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ISSN 1516-8603

Rev ista de História, Cultura e Arte V. 21 N. 39 JUL.-DEZ. 2019

DOSSIÊ
Quadrinhos & cultura visual:
modos de ver e ler histórias
Revista de História, Cultura e Arte

Revista de História, Cultura e Arte

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issn1516–8603
ArtCultura Uberlândia v. 13
21 n. 22
39 p. 1–236
1–268 jan.–jun. 2011
jul.–dez. 2019 ISSN 1516–8603
ArtCultura Uberlândia v. 9 n. 14 p. 1–270 jan.–jun. 2007
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ArtCultura: Revista de História, Cultura e Arte, v. 21, n. 39, jul.-dez. 2019. — Uberlândia: Univer-
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CDU: 930(05)
Sumário
Apresentação .................................................................................................... 5

Dossiê Quadrinhos & cultura visual: modos de ver e ler histórias


Organizadores: Ivan Lima Gomes e Charles Monteiro
HQs, cultura visual e a leitura das imagens .............................................. 7

História em quadrinhos e História da Arte: diálogos temáticos e


metodológicos ................................................................................................ 9
Arthur Valle

A leitura gráfica da cidade: o Rio de Janeiro na street comics Zé Ninguém ... 25


Ivan Lima Gomes

Una ciudad efímera, una historia perdurable: narrativa y cultura visual


en La primera fundación de Buenos Aires, de Oski y Fernando Birri ......... 41
Amadeo Gandolfo

Quatro abordagens do cotidiano nos quadrinhos contemporâneos ..... 57


Greice Schneider

Outras mulheres, outras condutas: feminismo e humor gráfico nos


quadrinhos produzidos por mulheres ....................................................... 71
Maria da Conceição Francisca Pires

Holocausto y dibujos: la caricatura como resistencia .............................. 89


Gonzalo Leiva Quijada

História(s) redesenhada(s): visualizando analogias entre hoje e o


passado – periferias urbanas, resistência negra e vozes femininas
na obra de Marcelo D’Salete ........................................................................ 99
Jasmin Wrobel

Imaginando uma outra história da resistência negra: entrevista com


Marcelo D’Salete ........................................................................................... 117
Ivan Lima Gomes

Além-Brasil
Espontaneidade e reflexão: o Dao da somaestética Tradução ................. 125
Richard Shusterman

Artigos
Memória, história e identidade: o caso da “escola uspiana de história” .... 139
Diego José Fernandes Freire

Edição e engajamento político: a Editora L&PM nos anos 1970 ............ 155
Flamarion Maués
A questão racial e a identidade negra na produção intelectual da
Campanha de Defesa do Folclore Brasileiro: a Revista Brasileira de Folclore
e o Museu da Campanha de Defesa do Folclore Brasileiro (1961-1974) .. 173
Elaine Cristina Ventura Ferreira

Desenho rococó nos manuscritos do Brasil do século XVIII: caminhos


e expressões .................................................................................................... 187
Antonio Wilson Silva de Souza

Elocução de proa: o Diário da navegação (1769-1771),


de Teotônio José Juzarte ............................................................................... 205
Jean Pierre Chauvin

Errâncias apollinairianas: mitos e fatalidades do moderno .................... 233


Osvaldo Fontes Filho

Primeira mão
Mistérios da canção regionalista ................................................................. 239
Antonio Maurício Dias da Costa

Resenhas
Ao redor do rap: economia, cultura e resistências juvenis no noroeste
do México ....................................................................................................... 245
Roberto Camargos

História e vida: andando pelos ‘tristes subúrbios’ cariocas .................... 251


Lurian José Reis da Silva Lima

A história e o audiovisual em tempos de ditaduras ................................ 257


Rodrigo Archangelo

Referências das imagens .................................................................................. 263

Normas de publicação ...................................................................................... 265


Apresentação
Transcorridos mais de 20 anos de sua existência, a ArtCultura: Revista
de História, Cultura e Arte emplaca a edição n. 39. Nela, uma vez mais, a
diversidade de procedência das colaborações fala mais alto. Ao longo de
suas 268 páginas, ela conta com a presença de pesquisadores de 5 países
(Alemanha, Argentina, Brasil, Chile e Estados Unidos) e de todas as regiões
brasileiras, mais especificamente de 9 estados (Bahia, Goiás, Minas Gerais,
Pará, Rio de Janeiro, Rio Grande do Norte, Rio Grande do Sul, Sergipe
e São Paulo). Ao todo, eles se distribuem por 19 instituições de ensino e
de pesquisa da América Latina, da América do Norte e da Europa. Em
sintonia com a amplitude do raio de abrangência da revista, este número
conjuga contribuições de profissionais de diferentes áreas que se voltam
para o campo da História numa perspectiva igualmente ampla. Daí ter
mobilizado, para além de historiadores de oficio – sua peça fundamental
–, profissionais de domínios afins oriundos das Artes Visuais, das Ciências
Sociais, de Comunicação, dos Estudos Latino-Americanos, da Filosofia e
da Literatura.
A ArtCultura não se dobra à rigidez de certos procedimentos tradi-
cionais. Coerente com sua trajetória historiográfica, ela bebe de múltiplas
fontes nas quais se misturam águas de potes diversos. Tal é o caso do
dossiê inovador sobre Quadrinhos & história visual: modos de ver e ler
histórias, em muito boa hora organizado por Ivan Lima Gomes (professor
da Faculdade de História e do PPGH e do ProfHistória da UFG) e Charles
Monteiro (professor do Departamento de História e dos PPGs em História
e em Letras da PUC-RS, pesquisador do CNPq). Nem sempre se pôde colar
o selo da História a investigações em torno de determinadas produções
artísticas, como as HQs, um objeto até há pouco considerado, por assim
dizer, “um estranho no ninho”. Seja como for, aqui vale a máxima segundo
a qual tabus existem para serem quebrados.
Na sequência, temas e tempos distintos são empilhados e oferecidos à
legibibilidade de todos quantos prestigiam a ArtCultura. O filósofo Richard
Shusterman, da Florida Atlantic University, comparece em Além-Brasil com
um texto inédito nestes trópicos. A seção Artigos se abre a colaborações
variadas, que vão desde a análise crítica da “escola uspiana de história” até
as errâncias apollinairianas. Entre esses dois polos temáticos, alinham-se
trabalhos sobre o engajamento político da Editora L&PM, os cruzamentos
entre a questão racial e a identidade negra em campanhas de natureza
folclórica, o desenho rococó no Brasil e o Diário de navegação.
Primeira mão, como sugere seu nome, antecipa o prefácio de Ruy,
Paulo e Fafá: a identidade amazônica na canção paraense, ora no prelo. O
fecho da ArtCultura 39 se resume a três resenhas: uma sobre livro editado
no exterior que envereda pelo rap feito no noroeste do México, outra se
ocupa de um estudo sobre Lima Barreto e os “tristes subúrbios” cariocas,
e a terceira se debruça sobre obra que analisa produções audiovisuais em
tempos de ditaduras.
Sirvam-se à vontade, sem moderação.
Adalberto Paranhos
Kátia Rodrigues Paranhos
Editores de ArtCultura

ArtCultura Uberlândia, v. 21, n. 39, p. 5-6, jul.-dez. 2019 5


P. S.: Homenagem póstuma

Enquanto finalizávamos a ArtCultura 39, chegou a nós, como um


duro golpe, a infausta notícia do falecimento do Prof. Dr. Arnaldo Daraya
Contier, assinante e colaborador da revista, que durante muito tempo atuou
como docente da USP e pesquisador do CNPq. Figura da maior importância
na historiografia brasileira, ele se distinguiu pelo rigor acadêmico e pelo
reconhecimento de sucessivas gerações de historiadores que colheram
os frutos dos seus ensinamentos. Sua produção, no entrecruzamento da
História e da Música, gerou textos matriciais que repercutem até hoje pela
envergadura e densidade dessas contribuições. Não por acaso, “O nacional
na música erudita brasileira: Mário de Andrade e a questão da identidade
cultural” (publicado, originalmente, na ArtCultura 9 e republicado na edição
especial n. 27) está entre os dois artigos mais lidos e citados na história da
revista, para a qual, aliás, ele foi concebido. Enviado sem seu acabamento
final, passou por um processo de edição inteiramente aprovado, a posteriori,
pelo autor, que nunca fez segredo de sua admiração pela ArtCultura. Ao
Arnaldo Contier manifestamos nossos agradecimentos por tudo o que nos
legou. A ele, modestamente, dedicamos este número.

6 ArtCultura Uberlândia, v. 21, n. 39, p. 5-6, jul.-dez. 2019


HQs, cultura visual Dossiê

e a leitura de imagens Quadrinhos & cultura visual:


modos de ver e ler histórias
Comics, visual culture and image reading

Este dossiê pretende apresentar novos olhares sobre as pesquisas em


torno de cultura visual e HQs. Longe de pensá-las como meros reflexos da
sociedade, os artigos aqui reunidos elaboram análises a partir de aspec-
tos concernentes à linguagem das HQs (quadros, balões etc.), bem como
examinam os seus impactos na construção do olhar ao longo do tempo.
Sendo este um campo passível de exploração por pesquisadores das huma-
nidades, espera-se que essas colaborações contribuam para estabelecer as
HQs como um modo de expressão fundamental para o estudo da cultural
visual dos séculos XIX e XX.
O trabalho de abertura de Arthur Valle (UFRRJ) procura delinear
conexões entre duas modalidades de História: a História em Quadrinhos e
a História da Arte. Com base nas HQs centradas no universo da produção
artística, o autor analisa procedimentos e caminhos adotados por quadri-
nistas que, por vezes, assemelham-se àqueles percorridos por historiadores
da arte. Tal relação é enfrentada sem medos por Valle, que sugere a seguinte
provocação: em que medida a abordagem de historiadores da arte como
John Berger e Aby Warburg não se aproximaria dos tipos de narrativa
visual que associamos mais diretamente às HQs?
O diálogo entre HQs e outras narrativas visuais também é o foco
dos textos de Ivan Lima Gomes (UFG) e Amadeo Gandolfo (UBA). Gomes
dedica-se a investigar as relações entre HQs e grafite tomando como refe-
rência Zé Ninguém, uma espécie de graphic novel que lança mão da estética
do grafite para narrar a saga do personagem homônimo pelo Rio de Janeiro
em paredes, muros, portas e outros suportes não tratados. Como resultado,
essa cidade torna-se uma grande narrativa gráfica – ou uma street comics,
de acordo com Tito na Rua, criador de Zé Ninguém – a ser interpretada de
forma fragmentada por seus transeuntes.
Apoiado em uma leitura mais ampla sobre a obra de Oski, artista
gráfico e ilustrador argentino, Gandolfo, por sua vez, parte para uma
interpretação dos trânsitos visuais entre as linguagens do cinema e da
ilustração gráfica, ao enfocar a adaptação cinematográfica de um desenho
daquele criador. Sua abordagem ganha fôlego ao não defini-lo a priori
como um quadrinista; antes, Gandolfo assume a produção de Oski como
resultante de um original intercâmbio entre tradições antigas e modernas
da ilustração, da publicidade e das HQs contemporâneas.
Para muitos, HQs significam histórias fantásticas, repletas de aventu-
ras, reviravoltas e personagens de roupas berrantes. O cenário hoje é bem
diferente, a ponto de termos uma série de HQs voltadas à representação da
vida cotidiana e situações rotineiras. Por que representar um momento onde
nada acontece? É o que Greice Schneider (UFS) busca analisar, baseada em
um conjunto de graphic novels contemporâneas, de autoria, entre outros, de
Seth, Dominique Goblet, Daniel Clowes, Lewis Trondheim e Gabrielle Bell.
O tempo das HQs produzidas exclusivamente por homens e direcio-
nadas a leitores do sexo masculino ficou para trás. A produção de HQs por

ArtCultura Uberlândia, v. 21, n. 39, p. 7-8, jul.-dez. 2019 7


mulheres brasileiras é o tema do artigo de Maria da Conceição Francisca
Pires (UniRio). Ao retomar publicações feministas e a trajetória de uma
artista gráfica brasileira como Ciça durante a década de 1970, Pires constata
a existência de uma crítica e de um riso feministas que se expressam por
meio do humor gráfico. A análise aprofundada do trabalho de Chiquinha,
quadrinista contemporânea, permite-nos vislumbrar igualmente a presença
de uma cultura visual feminista, atenta à dimensão microscópica de poder
exercido sobre corpos femininos e à visualidade do grotesco corporal como
forma de resistência.
Em seu ensaio, Gonzalo Leiva Quijada (PUC-Chile) nos conduz até
a trajetória de Kurt Herdan. Sobrevivente da Shoah, ele não se reconhece
na Romênia sob égide da influência stalinista dos anos iniciais da Guerra
Fria. Logo emigra para Israel e, em seguida, para o Chile, onde se estabe-
lece como professor e artista dono de uma obra cujas “propostas revelam
uma mensagem simbólica de que há um dever ético transposto nesses
esboços, uma vez que sua sutil ironia nos desafia a sermos mais críticos e
mais sábios”.
Na sequência, Jasmin Wrobel (Freie Universität) realiza uma original
e pioneira incursão analítica pela obra de Marcelo D’Salete, um dos nomes
de maior destaque na produção brasileira recente de graphic novels. Seus
trabalhos priorizam a condição do negro na sociedade brasileira, desde as
periferias de São Paulo às lutas de resistência à escravidão no século XVII.
Ao não perder de vista que vários temas e soluções estéticas adotadas por
D’Salete em Angola Janga eram já perceptíveis em Encruzilhada, Wrobel
nos possibilita pensar a produção de D’Salete numa perspectiva de longa
duração. Vista sob esse prisma, Angola Janga é menos uma obra única e
mais o resultado de um longo processo criativo que remete à problemática
condição racial brasileira. Ao texto de Wrobel, segue-se uma entrevista de
Ivan Lima Gomes (UFG) com o próprio Marcelo D’Salete, na qual onde
sua formação, atuação profissional, futuros projetos e questões afins são
debatidas.
Boa leitura!

Ivan Lima Gomes e Charles Monteiro


Organizadores do dossiê

8 ArtCultura Uberlândia, v. 21, n. 39, p. 7-8, jul.-dez. 2019


História
em quadri-
nhos e diálogos
História temá-
da Arte: ticos e
metodo-
lógicos
Pinturas negras. Francisco de Goya. 1819-1823, fotografia (detalhe).

Arthur Valle
Doutor em Artes Visuais pela Escola de Belas Artes da Universidade Federal do Rio
de Janeiro (UFRJ). Professor do Departamento de Artes da Universidade Federal Rural
do Rio de Janeiro (UFRRJ), do Programa de Pós-graduação em Patrimônio, Cultura e
Sociedade e do Mestrado Profissional em História da UFRRJ. artus.agv.av@gmail.com
História em quadrinhos e História da Arte: diálogos temáticos e
metodológicos
Comics and Art History: thematic and methodological dialogues

Arthur Valle

resumo abstract
O artigo discute as relações entre a arte The paper discusses the relationships
das Histórias em quadrinhos (HQs) between comics and Art History, highli-
e a disciplina acadêmica História da ghting how Comics creators appropriate
Arte, destacando os modos através dos usual themes in Art History writing,
quais os quadrinistas se apropriam de such as the biography of artists, the re-
tópicos usuais na escrita da História constitution of lost works, the techniques
da Arte, como a biografia dos artistas, of artistic production, etc. To do so, the
a reconstituição de obras perdidas, paper presents a survey of the contem-
as técnicas de produção artística etc. porary Comics production that dialogues
Para tanto, apresenta um panorama with Art History, focusing on a specific
da produção contemporânea de HQs case study: the book La vision de Bacchus
que dialoga com a História da Arte (2014), by the French author Jean Dytar,
e se detém em um estudo de caso es- which narrates the passage of the painter
pecífico: o álbum La vision de Bacchus Antonello da Messina by the city of Venice
(2014), do quadrinista francês Jean between 1475 and 1476.
Dytar, que narra a passagem do pintor
Antonello da Messina por Veneza entre
1475 e 1476.
palavras-chave: História em qua- keywords: Comics; Art History; discipli-
drinhos; História da Arte; diálogos nary dialogues.
disciplinares.


Desde meados do século XX, a arte das Histórias em quadrinhos
(HQs) e a disciplina acadêmica da História da Arte vêm estabelecendo en-
tre si fecundos intercâmbios. Embora as HQs consideradas como arte em
sentido pleno ainda sejam um tema de investigação pouco comum entre
os historiadores1, é notório, por exemplo, o interesse desses últimos pelas
1
Ver ROEDER, Katherine.
apropriações da iconografia dos quadrinhos feitas por artistas da chamada
Looking high and low at Com- pop art, como Richard Hamilton, Roy Lichtenstein e Andy Warhol. Tal inte-
ic Art. American Art, v. 22, n. 1, resse se estende a artistas contemporâneos como Rivane Neuenschwander,
Spring 2008, p. 2.
Sue Williams ou Takashi Murakami que “de algum modo se apropriam
2
Idem, ibidem, p. 4 (tradução
livre).
da linguagem das Histórias em quadrinhos como um meio para comentar
sobre a cultura de massa”.2 Essa produção contemporânea ganhou visibi-
3
O website dessa exposição
se encontra disponível em lidade em exposições como Comic abstraction: image-breaking, image-making,
<https://www.moma.org/in- montada no Museum of Modern Art de New York em 2007.3
teractives/exhibitions/2007/
comic_abstraction/>. Acesso
Bem menos discutida em contextos acadêmicos é, porém, uma ten-
em 1 set 2018. dência inversa, i. e., a das apropriações feitas por quadrinistas de temas

10 ArtCultura Uberlândia, v. 21, n. 39, p. 9-23, jul.-dez. 2019


usuais na História da Arte. No meu entender, essa inversão do olhar por

D os s iê Quadri nhos & cu l t u ra v i su al : mo d o s d e ver e l er h i st óri as


si só suscita questões dignas de debate, como por exemplo: o que existe
em comum entre a linguagem das HQs e aquela usada pelos historiadores
da arte? Como autores de HQs incorporaram em seu processo criativo os
métodos usados na escrita da História da Arte? Que potenciais vantagens
a linguagem das HQs teria diante da tarefa de narrar a História da Arte?
Nas páginas que se seguem, procurarei apresentar reflexões que ofereçam
respostas – ainda que parciais – a tais perguntas.
No Brasil, não é propriamente uma novidade o interesse dos inves-
tigadores pelos diálogos entre HQs e a disciplina da História, em sentido
lato, e pela História da Arte, em sentido mais restrito. Especialmente desde
a instituição dos chamados Parâmetros Curriculares Nacionais (PCNs), em
finais da década de 1990, vem se afirmando, por exemplo, o consenso de
que as HQs podem funcionar eficientemente como mediadoras de conteú-
dos formulados em outras áreas de conhecimento; isso levou, inclusive, à
elaboração de políticas públicas que incentivam tais mediações.4 Seguindo
essa tradição, diversos capítulos de livros ou artigos em anais de eventos
acadêmicos exploram a relação entre HQs e a disciplina da História, espe-
cialmente dentro de contextos educativos.5
Aqui, todavia, eu gostaria de ampliar a noção usual das HQs como
mediadoras de conteúdos históricos para me centrar sobre a possibilida-
de de as HQs funcionarem como discursos historiográficos em sentido
pleno. Historiadores como o inglês Peter Burke se já dedicaram a uma
empreitada semelhante. Em capítulo de seu livro Testemunha ocular, Burke
defende que “certas narrativas visuais podem também ser consideradas
como a própria história [...], recriando o passado por meio de imagens e
interpretando-o de diferentes maneiras”.6 Embora Burke discuta exclu-
sivamente a pintura de história e o filme histórico como modalidades de
“narrativa visual”, acredito que as HQs poderiam – e mesmo deveriam
– ser incluídas em tal reflexão.
Burke afirma que certos artistas podem ser considerados como
“historiadores de pleno direito”, lembrando como, por exemplo, “o
interesse dos pintores na reconstrução precisa das cenas do passado foi
especificamente acentuado, no Ocidente, no período compreendido en-
tre a Revolução Francesa e a Primeira Guerra Mundial”.7 Artistas como
o francês Jean-Louis Ernest Meissonier ou o alemão Adolph Menzel 4
Ver VERGUEIRO, Waldo-
“aprenderam a partir do trabalho dos historiadores profissionais que miro e RAMOS, Paulo. Os
quadrinhos (oficialmente) na
eram encontrados em número cada vez maior nas universidades do escola: dos PCN ao PNBE. In:
século 19, mas fizeram também suas contribuições para a interpretação VERGUEIRO, Waldomiro e
RAMOS, Paulo (orgs.). Qua-
do passado”.8 Grosso modo, esse desenvolvimento da pintura histórica drinhos na educação: da rejeição
coincidiu com a afirmação do gênero do romance histórico tal como à prática. São Paulo: Contexto,
preconizado por escritores como o escocês Walter Scott. Cumpre notar 2009.

que algumas das HQs que aqui referirei podem ser consideradas como 5
Ver, por exemplo, VILELA,
Túlio. Os quadrinhos na aula
autênticas herdeiras do romance histórico. de História. RAMA, Angela
Nas últimas décadas, os quadrinistas não se voltaram para a discipli- e VERGUEIRO, Waldomiro
na da História em busca de inspiração para seus temas, como também – e (orgs.). Como usar as histórias em
quadrinhos na sala de aula. São
com frequência – se valeram da História da Arte para os mesmos fins. O Paulo: Contexto, 2014.
interesse dos autores de HQs pode, porém, se centrarem aspectos bastante 6
BURKE, Peter. Testemunha ocu-
diversos da disciplina. Nas partes que se seguem, eu gostaria de destacar lar: história e imagem. Bauru:
alguns dos principais modos através dos quais quadrinistas se apropriaram Edusc, 2004, p. 197.

da História da Arte. 7
Idem, ibidem, p. 197 e 198.
8
Idem, ibidem, p. 198.

ArtCultura Uberlândia, v. 21, n. 39, p. 9-23, jul.-dez. 2019 11


9
GASCA, Luis e MENSURO, Citações de obras de arte e biografias de artistas
Acier. La pintura en el cómic.
Madrid: Ediciones Cátedra,
2014, p. 8 e 9 (tradução livre). Provavelmente a forma mais comum através da qual a História da
10
Gasca e Mensuro citam uma Arte é apropriada nas HQs diz respeito à maneira como os quadrinistas
edição da conhecidíssima His- fazem citações visuais de obras de arte canônicas em suas próprias HQs.
tória da arte de Gombrich publi-
cada no México pela Editorial Luis Gasca e Acier Mensuro dedicaram um livro inteiro à discussão dessas
Diana em 1995. citações – que podem ser mais ou menos literais –, enumerando as suas
11
Ver TORAL, André. Holan- principais motivações. Uma destas merece ser aqui retomada, pois explicita
deses. São Paulo: Veneta, 2017. a relação entre quadrinista e historiador que é central neste artigo:
12
Na bibliografia de Holande-
ses, Toral cita especificamente
ALPERS, Svetlana. O projeto de
Tradicionalmente, o uso de referências do mundo da pintura [e de outras artes]
Rembrandt: o ateliê e o mercado. se vincula ao processo de documentação do quadrinista, que a elas recorre para
São Paulo: Companhia das ambientar certas histórias, seja porque a narração transcorre em lugares e épocas
Letras, 2010.
do passado para os quais a única fonte gráfica referencial possível é a pintura, ou
13
Texto Disponível em <http://
www.kingdomcomics.org/
porque essas referências alcançaram a posição de imagens emblemáticas, facilmente
comics_culturales_novaro. reconhecíveis, que permitem que o leitor identifique facilmente um evento, período
html>. Acesso em 1 set 2018 ou lugar específico recriado na história em quadrinhos.9
(tradução livre).

O livro de Gasca e Mensuro apresenta literalmente centenas de


exemplos de citações do gênero, em uma série de capítulos que discutem os
grandes períodos ou estilos em que a História da Arte é convencionalmente
dividida em manuais como os de H. W. Janson ou E. H. Gombrich10: “A
pré-história”, “O mundo antigo: Egito e Mesopotâmia”, “O Renascimen-
to,” “O Impressionismo” etc. Vale notar que se trata da reafirmação de um
cânone etnocêntrico, formado quase exclusivamente por obras de artistas
europeus e estadunidenses e muito questionado hoje em dia. Como seria
impossível retomar todas as citações lembradas por Gasca e Mensuro, eu
prefiro lembrar das citações visuais feitas pelo brasileiro André Toral em
seu álbum Holandeses, que narra a história de dois judeus-portugueses
oriundos de Amsterdã, que se estabelecem em Recife na época em que boa
parte do Nordeste estava sob dominação holandesa.11 Na terceira parte de
Holandeses, intitulada “Recife. Entre o Gentio”, Toral insere, de maneira
sutil, diversas citações de imagens seiscentistas como pinturas e gravuras
de Frans Post, o quadro Os síndicos da guilda dos alfaiates (1662), de Rem-
brandt van Rijn [Figura 1a], ou um dos retratos de indígenas brasileiros
executados por Albert Eckhout [Figura 1b].
Toral não se limita, porém, a essas citações. Na primeira parte de
seu álbum, grande destaque é dado às práticas artísticas e pedagógicas
no ateliê de Rembrandt em Amsterdã, por meio de uma reconstituição de
época aparentemente baseada na leitura da obra de historiadores como
Svetlana Alpers.12 Desse modo, Holandeses apontam para um tópico fun-
damental na disciplina da História da Arte que é muito frequentemente
apropriado pelos quadrinistas: os relatos biográficos sobre artistas visuais,
em especial sobre pintores.
Desde os anos 1950, por exemplo, a editora mexicana Novaro incluiu
biografias de artistas em sua extensa série Vidas ilustres, “uma das mais bem
sucedidas e emblemáticas do projeto cultural da Editorial Novaro”.13 Dos
mais de 400 números de Vidas ilustres, não poucos foram dedicados a artis-
tas célebres como Leonardo da Vinci, Michelangelo, Rembrandt, Francisco
de Goya, Henri de Toulouse-Lautrec, Gustave Eiffel, Auguste Rodin, entre
outros. Embora ponderem que os autores de Vidas ilustres “pareçam mais
preocupados em incluir dados relevantes da vida do artista do que cons-

12 ArtCultura Uberlândia, v. 21, n. 39, p. 9-23, jul.-dez. 2019


truir uma história sólida e atraente ou explorar as possibilidades visuais do

D os s iê Quadri nhos & cu l t u ra v i su al : mo d o s d e ver e l er h i st óri as


grafismo próprio de cada um dos artistas que se evoca”14, Gasca e Mensuro
não deixam de dedicar atenção aos fascículos da série sobre El Greco15 e
Diego Velázquez16, inclusive reproduzindo alguns de seus quadros.
Nas décadas que se seguiram à iniciativa da Editorial Novaro, surgi-
ram muitas HQs tematizando a biografia de artistas [Figura 2]. Um exem-
plo precoce é a biografia do pintor brasileiro Pedro Américo, de autoria
de Nair da Rocha Miranda e Nico Rosso, publicada pela editora Ebal em
1960 como o fascículo 18 da série Grandes figuras em quadrinhos.17 Todavia,
a quantidade e a diversidade dos títulos publicados a partir dos anos 2000
são particularmente dignas de nota. Quadrinistas consagrados tem sus-

Figuras 1a e 1b. Citações de pinturas de Rembrandt van Rijn e Albert Eckhout.

14
GASCA, Luis e MENSURO,
Acier, op. cit., p. 16 (tradução
livre).
15
Idem, ibidem, p. 148 e 149.
16
Idem, ibidem, p. 170 e 171.
17
MIRANDA, Nair da Rocha e
ROSSO, Nico. Grandes figuras
em quadrinhos: Pedro Américo.
O mago da pintura. Rio de Ja-
Figura 2. Capas de biografias de artistas em HQs. neiro: EBAL, S/d, [1960].

ArtCultura Uberlândia, v. 21, n. 39, p. 9-23, jul.-dez. 2019 13


18
Ver SMUDJA, Gradimir. Le tentado um forte interesse nesse sentido e uma lista de obras de destaque
cabaret des muses.Paris: Del-
court, 4 vs., 2004-2008. incluiria, e. g., os trabalhos de Gradimir Smudja sobre Toulouse-Lautrec18
19
Ver SMUDJA, Gradimir. Vin- ou Vincent Van Gogh19; de Spacca sobre Jean-Baptiste Debret20;de Clément
cent et Van Gogh. Paris: Delcourt, Oubrerie e Julie Birmant sobre Pablo Picasso21; de Laurent Seksik e Fabrice
2 vs., 2003 e 2011.
Lee Hénaff sobre Modigliani22; de Milo Manara sobre Caravaggio23; de Ste-
20
Ver SPACCA. Debret em via-
gem histórica e quadrinhesca ao
ffen Kverneland sobre Munch24, entre muitos outros. Estamos diante, mais
Brasil. São Paulo: Companhia uma vez, da reafirmação de um cânone bastante tradicional, centrado em
das Letras, 2006. artistas homens e europeus, como era também o da Editorial Novaro. Vale
21
Ver OUBRERIE, Clément e notar, porém, que vem crescendo o número de biografias quadrinizadas
BIRMANT, Julie. Pablo. Paris:
Dargaud, 4 vs., 2012-2014. tematizando artistas mulheres, como demonstram o álbum da quadrinista
22
Ver SEKSIK, Laurent e LE Nathalie Ferlut sobre a pintora seiscentista Artemisia Gentilheschi25 ou o
HÉNAFF, Fabrice. Modigliani: de Jean-Luc Cornette e Flore Balthazar sobre Frida Kahlo.26
Prince de la bohème. Paris:
Casterman, 2014.
Novas séries de biografias de artistas em quadrinhos também têm
23
Ver MANARA, Milo. Cara-
sido publicadas. É o caso, por exemplo, das HQs realizadas pelo alemão
vaggio: a morte da virgem. São Willi Blöß retratando a vida de diversos artistas, como Salvador Dali, Andy
Paulo: Veneta, 2015. Warhol ou Keith Haring.27 É também o caso de coleção “Mestres da arte
Ver KVERNELAND, Steffen.
24
em quadrinhos,” cuja publicação foi iniciada há alguns anos pela editora
Munch. Zagreb: VBZ, 2016.
brasileira Nemo. Dois volumes vieram a lume até hoje, o primeiro sobre
25
Ver FERLUT, Nathalie. Arte-
misia. Paris: Delcourt/Mirages, Leonardo da Vinci28 e o segundo sobre Van Gogh.29 O texto de apresenta-
2017. ção dessa coleção define a sua missão como “apresentar a obra e a vida de
26
Ver CORNETTE, Jean-Luc; artistas considerados de destaque no universo da história da arte. Por meio
BALTHAZAR, Flore. Frida
Kahlo: para que preciso de pés dos quadrinhos, o público entrará em contato com os aspectos da vida e
quando tenho asas para voar? da obra determinantes para as criações de cada artista”.30
São Paulo: Editora Nemo, 2016.
Uma iniciativa mais ambiciosa é da editora francesa Glénat que,
27
Ver BLÖß, Willi. Milestones of
art: the collection. Vancouver/
em 2015, iniciou a publicação de Les grands peintres (Os grandes pintores),
Washington: Bluewater Pro- uma coleção com 30 álbuns previstos, reunindo trabalhos de quadrinistas
ductions INC, 2014. diversos. O foco biográfico de cada álbum de Les grands peintres é rela-
28
Ver SPINELLI, Mirella e tivamente circunscrito, se centrando no contexto em que determinado
VILELA, Andrea. Leonardo da
Vinci. São Paulo: Nemo, 2014. artista realizou uma de suas obras mais emblemáticas.31 Um exemplo é
29
Ver SPINELLI, Mirella. o álbum de Olivier Bleys e Benjamin Bozonnet sobre Goya32, que foca o
Vincent Van Gogh. São Paulo: dramático final da vida do artista, quando ele realizou a sua conhecida
Nemo, 2017.
série de Pinturas negras [Figura 3a]. Como acontece em outras biografias
30
Texto disponível em <http://
grupoautentica.com.br/nemo/
quadrinizadas de artistas, Bleys e Bozonnet não se limitam a (re)contar
quadrinhos/vincent-van-go- os supostos incidentes da vida de Goya, mas também citam visualmen-
gh/1469>. Acesso em 1 ago. te diversas obras desse último [Figura 3b] e parecem se esforçar para
2017.
incorporar algo do próprio estilo do pintor espanhol no grafismo e na
31
Como resume o texto de
apresentação da coleção: “Les dinâmica narrativa de seu álbum.
grands peintres propose de A enumeração não exaustiva feita nos parágrafos acima leva à
dresser en bande dessinée un
portrait de ces hommes hors du constatação de que as biografias quadrinizadas de artistas constituem um
commun. Ens’attardant sur um subgênero em expansão, que demanda estudos específicos. Cumpre notar,
moment précis de la vie d’um
porém, que o diálogo entre HQs e História da Arte não se limita à citação
peintre, elle vise à resituer avec
précision le contexte historique, de obras famosas e/ou ao tema da biografia dos artistas. Talvez seja precoce
artistique, politique ou person- afirmar que atualmente existem quadrinistas atuando como historiadores
nel dans lequel il en est arrivé à
peindre l’un de ses tableaux les de “pleno direito”, para usar a expressão de Burke; não obstante, me parece
plus emblématiques. L’objectif que ao menos em passagens de certos álbuns autênticas apropriações de
n’est pas de retracer une vie
métodos historiográficos se efetivam. Para exemplificar essa minha opinião,
entière, mais bien de raconter
à chaque fois une histoire per- gostaria de deixar de lado as apreciações panorâmicas que até agora fiz
mettant de capter au mieux la para me deter sobre um estudo de caso específico.
personnalité de l’artiste et de
son oeuvre”. Texto disponível Para tanto, me centrarei sobre um álbum chamado La vision de Bacchus
em <http://www.glenatbd.com/ (A visão de Baco) do quadrinista francês Jean Dytar, que foi lançado pela
actu/collection-grands-pein-
editora Delcourt em 2014. A trama se centra na estadia do pintor siciliano
tres-bd-glenat.htm>. Acesso em
1 set. 2018. Antonello da Messina na cidade de Veneza, entre os anos de 1475 e 1476.33

14 ArtCultura Uberlândia, v. 21, n. 39, p. 9-23, jul.-dez. 2019


D os s iê Quadri nhos & cu l t u ra v i su al : mo d o s d e ver e l er h i st óri as
Figura 3a. Pinturas negras. Francisco de Goya. Figura 3b. Sem título (Saturno devorando um de seus filhos), c. 1819-
1823. Francisco de Goya. Afresco montado em tela, 145 x 82.9 cm.

Dytar procura traçar um panorama verossímil da passagem de Antonello


por Veneza, descrevendo as pinturas que ele então realizou; suas negocia-
ções com encomendantes; sua relação de emulação com Giovanni Bellini,
outro célebre pintor da época; seus envolvimentos amorosos; etc. Todavia,
para além das questões biográficas, os interesses de Dytar convergem com
os de historiadores de arte em outros temas que pontuam o álbum. Aqui
eu vou me centrar em dois deles: (1) a reconstituição de obras pintadas por
Antonello e Bellini, bem com as suas condições de instalação originais em
igrejas venezianas; (2) a descrição dos processos de pintura desses artistas.

Reconstituições de obras de mestres

Em La vision de Bacchus, três retábulos têm importância central na


narrativa, pois é em torno da realização deles que boa parte da trama se 32
Ver BLEYS, Olivier; BOZON-
desenrola. Um retábulo ou peça-de-altar (pala d’altare, em italiano) é uma NET, Benjamin. Les grands
peintres: Goya. Grenoble: Glé-
obra de arte que representa um tema religioso e que fica suspenso em nat, 2015.
uma moldura, atrás do altar de uma igreja cristã. Os retábulos evocados 33
A esse respeito ver, por exem-
por Dytar possuem grosso modo o mesmo tema iconográfico: a Virgem e plo, BARBERA, Gioacchino,
o Menino Jesus, cercados por santos e santas. Pela ordem cronológica de Antonello da Messina: Sicily’s
Renaissance Master. New York:
realização – que é também a ordem em que são apresentados no álbum The Metropolitan Mueum of
–, são eles: o retábulo pintado por Bellini para a Igreja de Santi Giovanni e Art, 2006, p. 27-29.

ArtCultura Uberlândia, v. 21, n. 39, p. 9-23, jul.-dez. 2019 15


Figura 4. Propostas de reconstituição dos retábulos de (a) Giovanni Bellini para a Igreja de Santi Giovanni e Paolo; (b) Antonello da Messina para a Igreja de
San Cassiano; (c) Giovanni Bellini para a Igreja de San Giobbe.

34
DYTAR, Jean. La vision de Paolo, entre 1474e 1475 [Figura 4a]; a chamada Pala di San Cassiano, pintada
Bacchus. Paris: Delcourt, 2013,
p. 217 (tradução livre). por Antonello para a Igreja de San Cassiano, entre 1475 e 1476 [Figura 4b];
35
DYTAR, Jean. Tableaux re-
e, por fim, o retábulo pintado por Bellini para a Igreja de San Giobbe, entre
constitués. Jean Dytar, 2016. 1478 e 1480 [Figura 4c].
Disponível em <http://www.je- Como acontece com todas as pinturas quatrocentistas mostradas
andytar.com/notes-vision-bac-
chus/tableaux-reconstitues/> em La vision de Bacchus, Dytar não usa reproduções fotográficas para
Acesso 1 set. 2018 (tradução representar esses retábulos. Antes, ele apresenta “cópias, mais ou menos
livre).
detalhadas, com suas cores mais ou menos modificadas para se integrar
melhor no grafismo e no tom das páginas [da HQs]”.34 No caso dos re-
tábulos aqui em questão, tal processo de citação foi dificultado pelo fato
de que apenas a Pala di San Giobbe, de Bellini ainda existe integralmente.
Cumpre lembrar, porém, que essa obra não mais se encontra em seu local
de instalação original, mas sim em exibição nas Gallerie dell’Accademia,
em Veneza. Por essa razão, a proposta de reconstituição da Pala di San
Giobbe feita por Dytar se esforçou, como ele mesmo afirma, por “colocá-
-la de volta em seu local original, o que permite que nos demos conta do
efeito ilusionista de profundidade buscado pelo pintor. De fato, a moldura
em pedra – concebida pelo próprio Bellini – se prolonga naturalmente na
abóbada de berço pintada”.35
Ao tratar dos outros dois retábulos, Dytar se deparou com dificulda-
des ainda maiores porque eles foram em parte ou integralmente destruídos.
O retábulo de Bellini para a Igreja de Santi Giovanni e Paolo desapareceu
em um incêndio ocorrido em 1867; e a Pala di San Cassiano de Antonello
foi dividida em várias partes no século XVII, dela restando hoje apenas os
fragmentos centrais, conservados no Kunsthistorisches Museum de Viena.
Para reconstituir o retábulo de Santi Giovanni e Paolo, Dytar se va-
leu de uma gravura realizada a partir da obra antes de sua destruição e
publicada pelo historiador da arte italiano Francesco Zanotto no primeiro
volume de sua Pinacoteca veneta, datado de 1858 [Figura 5a]. Essa gravura
é basicamente um esquema linear do retábulo perdido, que não obstante,
segundo o historiador Augusto Gentilli “testemunha suficientemente uma
composição/imaginação muito mais moderna e complexa [do que a dos

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D os s iê Quadri nhos & cu l t u ra v i su al : mo d o s d e ver e l er h i st óri as
Figura 5a. Gravura a partir do retábulo de Gio- Figura 5b. Proposta de reconstituição do retábulo de Giovanni
vanni Bellini para a Igreja de Santi Giovanni e Bellini para a Igreja de Santi Giovanni e Paolo. Veneza.
Paolo, Veneza. Obra pintada por volta de 1474-75
e destruída por um incêndio em 1867.

contemporâneos de Bellini], com dez santos e três meninos anjos cantantes,


em torno do elevado trono da Virgem com o Menino em um amplo espaço
unificado”.36 Partindo da gravura de Zanotto, Dytar elaborou a sua proposta
de reconstituição do retábulo. Ele relata que seu trabalho

consistiu sobretudo em reconstituir as cores e em imaginar os efeitos de luz.


Eu escolhi então as cores das roupas a partir das convenções em uso na pintura
religiosa da época para representar tal ou qual santo. Aqui são visíveis, em torno
da Virgem com o Menino, São Jerônimo, São Domingos, Santa Catarina e Santa
Úrsula...
Eu igualmente reintegrei o quadro na sua moldura original ainda hoje visível na
Igreja de Santi Giovanni e Paolo.37

Em sua essência, a reconstituição dos dois retábulos de Bellini feita


por Dytar é muita afinada com, por exemplo, as preocupações de uma his-
toriadora da arte como Catarina Schmidt Arcangeli. Em um artigo dedicado
à Pala di San Giobbe, Arcangeli reproduz, propostas de reintegração dos
retábulos em seus contextos arquitetônicos originais bastante semelhantes 36
GENTILI, Augusto. Giovanni
às propostas de Dytar.38 As diferenças dizem respeito sobretudo a ques- Bellini. Firenze: Giunti, 1998, p.
16 (tradução livre).
tões estéticas: enquanto Arcangeli se vale exclusivamente de reproduções
37
DYTAR, Jean. Tableaux re-
fotográficas, o quadrinista usa, como vimos, suas próprias interpretações constitués, op. cit.
gráficas dos retábulos, visando melhor integrar suas reconstituições no 38
Ver ARCANGELI, Catarina
restante nas páginas do álbum. Schmidt. La sapienza nel si-
Na reconstituição da chamada Pala di San Cassiano, Dytar se envolveu lenzio: riconsiderando la Pala
di San Giobbe. Saggi e Memorie
ainda mais profundamente com uma tarefa que é usual no trabalho dos di storia dell’arte, v. 22, 1998, p.
historiadores da arte “de pleno direito.” Isso porque, diferentemente do 36 e p. 43.

ArtCultura Uberlândia, v. 21, n. 39, p. 9-23, jul.-dez. 2019 17


retábulo de Bellini documentado por Zanotto, não existe nenhum testemu-
nho imagético da composição completa do retábulo de Antonello. Restam
apenas alguns fragmentos centrais, preservados em Viena [Figura 6], e
cópias fragmentárias que permitem conhecer com certa precisão a dispo-
sição das figuras em torno do grupo principal. Mas sempre houve dúvida
com relação à moldura arquitetônica pintada que abrigaria os personagens,
elemento da composição a respeito do qual não existe documentação visual
ou escrita.

Figura 6. Virgem com o menino, cercados por Santos também conhecido como a Pala di San Cassiano,
1475-76. Antonello da Messina.

Figura 7a. Proposta de reconstituição do Figura 7b. Proposta de reconstituição do retábulo de An-
retábulo de Antonello da Messina para a tonello da Messina para a Igreja de San Cassiano, Veneza.
Igreja de San Cassiano, Veneza.

18 ArtCultura Uberlândia, v. 21, n. 39, p. 9-23, jul.-dez. 2019


Com base nos detalhes remanescentes, o historiador húngaro Johan-

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nes Wilde apresentou, em 1929,uma reconstituição gráfica da Pala di San
Cassiano [Figura 7a].39 Tentando preencher as lacunas na metade superior
da composição, Wilde propôs as formas da abóboda e do domo de sua
reconstituição com base em um retábulo que um pintor muito inspirado
por Antonello conhecido como Cima da Conegliano realizou entre 1492 e
1493 para o Duomo de sua cidade natal, localizada na região do Vêneto.
A reconstituição da Pala di San Cassiano proposta por Wilde levan-
tou polêmicas, especialmente no que diz respeito ao seu enquadramento
arquitetônico. Um dos historiadores de arte que questionou a proposta de
Wilde foi o italiano Mauro Lucco, em uma monografia recente dedicada
a Antonello.40 Como resume Dytar, “se [Lucco] dava crédito à disposição
das figuras [na reconstituição de Wilde], ele estimava que a decoração era
muito ousada para Antonello no momento em que ele a pintou, ou seja,
vinte anos antes de Cima da Conegliano, e supunha um espaço mais pró-
ximo do quadro desaparecido de Bellini, ainda que mais amplo”.41
Assessorado por Lucco, Dytar se pôs então a elaborar uma nova
proposta de reconstituição da Pala di San Cassiano. Como ele mesmo afir-
ma: “Eu nunca imaginei que esse trabalho a partir de pinturas antigas me
levaria tão longe! E foi assim que nós colaboramos para chegar a um novo
resultado”.42 Dytar realizou diversos esboços a fim de estudar as supostas
linhas compositivas do retábulo. Finalmente, como já dito, Dytar apresen-
tou nas páginas de sua HQs uma proposta de reintegração do retábulo
em sua moldura arquitetônica original [Figura 7b]. No entender do qua-
drinista, apoiado por um historiador da arte, “o resultado seria, portanto, 39
Ver WILDE, Johannes. Die
“Pala di San Cassiano” von
nos dias atuais, a reconstituição mais plausível desta importante pintura Antonello da Messina: ein Re-
de Antonello. Importante na breve carreira do pintor, pois se trata de sua konstruktionsversuch. Jahrbuch
encomenda mais prestigiosa, mas também importante por sua influência”.43 der Kunsthistorischen Sammlun-
gen in Wien. Neue Folge, Son-
derheft 27. Wien: A. Schroll,
Figurando o ato de pintar 1929.
40
Ver LUCCO, Mauro. Anto-
nello de Messine. Paris: Hazan,
Um segundo tema que atravessa La vision de Bacchus e que tem es-
2011.
treita relação com as preocupações dos historiadores da arte diz respeito 41
DYTAR, Jean. Tableaux re-
à representação dos processos de pintura de Antonello e de Bellini. Vale constitués, op. cit. (tradução
aqui lembrar que, ao menos desde Giorgio Vasari44, as técnicas de produção livre).
e a própria materialidade das obras de arte constituem tópicos de grande 42
Idem.
interesse para aqueles que se dedicam a narrar a História da Arte. Mais 43
Idem.
recentemente, a relevância do entendimento sobre técnicas artísticas foi des- 44
Ver BROWN, Baldwin G.
tacada nos seguintes termos pela historiadora da arquitetura Dana Arnold: (ed.). Vasari on technique; being
the introduction to the three arts
of design, architecture, sculpture
As propriedades físicas das obras de arte têm uma influência importante sobre como and painting, prefixed to the Lives
as entendemos como objetos. Quero destacar alguns exemplos dos diferentes meios of the most excellent painters,
sculptors and architects. New
e técnicas de produção de arte para mostrar como a consciência desses fatores pode York-London: E. P. Dutton &
ajudar nossa compreensão da história da arte. Cada exemplo funciona como uma co., J. M. Dent & co, 1907.
espécie de vinheta para mostrar como as propriedades físicas de uma obra de arte 45
ARNOLD, Dana. Art history:
podem adicionar outra camada de significado à sua história.45 a very short introduction. Kin-
dle edition: Oxford University
Press, 2004, loc. 1630-1633
O crítico de arte Waldemar Januszczak reitera essa ideia ao afirmar (tradução livre).
que “como indicativo do desenvolvimento da arte no Ocidente, a história 46
JANUSZCZAK, Waldemar
das técnicas pictóricas é um guia tão realista e exato como qualquer mani- (dir.). Técnicas de los grandes
pintores. Madrid: H. Blume
festo estético ou ensaio biográfico”.46 Afinado com tais posições, Dytar se Ediciones, 1981, p. 7 (tradução
detém diversas vezes no processo de pintura dos artistas que protagonizam livre).

ArtCultura Uberlândia, v. 21, n. 39, p. 9-23, jul.-dez. 2019 19


47
DYTAR, Jean. Extraits com- La vision de Bacchus. Nesse aspecto em particular, se revela uma das singu-
mentés. Jean Dytar, 2016.
Disponível em <http://www. laridades da linguagem narrativa das HQs: por suas características, ela se
jeandytar.com/la-vision-de- apresenta como um meio bastante adequado para a descrição dos processos
-bacchus/extraits-commentes/>
de criação artística, que são sempre caracterizados pela temporalidade.
Acesso 1 set. 2018 (tradução
livre). Dytar exibe para o leitor, por exemplo, a técnica do spolvero, usada
para traçar, sobre o painel de madeira, a complexa composição do retábulo
de Bellini para a Igreja de Santi Giovanni e Paolo [Figura 8]. Em uma cena
do álbum, encontramos Bellini e Antonello no ateliê do primeiro, em frente
ao retábulo ainda em seu estágio inicial de execução. Como explica Dytar:
“O desenho da composição aparece aí em pontilhado, porque foi feito
primeiramente em um cartão preparatório, que em seguida foi perfurado
com pequenos orifícios. Vemos os alunos de Bellini transferindo o desenho
para o painel de madeira batendo com um saco cheio de pó preto sobre o
cartão, o que permite ao pó passar através dos orifícios e se fixar no painel,
fazendo surgir o desenho”.47

Figura 8. No ateliê de Giovanni Bellini, seus discípulos preparam, com a técnica do spolvero, o suporte do retábulo
para a Igreja de Santi Giovanni e Paolo.

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D os s iê Quadri nhos & cu l t u ra v i su al : mo d o s d e ver e l er h i st óri as
Figura 9a. Retrato de homem, dito Il Condottiere. 1475. Antonello da Messina. Óleo sobre Figura 9b. Antonello pintando em seu ateliê.
madeira, 36 x 30 cm.

Em outras passagens de La vision de Bacchus, Dytar apresenta o pro-


cesso de pintura a óleo usado por Antonello. Um dos exemplos se baseia
em um dos quadros mais famosos do pintor italiano, um retrato de homem
pertencente hoje ao Musée du Louvre e conhecido como Il Condottiere
[Figura 9a]. Em uma página dedicada à realização dessa obra [Figura 9b],
vemos primeiro o exterior do ateliê de Antonello; em seguida, o pintor
sentado diante do cavalete, tendo o seu filho Jacobello a seu lado, moendo,
sobre uma mesa, pigmentos para preparar tintas. Segue-se uma sequência
de seis imagens, cujo sentido é explicitado por Dytar:

Eu utilizei a sequência de imagens para mostrar as várias etapas que levam à ela-
boração de um quadro: o desenho que subjaz à imagem; as áreas de sombra e de luz,
assim como a cor, gradualmente dispostas; até os acabamentos e este fundo muito
escuro, que destaca o brilho radiante do rosto por contraste.
A camada de branco inicial permite “clarear” as cores a partir de baixo, através de
veladuras, que são finas camadas de tinta muito diluída e translúcida e que permitem
que as camadas inferiores permaneçam discretamente visíveis.48

É interessante notar como a forma de apresentação do processo de


pintura de Antonello se assemelha àquela usada pelo já referido Januszczak
em um dos livros em que este discute as técnicas de pintura de diversos
mestres. Um deles é o pintor flamengo Jan van Eyck, cuja técnica de pin-
tura a óleo sobre madeira tem bastante afinidade com a de Antonello. Ao
procurar demonstrar o processo de pintura empregado por van Eyck em
seu famoso retrato do casal Arnolfini [Figura 10], Januszczak se vale de pro-
cedimentos usuais nas HQs, como os recordatórios e uma divisão regular 48
Idem.

ArtCultura Uberlândia, v. 21, n. 39, p. 9-23, jul.-dez. 2019 21


Figura 10. Proposta de reconstituição do processo de pintura do retrato do casal Arnolfini, de Jan van Eyck.

Ver JANUSZCZAK, Walde-


49 em quadros que parece sugerir, inclusive, as sarjetas quase onipresentes
mar, op. cit., p. 18. na diagramação dos quadrinhos.49
50
Ver BERGER, John. Modos de Essa sequência de imagens extraída do livro de Januzczak é igual-
ver. Barcelona: Editorial Gusta-
vo Gili, 1974.
mente interessante porque me leva a pensar a relação entre HQs e História
da Arte por outra perspectiva. Sendo a História da Arte uma disciplina
51
Ver WARBURG, Aby. Atlas
mnemosyne. Madrid: Akal, 2010. na qual muitas vezes palavras e imagens se combinam de modo íntimo,
assim como acontece nas HQs, penso que cumpriria verificarem que me-
dida os modos como os historiadores da arte apresentam suas reflexões
se aproximam da arte dos quadrinistas. Nesse sentido, vale recordar, por
exemplo, dos ensaios compostos exclusivamente por imagens do livro ba-
seado na série televisiva Ways of seeing de John Berger50 ou das conhecidas
pranchas do Atlas mnemosyne, o último grande projeto do historiador de
arte Aby Warburg, desenvolvido entre 1924 e 1929.51 Me parece que tanto
os ensaios “em imagens” de Berger quanto as pranchas de Warburg se
adéquam muito bem à definição geral, proposta por Ann Miller, das HQs
como uma arte que produz “significado a partir de imagens que estão em
uma relação sequencial e que coexistem umas com as outras espacialmente,

22 ArtCultura Uberlândia, v. 21, n. 39, p. 9-23, jul.-dez. 2019


com ou sem texto”.52 Seria possível, portanto, inverter o sentido das refle-

D os s iê Quadri nhos & cu l t u ra v i su al : mo d o s d e ver e l er h i st óri as


xões até aqui feitas e considerar Berger ou Warburg como quadrinistas
“de pleno direito”?
Esta é uma das questões que deixo por enquanto em aberto, uma vez
que sua resposta depende de um ulterior aprofundamento das investiga-
ções. Desde já, todavia, minha convicção é a de que os variados aspectos
dos diálogos entre História em Quadrinhos e História da Arte podem nos
ajudar a entender melhor as estratégias de construção de sentido empre-
gadas por essas duas formas de “história.” Em trabalhos futuros, pretendo
desenvolver reflexões que contribuam para tal entendimento.

Artigo recebido em 3 de maio de 2019. Aprovado em 20 de julho de 2019.

52
MILLER, Ann. Reading Bande
Dessinée: critical approaches to
French-language Comic Strip.
Bristol: Intellect Books, 2007,
p. 75 (tradução livre).

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A leitura gr o Rio d
áfica e Jane
iro
da cidade: na stre
et comi
Zé Nin cs
guém

Zé Ninguém chega ao Rio de Janeiro pela rodoviária. Tito na Rua. 2015, fotografia (detalhe).

Ivan Lima Gomes


Doutor em História pela Universidade Federal de Goiás (UFG). Professor da Faculdade
de História e do Programa de Pós-graduação em História e do Mestrado Profissional
de Ensino de História (ProfHistória) da UFG. Autor do livro Os novos homens do amanhã:
projetos e disputas em torno dos quadrinhos na América Latina. Curitiba: Prismas,
2018. igomes2@gmail.com
A leitura gráfica da cidade:
o Rio de Janeiro na street comics Zé Ninguém
Graphic readings of the city: Rio de Janeiro on the street comics Zé Ninguém

Ivan Lima Gomes

resumo abstract
Ao deixar Nova York e adotar o Rio de After leaving New York in 2001to adopt
Janeiro em 2001, Tito na Rua decidiu the city of Rio de Janeiro, Tito na Rua
utilizar-se do grafite para imprimir started to work with graffiti to print
sua marca como novo morador do its brand as a new resident of the city.
lugar. Criou a street comics Zé Nin- He created a street comics called Zé
guém, uma história em quadrinhos Ninguém, a comics narrative whose
(HQ) cuja narrativa se desenvolve title character lives his adventures as he
em paredes grafitadas pela cidade. O wanders through the walls and alleys of
personagem-título vive suas aventuras Rio de Janeiro. Through Zé Ninguém
enquanto percorre paredes e vielas do we intend to discuss the possibilities of
Rio de Janeiro, suscitando debates em interlocution between the technical and
torno das possibilidades de interlocu- visual procedures typical of two graphic
ção entre os procedimentos técnicos e and urban arts such as comics and
visuais próprios de duas artes gráficas graffiti. The connections between urban
e urbanas como as HQs e o grafite. As art and apprehension of public space,
relações entre arte urbana e apreensão reading of art in terms of reading the city
do espaço público, leitura de arte como and the creative solutions suggested by
leitura da cidade e as soluções criativas intermediality are main topics developed
a partir do diálogo intermídias serão throughout the text, starting from a pers-
pontos desenvolvidos ao longo deste pective that historicizes the practices of
texto, tendo por base um olhar que looking and questions the role of the arts
historiciza as práticas de olhar e se in the city experience.
interroga sobre o papel das artes na
experiência de cidade.
palavras-chave: Quadrinhos; grafite; keywords: Comics; graffitti; Rio de Ja-
Rio de Janeiro. neiro.


Ao longo dos anos, as ruas e cenários do Rio de Janeiro inspiraram
pintores, músicos e poetas a imprimirem suas respectivas poéticas sobre
o cenário carioca. É possível situar a relação entre arte e paisagem urbana
desde, pelo menos, a vinda da família real portuguesa para o Brasil em
1808, por ocasião das guerras napoleônicas. Durante o período de quase
quinze anos em que a corte portuguesa estabeleceu-se na América, o Rio
de Janeiro deixou de ser uma pequena cidade de pouco mais de 40 ruas
para se tornar a capital do Império Português. A nobreza recém-instalada
logo recrutou uma série de artistas e estudiosos para registrar a natureza
e a vida cotidiana do Rio de Janeiro, naquilo que se convencionou classi-

26 ArtCultura Uberlândia, v. 21, n. 39, p. 25-40, jul.-dez. 2019


ficar como “missão francesa” no Brasil.1 Aluno e primo de Jacques-Louis

D os s iê Quadri nhos & cu l t u ra v i su al : mo d o s d e ver e l er h i st óri as


David (1748-1825), o francês Jean-Baptiste Debret (1768-1848) faria nome
seu nome no Brasil. De formação acadêmica neoclássica, desde o início do
século XIX destacava-se por exaltar em pinturas as vitórias de Napoleão.
Porém, Debret viu-se sem sua principal fonte de renda após a derrota
francesa de 1815; é quando parte, ao lado de outros artistas, para o Brasil,
já alçado à condição de Reino Unido a Portugal e Algarves. Além de ter
contribuído para o estabelecimento da Academia Imperial de Belas Artes
e a institucionalização da arte acadêmica na corte recém-implantada no
Brasil, Debret produziu um conjunto de trabalhos dedicados a representar
a natureza e a vida cotidiana do Brasil e, em especial, do Rio de Janeiro.
Trata-se de sua Voyage pittoresque et Historique au Brésil, ou séjour d´un artiste
française au Brésil, depuis 1816 jusqu´en en 1831 inclusivement, que contém
153 ilustrações acompanhadas de textos explicativos, e que foi publicada
em Paris entre 1834 e 1839.2 Em sua obra, Debret preocupa-se em destacar
o Rio de Janeiro não apenas como a nova e luxuosa capital da corte, mas
também como uma cidade dotada de ritmos e sensibilidades bastante dis-
tintas, perceptíveis a partir do convívio cotidiano nas ruas enquanto locais
privilegiados de sociabilidade popular. Escravos, músicos, cozinheiras e
comerciantes protagonizam as aquarelas de Debret.3
A vocação da cidade do Rio de Janeiro para ser, a um só tempo, palco
e protagonista de intervenções artísticas de nomes oriundos do exterior 1
Ver PEREIRA, Sonia Gomes.
ganharia força com o passar dos anos. Outras vozes logo se fizeram escutar. Arte no Brasil no século XIX
Porém, nem sempre as leituras sobre a cidade assumiram tom exclusiva- e início do XX. In: OLIVEIRA,
Myriam Andrade Ribeiro de.
mente celebratório da diversidade cultural e das belezas naturais presentes (ed.). História da arte no Brasil:
na cidade. Um observador francês já apontava, em 1862, como a cidade “é, textos de síntese. 3. ed. Rio de
sem dúvida, atraente, mas não encanta o olhar. A moldura é bela demais, Janeiro: Editora UFRJ, 2013.

resplandescente demais, para que a tela tenha seu efeito”.4 2


Ver DIAS, Elaine Cristina. De-
bret: a pintura de História e as
As representações sobre a cidade, construídas a partir da expe- ilustrações de Corte da Viagem
riência estrangeira, variaram ao longo do tempo, bem como as técnicas Pitoresca e Histórica ao Bra-
e procedimentos estéticos adotados. Elas confirmam, porém, as relações sil. 2001. Dissertação (Mestrado
em História) – Unicamp, Cam-
entre arte e cidade, em que o artista possui a cidade a partir de uma ne- pinas, 2001.
cessidade de representar o espaço onde vive.5 Poderíamos pensar aqui 3
Ver DOMINGUES, Bruno
numa linhagem traçada desde a já citada pintura acadêmica de orienta- Willian Brandão. A cidade das
aquarelas: o Rio de Janeiro
ção neoclássica da Missão Artística Francesa às litogravuras sobre temas
nos registros de Jean-Baptiste
como carnaval, abolição da escravidão e o caos urbano da nova capital Debret. Dissertação (Mestrado
da República produzidas pelo jornalista e ilustrador italiano Angelo em História Social) – PUC-SP,
São Paulo, 2018.
Agostinia partir da segunda metade do século XIX6, passando pelas re-
4
EXPILLY, Charles. Le Brésil tel
presentações hollywoodianas. Produzido nos marcos das relações entre qu’il est. 2. ed. Paris: Charlieuet
cinema e Política da Boa Vizinhança, um filme como Flying down to Rio, Huillery Libraires Editeurs,
de 1933, apresenta a natureza exuberante do Rio de Janeiro justaposta à 1863, p. 52 [original de 1862].

modernidade urbana de carros no centro da cidade e do Jockey Club. A 5


Ver ARGAN, Giulio Carlo.
A história da arte como história
cidade seria uma síntese harmônica entre os mundos natural e urbano.7 da cidade. São Paulo: Martins
Mais recentemente, temos o quadrinista francês Jano que, em Rio de Jano, Fontes, 1992, p. 43 e 44.
mostra-nos o que seria outra face da cidade, para além das paisagens exu- 6
Ver BALABAN, Marcelo. Poe-
berantes e do imaginário de praias construídos por agentes e movimentos ta do lápis: sátira e política na
trajetória de Angelo Agostini
culturais como Hollywood e o movimento musical da Bossa Nova, por no Brasil Imperial (1864-1888).
exemplo. Em seu lugar, temos é uma cidade suburbana e que se mostra Campinas: Editora da Uni-
viva através de dançarinos de funk e vendedores ambulantes. Trata-se camp, 2009.

de obra que se dedica a apresentar uma leitura visual de um observador 7


Ver FREIRE-MEDEIROS,
Bianca. O Rio de Janeiro que
estrangeiro sobre a cidade do Rio de Janeiro, ressaltando sua diversida- Hollywood inventou. Rio de Ja-
de cultural. Implícito está o fato de que pontos turísticos tomados como neiro: Jorge Zahar, 2005.

