornando à questão do argumento dos políticos brasileiros para justificar que a


ação no Haiti é legítima, no caso de o resultado obtido destoar do projeto inicial, não
invalida a atitude, qual seja, o engajamento na missão, já que os resultados eram da
ordem do impoderável. Justamente por isso o sucesso da operação não depende de
esforços únicos por parte dos militares ou gestores brasileiros, como bem diz a
reclamação de Amorim de que o efetivo militar disponibilizado foi muito inferior ao
designado inicialmente pelos organizadores da MINUSTAH, de modo que prejudicou o
andamento e funcionamento da missão no quesito de manter a estabilidade e a ordem. 90
Paralelo a isso, discursos de justificava dessa mesma natureza podem também
avaliar que resultados irrizórios ainda é melhor do que nada. Como diante do caso de o
Brasil pouco avançar na diminuição da situação precária haitiana após anos de missão,
mantendo os péssimos índices de cerca de 80% que vivem abaixo da linha de pobreza e
a mesma parcela da população permanece desempregada:
As acusações, feitas por ativistas norte-americanos à Comissão
Interamericana de Direitos Humanos da OEA (Organização dos
Estados Americanos), precisam ser investigadas, embora outras fontes
abalizadas sustentem que, se a Minustah (Missão de Estabilização das
Nações Unidas no Haiti), cujo comando militar é do Brasil, errou, foi
mais por omissão do que por ações concretas. De toda maneira, a
denúncia funciona como um termômetro da deterioração tanto do
cenário político como do prestígio das forças estrangeiras.[...]o Brasil
vê-se na incômoda posição de comandar uma missão que vai se
tornando cada vez mais impossível. Sendo assim, os brasileiros ficam
com os ônus políticos pelo fracasso. Para não torná-los muito
evidentes, o país permanece no Haiti apenas fingindo que tudo corre
bem. 91

Pode-se acrescentar, como justificativa a isso, a mensagem de Lula encaminhada


ao General Heleno ressaltando o reconhecimento do desempenho militar numa
empreitada difícil:
"Na condição de comandante-em-chefe das Forças Armadas, desejo
reiterar o meu orgulho pelo modo como as tropas brasileiras e as de
outras nacionalidades sob o comando de Vossa Excelência têm
desempenhado uma missão de grande delicadeza política e de enorme

89
Ibdem.
90
Ibdem.
91
Os ônus do Haiti. Folha de S. Paulo, São Paulo, 17 nov. 2005. Seção Opinião.
143

complexidade militar. Estou certo de que a opinião pública brasileira


está consciente dos desafios enfrentados por todos os oficiais e praças
da Minustah [missão de paz da ONU]", diz a mensagem assinada por
Lula. 92

E assim perfilam as justificativas dadas ao povo, às tropas militares, aos demais


políticos que não se envolvem diretamente na MINUSTAH, mas que definem diretrizes
que a influencia. Dentre as justificativas utilizadas nessa categoria, encontra-se a
questão da altivez da conduta brasileira no cenário internacional e como isso pode
definir uma nova frente de atuação, que sem dúvida traz melhorias ao Brasil e ao seu
desenvolvimento. Dada a proporção e importância atreladas a isso, criou-se a categoria
da “cultura como recurso para empreender uma cooperação internacional, altiva e
adequada às novas orientações do cenário global”, que será deslindada a seguir.

4.1.3 Cultura como recurso para empreender uma cooperação internacional, altiva
e adequada às novas orientações do cenário global

As novas regras do cenário internacional, conforme apresentado no capítulo 2,


ditam na atual conjuntura coerência entre as ações dos Estados e outros atores dentro de
uma responsabilidade coletiva, onde o multilateralismo e a legitimidade signifiquem
palavras de ordem e paz. As orientações do cenário global não mais permitem uma
missão de paz sem critérios previamente estabelecidos, mas sim regentes com um
acordo ou organismo internacional que pautem projetos e estabeleçam ações efetivas no
país que recebe a missão, tal qual ocorre com a MINUSTAH. Seitenfus situa esta
prerrogativa em um artigo disposto no jornal, onde adiciona a questão de o Brasil e da
América Latina serem os mais adequados para reconhecer as especificidades e
deficiências do Haiti:
A intransigente defesa do multilateralismo -desafio maior das atuais
relações internacionais- não pode ser divorciada dos princípios éticos
da responsabilidade e da eficácia. [...] Contudo o caso haitiano abriga
singularidades e sofisticações a exigir uma nova concepção de
intervenção e de cooperação internacional. Sejamos claros e diretos: o
Haiti -um país sob transfusão- é economicamente inviável e
politicamente impossível, se deixado à própria sorte. Todavia a
cooperação estrangeira, que fez do Haiti o país com o maior índice de
auxílio recebido por habitante no mundo, colhe somente amargos
frutos. [...] Os reiterados fracassos da comunidade internacional,

92
MAISONNAVE, Fabiano. Contra críticas, ministro de Lula voa para o Haiti. Folha de S. Paulo, São
Paulo, 11 jun. 2005. Caderno Mundo.
144

dividida entre indiferença e intervenção paternalista, exigem um


repensar de sua estratégia de ação no Haiti. [...] Esperemos que a
comunidade internacional, sob inspiração da América Latina e
liderança do Brasil, consiga reverter o tenebroso quadro haitiano,
colocando um termo ao caos e à extrema dependência que
precipitaram a antiga "pérola das Antilhas" aos baixios da
desumanidade. 93

E por causa disso, tratar a atuação do Brasil como uma ajuda a um país irmão,
endossada pela ONU, é outra maneira de dizer que o nosso país está cada vez mais
ciente da responsabilidade no cenário internacional e do seu papel especial em assuntos
e problemas da região. É por este caminho que esta categoria se forma, dando vazão a
assuntos de estratégia de política externa brasileira tangenciada por temas da ordem
cultural. Em outro artigo escrito pelo general Heleno, assim que terminou seu mandato
como comandante da MINUSTAH, resumiu isto ao dizer que:
No caso do Haiti, inegavelmente um grande desafio, até os pessimistas
de plantão reconhecem que, sem a intervenção da ONU, teria
explodido uma sangrenta guerra civil. [...] Como insiste o embaixador
Valdés, não serão eleições austríacas nem suíças. Esperamos dos
julgadores a mesma tolerância demonstrada ao analisar pleitos
efetuados, recentemente, em outras zonas "quentes". Penso que o
futuro do Haiti depende, fundamentalmente, da participação solidária
dos países latino-americanos. Nossa familiaridade com problemas
semelhantes poderá ajudar o futuro governo na busca de soluções
viáveis e duradouras. 94

Circunscrever como uma responsabilidade que se estende a outros países da


America latina, onde se direciona o discurso para o pragmatismo da ação voltada para a
cooperação internacional, sob os ditames e constrições da ONU é uma postura
recorrente também nos proferimentos:
A política externa brasileira, em todas as suas frentes, busca somar
esforços com outras nações em iniciativas que nos levem a um mundo
de justiça e paz. [...] Precisamos desenvolver estratégias que
combinem solidariedade e firmeza, mas com estrito respeito ao Direito
Internacional. [...] Foi assim que atendemos, o Brasil e outros países
da América Latina, à convocação da ONU para contribuir na
estabilização do Haiti. Quem defende novos paradigmas nas relações
internacionais, não poderia se omitir diante de uma situação
concreta. 95

93
SEITENFUS, Ricardo. Haiti, ano 1? Folha de S. Paulo, São Paulo, 06 mar. 2005. Seção Opinião.
94
PEREIRA, Augusto Heleno Ribeiro. Folha de S. Paulo, São Paulo, 11 set. 2005. Seção Opinião.
95
Discurso do Presidente da República, Luiz Inácio Lula da Silva, na 59ª Assembléia-Geral da ONU
Senhor. Nova York, EUA, 21 set. 2004.
145

Há momentos em que o Brasil deixa claro querer transformar estes ditames que
já orientam as relações internacionais atuais ao se atentar para as novas necessidades do
cenário global, avaliando aquilo que se defende como “novos paradigmas”. No caso das
missões de paz, especificamente, o país é adepto a enfatizar os objetivos de cooperação
– ampliando o setor de desenvolvimento econômico e social dentro do sistema de
segurança coletiva –, evidenciando, nesse sentido, os esforços das autoridades
brasileiras em ressignificar este tipo de operação, antes calcada principalmente no uso
da força, conforme regulamentado pelo capítulo VII da Carta das Nações Unidas
(HIRST, 2008). Outro motivo que se insere nesse interesse de reformular o regimento
entre os atores internacionais e transnacionais está a clara bandeira levantada pelo Brasil
em reformar o Conselho de Segurança da ONU. Sutilmente este aspecto é visto na fala a
seguir do presidente Lula:
Ao refletirmos sobre a ação externa do Brasil, não poderia deixar de
me referir aos desafios que se colocam no plano da paz e da
segurança. [...] Temos liderado o esforço das Nações Unidas no Haiti,
na esperança de que possamos criar um novo paradigma para as
operações de paz. [...] Para afirmar a democracia no plano
internacional, é preciso reconhecer que a pluralidade de visões é
legítima e que há um espaço crescente a ser dado à ação diplomática. 96

Pois o que o Brasil defende é a reconfiguração do grupo de países que detêm o


poder de tomada de decisão sobre as intervenções, missões e outros tantos temas de
defesa e segurança no mundo, isto é, o CSNU. E que o Conselho deve ser ampliado para
além das cinco potências envolvidas, incluindo aí representação latino-americana e
africana. E essa alteração de cunho institucional visa aumentar o número de 15
membros (já considerando os 10 países rotativos) para 24 (MELLO, 2005). E, claro, o
Brasil se confirma como um forte candidato para a América Latina, já que
Sempre que chamado, e na medida de nossas possibilidades, o Brasil
tem contribuído para a superação de crises que ameaçam a ordem
constitucional e a estabilidade de países amigos. Não acreditamos na
interferência em assuntos internos de outros países, mas tampouco nos
refugiamos na omissão e na indiferença diante de problemas que
afetam nossos vizinhos. [...] Só o Conselho de Segurança pode
conferir legitimidade às ações no campo da paz e da segurança
internacionais. Mas sua composição deve adequar-se à realidade de

96
Discurso do Presidente da República, Luiz Inácio Lula da Silva, na abertura do Colóquio “Brasil: Ator
Global”. Paris, França, 13 jul. 2005.
146

hoje, e não perpetuar aquela do pós-Segunda Guerra ou da Guerra


Fria. 97

Interessante que, embora discorde da maneira como tem se estruturado a ONU e


o seu CSNU, o Brasil é cauteloso em se apoiar sempre na legitimidade onusiana que lhe
é conferida devido à participação em uma missão de paz desse mesmo organismo. E
assim, é uma maneira de o Brasil se alinhar positivamente com a importante instância
do CSNU, conforme foi aconselhado pelo secretário-geral da entidade, Ban Ki-moon,
numa entrevista concedida ao jornal. Ele também parabenizou a gestão brasileira na
MINUSTAH dizendo:
Sou muito grato quanto ao papel do Brasil na Minustah. Quando
visitei o Haiti, vi junto à população um sentimento muito positivo.
Andei pela Cité Soleil, o que não seria possível há sete meses. Os
brasileiros prenderam todas as gangues, a segurança foi restaurada, e
as pessoas puderam voltar às suas atividades econômicas e sociais.
Isso é uma mudança completa, liderada pela Minustah. 98

Ainda que a ONU não acompanhe as mudanças do cenário externo que


ocorreram desde a sua criação, como as novas ameaças – terrorismo e colapso de alguns
Estados por causa de problemas derivados da pobreza, doenças e guerras civis –, o
Brasil repensa, colocando-se no lugar dela, em novas soluções, mas respeitando a ONU
enquanto organização máxima que administra legitimamente estes problemas que
emergem de cunho global. A partir daí percebesse que se trata de uma justificativa da
intervenção brasileira em nome da lei, onde se aciona jurisdições legais que respaldem
atos de violência, como o caso da carta da ONU e as suas prescrições sobre intervenções
militares em nome da segurança coletiva. Logo, se houver problemas, é preciso mudar a
lei, e não a atitude que se embasou por ações legais (CHARAUDEAU, 2006a).
Este acionamento ficou evidente quando o representante militar brasileiro
justificou a troca de tiros com gangues que desestabilizavam a conturbada região de
Bois Neuf, no Haiti, como uma forma de se resguardar de atuações errôneas, dizendo
que este tipo de ação é previsto pela ONU para garantir a segurança da população (39a).
Outro caso em que o Brasil reconhece a sua força militar como um meio que faz parte
da missão, mas que não se resume a isso, é visto abaixo:

97
Discurso do Presidente da República, Luiz Inácio Lula da Silva, na 59ª Assembléia-Geral da ONU
Senhor Luiz Inácio Lula da Silva. Nova York, EUA, 21 set. 2004.
98
DÁVILA, Sérgio. Brasil precisa ampliar base de apoio, afirma secretário da ONU. Folha de S. Paulo,
São Paulo, 11 nov. 2007. Caderno Brasil.
147

Em visita ao Haiti na última quinta-feira, o subsecretário de Estado


dos EUA para a América Latina, Roger Noriega, exortou a missão
liderada pelo Brasil a ser mais "pró-ativa" no combate às gangues,
mas negou especulações de que Washington poderia enviar militares
para reforçar a segurança do país. [...] O especialista em relações
internacionais Ricardo Seitenfus, que no ano passado foi enviado ao
Haiti pelo Itamaraty para acompanhar as negociações políticas,
defende o trabalho brasileiro. Segundo ele, "evitamos o pior, que seria
uma guerra civil". "O nosso modelo é de diálogo, com baixo índice de
intervenção militar, de associar a presença militar à tentativa de
resolver as questões socioeconômicas e o diálogo político", afirma. 99

E isto está dentro do que se entende por nova adequação do cenário global, pois
significa incluir também os problemas endógenos de um país como implicados a todos,
dentro de uma responsabilidade coletiva que extravase fisicamente aquele país. Assim
se propõe a substituição do termo não-intervenção para o de responsabilidade de
proteger:
Quando as populações sofrem por causa de guerras internas,
repressão, ou falência do Estado, e o Estado em questão não pode ou
não quer agir para diminuir tal sofrimento, o princípio da não-
intervenção deve ser substituído pelo princípio da responsabilidade de
proteger. Em caso de conflito ou uso da força, isto implica um
compromisso internacional real para com a reconstrução e
consolidação da paz (MELLO, 2005, p. 22).

Por outro lado, há implicações que são ligadas a esta substituição, como
problemas da ordem de imposição de concepções claramente ocidentais, como
governança democrática e direitos humanos; assim como considerações estratégicas
podem vir a determinar a interferência em outro país, ou só acontecer mediante
consonância aos interesses vitais dos Estados interventores. Entretanto, nas palavras de
Amorim, o que justifica o interesse brasileiro é outro, mais da ordem da proximidade
histórica, geográfica. Isto é o que nos impinge para uma responsabilidade maior com o
país irmão:

O destino do Haiti é inseparável do destino dos seus vizinhos. O


isolamento regional do Haiti não interessa a ninguém. [...] Gostaria de
dizer que a terrível crise pela qual passou o Haiti em 2004 nos
aproximou e ensinou muitas lições sobre o nosso próprio passado e
presente. Levou os países latino-americanos a cooperarem de maneira
mais estreita em prol da segurança regional. Cabe aos haitianos a
responsabilidade de reinventar o seu futuro. A comunidade

99
MAISONNAVE, Fabiano. Apesar da ONU, Haiti vira "terra de ninguém". Folha de S. Paulo, São
Paulo, 12 jun. 2005. Caderno Mundo.
148

internacional não pode substituí-los nessa tarefa, mas seria


irresponsável da nossa parte não lhes oferecer toda a assistência
possível. Os povos da América têm, todos, uma grande dívida
histórica com o Haiti. O mundo tem o dever de ajudar os haitianos a
recuperar o controle da sua própria segurança e do seu futuro. Estamos
diante de um difícil desafio, mas, se tivermos sucesso, teremos
contribuído não somente para a redenção econômica de um país
irmão, mas também para o fortalecimento do sistema das Nações
Unidas. 100

O discurso brasileiro referente a esta categoria sustenta-se na legitimidade que a


ONU detém no cenário internacional. A cultura seja ela presente em afinidades
históricas e geográficas, ou mesmo afinidades partidárias da esquerda latino-americana
funcionam como um balizador para que o Brasil tenha credibilidade em sua atuação no
país caribenho. É na cultura como um recurso que se mostra a credibilidade do Brasil,
enquanto é na nomeação do Brasil pela ONU que se sustenta a legitimidade da
operação. A legitimidade e a credibilidade neste caso estão indissociadas, numa relação
em que uma justifica a outra. Quando Charaudeau (2006a) diz que “o posicionamento
de cada país no tabuleiro político mundial, as relações de força que existem entre os
valores defendidos por seus representantes intervêm de maneira evidente no julgamento
de credibilidade” (p. 137) é o mesmo que entender o posicionamento de valores e
crenças que o Brasil assume na política como um fator determinante para aumentar a
sua credibilidade, e por isso mesmo, ter sido escolhido para o comando. Em outras
palavras, o aceite brasileiro em comandar a missão onusiana agrega um valor maior do
que simplesmente reconstruir um país irmão. O envolvimento numa operação como
essa, para um país que busca cada vez mais emergir no cenário regional e se firmar no
contexto internacional, significa uma importante maneira de se projetar e buscar
reconhecimento. Logo, contribuir para o hemisfério, como diz Rumsfeld, na função de
secretário da defesa dos EUA, em matéria ao jornal, já revela a significância que o papel
adquirido pelo Brasil já tem no cenário externo, de extensão ao povo brasileiro:
"Gostaria de mencionar particularmente o papel de liderança do Brasil
no Haiti, coordenando o apoio ao país na ONU. O Brasil tem dado
uma contribuição bem-vinda à estabilidade no nosso hemisfério, e isso
é, certamente, um crédito para o povo brasileiro." 101

100
Discurso do Ministro Celso Amorim na Reunião Especial do Conselho de Segurança das Nações
Unidas sobre o Haiti. Nova York, 12 jan. 2005.
101
SCOLESE, Eduardo. Rumsfeld se diz preocupado com Venezuela. Folha de S. Paulo, São Paulo, 24
mar. 2005. Caderno Mundo.
149

E certamente este papel está implicado dentre os interesses de nosso país em


comandar a força de paz. Pois, não basta na missão em voga apenas o direito legítimo
de uso da força de paz. Para uma real construção do Haiti é preciso também que o Brasil
mostre que detém outros trunfos, que não apenas condições militares, mas
fundamentalmente a capacidade de transformar a realidade econômica, social e
estrutural daquele país. Envolvendo para tanto questões culturais, que, embora
apresentadas de fundo são tidas como determinantes para o reconhecimento de o Brasil
ser capaz de intervir positivamente naquele país, compondo o que seria a credibilidade
brasileira, já que, como compreende Amorim:

Os ingredientes mais importantes para a paz no Haiti são a esperança,


a confiança e a legitimidade. [...] Gestos simples da comunidade
internacional podem, ademais, constituir incentivos importantes à
normalização da vida no Haiti. O Jogo da Paz, realizado no último
mês de agosto, entre as seleções do Brasil e do Haiti, por exemplo,
ajudou os haitianos a retomar a esperança, ao ver que era real a
atenção e a boa vontade dos países da região. [...] Sob as instruções do
Presidente Lula, fizemos tudo o que se encontrava ao nosso alcance.
No último dia 20 de dezembro, assinei no Haiti três acordos de
cooperação. 102

Esta fala traz o jogo da paz como um gesto da comunidade internacional ativar a
confiança dos haitianos e demonstrar a solidariedade. Apesar de atos como esse, as
críticas são bem evidentes, sobretudo nos textos jornalísticos, a exemplo deste:
A diplomacia brasileira, dita "ativa e altiva", vem intensificando suas
ações e trabalhando em ritmo acelerado. [...] Como documentamos no
recente relatório "Mantendo a Paz no Haiti?", baseado em nossas
visitas ao Haiti ao longo dos últimos meses, a atuação da ONU
naquele país, para a qual o Brasil contribui decisivamente, é
lamentável. [...] Apesar de receber relatórios e mais denúncias sobre
os problemas no Haiti, o governo brasileiro mostra uma reação que
tem sido nula em termos práticos. 103

Porém, a credibilidade em atuar na missão ainda permanece nas mãos de países


latino-americanos, os quais são responsabilizados como capazes de reverter o colapso
haitiano:

Milhares de cidadãos do país continuam a cruzar clandestinamente a


fronteira com a vizinha República Dominicana. Atraídos até o início

102
Discurso do Ministro Celso Amorim na Reunião Especial do Conselho de Segurança das Nações
Unidas sobre o Haiti. Nova York, 12 jan. 2005.
103
GAIO, Carlos Eduardo; CAVALLARO, James Louis. Conselho de Segurança a qualquer custo? Folha
de S. Paulo, São Paulo, 29 maio 2005. Seção Opinião.
150

dos anos 1980 pelas praias, pela pintura naïf e pelo vodu, os turistas
desertaram o Haiti [...]. Depois de sofrerem inúmeras frustrações em
seu relacionamento com a França e os Estados Unidos, os haitianos
esperam forte cooperação dos países latino-americanos. 104

É importante perceber que essa nova representação brasileira é resultado da


remodelagem que o próprio cenário propiciou no nosso país, pois se antes o Brasil era
conhecido como neutro e não envolvido diretamente em ingerência externa, o novo
contexto fez o país se render a outro papel, papel este que, em associação com a ONU
ganha uma amplitude de influência (AGUILAR, 2008; SOUZA, ZACCARON, 2006).
Porém, suas características de solidário, bom relacionamento e confiante foram
mantidas e servem como uma escada para galgar, dentre outros resultados, o patamar de
efetiva potência regional.
E nesse sentido, o discurso brasileiro se enreda para uma linha de reforço de uma
cultura mais afeita a processos de paz, coordenada com a emersão da centralidade da
paz no panorama geral, assim como do sentimento solidário que é capaz de mover as
suas ações internacionais, amenizando relações de interesses outros.

4.1.4 Cultura como recurso de uma construção pacífica e solidária

Esta categoria diz respeito a uma nova maneira de conduzir uma missão de paz
inaugurada pelo Brasil, calcada principalmente em seu viés não-violento e voltado para
a construção da paz em amplo sentido, intitulada de “cultura como recurso de uma
construção pacífica e solidária”. Isto advém de uma cultura brasileira de não-violência,
de respeito à cultura política local, em que o desenvolvimento da região está relacionado
mais ao que o próprio Haiti pode sustentar, do que propriamente a um modelo trazido
pelo Brasil em nome da ONU, trata-se do chamado desenvolvimento sustentado
(RIBEIRO, 2000).
Difere-se da categoria anterior principalmente por avançar na ênfase de que a
colaboração brasileira na MINUSTAH pode alterar a maneira de gerir uma missão de
paz, privilegiando o diálogo, a paz e a solidariedade. Segundo Charaudeau (2006a)
sobre os discursos políticos que tematizam a solidariedade de um modo geral: “De fato,
os discursos fazem a noção de solidariedade deslocar-se de um ‘direito de intervenção’

104
CAROIT, Jean-Michel.Haiti: rude transição para a democracia. Folha de S. Paulo, São Paulo, 26 fev.
2006. Caderno Mundo.
151

para um ‘dever de intervenção’ em virtude de uma causa humanitária” (p. 237). E nesse
caso, não se trata de uma escolha, mas de uma obrigação; uma responsabilidade que
deve guiar as ações do Brasil perante as atrocidades e mazelas que foram e são
enfrentadas pelo povo haitiano. Como diz Amorim:
A cooperação internacional na esfera dos direitos humanos e da
assistência humanitária deve orientar-se pelo princípio da
responsabilidade coletiva. Temos sustentado - em nossa região e fora
dela - que o princípio da não-intervenção em assuntos internos dos
Estados deve ser acompanhado pela idéia da “não-indiferença”. [...] A
mesma solidariedade inspira a participação do Brasil nos esforços de
paz das Nações Unidas no Haiti. 105

O discurso do Presidente Lula na cúpula das Nações Unidas demonstra melhor


como esta idéia da não-indiferença funciona dentro da missão:
No combate à violência irracional nossas melhores armas são a cultura
do diálogo, a promoção do desenvolvimento e a defesa intransigente
dos direitos humanos. [...] No Haiti, a América Latina quer
demonstrar que as Nações Unidas não estão condenadas a
simplesmente recolher os destroços dos conflitos que não pôde evitar.
A Missão de Estabilização das Nações Unidas está oferecendo um
novo paradigma de resposta aos desafios da solução dos conflitos e da
reconstrução nacional. Estamos contribuindo para a estabilização
duradoura do país – sem truculências ou imposições. Estamos
estimulando o diálogo e apoiando a reconstrução institucional e
econômica. 106

Nesta categoria, resgata-se o discurso de reforma da ONU e as concentradas


atividades do CSNU, já que este não conseguiria atender às necessidades que outrora já
foi negligenciada por falhas da estrutura e domínio da ONU, pois, como diz o
proferimento “Desta vez, paralelamente aos esforços para assegurar um ambiente mais
seguro, temos que pôr em marcha um programa sustentável para ajudar a sociedade do
Haiti nas esferas política, social e econômica” 107 . E por esse modo o Brasil avalia a
ONU como um órgão que merece uma reformulação brusca, onde a solidariedade,
vivência e compartilhamento de experiências dentre os países da América Latina podem
provocar uma inflexão determinante no que se considera uma missão de paz da ONU.
No mesmo proferimento ainda é dito que:

105
Discurso do Ministro de Estado das Relações Exteriores, Embaixador Celso Amorim, na abertura do
debate geral da 60a Sessão da Assembléia Geral das Nações Unidas. Nova York, 17 set. 2005.
106
Discurso do Presidente Luiz Inácio Lula da Silva na Reunião de Cúpula do Conselho de Segurança das
Nações Unidas.Nova York, 14 set. 2005.
107
Discurso pronunciado pelo Ministro Celso Amorim, em sessão do Conselho de Segurança das Nações
Unidas sobre Aspectos Civis da Gestão de Conflitos e a Construção da Paz. Nova York, 22 set. 2004.
152

De acordo com as práticas prevalecentes, uma vez que os membros do


Conselho de Segurança considerem que um ponto da agenda não mais
representa uma ameaça à paz, a situação é colocada em um limbo, sem
um acompanhamento intergovernamental dos processos de
reconciliação e reconstrução. Esta lacuna em nossos métodos pode
fazer com que recomece o conflito, como demonstra o trágico
exemplo do Haiti. 108

A reforma é muito fortalecida nos proferimentos, com sutil apelo a um novo


debate das questões internacionais da atualidade, com ênfase apenas em melhorar a
agilidade e a produtividade, sem criticar a ONU diretamente 109 . É mais da ordem de
ajudar o país irmão do que seguir uma rígida orientação e responsabilidade coletiva
dentro de uma organização internacional. Segundo Charaudeau (2006a) existe um
discurso que emergiu com a nova onda da globalização, onde
“tudo é possível”, que recusa o autoritarismo, reivindica sua
autonomia e sente compaixão humanitária mais em virtude do espírito
de fraternidade do que pela solidariedade coletiva, portanto, uma
identidade que sofre de paternalismo, o que explica as reações
populistas (p. 312)

Adequando para esta categoria, reflete-se sobre a diferença entre solidariedade


coletiva, tão trazida nos proferimentos, e o espírito de fraternidade, dito acima. Pois o
fato de se referir ao Haiti como um “povo irmão” diz de sua relação próxima com a
América Latina, que pode se referir a certo paternalismo mais do que solidariedade, por
essa perspectiva apontada por Charaudeau (2006a). Porém, esta distinção não é tão
evidente no caso dos textos jornalísticos e dos proferimentos, representando na
realidade a mesma forma de se relacionar com a intervenção.
É esclarecedor que, independente de ser solidariedade ou fraternidade, isto
funciona como recurso para empreender a missão. Nessa linha diz Charaudeau (2006a):
Seria preciso, assim, lembrar à instância cidadã de que o exercício do
poder implica relações de força, que se trata de modificar o
pensamento e a ação de uns, de sancionar o comportamento desviante
de outros ou fazer aderir o maior número possível de indivíduos aos
valores dominantes do momento, empregando formas de coerção
diversas (p. 316).

Isso diz da forma como os políticos tentam fazer entender uma participação
dessa envergadura no Haiti, a fim de cumprir um modelo de Estado e de paz condizente

108
Ibdem.
109
Discurso do Ministro de Estado das Relações Exteriores, Embaixador Celso Amorim, na abertura do
debate geral da 60a Sessão da Assembléia Geral das Nações Unidas. Nova York, 17 set. 2005.
153

com os ditames do cenário internacional. O discurso apóia-se na defesa da legitimidade


de uma causa moral, qual seja, a solidariedade e a paz. E evidenciando a capacidade de
conciliar afinidades e diferenças, o Brasil, segundo o proferimento do presidente Lula
acentua:
É uma rica experiência política e cultural, em que convivem a
latinidade com os valores e culturas de nossas populações pré-
colombianas e dos afro-descendentes. [...] O debate ibero-americano,
no entanto, pode e deve ser mais ambicioso. Nossa diversidade nos
permite uma visão mais abrangente e, sobretudo, mais solidária, da
complexa relação entre pobreza, desesperança e violência. [...] A
atuação conjunta de vários de nossos países no Haiti é emblemática do
que podemos realizar. Deve e pode tornar-se paradigma de um novo
modelo de resolução de conflitos e de apoio a países em grave crise
econômica e social. Sem truculência ou hegemonismos, queremos
contribuir para a paz e a reconstrução econômica e social do Haiti. 110

Com maior sensibilidade e experiência, o Brasil e outros países da região são


capazes de adicionar o componente “solidariedade” para auxiliar o Haiti a conquistar
paz, democracia e desenvolvimento (HIRST, 2008). E é solidarizando que se nota a
possibilidade de reconhecer problemas e prestar ajuda para além daquela prescrita
militarmente, pois como diz Lula sobre os jogadores brasileiros quando chegaram para
o jogo da paz: Eles “não são bons apenas para ‘jogar’ e assinar ‘bons contratos’, mas
também no momento de fazer um ‘gesto de solidariedade’” 111 .
E por causa das características, enfrentamentos e complexidades da América
Latina, os países participantes da missão são capazes de se compadecerem daquilo que
ocorre com o Haiti, conforme se centraliza o enfoque dos textos jornalísticos nesta
categoria. Em uma matéria o então comandante militar, General Heleno, invocando
sentimentos humanitários ao descrever a precariedade, o desespero e a resignação pela
qual passa a população haitiana após a inundação que matou cerca de 500 pessoas,
inseriu esse fato dentro de uma comparação brasileira para que assim possamos
entender a gravidade do que ocorre lá: “‘É uma tristeza enorme ver as águas arrastarem
o pouquinho que essas pessoas tinham’, disse o brasileiro. ‘Não há bairro tão pobre no
Rio de Janeiro como os que existem por aqui. Os brasileiros não têm idéia de como é o

110
Discurso do presidente da República, Luiz Inácio Lula da Silva, na XV Cúpula Ibero-Americana: “A
Projeção Internacional da Comunidade Ibero-Americana”. Salamanca, Espanha, 15 out. 2005.
111
SCOLESE, Eduardo; Rangel, Sérgio. Presidente visita time antes do jogo. Folha de S. Paulo, São
Paulo, 18, ago. 2004. Caderno Brasil.
154

Haiti’” 112 . Na fala do chanceler Celso Amorim, presente em outra matéria do jornal, ele
afirma que:
Não é possível resolver os problemas de segurança do Haiti
isoladamente da situação política, humanitária, social e econômica.
Ao estilo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, Amorim usou uma
metáfora para dizer por que países em desenvolvimento, na sua visão,
são mais solidários. "Você vai no interior do Brasil e vê gente pobre
adotando crianças enquanto as classes média e rica são mais
hesitantes." 113

A solidariedade é construída sob uma relação recíproca entre atos e declarações,


pois, como Charaudeau (2006a) distingue “A solidariedade não é compaixão. A
primeira se quer igualitária e recíproca; a segunda caracteriza-se por um movimento
assimétrico entre um indivíduo que sofre e outro que, apesar de não sofrer, está, no
entanto, emocionado pelo sofrimento alheio” (p. 163). Porém, no material levantado por
esta categoria, estas duas palavras se fundem, fazendo com que uma seja composta pela
outra: Há uma relação igualitária de respeito e uma troca assimétrica entre aquele que
não sofre para o que sofre.
A solidariedade divulgada por um político perante algum acontecimento é
extensiva e compartilhada pela população, já que aquele representa esta. E no caso da
solidariedade compartilhada entre países, mostra ser preciso também desencadear um
movimento identitário, como afirma Charaudeau (2006a). E assim a solidariedade está
na responsabilidade que diz respeito ao compartilhamento de idéias e valores no interior
do Brasil e nas bases compartilhadas e discursivizadas pelo próprio governo,
prescrevendo uma coerência nesse sentido. Tal como se segue na passagem da voz do
presidente Lula sobre a relação entre o Brasil e o Haiti:
Nossa proximidade não é medida apenas em valores e aspirações.
Nessa jornada, estou seguro de que saberemos utilizar, a nosso favor,
as maiores virtudes que possuímos: a riqueza inesgotável de nossa
gente e a certeza de que compartilhamos uma história e um destino
comuns. 114

A solidariedade calca-se num esforço de compreender a realidade que a


desperta, buscando alternativas e soluções no modo de olhar o problema enfrentado pelo

112
MAISONNAVE, Fabiano. "Existe muita resignação e pouco desespero”. Folha de S. Paulo, São
Paulo, 21 set. 2004. Caderno Mundo.
113
KRAKOVICS, Fernanda. Para Celso Amorim, nações ricas têm concepção diferente do Haiti. Folha
de S. Paulo, São Paulo, 03 dez. 2004. Caderno Mundo.
114
Discurso do presidente da República, Luiz Inácio Lula da Silva, na XV Cúpula Ibero-Americana: “A
Projeção Internacional da Comunidade Ibero-Americana”. Salamanca, Espanha, 15 out. 2005.
155

outro. Isto demonstra certa consideração, atenção aos problemas e ao sofrimento,


considerando as necessidades pelas quais passa o Haiti.
Neste imaginário de solidariedade invoca-se a consciência coletiva, tentando
conciliar o particular e o universal do imaginário de soberania. É a cultura brasileira
como uma forma solidária de dinamizar a missão, com projetos sociais, simpatia de
jogadores, desprendimento de interesses para a ajuda do país irmão. Este sentimento de
solidariedade é compartilhado por todos: jogadores de futebol, dirigentes políticos,
comandante militar da missão. E então, em linhas gerais, aquilo que movimenta a
solidariedade é a humanidade enquanto identidade comum, capaz de se ajudar
reciprocamente (CHARAUDEAU, 2006a).

4.1.5 Cultura como recurso de conquista da legitimidade haitiana

Esta última categoria levantada em análise expressa a maneira como a conquista


da legitimidade do povo e de dirigentes haitianos tem influência no modo como a
missão é trazida enquanto benéfica e bem recebida nos discursos. Os proferimentos
políticos e os textos jornalísticos importam-se em mostrar aspectos de aceitação, de um
direito de intervir e da boa recepção do Haiti perante o desempenho das tropas militares
coordenadas pelo Brasil. Nem sempre essa recepção é positiva, entretanto, é possível
ver nestas relações diretas com o próprio país alvo da missão a importância que tem
inclusive para a aceitação e entendimento da opinião pública brasileira esta vinculação e
justificativa no Haiti.
Tal como as outras categorias, esta se segue também orientada pela cultura como
um recurso que justifica e fornece conteúdo simbólico para se compreender a missão
perante o Haiti. Está implicada nesta categoria a importância de se conhecer a cultura
local para se estabelecer uma intervenção positiva e transformadora, caso contrário,
seria o mesmo que se vincular à opacidade deparada quando se intervém em uma região
desconhecida ou desprovida de vínculos com o país que assume o posto de
reconstrução.
É comum encontrar nos textos jornalísticos a referência às tropas da missão como
“tropas brasileiras” ao invés de “tropas da ONU”, o que reforça uma nítida identificação
com os brasileiros, demonstrando que estes têm outro peso e outro atributo para a
156

população. É o caso trazido na notícia 115 em que se diz que todos haitianos reconhecem
a diferença entre a marinha americana da brasileira, por que no passado os EUA teriam
usado alto calibre junto à população quando não havia necessidade de tanto armamento,
inclusive com a exemplificação de uma freira, diretora de uma escola haitiana, a qual
explica que somente por causa dos “brasileiros” a escola pôde permanecer aberta com
segurança.
Outra comparação, que também coloca em posição mais pacífica o Brasil e, por
isso, melhor visto pela população haitiana, é entre os brasileiros e os jordanianos. Estes
são taxados pelo excesso de violência empregado durante a atuação militar:
Enquanto os militares jordanianos sofrem para controlar a favela de
Cité Soleil, os capacetes azuis brasileiros têm recebido elogios no
Haiti pelo trabalho realizado em Bel Air, até há pouco considerada
uma das zonas proibidas de Porto Príncipe. Localizada num morro
perto do centro da cidade, a favela deixou de ser evitada pelos
motoristas de outras partes da cidade, que hoje cruzam sem receio
suas ruas antes interditadas por carcaças de automóveis. 116

Assim que assumiram a coordenação da região de Cité Soleil, as tropas brasileiras


promoveram o asfaltamento numa importante rua: “Aparentemente modesta, a obra tem
um grande valor simbólico: a via fica no coração de Cité Soleil, a maior e mais violenta
favela da capital” 117 . No trecho seguinte da mesma matéria lê-se que:

Seguindo a linha “conquistar corações e mentes haitianos”, as tropas


brasileiras se preparam para dois outros projetos de repercussão social
na favela. Vão iluminar a praça central e recuperar a principal escola
da favela, atualmente fechada. [...] Querem evitar o acirramento das
relações com a população, como ocorreu com as tropas jordanianas,
que atuavam ali antes dos brasileiros. 118

Isto reforça a conquista da receptividade do povo haitiano por parte dos soldados
brasileiros, facilitando a atuação do Brasil como frente da operação de paz no referido
país. A realização de obras como a praça e a escola, sublinhado pela própria matéria,
trará, sem dúvida, repercussão social positiva, amenizando o estranhamento que uma

115
MAISONNAVE, Fabiano. Um ano depois, Haiti amarga incertezas. Folha de S. Paulo, São Paulo, 27
fev. 2005. Caderno Mundo.
116
Trabalho de brasileiros é elogiado em Porto Príncipe. Folha de S. Paulo, São Paulo, 07 fev. 2006.
Caderno Mundo.
117
MICHAEL, Andréa. Brasileiros tentam pacificar a maior favela de Porto Príncipe. Folha de S. Paulo,
São Paulo, 02 jul. 2006. Caderno Mundo.
118
Ibdem.
157

ação militar provoca em meio a uma vida cotidiana da sociedade haitiana. O teórico
Aguilar (2008) explica essas benfeitorias destinadas à população local:
É interessante destacar que essa atuação junto às comunidades
carentes tem sido comum na atuação de tropas brasileiras nas diversas
operações de paz é também uma aplicação da experiência que as
Forças Armadas adquiriram ao longo de sua própria história por conta
das hoje denominadas Ações Cívico-Sociais (ACISOs) e que são
executadas por todas as unidades militares, em qualquer região do
Brasil em que se encontrem, nas mais diversas áreas como saúde,
educação, cultura, etc., mas sempre voltadas ao apoio às
comunidades carentes. A utilização dessas ações durante a
manutenção de paz, não almeja substituir as agências que têm essas
missões específicas, mas usá-las para a conquista do apoio popular,
fundamental para o sucesso de qualquer operação desse tipo (p. 5).

Nesse sentido, a relação da população com as tropas haitianas atingiu tal


proximidade que, conforme outra matéria do jornal revela:
“O Brasil já faz parte de Cité Soleil e Cité Soleil faz parte do Brasil. A
segurança lá está associada à confiança que a população tem no
soldado brasileiro. Quando eu for tirar o Brasil, vai ter de se bem
planejado." A frase é do comandante da missão de paz da ONU no
Haiti (Minustah), o general brasileiro Carlos Alberto dos Santos Cruz,
que diz acreditar ser esta a explicação para o sucesso na pacificação da
favela mais pobre e violenta do Haiti. 119

Porém, embora bastante elogiada a atuação das tropas militares em outros


âmbitos que não o puramente militar, há uma posição contrária a este desempenho,
justificando que não cabe aos militares um envolvimento dessa magnitude com a missão
e com a população local:

"O trabalho feito em Bel Air é um modelo que seria muito interessante
para Cité Soleil e também para o Brasil, embora não precise ser feito
necessariamente pelos militares", disse à Folha o deputado Fernando
Gabeira (PV-RJ), que está no Haiti e tem sido crítico da participação
brasileira na missão de paz da ONU. "A brigada fez trabalhos
concretos que o Estado não supre, como pavimentação, assistência
médica, ainda que precária, e a coleta do lixo." "Na época, havia uma
situação muito caótica por causa do movimento das gangues. Com os
brasileiros, a situação melhorou completamente", afirmou um técnico
em informática desempregado de 30 anos, que preferiu o
anonimato. 120

119
STOCHERO, Tahiane. Comandante brasileiro no Haiti vê favela mais segura. Folha de S. Paulo, São
Paulo, 01 mar. 2008. Caderno Mundo.
120
Trabalho de brasileiros é elogiado em Porto Príncipe. Folha de S. Paulo, São Paulo, 07 fev. 2006.
Caderno Mundo.
158

Esta crítica do deputado Gabeira é compartilhada por outras matérias que


evidenciam a dedicação das tropas brasileiras para fins sociais que escamoteiam outros
interesses políticos, como na matéria seguinte:
Os militares brasileiros no Haiti vêm sendo usados em diversas ações
não previstas no mandato da Minustah, definido pelo Conselho de
Segurança da ONU, na resolução 1.542, de abril de 2004. Para ganhar
a confiança dos haitianos e dar status internacional ao Brasil, as tropas
erguem escolas, pavimentam ruas, distribuem alimentos e até jogam
futebol. [...] Em fevereiro, o batalhão brasileiro disputou uma partida
de futebol com a comunidade de Bel Air -venceu por 3x2. Um dia
depois, o contingente foi ao bairro de Citè Soleil e lá montou oficinas
de pintura e confecção de pipas para crianças. Pesquisa realizada pela
Folha sobre as ações desenvolvidas no Haiti revela que, de 235
atividades relatadas pelo batalhão brasileiro em 2007, apenas 15%
tiveram cunho militar. Cerca de 55% foram ações cívico-sociais, e
40% envolveram atos oficiais e celebrações. Além dessas atividades,
classificadas como "cívico-sociais", o batalhão brasileiro celebra
feriados, presta homenagens e garante a segurança de autoridades
estrangeiras. 121

Neste contexto da categoria, de as tropas serem bem quistas pela população e


pelos dirigentes haitianos, há notícias que abordam uma discussão trazida na relação
entre a diplomacia brasileira e suas tropas da missão de um lado, e o presidente eleito,
Rene Préval, de outro lado. Observa-se boa recepção das tropas brasileiras por Préval,
lembrando que é um presidente eleito sob respaldo da MINUSTAH. Em notícia ele diz:
"Definitivamente, com a presença brasileira em Cité Soleil, há mais
capacidade de negociação e sobretudo de aceitação, mas não se deve
desperdiçar esse capital político deixando passar o tempo. São
necessárias medidas concretas rumo ao desarmamento e ao ataque às
raízes da violência". 122

Há que se trazer aqui também a discussão sobre imaginário sociodiscursivo de


Charaudeau (2006a). Pois há um compartilhamento de arquétipos referentes ao homem
brasileiro, precisamente os soldados, que são os que têm contato direto com a população
haitiana. Eles são atenciosos, amigáveis e se aproximam da população local:
Segundo o embaixador brasileiro no Haiti, Paulo Cordeiro, de um
modo geral as tropas nacionais têm uma boa receptividade. "Mas
ainda assim a presença do Brasil é uma intromissão. Os haitianos
entendem a necessidade de nossa presença, mas vivem o dilema de um

121
SEQUEIRA, Cláudio Dantas. Atividades não militares ocupam tropa. Folha de S. Paulo, São Paulo,
19 maio 2008. Caderno Brasil.
122
MAISONNAVE, Fabiano. Violência reacende em Porto Príncipe. Folha de S. Paulo, São Paulo, 17
jun. 2006. Caderno Mundo.
159

país que conquistou sua independência, mas não conseguiu exercer


sua soberania", diz. 123

Na maioria das vozes trazidas dentro da matéria do jornal oriundas da população


local há elogios do desempenho das tropas brasileiras na MINUSTAH: “Para o
jornalista haitiano Daniel St. Helaine, da Rádio Tropical, da capital, a população está
"contente" com a presença da Minustah, pois reduz o crime nos locais que controla. A
maioria dos sorrisos para os brasileiros era de crianças e mulheres” 124 .
Roberto Abdenur apela para o fato de que a MINUSTAH buscou e busca o apoio
da população haitiana, ao mesmo tempo em que relaciona o desempenho brasileiro para
novas articulações em forças de paz:
No que a mim dizia respeito, fui certa feita interpelado por altos
funcionários norte-americanos que instavam as forças brasileiras a
serem mais agressivas. Dei-lhes a resposta que daria qualquer
brasileiro: não temos a tradição guerreira dos EUA. Preferimos
prudência e comedimento, recorrendo à força apenas em última
instância. A prioridade era a conquista da simpatia da população. [...]
A Minustah foi profícua iniciativa também por seu caráter
predominantemente sul-americano. A nós juntaram-se Argentina,
Bolívia, Chile, Equador, Paraguai, Peru e Uruguai. Essa inédita
experiência pode servir para avanços na articulação das forças da
região para futuras operações de paz, objetivo que, suponho, recaia
sob a égide de iniciativas como o Conselho de Defesa Regional e a
Unasul (União das Nações Sul-Americanas). [...] Os gastos com a
Minustah até agora foram investimento frutífero a serviço de nossos
interesses e responsabilidades no plano internacional. 125

Ainda que esta categoria se utilize de algumas falas de dirigentes oficiais, não há
nenhum proferimento enquadrado nesta categoria, pois o mais importante nos discursos
políticos é mostrar que o Brasil tem o apoio da população haitiana, mas como um
apêndice para satisfazer melhor outra categoria. É como se identifica em determinados
proferimentos a presença de traços e momentos em que isto fica evidente, como no
discurso abaixo de Amorim dirigido ao Senado:
Há também um projeto saído da nossa área cultural; tivemos que
operar com certa largueza, mas esperemos que seja compreendido
pelos órgãos que controlam a contabilidade, como divulgação cultural

123
MICHAEL, Andréa. Brasileiros tentam pacificar a maior favela de Porto Príncipe. Folha de S. Paulo,
São Paulo, 02 jul. 2006. Caderno Mundo.
124
População elogia força, mas pede fim da miséria. Folha de S. Paulo, São Paulo, 01 mar. 2007.
Caderno Mundo.
125
ABDENUR, Roberto. É hora de o Brasil encerrar a missão no Haiti? SIM. Novos desafios para as
Forças Armadas. Folha de S. Paulo, São Paulo, 24 maio 2008. Seção Opinião.
160

– era onde tínhamos recursos. Estamos fazendo material escolar,


cadernos e lápis para serem entregues à população pobre do Haiti,
com o mapa do Brasil e o do Haiti, com as duas Bandeiras, de modo
que é efetivamente uma divulgação cultural, mas, ao mesmo tempo, é
algo extremamente útil não só para as populações e as crianças do
Haiti, mas também para que a nossa tropa que está lá apareça não só
com ações que possam ser vistas como de natureza repressiva, mas
também como ação positiva, o que, aliás, a tropa tem feito já em
vários outros setores também. 126

De acordo com a específica maneira de Bhabha (1998) trabalhar com o conceito


da tradução cultural, diante desta categoria a MINUSTAH é considerada o fator
construção da cultura brasileira dentro do Estado haitiano no contexto da missão.
Naturalmente, há um forjamento desta relação identitária, estabelecendo e construindo
conexões entre Brasil e Haiti, mas que não contradiz à própria “invenção da tradição”
prevista pelo autor. Assim pode ser visto o aclamado futebol brasileiro em terras
haitianas. Os jogadores são venerados, confundidos como próprios heróis nacionais:
Um caminhão com militares brasileiros da força de paz no Haiti fez
ontem um rápido contato com a população. Foram bem recebidos, e a
vitória da seleção por 3 a 1 sobre a Argentina, anteontem, foi
comemorada, mas os haitianos aproveitaram para pedir emprego.[...]O
casal tem quatro filhos. Como a maioria dos haitianos, ele torceu para
o Brasil. "Adoro o Ronaldo."[...]"Sua presença aqui é necessária",
disse Jean-Jacques Foresmy, outro que gostaria de ter emprego,
reconhecendo que a missão de segurança é fundamental. Cada
brasileiro recebeu dois livrinhos. Um deles aborda como se comportar
com a população local; o outro traz frases para o dia-a-dia em várias
línguas, notadamente o créole, a língua misto de francês com dialetos
africanos. 127

Em outra matéria lê-se que:


O último jogo de futebol no principal estádio do Haiti foi pela paz; o
próximo vai ser para arrecadar dinheiro para as vítimas de
Gonaives.[...]Gerson ainda se lembra com emoção do jogo. "Havia
gente que dizia que queria ver o jogo e morrer, de tanta felicidade." 128

Se há uma preocupação de se fazer compreender pelos locais é porque se


pretende criar um clima de amizade, de compartilhamento e troca. Aprender o créole e

126
Audiência do Ministro das Relações Exteriores, Embaixador Celso Amorim, em Sessão Conjunta das
Comissões de Relações Exteriores e Defesa Nacional do Senado Federal e da Câmara dos Deputados.
Brasília, 02 dez. 2004.
127
BONALUME NETO, Ricardo. Haitianos pedem emprego para soldados brasileiros. Folha de S.
Paulo, São Paulo, 04 jun. 2004. Caderno Mundo.
128
BONALUME NETO, Ricardo. Tropa da ONU usa gás para dispersar haitianos famintos. Folha de S.
Paulo, São Paulo, 25 set. 2004. Caderno Mundo.
161

conhecer um pouco do comportamento haitiano diz muito de como as tropas atuam


junto à população local, dentro de uma relação de reconhecimento e respeito.

4.2 Análise dos enquadramentos: Qual o lugar da cultura?

As cinco categorias tratadas dentro de suas especificidades pelo item anterior


serão trazidas nesse momento para se localizar qual a dimensão da cultura segundo os
enquadramentos do material utilizado por esta pesquisa. Sabe-se que há diversas fontes
para se fazer compreender e captar a missão de paz comandada pelo Brasil no Haiti:
Jornalísticas, notas públicas e discursos oficiais governamentais, relatórios de ONGs,
depoimentos de pesquisadores que estiveram no Haiti durante a missão etc. Como diz
Charaudeau (2006a) os media, o campo político e a opinião pública realizam influências
recíprocas no espaço público. Portanto, é a contribuição de todos esses campos, uns
mais que outros, que ajudam a conformar a maneira como é encadeada a cultura no
âmbito da MINUSTAH. Assim, baseando-se no recorte de um conjunto de
acontecimentos discursivos, seus enquadramentos são tidos como fundamentais para se
compor o entendimento sobre o lugar da cultura na referida missão. Sempre
resguardando que esses enquadramentos são restritamente segundo o material recortado
para esta dissertação.
Olhando para o material analisado – o jornal Folha de S. Paulo e os discursos
oficiais governamentais, no período de quatro anos e dois meses –, torna-se mais visível
e adequado identificar o enquadramento no contexto total destes, isto é, amplificado e
não reduzido a um proferimento ou a uma matéria jornalística. E foi justamente
objetivando essa visão do todo que se preferiu o recorte temporal alongado. No caso do
jornal, por exemplo, a narrativa do todo que é construído permite que não se isole texto
a texto, mas que se crie o desenho narrativo do mapa de leitura levantado durante a
análise de conteúdo. É esse mapa que guia a construção de sentido e de enquadramento,
através do entrelaçamento do conteúdo de textos jornalísticos, vozes, coberturas e
opiniões.
Isto nos faz retomar o debate sobre os discursos, pois a construção dos
enquadramentos pelos dois campos – jornal e proferimentos – é uma construção
discursiva que pode ter descontinuidade e contradição dentro de um mesmo campo.
Como entende Foucault (2008) “Os discursos devem ser tratados como práticas
descontínuas, que se cruzam por vezes, mas também se ignoram ou se excluem” (p. 52).
162

E se existem sistemas que limitam, restringem e constroem os discursos – tal como o


meio jornalístico ou a instituição política pública – não significa que aqueles discursos
que escapam e não se encaixam a essas constrições deixem de existir. Lembrando que
por esses discursos estarem nessas posições contraditórias de coexistência,
considerando até mesmo o caminhar da História, todo discurso é, por sua vez, histórico,
capaz de estabelecer uma relação polêmica com um discurso anterior (FIORIN, 2004).
No caso do discurso político brasileiro é visto nitidamente com a MINUSTAH
um momento de inflexão a respeito da gestão em temas de política externa e de defesa e
segurança internacionais. O país que antes não se intrometia em questões diretas nas
missões de paz, passa a gerir um comando militar de uma missão multilateral da ONU.
Por isso, uma trama ou linha discursiva também é encontrada no conjunto dos
proferimentos brasileiros, não destoando da construção da narrativa jornalística, o que
demonstra que essa contradição não é diferente quando estendida aos 14 discursos
compilados. E também neles há uma linha que engendra o todo, há uma coerência de
argumentos e promessas, de atitudes e opiniões compartilhadas pelo governo em vigor.
É através do discurso político que se dita a posição oficial brasileira sobre a missão; é
onde se vê reiterada a maneira de agir e de pensar oficialmente sobre a MINUSTAH. As
diretrizes, intenções e vinculações culturais estão em harmonia na fala do presidente
Lula e do ministro das Relações Exteriores Celso Amorim, ainda que possa ter
bifurcações e ênfases distintas, conforme se vê no detalhamento do material através das
categorias, exercício realizado anteriormente.
Foucault (2008) entende o discurso dentro das coerções que lhe são inerentes,
como “as que limitam seus poderes, as que dominam suas aparições aleatórias, as que
selecionam os sujeitos que falam” (p. 37). Tais coerções são visíveis na análise dos
proferimentos, principalmente quando se foca nos tais “sujeitos de fala”. Observando a
autoridade política tem-se que ela representa uma figura pública perante a população,
onde o ritual determina “para os sujeitos que falam, ao mesmo tempo, propriedades
singulares e papéis preestabelecidos” (p. 39). Os políticos são investidos de cargos do
governo em vigor, representando práticas que coadunam com a política pública
preestabelecida. Claramente, o político ao elaborar um discurso pode divergir da linha
do governo do qual faz parte, entretanto, via de regra, ele incorpora e traduz em prática
discursiva aquilo que lhe é passado como conduta mais adequada de representação do
governo. Os dois políticos analisados nesta pesquisa, por sua vez, respeitam a
163

orientação do governo para o qual representam. Pois, já que os discursos têm funções
restritivas e coercitivas, como bem indica Foucault (2008), “ninguém entrará na ordem
do discurso se não satisfizer a certas exigências e se não for, de início, qualificado para
fazê-lo” (p. 37).
Vê-se que os discursos são alinhados com as práticas políticas justamente porque
um define o outro, isto é, discurso institui prática. Ocorre nos proferimentos, portanto,
que os políticos ao direcionarem a intencionalidade de uma instituição “Não são as
pessoas de carne e osso, mas as entidades humanas, cada qual sendo o lugar de uma
intencionalidade, e categorizadas em função dos papéis que lhe são destinados”
(CHARAUDEAU, 2006a, p. 55). Conforme preconiza o autor, é na maneira de se
apresentar os valores institucionais que os gestores passam a adquirir sentido no espaço
político, acrescentando-se também no espaço público, pois é quando ele é dado a ver
junto à argumentação que o circunda.
Fiorin (2004) relembra que “o enunciador, para constituir um discurso, leva em
conta o discurso de outrem, que está presente no seu” (p. 37) – referenciando Bakhtin
(2002) no que tange a heterogeneidade da linguagem, isto é, o dialogismo. Fiorin (2004)
faz a diferenciação entre a heterogeneidade constitutiva e a mostrada. Na constitutiva a
presença de outros discursos é implícita, mais escamoteada, isto é, incorporada e
disfarçada no interior do texto discursivo. Já na heterogeneidade mostrada o discurso é
trazido de forma mais explícita, com presença de aspas ou discurso indireto. No jornal é
visto as duas, seja nos editoriais, a constitutiva, seja nas matérias, com a mostrada. Já
nos proferimentos a constitutiva é dominante, pois quando o discurso é escrito e
proferido tem-se a particularidade de parecer ser original, autêntico, pertencente à
representação governamental que o transmite. E ainda que o seja, o discurso político
não transparece o retalho de discursos do qual é construído.
Por isso o discurso é um dizer e um dito, de modo que “O discurso é um objeto
integralmente lingüístico e integralmente histórico, o que significa que ele é uma
estrutura lingüística gerada por um sistema de regras que define sua especificidade, mas,
ao mesmo tempo, que nem tudo é dizível” (FIORIN, 2004, p. 39). É tecido o discurso
de acordo com aquilo que se pretende dizer e contradizer:
Um discurso remete a duas concepções diferentes: aquela que ele
defende e aquela em oposição à qual ele se constrói. O fato de o ponto
de vista defendido num discurso constituir-se em oposição a outra
perspectiva, de a maneira de ver um assunto gerar-se numa relação
164

polêmica com outra é que faz de um texto um objeto heterogêneo


(FIORIN, 2004, p. 45).

Esta oposição explícita se observa, por exemplo, entre as falas de Celso Lafer e
de Celso Amorim no que tange a política externa e o empenho na missão. Para o
primeiro é um ônus com poucos frutos, para o segundo, representa uma inserção mais
concreta no multilateralismo. Para além desse exemplo explícito, indiretamente também
é identificável a oposição nas relações estabelecidas entre argumentos jornalísticos, com
uso de relatórios e as falas de organizações sociais que criticam a atuação brasileira, e,
de outro lado, explicações de defesa e de ênfase na importância do comando brasileiro
por parte dos proferimentos, ou mesmo na voz do pesquisador Ricardo Seitenfus em
artigos ou editoriais da Folha de S. Paulo.
Quanto à qualidade heterogênea do discurso, dita acima por Fiorin (2004), é
possível fazer uma aproximação ao conceito dos enquadramentos e, em seguida,
adentrar na análise do material pesquisado. Um dado discurso, seja o midiático, seja o
proferimento político, pode ser composto por enquadramentos concorrentes que se
equilibram no todo, ou que simplesmente revele a predominância de um
enquadramento. Nesse caso o discurso é imbuído deste enquadramento dominante,
prevalecendo certo posicionamento.
O discurso é sempre a arena em que lutam esses pontos de vista em
oposição. Um deles pode ser dominante. Isso, no entanto, não elimina
o fato de que concepções contrárias se articulam sobre um
determinado assunto (FIORIN, 2004, p. 46).

