Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
DOSSIÊ
Quadrinhos & cultura visual:
modos de ver e ler histórias
Revista de História, Cultura e Arte
Apoio:
issn1516–8603
ArtCultura Uberlândia v. 13
21 n. 22
39 p. 1–236
1–268 jan.–jun. 2011
jul.–dez. 2019 ISSN 1516–8603
ArtCultura Uberlândia v. 9 n. 14 p. 1–270 jan.–jun. 2007
Universidade Federal de Uberlândia
Indexadores
Instituto de História | Programa de Pós-graduação em História
Clase-Cich-Unam Universidade Federal de Uberlândia
Diadorim Av. João Naves de Ávila, 2121 — Campus Santa Mônica — Bloco 1H — Sala 1H36
Cep 38408-100 — Uberlândia — MG
Directório Luso-Brasileiro de
Telefone: [34] 3239-4130, ramal 27
Repositórios e Revistas de
Acesso Aberto www.seer.ufu.br/index.php/artcultura | e-mail: artcultura@inhis.ufu.br
pt-br.facebook.com/RevArtCultura/ | instagram: @revistaartcultura
EBSCO Publishing
Apoio:
Editores
ArtCultura Uberlândia v. 13 n. 22 p. 1–236 jan.–jun. 2011
Além-Brasil
Espontaneidade e reflexão: o Dao da somaestética Tradução ................. 125
Richard Shusterman
Artigos
Memória, história e identidade: o caso da “escola uspiana de história” .... 139
Diego José Fernandes Freire
Edição e engajamento político: a Editora L&PM nos anos 1970 ............ 155
Flamarion Maués
A questão racial e a identidade negra na produção intelectual da
Campanha de Defesa do Folclore Brasileiro: a Revista Brasileira de Folclore
e o Museu da Campanha de Defesa do Folclore Brasileiro (1961-1974) .. 173
Elaine Cristina Ventura Ferreira
Primeira mão
Mistérios da canção regionalista ................................................................. 239
Antonio Maurício Dias da Costa
Resenhas
Ao redor do rap: economia, cultura e resistências juvenis no noroeste
do México ....................................................................................................... 245
Roberto Camargos
Arthur Valle
Doutor em Artes Visuais pela Escola de Belas Artes da Universidade Federal do Rio
de Janeiro (UFRJ). Professor do Departamento de Artes da Universidade Federal Rural
do Rio de Janeiro (UFRRJ), do Programa de Pós-graduação em Patrimônio, Cultura e
Sociedade e do Mestrado Profissional em História da UFRRJ. artus.agv.av@gmail.com
História em quadrinhos e História da Arte: diálogos temáticos e
metodológicos
Comics and Art History: thematic and methodological dialogues
Arthur Valle
resumo abstract
O artigo discute as relações entre a arte The paper discusses the relationships
das Histórias em quadrinhos (HQs) between comics and Art History, highli-
e a disciplina acadêmica História da ghting how Comics creators appropriate
Arte, destacando os modos através dos usual themes in Art History writing,
quais os quadrinistas se apropriam de such as the biography of artists, the re-
tópicos usuais na escrita da História constitution of lost works, the techniques
da Arte, como a biografia dos artistas, of artistic production, etc. To do so, the
a reconstituição de obras perdidas, paper presents a survey of the contem-
as técnicas de produção artística etc. porary Comics production that dialogues
Para tanto, apresenta um panorama with Art History, focusing on a specific
da produção contemporânea de HQs case study: the book La vision de Bacchus
que dialoga com a História da Arte (2014), by the French author Jean Dytar,
e se detém em um estudo de caso es- which narrates the passage of the painter
pecífico: o álbum La vision de Bacchus Antonello da Messina by the city of Venice
(2014), do quadrinista francês Jean between 1475 and 1476.
Dytar, que narra a passagem do pintor
Antonello da Messina por Veneza entre
1475 e 1476.
palavras-chave: História em qua- keywords: Comics; Art History; discipli-
drinhos; História da Arte; diálogos nary dialogues.
disciplinares.
℘
Desde meados do século XX, a arte das Histórias em quadrinhos
(HQs) e a disciplina acadêmica da História da Arte vêm estabelecendo en-
tre si fecundos intercâmbios. Embora as HQs consideradas como arte em
sentido pleno ainda sejam um tema de investigação pouco comum entre
os historiadores1, é notório, por exemplo, o interesse desses últimos pelas
1
Ver ROEDER, Katherine.
apropriações da iconografia dos quadrinhos feitas por artistas da chamada
Looking high and low at Com- pop art, como Richard Hamilton, Roy Lichtenstein e Andy Warhol. Tal inte-
ic Art. American Art, v. 22, n. 1, resse se estende a artistas contemporâneos como Rivane Neuenschwander,
Spring 2008, p. 2.
Sue Williams ou Takashi Murakami que “de algum modo se apropriam
2
Idem, ibidem, p. 4 (tradução
livre).
da linguagem das Histórias em quadrinhos como um meio para comentar
sobre a cultura de massa”.2 Essa produção contemporânea ganhou visibi-
3
O website dessa exposição
se encontra disponível em lidade em exposições como Comic abstraction: image-breaking, image-making,
<https://www.moma.org/in- montada no Museum of Modern Art de New York em 2007.3
teractives/exhibitions/2007/
comic_abstraction/>. Acesso
Bem menos discutida em contextos acadêmicos é, porém, uma ten-
em 1 set 2018. dência inversa, i. e., a das apropriações feitas por quadrinistas de temas
que algumas das HQs que aqui referirei podem ser consideradas como 5
Ver, por exemplo, VILELA,
Túlio. Os quadrinhos na aula
autênticas herdeiras do romance histórico. de História. RAMA, Angela
Nas últimas décadas, os quadrinistas não se voltaram para a discipli- e VERGUEIRO, Waldomiro
na da História em busca de inspiração para seus temas, como também – e (orgs.). Como usar as histórias em
quadrinhos na sala de aula. São
com frequência – se valeram da História da Arte para os mesmos fins. O Paulo: Contexto, 2014.
interesse dos autores de HQs pode, porém, se centrarem aspectos bastante 6
BURKE, Peter. Testemunha ocu-
diversos da disciplina. Nas partes que se seguem, eu gostaria de destacar lar: história e imagem. Bauru:
alguns dos principais modos através dos quais quadrinistas se apropriaram Edusc, 2004, p. 197.
da História da Arte. 7
Idem, ibidem, p. 197 e 198.
8
Idem, ibidem, p. 198.
14
GASCA, Luis e MENSURO,
Acier, op. cit., p. 16 (tradução
livre).
15
Idem, ibidem, p. 148 e 149.
16
Idem, ibidem, p. 170 e 171.
17
MIRANDA, Nair da Rocha e
ROSSO, Nico. Grandes figuras
em quadrinhos: Pedro Américo.
O mago da pintura. Rio de Ja-
Figura 2. Capas de biografias de artistas em HQs. neiro: EBAL, S/d, [1960].
34
DYTAR, Jean. La vision de Paolo, entre 1474e 1475 [Figura 4a]; a chamada Pala di San Cassiano, pintada
Bacchus. Paris: Delcourt, 2013,
p. 217 (tradução livre). por Antonello para a Igreja de San Cassiano, entre 1475 e 1476 [Figura 4b];
35
DYTAR, Jean. Tableaux re-
e, por fim, o retábulo pintado por Bellini para a Igreja de San Giobbe, entre
constitués. Jean Dytar, 2016. 1478 e 1480 [Figura 4c].
Disponível em <http://www.je- Como acontece com todas as pinturas quatrocentistas mostradas
andytar.com/notes-vision-bac-
chus/tableaux-reconstitues/> em La vision de Bacchus, Dytar não usa reproduções fotográficas para
Acesso 1 set. 2018 (tradução representar esses retábulos. Antes, ele apresenta “cópias, mais ou menos
livre).
detalhadas, com suas cores mais ou menos modificadas para se integrar
melhor no grafismo e no tom das páginas [da HQs]”.34 No caso dos re-
tábulos aqui em questão, tal processo de citação foi dificultado pelo fato
de que apenas a Pala di San Giobbe, de Bellini ainda existe integralmente.
Cumpre lembrar, porém, que essa obra não mais se encontra em seu local
de instalação original, mas sim em exibição nas Gallerie dell’Accademia,
em Veneza. Por essa razão, a proposta de reconstituição da Pala di San
Giobbe feita por Dytar se esforçou, como ele mesmo afirma, por “colocá-
-la de volta em seu local original, o que permite que nos demos conta do
efeito ilusionista de profundidade buscado pelo pintor. De fato, a moldura
em pedra – concebida pelo próprio Bellini – se prolonga naturalmente na
abóbada de berço pintada”.35
Ao tratar dos outros dois retábulos, Dytar se deparou com dificulda-
des ainda maiores porque eles foram em parte ou integralmente destruídos.
O retábulo de Bellini para a Igreja de Santi Giovanni e Paolo desapareceu
em um incêndio ocorrido em 1867; e a Pala di San Cassiano de Antonello
foi dividida em várias partes no século XVII, dela restando hoje apenas os
fragmentos centrais, conservados no Kunsthistorisches Museum de Viena.
Para reconstituir o retábulo de Santi Giovanni e Paolo, Dytar se va-
leu de uma gravura realizada a partir da obra antes de sua destruição e
publicada pelo historiador da arte italiano Francesco Zanotto no primeiro
volume de sua Pinacoteca veneta, datado de 1858 [Figura 5a]. Essa gravura
é basicamente um esquema linear do retábulo perdido, que não obstante,
segundo o historiador Augusto Gentilli “testemunha suficientemente uma
composição/imaginação muito mais moderna e complexa [do que a dos
Figura 6. Virgem com o menino, cercados por Santos também conhecido como a Pala di San Cassiano,
1475-76. Antonello da Messina.
Figura 7a. Proposta de reconstituição do Figura 7b. Proposta de reconstituição do retábulo de An-
retábulo de Antonello da Messina para a tonello da Messina para a Igreja de San Cassiano, Veneza.
Igreja de San Cassiano, Veneza.
Figura 8. No ateliê de Giovanni Bellini, seus discípulos preparam, com a técnica do spolvero, o suporte do retábulo
para a Igreja de Santi Giovanni e Paolo.
Eu utilizei a sequência de imagens para mostrar as várias etapas que levam à ela-
boração de um quadro: o desenho que subjaz à imagem; as áreas de sombra e de luz,
assim como a cor, gradualmente dispostas; até os acabamentos e este fundo muito
escuro, que destaca o brilho radiante do rosto por contraste.
A camada de branco inicial permite “clarear” as cores a partir de baixo, através de
veladuras, que são finas camadas de tinta muito diluída e translúcida e que permitem
que as camadas inferiores permaneçam discretamente visíveis.48
52
MILLER, Ann. Reading Bande
Dessinée: critical approaches to
French-language Comic Strip.
Bristol: Intellect Books, 2007,
p. 75 (tradução livre).
Zé Ninguém chega ao Rio de Janeiro pela rodoviária. Tito na Rua. 2015, fotografia (detalhe).
resumo abstract
Ao deixar Nova York e adotar o Rio de After leaving New York in 2001to adopt
Janeiro em 2001, Tito na Rua decidiu the city of Rio de Janeiro, Tito na Rua
utilizar-se do grafite para imprimir started to work with graffiti to print
sua marca como novo morador do its brand as a new resident of the city.
lugar. Criou a street comics Zé Nin- He created a street comics called Zé
guém, uma história em quadrinhos Ninguém, a comics narrative whose
(HQ) cuja narrativa se desenvolve title character lives his adventures as he
em paredes grafitadas pela cidade. O wanders through the walls and alleys of
personagem-título vive suas aventuras Rio de Janeiro. Through Zé Ninguém
enquanto percorre paredes e vielas do we intend to discuss the possibilities of
Rio de Janeiro, suscitando debates em interlocution between the technical and
torno das possibilidades de interlocu- visual procedures typical of two graphic
ção entre os procedimentos técnicos e and urban arts such as comics and
visuais próprios de duas artes gráficas graffiti. The connections between urban
e urbanas como as HQs e o grafite. As art and apprehension of public space,
relações entre arte urbana e apreensão reading of art in terms of reading the city
do espaço público, leitura de arte como and the creative solutions suggested by
leitura da cidade e as soluções criativas intermediality are main topics developed
a partir do diálogo intermídias serão throughout the text, starting from a pers-
pontos desenvolvidos ao longo deste pective that historicizes the practices of
texto, tendo por base um olhar que looking and questions the role of the arts
historiciza as práticas de olhar e se in the city experience.
interroga sobre o papel das artes na
experiência de cidade.
palavras-chave: Quadrinhos; grafite; keywords: Comics; graffitti; Rio de Ja-
Rio de Janeiro. neiro.
℘
Ao longo dos anos, as ruas e cenários do Rio de Janeiro inspiraram
pintores, músicos e poetas a imprimirem suas respectivas poéticas sobre
o cenário carioca. É possível situar a relação entre arte e paisagem urbana
desde, pelo menos, a vinda da família real portuguesa para o Brasil em
1808, por ocasião das guerras napoleônicas. Durante o período de quase
quinze anos em que a corte portuguesa estabeleceu-se na América, o Rio
de Janeiro deixou de ser uma pequena cidade de pouco mais de 40 ruas
para se tornar a capital do Império Português. A nobreza recém-instalada
logo recrutou uma série de artistas e estudiosos para registrar a natureza
e a vida cotidiana do Rio de Janeiro, naquilo que se convencionou classi-
42
Ver NORA, Pierre. Entre me-
Figura 2: Zé Ninguém chega ao Rio de Janeiro pela rodoviária.43
mória e história. A problemáti-
ca dos lugares. Projeto História,
v. 10, s/n., São Paulo, jul.-dez.
1993, p. 12 e 13.
Local de trânsito de pessoas e veículos, a Rodoviária Novo Rio é 43
Ver SERRANO, Alberto (Tito
um dos principais ponto de entrada e saída de pessoas do Rio de Janei- na Rua), Zé Ninguém, op. cit.,
ro. Trata-se de região há muito tempo bastante degradada, atravessada p. 12.
Amadeo Gandolfo
Doutor en Ciências Sociais pela Universidad de Buenos Aires (UBA). Docente auxiliar
(JTP: jefe de trabajos prácticos) da disciplina “El Lado B de la Sociología” do curso de
Sociología da Facultad de Ciencias Sociales da UBA. amdgandolfo@gmail.com
Una ciudad efímera, una historia perdurable:
narrativa y cultura visual en La primera fundación de
Buenos Aires, de Oski y Fernando Birri
A fleeting city, a lasting story: narrative and visual culture in Oski and Fernando Birri’s
La primera fundación de Buenos Aires
Amadeo Gandolfo
resumo abstract
Neste artigo reconstruímos brevemen- In this article we briefly reconstruct the
te a trajetória de Oscar Conti (Oski), trajectory of Oscar Conti (Oski), Argen-
desenhista, humorista gráfico e ilus- tinian cartoonist, graphic humorist and
trador argentino. Essa reconstrução illustrator. This reconstruction is used to
visa sublinhar algumas características underline some particular characteristics
particulares de nosso sujeito que tem of our subject who are related to his gra-
relação com seu estilo gráfico, tribu- phic style, who is indebted to an enormous
tário de uma grande cultura visual. visual culture. Afterwards, we analyze
Analisamos tal estilo sob o conceito this style under the concept of visual
de cultura visual, tentando traçar a sua culture, attempting to trace the particu-
particular mistura de imagens , tanto lar mixture of images, both from “high”
da “alta” como da “baixa” cultura. Da and “low” culture, that helped produce
mesma maneira, examinamos a da nar- it. In the same way, we observe the way
rativa de Oski sob a ótica das imagens in which Oski narrates in single images.
individuais. Finalmente, nos detemos Finally, we reconstruct the collaboration
na colaboração entre Oski, Fernando between Oski, Fernando Birri and León
Birri e León Ferrari no filme La primera Ferrari in the film La primera fundación
fundación de Buenos Aires, procurando de Buenos Aires, trying to get across the
analisar a forma como os cineastas way in which the filmmakers animate one
animam uma pintura estática de Oski. of Oski’s static paintings. How do the
Como coexistem diversas imagens que different images that form part of Oski’s
são parte de sua cultura visual? Como visual culture coexist? How do image and
se combinam imagem e narrativa na narrative combine in his work? How does
sua obra? De que modo a narrativa the narrative unfold through the montage
se desdobra através da montagem no of the film?
filme? Estas são algumas questões para
as quais buscamos respostas.
palavras-chave: Oski; cultura visual; keywords: Oski; visual culture; narrative.
narrativa.
℘
¿Por qué Oski [Oscar Conti]? Responder esa pregunta implica un
breve recorrido biográfico y al interior de la historia del humor gráfico
argentino. Oski fue un artista de enorme popularidad y prestigio, profusa
producción, un referente a la hora de discutir los valores artísticos del
humor gráfico y la historieta, un autor político. Sin embargo, el pasaje del
tiempo y las escasas reimpresiones de su obra desde su muerte en 1979
causaron que se convierta en un “dibujante de dibujantes”.
como mundial. 21
Idem, ibidem, p. 376.
Los dibujos de Oski, sin embargo, nos colocan en la situación de 22
Bart Beaty, en Comics versus
art (Toronto: University of
una imagen estática que narra, planteándonos de qué modo leerlos. Esta
Toronto Press, 2012), apoya un
pregunta no es nueva en la historia del arte. En la historia del arte aparece punto de vista similar. Luego
de forma clásica vinculada a la pintura histórica, la forma pictórica elegida de analizar distintas definicio-
nes del objeto historieta, Beaty
por la Academia Francesa entre los siglos XVII y XIX como el modelo más propone que la manera más
elevado de pintura. La misma “narraba” un momento histórico que podía operativa de conceptualizarla
es como un “mundo del arte”,
proceder de la historia del cristianismo, la mitología griega o romana, o
término tomado del sociólogo
los grandes héroes nacionales. La pintura histórica contaba con una serie norteamericano Howard Be-
de reglas empleadas por la Academia para juzgarla en los Salones: un cker, quién lo define como “to-
das las personas cuya actividad
grupo de personajes principales recortados sobre una multitud pintada es necesaria para la producción
de forma menos clara, vestimentas de época, grandes dimensiones. Sin de los trabajos característi-
cos que ese mundo, y tal vez
embargo, los artistas solían tomarse muchas libertades al respecto del
también otros, definen como
evento representado con el objetivo de transmitir un mensaje alegórico arte” (BECKER, Howard Saul.
“correcto”. Los salones eran eventos enormemente populares en su época Los mundos del arte: sociología
del trabajo artístico, Bernal:
y es indudable que Oski, entre su cultura visual, también tenía en cuenta Universidad Nacional de Quil-
estas imágenes, como se comprueba en algunas ilustraciones de Vera mes, 2008, p. 54), de ese modo
la se convierte en contextual,
historia de Indias, por ejemplo, aquella que ilustra La segunda fundación de
situada, y el objeto artístico se
Buenos Aires (Figura 2). construye en una perspectiva
sociológica antes que formal.
Figura 4. La primera fundación de Buenos Aires. Oski. Témpera, tinta y acuarela, 1m x 70cmts, 1957.34
Greice Schneider
Doutora em Comunicação pela Katholieke Universiteit Leuven (KUL), da Bélgica. Profes-
sora do Departamento de Comunicação e Programa de Pós-graduação em Comunicação da
Universidade Federal de Sergipe (UFS). Autora do livro What happens when nothing happens:
boredom and everyday life in contemporary comics. Leuven: Leuven University Press, 2016.
greices@gmail.com
Quatro abordagens do cotidiano nos quadrinhos contemporâneos1
Four everyday approaches in contemporary comics
Greice Schneider
resumo abstract
Este artigo discute a crescente presença This paper discusses the recent growing
do cotidiano em quadrinhos contem- presence of the everyday in comics, works
porâneos, em que situações comuns where ordinary situations and apparently
e eventos aparentemente insignifican- insignificant events take the place of ex-
tes tomam o lugar dos costumeiros traordinary worlds and adventure stories.
mundos extraordinários e histórias Drawing predominantly from the French
de aventura. Com base em uma pers- perspective of Everyday Studies (Lefebvre
pectiva francesa nessa área de estudos and Blanchot), the ambiguous dynamics
(Lefebvre e Blanchot), a dinâmica of the everyday will be here studied in
ambígua do cotidiano será investigada relation to the contrasting concepts of
em relação aos conceitos contrastantes boredom and strangeness. The aim is to
de tédio e estranheza, associadas aos separate comics that tackle the everyday
gêneros narrativos drama e humor. O into optimistic and pessimistic approa-
objetivo é compreender os quadrinhos ches. In this way, it is possible to identify
que abordam o cotidiano sob óticas the works that lament the ordinariness of
otimistas e pessimistas, identificando the everyday (derisive humour, ennui)
os trabalhos que lamentam a sua ordi- from those that turn the everyday into
nariedade (humor derrisório, ennui) e something invested with interest (con-
diferem daqueles que o convertem em templation and observational comedy).
algo dotado de interesse (contempla-
ção e comédia observacional).
palavras-chave: cotidiano; quadri- keywords: everyday; comics; boredom.
nhos; tédio.
℘
Uma das características mais marcantes dos romances gráficos con-
temporâneos é um foco recorrente no tema do cotidiano. Por um lado,
vemos uma emergência de alternativas ao modelo de entretenimento dos
quadrinhos, rompendo com o mundo de eventos extraordinários habitado
por super-heróis. Por outro, temos uma tentativa de ocupar uma posição
nos campos da arte contemporânea e da literatura, ambos os quais já
abrangem o ordinário. Mas como exatamente os quadrinhos abordam o
1
Este artigo é uma versão adap- cotidiano? Trata-se de uma categoria tão inerentemente vaga, e pode ser
tada de um capítulo publicado tratada através de tantos ângulos, que se torna difícil proceder a qualquer
em inglês em SCHNEIDER,
Greice. What happens when análise sem antes reconhecer as fronteiras desse território, mesmo que tal
nothing happens: boredom and movimento arrisque, por um momento, perder de vista sua ambiguidade.
everyday life in contemporary
comics. Leuven: Leuven Uni-
Esse tipo de intangibilidade e ambiguidade do cotidiano torna-se
versity Press, 2016. particularmente evidente nos casos em que os próprios autores hesitam
Eles são autobiográficos como os outros livros, mas não são apenas relacionamentos.
Bem, quero dizer, há algumas coisas sobre relacionamentos, mas isso não é o foco.
[...] Eu acho que é uma coleção de histórias sobre ...bem ... É sobre como as coisas se
interconectam na vida, você sabe, como essas coisas diferentes significam algo para
nós? […] Como as coisas do dia a dia são o que nós, hum… como achamos sentido em
nossas vidas em… uh… como esses pequenos momentos… hum… uh… (silêncio).2
Humor observacional
Humor derrisório
Ennui
Contemplação
34
Idem.
resumo abstract
O artigo chama a atenção para o hu- The article draws attention to the graphic
mor gráfico de mulheres cartunistas humor produced by women cartoonists
no Brasil, centrando o enfoque na in Brazil, focusing on the production of
produção da cartunista Fabiane Lan- cartoonist Fabiane Langona, who signs as
gona, que se assina como Chiquinha. Chiquinha. The aim is to discuss how her
O objetivo é discutir como seu trabalho work entails new nuances that suspend
comporta novas nuances que colocam categories and standards considered sta-
em suspensão categorias e normas ble and permanent, thus reinvigorating
consideradas estáveis e permanentes, the contemporary debate developed by
revigorando, desse modo, o debate feminist groups. This approach aims to
contemporâneo desenvolvido pelos explore the critical and subversive poten-
grupos feministas. Com tal aborda- tial of feminist-focused graphic humor,
gem pretende-se explorar o potencial marking the commitment to express
crítico e subversivo do humor gráfico a critique and problematization of the
com enfoque feminista, assinalando normative standards imposed on women,
o empenho em expressar uma crítica while highlighting the plural and complex
e problematização dos padrões nor- networks of power and their different
mativos impostos às mulheres, ao forms of manifestation.
mesmo tempo em que lança luz sobre
as plurais e complexas redes de poder
existentes e as suas distintas formas de
manifestação.
palavras-chave: humor gráfico; femi- keywords: graphic humor; feminism;
nismo; cultura. culture.
℘
1
O artigo é parte da pesquisa
desenvolvida no Programa A história cultural do humor é um campo que se consolidou no âm-
de Pos-doctorado en Ciencias
Sociales de la Facultad de Cien-
bito dos estudos históricos a partir dos anos 1990 tendo como suporte as
cias Sociales da Universidad de questões abertas pela história cultural entendida, em linhas gerais, como
Buenos Aires (UBA). o analise das práticas e dos processos de constituição identitárias e de
2
Ver SALIBA, Elias Thomé. Tre- construção de sentidos do mundo social.2 Nesse campo de investigação,
ze obras para conhecer a histó-
ria cultural do humor. In: FA-
as “manifestações humorísticas” passaram a ser pensadas como operações
RIA, João Roberto (org.). Guia intelectuais que oferecem formas de apreensão e estruturação da sociedade
bibliográfico da FFLCH, São Pau- em que se insere, bem como um modo de acessarmos representações cultu-
lo, USP, 2016, v. 1. Disponível
em <https://www.fflch.usp.br/ rais de uma época, aspectos que despertam para os seus usos, apropriações
sites/fflch.usp.br/files/2017-11/ e, também, para os vetos sociais impostos.
Histo%CC%81ria%20cultu-
ral%20do%20humor.pdf >.
As pesquisas em torno desse tema apresentam dois aspectos impor-
Acesso em 10 mar. 2018. tantes: primeiro, a pluralidade das fontes empregadas, dando visibilidade
O universo de Chiqsland
Muitas vezes ouvi comentários de que eu seria um autor disfarçado, que adotara
um codinome para testar e expor uma nova linguagem sem grandes traumas. Ou 33
LANGONA, Fabiane, op. cit.
seja, com base em alguns temas que até então divergiam do que se esperava de uma 34
A partir de 2006, Fabiane
singela mocinha – como sexo, que na mentalidade de alguns é obsessão exclusiva adotou o pseudônimo de Chi-
qsland, o mesmo que dava
do sexo masculino – minha produção era frequentemente identificada como a de um nome ao seu blog Chisqsland
autor se passando por mulher. Essa constatação estapafúrdia era mais crível que a Corporation hospedado no Uol.
Em outubro de 2017, quando
de uma mulher estar produzindo quadrinhos de humor.35
reassumiu na Folha de S. Paulo,
anunciou a vontade de come-
Formada em comunicação, Chiquinha foi assistente de redação e arte çar a assinar com seu próprio
nome, algo que ainda não
finalista da revista MAD no Brasil entre os anos de 2005-2008. Trabalhou concretizou. Em suas palavras,
como cartunista no Jornal do Brasil (2005), Jornal do Comercio (de Porto Ale- “Sempre gostei muito do ‘Pas-
quim’, da velha guarda, e todos
gre, 2006-2007), Diário de Pernambuco (2006-2008), Zero Hora (2006-2009), O eles tinham nomes incríveis,
Estado de S. Paulo (2010), Folha de S. Paulo (2007-2015), além de ter publicado como Jaguar. O meu nome não
em várias revistas nacionais e internacionais. Participou de 16 exposições, parecia um nome de alguém
que fazia humor. Agora cansei
sendo 3 individuais e as demais coletivas e em 2012 foi premiada na cate- disso. De uns tempos para cá,
goria Melhor publicação de humor, do Troféu HQ Mix, considerada uma comecei a ficar com vontade de
ter um nome”. LANGONA, Fa-
das mais tradicionais e importantes premiações dos quadrinhos brasileiros. biane apud RIBEIRO, Amanda.
Entre 2006 e 2016 hospedou no portal Uol o blog Chiqsland Corporation, Série ‘Chiqsland’, de Fabiane
onde informava seus leitores sobre suas publicações, projetos, atividades e Langona, estreia como tira di-
ária na Folha. Folha de S. Paulo,
publicações a seu respeito, além de reunir grande parte do material produ- São Paulo, 3 out, 2017. Disponí-
zido. Atualmente o blog não é alimentado de forma contínua, mas em sua vel em <http://m.folha.uol.com.
br/ilustrada/2017/10/1923751-
fanpage encontramos informações atualizadas sobre suas atividades e as -serie-chiqsland-de-fabiane-
novas tiras publicadas. A partir de 3 de outubro de 2017 foi convidada para -langona-estreia-como-tira-
substituir Allan Sieber na publicação das tiras diárias na Folha de S. Paulo. -diaria-na-folha.shtml>. Acesso
em 4 jan. 2018.
Produziu dois livros: o primeiro em 2011, Uma patada com carinho:
35
LANGONA, Fabiane. Uma
as histórias pesadas da Elefoa cor-de-rosa, publicado pela editora paulista mulher cartunista? Explique-se
Leya, apresenta as tiras e quadrinhos da Elefoa cor-de-rosa, a primeira sobre isso, op. cit.
45
A série consiste em quatro
cartuns em que a autora protag-
oniza condutas que, em geral,
são camufladas no convívio
social.
Figura 6. “Segredinhos revelados”. Chiquinha. 2014.
47
RUSSO, Mary. O grotesco fe-
minino: risco, excesso e moder-
nidade. Rio de Janeiro: Rocco,
2000, p. 24.
resumen abstract
El articulo establece una relación The article establishes a link between the
entre la memoria del dibujo y los memory of the drawing and the historical
acontecimientos históricos del ho- events of the holocaust. This relationship
locausto, ejemplificado en la figura is exemplified in the figure of the artista
del artista Kurt Herdan, u vida, sus Kurt Herdan, his biography, his motives
motivos y su imaginario del dibujo and the concepts in his drawings and co-
y la caricatura. En todos ellos, hay mics. In all of them, we encounter traces
trazas de una memoria que establece of a memory that construct san artistic
una resistencia artística frente a los resistance against the ravages of power.
embates del poder.
palabras clave: holocausto; caricatu- keywords: holocaust; caricature; resis-
ra; resistencia. tance.
℘
El arte como experiencia es a menudo un frente de denuncia y de
resistencia frente a situaciones históricas vivenciadas. Los creadores con
su sensibilidad realizan una labor de enfrentarse, cuando no directa-
mente, por medio de sus expresiones.1 Al respecto, tenemos numerosos
ejemplos de cómo los artistas desafiaron a cuenta de su propia vida los
efectos del trauma histórico vivenciado por millones de persona tras
1
Ver DIDI-HUBERMAN, Geor-
la imposición de la ideología Nacional Socialista en Alemania y del
ges. Imagen, malgré tout. Paris: estalinismo en la URSS.2
Editions du Minuit, 2003, y En este artículo revisaremos el trabajo de un sobreviviente de la
idem, Imágenes pese a todo: me-
moria visual de holocausto. Shoah en su Austria natal, pero también del estalinismo comunista en su
Barcelona: Paidós, 2011. Rumania de adopción, tras estos duros momentos históricos personales
2
Ver CORNELSEN, Elcio, y familiares se avecindó en Chile. La vida de Kurt Herdan se unió a nu-
AMORIN, Elisa e SELLIG- merosos compatriotas disidentes y judíos que fueron sobrevivientes de
MANN-SILVA, Marcio (orgs.).
Imagem e memória. Belo Hori- este espanto, muchos artistas vivieron la turbación de los campos concen-
zonte: Editora UFMG, 2012. tracionales, no pocos fueron masacrados en los campos de exterminios,
3
Ver LEIVA QUIJADA, Gonza- es decir la fuerza del padecimiento traumático del Holocausto.3 Algunos
lo, SHATS, Samuel, GLEISNER,
artistas, resistieron con escasos materiales dejando testimonio de su dolor
Daniel y LARREA, Vicente. Tes-
timonios Kurt Herdan. Santiago: y el de sus camaradas.4 En consideración a sus circunstancias de sujetos a
Testimonio, 2018. la deriva, náufragos en el tiempo, sin pasado aparente, sus bosquejos cons-
4
Ver BLANCHOT, Maurice. tituyen obras frágiles, recogidas en algunos dibujos, pinturas, partituras,
L’écriture du desastre. Paris:
Gallimard, 1980.
fotografías, etc. todos son parte de una memoriabilia ética insoslayable en
nuestra contemporaneidad: hubo resistencia cultural a la bestialidad desde
5
Ver LYOTARD, Jean-François.
Les inmateriaux. Paris: Centro la insistencia creativa.5
Georges Pompidou, 1979.
