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320 Prêmio Nobel de Química de 2019 - Láurea pelo


Desenvolvimento das Baterias de Íons Lítio
Nerilso Bocchi, Sonia R. Biaggio e Romeu C. Rocha-Filho
327 A Polêmica da Fosfoetanolamina no Ensino de
volume

Química: Articulações entre o Planejamento de


Ensino e a Comunicação Científica
Marcelo Giordan, Gabriel S. Gomes, Isabela L. A.
Dourado e João G. F. Romeu
335 Alternate Reality Game (ARG): Breve Histórico,
Definições e Benefícios para o Ensino e
Aprendizagem da Química
Maria G. Cleophas
344 Humphry Davy e a natureza metálica do potássio
e do sódio
Júlia R. Buci e Paulo A. Porto
351 Construção de um biodigestor na escola: um
estudo de caso fundamentado numa perspectiva
Ciência, Tecnologia e Sociedade (CTS)
Valéria V. M. Paixão, Carlos H. Batista e Maria C. P. Cruz
360 Atividade investigativa teórico-prática de

nº 4, novembro 2019
Química para estimular práticas científicas
Matheus S. B. Silva, Daniel M. Silva e Ana C. Kasseboehmer
369 O ambiente natural como recurso para
promover um ensino interdisciplinar
Sidnei de Lima Júnior, Diógenes A. de Almeida,
Luciana C. C. de Menezes e Roberto Greco
377 Ser ou Não Ser Professor: Duas Faces de Uma
Graduação em Química
Camila L. Miranda, Julio C. F. Lisbôa e Daisy B. Rezende
386 Tabela Periódica: concepções de estudantes ao
longo do ensino médio
Nycollas S. Vianna, Camila A. T. Cicuto e Maurícius S.
Pazinato
394 Célula solar na escola: como construir uma célula
solar sensibilizada por corantes naturais
Ivana de S. Christ, Kauana N. de Almeida, Verônica
G. de Oliveira, Matheus C. de Oliveira, Marcos J. L.
Santos e Nara R. Atz
399 A Filosofia na Formação de Professores de
Química em Minas Gerais: O que se Mostra nos
Componentes Curriculares de Licenciaturas em
Química?
Robson S. de Sousa, Alexandre R. dos Santos e Maria
do C. Galiazzi
ISSN 0104-8899
ISSN (on-line) 2175-2699
Sumário/Contents
Novembro Atualidades em Química / Chemistry Updates
2019
Vol. 41, Nº 4 320 Prêmio Nobel de Química de 2019 - Láurea pelo Desenvolvimento das
Indexada no Chemical Abstracts Baterias de Íons Lítio
EDITORES The Nobel Prize in Chemistry 2019 – Laurel for the Development of
Lithium-Ion Batteries
Paulo Alves Porto (IQ-USP)
Salete Linhares Queiroz (IQSC-USP)
Nerilso Bocchi, Sonia R. Biaggio e Romeu C. Rocha-Filho
CONSELHO EDITORIAL Química e Sociedade / Chemistry and Society
Alice Ribeiro Casimiro Lopes (FE-UERJ - Rio de Janeiro, RJ - Brasil) 327 A Polêmica da Fosfoetanolamina no Ensino de Química: Articulações
António Francisco Carrelhas Cachapuz (UA - Aveiro, Portugal) entre o Planejamento de Ensino e a Comunicação Científica
Attico Inacio Chassot (IPA - Porto Alegre, RS - Brasil) The Phosphoethanolamine in Chemistry Teaching: articulations between
Aureli Caamaño (UB - Barcelona, Espanha) teaching planning and science communication
Edênia Maria Ribeiro do Amaral (UFRPE - Recife, PE - Brasil) Marcelo Giordan, Gabriel S. Gomes, Isabela L. A. Dourado e João G. F. Romeu
Eduardo Fleury Mortimer (UFMG - Belo Horizonte, MG - Brasil)
Eduardo Motta Alves Peixoto (IQ-USP - São Paulo, SP - Brasil) Educação em Química e Multimídia / Chemical Education and
Gisela Hernández (UNAM - Cidade do México, México) Multimedia
Julio Cezar Foschini Lisbôa (GEPEQ-USP - São Paulo, SP - Brasil) 335 Alternate Reality Game (ARG): Breve Histórico, Definições e Benefícios
Lenir Basso Zanon (UNIJUÍ - Ijui, RS - Brasil)
para o Ensino e Aprendizagem da Química
Luiz Henrique Ferreira (UFSCar - São Carlos, SP - Brasil)
Marcelo Giordan (FE-USP - São Paulo, SP - Brasil)
Alternate Reality Game (ARG): Brief History, Definitions and Benefits for
Otávio Aloísio Maldaner (UNIJUÍ - Ijui, RS - Brasil)
the Teaching and Learning Processes of Chemistry
Peter Fensham (QUT - Vitória, Austrália) Maria G. Cleophas
Roberto Ribeiro da Silva (UnB - Brasília, DF - Brasil)
Roseli Pacheco Schnetzler (UNIMEP - Piracicaba, SP - Brasil)
História da Química / History of Chemistry
344 Humphry Davy e a natureza metálica do potássio e do sódio
ASSISTENTE EDITORIAL Humphry Davy and the metallic nature of potassium and sodium
Telma Rie Doi Ducati
Júlia R. Buci e Paulo A. Porto
Giseli de Oliveira Cardoso
Relatos de Sala de Aula / Chemistry in the Classroom
Química Nova na Escola é uma publicação trimestral da
351 Construção de um biodigestor na escola: um estudo de caso
Sociedade Brasileira de Química que tem como local de
fundamentado numa perspectiva Ciência, Tecnologia e Sociedade
publicação a sede da sociedade localizada no (CTS)
Instituto de Química da USP - Construction of a biodigestor in school: a case study based on a
Av. Prof. Lineu Prestes, 748, Bloco 3 superior, sala 371 science, technology and society perspective (STS)
05508-000 São Paulo - SP, Brasil Valéria V. M. Paixão, Carlos H. Batista e Maria C. P. Cruz
Fone: (11) 3032-2299,
Endereço-e: sbqsp@iq.usp.br
360 Atividade investigativa teórico-prática de Química para estimular
práticas científicas
Indexada no Chemical Abstracts, DOAJ, Latindex e EDUBASE
Theoretical-practical inquiry chemistry activity stimulating scientific
Correspondência deve ser enviada para: practices
         Química Nova na Escola Matheus S. B. Silva, Daniel M. Silva e Ana C. Kasseboehmer
         Av. Prof. Lineu Prestes, 748
         05508-000 São Paulo - SP, Brasil 369 O ambiente natural como recurso para promover um ensino
         Fone: (11) 3032-2299 interdisciplinar
         Fax (11) 3814-3602 The natural environment as a resource for promoting interdisciplinary
         Endereço-e: qnesc@sbq.org.br teaching
Química Nova na Escola na internet: Sidnei de Lima Júnior, Diógenes A. de Almeida, Luciana C. C. de Menezes e Roberto
http://qnesc.sbq.org.br Greco
Ensino de Química em Foco / Chemical Education in Focus
Copyright © 2019 Sociedade Brasileira de Química 377 Ser ou Não Ser Professor: Duas Faces de Uma Graduação em Química
Being or Not Being a Teacher: Two Faces of a Bachelor of Chemistry
Para publicação, requer-se que os manuscritos submetidos a esta revista
não tenham sido publicados anteriormente e não sejam submetidos ou pu­
Camila L. Miranda, Julio C. F. Lisbôa e Daisy B. Rezende
blicados simultaneamente em outro periódico. Ao submeter o manuscrito, os O Aluno em Foco / The Student in Focus
autores concordam que o copyright de seu artigo seja transferido à Sociedade
Brasileira de Química (SBQ), se e quando o artigo for aceito para publicação.
386 Tabela Periódica: concepções de estudantes ao longo do ensino médio
O copyright abrange direitos exclusivos de reprodução e distribuição dos
Periodic Table: students’ conceptions through high school
artigos, inclusive separatas, reproduções fotográficas, microfilmes ou quaisquer Nycollas S. Vianna, Camila A. T. Cicuto e Maurícius S. Pazinato
outras reproduções de natureza similar, inclusive traduções. Nenhuma parte
desta publicação pode ser reproduzida, armazenada em bancos de dados ou
Experimentação no Ensino de Química / Practical Chemistry
trans­mitida sob qualquer forma ou meio, seja eletrônico, eletrostático, mecânico, Experiments
por foto­­co­pia­gem, gravação, mídia magnética ou algum outro modo com fins 394 Célula solar na escola: como construir uma célula solar sensibilizada por
comerciais, sem permissão por escrito da detentora do copyright. corantes naturais
Embora todo esforço seja feito pela SBQ, Editores e Conselho Editorial para Solar cell in the school: how to build a dye sensitized solar cell using
garantir que nenhum dado, opinião ou afirmativa errada ou enganosa apa­re­çam natural pigments
nesta revista, deixa-se claro que o conteúdo dos artigos e propagandas aqui
Ivana de S. Christ, Kauana N. de Almeida, Verônica G. de Oliveira, Matheus C. de
publicados são de responsabilidade, única e exclusivamente, dos respec­tivos
autores e anunciantes envolvidos. Consequentemente, a SBQ, o Conselho
Oliveira, Marcos J. L. Santos e Nara R. Atz
Editorial, os Editores e respectivos funcionários, diretores e agentes isentam-se, Cadernos de Pesquisa / Research Letters
totalmente, de qualquer responsabilidade pelas consequências de quaisquer
tais dados, opi­niões ou afirmativas erradas ou enganosas.
399 A Filosofia na Formação de Professores de Química em Minas Gerais:
O que se Mostra nos Componentes Curriculares de Licenciaturas em
Química?
diagramação/capa Philosophy In Teachers’ Education In Minas Gerais State: What Is Shown
Hermano Serviços de Editoração In Curricular Components Of Chemistry Undergraduate Courses?
Robson S. de Sousa, Alexandre R. dos Santos e Maria do C. Galiazzi
Editorial http://dx.doi.org/10.21577/0104-8899.20160170

Novas Diretrizes, velhos problemas


As más notícias para a educação brasileira parecem não ter Sociedade Brasileira de Educação Matemática (SBEM), a
fim. No dia 7 de novembro, o Conselho Nacional de Educação Associação Brasileira de Ensino de Biologia (SBEnBio), entre
aprovou uma resolução que define novas Diretrizes Curriculares muitas outras que se manifestaram contra essa reformulação da
para a Formação Inicial de Professores da Educação Básica. Resolução CNE/CP 02/2015.
Importante lembrar que essa medida vem apenas quatro anos A educação deve acompanhar a dinâmica da sociedade, e
depois da Resolução CNE/CP 02/2015, que trata do mesmo revisões curriculares periódicas são saudáveis e necessárias.
assunto. Ou seja, mal houve tempo para que as Instituições de O que não se pode concordar é que mudanças sejam feitas de
Ensino Superior se adaptassem às Diretrizes anteriores, e tudo maneira apressada e sem justificativas sólidas, ou motivadas por
muda novamente. Pior do que sua extemporaneidade, porém, interesses outros que não os da maioria da população brasileira,
é o próprio conteúdo das novas Diretrizes. de maneira a apenas desorganizar o sistema educacional.
O Parecer que trata da novas Diretrizes inclui um diagnóstico Cumprindo com seus objetivos e dentro de suas possibili-
de algumas das mazelas da educação brasileira. Entre elas, se dades, Química Nova na Escola oferece neste número algumas
aponta a falta de professores de Química e Física com formação contribuições positivas à formação docente na área de química,
adequada, ou seja, com Licenciatura nessas áreas. Também se seja pela disseminação de resultados de pesquisas, seja pelo com-
menciona o “baixo valor social da carreira do magistério no partilhamento de experiências docentes. Nossa seção Relatos de
Brasil”, acompanhado de dados sobre a defasagem salarial sala de aula apresenta três artigos que oferecem exemplos bem
dos professores em relação a outras carreiras de nível superior sucedidos de inovações no ensino, abrangendo tendências atuais,
e de comentários sobre a migração de licenciados para outras como o uso da argumentação (no artigo “Atividade investigativa
profissões. São citados dados estatísticos segundo os quais mais teórico-prática de Química para estimular o desenvolvimento
de 40% dos professores do ensino médio no Brasil trabalham de habilidades argumentativas e resolução de problemas”), a
em duas ou mais escolas, o que evidentemente prejudica seu interdisciplinaridade (“O ambiente natural como recurso para
319
compromisso com os projetos pedagógicos de cada instituição promover um ensino interdisciplinar”) e a experimentação
escolar. Nesse contexto, podemos mencionar um dado do Censo contextualizada (“Biogás na escola: laboratório sustentável e
Escolar 2018 que não consta do referido Parecer, mas que é desenvolvimento crítico numa perspectiva CTS”). A experimen-
relevante: 40% dos professores das redes estaduais de ensino tação auxiliando a reflexão sobre fontes de energia também está
são temporários, o que contribui para a rotatividade de docentes presente no artigo “Célula solar na escola: como construir uma
nas escolas, desvalorização salarial, inexistência de carreira para célula solar sensibilizada por corantes naturais”. Além disso,
esses profissionais e impossibilidade de construção de projetos outros artigos exploram as potencialidades de recursos como
pedagógicos consistentes. jogos multimídia e história da ciência (respectivamente, nos
Diante desses e de outros conhecidos problemas da educação artigos “Alternate reality game [ARG]: breve histórico, defini-
brasileira (como a falta de infraestrutura básica nas escolas pú- ções e benefícios para os processos de ensino e aprendizagem da
blicas, por exemplo), não deixa de ser curioso que um trecho do química” e “Humphry Davy e a natureza metálica do potássio e
Parecer afirme: “a formação docente é o fator mais importante do sódio”) para o ensino. Questões da atualidade são objeto de
para a melhoria da qualidade do ensino e da aprendizagem es- investigação e podem motivar reflexões muito úteis para profes-
colar dos estudantes.” Daí se justificaria a necessidade de novas sores e alunos, nos artigos “A polêmica da fosfoetanolamina no
Diretrizes, na peculiar lógica que orienta o Parecer. ensino de química: articulações entre planejamento de ensino
Um dos aspectos que mais chama a atenção nas novas e a comunicação científica” e “Prêmio Nobel de Química de
Diretrizes é seu caráter restritivo e impositivo, que contraria 2019 – láurea pelo desenvolvimento das baterias de íons lítio”.
até mesmo o que seria um dos fundamentos da Base Nacional Outro exemplo de como resultados de pesquisa podem fornecer
Comum Curricular (BNCC), a saber, a possibilidade de os cur- elementos para que os professores de química repensem o que
rículos se adequarem às diferentes realidades locais existentes ensinam e como ensinam pode ser encontrado no artigo “Tabela
no território brasileiro. O Parecer impõe uma distribuição única Periódica: concepções de estudantes ao longo do ensino mé-
dos conteúdos curriculares e das horas de estágio ao longo dio”. Finalmente, a própria formação de professores é objeto de
dos quatro anos de curso, retirando das instituições de ensino estudo em dois artigos: “A filosofia na formação de professores
superior a liberdade de organizarem seus currículos de acordo de química em Minas Gerais: o que se mostra nos componentes
com projetos pedagógicos próprios e adequados à realidade curriculares de licenciaturas em química?” e “Ser ou não ser
de seus públicos. professor: duas faces de uma graduação em Química”.
Muitas outras críticas poderiam ser dirigidas a essas Que a leitura de mais esta edição sirva de inspiração e alento
Diretrizes, como as que foram produzidas com muita proprie- a todos os educadores em química do Brasil!
dade pela ANPED (Associação Nacional de Pós-Graduação
e Pesquisa em Educação) e por entidades como a Associação Paulo Alves Porto
Brasileira de Pesquisa em Ensino de Ciências (ABRAPEC), Salete Linhares Queiroz
a Sociedade Brasileira de Ensino de Química (SBEnQ), a Editores de QNEsc

Quím. nova esc. – São Paulo-SP, BR. Vol. 41, N° 4, p. 319, NOVEMBRO 2019
Atualidades em Química http://dx.doi.org/10.21577/0104-8899.20160171

Foto: Claus Ableiter (Wikipedia)


Prêmio Nobel de Química de 2019
Láurea pelo Desenvolvimento das Baterias de Íons Lítio

Nerilso Bocchi, Sonia R. Biaggio e Romeu C. Rocha-Filho

O Prêmio Nobel de Química de 2019 foi outorgado aos pesquisadores que desenvolveram as baterias de
íons lítio. Neste artigo, além de se relatar breves biografias dos laureados, são explicadas as contribuições
de cada um deles que levaram à comercialização dessas baterias a partir de 1991.

Prêmio Nobel, baterias de íons lítio, baterias recarregáveis, compostos de intercalação

320
Recebido em 01/11/2019, aceito em 05/11/2019

N
este ano, o Prêmio Nobel de Química foi outorgado nosso planeta mais saudável. Ao mesmo tempo, a energia
a pesquisadores que se dedicaram a investigar uma limpa que é gerada por células solares e moinhos de vento
versão de bateria recarregável que revolucionou a pode ser armazenada pelas baterias de íons lítio.
comunicação e o trabalho em nossa sociedade, desde que ela Os laureados com o Prêmio Nobel de Química de
foi introduzida pela primeira vez no mercado em 1991. Essa 2019 foram os cientistas John B. Goodenough, M. Stanley
bateria, conhecida como bateria de íons lítio, fornece maior Whittingham e Akira Yoshino, que, nas décadas de 1970 e
quantidade de energia se comparada às baterias já existentes 1980, trouxeram inovações à tecnologia conhecida na época
e é, ao mesmo tempo, mais leve para as baterias de lítio conven-
e miniaturizável, podendo ser Essa premiação ocorre em um momento
cionais. Alguns detalhes sobre
utilizada tanto em equipamentos em que muito se destaca, na mídia nacional suas biografias são apresentados
portáteis (celulares, computadores e internacional, a importância de se no Quadro 1.
pessoais, equipamentos médicos, diminuir a emissão de gases oriundos da
etc.) quanto em outros de maior combustão de derivados de petróleo para Baterias recarregáveis
escala, como, por exemplo, os tentar controlar o aquecimento global.
carros elétricos. O emprego dos termos pilha
Essa premiação ocorre em um e bateria tem sido feito indistin-
momento em que muito se destaca, na mídia nacional e in- tamente para descrever sistemas eletroquímicos fechados
ternacional, a importância de se diminuir a emissão de gases que armazenam e liberam energia. Porém, a rigor, uma
oriundos da combustão de derivados de petróleo para tentar “pilha” é um dispositivo que é constituído unicamente de
controlar o aquecimento global. Nesse aspecto, as baterias dois eletrodos (condutores de elétrons) separados por um
recarregáveis são peças fundamentais para o fornecimento de eletrólito (condutor de íons) – as pilhas alcalinas comuns
energia limpa, de emissão zero (em princípio), para manter são exemplos disso. Em contrapartida, uma “bateria” re-
fere-se a um conjunto de pilhas que podem ser agrupadas
A seção “Atualidades em Química” procura apresentar assuntos que mostrem como em série ou em paralelo, para um maior fornecimento de
a Química é uma ciência viva, seja com relação a novas descobertas, seja no que diz potencial ou de corrente, respectivamente (Bocchi et al.,
respeito à sempre necessária revisão de conceitos. 2000).

Quím. nova esc. – São Paulo-SP, BR. Prêmio Nobel de Química de 2019 Vol. 41, N° 4, p. 320-326, NOVEMBRO 2019
Quadro 1: Os laureados

John B. Goodenough
Nasceu em 1922, em Jena, na Alemanha, de pais americanos. Após se formar em Matemática
(1944) pela Universidade de Yale, fez mestrado (1951) e doutorado (1952) na Universidade
de Chicago. Em seguida, por 24 anos foi cientista pesquisador e líder de pesquisas no
Laboratório Lincoln do Instituto de Tecnologia de Massachussets (MIT), no qual participou
de uma equipe multidisciplinar que estabeleceu as bases para o desenvolvimento das
memórias de acesso aleatório (RAM, do Inglês: random access memory), fundamentais
para os computadores digitais. Nesse período, esteve envolvido com investigações sobre
as propriedades de diferentes óxidos de metais de transição, o que seria importante em
sua etapa profissional seguinte. Em 1976, aceitou um convite para se tornar professor e
líder do Laboratório de Química Inorgânica na Universidade de Oxford, na Inglaterra. Foi
aí que o seu grupo de pesquisa demonstrou que cerca de 50% dos íons lítio podiam ser
extraídos/inseridos do/no cobaltato de lítio ou niquelato de lítio sem que suas estruturas se
deformassem, sendo, portanto, excelentes candidatos a material do catodo de baterias de
lítio. Em 1986, ao se aposentar da Universidade de Oxford, ele passou a ser professor nos
departamentos de Engenharia Mecânica e de Engenharia Elétrica da Escola de Engenharia
Cockrell da Universidade do Texas em Austin, onde continua ativo pesquisando materiais
para baterias. Ao ser laureado com o Prêmio Nobel de Química de 2019, aos 97 anos de
idade, tornou-se a pessoa mais idosa a receber um prêmio Nobel. Anteriormente, recebeu
inúmeros outros prêmios e honrarias, sendo membro da Academia Nacional de Engenharia
dos EUA, desde 1976, por “conceber materiais para componentes eletrônicos e explicar
as relações entre propriedades, estrutura e química”, e da Academia Nacional de Ciências
daquele país desde 2012.
M. Stanley Whittingham
Nasceu em 1941, em Nottingham, Inglaterra. Formou-se em Química (1964) na Universi-
dade de Oxford, onde também fez o mestrado (1967) e o doutorado (1968). Em seguida,
321
de 1968 a 1972, esteve envolvido em pesquisas na área de eletroquímica do estado sólido
na Universidade de Stanford. De 1972 a 1984, Whittingham foi cientista pesquisador da
empresa Exxon, na qual, na década de 1970, foi pioneiro em investigações sobre o uso de
compostos de intercalação como material de catodo para baterias de lítio. Após ser diretor
da área de ciências físicas da Schlumberger, a maior empresa prestadora de serviços em
campos petrolíferos, em 1984 passou a ser professor de Química, Ciência dos Materiais e
Engenharia na Universidade Estadual de Nova Iorque em Binghamton, comumente referida
como Universidade de Binghamton. Nessa instituição é o diretor do Centro do Nordeste
para Armazenamento Químico de Energia, um centro de pesquisas de fronteira em energia
financiado pelo Departamento de Energia do governo dos EUA. Nele, continua liderando,
entre outras, pesquisas sobre materiais de intercalação para baterias, com foco em reações
de intercalação multieletrônicas que possam aumentar significativamente a capacidade
específica ao viabilizar a inserção de vários íons lítio (por exemplo, LiVOPO4/VOPO4, em
que o estado de oxidação do vanádio pode variar na faixa de V3+ a V5+. Recebeu diversos
prêmios e honrarias, sendo membro da Academia Nacional de Engenharia dos EUA desde
2108 “por ter sido pioneiro na aplicação de materiais de intercalação como materiais de
armazenamento de energia”.
Akira Yoshino
Nasceu em 1948, em Suita, Japão. Formou-se em Engenharia (1970) na Universidade de
Kyoto, onde também fez o mestrado em Engenharia (1972). Só obteve o seu título de doutor
em Engenharia em 2005, na Universidade de Osaka. Ainda em 1972, passou a fazer parte
do grupo de pesquisadores da empresa Asahi Kasei, na qual ocupou diversas posições e,
desde abril de 2010, é o presidente do Centro de Avaliação e Tecnologia de Baterias de Íons
Lítio (LIBTEC), sendo confrade (fellow) honorário da empresa, desde outubro de 2017. Na
década de 1980, liderou investigações para criar uma nova bateria recarregável e prática
com eletrólito não aquoso, o que levou à concepção da bateria de íons lítio, culminando
em um protótipo funcional em 1986, com material de intercalação de carbono (coque)
no anodo. Yoshino é professor da Escola de Pós-Graduação em Ciência e Tecnologia da
Universidade Meijo, desde julho de 2017, e mais recentemente (desde junho de 2019)
tornou-se professor visitante do Centro de Pesquisa e Educação para Tecnologias Verdes
da Universidade Kyushu. Recebeu diversos prêmios e honrarias no Japão e no exterior.
Após ser laureado com o prêmio Nobel, suas contribuições à ciência e tecnologia foram
reconhecidas novamente com sua admissão à Ordem da Cultura, honraria conferida pelo
imperador japonês.

Quím. nova esc. – São Paulo-SP, BR. Prêmio Nobel de Química de 2019 Vol. 41, N° 4, p. 320-326, NOVEMBRO 2019
Quando os terminais dos eletrodos de uma pilha ou bate- mais frequentemente denominada de capacidade específica
ria são conectados a um aparelho elétrico, uma corrente flui (A h kg–1), pelo potencial de célula médio (V), cujos valores
pelo circuito externo (vide Figura 1), pois o material de um são 2,0 V e 4,0 V para as baterias chumbo/ácido e de íons
dos eletrodos (anodo ou eletrodo negativo) oxida-se espon- lítio, respectivamente.
taneamente liberando elétrons, enquanto o material do outro Um breve histórico sobre como surgiram as baterias de
eletrodo (catodo ou eletrodo positivo) reduz-se espontanea- íons lítio, o princípio de seu funcionamento e a evolução
mente utilizando esses elétrons. Um material microporoso, em tecnologia para garantir maior fornecimento de energia,
embebido no eletrólito, é utilizado como separador para segurança ao usuário e ao meio ambiente é feito a seguir.
impedir que ocorra curto-circuito entre os eletrodos.
Baterias de lítio e de íons lítio

Em meados do século XX, as limitações das baterias


então utilizadas inspiraram a busca por outras configura-
ções que pudessem fornecer maiores valores de capacidade
específica e de energia específica e, assim, o lítio tornou-se
um alvo importante. Isso porque esse metal apresenta exce-
lentes propriedades para aplicação como um dos eletrodos
de bateria: é o mais leve dos metais (densidade 0,53 g cm–3)
e seu potencial de eletrodo padrão é bastante negativo (–3,05
V vs. EPH – eletrodo padrão de hidrogênio), o que o tornou
atraente para ser empregado como anodo em baterias com
altos valores de potencial de célula e energia específica.
Entretanto, o lítio metálico é muito reativo, não podendo
Figura 1: Elementos que definem uma pilha ou bateria em regime estar em contato com a água ou com o ar. Consequentemente,
espontâneo de descarga: anodo ou eletrodo negativo; catodo
322 eletrólitos não aquosos tiveram que ser desenvolvidos.
ou eletrodo positivo; eletrólito; separador microporoso; circuito
externo que permite a utilização do fluxo de elétrons. (Adapta- O princípio de funcionamento das baterias recarregáveis
ção de figura de ©Johan Jarnestad/Academial Real Sueca de de lítio envolve, durante seu descarregamento/carregamento,
Ciências, 2019). processos de inserção/extração de íons lítio para/de uma ma-
triz hospedeira (material de eletrodo), também denominada
Baterias recarregáveis são aquelas que podem ser reuti- de composto de intercalação (ou inserção). Esse processo de
lizadas muitas vezes pelos usuários. Isso é possível quando inserção/extração de íons lítio, acompanhado por um fluxo
os processos de oxidação e redução que ocorrem nos ele- de íons lítio através do eletrólito, decorre de uma reação de
trodos são reversíveis. Como regra geral, como ressaltado redução/oxidação da matriz hospedeira com consumo/libe-
por Bocchi et al. (2000), uma bateria pode ser considerada ração de elétrons de/para um circuito externo. Esse conceito
recarregável quando é capaz de suportar no mínimo 300 foi primeiramente demonstrado por Whittingham, em 1976,
ciclos completos de carregamento e descarregamento, com para uma bateria recarregável de lítio constituída por um
pelo menos 80 % da sua capacidade de armazenamento de catodo de dissulfeto de titânio (TiS2), um anodo de lítio me-
carga elétrica inicial. Em nosso cotidiano, como exemplos tálico (Li) e um eletrólito não aquoso (Whittingham, 1976).
mais comuns temos as baterias recarregáveis de chumbo/ A Figura 2 apresenta um esquema dessa primeira versão de
óxido de chumbo (chumbo/ácido, uma bateria recarregável de lítio.
comumente usada nos automóveis Baterias recarregáveis são aquelas que O dissulfeto de titânio é um
de motor a combustão), de hidre- podem ser reutilizadas muitas vezes composto de intercalação, já
to metálico/óxido de níquel, de pelos usuários. Isso é possível quando os que apresenta estrutura lamelar.
sódio/enxofre, de íons lítio, etc. processos de oxidação e redução que Durante o descarregamento (es-
Essas baterias apresentam ocorrem nos eletrodos são reversíveis. pontâneo) da bateria proposta por
diferentes capacidades de arma- Whittingham, ocorre a reação de
zenamento e fornecimento de redução de íons Ti4+ para Ti3+ e,
carga/energia elétrica (para contextualização, lembre que consequentemente, íons lítio (Li+) são inseridos entre as
a carga de um mol de elétrons é ~96,5 kC). Por exemplo, camadas de sulfeto na estrutura do composto para a devida
considerando 1 kg do dispositivo, as atuais baterias chumbo/ compensação de carga elétrica no material. Durante o carre-
ácido comerciais podem fornecer até 25 A h (90 kC) de carga gamento (não espontâneo), ocorre o processo inverso, isto é,
elétrica e 50 W h (180 kJ) de energia, enquanto que esses a reação de oxidação de íons Ti3+ para Ti4+ com a consequente
valores chegam a 62,5 A h (225 kC) e 250 W h (900 kJ), extração de íons lítio da estrutura do TiS2. A manutenção
respectivamente, para as baterias de íons lítio. Vale lembrar da estrutura lamelar do TiS2 intata ao longo de vários ciclos
que a energia específica (W h kg–1) de um dispositivo ele- de carregamento/descarregamento garante a reversibilidade
troquímico é dada pelo produto da carga elétrica específica, deste processo. O potencial de célula dessa primeira bateria

Quím. nova esc. – São Paulo-SP, BR. Prêmio Nobel de Química de 2019 Vol. 41, N° 4, p. 320-326, NOVEMBRO 2019
menor que 2,5 V em relação ao anodo de Li em solução não
aquosa contendo íons Li+. Consequentemente, com o intuito
de aumentar a energia específica fornecida por uma bateria
de lítio, ou seja, maiores valores de potencial de célula e
capacidade específica, diversos pesquisadores, dentre eles
Goodenough, estudaram alguns óxidos como material de ca-
todo no início da década de 1980 (Goodenough et al., 1980),
e mais extensivamente na década de 1990. Com isso, foram
propostas diversas matrizes hospedeiras de óxidos de metais
de transição (geralmente com estados de oxidação variados)
com estruturas bi e tridimensionais que também permitem a
intercalação de íons lítio. Valores de potencial de célula de
Figura 2: Representação esquemática da bateria de lítio proposta até cerca de 5 V em relação ao Li/Li+ foram obtidos, como
por Whittingham, em 1976, na qual o anodo era lítio metálico,
o catodo um monocristal de dissulfeto de titânio (um composto
ilustrado na Figura 3. Dela, por exemplo, pode-se inferir
de intercalação), e o eletrólito uma solução de hexafluorofosfato que o cobaltato de lítio, LixCoO2, originalmente sugerido
de lítio (LiPF6) em carbonato de propileno. (Adaptação de figura como possível material de catodo pelo grupo de Goodenough
de ©Johan Jarnestad/Academial Real Sueca de Ciências, 2019). (Mizushima et al., 1980), pode apresentar um potencial de
célula de até cerca de 4,5 V e capacidade específica próxima
de lítio proposta por Whittingham, dado pela diferença entre de 150 A h kg–1.
os potenciais de eletrodo dos materiais usados como catodo Apesar das baterias recarregáveis de lítio fornecerem
(TiS2) e anodo (Li), era da ordem de 2,5 V. altos valores de capacidade específica ao se usar óxidos
Com a demonstração do conceito de bateria recarregável metálicos como material do catodo, a sua comercialização
de lítio usando TiS2 como catodo, diversos outros sulfetos, apresentou problemas devido ao anodo de lítio metálico.
selenetos e teluretos foram investigados como material Dada a reatividade química desse metal, depósitos não uni-
de catodo, ainda na década de 1970, como revisado por formes (dendríticos) de lítio tendem a ser formados durante 323
Whittingham e Jacobson (1982). Entretanto, a grande maio- o carregamento da bateria. Tais depósitos podem provocar
ria desses materiais apresentou valor de potencial de célula o fim da vida da bateria por curto-circuito (dendritos do

Figura 3: Ilustração esquemática de diferentes materiais de eletrodo em termos de potencial de célula e capacidade específica, que
podem ser usados na montagem de baterias de lítio ou de íons lítio: mais positivos (em vermelho) para catodo, e menos positivos (em
azul) para anodo. Para melhor clareza da ilustração, nela não foram incluídos o lítio metálico e o coque litiado (LiyC) por apresentarem
altos valores de capacidade específica (3861 A h kg–1 e 600 A h kg–1, respectivamente); os valores de potencial de célula desses
materiais são 0 V e ~0,4 V vs. Li/Li+. (Adaptação de figura do artigo de Goodenough e Kim, 1980).

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depósito atingem o catodo), bem como sérios problemas íons lítio puderam ser intercalados de maneira repetitiva e
de segurança devido ao demasiado aquecimento local e a eficiente no material.
possibilidade de ocorrerem incêndios (Academia Real Sueca Alguns anos depois, descobriu-se que a grafite também
de Ciências, 2019). poderia ser utilizada como material de anodo, desde que
Essas dificuldades associadas à utilização de lítio metáli- combinada com um eletrólito adequado (Fong et al., 1990).
co como anodo impulsionaram o desenvolvimento das bate- Ao empregar solventes contendo carbonato de etileno,
rias recarregáveis de íons lítio, constituídas por compostos uma interfase de eletrólito sólido (SEI, do Inglês: solid
de intercalação tanto para o material de catodo como para o electrolyte interphase) era formada na superfície do anodo
material de anodo. Além disso, na década de 1980, a busca de grafite durante os primeiros ciclos de carregamento/
pela indústria de eletroeletrônicos no Japão por baterias mais descarregamento, a qual passava a proteger o material de
leves e recarregáveis motivou as pesquisas sobre materiais carbono da esfoliação e consequente decomposição. Essa
carbonáceos para o anodo. descoberta foi rapidamente adotada pela comunidade e,
Nessa época, quando Akira Yoshino pensou em produzir consequentemente, uma nova geração de baterias de íons
uma bateria recarregável funcional, utilizou LixCoO2 como lítio foi desenvolvida, baseada na grafite como material
catodo e testou vários materiais de anodo (baterias com poten-
de carbono como anodo. Sabia-se cial de célula de 4,2 V e energia
As dificuldades associadas à utilização de
que íons Li+ poderiam ser interca- lítio metálico como anodo impulsionaram o específica de aproximadamente
lados nas camadas moleculares desenvolvimento das baterias 150 W h kg–1).
da grafite, mas esta se mostrou recarregáveis de íons lítio, constituídas por A primeira bateria de íons
instável no eletrólito da bateria (a compostos de intercalação tanto para o lítio comercial foi lançada pela
intercalação concomitante de es- material de catodo como para o Sony em 1991, tendo o cobaltato
pécies do eletrólito levava à esfo- material de anodo. de lítio (LixCoO2) como material
liação e destruição dos anodos de de catodo e grafite litiada (LiyC)
grafite). Nesse contexto, o grande como material de anodo. Essa
324 avanço proposto por Yoshino e colaboradores ocorreu em estratégia exigiu escolhas cuidadosas de pares de materiais
1985, quando reduziram eletroquimicamente uma amostra de de catodo e anodo da bateria, a fim de se obter um poten-
coque (comumente, um subproduto da indústria de petróleo) cial de célula de pelo menos 3 V e uma razoável energia
e os íons lítio foram atraídos para dentro do material. Na específica, sem aumentar indevidamente sua massa ou seu
sequência, ao usar o coque litiado como anodo da bateria, os volume (Manthiram, 2009). Dentre os diversos compostos
elétrons e os íons lítio fluíram espontaneamente em direção de intercalação, o cobaltato de lítio (LixCoO2), o niquelato
ao óxido de cobalto no catodo, dando origem assim a uma de lítio (LixNiO2), o manganato de lítio (LixMn2O4), ou
bateria leve, estável, com alta capacidade específica e com combinações destes últimos, bem como o fosfato de lítio e
um potencial de célula de incríveis 4 V (Yoshino et al., 1985). ferro (LixFePO4), com potenciais de célula no intervalo de
Os domínios cristalinos do coque teriam sido protegidos da 3 a 5 V vs. Li/Li+ (vide Figura 3), são os mais comumente
esfoliação pelas regiões amorfas no seu entorno e, assim, os empregados como material de catodo.

Figura 4: Representação esquemática do processo de descarregamento em uma bateria recarregável de íons lítio que emprega com-
postos de intercalação como materiais de catodo (LixCoO2, onde x = 0,55) e anodo (grafite – LiyC, onde y = 0,17) – veja a Equação
1. Eletrólito: comumente o hexafluorofosfato de lítio (LiPF6) dissolvido em uma concentração de 1 mol L–1 numa mistura 1:1 (V/V) dos
solventes orgânicos carbonato de etileno e carbonato de dimetila. (Adaptação de figura do artigo de Bruce, 2008).

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Por outro lado, a grafite e o coque, com baixa densidade íons lítio e ser isolante eletrônico, a fim de evitar curto-
e potencial menor que 0,5 V vs. Li/Li+, têm sido os materiais -circuito interno. Também deve ter estabilidade química,
mais utilizados como anodo em baterias de íons lítio, como não reagir com os materiais de eletrodo e os seus riscos
ilustrado na Figura 4. Nesse caso, durante o processo de de aquecimento e explosão serem mínimos (Manthiram,
descarregamento da bateria (processo espontâneo), os íons 2009). Nas últimas décadas, as pesquisas sobre possíveis
lítio migram do anodo de grafite litiada (LiyC) para o catodo eletrólitos apresentaram bastante progresso, buscando-se
de cobaltato de lítio (LixCoO2) através do eletrólito, e os sempre alternativas para melhorar a segurança dos usuários
elétrons fluem através do circuito externo. Sendo o material das baterias de íons lítio. Nesse sentido, eletrólitos alter-
de catodo relativamente estável no eletrólito, essa bateria de nativos têm sido propostos, tais como poliméricos sólidos,
íons lítio apresenta um número alto de ciclos repetitivos de poliméricos géis, sólidos inorgânicos, líquidos iônicos e
carregamento e descarregamento (em torno de 1000 ciclos), soluções aquosas superconcentradas.
com boa manutenção da capacidade específica inicial. A Com relação aos materiais dos eletrodos, especial
equação química que representa a reação global dessa bateria atenção tem sido dada aos materiais nanoestruturados, já
de íons lítio é (Oldham et al., 2012): que fornecem maior área superficial com caminhos mais
curtos para os transportes eletrônico e iônico e, consequen-
temente, a possibilidade de reações mais rápidas. Com isso,
espera-se que muitas outras descobertas importantes em
tecnologia de baterias estejam por vir. Ademais, a enge-
(1) nharia envolvida na concepção e fabricação da bateria tem
um papel crítico para o seu desempenho global. Por fim,
Considerações finais os custos de matéria prima e fabricação, a segurança dos
usuários, os aspectos ambientais e de reciclagem também
Não há dúvida que o empenho nas pesquisas sobre são fatores importantes tanto para a escolha de materiais
os materiais de intercalação para o catodo (lideradas por quanto para a concepção da bateria.
Whittingham e Goodenough) e sobre os materiais carboná- Sem dúvida alguma, as baterias de íons lítio estabele- 325
ceos com intercalação de íons Li+ para o anodo (lideradas ceram um marco para a consolidação de uma sociedade
por Yoshino) viabilizou o lançamento comercial das baterias altamente conectada (sem fio) e cada vez mais livre dos
de íons lítio em 1991. O imediato sucesso dessas baterias e combustíveis fósseis, o que poderá trazer um imenso bene-
posteriores melhorias levaram a sua grande utilização nos fício para a humanidade e para o planeta.
dias atuais, trazendo um enorme impacto em nosso mundo
e modo de vida, pois estão onipresentes em dispositivos Agradecimentos
móveis sem fio (celulares, notebooks, etc.). Além disso,
estão em veículos elétricos com crescentes autonomias, Agradece-se o apoio da CAPES – Coordenação de
veículos híbridos, patinetes e ferramentas elétricas, sistemas Aperfeiçoamento de Pessoal de Ensino Superior (código
de armazenamento de energia a bateria (para nivelamento de de financiamento 001), CNPq – Conselho Nacional de
demanda de energia elétrica ou armazenamento de energia Desenvolvimento Científico e Tecnológico, e FAPESP –
gerada fora de horários de pico), etc. Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo,
Entretanto, cabe lembrar que, além de características por meio de bolsas e auxílios concedidos.
intrínsecas dos compostos de intercalação usados como
materiais de eletrodos, outros quesitos são igualmente
importantes para a concepção de uma bateria recarregável Nerilso Bocchi (bocchi@ufscar.br), Sonia R. Biaggio (biaggio@ufscar.br) e Romeu C.
Rocha-Filho (romeu@ufscar.br), licenciados em Química pela UFSCar, mestres em
de íons lítio de alto desempenho e longa vida útil. Dentre Físico-Química e doutores em Ciências (Físico-Química) pela USP, são docentes
esses quesitos destaca-se o eletrólito empregado nessas do Departamento de Química da UFSCar, onde são membros do Laboratório de
baterias. Ele deve apresentar alta condutividade para os Pesquisas em Eletroquímica (www.ufscar.br/lape). São Carlos, SP – BR.

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www.cetem.gov.br/iii-seminario-litio-brasil, acessada em outubro
de 2019. https://batteryuniversity.com

Abstract: The Nobel Prize in Chemistry 2019 – Laurel for the Development of Lithium-Ion Batteries. The Nobel Prize in Chemistry 2019 was awarded to the
researchers who developed lithium-ion batteries. In this paper, besides reporting brief biographies of the laureates, the contributions of each one of them that
led to the commercialization of these batteries starting in 1991 are explained.
Keywords: Nobel prize, lithium-ion batteries, rechargeable batteries, intercalation compounds.

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Química e Sociedade http://dx.doi.org/10.21577/0104-8899.20160172

A Polêmica da Fosfoetanolamina no Ensino de Química:


Articulações entre o Planejamento de Ensino e a
Comunicação Científica

Marcelo Giordan, Gabriel Saraiva Gomes, Isabela Lima Autran Dourado e


João Gabriel Farias Romeu

Uma das principais preocupações concernentes ao ensino de Química é que os alunos compreendam seus
processos e produtos bem como as formas de comunicação utilizadas para divulgá-los à população. Assim,
compreender e problematizar o papel dos meios de comunicação quando do estudo de temas sociocientíficos
é uma atividade que pode ser considerada na estruturação de planos de ensino. O presente artigo toma a
polêmica da liberação da fosfoetanolamina para tratamento do câncer no Brasil no ano de 2016 como tema
de interface entre interesses científicos e sociais para suscitar discussões sobre como aspectos da comuni-
cação científica podem ser articulados ao planejamento de ensino de forma a contemplar os objetivos de
problematizá-la e a fomentar o pensamento crítico em sala de aula.
327
fosfoetanolamina, comunicação científica, planejamento de ensino

Recebido em 12/12/2018, aceito em 14/04/2019

A Abordagem Sociocientífica no Planejamento de Ensino modo a considerar a compreensão e problematização sobre


seus meios de divulgação. Giordan (2013) propõe, então, o
Um dos objetivos para o ensino de Ciências é a compreen- Modelo Topológico de Ensino (MTE) como um modelo de
são de sua natureza e de seus meios de divulgação. Assim, organização do ensino pautado em três eixos estruturantes:
além da ação docente para a efetivação e implementação de atividade, conceito e tema sociocientífico. Por esse modelo,
tal objetivo, torna-se esse também as atividades de ensino são toma-
objeto de pesquisa e tema para a Uma possível forma de aliar a pesquisa das como unidades estruturadoras
formação inicial e continuada de em educação científica aos processos do planejamento nas quais os es-
professores. Uma possível forma formativos é o estudo do planejamento de tudantes operam com os conceitos
de aliar a pesquisa em educação ensino e sua organização. como ferramentas culturais de
científica aos processos formati- mediação a fim de compreender
vos é o estudo do planejamento um tema sociocientífico, a partir
de ensino e sua organização. Assumindo-se que, ao longo do qual se constrói uma problemática capaz de articulá-las.
de sua formação, os docentes aprendem a unir a capacidade Nelas, são desenvolvidos os conteúdos conceituais, atitudi-
de pesquisa à capacidade de organizar o ensino, podemos nais e procedimentais relacionados à compreensão do tema
afirmar que esse elemento articulador se constitui como e à proposição de soluções para o problema construído pelo
importante ferramenta de aprimoramento e reflexão da ação professor. Nesse sentido, a divulgação científica ocupa lugar
docente (Guimarães e Giordan, 2011). de destaque na elaboração dos planos de ensino, exatamente
A partir dessa proposição é necessário pensar em mo- por contribuir para a elaboração de um problema circunstan-
delos de planejamento de ensino nos quais seja possível ciado ao tema sociocientífico. Dessa forma, podemos afirmar
inserir a dimensão discursiva da produção científica de que levar temas sociocientíficos para a sala de aula permite
satisfazer as condições de organização de ensino por meio
A seção “Química e Sociedade” apresenta artigos que focalizam diferentes inter-relações de diversas atividades propostas com base no MTE, bem
entre Ciência e sociedade, procurando analisar o potencial e as limitações da Ciência como incorporar às aulas os objetivos de problematização
na tentativa de compreender e solucionar problemas sociais. da natureza da Ciência e suas formas de comunicação.