O enquadramento predominante na narrativa observada pelos 48 textos


jornalísticos é identificado na prevalência da categoria de número 5. Porém, muito
próximo a ela tem-se a categoria de número 3, seguida da categoria de número 1.
Conforme é visível no gráfico seguinte:
165

categoria 5 categoria 1 
(13) (10)

categoria 4
(4)

categoria 2
( 9)
categoria 3 
(12)

Gráfico1: Distribuição de categorias nos textos jornalísticos

Somando-se as três mais incidentes categorias agrupam-se 32 textos


jornalísticos, o que denota um enquadramento prevalecente destas três categorias. Para a
compreensão melhor de o porquê houve predominância de uma categoria em todos eles
e a razão de outras terem se enfraquecido entrelaçasse com a análise dos três estágios da
MINUSTAH. Isto traz o peso e o lugar da dimensão cultural no processo.
Arrematando isto é preciso adentrar nas especificidades trazidas em cada estágio
da MINUSTAH segundo as cinco categorias e as suas predominâncias num dado
estágio e não em outro. A tabela abaixo permite visualizar a incidência de dadas
categorias nos textos jornalísticos, mostrando a predominância da categoria 3 no
primeiro estágio, das categorias 2 e 5 no segundo, e da categoria 5 no terceiro:
166

Tabela 4: incidência de categorias nos textos jornalísticos


1.Cultura 2.Cultura 3.Cultura 4.Cultura 5.Cultura
como recurso como recurso como recurso como recurso como recurso
na estratégia de legitimação da política de uma de conquista
de vinculação no Brasil para construção da
CATEGORIAS identitária empreender pacífica e legitimidade
DE uma solidária haitiana
ANÁLISE cooperação
internacional,
altiva e
adequada às
novas
orientações do
cenário global
Estágio I 4 3 7 3 3

Estágio II 3 5 3 0 5

Estágio III 3 1 2 1 5

No caso do enquadramento geral dos proferimentos há equilíbrio entre as


categorias, pendendo para as de número 3 e 4, excetuando a de número 5, que não
apresenta nenhum proferimento que abarque inteiramente este enquadramento:
167

categoria 3
categoria 2 (4)
(3)

categoria 4
(3)
categoria 1 categoria 5 
(3) (0)

Gráfico 2: Distribuição de categorias nos proferimentos políticos

Já em relação a cada estágio, a tabela seguinte mostra que a quase totalidade dos
proferimentos são apresentados no primeiro estágio. É nesse momento em que a
construção discursiva dos proferimentos políticos confere o lugar da cultura enquanto
um recurso fundamental ao modo de se fazer entender a missão no Haiti. Sem tal
conformação as primeiras diretrizes brasileiras frente ao novo projeto dentro da política
externa concentrariam as razões da MINUSTAH apenas em questões pragmáticas de
corresponder a uma demanda internacional, que pouco ou nada poderia partilhar ou
relacionar ao Brasil e à sua cultura. Por isso, todos os 14 discursos que tematizam a
MINUSTAH fazem uso da cultura como um recurso. Mais adequadro à análise da
categoria de número 2, mas que se estende de alguma maneira às demais, tem-se que o
sujeito político da instância pública que ele representa é legitimado pelo consentimento
e de pleno acordo dos cidadãos, que inclusive são alvos do seu discurso. Ele só é
soberano porque foi imbuído de poder para tal status, nao sendo, portanto a entidade
política em si, mas é porta-voz dos valores que constituem o poder dela.
Assim, segundo a tabela 5 há predominância da categoria 3 no primeiro estágio,
da categoria 4 no segundo e da categoria 1 no terceiro, conforme segue:
168

Tabela 5: incidência de categorias nos proferimentos


1.Cultura 2.Cultura 3.Cultura 4.Cultura 5.Cultura
como recurso como recurso como recurso como recurso como recurso
na estratégia de legitimação da política de uma de conquista
de vinculação no Brasil para construção da
CATEGORIAS identitária empreender pacífica e legitimidade
DE uma solidária haitiana
ANÁLISE cooperação
internacional,
altiva e
adequada às
novas
orientações do
cenário global
Estágio I 2 3 4 3 0

Estágio II 0 0 0 1 0

Estágio III 1 0 0 0 0

Como visto contrariamente a este resultado obtido com os proferimentos, a


categoria predominante nos textos jornalísticos e que define o enquadramento na
narrativa jornalística como um todo é justamente a de número 5. É razoavelmente aceito
que certos enquadramentos dominantes no proferimento político não sejam
necessariamente recorrentes no discurso do jornal. Nesse caso, deve-se levar em conta
fatores inclusive da própria produção jornalística e dos critérios de noticiabilidade para
a compreensão deste fato. Já que não necessariamente a porosidade daquilo que é
proferido pelos políticos atingem diretamente, e em igual proporção e conteúdo, os
media.
Para compreender melhor se há ou não porosidade entre um campo e outro,
comparou-se os textos jornalísticos, de um lado, com os proferimentos, de outro. Assim,
esta análise conjunta foi feita em razão de cada uma das cinco categorias, construindo-
se a seguinte tabela:
169

Tabela 6: textos jornalísticos e proferimentos segundo as categorias


1.Cultura 2.Cultura 3.Cultura 4.Cultura 5.Cultura
como recurso como recurso como recurso como recurso como recurso
na estratégia de legitimação da política de uma de conquista
de vinculação no Brasil para construção da
CATEGORIAS identitária empreender pacífica e legitimidade
DE uma solidária haitiana
ANÁLISE cooperação
internacional,
altiva e
adequada às
novas
orientações do
cenário global
Incidência N= 10 N= 9 N= 12 N= 4 N= 13
nos textos 20,8% 18,8% 25% 8,4% 27%
jornalísticos
Incidência N= 3 N= 3 N= 4 N= 4 N= 0
nos 21,4 % 21,4 % 28,6 % 28,6 % 0%
proferimentos

Como dito, esta forma de visualizar a incidência das categorias permite


estabelecer conexões entre os enquadramentos dos proferimentos e das matérias,
inclusive detectar, quando houver, a porosidade entre ambos. Assim, por somatória
proporcional da incidência das categorias o enquadramento majoritário é o da categoria
de número 3, por ser um discurso unânime compartilhado pelos dois âmbitos, enquanto
que isoladamente o resultado é outro.
Na compreensão das formas distintas como os enquadramentos predominantes
da categoria 3 se dão no campo político e no campo midiático é importante discernir
entre autoridade e legitimidade na conduta da operação. Sobre a intervenção brasileira
percebe-se uma nítida tendência discursiva dos proferimentos em trazer a questão como
legítima – um direito atribuído –, respalda pelo organismo internacional da ONU e
pelos ditames da política externa brasileira. Lembra-se que um organismo internacional
é um nível de instância política que tem, por um lado, dependência com os Estados
170

nacionais, pois é formado por representantes dos próprios Estados, e por outro lado,
certa autonomia de ação, já que pode pressionar um dado Estado a agir conforme as
prerrogativas ditadas pela organização ou por outro acordo internacional vigente e
acertado entre as partes, agindo como instâncias capazes de controlar o próprio Estado.
É por isso que as instâncias supranacionais estão numa relação de autonomia e
dependência quanto às instâncias nacionais (Charaudeau, 2006a). Segundo Charaudeau
(2006a) “as instâncias nacionais sofrem a pressão regional dos que se encontram entre o
desejo de marcar sua especificidade ante o Estado, e o de serem diretamente
reconhecidos pelas instâncias supranacionais por meio de uma recomposição regional
que supere os Estados” (p. 30).
Já nos textos jornalísticos há uma tendência de enfocar o caráter de autoridade
da missão, insistindo na imagem da MINUSTAH como uma intervenção militar, dotada
de tropas, forças, tanques de guerra e armamentos militares, humanizando alguns atos
isolados dos soldados brasileiros, mas não destituindo da atuação brasileira o seu caráter
autoritário. Pois se a legitimidade é um direito atribuído, a autoridade é o processo de
submissão pelo qual o outro é condicionado, isto é, quando alguém é conduzido a fazer
algo por imposição de outrem. Naquela diferenciação de Nye (2002) entre soft power
(poder brando, onde se localizaria a cultura) e hard power (poder duro, impositivo),
pode-se entender que o primeiro estaria mais relacionado a atitudes calcadas na
legitimidade, enquanto o segundo na autoridade, através do uso da força e do poder
econômico e militar. Porém, “se, entretanto, a autoridade se confunde às vezes com a
legitimidade, é com a finalidade de se fazer prevalecer. A autoridade vem então se
somar à legitimidade. Ela decorre do fato de que um sujeito, para confirmar sua posição
de legitimidade, necessita exercer uma sanção sobre aqueles que não querem se
submeter, recorrendo, eventualmente, à violência para se fazer obedecer”
(CHARAUDEAU, 2006a, p. 68). E assim se dá o desdobramento da atuação de forma
legítima e autoritária, considerando a leitura trazida pela categoria de número 3,
pendendo ora para uma, ora para outra a depender do meio para o qual se olha.
Dentro desta análise de condensação dos resultados é desenvolvida uma
interpretação do enquadramento da cultura sobre a MINUSTAH referente a cada
estágio, na medida em que permite avaliar tanto a porosidade quanto as discrepâncias
encontradas dentro dos dois campos discursivos – textos jornalísticos e proferimentos
políticos. Para tanto, é de suma importância retomar os três estágios da MINUSTAH:
171

1. Chegada dos capacetes azuis da ONU no Haiti e estabilização;


2. Preparo para a eleição democrática no país;
3. Situação pós-eleição e desenvolvimento de outras dimensões da missão –
projetos infra-estruturais, desenvolvimento do país e ajudas frente aos desastres
naturais.
E como entrelaçamento final busca-se refletir sobre qual categoria prevaleceu
em cada um deles, resgatando o desenho metodológico e a análise do item anterior,
apontando, é claro, as diferenças encontradas entre os campos político e midiático
pesquisados. Para a partir daí, na conclusão, tecer os apontamentos finais sobre a cultura
como um recurso da política revendo isto sob o panorama disposto no decorrer dos
capítulos.

4.2.1 Primeiro estágio da MINUSTAH

Neste primeiro estágio há notificação brasileira ao cenário nacional e mundial de


sua participação ativa e proeminente junto ao comando da MINUSTAH,
conseqüentemente abarca a chegada das tropas azuis da ONU no Haiti, onde
encontraram situação caótica de gangues rivais e sociedade civil envolvidos em motins,
violência e medo.
Na análise dos proferimentos dos gestores brasileiros nota-se que aqueles que
convocam a dimensão cultural foram representados em quase sua totalidade neste
estágio, havendo incidência nos dois estágios subseqüentes de apenas um proferimento
realizado no período de cada um. Isto acentua a importância deste primeiro momento,
principalmente àqueles que gestam a MINUSTAH, isto é, ao discurso oficial brasileiro.
Tendo isso em mente, avalia-se que os enquadramentos atuaram em três frentes:
- Em corresponder às demandas e necessidades ditadas pelo cenário global,
especificamente aos anseios da ONU, de maneira que a categoria que teve maior
incidência segundo a tabela I foi a de número 3. Somando-se a ela, tem-se a categoria de
número 4, que indica uma preocupação inicial em mostrar a bandeira da paz e da
solidariedade em prol da reconstrução de um país vizinho. São duas categorias que se
complementam para traduzir a forte preocupação de alinhar a dimensão cultural com
aquilo que é tido como regra e politicamente correto segundo o ditame internacional;
172

- Na adequação da MINUSTAH em justificativas que abarcassem o


convencimento pleno do público nacional, isto é, ONGs, meios de comunicação, demais
políticos, órgãos governamentais e população brasileira em geral. Se era o momento de
tornar público e lançar as primeiras informações sobre a atuação do Brasil, compreende-
se a cautela de apropriar isso sob moldes culturais que não fossem de encontro ao que se
espera de uma atitude brasileira na política externa. Nesse sentido foi significante a
categoria de número 2. Já a categoria de número 5, que representa o convencimento e
justificativas feitas ao outro lado, isto é, o lado haitiano, deixa de constar no discurso
dos proferimentos não tão somente neste estágio, como também nos demais;
- Na vinculação identitária entre o Brasil e o Haiti na medida em que
representava um meio de apontar junções, entrelaçamentos e semelhanças entre o país
comandante da missão e o país que necessitava da ajuda externa. Os proferimentos
estabeleceram formas de firmar vínculos tanto históricos, de países que foram
colonizados, do problema comum enfrentado com a escravidão, como também
geográficos, apontando a região da América Latina, todos aspectos para ressoar nas
vinculações culturais, que nesse momento eram acionadas em seu caráter estratégico por
estarem ancoradas nas falas dos políticos.
Em relação à análise dos textos jornalísticos ao que tange este estágio tem-se a
forte predominância da categoria de número 3, que indica a dimensão da cultura
invocada como muito próxima àquilo que é proposto como correto na conduta do
cenário internacional. E com isso se verifica a confluência com aquilo que é trazido no
conteúdo dos próprios proferimentos políticos. Interessante que como segundo
enquadramento mais forte tem-se a vinculação identitária, chamando atenção sobre as
particularidades compartilhadas entre os dois países, sendo feito uso nestes textos
jornalísticos falas compiladas de líderes políticos, como os presidentes Lula e Préval.
Não é coincidência que o volume somado dos textos jornalísticos ao dos
proferimentos supere com este estágio os demais. Foi o momento de chegada das tropas
no Haiti, da inauguração deste novo tema de política externa aqui no Brasil e no mundo,
de amenização da violência local com a criação de condições básicas de segurança para
a atuação que se prosseguiria no Haiti e para a transição política e democrática. Foi,
portanto, o estágio mais noticiado e que gerou mais proferimentos públicos por parte do
presidente Lula e do ministro Celso Amorim, segundo a tabela 2 desta dissertação.
173

4.2.2 Segundo estágio da MINUSTAH

Este é o período mais curto dentre os três estágios, com menos de um ano de
recorte temporal. Entretanto, no caso dos textos jornalísticos, ainda se mantém um
volume alto de textos que convocam a dimensão cultural.
Isto se deve, em grande parte, por ser um estágio importante, marcado pelos
processos de transição política no Haiti, com a preparação das eleições democráticas.
Apesar de ter culminado com a vitória de Préval, o que efetivava na prática a transição
democrática, foi um momento conturbado, que colocou em xeque a capacidade
brasileira de comandar a missão, dado que as dificuldades de realizar a eleição foram
muitas: Adiamentos, vazamentos de informações sigilosas, ataques violentos que
incutiam medo na população etc. Tudo retratado pelo jornal.
Mas o forte argumento de que era preciso o Brasil atuar na MINUSTAH, a fim
de garantir a ordem no Haiti naquele momento, sob a bandeira da paz e de garantia da
solidariedade foi representativamente visto no único proferimento realizado neste
período, reafirmando a consolidação da paz e da democracia, numa verdadeira e
pacífica construção social e econômica daquele país.
Contrariamente a este discurso, o enquadramento do jornal nesse período não
traz nenhuma incidência da categoria de número 4 – a qual melhor expressa o
proferimento de mesmo período. Os textos jornalísticos vão é na direção de justificar,
seja perante o povo haitiano ou o povo brasileiro, os pilares, argumentos e
características da intervenção da missão. Muito provavelmente rebatendo esta
instabilidade pelo qual o comando brasileiro passava no Haiti, haja vista as críticas e as
visões desacreditadas perante o desempenho do Brasil na missão. Assim os textos do
jornal se incumbiram de mostrar a busca pela legitimidade das atitudes e embasamentos
da atuação brasileira na MINUSTAH, sob argumentos e exemplos de dimensão cultural.

4.2.3 Terceiro estágio da MINUSTAH

O terceiro e último estágio reflete as primeiras promessas realizadas pelos


proferimentos políticos de que a missão seria diferente daquelas já ocorridas no Haiti, e
também ancoradas por motivações e objetivos outros dos que vigoravam em missões de
174

paz. Na promessa havia que a base de reconstrução econômica e desenvolvimento social


não seriam postergados ou esquecidos, de modo que a MINUSTAH só deixaria o país
após promover mudanças positivas de longo prazo, com estabilização política e
democrática do novo governo eleito, condições mínimas de saúde, alimentação e
desenvolvimento humano garantidas para a população, bem como uma reconstrução
real das estruturas físicas e institucionais do país.
O proferimento representante deste estágio resgata a “cultura como estratégia de
vinculação identitária”, reafirmando valores de uma cultura brasileira que é estreitada
com o Haiti. Esta mesma categoria também é retomada pelos textos jornalísticos,
entretanto a categoria que sobressai é a da “cultura como recurso de conquista da
legitimidade haitiana”, onde a presença brasileira é destacada através dos olhares e
percepções e justificativas haitianas, seja da população, seja de figuras políticas, seja
pelos militares brasileiros. Nesse momento o que é mostrado são as repercussões de
todo esse trabalho e esforço empenhados na estabilização e reconstrução do Haiti. Se
desde o começo foi enfatizada a dimensão da cultura nos discursos, nesse último estágio
ela também está presente, para mostrar que essa dimensão foi e é empregada por ter
importância fundamental para o sucesso e bom desempenho da missão. Afinal, todas as
cinco categorias elencadas e presentes no decorrer da análise do material perderiam
coesão e coerência, no que tange a credibilidade dentro dos discursos, se neste estágio
ela fosse olvidada. Quais seriam os reais ganhos com a criação de centro cultural Brasil-
Haiti, a troca pacífica de habilidades entre militares brasileiros e jovens haitianos, o
respeito e admiração com a nossa cultura se as transformações práticas das condições
políticas, econômicas e sociais do país tivessem minguado?
Diante disso, a cultura como um recurso se sustenta durante os três estágios da
MINUSTAH, desdobrando num enquadramento maior da “cultura como recurso da
política para empreender uma cooperação internacional, altiva e adequada às novas
orientações do cenário global”. Assim, resgatou-se o desenho metodológico para
adensar a análise através das categorias predominantes em cada fase, percorrendo o
fundo teórico da centralidade da cultura e da cultura como um recurso, até chegar ao
final deste percurso, qual seja, o enquadramento mais geral denotando o lugar da
dimensão cultural nos discursos analisados: A cultura como um recurso da política.
175

CONCLUSÃO
A cultura como um recurso da política

Diante das arestas encontradas em estudos que abarcassem o lugar da cultura em


processos políticos dentro do cenário das relações internacionais, um tema
interdisciplinar por natureza, buscou-se no campo de estudos da Comunicação o apoio
basilar para investigar qual o lugar da cultura na atuação do comando brasileiro na
MINUSTAH. Utilizou-se para tanto os enquadramentos do jornal Folha de S. Paulo e
dos proferimentos governamentais brasileiros – ministro Celso Amorim e presidente
Luis Inácio Lula da Silva. Frente à problemática trazida pelo debate na disciplina das
relações internacionais e o andamento das missões de paz orientadas pela ONU, bem
como a própria apresentação e contextualização da MINUSTAH e o papel brasileiro, foi
mais adequado trazer tais discussões ao capítulo primeiro. Neste capítulo foi também
discutida a importância e as especificidades dos campos dos media e do campo político
para darem suporte ao problema levantado pela pesquisa. No segundo capítulo adensou-
se sobre a particularidade da abordagem de um processo político revisto a partir de sua
dimensão cultural, utilizando primeiramente a relação e o intercâmbio dos termos
comunicação e cultura, de forma a justificar e situar o campo comunicacional onde se
firma o desenvolvimento desse trabalho. Na seqüência foi apresentada a discussão
teórica realizada por diversos autores dos Estudos Culturais – Williams (1969), Hall
(2008), Canclini (1999), Bhabha (1998) etc. –, tematizando a centralidade da cultura na
vida social e estreitando o debate com a tese da conveniência da cultura defendida por
Yúdice (2004). No final deste capítulo as aproximações entre cultura e política, bem
como cultura e identidade foram abarcadas para darem conta do problema de pesquisa e
da empiria, de modo que sustentaram teoricamente principalmente a análise do material
segundo as cinco categorias que são definidas no quarto capítulo, o de análise. No
terceiro capítulo construiu-se o desenho teórico-metodológico, o qual conjugou a
análise de conteúdo com a teoria dos enquadramentos. Demarcou-se o corpus de todo o
material, compreendendo o período de 01 de maio de 2004 a 01 de julho de 2008. Este
recorte temporal foi divido em três fases ou estágios: 1. Chegada dos capacetes azuis da
ONU no Haiti e estabilização; 2. Preparo para a eleição democrática no país; 3. Situação
pós-eleição e desenvolvimento de outras dimensões da Missão – projetos infra-
estruturais, desenvolvimento do país e ajudas frente aos desastres naturais. No capítulo
último as cinco categorias são aventadas: 1)Cultura como recurso na estratégia de
176

vinculação identitária; 2)Cultura como recurso de legitimação no Brasil; 3)Cultura


como recurso para empreender uma cooperação internacional, altiva e adequada às
novas orientações do cenário global; 4)Cultura como recurso de uma construção
pacífica e solidária; 5)Cultura como recurso de conquista da legitimidade haitiana. A
partir do filtro de cada uma delas todo o material foi analisado, avaliando-se o resultado
de incidências e predominâncias segundo os estágios e segundo o período todo. Assim
foi possível estabelecer porosidades e opacidades entre os enquadramentos dos
proferimentos oficiais e dos textos jornalísticos, resultando no entendimento mais amplo
da cultura como um recurso da política.
Os três estágios mostram coerência de conteúdo daquilo que foi comunicado
oficialmente pelo discurso brasileiro sobre como se daria a conduta no comando militar
da MINUSTAH e o que foi efetivamente retratado pelo jornal Folha de S. Paulo. Muito
embora os dois campos – político e midiático – não sejam por completo sincronizados
em seus enquadramentos, eles resguardam porosidades que garantem o entrelaçamento
e entendimento dos fatos que convocam discursivamente a dimensão cultural da missão.
Os enquadramentos predominantes em cada estágio indicam respaldo sob a invocação
da dimensão cultural – a qual faz o papel de fio condutor – como argumento e recurso
político para tornar e mostrar a efetividade da participação brasileira. Assim, em relação
a cada um dos estágios, a categoria prevalecente abordando ambos os campos é dada da
seguinte maneira:
- Estágio I: A categoria predominante é a de número 3;
- Estágio II: As categorias que predominam são as de número 2 e 5 (há
participação ínfima neste resultado por parte dos proferimentos, pela falta quantitativa
de representatividade neste estágio, assim como também ocorre no terceiro; são casos
onde apenas um proferimento concorre para cada estágio);
- Estágio III: A categoria predominante é a de número 5, seqüenciada pela de
número 1.
O mais importante é perceber a cultura como um recurso político confluente das
cinco categorias, embora os enquadramentos possam demarcar a distinção entre elas. Na
avaliação do gráfico abaixo, que abarca de forma ampla sem separar em estágios, é
possível perceber que, numericamente, a categoria de número 3 é a predominante nos
dois campos analisados. Observou-se equilíbrio de representação em ambos os campos
discursivos dentre as categorias 1, 2 e 3. Na categoria 4 há um comportamento disparate
177

dos proferimentos com proporção bem maior que a dos discursos. E na categoria de
número 5 não há nenhum proferimento que a enquadre, de modo que, inversamente, no
caso dos textos jornalísticos, é o enquadramento predominante:

Gráfico 3: Comparação dos discursos por categoria

O enquadramento predominante nos dois campos e no período total – categoria


de número 3 – perpassa, e é justificado em grande parte, pelo ambiente da política
econômica do neoliberalismo. Pois explica Yúdice (2004) que a cultura, nesse novo
contexto, passa a ser definitiva na mudança e transformação social, assim como no
progresso e desenvolvimento econômico, expandindo para outras esferas (HALL,
2008). É preconizado pela categoria 3 que o Brasil ao se orientar sob os ditames da
ONU, empreendendo uma cooperação junto ao Haiti, responde à demanda do cenário
internacional, guiado para colocar ordem e paz nas relações e situações de desequilíbrio
178

que emergem. E por isso, seja nos proferimentos, seja nos textos jornalísticos, a cultura
é dada como um recurso capaz de transformar a triste realidade haitiana, promovendo
uma mudança política, econômica e social. Haja vista que esta foi justamente a
categoria que prevaleceu no primeiro estágio, num momento em que a cautela, o
convencimento e a legitimidade eram fundamentais para a difusão da assunção do
comando brasileiro na MINUSTAH.
Sendo a cultura regulada, nos moldes em que entende Hall (2008), pelos
discursos brasileiros – que por sua vez são regulados pela ONU – como uma maneira de
regular a própria intervenção em si, já que nas palavras dele:
Isto explica por que a regulação da cultura é tão importante. Se a
cultura, de fato, regula nossas práticas sociais a cada passo, então,
aqueles que precisam ou desejam influenciar o que ocorre no mundo
ou o modo como as coisas são feitas necessitarão — a grosso modo —
de alguma forma ter a “cultura” em suas mãos, para moldá-la e regulá-
la de algum modo ou em certo grau (HALL, 2008).129

Esta regulação da cultura também implica na inclusão do próprio espaço da


sociedade civil, que transpassa as fronteiras do Estado e passa a reivindicar e atuar junto
a um público mais amplo. Como se vê em diversas matérias jornalísticas o papel de
organizações não governamentais ao criticarem a atuação da MINUSTAH denunciando
abusos contra os Direitos Humanos por parte das tropas, ou outros atores individuais
acusando a tropa militar brasileira de extravasar em ações cívico-sociais que não caberia
a ela. Porém, o contexto propicia aplicações da cultura em estratégias de política e de
poder por parte do comando brasileiro, pois há respaldo internacional.
Uma vez tomado como ponto de partida a opinião local da população haitiana,
essas atuações das tropas brasileiras podem representar uma importante conquista de
legitimidade, pois através de condutas atreladas à cultura brasileira e que são associadas
às tropas, poderiam trazer impacto positivo na intervenção militar, o que mostra ser
capaz de influenciar no desenvolvimento da missão, principalmente em seu último
estágio. Isto não pode ser negligenciado e também é reflexo das alterações advindas
com o neoliberalismo, em que passou a validar e incentivar interferências externas e de
dimensões macro diante do local, no caso o Haiti. Assim o enquadramento analisado de
forma isolada no jornal, dado pela categoria de número 5 – e que prevalece nos estágios
II e III – tem no neoliberalismo a mostra de como questões macro interferem no local,

129
Citação sem página, pois o texto está disponível em versão virtual.
179

pois é uma missão multilateral da ONU, que pretende reconstruir o Estado sob moldes
que a cena internacional julga adequados. E mais uma vez se recai na categoria de
número 3.
É natural que a cultura entre com força nos argumentos brasileiros da missão,
uma vez que ela pertence ao que Yúdice (2004) chama de “desmaterialização do
recurso”. E por isso é ativada como capaz de orientar uma espécie de missão de paz em
que se respeita o local, reconhece as particularidades e promove uma troca positiva
entre o país interventor e aquele que recebe as tropas. Desse modo, o papel da cultura é
redescoberto dentre os recursos outros que tornam efetiva e viável a missão, como o
militar, a ajuda econômica, doações de alimentos e remédios etc., recursos esses que são
materiais. Então dentro das prerrogativas teóricas da tese da cultura como um recurso, a
cultura serve para criar um ambiente favorável para a mudança política e econômica no
Haiti, reestruturando o país naquelas três fases da missão. A mudança da preocupação
que era com o conteúdo e passa para o gerenciamento da cultura fica evidente nos
discursos dos políticos. Pois embora o imaginário e os trabalhos artístico-culturais
sejam invocados, como na fala de Amorim sobre a cultura naïf, este conteúdo é
gerenciado para mostrar uma vinculação identitária que justifica o comando brasileiro e
ao mesmo tempo ameniza a atuação dos brasileiros junto ao povo irmão. Tal qual se
observa na categoria de número 1, a qual tem considerável predominância no estágio
terceiro, dado que este estágio prevê reformas sociais e de desenvolvimento, cujas
invocações culturais diante desses procedimentos são ainda maiores.
É claro que este gerenciamento da cultura obedece também às constrições e
regulações da ONU, já que é uma missão por ela determinada. Não se pode esquecer
todo o contexto de interdependência assimétrica que cerca as relações internacionais e
que definem também que esse gerenciamento não se distribua equitativamente por todo
o globo. Com vistas à realidade presenciada no plano internacional, apenas alguns
detêm o poder de gerenciar a cultura. Isto quer dizer, principalmente de acordo com a
categoria de número 3, que o Brasil conhece o potencial do uso de sua cultura e de seu
imaginário frente a este cenário, tendo pleno conhecimento de como isto é visto pelos
outros países para empreender uma missão adequada. Porém, em última instância é a
ONU que detém a regulação, já que é ela a determinar qual país assume a missão de paz
segundo motivações próprias que a leva a uma escolha e não outra.
180

A natureza simbólica constitui grande parte daquilo que se invoca como cultura
dentro dos discursos. É ela que amarra no discurso político toda a legitimidade e
justificativa que invocam as cinco categorias. Se a imagem simbólica construída pelos
discursos políticos é bastante forte, deve-se também os mesmos discursos mergulharem
nos imaginários populares amplamente compartilhados, pois são reconhecidos por
grande parte do público o que torna mais fácil a compreensão do que se pretende dizer
com aquele conteúdo (CHARAUDEAU, 2006a). Os rituais brasileiros mais comumente
compartilhados nos proferimentos e nos textos jornalísticos são de certa forma quase
estereótipos da cultura brasileira, pois dessa maneira diminui o risco de interpretações
dúbias sobre o imaginário acionado, já que o estereótipo costuma ser amplamente
conhecido e reconhecido por todos.
Os media constroem uma visão de mundo “inscrevendo-nos em um espaço
duplo que hesita sempre entre o local, quando se trata de defender as identidades do
torrão, e o global (nacional, europeu, internacional, civilizacional), quando é o caso de
promover uma transcendência identitária” (CHARAUDEAU, 2006a, p. 284). No caso
das categorias depara-se com a de número 1, que vincula mais ao local, e as de número
3 e 4 que fazem referência ao global. Esta hesitação da qual fala Charaudeau (2006a) é
dada pelo imbricamento entre elas, que podem acontecer em momentos diferentes no
mesmo discurso ou em textos distintos.
Na vinculação identitária da categoria 1, embora se projete uma troca cultural, é
o comando brasileiro que a define como ocorre, se aporta ou não à dimensão cultural,
por possuir os instrumentos capazes de a gerenciar (YÚDICE, 2004). Como diz
Canclini (2003), as práticas e ritos culturais quando gerenciados por determinações
políticas podem passar a ser compartilhados por um mesmo horizonte. Estas
determinações são vistas nas falas de Lula e Amorim, assim como em notícias
reincidentes da Folha que relacionam os aspectos latino-americanos, o comando
brasileiro e o Haiti como uma fórmula tríade que envolve a cultura e garante o sucesso
de reestruturação social e política daquele país.
O conjunto dos proferimentos que compõe o material desta pesquisa não
conforma uma estratégia de comunicação política propriamente, mas representa, todos
juntos, a maneira pública dirigida sobre a MINUSTAH, dado que são discursos públicos
na íntegra que tematizam a participação brasileira no comando militar. Todos eles, sem
181

exceção, trouxeram à tona o papel cultural que envolve a missão, possivelmente uma
das razões para isto é que, nas palavras de Charaudeau (2006a) a comunicação política
Deve tentar fazer re(soldar) o sentimento identitário, enquanto o
espaço social se fragmenta mais. É que é difícil conceber a existência
de um grupo social, qualquer que seja sua dimensão, sem a existência
de uma mediação forte que constitui o cimento identitário
(CHARAUDEAU, 2006a, p. 318).

Este grupo social para o qual é dirigido o discurso varia de pronunciamento e de


localidade do ato, porém, parte desses pronunciamentos é para as tropas militares, que
necessitam de coesão, um sentimento identitário que os faça sentirem unidos e ao
mesmo tempo imbuídos da tarefa para além de uma ação militar demandada pelo país,
incluindo aí a ação cívico-social, que foi por vezes criticada. Na verdade, a função deste
discurso nestes moldes de cimento identitário possibilita um impulso e estímulo
valiosos para as tropas, e conseqüentemente, para o sucesso da MINUSTAH. Outra
parte dos pronunciamentos busca abranger os políticos de outros países em convenções
e encontros internacionais; outra parte ainda é o senado brasileiro e até mesmo a
população como um todo.
Retoma-se à questão da cultura como soft power com a ajuda da leitura da autora
Sanches Rocha (2009) a respeito da conceituação de Nye (2002). Pois, segundo o soft
power poderia haver influência de comportamento, isto é, uso do poder brando, somente
pela conduta operada pelo nosso país e pelos meios de comunicação, os quais podem
determinar e impingir o compartilhamento real nas relações entre o Brasil e o Haiti
(NYE, 2002; SANCHES ROCHA, 2009). Acrescentamos que com o uso da soft power
por parte dos discursos, o referenciamento da dimensão cultural é resultado do
entendimento da cultura como um recurso político.
Uma missão de paz, sob o jugo militar e o respaldo da ONU desencadeia um
apelo ao hard power, se não fosse o pilar cultural sobre o qual está alicerçado o discurso
sobre a MINUSTAH. Este pilar retrata nesta pesquisa a “constante necessidade de
interpretação, diálogo entre universos de sentidos diferentes, quando se trata de operar
não pelo hard power, mas pelo soft power” 130 (SANCHES ROCHA, 2009), e aí é
necessário o reconhecimento identitário mútuo e o entendimento de culturas por vezes
distintas, por vezes não. E a autora demonstra a perspicácia e importância da cultura,
trazida nesta dissertação para o recurso da política, numa transformação positiva e de

130
Citação sem página, pois o texto está disponível em versão virtual.
182

reconstrução do país Haiti. Dito isto, ao se buscar identificar o lugar da cultura segundo
os enquadramentos dos discursos compilados abre-se um leque de sugestivos lugares
onde a cultura está. Isto significa que, nessa investigação em que o intuito foi localizar a
dimensão cultural na ação brasileira durante a MINUSTAH deparou-se com diferentes
lugares, trazidos pelas categorias, que convergem para o mesmo horizonte: Da cultura
como um recurso político, de transformação, reconfiguração e determinação das
relações nacionais e internacionais.
A cultura como um recurso para o Yúdice (2004) é uma via de mão dupla: Ao
mesmo tempo em que ela passou a trafegar em lugares antes ocupados somente pela
economia e pela política, ganhando novo status nesses âmbitos, ela também precisou se
sujeitar a determinados moldes, que a enquadra em parâmetros delimitados, como se o
lugar mais centralizado tivesse sido conquistado por uma negociação na qual ela
também precisou ceder. Isto significa que, a cultura brasileira, ou a vinculação
identitária tão explícita com a categoria 1 só é estimulada nos discursos porque funciona
como um recurso capaz de alterar o próprio desempenho e reconhecimento do comando
brasileiro na MINUSTAH. Dizer que não seja instrumentalizar a cultura, como defende
Yúdice (2004), pode parecer mais uma forma eufêmica de não aceitar esta condição
dada à cultura. Porém, por outro lado pode-se inferir que é uma maneira de conferir um
sentido mais pragmático a ela, e de trazê-la para o processo efetivo da missão de paz.
Portanto, a ênfase somente na “cultura pela cultura” no caso da MINUSTAH não
receberia destaque discursivo nem pelo campo midiático, nem pelo campo político, e,
muito provavelmente, não seria empregada na atuação militar. Entretanto, com a
vinculação da cultura como um recurso político gera-se ganhos para a promoção da
relação intercultural, que muito provavelmente não se obteria de outra forma. Isto é
legitimar a cultura no espaço político. Em outras palavras, as trocas culturais e dados
compartilhamentos simbólicos de fato acontecem entre o Brasil e o Haiti, são reais, mas
nem por isso deixam de ser instrumentalizadas e capitaneadas pelo e no discurso.
Nesta análise conclusiva é importante ainda enfatizar a abertura de caminhos e
pesquisas que esta dissertação se deparou durante o percurso teórico e analítico. Pensar
na relação tríade entre cultura, comunicação e relações internacionais é instigante ao
mesmo tempo em que se avistam lacunas espalhadas pelo caminho. Os pares de estudo:
relações internacionais e mídia, centralidade da cultura e as missões de paz são arenas
pouco exploradas, principalmente na literatura nacional, embora alguns estudos recentes
183

já despontem nesse sentido. Como afirma Sanches Rocha (2009) a respeito do papel da
cultura nas relações internacionais: “O que não se pode negar, porém, é que esta
discussão não ocupou nunca a periferia das decisões políticas, de fato. Ela nunca foi,
realmente, posta de lado, porque se trata de uma importante ferramenta para o poder
político”. Para ela a simplificação do problema cultural em pura geração de conflitos e
de criação de inimigos para fortalecer o Estado, ao invés de se buscar o entendimento da
diferença identitária e cultural pode trazer revelações que por muito tempo quiseram ser
mantidas de forma silenciosa, velada. Está, portanto, nesse poder suave, brando, como
diria Nye (2002), que a força da cultura se mostra dentro do recurso político.
Assim o processo desta pesquisa nos estimulou a refletir também sobre outros
caminhos de investigação e questões vinculadas ao tema que podem ser trilhados a
partir daqui, pois embora não fossem o intuito de averiguação presente, outros
pesquisadores ou trabalhos futuros poderiam vir a se debruçar. A exemplo de se aplicar
o mesmo problema de pesquisa para outras mídias, como a televisão, por esta ser capaz
de editar imagens simbólicas e de apelos culturais bastante fortes. Ou ainda aproveitar o
mote já desenvolvido neste trabalho para estabelecer comparações com alguns jornais
regionais, no intuito de identificar se a dimensão cultural é diferente daquela tratada em
veículos nacionais. Outro objeto de pesquisa que também se mostra bastante
interessante e pertinente seria o de avaliar as mudanças trazidas pelos discursos,
sobretudo após o período temporal recortado, por apresentar principalmente os
resultados práticos do intento brasileiro em promover o desenvolvimento econômico e
social, bem como a consolidação das instituições políticas e estruturais do Estado
haitiano antes da retirada da MINUSTAH no país, incluindo aí as interferências e
repercussões do terremoto de janeiro de 2010.
Pois, nos momentos de encerrar a escrita desta dissertação fomos surpreendidos
pela catástrofe do terremoto que atingiu o Haiti, em janeiro de 2010, afetando mais
diretamente a capital Porto Príncipe. A estimativa é de mais de 200 mil mortos e de
destruição imensurável de prédios, igrejas, escolas, casas. Se por um lado a repercussão
deste país no cenário mundial tomou um rumo amplificado, com ajudas financeiras e de
solidariedade humana nunca antes ocorridas no Haiti, projetando o país e alertando o
mundo sobre a sua condição inaceitável; por outro lado, aflora um problema grave que
infelizmente vem acompanhando este país do Caribe muito antes dessa tragédia e que
184

sempre demandou total atenção, embora não a tenha recebido com merecida
responsabilidade:
"O problema de Cité Soleil não é de polícia. É social", diz o general
José Elito Siqueira, o comandante militar da Minustah, composta por
7,2 mil soldados de oito países. [...] No país de 8,2 milhões de
habitantes -70% abaixo da linha da pobreza-, os homens arriscam os
dentes para escapar da fome quando comem um biscoito feito com
argila e sal. Nas ruas de Porto Príncipe, cuja população soma 2
milhões, as crianças pedem "comida", "one dollar, please", ou, mudas,
simplesmente estendem a mão em busca de uma esmola. 131

É a miséria, a violência e o abandono que ainda convive um país cujo desejo que
sobrevive continua sendo apenas o de se reconstruir.

131
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São Paulo, 02 jul. 2006. Caderno Mundo.
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_______________. Entrevista disponível em www.portalliteral.terra.com.br; acessado em 04 de abril de
2008.
190 

ANEXOS I - TEXTOS JORNALÍSTICOS


 
 
Folha de S. Paulo 
Editoria/caderno: Mundo 
Título: Tropa chega ao Haiti sem abrigo definitivo  
Data: 30/05/2004 ‐ domingo 
Crédito: Ricardo Bonalume Neto, enviado especial a Porto Príncipe 
 
MISSÃO NO CARIBE 
Primeiro contingente de tropas brasileiras, com 42 homens, desembarca na capital, Porto 
Príncipe 
Chegou ontem ao Haiti o primeiro contingente de tropas brasileiras da missão de paz da ONU. 
Os  brasileiros  desembarcaram  em  Porto  Príncipe  (capital)  ainda  sem  local  definitivo  para 
serem  abrigados.  Ficam  inicialmente  em  um  galpão  improvisado  perto  do  aeroporto 
internacional. Os brasileiros chegaram cedo pela manhã e passaram todo o dia carregando e 
descarregando material para o galpão em que estão instalados provisoriamente. 
Nem deu tempo para almoçar ou sequer sair do terreno do aeroporto. "Meu Haiti é aqui", diz 
o tenente‐coronel Lúcio Waldino dos Santos, um dos encarregados do material. 
"Até  agora,  só  vimos  o  aeroporto",  diz  o  coronel  Fernando  José  Sardenberg,  oficial 
comandando o primeiro destacamento de 42 homens ‐a maioria do Exército. 
"A missão hoje é só colocar os homens no acantonamento", diz Sardenberg. 
Vieram quatro veículos nos quatro aviões C‐130 da FAB. Os dois caminhões Unimog do Corpo 
de  Fuzileiros  Navais  passaram  boa  parte  do  dia  entre  a  pista  de  pouso  e  o  galpão.  Também 
vieram  dois  Land  Rover  do  Exército,  mas  que  ainda  não  se  aventuraram  no  tresloucado 
trânsito de Porto Príncipe, onde cada motorista faz o que bem entende quando quer em ruas 
repletas de buracos, poeira e sujeira. 
O material embarcado deve também servir para suprir as necessidades do segundo escalão de 
150 homens, que chega na segunda‐feira, também de avião. 
O calor de mais de 30 C na capital do Haiti fez o consumo de água subir. Os soldados calculam 
que cada um deve tomar três litros de água mineral por dia ‐e um bom estoque veio do Brasil. 
A água mineral local não é confiável, pelo hábito de alguns comerciantes de colocarem água da 
torneira em garrafas vazias e revendê‐las. 
Um  dos  que  mais  trabalharam  foi  o  major  Alexandre  Angonese,  oficial  de  logística  que 
coordenará  a  montagem  dos  dois  postos  de  comando,  da  brigada  da  ONU  e  do  batalhão  do 
Exército do Brasil. 
O processo de transição da tropa multinacional ‐que restabeleceu a ordem no país depois de 
distúrbios  armados  no  começo  do  ano  que  derrubaram  o  presidente  Jean‐Bertrand  Aristide‐ 
para os capacetes azuis das Nações Unidas a serem liderados pelo Brasil está atrasado. Depois 
de amanhã é a data para a passagem de comando. Mas as tropas estão apenas começando a 
chegar,  e  os  primeiros  oficiais  do  Estado‐Maior  da  força,  de  vários  países,  estão  apenas 
terminando sua primeira semana de aclimatação ao país caribenho. A missão conhecida pela 
sigla  Minustah  (Missão  de  Estabilização  da  ONU  para  o  Haiti)  é  o  primeiro  grande  desafio 
internacional  das  forças  armadas  latino‐americanas  em  operações  de  paz.  O  comando  da 
missão é do Brasil, que fornece o maior contingente de tropas ‐1.200 soldados do Exército e 
fuzileiros navais. Navios da Marinha devem trazer equipamento na segunda semana de junho, 
mas,  entre  os  contêineres  a  bordo,  não  estão  aqueles  do  tipo  usado  para  acomodação  de 
pessoal, como ocorria no batalhão brasileiro da força de paz em Angola, nos anos 1990. 
É  provável  que  parte  do  pessoal  tenha  de  passar  algum  período  em  tendas  de  campanha.  O 
resto das tropas deverá vir da Argentina, Chile, Uruguai e Paraguai. Mas até agora não estão 
191 

definidos  os  detalhes  da  participação.  O  contingente  brasileiro  deve  ser  dividido  em  dois 
batalhões, um de tropas do Exército, outro de fuzileiros navais e companhias de outros países 
latinos, uma das quais do Paraguai. 
 
Folha de S. Paulo 
Editoria/caderno: Mundo 
Título: Pobreza haitiana impressiona brasileiro  
Data: 31/05/2004 – segunda‐feira 
Crédito: Ricardo Bonalume Neto, enviado especial a Porto Príncipe 
 
MISSÃO NO CARIBE 
Capitão‐médico que participou de missões humanitárias relata a recém‐chegados as condições 
do país 
Um médico brasileiro está há dois meses no Haiti vivendo em uma tenda militar e foi o único 
entre dez colegas das Forças Armadas dos EUA que participou das seis missões humanitárias 
realizadas  no  país.  O  paulistano  Gilson  Girotto  tem  dupla  nacionalidade  e  hoje  é  capitão‐
médico da Força Aérea dos EUA, a Usaf. 
"Vocês não imaginam a pobreza que vão encontrar no país", disse ele a um grupo de soldados 
brasileiros  da  força  de  paz  da  ONU  no  Haiti.  Parte  da  tropa  chegou  no  sábado  e  o  restante 
deve  vir  na  metade  de  junho.  A  data  da  transição  formal  da  responsabilidade  da  força 
multilateral  comandada  pelos  EUA  para  a  da  ONU,  comandada  pelo  Brasil,  é  amanhã,  1º  de 
junho. 
Os médicos militares dos EUA trataram cerca de 1.900 pacientes, dos quais 500 em um só dia. 
As consultas tendem a ser demoradas pela necessidade de tradução. 
Na  capital,  a  maioria  da  população  fala  tanto  francês  como  creole.  Nas  cidades  menores  do 
interior,  praticamente  só  se  fala  a  língua  criada  pelos  escravos  africanos  que  tomaram  a 
metade da ilha colonizada pelos franceses no fim do século 18. 
A experiência de Girotto é útil aos brasileiros, pois ações cívico‐sociais e missões humanitárias 
devem fazer parte do repertório de atuação da força de paz. 
Por  enquanto,  o  maior  contato  dos  mais  de  50  soldados  brasileiros  foi  ou  com  o  pessoal  do 
aeroporto e do hotel. Os oficiais e soldados que chegaram anteontem em avião da FAB estão 
abrigados  em  um  galpão  abandonado  no  terreno  do  aeroporto.  Os  oficiais  de  Estado‐Maior 
ficam em hotéis. 
"Não tomamos a água local. Até escovar os dentes e fazer suco, a gente faz com água mineral 
importada",  diz  Girotto,  que  deu  uma  boa  notícia  a  seus  colegas  médicos  e  enfermeiros 
brasileiros:  não  houve  nenhum  caso  de  malária  ou  outras  doenças  tropicais  entre  os  quase 
2.000 homens da tropa americana de intervenção, a maioria fuzileiros navais. 
"Não houve nenhum problema sério de saúde, os maiores problemas que enfrentamos foram 
infecções  com  fungos",  diz  o  médico  brasileiro  da  Usaf.  O  motivo  é  o  calor  e  a  umidade 
equatoriais e o uso constante de uniformes dentro dos quais suar muito é praxe. 
Girotto vai estar entre os últimos a sair do país. EUA, França e Canadá, principais fornecedores 
de  tropa  para  a  força  multinacional  de  intervenção,  devem  ser  paulatinamente  substituídos 
pelos capacetes azuis da ONU, constituídos principalmente por soldados latino‐americanos. 
O grupo da Força Aérea dos EUA cuida da movimentação do pessoal do seu país por via aérea. 
Por isso, sai por último. Mas parte das barracas já foi desarmada. 
Girotto  foi  em  1983  para  os  EUA  estudar  inglês.  Ficou  lá,  formou‐se  em  informática  e 
trabalhou  sete  anos  na  empresa  área  IDS.  Aos  29  anos,  entrou  em  uma  escola  de  medicina, 
com os estudos pagos pela Usaf, a qual ele agora serve. Depois de cumprir seus quatro anos 
obrigatórios,  planeja  talvez  se  especializar  em  medicina  aeroespacial.  Ele  pertence  ao  82º 
Grupo Médico e serve na base aérea Sheppard, perto de Dallas. 
192 

A  vida  nas  tendas  americanas  não  é  tão  ruim  assim.  Há  tenda  de  recreação  com  TV  a  cabo, 
bebida gelada à vontade e cada militar tem 30 minutos de telefone gratuito por dia. 
Como acabaram de chegar, os brasileiros, por ora, só têm água mineral morna e quente e não 
tem comunicação com o país. 
 
Avião retardatário 
Um avião de transporte da FAB C‐130 Hércules, que estava 24 horas atrasado, desembarcou 
ontem mais oito toneladas de equipamento para o pessoal brasileiro da força de paz da ONU 
no  Haiti.  Os  pouco  mais  de  40  oficiais  e  soldados  só  almoçaram  às  17h30,  depois  de  levar  o 
equipamento para o galpão em que estão alojados. 
Quatro outros C‐130 trouxeram anteontem cerca de 20 toneladas de carga, além do chamado 
"escalão precursor". O primeiro escalão chega amanhã, em outros C‐130 com 150 homens e 
pouco  material.  O  segundo  escalão  é  o  pessoal  que  está  no  mar  em  navios  da  Marinha.  O 
terceiro virá em aviões contratados pela ONU. No total, o Brasil terá 1.200 homens no país. O 
comandante  da  missão  da  ONU  (Minustah,  na  sigla  em  francês),  o  general  Augusto  Heleno 
Ribeiro  Pereira,  deve  chegar  hoje.  Amanhã  ele  deve  receber  o  comando  da  missão  na 
Academia de Polícia do Haiti. 
 
Folha de S. Paulo 
Editoria/caderno: Mundo 
Título: Haitianos pedem emprego para soldados brasileiros  
Data: 04/06/2004 ‐ sexta‐feira 
Crédito: Ricardo Bonalume Neto, enviado especial a Porto Príncipe 
 
MISSÃO NO CARIBE  
Metade do país não tem ocupação; oficial diz que há risco de decepção da população com a 
força de paz  
 
Um caminhão com militares brasileiros da força de paz no Haiti fez ontem um rápido contato 
com  a  população.  Foram  bem  recebidos,  e  a  vitória  da  seleção  por  3  a  1  sobre  a  Argentina, 
anteontem, foi comemorada, mas os haitianos aproveitaram para pedir emprego. 
Não existem estatísticas confiáveis, e há muito trabalho informal, mas possivelmente metade 
da  população  ativa  do  país  não  tem  ocupação.  Era  o  caso  do  também  pequeno  grupo  de 
desempregados que tentou falar com os brasileiros. Eram cerca de meia dúzia em uma praça 
perto do aeroporto. 
Jean‐Jean  Robert  logo  perguntou  se  haveria  trabalho  para  haitianos  na  Minustah,  sigla  em 
francês da Missão da ONU de Estabilização no Haiti. O coronel Luiz Felipe Carbonell, oficial de 
comunicação social da Brigada Haiti, respondeu que certamente haitianos seriam contratados, 
mas que a principal função da tropa brasileira era prover segurança. 
Robert é motorista, trabalhava em uma indústria que fechou. Sua mulher hoje é quem ganha 
dinheiro, vendendo frituras na rua. O casal tem quatro filhos. Como a maioria dos haitianos, 
ele torceu para o Brasil. "Adoro o Ronaldo." 
Outro que gostaria de trabalhar como chofer é seu amigo Moise Murat. "Estou sem trabalho, 
só como uma vez por dia", diz ele. 
Comer,  para  os  haitianos  mais  pobres,  significa  basicamente  arroz  com  feijão,  às  vezes  só 
arroz,  e,  de  vez  em  quando,  complementos.  No  momento  vive‐se  a  época  das  mangas,  e  os 
vendedores nas calçadas estão repletos delas. 
"Sua  presença  aqui  é  necessária",  disse  Jean‐Jacques  Foresmy,  outro  que  gostaria  de  ter 
emprego, reconhecendo que a missão de segurança é fundamental. 
193 

Existe  um  grande  risco  de  decepção  dos  haitianos  com  a  substituição  da  força  multilateral 
interina, liderada pelos EUA, pela força de "capacetes azuis" da ONU, comandada pelo Brasil. 
"A  parte  humanitária  e  de  desenvolvimento  econômico  está  mais  afeita  a  outros 
departamentos  da  Minustah",  disse  o  coronel  Carbonell.  Ele  concorda  que  há  o  risco  de 
decepção, e que é importante "transmitir a esperança de que é possível melhorar". "Mas não 
podemos fazer promessas." 
Os primeiros haitianos que deverão ser contratados pela força de paz são os mais necessários 
a  princípio:  tradutores.  O  francês  e  inglês  macarrônico  de  muitos  oficiais  e  soldados  pode 
servir para as comunicações mais simples, mas é claramente insuficiente para a obtenção de 
inteligência sobre eventuais grupos armados. 
Cada brasileiro recebeu dois livrinhos. Um deles aborda como se comportar com a população 
local;  o  outro  traz  frases  para  o  dia‐a‐dia  em  várias  línguas,  notadamente  o  créole,  a  língua 
misto de francês com dialetos africanos. 
"Palé dousman" é "fale devagar" em créole (do francês "parlez doucement"). "Mete za'am ou 
até" é "abaixe suas armas". 
Mas,  assim  como  acontece  nas  favelas  brasileiras,  recolher  as  armas  dos  bandidos  é  algo 
dificílimo.  Apenas  200  foram  encontradas  pela  força  liderada  pelos  EUA,  das  mais  de  20  mil 
ilegais no Haiti. 
Não é nada difícil esconder armas no labirinto das favelas locais ‐as "bidonvilles". E é preciso 
um bom sistema de informações para saber onde achá‐las, algo que ainda parece estar fora do 
alcance  da  pequena  polícia  local.  A  Minustah  incluirá  também  um  contingente  de  1.622 
policiais estrangeiros para auxiliar a polícia do Haiti. 
A força da ONU ainda vai demorar para entrar em  operação. O  grosso da tropa brasileira  só 
chega depois do dia 20. Está prevista para o dia 18 a chegada dos navios da Marinha trazendo 
a maior parte do equipamento. Só depois de recebido esse equipamento é que os cerca de 200 
soldados  e  fuzileiros  navais  hoje  no  Haiti  terão  condições  de  preparar  devidamente  o 
acantonamento para os outros mil militares que chegarão até o final do mês. 
 
Folha de S. Paulo 
Editoria/caderno: Mundo 
Título: Para general, força brasileira não é ocupante  
Data: 03/08/2004 – terça‐feira 
Crédito: Ricardo Bonalume Neto, da reportagem local 
 
O general‐de‐divisão brasileiro Augusto Heleno Ribeiro Pereira nega que as tropas da ONU que 
ele comanda no Haiti sejam uma força de ocupação. 
"Somos hóspedes de um país soberano e independente", disse Heleno à Folha, por telefone. 
"Nossa missão é ajudar o Estado haitiano a atuar." 
O general comanda os capacetes azuis da Minustah (Missão da ONU de Estabilização no Haiti). 
A  ONU  autorizou  6.700  militares  e  1.622  policiais  para  a  missão,  que  também  deve  ajudar  a 
reconstruir o país. 
Para ele, um sinal claro dessa intenção de ajudar e de respeitar a soberania haitiana é o apoio 
da ONU às eleições previstas para 2005. 
A  missão  do  Brasil  foi  uma  decisão  de  governo,  diz  o  general,  respaldada  em  resoluções  da 
ONU. Se a princípio a ONU agiu para legitimar a intervenção multinacional liderada por EUA e 
França,  depois  houve  a  decisão  de  substituir  essa  tropa  por  capacetes  azuis,  força  composta 
até agora sobretudo por latino‐americanos. 
"Alguns  interesses  foram  contrariados,  e  qualquer  história  tem  dois  ou  três  lados",  declara 
Heleno. "Toda a atuação do Brasil é no sentido de ajudar o Haiti." 
194 

Heleno discorda de que a situação de segurança em Cabo Haitiano tenha piorado. A região é 
patrulhada  por  tropas  chilenas.  "Existe  ali  uma  concentração  de  ex‐militares  que  foram 
desmobilizados  e  que  pleiteiam  seus  direitos.  É  um  problema  que  vem  desde  94",  disse  o 
general.  A  ONU  tem  procurado  fazer  uma  intermediação  entre  o  governo  interino  e  os  ex‐
militares para efetuar sua desmobilização. 
 
Folha de S. Paulo 
Editoria/caderno: brasil 
Título: Para Lafer, política de Lula é a do espetáculo  
Data: 18/08/2004 ‐ quarta‐feira  
Crédito: da sucursal de Brasília 
 
O ex‐chanceler Celso Lafer, 63, professor titular da Faculdade de Direito da USP (Universidade 
de São Paulo), criticou ontem o jogo da seleção brasileira de futebol no Haiti. "É a expressão da 
política externa como política espetáculo, que é a dimensão do estilo da atual administração", 
disse. 
Ex‐ministro  das  Relações  Exteriores  nos  governos  Fernando  Collor  de  Mello  (92)  e  Fernando 
Henrique Cardoso (2001‐02), não é contra o país integrar forças de paz no exterior, mas acusa 
a atual política externa de estar sendo "direcionada a dar satisfação ideológica interna". (EC) 
Folha ‐ Por que é importante para o Brasil gastar recursos, quadros e energia para liderar uma 
força de paz no Haiti? 
Celso  Lafer  ‐  A  participação  do  Brasil  em  forças  de  paz  não  é  novidade,  o  que  há  agora  é 
participação mais ampla. Em tempos recentes, enviamos tropas a Angola e Moçambique, que 
têm  a  mesma  língua,  e  Timor  Leste,  país  da  Ásia  com  origem  portuguesa  e  em  fase  de 
reconstrução. No caso do Haiti, há, de um lado, o elemento de solidariedade e, de outro, o uso 
de nossos recursos, já tão limitados, em ações internacionais. 
Folha ‐ Por que o Brasil acertou a liderança da força de paz com os EUA, mas fez questão de 
divulgar que o pedido foi da França? Não ficaria bem fazer uma aliança com os EUA, acusados 
de interferência nas questões internas do Haiti? 
Lafer ‐ Não tenho informações precisas sobre isso, mas parece claro que há interesse tanto dos 
EUA  quanto  da  França  de  que  haja  um  terceiro  atuando  no  país,  com  as  características  do 
Brasil. Se essa informação que você dá é correta, o governo preferiu aceitar um pedido francês 
a um norte‐americano porque, para suas bases, ficaria melhor assim. A política externa deste 
governo tem sido direcionada a dar satisfação ideológica interna. É também uma operação de 
marketing político. 
Folha  ‐  Qual  o  objetivo  de  assumir  uma  política  externa  ""agressiva"  e  de  disputar  liderança 
mundial? Faz sentido? 
Lafer  ‐  O  Brasil  sempre  teve  atuação  importante  no  plano  internacional,  e  ela  sempre  foi 
exercida  com  cuidado.  Receio  que  a  retórica  de  uma  política  agressiva,  com  aspas,  mais 
atrapalhe do que ajude o Brasil a exercer um papel de destaque. 
Folha ‐ Por quê? 
Lafer  ‐  Nós  somos  um  país  de  escala  continental  e  de  recursos  limitados.  Temos  crescido  no 
cenário internacional pela confiabilidade, não pela agressividade. Além do interesse específico 
em  exportar  e  importar  mais,  o  Brasil  também  tem  interesse  geral  no  funcionamento  do 
multilateralismo. O que é preciso saber é se essa ação no Haiti vai ou não ajudar essa nossa 
presença nos foros internacionais. 
Folha ‐ O jogo no Haiti pode ser incluído em que categoria: política externa, injeção de ânimo 
interno, marketing brasileiro no exterior? 
Lafer ‐ É a expressão da política externa como política espetáculo, que é a dimensão do estilo 
da atual administração. 
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Folha de S. Paulo 
Editoria/caderno: brasil 
Título: Presidente visita time antes do jogo  
Data: 18/08/2004 ‐ quarta‐feira 
Crédito: Eduardo Scolese e Sérgio Rangel, dos enviados a Santo Domingo 
 
Diante  de  dirigentes,  jogadores  e  comissão  técnica  da  seleção  brasileira  de  futebol,  o 
presidente Luiz Inácio Lula da Silva afirmou ontem que o amistoso entre Brasil e Haiti, o "jogo 
da paz", hoje à tarde, em Porto Príncipe, irá "marcar" a sua passagem pela Presidência. "Esse 
gesto  vai  marcar  muito  a  minha  passagem  pela  Presidência,  mas  certamente  marcará  a  de 
vocês", afirmou o presidente aos jogadores, após ter cumprimentado um a um. 
Assim que chegou, o presidente recebeu do atacante Ronaldo um par de chuteiras douradas. 
"Isso não é uma sapatilha, é uma chuteira", disse o presidente. 
Lula disse que os brasileiros não são bons apenas para "jogar" e assinar "bons contratos", mas 
também no momento de fazer um "gesto de solidariedade". 
O atacante Ronaldo falou em nome dos jogadores: "Estamos completamente à disposição do 
governo para qualquer projeto social", disse o atacante. 
O encontro com Lula emocionou alguns jogadores. ""Na hora que ele veio na minha direção, a 
minha voz não saía", disse o zagueiro Cris. No encontro, Lula também gravou com os jogadores 
o programam semanal "Café com o presidente". 
Como adversário, o Haiti é um dos mais fracos da história ‐o país é o 95º no ranking da Fifa, 
liderado pelo Brasil desde 2002. 
A tradição do país no esporte é pequena. Os haitianos só disputaram uma Copa do Mundo (em 
1974, na Alemanha), e foram eliminados na primeira fase. 
O Haiti só enfrentou uma vez o Brasil, pouco antes da Copa da Alemanha, e foi goleado por 4 a 
0,  em  Brasília.  Para  a  partida  de  hoje,  os  jogadores  brasileiros  dizem  que  vão  se  divertir  e 
prometem  uma  goleada.  Por  questões  de  segurança,  a  delegação  brasileira  desembarcará 
apenas duas horas antes da partida. Logo após o jogo, deixará o país.  
 
Folha de S. Paulo 
Editoria/caderno: brasil 
Título: Brasil ignora pedido e goleia por 6 a 0  
Data: 19/08/2004 ‐ quinta‐feira 
Crédito: do enviado a Porto Príncipe 
 
O JOGO  
 
A seleção brasileira não atendeu o presidente Luiz Inácio Lula da Silva e goleou ontem o Haiti 
por 6 a 0 no "jogo da paz". Lula havia pedido ao time que não goleasse o adversário na partida 
que teve um caráter mais humanitário e diplomático do que esportivo. 
Antes  do  jogo,  que  teve  atraso  de  quase  20  minutos,  os  atletas  do  Haiti  se  esforçavam  para 
tirar fotos com os pentacampeões. 
Na  precária  arquibancada  do  estádio  Sylvio  Cator,  muitos  haitianos  ostentavam  bandeiras 
brasileiras.  Lula  acompanhou  o  jogo  da  tribuna  e  sorriu  bastante  quando  Ronaldinho  fez  um 
golaço. 
Além de vários militares brasileiros, o jogo teve a presença do árbitro Paulo César de Oliveira. 
Ele até poderia ter dado um pênalti para o Haiti aos 13min, mas não teve piedade do time da 
casa. 
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A  primeira  chance  do  Brasil  saiu  logo  aos  6min,  quando  a  zaga  haitiana  cometeu  erro 
grosseiro. Belletti desperdiçou chutando para fora. Roger abriu o placar após receber passe de 
Ronaldo aos 20min ‐o atacante do Real Madrid teve antes duas boas oportunidades. 
Mesmo  em  ritmo  lento  devido  ao  forte  calor,  o  Brasil  não  teve  dificuldades  para  ampliar. 
Ronaldinho  se  livrou  de  dois  adversários  com  um  giro  de  corpo  em  cima  da  bola  e  depois 
passou pelo goleiro para fazer 2 a 0 aos 33min. 
Roger fez seu segundo gol aos 42min após receber outro passe açucarado de Ronaldo. 
No segundo tempo, o Brasil diminuiu mais o ritmo, e o técnico Carlos Alberto Parreira colocou 
alguns  reservas.  Para  a  tristeza  do  público,  Ronaldo,  embaixador  da  ONU,  foi  um  dos 
substituídos. 
Ronaldinho, porém, ficou em campo. Marcou mais dois gols: um de falta, aos 22min, e o outro 
após  aproveitar  cruzamento  da  direita  aos  37min.  Nilmar  ainda  teve  tempo  de  fazer  o  sexto 
aos 41min. Mesmo com o pedido de Lula, o Brasil venceu o Haiti com mais facilidade do que 
em 1974 ‐no primeiro jogo entre os países, o placar foi "só" 4 a 0. (SR) 
 
Folha de S. Paulo 
Editoria/caderno: brasil 
Título: Lula planta pau‐brasil em visita a soldados  
Data: 19/08/2004 ‐ quinta‐feira 
Crédito: do enviado a Porto Príncipe 
 
No dia em que o presidente Lula visitou a sede da brigada brasileira no Haiti, integrantes das 
Forças  Armadas  admitiram  que  o  atual  número  de  soldados  do  país  em  território  haitiano  é 
"insuficiente" e que uma ajuda humanitária precisa chegar "rapidamente" ao Haiti. 
A  força  militar  da  Minustah  (Missão  das  Nações  Unidas  de  Estabilização  no  Haiti)  conta  hoje 
com  pouco  menos  de  3.000  homens,  dos  6.700  autorizados  pela  ONU.  Militares  brasileiros 
estão há dois meses no país. Na semana que vem, 20 delegados chegam ao Haiti para iniciar 
um estudo em termos de cooperação. 
Na  visita,  Lula  cumprimentou  oficiais  de  alta  patente,  ajudou  a  plantar  uma  muda  de  pau‐
brasil, ouviu detalhes da  ação brasileira e visitou as tendas onde funcionam o restaurante, o 
posto médico e o dormitório de cerca de 250 soldados. (EDS) 
 
Folha de S. Paulo 
Editoria/caderno: mundo 
 Título: "Existe muita resignação e pouco desespero"  
Data: 21/09/2004 ‐ terça‐feira 
Crédito: Fabiano Maisonnave, da redação 
 
Quase  toda  a  cidade  embaixo  d"água.  Milhares  de  haitianos  andando  por  ruas  e  estradas 
alagadas guiados apenas pela linha de postes. Pais carregando corpos de filhos e centenas de 
feridos esperando a vez de ser atendidas com profundos cortes, sobretudo nos pés. O general 
brasileiro  Augusto  Heleno  Ribeiro  Pereira  viu  tudo  isso  e  muito  mais  na  visita  à  desolada 
Gonaives anteontem. Mas quase não presenciou desespero ‐o que havia era resignação. 
"Foi o espetáculo mais dantesco que vi e que não quero ver outra vez. É indescritível", disse o 
general Heleno, 56, comandante da Minustah (Missão da ONU de Estabilização no Haiti). 
O  general  Heleno  chegou  à  cidade  no  domingo  de  manhã,  logo  depois  da  inundação  que 
matou cerca de 500 pessoas durante a noite. Quase toda a cidade estava submersa ‐nas áreas 
mais baixas, a altura da água chegava a 2,5 metros. Até ontem à tarde, ainda havia regiões de 
Gonaives que ainda não haviam sido alcançadas pelas equipes de resgate. 
197 

"É uma tristeza enorme ver as águas arrastarem o pouquinho que essas pessoas tinham", disse 
o  brasileiro.  "Não  há  bairro  tão  pobre  no  Rio  de  Janeiro  como  os  que  existem  por  aqui.  Os 
brasileiros não têm idéia de como é o Haiti". 
A situação é tão precária que não há prédios em condições para colocar os refugiados. Mesmo 
a chegada dos helicópteros está limitada a uma parte pequena da cidade. 
"Há muitas famílias vivendo na laje das próprias casas com o pouco que conseguiram salvar." 
No  domingo,  cerca  de  450  feridos  foram  atendidos  pelas  cerca  de  20  pessoas  da  equipe 
médica da ONG Médicos Sem Fronteira e da ONU. A maioria tinha cortes profundos nos pés 
por não saberem onde estavam pisando. 
A enchente também levou os objetos pessoais dos 454 soldados argentinos na cidade. 
 