Sus dibujos son la memoria gráfica con un fino sentido del humor y
su modo comunicacional más original. La ironía un ejercicio de sobrevi-
vencia, que con el trazado de la caricatura constituye la crónica cotidiana
de una mente lúcida, reflexiva, laboriosa y con fuerte coraje. La caricatura
surgida en Italia en 1646 establecía en su sentido filológico originario su
relación con el cambio y la exageración. Con su fascinación por lo grotesco
quedará tempranamente unida al humor y también a contenidos políticos
contingentes. Este será un claro sello de la obra de Kurt, su cercanía con la
caricatura política. Al respecto, este género representacional ha contado con
connotados cultores en Chile desde el siglo XIX como Antonio Smith para
constituir en viñetas de periódicos y diarios ilustrados del nuevo siglo XX
con la figura de Pedro Subercaseaux (Lustig), Edmundo Searle (Mundo),
Julio Bozo (Moustache), entre otros.
La historieta de Herdan sigue el enunciado de Von Pilsener, el pri-
mer personaje de este género en Chile. En lo esencial no hay uso de textos,
globos u onomatopeya, solo la viñeta dibujada como un chiste visual. Su
comicidad está dada por este grado de ironía o verosimilitud sobre acon-
tecimientos contingentes o personajes del quehacer público. La diferencia
es que el dibujo de Herdan no presenta secuencias como se hacía en la
prensa inglesa o anglosajona, sino que es una sola imagen como síntesis
argumental, continuando la tradición europea.
En Chile un momento de gloria y desarrollo de este tipo de humor con
raigambre política se constituirá con el proyecto de la revista Sucesos, con su
aguda visión de la realidad nacional. Sin embargo, es con la revista Topaze
(1931-1970) donde se logra reunir a una pléyade de creadores que fueron
dando vuelta el tema gubernativo. Destacando en la cabeza argumental la
figura de Jorge Délano (Coke). Así la idea de transmitir por medio de un
dibujo un mensaje o una idea sobre una cuestión contingente determinada,
se constituyó en un ejercicio mayor en el humor gráfico donde Kurt transitó
proporcionando además informaciones aledañas de aspectos culturales,
estilísticos y sociopolíticos que le motivaban y le continúan preocupando.
En todos estos dibujos testimoniales vislumbramos una resurrección
metonímica que busca establecer series visuales, no son cuerpos reducidos
sino un vasto corpus. En general, presentan escaso o ausente texto, es decir
el mensaje está dado por la caricatura misma y la búsqueda de sentido se
transforma en un ejercicio intelectual y en una sonrisa fácil.
Desde el punto de vista creativo, sus propuestas denotan una traza
que, organizada en un micro espacio organizado por un dibujo atingente,
indica con sutileza la incubación de un malestar cultural. Cual sea el ingreso,
esta escritura del dibujo nos permite ver los grandes temas y preocupacio-
nes autobiográficas que atraviesan su producción de caricaturas. Donde el
tema político siempre vuelve a los dictadores Hitler y Stalin que afectaron
su vida y círculo familiar. Estos dos autócratas están hechos y puestos con
la misma pasta, su ideología se impone ante cualquier afán libertario.
Otras series exploran temas más creativos y en algunos pasajes hay un
denodado interés por la individualidad de los políticos chilenos actuales.
También asoman, realidades cotidianas, algunos rasgos patéticos del géne-
ro humano y todo un mundo de viñetas de cuerpo entrelazados. Su línea
es sintética con una gracia económica y directa para establecer contrastes
entre la verosimilitud de los dibujados con socorridos trazos hiperbólicos.
re – periferias urbanas,
resistência negra e vozes
femininas na obra de
Marcelo D’Salete
Valu, do conto "Calunga". Marcelo D'Salelte. Cumbe. 2014, fotografia (detalhe).
Jasmin Wrobel
Doutora em Estudos Latino-Americanos pela Freie Universität Berlin (FUBerlin). Orga-
nizadora do livro Roteiros de palavras, sons, imagens: os diálogos transcriativos de Haroldo
de Campos. Frankfurt am Main: TFM, 2018. jasmin.wrobel@fu-berlin.de
História(s) redesenhada(s): visualizando analogias entre hoje e o
passado – periferias urbanas, resistência negra e vozes femininas
na obra de Marcelo D’Salete
Re-drawn histories: visualizing analogies between the present and the past – urban
peripheries, black resistance and female voices in the work of Marcelo D’Salete
Jasmin Wrobel
resumo abstract
Em suas HQs, o artista e professor In his graphic novels, São Paulo artist and
de artes visuais paulistano Marcelo Visual Arts professor Marcelo D’Salete
D’Salete tematiza a história afro-brasi- illustrates decisive moments of Afro-
leira e as condições de vida de jovens -Brazilian history and the life conditions
afro-brasileiros no presente, traçando of young Afro-Brazilians in the present,
analogias entre hoje e o passado com tracing analogies between now and then in
seus livros Noite luz (2008), Encruzi- his books Noite luz (2008), Encruzilhada
lhada (2011), Cumbe (2014) e Angola (2011), Cumbe (2014) and Angola Janga
Janga (2017). Neste artigo, pretende-se (2017). In this contribution, I intend to
mostrar como o autor consegue (re) show how D’Salete – on the threshold
desenhar um retrato entre ficção e rea- between fiction and reality – (re)draws a
lidade, tanto da periferia urbana como portrait of the urban periphery, on the one
da história de Palmares, criando, assim, hand, and the history of Palmares, on the
uma “continuidade invertida” entre other hand, creating a type of “inverted
suas primeiras obras, que documentam continuity” between his first two works
a vida dos seus protagonistas nas ruas focused on São Paulo street life and his
de São Paulo, e as duas mais recentes, more recent graphic narratives in which
em que identifica a raiz da desigualda- he identifies the root for today’s social
de social hoje na história mal digerida inequality in the poorly digested history
da escravatura no Brasil. Em um tercei- of slavery in Brazil. In a third step, I am
ro passo, ainda se tematizará o papel going to discuss the role and potential of the
das vozes femininas que também não voice of women who are not being forgotten
são esquecidas por D’Salete. in D’Salete’s work.
palavras-chave: Marcelo D’Salete; keywords: Marcelo D’Salete; urban peri-
periferia urbana; Palmares. phery; Palmares.
1
FERRÉZ. Terrorismo literário.
In: FERRÉZ (org.). Literatura
℘
marginal: talentos de escrita
periférica. Rio de Janeiro: Agir,
2005, p. 9.
A regra é só uma, mostrar as caras. Não somos o retrato; pelo contrário,
2
Uma das primeiras obras
gráficas que assumiu a memó-
mudamos o foco e tiramos nós mesmos a nossa foto.1
ria traumática como tema foi,
evidentemente, Maus, de Art
Spiegelman (1986/1991). Na
América do Sul, tais relações Nos últimos anos, podemos observar a tendência em retrabalhar ex-
podem ser pensadas com o periências e acontecimentos históricos traumáticos sob a forma de histórias
surgimento das ditaduras na
segunda metade do século XX,
em quadrinhos (HQs) que, como meio, permite um enfoque novo e também
quando temos, por exemplo, o a introdução de novas perspectivas sobre temas sensíveis.2 A arte dos qua-
“desaparecimento” e o assassi- drinhos possibilita releituras de temas complexos, considerando também
nato do quadrinista argentino
Héctor Germán Oesterheld que as formas de representação podem variar entre imagens meramente
em 1977. simbólicas e outras quase brutais a partir de seu conteúdo explícito. Na
3
Ver CATALÁ CARRASCO,
Jorge e DRINOT, Paulo e SCO-
RER, James (orgs.). Comics and
memory in Latin America. Pitts-
burgh: University of Pittsbur-
gh Press, 2017, e CARRILLO
ZEITER, Katja e MÜLLER,
Christoph (orgs.). Historias e
historietas: representaciones de
la historia en el cómic latino-a-
mericano actual. Frankfurt am
Main: Vervuert, 2018.
4
D’SALETE, Marcelo. Cumbe.
São Paulo: Veneta, 2014.
5
Idem, Angola Janga: uma his-
tória de Palmares. São Paulo:
Veneta, 2017.
6
Idem, Noite luz. São Paulo: Via
Lettera, 2008.
Figura 1. Capa do livro Cumbe.8 7
Encruzilhada e Risco foram ori-
ginalmente lançadas em 2011 e
2014, respectivamente. Contam
com reedição recente, num
A opção por narrar a saga de Palmares por episódios possibilita a único volume. Ver D’SALETE,
D’Salete enunciar tal processo histórico desde ângulos diferentes, incluindo Marcelo. Encruzilhada. 2. ed.
São Paulo: Veneta, 2016.
não somente a perspectiva de figuras como Zumbi dos Palmares e outros 8
Idem, Cumbe. Wien: Bahoe
atores da resistência negra, mas também a perspectiva associada a figuras Books, 2017 (capa da versão
femininas. Neste sentido, pretendo analisar as estratégias visuais aplicadas alemã).
20
Ver D’SALETE, Noite luz, op.
cit., p. 39.
21
D’SALETE, Marcelo. Encruzi-
Figura 3. A protagonista Dora, do conto “93079482”, de Encruzilhada.21 lhada, op. cit., p. 158.
De fato, Cumbe e Angola Janga não são meras narrativas visuais dos
fatos históricos conhecidos sobre os mocambos. Trata-se antes de uma
re-imaginação dos acontecimentos nos arredores de Palmares desde a
perspectiva dos oprimidos, representados, porém, não como vítimas, mas
como agentes de sua própria resistência. A pesquisa de D’Salete baseia-se
tanto em crônicas do tempo colonial como em registros policiais daquela
época, além de literatura acadêmica mais recente. Os respectivos contos e
episódios em Cumbe e Angola Janga muitas vezes se inspiram nessas fontes,
abordadas por D’Salete desde o campo ficcional das HQs. O autor também
Figura 4. Ciça Cumbe. Ciça encontra o quibungo. Cena do conto “Malungo”, de Cumbe.40
Figura 5. Valu Cumbe. Valu com o colar de Nana, do conto “Calunga”, de Cumbe.41
48
Ver idem, ibidem, p. 340 e 341. narrativa gráfica.
49
Ver idem, ibidem, p. 380-386. Os acontecimentos narrados em Angola Janga giram em torno das
50
Ver idem, ibidem, p. 105. últimas décadas do Quilombo dos Palmares, priorizando o destino e a
51
Ver idem, ibidem, p. 323. influência de Zumbi dos Palmares assim como o de muitos atores dife-
52
Ver idem, ibidem, p. 404.
rentes que fizeram sua parte na história do mocambo – alguns deles bem
documentados pela historiografia, como Ganga-Zumba, Acotirene, António
Soares, o bandeirante paulista Domingos Jorge Velho ou o capitão Furtado
de Mendonça. Estilisticamente, a obra não se distingue muito de Cumbe,
se bem que chama a atenção por, devido à extensão da obra e do tempo
narrado, utilizar-se frequentemente de vinhetas menores, às vezes até 12
por página.
Como nas obras anteriores, nota-se grande atenção aos detalhes. A
brutalidade de figuras como Domingos Jorge Velho ou Inácio, este último
fictício, é contrabalançada por manifestações de amor, amizade e solidarie-
dade entre os quilombolas, e por momentos visualmente muito poéticos,
como a morte do próprio Zumbi dos Palmares no penúltimo capítulo, “O
abraço”.45 Como no conto “Malungo”, de Cumbe, os “monstros humanos”
em Angola Janga também são relacionados a entidades mitológicas; neste
caso, Domingos é associado com o Anguêri no capítulo 7, “Selvagens”,
entidade mitológica guarani que seria uma espécie de morto-vivo da flo-
resta que ataca à noite.46
No mesmo capítulo e nos capítulos seguintes, o papel da população
indígena nos quilombos e na resistência negra é tematizado. O título do
capítulo sugere certa ambiguidade porque, com “selvagens”, não se refere
às pessoas indígenas, ao contrário do que usual e discriminatoriamente
se costuma dizer, senão aos bandeirantes paulistas, com sua postura pre-
datória e violenta perante os indígenas. Mas, como em outros livros de
D’Salete, também aqui não é possível diferenciar simplesmente entre “bom”
e “mau”. Assim encontram-se figuras como o negro Zona – inspirado em
Ganga Zona –, que não hesita em matar um malungo e em mentir para
conseguir acordo de paz com os portugueses47, ou o português Joaquim,
que se junta aos quilombolas e morre lutando ao lado deles.48 A “traição”
de Zumbi pelo mulato Antônio Soares é tematizada com muita empatia,
enquanto o conflito interior do personagem é mostrado com riqueza de
detalhe. Soares, na ficção de Marcelo D’Salete, morre ao final ainda na
resistência e consegue ajudar a sua parceira Andala fugir.49
Outro elemento que já teve um papel importante em Cumbe e que
reaparece em Angola Janga é a escultura de Chibinda Ilunga, um mítico rei
tchokwe. No capítulo de Angola Janga intitulado “Aqualtune”, a escultura
se encontra ainda na possessão de Ganga Zumba, mas a figura é entregue
por Zona ao governador para fechar o acordo de paz.50 Mais adiante, em
“Doce inferno”, a escultura desaparece de repente, motivando um ataque
de raiva do governador. Fica claro que este acredita ter certo controle so-
bre Palmares pela presença da estatueta. Insinua-se que uma das escravas
domésticas do governador a pegou.51 A estátua reaparece ao final do livro,
quando Andala volta em 1702, sete anos depois das mortes de Zumbi e
Soares, levando a figura de Chibinda Ilunga em seu cinto, como a dizer:
a luta continua.52
64
D’SALETE, Marcelo. Angola
Janga, op. cit., p. 392
Figura 7. Dara Angola Janga. Dara, a luta continua.65 65
Idem, ibidem, p. 408.
℘
Apresentação
***
de criação e debate. 3
Publicado pela primeira vez
em 1978, a antologia Cader-
nos Negros inspirou a criação
I. L. G. – Ainda no campo das aproximações entre ensino de história da arte do Quilombhoje e completou
e quadrinhos, em trabalhos como Cumbe e Angola Janga percebe-se o esforço quarenta anos de publicações
anuais em 2018. Cf. ANTÔ-
pela elaboração de uma narrativa que contribua para apresentar outro lado de uma NIO, Carlindo Fausto. Cadernos
história que é pouco narrada em profundidade. A partir do seu trabalho, como você Negros: esboço de análise. Tese
(Doutorado em Teoria Lite-
percebe as implicações éticas do ensino e da criação artística? rária) – Unicamp, Campinas,
2005.
M. D’S. – A elaboração do Cumbe e do Angola Janga começou por volta 4
Ver SOUZA, Marcelo de Sa-
de 2004. Não tinha uma ideia muito clara do que eu estava fazendo logo no lete. A configuração da curadoria
de arte afro-brasileira de Emanoel
início. Sabia que era algo falando sobre Palmares, sobre um grande conflito Araújo Dissertação (Mestrado
armado. Vamos dizer assim: o tamanho, a dimensão dessa empreitada foi em Estética e História da Arte)
se formando com o tempo. Aos poucos, notei que havia algo para explorar, – USP, São Paulo, 2009.
M. D’S. – A ideia original era que Cumbe fosse parte do livro Angola
Janga. Mas, aos poucos, a obra estava ficando muito extensa e percebi que
Cumbe era um livro com energia e universo próprios, se resolvia por si só,
sem o Angola Janga. Resolvi separar as narrativas, mas acho que são livros
interessantes de serem lidos em conjunto. Talvez, o Cumbe primeiro, já que
é um livro que fala mais sobre o contexto colonial e escravista e da busca
de humanidade desses africanos escravizados aqui no Brasil – busca por
humanidade e autonomia sobre sua vida. Depois disso, o Angola Janga, que
trata mais especificamente de Palmares.
Cumbe se aproxima do Encruzilhada e Noite luz devido à forma, porque
é um livro no formato de contos, algo que eu gosto muito de trabalhar.
Contos que você pode ler isoladamente, mas que acabam tendo conexões
de uma narrativa com a outra. Isso acontece no Noite luz, no Encruzilhada
e no Cumbe. Já Angola Janga tem uma diferença em termos de forma. É um
livro que, embora tenha narrativas bem resolvidas individualmente, se
assemelha mais a um romance. A história mostra um personagem singular,
o Soares, e varios outros personagens que trafegam, conduzem essa nar-
rativa junto com ele. Em alguns momentos, eu acabo dando mais atenção
para outros personagens, mas ele é o fio condutor que está ali no começo,
meio e fim da narrativa.
Espontaneidade
o:
xã
f le
re
e
o Dao da
so
m
de Richard Shusterman. 2012, fotografia (detalhe).
Capa do livro Thinking through the body: essays in somaesthetics,
ae
st
ét
ic
a
Richard Shusterman
Doutor em Filosofia pela Universidade de Oxford. Professor do Center for Body,
Mind and Culture da Florida Atlantic University. Autor, entre ou outros livros, de
The adventures of the man in gold. Paris: Hachette, 2017. richard.shusterman@gmail.com
Espontaneidade e reflexão: o Dao da somaestética1
Spontaneity and reflection: the Dao of somaesthetics
Richard Shusterman
resumo abstract
Neste artigo, Richard Shusterman In this article, Richard Shusterman dis-
discute a controvertida relação entre cusses the controversial relation between
espontaneidade e atenção somática spontaneity and reflexive somatic awa-
reflexiva na filosofia contemporânea. reness in contemporary philosophy. He,
Ele aborda o tema em autores clássicos then, approaches this subject in classical
do confucionismo e do taoísmo para confucian and daoist authors to present
apresentar espontaneidade e reflexão spontaneity and reflection as rather com-
como dimensões mais complementares plementary than contradictory dimensions
do que contraditórias entre si. to each other.
palavras-chave: somaestética; filoso- keywords: somaesthetics; chinese phi-
fia chinesa; corpo. losophy; body.
℘
Preâmbulo
O texto que segue traduzido para o português faz parte de uma co-
letânea recente (publicada em 2018 pela Routledge) sobre a relevância da
* Doutor em História pela
Universidade Estadual de filosofia tradicional chinesa no contexto da globalização contemporânea.
Campinas (Unicamp). Profes- Seu autor, Richard Shusterman, professor da Florida Atlantic University,
sor do Instituto de História
da Universidade Federal de
onde coordena o Center for Body, Mind and Culture, tem formulado, ao
Uberlândia (UFU). Autor, en- longo de seus trabalhos, a teoria da somaestética, a qual busca retomar a
tre outros livros, de Flores do relevância do corpo não somente como matéria filosófica legítima sobre
desengano: poética do poder na
América portuguesa (séculos a qual se deva refletir, mas como o próprio domínio no qual a filosofia,
XVI - XVIII). São Paulo: Uni- como qualquer outra experiência humana, ocorre. Aqui, Shusterman
fesp, 2013. guilhermealuz@
gmail.com
resgata autores “clássicos” de escolas confucionistas e taoístas da China
Antiga para mostrar a pertinência de suas formulações para alguns dos
1
Traduzido, mediante autori-
zação do autor, de SHUSTER- problemas centrais da moderna teoria da somaestética. Em particular, ele
MAN, Richard. Spontaneity aborda a controvérsia filosófica em torno dos temas da espontaneidade e
and reflection: the dao of so-
maesthetics. In: MING, Dong
da reflexão nas ações corporais.
Gu (ed.). Why traditional chinese O público brasileiro conhece a obra de Shusterman, principalmen-
philosophy still matters: the rele- te, por meio daqueles dois trabalhos que, traduzidos para o português,
vance of ancient wisdom for the
global age. London-New York: tornaram-se mais acessíveis no país, como são os casos de Vivendo a arte2 e
Routledge, 2018, p. 133-144. Consciência corporal.3 O primeiro é uma importante reflexão sobre a cultura
2
SHUSTERMAN, Richard. Vi- de massas sob o ponto de vista da filosofia pragmática de John Dewey. O
vendo a arte: o pragmatismo e a segundo compõe-se de vários ensaios nos quais Shusterman dialoga com
estetização da vida. São Paulo:
Editora 34, 1998. alguns dos principais autores do século XX que deram importância ao
3
Idem, Consciência corporal. São
corpo em seus sistemas filosóficos. Também nele, irá se destacar a obra de
Paulo: Realizações, 2012. Dewey, seguramente, a mais influente de todas na proposta de somaestética
Tradução
mais centrais que aparecem no texto a seguir, uma citação que praticamente
resume a sua hipótese central: “a verdadeira espontaneidade é [...] não um
direito de nascença, mas o último estágio, a conquista consumada, de uma
arte – a arte do controle consciente”.
Nosso interesse pela obra de Shusterman nasceu pelas possibilida-
des que ela oferece para a tematização de práticas corporais no âmbito
da filosofia e das ciências humanas de modo geral. Em particular, pelo
potencial que ela apresenta para o tratamento das artes marciais asiáticas
no mundo global contemporâneo. Nesse sentido, a obra de Dewey também
pode ser entendida como seminal. Sabemos, por exemplo, o impacto que
teve o pensamento de Dewey no Japão moderno e o quanto, por exemplo,
Jigoro Kano, fundador do Judô, apreciava ideias educacionais inspiradas
nele, como o Plano Dalton, da educadora Helen Parkhurst.4 As próprias
artes marciais são consideradas por Shusterman no rol das disciplinas
somaestéticas com as quais dialoga na sua formulação teórica. Juntamente
a ela, Shusterman é atento, em sua prolixa obra, a diversas outras artes
asiáticas que envolvem a atenção somática, como é o caso, por exemplo,
da meditação zen, do yoga, do erotismo chinês, do teatro noh japonês e
muitas outras. Seu interesse pelo universo asiático dá um sabor multicul-
tural à obra e possibilita levantar questões sobre a fruição estética do outro
na contemporaneidade.
A adesão de Shusterman ao que poderia ser chamado de um “projeto
multiculturalista”, entretanto, está muito longe do engajamento ingênuo
a pressupostos do senso comum. Em Performing live, ele expressa diversas
objeções ao multiculturalismo como projeto filosófico, identificando os
perigos, as contradições e a polissemia que o conceito carrega. Sua concep-
ção de multiculturalismo tende a equilibrar o reconhecimento do “outro”
como “diferença” e do universalismo, evitando a formulação de barreiras
rígidas e essencializadas entre as culturas.
Mais do que “multicultural”, a somaestética de Shusterman, como
ele mesmo formula, é filosofia “estruturada por uma busca transcultural
pela ‘autorrealização’”.5 Isso diz muito sobre o modo que dialoga com
autores chineses do século IV ou V a. C. Shusterman não os lê nem como
iguais, nem como contemporâneos, nem como essência de um “outro”
chinês, muito menos, como o “oriental” ou o “exótico”, nem como con-
traponto à “civilização ocidental”. Os lê como parte da riqueza filosófica
da humanidade que, apesar das singularidades de seu tempo e lugar,
oferecem insights com valor de uso para novas artes de viver. Por isso
mesmo, o leitor do texto que segue não deve esperar do autor a perspectiva
de um sinólogo ou de um especialista em China Antiga. Trata-se de uma
abordagem comparativa que busca, em textos chineses, chaves possíveis
para a resolução de problemas lançados pela filosofia contemporânea, em
particular, neste caso, por autores como Maurice Merleau-Ponty, William
James e John Dewey. 4
Ver KANO, Jigoro. Energia
O resultado dessas reflexões de Shusterman são insights surpreenden- mental e física: escritos do fun-
dador do Judô. São Paulo:
tes para praticantes de artes marciais asiáticas ou, como no meu caso, o tai Pensamento, 2008, p. 62 e 63.
chi chuan. Elas mostram que a arte pode ser compreendida como uma busca 5
SHUSTERMAN, Richard.
da espontaneidade por meio de um trabalho constante de autorreflexão. Multiculturalism and the art of
No limite, elas expõem os tênues limites entre espontaneidade e reflexão, living. In: Performing live: aes-
thetic alternatives for the ends
afirmando que, antes de serem opostos excludentes, podem ser tomados of art. Ithaca-London: Cornell
como opostos complementares. University Press, 2000, p. 198.
***
O problema da reflexão
Tradução
os meios corporais a cargo dos nossos hábitos de uso somáticos irrefletidos
e estabelecidos. “Nós andamos melhor sobre uma trave quanto menos
pensamos sobre a posição dos nossos pés sobre ela. Nós arremessamos ou
agarramos, nós atiramos ou cortamos melhor quanto menos” focamos em
nossas partes corporais e em nossos sentimentos e, mais exclusivamente,
em nossos alvos. “Mantenha o seu olho no lugar almejado e a sua mão irá
buscá-lo; pense na sua mão e você estará mais propenso a errar o seu alvo”.8 8
JAMES, William. The princi-
Immanuel Kant, para além disso, adverte que a introspecção somá- ples of psychology. Cambridge:
Harvard University Press, 1983,
tica “desvia a atividade mental de considerar outras coisas e é prejudicial
p. 1128.
à cabeça”. “A sensibilidade interna que alguém gera por meio de suas 9
KANT, Immanuel. Reflexionen
reflexões é prejudicial... Esta visão interna e este sentimento de si enfra- zur kritischen Philosophie. Ed.
quecem o corpo e o desviam das funções animais”.9 Em suma, a reflexão Benno Erdmann. Stuttgart:
Frommann-Holzboog, 1992, p.
somática prejudica tanto o corpo quanto a mente e a melhor maneira de 68 e 69, § 17 e 19. Mais adiante,
tratar o corpo de alguém é ignorando, tanto quanto possível, as sensações Kant observa criticamente que
de como ele se sente, enquanto esteja sendo utilizado ativamente em “o homem é normalmente
cheio de sensações quando é
trabalho e em exercício. Como James assinala em seu Talks for teachers, vazio de pensamento”, p. 117,
nós devemos focalizar sobre o “que fazemos... e não nos importar muito § 106.
quanto ao que sentimos”.10 Reconhecendo, astutamente, que “ação e sen- 10
JAMES, William. Talks to
timento ocorrem conjuntamente”, James insiste (tanto em lições públicas teachers on psychology: and to
students on some of life’s ide-
quanto em conselhos privados) que nós deveríamos controlar os nossos als. New York: Dover, 1962,
sentimentos focalizando apenas as ações com os quais estão ligados. Para p. 99.
superar depressão, ele escreve nos Principles of psychology, nós deveríamos 11
Idem, Principles of psychology,
simplesmente “passar pelos expansivos”, que expressam alegria, fazendo op. cit, p. 1077 e 1078; Talks
to teachers, op. cit., p. 100; The
com que, intencionalmente, o nosso corpo “atue e fale como se alegria já correspondence of William James.
estivesse lá”. Por exemplo: “Suavize a testa, ilumine os olhos, contraia o Charlottesville: University of
Virginia Press, 1995, v. 4, p. 586,
aspecto dorsal da estrutura esquelética ao invés do aspecto abdominal e e idem, ibidem, 2001, v. 9, p. 14.
fale em tom maior”. Ele instou seu irmão de modo semelhante: “Minhas 12
Notando a sua “disposição à
palavras moribundas [em uma carta escrita mais de trinta anos antes da hipocondria”, Kant percebeu
morte de James] são atos exteriores, não sentimentos”.11 que a atenção concentrada às
sensações somáticas internas
A rejeição kantiana-jamesiana da introspecção somática é, penso resultava em “sentimentos
eu, equivocada (e é, largamente, um produto de seus medos declarados mórbidos” de ansiedade. Ver
de hipocondria).12 Porém, os seus argumentos repousam sobre verdades KANT, Immanuel. The conflict
of the faculties. Lincoln: Univer-
significativas. Na maior parte das nossas atividades usuais, a atenção está sity of Nebraska Press, 1992, p.
e precisa estar primariamente direcionada não aos nossos sentimentos 187-189. Sobre a hipocondria
de James, ver PERRY, Ralph
internos de nosso si mesmo corporificado, mas aos objetos do nosso am- Barton. The thought and character
biente, em relação aos quais nós devemos agir e reagir com o objetivo de of William James (condensado
sobreviver ou florescer. Assim, por razões evolutivas excelentes, a natureza em um volume). Nashville:
Vanderbilt University Press,
posicionou os nossos olhos para olhar para fora e não para dentro. O erro 1996, que também se refere às
de Kant e de James é confundir primazia ordinária com importância exclu- reclamações da mãe de James
quanto às suas expressões
siva. Embora a atenção deva ser direcionada majoritariamente para fora, excessivas de “todo sintoma
é, todavia, frequentemente útil examinar a si mesmo e as sensações. Cons- desfavorável” (p. 361). Sobre
ciência de respiração pode nos informar se estamos ansiosos ou nervosos; a “hipocondria filosófica” dos
“estudos introspectivos”, ver a
enquanto, ao contrário, continuamos ignorando estas emoções, estamos carta de James ao irmão Henry,
mais vulneráveis as suas desorientações. Consciência proprioceptiva da de 24 de agosto de 1872, em The
correspondence of William James,
tensão muscular pode nos dizer quando a nossa linguagem corporal está op. cit., 1992, v. 1, p. 167. Repe-
expressando timidez ou agressividade, o que não gostaríamos de demons- tidamente, em correspondência
trar, da mesma forma que pode nos ajudar a evitar contrações musculares privada, James admitiu ser “um
abominável neurastênico”.
indesejadas e parasitárias, que limitam o movimento, exacerbam tensões Ver, por exemplo, suas cartas
e, eventualmente, causam dores. Na verdade, a dor em si mesma – uma a F. H. Bradley e George H.
Howison em The correspondence
consciência somática que nos informa de uma lesão e nos move a buscar of William James, op. cit., 2000, v.
remédio – provê clara evidência do valor da atenção aos estados somáti- 8, p. 52 e 57.
Tradução
nas costas da qual ele realmente sofreu ao longo da sua vida; do mesmo
modo, é certamente muito mais expressão da sua ética puritana do que
produto de investigações clínicas cuidadosas.14 Se “ação e sensação ca-
minham juntas”, como James assinalava, ambas merecem consideração
cuidadosa para o funcionamento ótimo. Do mesmo modo, tanto os fins
quanto os meios requerem atenção.15 Embora facas tenham o objetivo
de cortar e não de serem afiadas, nós temos que, em alguns momentos,
focalizar em melhorar o seu fio e outros aspectos do seu uso para aprimo-
rar a sua eficácia. Esta lógica respeitadora dos meios subjaz o projeto de
somaestética como o estudo melhorativo do uso de nossos instrumentos
corporais para a percepção, a cognição, a ação, a expressão estética e a
autoformação ética, que, juntos, constituem a pesquisa humanística, a
criação artística e a arte global de aperfeiçoamento da humanidade por
meio de uma vida melhor.
A despeito de William James ser um dos filósofos modernos mais
favoráveis ao corpo e um dos grandes mestres da introspecção somática
na Psicologia, ele alertou contra o seu uso na vida prática e na vida mo-
ral, pois ele pensava que isso levaria à hipocondria e à depressão.16 Além
disso, James introduziu um argumento extra segundo o qual “a influência
inibidora da reflexão” sobre a ação corporal e as suas sensações concomi-
tantes, na verdade, interfere na ação. “Confie em sua espontaneidade e
fuja de todo cuidado além” é a máxima contrária de James ao sucesso da
performance sensório-motora.17 Para citar novamente a sua obra Principles
of psychology, “Nós falhamos em precisão e em certeza na obtenção de
nosso fim quando estamos preocupados com muita consciência ideal de
nossos meios [corporais]” e as sensações internas (ou “residentes”) que
elas envolvem. Em outras palavras, “Nós andamos melhor sobre uma
trave quanto menos pensamos sobre a posição dos nossos pés sobre ela.
Nós arremessamos ou agarramos, nós atiramos ou cortamos melhor
quanto menos a nossa consciência seja tátil e muscular (ou menos resi-
dente) e mais exclusivamente ótica (mais remota). Mantenha o olho no
alvo e a sua mão o alcançará; pense na mão e você muito provavelmente
errará o alvo”.18
Maurice Merleau-Ponty é outro campeão filosófico do corpo que, ape-
sar disso, rejeita o valor da reflexão somaestética. Como James, ele mantém
que a espontaneidade e a consciência perceptiva irrefletida irão sempre nos
servir melhor na vida cotidiana, enquanto a reflexão somática e as imagens 14
Ver JAMES, William. The
correspondence of William James,
representacionais (para as pessoas normais) são desnecessárias e mesmo se op. cit., v. 9, p. 14.
colocam no lugar do funcionamento relaxado. O corpo maravilhosamente 15
Ver idem, Talks to teachers, op.