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8
Ver O’DONNEL, Julia. A in- “tipicamente cariocas” são mais fruto de interpretações e circunstâncias
venção de Copacabana: culturas
urbanas e estilos de vida no historicamente localizadas do que dados em si. Copacabana é certamente
Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: o exemplo mais conhecido.8
Editora Zahar, 2013.
Longe estamos de pretender estabelecer exaustiva lista de obras
9
Ver PESAVENTO, Sandra artísticas dedicadas a representar o Rio de Janeiro. Mas fato é que tais tra-
Jatahy. Muito além do espaço:
por uma história cultural do ur- balhos propõem interpretar a o espaço urbano da cidade do Rio de Janeiro
bano. Estudos Históricos, v. 8, n. a partir de uma série de representações produzidas desde a perspectiva
16, Rio de Janeiro, 1995, p. 281.
de um deslocamento do olhar em relação àquele produzido por quem é
SERRANO, Alberto apud natural da cidade, num jogo de espelhos no qual o estrangeiro, assumindo
10

THOMÉ, Clarissa. ‘Zé Nin-


guém’, personagem de 150 uma condição de observador externo e, até certo ponto, outsider, busca
grafites, vira livro. Estadão, identificara cidade e identificar-se com ela. Essa condição lhe permitiria
3 mar. 2015. Disponível em
<https://brasil.estadao.com.br/
apreendê-la de maneira privilegiada, não raro expondo contradições, di-
blogs/estadao-rio/ze-ninguem- versidades, exageros e limites, ao mesmo tempo em que possibilita que este
-personagem-de-150-grafites- mesmo observador se insira na esfera pública de debate sobre os sentidos
-vira-livro/>. Acesso em 20
abr. 2019. da cidade, a partir de suas representações e leituras sobre ela.9
11
Ver BECKER, H. Art worlds
É no interior desta tradição de olhares estrangeiros que ressignificam
and social types. American a experiência de pertencimento a uma cidade como o Rio de Janeiro urbana
Behavioral Scientist, v. 19, n. 6, a partir de interpretações criativas que mobiliza técnicas e saberes associa-
s./l., 1976.
das ao universo das artes que nos interessa analisar Zé Ninguém, produzida
12
Ver VARTANIAN, Hrag.
Rio’s street graphic novelist: an
por Alberto “Tito na Rua” Serrano: “Eu era um estrangeiro tentando me
interview with Tito na Rua. Bra- adaptar. Em seis meses, já conseguia entrar numa lanchonete e pedir um
zilNYC, 22 jun. 2009. Disponível joelho (tipo de salgado, com queijo e presunto) e um refresco. Mas estava
em <https://web.archive.org/
web/20110803144410/http:// tentando entender a cidade e queria um personagem que estivesse passando
www.brazilnyc.com/2009/06/ o mesmo que eu, um sujeito que está vindo de outro lugar”.10
rios-street-graphic-novelist-an-
-interview-with-tito-na-rua/>.
Porém, cabe destacar que, enquanto nomes como Debret e Nicolas-
Acesso em 20 jul. 2018. -Antoine Taunay (1755-1830) mobilizavam procedimentos convencionais
da pintura acadêmica adquiridos em escolas de belas-artes, Alberto
Serrano parte da condição de artista urbano mais próxima daquilo que
Becker11 classifica como maverick – ou seja, aquele cuja obra escapa da ló-
gica estabelecida da arte por considerá-la demasiadamente restrita ainda
que, inicialmente, não raro tenha buscado integrar-se em algum grau a
ela. Nascido e criado no Bronx, Nova York, e filho de pais portorrique-
nhos, adotou o pseudônimo Tito na Rua – com o qual trabalharemos a
partir de agora – em 2001, após mudar-se dos EUA para o Brasil devido
aos atentados de 11 de setembro e em busca de melhores oportunidades
de trabalho na terra natal de sua esposa. No Brasil, investe na formação
artística por meio de cursos e, estimulado por colegas do grafite, inicia
suas incursões nos muros da cidade, chegando a Zé Ninguém, série de
grafites que narra a saga de homem e seu cão pelas ruas do Rio de Janeiro,
classificada pelo próprio autor como uma street comics. Com Zé Ninguém,
Tito na Rua ganhou reconhecimento de público e crítica, sendo convi-
dado para conceder entrevistas e adaptar seu trabalho para exposições
em galerias de arte, animação e livros. No caso deste último, temos uma
espécie de graphic novel que narra linearmente a saga do personagem-
título. Utilizaremos a obra em questão como referência pois, conforme
alerta Tito na Rua, muitos dos grafites criados para contar a história de
Zé Ninguém já desapareceram devido à perenidade que é própria da arte
do grafite. Porém, ao longo do texto buscaremos não ignorar problema-
tizações em torno da adaptação da street comics para o formato da graphic
novel. Sendo assim, cabe lançar a seguinte questão: o que esta expressão
quer dizer exatamente?

28 ArtCultura Uberlândia, v. 21, n. 39, p. 25-40, jul.-dez. 2019


Street comics: “comics about the street on the street”

D os s iê Quadri nhos & cu l t u ra v i su al : mo d o s d e ver e l er h i st óri as


13
Ver AHRENS, J.; METELING,
A definição de street comics – quadrinhos sobre as ruas e nas ruas – 12 A. (eds.). Comics and the city: ur-
ban space in print, picture and
aponta para as relações entre HQs e cidade, onde o Rio de Janeiro torna-se sequence. New York/London:
um espaço que demanda uma linguagem capaz de narrar sua geografia. Continuum, 2010.
Apesar de ser tema ainda não tão fortemente explorado se comparado a 14
Ver DITTMER, Jason. Narrat-
campos como os estudos de cinema e do próprio grafite, alguns estudos ing urban assemblages – Chris
Ware and Building Stories.
já se dedicam a analisar o que significa narrar a cidade desde a linguagem Social & Cultural Geography,
das HQs. Em comum, discutem as maneiras como esta forma de narrativa v. 15, n. 5, s./l., 2014, e BALL,
David e KUHLMAN, Martha
gráfica leva a ressignificações do espaço, focando em estudos de casos e (eds.). The comics of Chris Ware:
temas tais como, por exemplo, como o caráter eminentemente urbano das drawing is a way of thinking.
primeiras HQs publicadas em suplementos de jornais, a elaboração de Jackson: University Press of
Mississipi, 2010.
lógicas urbanas alternativas a partir de cidades fictícias ou na adaptação 15
A bibliografia sobre os comics
gráfica de cidades como Nova York e Paris.13 Estudos de caso seguindo studies é bastante extensa. Para
os trabalhos de um artista como Chris Ware mostram as possibilidades uma referência básica sobre o
campo de estudos das HQs,
da relação entre HQs e cidade, ao analisarem como sua estética formalis-
ver HEER, Jeet e WORCESTER,
ta permite a elaboração de uma arquitetura urbana e gráfica a partir da Kent (orgs.). A comics studies re-
representação de memórias associadas aos modos de vida nos EUA do ader. Jackson: University Press
of Mississipi, 2009.
início do século XX.14
16
As revistas em quadrinhos
Tais diálogos entre linguagem das HQs e história urbana também
e, em especial, as de super-
são explorados por Tito na Rua em Zé Ninguém, o que permite uma apro- -heróis, foram agentes funda-
ximação com alguns elementos caros à sua proposta de trabalho desde o mentais para a consolidação de
uma cultura jovem nos EUA a
campo dos assim chamados comics studies.15 Em primeiro lugar, a ênfase partir dos anos 1930, quando
nas HQs em detrimento do grafite, arte com a qual Zé Ninguém a princípio se consolida no mercado de
impressos. Ver WRIGHT, Bra-
estaria mais diretamente vinculado. Quando questionado em entrevistas
dford. Comic book nation: the
sobre qual das artes teria chegado primeiro em sua vida, Tito na Rua deixa transformation of youth culture
claro que seu interesse inicial residia não tanto no grafite, mas sim nas HQs. in America. Baltimore/London:
The John Hopkins University
Para reforçar seu argumento, o autor rememora sua experiência enquanto Press, 2003. O impacto da
leitor de revista de quadrinhos desde a tenra infância, interessado, como presença das revistas em qua-
drinhos na vida de crianças,
tantos outros jovens do século XX, na leitura de revistas de super-heróis.16
jovens e adultos pode ser ma-
Tito na Rua também manifestou apreciar obras como Tintin, Calvin and Ho- peado a partir de fotografias,
bbes – citados como influências diretas para Zé Ninguém17 – e Lone Wolfand obras literárias e do campo das
artes plásticas, que passaram a
Cue18, além de narrativas mais densas, orientadas segundo as premissas tomá-las como tema e objeto
do formato graphic novel, popularizadas a partir de fins da década de 1970 de reflexão. Ver GOMES, Ivan
Lima. Os sentidos dos quadrinhos
por nomes como Will Eisner, Art Spiegelman, Alan Moore e Frank Miller,
em contexto nacional-popular
entre outros.19 (Brasil e Chile, anos 1960-1970).
Para mim, a era do grafite acabou quando os trens do Metrô de NY que es- Tese (Doutorado em História) –
UFF, Rio de Janeiro, 2015.
tavam pichados pararam de circular. Eu perdi essa época dourada, mas tive a sorte
17
Ver VARTANIAN, Hrag,
de ver os novos muros que surgiam a cada verão no Bronx. Eu nunca pensei que op. cit.
ia grafitar um dia, minha paixão sempre foi as HQs. Em 2007, exausto e esgotado 18
Ver RODRIGUEZ, Diogo.
de tentar entrar no mercado de HQs, quis dar um tempo. Eu lembro que por três Quadrinhos de rua. Trip, 19 jan.
semanas eu simplesmente não fiz nada. Foi aí que eu decidi ligar para um amigo 2011. Disponível em <https://
revistatrip.uol.com.br/trip/
de uns amigos que grafitava.20 quadrinhos-de-rua>. Acesso
em 15 jul. 2018.
Já o grafite teria aparecido na sua vida de maneira ocasional, por ter vivido na 19
Ver BAETENS, Jan e FREY,
região do Bronx nos anos 1980, período de fértil atividade no âmbito do grafite em Hugo. The graphic novel: an
introduction. New York: Cam-
Nova York. Em uma entrevista sobre o início das suas atividades na cidade, o autor bridge University Press, 2015.
aponta que, ao contrário de sua terra natal, percebia amplo apoio público para a 20
SERRANO, Alberto apud OLI-
prática da arte urbana do grafite. VEIRA, Flávia. Portfolio Alberto
Serrano “Tito”, 14 mar. 2013.
Disponível em <https://issuu.
Quando virei adolescente, o Giuliani, o prefeito, já estava pegando no pé. Qualquer com/flioliveira/docs/tito_por-
coisa, já “rodava”. Não tinha como entrar no grafite sem rodar. Falei: Deixa pra tfolio>. Acesso em 12 jul. 2018.

ArtCultura Uberlândia, v. 21, n. 39, p. 25-40, jul.-dez. 2019 29


21
SERRANO, Alberto apud RO- lá, eu curto mesmo os quadrinhos”. Eu via grafite e achava “maneiro”, mas achava
DRIGUEZ, Diogo, op.cit.
que não tinha continuidade, eram só letras e personagens naquela época. Nunca
22
MCCORMICK, Carlo; ROB- pensei que eu fosse grafitar um dia. Quando eu vim para o Rio – aqui todo mundo
INSON, Walter. Report from
the East Village: slouching é bom de grafite – me chamaram [para grafitar]. Fui brincar por tédio de ficar no
toward Avenue D. In: THOMP- estúdio, Comprei duas latas e fui com um rapaz, fazendo um sapo. Depois, foram
SON, Margo. American graffiti.
New York: Parkstone Interna-
mais latas, treinei na cartolina. Aí tentei fazer [desenhos] mais realistas, reproduzir
tional, 2009, p. 222. fotos. Enjoei, estava pegando foto dos outros. Fiquei parado um tempo, pensando.
23
FOSTER, Hal. Recodings: art, Bolei esse negócio de street comics com o Zé Ninguém. Pensei em fazer uma coisa
spectacle, cultural politics. 2. brasileira, puxei coisas latinas, de Porto Rico. Estava aqui como imigrante, então
ed. San Francisco: Bay Press,
1987, p. 52. usei isso também. A rodoviária era o lugar perfeito para começar e fiz o primeiro
grafite na pilastra. Naquela época, valia tudo. Todo mundo pegava muro e a polícia
24
Ver KRAMER, Ronald. The
rise of legal graffiti writing in New dava parabéns. Vindo de Nova York, era muito estranho. Lá você cospe na rua e
York and beyond. Cingapura: pode tomar uma multa.21
Palgrave Macmillan/Springer
Nature, 2017.
Os depoimentos do autor sinalizam para aproximações entre HQs
e grafite desde o universo das culturas urbanas. Leitor de revistas em
quadrinhos, logo se tornaria também leitor da cidade de Nova York a
partir dos grafites. As interações entre ambas as artes gráficas, ainda que
pouco aprofundadas por Tito na Rua, certamente não devem ter passado
despercebidas pelo autor. Arte que se torna conhecida por público e críti-
ca desde meados dos anos de 1970, o grafite logo mereceria destaque da
crítica de arte por sua “obsessão por marcas registradas (‘tags’), o uso de
motivos emprestados dos quadrinhos e da cultura pop ”.22 Personagens
como Hot Stuff, The Little Devil – originalmente publicado pela Harvey
Comics e traduzido no Brasil como “Brasinha” – e Howard Duck prota-
gonizavam artes em paredes e vagões de trens; artistas NOC 167, Dondi,
Zephyr afirmavam a influência de nomes como Jack Kirby, R. Crumb e
Lee Vaughn Bodē em seus trabalhos; e a crítica percebia tais aproximações,
destacando os desafios que a arte do grafite sugeria a um tema como as
circulações entre alta e baixa cultura no campo da arte. Em 1985, o crítico
de arte Hal Foster destacaria que “assim como os cartoons e os quadrinhos
presentes em muitas das artes do East Village, a arte do grafite se preocupa
menos em contestar as linhas entre museu e margem, alta e baixa cultura,
do que em encontrar um lugar no interior delas”.23
Em todo caso, constata-se que a cidade do Rio de Janeiro mobilizou
um nova-iorquino até então pouco envolvido nas artes do grafite a tornar-se
Tito na Rua e assumir-se como grafiteiro. É a experiência do deslocamento
provocada pela presença do olhar estrangeiro numa nova realidade que
permite a Tito na Rua rememorar sua própria trajetória, buscando integrar
artes urbanas que marcaram sua formação. Num certo modo, pois, ao
buscar compreender o Rio de Janeiro, Tito na Rua também promove uma
releitura de suas memórias em Nova York.
O contraste entre as políticas públicas direcionadas ao grafite também
mereceram destaque por parte de Tito na Rua. O autor localiza a gestão de
Rudolph Giuliani na prefeitura de Nova York (1944-2001) como um marco
importante para o enfraquecimento da cultura do grafite. De fato, logo nos
seus primeiros anos como prefeito da cidade, Giuliani procurou enfrentar
uma série de ações cotidianas que considera perturbarem a ordem pública.
O grafite mereceu grande atenção. Dentre as medidas, destaca-se o estabe-
lecimento de uma força tarefa oficial voltada para o combate ao grafite, a
Anti-Graffiti Task Force.24 Giuliani defendida que “estas iniciativas [anti-
grafite] não somente melhoram a qualidade de vida dos novaiorquinos,

30 ArtCultura Uberlândia, v. 21, n. 39, p. 25-40, jul.-dez. 2019


como também mostram aos visitantes que Nova York é uma cidade limpa,

D os s iê Quadri nhos & cu l t u ra v i su al : mo d o s d e ver e l er h i st óri as


responsável e vibrante”.25
A comparação entre Rio de Janeiro e sua cultura urbana do grafite do
início do século XXI e a Nova York dos anos 1980-90 chama mais atenção
se lembrarmos, em relação à primeira cidade, da aprovação do Decreto
Municipal nº 38.307 de 18 de fevereiro de 2014. Conhecido popularmen-
te como “decreto do grafite”, a lei garante amparo legal a uma série de
práticas relacionadas ao grafite na cidade do Rio de Janeiro. Ela parte do 25
Idem, ibidem, p. 118.
reconhecimento da produção local enquanto street art – expressa em prê-
26
Decreto Rio nº 38.307 de 18
mios nos trânsitos internacionais de outros artistas na cidade e no surgi-
de fevereiro de 2014: Dispõe
mento de uma “identidade própria” do grafite carioca – e estabelece locais sobre a limpeza e a manutenção
autorizados para esta prática, como “postes, colunas, muros cinza (desde dos bens públicos da cidade do
Rio de Janeiro e a relação entre
que não considerados patrimônio histórico), paredes cegas (sem portas, órgãos e entidades municipais
janelas ou outra abertura), pistas de skate e tapumes de obra”, “desde que e as atividades de Graffiti Street
Art, com respectivas ocupações
sem prejuízo ao patrimônio público ou histórico, sem cunho publicitário
urbanas. Disponível em <http://
(referencia a marcas ou produtos), sem teor pornográfico, racista ou de doweb.rio.rj.gov.br/ler_pdf.
outra forma preconceituoso, sem apologias ilegais e ofensas religiosas [... php?edi_id=2331&page=3>.
Acesso em 3 jul. 2018.
sendo] reconhecidamente uma manifestação artística cultural que valoriza
27
Pesquisa recente aponta para
a cidade e inibe a pichação”.26 a existência de controvérsias
O decreto motivou reações diversas entre os profissionais do grafite. em torno do “decreto do gra-
Os artistas preocuparam-se com a ingerência do poder público na liberda- fite”, que seguem sob análise.
Ver CUNHA, Christina Vital
de criativa dos grafiteiros e com os eventuais usos políticos que poderiam da. Grafites do amor, da paz e
influenciar na produção de murais.27 Por outro lado, o “decreto do grafite” da alegria na cidade olímpica:
interfaces entre política, arte e
representa uma disputa pelos sentidos da cidade, de modo a reconfigurar religião no Rio 2016. Ciências
a paisagem e a ocupar espaços públicos outrora degradados. Sociais Unisinos, v. 53, n. 3, São
Cabe destacar que a virada da década de 2010 representou um pe- Leopoldo, set.-dez. 2017.

ríodo de profundas transformações urbanas na cidade do Rio de Janeiro: 28


Engenheiro e político, Pereira
Passos (1836-1913) foi prefeito
alçada à categoria de “cidade olímpica”, também sediu jogos da Copa do da cidade do Rio de Janeiro
Mundo de 2014 da Fifa e sofreu significativas intervenções urbanas. O então entre 1902 e 1906. Inspirado
prefeito, Eduardo Paes, colocava-se como uma espécie de Pereira Passos do nas obras que Georges-Eugéne
Haussmann (1809-1891) reali-
século XXI.28 Parte de suas favelas foi ocupada de maneira intensiva pela zara em Paris, promoveu alar-
polícia militar, através de Unidades de Polícia Pacificadora (UPP), símbolos gamento de ruas, inaugurou
avenidas e derrubou cortiços
de uma política de segurança que visava expulsar traficantes de favelas por tidos como insalubres. Tais
meio de ocupação militarizada de favelas localizadas em áreas estratégicas medidas levaram a um encare-
da cidade. Como resultado de tudo isso, intensifica-se um processo de cimento da moradia urbana, le-
vando a uma expansão da ocu-
gentrificação em determinados bairros, levando uma parte da população pação de subúrbios e morros
a um sentimento de exclusão do debate sobre os rumos do Rio de Janeiro até então pouco habitados. Ver
BENCHIMOL, Jaime. Pereira
no século XXI. Ganha força a ideia de “direito à cidade”29 e, não por acaso, Passos, um Haussmann tropical:
o Rio de Janeiro foi um dos epicentros das mobilizações que tomaram o a renovação urbana da cidade
país em 2013, conhecidas como “jornadas de junho” e que reivindicavam do Rio de Janeiro no início do
século XX. Rio de Janeiro: Se-
melhorias na mobilidade urbana e em outros direitos relacionados à vida cretaria Municipal de Cultura,
nas cidades; no ano seguinte, novas manifestações ocupariam as ruas do Turismo e Esportes, 1992.
Rio de Janeiro, com foco na crítica aos gastos públicos exorbitantes para a 29
HARVEY, David. The right to
realização da Copa do Mundo em detrimento de melhores condições de the city. New Left Review, s/v., n.
53, London, set.-out. 2008.
vida na cidade.
30
Decreto Rio nº 39.797, de 1º de
É nesse contexto que Tito na Rua aprofundará seu trabalho com Zé março de 2015. Declara a ‘con-
Ninguém. Estimulado por uma política pública que fomentava a arte urbana dição carioca’, a ‘carioquice’,
e por um intenso debate sobre os sentidos da cidade – entre manifestações como bem cultural imaterial
da cidade do Rio de Janeiro.
críticas à mobilidade urbana e o decreto que estabelece “a ‘condição carioca’ Disponível em <http://www.
e a ‘carioquice’ como bens culturais passíveis de registro como Patrimônio rio.rj.gov.br/dlstatic/10112/43
68015/4142765/38DECRETO3
Cultural Imaterial da Cidade do Rio de Janeiro”30 –, Zé Ninguém convida 9797CondicaocariocaCarioqui-
a população a descobri-la junto com ele em suas caminhadas por muros, ce.pdf>. Acesso em 15 jul. 2018.

ArtCultura Uberlândia, v. 21, n. 39, p. 25-40, jul.-dez. 2019 31


31
Ver RODRIGUEZ, Diogo, viadutos e vielas da cidade. Em 2011, a saga do personagem-título pelas
op. cit., e SARTORI, Caio. Pa-
lestra conta história de per- ruas do Rio de Janeiro contava com cerca de 50 grafites, o que representaria
sonagem famoso nas ruas do a metade de toda a narrativa inicialmente prevista por Tito na Rua. Em
Rio. Jornal da PUC, 21 mai.
2015, chegou a 200 ilustrações espalhadas por toda a cidade31, o que indica
2015. Disponível em <http://
jornaldapuc.vrc.puc-rio.br/ não só como a cidade bem recebeu a chegada de um novo habitante em sua
cgi/cgilua.exe/sys/start. busca por interpretá-la graficamente, mas também como o Rio de Janeiro
htm?infoid=3909&sid=29>.
Acesso em 05 jul. 2018. reinventou o olhar estrangeiro de Tito na Rua, posicionando sua carreira
32
A criação de George “Hergé”
numa nova e híbrida arte urbana – a street comics.
Remi (1907-1983) é considerada Voltando às HQs declaradas por Tito na Rua como influências para
uma espécie de paradigma da elaborar Zé Ninguém, consideramos que elas podem nos auxiliar a com-
bande dessinée franco-belga.
Dados os limites de espaço, é preender um pouco do perfil da série, ao mesmo tempo em que introdu-
impossível dar conta do con- zem algumas questões que nos permitem pensar as especificidades deste
junto da bibliografia dedicada
a ela. Para dados gerais, ver
trabalho. Em primeiro lugar, cabe levar em conta que Tintin, Lone Wolf and
FARR, Michael. Tintin: the Cub e Calvin and Hobbes são representativos de três escolas ou formas de
complete companion. Lon- se produzir HQs: a tradição franco-belga da ligne claire, a estética mangá e
don: John Murray, 2001. Para
uma biografia de Hergé, ver o formato dos comic strips mais diretamente associado ao contexto norte-
PEETERS, Benoît. Hergé, fils de -americano. De certa forma, é como se Zé Ninguém operasse uma síntese
Tintin. Paris: Flammarion, 2002.
global das HQs para abordar a saga de um personagem num contexto tão
Ver GROVE, Laurence. Com- local e específico como o Rio de Janeiro.
33

ics in French: the European


bande dessinée in context. Em segundo lugar, as três HQs mencionadas são protagonizadas
Oxford/New York: Berghahn por personagens cujas respectivas sagas podem ser interpretadas desde
Books, 2010, p. 122 e 123.
a ideia de que descobrem um certo mundo exterior a partir de aventuras.
34
Ver KNAUSS, Paulo. Grafite Tintin surgiu como um repórter que, por força do ofício, viaja para lugares
urbano contemporâneo. In:
TORRES, Sônia (org.). Raízes tidos como exóticos para realizar coberturas jornalísticas, realizando uma
e rumos: perspectivas interdis- crônica bastante pessoal de realidades como a União Soviética, o Congo
ciplinares em estudos ameri-
canos. Rio de Janeiro: 7Letras,
Belga, Tibete e os Estados Unidos.32 O personagem Zé Ninguém não é
2001. jornalista, mas um professor e pesquisador e, inicialmente, restringe seu
repertório geográfico à cidade do Rio de Janeiro, ainda que acabe indo a
outras metrópoles como Londres e Nova York. Cada um à sua maneira,
ambos exercem atividades profissionais ligadas à curiosidade e à investiga-
ção. E, assim como Tintin, a narrativa de Zé Ninguém se desenrola a partir
da interação constante com a nova realidade. A experiência de pesquisador
é confrontada com o novo contexto urbano carioca.
Além disso, a aproximação entre Zé Ninguém e Tintin também se dá
a partir da estética ligne claire que este último ajudou a popularizar e que
se tornou uma verdadeira assinatura das bande dessinées franco belgas.
Conforme bem destaca Laurence Grove, a ligne claire enfatiza o uso de
fortes contornos pretos, lançando mão de cores primárias e evitando que
as ilustrações fiquem desfocadas. Isso garante que lugares e objetos sejam
facilmente reconhecíveis.33 Contornos fortes, cores primárias e ilustrações
bem definidas também são marcas de Zé Ninguém e permitem que, na me-
dida do possível, a série possa se adaptar a toda sorte de paredes, muros,
escadas e portões, independentemente do material que serve de suporte
para a tinta em spray, visto que o grafite é marcado pela intervenção pic-
tórica no espaço urbano e sem tratamento de suporte.34 Zé Ninguém não
foge à regra e o bom controle de tal recurso possibilita sua difusão pela
cidade e lhe imprime uma marca visual ao ponto de poder ser reconhecido
e acompanhados por leitores em sua narrativa/trajetória pela cidade.
As aproximações entre a série de Tito na Rua e o mangá de Kazuo
Koike e Goseki Kojima podem ser pensadas a partir das relações entre os
respectivos protagonistas e as formas de violência exercidas sobre suas
companheiras. Em Lone Wolf and Cub, o brutal assassinato da esposa do

32 ArtCultura Uberlândia, v. 21, n. 39, p. 25-40, jul.-dez. 2019


samurai Ogami Itto e uma conspiração difamatória para torná-lo um pária

D os s iê Quadri nhos & cu l t u ra v i su al : mo d o s d e ver e l er h i st óri as


são interpretadas a partir da narrativa de samurai, o que leva o protagonista
a sair pelo Japão em busca de vingança. Lone Wolf and Cub narra a pere-
grinação de Itto pelo Japão, acompanhado de seu filho recém-nascido, à
procura dos assassinos de sua esposa. No caso, somos apresentados a uma
representação da paisagem histórica japonesa a partir do olhar do peregri-
no, que filtra a realidade e a apresentada para os leitores de Lone Wolf and
Cub a partir da sua sede de vingança. Por se tratar de um trabalho de arte
urbana que deve ser lido pelos diversos públicos que transitam pela urbe,
Zé Ninguém está longe de assumir a violência e a ética justiceira de Ogami
Itto. Porém, o personagem também sofre com as tramas de mentiras e o
sequestro de Ana, sua namorada. São elas que motivam a street comics, pois
Zé Ninguém viaja ao Rio de Janeiro à procura de Ana e é lá que enfrenta
o vilão que também o atacara inicialmente, roubando sua fórmula secreta.
É sugestivo pensar também que, no caso brasileiro, a leitura de
mangás exige a promoção de outras práticas de leitura distintas das
revistas em quadrinhos ocidentais – grosso modo, orientando o olhar
da esquerda para a direita – já bem assimiladas pelos leitores brasileiros
de HQs.35 Assim como um mangá representa uma ruptura em relação à
leitura ocidental de HQs Zé Ninguém implica, no limite, numa completa
explosão da experiência de leitura serializada de HQs. Ao tomar muros
e paredes como suportes das páginas, dilui-se a leitura com um sentido
pré-estabelecido e passa-se para uma leitura ampliada a partir do espaço
urbano, onde o que vale não é tão somente uma representação estática
35
Os desafios da introdução da
ou uma narrativa linear sobre a cidade, mas sim os fluxos, descontinui- cultura de mangás no Brasil
dades e agenciamentos urbanos.36 Como resultado, temos uma leitura são discutidos, tomando como
fragmentada de Zé Ninguém em que cada leitor que o encontre em vias estudo de caso mangás sobre
Segunda Guerra Mundial,
de passagem, muros e becos poderá construir sua própria HQ e pensar em SANTO, Janaína de Paula
a relação do personagem com a cidade. do Espírito. Segunda Guerra
Mundial em mangá: um estudo
Por fim, Zé Ninguém dialoga com a famosa tira cômica de Bill Watter- de cultura histórica. Tese (Dou-
son a partir da dimensão onírica e criativa no qual um mundo de aventuras torado em História) – UFG,
surge perante os olhos em localização bastante restrita a partir de sonhos e Goiânia, 2018.

do lúdico, motivando toda sorte de situações absurdas. No caso de Calvin 36


Para uma análise mais apro-
fundada das relações entre HQs
and Hobbes, muitas das aventuras se passam ora em espaços internos – esco- e cidade a partir da aplicação
la, sala de diretora em sua escola, seu próprio quarto –, ora em áreas abertas do conceito de “agenciamento
como quintal ou montanhas com neve. É a partir de aspectos específicos de urbano” [urbanas semblage]
aplicado a uma obra específi-
cada espaço que a aventura se desenvolve: quando Calvin está sentado na ca – no caso, Building Stories,
sala da diretora para receber uma bronca desta, imagina-se preso enquanto de Chris Ware, ver DITTMER,
Jason, op. cit.
refém de um terrível monstro alienígena; quando brinca com Hobbes no
quintal, a grama torna-se uma densa e perigosa floresta; e assim por dian-
37
Ver SERRANO, Alberto (Tito
na Rua). Zé Ninguém. Rio de
te. Zé Ninguém também realiza amplo trabalho de interação com espaços Janeiro: Edições de Janeiro,
específicos, numa operação de mise em scène. Por exemplo, ao grafitar de- 2015, p. 68 e 69.
terminada passagem da série num espaço escolar, Tito na Rua posiciona 38
Idem, ibidem, p. 12-21.
a narrativa de maneira a descrever a atuação do personagem-título como 39
Tais reflexões inspiraram-se
cientista;37 ou quando inicia a série inserindo o personagem na região da em estudos sobre serialidade
em mídias. Ver HAYWARDS,
Rodoviária Novo Rio, indicando que Zé Ninguém se encontra perdido e à Jennifer. Consuming pleasures:
procura de sua companheira, Ana.38 Por fim, tiras cômicas, assim como Zé active audiences and serial
fictions, from Dickens to soap
Ninguém, são historicamente reconhecidas por serem efêmeras – por vezes
opera. Lexington: Kentucky
publicadas em jornais diários em seções como esportes ou suplementos UP, 1997. MAYER, Ruth. Serial
infantis – e dotadas de descontinuidades na narrativa, demandando um Fu Manchu: the Chinese super-
villain and the spread of Yellow
leitor ativo que preencha com sentido as lacunas entre quadros ou que dê Peril ideology. Philadelphia:
conta da serialidade e do caráter “aberto” de tais narrativas das HQs.39 Temple University Press, 2014.

ArtCultura Uberlândia, v. 21, n. 39, p. 25-40, jul.-dez. 2019 33


40
Ver SERRANO, Alberto (Tito
na Rua), Zé Ninguém, op. cit.,
p. 78.
41
Ver DUNNET, Oliver. Iden-
tity and geopolitics in Hergé’s
Adventures of Tintin. Social and
Cultural Geography, v. 10, n. 5,
s/l., jun. 2009.

Figura 1. Interação com espaço urbano.40

Em resumo, Zé Ninguém agrega uma terceira faceta em relação às


formas como Tintin e Itto elaboram os lugares visitados por ambos nas
séries Tintin e Lone Wolf and Cue, respectivamente. O primeiro processa as
cenas com que se depara a partir da sua atuação como repórter viajante – e,
cabe acrescentar, de viajante que dialoga com a tradição das narrativas de
viagem nos marcos do projeto imperialista41. Já Itto, ao cair em desgraça em
meio às tramas de poder que levaram à morte de sua esposa e sua desonra
enquanto samurai, torna-se uma espécie de estrangeiro em sua própria terra
e o Japão passa a ser lido sob o filtro do peregrino. Zé Ninguém intensifica
a experiência de trânsitos e deslocamentos que ressignificam os espaços
por ser um personagem que, a despeito da busca por sua amada que dão
o toque necessário de aventura à série, é marcado pela condição bastante
contemporânea do migrante, sem origem aparente e sem destino próprio.
A partir destes exemplos, podemos pensar uma espécie de categori-
zação das formas como cada um se relaciona com o espaço desconhecido
com que se deparam ao se deslocarem de suas terras de origem. De certo
modo, o viajante constrói a realidade que se vê inserido momentaneamente
a partir de questões de pragmáticas associadas a trabalho, ao turismo ou
ao interesse cultural; o peregrino tem uma relação mais perene com aquilo

34 ArtCultura Uberlândia, v. 21, n. 39, p. 25-40, jul.-dez. 2019


que encontra à sua frente: a cidade forma-se de maneira aleatória, na me-

D os s iê Quadri nhos & cu l t u ra v i su al : mo d o s d e ver e l er h i st óri as


dida em que caminha sem rumo definido e que estabelece relações algo
fugidias com uma dada realidade – afinal, a sua condição de peregrino
obriga-o a deslocar-se. Já o migrante precisa elaborar em sua mente uma
rápida geografia de forma a conseguir adaptar-se à nova realidade, pois,
ao contrário dos dois tipos anteriores, visa estabelecer-se no novo lugar e
torná-lo identificável para si. E é nesta condição, motivada pela busca de
sua amada, que Zé Ninguém vai parar no Rio de Janeiro.

Cenas e personagens de um Rio de Zé Ninguém

O Rio de Janeiro é o grande personagem de Zé Ninguém. A partir da


saga do personagem homônimo, somos apresentados a uma cidade com-
plexa, que se espraia para além dos pontos turísticos usualmente associados
a ela. De fato, praias e paisagens exuberantes são escassas na obra. Quem
serve de suporte para as HQs de Zé Ninguém são paredes e muros de uma
cidade escondida dos holofotes, mas presente no cotidiano de muitos, o
que reforça o contato do protagonista com certo perfil popular do morador
da cidade. São lugares que se encontram presentes na memória do carioca.
Pensando a partir de Nora, o que temos aqui é um espaço no qual a história
urbana do Rio de Janeiro, com seus pontos turísticos bem marcados, varre
toda a memória da existência humana na cidade; Zé Ninguém parece cele-
brar, numa narrativa a contrapelo, outros lugares de memória.42
O início de Zé Ninguém dá o tom sobre os locais escolhidos por Tito
na Rua para ambientar a saga do personagem à procura de sua amada:

42
Ver NORA, Pierre. Entre me-
Figura 2: Zé Ninguém chega ao Rio de Janeiro pela rodoviária.43
mória e história. A problemáti-
ca dos lugares. Projeto História,
v. 10, s/n., São Paulo, jul.-dez.
1993, p. 12 e 13.
Local de trânsito de pessoas e veículos, a Rodoviária Novo Rio é 43
Ver SERRANO, Alberto (Tito
um dos principais ponto de entrada e saída de pessoas do Rio de Janei- na Rua), Zé Ninguém, op. cit.,
ro. Trata-se de região há muito tempo bastante degradada, atravessada p. 12.

ArtCultura Uberlândia, v. 21, n. 39, p. 25-40, jul.-dez. 2019 35


44
A letra é hoje considerada um por viadutos ocupados por moradores de rua, dependentes químicos,
clássico da música pop brasi-
leira, por lançar mão de uma prostitutas, policiais e motoristas de transporte clandestino. A escolha da
mistura de hip hop, funk e pop Rodoviária Novo Rio dialoga, a um só tempo, com três elementos impor-
para abordar as contradições
tantes que compõem a obra Zé Ninguém: a produção de HQs, nos marcos
da cidade desde os pontos de
vista da violência urbana e da dos comix underground que celebram o submundo da vida das cidades; o
política. Ver ABREU, Fernanda. caráter urbano do grafite; e a cidade do Rio de Janeiro, tomada de forma
SLA 2 Be Sample, EMI, 1992.
complexa e fragmentada, que se constrói a partir da observação do olhar
45
Ver KANNENBERG, Gene.
Graphic text, graphic context:
estrangeiro enquanto “cidade maravilha purgatório da beleza e do caos”,
interpreting custom fonts and conforme sugeriu letra de canção escrita por Fausto Fawcett, Fernanda
hands in contemporary comics. Abreu e Carlos Laufer.44
In: GUTJAHR, Paul; BENTON,
Megan (orgs.). Illuminating let- Cabe citar especificamente aqui o diálogo que Zé Ninguém promove
ters: typography and literary in- com o Rio de Janeiro desde os pontos de vista gráfico e simbólico. Ao ini-
terpretation. Boston: University
of Massachusetts Press, 2001
ciar sua produção na rodoviária, Tito na Rua se aproxima visualmente de
e BREDEHOFT, Thomas. The outro nome que se tornaria símbolo da cidade a partir da sua intervenção
visible text: textual production urbana: o Profeta Gentileza. Os pontos de contato entre a obra de Gentile-
and reproduction from Beow-
ulf to Maus. Oxford: Oxford za e Zé Ninguém são claros e certamente não passaram despercebidos por
University Press, 2014. Tito na Rua, cuja primeira ilustração se localiza numa das muitas pilastras
46
Ver COLOMBINO, Jader. do Viaduto do Gasômetro, logo abaixo de uma das muitas mensagens de
Notícias: Zé Ninguém. Porto Gentileza. Ao mesmo tempo, a interação entre Zé Ninguém e a obra de
Maravilha, 1 abr. 2015. Disponi-
vel em <http://portomaravilha. Gentileza sugere uma reflexão sobre este último enquanto artista urbano
com.br/noticiasdetalhe/3720>. preocupado em ressignificar esteticamente a cidade. Ao focarmos nas letras
Acesso em 15 jun. 2018.
usadas por Gentileza, por exemplo, percebemos uma efetiva obra autoral
que, assim como no caso das HQs, estrutura de forma indissociável imagem
e texto e demais elementos paratextuais, como cores, formato das letras,
suportes utilizados etc. A partir da bidimensionalidade, borram-se as fron-
teiras entre imagem e texto, paratexto e conteúdo, tipografia e ilustração.45
Em Zé Ninguém, a materialidade dos quadrinhos é pensada a partir
da sua atenção aos formatos de publicação das HQs, naquilo que se poderia
associar a campos como os da cultura material e da dimensão paratextual
de toda obra literária. Por vezes, as cenas de Zé Ninguém são pensadas
enquanto páginas de uma revista, assumindo o layout da página inteira
como fator criativo de destaque.

Figura 3. Processo de elaboração de uma página/grafite de Zé Ninguém.46

36 ArtCultura Uberlândia, v. 21, n. 39, p. 25-40, jul.-dez. 2019


O grafite incorpora um nível discursivo metalinguístico ao ser incor-

D os s iê Quadri nhos & cu l t u ra v i su al : mo d o s d e ver e l er h i st óri as


porado na edição em livro. Bom exemplo se encontra numa determinada
passagem do livro, que apresenta um grafite representando uma página
levemente dobrada no interior da graphic novel.47A ideia de tomar Zé Nin-
guém como uma história em quadrinhos editada em formatos específicos
é reforçada a partir de uma cena da obra – por sua vez, já apagada e não
incluída no livro – que destaca aquela que seria a capa da revista em qua-
drinhos do personagem:

Figura 4. Grafite contendo capa e HQ de Zé Ninguém, excluído da versão editada em livro.48

Os locais visitados por Zé Ninguém em sua odisseia à procura de


Ana impressionam pela diversidade e podem surpreender até mesmo
cariocas bem habituados à cidade. Suas visitas à conhecida área turística
da Zona Sul limitam-se a favelas localizadas na região, ao passo em que
abundam referências a partes abandonadas do Centro da cidade, bairros
afastados do subúrbio e morros tidos como perigosos porque ocupados
por traficantes. A única região com praia que visitou foi a popular Praia
de Ramos. Ao final do livro, encontra-se um mapa com um breve roteiro
dos bairros visitados por Zé Ninguém.
Os locais visitados nem sempre ficam claros para o leitor, pois Tito
na Rua não se preocupa em referenciá-los diretamente ou mesmo citá-los
visualmente a partir de referências identificáveis no imaginário cultural
carioca. Em seu lugar, sobram menções a zonas de passagem, viadutos, vias
expressas, ruas desertas etc., num jogo de aproximação e estranhamento
que atravessa a obra. Esse procedimento de desterritorialização é um con-
vite para que o leitor reterritorialize a cidade, buscando seus significados
a partir dos rumos tomados pelo personagem.
47
Ver SERRANO, Alberto (Tito
na Rua), Zé Ninguém, op. cit.,
A cidade do Rio de Janeiro torna-se visível ao longo da obra também p. 139.
pela profusão de personagens presentes ao longo da obra: coletores de lixo, 48
Ver RODRIGUEZ, Diogo,
moradores, frequentadores de praia e trabalhadores vêm e vão ao longo das op. cit.

ArtCultura Uberlândia, v. 21, n. 39, p. 25-40, jul.-dez. 2019 37


49
Ver KING, Edward; PAGE, páginas/muros e ajudam a ambientar Zé Ninguém num contexto popular
Joanna. Posthumanism and the
graphic novel in Latin America. e que seria tipicamente carioca. O exemplo mais forte possivelmente se
London: UCL Press, 2017, p. encontra nas participações de funcionários da Companhia Municipal de
217.
Limpeza Urbana do Rio de Janeiro (Comlurb) – conhecidos como “garis” –
em algumas passagens de Zé Ninguém. De perfil popular, reconhecidos por
seu uniforme de cor laranja e respeitados pelo difícil trabalho que exercem
diariamente pelas ruas da cidade e, a eles associam-se alguns valores que
seriam tipicamente cariocas, como a espontaneidade e o bom humor em
meio às adversidades – ao ponto de um funcionário da empresa, apelidado
de “Renato Sorriso” ser considerado um dos símbolos do Carnaval carioca.
A cor alaranjada que marca os uniformes da companhia de lixo dialoga
muito bem a estética do grafite e parece permitir bons resultados artísticos
a Tito na Rua. Cabe destacar, inclusive, a aproximação, a partir do uso da
cor laranja, com os trabalhos d’Os Gêmeos, assinatura dos irmãos Otávio
e Augusto Pandolfo (1974-), uma das influências assumidas de Tito na Rua
no grafite e que também apresentam certa condição híbrida, ao articula-
rem grafite e artes plásticas no seu processo de reconhecimento artístico
internacional.
Além da espontaneidade e bom humor associados aos garis, vale
destacar que Zé Ninguém os representa graficamente como negros, com
exceção de uma funcionária feminina e loira. Boa parte dos personagens
que aparecem ao longo da série é negra, introduzindo um elemento de
representação racial ainda relativamente incomum na produção de HQs
do Brasil.
A representação identitária dos personagens é aspecto importante
para pensar a composição de Zé Ninguém enquanto uma HQ transnacional,
pensada a partir da condição migratória não só do personagem-título, mas
também do seu criador. Tito na Rua dirá algumas vezes que a inspiração
do protagonista veio de seu pai porto-riquenho, que portava bigodes, chi-
lenos de dedo e usava um bigode, muito se assemelhava a diversos cario-
cas que encontrou ao chegar no Rio de Janeiro. Essa identificação popular
e subalterna ajudará o personagem Zé Ninguém e sua namorada Ana a
rapidamente se ambientarem pela cidade: são queridos pela população
e visitarão diversos pontos da cidade com bastante desenvoltura. Cabe
mencionar, porém, que Ana nem sempre foi bem vista nos lugares que
frequentou. Devido ao seu uniforme azul, chegou a ser confundida com
a polícia militar do Rio de Janeiro, o que teria causado estranhamento em
algumas regiões.

Dois contos de uma cidade

Em trabalho recente dedicado a analisar inflexões estéticas pós-


-humanistas presentes em graphic novels da América Latina, Edward King
e Joanna Page destacam que o conjunto de tais produções é marcado por
uma forte dimensão intermidiática. Isso significa dizer que incorporam ao
seu discurso inúmeras narrativas oriundas de outras linguagens, tais como
a fotografia, a música e as artes plásticas. Dentre as obras mencionadas que
lançam mão de semelhante abordagem, consta Zé Ninguém. King e Page
destacam como a interlocução entre as linguagens do grafite e das HQs
resulta num trabalho híbrido e de complexa interpretação, que possibilita
a elaboração de uma obra em três dimensões a partir das interseções entre
as linguagens do grafite, da revista em quadrinhos e das graphic novels.49

38 ArtCultura Uberlândia, v. 21, n. 39, p. 25-40, jul.-dez. 2019


Acrescento dois elementos às reflexões acima. Em primeiro lugar,

D os s iê Quadri nhos & cu l t u ra v i su al : mo d o s d e ver e l er h i st óri as


a dita especificidade intermidiática presente nas graphic novels latino-
-americana deve ser tomada sob dois pontos de vista: o primeiro, relativo
ao caráter intermidiático presente nas HQs como um todo, desde os seus
primórdios, que levaram a Thierry Smolderen a compreender a produção
de meados do século XIX como um efetivo “laboratório semiótico” de
experiências gráficas50; e o segundo ponto de vista, que compreende as
peculiaridades da história da introdução e difusão de HQs na região, que
as dotaram de um caráter híbrido que antecede as recentes graphic novels
ao mesclar às HQs tradições gráficas e visuais tão diversas como a da lit-
térature en estampes recentes nas revistas ilustradas de matriz europeia no
início do século XX e as fotonovelas.
O segundo elemento a ser acrescentado se desdobra da reflexão
acima e trata do diálogo que o próprio autor, Tito na Rua, sugere não só
entre sua obra e a história das HQs, mas também com a historiografia das
HQs – ao menos se lembrarmos algumas interpretações que associam a
linguagem gráfica das HQs a expressões tão distantes no tempo como a
tapeçaria de Bayeaux ou as pinturas rupestres dos tempos pré-históricos.
É o que se depreende da passagem a seguir: “É uma linguagem diferente,
mas também não é. O que eu fiz foi levar os quadrinhos e o grafite para
a sua origem, que era o homem das cavernas escrevendo na parede que
matou um búfalo. É uma história que ele grafitou na parede, então eu estou
voltando para ela, mas com os recursos que temos hoje, como o spray, a
divulgação da internet e o livro impresso”.51
A série Zé Ninguém integra duas artes gráficas associadas às grandes
cidades contemporâneas, com suas tribos urbanas e práticas culturais bas-
tante distintivas: as HQs e o grafite. Elas apresentam uma história repleta de
homologias: sua origem comum, associada à cidade de Nova York; o amplo
uso de técnicas e tecnologias preexistentes, adaptadas para uma linguagem
que ainda se encontrava em gestação; o interesse suscitado por elas junto às
classes populares, ao ponto de se tornarem expressões culturais de grupos
subalternos – no caso das HQs, a partir da representação de imigrantes
pobres e, no caso do grafite, como expressão gráfica da juventude negra
ligada ao movimento hip hop. De forma bastante feliz, uma série em HQs
como Hip hop family tree, de Ed Piskor, não deixa de apontar as aproximações
entre as origens das HQs e do hip hop e, por extensão do grafite.52
O diálogo entre as linguagens do grafite e das HQs já se encontrava 50
Ver SMOLDEREN, Thierry.
claro desde os anos 1970, sobretudo a partir da iniciativa de artistas ur- Origins of comics : from William
Hogarth à Winsor McCay.
banos que incorporavam recursos gráficos das HQs em seus grafites – de Jackson: University Press of
personagens a contornos, passando pelos formatos de letras e balões de Mississipi, 2014, p. 158.
fala. Outros passaram a explorar mais ativamente tais interseções a partir 51
SERRANO, Alberto apud
de referências artísticas oriundas do campo das artes plásticas e da ilustra- SARTORI, Caio, op. cit.
ção – a obra de Jean-Michel Basquiat é o exemplo mais conhecido. Porém, 52
Originalmente publicada on
aproximações entre HQs e grafite desenvolveram-se por outros caminhos line (ver <https://boingboing.
net/tag/hip-hop-family-tree>.
mais próximos aos da street comics de Tito na Rua já nos 1980. Considerado Acesso em 23 jul. 2018) –, as
um dos pioneiros do grafite em Denver, Z13, ou Zerrox, tornou-se uma HQs mereceram compilação
em quatro volumes, publicados
sensação na cidade ao elaborar um grande mural onde, segundo o artista, pela editora Fantagraphics
grafitou uma série de cenas que “eram divididas em quadros, como numa entre 2013 e 2016.
revista em quadrinhos”.53 Porém, essa iniciativa isolada não chega a se 53
FERRELL, Jeff. Crimes of
consolidar e a gerar desdobramentos enquanto uma street comics; nisso, style: urban graffiti and the
politics of criminality. Boston:
os créditos seguem sendo de Tito na Rua. Northeastern University Press,
A edição do conjunto de grafites em formato livro não significou o 1996, p. 31.

ArtCultura Uberlândia, v. 21, n. 39, p. 25-40, jul.-dez. 2019 39


54
Ver ECO, Umberto. The myth encerramento das aventuras de Zé Ninguém. Trata-se de uma obra aberta,
of Superman. Diacritics, v. 2, n.
1, Baltimore, mar.-maio 1972. cujas condições são forjadas a partir da linguagem da narrativa gráfica
55
CALVINO, Ítalo. As cidades
adaptada ao livro e do grafite. No primeiro caso, o autor adota como sa-
invisíveis. São Paulo: Compa- ída não encerrar a obra com um final fechado, deixando a narrativa em
nhia das Letras, 1990, p. 18. suspenso junto ao leitor, que suspeita que ela terá alguma continuidade. A
linguagem do grafite, por sua vez, redimensiona a estética do personagem
de HQs, situada entre a imagem fixada do mito arquetípico e o consumo
voltado para desdobramentos contínuos da narrativa no futuro, comuns à
“cultura do romance” do século XIX, mas rompendo com um modelo de
narrativa linear na qual o personagem acumularia experiências e memórias
que imprimiriam sobre ele uma temporalidade inevitavelmente mortal e
passando para um eterno consumo no presente.54 De um super-herói que
se renova a cada nova edição de revista, temos um herói mudano que se
renova à medida em que a cidade se apresenta e exige que ele a ocupe.
Seu superpoder não é apenas o de “valorizar a cidade e inibir a pichação”,
conforme estipula o “decreto do grafite”, mas sim o de reintroduzir seus
habitantes nas encruzilhadas de sentido que compõem o labirinto urbano
que é uma cidade como o Rio de Janeiro. Bem como em Tamara, uma das
Cidades invisíveis de Ítalo Calvino, em Zé Ninguém “o olhar percorre as ruas
como se fossem páginas escritas”; se, ao viajante, restaria apenas “registrar
os nomes com os quais ela define a si própria e todas suas partes”55, Zé
Ninguém nos sugere que registrar-se graficamente nestes espaços também
representa uma nova territorialização do espaço urbano.

Artigo recebido em 10 de junho de 2019. Aprovado em 11 de julho de 2019.

40 ArtCultura Uberlândia, v. 21, n. 39, p. 25-40, jul.-dez. 2019


Una ciudad efímera,
una historia perdurable:
narrativa y cultura visual en
La primera fundación de Buenos Aires,
de Oski y Fernando Birri

La segunda fundación de Buenos Aires. Oski. 1996, fotografía (detalhe).

Amadeo Gandolfo
Doutor en Ciências Sociais pela Universidad de Buenos Aires (UBA). Docente auxiliar
(JTP: jefe de trabajos prácticos) da disciplina “El Lado B de la Sociología” do curso de
Sociología da Facultad de Ciencias Sociales da UBA. amdgandolfo@gmail.com
Una ciudad efímera, una historia perdurable:
narrativa y cultura visual en La primera fundación de
Buenos Aires, de Oski y Fernando Birri
A fleeting city, a lasting story: narrative and visual culture in Oski and Fernando Birri’s
La primera fundación de Buenos Aires

Amadeo Gandolfo

resumo abstract
Neste artigo reconstruímos brevemen- In this article we briefly reconstruct the
te a trajetória de Oscar Conti (Oski), trajectory of Oscar Conti (Oski), Argen-
desenhista, humorista gráfico e ilus- tinian cartoonist, graphic humorist and
trador argentino. Essa reconstrução illustrator. This reconstruction is used to
visa sublinhar algumas características underline some particular characteristics
particulares de nosso sujeito que tem of our subject who are related to his gra-
relação com seu estilo gráfico, tribu- phic style, who is indebted to an enormous
tário de uma grande cultura visual. visual culture. Afterwards, we analyze
Analisamos tal estilo sob o conceito this style under the concept of visual
de cultura visual, tentando traçar a sua culture, attempting to trace the particu-
particular mistura de imagens , tanto lar mixture of images, both from “high”
da “alta” como da “baixa” cultura. Da and “low” culture, that helped produce
mesma maneira, examinamos a da nar- it. In the same way, we observe the way
rativa de Oski sob a ótica das imagens in which Oski narrates in single images.
individuais. Finalmente, nos detemos Finally, we reconstruct the collaboration
na colaboração entre Oski, Fernando between Oski, Fernando Birri and León
Birri e León Ferrari no filme La primera Ferrari in the film La primera fundación
fundación de Buenos Aires, procurando de Buenos Aires, trying to get across the
analisar a forma como os cineastas way in which the filmmakers animate one
animam uma pintura estática de Oski. of Oski’s static paintings. How do the
Como coexistem diversas imagens que different images that form part of Oski’s
são parte de sua cultura visual? Como visual culture coexist? How do image and
se combinam imagem e narrativa na narrative combine in his work? How does
sua obra? De que modo a narrativa the narrative unfold through the montage
se desdobra através da montagem no of the film?
filme? Estas são algumas questões para
as quais buscamos respostas.
palavras-chave: Oski; cultura visual; keywords: Oski; visual culture; narrative.
narrativa.


¿Por qué Oski [Oscar Conti]? Responder esa pregunta implica un
breve recorrido biográfico y al interior de la historia del humor gráfico
argentino. Oski fue un artista de enorme popularidad y prestigio, profusa
producción, un referente a la hora de discutir los valores artísticos del
humor gráfico y la historieta, un autor político. Sin embargo, el pasaje del
tiempo y las escasas reimpresiones de su obra desde su muerte en 1979
causaron que se convierta en un “dibujante de dibujantes”.

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Oscar Conti nació el 12 de noviembre de 1914 en Buenos Aires. Hijo

D os s iê Quadri nhos & cu l t u ra v i su al : mo d o s d e ver e l er h i st óri as


de una familia de buen pasar venida a menos, quería ser químico pero sus
padres no pudieron pagarle los derechos de ingreso a la carrera, por ello
“me matriculé en Bellas Artes, porque era de balde y porque yo creí que
aquello sería muy fácil”.1 También estudia escenografía. La opción por una
carrera en artes pareciera ser, en un principio, una elección secundaria,
pensada más en la dirección de una salida laboral que como la conclusión
de un deseo expresivo. Esto también se observa en el hecho de que muy
rápidamente Oski consigue trabajo en publicidad para pagarse los estudios.2
Obtiene el título de profesor de dibujo, una rareza entre los historietistas 1
OSKI apud CANTONA, Darío.
argentinos, que tendían a ser autodidactas, instruirse en institutos privados Nueva cara de Oski en grotesca
historia de América. Ercilla, n.
de dibujo o aprender el oficio como ayudantes. 1154, 19 jun. 1957.
En 1942 publica su primer dibujo en la revista Cascabel.3 Allí conoce 2
La publicidad fue un ingreso
a Carlos Warnes (seudónimo: César Bruto), su compañero creativo duran- seguro y consistente para la
te más de dos décadas. Bruto escribía textos en una especie de cocoliche gran mayoría de los dibujan-
tes argentinos. La vinculación
repleto de errores de ortografía y puntuación, reflexiones que oscilaban entre ambos universos aún
entre el sentido común más absurdo, los juegos de palabras y el ridículo requiere un estudio profundo,
pero podemos afirmar que sus
devenir de la consciencia y la casualidad; Oski ilustraba esas aguafuertes ilustraciones se emplearon
eligiendo una imagen entre la enorme cadena de chistes que desataba Bruto. para vender desde cepillos a
Su colaboración más duradera fue el falso periódico “Versos y Notisias”, conservas. Ver GANDOLFO,
Amadeo. El laboratorio de los
aparecido en Rico Tipo durante 15 años.4 Allí Oski también creó su único dibujantes: sociabilidad y polí-
personaje regular: Amarroto, un sujeto con cabeza triangular, cuello duro tica entre los caricaturistas ar-
gentinos (1930-1960). Cadernos
y nariz prominente que siempre quería, como indica su nombre, ahorrarse de Comunicação, v. 16, n. 1, 2012.
unos pesos. 3
Cascabel fue una revista muy
importante del humor político
argentino de los años 40. Anti-
peronista, ácida y combativa,
su estilo sería continuado por
publicaciones como Tía Vicenta
una década más tarde. Apre-
miada por presiones del gobier-
no peronista, cerró en 1947. Ver
GENÉ, Marcela. Risas, sonrisas
y carcajadas en tiempos de Pe-
rón. Pasando revista al humor
político. In: SORIA, Claudia,
CORTÉS ROCCA, Paola y
DIELEKE, Edgardo (orgs.).
Políticas del sentimiento: el pe-
ronismo y la construcción de
la Argentina moderna. Buenos
Aires: Prometeo Libros/Caras y
Caretas, 2010.
4
Fundada por Guillermo Divito
en 1944, fue una de las publica-
ciones más exitosas y longevas
de humor en Argentina. En su
momento de mayor éxito (a
principios de los años 1950s)
llegó a vender más de 250000
ejemplares semanales. Su línea
humorística estaba basada en el
humor cotidiano y en los per-
sonajes cuyas características se
repetían de manera mecánica.
Ver RIVERA, Jorge B., Historia
del humor gráfico argentino.
In: FORD, Aníbal; RIVERA,
Jorge B. y ROMANO, Eduardo
(orgs.). Medios de comunicación
y cultura popular. Buenos Aires:
Figura 1. “Gran Brutoski biográfico ilustrado”. Oski y Bruto. 1958.
Legasa, 1985.

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5
En este artículo trabajamos con Entre las décadas de 1940 y 1950 la carrera de Oski creció de forma
la segunda edición, publicada
en 1996 por Colihue. sostenida: El Hogar, Clarín, Vea y Lea, Pobre Diablo, contaron con sus dibu-
6
ECO, Umberto. Arabescos
jos. Simultáneamente inició una vida de viajes, que lo convertirían en un
sobre los textos sagrados. Pá- dibujante reconocido en Latinoamérica y Europa. En 1944 parte a Bolivia
gina/12, 2013. Disponible en y Perú, travesía que documentó gráficamente. En 1948 viaja a Europa y
<https://www.pagina12.com.
ar/diario/suplementos/radar/ vive dos años en Italia. En 1952 visita México.
subnotas/9200-2051-2013-10-13. Simultáneamente diseña escenografías y programas para obras de
html>. Accedido el 1 feb. 2018.
teatro. En 1947 trabaja en una puesta de La putain respectuese de Jean Paul
Quimantú era de hecho la Sartre que se representa en Santiago de Chile y Buenos Aires. En 1952
7

reconversión de Zig-Zag que


había sido expropiada por el en Androcles y el león de George Bernard Shaw. A lo largo de estos años,
gobierno de Allende. La edi- asimismo, monta diversas exposiciones artísticas de su trabajo: en Buenos
torial pertenecía a la familia
Edwards, dueños de El Mer-
Aires, Roma, La Paz, Cuzco. Aquí ya observamos el pasaje a la exhibición
curio y uno de los principales de su obra y la colaboración con el mundo del teatro, los cuales, además
actores en la planificación y de ser formas del trabajo artístico, resaltan la afinidad de su oficio con las
ejecución del golpe a Allende.
Zig-Zag publicaba los cómics bellas artes.
de Disney, sobre los que Ariel En 1955 publica junto a Warnes lo que podría ser considerado su
Dorfman y Armand Mattelart
escribieron Para leer al Pato
primer libro. Casi inconseguible al día de hoy, el Medisinal Brutoski ilustra-
Donald. La experiencia (trunca) do (una serie de fascículos auspiciados por Laboratorios Dupont) es una
de Quimantú fue analizada parodia a la profesión médica compuesta de falsos avisos publicitarios,
por Manuel Jofré en Superman
y sus amigos del alma (Buenos dibujos y textos que imitan un folleto médico y un antiguo manual de
Aires: Galerna, 1974), junto recomendaciones de salud.
a Ariel Dorfman. Ver LIMA
GOMES, Ivan. Os novos homens
En 1960 Oski viaja y vive un tiempo en Cuba para observar el de-
do amanhã: projetos e disputa sarrollo de la Revolución Cubana. Si bien jamás militó en partido alguno,
em torno dos quadrinhos na Oski siempre apoyó la causa de la emancipación latinoamericanista. En
América Latina (Brasil e Chile,
anos 1960-1970). Curitiba: Pris- 1968 llega la Vera historia de Indias, publicada por la Compañía Fabril Editora
mas, 2018. en Buenos Aires.5 Basado en relaciones, diarios de viaje, notas y registros
8
Grupo paramilitar organizado dejados por conquistadores españoles, catedráticos, religiosos y explo-
por José López Rega desde la radores durante la Conquista de América, el libro ilustra las costumbres
Secretaría de Bienestar Social
con el objetivo de perseguir y indígenas, las iniquidades de los conquistadores y el lento desarrollo del
fusilar a figuras de izquierda Río de la Plata a razón de una lámina por selección. Uno de los dibujos es
de la política y la cultura.
una segunda adaptación de la Primera fundación de Buenos Aires narrada por
Ulrico Schmidl. La primera consiste en el cuadro sobre el que Fernando
Birri filma su corto y que tratamos en este artículo.
Mezclando la realidad de la conquista con las ideas desaforadas y
fantásticas de los conquistadores, el libro es un modelo del trabajo de Oski
a lo largo de las siguientes décadas, basado en el rescate de textos olvidados
para ilustrar a la manera de “un monje enloquecido que hace arabescos
sobre los textos sagrados, pero no como los quiere el padre prior. Está de
parte del diablo, aspira a serlo”.6
En 1970, a raíz de la elección de Salvador Allende, viajó y vivió en
Chile apoyando activamente el proyecto allendista y colaborando en la
revista Cabro Chico publicada por Quimantú.7 También realizó dibujos para
el documental Pulpomonios a la chilena, una denuncia de la concentración
económica impulsada por Estados Unidos. Asimismo, a partir de febrero
de 1974 colabora con el diario Noticias, fundado por Montoneros, la or-
ganización política-guerrillera de izquierda del peronismo. Allí realizaba
“El crease o no del sudor (ajeno)” pequeñas viñetas que denunciaban la
explotación laboral de los trabajadores a lo largo de la historia.
En 1973 retorna a Buenos Aires. Vive allí hasta 1975, cuando parte al
exilio escapando de la violencia contra artistas de izquierda llevada adelante
por la Alianza Anticomunista Argentina y otros grupos de derecha.8 Vive
sus últimos años en Roma. Retorna a Argentina en 1979 para participar de

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la Cuarta Bienal de la Historieta de Córdoba y para operarse de un cáncer.

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Muere el 30 de octubre internado en el Hospital de Clínicas de Buenos Aires.
La vida y la obra de Oski tienen muchos puntos en común con la
de dibujantes que analicé en trabajos previos: cercanía a la publicidad,
consagración durante “la era dorada” de las publicaciones periódicas
argentinas, línea influenciada por Saul Steinberg y el humor “absurdo”
de Estados Unidos, vinculación con artes como el teatro y el cine.9 Pero
también cuenta con rasgos disímiles: compromiso político-laboral con
los movimientos emancipatorios de Latinoamérica, afinidad por las artes
pictóricas brindada por su formación, tendencia a organizar muestras de
su trabajo colocándolo en el contexto de la galería, condición internacional.
Todo ello hace de Oski una personalidad descollante. Pero es su estilo de
dibujo el que lo volvió un artista excepcional y de enorme influencia en el
panorama argentino y latinoamericano del humor gráfico. A el nos dedi-
caremos en el próximo apartado.

Clásico y moderno: la alquimia gráfica de Oscar Conti

Quienes han escrito sobre Oski destacaron su particular cultura vi-


sual, una mezcla de elementos arcaicos con una línea moderna, su uso de
un material que queda por fuera de la historia oficial no solo del arte, sino
también de la literatura y de la invención técnica. Empleamos el término
“cultura visual” como fue definido por Nicholas Mirzoeff en su afán por
fundar una nueva área de investigaciones interdisciplinaria que pudiese
hacerse cargo de los cambios en la relación entre seres humanos y lo visual
propia de la posmodernidad: “La cultura visual se preocupa con los even-
tos visuales en los cuales la información, el sentido, o el placer es buscado 9
Trabajé las trayectorias y ca-
por el consumidor en una interfaz con la tecnología visual. Por tecnología racterísticas profesionales de
otros autores de humor gráfico
visual me refiero a cualquier tipo de aparato diseñado para ser mirado o en mi tesis de doctorado, ver
para realzar la visión natural, desde la pintura al óleo hasta la televisión GANDOLFO, Amadeo. La opo-
y la internet”.10 El concepto de cultura visual apunta a tomar en serio la sición dibujada: política, oficios y
gráfica de los caricaturistas po-
proliferación de lo visual como una nueva cultura, en un sentido etnográ- líticos argentinos (1955-1976).
fico, que permea todas las relaciones humanas y que ha reemplazado lo Doctoral (Ciencias Sociales) –
UBA, Buenos Aires, 2015.
textual como medio primordial de organización de la información. A la vez,
al tomar la idea de cultura en su sentido amplio y no restringido, también
10
MIRZOEFF, Nicholas. An in-
troduction to visual culture. New
busca demoler las barreras entre “alta” y “baja” cultura y permitir una York: Routledge, 2010, p. 3.
salida a las estrecheces de la historia del arte clásica y al aparente fin de 11
Idem, ibídem, p. 24 e 25.
su historia. Finalmente, la noción de cultura visual, al buscar disolver las 12
Su hija, en ocasión de una
jerarquías clásicas en nuestro entendimiento de lo visual, también ser una visita para realizarle una en-
red fractal, que incorpore perspectivas provenientes de todo el mundo y que trevista, me facilitó parte de
este material: un tomo encua-
considere a la cultura como un espacio donde se construyen identidades y dernado de la revista ilustrada
se disputan políticas, combinando la noción de lo visual con problemáticas El Correo de Ultramar, publicada
de género, etnia y clase.11 en París, correspondiente al año
1877. La misma llevaba por
Nuestro empleo del concepto, sin embargo, será limitado: en este subtítulo “Periódico universal
caso nos concentraremos en la cultura visual de un solo artista. Esta cultura literario ilustrado”. Observan-
do el número 1275, de julio
visual es sin dudas erudita y popular a la vez, y entreteje diversas fuentes de 1877, el mismo consistía
en una red que produce un estilo único. Oski se caracterizaba por la proli- en una mezcla de selecciones
feración de imágenes, era alguien que trabajaba acumulando y observando literarias, informaciones sobre
fiestas cívicas españolas, noti-
diversos tipos de fuentes: folletos médicos, revistas ilustradas del siglo XIX, cias sobre la guerra Ruso-Turca,
grandes pintores, caricaturas, manuales de instrucciones de maquinarias, misceláneas sobre el comercio
exterior inglés, poemas, graba-
libros de etiqueta y buenos modales.12 En las siguientes páginas recons- dos y publicidades de cremas,
truiremos algunas de estas referencias. Asimismo, muchos de los dibujos tónicos y píldoras.