Quím. nova esc. – São Paulo-SP, BR. A Polêmica da Fosfoetanolamina no Ensino de Química Vol. 41, N° 4, p. 327-334, NOVEMBRO 2019
Pérez e Carvalho (2012, p. 729) caracterizam os temas construção de planos de ensino articulados por problemas
sociocientíficos como aqueles que “abrangem controvérsias sociocientíficos.
sobre assuntos que estão relacionados com conhecimentos
científicos da atualidade e que, portanto, em termos gerais, A Polêmica da Fosfoetanolamina
são abordados nos meios de comunicação de massa (rádio,
TV, jornal e internet)”. Ratcliffe e Grace (2003) acrescentam A cura do câncer é um dos grandes desafios da medicina
a essa definição o fato de que é justamente a veiculação de atual: estimativas do Instituto Nacional do Câncer apontavam
tais questões na mídia direcionada à grande população que que a doença afetaria aproximadamente 600 mil brasileiros
faz com que estas questões adquiram o seu caráter contro- para o biênio 2016-2017 (Instituto Nacional do Câncer,
verso, visto que se trata, na maioria das vezes, de aspectos 2015). Infelizmente, perspectivas para cura definitiva da
cujo desenvolvimento se encontra incompleto. Assim, a falta doença ainda não são um tema resolvido e completamente
de informações e evidências concretas sobre o tema leva à desenvolvido pela comunidade médica. O anseio por uma
divisão de opiniões pelo público leigo. alternativa rápida e eficiente de cura para pacientes oncoló-
Uma controvérsia de grande gicos é, então, amplamente com-
relevância no ano de 2016 e que partilhado por pessoas acometidas
O presente artigo tem por objetivo geral
dividiu a sociedade foi a liberação pela doença, familiares e pelos
apresentar e discutir como a polêmica
da fosfoetanolamina, princípio da fosfoetanolamina pode ser levada à
próprios médicos. Assim, a pro-
ativo da denominada “Pílula do sala de aula como tema sociocientífico, messa de cura oferecida pelo uso
Câncer”, para a utilização pela a partir de um processo sistematizado de novas substâncias ganha desta-
população acometida pela doen- de planejamento de ensino, no intuito que quando um novo candidato a
ça, sem o devido aval do órgão de suscitar discussões acerca do droga anti-câncer é desenvolvido.
responsável pela regulamenta- funcionamento da Ciência e da sua Em nosso país, tal aspecto pôde
ção e aprovação da distribuição relação com interesses políticos, sociais e ser presenciado, sobretudo, no ano
de medicamentos no Brasil, a econômicos. de 2016, quando a veiculação de
328 Agência Nacional de Vigilância notícias sobre a suposta eficácia
Sanitária (Anvisa). O aspecto da fosfoetanolamina como trata-
controverso da utilização da fosfoetanolamina se deu, então, mento para o câncer tomou conta de diferentes meios de
pela ampla divulgação, tanto nas redes sociais quanto nos comunicação.
meios de comunicação, de relatos de pacientes que fizeram A fosfoetanolamina é uma substância orgânica produzida
uso da droga. Portanto, utilizar esse caso como proposta por mamíferos de forma natural e presente como metabólito
de ensino para discutir as características da comunicação no organismo, sendo que estudos canadenses realizados já na
científica em sala de aula é de grande valia para a educação década de 1930 mostraram que a substância foi isolada pela
científica dos futuros cidadãos. primeira vez de tumores malignos bovinos (Outhouse, 1936).
O presente artigo tem por objetivo geral apresentar e No âmbito nacional, ao realizar experimentos sobre comple-
discutir como a polêmica da fosfoetanolamina pode ser xação de íons metálicos, o professor Gilberto Chierice, do
levada à sala de aula como tema sociocientífico, a partir Instituto de Química de São Carlos da Universidade de São
de um processo sistematizado de planejamento de ensino, Paulo (IQSC/USP), teve sua atenção tomada pelos estudos
no intuito de suscitar discussões acerca do funcionamento que ligavam a substância ao câncer e, na década de 1990,
da Ciência e da sua relação com interesses políticos, so- passou a sintetizá-la em seu laboratório. Em 1995, Chierice
ciais e econômicos. Especificamente, almejamos discutir efetivou um convênio com o Hospital Amaral Carvalho (Jaú,
como diferentes meios de comunicação (revistas, textos SP), onde distribuía pílulas com a substância para pacientes
de divulgação científica, artigos de periódicos científicos) oncológicos sem o devido aval de um órgão regulatório. Em
podem ser inseridos em sequências didáticas para que os sua defesa, Chierice afirma que o acordo com o hospital foi
alunos reconheçam as diferenças entre eles, em termos de firmado antes da criação da Anvisa. O hospital nega qual-
gêneros textuais, audiência e profundidade na abordagem quer convênio supostamente firmado com o laboratório do
do tema, e desenvolvam critérios para reconhecer e sele- químico (Pivetta, 2016).
cionar os veículos de comunicação adequados ao consumo Chierice e seu grupo passaram a produzir e a distribuir as
crítico de informação. Para tanto, inicialmente, apresenta- cápsulas de forma autônoma quando o suposto convênio com
remos a polêmica da fosfoetanolamina e posteriormente o hospital foi descontinuado. O grupo do professor afirma
a sequência didática (SD) intitulada “A Pílula do Câncer que chegou a produzir cerca de 40 mil cápsulas, suficientes
Desmitificada: Entre a Mídia e a Ciência”, desenvolvida para 800 pessoas, com as quais uma melhora significativa
segundo os pressupostos teóricos do MTE e aplicada por um supostamente havia sido notada. Estudos realizados pelo
grupo de estudantes do curso de Licenciatura em Química Instituto de Química da Universidade Estadual de Campinas
da Universidade de São Paulo na disciplina de Metodologia (IQ/Unicamp) comprovaram que as cápsulas distribuídas
de Ensino de Química ao longo do ano letivo de 2016, tinham apenas 32,2% de fosfoetanolamina, sendo o resto de
com foco nos aspectos de comunicação científica e de sua composição fosfatos diversos, monoetanolamina, água e

Quím. nova esc. – São Paulo-SP, BR. A Polêmica da Fosfoetanolamina no Ensino de Química Vol. 41, N° 4, p. 327-334, NOVEMBRO 2019
outros minerais em menor quantidade (Pivetta, 2016). se informar. As autoras verificaram que trazer à tona questões
Em dezembro de 2013, o professor Chierice aposen- sociocientíficas pode ser um excelente elemento balizador
tou-se compulsoriamente da USP por ter completado 70 do ensino no sentido de promover uma melhor formação
anos de idade. Nos anos seguintes, a universidade proibiu científica e tecnológica dos alunos. Além disso, destacam o
a disponibilização de medicamentos sem o aval da Anvisa, papel do professor como problematizador das informações
mas pacientes com câncer buscaram liminares na justiça que chegam aos alunos pelos meios de comunicação.
para continuar a receber as cápsulas. Em março de 2016, Conceição e Faro (2017) apresentaram um estudo realiza-
a Câmara dos Deputados aprovou um projeto de Lei que do acerca de uma sequência de ensino aplicada a alunos das
permitia a produção, importação, distribuição e prescrição segunda e terceira séries do Ensino Médio em uma escola
da fosfoetanolamina sintética. Em maio do mesmo ano, o pública de Sergipe, cujas aulas estavam organizadas em
Supremo Tribunal Federal votou pela extinção desta lei sob torno da polêmica. Foram propostas aos alunos atividades
os seguintes argumentos: não havia testes suficientes que de leitura e discussão de textos, além de exibição de vídeos
provassem que a substância era segura e eficaz; além disso, para discussão sobre o tema. Para tanto, além da sequência
o Congresso invadira a competência da Anvisa (Universidade de aulas, atividades de pesquisa e análise SWOT1 foram
de São Paulo, 2016). empregadas para avaliar o desenvolvimento dos alunos com
Com relação à sua ação antitumoral, sugere-se que a relação ao tema. As autoras concluíram que a proposta de
fosfoetanolamina atua no organismo como um marcador de ensino foi eficiente em termos de desenvolvimento de habili-
células defeituosas, induzindo sua apoptose, isto é, a morte dades de argumentação, pesquisa e resolução de problemas, e
celular programada (Ferreira et al., 2013), tratando-se, por- sugerem o trabalho com a Química farmacêutica como forma
tanto, de uma terapia alternativa à quimio e radioterapias con- de relacionar a polêmica com a Química escolar.
vencionais. Apesar de não terem surgido indícios negativos Na esfera do Ensino Superior, Pitanga, Santos e Ferreira
de uma possível toxicidade, nenhum efeito sobre as células (2017) utilizaram a problemática como proposição de um
tumorais foi provado. Discute-se ainda a possibilidade de estudo de caso para alunos de pós-graduação de um curso de
se utilizar a fosfoetanolamina sintética sob uso compassivo, especialização lato sensu em Educação Química. O estudo
isto é, a utilização, por pacientes que já esgotaram as possi- foi realizado com base na produção de textos dissertativos 329
bilidades da medicina, de um medicamento cuja eficácia e e o instrumento de análise SWOT, bem como na leitura e
segurança não foram comprovadas por testes clínicos. Nos discussão de textos sobre a polêmica. Os autores verificaram
Estados Unidos, 85% dos pacientes oncológicos fazem, por que os alunos não tinham conhecimento completo sobre o
exemplo, uso de alguma terapia alternativa por conta própria. tema, nem da metodologia de estudo de caso como estratégia
de ensino, e concluíram que o desenvolvimento da proposta
A Fosfoetanolamina na Sala de Aula ocasionou melhoria na argumentação dos estudantes.
Verifica-se que a polêmica em torno do tema da Pílula
A polêmica da fosfoetanolamina, quando vista sob viés do Câncer ganhou repercussão nas salas de aula a partir
científico, pode ser trabalhada em sala de aula de diversas de metodologias alheias à didática geral e específica das
formas, como será discutido. Com o objetivo de fomentar o ciências, entre as quais o professor é alçado à condição de
senso crítico dos alunos, o tema permite trabalhar conteúdos problematizador. No entanto, carecem de aprofundamento,
químicos gerais (como química nos trabalhos citados, aspectos so-
orgânica e ligações intermolecula- bre o planejamento de ensino, em
Com o objetivo de fomentar o senso crítico
res), e possibilita um estudo sobre particular sobre como os meios
dos alunos, o tema permite trabalhar
diferentes formas de comunicação conteúdos químicos gerais (como química
de comunicação de massa e da
científica, já que informações orgânica e ligações intermoleculares), e comunidade científica podem ser
sobre o assunto são constante- possibilita um estudo sobre diferentes criteriosamente mobilizados para
mente veiculadas na mídia, por formas de comunicação científica, já promover a articulação entre os
revistas de divulgação e também que informações sobre o assunto são conteúdos químicos e, por exem-
por revistas da comunidade cien- constantemente veiculadas na mídia, por plo, as competências de leitura e
tífica. Assim, o assunto pode ser revistas de divulgação e também por produção de texto. Na direção de
encarado como forma eficiente de revistas da comunidade científica. suprir tais lacunas, apresentamos a
engajar os alunos em atividades seguir uma visão geral sobre uma
estruturadas de ensino a partir de sequência didática (SD), cujos
um problema de natureza científica e de alto interesse social princípios de desenvolvimento se amparam na problemati-
e econômico. zação de temas sociocientíficos.
Moreira e Pedrancini (2017) utilizaram a polêmica para
avaliar o conhecimento prévio com relação à problemática, A Fosfoetanolamina no Planejamento de Ensino
em uma turma do oitavo ano do Ensino Fundamental de uma
escola pública localizada no Mato Grosso do Sul, bem como A SD, planejada de acordo com os pressupostos teóricos
estudar a quais meios de divulgação os alunos recorrem para do MTE apresentados anteriormente, está estruturada em

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7 aulas na forma de um minicurso, cuja aplicação foi divi- em cada atividade – neste caso, de modo a destacar a polê-
dida em duas tardes. O plano aborda, além dos conteúdos mica gerada pelos meios de comunicação em massa.
conceituais de Química e da polêmica da fosfoetanolamina,
atividades que lançam mão de softwares de simulação da A Fosfoetanolamina e a Divulgação Científica
estrutura de compostos químicos, experimentos didáticos
sobre separação de misturas, aspectos das representações A primeira aula que aborda com mais profundidade as
semióticas utilizadas pelos químicos e pelos meios de di- questões relativas à divulgação científica está estruturada em
vulgação e comunicação científica2. quatro atividades. Inicialmente, apresentam-se brevemente
Com o objetivo geral de fomentar o senso crítico dos os gêneros de divulgação científica, contextualizando-os
estudantes, de modo a desenvolver sua capacidade de jul- historicamente no Brasil, desde as origens do chamado “jor-
gamento e posicionamento crítico em relação a um tema nalismo científico”, entre as décadas de 1970 e 1980, até os
sociocientífico, a SD se inicia com a construção do problema dias atuais (Bueno, 2009). Nessa etapa, o objetivo principal
a partir de um breve esclarecimento sobre a polêmica da não é apenas fornecer um panorama da história desses gêne-
“Pílula do Câncer” e seu confronto com as ideias prévias ros, mas também explicitar as diferenças entre a linguagem
dos estudantes acerca da doença e da própria polêmica. Em científica e a linguagem midiática, o grau de profundidade
seguida, desenvolve-se uma exposição oral sobre a origem dos conteúdos abordados em artigos científicos e em revistas
da doença, formas de tratamento e explicações dos conceitos de divulgação científica, e a forma como ambos utilizam
importantes a serem vistos antes de um aprofundamento as ilustrações para um melhor entendimento dos assuntos.
na temática, a saber, a origem bioquímica do câncer e suas A atividade seguinte tem como propósito comparar três
formas de tratamento, noções básicas de Química Orgânica meios de comunicação da Ciência: uma dissertação de mes-
e as diferentes formas de representação estrutural química. trado (Veronez, 2012), uma revista de divulgação científica
Em sequência, é realizado um experimento didático de (Pivetta, 2016) e uma revista de ampla circulação (Cuminale,
purificação de substâncias, si- 2016), todas abordando o tema
mulando, ainda que de maneira As três últimas aulas da sequência didática, da fosfoetanolamina. Em um
330 simplificada, algumas etapas que que serão o foco deste artigo e estarão primeiro momento, utilizam-se
ocorrem dentro de um laboratório mais bem detalhadas posteriormente, duas ilustrações: uma extraída
de pesquisa farmacêutica para, na referem-se aos aspectos da comunicação da dissertação, que contém três
atividade seguinte, apresentar o científica relativos ao tema. gráficos relacionando os efeitos
processo de regulamentação en- da fosfoetanolamina comercial na
volvido na produção, aprovação viabilidade de células de melano-
e comercialização de um novo medicamento no Brasil e ma murino, e outra extraída de uma revista endereçada ao
nos Estados Unidos, no intuito de avaliar as diferenças nas público geral, a qual mostra as etapas de desenvolvimento de
legislações de ambos os países. Em cada uma das atividades, um medicamento até que sua comercialização seja aprovada.
a problematização inicial é retomada por meio de referência Em seguida, dois excertos que comentam sobre o pesquisa-
direta ou indireta à polêmica interna à ciência e sobre as dor Gilberto Chierice são comparados: um proveniente da
razões para seguir um protocolo para produção do fármaco. mesma revista para o público geral, e outro de uma revista de
As três últimas aulas da sequência didática, que serão o divulgação científica endereçada a um público mais restrito.
foco deste artigo e estarão mais bem detalhadas posterior- O objetivo nesses dois momentos é apresentar aos alunos
mente, referem-se aos aspectos da comunicação científica o que foi tratado anteriormente acerca das diferenças no
relativos ao tema. A sexta aula apresenta brevemente o caso e uso da linguagem e no uso das ilustrações em cada um dos
mostra os diversos modos como este foi divulgado na mídia, casos, conforme a audiência presumida de cada veículo de
com foco na comparação dos diferentes formatos usados informação, além de mostrar quais tipos de informação e
pelos meios de comunicação e nos impactos que cada um de que forma cada uma das revistas endereça a informação
deles tem na veiculação de um assunto científico. Feito isso, aos destinatários.
na sétima aula detalha-se a polêmica sobre a liberação da A terceira atividade segue o mesmo caráter da atividade
“Pílula do Câncer”, a regulamentação e a comercialização anterior; porém, enquanto a segunda transcorre apenas oral-
de novos medicamentos, retomando os assuntos abordados mente, esta envolve a construção de uma tabela comparativa
anteriormente e utilizando outros materiais disponibilizados entre uma dissertação de mestrado, uma revista de divulgação
na mídia. Por fim, a SD se encerra com um debate que le- científica e uma revista de grande circulação. Todas abordam
vanta a opinião dos alunos acerca do caso e da seleção das o mecanismo de ação da fosfoetanolamina no organismo,
fontes de informação quando eles se deparam com um tema mas de diferentes formas, de modo que os alunos devem
sociocientífico, retomando os conteúdos vistos ao longo da registrar na tabela as características da linguagem, as carac-
sequência, de modo a relacionar a formação de opiniões com terísticas dos conteúdos apresentados e os objetivos, relacio-
fontes confiáveis e leitura crítica dos meios de divulgação nados à audiência de cada excerto extraído. O propósito de
científica. É importante destacar, em termos da perspectiva comparar os veículos de divulgação em diferentes aspectos
do MTE, que o problema é referido direta ou indiretamente continua o mesmo; porém, além de fornecer mais exemplos

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aos alunos, aqui o trabalho realizado por eles é mais minu- relatar informações, mostrar entrevistas, opiniões de es-
cioso e passa por uma etapa individual, em que cada aluno pecialistas, infográficos simplificados e imagens, com um
realiza a própria análise dos fragmentos apresentados, e por vocabulário sem termos complexos.
uma etapa coletiva, em que o professor levanta as respostas Uma revista de divulgação científica, por sua vez, trata o
e as sistematiza na lousa, construindo uma nova tabela. Para tema com um viés mais científico, menos informativo, mas
tanto, tomou-se o cuidado de selecionar trechos de fontes com muitos gráficos e tabelas explicativos; enquanto um
distintas, mas que abordassem o mesmo assunto de maneiras artigo científico trabalha a questão de forma experimental
diferentes, de modo a facilitar a comparação e a indicar as e comprobatória, com alta densidade léxica e terminologia
diferenças observadas entre eles. específica e complexa, com verbos que indicam ações e
Para finalizar essa aula, a mostram os processos realizados.
última atividade propõe uma O grau de especificidade e pro-
Justamente pelo fato de a divulgação
reflexão sobre os impactos dos de notícias sobre a fosfoetanolamina
fundidade do conteúdo abordado
textos científicos, baseada no ter sido endereçada muitas vezes de é, outrossim, substancialmente
que foi abordado em momentos forma sensacionalista e mistificadora, diferente entre esses meios de
anteriores. Nela, levanta-se se torna-se necessário para a formação comunicação.
foi possível para os alunos per- do pensamento crítico discutir como Na SD proposta, a comunica-
ceberem como diferentes gêneros diferentes meios de comunicação ção científica foi explorada então
podem transmitir informações veicularam informações sobre o tema. nos três níveis: a informação para
semelhantes de formas distintas, o público geral; a divulgação para
ou mesmo modificar a forma o público interessado em temas
como se transmite a mesma informação para adaptar certo científicos; e a comunicação para a comunidade científica.
conteúdo a uma audiência diferente. Outras reflexões refe- No que tange à informação em jornais e revistas de grande
rem-se a como as notícias veiculadas na mídia podem im- público, por exemplo, encontram-se infográficos, trechos
pactar um público que nunca teve contato com determinado polêmicos e pequenos fragmentos informativos. Com relação
conhecimento científico, e a o que poderia ser alterado pela à divulgação científica feita por uma revista especializada, 331
mídia em uma notícia para torná-la mais interessante para são analisados e discutidos fragmentos. A opinião da comu-
sua audiência presumida. Por fim, uma questão atinente à nidade científica também é discutida por meio de vídeos,
natureza da linguagem científica é endereçada aos alunos, fragmentos específicos de textos acadêmicos e outros. Dessa
relacionando o fato de muitos textos científicos serem ina- maneira, entende-se que as três formas de exposição do
cessíveis a um público leigo, por conta da linguagem técnica assunto são contempladas na SD.
e do conteúdo avançado e complexo, à formação das visões Pelo fato de a polêmica da fosfoetanolamina se tratar
de ciência da população. Tais perguntas foram endereçadas de um tema que tem relação com o público geral e com
de modo a contemplar aspectos gerais sobre o papel dos a comunidade científica, muitas podem ser as formas de
veículos de comunicação científica (divulgação ao público abordagem do assunto no que tange à sua divulgação. É de
geral e comunicação à comunidade científica) na produção absoluta importância que o aluno, com o devido embasamen-
do conhecimento científico e sobre a maneira como os alunos to, possa se posicionar criticamente para escolher o tipo de
podem se informar acerca dos mesmos, conforme o objetivo mídia a ser consumido. A ideia não é, portanto, desvalorizar
geral da SD. Dado que a atividade tem como propósito a ou censurar meios não-científicos, mas fornecer aos alunos
formação do pensamento crítico e a comparação das opiniões as ferramentas necessárias para que eles possam selecionar
dos alunos, destaca-se que não há uma resposta correta para quando e com qual objetivo certas formas de divulgação
as questões endereçadas, o que é importante de ser levado do assunto devem ser priorizadas. A questão da divulgação
em conta pelo professor ao conduzi-la. científica pode, assim, claramente ser discutida comparan-
De acordo com o planejamento das aulas apresentado do-se os diferentes meios de comunicação.
acima, nota-se que uma grande preocupação na elaboração
da SD foi aproximar o tema aos alunos utilizando mídias que A Polêmica da Fosfoetanolamina e o que se Espera dos
os mesmos consomem. Justamente pelo fato de a divulgação Alunos ao Final da Sequência Didática
de notícias sobre a fosfoetanolamina ter sido endereçada
muitas vezes de forma sensacionalista e mistificadora, tor- As duas últimas aulas da SD abordam com detalhes a
na-se necessário para a formação do pensamento crítico polêmica envolvendo a “Pílula do Câncer”, porém estão
discutir como diferentes meios de comunicação veicularam estruturadas de maneiras distintas: enquanto a penúltima
informações sobre o tema. Daí, entende-se que, a depender busca trazer mais elementos de divulgação científica, com
da origem da informação, a visão sobre um determinado foco na problematização levantada no início da SD, a última
assunto pode ser deveras afetada. Com a ideia de difundir o propõe uma discussão com os alunos sobre os pontos per-
conhecimento científico, é um desafio constante adequar à tinentes referentes à polêmica tratada, indicando eventuais
audiência a linguagem empregada. Uma revista de grande mudanças de opiniões dos estudantes e o que aprenderam
público ou um jornal tendem a noticiar o tema de forma a ao longo das aulas.

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A penúltima aula tem como objetivos detalhar a questão e analisarem as notícias veiculadas pelos diferentes meios
da “Pílula do Câncer”, os aspectos da liberação, regulamenta- de comunicação, não apenas em relação à polêmica da
ção e comercialização desse medicamento, dar continuidade “Pílula do Câncer”, mas sobre qualquer outro assunto que
às aulas anteriores, mostrando de que forma as informações exista ou que venha a surgir no futuro. Nesse sentido, a SD
sobre a fosfoetanolamina estão sendo divulgadas, bem como é finalizada destacando seu propósito inicial – construir e
fomentar o senso crítico dos alunos, para que estes pensem desenvolver uma problemática sociocientífica com ênfase no
sobre os tipos de mídia e com quais finalidades irão utilizá- papel dos meios de comunicação – e indicando que ele pode
-las. Inicialmente, faz-se uma introdução sobre o histórico ser transferido para compreender e se posicionar diante de
da substância, desde sua descoberta até o surgimento da outros problemas sociocientíficos.
polêmica apresentada e a situação em que se encontrava até
meados de 2016 - época em que a SD foi elaborada. Ao longo Considerações Finais
da descrição, são apresentadas figuras extraídas de jornais
de grande circulação que explicam o suposto mecanismo A formação de professores tem seu alicerce no planeja-
de ação da fosfoetanolamina no organismo e a composição mento estruturado de ensino, a partir de teorias sólidas, dados
química da “Pílula do Câncer”, finalizando com uma breve objetivos do contexto escolar e de modelos que consolidem
reportagem de uma revista de divulgação científica sobre a relação teoria-prática. Nessa direção, apresentamos um
uma possível manipulação de resultados por uma indústria processo de elaboração de SD a partir de um tema socio-
farmacêutica. A aula se encerra com a apresentação de científico, cuja problematização articulou atividades de
dois vídeos disponíveis na internet: o primeiro3 traz alguns ensino sistematicamente planejadas e apoiadas em conceitos
esclarecimentos do oncologista Drauzio Varella sobre a fos- socioculturais como mediação, ferramenta cultural, propó-
foetanolamina, enquanto o segundo4 é uma entrevista com sito, contexto e continuidade, entre outros (Giordan, 2013).
o químico Gilberto Chierice sobre o uso dessa substância Quando se destaca, então, a questão da problematização
em pacientes com câncer. Dessa de um tema sociocientífico, a
forma, a controvérsia de opiniões Na SD, os fundamentos para desenvolver o
noção de contexto é de extrema
332 pode ser expressa a partir das pensamento crítico estão evidenciados no importância para que seja possí-
vozes de especialistas. problema sociocientífico. Intuitivamente, vel criar um problema a partir do
A última aula reitera aos alu- pode-se supor que a principal questão tema sociocientífico sobre o qual
nos um senso de responsabilidade endereçada na SD seria a eficiência da se construam as atividades que
social de todos os envolvidos na fosfoetanolamina no tratamento do proporcionem sua compreensão e
cultura científica, desde os alunos câncer. No entanto, esse aspecto não está resolução. Esse aspecto é trazido
até os cientistas, promovendo o completamente resolvido até mesmo no à tona por Zeidler e Lewis (2003),
intercâmbio de ideias por meio âmbito da própria comunidade científica, que propõem que a melhor forma
de discussões e trazendo à tona abstraindo-se ainda as relações entre ela e de se ensinar aos estudantes sobre
de que forma os aspectos abor- a indústria farmacêutica. questões éticas, políticas e sociais
dados na SD foram concebidos que perpassam os estudos cientí-
e trabalhados por eles. Em um ficos é criar, na sala de aula, um
primeiro momento, retoma-se com os alunos uma pergun- ambiente que propicie o surgimento dessas questões. Assim,
ta endereçada logo na primeira aula do minicurso. Este consideramos que a SD apresentada possui uma proposta
questionamento envolve o uso de um tratamento para uma cujas atividades fomentam a construção desse contexto.
grave doença que possui resultados promissores e rápidos, Outro ponto de destaque, como discutem Jiménez-
mas ainda não regulamentado pela Anvisa, em detrimento Aleixandre e Puig (2012), é o desenvolvimento do pensamen-
de um método eficaz e regulamentado, mas que necessita to crítico juntamente dos conteúdos científicos. As autoras
de um longo período de desenvolvimento. A ideia aqui é apontam que uma das características de uma pessoa crítica
verificar se houve mudanças nas opiniões dos alunos após é sua capacidade de questionar discursos de autoridade.
a realização das atividades e quais os motivos, caso tenham Portanto, examinando-se essa proposição na dimensão da
ocorrido. Em seguida, inicia-se a discussão e reflexão dos educação científica, não se trata de fomentar o ceticismo
alunos sobre a confiabilidade de se expor a um tratamento em relação ao trabalho dos cientistas, mas sim de propiciar
sem aprovação pelos órgãos competentes, sobre os me- aos estudantes ferramentas de pensamento para avaliar a
lhores veículos de comunicação a serem utilizados para se provisoriedade e contradições das inovações científicas,
informar acerca do caso, a confiabilidade dos resultados da bem como indicar meios de informação confiáveis para
indústria farmacêutica e os profissionais envolvidos desde construírem sua visão acerca da Ciência.
a criação de um candidato a medicamento até a disponibili- Na SD, os fundamentos para desenvolver o pensamento
zação do fármaco, bem como outras questões que surgiram crítico estão evidenciados no problema sociocientífico.
no decorrer da discussão. Por fim, finaliza-se a SD com a Intuitivamente, pode-se supor que a principal questão
intenção de passar aos estudantes a mensagem de que eles endereçada na SD seria a eficácia da fosfoetanolamina no
devem desenvolver um senso crítico ao selecionarem, lerem tratamento do câncer. No entanto, esse aspecto não está

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completamente resolvido até mesmo no âmbito da própria utilizada, sobretudo, por profissionais da área de Marketing
comunidade científica, abstraindo-se ainda as relações entre para tomada de decisões sobre empreendimentos (Helms e
ela e a indústria farmacêutica. Dessa forma, sem o intuito Nixon, 2010).
de julgar as práticas dos cientistas envolvidos nas pesquisas 2
Maiores detalhamentos sobre a dinâmica das aulas po-
sobre a substância, levantamos como questão desencadeado- dem ser encontrados na versão original da sequência didática
ra da SD a maneira como a fosfoetanolamina foi mitificada e no material instrucional disponíveis em: (1) http://www.
nos meios de comunicação e como pesquisadores ligados à lapeq.fe.usp.br/minicurso/pdf/mc_2016_sd_fosfoetanola-
droga foram retratados, inserindo discussões que desvelas- mina.pdf; (2) http://www.lapeq.fe.usp.br/minicurso/pdf/
sem aos alunos os aspectos das construções discursivas da mc_2016_ma_fosfoetanolamina.pdf
comunicação científica. 3
O vídeo “Esclarecimentos sobre a fosfoetanolamina”
Em síntese, muito além de aprender os conceitos cien- pode ser assistido na íntegra na página do Dr. Drauzio
tíficos que auxiliam na compreensão do desenvolvimento e Varella no site YouTube, por meio do link: https://youtu.be/
tratamento do câncer, ou os procedimentos experimentais o9dOi65pKMQ.
necessários para a produção e aprovação de medicamentos, 4
A entrevista com o Prof. Dr. Gilberto Chierice pode ser
a proposta de ensino discutida ao longo do texto promove assistida na íntegra na página da emissora TV Cachoeira/
o desenvolvimento de uma visão problematizadora da Rede Novo Tempo (Cachoeira do Sul, RS) na rede social
Ciência, na qual é possível trazer à sala de aula os diversos Facebook, por meio do link: https://www.facebook.com/
aspectos que se relacionam à produção científica, como os tvcachoeira/videos/pol%C3%AAmica-da-fosfoetanolami-
interesses sociais, políticos e econômicos, o compromisso na-subst%C3%A2ncia-que-poderia-curar-o-c%C3%A2n-
ético que deveria ser firmado entre cientistas e a sociedade, cer-veja-entrevis/1066212426742671/. Durante a avaliação
e, sobretudo, uma leitura crítica das notícias relacionadas à do presente artigo, o referido professor faleceu em função
Ciência de forma a combater a alienação pelo sensaciona- de infarto no miocárdio.
lismo veiculado pelos interesses mercadológicos dos meios
de comunicação em massa.
Marcelo Giordan (giordan@usp.br), bacharel, mestre e doutor em Química, é livre
docente e professor titular da Faculdade de Educação da USP. São Paulo, SP – BR. 333
Notas Gabriel Saraiva Gomes (gabriel.saraiva.gomes@usp.br), bacharel e licenciado em
Química pelo Instituto de Química, é mestrando na Faculdade de Educação da USP.
1
O termo SWOT é um acrônimo, em língua inglesa, para São Paulo, SP – BR. Isabela L. A. Dourado (isabela.dourado@usp.br), bacharel
e licenciada em Química pelo Instituto de Química, é doutoranda no Instituto de
as palavras “Strenghts” (Forças), “Weaknesses” (Fraquezas), Química da USP. São Paulo, SP – BR. João G. F. Romeu (joao.romeu@usp.br),
“Opportunities” (Oportunidades) e “Threats” (Ameaças), e é bacharel e licenciado em Química pelo Instituto de Química, é doutorando no
descrito como uma metodologia de análise de investimentos Instituto de Química da USP. São Paulo, SP – BR.

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Abstract: The Phosphoethanolamine in Chemistry Teaching: articulations between teaching planning and science communication. One of the main concerns
regarding Chemistry teaching is that students should understand its processes and products as well as the forms of communication used to disseminate them
to the population. Thus, understanding and questioning the role of the media in the study of socioscientific issues are purposes that could be sought in the
structuring of teaching plans. This article is based on the controversy about the release of phosphoethanolamine for the treatment of cancer in Brazil in 2016 as
an interface between scientific and social interests to elicit discussions about how aspects of scientific communication can be articulated to teaching planning
in order to contemplate the goal of problematizing the link between scientific communication and critical thinking in the classroom.
Keywords: Phosphoethanolamine, science communication, teaching planning.

334

Quím. nova esc. – São Paulo-SP, BR. A Polêmica da Fosfoetanolamina no Ensino de Química Vol. 41, N° 4, p. 327-334, NOVEMBRO 2019
Ensino de Química em Foco http://dx.doi.org/10.21577/0104-8899.20160173

ALTERNATE REALITY GAME (ARG):


Breve Histórico, Definições e Benefícios para o
Ensino e Aprendizagem da Química

Maria das Graças Cleophas

As tecnologias estão cada vez mais presentes no cotidiano dos alunos. Assim, criar espaços para explorá-
-las de modo eficaz nos processos de ensino e aprendizagem da Química se faz potencialmente promissor.
Baseando-se nisso, este artigo se torna relevante para repaginar o ensino de química e propor arranjos
pedagógicos novos para contribuir com essa aprendizagem. Para tanto, o artigo está focado na discussão
do Jogo de Realidade Alternativa – ARG (sigla inglesa para Alternate Reality Game) sob uma perspectiva
de apresentação de seus benefícios. Esses benefícios são apresentados como singulares, com características
originais e atraentes para os contextos educacionais da atualidade, pois o jogo mescla realidades concretas
com virtuais. Por fim, o artigo elucida aspectos relacionados a definições, peculiaridades e, posteriormente,
exibe um desenho de como construir propostas pautadas no ARG.
335
Alternate Reality Game – ARG; jogo de realidade alternativa; ensino de Química; Química

Recebido em 01/10/2018, aceito em 15/02/2019

V
amos falar sobre o ARG? Muitos ainda não co- inglesa Alternate Reality Game, que em português vem
nhecem esse jogo, o que o torna em uma proposta sendo traduzida como Jogo de Realidade Alternativa. Trata-
didática lúdica pouco explorada nos espaços desti- se de um tipo de jogo com características díspares, pois é
nados aos processos de ensino e enigmático e envolvente, podendo
aprendizagem da química. Este apresentar uma gama vasta de
A ideia de explorar esses benefícios para
artigo consiste numa tentativa de o ensino está ancorada nas perspectivas benefícios para o processo de
aproximar o leitor dos jogos de lançadas por Soares, Mesquita e Rezende ensino e aprendizagem de quími-
realidade alternativa, discutindo (2017) sobre os novos contornos ca, desde que bem alinhado com
assim, seus benefícios para uma investigativos para o ensino de química, os objetivos pedagógicos que se
aprendizagem imersiva. Com o sendo a ludicidade vista como um campo deseja alcançar.
ARG é possível ultrapassar os potencial de investigação. A ideia de explorar esses bene-
limites da sala de aula e tornar fícios para o ensino está ancorada
o aprendizado uma experiência nas perspectivas lançadas por
imersiva e propícia para a utilização das tecnologias digitais, Soares et al. (2017) sobre os novos contornos investigativos
sobretudo aquelas que são móveis (portáteis). Dito de outra para o ensino de química, sendo a ludicidade vista como
maneira, é um jogo que proporciona o letramento tecnoló- um campo potencial de investigação. Seu uso no ensino de
gico, pois exige habilidades tecnológicas e apresenta forte Química é bastante plural. Nesse bojo, a seara do lúdico é
enlace com o uso dos dispositivos móveis (Cleophas, 2017). imensurável em termos de possibilidades para a promoção
Antes de avançarmos na busca por clarificar os enten- de um ensino que atenda às premissas do século XXI, pois,
dimentos sobre esse tipo de jogo, é importante esclarecer entre elas, estão a capacidade de promover aspectos moti-
a sua denominação. ARG é uma abreviação da expressão vacionais e colaborativos, fomentar o pensamento crítico,
ampliar o leque de habilidades para a resolução de proble-
A seção “Ensino de Química em Foco” inclui investigações sobre problemas no ensino mas, aguçar a curiosidade e descoberta, além auxiliar que
de Química, com explicitação dos fundamentos teóricos, procedimentos metodológicos os conhecimentos químicos sejam vinculados ao cotidiano
e discussão dos resultados. do aluno, entre outros benefícios.

Quím. nova esc. – São Paulo-SP, BR. ALTERNATE REALITY GAME (ARG) Vol. 41, N° 4, p. 335-343, NOVEMBRO 2019
Em conformidade com o exposto, podemos assegurar peculiaridades, definições e, sobretudo, observar como ele
que o ARG, quando visto como ferramenta pedagógica, deve ser utilizado no ensino de química de maneira eficaz.
pode ajudar os alunos a (re)construir conhecimentos neces-
sários, habilidades, atitudes e valores que vão ao encontro Jogo de Realidade Alternativa (ARG): breve histórico
de uma aprendizagem apropriada para instigar uma postura
mais proativa dos nossos alunos. Isto posto, podemos dizer A origem dos Jogos de Realidade Alternativa parece não
que o ARG possui elementos que podem enquadrá-lo como ser consensual. Entretanto, não há dúvida de que esse gênero
sendo uma estratégia inovadora para o ensino de química. de jogo surgiu para promover campanhas de marketing. O
A ideia central consiste numa repaginação sobre as práticas primeiro grande ARG publicitário de que se tem notícia é
que são comumente utilizadas, uma vez que as estratégias The Beast, criado em 2001 para divulgar o filme dirigido
tradicionais de ensino claramente não atendem às necessi- por Steven Spielberg. Segundo Rezende (2011), as raízes
dades da diversidade dos estudantes de maneira produtiva do ARG estão imbricadas nos jogos do tipo Live Action
(Naz e Murad, 2017) na contemporaneidade. Role Playing Game − LARP, uma variante dos jogos de
Em complemento, podemos inferir que práticas peda- Role Playing Game (RPG). Comparativamente, podemos
gógicas com caráter inovador estão fortemente atreladas à nos aventurar em dizer que um RPG tipicamente leva você
cultura do professor e à capacidade de criar espaços para que para um mundo ficcional; já um ARG se apropria do mundo
os alunos apliquem o conhecimento em situações do mundo real dos jogadores com intuito de construir uma experiência
real, não apenas de modo teórico, mas, sobretudo, que ele alternativa ou paralela capaz de inserir o jogo no cotidiano
possa transitar entre os pilares estabelecidos para educação dos participantes, criando, assim, um cenário propício para
(Delors, 2001), ou seja, “aprender a fazer”, “aprender a a resolução coletiva de problemas e situações reais. Cabe
conhecer”, “aprender a viver com os outros” e “aprender a salientar que o ARG é um jogo que surgiu na era da inter-
ser”’. Esses pilares são fomentados, initerruptamente, em um net, sendo fortemente imbricado ao poder das redes sociais.
ARG, pois, através de sua natureza colaborativa, o jogo gera Desde o seu início, no começo do século XXI, o ARG sempre
oportunidades para os alunos explorarem ideias e pontos de teve como finalidade mobilizar um grande número de pessoas
336 vista com o outro, a procurar informações relevantes e a se interligadas por uma comunidade virtual, cujo objetivo em
envolver em tarefas de resolução de problemas relacionados comum consistia em resolver um problema, enigma ou desa-
com sua aprendizagem. fio. Como característica primordial do ARG, os participantes
É pertinente afirmar, com precisam “invadir” o mundo físico
base em nossas experiências, para encontrar artefatos ou pistas
É pertinente afirmar, com base em nossas
decorrentes da utilização do ARG experiências, decorrentes da utilização
que os ajudem a avançar no pro-
no ensino de química, que esse do ARG no ensino de química, que cesso de decifração dos enigmas
jogo se revelou uma ferramen- esse jogo se revelou uma ferramenta existentes na narrativa desenhada
ta de aprendizagem poderosa. de aprendizagem poderosa. Devido a para o jogo.
Devido a sua versatilidade, pode sua versatilidade, pode ser aplicado em Rapidamente, os ARG ganha-
ser aplicado em qualquer nível qualquer nível educacional e domínio ram espaços como ferramenta
educacional e domínio cognitivo cognitivo atrelado à química. comercial para a divulgação de
atrelado à química. Outro ponto produtos. Diante de sua populari-
importante desse jogo está cen- dade e de suas diferentes finalida-
trado no uso das tecnologias. Aliás, elas são fundamentais des, coube à Associação Internacional de Desenvolvedores
para proporcionar experiências significativas aos jogadores. de Jogos − IGDA, em 2006, classificá-los. Entre as classi-
Adicionalmente, o uso do jogo cria espaços para que as tec- ficações atribuídas estava o ARG com finalidade educativa.
nologias, especialmente, as tecnologias móveis, adentrem no Há, contudo, relatos de que o primeiro ARG educativo foi
contexto das escolas de modo planejado, orientado e como realizado em 1996 na University of Northern Colorado.
ferramenta de apoio à instrução em química. Como veremos
logo mais, o ARG é indissociável das tecnologias digitais. O que é um Jogo de Realidade Alternativa − ARG?
Elas precisam estar presentes no jogo, pois desempenham
um papel de destaque no processo de imersão do jogador Para Koos de Beer (2016), a natureza dos ARG está
na narrativa do jogo. mudando tão rapidamente que é muito difícil atribuir uma
Conforme dito anteriormente, este artigo tem o objetivo única definição. Tentaremos, porém, defini-los sob os limites
de esclarecer o jogo. Ele não é estanque: visa impulsionar a apontados para o contexto educacional. Para tanto, podemos
utilização do ARG nos diferentes níveis de ensino, além de iniciar a sua definição inferindo que se trata de jogo que
provocar a necessidade de termos mais investigações empí- combina elementos digitais e do mundo real numa narrati-
ricas que sejam capazes de consolidar as evidências sobre os va (história) para proporcionar uma experiência imersiva.
benefícios apresentados pelo ARG para a aprendizagem dos Assim, a narrativa consiste de um grande quebra-cabeça.
sujeitos. Logo, se você nunca ouviu falar sobre o Alternate Posto de outra forma, ela é constituída por módulos con-
Reality Game, esta é a sua chance de entender suas origens, tendo vários puzzles. Cada módulo pode ser composto por

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um desafio, enigma, problema ou pode ser composto por i) deve haver um objetivo/desafio-chefe, bem como subob-
subtarefas, ou seja, um desafio de maior complexidade pode jetivos e subdesafios que sejam influenciados com base nos
ser fracionado em pequenas atividades ou tarefas. Assim, resultados positivos e negativos dados pelos jogadores; ii) os
durante o jogo, pistas secretas, códigos, coordenadas de GPS, jogadores devem ser capazes de atingir, de forma tangível, o
bônus, entre tantas outras possibilidades, são, paulatinamen- resultado do ARG; iii) deve exigir habilidade mental; iv) o
te, distribuídas como forma de fomentar maneiras de criar seu resultado deve ser incerto desde o início; e, finalmente,
uma narrativa envolvente que possa manter o engajamento v) o ARG deve exigir do jogador mobilização de competên-
dos participantes. cias cognitivas e estratégias para atingir o sucesso. Sobre o
Em pesquisa realizada por Cleophas, Cavalcanti e Leão primeiro ponto, Sheldon (2011) se posiciona afirmando que
(2017), um ARG “[...] disponibiliza aos seus jogadores o ARG é um jogo difuso (pervasive game) que usa o mundo
múltiplos desafios em um mundo real e virtual” (p. 3958). real como plataforma e que, muitas vezes, envolve múltiplas
Numa direção análoga, Bosignore et al. (2014) dizem que é mídias para contar uma história que pode ser afetada pelas
importante: i) criar sociedades secretas no jogo: dessa forma, ações das ideias dos participantes.
os jogadores são motivados a fazer parte dele; ii) integrar
conceitos do mundo real por meio das relações sociais; e, Elementos constituintes do Alternate Reality Game
por fim, iii) dar condições para que os jogadores progridam
na história. McGonigal (2011), de modo sucinto, define os Quando pensamos em construir um desenho de um ARG
ARG em duas características principais: i) são jogos ligados precisamos ter em conta alguns elementos que são basilares
ao mundo real através da tecnologia; e ii) podem ser jogos e indispensáveis para a sua construção quando aplicado em
ligados ao mundo real através da recriação de uma suposta um contexto educacional. Sendo eles:
situação que poderia acontecer na realidade. Em comple- a) Narrativa – A narrativa (história) pode ser fictícia ou
mento, “[...] é um tipo de jogo que integra as realidades baseada em fatos reais. Caberá a quem elabora definir sua
vivenciadas pelos sujeitos em seu cotidiano com o universo escolha. A narrativa é revelada gradualmente para os joga-
virtual” (Cleophas, 2017, p. 375). dores. Ela é dada utilizando-se uma série de meios de co-
Dando continuidade a essa concepção integradora entre municação, que pode incluir sites, e-mails, SMS, WhatsApp, 337
realidade e mundo virtual, Stewart (2010) define um ARG Facebook, Instagram, Twitter, Youtube, Pinterest, comerciais
como sendo uma história que está dividida em peças que o de televisão, filmes, etc. Esta múltipla possibilidade de
público deve encontrar e montar. entrega da narrativa é adaptável
É preciso entender, como cerne a cada contexto, ou seja, cabe ao
É, no entanto, muito importante ter
deste artigo, que o público seria professor verificar o que melhor
claro que um ARG não é um videogame
constituído pelos alunos. Essa se adequa ao seu desenho, levando
ou um jogo digital, tampouco, um jogo
narrativa (história), composta por exclusivamente analógico (exemplo, cartas, em conta as suas especificidades
módulos, blocos ou peças, precisa tabuleiro, etc.). Ele é um jogo que usa a estruturais de cunho técnico, ha-
ser desenvolvida com base em um vida real das pessoas, tecnologias móveis, bilidades e tempo disponível para
processo de comunicação entre sites e mídias sociais para desencadear e gerenciá-las. Toda essa mobiliza-
os jogadores, processo que deve desvendar sua história (narrativa) – com ção de diferentes mídias afunila
ocorrer por meio das mídias tec- a particularidade, porém, de que todo para o entendimento da narrativa
nológicas, causando, assim, uma e qualquer desvendar deve ser feito de transmídia. Em relação a ela,
experiência imersiva na qual os modo colaborativo entre os participantes. Figueiredo (2016, p. 45) aponta
jogadores precisam estar conec- que, nesse tipo de narrativa, são
tados para receber novas pistas usadas várias “[...] plataformas
sobre o jogo e, assim, dar prosseguimento, avançando, após midiáticas que convergem para contar uma história”. Logo,
a resolução de cada desafio presente nos módulos, etapas ou percebe-se que a narrativa de um ARG não é entregue aos
blocos. Isso se realiza de tal modo que há um entrelaçamento jogadores em um contexto informacional do tipo monomídia,
entre o mundo fictício criado para desenvolver a história com e sim multimodal, ou seja, é amplamente desejável o uso de
vários desafios e as habilidades do mundo real para resolvê- diferentes formas de mídias e tecnologias na construção da
-los. É, no entanto, muito importante ter claro que um ARG narrativa. Essa multimodalidade contribui para fomentar
não é um videogame ou um jogo digital, tampouco, um jogo multiletramentos. Lynch et al. (2013) enfatizam também a
exclusivamente analógico (exemplo, cartas, tabuleiro, etc.). importância de existir white spaces (espaços em branco) na
Ele é um jogo que usa a vida real das pessoas, tecnologias narrativa, ou seja, lacunas que são desenvolvidas e influen-
móveis, sites e mídias sociais para desencadear e desvendar ciadas unicamente pelos jogadores através do andamento do
sua história (narrativa) – com a particularidade, porém, de jogo. Vale frisar que é muito importante garantir que cada
que todo e qualquer desvendar deve ser feito de modo cola- etapa da narrativa esteja relacionada a um ou mais objetivos
borativo entre os participantes. instrucionais da química.
Por fim, Davies et al. (2006), citados por Connolly et al. b) Enredo – O enredo fará parte da narrativa. Assim,
(2011), sugerem várias diretrizes para os ARG, entre elas: narrativa pode ser composta por vários enredos que, neste

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caso, seriam os conteúdos, temas ou assuntos relacionados dos alunos na resolução de cada problema inserido no
à química. Uma boa narrativa pode ancorar vários enredos, jogo, fornecerá desafios de forma diversificada e flexível,
desde que a história mantenha uma lógica de apresentação orientará os caminhos para que a narrativa avance em um
e coerência para os alunos, ou seja, as etapas (blocos, mó- ritmo adequado à aprendizagem (ou seja, ele deverá levar
dulos, etc.) constituintes da narrativa precisam estar conca- em consideração a cadência dos seus alunos, a frequência
tenadas e fazer sentido para a história que está sendo tecida. e eficácia na resolução dos problemas propostos, etc. Cabe
Destacamos que a narrativa é “viva” e está em movimento. ainda ao puppetmaster proporcionar situações que sejam
Diante disso, ela pode mudar a todo momento, a depender capazes de fomentar aspectos motivacionais em seus alunos,
do puppetmaster (como veremos em breve). garantindo assim, que eles progridam no jogo. A ideia central
c) Desafios/enigmas/quebra-cabeças/missões – No ARG, do jogo é fazer com que todos os participantes cheguem ao
devido ao fato de o jogo ser inerentemente colaborativo, desfecho final da narrativa. Por fim, o puppetmaster também
os desafios precisam ser resolvidos em conjunto. Um bom escolhe a forma como a comunicação será realizada, bem
desenho de ARG contém vários desafios e eles podem ser como define a multimodalidade das informações (quais ti-
oferecidos de modo fracionado em termos de complexidade. pos de mídias serão utilizados). Ele ainda detém o poder de
Segundo Koos de Beer (2016), ao completar os desafios e dosar as fronteiras entre o real e o fictício no jogo, além de
resolver os quebra-cabeças, os jogadores descobrem infor- diversificar a escolha do tipo de rede social que representará
mações ocultas que podem levar à continuidade da narrativa a comunicação entre ele e os alunos.
ou, de outro modo, podem levar a mais quebra-cabeças ou f) Rabbit hole ou trailhead – É uma isca para promover
artefatos. Podemos considerar um ARG como um grande a imersão do jogador no jogo. É o ponto de entrada na ex-
quebra-cabeça em que, à medida que os jogadores resolvem periência. Ela deve ser empolgante, misteriosa e cativar a
um dado desafio, enigma ou missão, eles vão montando as atenção dos alunos para o jogo (Lynch et al., 2013). Pode
peças que os levarão à finalização do jogo. ser a contação de uma pequena história sem final, um ques-
d) Tecnologias – Bellocchi (2012) descreve que os tionamento enigmático ou um link que direcione a uma dada
participantes de um ARG precisam usar as tecnologias da matéria que apresente relação direta com o tema ou conteúdo
338 informação e comunicação − TIC, sistemas web 2.0 e ou- conceitual que será discutido.
tros conhecimentos digitais para completar os desafios e as g) Artefatos – Consistem de um excelente mecanismo
missões. Nesse item, as tecnologias móveis têm um papel para promover a imersão e fundir a realidade do jogador
de destaque durante o ARG, pois com a ficção do jogo. É muito
os smartphones ou tablets são importante, portanto, que artefatos
Esse tipo de jogo é longo e é justamente
usados para promover a comu- sejam escondidos, por exemplo:
isso que o diferencia de outras atividades
nicação entre os envolvidos no cartazes afixados em lugares fora
lúdicas como, por exemplo, uma gincana.
jogo e também permitem uma Ao pesquisar alguns desenhos de ARG já
do ambiente escolar. Tudo isso
rica contribuição para o ensino executados e seus respectivos tempos de criará uma “bolha” que envolverá
de química. Assim, o uso de duração, foi observado que o ARG pode ainda mais o jogador com a narra-
diferentes Apps pode ajudar na proporcionar uma experiência de algumas tiva construída.
resolução de um dado desafio, horas, dias, semanas, meses, podendo h) Feedback – Em suas pes-
missão, enigma, a citar, como até, a depender da robustez estrutural do quisas, Kulik e Kulik (1988) con-
exemplo, QR Code, lanterna, projeto, proporcionar uma experiência de cluíram que o feedback imediato
calculadora, realidade aumen- anos [...] é melhor que o feedback atrasado.
tada, vídeos, aplicativos para Isso quer dizer que, a cada desafio
mudar a voz, gravador de áudio, proposto, o professor/propositor
câmera fotográfica, jogos digitais móveis, entre tantos (puppetmaster) tem a chance de identificar e corrigir os erros
outros. Optar por um ou mais desses recursos depende da dos seus alunos ou, ainda, de potencializar os seus acertos.
seleção dos elaboradores do jogo. Essa seleção, contudo, O feedback contribui com o envolvimento do aluno no jogo
não deve ser realizada de modo aleatório, senão criteriosa- e explora a sua motivação intrínseca para continuar nele.
mente, pautada na lógica e na necessidade contemplada por Inegavelmente, ele constitui uma forma rica de regular a
sua narrativa. A imersão virtual é obtida pela combinação aprendizagem e o processo de ensino.
de “tecnologias do mundo real” que fazem parte da vida
do jogador (McGonigal, 2003). Algumas peculiaridades sobre o ARG
e) Puppetmaster – Caso seja o professor que tenha
proposto e elaborado o desenho do ARG, ele, automatica- Destacadamente, duas particularidades se tornam
mente, será o mestre do jogo, o facilitador, que, neste caso, relevantes para entender o ARG. Uma delas está alocada
é conhecido como “mestre de marionetes”, termo utilizado na duração da atividade. Esse tipo de jogo é longo e é jus-
para indicar o responsável por ditar o ritmo da narrativa. Ele tamente isso que o diferencia de outras atividades lúdicas
pode ser considerado o “coreógrafo do jogo”, uma vez que como, por exemplo, uma gincana. Ao pesquisar alguns
lançará todas as pistas, dará o feedback sobre o desempenho desenhos de ARG já executados e seus respectivos tempos

Quím. nova esc. – São Paulo-SP, BR. ALTERNATE REALITY GAME (ARG) Vol. 41, N° 4, p. 335-343, NOVEMBRO 2019
de duração, foi observado que o ARG pode proporcionar da sua experiência no processo de jogar os Alternate Reality
uma experiência de algumas horas, dias, semanas, meses, Games (Oliveira, 2015).
podendo até, a depender da robustez estrutural do projeto, Outro exemplo dessa transformação do ARG 1.0 para
proporcionar uma experiência de anos, como o ARG inti- a versão 2.0 é o termo “The Curtain”, ou seja, a cortina,
tulado The Black Watchmen, que que tinha o papel de separar to-
durou três anos e incluiu mais de talmente os puppetsmasters dos
O ARG possui uma capacidade bastante
10.000 participantes (Whitton, jogadores. Essa situação não pode
flexível, não apenas para ser incorporado
2008, Cleophas et al., 2014; ser aplicada ao contexto de um
ao ambiente escolar, mas, para além
Piñeiro-Otero e Costa, 2015; disso, por favorecer a ancoragem de ARG educacional porque os alu-
Jafari et al., 2015; Cleophas et al., outras possibilidades didáticas, o que nos sabem quem está por trás da
2016; Hu et al., 2016; Gilliam et potencializa a sua viabilidade em contribuir cortina idealizando e executando
al., 2017; Petroski, 2018; Chechi com habilidades atreladas à aprendizagem todo o processo, mas não como
e Cleophas, 2018; Cleophas et al., de assuntos de química frente às demandas um misterioso mestre do jogo,
2018; Chechi et al., 2018, entre da educação do século XXI, tais como e sim como o professor propo-
outras pesquisas). a colaboração, o pensamento crítico, a sitor. Ademais, em dias atuais é
A outra, por sua vez, está criatividade, a comunicação, etc. plenamente possível elaborar um
relacionada ao “círculo mágico”, ARG sem a necessidade de uma
termo empregado por Huizinga em plataforma-mãe ou equipe de de-
seu livro Homo Ludens, em 1938. Aproximando a termino- signers. Algumas ferramentas gratuitas podem desempenhar
logia atribuída por Huizinga ao contexto do jogo, o círculo esse papel, tais como o Facebook, o Edmodo, o Google Sala
mágico seria uma espécie de película que separa a ação do de Aula, entre outros, além do uso das redes sociais. Com
jogo do cotidiano dos jogadores. Entretanto, em se tratando certeza, o custo de implantação técnica do desenho diminuiu,
do ARG, devido a sua capacidade de mesclar a realidade com porém o tempo dedicado à elaboração, execução e acompa-
a ficção, o círculo não está isolado do cotidiano: a estrutura nhamento da atividade é naturalmente longo.
do jogo serve como um elemento de transposição do mundo 339
do jogo para o universo real do jogador (Henriot, 1989). De A Capacidade Flexível do ARG
fato, o que caracteriza o ARG é a ruptura dessa película,
que ocorre de modo natural, pois o jogo, conforme salienta O ARG possui uma capacidade bastante flexível, não
McGonigal (2012), é jogado na vida real e se caracteriza por apenas para ser incorporado ao ambiente escolar, mas, para
seu viés antiescapista. Entende-se aqui que o antiescapismo além disso, por favorecer a ancoragem de outras possibi-
está atrelado à ruptura desse círculo mágico. Dito de outro lidades didáticas, o que potencializa a sua viabilidade em
modo, o ARG se expande para além dos limites de um jogo contribuir com habilidades atreladas à aprendizagem de
tradicional e inclui a realidade como base para o espaço do assuntos de química frente às demandas da educação do
jogo (Chess e Booth, 2014). Assim, Sotamaa (2002) alega século XXI, tais como a colaboração, o pensamento crítico,
que, no ARG, o jogador não é de fato um jogador o tempo a criatividade, a comunicação, etc. Com o ARG é possível
todo. Isto é assegurado com um elevado processo de imer- utilizar várias metodologias e estratégias para compor a
são, justamente pelo fato de ele não saber separar o jogo de sua narrativa. Desse modo, os problemas e desafios podem
sua vida real. assumir diferentes facetas, ou seja, podem ser facilmente
utilizadas dentro do jogo outras possibilidades lúdicas, mas,
O ARG e seus novos contornos também, experimentação, casos investigativos, analogias,
entre diversas outras facetas. Assim sendo, o ARG ainda pode
Desde a sua incorporação ao campo educacional, a ser utilizado no ensino de química para colocar em prática a
construção de um ARG sempre foi acompanhada de sua abordagem STEAM (Ciência, Tecnologia, Engenharia, Arte
complexidade estrutural. A priori, era necessária uma equipe e Matemática). E, ainda, pode fazer parte da Metodologia
de projetistas especializada em jogos. Para o ARG obscurecer Baseada em Problemas, pois os problemas já são intrínsecos
a distinção entre real e fictício (Garcia e Niemeyer, 2017) à natureza estrutural desse jogo. Cabe ressaltar que, durante
era necessário um arrojado planejamento de sua estrutura. a resolução desses problemas, os jogadores colocam em
Diante do quadro, Jenkins (2010) acenava para um processo prática a inteligência coletiva (Lévy, 2003).
evolutivo dos ARG. Assim, podemos dividir esse processo Sob o mesmo ponto de vista relacionado à capacidade
em duas partes. A primeira parte se refere ao ARG 1.0, no flexível do ARG se fortalece a ideia de agregá-lo à metodo-
qual era possível encontrar certos elementos que, aparente- logia da Aprendizagem Baseada em Projeto − ABP, pois ela
mente, pareciam fundamentais à sua estrutura que, porém, é tida como uma maneira excelente de envolver os alunos
atualmente, não são mais vistos nos ARG de segunda geração em prol do aumento de sua motivação e do seu rendimento
ou ARG 2.0. Cabe citar o exemplo da expressão “This is not escolar (Bender, 2014). Também acreditamos que, quando
a game”, que orientava os jogadores a fingirem que não es- somados os seus benefícios, o ARG torna a experiência
tavam vivenciando um jogo em busca de uma maximização de aprendizagem mais dinâmica, divertida e motivadora.