“nos guia entre as coisas desde que nós paremos de analisá-lo”, apenas cit., p. 100.
sob a “condição de que nós não reflitamos expressamente sobre ele”.19 16
Alguém poderia argumentar
Não apenas em locomoção corporal, mas na variedade de nossas ações que isso leva à auto-absorção
imoral. Eu respondo a estas
(incluído as ações expressivas e criativas do discurso e da arte), Merleau- acusações em Body conscious-
-Ponty insiste repetitivamente que o sucesso da performance depende da ness, op. cit., capítulos 3, 5 e 6.
eficácia das intencionalidades corporais espontâneas subjacentes ao nível 17
Ver JAMES, William. Talks to
da consciência tematizada e que todas as representações conscientes ou teachers, op. cit. p. 99 e 109.
consciência reflexiva dos nossos comportamentos somáticos tendem, ao 18
Idem, Principles of psychology,
contrário, a inibir a ação eficaz: “como o funcionamento do corpo, aquele op. cit., p. 1128.
Tradução
dedos acompanhavam as coisas e ele não deixava a sua mente entrar no
caminho”.28 Liehzi parece expressar a mesma defesa da ação irreflexiva e
espontânea, que o seu tradutor, o distinto estudioso A. C. Graham, formula
como “pensar faz mal [a alguém] ao invés de bem” e que “é especialmen-
te perigoso ser consciente de si mesmo”.29 Liehzi nota como um homem
bêbado, por estar inconsciente, é menos propenso a se machucar ao cair
de uma carroça do que um homem consciente que se enrijece e tenta se
escorar enquanto cai; de modo semelhante, diz um nadador: “eu faço isso
sem saber como eu faço”.30 O mestre taoísta reivindica ser tão unificado
em seu ser e com a natureza que ele não nota por qual órgãos sensoriais
ele percebe algo e se é o seu corpo ou a natureza que impulsiona e guia as
suas atividades. “Eu não sei se eu percebi com os sete orifícios em minha
cabeça e os meus quatro membros ou se eu sabia pelo meu coração, meu
ventre e meus órgãos internos. Isto é simplesmente autoconhecimento”.31
“Eu me movia à deriva com o vento para o Leste ou o Oeste, como uma
folha... e nunca soube se era o vento que me conduzia ou eu que conduzia
o vento”.32
Mas junto com essa defesa de irreflexão espontânea, encontra-se um
profundo respeito por autoexame nesses textos clássicos taoístas. Assim,
Zhuangzi insiste:
Quando eu falo de boa audição, eu não quero dizer ouvir aos outros; eu quero dizer
simplesmente ouvir-se. Quando eu falo de boa visão, eu não quero dizer olhar os
outros; eu quero dizer simplesmente ver-se. Aquele que não olha a si mesmo, mas
olha os outros, que não se capta, mas capta os outros, está percebendo o que outros
perceberam, mas falhando em perceber o que ele próprio percebeu. Ele encontra
alegria no que traz alegria a outros homens, mas não encontra alegria alguma no
que poderia trazer alegria a si próprio.33 27
Seu fundador lendário, Laozi,
por exemplo, afirma: “aqueles
Zhuangzi, assim, recomenda autoexame: “Portanto, eu examino o que amam o seu corpo mais do
que o domínio sobre o império
que está em mim e nunca sou bloqueado do Caminho”.34 Neste ponto, podem receber a custódia do
indica-se que mesmo a ação corporal ou o movimento melhora quando se império”. LAO TZU. Lao Tzu.
London: Penguin, 1963, p. 17. O
olha introspectivamente para estabelecer um sentido estável de si, do qual
cultivo somático taoísta incluía
a ação pode emergir mais eficazmente. “Se você não percebe a sinceridade exercícios respiratórios, dietas,
em você e, ainda assim, tenta se mover adiante, cada movimento errará o ginásticas e disciplinas sexuais
específicas.
alvo. Se as preocupações externas entram e não são expelidas, cada movi-
28
Eu cito de CHUANG TZU.
mento apenas acrescentará falha à falha”.35 The complete works of Chuang
Liehzi, de modo semelhante, afirma o valor do autoexame: “Você Tzu. New York: Columbia Uni-
ocupa a si mesmo com a viagem externa e não sabe como ocupar a si mes- versity Press, 1968, s/p.
Se eu não procuro para dentro, em meu coração, não haverá resposta por 36
LIEH TZU, op. cit., p. 82.
parte do instrumento fora de mim”.37 37
Idem, ibidem, p. 107.
Tradução
sua natureza e desenvolver as suas virtudes: “ele vai se agarrar ao seu nível
e não o excederá... ele irá unificar sua natureza, cuidar das suas energias,
manter a sua virtude dentro de si, os Céus dentro de você irão manter sua
integridade, o espírito dentro de si não terá falhas”.41 E isto é considerado
imediatamente como superior à tranquilidade do homem bêbado, cujo des-
temor de cair vem somente por meio do desconhecimento provocado pela
substância externa do vinho e não do saber dos Céus, de dentro de si mesmo.
Além disso, Liehzi mostra como as nossas habilidades já adquiridas
de performance espontânea requerem reconstrução quando encontram
novas condições. O arqueiro de sucesso perde totalmente as suas habilida-
des habituais e a sua postura magistral de quietude “como uma estátua”
quando ele é instado a agir em uma escarpa, onde ele treme e falha de
medo, pois ele não aprendeu a controlar a sim mesmo de tal modo que
“seu espírito e respiração não mudem” em novas condições que provocam
ansiedade.42 As habilidades de alguém em outras situações são de algum
modo destruídas quando a pessoa pensa em falha ou em prêmio: “você
dá valor a algo fora de você; e qualquer pessoa que faça isso é desastrada
internamente”.43 Analogamente, em Zhuangzi, o grande entalhador, Ch’ing,
explica que a sua habilidade aparentemente espontânea se baseia em um
processo de autopreparação por meio de uma disciplina somática de jejum
“para aquietar [a] mente”, de modo que depois de uma semana de jejum,
“eu não tenha nenhum pensamento de recompensas ou comprimentos, de
21
Ver SHUSTERMAN, Richard. Body consciousness, op. cit.
títulos ou emolumentos... qualquer pensamento de elogio ou
Ver SHUSTERMAN, Richard.22Body
censura, deop. cit.
21
Nós consciousness,
também não podemos confiar em meras tentativas e erros para f
habilidade ou falta de jeito... Minha 22habilidade é concentrada
Nós também não podemos confiar eemqualquer
meras tentativas
de sedimentação e erros para muito
seria provavelmente formarlento
novos hábitos, pois
e propenso o pro
a repeti
distração de fora desvanece”.44 de sedimentação seria provavelmente muito lento
seja criticamente e propenso
tematizado a repetir
de modo o mau hábito,
explicitamente caso este
consciente comhábit
vi
seja criticamente tematizado dedetalhadas modo explicitamente consciente
sobre tais pontos, com vistas
ver Body à correção.
consciousness, Paracapítulo
op. cit., explicaçõe
6.
detalhadas sobre tais pontos, ver 23
BodyDEWEY,
Ver consciousness,
John. op.
Thecit.,
middlecapítulo
works.6.Carbondale: Southern Illinois Un
Soluções somaestéticas 23
Ver DEWEY, John. The middle24works. Carbondale: The
Ver CONFÚCIO. Southern
analects Illinois University
of Confucius. NewPress,
York:1982, v. 11, p.
Ballantine 352
Book
24
Ver CONFÚCIO. The analects de of Confucius.
encontrar New York:em
um termo Ballantine
português Books,
que 1998,
indiquep. 72.
self [N. T.: pela
de modo dificu
aproxim
de encontrar um termo em português preferimos indique self
que traduzir de modo aproximado
self-examination ao que utiliza Shusterman
por “autoexame”].
Essas fábulas coloridas sugerem um ponto crítico. Muitas
preferimos traduzir self-examination 25
Verpor
das expe-
“autoexame”].
MENCIUS. Mencius (II: A.2). London: Penguin, 1970, p. 154 e 1
riências que advogam a favor da espontaneidade 25
Ver MENCIUS. Mencius invocam, como
(II: utilizada
A.2). London: evidên-
por Penguin, 1970,
Shusterman. p. 154 ea romanização
Em Pinyin, 155 [N. T.: mantemos
padrão para a roman
o ideo
cia, que a atenção do comportamento26 somático na ação parece nos levar a
utilizada por Shusterman. Em Pinyin,
26
XUNZI. a romanização
On padrão
self-cultivation. para
Xunzi.o ideograma
Stanford: moderno
Stanford é qì.]
University
气 Pres
XUNZI. On self-cultivation. Xunzi. 27
SeuStanford:
fundadorStanford
lendário, University
Laozi, por Press, 1988, v.afirma:
exemplo, 1, p. 154.“aqueles que
tropeçar ou calar, porém, as falhas podem 27 não derivar realmente
Seu fundador lendário, Laozi, domínio
do foco
por exemplo, afirma:podem
sobre o império “aqueles que aamam
receber o seu
custódia corpo mais
do império”. LAOdoT
somático (em nossos pés ou língua),domínio nos levando
sobre o império a tropeçar
podem 17.ou
p.receber calar.
O acultivo
custódia É,do império”.
somático taoístaLAO Lao Tzu. London:
TZU.exercícios
incluía Penguin
respiratórios, die
ao contrário, a ansiedade quanto a cair p. 17.ouO acultivo
falhar que causa
somático taoísta tais
incluía
específicas. lapsos
exercíciose respiratórios, dietas, ginásticas e disciplinas se
específicas. 28
Eu cito de CHUANG TZU. The complete works of Chuang Tzu. New Yo
que acompanha intimamente a nossa 28 atenção às nossas partes corporais,
Eu cito de CHUANG TZU. The s/p.complete works of Chuang Tzu. New York: Columbia University Press,
quando estamos preocupados em ajudá-las s/p. no seu trabalho 29 e tememos
Eu cito de LIEH TZU. The book of Lieh-tzu. New York: Columbia Unive
que elas não serão capazes de realizá-lo Eu propriamente sem a31 nossa atenção
cito de LIEH TZU. The book of Lieh-tzu.
Idem, ibidem,Newp. 4.York: Columbia University Press, 1990, p. 32.
29 30
30
Idem, ibidem, p. 4. Idem, ibidem, p. 77.
ansiosa e esforçada. Em outras palavras, 31 tais circunstâncias
Idem, ibidem, p. 77. 32 nas quais a
Idem, ibidem, p. 37.
atenção aos movimentos corporais emIdem, 32
açãoibidem,
parecep. 37.interferir na 33
performance
CHUANG TZU, op. cit., p. 102 e 103.
de sucesso são realmente casos nos quais CHUANG a real
TZU,atenção
op. cit., p. nas partes
10234eIdem,
103. ibidem, corpo-
p. 319.
33
34
Idem, ibidem, p. 319. 35
Idem, ibidem, p. 245.
rais e nos movimentos é obscurecida35por Idem,emoções
ibidem, p. 245. e pensamentos 36 de falha,
LIEH TZU, op. cit., p. 82.
de sucesso ou da autoimagem frente36ao LIEHolhar dos
TZU, op. cit.,outros.
p. 82. Assim,
37
ao invés
Idem, ibidem, p. 107.
de condenar completamente a consciência
37
Idem, ibidem, p. 107.
corporal explícita ou reflexiva
38
Xunzi escreve: “o cavalheiro diz, ‘o aprendizado nunca deve
38
Xunzi escreve: “o cavalheiro diz, ‘o aprendizado
aprendizado’”. XUNZI, op.nunca deve ser concluído’, ‘uma exortaç
cit., p. 135.
como prejudiciais à performance eficiente, nós precisamos
aprendizado’”. XUNZI, op. cit., distinguir
p.Ver
39
135.LIEH TZU, maisop. cit., p. 41105. Do ibidem,
Idem, mesmop. modo, o apanhador de cigar
37 e 38.
claramente o foco verdadeiro e os modos 39
ou níveis
Ver LIEH TZU, op. de cit.,acuidade
p. 105.nelas de talmodo,
Do mesmo
mesmas, cons-
mas otambém
apanhador devede tercigarras devecomo
aprendido não somente
“segurarter atençã
o [seu] c
umVer oidem, ibidem, p. 38seca”.
e 39. aIdem,
42
nelas mesmas, mas também deve ter aprendido
maneira tão firmecomoquanto“segurar galho [seu] corpo...
de uma e segurar
árvore [sua]ibidem,
mão de p
ciência. Por exemplo, eu estou realmente focalizando cuidadosamente os
maneira tão firme quanto um galho 40
Verde umaibidem,
idem, 112. Idem,
árvorep.seca”. 43
Idem,ibidem, p. 45.
ibidem, p. 44.
movimentos de meus dedos e mão quando 40
Ver idem,tenho
ibidem, p.problemas
112. 41 emibidem,
Idem, levantar
p. 37 e 38.
uma ervilha escorregadia com os meus ibidem, p. 37 e 38. 45 ou42 Ver
Idem, “pauzinhos” é oidem,meu foco p. 38 e 39. CHUANG TZU, op. cit., p.
44
41
ibidem,
42
Ver idem, ibidem, p. 38 e 39. Idem, ibidem, p. 44. 206.
mental, quando olho para minha mão, igualmente impregnada ou mesmo
43
43
Idem, ibidem, p. 44. 44
CHUANG TZU, op. cit., p.45206. N. T: em inglês: chopsticks;
dominada pelos pensamentos e emoções 44
CHUANG TZU, op. cit., p. 206. N. T: em inglês: ou
subjacentes sobre eu
45 conseguir chopsticks;em mandarim: kuaizi
emmandarim: kuaizi 筷子;; em em japonês: hash
não fazer isso com sucesso e como sou 45
N.visto (ou julgado)
T: em inglês: chopsticks; em pelos Paraoutros
mandarim:
46
umakuaizi que筷子; emmais
articulação japonês:
japonês: hashi
hashi 箸 dessa crítica a Merleau-P
detalhada
46
Para uma articulação maisSHUSTERMAN, detalhada dessa críticaBody
Richard. a Merleau-Ponty,
consciousness, op. ver a minha2. discussã
cit., capítulo
SHUSTERMAN, Richard. Body 47consciousness, MERLEAU-PONTY, op. cit., capítulo
Maurice. 2. Phenomenology of perception. London: Ro
MERLEAU-PONTY,
ArtCultura Uberlândia, v. 21, n. 39, p. 125-138, jul.-dez.
47
2019 Maurice.48Phenomenology
Idem, The visibleofand perception. London:
the invisible. Routledge,
Evanston: 1962, 135
Northwestern p. 90University
e 91. P
48
Idem, The visible and the invisible. 49
Evanston:
Ver PLESSNER,Northwestern
Helmut.University
Die StufenPress, 1968, p. 148. und der Mens
des Organischen
49
Ver PLESSNER, Helmut. Die Stufen des Organischen
Anthropologie. Berlin andund der Mensch:
Leipzig: einleitung
De Gruyter, 1928, einLaughing
die philosop
and cr
46
Para uma articulação mais observam o meu esforço? Minha consciência está calmamente observante
detalhada dessa crítica a Mer-
leau-Ponty, ver a minha dis- ou ansiosamente afobada? Há também a questão se eu tenho habilidade e
cussão em SHUSTERMAN, precisão em auto-observação somaestética. Talvez o meu senso somaestético
Richard. Body consciousness, op.
de mim mesmo não seja muito claro e, portanto, eu nem mesmo percebo
cit., capítulo 2.
que eu fiquei ansioso, que a qualidade e a precisão da minha atenção aos
meus dedos foi, assim, distraída, mesmo que os meus olhos continuem
fixados sobre ele.
Algumas pessoas possuem habilidades sensório-motoras melhores
do que outras e o treino é um dos modos pelos quais elas as adquiriram.
Embora a abordagem fenomenológica de Merleau-Ponty presuma que toda
pessoa normal goze do mesmo nível básico de percepção e ação espontâ-
neas primordiais, que funcionam com eficiência milagrosa ou mágica (em
contraste com casos patológicos extremos de lesões celebrais ou outras
formas de trauma), eu penso que a situação seja mais complexa. Muitos de
nós conseguem se virar com hábitos sensório-motores que possuem várias
falhas menores, o que não nos desqualificam quanto à normalidade, no
sentido de termos um funcionamento padrão, mas que resultam em dor
desnecessária, desconforto, ineficiência, fatiga mais rápida e uma tendência
a certos erros ou acidentes.
Nós podemos compartilhar da apreciação de Merleau-Ponty quanto
a nossa percepção somática implícita e irrefletida, mas poderíamos também
reconhecer que tal percepção seja, muitas vezes, dolorosamente imprecisa
e disfuncional. Eu posso pensar que estou mantendo minha cabeça para
baixo quando movimento um taco de golfe, embora um observador veria
facilmente que eu não faço isso. Disciplinas de educação somática utilizam
exercícios de atenção representacional para tratar de tais problemas de
percepção e de mal-uso dos nossos corpos no comportamento habitual e
espontâneo, que Merleau-Ponty identifica como primordial e celebra como
milagrosamente perfeito na performance normal. Portanto, se Merleau-Ponty
pretende recapturar uma percepção primordial irreflexiva que seja univer-
sal e “imutável” e que seja necessária como terreno essencial para explicar
todas as outras percepções e performances, minha abordagem pragmática é
mais sensível às diferenças de subjetividade somática e, ao contrário, busca
explorar e melhorar os nossos comportamentos ao atentarmos mais (embora
não somente ou em maior parte) sobre ele de modo mais explicitamente
consciente e reflexivo para que a nossa percepção e performance possam ser
melhoradas. Trazer hábitos irreflexivos à consciência mais explícita é útil
não somente para revisitar os maus hábitos como para prover oportunida-
des para os desaprender e estimular novos pensamentos capazes de ampliar
a flexibilidade e a criatividade da mente, o que, como algumas pesquisas
sugerem, está, em parte, conectado ao melhoramento da plasticidade nas
redes neurais do cérebro.46
O valor da atenção somática explícita, crítica e mesmo reflexiva parece
inegável não apenas nos estágios de aprendizado de várias habilidades e
para os nossos esforços contínuos de extensão e refinamento delas, mas
também para o processo de desaprender hábitos inadequados e substituí-
-los por melhores. Entretanto, pode a atenção somaestética explícita ou
mesmo reflexiva ser direcionada, de modo útil, também à ação para além
destes diversos estágios de aprendizado, para fases de maestria completa,
quando o foco está na performance de sucesso ao invés do aprendizado?
Há certamente um pressuposto, aparentemente fundado na experiência
da vida real e em alguns estudos experimentais, segundo o qual a atenção
Tradução
das finalidades da ação e, portanto, diminuir a performance. Mas, talvez,
isso seja porque as nossas capacidades de atenção sejam insuficientemente
treinadas para abrangerem tanto os nossos movimentos corporais quanto
os objetivos da nossa ação. Nós parecemos capazes de ouvir atentamente
à narração de notícias enquanto assistimos atentamente às imagens delas
ou, ao invés disso, estando no tráfego, ouvi-las enquanto dirigimos. Tal-
vez aqueles que sejam mais hábeis em prestar atenção ao comportamento
corporal possam combinar atenção explícita ou reflexiva com performance
suave efetiva, que, igualmente, atenda aos objetivos da ação.
Neste ponto, devemos nos referir ao argumento mais radical de
Merleau-Ponty contra a reflexão somaestética: que tal reflexão, na verdade,
seja impossível, pois nós não podemos verdadeiramente observar o corpo
de um modo próprio. Ele “desafia a exploração e é sempre apresentado a
mim por um mesmo ângulo... Isto é: ele está sempre perto de mim, sempre
lá, para mim; nunca está realmente à minha frente, de modo que eu não o
posso colocar diante dos meus olhos, ele se mantém marginal às minhas
percepções, ele está comigo”. Eu não posso modificar a minha perspectiva
em relação ao meu corpo tal como posso em relação a objetos exteriores.
“Eu observo objetos exteriores com o meu corpo: eu os seguro, os examino,
caminho ao redor deles, mas o meu corpo, em si mesmo, é algo que eu não
posso observar. Para ser capaz disso, eu precisaria utilizar um segundo
corpo”.47 “Eu estou sempre no mesmo lado em que meu corpo está. Ele se
apresenta a mim sob uma perspectiva invariável”.48
A somaestética, em contraste, recorre às nossas experiências somáti-
cas ordinárias para argumentar que nós podemos observar e, na verdade,
observamos nossos corpos. Nós observamos nossas faces, nossos abdomes,
não apenas por meio dos olhos e espelhos, mas por meio do toque das
nossas mãos, para observar se precisamos nos barbear ou entrar em dieta
e fazer exercícios. Nós podemos observar se nossos pés estão sujos ao vê-
-los, senti-los ou mesmo pelo cheiro de sua falta de limpeza. Nós podemos
observar a posição dos nossos braços e pernas não apenas os olhando e
tocando, mas sentido as suas posições por dentro, proprioceptivamente. Em
resumo, nós podemos explorar os nossos corpos das diferentes perspectivas
dos vários sentidos corporais. Para além destas práticas ordinárias de ob-
servação somática, uma variedade de disciplinas meditativas é estruturada
para enfatizar o autoexame crítico consciente do soma.
Merleau-Ponty, contudo, argumenta que a observação do corpo
é, em princípio, impossível por conta de razões teóricas. Seu argumento
sustenta-se, aparentemente, sobre duas pressuposições filosóficas de fundo.
A primeira é o pressuposto bastante enraizado de que a observação crítica
requer alguma separação – uma distância crítica – daquilo a que se obser-
va. Porém, uma vez que nunca podemos nos separar dos nossos corpos,
observá-los parece impossível para nós, a despeito das nossas sensações
disso na experiência diária. A segunda suposição é que a subjetividade que
percebe ou observa deve ser essencialmente diferente daquela do objeto
de observação. Entretanto, como o corpo, na qualidade de “subjetividade 47
MERLEAU-PONTY, Mau-
primária” da pessoa, é sujeito perceptivo, intencional e ativo, ele não pode rice. Phenomenology of percep-
ser também o próprio objeto percebido. Se reconhecermos o corpo como tion. London: Routledge, 1962,
p. 90 e 91.
sujeito, ele não pode ser percebido como um objeto, já que sua essência e
48
Idem, The visible and the invis-
papel completos estão totalmente focados na subjetividade da percepção, ible. Evanston: Northwestern
da sensação e da ação propositada. University Press, 1968, p. 148.
resumo abstract
Este artigo discute o texto “A escola This article approachs the text “A escola
uspiana de história”, de Maria Helena uspiana de história”, by Maria Helena
Rolim Capelato, Raquel Glezer e Vera Rolim Capelato, Raquel Glezer and Vera
Lucia Amaral Ferlini, publicado em Lucia Amaral Ferlini, published in 1994
1994 na revista Estudos Avançados, a in the journal Estudos Avançados, based
partir de uma articulação entre memó- on the connection between memory and
ria e identidade. Objetiva-se analisar a identity. I intend to discuss the way
maneira como essas três historiadoras those three historians from USP have
uspianas enunciaram uma identidade enunciated a historiographic identity in a
historiográfica em profunda ligação strong connection with a disciplinary and
com uma memória disciplinar e insti- institutional memory tied to São Paulo
tucional vinculada à Universidade de University, specially the Faculty of philoso-
São Paulo, em especial à Faculdade de phy, Letters and human sciences. Divided
Filosofia, Letras e Ciências Humanas. into three great moments, the article also
Dividido em três grandes momentos, relates this enunciation of identity to the
o trabalho relaciona ainda tal enun- brazilian historiography in the latest deca-
ciação identitária com a historiografia des of last century. How a historiographic
brasileira das últimas décadas do sé- identity from USP was produced, written
culo passado. Como uma identidade and enunciated? That’s the issue of the
historiográfica uspiana foi produzida, following text.
escrita e enunciada? Eis a questão
orientadora do artigo.
palavras-chave: memória; identidade; keywords: Memory; identity; brazilian
historiografia brasileira. historiography.
1
Uma primeira versão deste
℘
artigo foi apresentada como
trabalho de conclusão da dis-
ciplina Cultura e Representa- Não há busca identitária sem memória e, inversamente, a busca memorial é
ção, ministrada pelo Prof. Dr.
Alessander Kerber, no âmbito
sempre acompanhada de um sentimento de identidade.
do PPGH da UFRS no primeiro Joel Candau2
semestre de 2018. O texto foi
ainda debatido no grupo de
pesquisa do Prof. Dr. Fernando
Nicolazzi, docente da mesma No dia 29 de setembro de 2017, a edição on-line do jornal da Uni-
instituição. A todos aqueles e
aquelas que contribuíram com
versidade de São Paulo (USP) publicou em seu site um polêmico artigo
esta versão final (inclusive a intitulado “A História Econômica na USP”. Assinado por três professores
Capes) manifesto meu agra- da casa, o texto critica frontalmente os critérios avaliativos da Coordenação
decimento.
de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes), fundação pú-
2
CANDAU, Joel. Memória e
identidade. São Paulo: Contexto, blica ligada ao Ministério da Educação e Cultura do Brasil, criada em 1951
2016, p. 15. e, desde 1976, responsável por avaliar todos os cursos de pós-graduação
Artigos
notas 2 e 3, para os cursos de mestrado e de doutorado, respectivamente,
numa escala que varia de 1 a 7. Diante dessa avaliação “fraca e irregular”,
conforme as categorias da Capes, a recomendação oficial da fundação foi
pelo seu descredenciamento, cabendo, entretanto, recurso. De toda forma,
o texto on-line indica que o repúdio à posição assumida pela Capes se fez
antes mesmo da formalização de um recurso.
Para além do universo da USP, a má avaliação repercutiu em outros
meios de comunicação. O tradicional jornal paulista Folha de S. Paulo, em
12 de outubro de 2017, acolheu em seu site uma reportagem com a seguinte
manchete, em negrito: “Curso de pós em História Econômica da USP tem
nota baixa e pode fechar”.3 O Globo, jornal carioca, também deu visibilidade
ao assunto, conforme evidencia uma matéria de outubro de 2017, estampa-
da em seu site sob o chamativo título “Professores da USP criticam método
de avaliação da Capes”.4 Em face da ressonância do assunto, julgamos que
se faz necessário dispensar uma atenção mais detida ao texto “A História
Econômica na USP”, tanto por ele representar a visão de atores diretamente
envolvidos como por haver sido o fator deflagrador da celeuma.
Everaldo Andrade, Lincoln Secco e Marisa Midori Deaecto, profes-
sores que não só lecionam na USP como também realizaram suas etapas
de formação (graduação, mestrado e doutorado) em tal instituição de
ensino, assim protestaram quanto ao tratamento dado ao PPG em que
trabalham:
Artigos
mática, se intitula “A escola uspiana de história”, de autoria de Maria
Helena Rolim Capelato, Raquel Glezer e Vera Lucia Amaral Ferlini.13 A
escolha deste texto justifica-se não apenas por causa da historicização
(memorialização?) do passado disciplinar uspiano ligado à historiogra-
fia produzida na instituição, como por sua relevância para a história da
historiografia brasileira.14
Tomando por base tal fonte textual, questionamos: como uma iden-
tidade uspiana foi aí concebida, vocalizada e escrita? De que modo essa
identidade foi enunciada? Como explicar tal enunciação? Eis as questões
estruturadoras deste artigo.
Do passado ao presente
Aziz Ab’Saber, Antonio Candido, José Arthur Giannoti, Bento Prado Ju- 14
Segundo a plataforma Scielo,
até o momento, tal texto pos-
nior, Carlos Guilherme Mota e tantos outros, o que indica o empenho dos sui quase 60 citações. Ele foi
idealizadores em congregar em uma edição celebrativa representantes da republicado em 1995, abrindo
comunidade uspiana. O então reitor da USP, Flávio Fava de Morais, também o livro de CAPELATO, Maria
Helena Rolim (org.). Produção
se somou a essa iniciativa, o que reforça ainda mais o tom institucional do histórica no Brasil: 1985-1994:
empreendimento. catálogo de dissertações e teses
dos programas e cursos de pós-
Tal edição acolheu o artigo de Maria Helena Rolim Capelato, Raquel -graduação em História, 3 vols.
Glezer e Vera Lucia Amaral Ferlini na sessão “Humanidades”17, na qual São Paulo: USP/Anpuh, 1995.
se procurava traçar a origem histórica e o perfil intelectual dos vários 15
Ver MALERBA, Jurandir.
departamentos que compõem a Faculdade de Filosofia, Letras e Ciência Notas à margem: a crítica his-
toriográfica no Brasil dos anos
Humanas (FFLCH) da USP. Além dessas historiadoras, outros profissio- 1990. Textos de História, v. 10, n.
nais da área se fizeram presentes, como o mencionado Carlos Guilherme 1 e 2, Brasília, 2002, p. 187.
Mota e Maria Odila Leite da Silva Dias, Miriam Lifchitz Moreira Leite, José 16
BOSI, Alfredo. Editorial. Es-
Jobson de Andrade de Arruda, José Sebastião Witter e Ulpiano Bezerra de tudos Avançados, v. 8, n. 22, São
Paulo, 1994, p. 1 e 5.
Meneses. Essa presença massiva de historiadores e historiadoras indica
17
Ao todo, apresentam-se 8 ses-
contundentemente que a preocupação com o passado institucional foi a
sões: Nossa Universidade; Uma
base da proposta editorial e forneceu o mote da publicação. visão crítica; Depoimentos;
O trabalho das três historiadoras enveredou por uma memória Perfis de mestres; Humanida-
des; Exatas e Naturais; Ciências
sobre o passado que, nos idos de 1994, estava relativamente consolidada. Básicas e Naturais nos Campi
Textos, livros, eventos, prédios e documentos formavam já uma verdadeira do interior e Apoio cultural.
Artigos
Léonard [...].
Assim, sem desmerecer os mestres nacionais, queremos ressaltar mais uma vez
quanto devemos aos nossos professores franceses, e o grande papel que representaram
na formação cultural da nossa geração.23
Artigos
coloca-se sob o passado, recebendo deste seus lampejos luminosos de
lembranças e sentidos pregressos.
Tanto Alfredo Bosi quanto as autoras de “A escola uspiana de his-
tória” urdiram seus textos se situando como tributários de uma herança
intelectual. Como pontua Jacques Derrida, ao pensar a relação entre mestre
e discípulo, “a herança nunca é um dado, mas uma tarefa”.32 O herdeiro
precisa assumir sua herança. E os autores nacionais aqui citados assumiram
sua herança, de modo que o epíteto historiador (ou intelectual) uspiano, por
eles mesmos usado, serve também para defini-los. A edição comemorativa
de Estudos Avançados é, portanto, um grande canto jubilatório dos herdeiros
em relação aos seus mestres e pais fundadores, um ritual narrativo que não
só celebra as origens como anuncia a marca de um “nós”.
Tal análise ganha ainda mais consistência quando se atenta para
o fato de que Maria Helena Rolim Capelato, Raquel Glezer e Vera Lucia
Amaral Ferlini tiveram suas trajetórias profissionais de formação como
historiadoras dentro da USP, onde cursaram graduação e pós-graduação,
sob a orientação de professores profundamente ligados à universidade pau-
lista.33 E mais: no momento de produção do artigo, elas ocupavam postos
de direção no DHIS da USP: Vera Lucia Amaral Ferlini era coordenadora
do PPG em História Econômica, e Raquel Glezer e Maria Helena Rolim
Capelato eram, respectivamente, chefe e vice-chefe de departamento. Tais
informações, por sinal, foram inseridas ao final do artigo examinado, como
que a ofertar suas credenciais profissionais e, por essa via, reafirmar suas
identidades como historiadoras uspianas, logo, da “casa”.
Se a disponibilização das informações autorais é padrão dessa edição
da revista, o diferencial do texto da tríade de historiadoras reside em ser
ele o único, na sessão “Humanidades” – a qual contou com 36 artigos –,
escrito por seis mãos, mãos que ocupavam na época postos de poder admi-
nistrativo. Por isso mesmo, a voz das historiadoras parecem expressar, do
alto de sua autoridade, o pensamento do DHIS da USP. Essa proximidade
com o poder, embora no nível micro, faz dessa peça assinada por elas não
tanto um documento como um monumento, erguido no altar dos pais
fundadores, a quem se presta tributo.