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13
REGGIANI, Federico. Oski. de Oski tienen una carga profundamente irónica, y poseen un comentario
Tebeosfera, Disponible en <ht-
tps://www.tebeosfera.com/1/ sobre las iniquidades de la historia, especialmente en lo concerniente a
Documento/Articulo/Argen- la relación colonial entre Europa y Estados Unidos e Iberoamérica. Esto
tina/Oski.htm>. Accedido el
será tratado en el tercer apartado, cuando hablemos específicamente de La
5 feb. 2018.
primera fundación de Buenos Aires.
14
SASTURAIN, Juan. Última
declaración de amor al viejo Entre los autores que han escrito sobre Oski, muchos se han concen-
Oski. In: El domicilio de la aven- trado en la particular operación que realiza al ilustrar. Federico Reggiani
tura. Buenos Aires: Ediciones
Colihue, 1995, p. 82.
parte de las funciones de anclaje y relevo en la relación imagen-palabra
escrita: “O la palabra limita, ancla, la normal ambigüedad de la imagen,
15
REGGIANI, Federico, op. cit.
o bien construye el sentido supliendo aquello que la imagen no dice”.13A
16
STEIMBERG, Oscar. Sobre
algunos temas y problemas
partir de allí menciona que la ilustración puede ser didáctica (facilita la
del análisis del humor gráfico. comprensión del texto) o decorativa (embellece una edición). El autor afirma
In: Leyendo historietas: textos que Oski, en sus obras más conocidas como Vera historia de Indias o Comen-
sobre relatos visuales y humor
gráfico. Buenos Aires: Eterna tarios a las tablas médicas de Salerno, se adhiere con literalidad a la función
Cadencia, 2013, p. 190. didáctica de la ilustración. Esto es: ilustra con absoluta fidelidad, pero en
su propio estilo humorístico, los textos, dejando al desnudo lo absurdo del
contenido de los mismos. Asimismo, destaca el uso por parte de Oski de
la narrativa en una sola imagen: comprime el pasaje del tiempo a un solo
friso. La apreciación de Reggiani continúa observaciones realizadas por
Juan Sasturain en los 1980s, en donde describía la operación Oski sobre el
texto como una “dislocación del sentido a fuerza de ser fiel a ultranza”.14
Esta fidelidad, al ser traducida al estilo de dibujo de Oski, tiene como efecto
cuestionar el sentido de totalidad, la búsqueda clasificatoria y testimonial
de los textos que elige. Un manual de buenas costumbres se transforma en
comedia de enredos, una crónica indiana se convierte en un testimonio de
la ignorancia española. He aquí una primera clave de lectura: Oski como
ilustrador absolutamente literal y que, sin embargo, traiciona el material.
Una segunda clave corresponde a su universo gráfico, vinculado al
estilo que elige para sus ilustraciones: panorámicas donde las acciones se
distribuyen sobre la profundidad de la imagen y no en narración consecu-
tiva. Reggiani destaca la proliferación de detalles que son dibujados con el
mismo trazo y colocados en pie de igualdad con los caracteres “centrales”
de la imagen.15 Oscar Steimberg, asimismo, caracteriza a Oski como un
representante de la experimentación frente al esquematismo en el humor
gráfico, que privilegia la “autonomización relativa de elementos y dispo-
sitivos constructivos ‘micro’, no molares. Como ocurre con las tramas y
caligrafías visuales gratuitas […] o con los personajes y objetos secundarios,
con sus ‘historias segundas’ y autónomas”.16 Un dibujo de Oski esconde
muchos otros dibujos y eventos. En esto, la mayoría de la literatura sobre
Oski vincula esta proliferación de detalles con una preferencia por parte
del artista por modelos ilustrativos pre-Renacentistas.
Entonces, primero, Oski como dibujante fiel a la letra (si bien no al
espíritu) de los textos que adapta, dejando al desnudo su absurdo. Segundo,
Oski como inventor de un nuevo lenguaje, en donde cada detalle de sus
dibujos compone un todo significativo, un simbolismo cómico tan denso
como místico es el de El Bosco. Finalmente, Oski como narrador a través
de la imagen estática: incluso en sus primeros trabajos, Oski fue siempre
un maestro del dibujo independiente, el chiste de un cuadrito, el gag. Su
madurez lo vio evolucionar hacia la ilustración de series diversas, yuxta-
poniendo un gran cuadro al texto elegido con ojo de curador.
El terreno liminar que habita Oski entre ilustración e historieta con-
duce al espinoso terreno de las definiciones acerca de lo que es un comic.

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Scott McCloud se niega a considerar a los chistes de un solo cuadro como

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historietas debido que su definición de comic toma como condición funda-
mental del mismola narrativa secuenciada y yuxtapuesta. Para McCloud
los chistes de un solo cuadro: “Son caricaturas […] Y hay una antigua
relación entre comics y caricaturas. ¡Pero no son una misma cosa! Lo uno
es una manera de dibujar, un estilo, si se prefiere… Mientras que lo otro
es un medio de comunicación que a menudo se sirve de la caricatura”.17 La
“propuesta secuencial” de McCloud ha sido muy debatida. Aaron Meskin,
en un artículo publicado en el año 2007 parte de la definición de McCloud,
y la enriquece con propuestas de Will Eisner, David Carrier y David Kun- 17
MCCLOUD, Scott. Cómo se
zle, para llegara la postura de Greg Hayman y John Henry Pratt, que se hace un cómic: el arte invisible.
proponía como una continuación superadora.18 Tanto Kunzle como Carrier Barcelona: Ediciones B, 1995,
p. 21.
como Eisner consideran algunas condiciones formales como necesarias para
definir lo que es un comic: la secuencia (Eisner), el globo, la narrativa y 18
Ver EISNER, Will. Comics
and sequential art. Tamarac:
el tamaño libro (Carrier), la secuencia aparecida en un medio masivo con Poorhouse Press, 1985, CAR-
preponderancia de imagen sobre texto (Kunzle). Para Hayman y Pratt: “x RIER, David. The aesthetics
of comics. Pennsylvania: The
es un comic si x es una secuencia de imágenes discretas y yuxtapuestas que Pennsylvania State University
comprenden una narrativa, ya sea por su cuenta o cuando se encuentran Press, 2000, KUNZLE, David.
combinadas con texto”.19 The early comic strip: narrative
strips and picture stories in
Meskin, por su parte, discute la necesidad sine-qua-non de la narra- the European broadsheet 1450-
tiva en la definición, hallando muchos ejemplos de comics no narrativos, 1825. Berkeley: University Of
California Press, 1973, PRATT,
y también discute la ahistoricidad de esta definición, concluyendo que “el Henry John; HAYMAN, Greg.
problema con el que se encuentra es el problema con el cual se encontró What are comics?. In: GOLD-
desde siempre el formalismo- su fracaso para tomar en cuenta los contextos BLATT, David; BROWN, Lee
(orgs.). Aesthetics: a reader in
históricos en los cuales las obras de arte son producidas”.20 Finalmente, se philosophy of the arts. 2nd Edi-
pregunta cuan operativa y necesaria resulta una definición de historieta, tion. Upper Saddle River, N.J.:
Pearson Prentice Hall, 2005.
concluyendo que “si una definición de lo que es un comic fuese posible,
tomaría […] una forma procedural o histórica”.21 En otras palabras: un PRATT, Henry John; HAY-
19

MAN, Greg, op. cit. p. 370.


análisis situado y contextual.22 Si tomamos este punto de vista, Oski per-
20
MESKIN, Aaron. Defining
tenece de manera plena al territorio de la historieta, ya que sus dibujos comics?. The Journal of Aesthetics
aparecieron en revistas de historieta, y su estilo es reconocible como una and Art Criticism, v. 65, n. 4,
etapa del desarrollo del estilo de dibujo del humor gráfico tanto argentino 2007, p. 374.

como mundial. 21
Idem, ibidem, p. 376.
Los dibujos de Oski, sin embargo, nos colocan en la situación de 22
Bart Beaty, en Comics versus
art (Toronto: University of
una imagen estática que narra, planteándonos de qué modo leerlos. Esta
Toronto Press, 2012), apoya un
pregunta no es nueva en la historia del arte. En la historia del arte aparece punto de vista similar. Luego
de forma clásica vinculada a la pintura histórica, la forma pictórica elegida de analizar distintas definicio-
nes del objeto historieta, Beaty
por la Academia Francesa entre los siglos XVII y XIX como el modelo más propone que la manera más
elevado de pintura. La misma “narraba” un momento histórico que podía operativa de conceptualizarla
es como un “mundo del arte”,
proceder de la historia del cristianismo, la mitología griega o romana, o
término tomado del sociólogo
los grandes héroes nacionales. La pintura histórica contaba con una serie norteamericano Howard Be-
de reglas empleadas por la Academia para juzgarla en los Salones: un cker, quién lo define como “to-
das las personas cuya actividad
grupo de personajes principales recortados sobre una multitud pintada es necesaria para la producción
de forma menos clara, vestimentas de época, grandes dimensiones. Sin de los trabajos característi-
cos que ese mundo, y tal vez
embargo, los artistas solían tomarse muchas libertades al respecto del
también otros, definen como
evento representado con el objetivo de transmitir un mensaje alegórico arte” (BECKER, Howard Saul.
“correcto”. Los salones eran eventos enormemente populares en su época Los mundos del arte: sociología
del trabajo artístico, Bernal:
y es indudable que Oski, entre su cultura visual, también tenía en cuenta Universidad Nacional de Quil-
estas imágenes, como se comprueba en algunas ilustraciones de Vera mes, 2008, p. 54), de ese modo
la se convierte en contextual,
historia de Indias, por ejemplo, aquella que ilustra La segunda fundación de
situada, y el objeto artístico se
Buenos Aires (Figura 2). construye en una perspectiva
sociológica antes que formal.

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23
NANAY, Bence. Narrative
pictures. The Journal of Aesthe-
tics and art Criticism, v. 67, n. 1,
2009, p. 124 e 125.
24
BERGSON, Henri. Laughter:
an essay on the meaning of the
comic. Urbana: Project Guten-
berg, 2003, p. 18.

Figura 2. La segunda fundación de Buenos Aires. Oski.

Bence Nanay plantea que “el concepto de acción es de hecho crucial


a nuestro entendimiento de las imágenes narrativas (o por lo menos de
nuestro compromiso con las narrativas)”, y que “las acciones de las que
somos conscientes cuando nos comprometemos con narrativas pictóricas
son probablemente acciones orientadas a un fin”.23 Esta es una primera
explicación del por qué podemos leer los dibujos de Oski como narrativas.
La mayoría están construidos sobre una acción en movimiento, un mo-
mento capturado in media res, generalmente la puesta en práctica de las
instrucciones y extrañas costumbres de los textos que Oski elige ilustrar. Es
la contraposición entre un texto que presenta una narración o unas instruc-
ciones con la mayor circunspección y seriedad y un dibujo que las ilustra
como un paroxismo de actividad inútil, una lucha del hombre contra esos
mismos consejos que, en vez de simplificar las cosas, las complican, donde
se encuentra el humor de Oski. Sus personajes perpetuamente despistados
y a la vez perpetuamente esperanzados, creyentes de que la observación,
el registro y la experimentación son suficientes para combatir un universo
que se les vuelve en contra, son encarnaciones perfectas de lo cómico en
un sentido bergsoniano, producto de la repetición incongruente: “Un ele-
mento mecánico introducido en la naturaleza y una regulación automática
de la sociedad”.24

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Figura 3. “Del tiempo antiguo”. Oski. 1969.

A la vez, como menciona Steimberg, Oski no se conforma con ilus-


trar solo una escena central, a la manera de la pintura histórica, sino que
da entidad a acciones secundarias que se suceden en la profundidad del
“lienzo”. En esto también va en contra de las convenciones de la historieta:
en vez de narrar secuencialmente y de manera yuxtapuesta, narra espacial-
mente y en profundidad. Aquí su cultura visual pareciera hacerse eco no
solo de los manuscritos iluminados medievales (comparación que realizó
Umberto Eco) sino también de los pintores holandeses como El Bosco y
Pieter Brueghel el viejo. Algunos de sus dibujos remiten a los panoramas
moralizadores y místicos de estos pintores, a la vez que la proliferación
de estilemas propios (pajaritos sin alas, animales de patas flacas, un sol
que parece un embrollo realizado con birome, vestimentas anacrónicas,
ojos de huevo sin pupilas, vegetación exuberante) nos sumergen en una
pausada lectura de sus imágenes. Por último, de manera similar a ellos,
el mensaje moral de Oski arroja luz sobre los sinsentidos y limitaciones
terrenales de los hombres.
Por último, el dibujo de Oski también nos remite de forma inmediata
a Saul Steinberg, dibujante rumano cuyo estilo consciente de los recursos y
limitaciones de la línea y de la página, es mencionado de forma unánime por
los humoristas gráficos contemporáneos a Oski, y por Oski mismo, como de

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25
GOMBRICH, Ernst Hans. un enorme impacto. Gombrich escribió sobre Steinberg que “Se ha dicho a
The wit of Saul Steinberg. Art
Journal, v. 43, n. 4, 1983, p. 377. menudo que el tema real o dominante del arte del siglo XX es el arte en sí
26
MITCHELL, W. J. T. Picture
mismo. Si ese es el caso, la contribución de Steinberg al asunto no debe ser
theory: essays on verbal and subestimada” y, citando las palabras del mismo artista, “Dibujo dibujos,
visual representation. Chicago: y dibujar deriva siempre de otros dibujos. Mi línea quiere recordarte todo
University of Chicago Press,
1995, p. 40. el tiempo que está hecha de tinta”.25 Continuando esta apreciación, W.T.J.
27
Idem, ibidem, p. 42.
Mitchell emplea uno de los dibujos de Steinberg, en donde un personaje
traza una línea que se inicia como ilustración de un paisaje para convertirse
28
En su famosa entrevista final,
Sasturain le pregunta por el en espiral que encierra al dibujante-dibujado, para ilustrar el concepto de
destino de un hombrecito que “metaimagen”. Mitchell escribe que este dibujo “Si se lee en el sentido de
corre en una de las imágenes
de Vera historia de Indias. Oski
las agujas del reloj puede ser tomado como una alegoría de una historia
le contesta “Y qué se yo… Al familiar de la pintura moderna, una que comienza con la representación
carajo va…” SASTURAIN, del mundo exterior y se mueve hacia la pura abstracción”.26 A la vez es
Juan, op. cit., p. 82.
“una imagen sobre sí misma, una imagen que refiere a su propia creación,
29
MUJICA LÁINEZ, Manuel.
Oski, o la ironía sabia. La Naci-
pero a la vez una imagen que disuelve la frontera entre el adentro y el
ón, 26 abr. 1957. afuera, la representación de primer y segundo orden”.27 Mitchell, a su vez,
30
Birri (1925-2017) es consi- ha sido mencionado por Mirzoeff como uno de los precursores en la labor
derado el “padre del nuevo de pensar esta nueva realidad atravesada por imágenes en la que vivimos
cine latinoamericano”. Viajó
a Roma en 1950 y pasó los si-
desde fines del siglo XX.
guientes tres años estudiando Es claro que algunos grafismos de Oski (los pajaritos, los ojos, el
en el Centro Sperimentale di sol) dependen fuertemente de esta línea steinbergiana, de este grafismo
Cinematografia. Llegó a traba-
jar como asistente de Vittorio interesado en poner en primer plano su artificiosidad. Lo revolucionario
De Sica. En 1956 retornó a su de Oski es que combina esta autoconsciencia posmoderna con una dis-
Santa Fe natal y fundó el Insti-
tuto de Cine en la Universidad
posición espacial pre-moderna. Oski es a la vez el dibujante de la línea
Nacional del Litoral. Desde allí que se hace cargo de sí misma y de sus limitaciones, como también es un
buscó realizar un cine popular, ilustrador detallista y fiel a la letra, un estudioso que investiga sus temas
conectado con el pueblo y con
sus temas, por lo cual eligió el y que conservaba enormes colecciones de publicaciones del siglo XIX
documental como forma pri- encuadernadas para utilizar de referencia visual.28 Anuda una línea que
vilegiada. Los estudiantes del
Instituto provenían de todas las
apunta a los juegos autorreferenciales con una línea que debería ser fiel
clases sociales y los guiones se a la representación y documentación de lo visible. En esto, Oski redibuja
debatían de forma colectiva. La los límites entre ilustración e historieta, empleando la profundidad de
aproximación de Birri dio sus
frutos en dos grandes hitos del campo como un marco secuencial. Asimismo, su adscripción a la escuela
cine argentino: Tire dié (1960), steinbergiana y su colaboración en la mayoría de las revistas señeras del
documental sobre los niños de
una de las villas más importan-
humor gráfico argentino nos permiten dar una respuesta afirmativa de
tes de Santa Fe, y Los inundados carácter sociológico a la clasificación de sus obras: si, Oski es historietista
(1961), film de ficción centrado porque abreva, publica y se reconoce en la tradición historietística del
en las frecuentes inundaciones
de las barriadas pobres alojadas siglo XX.
en los márgenes del Río Salado. Si el objetivo del caricaturista es exagerar los rasgos de tal modo de
poner en primer plano el carácter moral del sujeto caricaturizado, Oski
acomete esta operación en un nivel sistémico, exagera la tensión entre lo
representado y los medios empleados para representarlo, entre la línea y la
referencia, entre lo escrito y lo dibujado, entre la Historia con mayúscula y
los episodios olvidables de la historia. En palabras de Manuel Mujica Lái-
nez, en las estampas de Oski “el observador admira tanto la imaginación
divertidamente extravagante como la aplicación de una ciencia madura,
almacenada con prolijidad”.29

“Y se levantó allí una ciudad”: animando lo estático

Finalmente, entonces, en este apartado nos concentraremos en


como estas apreciaciones de carácter estético y narrativo se vinculan
con el proyecto de animar un cuadro de Oski. La historia de La primera

50 ArtCultura Uberlândia, v. 21, n. 39, p. 41-56, jul.-dez. 2019


fundación de Buenos Aires, dirigida por Fernando Birri, es la historia de 31
BIRRI, Fernando. Soñar con los

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ojos abiertos: las treinta lecciones
un emprendimiento colectivo, fundado en las afinidades amistosas y de Stanford. Buenos Aires:
personales de un conjunto de intelectuales.30 El trabajo colectivo, por Aguilar, 2007, p. 65.
otra parte, es la forma por excelencia del oficio de historietista desde su 32
El tamaño exacto del cuadro
fundación como un oficio industrial, vinculado a la reproducción técnica es disputado: Birri da este nú-
mero en Soñar con los ojos abier-
y la prensa masiva. Estados Unidos, en donde los dibujantes comparten tos, pero el texto que antecede
tareas creativas con un colorista, entintador, guionista, portadista, etc., al corto recuperado menciona
1,20m x 70cmts.
en un sistema que busca asemejarse a una cadena productiva fordista,
representa su modelo más acabado. CANTONA, Darío, op. cit.
33

40000 pesos moneda nacional


De acuerdo Birri, la experiencia surgió porque “Con León Ferrari, en 1957 eran casi 1000 dólares,
que fue el productor, habíamos compartido Italia, el exilio y la gran pasión una venta sin lugar a dudas fa-
bulosa para un artista acostum-
por Oski. Entonces, al volver a la Argentina me propone hacer una película brado a trabajar en redacciones
sobre algo de Oski, que también había sido nuestro amigo y había estado en de manera incesante. El destino
Italia. Así, acordamos que Oski hiciera su cuadro de manera independiente del cuadro, sin embargo, forma
parte, por ahora, del misterio.
de la película y después nosotros haríamos una película sobre el cuadro”.31 Consultada Adriana Conti,
El cuadro, de 1m x 70cmts, se terminó en 1957 y se expuso como parte de primera hija de Oski, acerca
del destino del mismo, me
una gran muestra realizada por Oski en Galerías Bonino, una de las prin- respondió que sospechaba que
cipales galerías de arte contemporáneo de la ciudad de Buenos Aires en se había vendido a algún colec-
aquel entonces.32 Fue un gran éxito y fue vendido “al coleccionista Nagel en cionista importante, pero que
no sabía dónde se encontraba
40 mil nacionales”.33 El trabajo, realizado con acuarela, tempera y tinta, es en este momento. En esa misma
un panorama masivo, con más de quinientos personajes que se distribuyen ocasión también expresó que
Oski acostumbraba vivir el día
sobre un paisaje dividido entre el Río de la Platay la costa de Buenos Aires. en día en términos económicos
No presenta guía de lectura alguna y uno debe reconstruir el orden de los y que en ocasiones cancelaba
acontecimientos de acuerdo a la narración de Ulrico Schmidl en la cual se deudas con obras (CONTI,
Adriana. Entrevista con Adria-
inspiró, o simplemente dejando que la vista se desplace por la superficie. na Conti).
La narrativa de Schmidl es sencilla: la expedición arriba, toma contacto con 34
Reprodução disponível em
los indígenas, explora, construye un primer asentamiento, este es atacado, REP, Miguel y VACCARI,
lo cual los obliga a huir y abandonar la ciudad trunca. Laura (eds.). Oski: um monje
enlouquecido. Buenos Aires:
Museo Nacional de Bellas Ar-
tes, 2013, p. 142.

Figura 4. La primera fundación de Buenos Aires. Oski. Témpera, tinta y acuarela, 1m x 70cmts, 1957.34

ArtCultura Uberlândia, v. 21, n. 39, p. 41-56, jul.-dez. 2019 51


35
BIRRI, Fernando, op. cit., En el cuadro, fiel al estilo de Oski que hemos descripto en el apartado
p. 63.
anterior, se observan una multiplicidad de acciones, desde el desembarco
de Pedro de Mendoza hasta su huida de los indios locales, pasando por
la Fundación propiamente dicha, expediciones, episodios de canibalismo,
intentos de vivir de los frutos de la naturaleza y ejecuciones. La impresión
que genera es el de una narrativa caótica y circular, la cual rodea a la ilus-
tración central que representa el primer emplazamiento de Buenos Aires.
Cada personaje asemeja a una hormiga y diversos episodios secundarios
escapan a una primera ojeada. Como menciona Birri “la cabecita de uno
de los indios, que tiene el tamaño de una moneda de un quarter”.35
El cuadro se inspira en grabados que acompañan la edición en alemán
de las memorias de Schmidl realizada por Levinus Hulsius en 1599. Son
dibujos simples, con un ancho de campo muy reducido en comparación al
de Oski. En los mismos se observan la fortificación principal y los combates
en contra de los indígenas. En 1968 al publicar Vera historia de Indias Oski
re-elaboraría el cuadro, en tinta y papel, en una versión que se asemeja a
los grabados originales. Aquí provee de una grilla alfabética que parecería
tener por objetivo ser empleada para leer secuencialmente el dibujo, pero
que se revela como una tipología de los personajes (Figura 5). Asimismo,
el cuadro de Oski, en otro de los testimonios a la prodigiosa cultura visual
del artista, también porta un aire de familiaridad con la Tavola Strozzi, una
pintura al óleo de 1472 y atribuida a Francesco Roselli que muestra una
escena naval en primer plano y la vista pictórica más antigua de la ciudad
de Nápoles al fondo.

Figura 5. La primera fundación de Buenos Aires (segunda versión). Oski.

52 ArtCultura Uberlândia, v. 21, n. 39, p. 41-56, jul.-dez. 2019


León Ferrari y Fernando Birri fundaron una productora específica-

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mente para esta empresa: Producciones del Sur. Ferrari, artista plástico po-
lítico, renombrado y polémico, creador de numerosas pinturas anticlericales
y anti-imperialistas, era en aquel entonces un ingeniero que aún no había
iniciado su carrera artística. Fue el encargado de invertir materialmente
para que el corto pudiese realizarse, y también prestó su hogar para que
se montase el estudio donde se filmaría. Birri, por su parte, decompuso el
cuadro en secuencias: usando papel transparente copiaba cada uno de los
pequeños “monitos” del cuadro e iba realizando un rudimentario story-
board, tarea en la cual contó con la colaboración del mismo Oski.
La música fue compuesta por Virtú Maragno, músico santafesino
de formación clásica. Es un elemento determinante del mediometraje: es
a través de la misma, de sus leivmotivs repetitivos, que el montaje elegido
por Birri termina de coagular, existiendo a la vez en el terreno de lo visual
y de lo aurático. “Por un lado, hace una pequeña orquestita de cámara
“española”, con los instrumentos tradicionales de la época, o casi; y, por
otro, el tango sinfónico con el que identifica irónicamente las imágenes de
los indios”.36
Este panorama sonoro se completa con la narración de Raúl de
Lange. De Lange nació en Argentina y se crio en Austria, donde estudió
interpretación en el Conservatorio Imperial de Viena. Discípulo de Max
Reinhardt, volvió a Argentina en 1938 y se dedicó a prestar su voz para
recitados en obras de teatro. La participación de De Lange aporta ironía y
absurdo al corto, su dicción perfecta pero meliflua, su entonación resonante
y con acento, resaltan la distancia entre la ambición de los conquistadores
y los magros resultados de su campaña, y convierten el texto de Schmidl
de una gesta trágica a una comedia de enredos.
Finalmente, cabe destacar al montajista Enrique Wallfisch, prove-
niente del cine industrial argentino. Él, junto con Ferrari, fue el encargado
de diseñar la máquina que permitió realizar el mediometraje. Este apara-
to, denominado “la máquina infernal” por Birri, consistía en una especie
de armazón de hierro sobre el cual se montó el cuadro. El armazón tenía
dos ruedas que movían el cuadro horizontalmente (si se accionaba una),
verticalmente (si se accionaba la otra) y en diagonal (ambas). Frente a este
aparato se colocó una cámara. La idea detrás de semejante desarrollo téc-
nico artesanal era poder filmar cada uno de los detalles del cuadro, que, a
pesar de su dimensión, mucho más vasta que la de un dibujo, igual apiñaba
una cantidad de personajes miniatura mucho más grande que la que po-
día captar la cámara. Los encuadres se realizaron en tamaños ínfimos: “el 36
BIRRI, Fernando, op. cit.,
director pide un detalle, que tendrá importancia posterior en la secuencia p. 66. Originalmente la música
del film. El dibujante, entonces, debe hacer el trazo (dibujo) en un tamaño iba a ser compuesta por Astor
Piazzola, quién en ese entonces
no mayor de 2 centímetros cuadrados […] sobre el cual se hará la toma”.37 comenzaba a descollar como
He aquíel desafío técnico de convertir una imagen bidimensional, uno de los principales practi-
cantes del nuevo tango, pero
pensada para ser observada tomándose un tiempo, deteniéndose en los la colaboración no fructificó
detalles, a una dimensión narrativa temporal, en la cual cada fragmento por motivos desconocidos. Ver
se transforma en una unidad narrativa, un acto o consecuencia que lleva MOLINERO, Isabel. Oski y los
suyos van al cine. Histonium,
adelante la historia. Ingresa, entonces, el elemento fundamental para dar n. 216, 1957, p. 27 e 28.
movimiento a un cuadro estático: el montaje. Birri siempre sostuvo que La 37
WALLFISCH, Enrique. Pa-
primera fundación de Buenos Aires es, además de un proyecto colaborativo, ciencia de imaginero y arte de
una narrativa sostenida en el montaje en el sentido en el que Eisenstein miniaturista para un medio
metraje satírico humorístico.
entiende el término. O sea, como una operación que, por la yuxtaposición Radiolandia, n. 1509, 27 abr.
de imágenes, construye un sentido nuevo frente al espectador. El corto no 1957, s/p.

ArtCultura Uberlândia, v. 21, n. 39, p. 41-56, jul.-dez. 2019 53


38
BIRRI, Fernando, op. cit., cuenta con animación alguna, sino que el movimiento de la cámara, el foco
p. 60.
y el encuadre, y los cortes de una escena a otra, constituyen el tegumento
39
Idem, ibídem, p. 61.
que permiten transformar espacio en tiempo. Como escribe Birri: “es por
BIRRI, Fernando. La pri- virtud del montaje que un filme tiene su desarrollo temporal”.38 Y, además:
40

mera fundación de Buenos Ai-


res, 1959. Disponible en <ht- “El arte del montaje es lo que hace que […]. De dos imágenes separadas,
tps://www.youtube.com/ autónomas, se crea una tercera imagen de síntesis”.39 Un cuadro de 1m x
watch?v=pMwkrPKspQg>.
Accedido el 23 feb. 2018.
70 cm se convierte en 40 minutos de película porque se impone un deter-
minado orden, pero la potencialidad narrativa del mismo se encontraba
41
BIRRI, Fernando, Soñar con los
ojos abiertos, op. cit., p. 59. ya allí gracias al despliegue en el espacio propio de Oski.
Durante el proceso de transposición Birri organiza al cuadro: elige
que es lo importante y que no, elige el orden en que contarlo, demuestra,
a través de esta operación, la ingente cantidad de información que Oski ha
depositado en esas miniaturas de hombres luchando, navegando y explo-
rando. Desnuda que una imagen de Oski vale mucho más que mil palabras.
Luego, este proceso también genera un mecanismo paradójico: todas las
capas e incidentes del cuadro tienen igual importancia. En la pintura se
observan secuencias que aparecen dibujadas con menor detalle sobre el
fondo del cuadro. En la película, y gracias al “mecanismo infernal”, los
detalles más pequeños quedan en pie de igualdad con las imágenes más
detalladas, y son empleados por Birri indistintamente.
Asimismo, los cineastas construyen el movimiento a través de la
repetición. Hay detalles del cuadro cuya recurrencia rítmica, al compás de
la música de Maragno, sirven para crear la ilusión de una animación que es
inexistente. Un ejemplo es el detalle de Pedro De Mendoza comiendo “las
miserias de carne y de pescado” que los Querandíes, indígenas del Plata,
poseían. El detalle del cuadro, que no debe ocupar más de 5 centímetros
cuadrados en el dibujo original, es repetido a lo largo de tres minutos de
film. Primero, se muestra al indígena que le lleva la comida, luego el dibujo
de De Mendoza, abstraído, ausente, monárquico, comiendo las magras so-
bras. Esta secuencia se repite varias veces, tantas como noches (catorce) le
llevaron alimento los indígenas. Luego este envía una excursión a negociar
con los aborígenes, es rechazada, y sus capitanes retornan a comentarle su
derrota al adelantado. En la película esto lleva aun corte al mismo dibujo
donde De Mendoza continúa comiendo. La escena transmiteel tedio de
una expedición fundadora, presenta a De Mendoza como un aristócrata
ajeno a todo,y demuestra la plurivalencia de los detalles dibujados por
Oski, capaces de ser empleados para diversos momentos de la narrativa.
Asimismo, las grandes acciones, los dibujos más notorios del lienzo,
son descompuestos en sus detalles a la hora de transmitir la urgencia y
gravedad de lo sucedido. Una secuencia de lucha entre indígenas y adelan-
tados, en la cual los primeros queman las naves de los segundos, intercala
las caras preocupadas y narigonas de los personajes subidos al barco con
fugaces tomas de los cañonazos que dibujó Oski. La cámara combina de-
talles a velocidad asombrosa, logrando transmitir, sin movimiento alguno
más que el de ella misma, el combate.40
El corto utiliza estos recursos para agregar “una tercera dimensión, la
del filme” a las otras dos capas que se encuentran en el cuadro: “la historia
con mayúsculas, digamos, La Historia de la Primera Fundación; por el otro,
la mirada irónica de Oski, una mirada escéptica, desencantada, mucho más
cercana a la realidad de la historia”.41
Es que esta obra, que a primera vista quizás no se vincula tanto con
los documentales rigurosos y naturalistas de Birri, pone en primera plana

54 ArtCultura Uberlândia, v. 21, n. 39, p. 41-56, jul.-dez. 2019


muchas de sus preocupaciones, así como también las de un Oski interesado

D os s iê Quadri nhos & cu l t u ra v i su al : mo d o s d e ver e l er h i st óri as


en una Sudamérica emancipada. Muestra un episodio de la Conquista que
concluye negativamente para los conquistadores. Una situación frente a
la cual se ven obligados a huir, a abandonar su empeño “civilizador” y
fundador de ciudades. La derrota de los adelantados causó que el sitio
quedase yermo durante cuatro décadas y que cuando la expedición co-
mandada por Juan de Garay fundase de forma definitiva la urbe, de su
primera fundación no quedasen ni rastros.
Una ciudad, en tiempos coloniales, significaba la dominación de
lo circundante, el establecimiento de un fuerte desde el cual desplegar el
poder punitivo, incluso la regularización del espacio, en la forma de la
implementación del damero. Los dibujos de Oski, y en particular el estalli-
do de frenesí de La primera fundación de Buenos Aires, están caracterizados
por su falta de orden y de concierto. Un episodio como este, en donde el
deseo de conquista se ve destrozado por la organización de los indígenas,
se encuentra en sintonía con el compromiso ideológico de Birri y Ferrari,
férreos denunciadores de la dominación del Primer Mundo, especialmente
norteamericana. Birri había escrito que “no se trataba de hacer cine neor-
realista en la Argentina pero si de hacer entender […] hasta qué punto es
necesario que el arte cinematográfico […] se afiance en la realidad de las
imágenes que caen bajo nuestros ojos, bajo nuestros objetivos, y hasta qué
punto ese realismo […] No puede dejar de ser la realidad de nuestra propia
región, de nuestra misma nación, de los temas y problemas que por ser
regionales son también nacionales”.42
La historia del corto, asimismo, se entrelaza con la historia de Ar-
gentina de una manera que hace inevitable pensar en la potencia política
de las imágenes, su pérdida y su recuperación. Luego de ser finalizado en
1959 el corto es exhibido en Buenos Aires, con gran éxito. Este éxito le vale
el Premio Nacional de las Artes, con lo cual la película adquiere notoriedad
y es muy exhibida, llegando a representar a Argentina en el Festival de
Cannes de ese mismo año. Las copias a color que existían quedan en muy
mal estado, quedando solo una copia en blanco y negro. La llegada de la
dictadura argentina de 1976-1983, la más sangrienta de nuestra historia,
envía a Birri y Ferrari al exilio, a la vez que un incendio en Laboratorios Alex
destruye los negativos de la película. Solo sobrevivía una copia, guardada
por la hermana de Birri. Cuando este retorna del exilio a principios de los
1980s recupera de la casa de ella los rollos 1, 2 y 4. En un principio el direc-
tor piensa que la película se ha perdido para siempre. Pero luego decide
visitar la casa de Ferrari, saqueada y destrozada por las fuerzas militares
mientras el pintor se encontraba exiliado. Allí, milagrosamente, encuentra
el rollo 3 en perfectas condiciones. Sin embargo, tuvieron que pasar quince
años más hasta que se pudiese hacer una copia digital, la cual restauró el
color del filme original y es aquella a la que se puede acceder en YouTube.
Birri mencionó que, durante la dictadura militar, no solo desaparecieron
personas, sino también películas y libros.
En este texto hemos trazado una breve trayectoria de Oski para ilu- 42
BIRRI, Fernando; GIMÉNEZ,
minar algunas aristas originales del artista en relación a otros humoristas Manuel Horacio. La escuela
documental de Santa Fe: una
gráficos del período. Luego empleamos el concepto de cultura visual para experiencia-piloto contra el
analizar qué es lo que hace a los dibujos de Oski, a caballo entre la ilustra- subdesarrollo cinematográfico
ción y la historieta, una combinación tan original de elementos antiguos en Latinoamérica. Santa Fe:
Documento del Instituto de
y modernos, de inspiraciones provenientes de la historia del arte, del Cinematografía de la U.N.L.,
mundo de la publicidad y el folletín, de la historia contemporánea de la 1964, p. 19.

ArtCultura Uberlândia, v. 21, n. 39, p. 41-56, jul.-dez. 2019 55


historieta y el humor gráfico. Asimismo, nos preguntamos por la particular
modalidad narrativa de Oski, y esbozamos algunas características de su
universo gráfico: la narración en profundidad, la multiplicación de eventos,
los estilemas que son su marca. Finalmente, observamos de qué modo el
corto La primera fundación de Buenos Aires empalma, a través del montaje,
con la narratividad de Oski, y observamos, en sintonía con la idea de cul-
tura visual, la manera en que funciona como una crítica del colonialismo
español. Por último, la historia posterior del corto ilustra de qué modo las
imágenes cuentan con una sobrevida política.
La primera fundación de Buenos Aires es un mediometraje independien-
te, producto del esfuerzo colaborativo, una aplicación inusual y original
del principio del montaje con el objetivo de narrar una historia desplegada
en un eje espacial, un desglose de una de las imágenes más ricas de Oski y
un sutil comentario político acerca de los inicios de la dominación en La-
tinoamérica. En pocas palabras: una rara avis cuyos objetivos, desarrollo,
factura e inspiraciones demuestran la riqueza plurivalente de las imágenes.

Artigo recebido em 21 de março de 2019. Aprovado em 17 de abril de 2019.

56 ArtCultura Uberlândia, v. 21, n. 39, p. 41-56, jul.-dez. 2019


Quatro abordagens
do cotidiano nos
quadrinhos
contemporâneos
Cecil and Jordan in New York. Gabrielle Bell. 2009, fotografia (detalhe).

Greice Schneider
Doutora em Comunicação pela Katholieke Universiteit Leuven (KUL), da Bélgica. Profes-
sora do Departamento de Comunicação e Programa de Pós-graduação em Comunicação da
Universidade Federal de Sergipe (UFS). Autora do livro What happens when nothing happens:
boredom and everyday life in contemporary comics. Leuven: Leuven University Press, 2016.
greices@gmail.com
Quatro abordagens do cotidiano nos quadrinhos contemporâneos1
Four everyday approaches in contemporary comics

Greice Schneider

resumo abstract
Este artigo discute a crescente presença This paper discusses the recent growing
do cotidiano em quadrinhos contem- presence of the everyday in comics, works
porâneos, em que situações comuns where ordinary situations and apparently
e eventos aparentemente insignifican- insignificant events take the place of ex-
tes tomam o lugar dos costumeiros traordinary worlds and adventure stories.
mundos extraordinários e histórias Drawing predominantly from the French
de aventura. Com base em uma pers- perspective of Everyday Studies (Lefebvre
pectiva francesa nessa área de estudos and Blanchot), the ambiguous dynamics
(Lefebvre e Blanchot), a dinâmica of the everyday will be here studied in
ambígua do cotidiano será investigada relation to the contrasting concepts of
em relação aos conceitos contrastantes boredom and strangeness. The aim is to
de tédio e estranheza, associadas aos separate comics that tackle the everyday
gêneros narrativos drama e humor. O into optimistic and pessimistic approa-
objetivo é compreender os quadrinhos ches. In this way, it is possible to identify
que abordam o cotidiano sob óticas the works that lament the ordinariness of
otimistas e pessimistas, identificando the everyday (derisive humour, ennui)
os trabalhos que lamentam a sua ordi- from those that turn the everyday into
nariedade (humor derrisório, ennui) e something invested with interest (con-
diferem daqueles que o convertem em templation and observational comedy).
algo dotado de interesse (contempla-
ção e comédia observacional).
palavras-chave: cotidiano; quadri- keywords: everyday; comics; boredom.
nhos; tédio.


Uma das características mais marcantes dos romances gráficos con-
temporâneos é um foco recorrente no tema do cotidiano. Por um lado,
vemos uma emergência de alternativas ao modelo de entretenimento dos
quadrinhos, rompendo com o mundo de eventos extraordinários habitado
por super-heróis. Por outro, temos uma tentativa de ocupar uma posição
nos campos da arte contemporânea e da literatura, ambos os quais já
abrangem o ordinário. Mas como exatamente os quadrinhos abordam o
1
Este artigo é uma versão adap- cotidiano? Trata-se de uma categoria tão inerentemente vaga, e pode ser
tada de um capítulo publicado tratada através de tantos ângulos, que se torna difícil proceder a qualquer
em inglês em SCHNEIDER,
Greice. What happens when análise sem antes reconhecer as fronteiras desse território, mesmo que tal
nothing happens: boredom and movimento arrisque, por um momento, perder de vista sua ambiguidade.
everyday life in contemporary
comics. Leuven: Leuven Uni-
Esse tipo de intangibilidade e ambiguidade do cotidiano torna-se
versity Press, 2016. particularmente evidente nos casos em que os próprios autores hesitam

58 ArtCultura Uberlândia, v. 21, n. 39, p. 57-69, jul.-dez. 2019


na descrição dos temas de seus livros. Na introdução à sua coleção de

D os s iê Quadri nhos & cu l t u ra v i su al : mo d o s d e ver e l er h i st óri as


contos, Little things: a memoir in slices, Jeffrey Brown faz uso de um alto
grau de relutância, silêncios e termos vagos em uma tentativa de esclarecer
o assunto de seu livro e diferenciá-lo de outras obras mais autobiográficas
sobre relacionamentos:

Eles são autobiográficos como os outros livros, mas não são apenas relacionamentos.
Bem, quero dizer, há algumas coisas sobre relacionamentos, mas isso não é o foco.
[...] Eu acho que é uma coleção de histórias sobre ...bem ... É sobre como as coisas se
interconectam na vida, você sabe, como essas coisas diferentes significam algo para
nós? […] Como as coisas do dia a dia são o que nós, hum… como achamos sentido em
nossas vidas em… uh… como esses pequenos momentos… hum… uh… (silêncio).2

Ao invés de eleger uma dentre as várias definições possíveis de


cotidiano, o presente artigo acolhe a indefinição e a dinâmica pendular e 2
BROWN, Jeffrey. Little thin-
ambígua do conceito, a fim de propor quatro abordagens possíveis para o gs: a memoir in slices. Nova
cotidiano que são tendências nos quadrinhos contemporâneos. York: Touchstone, 2008, p. 1e
2 [“They’re autobiographical
like the other books, but they’re
Entendendo o cotidiano not just about relationships.
Well, I mean, there’s some stuff
about relationships, but that’s
O cotidiano é um conceito tão escorregadio e naturalmente ambíguo not the focus. […] I guess it’s
que não deixa outra escolha a não ser nos render à imprecisão e à contra- a collection of stories about…
well… It’s about how things
dição no próprio âmago de sua definição. Lefebvre adota uma abordagem interconnect in life, you know,
negativa quando o define como “aquilo que resta”.3 Essa propriedade how these different things
residual não implica, como diria mais tarde Guy Debord, que o que resta mean something to us? […]
How everyday stuff is what we,
não é nada.4 Pelo contrário, o cotidiano está de alguma forma incluído um…how we find meaning in
nessas especificidades pela mesma razão que tem uma profunda relação our lives in… uh… how these
little moments…um…uh…
com todas as atividades e as engloba com todas as suas diferenças e seus (silence)”.]
conflitos.5 Segundo Maurice Blanchot, o cotidiano é vazio de acontecimen- 3
LEFEBVRE, Henri. Critique de
tos6 (“nada acontece, isso é o dia-a-dia”), negligenciado, insignificante, la vie quotidienne I: introduction.
composto daquilo que não percebemos. Este conceito fugidio naturalmente Paris: L’Arche Éditeur, 1958,
p. 108.
resiste a tentativas de sistematização – ele enfraquece, por sua própria
natureza autoevidente e imediata, o difícil esforço de transformar aquilo
4
Ver KNABB, Ken. Situationist
International anthology. Berke-
que é comum em assunto.7 ley: Bureau of Public Secrets,
No entanto, há algo muito especial na dialética que envolve o conceito 1981.
do cotidiano e a dinâmica entre o ordinário e o especial, o tédio e a estra- 5
Ver LEFEBVRE, Henri, op.
cit., p. 108.
nheza. Essa contradição é essencial para Blanchot, para quem “o cotidiano
é platitude [...], mas essa banalidade é também o que é mais importante 6
Ver BLANCHOT, Maurice.
L’entretien infini. Paris: Galli-
se nos remeter à existência em sua própria espontaneidade e como ela mard, 1969, p. 360.
é vivida”.8 Sua ideia de ambiguidade como uma categoria essencial do 7
Idem.
cotidiano é altamente inspirada por Lefebvre, que vê o cotidiano como “o 8
Idem, ibidem, p. 357.
tempo e o lugar onde o humano ou se preenche ou falha”.9 Com um forte
9
LEFEBVRE, Henri. Critique of
tom marxista, a Crítica de vida cotidiana de Lefebvre enfatiza o “duplo pri- everyday life: foundations for
vilégio do cotidiano como o lugar da alienação – é apenas no nível da vida a sociology of everyday. Lon-
cotidiana que podemos registrá-lo – e o lugar de sua potencial revogação”.10 dres: Verso, 1991, p. 19.

Em outras palavras, um sentimento de satisfação só pode ser alcançado 10


SHERINGHAM, Micha-
el. Everyday life: theories and
tornando-se autoconsciente da própria alienação. practices from surrealism to
Da mesma forma, Ben Highmore usa o detetive Sherlock Holmes the present. Oxford: Oxford
University Press, 2006, p.136.
para ilustrar e resumir a dinâmica ambivalente do cotidiano.11 Por um
lado, Holmes está “frequentemente entediado” e “repelido pelo cotidia- 11
Ve r H I G H M O R E , B e n .
Everyday life and cultural theory:
no”. Para ele, o mundo da rotina está associado ao monótono (do qual ele an introduction. Londres: Rou-
só encontra alívio na cocaína). Por outro lado, Holmes tem essa notável tledge, 2002, p. 2 e 3.

ArtCultura Uberlândia, v. 21, n. 39, p. 57-69, jul.-dez. 2019 59


12
BLANCHOT, Maurice, op. capacidade de transformar detalhes banais em pistas, evidências e informa-
cit., p. 361. No original: “in to
which we slide in the leveling ções significativas. Com a ajuda da observação e do pensamento racional,
out of a steady slack time, fee- Holmes domestica o mistério, trazendo casos aparentemente estranhos e
ling ourselves forever sucked
inacreditáveis ​​de volta ao mundo familiar.
in, yet feeling at the same time
that we have already lost it and A figura de Sherlock Holmes é usada por Highmore para combinar
are henceforth in capable of de- em oposição inerente as duas principais forças da vida cotidiana, a saber,
ciding whether there is a lack of
the everyday or too muchof it”. o tédio e a estranheza. A relação entre a monotonia cotidiana, a apatia e
13
HIGHMORE, Ben, op. cit.,
um modo subjetivo de vivenciar o tempo foi identificada por Blanchot,
p. 3. que descreve o tédio como a apreensão insensível do cotidiano “no qual
14
Idem, ibidem, p. 16. deslizamos no nivelamento de um tempo lânguido constante, nos sen-
15
BLANCHOT, Maurice, op.
tindo eternamente absorvidos, e, no entanto, sentindo, ao mesmo tempo
cit., p. 357. que já o perdemos, e incapazes de decidir se há uma falta ou excesso de
16
SONTAG, Susan. On pho- cotidiano”.12
tography. Nova York: Rosetta Por outro lado, o cotidiano é também “o lar do bizarro e do miste-
Books, 1973, p. 33.
rioso”13, o lugar onde o excepcional e maravilhoso residem. A estranheza
17
Idem. envolve a capacidade de desnaturalização e contraponto do cotidiano, um
modo de “alternar” objetos, reminiscentes do projeto surrealista de tornar
o familiar desconhecido.14 Blanchot também identifica a estranheza como
uma das forças do cotidiano evasivo: “o familiar se mostrando (mas já se
dispersando) disfarçado de surpreendente”.15 O cotidiano é cíclico. Um
movimento transforma o que parece novo, estranho e imprevisível em algo
reconhecível, tradicional e confortavelmente familiar. O outro movimento
vai na direção oposta, como uma tentativa de resistir ao tédio, procurando
o mesmo novo, estranho e imprevisível dentro do comum. Susan Sontag
descreve a mesma relação de interdependência no trabalho do fotógrafo
e sua tentativa de combater o tédio “colonizando novas experiências ou
encontrando novas maneiras de olhar para assuntos familiares”.16 Essa
dinâmica oscilante poderia ser aplicada a muitos trabalhos que abordam
o cotidiano, em que o tédio é apenas “o lado inverso do fascínio” - “am-
bos dependem de estar fora e não de dentro de uma situação e um leva
ao outro”.17
Nos quadrinhos, essa ambivalência da vida cotidiana é reconhecida
em uma ampla gama de contextos. A dinâmica oscilatória que orquestra o
tédio e o interesse, o maravilhoso e o ordinário, como forças complemen-
tares em vez de forças incompatíveis, obviamente se refletirá nas formas
como ela é refletida nos produtos culturais. A fim de compreender o uso da
vida cotidiana nos quadrinhos, é possível atravessar esse dualismo entre o
tédio e a estranheza com a velha distinção de gênero narrativo entre o leve
e o pesado, o sério e o engraçado: humor e drama, essas duas grande “fa-
mílias de emoções”. A combinação cria uma grade de categorias que pode
ser útil não como uma classificação estrita, mas como um grupo dinâmico
de atitudes não extensivas, não excludentes e muitas vezes sobrepostas
em relação ao cotidiano.
No eixo horizontal, encontramos um continuum que mede a gravi-
dade, classificando as duas principais famílias de gêneros, da leveza da
comédia ao peso do drama, da trivialidade à seriedade. No eixo vertical,
se medem aspectos positivos e negativos do cotidiano, como atenção e
distração, extraordinário e comum, interesse e tédio. O cruzamento de
ambos os eixos resultará em quatro categorias distintas que podem ajudar
a reconhecer tendências no modo como o cotidiano aparece nas histórias.

60 ArtCultura Uberlândia, v. 21, n. 39, p. 57-69, jul.-dez. 2019


D os s iê Quadri nhos & cu l t u ra v i su al : mo d o s d e ver e l er h i st óri as
Figura 1. Quatro abordagens do cotidiano.18

Humor observacional

A primeira categoria que emerge do cruzamento desses dois eixos


pode ser chamada de “humor observacional”19, que combina humor com
uma abordagem positiva do cotidiano e destaca as características ‘extra-
ordinárias’, estranhas e insólitas de objetos e eventos mundanos. Escolher
um objeto comum como algo digno de nota já é uma maneira de inflar a
importância do trivial. Nos quadrinhos, essa escolha é refletida através de
desenhos criados manualmente (em oposição à fotografia ou ao cinema,
em que as imagens são capturadas), reduzindo a influência do acaso tão
importante para o próprio conceito de ordinariedade. Carregado com
esse nível de controle sobre a inclusão ou omissão de detalhes e objetos,
o gesto do autor de quadrinhos de destacar o que geralmente é ignorado
dificilmente é inocente.
Essa abordagem positiva do cotidiano se adapta às restrições tem-
porais e espaciais do diário em quadrinhos, considerado “um dos gêneros
de miniquadrinhos (minicomics) mais comuns para cartunistas aspirantes
e estabelecidos”.20 Este tipo de humor observacional é frequentemente
encontrado em anedotas compostas em formatos tão prosaicos como
cadernos de esboços, diários de viagem e tiras curtas. Esses exercícios
diários de desenhar objetos e situações normalmente invisíveis exigem
uma mudança de atenção muito específica. Em vez de investir em slogans
e frases de efeito, esse tipo de humor observacional é normalmente mais
aberto; depende mais de revelar incongruências e contradições no que é 18
SCHNEIDER, Greice, op.
cit., p. 64.
supostamente familiar.
19
Um gênero muito explora-
Um exemplo notável pode ser encontrado no trabalho de Lewis Tron-
do na comédia stand-up e em
dheim, que explora o lado engraçado de episódios triviais da vida cotidiana sitcoms, como por exemplo,
em uma série intitulada Les petits riens, que traz não apenas um título já “um programa sobre o nada”
de Seinfeld.
sugestivo, mas também o slogan “un livre avec beaucoup de pasgrand-
20
CATES, Isaac. The diary
-choose” [um livro com muito de nada de mais]. Trondheim emprega o
comic. In: CHANEY, Michael
humor observacional para explorar o lado curioso do trivial, fornecendo A. (org.). Graphic subjects: cri-
comentários irônicos sobre objetos tradicionalmente negligenciados. tical essays on autobiography
and graphic novels. Madison:
Trondheim usa a auto-representação como um veículo de empatia para University of Wiscosin Press,
comentar sobre seu entorno, frequentemente destacando aspectos triviais 2011, p. 210.

ArtCultura Uberlândia, v. 21, n. 39, p. 57-69, jul.-dez. 2019 61


21
KOCHALKA, James. Ame- da vida urbana, como padrões de calçadas, caixas eletrônicos, meios de
rican Elf: the collected sketch-
book diaries of James Kochalka. transporte e objetos do mobiliário de quartos de hotel.
Marietta: Top Shelf, 2002. Do outro lado do Atlântico, James Kochalka, pioneiro no formato de
revistas em quadrinhos (a partir de 1998), concentra suas tiras curtas diá-
rias nos eventos menores “pequenas experiências” de sua vida cotidiana.
“Tantas coisas acontecem a cada dia. Muitas e muitas pequenas coisas.
Sobre qual deles devo desenhar?”.21 Na maioria das vezes, os critérios de
Kochalka se baseiam precisamente em escolher o que é dado como certo, o
“sem acontecimento, insignificante e negligenciado”, como afirma Blanchot:
a temperatura de seu cotovelo, o ângulo de seu guarda-chuva, o tamanho
de suas unhas, água manchas no teto, a falta de sabor na goma de mascar.
Trondheim e Kochalka compartilham esse encantamento com o co-
mum, resultando em uma interessante inversão das prioridades da atenção.
Por um lado, o que é geralmente imperceptível é levado à frente e ganha
relevância; inversamente, o que normalmente seria o centro da atenção é
deliberadamente negligenciado.
Outra maneira de revelar o extraordinário na vida cotidiana é através
de um mecanismo de descontextualização – esse jogo fascinante de des-
locamento de contextos estabilizados de uso, subvertendo as expectativas
normais do curso de leitura. Uma das maneiras pelas quais esse efeito pode
ser alcançado é através de uma improvável justaposição de elementos fa-
miliares, provocando uma disjunção surpreendente. Isso é frequentemente
encontrado em trabalhos marcados com toques surrealistas, como o conto
de Gabrielle Bell, “Cecil and Jordan, em Nova York”. A protagonista de
Bell, uma garota que está cansada de não ter nada para fazer e para onde
ir, decide se transformar em uma cadeira; em uma reviravolta notável, a
transformação em um objeto comum e sem importância do cotidiano é o
que acaba satisfazendo-a e fazendo-a finalmente se sentir útil.

Figura 2. “Cecil and Jordan in New York”. Gabrielle Bell. 2009.

Humor derrisório

Enquanto as incongruências reveladoras do cotidiano podem trans-


formar algo curioso em diversão temperada com humor, um movimento
distinto acontece na transformação de algo negativo, como o tédio, também
em algo digno de riso. A estratégia aqui envolve distância. O efeito cômico
é atingido desde que o leitor reconheça que o tédio está “no outro”, como

62 ArtCultura Uberlândia, v. 21, n. 39, p. 57-69, jul.-dez. 2019


Spacks nos lembra: “nos convidar a rir do tedioso nos assegura que a trivia- 22
SPACKS, Patricia. Boredom:

D os s iê Quadri nhos & cu l t u ra v i su al : mo d o s d e ver e l er h i st óri as


the literary history of a state
lidade e futilidade não tem nenhuma conexão imediata com nossas vidas”.22 of mind. Chicago: University
Essa separação é central para o tipo de humor que Farber classifica como of Chicago Press, 1995, p. 170.
“derrisório”, induzindo o leitor a negar a inferioridade em nós mesmos 23
Ver FARBER, Jerry. Toward
e atribuí-la a outra pessoa.23 Para funcionar, o humor derrisório requer a theoretical framework for the
study of humor in literature
uma forte conexão com o público e, portanto, um tipo de experiência de and the other arts. The Journal
comunidade com o leitor que concebe uma superioridade compartilhada. of Aesthetic Education, v. 41, n.
4, 2007, p. 77.
Embora o humor derrisório não necessariamente desperte o tédio
no leitor, sua propensão ao comentário social o torna um gênero eficaz Ver SABIN, Roger. Comics,
24

commix & graphic novels: a his-


para abordar o tédio de maneira temática. A combinação entre o uso do tory of comic art. Londres:
humor derrisório enquanto ferramenta para sátira e ironia e a emergência Phaidon Press, 2001.
da tematização do tédio na vida moderna é bastante frequente nas tirinhas
diárias. O uso do escárnio para acentuar a falta de sentido na vida é visto,
por exemplo, em La décheance du spermatozoide, uma série de tiras escritas
por Didier Kelvin e ilustradas por Jean-Pierre Duffour que explora a ro-
tina de um homem de meia-idade deprimido e divorciado em pequenos
aforismos sobre a banalidade, o vazio e a falta de esperança, com altas
doses de humor negro e ceticismo ácido. Acompanhamos o cotidiano do
protagonista entediado – deitado na cama, olhando pela janela, assistindo
à TV – tudo representado em um estilo altamente repetitivo.

Figura 3. La décheance du spermatozoide. Didier Kelvin e Jean-Pierre Duffour. 2000.

Esse tipo de humor tornou-se muito presente na cena americana de


quadrinhos dos anos 90, no que Sabin chama de “comédia alienada”, em
obras de artistas como Chester Brown (Yummy Fur), Peter Bagge (Hate)
e Dan Clowes (Eightball) – o triunvirato de comediantes alternativos em
quadrinhos.24 Supostamente, os protagonistas desses quadrinhos semi-au-
tobiográficos aparecem como veículos de identificação, transmitindo uma
atitude de “sabe-tudo” compartilhada com o público leitor, mas ao mesmo
tempo assumem uma posição autodepreciativa, estabelecendo uma conexão
como perdedores e deslocados. Normalmente, pouco acontece com esses
protagonistas, que funcionam mais como testemunhas, ridicularizando os
personagens e situações que os cercam.
Em geral, o tom desse humor derrisório é herdado de uma sensibili-
dade punk, em continuidade com o trabalho de autores underground dos
anos 70, como Crumb, Gary Panter, Matt Groening e Bill Griffith. Essa ten-
dência aos extremos é traduzida visualmente em uma estética do excesso:
caricaturas distorcidas, páginas densamente ocupadas e o uso ocasional de
um traço mais rudimentar e deliberadamente desleixado. Na década de 90,
essa mistura de niilismo e apatia adquire uma atitude cínica e resignada

ArtCultura Uberlândia, v. 21, n. 39, p. 57-69, jul.-dez. 2019 63


25
HANSON, Peter. The cinema que se tornou parte do estereótipo da Geração X – um tropo familiar na
of generation X: a critical study
of films and directors. Jefferson: cultura popular nos anos 90, definido por Hanson como “jovens educados
McFarland, 2002, p. 61. apartados da cultura popular e destituídos do mainstream americano”.25
26
Ver CLOWES, Daniel. Eight- Um personagem slacker típico dessa época é Buddy Bradley, do autor
ball #13, Seattle, Fantagraphics, Peter Bagge. Buddy aparece pela primeira vez em Neat Stuff (1985-1989)
1994
como membro de uma família de classe média suburbana e retorna mais
27
Idem. Eightball, Seattle, Fanta-
graphics, 1992.
tarde como o protagonista de Hate (1990-2011), que retratou a cena grunge
de Seattle dos anos 90. O personagem se tornou tão icônico como símbolo
28
Idem. No original: “Even two
hopeless dullards like those da geração à toa que até o próprio Daniel Clowes criou uma versão satíri-
guys could be fodder for a bo- ca de Buddy Bradley, usando os personagens de Hate para canalizar um
ffo yarn when filtered through
keen artistic sensibilities”.
discurso amargo e autoconsciente comparando vários movimentos da
juventude ao longo de gerações.26
O humor derrisório também pode ser encontrado em muitas edições
de Eightball, nos primeiros trabalhos de Daniel Clowes, que reproduz esse
tom irônico e satírico para discutir sua própria relação com a arte. Grist
for the Mill é um caso notável em que o “tedioso” aparece sarcasticamente
como um assunto de interesse autodeclarado. A história começa com o
narrador Clowes à procura de material para ficção, fazendo um pequeno
inventário de pessoas que podem constituir uma fonte de material artístico
para um «artista sensível» como ele próprio. Clowes zomba de uma certa
predileção pelas situações cotidianas comuns aos quadrinhos alternativos
daquele período; seu alter-ego deliberadamente ignora a oportunidade de
escrever sobre eventos extraordinários, como ataques terroristas, para focar
a atenção no desinteressante. Ele não é «um desses fãs de Hemingway que
acham que você tem que ser baleado ou atacado por um touro antes de
poder escrever uma boa história!».27 Pelo contrário, declara interesse por
pessoas mundanas e situações sem sentido: “Mesmo dois broncos invete-
rados como esses caras poderiam ser material para um conto de sucesso
quando filtrados através de sensibilidades artísticas afiadas”.28

Ennui

Investido da gravidade própria ao gênero dramático, o tédio assume


sua forma romântica melancólica, uma nostalgia pelo passado e uma luta
contra a perda de sentido (ou, em termos propostos por Walter Benjamin,
uma valorização de Erfahrung sobre Erlebnis). O ceticismo aqui também
desempenha um papel, mas, em vez de cinismo cínico e corrosivo, o que
encontramos é um tipo de mal-estar mais profundo e menos trivial: um
cultivo autoconsciente da depressão, resultante da grande divisão entre
a busca da felicidade e a incapacidade de conquista-la. Dependendo do
contexto histórico, essa disposição pode ter aparecido sob os vários nomes
como ennui, existencialismo ou depressão. É nesse espaço que encontramos
histórias que se tornaram quase um cliché em quadrinhos alternativos dos
anos 90 e 2000, aqueles de “homens deprimidos que não fazem nada”.
Obras tão diversas como as de Chris Ware, Seth, Arne Bellstorf podem se
encaixar nessa abordagem melancólica do cotidiano. Aqui, os estados de
tristeza, solidão e alienação são principalmente destinados a serem levados
a sério (mesmo que às vezes acompanhados de uma piscadela irônica por
trás do discurso de auto-piedade).
Um bom exemplo aqui é o trabalho do canadense Seth, confessa-
damente interessado em objetos que são “comuns, ordinários, menos-
prezados” (vernacular drawings). Seth frequentemente adota um modo

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D os s iê Quadri nhos & cu l t u ra v i su al : mo d o s d e ver e l er h i st óri as
Figura 4. It’s a good life, if you don’t weaken. Seth. 1996.

autobiográfico de abordar o cotidiano, através de um discurso melancólico


que lembra a busca romântica pelo sentido individual. Considere a página
abaixo, de A vida é boa, se você não fraquejar. Nas duas primeiras tiras, ve-
mos o protagonista fumando um charuto, vagando pela cidade sem rumo
(deliberadamente identificado pela presença de um tipo de mobiliário
urbano normalmente ignorados). Essa falta de propósito reflete o estado
de deriva mental do protagonista, revelado em seu monólogo interior,
conforme mostrado nas legendas. Seth assume um discurso autodepre-
ciativo, constantemente admitindo “cair em algum tipo de depressão”.
Apesar de estar sozinho em suas andanças, Seth refere-se repetidamente
a uma segunda pessoa, um interlocutor hipotético: “Se você não gosta de
quem olha para o próprio umbigo, você não se importaria muito comi-
go”. Este reconhecimento do leitor também está presente visualmente;
na última tira, a perspectiva muda e, em vez de ver o protagonista (como

ArtCultura Uberlândia, v. 21, n. 39, p. 57-69, jul.-dez. 2019 65


nos painéis anteriores), o leitor é convidado a compartilhar o ponto de
vista do personagem em um caso de ocularização interna. Os últimos três
painéis são dedicados a um inventário de objetos comuns em uma vitrine
que o deixa triste – uma colher gordurosa, um boné de cerveja, um sinal
de peixe e batatas fritas esculpidas à mão, flores de plástico cobertas de
poeira – todas envolvendo sinais de acumulação de tempo. No entanto, a
intenção de seu inventário não é elogiar o cotidiano (como Kochalka) ou
ridicularizá-lo (como Clowes), mas sim lamentá-lo, com um pesar próprio
do luto e um anseio melancólico pelo passado: “Estou imerso no meu pas-
sado, chafurdando nele”.
Uma combinação de melancolia e nostalgia do cotidiano também está
no cerne de Souvenir d’une journée parfaite [Memórias de um dia perfeito],
da autora belga Dominique Goblet. Como Seth, Goblet usa autoficção para
confrontar uma atitude sentimental em relação a um passado irrecuperável.
A diferença aqui é que o luto de Goblet é motivado não por uma perda
existencial de significado causada pela modernização, mas pela experiên-
cia da perda pessoal da morte de seu pai. Goblet estabelece um paralelo
interessante entre artefatos antigos e sua história familiar íntima. Este
paralelo fica claro a partir dos primeiros requadros do livro, onde a nar-
radora descreve suas corridas diárias para o mercado de pulgas no centro
da cidade de Bruxelas, que desempenha o papel duplo de armazenamento
de objetos antigos descartados e do local onde seu falecido pai trabalhava.
O que é mais notável nesta passagem é uma incongruência entre o
que é dito e o que é mostrado – explorando de maneira rica o potencial
próprio na narrativa de quadrinhos de criar tensão entre verbal e visual.
Há um intrigante descompasso entre o lugar identificado nas legendas – o
mercado de pulgas onde seu pai trabalhava – e o cemitério onde ele foi
enterrado, local que vai sendo revelado aos poucos nos quatro requadros
que compõem as duas primeiras páginas. Essa disjunção inicial na verda-
de obriga o leitor a rastrear semelhanças entre os dois lugares. No texto,
Goblet fala de um lugar de objetos descartados, restos de vidas que não
estão mais sendo vividas. A protagonista está se referindo ao mercado de
pulgas, onde encontramos “móveis, discos, livros” com os quais as pessoas
não se importam mais, mas a descrição poderia muito bem se ocupar dos
remanescentes dos mortos.
Essa operação metonímica entre objetos cotidianos e a atenção de-
dicada à materialidade continua ao longo do livro. No cemitério, como no
mercado de pulgas, Goblet age como uma catadora – em busca do nome
de seu pai, perdido entre uma miríade de nomes anônimos. Mais tarde, a
autora aborda a desgaste emocional de organizar os pertences de um ente
querido – roupas e óculos – depois que ele se foi. Manter esses pertences
diários por um tempo faz parte de um período necessário de luto, conclui
Goblet: “Il nous faut attendre (sansqu´on sache quoi)” [“Temos que esperar
(ninguém sabe o que)”].
Essa abordagem emocional do cotidiano é refletida no modo como
Goblet lida com elementos formais, desafiando constantemente as conven-
ções de quadrinhos. A escolha de materiais e seu traço gráfico proeminente
também demarcam a passagem do tempo: enquanto o lápis cinza mono-
cromático permite a acumulação de múltiplas camadas, o papel amarelado
indica um processo de deterioração e envelhecimento. Esse caráter “usado”
é reforçado por uma qualidade inacabada nos desenhos, caligrafia rabisca-
da (às vezes até ilegível), mudanças de estilo e uma colagem de materiais.