Quím. nova esc. – São Paulo-SP, BR. ALTERNATE REALITY GAME (ARG) Vol. 41, N° 4, p. 335-343, NOVEMBRO 2019
Enfim, ainda podemos pensar numa outra combinação que, esse jogo podem ser chancelados pelo enfoque teórico res-
aparentemente, parece congregar um conjunto de qualidades guardado à luz do construtivismo. De modo geral, o desenho
que são interessantes para os espaços escolares. Tal combi- de ARG pode ser realizado tomando como base algumas
nação se refere à unificação do ARG com o ensino híbrido orientações dispostas no Quadro 1.
ou aprendizagem combinada.
Considerações finais
Como desenhar um ARG para o ensino de Química?
O Alternate Reality Game − ARG é um jogo que permite
No que tange ao desenho de um ARG, é notório, antes de possibilidades promissoras para o ensino de química devido
tudo, enfatizar que os constructos basilares que fundamentam a sua flexibilidade em abarcar em sua narrativa um enredo

QUADRO 1. Estrutura-guia para construir desenhos de ARG, possibilidades e algumas dicas. Adaptado de Piñeiro-Otero (2015, p. 6)

Elementos constituintes em
Possibilidades Dicas
um desenho de um ARG
Parte da história que se deseja Pode ser uma história totalmente inovadora Fique atento aos acontecimentos da atualidade. Na
contar com o ARG englobando a química ou seus persona- narrativa, crie espaços para que os alunos resolvam
gens principais ou, ainda, algo real, adap- os problemas, sensibilize-os. Faça um levantamento
tado de um livro, uma notícia divulgada na sobre a estrutura física oferecida pela escola, Wi-Fi
TV, em um site, etc. livre (ou é necessário solicitar a liberação), etc.
Público-alvo O ARG pode ser aplicado para qualquer Verifique anteriormente a disponibilidade dos seus
nível de ensino. alunos em relação aos dispositivos móveis (smar-
tphones). Veja se possuem acesso à internet. Caso
faça alguma atividade em sala de aula, incentive-os
a manter o celular com a bateria carregada, etc.
340
Espaço onde será desenvolvido De preferência, é interessante iniciar o ARG Use os espaços da escola, tais como cantina,
(real e virtual). Indicar as plata- de modo presencial. Dessa forma, todas as laboratório (caso haja), parada de ônibus, praças,
formas, sites, locais físicos, etc. regras serão passadas aos alunos. Peça biblioteca, museus, igrejas, etc. Afixe cartazes com
para que os alunos criem grupos nas redes enigmas, QR Codes (existem vários aplicativos, entre
sociais e no WhatsApp. Solicite que eles eles, o QR code reader, etc. Sugira (ou peça para que
criem um nome do grupo com algo atrelado os alunos escolham) um jogo on-line relacionado à
à química. Por exemplo, grupo Marie Curie, química e peça um print da tela como comprovação
carbocátion, etc. (caso prefira, já entregue da pontuação obtida. Esconda artefatos de valor sim-
o perfil do Facebook, Instagram, Twitter, bólico, crie códigos, cartas secretas, etc. Jogue men-
etc.). Também é o momento de solicitar os sagens enigmáticas nos grupos, como, por exemplo,
Apps que serão utilizados durante o jogo e uma imagem qualquer. Crie seus posts com auxílio
definir as formas de comunicação (e-mail, do canva.com. É um site gratuito, simples de usar,
WhatsApp, Facebook, Instagram, etc. Cabe que ajuda muito na construção de imagens (posts)
destacar que não é preciso usar um único para Facebook, Instagram, WhatsApp, etc. Você tam-
modo de comunicação, pois, quanto mais bém pode usar o gerador de memes para fazer os
diversificado, mais rico será o seu dese- posts (https://www.gerarmemes.com.br). Caso seja
nho. Também é conveniente finalizá-lo de mais ousado, o aplicativo Bitmoji (disponível para
modo presencial, pois assim é possível Android e iOS) permite a construção de avatares.
fazer uma discussão com toda turma sobre Crie palavras cruzadas personalizadas com con-
os seus benefícios para a aprendizagem. teúdos da química: <https://www.educolorir. com/
Tome nota. crosswordgenerator/por/>. Elabore caça-palavras:
<(http://www.lideranca.org/word/pala vra.php>. Não
esqueça, tudo tem que envolver a química.
Duração do ARG Qual a duração − horas, dias, meses? Você Dose o tempo entre uma e outra entrega de desafio.
precisa definir todas as etapas que com- Espaçamentos longos na entrega de desafios ou de
porão o seu desenho. Isso inclui planejar feedbacks geram desmotivação.
as dificuldades de cada desafio e tempo
que os alunos utilizarão para resolvê-los de
modo coletivo.
Regras e modo de transmiti-las Você pode elaborar um passo a passo ou Construa mensagens estabelecendo as regras para
à medida que a narrativa for sendo reve- toda narrativa ou para uma dada etapa. Por exemplo,
lada, novas regras podem ser requeridas. peça para que eles façam uma paródia, poesia ou
Reajustes podem ser feitos com facilidade. desenho a mão. A regra, nesse caso, é informar que
não serão aceitos desenhos feitos por meio do uso
de software utilizado para a criação de desenhos.

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QUADRO 1. Estrutura-guia para construir desenhos de ARG, possibilidades e algumas dicas. Adaptado de Piñeiro-Otero (2015, p. 6) (cont.)

Elementos constituintes em
Possibilidades Dicas
um desenho de um ARG
Papel que assume o Puppet- Caso você esteja propondo e é professor, Proporcione espaço para que os alunos proponham
master (a pessoa ou pessoas você será o mestre do jogo. algo para ser inserido em sua narrativa. Por exem-
encarregadas do desenho jogo) plo, comece uma história no Instagram, Twitter ou
Facebook, etc, e peça que eles continuem. Crie uma
#hashtag para acompanhar de perto a sua atividade,
movimente a escola!
Rabbit hole (chamada à ação, Você precisa definir como fará a chamada Você pode definir um vídeo no Youtube no qual
ponto inicial ou pista que pode inicial. Aqui, neste ponto, você tem muitas conste alguma informação que os alunos precisarão
levar os participantes a ingressar possibilidades. Ouse! encontrar. Pode ainda enviar uma mensagem de áu-
no jogo) dio com efeito (sugerimos o aplicativo “muda a voz
com efeito”), um post com o início da sua narrativa,
um trecho de filme, uma frase enigmática, etc.
Pistas, enigmas, personagens e Solte sua narrativa de modo gradual. Atri- Crie posts para atribuir o feedback para cada etapa.
informações que configuram os bua uma duração para cada desafio (lem- Dê dicas sobre onde pode estar cada enigma. Mande
passos intermediários do jogo, brando que desafios complexos requerem fotos da quadra de esportes (isso dará a ideia que
e cuja resolução ou interação mais tempo). algum objeto ou cartaz poderá estar por lá).
com os mesmos aproxima os
jogadores da conclusão do jogo
Resposta aos enigmas inseridos Como você aceitará as respostas? Via Aconselhamos que, a cada tentativa dos alunos
na narrativa do ARG mensagem contendo um texto, uma foto em solucionar um dado problema, você envie uma
da resolução do problema, um experimento mensagem (e-mail, WhatsApp, Messenger, etc.)
simples realizado em casa, etc. contendo algo parecido com: “Não foi dessa vez.”
“Onde está o erro?” “Tente novamente.” Caso perce- 341
ba que o erro persiste, é preciso dar uma dica mais
contundente. Em caso de acerto imediato por parte
dos alunos, envie uma mensagem de incentivo, do
tipo: “Parabéns, vocês arrasaram!”.
Incorporação de ação social Reforce a construção de valores, atitudes, Após arrecadar todos os materiais que foram solici-
etc. Crie uma campanha solidária durante tados, vá junto com os seus alunos fazer a doação.
o tempo total do jogo. Faça os alunos Poste fotos nas redes sociais, usando a #hashtag
arrecadarem alimentos não perecíveis, criada para o seu jogo. Influencie outros professores
brinquedos, roupas, etc. Incentive o bem com sua experiência!
coletivo!
Sistema de pontuação A ideia principal é fazer todos os grupos Para cada etapa cumprida, entregue a pontuação
chegarem até a etapa final do seu jogo. A para cada grupo. Sugerimos o uso do aplicativo
competição, naturalmente irá surgir, mas ranking manager. Obs.: O aplicativo não salva os
reforce a ideia da solidariedade. resultados; logo, após inserir os pontos, faça um
print da tela e encaminhe para cada grupo.
Estratégias avaliativas Neste ponto a avaliação terá um duplo Lembre-se de que um ARG jamais será igual a ou-
significado. Para você que elaborou o tro. Evite, a todo custo, a repetição de um desenho!
ARG é o momento de compilar todas as Explore sua capacidade inovativa!
potencialidades, erros cometidos, etc. Para
os alunos, verifique qual avaliação será
mais adequada para os seus objetivos. O
ARG dialoga muito bem com a avaliação
formativa e diagnóstica.

que favorece a construção de um espaço propício para a Desse modo, a junção do ARG com outras possibilidades
manifestação ou aquisição de habilidades de multiletramen- didáticas no ensino de química revela uma tendência em
tos. Por meio do seu desenho, seguindo a sua aplicação, é ocorrer a interseção entre as características de cada uma das
possível acompanhar, de modo mais eficaz, como está sendo possibilidades que venham a ser acopladas.
desenvolvida a aprendizagem dos alunos. Além disso, a es- O ARG pode ser utilizado como instrumento de avalia-
trutura do ARG permite que ela possa ser utilizada isolada ou ção, sobretudo avaliação do tipo formativa ou diagnóstica. O
agrupada a outras metodologias ou abordagens, mostrando jogo favorece o letramento digital, sobretudo porque ajuda
flexibilidade em construir novos arranjos pedagógicos com a integrar a utilização das TIC no currículo escolar de modo
vistas à (re)construção de habilidades para o século XXI. planejado. Permite a descoberta, contribui para colocar em

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prática os quatro pilares da educação. Ainda, o ARG, quando (2018) observaram que, ao criar espaços para a construção
aplicado em contextos formais e informais de educação, de ARG pelos alunos, o professor propositor da atividade
pode favorecer a construção de novos conhecimentos por (nesse caso, não atuante na elaboração do desenho, mas
meio da prática, da exploração, do feedback e da reflexão, propondo e orientando a sua construção) aprende e, muitas
favorecendo também atitudes relacionadas à mudança de vezes, aprimora algumas habilidades tecnológicas com ajuda
comportamento social. de seus alunos. Os autores salientam ainda que isso acarreta
Para rematar, ressaltamos a importância de o professor um positivo efeito, fazendo com que o professor passe por
utilizar o ARG como produto oriundo da aplicação da um processo de formação continuada não intencional, porém
Aprendizagem Baseada em Projeto. Desse modo, caberá de elevada relevância para uma educação científica que deve
ao professor acompanhar o andamento da construção dos prezar por manter um viés colaborativo.
desenhos. Isso corrobora o preconizado por Chess e Both
(2014), que observaram que os melhores desenhos de ARG
Maria das Graças Cleophas (mgcp76@gmail.com), doutora em Ensino de Ciências
são criados por alunos. Eles, quando motivados, podem sur- e professora da área de Ensino de Química da Universidade Federal da Integração
preender a todos. Ainda sobre esse ponto, Chechi e Cleophas Latino-Americana (UNILA), Foz do Iguaçu, PR - BR.

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Abstract: Alternate Reality Game (ARG): Brief History, Definitions and Benefits for the Teaching and Learning Processes of Chemistry. Technologies are
increasingly present in students’ daily lives. Creating spaces to exploit them effectively in the teaching and learning processes of chemistry is potentially
promising. Based on this, this article becomes relevant to repaginate Chemistry Education and propose new pedagogical arrangements which may contribute
to chemistry learning. To do so, we discuss the Alternative Reality Game (ARG) from the presentation of its benefits. The ARG is unique and appealing to
today’s educational contexts as it merges concrete realities with virtual ones. Finally, we elucidate aspects related to their definitions, peculiarities and, later,
we present a drawing of how to construct proposals based on the ARG.
Keywords: Alternate Reality Game - ARG; Alternative Reality Game; chemistry teaching; chemistry.

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História da Química http://dx.doi.org/10.21577/0104-8899.20160174

Humphry Davy e a natureza metálica do potássio e


do sódio

Júlia Rabello Buci e Paulo Alves Porto

Este artigo focaliza a preparação das substâncias potássio e sódio feita, pela primeira vez, pelo quími-
co inglês Humphry Davy (1778-1829). Essas preparações foram possíveis a partir da utilização da pilha
voltaica como instrumento de análise química, mas os resultados obtidos e divulgados por Davy em 1807
não estiveram livres de controvérsias. Embora apresentassem algumas propriedades bastante diferentes dos
metais até então conhecidos, como sua grande reatividade e densidade inferior à da água, Davy logo admitiu
que as duas novas substâncias eram metais. Outros químicos da época, como os franceses J. L. Gay-Lussac
(1778-1850) e L. J. Thenard (1777-1857), questionaram as interpretações de Davy, colocando em dúvida o
próprio caráter elementar dos metais.

344 Humphry Davy, potássio, sódio, metal, história da química

Recebido em 21/01/2019, aceito em 05/02/2019

O
que é um metal? Esta é uma pergunta aparentemente tempo, proporcionando a professores e alunos uma melhor
trivial, mas uma resposta precisa, do ponto de vista compreensão do significado desse conceito na atualidade. As
da química, pode não ser nada simples. Atualmente, perspectivas oferecidas pela contemporânea historiografia da
é comum se associar o conceito ciência, contemplando a construção
de metal a certo mecanismo O presente artigo aborda um caso histórico social do conhecimento científico,
característico de conduzir ele- relacionado à definição de metal, um tema estão em acordo com a vertente
tricidade. Os metais, porém, são importante para o ensino de química. construtivista do ensino, bem como
conhecidos desde a Antiguidade com a abordagem CTSA (ciência,
– e o trabalho com eles foi funda- tecnologia, sociedade e ambiente)
mental para o desenvolvimento das civilizações ao longo da (PORTO, 2010). Considerando isso, este artigo focaliza
história. O reconhecimento dos metais é, assim, muitíssimo questões acerca da definição do que seria um metal, surgi-
anterior à identificação do fenômeno da condução elétrica das após a pioneira preparação dos metais alcalinos (sódio
e ao desenvolvimento de explicações científicas para esse e potássio), em 1807, pelo químico inglês Humphry Davy
fenômeno. (1778-1829) e comunicada por ele em uma de suas célebres
O presente artigo aborda um caso histórico relacionado Conferências Bakerianas1.
à definição de metal, um tema importante para o ensino de
química. Metais estão presentes no cotidiano e no sistema Primeiras ideias de Davy sobre os “álcalis fixos”
produtivo, e, portanto, é relevante que os cidadãos estejam
bem informados sobre os metais, inclusive sobre o que são. No início do século XIX, havia fortes suspeitas entre
Assim, documentos históricos, analisados sob perspectiva os químicos de que a potassa e a soda2 fossem compostos
historiográfica atualizada, podem auxiliar no entendimento – mas não havia evidências diretas de sua decomposição e
da transformação do conceito de metal com o passar do síntese, tampouco consenso a respeito de quais poderiam
ser seus constituintes. Alguns químicos italianos e franceses
Esta seção contempla a história da Química como parte da história da ciência, buscando defendiam, na época, que a potassa seria constituída de cal
ressaltar como o conhecimento científico é construído. e hidrogênio. Para outros, o nitrogênio estaria presente na

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composição desses álcalis, em analogia com a constituição diversos fenômenos. Ao conectar o lado negativo da pilha à
do álcali volátil, a amônia. Ao iniciar suas investigações, colher de platina, Davy observou que “glóbulos aeriformes,
Davy acreditava que a potassa seria um composto de nitro- que se inflamavam na atmosfera, ergueram-se em meio à
gênio, combinado com fósforo ou enxofre. Seu raciocínio potassa” (DAVY, 1808a, p. 3-4). Como a potassa estava
era por analogia: na amônia, o nitrogênio estava combinado “aparentemente” seca neste experimento, Davy acreditou
com um elemento constituinte de uma substância simples que a substância inflamável que se formou resultava da de-
muito “leve”, o hidrogênio – resultando no álcali volátil; composição da potassa. Passou, em seguida, a tentar isolar
então, nos chamados álcalis fixos (potassa e soda), o mesmo essa substância – mas sem obter sucesso enquanto trabalhou
nitrogênio poderia estar combinado a corpos mais “densos”, com a potassa fundida por aquecimento.
como o fósforo ou o enxofre. Como nenhum composto de Davy decidiu então tentar outra abordagem, abrindo
nitrogênio e fósforo, nem de nitrogênio e enxofre, eram até mão do aquecimento e valendo-se apenas da eletricidade
então conhecidos, Davy considerou que esta seria uma boa para provocar a fusão da potassa. Em vez de utilizar potassa
hipótese para se investigar (Davy, apud J. Davy, 1836, p. completamente seca, deixou a amostra exposta à atmosfera,
381). apenas o suficiente para que a superfície absorvesse um
pouco de umidade, tornando-se assim condutora de eletrici-
Os experimentos de eletrólise dade. Utilizando sua pilha mais poderosa, Davy fez passar a
corrente elétrica pela amostra de potassa, e observou que o
Há registros de que Davy teria começado suas tentativas álcali começou a fundir junto aos pontos de contato elétrico.
de decompor a potassa no laboratório da Royal Institution de Assim Davy descreveu, em sua Conferência Bakeriana de
Londres em 16 de outubro de 1807 (PARIS, 1831, p. 275). 1807, o que ocorreu em seguida:
Inicialmente, Davy havia tentado utilizar soluções concentra-
das de potassa à temperatura ambiente, recorrendo ao mais Houve uma violenta efervescência na superfície
intenso “poder elétrico” de que ele dispunha à época (ou seja, superior; na superfície inferior, ou negativa, não houve
uma pilha voltaica formada por um grande número de pares liberação de fluido elástico [i.e, gás]. Porém, aparece-
metálicos), com o intuito de provocar a decomposição do ram pequenos glóbulos, com grande brilho metálico, 345
álcali. Observou, porém, que somente a água se decompunha, sendo precisamente similares, nos aspectos visíveis,
produzindo hidrogênio e oxigênio, e liberando muito calor ao mercúrio. Alguns dos glóbulos queimaram com
(DAVY, 1808a, p. 3). Sabendo disso, Davy tentou fazer o explosões e chama brilhante, tão logo se formavam;
experimento com a potassa sob álcool e outros líquidos nos e outros permaneceram, e ficaram apenas embaçados,
quais esse álcali não se dissolvia. Aparentemente, houve e finalmente cobertos por um filme branco que se
produção de gás, mas sem que Davy pudesse compreender o formou em sua superfície (DAVY, 1808a, p. 5).
que estava acontecendo. Em suas anotações, Davy se referiu
a um “gás alcaligênio” (gerador de álcalis; no original in- Na sequência, Davy se referiu à substância produzida
glês, alkaligen) – um nome criado em analogia a “oxigênio” como sendo a “base da potassa”3. Um novo nome para essa
(gerador de ácidos). Há indícios de que Davy pode ter con- substância somente viria a ser sugerido, no texto da con-
seguido produzir, sob óleo, minúsculas porções de potássio, ferência, algumas páginas adiante. Na descrição feita por
as quais em seguida ele tentou combinar com mercúrio. Paris Davy, ele destacou que não houve liberação de gás junto ao
(1831) cita as seguintes anotações polo negativo, isto é, descartou
feitas por Davy em um caderno de a produção de hidrogênio nesse
Era fato conhecido que a potassa seca
laboratório: “Ação da substância não era condutora, logo não havia como
caso. Além disso, Davy comparou
sobre o mercúrio – forma com ele eletrolisá-la dessa forma. Davy tentou o novo material produzido com
um amálgama sólido, que logo então fazer com que a eletricidade o mercúrio, estabelecendo desde
perde seu alcaligênio para o ar” agisse sobre potassa fundida, utilizando logo uma relação com uma subs-
(PARIS, 1831, p. 275-276). uma chama de álcool alimentada por um tância metálica. Descreveu ainda
Era fato conhecido que a fluxo de oxigênio, a fim de obter as altas que o “brilho metálico” da base da
potassa seca não era condutora, temperaturas necessárias. potassa desaparecia rapidamente
logo não havia como eletrolisá-la pelo contato com a atmosfera: uma
dessa forma. Davy tentou então crosta branca de potassa pura se
fazer com que a eletricidade agisse sobre potassa fundida, formava, e logo deliquescia, isto é, dissolvia-se pela absorção
utilizando uma chama de álcool alimentada por um fluxo de da umidade atmosférica.
oxigênio, a fim de obter as altas temperaturas necessárias. A O resultado do experimento foi surpreendente para Davy,
amostra de potassa foi colocada sobre uma colher de platina, que percebeu ter tido sucesso em seus esforços, ao mesmo
a qual era conectada a um dos terminais da pilha. Um fio de tempo em que se viu diante de uma substância nunca pro-
platina era mantido em contato com a potassa, e conectado duzida anteriormente. A reação de pesquisador foi assim
ao terminal oposto. Sob forte aquecimento, o álcali fundiu relatada por seu irmão John Davy: “[Humphry Davy] não
e se tornou um bom condutor de eletricidade, produzindo pôde conter sua alegria – ele literalmente dançou pela sala

Quím. nova esc. – São Paulo-SP, BR. Humphry Davy e a natureza metálica do potássio e do sódio Vol. 41, N° 4, p. 344-350, NOVEMBRO 2019
em alegria extática; e foi necessário algum tempo até que ele conservá-las e confiná-las para examinar suas propriedades,
se recompusesse o suficiente para continuar o experimento” e submetê-las a experimentos. Pois, como os alkahests ima-
(J. DAVY, 1836, p. 384). ginados pelos alquimistas, elas atuavam, às vezes mais, às
Davy tratou logo de afastar a possibilidade de a substância vezes menos, sobre quase qualquer corpo aos quais estives-
observada ser proveniente da platina: substituiu esse metal sem expostas” (DAVY, 1808a, p. 10). Aqui, Davy comparou
por pedaços de cobre, prata, ouro, grafita ou carvão, obtendo as bases dos álcalis fixos ao alkahest, substância que foi
o mesmo produto. Também descreveu outros aparatos experi- muito discutida por químicos e filósofos naturais ao longo
mentais para decompor a potassa por eletrólise, chamando a dos séculos XVII e XVIII: segundo algumas interpretações
atenção para as dificuldades envolvidas (DAVY, 1808a, p. 5). dessa época, o alkahest seria capaz de dissolver qualquer
Alguns dias depois, Davy obteve a decomposição da outra substância. Após intensos debates sobre qual poderia
soda, usando procedimento análogo ao descrito para a potas- ser a composição do alkahest, sem que nunca se houvesse
sa, mas necessitando de uma pilha mais poderosa. Também chegado a um consenso, a ideia foi caindo em desuso, até ser
nesse caso, os glóbulos gerados no experimento queimavam considerada como apenas mais um dos sonhos dos alquimis-
em contato com a atmosfera logo após serem formados. tas5. Como as novas substâncias sequer podiam ficar expostas
Embora os resultados fossem semelhantes, Davy também à atmosfera, pois reagiriam rapidamente com a umidade e o
observou diferenças, como a maior temperatura de fusão da oxigênio do ar, Davy buscou uma substância com a qual as
substância formada a partir da soda. Davy comparou essa novas bases não reagissem, e que pudesse mantê-las isoladas
nova substância produzida com um material tipicamente do ar para armazená-las. A substância que melhor serviu a
metálico, ao escrever que ela “exibiu o brilho da prata” essa finalidade, segundo Davy, foi a nafta6 recém-destilada.
(DAVY, 1808a, p. 6). Davy estudou sistematicamente, e relatou na conferência
Davy observou uma analogia entre seus novos experi- de 1807 as seguintes propriedades físicas das bases da potas-
mentos e as eletrólises de óxidos então conhecidas. Segundo sa e da soda: densidade; temperaturas de fusão e ebulição;
ele, o oxigênio era sempre produzido no terminal elétrico condutibilidade elétrica e térmica. Quanto às propriedades
positivo, enquanto as “bases combustíveis” eram obtidas jun- químicas, descreveu a reatividade das novas substâncias
346 to ao terminal negativo. Também no caso da decomposição com oxigênio, com as próprias potassa e soda, com ácido
da potassa e da soda, Davy, após recolher e examinar com oximuriático7, hidrogênio, água, gelo, éter, álcool, ácido
cuidado o gás formado junto ao terminal positivo, concluiu sulfúrico, ácido nítrico, fósforo, enxofre, mercúrio, ceras,
se tratar de oxigênio puro (DAVY, 1808a, p. 7). cânfora, óxidos metálicos, vidros, entre outros materiais,
Seguindo a concepção desen- em uma variedade de condições.
volvida por Antoine Lavoisier É notável o trabalho realizado
É notável o trabalho realizado por Davy em
(1743-1794), Davy tratou de pouco mais de um mês, entre a primeira
por Davy em pouco mais de um
demonstrar que as substâncias ob- obtenção do potássio e a comunicação mês, entre a primeira obtenção do
tidas eram, de fato, os componen- pública na Conferência Bakeriana potássio e a comunicação pública
tes da potassa e da soda. Assim, de 1807, ainda mais considerando na Conferência Bakeriana de
realizou a síntese da potassa, que ele manipulava substâncias cujo 1807, ainda mais considerando
combinando a recém-preparada comportamento era bastante diferente de que ele manipulava substâncias
base da potassa com oxigênio, tudo o que até então era conhecido. cujo comportamento era bastante
demonstrando sua composição. diferente de tudo o que até então
Procedimento análogo foi feito era conhecido.
para a soda. Mais adiante, no mesmo texto, Davy descreveu A base da potassa preparada por Davy não era sólida à
como determinou quantitativamente a proporção em massa temperatura ambiente, ainda que fosse “apenas imperfeita-
de oxigênio e base na composição da potassa (chegando ao mente fluida” a 60 oF (15,6 oC), somente ficando completa-
valor médio de 86% de base da potassa para 14% de oxi- mente líquida a 100 oF (38 oC). Segundo Davy, a 50 oF (10 oC)
gênio) e também da soda (valor médio de 77% de base da a base da potassa se tornava “um sólido macio e maleável,
soda para 23% de oxigênio) (DAVY, 1808a, p. 27-31)4. Ao com o brilho da prata polida”; seus cristais, vistos ao micros-
descrever esses processos, Davy usou a expressão “glóbulos cópio, apresentavam “grande esplendor metálico” (DAVY,
metálicos” para descrever as novas substâncias que, ao quei- 1808a, p. 10). As observações referentes à temperatura de
mar rapidamente com oxigênio, se convertiam em potassa fusão sugerem que Davy não obteve potássio puro, cujo
ou soda (DAVY, 1808a, p. 8). Isto é, antes mesmo de passar ponto de fusão é de 146 oF (63 oC). É provável que ele tenha
à discussão da natureza metálica das novas bases, Davy já obtido uma liga de potássio e sódio, a qual, dependendo da
adiantava a conclusão a seu público em vários trechos da composição, pode ser líquida à temperatura ambiente. Isso
conferência. se deveria à presença de soda como impureza na potassa
No texto publicado da Conferência Bakeriana de 1807, utilizada por Davy, uma circunstância bastante plausível,
Davy dedicou muitas páginas à descrição das propriedades dada a semelhança das propriedades dessas duas substâncias.
físicas e químicas das duas novas substâncias, destacando Ao discutir a maleabilidade da base da soda, Davy
sua formidável reatividade: “tive considerável dificuldade em observou que essa substância podia ser transformada em

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folhas muito finas. Além disso, observou que glóbulos dessa antes de proferir a Conferência Bakeriana. Na carta, Davy
substância podiam ser unidos com facilidade, aplicando-se comunica rapidamente a Pepys, em meio a outros assuntos:
pressões elevadas. Concluiu ele: “a propriedade da soldagem, “Decompus e recompus os álcalis fixos, e descobri que
que somente ocorre ao ferro e à platina em temperaturas suas bases são duas novas substâncias inflamáveis, muito
muito elevadas, é observada para esta substância à tempe- semelhantes a metais. Mas uma delas é mais leve do que
ratura comum” (DAVY, 1808a, p. 21). Uma vez mais, Davy o éter, e infinitamente combustível” (DAVY, apud PARIS,
comparou um dos materiais recém-obtidos a metais típicos, 1831, p. 279, grifo nosso). O curioso é que Davy descreve
atribuindo àquele uma propriedade característica destes. as duas novas substâncias a Pepys não como metais, mas
Davy destacou também as condutibilidades elétrica e térmica como “muito semelhantes a metais” – destacando a seguir
das novas substâncias, descrevendo a base da potassa como duas propriedades que não seriam características dos metais,
“um perfeito condutor de eletricidade” e “um excelente con- sendo que a primeira é a baixa densidade. O desenvolvimento
dutor de calor”, e a base da soda como tendo propriedades da argumentação a respeito da natureza metálica das novas
similares (DAVY, 1808a, p. 11 e 21). Essas propriedades, substâncias isoladas por Davy, exposto na Conferência
aliadas ao brilho característico, à maleabilidade e ao aspecto Bakeriana de 1807, é transcrito a seguir:
cristalino, eram próprias dos metais.
No entanto, observou Davy: “Assemelhando-se aos Elas [i.e., as bases da soda e da potassa] coincidem
metais em todas essas propriedades sensíveis, [a base da com os metais em opacidade, brilho, maleabilidade,
potassa], entretanto, é notavelmente diferente de qualquer capacidade de condução de calor e eletricidade, e em
um deles quanto à gravidade específica” (DAVY, 1808a, p. suas qualidades de combinação química.
11). De fato, Davy ficou surpreso ao observar que a densidade Sua baixa gravidade específica não parece ser uma
da base da potassa, em relação à densidade da água, era de razão suficiente para fazer delas uma nova classe;
0,6 (o valor aceito atualmente é de 0,8), o que fazia dela o pois, dentre os próprios metais, existem notáveis dife-
líquido menos denso conhecido por ele. A base da soda, que renças a esse respeito, sendo a platina cerca de quatro
Davy obteve como sólido à temperatura ambiente, teve sua vezes mais pesada [i.e., mais densa] do que o telúrio.
densidade relativa determinada com maior precisão: 0,9348 Na divisão filosófica das classes de corpos, a analogia 347
(próximo ao valor aceito atualmente) – ou seja, também era do maior número de propriedades deve ser sempre
menos densa do que a água. A baixa densidade foi apontada o fundamento do arranjo (DAVY, 1808a, p. 31-32).
por Davy como um argumento contra a classificação das
novas substâncias como metais, como se verá a seguir. A discussão era bastante pertinente, pois, como observou
Paris (1831, p. 268), propriedades como elevada densidade
“Poderiam as bases da potassa e da soda ser chamadas de e brilho há tanto tempo estavam associadas aos metais que
metais?” era muito difícil separá-las desse conceito. A esse respeito,
Paris menciona o episódio envolvendo George Pearson.
Com essa pergunta, Davy abriu a seção de sua conferên- Ao ser apresentado, no laboratório da Royal Institution,
cia na qual discutiu a natureza das duas novas substâncias, ao recém-preparado potássio, Pearson teria sido questio-
afirmando em seguida que “A maioria dos filósofos a quem nado sobre qual seria a natureza daquela nova substância.
apresentei esta questão respondeu afirmativamente” (DAVY, Observando seu brilho, Pearson não teria hesitado em
1808a, p. 31). Davy não nomeou responder: “Ora, é metálica, com
quem seriam esses “filósofos” certeza”. Tomando uma amostra
Davy estava diante de uma questão
consultados por ele, mas pode-se entre seus dedos, teria acrescen-
fundamental das ciências naturais,
deduzir que se tratava de mem- especialmente da química: a questão da tado, confiante: “Caramba, como
bros da comunidade de filósofos classificação. Schummer (1998), referindo- é pesada!” (PARIS, 1831, p. 268).
naturais britânicos próximos de se à química atual, argumenta que o Ou seja, mesmo manipulando uma
Davy. Poucas linhas adiante, ao critério fundamental para classificação de substância muito pouco densa,
discutir que nomes deveriam ser substâncias é a semelhança de reatividade Pearson estava tão certo de que se
atribuídos às novas substâncias, química. tratava de um metal que a sentia
Davy declarou haver consultado “pesada”.
“muitos dos mais eminentes ho- Davy estava diante de uma
mens de ciência deste país”, mais uma vez sem especificar questão fundamental das ciências naturais, especialmente
quem seriam. Nos documentos aos quais tivemos acesso, da química: a questão da classificação. Schummer (1998),
foi possível identificar um desses personagens: trata-se de referindo-se à química atual, argumenta que o critério funda-
George Pearson (1751-1828), químico, médico e membro mental para classificação de substâncias é a semelhança de
da Royal Society, identificado por uma citação feita por reatividade química. No caso analisado aqui, as propriedades
Paris (1831, p. 268). Outro indício curioso encontra-se em químicas devem ter sido importantes para Davy, pois ele
uma carta enviada por Davy a seu amigo William Pepys mencionou que as bases da potassa e da soda apresentavam
(1775-1856) em 13 de novembro de 1807, apenas seis dias as mesmas “qualidades de combinação química” que os

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metais conhecidos. Entretanto, o que parece ter sido deci- simplesmente indicam os metais produzidos a partir
sivo para Davy foram as propriedades físicas tipicamente da potassa e da soda (DAVY, 1808a, p. 32).
metálicas do brilho (mencionado repetidas vezes por Davy),
maleabilidade e condutibilidade térmica e elétrica. Assim, Davy reconheceu que era preciso ter cautela ao atribuir
embora a densidade fosse bastante inferior à dos metais nomes a novas substâncias para evitar que eles exprimissem
típicos, Davy considerou que essa propriedade seria menos considerações teóricas que pudessem ser refutadas mais
relevante que as demais para definir um metal. Ou seja, Davy tarde. A preocupação de Davy é compreensível: a “nova
não deve ter considerado apenas a analogia com o “maior química” de Lavoisier era ainda recente e, embora Davy
número” de propriedades, mas também o que considerava avaliasse que ela havia “destruído a hipótese de Stahl”8 so-
como propriedades essenciais e acessórias dos metais. bre a combustão, a calcinação e outros fenômenos (DAVY,
1808a, p. 33), Davy acreditava que também as novas ideias
Novos nomes para novas substâncias de Lavoisier poderiam vir a ser substituídas por outras no
futuro (DAVY, 1808a, p. 32-33). Davy reconheceu, porém,
A questão seguinte a que Davy se dedicou foi a dos que mesmo que as teorias viessem a ser revistas, dificilmente
nomes a serem atribuídos aos novos metais. Como, para se modificaria a noção de que os metais são substâncias sim-
ele, não havia dúvida de que se ples. Ainda assim, Davy registrou,
tratavam de metais, seus nomes Davy reconheceu que era preciso em nota de rodapé no texto de sua
deveriam ser formados utilizan- ter cautela ao atribuir nomes a novas conferência, que ele próprio che-
do o sufixo latino (“-ium”) que substâncias para evitar que eles gou a considerar a possibilidade
se convencionou atribuir aos exprimissem considerações teóricas que de que os metais seriam compos-
metais. Davy optou por seguir a pudessem ser refutadas mais tarde. tos, o que ele chamou de “uma
“nova nomenclatura” da química, teoria química flogística” e que
conforme proposta por Lavoisier,
L. B. Guyton de Morveau (1737-1816), C. L. Berthollet poderia, certamente, ser defendida, acerca da ideia
348 (1748-1822) e A. F. Fourcroy (1755-1809), em Méthode de que os metais são compostos de certas bases
de nomenclature chimique, de 1787. Conforme sumariza- desconhecidas, com a mesma matéria que existe no
do por Lavoisier em seu Tratado Elementar de Química, hidrogênio... Mas, nessa teoria, supõe-se a existência
as substâncias simples recém-descobertas deveriam ser de mais princípios desconhecidos do que na teoria
nomeadas por palavras simples, de preferência de origem geralmente aceita. Seria menos elegante e menos
grega, e que “exprimissem a propriedade mais geral, a mais distinta (DAVY, 1808a, p. 33).
característica das substâncias” (LAVOISIER, 2007, p. 21).
Um exemplo seria a atribuição do nome “hidrogênio” ao Essa citação demonstra como a teoria do flogístico ainda
gás que era anteriormente conhecido como “ar inflamável”, era cogitada, mesmo entre os adeptos da “nova química”,
visto ser sua propriedade característica a combinação com como Davy. Afinal, após décadas de elaboração, a teoria do
oxigênio para produzir água (“hidrogênio” significa “gera- flogístico fora adotada por grande parte da comunidade de
dor de água”). Porém, Davy afirmou que não pôde fazer isso químicos, pois atendia a suas necessidades. Mesmo após a
no caso das bases da potassa e da soda por dois motivos. emergência de uma “nova química”, a teoria do flogístico
Primeiro, não havia propriedades características que não não poderia ser simplesmente esquecida de imediato – como
fossem comuns a ambas e, assim, os nomes eventualmente desejara Lavoisier. Assim, é possível entender que outros quí-
atribuídos por esse critério não permitiriam a identificação micos, como J. L. Gay-Lussac (1778-1850) e L. J. Thenard
imediata das substâncias. Segundo, Davy afirmou que os (1777-1857), tenham duvidado do caráter metálico e de
antigos gregos provavelmente não distinguiam a soda da substância simples dos novos materiais obtidos por Davy,
potassa; por isso, embora houvesse palavras gregas que conforme se verá mais adiante. É interessante observar que
pudessem se referir à base da soda, não haveria um termo um dos motivos citados por Davy para preferir a teoria de
grego que pudesse ser aplicado à potassa. Impedido, por- Lavoisier à do flogístico é que aquela supõe a existência de
tanto, de atribuir nomes que se referissem às propriedades menos “princípios desconhecidos”, ou seja, é uma aplicação
das bases da potassa e da soda, Davy decidiu criar nomes da navalha de Occam.
que associassem as novas substâncias aos materiais de onde Mesmo após a proposição dos novos nomes, Davy
foram extraídas: continuou, ao longo do texto de sua conferência de 1807,
a se referir às novas substâncias como “base da potassa” e
Potasium [sic] e sodium são os nomes pelos quais “base da soda”. Talvez Davy estivesse à espera da chancela
tomo a liberdade de chamar as duas novas substâncias. de seus colegas químicos para os nomes que criara. O que
E quaisquer que sejam as mudanças que daqui para a se pode observar é que, no texto da Conferência Bakeriana
frente possam ocorrer na teoria, referente à compo- seguinte, apresentada na Royal Society em junho de 1808
sição dos corpos, esses nomes dificilmente poderão (cerca de sete meses após a anterior), Davy já utilizou, sem
expressar um erro: pois pode-se considerar que eles ressalvas, os termos “potássio” e “sódio” para se referir aos

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novos metais (DAVY, 1808b). Aliás, observa-se que, em Apesar da grande reputação de Davy na Europa, pela ex-
algum momento entre essas duas conferências, Davy mudou celência de suas habilidades analíticas, por seu trabalho com
ligeiramente sua proposta original, de “potasium” para “po- os óxidos de nitrogênio, e ainda por sua primeira Conferência
tassium” – que, afinal, foi o nome adotado definitivamente Bakeriana sobre eletroquímica (DAVY, 1807), poucos quí-
para essa substância elementar. micos entenderam as implicações teóricas dos trabalhos de
Davy: a descoberta do oxigênio nos álcalis fixos ameaçava
Os debates acerca da natureza do potássio e do sódio destruir a teoria de que o oxigênio seria responsável pela
acidez – conforme proposto por Lavoisier, e que justificava o
Após o anúncio da preparação do potássio e do sódio, nome atribuído por ele a essa substância. O estabelecimento
essas novas substâncias despertaram muita curiosidade de consenso em torno de concepções teóricas que dessem
entre os químicos, que passaram a debater as possíveis in- conta dos experimentos de Davy foi mais difícil e demorado
terpretações para as evidências disponíveis. F. R. Curaudau do que a aceitação do caráter metálico do potássio e do sódio
(1765-1813), por exemplo, apresentou ao Institut de France (LE GRAND, 1974).
uma série de opiniões contrárias às interpretações de Davy,
argumentando, entre outros pontos, que o carbono seria Considerações Finais
um dos elementos que estaria presente na composição do
potássio, e que o hidrogênio também deveria estar nele Quando Davy submeteu a potassa e a soda à eletrólise,
presente, o que explicaria o baixo valor de sua densidade pareceu ter poucas dúvidas de que estava produzindo uma
(PARIS, 1831, p. 272). Davy demonstrou que a suposta decomposição. Ele também se convenceu rapidamente de
presença de carbono se devia a impurezas resultantes do que as novas substâncias, posteriormente batizadas de po-
processo utilizado por Curaudau. A hipótese de que as tássio e sódio, eram metais, apesar de suas extraordinárias
novas substâncias seriam compostos dos álcalis com hidro- reatividades e de suas densidades serem muito menores do
gênio, porém, foi mais difícil de rejeitar, e vários químicos que as de qualquer outro metal. Aqui, percebe-se a necessi-
do período a defenderam. dade de uma reflexão a respeito de quais seriam proprieda-
Gay Lussac e Thenard, em particular, discordaram da des essenciais dos metais, e quais seriam acessórias, para 349
conclusão de Davy de que a soda e a potassa fossem com- a definição do critério de classificação. A importância que
postos de oxigênio com dois novos metais. Em publicação Davy atribuía à eletricidade pode ter sido decisiva para que
de janeiro de 1808, afirmaram não haver “razões em maior ele considerasse a propriedade da condutibilidade elétrica
número para se admitir que os álcalis são compostos do que entre as essenciais.
para considerá-los como corpos simples. É possível supor Thenard e Gay-Lussac estiveram entre os maiores críticos
que os metais obtidos são apenas combinações desses álcalis do trabalho de Davy. Por algum tempo, eles acreditaram que
com hidrogênio” (GAY-LUSSAC & THENARD, apud os metais poderiam ser compostos por “bases” desconhecidas
SIEGFRIED, 1963, p. 251), sustentando essa suposição com e associadas a uma substância também encontrada no hidro-
uma série de experimentos. Davy procurou mostrar inade- gênio, ou simplesmente seriam compostos dos álcalis com hi-
quações na proposta dos químicos franceses, argumentando drogênio. Percebe-se, assim, a necessidade de se pensar com
que as observações experimentais também poderiam ser cuidado na ideia de que houve uma “revolução química”, na
explicadas considerando que as novas substâncias seriam qual a teoria do flogístico foi prontamente abandonada e as
simples, e não compostos (DAVY, 1808b, p. 367, nota). novas ideias de Lavoiser foram logo aceitas por todos. Este
Davy (1808b, p. 367) mencionou que as conclusões de episódio mostra a permanência de ideias semelhantes àquelas
Gay-Lussac e Thenard retomavam, de certa forma, a teoria pertencentes ao panorama conceitual do flogístico, mesmo
do flogístico – segundo a qual os metais seriam compostos entre químicos franceses. Nesse sentido, Siegfried (1963) já
por suas respectivas “cales”, combinadas com um princípio havia observado como a conservação da massa não estava
também existente no hidrogênio, o flogístico. É interessante no centro da argumentação em torno do caráter elementar
observar que nem Davy, nem seus oponentes franceses, se das novas substâncias (e mesmo dos metais em geral), como
referiam ao fato de que os álcalis pesavam mais do que os recomendava o programa lavoiseriano. Podemos considerar
metais preparados a partir deles, o que ilustra as dificuldades que o novo e importante papel desempenhado pela eletricida-
envolvidas no debate sobre a composição das substâncias de nas transformações químicas possa ter influenciado nesse
(LE GRAND, 1974, p. 64). Conforme observaram Siegfried aspecto, pois a eletricidade era considerada por muitos como
(1963, p. 255-256) e Le Grand (1974, p. 64), a omissão um fluido imponderável9. E, se o imponderável participava
do princípio da conservação da massa, como critério para de maneira tão importante nas transformações químicas, é
decidir sobre a composição ou não dos metais, é um ponto compreensível que a conservação da massa pudesse ficar,
significativo nessas disputas. Foi somente em 1810 que por vezes, em segundo plano.
Gay-Lussac e Thenard afinal concordaram com a inter-
pretação de Davy de que sódio e potássio seriam corpos Agradecimentos
simples, baseados em novos experimentos realizados por
eles (SIEGFRIED, 1963, p. 256). PAP agradece ao Conselho Nacional de Desenvolvimento

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Científico e Tecnológico (CNPq) pelo auxílio à pesquisa (no. trabalhou com amostras de potássio e sódio impuras, con-
426519/2016) e pela concessão de bolsa de produtividade forme se verá na sequência.
em pesquisa (no. 307652/2017-3). 5
Para uma discussão do conceito original de alkahest,
vide: Porto, 2002.
Notas 6
Nafta é uma mistura de hidrocarbonetos destilada do
petróleo, usada como solvente.
1
Bakerian Lecture, ou Conferência Bakeriana, é a 7
Posteriormente chamado de “cloro” e reconhecido como
principal conferência na área de ciências físicas proferida sendo uma substância simples.
anualmente na Royal Society inglesa. Foi instituída por 8
Isto é, a teoria do flogístico. Sobre essa teoria, vide:
Henry Baker, e ocorre desde 1775. A conferência é pro- Alfonso-Goldfarb et al., 2016.
ferida por um membro da Royal Society, escolhido pelo 9
Sobre os fluidos imponderáveis na química do início do
conselho da instituição (http://royalsociety.org/awards/ século XIX, vide: Baldinato, 2016, p. 81-segs. et passim.
bakerian-lecture/).
2
Esses nomes eram atribuídos, respectivamente, ao que Júlia Rabello Buci (profjurb@gmail.com), bacharela em Química com Atribuições
Tecnológicas pela Universidade Presbiteriana Mackenzie de São Paulo, especialista
hoje chamamos hidróxido de potássio e hidróxido de sódio; em Química pelas Faculdades Oswaldo Cruz de São Paulo, é mestra em Ensino de
mas também podiam se referir, dependendo do contexto, aos Ciências pelo Programa Interunidades de Pós-Graduação em Ensino de Ciências
óxidos de potássio e de sódio. da Universidade de São Paulo (USP). Atualmente, é professora no Centro Univer-
3
O que Davy chamou de “base da potassa” seria o potássio sitário Campo Limpo Paulista (Unifaccamp). Campo Limpo Paulista, SP – BR.
Paulo Alves Porto (palporto@iq.usp.br), bacharel e licenciado em Química pela
metálico, assim como o que ele depois chamou provisoria-
USP, mestre e doutor em Comunicação e Semiótica pela PUC-SP, livre docente
mente de “base da soda” seria o sódio metálico. em Ensino de Química pela USP, é professor do Instituto de Química da USP e
4
Embora esses valores possam parecer próximos dos acei- coordenador do Grupo de Pesquisa em História da Ciência e Ensino de Química
tos atualmente, é preciso considerar que Davy provavelmente (GHQ). São Paulo, SP – BR.

Referências DAVY, J. Memoirs of the life of Sir Humphry Davy, vol. 1.


350 Londres: Longman, 1836.
ALFONSO-GOLDFARB, A. M.; FERRAZ, M. H. M.; LAVOISIER, A. L. Tratado Elementar de Química, trad. L. S.
BELTRAN, M. H. R.; PORTO, P. A. Percursos de História da P. Trindade. São Paulo: Madras, 2007.
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________. The Collected Works, vol. 5. Londres: Smith, Elder - Ensino de Ciências (Física, Química e Biologia), Universidade
& Co., 1840. de São Paulo, São Paulo, 2012. doi:10.11606/D.81.2012.tde-
13082012-112515. Acesso em 06 fev. 2019.

Abstract: Humphry Davy and the metallic nature of potassium and sodium. This article focuses on the first preparation of potassium and sodium by the English
chemist Humphry Davy (1778-1829). Such achievement became possible by the use of the voltaic cell as an instrument of chemical analysis, but the results
obtained and communicated by Davy in 1807 were not free of controversies. Although the two new substances had some properties which were very different
from metals known hitherto – such as their high reactivity and their density lower than water – Davy soon admitted that they were metals. Some of Davy’s
contemporaries, such as the French chemists J. L. Gay-Lussac (1778-1850) and L. J. Thenard (1777-1857), cast doubt on his interpretations, questioning for
instance the very elemental nature of metals.
Keywords: Humphry Davy, potassium, sodium, metal, history of chemistry.

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Relatos de Sala de Aula http://dx.doi.org/10.21577/0104-8899.20160175

Construção de um biodigestor na escola: um estudo


de caso fundamentado numa perspectiva Ciência,
Tecnologia e Sociedade (CTS)

Valéria Vieira Moura Paixão, Carlos Henrique Batista e Maria Clara Pinto Cruz

Este artigo descreve um relato de sala de aula sobre a construção de um biodigestor. A pesquisa-Ação
foi o método utilizado. Para coleta e análise das concepções prévias foi utilizada a técnica de grupo focal.
As subsequentes atividades desenvolvidas foram divididas em dez (10) momentos, nos quais se buscou dis-
cutir e contextualizar as relações Ciência, Tecnologia e Sociedade (CTS). Os resultados evidenciaram que
o ensino de conteúdos químicos mostrou-se relevante na formação de sujeitos para a cidadania e contribuiu
para a apropriação dos conceitos científicos necessários para entender seus aspectos sociais, ambientais e
econômicos.

biodigestor, ensino de química, ciência, tecnologia, sociedade


351
Recebido em 28/08/2018, aceito em 22/01/2019

O
ensino de Química na Educação Básica favorece infiltra-se no solo, podendo atingir as águas subterrâneas, e
a compreensão do mundo contemporâneo, suas também provocar a poluição das águas superficiais através do
interrelações e conceitos científicos necessários escoamento da água proveniente da chuva; a contaminação
para o uso da tecnologia de forma abrangente, dinâmica e do solo, pelo descarte inadequado destes dejetos; e, ainda,
integrada. Desse modo, os conteúdos químicos devem ser a do ar, uma vez que a ação antrópica contribui significati-
abordados por meio de temáticas que contemplem os elos vamente para o aquecimento global, pela emissão de gases,
de ligação entre Ciência, Tecnologia e Sociedade (CTS). gerando o efeito estufa. Segundo Barbosa e Langer (2011,
Entender essa tessitura é colocar p. 89), “o CH4 é um dos principais
o aluno diretamente em confronto O termo biogás é autoexplicativo, e gases de efeito estufa e os animais
com situações-problemas que significa que esse gás tem origem em um são grandes emissores desse gás
estejam diretamente envolvidas processo biológico. para a atmosfera por meio de suas
com seu contexto sociocultural e, fezes e também pela respiração”.
então, buscar resolvê-las. O termo biogás é autoexplica-
Nesse sentido, uma abordagem sobre “biodigestores”po- tivo, e significa que esse gás tem origem em um processo
de ser a solução de um problema para as propriedades biológico. A matéria orgânica sofre decomposição pela ação
rurais brasileiras que sofrem com o destino inadequado dos de microrganismos em meio anaeróbio, originando uma mis-
dejetos orgânicos de animais, também considerados fontes tura de gases; denominada biogás (Brasil, 2010). O processo
da biomassa. Esses resíduos sólidos podem gerar energia de biodigestão envolve várias etapas, algumas complexas,
alternativa em relação às convencionais por produzir um e outras até desconhecidas. De acordo com o Guia Prático
biogás rico em metano (CH4). do Biogás (Brasil, 2010, p.22):
A disposição inadequada desses dejetos na Natureza
acarreta diversos impactos ambientais, pois a decomposição [...] a mistura gasosa formada é composta principal-
da matéria orgânica produz o chorume, que, por sua vez, mente de metano (50% - 75% em volume) e dióxido
de carbono (25% - 50% em volume). O biogás contém
A seção “Relatos de Sala de Aula” socializa experiências e construções vivenciadas ainda pequenas quantidades de hidrogênio, sulfeto de
nas aulas de Química ou a elas relacionadas. hidrogênio, amônia e outros gases traço.