Folha de S. Paulo 
Editoria/caderno: mundo 
 Título: Tropa da ONU usa gás para dispersar haitianos famintos  
Data: 25/09/2004 ‐ sábado 
Crédito: Ricardo Bonalume Neto, enviado especial ao Haiti 
 
TRAGÉDIA NO CARIBE  
Multidão toma posto que fazia distribuição de comida  
 
Tropas da ONU no Haiti tiveram de disparar ontem bombas de gás lacrimogêneo para tentar 
dispersar uma multidão de haitianos desesperados em um posto de distribuição de alimentos 
em Gonaives. A cidade foi a mais atingida pela tempestade tropical Jeanne, há uma semana. 
Morreram ao menos 1.160 pessoas e ainda há 1.250 desaparecidos. Os desabrigados chegam a 
300 mil. 
Cerca  de  500  pessoas  invadiram  uma  escola  onde  uma  ONG  distribuía  alimentos.  Soldados 
argentinos  dispararam  as  bombas  e  conseguiram  dispersar  os  haitianos,  mas  eles  voltaram 
assim que a fumaça baixou. 
 
"Loucura" 
"Quando  chega  um  comboio  [de  ajuda],  é  uma  loucura,  os  argentinos  têm  trabalho  para 
organizar  a  distribuição",  disse  o  tenente‐coronel  brasileiro  Hudson  Marques  Júnior,  que  fez 
uma visita de helicóptero ontem à cidade inundada. 
A  emergência  em  Gonaives  afetou  pesadamente  a  atuação  da  força  de  paz,  que  está  com  o 
efetivo  bem  aquém  do  previsto.  "Militar  não  reclama",  diz  o  general‐de‐divisão  brasileiro 
Augusto Heleno Ribeiro Pereira, comandante das forças militares da Minustah (Missão da ONU 
para a Estabilização do Haiti). 
Heleno  pediu  ao  representante  do  secretário‐geral  das  Nações  Unidas  e  ao  comando  das 
forças de paz que acelerassem o envio de novas tropas. 
Hoje estão no país caribenho apenas 2.800 dos 6.700 soldados autorizados pelo Conselho de 
Segurança  da  ONU,  além  de  480  dos  1.622  policiais  civis  previstos.  Dos  militares,  1.197  são 
brasileiros. 
 
Futebol 
O  último  jogo  de  futebol  no  principal  estádio  do  Haiti  foi  pela  paz;  o  próximo  vai  ser  para 
arrecadar dinheiro para as vítimas de Gonaives. 
Desde o jogo da seleção brasileira (6 a 0 sobre o Haiti, em 18 de agosto) que o estádio Sylvio 
Cator  não  é  usado.  Mas  um  torneio  com  oito  times  haitianos  deve  começar  no  dia  1º  de 
outubro  para  angariar  dinheiro  para  ajudar  os  desabrigados,  segundo  o  responsável  pelo 
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estádio, Gerson Edee (cujo nome em homenagem ao ex‐jogador brasileiro Gerson, tricampeão 
mundial no México, em 1970). 
Gerson ainda se lembra com emoção do jogo. "Havia gente que dizia que queria ver o jogo e 
morrer, de tanta felicidade." 
Heleno disse que "perdeu dez anos de vida" no evento da seleção, em razão da necessidade de 
reforçar as medidas de segurança. 
Mas o futebol não apaga a crise política nem substitui a falta de patrulhas ‐2.300 das quais já 
foram realizadas em três meses de atuação da brigada brasileira, segundo o seu comandante, 
o general‐de‐brigada Américo Salvador de Oliveira. 
 
Folha de S. Paulo 
Editoria/caderno: mundo 
 Título: Haitiano espancado passa bem; ONU considera o caso superado  
Data: 23/10/2004 ‐ sábado 
Crédito: Fabiano Maisonnave, da redação 
 
MISSÃO NO CARIBE  
Força de paz deve dobrar até novembro  
 
O policial haitiano Jean Macion continuava internado ontem num hospital de Porto Príncipe, 
dois  dias  depois  de  ter  se  envolvido  num  incidente  no  qual  acusa  soldados  brasileiros  de  o 
terem espancado. A Minustah (Missão da ONU de Estabilização no Haiti) e a Polícia Nacional 
Haitiana abriram investigações sobre o caso, mas consideram o assunto como superado. 
Em entrevista à Folha, ontem, o médico que atendeu Macion, Hans Larsen, disse que ele está 
bem, mas deve ficar no hospital Canapé Vert até segunda‐feira. Segundo Larsen, ele apresenta 
ferimentos na mão esquerda, no joelho direito e nas costas. 
Larsen disse que o ferimento mais grave foi na cabeça, onde sofreu uma pancada. "Temos de 
observar para ver se não haverá seqüelas." 
Muciel disse que estava dirigindo seu carro na região central de Porto Príncipe, na quarta‐feira 
à  tarde,  quando  foi  parado  por  soldados  brasileiros  num  ponto  de  bloqueio.  Ele  afirma  que, 
apesar de ter se identificado como policial, foi retirado do carro e espancado. 
A missão brasileira nega o espancamento e diz que Muciel tentou furar o ponto de bloqueio, 
não  se  identificou  inicialmente  como  policial  e  se  negou  a  sair  do  carro,  do  qual  foi  retirado 
com "força moderada". 
O chefe da polícia haitiana, Léon Charles, disse que o incidente foi uma "infelicidade", que não 
afetará as relações com a missão militar brasileira, composta por 1.200 homens e responsável 
pela região de Porto Príncipe. "Precisamos dos brasileiros." 
"Estamos  fazendo  uma  investigação  para  entender  o  que  aconteceu",  disse  Charles,  que 
visitou Macion no hospital. 
A Minustah também abriu um inquérito para apurar o caso. Segundo o porta‐voz da missão, 
Damian  Onses‐Cardona,  a  investigação  será  encabeçada  pelo  general  brasileiro  Augusto 
Heleno Ribeiro Pereira, comandante das tropas de paz da ONU. 
O  Itamaraty  informou  que,  com  base  nas  informações  recebidas  pela  Minustah,  considera  o 
incidente superado. 
Ontem,  em  Paris,  o  chanceler  Celso  Amorim  voltou  a  defender  a  participação  brasileira  na 
missão da ONU: "A paz tem um preço. A paz não é de graça e, se você se omite na defesa da 
paz,  vai  pagar  um  preço  também,  nem  que  seja  perdendo  influência  nos  assuntos 
internacionais. Às vezes sinto no Brasil um sentimento de isolacionismo. Mas ninguém existe 
fora do mundo", disse, em entrevista. 
 
199 

Reforço a caminho 
O chefe diplomático da Minustah, o embaixador chileno Juan Gabriel Valdés, disse ontem que 
até  o  final  de  novembro  haverá  6.200  militares  sob  a  bandeira  da  ONU,  contra  os  cerca  de 
3.000 atuais. O Brasil tem reclamado da demora no envio da força total. 
 
Folha de S. Paulo 
Editoria/caderno: mundo 
 Título: Para Celso Amorim, nações ricas têm concepção diferente do Haiti  
Data: 03/12/2004 ‐ sexta‐feira 
Crédito: Fernanda Krakovics, da sucursal de Brasília 
 
Em  audiência  pública  sobre  a  missão  de  paz  no  Haiti,  o  ministro  Celso  Amorim  (Relações 
Exteriores) fez novas críticas às nações desenvolvidas e disse acreditar que a permanência das 
tropas brasileiras naquele país será prorrogada. Também há a possibilidade do envio de mais 
homens. 
Segundo  Amorim,  uma  das  dificuldades  de  atuação  da  Minustah  (Missão  da  ONU  de 
Estabilização  no  Haiti)  é  que,  embora  coloquem  dinheiro,  os  países  desenvolvidos  têm  uma 
concepção diferente do trabalho. 
"Aquilo  ali  para  eles  é  um  problema  de  segurança,  um  problema  de  migração  e  de 
narcotráfico.  Então,  na  medida  em  que  esses  problemas  estejam  assegurados,  com  algumas 
tropas  lá  e  a  guarda  costeira  tomando  conta,  essas  outras  questões  que  envolvem  um 
movimento  financeiro  de  mais  longo  prazo  não  se  obtêm  com  facilidade",  disse  ele,  no 
Senado. 
Para o chanceler, não é possível resolver os problemas de segurança do Haiti isoladamente da 
situação política, humanitária, social e econômica. 
Ao  estilo  do  presidente  Luiz  Inácio  Lula  da  Silva,  Amorim  usou  uma  metáfora  para  dizer  por 
que  países  em  desenvolvimento,  na  sua  visão,  são  mais  solidários.  "Você  vai  no  interior  do 
Brasil  e  vê  gente  pobre  adotando  crianças  enquanto  as  classes  média  e  rica  são  mais 
hesitantes." 
O ministro afirmou que, pela sua experiência na ONU, a Minustah será prorrogada. Já houve 
uma prorrogação de seis meses, até julho, mas, segundo Amorim, o desejo era que esse prazo 
fosse maior. Ele ressaltou que uma permanência maior das tropas vai depender de as "coisas 
caminharem na direção certa". Para ele, há possibilidade de enviar um batalhão de engenharia 
adicional. 
Ao  discorrer  sobre  as  dificuldades  enfrentadas  no  país  do  Caribe,  o  ministro  afirmou  que  há 
preocupação  da  comunidade  internacional  com  a  aplicação  do  montante  de  U$  1,2  bilhão 
doado.  "Para  que  haja  uma  confiança  na  boa  gestão  dos  recursos,  é  preciso  que  o  governo 
provisório aceite algum nível de co‐gestão, o que não é fácil", disse ele. O próprio premiê do 
Haiti,  Gerard  Latortue,  mencionou,  segundo  Amorim,  a  corrupção  como  um  problema  grave 
no país. 
Amorim aproveitou para pedir aos senadores que aprovem autorização para o Brasil tomar um 
empréstimo‐ponte no Banco Mundial para o Haiti, no montante de US$ 150 milhões. "Como o 
Haiti  é  inadimplente,  não  pode  pegar  o  empréstimo",  disse.  A  operação  já  teria  o  aval  do 
Ministério da Fazenda. 
 
 
 
 
 
 
200 

Folha de S. Paulo 
Editoria/caderno: mundo 
Título: Um ano depois, Haiti amarga incertezas  
Data: 27/02/2005 ‐ domingo 
Crédito: Fabiano Maisonnave, enviado especial a Porto Príncipe 
 
CARIBE 
Missão da ONU, enviada logo após a queda de Aristide, não garante segurança; condições para 
eleição são precárias 
 
Há um ano, todos os 3.000 presos das penitenciárias haitianas ganharam as ruas em meio ao 
caos espalhado pelo país durante a última semana do então presidente Jean‐Bertrand Aristide. 
Oito  dias  atrás,  apesar  da  presença  dos  quase  8.000  militares  e  policiais  das  forças  da  ONU, 
uma invasão na Penitenciária Nacional, na capital Porto Príncipe, proporcionou a fuga de 481 
presos, o equivalente a 20% da população carcerária haitiana. 
A  fuga  em  massa  expôs  a  fragilidade  da  área  considerada  como  a  que  mais  avançou  nos 
últimos  meses  ‐a  da  segurança  pública‐  e  traz  dúvidas  sobre  as  condições  nas  quais  os 
haitianos  irão  às  urnas  no  final  deste  ano  e,  eleito  o  novo  governo,  se  o  Haiti  conseguirá 
romper o ciclo de governos autoritários, de intervenções estrangeiras e, sobretudo, da miséria 
extrema. 
Localizado  no  centro  de  Porto  Príncipe,  o  maior  presídio  do  país  é  um  símbolo  da  falência 
institucional  do  país.  Dos  1.257  detidos  que  havia  ali  antes  da  fuga,  apenas  14  haviam  sido 
condenados.  A  fuga  também  evidenciou  a  fragilidade  da  polícia.  "Você  pode  botar  todo  o 
Exército americano em volta do presídio que, se envolver conivência policial,  eles vão fugir", 
disse à Folha o general Augusto Heleno Pereira, comandante militar da Minustah (Missão de 
Estabilização da ONU no Haiti). 
Há também relatos de que menores de idade estejam presos lá dentro. No domingo passado, 
o artesão Pierre Beausejour, 42, pedia de joelhos informações sobre dois filhos que estariam 
detidos: Chloé, 21, e Michel, 17. 
Mas os presos mais visíveis da penitenciária são o ex‐premiê Yvon Neptune e o ex‐ministro do 
Interior Joséleme Privert,  acusados de  comandar a repressão no governo Aristide.  Eles estão 
presos há dez meses, mas até agora não foram julgados. 
"O  meu  marido  se  considera  um  preso  político  da  comunidade  internacional",  disse  à  Folha 
Jinette Privert, 45. Carregando uma sacola com uma marmita, esperava a chance de entregá‐la 
ao  marido,  como  faz  diariamente.  Era  a  única  bem  vestida  entre  as  dezenas  de  familiares,  a 
maioria mulheres, diante do prédio. 
"É  evidente  que,  enquanto  não  forem  comprovados  os  crimes,  eles  são  presos  políticos", 
afirma Ricardo Seitenfus, que, no final do ano passado, esteve durante um mês no país como 
enviado do governo brasileiro para a equipe de consultores políticos do chefe diplomático da 
ONU no Haiti, Juan Gabriel Valdés. 
 
Bel Air, Cité Soleil 
Palco  de  conflitos  sangrentos  em  outubro  que  deixaram  mais  de  200  de  mortos,  as  favelas 
mais famosas da capital haitiana estão mais seguras, segundo a brigada brasileira, responsável 
pela  segurança  da  maior  parte  da  cidade,  mas  ainda  oferecem  perigo.  Nos  dois  últimos  dias 
quatro soldados brasileiros ficaram feridos ao acompanhar a polícia em Bel Air. Nenhum corre 
risco de morte. 
"Mas  não  matamos  ninguém  até  agora",  afirma  o  general  João  Carlos  Vilela  Morgero, 
comandante da brigada brasileira. Há quem duvide. "Eles usam armamento de calibre grosso 
em missões às 4h da manhã. É difícil usar tanto poder sem vítimas civis", diz Patrick Elie, ex‐
201 

membro  do  gabinete  de  Aristide.  Mas  ele  faz  uma  ressalva:  "Todo  mundo  sabe  a  diferença 
entre o marine americano e o militar brasileiro". 
No fim  de semana passado, a reportagem da Folha  acompanhou uma  patrulha brasileira em 
Bel Air. Em meio às pilhas de lixo, havia uma intensa movimentação de ambulantes, mulheres 
transportando  água  em  baldes  na  cabeça  e  outras  pessoas  perambulando,  sem  motivo 
aparente. 
Em  outubro,  o  cenário  era  diferente:  durante  a  revolta  supostamente  promovida  por 
partidários de Aristide, o comércio e as escolas permaneceram fechadas. 
"Graças aos brasileiros, estamos abertos", disse a irmã Renné, diretora da escola Notre Dame, 
que tem 700 alunos. "Em outubro, não saíamos de casa." 
 
 Folha de S. Paulo 
Editoria/caderno: opinião 
Título: Haiti, ano 1? 
Data: 06/03/2005 ‐ domingo 
Crédito: Ricardo Seitenfus 
 
TENDÊNCIAS/DEBATES 
A  complexidade  da  transição  política  no  Haiti  não  deve  camuflar  os  verdadeiros  e  inadiáveis 
desafios do país. A indispensável realização de eleições competitivas e leais, previstas para o 
final  do  ano,  constitui  uma  etapa,  e  não  um  objetivo  isolado  e  conclusivo.  A  democracia 
representativa, desprovida de conteúdo capaz de resgatar um mínimo de dignidade a milhões 
de haitianos que sobrevivem em condições subumanas, será um simples jogo de cena dos 80 
partidos políticos locais sob o olhar conivente da comunidade internacional. 
________________________________________ 
Os reiterados fracassos da comunidade internacional exigem um repensar de sua estratégia de 
ação no Haiti  
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A  intransigente  defesa  do  multilateralismo  ‐desafio  maior  das  atuais  relações  internacionais‐ 
não pode ser divorciada dos princípios éticos da responsabilidade e da eficácia. A tarefa de que 
se  auto‐incumbiu  o  sistema  das  Nações  Unidas  é  plena  e  indelegável.  Quando,  em  29  de 
fevereiro  de  2004,  Jean‐Bertrand  Aristide  galgou  os  degraus  da  escada  do  avião  que  o 
conduziu a um triste e incerto exílio, ele já o fez na condição de ex‐presidente do Haiti. Poucas 
horas  antes,  "Titid"  havia  firmado  uma  carta  de  renúncia,  a  fim  de  evitar  "um  banho  de 
sangue". 
Pressionado  internamente  por  uma  poderosa,  embora  díspar,  oposição,  composta  por  ex‐
militares e ex‐policiais, por supostos representantes da sociedade civil organizada (Grupo dos 
184), pelo alto clero e, sobretudo, por antigos companheiros de caminhada, desiludidos com 
seu  desgoverno,  o  ex‐padre  dos  pobres  se  fez  vítima  de  um  incêndio  que  ele  mesmo  havia 
ateado. 
Do exterior não poderia vir sua salvação. Ao contrário. Capitaneado pela França, ultrajada pela 
acusação de um débito de US$ 22 bilhões oriundo da época da Independência haitiana (1804), 
o  grupo  de  países  ocidentais  influentes  abandonou  o  ex‐prelado  por  razões  específicas:  os 
Estados Unidos pretendiam evitar uma guerra civil que fizesse ressurgir o fantasma dos "boat 
people"; o Canadá, por sua vez, demonstrou uma compreensível fadiga em face da violência 
governamental  e  do  poço  sem  fundo  provocado  pela  corrupção  e  pelos  desmandos 
recorrentes. 
202 

A  vacância  da  cadeira  presidencial  obrigou  o  Conselho  de  Segurança  das  Nações  Unidas  a 
enviar  com  urgência  uma  Força  Multinacional  Provisória,  composta  pelos  três  países  acima 
citados,  afastando  assim  o  golpe  militar  em  curso.  Em  30  de  abril,  o  CS  criou,  através  da 
resolução 1.542, a Missão das Nações Unidas para a estabilização no Haiti (Minustah). 
Imensa  é,  portanto,  a  responsabilidade  da  comunidade  internacional  no  deslinde  da  atual 
crise.  Contudo  o  caso  haitiano  abriga  singularidades  e  sofisticações  a  exigir  uma  nova 
concepção de intervenção e de cooperação internacional. Sejamos claros e diretos: o Haiti ‐um 
país  sob  transfusão‐  é  economicamente  inviável  e  politicamente  impossível,  se  deixado  à 
própria sorte. Todavia a cooperação estrangeira, que fez do Haiti o país com o maior índice de 
auxílio recebido por habitante no mundo, colhe somente amargos frutos. 
As  frias  estatísticas  mostram  a  cruel  realidade:  apesar  de  paupérrimo,  o  Haiti  conseguiu  a 
proeza  de  empobrecer  ainda  mais  ao  longo  das  últimas  décadas.  O  imenso  inventário  dos 
descalabros é proporcional à lista dos responsáveis. 
Os reiterados fracassos da comunidade internacional, dividida entre indiferença e intervenção 
paternalista,  exigem  um  repensar  de  sua  estratégia  de  ação  no  Haiti.  É  bem  verdade  que  as 
deploráveis  condições  sociais  conduzem  naturalmente  à  comiseração.  Ora,  o  curto  prazo 
torna‐a  má  conselheira.  Assim,  uma  intervenção  que  se  sustente  unicamente  na  indignidade 
da miséria será uma política miserável. 
Para reverter um quadro secular que conduziu um povo irmão, digno e extraordinário à espiral 
infernal  de  descaso  e  de  incúria,  é  indispensável  recriar  o  Estado,  responsabilizar  seus 
dirigentes  e  soltar  as  múltiplas  amarras  que  sufocam  os  projetos  de  desenvolvimento 
socioeconômico.  Somente  assim  poderá  surgir  um  diálogo  nacional  que  desemboque  na 
aceitação  das  diferenças  e  no  gerenciamento  dos  conflitos.  Todavia,  para  alcançar  esses 
objetivos mínimos, além de recursos financeiros e do apoio técnico provenientes do exterior, o 
Haiti clama pela "aretê" grega, ou seja, por homens e mulheres orientados pela busca do bem 
comum. 
Esperemos que a comunidade internacional, sob inspiração da América Latina e liderança do 
Brasil, consiga reverter o tenebroso quadro haitiano, colocando um termo ao caos e à extrema 
dependência que precipitaram a antiga "pérola das Antilhas" aos baixios da desumanidade.  
________________________________________ 
Ricardo  Antônio  Silva  Seitenfus,  56,  doutor  em  relações  internacionais  pelo  Instituto 
Universitário de Altos Estudos Internacionais da Universidade de Genebra (Suíça), é professor 
titular  de  direito  internacional  público  e  de  organizações  internacionais  na  Universidade 
Federal de Santa Maria (RS). Foi o mediador político enviado pelo Brasil ao Haiti, em 2004. 
 
Folha de S. Paulo 
Editoria/caderno: mundo 
Título: Rumsfeld se diz preocupado com Venezuela  
Data: 24/03/2005 ‐ quinta‐feira 
Crédito: Eduardo Scolese, da sucursal de Brasília 
 
VISITA AO BRASIL 
Secretário afirma que militarização venezuelana pode gerar instabilidade e elogia atuação 
brasileira no Haiti  
 
O  secretário  da  Defesa  dos  EUA,  Donald  Rumsfeld,  expressou  ontem,  em  Brasília,  a 
preocupação americana com a estabilidade da América Latina diante do governo venezuelano 
de Hugo Chávez. 
203 

Para Rumsfeld, as recentes negociações da Venezuela com a Rússia para a aquisição de 100 mil 
fuzis  para  suas  Forças  Armadas  devem  ser  vistas  com  cautela  e  como  um  possível  ponto 
negativo. 
No  Ministério  da  Defesa,  Rumsfeld  disse:  "Certamente,  estou  preocupado.  Se  alguém  presta 
atenção  na  discussão,  ela  diz  respeito  à  importação  de  100  mil  fuzis  AK‐47  que  saíram  da 
Rússia possivelmente para a Venezuela. Não sei se isso já está firmado, mas eu li a respeito e 
fiquei sabendo não apenas na imprensa mas também em contatos bilaterais". 
Rumsfeld  admitiu  torcer  contra  a  oficialização  do  acordo,  que  prevê  ainda  a  aquisição  de 
helicópteros e caças russos. "Não posso imaginar o que vai acontecer com 100 mil fuzis. Não 
posso imaginar o porquê de a Venezuela precisar deles. Eu só espero que isso não aconteça. E, 
se isso por acaso acontecer, não sei se será positivo para o hemisfério", disse. 
Para os EUA, parte das armas poderia acabar com a guerrilha terrorista Farc (Forças Armadas 
Revolucionárias da Colômbia), vista pelos EUA como uma organização terrorista internacional. 
Após ouvir Rumsfeld, o vice e ministro da defesa do Brasil, José Alencar disse: "O Brasil sempre 
defendeu e continua defendendo a autodeterminação dos povos e a não‐intervenção". 
 
 
Haiti 
Rumsfeld, que também esteve com o presidente Luiz Inácio Lula da Silva, enalteceu a atuação 
do Brasil desde o ano passado no comando da Minustah (Missão da ONU de Estabilização no 
Haiti). 
"Gostaria de mencionar particularmente o papel de liderança do Brasil no Haiti, coordenando 
o  apoio  ao  país  na  ONU.  O  Brasil  tem  dado  uma  contribuição  bem‐vinda  à  estabilidade  no 
nosso hemisfério, e isso é, certamente, um crédito para o povo brasileiro." 
Mas  o  secretário  se  esquivou  ao  ser  indagado  se  a  atuação  no  Haiti  fortalece  a  obsessão 
brasileira  de  ocupar  um  assento  permanente  no  Conselho  de  Segurança  da  ONU.  "O 
Departamento da Defesa não tem voz ou qualquer papel no CS. Isso é atribuição do presidente 
[George W. Bush] e do Departamento de Estado." 
Temas espinhosos, como o suposto foco terrorista na região da Tríplice Fronteira entre Brasil, 
Argentina e Paraguai e um eventual monitoramento dos EUA do espaço aéreo sul‐americano, 
não faziam parte do encontro de ontem, segundo o secretário americano. 
Rumsfeld agradeceu a "hospitalidade brasileira", enalteceu a colaboração do país com as ações 
mundiais de combate ao terror após o 11 de Setembro e disse que os brasileiros deveriam ter 
"orgulho" do trabalho do assessor especial da ONU para o Iraque Sérgio Vieira de Mello, morto 
em 2003. 
 
 Folha de S. Paulo 
Editoria/caderno: opinião 
Título: Conselho de Segurança a qualquer custo?  
Data: 29/05/2005 ‐ domingo 
Crédito: Carlos Eduardo Gaio e James Louis Cavallaro 
 
O  Itamaraty  finalmente  vê  seu  pleito  de  um  assento  permanente  no  Conselho  de  Segurança 
(CS)  da ONU  começar a ser discutido seriamente. Desde que o secretário‐geral da ONU, Kofi 
Annan,  publicou  o  relatório  "Por  Maior  Liberdade",  propondo  mudanças  concretas  para  as 
Nações Unidas, praticamente todas as atenções do governo brasileiro estão voltadas para esse 
assunto. 
A  idéia  de  que  o  Brasil  merece  uma  cadeira  permanente  no  Conselho  de  Segurança  já  vinha 
sendo  discretamente  perseguida  pelo  governo  Fernando  Henrique  Cardoso.  Desde  2003,  no 
204 

entanto,  a  diplomacia  brasileira,  dita  "ativa  e  altiva",  vem  intensificando  suas  ações  e 
trabalhando em ritmo acelerado. 
Deixando  de  lado  a  histórica  rivalidade  com  a  Argentina  no  tocante  à  liderança  regional  do 
Brasil,  aflorada  e  calorosamente  debatida  nas  últimas  semanas,  não  há  dúvidas  sobre  a 
necessidade de uma representatividade regional mais balanceada naquele órgão. Desde logo, 
é preciso deixar claro que apoiamos a iniciativa brasileira em pleitear seu ingresso, bem como 
defendemos  a  revisão  do  direito  exclusivo  de  veto,  um  poder  desequilibrado  que  permite  a 
imposição  de  posições  arbitrárias  por  um  grupo  limitado  de  países.  No  entanto,  é  preciso 
questionar  o  que  parece  ser  a  política  brasileira  a  esse  respeito:  a  de  buscar  uma  vaga 
permanente no Conselho de Segurança a qualquer custo. 
________________________________________ 
Tudo  leva  a  crer  que  o  Brasil,  com  a  mirada  no  CS,  estaria  sendo  omisso  e  conivente  com 
desrespeito aos direitos humanos  
________________________________________ 
 
Como  parte  dessa  política,  o  governo  brasileiro  decidiu  liderar  a  missão  de  estabilização  da 
ONU  (Minustah),  criada  com  a  resolução  1.542/2004  do  Conselho  de  Segurança,  adotada  no 
dia  30  de  abril  de  2004.  Como  documentamos  no  recente  relatório  "Mantendo  a  Paz  no 
Haiti?",  baseado  em  nossas  visitas  ao  Haiti  ao  longo  dos  últimos  meses,  a  atuação  da  ONU 
naquele país, para a qual o Brasil contribui decisivamente, é lamentável. 
O  resultado  dessa  falha  é  trágico:  grupos  armados  continuam  a  espalhar  terror  na  capital, 
Porto  Príncipe;  membros  do  antigo  exército  haitiano  ‐que  fora  desmantelado  em  1995‐,  que 
participaram  na  recente  rebelião  que  levou  à  saída  de  Aristide,  continuam  controlando 
importantes  áreas  do  planalto  central  do  país,  atuando  ilegalmente  como  força  de  ordem  e 
segurança.  Enquanto  isso,  a  polícia  nacional  haitiana  continua  perseguindo,  violentando  e 
assassinando haitianos, muitas vezes até com cobertura de tropas da ONU. 
Apesar  de  receber  relatórios  e  mais  denúncias  sobre  os  problemas  no  Haiti,  o  governo 
brasileiro mostra uma reação que tem sido nula em termos práticos. 
Em  31  de  março  de  2005,  numa  decisão  histórica,  o  Conselho  de  Segurança  decidiu 
encaminhar  a  crítica  situação  de  Darfur,  no  Sudão,  para  o  recém‐criado  Tribunal  Penal 
Internacional (TPI). 
Essa é a primeira vez que o CS envia um caso para o TPI, vencendo inclusive a resistência de 
seu principal opositor, os Estados Unidos da América. O resultado dessa votação mostrou que 
apenas  Estados  Unidos,  China,  Argélia  e  Brasil  se  abstiveram.  Facilmente  deduzível  por  que 
Argélia e China, dois países com violações massivas e sistemáticas de direitos humanos e bons 
candidatos a terem os seus nacionais processados pelo TPI, se opõem à decisão. 
Mas por que o Brasil não quer que o TPI investigue  denúncias de genocídio, crimes contra  a 
humanidade, no Sudão? Apesar da declaração do embaixador Sardenberg, de que o Brasil não 
estaria de acordo com uma concessão técnica feita aos EUA, parece que a razão para a posição 
brasileira pode ser outra. 
Há poucas semanas, o jornalista Joel Brinkley afirmou em artigo no New York Times que uma 
delegação  brasileira  em  visita  ao  Sudão,  em  fevereiro,  teria  prometido  ao  governo  daquele 
país não apoiar punições da ONU contra o Sudão em troca de apoio à pretensão brasileira no 
Conselho de Segurança. 
Se  a  informação  do  jornalista  for  de  fato  verídica,  o  Brasil  estaria  ignorando  dezenas  de 
milhares de  mortes e o sofrimento de vítimas inocentes, mulheres violentadas e estupradas, 
crianças órfãs e sem perspectivas. É dizer: se o governo brasileiro não desmentir publicamente 
o que foi divulgado pelo jornal americano, tudo leva a crer que o Brasil, com a mirada única na 
hipotética cadeira no grupo dos países mais poderosos, estaria sendo omisso e conivente com 
uma terrível situação de desrespeito aos direitos humanos. 
205 

A  Organização  das  Nações  Unidas  foi  erigida  sobre  princípios  de  humanidade,  respeito  aos 
direitos humanos e à liberdade. Tanto a tragédia no Haiti como o genocídio de Darfur, que o 
governo  brasileiro  parece  ignorar  e  usar  como  barganha,  não  nos  deixam  esquecer  das 
questões práticas e prementes a serem analisadas vis‐à‐vis ao Conselho de Segurança da ONU. 
Diante de tão delicadas questões, é imprescindível que a sociedade brasileira indague: a que 
custo o Brasil está buscando seu assento no Conselho de Segurança? 
________________________________________ 
Carlos Eduardo Gaio, 27, advogado, é coordenador de relações internacionais da ONG Justiça 
Global. 
James  Louis  Cavallaro,  41,  advogado,  é  diretor  de  relações  internacionais  da  ONG  Justiça 
Global  e  diretor  do  Programa  de  Direitos  Humanos  e  membro  do  corpo  docente  da  Harvard 
Law School. @ ‐ global@global.org.br  
 
Folha de S. Paulo 
Editoria/caderno: mundo 
Título: Contra críticas, ministro de Lula voa para o Haiti  
Data: 11/06/2005 ‐ sábado 
Crédito: Fabiano Maisonnave, da redação 
 
CARIBE 
O presidente Luiz Inácio Lula da Silva envia hoje ao Haiti o ministro‐chefe do GSI (Gabinete de 
Segurança Institucional), general Jorge Armando Felix, para demonstrar apoio ao trabalho do 
comandante  da  missão  de  paz  da  ONU,  o  general  brasileiro  Augusto  Heleno  Pereira,  alvo de 
duras críticas nos últimos dias. 
O principal assessor militar da Presidência também recolherá informações sobre a situação do 
país,  que  enfrenta  uma  nova  onda  de  seqüestros  e  violência  em  sua  capital,  para  repassar  a 
Lula.  É  provável  que  ele  se  encontre  com  o  primeiro‐ministro  haitiano,  Gérard  Latortue.  Ao 
todo, Felix ficará cerca de um dia e meio no que será sua primeira viagem ao Haiti. 
"Na  condição  de  comandante‐em‐chefe  das  Forças  Armadas,  desejo  reiterar  o  meu  orgulho 
pelo modo como as tropas brasileiras e as de outras nacionalidades sob o comando de Vossa 
Excelência  têm  desempenhado  uma  missão  de  grande  delicadeza  política  e  de  enorme 
complexidade  militar.  Estou  certo  de  que  a  opinião  pública  brasileira  está  consciente  dos 
desafios enfrentados por todos os oficiais e praças da Minustah [missão de paz da ONU]", diz a 
mensagem assinada por Lula. 
A missão de paz da ONU tem sido criticada por não deter a recente onda de violência em Porto 
Príncipe,  quase  toda  sob  a  responsabilidade  das  tropas  brasileiras.  Em  mais  um  incidente  na 
capital  envolvendo  tropas  da  ONU,  um  militar  boliviano,  um  jordaniano  e  dois  voluntários 
locais da Cruz Vermelha haitiana foram baleados anteontem de manhã na favela de Cité Soleil. 
Um dos voluntários está em estado grave. 
 
Folha de S. Paulo 
Editoria/caderno: mundo 
Título: Apesar da ONU, Haiti vira "terra de ninguém"  
Data: 12/06/2005 ‐ domingo 
Crédito: Fabiano Maisonnave, da redação 
 
MISSÃO NO CARIBE 
Haitiano já não distingue crimes comuns da violência por motivação política; crescem ataques 
a capacetes azuis 
 
206 

Sob crescentes críticas dentro e fora do país, a missão de paz da ONU no Haiti comandada pelo 
Brasil está completando um ano neste mês envolta em mais uma onda de violência na capital, 
Porto  Príncipe,  o  que  ameaça  inviabilizar  as  eleições  gerais  marcadas  para  o  segundo 
semestre. 
Depois de um período relativamente calmo no início do ano, a capital haitiana voltou a viver 
dias de violência semelhantes a setembro do ano passado, quando um levante promovido por 
partidários do ex‐presidente Jean‐Bertrand Aristide provocou dezenas de mortes na capital e o 
fechamento do comércio e das escolas. 
Desta  vez,  além  dos  tiroteios  constantes,  a  cidade  sofre  com  uma  epidemia  de  seqüestros. 
Segundo a polícia haitiana, foram ao menos 350 casos entre os dias 25 de fevereiro e 31  de 
maio. 
"A situação tem piorado nos últimos meses", disse à Folha Ali Besnaci, chefe da missão da ONG 
Médicos Sem Fronteiras em Porto Príncipe, que trata apenas casos de violência, como pessoas 
baleadas e vítimas de abuso sexual. 
Localizada dentro de um hospital haitiano, a missão recebe pacientes da favela de Cité Soleil. 
Com 500 mil habitantes, é tida como a região mais violenta do país. 
Na  semana  passada,  o  Comitê  Internacional  da  Cruz  Vermelha  (CICV)  divulgou  uma  nota  na 
qual diz que o país atravessa uma "crise humanitária crônica, provocada por uma conjunção de 
fatores como instabilidade política, violência e desastres naturais recorrentes". 
Segundo o CICV, cerca de 200 corpos são encontrados abandonados todos os meses em Porto 
Príncipe, conseqüência da violência "política e criminal". 
"Os  haitianos  (...)  vivem  amedrontados  pela  violência  motivada  por  razões  políticas  e  pela 
criminalidade comum. A linha que separa as duas formas de violência está cada vez mais difícil 
de  ser  distinguida",  afirma  o  CICV.  Essa  interpretação  é  praticamente  consensual  entre 
analistas e organizações humanitárias. 
A  violência  contra  as  tropas  da  ONU  também  aumentou  no  primeiro  semestre  deste  ano, 
quando  cinco  capacetes  azuis  foram  mortos  a  tiros.  Nos  primeiros  seis  meses  da  missão, 
ninguém havia sido morto. 
Os militares brasileiros têm sido cada vez mais alvo de disparos. No primeiro contingente, que 
atuou  até  dezembro,  apenas  um  soldado  havia  sido  ferido.  No  segundo  contingente,  esse 
número subiu para cinco. E o terceiro contingente, que acaba de chegar, teve o primeiro caso 
na semana passada. Nenhum brasileiro foi ferido com gravidade. Cada contingente permanece 
cerca de seis meses no país. 
A Folha solicitou à Brigada Brasileira, responsável por parte da segurança da região de Porto 
Príncipe, estatísticas sobre a evolução mensal dos registros de violência, mas foi informada de 
que  os  números  estão  atualmente  indisponíveis  por  causa  do  processo  de  troca  de 
contingente. 
"Posso  adiantar  que  nossos  dados  estatísticos  demonstram  melhora  sensível  na  situação  na 
área  sob  a  responsabilidade  do  batalhão",  afirmou  o  ex‐comandante  Luciano  Puchalski,  que 
até a semana passada coordenava a coleta e análise de informações sobre a violência na área 
de atuação dos 1.200 soldados brasileiros. 
 
Pressão americana 
Acostumados a intervir no Haiti, os Estados Unidos têm demonstrado impaciência com a falta 
de resultados no país. Há uma semana, o jornal "Washington Post" noticiou que a embaixada 
norte‐americana  no  país  havia  recomendado  ao  governo  de  George  W.  Bush  o  envio  de 
marines para garantir a segurança nas eleições de outubro e novembro. 
Em  visita  ao  Haiti  na  última  quinta‐feira,  o  subsecretário  de  Estado  dos  EUA  para  a  América 
Latina, Roger Noriega, exortou a missão liderada pelo Brasil a ser mais "pró‐ativa" no combate 
207 

às gangues, mas negou especulações de que Washington poderia enviar militares para reforçar 
a segurança do país. 
O  chefe‐de‐gabinete  do  governo  haitiano,  Michel  Brunache,  disse  que  a  chegada  de  marines 
americanos  seria  "bem‐vinda"  e  que  a  população  tem  "cada  vez  menos"  confiança  nos 
capacetes azuis. 
O especialista em relações internacionais Ricardo Seitenfus, que no ano passado foi enviado ao 
Haiti pelo Itamaraty para acompanhar as negociações políticas, defende o trabalho brasileiro. 
Segundo ele, "evitamos o pior, que seria uma guerra civil". 
"O nosso modelo é de diálogo, com baixo índice de intervenção militar, de associar a presença 
militar  à  tentativa  de  resolver  as  questões  socioeconômicas  e  o  diálogo  político",  afirma. 
"Devemos continuar prestando esse serviço, mas colocando como condição dois elementos: o 
diálogo político e a questão socioeconômica como problemas a serem enfrentados." 
Como  resposta  às  críticas,  o  presidente  Luiz  Inácio  Lula  da  Silva  enviaria  ontem  ao  Haiti  o 
ministro‐chefe do GSI (Gabinete de Segurança Institucional), general Jorge Armando Felix, que 
levou  uma  mensagem  de  apoio  ao  comandante  da  Minustah  (missão  de  paz  da  ONU),  o 
general brasileiro Augusto Heleno Pereira.  
 
Folha de S. Paulo 
Editoria/caderno: opinião 
Título: Haiti: um grande desafio  
Data: 11/09/2005 ‐ domingo 
Crédito: Augusto Heleno Ribeiro Pereira 
 
Desculpas  adiam  providências  urgentes  e  obrigam  os  militares  a  ações  humanitárias  que 
fogem a sua alçada  
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Há  11  dias,  passei  o  comando  da  força  militar  da  Missão  da  ONU  para  Estabilização  do  Haiti 
(Minustah)  ao  general  Urano  Bacellar.  Vivi,  durante  15  meses,  uma  experiência  fantástica, 
pessoal  e  profissional.  Comandei  um  efetivo  de  6.250  militares  "capacetes  azuis",  reunindo 
contingentes  de  13  países,  sete  deles  latino‐americanos,  e  oficiais  de  Estado‐maior  de  23 
nações. Todos deram tudo de si para cumprir cabalmente as missões recebidas. 
A caótica realidade socioeconômica do país levou‐me a concluir, de imediato, que construir um 
ambiente  seguro  e  estável  seria  viável  se  combinássemos  segurança  com  projetos  de  infra‐
estrutura  e  desenvolvimento.  A  doação  de  mais  de  US$  1  bilhão,  na  Conferência  de 
Washington,  em  julho  de  2004,  fez‐me  crer  que  canteiros  de  trabalho,  tropas  e  polícia 
desdobrar‐se‐iam, simultaneamente, pelas diversas regiões do país. 
Entretanto  desculpas  inconsistentes  continuam  adiando  providências  urgentes  no  campo 
econômico  e  social,  obrigando  os  militares  a  realizar  ações  humanitárias  que  fogem  a  sua 
alçada. 
Várias  vezes,  expressei  minha  discordância  quanto  à  estratégia  adotada  pela  "comunidade 
internacional"  em  relação  ao  Haiti.  Fazia  eco  às  manifestações  de  desapontamento  do 
embaixador chileno Juan Gabriel Valdés, representante especial do secretário‐geral da ONU e 
chefe da missão, e dos governos de países latinos. O Brasil e a Espanha ameaçaram, inclusive, 
retirar seus efetivos militares. Até agora, pouquíssimo aconteceu de prático e visível. 
Deixei o Haiti convicto de que somente a geração maciça de postos de trabalho melhorará as 
condições  de  vida  e  criará  uma  esperança  de  futuro  para  os  jovens  haitianos.  Exigir  uma 
segurança  impecável  para  aplicar  recursos  quando  80%  da  força  de  trabalho  não  possui 
emprego  formal  e  70%  do  povo  sobrevive  miseravelmente  com  uma  refeição  diária  soa 
utópico e até mesmo cruel. 
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Até  agora,  cabe  quase  que  exclusivamente  aos  vetores  de  segurança  criar  condições  para  o 
cumprimento  da  resolução  do  Conselho  de  Segurança  da  ONU.  Um  desses  vetores,  a  Polícia 
Nacional  do  Haiti  (PNH),  única  força  legal  do  país,  reconhecidamente  destemida,  enfrenta 
sérios  problemas  de  equipamento,  pessoal  e  adestramento,  além  de  ser  alvo  de  acusações 
freqüentes  de  envolvimento  em  atos  ilícitos.  Por  isso,  operações  conjuntas,  necessárias  e 
inevitáveis, constituem, sempre, fator de risco para os capacetes azuis. 
Li e ouvi acusações contra a Minustah. Injustas e precoces, esquecem que a instalação de uma 
missão de paz advém de uma série crise e da necessidade de evitar um mal maior. No caso do 
Haiti, inegavelmente um grande desafio, até os pessimistas de plantão reconhecem que, sem a 
intervenção da ONU, teria explodido uma sangrenta guerra civil. 
A  Minustah,  apenas  em  dezembro  de  2004,  atingiu  um  efetivo  próximo  do  previsto  pelo 
mandato.  Ainda  assim,  realiza  um  profícuo  trabalho.  Há  cinco  meses,  o  interior  do  Haiti 
encontra‐se inteiramente  calmo. Porto Príncipe, capital do  país, viveu, em maio e junho,  um 
pico  de  violência.  O  número  de  seqüestros  cresceu,  e  ações  de  gangues  armadas  contra 
estabelecimentos  comerciais  e  industriais  ameaçaram  a  frágil  economia  haitiana.  Por 
coincidência, renovávamos, à época, os contingentes responsáveis pela segurança da cidade: 
Brasil, Jordânia, Peru e Sri Lanka. 
Graças à atuação conjunta de militares, PNH e polícia internacional, controlamos a situação, e 
a  cidade  retomou  a  tranqüilidade.  O  terceiro  contingente  brasileiro,  melhor  treinado  e 
valendo‐se  da  experiência  dos  anteriores,  restabeleceu,  apoiado  pela  população,  a  lei  e  a 
ordem  no  bairro  crítico  de  Bel  Air.  Resta,  ainda,  uma  única  área  problema:  a  paupérrima  e 
gigantesca  favela  de  Cité  Soleil,  com  cerca  de  300  mil  habitantes,  isolada  e  subjugada  a 
gangues que, diariamente, enfrentam, à bala, as patrulhas de capacetes azuis. 
A situação exigirá um trabalho duro, persistente e demorado, incluindo ações de governo, em 
uma solução compatível com uma força de paz, sem o uso indiscriminado da violência, como 
desejam alguns inescrupulosos. 
As  eleições  acontecerão,  com  certeza.  Mais  de  400  postos,  espalhados  em  todo  o  país,  já 
acolheram  mais  de  2  milhões  de  inscritos,  sem  qualquer  incidente  relevante.  Como  insiste  o 
embaixador  Valdés,  não  serão  eleições  austríacas  nem  suíças.  Esperamos  dos  julgadores  a 
mesma tolerância demonstrada ao analisar pleitos efetuados, recentemente, em outras zonas 
"quentes". 
Penso que o futuro do Haiti depende, fundamentalmente, da participação solidária dos países 
latino‐americanos.  Nossa  familiaridade  com  problemas  semelhantes  poderá  ajudar  o  futuro 
governo na busca de soluções viáveis e duradouras. 
Espero que o fantástico e sofrido povo haitiano, pioneiro na conquista da sua independência, 
assuma  o  papel  que  lhe  cabe,  esqueça  as  desavenças  do  passado,  aproveite  a  presença 
estrangeira  (bem‐intencionada  e  financeiramente  poderosa),  escolha  bem  os  seus  futuros 
governantes  e  se  una  em  torno  de  um  pacto  de  governabilidade,  capaz  de  restabelecer  a 
democracia e o Estado de direito, reconstruir o país e pavimentar um futuro melhor. 
Augusto Heleno Ribeiro Pereira, 57, general‐de‐divisão combatente do Exército brasileiro, foi 
comandante  militar  da  Missão  das  Nações  Unidas  para  Estabilização  do  Haiti  (Minustah)  de 
junho de 2004 a setembro de 2005.  
 
 
 
 
 
 
 
 
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Folha de S. Paulo 
Editoria/caderno: mundo 
Título: ONGs acusam Brasil de violações no Haiti  
Data: 16/11/2005 ‐ quarta‐feira 
Crédito: Iuri Dantas, de Washington 
 
MISSÃO NO CARIBE 
Grupo de ativistas americanos diz à OEA que soldados brasileiros da ONU participaram de 
massacre 
 
O  Brasil  foi  denunciado  ontem  à  Comissão  Interamericana  de  Direitos  Humanos  da  OEA 
(Organização  dos  Estados  Americanos)  sob  a  acusação  de  participação  ativa  e  omissão  em 
supostas chacinas no Haiti. A denúncia é de grupos de ativistas americanos. O Brasil lidera os 
militares da  Missão de Estabilização da ONU no Haiti (Minustah), sob o comando do general 
Urano Bacellar. 
"Aqueles mortos pelas forças da Polícia Nacional Haitiana e pela Minustah incluem uma longa 
lista  de  homens,  mulheres  e  crianças  desarmados.  Nenhum  esforço  foi  feito  para  reduzir  as 
mortes  de  civis  e  transeuntes.  Em  muitos  casos,  essas  vítimas  não  são  "dano  colateral"  das 
operações,  acidentalmente  surpreendidas  em  fogo  cruzado,  mas  intencionalmente  visadas  e 
mortas pela polícia e/ou forças da Minustah", diz a petição entregue à comissão. 
O lingüista Noam Chomsky também apóia as denúncias, de acordo com os organizadores, mas 
ele não assina a petição. 
O  grupo  responsável  pela  denúncia  disse  ter  obtido  gravações  em  vídeo  e  depoimentos  de 
haitianos que comprovariam os incidentes. O material, porém, não foi repassado à imprensa 
ontem. 
Depois de analisar os dados, a comissão deve solicitar uma resposta oficial do Brasil a respeito 
das  supostas  violações  de  direitos  humanos,  antes  de  decidir  se  inicia  um  processo  contra  o 
país. 
"As informações e relatos vêm de diferentes fontes, de diferentes classes sociais, de diferentes 
bairros.  É  implausível  que  tenham  organizado  uma  versão",  disse  Seth  Donelly,  da  ONG  US 
Labor. 
Um suposto massacre no dia 6 de julho de 2004 compõe a base da denúncia. No episódio, a 
Minustah contabiliza cinco mortos. Já moradores e médicos ouvidos na denúncia encaminhada 
dizem  que  63  pessoas  morreram  e  14  desapareceram.  A  maioria  dos  mortos  teria  recebido 
tiros na cabeça. 
Dias antes, em 29 de junho, uma outra ação dos capacetes azuis teria resultado na morte de 
um haitiano em cadeira de rodas, William Merci, em Bel Air, com um tiro na cabeça. Um vídeo 
do corpo e depoimentos indicariam a participação de tropas brasileiras. 
"Não importa quem esteja no comando. Os brasileiros são adorados pela população haitiana 
por conta do futebol. Quem lidera as tropas vai aplicar a política da ONU que é ditada pelos 
EUA. Está tudo errado desde o início", afirmou Lionel Jean‐Batiste, vereador em Illinois. 
Na denúncia, o Brasil é considerado culpado pela ação direta de seus soldados em mortes de 
civis e também por omissão frente à ação violenta da Polícia Nacional Haitiana. De acordo com 
o  relatório,  integrariam  a  polícia  grupos  de  criminosos  locais  que  agora  se  vingam  contra  a 
população. 
Contabilizam  14  as  assinaturas  na  petição.  Entre  os  que  endossam  estão  as  ONGs  Global 
Exchange,  Irmandade  de  Reconciliação,  Instituto  para  a  Justiça  e  Democracia  no  Haiti  e  US 
Labor, a Associação Nacional de Advogados, o professor de geologia Joseph Nevins, do Vassar 
College e a Conferência de Advogados Negros de Chicago. 
A equipe responsável pela denúncia foi a Cité Soleil no dia seguinte às mortes de 6 de julho. 
210 

Os EUA também foram denunciados sob a acusação de "armar e apoiar diplomaticamente" a 
polícia  haitiana  após  a  queda  do  então  presidente,  Jean‐Bertrand  Aristide,  em  fevereiro  de 
2004 
 
Folha de S. Paulo 
Editoria/caderno: opinião 
Título: Os ônus do Haiti 
Data: 17/11/2005 – quinta‐feira 
Crédito: editorial não‐assinado 
 
A  denúncia  de  que  militares  brasileiros  estariam  envolvidos  em  chacinas  no  Haiti, 
independentemente  de  ser  ou  não  verdadeira,  corrobora  a  tese  de  que  a  paupérrima  ilha 
caribenha transformou‐se num atoleiro para o Brasil. 
As  acusações,  feitas  por  ativistas  norte‐americanos  à  Comissão  Interamericana  de  Direitos 
Humanos  da  OEA  (Organização  dos  Estados  Americanos),  precisam  ser  investigadas,  embora 
outras  fontes  abalizadas  sustentem  que,  se  a  Minustah  (Missão  de  Estabilização  das  Nações 
Unidas  no  Haiti),  cujo  comando  militar  é  do  Brasil,  errou,  foi  mais  por  omissão  do  que  por 
ações concretas. 
De toda maneira, a denúncia funciona como um termômetro da deterioração tanto do cenário 
político  como  do  prestígio  das  forças  estrangeiras.  Uma  acusação  como  essa  teria  sido 
impensável durante os primeiros meses da missão, que teve início em junho do ano passado. 
Esta Folha foi favorável à colaboração do Brasil com as forças da ONU, mas já há meses vem 
alertando  para  os  problemas  ocasionados  pela  falta  de  uma  ação  conjunta  da  comunidade 
internacional. Ao que tudo indica, à medida que o tempo passa, a situação tende a piorar. A 
eleição  presidencial,  que  deveria  ser  o  início  da  normalização  do  Haiti,  já  sofreu  quatro 
postergações ‐estando prevista, agora, para meados de dezembro. 
É  também  desalentador  que  grande  parte  da  ajuda  prometida  por  diversos  países  em  2004 
jamais  tenha  chegado  à  ilha.  E  dificilmente  chegará.  O  Haiti  não  é  o  único  país  miserável  do 
planeta  que  cobra  apoio  externo,  e  os  EUA,  potência  que  realmente  faz  a  diferença,  têm 
outras prioridades internacionais no momento. 
Diante desse quadro, o Brasil vê‐se na incômoda posição de comandar uma missão que vai se 
tornando  cada  vez  mais  impossível.  Sendo  assim,  os  brasileiros  ficam  com  os  ônus  políticos 
pelo fracasso. Para não torná‐los muito evidentes, o país permanece no Haiti apenas fingindo 
que tudo corre bem. 
 
Folha de S. Paulo 
Editoria/caderno: mundo 
Título: Morte abala política externa de Lula  
Data: 08/01/2006 ‐ domingo 
Crédito: Eliane Castanhede, colunista da folha; Eduardo Scolese, da sucursal de Brasília 
 
A morte do general Urano Bacellar, ontem, em Porto Príncipe (Haiti), foi um duro golpe tanto à 
política externa do governo Luiz Inácio Lula da Silva como ao Exército, como instituição. 
Liderada pelo Brasil, a missão de paz da ONU no Haiti tem servido como um dos alicerces do 
Itamaraty para vender ao mundo a possibilidade de o país obter um assento permanente no 
Conselho de Segurança das Nações Unidas. 
Em  2004,  ao  receber  dos  EUA  o  comando  da  missão  haitiana,  o  Brasil  passou  a  liderar  pela 
primeira vez uma força da ONU justamente para chamar a si uma maior responsabilidade nas 
ações da instituição. 
211 

Agora,  com  a  morte  de  Bacellar,  o  governo  sabe  que  aumentarão  as  críticas  e  terá  de  dar 
explicações cada vez mais constantes, principalmente no Congresso, se vale a pena arriscar a 
vida  de  homens  brasileiros  em  troca  de  uma  aspiração  da  política  externa  ‐desgastada  na 
semana  passada  pelo  fato  de  o  Japão  ter  desistido  de  assinar  o  projeto  de  reforma  do 
Conselho de Segurança apoiado por Brasil, Índia e Alemanha. 
Já no Exército o desgaste pode vir da eventual confirmação de que o comandante da Minustah 
cometeu suicídio em seu alojamento em Porto Príncipe. 
Casos  de  suicídio  são  comuns  nas  Forças  Armadas,  mas  não  entre  oficiais  generais.  Tal 
confirmação ocorreria no momento em que a auto‐estima dos militares não é das melhores. O 
próprio  comandante  do  Exército,  general  Francisco  Roberto  de  Albuquerque,  tem  admitido 
publicamente o sucateamento da Força e a impossibilidade de seus comandados fazerem três 
refeições diárias. 
Até  o  início  da  tarde  de  ontem  o  Itamaraty  não  tinha  a  confirmação  do  motivo  da  morte  de 
Bacellar  porque  o  exame  de  balística  ainda  estava  sendo  efetuado.  No  Haiti,  as  tropas 
brasileiras foram informadas do fato durante uma missão numa favela da capital. 
Na  tarde  de  ontem,  eram  aventadas  duas  possibilidades.  Uma,  que  o  Exército  encampou 
rapidamente, de que a morte foi acidental, e a outra, também considerada no Itamaraty, que 
era  a  de  suicídio.  Mas  os  diplomatas  não  queriam  falar  nada  oficialmente  por  falta  de 
confirmação técnica. 
O  ministro  Celso  Amorim  (Relações  Exteriores),  que  estava  no  Rio  com  a  família,  retornou  a 
Brasília,  onde  se  reuniu  com  o  ministro  da  Defesa  e  vice‐presidente,  José  Alencar,  e  com 
assessores do Ministério da Defesa e do comando do Exército no fim da tarde. 
O  chanceler  também  conversou  sobre  o  fato  com  o  secretário‐geral  da  ONU,  Kofi  Annan,  e 
com a secretária de Estado americana, Condoleeza Rice. 
Em nota, o Itamaraty afirmou que o general era "conhecido por seu preparo e competência" e 
"vinha  conduzindo  com  excelência  e  grande  responsabilidade  a  difícil  tarefa  de  comandar  o 
componente  militar  da  missão",  e  disse  que  Lula  "reitera  sua  plena  confiança  no  trabalho 
desenvolvido pelas tropas brasileiras no Haiti e reafirma a determinação do governo brasileiro 
de continuar apoiando o povo haitiano na construção da paz e normalização política" do país. 
Por fim, o texto pede que a ONU "conduza imediata e ampla investigação sobre o assunto" e 
dispõe  que  autoridades  da  Defesa,  das  Relações  Exteriores  e  do  Gabinete  de  Segurança 
Institucional acompanhem o processo. 
Amorim  conheceu  pessoalmente  o  general  Bacellar  na  última  vez  em  que  esteve  em  Porto 
Príncipe,  após  voltar  de  Nova  Iorque,  no  final  do  ano  passado.  A  assessores,  o  ministro 
descreveu o general como "uma pessoa muito afável, gentil e que parecia muito satisfeito com 
o trabalho que desempenhava em nome do governo brasileiro". 
 
Folha de S. Paulo 
Editoria/caderno: mundo 
Título: Emoção marca homenagem a general Bacellar  
Data: 10/01/2006 ‐ terça‐feira 
Crédito: do enviado a Porto Príncipe 
 
Um  grupo  de  soldados  brasileiros  da  Minustah  (Missão  de  Estabilização  da  ONU  no  Haiti) 
interrompeu ontem a rotina de patrulhas nas ruas de Porto Príncipe para assistir a uma breve 
cerimônia religiosa fúnebre em homenagem ao general Urano Bacellar. 
Muitos  se  emocionaram  ao  ver  o  caixão  deixar  o  pavilhão  do  hospital  argentino  ‐ao  som  do 
toque de silêncio, executado, com cornetas, por homens das Forças Armadas. 
212 

"Pedimos  a  Deus  que  o  acolha  para  a  eternidade  porque  ele  era  um  excelente  profissional", 
disse  o  capelão  do  Exército  brasileiro Marcos  Marques,  antes  de  rezar  o  Pai‐Nosso  e  ungir  o 
caixão que levava o corpo do general, coberto com as bandeiras do Brasil e da ONU. 
A  solenidade  foi  simples.  Discursaram  o  embaixador  Paulo  Pinto,  além  do  responsável  das 
Nações Unidas no Haiti, Juan Valdés, e o general chileno Aldunate, que assumiu o comando da 
missão da ONU interinamente em conseqüência da morte do general brasileiro. 
 
"Queria que o exemplo de vida que ele [Bacellar] deixou servisse de inspiração para o moral 
das tropas e dos funcionários no país", afirmou o embaixador Paulo Pinto. 
 
Greve 
O  clima  em  Porto  Príncipe  parecia  refletir  a  solenidade:  havia  poucos  automóveis  nas  ruas, 
mas  o  motivo  era  a  greve  convocada  pelo  setor  patronal  em  protesto  contra  a  falta  de 
segurança na cidade. 
Na  caótica  região  das  Delmas,  onde  trânsito  no  domingo  fazia  com  que  se  perdessem  dez 
minutos para percorrer dois quilômetros, ontem havia praticamente apenas carros das Nações 
Unidas. "Respeitamos o direito de greve dos haitianos", disse Valdés em coletiva anteontem, 
acrescentando que a segurança hoje é bem maior do que no passado. 
 
Cité Militaire 
A  seção  de  Relações  Públicas  do  Exército  brasileiro  levou  a  reportagem  da  Folha  e  outros 
jornalistas  ontem  para  conhecer  os  avanços  obtidos  na  Cité  Militaire,  região  separada  da 
perigosa Cité Soleil por apenas uma avenida. 
Os  militares  criaram  dois  postos  avançados  de  vigilância,  mas  ainda  enfrentam  diariamente 
trocas de tiros com supostos bandidos. "Ontem à noite houve  disparos com freqüência, mas 
não  com  muita  intensidade",  relatou  o  tenente  Giuseppe  Pizzolatto,  28,  do  telhado  de  uma 
antiga  fábrica  de  gelo  utilizada  por  traficantes  haitianos  até  dezembro  passado  como 
esconderijo. 
A tática quando se ouvem tiros é "se abrigar e responder", segundo o jargão militar. 
Nas  ruas,  as  crianças  corriam  para  pedir  doces  aos  soldados  do  Brasil.  Os  mais  velhos,  por 
medo, evitavam responder às perguntas dos jornalistas. (ID) 
 
Folha de S. Paulo 
Editoria/caderno: mundo 
Título: Por que o Brasil deve permanecer no Haiti  
Data: 15/01/2006 ‐ domingo 
Crédito: Michael Deibert, especial para a Folha, tradução de Clara Allain 
 
ARTIGO  
A  morte  trágica  do  general  brasileiro  Urano  Bacellar,  que  comandava  a  missão  das  Nações 
Unidas  no  Haiti  (Minustah),  deve  ter  levado  alguns  setores  no  Brasil  a  questionar  a 
conveniência  da  missão  brasileira  no  país  caribenho  de  8  milhões  de  habitantes,  dilacerado 
pela violência. 
Na  condição  de  jornalista  que  trabalha  no  Haiti  há  quase  uma  década  e  que  já  trabalhou 
também  no  Brasil,  acredito  que  o  Brasil  deva  manter‐se  firme  em  seu  apoio  à  população 
haitiana, mesmo após esse acontecimento, e levar adiante sua missão, no mínimo até a posse 
do novo governo que sairá das eleições presidencial e legislativa marcadas para 7 de fevereiro 
(primeiro turno). 
Quando  primeiro  cheguei  ao  Haiti,  em  1997,  encontrei  o  país  na  metade  da  Presidência  de 
René Preval, o único presidente de sua história a ter concluído seu mandato e a ter presidido a 
213 

transferência de poder a um sucessor eleito. Apesar dos muitos problemas que acometeram 
sua  administração,  Preval  trabalhou  em  colaboração  com  organizações  internacionais  de 
desenvolvimento, iniciou o processo de integração do Haiti na comunidade caribenha maior e 
avançou na reforma da força policial que, durante o domínio do Exército haitiano, desfeito em 
1995, havia sido apenas mais uma ala da repressão. 
Tudo  isso  acabou  com  a  posse  de  Jean‐Bertrand  Aristide,  em  2001.  O  presidente,  que  havia 
sido padre católico numa favela de Porto Príncipe, fora eleito pela primeira vez em 1990, mas 
expulso sete meses depois por um golpe de Estado. Conduzido de volta ao poder por tropas de 
uma força internacional, em 1994, se tornou um espelho dos ditadores que muitos esperavam 
que sua eleição fosse afastar da Presidência. 
A partir do verão de 2002, quando o governo de Aristide tentou assumir o controle do sistema 
universitário estatal do Haiti e ocorreu a queda de um esquema cooperativo de investimentos 
em  pirâmide  que  tinha  ligações  estreitas  com  setores  fiéis  ao  regime,  observei  o  Haiti 
retroceder para a ditadura, e as rachaduras na casa do governo começaram a aumentar muito 
antes  de  Aristide  fugir  do  país,  em  2004,  em  meio  a  uma  insurreição  armada  e  a  maciças 
manifestações de rua contrárias a seu governo. 
Aristide  deixou  para  trás  um  rastro  de  cadáveres  e  sonhos  despedaçados.  Entre  os  tópicos 
sobre os quais escrevi, como jornalista, estavam a brutal expulsão de camponeses da planície 
de  Maribaroux,  em  março  de  2002,  realizada  por  forças  de  segurança  do  governo  para  abrir 
caminho  para  a  instalação  no  local  de  uma  fábrica  que  pagaria  baixos  salários  a  seus 
funcionários, e um ataque lançado em dezembro de 2003 contra um grupo de universitários 
por gangues agindo em visível conluio com a polícia, durante o qual o reitor da universidade foi 
espancado com barras de ferro até ficar incapacitado de andar. 
Durante as freqüentes visitas que fiz ao enorme distrito de Cité Soleil, na capital, onde mais de 
250 mil pessoas sobrevivem em condições de miséria e carência absolutas que só podem ser 
descritas como criminosas, assisti a jovens sendo armados pela força policial de Aristide. 
Equipados  com  armas  e  munição  e  reportando‐se  ao  presidente,  esses  jovens,  que  durante 
anos haviam sido excluídos do processo político haitiano, puderam ter a honra de um encontro 
com  Aristide  no  Palácio  Nacional  haitiano.  Ouviram  a  promessa  de  que  sua  comunidade 
receberia ajuda se eles atacassem as manifestações da oposição. 
Em várias ocasiões, perguntei a líderes de gangues por que razão se prestavam a defender um 
governo que  parecia ter feito tão pouco. Pelo contrário, eles me responderam várias vezes  ‐
algum  outro  governo  haitiano  teria  sequer  reconhecido  sua  existência,  muito  menos  os 
convidado a entrar no palácio? 
Em  momentos  mais  sombrios,  porém,  eles  admitiam  que  achavam  que  seriam  mortos  pela 
polícia  se  não  obedecessem  às  ordens  do  governo.  Muitos  no  Haiti  acusam  Aristide  de 
continuar  a  desestabilizar  a  situação  no  país,  coordenando  as  ações  das  gangues 
remanescentes desde seu exílio na África do Sul. 
No  verão  passado,  quase  dois  anos  após  a  fuga  de  Aristide  para  o  exílio,  quatro  das 
organizações  mais  politicamente  progressistas  do  Haiti  ‐a  Plataforma  Haitiana  de  Defesa  do 
Desenvolvimento Alternativo (Papda), o Grupo de Apoio aos Repatriados e Refugiados (Garr), 
o  Solidariedade  das  Mulheres  Haitianas  (Sofa)  e  o  Centro  Nacional  e  Internacional  de 
Documentação  e  Informação  da  Mulher  no  Haiti  (EnfoFanm)‐  assinaram  uma  declaração  em 
que  pediam  que  Aristide  fosse  julgado  pelo  que  qualificaram  como  seus  crimes  contra  a 
população haitiana, mencionando por nome o assassinato de outro jornalista haitiano, Jacques 
Roche, e a campanha de estupros travada contra mulheres pobres das favelas, entre outros. 
É  exatamente  desse  tipo  de  violência  atroz  que  a  população  haitiana  procura  se  afastar,  e  é 
por  isso  que  a  presença  de  tropas  brasileiras  no  país,  revigorando  uma  força  das  Nações 
Unidas composta de 9.000 soldados e policiais de 21 países, é tão importante. 
214 

Os avanços ainda frágeis obtidos pela maioria pobre haitiana e o frágil processo de construção 
de suas instituições ‐o Judiciário, a polícia, o funcionalismo público‐ foram quase inteiramente 
destruídos  durante  os  anos  do  governo  Aristide,  e  os  haitianos  vão  precisar  do  apoio  e  da 
ajuda de seus irmãos latino‐americanos se quiserem construir uma paz mais justa e eqüitativa 
no futuro. 
Apesar  de  seus  problemas  sociais  e  políticos  próprios,  o  Brasil  já  demonstrou  como  um  país 
pode  fazer  a  transição  de  ditadura  para  democracia  e  como  os  marginalizados  do  poder 
político  podem  começar  a  abrir  caminho,  mesmo  que  apenas  de  maneira  frágil,  para  uma 
forma de governo mais responsável. Os haitianos não pedem menos do que uma democracia 
real e não merecem menos do que isso. Um país que já sofreu tanto ficaria feliz em contar o 
Brasil entre seus amigos. 
________________________________________ 
Michael Deibert é autor de "Notes from the Last Testament: The Struggle for Haiti" (notas do 
último  testamento:  a  luta  pelo  Haiti)  e  foi  correspondente  da  Reuters  no  Haiti  entre  2001  e 
2003. 
 