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D os s iê Quadri nhos & cu l t u ra v i su al : mo d o s d e ver e l er h i st óri as
Figura 5. Souvenir d’une journée parfaite. Dominique Goblet. 2002.

Contemplação

Embora tanto o tédio quanto a contemplação abordem com o cotidia-


no, eles correspondem a abordagens muito diferentes. Enquanto o “tédio”
assume uma conotação negativa – como falta ou ausência – a contemplação
é considerada um tipo de realização, o ato de transformar a vida cotidiana
em algo especial. O desapego, a indiferença e a distração dão lugar ao enga-
jamento, curiosidade e atenção. Ambos se manifestam fisicamente, por falta
de movimento, mas enquanto no tédio é interpretado como uma angústia e
desânimo passivo, na contemplação, essa quietude sinaliza um olhar ativo,
um estado de sintonização interna e atenção focalizada. Do latim templum,
a “contemplação” também está associada à meditação introspectiva, uma
experiência mística que é um conceito-chave no cristianismo e no budismo.
Uma vez que a contemplação está diretamente ligada ao ato de olhar
– uma maneira de encarar algo incessantemente – a descrição visual se tor-
na um processo dominante nesse tipo de história. O leitor geralmente tem
acesso a um personagem principal (aquele que contempla), bem como ao
objeto de contemplação – que também se torna o objeto da contemplação
do leitor em dois níveis; nós não apenas compartilhamos uma visão com
um personagem, mas também contemplamos os elementos estéticos do
próprio desenho. Além disso, devido ao predomínio da descrição sobre
a narração, o estilo visual costuma ganhar muito mais relevância e torna-
-se um dos principais elementos desse tipo de história, exigindo do leitor
tempo para apreciá-lo. Isso ocorre com frequência nos trabalhos de Jon
McNaught e Fabrice Neaud e em muitas histórias sobre viagens, como
Le voyage, de Edmond Baudoin, ou Carnet de Voyage, de Craig Thompson.
Se aplicada ao cenário urbano, essa atitude de olhar para o ambiente
com uma espécie de admiração pode assemelhar-se à figura urbana tipica-
mente moderna do flâneur, um observador imparcial mas curioso, um “pin-

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29
BAUDELAIRE, Charles. The tor do momento passageiro”.29 Esse conceito influente, popularizado por
painter of modern life and other
essays. New York: Phaidon Baudelaire, combina duas práticas: primeiro, a curiosa atitude de observar
Press, 1995, p. 5. e contemplar; e segundo, o ato de caminhar, tão central nos estudos da vida
30
MCCLOUD, Scott. Understan- cotidiana, como evidenciado aqui pelo próprio termo flanêr, referindo-se à
ding comics. Nova York: Harper prática de perambular pela cidade para vivenciá-la. Em uma tentativa de
Collins, 1994, p.72.
evocar uma retórica de andar, Michel de Certeau compara andar e ler, como
31
Idem, ibidem, p. 79.
uma metáfora flexível, intercambiáveis: se caminhar é uma maneira de ler
32
TANIGUCHI, Jiro. O homem o ambiente urbano, então, ler também pode entendido como uma forma
que passeia. São Paulo: Devir,
2017, p. 68. de perambular através de um sistema. Tal jogo de associações pode levar
33
Idem.
a desenvolvimentos muito interessantes quando as trajetórias de leitura e
caminhada se encontram. Um dos maiores exemplos aqui é o trabalho de
Jirô Taniguchi em O homem que passeia – sobre um homem que perambula
aleatoriamente, observando a natureza e o ambiente urbano. Seguindo o
mesmo caminho, o leitor lê / caminha o texto guiado pelo homem que anda
/ lê (e contempla) sua trajetória.
O flanêur também pode ser visto aqui como uma espécie de ferramen-
ta literária, combinando o narrador onisciente e o narrador em primeira
pessoa. Taniguchi nos oferece uma considerável variedade de pontos de
vista como um convite para explorar e compartilhar o olhar do personagem
principal, que é capaz de se surpreender e se interessar pelas coisas peque-
nas e simples da vida. Neste interessante jogo de focalização, ele muda o
ponto de vista várias vezes, resultando em várias combinações possíveis.
Em certos momentos, vemos tanto o personagem principal quanto o objeto
de seu olhar; outras vezes, vemos apenas o personagem principal olhando,
ou apenas o objeto de seu olhar. E de vez em quando podemos até ver
através de seus olhos (ou através de seus óculos quebrados).
Esse tipo de mudança é alcançado através do uso de uma transição
que Scott McCloud chama de “aspecto-a-aspecto”, que “ultrapassa o tempo
na maioria das vezes e define um olho errante em diferentes aspectos de
um lugar, ideia ou estado de espírito”.30 Mais comumente encontrada no
mangá japonês, esse tipo de transição é “mais frequentemente usado para
sugerir uma atmosfera ou senso de lugar, o tempo parece ficar parado nes-
sas combinações contemplativas silenciosas”.31 Além disso, cada além dos
requadros apresentarem pontos de vista distintos, eles também possuem
dimensões diferentes (já que um requadro é planejado de acordo com os
objetos enquadrados), resultando em uma incrível variedade de tamanhos
de requadro e, consequentemente, uma incrível variedade de layouts de
página, encorajando o leitor a gastar tempo admirando cada pequeno as-
pecto de seus desenhos precisos e paisagens avassaladoras.
Como no caso do ennui, os balões de fala são quase ausentes nos
requadros, mas isso não implica necessariamente em silêncio. Pelo contrá-
rio, os sons – de pássaros, trens e vento – são essenciais para a experiência
temporal que o andarilho nos convida a compartilhar. Juntamente com os
detalhes do espaço, eles atrasam a virada das páginas e alongam o tempo
de leitura, reproduzindo a atmosfera vivida pelo próprio protagonista. É
no último episódio do livro que podemos encontrar um prazer confesso
dessa atitude contemplativa. O personagem decide seguir um rio, onde ele
encontra, por acaso, um velho pitoresco que “finge ser um pescador expe-
riente”, mas que “não espera que nenhum peixe morda”.32 Em seu breve
encontro – uma espécie de homenagem à lentidão – o homem diz: “Eu corri
o suficiente na minha vida, de modo que agora é hora de levar a vida fácil,
devagar ... É maravilhoso, não é?”.33 O livro termina com uma comparação

68 ArtCultura Uberlândia, v. 21, n. 39, p. 57-69, jul.-dez. 2019


entre o fluxo do tempo e o fluxo do rio: “o tempo passa lentamente como

D os s iê Quadri nhos & cu l t u ra v i su al : mo d o s d e ver e l er h i st óri as


o rio”, “um breve interlúdio na vida diária, onde nada é urgente”.34
É claro que essas quatro categorias – a saber, humor observacional,
humor derrisório, ennui e contemplação – não devem ser tomadas como
entidades separadas (as histórias podem ser situadas em mais de uma cate-
goria), nem devem ser considerados os únicos caminhos através dos quais
o cotidiano pode ser abordado. Além disso, a ideia de exaurir o assunto
em um catálogo de diferentes usos, pela própria ambiguidade que define
o cotidiano, é inalcançável. No entanto a construção de uma tipologia pode
auxiliar no entendimento das várias possibilidades na recente emergência
de quadrinhos que abordam o cotidiano.

Artigo recebido em 10 de fevereiro de 2019. Aprovado em 17 de maio de 2019.

34
Idem.

ArtCultura Uberlândia, v. 21, n. 39, p. 57-69, jul.-dez. 2019 69


outras mulheres,
outras condutas:
feminismos e humor gráfico nos
quadrinhos produzidos por mulheres
"Nu frontal". Chiquinha. 2013, fotografia (detalhe).

Maria da Conceição Francisca Pires


Doutora em História pela Universidade Federal Fluminense (UFF). Professora do De-
partamento de História e do Programa de Pós-graduação em Historia da Universidade
Federal do Estado do Rio de Janeiro (UniRio). Autora do livro Cultura e política entre fra-
dins, zeferinos, graunas e orelanas. São Paulo: Annablume, 2010. conceicao.pires@uol.com.br
Outras mulheres, outras condutas: feminismos e humor
gráfico nos quadrinhos produzidos por mulheres1
Other women, other behaviors: feminisms and graphic humor in comics produced by women

Maria da Conceição Francisca Pires

resumo abstract
O artigo chama a atenção para o hu- The article draws attention to the graphic
mor gráfico de mulheres cartunistas humor produced by women cartoonists
no Brasil, centrando o enfoque na in Brazil, focusing on the production of
produção da cartunista Fabiane Lan- cartoonist Fabiane Langona, who signs as
gona, que se assina como Chiquinha. Chiquinha. The aim is to discuss how her
O objetivo é discutir como seu trabalho work entails new nuances that suspend
comporta novas nuances que colocam categories and standards considered sta-
em suspensão categorias e normas ble and permanent, thus reinvigorating
consideradas estáveis e permanentes, the contemporary debate developed by
revigorando, desse modo, o debate feminist groups. This approach aims to
contemporâneo desenvolvido pelos explore the critical and subversive poten-
grupos feministas. Com tal aborda- tial of feminist-focused graphic humor,
gem pretende-se explorar o potencial marking the commitment to express
crítico e subversivo do humor gráfico a critique and problematization of the
com enfoque feminista, assinalando normative standards imposed on women,
o empenho em expressar uma crítica while highlighting the plural and complex
e problematização dos padrões nor- networks of power and their different
mativos impostos às mulheres, ao forms of manifestation.
mesmo tempo em que lança luz sobre
as plurais e complexas redes de poder
existentes e as suas distintas formas de
manifestação.
palavras-chave: humor gráfico; femi- keywords: graphic humor; feminism;
nismo; cultura. culture.


1
O artigo é parte da pesquisa
desenvolvida no Programa A história cultural do humor é um campo que se consolidou no âm-
de Pos-doctorado en Ciencias
Sociales de la Facultad de Cien-
bito dos estudos históricos a partir dos anos 1990 tendo como suporte as
cias Sociales da Universidad de questões abertas pela história cultural entendida, em linhas gerais, como
Buenos Aires (UBA). o analise das práticas e dos processos de constituição identitárias e de
2
Ver SALIBA, Elias Thomé. Tre- construção de sentidos do mundo social.2 Nesse campo de investigação,
ze obras para conhecer a histó-
ria cultural do humor. In: FA-
as “manifestações humorísticas” passaram a ser pensadas como operações
RIA, João Roberto (org.). Guia intelectuais que oferecem formas de apreensão e estruturação da sociedade
bibliográfico da FFLCH, São Pau- em que se insere, bem como um modo de acessarmos representações cultu-
lo, USP, 2016, v. 1. Disponível
em <https://www.fflch.usp.br/ rais de uma época, aspectos que despertam para os seus usos, apropriações
sites/fflch.usp.br/files/2017-11/ e, também, para os vetos sociais impostos.
Histo%CC%81ria%20cultu-
ral%20do%20humor.pdf >.
As pesquisas em torno desse tema apresentam dois aspectos impor-
Acesso em 10 mar. 2018. tantes: primeiro, a pluralidade das fontes empregadas, dando visibilidade

72 ArtCultura Uberlândia, v. 21, n. 39, p. 71-87, jul.-dez. 2019


a documentos variados e que adquirem um novo status no interior dos

D os s iê Quadri nhos & cu l t u ra v i su al : mo d o s d e ver e l er h i st óri as


trabalhos acadêmicos, não sendo mais compreendidos como próprios do
campo do efêmero ou das trivialidades. Esse aspecto foi ressaltado por Elias
Thomé Saliba3 ao referir-se aos estudos que utilizaram como fonte livros
de piadas, periódicos humorísticos, biografias de humoristas (conhecidos
e desconhecidos), coleções pessoais, acervos cinematográficos, manuais
de trotes, cadernos de anedotas, canções populares, roteiros de comédias.
Essa pluralidade de fontes, por sua vez, tornou a interdisciplinaridade
quase um imperativo para a história cultural do humor, bem como impôs
a necessidade de revisão dos grandes paradigmas teóricos, ampliando as
categorias conceituais empregadas para as análises empreendidas.
Em segundo lugar, através desses estudos e do exame minucioso
dessas fontes coloca-se em pauta o debate sobre como, em diferentes so-
ciedades, o humor contribuiu para forjar laços de sociabilidades, reforçar
relações de poder e dominação, atuar como instrumento de resistência
política e social, dar visibilidade a grupos sociais colocados à margem da
sociedade, fortalecer ou, ao contrário, minar padrões estéticos e de mora- 3
Idem.

lidade, dentre várias outras questões. 4


A título de ilustração, entre
muitos, podemos citar: SALI-
Ao examinar essa área de estudos e os diversos trabalhos existentes, BA, Elias. Thomé. Raízes do riso:
verifica-se um expressivo número de reflexões, por um lado, sobre os su- a representação humorística
portes empregados para veiculação desse tipo de produto4; e, por outro, o na história brasileira da belle
époque aos primeiros tempos do
interesse pela recuperação das histórias de vida dos intelectuais humoristas rádio. São Paulo: Companhia
– suas atuações e articulações políticas, redes de sociabilidades, biografias, das Letras, 2002; BURKART,
Mara. De Satiricón a Hum@: risa,
trajetórias etc.5 Em ambos os casos, destaca-se a mínima produção existente cultura y política en los años
sobre mulheres cartunistas e quadrinistas e, ainda mais especificamente, setenta. Buenos Aires: Miño y
aquelas cujos trabalhos colocam em pauta demandas feministas. Há um Dávila Editores, 2017; LEVIN,
F. Humor político en tiempos de
caminho extenso a ser feito no âmbito dos estudos sobre o humor gráfico represión: Clarín 1973-1983.
no que tange a colocar em relevo as produções de artistas mulheres e fe- Buenos Aires: Siglo XXI, 2013;
VAZQUES, Laura. El oficio de las
ministas. Em geral, encontramos uma reflexão voltada para a análise das viñetas: la industria de la histo-
representações sobre as mulheres em diferentes produtos culturais (televi- rieta argentina. Buenos Aires:
são, cinema, teatro, história da arte, quadrinhos), ou ainda os elementos de Paidos, 2010; CRESCÊNCIO,
Cintia L. Quem ri por último,
uma escrita “feminina” nesses produtos. Isso se dá a despeito do grande ri melhor: humor gráfico femi-
número de artistas e intelectuais mulheres que ocupam espaço expressivo nista (Cone Sul, 1975-1988).
Tese (Doutorado em História)
nesse campo artístico. – UFSC, Florianópolis, Brasil,
Atualmente no Brasil Alexandra Moraes, Aline Lemos, Cynthia Bo- 2016.
nacossa, Thaïs Gualberto, Sirlanney, Gabriela Masson, Fabiane Langona, 5
Ver, entre outros, SILVA, Mar-
dentre várias, são algumas quadrinistas/cartunistas que ocupam espaço cos. Rir das ditaduras: os dentes
de Henfil (ensaios sobre Fra-
significativo em jornais de grande circulação (como a Folha de S. Paulo), dim – 1971/1980). Tese (Livre-
sites (Uol) e revistas (Piauí, MAD, Cultura), além de atuarem de forma -docência em Metodologia)
independente disponibilizando grande parte de suas produções através – USP, São Paulo, 2000; PIRES,
Maria da Conceição Francisca.
das mídias sociais. Cultura e política entre fradins,
Tendo em vista a importância e a fecundidade desse campo de estu- zeferinos, graúnas e orelanas.
São Paulo: Annablume, 2010;
dos, apresento o interesse em refletir sobre o humor gráfico produzido por SILVA, Ciro Lins. “Morro, mas
mulheres no Brasil, no período contemporâneo, com o intuito de pontuar meu desenho fica” – Henfil: a arte
como esses produtos culturais expressam formas inovadoras de resistência de viver e desenhar-se para o
mundo. Dissertação (Mestrado
e atuação política, seja pelos meios que buscam para difundir sua arte (sites, em História) – Uneb, Salvador,
blogs, tumblrs e redes sociais), como pela forma empregada para compor 2017; GANDOLFO, Amadeo.
Copi: estética política de um
seus desenhos (recursos gráficos e linguísticos adotados), ou ainda pelos dibujante polimorfo (1955-
temas abordados. 1970). In: OVIEDO, Gerardo
Para realizar minha proposta, me debruçarei sobre os quadrinhos e BIAGINI, Hugo (orgs.). El
pensamiento alternativo en la Ar-
produzidos por Fabiane Langona, que assina como Chiquinha, disponi- gentina contemporánea. Buenos
bilizados no seu site Chiqsland e que posteriormente foram reunidos no Aires: Biblios, 2016.

ArtCultura Uberlândia, v. 21, n. 39, p. 71-87, jul.-dez. 2019 73


6
CHIQUINHA. Algumas mu- livro Algumas mulheres do mundo, publicado em 2014 pela editora Mórula.6
lheres do mundo. Rio de Janeiro:
Mórula, 2014. A questão central a ser desenvolvida é como seu trabalho revigora e dá
7
Idem apud RODRIGUES, Mar-
visibilidade a temas frequentes no debate contemporâneo desenvolvido
jorie. Na luta pelo aborto, será pelos grupos feministas.
que ela foi longe demais? Revis- Em várias entrevistas, Chiquinha deixa claro que não tem a intenção
ta AzMina. 5 jan, 2016. Dispo-
nível em <http://azmina.com. de representar nenhum tipo de movimento político específico ou de se
br/2016/01/na-luta-pelo-aborto- assumir engajada artisticamente, pois considera que esse tipo de víncu-
-sera-que-ela-foi-longe-demais/
>. Acesso em 4 jan. 2018.
lo pode significar amarras ao seu trabalho. Em suas palavras, ela optou
pela “liberdade de não seguir ninguém. As ideias tão soltas aí no mundo.
8
Idem, s./p.
Movimentos que se pretendem libertários e se demonstram opressores e
9
LANGONA, Fabiane. Uma
mulher cartunista? explique-
intolerantes me parecem contraditórios por demais. O inimigo é outro,
-se sobre isso. Lugar de mulher sempre foi”.7 Ainda que a autora refute um engajamento com qualquer
é onde ela quiser. São Paulo, tipo de movimento político, em diferentes momentos seu trabalho expressa
17 mar, 2015. Disponível em
<http://lugardemulher.com. um discurso articulado sobre o direito de decidir sobre o próprio corpo, as
br/uma-mulher-cartunista-ex- discriminações sexistas, registros sobre práticas e discursos que legitimam
plique-se-sobre-isso/ >. Acesso
em 4 jan. 2018.
as desigualdades entre homens e mulheres, a violência sexual, dentre vários
temas caros aos movimentos feministas.
10
Ver FOUCAULT, Michel.
Vigiar e punir: história da vio- Ainda segundo a artista, “Sou feminista mesmo antes de saber o que
lência nas prisões. Petrópolis: era. Abri meu espaço no facão, sozinhona”8; “ me é inadmissível a ideia
Vozes, 1977.
de, como mulher que sou, não me identificar e me ter como parte da luta
feminista, mesmo que não veja o feminismo como uma cartilha fechada que
devemos seguir de olhos vendados”.9 Não ambiciono defini-la, a contra-
gosto, como feminista ou enquadrá-la em algum tipo de feminismo, já que
são muitas as vertentes feministas. Tal intento me parece contraproducente.
Entretanto, compreendo que em seu trabalho o ideal de feminidade homo-
geneizante, historicamente construído – que Foucault em Vigiar e punir10
denomina “corpos dóceis” – é confrontado e questionado por personagens
cujos corpos são indisciplinados e que fogem do ideal estético contempo-
râneo para mulheres, expressando uma rebeldia potencial.
Ao abordar, através de personagens femininas, questões tão impor-
tantes para os diferentes feminismos, Chiquinha abre um espaço importante
em um campo artístico hegemonizado por vozes e olhares masculinos: o
humor gráfico. As mulheres são as protagonistas das histórias criadas por
Chiquinha e tanto seus corpos e aparências, em geral sempre caóticos, como
seus gostos, ações e práticas contrariam chaves tradicionais de disciplina-
mento dos comportamentos e corpos femininos, ao mesmo tempo em que
interpelam as naturalizações sociais e institucionais não só do feminino,
mas também do masculino.
Meu objetivo neste artigo é pontuar o que percebo como emancipador
na abordagem que esse tipo de produção humorística realiza – em geral de
forma bastante explicita e através da utilização do grotesco como recurso
linguístico – de questões relativas a normalização dos padrões estéticos e
comportamentais femininos. Quando utilizo o termo emancipação estou
me referindo ao exercício de sublevação tanto com relação aos padrões e
modelos sociais e morais instituídos, como a qualquer forma de sujeição
seja subjetiva, econômica e política. Assinalarei os estratagemas gráficos e
discursivos acionados pela cartunista para compor suas histórias e afirmar
suas proposições, sem que isso implique numa abordagem extensa dos
elementos signicos presentes em seus desenhos, ainda que seja impossível
desconsiderá-los.
Com a abordagem dos quadrinhos de Chiquinha, defendo a pre-
missa de que a incorporação de algumas pautas dos diversos feminismos

74 ArtCultura Uberlândia, v. 21, n. 39, p. 71-87, jul.-dez. 2019


aponta para possibilidades plurais de manifestação política e expressa a

D os s iê Quadri nhos & cu l t u ra v i su al : mo d o s d e ver e l er h i st óri as


ocupação de outros espaços políticos, para além dos espaços tradicionais
de discussão feminista e de prática política. Interessa-me, portanto, colocar
em evidência um humor gráfico produzido por mulheres como uma forma
inusual de expressão crítica dos padrões e modelos instituídos, assim como
dos sistemas de ordenamento políticos e sociais estabelecidos, constituindo
um humor subversivo e político. Compreendo que esse tipo de produção
gráfica contribui para o revigoramento do caráter libertário do riso, uma vez
que se distancia um humor derrisório11 que adquiriu espaço significativo
no período contemporâneo. Trata-se, portanto, de um produto cultural
que através do humor aciona ferramentas simbólicas para dar vazão a
subjetividades que se encontram em dissidência com relação aos padrões
e lugares socialmente normalizados.
Antes de abordar o trabalho de Chiquinha, farei uma breve digressão
sobre a presença do humor gráfico em periódicos feministas brasileiros dos
anos 1970 e 1980 e as transformações ocorridas no conteúdo da produção
humorística pós ditadura militar brasileira, especificamente nos anos 90,
assinalando a permanência, sobre um outro viés, da condição crítica e po-
lítica dos padrões hegemônicos vigentes. No primeiro caso, a abordagem
do humor gráfico em periódicos feministas, a intenção não é realizar um (a
meu ver impossível) trabalho arqueológico de identificação das “pioneiras”,
mesmo porque sempre houve mulheres no humor gráfico. Interessa-me
pontuar o momento em que se passou a refletir e procurar esse tipo de
produção específica – feminista e voltada para as questões feministas. A
segunda abordagem parece-me pertinente para assinalar uma renovação
que ocorre nos anos 90 e que se torna um marco de referência importante
para a geração de Chiquinha. Mas, reitero, a intenção precípua é fazer uma
breve contextualização que servirá de introito para a análise que realizarei
em seguida.
Finalmente, farei uma apresentação da cartunista, sua trajetória e
produção, e apresentarei as características que me chamam a atenção no
seu trabalho, tentando discutir as opções visuais e discursivas que a car-
tunista emprega para compor suas personagens. Ao examinar os cartuns/
quadrinhos de Chiquinha interessa-me pontuar não só as representações
criadas sobre as mulheres, mas os estratagemas habilitados pela cartunis-
ta – misturas, superposições, celebração do feio, afronta aos cânones da
beleza – para dialogar com os estereótipos existentes, pontuando a falência
dos mesmos.

Periódicos feministas e humor engajado

Os periódicos feministas que circularam durante a década de 1970/80


no Brasil, se mostraram locais privilegiados para a produção e difusão de
um humor gráfico produzido por mulheres e com um teor especificamente
feminista. Naquele contexto de terror de Estado e de ausência de liberdade
de expressão, tais publicações e, especialmente, os quadrinhos, charges,
cartuns e ilustrações que faziam parte do seu conteúdo, se integraram aos
confrontos simbólicos que se desenvolveram durante a ditadura militar
atuando como uma tática de luta e oposição. Ao mesmo tempo em que
contestaram os valores sociais, políticos e culturais existentes, repensaram 11
Ver SKINNER, Quentin.
Hobbes e a teoria clássica do riso.
as pautas políticas das esquerdas, gerando um abalo significativo em seu São Leopoldo: Editora da Uni-
interior ao introduzir questões relacionadas aos direitos das mulheres. sinos, 2002.

ArtCultura Uberlândia, v. 21, n. 39, p. 71-87, jul.-dez. 2019 75


12
Ver RAGO, Margareth. Epis- Outro aspecto relevante desses periódicos é que foram espaços
temologia feminista, gênero
e história. In: PEDRO, Joana culturais que buscaram construir uma epistemologia feminista12 para
Maria e GROSSI, Miriam Pillar refletir e debater não só os problemas sociais e políticos brasileiros, mas
(orgs.). Masculino, feminino,
as noções de “homem” e “mulher” e como estas se tornaram importantes
plural. Florianópolis: Mulheres,
1998. para definir os espaços ocupados na esfera pública e política. Nestes
13
Ver SOIHET, Rachel. Zomba- artefatos culturais – os jornais feministas – o humor gráfico foi empre-
ria como arma antifeminista: gado como estratégia simbólica para reverberar uma representação das
instrumento conservador entre
libertários.  Estudos Feministas,
mulheres e do mundo em que viviam, disputando com outras formas
v. 13, n. 3, Florianópolis, jan. de representação os espaços de poder existentes no campo da cultura e
2005, p. 591. da política. Dessa forma, nesses jornais o humor gráfico atuou como um
14
DELPHY, Christine. Feminis- gesto político, um caminho adotado pelas feministas para intervir no
mo e recomposição da esquer-
da. Estudos Feministas, v. 2, n. 3,
campo da cultura e, ao mesmo, para resignificar os seus papeis sociais,
Florianópolis, jan. 1994, p. 188. culturais e políticos.
15
Ver SARTI, Cyntia A. O Essa forma de atuação político-simbólica, que priorizava o humor
feminismo brasileiro desde os como ferramenta de linguagem, já vinha sendo empregada com bastante
anos 1970: revisitando uma
trajetória.  Estudos Feministas,
sucesso por periódicos como Pasquim (1969-1991), conquistando um espa-
v. 12, n. 2, Florianópolis, jan. ço significativo no interior da imprensa alternativa brasileira. Entretanto,
2004, p. 35. quando se voltava para abordagem dos temas relacionados às pautas
16
De acordo com Leite, foram feministas ou à produção de representações sobre as mulheres, grande
16 edições regulares e quatro
extras. Ver LEITE, Rosalina
parte do humor produzido no Pasquim – por Millor Fernandes, Jaguar,
Santa Cruz e TELES, Amelinha. Claudius, Henfil, dentre outros – assumia um caráter basicamente depre-
Da guerrilha à imprensa feminista: ciativo embora o feminismo se articulasse em torno dos temas e das lutas
a construção do feminismo pós-
-luta armada no Brasil (1975- da esquerda política.13
1980). São Paulo: Intermeios, A crítica ao feminismo não foi uma característica especifica dos pas-
2013.
quinianos. Ao contrário, foi no interior da esquerda “e mais exatamente
17
CRESCÊNCIO, Cintia L., op. na extrema esquerda” que o feminismo “encontrou ao mesmo tempo
cit., p. 41.
interlocutor privilegiado e principal inimigo”14 na medida em que, no
contexto repressivo e autoritário em que viviam, a pauta prioritária estava
relacionada a discussão sobre revolução de classe, evitando, desse modo,
outros debates que acreditavam levariam a uma fragmentação da luta po-
lítica. Assim, diante da ausência de respaldo entre os grupos de esquerda,
gradativamente o movimento feminista adquiriu uma dupla conotação
pejorativa dada tanto pela direita, que o percebia como um movimento
imoral e perigoso, como pela esquerda que o enquadrava como próprio
de um reformismo burguês.15
A “estreia” de um humor feminista na imprensa alternativa se deu,
embora de forma tímida, no jornal Brasil Mulher (1975-1980)16, cujo empe-
nho maior foi em promover a discussão sobre a anistia, em detrimento de
qualquer outro tema. Para Crescêncio, “a formação de base e a preocupação
com a luta de classes não permitia e não via validade ou função na explo-
ração do humor”17, e, segundo a autora, isso explica a exígua presença da
produção humorística no jornal. Também segundo essa autora, embora seja
possível encontrar algumas tiras no jornal Brasil Mulher, a abordagem séria
e densa das questões discutidas pelo feminismo e ainda não incorporadas
publicamente como um problema social (como aborto, sexualidade, pla-
nejamento familiar, dentre outros) foi priorizada como forma de disputar
espaço nas pautas das esquerdas. No total foram publicados 55 cartuns/
charges/quadrinhos no Brasil Mulher, a maioria produzido por homens e
não abordando temas pertinentes as pautas feministas.
Foi na segunda metade dos anos 1970 que a produção das mulheres
cartunistas se consolidou no interior da imprensa alternativa, através do
jornal Nós mulheres (1976-1978), o primeiro a lançar, em 1977, “uma coluna

76 ArtCultura Uberlândia, v. 21, n. 39, p. 71-87, jul.-dez. 2019


de humor com a promessa de dar visibilidade a trabalhos com perspectiva

D os s iê Quadri nhos & cu l t u ra v i su al : mo d o s d e ver e l er h i st óri as


feminista e cartunistas mulheres”18, que só circulou nos números 4, 5 e 6.
Nas oito edições desse jornal foram publicados 22 quadrinhos/charges/
cartuns, sendo 9 publicados por mulheres.19 Finalmente, o jornal Mulherio
(1981-1988) incorporou de forma mais aberta um humor gráfico voltado a
abordagem de questões especificas dos grupos feministas. Foram 38 edições
com 103 quadrinhos/charges/cartuns, dos quais 28 foram assinados por
mulheres.20 Com o propósito declarado de divulgar cartunistas mulheres,
o Mulherio publicou, na edição n. 30 de junho de 1987, uma matéria e en-
trevista com a cartunista Hilde Weber, abordando o papel das mulheres na
vida política brasileira e, mais especificamente, sua atuação como chargista
entre os anos de 1943-1950 nos periódicos Folha de S. Paulo, Noite Ilustrada,
O Cruzeiro e Manchete.
Embora tenham defendido compreensões distintas sobre as questões
prioritárias a serem pautadas, Brasil Mulher, Nós Mulheres e Mulherio apre-
sentaram em comum a utilização do humor gráfico como uma espécie de
recurso que colaborou para o reforço do contrato de leitura estabelecido
com as leitoras. Essa noção de contrato de leitura envolve a compreensão
dos recursos empregados no interior da imprensa para estabelecer um
nexo com o leitor: capas, contracapas, relação texto e imagens, modo de
classificar o material redigido, disposição das imagens etc.21 As intelectuais
humoristas que colaboraram nesses jornais buscaram colocar em relevo
um repertório22 distinto do predominante nas representações humorísticas 18
Idem, ibidem, p. 72.
que circulavam sobre as mulheres e do que se compreendia como parte do 19
Idem.
“universo feminino”. Em consonância com a chave norteadora da chamada
20
Idem.
“segunda onda feminista”23 – o pessoal é político24 – deram visibilidade a
subjetividades, corpos, afetos e formas de compreender o feminino antes
21
Ver BURKART, Mara, op. cit.

ausentes, fortalecendo a discussão e o imaginário sobre a emancipação 22


Ver ALONSO, Angela. Idéias
em movimento: a geração de 1870
política dos corpos e das subjetividades das mulheres. na crise do Brasil-Império. São
Os quadrinhos Bia Sabiá, criados pela cartunista Cecília Whitaker Paulo: Paz e Terra, 2002.
Vicente de Azevedo Alves, que se assinava como Ciça25, e publicados no 23
A divisão do feminismo em
Nós Mulheres entre 1976 e 1978, podem ser apresentados como exemplares ondas envolve uma extensa po-
lêmica no interior da produção
desse tipo de reflexão propugnada no humor gráfico feminista dos anos acadêmica. Para aprofundar
70. No total foram 4 quadrinhos de Ciça, publicados durante esses anos de esse debate, ver SARTI, Cyn-
thia A., op. cit.
1976-1978: o primeiro no número 1, em março de 1976; o segundo na edição
que circulou em setembro de 1976; o terceiro no número 4, publicado em Ver VARIKAS, Eleni. O pes-
24

soal é político: desventuras


abril de 1977 e o último no número 6, em agosto de 1977. de uma promessa subversiva.
À primeira vista, esse número pode parecer inexpressivo, mas ga- Tempo, v. 2, n. 3, Rio de Janeiro,
1996.
nha relevância se considerarmos que se tratou de 25% dos quadrinhos
publicados no jornal.26 Também se destaca o espaço ocupado no interior
25
Cecilia Whitaker Vicente de
Azevedo Alves Pinto é pau-
jornal: na primeira edição, os quadrinhos de Bia Sabiá acompanham o listana, cartunista, escritora
editorial de abertura, e é interessante assinalar que não aparecem como e jornalista. Colaborou nos
jornais Nós Mulheres, Mulherio,
mera ilustração do texto. Ela propõe uma reflexão em consonância com Pasquim, Folha de S. Paulo, Jornal
o debate mais amplo que o movimento feminista vinha desenvolvendo do Brasil, além de outros jornais
sobre a politização da vida privada e que é pautada também no editorial. do exterior. Dentre seus per-
sonagens mais emblemáticos
Essa observação é importante porque insisto que não pensemos o humor destaca-se Bia Sabiá, publicado
gráfico como mera ilustração dos jornais, mas como uma forma imagé- no jornal Nós Mulheres entre
1976-1977, O Pato, publicado
tica de pautar e participar da discussão, empregando outros recursos na Folha de S. Paulo entre 1970
narrativos. Considerando os limites desse artigo não vou reproduzir por e 1985 e, posteriormente, no
completo o extenso editorial, mas é pertinente apresentar os quadrinhos Jornal do Brasil. Escreveu 22
livros infanto-juvenis. Em 2009
ao qual estou me referindo: lançou Pagando o pato pela
LP&M Pocket.

ArtCultura Uberlândia, v. 21, n. 39, p. 71-87, jul.-dez. 2019 77


Figura 1. Bia Sabiá. Ciça. 1976.

Um terceiro aspecto que denota a relevância dos quadrinhos de Bia


Sabiá é a temática sobre a qual ela se dedica. As práticas comportamentais,
sobretudo, mas não só, da classe média brasileira foram o foco central
para tratar temas como o machismo cotidiano e naturalizado, a divisão
sexual do trabalho – sobretudo o doméstico. Além de privilegiar o coti-
diano como local de encenação de suas histórias, é interessante também
que as personagens sejam representadas em forma de animais, bichinhos
inocentes, que reproduzem experienciam de forma rotineira, quase banal,
práticas cotidianas de opressão e de invisibilidade as quais as mulheres
são frequentemente submetidas.

Figura 2. Bia Sabiá. Ciça. 1976.

78 ArtCultura Uberlândia, v. 21, n. 39, p. 71-87, jul.-dez. 2019


Finalmente, o quarto ponto que singulariza a importância dos

D os s iê Quadri nhos & cu l t u ra v i su al : mo d o s d e ver e l er h i st óri as


quadrinhos de Bia Sabiá no interior do jornal é a forma como abordam
emoções, representações e outras dimensões subjetivas das práticas sociais
e individuais dos grupos envolvidos naquele tempo histórico, potencia-
lizando a crítica feminista ao refletir sobre a naturalização dos padrões e
estereótipos vigentes.
Novamente em virtude das limitações que envolvem um artigo,
optei por não reproduzir os demais quadrinhos de Bia Sabiá. O principal
aspecto que me interessa assinalar refere-se inserção do humor gráfico no
interior da produção feminista nos anos ‘70/80, apesar das inegáveis limi-
tações da época, como um recurso importante para motivar o imaginário
de suas leitoras e leitores ao vocalizar e encenar de forma inabitual e que,
até aquele momento, parecia não ter maior significação, ou seja, através de
quadrinhos e do humor, a realidade vivida e um conjunto de experiências
partilhadas por mulheres.
O aspecto crucial que envolve o humor gráfico feminista é a autor-
reflexão empregada como uma estratégia textual para proporcionar um
efeito de distanciamento e de desfamilizarização com a realidade vivida,
gerando condições para que este humor transcendesse o senso comum e
adquirisse um caráter político. Por outro lado, o caráter auto reflexivo atuou
como um exercício regenerador na medida em que vinha acompanhado
também da dessacralização e da exorcização do medo.

Os anos 90 e os undergrounds comix brasileiros

Enquanto nas décadas de 1970 e 1980 o humor político, que se au- 26


Ver CRESCÊNCIO, Cintia L.
todenominava independente, foi fundamental para expor os problemas Bia Sabiá em “o pessoal é polí-
vividos sob a pressão da ditadura, bem como para propor estratégias de tico”: (re)invenção do político
no humor gráfico feminista
mobilização por parte de seus leitores e leitoras, em fins dos anos 80, espe- de Ciça (Nós Mulheres, 1976-
cificamente no limiar dos anos 90, ascendeu uma outra forma de pensar e 1978). Fronteiras: Revista de
História, v. 20, n. 35, Dourados,
de fazer humor gráfico, evidentemente embalado pelos novos temas que
jan.-jun, 2018.
emergem entre a sociedade brasileira quando a pressão política começou 27
Conforme Dantas, “o un-
a arrefecer e pela influência dos undergrounds comix.27 derground teve seu ápice na
Uma característica importante desse tipo de produção é a abordagem figura do norte-americano
Robert Crumb. Fortemente
de temas polêmicos, como drogas e sexo, bem como a exposição de um
influenciado pela geração Beat
certo desprezo aos padrões morais e éticos. Tais elementos caminhavam e movimento flower power, ele
ao lado do empenho em manter a liberdade e autonomia criativas, que se foi o criador de personagens
transgressoras e amorais e
buscava garantir através da não vinculação com as grandes editoras o que, de mulheres grosseiramente
por sua vez, implicou em um pequeno número de impressão e a distribuição esculturais e libertinas, como a
negra Angelfood Macspade e a
através de esquemas alternativos e pessoais.
Devil Girl”. DANTAS, Daiani.
Segundo Lima, os undergrounds comix representam “uma estratégia Não sei se caso ou se compro
de afirmação e legitimação das práticas culturais dos participantes de um uma vodka: a mulher no qua-
drinho underground brasileiro
determinado grupo”.28 Em suas palavras, dos anos 80. Anais VII Asociación
Latinoamericana de Investigadores
de la Comunicación, La Plata,
Os indivíduos que se inserem dentro deste cenário optam por não apenas se
Alaic, 2004.
valerem do aparato estético, mas também acabam levando para seu cotidiano as 28
LIMA, Jefferson. Bob Cuspe: a
relações, e ideologias, características dos grupos de que fazem parte. Essa relação representação de Angeli do punk
“recorrente” se baseia na constante reafirmação de pertencimento, tanto para paulistano na revista Chiclete
com Banana (1985-1991). Disser-
com o grupo como para a sociedade que não está, necessariamente, familiariza-
tação (Mestrado em História)
da com os indivíduos undergrounds. Partir dessa visão exige uma análise que – Udesc, Florianópolis, 2013,
abandona a perspectiva de entendê-los como uma subcultura posicionada em p. 66.

relação à cultura hegemônica.29 29


Idem.

ArtCultura Uberlândia, v. 21, n. 39, p. 71-87, jul.-dez. 2019 79


30
Estou me referindo especifi- A primeira sinalização dessa mudança se verifica no formato adotado
camente a Mariza Costa Dias
(Mariza) e Maria Cláudia Fran- – os quadrinhos se sobrepondo as charges. Em segundo lugar entrou em
ça Nogueira (Crau). Mariza crise a ideia de crítica política especifica dos anos 70, levando a geração
trabalhou em jornais de grande
que estava ganhando espaço na mídia naquele contexto específico a re-
circulação como O Pasquim, na
década de 70, e, posteriormen- pensar o seu trabalho e a substituir o teor exclusivamente político por um
te, na Folha de S. Paulo onde conteúdo voltado para o comportamental, algo que foi caracterizado por
permaneceu por 15 anos. Os
primeiros trabalhos de Crau alguns cartunistas mais antigos e consolidados, como Henfil, por exemplo,
foram publicados na revista O como “apolítico”. Como dito anteriormente, os “costumes” eram o foco dos
Bicho, onde também era redato-
quadrinhos/cartuns/charges publicados nos jornais feministas dos 70/80,
ra. Em 1997 ganhou o 3º lugar
no Mapa Cultural Paulista, com mas uma característica que singulariza o humor gráfico dos 90 é o niilismo
a história em quadrinhos “Um e a melancolia dos personagens e das histórias.
casal (des)prevenido vale por
3”. Na mesma época ideali- A revista Chiclete com Banana, criada por Angeli em 1985 e publicada
zou  A Periquita, cuja proposta pela Circo Editorial de Toninho Mendes, se tornou um referencial dos
era ser uma revista de humor
quadrinhos underground dos anos 90, mas não identificamos cartunistas
gráfico produzido exclusiva-
mente por mulheres. Entre- mulheres entre seus colaboradores. Também não encontramos nos ma-
tanto a revista só conseguiu nuais, enciclopédias e coletâneas referências que identifiquem mulheres
ser publicada em 2013. Dispo-
nível em <http://ladyscomix. cartunistas como partícipes dos quadrinhos underground, embora nos
com.br/elc/portfolio/crau-da- anos 80 e 90 seja possível encontrar cartunistas mulheres nas redações
-ilha/; http://ladyscomix.com.
dos grandes jornais produzindo quadrinhos que tematizavam as questões
br/quanta/?portfolio=mariza-
-dias-costa >. Acesso em 28 políticas nacionais.30
ago. 2018. Mais que uma revista de história em quadrinhos, a Chiclete com
31
CHIQUINHA apud SPACA, Banana se converteu em um meio de veicular não só ideias, mas também
Rafael. Gosto de causar um
desconforto. Bravo, São Paulo,
os incômodos da época. É notório que esse humor gráfico adquire maior
17 ago, 2017. Disponível em repercussão entre os mais jovens, como Chiquinha, que cresceram em um
<https://medium.com/revista- contexto de desarticulação política e que desejavam formas de expressão
-bravo/gosto-de-causar-um-
-desconforto-abb82d6180c7>. que ratificassem sua integração à vida pública de forma mais autoral, sem
Acesso em 4 jan. 2018. vínculos taxativos com os modos precedentes. Em diferentes entrevistas,
32
Ver ALVIM, Davis. Foucault e Chiquinha destaca a influência dos cartunistas dessa geração sobre seu
Deleuze: deserções, micropolíticas, trabalho:
resistências. Tese (Doutorado
em Filosofia) – PUC-SP, São
Paulo, 2011. Além de ter conhecido muito cedo o trabalho do Angeli, me identificava muito com
o jeito que ele inseria música nos quadrinhos, aquilo me pegou – imediatamente
se tornou muso inspirador com direito a altarzinho e tudo o mais. Era aficionada
pela MAD. Comprava em sebo tudo que achava da época da Vecchi e ainda peguei
uma boa fase da Record no começo dos anos 2000 vendendo em banca. Com o Ota,
entendi que podia escrever muito e que podia apenas desenhar feio e sem medo. Essa
constatação me transtornou e me trouxe muito alívio. Amava o Don Martin e o
Aragonés. Odiava o Dave Berg. Depois, conheci o trabalho do Adão na Dumdum,
o do Allan… Wolinski, Crumb. Atualmente vivo sem heróis, abandonei isso.31

Embora considere que o conteúdo desse tipo de produção não apre-


sente a intenção de expressar uma “consciência política” ou de se alinhar a
um padrão de resistência política tal qual os quadrinhos políticos da década
de 70 no Brasil, acho que é possível também vê-los como contracondutas,
ou seja, expressam formas de resistência e uma postura problematizadora
do sistema político, econômico e cultural hegemônicos que, a despeito de
se apresentarem como críticas, não se orientaram por uma lógica dialética
e não tinham o objetivo de instituir um novo modelo político, econômico
ou social.32
A produção humorística de Chiquinha faz parte de outra tempora-
lidade e contexto político, mas ainda assim é possível identificar algumas
proximidades importantes com a produção humorística dos anos 90 e com

80 ArtCultura Uberlândia, v. 21, n. 39, p. 71-87, jul.-dez. 2019


a forma de abordagem realizada pelas cartunistas nos periódicos feminis-

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tas. Nesse último caso, o principal ponto de interseção é a preocupação
em superar os preconceitos e expectativas de gênero, identificados em seus
desenhos como um dos principais pontos da opressão feminina.
Para fins da análise proposta, tomarei como exemplo cartuns pontuais
nos quais ela assume a condição de autora-personagem cujas práticas, com-
portamentos e ações infringem padrões e modelos usualmente impostos
às mulheres. Interessa-me destacar como o seu interesse (“quebrar expec-
tativas de todos os lados que viessem. Pra bater nesses padrões, mostrá-los
ridículos. Imprimir clichês que de tão arraigados e persecutórios só vemos
quando não estão refletidos diretamente no espelho”33) é uma forma de
se posicionar enfaticamente de forma contrária aos taxativos e binários
parâmetros estabelecidos às mulheres e reverberar demandas feministas.

O universo de Chiqsland

Adotar o apelido de infância Chiquinha como codinome foi a estra-


tégia que a gaúcha Fabiane Bento Alves Langona empregou para substituir
a sisudez do seu nome e sobrenomes e, ao mesmo tempo, contrapor com
suavidade os traços intensos de seus desenhos e o conteúdo de seus car-
tuns/quadrinhos, considerados obscenos por alguns críticos.34 Aliás, esse
é um aspecto constantemente destacado pela autora: o sexismo presente
nas críticas e comentários ao seu trabalho. No depoimento publicado no
site Lugar de mulher é onde ela quiser, ela conta que

Muitas vezes ouvi comentários de que eu seria um autor disfarçado, que adotara
um codinome para testar e expor uma nova linguagem sem grandes traumas. Ou 33
LANGONA, Fabiane, op. cit.
seja, com base em alguns temas que até então divergiam do que se esperava de uma 34
A partir de 2006, Fabiane
singela mocinha – como sexo, que na mentalidade de alguns é obsessão exclusiva adotou o pseudônimo de Chi-
qsland, o mesmo que dava
do sexo masculino – minha produção era frequentemente identificada como a de um nome ao seu blog Chisqsland
autor se passando por mulher. Essa constatação estapafúrdia era mais crível que a Corporation hospedado no Uol.
Em outubro de 2017, quando
de uma mulher estar produzindo quadrinhos de humor.35
reassumiu na Folha de S. Paulo,
anunciou a vontade de come-
Formada em comunicação, Chiquinha foi assistente de redação e arte çar a assinar com seu próprio
nome, algo que ainda não
finalista da revista MAD no Brasil entre os anos de 2005-2008. Trabalhou concretizou. Em suas palavras,
como cartunista no Jornal do Brasil (2005), Jornal do Comercio (de Porto Ale- “Sempre gostei muito do ‘Pas-
quim’, da velha guarda, e todos
gre, 2006-2007), Diário de Pernambuco (2006-2008), Zero Hora (2006-2009), O eles tinham nomes incríveis,
Estado de S. Paulo (2010), Folha de S. Paulo (2007-2015), além de ter publicado como Jaguar. O meu nome não
em várias revistas nacionais e internacionais. Participou de 16 exposições, parecia um nome de alguém
que fazia humor. Agora cansei
sendo 3 individuais e as demais coletivas e em 2012 foi premiada na cate- disso. De uns tempos para cá,
goria Melhor publicação de humor, do Troféu HQ Mix, considerada uma comecei a ficar com vontade de
ter um nome”. LANGONA, Fa-
das mais tradicionais e importantes premiações dos quadrinhos brasileiros. biane apud RIBEIRO, Amanda.
Entre 2006 e 2016 hospedou no portal Uol o blog Chiqsland Corporation, Série ‘Chiqsland’, de Fabiane
onde informava seus leitores sobre suas publicações, projetos, atividades e Langona, estreia como tira di-
ária na Folha. Folha de S. Paulo,
publicações a seu respeito, além de reunir grande parte do material produ- São Paulo, 3 out, 2017. Disponí-
zido. Atualmente o blog não é alimentado de forma contínua, mas em sua vel em <http://m.folha.uol.com.
br/ilustrada/2017/10/1923751-
fanpage encontramos informações atualizadas sobre suas atividades e as -serie-chiqsland-de-fabiane-
novas tiras publicadas. A partir de 3 de outubro de 2017 foi convidada para -langona-estreia-como-tira-
substituir Allan Sieber na publicação das tiras diárias na Folha de S. Paulo. -diaria-na-folha.shtml>. Acesso
em 4 jan. 2018.
Produziu dois livros: o primeiro em 2011, Uma patada com carinho:
35
LANGONA, Fabiane. Uma
as histórias pesadas da Elefoa cor-de-rosa, publicado pela editora paulista mulher cartunista? Explique-se
Leya, apresenta as tiras e quadrinhos da Elefoa cor-de-rosa, a primeira sobre isso, op. cit.

ArtCultura Uberlândia, v. 21, n. 39, p. 71-87, jul.-dez. 2019 81


36
Ver LANGONA. Fabiane. personagem construída para responder aos questionamentos que lhe eram
Fabiane Bento Alves Langona
é o nome da cartunista Chiqui- dirigidos acerca de sua atuação como quadrinista e humorista, campos
nha. Programa do Jô, São Paulo, convencionalmente ocupados por homens, e discutir a legitimidade dos
Globoplay, 30 ago, 2012. Dis-
papéis e padrões sociais pré-estabelecidos.36 Em 2014 lançou Algumas mu-
ponível em <https://globoplay.
globo.com/v/2116011/>. Acesso lheres do mundo, pela editora Mórula, cujo título é uma “homenagem” ao
em 4 jan. 2018. filme Todas as mulheres do mundo, de 1966, de Domingos Oliveira.
37
LANGONA, Fabiane apud Segundo a autora,
HOLANDA, Marcelo de.
PTSC#20: Chiquinha. Morula
Editoral, São Paulo, 23 maio, Aquela abertura com o Flavio Migliaccio falando que “amor não dá pé” sempre
2016. Disponível em <http:// me pegou muito. Assim como a imagem da Leila Diniz, que pra mim é um gran-
morula.com.br/entrevista/
ptsc-20-chiquinha/ >. Acesso de exemplo de transgressão sem discurso. Transgressão na atitude (entendi bem
em 4 jan. 2018. quando li uma entrevista dela n’O Pasquim). Adoro o filme e o que ele representa
38
LANGONA, Fabiane. Uma em se tratando da quebra de tabus românticos e sociais num período tão icônico.
mulher cartunista? Explique-se Da dúvida entre ser independente ou não. De ser romântico ou não. [...] O filme
sobre isso, op. cit.
em si não promove uma ruptura clara com certos cânones de gênero extremamente
39
Idem.
arraigados, mas gosto muito do que ele insinua nesse sentido. Troquei o “todas”,
40
ACEVEDO, Mariela. Clí- por “algumas” pra redefinir o significado, tornar mais abrangente sem generalizar.37
toris. historietas y explora-
ciones varias. feminismos y
textualidades. Tebeosfera, 13. O livro reúne parte dos cartuns publicados em 2013 na editoria
Sevilha, dez, 2014. Disponivel
em <https://www.tebeosfera.
Estilo de vida, do site Uol, para abordar, com ironia e sarcasmo, pautas
com/documentos/revista_cli- como moda, comportamento, beleza e outros temas comumente definidos
toris._historietas_y_exploracio- como “femininos”, incutindo-lhes um caráter mais transgressor e ousado.
nes_varias._feminismos_y_tex-
tualidades.html >. Acesso em 4 Ao contrário do primeiro livro, neste a autora prescinde de animais como
jan. 2018. protagonistas de suas histórias e, gradativamente, vai, ela mesma, se tor-
nando personagem das histórias criadas.
Apostando numa perspectiva comportamental, as mulheres são obje-
to e sujeitos das histórias inspiradas em suas próprias vivências cotidianas,
mas sempre tentando “trespassar a clássica e vilipendiosa representação hu-
morística que fizeram de nós desde os primórdios – fortemente baseada em
loiras e/ou donas de casas traídas e revoltadas e/ou motoristas ruins – pra
focar em questões reais. Reais na minha experiência de mulher comum”.38
Em suas palavras, “as mulheres que tento representar nos meus
cartuns, são todas parte de mim. Fora do padrão que espera-se delas, sim.
Dentro dos tais padrões. De vez em quando. Se importando o tempo todo
com isso. Não. Algumas seguras. Meio felizes, meio deprimidas. Contra-
ditórias. Liberadas sexualmente. Algumas medrosas. Outras corajosas.
Algumas fortes, outras menos. Submissas, nunca”.39
Nesse sentido, os autorretratos, comuns em suas histórias e onde a
cartunista assume a condição de autora-personagem, são os espaços pri-
vilegiados para desenvolver reflexões não só sobre si, mas também sobre
o mundo ao seu redor. Esse auto olhar tem uma importância fundamental
no trabalho de Chiquinha, pois não consiste especificamente em um pro-
cesso de autocontemplação, mas uma política de auto representação e de
dar visibilidade para “sujeto social diferente, invisible porque aún no se
encontra representado”.40
O próprio visual assumido para falar de si, distante da estética do
belo, tornando-se muitas vezes grotesco, é o gatilho que dá sustentação a
essa forma de abordagem. Chiquinha se autorrepresenta de forma grotesca
– assimetria no olhar, nariz e orelhas avantajados, marcas e protuberâncias
na pele – afirmando, de forma incisiva, sua contemporaneidade, afinal ela
faz parte de um momento em que as categorias tradicionais de identidade
(família, religião, nação) entraram crise. Assim, ao apresentar um corpo

82 ArtCultura Uberlândia, v. 21, n. 39, p. 71-87, jul.-dez. 2019


feminino caótico e grotesco, muitas vezes próximo do abjeto, ela não só

D os s iê Quadri nhos & cu l t u ra v i su al : mo d o s d e ver e l er h i st óri as


problematiza e revisa a noção de “natureza feminina”, como também lança
luz sobre novas formas de subjetividades.

Figura 3. “Urrum”. Chiquinha. 2016.

Formas exageradas se mesclam a ironia para o exercício de ruptura


dos modelos e padrões vigentes através de situações excêntricas que são
experienciadas pela autora-personagem como algo comum, parte de seu
cotidiano, alargando, assim, valores e referências tradicionais e, ao mesmo
tempo, convulsionando os alicerces que delineiam e forjam o “dever-ser”,
nos moldes descritos por Maffesoli.41
A adoção de elementos do grotesco para a autorrepresentação não
implica o desprezo sobre si mesma – e que poderia, supostamente, lhe dar
liberdade para estender esse desprezo para os outros – ou a humilhação
do que se torna objeto do riso. A sua utilização desempenha a função nar-
rativa de expressar alegrias e melancolias que tanto podem ser da autora,
como de qualquer pessoa, e de criar uma intimidade e proximidade com
os/as leitores e leitoras. Tal como ocorre no domestic humor, é um humor
que busca se respaldar na simpatia, reconhecimento e concordância de
suas leitoras. Para Crescêncio, esse tipo de humor encontra reverberação
entre as mulheres,
41
Maffesoli afirma: “Cada épo-
Porque as situações representadas são familiares a maioria das leitoras mulheres, ca tem suas ideias obsedantes
a leitora primeiro reconhece sua própria experiência no relato da escritora, embora que, é claro, não são nada além
de pessoais. [...] Uma dessas
exagerada senão distorcida pelos propósitos do humor... Depois, o humor solicita
ideias obsedantes, que de uma
simpatia; a habilidade da escritora de fazer graça da situação garante o respeito e a maneira transversal percorre
participação da leitora; o humor torna-se uma estratégia para lidar com a frustra- todas as civilizações, está no
sentido simples do termo vida
ção, e a leitora sente uma ligação com a escritora que consegue, simultaneamente, moral. [...] às vezes, ela expri-
delinear e avançar sobre uma situação familiar e desconfortável. Finalmente, e mais me-se enquanto moral stricto
sensu, isto é, assume a forma
importante, a leitora é sutilmente convidada a concordar com a escritora sobre a
de uma categoria dominante,
fonte do desconforto – a concordar com a premissa de que alguém ou algo está em universal, rígida, e privilegia,
falta em uma cultura que isola e banaliza a experiência das mulheres.42 com isso, o projeto, a produti-
vidade e o puritanismo, numa
palavra, a lógica do dever-ser.”
É também essa personalização da cartunista que lhe dá força e con- MAFFESOLI, Michel. No fundo
das aparências. Petrópolis: Vo-
dições para materializar, de forma nem sempre sutil, mas necessariamente
zes, 2005, p. 25.
cômica, posições valorativas acerca do mundo e, ainda, para canalizar o 42
CRESCÊNCIO, Cintia L.
olhar dos leitores e leitoras para seu modo de ver. Dessa forma, seu pro- Quem ri por último, ri melhor,
cesso criativo envolve muitas vezes um intricado procedimento de deslo- op. cit., p. 76.

ArtCultura Uberlândia, v. 21, n. 39, p. 71-87, jul.-dez. 2019 83


43
FARACO, Carlos Alberto. camento de planos da vida para a arte, de modo que a autora-personagem
Autor e autoria. In: BRAIT,
Beth (org.). Bakhtin: conceitos- se apresenta em uma condição refratada e refratante, “refratada porque se
-chave. São Paulo: Contexto, trata de uma posição axiológica conforme recortada pelo viés valorativo do
2005, p. 39.
autor-pessoa; e refratante porque é a partir dela que se recorta e reordena
44
HOLANDA, Marcelo de, esteticamente os eventos da vida”.43
op. cit.
Ao mesmo tempo em que são abordados diferentes temas a partir de
si, de suas experiências e vivências, também é explorado o olhar de fora,
colocando em cena e em confronto diferentes vozes sociais. Um exemplo é
a abordagem crítica aos padrões de beleza heteronormativos imputados às
mulheres, tema, aliás, que aparece de forma regular em seu trabalho tanto
através dos autorretratos, como das diferentes personagens.

Figura 4. “Nu frontal”. Chiquinha. 2013.

Na representação desse tema adquire relevo as contracondutas das


personagens, tensionando as normas reguladoras que qualificam a vida
e os padrões comportamentais. As personagens aludem as experiências
de se apropriar dos seus corpos, reconhecendo suas particularidades não
como imperfeições ou algo estranho, mas como aquilo que faz parte de
sua identidade. Esse é um aspecto que identifico de forma permanente no
trabalho de Chiquinha: o interesse em discutir visões de mundo e estere-
ótipos consolidados, sem que isso implique na produção de um humor
derrisório, presente de forma bastante contundente em algumas publicações
humorísticas contemporâneas e que acabam legitimando e se tornando
suporte para velhas práticas de poder e seus sistemas de representações.
Desse modo, ao adotar um visual grotesco para si e para suas perso-
nagens, Chiquinha contribue para desconstruir os estigmas historicamente
atribuídos a grupos sociais e indivíduos, corroborando com uma produção
humorística, de fato, subversiva.
As personagens criadas por Chiquinha objetam determinismos com-
portamentais de gênero e rompem com “expectativas sociais ou papéis que
enquadrem as mulheres em deveres. Seja no sentido padrão de realização
doméstico-afetivo, seja no sentido obrigatório de se produzir arte discur-
sivamente engajada, retilínea”44 e é esse aspecto que torna seus cartuns/
quadrinhos uma forma significativa de reverberar pautas feministas na
medida em que coloca em destaque condutas consideradas inusuais e que

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fogem dos padrões morais, sociais e políticos hegemonicamente definidos

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para as mulheres.
Ao mesmo tempo em que se distingue da estética padrão, perfeita
e preestabelecida, seus comportamentos e sentimentos hiperbolizados
ferem as regras de etiquetas em geral incutidas as mulheres. A autoima-
gem caótica e grotesca, algumas vezes denotando insegurança, em outras
exacerbando a condição outsider em que se situa, torna-se uma forma de
se contrapor aos padrões expostos e as representações das mulheres como
seres frágeis e dóceis.
Esse aspecto é evidente na série “Segredinhos revelados”, publicada
entre 23 de junho e 14 de julho de 2014 na Folha de S. Paulo.45 Práticas e
gestos que mesclam frugalidade com escatologia tornam-se formas de ação
e expressão difusas que contrariam um conjunto de valores em questão.

Figura 5. “Oi, tchau!”. Chiquinha. 2013.

45
A série consiste em quatro
cartuns em que a autora protag-
oniza condutas que, em geral,
são camufladas no convívio
social.
Figura 6. “Segredinhos revelados”. Chiquinha. 2014.

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46
Ver BAKHTIN, Mikhail. A São personagens que exploram o grotesco, se distanciando, dessa
cultura popular na Idade Média e
no Renascimento: o contexto de forma, de musas ou modelos, desestabilizando padrões fixos que enclausu-
François Rabelais. São Paulo: ram as mulheres em representações caducas. A partir do momento em que
Hucitec, 1987.
valorizam seus corpos disformes, elas tomam o controle de si, passam a se
autoconduzir e a assumir contracondutas que se desprendem dos padrões
de beleza e das condutas impostas pelos outros.
Ações que representam formas de resistências microscópicas, des-
qualificando os dispositivos de controle e as redes de poder existentes,
embora os percebam como partes indissociáveis da sociedade em que vive.
Entretanto, tal reconhecimento não elimina a recusa e o exercício cotidiano
de pervertê-los através de seus gestos, tornando-se assim oscilações per-
manentes no seu interior. A meu ver, esse aspecto confere singularidade
e vigor a sua produção humorística ao mesmo tempo em que atua na
desconstrução dos discursos e as formas essencializadas de compreensão
dos homens e mulheres.

Figura 7. “Adoro”. Chiquinha. 2013.