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Essa mistura de gases é produzida por diferentes grupos Mortimer (2000). O tema escolhido precisa ter relevância
de microrganismos que, segundo Karlsson et al. (2014, p. social. Cabe verificar se, de fato, o problema detectado aflige
9),“[...] atuam juntamente com uma série de fatores, como, a sociedade e se, além disso, mostra alguma relação entre
por exemplo: pH, temperatura e tipo de substrato. Todos Ciência e Tecnologia e encontra-se inserido no contexto
esses fatores afetam a composição do biogás produzido”. sociocultural do educando. Sendo assim, no caso deste es-
Para Oliveira e Higashi (2006, p. 10), “... o metano gerado tudo, tem-se a cidade de Nossa Senhora da Glória, SE, cuja
nos biodigestores pode ser aproveitado como fonte de energia principal atividade econômica é a pecuária, o que promove a
térmica ou elétrica e usado em substituição aos combustíveis existência de quantidade significativa de dejetos orgânicos na
fósseis (GLP) ou à lenha, tendo como vantagem ser uma região, situação-problema de boa parte da realidade brasileira
fonte de energia renovável”. Com base nesta problemática, centrada na agropecuária. Portanto, a temática se mostra
torna-se indispensável que as escolas formem discentes al- relevante para o desenvolvimento de projetos que visem o
fabetizados em Ciência e Tecnologia (C&T), na perspectiva desenvolvimento de fontes de produção de energia renovável.
de que possam vir a compreender e participar ativamente das O objetivo geral deste artigo é descrever a construção de
decisões sobre problemas que afligem a sociedade moderna. um biodigestor a ser utilizado no laboratório de uma escola de
Tomando como ponto de partida essas ideias, Bazzo Ensino Médio, numa perspectiva CTS. A intenção é orientar
(2018, p.15) afirma que, ao nos reportarmos ao entendimento os alunos envolvidos para reconhecerem que a tecnologia de
dos “meandros da tecnologia, queremos dizer que ela é parte biodigestão está inserida em seu contexto social. Para tanto,
inerente da nossa compreensão de mundo. É quase como uma foram projetados as seguintes atividades: a) realizar uma visita
‘alfabetização’ necessária para todos. Tal qual um processo técnica para observação de um biodigestor em funcionamento;
inicial de aprendizagem da leitura e da escrita”. b) evidenciar os aspectos sociais, econômicos e ambientais
No entender de Martins e Paixão (2011), a cultura cientí- contemplados pelo funcionamento do biodigestor; c) discutir
fica nas sociedades modernas sugere conhecimento de múl- a importância do reaproveitamento dos resíduos sólidos essen-
tiplas interrelações entre Ciência, Tecnologia e Sociedade e, cialmente rurais (dejetos animais) e em parte urbanos (matéria
para isso, é necessário que o ensino-aprendizagem contemple orgânica); e por fim, d) propor explicações e soluções para
352 o contexto no qual a temática está inserida. os problemas apresentados na produção do biogás a partir do
Segundo Santos e Mortimer (2000), o currículo em uso da tecnologia de biodigestão.
CTS decorre da necessidade de formar o cidadão letrado
cientificamente, o que não vinha sendo alcançado adequa- Procedimentos metodológicos
damente pelas vias do ensino tradicional de Ciências. Com
o enfoque CTS nos currículos de Ciências é possível rom- O campo de pesquisa desse estudo foi o Centro de
per com o paradigma conservador, tirando o professor do Excelência Manoel Messias Feitosa de Ensino Médio inte-
centro do conhecimento e tornando o aluno protagonista no gral, localizada na região do Agreste Sergipano, município
exato momento em que descobre, de Nossa Senhora da Glória.
pesquisa, constrói ou produz o co- Nessa escola há oferta de cursos
Com o enfoque CTS nos currículos
nhecimento científico. Segundo de Ciências é possível romper com
temáticos, chamados de eletivas,
Pinheiro et al. (2007, p.77), “os o paradigma conservador, tirando o em que os alunos fazem a sua
alunos recebem subsídios para professor do centro do conhecimento e inscrição de forma espontânea. As
questionar, desenvolver a imagi- tornando o aluno protagonista no exato temáticas são estudadas em duas
nação e a fantasia, abandonando momento em que descobre, pesquisa, aulas semanais (50 min cada). Isso
o estado de subserviência diante constrói ou produz o conhecimento possibilitou trabalhar a temática
do professor e do conhecimento científico. “biodigestores” para a compreen-
apresentado em sala de aula”. são e análise da tecnologia a partir
Para Santos e Mortimer (2000, dos conteúdos de conversão de
p.111), “[...] as sociedades modernas passaram a confiar na energia, reações bioquímicas, fermentação anaeróbia, con-
ciência e na tecnologia como se confia em uma divindade”. ceitos de cinética (temperatura), estudo sobre o pH, funções
Atualmente, a sociedade tem maior acesso às informações de inorgânicas (ácidos e bases) e reação de neutralização.
cunho científico e tecnológico, porém, produz nos indivíduos Os alunos estavam cursando o ano letivo de 2017 e
dificuldades em interpretá-las de forma coerente, objetiva e contou-se com a participação de 36 estudantes. A pesquisa,
precisa. No entender de Martins e Paixão (2011, p. 9) são realizada no período de junho a setembro desse mesmo
importantes: “[...]conhecimento substantivo, conhecimento ano, foi do tipo qualitativa, cuja característica marcante
processual, conhecimento epistemológico, pensamento crí- é a flexibilidade, permitindo ao pesquisador incorporar
tico, capacidade de exposição de ideias, de elaboração de técnicas de coleta de dados mais adequadas à pesquisa que
argumentos, de análise e de síntese”. está sendo feita (Martins, 2004), e foi baseada na técnica de
A interação entre CTS se dá através de tema gerador pesquisa‑Ação (Tripp, 2005).
que propicia a participação ativa dos alunos, a solução de A intervenção didática realizada está apresentada no
problemas e a tomada de decisão, como ensinam Santos e Quadro 1, no qual é observada a existência de 3 momentos

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relevantes, a saber: processos investigativo, formativo e fizeram uma apresentação oral seguida de discussões. No
avaliativo. Na análise investigativa a técnica de coleta e quarto, os educandos protagonizaram a escolha do biodigestor
análise das concepções prévias foi o grupo focal, pois pro- mediada pelos professores. Após a escolha, nos três momentos
move discussão informal a partir da introdução de um tema posteriores ocorreu a construção do biodigestor. No oitavo
social, gerando discussões com foco a partir de perguntas e momento o biodigestor foi alimentado com dejetos animais.
questionamentos. Nessa perspectiva, a turma foi dividida em Enquanto ocorria a transformação da matéria orgânica
3 grupos de 12 alunos e os atores se dividiram para liderar em biogás no biodigestor, o estudo de caso foi outra ativi-
a reflexão. No entender de Cruz Neto, Moreira e Sucena dade realizada em sala de aula, correspondente aos nono e
(2002), a principal característica de um grupo focal é tra- décimo momentos. De acordo com Sá e Queiroz (2010),
balhar a reflexão através da fala dos participantes, na qual dessa maneira se favorece o protagonismo do aluno, permi-
eles apresentam seus conceitos, opiniões e concepções sobre tindo que ele direcione sua própria aprendizagem enquanto
um determinado tema. Após o levantamento de concepções explora a ciência envolvida em situações complexas, a fim
prévias os alunos foram desafiados a pesquisar os seguintes de solucionar os problemas. No Quadro 2 está descrito o
temas: a) Biomassa e biogás: conceitos e principais fontes estudo de caso utilizado em sala de aula.
no Nordeste; b) Como a matéria orgânica pode ser usada
Quadro 2: Estudo de caso aplicado em sala de aula
para produzir energia? c) Uso de biodigestores e aspectos
econômicos, sociais e ambientais. Os alunos tiveram duas
Estudo de caso
semanas para se prepararem. No final desse momento, um
vídeo do programa Globo Rural foi exibido e discutido. Há aproximadamente 3 meses, na cidade de Lagarto, SE,
João, um fazendeiro, dono de mil cabeças de gado, decidiu
investir em mais mil. Contudo, percebeu uma ampla quanti-
Quadro 1: Atividades desenvolvidas em 11 encontros (com
dade de dejetos produzidos diariamente e notou que isso era
duas aulas para cada encontro)
um problema. Ele já não sabia mais o que fazer, quando seu
vizinho mais próximo o aconselhou a construir um biodigestor.
Processo Investigativo (2 aulas) João seguiu o conselho de seu vizinho, e decidiu construir um
1º Momento: - Conhecimentos prévios dos alunos a partir de biodigestor contínuo, modelo da Marinha. Passaram-se 90 dias 353
grupos focais, divisão em grupos de pesquisa e sorteio de e, ao usar o gás produzido, ele se desesperou, pois a mistura
temáticas para apresentação oral. era pouco inflamável, e a combustão não era suficiente para
a geração de energia. Além disso, após algum tempo João
- Vídeo do Globo Rural: “BIOGÁS - Pequenos agricultores percebeu que o metal do motor utilizado para conversão de
do Nordeste produzem gás para sua cozinha” (https://www. energia estava enferrujando rápido. Preocupado com esta
youtube.com/watch?v=oMwO5Zw-Cgs). situação, João resolveu pedir ajuda a seu sobrinho que estuda
Processo Formativo (18 aulas) no colégio de sua cidade.
2º Momento: Visita técnica a uma propriedade que usa o – Alô, Pedro, aqui é seu tio João, como vai?
biogás para geração de energia térmica. – Olá tio, tudo bem. Como vai o senhor?
3º Momento: Apresentação oral das temáticas pesquisadas – Estou com um problema com meu biodigestor. Talvez você
e discussões dos modelos de biodigestores. e seus colegas possam me ajudar.
4º Momento: Argumentação para a escolha do biodigestor – Do que se trata, tio?
a ser construído.
– Construí um biodigestor, para o reaproveitamento dos dejetos
5º, 6º e 7º Momentos: Construção do biodigestor. de minhas 2 mil cabeças de gado. Acontece que se passaram
8º Momento: Alimentação do biodigestor por dejetos bovinos 90 dias e a mistura de gases produzidos não foi suficiente para
e início da aplicação do estudo de caso. abastecimento energético de minha fazenda, e ainda o motor
9º Momento: Pesquisa em sites na internet sobre a temática utilizado para conversão de energia térmica em elétrica está
do estudo de caso. enferrujando muito rápido.

10º Momento: Discussões e apresentação das soluções a – OK, tio, conheço alguns amigos que estudaram sobre biodi-
partir dos resultados da aplicação do estudo de caso. gestores na eletiva da Escola de Tempo Integral do Centro de
Excelência Manoel Messias Feitosa. Explicarei a sua situação,
Processo Avaliativo (2 aulas) e em breve entrarei em contato com o senhor.
11º Momento: Avaliação de aprendizagem pela Análise Textual – Peço que faça isso o mais rápido possível, pois não vejo
Discursiva. alternativa mais econômica e sustentável para reaproveitar
FONTE: autoria própria. os estrumes.
Proposta: Vocês são amigos de turma do sobrinho de João, e
No processo formativo ocorreram mais nove momentos. terão que ajudá-lo a descobrir o que está acontecendo nesta
situação e propor soluções para o problema.
No segundo momento houve uma visita técnica com o intuito
dos alunos perceberem que os dejetos bovinos (biomassa) FONTE: autoria própria.
podem ser utilizados para produção de energia. No terceiro, os
alunos analisaram os aspectos ambientais, sociais e econômi- Um questionário composto por 13 (treze) questões, des-
cos da tecnologia a partir de uma pesquisa e, posteriormente, critas por Sá e Queiroz (2010), foi entregue aos alunos para

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orientá-los na tomada de decisão no Estudo de Caso, que Processo Formativo
deveria ser exposta de modo argumentativo. As perguntas O documentário produzido pelo programa Globo Rural
foram: 1) Qual o principal assunto (problema) abordado, ou aborda as vantagens do uso de biodigestores, sua viabilidade
seja, do que trata o caso? 2) Qual a sua principal causa? 3) econômica e social como ponto de partida para o estudo da
Quais são os temas principais? 4) Como o problema apre- temática, a fim de motivar o aluno. Foi realizada, ainda, uma
sentado se mostra vinculado a questões sociais, econômicas, visita técnica ao povoado Periquito de Felícia, pertencente
ambientais e éticas? 5) Qual a gravidade do problema? 6) administrativamente à cidade onde está situado o colégio.
O que você sabe sobre esse caso? 7) O que vocês precisam Durante a visitação, foi possível compreender e analisar o
saber para solucionar o problema? 8) Que medidas podem funcionamento e a utilização de um biodigestor. Surgiram
ser tomadas para saná-lo? 9) As medidas por vocês apontadas muitos questionamentos por parte dos alunos englobando
acima são importantes para resolver a situação-problema? conteúdos diversificados de Química e Biologia, que foram
Explique. 10) Que medida foi indicada para resolvê-lo? 11) respondidos pelo professor e pelos proprietários dos biodi-
Apresente as vantagens e desvantagens da opção escolhida gestores. Nessa etapa foram percebidos aspectos multidisci-
para a solução do problema em relação a outras possíveis plinares sobre a temática. Com isso os alunos perceberam que
alternativas. 12) De que maneira a solução apresentada a construção de um biodigestor é econômica e socialmente
pode refletir no dia-a-dia das pessoas envolvidas no caso, viável, uma vez que permite reaproveitar resíduos sólidos,
levando em considerações aspectos sociais, econômicos, tanto urbanos como rurais, evitando a contaminação do
ambientais e éticos? 13) Reúnam todo o material, indiquem ambiente, uma vez que a destinação desses resíduos seria
um representante do grupo para apresentar de forma oral a os lixões ou aterros sanitários.
solução do problema e explicar porque vocês acreditam ser Em seguida, os alunos apresentaram oralmente os temas
o melhor a fazer. descritos na metodologia, explanando acerca da riqueza
Por fim, no último momento foi avaliada a aprendizagem existente em biomassa na região em estudo. O papel do
através da Análise Textual Discursiva (ATD). Moraes e professor foi analisar se as informações apresentadas pelos
Galiazzi (2011) defendem que a ATD pode ser compreendida alunos eram verídicas, discutir possíveis controvérsias e
354 como um processo de construção de novos significados, mediar as discussões.
em relação à produção textual, através da desmontagem Com a finalidade de formar alunos autônomos, sujeitos
dos textos, considerada como processo de unitarização. ativos no processo de ensino e aprendizagem, foi proposto
Posteriormente, foram estabelecidas as relações denomi- aos educandos que pesquisassem sobre como construir um
nadas de categorização. Em seguida, deu-se a etapa de biodigestor e qual o modelo mais viável para a escola. Para
construção do metatexto para explicar a compreensão que tal, foram analisadas as vantagens e desvantagens das pos-
se apresenta como produto de uma nova combinação dos síveis alternativas. Nesse contexto, foi sugerida aos alunos
elementos construídos e, por fim, procedeu-se a um processo a elaboração de uma tabela, em que foram elencados os
auto-organizado do qual emergiram novas compreensões. modelos possíveis de biodigestores. Os aspectos de interesse
Foi, ainda, desenvolvida uma etapa de produção textual foram: materiais utilizados, custo do projeto, facilidade de
individual pelos alunos intitulada: construção, facilidade de manu-
“Elabore um texto dissertativo-ar- tenção e operação, produção de
Observou-se que os estudantes não
gumentativo descrevendo como a detinham conhecimentos científicos gás, espaço ocupado pelo equipa-
matéria orgânica pode ser usada sobre como transformar resíduos sólidos mento, necessidade de acessórios,
para a produção de energia e orgânicos em energia. Prevaleceram segurança e matéria orgânica a ser
apresente os aspectos sociais, as concepções alternativas, aquelas utilizada.
ambientais e econômicos do uso espontâneas que tentam dar significado ao Os alunos apresentaram alguns
da tecnologia de biodigestão e que foi perguntado. tipos e modelos de biodigestores
suas desvantagens”. para ser escolhido apenas um, a
fim de ser construído. Os biodi-
Resultados e Discussão gestores podem ser encontrados em diversos modelos, cada
um com suas características, vantagens e desvantagens. Os
Processo investigativo: grupo focal modelos mais utilizados no Brasil devido ao fácil manuseio,
Observou-se que os estudantes não detinham conhe- alto rendimento e baixo custo são: o chinês, o indiano e o
cimentos científicos sobre como transformar resíduos paquistanês (Bezerra et. al., 2013). Os modelos elencados
sólidos orgânicos em energia. Prevaleceram as concepções pelos alunos foram o da Marinha, o indiano e o chinês. O
alternativas, aquelas espontâneas que tentam dar significado primeiro foi descartado devido ao alto custo da compra de
ao que foi perguntado. Assim, os alunos, mesmo tendo na materiais e ao grande espaço a ser ocupado. O indiano ca-
cidade local um perfil adequado para uso de biodigestor, racteriza-se por possuir uma campânula geralmente metálica
não apresentaram concepções sobre os impactos ambientais como gasômetro, elevando seu custo de implantação, além
causados pelo aterramento inadequado do lixo e a disposição de sofrer corrosão, possuindo uma curta vida útil (Machado,
imprópria de dejetos orgânicos no solo. 2013). Por fim, o modelo chinês, segundo Pecora (2013), é

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construído quase que completamente em alvenaria, dispen- foi construído no período de inverno. Localizado na cidade
sando o uso de gasômetro em chapa de aço, o que reduz com a segunda maior altitude do Estado de Sergipe, a tempe-
os custos; no entanto, podem ocorrer dificuldades como o ratura em que o reator iniciou seu funcionamento foi na faixa
vazamento de biogás. O professor, entretanto, explicou para de 22°C. Sendo assim, pode-se considerar que as bactérias
os alunos que a escola não dispõe de tempo e muito menos predominantes na digestão anaeróbia foram as mesofílicas
de recursos para fazer qualquer desses modelos. que, segundo o Guia técnico de aproveitamento energético
Dessa forma, após novas discussões e buscas em sites de biogás... (Brasil, 2015), operam em temperaturas situadas
na internet, escolheu-se um biodigestor artesanal (caseiro) entre 20°C e 40°C.
de alimentação contínua. Segundo Faria et al. (2014), essa Enquanto o biodigestor não produzia, foi solicitado aos
é uma alternativa de reaproveitamento de matéria orgânica alunos que se organizassem em quatro grupos para iniciar
cuja implementação é simples e requer materiais de fácil as pesquisas no laboratório de informática da escola visando
obtenção e baixo custo, tornando o projeto acessível a qual- a identificação da problemática de um estudo de caso. Foi
quer pessoa que deseje possuir um biodigestor. Nessa etapa, possível notar que os alunos sentiam dificuldades em com-
o papel do educador foi apenas direcionar as discussões para preender conteúdos básicos de Química. A intervenção do
que os alunos não perdessem o foco, e questioná-los quando professor foi de fundamental importância para esclarecer
sugerissem o modelo, a fim de desenvolver a habilidade de dúvidas sobre os conteúdos que seriam primordiais para
argumentação nos educandos. a resolução do estudo de caso. Em seguida, os grupos se
A construção do biodigestor gerou o modelo descrito na uniram para a apresentação da solução, que foi dividida em
Figura 1. Ele é formado por dois componentes: o digestor quatro etapas, descritas a seguir.
(bombona à esquerda), onde ocorre a digestão anaeróbica, Inicialmente, os alunos sentiram dificuldades em en-
e o gasômetro (conjunto de bombonas à direita), local onde contrar a causa do problema, pois eles não conseguiram
se realiza a remoção do gás carbônico (CO2) e do ácido associar a oxidação com o enferrujamento. O professor
sulfídrico (H2S) e o armazenamento do metano (CH4) pro- sugeriu que eles elaborassem uma tabela, na qual foram
duzido no processo. Uma mangueira sai do gasômetro em elencados os aspectos que eles sabiam sobre o caso, e o que
direção do bico de Bunsen, onde ocorre a combustão do ainda precisariam descobrir. Em seguida, foi entregue pelo 355
metano. A sua construção se estendeu por três semanas. docente um questionário que serviu para orientá-los até a
Como a turma de alunos era grande, foi dividida em grupos, solução do caso, conforme descrito na metodologia. Após
dos quais o primeiro ficou responsável por acompanhar o discussões e buscas bibliográficas, os alunos identificaram
diretor na compra dos equipamentos e fazer a limpeza das que o problema ocorreu porque as reações bioquímicas no
bombonas; o segundo grupo iniciou os cortes das bombonas biodigestor não produziram gás metano suficiente para o
e a montagem do reator; e o terceiro grupo ficou responsável abastecimento energético. Após detectar a causa do proble-
por coletar os estrumes de boi, fazer sua diluição em água e ma, e a partir de buscas na internet, os alunos identificaram
alimentar o biodigestor, principalmente com esterco bovino as reações químicas envolvidas no processo de digestão
e, posteriormente, resíduos orgânicos oriundos da cozinha anaeróbia, os produtos dessas reações, e os fatores que
escolar em pequena escala. influenciam na produção de biogás, e, em especifico, do
gás metano.
Na etapa seguinte, os alunos sentiram dificuldades em
relacionar os conteúdos científicos à tecnologia, apesar de
terem feito levantamentos na internet. Nesse ponto houve
a intervenção do professor, que discutiu com os alunos
conteúdos sobre cinética (temperatura), pH e digestão
anaeróbia, uma vez que estes fatores podem interferir na
produção de metano. Segundo Oliveira e Higarashi (2006,
p. 11), a produção de um biodigestor está associada “[...]à
sequência bioquímica das transformações metabólicas do
processo, bem como de uma série de fatores que interferem
no processo, entre os quais, temperatura, pH, concentrações
de sólidos e composição do substrato”.
Na terceira etapa, os alunos chegaram à conclusão de que
a melhor maneira do biodigestor ter um bom rendimento de
Figura 1: Biodigestor construído pelos alunos. FONTE: autoria biogás é controlar bem a temperatura; segundo eles:
própria.
O biodigestor levou aproximadamente 25 dias para iniciar De acordo com a cinética química, a temperatura
a produção de metano. Entre os fatores físicos que afetam as aumenta a velocidade de uma reação, no caso o
velocidades das reações bioquímicas, a temperatura é uma processo de biodigestão ser feita por microrganis-
das mais importantes na produção de biogás. O biodigestor mo, a temperatura deve ser estável, a melhor seria

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entre 35 a 37 graus, aumento ou diminuição brusca Se utilizar o hidróxido de sódio o produto formado
de temperatura interfere na produção de gás. Além é o sal sulfeto de sódio
disso, como estava no período de inverno, a tempe- H2S (g) + 2 NaOH (aq.) → Na2S (aq.) + 2 H2O (l)
ratura pode ter oscilado bastante, comprometendo o
rendimento de gás metano. Se usar o hidróxido de cálcio o produto é o sal
sulfeto de cálcio
Discutimos duas possíveis alternativas: segundo os alu- H2S (g) + Ca(OH)2 (aq.) → CaS (s) + 2H2O (l)
nos, o proprietário pode: “fazer um aquecimento interno no
biodigestor, ou um isolamento térmico no reator nos meses Entretanto, os alunos foram questionados sobre qual base
de inverno. Também pode ter alguma entrada de oxigênio, entre as citadas seria mais viável utilizar no biodigestor do
pois as bactérias anaeróbias são sensíveis ao oxigênio”. estudo de caso. Ao fazer a análise, deve-se levar em conside-
Outro fator descrito e discutido com os alunos foi a acidez ração: força das bases, solubilidade, e qual o produto desta
do meio: reação e, ainda, se seria possível reaproveitar o sal (produto
da reação), além de se considerar que o mesmo pode causar
para um melhor funcionamento, o pH deve estar algum impacto no ambiente. Então, eles retornaram à pes-
próximo do neutro. E se forem usados pesticidas quisa com outro problema para solucionar.
ou antibióticos eles interferiram na produção de No momento seguinte os alunos se reuniram, formando
biogás. Então, o proprietário deve frequentemente um único grupo, e pronunciaram a solução para o caso do
controlar a temperatura e o pH do biodigestor, se enferrujamento do motor no estudo de caso:
o pH ficar baixo, ele pode fazer esta correção na
próxima alimentação, pode colocar uma substância Concluímos que a solução concentrada de cal
com caráter básico para neutralizar ou balancear o (hidróxido de cálcio) é a melhor opção, pois tem
pH. Ele pode, ainda, verificar o pH através de papeis um baixo custo para sua obtenção, entretanto reage
indicadores, e a amostra deve ser aquela que está brandamente com água, mas o produto formado desta
356 saindo do biodigestor. reação é um sal denominado sulfeto de cálcio, que, se
oxidado, forma o sulfato de cálcio que tem larga apli-
Por fim, na última etapa, depois de estudados os conteú- cação na agricultura e não agride tanto o ambiente.
dos sobre oxidação, reações bioquímicas na digestão anaeró-
bia e os gases que são produzidos na biodigestão, os alunos Processo Avaliativo
chegaram à conclusão de que a causa do enferrujamento é O Quadro 3 apresenta as categorizações descritas pela
o sulfeto de hidrogênio, pois entre os gases produzidos na ATD, que indicou 4 categorias convergentes de visão de
biodigestão, em específico o H2S constitui-se “... no principal ciência, a saber: a química na biodigestão, concepções
problema para a viabilização de seu armazenamento e na econômicas, concepções ambientais e concepções sociais.
produção de energia. Equipamentos mais sofisticados [...] Essas categorias são interdependentes quanto aos aspectos
têm vida útil extremamente reduzida”, segundo Oliveira e CTS.
Higarashi (2006). Após algum tempo investigando, os es- Notam-se na primeira categoria várias subcategorias,
tudantes ressaltaram que: “o proprietário pode usar cal ou todas elas estão apontando para conhecimentos básicos de
soda cáustica”. No entanto, os alunos foram questionados Química. A categoria Concepções econômicas mostra a
pelo professor porque utilizariam soda cáustica ou cal. A relevância para o produtor rural em substituir a produção
resposta foi:“Não sei, só tem isso aqui na internet”. Dessa de energia pelo petróleo por outra renovável. Na categoria
forma, os autores desta pesquisa perceberam a necessidade Concepções ambientais os alunos colocam em destaque o
de ensinar conteúdos sobre ácidos e bases de Arrhenius, reaproveitamento dos resíduos sólidos e, com isso, a redução
reação de neutralização, força dos ácidos e bases, principais de contaminação. Por fim, nas Concepções sociais, os alunos
bases e seus nomes de comercialização. Assim, observou-se exploraram o saneamento básico e o evitar doenças e pragas.
uma evolução nas respostas dos alunos ao serem questiona- Em contrapartida, os alunos ressaltaram em seus textos que,
dos novamente pelo professor: como qualquer outra tecnologia, o biogás apresenta uma
desvantagem, pois além de CH4, CO2, H2, N2, formam-se
a melhor maneira para evitar este problema seria traços de H2S:
borbulhar no biogás, com o auxílio de um difusor,
uma solução concentrada de hidróxido de cálcio, O uso de biogás apresenta uma desvantagem que
comercializada como cal hidratada ou hidróxido de é a formação de H2S, pois ele é um gás corrosivo
sódio (conhecido como soda cáustica), através de e tóxico ao ser humano. Ao entrar em contato com
uma reação de neutralização entre o ácido (H2S) mais metal, pode provocar a sua oxidação causando pre-
a base originando um sal. juízo ao proprietário. A remoção de vapor de água e
gases corrosivos é de fundamental importância para
Abaixo as reações químicas descritas pelos alunos: a viabilidade do uso em longo prazo.

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Quadro 3 Categorizações das produções textuais pela ATD

CATEGORIAS SUBCATEGORIAS UNIDADES DE SENTIDO

Fermentação anaeróbia “... o biogás... produzido pela decomposição da matéria orgânica


na ausência de oxigênio...”
“... no biodigestor são produzidos gases metano, CO2, N2, H2,
A Química na Biodigestão Produção de gases
H2S...”
“...pH deve estar entre 6,4 e 7,8, temperatura deve estar em média
Fatores que afetam a produção de a 35ºC, oxigênio, entre outros...”
biogás

Energia Renovável “...com a escassez do petróleo e a poluição ambiental é viável


investir em energia renovável...”
“...o biodigestor fornece combustível reduzindo a dependência
Concepções Econômicas Combustível pelo petróleo....”
“...o biodigestor é uma alternativa tecnológica que pode gerar
benefícios ambientais pela eliminação dos resíduos e geração
Alternativa Tecnológica de energia térmica e elétrica...”

“...reaproveitamento dos dejetos e qualquer tipo de biomassa


Reaproveitamento
que poderiam ser descartados inadequadamente no meio
Concepções Ambientais ambiente...”
“...o biodigestor traz vários benefícios ambientais, pois ele reduz
Redução de contaminação
a contaminação do solo, água, e do ar...”

“...os biodigestores podem diminuir problemas causados pela 357


Saneamento básico falta de saneamento básico...”
“...dejetos de animais nas propriedades rurais é um problema
pois afeta o meio ambiente e consequentemente a saúde hu-
Concepções Sociais
mana...”
“...a contaminação do ambiente pode provocar o surgimento
Evitar doenças e pragas de doenças... surgimento de pragas, animais transmissores de
doenças e insetos...”
FONTE: autoria própria.

Com isso, percebe-se como os alunos relacionaram a tec- pelo descarte de resíduos sólidos oriundos de esterco prove-
nologia à ciência, pois para favorecer uma formação cidadã, niente da criação de animais ou pela falta de aproveitamento
sujeitos alfabetizados tecnologicamente devem ir além de de resíduos da cozinha.
somente dominar os artefatos tecnológicos. Segundo Santos Essas ideias foram internalizadas pelos alunos, como
e Mortimer (2000), a educação no enfoque CTS não deve pode ser observado nos resultados da Análise Textual
se limitar apenas ao uso de tecnologias e à compreensão de Discursiva (ATD). Nesse contexto, se buscou desenvolver
seu funcionamento, pois isto é alienante. O ensino precisa uma intervenção a fim de ensinar conteúdos interdiscipli-
contribuir para a busca de um desenvolvimento sustentável. nares. Com isso, considera-se que o tema abordado conso-
Inicialmente os alunos não tinham percepção acerca lidou o aprendizado de vários conteúdos com o propósito
dos problemas ocasionados pelo descarte inadequado dos de compreender o funcionamento da tecnologia, tais como:
dejetos rurais e matéria orgânica urbana; e não apresenta- conversão de energia, reações bioquímicas, digestão anaeró-
vam conhecimento sobre como transformá-los em energia. bia, conceitos de cinética (temperatura), estudo sobre o pH,
Assim, a partir dos relatos verbais, que foram constantes nas funções inorgânicas (ácidos e bases), reação de neutraliza-
aulas, a construção de um biodigestor, abordada por meio do ção, de maneira a contribuir para a formação do sujeito para
enfoque CTS, mostrou que a produção de biogás através da o exercício da cidadania.
matéria orgânica (esterco de animais) e, posteriormente, por Os alunos, quando engajados pelo professor acerca
restos de alimentos, é econômica e ambientalmente viável, de um problema, motivam-se, buscam por suas respostas.
podendo ser usada como fonte de energia térmica e elétrica, Entretanto, é necessário ter acesso não somente ao conheci-
desde que, como ressaltado pelos alunos, haja um tratamento mento estanque da ciência, mas também de qual forma ela
para purificação do gás, descrito no estudo de caso. Dessa está inserida na sociedade e analisar as vantagens e desvan-
forma, auxilia-se na diminuição do uso dos combustíveis tagens que a tecnociência nos proporciona, não somente no
fósseis e na diminuição dos impactos ambientais causados sentido de entender e analisar artefatos tecnológicos, mas de

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ter condições necessárias para in- Nas discussões que desenvolveram entre disso, os discentes aprenderam a
tervir, quando for preciso, sobre si, os alunos conseguiram articular e refletir “pesquisar”, ou seja, retirar infor-
o uso desses produtos. sobre os conhecimentos de base, de modo mações da internet, interpretá-las
a elaborar hipóteses e conclusões para e dar significados a elas. Conclui-
Conclusões os gargalos tecnológicos da construção se, portanto, que os alunos podem
de um biodigestor, elaborando, assim, ser multiplicadores de projetos
A construção de um biodiges- argumentos. Porém, transcendeu a ciência de biodigestores, por terem co-
tor na escola trouxe aos discentes da Química, com as análises dos aspectos nhecimentos suficientes quanto à
várias tomadas de decisões em sociais, econômicos e ambientais dessa produção de energia renovável,
relação ao conhecimento de base tecnologia norteando as relações Ciência, numa cidade que representa a rea-
principalmente da disciplina de Tecnologia e Sociedade. lidade de muitas outras também de
Química. Os resultados eviden- economia agropecuária.
ciam, ainda, o investimento dos
professores em promover alguns destes conhecimentos
para os alunos, de modo que eles pudessem dar sentido a Valéria Vieira Moura Paixão (valeriavieira_adm@hotmail.com), licenciada em
cada ação investigada. Nas discussões que desenvolveram Química pela Faculdade Pio Décimo. Aracaju, SE – BR. Carlos Henrique Batista
entre si, os alunos conseguiram articular e refletir sobre os (chenriqueb@ig.com.br), licenciado em Química pela Universidade Federal de
Sergipe, especialização em Química pela Universidade Federal de Lavras e mes-
conhecimentos de base, de modo a elaborar hipóteses e con- trado em Engenharia de Processos pela Universidade Tiradentes. Atualmente é
clusões para os gargalos tecnológicos da construção de um Professor do Governo do Estado de Sergipe em Nossa Senhora da Glória. Aracaju,
biodigestor, elaborando, assim, argumentos. Porém, trans- SE – BR. Maria Clara Pinto Cruz (clara_aju@yahoo.com.br), graduada em Química
cendeu a ciência da Química, com as análises dos aspectos Industrial pela Universidade Federal de Sergipe, licenciada em Química pela Facul-
dade Pio Décimo, mestra em Química e doutora em Engenharia Química, ambos
sociais, econômicos e ambientais dessa tecnologia norteando
pela Unicamp. Atualmente é professora no curso de Licenciatura em Química da
as relações Ciência, Tecnologia e Sociedade. Esse procedi- Faculdade Pio Décimo e pesquisadora no Instituto de Pesquisa Interinstitucional
mento culmina numa formação crítica dos alunos, capazes de Sergipe (IPISE). Aracaju, SE – BR.
358 de intervir na sociedade de maneira a transformá-la. Além

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Abstract: Construction of a biodigestor in school: a case study based on a science, technology and society perspective (STS). This article describes a classroom
report on the construction of a biodigester. Action research was the method used. For the collection and analysis of previous conceptions, the focal group
technique was used. Subsequent activities were divided into ten (10) moments, in which we sought to discuss and contextualize Science, Technology and
Society (STS) relations. Results showed that the teaching of chemical contents was relevant in the formation of subjects for citizenship and contributed to the
appropriation of scientific concepts necessary to understand their social, environmental and economic aspects.
Keywords: biodigestor. chemistry teaching. science. technology. society.

359

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Relatos de Sala de Aula http://dx.doi.org/10.21577/0104-8899.20160176

Atividade investigativa teórico-prática de Química para


estimular práticas científicas

Matheus S. B. Silva, Daniel M. Silva e Ana Cláudia Kasseboehmer

Neste artigo, relata-se uma experiência didática de aplicação de uma atividade investigativa teórico-prática
com alunos do ensino médio regular em um Clube de Química oferecido em uma universidade pública. O
ensino investigativo é uma abordagem didática cujo objetivo é fazer com que os alunos se engajem na re-
solução de um problema a respeito de um fenômeno natural e desenvolvam habilidades correspondentes ao
trabalho científico. Essa atividade contou com dois momentos distintos. Inicialmente, os alunos participaram
de uma etapa teórica e, após isso, desenvolveram uma parte experimental. Os estudantes tiveram dificuldades
em elaborar hipóteses e procedimentos experimentais coerentes. Ainda assim, os resultados indicam que o
erro não afetou a sua participação. A combinação entre uma abordagem teórica e prática foi bem sucedida,
uma vez que a ênfase sobre a elaboração de hipóteses permitiu que os alunos pensassem sobre a importância
360 dessa etapa na construção da Ciência.

abordagem investigativa, ensino de química, hipótese

Recebido em 30/08/2018, aceito em 22/01/2019

O
objetivo deste relato é apresentar uma experiência experimentais, a análise de dados e as discussões de re-
de aplicação de uma atividade investigativa que sultados com seus pares (Munford e Lima, 2007). Logo, a
combina uma etapa teórica, em que os alunos devem criatividade, a autonomia e a dúvida, processos inerentes à
dedicar-se apenas à elaboração prática científica, não são apren-
de hipóteses, e uma etapa prática, O aluno parte de sua cultura cotidiana e
didos pelos estudantes (Gil-Pérez
em que os alunos elaboram hi- baseada no senso comum para uma cultura et al., 2001).
póteses e as investigam por meio em que seus conhecimentos cotidianos Pa r a G a s t o n B a c h e l a r d
de um experimento. A atividade interagem, em uma situação de confronto (1996), a construção do saber
foi aplicada para estudantes do e questionamentos, com os novos científico é feita a partir de uma
ensino médio regular de diferentes conhecimentos aprendidos. mudança para uma nova cultura.
escolas em um Clube de Química O aluno parte de sua cultura coti-
desenvolvido em um laboratório diana e baseada no senso comum
de pesquisa em Educação em Ciências em uma universidade para uma cultura em que seus conhecimentos cotidianos
pública, nos anos de 2016 e 2017. interagem, em uma situação de confronto e questionamen-
Na educação básica, ao priorizar o ensino de conceitos, tos, com os novos conhecimentos aprendidos. Nesse estado,
a Ciência é apresentada aos alunos como uma atividade o aluno adquire uma nova linguagem e assim desenvolve
simples, distanciada do trabalho de cientistas profissionais o seu espírito científico. Fonseca (2008) relata que a pe-
e construída por meio de etapas mecânicas em um método dagogia científica discutida por Bachelard corresponde a
universal e infalível (Munford e Lima, 2007). Como resul- um contexto de estimulação à capacidade do aprendiz de
tado, os alunos conhecem pouco sobre a natureza das ciên- pensar, inquietar-se e de questionar o seu próprio conhe-
cias, incluindo os modos de trabalhar dos cientistas, como cimento. O sujeito passa a sentir necessidade constante de
a formulação de hipóteses, a proposição de procedimentos superar suas dificuldades e obstáculos (Bachelard, 1996).

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Atividade Investigativa Atividades dessa natureza podem ser desenvolvidas de
diferentes maneiras, conforme o nível de controle dos alunos
A atividade investigativa propõe-se a ser uma analogia ao sobre as etapas de investigação (Bevins e Price, 2016). Esses
trabalho científico praticado em instituições de pesquisa no níveis são descritos pelos graus de abertura da atividade e
sentido de oferecer aos alunos a oportunidade para pensar, refletem a autonomia experimentada pelos estudantes ao
refletir, discutir com seus pares e desenvolver sua capacidade longo do processo. Nessa perspectiva, Kasseboehmer et
argumentativa utilizando a linguagem científica (Munford e al. (2015 p. 123) propõem níveis de abertura adaptados de
Lima, 2007). Conforme discute Sasseron (2015), o ensino Pella (1961), que seguem um contínuo como destacado no
investigativo é uma abordagem didática cujo objetivo é fazer Quadro 1.
com que os alunos se engajem na resolução de um problema Como nos níveis de 0 a 2 basicamente todos os compo-
a respeito de um fenômeno natural e exercitem práticas de nentes são fornecidos, as atividades geralmente são baseadas
comparação, análise e avaliação, ao mesmo tempo em que em roteiros prontos que devem ser seguidos pelos estudan-
interagem com seus colegas, com os materiais didáticos e tes. Nessa situação, podem aprender sobre instrumentos e
com seus conhecimentos já existentes. Essa abordagem vem cálculos sem, no entanto, desenvolver processos cognitivos
sendo bastante discutida na literatura internacional (Bevin mais complexos (Borges, 2002). No nível três, os alunos têm
e Price, 2016; Sesen e Tarhan, 2013; Bunterm et al., 2014) mais liberdade para propor procedimentos experimentais.
e nacional (Belluco e Carvalho, 2013; Miranda et al., 2015; Ao serem responsáveis pela coleta e análise dos dados, par-
Suart e Marcondes, 2009; Sasseron, 2015; Kasseboehmer e ticipam mais ativamente do seu processo de aprendizagem.
Ferreira, 2013) e tem mostrado resultados positivos na ma- No nível quatro, é fornecido apenas o problema aos alunos,
nifestação de habilidades de escrita, raciocínio e pensamento sendo de sua responsabilidade propor o restante das etapas
crítico nos alunos. da atividade.
Kasseboehmer et al. (2015) afirmam que as ativida- Kasseboehmer et al. (2015) recomendam que os profes-
des investigativas criam um ambiente de aprendizagem sores aumentem progressivamente os níveis de investigação
que incentiva o aluno a buscar, pelas características do para que os alunos acostumem-se com essa nova estratégia.
problema e a própria necessi- Borges (2002) salienta que, no 361
dade de encontrar uma solução, [...] a partir do momento em que as início de sua aplicação, as ativi-
aprofundar seus conhecimentos atividades investigativas tornam-se dades investigativas dificilmente
e explorar novos conceitos que presentes no planejamento escolar, os produzem resultados, justamente
possam ajudá-lo durante a inves- alunos tendem a pensar e a realizar as pelo fato de que todo o sistema
tigação. Nesse sentido, também tarefas escolares de forma mais autônoma, escolar não está acostumado a
promovem o desenvolvimento e os professores tornam-se mais confiantes essa nova prática. Entretanto,
de habilidades cognitivas, como em planejar este tipo de atividade. Kasseboehmer et al. (2015) dis-
o raciocínio lógico e, conforme cutem que essa dificuldade é
discutem Sasseron e Carvalho apenas inicial e é resultado da
(2011), podem favorecer a construção de uma visão ade- passividade proveniente do modelo tradicional de ensino.
quada a respeito do trabalho científico. Bevins e Price Logo, a partir do momento em que as atividades investiga-
(2016) acrescentam que essa abordagem permite com que tivas tornam-se presentes no planejamento escolar, os alunos
os alunos tenham progressivo domínio sobre as habilidades tendem a pensar e a realizar as tarefas escolares de forma
de investigação, possibilitando o aprendizado de novos mais autônoma, e os professores tornam-se mais confiantes
conceitos e procedimentos utilizados pela Ciência. Isso em planejar este tipo de atividade.
resulta em maior capacidade de lidar com a complexidade Inicialmente é necessário que os alunos tenham a oportu-
crescente de um mundo cada vez mais tecnológico (Bevins nidade para pensar livremente sobre um problema, que deve
e Price, 2016). ter como característica uma situação de conflito em que os

Quadro 1: Níveis de investigação de acordo com a liberdade fornecida aos alunos.

Procedimento Coleta e análise de


Nível Problema Material Conclusões
Experimental dados
0 Dado Dado Dado Dado Dadas
1 Dado Dado Dado Dado Em aberto
2 Dado Dado Dado Em aberto Em aberto
3 Dado Dado Em aberto Em aberto Em aberto
4 Dado Em aberto Em aberto Em aberto Em aberto
5 Em aberto Em aberto Em aberto Em aberto Em aberto

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estudantes sentem-se desafiados a raciocinar e organizar seus e fatos apresentados durante as aulas teóricas. O resultado
conhecimentos prévios (Scarpa et al., 2017). é o estabelecimento de uma imagem equivocada da relação
Praia et al. (2002a), ao discutirem o problema, destacam entre o experimento e a teoria, onde o primeiro serve como
que este deve fazer parte do universo de interesse dos alunos um processo de confirmação do segundo e resultados fora
e, preferencialmente, deve ser colocado por eles no sentido do esperado são vistos como uma anomalia (Borges, 2002).
de que o assumam como um desafio e possam engajar-se Nesse caso, o erro é colocado em uma posição diretamente
efetivamente para solucioná-lo. É importante então que o ligada ao fracasso. Como consequência, os alunos podem
problema se diferencie de uma simples aplicação de fórmulas manipular seus dados para chegar às respostas esperadas pela
e que fique claro para o aluno que não há soluções únicas e teoria (Borges, 2002). Para evitar isso, os objetivos finais da
imediatas (Borges, 2002). atividade investigativa experimental devem ser apresentados
Entendendo o problema, os alunos partem para a pró- como um processo de aprendizagem do fazer científico,
xima etapa da investigação, em que devem formular suas para além dos conceitos teóricos. Como apontam Praia et
hipóteses. As hipóteses constituem uma solução provisória al. (2002b), nesse tipo de situação o erro é inevitável pelo
para o problema proposto inicialmente, antecedendo a etapa fato de que aos alunos é dada autonomia para extrapolar
experimental, articulando os conhecimentos dos alunos e sua criatividade. Kasseboehmer et al. (2015) discutem que
os auxiliando na tomada de decisões futuras (Praia et al., o erro durante a atividade investigativa pode constituir-se
2002b). como nova fonte de pesquisa e de reorganização do conhe-
Conforme discutem Gil-Pérez et al. (2001), as hipóteses e cimento, tornando o aluno mais comprometido com a sua
a teoria devem assumir um papel de protagonismo na investi- aprendizagem.
gação e são essenciais ao trabalho científico. Essa concepção Como nas atividades investigativas há etapas que envol-
de ciência se distancia da imagem empírico-indutivista que vem discussões entre os alunos, há o estabelecimento de um
atribui ao experimento um peso maior em relação aos outros espírito cooperativo entre os mesmos e a divisão de responsa-
aspectos envolvidos na prática científica. Segundo a visão bilidades entre o grupo (Kasseboehmer et al., 2015). Assim,
empírico-indutivista, a experimentação não é conduzida por os aprendizes constroem o que será denominado por Praia
362 uma teoria prévia e orientadora, mas a partir do controle de et al. (2002b, p. 255) de “comunidade científica de alunos”,
variáveis e da repetição exaustiva, chega-se à construção de que permite que os estudantes dialoguem e exponham suas
novos modelos e teorias. ideias para a resolução de um problema.
Tendo em vista a concepção de que as hipóteses e a teoria
possuem papel fundamental no trabalho científico, a fim Metodologia
de que os alunos tenham condições de elaborar hipóteses
e procedimentos experimentais cientificamente coerentes A atividade investigativa foi proposta para 15 alunos do
e guiados por um fundo teórico, o professor deve retomar 2º ano do ensino médio com idades entre 15 e 16 anos inscri-
alguns conceitos básicos para o desenvolvimento das novas tos em um Clube de Química de uma universidade pública.
ideias (Kasseboehmer et al., 2015). Esses conceitos básicos Dos 15 alunos, 6 eram de escolas particulares e 9 de escolas
auxiliam os alunos na tomada de decisões e, de acordo com públicas da cidade. Sobre a familiaridade com experimenta-
a mediação adotada pelo professor, são aprofundados e ção, 7 alunos já haviam tido aulas de laboratório, sendo que
explorados na sua relação com outros conceitos científicos 6 eram de escolas particulares e 1 frequentava uma escola
abordados pelo problema. técnica estadual do Centro Paula
O próximo passo é a valida- Souza. Os outros 8 alunos que
Tendo em vista a concepção de que
ção das hipóteses. Esse processo estudavam em escolas públicas
as hipóteses e a teoria possuem papel
consiste em utilizar atividades fundamental no trabalho científico, a
da periferia da cidade alegaram
práticas para investigar experi- fim de que os alunos tenham condições nunca ter participado de atividades
mentalmente as hipóteses. É o de elaborar hipóteses e procedimentos experimentais relacionadas com a
momento de mudança da ativi- experimentais cientificamente coerentes e Química. O interesse dos alunos
dade intelectual para a atividade guiados por um fundo teórico, o professor em realizar atividades experimen-
manipulativa (Carvalho, 2011), deve retomar alguns conceitos básicos tais e aumentar seus conhecimen-
em que os estudantes têm liberda- para o desenvolvimento das novas ideias tos de Química foi unânime como
de para propor um procedimento (Kasseboehmer et al., 2015). motivação para participarem do
experimental, coletar dados, ano- Clube de Química.
tar seus registros e construir suas O Clube de Química iniciou
análises de acordo com o nível de investigação adotado. O com dois encontros de preparação para as atividades in-
contato com diferentes variáveis que podem surgir durante vestigativas. No primeiro deles foi apresentada uma aula
a experimentação permite aos alunos estabelecer relações e, expositiva dialogada pelos educadores para discutir como o
consequentemente, aprofundar seus conhecimentos. exercício de pensar e aprender pode ser prazeroso e trazer
As atividades práticas tradicionais geralmente são aplica- diversos benefícios para o desenvolvimento dos alunos.
das com o objetivo de comprovar e demonstrar leis, teorias Em seguida, realizaram uma discussão sobre o método

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científico, visando desmistificá-lo como um conjunto de exercícios simples. Enquanto nestes se pressupõe que ape-
etapas mecânicas e bem definidas seguidas pelos cientistas nas uma resposta é correta, os problemas de uma atividade
e apresentá-lo segundo uma abordagem em que há uma in- investigativa teórica permitem que mais de uma hipótese
teração constante entre a teoria, a hipótese e o experimento. coerente seja elaborada, colaborando para o desenvolvimento
Nesse sentido, teorias e hipóteses podem guiar o experimento do raciocínio lógico e da discussão entre os estudantes.
da mesma forma que resultados experimentais podem levar Segundo Suart e Marcondes (2009), nas atividades
a reformulação das construções teóricas. Também foi dis- investigativas práticas, o estudante participa ativamente da
cutida com os alunos a questão do erro, enfatizando o seu elaboração de hipóteses e dos procedimentos experimentais,
aspecto natural na prática científica e a sua importância no junto com a execução do experimento. No entanto, a mo-
aprendizado. Para complementar essas ideias, foi exibido o tivação inicial despertada pelo experimento pode ter como
episódio “Scientific Method, Beakmania & Rainbows” de consequência a supervalorização do trabalho experimental
um programa de televisão estadunidense, Beakman’s World, em detrimento da construção de hipóteses. As atividades
em que é apresentado o método científico e suas etapas. desenvolvidas compreendem então uma parte teórica, de
Como muitos dos alunos nunca tiveram a oportunidade elaboração de hipóteses, e uma parte prática, de proposição
de realizar um experimento, foi aplicada uma prática simples de procedimentos experimentais, configurando-se como uma
de evidências de reação com nível 2 de abertura conforme atividade investigativa teórico-prática. Em ambas as etapas
o Quadro 1. O objetivo foi que os alunos conhecessem e os problemas colocados aos alunos foram diferentes, porém
“perdessem o medo” de manusear vidrarias e reagentes e estavam dentro de uma mesma temática.
que se familiarizassem com prá- Neste artigo será discutida
ticas experimentais. Essas etapas a última atividade investigativa
A teórica tem como propósitos
são importantes, considerando teórico-prática de nível 4 tra-
fundamentais que os alunos formulem
que poucos são os alunos que já uma solução provisória a um problema balhada com os estudantes. O
tiveram contato com um labora- segundo seus conhecimentos teóricos, encontro teve duração de 2 horas
tório (Borges, 2002), e muitos se dediquem a um trabalho de abstração e 30 minutos. A atividade foi de-
deles desconhecem a metodologia e possam formular modelos teóricos senvolvida baseada em um tema 363
científica, que são conhecimentos explicativos, sem necessariamente realizar relacionado à deficiência de ferro
essenciais para participação nessa um experimento. no organismo. Esse tema é jus-
abordagem. No segundo encontro, tificado dentro de um panorama
foi conversado com os alunos a social e está em coerência com
respeito da segurança no laboratório e os principais cuidados os interesses dos alunos devido a sua importância médica
que devem ser tomados durante os experimentos. e nutricional.
Em seguida, foram apresentadas algumas vidrarias e ins- A atividade iniciou com uma investigação teórica. Os
trumentos. Nesse encontro foram realizadas uma atividade educadores distribuíram fichas com uma breve contextuali-
de nível 2 e outra de nível 3 de abertura, para que os alunos zação a respeito da temática, abordando a questão da anemia
se habituassem com a atividade e conhecessem os materiais ferropriva, os sintomas manifestados pela deficiência de ferro
utilizados no laboratório. O Clube de Química teve a duração no organismo, as formas de tratamento e as recomendações
total de 9 semanas e, após essas atividades de adaptação, nutricionais. Após a leitura do texto, foi solicitado aos estu-
foram trabalhadas 7 atividades investigativas de nível 4. dantes que elaborassem hipóteses para a seguinte questão:
Essa abordagem foi desenvolvida combinando-se uma “É um costume popular colocar um prego no preparo da
atividade investigativa teórica (Kasseboehmer et al., 2015) comida como forma de combater a anemia. Elabore uma
e prática (Suart e Marcondes, 2009), esperando-se aumentar hipótese para explicar se esse hábito é correto. Justifique
o tempo que o estudante dedica à elaboração das hipóteses. sua resposta utilizando seus conhecimentos.”
Ambas as etapas, apesar das similaridades que as caracte- Essa etapa foi individual e permitiu que os alunos cons-
rizam como investigativas, possuem objetivos distintos. A truíssem hipóteses a partir de seus conhecimentos prévios.
teórica tem como propósitos fundamentais que os alunos Os estudantes ficaram livres para recuperar conhecimentos
formulem uma solução provisória a um problema segundo do seu cotidiano bem como os apresentados pelo professor
seus conhecimentos teóricos, se dediquem a um trabalho de nas aulas de Química. Sendo uma atividade individual, os
abstração e possam formular modelos teóricos explicativos, alunos deviam organizar mentalmente seus conhecimentos e
sem necessariamente realizar um experimento. Conforme registrar sua hipótese com suas palavras na folha de respos-
discutem Kasseboehmer et al. (2015), na etapa prática os tas, utilizando a linguagem científica. A atividade também
alunos, além da formulação das hipóteses, utilizam ferra- contava com três pistas que os alunos podiam consultar caso
mentas físicas para resolver um problema, testar suas ideias, sentissem dificuldade em elaborar suas hipóteses:
observar, coletar e registrar dados e, então, propor relações 1. Pense nas diferentes formas em que os elementos quími-
dos resultados com a teoria previamente estudada. cos são encontrados na natureza e estudados na escola;
Kasseboehmer et al. (2015) ainda destacam que a abor- 2. Pense em que forma o ferro se encontra nos alimentos e
dagem teórica não deve ser confundida com a resolução de no prego;

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3. Pense no porque a vitamina C (ácido ascórbico) auxilia Os estudantes se reuniram em duplas para discutir o
na absorção do ferro. problema e escolher o melhor procedimento experimental
dentre os propostos por cada um. No material fornecido cons-
Na etapa seguinte, também individual, os estudantes tavam informações a respeito das formas em que ferro pode
deveriam explicar o raciocínio utilizado na construção das ser encontrado na natureza e algumas reações de conversão
hipóteses. Essa questão permite que os estudantes vejam envolvendo esse elemento químico (Quadro 2).
com mais clareza suas ideias e avaliem sua compreensão Para que os estudantes tenham autonomia para propor
do problema. Nesse sentido, os docentes podem analisar diferentes estratégias experimentais, foram disponibilizados
quais são as estratégias lógicas utilizadas pelos estudantes diversos materiais que poderiam ser utilizados durante a
e quais são as principais fontes que buscam para adquirir investigação, além dos propostos por Eleotério et al. (2007).
informações e, assim, identificar possíveis concepções Após a execução dos procedimentos experimentais pelos
alternativas e erros conceituais. A partir disso, é possível estudantes, foi realizada uma discussão de fechamento da
que o professor elabore intervenções que possam facilitar atividade, sobre os roteiros propostos e as dificuldades con-
a aprendizagem. ceituais percebidas pelos educadores ao longo do encontro.
A segunda parte da atividade correspondia à abordagem A análise do trabalho desenvolvido pelos alunos baseou-
investigativa prática, utilizando um experimento adaptado -se na ficha contendo as respostas referentes às hipóteses,
da literatura (Eleotério et al., 2007). Individualmente, os os raciocínios utilizados e os procedimentos experimentais.
estudantes deveriam elaborar um procedimento experimental
para o seguinte problema: “A Agência Nacional de Vigilância Análise de Hipóteses e Raciocínios
Sanitária (ANVISA) é o órgão responsável pelo controle
sanitário de produtos e serviços, e está realizando testes As hipóteses dos alunos para o problema teórico foram
para avaliar se os medicamentos para anemia realmente agrupadas em três categorias: a) hipóteses coerentes – pro-
contêm ferro em sua composição, e para isso solicitou ajuda postas com aplicação adequada do conhecimento científico;
do Clube de Química. Como podemos identificar a presença b) hipóteses parcialmente coerentes – afirmações corretas,
364 de ferro em um medicamento?”. mas que não utilizam conceitos químicos; c) hipóteses

Quadro 2: Formas em que o ferro pode ser encontrado na natureza e reações de conversão.