A comemoração, como acentua Fernando Catroga, tende sempre a
ser um gesto coletivo, um lembrar e celebrar juntos, para si, por si e para
os outros, ocasião privilegiada para se afirmar uma identidade grupal e
criar processos de subjetivação da forma de identificação afirmada.34 Vem
daí que faz total sentido a vocalização de uma pretensa identidade uspiana
em tal contexto festivo no qual a memória dá o tom. O mesmo se diga a
propósito da tríplice autoria do texto, que reforça o caráter comemorativo
da produção. Seis mãos juntas para reconstituir e enaltecer o passado do
qual pretendem fazer parte, disso deriva o interesse em contar sua história. 32
DERRIDA, Jacques. Espec-
Memória e comemoração, umbilicalmente entrelaçadas, teceram os fios do tros de Marx. Rio de Janeiro:
Relume-Dumurá, 1994, p. 95.
passado, costurando uma história tanto da FFLCH como do DHIS da USP.
Por consequência, a noção de “escola” não desponta gratuitamente 33
O currículo das três historia-
doras está disponível on-line na
no artigo. A despeito de aludir timidamente a outros aspectos da con- plataforma Lattes.
juntura dos anos 1930 que influíram no DNA historiográfico uspiano, 34
Ver TORGAL, Luís Reis,
o texto enfoca principalmente o DHIS da USP, como se este fosse uma MENDES, José Amado e CA-
comunidade em que diferentes gerações, concordes, sucedem-se através TROGA, Fernando (orgs.).
História da história em Portugal,
do tempo, guardando um mesmo esprit de corp. Por tal razão se fala em séculos XIX e XX. Coimbra:
escola, tradição e, acima de tudo, identidade. Por mais que o DHIS da Temas & Debates, 1998, v. 2.
Artigos
dori Deaecto, as historiadoras Maria Helena Rolim Capelato, Raquel Glezer
e Vera Lucia Amaral Ferlini lançaram mão de uma metáfora naturalizante,
proveniente do universo biológico – inbreeding38 – para verbalizar um ethos
uspiano. Não se está aqui distante da expressão “DNA uspiano”. Antes,
pelo contrário, é a mesma estratégia discursiva de enunciação de uma
identidade que se pretende fixa e firme, tal qual uma árvore cuja raiz está
fincada profundamente no solo. Esse uso do passado como solo firme e
estável lembra bem as advertências de Paul Ricoeur: toda identidade re-
querida, diante do tempo, é sempre frágil e vulnerável às ameaças, sendo
fundamental o trabalho de ancoragem na memória, na história, na tradição,
na razão etc.39 É justamente esse exercício de fixação e solidificação que os
historiadores e historiadoras do DHIS da USP realizaram, em nome de uma
identidade historiográfica. Assim, tanto o texto de 2017 quanto o de 1994
foram produzidos com base em um regime de representação historiográfica
semelhante, no qual o passado é, fundamentalmente, fonte de autoridade
e de orientação para o presente e para o futuro.
Além do mais, quando se pensa a identidade como traços únicos e
cristalizados, inegociáveis e inquestionáveis, o desejo por reconhecimento
é fortíssimo, conforme aponta Nancy Franser.40 No fundo, o caso do PPG
em História Econômica, referido no início deste artigo, insere-se nas bata-
lhas de reconhecimento, daí se evocar o passado como que para lembrar
ao presente o que foi o DHIS da USP e, consequentemente, enquadrar uma
memória desse espaço. Ambos os textos – o das três historiadoras e o de
Everaldo Andrade, Lincoln Secco e Marisa Midori Deaecto – alimentam
o desejo de promover o encontro do presente com o passado cultuado.
Neles parece haver o medo de que o hoje se esqueça do ontem, e o ama-
nhã corra sem a lembrança dos tempos idos. Desencadeia-se, portanto,
por intermédio dos historiadores e historiadoras em foco, um combate
no e pelo tempo.
História e memória
Artigos
co, a instância desmistificadora das tradições e naturalizações realizadas
por outros atores. Dependendo dos sujeitos envolvidos, das disputas em
pauta e dos contextos institucionais, ela pode funcionar como a estratégia
narrativa, legitimada pela disciplina e pela ciência, que erige e consagra
determinados fundadores, escolas e bandeiras. E aqui a sedução da memó-
ria pode ser irresistível, criando a figura de “memoriadores”.47 Ao dialogar
com a categoria de “memória disciplinar”, Fernando Nicolazzi captou
bem tal possibilidade: “Assim, a história da historiografia pode justamente
atentar para as construções e reconstruções da memória disciplinar que
sustenta no tempo o conhecimento histórico, inclusive percebendo como
ela própria, na sua tarefa desmistificadora, acaba também por engendrar
memórias disciplinares, algumas mais consistentes que outras, se afastando
de algumas tradições e inventando ou reinventando outras”.48
Desse modo, Maria Helena Rolim Capelato, Raquel Glezer e Vera
Lucia Amaral Ferlini, como um bricoleur, selecionaram e montaram peças
amputadas do passado para erigir uma história da historiografia produzida
na USP. Ao levarem adiante tal bricolagem, fizeram mais do que contar
uma história: vocalizaram uma identidade própria. História, memória e
identidade – num jogo sinuoso e sincrético de saber e poder em que cada
um dos termos se retroalimenta – são os elementos essenciais para se
compreender a produção historiográfica em questão. “A escola uspiana
de história” anuncia, desde o seu título, uma identidade já dada, a priori,
como se o seu trabalho fosse apenas o de historicizá-la, como quem conta 47
Ver HUYSSEN, Andreas. Cul-
turas passado-presente: moder-
histórias sobre pessoas e acontecimentos acerca de cuja existência, no pas-
nismo, artes visuais, políticas
sado e no presente, ninguém duvida. da memória. Rio de Janeiro:
Escrito em um momento no qual a historiografia brasileira colhia Contraponto, 2014, p. 13.
Artigos
afirmação do “DNA uspiano” de pesquisa histórica.
Conforme ressalta Pierre Bourdieu, o conceito de identidade é reivin-
dicado sempre em um contexto de batalha simbólica, de luta pelo direito
de enunciação de si, dos outros e da realidade, instituindo determinadas
visões e valores.57 O front de guerra é o nascedouro do reclame identitário,
de modo que este só vem à baila no tumulto dos conflitos e adormece e emu-
dece apenas no momento em que desaparecem os ruídos da peleja. Afinal,
não foi em uma conjuntura bélica que a pretendida “atividade uspiana de
pesquisa” e “A escola uspiana de história” encontraram sua condição de
dizibilidade? Os historiadores e historiadoras da USP, ameaçados, ontem
e hoje, procuraram se apegar e se firmar na crença de um ethos próprio e
particular. Memória, história e identidade: termos que asseguram ilusões de
permanência em meio ao tempo voraz, formas de recolher e tentar juntar os
pedaços de um ser que se fragmenta e se dispersa na neblina da existência.
57
Ver BOURDIEU, Pierre. Iden-
tidade e representação: elemen-
tos para uma reflexão crítica
sobre a ideia de região. In: O
poder simbólico. 5. ed. Rio de
Janeiro: Bertrand Brasil, 2002.
a Editora
L&PM nos
anos 1970
L&PM Editores. Perfil do Facebook, s/d, fotografia (detalhe).
Flamarion Maués
Doutor em História pela Universidade de São Paulo (USP). Professor de História no
Instituto Federal de São Paulo, campus Registro. É autor, entre outras obras, de Livros
que tomam partido – edição e revolução em Portugal: 1968-1980. Lisboa: Parsifal, 2019.
flamaues@gmail.com
Edição e engajamento político: a Editora L&PM nos anos 19701
Edition and political engagement: the L&PM publishing house in the 1970s
Flamarion Maués
resumo abstract
Este artigo discute a fusão entre ação This article discusses the merger between
editorial e engajamento político opo- editorial action and opposition political
sicionista no Brasil na década de 1970, engagement in Brazil in the 1970s, during
durante a ditadura iniciada em 1964, the dictatorship begun in 1964, analyzing
analisando a atuação dos editores res- the performance of editors responsible for
ponsáveis pela Editora L&PM, de Porto Publishing House L&PM, from Porto
Alegre, criada em 1974, e procurando Alegre, created in 1974,and trying to
entender como essa ação a transformou understand how this action transformed it
em uma casa editorial politicamente into an editorial house politically active, in
ativa, em âmbito regional e nacional. regional and national scope. I believe that
Acredito que este estudo colaborará this study will contribute to the unders-
para a compreensão da síntese entre tanding of the synthesis between editing
edição e política no Brasil no período and politics in Brazil in the final period of
final da ditadura, bem como das rela- the dictatorship installed in 1964, and of
ções e mediações então estabelecidas. the relations and mediations that provided
Além disso, permitirá uma reflexão such synthesis. In addition, it will allow
sobre o papel que a edição política a reflection on the role that the political
desempenhou no Brasil, buscando uma edition played in Brazil, seeking a broader
visão mais ampla do seu significado. understanding of its meaning.
palavras-chave: edição política; his- keywords: political edition; editorial
tória editorial no Brasil; editoras de history in Brazil; opposition publishers.
oposição.
℘
Este trabalho se insere em uma série de estudos que venho desen-
volvendo sobre a edição política no Brasil e em Portugal, nos anos 1970 e
1980, buscando, em perspectiva comparada, o entendimento de como se
deu a síntese entre edição e política nesses dois países, permitindo uma
visão mais concreta das relações e mediações estabelecidas, bem como do
papel dos editores nesse processo. A partir da análise da história da L&PM,
destacarei como as ações de seus editores no campo editorial vinculavam-se
1
Este texto é parte do estágio ao seu engajamento político, mas sem subordinar um aspecto ao outro, ou
pós-doutoral desenvolvido
na Escola de Artes, Ciências seja, compreendendo também que a ação editorial guarda certa autonomia
e Humanidades da Universi- em relação à política, mesmo quando ela é politicamente comprometida.
dade de São Paulo (USP), sob
supervisão da professora San-
Assim, será possível trazer à tona uma parte do papel dos editores de livros
dra Reimão, e que contou com políticos no Brasil no período final da ditadura, destacando como a sua
apoio de bolsa da Fundação de ação editorial, ou seja, sua atuação no campo da cultura e da comunicação,
Apoio à Pesquisa do Estado de
São Paulo (Fapesp). tornou-se um importante elemento naquela luta.
Artigos
desempenhou no Brasil, buscando uma compreensão mais ampla do seu
significado. Procuraremos também entender como alguns aspectos pecu-
liares da conjuntura política e do mercado editorial influenciaram a ação
dos editores da L&PM.
Editoras de oposição
Artigos
maneira criativa e militante”.13
Seus editores (que eram também os proprietários) apresentavam três
perfis de editor muito diferentes: o empresário (Giangiacomo Feltrinelli),
o intelectual (François Maspero) e o editor literário (Klaus Wagenbach).14
E representavam também três modelos específicos de edição política: a
grande casa de edição profissional (Feltrinelli), o livreiro-editor (Maspero)
e a pequena casa de edição literária (Wagenbach).15 São editoras “engajadas
politicamente, e nas quais esta orientação constitui a sua razão de ser e
estrutura o seu catálogo”.16 Assim, “se a literatura permaneceu no centro
das preocupações desses atores, ela por vezes ficou em segundo plano
em benefício de uma produção mais diretamente política e pragmática,
imediatamente relacionada com a atualidade”.17
Hage conclui que essas editoras “contribuíram para a renovação da
oferta editorial, para a promoção do documento político e dos textos teóri-
cos, para novas formas de paraliteratura, e de ciências sociais e militantes”,
em um contexto “de um compromisso resoluto na promoção do livro a
custo acessível”.18 E é pela interação entre esta oferta editorial renovada e
“uma demanda social pontual ou duradouramente politizada que se pode
sem dúvida definir melhor o livro político, assim como por uma série de
características que fundamentam uma natureza ou um ‘tipo’ muito bem
definido e determinado”.19
Ao analisar de forma mais ampla a edição política, Hage destaca a
forte determinação simbólica e política das obras publicadas pelas editoras
políticas como uma das bases de identidade destas editoras, “forjadas tanto
por suas estratégias editoriais como por seus engajamentos militantes”.20 E
afirma que a valorização dos elementos paratextuais é uma das suas caracte- 13
Idem, François Maspero,
rísticas principais, particularmente por meio de recursos como os prefácios éditeur partisan. Contretemps,
n. 15, Paris, fev. 2006, p. 104.
e o aparelho crítico (notas explicativas, por exemplo). “A multiplicação e Disponível em <http://www.
enriquecimento destes paratextos [...] sublinham uma politização crescente contretemps.eu/wp-content/
da oferta editorial, assim como um alargamento dos públicos visados, que uploads/Contretemps%2015.
pdf>. Acesso em 24 out. 2012.
resultam em uma complexificação das estratégias editoriais”.21
14
Ver idem, Collections politi-
Outra experiência editorial significativa em meu quadro de referên- ques et effets de sens, op. cit.
cias, por suas características particulares, é a da La Cité Éditeur, editora
Ver idem, Julien. Feltrinelli,
15
militante suíça criada por Nils Andersson em 1958. François Valloton Maspero, Wagenbach, op. cit.
relaciona o surgimento da La Cité à emergência de “uma nova geração 16
Idem, François Maspero,
de editores europeus que, no contexto da descolonização e das transfor- éditeur partisan, op. cit., p. 104.
mações na extrema-esquerda internacional, vão associar de modo estreito 17
Idem, Julien. Collections poli-
engajamento político e editorial”.22 Entre esses editores estariam, além tiques et effets de sens, op. cit.,
p. 6.
de Andersson, François Maspero e Jérôme Lindon (Éditions du Minuit)
18
Idem.
na França, Giangiacomo Feltrinelli na Itália e, alguns anos depois, Klaus
Wagenbach na Alemanha. Eles levaram adiante “o mesmo combate
19
Idem.
O Rango era muito gozado porque ele era super-radical, contra o sistema, era um
miserável que vivia dentro de uma lata de lixo e de lá ele fazia filosofia a respeito
da pobreza, a respeito do país, tudo que acontecia ele comentava, sempre do viés
Artigos
odiado pela direita, mas paradoxalmente era publicado no jornal mais conservador
de Porto Alegre, e pelo cara mais poderoso do estado, que era o Breno Caldas,
dono da Companhia Caldas Júnior. Era publicado na Folha da Manhã, que era
o jornal “moderno” da Caldas Júnior, que publicava o tradicionalíssimo e cente-
nário Correio do Povo. Então, isso era contraditório, ninguém entendia como o
Breno Caldas permitia publicar. E como era publicado no jornal do Breno Caldas,
a própria censura, a repressão, tinha medo de meter a mão, entende? Então ele ia
publicando lá o Rango.28
O evento foi no mês de agosto, pouco mais de três meses antes das
eleições de novembro de 1974 que marcaram uma grande vitória do partido
da oposição, o MDB (Movimento Democrático Brasileiro), inclusive no Rio
Grande do Sul, onde Paulo Brossard foi eleito senador. O lançamento, na
memória de Machado, tornou-se um grande ato de reunião de todos os
setores de oposição no estado.
Logo em seguida, outro fato veio marcar este primeiro momento da
L&PM. A Feira do Livro Porto Alegre, tradicional evento da cidade, que
ocorre anualmente no mês de outubro desde 1955. A L&PM, que havia lan-
çado em agosto de 1974 Rango, vai participar de sua primeira feira naquele
ano. E não passou despercebida: seu único livro foi o mais o mais vendido
durante o evento. Machado e Lima alugaram uma Kombi e colocaram na
praça onde se realizava a feira. “E tiramos outra edição, antes da feira, aí
já foi numa gráfica, foi uma briga pra conseguir chegar no mesmo marrom
da primeira edição, até que chegamos num marrom parecido. E foi o livro
mais vendido da Feira do Livro”, conta Machado.34
Durante esses primeiros momentos da L&PM a editora não tinha
sede, funcionava numa sala improvisada no escritório de advocacia do pai
de Ivan. Apesar desse sucesso inicial, a editora não garantia o sustento dos
proprietários. Machado relata que só foram “viver da editora muito tempo
depois”. Segundo ele, “durante certo tempo a gente subsidiava o nosso
trabalho fazendo trabalhos fora da editora. Eu trabalhei como jornalista,
tanto com fotografia como com texto, trabalhei em muitos veículos aqui
de Porto Alegre, as sucursais... Pra ganhar a vida”.35
Mas o sucesso de Rango teve também o seu preço. A repercussão da
obra chamou a atenção da censura, que se sentia incomodada por um per-
sonagem cuja característica maior era ser miserável e faminto, numa época
de “Brasil grande potência” e de “milagre econômico”. E os procedimenos
habituais de intimidação foram colocados em prática:
Entrementes, eu fui chamado à Polícia Federal [...] me chamaram pra prestar escla-
recimentos sobre uma obra que estava sendo lançada ilegalmente. Eles não podiam
Artigos
Como o formato era um formato meio estranho36, eles inventaram que era uma
revista. E como revista, na época, tinha que ter o registro junto à Polícia Federal,
tinha que ter um registro especial pra circular... e a gente não tinha esse registro,
obviamente, porque era um livro.37
Aí o cara me chama e diz: “Nós vamos apreender esse negócio”. E aí nós arma-
mos um esquema, porque o grande medo era entrar [no interrogatório] e não
sair... então armamos um grande esquema em que até o Érico Verissimo estava
no meio, estava todo mundo em alerta com a minha entrada na PF, e o Érico,
que era muito amigo do pai do Lima, inclusive fez o prefácio do Rango... O
Érico era um cara importante, escritor, então qualquer rolo, se eu demorasse a
sair lá da Polícia Federal, iam mobilizar o pessoal. [...] E o cara da PF começa a
ler na minha frente. Eu sentado... O livro tinha 80 páginas, ele folheava, folha
por folha. E falava: “O que é isso aqui? Piada de coronel, isso não dá, isso é um
lixo”. E folheava, e folheava... e quando chegou no final ele disse: “Nós vamos
recolher porque isso aí não é livro, é revista”. E eu disse: “Não, doutor (tinha
que chamar de doutor), isso aí é livro”. “Não é nada, desde quando livro é essa
porra! Grampeado, porra!”. Aí eu disse. “O senhor leia o prefácio!”. E aí foi
um negócio sensacional, inesquecível, porque no prefácio o Érico abre assim:
“Recomendo este livro com o maior entusiasmo”. E eu disse: “É o Érico Veris-
simo quem está dizendo”. Aí deu um rolo na cabeça do cara da PF. Pô, o Érico
Verissimo dizendo que era um livro? Ele me olhou com uma cara de ódio e disse:
“Olha, te manda daqui. Pega essa tua imundície. Tu te livrou dessa vez, agora
abre o teu olho, guri”. Eu lembro dele dizendo isso.38
Diante do êxito obtido com Rango, Lima e Machado viram que seria
possível pensar seriamente em se tornarem editores profissionais. “De
repente, tu és o campeão de vendas da Feira do Livro. O que fazer depois 36
O livro tem o formato de 15,5
cm X 22,5 cm, mas o que o dife-
disso? Editar outro livro. Ganhar dinheiro a gente nunca ganhou (risos). rencia dos livros em geral é que
O que conseguimos fazer foi montar uma empresa e viver dessa empresa. ele deve ser lido na horizontal,
Isso custou mais de 10 anos”.39 ou seja, a lombada do livro é na
parte menor (15,5 cm).
O humor marcou o início da L&PM e a editora prosseguiu nessa linha.
37
MACHADO, Ivan Pinheiro,
Além da sequência da série Rango, foram lançadas obras como Tubarão parte op. cit.
II, coletânea de Luis Fernando Veríssimo, Edgar Vasques, Fraga, Ronaldo, 38
Idem.
Juska, Merten, Santiago, R. Pereira, Canini, Batisow, Marco Aurélio, em
Idem apud LUCHESE, Alexan-
39
1976; Nobre do princípio ao fim, de Carlos Nobre (1976) e O time do bagaço, de dre, op. cit.
Zequinha (1976). Essa linha se consolidou nesse ano com a edição dos dois 40
Ver CAPORAL, Angela. De
volumes da Antologia do humor, obra que reunia 82 humoristas brasileiros. Edgar Vasques a Woody Allen.
Posteriormente autores como Millôr Fernandes, Caulus e Luis Fernando Jornal do Brasil, 20 maio 1978.
Disponível em <http://bndigi-
Verissimo tornariam a L&PM uma referência nacional em livros de humor.40 tal.bn.br/acervodigital>. Acesso
Para Machado, “Apesar da feroz censura que havia na época, tinha uma em 1 abr. 2015.
O Gasparian inventou esse negócio. Ele tinha know-how de censura, por causa do
Opinião. [...] O Gasparian chega um dia e me diz: vamos pegar os discursos dos
caras e vamos publicar. Aí ele começou com o Marcos Freire, depois ele publicou
outros. E nós publicamos o Simon, o Brossard, o Teotônio Vilela, que era o cara
do outro lado que passou pro nosso lado. Era uma figura emblemática da oposição,
porque era o cara que era da Arena e que recusou a ditadura. Publicamos dele A
pregação da liberdade [1977], na época ele ainda era da Arena.45
Artigos
Simon, presidente do Diretório Estadual gaúcho do partido.Brossard lan-
çaria, sempre pela L&PM, mais três livros do mesmo tipo: O ballet proibido
(1976), É hora de mudar (1977) e Chega de arbítrio (1978), que alcançaram
grande sucesso de vendas, tendo figurado por várias semanas nas listas
de livros mais vendidos de não ficção da revista Veja e do jornal Leia Livros.
O sucesso dos livros de Paulo Brossard teve dois aspectos funda-
mentais para a L&PM: a consolidou como uma editora de oposição, já que
o senador era uma das principais vozes de denúncia das arbitrariedades
no parlamento; ao mesmo tempo, representou um grande apoio econô-
mico à editora, uma vez que não foi necessário pagar direitos autorais
ao autor. De acordo com Machado, “O Brossard nunca cobrou direitos
autorais, e vendeu muito livro! Nunca quis receber!”.46 Isso se devia
basicamente à relação de amizade que havia entre Brossard e o pai de
Paulo Lima. Desse modo, sem dúvida Brossard colaborou muito para o
desenvolvimento da editora e para sua saúde financeira. E nessa linha de
livros de parlamentares, houve ainda Pregação da liberdade, de Teotônio
Vilela, lançado em 1977. Vilela era senador por Alagoas, tornara-se um
dissidente da Arena (o partido do governo) e viria a ser um dos líderes
da luta pela anistia.
Depois dos dois primeiros anos de atividade quase semiamadora,
a L&PM começou a se organizar de forma mais profissional. A partir de
1977 a L&PM passou a editar obras de autores de literatura e teatro: Josué
Guimarães (É tarde para saber, 1977; Enquanto a noite não chega, 1978), Millôr
Ferandes (Devora-me ou te decifro; É..., 1977; Flávia, cabeça, troncos; A história
é uma história, 1978), Moacyr Scliar (Mês de cães danados, 1977; Deuses de
Raquel, 1978), Mario Quintana (Pé de pilão; A vaca e o hipogrifo; e Esconderijos
do tempo, 1980) eram alguns dos autores brasileiros, aos quais se juntaram,
no final da década de 1970, os estrangeiros Woody Allen (Cuca fundida;
Nada e mais alguma coisa, 1978; Sem plumas, 1979), Eduardo Galeano, Carlos
Fuentes e Adolfo Bioy Casares, entre outros.
Em abril de 1977, a edição do livro 1964 visto e comentado pela Casa
Branca, do jornalista Marcos Sá Correa, que tratava da Operação Brother
Sam em 1964, gerou certo receio nos editores da L&PM. “A gente come-
çou a ter problema de ser seguido, tinha uns caras que ficavam na frente
do escritório [...]. Aí fomos para o Rio de Janeiro, eu e o Lima. E quando
livro saiu a gente achou que ele ia ser apreendido, mas não foi”, relembra
Machado.47
As memórias do general
Aí eu li o livro e eu me apavorei. Eu até dei uma censurada. Isso é uma coisa que
eu nunca disse, eu tirei umas coisas que ele falava, algumas poucas coisinhas, por-
que eu falei, isso vai... Porque ele dizia horrores do Médici, do Costa e Silva – dele
dizia que era viciado em jogo e corno; era daí pra baixo. [...] Uma das coisas que
eu tirei, por exemplo... Ele chegava e dizia assim: “O filho da puta do Médici”. Eu
não posso botar isso. Eu tirei o “filho da puta”.A a história que me perdoe, mas não
eram as bolas dele que estavam em jogo, eram as minhas. E mesmo assim o livro
foi apreendido. A orientação que eu tinha do advogado, meu pai, com esse livro, é
que devíamos tirar aquilo que pudesse dar motivo a uma apreensão não política.51
Meu pai estava no fórum quando viu uma movimentação, foi ver o que era, e alguém
disse a ele que estavam fazendo a apreensão de um livro em segredo de justiça. [...]
Aí ele nos ligou e disse que iam prender o livro: “Vão pra lá, avisem a imprensa”.
Aí nós avisamos a sucursal d’O Estado de S. Paulo, d’O Globo, do Jornal do
Brasil, todo mundo, e aí os jornalistas foram pra lá, e chegaram junto com a polícia.
Foi um rolo. [...] A polícia chega e diz: “O senhor é o editor? Então o senhor está
detido”. [...] Tudo isso era na expedição da gráfica, então os carros estavam todos
por ali, bem perto do lugar onde o livro estava sendo apreendido. [...] Quando eles
[os policiais] foram lacrar os livros, eu falei com o Aramis, que era o motorista, e a
Ângela Caporal, que era a repórter do Jornal do Brasil... falei pra Ângela: “Fala
pro Aramis que eu vou me atirar ali atrás”. O carro deles era uma Brasília. “Vamos
ver o que acontece”. E ela falou: “Por mim tudo bem”. Eu fui saindo devagarinho,
ninguém estava olhando e eu pum! E a Brasília ainda não era quatro portas, tinha
que abrir, e eu abri, empurrei o banco e mergulhei. E fiquei lá. E o Aramis foi saindo,
saindo, e eu fui embora.53
Artigos
seis meses depois: “Houve uma batalha judicial e o meu pai fez um traba-
lho incrível, conseguiu uma liminar. Como era uma liminar ficamos com
medo de que ela fosse cassada. Então armamos um superesquema com a
Varig – a velha e gloriosa Varig –, nós tínhamos amigos lá, e eles disseram
que iam armar um esquema em que a polícia não ia conseguir entrar [para
impedir a distribuição do livro]”.54
O livro tornou-se imediatamente um best-seller, inclusive graças à
repercussão que a sua apreensão em 1978 havia tido, gerando grande
expectativa em torno da obra. Ela apareceu pela primeira vez na lista dos
livros mais vendidos de não ficção da revista Veja em 15 de fevereiro de
1979, já em segundo lugar. E nela permaneceu por mais de 8 meses.
Entre 1979 e 1984 a L&PM editou a revista Oitenta, que teve nove
edições e era publicada no formato de livro, reunindo ensaios, artigos,
entrevistas, resenhas de livros e quadrinhos. Os editores da revista eram
Ivan Pinheiro Machado, José Antonio Pinheiro Machado, Paulo de Almeida
Lima, Eduardo Bueno, José Onofre e Jorge Polydoro.55
Machado lembra com orgulho da revista:
Artigos
e pelo bom acabamento dos livros (costurados e colados, e com papel de
qualidade).
A L&PM foi uma editora criada por jovens com o objetivo de par-
ticipação política e cultural, em uma situação de repressão e ditadura.
Sem ter sido inicialmente pensada como um empreendimento comercial
de fôlego, acabou descobrindo um nicho de atuação que fez com que al-
cançasse sucesso imediato e, por isso, deu continuidade a suas iniciativas
buscando aproveitar e ampliar o espaço aberto pelo seu primeiro título,
Rango. Foi a partir disso que surgiram planos mais amplos e audaciosos,
tanto politicamente como comercialmente.
Desde seu primeiro lançamento, a L&PM marcou seu perfil político
e de oposição à ditadura. Mas certamente foi com a Coleção Política, de
livros de parlamentares de oposição – com destaque para o gaúcho Paulo
Brossard –, que esse perfil se consolidou, ao mesmo tempo que o sucesso
desses livros fez repercutir a ação da editora nacionalmente e colaborou
decisivamente para o êxito comercial da L&PM. As obras de Paulo Bros-
sard formaram um conjunto de quatro livros, editados entre 1975 e 1978,
que tiveram ampla repercussão e ótima vendagem, mostrando a aceitação
que tinham junto a uma parcela do público leitor, e mostrando também
que foram um eficiente instrumento de reverberação da ação parlamentar
da oposição, levando mais longe os discursos proferidos no parlamento e
que, até a sua edição em livro, estavam disponíveis somente aos leitores
do Diário Oficial.
Pinheiro Machado recorda do clima político do momento em que
esses livros foram lançados: “Eu acho que a gente tinha medo, é óbvio que
tinha medo. Mas a gente fazia as coisas. [...] Mas sempre tinha um certo
receio. Eu tinha mais cuidado, porque tinha minha história familiar, meu
pai tinha sido preso várias vezes, meu irmão tinha sido preso”.66
Com a edição dessas obras, a L&PM ajudou a abrir um novo espaço
no campo editorial brasileiro para os livros políticos, que ganhavam cada
vez mais destaque. A imprensa registrou esse movimento editorial e o
sucesso de vendas que ele obteve, como podemos ver neste comentário:
“A política como tema capaz de levar aos primeiros lugares nas paradas
de sucessos literários, eis uma surpresa impossível de ser adivinhada para
este 13º ano [1977] do regime instalado em 1964”.67
Esse ressurgimento de livros sobre a conjuntura política, e ainda
por cima com um caráter francamente crítico ao governo ditatorial, mar-
cava uma mudança, ainda que limitada, no clima político do país, o que
também era registrado pela imprensa: “A ressurreição dos livros políticos
revela, em última análise, que a situação, por pior que esteja, está muito 66
MACHADO, Ivan Pinheiro,
longe da época em que não se falava nem se escrevia por puro e simples op. cit.
medo”.68 Para Pinheiro Machado, “Todos esses livros eram atos políticos, 67
GAJARDONI, Almyr. Tempo
e geraram eventos políticos, lançamentos, noite de autógrafos”.69 Assim, de política. Veja, São Paulo, 15
jun. 1977, p. 119.
constatamos que a atuação de algumas editoras de livros, entre as quais a
ABADE, João. As livrarias
68
L&PM, colaborou nessa alteração da situação política nacional, ao mesmo
como tribuna. Jornal do Brasil,
tempo em que refletia tais mudanças, ousando cada vez mais politicamente, Rio de Janeiro, 31 dez. 1977.
com novos lançamentos que denunciavam as arbitrariedades às quais os 69
MACHADO, Ivan Pinheiro,
brasileiros ainda estavam submetidos. op. cit.
Acho que a L&PM é a editora que sobrou daquela época, ou seja, que não mudou
o seu caráter e a sua personalidade. Nós somos uma evolução daquilo que a gente
começou lá na década de 1970. Acho que a própria linha editorial da editora sempre
foi coerente com um pensamento cultural democrático, de liberdade de valores hu-
manísticos, ela nunca se afastou disso. A gente nunca optou por questões comerciais
em detrimento deste nosso caráter, desta nossa ideia de trabalho, e de vida também.70
A gente fez o que achava que tinha que fazer. Ninguém estava ali querendo entrar
pra história. Era uma parte de uma geração que tentou se expressar de alguma forma
e protestar, enfim, incomodar. A gente incomodou muito, tenho muito orgulho disso.
Claro que teve outros, como o Ênio Silveira, o Fernando Gasparian, que foram caras
que estavam nos centros maiores, Rio e São Paulo, que eram muito mais visados do
que nós. Mas a gente também não estava pensando em ser mais do que ninguém.
A gente fez o que podia fazer, e o que achava que podia fazer. [...] A editora sempre
foi uma expressão do que a gente achava.71
Artigos
(Distribuidora de Livros Digitais), ao lado das editoras Record, Objetiva,
Sextante, Rocco e Planeta.72
72
Em 2017 a DLD foi comprada
pela Bookwire Brasil, filial na-
cional da distribuidora de con-
teúdo digital alemã Bookwire.
Ver KOIKE, Beth. DLD, de livro
digital, é vendida para Bookwi-
re Brasil. Valor Econômico, São
Paulo, 1 out. 2017. Disponível
em <https://valor.globo.com/
empresas/noticia/2017/10/01/
dld-de-livro-digital-e-vendida-
-para-bookwire-brasil.ghtml>.