Folha de S. Paulo 
Editoria/caderno: mundo 
Título: Só 2% dos militares brasileiros sofreram de estresse no Haiti  
Data: 16/01/2006 ‐ segunda‐feira 
Crédito: Eduardo Scolese, da sucursal de Brasília 
 
MISSÃO NO CARIBE 
Suicídio pôs em xeque psicologia do Exército 
 
Um  levantamento  do  Exército  com  base  em  testes  psicológicos,  entrevistas  e  dinâmicas  de 
grupo  mostra  que  apenas  2%  dos  militares  brasileiros  das  tropas  do  Haiti  sofreram  ou 
perceberam algum nível de estresse durante a missão de paz da ONU. 
Entre os fatores de estresse relatados pelos militares que retornam da missão está o assombro 
diante da violência haitiana, a necessidade de lidar com cadáveres expostos nas ruas, o risco 
diário de morte e ferimentos e o choque cultural com o grau de miséria no país mais pobre das 
Américas. 
Na  semana  passada,  o  suicídio  do  general  Urano  Bacellar,  então  comandante  da  Minustah 
(Missão das Nações Unidas de Estabilização no Haiti), colocou em xeque o trabalho psicológico 
do Exército, que, nos bastidores, aponta possíveis problemas pessoais para a morte do militar. 
Desde  meados  de  2004,  quando  o  Brasil  enviou  seu  primeiro  efetivo  à  Minustah,  cerca  de 
4.000 militares brasileiros já passaram pelo país. Tanto na ida como na volta são submetidos a 
uma bateria de testes físicos e psicológicos coordenados pelo Cepaeb (Centro de Preparação e 
Avaliação para Operações de Paz do Exército). 
Na  volta,  os  militares  têm  de  encarar  uma  espécie  de  quarentena,  quando  ‐por  um  período 
que varia de uma semana a dez dias‐ ficam isolados num quartel do Exército. Lá passam por 
exames médicos, físicos e psicológicos. Até agora, apesar de relatos de perturbações, nenhum 
deles atingiu níveis mais graves, como a "síndrome de estresse" ou o chamado "transtorno de 
estresse pós‐traumático". 
Chefe‐adjunto  do  Cepaeb,  o  major  José  Carlos  Teixeira  Júnior,  40,  avalia  que  os  militares 
retornam  melhores  do  Haiti.  "Passam  a  valorizar  mais  a  família  e  o  país  e  ficam  mais 
comprometidos com a democracia e orgulhosos do Exército brasileiro." Segundo ele, cada R$ 1 
investido no Cepaeb representa uma economia de R$ 15 de possíveis despesas com seqüelas 
da missão. 
 
215 

Folha de S. Paulo 
Editoria/caderno: mundo 
Título: Para general, favela concentra mortes  
Data: 20/01/2006 ‐ sexta‐feira 
Crédito: Leila Suwwan, de Nova York     
 
O general José Elito Carvalho Siqueira viaja hoje ao Haiti, onde assume o comando militar da 
missão de estabilização das Nações Unidas (Minustah) na segunda‐feira. Após passar o dia em 
reuniões  preparativas  na  ONU  em  Nova  York,  o  brasileiro  se  declarou  "absolutamente 
otimista" com o desafio de garantir as eleições haitianas, marcadas para 7 de fevereiro. 
Além  disso,  Siqueira  rejeitou  que  esteja  ocorrendo  uma  "escalada  de  violência"  no  Haiti  e 
insistiu que o foco de mortes e seqüestros é a favela de Cité Soleil. "A situação lá e séria, mas 
não é um retrato do país", disse. 
Sobre o aumento das mortes de civis por arma de fogo, conforme relatado pela organização 
Médicos Sem Fronteiras, disse que a missão terá senso de riscos. 
"É  difícil  dizer  que  há  uma  "escalada';  ainda  não  estive  lá.  Mas  danos  colaterais  podem 
acontecer  quando  a  população  está  muito  próxima.  Cabe  planejar  muito  bem  e,  se  houver 
dúvidas,  evitar  a  operação.  A  missão  é  de  estabilização.  Teremos  o  bom  senso  de  reavaliar 
operações quando houver riscos considerados fora de controle", disse. 
Siqueira negou que faltasse policiamento civil: "Há polícia. É a Guarda Nacional Haitiana, tem 
um  efetivo  até  razoável".  E  rebateu  as  pressões  internas  contra  o  trabalho  militar  de 
policiamento  urbano,  que  a  população  considera  inadequado.  "A  população  vai  nos  apoiar. 
Sabe que estamos lá para ajudar", disse. 
Porém  afirmou  que  não  haverá  surpresas  no  cargo,  já  que  acompanhou  de  perto  o  trabalho 
dos ex‐comandantes e amigos próximos, generais Augusto  Heleno Ribeiro  e Urano Bacellar ‐
que cometeu suicídio no início deste mês, no Haiti. 
Siqueira não quis discutir a fundo o elemento político da violência local, cujo objetivo, segundo 
a ONU, é evitar eleições inclusivas. 
 
Folha de S. Paulo 
Editoria/caderno: mundo 
Título: Haiti votará sob violência, prevê Elito  
Data: 25/01/2006 ‐ quarta‐feira 
Crédito: da redação 
 
MISSÃO NO CARIBE 
General brasileiro que comanda força da ONU espera problemas 
 
O Haiti deve realizar eleições gerais no próximo dia 7 de fevereiro, mas a votação não deverá 
ocorrer  sem  problemas  de  violência.  A  avaliação  foi  feita  pelo  general  brasileiro  José  Elito 
Carvalho  Siqueira,  que  assumiu  anteontem  o  comando  militar  da  Missão  de  Estabilização  da 
ONU no Haiti (Minustah), em entrevista à BBC Brasil. 
"É  bem  provável  que  tenhamos  alguns  problemas.  Vamos  torcer  apenas  para  que  esses 
problemas não interfiram [nas eleições] a um ponto considerável", afirmou o general. A nova 
data do pleito foi definida após quatro adiamentos. 
Elito foi designado como o novo comandante militar das tropas da ONU no país caribenho na 
semana passada, para substituir o general Urano Bacellar, que se suicidou no início do mês, em 
Porto Príncipe, capital haitiana. 
O  general,  que  nunca  havia  estado  no  Haiti,  disse  que  ficou  positivamente  surpreso  com  a 
situação do país, que julgou melhor do que imaginava. "Assim como o nosso país, [o Haiti] é 
216 

um  lugar  de  contrastes,  mas  de  um  modo  geral  a  situação  está  calma.  O  que  existem  são 
problemas pontuais, como em Porto Príncipe", disse. 
O general avaliou ainda que a atuação dos capacetes azuis no Haiti não deve terminar com a 
realização das eleições. 
"No período pós‐eleições talvez tenhamos de continuar com missões tão importantes quanto 
as de hoje. É uma missão de estabilização. Tem ainda o segundo turno [previsto para março], a 
posse  do  novo  presidente.  Acredito  que  durante  este  ano  as  tropas  permaneçam  com  seu 
efetivo integral." 
O  Brasil  comanda  um  contingente  militar  de  7.500  homens,  dos  quais  1.200  são  brasileiros, 
além  de  cerca  de  2.000  policiais.  O  mandato  atual  vai  até  15  de  fevereiro,  mas  deve  ser 
renovado. 
"Essa renovação vai acontecer "n" vezes. Pode ser uma renovação ou duas ou três ou quatro, 
vai depender justamente dessa evolução depois das eleições", disse. 
Em  reportagem  publicada  ontem,  o  diário  "New  York  Times"  detalhou  as  dificuldades 
enfrentadas pelos soldados jordanianos, que hoje são o maior contingente militar estrangeiro 
no  país,  com  1.500  homens,  e  estão  responsáveis  pela  segurança  na  favela  de  Cité  Soleil,  o 
principal foco de violência na capital haitiana. 
O jornal aponta o aumento dos seqüestros ‐uma média diária de 14 incidentes‐ e as pressões 
da população por uma atuação mais ofensiva das tropas. 
 
Folha de S. Paulo 
Editoria/caderno: mundo 
Título: Soldados revelam o horror da vida no Haiti  
Data: 29/01/2006 ‐ domingo 
Crédito: Laura Capriglione, da reportagem local; Marlene Bergamo, repórter‐fotográfica 
 
MISSÃO NO CARIBE 
Para brasileiros que estiveram no país caribenho, o termo "missão de paz" não retrata a 
realidade 
 
A câmera digital registrou 17 minutos de agonia do haitiano. De uma rua atulhada de lixo em 
Bel  Air,  favela  na  capital  haitiana  considerada  reduto  de  partidários  do  ex‐presidente  Jean‐
Bertrand  Aristide,  sai  o  homem,  tiro  no  pescoço.  A  blusa  listrada  empapada  de  sangue,  ele 
agacha ao lado do blindado brasileiro Urutu, dez homens a bordo. Pede socorro. Os soldados 
sacam suas câmeras digitais e começam a fotografar. Ninguém desce para ajudar. 
O Urutu não leva pessoal médico, e o homem pode ter sido mandado para servir de isca aos 
militares da Missão de Estabilização da ONU no Haiti (na sigla em francês, Minustah). Pode ser 
emboscada. "Chama alguém do corpo médico", grita um. 
O  homem  arfa,  tira  a  camisa,  rola  na  rua.  Moradores  da  favela  cercam‐no,  enquanto  os 
brasileiros  tiram  mais  fotos.  Um  quarto  de  hora  depois,  ouve‐se  um  ronco  e  cessam  os 
movimentos.  O  homem  parece  morto.  Outro  carro  vem  atrás,  com  enfermeiro.  O  homem  é 
levado  ao  hospital.  Não  se  sabe  mais  dele.  O  Urutu  retoma  a  jornada  e  segue  em  frente, 
patrulhando. 
A cena está entre os mais de 5.000 arquivos de fotos e filmetes gravados no laptop do soldado 
S., 22, que esteve no Haiti entre dezembro de 2004 e junho de 2005, como parte do segundo 
contingente de militares brasileiros enviados na missão de paz da ONU. 
Há 20 meses, a ONU mantém tropas no país para, no jargão militar, "estabilizar" a situação ‐
desarmar as gangues e os partidários de Aristide, cujo governo caiu em fevereiro de 2004‐ e 
garantir a transição democrática. 
217 

As  eleições  gerais  marcadas  para  o  próximo  dia  7,  depois  de  quatro  adiamentos,  podem  até 
dar  a  impressão  de  que  esses  objetivos  estejam  em  via  de  ser  cumpridos.  Mas  o  país  está 
longe da paz. 
Segundo o chefe do Escritório de Comunicações da Minustah, David Wimhurst, a área de Cité 
Soleil,  a  maior  favela  de  Porto  Príncipe,  segue  como  condomínio  fechado  por  bandidos 
armados. A polícia da ONU não entra, os soldados não se arriscam. 
Há  apenas  seis  meses,  disse  Wimhurst  em  entrevista  telefônica  de  Porto  Príncipe,  a  favela 
estava aberta, mas a ação das tropas brasileiras em Bel Air levou a bandidagem a migrar para 
os becos e vielas estreitas de Cité Soleil, onde um carro não passa. 
A rotina de seqüestros na capital haitiana é outro indicador de violência que segue impávido ‐
ONGs  contam  12  novos  casos  por  dia  apenas  em  Porto  Príncipe.  Na  quinta‐feira,  dois 
missionários  franceses  acompanhados  por  dois  haitianos  foram  emboscados  perto  de  Cité 
Soleil. 
 
Fotos, filmes e carteirinhas 
Para  entender  a  rotina  dos  soldados  brasileiros  naquela  que  é  a  maior  missão  de  paz  já 
enviada pelo Brasil ao exterior, a Folha reuniu oito soldados, idades entre 22 e 25 anos, em um 
bar e pizzaria na periferia de São Paulo. Os rapazes chegaram carregando fotos e filmes de sua 
estadia  de  seis  meses  no  Haiti,  além  das  carteiras  de  identidade  da  Minustah.  Eles  brincam 
quando  mostram  uma  foto  do  grupo  na  Cantina  de  Bombagay  ‐em  francês  crioulo,  língua 
oficial  do  país,  "bom  companheiro".  A  pedido  dos  entrevistados,  as  identidades  deles  não 
serão divulgadas. 
Em duas horas de entrevista, os rapazes dizem que o nome "missão de paz" dá uma impressão 
errada  sobre  o  que  está  acontecendo  no  Haiti.  Um  soldado  explica  o  ponto  de  vista  dos 
demais: "Até parece que esse nome é para tranqüilizar as pessoas no Brasil. Na verdade, não 
há dia em que as tropas da ONU não matem um haitiano em troca de tiros. Eu mesmo, com 
certeza, matei dois. Outros, eu não voltei para ver". O soldado não tem remorso: "Chora a mãe 
dele, não a minha", diz. 
Os militares contam que cada vez que um soldado sai em patrulha leva seu fuzil FAL e quatro 
carregadores  de  20  tiros.  Como  os  confrontos  com  gangues  são  rotineiros,  é  comum  os 
soldados  voltarem  sem  parte  da  munição.  "Só  quando  acontece  alguma  coisa  excepcional  é 
que a gente declara que matou. Comigo, nunca aconteceu essa tal coisa excepcional. Quando 
voltava sem parte da munição, dizia ter trocado tiros, não atingindo ninguém, e os S‐2 [oficiais 
da inteligência] deixavam por isso mesmo." 
O grupo mostra fotos e mais fotos de cadáveres. Estão jogados pelas ruas transformadas em 
lixões a céu aberto de Porto Príncipe. Boa parte está decapitada (costume dos bandos). Cães 
aparecem  disputando  a  carniça.  Há  uma  série  de  fotos  de  um  cadáver  que  primeiro  aparece 
sem  cabeça.  Com  os  dias  passando,  o  corpo  incha  ao  mesmo  tempo  que  mingua.  Cachorros 
devoram‐lhe  a  caixa  torácica,  então  uma  perna,  um  braço,  outro  e  outro  e  resta  a  carcaça. 
Cabe à Polícia Nacional Haitiana recolher os corpos. Mas o trabalho demora às vezes mais de 
semana para ser realizado. 
A abundância de fotografias decorre do fato de a maioria dos soldados ter câmeras digitais e 
laptops,  comprados  nas  folgas  em  Miami  ou  na  República  Dominicana.  Eles  fotografam  e 
baixam os arquivos nas suas máquinas. 
No  laptop  de  S.,  a  pasta  "Fotos  Chocantes"  mistura  doses  diversas  de  horror.  Outra  pasta, 
batizada  de  "É  Nóis",  mostra  a  rotina  dos  rapazes.  Na  foto  que  registra,  por  exemplo,  o 
embarque de soldados em um Boeing KC‐137 da Força Aérea (eles se preparavam para voltar 
ao Brasil), vêem‐se sete câmeras digitais focadas em grupos de amigos. 
 
Letalidade 
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"É  muito  fácil  matar  no  Haiti,  apesar  de  o  soldado  brasileiro  ter  um  grande  respeito  pela 
população civil", diz um. "É que os fuzis FAL têm um alto índice de letalidade." Enquanto a bala 
de  uma  pistola  9  mm  viaja  a  1.440  km/h  em  média  desde  o  cano  até  o  alvo,  a  velocidade 
média dos projéteis FAL (com 7,62 mm de diâmetro) é de 2.880 km/h, o dobro. 
Um sargento explica o poder do FAL: "A bala entra com um movimento de rotação em torno 
de  seu  próprio  eixo.  Mas,  ao  encontrar  um  obstáculo  [um  osso,  por  exemplo],  ela  se 
desestabiliza e pode sair de lado, arrombando a carne". Outro soldado completa: "Às vezes, no 
meio de um tiroteio, um cara vindo em nossa direção pode parecer uma ameaça. Se a gente 
pede para ele parar e ele não pára, o jeito é atirar. Só que, com os FAL, quase sempre acaba 
em morte. É um fuzil de guerra, não de patrulha urbana como as que fazemos no Haiti". 
Mais do que contar, um dos rapazes mostra o momento mais apavorante em toda a missão. 
Para  isso,  abre  o  arquivo  "pânico",  um  filminho  que  o  flagra  "histérico",  como  ele  mesmo 
reconhece, envergonhado. Ele relata a cena: "A patrulha brasileira ia dentro de um Urutu [com 
duas  esquadras  de  quatro  homens  cada],  quando  foi  cercada  [por  supostos  bandidos 
haitianos].  Se  eles  conseguissem  arremessar  um  só  coquetel  molotov  dentro  da  viatura,  não 
sobrava um de nós. E eles iam se aproximando perigosamente do carro, e nós não tínhamos 
mais  munição  para  responder."  O  vídeo  mostra  o  soldado  berrando  para  o  sargento  que 
comandava  as  duas  esquadras:  "Vam'bora.  Tá  esperando  o  quê?  Vamo  morrê.  Vamo  morrê. 
Vamo morrê". 
 
Mulher por comida 
De  volta  ao  Brasil,  todos  os  soldados  passaram  uma  semana  de  quarentena.  Depois  de 
examinados  para malária, dengue, tifo, HIV e distúrbios psicológicos, e de ser advertidos (de 
novo) de que não deveriam divulgar fatos militares ocorridos no Haiti, um deles soube ter sido 
infectado pelo plasmódio causador da malária. 
"Eu  fiquei  chateado  porque  a  gente  tomava  mefloquina  duas  vezes  por  semana  no  Haiti", 
lembra o soldado. A mefloquina é uma droga que reduz, mas não elimina, os riscos de contrair 
a  malária.  Quando  chegou  ao  Brasil,  ele  começou  a  sentir  as  febres,  os  calafrios  e  as  dores 
associados à doença, ainda sem cura. 
S. diz ter arrumado uma namorada na República Dominicana, onde passou as férias de 15 dias 
a que todo soldado tem direito nos seis meses em que está na missão. No Haiti, garante, não 
manteve relações sexuais, apesar da rotina de haitianos indo para o acampamento brasileiro 
oferecer suas mulheres em troca de comida. 
"A gente não podia nem ter relações sexuais com haitianas [por causa do risco de Aids e outras 
doenças  sexualmente  transmissíveis]  nem  dar  alimentos  para  quem  quer  que  fosse  sem 
autorização da ONU. Se déssemos, no dia seguinte não haveria um homem, mas o Haiti inteiro 
oferecendo suas mulheres e pedindo comida em nossa porta." 
No último dia de serviço, os brasileiros romperam a regra e, pelos vãos da cerca de concertina 
(fita farpada com lâminas ultra‐afiadas que protege a base), entregaram a famílias haitianas os 
itens do café da manhã: sucrilhos, cereais, mel, manteiga de amendoim, creme de chocolate, 
leite  de  caixinha  e  café.  "Era  um  senhor  café  da  manhã",  lembra  um  soldado.  "Tanto  que 
engordei sete quilos na missão", diz. 
Todos os entrevistados disseram que voltariam ao Haiti. O caso de um rapaz que voltou com 
saldo de R$ 10 mil no banco, um laptop, uma câmera digital Sony Cybershot de 5,2 megapixels 
e ainda com fama de herói no bairro explica o desejo coletivo. 
A  poupança  cresceu  graças  à  complementação  do  soldo.  Quando  em  missão  de  paz,  um 
soldado que no Brasil ganha pouco mais de R$ 500 por mês passa a receber quase R$ 2.700. 
"Depois  tem  outra.  Se  a  saudade  aperta,  o  rum  haitiano  é  bom  demais.  Anota  aí  o  nome:  é 
Barbancourt. Rum Barbancourt, um santo remédio contra a saudade", diz S. 
 
219 

Folha de S. Paulo 
Editoria/caderno: mundo 
Título: Favorito defende que missão fique no Haiti  
Data: 06/02/2006 ‐ segunda‐feira 
Crédito: Fabiano Maisonnave, enviado especial a Porto Príncipe 
 
MISSÃO NO CARIBE 
Ex‐presidente, René Préval defende presença da ONU com mandato modificado e propõe 
governo de transição 
 
Líder em todas as pesquisas eleitorais, o ex‐presidente René Préval, 63, (1996‐2001) aposta na 
vitória ainda no primeiro turno das eleições presidenciais, que ocorrem amanhã após quatro 
adiamentos e em meio a um clima de desconfiada tranqüilidade. 
Em  entrevista  à  Folha  anteontem  à  noite,  Préval  disse  que  pretende  "fazer  um  governo  de 
transição" e que não impediria a volta do ex‐presidente Jean‐Bertrand Aristide, que deixou o 
país em fevereiro de 2004 após violentos protestos. Para muitos analistas, o fim do exílio na 
África do Sul deixaria o país novamente à beira de uma guerra civil. 
Os  dias  que  precedem  a  eleição  têm  sido  considerados  calmos  pela  missão  de  paz  da  ONU 
(Minustah).  As  tropas  brasileiras,  responsáveis  por  parte  da  capital,  Porto  Príncipe,  não 
registraram nenhum incidente grave nos últimos dois dias. 
Já os organizadores têm tido bastante trabalho para distribuir o material eleitoral. Dezenas de 
mulas  foram  contratadas  para  vencer  regiões  montanhosas  de  difícil  acesso.  Na  base  militar 
brasileira, funcionários da ONU trabalhavam à noite dentro de uma barraca plástica, iluminada 
apenas pelos faróis de um carro. 
Leia a seguir, a entrevista de Préval à Folha, em sua casa, na região nobre de Porto Príncipe. 
   
 
Folha ‐ O sr. acredita na vitória no primeiro turno? 
René Préval ‐ Sim, há pesquisas que nos dão 60%, 65%. Não sei qual é a confiabilidade dessas 
pesquisas,  mas,  quando  vejo  o  fervor  da  população,  o  número  de  pessoas  que  vem  me 
escutar, eu penso que é bastante possível. 
Folha ‐ Quando o sr. se tornou presidente, havia uma missão da ONU no Haiti que saiu durante 
seu  mandato.  Agora,  há  uma  nova  missão.  O  que  esta  missão  tem  de  fazer  para  evitar  a 
repetição desse ciclo? 
Préval ‐ A pergunta é: o que os haitianos devem fazer para evitar uma nova missão? Acredito 
que sobretudo os haitianos devem fazer alguma coisa em vez da ONU. Isso quer dizer colocar o 
país  sob  um  caminho  de  estabilidade  para  evitar  mais  uma  missão  no  Haiti.  Se  ganhar, 
pretendo fazer um governo de transição nesse sentido. 
Folha ‐ Quais foram então os erros cometidos pelos haitianos que provocaram a nova missão? 
Préval  ‐  [Pausa  de  20  segundos]  Vou  dar  a  minha  opinião:  fui  contra  a  saída  do  presidente 
Aristide.  Isso  não  quer  dizer  que  estivesse  o  apoiando.  Mas  penso  que  é  saudável  que  um 
presidente  termine  seu  mandato.  Agora,  a  Minustah  está  aí  e  tem  de  permanecer.  Vamos 
pedir  a  prolongação  da  Minustah  com  um  mandato  modificado.  São  necessários  menos 
militares  e  mais  policiais  porque  não  estamos  em  guerra.  É  necessário  reforçar  a  polícia  e  a 
Justiça ‐a polícia é apenas uma auxiliar da Justiça. Temos de atrair investimentos estrangeiros 
ao Haiti, para as pessoas trabalharem em paz. 
Folha  ‐  A  Minustah  intensificou  as  relações  entre  o  Brasil  e  o  Haiti.  O  que  esperar  dessa 
relação? 
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Préval ‐ Acredito muito na cooperação Sul‐Sul. Acredito que países como o Brasil e a Venezuela 
são muito mais próximos como modelos de desenvolvimento e  podem compreender  melhor 
um país como o Haiti. 
Folha ‐ O sr. tem origem na esquerda, e hoje há uma onda de governos de esquerda na região. 
O sr. foi um dos primeiros ou pode se tornar o último dessa onda? 
Préval ‐ É muito perigoso colocar etiquetas, não? Não sei se sou o primeiro ou o último. Estou 
determinado a ajudar o povo haitiano a encontrar educação, saúde, trabalho. Se isso é ser de 
esquerda, tudo bem. 
Folha  ‐  Hoje  [sábado],  o  sr.  faria  o  encerramento  de  campanha,  mas  cancelou  alegando 
questões de segurança. O que ocorreu? Houve segurança o suficiente na campanha? 
Préval ‐ Durante toda a campanha, fomos atacados verbalmente. Fomos acusados de tudo: de 
seqüestradores,  de  ter  financiamento  do  narcotráfico  etc.  Mas  essa  campanha  de  agressão 
assumiu  uma  forma  física:  tivemos  uma  tentativa  de  incêndio,  três  caminhões  nossos  foram 
destruídos em Gonaives, fomos impedidos de entrar numa cidade. Em vez de nos expormos, 
preferimos  cancelar  o  comício  porque  havia  informações  sérias  sobre  a  possibilidade  de  um 
ataque. 
Folha O sr. tem alguma crítica à atuação da Minustah? 
Préval ‐ Não gosto de criticar a ação dos outros. Creio que a resposta mais pertinente é colocar 
a seguinte questão: o que teria acontecido se a Minustah não estivesse aqui? 
 
Folha de S. Paulo 
Editoria/caderno: mundo 
Título: Trabalho de brasileiros é elogiado em Porto Príncipe  
Data: 07/02/2006 ‐ terça‐feira 
Crédito: do enviado a Porto Príncipe 
 
Enquanto os militares jordanianos sofrem para controlar a favela de Cité Soleil, os capacetes 
azuis brasileiros têm recebido elogios no Haiti pelo trabalho realizado em Bel Air, até há pouco 
considerada uma das zonas proibidas de Porto Príncipe. Localizada num morro perto do centro 
da cidade, a favela deixou de ser evitada pelos motoristas de outras partes da cidade, que hoje 
cruzam sem receio suas ruas antes interditadas por carcaças de automóveis. 
"O  trabalho  feito  em  Bel  Air  é  um  modelo  que  seria  muito  interessante  para  Cité  Soleil  e 
também para o Brasil, embora não precise ser feito necessariamente pelos militares", disse à 
Folha  o  deputado  Fernando  Gabeira  (PV‐RJ),  que  está  no  Haiti  e  tem  sido  crítico  da 
participação  brasileira  na  missão  de  paz  da  ONU.  "A  brigada  fez  trabalhos  concretos  que  o 
Estado não supre, como pavimentação, assistência médica, ainda que precária, e a coleta do 
lixo." 
"Na época, havia uma situação muito  caótica por causa do movimento  das gangues. Com os 
brasileiros,  a  situação  melhorou  completamente",  afirmou  um  técnico  em  informática 
desempregado de 30 anos, que preferiu o anonimato. Nascido em Bel Air, ele foi contratado 
no ano passado pelos brasileiros como informante. Durante as patrulhas, usando capacete azul 
e uma máscara para esconder seu rosto, identificava criminosos para os militares. 
O ex‐informante estima que, desde que chegaram a Bel Air, os brasileiros mataram de 20 a 30 
membros de gangue nos tiroteios e outras dez pessoas inocentes. 
Segundo o batalhão brasileiro no Haiti, os soldados encontraram 14 "corpos de elementos de 
forças  adversas",  mas  estima  que  os  mortos  possam  chegar  a  46.  O  batalhão  admite  apenas 
uma menina de dois anos ferida à bala por um membro de gangue. 
"Mataram mais bandidos do que inocentes aqui, mas, em Cité Soleil, os jordanianos mataram 
mais gente inocente do que bandidos", diz o ex‐informante. 
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Por  causa  do  sucesso  em  Bel  Air,  circula  dentro  da  Minustah  uma  proposta  para  que  os 
brasileiros passem a atuar em Cité Soleil. Seriam substituídos por chilenos e argentinos em Bel 
Air,  enquanto  os  jordanianos  seriam  mandados  para  o  mais  calmo  interior  do  país.  O  chefe 
militar  da  Minustah,  general  José  Elito  Siqueira,  no  entanto,  descartou  essa  alteração  no 
momento. 
Com  o  maior  contigente  da  missão  da  ONU  ‐1.500,  contra  1.200  brasileiros‐,  os  jordanianos 
têm  sido  os  mais  criticados,  inclusive  dentro  da  Minustah,  pelo  excesso  de  violência.  "Eles 
atiram quando estão felizes, quando estão tristes, eles acordam  com o dedo no gatilho",  diz 
uma ativista haitiana de direitos humanos. (FM) 
 
Folha de S. Paulo 
Editoria/caderno: mundo 
Título: Votação foi "revolucionária", diz rapper  
Data: 09/02/2006 – quinta‐feira 
Crédito: do enviado a Porto Príncipe 
 
O ASTRO HAITIANO 
Wyclef Jean alerta sobre perigo de revolta e frustração da população com missão da ONU 
 
Se  existe  uma  unanimidade  no  dividido  Haiti,  chama‐se  Wyclef  Jean.  Astro  da  música  pop 
americana, o rapper se tornou nos últimos anos uma das principais lideranças políticas e uma 
fonte inspiração para os milhões de jovens do país mais pobre do hemisfério. 
Conhecido por ter fundado o grupo Fugees junto com Lauryn Hill, Jean visita sempre o seu país 
natal, onde tem uma fundação mantida por generosas doações de amigos famosos, como Brad 
Pitt e Angelina Jolie, que visitaram recentemente Porto Príncipe a convite do cantor. 
Jean disse, antes de começar a entrevista, que não falaria em quem votou, mas brincou com 
uma  amiga:  "Eu  não  vou  dizer:  "Votei  em  Préval".  Mas  também  vou  dizer  que  não  conheço 
nenhum outro candidato". 
Irreverente,  fez  questão  de  mostrar  aos  repórteres  da  Folha  que  sabia  jogar  capoeira,  sob  o 
olhar atento dos funcionários do hotel. Em seguida, tirou a roupa e entrou na piscina de cueca. 
Eis a entrevista. (FM) 
   
Folha ‐ Como foram as eleições em termos de comparecimento e organização? 
Wyclef Jean ‐ Em termos de organização, foi um saco. Mas o comparecimento foi lendário e 
superou os problemas de organização. 
Folha ‐ Por que houve tantos problemas? 
Jean ‐ Porque havia um certo grupo de pessoas que se sabia que não conseguiriam votar. Por 
exemplo, veja a imensa população de Cité Soleil. Deveria ter havido centros de votação lá. Pô, 
há  mais  de  300  mil  pessoas  lá.  Mesmo  assim,  as  pessoas  foram  aonde  foram  enviadas  e, 
apesar dos problemas, votaram. 
Folha ‐ Como você coloca essas eleições nos 202 anos de história haitiana? 
Jean  ‐  Independentemente  do  resultado,  o  que  aconteceu  foi  revolucionário.  As  pessoas 
queriam votar e conseguiram. 
Folha ‐ Como está o trabalho da ONU com relação à segurança e à pobreza? 
Jean ‐ Tive um encontro com Kofi Annan e estava muito preocupado sobre a situação da ONU 
no  Haiti.  Alguém  tem  de  explicar  às  pessoas  o  que  a  Minustah  está  fazendo.  Eles  chamam  a 
Minustah de turista. Por quê? Porque alguém disse que essas tropas deveriam dar segurança. 
São  mantenedores  da  paz,  não  deveriam  se  envolver  em  batalhas  de  gangues.  Precisa  haver 
um  cessar‐fogo  de  Cité  Soleil  e  da  Minustah.  Os  dois  lados  estão  dispostos  a  atirar  neste 
222 

momento,  e  isso  não  faz  nenhum  sentido.  As  bandeiras  brancas  precisam  ser  levantadas. 
Mesas redondas para negociar. Isso não é difícil. 
Folha ‐ Mas Bel Air não está melhor? 
Jean ‐ Estava em Bel Air no seu pior momento. O líder de gangue naquela época era o Dread 
McKenzie.  Bel  Air  baixou  as  armas  e  disse:  "A  ONU  pediu  para  baixarmos  as  armas,  mas  as 
promessas  não  foram  cumpridas".  A  frustração  está  crescendo  de  novo.  Se  nada  mudar  nos 
próximos oito, dez meses, Bel Air vai se levantar. Eles estão apenas se segurando com base no 
que foi dito a eles. 
Folha  ‐  Você  acha  que  a  aproximação  do  Brasil  com  Haiti  por  causa  da  origem  africana,  do 
futebol e do Carnaval influencia na participação do país aqui? 
Jean ‐ O Brasil tem um lugar especial no coração do Haiti. Quando houve a partida de futebol 
entre  o  Brasil  e  o  Haiti,  foi  uma  demonstração  de  como  os  haitianos  idolatram  os  jogadores 
brasileiros. Mas isso não é no sentido militar. O Brasil sensibilizou o Haiti, colocou a mão sobre 
o povo haitiano e disse: "Queremos vê‐los melhor". Quando vocês fizeram aquele jogo, vocês 
sensibilizaram o Haiti. 
Folha ‐ Já esteve no Brasil? O que acha da música? 
Jean ‐ Conheço o samba, a bossa nova e adoraria ir no Carnaval. Estive em São Paulo, na Bahia. 
Sou bom em capoeira. Sou muito bom. Quer ver o meu estilo de capoeira? 
 
Folha de S. Paulo 
Editoria/caderno: mundo 
Título: Brasil pede que conselho da ONU avalie Haiti  
Data: 14/02/2006 – terça‐feira 
Crédito: Cláudia Dianni, da sucursal de Brasília 
 
MISSÃO NO CARIBE 
Celso Amorim sugere a Condoleezza Rice que a crise no país seja discutida pelo órgão máximo 
da entidade 
 
O  governo  brasileiro  quer  que  o  Conselho  de  Segurança  das  Nações  Unidas  se  reúna  para 
discutir ajuda ao Haiti após as eleições presidenciais do dia 7 passado. 
De  acordo  com  o  Itamaraty,  a  secretária  de  Estado  dos  EUA,  Condoleezza  Rice,  telefonou 
ontem para o ministro Celso Amorim (Relações Exteriores) e ele, entre outros assuntos, propôs 
que o caso do Haiti fosse levado ao Conselho de Segurança. 
O  ministro,  porém,  não  foi  específico  sobre  que  tipo  de  proposta  levar  ao  Conselho  de 
Segurança. Como Reino Unido, França, Rússia e China, os EUA são os membros permanentes 
do  conselho,  todos  com  direito  a  veto  e,  portanto,  com  forte  influência  na  pauta  da 
organização. 
O  governo  brasileiro  defende  maior  empenho  internacional  para  que  a  solução  dos  conflitos 
no  Haiti  passe  por  ajuda  econômica  e  projetos  de  desenvolvimento  social,  e  não  apenas  a 
presença militar de capacetes azuis. 
"É uma situação de desafio para os próprios haitianos, e não podemos fazer pelo Haiti o que 
eles  não  puderam  fazer  por  eles  próprios.  O  que  podemos  fazer  é  viabilizar  o  que  eles 
quiserem  fazer  e,  nesse  caso,  encontrar  uma  solução  pelo  diálogo,  respeitando  as  leis  e 
terminando  adequadamente  a  contagem  dos  votos",  disse  Amorim  com  relação  à  tensão  no 
Haiti  por  causa  do  resultado  das  eleições  ‐até  ontem,  a  indefinição  sobre  se  haveria  ou  não 
segundo turno permanecia. Para o ministro, o Haiti precisa manter "firmeza e prudência" para 
superar a violência. 
A  possibilidade  de  que  haja  segundo  turno,  em  lugar  da  esperada  vitória  do  favorito  René 
Préval, provocou uma nova onda de protestos e violência no país. Em nota, o Itamaraty disse 
223 

que o governo brasileiro "conclama a classe política haitiana a buscar o entendimento dentro 
do respeito à lei e em um espírito de conciliação". 
Préval é aliado do ex‐presidente Jean‐Bertrand Aristide, que renunciou em fevereiro de 2004 
em  meio  a  uma  conflagração  armada  e  sob  pressão  de  EUA  e  França,  a  antiga  metrópole 
colonial do Haiti. A instabilidade política e a violência desde então levaram à interferência da 
ONU,  que  enviou  ao  país  a  Missão  de  Estabilização  das  Nações  Unidas  no  Haiti  (Minustah), 
comandada pelo Brasil. 
Segundo o Itamaraty, Amorim conversou ontem também com os chanceleres da França e do 
Canadá e o arcebispo sul‐africano e Prêmio Nobel da Paz em 1984, Desmond Tutu, que está no 
Haiti, sobre a ampliação do apoio internacional ao país. 
 
Ajuda internacional 
Segundo  Amorim,  o  conselho  eleitoral  será  a  instância  que  terá  a  última  palavra  sobre  o 
resultado da eleição no Haiti, mas, "se ainda houver alguma margem de dúvida sobre a vitória 
de  Préval  no  primeiro  turno,  o  importante  é  chamar  a  atenção  das  forças  políticas  no  Haiti 
para que mantenham a paz, como fez Desmond Tutu". 
A visão do governo brasileiro de que apenas o envio de tropas não é suficiente para ajudar o 
Haiti  e  de  que  é  preciso  recursos  financeiros  da  comunidade  internacional  é  compartilhada 
pelos EUA. 
Recentemente,  o  secretário‐adjunto  de  Estado  americano  para  Assuntos  do  Hemisfério 
Ocidental, Thomas Shannon, disse, em Brasília, que a comunidade internacional prometeu US$ 
1  bilhão  para  ajudar  o  Haiti,  mas  que,  até  agora,  apenas  o  governo  americano  cumpriu  sua 
parte, com uma doação de US$ 400 milhões. 
 
Folha de S. Paulo 
Editoria/caderno: mundo 
Título: Brasil defende vitória de Préval no 1º turno  
Data: 16/02/2006 – quinta‐feira 
Crédito: Cláudia Dianni, da sucursal de Brasília; colaborou Fabiano Maisonnave, da 
Reportagem Local  
 
MISSÃO NO CARIBE 
Idéia de Marco Aurélio Garcia é mudar regras da eleição; divulgação do plano irrita Itamaraty, 
que teme reação 
 
O  governo  brasileiro  defendeu  ontem  a  proclamação  do  candidato  de  centro‐esquerda  René 
Préval, o mais votado na eleição do dia 7 no Haiti, como presidente eleito. De acordo com o 
assessor  especial  da  Presidência  para  Assuntos  Internacionais,  Marco  Aurélio  Garcia,  ontem 
houve  uma  reunião  de  embaixadores  em  Porto  Príncipe  para  discutir  uma  fórmula  que 
precipitasse a proclamação de Préval. 
"O  ideal  seria  que  os  candidatos,  além  de  reconhecer  sua  derrota  no  primeiro  turno, 
reconhecessem que a situação configura claramente a vitória do Préval, mas é uma coisa que 
não  se  pode  impor.  É  uma  questão  de  convencimento  político  que  pode  ser  feito  se  o 
candidato vencedor souber estabelecer conversações com outros candidatos", disse Garcia. 
As  declarações  caíram  como  uma  bomba  no  Itamaraty.  Diplomatas  ouvidos  pela  Folha 
reagiram  com  perplexidade  à  iniciativa  de  Garcia  de  revelar  a  estratégia  da  comunidade 
internacional para levar o processo eleitoral haitiano a um final rápido e pacífico. 
À noite, o ministro Celso Amorim (Relações Exteriores) afirmou que o Brasil não vai decidir por 
ninguém e que caberá ao povo haitiano essa decisão. Ele evitou comentar as declarações de 
Garcia, que disse não ter ouvido. 
224 

Para  Amorim,  as  denúncias  de  fraudes  nas  eleições  devem  ser  investigadas.  Ele  disse  que, 
como o primeiro turno pode ser decidida por uma pequena margem de votos, a apuração das 
denúncias de fraude é importante. 
Ontem havia duas preocupações urgentes no Itamaraty: como evitar que a pública tomada de 
partido de Garcia provocasse uma reação violenta contra o Brasil, que comanda a Missão de 
Estabilização  das  Nações  Unidas  no  Haiti  (Minustah),  e  como  neutralizar  as  declarações  de 
Garcia  sem  desautorizar  o  assessor  especial  da  Presidência.  O  Itamaraty  teme  que  as 
declarações de Garcia sejam interpretadas como ingerência sobre a soberania do Haiti. 
Garcia  afirmou  que  uma  das  possibilidades  que  estão  sendo  consideradas  pela  comunidade 
internacional é mudar as regras e desconsiderar os votos brancos e nulos. Essa mudança faria 
com  que  Préval  obtivesse  mais  de  50%  dos  votos,  condição  para  que  ele  seja  considerado 
vitorioso já no primeiro turno. A apuração até agora lhe dá 48,7%. 
"Não estamos fazendo essa proposta porque não podemos interferir no processo legal do país, 
mas nos parece que, tendo em vista o clima existente, essa seria a melhor solução", disse. 
 
Pedido de calma 
Segundo Garcia, o embaixador brasileiro no Haiti, Paulo Pinto, "tem insistido com Préval que 
ele não deve jogar mais lenha na fogueira, porque já tem combustível o suficiente". Para ele, o 
pedido  foi  feito  depois  das  declarações  "meio  explosivas"  feitas  na  segunda,  denunciando 
fraudes. 
Garcia disse ainda que Préval deveria ser flexível e aceitar o segundo turno, em 19 de março, 
caso seja difícil chegar a um consenso entre todas as forças políticas. 
Ontem,  o  embaixador  brasileiro  no  Haiti,  Paulo  Pinto,  disse  que  a  "questão‐chave"  é  a 
interpretação  sobre  os  votos  em  branco,  mas  que  um  acordo  político  vem  sendo  dificultado 
pela intransigência do segundo colocado, Leslie Manigat, e pelo Conselho Eleitoral Provisório, 
descrito como "disfuncional e pouco profissional". 
 
Folha de S. Paulo 
Editoria/caderno: mundo 
Título: Haiti: rude transição para a democracia  
Data: 26/02/2006 – domingo 
Crédito: Jean‐Michel Caroit, do “Le Monde”, tradução de Paulo Migliacci 
 
ARTIGO 
Tanto Washington quanto o governo francês não demoraram a reagir. Menos de uma semana 
depois  do  anúncio  oficial  de  que  havia  sido  eleito,  René  Préval  confirmou  com  o  apoio  da 
Constituição haitiana que o presidente deposto Jean‐Bertrand Aristide, de cujo governo Préval 
foi primeiro‐ministro por  sete meses em 1991, estaria autorizado a retornar de seu exílio  na 
África do Sul. Em 22 de janeiro, Aristide se apressou em declarar à imprensa internacional que 
tinha  "o  direito  de  voltar"  ao  país  e  que  planejava,  ao  fazê‐lo,  consagrar  seus  esforços  "à 
educação". 
"Estou  convencido  de  que  posso  servir  o  meu  país  (...)  sem  ser  presidente",  acrescentou 
Aristide  sem  que  ninguém  perguntasse.  As  autoridades  norte‐americanas  e  francesas  ainda 
assim  deixaram  claro  que,  em  sua  opinião,  o  retorno  do  ex‐presidente  talvez  não  fosse  a 
melhor maneira de preservar a frágil estabilidade política que o Haiti reencontrou. 
O maciço comparecimento ao pleito presidencial de 7 de fevereiro demonstrou, porém, que os 
haitianos,  a  despeito  das  decepções  acumuladas  nos  20  anos  desde  que  o  país  retornou  à 
democracia, não perderam a fé. 
Para os haitianos, a esperança renovada está nas mãos do presidente eleito, René Préval, mas 
também  nas  de  seus  oponentes,  que  precisam  provar  sua  maturidade  democrática  e  aceitar 
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plenamente  os  resultados  do  escrutínio,  antes  ainda  que  se  realize  o  segundo  turno  das 
eleições  para  o  Legislativo,  marcado  para  o  dia  19  de  março.  Essa  esperança  depende, 
igualmente,  da  comunidade  internacional,  que  precisa  repensar  a  estrutura  de  sua 
cooperação, reduzir os desperdícios e as disfunções e trabalhar de maneira mais eficiente para 
beneficiar os haitianos mais pobres. 
Nos  últimos  20  anos,  ou  seja,  a  partir  de  fevereiro  de  1986,  quando  o  ditador  Jean‐Claude 
Duvalier  fugiu  do  país,  "a  transição  para  a  democracia"  no  Haiti  vem  sendo  uma  dolorosa 
cadeia  de  dramas  sangrentos  e  desencantos.  A  despeito  de  considerável  assistência 
internacional,  cujo  montante  atinge  a  casa  das  centenas  de  milhões  de  euros,  a  primeira 
república negra continua um dos países mais pobres da América. 
A população não obteve nenhum benefício dessa cooperação que, em muitos casos, tomou a 
forma  de  "assistência  técnica",  um  eufemismo  que  designa  pagamentos  elevados  pelo 
trabalho de especialistas cujos relatórios se empilham sem nenhum resultado prático. O êxodo 
dos haitianos que escapam do país em barcos e se dirigem às Bahamas, Flórida e às Antilhas 
continua  inalterado.  Milhares  de  cidadãos  do  país  continuam  a  cruzar  clandestinamente  a 
fronteira com a vizinha República Dominicana. Atraídos até o início dos anos 1980 pelas praias, 
pela  pintura  naïf  e  pelo  vodu,  os  turistas  desertaram  o  Haiti.  Os  parques  industriais  que 
exportavam  produtos  têxteis  e  eletrônicos  aos  Estados  Unidos  se  esvaziaram.  As  únicas 
estatísticas que cresceram no país são as referentes à Aids, ao desflorestamento e às favelas, 
que agora vivem sob o controle de quadrilhas armadas muitas vezes conectadas ao tráfico de 
drogas. 
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As únicas estatísticas que cresceram são as referentes à Aids, ao desmatamento e às favelas, 
que vivem sob o controle de quadrilhas  
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Em dezembro de 1990, quando os haitianos compareceram em número maciço às urnas para 
eleger  Jean‐Bertrand  Aristide,  este  se  havia  aproveitado  de  sua  imagem  de  benfeitor  dos 
favelados  para  encarnar  a  idéia  de  mudança  democrática.  "Todas  as  pessoas  são  humanas", 
ele  costumava  dizer  às  massas  miseráveis  do  país,  reconhecendo  pela  primeira  vez  sua 
condição  de  cidadãos.  Derrubado  pelo  Exército,  pelos  políticos  que  sentiam  nostalgia  por 
Duvalier  e  por  parte  da  burguesia,  depois  de  nove  meses  de  governo,  "Titid"  voltou  a  ser 
conduzido ao poder pelas tropas dos Estados Unidos, em 1994. Ao "restaurar a democracia", o 
presidente  norte‐americano  Bill  Clinton  esperava  deter  a  onda  de  refugiados  haitianos  que 
vinha ameaçando a Flórida. 
Logo em seguida, começaria a primeira intervenção da ONU, que terminaria esquecida depois 
de sofrer uma sucessão de revezes. Voltando ao poder em 2000, como resultado de eleições 
cujos  resultados  foram  muito  contestados,  Aristide  mergulhou  num  período  de  exercício 
autoritário do poder e práticas mafiosas. 
 
Conter a insegurança 
Asfixiado pelo congelamento de toda assistência internacional, seu regime passou a depender 
cada vez mais das chamadas "chimères", milícias armadas recrutadas nas favelas. Privadas dos 
subsídios que recebiam do governo central na era Aristide, essas quadrilhas são as principais 
responsáveis pela violência que ensangüentou o país nos últimos meses. Depois de receberem 
a  adesão  de  dezenas  de  policiais  corruptos,  elas  fizeram  dos  seqüestros  uma  das  poucas 
atividades florescentes no Haiti. 
________________________________________ 
Até o momento, nem o Brasil nem o Chile nem a Argentina conseguiram se sair melhor do que 
fizeram as antigas potências coloniais  
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A  vitória  de  René  Préval  surpreendeu  àqueles  que  preferiam  ignorar  as  realidades 
socioeconômicas  do  Haiti  e  as  conseqüências  dos  revezes  sofridos  durante  o  período  de 
transição iniciado depois do exílio de Aristide. Préval se dissociou de seu antigo mentor. 
Mas ele continua a ser o portador da parte positiva da herança de Aristide ‐o reconhecimento 
da  cidadania‐  junto  aos  camponeses  e  aos  moradores  miseráveis  das  grandes  cidades,  a 
grande maioria da população haitiana. Incapaz de fechar acordo em torno de um candidato de 
coalizão,  repleta  de  conflitos  e  cisões,  a  antiga  oposição  a  Aristide  terminou  associada,  em 
termos de opinião pública, tanto à incapacidade do governo de transição quanto ao fracasso 
da comunidade internacional no que tange a melhorar o desempenho econômico e conter a 
ascensão da insegurança. 
Ao  retomar  a  legitimidade  democrática,  o  Haiti  espera  se  desembaraçar  da  sombra  de  Jean‐
Bertrand Aristide, que continua a pesar sobre o país. Mas o desafio será ainda mais difícil de 
enfrentar  caso  o  antigo  presidente,  que  envida  esforços  muito  ativos  de  lobby  nos  Estados 
Unidos,  decidir  retornar  do  exílio,  situação  que  obriga  Préval  a  oferecer  sinais  quanto  à 
evolução do respeito à democracia sob seu governo. 
Para neutralizar os bandos armados e responder às exigências de seus eleitores mais pobres, 
ele além disso necessitará de cooperação internacional reforçada. 
O presidente solicitou que a Missão das Nações Unidas para a Estabilização do Haiti (Minustah) 
fosse  prorrogada  e  que  houvesse  um  reforço  no  número  de  policiais  estrangeiros  presentes 
em seu país, com uma redução concomitante no número de soldados. O reforço da polícia e a 
reconstrução do Judiciário são duas das prioridades mais urgentes. 
O  novo  presidente  conta  também  com  o  apoio  de  alguns  dos  membros  mais  influentes  da 
diáspora  haitiana.  Depois  de  contatos  conduzidos  em  Washington,  Dumarsais  Siméus,  um 
bilionário  nascido  no  Haiti  e  naturalizado  norte‐americano  que  tentou  se  candidatar  sem 
sucesso à presidência do Haiti, deu a entender que apoiaria o governo do novo presidente. 
O superastro da música Wyclef Jean, que votou em Préval, se declarou disposto a emprestar 
sua imensa popularidade à causa da pacificação das favelas. 
Depois de sofrerem inúmeras frustrações em seu relacionamento com a França e os Estados 
Unidos, os haitianos esperam forte cooperação dos países latino‐americanos. 
Até o momento, nem o Brasil‐ que assumiu o comando militar da Minustah na esperança de 
obter um assento permanente no Conselho de Segurança das Nações Unidas‐ nem o Chile nem 
a  Argentina  conseguiram  se  sair  melhor  do  que  fizeram  as  antigas  potências  coloniais.  As 
afinidades  do  presidente  eleito  com  a  esquerda  latino‐americana,  muito  bem‐sucedida  nos 
últimos anos, talvez ofereçam a esses países uma oportunidade de agir melhor. 
 
Folha de S. Paulo 
Editoria/caderno: mundo 
Título: Brasil se prepara para assumir área mais violenta do Haiti  
Data: 12/05/2006 – sexta‐feira 
Crédito: Carolina Vila‐Nova, da redação 
 
MISSÃO NO CARIBE 
Hoje sob responsabilidade da Jordânia, favela de Cité Soleil será comandada por tropas de paz 
brasileiras  
 
O  batalhão  brasileiro  no  Haiti  está  se  preparando  para  assumir  a  responsabilidade  pela 
segurança  da  favela  de  Cité  Soleil,  a  área  mais  violenta  da  capital  haitiana,  Porto  Príncipe. 
Ontem, capacetes azuis do Brasil fizeram pela primeira vez o reconhecimento da área. 
227 

Atualmente, a favela está sob comando do contingente da Jordânia que faz parte da Minustah 
(Missão de Estabilização da ONU no Haiti). O Brasil exerce o comando militar da missão, sob a 
figura  do  general  José  Elito  Siqueira.  São  ao  todo  7.500  militares,  dos  quais  1.200  são 
brasileiros. 
A data de transmissão de comando não está definida. Segundo informou à Folha a assessoria 
de imprensa do Batalhão do Haiti, isso depende de uma reestruturação das forças jordanianas, 
cujo contingente está sendo reduzido. 
"Não se sabe ainda [quando o Brasil vai assumir], isso está em estudo. Mas [o reconhecimento] 
é  uma  medida  de  precaução  para  que,  caso  seja  determinado  isso,  já  tenhamos  o 
conhecimento  necessário  da  área",  disse  à  Folha  por  telefone  o  capitão‐de‐fragata  Rogério 
Teixeira, assessor de imprensa adjunto do Batalhão Haiti. 
Com cerca de 300 mil habitantes, paupérrima e praticamente isolada pelas gangues, Cité Soleil 
é  o  principal  foco  de  violência  no  Haiti.  Durante  as  eleições  deste  ano,  os  grupos  armados 
acordaram  uma  trégua  tácita,  situação  que  pode  se  manter  graças  ao  apoio  do  qual  o 
presidente  eleito  René  Préval,  que  toma  posse  neste  domingo,  goza  entre  os  líderes 
comunitários e de gangues locais. 
A atuação das tropas jordanianas na região foi alvo de diversas denúncias de grupos de direitos 
humanos,  principalmente  de  uso  excessivo  de  violência  e  de  morte  de  civis  durante  as 
operações. 
Relatório  divulgado  ontem  pelo  International  Crisis  Group,  ONG  que  estuda  a  prevenção  de 
conflitos,  apontou  a  retirada  do  contingente  jordaniano  de  Cité  Soleil  e  sua  substituição  por 
tropas  de  origem  latino‐americana  como  uma  "contribuição  significativa  para  a  melhora  das 
relações entre a população local e as autoridades". 
"Diferenças de língua, cultura e abordagem têm tornado difícil para os jordanianos lidar com 
as complexidades urbanas, particularmente quando eles têm sido alvo de ataques de franco‐
atiradorese de outros", diz a ONG. 
"Como  resultado,  eles  [jordanianos]  têm  sido  criticados  por  fazer  uso  excessivo  de  poder  de 
fogo em áreas densamente povoadas, particularmente depois do assassinato de dois de seus 
membros", acrescenta o relatório. 
 
Rodízio 
De acordo com o batalhão brasileiro, no entanto, esse rodízio de tropas é uma rotina, e haverá 
uma redefinição das atuações de todas as áreas na capital. O Brasil, por exemplo, deve deixar 
de atuar na favela de Bel Air, também em Porto Príncipe. 
Segundo Teixeira, já era previsto que a Jordânia ficaria em Cité Soleil até o período eleitoral. 
Ele  lembrou  ainda  que  o  1º  e  o  2º  contingentes  brasileiros  no  Haiti  foram  responsáveis 
inicialmente pela favela. 
 
Folha de S. Paulo 
Editoria/caderno: mundo 
Título: Violência reacende em Porto Príncipe  
Data: 17/06/2006 – sábado 
Crédito: Fabiano Maisonnave, da reportagem local 
 
Aumento de ataques, seqüestros e confrontos aumenta temor de que Haiti perca momento 
favorável após posse de Préval 
Para comandante brasileiro das tropas, general Elito, piora não é sistemática, e desarmamento 
depende de ação do governo haitiano  
 
228 

A posse do presidente René Préval e a transferência da perigosa região de Cité Soleil para os 
capacetes  azuis  brasileiros,  ocorridas  há  um  mês,  não  impediram  que  a  capital  haitiana 
voltasse a registrar um aumento do número de ataques contra policiais, de confrontos entre 
gangues armadas e de seqüestros, segundo a Polícia Nacional Haitiana (PNH), a missão militar 
brasileira e organizações não‐governamentais. 
Embora esteja muito longe dos índices de dezembro, quando havia até dez seqüestros diários, 
o  aumento  de  casos  de  violência  tem  gerado  o  temor  de  que  o  Haiti  perca  o  momento 
favorável  criado  pela  vitória  de  Préval,  em  fevereiro  ‐em  grande  parte,  decorrente  de  sua 
imensa popularidade nas regiões mais pobres e violentas de Porto Príncipe. 
Os episódios mais graves dos últimos dias incluem o assassinato de três policiais, a tentativa de 
seqüestro de um deputado, na segunda‐feira, e a disputa territorial entre gangues na violenta 
Cité Soleil. 
"Esses ataques não foram aleatórios", disse o porta‐voz da polícia haitiana, Frantz Leurebours, 
à agência de notícias Reuters. "A polícia tem sido alvo específico neste aumento de atividades 
criminais." 
Segundo  o  tenente‐coronel  Dos  Anjos,  responsável  pela  comunicação  social  da  missão 
brasileira,  houve  um  recrudescimento  nas  últimas  duas  semanas,  motivado  sobretudo  pela 
disputa de pelo menos três gangues na região de Cité Soleil e na vizinha Cité Militaire, também 
sob responsabilidade do Brasil. 
Ele afirma que houve troca de tiros com membros de gangues, mas sem o registro de feridos 
ou danos militares entre os capacetes azuis. 
A avaliação da missão brasileira coincide com a da ONG Médicos Sem Fronteira, que mantém 
um  hospital  em  Cité  Soleil.  Para  a  organização,  houve  de  fato  um  aumento  nos  confrontos, 
mas de forma esporádica e em intensidade bem menor do que a verificada meses atrás. 
 
Sem lua‐de‐mel 
O aumento da disputa entre gangues após uma relativa calma obtida desde fevereiro contraria 
o clima mais otimista que havia durante a campanha eleitoral, quando vários líderes de gangue 
haviam  prometido  abandonar  as  armas  caso  Préval  vencesse,  o  que  não  ocorreu  até  agora, 
apesar  da  posse  em  14  de  maio.  Três  dias  mais  tarde,  ocorreu  outra  outra  mudança 
importante,  com  a  saída  das  impopulares  tropas  jordanianas  de  Cité  Soleil,  consideradas 
violentas e hostis à população. 
"Havia  muita  esperança  de  que,  com  a  chegada  do  novo  governo,  esses  grupos  se 
desmobilizariam",  disse  ontem  à  Folha  Félix  Ulloa,  diretor  no  Haiti  do  Instituto  Democrático 
Nacional  para  Assuntos  Internacionais,  ONG  presidida  pela  ex‐secretária  de  Estado  dos  EUA 
Madeleine  Albright.  Ulloa  citou  os  recentes  confrontos  entre  gangues,  que  classificou  como 
delinqüentes comuns. "Mas o governo é recém‐formado, é preciso ver como reagirá." 
Ele  diz,  no  entanto,  que,  até  agora,  não  há  nenhum  sinal  público  de  que  um  plano  de 
desarmamento esteja em elaboração e cobra da ONU mais transparência sobre o assunto. 
Para Ulloa, a posse de Préval e a chegada dos brasileiros a Cité Soleil podem ser desperdiçadas 
caso  não  haja  um  plano  imediato  e  efetivo  de  desarmamento.  "A  primeira  reação  que  se 
esperaria era que a comunidade internacional, por meio da missão das Nações Unidas, fizesse 
uma  proposta  séria,  avalizada  pelo  novo  governo  e  por  sua  capacidade  de  interlocução  com 
esses grupos", afirmou. 
"Definitivamente, com a presença brasileira em Cité Soleil, há mais capacidade de negociação 
e sobretudo de aceitação, mas não se deve desperdiçar esse capital político deixando passar o 
tempo.  São  necessárias  medidas  concretas  rumo  ao  desarmamento  e  ao  ataque  às  raízes  da 
violência", disse. 
 