Informações Fornecidas aos Alunos


1. Formas em que o ferro é encontrado na Natureza
O ferro pode ser encontrado de diferentes formas na Natureza:
a) Fe0 (ferro metálico) é um metal (prego);
b) Fe+2 e Fe+3 (íons ferro) são encontrados dissolvidos ou ligados a outros elementos químicos (solução);
c) Fe2O3 e FeO (óxidos de ferro), a conhecida “ferrugem” com coloração marrom-avermelhada (prego oxidado);
d) FeSO4 (sulfato ferroso) é um mineral essencial para o corpo e tem coloração branca (comprimido).
2. Conversões entre as formas de ferro
Os íons ferro podem se converter entre as formas descritas acima de diferentes maneiras. Por exemplo:
a) Misturando com ácido:
FeSO4(s) + 2H+(aq) + 2Cl–(aq) → Fe2+(aq) + 2Cl–(aq) + 2H+(aq) + SO42–(aq)
Composto Branco Líquido Incolor
Fe(s) + 2HCl(aq) → Fe (aq) + 2Cl (aq) + 2H2(g)
2+ –

Prego Líquido Incolor Gás


b) Misturando com base:
Fe3+(aq) + 3NaOH(aq) → Fe(OH)3(s) + 3Na+(aq)
Incolor Base Marrom-avermelhado
c) Misturando com oxigênio do ar:
2Fe(s) + O2(g) → 2FeO(s)
Prego Ferrugem
d) Misturando com água oxigenada:
Fe2+(aq) + H2O2(aq) → Fe3+(aq) + OH–(aq) + HO•(aq)
Incolor Água oxigenada

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incoerentes – explicações incorretas e com erros conceituais. utilizou informações apresentadas no texto e relacionou com
A análise da resposta coerente mostra que um aluno tem conhecimentos anteriormente aprendidos, sem, no entanto,
conhecimento a respeito das diferentes formas químicas que especificar sua origem. Os demais não deixaram claro a quais
o ferro pode assumir e isso varia de acordo com a fonte na fontes recorreram para elaborar suas explicações.
qual é encontrado: “Não, o ferro precisa estar em uma forma
adequada para o nosso corpo (Fe2+) se não for assim pode Análise das Propostas Experimentais
gerar alguma reação no corpo, fazendo mal”.
Uma diferente abordagem feita por quatro alunos Os procedimentos experimentais também foram classi-
relacionou-se ao hábito anti- higiênico da prática e foram ficados em coerentes e incoerentes. Apenas três dos quinze
classificadas como parcialmente coerentes. Nesse sentido, alunos não preencheram a ficha com as suas propostas.
uma aluna relatou que: “Este costume popular não é eficaz, Doze alunos relataram individualmente suas ideias de como
pois é anti-higiênico. A maneira mais saudável é o consumo identificar o metal a partir dos materiais que foram disponi-
do próprio ferro vitamínico, pois a utilização do prego pode bilizados, sendo que oito respostas foram classificadas como
contaminar o alimento”. A aluna recorreu ao fato de que coerentes e quatro como incoerentes. Como essa etapa foi
o prego é um material que pode conter sujeiras e que pode executada em dupla, os alunos puderam discutir e defender
ser prejudicial à saúde, mas não considerou as formas em suas propostas de procedimentos experimentais perante seus
que o ferro pode ser encontrado na natureza. Outros nove colegas e selecionar aquele que consideraram a melhor forma
alunos discutiram que o ferro do de se chegar aos resultados.
medicamento era diferente do A maioria dos alunos compreendeu o
Das respostas incoerentes,
ferro do prego e por isso o costu- problema da atividade investigativa, três alunos relataram ser possí-
me popular estaria errado. Essas todavia, não conseguiu elaborar vel separar o ferro apenas pela
respostas foram consideradas uma hipótese coerente. A principal dissolução do medicamento e a
parcialmente corretas pela falta de dificuldade foi a não percepção dos ciclos sua filtração, sendo que o metal
conceitos químicos. Uma hipótese biogeoquímicos dos elementos. deveria, assim, ficar retido no fil-
foi considerada incoerente pela tro. Essa afirmação mostra que os 365
falta de compreensão na redação estudantes não compreenderam a
da proposta. diferença entre as formas de ferro existentes na Natureza,
A maioria dos alunos compreendeu o problema da ati- associando este elemento apenas a seu estado metálico.
vidade investigativa, todavia, não conseguiu elaborar uma Sendo um metal, portanto um objeto palpável, os alunos
hipótese coerente. A principal dificuldade foi a não percepção concluem que deve ser retido no filtro. Esse resultado torna
dos ciclos biogeoquímicos dos elementos. A falta de opor- explícito que eles não se apropriaram adequadamente do
tunidades para os estudantes desenvolverem sua capacidade conceito de íons.
de argumentação durante a sua trajetória escolar prejudica Tal como outros conceitos químicos como átomos, molé-
a aprendizagem e a utilização da linguagem e da lógica culas e substâncias, os íons não fazem parte da experiência
científicas (Driver et al., 2000). Esta questão demanda que direta dos estudantes. Por isso, guardam uma natureza abs-
os professores tenham um melhor entendimento a respeito trata e, portanto, geralmente não são bem assimilados (Taber,
do papel desempenhado pela linguagem no aprendizado 2001). França et al. (2009), em um trabalho com estudantes
dos alunos, especialmente quando esta envolve diferentes do 3º ano do ensino médio, notaram a dificuldades deles em
estruturas e formas de pensar, como a linguagem científica entender o significado dos íons, sua representação e como
(Fang, 2004). são formados. Em um trabalho anterior com estudantes do
Em relação à explicação do raciocínio, apenas uma aluna ensino fundamental, Silva e Aguiar (2008) relatam que os
não preencheu o solicitado. Nove dos quinze alunos citaram alunos não conseguiram compreender a diferença entre
que há uma diferença entre o ferro que constitui o prego e os objetos compostos por ferro e o ferro necessário para a
o encontrado nos alimentos. Assim, eles construíram suas nutrição humana.
hipóteses partindo da informação contida na ficha de ativi- A ideia apresentada pelos alunos corrobora as questões
dades. Como sugerido por um dos alunos “O ferro usado identificadas na etapa teórica a respeito da dificuldade dos
no prego vem de rochas e o ferro usado no corpo vem de estudantes em abstrair que o ferro pode ser encontrado em
alimentos”. Os estudantes souberam diferenciar que o ferro uma forma iônica e não sólida. Essa questão é bastante dis-
pode encontrar-se em diferentes formas químicas, mas não cutida por Bachelard (1996), quando ele se refere ao apego
compreenderam que o ferro da rocha pode, eventualmente, às primeiras impressões e à dificuldade em abandoná-las,
constituir um alimento. Apenas um dos alunos citou que a principalmente quando advindas do senso comum e das
diferença entre as formas de ferro citadas no texto relaciona- experiências corriqueiras.
-se ao estado de oxidação: “Na fórmula (Fe2+) do ferro para Na quarta resposta incoerente, o estudante sugeriu o ácido
ingerir e na forma do prego Fe”. como uma substância que marcaria o ferro no medicamento:
Duas alunas afirmaram ter utilizado as informações for- “O ácido vai mudar a cor do ferro no comprimido provando
necidas pela discussão com colegas e um aluno relatou que que tem ferro”.

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Nota-se um obstáculo animista quando o aluno cita que o É importante destacar que o objetivo da atividade inves-
ácido muda a cor do ferro e prova que o metal está presente tigativa não é que os alunos efetuem a prática corretamente
no comprimido. Esse tipo de obstáculo atribui características e cheguem à resposta esperada pelo professor, mas sim que
humanas a objetos inanimados (por exemplo, provar alguma trabalhem os conhecimentos aprendidos nas aulas teóricas
coisa), dificultando a aprendizagem efetiva dos conceitos e e tenham oportunidade de discuti- los. Nessa perspectiva, o
a necessária abstração para o desenvolvimento do espírito erro torna-se uma oportunidade para identificar dificuldades
científico (Bachelard, 1996). Nesse caso, o aluno não per- e reestruturar conhecimentos mal estabelecidos. Como dis-
cebeu que a identificação resulta de uma reação química. cutem Souza et al. (2007), o erro faz parte da aprendizagem
Esses obstáculos fazem parte das experiências dos alunos e, e torna possível identificar relações e pré-concepções dos
portanto, são difíceis de serem superados (Bachelard, 1996). estudantes, devendo ser explorado e discutido. Segundo
Isso exige que os estudantes entrem em um conflito cogni- Nogaro e Granella (2004), o erro assume um papel privi-
tivo a partir de novas situações legiado na compreensão do que o
de aprendizagem proporcionadas aluno não aprendeu, atuando como
Dentre as propostas coerentes, sete alunos
pelo professor. um ponto de partida para elaborar
sugeriram que o ferro pode ser identificado
Dentre as propostas coerentes, a partir da dissolução do medicamento intervenções que os auxiliem no
sete alunos sugeriram que o ferro previamente triturado e da adição de avanço de sua aprendizagem.
pode ser identificado a partir da hidróxido de sódio ao filtrado. De acordo No início do Clube de Química,
dissolução do medicamento pre- com eles, a adição da base deve provocar os alunos ficavam receosos em
viamente triturado e da adição de uma alteração na solução, que adquire uma apresentar suas ideias e resultados
hidróxido de sódio ao filtrado. De coloração marrom-avermelhada. por medo de errarem. Porém, ao se
acordo com eles, a adição da base familiarizarem com as atividades,
deve provocar uma alteração na o erro passou a estimular novas
solução, que adquire uma coloração marrom-avermelhada. discussões e os alunos começaram a enxergá-lo como uma
De acordo com Eleotério et al. (2007), é necessário oportunidade de rever os seus conhecimentos.
366 adicionar ácido para dissolução do medicamento. Ainda A combinação entre uma abordagem teórica e prática
assim, as respostas foram classificadas como coerentes foi bem sucedida, uma vez que a ênfase sobre a elaboração
porque os alunos compreenderam a necessidade de dissolver de hipóteses permitiu que os alunos pensassem sobre a im-
o comprimido e, portanto, entenderam que o ferro pode ser portância dessa etapa no desenvolvimento científico. Nessa
encontrado em outras formas, nesse caso, solúveis em água. abordagem, o experimento deixa de ser a única variável e
Ainda, mostraram conhecer que uma reação química pode a hipótese também adquire um papel essencial durante o
ser identificada por uma mudança visual no meio reacional. percurso de construção da Ciência.
Um exemplo deste procedimento experimental é o seguin-
te: “Pensei em usar uma conversão entre formas de ferro, Considerações Finais
misturar o ferro com uma base e assim se estivermos certos
ocorrerá uma reação e ficará de outra cor.” A proposta deste artigo foi apresentar o desenvolvimento
Apenas um aluno percebeu a necessidade de oxidar o Fe de uma atividade investigativa teórico-prática. Avaliando
(II) a Fe (III) utilizando um agente oxidante disponível (a as hipóteses formuladas pelos alunos, o resultado mostra
água oxigenada, neste caso). Assim, após a execução dos pro- que a maioria conseguiu construir uma ideia parcialmente
cedimentos experimentais, a maioria dos alunos não obteve o coerente, segundo o critério estabelecido. Em relação aos
resultado esperado. Isso porque o Fe (II) na presença de íons procedimentos experimentais, apesar de 8 das 12 respos-
hidroxila forma um precipitado branco que, em condições tas terem sido classificadas como coerentes, segundo o
normais, adquire uma coloração esverdeada (Vogel, 1981). raciocínio dos alunos, apenas uma proposta previa a oxi-
Caso seja esperado um tempo considerável, é possível que a dação do ferro (II) no medicamento e, com isso, apenas
solução adquira uma coloração marrom- avermelhada como um aluno conseguiu chegar ao resultado esperado pelo
consequência da oxidação pelo oxigênio atmosférico (Vogel, experimento.
1981), o que não foi possível no período disponível. Em relação às pistas apresentadas, sua maior contribuição
De acordo com o Currículo de Química do Estado de diz respeito às situações em que os alunos encontram dificul-
São Paulo, os conceitos de reação redox são introduzidos no dades em elaborar um raciocínio coerente. Sugerimos que
2º ano do ensino médio e, portanto, era possível que esses as pistas sejam mantidas, sendo que as questões um e dois
alunos tivessem sucesso em sua proposta. Porém, como foram essenciais para que os alunos pudessem conduzir a
discutem Jong et al. (1995), este tópico é percebido pelos investigação. Entretanto, reconhecemos que a pista três deva
professores e pelos alunos como um assunto difícil de ser ser reformulada, considerando que os alunos não entenderam
trabalhado, e dificuldades de aprendizagem são esperadas. o seu significado. Caso essa pista permaneça, indicamos que
Por isso mesmo, a aprendizagem de um conceito não pode o professor explique a atuação do ácido ascórbico como
depender apenas da aula expositiva e esses conceitos preci- agente redutor na conversão de ferro (III) para ferro (II)
sam ser retomados em estratégias didáticas diversificadas. antes da elaboração de hipóteses pelos alunos.

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Ainda que o sucesso da execução do experimento te- experimento já caracteriza a prática como de nível 4, não
nha ocorrido com apenas uma dupla, a possibilidade de sendo necessário um laboratório completo.
errar não afetou os participantes. Assim, o erro pode ser
considerado como parte positiva do trabalho dos alunos, Agradecimentos
isto é, um aspecto inerente à prática científica e também à
prática educativa. Aos alunos que participaram da pesquisa, às escolas e aos
O relato apresentado neste artigo visa contribuir para o professores que permitiram a divulgação do Clube de Química.
desenvolvimento e a divulgação de atividades que objetivam Processo n.º 2017/10118-0, Fundação de Amparo à
colocar os alunos como protagonistas em sua aprendizagem Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP); Processo n.º
e, neste caso, que se enfatize a hipótese no ensino investi- 2018/19108-0, Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de
gativo. Os autores, porém, reconhecem as dificuldades em São Paulo (FAPESP); Processo n.º 2018/20145-7, Fundação
relação à aplicação desse tipo de atividade, considerando o de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP);
modo como a grade curricular e as aulas são organizadas Processo CNPq 457780/2013-4; Pró-Reitoria de Graduação
nas escolas. da USP.
A experiência com Clubes de Química mostra que as difi-
culdades existem apenas inicialmente, até que os professores Matheus S. B. Silva (matheus.santos.barbosa@usp.br) Licenciado em Ciências
Exatas com habilitação em Química pela Universidade de São Paulo (USP).
e os estudantes se acostumem com essa nova estratégia. A É aluno de iniciação científica no Instituto de Química de São Carlos (IQSC).
tendência é que seja cada vez mais fácil e prazerosa a par- São Carlos, SP – BR. Daniel M. Silva (daniel.matheus.silva@usp.br) licenciado
ticipação nesse tipo de atividade, tanto para os professores em Ciências exatas com habilitação em Química pelo – IFSC-USP e mestre em
quanto para os alunos. O tempo de 2 horas e meia foi supe- Ciências (área de concentração Físico-Química) pelo Instituto de Química de São
Carlos – IQSC-USP. Atualmente é aluno de doutorado também pelo IQSC-USP. São
rior ao necessário e, para adaptação para escola, sugerem-se Carlos, SP – BR. Ana Cláudia Kasseboehmer (claudiaka@iqsc.usp.br), bacharel,
três aulas, sendo a primeira para a parte teórica e as demais licenciada e mestre em Química, doutora em Ciências pela Universidade Federal
para a parte prática. Ainda, a simples adição de quaisquer de São Carlos. Atualmente é docente do Instituto de Química de São Carlos IQSC/
outros materiais além dos necessários para a realização do USP. São Carlos, SP – BR.
367
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Abstract: Theoretical-practical inquiry chemistry activity stimulating scientific practices. In this article, we report a didactic experience using a theoretical-
practical inquiry activity carried out with regular high school students in a Chemistry Club offered at a public university. Inquiry activities are didactic
approaches in which the purpose is to make students engage in solving a problem regarding a natural phenomenon and develop skills corresponding to the
scientific work. This activity had two different moments. Initially students participated in a theoretical step and, after that, developed an experimental part.
Students had difficulty in developing coherent hypothesis and experimental procedures. Yet, as the results indicate, mistakes did not affect their participation
368 in the activities. The combination of theoretical and practical approaches was successful, since hypothesis construction allowed students to think about its
importance to the development of science.
Keywords: inquiry approach, chemistry teaching, hypothesis.

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Relatos de Sala de Aula http://dx.doi.org/10.21577/0104-8899.20160177

O ambiente natural como recurso para promover um


ensino interdisciplinar

Sidnei de Lima Júnior, Diógenes Aparecido de Almeida, Luciana Cristina Candido de Menezes e
Roberto Greco

Este artigo configura-se como uma proposta de ensino interdisciplinar em que professores de química,
geografia e biologia articulam intervenções didáticas junto a um grupo de alunos da 1ª série do ensino médio
técnico em química de uma escola pública do Estado de São Paulo. As atividades que compõem esta articulação
são baseadas em pesquisas elaboradas pelos estudantes, a partir de materiais, informações e dados obtidos
em visitas de campo a três diferentes áreas do município e da região da escola. Os resultados desta proposta
interdisciplinar foram analisados à luz da Análise Textual Discursiva (ATD), evidenciando a construção de
importantes compreensões e interações entre conteúdos e conceitos pelos estudantes, demonstrados pelo
desenvolvimento de pesquisas, seguido da apresentação dos materiais, dados e informações investigados
junto aos docentes e à comunidade, culminando na produção de uma mostra científica permanente sobre 369
aspectos químicos, geográficos e biológicos presentes no município da escola, para compor o acervo do
museu histórico e pedagógico da própria cidade.

ambiente natural como recurso didático, ensino interdisciplinar, aprendizagem ativa

Recebido em 23/08/2018, aceito em 30/04/2019

A
necessidade de que os processos educacionais Silva et al. (2008) sublinham que, ao trabalharem projetos
estabeleçam diálogos permanentes com situações ambientais nas aulas de química, propiciaram maior enga-
reais e do contexto dos jamento e compreensão de con-
estudantes configura-se como ceitos junto aos estudantes. Estes
A utilização de visitas de campo no ensino,
um fator importante a ser con- resultados foram alcançados em
segundo Viveiro e Diniz (2009), permite
siderado no desenvolvimento a articulação de conteúdos conceituais,
consequência do desenvolvimento
destes sujeitos. Nesse sentido, os procedimentais e atitudinais. Marques de atividades que estimularam os
documentos oficiais da educação e Praia (2009) também defendem que estudantes a buscarem formas de
básica preconizam que o plane- visitas a ambientes naturais possibilitam reaproveitar águas residuais de
jamento das disciplinas seja ba- melhoria na compreensão sobre a origem produções industriais e agrícolas,
seado em propostas que abordem do conhecimento científico, valorização do presentes no próprio município da
aspectos sociais, econômicos ambiente natural e a integração de saberes escola.
e ambientais do cotidiano dos pelos estudantes. Ribeiro et al. (2010) também
estudantes (Brasil 2006, 2013). atestam sobre o envolvimento dos
Esses documentos propõem que alunos nas aulas de química, ao arti-
as abordagens disciplinares sejam embasadas em proces- cularem atividades didáticas envolvendo visitas de campo que
sos didáticos que estimulem o levantamento e discussão englobaram coleta e análise de dados sobre poluição aquática.
de situações significativas, possibilitando o aprendizado Os autores também verificam o estabelecimento de interações
de conhecimentos científicos e a apropriação de atitudes e entre conteúdos de diferentes áreas do conhecimento pelos
valores pelos estudantes (Carvalho, 2008; Delizoicov et al., estudantes.
2009; Santos e Schnetzler, 2010; Marques et al., 2013). No A utilização de visitas de campo no ensino, segundo
entanto, a utilização de aspectos que permeiam a temática Viveiro e Diniz (2009), permite a articulação de conteúdos
meio ambiente tem sido objeto de discussão com diferentes conceituais, procedimentais e atitudinais. Marques e Praia
enfoques na educação, notadamente no ensino de química. (2009) também defendem que visitas a ambientes naturais

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possibilitam melhoria na compreensão sobre a origem do de melhores compreensões acerca de conceitos da química
conhecimento científico, valorização do ambiente natural e e suas relações com conteúdos de outras áreas científicas
a integração de saberes pelos estudantes. entre estes sujeitos.
Essa integração de conceitos e saberes, pode ser poten- Em um cenário próximo a este contexto, Silva e Mortimer
cializada, quando professores de diferentes componentes (2012) relatam as experiências obtidas pelo desenvolvimento
curriculares se unem para articular abordagens em torno de um projeto PIBID, que tratou de questões ambientais
de um mesmo objeto de estudo, utilizando-se de métodos delineadas entre professores, estudantes e formadores de
e práticas com enfoque interdisciplinar. Assim, propicia-se docentes. Estas questões procuraram explorar assuntos
aos estudantes, que estes teçam relações mais intrínsecas inerentes à poluição aquática em uma lagoa do município
entre as diversas áreas das ciências, possibilitando gerar da escola, permitindo alcançar significativos resultados na
maiores sentidos e significados para os conhecimentos compreensão, relação entre conhecimentos de áreas dis-
construídos. tintas entre os sujeitos participantes e o aprimoramento de
Nessa perspectiva, Abreu e Lopes (2013) defendem habilidades cognitivas essenciais, principalmente entre os
que o conhecimento químico escolar possui inúmeras estudantes e futuros professores.
interfaces com as demais ciências, cabendo então aos do- Mediante a constatação de que o ambiente pode se
centes de química não se furtarem do estabelecimento de configurar como um meio propício para a contextualização
diálogos e interações constantes com as outras áreas do de saberes e o tratamento interdisciplinar de determinados
conhecimento. conceitos, buscamos por meio de uma proposta de interven-
Chassot (2012), ao propor que o ensinar química deve ção no ensino, verificar como o tratamento de questões que
transgredir as fronteiras da disciplina, pontua que os co- envolvem a exploração mineral no território que engloba o
nhecimentos passam a ter mais sentido e a contribuir com local e a região da escola, pode contribuir com abordagens
a geração de maiores significados. Para Zanon (2012), interdisciplinares, que permitam melhores compreensões e
a interdisciplinaridade, aliada à contextualização, pode interações entre conteúdos de diferentes áreas das ciências,
contribuir com a multiplicidade de relações entre conceitos junto a estudantes do ensino médio técnico.
370 específicos de componentes curriculares, valorizando a Nesta perspectiva, objetivamos desenvolver e aplicar uma
mobilização de processos educativos quando situados ao intervenção interdisciplinar junto à uma turma da 1ª série do
cotidiano do aluno. ensino médio técnico em química, pertencente à uma escola
Fazenda (2007) defende que a interdisciplinaridade estadual do interior paulista. Essa proposta, baseia-se em
com enfoque teórico-metodológico permite superar a estimular que estudantes em grupo, elaborem um levanta-
fragmentação na educação, impulsionando transformações mento, análise e socialização de dados e informações sobre
e possibilitando alcançar múltiplas relações conceituais aspectos químicos, geográficos e biológicos presentes no
entre diversos campos das ciências. A autora realça que ambiente local e regional da escola.
esse resultado é gerado nas práticas docentes, partindo de A motivação para o tema ampara-se na valorização do
mediações a partir do todo com as partes, dos meios com ambiente como fonte de recursos para a contextualização e o
os fins, contribuindo significativamente com a construção estabelecimento de inter-relações entre conteúdos e conceitos
do conhecimento. científicos de diferentes áreas curriculares.
Ao tratarem de uma intervenção interdisciplinar no
ensino médio, Correia et al. (2004) identificam que es- Aspectos Metodológicos
tudantes inter-relacionaram saberes de diferentes áreas
quando estimulados a pesquisarem assuntos envolvendo Como aporte teórico para este trabalho, recorremos a
o tema bioquímica, após utilizarem diferentes estratégias Fazenda (2007), a qual defende a interdisciplinaridade como
didáticas, que envolveram desde atividades práticas expe- um novo pensar e agir entre sujeitos que buscam privilegiar o
rimentais, leitura, interpretação de textos, até a produção ensino a partir de convivências interativas e enriquecedoras
de uma peça teatral. entre docentes e alunos, sem justaposições entre áreas do
Silva (2010), ao propor pesquisas sobre a produção de conhecimento. Os conteúdos propostos para esta intervenção
cachaça no Brasil-Colônia em aulas de química do ensino (Quadro 1) foram selecionados de acordo com a ementa do
médio, permitiu que os discentes construíssem relações curso (São Paulo, 2016), ao longo de três reuniões organi-
entre conceitos de diferentes áreas do conhecimento. Esse zadas entre os professores participantes, as quais ocorreram
resultado foi devido a articulações interdisciplinares e multi- durante o 3º bimestre letivo de 2016.
disciplinares, promovidas a partir de conteúdos da geografia, A utilização do ambiente no ensino é amparada nos
história, biologia e química. pressupostos de Marques e Praia (2009), como fonte de
No que tangem abordagens interdisciplinares que tra- estímulos para a compreensão sobre a natureza dos conhe-
tam de questões ambientais no ensino, Rua e Souza (2010) cimentos científicos, a integração de saberes, a valorização
propiciaram que estudantes elaborassem pesquisas mais do ambiente natural e o trabalho colaborativo entre alunos e
contextualizadas e integradas ao cotidiano destes sujeitos, professores. Nesse sentido, a utilização da visita de campo
despertando o senso crítico e permitindo o desenvolvimento (Figura 1) a três diferentes áreas (Quadro 2) serviu de fonte

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Quadro 1: Conteúdos e conceitos selecionados

Disciplinas Conteúdos e conceitos


Substâncias e suas propriedades (Fórmula molecular, temperatura de fusão e ebulição)
Química Comportamento das substâncias e funções inorgânicas
Reações químicas (Evidências de reações químicas)
Biodiversidade (biomas, organização da diversidade e diversidade brasileira)
Biologia Interdependência da vida (sucessões ecológicas)
Matéria e energia (os movimentos dos materiais e da energia na natureza)
Localização e representação (mapas)
Geografia Espaço e lugar (coordenadas geográficas)
A relação homem e biodiversidade (atividades antrópicas)
Fonte: Os autores.

371

Figura 1: Professores e grupos de alunos durante visitas de campo. Fonte: Os autores.

para tratamento de conceitos e conteúdos científicos que do município da escola, por meio do convite do curador
emergem a partir destas atividades. deste museu, que esteve presente na exposição dos alunos
Nas visitas de campo, os grupos utilizaram um aplicati- (Figura 4).
vo gratuito para telefones celulares (GPS Status), a fim de Os resultados das pesquisas dos grupos foram avaliados
possibilitar o registro das coordenadas geográficas dos locais por meio da análise textual discursiva, proposta por Moraes
visitados. A atividade prática experimental, que ocorreu ao (2003), a partir dos textos presentes nas apresentações, nos
longo de duas aulas de química, permitiu aos grupos a uti- painéis produzidos para a mostra científica e nos discursos
lização de um microscópio óptico com câmera fotográfica, engendrados pelos grupos, que foram gravados e avaliados
possibilitando o registro de imagens e comparação entre pelos docentes participantes.
materiais rochosos. Esses materiais foram identificados a Esses materiais constituíram o corpus da análise,
partir de consultas ao banco de dados do Museu Heinz Ebert emergindo as seguintes categorias: conceitos articulados,
da Universidade Estadual Paulista, disponível no website: imprecisões dos estudantes e interações de conteúdos.
https://museuhe.com.br/ (Figura 2). Dessas categorias emergiram outras oito subcategorias re-
Para a articulação das atividades investigativas, nos ferentes a conteúdos e conceitos trabalhados pelos grupos,
apoiamos em Sasseron (2015), a fim de propiciar pesquisas que foram identificados por meio de unidades constituí-
sobre aspectos químicos, geográficos e biológicos presentes das de transcrições de trechos provenientes dos materiais
nos dados, informações e materiais coletados pelos grupos, analisados.
durante as visitas. Os resultados dessas investigações fo-
ram apresentados pelos grupos, em formato de exposições Resultados e discussão
digitais, para os docentes. Estes, por sua vez, orientaram
os grupos a elaborarem uma única apresentação, unindo os As categorias, subcategorias e unidades geradas na aná-
conceitos, conhecimentos e amostras dos materiais pesqui- lise textual discursiva foram organizadas de acordo com o
sados, para apresentarem à comunidade escolar, como etapa Quadro 3.
final dos trabalhos (Figura 3). Ao verificarmos as unidades “...ficou fácil ter as coor-
A apresentação junto à comunidade escolar, que teve a denadas com o telefone celular...” e “...as coordenadas
participação dos responsáveis pelos alunos e outros mem- serviram para chegar nas rochas e minerais pelo mapa...”,
bros da sociedade, culminou na produção de uma mostra constatamos a articulação, pelos grupos, de dados sobre la-
científica permanente para o Museu Histórico e Pedagógico titude e longitude com informações provenientes de mapas

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Quadro 2: Síntese das atividades desenvolvidas na intervenção

Cronograma Atividade desenvolvida Objetivo


Exposição da proposta inter- Apresentar a proposta de abordagens interdisciplinares, as
Semana 1 1 aula (50 min)
disciplinar disciplinas e atividades envolvidas.
Visita a afloramento rochoso
no interior da unidade escolar
(Itapira) Estimular a observação, registro de dados, informações e
5 aulas (250 min) imagens relacionadas às coordenadas geográficas (latitude
Visita a afloramento rochoso / e longitude), tipo de vegetação do ecossistema (bioma) das
Estrada vicinal (Itapira e Mogi áreas. Proporcionar o uso de aplicativo tecnológico para
Guaçu) smarthphones para localização geográfica (GPS Status).
Visita ao parque geológico
Semana 2 6 aulas (300 min)
Varvito / Itu
Estimular a socialização das informações e materiais cole-
tados nas visitas. Ampliar as discussões sobre os conceitos
Debate e aulas expositivas e científicos envolvidos (definição de rochas, minerais, ciclos
Semana 3 6 aulas (300 min)
dialogadas das rochas, substâncias, fórmula química molecular, fun-
ções inorgânicas, reações químicas, espaço geográfico e
paisagem, biomas, sucessões ecológicas e clímax).
Instigar a pesquisa investigativa sobre a possível composi-
ção dos materiais coletados (caracterização e identificação
Semana 4 6 aulas (300 min) Pesquisas investigativas dos tipos de rochas e seus minerais, uso de mapas digitais,
composição química, reações de oxidação nos materiais,
biomas e sucessões ecológicas presentes nos ambientes).
372 Identificar as rochas coletadas nas áreas, comparando com
2 aulas (100 min) Atividade prática em laboratório amostras do banco de dados do museu virtual: http://www.
rcunesp.br/museuhe.com.br
Semana 5
Elaborar uma apresentação dos aspectos e conceitos
4 aulas (200 min) Elaboração das apresentações químicos, geográficos e biológicos evidenciados a partir
das pesquisas.
Exposição das apresentações Estimular a expressão oral, argumentação sobre os resul-
4 aulas (200 min) dos grupos junto aos profes- tados das pesquisas investigativas entre os outros grupos
sores de alunos e professores.
Semana 6
Proporcionar o debate sobre os apontamentos elaborados
Elaboração de debate entre os
2 aulas (100 min) pelos grupos, durante as apresentações junto aos docentes
grupos
e grupos de alunos.
Desenvolver um trabalho em conjunto com todos os grupos,
Produção da apresentação da
4 aulas (200 min) socializando os conhecimentos construídos entre os alunos,
pesquisa à comunidade escolar
na formatação de uma única apresentação.
Semana 7
Estimular a expressão oral, argumentação, compreensão
Apresentação final da pesquisa
2 aulas (100 min) de fenômenos e conhecimentos a partir dos resultados das
junto à comunidade escolar
pesquisas científicas junto à comunidade externa.
Elaborar trabalho científico permanente, para exposição
Preparação da mostra científica no Museu Histórico e Pedagógico do município. Elencar
5 aulas (250 min)
permanente aspectos químicos, geográficos e biológicos do município
Semana 8 da escola.
Inauguração da exposição da Desenvolver a socialização da pesquisa científica sobre os
1 aula (50 min)
mostra científica permanente aspectos levantados com outros membros da sociedade.
Fonte: Os autores.

digitais a partir de Perrotta et al. (2005) e do website: http:// alcalinidade...”, demonstrando uma organização em relação
rigeo.cprm.gov.br/xmlui/handle/doc/2966?show=full. à utilização dos achados em campo.
Essas constatações são reforçadas ao analisarmos as Dessa forma, o desenvolvimento de atividades práticas
unidades “...a experiência com o microscópio foi boa para ao longo das visitas, aliadas às investigações dos grupos,
ver detalhes das pedras [...] e“...a composição do basalto permitiram que fossem identificados os tipos de rochas pre-
é de óxidos de Fe II e III, Al, Si, Mg, Ca, Na e K com alta sentes nas áreas, os minerais e suas respectivas composições

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Figura 2: Grupos de alunos durante o registro de imagens e identificação das rochas. Fonte: Os autores.

373

Figura 3: Alunos durante apresentações para os grupos e para a comunidade. Fonte: Os autores.

Ao analisarmos as unidades referentes a biomas e su-


cessões ecológicas, constatamos que a maioria dos grupos
conseguiu identificar esses aspectos nas áreas circunvizinhas
ao município. No entanto, ao tentarem identificar o bioma
que prevalece na área do município da escola, demonstraram
dificuldades. Pois os registros de campo dos grupos, referen-
tes à área do município, apresentavam características de dois
biomas diferentes: mata atlântica e cerrado. Por essa razão,
o professor de biologia acionou o responsável da Secretaria
Municipal de Meio Ambiente, que, por meio de uma palestra
ministrada na própria escola, esclareceu as dúvidas dos gru-
pos. Ele confirmou que, na área que engloba o município em
que a escola se insere, há biomas de mata atlântica e cerrado.
Figura 4: Alunos com os professores durante inauguração da Outro momento de imprecisão dos alunos foi demons-
mostra científica. Fonte: Os autores. trado nas unidades “...algumas rochas contêm oxidações
por causa do ferro presente em sua composição e as rea-
químicas. Embora os estudantes estabelecessem interlo- ções causadas pela água da chuva e umidade do ar...” e
cuções entre os dados, informações e amostras rochosas “...no intemperismo químico ocorre a mudança da pedra,
coletadas, também construíram entendimentos sobre alguns porém alterações químicas dos componentes da rocha...”.
conhecimentos científicos presentes nesses achados. Essas unidades explicitaram a ausência de explicações
Marques e Praia (2009) e Silva e Mortimer (2012) pontu- mais abrangentes sobre reações químicas no ambiente por
am que a articulação de atividades de campo, que envolvam parte dos estudantes. Desse modo, o professor de química
coleta de materiais, registro de dados e a manipulação de solicitou que os grupos pesquisassem sobre possíveis tipos
equipamentos, pode promover vantagens em relação ao de reações que ocorrem nessas dinâmicas naturais expostas
desenvolvimento de habilidades, além do contato direto do anteriormente, para apresentarem de forma mais detalhada
estudante com materiais, que antes só eram apresentados para a comunidade.
em formatos teóricos ou abordados como exemplos pelos Assim, os alunos apresentaram informações sobre a
professores. ocorrência de reações de hidrólise em minerais de feldspato

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Quadro 3: Categorização dos conteúdos dos textos e dos discursos dos alunos

Categorias Subcategorias Unidades


“...as coordenadas geográficas foram importantes para ver os
pontos no mapa e chegar na rocha...”
“...a latitude e longitude ajudaram muito na identificação dos
Coordenadas geográficas tipos de rochas...”
“...as coordenadas serviram para chegar nas rochas e minerais
pelo mapa...”
“...ficou fácil ter as coordenadas com o telefone celular...”
“...a pedra que está na escola é metamórfica, na estrada de
Itapira é magmática [...] e a do parque visitado é sedimentar...”
“...as rochas do parque são ritmitos compostas de arenitos,
Rochas, minerais, identificação siltitos e argilitos...”
e caracterização “...a experiência com o microscópio foi boa para ver detalhes
dos minerais [...] é basalto mesmo...”
Conceitos articulados “...o que há na região da escola é gnaisse e migmatito também
[...] dá pra ver bem pelas linhas daqui da foto...”
“...a composição do basalto é de óxidos de Fe II e III, Al, Si, Mg,
Ca, Na, K com alta alcalinidade...”
“...as rochas são formadas por minerais que tem óxidos e sais...”
Substâncias, composição “...o quartzito é formado essencialmente por sílica...”
química e funções inorgânicas “...os processos de formação dos minerais podem deixar ele
ácido e outros alcalinos...”
“...os minerais têm composição química estabelecida, cristalizado
e formam as rochas...”
“...nestas áreas têm sucessões secundárias, porque já foram
374
alteradas...”
Biomas e sucessões ecológicas
“...nos lugares visitados predominam características de ambiente
de cerrado...”
“...o lugar tinha mata atlântica e também características de
Identificação do bioma de
cerrado...”
Itapira/SP
“...em Itapira há mata atlântica e cerrado...”
Imprecisões dos estudantes
“...algumas rochas contêm oxidações por causa do ferro presente
Intemperismo e reações
em sua composição e as reações causadas pela água da chuva
químicas
e umidade do ar...”
“...antes desta pesquisa eu não tinha noção do que tinha uma
pedra, não imaginava toda a história, a química e a física que
ela carrega...”
Constatações interdisciplinares “...é muito importante usar conhecimentos de outras áreas, além
da química, para entender o que tem na Terra...”
“...porque antes eu não tinha noção da história que tem contida
nesta pedra...”
“...tendo em vista terem as lajes de pedras servido de material
Interações de conteúdos de construção...”
“...carregamento e transporte para beneficiamento, produzindo
brita e asfalto...”
“...as rochas sedimentares têm grande importância econômi-
Utilização do ambiente e seus
ca, como exemplo o carvão e os depósitos de petróleo e gás
materiais
natural...”
“...estes materiais são fonte para produzir tijolos e vidros...”
“...uma rocha importante para a agricultura, pois o produto de
sua decomposição é uma argila de coloração avermelhada, que
origina solos férteis (terra roxa)...”
Fonte: Os autores.

potássico, comumente presentes no ambiente, relacionan- encontrados no ambiente e que podem interagir para formar
do a ocorrência dessas reações à água e ao gás carbônico o ácido carbônico:

2 KAlSi3O8 + 2 H2CO3 + 9 H2O → 2 K+ + Al2Si2O5(OH)4 + 2 HCO3– + 4 H4SiO4


(feldspato potássico) (ácido carbônico) (Água) (íon potássio) (caulinita) (íon hidrogenocarbonato) (ácido silícico)

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Sasseron (2015) defende que a valorização de pequenas científica permanente, fruto de um trabalho conjunto entre
ações que busquem sanar imprecisões e pequenos erros grupos de alunos e professores que auxiliaram os estudantes
manifestados pelos estudantes, no cotidiano do ensino, na seleção dos materiais relacionados ao contexto do muni-
contribuem fortemente para um aprendizado mais efetivo. cípio para comporem essa mostra.
A autora ainda sublinha que a investigação no ensino de Dessa forma, foram apresentados conceitos e infor-
ciências também propicia que os discentes desenvolvam, mações relevantes sobre os tipos de relevos presentes no
gradativamente, maiores compreensões sobre determinados município, fatores relacionados às dinâmicas provenientes
conceitos. da teoria da deriva continental, que permitiram o desenvol-
Nesse contexto, percebemos um pequeno avanço na vimento dos biomas e seus constituintes da flora e fauna
compreensão dos estudantes em relação a conceitos que presentes nessa área. Também foram apresentados aspectos
envolvem reações químicas, utilizando da exemplificação e que se inter-relacionam com essas dinâmicas, passando pelos
explicação sobre uma reação química de produção de argilas, tipos de rochas, minerais e suas respectivas composições
a partir da hidrólise de minerais feldspáticos. Esse tipo de químicas. Outros trabalhados nesta exposição referem-se a
evento ocorre de forma natural no ambiente, devido a fatores produtos gerados a partir da exploração mineral na área do
que constituem o intemperismo químico sobre esses minerais município, que abarcam as produções de cerâmica, massa
comumente encontrados em rochas e solos. asfáltica e de alimentos, por meio das atividades agrícolas
Em relação às unidades “...tendo em vista terem as lajes estabelecidas na área em que a escola se insere.
de pedras servido de material para construção...” e“...as
rochas sedimentares têm grande importância econômica, Conclusões
como exemplo o carvão e os depósitos de petróleo e gás na-
tural...”, verificamos compreensões avançadas a respeito de A busca dos aspectos químicos, geográficos e biológicos
alguns aproveitamentos de materiais naturais pela sociedade. presentes no ambiente local e regional da escola possibilitou
Esses apontamentos comprovam o estreitamento e a contextualização de conteúdos e conceitos pelos docen-
inter-relacionamento entre conteúdos abordados pelos pro- tes dessas diferentes áreas do conhecimento, despertando
fessores e algumas observações registradas pelos estudantes, maior interesse e envolvimento dos estudantes no processo 375
durante as visitas de campo, salientando a potencialidade de ensino.
em propiciar relações entre saberes escolares e o cotidiano As relações que foram estabelecidas entre os alunos, a
(Fazenda, 2007; Zanon, 2012). Marques e Praia (2009) partir dos trabalhos em grupo, envolvidos desde as visitas
também corroboram para essa análise, ao constatarem que de campo até a produção e inauguração da mostra científica
há atribuições de sentidos reais aos conteúdos articulados a permanente no museu histórico e pedagógico do município
partir de temas ambientais, promovendo novas leituras sobre da escola, também demonstram que trabalhos cooperativos
o ambiente natural e antrópico pelos estudantes. Rua e Souza podem facilitar o aprendizado entre os discentes.
(2010) atestam que o ambiente não pode ser retratado, no O aprendizado construído pelos estudantes foi concretiza-
ensino de ciências, como mero palco das ações humanas, do no desenvolvimento e aprimoramento de habilidades de
mas como elemento integrante de dinâmicas das quais o observação, reflexão, análise, expressão e comparação arti-
educando faz parte, permitindo o estabelecimento de novas culados por estes sujeitos, que foram demonstrados também,
percepções em relação aos lugares e seus materiais. ao longo da elaboração de relações e inter-relações entre
Ao analisarmos as unidades “...antes desta pesquisa eu conceitos e conteúdos de diferentes áreas do conhecimento.
não tinha noção do que tinha uma pedra, não imaginava Nesse sentido, destacamos que os resultados desta pes-
toda a história, a química e a física que ela carrega...” e ”...é quisa só foram alcançados por meio do envolvimento pleno
muito importante usar conhecimentos de outras áreas, além dos professores participantes. Pontuamos, ainda, que uma
da química, para entender o que tem na Terra...”, eviden- proposta de ensino interdisciplinar não pode se restringir
ciamos alguns resultados dos trabalhos desenvolvidos entre somente a articulações entre docentes de química, geografia
grupos de alunos e docentes, despontando compreensões dos e biologia, mas, também, deve permitir a participação de
estudantes em relação à necessidade de ligação entre saberes representantes de outras áreas do conhecimento, no intuito
na promoção de entendimentos mais amplos. de contribuir com o estreitamento e a construção de relações
Fazenda (2007) e Zanon (2012) pontuam que as abor- entre os diferentes saberes.
dagens interdisciplinares no ensino possibilitam que os dis- Porém, salientamos que houve convite para outros docen-
centes percebam o estabelecimento de relações entre vários tes que lecionam para essa turma ao longo das reuniões de
conceitos de diferentes áreas no ensino. Porém, Fazenda planejamento das atividades, mas que não houve adesão dos
(2007) defende que estas múltiplas relações devam partir mesmos, limitando uma maior efetividade na ligação entre
dos docentes, por meio do trabalho conjunto entre esses conhecimentos de diferentes áreas, que poderiam enriquecer
atores, sem sobreposições de conteúdos e disciplinas, a fim ainda mais esta proposta interdisciplinar.
de propiciar maiores significados para os conhecimentos
construídos pelos alunos. Sidnei de Lima Júnior (sidnei.junior20@etec.sp.gov.br) Doutorando em Ensino
Foi neste contexto que se constituiu a produção da mostra de Ciências e Matemática do Programa PECIM (Unicamp), professor no Centro

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Paula Souza e na Secretaria de Educação do Estado de São Paulo. Itapira, SP-BR. Organization (IGEO). Campinas, SP - BR. Roberto Greco (greco@ige.unicamp.
Diógenes Aparecido de Almeida (diogenes.geo10@hotmail.com) Mestrando br), professor do Programa de Pós-Graduação em Ensino e História das Ciências
em Ensino e História da Terra (Unicamp), professor no Centro Paula Souza. da Terra (Unicamp). Licenciado em Ciências Naturais e Doutor em Ciência do
Itapira,SP - BR. Luciana Cristina Candido de Menezes (luccrm@gmail.com) Sistema Terra: ambiente, recursos e patrimônio cultural (Universidade dos Estu-
Mestre em Ciências Biológicas (Unesp-RC), professora no Centro Paula Souza. dos de Modena e Reggio Emilia), vice-coordenador da Organização Internacional
Itapira,SP - BR. Roberto Greco (greco@unicamp.br), professor do Instituto de de Educação em Geociências (IGEO) e membro do Conselho Executivo das As-
Geociências (Unicamp) e coordenador do Internacional Geosciense Education sociação Internacional para a Promoção da Geoética (IAPG). Campinas, SP – BR.

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Abstract: The natural environment as a resource for promoting interdisciplinary teaching. This article is a proposal of interdisciplinary teaching in which
chemistry, geography and biology teachers articulate a didactic intervention with a group of 1st-year students of a public, technical chemistry high school from
São Paulo State (Brasil). The proposed activities are based on research developed by the students on materials, information and data obtained in field visits to
three different areas of the school municipality and neighbor counties. Important understandings and interactions between content and concepts among students,
evidenced by the development of researches and the presentation of the results to teachers and the community, culminated in the production of a permanent
scientific exhibition on chemical, geographic and biological aspects present in the school municipality, offered to the collection of the local historical and
pedagogical museum.
Keywords: natural environment as educational tool, interdisciplinary teaching, active learning

Quím. nova esc. – São Paulo-SP, BR. O ambiente natural Vol. 41, N° 4, p. 369-376, NOVEMBRO 2019
Ensino de Química em Foco http://dx.doi.org/10.21577/0104-8899.20160178

Ser ou Não Ser Professor: Duas Faces de


Uma Graduação em Química

Camila L. Miranda, Julio C. F. Lisbôa e Daisy B. Rezende

O tema deste estudo é desvelar a representação social sobre “ser professor de Química” de estudantes
de um curso de Licenciatura em Química. No grupo de 71 sujeitos investigados, 48% não desejavam atuar
como docentes. Entre os sujeitos que não apresentam interesse em exercer a docência, observou-se que os
termos relacionados ao imaginário social têm maior frequência (30%) do que o valor verificado para aqueles
que têm interesse (6%). As ideias que ressaltam os aspectos negativos geralmente associados socialmente à
atividade docente em nosso País são tão fortes no primeiro subgrupo que chegam a fazer parte do conjunto
de termos constituintes do Núcleo Central da representação, uma possível explicação para seu afastamento
dessa possibilidade de atuação profissional.

química, professor, representação social 377

Recebido em 26/10/2018, aceito em 18/01/2019

N
o Brasil, há, hoje, uma grande necessidade de pro- à baixa procura e à alta evasão que propriamente à escassez
fessores para as disciplinas voltadas às Ciências de cursos”.
da Natureza. Sampaio et al. (2002), com base em Aliada a essa carência de docentes para as Ciências
informações fornecidas pelo Instituto Nacional de Estudos Naturais, está a desmotivação dos alunos de Licenciatura
e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep), ressaltaram pelo futuro exercício da profissão na Educação Básica, como
haver carência de professores de Química para o Ensino ressaltam estudos com diferentes públicos (Ens et al., 2012;
Médio no Brasil e também para o ensino de Ciências no Leite et al., 2011; Souza, 2012) – os quais mostram, dentre
Ensino Fundamental. Mesmo subtraída a previsão de outros aspectos, que esses alunos buscam, cada vez mais,
licenciados formados de 1991 outras opções profissionais, prin-
a 2010, ainda persistiria uma cipalmente a carreira acadêmica
carência de mais de dezesseis Sá e Santos (2011, p. 1), por meio da em Instituições de Ensino Superior.
mil profissionais. Nesse mesmo análise das estatísticas do Ministério da Esses resultados são especialmente
estudo, em uma comparação com Educação, indicam que a carência de interessantes por se referirem a
a demanda em Língua Portuguesa professores de Química “está mais ligada estudantes da Licenciatura, uma
e a previsão dos licenciados à baixa procura e à alta evasão que vez que o principal papel dessa
formados em 2010, haveria um propriamente à escassez de cursos”. graduação, dentre outros possíveis,
saldo positivo de mais de cento é o de formar professores. Como
e trinta mil profissionais além da exemplo, Souza (2012) identificou
demanda estimada. Sá e Santos (2011, p. 1), por meio da que cerca de um terço dos estudantes que ingressaram na
análise das estatísticas do Ministério da Educação, indicam Licenciatura em Física da Universidade de São Paulo não
que a carência de professores de Química “está mais ligada desejam atuar como professores e que esse número aumenta
ao longo do curso. Os cerca de 20% que desejam lecionar
A seção “Ensino de Química em Foco” inclui investigações sobre problemas no ensino na Educação Básica vislumbram essa possibilidade apenas
de Química, com explicitação dos fundamentos teóricos, procedimentos metodológicos como uma alternativa, caso não consigam atuar em pesquisas
e discussão dos resultados. científicas, voltando-se para o Ensino Superior, por exemplo.