Acesso em 20 set. 2019.
resumo abstract
O objetivo deste artigo é traçar uma This article reflects about the racial is-
reflexão sobre a questão racial na sue in the intellectual production of the
produção intelectual da Campanha de Campaign for the Defense of Brazilian
Defesa do Folclore Brasileiro (CDFB) Folklore (CDFB, as per its Portuguese
e verificar até que ponto a identidade acronym) and explores to what extent the
negra em torno das religiões de matri- black identity built around African-derived
zes africanas foi ou não afirmada no religions was or not asserted in the national
discurso nacional. Para tanto, as fontes discourse. To this end, the sources analyzed
analisadas se basearam em alguns were based on a number of articles from
artigos contidos na Revista Brasileira the Revista Brasileira de Folclore and on
de Folclore e nos catálogos da exposição the exhibition hosted by the Campaign for
do Museu da Campanha de Defesa the Defense of Brazilian Folklore Museum
do Folclore Brasileiro (MCDFB). A (MCDFB as per its Portuguese acronym).
abordagem comparativa fundamentou The study methodology was a comparative
a metodologia do estudo. A pesquisa approach. The research identified that, du-
1
Ver GRYNSPAN, Mário. Ci- permitiu identificar que, no momento ring the period when the CDFB intellectual
ência, política e trajetórias sociais:
em que a produção intelectual da CDFB production built national identity through
uma sociologia histórica as
elites. Rio de Janeiro: Edito- operou a construção da identidade na- folklore, the racial conflicts involving those
ra Fundação Getúlio Vargas, cional pela via do folclore, os conflitos religions were concealed, and the black
1999. O conceito de elites é
uma categoria instrumental raciais que envolviam aquelas religiões identity was asserted in a different way.
que deve ser contextualizado foram ocultados, reafirmando de um
para ser compreendido. No
modo diferente a identidade negra.
campo das Ciências Sociais e
da História, ele é polivalente palavras-chave: Revista Brasileira de keywords: Revista Brasileira de Folclo-
e assume diferentes faces de Folclore; Museu da Campanha de De- re; Campaign for the Defense of Brazilian
acordo com o substantivo que
o qualifica. Isso se dá porque fesa do Folclore Brasileiro; identidade Folklore Museum; black identity.
o termo elites pode se referir a negra.
um segmento, seja político, eco-
nômico, militar, jurídico, entre
℘
outros. Em sentido genérico, o
conceito se refere aos setores
que estão no topo da hierarquia
social, detendo privilégios
variados. O que chamamos de
elites brancas, neste trabalho,
A formação do campo de estudos sobre o folclore e o negro no Bra-
se liga aos setores dirigentes
que, ao elaborarem um projeto sil associou-se ao processo de construção da identidade nacional, o qual,
de nação, privilegiaram a si simultaneamente, definiu o “outro” na abordagem sobre a nacionalidade.
próprios como protagonistas
no discurso da identidade Esse “outro” eram os setores não pertencentes ao universo das elites bran-
nacional em detrimento dos cas1: os índios e os negros em particular. O antropólogo Vagner Gonçalves
segmentos negros, mas tam-
da Silva, por exemplo, assinalou que os estudos sobre o folclore no Brasil
bém dos indígenas, que ficaram
em posições subalternas. Esses surgiram, no século XIX, vinculados à literatura. Para o autor, na prática
grupos excluídos vieram a intelectual brasileira, desde os Oitocentos, o folclore havia se tornado um
ser denominados, por certos
historiadores, como o “outro” campo de estudos dos segmentos não pertencentes ao universo das elites,
no discurso da nação. os não “letrados”, e nesta classificação estavam inclusos negros e índios.
Artigos
clore” para designar as tradições culturais, ou seu estudo, produzidas pelas camadas
“não ilustradas” da população e tidas como espontâneas e preservadas em contos
lendas, mitos festas, etc.
[...] As manifestações culturais do negro, por preencherem essas definições, foram
particularmente alvo dos primeiros estudos de folclore no Brasil, como os de Sílvio
Romero, nos quais se ressaltou a contribuição dos africanos na literatura nacional.2
Este Congresso tem por fim estudar a influência do elemento africano no desenvol-
vimento do Brasil, sob o ponto de vista da etnografia, do folclore, da arte, da antro-
pologia, da história, da sociologia, do direito, da psicologia social, enfim, de todos
os problemas de relações de raça no país. Eminentemente científico, mas também
eminentemente popular, o Congresso não reúne apenas trabalhos de especialistas e
intelectuais do Brasil e do estrangeiro, mas também interessa a massa popular, aos
elementos ligados por tradições de cultura, por atavismo ou por quaisquer outras
razões, à própria vida artística, econômica, e religiosa do Negro no Brasil.12
Artigos
exatamente essa descoberta do “outro” e a sua inscrição na nacionalidade.
Outra iniciativa importante no desenvolvimento nos estudos sobre
o negro e o folclore foi a criação da revista Cultura Política. Ao longo do
período de sua circulação (1941-1945), esse periódico, editado no Rio de
Janeiro por Almir de Andrade, sob as bênçãos do Departamento de Im-
prensa e Propaganda do Estado Novo, publicou 151 números com textos
sobre a evolução social e política do Brasil, além de propagar os feitos do
governo Vargas. O folclore e o negro faziam-se presentes, sobretudo, nas
seções com o subtítulo de “a evolução social”, cujos artigos apresentavam
o título de “o povo brasileiro através do folclore”. Objetivava-se, dessa
forma, por meio do folclore, retratar um “rosto” para o Brasil em uma
perspectiva evolucionista. O autor de grande parte desses artigos foi Basílio
de Magalhães, que nasceu em Barbacena em 1874 e se formou em Enge-
nharia pela Escola de Minas em Ouro Preto. Em seus textos, ao abordar
o folclore, inscrevia as religiões de matrizes africanas em um conjunto de
crenças pertencentes a uma coletividade, a brasileira, reforçando a relação
entre folclore e nacionalidade. Lia-se, então, na chamada do artigo, feita
pela editoria da revista:
Em sua crônica inaugural reproduziu o autor uma sinopse dos folcloristas argen-
tinos Rafael Jijena Sánches e Bruno Jacovella, sobre a qual tenciona basear as suas
explanações acerca do folclore brasileiro. Distingue aqueles escritores o folclore
espiritual do folclore etnográfico. Para a crônica de hoje escolheu o autor a letra “d”
da primeira divisão, ou seja, o folclore místico religioso do Brasil. Inicia ele assim,
o estudo das nossas crendices e superstições, da teologia e devoções do nosso povo:
devoções aos santos, misturados ao fetichismo ameríndio e africano.13
Artigos
cinquenta e oito, no Salão nobre do Palácio da Educação, foi solenemente instalada,
pelo Senhor Ministro da Educação e Cultura, Professor Clóvis Salgado, a Campanha
de Defesa do Folclore Brasileiro, instituída pelo Decreto de número 43.178 de 05
de fevereiro de 1958 com a posse de membros do Conselho técnico do folclore órgão
dirigente daquela Campanha, designados por portarias ministeriais publicadas no
Diário Oficial de cinco de agosto de mil novecentos e cinquenta e oito, a saber: Mozart
de Araújo, membro e Diretor Executivo da Campanha, Renato Almeida, membro
nato, na qualidade de Secretário Geral da Comissão Nacional de Folclore, Manoel
Diegues Júnior, este ausente por doença, Édison Carneiro e Joaquim Ribeiro.20
Três correntes étnicas, portanto, apresentando exteriormente, cada uma delas, re-
lativa unidade, mas jamais uniformização, portadoras, no fundo, de diversificadas
condições culturais – e, no caso, os mais variados níveis de cultura –, trouxeram
sua contribuição para a formação do Brasil; não só a sua formação populacional,
mas também a sua formação cultural. O folclore brasileiro é basicamente o produto
dessas três correntes, sem que se possa esconder o alicerce fundamental em que as-
sentou; e que foi sem dúvida, o elemento português. Natural que assim sucedesse,
por diversas razões. Em primeiro lugar, sendo a cultura mais adiantada, seria claro
que se tornasse a preponderante, ou quando menos, a mais importante sem prejuízo
da aceitação de valores culturais oriundos das outras correntes. [...] Surgiu, assim,
desse entrelaçamento, ao contacto dos três grupos que aqui se encontraram, num
momento histórico, os fundamentos do nosso folclore. E em consequência esse fol-
clore se tornou um produto mestiço, um resultado disso que poderíamos chamar de
mestiçamento cultural; ou, mais exatamente transculturação, que representa, no
fundo, toda a formação brasileira.25
Artigos
via do folclore, apresentava-se como tema central na produção desses
intelectuais exatamente num contexto em que as teorias raciais do século
XIX eram vistas como ultrapassadas. O antropólogo Kabengele Munanga
analisou o discurso da identidade de um país mestiço, tendo como ponto
de partida o ocultamento dos conflitos raciais e os impactos sobre a rea-
firmação da identidade negra. No caso da identidade nacional brasileira,
tais impactos são sentidos, acima de tudo, pelos efeitos da ideia de um país
mestiço que põe a identidade negra na condição de subordinada perante
à identidade nacional, porque, por serem mestiças, as heranças africanas
acabam sendo suprimidas.
O negro se integrou ao folclore brasileiro pelos folk-ways que carreou e pela adap-
tação com outros povos formadores da nacionalidade. Não foi uma contribuição
tranquila nem ordenada, como em certos aspectos a portuguesa, mas intensa e
confusa, na qual dada, sobretudo, a sua condição de escravo, teria de cingir-se
às variáveis condições do meio, onde era o elemento servil. E a penetração dos
26
MUNANGA, Kabengele. Re-
elementos afróides não veio apenas de sua presença, mas do seu próprio valor, pois discutindo a mestiçagem no Brasil:
a formação brasileira foi beneficiada pelo melhor da cultura negra na África, como identidade nacional versus
observa Gilberto Freyre. E isso, explica a importância e persistência do negro no identidade negra. Belo Hori-
zonte: Autêntica, 2004, p. 89.
Brasil. Em todas as manifestações do nosso folclore, quer na cultural espiritual,
ALMEIDA, Plínio. Pequenas
27
quer na material, a presença do negro é constante e, com a sua facilidade extrema histórias de Macu-lê-lê. Revista
de adaptar, apropriou-se de um sem-número de fatos e lhes deu o seu estilo, a tal Brasileira de Folclore, v. 6, n. 16,
ponto que os tornou coisa sua.28 set.-dez. 1966, p. 268.
28
ALMEIDA, Renato. O fol-
clore negro do Brasil. Revista
Já em 1970, a RBF, em sua seção de notícias, referiu-se ao decreto-lei Brasileira de Folclore, v. 8, n. 21,
1.100-A/63, que instituía a comemoração do “Dia da Mãe Preta”. A abor- maio-ago. 1968, p. 105.
Artigos
raciais e, portanto, negros e índios não deveriam ser apresentados nessas
instituições destinadas às elites brancas e aos seus grandes feitos.33 Daí a
conveniência de refletir sobre o próprio conceito de museu, levando em
consideração a sua relação com as estruturas de poder, pois, historicamen-
te, ele teve papel ativo nas discussões sobre a identidade nacional. Como
salienta Michel Foucault, toda prática discursiva é uma forma de poder.
Desse modo, o discurso, além de se associar ao poder, legitima uma vontade
de verdade, o que significa dizer que a essência do discurso é o poder.34
Sob tal ótica, é indispensável traçarmos uma reflexão sobre a perspectiva
de nação que se difundiu nos museus de história e nos museus de folclore
na medida em que, enquanto os primeiros elegeram como protagonistas
as elites brancas (os grandes homens consagrados uma história factual), o
“povo” teve o seu espaço nos segundos. Pudera! Essas instituições muse-
ológicas foram criadas como elementos de construção da identidade e da
memória nacional, revelando, a existência de “dois Brasis”.
Em seus estudos sobre o Museu Histórico Nacional e o Museu Impe-
rial, criados, respectivamente, em 1922 e em 1940, a historiadora e socióloga
Myrian Sepúlveda dos Santos privilegiou uma abordagem conceitual da
noção de museu no Brasil, buscando compreendê-lo, ao longo do tempo,
em sua associação com o poder institucionalizado e em sua capacidade
de conviver com os padrões dominantes do mundo atual. Tomando a
relação entre história e memória como referencial teórico fundamental, a
autora considerou o museu como espaço de reafirmação de um tempo e
de uma memória. Sob esse aspecto, enquanto a narrativa do Museu His-
tórico Nacional foi construída para reafirmar os valores do passado e, por
meio dos objetos expostos, legitimar uma história magistra vitae vinculada
aos grandes homens da nação e aos feitos das elites, o Museu Imperial foi
um instrumento de evocação da memória da monarquia e de D. Pedro II,
cultivando-se a sua imagem como a de um homem patriótico, amigo da
nação brasileira e fiel aos preceitos da família.35
Sem perder de vista as observações acima, retomemos nosso tema
mais específico. A partir de 1964, em substituição a Édison Carneiro, Renato
Almeida passou a dirigir a CDFB e sua gestão marcou a criação do MCDFB,
cuja concepção era prendia à ideia de construção da nação: 33
Cf. BARBOSA, Nila Ro-
drigues. Museus e etnicidade
– o negro no pensamento museal:
Há duas faces predominantes no processo de uma cultura nacional. Uma pátria, SPHAN, Museu da Inconfidên-
qualquer pátria, não será, nunca, só um nome, uma bandeira, uma frase, um país. cia, Museu do Ouro Minas Ge-
rais. Dissertação (Mestrado em
Uma Pátria só existirá, de fato, no limite em que houver uma continuidade de Estudos Étnicos e Africanos) – a
valores e de ideias, marcando, historicamente, a trajetória de um grupo humano UFBA, Salvador, 2012.
sobre a face da terra. Os museus integram justamente a infraestrutura a que me 34
Ver FOUCAULT, Michael.
referi, usada para retenção da experiência nacional. Os museus fazem, por assim A ordem do discurso. São Paulo:
Loyola, 1996.
dizer, a permanente captura das realidades importantes da vida nacional, através
do armazenamento de imagens e coisas e promovem a verdade nacional junto às
35
Ver SANTOS, Myrian Se-
púlveda dos. História, tempo e
gerações que vão chegando. Sem museu não se estuda folclore. Sem museus, as memória: um estudo sobre mu-
nações acabariam por perder o conhecimento da própria identidade.36 seus. Dissertação (Mestrado
em Sociologia) – Iuperj, Rio de
Janeiro, 1989.
Conforme noticiado pela RBF, o MCDFB foi inaugurado em uma 36
Projetos prioritários à orga-
data emblemática: 22 de agosto de 1968, Dia do Folclore: nização do Museu de Folclore
da Campanha de Defesa do
Folclore Brasileiro. S./d. Dis-
Realizou-se, no Parque do Palácio do Catete, onde funciona o Museu da República, ponível na Biblioteca Amadeu
a inauguração do Museu de Folclore do Rio de Janeiro, resultante de um Convênio Amaral, já cit.
Artigos
do museu, Nascimento imprimiu continuidade às diretrizes estabelecidas
por seus antecessores, ou seja, por Édison Carneiro e Renato Almeida.41 Isso
significou que as religiões de matrizes africanas mantiveram-se inseridas em
uma perspectiva estabilizadora do folclore nacional, reforçando o discurso
da harmonia racial, o que pode ser percebido pela leitura do catálogo da
exposição permanente de 1980, segundo o próprio Bráulio do Nascimento:
resumo abstract
Este artigo aborda origens, caracterís- The present article considers the origins,
ticas e difusão do rococó, destacando, characteristics and diffusion of the rococo,
de modo especial, a ornamentação dos highlighting, especially, ornamentation
manuscritos do Brasil no século XVIII. in eighteenth-century Brazilian manus-
Apesar dos estudos realizados sobre o cripts. Despite the existence of stylistic
estilo, as peculiaridades do desenvolvi- studies, the peculiarities of rococo deve-
mento do rococó merecem uma análise lopment deserve analysis that is always
sempre atualizada e pormenorizada, current and detailed, above all in order to
sobretudo para se entender melhor a understand better the influence that Fren-
influência que a gravura francesa exer- chen graving exercised over the creation,
ceu sobre a criação, o desenvolvimento development and diffusion of the style in
e a propagação do estilo na Europa e Europe and Brazil. An emphasis on graphic
no Brasil. A ênfase na ornamentação ornamentation is the basis of the analysis
gráfica fundamenta o exame das suas concerning the particularities of the style,
particularidades, ao possibilitar maior making possible a greater understanding of
entendimento sobre o significado que the significance which the design assumes
o desenho assume como manifestação as an authentic manifestation of art and
autêntica da arte, o que permite afirmar allowing it to be established that the roco-
que o rococó se tornou uma singular re- co became a singular reality in Brazilian
alidade na expressão da arte brasileira. artistic expression.
palavras-chave: ornato; rococó; arte keywords: ornate; rococo; Brazilian art.
brasileira.
℘
O conhecimento sobre o estilo rococó é devedor de um considerável
número de obras de arte, estudos e pesquisas, hoje integrantes do acervo
de bibliotecas, arquivos e museus com reconhecido mérito internacional.
De crédito inconteste, essas instituições reservam largo espaço à produção
dimanada do mundo acadêmico-científico, cujos autores (pesquisadores
na sua maioria) revelam um sublinhado desejo de descortinar ainda mais
as particularidades do também alcunhado estilo rocaille.
Nascido imediatamente após o estilo barroco, de cujo húmus extraiu,
em boa parte, os nutrientes de seu pronunciado gosto decorativo, o rococó
se viu entendido como extensão daquele estilo, permanecendo, deste modo,
e por muito tempo, a ele vinculado como subordinado e dependente. E
essa visão foi mantida e propalada por um número expressivo de histo-
riadores da arte.
O clarão das luzes do rococó se fez perceber pela primeira vez em
Artigos
os espaços habitados e frequentados pela burguesia e nobreza francesas
e, aos poucos, se tornou um engenho artístico de fino trato ornamental.
Contudo, na nascente, recebeu, de grande parte dos seus contemporâneos,
um olhar depreciativo, visto que estavam habituados com o barroco que,
apesar das inovações estilísticas propostas, acolhia as linhas gerais do clás-
sico. Foi chamado, segundo essa visão detratora, de “gosto pitoresco” ou
“gosto moderno”.2 No entanto, o que designavam por esses termos nada
mais eram que composições exibidoras de figuras bizarras. Tais figuras,
cuja inclusão e predominância soavam descabidas, eram conhecidas na arte
europeia, como bem podem provar os grotescos do renascentista Rafael
Sanzio e as torsas figurações em água-forte de Jacques Callot, seiscentista
francês. A observável recorrência de figuras estranhas – à época já conheci-
das –, acompanhada de metódica assimetria e do abuso de formas curvas,
dá configuração ao interesse pelo exótico, proporcionando, desta sorte, o
surgimento do então chamado “gosto moderno”. Os artistas do estilo rococó
abandonaram o peso decorativo do barroco, para apresentar obras comum
fulgor ornamental mais delicado, no entanto, assumiram a liberdade de
expressões fantasistas. Mesmo em meio à visão desqualificativa de que foi
objeto, o rococó se disseminou pela Europa, alcançando destacada posição
no universo das artes decorativas.
Com identidade definida, de clara verve ornamental, o rococó assi-
nalou várias expressões da arte setecentista europeia, de modo particular 1
Para datação inicial do esti-
lo rococó, seguimos referên-
a arquitetura (fachadas e interiores), o mobiliário, a tapeçaria e a joalheria. cias da maior conhecedora
Difundiu-se também na América, chegando ao Brasil, onde deu mostras da história da ornamentação
de existência desde o século XVIII, vindo, no entanto, a se consolidar, en- rococó no mundo luso-brasi-
leiro: MANDROUX-FRANÇA,
quanto estilo, em meados do século XIX. Marie-Thérèse. Information
Na arte brasileira, o rococó trilhou uma senda equiparável à dos seus artistique et ‘mass media’ au
XVIIIèmesiècle: la diffusion de
ascendentes europeus. Por essa razão, há frequentes e significativas pesqui- l’ornement grave rococó au
sas sobre o estilo, de modo especial, na área da arquitetura e do mobiliário. Portugal. Bracara Augusta, v. 27,
No entanto, não é habitual encontrar referências ao rocaille no Brasil, no n. 64, Braga, 1973.
Artigos
da arte, como de resto tornaria dubitável a caracterização dos múltiplos e
cambiantes estilos artísticos.
Pondo ênfase somente na ornamentação em geral, a dificuldade para
firmar periodização é mais intensa, por força de seu pertencimento (segun-
do visão tradicional), como adereço (ou acréscimo), à variadas expressões
da arte. No entanto, apesar dessa dificuldade, a tradicional análise histórica
mantém o ano de 1700, na França, como delimitação para o começo da fase
de criação do rococó7, ou o que se poderia chamar ‘proto-rococó’. O estilo
rococó atingiu seu apogeu na França, entre 1730 e 1765. Contudo, é bom
deixar claro que as circunstâncias ideais para o seu nascimento ocorreram
durante o reinado de Luís XV (1715-1774), e por essa razão é também
conhecido pelo nome deste rei.8 Essas datas já acolhidas pela história da
arte são igualmente válidas para a história específica da ornamentação,
considerando que o ornamento configura a face mais característica do
estilo rocaille.
No que se refere à ornamentação de manuscritos, objeto em destaque
no presente texto, o estabelecimento de cronologia para o estilo é muito 7
Ver MANDROUX-FRANÇA,
Marie-Thérèse, op. cit.
frágil, porque não sendo o desenho considerado, à época (século XVIII),
uma arte autônoma, não alcançou reconhecimento de sua dimensão estética.
8
Ver HUNTER-STIEBEL, Pe-
nelope. The continuing curve.
Embora os manuscritos sejam datados, os ornatos que neles tomaram forma In: COFFIN, Sarah D. et al.
interpenetram os limites de estilos variados, em que se reflete o movimento Rococo: the continuing curve,
1730-2008. New York: Smithso-
gradual das correntes artísticas. Correspondendo às demandas das demais nian’s Cooper-Hewitt, National
expressões da arte, às quais se integrava como elemento estruturante sub- Design Museum, 2008.
jacente, o desenho, mesmo apresentando essa noção de projeto9, não se viu 9
Uma substancial referência
elevado, no século XVIII, ao patamar de expressão artística autônoma. Esse para o aprofundamento des-
sa questão é GOMES, Luiz
pormenor, aliado ao caminhar descompassado entre as diversas técnicas Vidal Negreiros. Desenhismo.
artísticas, criou para a história do rococó uma periodização que não encon- 2. ed. Santa Maria: Editora
daUFSM, 1996. A leitura deste
tra equivalência plena com a ornamentação de manuscritos.
livro permite-nos afirmar que,
Para se entender melhor a história da ornamentação rococó, convém em meio a constatações biblio-
considerar as fases por que passa um estilo até chegar a sua plenitude: gráficas e documentais, se en-
contram registros de exaltação
criação e maturação, implantação e estabilidade. Estas últimas etapas são do desenho enquanto técnica
garantidas, em boa parte, pela publicidade dos princípios fundantes do de representação, sobretudo
como auxiliar na execução de
estilo, pela vulgarização de seu caráter (sua compleição), o que decorre
outras expressões da arte. Era
dos meios disponíveis de difusão que permitem a evolução, a expansão e recomendada a aprendizagem
o desdobramento do paradigma do estilo. do desenho, em vários ma-
nuais de desenho dos séculos
A difusão de um estilo se dá, geralmente, através da propagação XVII, XVIII e XIX, sobretudo
do padrão visual que o caracteriza e que é mantido pela pluralidade de aqueles devotados à formação
militar. Verdadeiro paradoxo:
expressões artísticas que o acolhem. Os primeiros exemplares do rococó
o desenho não gozava do esta-
chegaram à luz no final do terceiro decênio do século XVIII, na França. E, tuto de arte autônoma e, ainda
devido ao aperfeiçoamento dos métodos de imprensa na época, a difusão assim, outras fontes também
recomendavam seu domínio,
mais usual desse estilo ocorreu através das estampas, que serviam como apresentando-se mesmo como
meio de comunicação, codificando a informação visual oferecida na fase de material de caráter pedagógico
auxiliar no aprendizado do
produção. Atente-se para o fato que a produção se fundava na transcrição
desenho, como era o caso dos
gráfica de uma obra de arte pré-existente para a configurar em outra técnica. manuais de caligrafia.
Contribuem também para a difusão do estilo as consequentes tiragens, as 10
Ver HERMAN, Sandrine.
redes comerciais, as cópias e falsificações, bem como a utilização que era Estampes de l’ornementsous Louis
XIV: création, interpretation &
feita das imagens.10 Essa recepção ou utilização do padrão estilístico é de
réception de l’oeuvre gravée
importância para o estudo sobre a ornamentação de manuscritos, como se de Paul Androuet du Cerce-
verá um pouco mais adiante. au (vers 1630-1710). Thèse
(Doctorat) – École Doctorale
O emprego da estampa nos séculos XVII e XVIII fundamenta um VI-Paris IV/La Sorbonne, Paris,
entendimento mais lúcido sobre a ornamentação em geral e permite co- 2008, p. 1.
Artigos
arte setecentista brasileira.
Artigos
consideram o barroco um es-
ornato rocaille detém distinto e indiscutível valor estético. Considerando tilo de vida, mais do que um
essa reflexão, pode-se afirmar que, assim como o barroco30, o rococó foi simples estilo artístico. É o caso
de Maria Helena Occhi Flexor.
não apenas um estilo da arte, mas um estilo de vida.
Irrompida na Europa do Setecentos, a mentalidade rocaille é atestada 31
Ver MANDROUX-FRANÇA,
Marie-Thérèse, op. cit. Segundo
pelo conjunto de impressos daquela centúria. Parte significativa desses a pesquisadora, outros houve
documentos foi compulsada por nós ao longo de um ano de pesquisa de que tiveram atuação, tais como
Jacques de Lajoue (1687-17610,
pós-doutorado (out. 2015-set. 2016), na França, efetivada em algumas das p. e. Babel (1720-1775), F. de
mais célebres e fidedignas instituições, tais como a Biblioteca Nacional de Cuvilliers (1698-1786) e F. Bou-
Paris (de modo especial, no Setor de Estampas e Imagens), no Instituto cher (1703-1770). Destes, no
entanto, encontramos pouca
Nacional de História da Arte e na Biblioteca do Museu de Artes Decorati- referência que fosse de real in-
vas. A documentação compulsada se compõe, na sua quase totalidade, de teresse para o presente estudo,
razão pela qual, preferimos
estampas, a modo de pranchas individuais ou reunidas em volumes, cujos apresentar Meissonnier, con-
autores (decoradores e gravadores) tiveram atuação na França a partir de siderado o genitor do rococó
1730. Alguns lograram reconhecimento à época, em razão de suas estampas ornamental.
Artigos
no desenho que revela maestria, visto que assimétrico nos pormenores e
equilibrado no conjunto, formando uma composição em que o geometrismo
e o classicismo se entrecruzam, através da reprodução de elementos de um
imaginário que foge um pouco da linguagem religiosa para desembocar
numa expressão mais ornamental, sintomática de avanço na transmutação
estilística, ou na travessia para uma nova estética. Observe-se, na figura em
alusão, a sintonia com o rococó que se apresentou com esplendor em algu-
mas expressões da arte no Brasil do século XVIII. Esse caráter de exaltação
e fulgor decorativo rocaille, apesar de apresentar maior conformação na
arquitetura e na escultura, pode também ser atestado na ornamentação de
manuscritos, dos quais as cartas geográficas se levantam com propriedade
identificativa da índole ornamental. A configuração dos ornatos teve como
provável referência para leitura e reprodução a padronagem difundida
através de impressos de origem francesa ou alemã, considerando-se o
transporte desses dados pela ação colonizadora portuguesa. É de consenso
que “Portugal era o motor Atlântico e dominava boa parte dos trópicos no
século XVIII”.44 Essa influência europeia pode ser verificada no exemplar
de carta geográfica. Tomando como referência a estampa do mestre Meis-
sonnier (figura 1), logo se encontra a paridade dos elementos vegetalistas
e dos concheados.
A frugalidade e a serenidade que abrandaram o forte esquema de
organização ornamental barroca conduzem a um entendimento mais am-
pliado sobre a compleição deste exemplar. Atribuindo relevo à concentração
regular de unidades ornamentais ao longo da cercadura, os arranjos não
somente a integram como a definem. Contudo, a composição dos elementos
ornamentais esparsos, mas coordenados, impregna esse exemplar de um
inconfundível feitio rocaille.
Pode muito apropriadamente ser considerado como digno exemplar
da arte brasileira o mapa apresentado na figura 3. Trata-se de um mapa
comercial da capitania do Rio Negro.45 O apuro técnico e a cor avermelhada
do espécime infundiram na composição em aguada, técnica de desenho
comum à época, um cunho solene. Revelando domínio da linguagem visual,
o autor se mostra conhecedor das formas clássicas, porque constrói uma
composição com austeridade e rigor próprios de um classicismo típico da
fase final do Renascimento, porém cumulada do discurso visual barroco.
No entanto, a composição é perpassada pela soltura e leveza almejadas
pelo espírito e modo de expressão rococó. Uma vista pouco apurada sobre
a figura 3 deduziria por uma simetria. Um olhar refinado, contudo, reco-
nhecerá, na disposição das formas, uma tênue assimetria que não corrói
o equilíbrio, mas, bem ao contrário, para ele contribui e o assegura sem
o compromisso de uma combinação equitativa de elementos repetitivos.
Os concheados, as folhas de acanto, as reentrâncias, o contraste
44
NÓBREGA, Michael Douglas
atenuado e um suave sombreamento, aliados à assimetria, conduzem ao
dos Santos, op. cit., p. 45.
reconhecimento de uma obra típica do terceiro quartel do século XVIII (no 45
Fundada em 3 de março de
Brasil), quando elementos do rococó começavam a se afirmar com maior 1755, a chamada Capitania de
nitidez, sem, contudo, desnudar o caráter barroco animador desse desenho. São José do Rio Negro, embora
independente, era subordinada
Aos elementos destacados se acresce o tom avermelha do que contribui
ao Estado do Grão-Pará e Mara-
para a leitura de uma obra com cariz ornamental digno de nota. nhão. Cf. SERRÃO, Joel e MAR-
Importa também lembrar que o mapa da figura 3 ostenta QUES, A. H. de Oliveira. Nova
história da expansão portuguesa:
uma cercadura com decoração similar à de alguns dos seus congêneres o império luso-brasileiro (1750-
contemporâneos, que registram a preocupação setecentista com a função 1822). Lisboa: Estampa, 1986.
Artigos
dificuldade pelo fato que “na segunda metade do século XVIII, as doutrinas
estéticas do barroco são substituídas pelas do rococó. O luxo permanece,
mas se evidencia de um modo mais discreto, alastrando-se a uma base social
mais ampla, diversificando-se na escala social dos encomendantes”.47 Não
se perca de vista que na época (segundo a datação) do mapa em questão
(terceiro quartel do século XVIII), Portugal havia retomado o classicismo;
o Brasil, porém, permanecia na expressão barroca que se mesclava com os
rebentos da ornamentação rocaille, e de tal descompasso decorrem a sutileza
e a complexidade na análise.
Se o olhar percorrer a estampa exibida na figura 1 e, logo em segui-
da, o mapa da figura 3 encontrará paridade nas formas e sobreposição,
ou melhor, cruzamento de peculiaridades no desenho. Não passarão
despercebidas as curvas em “C”, a dinamicidade das formas conchoidais
e florais (estas ainda que parcas), a elaborada aplicação do atenuado, mas
firme, sombreado na cercadura do mapa. Esses atributos modelam na
ornamentação do mapa um semblante rococó. O barroco punha a tônica
nos símbolos religiosos, como imagens de santos e anjos, fazendo eco ao
discurso catequético e doutrinal da Igreja Católica; punha também acento
no exagero e na abundância sempre chocantes. No rococó era evidente a
noble simplicité articulada com um claro requinte. No entanto, há que se
esclarecer que nos ornatos selecionados e aqui expostos, o tímido caráter
não oculta a intensidade do espírito, nem a lentidão dos passos do estilo
encobre a lucidez do percurso, nem a clarividência de objetivos e metas. Se
é verdade que na gênese desses ornatos se encontra um provável impulso
barroco, seu nascimento e sua evolução derivam de planejada maturação
rocaille.