Chiquinha produz um humor transgressor que se mostra politizado


e atento as novas demandas feministas do período contemporâneo e, em
várias histórias que por questões práticas optei por não expor nesse arti-
go, soube mostrar a continuidade do arcaico em paralelo às condições de
ruptura inauguradas.
Ao abordar o grotesco Bakthin46 destaca que ele se caracteriza por
aquilo que lhe falta: estabilidade, caráter fixo, ordem. Ele só existe em
relação a um limite, convenção ou expectativa. O grotesco existiria, assim,
em oposição às coisas que tem identidades claras e que possuem um lugar
definido no mundo social. Conforme essa reflexão o grotesco não se define
pelo que é, mas que faz. No caso em análise percebe-se que a utilização
do grotesco faculta o transbordamento e a desestabilização dos limites e
modelos estabelecidos. Nesse sentido, o grotesco feminino, bastante ex-
plorado por Chiquinha, mostra-se não só pertinente como desejável, bem
como torna-se uma força ao mesmo tempo criativa e destrutiva de tudo o
que se apresenta como senil.

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Ao chamar a atenção para a vitalidade dessas formas microscópicas

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de resistência, estou também apontando para a sua potência, na medida em
que propõe um caminho de insubordinação dos dispositivos de controle
social pois o que se coloca em disputa é algo muito caro ao poder disci-
plinar: a conduta. Conforme Russo, “a normalização da forma é imposta
[...] tem sido dura e eficaz na sua diferenciação altamente calibrada dos
corpos femininos a serviço de uma homogeneidade chamada diferenças
de gêneros”.47 A partir dessa perspectiva, a padronização e a normatização
do corpo feminino constituem importantes dispositivos de poder. Esse
tema é colocado como central nas histórias de Chiquinha, corroborando
com a crítica feminista ao sexismo de gênero, ao machismo e aos padrões
normativos e convidando seus leitores e leitoras a produção de um riso
também feminista.

Artigo recebido em 3 de julho de 2019. Aprovado em 14 de agosto de 2019.

47
RUSSO, Mary. O grotesco fe-
minino: risco, excesso e moder-
nidade. Rio de Janeiro: Rocco,
2000, p. 24.

ArtCultura Uberlândia, v. 21, n. 39, p. 71-87, jul.-dez. 2019 87


Holocausto
y dibujos:
la
caricatura
como
resistencia

Kurt Herdan. 2015, fotografia (detalhe).

Gonzalo Leiva Quijada


Doutor em História e Civilização pela École des Hautes Études en Sciences Sociales
(Ehess) de Paris/França. Professor do Instituto de Estética da Pontificia Universidad
Católica de Chile (PUC-Chile), de Santiago. Autor, entre outros livros, de Multitudes en
sombras: la AFI. Santiago de Chile: Ocho Libros/Ograma, 2008. gleivaq@uc.cl
Holocausto y dibujos: la caricatura como resistencia
Holocaust and drawings: the cartoon as resistance

Gonzalo Leiva Quijada

resumen abstract
El articulo establece una relación The article establishes a link between the
entre la memoria del dibujo y los memory of the drawing and the historical
acontecimientos históricos del ho- events of the holocaust. This relationship
locausto, ejemplificado en la figura is exemplified in the figure of the artista
del artista Kurt Herdan, u vida, sus Kurt Herdan, his biography, his motives
motivos y su imaginario del dibujo and the concepts in his drawings and co-
y la caricatura. En todos ellos, hay mics. In all of them, we encounter traces
trazas de una memoria que establece of a memory that construct san artistic
una resistencia artística frente a los resistance against the ravages of power.
embates del poder.
palabras clave: holocausto; caricatu- keywords: holocaust; caricature; resis-
ra; resistencia. tance.


El arte como experiencia es a menudo un frente de denuncia y de
resistencia frente a situaciones históricas vivenciadas. Los creadores con
su sensibilidad realizan una labor de enfrentarse, cuando no directa-
mente, por medio de sus expresiones.1 Al respecto, tenemos numerosos
ejemplos de cómo los artistas desafiaron a cuenta de su propia vida los
efectos del trauma histórico vivenciado por millones de persona tras
1
Ver DIDI-HUBERMAN, Geor-
la imposición de la ideología Nacional Socialista en Alemania y del
ges. Imagen, malgré tout. Paris: estalinismo en la URSS.2
Editions du Minuit, 2003, y En este artículo revisaremos el trabajo de un sobreviviente de la
idem, Imágenes pese a todo: me-
moria visual de holocausto. Shoah en su Austria natal, pero también del estalinismo comunista en su
Barcelona: Paidós, 2011. Rumania de adopción, tras estos duros momentos históricos personales
2
Ver CORNELSEN, Elcio, y familiares se avecindó en Chile. La vida de Kurt Herdan se unió a nu-
AMORIN, Elisa e SELLIG- merosos compatriotas disidentes y judíos que fueron sobrevivientes de
MANN-SILVA, Marcio (orgs.).
Imagem e memória. Belo Hori- este espanto, muchos artistas vivieron la turbación de los campos concen-
zonte: Editora UFMG, 2012. tracionales, no pocos fueron masacrados en los campos de exterminios,
3
Ver LEIVA QUIJADA, Gonza- es decir la fuerza del padecimiento traumático del Holocausto.3 Algunos
lo, SHATS, Samuel, GLEISNER,
artistas, resistieron con escasos materiales dejando testimonio de su dolor
Daniel y LARREA, Vicente. Tes-
timonios Kurt Herdan. Santiago: y el de sus camaradas.4 En consideración a sus circunstancias de sujetos a
Testimonio, 2018. la deriva, náufragos en el tiempo, sin pasado aparente, sus bosquejos cons-
4
Ver BLANCHOT, Maurice. tituyen obras frágiles, recogidas en algunos dibujos, pinturas, partituras,
L’écriture du desastre. Paris:
Gallimard, 1980.
fotografías, etc. todos son parte de una memoriabilia ética insoslayable en
nuestra contemporaneidad: hubo resistencia cultural a la bestialidad desde
5
Ver LYOTARD, Jean-François.
Les inmateriaux. Paris: Centro la insistencia creativa.5
Georges Pompidou, 1979.

90 ArtCultura Uberlândia, v. 21, n. 39, p. 89-97, jul.-dez. 2019


El testimonio artístico del holocausto: algunas ejemplificaciones

D os s iê Quadri nhos & cu l t u ra v i su al : mo d o s d e ver e l er h i st óri as


El testimonio visual de estos campos de concentración tiene variadas
escenas trazadas en bosquejos.6 Entre ellas, los dibujos de Joseph Richter,
quién realiza 18 esbozos expresionistas descriptivos recogidas del campo
de exterminio de Sobibor. Cuerpos crispados, rostros angustiados, una
delicada traza artística en estos lugares de tanta carga dramática mortuoria.
Por otro lado, tenemos los 100 bocetos en pedazos de telas del campo de
concentración de Dachau realizado por el pintor serbio Zoran Music. El
autor usando su propia sangre y lápices primarios, dibujaba con la intención
de decirle al mundo: “no somos los últimos”, ampliando el cuestionamiento
de la conciencia sensible ante la barbarie.
Por su parte, debemos reconocer el testimonio en dibujos realizado
por Adolf Feder, quién realiza croquis del campo de internación en Drancy.
Las instalaciones que el proyecta en sus esquicios son parte del paisaje
circundante, nada hace proveer el sitio de turbación en que se constituyó.
En efecto, desde Drancy, cerca de París, los judíos franceses allí detenidos
eran enviados a campos de concentración y de exterminio. Podemos hoy
saber que, desde junio de 1942 a julio de 1944, 64 transportes ferroviarios
con 64.700 judíos franceses, polacos y alemanes partieron de este lugar.
Así también, son testimoniales los dibujos de Lázaro Bertrand en el
campo de concentración de Neuegamme cerca de Hamburgo realizados en
1944. Sus dibujos presentan vistas generales e interiores de los pabellones
de prisioneros. Muestra los trabajos realizados por los prisioneros exigi-
dos en extremas condiciones de temperatura y precaria nutrición. Otras
personas con formación en Bellas Artes realizan dibujos como es el caso
de Eliane Jeannin-Garreau, o bien Jeanette L´Herminier ambas internadas
en el campo de mujeres de Ravensbrück.7 Mientras que la primera explora
el naturalismo de las expresiones de las internadas, la segunda configura
cuerpos sin rostros. Con eficacia simbólica del mismo campo están los
trabajos de Violette Rougier-Lecoq quién logra sacar tras su liberación en
1945, sus bocetos que después publica con 36 dibujos a pluma. En este
trabajo podemos observar con fina ironía y mucha descripción el sistema
impuesto, con las duras condiciones de vida y trabajo. Además, logra con
finos dibujos demostrar acciones de compañerismo y solidaridad entre
las internadas.
En el campo de concentración de Dachau, que fue el primero en
instalarse dentro de la red concentracional organizada por el Nacismo,
ubicado cerca de Munich, el Compagnon Gaston Quitaud realiza retratos
de miradas muy tristes de sus compañeros. El mismo método de dibujo
de perfil es el que concentra la atención de la representación realizado por
France Andoul con un retrato de Simone Saint Clair ya en 1944. En ambos
casos sus dibujos tienen la intención de testimoniar la identificación de 6
Ver MANDELBAUM, Henryk.
Vengo del crematorio de Aus-
algunos de sus camaradas, en particular en esos lugares donde se perdía
chwitz. Cracovia: Museo Estatal
la identidad. de Auschwitz-Birkenau, 2013.
Un caso excepcional constituye el trabajo realizado por Rene Baumier 7
Ver HELM, Sarah. Ravens-
quién dibuja en cuadrados rectangulares de pequeños formatos a 39 com- brück: life and death in Hitler’s
concentration camp for wo-
pañeros del campo de concentración de Stricken y Bergen Belsen. Todos men. New York: Bantam Dell,
rostros de perfil con sus marcas concentracionarias en gorros y ropas. Pero, 1990, y JEANNIN-GARREAU,
además, presenta en dibujos las escenas de la vida del campo, los convoyes Eliane. Les cris de la mémoi-
re: Ravensbrück-Holleischen,
hacia la muerte de los campos de exterminio y la crudeza de un lugar que 1943-1945. Paris: E. Jeannin-
no contaba con remedios básicos y por lo mismo los enviados morían al -Garreau, 1994.

ArtCultura Uberlândia, v. 21, n. 39, p. 89-97, jul.-dez. 2019 91


8
Ver DIDI-HUBERMAN, Ge- poco tiempo. En estos dibujos conmovedores, la muerte aparece de una
orges. La emoción no dice
“yo”: diez fragmentos sobre manera directa y explícita. Estos campos en particular reunieron la mayor
la libertad estética. In: DIDI- cantidad de judíos y en este sentido hasta su funcionamiento se aplicó de
-HUBERMAN, Georges et al.
manera implacable la aniquilación de los prisioneros a través del agobio,
Alfredo Jaar: la política de las
imágenes. Santiago: Metales la enfermedad o el hambre.
Pesados, 2008. Muchos de estos croquis dibujados en que me he detenido fueron
9
BUBER, Martin. Acerca de la realizados en condiciones y con medios precarios, por lo mismo su des-
idea nacional: sionismo y uni-
versalidad. 2. ed. Buenos Aires:
tacado valor como arte de resistencia ante la intolerancia, el arte fue un
Departamento de Cultura da motor de esperanza y de creación incluso en medio de este universo de
Amia, 1978, p. 8. vulnerabilidad y humillaciones institucionalizadas.8
10
Ver HIRSH, Marianne. Family
frames: photography, narrative,
and postmemory. Boston: Har-
La microhistoria del dibujante Kurt Herdan
vard University Press, 1997,
y BRAUNSTEIN, Néstor. La Con el corazón en el tiempo, la producción de Kurt Herdan no fue
memoria del uno y la memoria
del otro: inconsciente e historia. realizada en los campos de concentración fue realizada tiempo después
México: Siglo XXI, 2012. a partir de su experiencia vivencial. Su dibujo fue indagando desde un
trazo sintético a una caricatura más compleja, que se propone como diario
personal, bajo notas de una actividad recubierta de mantos de tradición y
que va develando en sus dibujos diversos ejercicios expurgatorios de sus
propios fantasmas, del ángel de la historia de Walter Benjamin.
Al respecto, debemos reconocer que los orígenes de Kurt Herdan
están anclados a la comunidad judía de Viena. En medio de arrullos del
alemán como lengua ambiental, en el barrio de Leopoldstadt, un espacio
inmenso que se extiende a través del extremo noroeste de la ciudad, se
festeja el nacimiento de Kurt Lucían Herdan Soefer un 29 de diciembre de
1923. Su alegre y adusto padre se llamaba Carl Ludwig, durante muchos
años fue funcionario estatal y su madre Augusta Soefer, quién se dedicaba
a las labores de la casa y al cuidado de los hijos; pues ya había nacido Rita
Lily, la hermana mayor solo 18 meses antes que Kurt.
Eran momentos inciertos políticamente junto con una ebullición
cultural renovadora. A las marcas en arquitectura, muebles, editoriales
que había establecido el movimiento modernista Jugendstil se ampliaron
los limites creativos hacia una sensibilidad urbana establecida por músi-
cos, escritores y filósofos que hicieron del Café un espacio de tertulia y de
discusión. El café Landtmann, por ejemplo, estará fuertemente ligado al
padre del psicoanálisis, el austriaco Sigmund Freud y al compositor Richard
Strauss. Entre la música y la inminente psicología; además sobresalía la
filosofía de Wittgenstein enunciando los no límites del juicio equilibrado
entre la producción artística y el pensamiento crítico. Es en este universo
de aperturas culturales que conformaron un ideario humanista donde se
fueron nutriendo los primeros años de Kurt Herdan.
Las familias judías enraizaban sus sentimientos a las lenguas com-
partidas y también, a lo que el filósofo vienes Martin Buber, denominará
el “nacionalismo de la sangre”9 que le daban sus tradiciones ancestrales
acogiendo con verdadero deleite estas nuevas aventuras del pensamiento
con una cohesión que unía trasversalmente a una multiplicidad de familias
de estratos y condiciones diferentes.10
Sin embargo, por razones de trabajo gubernamental, la familia Her-
dan Soefer fue enviada a Chernivtsi, ciudad que originalmente había per-
tenecido al Imperio austrohúngaro y que pasaba a Rumania. Su padre era
el funcionario estatal que debía preocuparse de entregar oficinas y sanear
todos los asuntos legales que esta nueva situación de fronteras definía. Aho-

92 ArtCultura Uberlândia, v. 21, n. 39, p. 89-97, jul.-dez. 2019


ra bien, la ciudad de Chernivtsi era sin duda uno de los centros culturales

D os s iê Quadri nhos & cu l t u ra v i su al : mo d o s d e ver e l er h i st óri as


del oeste de Ucrania, denominada “pequeña Viena” que se caracterizaba
por tener un 25% de población judía. Es en esta ciudad, capital del otrora
ducado de Bucovina, donde ocurre un vuelco fundamental en la vida fa-
miliar que viene acontecida con la invasión rusa del 28 de junio de 1940.
En efecto, la desgracia histórica había sido el Pacto Ribbentrop-
-Mólotov, secreto acuerdo de no agresión establecido entre los líderes del
eje. Stalin había pactado con Hitler y la compensación era la anexión de
zonas territoriales en Polonia y los países bálticos. En junio de 1940 agregó
las zonas de Bukovina y Besarabia en la actual Ucrania. En los nuevos
territorios, los judíos pasaron a ser parte del “chivo expiatorio” de estas
ordenanzas. De este modo, en agosto de 1941, el dictador rumano Ion An-
tonescu estableció un ghetto en la parte baja de la ciudad de Chernivtsi,
donde fueron hacinados cincuenta mil judíos, sufriendo tanto más bajo
los soviets que bajo los nazis. A pesar de ser funcionarios oficiales del
Gobierno de Austria, la familia Herdan Soefer fue trasladada al ghetto el
10 de octubre de 1941.
Kurt era un joven fornido y a los 18 años es separado de sus padres
y trasladado a campos de trabajo donde milagrosamente logra salvarse de
un fusilamiento. Siendo deportado posteriormente para tapar trincheras
de alemanes, prontamente se lo llevaron a una cantera de piedra al sur de
Besarabia situada entre los ríos Dniéster y el Pruth. Como Kurt era alto y
enérgico, su labor se circunscribía a quebrar la piedra con instrumentos
eléctricos hasta que le ocurrió un accidente que lo dejara sin dentadura en
la parte superior. A pesar de este hecho continúa trabajando. En este trabajo
forzado, con maltrato, raciones básicas y durmiendo en excavaciones bajo
la tierra permanece Kurt hasta el 28 de agosto 1944, sorprendentemente
recuerda la fecha con especial regocijo: fue su “primera liberación”. De su
familia en este intertanto nada supo, habían sido trasladados a la U.R.S.S.
posiblemente fue en Siberia su confinamiento por los recuerdos familiares.
Su infancia y su primera juventud quedó olvidada tras las penurias
causadas por el avance de las fuerzas de Stalin y las de Hitler, estos per-
sonajes estarán en el centro de sus dibujos pues siendo las antípodas de
las ideologías, al final se parecen por un pacto y por la crueldad: no les
importa la humanidad sino solo los principios ideológicos que se imponen
uniformemente con violencia y escarnio.
Pese a todo lo que le toca vivir, Kurt sobrevive y tras su emancipaci-
ón se traslada a Bucarest luego se fue a un internado judío. Permanece en
Bucarest hasta 1950 y estudia en la Escuela de Bellas Artes de Rumania que
se llamaba en esos tiempos: Instituto de Bellas Artes Nicolae Grigorescu.
En Rumania se sentía inestable y perseguido por los comandos soviets
que lo dejaron marcado por su maltrato y asedio constante. Kurt decide tras
estas duras experiencias que “no tiene nacionalidad y que para él solo hay
un mundo y humanidad”; mensaje contrapuesto al orgulloso nacionalismo
hitleriano y soviético. Por lo mismo, emigra y huye del comunismo y se
refugia en Israel. Es en esta nación donde posteriormente realizó estudios
de Postgrado en el taller del profesor Jacobo Eisenscheer en la Escuela de
Bellas Artes de Jerusalén. Había llegado diplomado en pintura, pero sin
duda con una formación precaria, al respecto un comentario de su profesor
de Estética en Bucarest evidenciaba los prejuicios sobre las vanguardias LEIVA QUIJADA, Gonzalo,
11

SHATS, Samuel, GLEISNER,


históricas: “en Occidente se conoce solo dos pintores, uno loco que es Daniel y LARREA, Vicente, op.
Salvador Dalí y el otro Pablo Picasso que hace mujeres con tres narices”.11 cit, p. 27.

ArtCultura Uberlândia, v. 21, n. 39, p. 89-97, jul.-dez. 2019 93


12
Ver HUYSSEN, Andreas. Grande fue su sorpresa al reconocer en Israel un libro del impresio-
Después de la gran división: mo-
dernismo, cultura de masas, nismo francés, le abrió asombrado un arte que se había hecho y que había
posmodernismo. Buenos Aires: sido despreciado por la imposición del “estilo realista/socialista”. Por esto,
Adriana Hidalgo, 2006.
la experiencia de investigación de postgrado le significa a Kurt no solo
13
LEIVA QUIJADA, Gonzalo; tomar contacto con sus raíces judías en Jerusalén; sino también, ampliar
SHATS, Samuel; GLEISNER,
Daniel; LARREA, Vicente, op. sus obras artísticamente a tantos lenguajes artísticos que hasta entonces
cit., p. 29. desconocía.12 Tras trabajar en el Ministerio por hecho violentos que vivenció,
14
Idem. toma la decisión de abandonar Israel y viaja a Europa, en particular Italia.

Los años chilenos de Kurt Herdan

Es en 1953 donde la Cruz Roja Internacional con la Ayuda Americana


logra contactarse con sus padres que se habían refugiado en Chile. Los
organismos internacionales le entregan un pasaje y visa para venir al país
por seis meses. Llegó al puerto de Valparaíso después de un largo peri-
plo, se trasladó a Santiago quedando sorprendido con los únicos edificios
altos que vio en la Plaza Italia. No pensó quedarse en Chile. Sin embargo,
conoció a Tótila Albert un gran artista y señor, que lo motivó para trabajar
en conjunto desde el año 1954 hasta 1968. Kurt tiene con Tótila una deuda
intelectual hasta hoy día, lo recuerda emocionadamente como una persona
culta, inteligente, sensible y admirable creador.
Por esta profunda amistad, Kurt durante catorce años fue profesor
de dibujo y pintura en la Academia de Arte Libre dirigida por el maestro
Tótila Albert donde hablaban alemán entre los profesores. En esos tiem-
pos, además entre los años 1956 hasta el año 1959, Kurt realiza diversas
escenografías para el teatro Maru que bajo la dirección de Américo Vargas
se había trasformado en la referencia de la comedia junto a su esposa Pury
Durante. Dado el fenómeno de éxito de taquilla, algunas funciones fueron
dadas en un escenario más grande como el Teatro Municipal de Santiago
de Chile. En estos mismos años su pasión por el dibujo lo lleva a ser pro-
fesor de esta asignatura en el Instituto Hebreo, donde motivó la vocación
y sensibilidad artística entre los jóvenes.
El año 1958 expone Kurt junto a un amigo Uwe Grumann en la sala
Previsión de Santiago. El crítico artístico de El Mercurio dice sobre su obra
“en los esquemas y apuntes se anotan aciertos en una caligrafía nerviosa
en la que estalla a la vez la pompa y la pulpa de unas formas plenas”.13
En Chile conoce a su esposa en el año 1960 en una exposición de pin-
turas de Kurt. Ella fue la destacada escultora Alicia Blanche Sepúlveda, de
la Universidad de Chile donde había sido alumna de Julio Antonio Vásquez
y Marta Colvin. Ella dictó clases como profesora de la escuela de Artes
Gráficas y luego en la propia escuela de Artes en su especialidad. Con voz
emocionada, Kurt recuerda que fue su encuentro fundamental en Chile,
una nueva liberación; pues fue Alicia quien le “enseña a vivir de nuevo”.
Kurt ingresa al Movimiento Forma y Espacio en los años sesenta,
cohorte del arte geométrico en Chile. En esa vertiente campean las com-
posiciones con rectas en libres tratados del cuadrado y el rectángulo. A
pesar de la aparente frialdad de la abstracción, la temprana obra pictórica
de Kurt está traspuesta de una fuerte emocionalidad: “sabes cómo son las
cosas en mi pintura: tengo que vivirla, primeramente, y luego por medio
de los recuerdos, comenzar a pintar. Así ha sido siempre. También mis
bocetos a lápiz de nada sirven si no tengo antes la idea bien fija. Lo que en
realidad tengo impregnado de mí mismo es el color”.14

94 ArtCultura Uberlândia, v. 21, n. 39, p. 89-97, jul.-dez. 2019


El colectivo Forma y Espacio aglutinó a artistas bien variados como

D os s iê Quadri nhos & cu l t u ra v i su al : mo d o s d e ver e l er h i st óri as


Adolfo Berchenko, Miguel Cosgrove, Gustavo Poblete, Carmen Piamonte,
Elsa Bolívar, Gabriela Chellew, Kurt Herdan y Robinson Mora, entre otros.
Su actividad se mantuvo hasta la década de los años setenta. Este grupo
fue continuador de la “abstracción geométrica” que sustentó el Grupo de
Arte Moderno Rectángulo a partir del año 1955. Al respecto Kurt dice “Es
una importante etapa experimental en que uno se somete a un rigor y se
abandona al factor del azar”.15
Entre las aventuras intelectuales sorprendentes le correspondió a
Kurt participar en la revista Adán, tanto en el diseño de portada como el
de viñetas interiores, todo formulado con ilustraciones humorísticas. Adán
fue una revista chilena de carácter satírico, publicada por la editorial Zig-
-Zag entre 1966 y el 4 de mayo de 1967. La publicación fue fundada por
Mercedes Valdivieso con la idea de ironizar sobre el pensamiento masculino
imperante en aquella época y participan variados y destacados literatos
y artistas.
En 1968 lo eligieron para mostrar pintura chilena por el entonces
decano de Bellas Artes de la Universidad de Chile para esto le consigue la
nacionalidad chilena. Debía ya como chileno representar al país en la Bienal
de Sao Paulo, que por desgracia se postergó y ese año no se realizó. Sin
embargo, Kurt siguió mostrando con el “grupo rectángulo” en el instituto
alemán, donde el crítico señala “Herdan está intentando la integración de
volúmenes con una pila de módulos que, con buen gusto, conjugan un
motivo (es precisamente aquel del circulo dentro del cuadrado) que puede
combinarse en mil maneras”.16
En ese mismo año inicia la docencia, como ayudante de Composición
en la Escuela de Artes Aplicadas de la Facultad de Bellas Artes y, luego,
Profesor de Composición en la Escuela de Diseño de la Facultad de Ar-
quitectura y Urbanismo, ambas de la Universidad de Chile. Se destaca un
envío al salón Craw de 1974, donde la obra de Kurt se describe: “una tela
donde la razón y las tensiones plásticas del abstraccionismo geométrico se
concilian con especial armonía”. Sin duda, que su obra se había consolidado
entre las dos tensiones emocionales y racionalizante.
A Kurt le corresponde la dura misión de reorganizar como decano
la Facultad de Bellas Artes de la Universidad de Chile entre los años 1976
y el año 1981. Tras la gestión administrativa fue continuando su docen-
cia hasta el año 2006, con sus clases predilectas de composición y figura
humana. Tras su integración de lleno al movimiento cultural chileno, se
inscribe en la APECH.17 Sin embargo, un hecho le hace cambiar la visión
de la escena artística chilena. En el año 1986, la sala de exposiciones don-
de mostraba su trabajo pictórico sufre un atentado explosivo. La galería
situada en General Holley 109 en la comuna de Providencia era también
la sede de la Fundación Nacional de la Cultura. Eran 34 oleos, pasteles y
collages, exposición que el artista definió como “expresionista y ante todo
15
Idem.
auto semántica”
Tras la explosión y destrucción de la exposición, no hubo ninguna Idem.
16

llamada telefónica, ni preocupación por su vida o por su obra, se sintió 17


LEIVA QUIJADA, Gonzalo.
Historicismo fotográfico: corte
defraudado de los artistas a quienes había ayudado y formado. Su obra era y confección de la visualidad
ya reconocida pues había circulado por los principales centros expositivos modernista chilena. Artelogie,
del país desde los años sesenta. Su producción se encuentra en Museos n. 7, s./l., 2015. Disponível en
<http://journals.openedition.
y colecciones particulares de Alemania, Israel, Mónaco, España y en las org/artelogie/1129>. Acesso en
colecciones de museo chilenos. 15 jan. 2019.

ArtCultura Uberlândia, v. 21, n. 39, p. 89-97, jul.-dez. 2019 95


El contexto chileno del dibujo caricaturesco de Kurt Herdan

Sus dibujos son la memoria gráfica con un fino sentido del humor y
su modo comunicacional más original. La ironía un ejercicio de sobrevi-
vencia, que con el trazado de la caricatura constituye la crónica cotidiana
de una mente lúcida, reflexiva, laboriosa y con fuerte coraje. La caricatura
surgida en Italia en 1646 establecía en su sentido filológico originario su
relación con el cambio y la exageración. Con su fascinación por lo grotesco
quedará tempranamente unida al humor y también a contenidos políticos
contingentes. Este será un claro sello de la obra de Kurt, su cercanía con la
caricatura política. Al respecto, este género representacional ha contado con
connotados cultores en Chile desde el siglo XIX como Antonio Smith para
constituir en viñetas de periódicos y diarios ilustrados del nuevo siglo XX
con la figura de Pedro Subercaseaux (Lustig), Edmundo Searle (Mundo),
Julio Bozo (Moustache), entre otros.
La historieta de Herdan sigue el enunciado de Von Pilsener, el pri-
mer personaje de este género en Chile. En lo esencial no hay uso de textos,
globos u onomatopeya, solo la viñeta dibujada como un chiste visual. Su
comicidad está dada por este grado de ironía o verosimilitud sobre acon-
tecimientos contingentes o personajes del quehacer público. La diferencia
es que el dibujo de Herdan no presenta secuencias como se hacía en la
prensa inglesa o anglosajona, sino que es una sola imagen como síntesis
argumental, continuando la tradición europea.
En Chile un momento de gloria y desarrollo de este tipo de humor con
raigambre política se constituirá con el proyecto de la revista Sucesos, con su
aguda visión de la realidad nacional. Sin embargo, es con la revista Topaze
(1931-1970) donde se logra reunir a una pléyade de creadores que fueron
dando vuelta el tema gubernativo. Destacando en la cabeza argumental la
figura de Jorge Délano (Coke). Así la idea de transmitir por medio de un
dibujo un mensaje o una idea sobre una cuestión contingente determinada,
se constituyó en un ejercicio mayor en el humor gráfico donde Kurt transitó
proporcionando además informaciones aledañas de aspectos culturales,
estilísticos y sociopolíticos que le motivaban y le continúan preocupando.
En todos estos dibujos testimoniales vislumbramos una resurrección
metonímica que busca establecer series visuales, no son cuerpos reducidos
sino un vasto corpus. En general, presentan escaso o ausente texto, es decir
el mensaje está dado por la caricatura misma y la búsqueda de sentido se
transforma en un ejercicio intelectual y en una sonrisa fácil.
Desde el punto de vista creativo, sus propuestas denotan una traza
que, organizada en un micro espacio organizado por un dibujo atingente,
indica con sutileza la incubación de un malestar cultural. Cual sea el ingreso,
esta escritura del dibujo nos permite ver los grandes temas y preocupacio-
nes autobiográficas que atraviesan su producción de caricaturas. Donde el
tema político siempre vuelve a los dictadores Hitler y Stalin que afectaron
su vida y círculo familiar. Estos dos autócratas están hechos y puestos con
la misma pasta, su ideología se impone ante cualquier afán libertario.
Otras series exploran temas más creativos y en algunos pasajes hay un
denodado interés por la individualidad de los políticos chilenos actuales.
También asoman, realidades cotidianas, algunos rasgos patéticos del géne-
ro humano y todo un mundo de viñetas de cuerpo entrelazados. Su línea
es sintética con una gracia económica y directa para establecer contrastes
entre la verosimilitud de los dibujados con socorridos trazos hiperbólicos.

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La exageración es matizada por pequeños condimentos contextuales. Los

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limes del paisaje desaparecen para dejar solo la línea del representado
como un retrato plasmado.
Ahora bien, no podemos olvidar que la memoria inconformista de
Kurt Herdan involucra una vida que ha sufrido en carne propia los rigores
de la modernidad y el padecimiento en una historia convulsa. Por lo mismo,
sus dibujos no son acompasados, sino más bien inconformistas, del crítico
que desde la constelación emocional solicita coherencia, transparencia y
lucidez a los que toman el poder, a los seres anónimos. En otras palabras,
sus propuestas dejan entrever un mensaje simbólico que hay un deber ético
traspuesta en estos bosquejos, desde su sutil ironía nos interpelan a ser más
críticos y más sabios. Dado que la producción simbólica va recogiendo
fragmentos y enrostrando por medio de formas, mensaje y líneas de dibujo
ciertas insistencias y variantes. El uso del alemán para conceptualizar desde
su lengua materna como acto de nominalización.
Llama la atención su mundo plástico donde se repiten algunas estruc-
turas corporales y donde el rostro es ejemplificado en un ejercicio purista
de tipificación. Dentro de estos ejercicios encontramos una suerte de esbo-
zos dobles, como el adverso y el reverso que continúan en línea continua.
Son una clara muestra de su habilidad para crear mundos continuos en la
perspectiva que de cada mundo se abren de inmediato otros mundos y así
sucesivamente sus réplicas ad- infinitus como los planteamientos de Hecher.
Hay momentos que el dibujo de Herdan se transforma en un ejerci-
cio gráfico purista lo que denota su formación de artista clásico, pero en
particular su ejercicio constante y lucido del dibujo dado sus largos años
de profesor universitario. Sus dibujos han circulado por diversos lugares,
en algunas revistas y en el momento de gloria de los diarios donde la ilus-
tración era un lenguaje narrativo con alcance social.
Trasformado en testimonio y memoria visual, los dibujos de Kurt
Herdan conforman hoy un espacio muy privado de libertad y de coherencia
crítica. De este modo, sus “monos”, como se dicen en Chile a los dibujos
y caricaturas, conforman una sensibilidad desplegada en la contingencia
como ejercicios y esbozos de una confraternidad entre imagen e historia.
No obstante, a pesar de su naturaleza inconformista y crítica, no podemos
desconocer que la acción creativa evidencia aquellas instancias históricas
donde lo humano se ve tergiversado, malogrado, superado.
Claro está que para Kurt sus caricaturas son opiniones conjuradas con
una raya sinuosa de finura humorística además de un acabado y elegante
trazado lineal. Hoy sus dibujos de humor silencioso mantienen su lozanía
y sus juicios son gritos mordaces frente a la indiferencia, la frivolidad y
el extravío cultural. En este sentido sus certeras palabras en una de sus
publicaciones editada por la Universidad de Chile reseña claramente su
posición artística que es también su propuesta artística: “Todos queremos
y respetamos el arte, y todos sabemos que la creación, siendo un fenómeno
visible, tangible, resulta y se concreta desde y a partir de posiciones intimas
y personales que nacen de lo más recóndito de cada uno de nosotros”.18 Su
resistencia cultural a toda ideología totalitarista ha sido su sello del dibujo
que lo emparenta con una fuerte tradición cultural de la propia caricatura
como género artístico de la modernidad.
18
LEIVA QUIJADA, Gonzalo,
SHATS, Samuel, GLEISNER,
Artigo recebido em 14 de junho de 2019. Aprovado em 13 de agosto de 2019. Daniel y LARREA, Vicente, op.
cit., p. 32.

ArtCultura Uberlândia, v. 21, n. 39, p. 89-97, jul.-dez. 2019 97


s ) ):
a ( ( s
r i a
t ó ad
i s nh
H se visualizando analogias

d e entre hoje e o passado

re – periferias urbanas,
resistência negra e vozes
femininas na obra de
Marcelo D’Salete
Valu, do conto "Calunga". Marcelo D'Salelte. Cumbe. 2014, fotografia (detalhe).

Jasmin Wrobel
Doutora em Estudos Latino-Americanos pela Freie Universität Berlin (FUBerlin). Orga-
nizadora do livro Roteiros de palavras, sons, imagens: os diálogos transcriativos de Haroldo
de Campos. Frankfurt am Main: TFM, 2018. jasmin.wrobel@fu-berlin.de
História(s) redesenhada(s): visualizando analogias entre hoje e o
passado – periferias urbanas, resistência negra e vozes femininas
na obra de Marcelo D’Salete
Re-drawn histories: visualizing analogies between the present and the past – urban
peripheries, black resistance and female voices in the work of Marcelo D’Salete

Jasmin Wrobel

resumo abstract
Em suas HQs, o artista e professor In his graphic novels, São Paulo artist and
de artes visuais paulistano Marcelo Visual Arts professor Marcelo D’Salete
D’Salete tematiza a história afro-brasi- illustrates decisive moments of Afro-
leira e as condições de vida de jovens -Brazilian history and the life conditions
afro-brasileiros no presente, traçando of young Afro-Brazilians in the present,
analogias entre hoje e o passado com tracing analogies between now and then in
seus livros Noite luz (2008), Encruzi- his books Noite luz (2008), Encruzilhada
lhada (2011), Cumbe (2014) e Angola (2011), Cumbe (2014) and Angola Janga
Janga (2017). Neste artigo, pretende-se (2017). In this contribution, I intend to
mostrar como o autor consegue (re) show how D’Salete – on the threshold
desenhar um retrato entre ficção e rea- between fiction and reality – (re)draws a
lidade, tanto da periferia urbana como portrait of the urban periphery, on the one
da história de Palmares, criando, assim, hand, and the history of Palmares, on the
uma “continuidade invertida” entre other hand, creating a type of “inverted
suas primeiras obras, que documentam continuity” between his first two works
a vida dos seus protagonistas nas ruas focused on São Paulo street life and his
de São Paulo, e as duas mais recentes, more recent graphic narratives in which
em que identifica a raiz da desigualda- he identifies the root for today’s social
de social hoje na história mal digerida inequality in the poorly digested history
da escravatura no Brasil. Em um tercei- of slavery in Brazil. In a third step, I am
ro passo, ainda se tematizará o papel going to discuss the role and potential of the
das vozes femininas que também não voice of women who are not being forgotten
são esquecidas por D’Salete. in D’Salete’s work.
palavras-chave: Marcelo D’Salete; keywords: Marcelo D’Salete; urban peri-
periferia urbana; Palmares. phery; Palmares.

1
FERRÉZ. Terrorismo literário.
In: FERRÉZ (org.). Literatura

marginal: talentos de escrita
periférica. Rio de Janeiro: Agir,
2005, p. 9.
A regra é só uma, mostrar as caras. Não somos o retrato; pelo contrário,
2
Uma das primeiras obras
gráficas que assumiu a memó-
mudamos o foco e tiramos nós mesmos a nossa foto.1
ria traumática como tema foi,
evidentemente, Maus, de Art
Spiegelman (1986/1991). Na
América do Sul, tais relações Nos últimos anos, podemos observar a tendência em retrabalhar ex-
podem ser pensadas com o periências e acontecimentos históricos traumáticos sob a forma de histórias
surgimento das ditaduras na
segunda metade do século XX,
em quadrinhos (HQs) que, como meio, permite um enfoque novo e também
quando temos, por exemplo, o a introdução de novas perspectivas sobre temas sensíveis.2 A arte dos qua-
“desaparecimento” e o assassi- drinhos possibilita releituras de temas complexos, considerando também
nato do quadrinista argentino
Héctor Germán Oesterheld que as formas de representação podem variar entre imagens meramente
em 1977. simbólicas e outras quase brutais a partir de seu conteúdo explícito. Na

100 ArtCultura Uberlândia, v. 21, n. 39, p. 99-116, jul.-dez. 2019


América Latina, essa tendência se estende, por exemplo, à história colonial,

D os s iê Quadri nhos & cu l t u ra v i su al : mo d o s d e ver e l er h i st óri as


à história da escravidão, às ditaduras no século XX, mas também a situações
de discriminação e abuso contemporâneos. No contexto da abordagem de
discursos de memória na arte sequencial na América Latina, pode-se citar,
por exemplo, as recentes publicações de Catalá Carrasco, Drinot e Scorer
e de Carrillo Zeiter e Müller.3
Nos últimos anos, o artista, ilustrador e professor paulistano Mar-
celo D’Salete tem recebido muita atenção internacional por suas obras,
culminando na condecoração com o Eisner Award, na categoria melhor
edição americana de material internacional por Cumbe4, bem como o Troféu
HQ Mix 2018 nas categorias de desenhista nacional, roteirista nacional,
destaque internacional e edição especial nacional por seu trabalho Angola
Janga.5 Enquanto em Noite luz6, Encruzilhada e Risco7, o autor problematiza
as condições de vida contemporâneas de jovens afrodescendentes nas
periferias de São Paulo, em Cumbe e Angola Janga D’Salete recupera e (re)
desenha a história do Quilombo dos Palmares, não raro contada, até hoje,
sob uma perspectiva branca, valendo-se de uma extensa pesquisa acadêmica
e iconográfica de mais de dez anos sobre a temática.

3
Ver CATALÁ CARRASCO,
Jorge e DRINOT, Paulo e SCO-
RER, James (orgs.). Comics and
memory in Latin America. Pitts-
burgh: University of Pittsbur-
gh Press, 2017, e CARRILLO
ZEITER, Katja e MÜLLER,
Christoph (orgs.). Historias e
historietas: representaciones de
la historia en el cómic latino-a-
mericano actual. Frankfurt am
Main: Vervuert, 2018.
4
D’SALETE, Marcelo. Cumbe.
São Paulo: Veneta, 2014.
5
Idem, Angola Janga: uma his-
tória de Palmares. São Paulo:
Veneta, 2017.
6
Idem, Noite luz. São Paulo: Via
Lettera, 2008.
Figura 1. Capa do livro Cumbe.8 7
Encruzilhada e Risco foram ori-
ginalmente lançadas em 2011 e
2014, respectivamente. Contam
com reedição recente, num
A opção por narrar a saga de Palmares por episódios possibilita a único volume. Ver D’SALETE,
D’Salete enunciar tal processo histórico desde ângulos diferentes, incluindo Marcelo. Encruzilhada. 2. ed.
São Paulo: Veneta, 2016.
não somente a perspectiva de figuras como Zumbi dos Palmares e outros 8
Idem, Cumbe. Wien: Bahoe
atores da resistência negra, mas também a perspectiva associada a figuras Books, 2017 (capa da versão
femininas. Neste sentido, pretendo analisar as estratégias visuais aplicadas alemã).

ArtCultura Uberlândia, v. 21, n. 39, p. 99-116, jul.-dez. 2019 101


9
Ver HAPKE, Ingrid. Kon- por D’Salete para representar o ponto de vista dos subalternos e discutir
fliktfelder: Die ‘literatura
marginal/periférica’ und ihr em que medida o autor consegue contar as histórias dos seus protagonis-
‘literarischer Terrorismus’. In: tas assumindo-os enquanto efetivos agentes da História – ou seja, sem
KLENGEL, Susanne (org.).
simplesmente vitimizá-los, mas sim tematizando suas resistências e suas
Novas vozes: zur brasilianischen
Literatur im 21. Jahrhundert. personalidades complexas. Pretendo mostrar ainda em que medida tais
Frankfurt am Main/Madrid: obras dedicadas a reescrever episódios da história da escravidão no Brasil
Vervuert/Iberoamericana, 2013,
p. 109. se relacionam, quase como numa continuidade invertida, com as primeiras
10
Ver RINKE, Stefan e SCHUL-
obras que tematizam a situação problemática dos jovens afro-brasileiros
ZE, Frederik. Kleine Geschichte no espaço urbano na atualidade.
Brasiliens. München: C.H. Beck,
2013, p. 110 e 111.
Algumas reflexões sobre HQ, marginalidade e periferia
11
Sobre a linguagem dos qua-
drinhos, ver EISNER, Will.
Comics and sequential art. Ta- A presença e a visibilidade afro-brasileiras nos campos literário e
marac: Poorhouse Press, 2000, artístico no Brasil ainda deixam a desejar, com poucas exceções. Devido a
McCLOUD, Scott. Understan-
ding comics: the invisible art. um etnocentrismo literário que reflete as desigualdades sociais, os protago-
New York: HarperCollins, nistas negros na literatura brasileira são escassos e, quando existem, muitas
1993, e COHN, Neil. The visual
language of comics: introduction
vezes tratam-se de figuras estereotipadas e pouco complexas do ponto de
to the structure and cognition vista literário. Com a publicação do best-seller Cidade de Deus (1997), de
of sequential images. London: Paulo Lins, e, especialmente, com sua adaptação cinematográfica dirigida
Bloomsbury, 2013.
por Fernando Meirelles e codirigida por Kátia Lund [2002], as periferias
urbanas do Brasil recente mereceram atenção internacional inédita. Ao
mesmo tempo, vozes como as do poeta, rapper e ativista paulistano Ferréz
(Reginaldo Ferreira da Silva), um dos fundadores da “literatura marginal”
que se desenvolveu nas periferias de São Paulo a partir dos últimos anos
da década de 1990, começaram a ser ouvidas com maior atenção. As auto-
ras e os autores identificados com esse movimento, sendo eles mesmos da
periferia, problematizam temáticas como a pobreza, a discriminação ou a
violência cotidiana sofrida pelos moradores por diferentes agentes – trafi-
cantes ou policiais, por exemplo.9 Tais vozes recusam certa interpretação
historiográfica tradicional do Brasil, identificando as raízes dos problemas e
conflitos contemporâneos na mal digerida história da escravidão do país. O
Império do Brasil foi o último país independente no continente americano
a abolir a escravidão. A integração dos “libertos” na sociedade brasileira
como participantes ativos se deu sob difíceis condições e muitas vezes os
antigos escravos voltaram para as plantações para trabalhar sob péssimas
condições; outros tentaram achar trabalho nas cidades, onde tiveram que
competir com trabalhadores emigrantes.10 A situação marginal e precária
dos afro-brasileiros permanece como uma condição histórica, refletida até
hoje, em certa medida, no Brasil contemporâneo.
Por muito tempo, as HQs foram vistas como um gênero marginali-
zado, uma forma de subliteratura. A partir dos underground comix dos anos
1960 e 1970, em especial, elas têm certa tradição de destacar protagonistas
que se encontram à margem da sociedade por diferentes razões, o que as
tornam um meio privilegiado tanto para contar a vida nas periferias ur-
banas contemporâneas como para (re)desenhar a história dos oprimidos
no Brasil. A linguagem dos quadrinhos11 permite a visualização explícita
de estruturas hierárquicas, da desigualdade social e das discriminações
sofridas. Através de estratégias narrativas gráficas e das mudanças de
perspectiva visuais (high angle e low angle), torna-se possível mostrar os
desequilíbrios nas relações hierárquicas na sociedade; ao mesmo tempo, os
mesmos instrumentos estilísticos permitem expressar a voz dos subalternos,
suas rebeliões e a resistência cotidiana contra os opressores, mostrando,

102 ArtCultura Uberlândia, v. 21, n. 39, p. 99-116, jul.-dez. 2019


por exemplo, close-ups dos rostos decididos dos protagonistas, olhares que

D os s iê Quadri nhos & cu l t u ra v i su al : mo d o s d e ver e l er h i st óri as


representam consternação, medo ou também relutância e aversão. No gê-
nero das graphic novels, as histórias dos subalternos são incorporadas num
meio que, desde pelo menos a publicação de Maus, de Art Spiegelman, é
levado “a sério” e permite narrar visualmente temáticas complexas e desa-
fiadoras. Por integrar uma linguagem historicamente associada ao público
infanto-juvenil a um cuidadoso formato de edição mais próximo do livro e,
portanto, mais próximo de um universo adulto e letrado, as graphic novels
despertam o interesse de um público mais amplo.
Não surpreende, portanto, o fato de que, nos últimos anos, tenham
sido publicadas várias obras que tematizam graficamente as periferias
no Brasil. Além dos livros de Marcelo D’Salete que serão discutidos mais
adiante, podemos mencionar as obras Jubiabá (2009), de Spacca – adaptação
do romance de Jorge Amado –, O morro da favela (2011), de André Diniz
– que conta a história do fotógrafo Maurício Hora no Morro da Providên-
cia – e Carolina (2016), de Sirlene Barbosa e João Pinheiro, uma espécie de
biografia em quadrinhos da escritora Carolina Maria de Jesus a partir de
suas obras Quarto de despejo: diário de uma favelada (1960) e o Diário de
Bitita (1986, póstuma). Relacionada a esta última publicação é preciso men-
cionar também o fato de que as HQ se transformaram num espaço onde,
mais recentemente, negociam-se discursos feministas. Enquanto autoras e
protagonistas, as mulheres descobriram e conquistaram o espaço das HQs
para elas, dando um novo rosto à “nona arte”, ao buscarem uma aborda-
gem não sexualizada e estereotipada – perspectiva que marca a história
das HQ – em seus trabalhos.

Um retrato diferente: a periferia urbana na obra


de Marcelo D’Salete

Marcelo D’Salete nasceu e vive em São Paulo, palco também de


muitas das suas HQs. Ele estudou Desenho Gráfico e Belas Artes na Uni-
versidade de São Paulo (USP) e concluiu um mestrado em História de Arte
pela mesma universidade. Atualmente, D’Salete trabalha como ilustrador
e ensina Artes Visuais na Escola de Aplicação da USP. O autor publicou
os primeiros contos gráficos nas revistas nacionais Front, Graffiti, Quadreca,
+Soma e Contos Bizarros, na revista eslovena Stripburger e na revista argen-
tina Suda Mery K!.
Os primeiros livros, Noite luz e Encruzilhada, além do conto gráfico
“Risco”, integrado à segunda edição de Encruzilhada, de 2016, relacionam-
se em função da escolha em comum pelo cenário principal – São Paulo e
suas periferias – e pelas condições sociais dos seus protagonistas. Aqui, o
autor revela e documenta os lados problemáticos da cultura urbana que
afetam as vidas das suas figuras: a desigualdade social, a violência urbana
e institucionalizada, a discriminação e o racismo.
Noite luz é composto de seis contos gráficos: “Noite luz”, “Entre rosas
e estrelas”, “Graffiti”, “Buldog”, “O patuá de Dadá” e “Sexta”. Todos eles se
integram não somente pelo cenário – um bairro degradado de uma cidade
brasileira que, mesmo não apresentada nominalmente, claramente remete
a São Paulo – mas também pelo bar que empresta seu nome ao título da
primeira história e do volume, “Noite luz”. O bar aparece em todos os
contos, ora tendo uma função chave para o argumento, ora servindo apenas
como um dos cenários do bairro visitado pelas figuras. O nome do local

ArtCultura Uberlândia, v. 21, n. 39, p. 99-116, jul.-dez. 2019 103


12
Ver D’SALETE, Marcelo. Noi- indica também o estilo de desenho de Marcelo D’Salete, que segue certa
te luz, op. cit., p. 9, 13-15, 18 e 21.
tradição chiaroscura nas suas HQs, trabalhando unicamente com preto e
13
Ver idem, ibidem, p. 52 e 53,
56 e 57.
branco e suas gradações, além de simbolizar as situações vivenciadas por
seus visitantes, os protagonistas de Noite luz: o argumento principal nos
14
Ver idem, ibidem, p. 52, 54 e
55, 58. contos quase sempre se desenvolve de noite, na escuridão. Muitas vezes,
15
Ver idem, ibidem, p. 37 e 38, p.
as personagens ficam na sombra, sem serem reconhecíveis, como o perse-
42 e 43, 47. guidor da protagonista Márcia, do conto que empresta seu título à obra,
16
Ver idem, ibidem, p. 78-80. que usa um boné que deixa seu rosto completamente sombreado, recurso
17
Ver idem, ibidem, p. 46.
que aumenta a sensação de ameaça provocada pelo personagem.12 Outras
vezes, usam capacetes, como no conto “Buldog”, deixando suas identidades
18
Ver idem, ibidem, p. 50.
às escuras num primeiro momento.13 Tal jogo de identidades e disfarces é
19
Para uma análise detalhada
dos contos gráficos de Encru- intensificado pelo estilo cinematográfico de narrar de Marcelo D’Salete: o
zilhada, ver WROBEL, Jasmin. autor varia os ângulos nas vinhetas constantemente, fazendo uso de close-
Narrating other perspectives,
re-drawing history: the prota-
-ups e perspectivas high angle e low angle, o que lhe permite mostrar detalhes
gonization of Afro-Brazilians que normalmente passariam despercebidas pelo leitor e ofuscar outros
in the work of graphic novelist momentos no argumento que só ficam compreensíveis no final do conto.
Marcelo d’Salete. In: CARVA-
LHO, Vinicius Mariano de e Outro elemento que faz parte desse jogo são os símbolos relacionados
GAVIOLI, Nicola (org.). Litera- a alguns dos personagens como, por exemplo, a tatuagem de buldogue, no
ture and ethics in contemporary
Brazil. New York: Routledge,
caso do segurança no conto homônimo14, e que já antecipa, em certo grau, o
2016. momento de violência brutal nessa história. Em “Graffiti”, por outro lado,
a protagonista Benê entrega ao namorado Dito um desenho de Iansã, a
senhora dos ventos e das tempestades da mitologia iorubá e que também
simboliza o entardecer. Dito cria um grafite baseado nesse desenho – que
se transforma no leitmotiv do conto – para reconquistá-la.15 De fato, todos
os elementos visuais que exercem tal função simbólica em Noite luz apa-
recem como símbolo isolado na primeira página de cada conto. Também
há momentos de “luz” nos episódios narrados por Marcelo D’Salete, mas
quase nunca terminam com um “final feliz”, visto que a escuridão e a noite
dominam o destino dos protagonistas. Um elemento de “luz” e esperança
como contraponto à “noite” é introduzido com o personagem do catador
mudo Aldair, que aparece nos contos “O patuá de Dadá” e “Graffiti”. No
primeiro, ele salva a vida do pequeno Dadá/Antônio16;no segundo, ele ajuda
com a reunião de um casal.17 É importante, nesse contexto, o fato dele ser
catador, de trabalhar com papel e, mais ainda, de colecionar fotografias.
Às vezes elas se encontram sob a forma de fragmentos, como no caso de
“Graffiti”, onde, ao final do conto, o catador não só consegue reaproximar
os protagonistas Benê e Dito, mas também junta os pedaços da fotografia
do casal que Benê tinha rasgado ao começo do conto.
Ele alfineta a fotografia no final do conto numa parede onde já se
encontram inúmeras fotos de outras pessoas.18 O personagem do catador
Aldair pode ser concebido, em certo sentido, como uma espécie de alter
ego do próprio autor: ele junta todos esses momentos registrados dos mo-
radores do bairro compondo, assim, suas histórias, num mosaico urbano e
silencioso. O fato dele ser mudo combina também com o estilo de narração
do próprio Marcelo D’Salete, que deixa as palavras a seus protagonistas
e prescinde de narração externa. Ao mesmo tempo, a “falta de voz” de
Aldair, catador e morador de rua, também tem um valor simbólico aqui.
Encruzilhada, romance gráfico publicado em 2011 pela editora Leya
Brasil/Barba Negra e reeditado em 2016 por Veneta, tem uma estrutura nar-
rativa parecida com Noite luz. Ele é composto de cinco narrativas gráficas:
“Sonhos”, “93079482”, “Corrente”, “Brother”, “Encruzilhada”; na última
edição de 2016 também inclui “Risco”.19 Os argumentos dos episódios

104 ArtCultura Uberlândia, v. 21, n. 39, p. 99-116, jul.-dez. 2019


D os s iê Quadri nhos & cu l t u ra v i su al : mo d o s d e ver e l er h i st óri as
Figura 2. O catador Aldair, de Noite luz.20

20
Ver D’SALETE, Noite luz, op.
cit., p. 39.
21
D’SALETE, Marcelo. Encruzi-
Figura 3. A protagonista Dora, do conto “93079482”, de Encruzilhada.21 lhada, op. cit., p. 158.

ArtCultura Uberlândia, v. 21, n. 39, p. 99-116, jul.-dez. 2019 105


22
Ver idem, ibidem, p. 10 e 11, narrados não se encontram diretamente relacionados, mas “93079482”
22, 24 e 25.
cumpre uma função quase de moldura visual (graphic frame) em relação
23
Ver idem, ibidem, p. 63.
aos demais contos, visto que momentos da sua narrativa encontram-se
Ver idem, ibidem, p. 17-20, p. intercalados no começo do livro, antes do começo de cada conto particular
24

79, 141-144, 147-150.


e no final da obra, norteando a leitura da obra como um todo. Na última
25
Ver idem, ibidem, p. 19 e 137.
página de Encruzilhada, Dora, a protagonista de “93079482”, é representada
26
Ver idem, ibidem, p. 21, 30-48, olhando diretamente para o leitor, onde vemos a tela do seu celular com
passim.
uma foto do namorado, Beto, assassinado no conto, lembrando-nos da
27
YUKA, Marcelo. Disponível
em <https://www.dsalete.art.
nossa responsabilidade numa sociedade socialmente conflitiva e marcada
br/hq_encruzilhada.html>. pela desigualdade.
Acesso em 18 set. 2018. Além disso, os contos dialogam entre si a partir de experiências si-
28
MOURA, Pedro. Encruzilha- milares vivenciadas pelos protagonistas. Como em Noite luz, as narrações
da. Marcelo D’Salete (Barba
Negra). Ler BD, 5 set. 2018. compartilham o mesmo cenário, São Paulo, caracterizado por seus prédios
Disponível em <http://lerbd. altos e emparelhados um do lado do outro, repletos de pichações e que
blogspot.com/2011/09/encru-
provocam uma sensação de aperto e claustrofobia.
zilhada-marcelo-dsalete-barba.
html>. Acesso em 18 set. 2018. Por meio de perspectivas high e low angle também trabalhadas em
29
No conto “Noite luz”, o autor Noite luz, um labirinto urbano ameaçador é criado de forma a fazer com que
ainda apresenta os diálogos os protagonistas pareçam pequenos e vulneráveis, como no conto “Sonhos”,
em legendas brancas ao invés
de balões.
onde os protagonistas Bia e Lino moram num arranha-céu inacabado22, ou
como em “Corrente”, onde a única visão de “liberdade” é mostrada num
pátio apertado através de uma perspectiva low angle que mostra um pedaço
de céu.23 Os diferentes ângulos também são usados para ilustrar os conflitos
e as hierarquias entre os personagens marginalizados e seus opressores,
representados, muitas vezes, olhando do alto para suas vítimas, como em
“Sonhos”, “Brother”, “Encruzilhada” e “Risco”.24 A desigualdade social
e a violência institucionalizada também são destacadas a partir da repre-
sentação dos pés dos protagonistas, num contraste entre os pés descalços
ou com chinelo dos protagonistas e as botas fortes dos seguranças, como
em “Sonhos”, ou sapatilhas de última moda, como em “Risco”.25 Em geral,
logomarcas estão onipresentes em Encruzilhada, representando o mundo
do consumo como contraponto das condições de vida reais dos moradores
da periferia urbana de São Paulo. Assim, em “Sonhos”, a pequena Bia usa
uma camisa desgastada da Nike enquanto em “93079482” o símbolo da
Motorola e painéis de publicidade da Coca-Cola se encontram presentes
a todo momento.26
Como em Noite luz, o desenho sombrio em preto e branco – o “traço
[...] sujo e poético”, nas palavras de Marcelo Yuka27 – cria uma atmosfera
escura e pesada que sublinha um tom de ameaça permanente sobre os pro-
tagonistas. D’Salete usa exclusivamente tinta nanquim e acrílico para suas
ilustrações em preto e branco, mas, como observa o pesquisador português
Pedro Moura em sua resenha do livro, o autor não cumpre simplesmente
com a tradição chiaroscura, criando efeitos de alto contraste, senão dá um
protagonismo às sombras, dotando-as de uma “organicidade activa [...]
que un[e] estas histórias”.28 As vinhetas são definidas claramente e emol-
duradas por finas e regulares linhas pretas, tal como em Noite luz. De vez
em quando, um balão transgride as linhas da borda de um quadrinho. O
tamanho das vinhetas varia, dependendo do que é representado em cada
caso, e se transforma num instrumento para criar ênfase, velocidade ou
lentidão. Uma narração externa não existe e só “ouvimos” as vozes dos
protagonistas em forma de balões de diálogo. Em comparação com Noite
luz29, na qual D’Salete já trabalhara com pouco texto e diálogo e deixa as
imagens e expressões de suas figuras conduzirem a narrativa, o que se ob-

106 ArtCultura Uberlândia, v. 21, n. 39, p. 99-116, jul.-dez. 2019


serva é que tal tendência se intensifica ainda mais em Encruzilhada. Quando

D os s iê Quadri nhos & cu l t u ra v i su al : mo d o s d e ver e l er h i st óri as


uma figura é ausente na vinheta e só lemos o que ela diz ou pensa, o texto
é apresentado em legendas.
Também aqui os títulos dos contos representam o leitmotiv de cada
narrativa. Em “Sonhos”, por exemplo, o título pode ser atribuído tanto
ao protagonista Lino quanto à sua irmã/amiga Lina e ao segurança Mike.
Numa das cenas, Lino olha para um circo que mais parece um pequeno
microcosmo irreal no meio dos prédios altos da metrópole. Mas Lino
encontra-se excluído deste mundo de sonhos e magia, fato representado
pelas grades que o impedem de se aproximar mais e que ainda remetem
visualmente às grades de uma cela de prisão.30 Quando Lino é ameaçado
e atacado por seguranças, a cena é interrompida por um avião que atrai a
atenção do líder dos homens, Mike, que então se lembra do aniversário do
seu filho – pensa em um avião de brinquedo como presente – e deixa Lino
em paz. Essa mesma cena do avião é conectada com Bia que, adormecida,
sonha com um avião que leva Lino para longe dela. Nesse caso, trata-se de
um pesadelo que, novamente, é conectado com a visão do circo do começo
da história, fechando um círculo de sonhos não cumpridos.31 Outro conto
que brinca com o sentido ambíguo do título é “Corrente”, que se refere,
inicialmente, ao ritual praticado pelos moradores de passar uma pequena
figurinha de vizinho a vizinho sem “quebrar a corrente”.32 Por outro lado,
a palavra pode ser associada também ao destino do protagonista do conto,
que parece não mudar nunca. Por último, num sentido mais explícito, po-
deria se referir também à “corrente de ar” entre as duas janelas abertas do
protagonista e da prostituta observadas no começo e no final do conto. Esse
jogo de sentidos também é aplicado no conto “Risco”, onde o substantivo
refere-se, por um lado, a um risco que uma das figuras, líder de um grupo
de jovens brancos que sai de uma festa, descobre no carro que deixara sob
os cuidados do protagonista Doca. Ao mesmo tempo, o título faz referên-
cia ao risco de vida que corre Doca após a descoberta do “risco” no carro,
quando é espancado tanto pelo grupo de jovens como pela polícia e se salva
da execução por um dos policiais por mera coincidência: uma jornalista
está observando a cena desde a sua janela e está tirando fotos da situação,
o que intimida os policiais.33 Além disso, pode-se relacionar o substantivo,
num nível metatextual/visual, ao traço desenhado dos contos gráficos.
Como em Noite luz, existem diferentes jogos de identidade, máscaras
e confusões em Encruzilhada. Mike, o segurança de “Sonhos” que ameaça
e maltrata o protagonista Lino, é representado com óculos escuros que
refletem tudo o que ele vê e, ao mesmo tempo, impedem que saibam como
seus sentimentos se expressam através do olhar. Depois do episódio com
o avião, quando se lembra do aniversário do filho, Mike tira os óculos e
toda a superioridade e frieza do personagem desaparecem com eles; ao
final, o que temos é um pai triste e frustrado que só pode comprar um
pequeno avião de brinquedo para o filho.34 Em “Encruzilhada”, onde se
cruzam e entrecruzam dois fios de enredo, somos testemunhas de uma
confusão baseada em estereótipos racistas: um dos protagonistas, Janu, 30
Ver D’SALETE, Marcelo. En-
afro-brasileiro, é confundido com um ladrão de carros – que, de fato, é cruzilhada, op. cit., p. 16.

um homem branco – pelos seguranças de um grande supermercado e é 31


Ver idem, ibidem, p. 20-22;
p. 25.
ameaçado e brutalmente torturado por eles.
Em Noite luz e Encruzilhada, Marcelo D’Salete consegue mostrar os
32
Idem, ibidem, p. 56.

lados sombrios da periferia urbana, com seus perigos, ameaças e injusti- 33


Ver idem, ibidem, p. 150.
ças vivenciados por seus protagonistas, vítimas de diferentes agentes de 34
Ver idem, ibidem, p. 26 e 27.