Tarefa do governo 
229 

O  comandante  militar  da  Minustah  (Missão  de  Estabilização  da  ONU  no  Haiti),  o  general 
brasileiro José Elito Siqueira, discorda de que haja um aumento sistemático da violência e disse 
que um plano de desarmamento depende da iniciativa do governo Préval. 
"O termo não seria aumento de violência. Houve uma noite ou outra em que teve mais tiros 
do que o usual. Mas não foram operações ou ações, foram tiros dados por gangues, isso não 
caracteriza  aumento  de  violência",  afirmou  Elito  à  Folha.  Segundo  ele,  esses  episódios 
ocorreram com mais freqüência em Cité Militaire, e não na vizinha Cité Soleil. 
O general brasileiro discordou da avaliação da polícia haitiana sobre aumento de seqüestros. 
"Desde janeiro, tem havido entre e 15 e 20 seqüestros por mês, quando em dezembro houve 
cerca de 200. Continua assim, nada diferente dos últimos meses." 
Sobre o desarmamento, o general Elito disse que o tema "é um projeto de governo, e não uma 
ação  militar".  "O  desarmamento  é  uma  conseqüência  de  ações  de  governo,  e  nós  torcemos 
para que isso aconteça. Há um momento favorável." 
 
Folha de S. Paulo 
Editoria/caderno: mundo 
Título: "Seis estrelas, seis estrelas", celebram haitianos após o jogo do Brasil na Copa  
Data: 28/06/2006 – quarta‐feira 
Crédito: Andrea Michael, enviada especial a Porto Príncipe 
 
O  jogo  está  quase  no  final,  quando  Zé  Roberto  marca  o  gol  que  sacramenta  o  placar  de  3x0 
contra a seleção de Gana. É o sinal, em Porto Príncipe, capital do Haiti, para os festejos na rua. 
"Seis estrelas, seis estrelas", comemora a torcida visivelmente pró‐Brasil na região central da 
cidade, próximo a sede do governo. 
Em  frente  a  um  bar,  o  dono  providenciou  a  alegria  dos  convivas:  uma  televisão  de  29 
polegadas movida a gerador, o suficiente para os presentes dançarem e cantarem a vitória do 
Brasil. Nas ruas de Porto Príncipe, Ronaldo e Ronaldinho são reis. 
As  tropas  brasileiras  que  integram  a  força  de  paz  da  ONU  observam  a  festa,  atentas  aos 
jornalistas que acompanham a visita do ministro Waldir Pires (Defesa) ao país. O Brasil tem o 
maior contingente e também o comando militar da missão. 
Desempregado, o mecânico Gardy Jovin, 26, acha que Ronaldo é o melhor "porque tem mais 
técnica".  Em  2004,  Jovin  esteve  no  jogo  que  a  seleção  brasileira  disputou  no  Haiti.  "Foi 
maravilhoso." 
Com uma pulseira verde e amarela, o ex‐militar ‐o Exército do Haiti foi dissolvido no governo 
de  Jean‐Bertrand  Aristide‐  Naval  Vernard,  43,  saúda  os  brasileiros:  "Bom  Baguy,  Brasil". 
Traduzindo: brasileiro, boa gente, frase comum ouvida pelas tropas nacionais. 
Comum como o cumprimento, feito com o punho direito cerrado sobre o coração, é o pedido 
que surge depois: um emprego. 
O jogo acaba. Ao lado da rua Champs de Mars, as tropas brasileiras que são responsáveis por 
proteger o palácio do qual o presidente René Préval governa o país também comemoram. 
O quinto contingente mandado pelo Brasil ao Haiti é de nordestinos. 
Na torcida, que assistiu ao jogo com transmissão em português, chama a atenção o sargento 
Lindolpho  Barbosa,  29.  Cearense,  ele,  que  está  há  um  mês  no  Haiti,  acompanhou  à  partida 
com um típico chapéu de couro. 
Para dar sorte? "Não. É porque é uma tradição mesmo", diz. 
 
 
 
 
 
230 

Folha de S. Paulo 
Editoria/caderno: mundo 
Título: Haiti não é pior que periferia no Brasil, diz Pires 
Data: 30/06/2006 
Crédito: Andréa Michael, da Sucursal de Brasília 
 
MISSÃO NO CARIBE  
 
Depois de dois dias de visita ao Haiti, o ministro da Defesa, Waldir Pires, chegou à conclusão de 
que as ruas daquele país têm muito das periferias brasileiras. "Eu esperava uma coisa pior. Se 
eu for para a periferia de uma cidade brasileira, qual é a diferença? Não tem. Pelo contrário, 
eu  até  vi  o  pessoal  mais  ou  menos  arrumadinho,  com  uma  certa  vontade  de  estar  limpos  e 
apresentáveis, as mulheres penteadas. São vaidosos." 
Pires entende que a ONU, responsável pela força de manutenção da paz no Haiti, deve ir mais 
a  fundo  em  sua  missão.  "Por  que  pensar  só  na  força  de  paz  como  segurança  pública?  Como 
não ter um diagnóstico total, sobre todo o processo que está nas raízes dessas dificuldades?" 
O  histórico  militante  de  esquerda  foi  recebido  com  honras  militares  pelas  tropas  brasileiras, 
que compõem o maior contingente na força de paz da ONU. 
"O Haiti tem o que o Brasil tem: áreas da população nas quais, se você não tiver um aporte, 
você  não  come.  E,  se  não  come,  morre  de  desnutrição,  e  acabou.  Mas  é  preciso  estabelecer 
mecanismos  para  que  o  dinheiro  não  seja  desviado",  disse  ainda  o  ministro,  que  retornou 
ontem ao Brasil. 
 
Folha de S. Paulo 
Editoria/caderno: mundo 
Título: Brasileiros tentam pacificar a maior favela de Porto Príncipe  
Data: 02/07/2006 – domingo 
Crédito:  Andréa  Michael,  enviada  especial  a  Porto  Príncipe,  a  repórter  viajou  a  convite  do 
Ministério da Defesa. 
 
Soldados que integram o contingente das Nações Unidas no Haiti assumiram em maio a 
responsabilidade por Cité Soleil, a região mais violenta da capital   
 
As tropas brasileiras em ação no Haiti concluíram nesta semana o asfaltamento de um trecho 
de  500  metros  da  rua  Soleil  9.  Aparentemente  modesta,  a  obra  tem  um  grande  valor 
simbólico: a via fica no coração de Cité Soleil, a maior e mais violenta favela da capital, Porto 
Príncipe, e que desde 17 de maio passou à guarda das tropas brasileiras da Minustah (Missão 
das Nações Unidas de Estabilização no Haiti). 
O  trabalho  foi  conduzido  pela  Companhia  de  Engenharia  Haiti,  que  pertence  ao  Exército  e 
conta  com  150  profissionais  que  integram  o  efetivo  militar  brasileiro.  A  um  custo  de  R$  20 
milhões,  que  serão  reembolsados  pela  ONU,  a  empresa  teve  seu  maquinário  renovado  para 
atuar na missão. 
A  via  recuperada  dá  acesso  ao  Ponto  Forte  16,  a  base  brasileira,  um  prédio  que  em  outros 
tempos servia como mercado central de Cité Soleil, onde vivem 250 mil pessoas. 
Seguindo a linha "conquistar corações e mentes haitianos", as tropas brasileiras se preparam 
para  dois  outros  projetos  de  repercussão  social  na  favela.  Vão  iluminar  a  praça  central  e 
recuperar a principal escola da favela, atualmente fechada. 
Os muros e casas de alvenaria ‐madeira é artigo de luxo no Haiti‐ abrigam, além de miseráveis 
ou  subempregados,  gangues  armadas  e  violentas  que  se  digladiam  entre  si.  Em  dezembro, 
231 

segundo contabilidade oficial do Exército, houve 10 mil disparos em um único dia na favela ‐as 
gangues fizeram barulho para marcar a morte do líder Emmanuel Wilmer. 
Diante do Ponto Forte 16, os olheiros das gangues seguem os passos dos soldados de perto, 
dia  e  noite.  Os  brasileiros  trabalham  com  cautela.  A  preferência,  em  caso  de  necessidade,  é 
usar o arsenal de bombas de efeito moral e balas de borracha. Querem evitar o acirramento 
das relações com a população, como ocorreu com as tropas jordanianas, que atuavam ali antes 
dos brasileiros. 
 
Problema social 
"O  problema  de  Cité  Soleil  não  é  de  polícia.  É  social",  diz  o  general  José  Elito  Siqueira,  o 
comandante militar da Minustah, composta por 7,2 mil soldados de oito países. 
A receita parece ter funcionado em Bel Air, zona também conturbada que foi pacificada pelas 
tropas  nacionais.  Lá  realizou‐se  em  27  de  junho,  depois  de  dois  anos  de  jejum  por  conta  da 
violência,  a  cerimônia  religiosa  em  homenagem  a  Nossa  Senhora  do  Perpétuo  Socorro, 
padroeira do Haiti. 
No país de 8,2 milhões de habitantes ‐70% abaixo da linha da pobreza‐, os homens arriscam os 
dentes para escapar da fome quando comem um biscoito feito com argila e sal. Nas ruas de 
Porto  Príncipe,  cuja  população  soma  2  milhões,  as  crianças  pedem  "comida",  "one  dollar, 
please", ou, mudas, simplesmente estendem a mão em busca de uma esmola. 
Segundo  o  embaixador  brasileiro  no  Haiti,  Paulo  Cordeiro,  de  um  modo  geral  as  tropas 
nacionais  têm  uma  boa  receptividade.  "Mas  ainda  assim  a  presença  do  Brasil  é  uma 
intromissão. Os haitianos entendem a necessidade de nossa presença, mas vivem o dilema de 
um país que conquistou sua independência, mas não conseguiu exercer sua soberania", diz. 
O Haiti foi o segundo país das Américas, depois dos EUA, a se tornar independente, em 1804. 
Desde fevereiro, após a eleição do presidente René Préval, o Haiti vive um período de calmaria 
‐o  coronel  Paulo  Humberto,  que  comanda  as  tropas  brasileiras,  prefere  o  termo  "sob 
controle", por precaução. 
O número de seqüestros, que chegou a 100 por mês, está em 15 ocorrências. As ruas, antes 
cercadas de montanhas de lixo, estão mais limpas. Também diminuiu o cheiro de esgoto, um 
tempero quase que inevitável do ar, pois não há saneamento básico em Porto Príncipe. 
O governo Préval anda a passos lentos, principalmente pela falta de recursos. Só para fechar as 
despesas  de  custeio,  o  país  precisa  de  US$  20  milhões  até  setembro.  Para  2007,  outros  US$ 
100 milhões são necessários em caráter emergencial. 
Ainda  é  cedo  para  apontar  as  razões,  mas  o  fato  é  que  o  risco  persiste  no  país,  conforme 
registrou Loris de Filippi, da organização Médicos Sem Fronteiras, que atua em Cité Soleil. 
Para Filippi, que reconhece a situação do país como "estável", a população talvez esteja dando 
sinais de que pretende cobrar uma fatura eleitoral. 
"O  governo  fez  muitas  promessas.  A  eleição  aconteceu  em  fevereiro.  Passaram‐se  quatro 
meses, e a população, que votou em massa, pensa que fez sua parte e quer o retorno", disse. 
 
Folha de S. Paulo 
Editoria/caderno: mundo 
Título: Haiti mergulha em novo surto de violência  
Data: 23/12/2006 – sábado 
Crédito: Carolina Vila‐Nova, da redação, com agências internacionais 
 
Tiroteio entre gangues e forças de paz durante ação comandada pelo batalhão brasileiro deixa 
ao menos cinco mortos 
Seqüestros aumentam em dezembro; chefe da missão da ONU se diz "alarmado", e presidente 
lamenta "Natal triste para as crianças"  
232 

 
Uma  operação  conjunta  da  força  de  paz  da  ONU  e  da  Polícia  Nacional  Haitiana  contra  a 
recente  onda  de  seqüestros  em  Porto  Príncipe,  coordenada  pelo  Brasil,  acabou  ontem  em 
trocas de tiros com gangues armadas na favela de Cité Soleil. Houve ao menos cinco mortos e 
vários feridos. 
A  porta‐voz  da  Minustah  (Missão  de  Estabilização  da  ONU  no  Haiti),  Sophie  Boutaud‐de‐la‐
Combe, confirmou os confrontos e disse à Folha "ser possível" que mortes tenham ocorrido, 
sem, porém, dar números. 
Na ação, o 3º sargento Gilson Clemente Fonseca foi ferido levemente. Ele não corre perigo. 
Em uma ação preliminar  na tarde  de  anteontem,  um veículo blindado do Paraguai teve  uma 
pane mecânica e foi alvo de coquetéis molotov. 
Cité Soleil, uma das zonas mais violentas de Porto Príncipe, com cerca de 250 mil habitantes, 
está sob responsabilidade dos capacetes azuis brasileiros desde maio. 
Segundo  nota  divulgada  pelo  Batalhão  Brasileiro  no  Haiti,  a  operação  teve  início  às  5h10  da 
manhã (2h10 em Brasília), com a ocupação de posições estratégicas por tropas brasileiras. 
Participaram cerca de 300 militares de Bolívia, Brasil, Chile e outros países, além de 40 policiais 
da ONU, policiais haitianos e 20 blindados. 
De acordo com Boutaud‐de‐la‐Combe, a ação teve por objetivo reabrir uma importante via de 
acesso na zona de Bois Neuf, que havia sido bloqueada pelas gangues. Ela não pôde confirmar 
se reféns estavam sendo mantidos nessa região. 
"As gangues se protegem bloqueando as ruas e impedindo o acesso da população." 
Já o Batalhão Brasileiro afirmou que o "principal objetivo foi fortalecer a presença da Minustah 
em Bois Neuf e oferecer melhores condições de segurança para a população". 
A  nota  diz  ainda  que  a  força  de  paz  atuou  "dentro  das  regras  de  engajamento  preconizadas 
pela ONU, para sua autodefesa e somente quando identificadas as ameaças". 
A  France  Presse  afirmou  que  várias  vítimas  foram  levadas  a  um  hospital  da  organização 
Médicos Sem Fronteiras. 
 
Onda de seqüestros 
Comuns no Haiti, os seqüestros foram especialmente numerosos neste mês. Apenas na capital, 
Porto  Príncipe,  29  crianças  foram  seqüestradas  em  um  período  de  três  dias,  na  semana 
passada. No início desta semana, cerca de sessenta passageiros de dois ônibus também foram 
feitos reféns. 
Segundo  o  general  brasileiro  José  Elito  Siqueira,  comandante  militar  da  missão,  a  média  de 
janeiro  a  junho  foi  de  entre  15  e  20  seqüestros  por  mês.  Já  em  dezembro  do  ano  passado, 
houve cerca de 200 casos. 
 
"Natal triste" 
"É um Natal triste para as crianças", disse o presidente do Haiti, René Préval, numa cerimônia 
ontem  com  centenas  de  crianças,  sem  comentar  a  ação.  "Vou  lhes  dar  brinquedos,  mas  o 
presente  mais  bonito  que  eu  poderia  prometer  é  que  os  seqüestros  acabassem  e  que  se 
pudesse celebrar o Natal em outras condições em 2007." 
Anteontem, o chefe diplomático da Minustah, Edmond Mulet, se disse alarmado com a onda 
de seqüestros e afirmou que eles podem ter motivação política. "Há alguém por trás que quer 
gerar temor no país." 
Mulet  disse  ainda  que  as  forças  da  ONU  receberam  "luz  verde"  do  governo  haitiano  para 
incrementar suas ações anti‐seqüestros e se comprometeu a apresentar resultados "no menor 
tempo possível". 
Segundo  a  ONU,  desde  o  início  das  operações,  24  supostos  seqüestradores  foram  detidos  e 
seis reféns foram libertados. 
233 

Folha de S. Paulo 
Editoria/caderno: mundo 
Título: População elogia força, mas pede fim da miséria  
Data: 01/03/2007 – quinta‐feira 
Crédito: do enviado especial a Porto Príncipe 
 
A  favela  Bois  Neuf,  na  Cité  Soleil  de  vielas  miseráveis,  valas  negras  e  mau  cheiro  constante, 
acompanhou  calma  e  sem  surpresa  a  presença  das  tropas  de  paz.  Alguns  reclamavam  do 
atraso  que  causava  ao  trabalho  ou  à  escola.  A  maioria  ouvida  pela  Folha,  porém,  defendia  a 
atuação da ONU. 
"Gosto muito da missão, pois traz a paz, sem a qual não podemos viver. Mas o governo tem de 
fornecer  também  segurança,  educação  e  saúde,  porque  é  muita  miséria  aqui",  disse  Ricot 
Magene, 25, que trabalha em um colégio. 
"Fale  com  eles  que  temos  que  ir  à  escola.  Somos  estudantes,  não  bandidos",  reclamou  um 
rapaz  de  uniforme  que  não  quis  se  identificar.  Ele  estava  na  fila  para  a  identificação  de 
eventuais criminosos por informantes das forças de paz. 
Para  o  jornalista  haitiano  Daniel  St.  Helaine,  da  Rádio  Tropical,  da  capital,  a  população  está 
"contente" com a presença da Minustah, pois reduz o crime nos locais que controla. 
A maioria dos sorrisos para os brasileiros era de crianças e mulheres. Os homens ficavam mais 
reservados, observando os militares à distância. 
Há quem tema represálias dos criminosos, embora a Folha tenha presenciado um morador se 
oferecer para colaborar com a Minustah. 
Nervosa  e  chorando,  uma  mulher  abordou  o  comandante  do  batalhão  do  Brasil,  coronel 
Barroso  Magno,  pedindo  por  seu  marido,  preso  pelas  tropas.  Temia  que  fosse  entregue  à 
Polícia Nacional Haitiana, acusada por organizações internacionais de desrespeitar os direitos 
humanos. 
Com  quase  todas  as  casas  de  mais  de  um  andar  destruídas  pelas  gangues  para  impedir  a 
eventual utilização pela Minustah como pontos de apoio, as poucas ruas asfaltadas e as muitas 
de terra lembram uma favela brasileira. 
As crianças sorriam para militares brasileiros. Meninos e meninas descalços passavam a mão 
na barriga para pedir comida. "Grangou, grangou [fome, fome]", diziam, em créole. 
A  única  casa  nova  em  Bois  Neuf  é  a  do  líder  rebelde  Belony.  Pintada  recentemente  na  cor 
telha, com portas novas e muros de pedra nos fundos, tem uma boate contígua, com o nome 
"A Nova Geração". 
Um portal com pinturas do líder rebelde Dread Wilman ‐morto pela Minustah‐ ao lado de Che 
Guevara e o texto "Herói do 21º século" adornam a avenida principal da favela, pavimentada e 
ampla. Fuzileiros navais, com uma picareta, tiraram o pôster de Belony. (RG) 
 
Folha de S. Paulo 
Editoria/caderno: mais 
Título: A ilha sem fantasia 
Data: 12/08/2007 – domingo 
Crédito: Bóris Fausto, colunista da Folha 
 
Primeira colônia americana a se tornar independente por revolução popular, Haiti antecipou 
problemas atuais de vários países  
 
O Haiti tem um lugar na nossa realidade e na nossa imaginação, por várias razões. Entre elas, a 
controvertida presença das tropas brasileiras na ilha, sob a bandeira da ONU, e a atração de 
seus rituais de origem africana, que guardam parentesco com os nossos. Além disso, podemos 
234 

sempre  nos  consolar  das  mazelas  nacionais  abandonando  a  ambigüidade  proposta  numa 
canção de Caetano e Gil, para afirmar, com boas razões: "O Haiti não é aqui".  
Entretanto o Haiti foi o primeiro país do continente americano a proclamar sua independência 
pela via de uma longa insurreição de negros e mulatos (1804), que deixou profundas marcas 
entre dominantes e dominados. Assim, um sentimento de temor tomou conta dos senhores de 
escravos, do sul dos EUA ao Rio de Janeiro, diante da possibilidade de que novas insurreições 
viessem  a  ocorrer,  resultando,  em  certos  casos,  no estabelecimento  de  controles  ainda  mais 
repressivos sobre a população escrava.  
Por outro lado, na região do Caribe, as notícias sobre a longa e vitoriosa insurreição haitiana 
alentaram  outras  rebeliões,  embora  esmagadas,  como  ocorreu  nas  plantações  de  açúcar  da 
Venezuela.  
 
Origem  
Duas questões são básicas na história haitiana. Como se explica a "independência precoce" e 
ainda mais pela forma como se deu? O que ocorreu, ao longo de dois séculos, para que o Haiti 
se notabilizasse, tristemente, pela miséria e pela degradação? Neste texto, me dedico mais à 
primeira questão e me limito apenas a algumas indicações sobre a segunda. Nos últimos anos 
do  século  18,  a  ilha  Hispaniola,  onde  arribou  Colombo,  estava  dividida  em  duas  partes 
geograficamente desiguais: uma a leste, sob domínio espanhol, e outra a oeste, sob domínio 
francês.  
Haiti  foi  o  nome  ameríndio  adotado  pela  ex‐colônia  francesa,  substituindo  a  denominação 
"Saint  Domingue",  a  partir  da  Independência,  e  que,  para  maior  facilidade,  vou  doravante 
utilizar.  Por  volta  de  1789,  a  então  colônia  era  uma  grande  produtora  de  bens  primários,  a 
ponto de suas exportações de café corresponderem a metade das exportações mundiais e as 
de açúcar aproximarem‐se das exportações combinadas de Brasil, Cuba e Jamaica.  
Socialmente, a população haitiana compunha‐se de quase meio milhão de escravos; cerca de 
30  mil  "pessoas  de  cor"  livres  ou  libertas,  em  grande  maioria  mulatos,  muitos  deles 
possuidores de plantações e de escravos; e algo em torno de 40 mil brancos ‐grandes senhores 
num extremo e gente pobre no outro.  
 
Personagens  
A  insurreição  iniciada  em  agosto  de  1791,  nas  plantações  de  açúcar,  prolongou‐se  até 
dezembro de 1803, envolvendo, de parte a parte, massacres e destruições em grande escala. 
No  curso  da  luta,  ganhou  grande  destaque  a  figura  de  Toussaint  L'Ouverture  (a  abertura,  a 
liberdade), cujo verdadeiro nome era Toussaint Bréda.  
Filho  de  um  príncipe  africano  escravizado  e  enviado  para  a  ilha,  Toussaint  não  era  um  rude 
escravo, mas um liberto, membro respeitado da franco‐maçonaria, leitor de Maquiavel, senhor 
de  propriedades  e  de  escravos,  como  mostra  o  livro  de  Madison  Smartt  Bell  "Toussaint 
Louverture  ‐A  Biography"  (Pantheon  Books,  352  págs.,  US$  27,  R$  51),  resenhado  por  David 
Brion Davis em "The New York Review of Books", de 31/5, em que me apóio substancialmente.  
Brilhante estrategista, Toussaint comandou as forças rebeldes, derrotando tropas invasoras da 
Espanha  e  da  Inglaterra.  Afinal,  preso  numa  cilada  armada  pelo  general  Leclerc,  cunhado  de 
Napoleão,  em  1803,  quando  sua  vitória  já  se  delineava,  foi  enviado  à  França,  onde  morreu 
numa masmorra gelada, nas montanhas do Jura, pouco tempo depois.  
Um conjunto de razões explica o êxito dessa guerra de independência igualitária e feroz. Não 
necessariamente  pela  ordem  de  importância,  destaquemos  a  elevadíssima  concentração  de 
escravos  num  pequeno  território;  a  divisão  entre  os  vários  setores  da  população  branca;  o 
papel desempenhado por Toussaint; uma conjuntura internacional favorável.  
235 

Sobre  o  último  aspecto,  lembremos  que,  na  metrópole,  os  líderes  da  Revolução  Francesa 
(1789)  ziguezaguearam  em  torno  do  problema  haitiano,  deixando  de  atuar  como  um  poder 
colonial unificado.  
 
Papel negativo dos EUA 
Por sua vez, os EUA, durante a presidência de John Adams [1979‐1801], forneceram armas aos 
rebeldes,  com  o  objetivo  de  eliminar  o  poder  da  França  nas  Antilhas.  Semelhante  atitude 
tiveram os espanhóis da parte leste da ilha (Santo Domingo), que cruzaram a fronteira e deram 
apoio a Toussaint, em um primeiro momento.  
O  desastre  haitiano  posterior  à  Independência  tem  a  ver,  sem  dúvida,  com  o  papel  negativo 
desempenhado pelos EUA, que ocuparam o país entre 1915 e 1934, a pretexto de instaurar "a 
lei  e  a  ordem",  sem  conseguir  nem  uma  coisa  nem  outra.  Entretanto,  ao  mesmo  tempo,  é 
necessário  considerar,  guardadas  episódicas  exceções,  a  incapacidade,  a  corrupção,  a 
insensibilidade  da  elite  haitiana,  de  que  a  família  Duvalier  [dos  presidentes  François  e  Jean‐
Claude] é a pior, mas não a única, expressão.  
O Haiti é um bom exemplo premonitório do que viria a acontecer em alguns países da África 
pós‐colonização:  se  o  imperialismo  tem  aí  grandes  responsabilidades  pela  existência  de  um 
quadro  dramático,  em  toda  a  extensão  da  palavra,  outros  vilões  concorreram  e  concorrem 
para a existência desse quadro.  
________________________________________ 
BORIS FAUSTO é historiador e preside o conselho acadêmico do Gacint (Grupo de Conjuntura 
Internacional),  da  USP.  É  autor  de  "A  Revolução  de  1930"  (Cia.  das  Letras).  Ele  escreve 
mensalmente na seção "Autores", do Mais!  
 
Folha de S. Paulo 
Editoria/caderno: brasil 
Título: Brasil precisa ampliar base de apoio, afirma secretário da ONU  
Data: 11/11/2007 – domingo 
Crédito: Sergio Dávila, enviado especial a Nova York 
 
ENTREVISTA: BAN KI‐MOON  
Para o sul‐coreano, o assento permanente no Conselho de Segurança exige expansão de 
diálogo com países‐membros  
Secretário‐geral das Nações Unidas, que chega hoje ao país, defende o programa do etanol, 
que é criticado por relator da ONU para a fome  
 
Se  quiser  conseguir  um  assento  permanente  no  Conselho  de  Segurança  da  Organização  das 
Nações  Unidas,  a  instância  mais  importante  da  ONU,  o  Brasil  tem  de  aumentar  sua  base  de 
apoio entre os países‐membros. Esse é o conselho dado pelo secretário‐geral da entidade, Ban 
Ki‐moon.  Em  entrevista  à  Folha,  o  sul‐coreano  de  63  anos  elogiou  o  programa  do  etanol 
brasileiro  ‐ele  começa  seu  primeiro  tour  oficial  ao  país  hoje  com  uma  visita  a  uma  usina  de 
álcool em São Paulo‐ e diminuiu a importância do pedido de seu relator para a fome, que quer 
moratória  de  cinco  anos  na  produção  de  biocombustíveis.  Na  segunda‐feira,  Ban  Ki‐moon 
(pronuncia‐se  "ban  gui‐mun")  recebeu  a  Folha  no  último  andar  do  prédio‐sede  das  Nações 
Unidas, em Nova York.  
Leia a entrevista a seguir:  
    
FOLHA ‐ O Brasil quer um assento permanente no Conselho de Segurança. Muitos dizem que é 
um  pleito  justo  ou  mesmo  apóiam  a  entrada,  como  a  França.  Minha  pergunta  é:  o  que  está 
faltando?  
236 

BAN KI‐MOON ‐ Todos os países‐membros da ONU concordam com o fato de que o Conselho 
de  Segurança  precisa  passar  por  uma  reforma  que  aumente  seus  assentos  permanentes. 
Considerando  as  mudanças  dramáticas  por  que  passamos  nas  últimas  seis  décadas,  é 
absolutamente  necessário  que  o  CS  reflita  mais  realisticamente  o  que  aconteceu  na 
comunidade internacional.  
O  que  está  faltando  são  os  países‐membros  conseguirem  concordar  sobre  uma  mesma 
fórmula para a mudança. Na América Latina, há muitos países que desejam se tornar membros 
permanentes.  Também  na  África  e  na  Ásia.  Temos  de  lidar  com  essas  questões  de  maneira 
harmoniosa, por meio de diálogo e consultas.  
FOLHA ‐ Qual é a sua opinião?  
KI‐MOON ‐ Como secretário‐geral, não estou em posição de expressar minha posição pessoal 
publicamente. Meu papel é facilitar o diálogo e a consulta entre os países‐membros. O Brasil é, 
claro, um país‐membro muito importante, foi um dos fundadores da organização. Mas deveria 
tentar expandir seu apoio entre os outros países‐membros.  
FOLHA ‐ Esse é seu conselho para o país?  
KI‐MOON ‐ Sim.  
FOLHA  ‐  A  ONU  avalia  positivamente  o  papel  do  Brasil  à  frente  da  missão  de  paz  no  Haiti 
(Minustah). A favela Cité Soleil foi supostamente "tomada" e "pacificada" sob o comando dos 
militares  brasileiros.  Ao  mesmo  tempo,  há  um  relator  especial  da  ONU  investigando  o 
problema de violência no Brasil, assim como denúncias de execuções e corrupção policial. O sr. 
consegue enxergar a ironia dessa situação?  
KI‐MOON ‐ [Pausa] Sou muito grato quanto ao papel do Brasil na Minustah. Quando visitei o 
Haiti,  vi  junto  à  população  um  sentimento  muito  positivo.  Andei  pela  Cité  Soleil,  o  que  não 
seria  possível  há  sete  meses.  Os  brasileiros  prenderam  todas  as  gangues,  a  segurança  foi 
restaurada, e as pessoas puderam voltar às suas atividades econômicas e sociais. Isso é uma 
mudança completa, liderada pela Minustah. 
Quanto à corrupção, infelizmente, é um problema disseminado e mundial. A ONU, com outras 
organizações  e  a  sociedade  civil,  está  trabalhando  para  que  os  governos  sejam  mais 
transparentes.  Acredito  que  dar  mais  poder  à  sociedade  civil  está  no  centro  do  esforço  de 
corrigir  a  corrupção.  A  ONU  também  apóia  programas  na  América  Latina,  incluindo  o  Brasil, 
para combater a insegurança social e promover a reabilitação dos jovens. 
 
Folha de S. Paulo 
Editoria/caderno: mundo 
Título: Comandante brasileiro no Haiti vê favela mais segura  
Data: 01/03/2008 – sábado  
Crédito: Tahiane Stochero, da folha on line 
 
"O  Brasil  já  faz  parte  de  Cité  Soleil  e  Cité  Soleil  faz  parte  do  Brasil.  A  segurança  lá  está 
associada à confiança que a população tem no soldado brasileiro. Quando eu for tirar o Brasil, 
vai  ter  de  se  bem  planejado."  A  frase  é  do  comandante  da  missão  de  paz  da  ONU  no  Haiti 
(Minustah),  o  general  brasileiro  Carlos  Alberto  dos  Santos  Cruz,  que  diz  acreditar  ser  esta  a 
explicação para o sucesso na pacificação da favela mais pobre e violenta do Haiti. 
A  pacificação  da  região  de  300  mil  habitantes  na  capital  haitiana  é  consolidada  exatamente 
quatro  anos  após  a  queda  do  ex‐presidente  Jean‐Bertrand  Arisitide,  deposto  em  29  de 
fevereiro de 2004. Reduto de grupos armados, o bairro foi alvo de operações comandadas pelo 
Brasil em 2007 em que foram presos ou mortos mais de 500 criminosos e revoltosos. 
 
Sem Estado 
237 

"Nestes  quatro  anos,  conseguimos  estabilidade,  houve  eleições,  não  há  mais  áreas 
comandadas  pelos  criminosos.  Mas  onde  80%  da  população  não  têm  emprego,  onde  não 
existe  água,  energia  elétrica,  polícia  nem  a  presença  do  Estado,  como  se  vai  acabar  com  a 
violência?", questiona Cruz. 
Pelo segundo ano no comando da Minustah, o general diz que os principais desafios deste ano 
são manter a segurança, reforçar a vigilância na fronteira e a geração de empregos. 
 
Folha de S. Paulo 
Editoria/caderno: brasil 
Título: Atividades não militares ocupam tropa  
Data: 19/05/2008 – segunda‐feira 
Crédito: Claudio Dantas Sequeira, da reportagem local 
 
Soldados brasileiros distribuem comida, jogam bola e até apóiam segurança de autoridades 
estrangeiras  
 
Os  militares  brasileiros  no  Haiti  vêm  sendo  usados  em  diversas  ações  não  previstas  no 
mandato da Minustah, definido pelo Conselho de Segurança da ONU, na resolução 1.542, de 
abril  de  2004.  Para  ganhar  a  confiança  dos  haitianos  e  dar  status  internacional  ao  Brasil,  as 
tropas erguem escolas, pavimentam ruas, distribuem alimentos e até jogam futebol. 
Além  dessas  atividades,  classificadas  como  "cívico‐sociais",  o  batalhão  brasileiro  celebra 
feriados, presta homenagens e garante a segurança de autoridades estrangeiras. Em março, os 
soldados participaram do esquema de proteção da primeira‐dama dos Estados Unidos, Laura 
Bush, no Haiti. 
Em fevereiro, o batalhão brasileiro disputou uma partida de futebol com a comunidade de Bel 
Air  ‐venceu  por  3x2.  Um  dia  depois,  o  contingente  foi  ao  bairro  de  Citè  Soleil  e  lá  montou 
oficinas de pintura e confecção de pipas para crianças. 
Pesquisa  realizada  pela  Folha  sobre  as  ações  desenvolvidas  no  Haiti  revela  que,  de  235 
atividades  relatadas  pelo  batalhão  brasileiro  em  2007,  apenas  15%  tiveram  cunho  militar. 
Cerca de 55% foram ações cívico‐sociais, e 40% envolveram atos oficiais e celebrações. 
O gasto com essas festividades chegou a R$ 236,9 mil, aumento de quase 600% sobre o ano 
anterior.  Estão  incluídas  as  comemorações  de  feriados  nacionais,  promoções  de  efetivos, 
passagens de comando, recepções a autoridades, datas militares e homenagens. 
Levantamento  feito  pelo  site  Contas  Abertas,  no  Sistema  Integrado  de  Administração 
Financeira  do  governo  federal  (Siafi),  a  pedido  da  Folha,  mostra  que  os  gastos  com  material 
educativo  e  esportivo  caiu  de  R$  217  milhões  para  R$  209  milhões,  enquanto  as  diárias 
subiram de R$ 3,14 milhões para R$ 3,99 milhões, entre 2006 e 2007. O gasto com passagens 
quase dobrou, de R$ 1,16 milhão para R$ 2,29 milhões. 
"Fizemos de tudo, até atendimento médico. Só partos foram 25 em três meses", diz o sargento 
Romulo Bandeira, integrante do 5º contingente. 
Mesmo com a redução das ações militares, o Ministério da Defesa gastou mais em armas para 
o Haiti em 2007: R$ 3,7 milhões ‐aumento de 27% sobre o executado em 2006. 
No Siafi, constam ainda gastos com a compra de carros de combate (R$ 4,7 milhões), veículos 
de  tração  mecânica  (R$  13,4  milhões),  embarcações  (R$  1,6  milhão),  aparelhos  de 
comunicação (R$ 1,5 milhão) e equipamentos de proteção e socorro (R$ 1,16 milhão). 
"Com  a  desculpa  do  Haiti,  eles  aproveitam  para  reaparelhar  as  Forças  Armadas",  disse 
Expedito Carlos Stephani, pesquisador de assuntos militares da Universidade Federal de Juiz de 
Fora (UFJF). 
238 

Como exemplo, ele citou o caso da compra de blindados suíços Piranha III, para o transporte 
de tropas. "Eles já enviaram quatro para o Haiti, mas são muito grandes para operar nesse tipo 
de terreno e sabem disso", disse. 
 
Folha de S. Paulo 
Editoria/caderno: brasil 
Título: Falta de consenso impede a criação do Conselho de Defesa  
Data: 24/05/2008 – domingo 
Crédito: Cláudio Dantas Sequeira, enviado especial a Brasília; Fernanda Odilla, da sucursal de 
Brasília 
 
Presidentes sul‐americanos criam a Unasul, nova organização do subcontinente 
Colômbia e Venezuela apresentam restrições à proposta para novo órgão de defesa, defendido 
pelo ministro Nelson Jobim  
 
A  falta  de  consenso  sobre  o  papel  que  deverá  ter  o  Conselho  de  Defesa  da  América  do  Sul 
impediu  a  assinatura  de  um  acordo  para  a  criação  do  órgão  ontem,  em  Brasília.  O  impasse 
levou  a  presidente  chilena,  Michelle  Bachelet,  a  sugerir  que  seja  formado  um  grupo  de 
trabalho no âmbito da Unasul (União das Nações Sul‐americanas), criada ontem e que terá o 
Chile ocupando pela primeira vez a presidência rotativa. 
"Num prazo de 90 dias vamos revisar a proposta de Lula, recolher as preocupações dos outros 
países e apresentar uma proposta definitiva", disse Bachelet. Mas os próximos três meses não 
deverão ser suficientes para garantir consenso. 
O presidente da Colômbia, Álvaro Uribe, condicionou sua adesão ao órgão de segurança a que 
todos os países da região reconheçam as Farc (Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia) 
como grupo terrorista. "Num país que tem sofrido tanto como a Colômbia, o continente deve 
atrever‐se a qualificar como terrorista a todo grupo violento que atenta contra a democracia", 
disse. Uribe expôs ao presidente Lula o que chamou de "ponto de reflexão ao diálogo". 
O  adiamento  foi  um  revés  para  o  ministro  da  Defesa,  Nelson  Jobim,  principal  entusiasta  do 
projeto e que esperava a aprovação imediata do acordo. 
Segundo a Folha apurou, não foi apenas a negativa da Colômbia de se unir aos demais países 
que  inviabilizou  temporariamente  o  projeto.  Enquanto  o  governo  brasileiro  prefere  dar  um 
status de foro político ao órgão, Venezuela e Bolívia defendem que o conselho tenha um papel 
operacional  e  amplo,  abrangendo  áreas  como  segurança  energética  e  combate  ao 
narcotráfico. 
Para tanto, o presidente Hugo Chávez sugeriu a Lula que o futuro órgão tenha capacidade de 
ação regional e orçamento próprio. "Não queremos que seja uma Otan do Sul", disse à Folha o 
ministro da Defesa venezuelano, Gustavo Rangel. 
Segundo  ele,  os  países  da  região  deveriam  resolver  seus  problemas  internamente,  sem 
precisar  recorrer  a  potências  estrangeiras.  "Por  que  teríamos  que  recorrer  a  um  Plano 
Colômbia norte‐americano, se pudéssemos fazer algo com nossos próprios meios?". 
Uribe, Chávez e o presidente equatoriano, Rafael Correa, estão em conflito desde que militares 
colombianos invadiram o território do Equador, no início do ano, para eliminar o guerrilheiro 
Raúl Reyes, porta‐voz das Farc. A crise piorou depois que o colombiano acusou os dois vizinhos 
de apoiarem a guerrilha. 
O  assessor  do  Planalto  para  Assuntos  Internacionais,  Marco  Aurélio  Garcia,  considerou  o 
debate um "pequeno passo", uma vez que "outros processos de integração regional até hoje 
não conseguiram resolver esse problema da defesa comum". 
O ministro da Defesa venezuelano falou também do desacordo de Chávez com a atividade do 
Brasil na missão de paz no Haiti (Minustah). "A fase de garantia da segurança já está superada. 
239 

É preciso mudar o perfil dessa missão, substituindo as ações de polícia por atividades sociais e 
desenvolvimento de projetos", afirmou. 
Lula, por sua vez, não admite críticas à participação brasileira na operação de paz no Haiti e fez 
questão  de  ressaltar  isso  no  discurso  de  abertura  do  evento.  "Nossas  Forças  Armadas  estão 
comprometidas com a construção da paz. A presença de muitos de nossos países na Minustah, 
forças da ONU que garantem a segurança no Haiti, é exemplo dessa determinação." 
 
Folha de S. Paulo 
Editoria/caderno: opinião 
Título: É hora de o Brasil encerrar a missão no Haiti? SIM. Novos desafios para as Forças 
Armadas  
Data: 24/05/2008 – sábado 
Crédito: Roberto Abdenur 
 
FOI ACERTADO e oportuno o envio de tropas ao Haiti. Deu‐se no contexto da intensificação de 
nossa  atuação  no  continente  e  no  plano  global  em  geral,  entre  outras  razões  com  vistas  a 
reforçar  nossas  credenciais  para  a  obtenção  de  assento  permanente  no  Conselho  de 
Segurança da ONU ‐objetivo de todo válido, em que nossa diplomacia cedo ou tarde terá êxito 
(talvez mais cedo, em eventual governo Obama nos EUA).  
Enche‐nos de orgulho o notável desempenho de nossos soldados. Com a responsabilidade de 
liderar missão de extrema delicadeza, deram nossas Forças Armadas contribuição decisiva para 
a  difícil  transição  política  de  que  necessitava  o  Haiti  para  o  apaziguamento  das  tensões,  a 
recuperação da economia e a construção de instituições democráticas.  
Para esse sucesso no campo militar muito contribuiu o empenho do Itamaraty na sustentação 
política  da  missão,  com  gestões  no  mais  alto  nível  no  Conselho  de  Segurança,  no  Banco 
Mundial  e  no  BID  e  intensa  movimentação  para  o  êxito  de  duas  conferências  de  países 
doadores.  
Foi  intenso  o  diálogo  com  os  EUA,  dada  sua  influência  nos  processos  decisórios  sobre  a 
questão  (a  propósito,  esclareço  que  nossa  inclusão  na  Missão  das  Nações  Unidas  para  a 
Estabilização no Haiti ‐Minustah‐ não se fez a pedido ou a serviço dos EUA).  
No  que  a  mim  dizia  respeito,  fui  certa  feita  interpelado  por  altos  funcionários  norte‐
americanos que instavam as forças brasileiras a serem mais agressivas. Dei‐lhes a resposta que 
daria  qualquer  brasileiro:  não  temos  a  tradição  guerreira  dos  EUA.  Preferimos  prudência  e 
comedimento, recorrendo à força apenas em última instância. A prioridade era a conquista da 
simpatia da população.  
Tive mais tarde a satisfação de homenagear o general Heleno, cuja passagem por Washington 
se  devia  ao  desejo  das  autoridades  norte‐americanas  de  recolher  ensinamentos  a  partir  da 
experiência vivida por nossas tropas, as quais vinham atuando por vezes mais na imposição do 
que apenas na manutenção da paz (observo que os EUA haviam fracassado em intervenções 
unilaterais no Haiti).  
A Minustah foi profícua iniciativa também por seu caráter predominantemente sul‐americano. 
A nós juntaram‐se Argentina, Bolívia, Chile, Equador, Paraguai, Peru e Uruguai.  
Essa  inédita  experiência  pode  servir  para  avanços  na  articulação  das  forças  da  região  para 
futuras  operações  de  paz,  objetivo  que,  suponho,  recaia  sob  a  égide  de  iniciativas  como  o 
Conselho de Defesa Regional e a Unasul (União das Nações Sul‐Americanas).  
 
Não obstante tudo o que se conseguiu, o Haiti por muito tempo necessitará de apoio externo, 
possivelmente com sucessivas extensões da Minustah (estiveram no país, entre 1993 e 2001, 
quatro  outras  operações  semelhantes).  Vale  notar  que  a  situação  continua  incerta,  como 
ilustram as recentes manifestações de protesto contra os preços de alimentos.  
240 

Os  gastos  com  a  Minustah  até  agora  foram  investimento  frutífero  a  serviço  de  nossos 
interesses  e  responsabilidades  no  plano  internacional.  Mas,  a  essa  altura,  novos  desafios  se 
apresentam  a  nossas  Forças  Armadas  (e  à  diplomacia)  ‐a  proteção  das  águas  territoriais  em 
marco  de  virtual  nova  crise  dos  preços  do  petróleo;  melhor  defesa  do  espaço  aéreo;  e  o 
resguardo da soberania sobre a Amazônia, quando preocupações internacionais com questões 
ambientais (e sua correlação com a escalada no preço de alimentos) trazem de novo à baila no 
exterior descabidas, inquietantes e inaceitáveis idéias sobre a região.  
Acresce o notório sucateamento de parte substancial dos equipamentos das Forças Armadas, 
justamente quando mais urgente se faz sejam elas reforçadas e modernizadas.  
O  atual  mandato  da  Minustah  se  esgota  em  15  de  outubro  vindouro.  A  data  é  próxima,  e 
naturalmente não caberia retirada abrupta a essa altura.  
Mas,  sim,  é  preciso  estar  preparado  para,  no  caso  de  nova  prorrogação,  podermos  gradual, 
mas rapidamente acertar com a ONU cronograma de retirada. Passando adiante o bastão que 
nossas Forças Armadas souberam empunhar de tão honrosa forma.  
________________________________________ 
ROBERTO  ABDENUR,  66,  diplomata  de  carreira  aposentado,  foi  embaixador  do  Brasil  no 
Equador (1985‐1988), na China (1989‐1993) e nos EUA (2004‐2006), entre outros países, além 
de  secretário‐geral  do  Itamaraty  (1993‐1994).  É  conselheiro  do  Cebri  (Centro  Brasileiro  de 
Relações Internacionais). 
 
Os  artigos  publicados  com  assinatura  não  traduzem  a  opinião  do  jornal.  Sua  publicação 
obedece ao propósito de estimular o debate dos problemas brasileiros e mundiais e de refletir 
as diversas tendências do pensamento contemporâneo. debates@uol.com.br  
 
Folha de S. Paulo 
Editoria/caderno: opinião 
Título: É hora de o Brasil encerrar a missão no Haiti? NÃO. O Haiti não é aqui  
Data: 24/05/2008 – sábado 
Crédito: Ricardo Seitenfus 
 
A HIPOTÉTICA retirada do Brasil das forças que compõem a Missão das Nações Unidas para a 
Estabilização no Haiti provocaria dois desastres e uma constatação.  
O primeiro dos desastres afetaria de modo direto e profundo o que foi até então arduamente 
construído no Haiti. Os países latino‐americanos contribuem com 50% dos efetivos militares, 
civis  e  policiais.  Parte  deles,  por  certo,  revisaria  sua  posição,  abandonando  à  própria  sorte 
aquele país.  
Comprometida a presença da ONU na parte ocidental da ilha de Ispaniola, o recrudescimento 
da instabilidade política desembocaria no retorno ao autoritarismo, como tem ocorrido desde 
1986,  salvo  se  a  idéia  esdrúxula  e  imoral  de  submeter  o  Haiti  ao  regime  de  protetorado  das 
grandes potências venha a ser admitida.  
Para  a  população  do  país  mais  pobre  das  Américas,  a  ausência  da  Minustah  significaria  o 
retorno a um passado de repressão, ausência de liberdades mínimas, desrespeito aos direitos 
humanos fundamentais e maior retrocesso econômico. A porta estaria escancarada para que 
os eternos aventureiros e opressores do povo, entre eles notórios traficantes, torturadores e 
assassinos, retomassem as rédeas do poder. O segundo desastre seria brasileiro.  
Qual seria a justificativa ‐a não ser o decantado egoísmo nacional‐ apta a explicar o abandono 
de  um  povo  cujas  raízes  são  compartilhadas  por  ponderável  parcela  de  nossa  população? 
Como explicar às opiniões públicas nacional, internacional e haitiana que o Brasil, respeitado, 
amado  e  venerado  pelo  povo  mártir  da  antiga  pérola  das  Antilhas,  dê‐lhes  as  costas  num 
momento de tal gravidade? O que seria da diplomacia cooperativa e solidária brasileira? Qual 
241 

seria o futuro do enfoque Sul‐Sul, dos projetos do Ibas e da respeitabilidade cada vez maior da 
palavra brasileira no concerto das nações? A resposta é uma só: após a surpresa, a decepção e, 
a seguir, o menosprezo com que seria avaliado o conjunto da nossa atuação internacional.  
Além  dos  desastres,  o  abandono  do  Haiti  traria  uma  constatação:  nossa  incapacidade  de 
resolver problemas regionais. Desde 1945, o fenômeno da guerra, sob todas as suas formas, 
migrou do Norte para o Sul do hemisfério, sem com ela aportar os mecanismos para preveni‐la 
e solucioná‐la, que continuam com as potências. Os países do Sul seguem oferecendo o palco e 
as vítimas dos conflitos atuais.  
A crise do Haiti, se resolvida, poderia constituir novo modelo de solução de conflitos em que, 
pela primeira vez, nós exercemos o papel central.  
Há muito, propugno que a crise haitiana, antes de ser política e securitária, é provocada pela 
desesperança,  pela  miséria,  pelo  descalabro  administrativo,  pela  ausência  de  Estado,  pelo 
vazio  jurídico‐institucional  e  pelas  condições  infra‐humanas  em  que  vegeta  parte  ponderável 
da  população.  Três  dados  ilustram  a  situação:  dos  3.341  detentos  da  Penitenciária  Nacional, 
em  Porto  Príncipe,  tão‐só  112  foram  condenados.  O  restante  está  em  "detenção  provisória 
prolongada",  que  pode  estender‐se  por  vários  anos;  80%  da  população  ativa  está 
desempregada;  há  250  mil  crianças  em  regime  de  escravidão  (os  pouco  conhecidos  e 
abandonados "restavecs"). Ante esse doloroso quadro, as características da presença brasileira 
e  da  comunidade  internacional  no  Haiti  devem  ser  repensadas.  Em  paralelo  à  formação  da 
Polícia  Nacional  Haitiana  e  à  garantia  de  um  nível  mínimo  de  segurança,  é  fundamental  e 
urgente  empreender  ações  que  reavivem  a  economia  da  ilha.  Às  duas  dezenas  de  projetos 
brasileiros bem‐sucedidos devem se somar outras centenas. Porém, é indispensável que sejam 
auto‐sustentáveis  e  se  beneficiem  da  cooperação  financeira  dos  países  desenvolvidos.  A 
cooperação triangular é a chave do sucesso e da solidariedade.  
Há quem diga que o Brasil deve prioritariamente olhar para seus próprios problemas sociais. 
Quem já foi ao Haiti, porém, do soldado ao ministro, sabe que uma luta contra a pobreza não 
exclui a outra e que a solidariedade internacional só reforça a interna. A pergunta talvez não 
seja se o Haiti "é aqui" ou "não é aqui", como no  verso de Gil  e Caetano, mas, sim, onde se 
encontra  o  Brasil  em  relação  ao  mundo,  que  necessita,  mais  do  que  nunca,  de  nossa 
participação pacífica e criativa.  
________________________________________ 
RICARDO SEITENFUS, 60, doutor em relações internacionais, integrou várias missões ao Haiti. É 
coordenador  do  projeto  www.brasilhaiti.com  e  autor  do  livro  "Haiti,  a  Soberania  dos 
Ditadores", entre outras obras. 
 
Os  artigos  publicados  com  assinatura  não  traduzem  a  opinião  do  jornal.  Sua  publicação 
obedece ao propósito de estimular o debate dos problemas brasileiros e mundiais e de refletir 
as diversas tendências do pensamento contemporâneo. debates@uol.com.br  
 
242 
 

 
ANEXOS II – PROFERIMENTOS
 
 
Discurso do Presidente da República, Luiz Inácio Lula da Silva, na cerimônia de embarque das 
tropas militares para missão de paz no Haiti  
Senhor Luiz Inácio Lula da Silva 
Presidente da República Federativa do Brasil 
Base Aérea de Brasília, 31/05/2004 
 
Excelentíssimo senhor José Alencar, vice‐presidente da República e sua esposa, dona Mariza, 
Meu caro embaixador José Viegas Filho, ministro da Defesa, 
Meu caro embaixador Celso Amorim, ministro das Relações Exteriores, 
Meu caro Agnelo Queiroz, ministro dos Esportes, 
Meu caro Waldir Pires, controlador‐geral da União, 
Meu caro general Jorge Armando Félix, chefe do Gabinete de Segurança Institucional, 
Meu caro Álvaro Costa, advogado‐geral da União,  
Minha querida companheira Marisa, 
Almirante‐de‐esquadra Roberto de Guimarães Carvalho, comandante da Marinha, 
General de Exército Francisco Roberto de Albuquerque, comandante do Exército, e senhora 
Marina Antonina Teixeira Pinto de Albuquerque, 
Tenente brigadeiro‐do‐ar Luiz Carlos da Silva Bueno, comandante da Aeronáutica, e senhora 
Sônia Maria Martins Bueno, 
Meus caros deputados, 
Deputado Luizinho, 
Deputado Arlindo Chinaglia, 
Paulo Delgado,  
Ricardo Zaratini, 
Deputado Francisco Rodrigues, 
Senhores oficiais‐generais, 
General Américo Salvador de Oliveira, 
Dom Geraldo Ávila, arcebispo militar, 
Senhores integrantes da brigada do Haiti, 
Militares da Marinha, Exército e Força Aérea Brasileira que embarcam para essa missão de paz 
das Nações Unidas, 
Meus amigos e minhas amigas, familiares dos integrantes da brigada do Haiti, 
Meus amigos e minhas amigas que vieram a essa solenidade, 
 
É com sentimentos elevados que venho me despedir de parte do contingente brasileiro que vai 
participar da missão de paz das Nações Unidas no Haiti.  
Trago a mensagem de apoio e confiança a todos o senhores e peço‐lhes que a transmitam aos 
que já partiram do Rio de Janeiro, no navio da Marinha do Brasil.  
O Brasil sente grande orgulho pelo convite que lhe foi feito para acomodar a missão de paz no 
Haiti.  
A comunidade internacional reconheceu a capacidade e a vontade de nosso país de dar a sua 
contribuição  para  a  paz  no  mundo.  Também  tenho  orgulho  e  satisfação  de  ver  que  nossas 
Forças Armadas estão preparadas e dispostas a ajudar um país irmão. 
O  Haiti  é  o  terceiro  país  com  a  maior  população  negra  nas  Américas.  O  Brasil  compartilha 
dessa  herança  africana  e  não  poderia  ficar  indiferente  diante  dos  problemas  que  o  povo 
haitiano está enfrentando.  
A  paz  e  a  democracia  são  conquistas  das  quais  os  governos  e  os  povos  latino‐americanos 
devem  orgulhar‐se.  Isso  nos  estimula  a  trabalhar  pela  promoção  da  paz  em  nível  global.  A 
243 
 

instabilidade,  ainda  que  longínqua,  acaba  gerando  custos  para  todos  nós.  A  manutenção  da 
paz tem seu preço, e esse preço é o da participação.  
Ao  nos  manifestarmos  diante  de  uma  crise  como  a  que  está  acontecendo  no  Haiti,  estamos 
exercendo  nossa  responsabilidade  no  cenário  internacional.  No  caso  do  Haiti,  consideramos 
que foram preenchidas as condições para uma operação da ONU. Como membro do Conselho 
de  Segurança,  o  Brasil  buscou  refletir  as  preocupações  de  nossa  região  e  interpretar  os 
interesses do povo haitiano e da comunidade internacional. 
Por  esta  razão,  decidimos  também  aceitar  o  comando  da  operação  de  paz  estabelecida  pelo 
Conselho de Segurança que terá, entre outras tarefas, a responsabilidade de proteger civis sob 
ameaça,  de  apoiar  instituições  que  defendam  os  direitos  humanos,  de  promover  a 
reconciliação nacional do Haiti. São desafios importantes, mas não nos intimidam.  
A coragem, o sentido de dever e solidariedade e o elevado profissionalismo de nossas Forças 
Armadas, os preparam para enfrentar os árduos trabalhos que os esperam.  
O mandato que, legitimamente, nos confere a sociedade internacional coincide com as causas 
que, no Brasil, defendemos.  
Nosso  compromisso  com  a  paz  e  o  desenvolvimento  de  um  país  irmão  também  foi  bem 
traduzido pelo Congresso Nacional, que reconheceu a importância desse momento ao aprovar 
o envio de tropas brasileiras para o Haiti.  
Saúdo a pronta decisão de vários países latino‐americanos, sobretudo da América do Sul,  de 
participarem  dessa  missão.  A  situação  de  crise  no  Haiti  vai  exigir  um  compromisso  de  longo 
prazo  por  parte  da  comunidade  internacional  em  apoio  à  sua  reconstrução  econômica  e 
institucional. Nosso objetivo é que os haitianos encontrem, no mais breve prazo, um ambiente 
propício à consolidação de sua democracia.  
Ao  longo  dos  próximos  meses,  suas  famílias  e  amigos  sentirão  a  distância  e  a  saudade,  mas 
terão também a íntima satisfação de saber que seus esposos e pais, filhos e amigos são parte 
de  uma  luta  justa.  Em  mais  algum  tempo  estaremos  todos  aqui,  outra  vez,  reunidos.  Ao  seu 
regresso,  trarão  consigo  a certeza  de  terem  prestado,  com  honra  e  dedicação  pessoal,  a sua 
contribuição e a sua solidariedade a um povo amigo. Partem com o apoio de toda nossa gente, 
regressarão com a alegria de cada um de nós. 
Meus amigos,  
Há  59  anos,  nesse  mesmo  mês  de  maio,  terminava  a  Segunda  Guerra  Mundial.  Naquele 
terrível conflito, a Força Expedicionária Brasileira construiu as mais belas páginas da história de 
nossos  homens  de  armas.  Depois  disso,  nos  engajamos  sucessivamente  em  missões  de  paz 
com o mesmo ardor, coragem e compromisso de nossos pracinhas. Estamos seguros que cada 
um de vocês, inspirados em nossas melhores tradições, será capaz de manter alto, em terras 
haitianas, o nome do Brasil e os valores da paz e da solidariedade que tanto inspiram o nosso 
povo. 
Boa sorte e que Deus os protejam. 
 
Saudação do Presidente da República, Luiz Inácio Lula da Silva, na chegada ao Aeroporto 
Internacional Toussaint Louverture  
Senhor Luiz Inácio Lula da Silva 
Presidente da República Federativa do Brasil 
Porto Príncipe ‐ Haiti, 18/08/2004 
 
Com emoção e alegria, chego ao Haiti para um dia histórico nas relações entre este país e o 
Brasil.  
É  a  primeira  vez  que  um  Presidente  da  República  brasileiro  vem  ao  Haiti,  nação  com  a  qual 
compartilhamos raízes africanas comuns. 
Venho  a  Porto  Príncipe  para  contatos  com  o  Primeiro‐Ministro  Latortue  e  com  o  Presidente 
Alexandre, em um momento em que a comunidade internacional se une para prestar apoio à 
democracia, à estabilidade e à reconstrução nacional do Haiti. 
244 
 

Participei ontem, em São Domingos, de reunião com líderes caribenhos e centro‐americanos, à 
margem  da  posse  do  Presidente  Leonel  Fernández,  da  República  Dominicana,  e  com  a 
presença  do  Presidente  Boniface  Alexandre.  Na  reunião,  destacamos  a  importância  de  um 
esforço de longo prazo para o desenvolvimento institucional, econômico e social do Haiti.  
Dentro  de  uma  semana,  estará  em  Porto  Príncipe  uma  missão  brasileira,  coordenada  pela 
Agência Brasileira de Cooperação e integrada por mais de 20 pessoas, que contribuirá para o 
desenvolvimento de projetos envolvendo vários ministérios, em áreas como saúde, agricultura 
familiar, infra‐estrutura e transporte urbano. 
Venho  confraternizar  com  as  Forças  de  Paz  sob  comando  brasileiro  e  com  o  batalhão  Brasil. 
Nossa participação na Missão das Nações Unidas para a Estabilização no Haiti – a MINUSTAH ‐ 
reflete  o  compromisso  brasileiro  com  a  ONU,  com  o  multilateralismo  e  com  a  estabilidade 
regional. 
Chego  ao  Haiti  em  companhia  do  Presidente  Jorge  Batlle  do  Uruguai,  nação  irmã,  sócio  no 
MERCOSUL  e  agora  também  parceiro  nos  esforços  de  estabilização  do  Haiti.  Alegra‐me  a 
circunstância  de  vários  países  sul‐americanos  estarem  trabalhando  juntos  por  um  futuro  de 
paz e desenvolvimento no Haiti. 
Venho, enfim, participar de um encontro pela paz entre haitianos e brasileiros. O jogo entre a 
Seleção  do  Brasil  e  do  Haiti  permite  que  celebremos  juntos  a  nossa  paixão  pelo  futebol. 
Esperamos que este jogo possa se transformar em símbolo de nossa amizade e em estímulo 
para intensificarmos os contatos entre nossas sociedades 
Muito obrigado. 
 