Interessa aqui reconhecer que não se registra perfeita correspondência
estética entre a produção artística colonial (brasileira) e a metropolitana
(portuguesa), o que leva a considerar os ornatos apresentados nas figuras
2 e 3 como expressões de culturas distintas que, no entanto, sorveram de
comum fonte de inspiração, como atestam as estampas europeias. Assim,
os signos da ornamentação, tais como concheados, curvas, flores, folhagens,
dentre outros, por pertencerem ao universo figurativo corrente às estam-
pas e às outras artes visuais (de modo especial a escultura, a arquitetura
e a mobiliária) constatam a possibilidade de adaptação iconográfica, fun-
damentando o que se pode considerar como uma miscigenação estética.
Ademais, a ausência de absoluta correspondência tem plausível explicação
também no fenômeno já referido da cópia. “Imitar, aqui, não significa
simplesmente copiar servilmente, mas selecionar o que imitar e reelaborar 47
MARQUES, Maria da Luz
seu modelo mediante conhecimentos de regras da arte, da natureza e das Vasconcelos e Souza Paula.
Mobiliário português do apara-
criações antigas, concepção pertinente ao período. Ao mirar modelos gra- to do século XVIII: credência,
vados como fontes criativas, os artistas atualizavam-nas, em suas obras, a consolas e tremós. Dissertação
(Mestrado em História da Arte)
partir de concepções estéticas e habilidades que os circundavam”.48
– Universidade do Porto, Porto,
A cópia, de certa maneira, pode explicar essa hibridação e de modo al- 1997, p. 8.
gum resultava de uma reprodução irrefletida. O contato com elementos das 48
SANTIAGO, Camila Fer-
culturas envolvidas e o cruzamento de dados identitários desdobravam-se nanda Guimarães. Os usos de
gravuras europeias como mo-
em possibilidades de multivariada interpretação e de reconstrução, refleti-
delos pelos pintores coloniais:
das nas obras de arte como significativos acréscimos. Foi essa habilidade de três pinturas mineiras baseadas
reelaboração, de recriação, que fez despoletar a transição do barroco para em uma gravura portuguesa
que representa a Anunciação.
o rococó. Myriam Ribeiro de Oliveira chega mesmo a afirmar que a fase do Temporalidades, v. 3, n. 1, Belo
rococó no Brasil “foi o período mais criativo da contribuição mineira para Horizonte, jan.-jul. 2011, p. 189.
Artigos
essa razão, não deve haver estranhamento face à ocorrência das consequen-
tes interpenetrações das balizas temporais, que em nada desautorizam a
análise realizada, mas põe em destaque o caráter inusitado do modo de
criação, desenvolvimento e difusão do estilo rococó.
A necessidade de se entender melhor o papel que o rococó desem-
penhou na História da Arte Brasileira fez o olhar incidir, mais uma vez,
sobre a arte decorativa. E, nesse sentido, toldar a atenção sobre a ornamen-
tação de manuscritos vem exaltar não somente fatores de ordem técnica
específicos da representação gráfica, mas, sobretudo, significa reconhecer
o valor do desenho enquanto formador e expressão do pensamento, fator
que desempenha a mais segura função na apreensão e no evoluir da ciência,
reflexo ímpar da história do pensamento e das culturas.
O desenho é um dos mais convincentes meios de que o ser humano
se utiliza para desenvolver sua habilidade de criar novas formas e estetizar
a natureza. O caminho da ornamentação é incontornável ao historiador da
arte, porque lhe possibilita conhecimento mais enraizado na origem do
ato de criação que parte stricto sensu de um projeto, aqui entendido como
desenho. Universalmente constitutivo da essência das artes, o ornato é um
testemunho da faculdade humana de representação. Manifesto, por vezes,
em ínfimas dimensões, cada ornato é um horizonte de infinitas possibilida-
des em que se pode encontrar a amplitude do ato de criar. O rococó abriu
as portas para que a graça e o requinte se tornassem fantasia na realidade
de um novo modo de conceber a vida, razão por que toda a decoração desse
estilo não pode ser vista como apêndice da arte do século XVIII, ou como
um desmembramento do barroco. O rococó deu luz à fantasia, estigmati-
zando a História da Arte de um labiríntico contorno da existência através
da, paradoxalmente moderada, aspiração ao absurdo. Uma simbiose de
sonhos e naturalismo, um cruzamento de natureza e ficção, uma conciliação
de luxo e simplicidade, um entrelaçamento de rompante e inação.
À luz da reflexão realizada neste texto, que pôs em destaque os
percursos e as expressões peculiares do estilo rocaille, podemos afirmar
que uma condensada harmonia entre o real e o sonho proporcionou uma
estética fundada no baixo contraste, na quase nula contradição, conspirando
para a gestação das formas de puro requinte que insuflaram o frescor de
uma nova aurora na ornamentação de manuscritos: o despertar de outro
e singular estilo da arte no Brasil do século XVIII. Voilà le rococo!
resumo abstract
Neste artigo, examina-se o Diário da In this article, we examine Diário da
navegação, escrito pelo sargento-mor navegação, written by Major Teotônio
Teotônio José Juzarte no final do século José Juzarte on the end of 18th century.
XVIII. Orientado por preceitos de retó- Guided by precepts of rhetoric and poetics,
rica e poética, pretende-se aproximar o we intended to bring the reader closer to
leitor da mentalidade concebida pela the mentality conceived by the Portuguese
coroa portuguesa, durante o reinado crown during the reign of Dom José I. In
de Dom José I. Na análise, discute-se this analysis we discuss the place of the
o lugar da narrativa de viagem, com- travel narrative as a genre close to the
preendida aqui como gênero próximo epic form, which presupposes reading this
da épica, o que pressupõe ler o relato report beyond the anachronistic criteria
para além dos critérios anacrônicos de of originality, marks of subjectivity and
originalidade, marcas de subjetividade authorship. In this way, we rescue links be-
e autoria. Para isso, resgatam-se os vín- tween History (according to the conception
culos entre a História (segundo a con- of Herodotus) and Rhetoric, in agreement
cepção de Heródoto) e a Retórica, em with the precepts of Aristotle. This study
acordo com os preceitos de Aristóteles. considers the lexicon used by Juzarte and
O estudo considera o léxico empregado propose that his repertoire is appropriate to
por Juzarte, propondo que o repertório the theme, the style and the genre.
1
ARISTÓTELES. Retórica. São adequa-se a tema, estilo e gênero afins.
Paulo: Martins Fontes, 2012, palavras-chave: Teotônio José Juzar- keywords: Teotônio José Juzarte; History;
p. 6.
te; História; Retórica. Rhetoric.
2
JUZARTE, Teotônio José.
Diário da navegação. São Paulo:
Edusp/Imprensa Oficial, 2000,
p. 93.
℘
3
TA U N AY , A l f r e d o
d’Escragnolle. História das ban-
deiras aulistas, tomo 2. São
Paulo: Melhoramentos, 1953, […] é possível estudar a razão pela qual tanto são bem-sucedidos os que
p. 144.
agem por hábito como os que agem espontaneamente, e todos facilmente
4
LE GOFF, Jacques. História e concordarão que tal estudo é tarefa de uma arte.
memória. Campinas: Editora da
Unicamp, 2016, p. 22. Aristóteles1
5
“Literatura, nessa acepção, só
seria criado no final do século Isso é tudo o acontecido, na verdade além de muitas outras coisas, que, por
XVIII na França e na Alema- não parecerem duvidosas ou menos verdadeiras, as não declaro.
nha, quando o termo passou a
designar o conjunto de todos Teotônio José Juzarte2
os textos que imitam ou repre-
sentam as paixões por meio
da palavra, com sensibilidade
Era imaginoso o nosso itinerante.
e imaginação”. TEIXEIRA, Alfredo d’Escragnolle Taunay3
Ivan. Hermenêutica, retórica e
poética nas letras da América
Portuguesa. Revista USP, n. 53,
São Paulo, 2003, p. 140. Desaprendemos na escola: a escrita da história seria imparcial e
Artigos
da navegação, que apresenta
Atento aos fatos e evidências (documentos, testemunhos ou monumentos), emendas à edição comemora-
o historiador seria uma dentre as espécies de narrador dotada de virtudes tiva da Edusp – utilizada neste
trabalho –, Maria Aparecida
imprescindíveis ao relato fidedigno e, portanto, desprovido de artifícios,
Mendes Borges comenta o
já que reproduziria fielmente os eventos em estreita obediência e adesão sentido originalmente dado
à realidade que o circundava. Mas, como nos ensinou Jacques Le Goff, à palavra “monção”, que se
costumava aplicar a viagens da-
“Uma história é uma narrativa, verdadeira ou falsa, com base na ‘realidade quele feitio e porte: “A palavra
histórica’ ou puramente imaginária”.4 Há décadas se sabe que, pelo menos ‘monção’ significa ‘época ou
vento favorável à navegação –
até o final do Setecentos, a historiografia – assim como a poesia e outras
do árabe m’ausim: a estação da
artes – escrevia-se em acordo com determinadas convenções, herdeiras da peregrinação a Meca, tempo
tradição greco-latina, na Antiguidade. O que sucede à seleção e recolha de Ceifa’. E era usada pelos
portugueses para denominar os
de eventos, teoricamente dignos de compor o repertório do historiador, ventos periódicos que ocorriam
costuma acarretar em virulentas controvérsias no ensino de “literatura” nas costas da Ásia meridional.
A monção de Juzarte [...] como
(termo que só passou a existir, com o sentido que lhe damos hoje, a partir
todas no Brasil [...] submetia-se
do Oitocentos).5 Costuma-se atribuir pouca importância aos documentos e ao regime dos rios, partindo
versos produzidos no território luso-brasileiro, entre os séculos XVI e XVIII, normalmente na época das
cheias (março e abril), quando
a começar pela denominação de que seriam obras “maiores” e “menores”. os rios eram mais facilmente
Por essas e outras razões, supõe-se ser de interesse comentar o Diário da navegáveis; assim, viagens
menos arriscadas”. BORGES,
navegação, redigido pelo sargento-mor Teotônio José Juzarte entre março
Maria Aparecida Mendes. Diá-
de 1769 e maio de 1771.6 rio da navegação: edição e estudo
Para isso, seria importante lembrar que a arte de investigar e a arte de variantes dos manuscritos
luso-brasileiros. Tese (Doutorado
de persuadir nasceram durante o século V a. C., na Grécia: a História (cujo em Letras Clássicas) – USP, São
paradigma são as Histórias de Hérodoto) e a Retórica (sistematizada por Paulo, 2011, p. 14. Ver CUNHA,
Antônio Geraldo da. Dicionário
Aristóteles, no século seguinte). Examinadas de perto, elas compartilhavam
de etimologia. Rio de Janeiro:
alguns procedimentos: 1. sendo “artes” da palavra, envolviam a aplicação Nova Fronteira, 1986.
de artifícios específicos que produziam “efeito de verdade”; 2. pressupu- 7
“Decerto, sabemos que He-
nham a adequação do gênero, léxico e estilo à matéria de que tratavam. ródoto é o autor das Histórias,
obra na qual relata a guerra
Nesse sentido, uma e outra traduziriam o conceito grego de tekhné (ars, travada entre persas e gregos
segundo os latinos). durante os anos 481 a 479
a.C., constituindo-se na mais
Mas História e Retórica têm outra virtude em comum: ambas foram antiga obra historiográfica do
alvo de duras ressalvas durante a Antiguidade. Como se sabe, no Górgias Ocidente. Sobre o conteúdo do
de Platão, Sócrates criticava a atuação dos sofistas, que se supunham escrito herodotiano, Schlögl
informa que os debates polí-
capazes de persuadir quem quisessem sobre qualquer assunto. Seis ticos e religiosos fomentados
séculos depois, um filósofo latino adepto das ideias de Platão faria algo pela democracia ateniense, bem
como o pensamento filosófico e
parecido em relação às Histórias de Heródoto.7 Com efeito, em Da malícia as encenações trágicas nos tea-
de Heródoto, Plutarco fez ressalvas ao investigador grego, supondo que o tros de Atenas, influenciaram
seu estilo vivaz e agradável teria maior comprometimento com o “efeito” sobremaneira a composição de
sua obra”. SILVA, Maria Apa-
exercido pelas palavras do que com a sua exatidão, que se deveria pautar recida de Oliveira. Introdução.
pelo testemunho e precisão dos fatos. A questão é controversa. Villalba In: PLUTARCO. Da malícia de
Heródoto. São Paulo: Edusp,
I Varneda apresenta um contraponto fundamental ao de Plutarco, ao 2013, p. 42.
abordar a “Ars narrandi”: “No que diz respeito ao estilo e à forma da 8
VARNEDA, Père Villalba I.
narrativa histórica, poderíamos lembrar que, para Políbio, o historiador Ars narrandi. In: The histori-
deve dar atenção literária para que a narração [histórica] ilumine e não cal method of Flavius Josephus.
Leiden: E. J. Brill, 1986, p. 68.
confunda”.8 De todo modo, a aproximação entre a História e a Retórica No original: “On the question
não será despropositada. No estudo à tradução das Histórias de Heródoto, of the style and the form of his-
torical narrative, we may recall
Maria Aparecida de Oliveira Silva salienta que, “escrito em dialeto iônico, that for Polybius the historian
o texto de Heródoto traz expressões marcadamente orais, demonstrando must take great literary care
que seu conteúdo passou por longo processo de composição oral. Sabe- so that historical narrating en-
lightens and does not confuse”.
mos ainda que parte do seu texto foi recitado em público, nas cidades 9
SILVA, Maria Aparecida de
de Atenas e Olímpia, o que lhe rendeu a fama de ser um bom recitador, Oliveira. Introdução. In: HE-
tendo recebido uma quantia significativa como prêmio pela qualidade RÓDOTO. Histórias: Livro I,
Clio. São Paulo: Edipro, 2015,
da sua leitura”.9 p. 8.
Artigos
passaram a circular como artefato literário (burguês, individual e mercantil)
durante o Oitocentos. Isso porque o Diário da navegação de Teotônio José 17
SILVEIRA, Marco Antonio.
Juzarte não era “propriedade” intelectual de um “autor”, ou de um “sujeito” O universo do indistinto: Estado
e sociedade nas Minas Setecen-
que tentasse soar “original” por aspirar à glória “literária”, nem suporia tistas (1735-1808). São Paulo:
a eventual circulação massiva do Diário entre os “plebeus” que cercavam, Hucitec, 1997, p. 46 e 47.
sem acessar, os espaços da corte. Seu relato seguia de perto a tradição das 18
“A questão que se coloca é a
crônicas e relações de viagem que circulavam em Portugal desde o final da de não confundir ou hierarqui-
zar as narrativas entendidas
Idade Média. A produção de versos ou narrativas, durante o Setecentos, como ‘históricas’ e as narrativas
também era um modo de se distinguir na sociedade cortesã. Observar, de ‘literárias’, como se uma corres-
perto, as regras encontradas nos tratados de História, Retórica (e Poética) da pondesse ao ‘real’ e a outra à
‘ficção’. O que distingue um e
Antiguidade – sem esquecer os manuais de cortesania –; seguir estritamente outro são os usos diferenciados
as Ordenações do Reino (conjunto de leis assinadas por Filipe II vigoravam que fazem das tópicas discur-
sivas, da disposição textual e,
desde 1603, nos domínios ibéricos) e renovar fidelidades à Igreja Católica muitas vezes, das figuras de
conferem àquele tempo e lugar, ações codificadas, pautadas pela prescrição elocução incorporadas no cor-
e a concepção moralizante. O diálogo entre os relatos de viagem e a forma po do texto, mas não uma su-
posta fidedignidade em relação
mentis do reino português eram evidentes. Na síntese de Marco Antonio a um possível ‘real’ sobreposto
Silveira, ao texto ou incorporado às suas
entrelinhas”. FELIPE, Cleber
Vinicius do Amaral. Itinerários
Apesar das variadas classes sociais existentes no interior do Império lusitano, o que da conquista: uma travessia por
definia primordialmente a participação no grupo dirigente era o prestígio; daí o fato mares de papel e tinta (Portu-
gal, séculos XVI, XVII e XVIII).
de a sociedade portuguesa apresentar uma estratificação estamental. Tal prestígio, Tese (Doutorado em História)
capaz de conferir “nobreza” aos membros do estamento, cada vez menos, durante – Unicamp, Campinas, 2015,
p. 18.
a época moderna, constituía privilégio exclusivo das antigas famílias proprietárias
de terra. Pelo contrário, à proporção que as conquistas no Ultramar avançavam
19
“A epopeia e a história, em
termos retóricos, afinam-se
e tornava-se mais evidente que a economia lusa era eminentemente mercantil, os aos gêneros demonstrativo
títulos honoríficos e a incrustação na máquina administrativa afirmavam-se como (ou epidítico) e deliberativo,
elogiando/aconselhando e/ou
meios de distinção. Ambos os caminhos, afinal, aproximam do rei.17 censurando/desaconselhando
de forma instrutiva e deleitosa.
Em nossos dias, a menor atenção ao gênero (diário) e ao tema (via- Quanto às etapas do discurso,
ambos os gêneros propõem
gem), especialmente na área de Letras, parece guardar relação com a su- tópicas de invenção, partes
premacia dos gêneros artísticos, em detrimento dos textos circunstanciais da disposição e figuras de elo-
cução em conformidade com
ou de cunho “administrativo”18 – como sugere o título dado ao relato de a verossimilhança e decoro
Juzarte. Essa distinção, que se supõe tão objetiva e clara, entre os textos próprios, propondo um estilo
“artísticos” e os de cunho “administrativo”, provavelmente seja reforçada conveniente à matéria tratada”.
Idem, ibidem, p. 17.
desde meados do século XIX, quando se passou a acreditar e defender
20
LULIO, Antonio. Sobre el deco-
que houvesse maior “espontaneidade” nas letras produzidas a partir da ro de la poética. Madri: Ediciones
segunda metade do Setecentos (durante o chamado “arcadismo”), compa- Clasicas, 1994, p. 57 e 59.
rativamente aos artifícios abusivos de que se fez uso entre os séculos XVI e 21
Adota-se esta terminologia
XVII. Analogamente à desvalorização das preceptivas como componentes em conformidade com o que
sugerem Michel Patillon (Cf.
nas letras coloniais, inverteu-se o sinal de “artístico” que, até o final dos RUFUS. Art rhétorique. Paris:
Setecentos, era entendido segundo a concepção tradicional de representação Belles Lettres, 2001) e Marcelo
Lachat, a quem agradeço por
verbal sujeita às regras da “arte” (tekhné > ars > arte), em que tema, gênero,
ter facultado a leitura de seu
léxico e forma eram acionados de acordo com o conceito de decorum – que ensaio (ainda inédito) Nuevo
pressupunha a adequação entre o assunto e a composição que o enfor- descubrimiento del gran Río de las
Amazonas (1641), de Cristóbal
mava.19 Conforme prescrevia o espanhol Antonio Lulio, no século XVI, de Acuña, e Viagem (1746), de
ao evocar as lições de Aristóteles: “Resta-nos indagar que coisa convém Pedro de Santo Eliseu: história,
poesia e política sobre o Rio
à poesia de cada classe, que forma merece elogio. A primeira de todas e
das Amazonas. Ver LACHAT,
a mais destacada do gênero dramático é a tragédia. Nela se apresentam Marcelo. Nuevo descubrimiento,
personagens [muito] insignes, por exemplo, heróis e reis cujas façanhas e op. cit., ArtCultura: Revista de
História, Cultura e Arte, v.
memória contém os antigos monumentos”.20 21, n. 38, Uberlândia, jan.-jun.
Ressalvadas as diferenças entre as “espécies”21 de relato, poder-se-ia 2019.
Artigos
mes”.27 Talvez se pudesse supor, com muitas reservas, que não houvesse
primor de estilo na redação, desde que o Diário de Teotônio José Juzarte
fosse comparado com outros relatos de seu tempo e lugar.
Por outro lado, deve-se salientar que o documento foi escrito por um
homem de graduação relativamente modesta, incumbido de comandar a
“jornada monçoeira” (termos de Afonso d’Escragnolle Taunay).28 De todo
modo, para além de discussões em torno da linguagem e do estilo, trata-se
de documento importantíssimo, especialmente caso a hipótese do leitor
seja reconstituir parcialmente a forma mentis de um punhado de homens
letrados, a ocupar cargos nas forças subordinadas à capitania de São Paulo
e, em segunda instância, à Coroa.
O Diário da navegação constitui documento de outros tempos e luga-
res. Portanto, precisa ser lido com olhos menos viciados que os autores de
histórias da literatura “brasileira” – quase sempre fundados em anacro-
nismos – que comprometem o teor e a pertinência do que se lê, à cata das
“intenções” do “autor”. Conforme alertava Ivan Teixeira, “nesse processo
de acomodação do passado aos interesses do presente, formulou-se um
programa de desconsideração sistemática pelo conhecimento das normas
específicas de produção textual de cada um dos períodos”.29 Objetivamen-
te, expedições como aquela sob o comando de Teotônio José Juzarte eram
operações complexas e de enorme proporção, maiormente para os padrões
da época. No espaço de três dias, o sargento-mor nomeia os principais
rios a serem percorridos por “quase oitocentas pessoas” em “trinta e seis
embarcações”.30 Eles partem do porto de Araraitaguaba (que corresponde,
atualmente, ao município de Porto Feliz, no interior de São Paulo) e seguem
até as bordas do Iguatemi.
Espécies discursivas produzidas entre os séculos XV e XVIII, os di-
ários são aparentados às crônicas do reino e das relações de viagem. Esta
lição, ensinada por Jaime Cortesão no estudo introdutório à Carta de Pero 27
SOUZA, Jonas Soares de e
MAKINO, Miyoko. Apresen-
Vaz de Caminha (publicado em 1943), autoriza-nos a discutir alguns as- tação. In: JUZARTE, Teotônio
pectos que se imagina serem levados em conta pelo leitor. De acordo com José, op. cit., p. 18.
o historiador português, 28
Ve r TA U N AY, A l f r e d o
d’Escragnolle, op. cit., p. 139.
As primeiras relações [de viagem] foram por certo traçadas no mar pelos escrivães 29
TEIXEIRA, Ivan, op. cit., p.
das caravelas do Infante D. Henrique. No livro ou livros de bordo, inscreviam-se 138 e 139. Por sua vez, Cleber
Felipe ressalta que “discorrer
com os dados de carácter geográfico sobre os novos descobrimentos – rumos, número sobre um mundo extinto sig-
de milhas ou léguas percorridas, terras descobertas e nomenclatura imposta – as nifica admitir a impossibili-
dade de reconstitui-lo em sua
trocas comerciais realizadas com os indígenas, sob a forma de despesa e de receita. completude. Logo, refazer os
Como era lógico os escrivães apontavam essas notas progressivamente e dia a dia, ao passos dos homens de outrora
sabor dos acontecimentos. Daí os livros ou relações dos escrivães tomarem a forma não significa ressuscitar suas
intenções ou vontades, mas
de diários, ainda que sem continuidade inalterada.31 repor suas escolhas narrativas,
levantar hipóteses sobre seus
encadeamentos e propor uma
Em Portugal, a tradição de escrever diários e congêneres remontaria forma verossímil de concebê-
a meados do século XV, o que explicaria o fato de que “todos os oficiais de -las”. FELIPE, Cleber Vinicius
el-rei, desde o capitão-mor da Índia até aos escrivães e pilotos, empolgados do Amaral, op. cit., p. 9.
pela epopeia, deslumbrados pelo cenário sempre variado dos mundos no- 30
JUZARTE, Teotônio, op. cit.,
p. 21.
vos, quando não trabalhados por ambições secretas e ruins, tomavam da
31
CORTESÃO, JAIME. O autor
pena e endereçavam ao rei cartas-narrativas, em que fulguram catanadas
e sua obra. In: A Carta de Pero
épicas ou palpitam informações de gentes e terras peregrinas”.32 Vaz de Caminha. Lisboa: INCM,
Teotônio José Juzarte não foi o primeiro (nem o último) a empreender 1994, p. 15 e 16.
Artigos
Alguns manuais de retórica da segunda metade do século XVI espanhol começam a
tomar la proposta de Petrus Ramus: dar primazia à lógica (argumentação) sobre a
retórica (estilística). A lógica aparece como una espécie de armação formal e a retó-
rica como seu vestido. Ao final do século XVII, o discurso sobre o método terminará
por substituir os manuais de retórica. Todavia, apesar do impulso de Ramus para a
retórica restringida, a educação jesuíta manterá a vigência da retórica, em sentido
amplo, no século XVIII adiante.41
Artigos
habilidoso nas armas e cristãmente virtuoso54, como recomendava a pa-
trística: “Segundo Agostinho, a virtude é uma boa qualidade da mente.
No entanto, não pode estar em alguma espécie de qualidade, senão na
primeira, que é a do hábito. Logo, a virtude é um hábito”.55 Produzido por
um homem que se pretende distinguir entre os seus e exibir-se da melhor
forma perante os superiores na longa correia administrativa – como o go-
vernador da capitania de São Paulo, Dom Luís Antônio de Sousa Botelho
e Mourão, em relação ao sargento-mor –, o Diário alterna acontecimentos
e eventos, conforme a perspectiva (ora rente aos acontecimentos, ora mais
apartada deles) implementada por Juzarte. Logo nos primeiros dias da
longuíssima jornada, relatam-se dois partos entre as passageiras, bem como
uma disfunção intestinal, que atingiu a muitos mais: “assim se levou toda
a manhã do dia doze de abril. Porém, inda aqui não pararam tantos incô-
modos, trabalhos e impertinências, porque estando tudo na forma do dito
sobreveio uma diarreia geral por homens, mulheres e crianças, de tal sorte
que, uns escondidos pelo mato, outros desfalecidos que não se moviam
de um lugar, outras crianças em artigo de morte, a tudo isso se supria na
melhor forma que permitia a ocasião e o país”.56 53
Conforme salienta João Adol-
Além de prometer relatos futuros, o diarista alterna fórmulas discur- fo Hansen, “é apenas no século
sivas que marcam a passagem do tempo, na forma do que foi e ficou “dito” XVIII que surge o autor-presen-
ça e a generalização atual da
ou “expressado”. Essa oscilação entre as matérias que “foram” e “terão autoria, como identidade ideal
sido” soma-se às mudanças de registro (ou elocução) dos assuntos. Ora se e/ou causalidade psicologista, é
invariavelmente a de esquemas
narram gestos maiores, como a proteção de uma jovem mãe, ameaçada de projetivos muito próximos aos
morte por seus familiares contrários à sua gravidez; ora acontecimentos da exegese cristã que alegava
menores, como a narrativa dos métodos com que se enfrentou a diarreia a santidade do Autor quando
se pretendia provar o valor
coletiva “a uns dando-lhes remédios pela boca, a outros ajudando-se com de um texto”. HANSEN, João
cristéis e outros remédios, que se usam, pela via, para impedir a moléstia de Adolfo. Autor. In: JOBIM, José
Luís (org.). Palavras da crítica:
que já estavam todos tocados, a que se chamava vulgarmente corrução”.57 tendências e conceitos no estu-
Como se disse, o Diário de Juzarte não traz inovações, nem se trata de obra do de literatura. Rio de Janeiro:
original, solta no vácuo e desvinculada dos gêneros que a precederam. Imago, 1992, p. 14.
Artigos
ficar e morrer naqueles matos”.65
Verdade
No sentido de uma História revelada por Deus, Agostinho, por exemplo, havia
constatado que as representações históricas tratam de instituições humanas, mas
que a própria História (“ipsa historia”) não é uma instituição humana. Pois aquilo
que aconteceu e não pode ser revertido, isso faz parte da sequência dos tempos (“in
ordine temporum habenda sunt”), cujo fundador e administrador seria Deus. Não
há dúvida de que a historicidade de Jesus como fonte empírica da revelação contri-
buiu em muito para dar ao conceito de História uma pretensão enfática à verdade.67
Artigos
investia; e como isso fosse quase noite fugimos”.76 À medida que a viagem
prossegue, o sargento-mor enfileira termos do jargão náutico. Como lhe
interessa enaltecer a coragem e a valentia dos navegantes, eventos que não
ofereciam maior perigo recebem menor atenção que os demais: “seguimos
e daí passamos por uma ilha com uma itaipava chamada a ilha de Pirata-
raca, esta não foi muito perigosa; seguimos e fomos passar por outra ilha
chamada do mato seco com uma cachoeira no fim muito perigosa, enquanto
comprida, chamava Iaiva-piru, que quer dizer em português mato feio, a
qual se passou com muitas voltas”.77
Essas e outras desventuras só eram superadas provavelmente graças
à “misericórdia de Deus”78 e às “recomendações que tinha do meu gene-
ral para que não me escapasse coisa alguma”.79 A despeito da tamanha
devoção, o inferno subira até as águas. A quantidade de insetos vorazes
constitui relato à parte. É o caso das “formigas, que eram tantas, e cada
uma do comprimento de uma polegada, que inquietavam tanto a gente
que ninguém dormiu, uns trepados em árvores, outros metidos na água
do rio”.80
Os obstáculos, enfrentados a todo instante pela expedição, não im-
pedem que, instado ao dever do ofício, o sargento-mor perseguisse fugiti-
vos de Cuiabá, o que realça outra virtude do comandante: a sede de fazer
justiça e a prontidão para prender homens à margem da lei: “a isto logo
me embarquei em uma canoinha com cinco solados […] e comigo outra
canoinha com o tenente de aventureiros Bento Cardoso, e fomos dar-lhe
caça rio acima a toda pressa, e navegamos todo o dia sem levarmos nem
quê comer”.81 Embora a ação tivesse sido em vão, Teotônio José Juzarte
justifica o fracasso da “caça” humana, em razão do tempo que teriam de
despender e da reduzida quantidade de alimentos disponível. As jornadas
permitem afirmar que a expedição percorria uma légua por hora, em mé-
dia – de acordo com os cálculos do sargento-mor. No dia quatro de maio
de 1769, ao atravessar por terra uma cachoeira com “quase meia légua”,
passageiros e tripulantes padeceram com uma “nuvem de marimbondos”.
Os insetos “são tais que chegam a matar gente pela sua quantidade, além
de ser finíssima a dor da sua picada, e onde mordem logo incha a parte”.82
Artifício
Não sou o primeiro a sustentar, portanto, que a maioria das grandes obras da litera-
tura universal são livros de viagem. A Eneida, A Divina Comédia, O Quijote...
Se faz necessário discernir o género “relato de viagens”, sintagma cunhado com
um sentido muito preciso por Carrizo Rueda (1997), da literatura de viagens em
geral. Os “relatos de viagem” contemplam, a meu ver, traços fundamentais […]:
(1) são relatos factuais, em que (2) a modalidade descritiva se impõe à narrativa
e (3) em cujo balanço entre o objetivo e o subjetivo tendem a decantar-se do lado
do primeiro, mas, em consonância, em princípio, com o seu caráter testemunhal.89
Artigos
moinhos, correntes, insetos em nuvem, feras e animais peçonhentos. Além
das tempestades, é claro: “estivemos vendo passar esta monstruosidade de
madeiras mais de uma hora, e dando graças a Deus de termos escapado
daquele perigo, porque se nos apanhasse dentro do rio, despedaçando-nos
as embarcações, uma só pessoa escaparia”.95
Ao longo da travessia pelo grande Paraná, o vento “teimoso” foi
um dos piores adversários dos tripulantes. Além de retardar a jornada,
amplificava a quantidade de doentes e induzia a falta de mantimentos,
a ponto de o sargento-mor admitir que cogitavam “abreviar a jornada”.
Após muitas idas e vindas, a contornar as grandes ondas provocadas pe-
los fortes ventos, a expedição chegava ao rio Iguatemi em 24 de maio de
1769. O sargento-mor conclui a segunda parte do relato com novo cálculo:
“Tem este rio Grande Paraná de curso desde a barra do Tietê a barra do rio
Gatemi setenta léguas e três quartos”.96
O rio Iguatemi é descrito como “largo e fundo na sua entrada, suas
águas são boas, são bordadas suas margens de muitos palmitos, corre com
sua violência”.97 A alegria dos viajantes era evidente. Afinal, eles haviam
vencido o Grande Paraná. Mas a sensação de relativa tranquilidade duraria
pouco tempo. Em vinte e oito de maio, logo que saíram a navegar, “veio
uma tão grande tempestade de chuva, relâmpagos e trovões tão arrebatados
com tanta violência que parecia o fim do mundo; com isto, embicando em
terra, juntando-nos todos, se entoou a ladainha de Nossa Senhora”.98
No dia dois de junho, a expedição recebe a ajuda de “duas em-
barcações” com “trinta e tantos homens com o capitão-mor regente João
Martins Barros”. Após trocarem efusivos cumprimentos, “logo se repartiu
a gente de refresco pelas embarcações, descansando os miseráveis, que já
não podiam mais trabalhar”. O Diário da navegação seguia o seu ritmo, com
relatos em todos os dias, desde o início da expedição, no alto do rio Tietê.