ArtCultura Uberlândia, v. 21, n. 39, p. 99-116, jul.-dez. 2019 107


35
D’SALETE, Marcelo. Angola violência: narcotraficantes, acossadores, seguranças e policiais. Ao mesmo
Janga, op. cit., p. 419.
tempo, o autor não mostra simplesmente um mundo em “preto e bran-
36
“The scars caused by slavery
are still poorly understood
co”, senão antes em gradações complexas: alguns dos seus protagonistas
and discussed [...]. Brazil is tentam se opor às violências sofridas, como Doca em “Risco”; por outro
an extremely unequal, racist lado, alguns dos agressores também revelam sua vulnerabilidade, como
country, and this is closely
related to its past. We can’t o segurança Mike no conto “Sonhos”.
continue to consider slavery as
something soft in our history.
[...] More than quantitive data,
História(s) redesenhada(s): Palmares e a resistência negra em
my intention was to speak from Cumbe e Angola Janga
the perspective of enslaved
Africans in the period and ad-
dress the modes of resistance Os romances gráficos Cumbe (2014) e Angola Janga (2017) são o resul-
of these people. From the most tado de uma pesquisa de mais de dez anos de D’Salete. No epílogo que
individual way to the forms
of collective struggle. There
acompanha a obra mais recente, o artista conta o seu primeiro contato com
are few such stories in comic a História de Palmares e explica como se cristalizou a ideia para o projeto:
format that tried to address this
in a very personal way. [...] We
need fiction to try to overcome A história do Quilombo de Palmares [...] chegou até meus ouvidos nos primeiros
these limits and create new anos escolares. Uma colega disse, categórica: hoje é dia 20 de novembro, dia de Zumbi
reading possibilities”. D’SA-
dos Palmares! Olhei curioso. Mal conhecia a história de Zumbi ou qualquer outro
LETE, Marcelo apud FRANK,
Priscilla. Striking graphic no- fato da história negra no Brasil. Esse universo foi descortinar-se somente anos mais
vel tells the story of brazilian tarde, por influência do rap, da literatura e de filmes. Muito tempo depois, já na
slavery through the eyes of the
oppressed. 4 jul. 2015. Dispo- universidade, tive contato com textos sobre o antigo conflito da Serra da Barriga.
nível em <https://www.huf- Naquele momento, percebi que Palmares foi um grande acontecimento. Um dos
fingtonpost.com/2015/04/07/
principais conflitos do século XVII e do Brasil colonial. Mais do que isso, o maior
marcelo-dsalete-brazilian-s-
lavery_n_7011238.html?guc- levante escravo negro na América, comparável à Revolução Haitiana. Ainda vacilan-
counter=1>. Acesso em 19 set. te, iniciei um primeiro roteiro sobre Palmares. Tracei ali quais seriam os principais
2018. Agradeço a Ivan Lima
Gomes pela tradução. fatos e a linha central da narrativa. Esbocei alguns desenhos, mas não possuía as
informações necessárias para dar cabo do projeto naquele momento. Passei os anos
seguintes estudando textos e a iconografia do período.35

No contexto da desigualdade e dos conflitos atuais no país, o autor


interpreta o passado mal digerido como raiz dos dilemas vividos pelo
Brasil ainda hoje:

As cicatrizes causadas pela escravidão seguem, ainda, muito pouco compreendidas


e discutidas [...]. O Brasil é um país extremamente desigual e racista, o que se
relaciona diretamente com este passado. Nós não podemos continuar considerando
a escravidão como algo leve em nossa história [...]. Mais do que dos quantitativos,
minha intenção foi falar desde a perspectiva dos africanos escravizados nesta época
[da colonização], e indicar os modos de resistência de tais povos – desde os mais
individualizados às formas de luta coletiva. Há poucas histórias em formato HQ
que tentaram lidar com este tema de forma tão pessoal [...]. Precisamos de ficção
para tentar superar estes limites e criar novas possibilidades de leitura.36

De fato, Cumbe e Angola Janga não são meras narrativas visuais dos
fatos históricos conhecidos sobre os mocambos. Trata-se antes de uma
re-imaginação dos acontecimentos nos arredores de Palmares desde a
perspectiva dos oprimidos, representados, porém, não como vítimas, mas
como agentes de sua própria resistência. A pesquisa de D’Salete baseia-se
tanto em crônicas do tempo colonial como em registros policiais daquela
época, além de literatura acadêmica mais recente. Os respectivos contos e
episódios em Cumbe e Angola Janga muitas vezes se inspiram nessas fontes,
abordadas por D’Salete desde o campo ficcional das HQs. O autor também

108 ArtCultura Uberlândia, v. 21, n. 39, p. 99-116, jul.-dez. 2019


visitou Maceió durante os anos de pesquisa para obter imagens da paisa-

D os s iê Quadri nhos & cu l t u ra v i su al : mo d o s d e ver e l er h i st óri as


gem e dos lugares que iam formar o palco para seus livros. O resultado
é uma narrativa gráfica complexa em relação à representação visual, ao
desenvolvimento dos personagens e à estrutura narrativa.
Cumbe, recentemente reeditada pela editora Veneta em 2018, consiste
em quatro contos gráficos autônomos. Como no caso das duas outras obras
de D’Salete discutidas mais acima, os contos relacionam-se tematicamente:
1) “Calunga”, palavra proveniente do bantu significa, de acordo com o
glossário que acompanha a obra, “boneco pequeno, camundongo, figuras
humanas em desenhos infantis, as bonecas dos cortejos do maracatu, céu,
morte, o próprio homem negro e muitos outros sentidos. ‘O termo multi-
linguístico banto kalunga encerra ideia de grandeza, imensidão, designando
Deus, o mar, a morte’”.37 2) “Sumidouro”; 3) o conto “Cumbe” se vale de
uma palavra que provém das línguas de Angola e do Kongo e que é usada
como sinônimo de quilombo; 4) “Malungo”38, outra palavra banto, utilizada
com o significado de companheiro. Cada capítulo conta uma espécie de
capa, que introduz elementos fundamentais do conto correspondente ao
lado do título.
Estilisticamente, Cumbe é parecida com Noite luz e Encruzilhada, ainda
que o cenário seja completamente diferente: paisagens abertas, matagais,
plantações de cana de açúcar, fazendas e engenhos. Também aqui D’Salete
usa perspectivas low e high angle para ilustrar a desigualdade de poderes
nas suas histórias. Tal como nos trabalhos anteriores, há um contraste en-
tre os pés descalços dos escravos com os pés dos fazendeiros e suas botas
pesadas. Com sua linguagem gráfica de orientação fílmica e poética, ele
usa e instrumentaliza uma gama completa de long shots e close-ups para
narrar os acontecimentos, movimentando-se entre meras insinuações que
incitam a interpretação do leitor e ilustrações explícitas que arrebatam o
leitor com sua veemência. Como nas obras anteriores, uma narração ex-
terna não existe e o discurso direto é limitado a um mínimo, enquanto a
obra focaliza expressões faciais e a linguagem corporal dos personagens.
Estes são acompanhados ao longo dos contos por elementos da cultura e
mitologia bantu: desenhos – vide o símbolo quioco39 em “calunga” ou a
tartaruga cabinda em “cumbe” –, plantas medicinais como a nsanga (“ca-
lunga”), um vissungo (um canto) em “sumidouro” ou a pequena escultura
de Chibidinda Ilunga, um mítico rei-herói africano, em “cumbe”.
Todos esses elementos atuam como símbolos de identificação e de
força e esperança pela liberdade, ainda que eles também possam servir para
gerar pavor como é o caso do quibungo que aparece no conto “Malungo”.
Os irmãos protagonistas, Damião e Ciça, escutam histórias de uma escrava
sobre o quibungo, uma mistura entre bicho selvagem e ser humano que
tem seu focinho com dentes na nuca, para onde joga suas presas. Pouco
depois, a pequena Ciça tem um encontro com a besta que, ao final, reve-
la-se como o fazendeiro violento e igualmente monstruoso que estupra e
mata uma criança.
Esse episódio é, com certeza, um dos mais pesados do livro, o que 37
D’SALETE, Marcelo. Cumbe,
não diminui em nada a carga poética e lírica do conto “Malungo”. Depois op. cit., p. 171.
da morte de sua irmã menor, Damião foge da plantação e, anos depois, 38
Idem, ibidem, p. 172. Para uma
retorna acompanhado de vários “malungos” do mocambo para incendiar análise detalhada dos contos
gráficos de Cumbe, ver WRO-
a fazenda. Ele leva os restos mortais de Ciça para um lugar pacífico, den- BEL, Jasmin, op. cit.
tro do mocambo, onde ela pode estar livre. Essa cena é seguida por uma 39
Quioco refere-se aos povos
representação close-up do focinho do quibungo; pouco a pouco, vinheta tchokwes, uma etnia bantu.

ArtCultura Uberlândia, v. 21, n. 39, p. 99-116, jul.-dez. 2019 109


40
D’SALETE, Marcelo. Cumbe,
op. cit., p. 146.
41
Ver idem, ibidem, p. 32.

Figura 4. Ciça Cumbe. Ciça encontra o quibungo. Cena do conto “Malungo”, de Cumbe.40

Figura 5. Valu Cumbe. Valu com o colar de Nana, do conto “Calunga”, de Cumbe.41

110 ArtCultura Uberlândia, v. 21, n. 39, p. 99-116, jul.-dez. 2019


por vinheta, a perspectiva do observador é distanciada cada vez mais, até

D os s iê Quadri nhos & cu l t u ra v i su al : mo d o s d e ver e l er h i st óri as


que vemos o quibungo sentado numa flor branca, pequeno e inofensivo.
As últimas vinhetas mostram Ciça cheirando esta flor e o quibungo, mi-
núsculo, já não mais representa um perigo para ela. Assim como a for, o
seu vestido e o cenário de fundo são brancos, trazendo-nos uma sensação
de paz e sossego.42
Uma revolta de escravos também é tematizada em “Cumbe” e, se bem
a revolta é abatida graças às armas superiores dos portugueses, a esperança
e a crença como caminhos à liberdade são mantidas pela figura da velha
sábia, a única sobrevivente: “Cumbe virá novamente. Cumbe é força...
ele sempre retorna”.43 Os outros dois contos, “Calunga” e “Sumidouro”,
mostram histórias individuais de resistência que terminam em tragédia.
Valu, protagonista de “calunga”, quer enfrentar o calunga, “o mar que não
acaba”, para fugir do engenho onde trabalha com sua parceira Nana, uma
escrava doméstica. Nana, que não é vítima da violência brutal que Valu
encara no campo de cana de açúcar, prefere ficar na fazenda; a escravidão
dela também é espiritual, o que se manifesta na cruz que ela usa no seu
colar. Para poder levar Nana com ele, Valu, desesperado, mata a parceira
e pega seu colar como símbolo de sua presença.
Caçado por um homem da fazenda e seu cachorro bravo, Valu con-
segue chegar ao mar, onde afunda. A cena é onírica e muito poética: nas
profundidades da água escura, quem espera por ele é Nana e, no mar, os
lábios dos dois protagonistas se encontram mais uma vez. O conto termi-
na, porém, com a visão de Nana no mundo real, esfaqueada e sem vida.
A história dos dois protagonistas é refletida pelo ideograma quioco com
que a trama é introduzida e que reaparece como leitmotiv nos encontros de
Valu e Nana e ao final do conto, desta vez riscado. Segundo José Redinha,
“este símbolo quioco representa um ninho e dois pássaros [que t] rançam
os sentidos de espera resguardada e de liberdade mundo afora”.44 O conto
“Sumidouro” será comentado mais adiante, pela forte proeminência dos
debates em torno da representação feminina neste conto, tema da próxima
seção.
No caso de Angola Janga, D’Salete conta, pela primeira vez, uma tra-
ma única, dividida em onze capítulos e mantendo a tendência de narrar
uma história em vários episódios e sob diferentes ângulos de perspectiva.
A extensão da obra, de 432 páginas, o tema histórico e a linguagem visu-
al poética adotada permitem-nos pensá-la não tanto como um romance
gráfico, senão antes como uma verdadeira epopeia gráfica que abarca o
intervalo entre 1655, ano de nascimento de Zumbi dos Palmares, e 1702, sete
anos após a morte de Zumbi quando, na ficção, a guerreira Andala volta
ao engenho para continuar a luta. A trama é inspirada na história do líder
da resistência negra e do Quilombo dos Palmares mas, como em Cumbe,
D’Salete usa a ficção para re-imaginar os vazios da historiografia. O título
da obra já indica o lugar de enunciação desde o qual a história de Palmares
é contada: “Angola Janga”, “Pequena Angola”, foi o nome que os próprios
quilombolas deram ao Quilombo dos Palmares. Enquanto Cumbe já contava
com recursos paratextuais como um glossário e uma espécie de posfácio
de autoria do “escritor, angoleiro e pedagogo” Allan da Rosa, Angola Janga 42
Idem, ibidem, p. 158-163.
vem acompanhada de um texto sobre os mocambos e engenhos no século 43
Idem, ibidem, p. 130.
XVII, pelo epílogo “Picadas e sonhos”, por uma cronologia da Guerra de 44
REDINHA, José apud D’SA-
Palmares, vários mapas que ilustram o desenvolvimento dos quilombos LETE, Marcelo. Cumbe, op. cit.,
no Brasil e um glossário. Além disso, cada capítulo é introduzido com uma p. 171.

ArtCultura Uberlândia, v. 21, n. 39, p. 99-116, jul.-dez. 2019 111


45
D’SALETE, Marcelo. Angola ou várias citações de crônicas de época, que funcionam como um comen-
Janga, op. cit..
tário ao episódio gráfico narrado por Marcelo D’Salete. Tais comentários,
46
Idem, ibidem.
na maioria dos casos, expressam a visão dos opressores e são retificados
Ver idem, ibidem, p. 91 e 92. pela perspectiva dos oprimidos (re)imaginada pelo autor ao longo da sua
47

48
Ver idem, ibidem, p. 340 e 341. narrativa gráfica.
49
Ver idem, ibidem, p. 380-386. Os acontecimentos narrados em Angola Janga giram em torno das
50
Ver idem, ibidem, p. 105. últimas décadas do Quilombo dos Palmares, priorizando o destino e a
51
Ver idem, ibidem, p. 323. influência de Zumbi dos Palmares assim como o de muitos atores dife-
52
Ver idem, ibidem, p. 404.
rentes que fizeram sua parte na história do mocambo – alguns deles bem
documentados pela historiografia, como Ganga-Zumba, Acotirene, António
Soares, o bandeirante paulista Domingos Jorge Velho ou o capitão Furtado
de Mendonça. Estilisticamente, a obra não se distingue muito de Cumbe,
se bem que chama a atenção por, devido à extensão da obra e do tempo
narrado, utilizar-se frequentemente de vinhetas menores, às vezes até 12
por página.
Como nas obras anteriores, nota-se grande atenção aos detalhes. A
brutalidade de figuras como Domingos Jorge Velho ou Inácio, este último
fictício, é contrabalançada por manifestações de amor, amizade e solidarie-
dade entre os quilombolas, e por momentos visualmente muito poéticos,
como a morte do próprio Zumbi dos Palmares no penúltimo capítulo, “O
abraço”.45 Como no conto “Malungo”, de Cumbe, os “monstros humanos”
em Angola Janga também são relacionados a entidades mitológicas; neste
caso, Domingos é associado com o Anguêri no capítulo 7, “Selvagens”,
entidade mitológica guarani que seria uma espécie de morto-vivo da flo-
resta que ataca à noite.46
No mesmo capítulo e nos capítulos seguintes, o papel da população
indígena nos quilombos e na resistência negra é tematizado. O título do
capítulo sugere certa ambiguidade porque, com “selvagens”, não se refere
às pessoas indígenas, ao contrário do que usual e discriminatoriamente
se costuma dizer, senão aos bandeirantes paulistas, com sua postura pre-
datória e violenta perante os indígenas. Mas, como em outros livros de
D’Salete, também aqui não é possível diferenciar simplesmente entre “bom”
e “mau”. Assim encontram-se figuras como o negro Zona – inspirado em
Ganga Zona –, que não hesita em matar um malungo e em mentir para
conseguir acordo de paz com os portugueses47, ou o português Joaquim,
que se junta aos quilombolas e morre lutando ao lado deles.48 A “traição”
de Zumbi pelo mulato Antônio Soares é tematizada com muita empatia,
enquanto o conflito interior do personagem é mostrado com riqueza de
detalhe. Soares, na ficção de Marcelo D’Salete, morre ao final ainda na
resistência e consegue ajudar a sua parceira Andala fugir.49
Outro elemento que já teve um papel importante em Cumbe e que
reaparece em Angola Janga é a escultura de Chibinda Ilunga, um mítico rei
tchokwe. No capítulo de Angola Janga intitulado “Aqualtune”, a escultura
se encontra ainda na possessão de Ganga Zumba, mas a figura é entregue
por Zona ao governador para fechar o acordo de paz.50 Mais adiante, em
“Doce inferno”, a escultura desaparece de repente, motivando um ataque
de raiva do governador. Fica claro que este acredita ter certo controle so-
bre Palmares pela presença da estatueta. Insinua-se que uma das escravas
domésticas do governador a pegou.51 A estátua reaparece ao final do livro,
quando Andala volta em 1702, sete anos depois das mortes de Zumbi e
Soares, levando a figura de Chibinda Ilunga em seu cinto, como a dizer:
a luta continua.52

112 ArtCultura Uberlândia, v. 21, n. 39, p. 99-116, jul.-dez. 2019


Também presentes ao longo da trama estão símbolos das culturas

D os s iê Quadri nhos & cu l t u ra v i su al : mo d o s d e ver e l er h i st óri as


Asante – Ananse Ntontan, “teia de aranha” – e Tchokwe – Sona, um conjunto
de símbolos formado por pontos e linhas sinuosas –, que se entrelaçam
com a trama e que são, ao mesmo tempo, a manifestação simbólica da nar-
rativa visual. Em uma cena no capítulo 6, “Encontros”, Tata explica para
a pequena Dara, filha do Zumbi, o funcionamento de uma teia de aranha
como proteção e armadilha ao mesmo tempo, o que ele ilustra justamente
com o símbolo Ananse Ntontan.53 Em geral, é notável a presença e função
dos insetos no livro. Muitas vezes são os elementos vinculantes entre uma
visão e a realidade; noutras, mostram o “caminho” aos protagonistas, como
no caso do mesmo capítulo, quando Dara persegue um escaravelho-rino-
ceronte no alto de uma árvore. De lá, ela tem uma boa visão do engenho
e entende a monstruosidade do lugar.54 Por outro lado, é a partir de um
escaravelho que o padre tem a ideia de construir uma cerca em diagonal
para atacar Palmares, o que finalmente leva ao sucesso dos bandeirantes
e à conquista do mocambo.55
Como no caso de Cumbe, o livro termina com um final que evoca
esperança. Depois das mortes de Zumbi e Soares, tudo parecia perdido.
Dara e outras escravas sobreviventes estão presas novamente num enge-
nho, em 1702. A filha de Zumbi foge pelo teto do celeiro onde as mulheres
dormem, mas é capturada pelo Sr. Cunha, que pretende castigar a menina.
Justo nesse momento chega Andala com alguns quilombolas sobreviventes
e liberta as mulheres. As últimas vinhetas mostram Dara com uma lança
nos braços, olhando para o céu vasto. Nesse momento, podemos nos lem-
brar das palavras da velha sábia do conto “cumbe”, que já citamos antes:
“Cumbe virá novamente. / Cumbe é força... ele sempre retorna”.56

A visualização de perspectivas femininas na obra


de Marcelo D’Salete

Ao contrário da maioria dos quadrinistas masculinos que, até hoje,


dominam o meio das HQs, Marcelo D’Salete não deixa de incorporar
também protagonistas mulheres igualmente complexas e lutadoras em
seus trabalhos, conforme destacado no caso da já mencionada guerreira
Andala em Angola Janga, única figura retratada na contracapa da primeira
edição do livro. É importante mencionar que mulheres desempenharam
um papel importante na história da resistência negra. Podemos pensar, por
exemplo, em Aqualtune, mãe de Ganga Zumba, avó materna de Zumbi e
líder de uma força de dez mil homens na batalha de Mbwila, em Angola,
1665. Ela foi trazida prisioneira para Pernambuco, mas conseguiu fugir para
Palmares pouco depois de sua chegada, liderando um mocambo que mais
tarde receberia seu nome. O capítulo 3, “Aqualtune”, se passa no mocambo
de mesmo nome, mas, na versão narrada por D’Salete, o mocambo recebe
o nome Aqualtune por escolha de Acotirene, outra guerreira-matriarca de
Palmares.57 Para ilustrar a representação de protagonistas femininas na
obra de D’Salete, gostaria de tematizar mais dois exemplos concretos, um 53
Ver idem, ibidem, p. 204.
de Encruzilhada, outro de Cumbe. 54
Ver idem, ibidem, p. 212.
No conto “Brother”, de Encruzilhada, as protagonistas são duas irmãs 55
Ver idem, ibidem, p. 300.
que vendem DVDs pirateados em São Paulo. Num dado momento, a mais 56
D’SALETE, Marcelo. Cumbe,
nova, Jô, fica sozinha com a mercadoria enquanto sua irmã vai buscar troco. op. cit., p. 130.
A trama de ambas é entrelaçada com a de Juninho e um amigo que vivem 57
Ver D’SALETE, Marcelo. An-
por perto e que passam pela tenda de Jô. Juninho tenta distrair a menina gola Janga, op. cit., p. 96.

ArtCultura Uberlândia, v. 21, n. 39, p. 99-116, jul.-dez. 2019 113


58
Ver idem, Encruzilhada, op. cit. insinuando que “o rapa” está vindo, palavra com que se refere a uma ação
59
Ver NAVARRETE, Juan. La policial contra moradores da rua e vendedores de rua. Quando Jô, nervosa,
negritud em la historieta brasi-
leña: um primer acercamiento
se vira, Juninho furta o DVD do filme japonês Brother, de Takeshi Kitano
a la novela gráfica Cumbe y la (2000), sobre a máfia Yakuza. A pequena Jô percebe que foi enganada e
obra de Marcelo D’Salete. Paca- reclama, corajosamente, o DVD, mas Juninho a empurra no chão. Ela está
rina del Sur, v. 6, n. 23, abr.-jun.
2015, México D.F. Disponível sozinha e chora, mas num flashback poético, recorda-se da importância de
em <http://pacarinadelsur.com/ ganhar dinheiro para poder visitar a mãe. Depois da visão, ela levanta com
home/senas-y-resenas/1149-la-
negritud-en-la-historieta-brasi-
novo ânimo e persegue Juninho e seu amigo. Jô reencontra-os num cassino
lena-un-primer-acercamiento- e consegue pegar o DVD quando o amigo de Junino se distrai com um
-a-la-novela-grafica-cumbe-y- videogame. Orgulhosa, ela volta à tenda e encontra sua irmã, que perdeu
-la-obra-de-marcelo-d-salete>.
Acesso em 25 de set. 2018. todo o ocorrido. À primeira vista, o título do conto poderia fazer referên-
60
D’SALETE, Marcelo. Cumbe,
cia à ausência de uma figura protetora, como um irmão maior, mas, com
op. cit., p. 52. sua determinação de resistir à injustiça vivenciada, Jô prova que não tem
61
Idem, ibidem, p. 79. necessidade do “Brother”.58
62
“É um canto de trabalho em
O outro conto que gostaria de comentar é “Sumidouro”, de Cumbe. O
versos metafóricos, segundo o título refere-se à prática então comum de arremessar escravos “rebeldes”
Dicionário da escravidão de Cló- nos poços profundos das fazendas.59 Ele narra a história de uma relação
vis Moura. Muito usado pelos
negros de Minas Gerais para complexa entre uma mulher escravizada, Calu, e seu “dono”, o senhor
se comunicarem sem serem Tomé. A primeira vinheta mostra um close-up de um crânio de boi, sím-
compreendidos pelos brancos.
O verso ‘Ei oia lá / ô minino
bolo da morte. Nas vinhetas seguintes, distanciamo-nos pouco a pouco e
Mané no uandá...’ foi coletado o ângulo cada vez maior revela primeiro o rosto do senhor Tomé abaixo
por Aires Machado Filho e era do crânio de boi; em seguida, seu corpo completo e o bar onde ele está;
cantado para embalar crianças
nos braços”. D’SALETE, Marce- e, finalmente, tem-se uma visão do bar visto do alto. A introdução desta
lo. Cumbe, op. cit., p. 173. figura, cujo olhar direciona-se diretamente ao leitor, antecipa o final trágico
63
Ver idem, ibidem, p. 76-85. de “Sumidouro”: “Calu não podia ter feito isso. Não podia... Agora será
diferente”.60
Calu, “sua” escrava doméstica, aparece na próxima cena, ao lado do
sumidouro, o leitmotiv desse conto, aparentemente falando com alguém.
Os flashbacks, contados desde a perspectiva da protagonista Calu, revelam
o que aconteceu: estuprada por seu “dono”, ela engravidara. A esposa
ciumenta do senhor Tomé aproveita-se de um momento de distração de
Calu para pegar o bebê e jogá-lo no sumidouro, ato que é só insinuado na
narrativa. Em desespero e sem ter nenhuma pessoa por perto que pudesse
ajudá-la, Calu relata o ocorrido para o padre Antônio, o que deixa Tomé
enfurecido. Ele leva Calu de volta para o engenho. Quando, algumas horas
e bebidas mais tarde, planeja castigá-la com o chicote, Tomé a encontra
do lado do sumidouro da fazenda, alucinada. No momento em que pre-
tende dar a primeira chicotada nela, Calu abre seus olhos, aproxima-se e
o beija. Num primeiro momento, ele parece emocionado com esse gesto,
mas pouco depois começa a estrangulá-la, até que Calu não se move mais.
Como escrava, ela deve ficar passiva e suportar a violência sexual; na visão
de Tomé, ela não deve dar o primeiro passo: “Não podia ser assim. / Não
desse jeito”.61 Quando recupera a consciência, ela pega a faca da cozinha
que se encontrava escondida em seu avental. Mostram-se close-ups dos
rostos dos protagonistas, acentuando a intensidade emocional da situação,
quando Calu degola o pai do seu filho que é, também, o seu estuprador.
As lágrimas de Calu transformam-se numa visão ou num espectro do seu
bebê. Entoando o vissungo62 que ela sempre cantava para o filho, o bebê
espectro se levanta no ar e transforma-se em uma das estrelas, vivo, para
sempre, na eternidade.63 A resistência de Calu através da morte de seu
agressor é só uma das manifestações do levantamento de vozes femininas
na obra de D’Salete.

114 ArtCultura Uberlândia, v. 21, n. 39, p. 99-116, jul.-dez. 2019


D os s iê Quadri nhos & cu l t u ra v i su al : mo d o s d e ver e l er h i st óri as
Figura 6. Dara Angola Janga. Dara, nas ruas de São Paulo.64

64
D’SALETE, Marcelo. Angola
Janga, op. cit., p. 392
Figura 7. Dara Angola Janga. Dara, a luta continua.65 65
Idem, ibidem, p. 408.

ArtCultura Uberlândia, v. 21, n. 39, p. 99-116, jul.-dez. 2019 115


Para terminar, gostaria de lembrar o começo do último capítulo de
Angola Janga. “Passos na noite” começa com um enquadramento amplo, que
parte do universo e que, aos poucos, aproxima-se da Terra. Aumentando
o zoom mais e mais, o autor nos leva a um cenário contemporâneo, dentro
de uma cidade grande que, de novo, pode ser São Paulo. Chegamos, final-
mente, a uma pequena rua lateral escura, onde uma menina está sentada
sozinha. Pela aparência física, podemos identificá-la como Dara, a filha de
Zumbi. De repente, a terra debaixo dela começa a quebrar e se abre um
abismo, que engole a menina.
Ela cai num mundo escuro e onírico, numa estrutura de rodas denta-
das que se movem e tiram dela algo que remete ao suco da cana de açúcar.
Marcelo D’Salete relaciona aqui diretamente a história de escravidão com
o destino de jovens afro-brasileiros hoje em dia. E é significativo que se
utilize da figura de Dara, filha de Zumbi, para visualizar tal relação, espe-
cialmente porque a pequena Dara também é a figura que encerra Angola
Janga: libertada por Andala, outra mulher forte na ficção do quadrinista
paulistano, Andala, nas últimas vinhetas Dara levanta seu olhar ao céu,
com o rosto cheio de esperança e mantendo a lança nos seus braços.

Artigo recebido em 29 de junho de 2019. Aprovado em 31 de agosto de 2019.

116 ArtCultura Uberlândia, v. 21, n. 39, p. 99-116, jul.-dez. 2019


Imaginando uma entrevista
outra história da com Marcelo
resistência negra: D’Salete
Marcelo D'Salelte. 2017, fotografia (detalhe).

Ivan Lima Gomes


Doutor em História pela Universidade Federal de Goiás (UFG). Professor da Faculdade
de História e do Programa de Pós-graduação em História e do Mestrado Profissional
de Ensino de História (ProfHistória) da UFG. Autor do livro Os novos homens do amanhã:
projetos e disputas em torno dos quadrinhos na América Latina. Curitiba: Prismas,
2018. igomes2@gmail.com
Imaginando uma outra história da resistência negra:
entrevista com Marcelo D’Salete1
Imagining another black resistance history: interview with Marcelo D’Salete

Ivan Lima Gomes


Apresentação

Marcelo D’Salete (São Paulo, 1979) é quadrinista, ilustrador e pro-


fessor , desde 2011, de Artes Visuais na Escola de Aplicação da Faculdade
de Educação da USP. Publicou seu primeiro trabalho, Noite luz, pela Via
Lettera, em 2008. Ao lado de Encruzilhada (Leya, 2011; Veneta, 2016), tais
obras tratam dos desafios de se viver na cidade de São Paulo a partir de
temas como desemprego, juventude negra e preconceito. Em Cumbe (Vene-
ta, 2014), manifesta-se de forma mais explícita o interesse pela história da
escravidão negra na América Portuguesa. O tema merecerá tratamento mais
denso em Angola Janga (Veneta, 2017), que consolida o nome de Marcelo
D’Salete na história das histórias em quadrinhos (HQs) brasileira. D’Salete
situa a temática racial em primeiro plano, assumindo a desigualdade racial
brasileira como mote para a elaboração de narrativas dedicadas a uma
complexa reflexão a respeito da condição do negro no Brasil. Além disso,
a questão racial lhe possibilita desenvolver uma estética absolutamente
autoral. Desde o ponto de vista narrativo, suas obras trazem uma miríade
de personagens cujos rostos e ações dão concretude aos debates por ele
sugeridos, ao incorporarem os desafios, resistências e dilemas históricos
vividos pela população negra e sentidos na pele. Tal ênfase nas trajetórias
de tantos personagens que vêm e vão e se entrecruzam ao longo das pá-
ginas das HQs sinaliza para uma narrativa que, a princípio descontínua
e marcada por algo próximo àquilo que historiadores classificariam de
micro-história, percebe certa integração entre essas experiências a partir
da condição racial que atravessa suas histórias e trajetórias pessoais. Como
resultado, D’Salete constrói uma obra repleta de simbologias, explorando
o contraste entre o claro e o escuro e aliando um profundo apuro estético
às questões políticas do nosso tempo.

***

I. L. G. – Gostaria que você falasse um pouco sobre sua formação como


1
As perguntas desta foram apreciador de arte e, mais precisamente, de quadrinhos. Vindo de um meio urbano
encaminhadas ao artista via
e-mail e respondidas em áudio e informado pela cultura do hip-hop e do grafite, passando pela formação universi-
durante o mês de outubro de tária e atualmente no ensino de história da arte para crianças, como você pensa que
2018. A revisão final seguiu-se
durante os meses de novembro
seu trabalho concilia cada uma dessas facetas da sua trajetória? Consegue perceber
e dezembro, sob acompanha- aproximações entre elas? De que modo? Como a cultura de artes urbanas como o
mento de Marcelo D’Salete. hip hop e os quadrinhos informa a cultura acadêmica – e vice-versa?

118 ArtCultura Uberlândia, v. 21, n. 39, p. 117-124, jul.-dez. 2019


M. D’S. – A minha formação foi em artes gráficas e artes plásticas.

D os s iê Quadri nhos & cu l t u ra v i su al : mo d o s d e ver e l er h i st óri as


Tive uma grande influência, fora da academia e do ensino formal, do rap e
do hip-hop no final da década de 1980 e começo de 1990. Isto abriu minha
mente para que buscasse informações em outras áreas, como literatura. Foi
a partir da música que eu acabei chegando no Quilombhoje2, nos Cader-
nos Negros3, e, depois, no cinema. Todas essas experiências acabaram me
alimentando. Pesquisei sobre a presença negra na arte, cultura e história
na graduação e na Pós-graduação. O meu mestrado é sobre arte afro-bra-
sileira.4 Tudo isso propiciou um universo de referências para falar sobre a
experiência negra em um país como o Brasil. E como esta sociabilidade de
hoje é moldada a partir de fatos históricos. Fiz alguns trabalhos de grafite,
mas isso foi há bastante tempo. Onde eu estudei, no Carlos de Campos5,
tinha uma tradição de grafite muito forte. Cheguei a pintar alguns muros,
mas logo depois acabei voltando grande parte da minha energia para os
quadrinhos e para ilustração.

I. L. G. – Longe de ser uma espécie de “identidade secreta”, você parece lidar


com sua dupla identidade de professor de História da Arte e artista de quadrinhos
com bastante naturalidade. Como você concilia cada atividade? Ou seja, do ponto
de vista prático, ligado à sua rotina de trabalho e à organização das respectivas
demandas que cada função exige, passando por processos formativos e criativos
atinentes a cada um, como você entende as relações entre sua atuação profissional
como docente e historiador da arte e artista criador de histórias visuais?

M. D’S. – Eu atuo como professor. Faço histórias em quadrinhos no


restante do tempo que tenho. Foi algo que eu consegui desenvolver razo-
avelmente bem durante um bom tempo. Hoje em dia, confesso que está 2
Coletivo e editora criado em
um pouco mais difícil de conciliar essas atividades todas. Ser professor é 1982, a partir da reunião de
diversos escritores paulistas
algo extremamente rico e interessante. Eu aprendo muito nesses contatos preocupados em produzir
e isso acaba influenciando os trabalhos que estou realizando. Agora, claro, obras literárias voltadas para
ser professor é algo que ocupa grande parte do tempo. Permanentemente a questão negra no Brasil. Cf.
CORREIA, Severino do Ramo.
você está pensando em atividades, em propostas, em ações e na dinâmica Quilombhoje: um tambor ex-
de uma escola que se pretende democrática. É uma troca muito rica com pressando as vozes literárias
negras. Dissertação (Mestrado
os alunos. Aprendo bastante com eles. Procuro possibilitar, dentro da área em Literatura e Intercultu-
de artes visuais, trabalhar com algo que é extremamente relevante nos ralidade) – UEPB, Campina
dias de hoje: leitura, apreciação e discussão de imagens, além do espaço Grande, 2010.

de criação e debate. 3
Publicado pela primeira vez
em 1978, a antologia Cader-
nos Negros inspirou a criação
I. L. G. – Ainda no campo das aproximações entre ensino de história da arte do Quilombhoje e completou
e quadrinhos, em trabalhos como Cumbe e Angola Janga percebe-se o esforço quarenta anos de publicações
anuais em 2018. Cf. ANTÔ-
pela elaboração de uma narrativa que contribua para apresentar outro lado de uma NIO, Carlindo Fausto. Cadernos
história que é pouco narrada em profundidade. A partir do seu trabalho, como você Negros: esboço de análise. Tese
(Doutorado em Teoria Lite-
percebe as implicações éticas do ensino e da criação artística? rária) – Unicamp, Campinas,
2005.
M. D’S. – A elaboração do Cumbe e do Angola Janga começou por volta 4
Ver SOUZA, Marcelo de Sa-
de 2004. Não tinha uma ideia muito clara do que eu estava fazendo logo no lete. A configuração da curadoria
de arte afro-brasileira de Emanoel
início. Sabia que era algo falando sobre Palmares, sobre um grande conflito Araújo Dissertação (Mestrado
armado. Vamos dizer assim: o tamanho, a dimensão dessa empreitada foi em Estética e História da Arte)
se formando com o tempo. Aos poucos, notei que havia algo para explorar, – USP, São Paulo, 2009.

usando o formato quadrinhos, em termos de resistência contra a violência 5


Trata-se da Escola Técnica
Carlos de Campos, fundada em
do período colonial. Uma forma de contra narrativa, opondo-se ao conceito 1911 e localizada no bairro do
de harmonia racial e social em nossa formação, que persiste ainda hoje. Brás, em São Paulo.

ArtCultura Uberlândia, v. 21, n. 39, p. 117-124, jul.-dez. 2019 119


6
Menção à campanha eleitoral No momento de uma eleição presidencial acirrada, este debate apare-
para a presidência da Repú-
blica de 2018, marcada, entre ce ainda mais.6 Esses discursos tentam anular conflitos intensos contra um
outras coisas, pelo amplo uso projeto colonial e centralizador. Formas de resistência protagonizadas pela
difamatório de notícias falsas e
população marginalizada, negra e indígena. Aos poucos, fui percebendo a
declarações de cunho racista e
homofóbico proferidas, sobre- dimensão do livro dentro de todo esse âmbito. Muitas vezes, conversando
tudo, pelo então candidato Jair com outras pessoas, surgem aí novas ideias e possibilidades de leituras
Bolsonaro, o qual, por sua vez,
foi vítima de um ataque a faca dessas imagens e dessas narrativas. No mais, a ideia do livro é apresentar
em meio a essa disputa. esses personagens de uma forma humana e com toda sua complexidade.
7
Menção a Jair Bolsonaro, Claro, isso é sempre uma tentativa, mas imagino que consegui chegar bem
provavelmente com base na próximo do que eu pretendia. A ideia é humanizar esses personagens e
fala como a proferida durante
palestra na sede carioca da fazer com que as pessoas vivenciem, de certo modo, aquele período a partir
Hebraica, em abril de 2017. Na deles, observando, também, as suas contradições.
ocasião, sugeriu analogias entre
quilombolas e animais, ao dizer
Dentro do ensino, trazer essa perspectiva é relevante. Pois ainda
que “o afrodescendente mais temos um ensino formal que trata, muitas vezes, a nossa história de um
leve lá pesava sete arrobas [ar- modo linear e harmonioso. Isto rompe com ideias de conflito e com outras
roba é uma medida usada para
pesar gado; cada uma equivale possibilidades de compreender essas narrativas. Não que os professores
a 15 kg]. Não fazem nada. Eu não estejam tentando construir esse debate em muitos locais. De fato temos
acho que nem para procriador
ele serve mais”. Disponível
muitos projetos bons por aí. Mas a dimensão conservadora, negando a
em <https://veja.abril.com.br/ violência e impondo uma ideia de harmonia social, ainda é muito forte no
brasil/bolsonaro-e-acusado- contexto escolar. A escola precisa ser um local de debate e discussão das
de-racismo-por-frase-em-pa-
lestra-na-hebraica/>. Acesso em diversas concepções de sociedade de hoje e do passado.
28 dez. 2018. 
8
Menção a Hamilton Mourão, I. L. G. – Que diálogos você consegue perceber entre seu trabalho e os deba-
general da reserva e então tes em torno das políticas raciais que ganharam corpo nos últimos anos? E como
candidato a vice-presidente
na chapa de Jair Bolsonaro. A situa sua produção no atual cenário, em que, ao lado do amadurecimento de tais
título de ilustração, destaca-se discussões, observa-se a ascensão de discursos repletos de conotação racista entre
um pronunciamento de grande
repercussão, feito num evento
políticos e outras pessoas públicas?
em Caxias do Sul, sobre o sub-
desenvolvimento no Brasil e M. D’S. – A história, realmente, não é algo simples e linear. Hoje
na América Latina. Na ocasião,
Mourão afirmou que o Brasil temos debates muito afiados em relação a discriminação, racismo insti-
“herdou a cultura de privilé- tucional, branquitude e diversos outros conceitos para tentar dar conta
gios dos ibéricos, a indolência
dos indígenas e a malandragem
desses problemas, desse universo social em que nos deparamos. Grande
dos africanos”. Disponível em parte dessa discussão está, sim, em grupos de vanguarda. Entretanto, isto
<https://politica.estadao.com. convive com uma grande maioria de pessoas que estão de fora dessa dis-
br/noticias/eleicoes,mourao-li-
ga-indio-a-indolencia-e-negro- cussão. Grupos que negam a existência da discriminação e do racismo. Ao
-a-malandragem,70002434689>. mesmo tempo em que observamos este lado mais avançado da discussão,
Acesso em 28 dez. 2018.
também presenciamos outro lado ainda reafirmando antigas concepções
– de separação, de exclusão e de hierarquia entre os diversos grupos que
compõem o nosso espaço social. Isso está na fala do atual presidenciável7,
isso está na fala do candidato a vice8 e isso está na fala de outras pessoas
também. São falas que reafirmam um Brasil desigual. Isto aparece de modo
cristalino, sem nenhum problema e com pouquíssimo debate. Estamos
num contexto de grande crise. As perdas podem ser enormes (para a clase
trabalhadora, negra, indígena, periférica, mulheres e LGBTQI). Mas por
outro lado, será muito necessário, de fato, a organização de uma oposição
popular ferrenha a esse tipo de política. Nenhuma ação autoritária surge
sem a sua devida resposta, seu revide. Sem a sua devida contraposição. As
perdas serão muito grandes, mas não podemos esquecer que a esperança
pode ser, sim, um elemento insuportável para qualquer política autoritária.

I. L. G. – Ao atentarmos para o conjunto de seus trabalhos, chama atenção a


virada que ocorre a partir de Cumbe. De narrativas curtas e ambientadas no meio

120 ArtCultura Uberlândia, v. 21, n. 39, p. 117-124, jul.-dez. 2019


urbano contemporâneo, passamos a uma história com fôlego maior e em diálogo

D os s iê Quadri nhos & cu l t u ra v i su al : mo d o s d e ver e l er h i st óri as


com processos históricos brasileiros. A que credita tais mudanças?

M. D’S. – Os dois primeiros livros, o Noite luz e o Encruzilhada, são


trabalhos contemporâneos, mostrando conflitos dentro das grandes cida-
des. Estes trabalhos tratam de uma sociabilidade fraturada, cindida, dos
conflitos em grande parte sociais e raciais. Eles mostram a cidade a partir
de uma perspectiva específica – em grande parte jovem, periférica, negra
e marginalizada dos procesos económicos sociais. Há uma conexão com os
outros livros, o Cumbe e o Angola Janga, pois trata de uma narrativa periférica
e negra também. Outra coisa importante: desde quando eu estava fazendo
o primeiro livro, Noite luz, em 2008, já estava trabalhando com pesquisas
sobre o Brasil colonial, escravista e negro. Tudo começou a partir de Pal-
mares em 2004. Em 2006 foi quando fiz uma primeira versão de roteiro.
Depois, comecei a desenvolver esse trabalho. Claro, fui percebendo cada
vez mais que precisava estudar muito para compreender todo o período.
Aos poucos, então, fui desenvolvendo essas pesquisas. Publiquei os livros
Noite luz e Encruzilhada mas sempre voltava para essas pesquisas sobre o
Brasil colonial. Tudo isso, para mim, está muito alinhado. Então, eu acabo
tecendo diversas conexões entre esses livros todos. Embora, sim, eles falem
de universos um pouco diferentes.

I. L. G. – Como você observa as relações entre Cumbe e Angola Janga?


São obras que podem ser lidas em separado ou devem ser lidas em conjunto? Que
diferenças existiriam entre uma forma e outra de leitura?

M. D’S. – A ideia original era que Cumbe fosse parte do livro Angola
Janga. Mas, aos poucos, a obra estava ficando muito extensa e percebi que
Cumbe era um livro com energia e universo próprios, se resolvia por si só,
sem o Angola Janga. Resolvi separar as narrativas, mas acho que são livros
interessantes de serem lidos em conjunto. Talvez, o Cumbe primeiro, já que
é um livro que fala mais sobre o contexto colonial e escravista e da busca
de humanidade desses africanos escravizados aqui no Brasil – busca por
humanidade e autonomia sobre sua vida. Depois disso, o Angola Janga, que
trata mais especificamente de Palmares.
Cumbe se aproxima do Encruzilhada e Noite luz devido à forma, porque
é um livro no formato de contos, algo que eu gosto muito de trabalhar.
Contos que você pode ler isoladamente, mas que acabam tendo conexões
de uma narrativa com a outra. Isso acontece no Noite luz, no Encruzilhada
e no Cumbe. Já Angola Janga tem uma diferença em termos de forma. É um
livro que, embora tenha narrativas bem resolvidas individualmente, se
assemelha mais a um romance. A história mostra um personagem singular,
o Soares, e varios outros personagens que trafegam, conduzem essa nar-
rativa junto com ele. Em alguns momentos, eu acabo dando mais atenção
para outros personagens, mas ele é o fio condutor que está ali no começo,
meio e fim da narrativa.

I. L. G. – Angola Janga tem chamado a atenção de historiadores, educadores


e outros profissionais de perfil acadêmico pelo cuidado com a reconstrução histórica
a partir da utilização de aparato crítico. Nesse sentido, referências bibliográficas,
epígrafes e outras instâncias paratextuais demarcam bem Angola Janga como
um trabalho que busca integrar a pesquisa acadêmica à narrativa criativa. Como

ArtCultura Uberlândia, v. 21, n. 39, p. 117-124, jul.-dez. 2019 121


9
Clóvis Moura (1925-2003) foi se dá a relação entre pesquisa e obra de arte no seu processo de criação? Em que
um sociólogo e historiador
dedicado ao estudo das formas medida seu trabalho pode ser tomado como ficção ou como um “romance gráfico
de resistência à escravidão e histórico/graphic novel histórica”?
do papel do negro na historio-
grafia brasileira. De orientação
marxista, questionou premissas M. D’S. – Eu sempre tive em mente que o Angola Janga é um livro de
de Gilberto Freyre ao enfatizar ficção. Uma visão sobre Palmares muito especial e dentro da minha leitura
as relações de dominação esta-
belecidas entre senhores e es- pessoal sobre Palmares. A partir das diversas leituras dos livros que tratam
cravos e o papel dos quilombos desse conflito. Em nenhum momento tento apresentar isso como a única
na crítica à escravidão.
obra sobre o período. Não. É simplesmente uma ficção a partir de alguns
10
Décio Freitas (1922-2004) foi fatos e a partir de outros historiadores que já falaram sobre Palmares, como
um jornalista e historiador com
vasta produção de obras de Clóvis Moura9, Décio Freitas10, Ivan Alves Filho11, Flávio Gomes12 e diversos
caráter crítico calcadas no refe- outros. Eu organizei essas informações e elaborei uma narrativa interes-
rencial marxista, entre as quais
se destaca Palmares: a guerra
sante para ser lida hoje. Com muitas influências de autores de quadrinhos,
dos escravos (1973). Também se como Art Spigelman, Frank Miller13, o mangá Vagabond e diversos outros
dedicou a pesquisas sobre a his- trabalhos. O meu interesse era trabalhar com essa narrativa no formato de
tória e a cultura do Rio Grande
do Sul, contando com ampla ficção e de forma que fosse uma narrativa dinâmica e interessante para o
atuação na imprensa gaúcha. leitor de hoje.
11
Ivan Alves Filho (1952-) é his-
toriador e jornalista brasileiro I. L. G. – Ainda sobre Angola Janga, o tratamento recebido pela obra é
com formação pela Universi-
dade Paris-VIII (Sorbonne). digno de destaque: capa dura, lombada resistente e um cuidado com a qualidade
Em 1988, publicou Memorial do papel indicam uma produção bastante cuidadosa e à altura da qualidade pre-
dos Palmares, primeiro de uma
série de livros e documentários
sente no trabalho. Por outro lado, tal tratamento editorial informa sentidos à obra,
direcionados para a história e a dotando-a de grau de respeitabilidade raro na história das HQs brasileiras. Como
cultura brasileiras. foi o processo de edição da obra? Houve alguma dificuldade ou pedido especial em
12
Flávio Gomes é doutor em relação ao papel utilizado, à impressão das manchas escuras etc.?
História pela Unicamp e, atual-
mente, professor na Universi-
dade Federal do Rio de Janeiro M. D’S. – A editora Veneta tem um trabalho muito bonito em rela-
(UFRJ), onde pesquisa e leciona ção a cada um dos livros publicados. Vale dizer que tanto Cumbe quanto
temas relacionados às resistên-
cias quilombolas e intelectua- Angola Janga foram apoiados pelo ProAC14, que é um programa de apoio
lidades negras, contando com à cultura aqui em São Paulo. Isso também foi importante para a gente ter
ampla produção bibliográfica
sobre tais campos de investi-
todas as condições necessárias para que a edição fosse publicada do melhor
gação histórica. modo possível.
13
Frank Miller (1957-) é autor Eu não tenho tanto fetiche por livros de capa dura. Tanto que os outros
– desenhista e roteirista – de livros têm capa mole, e eu gosto deles assim. Por outro lado, depois de um
histórias em quadrinhos, con-
tando com vasta produção na
tempo, era a primeira vez que eu publicava um livro nessa dimensão, com
área, entre as quais Daredevil mais de 400 páginas. Provavelmente não vou publicar um livro tão grande
(1979-1983; 1985-1986), The assim tão cedo. Então, considerei que era um livro interessante para ser
dark knight returns (1986) e Sin
city (1991-1997). Suas obras publicado em capa dura.
são marcadas por uma estética Papel pólen é um papel leve e isso colabora, também, para que o
sombria, próxima ao noir, além
de revelarem uma inclinação
livro não vire um tijolo. Ele é um pouco mais poroso, não é tão branco e
política de perfil conservador. a leitura fica um pouco mais agradável ali. Claro, tive um cuidado com
14
Sigla para Programa de Ação os tons de preto e branco para que saísse do melhor modo possível. Saiu
Cultural, iniciativa do Governo do jeito que eu imaginava. O trabalho gráfico também foi de excelência.
do Estado de São Paulo criada
em 2006 para apoiar projetos na
A única pena é que, infelizmente, com todo esse sistema de distribuição
área da cultura e artes. Dispo- e de gráfica, quando o livro chega na livraria, chega com um preço eleva-
nível em <http://www.cultura. do demais. A gente tentou fazer do melhor modo para que chegasse em
sp.gov.br/tag/proac/>. Acesso
em 28 dez. 2018. um valor abaixo, mas, infelizmente, todo o sistema aqui no Brasil acaba
encarecendo, razoavelmente, o livro. Por outro lado, tem muitos sites
vendendo o livro com descontos. Isso ajuda para que as pessoas possam
acessar o livro. No que for possível, eu tento sempre fazer com que esse
tipo de publicação também chegue às bibliotecas públicas, às escolas e
em espaços de formação.

122 ArtCultura Uberlândia, v. 21, n. 39, p. 117-124, jul.-dez. 2019


I. L. G. – Em Angola Janga, o tema muito concreto da história da escra-

D os s iê Quadri nhos & cu l t u ra v i su al : mo d o s d e ver e l er h i st óri as


vidão no Brasil cruza-se com a subjetividade de personagens muito específicos:
somos convidados a conhecer as histórias íntimas de escravos, libertos, senhores
e capitães do mato e suas eventuais implicações no curso de processos históricos,
tendo como pano de fundo a paisagem e a natureza, que se apresentam ora muito
concreta, ora abstrata e repleta de simbolismos. Você considera tal relação um
diferencial na forma de contar histórias via HQs? Em que medida avalia que tal
recurso permite tocar em temas da história do Brasil por caminhos distintos a
outras formas de narrar o passado? E como você pensa o papel de tal dimensão
simbólica da natureza no seu trabalho?

M. D’S. – Este universo eu tive contato a partir das leituras e pes-


quisas iniciais. Eu vi que tinham várias chaves de acesso a esse ambiente,
a esse contexto histórico e social, que não tinham sido feitos no formato
de histórias em quadrinhos. Eu tentei trazer isso, trazer um pouco desses
conflitos para cá, para os quadrinhos. Isso tem aparecido em diversos estu-
dos de historiadores, principalmente dentro da história social. A proposta
é, a partir de narrativas bem singulares de escravizados, pensar o todo da
escravidão. Além de pensar em tráfico, escravidão e números, precisamos
pensar, também, nos conflitos, nos objetivos e buscas das pessoas naquele
período. Para isso, o tipo de trabalho histórico do Robert Slenes, do Sidney
Chalhoub, entre outros, é muito relevante. Foi isso que tentei fazer com o
Cumbe e o Angola Janga: trazer esses personagens da forma mais humana
possível e apresentar, também, as suas contradições. Tornar esses perso-
nagens humanos é imprescindível. Pois o racismo opera num viés de ne-
gação total da humanidade do outro, diz que o outro merece ser abatido,
destruído, queimado e esquartejado, justamente por ele não ser humano.
Quando ouvimos um candidato dizer “o índio é preguiçoso e o ne-
gro é malandro”15, você quer dizer que há uma hierarquia entre os grupos
raciais. Dentro dessa hierarquia, brancos, europeus, portugueses, estão
acima; índios e negros estão abaixo, e ponto. É isso que eles estão falando.
É isso que precisamos combater. Isto aparece em outra fala sobre o neto
embranquecido.16 Estes absurdos evocam um pasado escravocrata, colonial
e extremamente violento. Se não tivermos consciencia dessa história, ela
será apenas repetição.

I. L. G. – Os quadrinhos no Brasil vivem momento inédito: editoras dedi-


cam-se a publicar autores nacionais e internacionais com profissionalismo, HQs 15
Ver nota 8.
são celebradas publicamente por nomes ligados à crítica cultural e, não raro, são 16
Referência à fala de Hamil-
mesmo indicados a prêmios literários. Mais recentemente, o Prêmio Jabuti teve de ton Mourão (PRTB), então
candidato à vice-presidente
incluir uma categoria exclusiva para quadrinhos. Como percebe seu trabalho no na chapa liderada por Jair
interior do atual mercado de HQs no Brasil? Em que medida considera que sua Bolsonaro (PSL). Ao chegar
ao aeroporto de Brasília, des-
obra pode contribuir para apontar caminhos para a produção e edição de obras em
pediu-se de jornalistas com a
quadrinhos no Brasil? seguinte declaração: “Gente,
deixa eu ir lá que meus filhos
estão me esperando. Meu neto
M. D’S. – Os quadrinhos estão em um momento de produção muito é um cara bonito, viu ali? Bran-
rica no Brasil. Tem uma produção autoral muito forte e interessante. Os queamento da raça”. Dispo-
nível em <https://noticias.uol.
quadrinhos estão cada vez mais trazendo narrativas complexas e interes-
com.br/politica/eleicoes/2018/
santes sobre o nosso período, sobre o nosso tempo, sobre o nosso contexto, noticias/2018/10/06/mourao-ci-
sobre a nossa sociabilidade hoje e no passado. Os quadrinhos são um tipo ta-branqueamento-da-raca-ao-
falar-que-seu-neto-e-bonito.ht-
de narrativa para pessoas de diferentes estratos sociais, para adultos, idosos m?cmpid=copiaecola>. Acesso
e jovens, não apenas para o público infantil. Os quadrinhos podem dialo- em 28 dez. 2018.

ArtCultura Uberlândia, v. 21, n. 39, p. 117-124, jul.-dez. 2019 123


gar com diferentes públicos e ese ainda é um desafio no Brasil: afirmar a
complexidade e maturidade dos quadrinhos para trazer novas experiências
de leitura e percepção.

I. L. G. – Além do êxito no Brasil, sua obra tem despertado interesse in-


ternacional, vide o recente Eisner Award. Você acompanha a edição de sua obra
no exterior? Percebe dificuldades na tradução, adaptação e leitura de suas HQs?
É preciso fazer muitas intervenções no texto, explicando passagens da história do
Brasil, termos e expressões utilizadas?

M. D’S. – O livro foi publicado e traduzido no exterior. Algumas


vezes eu converso com os tradutores para saber como eles estão lendo
as obras e para tirar dúvidas. Tive muitas conversas com a tradutora da
edição alemã e francesa. Considero que o livro acaba trazendo questões
interessantes para pensar em tradução, porque exige conhecimento de
um universo colonial, escravista e africano. Algo que, de fato, as pessoas
de fora do Brasil conhecem pouco. Exige, também, que as pessoas acabem
tendo que tomar algumas decisões editoriais sobre como traduzir termos
específicos.
Embora o livro tenha um glossário no final, o que ajuda bastante,
houve diferentes estratégias e modos de lidar, por exemplo, com a tradu-
ção do termo negro. No Brasil colonial, negro é sinônimo de coisa, objeto,
não de pessoa. No Brasil de hoje, o movimento negro reafirma e utiliza a
palavra negro como forma de descrever outra pessoa. Em outros países, o
contexto e a discussão é diferente. Eles muitas vezes adotam outras palavras
para se referir a esse grupo de pessoas. Isto é evidente no inglês (com o
uso contemporâneo de black e não nigger), mas também tem reverberações
no francês e alemão.

I. L. G. – Por fim, quais são seus projetos futuros a serem desenvolvidos


após Angola Janga?

M. D’S. – Por enquanto ainda estou apenas pesquisando, tentando


rascunhar alguns roteiros novos. Mas é bem capaz que o próximo trabalho
seja um pouco mais contemporâneo e não um trabalho tão histórico quanto
os últimos. Talvez volte para esse tema um pouco mais para frente.

Entrevista recebida em 2 de abril de 2019. Aprovada em 12 de maio de 2019.

124 ArtCultura Uberlândia, v. 21, n. 39, p. 117-124, jul.-dez. 2019


Tradução

Espontaneidade

o:

f le
re
e

o Dao da
so
m
de Richard Shusterman. 2012, fotografia (detalhe).
Capa do livro Thinking through the body: essays in somaesthetics,

ae
st
ét
ic
a

Richard Shusterman
Doutor em Filosofia pela Universidade de Oxford. Professor do Center for Body,
Mind and Culture da Florida Atlantic University. Autor, entre ou outros livros, de
The adventures of the man in gold. Paris: Hachette, 2017. richard.shusterman@gmail.com
Espontaneidade e reflexão: o Dao da somaestética1
Spontaneity and reflection: the Dao of somaesthetics

Richard Shusterman

Tradução: Guilherme Amaral Luz*

resumo abstract
Neste artigo, Richard Shusterman In this article, Richard Shusterman dis-
discute a controvertida relação entre cusses the controversial relation between
espontaneidade e atenção somática spontaneity and reflexive somatic awa-
reflexiva na filosofia contemporânea. reness in contemporary philosophy. He,
Ele aborda o tema em autores clássicos then, approaches this subject in classical
do confucionismo e do taoísmo para confucian and daoist authors to present
apresentar espontaneidade e reflexão spontaneity and reflection as rather com-
como dimensões mais complementares plementary than contradictory dimensions
do que contraditórias entre si. to each other.
palavras-chave: somaestética; filoso- keywords: somaesthetics; chinese phi-
fia chinesa; corpo. losophy; body.


Preâmbulo

O texto que segue traduzido para o português faz parte de uma co-
letânea recente (publicada em 2018 pela Routledge) sobre a relevância da
* Doutor em História pela
Universidade Estadual de filosofia tradicional chinesa no contexto da globalização contemporânea.
Campinas (Unicamp). Profes- Seu autor, Richard Shusterman, professor da Florida Atlantic University,
sor do Instituto de História
da Universidade Federal de
onde coordena o Center for Body, Mind and Culture, tem formulado, ao
Uberlândia (UFU). Autor, en- longo de seus trabalhos, a teoria da somaestética, a qual busca retomar a
tre outros livros, de Flores do relevância do corpo não somente como matéria filosófica legítima sobre
desengano: poética do poder na
América portuguesa (séculos a qual se deva refletir, mas como o próprio domínio no qual a filosofia,
XVI - XVIII). São Paulo: Uni- como qualquer outra experiência humana, ocorre. Aqui, Shusterman
fesp, 2013. guilhermealuz@
gmail.com
resgata autores “clássicos” de escolas confucionistas e taoístas da China
Antiga para mostrar a pertinência de suas formulações para alguns dos
1
Traduzido, mediante autori-
zação do autor, de SHUSTER- problemas centrais da moderna teoria da somaestética. Em particular, ele
MAN, Richard. Spontaneity aborda a controvérsia filosófica em torno dos temas da espontaneidade e
and reflection: the dao of so-
maesthetics. In: MING, Dong
da reflexão nas ações corporais.
Gu (ed.). Why traditional chinese O público brasileiro conhece a obra de Shusterman, principalmen-
philosophy still matters: the rele- te, por meio daqueles dois trabalhos que, traduzidos para o português,
vance of ancient wisdom for the
global age. London-New York: tornaram-se mais acessíveis no país, como são os casos de Vivendo a arte2 e
Routledge, 2018, p. 133-144. Consciência corporal.3 O primeiro é uma importante reflexão sobre a cultura
2
SHUSTERMAN, Richard. Vi- de massas sob o ponto de vista da filosofia pragmática de John Dewey. O
vendo a arte: o pragmatismo e a segundo compõe-se de vários ensaios nos quais Shusterman dialoga com
estetização da vida. São Paulo:
Editora 34, 1998. alguns dos principais autores do século XX que deram importância ao
3
Idem, Consciência corporal. São
corpo em seus sistemas filosóficos. Também nele, irá se destacar a obra de
Paulo: Realizações, 2012. Dewey, seguramente, a mais influente de todas na proposta de somaestética

126 ArtCultura Uberlândia, v. 21, n. 39, p. 125-138, jul.-dez. 2019


formulada por Shusterman. E é exatamente de Dewey uma das citações

Tradução
mais centrais que aparecem no texto a seguir, uma citação que praticamente
resume a sua hipótese central: “a verdadeira espontaneidade é [...] não um
direito de nascença, mas o último estágio, a conquista consumada, de uma
arte – a arte do controle consciente”.
Nosso interesse pela obra de Shusterman nasceu pelas possibilida-
des que ela oferece para a tematização de práticas corporais no âmbito
da filosofia e das ciências humanas de modo geral. Em particular, pelo
potencial que ela apresenta para o tratamento das artes marciais asiáticas
no mundo global contemporâneo. Nesse sentido, a obra de Dewey também
pode ser entendida como seminal. Sabemos, por exemplo, o impacto que
teve o pensamento de Dewey no Japão moderno e o quanto, por exemplo,
Jigoro Kano, fundador do Judô, apreciava ideias educacionais inspiradas
nele, como o Plano Dalton, da educadora Helen Parkhurst.4 As próprias
artes marciais são consideradas por Shusterman no rol das disciplinas
somaestéticas com as quais dialoga na sua formulação teórica. Juntamente
a ela, Shusterman é atento, em sua prolixa obra, a diversas outras artes
asiáticas que envolvem a atenção somática, como é o caso, por exemplo,
da meditação zen, do yoga, do erotismo chinês, do teatro noh japonês e
muitas outras. Seu interesse pelo universo asiático dá um sabor multicul-
tural à obra e possibilita levantar questões sobre a fruição estética do outro
na contemporaneidade.
A adesão de Shusterman ao que poderia ser chamado de um “projeto
multiculturalista”, entretanto, está muito longe do engajamento ingênuo
a pressupostos do senso comum. Em Performing live, ele expressa diversas
objeções ao multiculturalismo como projeto filosófico, identificando os
perigos, as contradições e a polissemia que o conceito carrega. Sua concep-
ção de multiculturalismo tende a equilibrar o reconhecimento do “outro”
como “diferença” e do universalismo, evitando a formulação de barreiras
rígidas e essencializadas entre as culturas.
Mais do que “multicultural”, a somaestética de Shusterman, como
ele mesmo formula, é filosofia “estruturada por uma busca transcultural
pela ‘autorrealização’”.5 Isso diz muito sobre o modo que dialoga com
autores chineses do século IV ou V a. C. Shusterman não os lê nem como
iguais, nem como contemporâneos, nem como essência de um “outro”
chinês, muito menos, como o “oriental” ou o “exótico”, nem como con-
traponto à “civilização ocidental”. Os lê como parte da riqueza filosófica
da humanidade que, apesar das singularidades de seu tempo e lugar,
oferecem insights com valor de uso para novas artes de viver. Por isso
mesmo, o leitor do texto que segue não deve esperar do autor a perspectiva
de um sinólogo ou de um especialista em China Antiga. Trata-se de uma
abordagem comparativa que busca, em textos chineses, chaves possíveis
para a resolução de problemas lançados pela filosofia contemporânea, em
particular, neste caso, por autores como Maurice Merleau-Ponty, William
James e John Dewey. 4
Ver KANO, Jigoro. Energia
O resultado dessas reflexões de Shusterman são insights surpreenden- mental e física: escritos do fun-
dador do Judô. São Paulo:
tes para praticantes de artes marciais asiáticas ou, como no meu caso, o tai Pensamento, 2008, p. 62 e 63.
chi chuan. Elas mostram que a arte pode ser compreendida como uma busca 5
SHUSTERMAN, Richard.
da espontaneidade por meio de um trabalho constante de autorreflexão. Multiculturalism and the art of
No limite, elas expõem os tênues limites entre espontaneidade e reflexão, living. In: Performing live: aes-
thetic alternatives for the ends
afirmando que, antes de serem opostos excludentes, podem ser tomados of art. Ithaca-London: Cornell
como opostos complementares. University Press, 2000, p. 198.

ArtCultura Uberlândia, v. 21, n. 39, p. 125-138, jul.-dez. 2019 127


6
Cf. JULLIEN, François. Proces- Se isso já poderia ser percebido em John Dewey, ganha outra clareza
so ou criação: uma introdução
ao pensamento dos letrados a partir da consideração do “pensamento clássico” Chinês, especialmente
chineses. São Paulo: Editora da de autores de tradição taoísta, comoLieziLiezi( (列子
Liezi (列子) )eeZhuang Zi(((庄子
ZhuangZi
Zhuang Zi 庄子),) )para
Unesp, 2019.
os quais a naturalidade e o auto cultivo não se separam. Na poética de suas
7
Para uma discussão exaus- imagens, considerando a interconexão de todas as coisas que pertencem
tiva dessa linha de pensa-
mento, ver SHUSTERMAN, ao universo, ao observarmos uma folha ao vento, não podemos saber se
Richard. Self-knowledge and o que move a folha é o vento ou se é o vento movido pela folha. Quando
its discontents: from Socrates
to somaesthetics. Capítulo 3
abandonamos o dualismo de causa e efeito e assumimos uma perspectiva
de Thinking through the body: da natureza como “processo” sem início nem fim, mas em mútua incitação
essays in somaesthetics. Cam- entre os extremos de suas forças6, compreender a ideia de “espontaneidade”
bridge: Cambridge University
Press, 2012. toma outra dimensão. Ela se torna “não diretividade”, recusa de simular um
ato de “criação”. Ela se torna experiência (estética) atenta do movimento,
que, uma vez em curso, é contínuo e autônomo. Chegar a isso, entretanto,
requer trabalho consciente de autorreflexão.
Gostaria, por fim, antes de finalizar este preâmbulo e deixar os leitores
às sós com o texto, de agradecer duas pessoas sem as quais esta tradução
não seria publicada. Primeiramente, agradeço ao próprio professor Richard
Shusterman, que a autorizou e foi muito solícito no atendimento às minhas
questões e dúvidas, que foram surgindo ao longo do processo. Espero ter
feito jus ao seu estilo e à qualidade de texto em inglês. Agradeço também
à minha colega do grupo Soma: Ações Transdisciplinares, Luciana Mourão
Arslan, do Instituto de Artes da UFU, que fez a intermediação do contato
com o professor Shusterman, realizou uma primeira leitura na tradução e
sugeriu alterações que a tornaram melhor. Esta tradução é parte do esfor-
ço desse grupo de trazer a perspectiva da unidade corpo-mente-cultura
para o contexto acadêmico brasileiro. Em seu nome, agradeço também a
ArtCultura pela abertura deste espaço.