Discurso do Presidente da República, Luiz Inácio Lula da Silva, perante a Brigada Brasil da 
Missão das Nações Unidas para o Haiti  
Senhor Luiz Inácio Lula da Silva 
Presidente da República Federativa do Brasil 
Porto Príncipe, Haiti, 18/08/2004 
 
Meu querido companheiro Celso Amorim, ministro das Relações Exteriores, 
Meu querido companheiro Agnelo Queiroz, ministro dos Esportes, 
Minha querida companheira Marisa Letícia, 
Meu caro senador Eduardo Suplicy, 
Senador Hélio Costa, 
Senador Leomar Quintanilha 
Senador Maguito Vilela, 
Meu caro deputado Luiz Eduardo Greenhalgh, 
Embaixador Juan Gabriel Valdez, representante especial do secretário‐geral das Nações Unidas 
para o Haiti, 
Embaixador Armando Cardoso, embaixador do Brasil no Haiti, 
Oficiais‐generais do Ministério da Defesa da Marinha do Brasil, do Exército brasileiro e da 
Força Aérea brasileira,  
General de Divisão Augusto Heleno Ribeiro Pereira, comandante da Força da Missão das 
Nações Unidas de Estabilização do Haiti, 
General de Brigada, Américo Salvador de Oliveira, comandante da Brigada Brasileira de Paz no 
Haiti, 
Senhores militares da Brigada Brasileira de Paz no Haiti, 
Senhores e senhoras jornalistas, 
Nossos convidados,  
Venho ao Haiti para celebrar a paz. A paz que vocês, integrantes da Brigada Brasil da Missão 
das Nações Unidas para o Haiti, estão ajudando a devolver ao povo haitiano. 
Quero,  em  primeiro  lugar,  expressar  que  a  decisão  brasileira  de  enviar  tropas  ao  Haiti  foi 
tomada em atendimento a um chamado do Conselho de Segurança das Nações Unidas.  
245 
 

É ele o órgão que tem um mandato para definir ações em favor da preservação da paz e da 
segurança internacionais.  
Oficiais e praças da Brigada Brasil, sua missão é difícil. 
Um grande desafio nos trouxe ao Haiti. Viemos ajudar a restabelecer a ordem e a segurança e 
a  reconstruir  a  paz  no  Haiti.  Mas,  sobretudo,  viemos  ajudar  a  lançar  a  semente  de  uma  paz 
duradoura.  
Estamos  solidários  à  nação  haitiana  em  sua  luta  pela  reconciliação  e  reconstrução  nacional. 
Queremos que o Haiti volte a ser a nação que inspirou gerações e produziu heróis. Queremos 
que o Haiti volte a levantar‐se em defesa de seu destino. 
Quando  anunciamos  a  decisão  de  mandar  tropas  para  este  país,  com  o  apoio  do  Congresso 
Nacional,  reconhecemos  que  o  Brasil  não  poderia  ficar  alheio  ao  sofrimento  e  à  dor  de  um 
povo  irmão.  Um  povo  cuja  suprema  bravura  deu  início  à  emancipação  colonial  e  pôs  fim  à 
escravidão. Um povo com o qual compartilhamos raízes africanas comuns.  
Soldados do Brasil, 
Seus  familiares,  amigos  e  todos  nós,  brasileiros,  temos  orgulho  da  missão  que  vocês  estão 
desempenhando aqui. Essa é a maior missão de paz de que o Brasil já participou.  
A  ação  das  Forças  Armadas  brasileiras,  aqui,  no  Haiti  demonstra  que  a  comunidade 
internacional  confia  na  nossa  capacidade  de  contribuir  para  a  paz.  A  presença  brasileira  no 
comando, seguramente, estimulou outros países de nossa região a participarem desta Missão.  
O Brasil acredita em um Haiti melhor para o seu povo.  
Não podemos nos resignar a assistir, com impotência e fatalismo, à escalada da instabilidade e 
do medo. Queremos ajudar este país a reerguer‐se, a reconstruir suas instituições, a cicatrizar 
suas feridas, a reencontrar o caminho do desenvolvimento e da justiça social.  
Enquanto houver fome, miséria, crianças sem educação, epidemias e tantos outros males que 
afetam grande parte da humanidade, não haverá segurança. Em lugar da segurança, surgirão a 
revolta, a intolerância, o fanatismo, que são os verdadeiros alimentos do conflito, da violência 
e do terrorismo. Não há maior terror do que a exclusão social e a perda de perspectiva de um 
futuro melhor. 
Não  podemos  nos  omitir.  A  Brigada  Brasil  e  a  contribuição  de  cada  um  de  vocês  refletem  o 
nosso engajamento.  
É preciso que o povo haitiano saiba que a comunidade internacional não o abandonou. Ela está 
presente nas muitas nacionalidades que compõem a Missão das Nações Unidas. Está presente 
também  nas  decisões  esclarecidas  dos  países  que  participaram  da  recente  reunião  de 
doadores.  
Queremos  que  os  haitianos  sintam  que  podem  contar  com  a  amizade  e  a  solidariedade  do 
povo brasileiro e de meu governo.  
Uma  delegação  técnica  virá,  na  próxima  semana,  a  Porto  Príncipe  para  definir  projetos  de 
cooperação. Nossos técnicos da Embrapa virão colaborar na valorização da agricultura. Vamos 
também ajudar o governo haitiano a treinar policiais para proteger vidas humanas; assistir às 
autoridades  locais  na  reabilitação  do  poder  judiciário;  treinar  professores  para  educar  os 
jovens; ajudar a reconstruir instituições e recuperar escolas.  
Soldados do Brasil, soldados da paz, 
Aproveito esta oportunidade para render homenagem ao Cabo Rodrigo Duarte Azevedo, que 
nos deixou enquanto cumpria seu dever.  
Quero  reiterar  a  cada  um  de  vocês  que  o  Brasil  e  o  meu  governo  estão  ao  seu  lado  e  farão 
todo  o  necessário  para  que  voltem  para  casa  com  segurança  e  o  sentimento  de  missão 
cumprida.  
Daqui a pouco, terei a alegria de assistir ao Jogo da Paz. Nossos melhores talentos vão estar 
em campo, celebrando a paixão de haitianos e de brasileiros pelo futebol.  
Nos  nossos  jogadores  vejo  a  realização  de  aspirações  que  dependem  da  capacidade  de  cada 
um,  de  perseguir  seus  ideais  com  confiança  e  determinação.  Nossos  jogadores  nos  mostram 
que  não  devemos  dar  ouvidos  aos  que  dizem  que  os  sonhos  são  inatingíveis.  Nenhum  deles 
246 
 

teria a alegria de ouvir seus nomes aclamados pela torcida após o gol consagrador, se tivessem 
abandonado os seus sonhos. 
Oficiais e praças das Forças Armadas do nosso querido Brasil, 
Tenho  certeza  de  que  ao  ver  nossos  craques  em  campo,  todos  sentirão  um  pouco  mais  a 
saudade de nossa pátria.  
Mas os nossos jogadores não são os únicos craques brasileiros no Haiti. Parabéns, pois vocês 
também estão fazendo um gol de placa. 
Meus caros amigos,  
Estamos  aqui  para  ajudar  a  reconciliação  nacional  do  Haiti.  Precisamos  extirpar  as  raízes  da 
violência, a exclusão social, a miséria e a fome.  
Não devemos esquecer nunca que o verdadeiro nome da paz é a justiça social. 
Muito obrigado e boa sorte. 
 
Discurso do Presidente da República, Luiz Inácio Lula da Silva, na 59ª Assembléia‐Geral da 
ONU Senhor Luiz Inácio Lula da Silva 
Presidente da República Federativa do Brasil 
Nova York, EUA, 21/09/2004 
 
Senhoras e senhores, 
Chefes de Estado e de Governo, 
Senhor Jean Ping, presidente da 59ª Assembléia‐Geral da Organização das Nações Unidas, 
Senhor Kofi Annan, secretário‐geral das nações unidas, 
Senhor Jian Chen, subsecretário‐geral para assuntos da Assembléia‐Geral, 
Senhoras e senhores, 
Saúdo, na pessoa do chanceler Jean Ping, os representantes de todos os povos aqui reunidos. 
Cumprimento  fraternalmente  o  secretário‐geral  Kofi  Annan,  que  tem  conduzido  as  Nações 
Unidas com sabedoria e abnegação.  
Senhoras e senhores, 
Pela segunda vez, dirijo‐me a esta assembléia universal para trazer a palavra do Brasil. Carrego 
um compromisso de vida com os silenciados pela desigualdade, a fome e a desesperança. 
A  eles,  nas  palavras  tremendas  de  Franz  Fanon,  o  passado  colonial  destinou  uma  herança 
comum: 
“Se queres, aí a tens: a liberdade para morrer de fome”. 
Hoje  somos  191  Estados‐nação.  No  passado,  125  deles  foram  submetidos  ao  jugo  de  umas 
poucas potências que originalmente ocupavam menos de 2% do globo. O fim do colonialismo 
afirmou, na esfera política, o direito dos povos à autodeterminação.  
Esta Assembléia é o signo mais alto de uma ordem fundada na independência das nações. A 
transformação política, contudo, não se completou no plano econômico e social. E a história 
demonstra que isso não ocorrerá espontaneamente. 
Em 1820, a diferença de renda per capita entre o país mais rico e o mais pobre do planeta era 
inferior a cinco vezes. Hoje, essa diferença é de 80 vezes. 
Os  antigos  súditos  converteram‐se  em  devedores  perpétuos  do  sistema  econômico 
internacional.  
Barreiras  protecionistas  e  outros  obstáculos  ao  equilíbrio  comercial,  agravados  pela 
concentração  dos  investimentos  do  conhecimento  e  da  tecnologia,  sucederam  ao  domínio 
colonial. 
Poderosa e onipresente, uma engrenagem invisível comanda à distância o novo sistema. Não 
raro,  ela  revoga  decisões  democráticas,  desidrata  a  soberania  dos  Estados,  sobrepõe‐se  a 
governos  eleitos,  e  exige  a  renúncia  a  legítimos  projetos  de  desenvolvimento  nacional. 
Manteve‐se a lógica que drena o mundo da escassez para irrigar o do privilégio. 
Nas últimas décadas, a globalização assimétrica e excludente aprofundou o legado devastador 
de miséria e regressão social, que explode na agenda do século XXI. Hoje, em 54 países a renda 
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per capita está mais baixa do que há dez anos. Em 34 países, a expectativa de vida diminuiu. 
Em 14, mais crianças morrem de fome. 
Na  África,  onde  o  colonialismo  resistiu  até  o  crepúsculo  do  século  XX,  200  milhões  de  seres 
humanos estão enredados num cotidiano de fome, doença e desamparo, ao qual o mundo se 
acostuma, anestesiado pela rotina do sofrimento alheio e longínquo. 
A  falta  de  saneamento  básico  matou  mais  crianças  na  década  passada  do  que  todos  os 
conflitos armados desde a II Guerra. 
Da  crueldade  não  nasce  o  amor.  Da  fome  e  da  pobreza  jamais  nascerá  a  paz.  O  ódio  e  a 
insensatez  que  se  alastram  pelo  mundo  nutrem‐se  dessa  desesperança,  da  absoluta  falta  de 
horizontes para grande parte dos povos. 
Apenas neste ano, mais de 1.700 pessoas já morreram vítimas de ataques terroristas ao redor 
do mundo; em Madri, Bagdá, Jacarta. 
Tragédias que vêm somar‐se a tantas outras, na Índia, no Oriente Médio, nos Estados Unidos, 
e, recentemente, ao sacrifício bárbaro das crianças de Beslan. 
A Humanidade está perdendo a luta pela paz. 
Só os valores do Humanismo, praticados com lucidez e determinação, podem deter a barbárie. 
A situação exige, dos povos e dos seus líderes, um novo senso de responsabilidade individual e 
coletiva. 
Se queremos a paz, devemos construí‐la. Se queremos de fato eliminar a violência, é preciso 
remover suas causas profundas com a mesma tenacidade com que enfrentamos os agentes do 
ódio. 
O caminho da paz duradoura passa, necessariamente, por uma nova ordem internacional, que 
garanta oportunidades reais de progresso econômico e social para todos os países.  
Exige,  por  isso  mesmo,  a  reforma  do  modelo  de  desenvolvimento  global  e  a  existência  de 
instituições  internacionais  efetivamente  democráticas,  baseadas  no  multilateralismo,  no 
reconhecimento dos direitos e aspirações de todos os povos. 
Mais do que quaisquer estatísticas sobre a desigualdade social, o que deve interpelar nossas 
consciências é o olhar torturado dos que hoje estão do lado de fora da vida. 
São olhos que vigiam em nós o futuro da esperança. 
Não há mais destino isolado, nem conflito que não irradie uma dimensão global. Por mais que 
nos apontem o céu entre as grades, é preciso não confundir a gaiola de ferro com a liberdade. 
Temos conhecimento científico e escala produtiva para equacionar os desafios econômicos e 
sociais  do  planeta.  Hoje,  é  possível  reconciliar  natureza  e  progresso  por  meio  de  um 
desenvolvimento ética e ambientalmente sustentável. 
A natureza não é um museu de relíquias intocáveis. Mas, definitivamente, ela não pode mais 
ser degradada pela espoliação humana e ambiental, na busca da riqueza a qualquer custo. 
Minhas senhoras e meus senhores, 
Mede‐se  uma  geração  não  só  pelo  que  fez,  mas  também  pelo  que  deixou  de  fazer.  Se  os 
recursos disponíveis são fantasticamente superiores às nossas necessidades, como explicar às 
gerações futuras por que fizemos tão pouco, quando tanto nos era permitido?  
Uma civilização omissa está condenada a murchar como um corpo sem alma. As exortações do 
grande artífice do “New Deal”, Franklin Roosevelt, ecoam com atualidade inescapável: 
“O que mais se necessita hoje é de audácia na experimentação.” 
“O que mais se deve temer é o próprio medo”. 
Não se trata da audácia do instinto. Mas da coragem política. Sem voluntarismo irresponsável, 
mas com ousadia e capacidade de reformar. 
O  que  distingue  civilização  de  barbárie  é  a  arquitetura  política  que  promove  a  mudança 
pacífica e faz avançar a economia e a vida social pelo consenso democrático. 
Se fracassarmos contra a pobreza e a fome, o que mais poderá nos unir? 
Minhas senhoras e meus senhores, 
248 
 

Creio que é o momento de dizer com toda a clareza que a retomada do desenvolvimento justo 
e  sustentável  requer  uma  mudança  importante  nos  fluxos  de  financiamento  dos  organismos 
multilaterais. 
Estes organismos foram criados para encontrar soluções, mas, às vezes, por excessiva rigidez, 
tornam‐se parte do problema.  
Trata‐se de ajustar‐lhes o foco para o desenvolvimento, resgatando seu objetivo natural. 
O  FMI  deve  credenciar‐se  para  fornecer  o  aval  e  a  liquidez  necessários  a  investimentos 
produtivos,  especialmente  em  infra‐estrutura,  saneamento  e  habitação,  que  permitirão, 
inclusive, recuperar a capacidade de pagamento das nações mais pobres. 
Meus senhores e minhas senhoras, 
A  política  externa  brasileira,  em  todas  as  suas  frentes,  busca  somar  esforços  com  outras 
nações em iniciativas que nos levem a um mundo de justiça e paz.  
Tivemos,  ontem,  uma  reunião  histórica  com  mais  de  60  líderes  mundiais,  para  dar  um  novo 
impulso à ação internacional contra a fome e a pobreza. 
Acredito firmemente que o processo desencadeado ontem elevará o patamar da luta contra a 
pobreza  no  mundo.  Na  medida  em  que  avançarmos  nessa  nova  aliança,  teremos  melhores 
condições de cumprir as Metas do Milênio, sobretudo a erradicação da fome. 
Foi com esse espírito que África do Sul, Índia e Brasil estabeleceram, no ano passado, o fundo 
de solidariedade – IBAS. Nosso primeiro projeto, em Guiné‐Bissau, será lançado amanhã. 
Também priorizamos o tema do HIV‐AIDS, que tem perversa relação com a fome e a pobreza. 
Nosso programa de Cooperação Internacional no combate ao HIV‐AIDS já opera em seis países 
em desenvolvimento e brevemente chegará a mais três.  
Minhas senhoras e meus senhores, 
Constato, com preocupação, que persistem graves problemas de segurança, pondo em risco a 
estabilidade mundial. 
Não se vislumbra, por exemplo, melhora na situação crítica do Oriente Médio. Neste, como em 
outros conflitos, a comunidade internacional não pode aceitar que a violência proveniente do 
Estado,  ou  de  quaisquer  grupos,  se  sobreponha  ao  diálogo  democrático.  O  povo  palestino 
ainda está longe de alcançar a auto‐determinação a que tem direito. 
Sabemos  que  as  causas  da  insegurança  são  complexas.  O  necessário  combate  ao  terrorismo 
não pode ser concebido apenas em termos militares.  
Precisamos  desenvolver  estratégias  que  combinem  solidariedade  e  firmeza,  mas  com  estrito 
respeito ao Direito Internacional. 
Foi  assim  que  atendemos,  o  Brasil  e  outros  países  da  América  Latina,  à  convocação  da  ONU 
para  contribuir  na  estabilização  do  Haiti.  Quem  defende  novos  paradigmas  nas  relações 
internacionais, não poderia se omitir diante de uma situação concreta. 
Promover o desenvolvimento com eqüidade é crucial para eliminar as causas da instabilidade 
secular daquele país. Em nossa região, apesar dos conhecidos problemas econômicos e sociais, 
predomina  uma  cultura  de  paz.  Vivemos  um  período  de  amadurecimento  democrático,  com 
uma vibrante sociedade civil.  
Estamos  aprendendo  que  o  desenvolvimento  e  a  justiça  social  devem  ser  buscados  com 
determinação  e  abertura  ao  diálogo.  Os  episódios  de  instabilidade  na  região  têm  sido 
resolvidos com respeito às instituições.  
Sempre que chamado, e na medida de nossas possibilidades, o Brasil tem contribuído para a 
superação de crises que ameaçam a ordem constitucional e a estabilidade de países amigos.  
Não acreditamos na interferência em assuntos internos de outros países, mas tampouco nos 
refugiamos na omissão e na indiferença diante de problemas que afetam nossos vizinhos. 
O  Brasil  está  empenhado  na  construção  de  uma  América  do  Sul  politicamente  estável, 
próspera e unida, a partir do fortalecimento do Mercosul e de uma relação estratégica com a 
Argentina. 
249 
 

O  surgimento  de  uma  verdadeira  Comunidade  Sul‐Americana  de  Nações  já  não  é  um  sonho 
distante  graças  à  ação  decidida  no  que  se  refere  à  integração  física,  econômica,  comercial, 
social e cultural. 
O  Brasil  tem  atuado  nas  negociações  comerciais  multilaterais  para  alcançar  acordos  justos  e 
eqüitativos. Na última reunião da Organização Mundial do Comércio, deu‐se um grande passo 
para a eliminação de restrições abusivas que prejudicam os países em desenvolvimento.  
A  articulação  de  países  da  África,  América  Latina  e  Ásia  no  G‐20  foi  decisiva  para  manter  a 
rodada de Doha na trilha da liberalização do comércio com justiça social. O sucesso de Doha 
representa a possibilidade de livrar da pobreza mais de 500 milhões de pessoas.  
É  fundamental  continuar  desenhando  uma  nova  geografia  econômica  e  comercial,  que, 
preservando as vitais relações com os países desenvolvidos, crie sólidas pontes entre os países 
do Sul, que por muito tempo permanecem isolados uns dos outros. 
Senhoras e senhores, 
O  Brasil  está  comprometido  com  o  êxito  do  Regime  Internacional  sobre  Mudança  do  Clima. 
Estamos  engajados  no  desenvolvimento  de  energias  renováveis.  Por  isso,  seguiremos 
trabalhando ativamente pela entrada em vigor do Protocolo de Quioto. 
A  América  do  Sul  responde  por  cerca  de  50%  da  biodiversidade  mundial.  Defendemos  o 
combate à biopirataria e à negociação de um regime internacional de repartição dos benefícios 
resultantes do acesso a recursos genéticos e conhecimentos tradicionais.  
Senhoras e senhores, 
Reitero  o  que  disse  no  ano  passado  desta  Tribuna:  uma  ordem  internacional  fundada  no 
multilateralismo  é  a  única  capaz  de  promover  a  paz  e  o  desenvolvimento  sustentável  das 
nações.  
Ela deve assentar‐se sobre o diálogo construtivo entre diferentes culturas e visões de mundo.  
Nenhum  organismo  pode  substituir  as  Nações  Unidas  na  missão  de  assegurar  ao  mundo 
convergência em torno de objetivos comuns.  
Só  o  Conselho  de  Segurança  pode  conferir  legitimidade  às  ações  no  campo  da  paz  e  da 
segurança  internacionais.  Mas  sua  composição  deve  adequar‐se  à  realidade  de  hoje,  e  não 
perpetuar aquela do pós‐Segunda Guerra ou da Guerra Fria. 
Qualquer reforma que se limite a uma nova roupagem para a atual estrutura, sem aumentar o 
número de membros permanentes é, com certeza, insuficiente. 
As dificuldades inerentes a todo processo de reforma não devem fazer com que percamos de 
vista a urgência das mudanças. 
Senhoras e senhores, 
Não  haverá  segurança  nem  estabilidade  no  mundo  enquanto  não  construirmos  uma  ordem 
mais justa e mais democrática.  
A comunidade das nações precisa dar resposta clara e inequívoca a esse desafio. 
Haveremos de encontrá‐la nas sábias palavras do profeta Isaías: “A paz só virá como fruto da 
Justiça.” 
Muito obrigado. 
 
Discurso do Presidente da República, Luiz Inácio Lula da Silva, na abertura do Colóquio 
“Brasil: Ator Global”  
Senhor Luiz Inácio Lula da Silva 
Presidente da República Federativa do Brasil 
Paris, França, 13/07/2005 
 
Não se assustem com a quantidade de papel, porque é um parágrafo por folha.  
Primeiro,  dizer  às  autoridades  francesas,  aos  reitores,  aos  ministros  brasileiros  e  a  todos  os 
professores  e  alunos  que  estão  aqui,  da  minha  alegria  de  poder  estar,  outra  vez,  em  Paris  e 
poder falar um pouco da participação do Brasil neste mundo globalizado e o que achamos que 
pode acontecer nos próximos anos.  
250 
 

Queria apenas que vocês compreendessem que estamos com o fuso horário de cinco horas na 
cabeça,  e  que  por  mais  que  eu  viaje  de  avião,  eu  não  perdi  o  medo  de  viajar  de  avião,  e  eu 
tenho dificuldade de dormir no avião. Portanto, vou me segurar aqui para não ter problema de 
sono.  
Queria dizer a vocês que está comigo o nosso querido governador do estado do Amapá, que 
logo, logo será o governante da América do Sul mais próximo da França e, portanto, poderá ser 
um  canal  muito  importante  para  o  desenvolvimento  daquela  região,  sobretudo,  o  estado  do 
Amapá que tem, praticamente, 80% do seu território como área de preservação e isso, se tem 
custado  ao  longo  do  tempo  –  difícil  –  o  desenvolvimento  do  estado,  certamente,  nós  agora 
temos  que  tirar  proveito  da  intenção  mundial  de  preservação  para  que  os  estados  que 
preservem mais a sua fauna, a sua floresta, possam ganhar alguns recursos adicionais. 
Meu  agradecimento  à  Universidade  de  Paris  pela  organização  deste  encontro  consagrado  à 
política  externa  do  Brasil  e  pelo  convite  que  me  foi  feito  para  aqui  apresentar  algumas 
reflexões. 
O título do colóquio “Brasil: ator global" aponta para um problema central: qual o sentido e as 
possibilidades da presença e ação de meu país no cenário internacional? 
A  expressão  "ator  global"  pode  provocar  mal‐entendidos.  O  primeiro  é  o  de  acreditar  que  o 
Brasil, um país com problemas sociais e sem meios importantes de projeção de poder militar 
no plano internacional, não poderia aspirar a ser globalmente um ator pleno. Somente países 
ricos,  socialmente  mais  desenvolvidos  e  dotados  de  meios  militares  mais  expressivos  teriam 
capacidade de atuar de forma independente e eficaz na cena mundial. 
É evidente que riqueza e força militar são expressões de poder. Elas não esgotam, no entanto, 
a capacidade de ação e de influência de que pode dispor um país. O segundo equívoco é o de 
pensar  que  o  Brasil,  somente  por  possuir  vasto  território,  abundantes  recursos  naturais  e 
população numerosa, terá automaticamente papel de relevo na esfera internacional. 
O  Brasil  está,  felizmente,  longe  dessas  duas  perspectivas  extremas.  Nossa  diplomacia  é 
experiente, bem preparada e suficientemente lúcida para não ser nem tímida nem temerária.  
Minha  experiência  pessoal,  como  líder  operário,  ensinou‐me  que  em  qualquer  negociação  a 
credibilidade é um fator fundamental. E para ter credibilidade é preciso conhecer as forças de 
que dispomos. 
Não fugimos a nossas responsabilidades, por timidez ou por temor aos mais poderosos. Nosso 
desafio é o de tentar entender, e de afirmar, como o Brasil pode colaborar para a construção 
de uma nova relação de forças internacional. Necessitamos de um mundo mais democrático, 
justo  e  pacífico,  mas  isso  não  depende  somente  de  nós,  tampouco  pode  nos  conduzir  à 
passividade.  
Abrir mão da idéia de uma "ação global" seria deixar o futuro ao sabor das forças de mercado, 
onde prolifera enorme desordem econômica e financeira, ou ao sabor de políticas de poder, 
dominadas por posturas unilaterais.  
O Brasil nasceu, 505 anos atrás, fruto das grandes explorações marítimas, a primeira onda de 
“globalização”, empreendida pelo capitalismo mercantil.  
Como  colônia,  depois  como  país  politicamente  independente  sofremos,  por  séculos,  os 
constrangimentos que condicionaram a vida dos países da periferia.  
Em nossa história vivemos momentos de submissão e de reação a esses constrangimentos.  
Hoje, o que importa é buscar espaço neste mundo globalizado, por meio de uma ação política 
que  preserve  a  soberania  nacional,  garanta  a  soberania  popular  e  contribua  para  o 
aprofundamento da solidariedade internacional.  
A  “mundialização”,  como  se  diz  aqui,  nos  colocou  diante  de  uma  nova  obrigação:  a  de 
fazermos  com  que  as  forças  que  ela  desencadeia  sejam  canalizadas  para  o  interesse  da 
maioria. Não tenho me omitido a esse respeito. 
Fui  a  Porto  Alegre  e  a  Davos.  Defendi  nos  dois  encontros  as  mesmas  idéias:  aquelas  que 
expressei  também em minhas intervenções em Evian e na Escócia, quando  me reuni  com os 
líderes do G‐8.  
251 
 

Acredito que se pode estabelecer pontes entre foros e grupos de países que antes pareciam 
irreconciliáveis.  Vejo  uma  crescente  disposição  em  estreitar  esse  diálogo.  Até  porque  as 
grandes  questões  com  que  nos  confrontamos  na  atualidade,  desde  a  pobreza  na  África,  às 
mudanças climáticas, até o terrorismo, só poderão ser resolvidas efetivamente por uma ação 
concertada, multilateral.  
Um  país  como  o  Brasil  não  tem  a  opção  de  viver  à  margem  dos  processos  globais.  Dou  um 
exemplo.  Temos  um  programa  de  combate  à  Aids  que  é  mundialmente  reconhecido  como 
resposta  a  um  dos  piores  dramas  vividos  pela  humanidade  em  nossos  dias.  Realizamos,  em 
ampla escala, a distribuição de remédios retrovirais. Mas, para que seja viável em um país com 
recursos  escassos,  esse  programa  depende  de  que  os  preços  dos  medicamentos  não 
ultrapassem certos limites razoáveis. 
Torna‐se  essencial,  portanto,  estabelecer  um  equilíbrio  entre  o  interesse  legítimo  das 
empresas farmacêuticas, que se beneficiam de patentes, e o interesse maior de salvar quantas 
vidas pudermos. 
As normas sobre patentes já não são definidas isoladamente em cada país, são normas globais. 
Participamos  todos  de  sua  elaboração,  de  sua  interpretação  e  de  sua  execução.  No  caso  da 
Aids, essa participação é, sem exagero, uma questão de vida ou morte. 
Outro exemplo, a que tenho mais me dedicado, é o do combate à fome e à miséria. Pela minha 
própria  trajetória  de  vida  e  experiência  política,  essa  é  uma  prioridade  pessoal.  Sempre  tive 
consciência de que essa tarefa não era apenas dos brasileiros, mas de todas as nações. A fome 
e a pobreza têm determinações internacionais.  
Isso  não  quer  dizer  que  os  países  não devam  assumir  suas  responsabilidades  para  reduzir  as 
desigualdades e garantir a todos uma vida digna. Mas é inegável que o esforço de cada país, 
principalmente  dos  menos  desenvolvidos,  ganhará  muito  se  for  respaldado 
internacionalmente.  Não  falo  apenas  de  ações  compensatórias,  necessárias,  mas  não 
suficientes.  Falo  de  iniciativas  de  fundo,  que  lidem  com  as  causas  estruturais  da  fome  e  da 
pobreza no mundo. Por isso, defendo um sistema mais eqüitativo, onde os fluxos financeiros e 
o  comércio  internacional  criem  oportunidades  e  não  sejam  fatores  de  desagregação 
econômica e social. O problema da fome e do subdesenvolvimento não será resolvido apenas 
pelas forças de mercado. 
Muitos  agricultores  pobres  na  periferia  do  mundo  teriam,  hoje,  condições  de  competir 
internacionalmente e de ter uma vida mais condigna, não fossem as barreiras que os impedem 
de vender o que produzem aos consumidores nos países mais ricos.  
Precisamos encarar esse problema de frente. É intolerável que 1 bilhão de dólares seja gasto a 
cada  dia  em  subsídios  à  exportação  e  em  medidas  de  apoio  doméstico  à  produção  agrícola. 
Não  é  humano  e  racional  que  uma  vaca  tenha  um  subsídio  superior  à  renda  individual  de 
centenas de milhões de homens e mulheres. 
Segundo o Banco Mundial, uma efetiva liberalização do comércio agrícola poderia gerar cerca 
de US$ 200 bilhões de dólares de renda global adicional, o suficiente para retirar mais de 500 
milhões de pessoas da situação de pobreza. 
Posso citar muitos outros exemplos, todos apontando para a mesma direção: esses problemas 
não se resolvem sozinhos, nem pela iniciativa de alguns países. Exigem a participação ativa dos 
países em desenvolvimento. É o que o Brasil tem feito nos últimos dois anos e meio. Temos 
realizado intenso trabalho diplomático de aprofundamento de vínculos tradicionais em nosso 
Continente  e  de  maior  aproximação  com  regiões  do  mundo  em  desenvolvimento,  como  a 
África e o Oriente Médio. 
O  Brasil  quer  que  sua  voz  seja  cada  vez  mais  ouvida  no  plano  internacional.  Mas  queremos 
também  ouvir  a  voz  de  outros  países,  para  identificar  interesses  comuns  e  intensificar  o 
diálogo e a cooperação.  
Há  dois  meses  tivemos  a  satisfação  de  sediar,  em  Brasília,  uma  pioneira  Cúpula  que  reuniu 
países  árabes  e  sul‐americanos  e  abriu  novas  e  promissoras  avenidas  de  aproximação  entre 
estas duas regiões do mundo em desenvolvimento. 
252 
 

Com  a  Índia e  a  África  do  Sul  estabelecemos  um  foro  de  diálogo  trilateral.  Além  de  estreitar 
nossa  coordenação  política,  criamos  um  fundo  inédito,  administrado  por  essas  três  grandes 
democracias do mundo em desenvolvimento. Um primeiro projeto já está beneficiando Guiné‐
Bissau. 
 
Senhoras e senhores, 
Nos planos econômico e comercial, trabalhamos para aprofundar a integração e a unidade de 
nossa  região,  a  América  do  Sul,  assim  como  para  ajudar  a  construir  uma  economia 
internacional que proporcione melhores oportunidades de crescimento para todos. 
O  Brasil  tem  feito  um  grande  esforço  para  retomar  o  crescimento  econômico,  reduzir  o 
desemprego,  melhorar  a  distribuição  da  renda  e  aumentar  sua  capacidade  de  competição 
externa. 
Em  2004,  nosso  comércio  exterior  totalizou  quase  US$  160  bilhões  de  dólares,  com  mais  de 
US$ 96 bilhões de exportações. Esse valor foi o dobro do total das exportações registradas em 
1999. 
O saldo comercial, que no final dos anos 90 era deficitário, chegou em 2004 a um superávit de 
quase US$ 34 bilhões de dólares. As previsões para 2005 – e o Furlan que confirme aí – são de 
um superávit de quase US$ 40 bilhões de dólares. 
Nosso  comércio  com  o  mundo  tem  caráter  "global".  A  distribuição  de  nossas  exportações 
entre os principais mercados mantém um notável equilíbrio geográfico entre a União Européia, 
os Estados Unidos, a América do Sul e a Ásia. Outras áreas, como a África e o Oriente Médio, 
revelam sinais promissores de crescimento. Tudo isso significa que o Brasil está mais aberto ao 
mundo. 
A relação comércio exterior‐PIB passou de menos de 15%, nos anos 90, para mais de 26% em 
2004.  A  estabilidade  macroeconômica  que  conseguimos,  somada  ao  fortalecimento  da 
capacidade  exportadora,  reduziu  nossa  vulnerabilidade  externa.  Em  1999,  o  pagamento  de 
juros pelo Brasil representou mais de 33% do total de nossas exportações. Hoje, não passam 
de 16%.  
O Brasil reúne todas as condições para tornar sua inserção na economia internacional cada vez 
mais  proveitosa  e,  o  que  é  muito  importante,  preservando  nossa  autonomia  para  executar 
políticas públicas indispensáveis para um desenvolvimento sustentável, com justiça social. 
Senhoras e senhores, 
A  esta  altura  de  minha  exposição  muitos  poderão  estar  se  perguntando  se  uma  ação  mais 
destacada  do  Brasil  no  cenário  internacional  é  compatível  com  um  estreito  relacionamento 
com  nosso  entorno  imediato,  a  América  do  Sul.  Penso  que  não  só  é  compatível  como 
absolutamente indispensável.  
A  parceria  estratégica  com  a  Argentina,  a  consolidação  do  Mercosul  e  a  integração  sul‐
americana são para nós prioritárias. Mais que isso: são inseparáveis de nosso projeto nacional 
de desenvolvimento. E isso não é retórica; é realidade, é fato.  
Nenhum  outro  governo  brasileiro  buscou  a  aproximação  com  nossos  vizinhos  com  tanta 
intensidade. Os contatos no mais alto nível se avolumaram. 
Temos  acelerado  projetos  para  a  integração  da  infra‐estrutura  física  regional,  para  o  que 
contamos, inclusive, com recursos do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social. 
Possivelmente,  no  próximo  ano,  nós  teremos  pelo  menos  uma  obra  de  infra‐estrutura 
financiada  pelo  Banco  de  Desenvolvimento  brasileiro  em  cada  país  da  América  do  Sul, 
tornando realidade o sonho histórico que motivou tantas e tantas lutas na América do Sul. 
A  partir  dessa  base  avançamos  na  consolidação  do  Mercosul,  apesar  das  dificuldades  e  das 
crises  de  crescimento  que,  como  sabem  os  europeus,  são  comuns  nos  processos  de 
integração.  
O Mercosul é uma realidade e uma promessa cada vez mais importante para nossos povos. 
253 
 

Trabalhamos agora para reforçar suas instituições e dotá‐lo de um Parlamento que reforçará 
sua  vocação  democrática  e  permitirá  enraizar  de  forma  mais  profunda  a  construção  de  um 
destino comum.  
O Mercosul não pode reduzir‐se apenas a uma zona de livre comércio ou mesmo a uma união 
aduaneira.  Ele  tem  a  vocação  de  ser  um  efetivo  espaço  de  integração  econômica,  política, 
cultural e de construção de uma nova e ampliada cidadania. 
Avançamos  na  direção  de  uma  integração  mais  solidária,  com  a  criação  do  Fundo  de 
Convergência Estrutural do Mercosul, voltado para a redução das assimetrias entre os países 
membros e suas regiões, promovendo a competitividade e a coesão social. 
Paralelamente,  e  uma  coisa  reforça  a  outra,  estamos  construindo  a  Comunidade  Sul‐
Americana de Nações. Os países do Mercosul estão a cada dia mais próximos da Comunidade 
Andina,  porque  acreditamos  que  ambos  os  processos  são  complementares  e  convergentes. 
Lançada  em  dezembro  último,  realizaremos,  em  Brasília,  daqui  a  dois  meses,  a  primeira 
reunião de Presidentes da Comunidade.  
A América do Sul toma consciência de sua identidade e de sua vocação para a integração. Em 
poucos dias serão iniciadas as obras de construção da rodovia interoceânica, que ligará o Brasil 
aos portos peruanos de Ilo e Matarani. Será um avanço decisivo para o comércio não apenas 
entre o Brasil e o Peru, mas também de ambos com a Bolívia.  
Este  é  apenas  o  mais  recente  exemplo  de  um  amplo  conjunto  de  iniciativas  que  vêm 
delineando a América do Sul como espaço integrado na área de transportes, comunicações e 
energia. 
Aqui eu queria dar um outro dado. Em 500 anos de história nós construímos a primeira ponte 
entre Brasil e Bolívia, no ano passado. Inauguramos no estado do Acre. E estamos fazendo a 
primeira ponte entre Brasil e Peru, em Assis‐Brasil, também no estado do Acre, que será essa 
rodovia  interoceânica.  E  vamos  fazer,  se  Deus  quiser,  depois  do  acordo  que  firmarmos  na 
sexta‐feira, a primeira ponte ligando o Brasil e a América do Sul à Europa, via Guiana Francesa, 
com o estado do Amapá.  
Isso demonstra apenas que em 500 anos, apesar de todos os grandes intelectuais brasileiros 
terem escrito sobre a necessidade de integração, apesar de Bolívar e outros revolucionários na 
América  do  Sul  terem  passado  parte  da  sua  vida  falando  em  integração,  apesar  de  todos  os 
políticos em época de campanha eleitoral falarem de integração, a verdade nua e crua é que a 
integração física – aquela que se preocupa com a energia, com a comunicação, com a estrada, 
com  a  ferrovia,  com  a  hidrovia  e  com  a  parceria  efetiva  entre  empresários  brasileiros  e 
empresários de cada país – está se consolidando nesse momento, e não por obra apenas do 
Brasil, mas por uma compreensão de todos os países de que, se durante 500 anos acreditamos 
que  os  benefícios  para  o  nosso  desenvolvimento  viriam  do  Norte,  agora  há  a  consciência  de 
que nós precisamos começar a resolver os nossos problemas e não ficar dependentes, tanto, 
das promessas dos países desenvolvidos que, dificilmente, chegam a se concretizar.  
Esse grau de consciência que os governantes estão tomando é que está fazendo com que haja 
uma profunda mudança no comportamento dos países da América do Sul.  
Senhoras e senhores,  
O  Brasil  tem  procurado  dar  nova  qualidade  e  novo  impulso  à  sua  ação  no  âmbito  das 
negociações multilaterais de comércio, na Organização Mundial do Comércio, OMC. Já foi dito 
que a OMC tem procedimentos "medievais". Talvez efetivamente o seja em alguns aspectos, 
particularmente no que diz respeito à transparência. 
Demos  um  passo  importante  para  mudar  o  quadro  em  que  se  davam  efetivamente  as 
negociações naquele foro, restritas a alguns poucos interlocutores do mundo desenvolvido.  
Tomamos a iniciativa, ao lado de outros países em desenvolvimento, de criar o G‐20, que se 
afirmou como um ator respeitado na atual rodada de negociações comerciais.  
Hoje, todos reconhecem que esse mecanismo de coordenação entre países do Sul adquiriu um 
papel da maior importância na viabilização de um acordo que possa fazer com que a Rodada 
de Doha seja, de fato, voltada para o objetivo do desenvolvimento. 
254 
 

Outro campo em que conseguimos avanços importantes foi o de nosso esforço conjunto pela 
erradicação da fome e da pobreza.  
O  presidente  Jacques  Chirac  entendeu  a  sensibilidade  desse  tema  e  tem  sido  um  parceiro 
essencial,  desde  a  reunião  do  G‐8  ampliado,  em  Evian.  Ajudou  a  dar  força  à  iniciativa, 
acrescentando o prestígio da França, que é grande, e trazendo idéias inovadoras. O presidente 
Lagos,  do  Chile,  e  Zapatero,  da  Espanha,  logo  se  juntaram  a  nós,  seguidos  pelo  chanceler 
Schröder, da Alemanha, e pelo presidente Bouteflika, da Argélia.  
Em setembro do ano passado, conseguimos reunir, em Nova Iorque, mais de 100 países, com a 
presença de mais de 50 chefes de Estado e Governo.  
Hoje,  temos  um  processo  em  marcha,  em  busca  de  novos  mecanismos  de  financiamento  do 
desenvolvimento e do combate à fome e à pobreza.  
O tema vem ganhando destaque nas Nações Unidas, nas reuniões do FMI e do Banco Mundial, 
e no próprio G‐8, como vimos há pouco, na reunião de que participamos, na Escócia.  
Esperamos que até a Cúpula das Nações Unidas de setembro, quando passaremos em revista 
as Metas do Milênio, algumas idéias possam vir à luz, como a de uma pequena taxa sobre as 
passagens aéreas, baseada, aliás, em uma proposta da França, que apoiamos firmemente. Ou, 
ainda, a redução dos custos de remessas de emigrantes, que aportam recursos vultosos, com 
importante incidência sobre as economias dos países em desenvolvimento. 
Outra  importante  iniciativa  é  a  conversão  do  serviço  da  dívida,  ou  parte  dela,  em 
investimentos na Educação proposta por Brasil, Espanha e Argentina, que se encontra em fase 
de  elaboração  e  viabilidade  técnica.  Menos  consensuais,  mas  em  discussão,  estão  propostas 
sobre a taxação de paraísos fiscais ou de venda de armas. 
Senhoras e senhores, 
Ao  refletirmos  sobre  a  ação  externa  do  Brasil,  não  poderia  deixar  de  me  referir  aos  desafios 
que  se  colocam  no  plano  da  paz  e  da  segurança.  É  fundamental  que  a  comunidade 
internacional disponha dos meios necessários para responder às ameaças à paz. Esses meios 
devem  ser  eficazes,  mas  devem  também  ser  legítimos.  A  história  nos  ensina  que  não  serão 
eficazes se não forem legítimos. Daí nossa profissão de fé no multilateralismo. 
Com  a  criação  da  ONU,  há  exatos  60  anos,  a  comunidade  internacional  encontrou  um  novo 
caminho para enfrentar os problemas da paz e da segurança. Um caminho fundado no diálogo, 
na decisão coletiva e no princípio de que o uso da força só se faria no interesse comum. Esses 
princípios são, hoje, mais válidos do que nunca. O mundo está diante de situações e ameaças 
graves. Prolongadas injustiças, não raro em um contexto de pobreza e de privação, continuam 
a  desestabilizar  regiões  inteiras,  como  é  o  caso  do  Oriente  Médio  ou  de  extensas  áreas  do 
continente africano. 
Em nossa própria região, preocupa‐nos, em especial, a situação do Haiti, país tão sofrido, que 
necessita o apoio da comunidade internacional. 
Temos liderado o esforço das Nações Unidas no Haiti, na esperança de que possamos criar um 
novo paradigma para as operações de paz.Não visamos apenas à segurança da população e à 
estabilização  do  país.  Queremos  que  no  Haiti  se  criem  condições  para  uma  efetiva 
reconciliação  política  e  o  reencontro  do  país  com  a  esperança  de  seu  desenvolvimento 
econômico e social. 
Os  terríveis  atentados  em  Londres  na  semana  passada  nos  mostraram,  que  aos  conflitos 
externos e internos somam‐se legítimas preocupações com a expansão de redes terroristas. 
Sabemos,  além  disso,  que  tais  redes  podem  vir  a  ganhar  um  poder  destrutivo  sem 
precedentes, se tiverem acesso a armas de destruição em massa. 
Brasil  e  França  compartilham  a  visão  de  que  é  preciso  revitalizar  o  multilateralismo. 
Encontramo‐nos  diante  de  uma  oportunidade  histórica  para  dar  vida  nova  aos  instrumentos 
coletivos  de  que  dispomos.  Sem  o  multilateralismo,  estaremos  condenados  à  instabilidade 
crônica e aos riscos de uma escalada da violência no plano global. 
A  tarefa  mais  imediata  é  concluir,  com  êxito,  uma  reforma  corajosa  das  Nações  Unidas  uma 
reforma voltada para o futuro. 
255 
 

Nesta  semana,  os  países‐membros  das  Nações  Unidas  discutem  um  projeto  de  resolução 
visando à reforma do Conselho de Segurança, órgão central do sistema de segurança coletiva. 
Nesse projeto, juntamos forças com a Alemanha, a Índia e o Japão, no chamado "G‐4", e temos 
obtido  o  apoio  de  muitos  países,  alguns  mesmo,  como  a  França,  na  condição  de  co‐
patrocinadores. 
 
Outro  aporte  importante,  na  mesma  direção  do  projeto  do  G‐4,  foi  recentemente  aprovado 
pela União Africana. 
Queremos levar ao Conselho a visão de um país do Sul, que fez soberanamente a opção de não 
produzir  armas  nucleares,  que  atribui  importância  especial  à  relação  entre  a  paz  e  o 
desenvolvimento e aos meios pacíficos de solução de controvérsias. 
Esperamos  que  a  reforma  do  Conselho  possa  ter  um  desfecho  favorável  no  futuro  próximo, 
abrindo  caminho  para  a  consideração  de  outras  mudanças  não  menos  cruciais.  Entre  elas, 
estão o fortalecimento dos demais órgãos principais, e a revisão e eventual criação de novas 
instâncias para lidar com a construção da paz e o respeito aos direitos humanos. 
Senhoras e senhores, 
Ao  considerar  esses  temas  que  dizem  respeito  ao  ordenamento  internacional,  permito‐me 
fazer um recuo histórico e falar um pouco da convergência de pontos de vista entre o Brasil e a 
França. 
Nossa  crença  na  liberdade  como  valor  fundamental  vem  de  longe.  As  idéias  do  iluminismo 
francês  e  a  própria  Revolução  Francesa  (ao  lado  da  Revolução  Americana)  tiveram  impacto 
direto no Brasil. 
Foram  fontes  de  inspiração  para  idéias  republicanas  e  movimentos  de  rebeldia  contra  o 
colonialismo,  como  a  Inconfidência  Mineira,  a  Revolução  dos  Alfaiates,  na  Bahia,  ou  a 
Revolução de 1817, em Pernambuco, o meu estado natal. 
Esses  movimentos  foram  duramente  reprimidos,  mas  deixaram  uma  herança  de  lutas  que 
contribuiu para acelerar nossa independência. 
Joaquim  Nabuco,  outro  pernambucano,  chegou  a  afirmar  que  "todas  as  nossas  revoluções 
(antes da Independência) foram ondulações que começaram em Paris". Os que reprimiam os 
movimentos  nativistas  e  republicanos  falavam  em  erradicar  "os  abomináveis  princípios 
franceses". São os princípios que se celebram no 14 de julho, não apenas pela França, mas por 
todos os que amam a liberdade e crêem na solidariedade humana. 
A França foi para o Brasil, em muitos momentos, uma inspiração de liberdade. Durante os anos 
de  autoritarismo,  muitos  brasileiros,  injustamente  perseguidos  em  nosso  país,  encontraram 
refúgio  e  proteção  em  terras  francesas.  Guardamos  uma  dívida  de  gratidão  com  o  povo 
francês por essa solidariedade em uma hora difícil de nossa vida nacional.  
Orgulhamo‐nos,  ao  mesmo  tempo,  de  ver  que  as  atividades  do  Ano  do  Brasil  na  França 
incluem  homenagens  a  dois  brasileiros  que  lutaram  lado  a  lado  com  o  povo  francês  em 
momentos  difíceis  para  a  França.  Na  clandestinidade  e  com  grande  sacrifício  pessoal,  meu 
amigo  e  companheiro  Apolônio  de  Carvalho  deu  contribuição  destacada  à  resistência  e  à 
libertação da França do jugo nazista.  
Na  diplomacia,  a  coragem  do  embaixador  Luiz  Martins  de  Souza  Dantas  ajudou  a  salvar 
centenas  de  vítimas  inocentes.  São  exemplos  dos  laços  humanos  que  vinculam  a  França  e  o 
Brasil. 
Isso  confere  à  nossa  parceria  um  significado  muito  especial,  porque  a  defesa  dos  direitos 
humanos e a consolidação da democracia são hoje tarefas inadiáveis no plano internacional. 
Sabemos que a liberdade e a prática da democracia não podem ser trazidas de fora. Não são 
produtos  de  exportação,  menos  ainda,  produtos  de  imposição.  Só  podem  ser  o  que  sempre 
foram para todas as nações que as alcançaram: uma conquista de seus povos. A comunidade 
internacional pode e deve ajudar nesse processo, mas deve fazê‐lo sem arrogância. 
Na América do Sul, vivemos um momento que é de consolidação das democracias. 
256 
 

As  dificuldades  econômicas  são,  como  sempre  foram,  fator  de  instabilidade  social  e  política. 
Mas o amadurecimento dos povos de nossa região faz com que, em nossos dias, o horizonte 
das  alternativas  políticas  já  não  contemple  soluções  que  não  passem  pelos  canais 
democráticos. 
O  Brasil  tem  procurado  contribuir  para  fortalecer  a  estabilidade  democrática  da  América  do 
Sul, e o faz com o espírito fraterno, respeitoso da autodeterminação dos povos e da soberania 
nacional.  
De  nossa  parte  não  haverá  interferência,  mas  tampouco  indiferença  para  com  a  sorte  de 
nossos  irmãos.  O  Brasil  continuará  a  estender  sua  mão,  em  favor  do  fortalecimento  desse 
patrimônio de liberdade. Mas a democracia não é apenas uma aspiração isolada de cada país. 
É também uma tarefa a ser realizada nas relações entre os países.  
Um  mundo  plural  ‐  ou  "multipolar",  como  às  vezes  se  diz  ‐  não  é  um  desejo  piedoso  de 
diplomatas  ou  acadêmicos  idealistas.  É  uma  exigência  dos  dias  que  correm.  A  negação  da 
pluralidade  de  pólos,  pretensamente  "realista",  reduz  as  relações  internacionais  apenas  à 
expressão da força militar. 
Para afirmar a democracia no plano internacional, é preciso reconhecer que a pluralidade de 
visões é legítima e que há um espaço crescente a ser dado à ação diplomática.  
Ser democrata no plano global é acreditar que todos têm direito a ser atores, que cada ator 
tem suas razões e que, enfim, nem sempre a razão do mais forte é a mais forte das razões.  
Muito obrigado. 
 
Discurso do Presidente Luiz Inácio Lula da Silva na Reunião de Cúpula do Conselho de 
Segurança das Nações Unidas  
Senhor Luiz Inácio Lula da Silva 
Presidente da República Federativa do Brasil 
Nova York, NY, 14/09/2005 
 
Senhor Presidente, 
Desejo congratulá‐lo pela iniciativa de convocar esta reunião, em um momento crucial para o 
futuro das Nações Unidas.  
Intensificam‐se os esforços para fortalecer a ONU e seus órgãos principais.  
Precisamos  adequar  o  Conselho  de  Segurança  às  exigências  políticas  e  econômicas  de  um 
mundo em profunda transformação.  
Esta é a terceira reunião de Cúpula do Conselho em 60 anos de existência.  
Em 1992, os Chefes de Governo dos membros do Conselho se reuniram para celebrar o fim do 
confronto Leste‐Oeste e os novos horizontes que se abriam para uma ação efetiva em favor da 
estabilidade internacional.  
Havia motivos para confiar no futuro da segurança coletiva. 
Em  2000,  o  encontro  de  Cúpula  coincidiu  com  atos  de  brutal  violência  movidos  pela 
intolerância racial e religiosa.  
Buscava‐se aprender as lições das guerras civis na ex‐Iugoslávia e em Ruanda para recuperar a 
capacidade da Organização de conter abusos maciços aos direitos humanos.  
Hoje, estamos confrontados a ameaças cada vez mais complexas. 
Os dois projetos de resolução sobre a mesa são uma tentativa de dar resposta a esses desafios.  
Atos bárbaros de terrorismo continuam sendo perpetrados contra inocentes e indefesos. 
O combate a esse flagelo exige firmeza.  
Mas não o derrotaremos apenas pela repressão. 
Precisamos evitar que o terrorismo crie raízes em meio à desesperança. 
Temos de rejeitar o preconceito e a discriminação, sob qualquer disfarce ou pretexto. 
No combate à violência irracional nossas melhores armas são a cultura do diálogo, a promoção 
do desenvolvimento e a defesa intransigente dos direitos humanos. 
Senhor Presidente, 
257 
 

O  Conselho  deve  continuar  a  dedicar  também  amplo  espaço  em  sua  pauta  às  questões 
africanas.  
Nos 14 países africanos que já visitei e nos numerosos contatos em Brasília com lideranças do 
Continente,  pude  comprovar  o  importante  progresso  institucional  e  econômico  em  curso  na 
região.  
A decidida vontade política de suas lideranças de superar os conflitos do presente e lidar com a 
herança  de  um  passado  de  dependência  tem  sua  melhor  expressão  na  criação  da  União 
Africana. 
Esse  exemplo  merece  ser  acompanhado  por  todas  as  regiões  que  almejam  integrar‐se  de 
forma soberana e pacífica na comunidade internacional.  
No  Haiti,  a  América  Latina  quer  demonstrar  que  as  Nações  Unidas  não  estão  condenadas  a 
simplesmente recolher os destroços dos conflitos que não pôde evitar.  
A Missão de Estabilização das Nações Unidas está oferecendo um novo paradigma de resposta 
aos desafios da solução dos conflitos e da reconstrução nacional.  
Estamos  contribuindo  para  a  estabilização  duradoura  do  país  –  sem  truculências  ou 
imposições.  
Estamos estimulando o diálogo e apoiando a reconstrução institucional e econômica.  
O  estabelecimento  de  uma  Comissão  de  Construção  da  Paz  mostra  que  a  comunidade 
internacional partilha essa mesma visão.  
Uma  melhor  coordenação  entre  o  Conselho  de  Segurança  e  o  ECOSOC  assegurará  que 
situações como as do Haiti ou da Guiné‐Bissau recebam tratamento adequado. 
São crises profundas de sociedades que buscam reencontrar o caminho do desenvolvimento. 
Nessas questões, a ação das Nações Unidas é insubstituível.  
É  o  caso  do  conflito  no  Oriente  Médio,  onde  questões  políticas  sensíveis  precisam  ser 
equacionadas com credibilidade e transparência.  
Com esse espírito, o Brasil apóia os esforços do “quarteto” para implementar o Mapa para a 
Paz.  
Senhor Presidente,  
O projeto de reforma das Nações Unidas, hoje em discussão, é indissociável da atualização do 
Conselho de Segurança.  
Sua  agenda  cada  vez  mais  ampla  e  ambiciosa  implica  responsabilidades  diversifica‐das  – 
muitas vezes em áreas não previstas pela Carta.  
Não  é  admissível  que  o  Conselho  continue  a  operar  com  um  claro  déficit  de  transparência  e 
representati‐vidade.  
A  boa  governança  e  os  princípios  democráticos,  que  valorizamos  no  plano  interno,  devem 
igualmente inspirar os métodos de decisão coletiva e o multilateralismo.  
Temos diante de nós uma oportunidade histórica para ampliar a composição do Conselho de 
forma eqüitativa.  
Para  a  maioria  dos  países  membros  da  ONU,  isto  significa  aumentar  o  número  de  membros 
permanentes  e  não  permanentes,  com  países  em  desenvolvimento  de  todas  as  regiões  nas 
duas categorias. 
Senhor Presidente,  
Estou convencido de que  não haverá um mundo  com paz e segurança enquanto 1 bilhão de 
pessoas forem oprimidas pela fome.  
Insisto que este mal é a mais devastadora arma de destruição em massa.  
A fome e a pobreza afetam a capacidade de trabalho, as condições de saúde, a dignidade e as 
esperanças.  
Desagregam famílias, desarticulam sociedades, enfraquecem a economia.  
Desatam um círculo vicioso de frustração e indignidade, que é terreno fértil para a violência, as 
crises e conflitos de toda ordem. 
258 
 

Reitero que o Brasil deseja que este Conselho continue a ser o foro multilateral por excelência 
para a promoção da paz e da segurança internacional ‐ papel maior que lhe reserva a Carta das 
Nações Unidas.  
O Brasil assume plenamente suas responsabilidades na promoção das reformas necessárias ao 
fortalecimento  desta  instituição,  que  deve  estar  no  centro  das  complexas  decisões  que  o 
momento histórico exige.  
Muito obrigado. 
 
Discurso do Presidente da República, Luiz Inácio Lula da Silva, na abertura do Debate‐Geral 
da 62ª Assembléia‐Geral das Nações Unidas  
Senhor Luiz Inácio Lula da Silva 
Presidente da República Federativa do Brasil 
Nova York, 25/09/2007 
 
Senhoras e Senhores Chefes de Estado e de Governo, 
Senhor Srgjan Kerim, Presidente da Assembléia‐Geral das Nações Unidas, 
Senhor Ban Ki‐moon, Secretário‐Geral das Nações Unidas, 
Senhoras e Senhores delegados, 
Cumprimento‐o,  senhor  Secretário‐Geral,  por  ter  sido  escolhido  para  ocupar  posição  tão 
relevante no sistema internacional.  
Saúdo  sua  decisão  de  promover  debates  de  alto  nível  sobre  o  gravíssimo  problema  das 
mudanças climáticas. É salutar que essa reflexão ocorra no âmbito das Nações Unidas. 
Não  nos  iludamos:  se  o  modelo  de  desenvolvimento  global  não  for  repensado,  crescem  os 
riscos de uma catástrofe ambiental e humana sem precedentes. 
É  preciso  reverter  essa  lógica  aparentemente  realista  e  sofisticada,  mas  na  verdade 
anacrônica, predatória e insensata, da multiplicação do lucro e da riqueza a qualquer preço.  
Há  preços  que  a  humanidade  não  pode  pagar,  sob  pena  de  destruir  as  fontes  materiais  e 
espirituais  da  existência  coletiva,  sob  pena  de  destruir‐se  a  si  mesma.  A  perenidade  da  vida 
não pode estar à mercê da cobiça irrefletida. 
O mundo, porém, não modificará a sua relação irresponsável com a natureza sem modificar a 
natureza das relações entre o desenvolvimento e a justiça social. 
Se  queremos  salvar  o  patrimônio  comum,  impõe‐se  uma  nova  e  mais  equilibrada  repartição 
das riquezas, tanto no interior de cada país como na esfera internacional. 
A  eqüidade  social  é  a  melhor  arma  contra  a  degradação  do  Planeta.  Cada  um  de  nós  deve 
assumir sua parte nessa tarefa. Mas não é admissível que o ônus maior da imprevidência dos 
privilegiados recaia sobre os despossuídos da Terra. Os países mais industrializados devem dar 
o exemplo. É imprescindível que cumpram os compromissos estabelecidos pelo Protocolo de 
Quioto.  
Isso contudo não basta. Necessitamos de metas mais ambiciosas a partir de 2012. E devemos 
agir  com  vigor  para  que  se  universalize  a  adesão  ao  Protocolo.  Também  os  países  em 
desenvolvimento devem participar do combate à mudança do clima. São essenciais estratégias 
nacionais  claras  que  impliquem  responsabilidade  dos  governos  diante  de  suas  próprias 
populações.  
O Brasil lançará em breve o seu Plano Nacional de Enfrentamento às Mudanças Climáticas. A 
Floresta Amazônica é uma das áreas que mais poderão sofrer com o aquecimento do Planeta, 
mas  há  ameaças  em  todos  os  continentes:  elas  vão  do  agravamento  da  desertificação  até  o 
desaparecimento de territórios ou mesmo de países inteiros pela elevação do nível do mar. 
O Brasil tem feito esforços notáveis para diminuir os efeitos da mudança do clima. Basta dizer 
que,  nos  últimos  anos,  reduzimos  a  menos  da  metade  o  desmatamento  da  Amazônia.  Um 
resultado  como  esse  não  é  obra  do  acaso.  Até  porque  o  Brasil  não  abdica,  em  nenhuma 
hipótese, de sua soberania e nem de suas responsabilidades sobre a Amazônia.  
259 
 

Os êxitos recentes são fruto da presença cada vez maior e mais efetiva do Estado Brasileiro na 
região,  promovendo  o  desenvolvimento  sustentável  –  econômico,  social,  educacional  e 
cultural – de seus mais de 20 milhões de habitantes.  
Estou seguro de que nossa experiência no tema pode ser útil a outros países. O Brasil propôs 
em  Nairobi  a  adoção  de  incentivos  econômico‐financeiros  que  estimulem  a  redução  do 
desmatamento em escala global.  
Devemos  aumentar  igualmente  a  cooperação  Sul‐Sul,  sem  prejuízo  de  adotar  modalidades 
inovadoras de ação conjunta com países desenvolvidos. Assim, daremos sentido concreto  ao 
princípio das responsabilidades comuns, mas diferenciadas. 
É  muito  importante  o  tratamento  político  integrado  de  toda  a  agenda  ambiental.  O  Brasil 
sediou a Conferência das Nações Unidas para o Meio Ambiente e o Desenvolvimento, a Rio‐92. 
Precisamos  avaliar  o  caminho  percorrido  e  estabelecer  novas  linhas  de  atuação.  Por  isso, 
proponho a realização, em 2012, de uma nova Conferência, que o Brasil se oferece para sediar, 
a Rio + 20. 
Senhoras e Senhores, 
Não haverá solução para os terríveis efeitos das mudanças climáticas se a humanidade não for 
capaz  também  de  mudar  seus  padrões  de  produção  e  consumo.  O  mundo  precisa, 
urgentemente, de uma nova matriz energética. Os biocombustíveis são vitais para construí‐la. 
Eles  reduzem  significativamente  as  emissões  de  gases  de  efeito  estufa.  No  Brasil,  com  a 
utilização  crescente  e  cada  vez  mais  eficaz  do  etanol,  evitou‐se,  nesses  30  últimos  anos,  a 
emissão de 644 milhões de toneladas de CO2 na atmosfera. 
Os biocombustíveis podem ser muito mais do que uma alternativa de energia limpa. O etanol e 
o biodiesel podem abrir excelentes oportunidades para mais de uma centena de países pobres 
e  em  desenvolvimento  na  América  Latina,  na  Ásia  e,  sobretudo,  na  África.  Podem  propiciar 
autonomia  energética,  sem  necessidade  de  grandes  investimentos.  Podem  gerar  emprego  e 
renda e favorecer a agricultura familiar. E podem equilibrar a balança comercial, diminuindo as 
importações e gerando excedentes exportáveis. 
A experiência brasileira de três décadas mostra que a produção de biocombustíveis não afeta a 
segurança  alimentar.  A  cana  de  açúcar  ocupa  apenas  1%  de  nossas  terras  agricultáveis,  com 
crescentes índices de produtividade. O problema da fome no Planeta não decorre da falta de 
alimentos,  mas  da  falta  de  renda  que  golpeia  quase  um  bilhão  de  homens,  mulheres  e 
crianças. É plenamente possível combinar biocombustíveis, preservação ambiental e produção 
de alimentos. 
No Brasil, daremos à produção de biocombustíveis todas as garantias sociais e ambientais. 
Decidimos  estabelecer  um  completo  zoneamento  agroecológico  do  País  para  definir  quais 
áreas agricultáveis podem ser destinadas à produção de biocombustíveis. Os biocombustíveis 
brasileiros  estarão  presentes  no  mercado  internacional  com  um  selo  que  garanta  suas 
qualidades sócio‐laborais e ambientais.  
O  Brasil  pretende  organizar  em  2008  uma  conferência  internacional  sobre  biocombustíveis, 
lançando as bases de uma ampla cooperação mundial no setor. Faço aqui um convite a todos 
os países para que participem do evento.  
A sustentabilidade do desenvolvimento não é apenas uma questão ambiental, é também um 
desafio social. Estamos construindo um Brasil cada vez menos desigual e mais dinâmico. Nosso 
país  voltou  a  crescer,  gerando  empregos  e  distribuindo  renda.  As  oportunidades  agora  são 
para todos.  
Ao  mesmo  tempo  em  que  resgatamos  uma  dívida  social  secular,  investimos  fortemente  em 
educação  de  qualidade,  ciência  e  tecnologia.  Honramos  o  compromisso  do  Programa  Fome 
Zero ao erradicar esse tormento da vida de mais de 45 milhões de pessoas. Com dez anos de 
antecedência,  superamos  a  primeira  das  Metas  do  Milênio,  reduzindo  em  mais  da  metade  a 
pobreza extrema no nosso País. 
260 
 

O  combate  à  fome  e  à  pobreza  deve  ser  preocupação  de  todos  os  povos.  É  inviável  uma 
sociedade  global  marcada  pela  crescente  disparidade  de  renda.  Não  haverá  paz  duradoura 
sem a progressiva redução das desigualdades.  
Em  2004,  lançamos  a  Ação  Global  contra  a  Fome  e  a  Pobreza.  Os  primeiros  resultados  são 
animadores, principalmente a criação da Central Internacional de Compra de Medicamentos.  
Meus amigos e minhas amigas, 
A  Unitaid  já  conseguiu  reduções  de  até  45%  nos  preços  dos  medicamentos  contra  a  Aids,  a 
malária  e  a  tuberculose  destinados  aos  países  mais  pobres  da  África.  É  hora  de  dar‐lhe  um 
novo  impulso.  Idéias  que  tanto  mobilizaram  nossos  povos  não  podem  perder‐se  na  inércia 
burocrática.  
Mas  a  superação  definitiva  da  pobreza  exige  mais  do  que  solidariedade  internacional.  Ela 
passa, necessariamente, por novas relações econômicas que não penalizem os países pobres.  
A  Rodada  de  Doha  da  OMC  deve  promover  um  verdadeiro  pacto  pelo  desenvolvimento, 
aprovando regras justas e equilibradas para o comércio internacional.  
São  inaceitáveis  os  exorbitantes  subsídios  agrícolas,  que  enriquecem  os  ricos  e  empobrecem 
os  mais  pobres.  É  inadmissível  um  protecionismo  que  perpetua  a  dependência  e  o 
subdesenvolvimento. O Brasil não poupará esforços para o êxito das negociações, que devem 
beneficiar sobretudo os países mais pobres. 
Senhor Presidente, senhor Secretário‐Geral, 
A construção de uma nova ordem internacional não é uma figura de retórica, mas um requisito 
de  sensatez.  O  Brasil  orgulha‐se  da  contribuição  que  tem  dado  para  a  integração  sul‐
americana, sobretudo no Mercosul.  
Temos  atuado  para  aproximar  povos  e  regiões,  impulsionando  o  diálogo  político  e  o 
intercâmbio  econômico  com  os  países  árabes,  africanos  e  asiáticos,  sem  abdicar  de  nossos 
parceiros tradicionais.  
Criamos – Brasil, África do Sul e Índia – um foro inovador de diálogo e ação conjunta, o IBAS. 
Temos realizado inclusive projetos concretos de cooperação em diversos países, a exemplo do 
que fizemos no Haiti e em Guiné‐Bissau.  
Todos  concordamos  ser  necessária  uma  maior  participação  dos  países  em  desenvolvimento 
nos grandes foros de decisão internacional, em particular o Conselho de Segurança das Nações 
Unidas. É hora de passar das intenções à ação.  
Notamos,  com  muito  agrado,  as  recentes  propostas  do  Presidente  Sarkozy,  de  reformar  o 
Conselho de Segurança, com a inclusão de países em desenvolvimento. Igualmente necessária 
é a reestruturação do processo decisório dos organismos financeiros internacionais.  
Senhor Presidente, 
As Nações Unidas são o melhor instrumento para enfrentar os desafios do mundo de hoje. É 
no  exercício  da  diplomacia  multilateral  que  encontramos  os  meios  de  promover  a  paz  e  o 
desenvolvimento.  
A  participação  do  Brasil,  em  conjunto  com  outros  países  da  América  Latina  e  do  Caribe,  na 
Missão de Estabilização no Haiti simboliza nosso empenho de fortalecer o multilateralismo. No 
Haiti,  estamos  mostrando  que  a  paz  e  a  estabilidade  se  constróem  com  a  democracia  e  o 
desenvolvimento social. 
Senhoras e Senhores, 
Ao entrar neste prédio, os delegados podem ver uma obra de arte presenteada pelo Brasil às 
Nações Unidas há 50 anos. Trata‐se dos murais “Guerra” e “Paz”, pintados pelo grande artista 
brasileiro Cândido Portinari. O sofrimento expresso no mural, que retrata a guerra, nos remete 
à alta responsabilidade das Nações Unidas de afastar o risco de conflitos armados. 
O segundo mural revela que a paz vai muito além da ausência da guerra. Pressupõe bem‐estar, 
saúde  e  um  convívio  harmonioso  com  a  natureza.  Pressupõe  justiça  social,  liberdade  e 
superação dos flagelos da fome e da pobreza.  
261 
 

Não  é  por  acaso  que  o  mural  "Guerra"  está  colocado  de  frente  para  quem  chega,  e  o  mural 
“Paz”, para quem sai. A mensagem do artista é singela, mas poderosa: transformar aflições em 
esperança, guerra em paz, é a essência da missão das Nações Unidas.  
O Brasil continuará a trabalhar para que essa expectativa tão elevada se torne definitivamente 
realidade. 
Muito obrigado. 
 