Eis que, em três de junho, aconteceu grande mudança: “Aqui ficamos a noite
do dia três para o dia quatro e deste falhamos até o dia onze, que sempre
fez mau tempo, por cuja razão não seguimos viagem para a povoação”.99
De fato, a próxima entrada do Diário será uma breve nota em onze
de junho. No dia seguinte, Juzarte concentra em único tópico o relato
de várias semanas. Daí em diante, os eventos serão bastante resumidos,
considerando que a entrada de doze de junho se estenderá até setembro
daquele ano. Em suma, o relato torna-se menos descritivo e a ação ganha
mais força. Os registros, por data, no Diário da navegação seguem este for-
mato até onze de junho de 1769. A partir do dia seguinte, o relato perde a
divisão explícita em dias e torna-se gradativamente menos parcimonioso.
O sargento-mor passa a sintetizar os acontecimentos e eventos, de modo a
condensar os meses finais daquele ano e os que seguem, até maio de 1771.
Relator disciplinado, Juzarte continua a narrar episódios informati-
vos e, certamente, capazes de provocar maior assombro, como a chegada de 95
Idem, ibidem, p. 64.
um “pedestre” que “trazia cinco flechadas que lhe deu o gentio no campo”, 96
Idem, ibidem, p. 68.
em novembro de 1769100; ou a fuga de “nove soldados pagos e uma mulher”, 97
Idem, ibidem, p. 69.
em fevereiro de 1770101, recapturados e presos pelos portugueses, sob as 98
Idem, ibidem, p. 70 e 71.
ordens do próprio sargento-mor. Impressionam ainda, em particular, as
99
Idem, ibidem, p. 73.
doenças e mortandades, que reduziam drasticamente o efetivo dos soldados
100
Idem, ibidem, p. 84.
e povoadores, ao longo dos meses: em maio de 1770, achavam-se “somente
onze pessoas de trabalho sãs, além de alguns oficiais”.102 Por sinal, somente 101
Idem, ibidem, p. 85.
mitos e
fatalidades
do moderno
Guillaume Apollinaire. 1904-1905, pintura (detalhe).
resumo abstract
Este texto percorre alguns lugares na This text goes through some places in
obra literária de Apollinaire que são the literary work of Apollinaire that are
motivados pelas errâncias urbanas do motivated by the urban wanderings of the
autor. Uma modernização do olhar author. A modernization of the gaze is
ali se evidencia: investido de um viés evident there: invested with an allegorical
alegórico e mítico, a favor de um inusi- and mythical bias, in favor of an unusual
tado sentimento de estranhamento do feeling of estrangement from the banal
banal cotidiano, esse olhar concorre a and the quotidian, it concours to a lyrical,
um jogo lírico, por vezes elegíaco, que sometimes elegiac, game that the writer
o escritor estabelece entre tempos, ob- establishes between objects and figures,
jetos e figuras. O errante apollinairiano and between the past, the present and the
concede, assim, polissêmica profundi- future. The wandering Apollinaire, thus,
dade para o espaço e o tempo vividos, expresses polysemic depth for lived space
sobre fundo de uma despersonalização and time, over an increasing depersonali-
crescente imposta pela metrópole mo- zation imposed by the modern metropolis.
derna. A adesão do poeta às formas The adhesion of Apollinaire to the forms
da vida citadina revela-se, por fim, of urban life reveals, at last, orphic power
potência órfica de transfiguração lírica of lyrical and mythical transfiguration of
e mítica do presente. the present.
palavras-chave: errância; moderni- keywords: wandering; modernity; Apolli-
dade; Apollinaire. naire.
℘
Je ne vis que passant [...] Et détournant mes yeux de ce vide avenir/En
moi-même je vois tout le passé grandir/Rien n’est mort que ce qui n’existe
pas encore/Près du passé luisant demain est incolore. Apollinaire. Alcools.
Artigos
tantes, invariavelmente operam como desvios das habituais configurações
anestesiadas das identidades e dos desejos. Como bem salienta Walter
Benjamin, o andarilho moderno experimenta o sentido pleno de “uma
palavra lançada ao acaso”, de toda uma “agitação exterior [que] mistura e
sacode as ideias”1, razão por que a flânerie termina por se revelar errância,
um jogo da deriva, rumo aos “fatos-escorregões” e aos “fatos-precipícios”
de um Breton particularmente desorientado, “testemunha espantada” de
tudo quanto intriga no urbano.2 Para a geração de Apollinaire, a deam-
bulação alimenta uma fulgurante constelação de sentidos, apta a propor
o trânsito entre o prosaico e o maravilhoso, entre a pintura dos costumes
e os altos volteios de renovadas lírica e mitologia, entre desencantamento
e transfiguração.
Fato é que o deambular moderno procede a uma “exploração fantas-
mática e mítica do real”.3 Apollinaire, em particular, parece exprimir em
suas andanças uma “dramaticidade agressiva” que bem caracteriza o poetar
moderno.4 Em sua lírica, a multidão revela-se lugar de questionamento dos
sentimentos de absoluto, registro propício aos exercícios de contraposição
que beneficiam um “comportamento inquieto do estilo”. È caso de lembrar
como os espaços evocados em “Zone”, poema liminar de Alcools (publicado
nas Soirées de Paris n. 11, em dezembro de 1912) – urbanidades industriais,
subúrbios fantasmáticos, centrais elétricas que se elevam como catedrais dos
novos tempos – prestam-se a tradução de um cenário de relação consigo
do poeta, nuançada de mortificação e horror da finitude.5 Com efeito, a
multidão em Apollinaire comumente se transfigura em cortejo de mortos,
e lembra que, como anota Paul Valéry em 1924 (em Variété), a metrópole
moderna é o espaço da “infinidade dos indivíduos”, um “rio de vontades
separadas”, fonte de um “maravilhoso mal-estar da multiplicação dos
sós”. Esse mal-estar, diga-se, está na base da modernidade artística, como
o sentimento de uma individualidade que procura imprimir a seu estilo
1
BENJAMIN, Walter. Charles
um valor de intervenção junto às incertezas surgidas com a metrópole. Baudelaire, un poète lyrique à
Uma urbanidade metamórfica reflete a consciência de um eu inquieto; l’apogée du capitalisme. Paris:
excessiva, multifacetada, dir-se-ia “cubista”; ela é o registro mais notável Payot, 1974, p. 470.
Artigos
para acentuar certo “gosto moderno”, paradigmático no autor de Alcools.
Gosto pela desarmonia dos sons e cores das ruas industriais da “ci-
dade metálica”, pelas “viris aglomerações onde vomitam e cantam os me-
tálicos santos de nossas santas usinas”, pelas “noites de Paris embriagadas
do gim flamejante da eletricidade”, ou então pela estridência da “manada
de ônibus berrantes”.15 Os lugares “sem qualidade” que a cidade moderna
multiplica, suas máquinas, objetos e sons que comumente o bom gosto
repulsa, não estão presentes nos poemas de Apollinaire em favor de alguma
apologia futurista do moderno ou então de uma sublimação surrealista de
primeira hora: são, antes, dignificados como objetos líricos, elementos de
uma renovada composição elegíaca do presente. As chaminés esfumaçadas,
as pontes e os aeródromos, as ruas dos subúrbios industriais, os ruídos e
luzes da noite, as inscrições e placas que “estrepitam como papagaios”: mil
detalhes que reportam o liame visceral de Apollinaire, que se diz o “esôfago
de Paris”, com o domínio do visível e do sensível. “Domínio do devir, de
que se desvia o simbolismo idealista, e que o poeta de Alcools considera
por ainda guardar fé na capacidade de transfiguração do real por parte
da linguagem poética”.16 “Apenas renovam o mundo aqueles assentados
em poesia”, sustenta Apollinaire em 13 de julho de 1909 em poema lido
por ocasião do casamento do amigo André Salmon, uma epifania poética
que se detém, voz litânica, no desencantamento do mundo, na descida
aos Infernos, nas errâncias alucinadas. “Nous partîmes alors pèlerins de
la perdition/A travers les rues à travers les contrées à travers la raison”.17
Ocorre de o errante apollinairiano não esconder sua ambiguidade:
deixa-se fascinar pela modernização, mas também reage a ela, lastima o
fugidio que ela produz. A ressaltar que Le flâneur des deux rives se inicia nos
ritmos de uma reminiscência pesarosa: o poeta recorda como “as pálidas
chamas de algumas lâmpadas de petróleo” outrora iluminavam em par-
ticular rua parisiense um “maravilhoso concerto de pássaros”, lembrança
sobre fundo de arqueologia urbana das inscrições murais em deterioração
– das ruas “sobrecarregadas de inscrições, de graffiti, para falar como os
antiquários” –, dentre outras reverberações da vida anônima da grande
cidade. Assim, em 1913, Apollinaire profetiza o fim da Montparnasse que
abrigara os emigrados da Montmartre desfigurada pelos “proprietários e
arquitetos”: ele deplora que “cubistas, bandidos, poetas órficos”, pequenos
ateliês assim como seus lugares de boemia, sejam pouco a pouco expulsos
pela fisionomia renovada da metrópole.18
Nessa metrópole metamórfica o poeta experimenta um café barato
num balcão de “bar vigarista”, ou o ar viciado da estação de trem plena
de pobres emigrantes; observa sair embriagada de uma taberna de rua 15
APOLLINAIRE, Guillaume.
barulhenta “a falsidade mesma do amor”; perambula por uma Paris de Zone. Alcools, op. cit.
Artigos
Port-Aviation”. Por vezes, o tom blasfematório denuncia o impulso em
marcar de melancólica ironia a apreciação do moderno: “C’estle Christqui
monte au ciel mieux que les aviateurs/Il détient le record du monde pour
la hauteur”.30 Não surpreende que o poeta, que em seu caminhar dá-se
um mostruário do mundo, termine por evocar o paradoxo da escritura
poética: um movimento imóvel, suspenso, ainda que no ritmo perpétuo
da criação. “Nous marchons nous marchons d’un immobile pas”, escreve
nos Poèmes à Lou.
Artigos
Um conjunto heteróclito de artigos, de objetos perdidos na memória e
de outros achados nas reminiscências; uma enumeração caótica, por vezes
paratática, determina um modo de reconstruir e de proferir a experiência
fatal da modernidade. O bazar de “Le départ de l’ombre” remete, inevi-
tavelmente, àquele outro a que nos convida Balzac em A pele de onagro.
A modernidade se define por um “sensível heterogêneo”, para usar da
expressão de Jacques Rancière40, a partir do qual retraçar os esquemas da
nova arte de modo a construir “um poema interminável”. A perspectiva
do heteróclito, diga-se,não é raro na obra de Apollinaire. Testemunham seu
gosto particular pelo ecletismo e pela alteridade as célebres fotografias de
seu apartamento do Boulevard Saint Michel, cafarnaum no qual se mistu-
ram pinturas de vanguarda, fetiches africanos, marionetes, objets trouvés
de toda natureza. Assim, seus textos por vezes evocam objetos fragmen-
tários, detritos, restos abandonados, comumente de pouco valor. A cada
vez, esses objetos se veem reunidos segundo uma associação inquietante,
a favor de um tom fantástico da narrativa (o reconhecido gosto do poeta
pelas histórias extraordinárias; pela poética da “surpresa” que está no cerne
mesmo do “espírito novo”), ou então por simples gosto da incongruência e
de bizarrices de toda ordem. A enumeração seria fastidiosa: dos “materiais
disparatados” dos artistas negros em La vie anecdotique aos punhados de
ervas, os dentes de suínos e os pedaços de ferragens em “Mélanophilie”,
passando pelas inúmeras referências ao mundo industrial das máquinas
e objetos comerciais em Alcools.
Em Le poète assassiné, um capítulo intitulado “Mode” fornece o in-
ventário de uma estética da vida citadina em que se conjugam o “bizarro”,
o “fantasioso” e o “heteróclito”, três elementos-chave da estética apolli-
nairiana.41 Enumera-se ali uma série de elementos do vestuário (pelerines,
chapéus, botas, luvas), ornados dos mais inverossímeis materiais: pedaços
de cortiça, papéis envelhecidos, espinhas de peixe, conchas, pequenos
espelhos, cascas de nozes, grãos de café etc. A inovação se faz ousada, 40
Ver RANCIÈRE, Jacques.
pois que se fabricam “sapatos em vidro de Veneza e chapéus em cristal de A revolução estética e seus re-
Baccarat” em lugar dos usuais tecidos e couros. É possível reconhecer nessa sultados. São Paulo: Projeto
Revoluções, 2011. Disponível
voracidade da moda algo da perspectiva da arte plástica contemporânea
em <http://www.revolucoes.
a Apollinaire que se serve dos materiais provenientes de outros domínios org.br>. Acesso em 30 jul. 2018.
ou desprovidos a priori de valor estético de modo a ampliar os recursos 41
Ver LEE, Yi-Pei. La poétique
de sua poética.42 du ”bizarre” et de ”la surprise”
dans la prose d’imagination de
O léxico proveniente de uma vida citadina enriquecida em suas Guillaume Apollinaire. Thèse
excentricidades marca doravante um esforço de poetização do ordinário, (Doctoract en Littérature et
do insignificante, mesmo do vulgar. Uma poética considerada a partir dos Civilisation Françaises) – Uni-
versité Sorbonne Paris Cité,
objetos da nova cultura material (usinas, linhas elétricas, trens, estações), Paris, 2016, p. 324. Disponível
que ela faz entrar na esfera da combinação artística, talvez ajude a entender em<https://tel.archives-ouver-
tes.fr/tel-01539432/document>.
a célebre crítica de Georges Duhamel (em Mercure de France, n. 384, 15 jun. Acesso em 10 ago. 2018.
1913) quando da publicação de Alcools, em abril de 1913: “veio desaguar 42
Ver idem.
nessa pocilga uma multidão de objetos heteróclitos, alguns de valor, mas
43
DUHAMEL, Georges apud
nenhum produto da indústria do próprio mercador. Esta é uma das carac- DÉCAUDIN, Michel. Apolli-
terísticas da feirante de velharias: ela revende, não fabrica”.43 naire. Paris: Le Livre de Poche,
Uma cultura do heteróclito prescinde das regras do bom gosto, ou Coll. Inédit: Littérature, 2002,
p. 103.
das hierarquias da estética. “É possível partir de um fato cotidiano: um
44
APOLLINAIRE, Guillaume.
lenço que cai pode ser para o poeta uma alavanca com a qual ele erguerá Le flâneur des deux rives. Paris:
um universo”.44 A passagem, em L’esprit nouveau et les poètes, permite Éditions de la Sirène, 1918.
Artigos
procedimento que Apollinaire partilha com Blaise Cendrars dentre outros,
é prova de um crescente gosto pela disjunção dos elementos formais, por
uma dispersão sintáxica que permite romper com a comunicação clássica
em favor de uma aposta na aproximação entre realidades distantes.51
A propósito, talvez se possa falar de um processo de eclosão de um
mundo sensível no qual, e para o qual, no que diz respeito à arte, o conceito
de meio (milieu) substitui o de medium. Assim, um caligrama de Apollinaire,
à semelhança das solarizações de Man Ray ou das fantasias noturnas de
Brassaï, é arte de um renovado mundo sensível no qual, comenta Rancière,
“luz e movimento são ambas direta e simultaneamente experimentadas e
experimentadoras: um mundo de interstícios e velocidades onde a matéria
é espiritualizada numa força luminosa e condutora e onde pensamento e
sonho têm a mesma solidez ”.52 O que nos leva ao encontro dessa ideia de
arte e de mundo ligada ao regime milieu, prossegue Rancière, é a intenção,
moderna por excelência, de formar, no coração mesmo desse “sensório
global chamado ser de massa, o sensório particular do homem de massa
capaz de ler os sinais sociais e apropriar a produção em massa para si pró-
prio”, como o faz Apollinaire em face dos prospectos, catálogos, cartazes
“que cantam alto”53 no cotidiano de uma Paris que se moderniza.
A arte seria uma inscrição mnemônica que, ao transpor o vivido para 51
Ver WEISGERBER, Jean
o âmbito do jogo de apresentação, tenta dominar o passado. Dessa forma, (org.). Les avant gardes littéraires
bem o sabe um moderno como Apollinaire, as narrativas se transformam au XXeme siècle. Budapeste:
Akadémiai Kiadó, 1984, p. 804.
também em receptáculos que transportam diferentes momentos, que apor- 52
RANCIÈRE, Jacques. O que
tam e penetram em outros presentes e que, nesse empenho, os ressignifi- “médium” pode querer di-
cam. Toda arte é, pois, arte da memória e da recordação. Tal é o caso de Le zer: o exemplo da fotografia.
ARTisON, n. 4, 2016, p. 34.
flâneur des deux rives, inteiramente consagrado a lembranças parisienses,
Disponível em <http://artison.
como uma resistência ao fluxo do tempo, resistência que a consciência da letras.ulisboa.pt/index.php/ao/
saúde precária intensifica. “A salvaguarda literária de paisagens efêmeras article/view/101>. Acesso em 27
jul. 2018.
[como bem observa Peter Read] nem por isso anula uma tristeza, ainda
53
APOLLINAIRE, Guillaume.
que lírica, diante da mortalidade e usura do tempo”.54 Zone. Alcools, op. cit.
As errâncias pelo tecido urbano permitem atos de indulgência no 54
READ, Peter. Améthyste
recolhimento de todo um mostruário do caos residual, que Benjamin et labyrinthe architextures
dirá, um pouco mais tarde, possibilitar uma completa arqueologia da parisiennes dans l’oeuvre
de Guillaume Apollinaire.
cidade humana. De fato, não deixa de haverem Apollinaire um pouco da Cahiers de l’AIEF, n. 42 ,
disposição do lumpensammler da grande metrópole; consequentemente, a 1990, p. 96 e 97. Disponível
exuberância do mundo apreendida doravante do ponto de vista do baixo, em <https://www.persee.fr/
doc/caief_0571-5865_1990_
dos refugos da história. Alguém já disse, a propósito das crônicas do poe- num_42_1_1730 >. Acesso em
ta em torno das enchentes de Paris em 1908, que a modernidade se inicia 26 jul. 2018.
pela (auto)destruição. Assim, a embriaguez de Alcools, pode-se estimar, é 55
Cf. FAUDEMAY, Alain. La
a um tempo moderna e decadente.55 Não surpreendente, pois, o renascer brisure et l’écoulement : plaisirs
de la douleur dans l’écriture
dos misticismos (das mitologias revisitadas) em uma ordem discursiva que d’Apollinaire. In : BIONDI,
a princípio oferece as garantias da razão experimental. Contrariamente a Carminella et al (orgs.). La
quête du bonheur et l’expression
seus escritos de arte, em sua lírica Apollinaire não enuncia um diagnóstico de la douleur dans la littérature
sobre os destinos da arte moderna, mas designa o milieu, por assim dizer, et la pensée françaises. Genebra:
de toda sensibilidade atualizada junto ao conhecimento do mundo na Droz, 1995, p. 335. Disponível
em <https://www.droz.org/
perspectiva do que neste declina ou se transfigura. Talvez a modernidade france/fr/1762-9782600001090.
não se deixe equacionar tanto por afirmações beatas das grandezas da html>. Acesso em 15 ago. 2018.
eletricidade ou da velocidade quanto pelos signos que restam por ser de- 56
RANCIÈRE, Jacques. Le
cifrados nos “fósseis das revoluções passadas ou nos hieróglifos bárbaros poète du monde nouveau. In :
Aisthesis : scènes du régime es-
da novidade industrial”.56 thétique de l’art. Paris : Galilée,
2011, p. 87.
Artigos
ausência por toda parte presente no mundo, um não-ser que por fim conta
no visível. E visto a frequência com que aparecem em Alcools “sombras vi-
vazes”, sobre fundo de paisagem em trânsito, de uma cidade-instante, por
vezes espetáculo acelerado a bordo do trem, vê-se como elas incorporam
particular virtude evocatória.
As silhuetas sombreadas sempre foram consideradas capazes de
expor a alma, mesmo em seus aspectos ignorados. Razão porque o motivo
da sombra indicia, ainda, o tema do duplo, o obsessivo temor da dispersão
do eu: sua deambulação invariavelmente equivale a uma decomposição.
Ao interrogar a realidade dos corpos, a sombra denuncia a infidelidade
das imagens capturadas pelo olhar errante na metrópole. Ganha, porém,
contornos fascinantes ao exteriorizar uma inquirição doloroso de si, em
meio a um clima de fatal instabilidade.
Artigos
cada dobra da vertigem urbana moderna oferecida ao olhar do poeta.
Mistérios
da canção
regionalista
Ruy Barata, Paulo André e Fafá de Belém. S./d., fotografia (detalhe).
℘
Na floresta
O canto das Iaras ecoou
Uma estrela surgiu tão cintilante
E a mata iluminou
Luz menina
Voz que encanta, sobressai
Entre tantas
No Teatro da Paz
O canto da sereia ecoou
Na mais linda tradução do poeta
Paranatingueando
O Brasil cantou
Esse rio
Minha e tua mururé
Piso no peito da lua
Deito no chão da maré
Primeira mão
e literatos revelou os vários caminhos da produção da música popular,
especialmente numa primeira fase correspondente ao intervalo entre 1920
e 1940. Tal variedade, por sinal, contribuiu inclusive para se repensar a
ideia de popular na música, dadas as influências estrangeiras e eruditas
detectadas pelos pesquisadores nas criações de origem rural.
O que se descobriu com essas pesquisas, ou se constatou mais tarde,
é que a produção musical e sua repercussão são campos dinâmicos de
interação entre sujeitos, de intercâmbio entre visões de mundo e de circu-
lação cultural, considerada a sua fluidez e predominante imaterialidade.
Mas, simultaneamente, ela pode estipular repertórios simbólicos que se
impõem junto à sociedade, dotados até mesmo de força política. É nesta
chave que entra em cena a noção de regional-popular desenvolvida por
Edilson Mateus Silva. Enunciados e imagens propostos na canção popular
produzida na capital paraense nos anos de 1970 emergiram como narrativas
catalisadoras de visões socialmente estabelecidas sobre o regional.
O regional, em termos políticos e culturais, acaba por ser uma ex-
pressão menor do nacional, ao mesmo tempo a ele condicionado. Nação
e região formam um par combinado e se reforçam mutuamente quando
agentes políticos e artísticos atuam em seus nomes. Mais ainda: região não
pode ser pensada em exclusão ao nacional. Há entre os dois planos uma
continuidade visceral, uma relação complementar, pela qual se mantém
o jogo metonímico entre a parte e o todo. No mundo da canção popular,
a região desponta também como um constructo poético, com força para
imiscuir-se na imaginação coletiva a ela devotada.
O regional-popular presente nas canções de Ruy Barata, Paulo André
e Fafá de Belém constituiu uma vertente do regionalismo musical brasileiro
na Amazônia, recriado a partir da década de 1970. O regionalismo amazô-
nico que aí se enuncia é concebido e imaginado como comunidade política
e cultural, a despeito da diversidade etnicorracial e dos caminhos diversos
na história de ocupação socioespacial da região. A suposta unidade hu-
mana e espacial amazônica é promovida como evidência poético-musical,
componente do repertório mais amplo da música popular brasileira.
A música regional amazônica de Ruy, Paulo e Fafá ganhou ressso-
nância ancorada em condicionantes estilísticos, mercadológicos, políticos
e culturais próprios dos anos de 1970 no Brasil. É o caso, por exemplo, dos
projetos de “integração” da Amazônia ao país ensejados pelos governos
militares. Em meio à propaganda do regime pelo povoamento das “terras
sem homens” pelos “homens sem terras” da região Nordeste, a expressão
poética do regional na obra de escritores paraenses do período invocava
paisagens naturais e elementos da vida cotidiana da população ribeirinha.1
Esta foi uma temática orientadora do discurso político incorporado de for-
ma implícita ou explícita nas canções do trio de artistas. Além do mais, tal
orientação criativa permitiu o ingresso dessas obras na vitrine do mercado
musical brasileiro, exatamente quando se consolidava o rótulo MPB como 1
Vide os livros lançados nesse
complexo artístico-musical de escala nacional. período por Dalcídio Jurandir,
Benedicto Monteiro, Lindanor
Ruy, Paulo e Fafá formam como que um contínuo de produção mu- Celina e João de Jesus Paes
sical que vai da atividade poético-musical da cena artística belenense nos Loureiro.
anos 1960 até a inserção no mercado fonográfico no Brasil a partir de 1976. 2
Por isso o “paranatingue-
Ruy Paranatinga2 Barata, literato oriundo da geração de poetas emergentes ando” no samba-enredo da
Escola de Samba-Rancho Não
em Belém nos anos 1940, desenvolveu sua carreira artística e política na Posso me Amofiná, na epígrafe
capital paraense, tornando-se referência como intelectual de esquerda que deste texto.
Primeira mão
Água (1977), Banho de cheiro (1978), Estrela radiante (1979) e Crença (1980)
apresentaram, com regularidade, uma ou duas composições da dupla Paulo
André e Ruy Barata. Suas letras e mesmo o clima musical das gravações
evocam uma atmosfera amazônica, com referências fluviais, beiras de rio,
vento, flora regional, preamar, sem contar temas românticos ambientados
na zona boêmia de Belém.
Na linha de raciocínio do importante estudo de Durval Muniz de
Albuquerque Júnior sobre a “invenção do Nordeste”, a música de Paulo
André e Ruy Barata nos discos de Fafá de Belém contribuiu com a pro-
dução do imaginário nacional sobre a Amazônia em meio à proliferação
de poemas, romances, filmes e peças teatrais sobre essa temática nos anos
1970. Nesse sentido, a obra de arte voltada para o entretenimento assume
o papel de produtora de realidade, ao disseminar modos de dizer e ver o
regional no palanque privilegiado dos meios de comunicação.
No período, os governos ditatoriais dos militares conduziam projetos
econômicos de integração da região Norte à matriz de desenvolvimento
do país. A modernização conservadora do regime militar impôs a explo-
ração de recursos naturais na Amazônia em detrimento da melhoria das
condições de vida da população local e das levas de migrantes vindas em
busca de trabalho e de novas perspectivas de subsistência. Nas grandes
cidades, a expansão do acesso a bens de consumo ampliou a possibilidade
de compra de discos, aparelhos de som e televisões a pessoas situadas nas
camadas médias. O investimento de gravadoras estrangeiras no mercado
fonográfico brasileiro, ao lado da iniciativa de empresários locais, abriu
caminho para a crescente inserção, no sistema de estrelato nacional, de
artistas da canção popular oriundos do Norte e Nordeste.
Tal conjuntura explica a conexão entre regional-popular e nacional-
-popular no domínio da canção nessa época: a moderna tradição musical
paraense representada por artistas como Ruy, Paulo e Fafá prestou sua
contribuição, a partir das margens e na chave do exótico, para a formação
de uma vertente artístico-mercadológica da Música Popular Brasileira
, com desdobramentos até os dias atuais. Este é o principal “mistério”
elucidado neste livro. Peço perdão pela revelação antecipada! O autor
enfrenta a polissemia da música-canção, das capas de disco e dos video-
clipes cruzando-os com textos jornalísticos e registros memorialísticos. O
resultado foi uma brilhante dissertação de mestrado, a qual tive a honra
de orientar, e que chega agora ao público na forma (mais leve!) de livro.
Que o prazer da leitura nos ajude a entender e apreciar a força sociológica
da canção, da performance e da criação em nosso mundo aparentemente
duro e materialista.
p :
o ra
o r d e
r e d u
a
l t u r
s n o
Aoonomia ias juv xico
, c e n i
ec stênc o Mé
e s i t e d
r e s
o r o
n
Roberto Camargos
Doutor em História pela Universidade Federal de Uberlândia (UFU). Pós-doutorando
vinculado ao Programa de Pós-graduação em História da UFU. Bolsista PNPD/Capes.
Autor de Rap e política: percepções da vida social brasileira. São Paulo: Boitempo, 2015.
robertoxcamargos@gmail.com
Ao redor do rap: economia, cultura e resistências juvenis no
noroeste do México
Around rap: economy, culture, and youth resistances in northwestern Mexico
Roberto Camargos
℘
José Juan Olvera Gudiño, doutor em Humanidades e sociólogo das
questões culturais, dedicou parte dos últimos sete anos de suas atividades
profissionais – como professor e pesquisador do Centro de Investigacio-
nes y Estudios Superiores em Antropología Social (Ciesas), localizado em
Monterrey/México – a investigações acerca de músicas e artistas populares
da região noroeste do México1. Interessado especialmente nas experiências
dos/das rappers, ele produziu e coletou uma vasta documentação sobre MCs,
DJs, beatmakers, produtores culturais, empresários, lojistas, entusiastas e ou-
tros sujeitos que empenharam parte de suas vidas na configuração de uma
cena local de hip hop. Conjugando elementos dessa rica pesquisa etnográfica
e documental com pertinentes aportes teóricos, metodológicos e históricos,
o autor analisa e descreve as redes econômicas e de sociabilidades em torno
do rap sem perder de vista aspectos sociais de um contexto marcado por
violências e inseguranças (física, social, econômica etc.). Dialogando com
artistas e sujeitos de pouca projeção e com outros de inegável impacto
em âmbito nacional, as análises expostas em Economías del rap en el noreste
de México passam por processos econômicos, migratórios, educacionais,
culturais, midiáticos e políticos, assinalando forte presença social do rap
na região estudada.
O trabalho mobiliza reflexões sociais e material empírico variado na
tentativa de entender aspectos relevantes das novas configurações culturais
do país em que foi desenvolvido, elegendo como pilares do exercício de
interpretação e análise social as dificuldades em se pensar os fenômenos
culturais no México sem levar em conta os fluxos migratórios com os EUA,
o papel dos jovens nos processos de culturalização da economia e, ainda,
a importância de associar os dados e indicadores macrossociais às práticas
dos jovens (como encaram a incerteza laboral e de renda, como criam meios
de subsistência e como constroem redes de colaboração, por exemplo). Es-
sas e outras potentes questões para se refletir sobre a sociedade e a cultura
1
O autor define o território emergem do interesse primário de José Juan Olvera: compreender e explicar
delimitado para a pesquisa o que fazem os rappers para viver com o rap e, especialmente, para viver
como um conjunto de espaços
do rap. Aqui, cabe destacar, viver com/do rap engloba um amplo e flexível
sociais formado pelos estados
de Tamaulipas, Coahuila, Nue- conjunto de estratégias que permite a seus promotores a existência mate-
vo Léon e a parte sul do Texas, rial (organização de eventos com vendas de ingressos, cobrança de cachês,
considerados ainda os vínculos
socioculturais com Zacatecas, venda de camisetas, produção musical, trabalhos educativos relacionados
Durango e San Luis Potosí. ou em diálogo com o hip hop) para criar e interpretar suas composições.
Resenhas
práticas vinculadas ao rap produzido por jovens de 15 a 35 anos da região
noroeste do México, organiza sua narrativa em dois eixos expositivos que
sintetizam os movimentos de pesquisa e reflexão enfrentados pelo autor.
O primeiro, “Enfoques, conceptos y contexto sociohistórico”, se debruça
sobre a questões de ordem teórica e histórica. Já o segundo, “Etonografía.
Economías del rap en el noreste de México”, é focado na investigação
empírica e documental que se valeu de fotografias, impressos diversos,
dados estatísticos, indicadores sociais, diários de campo e de observação
participante, entrevistas, músicas, vídeos e toda sorte de rastros que enri-
quecem suas análises. Ao final alinham-se conclusões gerais que resumem
as condições de certos grupos de jovens mexicanos, submetidos a experiên-
cias de uma dinâmica laboral acelerada e de pouca estabilidade, expostos a
vulnerabilidades sociais diversas e com vidas profundamente impactadas
pela intensificação da violência no contexto/momento da pesquisa.
O capítulo 1, “La diversidad de economias en un contexto regio-
nal”, é integralmente direcionado à construção de um contexto para a
pesquisa. Aí o sociólogo descortina aos seus interlocutores o México do
qual se ocupa, tomado como terreno de grandes e profundas diferenças
regionais que atingem de maneira mais aguda enormes parcelas da ju-
ventude que constituem o grosso da população desempregada do país.