Guilherme Amaral Luz


Uberlândia, 23 de julho de 2019.

***

O problema da reflexão

A filosofia é paradigmaticamente uma disciplina reflexiva, com o


seu imperativo de “conheça-te a ti mesmo”, tal como no desafio socrático
de sua fundação. Refletir-se, entretanto, pode ser uma empresa perigosa
e os filósofos frequentemente alertaram sobre os seus perigos. A reflexão
sobre a dimensão corporal da pessoa foi especialmente criticada mesmo
por filósofos simpáticos ao corpo, que insistiam, contra Platão e outros, que
a dimensão corporal é uma parte essencial de uma pessoa e crucial para a
nossa ação7. Muitos argumentam, por exemplo, que pensar sobre os nossos
modos de ação corporal distrai prejudicialmente a atenção dos nossos fins
e, portanto, é mais propenso a causar problemas de performance. Apesar
da confiança em sua filosofia pragmática respeitadora do corpo, William
James argumenta, por exemplo, que as ações corporais são mais certeiras
e obtém maior sucesso quando focalizamos “apenas no fim” e evitamos
a “consciência dos meios [corporais]”. Dada a parcimoniosa economia da
consciência, nós deveríamos concentrar a sua limitada atenção nos traços

128 ArtCultura Uberlândia, v. 21, n. 39, p. 125-138, jul.-dez. 2019


mais importantes da ação, reconhecidamente os nossos objetivos, deixando

Tradução
os meios corporais a cargo dos nossos hábitos de uso somáticos irrefletidos
e estabelecidos. “Nós andamos melhor sobre uma trave quanto menos
pensamos sobre a posição dos nossos pés sobre ela. Nós arremessamos ou
agarramos, nós atiramos ou cortamos melhor quanto menos” focamos em
nossas partes corporais e em nossos sentimentos e, mais exclusivamente,
em nossos alvos. “Mantenha o seu olho no lugar almejado e a sua mão irá
buscá-lo; pense na sua mão e você estará mais propenso a errar o seu alvo”.8 8
JAMES, William. The princi-
Immanuel Kant, para além disso, adverte que a introspecção somá- ples of psychology. Cambridge:
Harvard University Press, 1983,
tica “desvia a atividade mental de considerar outras coisas e é prejudicial
p. 1128.
à cabeça”. “A sensibilidade interna que alguém gera por meio de suas 9
KANT, Immanuel. Reflexionen
reflexões é prejudicial... Esta visão interna e este sentimento de si enfra- zur kritischen Philosophie. Ed.
quecem o corpo e o desviam das funções animais”.9 Em suma, a reflexão Benno Erdmann. Stuttgart:
Frommann-Holzboog, 1992, p.
somática prejudica tanto o corpo quanto a mente e a melhor maneira de 68 e 69, § 17 e 19. Mais adiante,
tratar o corpo de alguém é ignorando, tanto quanto possível, as sensações Kant observa criticamente que
de como ele se sente, enquanto esteja sendo utilizado ativamente em “o homem é normalmente
cheio de sensações quando é
trabalho e em exercício. Como James assinala em seu Talks for teachers, vazio de pensamento”, p. 117,
nós devemos focalizar sobre o “que fazemos... e não nos importar muito § 106.
quanto ao que sentimos”.10 Reconhecendo, astutamente, que “ação e sen- 10
JAMES, William. Talks to
timento ocorrem conjuntamente”, James insiste (tanto em lições públicas teachers on psychology: and to
students on some of life’s ide-
quanto em conselhos privados) que nós deveríamos controlar os nossos als. New York: Dover, 1962,
sentimentos focalizando apenas as ações com os quais estão ligados. Para p. 99.
superar depressão, ele escreve nos Principles of psychology, nós deveríamos 11
Idem, Principles of psychology,
simplesmente “passar pelos expansivos”, que expressam alegria, fazendo op. cit, p. 1077 e 1078; Talks
to teachers, op. cit., p. 100; The
com que, intencionalmente, o nosso corpo “atue e fale como se alegria já correspondence of William James.
estivesse lá”. Por exemplo: “Suavize a testa, ilumine os olhos, contraia o Charlottesville: University of
Virginia Press, 1995, v. 4, p. 586,
aspecto dorsal da estrutura esquelética ao invés do aspecto abdominal e e idem, ibidem, 2001, v. 9, p. 14.
fale em tom maior”. Ele instou seu irmão de modo semelhante: “Minhas 12
Notando a sua “disposição à
palavras moribundas [em uma carta escrita mais de trinta anos antes da hipocondria”, Kant percebeu
morte de James] são atos exteriores, não sentimentos”.11 que a atenção concentrada às
sensações somáticas internas
A rejeição kantiana-jamesiana da introspecção somática é, penso resultava em “sentimentos
eu, equivocada (e é, largamente, um produto de seus medos declarados mórbidos” de ansiedade. Ver
de hipocondria).12 Porém, os seus argumentos repousam sobre verdades KANT, Immanuel. The conflict
of the faculties. Lincoln: Univer-
significativas. Na maior parte das nossas atividades usuais, a atenção está sity of Nebraska Press, 1992, p.
e precisa estar primariamente direcionada não aos nossos sentimentos 187-189. Sobre a hipocondria
de James, ver PERRY, Ralph
internos de nosso si mesmo corporificado, mas aos objetos do nosso am- Barton. The thought and character
biente, em relação aos quais nós devemos agir e reagir com o objetivo de of William James (condensado
sobreviver ou florescer. Assim, por razões evolutivas excelentes, a natureza em um volume). Nashville:
Vanderbilt University Press,
posicionou os nossos olhos para olhar para fora e não para dentro. O erro 1996, que também se refere às
de Kant e de James é confundir primazia ordinária com importância exclu- reclamações da mãe de James
quanto às suas expressões
siva. Embora a atenção deva ser direcionada majoritariamente para fora, excessivas de “todo sintoma
é, todavia, frequentemente útil examinar a si mesmo e as sensações. Cons- desfavorável” (p. 361). Sobre
ciência de respiração pode nos informar se estamos ansiosos ou nervosos; a “hipocondria filosófica” dos
“estudos introspectivos”, ver a
enquanto, ao contrário, continuamos ignorando estas emoções, estamos carta de James ao irmão Henry,
mais vulneráveis as suas desorientações. Consciência proprioceptiva da de 24 de agosto de 1872, em The
correspondence of William James,
tensão muscular pode nos dizer quando a nossa linguagem corporal está op. cit., 1992, v. 1, p. 167. Repe-
expressando timidez ou agressividade, o que não gostaríamos de demons- tidamente, em correspondência
trar, da mesma forma que pode nos ajudar a evitar contrações musculares privada, James admitiu ser “um
abominável neurastênico”.
indesejadas e parasitárias, que limitam o movimento, exacerbam tensões Ver, por exemplo, suas cartas
e, eventualmente, causam dores. Na verdade, a dor em si mesma – uma a F. H. Bradley e George H.
Howison em The correspondence
consciência somática que nos informa de uma lesão e nos move a buscar of William James, op. cit., 2000, v.
remédio – provê clara evidência do valor da atenção aos estados somáti- 8, p. 52 e 57.

ArtCultura Uberlândia, v. 21, n. 39, p. 125-138, jul.-dez. 2019 129


13
Ao defender o cultivo da cos e às sensações de uma pessoa. O cuidado de si é melhorado quando
atenção somática [N. T.: so-
matic awareness pode também uma consciência somática mais penetrante nos alerta sobre os problemas
ser traduzido como “cuidado e remédios antes dos primeiros efeitos danosos da dor.13
somático” ou “vigília somá-
Embora James afirme, com razão, que, geralmente, é mais efetivo
tica”. Apesar de “atenção”
poder confundir-se com o focalizar o fim e confiar na ação de hábitos espontâneos para realizar os
sentido de attention, a opção meios corporais, muitas vezes esses hábitos são muito falhos para serem
pela palavra deu-se em virtude
de “cuidado” poder ser con- seguidos cegamente e requerem atenção somática para serem corrigidos.
fundido com a palavra care e Por exemplo, uma rebatedora normalmente baterá melhor na bola se ela
“vigília” ser muito pouco usual
estiver concentrada na bola, não na posição dos seus pés, na postura do
no português, a não ser no seu
contexto religioso cristão], eu seu torço e da sua cabeça ou na pegada de suas mãos sobre o taco. Porém,
não estou sugerindo que as uma rebatedora ruim ou desequilibrada pode aprender (recorrentemente
nossas sensações corporais
sejam guias infalíveis para a de um técnico) que a sua base, a sua postura e a sua pegada tendem a lhe
prática do autocuidado. Pelo retirar o equilíbrio ou inibem o movimento da bacia e da espinha de um
contrário, eu reconheço que a
modo que prejudica a sua batida e obstrui a sua visão da bola. Aqui, a
autopercepção somática média
de um indivíduo é, normal- atenção consciente deve, por um momento, ser direcionada à percepção
mente, um tanto imprecisa (não somática de posturas problemáticas, de modo que estas posturas possam ser
percebendo, por exemplo, as
contrações musculares crônicas identificadas de modo proprioceptivo e, assim, evitadas, enquanto hábitos
excessivas e prejudiciais). Mas posturais novos e mais produtivos (e as suas sensações concomitantes) são
esta é precisamente a razão
desenvolvidos e atentados. Sem esta atenção proprioceptiva, a rebatedora,
pela qual a atenção somática
precisa ser cultivada, para que espontaneamente, irá recair (e reforçar) nos hábitos posturais originais e
elas se tornem mais precisas e problemáticos, sem nem ao menos estar ciente disso.
discriminatórias; também é o
motivo pelo qual este cultivo, Uma vez que um hábito melhorado de rebater é estabelecido, os
tipicamente, requer o auxílio meios somáticos e as sensações de rebater deixam de demandar a nossa
de um professor. Eu também
atenção primária, pois o fim último continua sendo acertar a bola. Porém,
não pretendo sugerir que nos-
sa atenção somática de si seja atingir aquele fim último requer um tratamento dos meios como um fim
capaz de se ser tão completa temporário e um foco, tanto quanto atingir a bola – que é, por si mesmo,
a ponto de nos tornar total-
mente transparente para nós somente um meio de alcançar a base para marcar um ponto e, finalmente,
mesmos. Sobre esses limites e ganhar o jogo – é tratado como um fim temporário para atingir estes fins
dificuldades da introspecção
mais à frente. Atenção direta aos fins sem atenção cuidadosa aos meios
somática, ver SHUSTERMAN,
Richard. Body consciousness: necessários apenas traz frustração, como a rebatedora que deseja com todas
a philosophy of mindfulness as suas forças rebater a bola à distância, mas falha, porque sua ansiedade
and somaesthetics. Cambridge:
Cambridge University Press, de obter o fim a impede de concentrar nos meios corporais requeridos, in-
2008, capítulos 2, 5 e 6. cluindo o simples ato de manter os seus olhos firmemente fixos em seguir
a bola. Do mesmo modo, acadêmicos, cuja produtividade criativa é atra-
palhada por constantes dores de cabeça e incômodos de escrita resultantes
de maus hábitos corporais de “auto-uso” em suas estações de trabalho,
não conseguem remediar ou superar estes problemas com a pura força de
vontade. Os hábitos corporais e a atenção consciente sobre eles precisam
ser examinados antes de poderem ser propriamente transformados. Nós
devemos saber o que realmente fazer para corrigi-los, de modo confiável,
para agirem como queremos.
Apesar de advogar sabiamente o valor das ações somáticas na in-
fluência que exercem sobre as nossas emoções, a James falta reconhecer
a importância correspondente das sensações somáticos como guias de
nossas ações. Não podemos conhecer bem como suavizar a testa se não
podemos sentir que a nossa testa está franzida ou sem saber qual a sensa-
ção de se ter a testa suavizada. De modo análogo, como a maioria de nós
é habituada a posturas incorretas, a habilidade de nos mantermos eretos
de modo a evitar rigidez excessiva requer um processo de aprendizado
que envolve atenção sensitiva às nossas sensações proprioceptivas. A
insistência insensível de James na contração dorsal vigorosa e na pos-
tura vertical rígida (“eleve os seus sentimentos... e mantenha-se ereto”,

130 ArtCultura Uberlândia, v. 21, n. 39, p. 125-138, jul.-dez. 2019


ele exortava) é, portanto, uma prescrição certeira para o tipo de dores

Tradução
nas costas da qual ele realmente sofreu ao longo da sua vida; do mesmo
modo, é certamente muito mais expressão da sua ética puritana do que
produto de investigações clínicas cuidadosas.14 Se “ação e sensação ca-
minham juntas”, como James assinalava, ambas merecem consideração
cuidadosa para o funcionamento ótimo. Do mesmo modo, tanto os fins
quanto os meios requerem atenção.15 Embora facas tenham o objetivo
de cortar e não de serem afiadas, nós temos que, em alguns momentos,
focalizar em melhorar o seu fio e outros aspectos do seu uso para aprimo-
rar a sua eficácia. Esta lógica respeitadora dos meios subjaz o projeto de
somaestética como o estudo melhorativo do uso de nossos instrumentos
corporais para a percepção, a cognição, a ação, a expressão estética e a
autoformação ética, que, juntos, constituem a pesquisa humanística, a
criação artística e a arte global de aperfeiçoamento da humanidade por
meio de uma vida melhor.
A despeito de William James ser um dos filósofos modernos mais
favoráveis ao corpo e um dos grandes mestres da introspecção somática
na Psicologia, ele alertou contra o seu uso na vida prática e na vida mo-
ral, pois ele pensava que isso levaria à hipocondria e à depressão.16 Além
disso, James introduziu um argumento extra segundo o qual “a influência
inibidora da reflexão” sobre a ação corporal e as suas sensações concomi-
tantes, na verdade, interfere na ação. “Confie em sua espontaneidade e
fuja de todo cuidado além” é a máxima contrária de James ao sucesso da
performance sensório-motora.17 Para citar novamente a sua obra Principles
of psychology, “Nós falhamos em precisão e em certeza na obtenção de
nosso fim quando estamos preocupados com muita consciência ideal de
nossos meios [corporais]” e as sensações internas (ou “residentes”) que
elas envolvem. Em outras palavras, “Nós andamos melhor sobre uma
trave quanto menos pensamos sobre a posição dos nossos pés sobre ela.
Nós arremessamos ou agarramos, nós atiramos ou cortamos melhor
quanto menos a nossa consciência seja tátil e muscular (ou menos resi-
dente) e mais exclusivamente ótica (mais remota). Mantenha o olho no
alvo e a sua mão o alcançará; pense na mão e você muito provavelmente
errará o alvo”.18
Maurice Merleau-Ponty é outro campeão filosófico do corpo que, ape-
sar disso, rejeita o valor da reflexão somaestética. Como James, ele mantém
que a espontaneidade e a consciência perceptiva irrefletida irão sempre nos
servir melhor na vida cotidiana, enquanto a reflexão somática e as imagens 14
Ver JAMES, William. The
correspondence of William James,
representacionais (para as pessoas normais) são desnecessárias e mesmo se op. cit., v. 9, p. 14.
colocam no lugar do funcionamento relaxado. O corpo maravilhosamente 15
Ver idem, Talks to teachers, op.
“nos guia entre as coisas desde que nós paremos de analisá-lo”, apenas cit., p. 100.
sob a “condição de que nós não reflitamos expressamente sobre ele”.19 16
Alguém poderia argumentar
Não apenas em locomoção corporal, mas na variedade de nossas ações que isso leva à auto-absorção
imoral. Eu respondo a estas
(incluído as ações expressivas e criativas do discurso e da arte), Merleau- acusações em Body conscious-
-Ponty insiste repetitivamente que o sucesso da performance depende da ness, op. cit., capítulos 3, 5 e 6.
eficácia das intencionalidades corporais espontâneas subjacentes ao nível 17
Ver JAMES, William. Talks to
da consciência tematizada e que todas as representações conscientes ou teachers, op. cit. p. 99 e 109.
consciência reflexiva dos nossos comportamentos somáticos tendem, ao 18
Idem, Principles of psychology,
contrário, a inibir a ação eficaz: “como o funcionamento do corpo, aquele op. cit., p. 1128.

das palavras ou das pinturas continua obscuro para mim. As palavras, 19


MERLEAU-PONTY, Mau-
rice. Signs. Evanston: North-
linhas e as cores que me expressam... são rasgados de mim pelo o que eu western University Press, 1964,
quero dizer como os meus gestos o são pelo o que eu quero fazer ... [com] p. 78 e 89.

ArtCultura Uberlândia, v. 21, n. 39, p. 125-138, jul.-dez. 2019 131


20
Idem, ibidem, p. 75. uma espontaneidade que não vai tolerar qualquer comando, nem mesmo
21
Ver SHUSTERMAN, Richard. aqueles que eu gostaria de dar a mim mesmo”.20
Body consciousness, op. cit.
Em Consciência corporal, eu desafiei tais reivindicações contrárias à
Nós também não podemos reflexão e à atenção somática, refutando os seus argumentos específicos e
22

confiar em meras tentativas


e erros para formar novos listando os insights de teóricos que reconhecem o valor da reflexão somática
hábitos, pois o processo de para melhorar a qualidade e a eficácia de nosso “auto-uso”, incluindo as
sedimentação seria provavel-
mente muito lento e propenso
nossas capacidades de maior prazer.21 Um exemplo é John Dewey. Aluno
a repetir o mau hábito, caso este por muito tempo de Técnica Alexander e advogado dela, Dewey reconhe-
hábito não seja criticamente ceu o poder terrível que os maus hábitos exercem sobre os nossos atos,
tematizado de modo explicita-
mente consciente com vistas à pensamentos e intenções. O que chamamos de ação espontânea é produto
correção. Para explicações mais de hábito, não de um livre arbítrio puro; e hábito incorpora tipicamente
detalhadas sobre tais pontos,
ver Body consciousness, op. cit.,
aspectos das condições da sua aquisição. Já que essas condições são fre-
capítulo 6. quentemente muito distantes das melhores (lembremos dos ambientes
23
Ver DEWEY, John. The middle imperfeitos dos lares, escolas e de trabalho em que aprendemos), nós ad-
works. Carbondale: Southern quirimos, de modo irrefletido, maus hábitos tão facilmente quanto os bons.
Illinois University Press, 1982,
v. 11, p. 352.
Para corrigirmos os nossos maus hábitos, nós não podemos simplesmente
confiar na espontaneidade, que, como produto do hábito, é precisamente
24
Ver CONFÚCIO. The analects
of Confucius. New York: Ballan- parte do problema.22 Daí as várias disciplinas de treinamento corporal
tine Books, 1998, p. 72. [N. T.: invocarem representações e foco somático autoconsciente para corrigi-
pela dificuldade de encontrar
um termo em português que
rem nossas autopercepções e “autousos” errados. Essas disciplinas não
t.
indique self de modo aproxima- objetivam apagar o nível crucial de comportamento irreflexivo por meio
as e erros parado formar
ao que novos
utilizahábitos, pois o processo
Shusterman
openso a repetir do esforço (impossível) de nos tornar explicitamente consciente de todas
aqui, opreferimos
mau hábito, caso este
traduzir self- hábito não
nsciente com-examination
vistas à correção. Para explicações
por “autoexame”]. as nossas percepções e ações. Elas simplesmente procuram aprimorar o
mais
cit., capítulo 256.
Ver MENCIUS. Mencius (II:
comportamento irreflexivo que impede a nossa experiência e a nossa per-
hern Illinois University Press, 1982, v. 11, p. 352.
A.2). London: Penguin, 1970,
Ballantine Books, 1998, p. 72. [N. T.: pela dificuldade
formance. Mas para efetivar esta melhoria, a ação irreflexiva ou o hábito
p. 154 e 155 [N. T.: mante-
e modo aproximado ao que utiliza
mos a romanização Shustermandevem
utilizada aqui, ser trazidos à reflexão crítica e consciente (ainda que apenas por
por Shusterman. Em Pinyin, um tempo limitado) de modo que se possam ser dominados e trabalhados
1970, p. 154aeromanização
155 [N. T.: mantemos
padrão para a romanização
o mais precisamente. Nós precisamos saber o que estamos fazendo com os
ideograma moderno 气 é qì.]
drão para o ideograma
University Press, 1988, v. 1, p. 154.
nossos corpos para saber como corrigir o que estamos fazendo, de modo
26
XUNZI. On self-cultivation.
a: “aqueles que amam o seuStanford
corpo mais que possamos fazer o que com eles de modo mais eficaz. Assim, Dewey,
Xunzi. Stanford: Uni- do que o
mpério”. LAO TZU. Lao Tzu. London: Penguin,
versity Press, 1988, v. 1, p. 154. paradoxalmente,
1963, conclui: “a verdadeira espontaneidade é, daqui em diante,
espiratórios, dietas, ginásticas e disciplinas sexuais não um direito de nascença, mas o último estágio, a conquista consuma-
ng Tzu. New York: Columbia University Press, 1968,
da, de uma arte – a arte do controle consciente” por meio de uma atenção
reflexiva aperfeiçoada de nossos corpos.23
Columbia University Press, 1990, p. 32.
Insights da filosofia chinesa clássica

Movendo-nos agora para a China, aparentemente encontramos uma


divergência similar entre filosofias que reivindicam análise reflexiva e
controle consciente de si e do corpo e outras que, ao contrário, advogam
a favor da espontaneidade. Na tradição Confucionista, os Analetos (I:4)
o nunca deve ser concluído’, ‘uma exortação recomendam
ao um “autoexame” (self-examination) de comportamento diário
(onde o termo para self é o mesmo para body).24 Mêncio, mais tarde, reco-
nhador de cigarras deve não somente ter atenção
egurar o [seu] corpo... e segurar a [sua] mão de
menda o cultivo do “fluxo de ch’i que preenche o corpo”, tal cultivo requer
”. Idem, ibidem, p. 45. monitoramento atento por meio de intenção consciente e da mente.25 Xunzi
argumenta que a pessoa exemplar deveria dominar “o método de controle
da respiração vital”, ser “absorvido pelo exame de seu próprio interior” e
“desprezar as coisas meramente externas”.26
Em contraste, embora a tradição taoísta enfatize, fortemente, a aten-
em japonês: hashi 箸 ção somática em termos de cuidado com o corpo27, ela também é famosa
ca a Merleau-Ponty, ver a minha discussão em
por valorizar a espontaneidade irreflexiva de ação e o desprendimento da
ítulo 2.
ion. London: Routledge, 1962, p. 90 e 91. autoconsciência intencional. Nós lemos em Zhuangzi: “O artesão Ch’ui po-
ern University Press, 1968, p. 148.
n und der Mensch: einleitung in die philosophische
132 ArtCultura Uberlândia, v. 21, n. 39, p. 125-138, jul.-dez. 2019
Laughing and crying: a study of the limits of human
0.
dia desenhar tão bem quanto um compasso ou um esquadro, pois os seus

Tradução
dedos acompanhavam as coisas e ele não deixava a sua mente entrar no
caminho”.28 Liehzi parece expressar a mesma defesa da ação irreflexiva e
espontânea, que o seu tradutor, o distinto estudioso A. C. Graham, formula
como “pensar faz mal [a alguém] ao invés de bem” e que “é especialmen-
te perigoso ser consciente de si mesmo”.29 Liehzi nota como um homem
bêbado, por estar inconsciente, é menos propenso a se machucar ao cair
de uma carroça do que um homem consciente que se enrijece e tenta se
escorar enquanto cai; de modo semelhante, diz um nadador: “eu faço isso
sem saber como eu faço”.30 O mestre taoísta reivindica ser tão unificado
em seu ser e com a natureza que ele não nota por qual órgãos sensoriais
ele percebe algo e se é o seu corpo ou a natureza que impulsiona e guia as
suas atividades. “Eu não sei se eu percebi com os sete orifícios em minha
cabeça e os meus quatro membros ou se eu sabia pelo meu coração, meu
ventre e meus órgãos internos. Isto é simplesmente autoconhecimento”.31
“Eu me movia à deriva com o vento para o Leste ou o Oeste, como uma
folha... e nunca soube se era o vento que me conduzia ou eu que conduzia
o vento”.32
Mas junto com essa defesa de irreflexão espontânea, encontra-se um
profundo respeito por autoexame nesses textos clássicos taoístas. Assim,
Zhuangzi insiste:

Quando eu falo de boa audição, eu não quero dizer ouvir aos outros; eu quero dizer
simplesmente ouvir-se. Quando eu falo de boa visão, eu não quero dizer olhar os
outros; eu quero dizer simplesmente ver-se. Aquele que não olha a si mesmo, mas
olha os outros, que não se capta, mas capta os outros, está percebendo o que outros
perceberam, mas falhando em perceber o que ele próprio percebeu. Ele encontra
alegria no que traz alegria a outros homens, mas não encontra alegria alguma no
que poderia trazer alegria a si próprio.33 27
Seu fundador lendário, Laozi,
por exemplo, afirma: “aqueles
Zhuangzi, assim, recomenda autoexame: “Portanto, eu examino o que amam o seu corpo mais do
que o domínio sobre o império
que está em mim e nunca sou bloqueado do Caminho”.34 Neste ponto, podem receber a custódia do
indica-se que mesmo a ação corporal ou o movimento melhora quando se império”. LAO TZU. Lao Tzu.
London: Penguin, 1963, p. 17. O
olha introspectivamente para estabelecer um sentido estável de si, do qual
cultivo somático taoísta incluía
a ação pode emergir mais eficazmente. “Se você não percebe a sinceridade exercícios respiratórios, dietas,
em você e, ainda assim, tenta se mover adiante, cada movimento errará o ginásticas e disciplinas sexuais
específicas.
alvo. Se as preocupações externas entram e não são expelidas, cada movi-
28
Eu cito de CHUANG TZU.
mento apenas acrescentará falha à falha”.35 The complete works of Chuang
Liehzi, de modo semelhante, afirma o valor do autoexame: “Você Tzu. New York: Columbia Uni-
ocupa a si mesmo com a viagem externa e não sabe como ocupar a si mes- versity Press, 1968, s/p.

mo com a contemplação interna. Por viagem externa nós procuramos o 29


Eu cito de LIEH TZU. The book
of Lieh-tzu. New York: Colum-
que falta nas coisas fora de nós, enquanto pela contemplação interna nós bia University Press, 1990, p. 32.
encontramos suficiência em nós mesmos. O último é perfeito, o primeiro 30
Idem, ibidem, p. 4.
é um tipo imperfeito de viagem”.36
31
Idem, ibidem, p. 77.
Em respeito à ação habilidosa, Liehzi sugere, similarmente, que a
32
Idem, ibidem, p. 37.
performance magistral subjacente é a maestria de si, alcançada por meio da
atenção a si mesmo, pois o que subjaz o si mesmo é o Caminho inefável e 33
CHUANG TZU, op. cit., p.
102 e 103.
empoderador, nosso melhor guia. Portanto, o músico insiste em primeiro
34
Idem, ibidem, p. 319.
encontrar a harmonia em si mesmo, antes de se aventurar a tocar: “o que
eu tenho em mente não está nas cordas, o que eu objetivo não são as notas.
35
Idem, ibidem, p. 245.

Se eu não procuro para dentro, em meu coração, não haverá resposta por 36
LIEH TZU, op. cit., p. 82.
parte do instrumento fora de mim”.37 37
Idem, ibidem, p. 107.

ArtCultura Uberlândia, v. 21, n. 39, p. 125-138, jul.-dez. 2019 133


38
Xunzi escreve: “o cavalheiro Como podemos reconciliar essas visões conflitantes entre atentar
diz, ‘o aprendizado nunca deve
ser concluído’, ‘uma exortação para si mesmo e esquecimento irreflexivo de si na ação espontânea como
ao aprendizado’”. XUNZI, op. chaves de “autouso” eficaz, não só no taoísmo e na filosofia chinesa, mas
cit., p. 135.
também na filosofia ocidental e até mesmo no pragmatismo (entre James
39
Ver LIEH TZU, op. cit., p. 105. e Dewey)? Uma estratégia que elaborei em escritos anteriores é aquela de
Do mesmo modo, o apanhador
de cigarras deve não somente intercambiar fases e estágios. Embora a ação irreflexiva espontânea seja
ter atenção nelas mesmas, mas geralmente a mais eficaz, mesmo os seus proponentes tendem a reconhecer
também deve ter aprendido
como “segurar o [seu] corpo... e
que, nos estágios de aprendizagem de uma habilidade sensório-motora
segurar a [sua] mão de maneira (tocar um instrumento, rebater uma bola, andar de bicicleta, aprender um
tão firme quanto um galho de passo de dança), nós precisamos frequentemente de prestar atenta e crítica
uma árvore seca”. Idem, ibidem,
p. 45. atenção ao que estamos fazendo com as partes do corpo engajadas na ação.
40
Ver idem, ibidem, p. 112.
Eu complementaria que nós devemos também prestar atenção à nossa res-
piração e às sensações proprioceptivas do que estamos fazendo. Porém, os
advogados da espontaneidade insistem que, uma vez que esse estágio de
aprendizagem termina, também acaba a necessidade de atenção explícita
ao que os nossos corpos estão fazendo. Minha posição, que compartilho
com teóricos do corpo como F. M. Alexander e Moshe Feldenkrais e com
filósofos como John Dewey, é que há também necessidade de “autoatenção”
depois que o processo de aprendizagem foi considerado terminado. Isso é
porque, como Xunzi insiste, o processo de aprendizado nunca está inteira-
mente completo.38 Aprender nunca termina porque não apenas há sempre
a possibilidade de refinar e estender uma habilidade adquirida como nós,
frequentemente, também retrocedemos a maus hábitos de performance ou
encontramos novas condições (contusões, fatiga, crescimento, envelheci-
mento etc.) e novos ambientes, assim, nós temos que corrigir, reaprender
e ajustar os nossos hábitos à performance espontânea. Nem todas as nossas
ações devem sempre ser atentadas explicitamente – isso seria impossível e
indesejável. Nós precisamos coalizar atenção naquilo que necessita mais:
normalmente, o mundo em que agimos (embora nós não devêssemos nunca
esquecer que a atenção explícita cuidadosa ao próprio corpo em ação sem-
pre envolve atenção ao seu ambiente – ninguém pode sentir o seu corpo em
si mesmo). Contudo, algumas vezes, para lidar mais eficientemente com
as coisas no mundo da ação, nós precisamos ou de adquirir novos hábitos
ou de redefinir ou reconstruir nossos modos de ação habituais (bem como
nossas atitudes, sentimentos e conhecimentos, que guiam as nossas ações),
e esse é um processo que requer redirecionar explícita atenção ao nosso
comportamento somático. Uma vez que os nossos hábitos novos ou recons-
truídos são adquiridos, nós podemos renunciar atenção especial ao nosso
corpo em ação e alternar para o modo espontâneo acrítico e impensado.
Nós podemos encontrar insinuações dessas mesmas estratégias em
Liehzi, para o qual o sucesso na ação espontânea depende de alguém ter,
primeiro, estabelecido a sua harmonia por meio de atenção ao seu si mesmo
somático. O grande arqueiro tem sucesso mesmo com um arco ruim não só
“porque a sua atenção está concentrada” no alvo, mas porque ele já treinou
o seu corpo de modo que “o movimento da sua mão compense a transmis-
são e a puxada” do arco.39 Em arquearia, além disso, “você deve aprender
a não piscar” e “como olhar”, o que também requer examinar criticamente
o nosso comportamento somático com olhar e piscar.40 Considerações
semelhantes são feitas quanto às habilidades de pescar e de carruagem,
quando a espontaneidade e a resposta focalizada no objetivo dependem de
ter adquirido controle somático dos meios corporais de sentir e responder
com mãos calmas e perceptivas. E o único caminho seguro para estabelecer

134 ArtCultura Uberlândia, v. 21, n. 39, p. 125-138, jul.-dez. 2019


a calma em alguém é por meio da observação interna atenta para conhecer a

Tradução
sua natureza e desenvolver as suas virtudes: “ele vai se agarrar ao seu nível
e não o excederá... ele irá unificar sua natureza, cuidar das suas energias,
manter a sua virtude dentro de si, os Céus dentro de você irão manter sua
integridade, o espírito dentro de si não terá falhas”.41 E isto é considerado
imediatamente como superior à tranquilidade do homem bêbado, cujo des-
temor de cair vem somente por meio do desconhecimento provocado pela
substância externa do vinho e não do saber dos Céus, de dentro de si mesmo.
Além disso, Liehzi mostra como as nossas habilidades já adquiridas
de performance espontânea requerem reconstrução quando encontram
novas condições. O arqueiro de sucesso perde totalmente as suas habilida-
des habituais e a sua postura magistral de quietude “como uma estátua”
quando ele é instado a agir em uma escarpa, onde ele treme e falha de
medo, pois ele não aprendeu a controlar a sim mesmo de tal modo que
“seu espírito e respiração não mudem” em novas condições que provocam
ansiedade.42 As habilidades de alguém em outras situações são de algum
modo destruídas quando a pessoa pensa em falha ou em prêmio: “você
dá valor a algo fora de você; e qualquer pessoa que faça isso é desastrada
internamente”.43 Analogamente, em Zhuangzi, o grande entalhador, Ch’ing,
explica que a sua habilidade aparentemente espontânea se baseia em um
processo de autopreparação por meio de uma disciplina somática de jejum
“para aquietar [a] mente”, de modo que depois de uma semana de jejum,
“eu não tenha nenhum pensamento de recompensas ou comprimentos, de
21
Ver SHUSTERMAN, Richard. Body consciousness, op. cit.
títulos ou emolumentos... qualquer pensamento de elogio ou
Ver SHUSTERMAN, Richard.22Body
censura, deop. cit.
21
Nós consciousness,
também não podemos confiar em meras tentativas e erros para f
habilidade ou falta de jeito... Minha 22habilidade é concentrada
Nós também não podemos confiar eemqualquer
meras tentativas
de sedimentação e erros para muito
seria provavelmente formarlento
novos hábitos, pois
e propenso o pro
a repeti
distração de fora desvanece”.44 de sedimentação seria provavelmente muito lento
seja criticamente e propenso
tematizado a repetir
de modo o mau hábito,
explicitamente caso este
consciente comhábit
vi
seja criticamente tematizado dedetalhadas modo explicitamente consciente
sobre tais pontos, com vistas
ver Body à correção.
consciousness, Paracapítulo
op. cit., explicaçõe
6.
detalhadas sobre tais pontos, ver 23
BodyDEWEY,
Ver consciousness,
John. op.
Thecit.,
middlecapítulo
works.6.Carbondale: Southern Illinois Un
Soluções somaestéticas 23
Ver DEWEY, John. The middle24works. Carbondale: The
Ver CONFÚCIO. Southern
analects Illinois University
of Confucius. NewPress,
York:1982, v. 11, p.
Ballantine 352
Book
24
Ver CONFÚCIO. The analects de of Confucius.
encontrar New York:em
um termo Ballantine
português Books,
que 1998,
indiquep. 72.
self [N. T.: pela
de modo dificu
aproxim
de encontrar um termo em português preferimos indique self
que traduzir de modo aproximado
self-examination ao que utiliza Shusterman
por “autoexame”].
Essas fábulas coloridas sugerem um ponto crítico. Muitas
preferimos traduzir self-examination 25
Verpor
das expe-
“autoexame”].
MENCIUS. Mencius (II: A.2). London: Penguin, 1970, p. 154 e 1
riências que advogam a favor da espontaneidade 25
Ver MENCIUS. Mencius invocam, como
(II: utilizada
A.2). London: evidên-
por Penguin, 1970,
Shusterman. p. 154 ea romanização
Em Pinyin, 155 [N. T.: mantemos
padrão para a roman
o ideo
cia, que a atenção do comportamento26 somático na ação parece nos levar a
utilizada por Shusterman. Em Pinyin,
26
XUNZI. a romanização
On padrão
self-cultivation. para
Xunzi.o ideograma
Stanford: moderno
Stanford é qì.]
University
气 Pres
XUNZI. On self-cultivation. Xunzi. 27
SeuStanford:
fundadorStanford
lendário, University
Laozi, por Press, 1988, v.afirma:
exemplo, 1, p. 154.“aqueles que
tropeçar ou calar, porém, as falhas podem 27 não derivar realmente
Seu fundador lendário, Laozi, domínio
do foco
por exemplo, afirma:podem
sobre o império “aqueles que aamam
receber o seu
custódia corpo mais
do império”. LAOdoT
somático (em nossos pés ou língua),domínio nos levando
sobre o império a tropeçar
podem 17.ou
p.receber calar.
O acultivo
custódia É,do império”.
somático taoístaLAO Lao Tzu. London:
TZU.exercícios
incluía Penguin
respiratórios, die
ao contrário, a ansiedade quanto a cair p. 17.ouO acultivo
falhar que causa
somático taoísta tais
incluía
específicas. lapsos
exercíciose respiratórios, dietas, ginásticas e disciplinas se
específicas. 28
Eu cito de CHUANG TZU. The complete works of Chuang Tzu. New Yo
que acompanha intimamente a nossa 28 atenção às nossas partes corporais,
Eu cito de CHUANG TZU. The s/p.complete works of Chuang Tzu. New York: Columbia University Press,
quando estamos preocupados em ajudá-las s/p. no seu trabalho 29 e tememos
Eu cito de LIEH TZU. The book of Lieh-tzu. New York: Columbia Unive
que elas não serão capazes de realizá-lo Eu propriamente sem a31 nossa atenção
cito de LIEH TZU. The book of Lieh-tzu.
Idem, ibidem,Newp. 4.York: Columbia University Press, 1990, p. 32.
29 30

30
Idem, ibidem, p. 4. Idem, ibidem, p. 77.
ansiosa e esforçada. Em outras palavras, 31 tais circunstâncias
Idem, ibidem, p. 77. 32 nas quais a
Idem, ibidem, p. 37.
atenção aos movimentos corporais emIdem, 32
açãoibidem,
parecep. 37.interferir na 33
performance
CHUANG TZU, op. cit., p. 102 e 103.
de sucesso são realmente casos nos quais CHUANG a real
TZU,atenção
op. cit., p. nas partes
10234eIdem,
103. ibidem, corpo-
p. 319.
33

34
Idem, ibidem, p. 319. 35
Idem, ibidem, p. 245.
rais e nos movimentos é obscurecida35por Idem,emoções
ibidem, p. 245. e pensamentos 36 de falha,
LIEH TZU, op. cit., p. 82.
de sucesso ou da autoimagem frente36ao LIEHolhar dos
TZU, op. cit.,outros.
p. 82. Assim,
37
ao invés
Idem, ibidem, p. 107.
de condenar completamente a consciência
37
Idem, ibidem, p. 107.
corporal explícita ou reflexiva
38
Xunzi escreve: “o cavalheiro diz, ‘o aprendizado nunca deve
38
Xunzi escreve: “o cavalheiro diz, ‘o aprendizado
aprendizado’”. XUNZI, op.nunca deve ser concluído’, ‘uma exortaç
cit., p. 135.
como prejudiciais à performance eficiente, nós precisamos
aprendizado’”. XUNZI, op. cit., distinguir
p.Ver
39
135.LIEH TZU, maisop. cit., p. 41105. Do ibidem,
Idem, mesmop. modo, o apanhador de cigar
37 e 38.
claramente o foco verdadeiro e os modos 39
ou níveis
Ver LIEH TZU, op. de cit.,acuidade
p. 105.nelas de talmodo,
Do mesmo
mesmas, cons-
mas otambém
apanhador devede tercigarras devecomo
aprendido não somente
“segurarter atençã
o [seu] c
umVer oidem, ibidem, p. 38seca”.
e 39. aIdem,
42
nelas mesmas, mas também deve ter aprendido
maneira tão firmecomoquanto“segurar galho [seu] corpo...
de uma e segurar
árvore [sua]ibidem,
mão de p
ciência. Por exemplo, eu estou realmente focalizando cuidadosamente os
maneira tão firme quanto um galho 40
Verde umaibidem,
idem, 112. Idem,
árvorep.seca”. 43
Idem,ibidem, p. 45.
ibidem, p. 44.
movimentos de meus dedos e mão quando 40
Ver idem,tenho
ibidem, p.problemas
112. 41 emibidem,
Idem, levantar
p. 37 e 38.
uma ervilha escorregadia com os meus ibidem, p. 37 e 38. 45 ou42 Ver
Idem, “pauzinhos” é oidem,meu foco p. 38 e 39. CHUANG TZU, op. cit., p.
44
41
ibidem,
42
Ver idem, ibidem, p. 38 e 39. Idem, ibidem, p. 44. 206.
mental, quando olho para minha mão, igualmente impregnada ou mesmo
43

43
Idem, ibidem, p. 44. 44
CHUANG TZU, op. cit., p.45206. N. T: em inglês: chopsticks;
dominada pelos pensamentos e emoções 44
CHUANG TZU, op. cit., p. 206. N. T: em inglês: ou
subjacentes sobre eu
45 conseguir chopsticks;em mandarim: kuaizi
emmandarim: kuaizi 筷子;; em em japonês: hash
não fazer isso com sucesso e como sou 45
N.visto (ou julgado)
T: em inglês: chopsticks; em pelos Paraoutros
mandarim:
46
umakuaizi que筷子; emmais
articulação japonês:
japonês: hashi
hashi 箸 dessa crítica a Merleau-P
detalhada
46
Para uma articulação maisSHUSTERMAN, detalhada dessa críticaBody
Richard. a Merleau-Ponty,
consciousness, op. ver a minha2. discussã
cit., capítulo
SHUSTERMAN, Richard. Body 47consciousness, MERLEAU-PONTY, op. cit., capítulo
Maurice. 2. Phenomenology of perception. London: Ro
MERLEAU-PONTY,
ArtCultura Uberlândia, v. 21, n. 39, p. 125-138, jul.-dez.
47
2019 Maurice.48Phenomenology
Idem, The visibleofand perception. London:
the invisible. Routledge,
Evanston: 1962, 135
Northwestern p. 90University
e 91. P
48
Idem, The visible and the invisible. 49
Evanston:
Ver PLESSNER,Northwestern
Helmut.University
Die StufenPress, 1968, p. 148. und der Mens
des Organischen
49
Ver PLESSNER, Helmut. Die Stufen des Organischen
Anthropologie. Berlin andund der Mensch:
Leipzig: einleitung
De Gruyter, 1928, einLaughing
die philosop
and cr
46
Para uma articulação mais observam o meu esforço? Minha consciência está calmamente observante
detalhada dessa crítica a Mer-
leau-Ponty, ver a minha dis- ou ansiosamente afobada? Há também a questão se eu tenho habilidade e
cussão em SHUSTERMAN, precisão em auto-observação somaestética. Talvez o meu senso somaestético
Richard. Body consciousness, op.
de mim mesmo não seja muito claro e, portanto, eu nem mesmo percebo
cit., capítulo 2.
que eu fiquei ansioso, que a qualidade e a precisão da minha atenção aos
meus dedos foi, assim, distraída, mesmo que os meus olhos continuem
fixados sobre ele.
Algumas pessoas possuem habilidades sensório-motoras melhores
do que outras e o treino é um dos modos pelos quais elas as adquiriram.
Embora a abordagem fenomenológica de Merleau-Ponty presuma que toda
pessoa normal goze do mesmo nível básico de percepção e ação espontâ-
neas primordiais, que funcionam com eficiência milagrosa ou mágica (em
contraste com casos patológicos extremos de lesões celebrais ou outras
formas de trauma), eu penso que a situação seja mais complexa. Muitos de
nós conseguem se virar com hábitos sensório-motores que possuem várias
falhas menores, o que não nos desqualificam quanto à normalidade, no
sentido de termos um funcionamento padrão, mas que resultam em dor
desnecessária, desconforto, ineficiência, fatiga mais rápida e uma tendência
a certos erros ou acidentes.
Nós podemos compartilhar da apreciação de Merleau-Ponty quanto
a nossa percepção somática implícita e irrefletida, mas poderíamos também
reconhecer que tal percepção seja, muitas vezes, dolorosamente imprecisa
e disfuncional. Eu posso pensar que estou mantendo minha cabeça para
baixo quando movimento um taco de golfe, embora um observador veria
facilmente que eu não faço isso. Disciplinas de educação somática utilizam
exercícios de atenção representacional para tratar de tais problemas de
percepção e de mal-uso dos nossos corpos no comportamento habitual e
espontâneo, que Merleau-Ponty identifica como primordial e celebra como
milagrosamente perfeito na performance normal. Portanto, se Merleau-Ponty
pretende recapturar uma percepção primordial irreflexiva que seja univer-
sal e “imutável” e que seja necessária como terreno essencial para explicar
todas as outras percepções e performances, minha abordagem pragmática é
mais sensível às diferenças de subjetividade somática e, ao contrário, busca
explorar e melhorar os nossos comportamentos ao atentarmos mais (embora
não somente ou em maior parte) sobre ele de modo mais explicitamente
consciente e reflexivo para que a nossa percepção e performance possam ser
melhoradas. Trazer hábitos irreflexivos à consciência mais explícita é útil
não somente para revisitar os maus hábitos como para prover oportunida-
des para os desaprender e estimular novos pensamentos capazes de ampliar
a flexibilidade e a criatividade da mente, o que, como algumas pesquisas
sugerem, está, em parte, conectado ao melhoramento da plasticidade nas
redes neurais do cérebro.46
O valor da atenção somática explícita, crítica e mesmo reflexiva parece
inegável não apenas nos estágios de aprendizado de várias habilidades e
para os nossos esforços contínuos de extensão e refinamento delas, mas
também para o processo de desaprender hábitos inadequados e substituí-
-los por melhores. Entretanto, pode a atenção somaestética explícita ou
mesmo reflexiva ser direcionada, de modo útil, também à ação para além
destes diversos estágios de aprendizado, para fases de maestria completa,
quando o foco está na performance de sucesso ao invés do aprendizado?
Há certamente um pressuposto, aparentemente fundado na experiência
da vida real e em alguns estudos experimentais, segundo o qual a atenção

136 ArtCultura Uberlândia, v. 21, n. 39, p. 125-138, jul.-dez. 2019


explícita aos meios corporais do movimento irá de algum modo nos distrair

Tradução
das finalidades da ação e, portanto, diminuir a performance. Mas, talvez,
isso seja porque as nossas capacidades de atenção sejam insuficientemente
treinadas para abrangerem tanto os nossos movimentos corporais quanto
os objetivos da nossa ação. Nós parecemos capazes de ouvir atentamente
à narração de notícias enquanto assistimos atentamente às imagens delas
ou, ao invés disso, estando no tráfego, ouvi-las enquanto dirigimos. Tal-
vez aqueles que sejam mais hábeis em prestar atenção ao comportamento
corporal possam combinar atenção explícita ou reflexiva com performance
suave efetiva, que, igualmente, atenda aos objetivos da ação.
Neste ponto, devemos nos referir ao argumento mais radical de
Merleau-Ponty contra a reflexão somaestética: que tal reflexão, na verdade,
seja impossível, pois nós não podemos verdadeiramente observar o corpo
de um modo próprio. Ele “desafia a exploração e é sempre apresentado a
mim por um mesmo ângulo... Isto é: ele está sempre perto de mim, sempre
lá, para mim; nunca está realmente à minha frente, de modo que eu não o
posso colocar diante dos meus olhos, ele se mantém marginal às minhas
percepções, ele está comigo”. Eu não posso modificar a minha perspectiva
em relação ao meu corpo tal como posso em relação a objetos exteriores.
“Eu observo objetos exteriores com o meu corpo: eu os seguro, os examino,
caminho ao redor deles, mas o meu corpo, em si mesmo, é algo que eu não
posso observar. Para ser capaz disso, eu precisaria utilizar um segundo
corpo”.47 “Eu estou sempre no mesmo lado em que meu corpo está. Ele se
apresenta a mim sob uma perspectiva invariável”.48
A somaestética, em contraste, recorre às nossas experiências somáti-
cas ordinárias para argumentar que nós podemos observar e, na verdade,
observamos nossos corpos. Nós observamos nossas faces, nossos abdomes,
não apenas por meio dos olhos e espelhos, mas por meio do toque das
nossas mãos, para observar se precisamos nos barbear ou entrar em dieta
e fazer exercícios. Nós podemos observar se nossos pés estão sujos ao vê-
-los, senti-los ou mesmo pelo cheiro de sua falta de limpeza. Nós podemos
observar a posição dos nossos braços e pernas não apenas os olhando e
tocando, mas sentido as suas posições por dentro, proprioceptivamente. Em
resumo, nós podemos explorar os nossos corpos das diferentes perspectivas
dos vários sentidos corporais. Para além destas práticas ordinárias de ob-
servação somática, uma variedade de disciplinas meditativas é estruturada
para enfatizar o autoexame crítico consciente do soma.
Merleau-Ponty, contudo, argumenta que a observação do corpo
é, em princípio, impossível por conta de razões teóricas. Seu argumento
sustenta-se, aparentemente, sobre duas pressuposições filosóficas de fundo.
A primeira é o pressuposto bastante enraizado de que a observação crítica
requer alguma separação – uma distância crítica – daquilo a que se obser-
va. Porém, uma vez que nunca podemos nos separar dos nossos corpos,
observá-los parece impossível para nós, a despeito das nossas sensações
disso na experiência diária. A segunda suposição é que a subjetividade que
percebe ou observa deve ser essencialmente diferente daquela do objeto
de observação. Entretanto, como o corpo, na qualidade de “subjetividade 47
MERLEAU-PONTY, Mau-
primária” da pessoa, é sujeito perceptivo, intencional e ativo, ele não pode rice. Phenomenology of percep-
ser também o próprio objeto percebido. Se reconhecermos o corpo como tion. London: Routledge, 1962,
p. 90 e 91.
sujeito, ele não pode ser percebido como um objeto, já que sua essência e
48
Idem, The visible and the invis-
papel completos estão totalmente focados na subjetividade da percepção, ible. Evanston: Northwestern
da sensação e da ação propositada. University Press, 1968, p. 148.

ArtCultura Uberlândia, v. 21, n. 39, p. 125-138, jul.-dez. 2019 137


49
Ver PLESSNER, Helmut. Defensores da reflexão somática podem desafiar efetivamente o ar-
Die Stufen des Organischen und
der Mensch: einleitung in die gumento de Merleau-Ponty, confrontando a suposição de que a distância
philosophische Anthropologie. necessária à observação crítica do corpo requer uma impossível perspectiva
Berlin and Leipzig: De Gruyter,
fora-do-corpo. Nós podemos examinar criticamente aspectos da nossa ex-
1928, e Laughing and crying: a
study of the limits of human periência somática sem migrarmos dos nossos corpos para uma putativa
behavior. Evanston: North- mente desencarnada. Nós utilizamos um dedo para sondar um inchaço
western University Press, 1970.
sobre a nossa face; utilizamos a língua para descobrirmos e removermos os
traços de comida sobre nosso lábio superior ou sobre os nossos dentes. Nós
discriminamos ou acessamos nossa dor na própria experiência dolorosa,
não apenas após ela ter passado e nós estarmos, neste sentido, além ou
fora dela. Em miúdos, o autoexame somático provê um modelo de crítica
imanente por meio do qual a perspectiva crítica da pessoa não requer estar
totalmente fora da situação criticamente examinada, mas apenas requer
uma perspectiva refletiva e destacada sobre ela, que não seja totalmente
absorvida pelo imediato daquilo que esteja sendo experimentado. Ao invés
de ser vista como externa, a perspectiva pode ser melhor descrita como, de
algum modo, periférica ou às margens do foco de atenção e experiência da
pessoa. Em outras palavras, se o foco imediato da atenção constitui o centro
absorvente imediato da experiência, a consciência somática reflexiva pode
ser descrita como descentrada ou, conforme a útil terminologia de Helmut
Plessner, como tendo uma posição “excêntrica”.49
Tais perspectivas por meio das quais a subjetividade somática da pes-
soa retorna e examina a sua própria experiência somática são alcançadas, às
vezes, por disciplinas esforçadas de atenção (como yoga, zazen etc.), mas a
posição de distância ou de reflexão descentrada do sujeito, desde a qual ele
observa o seu corpo com atenção focada explícita, muitas vezes, também
surge espontaneamente por meio de experiências de dissociação somática,
quando a coordenação espontânea irreflexiva é perturbada, estimulando,
assim, uma atenção crítica reflexiva e descentrada ao que está acontecendo.
Nós podemos compreender a possibilidade da distância crítica, que, não
obstante, é imanente no soma, reconhecendo a complexidade do soma e dos
seus modos de consciência. Como o soma envolve uma complexidade de
funções e formas intencionais de atenção perceptiva, também a consciência
somática crítica envolve alguns aspectos do complexo arranjo de sistemas
do soma examinando outros aspectos desta complexidade. Portanto, uma
dimensão essencial do soma humano é que ele serve tanto ao sujeito que
observa quanto ao objeto observado. Como seres que monitoram critica-
mente a si próprios e, propositadamente, usam a si próprios, humanos são,
ao mesmo tempo, criaturas que agem impulsivamente e pensam delibera-
damente; tanto a espontaneidade quanto a reflexão pertencem à natureza
humana, que é sempre também um produto cultural, já que até mesmo os
nossos impulsos espontâneos são tipicamente produtos de hábitos, desejos
e necessidades adquiridos em um contexto sociocultural.
É, portanto, muito mais frutífero considerar o contraste entre reflexão
e espontaneidade uma complementaridade produtiva ao invés de ser um
dualismo do tipo “ou um ou o outro”, no qual quem defende um deve re-
jeitar o outro. Eu não consigo perseguir esta linha de argumentação aqui,
explorando os meios pelos quais espontaneidade e reflexão poderiam ser
combinados ou integrados nos intervalos das fases de nosso comportamen-
to de modo mais eficaz, entretanto, parece claro que o pensamento clássico
chinês seja de valia na apreciação da sua complementaridade.
Tradução recebida em 24 de julho de 2019. Aprovada em 17 de agosto de 2019.

138 ArtCultura Uberlândia, v. 21, n. 39, p. 125-138, jul.-dez. 2019


Artigos
Memória,
história e
identidade:
o caso da
“escola uspiana
de história”
Muse Inquietanti. Giorgio de Chirico. 1924, fotografia (detalhe).

Diego José Fernandes Freire


Doutorando pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Professor subs-
tituto do Departamento de História da Universidade Federal do Rio Grande do Norte
(UFRN) e da Secretaria de Educação e Cultura do Estado do Rio Grande do Norte. Autor
do livro Contando o passado, tecendo a saudade: a construção simbólica do engenho açuca-
reiro em José Lins do Rego (1919-1943). João Pessoa: Ideia, 2015. diego5739@gmail.com
Memória, história e identidade: o caso da “escola uspiana
de história”1
Memory, history and identity: the case of “escola uspiana de história”

Diego José Fernandes Freire

resumo abstract
Este artigo discute o texto “A escola This article approachs the text “A escola
uspiana de história”, de Maria Helena uspiana de história”, by Maria Helena
Rolim Capelato, Raquel Glezer e Vera Rolim Capelato, Raquel Glezer and Vera
Lucia Amaral Ferlini, publicado em Lucia Amaral Ferlini, published in 1994
1994 na revista Estudos Avançados, a in the journal Estudos Avançados, based
partir de uma articulação entre memó- on the connection between memory and
ria e identidade. Objetiva-se analisar a identity. I intend to discuss the way
maneira como essas três historiadoras those three historians from USP have
uspianas enunciaram uma identidade enunciated a historiographic identity in a
historiográfica em profunda ligação strong connection with a disciplinary and
com uma memória disciplinar e insti- institutional memory tied to São Paulo
tucional vinculada à Universidade de University, specially the Faculty of philoso-
São Paulo, em especial à Faculdade de phy, Letters and human sciences. Divided
Filosofia, Letras e Ciências Humanas. into three great moments, the article also
Dividido em três grandes momentos, relates this enunciation of identity to the
o trabalho relaciona ainda tal enun- brazilian historiography in the latest deca-
ciação identitária com a historiografia des of last century. How a historiographic
brasileira das últimas décadas do sé- identity from USP was produced, written
culo passado. Como uma identidade and enunciated? That’s the issue of the
historiográfica uspiana foi produzida, following text.
escrita e enunciada? Eis a questão
orientadora do artigo.
palavras-chave: memória; identidade; keywords: Memory; identity; brazilian
historiografia brasileira. historiography.

1
Uma primeira versão deste

artigo foi apresentada como
trabalho de conclusão da dis-
ciplina Cultura e Representa- Não há busca identitária sem memória e, inversamente, a busca memorial é
ção, ministrada pelo Prof. Dr.
Alessander Kerber, no âmbito
sempre acompanhada de um sentimento de identidade.
do PPGH da UFRS no primeiro Joel Candau2
semestre de 2018. O texto foi
ainda debatido no grupo de
pesquisa do Prof. Dr. Fernando
Nicolazzi, docente da mesma No dia 29 de setembro de 2017, a edição on-line do jornal da Uni-
instituição. A todos aqueles e
aquelas que contribuíram com
versidade de São Paulo (USP) publicou em seu site um polêmico artigo
esta versão final (inclusive a intitulado “A História Econômica na USP”. Assinado por três professores
Capes) manifesto meu agra- da casa, o texto critica frontalmente os critérios avaliativos da Coordenação
decimento.
de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes), fundação pú-
2
CANDAU, Joel. Memória e
identidade. São Paulo: Contexto, blica ligada ao Ministério da Educação e Cultura do Brasil, criada em 1951
2016, p. 15. e, desde 1976, responsável por avaliar todos os cursos de pós-graduação

140 ArtCultura Uberlândia, v. 21, n. 39, p. 139-153, jul.-dez. 2019


do país (PPG). Em 2017, o PPG em História Econômica da USP recebeu as

Artigos
notas 2 e 3, para os cursos de mestrado e de doutorado, respectivamente,
numa escala que varia de 1 a 7. Diante dessa avaliação “fraca e irregular”,
conforme as categorias da Capes, a recomendação oficial da fundação foi
pelo seu descredenciamento, cabendo, entretanto, recurso. De toda forma,
o texto on-line indica que o repúdio à posição assumida pela Capes se fez
antes mesmo da formalização de um recurso.
Para além do universo da USP, a má avaliação repercutiu em outros
meios de comunicação. O tradicional jornal paulista Folha de S. Paulo, em
12 de outubro de 2017, acolheu em seu site uma reportagem com a seguinte
manchete, em negrito: “Curso de pós em História Econômica da USP tem
nota baixa e pode fechar”.3 O Globo, jornal carioca, também deu visibilidade
ao assunto, conforme evidencia uma matéria de outubro de 2017, estampa-
da em seu site sob o chamativo título “Professores da USP criticam método
de avaliação da Capes”.4 Em face da ressonância do assunto, julgamos que
se faz necessário dispensar uma atenção mais detida ao texto “A História
Econômica na USP”, tanto por ele representar a visão de atores diretamente
envolvidos como por haver sido o fator deflagrador da celeuma.
Everaldo Andrade, Lincoln Secco e Marisa Midori Deaecto, profes-
sores que não só lecionam na USP como também realizaram suas etapas
de formação (graduação, mestrado e doutorado) em tal instituição de
ensino, assim protestaram quanto ao tratamento dado ao PPG em que
trabalham:

A avaliação meramente quantitativa não reflete a qualidade de nossos cursos. Quem


em sã consciência diria que a História Econômica, na principal Universidade do
País, é a pior entre todos os programas avaliados? O corpo docente é reconhecido
pela excelência de suas pesquisas, publicações em revistas acadêmicas nacionais e
internacionais, livros premiados, reeditados e traduzidos no exterior. Além disso,
tem enorme incidência no debate público. Quem pode mensurar esse complexo, no
qual pesquisa, ensino e extensão compõem o DNA da atividade uspiana?5

Como se vê, este fragmento textual – que recebeu destaque no site,


inserido na homepage entre aspas e em letras azuis – procura confrontar a
avaliação da Capes ao expor uma série de qualidades e características que
seriam próprias do PPG emHistória Econômica da USP, e que o coloca-
riam em posição de reconhecimento nacional e internacional. O elenco de
3
Disponível em <https://
www1.folha.uol.com.br/
virtudes apresentadas e reivindicadas seria igualmente a marca de uma mercado/2017/10/1926428-
singularidade, traços únicos e distintivos de uma chamada “atividade -curso-de-pos-em-historia-
-economica-da-usp-tem-nota-
uspiana”. O que seria essa “atividade uspiana”? E qual seria o seu DNA? -baixa-e-pode-fechar.shtml>.
O texto-manifesto dos historiadores da USP ancora-se não só no Acesso em 15 out. 2017.
repúdio ao que os seus autores entendem como “quantitativismo da Ca- 4
Disponível em <https://
pes”, fruto de um “Estado empresarial guiado pelas metas de eficiência oglobo.globo.com/sociedade/
educacao/enem-e-vestibular/
privada incompatíveis com a pesquisa científica”6, mas, além disso, em uma professores-da-usp-criticam-
pretensa identidade típica da USP, mais precisamente do Departamento -metodo-de-avaliacao-da-capes
de História (DHIS) e do PPG de História Econômica. Afinal, “a USP já -21904974#ixzz4uyKWxce1>.
Acesso em 15 out. 2017.
formava doutores na área. Isso desde 1942, quando reconheceu os títulos 5
Disponível em <http://jornal.
de Eurípedes Simões de Paula e Alice Piffer Canabrava. Nossos antigos usp.br/artigos/a-historia-eco-
docentes, na esteira de Fernand Braudel, professor da Cátedra de Histó- nomica-na-usp/>. Acesso em
8 out. 2017.
ria das Civilizações, e de Caio Prado Junior, aluno da primeira turma de
História e Geografia, inauguraram uma tradição que se desdobrou num 6
Idem.

programa vocacionado ao estudo da História”.7 7


Idem.