Discurso pronunciado pelo Ministro Celso Amorim, em sessão do Conselho de Segurança das 
Nações Unidas sobre Aspectos Civis da Gestão de Conflitos e a Construção da Paz  
Embaixador Celso Luiz Nunes Amorim 
Ministro de Estado das Relações Exteriores 
Nova York, EUA, 22/09/2004 
 
(Tradução para o português do original em espanhol) 
Desejo  felicitar  meu  amigo,  o  Ministro  das  Relações  Exteriores  da  Espanha,  Miguel  Ángel 
Moratinos, por promover este oportuno debate sobre os aspectos civis da gestão de conflitos 
e da construção da paz. 
O Presidente Lula abriu o debate geral da 59a Assembléia Geral com uma ampla apresentação 
da percepção que o Brasil tem dos desafios mais urgentes do mundo de hoje. O ponto central 
dessa  visão  é  a  noção  de  que  o  fundamento  da  paz  é  a  justiça  social.  Como  disse  em  suas 
palavras, "um mundo onde a fome e a pobreza prevalecem não pode ser um mundo pacífico". 
Não  posso  deixar  de  expressar  o  apoio  enfático  do  Brasil  à  intervenção  do  Secretario  Geral 
ontem na Assembléia Geral sobre a importância fundamental do Estado de Direito. O direito, e 
não o poder, deve ser o ordenador da convivência social, tanto no contexto doméstico quanto 
no internacional. 
A experiência recente nos oferece vários exemplos de conflitos em países marcados por níveis 
muito baixos de desenvolvimento, que ilustram os limites de uma perspectiva puramente ou 
preponderantemente  militar  da  construção  da  paz.  Sem  um  enfoque  mais  amplo,  que 
incorpore  variáveis  econômicas  e  sociais  ‐  e  que  esteja  centrado  no  bem  estar  dos  civis  – 
fracassaremos na promoção de soluções duradouras. 
As  Nações  Unidas  devem  desenvolver  instrumentos  e  mecanismos  que  traduzam  essa 
consciência em estratégias concretas. O artigo 65 da Carta nos abre una janela para aumentar 
a  cooperação  entre  o  Conselho  de  Segurança  e  o  ECOSOC,  ampliando  o  escopo  de  la 
cooperação multilateral para a gestão de conflitos e a construção da paz. Não esqueçamos que 
o  ECOSOC  –  e  não  o  Conselho  de  Segurança  –  é  o  órgão  da  Carta  com  responsabilidade  em 
assuntos relativos ao desenvolvimento social. E do que mais falamos quando nos referimos aos 
esforços  de  construção  da  paz  duradoura  –  ou  reconstrução  –  se  não  é  do  desenvolvimento 
social e econômico?  
No passado, tentamos utilizar a base que proporciona esse dispositivo da Carta em situações 
como as do Burundi e de Guiné‐Bissau. No entanto, enquanto nossos esforços demonstraram 
ser experiências úteis, não representaram uma resposta suficientemente articulada frente às 
demandas  enfrentadas  em  muitas  partes  da  África,  do  Oriente  Médio,  em  Timor  Leste,  na 
violência crônica no Haiti, entre outras. 
O  Brasil  aceitou  a  responsabilidade  de  comandar  a  Missão  das  Nações  Unidas  para  a 
Estabilização  do  Haiti  –  com  uma  forte  participação  de  outros  países  latino‐americanos, 
inclusive  Chile  –  segundo  o  claro  entendimento  de  que  a  paz  dessa  nação  irmã  porém  à 
margem  de  nosso  continente  requer  um  compromisso  de  longo  prazo  da  comunidade 
internacional, não só para a paz e segurança, como também para progresso sócio‐econômico. 
A  ONU  falhou  junto  ao  povo  do  Haiti  no  passado  ao  interpretar  seu  papel  de  maneira 
demasiadamente estrita. Desta vez, paralelamente aos esforços para assegurar um ambiente 
mais seguro, temos que por em marcha um programa sustentável para ajudar a sociedade do 
262 
 

Haiti  nas  esferas  política,  social  e  econômica.  São  tarefas  que  extrapolam  o  âmbito  do 
Conselho de Segurança. Requerem a participação de outras agências e órgãos. 
Temos  que  tirar  proveito  do  atual  ambiente  favorável  a  reformas  na  ONU  para  começar  a 
conceber  novas  maneiras  para  enfrentar  tais  situações.  Devemos  assegurar  a  continuidade 
entre  ações  de  prevenção,  esforços  de  manutenção  da  paz  e  a  etapa  pós‐conflito  de 
construção da paz. Temos também que enfrentar a questão de duração e intensidade desses 
esforços.  Naturalmente,  há  que  se  deslocar  rapidamente  todas  as  tropas  requeridas  pelas 
resoluções do Conselho de Segurança. Vemo‐nos confrontados com essa necessidade no Haiti 
nesse exato momento.  
No  entanto,  é  particularmente  importante  proporcionar  todos  os  recursos  humanos, 
financeiros  e  materiais  para  a  reconstrução  física  e  institucional.  Apreciamos  a  generosidade 
dos países doadores e instituições financeiras internacionais, porém estas devem se coordenar 
com  os  organismos  multilaterais,  cuja  competência  primária  em  definir  o  quadro  geral  deve 
ser reconhecida. 
Falar dos aspectos civis da manutenção da paz equivale a voltar a atenção para a importância 
fundamental de restabelecer a dignidade humana, muitas vezes a primeira vítima de situações 
de  conflito.  Posso  bem  imaginar  que  as  discussões  hoje  vão  estabelecer  algumas 
especificidades  técnicas  dos  esforços  de  manutenção  da  paz  e  sua  interseção  com  a  agenda 
humanitária,  o  papel  das  organizações  regionais  e  outros.  São  todos  aspectos  relevantes  e 
merecem nossa consideração.  
De  minha  parte  desejo  insistir  sobre  a  necessidade  de  desenvolver  novas  e  melhores 
ferramentas  para  enfrentar  os  problemas  estruturais  que  estão  na  raiz  das  tensões  que 
conduzem  à  violência  e  ao  conflito.  Pobreza,  doença,  ausência  de  oportunidades, 
desigualdade. Essas são algumas das causas de conflitos, particularmente aqueles no interior 
dos países, que cada vez mais, lamentavelmente, são parte de nossa agenda. 
De acordo com as práticas prevalecentes, uma vez que os membros do Conselho de Segurança 
considerem  que  um  ponto  da  agenda  não  mais  representa  uma  ameaça  à  paz,  a  situação  é 
colocada  em  um  limbo,  sem  um  acompanhamento  intergovernamental  dos  processos  de 
reconciliação e reconstrução. Esta lacuna em nossos métodos pode fazer com que recomece o 
conflito, como demonstra o trágico exemplo do Haiti. 
Senhor Presidente, 
Não  importa  quão  sofisticadas  sejam  as  nossas  ações  militares  de  manutenção  da  paz, 
somente  saberemos  enfrentar  eficazmente  os  desafios  da  segurança  que  se  apresentam  se 
integrarmos os elementos políticos, sociais e econômicos em nossas estratégias. Com esse fim, 
podemos extrair inspiração do disposto no Artigo 65, redigido em 1945, que evoca a absoluta 
necessidade  de  se  enfrentar  questões  de  segurança  em  seu  contexto  sócio‐econômico  e  nos 
brinda, inclusive, com orientação sobre a maneira de fazê‐lo do ponto de vista institucional. 
Muito obrigado. 
 
Audiência do Ministro das Relações Exteriores, Embaixador Celso Amorim, em Sessão 
Conjunta das Comissões de Relações Exteriores e Defesa Nacional do Senado Federal e da 
Câmara dos Deputados  
Embaixador Celso Luiz Nunes Amorim 
Ministro de Estado das Relações Exteriores 
Brasília, Distrito Federal, 02/12/2004 
 
Ministro  CELSO  AMORIM  –  Obrigado,  Senhor  Presidente,  Senador  Eduardo  Suplicy;  Senhora 
Deputada Maninha; Senhor Deputado Doutor Rosinha; Senhores Senadores, Líderes, Senhores 
Deputados, para mim é, naturalmente, sempre uma honra vir ao Congresso Nacional discutir 
temas que são de grande relevância para a política externa brasileira. 
São  três  os  assuntos,  efetivamente  muito  diferentes  entre  si,  para  os  quais  Vossa  Excelência 
me convocou. O Haiti é um tema típico de política externa envolvendo aspectos de segurança 
263 
 

e os outros dois são temas de política comercial, mas ainda assim bem diferentes: a questão 
da União Européia e a da China. Eu me proponho a falar um pouco sobre o Haiti, inicialmente, 
porque acho que é uma questão, digamos, talvez mais palpitante, a curto prazo, e mencionarei 
os outros dois rapidamente. Naturalmente, estarei aberto às perguntas que sejam feitas.  
A  minha  tendência  é  sempre  ser  um  pouco  prolixo,  Senhor  Presidente,  de  modo  que  Vossa 
Excelência se sinta à vontade para interromper. É porque sempre há muito mais a falar do que 
o tempo de que se dispõe. 
Mas  eu  começo  pela  questão  do  Haiti,  evitando  também  fazer  uma  cronologia  de  todos  os 
acontecimentos. Naturalmente, se houver curiosidade sobre algum aspecto mais do passado, 
eu  estarei  pronto  a  tentar  responder.  Mas  como  eu  estive  aqui  no  Senado,  na  Câmara  e 
também com os Líderes falando sobre esse tema, na época em que se tratou da aprovação do 
envio de tropas, juntamente com o Ministro José Viegas, eu creio que poderia, digamos, tentar 
abordar uma visão da situação atual e, naturalmente, se for necessário fazer algum recuo no 
tempo, para se entender melhor algum aspecto, evidentemente eu procuraria fazer. 
O tema do Haiti, evidentemente, nunca esteve tão presente na nossa política externa. É quase 
óbvio dizer isso. A presença dos mil e duzentos soldados brasileiros lá não só é uma indicação 
disso, mas também é um motivo adicional para que assim ocorra. 
No  momento,  não  vou  me  ater,  de  forma  específica,  sobre  os  problemas  de  segurança, 
embora todos os problemas sejam ligados, vou me referir a eles também até porque o General 
Heleno  terá  ocasião  de  falar  mais  especificamente  sobre  aspectos  específicos  da  questão  de 
segurança. 
Mas  eu  queria  dizer  que,  desde  o  início,  quando  nos  envolvemos  nessa  questão  do  Haiti  e 
contamos aqui com a compreensão e o apoio do Congresso Nacional, desde o início o que o 
Governo do Presidente Lula tinha em mente era uma ação de uma natureza diferente da que 
foi feita no passado por outros países que estiveram presentes no Haiti. Diferente no sentido 
de  possibilitar  uma  efetiva  regeneração  do  tecido  político  e,  ao  mesmo  tempo,  um 
lançamento, porque não se pode nem falar de relançamento do desenvolvimento econômico 
no Haiti. 
É claro que tudo isso pode parecer excessivamente pretensioso, dadas as condições do Haiti. E 
é natural que esses objetivos sejam conseguidos de maneira gradual e parcial e não se pode 
ter a ilusão de que se conseguirão todos esses objetivos a curto prazo. 
Penso que, relatando um pouco o que temos feito, os senhores verão que há uma mobilização 
intensa hoje da comunidade internacional, talvez num nível nunca visto antes, para completar 
esses outros aspectos. 
 
Isso se revelou inclusive agora na discussão da prorrogação do mandato da Minustah na ONU, 
o que acabou sendo por seis meses, mas desejávamos que fosse por um período maior, mas, 
naturalmente, poderá e será prorrogado, pela minha experiência nas Nações Unidas.  Mas se 
nota  que  o  Brasil  e  outros  países  em  desenvolvimento,  no  caso,  o  Chile,  que  também  está 
muito envolvido, são países que têm realmente uma visão mais marcadamente voltada para a 
reconciliação  política  e  para  o  crescimento  econômico.  Isso  ocorre,  em  parte,  pela  nossa 
própria  índole;  em  parte,  porque  não  temos  nenhum  passado  colonial  ou  um  passado  de 
outras ações no Haiti, que, digamos, cria uma hipoteca ou uma visão antagônica da população 
do Haiti. Em parte também porque não temos nenhum “parti pris” por nenhuma das correntes 
políticas  no  Haiti  e  toda  a  nossa  visão  é  baseada  no  desejo  de  que  todas  essas  correntes 
participem do processo. 
E também porque temos uma concepção, que é verdadeira e que agora tem uma chance de 
ser posta em prática, de que os problemas de segurança, que existem, indiscutivelmente, no 
Haiti,  não  podem  ser  resolvidos  isoladamente  da  situação  política  nem  isoladamente  da 
situação humanitária, da situação social, da situação econômica.  
264 
 

Em  suma,  como  foi  dito  aqui  por  mim,  pelo  Ministro  Viegas  e  pelo  Presidente  Lula,  essa 
presença brasileira no Haiti tem uma natureza diferente das presenças que anteriormente lá 
estiveram. 
E  talvez  isso  tenha  até  causado,  em  parte,  em  algum  momento,  alguma  decepção,  seja  ao 
governo provisório, seja a outras potências externas que viam essa função da missão de paz 
mais como uma missão de polícia, quase. E não é essa a nossa visão. O General Heleno terá 
ocasião  de  falar  como  tem  agido.  Os  depoimentos  que  tenho  recebido  são  muito  positivos 
sobre  a  ação  dos  militares  brasileiros  e  de  outros  militares  envolvidos,  como  os  militares 
argentinos, que colaboraram de uma maneira extraordinária durante as recentes enchentes no 
Haiti. Essa é a concepção. 
O  que  temos  procurado  fazer?  Poder‐se‐ia  argumentar:  o  Brasil  poderia  ter  defendido  essa 
concepção  sem  mandar  os  mil  e  duzentos  soldados.  Creio  que  nós  não  teríamos  autoridade 
moral para fazer a mobilização que estamos fazendo hoje se não houvesse essa presença ali. 
Evidentemente,  não  quero  voltar  a  todos  os  detalhes  que  conversei  antes  aqui,  mas  vale 
lembrar que essa operação é totalmente diferente de outras que algumas vezes foram usadas 
como  comparação,  por  dois  motivos:  primeiro,  ela  é  não  só  aprovada  pelo  Conselho  de 
Segurança como constituída pelas Nações Unidas. É uma operação de estabilização – assim é o 
nome – das Nações Unidas; não é nem uma força criada à margem das Nações Unidas, nem 
uma força autorizada pelas Nações Unidas composta de maneira unilateral ou com mandato 
exercido por outros países. Então, ela é uma força das Nações Unidas. 
O Brasil tem um apego muito grande ao sistema multilateral e isso completa, digamos, a razão 
das  motivações.  Esse  é  um  caso  que  se  verifica  no  nosso  Continente,  com  um  país  que  tem 
uma  composição  étnica  muito  parecida  com  a  nossa  e  é  o  terceiro  em  população  negra  do 
Continente,  com  raízes  culturais  semelhantes  à  nossa,  como  se  vê  na  pintura,  se  ouve  na 
música e também no amor ao futebol, para mencionar outro aspecto que ali esteve presente. 
Então,  seria  muito  importante  que  o  Brasil,  em  um  caso  como  esse,  demonstrasse  a  sua 
disposição de participar. E é o que nós temos feito. 
Bem, a nossa ação política se tem desenvolvido em relação a três aspectos principais que são 
inter‐relacionados: a questão da estabilidade e da ordem, a questão política e da reconstrução 
institucional – digamos assim – e a questão econômica, humanitária e social. 
O  tema  Haiti  tem  ocupado  uma  parcela  importante  do  tempo  das  conversas  internacionais, 
tanto do Presidente Lula quanto minha e de outros funcionários que participam de discussões 
sobre o tema. Foi objeto de conversas com o Presidente Jacques Chirac; com o Secretário de 
Estado Colin Powell; com o Primeiro‐Ministro do Canadá, que esteve aqui recentemente; com 
o  Presidente  do  Governo  da  Espanha  e  com  o  Ministro  da  Espanha  mais  extensamente.  E 
também foi levada a fóruns importantes.  
O  Grupo  do  Rio,  que  reúne  dezenove  países  latino‐americanos  e  do  Caribe,  aprovou  uma 
resolução muito importante de apoio às ações no Haiti, com essa ótica sempre nos três pilares. 
Também  a  Conferência  de  Cúpula  Ibero‐Americana,  que  se  realizou  recentemente  em  Costa 
Rica, aprovou uma decisão de teor muito semelhante. Então, o tema está sempre presente em 
conversas minhas e do próprio Presidente da República com o Secretário‐Geral da ONU. 
Em relação ao primeiro pilar, o da estabilidade e segurança, que, repito, está ligado aos outros 
mas tem a sua dimensão própria, o fundamental é completar as tropas que estavam previstas. 
O número de que se dispõe hoje é muito próximo do que havia sido previsto. Há mais de seis 
mil  integrantes  das  tropas.  Pelo  menos  são  os  dados  que  eu  tenho  e  seria  até  interessante 
conferir  com  o  General  Heleno,  porque  às  vezes  há  uma  pequena  disparidade  entre  os 
números  das  pessoas  que  foram  mandadas,  mas  ainda  não  chegaram.  Enfim,  estamos 
próximos  dos  seis  mil  e  contaremos  com  seis  mil  e  duzentos  soldados  até  dezembro,  um 
número bastante próximo do que as Nações Unidas previram. 
É  possível  que  seja  necessário  mais.  Fala‐se  agora,  por  exemplo,  em  um  batalhão  de 
engenharia,  adicional  a  esses  seis  mil  e  duzentos.  Mas  durante  muito  tempo  nós  estivemos 
praticamente  sozinhos,  inicialmente,  e  depois  somente  com  a  Argentina  e  o  Chile.  Portanto, 
265 
 

com  um  efetivo  muito  inferior  àquele  que  era  previsto.  Isso,  naturalmente,  dificultou  ações 
que têm relação com a estabilidade e a ordem.  
Então,  essa  é  uma  das  dimensões.  Insistimos  muito.  Foi  objeto  de  conversas  com  todas  as 
pessoas a que me referi, muito especialmente com o Secretário‐Geral da ONU, com quem eu 
estive  e  falei  por  telefone.  E  se  logrou,  finalmente.  O  nosso  temor  é  porque  esses  assuntos, 
muitas vezes – tendo vivido na ONU, sei como isso se passa –, saem do radar. Quer dizer, entra 
um  outro  assunto,  não  que  seja  menos  importante,  mas  entra  o  Sudão,  digamos,  com  a 
questão de Dafur; ou entra um outro tema. Não é o caso agora, mas no passado foi Serra Leoa. 
Então você sai do radar; nunca chega a completar a presença das tropas em uma determinada 
situação, e já está tratando de uma seguinte. Mas felizmente nós conseguimos. Graças a uma 
intensa ação diplomática que contou com o apoio desses países que eu mencionei. 
Agora,  é  claro  que  nós  não  resolveremos  o  problema  de  paz  e  segurança  no  Haiti  só  com 
presença militar. Primeiro que, como bem disse o General Heleno, as nossas forças não são de 
polícia.  Claro  que,  eventualmente,  têm  que  apoiar  alguma  ação  de  polícia,  porque  há  um 
aspecto ligado à posse e ao uso das armas que tem que ser coibido. Mas elas não são forças de 
polícia,  e  sim  forças  de  estabilização,  para  a  qual  se  pressupõe  que  haja  o  mínimo  de 
entendimento político entre as várias correntes políticas no Haiti. E isso, desde o início, foi algo 
muito precário. 
Evidentemente, o próprio governo provisório não é representativo de todas as forças políticas, 
o  comitê  eleitoral  não  é  representativo  de  todas  forças  políticas,  em  parte  porque  os 
integrantes  do  Lavalás,  inicialmente,  não  quiseram  participar,  no  caso  do  conselho  eleitoral, 
mas depois também não houve interesse. 
Segue  havendo  prisões  de  opositores  do  governo  provisório,  sobretudo  do  Lavalás,  o  que, 
evidentemente,  torna  impossível  uma  reconciliação  que  possa  caminhar  em  paralelo  com  o 
esforço de estabilização, do ponto de vista de segurança. 
Por  essas  razões,  nós  enviamos  sucessivamente  várias  pessoas  ao  Haiti  com  missões  algo 
diversas.  Além  do  nosso  Embaixador,  sempre  muito  ativo,  mas  enviei  o  Embaixador  Felício, 
que trabalha no meu gabinete e, por uma coincidência histórica, tinha sido colega do Primeiro 
Ministro  Latortue,  na  Costa  do  Marfim  e  em  Viena.  O  Latortue,  antes  de  se  aposentar,  era 
funcionário internacional.  
Então  havia  um  bom  diálogo.  Isso  foi  logo  depois  de  uma  declaração  crítica  do  Latortue  em 
relação a Minustah, quando chegou a dizer, depois desmentiu, romantizou, então vamos dizer 
de  uma  maneira  mais  cuidadosa,  porque  também  não  tenho  certeza  das  palavras  dele. 
Chegou‐se a dizer que ele tinha dito que preferiria ter tropas americanas a tropas brasileiras 
ou argentinas ou chilenas da Minustah. Ele depois desmentiu. Disse que não era intenção dele, 
que tinha sido mal interpretado. 
Outra preocupação nossa é dar apoio político às nossas tropas, para que elas possam agir no 
melhor ambiente possível. Então essa foi a missão do Embaixador Felício. 
Temos trabalhado sempre em proximidade com o representante do Secretário‐Geral da ONU, 
que é o Embaixador chileno Juan Gabriel Valdez, que é o Chefe‐Geral da Minustah, que é civil – 
o seu componente militar é comandado por um brasileiro. Então, sempre em contato com ele, 
percebendo que havia interesses em ter pessoas com conhecimento em negociação política, e 
pensando em pessoas que pudessem ter esse conhecimento, e, ao mesmo tempo, dispor de 
algum tempo e também ter um bom conhecimento de francês, que, no caso, é indispensável 
para esse trabalho, o Professor Ricardo Seitenfus, que está aqui e vai participar de uma outra 
audiência, também foi enviado, não como um enviado do Brasil para atuar no Haiti, mas como 
alguém para colaborar com os esforços das Nações Unidas no Haiti. É possível que ele continue 
até  o  ano  que  vem,  já  como  totalmente  de  contratado  pelas  Nações  Unidas.  Então,  essa  é 
outra preocupação. 
Mais  recentemente,  como  devem  ter  lido  no  jornal,  o  Presidente  Lula  mandou  também  o 
Conselheiro Diplomático Marco Aurélio Garcia, que esteve lá e manteve contato com todas as 
forças políticas do Haiti. 
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Todos esses contatos têm sido muito importantes para termos uma idéia mais clara do que se 
passa lá, mas eles não se limitaram a esses. 
Ainda no plano mais político, digamos assim, tivemos um diálogo importante com o Primeiro‐
Ministro  Latortue,  nessa  reunião  de  Costa  Rica,  da  Cúpula  Ibero‐Americana,  à  qual  o 
Presidente  Lula  não  pôde  ir,  devido  ao  grande  número  de  visitantes  estrangeiros,  em 
novembro, aqui em Brasília, e representei Sua Excelência.  
Houve  um  diálogo  interesse,  porque  ele  fez  uma  exposição  bastante  positiva,  talvez 
influenciado  pela  audiência,  no  sentido  de  que  está  pronto.  Primeiro,  disse  que  as  eleições 
marcadas para o início do ano que vem serão realizadas. Em segundo lugar, que nem ele nem 
outro  membro  do  Governo  integrará  o  governo  que  se  seguir  a  essas  eleições.  Portanto, 
considera  a  tarefa  dele  encerrada  com  o  Governo  provisório.  Em  terceiro  ‐  isso  é  muito 
importante e procurarei reproduzir, tanto quanto possível, as palavras que ele usou ‐, que ele 
estaria  disposto  a  fazer  um  diálogo  amplo  com  todas  as  forças  políticas,  inclusive,  –  e  cito, 
creio  –,  com  os  seguidores  de  Aristide.  Essas  foram  as  palavras  que  ele  usou.  Em  outro 
momento,  usou  a  palavra  Lavalas,  como  fazendo  parte  desse  diálogo.  Isso  foi  muito 
importante. 
Vários Presidentes e representantes de Presidentes ali falaram. Dado o envolvimento do Brasil 
no  Haiti,  fui  o  primeiro  a  falar  e  procurei  sublinhar,  novamente,  os  pontos  que  ele  havia 
destacado,  que  são  importantes,  e  acrescentei  dois  outros  que,  a  meu  ver,  são  também 
importantes.  Um  deles  tem  relação  mais  direta  com  esse  aspecto  político  que  estou 
comentando  agora,  e  o outro,  com  o  aspecto  humanitário  e  econômico,  que  deixarei  para o 
final. Contudo, repito, todos ligados. 
Com  relação  ao  aspecto  político,  chamei  a  sua  atenção,  em  função  de  outras  dificuldades 
existentes no passado com outros países do Caribe ‐ dificuldades de parte a parte, por várias 
razões, sobretudo com o Caribe britânico, que tinha ligações mais próximas com o Governo do 
Aristide,  em  alguns  casos  –,  e  procurei  dizer‐lhe  que  era  muito  importante  que  o  Governo 
Provisório tivesse um entendimento com os países do Caribe e que, como se trata de um país 
que não é enorme nem continental – na minha opinião, isso vale até para países grandes, mas, 
no  caso,  um  país  não  vive  fora  da  sua  região  ‐,  seria  fundamental  que  ele  tivesse  um  bom 
entendimento  com  os  países  da  Caricom,  ao  que  ele  assentiu.  Inclusive  disse‐lhe  claramente 
que  eu  estava  saindo  de  lá  para  me  encontrar  com  Ministros  da  Caricom,  que  se  reuniam 
especialmente para esse fim, em Barbados. Ele foi gentil e cordial, tendo mandado não apenas 
lembranças,  mas  também  palavras  positivas  para  a  Ministra  do  Exterior  de  Barbados,  que 
havia estado no Brasil, coincidentemente, junto com o Secretário de Estado Collin Powell, há 
um mês e meio ou dois meses. 
Também procurei fazê‐lo ver um ponto delicado que existe em toda relação desse tipo e que 
se relacionará com o terceiro pilar – ao que vou me dedicar em seguida. O terceiro ponto tem 
relação  com  a  questão  da  administração  dos  recursos  da  comunidade  internacional,  porque 
essa  comunidade,  teoricamente  ou  na  prática  –  porque  não  ainda  houve  o  desembolso  –,  já 
comprometeu  recursos  da  ordem  de  US$  1,2  bilhão  em  relação  ao  Haiti,  quantia  bastante 
elevada,  superior  às  estimativas  iniciais  em  relação  às  necessidades  imediatas  do  Haiti,  que 
eram da ordem de pouco mais de US$ 900 milhões. Então, é um compromisso muito grande. 
Além dos emperramentos burocráticos que existem sempre em todas as entidades que lidam 
com esse tema, há também questões políticas e preocupações com a boa gestão dos recursos. 
Assim, para que haja confiança na boa gestão dos recursos, é preciso que o Governo do Haiti ‐ 
até mesmo porque é provisório e, embora tenha legitimidade razoável, não é um Governo que 
veio  do  povo  –  aceite  algum  nível  de  co‐gestão  desses  recursos  por  parte  da  comunidade 
internacional. 
Evidentemente, isso não é fácil, porque se tem que trabalhar dos dois lados. Há dificuldades, 
às vezes, até de se conseguir que representantes do Pnud vão para lá. Por outro lado, em cada 
país há sempre o desejo forte de defender a sua soberania, o que é natural, mas há situações 
em  que  é  preciso  entender  que  uma  certa  dose  de  co‐gestão  dos  recursos  é  indispensável, 
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para  que  haja  confiança  dos  doadores  e  para  que  os  recursos  possam  chegar  ao  país  em 
questão. 
Essas foram as duas colocações que fiz para o Latortue, depois de sublinhar as que ele próprio 
havia feito e que eram positivas. E, como já mencionei, eram do diálogo inclusivo. Aliás, ele foi 
muito  franco  e  novamente  mencionou  problemas  de  corrupção  no  Haiti  como  sendo  muito 
graves.  Disse  que  era  preciso  a  ajuda  da  comunidade  internacional  para  a  reconstituição 
institucional. Enfim, ele fez uma apresentação muito franca e sincera. Precisamos garantir que 
os  comportamentos  práticos,  não  só  do  Primeiro‐Ministro,  mas  de  outros  membros  do 
governo, continuem na linha anunciada por ele, com esses complementos que procurei fazer. 
Antes de passar ao terceiro pilar, rapidamente mencionaria a reunião de Barbados como algo 
extremamente importante, porque, em primeiro lugar, penso que é a primeira vez que o Brasil 
mantém  um  diálogo  dessa  profundidade  política  com  países  do  Caribe  –  alguns  são  muito 
pequenos,  mas  têm  elites  altamente  bem  formadas,  com  pessoas  de  grande  capacidade 
intelectual e técnica. Em geral, a maior parte deles são democracias razoavelmente estáveis – 
é  o  caso  de  Barbados,  de  Trinidad  e  Tobago  e  da  Guiana  –  que  têm  realizado  eleições 
regularmente.  Esses  países  têm  uma  influência  muito  grande  na  região,  até  porque,  pela 
composição étnica, têm uma presença natural no Haiti maior do que a de outros, que podem 
ser  vistos,  ainda  que  de  maneira  indireta,  como  reflexos  do  antigo  colonizador  ou  de  outras 
potências que lá estiveram. 
O  Caribe  é  muito  importante.  Por  isso,  não  só  falamos  com  o  Latortue,  mas  tivemos  a 
preocupação,  o  tempo  todo,  de  manter  um  contato  estreito  com  o  Caribe.  Ficamos  muito 
gratificados porque, poucos dias antes dessa reunião com a Ministra de Barbados e com vários 
outros ministros do Caribe, a reunião de chefes de Governo do Caricom emitiu uma nota em 
que eles, independentemente das críticas que possam ter feito no passado à maneira como foi 
deposto  o  Aristide,  diziam‐se  dispostos  a  trabalhar  com  a  comunidade  internacional  e  a 
Minustah,  sob  a  liderança  do  Brasil  –  essa  palavra  aparece  claramente  na  declaração  dos 
chefes de Estado –, para cooperar com o futuro do Haiti não só politicamente, mas também 
em projetos específicos em que eles estão empenhados, como na parte eleitoral e outras. Não 
preciso entrar em muitos detalhes agora. 
Essa  reunião  foi  extremamente  importante,  porque  pudemos  confirmar  essa  disposição 
positiva,  um  desejo  efetivo  de  ter  essa  colaboração,  naturalmente  sempre  sujeita  a  uma 
conversa  com  o  General  Heleno  –  ainda  não  tive  ocasião  de  falar  diretamente  com  ele  –, 
oferecendo,  se  for  necessário,  segurança  para  o  representante  do  Caricom,  cuja  presença  é 
fundamental, pois não se conseguirá fazer um diálogo político envolvendo todas as partes se o 
Caricom não estiver presente. O Caricom é a garantia, do ponto de vista internacional, de que 
o Lavalas será ouvido e participará das discussões. 
Outra  coisa  interessante  que  percebi  lá  –  mais  uma  vez  digo  que  foi  uma  percepção  minha, 
pois  não  compete  a  mim  pôr  palavras  na  boca  de  ninguém  –  é  que  atualmente  há  uma 
percepção que, de fato, é fundamental que o Lavalas participe, que os partidários do Aristide 
participem,  mas  isso  não  implica  necessariamente  a  volta  do  Aristide  nem  neste  momento, 
nem  em  algum  momento  futuro.  Isso  é  algo  que  tem  de  ficar  entre  colchetes  –  é  como 
dizemos  na  diplomacia  quando  estamos  negociando  textos.  Refiro‐me  a  isso  porque  houve 
antes alguma interpretação de que o Brasil poderia enviar um emissário – penso que há essa 
possibilidade sempre –, mas, se o fizermos, será para tratar de aspectos humanitários ou até 
mesmo  para  fazer  um  apelo  ao  Aristide  que  contenha  seus  seguidores,  pelo  menos  os  mais 
radicais, já que outros estarão participando do processo político. 
Queria  rapidamente  passar  para  a  vertente  humanitária,  econômica  e  social,  pois,  na 
realidade,  as  três  se  compõem.  Cito  um  exemplo  de  como  as  duas  primeiras  se  compõem. 
Desarmamento. Ontem mesmo o Colin Powell passou por lá, aliás, creio que teve o dissabor de 
ouvir  algum  tiroteio.  Mas  não  terá  sido  um  atentado  a  ele,  pelo  que  deduzi.  De  qualquer 
maneira,  houve  um  tiroteio  próximo  ao  Palácio  que  foi  objeto  de  resposta.  Graças  a  Deus, 
aparentemente,  ninguém  foi  ferido,  mas  demonstra‐se  que  é  uma  situação  que  tem  certa 
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instabilidade.  Ele  mencionou  o  desarmamento  –  vi  pela  televisão  –  como  um  aspecto 
importante. 
Todos  concordamos,  creio,  que  o  desarmamento  tem  um  aspecto  fundamental  no  Haiti.  Há 
uma  dificuldade,  aparentemente  legal,  ou  até  mesmo  constitucional:  os  haitianos  teriam 
direito  de  ter  arma,  desde  que  nas  suas  casas.  É  um  complicador.  Mas,  independentemente 
dessa  complicação,  não  há  possibilidade  de  se  fazer  desarmamento  sem,  digamos,  algum 
diálogo político porque para isso seria preciso uma força de 100 mil homens que estivessem 
dispostos  a  prender,  matar  em  grande  quantidade.  Não  é  o  nosso  caso,  não  queremos  isso, 
nem a força que existe lá permite que isso ocorra. Nem sequer a força que estava lá antes da 
nossa,  força  de  intervenção  –  como  foi  chamada  a  força  composta  pelos  Estados  Unidos  e 
outros países –, fez isso tampouco porque sabem que é complexo. Então não se pode esperar 
que 6 mil homens numa força de estabilização vão proceder a um desarmamento, a não ser 
num  contexto  político  em  que  várias  correntes  políticas  criem  um  mínimo  de  confiança  e 
percebam  que  é  no  interesse  recíproco  e  de  todos  se  desarmarem.  Não  é  fácil,  não  é  uma 
coisa  que  provavelmente  vá  ocorrer  a  curtíssimo  prazo,  mas  é  algo  que  tem  que  estar  no 
horizonte, conjugado com esse aspecto político. 
Com relação ao aspecto econômico e humanitário, o Estado brasileiro enviou uma missão de 
cooperação  técnica  com  mais  de  20  pessoas  dos  mais  variados  órgãos.  Vários  órgãos  têm 
voltado  ao  Haiti  depois  disso,  incluindo  Embrapa,  saúde,  defesa  civil,  desenvolvimento  rural 
etc. Desenvolvimento rural, estou dizendo, não só o lado tecnológico, como a Embrapa, mas 
também o lado de posse da terra, de exploração da terra. Muito amplo. Daí nasceram vários 
projetos,  mas  é  claro  que  sabemos  que  os  recursos  brasileiros  são  relativamente  limitados. 
Serão assinados dois projetos muito brevemente – não sei se o embaixador já estará de volta 
ao  posto,  creio  que  sim,  também  o  Embaixador  Rui  Nogueira,  que  tem  coordenado  toda  a 
parte de cooperação, poderá estar lá – um na área de castanha de caju, se não me engano, e o 
outro  na  área  de  mandioca.  Foram  pedidos  deles  mesmos,  ambos  com  a  Embrapa,  entendo 
eu.  
Então  já  há  duas  ocorrências  concretas  e  há  outras  que  estão  sendo  trabalhadas  na  área  de 
saúde, de combate à Aids. Há também um projeto saído da nossa área cultural; tivemos que 
operar  com  certa  largueza,  mas  esperemos  que  seja  compreendido  pelos  órgãos  que 
controlam  a  contabilidade,  como  divulgação  cultural  –  era  onde  tínhamos  recursos.  Estamos 
fazendo material escolar, cadernos e lápis para serem entregues à população pobre do Haiti, 
com o mapa do Brasil e o do Haiti, com as duas Bandeiras, de modo que é efetivamente uma 
divulgação  cultural,  mas,  ao  mesmo  tempo,  é  algo  extremamente  útil  não  só  para  as 
populações e as crianças do Haiti, mas também para que a nossa tropa que está lá apareça não 
só  com  ações  que  possam  ser  vistas  como  de  natureza  repressiva,  mas  também  como  ação 
positiva, o que, aliás, a tropa tem feito já em vários outros setores também.  
Além desses projetos que não são baratinhos, são altos para os nossos recursos, US$300 mil, 
US$400  mil  em  alguns  casos,  US$200  mil  em  outros,  para  os  recursos  de  que  o  Itamaraty 
dispõe,  que  são  ridiculamente  pequenos,  como  V.  Exªs  conhecem;  são  altos,  mas,  para 
projetos  de  maior  envergadura,  não  nos  permitem  que  façamos  sozinhos.  Então  fizemos  um 
grande trabalho, intenso, junto ao Banco Mundial, ao Banco Interamericano, à União Européia 
e  a  outros  países  doadores  para  que  recursos  possam  ser  enviados  ao  Haiti.  E  temos  sido 
relativamente bem‐sucedidos. Com o Banco Mundial, há dois projetos. Um, aliás, depende dos 
Senadores para se concretizar, e eu ficaria extremamente grato se conseguíssemos.  
Espero que de hoje para amanhã, ou se possível hoje, nós consigamos mandar para o Senado 
um pedido de autorização para um empréstimo‐ponte ao Haiti. Eu vou explicar rapidamente o 
que  isso  significa.  Depois,  naturalmente,  vamos  pedir  autorização  e  todas  as  cifras  serão 
detalhadas.  
O  Banco  Mundial  tem  uma  quantia  de  R$150  milhões  aproximadamente  para  emprestar  ao 
Haiti, dos quais R$60 milhões poderiam ser emprestados imediatamente. Mas como o Haiti é 
devedor  do  Banco  Mundial  e  está  inadimplente,  não  pode  obter  o  empréstimo,  porque  as 
269 
 

regras do Banco Mundial não o permitem. Então, com o dinheiro de que o Haiti dispõe hoje – 
talvez  proveniente  de  outros  doadores  –,  e  com  o  empréstimo‐ponte,  se  pagaria  a  quantia 
mínima que permitiria desencadear os empréstimos. E o Brasil não teria nenhum risco porque 
a primeira parcela do desembolso seria justamente para pagar o nosso adiantamento, digamos 
assim, do empréstimo‐ponte.  
Então, mediante essa ação financeira conjugada, com a qual o Ministério da Fazenda está de 
acordo  –  aliás,  lá  foi  desenvolvido  todo  o  detalhe  técnico  –  nós  conseguiríamos  liberar 
imediatamente  uma  quantia  importante  para  o  Haiti,  na  ordem  de  R$25  a  R$30  milhões, 
líquidos, depois de o Brasil ter sido ressarcido do seu empréstimo‐ponte.  
Isso é algo de grande importância. Não é uma medida provisória; é um pedido de autorização 
ao  Senado.  Contamos,  e  muito,  com  a  compreensão  dos  Senadores  para  que  isso  possa 
ocorrer logo. Se isso não ocorrer até 6 de janeiro, quando haverá uma reunião da Diretoria do 
Banco  Mundial,  só  acontecerá  em  março.  Dois  meses  para  um  país  pobre,  como  o  Haiti...  A 
Deputada Maninha esteve lá e sabe como as coisas acontecem.  
Esse é um aspecto.  
Há vários projetos do Banco Mundial que são a fundo perdido, mas eles exigem contrapartida 
de países. E nós estamos discutindo dois deles com o Banco Mundial: um, na área de merenda 
escolar; o outro, recolhimento de lixo, se não estou enganado. O de merenda escolar é o mais 
imediato  e  o  Brasil  entraria  com  recursos  próprios  da  Agência  Brasileira  de  Cooperação  do 
Itamaraty, também, da ordem de US$300 mil mais ou menos e o Banco Mundial entraria com 
mais US$700 mil. Então, você completaria um projeto de US$1 bilhão.  
Algo  parecido  nós  queremos  fazer  com  o  recolhimento  de  lixo.  Estamos  conversando  com 
outros países. Na ONU há um fundo, que é administrado pelo Brasil, África do Sul e Índia, que 
também poderia ser usado para um desses projetos. Aí também a importância do diálogo com 
o  Caribe  ressalta.  Ontem  conversei  com  a  Ministra  da  África  do  Sul,  que  estava  em  viagem, 
sobre a possibilidade  de usarmos esses fundos. A pergunta  que  ela me fez, foi a seguinte: O 
que  o  pessoal  do  Caribe  está  pensando?  É  interessante  notar  que  esse  aspecto  do  Caribe  é 
fundamental em nosso processo. Então, esses são alguns exemplos.  
Com  relação  ao  Banco  Interamericano,  eles  dizem  que  estão  prontos  para  liberar  recursos. 
Depende apenas da criação de uma estrutura, no Haiti, da própria Minustah, para que esses 
recursos possam ser geridos de maneira adequada. Estamos conversando com o PNUD sobre 
isso. Não é fácil. Não é nada fácil.  
Também  devo  dizer,  com  toda  a  franqueza,  que  percebemos  que  no  caso  dos  países  mais 
desenvolvidos  e  mais  ricos,  embora  ponham  dinheiro,  embora  estejam  dispostos  a  colocar 
dinheiro,  esse  nível  de  envolvimento  com  a  reconstrução  das  instituições  foge  um  pouco  ao 
padrão  a  que  eles  estão  normalmente  acostumados.  Aquilo  para  eles  é  um  problema  de 
imigração, é um problema de “boat people”, ou problema de narcotráfico. Então, na medida 
em que o problema de “boat people” ou o de narcotráfico estejam assegurados com algumas 
tropas lá e a guarda costeira tomando conta, essas questões que demandam o envolvimento 
financeiro de mais longo prazo não serão resolvidas com facilidade.  
Temos conseguido alguma coisa, repito. Acho que são muito eloqüentes os exemplos que eu 
mencionei  aqui,  do  Banco  Mundial,  do  Banco  Interamericano,  mas  tudo  requer  um  trabalho 
constante da nossa missão em Nova York e também do Presidente Lula, que, em encontro com 
outros governantes, tem falado muito desse assunto.  
O  Canadá,  por  exemplo  –  talvez,  com  isso  eu  encerro,  porque  são  tantos  outros  temas  –, 
Senador  Pedro  Simon,  meu  querido  amigo  aqui  presente,  não  posso  deixar  de  reconhecê‐lo 
logo  após  tantas  décadas...  A  embaixadora  do  Canadá  veio  me  visitar.  Falamos  sobre  a 
importância  de  melhorarmos  a  visão  pública  das  relações  Brasil‐Canadá,  e  eu  disse  que  vejo 
que  algumas  coisas,  que  há  coisas  na  área  cultural  que  podem  ser  feitas.  Naturalmente,  o 
Canadá é um país tão simpático, que tem o Cirque Du Soleil e outras coisas que podem vir para 
o Brasil. 
270 
 

Agora,  o  que,  de  imediato,  terá  um  impacto  na  visão  dos  políticos,  da  elite,  do  Governo 
brasileiro?  Fazermos  juntos  um  projeto  no  Haiti  e  fazermos  juntos  um  projeto  para  o  qual  o 
Brasil não tem recursos. Se conseguirmos montar um posto de saúde para valer ou um hospital 
no  Haiti  e  disser  lá  que  é  do  Brasil  e  do  Canadá,  isso  terá  um  impacto  melhor  nas  relações 
entre Brasil e Canadá do que duzentos discursos de amizade. Penso que é uma prova de que 
estaríamos agindo juntos, de uma maneira solidária, num terceiro país, que necessita de ajuda.  
Eu diria que isso é a essência do que eu teria a dizer sobre o Haiti. Há muitos outros aspectos. 
Conversei  ontem  longamente  com  alguns  parlamentares,  com  a  Deputada  Maninha,  que 
esteve lá, e creio que aprendi mais ainda. Essa visão vai se enriquecendo na medida em que se 
conversa.  Aliás,  devo  dizer,  com  toda  a  honestidade  e  franqueza,  que  o  Haiti  é  um  pouco 
daquilo que o Sócrates dizia: quanto mais sei, mais sei que não sei. O Haiti é tão complexo que, 
cada  vez  que  nos  aproximamos  mais  do  quadro  haitiano,  vemos  mais  complexidades 
adicionais.  Mas  isso  não  deve  ser  um  desestímulo,  mas  sim,  ao  contrário,  um  estímulo  para 
atuarmos positivamente. 
Queria terminar esta conversa, terminar este tópico dos Ministros do Caribe. Um Ministro das 
Bahamas disse que não podemos ter ilusões, que não vamos resolver o problema do Haiti, até 
porque  não  se  pode  resolver  o  problema  de  nenhum  país  do  dia  para  a  noite.  Disse  ele  que 
vamos ajudar a administrar o problema do Haiti para que ele encontre uma rota positiva. Essa 
é a nossa tarefa. Ninguém pode achar, quando se fala em “nation building”, que é só trabalhar 
lá  dois  anos,  deixar  o  país  pronto  e  ir  embora.  Não  é  assim.  E  ele,  por  isso  mesmo,  nos 
perguntou: qual é o compromisso do Brasil? É só até o mandato? É até as eleições? Ou é um 
compromisso em longo prazo? 
Eu  disse  a  ele  a  única  coisa  que  poderia  dizer:  que  isso  dependeria  da  própria  evolução  da 
situação do Haiti e de vermos que os nossos esforços estão sendo correspondidos, estão tendo 
resultado. Mas acho, pelo sentimento do povo brasileiro, pelo que já pude conversar com os 
congressistas – e o Senador Eduardo Suplicy esteve lá antes, com outros parlamentares, com 
parlamentares  brasileiros,  com  outras  pessoas  da  sociedade  civil  brasileira  –  vejo  um  desejo 
real  de  ajudar  um  país  irmão,  que  não  é  pobre,  mas  miserável.  Quer  dizer,  nossos  níveis  de 
pobreza, nas piores favelas do Brasil, não se comparam ao que há no Haiti.  
Então, isso é, mais ou menos, o que há no Haiti. 
Devo passar direto para os outros pontos? Vamos passar rapidamente, porque pode ser meio 
anticlimático,  digamos,  dado  o  interesse  que  tem  o  tema  do  Haiti,  falar,  neste  momento,  de 
União  Européia,  de  Mercosul  ou  falar  mesmo  da  China.  Bom,  China  nunca  é  anticlimática. 
Quanto à União Européia e ao Mercosul, na realidade, penitencio‐me, pois havia dificuldade de 
datas.  Na  realidade,  quando  fui,  inicialmente,  chamado  pelo  Presidente  da  Comissão,  pouco 
depois do Encontro de Lisboa, o assunto era mais atual. Ele vai voltar a ser atual, até porque as 
conversações  continuam  e  amanhã  mesmo  estarão  se  encontrando,  no  Rio  de  Janeiro,  os 
Coordenadores  Nacionais  dos  países  do  Mercosul  e  da  União  Européia  para,  digamos  assim, 
traçar um mapa da continuação das negociações. 
Sobre  isso,  sem  querer  entrar  em  temas  técnicos  e  para,  digamos,  resumir  o  que  penso  – 
evidentemente,  estarei  aberto  a  perguntas  sobre  meu  pensamento  –,  há,  muitas  vezes,  a 
leitura  de  que  o  Brasil  ou  não  tem  interesse  ou  fracassou  em  certas  negociações.  Cita‐se 
também a Alca também neste caso. Eu desmentiria cabalmente qualquer das duas versões. O 
Brasil tem interesse e continua empenhado em negociar, mas negociar em termos que sejam 
vantajosos para o Brasil e no caso para o Mercosul como um todo. 
O que ocorreu no caso da União Européia e do Mercosul é que, na realidade, até outubro do 
ano passado, não tinha havido negociação real, mas tinha havido, digamos, jogo de cena. Diz‐
se: vamos fazer isso, vamos incluir a agricultura, vamos ter um acordo‐quadro, vamos ter um 
acordo político ao lado do acordo comercial... Mas era, basicamente, jogo de cena. Ninguém 
tinha chegado e dito que estava trocando um relógio por óculos. Eu estou trocando carne por 
serviços “a”, “b” ou “c”. Não havia nada disso. 
271 
 

Foi a partir de outubro que nós fixamos um cronograma, em Bruxelas, com o Comissário Lamy, 
o qual começou a se realizar em final de janeiro, início de fevereiro. Na realidade, o que houve 
com a União Européia foram seis meses de negociação. V. Exªs não podem imaginar o que é a 
complexidade  de  uma  economia  como  a  européia,  não  podem  imaginar  as  grandes 
dificuldades  que  eles  têm  na  área  agrícola  e  que  são  conhecidíssimas,  como  os  subsídios.  O 
fato  é  que  nós  estávamos  percorrendo  em  muitos  casos,  como  tenho  dito,  terra  incógnita, 
porque  estávamos  pela  primeira  vez,  efetivamente,  negociando  áreas  como  serviços 
financeiros, serviços de telecomunicações, serviços de transportes marítimos. Por isso, chegar 
aonde chegamos em seis meses foi um avanço extraordinário, para falar a verdade.  
No caso da União Européia – deixemos a Alca para outra audiência –, temos hoje um quadro 
conceitual  relativamente  claro.  Por  isso  a  reunião  de  Lisboa  foi  importante  para  firmar  esse 
quadro  conceitual,  onde  estamos  operando,  o  que  estamos  negociando,  que  é  basicamente 
uma negociação de acesso a mercados. Não vamos negociar com a União Européia regras que 
cabem  melhor  na  OMC.  Da  mesma  maneira,  eles  não  vão  negociar  conosco  eliminação  de 
subsídios  no  acordo  bilateral  com  o  Mercosul.  Isso  é  óbvio.  O  que  podemos  fazer  é  excluir 
esses  produtos  das  nossas  degravações,  porque  produto  subsidiado  não  tem  por  que  obter 
vantagens em nossos mercados. Pelo contrário, aplicaremos a eles, para usar uma expressão 
antiga,  o  rigor  da  lei.  O  rigor  da  lei  nos  permite  aplicar  direitos  compensatórios,  enfim,  tudo 
que a OMC nos reserva. Não vamos ter a ilusão de que eles vão eliminar subsídios internos ou 
subsídios  à  exportação  numa  negociação  conosco,  porque  isso  é  uma  coisa  que  envolve 
interesses com os Estados Unidos, com o Japão, com a Austrália. Da mesma maneira, eles não 
podem  ter  a  ilusão  de  que  vamos  negociar  com  eles  propriedade  intelectual,  um  regime  de 
compras  governamentais  que  impeça  o  uso  das  compras  governamentais  para  o 
desenvolvimento da indústria brasileira, um regime de serviços que seja diferente daquele do 
GATT. Nós podemos negociar acesso em setores e serviços, mas não ter uma modalidade de 
negociação que seja totalmente diferente daquela que existe na OMC. 
Assim, acho que isso ficou claro. As dúvidas também ficaram bastante claras. Em muitos casos 
em que me parecia que havia um conflito de natureza negocial, o conflito era muitas vezes de 
entendimento. Isso poderá ser trabalhado nesses dias agora para preparar o caminho para o 
futuro.  
Falei hoje mesmo com o Comissário Mandelson – uma boa coincidência, porque estava para 
falar com ele nesses dias, mas falei hoje – e ambos temos como prioridade um a OMC. Quanto 
a isso não há dúvida. Eu posso falar em nome de todos, e posso falar por que eles agiram, na 
prática,  assim.  Tanto  os  Estados  Unidos,  quanto  a  União  Européia,  quanto  o  Brasil,  ou  seja, 
qualquer país que tenha uma inserção global no mundo tem que ter como prioridade a OMC. 
Não estou falando de América do Sul e Mercosul, porque aí se trata de uma questão política. 
Mas quando se fala predominantemente de comércio, a OMC tem que ser prioridade. Não se 
pode resolver questões transcendentais, como subsídios ou antidumping, ou questões como o 
nosso  direito  de  poder  usar  incentivos  a  investimentos  que  possam  fazer  exportações,  em 
conversas bilaterais. Isso tem uma implicação sistêmica.  
Por isso é natural que tanto o Zoellick, quanto antes o Lamy e agora o Mandelson, eu próprio, 
o Ministro da Índia e o Ministro da Austrália concentremos a nossa atenção na OMC, porque 
ela é a principal. Isso não quer dizer que a gente vá deixar de lado o acordo bilateral Mercosul‐
União Européia, nem o acordo da Alca. 
A  minha  impressão  –  comentei  isso  ontem  com  alguém  –  é  que  os  três  vão  caminhar  em 
paralelo, mas sempre tendo como âncora a OMC. Se não soubermos o que vai acontecer  na 
OMC,  corremos  o  risco  de  assumirmos  compromissos  no  acordo  da  Alca  ou  no  acordo  da 
União Européia pelos quais não teremos contrapartidas adequadas. 
Dito  isso,  vamos  continuar.  Há  uma  reunião  ministerial  prevista  para  março.  É  possível  que 
antes disso eu me encontre com o Comissário em algum outro contexto, em alguma discussão 
que pode envolver a OMC. 
Essa é a situação, Sr. Presidente. Não vou me alongar em detalhes.  
272 
 

Com  relação  à  China,  como  V.  Exª  me  pediu  para  incluir  esse  tema  na  agenda.  Eu  diria,  em 
duas palavras, o seguinte: a China, evidentemente, começa a ser um parceiro estratégico não 
só no nome, mas na realidade. A China hoje rivaliza com a Argentina como o segundo maior 
mercado para as exportações brasileiras. Contrariamente ao que vi ontem na televisão, tenho 
a impressão de que este ano a Argentina será o nosso maior parceiro comercial. Aliás, fica aqui 
uma mensagem para os detratores do Mercosul. Uma manchete na edição de hoje da Gazeta 
Mercantil  notícia  que  a  Argentina  nunca  comprou  tanto  do  Brasil.  Então,  com  todos  os 
problemas  que  podem  eventualmente  existir,  há  essa  boa  notícia,  digamos,  de  que  a 
Argentina, nosso principal parceiro no Mercosul, nunca comprou tanto do Brasil. Mas, enfim, a 
China  tem  rivalizado  com  a  Argentina  e  é  possível  até  que  passe,  pois,  como  é  um  país  de 
potencialidades  enormes,  o  nosso  comércio,  nos  dois  sentidos,  deve  chegar  a  cerca  de  10 
bilhões.  As  nossas  cifras  dão  sempre  um  pouco  menos  do  que  as  chinesas.  Creio  que  eles 
incluam também Hong Kong ou outras re‐exportações, mas estará por volta de 10 bilhões, nos 
dois  sentidos.  O  Brasil  deve  exportar  uns  6  bilhões,  creio  eu,  para  a  China,  o  que  é  uma 
quantidade fenomenal se imaginarmos o que era o comércio há dez anos. Tenho possibilidade 
de  comparação  porque  fui  ministro  há  dez  anos  e  o  nosso  comércio,  na  época  em  que  a 
parceria estratégica foi declarada, era de 1 bilhão, nos dois sentidos, e hoje é de 10 bilhões. 
Quer dizer, não é difícil presumir que nos próximos cinco ou seis anos chegue a 20 bilhões, o 
que  abre  oportunidades  para  setores  altamente  competitivos  do  Brasil,  como  é  o  caso  da 
carne, das aves e de outros produtos agrícolas. Mas não só isso. Claro que se observarmos o 
conjunto do comércio as “commodities” tomam a maior parte, mas temos também os aviões, 
em “joint venture” com a China. 
Há  entendimentos  muito  produtivos  em  setores  como  software.  Há  investimentos  que  se 
realizam nos lugares mais variados no Nordeste. No caso do aço, por exemplo, creio que é no 
Maranhão  que  eles  estão  estudando.  Tenho  medo  de  confundir  porque  houve  muitos 
visitantes no Brasil. A Coréia também está no Maranhão. Mas creio que há outro interessado 
no Ceará, não sei se é a China ou a Coréia. De qualquer maneira, a siderurgia tem um acordo 
entre  a  Bao Steel  e  a  CVRD.  Há  acordos  também  na  área  de  alumina  e  há  uma  produção  de 
vagões no Espírito Santo. São contratos; não estou falando de convênio, nem de memorando 
de  entendimento.  Há  financiamento  chinês  do  Gasene,  que  é  o  gasoduto  do  Nordeste,  em 
condições  muito  vantajosas  para  nós.  Enfim,  vejo,  digamos,  realmente  uma  relação 
estratégica. 
Quero  fazer  duas  ou  três  observações  –  a  meu  ver  importantes  –  sobre  quando  o  Brasil 
reconheceu o status de economia de mercado da China, que é o elemento polêmico. Primeiro, 
esse  é  um  reconhecimento  de  natureza  política,  faz  parte  de  um  memorando  de 
entendimento,  que  é  um  documento  político,  não  jurídico.  Isso  não  significa  que  não  o 
queiramos  cumprir.  É  evidente  que  queremos  cumpri‐lo,  mas  na  medida  em  que  os  outros 
elementos  do  memorando  também  estejam  sendo  cumpridos,  e  esses  outros  elementos 
envolvem acordos na área sanitária que permitam que a nossa carne e as nossas aves tenham 
acesso mais fácil ao mercado chinês, que permitam que setores de grande interesse, como é o 
caso da aviação, mas também de automação, onde o Brasil tem desenvolvido muito, também 
possam ser objeto de cooperação intensa. Um outro aspecto muito importante, observado por 
várias  das  empresas  brasileiras  que  operam  na  China  e  que  têm  tido  ações  conjuntas,  é 
lembrar que todos esses empreendimentos, Inclusive os investimentos no Brasil, devem ser na 
base  de  “joint  ventures”.  Assim  é  na  China,  e  é  importante  que  assim  seja  no  Brasil:  que  o 
investimento  chinês  não  seja  de  controle  total  da  produção,  mas  que  tenha  participação  de 
empresas brasileiras. Isso também faz parte do memorando. Além disso, por que esses pontos 
são  importantes?  Porque  o  preâmbulo  do  memorando  de  entendimento  que  contém  a 
questão  da  economia  de  mercado  diz  que  ele  tem  que  ser  aplicado  de  forma  equilibrada. 
Portanto, todas aquelas cláusulas e não apenas uma. 
Com relação especificamente à economia de mercado, além do fato de ser um compromisso 
de natureza política, que presume uma aplicação equilibrada, eu chamaria a atenção para os 
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seguintes fatores: o principal impacto que isso poderia ter, o principal efeito é sobre uma única 
posição  do  protocolo  de  exceção  da  China,  que  é  a  questão  do  antidumping,  porque,  pelo 
atual protocolo de exceção, o que se faz numa medida antidumping? 
Não  é  preciso  procurar  os  custos  na  China;  pode‐se  buscar  um  custo  comparativo  de  outro 
país. Digamos que a Espanha produza o mesmo produto que a China. Então se apura o preço 
espanhol. Se o preço chinês de exportação para o Brasil for inferior ao preço espanhol, aplica‐
se uma dinâmica. 
Em  princípio,  não  se  deverá  mais  fazer  isso,  mas,  ainda  assim,  o  próprio  art.  2.2  do  acordo 
antidumping  prevê  que,  quando  os  mercados  tiverem  algumas  anomalias  especiais  ou 
particulares, você pode construir o preço. Não se deve necessariamente aceitar o preço que é 
dado pela China. 
Então, se houver algum tabelamento de produto e, com isso, uma redução artificial do preço, 
o Governo brasileiro poderá construir o preço a partir dos seus cálculos de custo. 
É  claro  que  terá  que  ser  feito  de  boa‐fé,  mas  isso  é  possível.  Na  realidade,  é  isso  que  tem 
permitido que até hoje o acordo antidumping seja usado com grande liberalidade, o que tem 
ocorrido a nosso favor e contra nós. 
Dentre todos os acordos da OMC, o acordo antidumping é, provavelmente, aquele mais frouxo 
na sua aplicação. 
Então,  quando  se  diz  que  o  Brasil  perdeu  a  possibilidade  de  ter  defesa  comercial  contra  a 
China,  isso  não  é  verdade,  por  vários  motivos.  Primeiro,  porque,  com  relação  aos  direitos 
compensatórios, onde se identificar subsídio, aplicaremos o direito compensatório. Da mesma 
maneira, o protocolo de ascensão não se refere a direitos compensatórios e subsídios. 
Segundo,  no  que  diz  respeito,  por  exemplo,  a  salvaguardas...  Digamos  que  haja  um  surto  de 
exportação chinesa de determinado produto, independentemente de haver dumping ou não. 
Não  só  podemos  usar  o  acordo  de  salvaguardas  do  antigo  GATT,  da  OMC,  art.  19,  mas 
podemos usar as cláusulas de salvaguarda do acordo de ascensão, que se prolongam por mais 
oito anos, creio eu. Então isso não é afetado pelo nosso acordo. 
No que diz respeito especificamente a têxteis, há também um prazo adicional de quatro anos 
para todos, em que se podem usar cláusulas especiais. Então nada disso foi afetado. 
A única coisa que muda é o antidumping, e ainda assim com duas importantes qualificações: 
uma, como eu já disse, que continuamos a nos valer da possibilidade de construir o preço. E 
todos que têm familiaridade com a aplicação do acordo antidumping sabem que é muito difícil 
derrotar um caso desses. 
O caso que derrotamos recentemente, da Emenda Byrd, americana, foi porque eles praticaram 
uma coisa totalmente absurda, que viola não só o acordo antidumping, mas qualquer preceito 
da  OMC,  que  foi  pegar  o  recurso  do  antidumping  e  dar  para  a  empresa  que  está  sendo 
protegida.  Em  inglês,  há  uma  palavra para  isso,  que  significa  prejuízo  duplo.  Quer  dizer,  eles 
aplicam um imposto e dão para a empresa protegida, para ajudá‐la. Por isso nós ganhamos. 
No  mérito  da  aplicação  do  dumping,  é  muito  difícil  ganhar  para  quem  for  da  indústria 
siderúrgica. Todas as indústrias brasileiras sabem disso. Então continuaremos a aplicar isso. 
Segundo,  uma  coisa  importante  que  quero  explicar  com  clareza:  o  Brasil  não  fez  nenhuma 
renúncia  jurídica  a  nenhum  de  seus  direitos  e  obrigações.  Certamente  não  do  acordo 
antidumping, mas nem sequer dos acordos de exceção. Nós temos um compromisso político e 
pretendemos honrá‐lo. Não quero dizer nem desdizer o que foi dito, que é o reconhecimento 
do status da China como economia de mercado, mas pretendemos honrá‐lo dentro do quadro 
do nosso memorando. Ele faz parte do memorando, que é um conjunto, e deve ser aplicado de 
maneira  equilibrada.  Esta  palavra  “equilibrada”  foi  muito  discutida,  até  as  duas  e  meia  da 
manhã, porque aplicação equilibrada é fundamental. 
Se,  digamos,  não  for  aplicado  aquilo  que  nos  interessa  em  relação  à  Embraer  ou  à  área 
fitossanitária, reconhecendo o direito natural de cada um de proteger a sua saúde, se houver 
alguma  aplicação  abusiva,  enfim,  se  todos  os  demais  pontos  –  os  senhores  têm  acesso  ao 
memorando;  ele  está  na  Internet,  na  página  do  Itamaraty,  mas  podemos  mandar  cópia  para 
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quem  quiser  –  não  estiverem  sendo  cumpridos,  o  nosso  quesito,  que  é  um  compromisso  de 
natureza  política,  porque  não  houve  nenhuma  renúncia  jurídica  aos  direitos  e  obrigações  da 
OMC,  ele  deixa  de  existir.  Espero  que  não  seja  necessário  isso,  porque  espero  que  os 
investimentos chineses venham para o Brasil e que se façam na base de “joint ventures” com 
empresas brasileiras. E espero que tudo isso traga prosperidade ao nosso País. 
Queria completar essa questão da China só para dizer também que é preciso ver isso de uma 
maneira  estratégica  mais  ampla.  A  China  será  certamente  o  terceiro  grande  bloco  mundial 
econômico.  Hoje  em  dia,  há  dois  blocos:  os  próprios  Estados  Unidos,  o  segundo  é  a  União 
Européia, ou melhor, economicamente é o inverso: o primeiro é a União Européia, o segundo, 
os Estados Unidos e o terceiro vai ser a China. 
Ontem,  vi  uma  discussão  na  televisão,  se  a  China  vai  passar  ou  não  vai  passar  os  Estados 
Unidos  em  vinte  ou  trinta  anos,  não  sei,  mas  certamente  vai  ser  um  dos  maiores  blocos  do 
mundo. 
Para o Brasil, que tem uma vocação de ser, digamos, um jogador no cenário internacional de 
múltiplas  jogadas,  não  ficar  preso  a  um  único  mercado,  é  importante  que  o  mercado  chinês 
seja  acessado  de  maneira  ampla,  porque  isso  nos  ajuda  inclusive  uma  inserção  múltipla  no 
mercado internacional. 
É óbvio que  a China vai ser um ator  cada vez  mais importante  na OMC.  E  talvez uma última 
palavra para se entender como essas coisas são. 
A China já tinha sido reconhecida  como economia de mercado por cerca  de vinte ou vinte e 
três países; alguns outros estavam à beira de fazê‐lo, como a Austrália. Então, fazer isso nesse 
momento traz para nós, esperamos, um benefício. E esperar mais dois ou três anos, quando 
algum  outro  país,  por  alguma  outra  negociação  qualquer...  Isso  aconteceu.  Como  é  que  se 
fechou a negociação de acensão da China à OMC? Eu estava lá, vi isso. 
Quando  os  Estados  Unidos  fecharam  o  acordo  de  salvaguardas  que  lhes  interessava,  porque 
eles nem estavam com a intenção de multirateralizar, isso teve que ser meio à força, para eles 
estava encerrada a negociação. E todo mundo conhece o peso dos Estados Unidos, da União 
Européia. Então, quando um desses países fizesse, a adesão ou não do Brasil a esse princípio 
seria irrelevante. Então, fizemos, a meu ver, no momento certo. 
Não vou ignorar que não haja cuidados especiais com certos setores, mas como essa foi uma 
decisão  de  governo,  não  foi  uma  decisão  do  Ministério  das  Relações  Exteriores  –  claro  que 
participei  e  defendo  essa  decisão  –,  com  participação  dos  ministérios  setoriais,  de  todos  os 
ministérios envolvidos e do próprio Presidente, naturalmente, se houver um problema grave 
num  setor  afetado,  encontraremos  um  meio  de  proteger  esse  setor,  de  uma  maneira  ou  de 
outra. 
Então esse é o terceiro tópico, Sr. Presidente, que V. Exª me deu, e com isso encerro a minha 
exposição. 
 