Quím. nova esc. – São Paulo-SP, BR. Ser ou Não Ser Professor Vol. 41, N° 4, p. 377-385, NOVEMBRO 2019
Tendo em vista que diversos estudos (Alves-Mazzotti, conclui que, em um período de cinquenta anos, os trabalhos
2007; Ens et al., 2012; Leite et al., 2011; Souza, 2012; apresentam um caráter semelhante. Em síntese, atribuem ao
Tartuce et al., 2010) têm diagnosticado uma forma de alte- professor a culpa por todas as mazelas da Educação, centran-
ridade ancorada na desvalorização social da docência, cada do exclusivamente no docente a responsabilidade quanto ao
vez mais presente em nossa sociedade, os sentimentos de sucesso e, sobretudo, o fracasso escolar. Naquele trabalho,
continuidade a essa identificação externa podem modificar conclui-se que uma das formas de desresponsabilizar o poder
o modo como as pessoas constituem sua identidade e são público pelos resultados da Educação é focalizar o indivíduo
especialmente preocupantes, na medida em que afastam e não o contexto.
da Educação Básica os docentes ou possíveis candidatos à Assim, a percepção da “crescente tendência de enfra-
docência. Há uma forte associação a fatores extrínsecos à quecimento dos professores, em todos os níveis da atividade
docência para justificar a baixa atratividade da carreira do- educativa” (Pereira e Martins, 2002, p. 130) é cada vez mais
cente, como a desvalorização da profissão, o desinteresse e recorrente. Ela reflete as “mudanças que caracterizam o mun-
desrespeito dos alunos, bem como a baixa remuneração em do contemporâneo, que alteram a dinâmica das instituições
comparação a outras carreiras de nível superior. de ensino e se refletem diretamente no trabalho cotidiano dos
A depreciação do valor social do professor reflete-se, ain- professores” (André e Almeida, 2010, p. 75). De modo que
da, em outros resultados. Ao responderem à questão “Algum a desvalorização dos professores também está relacionada
de vocês pensa ou pensou recentemente em ser professor?”, com a falta de credibilidade e confiança da sociedade nesses
estudantes concluintes do Ensino Médio responderam, em profissionais, no contexto brasileiro. Essa desvalorização
sua maioria, negativamente, sendo que apenas 2% dos par- social é marcante e perpassa os inúmeros meios sociais
ticipantes (nT = 1500) apontaram a carreira docente como brasileiros, conforme demonstrado pelos estudos analisados
possibilidade profissional (Tartuce et al., 2010). supramencionados.
A desmotivação para a docência é, também, refletida na É importante considerar que os licenciandos estão
construção, pelos licenciandos, de imagens negativas de seus constantemente expostos a fatores que poderiam fazê-los
futuros alunos, influenciados pelos meios de comunicação. reconstruir suas representações sociais sobre o que é “ser
378 Os estudantes reproduzem imagens do aluno da escola professor”. Nessa perspectiva, essa (re)construção está liga-
pública como carente, com baixo aproveitamento escolar, da, então, a aspectos extrínsecos à docência, além da relação
desinteressado e indisciplinado, imagens essas mostradas estabelecida com essa atividade profissional (Melucci, 2004;
repetidamente na mídia, sempre rondando a maioria dos Penna, 2008; Pimenta, 2005; Silva, 2009).
espaços sociais (Leite et al., 2011). Nesse sentido, algumas pesquisas (Dotta, 2006; Lyra,
A depreciação do valor social do professor é um processo 1999; Galindo, 2004; Penna, 2008; Placco e Souza, 2011)
que interfere, ainda, na maneira como os professores se en- retratam que, embora a imagem social da docência esteja
xergam. Ao assumir um elevado número de funções, que, por ancorada em sua desvalorização, esses sujeitos, ainda assim,
diversas vezes, são alheias à formação docente, o professor identificam valores positivos em suas atividades, vivencian-
vivencia a degradação das condições do exercício de sua pro- do a contradição entre como se reconhecem e como são
fissão, o que se reflete na “degradação de suas representações reconhecidos pelo outro. Para Nóvoa (1999), ainda que essa
sociais, que se traduz, em geral, em uma atitude de descrença degradação da atividade docente seja “confirmada por certos
com a profissão” (Loureiro, 2001, p. 46). Essas constatações discursos de organizações sindicais e mesmo das autoridades
são também relatadas por Alves-Mazzotti (2007), cujos re- estatais, a docência ainda apresenta facetas atrativas” (p. 29).
sultados indicaram que a depreciação do valor do professor Embora esse autor se refira ao contexto europeu, essa ideia
perante a sociedade afeta mais profundamente a identidade possivelmente possa ser estendida à realidade brasileira.
profissional dos professores das séries iniciais do que a da- Inúmeros autores concordam que a construção das
queles das séries finais. No primeiro grupo, os professores representações sobre essa temática precede as eventuais
sentem-se “obrigados a assumir funções que consideram ser influências exercidas durante a formação inicial que se dá
da família, o que, para eles, equivale a um esvaziamento da no processo oficial – a Licenciatura, sendo fomentadas por
função docente” (p. 591). No último grupo, as falas sugerem inúmeras referências, durante toda a vida do sujeito (Cunha,
que os professores vinculam sua identidade profissional a 1997; Quadros et al., 2005). Esse aspecto é bem sintetizado
outro grupo mais “valorizado (os matemáticos, os historia- nas palavras de Tardif e Gauthier (2001, p. 202) quando di-
dores, por exemplo), escapando, assim, à desvalorização zem que “o professor, para atingir os objetivos pedagógicos,
do magistério”. Ambos os grupos enfatizam as dificuldades também se baseia em julgamentos que provêm de tradições
encontradas para o exercício efetivo da profissão, como as escolares, pedagógicas e profissionais, as quais ele próprio
condições da estrutura escolar, falta de tempo para plane- assimilou e interiorizou”.
jamento das aulas e para seu desenvolvimento profissional. Assim, o objetivo do presente artigo é o de apresentar os
São encontrados, ainda, outros resultados referentes à resultados de um estudo sobre as representações sociais de
questão da alteridade negativa relacionada à profissão de estudantes de um curso de Licenciatura e Bacharelado em
professor. Por exemplo, Silva (2009), ao analisar publicações Química quanto a “ser professor de Química”. Neste traba-
da década de sessenta do século XX sobre essa temática, lho, a representação social sobre “ser professor de Química”

Quím. nova esc. – São Paulo-SP, BR. Ser ou Não Ser Professor Vol. 41, N° 4, p. 377-385, NOVEMBRO 2019
de estudantes que, embora estejam cursando a Licenciatura, Dentro dos pressupostos defendidos pela TRS existem
não vislumbram a docência como possibilidade de atuação abordagens consagradas e complementares à grande teo-
será comparada à daqueles que anteveem essa perspectiva ria, desenvolvidas por colaboradores de Moscovici. Neste
profissional. estudo, a obtenção e análise das informações basearam-se
O curso focalizado apresenta inúmeras singularidades nos pressupostos da vertente Estruturalista, proposta inicial-
importantes para o estudo desenvolvido. A primeira delas mente por Abric (1998; 2001). Esse aporte teórico apoia-se
se deve à estrutura do curso, segundo a qual a obtenção na premissa de que a representação social é constituída por
do título de Bacharel vinculava-se à prévia finalização da duas estruturas: o Núcleo Central e o Sistema Periférico. Os
Licenciatura. Em decorrência disso, no curso de Licenciatura termos pertencentes ao Núcleo Central são marcados por sua
dessa Instituição há vários sujeitos sem qualquer interesse estabilidade e resistência às mudanças, assegurando, assim,
pela docência, ou desejo de atuar como professores no futuro. a continuidade e a permanência da representação. O Sistema
Outro aspecto peculiar é o da localização da instituição de Periférico engloba os demais termos da representação e
ensino. Ela se situa em uma região tradicionalmente indus- caracteriza-se pela flexibilidade, mutabilidade e modulações
trial, o que facilita seu acesso a estudantes que já trabalham individuais, na medida em que suporta a heterogeneidade do
nas indústrias e estudam no contraturno. Também é facili- grupo e as contradições advindas das histórias individuais,
tado o ingresso de estudantes nesse mercado de trabalho. A protegendo o Núcleo Central. As formas de desvelar essas
maioria dos alunos da Faculdade é proveniente do entorno estruturas serão discutidas mais detalhadamente na seção de
da região em que se situa a instituição. Por outro lado, os Metodologia deste artigo.
professores de Química da maior parte das escolas da região
são egressos dessa Instituição formadora. Metodologia

Referencial Teórico Na abordagem proposta por Abric (1998; 2001), também


denominada Teoria do Núcleo Central, a ênfase reside na “di-
A noção de representação social, tal como é aqui entendi- mensão cognitivo-estrutural das representações” (Sá, 1998,
da, foi proposta por Serge Moscovici e se refere à proposição p. 65) e conduz à identificação dos termos componentes do 379
expressa na Teoria das Representações Sociais (TRS), alu- Núcleo Central e do Sistema Periférico. Nessa abordagem,
dindo ao estudo “de um fenômeno específico e delimitado: muitas vezes emprega-se a técnica de evocação livre de pa-
as teorias do senso comum, buscando compreender como se lavras, em que se propõe um termo indutor – que se refere
situa o conhecimento mobilizado na comunicação informal” ao objeto social alvo do estudo – ao qual cada sujeito do
(Miranda et al., 2015, p. 3). Essas teorias são conjuntos de público-alvo associará as palavras ou expressões que lhe
conceitos articulados que têm origem nas práticas sociais e ocorram mais imediatamente à mente.
diversidades grupais (Santos, 2005), sendo importante frisar Muitas vezes, em uma segunda questão, os participan-
que “não são apenas ‘opiniões sobre’ ou ‘imagens de’, mas tes da pesquisa são orientados a hierarquizar os termos
teorias coletivas sobre o real, que “determinam o campo dos citados, possibilitando que as informações sejam tratadas
valores ou das ideias compartilhadas pelos grupos e regem, pela combinação dos critérios de frequência e hierarquia,
subsequentemente, as condutas desejáveis ou admitidas” variáveis que expressam o valor simbólico do termo para o
(Alves-Mazzotti, 1994, p. 62). grupo social pesquisado (equações de 1 a 3). Nessa cons-
Dessa maneira, Moscovici (2012, p. 54) reconstrói o trução, as palavras e expressões mais frequentes entre os
conceito das representações ao afirmar que “representar sujeitos e evocadas nas primeiras posições são consideradas
uma coisa (...) não é, com efeito, simplesmente duplicá-la, pertencentes ao Núcleo Central da representação. Por sua
repeti-la ou reproduzi-la; é reconstituí-la, retocá-la, modifi- vez, as palavras ou expressões que foram evocadas menos
car-lhe o texto”. O ato de representar implica em conceber frequentemente integram o Sistema Periférico (Reis et
sujeito e objeto intrinsecamente conectados; sujeitos recons- al., 2013).
troem sua realidade cotidiana na interação com os objetos
sociais, os quais são também modificados nessa interação. (1)
Isto significa, ainda, que, embora sempre se possa cons-
truir representações referentes aos objetos com os quais
haja interações, estas somente poderão ser denominadas (2)
sociais caso sejam comuns aos sujeitos de um determinado
grupo social.
As representações sociais possibilitam a coesão dos (3)
grupos e facilita a adoção de posturas imediatas por eles,
situando-se em um contexto ativo, dinâmico, concebido
na relação indivíduo-coletividade (Moscovici, 2012). onde En corresponde ao número de evocações para deter-
Constituem-se em um saber prático, uma vez que é gerador minada hierarquia; n corresponde à hierarquia atribuída ao
de práticas sociais. termo evocado; n é o número total de termos; e f corresponde

Quím. nova esc. – São Paulo-SP, BR. Ser ou Não Ser Professor Vol. 41, N° 4, p. 377-385, NOVEMBRO 2019
à frequência total de evocação para determinado termo, O questionário foi aplicado a 71 estudantes de um curso
considerando-se todas as hierarquias. de Licenciatura em Química, período noturno, situado na
Dos valores obtidos estabelecem-se os parâmetros para a cidade de Santo André (SP), Brasil, dos quais 34 dos sujeitos
organização de um diagrama, conhecido na literatura da área não vislumbravam atuar como professores após completarem
como quadro de quatro casas ou quadrante de Vergès (Abric, a Licenciatura em Química.
1994 apud Sá, 1996) (Quadros 1, 2 e 3), que evidencia os pos- As informações obtidas pelos questionários aplicados e pe-
síveis termos componentes do Núcleo Central e do Sistema los textos redigidos pelos estudantes foram exploradas através
Periférico, caracterizando a estrutura da representação social de duas técnicas de análise: a Análise de Conteúdo (Bardin,
do grupo pesquisado com relação ao objeto pesquisado. 2000) e a Análise Estrutural proposta por Abric (1998; 2001),
levando à construção dos dados apresentados neste trabalho.
Quadro 1: Estrutura do quadro de quatro casas e critérios para As representações sociais sobre “ser professor de
sua elaboração. Fonte: elaborado pelos autores Química” dos grupos de licenciandos investigados foram
analisadas a partir do diálogo entre os dados obtidos através
Elementos Centrais Primeira periferia da análise do texto produzido e aqueles advindos dos qua-
frequência ≥ frequência média frequência ≥ frequência média dros de quatro casas (Abric, 1998; 2001). Para concretizar
OME < OME média OME ≥ OME média o diálogo necessário entre os dados obtidos através dos dois
Zona de Contraste Segunda periferia tratamentos utilizados, foram construídas categorias com
frequência < frequência média frequência < frequência média
base em critérios semânticos, segundo procedimentos da
OME < OME média OME ≥ OME média análise de conteúdo de linha francesa (Bardin, 2000). Foi
possível categorizar os termos alocados no Núcleo Central e
no Sistema Periférico considerando-se as justificativas dadas
Empregaram-se, no estudo, questionários com questões pelos próprios licenciandos para a escolha das palavras ou
abertas, constituídos por dois blocos de questões com di- expressões. Desse modo, do discurso dos estudantes cons-
ferentes objetivos: o primeiro visava a caracterização do truíram-se três categorias relacionadas à sua representação
380 público-alvo, enquanto, no segundo bloco, solicitava-se que sobre “ser professor de Química”, a saber: (i) características;
os estudantes evocassem as três palavras que lhes viessem (ii) visão sobre o ensino e (iii) imaginário social.
mais imediatamente à mente a partir da leitura do termo A categoria (i) agrupa termos associados a aspectos
indutor “ser professor de Química”. Além disso, pediu-se potencialmente promotores dos processos de ensino e
aos alunos que fosse redigido um texto breve expondo aprendizagem. Na (ii), visão sobre o ensino, agruparam-
sua visão quanto a “ser professor de Química”, para obter -se termos que descreviam a representação dos estudantes
informações que facilitassem a categorização dos termos quanto à metodologia de ensino a ser empregada pelos
evocados, facilitando a atribuição de significado aos termos professores, como discutido mais detalhadamente em outro
alocados no Núcleo Central pelo emprego da abordagem artigo (Miranda, et. al. 2015).
prototípica que conduz à elaboração do quadrante de Vergés No presente artigo, serão aprofundados os aspectos relati-
(Quadros 1, 2 e 3). vos à categoria imaginário social, aquela de maior destaque

Quadro 2: Quadro de quatro casas das evocações livres ao termo indutor “ser professor de Química”, entre estudantes que não
desejam se tornar professores (n = 34)

Elementos Centrais Primeira periferia


f ≥ 2,6 OME < 1,77 f ≥ 2,6 OME ≥ 1,77
f OME f OME
Desvalorizado 3,0 1,33 Salários-baixos 4,0 2,00
Inteligente 3,0 1,67 Paciência 4,0 2,00
Dinâmico 4,0 1,50 Conhecimento 5,0 1,80
Zona de Contraste Segunda periferia
f < 2,6 OME < 1,77 f < 2,6 OME ≥ 1,77
f OME f OME
Responsabilidade 2,0 1,00 Desrespeito 2,0 2,00
Vocação 2,0 1,00 Aprendizado 2,0 2,00
Futuro 2,0 1,00 Autoridade 2,0 2,00
Respeito 2,0 1,50 Alunos 2,0 2,50
Química Cotidiano 2,0 1,50 Notas 2,0 3,00
Mestrado 2,0 3,00

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Quadro 3: Quadro de quatro casas das evocações livres ao termo indutor “Professor de Química”, entre estudantes que desejam
se tornar professores (n = 37)

Elementos Centrais Primeira Periferia


f ≥ 3,0 OME < 1,74 f ≥ 3,0 OME ≥ 1,74
f OME f OME
Dedicação 3,0 1,33 Mudar a visão da Química 3,0 2,00
Realização Profissional 4,0 1,25 Responsabilidade 3,0 2,00
Conhecimento 5,0 1,20 Experimentos 3,0 2,33
Dinâmico 9,0 1,00 Paciência 3,0 3,00
Zona de Contraste Segunda periferia
f < 3,0 OME < 1,74 f < 3,0 OME ≥ 1,74
f OME f OME
Inteligente 2,0 1,50 Disciplina 2,0 2,00
Didática 2,0 1,50 Troca de experiência 2,0 2,00
Determinação 2,0 1,50 Medo 2,0 2,00
Tabela Periódica 2,0 1,50 Organização 2,0 2,50
Atualizar-se 2,0 1,50

entre os sujeitos que declararam não pretenderem se tornar (Quadro 2), bem como 12% das respostas na análise do
professores, embora estivessem cursando a Licenciatura. texto correspondem à subcategoria dom, indicando que essa
visão é importante para um grupo minoritário desse subgrupo
Resultados e Discussão social. Esta categorização pode ser exemplificada através 381
dos excertos das justificativas, transcritos a seguir: “dom
A formação inicial de professores é um problema central de Deus” (Sujeito 9) e “quando se tem vocação, o trabalho
no Brasil, pois embora os cursos de Licenciatura em âmbito é desenvolvido com amor e excelência” (Sujeito 38). Esses
público e privado sejam suficientes, não tem havido seja estudantes não vislumbram a carreira docente como opção
procura pelos cursos em si seja fixação na profissão, sendo profissional e, em geral, já atuam em empresas da área da
recorrente a deficiência de profissionais bem formados, prin- indústria química. Talvez seja essa uma das razões para
cipalmente em áreas críticas como a das Ciências Naturais. atribuírem o exercício da docência a um “dom” que, eventu-
Nesse sentido, a compreensão da construção da represen- almente, não possuam, os eximindo do exercício da função.
tação social sobre “ser professor Esses resultados corroboram
de Química”, percebida através os relatados em outros trabalhos
[...] a compreensão da construção da
das evocações dos licenciandos (Placco e Souza, 2011; Sugahara
representação social sobre “ser professor
quanto a este objeto, pode ser en- e Souza, 2010; Tartuce et al.,
de Química”, percebida através das
carada como um processo social evocações dos licenciandos quanto a 2010), nos quais também se ob-
influenciado por diversos fatores, este objeto, pode ser encarada como um servaram percepções da docência
dentre os quais os “discursos que processo social influenciado por diversos intrinsecamente ligadas à noção
circulam ininterruptamente nas fatores, dentre os quais os “discursos que de vocação. Embora essa ideia
dimensões sociais e culturais rela- circulam ininterruptamente nas dimensões esteja bastante naturalizada, é
cionadas aos docentes e à escola” sociais e culturais relacionadas aos importante ressaltar, como bem
(Silva, 2009, p. 54). docentes e à escola” (Silva, 2009, p. 54). o expressou Pellisson (2011,
A categoria imaginário social p. 282), que “ser professor não é
foi subdividida nas subcategorias um ato natural”. Não há um dom
(i) dom, que se refere às ideias que retratam a docência como inato para o exercício dessa profissão e sim um processo de
uma missão em resposta a uma vocação inata, em detrimento constituição da profissionalidade docente que se dá ao longo
da compreensão de seu caráter de profissão; e (ii) aspectos do percurso de vida dos indivíduos. Assim, concepções de
negativos, abrangendo evocações referentes aos aspectos que a docência seja um dom são preocupantes, na medida
negativos associados à docência, à sua baixa atratividade em que a retratam como uma missão a ser cumprida em
relacionada à desvalorização da profissão, ao desinteresse e resposta a uma vocação, associando-a, por exemplo, ao
desrespeito dos alunos, bem como à baixa remuneração em sacerdócio. Essa visão se consolida em detrimento da per-
comparação a outras profissões que exigem formação similar. cepção da docência como uma profissão de nível superior,
No caso dos estudantes que não desejam se tornar semelhante a várias outras, muito valorizadas socialmente,
professores, 20% das evocações da Zona de contraste como a Engenharia, a Medicina ou o Direito o que, assim

Quím. nova esc. – São Paulo-SP, BR. Ser ou Não Ser Professor Vol. 41, N° 4, p. 377-385, NOVEMBRO 2019
como afirmam Tartuce et al. (2010), contribui para a desva- os mesmos aspectos negativos que levaram os demais a
lorização social do professor ou advém dela. afastarem a possibilidade de virem a atuar como docentes.
Em outra subcategoria, que denominamos aspectos Isso pode ser atribuído ao fato de que, independentemente
negativos, encontram-se referências à baixa atratividade do desejo de se tornarem professores, esses estudantes estão
da profissão docente, relacionadas a fatores como baixa expostos às representações que permeiam os meios sociais
remuneração ou desinteresse e desrespeito por parte dos dos quais eles fazem parte e, conforme indicado por inúme-
alunos, como exemplificado nas falas: “uma profissão muito ros estudos (Alves-Mazzotti, 2007; Dotta, 2006; Galindo,
árdua, pois o salário é baixo e não é valorizado” (Sujeito 2004; Lyra, 1999; Penna, 2008; Placco e Souza, 2011), as
28) e “desmotivador, não há reconhecimento” (Sujeito 52). concepções negativas sobre a docência estão presentes entre
Essas referências a aspectos negativos da docência estiveram diferentes públicos e nas diversas mídias sociais, perpassan-
presentes entre os termos constituintes do provável Núcleo do os diversos meios sociais e influenciando a construção da
Central (23% das evocações) da representação social sobre representação social desses licenciandos sobre a docência,
“ser professor de Química” dos estudantes que não preten- embora não seja este o aspecto mais importante de sua
diam exercer a docência profissionalmente (n = 34,48%; representação.
Quadro 2). Em síntese, por meio da categorização das respostas
Esse resultado não é de todo inesperado, uma vez que, presentes na questão discursiva pode-se contabilizar sua
se esses sujeitos manifestaram explicitamente não desejar frequência, de modo que foi possível perceber uma maior fre-
exercer o magistério, era possível que tivessem para com quência de termos relacionados ao imaginário social entre os
a docência uma relação em que os aspectos negativos fos- sujeitos que não objetivam a atuação como professores (30%)
sem relevantes. Caso essa hipótese se confirmasse, como o em comparação com os que objetivam (6%) (Quadro 4).
“Núcleo Central da representação é determinado, por um Já a partir da comparação entre os termos do Núcleo
lado, pela natureza do objeto apresentado e, por outro, pela Central desses dois subgrupos foi evidenciado que as ideias
relação que o sujeito mantém com esse objeto” (Abric, 2001, que ressaltam os aspectos negativos que permeiam a ativida-
p. 163), seriam observados termos referentes a aspectos nega- de docente são tão fortes entre os sujeitos que não almejam
382 tivos como componentes do Núcleo Central da representação se tornar professores ao ponto de estarem entre os termos do
social desse grupo de estudantes. Núcleo Central da representação (Quadro 4), termos esses
Essa concepção negativa está presente, também, nos ter- marcados por sua estabilidade e resistência às mudanças,
mos constituintes da segunda periferia (25% das evocações; refletindo os valores do grupo e afastando-os dessa possibi-
Quadro 3) da representação do grupo de estudantes que lidade de atuação profissional.
desejam lecionar. Cabe ressaltar que “algumas circunstân- Os estudantes que não desejam exercer a docência repre-
cias, independentemente de uma representação, podem levar sentam cerca de metade dos sujeitos-alvo dessa investigação,
uma população a ter práticas em desacordo, mais ou menos correspondendo a uma parcela de 47% dos investigados (n =
violento, com a representação” (Flament, 2001, p. 179). 34). Uma possível explicação para a baixa pretensão desses
Dessa maneira, o desacordo que Flament indica é perce- licenciandos em se tornar professores pode ser atribuída à
bido, nos resultados apresentados neste artigo, ao se observar questão salarial e às condições para o exercício da docência
a tensão entre o desejo de atuar em uma profissão e seus nas escolas básicas brasileiras.
aspectos negativos, os quais já adquiriram praticamente um Informações referentes especificamente ao Estado de
estatuto de senso comum no País. “Essas discordâncias se São Paulo indicam que o salário inicial de um professor que
inscrevem inicialmente nos esquemas periféricos que se leciona para classes de anos finais do Ensino Fundamental
modificam, protegendo, por algum tempo, o núcleo cen- (9º ano) e do Ensino Médio (3º ano), com jornada de 40 ho-
tral” (Flament, 2001, p. 179). Assim, embora esses sujeitos ras semanais, seja de R$ 2.257,84 (Secretaria da Educação
desejem ser professores, eles não deixam de vislumbrar do Estado de São Paulo, 2019). Por sua vez, segundo o

Quadro 4: Síntese dos dados obtidos através da Análise Estrutural e da frequência de respostas para a questão discursiva para o
subgrupo de estudantes que aspiram à atuação como professores e os que não manifestam esse desejo

Desejam exercer o Não desejam exercer Desejam exercer o Não desejam exercer
magistérioa o magistériob magistérioa o magistériob
Núcleo-centralc Sistema Periféricoc
Categoria
Dom Aspectos negativos Aspectos negativos Aspectos negativos
19% 23% 25% 17%
Imaginário social
Frequênciac da análise do texto Frequênciac da análise do texto
Dom Dom Aspectos negativos Aspectos negativos
3,0% 12% 3,0% 18%
a
n = 34; bn = 37; cdada a natureza qualitativa do trabalho, a precisão na indicação das porcentagens foi minimizada.

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Conselho Regional de Química, IV Região (CRQ-IV, 2019), professores essa menção ficou próxima aos 5%, entre os
o piso salarial do Químico é de R$ 4.632,50 para oito horas sujeitos que não apresentam esse desejo essa porcentagem
diárias de trabalho (cerca de R$ 3.800,00, com os devidos ficou próxima de 30%.
descontos previstos em lei). Embora o salário líquido do Considerando os pressupostos da Abordagem
químico também esteja longe de ser atrativo em uma cida- Estruturalista (Abric, 1998; 2001), segundo os quais o
de com o custo de vida de São Paulo, ainda assim, é 68% Núcleo Central da representação é composto por termos
maior do que aquele do professor da rede estadual de ensino. marcados por sua estabilidade e resistência às mudanças e
Levando-se em consideração que ambos os profissionais têm refletem os valores do grupo, a presença de termos categori-
o mesmo tempo de escolaridade, não é de se estranhar que záveis na subcategoria Aspectos Negativos no Núcleo Central
esses estudantes prefiram optar pelas indústrias e não pela da representação indica que essas ideias que ressaltam esses
sala de aula. Essa suposição é confirmada pela presença aspectos da atividade docente são tão fortes entre os sujeitos
desses estudantes em empresas do setor químico industrial: que não almejam se tornar professores ao ponto de afastá-los
dos 34 estudantes que não desejam atuar como docentes, dessa possibilidade de atuação profissional.
23 deles (68%) já atuam nesse setor, enquanto entre os que Outro aspecto importante, evidenciado com os resultados
apresentam o desejo pela docência, dos 37 sujeitos, 18 deles do presente estudo, é que, embora não proponha caminhos,
(49%) já atuam nesse tipo de atividade. indica – inclusive em um diálogo com outros estudos (Ens
Em vários outros estudos (Leite et al., 2011; Ens et al., et al., 2012; Leite et al., 2011; Souza, 2012) – que algo não
2012; Souza, 2012) também foi diagnosticada a falta de inte- está adequado no que se refere à profissão de professor. A
resse dos licenciandos em atuar como docentes na Educação Licenciatura, embora possibilite outras possibilidades pro-
Básica, o que é preocupante, visto que, até o momento, esta fissionais, é a única graduação reconhecida para a formação
é a única graduação que habilita os estudantes a atuarem de professores para a Educação Básica no Brasil. Assim, é
como professores na Educação Básica. preocupante diagnosticar que, mesmo entre os estudantes
que estão nesse curso, a docência não é uma opção profis-
Considerações Finais sional, sinalizando que há necessidade da implementação de
políticas de Estado consequentes de valorização da carreira 383
A formação em Química possibilita a seus concluintes docente da escola básica, para que haja possibilidade de
incontáveis possibilidades profissionais, porém está recor- mudanças nesse quadro.
rentemente associada ao trabalho em indústrias, mesmo entre Concordamos com Machado (2009) que afirma ser a va-
os concluintes da Licenciatura. Os resultados do presente lorização do professor um aspecto primordial a ser discutido
estudo corroboram a literatura, pois se observou que uma ao se pensar sobre a qualidade da Educação. Não é possível
parcela significativa dos sujeitos alvo dessa investigação já imaginar uma educação de qualidade sob a orientação de
atuam no setor químico industrial (62%; n = 44). Esse dado profissionais tão desvalorizados socialmente quanto são os
mostra que a atuação em sala de aula é depreciada, o que professores no Brasil, de uma forma geral.
é enfatizado pelo fato de 48% (n Essa valorização não significa
= 34; total = 71) dos sujeitos não a concessão de bônus salarial atre-
O imaginário social influencia de modo
objetivarem atuar como docentes. lado ao suposto bom desempenho
mais aparente as representações dos
Assim, percebeu-se, neste dos alunos, mas à modificação das
sujeitos que não vislumbram a docência
estudo, que a identificação prévia como possibilidade profissional, tendo
condições de trabalho e salariais
com a profissão altera a maneira em vista a frequência de respostas deste que têm reduzido os professores
como ela é vislumbrada, corro- subgrupo que puderam ser alocadas nesta a boias-frias em busca de cada
borando o que inúmeros autores subcategoria. Se entre os sujeitos que vez mais aulas, para que possam
afirmam em relação à construção desejam se tornar professores essa menção sobreviver com dignidade. Assim,
da representação do próprio do- ficou próxima aos 5%, entre os sujeitos alinhados com vários trabalhos
cente, pois essa construção está que não apresentam esse desejo essa (Pimenta, 2005; Weber, 1996),
ligada à relação que o professor porcentagem ficou próxima de 30%. é importante ressaltar que a va-
(ou futuro professor) estabelece lorização do professor envolve
com o magistério, além dos as- questões referentes, além da re-
pectos extrínsecos à docência (Melucci, 2004; Penna, 2008; muneração e das condições de trabalho, também à formação
Pimenta, 2005; Silva, 2009). Nessa perspectiva, o interesse inicial e continuada desses profissionais. Ainda no que se
pela docência modifica a maneira como o imaginário social refere à formação permanente, Maldaner (2006, p. 110)
influencia na construção dessas representações. sublinha a formação continuada como uma “necessidade
O imaginário social influencia de modo mais aparente as intrínseca à prática pedagógica, sempre mais complexa e
representações dos sujeitos que não vislumbram a docência de nível crescente de exigência de conhecimentos, da qual
como possibilidade profissional, tendo em vista a frequência a formação inicial não pode dar conta”.
de respostas deste subgrupo que puderam ser alocadas nesta Perante a situação retratada pelo presente estudo, que
subcategoria. Se entre os sujeitos que desejam se tornar confirma o já descrito na literatura, alguns estudos (por

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exemplo, André e Almeida, 2010; Cordeiro e Cordeiro, (André e Almeida, 2010; Cordeiro e Cordeiro, 2012; Pereira
2012; Pereira e Martins, 2002; Tardif et al., 1991) elencam e Martins, 2002).
alguns dos fundamentos dessa desvalorização. Estudos in- Considerando as limitações de um trabalho dessa nature-
ternacionais, embora a discutam em um contexto diferente za frente à complexidade do contexto, pretendeu-se, com este
do brasileiro, podem ampliar nossa compreensão sobre essa estudo, oferecer uma contribuição para o debate a respeito
temática (Tardif et al., 1991; Tardif e Gauthier, 2001). Para da importância do conhecimento da Representação Social
Tardif et al. (1991), um dos elementos explicativos para o dos futuros professores sobre sua futura profissão, pois esta
desprestígio vivenciado pelos professores seria a questão poderá influenciar suas futuras práticas, uma vez que as
da visão fabril dos saberes, em que a produção de novos representações “servem para agir sobre o mundo e o outro”
conhecimentos se impõe como um fim em si mesma e as (Jodelet, 2001, p. 28). Além disso, tais dados podem ser úteis
atividades de formação e de educação tendem a ocupar uma em políticas públicas, visto que identificam obstáculos para
posição inferior à dessa produção. Nesse contexto, os autores a escolha dos estudantes pela carreira docente.
afirmam que, pelo menos em princípio, a função social do
corpo docente deveria ser considerada tão relevante quanto
Camila Lima Miranda (camilamiranda.clm@gmail.com), licenciada e bacharel em
aquela da comunidade científica, uma vez que esses dois Química pelo Centro Universitário Fundação Santo André (FSA), doutora em Ensino
pólos são indissociáveis. de Ciências (Modalidade Ensino de Química) pelo Programa de Pós-Graduação Inter-
A consciência da precariedade das condições de trabalho unidades em Ensino de Ciências da Universidade de São Paulo (USP), é professora
inerentes à profissão de professor no Brasil, perpassando pela da Universidade Federal do Triângulo Mineiro (UFTM) no curso de Licenciatura
em Educação do Campo. Uberaba, MG – BR. Julio Cezar Foschini Lisbôa (jclis@uol.
decadência de sua imagem social, diagnosticadas através de com.br) possui graduação em Licenciatura em Química e mestrado em Ensino de
inúmeros estudos, deve ser acompanhada pela percepção da Ciências (Modalidade Química) pela USP. Atualmente é professor colaborador do
necessidade de reflexão quanto aos conhecimentos, às prá- Grupo de Pesquisa em Educação Química (GEPEQ) da USP e professor titular do
ticas e aos saberes requeridos para o exercício da docência, FSA. Santo André, SP – BR. Daisy de Brito Rezende (dbrezend@iq.usp.br), doutora
em Química Orgânica pela USP, é professora doutora do Departamento de Química
bem como pela disposição em lutar pela melhoria dessas Fundamental e orientadora plena do Programa de Pós-graduação Interunidades em
condições, em um movimento que envolva os docentes, a Ensino de Ciências da USP. Líder do grupo de pesquisa Linguagem no Ensino de
384 sociedade e o governo, em prol da valorização da categoria Química/LIEQUI/USP/CNPq. São Paulo, SP – BR.

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Abstract: Being or Not Being a Teacher: Two Faces of a Bachelor of Chemistry. This study aims to unveil the social representation on “being a chemistry
teacher” of Chemistry undergraduate students. In the investigated group of 71 subjects, 48% did not wish to work as teachers. Among the subjects who don’t
have interest in teaching, it was observed that the terms related to the social imaginary have higher frequency (30%) than the value found for those who are
interested (6%). The ideas that highlight the negative aspects usually socially associated with the teaching activity in our country are so strong among the first
subgroup that they are part of the constituent terms of the Central Core of the representation, a possible explanation for students’ removal from the professional
possibility of becoming teachers.
Keywords: chemistry, teacher, social representation

Quím. nova esc. – São Paulo-SP, BR. Ser ou Não Ser Professor Vol. 41, N° 4, p. 377-385, NOVEMBRO 2019
O Aluno em Foco http://dx.doi.org/10.21577/0104-8899.20160179

Tabela Periódica: concepções de estudantes ao


longo do ensino médio

Nycollas S. Vianna, Camila A. T. Cicuto e Maurícius S. Pazinato

O objetivo desta pesquisa foi verificar a compreensão dos estudantes em relação ao conteúdo de Tabela
Periódica (TP) nas três séries do ensino médio em uma Escola Pública do Rio Grande do Sul (n=135). Para
isso, elaborou-se um questionário (27 afirmações) contendo três categorias julgadas por meio da escala
Likert. Os dados foram avaliados por intermédio da Análise Hierárquica de Agrupamentos com o auxílio
do software Pirouette. Essa análise permitiu agrupar os alunos em função da similaridade das respostas.
Os resultados evidenciam as principais concepções e dificuldades dos alunos, tais como: necessidade de
memorizar a TP; compreensão equivocada da construção da TP; dificuldade de consultá-la; pouco ou ne-
nhum estabelecimento de relações entre os elementos químicos e sua aplicação no cotidiano. Apesar disso,
conseguiram
observaram-se indícios de aprendizagem significativa quando estudantes da 2ª e 3ª séries
386 recuperar informações sobre o assunto após o terem estudado em anos anteriores.
Aprendizagem, concepções alternativas, Tabela Periódica

Recebido em 05/08/2018, aceito em 31/01/2019.

A
Tabela Periódica (TP) se originou em um período no Na literatura da área, existem diversos estudos sobre o
qual os químicos, a exemplo dos físicos e biólogos, ensino da TP por meio de múltiplos enfoques. O trabalho
buscavam formas de sistematizar o conhecimento de Ferreira et al. (2016) apresenta uma revisão da literatura
existente até o momento, estabelecendo princípios e leis, brasileira sobre diversas estratégias que permitem promover
que facilitassem seu estudo (Leite o ensino da TP de maneira alter-
e Porto, 2015). A TP pode ser A TP pode ser considerada uma das
nativa ao tradicional. Os pesqui-
considerada uma das descobertas descobertas mais relevantes da Química, sadores encontraram um total de
mais relevantes da Química, e e tornou-se um importante guia nas 43 trabalhos sobre o tema, sendo
tornou-se um importante guia nas pesquisas em Química, além de um valioso que 29 apresentam estratégias de
pesquisas em Química, além de recurso didático para estudantes da ensino. Esses trabalhos envolvem
um valioso recurso didático para Educação Básica e Superior. as seguintes temáticas: jogos
estudantes da Educação Básica didáticos (14), educação especial
e Superior. Isso porque é uma (3), história da TP (3), utilização
ferramenta que disponibiliza várias informações sobre os de Tecnologias de Informação e Comunicação (3), dentre
elementos, além de ser fundamental na compreensão de outras formas (6). Em relação à utilização de jogos didáti-
outros conceitos químicos. Assim, o estudo da Química, que cos, destacam-se os trabalhos de Godoi et al. (2010) com o
requer a compreensão da organização e características dos Super Trunfo; Silva et al. (2015) com a proposta de um jogo
elementos, pressupõe o entendimento da TP (Tolentino et al., didático de caráter investigativo; e Saturnino et al. (2013)
1997). com o pôquer dos elementos dos blocos s e p.
Em contrapartida, há na literatura outros trabalhos (Hara
A seção “O Aluno em Foco” traz resultados de pesquisas sobre ideias informais et al., 2007; Olive e Riffont, 2008) que apontam para o uso
dos estudantes, sugerindo formas de levar essas ideias em consideração no ensino- de técnicas associadas à memorização da TP. A tentativa
aprendizagem de conceitos científicos. dos autores é que frases e poemas auxiliem os estudantes

Quím. nova esc. – São Paulo-SP, BR. Tabela Periódica Vol. 41, N° 4, p. 386-393, NOVEMBRO 2019
na assimilação de dados e informações presentes na TP, tais de novos conhecimentos com ancoragem (ou não) nos co-
como nomenclatura dos elementos, símbolos e comporta- nhecimentos prévios dos estudantes.
mento periódico. Porém, acredita-se que essas técnicas e Segundo Ausubel (2000), o processo de aprendizagem
exercícios de memorização resultam em uma aprendizagem ocorre como um continuum entre a aprendizagem significa-
mecânica (Ausubel, 2000) e contribuem para a difusão da tiva e a mecânica. A aprendizagem significativa é o conceito
ideia que a TP deve ser memorizada. central na teoria do referido autor, sendo definida como um
Fernandes (2011) utiliza o termo “regrinhas” para se processo em que a nova informação relaciona-se ao co-
referir a estas técnicas de memorização de símbolos e pro- nhecimento prévio, pré-existente na estrutura cognitiva do
priedades dos elementos químicos no estudo da TP. O uso indivíduo, de maneira não arbitrária e não literal. Em outras
dessas técnicas é bastante frequente, porém, há indícios de palavras, a aprendizagem significativa ocorre quando a nova
que esse tipo de conhecimento seja descartável, visto que é informação ancora-se em conceitos ou proposições relevan-
esquecido após a aplicação do exame, ou seja, ao término tes preexistentes na estrutura cognitiva dos indivíduos. Esse
do estudo (Fernandes, 2011). processo envolve a interação da nova informação com o
Na Educação Básica brasileira, de acordo com Trassi et conhecimento prévio dos estudantes, o qual Ausubel define
al. (2001), frequentemente, os professores priorizam exercí- como subsunçor existente na estrutura cognitiva (Moreira,
cios e atividades de memorização de símbolos, propriedades 1999; Ausubel, 2000).
e disposição dos elementos químicos. Essa abordagem passa Ausubel (2000) ainda define a aprendizagem mecânica.
a concepção de que a TP deve ser memorizada, pois privilegia Nessa forma de aprendizagem, as novas informações não
a aprendizagem de conceitos de forma mecânica, além de apresentam ou apresentam pouca interação com o conheci-
reforçar o pensamento de que esse instrumento de consulta mento prévio. O indivíduo não consegue relacionar o que já
foi construído de uma única vez por um único “cientista”, sabe com a nova informação, sendo o resultado desse proces-
visto que geralmente é enfatizado, em sala de aula, apenas so a memorização, já que não faz sentido para ele. Porém,
o produto final de anos de estudo. destaca-se que aprender mecani-
Em oposição a isso, desde o camente nem sempre é ruim, visto
[...] este artigo tem como foco de estudo
início dos anos 2000, os docu- as concepções de TP resultantes do ensino
que esse tipo de aprendizagem é 387
mentos oficiais (Brasil, 2002) formal desse tópico nas três séries do necessário quando um indivíduo
apontam que a reconstrução his- ensino médio brasileiro, e tem por objetivo adquire informações em uma nova
tórica com base nas propriedades verificar as compreensões de um grupo área (Moreira, 1999; Ausubel,
macroscópicas, tal como foi feita de estudantes de uma escola pública da 2000). No entanto, salienta-se
por Mendeleev, pode ser uma região sul do Brasil sobre o assunto ao que, quando a aprendizagem é
oportunidade para ampliar conhe- longo desse nível de ensino. significativa, o aluno consegue
cimento sobre a periodicidade de recuperar as informações após
propriedades dos elementos quí- algum tempo e elas podem ser
micos como a reatividade química e a densidade em função utilizadas em contextos diferentes daquele em que se deu a
das massas atômicas. Dessa forma, faz-se necessário que os aprendizagem (Moreira, 2006).
docentes esclareçam que a construção da TP não foi feita Conforme descrito, o estudo da Química exige certa com-
única e exclusivamente por Mendeleev, pois, ao longo da preensão sobre o funcionamento e disposição dos elementos
história da Química, diversos estudiosos contribuíram nesse químicos na TP, a qual deve ser vista pelos estudantes como
processo (Niaz et al. 2004; Brito et al. 2005). um instrumento de consulta. As técnicas para memorizar, ou
Nessa perspectiva, este artigo tem como foco de estudo “decorar” a TP, não favorecem a aprendizagem significativa,
as concepções de TP resultantes do ensino formal desse que de acordo com Moreira (1999) trata-se de “um processo
tópico nas três séries do ensino médio brasileiro, e tem por por meio do qual nova informação relaciona-se com um
objetivo verificar as compreensões de um grupo de estudan- aspecto especificamente relevante da estrutura de conheci-
tes de uma escola pública da região sul do Brasil sobre o mento do indivíduo” (Moreira, 1999, p.153).
assunto ao longo desse nível de ensino. Como fundamento A aprendizagem, quando ocorre de forma significativa,
teórico utilizou-se a Teoria da Assimilação por meio da é capaz de proporcionar ao aluno a capacidade de reconhe-
Aprendizagem e Retenção Significativas, a qual é breve- cer aspectos importantes sobre determinado assunto após
mente exposta a seguir. estudá-lo. Porém, quando a aprendizagem ocorre de forma
mecânica – por exemplo, por meio da memorização de re-
Fundamentação teórica gras – o aluno tem uma grande probabilidade de esquecer
os conceitos após ser avaliado, ou seja, após uma prova do
O fracasso do ensino baseado na memorização pode conteúdo.
ser explicado pela Teoria da Assimilação por meio da Por intermédio deste referencial teórico, a presente
Aprendizagem e Retenção Significativas. Essa teoria foi pesquisa busca compreender se os estudantes investiga-
proposta por David Ausubel em meados da década de 1960, dos alcançaram uma aprendizagem significativa após o
e propõe uma descrição do processo cognitivo de assimilação estudo formal deste conteúdo e se são capazes de aplicar

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os conhecimentos referentes à TP em outros contextos e Segundo Hair et al. (2005), os valores de Alpha de
no seu cotidiano como, por exemplo, pelo reconhecimento Cronbach (variam de 0 a 1) mais próximos de 1 indicam uma
da presença de diversos elementos químicos, visto que alta relação entre as afirmações do questionário, enquanto que
muitas vezes essa presença não é tão perceptível para os valores próximos de 0 indicam baixa relação. O limite mínimo
estudantes em situações rotineiras. Com essa pesquisa do Alpha de Cronbach para ser considerado confiável é 0,7,
pretende-se identificar se os estudantes investigados forne- porém esse valor pode ser menor em pesquisas exploratórias
cem indícios de uma aprendizagem significativa sobre TP (limite de 0,6), como é o caso da presente pesquisa.
ao longo do ensino médio, ou se há indícios de que houve Além disso, o instrumento foi apreciado por dois especia-
uma aprendizagem mecânica, priorizando o “decorar para listas com perfis diferentes, um com doutorado em Química
a avaliação”. e o outro em Ciências. O especialista em Ciências tem
experiência na Educação Básica, tendo atuado quatro anos
Procedimentos metodológicos como professor de Química no ensino médio. Atualmente é
Professor Titular em uma universidade pública do estado do
Os sujeitos da pesquisa (n=135) foram estudantes da Rio Grande do Sul, orienta em programa de Pós-graduação
1ª série (n=45), 2ª série (n=29) e 3ª série (n=61) de uma na área de Ensino de Química e coordena, em sua instituição,
escola pública de ensino médio da região Sul do Brasil. o Programa Institucional de Bolsas de Iniciação à Docência
Praticamente todos os participantes estavam com idade (PIBID) na área de Química. O especialista com doutorado
regular para o ensino médio, ou seja, a faixa etária nas três em Química atua na área de Físico-Química e é Professor
séries ficou entre 14 e 18 anos. Antes do início da etapa Adjunto também de uma universidade pública do Rio Grande
de coleta de dados, os estudantes conheceram os propó- do Sul. Assim, através dos perfis diferentes buscou-se obter
sitos da pesquisa e receberam o Termo de Consentimento maior rigor na construção das afirmações. Após a avaliação
Livre e Esclarecido (TCLE), que foi assinado pelos pais dos mesmos alcançou-se o parecer favorável para a utilização
ou responsáveis, os quais autorizaram a participação do instrumento na coleta de dados em pesquisas na área de
na pesquisa. Ensino de Química.
388 O instrumento de coleta de dados apresentou 27 afirma- As afirmações do instrumento (Quadro 1) foram julgadas
ções e foi organizado em três categorias. A validade desse através da escala de Likert com quatro níveis: (1) Discordo
instrumento foi verificada por intermédio da aplicação de Totalmente, (2) Discordo Parcialmente, (3) Concordo
um estudo piloto com graduandos de uma universidade Parcialmente e (4) Concordo Totalmente. Destaca-se que
brasileira também da região Sul. O estudo piloto foi rea- todos os participantes já haviam estudado formalmente o
lizado com o objetivo de verificar a consistência interna, conteúdo de TP durante a 1ª série, quando responderam ao
pertinência, organização e clareza das questões. Isso permi- instrumento. Esse tópico foi desenvolvido nas turmas pes-
tiu adequar as questões e evitar eventuais equívocos, antes quisadas por professores diferentes, por intermédio de aulas
da aplicação definitiva do instrumento. Como a presente teórico-expositivas e dialogadas, utilizando livro didático e
pesquisa foi desenvolvida nas três séries do Ensino Médio, atividades de fixação. Durante a aplicação do instrumento de
optou-se por realizar a validação do questionário com es- coleta de dados, foram disponibilizadas Tabelas Periódicas
tudantes que já tinham passado por esse nível de ensino, impressas para consulta dos estudantes, no modelo das utili-
priorizando acadêmicos que estavam no início do curso de zadas em provas ou concursos, as quais contêm as seguintes
graduação. Após essa etapa, calculou-se o valor de Alfa de informações: símbolo, massa atômica e número atômico dos
Cronbach com auxílio do software SPSS para verificar a elementos químicos.
consistência interna do instrumento (Field, 2009). A Tabela Para avaliação dos dados foram utilizados métodos esta-
1 apresenta as categorias, seus objetivos e os respectivos tísticos multivariados, os quais permitem o reconhecimento
valores de Alpha de Cronbach obtidos após a aplicação de padrões naturais. A Análise Hierárquica de Agrupamentos
com os acadêmicos. (do inglês Hierarchical Cluster Analysis – HCA) foi

Tabela 1: Descrição das categorias do instrumento

Categorias Objetivo nº de afirmações Alfa


Concepção sobre a Tabela - conhecer as visões dos estudantes
08 0,615
Periódica sobre o tema
- averiguar se os estudantes são capa-
Tabela Periódica como meio zes de utilizar a Tabela Periódica como
09 0,612
de consulta instrumento de consulta nas aulas de
Química.
- investigar se os estudantes percebem
Tabela Periódica no cotidiano a presença dos elementos químicos no 10 0,638
seu cotidiano

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Quadro 1: Afirmações do instrumento de coleta de dados Para a construção da HCA, utilizou-se a soma dos pontos
obtidos pelos estudantes ao avaliarem as 27 afirmações do
(-) Afirmações incorretas questionário. Diferentes valores poderiam ser pontuados em
Concepção sobre a Tabela Periódica cada afirmação, o que foi ponderado de acordo com o nível
(-) É preciso decorar a Tabela Periódica para utilizá-la. de coerência da resposta, sendo que as pontuações máximas
A Tabela Periódica é fundamental para o estudo da Química. possíveis para as categorias foram:
Os conceitos relacionados à tabela periódica proporcionam - Concepção sobre a Tabela Periódica: 32 pontos (8 afir-
uma melhor compreensão do meu dia a dia. mações com 4 níveis);
A Tabela periódica é um instrumento de consulta, sendo ne-
- Tabela Periódica como meio de consulta 36 pontos (9
cessário o entendimento de sua organização e informações.
A Tabela Periódica sistematiza diversas informações sobre os afirmações com 4 níveis);
elementos químicos. - Tabela Periódica no cotidiano: 40 pontos (10 afirmações
Os conceitos de Tabela Periódica são utilizados ao longo de com 4 níveis).
todo Ensino Médio.
(-) A Tabela Periódica foi construída por um Cientista. Resultados e discussões
(-) A Tabela periódica está finalizada, ou seja, apresenta a
organização de todos os elementos existentes, não havendo
mais espaços para novos elementos. O dendrograma obtido pelo software Pirouette é apresen-
Tabela Periódica como meio de consulta
tado na Figura 1. Considerou-se 53,4% de similaridade das
respostas dos estudantes para a caracterização dos grupos
Os elementos químicos estão distribuídos na tabela periódica
em ordem crescente do número atômico. (linha tracejada).
(-) O número do período indica o número de elétrons da ca- Na Figura 1 percebe-se uma organização de cinco grupos
mada de valência. de estudantes com respostas similares, sendo que cada cor
O grupo da tabela periódica indica o número de elétrons da corresponde a um agrupamento de alunos. A partir dos gru-
camada de valência. pos formados pela HCA, calcularam-se os valores médios
(-) O elemento químico Potássio é representado pela letra “P”. das pontuações obtidas e desvio-padrão, conforme Tabela 2.
(-) O elemento químico Criptônio apresenta número atômico
igual a 83.
Com base na Tabela 2 pode-se caracterizar cada grupo 389
O elemento Alumínio apresenta número de massa igual a 27 de estudantes de acordo com suas concepções sobre TP.
e número atômico igual a 13. O Grupo I apresenta 19 estudantes, o que corresponde a
O número do período indica a quantidade de níveis eletrônicos aproximadamente 14% dos sujeitos da pesquisa. Tal grupo
dos átomos. apresentou a menor média na categoria “Concepções sobre
Atualmente estão organizados 118 elementos químicos na a Tabela Periódica”, obtendo 20,9 pontos de 32. Isso indica
Tabela Periódica.
que os estudantes inseridos no conjunto apresentam con-
(-) Os elementos do grupo dos halogênios possuem 5 elétrons
na camada de valência. cepções consideradas equivocadas sobre a TP. Já nas outras
Tabela Periódica no cotidiano duas categorias, o grupo teve média de 27,2 e 30,6 pontos
(-) Nas alianças de Ouro são encontrados apenas átomos
respectivamente.
desse elemento químico (Au). O Grupo II contemplou 32 estudantes (23,7% do total
(-) No tratamento da água potável são adicionadas substân- de sujeitos da pesquisa) e obteve uma média de acertos
cias que contenham o elemento químico Mercúrio (Hg). considerada satisfatória nas três categorias. Na segunda ca-
Na fabricação de moedas são utilizadas ligas metálicas dos tegoria “Tabela Periódica como meio de consulta”, o grupo
elementos Níquel (Ni) e Cobre (Cu). apresentou o melhor resultado, evidenciando que os alunos
O Nitrogênio (N) é o elemento químico mais abundante na
ali inseridos conseguem utilizar a Tabela para averiguar al-
atmosfera.
O sal de cozinha é uma substância composta pelos elemen- gumas informações importantes, tais como número atômico
tos químicos Sódio e Cloro. e de massa, relação entre o nome do elemento e seu símbolo
(-) O Césio é um elemento químico responsável pelo fortale- químico, grupos e períodos da TP.
cimento dos ossos humanos. O Grupo III é composto por 20 estudantes (14,8% dos
Podemos encontrar o elemento químico Lítio (Li) na bateria sujeitos) e apresentou as maiores médias em duas das três
de celulares. categorias avaliadas. Em relação à primeira categoria,
O elemento químico Ferro (Fe) pode ser encontrado em ob-
jetos como cadeiras, mesas, pregos, parafusos, ferramentas
“Concepções sobre a Tabela Periódica”, o grupo apresen-
em geral, entre outros. tou média de 25,8 pontos, ou seja, índice que corresponde
O diamante e a grafita da lapiseira são formados exclusiva- a mais de 80% da pontuação máxima. Para a categoria
mente pelo elemento químico Carbono (C). “Tabela Periódica no cotidiano”, a média obtida foi 34,5,
O Ferro (Fe) é vital para o metabolismo dos seres humanos, o que equivale a uma média de aproximadamente 86% do
pois auxilia no transporte de gás oxigênio. total de pontos possíveis. Com esses dados pode-se inferir
que tal grupo teve as melhores respostas e que os alunos
realizada com o auxílio do software Pirouette, o que permitiu perceberam mais facilmente a presença de elementos
agrupar os alunos em função da similaridade das respostas químicos no cotidiano e apresentaram concepções mais
geradas no instrumento de coleta de dados. coerentes sobre a TP.

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Figura 1: Dendrograma obtido a partir da HCA utilizando uma matriz de dados X (135x3): método Ward/Incremental e a distância
Euclidiana.

390 Tabela 2: Média de pontos e desvio-padrão de cada grupo da HCA

Categoria Grupo I (n=19) Grupo II (n=32) Grupo III (n=20) Grupo IV (n=24) Grupo V (n=40)
Concepção sobre a
20,9 (1,6) 25,7 (2,3) 25,8 (2,0) 24,2 (2,7) 24,1 (2,9)
Tabela Periódica
Tabela Periódica
como meio de 27,2 (1,5) 28,7 (2,4) 27,0 (2,3) 26,3 (3,2) 22,2 (1,5)
consulta
Tabela Periódica no
30,6 (1,3) 29,5 (1,5) 34,5 (1,3) 23,3 (2,4) 28,6 (2,7)
cotidiano

O Grupo IV é formado por 24 estudantes, equivalente a Em geral, por meio da apreciação conjunta dos grupos
17,7% dos sujeitos, e apresentou a menor média na terceira formados pela HCA pode-se inferir que o Grupo V apresen-
categoria, a qual investigou a presença de elementos quími- tou o maior número de sujeitos e o Grupo I o menor. Ainda é
cos no cotidiano. Nessa categoria, o Grupo IV obteve média possível constatar que o Grupo I teve os piores resultados na
23,3, dos 40 pontos possíveis. Nas outras duas categorias, categoria “Concepções sobre a Tabela Periódica” e o Grupo
o grupo alcançou médias consideradas satisfatórias: 24,2 V na categoria “Tabela Periódica como meio de consulta”, o
na categoria “Concepções sobre a Tabela Periódica”, o que que evidencia que aproximadamente 30% dos sujeitos não
equivale a mais de 75% da pontuação, e 26,3 na categoria sabem retirar informações deste instrumento. Além disso,
“Tabela Periódica como meio de consulta”, correspondente o Grupo IV apresentou baixos índices na categoria “Tabela
a 73% da pontuação da pontuação máxima possível. Periódica no cotidiano”.
O Grupo V é o maior em número de sujeitos, pois reu- Complementar a esta análise, na Tabela 3 apresenta-se o
niu 40 estudantes, ou seja, 29,6% do total de participantes. número e a porcentagem de alunos de cada série do ensino
Quando comparado com os demais, esse grupo alcançou médio que compõem os cinco grupos formados pela HCA.
a média mais baixa na categoria que investigou o uso da Grande parte dos alunos (31,1%) da 1ª série foi agrupada
TP como meio de consulta (22,2). Na categoria “Tabela no Grupo II, ou seja, eles manuseiam a TP e retiram impor-
Periódica no cotidiano”, o grupo alcançou média 28,6, o tantes informações dela, utilizando-a como um instrumento
que equivale a mais de 70% da pontuação; e na categoria de consulta. Apenas dois estudantes dessa série foram agru-
“Concepções sobre a Tabela Periódica”, obteve média 24,1, pados no Grupo III, considerado o com melhores resultados.
correspondente a 75% da pontuação máxima, sendo consi- Além disso, observou-se que 22,2% dos alunos (n=10) foram
derados índices satisfatórios. distribuídos no Grupo I, o qual se destacou pela presença

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Tabela 3: Número de alunos de cada série nos grupos da HCA.