Esses jovens tiveram suas vidas comprometidas pelas mudanças estru-
turais geradas pelas reformas neoliberais implantadas pelo Estado, que
reduziu investimentos nas áreas sociais e abriu espaços da economia e da
cultura para maior controle de empresas privadas, acelerando processos
de acúmulo de desvantagens de setores mais pobres. O capítulo analisa,
também, diferentes economias em torno da arte e que podem ajudar a
caracterizar as práticas de músicos de rap dentro do recorte socioespacial
da investigação, problematizando e adensando as reflexões sobre a partir
das relações entre o local e o global.
Nas palavras de José Juan Olvera, “abordo primero el enfoque de las
industrias culturales y creativas, así como sus limitaciones y alcances. A con-
tinuación, lo pongo em discussión con otras economias que permiten una
mejor explicación de mi evidencia empírica y las relaciono con prácticas,
espacios y redes de relaciones en forma de escenas musicales” (p. 33). Além
disso, o autor enfoca, pelo viés da economia da cultura e do contexto regio-
nal, problemas referentes às discussões sobre juventude, música, relações
fronteiriças – o que conduz ao entendimento da região com base em trocas
simbólicas e em fluxos de pessoas, e não pelas delimitações geográficas
oficiais de Estado – e aspectos sociodemográficos, protagonismo cultural
e consumo, novas tecnologias e seu papel nas configurações e produções
culturais, práticas de economia alternativa, solidária e de resistência. Esse
percurso, alimentado com muitos dados e indicadores extraídos de copiosa
bibliografia consultada, ganha especial relevo ao evidenciar o
Resenhas
nado com gran parte de la vida nocturna: los jóvenes habían abandonado
las esquinas y convertido las casas en centros de reunión, laboratorios de
creación y hasta en pequenos negocios” (p. 104). O sociólogo lança mão de
depoimentos (ao todo foram efetuadas 25 entrevistas) e outros documentos
para tecer um significativo painel da recomposição da cena local de rap,
caracterizado pela hegemonia do “rap consciente”, assim chamado “por-
que no sólo hace un retrato de uma situación o narra una circunstancia,
sino que toma una posición crítica respecto a las causas que originan tales
hechos” (p. 101).
Delineia-se aí o profundo e rigoroso trabalho etnográfico da pesquisa,
à medida que se relatam e se analisam em minúcias as novas figurações das
práticas dos rappers e os espaços de produção do “novo” rap (beneficiado,
em muito, pelo avanço das tecnologias computacionais e pela populari-
zação da internet). Em meio a tudo isso, atenção especial é dispensada à
economia – em sua maior parte dominada pela informalidade – que se
formou em torno das atividades concernentes ao rap. De maneira original
e criativa, Juan José Olvera elege os cartazes e flyers de eventos e shows
para mapear o crescimento ou decréscimo no número de festas, preços de
entradas, existência ou não de patrocinadores, artistas, espaços e relações
econômicas no interior da cena de rap e o seu potencial como gerador de
renda para as pessoas envolvidas com eles. Nos três capítulos subsequentes,
o autor envereda por casos de jovens que trabalham conectados ao mundo
do rap, ainda que de modos e de perspectivas diversificados.
Daí que, no capítulo 4, “Economías de la escena subterránea”, o foco
se concentra no exame pormenorizado de situações coladas ao ambiente
underground de rap, principalmente os empreendimentos artísticos regionais
que não estão presentes nos meios massivos de comunicação e nas redes
da indústria cultural e do entretenimento musical. Assim, destacam-se as
práticas e artistas de resistência, “que defino como formas de valorización
de la producción musical del rap para la sobrevivencia económica, en medio
de ambientes particularmente hostiles” (p. 114). Integram esse campo os
“raperos de pesera”, jovens artistas que utilizam o transporte público para
cantar suas rimas e fazer algum dinheiro, os “narcoraperos”, que produzem,
mediante pagamento, composições encomendadas por pessoas associadas
ao crime organizado [“llamadas ‘dedicaciones’, o réquiems, ‘descanse en
paz’” (p. 152)] e que buscam legitimar e eternizar sua figura por meio de
uma narrativa épica, e uma vasta rede de artistas, grupos, crews e “famí-
lias” que movimentam atividades econômicas alternativas, solidárias e
destoantes das operações e valores dominantes do capitalismo neoliberal.
As reflexões são, pois, alinhavadas com base em trajetórias pessoais e ar-
tísticas, evidenciando que, para José Juan Olvera, a economia da música
não está centrada em ver como a música sustenta o artista, mas, sim, em
entender como se financia a atividade artística.
O capítulo 5, “Economías de la escena alternativa independiente”,
centra fogo em casos de rappers com maior nível de escolarização formal,
como alguns pertencentes a estratos socioeconômicos médios. Calcado
nas experiências de Erik Santos, Aldo Ce, DJ Jonta e do grupo Caballeros
del Plan G, a análise privilegia projetos musicais que expressam ou são
desenvolvidos sob lema “faça você mesmo” ou em práticas de economias
alternativas em conexão com pequenos empreendimentos culturais. O autor
salienta que nas práticas e discursos desses sujeitos há linhas de continuação
℘
Tristes subúrbios, de Pedro Belchior, é o primeiro trabalho analítico de
maior fôlego sobre a relação de Lima Barreto (ele mesmo e sua literatura)
com o Rio de Janeiro, especialmente com seu cenário e tema geo-socio-cul-
tural privilegiado: os subúrbios. Como o autor nos revela na introdução, o
livro é resultado da pesquisa de mestrado que nasceu de sua experiência
de trabalhador-viajante na mesma cidade, onde chegou pouco depois de se
graduar em História no interior de Minas Gerais (São João del Rei). Novo
começo, novas perguntas.
Antoine Prost afirma, em um volume bem conhecido dos estudan-
tes desse “ofício”, que é preciso viver para poder interpretar o passado1;
mais antiga que esta, e certamente mais difundida entre culturas menos
egocêntricas, é a máxima segundo a qual é preciso olhar para o passado
para se poder viver. Pedro Belchior fazia, me parece, esse segundo exercí-
cio – deslocava-se diariamente do subúrbio, onde morava, ao museu onde
trabalha, em Botafogo, e se perguntava: como é que teriam surgido duas
realidades tão distintas que compõem, não obstante, o espaço polarizado
pelo qual tantas pessoas transitam cotidianamente? – quando descobriu
Lima Barreto transeunte dessa mesma rota na “cidade partida” e resolveu
fazer da obra deste o ponto de partida da investigação que nascia. Mas, por
sua complexidade desconcertante, esse sujeito-obra acabou se tornando o
principal motivo da pesquisa.
Sabemos que as dificuldades de utilizar a literatura para fazer
historiografia derivam basicamente do fato de que ela antes cria uma
realidade, mesmo que a partir da realidade, que a descreve. A forma e a
medida dessa deformação dependerão dos propósitos artísticos de quem
escreve, do momento e lugar histórico em que ele se inscreve, e por aí vai.
No caso de Lima Barreto – o que também não é segredo – tal dificuldade
é especialmente potencializada pela intervenção política deliberada da
escrita de alguém que concebe seu trabalho como “missão”.2 Para falar
objetivamente, à maneira dos historiadores, seria impossível fazer dos
textos barretianos fontes razoáveis para análise da cidade a menos que se
1
Ver PROUST, Antoine. Doze os considerem, antes de tudo, como fontes para a análise do próprio Lima
lições sobre história. Belo Hori-
zonte: Autêntica, 1996, p. 142 Barreto em sua relação com a cidade. Sendo, portanto, inócuo buscar “um
e 143. subúrbio autêntico ou verdadeiro” (p. 15) em sua obra, Pedro Belchior
2
Ver SEVCENKO, Nicolau. Li- julgou mais produtivo – e prático, já que uma empresa dessas demandaria
teratura como missão. São Paulo: comparações sistemáticas com dados externos à obra nos limites do prazo
Companhia das Letras, 2003.
exíguo de dois anos – procurar nela um Lima Barreto mais “autêntico e
Resenhas
Rio e os subúrbios presentes nessa obra.
O problema se tornava, assim, mais específico, relativo à “figura
histórica Lima Barreto” e à compreensão que críticos e biógrafos tinham
dele até ali: como ele teria retratado os subúrbios em sua obra? É correto
vê-lo como um “suburbano” militante, um defensor dos pobres contra os
ricos, da periferia contra o centro (marcado no início do século XX pelo
processo duplo de aburguesamento urbanístico e limpeza social, ou seja,
de modernização)? São essas as principais questões que Pedro Belchior
enfrenta em sua pesquisa enquanto procura se afastar da dualidade pressu-
posta por certas análises binárias das condutas políticas. É nessa dualidade
que se fundamentaram as avaliações que conhecidos marxistas fizeram da
vida-obra barretiana – Caio Prado, Jorge Amado e João Antônio –, com os
quais Pedro Belchior dialoga criticamente. Para tanto, o autor se debruçou
sobre todos os escritos de Lima Barreto – produção ficcional e não ficcio-
nal publicada ou não em vida, além de suas cartas e diários. Essa escolha
metodológica lhe permitiu mergulhar na vastidão do pensamento de Lima
Barreto, embora tenha também tolhido o desenvolvimento de algumas
chaves de análise relevantes, como apontarei à frente.
No primeiro capítulo, o autor se dedica precisamente à discussão da
fortuna crítica de Lima Barreto: de sua marginalidade em relação às princi-
pais instâncias de legitimação do campo literário de seu tempo, do processo
que leva a seu reconhecimento pleno e da maneira como esse caminho da
margem à consagração foi interpretado por seus comentadores. Contudo,
longe de uma simples “revisão de literatura”, o que introduz e conduz
essa discussão é a maneira como o próprio Lima Barreto via o seu ofício,
construía o seu estilo e, sobretudo, se via como intelectual em busca de um
lugar no mundo literário, ou melhor, como sujeito em busca de um lugar
no mundo por meio da literatura. Os autorretratos do escritor são vislum-
brados tanto em textos acabados – destaque-se, aqui, o perfil do escrivão
Isaías Caminha, protagonista de seu romance de estreia – quanto em suas
anotações cotidianas e projetos não concretizados em vida – como aquele
de Cemitério dos vivos, seu último romance. Nesse momento, o principal
esforço de Pedro Belchior se concentra em mostrar que o escritor, vivendo
uma “marginalidade amplamente reconhecida”, conseguiu construir redes
de interlocução dentro das quais podia gozar do status de referência para
jovens literatos e contar com o apoio e a admiração de figuras eminentes,
como Monteiro Lobato.
O segundo capítulo avança sobre a construção do estilo e do projeto
político-literário barretiano, concentrando-se no papel que neles ocupa
a experiência na cidade e a própria cidade como palco e agente. Alguns
traços biográficos, dispersos nas páginas precedentes, são retomados
para falar do drama existencial de Lima Barreto: o período de sofrimento
como menino negro na escola politécnica, vivido por insistência do pai; a
libertação para a literatura, possibilitada pelo todavia doloroso declínio da
equilíbrio mental do “chefe” da família; a subsequente obrigação precoce
assumir esse lugar; o emprego no funcionalismo público de baixo escalão e
a vida – algo forçosa, algo escolhida – de sujeito de classe média habitante
dos subúrbios; o racismo. Pedro Belchior aponta para o fato de que essas
experiências no Rio de Janeiro participam da constituição do estilo claro
e despojado, do tom sarcástico e da sua conhecida metodologia criadora,
marca de sua literatura: fazer do vivido o laboratório da ficção.
Resenhas
pouco diálogo com a historiografia social da cidade5 – não digo com fontes
primárias, observada a dificuldade do prazo, já mencionada. Esse diálogo
conferiria maior nitidez à visão singular do escritor (aquele “não lugar”)
e situaria melhor os leitores nesse cenário-ator que é o tema livro. Nesse
mesmo sentido, sair do ângulo de visão do próprio Lima Barreto poderia
ajudar a desenvolver melhor o tema da “memória” que figura, aliás, no
título do livro. Como as construções literárias a partir da memória e a in-
sinuante ética da relação com história da cidade (das construções antigas à
vegetação secular), que povoam a obra barretiana e o livro de Belchior, se
comunicam, por exemplo, com as densas discussões contemporâneas sobre
memória e história, lugares de memória, patrimônio? Dentro da proposta
de pesquisa do autor, a subteorização da memória representa, a meu ver,
uma promessa que não se cumpriu totalmente.6
Esse relativo “excesso de Lima Barreto” é acompanhado pela escolha
de promover uma visão panorâmica do tema principal (a relação do escritor
com os subúrbios), motivada provavelmente pela ausência de trabalhos
disponíveis sobre esse assunto. Desbravar um vasto terreno novo implica,
geralmente, deixar os detalhes um pouco de lado. O autor executa bem
essa tarefa, mas temos por vezes frustrada a expectativa de vê-lo mergu-
lhar mais fundo em subtemas insinuantes e fundamentar interpretações
mais consequentes. O diálogo entre a etnografia que Lima Barreto faz dos
subúrbios e sua autocompreensão poderia ter ido além do “como” e atingir
certos porquês. Mais do que constatar a ambiguidade do escritor em relação
aos trabalhadores e à cultura popular – para ficar em um exemplo caro ao
corte de classe que fundamenta o livro –, adoraria ter visto Pedro Belchior
arriscar compreender as razões dessa ambiguidade em termos sociológicos
ou psicológicas, detalhar seus matizes, e assim por diante.
Mas, sem dúvida, a ausência mais significativa diz respeito aos temas
da identidade negra e do racismo. Belchior, ao comentar o romance de
estreia de Lima Barreto, que assinala também o início de sua glória sub-
terrânea, ameaça projetar-se sobre esses lugares sensíveis, porém limita-se
a sugerir que o racismo, e sua denúncia aberta por parte de Lima Barreto,
“contribuiu” significativamente para seu fracasso nos espaços do prestígio 5
Lilia Schwarcz fez isso recen-
literário. Já não temos mais o direito de negligenciar o fato de que temente, com a maestria que
lhe é própria.
6
É possível que a teoria tenha
O racismo é um princípio constitutivo que organiza, a partir de dentro, todas as
sido excluída no processo de
relações de dominação da modernidade, desde a divisão internacional do trabalho edição, de transformação da
até as hierarquias epistêmicas, sexuais, de gênero, religiosas, pedagógicas, médicas, dissertação acadêmica em um
texto mais acessível. Se é ver-
junto com as identidades e subjetividades, de tal maneira que divide tudo entre as dade, não creio que haja sido
formas e os seres superiores (civilizados, hiper-humanizados, etc., acima da linha a melhor escolha. A edição,
aliás, diga-se de passagem,
do humano) e outras formas e seres inferiores (selvagens, bárbaros, desumanizados,
deixou passar uma sequência
etc., abaixo da linha do humano).7 de referências erradas nas notas
de rodapé das páginas 188-190.
Rodrigo Archangelo
Doutor em História Social pela Universidade de São Paulo (USP). Pesquisador da
Cinemateca Brasileira. Autor de Um bandeirante nas telas: o discurso adhemarista em
cinejornais. São Paulo: Alameda Editorial, 2015. rarchangelo03@gmail.com
A história e o audiovisual em tempos de ditadura
History and audiovisual in times of dictatorship
Rodrigo Archangelo
℘
Brasil, 31 de março de 2019. Passados 55 anos da mais traumática
ruptura democrática em nossa história republicana, o golpe civil-militar
de 1964 nunca esteve tão presente. Qualquer discussão sensata sobre o
país, hoje, depara-se com o negacionismo (fenômeno mundial, diga-se)
que entrou pela porta da frente no último e polêmico pleito eleitoral, e vem
retroalimentando um projeto de governo que ameaça avanços estabelecidos
pela Constituição de 1988, assim como conquistas democráticas anteriores.
Vivemos momentos de luta pela garantia de direitos, de disputa política
acerca de quem somos e de defesa do próprio estatuto da História.1 Nessa
conjuntura, compreender a construção da(s) memória(s) sobre os períodos
1
Enquanto campo do conheci- autoritários já vividos torna-se vital, mais ainda diante das deliberadas
mento, da pesquisa acadêmica
à disciplina ensinada nas es-
ações institucionais de negação do passado.2
colas. Diante dessa urgência, Em face dos enfrentamentos cada vez mais urgentes no cenário de
o 30º Simpósio Nacional de disputa por narrativas, o cinema, na intricada relação do audiovisual com a
História da Anpuh discute a
“História e o futuro da educa- história, cumpre importante papel de transmitir e criar conhecimento, seja
ção no Brasil”, preocupando-se como manifestação cultural e artística ou instrumento de reflexão política
com o ensino de História no
atual contexto e nos embates
da realidade. Ao observar essa perspectiva analítica e o atual momento
enfrentados por seus profis- brasileiro, o livro O cinema e as ditaduras militares: contextos, memórias
sionais nos espaços escolares, e representações audiovisuais, lançado no final de 2018, traz relevantes
universitários e centros de
memória e pesquisa; assim contribuições para os dias correntes.
como a “onda conservadora” e Coletânea com dez artigos de pesquisas independentes, a obra aborda
os usos do passado autoritário
no momento presente.
o potencial do audiovisual enquanto articulador do saber histórico, através
de dimensões da história pública e da memória social das ditaduras no
2
Concretamente, o telegrama
diplomático do governo federal Brasil, Chile e Argentina, efetivamente apresentadas em obras ficcionais e
enviado à Comissão de Direitos em documentários, canônicos ou não. Assim, os textos podem (e devem)
Humanos da ONU, em 3 de
abril de 2019, justificando a ten-
ser apreciados em seu conjunto, enquanto um guia para a compreensão
tativa de celebração dos 55 anos do audiovisual nas disputas por narrativas históricas – sobretudo a das
da data ao negar a existência de ditaduras militares, atualmente envoltas pelo mais escancarado discurso
um golpe de estado em 31 de
março de 1964. Também vale negacionista. As pesquisas reunidas no livro trazem reflexões sobre como
lembrar o Decreto 9.759 de 11 a atividade e as linguagens do audiovisual ultrapassam a qualidade de
de abril de 2019, que inviabiliza
a existência do Grupo de Traba-
condutoras da memória, sendo construtoras de novas memórias e do
lho de Perus, responsável pela próprio conhecimento sobre a história, demonstrando quão essencial é a
identificação de desaparecidos conexão entre cinema e história para se pensar e atuar no tempo presente.
políticos entre as ossadas da
vala comum do Cemitério de O cinema e as ditaduras militares resulta da seguinte empreitada: o pro-
Perus, em São Paulo. jeto “Cinema e história no Brasil: estratégias discursivas do documentário
Resenhas
trabalhos, porém, é tributária do histórico mais amplo de estudos e debates
obtido no convívio do grupo CNPq História e Audiovisual: circularidades
e formas de comunicação. Criado em 2005 pelos próprios organizadores
do livro – os historiadores e professores Eduardo Morettin (ECA-USP) e
Marcos Napolitano (FFLCH-USP) –, esse grupo acompanha e fomenta
reflexões valiosas para o exame da relação “história e audiovisual” em
circuitos acadêmicos nacionais e internacionais.4 Nota-se, daí, que alguns
artigos foram preparados para o escopo do livro, enquanto outros são des-
dobramentos de pesquisas anteriores a ele, feitas por especialistas que se
dedicam, há tempos, sobre a relação do audiovisual e as ditaduras no Brasil
e na América Latina. O livro apresenta forte complementariedade entre
as abordagens, ao mostrar coesão amadurecida ao longo das discussões
do referido grupo de estudo, que procura valorizar o audiovisual como
documento central no âmbito da pesquisa histórica. As abordagens, no
todo, levam em conta a linguagem e o diálogo do audiovisual com debates
historiográficos, além do seu confronto com as memórias, dominante ou
não, das ditaduras estudadas.
Do subtítulo “contextos, memórias e representações audiovisuais”
é a “memória em disputa” o leitmotiv presente tanto nos capítulos sobre a
produção e os controles burocráticos como nos que esmiúçam as repre-
sentações audiovisuais. Para educadores e pesquisadores, e o público leitor
em geral, vale destacar que as reflexões partem de determinantes estéticas,
ideológicas e conjunturais das atividades audiovisuais pesquisadas. Entre
os temas analisados estão: projetos e políticas oficiais para o cinema nos anos
da ditadura; as opções temáticas e ideológicas nas abordagens do período
ditatorial no cinema e televisão; a reflexividade expressa no documentário
e a representação de condicionantes históricas na obra ficcional. Aspectos e
contextos do audiovisual intrínsecos à construção do saber histórico, e que
se entrecruzam nos dez capítulos, como veremos a seguir. Já as filmografias
apresentadas e seus contextos mostram o “transitar” da memória desde o
aspecto subjetivo dos documentaristas – onde ganham espaço o revisionis-
mo e a problematização do passado – até a construção da memória social
mais ampla pelo drama na ficção– com ênfase na perspectiva de uma con-
ciliação entre grupos antagônicos. Alguns capítulos trazem justamente as 3
Apoiado pelo CNPq e desen-
ramificações desse “transitar”, tanto na comparação de obras audiovisuais volvido entre 2014 e 2016, os
organizadores informam que
específicas como na análise de conjuntos representativos. o projeto também engendrou
No levantamento (inédito) das opções temáticas e ideológicas nas atividades como seminários,
produções ficcional e documental sobre a ditadura brasileira, realizado por mostra de filmes, apresentação
de trabalhos em congressos
Marcos Napolitano e Fernando Seliprandy, o transitar da memória emerge. científicos e em publicações, o
Temáticas como: os “dois demônios”, a “inocência juvenil”, o “enfoque das levantamento bibliográfico e o
estabelecimento de uma filmo-
vítimas”, o “isolamento da luta armada” (e sua “monumentalidade”) e a grafia sobre o tema, disponíveis
“luta continua” parecem convergir para a resistência democrática da socie- em <http://historiaeaudiovi-
dade civil, numa matriz de memória bastante ambígua na conciliação com sual.weebly.com/>.
Resenhas
denúncia feitos por estrangeiros que expõem a repressão de Pinochet e as
inquietações históricas e conjunturais dos próprios cineastas alemães e fran-
ceses envolvidos. Além da analogia aos campos de concentração alemães
e ao apelo à unidade das esquerdas francesas, a solidariedade dos filmes
consiste em revelar o horror ditatorial no extracampo da imagem, através
das estratégias clandestinas, e até farsescas, para driblar o cerceamento e
para desconstruir o autoelogio do regime chileno. Em relação à Argentina,
Ana Laura Lusnich traz um conjunto delongas-metragens ficcionais pro-
duzidos durante a ditadura. O corte alegórico-metafórico destes traduz
o “terrorismo de Estado” presente nas instituições políticas, militares,
no poder econômico, nas entidades sanitárias e até na família de classe-
média do país. A autora escrutina os enredos relativos aos momentos da
produção dos filmes, e nos mostra como personagens, temas e o aspecto
diegético permitem compreender os graus de capilaridade das práticas
ditatoriais. Também expõe o papel de resistência do cinema em circuns-
tâncias repressivas dentro de um contexto onde, mesmo sob a censura do
circuito comercial, tais filmes foram exitosos ao representarem a opressão
do regime militar e a cumplicidade da sociedade civil.
A disputa pela memória também é abordada noutra dimensão: a
dos bastidores de projetos e políticas governamentais para o cinema. Ao
estudar o longa-metragem Independência ou morte (Carlos Coimbra, 1972),
Ignácio Dávila resgata relações de interesses entre cinema e Estado no ses-
quicentenário da Independência, quando se realizou um “filme histórico”
para reforçar o ufanismo midiático do milagre brasileiro. O autor mostra
a intenção do governo Médici de usar o cinema para fortalecer o presente
associando-se ao passado pela atualização de monumentos pré-existentes,
como, por exemplo, a literatura ufanista paulista dos anos 1920 e a icono-
grafia de Pedro Américo. Nessa chave, a personagem de Dom Pedro, ligada
aos temas “religião, nação e descendência” de um nacionalismo pregresso,
evidencia o “deus, pátria e família” de uma pedagogia nacionalista que,
pelo cinema, se atualizava no oximoro tradição-modernização.
A respeito da instrumentalização do filme histórico pela ditadura
brasileira, Eduardo Morettin envereda, no capítulo que abre o livro, pela
tentativa de dirigismo estatal para alavancar uma história oficial pelo cine-
ma. A sua investigação com o fundo Embrafilme dá a ver a continuidade
histórica entre períodos autoritários brasileiros, ao estudar um projeto de
fomento reeditou, nos anos 1970, a prática estado-novista do Ince (Instituto
Nacional de Cinema Educativo): a de pretender a chancela de historiadores
para emplacar o estatuto de verdade aos filmes históricos. O artigo, porém,
trata do papel do historiador na sociedade, ao mostrar a postura de Carlos
Alberto Vesentini – consultor em um dos filmes do projeto irrealizado da
Embrafilme. Vesentini expôs as tensões em encapsular ou mitificar per-
sonagens e eventos históricos na narrativa clássica ficcional. Ao invés da
“chancela histórica”, ele mostrou a potencialidade dialética do espaço de
construção da memória, igualmente aberto a interpretações contrárias àque-
las pretendidas pelo regime militar. Quanto ao mecenato oficial, a pesquisa
de Margarida Adamatti fala de Gustavo Dahl, crítico e cineasta responsável
pela distribuição comercial da Embrafilme no período Geisel. Em textos
dos anos 1960 e 1970, a autora detecta a estratégia de Dahl para adequar
sua luta pelo cinema nacional ao contexto repressivo. Se a cultura política
“nacional-popular” forjou o engajamento cinemanovista dos anos 1960;
p. 18 MESSINA, Antonello da. Virgem com o menino, cercados por Santos tam-
bém conhecido como a Pala di San Cassiano, 1475-76. Viena: Kunsthisto-
risches Museum, fotografia. Disponível em <https://www.wga.hu/fra-
mes-e.html?/html/a/antonell/cassiano.html>. Acesso em 18 abr. 2019.
p. 65 SETH. It’s a good life, if you don’t weaken. Montreal: Drawn and Quar-
terly, 1996, p. 7, fotografia.
p. 78 CIÇA. Bia Sabiá. Nós Mulheres, n. 1, São Paulo, jun, 1976, p. 2, foto-
grafia.
p. 101 D’SALETE, Marcelo. Cumbe. Wien: Bahoe Books, 2017, capa da versão
alemã, fotografia.
p. 105 O catador Aldair. In: D’SALETE, Marcelo. Noite luz. São Paulo: Via
Lettera, 2008, p. 39, fotografia.
p. 110 Cena do conto Malungo. In: D’SALETE, Marcelo. Cumbe. São Paulo:
Veneta, 2014, p. 146, fotografia.
p. 110 Valu com o colar de Nana, do conto Calunga. In: D’SALETE, Marcelo.
Cumbe. São Paulo: Veneta, 2014, p. 32, fotografia.
p. 115 Dara, nas ruas de São Paulo. In: D’SALETE, Marcelo. Angola Janga:
p. 115 Dara, a luta continua. In: D’SALETE, Marcelo Angola Janga: uma
história de Palmares. São Paulo: Veneta, 2017, p. 408, fotografia.
p. 173 LODY, Raul. O povo do santo: religião, história e cultura dos orixás,
voduns, inquices e caboclos. São Paulo: Martins Fontes, 2006, capa
do livro, fotografia.
p. 239 Ruy Barata, Paulo André e Fafá de Belém. S./d., fotografia. Disponível
em <https://blogdogersonnogueira.com/2013/05/17/o-passado-e-uma-
-parada-130/>.
ArtCultura: Revista de História, Cultura e Arte publica artigos e resenhas inéditos da área de
História, com interlocuções como o campo das Artes e da Cultura em geral. Para facilitar o trabalho
de editoração, pede-se aos colaboradores que sigam as seguintes normas:
1. O material para publicação deverá ser encaminhado para artcultura@inhis.ufu.br, em Word
7.0 ou compatível. O nome do autor deve vir acompanhado de informações especificando a atividade
que exerce, a instituição (se for o caso) em que trabalha e itens básicos de seu currículo.
2. Os artigos (com títulos em português e em inglês) deverão conter intertítulos, sem alusão a
Introdução e Conclusão, e se estender por 15 a 25 páginas, enquanto as resenhas deverão ter entre 4
e 6 páginas. Os textos deverão ser digitados com letra Times New Roman tamanho 12, em espaço 1,5
(margens superior e inferior à base de 3 cm; margens laterais, 2,5 cm).
3. A simples remessa de originais implica autorização para publicação, incluídas eventuais
alterações decorrentes do processo de revisão.
4. As traduções devem vir acompanhadas de autorização do autor e do original do texto.
5. Os artigos serão submetidos à apreciação de dois pareceristas. No caso de haver um parecer
contrário, o conselho editorial enviará o trabalho a um terceiro consultor.
6. As notas deverão ser indicadas no corpo do texto por algarismo arábico, em ordem crescente,
e listadas no rodapé da página. Ao mencionar uma obra pela primeira vez, fazer citação bibliográfica
completa. Em caso de nova referência a ela, utilizar o padrão SOBRENOME, Nome, op. cit., p., ou
idem, ibidem, quando for o caso de uma segunda citação consecutiva de um mesmo autor e/ou de
uma mesma obra.
7. Serão admitidas notas, desde que imprescindíveis e limitadas ao menor número possível.
8. As notas devem ser digitadas em espaço simples, com caracteres tamanho 10.
9. Para as citações com mais de cinco linhas, não é preciso abrir e fechar aspas, bastando colocar
o trecho em itálico, proceder ao recuo das margens e digitá-lo em letra com tamanho 11, em espaço
simples. Quanto ao mais, as palavras em itálico devem ser reservadas tão somente para expressões
em idioma estrangeiro.
10. Para as citações com cinco linhas ou menos que apareçam no corpo principal do texto, sim-
plesmente “abrir” e “fechar” aspas, sem recorrer a itálico ou a recuo das margens.
11. A revista não publica bibliografia ao final dos textos.
12. Os artigos devem vir acompanhados de resumo (em torno de 10 linhas), abstract, 3 palavras-
chave e 3 keywords.
13. Os artigos podem ser acompanhados de imagens (reduzidas ao mínimo indispensável), em
formato JPG e com resolução de 300 dpi.
Coletânea:
SOBRENOME, Nome. Título do capítulo. In: SOBRENOME, Nome (org.). Título em itálico. Local
de publicação: Editora, data, página citada.
Ex.: ABREU, Martha. Cultura política, música popular e cultura afro-brasileira: algumas ques-
Artigo:
SOBRENOME, Nome. Título do artigo. Título do periódico em itálico, volume e número, Local,
mês (abreviado) e ano de publicação, página citada.
Ex.: NEVES, Lucilia de Almeida. Memória e História: potencialidades da História Oral. ArtCul-
tura, v. 5, n. 6, Uberlândia, jan.-jun. 2003, p. 33.
Tese acadêmica:
SOBRENOME, Nome. Título da tese em itálico: subtítulo. Tipo de trabalho: Dissertação ou Tese
(Mestrado ou Doutorado, com indicação da área do trabalho) – vinculação acadêmica, Local e data
de apresentação ou defesa, mencionada na folha de apresentação (se houver), página citada.
Ex.: MORETTIN, Eduardo Victorio. Os limites de um projeto de monumentalização cinematográfica:
uma análise de filme. Tese (Doutorado em Ciências da Comunicação) – USP, São Paulo, 2001, p. 40.
Documentos eletrônicos:
AUTOR(ES). Denominação ou Título. Indicações de responsabilidade. Data. Informações sobre
a descrição do meio ou suporte.
Obs.: para documentos on-line, são essenciais as informações sobre o endereço eletrônico, apre-
sentado entre os sinais < >, precedido da expressão “Disponível em” e a data de acesso ao documento,
antecedida por “Acesso em”.
Ex.: GUIMARÃES, Lucia Maria Paschoal. Troca de noivos na família imperial! 2003. Disponível
em <http://www.nossahistória.net>. Acesso em 1 set. 2004.
Endereço:
ArtCultura – Revista de História, Cultura e Arte
Universidade Federal de Uberlândia – Instituto de História
Av. João Naves de Ávila, 2121 – Campus Santa Mônica – Bloco 1H, sala 1H40
Uberlândia – MG
Cep 38408-100
Fone: (34) 3239-4130 / ramal 29
E-mail: artcultura@inhis.ufu.br
Homepage: http://www.seer.ufu.br/index.php/artcultura
Facebook: pt-br.facebook.com/RevArtCultura
Instagram: @revistaartcultura