Discurso do Ministro Celso Amorim na Reunião Especial do Conselho de Segurança das 
Nações Unidas sobre o Haiti  
Embaixador Celso Luiz Nunes Amorim 
Ministro de Estado das Relações Exteriores 
Nova York, 12/01/2005 
 
(versão em português do original em espanhol) 
Senhor Presidente, 
Gostaria, antes de mais nada, de felicitá‐lo, meu amigo Rafael Bielsa, pela brilhante condução 
dos  trabalhos  e,  em  especial,  pela  iniciativa  de  convocar  esta  reunião  pública  sobre  o  Haiti. 
Permita‐me também assinalar a cooperação exemplar entre as nossas delegações no Conselho 
de  Segurança  com  a  experiência  inédita  da  participação  de  um  diplomata  argentino  na 
delegação  brasileira,  experiência  sem  precedentes  no  Conselho  e  testemunho  do  grau  de 
confiança  entre  os  nossos  povos  e  governos.  Agora  que  tenho  o  satisfação  de  saudar  o 
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regresso  da  Argentina  à  condição  de  membro  do  Conselho,  permita‐me  estender‐lhe  todo  o 
apoio do Brasil ao êxito desta reunião e do período da sua Presidência. 
Senhor Presidente, 
A  independência  do  Haiti,  a  primeira  na  América  Latina,  demonstrou  a  força  e  o  valor  dos 
milhões  de  africanos  que  haviam  sido  trasladados  às  Américas  como  escravos.  Desde  então, 
por várias razões que apenas começamos a tratar, a esperança que representava o Haiti não se 
realizou. Ao contrário, o país foi às vezes tratado com arrogância ou negligência.  
Nós  –  as  Nações  Unidas,  os  países  da  América  Latina  e  do  Caribe  e  os  próprios  haitianos  ‐ 
temos  o  dever  de  contribuir  para  a  realização  dessa  esperança.  O  futuro  do  Haiti  tornou‐se 
hoje  um  tema  de  interesse  do  conjunto  da  comunidade  internacional;  a  MINUSTAH  e  as 
iniciativas  de  cooperação  técnica  e  financeira  constituem  um  teste  da  mais  alta  importância 
para que as Nações Unidas demonstrem a sua capacidade de atender a situações cuja solução 
se situa além da simples estabilização político‐militar e envolve uma verdadeira reconstrução 
nacional.  
Muitas vezes repeti que o sucesso da  Missão de Estabilização das Nações Unidas no Haiti se 
baseia em três pilares interdependentes e igualmente importantes: a manutenção da ordem e 
da segurança; o incentivo ao diálogo político com vistas à reconciliação nacional; e a promoção 
do desenvolvimento econômico e social.  
Não  se  trata  de  três  “passos”  diferentes,  nem  podem  seguir‐se  uns  aos  outros  no  tempo.  O 
atendimento  simultâneo  aos  três  pilares  é  condição  indispensável  para  a  reconstrução  do 
Haiti. O que necessitamos é de um acordo entre todos, que una a comunidade internacional e 
as forças políticas haitianas em um compromisso de longo prazo.  
 
Os  ingredientes  mais  importantes  para  a  paz  no  Haiti  são  a  esperança,  a  confiança  e  a 
legitimidade.  A  prioridade  no  Haiti  é  o  desarmamento,  como  forma  de  restabelecer  as 
condições mínimas de segurança para a consolidação institucional. Mas buscamos ao mesmo 
tempo o desarmamento dos espíritos, por meio do diálogo político. A estabilidade no Haiti não 
poderá ser alcançada somente através da repressão. 
Os  desafios  que  enfrentamos  no  Haiti  são  extremamente  complexos.  A  responsabilidade 
crucial  do  Governo  é  criar  as  condições  básicas  para  o  êxito  dos  três  pilares.  Saudamos  a 
libertação  de  três  políticos  da  Família  Lavalas  como  um  passo  fundamental  no  sentido  de 
envolver todos os haitianos no esforço de reconstrução nacional. 
A  reconciliação  nacional  recebeu,  além  disso,  um  importante  impulso  com  o  lançamento  do 
Diálogo Político pelo Presidente Boniface Alexandre. Incentivamos todos os partidos políticos, 
as  organizações  da  sociedade  civil  e  os  grupos  de  interesse  no  Haiti  a  que  se  juntem  a  esse 
esforço  e  encorajamos  as  autoridades  a  que  assegurem  condições  que  permitam  a  todos 
participar do debate político e eleitoral sem temores quanto à sua segurança.  
Gestos  simples  da  comunidade  internacional  podem,  ademais,  constituir  incentivos 
importantes  à  normalização  da  vida  no  Haiti.  O  Jogo  da  Paz,  realizado  no  último  mês  de 
agosto,  entre  as  seleções  do  Brasil  e  do  Haiti,  por  exemplo,  ajudou  os  haitianos  a  retomar  a 
esperança, ao ver que era real a atenção e a boa vontade dos países da região.  
O  progresso  alcançado  nos  últimos  três  meses  demonstrou  o  quanto  eram  infundadas  as 
análises pessimistas sobre a capacidade da MINUSTAH em matéria de segurança. Os primeiros 
meses foram marcados por atrasos na chegada do contingente planejado, pela falta de diálogo 
político e pela deterioração da economia, agravada por desastres naturais. No entanto, foram 
alcançados progressos à medida que o número de soldados e policiais em campo aumentava e 
que os primeiros projetos de reconstrução começavam a ser implementados.  
Devemos  o  nosso  reconhecimento  à  MINUSTAH  pelas  provas  que  deu  da  sua  capacidade  de 
reduzir a violência no cumprimento do seu mandato, de acordo com a Resolução 1542.  
Está claro que a normalização no Haiti não se dará sem a decidida participação da comunidade 
internacional na promoção do seu desenvolvimento econômico e social. Esta é a área em que 
menos fizemos e em que o Haiti mais necessita do nosso apoio. 
276 
 

Por piores que sejam outras tragédias, as quais acompanhamos atentamente e que merecem 
uma resposta urgente e coordenada da comunidade internacional, não nos podemos permitir 
baixar o grau de prioridade que assumiu o Haiti na agenda internacional.  
Se  considerarmos  as  taxas  de  mortalidade  infantil,  por  exemplo,  não  é  exagero  dizer  que  o 
Haiti sofreu os efeitos de um verdadeiro tsunami econômico e social nos últimos dois séculos. 
O Haiti é uma prova contundente da necessidade de desenvolver mecanismos adequados para 
impedir  a  deterioração  das  situações  nacionais  e  para  assistir  os  países  recém‐saídos  de 
situações de conflito ou mesmo para evitá‐las.  
O papel do Conselho Econômico e Social e de seu Grupo Ad Hoc sobre o Haiti pode ser crucial 
para  garantir  a  necessária  coerência  à  ação  das  agências,  dos  fundos  e  dos  programas  das 
Nações Unidas, bem como dos principais países doadores.  
Devemos conjugar os projetos de impacto imediato, que devolvam a esperança aos pobres e 
desempregados,  com  a  assistência  às  instituções  haitianas  para  o  planejamento  de  uma 
estratégia de longo prazo.  
Temos  de  acelerar  o  pagamento  dos  fundos  prometidos  na  Conferência  Internacional  de 
Doadores, facilitando os trâmites necessários para a execução de projetos. No caso do Haiti, a 
ajuda que atrasa é uma ajuda que se perde.  
Sob as instruções do Presidente Lula, fizemos tudo o que se encontrava ao nosso alcance. No 
último  dia  20  de  dezembro,  assinei  no  Haiti  três  acordos  de  cooperação,  dois  dos  quais  se 
concentram  no apoio à agricultura familiar em matéria de processamento de mandioca  e de 
castanha de caju. Os recursos serão financiados pelo Governo brasileiro, no valor de 250 mil 
dólares. Concluí, também, com o Banco Mundial e com o Governo do Haiti um acordo de mais 
de  um  milhão  de  dólares  para  oferecer  merenda  escolar  a  35  mil  crianças.  Entendemos  que 
esta  foi  a  primeira  vez  em  que  o  Banco  Mundial  assinou  um  acordo  com  um  país  em 
desenvolvimento para apoiar um outro país do Sul. Na recente Cúpula do Mercosul, em Ouro 
Preto, firmei  com o Presidente  Enrique Iglesias, do BID, Memorando de  Entendimento sob o 
qual se desenvolverão projetos de cooperação técnica, inclusive para viabilizar a utilização dos 
fundos já disponíveis no Banco. 
O  uso  indiscriminado  dos  recursos  naturais  no  Haiti  gerou  graves  conseqüências  ecológicas. 
Uma  campanha  nacional  de  reflorestamento  deve  fazer  parte  de  qualquer  estratégia  para  o 
desenvolvimento sustentável do Haiti. 
O destino do Haiti é inseparável do destino dos seus vizinhos. O isolamento regional do Haiti 
não  interessa  a  ninguém.  Da  nossa  parte,  desde  o  princípio  da  nossa  participação  na 
MINUSTAH,  definimos  o  diálogo  com  a  CARICOM  como  uma  prioridade  e  enviamos  várias 
missões especiais aos seus países membros para procurar conhecer melhor as suas posições. 
No  último  mês  de  novembro,  tive  a  oportunidade  e  a  honra  de  reunir‐me  com  quatro 
Chanceleres  e  outros  altos  representantes  de  países  caribenhos  durante  minha  visita  a 
Barbados, sob a coordenação da Ministra Billie Miller. Hoje mesmo viajarei a Trinidad e Tobago 
para dar seguimento às conversações com as autoridades locais.  
Gostaria  de  dizer  que  a  terrível  crise  pela  qual  passou  o  Haiti  em  2004  nos  aproximou  e 
ensinou  muitas  lições  sobre  o  nosso  próprio  passado  e  presente.  Levou  os  países  latino‐
americanos a cooperarem de maneira mais estreita em prol da segurança regional.  
Cabe aos haitianos a responsabilidade de reinventar o seu futuro. A comunidade internacional 
não pode substituí‐los nessa tarefa, mas seria irresponsável da nossa parte não lhes oferecer 
toda a assistência possível. 
Os  povos  da  América  têm,  todos,  uma  grande  dívida  histórica  com  o  Haiti.  O  mundo  tem  o 
dever de ajudar os haitianos a recuperar o controle da sua própria segurança e do seu futuro. 
Estamos  diante  de  um  difícil  desafio,  mas,  se  tivermos  sucesso,  teremos  contribuído  não 
somente para a redenção econômica de um país irmão, mas também para o fortalecimento do 
sistema das Nações Unidas. 
Muito obrigado. 
 
277 
 

 
Palavras do Ministro das Relações Exteriores, Embaixador Celso Amorim, na sessão de 
abertura do Painel Internacional “Ações Afirmativas e Objetivos do Milênio”  
Embaixador Celso Luiz Nunes Amorim 
Ministro de Estado das Relações Exteriores 
Brasília, Auditório Finatec, Campus da Universidade de Brasília, 29/06/2005 
 
Ministra Matilde Ribeiro, Embaixadores de outros países, líderes religiosos e participantes 
deste Seminário, 
Queria, em primeiro lugar, parabenizar a Ministra Matilde e seus colaboradores da Secretaria 
Especial para a Promoção da Igualdade Racial pela realização deste Painel Internacional que é 
extremamente oportuno. Este é um debate que devemos desenvolver e aprofundar em nosso 
país.  Eu  dizia  antes  ‐  a  um  jornalista  que  me  perguntava  o  que  nós  esperávamos  como 
resultado desse Painel ‐ que na área de direitos humanos, e também na área de convivência 
dos povos, das religiões, das culturas e das raças, não há aqueles que ensinam e aqueles que 
aprendem.  Todos  ensinam  e  todos  aprendem  e  é  somente  demonstrando  nossa  capacidade, 
nossa abertura para o pleno entendimento do problema do outro que nós teremos condições 
de fazer reais progressos.  
Os  Senhores  já  terão  ouvido,  ou  ouvirão  durante  o  dia  de  hoje,  sobre  a  importância  que  a 
Secretaria  da  Promoção  da  Igualdade  Racial  tem  no  Brasil.  Aqui  no  Brasil  sempre  tivemos  a 
pretensão  de  dizer  que  éramos  uma  democracia  racial  e  nos  orgulhávamos  de  não  termos 
dispositivos  legais  ou  dispositivos  regulamentares  que  criassem  diferenças  entre  raças  ou 
entre  credos  religiosos  ou  entre  culturas.  Mas  todos  nós  sabemos  que  há  formas,  algumas 
delas bem sutis, outras nem tanto, de manter sempre presente a discriminação. A criação da 
Secretaria da Promoção da Igualdade Racial pelo Presidente Lula, com nível de Ministério, foi 
algo  excepcionalmente  importante  porque  deu  status  político  a  um  problema  que  existia  de 
forma latente na sociedade, o qual muitos de nós reconhecíamos, mas que a sociedade como 
um  conjunto  procurava  disfarçar.  A  criação  dessa  Secretaria  e  o  trabalho  que  a  Ministra 
Matilde  e  seus  colaboradores  têm  feito  é  de  extrema  importância,  não  só  para  aqueles  que 
podem se beneficiar da promoção da igualdade racial, mas para todos os brasileiros. Usando 
uma  expressão  do  filósofo,  que  agora  faria  cem  anos,  Jean‐Paul  Sartre,  “você  não  tem  o 
homem  integral  enquanto  não  tiver  todos  os  homens”,  ou  mulheres,  no  caso  também.  Nós, 
brasileiros,  independentemente  da  origem  e  do  nível  escolar  que  tenhamos,  só  poderemos 
nos  sentir  integralmente  brasileiros  quando  todos  estivermos  totalmente  participantes  na 
sociedade brasileira.  
Embora  o  Brasil  seja  um  país  em  que  curiosamente  o  convívio,  sobretudo  nos  momentos  de 
lazer,  entre  as  raças  e  os  povos  sempre  foi  muito  fácil,  na  hora  do  trabalho,  na  hora  das 
posições  políticas,  na  hora  das  posições  elevadas  na  burocracia  civil  e  militar  as  diferenças 
apareciam.  Basta  olhar  para  o  serviço  diplomático  brasileiro  onde  até  hoje  a  presença  de 
negros  é  muito  pequena  e  não  decorreu  isso,  pelo  menos  no  período  da  minha  vida 
profissional, de nenhuma discriminação ativa, mas de formas sutis de discriminação, de formas 
que  se  baseiam,  inclusive,  em  diferenças  sociais  e  em  diferenças  de  formação  cultural  e 
educacional. Isso, a meu ver, justifica a ação afirmativa. A ação afirmativa nada mais é do que 
tentar  igualar  as  possibilidades  daqueles  que  tiveram  condições  menos  favoráveis  durante  a 
sua infância e adolescência.  
Como todos sabemos por várias pesquisas feitas no Brasil, se você é mulher e negra a chance 
de ser pobre é muito maior. Na minha geração havia uma crença, mesmo das pessoas que se 
consideravam progressistas, de que no Brasil não há um problema racial, e sim um problema 
social, e que se resolvermos o problema social nós resolveremos o problema racial. Creio que a 
questão é mais complexa e que,  hoje  em dia, ela se coloca mais no sentido  inverso: se você 
resolver  o  problema  racial  você  resolve  em  grande  parte  o  problema  social,  porque  número 
significativo  dos pobres são negros ou são de origem indígena ou são de outras origens.  Por 
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esse  motivo,  introduzimos  no  Ministério  das  Relações  Exteriores  um  programa  de  ação 
afirmativa.  Para  ser  justo,  esse  programa  se  iniciou  no  Governo  anterior,  mas  nós  o  temos 
desenvolvido com afinco.  
E,  quando  digo  isso,  não  é  porque  as  pessoas  de  origem  africana  precisam  ter  acesso  ao 
Ministério das Relações Exteriores. Nós no Itamaraty é que precisamos que elas façam parte 
do nosso Ministério, para que nosso país esteja adequadamente representado. Eu me lembro, 
quando jovem ainda, de que tinha colegas de colégio que eram judeus e eles achavam que não 
podiam  entrar  no  Ministério  das  Relações  Exteriores  porque  seriam  discriminados.  Nunca  vi 
efetivamente discriminação ativa nesse caso, mas se a percepção existe é porque algo estava 
errado.  Precisamos  vencer  os  elementos  que  levam  a  essas  percepções.  Muitas  vezes,  a 
sensação  de  que  existe  ou  de  que  pode  existir  uma  discriminação  já  é,  em  si  mesmo,  uma 
forma de discriminar, de fazer com que o outro tenha essa sensação. Quando desenvolvemos 
a ação afirmativa no Itamaraty por um sistema de bolsas, um sistema que eu acho que ajuda 
inclusive  na  própria  auto‐estima  dos  candidatos,  estamos  realmente  atacando  diretamente 
esse ponto.  
Queria  dizer  que  a  parceria  entre  o  Ministério  das  Relações  Exteriores  e  a  Secretaria  da 
Promoção da Igualdade Racial tem sido intensa, dentro e fora do Brasil. Eu e a Ministra Matilde 
visitamos vários países; ela também participou de visitas do Presidente da República e fez suas 
próprias visitas em que eu não estava. Nossa intensa relação com a África hoje em dia tem um 
aspecto  muito  importante  que  é  a  dimensão  interna.  E  talvez  o  momento  de  auge  desse 
sentido  de  que  a  nossa  relação  com  a  África  não  é  apenas  uma  relação  com  um  outro 
continente,  mas  uma  relação  conosco  mesmo,  foi  dada  quando  o  Presidente  Lula  esteve  no 
Senegal e lá, em nome dos brasileiros, em nome de todos nós, independentemente da nossa 
cor,  independentemente  do  nosso  credo  religioso,  independentemente  do  nosso  passado 
cultural, mas todos nós que de alguma maneira fazemos parte da elite econômica, comercial, 
política, cultural deste país, salientou que temos uma dívida muito forte com a África. Foi por 
isso que o Presidente Lula pediu perdão aos africanos, aos descendentes daqueles que foram 
escravos  e  que  ajudaram  de  maneira  dramática  por  vezes,  de  maneira  muito  importante,  a 
construir este país.  
A mesma coisa eu diria sobre nossa relação com o Haiti. Recomendaria muito aos que estão 
aqui, se tiverem a ocasião, de irem ver uma exposição de pintura que está no Centro Cultural 
Banco  do  Brasil,  que  tenho  certeza  enriquecerá  a  alma  de  todos.  Trata‐se  de  uma  exposição 
sobre pintura naïf do Brasil e do Haiti. E é muito difícil distinguir o que é do Brasil e o que é do 
Haiti  nessas  pinturas.  Essas  aproximações  que  têm  como  instrumento  a  política  externa  nos 
ajudam  a  nos  redescobrir  a  nós  próprios,  a  nos  orgulharmos  da  contribuição  africana,  da 
contribuição  indígena,  como  também  da  contribuição  de  árabes,  de  judeus,  de  todas  as 
religiões que formam este nosso país tão rico, tão diversificado, mas um país onde há muito 
por fazer para chegarmos à sociedade sempre diversificada e harmoniosa que desejamos. 
Queria com muita alegria saudar os Ministros e Vice‐Ministros que estão aqui. Fico muito feliz 
de  ver,  por  exemplo,  os  Ministros  do  Senegal  e  do  Cameroun,  países  que  visitamos 
recentemente,  e  também  o  Ministro  de  Cuba  e  outras  autoridades.  Queria  dizer  que  esse 
encontro  internacional  é  parte  de  iniciativa  maior  ainda:  uma  grande  Conferência  Nacional 
sobre  essas  questões.  Ele  testemunha  a  vitalidade  da  Secretaria  da  Promoção  da  Igualdade 
Racial  como  uma  Secretaria  que  certamente  tem  lugar  importante  no  nosso  Governo,  uma 
Secretaria  que  nos  orgulha  porque  não  podemos  olhar  a  existência  de  Ministérios  ou  de 
Secretarias apenas pelo volume de recursos que eles movem. Creio que muitas vezes é até o 
contrário,  você  pode  ter  Secretarias,  Ministérios  e  Ministros  que  movem  recursos 
relativamente pequenos comparados com o conjunto do orçamento do país, mas que movem 
idéias,  sentimentos,  relações  sociais,  e  certamente  esse  é  o  papel  da  nossa  Secretaria,  da 
Ministra Matilde e de toda a equipe que ela chefia.  
Espero que neste dia de hoje quem tiver também ocasião de ficar para a Conferência Nacional 
possa se beneficiar um pouco das experiências que nós temos tido e, ao mesmo tempo, que 
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nós  possamos  também  ouvir  um  pouco  da  experiência  de  outros  porque,  como  disse  há 
pouco,  nessas  questões  de  direitos  humanos,  de  direitos  sociais,  ninguém  pode  se  arrogar  a 
posição de estar ensinando para outro que estaria aprendendo. Todos nós estamos ensinando 
e todos nós estamos aprendendo. Então muito obrigado. Parabéns Matilde, parabéns a todos. 
 
Discurso do Ministro de Estado das Relações Exteriores, Embaixador Celso Amorim, na 
abertura do debate geral da 60a Sessão da Assembléia Geral das Nações Unidas  
Embaixador Celso Luiz Nunes Amorim 
Ministro de Estado das Relações Exteriores 
Nova York, 17/09/2005 
 
Senhor Presidente, 
Senhor Secretário‐Geral, 
Excelências, 
Congratulo  calorosamente  o  Embaixador  Ian  Eliasson,  da  Suécia,  por  sua  assunção  à 
Presidência da 60ª Assembléia Geral. Saúdo fraternalmente o Secretário‐Geral Kofi Annan, cuja 
sabedoria e compromisso com o multilateralismo têm contribuído imensamente para o avanço 
das  Nações  Unidas.  O  Chanceler  Jean  Ping,  do  Gabão,  merece  um  reconhecimento  especial 
pela forma competente e dedicada como presidiu a 59ª sessão da Assembléia Geral. 
A  história  nos  oferece  uma  rara  oportunidade  de  mudança.  Não  a  desperdicemos.  Paz, 
Desenvolvimento, Democracia, Respeito aos Direitos Humanos são os objetivos que nos unem. 
Reforma deve ser a nossa palavra de ordem. 
O  documento  final  da  Cúpula  certamente  ficou  aquém  de  nossas  ambições.  Mas  fornece  as 
diretrizes para levar a termo nossa tarefa. 
A  Assembléia  Geral  precisa  ser  fortalecida.  Mais  do  que  nunca,  precisamos  de  um  foro  de 
representação  universal  onde  as  questões  cruciais  da  atualidade  internacional  possam  ser 
democraticamente  debatidas.  A  Assembléia  Geral  deve  prover  liderança  e  direção  política  à 
Organização  como  um  todo.  Ao  defendermos  a  autoridade  da  Assembléia  Geral,  mediante 
mudanças  que  a  tornem  mais  ágil  e  produtiva,  estamos  defendendo  a  essência  mesma  das 
Nações Unidas.  
O Conselho Econômico e Social deve voltar a ser um órgão vivo e influente. Deve servir para 
que  encontremos  convergências  para  questões  relacionadas  a  comércio,  finanças  e 
desenvolvimento, em um ambiente livre de preconceitos e dogmatismos. O ECOSOC deve ser a 
instância  deliberativa  privilegiada  na  busca  da  conciliação  entre  os  objetivos  do  crescimento 
econômico  e  da  redução  das  iniqüidades  de  uma  globalização  assimétrica.  O  Presidente  Lula 
sugeriu  neste  ano,  na  Cúpula  do  G‐8  em  Gleneagles,  que  poderíamos  começar  a  elevar  a 
estatura do ECOSOC, organizando um segmento de alto nível com a participação, por exemplo, 
do Ministro da Economia da presidência rotativa do G‐8. O ECOSOC deve também prestar sua 
contribuição  na  promoção  da  estabilidade  e  da  paz,  em  parceria  com  o  Conselho  de 
Segurança, como estabelece o artigo 65 da Carta.  
O  estabelecimento  de  uma  Comissão  para  a  Construção  da  Paz  preencherá  uma  lacuna 
institucional importante. Será o elo, hoje inexistente, entre segurança e desenvolvimento. 
As  estruturas  e  mecanismos  da  Organização  na  esfera  dos  direitos  humanos  devem  ser 
reforçados e aperfeiçoados. Apoiamos a criação de um Conselho de Direitos Humanos que se 
baseie nos princípios da universalidade, do diálogo e da não seletividade. A elaboração de um 
relatório  global  sobre  direitos  humanos,  a  cargo  do  Alto  Comissariado,  que  cubra  todos  os 
países  e  situações,  contribuirá  para  aumentar  a  credibilidade  do  sistema  de  proteção  dos 
Direitos Humanos das Nações Unidas.  
O Secretário‐Geral instou‐nos a trabalhar de forma mais coordenada com vistas à proteção das 
vítimas  de  violações  graves  e  sistemáticas  dos  direitos  humanos.  A  cooperação  internacional 
na esfera dos direitos humanos e da assistência humanitária deve orientar‐se pelo princípio da 
responsabilidade coletiva. Temos sustentado ‐ em nossa região e fora dela ‐ que o princípio da 
280 
 

não‐intervenção em assuntos internos dos Estados deve ser acompanhado pela idéia da “não‐
indiferença”.  
Lidamos,  hoje,  com  conceitos  novos  como  “segurança  humana”  e  “responsabilidade  de 
proteger”. Concordamos que devem ter um lugar adequado em nosso sistema. Mas é ilusório 
pensar que podemos combater os desvios políticos que estão na origem de violações graves de 
direitos humanos por meios exclusivamente militares, ou mesmo por sanções econômicas, em 
prejuízo da diplomacia e da persuasão.  
A  segurança  humana  resulta,  principalmente,  de  sociedades  justas  e  eqüitativas,  que 
promovem e protegem os direitos humanos, fortalecem a democracia e respeitam o estado de 
direito,  ao  mesmo  tempo  em  que  criam  oportunidades  de  desenvolvimento  econômico  com 
justiça social. As Nações Unidas não foram criadas para disseminar a filosofia de que a ordem 
deve  ser  imposta  pela  força.  Esse  recurso  extremo  deve  ser  reservado  a  situações  em  que 
todos  os  demais  esforços  tenham  sido  esgotados  e  as  soluções  pacíficas  sejam  realmente 
inviáveis. E o julgamento sobre a existência dessas condições excepcionais há que ser sempre 
um  julgamento  multilateral.  A  Carta  contempla  dois  tipos  de  situação  para  o  uso  da  força:  a 
necessidade de manter ou restaurar a paz e a segurança internacionais, e o direito de legítima 
defesa. Esses dois conceitos não podem ser confundidos, sob pena de embaralharmos as bases 
doutrinárias da Organização.  
Senhor Presidente,  
A  reforma  do  Conselho  de  Segurança  destaca‐se  como  peça  central  do  processo  em  que 
estamos envolvidos. A necessidade de fazer com que o Conselho se torne mais representativo 
e democrático é reconhecida pela imensa maioria dos Estados‐membros.  
No  horizonte  histórico  em  que  vivemos,  nenhuma  reforma  do  Conselho  de  Segurança  será 
significativa se não contemplar uma expansão dos assentos permanentes e não‐permanentes, 
com  países  em  desenvolvimento  da  África,  da  Ásia  e  da  América  Latina  em  ambas  as 
categorias.  Não  podemos  aceitar  a  perpetuação  de  desequilíbrios  contrários  ao  espírito  do 
multilateralismo.  
Um Conselho mais eficaz deve ser capaz, acima de tudo, de assegurar o cumprimento de suas 
decisões.  Não  parece  razoável  imaginar  que  o  Conselho  poderá  continuar  ampliando  sua 
agenda e suas funções sem que se resolva seu déficit democrático. 
Há  dois  anos,  o  Presidente  Lula  declarou,  perante  esta  Assembléia,  que  toda  nação 
comprometida com a democracia, internamente, deve lutar ‐ em suas relações exteriores ‐ por 
processos  decisórios  transparentes,  legítimos  e  representativos.  No  mesmo  espírito,  o 
Secretário‐Geral Kofi Annan apontou para as contradições a serem superadas, e cito: “Somos 
nós  que  vamos  ao  redor  do  mundo  pregando  a  democracia.  Acredito  ter  chegado  a  hora  de 
aplicarmos isso a nós mesmos e assim mostrarmos que existe representação efetiva”. 
Senhor Presidente, 
Estamos  ainda  distantes  dos  objetivos  da  Declaração  do  Milênio.  A  Sessão  de  Alto  Nível 
destacou a importância de compromissos renovados com a Assistência ao Desenvolvimento e 
contribuiu  para  promover  uma  aceitação  mais  ampla  da  destinação  de  0,7  porcento  do 
produto  nacional  bruto  como  ajuda  ao  desenvolvimento.  Ao  mesmo  tempo,  devemos 
continuar  a  trabalhar  com  fontes  inovadoras  e  adicionais  de  financiamento.  Noto  com 
satisfação que, desde o Encontro de Líderes Mundiais para a Ação Contra a Fome e a Pobreza, 
convocada pelo Presidente Lula há um ano, obtivemos progressos significativos. Um número 
crescente de Governos e de grupos não‐governamentais se está juntando ao esforço para pôr 
fim à fome e à pobreza. Esta é a única guerra em que estamos empenhados. A única em que 
todos poderemos, um dia, declarar vitória.  
No  último  ano,  testemunhamos  novamente  atos  brutais  de  terrorismo.  Civis,  mulheres  e 
crianças  inocentes  são  hoje  vítimas  de  grupos  adversários  dos  valores  que  compartilhamos. 
Como país cuja identidade não pode ser dissociada das noções de tolerância e diversidade, o 
Brasil  rejeita  de  maneira  veemente  esses  atos  abomináveis,  que  atentam  contra  a  própria 
noção  de  humanidade.  Continuaremos  a  prestar  nosso  apoio  a  uma  maior  cooperação 
281 
 

internacional  para  o  combate  ao  terrorismo  e  para  a  eliminação  de  suas  causas  profundas. 
Esses esforços devem respeitar o direito internacional e os direitos humanos. A luta contra o 
terrorismo não pode ser vista estritamente em termos de repressão por instituições policiais. 
Não podem tampouco tais ações resultar em mortes tão absurdas e indiscriminadas como as 
provocadas pelo próprio terrorismo. Apesar de não haver vínculo automático entre pobreza e 
terrorismo,  problemas  socioeconômicos  severos  ‐  em  particular,  quando  combinados  com  a 
ausência  de  liberdades  civis  e  políticas  ‐  são  fatores  que  podem  expor  as  comunidades  a 
atitudes  extremas  de  grupos  fanatizados.  Expresso,  desde  já,  a  disposição  brasileira  de 
trabalhar  intensamente  com  vistas  à  pronta  conclusão  de  uma  convenção  abrangente  sobre 
terrorismo. 
Reconhecemos  os  riscos  da  proliferação  de  armas  de  destruição  em  massa.  Não  podemos, 
entretanto, deixar de lembrar a importância de reduzir e desmantelar os arsenais existentes de 
todas essas armas. Lamentamos profundamente que a VII Conferência de Revisão do Tratado 
de  Não‐Proliferação  Nuclear  não  tenha  produzido  resultados  tangíveis.  Ao  lado  dos  esforços 
para  a  não‐proliferação,  devemos  continuar  a  trabalhar  incansavelmente  para  o 
desarmamento nuclear.  
Enfrentamos, além dos desafios a que já me referi, duas crises com impacto global: a explosão 
pandêmica  do  HIV/AIDS;  e  as  trágicas  ameaças  derivadas  das  mudanças  climáticas.  O  Brasil 
continuará  mobilizado  para  promover  a  implementação  dos  instrumentos  multilaterais  para 
combater esses flagelos. 
Senhor Presidente, 
O  Brasil  está  comprometido  em  reforçar  a  aliança  estratégica  com  o  principal  parceiro  em 
nossa  região  ‐  a  Argentina  ‐  e  em  construir  uma  América  do  Sul  próspera,  integrada  e 
politicamente estável, a partir de nossa experiência no MERCOSUL, cujo aperfeiçoamento, nos 
planos  econômico  e  político,  continuaremos  a  buscar  incessantemente.  A  Comunidade  Sul‐
Americana  de  Nações,  fundada  em  Cuzco,  Peru,  no  ano  passado,  será  um  fator  de 
fortalecimento da integração de toda a América Latina e do Caribe. 
Nosso  esforço  de  estabelecer  alianças  com  outros  países  e  regiões  estende‐se  além  do 
horizonte regional.  
A  criação  do  IBAS  ‐  grupo  que  compreende  a  Índia,  o  Brasil  e  a  África  do  Sul  ‐  aliou  três 
democracias  da  África,  Ásia  e  América  Latina,  desejosas  de  estreitar  os  vínculos  econômicos, 
políticos e culturais entre si e suas regiões.  
Empenhamo‐nos,  junto  com  outros  países,  a  formar  o  G‐20,  que  colocou  os  países  em 
desenvolvimento  no  centro  das  negociações  agrícolas  da  Rodada  de  Doha.  A  ação  do  G‐20 
permitiu,  pela  primeira  vez,  no  quadro  do  GATT  ou  da  OMC,  associar  liberalização  comercial 
com justiça social.  
Fortalecer  os  laços  com  a  África  tem  sido  uma  antiga  aspiração  brasileira.  Nenhum  outro 
governo no Brasil perseguiu esse objetivo com a determinação do Presidente Lula. O comércio 
e  a  cooperação  entre  o  Brasil  e  a  África  cresceram  de  forma  significativa.  O  diálogo 
intensificou‐se.  Temos  contribuído  para  a  consolidação  da  paz  e  da  democracia  em  países 
como  Guiné‐Bissau  e  São  Tomé  e  Príncipe.  Ajudamos  a  combater  a  fome,  a  desenvolver  a 
agricultura  e,  com  grande  empenho,  a  lutar  contra  o  flagelo  do  HIV‐AIDS  em  vários  países 
irmãos do continente africano. 
Tivemos  a  honra  de,  pela  primeira  vez,  ter  o  Presidente  da  Nigéria  e  da  União  Africana  nas 
comemorações da nossa data nacional.  
A mesma solidariedade inspira a participação do Brasil nos esforços de paz das Nações Unidas 
no Haiti. O envolvimento do Brasil, bem como de outros países latino‐americanos, no Haiti não 
tem  precedentes  tanto  em  termos  de  presença  de  efetivos  militares  quanto  de  articulação 
política. Animam‐nos três objetivos principais: 1) a criação de um ambiente de segurança; 2) a 
promoção  do  diálogo  entre  as  forças  políticas,  com  vistas  a  uma  verdadeira  transição 
democrática;  e  3)  o  efetivo  apoio  internacional  para  a  reconstrução  social  e  econômica  do 
282 
 

Haiti.  O  Haiti  será,  possivelmente,  o  primeiro  caso‐teste  para  a  Comissão  de  Construção  da 
Paz. 
No Brasil, há um renovado interesse pelo mundo árabe, inspirado por fortes laços históricos e 
culturais.  Além  de  iniciativas  de  cunho  bilateral,  temos  procurado  fortalecer  laços  com 
entidades regionais, como a Liga dos Estados Árabes e o Conselho de Cooperação do Golfo. Em 
maio  de  2005,  uma  inédita  Cúpula  de  países  da  América  do  Sul  e  dos  países  árabes  foi 
realizada em Brasília. A Cúpula constitui um evento pioneiro que reuniu duas grandes regiões 
do mundo em desenvolvimento, em uma demonstração concreta e efetiva de harmonia entre 
civilizações. 
 
Durante  diversas  viagens  ao  Oriente  Médio,  tive  a  oportunidade  de  conversar  com  uma 
variedade  de  interlocutores,  incluindo  as  lideranças  israelenses  e  palestinas.  Essas  liderabças 
estão cientes da disposição brasileira de apoiar o trabalho do Quarteto, como parceiro para a 
paz.  A  prática  efetiva  da  tolerância  e  do  respeito  ao  outro,  e  a  convivência  harmoniosa  das 
diversas  comunidades  constituem,  talvez,  a  nossa  vantagem  comparativa.  Percebi  que  esta 
convicção é compartilhada por importantes personalidades e líderes políticos tanto em Israel 
quanto na Palestina.  
Senhor Presidente,  
No limiar de um novo capítulo na vida das Nações Unidas, o Brasil estará comprometido com 
os ideais que levaram à criação da única Organização de vocação universal, a única que poderá 
garantir um futuro de paz e prosperidade, não para uns poucos, mas para todos. 
Muito obrigado. 
 
Discurso do Ministro das Relações Exteriores, Embaixador Celso Amorim, na sessão de 
abertura da Reunião Internacional de Alto Nível sobre o Haiti  
Embaixador Celso Luiz Nunes Amorim 
Ministro de Estado das Relações Exteriores 
Palácio Itamaraty, Brasília, 23/05/2006 
 
Excelentíssimo Senhor Roland Pierre, Ministro do Planejamento e Cooperação Internacional do 
Haiti, 
Embaixador José Miguel Insulza, Secretário‐Geral da OEA, 
Embaixador Juan Gabriel Valdés, Representante Especial do SGONU para o Haiti, 
Embaixador Edmond Mulet‐Lesieur, Representante indicado pelo SGONU para o Haiti 
Senhores Representantes de governos amigos, 
Senhores Diretores de Organismos e Bancos internacionais, 
Senhoras e Senhores, 
É com grande satisfação que o Brasil acolhe esta primeira reunião de representantes de países 
e organismos internacionais doadores depois da posse do Presidente Préval. 
O  Brasil  foi  dos  primeiros  países  a  responder  ao  chamado  das  Nações  Unidas  para  a 
estruturação  de  uma  presença  internacional  no  Haiti.  Naquele  momento,  há  cerca  de  dois 
anos, o Haiti enfrentava, uma vez mais, uma situação de profunda instabilidade, com grandes 
custos  econômicos,  sociais,  e,  principalmente,  humanos.  Era  imperativo  retomar  o  processo 
democrático, com a realização de eleições livres, gerais e transparentes.  
Ao responder ao chamado da ONU, o Brasil entendeu que a situação do Haiti não se resumia a 
um problema de restauração da segurança pública. Na origem da crise de segurança existia, a 
nosso ver, um problema mais sério de pobreza, injustiça social e debilitação das estruturas do 
Estado.  
Diferentemente de ocasiões anteriores, desta vez procuramos trabalhar simultaneamente em 
três  vertentes  interdependentes  e  igualmente  importantes:  a  manutenção  da  ordem  e  da 
segurança;  o  diálogo  político,  com  vistas  à  reconciliação  nacional;  e  a  promoção  do 
desenvolvimento econômico e social. Creio que estamos no caminho certo. 
283 
 

O Brasil aceitou enviar tropas e assumir o comando militar da Minustah em primeiro lugar por 
tratar‐se  de  uma  operação  decidida  pelo  Conselho  de  Segurança,  único  órgão  com 
legitimidade para determinar a presença de tropas estrangeiras em um país soberano.  
Também nos animou o natural sentimento de solidariedade regional, e afinidades de natureza 
cultural  e  étnica  que  justificam  um  maior  envolvimento  de  países  da  América  Latina  e  do 
Caribe no Haiti.  
O  Brasil  sempre  buscou  estabelecer  pontes  para  a  retomada  do  diálogo  entre  o  Haiti  e  os 
países  da  região,  muito  especialmente  os  países  do  Caribe.  Por  isso,  saúdo  a  decisão  da 
CARICOM de reintegrar o Haiti à Comunidade, já na sua próxima reunião de Cúpula, no mês de 
julho.  
Por isso também defendemos a presença da ONU no Haiti, e defendemos que essa presença se 
caracterizasse por um forte componente latino‐americano e caribenho. Creio que esse mesmo 
sentimento  animou  países  como  a  Argentina,  o  Chile,  o  Peru,  o  Uruguai,  a  Guatemala,  o 
Equador, Paraguai e El Salvador a enviarem tropas para o Haiti. 
Quero aproveitar esse momento para transmitir nosso reconhecimento pelo valioso trabalho 
do  Embaixador  Valdés  à  frente  da  Minustah  ao  longo  dos  últimos  dois  anos.  Gostaria  de 
saudar, também, a indicação do Embaixador Edmundo Mulet, da Guatemala, para sucedê‐lo. A 
escolha de um ilustre guatemalteco reforça nossa convicção sobre a importância do apoio de 
nossa região para a reconstrução do Haiti.  
Paralelamente  à  nossa  participação  na  Minustah,  começamos  a  trabalhar  em  projetos  de 
cooperação  e  nos  engajamos  em  uma  intensa  campanha  internacional  pela  obtenção  dos 
fundos necessários e a liberação dos fundos já existentes, mas ainda bloqueados, à retomada 
do desenvolvimento no Haiti.  
De nossa parte, além de contribuir com fundos para a organização das eleições, realizadas sob 
a eficiente supervisão da OEA, estamos implementando treze projetos setoriais de cooperação 
em  áreas  de  imediato  impacto  social,  como  o  desenvolvimento  da  produção  agrícola,  a 
distribuição  de  merenda  escolar,  o  combate  à  discriminação  de  gênero,  e  o  treinamento  de 
bombeiros, entre outros.  
Gostaria  de  destacar,  por  um  aspecto  pioneiro  que  tem  como  cooperação  Sul‐Sul,  o  projeto 
financiado  pelo  Fundo  IBAS,  que  reúne  Índia,  Brasil  e  África  do  Sul,  de  combate  à  fome  e  à 
pobreza, na área de manejo de dejetos urbanos. Este projeto já começa a dar seus primeiros 
passos. 
Outra  ação  inédita  que  tomamos  foi  com  o  Banco  Mundial,  que,  pela  primeira  vez,  está  co‐
financiando um projeto de cooperação envolvendo dois países em desenvolvimento. 
Nossa  cooperação  com  o  Haiti  não  se  deu  sem  alguma  resistência  interna.  Afinal,  o  Brasil  é 
também um país com enormes carências sociais. Com grandes dificuldades, inclusive na área 
de segurança. Mas essa é uma lição que aprendi com os próprios brasileiros de origem mais 
humilde. Não é preciso ser rico para ser solidário.  
Creio que a contribuição do Brasil foi importante para que, hoje, o Haiti tenha uma perspectiva 
de futuro.  
Nada  mais  natural,  portanto,  do  que  o  Brasil  acolher  esta  reunião,  que  buscará  avaliar  a 
cooperação internacional no Haiti nos últimos dois anos, e definir rumos a serem seguidos, a 
partir das prioridades definidas pelo novo governo haitiano. 
Esta reunião também deverá preparar a Conferência de Doadores, a ser realizada em julho, em 
Porto  Príncipe.  É  fundamental  manter  essa  dinâmica  e  demonstrar  que  a  comunidade 
internacional continuará ao lado do Haiti.  
A  presença  da  Minustah  no  Haiti  continuará  sendo  necessária.  O  próprio  Presidente  Préval 
afirmou desejar que as tropas da ONU permaneçam no País. Mas o Presidente Préval também 
deixou  claro  que  os  termos  do  mandato  da  Minustah  devem  ser  reformulados,  tendo  em 
mente a nova situação. Nas palavras do presidente, “bulldozers e betoneiras devem ocupar o 
lugar dos carros de combate”.  
284 
 

O Haiti precisa de um novo paradigma de cooperação internacional, com ênfase em projetos 
que  produzam  resultados  focalizados  no  combate  à  pobreza  e  fortaleçam  a  capacidade  do 
Estado  de  prestar  serviços  à  população.  Ao  mesmo  tempo,  a  comunidade  financeira 
internacional  deve  compreender  a  especificidade  da  situação  haitiana,  e  adaptar  certos 
requisitos  burocráticos,  talvez  em  si  mesmo  válidos,  mas  que  no  passado  freqüentemente 
sacrificaram as possibilidades de uma real cooperação com este que é o único país de menor 
desenvolvimento relativo do nosso continente. 
Acreditamos que um bom caminho para o aperfeiçoamento do Quadro de Cooperação Interina 
seja o Programa de Parceria Sustentável proposto pelo novo governo haitiano. Também é bem 
vindo  o  documento  sobre  a  Estratégia  Interina  para  a  Redução  da  Pobreza  preparado  pelas 
novas autoridades haitianas. 
Queria  dizer  também  que  nós  no  sul  do  continente  ‐  em  breve  estará  se  juntando  a  nós  o 
Ministro argentino, como está aqui também o Vice‐Ministro chileno ‐, um grupo de três países, 
Brasil, Argentina e Chile, estamos muito empenhados em contribuir. Há outros ainda, vejo aqui 
a Vice‐Ministra do Uruguai, o Paraguai também ‐ mas Brasil, Argentina e Chile recentemente 
enviaram uma missão ao Haiti com o objetivo de ajudar na própria organização administrativa, 
a  pedido  do  Presidente  Préval.  Creio  que  este  é  um  exemplo  daquilo  que  nós  dissemos  em 
muitas  ocasiões,  inclusive  nos  momentos  mais  difíceis  dessa  operação,  que  é  preciso  latino‐
americanizar  o  Haiti.  Naturalmente  quando  digo  latino‐americanizar  isso  inclui  o  Caribe.  O 
Haiti  não  pode,  não  deve  e  não  é  mais  visto  como  o  filho  enjeitado  da  América  Latina  e  do 
Caribe.  
Senhoras e Senhores, 
O  povo  e  as  forças  políticas  haitianas  deram  uma  demonstração  exemplar  de  que  estão 
dispostos a enfrentar os desafios para a renovação de sua sociedade. Cumpriram amplamente 
sua  parte,  por  meio  da  realização  de  eleições  presidenciais  e  legislativas  justas  e  livres.  O 
comparecimento  às  urnas,  principalmente  nas  eleições  presidenciais,  demonstrou  o 
compromisso  dos  haitianos  com  um  futuro  de  paz  e  democracia.  Recebemos,  também,  com 
satisfação  a  abertura  que  o  Presidente  Préval  tem  dado  às  diversas  lideranças  do  país, 
essencial para um verdadeiro processo de reconciliação nacional com espírito pluralista. 
O  Haiti  pode  contar  com  o  Brasil.  O  Presidente  Lula  assegurou  pessoalmente  ao  Presidente 
Préval,  em  sua  recente  visita  ao  Brasil,  na  condição,  então,  de  Presidente  eleito,  que  o 
compromisso  do  Brasil  com  o  Haiti  é  duradouro.  Estaremos  ao  lado  do  Haiti  enquanto  for  o 
desejo do seu governo, do seu povo. 
Não há tempo a perder. Existe, hoje, talvez, uma chance única de reconstrução e reconciliação 
nacional desse país irmão. Esse é um teste para o povo e o governo haitianos, mas é também 
um teste para a comunidade internacional.  
O  mais  famoso  romance  haitiano,  “Gouverneurs  de  la  Rosée”,  de  Jacques  Roumain,  termina 
com uma frase de um extraordinário otimismo, quase que um hino à vida, que eu gostaria que 
nos  inspirasse  neste  esforço  conjunto  pelo  desenvolvimento  do  Haiti.  Depois  de  grandes 
sofrimentos e da morte do herói, sua viúva consegue realizar os sonhos pelos quais ele lutou e, 
respondendo aos lamentos da mãe do marido morto, diz “Não, ele não morreu. E pega na mão 
da  velha  senhora  e  a  pressiona  levemente  contra  seu  próprio  ventre,  onde  se  agitava  a  vida 
nova”. A comunidade internacional está aqui, como a heroína de Jacques Roumain, sentindo 
agitar‐se a vida do novo Haiti. 
Muito obrigado. 
 
 
 
 
 
 
285 
 

Discurso do presidente da República, Luiz Inácio Lula da Silva, na XV Cúpula Ibero‐
Americana: “A Projeção Internacional da Comunidade Ibero‐Americana”  
Senhor Luiz Inácio Lula da Silva 
Presidente da República Federativa do Brasil 
Salamanca, Espanha, 15/10/2005 
 
Circunstâncias  muito  especiais  marcam  nosso  encontro.  Estamos  comemorando  o  trigésimo 
aniversário do Reinado de Juan Carlos I, hoje nosso anfitrião.  
O reencontro da Espanha com a democracia e o desenvolvimento marcou as últimas décadas. 
Esse processo teve em Sua Majestade um defensor intransigente e líder clarividente. 
A  transição  espanhola  para  a  democracia  repercutiu  profundamente  em  nosso  Continente. 
Inspirou os democratas latino‐americanos em suas lutas pela liberdade. 
A  decisão  do  governo  espanhol  de  sediar  esta  Cúpula  na  Universidade  de  Salamanca  possui 
significado particular. Antes mesmo dos descobrimentos, esta cidade simbolizava o encontro 
harmônico  de  culturas.  Nela  conviveram  árabes,  cristãos  e  judeus.  Esta  Universidade  foi 
responsável  por  uma  das  primeiras  reflexões  humanistas  sobre  a  colonização  e  suas 
conseqüências.  Aqui  prevaleceu  a  coragem  de  pensar  livremente  e  de  desafiar  interesses 
estabelecidos. 
Nossa Cúpula coincide, também, com o lançamento da Secretaria‐Geral Ibero‐Americana. Essa 
iniciativa confirma o compromisso de fortalecer nossa coordenação. Favorece e amplia nossa 
voz coletiva.  
Estou certo de que meu amigo Enrique Iglesias trará à Secretaria a competência e a capacidade 
de  trabalho  que  marcaram  sua  gestão  no  BID.  Na  pessoa  da  embaixadora  Maria  Elisa 
Berenguer, o Brasil terá a honra de ocupar a Secretaria‐Adjunta e colaborar para dar estrutura 
à nossa Organização. 
Senhoras e senhores, 
A Comunidade valoriza nossa presença coletiva num mundo em profunda transformação.  
Aqui  podemos  discutir  sobre  os  desafios  contemporâneos  com  que  se  defrontam  nossos 
países.  Aumentam  as  possibilidades  de  coordenarmos  posições.  Estamos  unidos  pelos  ideais 
ibero‐americanos. É uma rica experiência política e cultural, em que convivem a latinidade com 
os valores e culturas de nossas populações pré‐colombianas e dos afro‐descendentes. 
Debatemos,  há  pouco,  a  realidade  sócio‐econômica  de  nossos  países.  Avaliamos  como 
podemos unir capacidades para atender aos legítimos anseios de nossos cidadãos. Estaremos, 
assim,  nos  habilitando  a  contribuir  para  um  objetivo  ainda  maior,  a  luta  contra  a  fome  em 
escala mundial.  
É  essa  a  razão  que  levou  meu  governo  a  propor  uma  série  de  iniciativas  dentro  e  fora  de 
nossas  fronteiras.  São  ações  que  buscam  promover  o  desenvolvimento  com  dignidade  e 
distribuição de renda.  
Nossa  Comunidade  não  está  partindo  do  zero.  Vários  projetos  em  curso  entre  nossos  países 
testemunham  o  potencial  dessa  cooperação.  Ressalto,  em  particular,  a  iniciativa  para 
identificar  fontes  inovadoras  de  financiamento  para  o  combate  à  pobreza  extrema  que 
lançamos  em  setembro  passado,  em  Nova  Iorque.  Esse  movimento,  com  forte  participação 
ibero‐americana, recebeu amplo apoio da comunidade internacional. 
Isso nos estimula a continuar amadurecendo estudos e propondo medidas concretas. Estamos 
contribuindo, assim, para o cumprimento de várias das metas adotadas na Cúpula do Milênio. 
O debate ibero‐americano, no entanto, pode e deve ser mais ambicioso. Nossa diversidade nos 
permite  uma  visão  mais  abrangente  e,  sobretudo,  mais  solidária,  da  complexa  relação  entre 
pobreza, desesperança e violência.  
Foi  também  sob  o  signo  da  solidariedade  que  abordamos  o  tema  da  migração.  Entre  nós,  o 
fluxo  de  gente  em  busca  de  um  novo  lar  e  de  novas  oportunidades  não  constituiu, 
historicamente,  um  problema.  Contribuiu,  seguramente,  para  a  diversificação  da  paisagem 
humana de uma região marcada pelo “encontro de civilizações”.  
286 
 

Fiquei feliz que, em nosso debate anterior, fossem apresentadas soluções criativas, permitindo 
que  o  tema  migratório  em  nossos  países  possa  ser  resolvido  de  forma  justa  e  democrática. 
Penso,  sobretudo,  na  necessidade  de  garantir  condições  dignas  aos  trabalhadores, 
independente de seu status migratório.  
Senhoras e senhores, 
Há  um  fio  condutor  que  vincula  nossos  países  e  distingue  nossa  atuação  internacional.  É  a 
“afinidade na diversidade”. Ela se alimenta da riqueza de nossas diferenças e nos permite dar 
resposta  eloqüente  às  ameaças  do  mundo  contemporâneo.  O  nome  dessa  resposta  é 
tolerância. 
Promover a paz, democratizar o sistema internacional, lutar contra o terrorismo, impulsionar o 
desenvolvimento sustentável, o combate à fome e à pobreza. Só venceremos esses desafios se 
soubermos derrotar preconceitos e desconfianças. É essa a maior contribuição que nós, ibero‐
americanos,  podemos  prestar.  Somos  exemplo  de  que  as  fronteiras  entre  Norte  e  Sul,  entre 
ricos  e  pobres,  entre  religiões,  culturas  e  civilizações,  podem  e  devem  ser  superadas  pelo 
diálogo e conhecimento mútuo. Nossa história de lutas também foi escrita em momentos de 
convívio e de conciliação.  
Senhoras e senhores,  
Já estamos mostrando o que podemos fazer nas áreas da cultura e da educação. Trabalhamos 
na preservação de nossa herança comum e na valorização de nossas individualidades. Esse é o 
objetivo da Carta Cultural, cujas bases estamos adotando.  
Investimos  em  nosso  futuro  coletivo.  Vários  dos  projetos  que  estamos  implementando 
dirigem‐se às nossas crianças e jovens.  
O  crescimento  sustentável  deve  ser  nosso  legado  para  essa  nova  geração.  Dele,  dependem 
nossas esperanças de paz, democracia e segurança para todos.  
Por  essa  razão,  apoiamos  com  entusiasmo  a  iniciativa  do  governo  espanhol  de  converter 
dívidas  de  países  mais  pobres  em  investimentos  em  educação.  Recursos  desse  programa 
poderão  ajudar  na  expansão  do  ensino  do  castelhano  em  nossas  escolas  públicas,  onde  a 
oferta já é obrigatória no ensino médio. Como credor, o Brasil somou‐se a essa idéia dispondo‐
se a perdoar a dívida de Cabo Verde em troca da constituição da primeira universidade pública 
daquele país.  
As  instituições  financeiras  internacionais  têm  um  papel  insubstituível  no  financiamento  do 
desenvolvimento,  dentro  do  espírito  das  decisões  de  Monterrey.  Devemos  exigir  delas,  mais 
firmemente,  compromissos  com  o  financiamento  de  programas  de  infra‐estrutura 
indispensáveis à distribuição de renda e ao crescimento.  
Por  sua  vez,  gastos  com  educação,  saúde  e  infra‐estrutura  devem  ser,  em  realidade, 
caracterizados  como  investimentos.  Somente  assim  asseguraremos  nível  adequado  de  bem‐
estar e de prosperidade para todos os povos ibero‐americanos.  
A  trajetória  recente  de  nossos  parceiros  ibéricos,  no  seio  da  União  Européia,  nos  serve  de 
estímulo  e  inspiração.  Vemos,  com  muita  confiança,  as  parcerias  econômicas  que  estamos 
desenvolvendo no âmbito da Comunidade.  
Com  nossos  vizinhos  do  Mercosul,  da  América  do  Sul  e  com  o  conjunto  da  América  Latina, 
estamos engajados em um processo de integração sem precedentes. Assim como os homens 
de negócios, toda a sociedade civil é chamada a participar de nosso esforço de concertação.  
Queridos amigos, 
A  solidariedade  que  inspira  nossa  Comunidade  Ibero‐Americana  leva  a  marca  da  inclusão. 
Queremos  fazer  valer  nossa  visão  participativa  no  cenário  internacional,  seja  nas  discussões 
sobre  a  democratização  da  ONU,  seja  em  favor  de  negociações  comerciais  mais  justas  e 
equilibradas. 
A  luta  contra  os  subsídios  que  países  desenvolvidos  dão  à  produção  e  às  suas  exportações 
agrícolas  deve  fazer  parte  de  nossa  agenda.  Não  podemos  perder  a  oportunidade  que  nos 
oferece a Rodada de Doha para construir um mundo mais justo e equilibrado.  
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A  atuação  conjunta  de  vários  de  nossos  países  no  Haiti  é  emblemática  do  que  podemos 
realizar. Deve e pode tornar‐se paradigma de um novo modelo de resolução de conflitos e de 
apoio  a  países  em  grave  crise  econômica  e  social.  Sem  truculência  ou  hegemonismos, 
queremos contribuir para a paz e a reconstrução econômica e social do Haiti.  
Nossa ambição e nossa vontade política condicionarão nossa projeção na cena internacional. E 
o  alcance  de  nossos  projetos  estará  sempre  determinado  por  nossa  capacidade  de  conciliar 
afinidades e diferenças. 
Nossa  Comunidade  deve  ampliar  seu  diálogo  internacional,  em  particular  com  a  África. 
Poderíamos começar pelos países de língua portuguesa e pela Guiné Equatorial, de expressão 
castelhana, que já manifestaram esse interesse.  
Nossa proximidade não é medida apenas em valores e aspirações. Nessa jornada, estou seguro 
de  que  saberemos  utilizar,  a  nosso  favor,  as  maiores  virtudes  que  possuímos:  a  riqueza 
inesgotável  de  nossa  gente  e  a  certeza  de  que  compartilhamos  uma  história  e  um  destino 
comuns. 
Muito obrigado. 
Embaixador Celso Luiz Nunes Amorim. 

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