1ª Série 2ª Série 3ª Série


Grupo I (n=19) 10 (22,2%) 1 (3,5%) 8 (13,1%)
Grupo II (n=32) 14 (31,1%) 2 (6,9%) 16 (26,2%)
Grupo III (n=20) 2 (4,4%) 7 (24,1%) 11 (18,0%)
Grupo IV (n=24) 10 (22,2%) 4 (13,8%) 10 (16,4%)
Grupo V (n=40) 9 (20,1%) 15 (51,7%) 16 (26,3%)
Total 45 (100%) 29 (100%) 61 (100%)

de concepções alternativas sobre a TP. O restante dos estu- respeito desse aspecto, vários pesquisadores (Flôr, 2009;
dantes desta série foi classificado nos Grupos IV (22,2%) e Porto, 2010; Mehlecke et al., 2012; Moura e Guerra, 2016)
V (20,1%). Dessa forma, apesar de conseguirem utilizar a têm defendido a inserção da História da Ciência nos currí-
TP, os estudantes ingressantes no ensino médio apresentam culos dos cursos das Licenciaturas. De maneira geral, esses
concepções alternativas sobre o tópico e possuem dificuldade autores defendem que ela pode humanizar os conteúdos
em aplicá-la em seu cotidiano. científicos ao relacioná-los com os interesses éticos, culturais
Esse resultado pode indicar que a aprendizagem na 1ª e políticos. Além disso, pode auxiliar na compreensão de
série ocorreu predominantemente de forma mecânica. Os como o conhecimento é produzido e desmitificar as ideias
estudantes podem ter entendido como consultar a TP para de conhecimentos prontos, evitando a geração de concepções
resolução de exercícios em sala de aula ou em avaliações, equivocadas sobre a natureza da Ciência.
porém não compreenderam sua construção histórica, pensam Em relação aos estudantes da 2ª série, mais da metade
que é necessário decorá-la e não conseguem aplicar os con- deles (51,7%) foi categorizado no grupo V. Com isso, cons-
ceitos envolvidos em outras situ- tatou-se que esses alunos apre-
ações, inclusive em fatos do dia a sentam dificuldades em utilizar a 391
Essas concepções alternativas
dia. Desta forma, provavelmente possivelmente são decorrentes da TP como um meio de consulta e
eles venham a esquecer desses abordagem do tópico em sala de aula, tendem a pensar que é necessário
conceitos, caso futuramente, nas visto que ela pode ter reforçado visões decorar as informações contidas
próximas séries não ocorram distorcidas de conceitos científicos e da nesse instrumento. O restante
relações com conhecimentos construção histórica da TP. dos sujeitos da 2ª série foi orga-
pré-existentes em suas estruturas nizado nos Grupos I (apenas um
cognitivas (Ausubel, 2000). aluno), Grupo II (6,9%) e Grupo
Essas concepções alternativas possivelmente são de- III (24,1%).
correntes da abordagem do tópico em sala de aula, visto A concepção sobre a necessidade de memorizar a TP é
que ela pode ter reforçado visões distorcidas de conceitos muito presente no ensino de Química (Trassi et al., 2001).
científicos e da construção histórica da TP. Neste contexto, Isso, também, pode ser consequência do tratamento dado
alguns trabalhos relacionam as concepções de estudantes pelos professores durante a explicação do tópico, o que recai
do ensino médio com a formação ineficiente dos cursos de na necessidade de discutir metodologias, como referências,
licenciatura em Química. Como exemplo disso, Fernandes sobre como ensinar Lei e Tabela Periódica em cursos de
(2011) destaca que o tópico TP é desenvolvido em cursos de Licenciatura (Neves et al., 2001).
formação inicial de professores, principalmente, por meio Fernandes (2011) ainda ressalta que as metodologias de
de aulas expositivas com o uso de lousa e giz, com ênfase ensino voltadas para o nível básico, quando exploradas nos
nas explicações das variações das propriedades periódicas. cursos de formação de professores, priorizam atividades
Já a pesquisa de Neves et al. (2001) buscou inferir como lúdicas, como jogos e softwares. Segundo o autor, essas
a relação entre o saber disciplinar/conhecimento pedagógico atividades não proporcionam a discussão das propriedades
sobre Lei e Tabela Periódica é trabalhada em um curso de dos elementos e suas variações, e geralmente atuam como
Licenciatura em Química. Os autores relataram que os gra- veículo de memorização de símbolos e números atômicos,
duandos atribuem importância ao conhecimento da história o que é muito pouco para um professor em formação inicial.
da TP, mas não explicitam argumentos pedagógicos sólidos Dessa forma, acredita-se que esses fatores constituem algu-
sobre o papel da história do Ensino de Ciências, limitando- mas das causas que fazem com que os professores repitam
-se a confirmar o que aparece nos livros de Química do métodos de memorização no ensino de TP.
ensino médio. Os estudantes da 3ª série foram agrupados em grande
A abordagem acrítica e sem relação com os contextos que parte nos Grupos II e V, 16 sujeitos (26,2%) em cada grupo.
levaram à elaboração da TP nos cursos de Licenciatura forma O Grupo II reúne os alunos que obtiveram bons resultados
professores que não refletem sobre a importância da História no que se refere ao uso da TP como meio de consulta.
da Ciência na formação conceitual de seus estudantes. A Contrastando com esse dado, no Grupo V foram classificados

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os estudantes que apresentaram dificuldades na utilização ao instrumento investigativo. Dentre esses, destacou-se o
da TP para verificar informações. Com isso, infere-se que Grupo III, o qual apresentou concepções satisfatórias para
parte dos concluintes do ensino médio não sabe consultar a as três categorias analisadas: “Concepções sobre a Tabela
TP. Um total de 13,1% dos alunos foi organizado no Grupo Periódica”, “Tabela Periódica como meio de consulta” e
I da HCA, o qual foi caracterizado pela presença de con- “Tabela Periódica no cotidiano”.
cepções alternativas referentes à necessidade de memorizar A maioria dos estudantes (90%) que compõe o Grupo III
a TP e de sua construção histórica, que ocorreu por meio pertence às turmas da 2ª e 3ª séries do ensino médio. Eles
da contribuição de vários pesquisadores (Niaz et al. 2004; utilizaram informações essenciais sobre o tema, apesar de
Brito et al. 2005). Por outro lado, destaca-se que 18% dos terem estudado formalmente o tópico em anos anteriores.
estudantes da 3ª série (n=11) fazem parte do Grupo III, que Assim, os estudantes recuperaram conceitos importantes
apresentou os melhores resultados dentre todos. mesmo após terem sido vistos e os utilizaram em um novo
Apesar da identificação desses equívocos sobre a TP, contexto, sendo isso um indício da aprendizagem significa-
destaca-se que o Grupo III (composto por 55% de alunos tiva (Ausubel, 2000; Moreira, 1999). Os alunos desse grupo
concluintes do ensino médio, 35% de estudantes da 2ª série ainda relacionaram elementos químicos ao seu cotidiano e
e apenas 10% de alunos ingressantes) forneceu indícios demonstraram concepções mais adequadas em relação ao
de aprendizagem significativa nas repostas dos estudantes, assunto, pois entendem que não há necessidade de decorar
especialmente da 2ª e 3ª séries, os quais foram capazes de o instrumento e que muitos pesquisadores contribuíram em
utilizar, relacionar, aplicar informações e conceitos referentes sua confecção.
ao tópico após já o terem estudado formalmente (Ausubel, Por fim, a partir dos resultados encontrados nesse estudo
2000). Esses estudantes conseguiram relacionar os elementos ressalta-se a importância do tratamento dado pelo profes-
químicos da TP no cotidiano e apresentaram concepções sor à TP durante o ensino médio. É importante que seja
consideradas adequadas sobre o tema, tais como não ser enfatizada a sua construção histórica, em vez de regras de
necessário memorizar a TP, e que memorização, para que, ao longo
vários cientistas contribuíram A TP representa uma ferramenta de consulta do ensino médio, façam sentido
392 para sua construção. Isso eviden- essencial para o Ensino de Química, pois para os estudantes informações
cia que os mesmos não tiveram através da sua leitura e interpretação pode- como propriedades e caracterís-
uma aprendizagem descartável se verificar várias informações sobre os ticas dos elementos químicos,
(Fernandes, 2011). elementos químicos. O presente trabalho que podem ser consultadas por
verificou as concepções dos estudantes intermédio da interpretação
Considerações finais nas diferentes séries do ensino médio, de desse instrumento. Além disso,
uma escola pública brasileira, sobre essa alerta-se para a necessidade de
A TP representa uma ferra- temática. retomar a TP e a rede conceitual
menta de consulta essencial para que envolve seu estudo à medida
o Ensino de Química, pois através que o estudante avança nas séries
da sua leitura e interpretação pode-se verificar várias infor- do ensino médio, visto que, conforme detectado por esta
mações sobre os elementos químicos. O presente trabalho pesquisa, inicialmente a aprendizagem sobre o tópico ten-
verificou as concepções dos estudantes nas diferentes séries de a ser predominante mecânica. No entanto, conforme o
do ensino médio, de uma escola pública brasileira, sobre referencial teórico adotado, esse tipo de aprendizagem é
essa temática. necessário durante a aquisição de conhecimentos em uma
Os dados foram coletados por meio de um instrumento nova área, e para que se torne significativa é necessário que
investigativo, elaborado previamente e validado conforme sirva de ancoradouro das novas situações. Neste contexto,
orientações da literatura. Dentre os resultados, destacam-se haverá um estímulo à aprendizagem significativa em de-
as principais concepções e problemas resultantes do ensino trimento da mecânica.
formal no nível médio:
- necessidade de memorizar a TP;
- compreensão equivocada da construção da TP; Nycollas Stefanello Vianna (nycollasv@hotmail.com), formado em Ciências
- dificuldade de consultar a TP para obter informações da Natureza-Licenciatura pela Universidade Federal do Pampa (Unipampa), e
importantes sobre os elementos químicos, tais como mestrando do Programa de Pós-Graduação em Educação em Ciências: Química
da Vida e Saúde da Universidade Federal do Rio Grande (FURG). Rio Grande,
número atômico e de massa;
RS – BR. Camila Aparecida Tolentino Cicuto (camilacicuto@unipampa.edu.
- pouco ou nenhum estabelecimento de relações entre os br), formada em Química-Licenciatura pela Universidade Federal de São Carlos
elementos químicos e suas aplicações no cotidiano. (UFSCar) e doutora em Ensino de Química pela Universidade de São Paulo (USP).
Apesar das diversas concepções alternativas encontradas, Professora da Universidade Federal do Pampa (Unipampa), campus Dom Pedrito.
observaram-se indícios da ocorrência de aprendizagem sig- Dom Pedrito, RS - BR. Maurícius Selvero Pazinato (mauricius.pazinato@ufrgs.
br), formado em Química-Licenciatura e doutor em Educação em Ciências pela
nificativa por parte de alguns estudantes ao longo do ensino Universidade Federal de Santa Maria (UFSM). Professor do Instituto de Química
médio. Por intermédio da HCA, obtiveram-se cinco grupos (Departamento de Química Orgânica) da Universidade Federal do Rio Grande do
de alunos organizados pela similaridade de suas respostas Sul (UFRGS). Porto Alegre, RS – BR.

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Abstract: Periodic Table: students’ conceptions through high school. The objective of this research was to ascertain students’ understanding of the contents
of the Periodic Table (PT) in the three high school grades at a Public School in Rio Grande do Sul (n = 135). We elaborated a questionnaire (27 statements)
containing three categories judged by the Likert scale and evaluated the data by means of Hierarchical Cluster Analysis aided by the software Pirouette. This
analysis allowed us to group the students according to similarities in their answers. Results show students’ main conceptions and difficulties, such as: the need
to memorize the PT; misunderstandings about its construction; difficulty in consulting it; little to no establishment of relations between chemical elements and
their applications in everyday life. Despite this, we found signs of meaningful learning when students from the 2nd and 3rd years were able to recall information
about the topic after having studied it in previous years.
Keywords: learning; misconceptions; Periodic Table.

Quím. nova esc. – São Paulo-SP, BR. Tabela Periódica Vol. 41, N° 4, p. 386-393, NOVEMBRO 2019
Experimentação no Ensino de Química http://dx.doi.org/10.21577/0104-8899.20160180

Célula solar na escola: como construir uma célula solar


sensibilizada por corantes naturais

Ivana de Souza Christ, Kauana Nunes de Almeida, Verônica Granvilla de Oliveira,


Matheus Costa de Oliveira, Marcos José Leite Santos e Nara Regina Atz

A crescente consciência quanto ao impacto ambiental causado por uma matriz energética baseada em
combustíveis fósseis tem impulsionado a pesquisa por novas fontes de energia que sejam limpas, renová-
veis e acessíveis. Embora no ensino básico e médio em aulas de biologia, física e química, o tema energia
renovável seja abordado, a realização de experimentos simples pode contribuir para a compreensão de como
a energia solar é convertida em energia elétrica. Dentro desse contexto, o objetivo do presente trabalho é
apresentar um método simples de montagem de Células Solares Sensibilizadas por Corantes Naturais, que
possa ser empregado como atividade experimental, utilizando materiais de baixo custo e facilmente encon-
trados. Este trabalho tem o propósito de despertar o interesse de professores e alunos sobre a produção de
394 energia limpa e renovável.

célula solar, educação, corantes naturais

Recebido em 30/10/2018, aceito em 27/01/2019

A
busca por novas fontes de energia tem crescido enor- mergulhados em eletrólito (Grätzel, 2001). Essa tecnologia
memente nas últimas duas décadas. Este crescimento evoluiu passando por diferentes gerações de células solares
tem sido impulsionado pela necessidade de substituir (silício monocristalino, silício policristalino e filmes finos) e,
a matriz energética atual, baseada em combustíveis fósseis, na década de 90, foi publicado por Michael Grätzel e colabo-
por uma nova matriz, baseada em fontes de energia limpa e radores, o desenvolvimento de Células Solares Sensibilizadas
renovável. Essas novas fontes devem permitir o desenvolvi- por Corantes (CSSC’s).
mento da sociedade atual sem comprometer a qualidade de As CSSC’s fazem parte da chamada terceira geração de
vida das gerações futuras. Dentro desse contexto, a conversão células solares; são leves, podem ser flexíveis e obtidas a
de luz solar em energia elétrica é uma das tecnologias mais baixo custo. São constituídas por um corante (sensibilizador),
interessantes que tem sido explorada. Embora o sol esteja um semicondutor nanocristalino (TiO2, dióxido de titânio),
na verdade sendo consumido, a sua luz deve incidir sobre um par redox (solução de iodo), dois eletrodos de vidro com
a Terra pelos próximos cinco bilhões de anos, portanto do uma camada condutora e transparente (ITO - óxido de esta-
ponto de vista da expectativa de vida da espécie humana, o nho dopado com índio, eletrodo negativo) e um catalisador
sol pode ser considerado uma fonte infinita de luz. A con- (grafite ou platina, eletrodo positivo) (Azevedo e Cunha,
versão de energia solar em energia elétrica, através do efeito 1991). A geração de energia através de uma CSSC é obtida
fotovoltaico constitui a base de uma célula solar. Este efeito através do efeito fotoeletroquímico, que se baseia na habili-
foi inicialmente observado em 1839, por Edmond Becquerel, dade de um sensibilizador adsorvido sobre a superfície de um
que produziu corrente elétrica ao incidir luz sobre eletrodos semicondutor, em absorver luz gerando elétrons excitados
que são transferidos para o semicondutor. Os sensibiliza-
A seção “Experimentação no Ensino de Química” descreve experimentos cuja
dores podem ser corantes naturais, como os utilizados no
implementação e interpretação contribuem para a construção de conceitos científicos presente trabalho. No processo de conversão, a luz incidente
por parte dos alunos. Os materiais e reagentes usados são facilmente encontráveis, é absorvida pelo sensibilizador, promove elétrons do seu
permitindo a realização dos experimentos em qualquer escola. orbital ocupado de maior energia (HOMO) para o orbital

Quím. nova esc. – São Paulo-SP, BR. Célula solar na escola Vol. 41, N° 4, p. 394-398, NOVEMBRO 2019
desocupado de menor energia (LUMO). Estes elétrons são gerar bordas afiadas, portanto este passo deve ser realizado
transferidos para a banda de condução do semicondutor e com extremo cuidado.
se movem em direção a um eletrodo coletor, onde podem
ser utilizados para gerar corrente elétrica. Como o HOMO
do sensibilizador é oxidado pela luz, é necessário um par
redox que regenere o sensibilizador doando um elétron. O
par redox mais utilizado é o iodeto/triiodeto (I-/I3-).

Objetivo

O principal objetivo desse estudo é proporcionar uma


rota simples e detalhada para a montagem de Células Solares
Sensibilizadas por Corantes Naturais, que possa ser utilizada
para fins didáticos.
Figura 1: Mostra pedaços de vidro, contendo óxido de índio e
Materiais utilizados na montagem das CSSCN’s: estanho (ITO), retirados de displays de LCD de uma calculadora e
beterraba, repolho roxo e sementes de urucum (fontes de cortados no tamanho aproximado, de 2 x 2 cm para a construção
corantes naturais); papel alumínio; papel filtro ou filtro de das CSSCN’s.
café adquiridos no mercado; corretivo líquido à base de água
(fonte de TiO2) e grampos metálicos adquiridos em papela- 3º Passo: Preparação do eletrodo negativo (-)
rias; Display - LCD (Liquid Crystal Display) de calculadoras a) A placa de vidro do display da calculadora deverá
ou celulares em desuso (fonte de ITO - óxido de estanho ser limpa com água e detergente e seca com secador. É
dopado com índio); tintura de iodo 2% (solução eletrolítica) importante não atritar a placa fortemente ao lavar, para não
e pinça adquiridos em farmácias; multímetro ou voltímetro; remover a camada de ITO, que está depositada em um dos
cortador de vidro; chave de fenda e fita crepe adquiridos lados do vidro. 395
em ferragens; mixer ou ralador de legumes; placa de Petri; b) O lado condutor da placa de vidro do display LCD
funil de vidro ou de plástico; secador de cabelo; chapa de pode ser determinado através de medida da resistência elétri-
aquecimento ou mufla (forno); vela de parafina (fonte de ca. Isto pode ser feito com os dois terminais (preto e verme-
carbono); conta gotas; bastão de vidro ou colher de plástico. lho), conectados a um multímetro, colocados em contato com
a mesma face da placa de vidro do display LCD. Na face do
Passo a passo para a montagem e caracterização das CSSCN’s vidro que contém a camada com ITO será medido um valor
de tensão no multímetro (Figura 2). Atenção: selecionar a
1º Passo: Extração dos corantes naturais função resistência elétrica no multímetro.
Para extração dos pigmentos, 25 g de beterraba (ralada,
sem casca e crua), repolho roxo ou sementes de urucum
foram colocados separadamente em béqueres de 250 mL
com 100 mL de água. As misturas (contendo vegetais ou
sementes de urucum) permaneceram em repouso por cerca
de 10 min, com ciclos de agitação manual a cada 2 min
para melhorar a extração. As misturas já com os pigmentos
extraídos, foram filtradas em papel filtro ou filtro de café e
estocadas em frascos de vidro com tampa.

2º Passo: Obtenção dos eletrodos


Com o auxílio de uma chave de fenda, foram abertas
calculadoras para obtenção das duas placas de vidro, lo-
calizadas no meio do display, que são cobertas por uma
fina camada de óxido de estanho dopado com índio (ITO)
(Silveira et al., 2012). Estas placas de vidro cobertas com
ITO serão utilizadas para montagem dos eletrodos (negativo
e positivo) das CSSCN’s. Esse passo deve ser realizado com
cuidado, pois para separar as placas de vidro é necessário Figura 2: Mostra como medir, usando um multímetro, o lado con-
inserir um artefato cortante (faca). Utilizando um cortador dutor da placa de vidro contendo óxido de índio e estanho (ITO).
de vidro estas placas devem ser cortadas, no tamanho de 2
por 2 cm (Figura 1). Cuidado para não arranhar as placas e c) A placa de vidro com ITO deve ser fixada sobre uma
assim não remover a camada de ITO. O corte das placas pode mesa, usando fita adesiva nos lados, deixando o meio da

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placa livre e garantindo que a superfície condutora esteja
virada para cima (Figuras 3a-b).
d) A camada de TiO2 (corretivo líquido a base de água)
deve ser depositada sobre a face da placa de vidro condutora
(ITO) exposta como mostra a Figura 3c.

Figura 4: A placa de vidro condutora com o ITO mais a camada


de TiO2 (Figura 3f) colocada sobre uma chapa de aquecimento
para a queima de produtos orgânicos. (a) Placa de vidro colocada
diretamente na chapa de aquecimento e (b) Placa de vidro na
396 chapa de aquecimento em evidência.

Figura 3: Sequência de etapas (a - f) feitas para a obtenção do


eletrodo negativo (placa de vidro condutora (ITO) mais a camada
de TiO2).

e) O corretivo (TiO2) deve ser espalhado de modo a


formar uma camada fina e homogênea (Figura 3d). Esperar
esse filme secar à temperatura ambiente ou usar um secador
de cabelo para que o processo ocorra mais rápido.
f) Depois de seco o filme, retirar a fita adesiva do vidro
com cuidado para não danificar a camada de corretivo
(TiO2) depositada sobre a placa de vidro condutor (Figura Figura 5: Depósito da camada de carbono (preta) na superfície
3e). É fundamental que a camada de TiO2 esteja íntegra da placa de vidro condutora (ITO) por meio da queima do pavio
para melhor eficiência da célula solar em converter luz de uma vela de parafina.
em eletricidade.
g) A placa (Figura 3f) deve ser colocada sobre uma chapa ITO. A superfície condutora da placa de vidro deverá ser
de aquecimento, coberta com papel alumínio e aquecida coberta uniformemente com carbono.
entre 200ºC até 350ºC por cerca de 30 minutos (Fig. 4a-b).
5º Passo: Adsorção do corante natural sobre o eletrodo negativo
4º Passo: Preparação do eletrodo positivo (+) (ITO + filme de TiO2)
a) A outra metade do vidro (ITO) retirado do display a) O eletrodo negativo depois de pronto (3º passo) deve
LCD da calculadora deve ser limpa com água e detergente ser imerso, por 30 minutos, na solução aquosa contendo o
(com cuidado) e seca com secador de cabelo. corante obtido de vegetais, como por exemplo, beterraba
b) Usar novamente um multímetro para determinar o lado (Figura 6a) ou de sementes de urucum (Figura 6b).
condutor (medir a resistência). b) Após retirar o eletrodo negativo dos corantes (Figuras
c) Um filme de carbono (C) deve ser depositado sobre 6a-b), com o auxílio de uma pinça, o mesmo deve ser lavado
superfície condutora do display (ITO + carbono). Esse filme com água e seco com secador de cabelo. Após esse proces-
pode ser obtido através da queima do pavio de uma vela de so, a coloração da placa se mostrará menos intensa do que
parafina (Figura 5), garantindo que a fuligem resultante da quando estava imersa nos corantes.
queima forme um filme de carbono sobre a superfície do

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multímetro da seguinte forma: Os cabos preto e vermelho,
conectados ao multímetro, devem ser postos em contato com
os eletrodos negativo (-) e o eletrodo positivo (+), respecti-
vamente (Figura 8). O teste de funcionamento da CSSCN
deve ser realizado de duas formas: i) no escuro, apagando
todas as luzes do ambiente e mantendo a CSSCN dentro de
um recipiente sem luz e ii) sob iluminação, usando as luzes
do ambiente ou a luz solar. A medida no escuro não deve
gerar fotovoltagem, contudo a medida sob iluminação irá
gerar. A fotovoltagem assim como a fotocorrente depende da
intensidade da luz incidente, portanto quanto mais intensa for
a luz maior será a fotovoltagem medida. A escala de tensão
usada foi a de corrente contínua, na faixa de 2000 mV. As
medidas da tensão elétrica das CSSCN’s contendo os coran-
tes oriundos do vegetal beterraba e de sementes de urucum
foram 359 mV (Figura 8) e 478 mV, respectivamente. Estes
valores de tensão dependem da intensidade da luz incidente,
do corante e do procedimento de montagem da CSSCN.

Figura 6: Etapa da aplicação do corante natural (sensibilizador)


ao eletrodo negativo (ITO + camada de TiO2) para posterior
montagem dos dispositivos (CSSCN’s). a) Corante da vegetal
beterraba e b) Corante de sementes de urucum.
397
6º Passo: Montagem da Célula Solar Sensibilizada por Corante
Natural (CSSCN)
a) A Célula Solar Sensibilizada por Corante Natural é
montada num arranjo tipo sanduíche (Figura 7); os eletro-
dos negativos (ITO + TiO2) e positivo (ITO + C) são unidos
utilizando um grampo metálico.
b) No espaço entre os eletrodos negativo e positivo devem
ser acrescentadas algumas gotas de solução de tintura de iodo
a 2% (solução marrom da Figura 7), fonte de íon iodeto, até
que os mesmos estejam saturados dessa solução.

Figura 8: Medida da tensão (359 mV), com um multímetro, da


CSSCN produzida com corante (sensibilizador) extraído do
vegetal beterraba.

Conclusão

Com base em testes realizados por alunos do primeiro


semestre do curso técnico em química do Instituto Federal do
Rio Grande do Sul (IFRS) – campus Porto Alegre, verificou-
-se com êxito que a montagem passo-a-passo de CSSCN’s
é possível de ser executada como uma atividade didática
Figura 7: Mostra a solução de tintura de iodo 2% (solução mar-
prática (Nunes et al., 2016). Nessa atividade se trabalhou
rom) sendo acrescentada, com conta gotas, entre as placas de com duplas de alunos, em um tempo em torno de duas horas,
vidro que contêm o eletrodo negativo (placa inferior branca) e o com a orientação de um professor. A rota de montagem das
eletrodo positivo (placa superior preta). células solares apresentada neste trabalho, embora muito
simples e utilizando materiais do dia a dia, resulta em uma
7º Passo: Teste de funcionamento da (CSSCN) célula solar que pode ser montada rapidamente e que de
Assim como uma célula solar gera fotocorrente, também fato converte luz em corrente elétrica. O composto bixina,
gera fotovoltagem. Para testar o funcionamento da célula pigmento extraído de sementes de urucum, aparentemente,
solar, a voltagem da mesma pode ser medida com um se adsorveu mais na superfície do TiO2 (semicondutor da

Quím. nova esc. – São Paulo-SP, BR. Célula solar na escola Vol. 41, N° 4, p. 394-398, NOVEMBRO 2019
(matheuscdeoliveira@gmail.com), estudante do curso de Química Industrial da
célula) do que a molécula da betalaína, pigmento presente UFRGS, Porto Alegre, RS – BR. Marcos José Leite Santos (mjls@ufrgs.br), bacharel
no corante da beterraba. em Química, mestrado e doutorado em Química pela Universidade Estadual de
Maringá. Parte do doutorado desenvolvido na University of Victoria, Victoria, Canadá.
Pós-doutorado pelo Instituto de Física da USP de São Carlos. É Professor do Instituto
Ivana de Souza Christ (ivana.christ93@gmail.com), estudante do curso técnico de Química da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Porto Alegre, RS, Brasil.
em Química pelo IFRS, Campus Porto Alegre, RS – BR. Kauana Nunes de Nara Regina Atz (nara.atz@poa.ifrs.edu.br), bacharel e licenciada em Química pela
Almeida (kauanaalmeida@ hotmail.com), estudante do curso técnico em Química Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, mestrado e doutorado em
pelo IFRS, Campus Porto Alegre, RS – BR. Verônica Granvilla de Oliveira Ciências dos Materiais pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Parte do
(veronica_granvilla@hotmail.com), estudante do curso técnico em Química doutorado na Friedrich-Alexander Universität, Alemanha. É professora do Instituto
pelo IFRS, Campus Porto Alegre, RS – BR. Matheus Costa de Oliveira Federal do Rio Grande do Sul, campus Porto Alegre, Porto Alegre, RS, Brasil.

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Abstract: Solar cell in the school: how to build a dye sensitized solar cell using natural pigments. The growing awareness about the environmental impacts
caused by a fossil fuel based energetic matrix has driven the research of new generation of clean, renewable and affordable energy resources. Although in
primary and secondary schools this subject is discussed in biology, physics and chemistry classes, a simple experiment can help the students to understand
398 how solar energy can be converted into electricity. The present work shows the assembling of Natural pigment-based dye-sensitized solar cells. The simplified
procedure allows the assembling of solar cells in experimental classroom activities using easily available materials. This study is intended to arouse the interest
of teachers and students about the production of clean and renewable energy.
Keywords: solar cell, education, natural pigments

Quím. nova esc. – São Paulo-SP, BR. Célula solar na escola Vol. 41, N° 4, p. 394-398, NOVEMBRO 2019
Cadernos de Pesquisa http://dx.doi.org/10.21577/0104-8899.20160181

A Filosofia na Formação de Professores de Química


em Minas Gerais: O que se Mostra nos Componentes
Curriculares de Licenciaturas em Química?
Philosophy In Teachers’ Education In Minas Gerais State: What Is
Shown In Curricular Components Of Chemistry Undergraduate
Courses?

Robson S. de Sousa, Alexandre R. dos Santos e Maria do Carmo Galiazzi

Resumo: Neste artigo, apresentamos percepções e elaboramos Abstract: In this article, we present perceptions and elaborate
compreensões acerca da formação filosófica de professores de understandings about the philosophical education of chemistry
Química. Fundamentamos nossa investigação em uma proposi- teachers. Our investigation is based on a proposal of a
ção de uma Filosofia da Educação em Ciências – que articula a Philosophy of Science Education – which articulates Philosophy,
Filosofia, a Filosofia da Educação e a Filosofia da Ciência como Philosophy of Education and Philosophy of Science as
eixos formadores dos estudos neste campo. Identificamos com- formative axes of studies in this field. Curricular components
ponentes curriculares nesses eixos nos cursos de Licenciatura em belonging to these axes were identified in undergraduate 399
Química das Universidades Federais do Estado de Minas Gerais. courses in Chemistry of Federal Universities of the State of
As ementas desses componentes curriculares foram analisadas Minas Gerais. The available syllabuses were analyzed from the
com a pergunta fenomenológica de pesquisa : “O que é isto que phenomenological question: “What is philosophy in chemistry
se mostra: a Filosofia na formação de professores de Química teachers’ education?”. Of the 23 undergraduate courses in
em Minas Gerais?”. Dos 23 cursos de Licenciatura em Química Chemistry found, only 10 entail philosophy in the name of
encontrados, 10 deles possuem vínculo com a Filosofia no nome curricular components. Of these, 13 curricular components with
do componente curricular. Nestes cursos, foram identificados 13 this link were identified, mainly attributed to the Philosophy
componentes curriculares com este vínculo, majoritariamente of Education or the Foundations of Education. In the analysis
atribuídos à Filosofia da Educação. Na análise realizada, emerge carried out, it emerges the idea of a philosophical education of
a ideia de uma formação filosófica de professores de Química Chemistry teachers linked to epistemological, methodological
vinculada a aspectos epistemológicos, metodológicos e curricu- and curricular aspects of scientific knowledge.
lares do conhecimento científico.
Keywords: Philosophy of Science Education. Chemistry
Palavras-chave: Filosofia da Educação em Ciências. Educação Education. Teachers Education. Philosophy of Education.
Química. Formação de Professores. Filosofia da Educação. Philosophy of Science.
Filosofia da Ciência.

Robson Simplicio de Sousa (robsonsimplicio@hotmail.com) é doutor em Educação em Ciências pela Universidade Federal do Rio Grande (FURG), mestre em
Química Tecnológica e Ambiental pela FURG e licenciado em Química pela Universidade Federal de Pelotas (UFPel). Atua como professor adjunto no Departamento de
Sociais e Humanas da Universidade Federal do Paraná (UFPR), Setor Palotina. Palotina, PR – BR. Alexandre Rodrigues dos Santos (santos.18alexandre@gmail.com)
é acadêmico do curso de Licenciatura em Química da Universidade Federal do Triângulo Mineiro (UFTM). Iturama, MG – BR. Maria do Carmo Galiazzi
(mcgaliazzi@gmail.com) é doutora e mestre em Educação pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS), licenciada em Química pela
FURG e bacharel em Química pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). É professora titular voluntária na FURG. Rio Grande, RS – BR.
Recebido em 21/11/2018, aceito em 17/12/2018

A seção “Cadernos de Pesquisa” é um espaço dedicado exclusivamente para artigos inéditos (empíricos, de revisão ou teóricos) que apresentem profundidade
teórico-metodológica, gerem conhecimentos novos para a área e contribuições para o avanço da pesquisa em Ensino de Química.

Quím. nova esc. – São Paulo-SP, BR. A Filosofia na Formação de Professores de Química em Minas Gerais Vol. 41, N° 4, p. 399-413, NOVEMBRO 2019
de Sousa et al.

A construção da identidade de um professor de Ciências se indispensáveis ao processo formativo (Flickinger,


vincula aos aspectos filosóficos por ele apropriados, uma vez 2010, p. XVIII-XIX).
que é a partir deles que o professor expõe suas concepções
epistemológicas, a ciência que ensina e aprende, o modo como a O ensino de Química tem sido tratado com objetivismo1
propaga e sua disposição às relações educativas (Schulz, 2014). (Sjöström, 2007), com pouco diálogo entre os sujeitos envol-
Isto repercute no modo como o professor escolhe conteúdos de vidos no processo educativo, raro tratamento das tradições
ensino, como planeja esse ensino e como se compromete com a históricas2 e estéticas da Química e de seu ensino, além
formação do estudante e com a sua própria formação, à medida do escasso registro por meio da escrita das compreensões
que questiona sua prática. Assim, neste artigo, questionamo- alcançadas, enquanto materialidade do ato educativo (Sousa
nos sobre como se apresentam os aspectos filosóficos na e Galiazzi, 2017; 2018). A sala de aula de Química tem sido
formação acadêmica de professores de Química. Buscamos, a caracterizada como a ciência, um lugar de domínio e de
partir desse questionamento, delinear pressupostos filosóficos controle da razão.
que se mostram nas ementas dos currículos de formação A moderna educação de professores em Ciências tem
universitária de estudantes de cursos de Licenciatura em passado à margem da Filosofia e da Filosofia da Educação em
Química em Minas Gerais. favorecimento de estudos em Psicologia e ciências cognitivas,
Nosso interesse teórico parte de Schulz (2014), quando especialmente, em teorias de aprendizagem e de desenvol-
afirma que muito do afastamento dos professores de Ciências vimento (Schulz, 2014). Entretanto, se considerarmos que a
em relação à Filosofia é responsabilidade da própria academia educação significa mais do que o uso de técnicas instrucionais
que o forma. Isto se constitui no que o autor chama de uma e que abrange intenções amplas, incluindo uma educação ci-
insuficiência filo-educacional que desemboca numa maior dadã e questões fundacionais sobre a natureza da educação, da
vinculação do professor de Ciências à ciência, em função do aprendizagem, do conhecimento e da ciência, então a Filosofia
prestígio atribuído ao cientista, em detrimento da Educação precisa ser trazida à baila (Schulz, 2014) e ser cada vez mais
400 em Ciências e seus aspectos filosóficos. Trataremos, neste incluída nos cursos de Licenciatura em Química.
artigo, especificamente, do que se mostra nas ementas acerca Para Röhr (2015), existem muitas teorias educacionais dis-
desses aspectos filosóficos, cuja vinculação inquestionável poníveis à escolha do educador que podem guiar suas práticas
ao paradigma que norteia a construção da ciência que ensina, educativas. Aquele que toma para si a responsabilidade de
desdobra-se em uma problemática para a Educação Química. escolher uma teoria a seguir pode: i. compreender a educação
A construção da Química está fundamentada em uma ra- como aquela em que a tarefa pedagógica se reduz a algo que
cionalidade técnico-científica que sustenta a ciência calcada no pode ser plenamente realizado; ou ii. questionar-se acerca das
positivismo como modo de conhecer o mundo. Referimo-nos ao consequências negativas de visões mais restritas da educação
modo de olhar o mundo que se centra em discriminar, classificar e também das contribuições positivas daquelas mais amplas,
e identificar as coisas com padrões previamente estabelecidos, nas quais se incluem as facetas da vida humana. Na primeira
buscando dominá-las. Constrói-se baseada numa linguagem de escolha, pouco interessam os fundamentos filosóficos orienta-
medida e aferição com o propósito de computar novas ideias, dores da prática docente, pois a tarefa pedagógica está pronta,
hipóteses com vistas à produção de novos produtos de interesse é preciso apenas aplicá-la. A segunda escolha, uma aposta no
do mercado. Aposta fortemente na competitividade, com foco questionamento e na reflexão, exige do professor conhecer,
em um desenvolvimento cujo projeto presente é melhor do que escolher e se posicionar diante de fundamentos filosóficos para
o anterior. Seus conhecimentos são baseados em verificações poder avaliar sua prática educativa.
corretas, pois foram elaborados por métodos que permitem a Diante disso, buscamos elaborar compreensões a partir
eliminação do erro (Martins e Bicudo, 2006). Em um contexto da análise de ementas que compõem o currículo em cursos
educativo, vincular-se exclusivamente a uma racionalidade de Licenciatura em Química. Utilizamo-nos da hermenêutica
técnico-científica reduz possibilidades formativas do Educar como suporte teórico para a compreensão filosófica do currí-
Quimicamente. Isto porque culo, como nos traz Berticelli (2010) ao afirmar que

O ideal de cientificidade herdado do Iluminismo O currículo é sempre proposta de experiência do


impõe uma orientação objetificadora e tecnificada mundo. Por outro lado, ele é experiência do mundo.
ao processo educativo contrária à multiplicidade de É um tipo de experiência proposto aos educandos. O
concepções e ideais que irrompem da diversidade currículo é sempre uma complexa trama de mundos
biográfica e da multiplicidade cultural. Regras, vividos e não de um só mundo, pois ele resulta de
normas e esquemas burocráticos traduzidos na muitas experiências históricas e de projeto para o fu-
rigidez e no esquematismo disciplinar predetermi- turo de muitas histórias: as histórias dos educandos
nado segmentam a ação educativa destituindo-a junto com as histórias dos educadores, no sentido
da autonomia, conectividade e autorreflexividade mais amplo de compreensão possível. Assim, me

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autorizo a dizer que o currículo é uma trama tecida os cursos de Licenciatura em Química com componentes
de linguagens (Berticelli, 2010, p. 73). curriculares de interesse – Filosofia, Filosofia da Educação e
Filosofia da Ciência. Na quarta seção, utilizamo-nos da Análise
Com isso, o currículo se materializa na linguagem. É, Textual Discursiva (ATD) para a análise dos textos das ementas
portanto, um texto, um discurso que se constitui no pensa- desses componentes curriculares.4 A Análise Textual Discursiva
mento educacional, nas normas, nas intenções, na filosofia, (Moraes e Galiazzi, 2016; Sousa et al., 2016; Sousa e Galiazzi,
na ideologia, nos conteúdos de ciência e o que mais que possa 2016) assume os princípios fenomenológicos e hermenêuticos,
estar nele incluído (Berticelli, 2010). A partir de sua natureza exigindo a descrição detalhada do fenômeno para perceber
linguística, compreendê-lo significa interpretá-lo. Esta é nossa como este se mostra. Nesse caminho, o exercício foi feito a
intenção com o presente artigo. partir dos significados das palavras intencionalmente escolhi-
Como apresentamos acima, compreendemos o currículo das, permitindo movimentar-nos baseados em preconceitos
além de “matrizes” e “grades” curriculares, além dos projetos com vistas a horizontes de compreensão ampliados para a
políticos pedagógicos e além das ementas que o compõem. construção do metatexto.
Entretanto, nosso esforço analítico foi o de compreender a A ATD realizada partiu das ementas dos componentes
partir dos textos que estes currículos nos disponibilizaram, as curriculares de interesse, o corpus de análise. As ementas são
ementas, entendendo-os sempre como intencionalidades do constituídas, basicamente, de títulos de conteúdos a serem tra-
real, sempre parciais e incompletos ao descreverem a prática balhados nos componentes curriculares. Ao fragmentarmos este
curricular. corpus, foi necessária a reescrita das unidades de significado,
Nesta interpretação de textos, somos influenciados pela conforme dos orienta a metodologia de análise:
Fenomenologia, uma postura filosófica com uma visão de
conhecimento e realidade na qual sujeito e objeto não são se- (...) como na fragmentação sempre se tende a
parados, mas estão ontologicamente unidos (Martins e Bicudo, descontextualizar as ideias, é importante reescrever
2006). É a busca de “dirigir-se para o fenômeno da experiência, as unidades de modo que expressem com clareza 401
para o dado, e procurar vê-lo da forma como ele se mostra na os sentidos construídos a partir do contexto de sua
própria experiência em que é percebido” (Martins e Bicudo, produção. Isso implica incluir alguns elementos
2006, p. 16). Nosso modo de perguntar nesta investigação é de de unidades anteriores ou posteriores dentro da
estranhamento, é de dar-se conta do percebido e de espantar-se sequência do texto original. Isso se faz necessário,
com o que percebemos. Assim, na Fenomenologia, pergun- pois as unidades, quando levadas à categorização,
tamos “o que é isto?” para ressaltar este dar-se conta de que estarão isoladas e é importante que seu sentido seja
percebeu o que lhe estranha, tanto que se torna um fenômeno claro e fiel às vozes dos sujeitos da pesquisa (Moraes
a ser investigado. Neste artigo, questionamos O que é isto que e Galiazzi, 2016, p. 41-42).
se mostra: a Filosofia na formação de professores de Química
em Minas Gerais? Assim, trabalhamos na análise com as unidades de signifi-
Restringimos nossa análise a cursos de Licenciatura em cados reescritas com seus sentidos os mais completos possível,
Química de Universidades Federais do Estado de Minas Gerais. para que delas pudéssemos seguir para a categorização. A
Isto se justifica em função de que Minas Gerais é o Estado da aproximação realizada foi a partir de categorias a priori que
federação com mais universidades federais. são explicitadas na seção dois (Tabela 1).
Orientamos nossa investigação a partir do que Schulz Na categorização inicial, as aproximações das unidades de
(2014) chama de Filosofia da Educação em Ciências, o que significado nos levaram à elaboração de sínteses descritivas
será apresentado na segunda seção deste artigo. Na terceira que possibilitam iniciar a construção do argumento em torno
seção, identificamos e mapeamos, utilizando o software Qgis,3 da categoria.

Tabela 1: Exemplo do processo de unitarização realizado nas ementas

Universidade Componente Curricular Ementa Unidades de Significado


UFLA Lavras Filosofia da Educação Estudo de diversas correntes UFLA.1.1. Estudo de correntes filosóficas que pos-
filosóficas que possibilitem a com- sibilitem a compreensão no processo educativo.
preensão e a intervenção crítica UFLA.1.2. Estudo de correntes filosóficas que
e reflexiva no processo educativo. possibilitem a intervenção crítica no processo
educativo.
UFLA.1.3. Estudo de correntes filosóficas que
possibilitem a intervenção reflexiva no processo
educativo.

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Os sistemas de categorias correspondem a filosóficas e perpassam a Filosofia da Educação e a Filosofia da


sínteses dos elementos que mais se destacam nos Ciência. É por isso que, no livro Rethinking Science Education:
fenômenos investigados. Nesse sentido, constituem Philosophical Perspectives, Schulz (2014) reivindica a posição,
pontes para a realização de inferências dos textos segundo ele ainda bastante negligenciada, da Filosofia na/da
aos contextos, dos materiais analisados para os Educação em Ciências. Há, portanto,
fenômenos pesquisados. A concretização, cada vez
mais elaborada, dessas inferências, aparecerá em a necessidade de reexaminar e de repensar os pro-
forma de meta-textos descritivos e interpretativos, blemas comuns do terreno científico educacional
expressando as compreensões atingidas (Moraes e – associados com os objetivos (especialmente de
Galiazzi, 2016, p. 112). alfabetização ou letramento científico), currículo,
questões de aprendizagem, natureza da ciência e
Em um processo recursivo de aproximação, as categorias linguagem – a partir de perspectivas filosóficas
finais apresentam-se com um parágrafo-síntese (Tabela 2) que estimulantes, com a intenção de prover soluções
abre o metatexto de cada uma delas como mostrado na seção oferecendo novas ideias, novos caminhos de pes-
quatro. quisa (Schulz, 2014, p. 17).
O parágrafo-síntese orienta a percepção do investigador
que busca fenomenologicamente escutar as palavras que dele O autor fundamentou uma Filosofia da Educação em
emergem. Sobre isso, Sousa e Galiazzi (2016, p. 50) afirmam Ciências (FEC) estruturada pela intersecção ou integração de
que “Na ATD o sentido dado à palavra emergência é aquele três campos acadêmicos: Filosofia, Filosofia da Educação e
da compreensão que surge durante o processo de análise que Filosofia/História da Ciência (Figura 1). A organização gráfi-
o pesquisador, como sujeito histórico, percebe, o que o leva ca apresentada possibilita a professores e pesquisadores uma
a uma teoria antes não reconhecida, mas parte de suas pré- estrutura holística para vincularem suas análises específicas.
402 compreensões.” Essas palavras orientam o processo descritivo Em sua construção em direção a uma FEC, Schulz argu-
e interpretativo do metatexto, articulando-o com teóricos para menta que as questões filosóficas envolvendo tanto a educação
a construção de argumentos na categoria em análise.5 quanto a ciência estão no centro da Educação em Ciências,
Por fim, na quinta seção, apresentamos as considerações uma vez que o papel profissional do professor tem sido cocriar,
finais deste artigo. orientar e avaliar os documentos oficiais de ensino de Ciências,
pois essas tarefas requerem a mistura de aspectos da Filosofia
Sobre Uma Filosofia da Educação em da Educação e da Filosofia da Ciência. A intenção é aperfeiçoar
Ciências a Educação em Ciências como um campo de pesquisa e ajudar
professores a ampliarem suas estruturas teóricas e melhorarem
Schulz (2014) defende que a Educação em Ciências, tanto suas práticas (Schulz, 2014).
como investigação acadêmica quanto como campo de prática, Gois (2017) aponta a importância de uma aproximação
requer internamente o desenvolvimento de uma filosofia, de entre a Filosofia e o ensino de Ciências, e ressalta que esta
modo a realizar suas mudanças como uma disciplina de pes- aproximação possibilita melhor compreensão de elementos
quisa e de profissão. Para o autor, a Educação em Ciências se fronteiriços nestas duas áreas. Assim, o autor nomeia esta
mostra pouco disposta a tratar de suas questões filosóficas. fronteira de Filosofia do Ensino de Ciências, segundo ele
Muitos pesquisadores e professores estão mais interessados em “um campo que ainda não existe, nem mesmo como linha de
aplicações práticas imediatas, porque a área tem sido associada pesquisa de uma área” (Gois, 2017, p. 24). O autor comple-
ao treinamento de técnicas de ensino e de aprendizagem, com menta que uma Filosofia do Ensino de Ciências6 nos auxilia,
foco nas teorias fundamentadas na Psicologia. enquanto comunidade de Educação em Ciências, a delimitar
Muitas das preocupações e dos questionamentos da co- de modo mais seguro os pressupostos filosóficos orientadores
munidade de Educação em Ciências são intrinsecamente das metodologias e dos objetivos de pesquisa.

Tabela 2: Exemplo do processo de categorização intermediária e elaboração de parágrafo-síntese

Categorização Intermediária Unidades de Significado Parágrafo-síntese


A – A compreensão do processo educativo; UFLA.1.1.; UFOP.1.4.; UFOP.1.5.; UNIFAL.1.2. A Filosofia da Educação visa compreender o
A – A organização do currículo escolar faz parte processo educativo, desde os saberes neces-
dos estudos filosóficos sobre educação; sários à prática docente até a organização do
A – Os saberes necessários à prática docente currículo escolar.
fazem parte dos estudos filosóficos sobre
educação

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Figura 1: Estrutura da Filosofia da Educação em Ciências. Traduzido e adaptado de Schulz (2014, p. 13).
403
Schulz (2014) aposta que a Filosofia da Educação em Filosofia da Educação em Ciências apontada por estes autores,
Ciências possa servir como um fórum acadêmico de debate neste artigo, baseamo-nos nos componentes curriculares que
acerca dos objetivos fundamentais, dos critérios de seleção de a integram – Filosofia, Filosofia da Educação e Filosofia da
conteúdo e de críticas às epistemologias dos métodos de pesqui- Ciência. Buscamos compreender melhor a formação filosófica
sa, das teorias de aprendizagem e das estratégias instrucionais em cursos de Licenciatura em Química e a integração entre
na Educação em Ciências. Também deve ajudar a esclarecer a esses componentes curriculares. Esse esforço teórico constitui,
relação entre as teorias educacionais e a própria Filosofia, que portanto, um exercício de identificar, descrever e interpretar
tem suas próprias preocupações. Dentro do escopo da Filosofia textos que repercutem na formação filosófica de professores
da Educação em Ciências, o autor destaca: de Química, como faremos a seguir.

i. objetivos da educação em ciências; ii. desen- Mapeamento de Componentes Curriculares


volvimento/análise de metateorias educa­cionais Vinculados à Filosofia em Cursos de
para a educação em ciências; iii. a natureza da Licenciatura em Química em Minas Gerais
ciência adequada para a educação em ciências; iv.
a aprendizagem da natureza da ciência (a crítica Minas Gerais é o Estado brasileiro que possui o maior
a teorias de aprendizagem); v. ensino e avaliação número de universidades públicas.7 São onze Universidades
da natureza da ciência; vi. a ideologia da natureza Federais no Estado de Minas Gerais, totalizando trinta campi
e o interesse no currículo; critério para seleção universitários espalhados em diversos municípios no território
de conteúdos; vii. natureza da linguagem no cur- mineiro. Todas as universidades federais de Minas Gerais pos-
rículo, ensino e aprendizagem; viii. a relação da suem cursos de formação de professores de Química, nomeados
alfabetização científica e os objetivos da educação de “Licenciatura em Química” ou “Química Licenciatura”. A
para as questões sócio-tecnológicas; e ix. a relação oferta de cursos de formação de professores de Química são
da ciência e da educação em ciências às visões de nas modalidades presencial ou à distância, em 23 campi.
mundo e às culturas (Schulz, 2014, p. 52). As datas de implantação dos Projetos Políticos Pedagógicos
(PPP) – também chamados de Projetos Pedagógicos de Curso
Schulz (2010; 2014) reconhece, antes mesmo de Gois (PPC) – variam de 2008, na UNIFAL de Alfenas, a 2016, na
(2017), que esses tópicos não têm sido abordados na formação UFV de Viçosa. Muitos dos cursos identificados não possuem
de profissionais da Educação em Ciências. Seu aparecimento é seus PPC’s disponíveis em seus sítios eletrônicos institucionais.8
esporádico e disperso em periódicos científicos e livros. Os componentes curriculares de nosso interesse foram
Pela ausência de uma organização acadêmica em torno da aqueles que tinham explicitamente em seus nomes a palavra

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“filosofia”, “filosófico”, “filosófica” e seus respectivos plurais Na Tabela 3, agrupamos os componentes curriculares de
quando identificadas em suas grades curriculares, PPC’s ou acordo com os eixos da Filosofia da Educação em Ciências.
sítios eletrônicos das UF’s de Minas Gerais. A esses componen- São dois em Filosofia, sete em Filosofia da Educação e dois
tes curriculares de interesse adicionamos aqueles cujo títulos em Filosofia da Ciência.
teria alguma vinculação com “Fundamentos da Educação”. Outros dois componentes curriculares estão nomeados como
Isto porque, com a cientificização da Pedagogia a partir do “Aspectos Filosóficos e Sócio-Antropológicos” e “Filosofia e
século XVIII, o campo da educação englobou algumas áreas Metodologia das Ciências” dos cursos de Química Licenciatura
das ciências humanas, tais como a História, a Psicologia, a da UFVJM de Diamantina e da UNIFAL de Alfenas, respecti-
Sociologia e a Filosofia na ampla designação de fundamentos vamente. Eles não se vinculam diretamente aos eixos da FEC,
da educação (Hermann, 2015). Isso repercutiu tanto nos cursos mas se posicionam na interface deles.
de Pedagogia quanto nas Licenciaturas no Brasil, nos quais se Dos três campos de nossa investigação, destaca-se a
considera a Filosofia da Educação uma disciplina da área de Filosofia da Educação. Após a identificação dos componentes
“fundamentos da educação” (Gallo, 2007). Assim, incluímos curriculares, percebe-se que, quantitativamente, os cursos de
esse componente curricular na análise. Licenciatura das Universidades Federais em Minas Gerais dão
Apenas dez dos vinte e três cursos de formação de profes­ pouca ênfase aos aspectos filosóficos, uma vez que apenas em
sores de Química, distribuídos em sete UF’s de Minas Gerais, dez dos vinte e três cursos foram encontrados componentes
ofertam componentes curriculares de Filosofia, Filosofia da curriculares com os critérios estabelecidos. Esses componentes
Ciência, Filosofia da Educação ou Fundamentos da Educação, curriculares enfatizam a Filosofia da Educação em detrimento
em treze componentes curriculares com esses critérios, da Filosofia da Ciência e da Filosofia em geral.
conforme mostra a Figura 2.

404

Figura 2: Identificação dos componentes curriculares em Filosofia, Filosofia da Educação, Filosofia da Ciência ou Fundamentos da Educação nos
cursos de Licenciatura em Química dos Campi Universitários Federais em Minas Gerais em 2017.

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Tabela 3: Componentes curriculares nos eixos da Filosofia da Educação em Ciências identificados nos cursos de Licenciatura em Química de
UF’s de Minas Gerais em 2017

Eixos da FEC Componente Curricular Universidade


Filosofia UFTM – Uberaba
Filosofia
Filosofia UFV – Viçosa
Filosofia da Educação UFU – Uberlândia
Filosofia da Educação UFU – Ituiutaba
Filosofia da Educação UNIFEI – Itajubá
Filosofia da Educação Filosofia da Educação UFLA – Lavras
Fundamentos de Educação UNIFAL – Alfenas
Fundamentos de Educação UNIFAL – Campos Gerais
Estudos Filosóficos sobre Educação UFOP – Ouro Preto
Filosofia da Ciência UFV – Viçosa
Filosofia da Ciência
Filosofia das Ciências: Século XX UFOP – Ouro Preto

Uma Análise a Partir dos Eixos da Filosofia afastar do que Severino (2006, p. 91) chama de uma educação
da Educação em Ciências na Formação de superior “como apenas um aparelhamento técnico para o exer-
Professores de Química cício de operações funcionais na sofisticada engrenagem tecno-
lógica da produção”. Tratar a Filosofia em cursos de formação
Nesta seção, apresentamos o metatexto produzido a partir da de professores de Química é colocar-se na contracorrente.
análise das ementas dos componentes curriculares vinculados à Muitos gestores e teóricos da educação superior compreendem 405
Filosofia nas Licenciaturas em Química de universidades fede- a modernização da universidade alicerçada na transmissão de
rais em Minas Gerais por meio da Análise Textual Discursiva uma preparação técnico-operacional para inserção na cadeia
(Moraes e Galiazzi, 2016). Utilizamo-nos de categorias a priori, de produção (Severino, 2006).
provenientes dos eixos que compõem a Filosofia da Educação Da análise realizada, mostrou-se que a Filosofia nos cursos
em Ciências, a saber: Filosofia, Filosofia da Ciência e Filosofia de Licenciatura analisados tem se dedicado a estudar a origem
da Educação (Schulz, 2014). Elas nos fizeram perceber emer- das Ciências, com ênfase em sua própria história, bem como na
gências teóricas textualizadas a seguir. origem histórica da Sociologia e da Antropologia (UNIFAL.1.3.
A filosofia vinculada à metodologia das ciências trata da his-
A Filosofia na Formação de Professores de Química: tória da ciência; UFVJM.1.2. A filosofia com um tratamento
A Vinculação à Metodologia Científica como modo sócio-antropológico aborda a origem da filosofia; UFVJM.1.3.
de Compreender o Homem e a Sociedade A filosofia com um tratamento sócio-antropológico aborda a
Da análise sobre a ocorrência das expressões filosofia e origem histórica das ciências; UFVJM.1.4. A filosofia com
filosófico(a) nas ementas dos componentes curriculares foi um tratamento sócio-antropológico aborda a origem histórica
possível elaborarmos a síntese descritiva apresentada a seguir: da antropologia; UFVJM.1.5. A filosofia com um tratamento
A Filosofia nos componentes curriculares analisados apresenta sócio-antropológico aborda a origem histórica da sociologia.).
pressupostos que permitem questionar a produção do homem, Algumas unidades de significado mostraram que, ao es-
seus aspectos sociais e culturais, objetivando compreender e tudar a origem histórica das Ciências, a Filosofia encontra
explicar as estruturas da sociedade ao estudar historicamente conjecturas que lhe permitem questionar a produção do homem
a sociologia e a antropologia. Além disso, a Filosofia nos em suas concepções sociais e culturais (UFV.1.1. A filosofia
componentes curriculares analisados se mostrou vinculada à trata da produção do homem; UFTM.1.2. A filosofia aborda
epistemologia e à metodologia das ciências nos diferentes tipos dimensões humanas; UFTM.1.3. A filosofia trata da cultura
de projetos de pesquisa, aproximando-se também de métodos humana; UFTM.1.4. A filosofia trata da natureza humana).
científicos. A Filosofia que se mostra examina as Ciências e A Filosofia busca entender as estruturas da sociedade ques-
contribui para o desenvolvimento de suas estruturas teóricas, tionando a natureza humana, sua produção, sua cultura e seus
preocupada em estudar a metodologia científica, uma vez que relacionamentos sociais.
é por meio de tal metodologia que as descobertas das Ciências Ao levarmos em conta que a Filosofia trata do desenvol-
são estruturadas, teorizadas e disseminadas na academia e, vimento do homem e da sociedade, torna-se indispensável a
posteriormente, na sociedade. inserção de elementos filosóficos nos cursos universitários, não
A formação universitária do professor de Química com só nas licenciaturas, mas em todas as esferas da formação social
os componentes curriculares vinculados à Filosofia busca se e profissional. As instituições de ensino superior precisam se

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preocupar com a formação filosófica dos estudantes de todas as filosofia vinculada à metodologia das ciências se ocupa de
áreas, pois a formação filosófica retoma aspectos e dimensões diferentes tipos de pesquisa; UFV.2.3. A filosofia das ciências
estruturantes relacionadas com as tradições históricas, que trata de metodologias modernas vinculadas às ciências e à
servem como mediação fundamental para sua existência, seja epistemologia). As ementas ressaltam o vínculo da Filosofia
com o conhecimento ou com o seu próprio existir histórico. Ao à epistemologia. A Filosofia vincula-se à epistemologia no
defender a ideia de que a natureza dessa formação é necessária tratamento de metodologias modernas ligadas aos diferentes
ao perfil de qualquer profissional, independentemente de seu tipos de pesquisa. A epistemologia, área da Filosofia que
campo de atuação na sociedade, Severino (2006) se refere não se preocupa em descrever e verificar a natureza das teorias
à formação específica restrita a uma área, mas à formação hu- científicas conhecidas e a produção de novos conhecimentos
mana. A formação apenas técnica tem se fortalecido devido aos científicos, apresentou-se nos componentes curriculares
poderosos avanços tecnológicos da informática. A força dessa analisados vinculada à Filosofia em seu modo de questionar
formação é nutrida pelo capitalismo, sistema econômico em os métodos científicos empregados nas pesquisas científicas,
que cada indivíduo se preocupa com o desenvolvimento de si como também as metodologias usadas para a produção do
e não com o desenvolvimento social. Esses fatores interferem conhecimento científico. Questionar os métodos científicos
diretamente na formação universitária, levando a academia a é contribuir para o desenvolvimento das estruturas teóricas
formar indivíduos fortes em competir e fracos em pensar as da ciência. As produções humanas, de modo geral, são am-
questões sociais e científicas que os rodeiam. Percebemos, pliadas à medida que o ser humano questiona suas práticas.
então, o primeiro grande impacto da falta de uma formação Um simples questionamento é, na verdade, central para a
filosófica nas universidades. As instituições que deveriam se ampliação ou superação do já existente.
preocupar em formar sujeitos pensantes abrem espaço para Nesta categoria, foi possível compreender que a Filosofia
uma formação apenas de caráter técnico e universalizada se torna uma reivindicação no que diz respeito às questões
(Severino, 2006). científicas, sociais e culturais, pois, sem as interrogações filo-
406 Não se trata de menosprezar a formação técnico-científica: sóficas, o sujeito tende a perpetuar o estabelecido e o vigente,
ela é necessária, porém é preciso ir além das técnicas de trans- e pouco compreende a si próprio. Inserir a Filosofia como
missão e reprodução do conhecimento. É fundamental pensar, componente curricular dos cursos de licenciatura em Química,
refletir e questionar os métodos e os meios de produção. Em além de apostar em uma formação humana do professor, tende
sua prática, o educador atua como pessoa inteira e não apenas a propagá-la. Essa formação humana perpassa o processo de
como técnico e, por isso, Röhr (2015) entende que é preciso, autocompreensão de si a partir das tradições históricas que
ao lado da formação profissional do educador, uma formação o constituem. O questionamento fomentado pela Filosofia é
humana que o habilite a lidar com as questões da vida humana. indispensável para ampliar ou superar os caminhos metodoló-
Em decorrência da dificuldade de escolher ou traduzir gicos trilhados pela ciência, possibilitando um afastamento do
conteúdos de Filosofia a serem ensinados, Severino (2006) paradigma que coloca a ciência como imutável.
discorda da ideia de que a aprendizagem da Filosofia ocorre Na categoria a seguir, focalizamos a vinculação da Filosofia
numa interação de transversalidade, em que os aprendizes da Ciência à Epistemologia. Apresentaremos como isso reper-
irão despertar a capacidade de reflexão à medida que forem cute na Educação em Ciências e na formação de professores
exercitando o conhecimento científico de outras áreas. Para de Química.
o autor, a capacidade de reflexão dos sujeitos sem uma in-
tervenção filosófica, na maioria das vezes, não é despertada. A Filosofia da Ciência na Formação de Professores
A atribuição de componentes curriculares de Filosofia no de Química se Vincula à Epistemologia
currículo de formação de professores, juntamente com com- Outra categoria analítica percebida foi a que apresenta a
ponentes do campo técnico científico na grade curricular ideia de que “A Filosofia da Ciência na Formação de Professores
dos cursos de graduação, possibilita aos estudantes uma de Química se vincula à Epistemologia”. Dessa categoria foi
formação técnico-científica com a capacidade de refletir ao possível elaborarmos a seguinte síntese: Os componentes curri-
mesmo tempo sobre esta formação, sobre a técnica e sobre a culares analisados mostraram que a Filosofia da Ciência aborda
ciência, sua natureza e sua construção (UFV.1.2. A filosofia a sociedade; as relações sociais; a ética; a política e a educação
trata da produção do conhecimento; UFV.1.3. A filosofia trata na ciência, investigando os argumentos que os vinculam à
da evolução do conhecimento; UFV.1.4. A filosofia trata da Epistemologia. Assim, a Filosofia da Ciência se aprofunda no
aquisição do conhecimento). estudo das Ciências e da Epistemologia.
A discussão em torno da natureza e da metodologia da As unidades de significado UFV.2.1. e UFV.2.2. mos-
ciência são reforçadas nas ementas (UNIFAL.1.4. A filosofia traram que a Filosofia da Ciência aborda as Ciências e a
vinculada à metodologia das ciências trata do conhecimento Epistemologia (UFV.2.1. A filosofia da ciência trata de epis-
científico; UNIFAL.1.5. A filosofia vinculada à metodologia temologia; UFV.2.2. A filosofia da ciência trata das ciências).
das ciências trata do método científico; UNIFAL.1.6. A A Filosofia da Ciência estuda as Ciências e a Epistemologia,

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visando a sustentação de argumentos que lhe permitam vinculá‑ como, epistemology, em inglês, e épistémologie, em
las às questões da sociedade, relações sociais, ética, política francês. No caso do francês, o termo era empregado
e educação (UFV.2.4. A filosofia da ciência trata de relações com mais frequência para se referir à filosofia da
sociais vinculadas às ciências e à epistemologia; UFV.2.5. A ciência, mas, hoje, com a influência da literatura
filosofia da ciência trata do campo político vinculado às ci- filosófica de língua inglesa, a tendência é, como
ências e à epistemologia; UFV.2.6. A filosofia da ciência trata em português, que o termo se refira a teoria do
da ética vinculada às ciências e à epistemologia; UFV.2.7. A conhecimento (Dutra, 2010, p. 9).
filosofia da ciência trata da sociedade vinculada às ciências
e à epistemologia; UFV.2.8. A filosofia da ciência aborda a Percebemos que a Epistemologia pode ser vista como
epistemologia e a educação). Assim, a partir da vinculação teoria do conhecimento e como Filosofia da Ciência; porém,
da Filosofia da Ciência com a Epistemologia, evidenciada há uma diferenciação nas atribuições e no uso desses termos. A
pelas unidades de significado, podemos questionar: O que Epistemologia é mostrada como teoria do conhecimento quando
é Epistemologia? Qual é a relação da Epistemologia com a se refere à área da Filosofia que aborda a familiaridade existente
Filosofia da Ciência? entre sujeito cognoscente e o objeto conhecido, e as questões
Com o objetivo de encontrarmos respostas que satisfaçam levantadas por esta familiaridade. O dicionário de filosofia
nossa interrogação, encontramos que de Abbagnano (2012) apresenta a palavra “Epistemologia”
– no inglês Epistemology; francês Épistémologie; alemão
A palavra epistemologia deriva do grego, epis- Epistemologie; italiano Epistemologia – como um termo
téme, ciência, verdade; logos, estudo, discurso, por- de origem grega com duas acepções: i. como sinônimo de
tanto, a epistemologia, no seu sentido etimológico, gnosiologia ou de teoria do conhecimento; ii. como sinônimo
significa estudo ou discurso sobre a ciência ou sobre de Filosofia da Ciência. Ambos os significados estão
a verdade. Mas é um estudo essencialmente crítico proximamente interligados, “pois o problema do conhecimento,
dos princípios, das hipóteses e dos resultados das na filosofia moderna e contemporânea, se entrelaça (e às vezes 407
diversas ciências já constituídas e que se destina se confunde) com o da ciência” (Abbagnano, 2012, p. 392). Em
a determinar os fundamentos lógicos, o valor e o seguida, como complementação ao conceito de epistemologia,
alcance objetivo delas (Ramos, 2008, p. 15). é indicado “ver Teoria do Conhecimento”.
Em busca pelo significado apresentado para “Teoria do
Ramos (2008) afirma que a Epistemologia trata da gêne- Conhecimento”, verificamos em Abbagnano (2012) que a
se, do desenvolvimento, da articulação e da estruturação da Epistemologia tem diferentes termos em línguas distintas.
ciência. A Epistemologia é entendida como o discurso sobre a Em Inglês, utiliza-se o termo Epistemology, introduzido por
ciência moderna. O autor define a Epistemologia como busca J. F. Ferrier em 1854 e, raramente, gnoseology. Em Francês, o
por um metaconhecimento científico, da qual emergem ques- termo mais comumente utilizado é Gnoseologie e, raramente,
tões de como tal conhecimento acontece, qual o valor desse Epistémologie. Em Italiano, utiliza-se Teoria della conoscenza,
conhecimento e quais seus fundamentos lógicos. Todavia, essa Gnoseologie, Epistemologia. Em Alemão, o termo Gnoseologie
tomada de consciência acontece sob uma perspectiva histórica. fez pouco sucesso, enquanto o termo Erkenntnistheorie, usado
Para efetivar o discurso sobre a Ciência moderna é necessário pelo kantiano Reinhold em 1789, teve aceitação geral.
estabelecê-la no tempo e na conjuntura das realizações huma- A Epistemologia enquanto teoria do conhecimento se preo-
nas, que são historicamente determinadas. cupa com o estudo da realidade das coisas, já a Epistemologia
Para Schulz (2014), a Epistemologia é: vinculada à Filosofia da Ciência se apresenta como crítica
interna de uma ciência visando seu progresso e sua evolução.
O ramo da filosofia que estuda a natureza do Esta acepção, por sua vez, está centralizada na própria ciência
conhecimento, seu escopo, fundamentos e validade; e, conforme aponta Ramos (2008), tem um caráter de teoria
trata das teorias do conhecimento, das distinções ou filosofia da ciência.
entre acreditar e conhecer e justificar. A epistemo- Em vez de nomear a Epistemologia de teoria do conheci-
logia científica preocupa-se em descrever e verificar mento, Nouvel (2013) a denomina de “filosofia do conhecimen-
a natureza do corpo de fatos e teorias científicas to”. Esse autor, porém, não descarta a possibilidade de que haja
conhecidas (grau de certeza) e a produção de novos um aparentamento entre teoria do conhecimento e filosofia do
conhecimentos (ou seja, a investigação científica) conhecimento. Contudo, denuncia um afastamento da filosofia
(Schulz, 2014, p. 1265). das ciências em relação à epistemologia.
Diante disso, percebemos que as discussões no âmbito da
Dutra (2010) entende a Epistemologia como o termo mais Epistemologia são plurais no que diz respeito ao uso do termo.
utilizado para se referir à teoria do conhecimento. Ao partir das Como apresentamos até aqui, alguns autores a tratam como
literaturas inglesa e francesa, o autor descreve a Epistemologia “Teoria do Conhecimento” ou “Filosofia do Conhecimento”,

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de Sousa et al.

outros a classificam como “Filosofia da Ciência” ou, ainda, A reivindicação de Sousa e Galiazzi (2017), específica
“Filosofia da Ciência stricto sensu”. Não temos a pretensão para a formação de professores de Química, constitui uma
de decidir este impasse. Nossa pretensão esteve em perseguir alternativa às críticas colocadas por Ramos (2008). Este aponta
a palavra epistemologia em diferentes acepções, até que per- que os conhecimentos científicos são muitas vezes recortados,
cebêssemos sua vinculação à Filosofia da Ciência nas ementas fragmentados e descontextualizados por conta da sobrecarga de
dos componentes curriculares analisados. Percebemos que trabalho dos professores de Ciências. Desse modo, o conheci-
essas disputas conceituais não têm sido objeto de interesse mento científico acaba sendo transmitido sem levar em consi-
desses componentes curriculares em cursos de Licenciatura em deração a historicidade e o processo de construção da ciência.
Química, uma vez que as unidades de significado apresentam Para Schulz (2014), apesar de os professores de Ciências
a Epistemologia vinculada à Filosofia da Ciência. tradicionalmente se empenharem em apenas transmitir com
Nessa busca, encontramos uma discussão em torno precisão e exatidão o conhecimento científico canônico repre-
dos limites da Epistemologia apontado por Ramos (2008): sentado nos livros didáticos, questionar esse modo de ensinar
discute‑se se ela sozinha pode dar conta de analisar criticamente Ciências é o começo para tornar o ensino humanizado. Esse
o conhecimento e o progresso das Ciências. O autor conclui que autor destaca que não deve ser o objetivo do professor esperar
“a Epistemologia necessita da Hermenêutica para lhe auxiliar. que os alunos saibam apenas reproduzir tal conceito, tampouco
Ao trabalharem juntas, a Epistemologia contribuirá para a esperar ouvir de seus alunos afirmações sobre crer naquilo
explicação e a Hermenêutica contribuirá para a compreensão” que o livro apresenta, pois ensinar Ciências vai além da mera
(2008, p. 29-30). reprodução do conhecimento científico e transpassa a crença
Para Ramos, a “Hermenêutica é uma tentativa de com- e as afirmações sobre conhecer ou não conceitos. Ensinar
preender o que são as Ciências humanas e as suas conexões Ciências consiste em traçar caminhos que levem os alunos a
com a totalidade de nossa experiência no mundo” (2008, p. trilharem pelo campo da compreensão por meio da explicação
29). Assim, sugere que a Epistemologia caminhe lado a lado e vice versa. O ensino de Ciências não pode girar em torno de
408 da Hermenêutica. A Epistemologia explica e a Hermenêutica uma mudança de crenças ou dogmas, mas da compreensão.
compreende. Bombassaro (1992) destaca que as proposições Nessa passagem pelo debate em torno dos limites da
plausíveis de que a Epistemologia pode ser complementada Epistemologia protagonizados pela Hermenêutica, parece-nos
pela Hermenêutica derivam dos filósofos Karl-Otto Apel e restrita, nas ementas analisadas, a abordagem da Filosofia da
Richard Rorty. Reconhecendo a dificuldade em falar numa Ciência na formação de professores de Química. Ao tratar ape-
complementaridade entre Epistemologia e Hermenêutica, nas da perspectiva epistemológica na formação de professores
ambos os filósofos afirmam que através da Epistemologia só é de Química, há um reforço ao caráter a-histórico da ciência
possível dar conta dos elementos normativos e metodológicos e seu ensino. A Hermenêutica traz para si a reivindicação das
do conhecimento. Ao analisar a visão de Rorty de que há uma tradições históricas, possibilitando ao professor de Química
necessidade de repartição de cultura entre Epistemologia e compreender(-se) historicamente (n)a Química e perceber sua
Hermenêutica, na qual a primeira ficaria com a parte cognitiva função de tradutor-intérprete dessas tradições nos contextos
e a segunda se encarregaria do restante, Bombassaro (1992) educativos (Sousa e Galiazzi, 2018).
interpreta que a Epistemologia deveria ocupar-se com a racio- Outras discussões possíveis, que se articulam à Filosofia da
nalidade e a Hermenêutica com a historicidade. A diferenciação Ciência e que poderiam contribuir para a formação de profes-
entre Epistemologia e Hermenêutica está centrada na diferença sores de Química, envolvem a Filosofia da Química (Erduran,
entre explicação e compreensão; porém, Apel entende que essa 2001; Lemes e Porto, 2013; Ribeiro, 2014) e a Filosofia da
distinção não pode ser sustentada, uma vez que a compreensão Ciência Hermenêutica (Ginev, 1997; Babich, 2016). Entretanto,
(Hermenêutica) sempre se faz presente na elaboração da expli- não houve qualquer menção a essas subdisciplinas nos com-
cação (Epistemologia). Assim, Bombassaro (1992) acrescenta ponentes curriculares investigados, contribuindo para uma
que, quando se trata do conhecimento retratado em proposições elaboração ainda mais restrita dos questionamentos filosóficos
e enunciados, a compreensão somente aparece quando ocorre à Ciência e à Química.
a explicação.
Os debates em torno da mudança da Epistemologia para a A Filosofia da Educação na Formação de Professores
Hermenêutica estão mais bem explicitados em Schulz (2014), de Química: entre Crises de Autoridade e Possibili-
e fogem ao escopo desta categoria de análise. Inspirados por dades Educativas
esse autor, Sousa e Galiazzi (2017) trataram, especificamente, Sobre essa categoria, sintetizamos: Os componentes curri-
das contribuições da hermenêutica filosófica para a formação culares de Filosofia da Educação e Fundamentos da Educação
de professores de Química. Os autores destacam as limitações dos cursos de formação de professores de Química em Minas
históricas, dialógicas, estéticas e de escrita na formação de Gerais mostraram que a Filosofia da Educação questiona a
professores de Química, categorias essas inspiradas na her- crise de autoridade na educação e a crise do conhecimento.
menêutica gadameriana. A crise de autoridade na educação abre caminho para a crise

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do conhecimento, e esses problemas, juntos, desencadeiam há necessidade de outros recursos além dela. Isso é corrobora-
uma crise na educação. A fim de compreendê-los, a Filosofia do pelo contexto histórico em que se estabelece o modelo de
da Educação busca compreender o processo educativo desde racionalidade que regula a ciência moderna.
os saberes necessários à prática docente até a organização do Esse modelo se constituiu a partir do século XVI e subse-
currículo escolar. Tanto a crise de autoridade quanto a crise quentes, sob o domínio das ciências naturais, sendo estendido
do conhecimento são consequências do processo de ensino às ciências sociais a partir do século XIX. Estabelece-se, en-
vivenciado pelos alunos e professores. tão, como um modelo totalitário, ao negar o caráter racional
Iniciaremos com uma incursão por alguns momentos daquelas formas de conhecimento que não se pautarem por
históricos pelos quais a Filosofia e a Educação constituíram seus fundamentos epistemológicos e metodológicos (Santos,
uma Filosofia da Educação. Faremos essa incursão de modo a 2010). Há uma crise nesse paradigma dominante, resultado de
compreendermos como essa Filosofia da Educação começou a uma pluralidade de condições. Como exemplo, Santos desta-
fazer parte de cursos de formação de professores e para articu- ca a identificação dos limites e das insuficiências estruturais
larmos as ideias que estão apresentadas na síntese desta seção. deste paradigma, resultantes do avanço do conhecimento por
A história da Filosofia nos coloca que a Educação sempre foi ele mesmo proporcionado, deixando expostas as fragilidades
um seus objetos de reflexão. Essa relação nasce com a Filosofia, de seus pilares. Outra condição para a crise desse paradigma
enquanto preocupação com a formação do homem. A expressão está na interferência estrutural do sujeito no objeto observado.
paideia está vinculada à história grega, com a qual se buscou Santos (2010) exemplifica ainda o abalo do rigor da medição,
a formação de um elevado tipo de Homem. Historicamente, ou seja, o rigor da Matemática posto à prova pela mecânica
filósofos que se dedicaram à educação a compreendem como quântica. Em certas circunstâncias, há a impossibilidade de
processo de formação. Por isso, eles podem ser considerados encontrar em um sistema formal a prova de sua consistência,
iniciadores do discurso sobre educação (Tomazetti, 2003). mesmo ao seguir exatamente as regras da lógica matemática.
Tomazetti (2003) argumenta que a ideia do filósofo pre- Essas são algumas das condições teóricas colocadas pelo
ceptor antecedeu a escola primária, instituída no século XVIII autor para a crise da ciência moderna e do conhecimento por 409
pela Revolução Francesa. No século XVIII, surge a discussão ela proporcionado que nos remetem à unidade de significado
da Pedagogia como disciplina científica, sua colocação como UFOP.1.3 (UFOP.1.3. Os estudos filosóficos sobre educação
ciência e sua relação com a Filosofia. A Pedagogia como uma envolvem a crise do conhecimento). Uma Filosofia da Educação
nova ciência da educação apareceu na Alemanha, em torno de na formação de professores de Química que apresente as con-
1770 (Hermann, 2015). Com o processo de escolarização, o dições dessa crise do paradigma dominante, que questione o
pensamento sobre educação passou a envolver, além de uma processo de produção do conhecimento, sua aquisição e sua
reflexão sobre o homem, também sobre a escolarização. Na evolução, estará articulada com a ampliação do conhecimento
Alemanha, a criação da disciplina Pedagogia, na Universidade para além do hegemônico.
Halle/Saale, em 1779, marca o começo da separação institu- Hermann (2015) mostra que no currículo dos cursos de
cional entre a Pedagogia e a Filosofia (Hermann, 2015). Na formação de professores há uma crescente fragmentação do
França, a filosofia da Educação esteve associada à Pedagogia objeto pedagógico, tanto que acabamos por confundir educação
geral até o início do século XX (Tomazetti, 2003). com qualificação profissional utilitarista. Com o efetivo recuo
da Filosofia pelo avanço da Pedagogia no século XX, a primeira
Essa separação não só marca o início de um pro- se autonomiza, e acaba por imitar as Ciências Naturais, foca-
cesso de emancipação, mas também, nas próximas lizando a alta especialização, desvencilhando-se da tradição e
décadas, assinala a crescente retirada da filosofia distanciando-se de pensar a educação.
da tematização de questões educativas. Com esse A partir do corpus de análise, mostra-se que a Filosofia da
recuo, a educação tem cada vez mais seu campo Educação tratada em cursos de Licenciatura em Química em
definido pelas ciências e pela crescente penetração Minas Gerais se preocupa em estudar a crise de autoridade na
dos procedimentos considerados próprios da ciên- educação (UFOP.1.2. Os estudos filosóficos sobre educação
cia. Isso acarretou o predomínio do cientificismo na envolvem a crise de autoridade e a educação). Evidencia-se
pedagogia, a ponto de causar estranheza o fato de que a crise de autoridade na educação juntamente com a cri-
uma investigação que não fosse empírica (Hermann, se do conhecimento levam a uma crise na educação. Assim,
2015, p. 220). mostra-se como potencialidade dessa categoria entendermos
o que vem a ser essa autoridade da educação, provocada pela
Podemos interpretar este cientificismo a partir do que crise do conhecimento que desemboca numa crise da educação.
Schulz (2014) entende pela palavra. Para ele, o cientificismo Winch e Gingell (2007) apresentam o conceito de autorida-
se trata de uma visão de mundo excludente e hegemônica, que de dividindo-o em dois tipos: estar com a autoridade e ser uma
afirma que cada questão de visão de mundo pode ser mais bem autoridade. No caso do primeiro, a autoridade corresponde a ter
respondida exclusivamente pelos métodos da ciência, e que não o direito e estar autorizado a fazer com que as vontades próprias

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sejam atendidas. No segundo, trata-se de possuir conhecimento Diante disso, compreender acerca da autoridade como ca-
no qual se pode confiar. Na tradição educacional, os educadores tegoria à qual se dedica a Filosofia da Educação na formação
são considerados autoridades em ambos os sentidos. Entretanto, de professores de Química é um indicativo de sua exigência
recentemente, a autoridade dos professores, em geral, passou nesta formação. A Filosofia da Educação se apresenta, portanto,
a ser questionada. Este questionar partiu, principalmente, de como um exercício à reflexão e ao questionamento da prática
educadores progressistas que destacam os danos psicológicos educativa do professor de Química. Isso está bem evidenciado
e pedagógicos em função de uma imposição ostensiva das em algumas unidades de significado (UFLA.1.1. Estudo de cor-
vontades de uma pessoa sobre a outra. Eles defendem, assim, a rentes filosóficas que possibilitem a compreensão do processo
mudança do papel dos professores para um modelo não autori- educativo; UFOP.1.4. Os estudos filosóficos sobre educação
tário, para o professor como um “facilitador da aprendizagem”. envolvem o processo de organização do currículo escolar;
A rejeição à autoridade na educação tem raízes em Jean- UFOP.1.5. Os estudos filosóficos sobre educação envolvem
Jacques Rousseau (1712-1778), que compreendia que a os saberes docentes necessários à prática docente), que mos-
frustração, a oposição e o impedimento recorrentes à vontade tram que a Filosofia da Educação busca entender o processo
do aluno teriam efeitos psicológicos danosos. Por outro lado, educativo desde os saberes necessários à prática docente até a
Rousseau não descartava a autoridade no processo educativo, organização do currículo escolar.
pois acreditava que o poder da autoridade do professor deveria Ao buscarmos compreender a Filosofia da Educação na
ser exercido sem o conhecimento da criança (Winch e Gingell, formação de professores de Química e sua aproximação com
2007). a Educação em Ciências e, por consequência, com a Educação
Há dois argumentos em torno da negação da autoridade Química, podemos iniciar pela metáfora utilizada por Schulz
na educação: o primeiro vincula o ensino com autoridade à (2014) para caracterizá-la. O autor utiliza a metáfora de Jano
doutrinação; o segundo admite que a autoridade viola a auto- para apresentar a Filosofia da Educação, cuja dupla face olha
nomia do aluno. De acordo com o primeiro argumento, não há tanto para a filosofia (teoria) quanto para as implicações
410 possibilidade de questionamento das informações, já que elas educacionais (prática). A aparente incapacidade de promover
se apresentam como verdadeiras e irrefutáveis. A violação da mudanças maiores e mais duradouras a partir dos diferentes
autonomia do aluno pela autoridade provoca a desarticulação “movimentos de reformas” no ensino de Ciências, indica Schulz
do objetivo educacional de possibilitar aos educandos a adoção (2014), pode sugerir a necessidade de uma avaliação dos pro-
de valores que não são necessariamente aprovados pela socie- blemas mais concentrada nos aspectos filosófico-educacionais.
dade. Em uma aposta na autonomia como objetivo educacional Para o autor, há uma insuficiência filo-educacional, cuja supe-
desejável, uma sociedade que se propõe a fixar valores a serem ração poderia contemplar os motivos pelos quais as reformas
restritivamente ensinados estaria, ela mesma, sendo autoritária curriculares são vulneráveis aos caprichos políticos de vários
(Winch e Gingell, 2007). grupos. Por isso, a Filosofia da Educação em Ciências proposta
Assim, atualmente, compreendem-se os impactos de uma por Schulz (2014) poderia ajudar não apenas a definir uma
postura autoritária nos contextos educativos, ao mesmo tem- identidade para a Educação em Ciências, mas também uma
po que se reivindica a autoridade do professor dentro deles. identidade para o profissional da sala de aula.
Entretanto, busca-se menos o estar com autoridade – impositiva Schulz (2014) apresenta algumas abordagens dos estudos
e dominadora – e mais o ser uma autoridade – ser reconhecido no campo da Filosofia da Educação: i. estudar filósofos e suas
como alguém em cujo conhecimento se pode confiar. visões de educação; ii. estudar pensadores educacionais e suas
Desde o Iluminismo, a noção de autoridade foi tratada com posições filosóficas; iii. estudar sub-ramos da Filosofia e sua
suspeita, pois a autoridade é, muitas vezes, arbitrária e sancio- relevância para a educação; iv. estudar “escolas de pensamento”
nada apenas por poderes institucionais, sem ser legitimada pela em educação; v. estudar as questões filosóficas de preocupa-
razão. Os pensadores do Iluminismo questionaram essa auto- ção central. Essas abordagens perpassam as possibilidades
ridade arbitrária, especialmente no domínio do político. Eles de vinculação filosófica de professores para exercerem sua
rejeitavam o aprendizado e a erudição do passado, alegando que prática docente e estarem aptos a questioná-la, quando neces-
ele não tinha uma justificativa racional. Gadamer entende que sário, buscando outras vinculações. Contemplam ainda uma
nem toda autoridade genuína deva ser sancionada pela razão. percepção ampla da educação e de sua construção histórica,
Esse filósofo entende que um bom professor tem e é uma au- compreendendo sua própria formação na contemporaneidade.
toridade não simplesmente em virtude do poder investido nele
pelo estado. Um bom professor, com a capacidade de atrair os Um aluno de licenciatura em Química deve
alunos para as conversas da cultura, carrega sua própria auto- se perguntar sobre a importância da Filosofia da
ridade (Lawn e Keane, 2011). Isso porque esse professor tem Educação em sua preparação para o magistério. Mas
sua autoridade legitimada pela tradição histórica, colocando-se a Química, como qualquer outra área do conheci-
em seu tempo histórico como intérprete da tradição (Sousa e mento, apresenta processos, experiências, resultados
Galiazzi, 2018). e descobertas que, no limite, pressupõem que novas

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relações podem ser estabelecidas entre os homens e provoca a reflexão: ela denuncia. A denúncia é um alerta para
os materiais a sua volta. Quando chega nesse ponto, a não vinculação de professores de Química a este paradigma.
esses processos devem ser questionados à luz da ética, Ao longo do texto, apresentamos elementos para um afas-
sendo necessário, por extensão, que transcendam tamento desse paradigma. Reivindicamos o questionamento
os limites epistemológicos e sejam colocados num filosófico das práticas educativas, dos currículos vigentes e
discurso ontológico ou, ainda mais próximo de nós, estabelecidos na escola, da ciência propagada nos conteúdos de
existencial, porque o que está, de fato, em discussão ensino selecionados, da postura educativa com os estudantes e
é a vida do homem, mas não de um homem qualquer outros profissionais da educação e da necessidade de abertura
e sim de um homem histórico, cuja missão é mudar a outras perspectivas filosóficas na formação de professores de
o mundo para melhor. Estudos de Química que não Química. Além disso, assumimos o chamamento da história à
considerarem esses aspectos esvaziam-se na penum- centralidade da educação filosófica de professores de Química,
bra dos laboratórios (Cardoso, 2004, p. 85). entendendo-a mais do que uma ferramenta para contextualizar
a aula de Química, mas para colocar o professor de Química
Essas abordagens estão comprometidas em estudar a como sujeito histórico propagador das tradições da Química,
construção social, política e ética, à medida que são colocados legitimado por seu tempo histórico.
em evidência diferentes modelos filosóficos do que se almeja Por último, reforçamos os argumentos de Schulz apresenta-
para uma sociedade. Isso repercute no questionamento de que dos ao longo deste texto sobre a importância de uma Filosofia
pessoas os professores de Química pretendem formar a partir da Educação específica. Schulz tem defendido uma Filosofia
de suas ações educativas. Isso reivindica além de uma educa- da Educação em Ciências, integrando Filosofia, Filosofia da
ção química com parâmetros epistemológicos bem definidos. Ciência e Filosofia da Educação, como mostrado, e servindo
Trata-se de questionar ontologicamente a si, como sujeito de base para os eixos analíticos. Se é possível assim pensar,
histórico e profissional da educação e, a partir da busca pela finalizamos o texto com uma pergunta. Não seria uma exigência
autocompreensão, delinear uma paisagem daquilo que se pre- caminhar para uma integração dos três eixos aqui analisados 411
tende filosoficamente para a sociedade. – Filosofia, Filosofia da Educação e Filosofia da Ciência –,
valorizando a implementação da Filosofia da Educação em
Considerações Finais Ciências nos cursos de licenciatura?
Isso também nos leva a pensar que a Química, como uma
Coerentes com nosso questionamento inicial, dedicamo‑nos, ciência estabelecida, possui suas tradição e linguagem conso-
especialmente, àqueles cursos com componentes curriculares lidadas nos cursos de formação de professores. Essa tradição,
com alguma vinculação à Filosofia, à Filosofia da Ciência ou entretanto, está ausente das ementas analisadas. Se a Filosofia
a Filosofia da Educação. Outros cursos ainda estão por encon- da Ciência aparece pouco, a Filosofia da Química não aparece
trar essa necessidade, e esperamos que este artigo contribua em nenhuma ementa sequer de todas as analisadas, embora
para esse encontro. Nosso questionamento inicial foi: O que seja campo teórico consolidado. A partir do argumento de
é isto que se mostra: a Filosofia na formação de professores Schulz sobre a criação da Filosofia da Educação em Ciências,
de Química em Minas Gerais?, ao qual respondemos a seguir, não se poderia também pensar em uma Filosofia da Educação
como argumento central deste artigo. Química? Esta questionaria, por exemplo, a Educação Química
As abordagens filosóficas na formação de professores de como uma ciência reduzida a seus métodos, que analise os mo-
Química de Minas Gerais possuem sua centralidade na Filosofia dos de produção do conhecimento químico em suas tradições
da Educação em seu quantitativo, o que nos parece uma escolha (Filosofia da Química/História da Química). Isso contribuiria
acertada para cursos de formação de professores. Pouco se com outros modos de analisar, compreender e ensinar o co-
aposta na Filosofia como componente curricular mais geral e nhecimento químico, como é um deles a Hermenêutica. Uma
na Filosofia da Ciência nos cursos de formação de professores Filosofia da Educação Química culminaria, então, com o ques-
de Química analisados. tionamento dos modos de ser professor de Química na tradução
No âmbito qualitativo, as três categorias descritas e interpre- e na interpretação do conhecimento de Química em aula.
tadas se articulam ao tratarem de epistemologia, de metodologia
científica, de crise do conhecimento e de crise na educação. Notas
Assim, a Filosofia que se mostra nas ementas na formação de
professores de Química em Minas Gerais se dedica a questionar Para Sjöström (2007), o objetivismo representa a visão de
1

o método científico fundamentado na racionalidade técnica da que os fatos científicos são independentes do contexto no qual
ciência moderna. Questiona ainda a vinculação epistemológica são observados.
desse paradigma totalitário na formação de professores de 2
Chassot (1995) aponta o ensino de Química com termo
Química. Parece-nos, portanto, que a Filosofia na formação “a‑histórico” para tratar o ensino médio como contrário à
de professores de Química em Minas Gerais mais do que história, anistórico, alheio à história.

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de Sousa et al.

3
O software Qgis é um sistema de informação geográfica Blackwell companion to hermeneutics. Chichester: John Wiley &
livre e aberto que permite a visualização, edição e análise de Sons, 2016, p. 492-504.
dados georreferenciados (Qgis, 2019). BERTICELLI, I. A. Educação em perspectivas epistêmicas pós-
4
Codificamos as unidades de significados a partir da sigla da modernas. Chapecó: Argos, 2010.
universidade federal em que o componente curricular ocorre, BOMBASSARO, L. C. As fronteiras da epistemologia: como se produz
seguida do número do componente curricular (1, para a pri- o conhecimento. 2ª ed. Petrópolis: Vozes, 1992.
meira encontrada, 2, para a segunda na mesma universidade e CARDOSO, J. B. Formação de professores: transformação e reprodução.
assim por diante) e, por fim, o número da unidade de signifi- Poiésis, v. 2, n. 2, p. 73-91, 2004.
cado encontrada na ementa. Ficamos, portanto com o código CHASSOT, A. Para que(m) é útil o ensino? Alternativas para um ensino
“UFX.1.1” para indicar que a unidade de significado 1 está na (de química) mais crítico. Canoas: Ed. Ulbra, 1995.
ementa do componente curricular 1 da UFX, sendo UFX uma DUTRA, L. H. A. Introdução à epistemologia. São Paulo: Editora
universidade federal genérica. UNESP, 2010.
5
Ariza et al. (2015) explicitam pormenores de como é ERDURAN, S. Philosophy of chemistry: an emerging field with
realizado o processo desde a unitarização até a escrita do implications for chemistry education. Science & Education, v. 10,
parágrafo-síntese. Os autores apresentam exemplos concretos n. 6, p. 581-593, 2001.
e com riqueza de detalhes acerca da reescrita das unidades de FLICKINGER, H.-G. A caminho de uma pedagogia hermenêutica.
significado, das aproximações delas para constituição de frases Campinas: Autores Associados, 2010.
síntese, até a elaboração de parágrafos que as articulem. O mes- GALLO, S. Filosofia da educação no Brasil do século XX: da crítica
mo procedimento foi realizado na Análise Textual Discursiva ao conceito. EccoS Revista Científica, v. 9, n. 2, p. 261-284, 2007.
aqui apresentada. GINEV, D. A passage to the hermeneutic philosophy of science.
6
Embora com nomenclaturas distintas, Filosofia da Amsterdam: Rodopi, 1997.
Educação em Ciências para Schulz (2014) e Filosofia do Ensino GOIS, J. Filosofia do ensino de ciências: significação e representações
412 de Ciências para Gois (2017), entendemos que a Educação em químicas. Ijuí: Ed. Unijuí, 2017.
Ciências e o Ensino de Ciências ocorrem concomitantemente, HERMANN, N. Pensar arriscado: a relação entre filosofia e educação.
como ressaltado por Sousa e Galiazzi (2017). Assim, parece-nos Educação e Pesquisa, v. 41, n. 1, p. 217-228, 2015.
que a nomenclatura atribuída à região de fronteira é um apenas LAWN, C. e KEANE, N. The Gadamer dictionary. Londres: A&C Black,
detalhe quando comparamos com a reivindicação emergente 2011.
desses autores por uma articulação da Filosofia com a Educação LEMES, A. F. G. e PORTO, P. A. Introdução à filosofia da química:
em Ciências ou com o Ensino de Ciências. uma revisão bibliográfica das questões mais discutidas na área e sua
7
As universidades federais situadas em Minas Gerais são: importância para o ensino de química. Revista Brasileira de Pesquisa
Universidade Federal de Alfenas (UNIFAL), Universidade em Educação em Ciências, v. 13, n. 3, p. 121-147, 2013.
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dos Vales do Jequitinhonha e Mucuri (UFVJM). RAMOS, M. G. Epistemologia e ensino de ciências: compreensões e
8
Algumas coordenações de curso prontamente disponibi­ perspectivas. In: MORAES, R. (Org.). Construtivismo e ensino de
lizaram os PPC’s ou as ementas de nosso interesse quando ciências: reflexões epistemológicas e metodológicas. 3ª ed. Porto
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ensino. Tese (Doutorado em Educação). Universidade de Lisboa,
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GALIAZZI, M. C. e SCHMIDT, E. B. Relaciones entre el análisis SANTOS, B. S. Um discurso sobre as ciências. 7ª ed. São Paulo: Cortez,
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Quím. nova esc. – São Paulo-SP, BR. A Filosofia na Formação de Professores de Química em Minas Gerais Vol. 41, N° 4, p. 399-413, NOVEMBRO 2019
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413

Quím. nova esc. – São Paulo-SP, BR. A Filosofia na Formação de Professores de Química em Minas Gerais Vol. 41, N° 4, p. 399-413, NOVEMBRO 2019
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dos autores devem estar descritas na carta de apresentação aos de um único arquivo do manuscrito completo, em formato PDF. Está
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segundo exemplos abaixo: enviada mensagem com o número de referência do trabalho.
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AMBROGI, A.; LISBÔA, J. C. e VERSOLATO, E. F. Unidades modulares bida, por algum motivo, a submissão não foi completada e o autor terá
de química. São Paulo: Gráfica Editora Hamburg, 1987. - (Ambrogi prazo máximo de 5 (cinco) dias para completá-la. Depois desse prazo,
et al., 1987). o sistema não permite o envio, devendo ser feita nova submissão.
KOTZ, J. C. e TREICHEL Jr., P. Química e reações químicas, vol. 1 O autor poderá acompanhar, diretamente pelo sistema, a situação
Trad. J. R. P. Bonapace. 4ª ed. Rio de Janeiro: LTC, 2002. - (Kotz e de seu manuscrito.
Treichel Jr., 2002). Ao fazer a submissão, solicita-se uma carta de apresentação, indi-
- Para periódicos referência completa (citação no texto entre parên- cando a seção na qual o artigo se enquadra, que deverá ser digitada
teses): no local indicado, sendo obrigatória a apresentação dos endereços
TOMA, H. E. A nanotecnologia das moléculas. Química Nova na eletrônicos de todos os autores.
Escola, n. 21, p. 3-9, 2005. - (Toma, 2005).
ROSINI, F.; NASCENTES, C. C. E NÓBREGA, J. A. Experimentos Manuscritos revisados
didáticos envolvendo radiação microondas. Química Nova, v. 26, p.
1012-1015, 2004. - (Rosini et al., 2004). Manuscritos enviados aos autores para revisão devem retornar à Edito-
- Para páginas internet referência completa (citação no texto entre ria dentro do prazo de 30 dias ou serão considerados como retirados.
parênteses): A editoria de Química Nova na Escola reserva-se o direito de efetuar,
http://qnesc.sbq.org.br, acessada em Março 2008. – (Revista Química quando necessário, pequenas alterações nos manuscritos aceitos,
Nova na Escola, 2008). de modo a adequá-los às normas da revista e da IUPAC, bem como
Para outros exemplos, consulte-se número recente da revista. tornar o estilo mais claro - respeitando, naturalmente, o conteúdo
Os autores devem, sempre que possível, sugerir outras leituras ou do trabalho. Sempre que possível, provas são enviadas aos autores,
acessos a informações e reflexões a respeito dos temas abordados antes da publicação final do artigo.
no texto, para serem incluídos em “Para Saber Mais”. Todos os textos submetidos são avaliados no processo de duplo-
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ao final, separadas das figuras. A seguir devem ser colocadas as direito de julgar e decidir sobre argumentos divergentes durante o
figuras, os gráficos, as tabelas e os quadros. No texto, apenas deve processo editorial.
ser indicado o ponto de inserção de cada um(a).
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dadas pela IUPAC, inclusive o Sistema Internacional de Unidades.
Seções / Linha Editorial
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e Más Condutas constantes na página da revista http://qnesc.sbq. em ensino e de atualização científica que possam contribuir para o
org.br/pagina.php?idPagina=17. aprimoramento do trabalho docente e para o aprofundamento das
4) Os autores declaram que no caso de resultados de pesquisas re- discussões da área.
Química Nova na Escola (On-line)  RELATOS DE SALA DE AULA
Responsável: Nyuara Araújo da Silva Mesquita (UFG)
Serão considerados, para publicação na revista Química Nova na Divulgação das experiências dos professores de Química, com o
Escola (on-line), além dos artigos com o perfil da revista impressa, propósito de socializá-las junto à comunidade que faz educação por
artigos inéditos (empíricos, de revisão ou teóricos) em Português, Es- meio da Química, bem como refletir sobre elas. Deve-se explicitar
panhol ou Inglês que apresentem profundidade teórico-metodológica, contribuições da experiência vivenciada e indicadores dos resulta-
gerem conhecimentos novos para a área e contribuições para o dos obtidos.
avanço da pesquisa em Ensino de Química. Estes artigos deverão Limite de páginas: 20
atender aos critérios da seção “Cadernos de Pesquisa”.
 ENSINO DE QUÍMICA EM FOCO
Os artigos são aceitos para publicação nas seguintes seções: Responsável: Rafael Cava Mori (UFABC)
Investigações sobre problemas no ensino da Química, explicitando
 QUÍMICA E SOCIEDADE os fundamentos teóricos, o problema, as questões ou hipóteses de
Responsável: Roberto Ribeiro da Silva (UnB) investigação e procedimentos metodológicos adotados na pesquisa,
Aspectos importantes da interface química/sociedade, procurando bem como analisando criticamente seus resultados.
analisar as maneiras como o conhecimento químico pode ser usado Limite de páginas: 25
- bem como as limitações de seu uso - na solução de problemas
sociais, visando a uma educação para a cidadania. Deve-se abordar  O ALUNO EM FOCO
os principais aspectos químicos relacionados à temática e evidenciar Responsável: Edênia Maria Ribeiro do Amaral (UFRPE)
as principais dificuldades e alternativas para o seu ensino. Divulgação dos resultados das pesquisas sobre concepções de
Limite de páginas: 20 alunos e alunas, sugerindo formas de lidar com elas no processo
ensino-aprendizagem, explicitando os fundamentos teóricos, o
 EDUCAÇÃO EM QUÍMICA E MULTIMÍDIA problema, as questões ou hipóteses de investigação e procedimen-
Responsável: Marcelo Giordan (USP) tos metodológicos adotados na pesquisa, bem como analisando
Visa a aproximar o leitor das aplicações das tecnologias da in- criticamente seus resultados.
formação e comunicação no contexto do ensino-aprendizado de Limite de páginas: 25
Química, publicando resenhas de produtos e artigos/notas teóricos
e técnicos. Deve-se explicitar contribuições para o processo de  EXPERIMENTAÇÃO NO ENSINO DE QUÍMICA
ensino-aprendizagem. Responsável: Moisés Alves de Oliveira (UEL)
Limite de páginas: 15 Divulgação de experimentos que contribuam para o tratamento de
conceitos químicos no Ensino Médio e Fundamental e que utilizem
 ESPAÇO ABERTO materiais de fácil aquisição, permitindo sua realização em qualquer
Responsável: Otavio Aloísio Maldaner (Unijuí) das diversas condições das escolas brasileiras. Deve-se explicitar
Divulgação de temas que igualmente se situam dentro da área de contribuições do experimento para a aprendizagem de conceitos
interesse dos educadores em Química, de forma a incorporar a diver- químicos e apresentar recomendações de segurança e de redução
sidade temática existente hoje na pesquisa e na prática pedagógica na produção de resíduos, sempre que for recomendável.
da área de ensino de Química, bem como desenvolver a interface com Limite de páginas: 10
a pesquisa educacional mais geral. Deve-se explicitar contribuições
para o processo de ensino-aprendizagem.  CADERNOS DE PESQUISA
Limite de páginas: 20 Responsável: Ana Luiza de Quadros (UFMG)
Esta seção é um espaço dedicado exclusivamente para artigos inédi-
 CONCEITOS CIENTÍFICOS EM DESTAQUE tos (empíricos, de revisão ou teóricos) que apresentem profundidade
Responsável: José Luís de Paula Barros Silva (UFBA) teórico-metodológica, gerem conhecimentos novos para a área e
Discussão de conceitos básicos da Química, procurando evidenciar contribuições para o avanço da pesquisa em Ensino de Química.
sua relação com a estrutura conceitual da Ciência, seu desenvolvi- Os artigos empíricos deverão conter revisão consistente de literatura
mento histórico e/ou as principais dificuldades e alternativas para nacional e internacional, explicitação clara e contextualização das
o ensino. questões de pesquisa, detalhamento e discussão dos procedimentos
Limite de páginas: 20 metodológicos, apresentação de resultados e com conclusões que
explicitem contribuições, implicações e limitações para área de pes-
 HISTÓRIA DA QUÍMICA quisa em Ensino de Química. Os artigos de revisão deverão introduzir
Responsável: Paulo Porto (USP) novidades em um campo de conhecimento específico de pesquisa
Esta seção contempla a História da Química como parte da História em Ensino de Química, em um período de tempo não inferior a dez
da Ciência, buscando ressaltar como o conhecimento científico é anos, abrangendo os principais periódicos nacionais e internacionais
construído. Deve-se apresentar dados históricos, preferencialmente, e apresentando profundidade na análise crítica da literatura, bem
de fontes primárias e explicitar o contexto sociocultural do processo como rigor acadêmico nas argumentações desenvolvidas. Os artigos
de construção histórica. teóricos deverão envolver referenciais ainda não amplamente difun-
Limite de páginas: 15 didos na área e trazer conclusões e implicações para a pesquisa e
a prática educativa no campo do Ensino de Química, apresentando
 ATUALIDADES EM QUÍMICA profundidade teórica, bem como rigor acadêmico nas argumentações
Responsável: Edvaldo Sabadini (Unicamp) desenvolvidas. Para esta seção, o resumo do artigo deverá conter de
Procura apresentar assuntos que mostrem como a Química é uma 1000 a 2000 caracteres (espaços inclusos), explicitando com clareza
ciência viva, seja com relação a novas descobertas, seja no que diz o objetivo do trabalho e informações sobre os tópicos requeridos
respeito à sempre necessária redefinição de conceitos. Deve-se para o tipo de artigo. Poderão ser indicadas até seis palavras-chaves.
explicitar contribuições para o ensino da Química. Limite de páginas: 30 a 40.
Limite de páginas: 15
A Divisão de Ensino da Sociedade Brasileira de Química
tem o prazer de anunciar mais um produto,
Programas de TV Química Nova na Escola no formato DVD.

Nesta edição dos Programas de TV QNEsc, você encontrará:

• Visualização Molecular
• Nanotecnologia
• Hidrosfera
• Espectroscopia
• A Química da Atmosfera
• A Química dos Fármacos.
• Polímeros Sintéticos
• As Águas do Planeta Terra
• Papel: origem, aplicações e processos.
• Vidros: evolução, aplicações e reciclagem.
• Vidros: origem, arte e aplicações.
• Látex: a camisinha na sala de aula.

São 12 títulos temáticos em formato digital que


totalizam cerca de 4 horas de programação.
Para outras informações e aquisição,
acesse www.sbq.org.br em Produtos da SBQ.

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