ArtCultura Uberlândia, v. 21, n. 39, p. 139-153, jul.-dez. 2019 141


8
O historiador Carlos Fico, na Nesses termos, a memória do passado disciplinar do DHIS da USP
época coordenador da área de
História na Capes, respondeu foi acionada para conferir tradição e autoridade ao espaço institucional
aos argumentos dos professo- avaliado negativamente pela Capes. Como atribuir notas baixas a um pro-
res da USP ignorando o passa-
grama de pesquisa histórica que já contou em suas fileiras historiadores
do desta instituição, fazendo
questão de ratificar os proce- internacionais como Fernand Braudel? O passado evocado aqui vem jus-
dimentos objetivos e racio- tamente para tensionar o presente, afirmando a historicidade e, sobretudo,
nais da avaliação adotada. Ver
<https://www.youtube.com/ a identidade específica do PPG em História Econômica.
watch?v=6AanRxgTHVg>. O fato de tal memória ser reivindicada em um contexto de tensão
Acesso em 17 jan. 2019.
entre duas instituições de alta expressão atesta contundentemente sua
9
No sentido de bens imateriais, força. Se a Capes legitima sua autoridade legal a partir do presente e
o capital simbólico refere-se
à capacidade dos indivíduos, do futuro (ela, como se sabe, tem em suas mãos o poder de decidir se
grupos e instituições de possuí- esse ou aquele PPG permanece ou não credenciado), o PPG em História
rem certas propriedades distin-
tivas, as quais lhe conferem um
Econômica da USP usa a memória do seu passado para se afirmar como
prestígio e uma boa reputação merecedor de uma consideração especial.8 A memória, então, torna-se um
social em espaços específicos. instrumento de luta, “capital simbólico”9 que reveste seus portadores de
Ver BOURDIEU, Pierre. Os
usos sociais da ciência: por uma triunfos diferenciadores. No “mercado historiográfico”, expressão cara
sociologia do campo científico. ao historiador italiano Eduardo Grendi, utilizada para pensar as relações
São Paulo: Editora Unesp, 2004,
e idem, Razões práticas: sobre
entre historiografia, ciência e sociedade10, o passado disciplinar do DHIS
a teoria da ação. Campinas: da USP lhe assegura um status particular e elevado que o credencia a ques-
Papirus, 1996. tionar todo e qualquer princípio avaliativo vindo de instituições externas
10
Ver GRENDI, Eduardo. Re- como a Capes. De certo modo, é como se a tradição da USP blindasse o
pensar a micro-história? In:
REVEL, Jacques. Jogos de escalas:
DHIS de todo e qualquer juízo negativo que pudesse macular sua honra
a experiência da microanálise. e prestígio intelectuais.
Rio de Janeiro: Editora FGV, Pode-se apontar ainda que Everaldo Andrade, Lincoln Secco e
1998.
Marisa Midori Deaecto mobilizaram aquilo que o antropólogo francês
11
Ver CANDAU, Joel, op. cit.,
p. 183.
Joel Candau denominou de “memória forte”, isto é, uma memória orga-
nizadora de um conjunto de experiências pretéritas de um dado grupo,
12
Idem, ibidem, p. 106.
capaz de fornecer a este um senso de unidade, de pertencimento, de tra-
dição, em uma palavra, identidade.11 Forte aliada desta, a memória entra
em cena para justificar um suposto “nós”, desenhando no presente um
conjunto cujos traços já apareceriam no passado. A polêmica retratada
até aqui pavimenta o caminho deste artigo, cujo interesse maior consiste
em discutir um pretenso ethos uspiano dos historiadores e historiadoras
da USP.
Em vez de confirmar ou negar esse “DNA uspiano”, almeja-se
problematizá-lo, com base na relação entre memória e identidade tal qual
sugerida por Joel Candau, sublinhando a retroalimentação entre esses
dois termos na enunciação de um “ser uspiano”. Nessa perspectiva, esses
conceitos também são entendidos a partir de

Uma abordagem discursiva que vê a identificação como uma construção, como um


processo nunca completado – como algo sempre “em processo”. Ela não é, nunca,
completamente determinada – no sentido de que se pode, sempre, ‘ganhá-la’ ou
‘perdê-la’; no sentido de que ela pode ser, sempre, sustentada ou abandonada. Embora
tenha suas condições determinadas de existência, o que inclui os recursos materiais
e simbólicos exigidos para sustentá-la, a identificação é, ao fim e cabo, condicional;
ela está, ao fim e cabo, alojada na contingência.12

Termos dinâmicos, memória e identidade possuem seus fluxos e


devires, sendo mobilizados socialmente por todo grupo ou instituição
minimamente organizados. Nesse sentido, na sequência utilizaremos
como principal fonte de análise um artigo publicado em 1994 por três

142 ArtCultura Uberlândia, v. 21, n. 39, p. 139-153, jul.-dez. 2019


profissionais ligadas umbilicalmente à USP e que, de maneira sinto-

Artigos
mática, se intitula “A escola uspiana de história”, de autoria de Maria
Helena Rolim Capelato, Raquel Glezer e Vera Lucia Amaral Ferlini.13 A
escolha deste texto justifica-se não apenas por causa da historicização
(memorialização?) do passado disciplinar uspiano ligado à historiogra-
fia produzida na instituição, como por sua relevância para a história da
historiografia brasileira.14
Tomando por base tal fonte textual, questionamos: como uma iden-
tidade uspiana foi aí concebida, vocalizada e escrita? De que modo essa
identidade foi enunciada? Como explicar tal enunciação? Eis as questões
estruturadoras deste artigo.

Do passado ao presente

Ao contrário do que apontou um estudioso da historiografia brasi-


leira, “A escola uspiana de história” não foi originalmente produzido para
um livro de balanço.15 Sua inserção na obra Produção histórica no Brasil,
organizada por Maria Helena Rolim Capelato, deu-se posteriormente. O
contexto de produção é outro, em que pese a proximidade temporal com
o citado livro. Sua aparição deu-se em Estudos Avançados, periódico que
surgiu em 1987, produto da reunião de esforços do Instituto de Estudos
Avançados (IEA) da USP. Trazendo, desde o início, a marca da USP, tal
revista organizou em 1994, mais precisamente no seu volume 8, número
22, uma edição – com mais de 600 páginas – em comemoração aos 60 anos
da universidade à qual se vincula. O objetivo do empreendimento consistia
em “levantar e ordenar informações relativas aos estudos de Humanidades
e Ciências Básicas a partir da fundação da Universidade em 1934”, pro-
curando realizar tanto uma “crônica das origens” quanto um “balanço da 13
CAPELATO, Maria Helena
situação atual”.16 Rolim, GLEZER, Raquel e
FERLINI, Vera Lucia Amaral.
Publicada no dia primeiro de dezembro, esse número abrigou nomes A escola uspiana de história.
de importantes intelectuais da USP, como Miguel Reale, Marilena Chaui, Estudos Avançados, v. 8, n. 22,
Eduardo Portella, Florestan Fernandes, Maria Isaura Pereira de Queiroz, São Paulo, 1994.

Aziz Ab’Saber, Antonio Candido, José Arthur Giannoti, Bento Prado Ju- 14
Segundo a plataforma Scielo,
até o momento, tal texto pos-
nior, Carlos Guilherme Mota e tantos outros, o que indica o empenho dos sui quase 60 citações. Ele foi
idealizadores em congregar em uma edição celebrativa representantes da republicado em 1995, abrindo
comunidade uspiana. O então reitor da USP, Flávio Fava de Morais, também o livro de CAPELATO, Maria
Helena Rolim (org.). Produção
se somou a essa iniciativa, o que reforça ainda mais o tom institucional do histórica no Brasil: 1985-1994:
empreendimento. catálogo de dissertações e teses
dos programas e cursos de pós-
Tal edição acolheu o artigo de Maria Helena Rolim Capelato, Raquel -graduação em História, 3 vols.
Glezer e Vera Lucia Amaral Ferlini na sessão “Humanidades”17, na qual São Paulo: USP/Anpuh, 1995.
se procurava traçar a origem histórica e o perfil intelectual dos vários 15
Ver MALERBA, Jurandir.
departamentos que compõem a Faculdade de Filosofia, Letras e Ciência Notas à margem: a crítica his-
toriográfica no Brasil dos anos
Humanas (FFLCH) da USP. Além dessas historiadoras, outros profissio- 1990. Textos de História, v. 10, n.
nais da área se fizeram presentes, como o mencionado Carlos Guilherme 1 e 2, Brasília, 2002, p. 187.
Mota e Maria Odila Leite da Silva Dias, Miriam Lifchitz Moreira Leite, José 16
BOSI, Alfredo. Editorial. Es-
Jobson de Andrade de Arruda, José Sebastião Witter e Ulpiano Bezerra de tudos Avançados, v. 8, n. 22, São
Paulo, 1994, p. 1 e 5.
Meneses. Essa presença massiva de historiadores e historiadoras indica
17
Ao todo, apresentam-se 8 ses-
contundentemente que a preocupação com o passado institucional foi a
sões: Nossa Universidade; Uma
base da proposta editorial e forneceu o mote da publicação. visão crítica; Depoimentos;
O trabalho das três historiadoras enveredou por uma memória Perfis de mestres; Humanida-
des; Exatas e Naturais; Ciências
sobre o passado que, nos idos de 1994, estava relativamente consolidada. Básicas e Naturais nos Campi
Textos, livros, eventos, prédios e documentos formavam já uma verdadeira do interior e Apoio cultural.

ArtCultura Uberlândia, v. 21, n. 39, p. 139-153, jul.-dez. 2019 143


18
Uma rápida visita ao prédio rede memorial a respeito dos grandes nomes do DHIS da USP. De Fernand
de História (e Geografia) da
USP nos dias atuais revela a Braudel nos anos 1930 a Charles Olivier Carbonell na década de 1970, de
presença da memória francesa, Alice Canabrava a EmiliaViotti, passando por Eurípides Simões de Paula,
estampada, por exemplo, no
Eduardo de Oliveira França e Sergio Buarque de Holanda, a história da
principal auditório do local,
denominado Fernand Braudel. historiografia na USP era evocada, constituindo-se como uma memória
Quadros, fotos e nomes de sala, forte na época do sexagenário da universidade paulista.18 Para ficar em-
espalhados pelo prédio, evo-
cam os professores estrangeiros piricamente mais patente a existência dessa memória, basta dizer que em
oriundos da França. Aryana 1950, no texto-programa do primeiro número da Revista de História, perió-
Lima Costa, em tese merecida-
dico universitário vinculado ao DHIS da USP, o tempo pretérito era assim
mente premiada, discutiu tal
memória, em franco diálogo evocado: “Já em 1937, quando ainda lecionava na Faculdade de Filosofia,
com o ensino de história, arti- Ciências e Letras da Universidade de São Paulo, o ilustre Prof. Fernand
culando esta área com a história
da historiografia brasileira. Ver Paul Braudel – com quem tivemos a honra de trabalhar na qualidade de
COSTA, Aryana Lima. De um assistente –, pensávamos em fundar uma Revista destinada à divulgação
curso d’água a outro: memória
de trabalhos históricos, não só de professores e assistentes, mas também
e disciplinarização do saber
histórico na formação dos pri- de licenciados e alunos. [...] Aparece assim a nossa Revista”.19
meiros professores no curso de Ao longo do tempo, a evocação da chamada missão francesa, conjunto
história da USP. Tese (Doutora-
do em História Social) – UFRJ, de professores que veio da França para auxiliar na criação dos cursos de Hu-
Rio de Janeiro, 2018. manas da USP20, marcou várias gerações de docentes e discentes brasileiros
19
O nosso programa. Revista que passaram pelo DHIS da USP. As aulas ministradas por historiadores
de História, v. 1, n. 1, São Paulo, como Fernand Braudel, Jean Gajé, Émile Léonard, entre outros franceses
1950, p. 1 e 2. Tal apresentação
foi redigida por Eurípides que atuaram na fundação da universidade paulista, representam um topos
Simões de Paula, professor e recorrente na reencenação do passado do DHIS, realizado pelas mais dife-
fundador da revista.
rentes produções. Os alunos desses mestres, muitos dos quais foram seus
Ver RODRIGUES, Lidiane assistentes e se tornaram docentes na FFLCH, trataram de criar e, frequen-
20

Soares. Armadilha à francesa:


homens sem profissão. História temente, de atualizar essa memória, mantendo-a viva, como evidenciam
da Historiografia, n. 11, Ouro os textos de Pedro Moacyr Campos e Eurípides Simões de Paula21, todos
Preto-Rio de Janeiro, 2013.
produzidos bem antes dos anos 1990. O primeiro historiador, no início da
21
Todas as produções foram década de 1960, ressaltava que
publicadas na Revista de His-
tória. Ver CAMPOS, Pedro M.
O estudo da história na FFCL Para São Paulo e Rio de Janeiro vieram professores franceses, cujos nomes jamais
da USP. Revista de História,
v. 8, n. 18, São Paulo, 1954;
serão esquecidos, ao tratar-se da história cultural do país: Émile Coornaert, Fer-
CAMPOS, Pedro M. Esboço nand Braudel, Henri Hauser, Eugène Albertini, Jean Gajé. Sob a orientação deste
da historiografia brasileira nos último as cadeiras de historia, em São Paulo, principiaram a formar seus primeiros
séculos XIX e XX. Revista de
História, v. 22, n. 45, São Paulo, doutores; por mais defeituosas que fossem as teses apresentadas, em virtude de
1961, e PAULA, Eurípides S. de. condições dominantes, não se pode negar representarem um grande progresso.
Algumas considerações sobre
a contribuição da Faculdade
Pela primeira vez no Brasil, trabalhava-se metodicamente, sob a orientação de um
de Filosofia, Letras e Ciências mestre europeu, e dava-se ao movimento de autocritica, que fermentava na elite
Humanas da Universidade de brasileira, uma nova direção.22
São Paulo para a historiografia
brasileira. Revista de História, v.
43, n. 88, São Paulo, 1971. Para Dez anos depois Eurípides Simões de Paula reforçou o mesmo mito
exemplos mais contemporâne-
os de atualização dessa memó-
de origem, sedimentando ainda mais a memória dos pais fundadores do
ria uspiana, ver FREITAS, Sonia DHIS da USP:
Maria de. Reminescências. São
Paulo: Maltese, 1993, e MOTA,
Carlos Guilherme. Ecos da his- Em 1934, tivemos a honra de sermos aluno de Émile Coornaert, eminente professor
toriografia francesa no Brasil. do Collège de France, especialista em História Econômica da Idade Média.
In: História e contra-história. São
Paulo: Globo, 2010.
De 1935 a 1937 e, ainda, em 1947, tivemos entre nós o Prof. Fernand Paul Braudel,
aquele que, merecidamente, vem sendo identificado como o “papa” da historiografia
22
CAMPOS, Pedro Moacyr.
Esboço da historiografia brasi- francesa contemporânea [...].
leira nos séculos XIX e XX, op. Dando continuidade ao programa preestabelecido, e sempre com a colaboração do
cit., p. 153.
governo francês, lecionou de 1938 a 1945 o Prof. Jean Gagé, então da Faculdade
de Letras da Universidade de Estrasburgo e atualmente do Collège de F’rance, não
menos notável do que os seus antecessores [...].

144 ArtCultura Uberlândia, v. 21, n. 39, p. 139-153, jul.-dez. 2019


Finalmente, esteve regendo cursos na nossa Faculdade o Prof. Émile-Guillaume

Artigos
Léonard [...].
Assim, sem desmerecer os mestres nacionais, queremos ressaltar mais uma vez
quanto devemos aos nossos professores franceses, e o grande papel que representaram
na formação cultural da nossa geração.23

A tônica dos argumentos de Pedro Moacyr Campos e Eurípides Si-


mões de Paula não é outra senão a da contribuição estrangeira, modelo de
argumentação corriqueiro em relatos de origem. Ambos os textos procuram
salientar a maneira como a historiografia paulista da USP se desenvolveu
e gerou tantos frutos proveitosos para os estudos históricos no Brasil. Uma
excepcionalidade parece atuar aqui como pressuposto de análise.
Dessa forma, “A escola uspiana de história” debruça-se sobre um
terreno marcado por traços, pontos e retalhos firmemente assentados por
uma memória anterior. O trabalho das autoras consistiu mais em uma
afirmação e atualização dessa memória do que de uma fabricação nova. O
“trabalho de memória” empreendido, ou seja, o esforço de memorização
em busca dos primórdios do que se designou “escola uspiana de história”
implicou uma continuidade em relação a uma memória anterior, e não em
uma ruptura com esta. Para ser mais preciso, pode-se afirmar que o “tra-
balho de memória” das referidas autoras equivale a uma espécie de gestão
do passado, reiterando uma dada recordação dos tempos idos do DHIS
da USP. Nesse sentido, para usar mais uma expressão de Paul Ricoeur, o
trabalho efetuado é digno de verdadeiros “atletas da memória”24, os quais
continuam uma operação de enquadramento do passado, mantendo de-
terminada visão e sensibilidade sobre essa temporalidade.
Profundamente ligada a essa lembrança das origens da FFLCH da
USP, em que lugares (a universidade e a Faculdade de Filosofia), perso-
nagens (os professores) e acontecimentos (as aulas) já dados confirmam
a tríade constitutiva da memória de que fala Michel Pollack25, uma iden-
tidade uspiana é reivindicada. Não à toa, ela é alojada, originalmente, no
universo dos primórdios: “o início da escola uspiana de história deve ser
compreendido na complexa conjuntura nacional dos anos trinta que, de um 23
PAULA, Eurípides Simões de.
lado, levou à criação da Faculdade de Filosofia e, de outro, propôs repensar Algumas considerações sobre
o país, através da reflexão sobre o passado”.26 Assim como toda memória a contribuição da Faculdade
de Filosofia, Letras e Ciências
tem seu ponto inicial, seu marco de origem, a identidade também necessita Humanas da Universidade de
ancorar-se em começos, momentos e monumentos de criação e fundação. São Paulo para a historiografia
brasileira, op. cit., p. 429-431.
É assim que o “DNA historiográfico uspiano” é colocado já na origem da
própria Universidade de São Paulo, na ocasião em que esta é fundada.
24
A respeito das noções de “tra-
balho de memória” e “atletas
Adensando essa origem da identidade uspiana, “A escola uspiana de de memória”, ver RICOEUR,
história” trabalha com a ideia de formadores, entendendo-a como “os pri- Paul. A memória exercitada:
usos e abuso. In: A memória, a
meiros historiadores uspianos, alunos e professores das primeiras turmas história e o esquecimento. Cam-
da Faculdade e que representaram a conjunção das preocupações intelec- pinas: Editora da Unicamp,
2007, p. 77.
tuais correntes no Brasil na época com a orientação dos mestres da missão
francesa”.27 Aqui, o vínculo com a memória das origens da USP ressurge 25
Ver POLLACK, Michel. Me-
mória e identidade social. Estu-
novamente, na medida em que destaca o ponto primevo dos intelectuais dos Históricos, v. 5, n. 10, Rio de
europeus que fundaram a universidade. De fato, na verbalização de uma Janeiro, 1992, p. 201.
identidade uspiana, a presença francesa aparece como elemento distintivo, 26
CAPELATO, Maria Helena
marcador intelectual da diferença e, portanto, da singularidade. Afinal, os Rolim, GLEZER, Raquel e
FERLINI, Vera Lucia Amaral.
formadores, antes de formarem, precisam ser formados, de maneira que a A escola uspiana de história,
missão francesa comparece justamente como os historiadores internacionais op. cit., p. 349.
que formaram os seus pares nacionais da USP. 27
Idem.

ArtCultura Uberlândia, v. 21, n. 39, p. 139-153, jul.-dez. 2019 145


28
Para o caso carioca, ver FER- O que não é dito em tal texto, da mesma forma como também é pouco
REIRA, Marieta de Moraes. Os
professores franceses e o ensino explicitado na memória uspiana das origens, é que “missões francesas”
da história no Rio de Janeiro aportaram em outras universidades do país para a fundação de seus cur-
nos anos 30. In: MAIO, Marco
sos de Ciências Humanas. Nas décadas de 1930 e 1940, o Rio de Janeiro,
C. e BÔAS, Glaucia V (orgs.).
Ideias de modernidade e sociologia por exemplo, recebeu mestres estrangeiros para a criação dos cursos de
no Brasil: ensaios sobre Luiz História e Geografia na Universidade do Distrito Federal e na Faculdade
de Aguiar Costa Pinto. Porto
Alegre: Editora Universidade/ de Filosofia da Universidade do Brasil, enquanto Porto Alegre acolheu
UFRGS, 1999. Para o gaúcho, igualmente intelectuais na estruturação da Universidade de Porto Alegre.28
ver RODRIGUES, Mara Cristi-
Tal silêncio é não só compreensivo – porque a explicitação desse fato arra-
na de M. A formação superior
em história na UPA/URGS/ nharia a pleiteada singularidade da identidade uspiana –, como inevitável,
UFRGS de 1943-1971. História pois toda e qualquer memória possui suas lacunas e ocultamentos, sejam
da Historiografia, n. 11, Ouro
Preto-Rio de Janeiro, abr. 2013. esses esquecimentos deliberados ou inconscientes.
29
CAPELATO, Maria Helena
Segundo Maria Helena Rolim Capelato, Raquel Glezer e Vera Lucia
Rolim, GLEZER, Raquel e Amaral Ferlini, assim se deu o nascimento da atividade uspiana de pes-
FERLINI, Vera Lucia Amaral, quisa histórica: “A ação dos franceses floresceu num ambiente intelectual
op. cit., p. 351.
propício. [...] Os professores vindos da França, para o primeiro semestre
30
Idem.
do curso, permaneceram pouco tempo, sendo substituídos por outros,
31
BOSI, Alfredo, op. cit., p. 2. também franceses, em início de carreira, que ficaram, no mínimo, dois anos.
Alguns estabeleceram relações mais estreitas com o país, prolongando sua
permanência. Formaram discípulos, com os quais dividiram a docência”.29
Apesar do breve tempo de estadia, a missão francesa cumpriu seu
objetivo, frutificou, gerando discípulos, verdadeiros continuadores da
obra original. Na sequência do texto, confirmando um modelo de histó-
ria da historiografia linear e teleológico, essencial para a construção de
identidades, as três historiadoras frisam a contribuição dos fundadores,
“a preocupação com a orientação metodológica e com o rigor da análise
documental, iniciando uma relação com temas da historiografia francesa,
especialmente a dos Annales, vanguarda na época”.30
Essa caracterização da missão francesa como célula mater de todo
um perfil intelectual posterior reaparece no editorial escrito por Alfredo
Bosi para celebrar os 60 anos da USP. A linha de conexão entre este texto
e “A escola uspiana de história” é incontornável: “Nunca é demais lem-
brar que o incremento à pesquisa básica foi a grande contribuição trazida
pelos professores estrangeiros contratados pela USP desde o ano de sua
criação. Muitos deles fizeram escola e deixaram discípulos que, por sua
vez, formaram novas gerações de estudiosos, alguns dos quais ainda ativos
na instituição”.31
Nessa relação, identifica-se a presença do topos de uma memória
forte, a saber, o papel estruturante, sempre afirmado e evocado, da missão
francesa na formação da USP, em especial na FFLCH. Conforme já assi-
nalado, tal memória, pelo menos desde a segunda metade do século XX, é
uma presença marcante nas diversas práticas simbólicas dos intelectuais da
instituição, convertida em fundamento de uma reivindicação identitária.
Na esteira das reflexões de Paul Ricoeur em A memória, a história
e o esquecimento – para quem a memória constitui no Ocidente a matriz
cognitiva da historiografia –, sabe-se que a formulação identitária de uma
atividade intelectual imaginada como tipicamente uspiana é tributária de
uma visada memorialística. Daí os nexos de continuidade entre passado e
presente, a linearidade temporal, o tom afetivo, o senso de pertencimento
e de unidade que emergem dessa construção. Quando se aborda o passado
uspiano, em particular a época da fundação da universidade e da missão
francesa, a tendência é menos de ruptura e negação do que de aproximação,

146 ArtCultura Uberlândia, v. 21, n. 39, p. 139-153, jul.-dez. 2019


o que gera a ideia de herança e herdeiros. Como na memória, o presente

Artigos
coloca-se sob o passado, recebendo deste seus lampejos luminosos de
lembranças e sentidos pregressos.
Tanto Alfredo Bosi quanto as autoras de “A escola uspiana de his-
tória” urdiram seus textos se situando como tributários de uma herança
intelectual. Como pontua Jacques Derrida, ao pensar a relação entre mestre
e discípulo, “a herança nunca é um dado, mas uma tarefa”.32 O herdeiro
precisa assumir sua herança. E os autores nacionais aqui citados assumiram
sua herança, de modo que o epíteto historiador (ou intelectual) uspiano, por
eles mesmos usado, serve também para defini-los. A edição comemorativa
de Estudos Avançados é, portanto, um grande canto jubilatório dos herdeiros
em relação aos seus mestres e pais fundadores, um ritual narrativo que não
só celebra as origens como anuncia a marca de um “nós”.
Tal análise ganha ainda mais consistência quando se atenta para
o fato de que Maria Helena Rolim Capelato, Raquel Glezer e Vera Lucia
Amaral Ferlini tiveram suas trajetórias profissionais de formação como
historiadoras dentro da USP, onde cursaram graduação e pós-graduação,
sob a orientação de professores profundamente ligados à universidade pau-
lista.33 E mais: no momento de produção do artigo, elas ocupavam postos
de direção no DHIS da USP: Vera Lucia Amaral Ferlini era coordenadora
do PPG em História Econômica, e Raquel Glezer e Maria Helena Rolim
Capelato eram, respectivamente, chefe e vice-chefe de departamento. Tais
informações, por sinal, foram inseridas ao final do artigo examinado, como
que a ofertar suas credenciais profissionais e, por essa via, reafirmar suas
identidades como historiadoras uspianas, logo, da “casa”.
Se a disponibilização das informações autorais é padrão dessa edição
da revista, o diferencial do texto da tríade de historiadoras reside em ser
ele o único, na sessão “Humanidades” – a qual contou com 36 artigos –,
escrito por seis mãos, mãos que ocupavam na época postos de poder admi-
nistrativo. Por isso mesmo, a voz das historiadoras parecem expressar, do
alto de sua autoridade, o pensamento do DHIS da USP. Essa proximidade
com o poder, embora no nível micro, faz dessa peça assinada por elas não
tanto um documento como um monumento, erguido no altar dos pais
fundadores, a quem se presta tributo.
A comemoração, como acentua Fernando Catroga, tende sempre a
ser um gesto coletivo, um lembrar e celebrar juntos, para si, por si e para
os outros, ocasião privilegiada para se afirmar uma identidade grupal e
criar processos de subjetivação da forma de identificação afirmada.34 Vem
daí que faz total sentido a vocalização de uma pretensa identidade uspiana
em tal contexto festivo no qual a memória dá o tom. O mesmo se diga a
propósito da tríplice autoria do texto, que reforça o caráter comemorativo
da produção. Seis mãos juntas para reconstituir e enaltecer o passado do
qual pretendem fazer parte, disso deriva o interesse em contar sua história. 32
DERRIDA, Jacques. Espec-
Memória e comemoração, umbilicalmente entrelaçadas, teceram os fios do tros de Marx. Rio de Janeiro:
Relume-Dumurá, 1994, p. 95.
passado, costurando uma história tanto da FFLCH como do DHIS da USP.
Por consequência, a noção de “escola” não desponta gratuitamente 33
O currículo das três historia-
doras está disponível on-line na
no artigo. A despeito de aludir timidamente a outros aspectos da con- plataforma Lattes.
juntura dos anos 1930 que influíram no DNA historiográfico uspiano, 34
Ver TORGAL, Luís Reis,
o texto enfoca principalmente o DHIS da USP, como se este fosse uma MENDES, José Amado e CA-
comunidade em que diferentes gerações, concordes, sucedem-se através TROGA, Fernando (orgs.).
História da história em Portugal,
do tempo, guardando um mesmo esprit de corp. Por tal razão se fala em séculos XIX e XX. Coimbra:
escola, tradição e, acima de tudo, identidade. Por mais que o DHIS da Temas & Debates, 1998, v. 2.

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35
MALERBA, Jurandir, op. cit., USP revele desde sua criação uma importante diversidade, como destacou
p. 189.
Jurandir Malerba35, no interior da lógica memorialística das autoras o (e)
36
CAPELATO, Maria Helena
Rolim, GLEZER, Raquel e
vocativo “escola” faz bastante sentido na medida em que nela sobressai
FERLINI, Vera Lucia Amaral, o “nós” pensado singularmente.
op. cit., p. 356. Essa unidade é retomada quando as autoras periodizam a história
37
HALL, Stuart. Quem preci- evocada a partir da noção de “geração”, lembrando significativamente o
sa de identidade? In: SILVA,
Tomaz Tadeu (org.). Identidade
modelo explicativo usual da historicidade da École des Annales. Tal qual
e diferença. Petrópolis: Vozes, esta, a “escola uspiana de história” teria suas primeira e segunda gerações,
2012, p. 110. as quais se sucederam aos formadores. Nessa ótica elas, em que pese o
surgimento de algumas novas tendências de pesquisa, não rompem com a
obra dos formadores, mantendo-se fieis à sua origem disciplinar e institu-
cional. Os termos “escola” e “geração” indicam, pois, uma retórica baseada
muito mais na identidade do que na diferença. O “eu”, ao pluralizar um
“nós”, comanda o discurso, assentado sobre uma lógica identitária una e
homogênea.
A expressão que abre o título do artigo reitera a noção de identidade
como mesmidade, como grupo coeso e coerente, como um ser uno, cris-
talizado, quase que essencializado. Ainda que as das historiadoras façam
ressalvas quanto a uma certa diversidade da “escola uspiana de história”,
o que se configura mais fortemente é um perfil homogêneo:

A análise da produção do Departamento de História, nesses sessenta anos [...]


revela a existência de uma escola de historiadores uspianos, com alto grau de
inbreeding. Essa endogenia, contudo, não deve ser considerada fator negativo,
pois permitiu a consolidação de uma tradição de pesquisa histórica diferenciada.
[...] Nesses sessenta anos, a partir da Faculdade de Filosofia, consolidou-se a
formação de historiadores, com características comuns, que os diferenciam de
outros existentes: a escola uspiana de estudos históricos, que formou seus próprios
quadros e quadros para tantas outras escolas, no país. Seu estilo profissional de
trabalho a diferencia dos autodidatas, dos Institutos Históricos e das Academias
e dos historiadores geopolíticos do Itamaraty.36

Combatendo o esquecimento, tal perfil, embasado mais nas seme-


lhanças do que nas diferenças, vai ao encontro das palavras de Stuart Hall
sobre um dos efeitos da construção de identidades sociais: “a unidade, a ho-
mogeneidade interna, que o termo ‘identidade’ assume como fundacional,
não é uma forma natural, mas uma forma construída de fechamento”.37 Se
há fechamento, logo há fronteiras, exterioridades que incluem a identidade
uspiana, definindo-a.
Nesse caso, após arrolar os traços definidores do ser uspiano, realiza-
-se, em ato final, outro gesto comum à produção de identidades: a criação
de alteridades. Se a identidade é inseparável de uma construção de si e
para si, ela implica uma oposição a um “outro”, num jogo de alteridade
essencial para a definição, pois esta também se faz pela diferença. Desse
modo, autodidatas, isto é, historiadores não formados na e pela universida-
de (e que, no limite, não sofreram a influência do DHIS da USP, centro que,
como é dito no artigo, formou os demais cursos superiores de História do
país), representariam o contrário da identidade uspiana, seu anti-DNA, seu
oposto, sua diferença. Com isso, o ser uspiano, a atividade historiográfica
uspiana, é definido positiva e negativamente. Finda a elaboração simbólica
da identidade, amparada e alimentada pela memória, calcada na evocação
de um passado disciplinar.

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Enfim, a exemplo de Everaldo Andrade, Lincoln Secco e Marisa Mi-

Artigos
dori Deaecto, as historiadoras Maria Helena Rolim Capelato, Raquel Glezer
e Vera Lucia Amaral Ferlini lançaram mão de uma metáfora naturalizante,
proveniente do universo biológico – inbreeding38 – para verbalizar um ethos
uspiano. Não se está aqui distante da expressão “DNA uspiano”. Antes,
pelo contrário, é a mesma estratégia discursiva de enunciação de uma
identidade que se pretende fixa e firme, tal qual uma árvore cuja raiz está
fincada profundamente no solo. Esse uso do passado como solo firme e
estável lembra bem as advertências de Paul Ricoeur: toda identidade re-
querida, diante do tempo, é sempre frágil e vulnerável às ameaças, sendo
fundamental o trabalho de ancoragem na memória, na história, na tradição,
na razão etc.39 É justamente esse exercício de fixação e solidificação que os
historiadores e historiadoras do DHIS da USP realizaram, em nome de uma
identidade historiográfica. Assim, tanto o texto de 2017 quanto o de 1994
foram produzidos com base em um regime de representação historiográfica
semelhante, no qual o passado é, fundamentalmente, fonte de autoridade
e de orientação para o presente e para o futuro.
Além do mais, quando se pensa a identidade como traços únicos e
cristalizados, inegociáveis e inquestionáveis, o desejo por reconhecimento
é fortíssimo, conforme aponta Nancy Franser.40 No fundo, o caso do PPG
em História Econômica, referido no início deste artigo, insere-se nas bata-
lhas de reconhecimento, daí se evocar o passado como que para lembrar
ao presente o que foi o DHIS da USP e, consequentemente, enquadrar uma
memória desse espaço. Ambos os textos – o das três historiadoras e o de
Everaldo Andrade, Lincoln Secco e Marisa Midori Deaecto – alimentam
o desejo de promover o encontro do presente com o passado cultuado.
Neles parece haver o medo de que o hoje se esqueça do ontem, e o ama-
nhã corra sem a lembrança dos tempos idos. Desencadeia-se, portanto,
por intermédio dos historiadores e historiadoras em foco, um combate
no e pelo tempo.

História e memória

As páginas do artigo aqui analisado foram escritas sob o efeito 38


Segundo o Cambridge
Dictionary, inbreeding rela-
daquilo que Krzysztof Pomian denominou, para distinguir história e
ciona-se “a situation in
ficção, de “marcas de historicidade”, isto é, operações cognitivas que which plants, animals,
permitem a plausibilidade e a verificação do conhecimento produzido e or people are produced by
breeding between closely re-
que se reportam a uma realidade/referente extratextual.41 Tais elementos lated plants, animals, or peo-
(nota de rodapé, diálogo bibliográfico, mapas e documentos que atestam ple”. Disponível em <https://
dictionary.cambridge.org/pt/
fatos reais) estão na base da própria ideia de texto historiográfico. Dessa
dicionario/ingles-portugues/
maneira, pode-se assinalar que Maria Helena Rolim Capelato, Raquel inbreeding>. Acesso em 25
Glezer e Vera Lucia Amaral Ferlini escreveram historiografia, como jul. 2018.

atestam as 16 notas de rodapé do artigo, as referências a fatos pretéritos 39


Ver RICOUER, Paul, op. cit.,
p. 87.
documentados e o diálogo com os pares, historiadores e demais cientistas
sociais mencionados. 40
Ver FRASER, Nancy. Re-
conhecimento sem ética? Lua
É com esses artefatos, com essas marcas de historicidade, que o Nova, n. 70, São Paulo, 2007.
passado da “escola uspiana de história” é reconstruído. Move o texto das 41
Ver POMIAN, Krzysztof. His-
historiadoras, inegavelmente, uma pretensão científica, o que, entre outros tória e ficção. Projeto História, n.
fatores, garantiu sua publicação em uma revista que se pretende “crítica, 26, São Paulo, 2003, p. 20 e 21.

avançada, acadêmica e interdisciplinar”.42 Frise-se, aliás, que a edição co- 42


Sobre a missão da revista,
ver o editorial do número 1 em
memorativa na qual ele foi inserido não renegou a dimensão acadêmica Estudos Avançados, v. 1, n. 1, São
do periódico. Celebração e escrutínio científico do passado uspiano foram Paulo, 1987.

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43
CANDAU, Joel, op. cit., p. os dois vetores que guiaram a investigação dos editores responsáveis pelo
132 e 133.
ritual narrativo do festejo do sexagenário da USP.
44
Sobre a relação entre histo-
riografia oitocentista e identi-
Porém, toda essa dimensão histórico-científica está intimamente ar-
dade nacional, ver DETIENNE, ticulada com a memória, como se destacou nos tópicos anteriores. Como
Marcel. A identidade nacional, entender tal articulação entre história e memória? De que maneira se pode
um enigma. Belo Horizonte:
Autêntica, 2013, esp. capítulo 5. explicar o fato de que “A escola uspiana de história”, mesmo escrito por
45
Ver NIETZSCHE, Friedrich.
historiadoras profissionais e contendo marcas de historicidade, enunciou
Segunda consideração intempes- uma identidade uspiana a partir de uma memória forte da USP? Seria
tiva. Rio de Janeiro: Relume- admissível sustentar que houve, então, uma corrupção ou contaminação
-Dumará, 2003, p. 69.
da história pela memória? Com “A escola uspiana de história”, a relação
46
GUIMARÃES, Manoel Luiz
Salgado. Usos da história:
de absoluta oposição entre história e memória pode e deve ser repensada.
refletindo sobre identidade e O artigo aqui examinado se presta bem para demonstrar que a
sentido. História em Revista, v. relação entre história e memória não é sempre de plena oposição. Como
6, Pelotas, 2000, p. 22.
todo processo ou fenômeno investigado pela historiografia, tal relação
deve ser pensada em contextos específicos. Do contrário, corre-se o risco
de assumir acriticamente um discurso historiográfico disciplinar, segundo
o qual o conhecimento histórico é o exato oposto da evocação memorial.
Por mais que existam diferenças entre essas duas formas de conhecer o
passado, contatos entre ambas costumam acontecer, como assinala Joel
Candau:

Em certos aspectos, a história toma de empréstimo alguns traços da memória. Como


Mnemosyne, Clio pode ser arbitrária, plural, falível, caprichosa, interpretativa dos
fatos, que se esforça em trazer à luz e compreender. Como a memória, a história pode
recompor o passado a partir de “pedaços escolhidos”, tornar-se um jogo, objeto de
embates e servir de estratégias militantes e identitárias. [...] A história é igualmente
simplificadora, seletiva e esquecida de fatos. [...] Como todo mundo, os historiadores
são pegos pelo trabalho de construção social da memória. A história, portanto, pode
ser parcial e responder a objetivos identitários.43

Eis o ponto fundamental: a história, tanto quanto a memória, pode


servir a fins identitários. Ambas participam do jogo social da identidade,
criando e alimentando-o, mesmo quando, no caso da historiografia, isso
ocorra com pretensões científicas. História, identidade: duas palavras que,
como atesta a historiografia oitocentista do mundo ocidental, empenhada
em “espelhar e biografar a nação”44, costumam encontrar-se.
Nesse sentido, a história da historiografia, como campo que procura
historicizar a própria disciplina, voltando “o ferrão sobre si mesmo” – para
usar uma metáfora de Nietzsche45 – é uma área privilegiada para a reflexão
em torno das zonas de contato entre Clio e Mnemosine. Outra não foi a
intenção de Manoel Luiz Salgado Guimarães ao elaborar a noção de “me-
mória disciplinar” e destacar que “é preciso que a própria escrita da história
se submeta ao rigor do exame crítico como forma de dessacralizarmos uma
memória construída acerca desta mesma escrita. Reconheço não ser este um
esforço simples, uma vez que implica repensar os fortes traços narcísicos
que marcaram a constituição da disciplina, e a tarefa de quebrar o espelho
implica um doloroso repensar dos rumos de nosso ofício”.46
A historiografia, como todo empreendimento social, necessita de
identidade, isto é, de traços particularizantes, de símbolos, origens, aconte-
cimentos e marcos, os quais são compostos e articulados de modo a formar
“um ser”. Quem melhor do que os próprios historiadores e historiadoras
da história para operar tais composições e articulações?

150 ArtCultura Uberlândia, v. 21, n. 39, p. 139-153, jul.-dez. 2019


A história da historiografia não é sempre o local do discurso críti-

Artigos
co, a instância desmistificadora das tradições e naturalizações realizadas
por outros atores. Dependendo dos sujeitos envolvidos, das disputas em
pauta e dos contextos institucionais, ela pode funcionar como a estratégia
narrativa, legitimada pela disciplina e pela ciência, que erige e consagra
determinados fundadores, escolas e bandeiras. E aqui a sedução da memó-
ria pode ser irresistível, criando a figura de “memoriadores”.47 Ao dialogar
com a categoria de “memória disciplinar”, Fernando Nicolazzi captou
bem tal possibilidade: “Assim, a história da historiografia pode justamente
atentar para as construções e reconstruções da memória disciplinar que
sustenta no tempo o conhecimento histórico, inclusive percebendo como
ela própria, na sua tarefa desmistificadora, acaba também por engendrar
memórias disciplinares, algumas mais con­sistentes que outras, se afastando
de algumas tradições e inventando ou reinventando outras”.48
Desse modo, Maria Helena Rolim Capelato, Raquel Glezer e Vera
Lucia Amaral Ferlini, como um bricoleur, selecionaram e montaram peças
amputadas do passado para erigir uma história da historiografia produzida
na USP. Ao levarem adiante tal bricolagem, fizeram mais do que contar
uma história: vocalizaram uma identidade própria. História, memória e
identidade – num jogo sinuoso e sincrético de saber e poder em que cada
um dos termos se retroalimenta – são os elementos essenciais para se
compreender a produção historiográfica em questão. “A escola uspiana
de história” anuncia, desde o seu título, uma identidade já dada, a priori,
como se o seu trabalho fosse apenas o de historicizá-la, como quem conta 47
Ver HUYSSEN, Andreas. Cul-
turas passado-presente: moder-
histórias sobre pessoas e acontecimentos acerca de cuja existência, no pas-
nismo, artes visuais, políticas
sado e no presente, ninguém duvida. da memória. Rio de Janeiro:
Escrito em um momento no qual a historiografia brasileira colhia Contraponto, 2014, p. 13.

os frutos da acentuada expansão verificada nos anos 1970-1980, em razão 48


NICOLAZZI, Fernando.
História da historiografia e
da implementação do atual sistema de pós-graduação e da ampliação de temporalidades: notas sobre
matrículas no ensino superior49, o artigo das três historiadores não deixa tradição e inovação na história
de ser uma afirmação, no interior do mercado historiográfico, do DHIS intelectual. Almanack, n. 7, Gua-
rulhos, 2014, p. 32.
da USP frente a outros centros de produção de conhecimento histórico no
49
Sobre a universidade bra-
Brasil. No início da década de 1990, o país contava com quinze PPGs em sileira nessas décadas e sua
História, excetuada a USP. Desse total, quatro programas aglutinavam expansão, ver SCHWARTZ-
cursos de Mestrado e Doutorado, nos mesmos moldes do PPG em Histó- MAN, Simon. O grande salto
científico. In: Um espaço para a
ria da USP.50 Até 1989, o PPG em História da USP, juntando o de História ciência: a formação da comu-
Social e o de História Econômica, produziu 131 dissertações de mestrado, nidade científica no Brasil. São
Paulo: Editora da Unicamp,
enquanto os demais PPGs em História espalhados pelo Brasil, todos so- 2015. Sobre historiografia nesse
mados, alcançaram 534 trabalhos de mestrado, isto é, quatro vezes mais contexto de expansão insti-
do que a produção uspiana.51 tucional, ver FICO, Carlos e
POLITO, Ronald. A história no
Tais informações ilustram uma situação nova em relação às décadas Brasil (1980-1989): elementos
anteriores. A partir dos anos 1990, com a consolidação de vários PPGs para uma análise, v. 1. Ouro
Preto: Editora da Ufop, 1992.
em História, com cursos de Mestrado e Doutorado, o PPG em História da
USP passou a lidar com a concorrência de outros centros de pesquisa. Na
50
Os PPGs eram da UFPE,
UFRJ, UFF, Unicamp, PUC-SP,
sociedade brasileira, o mercado historiográfico de fins do século passado PUC-RS, Unesp-Assis, Unesp-
ingressou numa fase de diversidade considerável que, nos anos posterio- -Franca, UFPR, UFSC, UFRGS,
Unisinos, UFG e UNB. UFF,
res – como comprova a atualidade – só iria aumentar progressivamente. O Unicamp, UFPR e PUC-RS reu-
próprio estado de São Paulo, na cidade de Campinas, desde 1986, ofertava niam Mestrado e Doutorado.
à comunidade acadêmica a possibilidade de Doutorado em História. Por Informações retiradas de Folha
de S. Paulo, 24 jun. 1991.
sinal, segundo Edgar de Decca, um dos criadores daquele programa, o
Os números para esse cálculo
51
PPG em História da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) surgiu constam de FICO, Carlos e
justamente para contrapor-se ao PPG em História: POLITO, Ronald, op.cit., p. 43.

ArtCultura Uberlândia, v. 21, n. 39, p. 139-153, jul.-dez. 2019 151


52
DECCA, Edgar de apud MO- A gente [recém-formados em História da USP] tinha que formar um campo à
RAES, José Geraldo Vinci de
e REGO, José Marcio (orgs.).
margem da História da USP. A USP, na época, não comportava o nosso grupo, pois
Conversas com historiadores bra- não tinha espaço político que comportasse o ingresso de uma proposta de reformu-
sileiros. São Paulo: Editora 34, lação. Na Unicamp era diferente: a pretensão desta universidade era muito grande
2002, p. 270.
e inovadora; nós podíamos tentar fazer tudo, podíamos fazer um Departamento de
53
Para mais informações sobre
a implementação do sistema
História, uma pós-graduação, orientar pesquisa do modo que a gente bem entendesse,
de pós-graduação no Brasil, e isso tudo na USP não dava, devido à hierarquia que por lá reinava. Nós queríamos
ver PEREZ, Rodrigo. O enga- muito mais do que a USP poderia oferecer.52
jamento político e historiográ-
fico no ofício dos historiadores
brasileiros: uma reflexão sobre A região sul do país, exemplificando a relativa diversificação espacial
a fundação da historiogra-
fia brasileira contemporânea
da historiografia brasileira, também assistiu ao surgimento de dois cursos
(1975-1979). História da Histo- de Doutorado em História, um na Universidade Federal do Paraná (UFPR),
riografia, n. 26, Ouro Preto-Rio em 1982, e outro na Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul
de Janeiro, jan.-abr. 2018.
(PUC-RS), em 1986.53
54
Para uma discussão mais
aprofundada da historiografia Outro exemplo de nascente diversidade no campo historiográfico
brasileira dos anos 1980 até o do final do século passado diz respeito à criação de revistas universitárias
início do século XXI, ver SAN-
de história. Em 1981, surgiria a prestigiada Revista Brasileira de História,
TOS, Wagner Geminiano dos.
A invenção da historiografia bra- iniciativa da Associação Nacional dos Professores Universitários de
sileira profissional, acadêmica: ge- História (Anpuh); em 1988, apareceria Estudos Históricos, articulada a
ografia e memória disciplinar,
disputas político-institucionais instituições de ensino e pesquisa do Rio de Janeiro, e, por fim, em 1993
e debates epistemológicos acer- nasceria o periódico especializado em história Anos 90, vinculado ao
ca do saber histórico no Brasil
Departamento de História da Universidade Federal do Rio Grande do
(1980-2012). Tese (Doutorado
em História) – UFPE, Recife, Sul (UFRGS). Tais locais de produção e disseminação do conhecimento
2018. histórico no Brasil começariam a rivalizar com a Revista de História, tra-
55
Ver MARCHI, Euclides, dicional órgão do DHIS da USP, descortinando novas possibilidades se
BONI, Maria Ignes de, SI-
QUEIRA, Marcia D. e NADA-
à historiografia brasileira.
LIN, Sérgio. Trinta anos de Com a ampliação dos PPGs em História e a criação dessas novas
historiografia: um exercício revistas, a década de 1990 oferecia aos historiadores e historiadoras brasi-
de avaliação. Revista Brasileira
de História, v. 13, n. 25/26, São leiros uma paisagem historiográfica distinta dos anos anteriores, em que
Paulo, 1993. diferentes projetos de modernização duelavam, formando uma espécie de
56
Ver RAGO, Margareth. A arena historiográfica.54 Além dos embates entre os historiadores da Uni-
“nova” historiografia brasileira. camp e da USP, registre-se igualmente a atuação de alguns profissionais do
Revista Anos 90, n. 11, Porto
Alegre, 1999. DHIS da UFPR, os quais reclamavam para si papel importante na evolução
da historiografia brasileira. Em 1993, tal posicionamento se materializou
em artigo, publicado na Revista Brasileira de História, em que se salientava
a contribuição do DHIS da UFPR, com destaque para a produção de uma
história demográfica, tida como uma prática pioneira na historiografia
nacional.55 Assim, o passado da historiografia brasileira, o seu desenvolvi-
mento e evolução, era pensado sem se prender, necessariamente, ao âmbito
da USP, às vezes até independentemente desta instituição.
Frente a essa nova conjuntura na qual o PPG uspiano em História
não exercia mais uma absoluta soberania e centralidade na produção do
conhecimento histórico, emerge a enunciação de uma “escola uspiana de
história”. A verbalização dessa identidade, apoiada em uma memória
forte que atrai para si até mesmo protocolos disciplinares da história, tem
a ver com esse presente do campo historiográfico brasileiro, diversificado
tanto em polos geográficos de produção como em temas, objetos, teorias e
métodos, a ponto de Margareth Rago – historiadora graduada na USP mas
pós-graduada na Unicamp – afiançar que a década de 1990 viu nascer uma
nova historiografia brasileira56, alimentada em larga medida por trabalhos
saídos dessa última instituição. Sob esse aspecto, a republicação do artigo
“A escola uspiana de história” em um livro de 1995 acerca da historiografia

152 ArtCultura Uberlândia, v. 21, n. 39, p. 139-153, jul.-dez. 2019


brasileira entre 1985-1994 faz total sentido: assinala mais um momento de

Artigos
afirmação do “DNA uspiano” de pesquisa histórica.
Conforme ressalta Pierre Bourdieu, o conceito de identidade é reivin-
dicado sempre em um contexto de batalha simbólica, de luta pelo direito
de enunciação de si, dos outros e da realidade, instituindo determinadas
visões e valores.57 O front de guerra é o nascedouro do reclame identitário,
de modo que este só vem à baila no tumulto dos conflitos e adormece e emu-
dece apenas no momento em que desaparecem os ruídos da peleja. Afinal,
não foi em uma conjuntura bélica que a pretendida “atividade uspiana de
pesquisa” e “A escola uspiana de história” encontraram sua condição de
dizibilidade? Os historiadores e historiadoras da USP, ameaçados, ontem
e hoje, procuraram se apegar e se firmar na crença de um ethos próprio e
particular. Memória, história e identidade: termos que asseguram ilusões de
permanência em meio ao tempo voraz, formas de recolher e tentar juntar os
pedaços de um ser que se fragmenta e se dispersa na neblina da existência.

Artigo recebido em 2 junho de 2019. Aprovado em 30 agosto de 2019.

57
Ver BOURDIEU, Pierre. Iden-
tidade e representação: elemen-
tos para uma reflexão crítica
sobre a ideia de região. In: O
poder simbólico. 5. ed. Rio de
Janeiro: Bertrand Brasil, 2002.

ArtCultura Uberlândia, v. 21, n. 39, p. 139-153, jul.-dez. 2019 153


Edição e
engajamento
político:

a Editora
L&PM nos
anos 1970
L&PM Editores. Perfil do Facebook, s/d, fotografia (detalhe).

Flamarion Maués
Doutor em História pela Universidade de São Paulo (USP). Professor de História no
Instituto Federal de São Paulo, campus Registro. É autor, entre outras obras, de Livros
que tomam partido – edição e revolução em Portugal: 1968-1980. Lisboa: Parsifal, 2019.
flamaues@gmail.com
Edição e engajamento político: a Editora L&PM nos anos 19701
Edition and political engagement: the L&PM publishing house in the 1970s

Flamarion Maués

resumo abstract
Este artigo discute a fusão entre ação This article discusses the merger between
editorial e engajamento político opo- editorial action and opposition political
sicionista no Brasil na década de 1970, engagement in Brazil in the 1970s, during
durante a ditadura iniciada em 1964, the dictatorship begun in 1964, analyzing
analisando a atuação dos editores res- the performance of editors responsible for
ponsáveis pela Editora L&PM, de Porto Publishing House L&PM, from Porto
Alegre, criada em 1974, e procurando Alegre, created in 1974,and trying to
entender como essa ação a transformou understand how this action transformed it
em uma casa editorial politicamente into an editorial house politically active, in
ativa, em âmbito regional e nacional. regional and national scope. I believe that
Acredito que este estudo colaborará this study will contribute to the unders-
para a compreensão da síntese entre tanding of the synthesis between editing
edição e política no Brasil no período and politics in Brazil in the final period of
final da ditadura, bem como das rela- the dictatorship installed in 1964, and of
ções e mediações então estabelecidas. the relations and mediations that provided
Além disso, permitirá uma reflexão such synthesis. In addition, it will allow
sobre o papel que a edição política a reflection on the role that the political
desempenhou no Brasil, buscando uma edition played in Brazil, seeking a broader
visão mais ampla do seu significado. understanding of its meaning.
palavras-chave: edição política; his- keywords: political edition; editorial
tória editorial no Brasil; editoras de history in Brazil; opposition publishers.
oposição.


Este trabalho se insere em uma série de estudos que venho desen-
volvendo sobre a edição política no Brasil e em Portugal, nos anos 1970 e
1980, buscando, em perspectiva comparada, o entendimento de como se
deu a síntese entre edição e política nesses dois países, permitindo uma
visão mais concreta das relações e mediações estabelecidas, bem como do
papel dos editores nesse processo. A partir da análise da história da L&PM,
destacarei como as ações de seus editores no campo editorial vinculavam-se
1
Este texto é parte do estágio ao seu engajamento político, mas sem subordinar um aspecto ao outro, ou
pós-doutoral desenvolvido
na Escola de Artes, Ciências seja, compreendendo também que a ação editorial guarda certa autonomia
e Humanidades da Universi- em relação à política, mesmo quando ela é politicamente comprometida.
dade de São Paulo (USP), sob
supervisão da professora San-
Assim, será possível trazer à tona uma parte do papel dos editores de livros
dra Reimão, e que contou com políticos no Brasil no período final da ditadura, destacando como a sua
apoio de bolsa da Fundação de ação editorial, ou seja, sua atuação no campo da cultura e da comunicação,
Apoio à Pesquisa do Estado de
São Paulo (Fapesp). tornou-se um importante elemento naquela luta.

156 ArtCultura Uberlândia, v. 21, n. 39, p. 155-171, jul.-dez. 2019


Pretendo, dessa forma, refletir sobre o papel que a edição política

Artigos
desempenhou no Brasil, buscando uma compreensão mais ampla do seu
significado. Procuraremos também entender como alguns aspectos pecu-
liares da conjuntura política e do mercado editorial influenciaram a ação
dos editores da L&PM.

Editoras de oposição

Desde meados da década de 1970, o Brasil viveu um processo


político que levou ao fim da ditadura iniciada com o golpe de 1964. A
abertura política – protagonizada pelas oposições e pela cúpula militar
do regime – inicia-se em 1974, com o governo Geisel e será um processo
longo, somente se encerrará dez anos depois, e que alternará avanços
e recuos. Nesse período, quando as lutas contra o poder discricionário
cresceram, houve o incremento, no campo editorial (livros), da edição de
obras de caráter político, na maior parte dos casos de cunho oposicionis-
ta. Há como que um surto do que podemos chamar de edição política,
com a publicação de livros políticos, marcadamente de obras vinculadas
ao pensamento de esquerda, dentro de um movimento mais amplo de
contestação política e cultural. Ganharam importância editoras de cunho
claramente político-ideológico, muitas delas com vinculações a partidos
ou grupos políticos.
A atuação dos editores responsáveis por estas casas editoras vincu-
lava de modo direto ação editorial e engajamento político. Foi uma forma
de atuação editorial realizada com intenção política de intervenção social.
Partia de um projeto editorial e/ou empresarial de fundo político, cujo
objetivo era divulgar, debater ou defender ideias políticas publicamente
na sociedade. Esta definição de edição política será desenvolvida mais
adiante.
No período final da ditadura, algumas dessas editoras tiveram um
caráter claramente oposicionista, o que permite caracterizá-las como “edi-
toras de oposição”. A categoria editoras de oposição foi por mim definida,
em relação ao Brasil, em minha dissertação de mestrado.2 Elas ganham re-
levo, em nosso país, a partir de meados dos anos 19703, quando ocorre uma
revitalização de editoras com perfil marcadamente político e de oposição
ao governo militar iniciado em 1964. Editoras que já tinham certa tradição
na edição de obras políticas, como Civilização Brasileira, Brasiliense, Vozes
e Paz e Terra, voltam a atuar de forma mais ousada politicamente, editan-
do livros que tratavam de temas que punham em questão a ideologia, os 2
Cf. SILVA, Flamarion Maués
objetivos e os procedimentos do regime de 1964. Ao mesmo tempo, novas Pelúcio. Editoras de oposição no
editoras surgem com o projeto de publicar livros com claro caráter político período da abertura (1974-1985):
negócio e política. Dissertação
de oposição. Alguns exemplos são as editoras Alfa-Ômega, Global, Edições (Mestrado em História Social) –
Populares, Brasil Debates, Ciências Humanas, Kairós, Hucitec, L&PM, FFLCH-USP, São Paulo, 2006. A
Graal, Codecri, Vega e Livramento, entre outras. dissertação foi posteriormente
editada em livro. Ver MAUÉS,
Os livros de oposição publicados por essas editoras podem ser clas- Flamarion. Livros contra a dita-
sificados da seguinte forma: clássicos do pensamento socialista, obras de dura: editoras de oposição no
Brasil, 1974-1984. São Paulo:
parlamentares de oposição, depoimentos de exilados e ex-presos políticos, Publisher, 2013.
livros-reportagem, memórias, romances políticos, romances-reportagem, 3
Mas é importante assinalar
livros de denúncias contra o governo. Este segmento ganha impulso mais que na década de 1960 já havia
significativo a partir de 1977-78, com o retorno à cena pública do movimento algumas editoras isoladas que
tinham um perfil oposicionista,
estudantil e do movimento sindical, em particular com as greves no ABC como a Civilização Brasileira e
paulista, e o avanço da campanha da anistia. a Brasiliense.

ArtCultura Uberlândia, v. 21, n. 39, p. 155-171, jul.-dez. 2019 157


4
SILVA, Flamarion Maués Pe- As editoras de oposição são aquelas que “tinham perfil nitidamente
lúcio. Livros contra a ditadura,
op. cit., p. 54. político e ideológico de oposição ao governo militar, com reflexos diretos
5
Idem, ibidem, p. 54.
em sua linha editorial e nos títulos publicados”.4 Isso significa que
6
Ver MOLLIER, Jean-Yves.
Quando o impresso se torna a marca distintiva de uma editora de oposição é o fato de ela ter perfil de oposição
uma arma no combate político: ao governo militar e ter publicado certo número de livros de oposição. Um número
a França do século XV ao século
suficiente, na produção daquela editora, para que fique claro que tais livros represen-
XX. In: DUTRA, Eliana Freitas
e MOLLIER, Jean-Yves (orgs.). tavam parcela importante da produção da empresa. Disso resulta que os referenciais
Política, nação e edição: o lugar básicos para saber se uma editora pode ser chamada de editora de oposição são o perfil
dos impressos na construção da
vida política. Brasil, Europa e político e ideológico da editora, determinado pelas simpatias e filiações políticas de
Américas nos séculos XVIII-XX, seus proprietários e/ou editores, e o seu catálogo de livros publicados.5
v. 1. São Paulo: Annablume,
2006.
A edição política
7
No que converge com Jürgen
Habermas na ideia geral de que
o impresso desempenhou um Jean-Yves Mollier, ao analisar o papel do impresso como arma no
papel determinante na consti-
tuição de um espaço público a
combate político na França, em um amplo período que vai do século XV
partir das discussões e tertúlias ao século XX6, aponta para algumas questões que nos podem ser úteis para
que, essencialmente no século o estudo da edição e do livro políticos.
XIX, começaram a surgir em
espaços como os cafés, nos O autor sugere que o impresso é uma das bases para a formação de
quais se foi engendrando a uma opinião pública7, com especial força nos períodos de agitação polí-
noção que mais tarde se veio
a designar de opinião públi-
tica. E indica que é quando as lutas políticas se acentuam – e o impresso
ca. Ver HABERMAS, Jürgen. político ocupa um lugar estratégico nestas lutas, contribuindo fortemente
Mudança estrutural da esfera “para fazer a política descer às ruas” – que aumenta o vigor do sistema
pública. Rio de Janeiro: Tempo
Brasileiro, 1984. editorial, “peça essencial na produção e difusão da literatura política”. E
8
MOLLIER, Jean-Yves, op. cit.,
“a multiplicação desses escritos sediciosos é o signo que pressagia uma
p. 260 e 269. mudança importante”. No caso da França pré-revolucionária, afirma ele,
9
Ver HAGE, Julien. Feltrinelli, o impresso “teve um papel excepcional para solapar as bases do regime”.8
Maspero, Wagenbach: une nou- Evidentemente, ao tratar do impresso, Mollier abarca um universo
velle génération d’éditeurs
politiques d’extrême gauche en
bem mais amplo do que o do livro, pois inclui também a imprensa, o pan-
Europe Occidentale 1955-1982. fleto, o folheto, os cartazes etc. Mas podemos transpor e adaptar algumas
Thèse (Histoire Contempo- de suas sugestões para o período do nosso estudo e para o campo mais
raine) – Université de Versailles
Saint-Quentin-En-Yvelines-Ba- restrito da edição de livros políticos. Particularmente interessante me parece
timent D’Alembert, Paris, 2010. a ideia de que os momentos de maior agitação e lutas políticas propiciam
10
Idem, Collections politiques condições para o fortalecimento do sistema editorial e, podemos inferir,
et effets de sens: littérature et
dentro dele dos setores que buscam dar à edição um sentido de interven-
politique dans les nouvelles
maisons d’édition politique ção política. Desse modo, a edição política liga-se estreitamente às lutas
d’extrême gauche au cours des políticas que se travam na sociedade em que ela se insere.
années 1960 et 1970. Cahiers
du CRHQ, n. 2, Caen, 2010, Outra referência relevante para meu estudo, no que diz respeito à
p. 2. Disponível em <http:// conceituação do que é a edição política e das características de uma editora
www.unicaen.fr/mrsh/crhq/
política, é a investigação de Julien Hage sobre três editoras políticas que ele
cahiers/2/c2a3-Hage.pdf>.
Acesso em 17 out. 2012. classifica como de extrema-esquerda, surgidas entre 1955 e 1964: a Feltri-
11
Ver SIMONIN, Anne. Les nelli, na Itália; a Maspero, na França; e a Wagenbach, na Alemanha.9 Tais
éditions de Minuit, 1942-1955: le editoras são de certa forma continuadoras de um tipo de editora política
devoir d’insoumission. Paris:
Imec, 1994.
cujo “modelo e paradigma”10 seria a francesa Éditions de Minuit, criada
clandestinamente na França ocupada em 1942.11
12
HAGE, Julien. Feltrinelli, Mas-
pero, Wagenbach, op. cit., p. 44. Para Hage, as editoras sobre as quais se debruçou constituíram uma
“tribuna das vanguardas intelectuais e estéticas de seu tempo”. E mesmo
sujeitas a censura, “repercutiram a emergência de uma nova esquerda
nutrida pelo anti-imperialismo e à margem dos partidos comunistas e
social-democratas”, e foram “as precursoras do desenvolvimento do livro
político”12 na Europa ocidental. Elas utilizaram o livro para “difundir uma
mensagem política à luz do terceiro-mundismo e do renovado movimen-

158 ArtCultura Uberlândia, v. 21, n. 39, p. 155-171, jul.-dez. 2019


to operário, e para promover o casamento entre edição e política de uma

Artigos
maneira criativa e militante”.13
Seus editores (que eram também os proprietários) apresentavam três
perfis de editor muito diferentes: o empresário (Giangiacomo Feltrinelli),
o intelectual (François Maspero) e o editor literário (Klaus Wagenbach).14
E representavam também três modelos específicos de edição política: a
grande casa de edição profissional (Feltrinelli), o livreiro-editor (Maspero)
e a pequena casa de edição literária (Wagenbach).15 São editoras “engajadas
politicamente, e nas quais esta orientação constitui a sua razão de ser e
estrutura o seu catálogo”.16 Assim, “se a literatura permaneceu no centro
das preocupações desses atores, ela por vezes ficou em segundo plano
em benefício de uma produção mais diretamente política e pragmática,
imediatamente relacionada com a atualidade”.17
Hage conclui que essas editoras “contribuíram para a renovação da
oferta editorial, para a promoção do documento político e dos textos teóri-
cos, para novas formas de paraliteratura, e de ciências sociais e militantes”,
em um contexto “de um compromisso resoluto na promoção do livro a
custo acessível”.18 E é pela interação entre esta oferta editorial renovada e
“uma demanda social pontual ou duradouramente politizada que se pode
sem dúvida definir melhor o livro político, assim como por uma série de
características que fundamentam uma natureza ou um ‘tipo’ muito bem
definido e determinado”.19
Ao analisar de forma mais ampla a edição política, Hage destaca a
forte determinação simbólica e política das obras publicadas pelas editoras
políticas como uma das bases de identidade destas editoras, “forjadas tanto
por suas estratégias editoriais como por seus engajamentos militantes”.20 E
afirma que a valorização dos elementos paratextuais é uma das suas caracte- 13
Idem, François Maspero,
rísticas principais, particularmente por meio de recursos como os prefácios éditeur partisan. Contretemps,
n. 15, Paris, fev. 2006, p. 104.
e o aparelho crítico (notas explicativas, por exemplo). “A multiplicação e Disponível em <http://www.
enriquecimento destes paratextos [...] sublinham uma politização crescente contretemps.eu/wp-content/
da oferta editorial, assim como um alargamento dos públicos visados, que uploads/Contretemps%2015.
pdf>. Acesso em 24 out. 2012.
resultam em uma complexificação das estratégias editoriais”.21
14
Ver idem, Collections politi-
Outra experiência editorial significativa em meu quadro de referên- ques et effets de sens, op. cit.
cias, por suas características particulares, é a da La Cité Éditeur, editora
Ver idem, Julien. Feltrinelli,
15

militante suíça criada por Nils Andersson em 1958. François Valloton Maspero, Wagenbach, op. cit.
relaciona o surgimento da La Cité à emergência de “uma nova geração 16
Idem, François Maspero,
de editores europeus que, no contexto da descolonização e das transfor- éditeur partisan, op. cit., p. 104.
mações na extrema-esquerda internacional, vão associar de modo estreito 17
Idem, Julien. Collections poli-
engajamento político e editorial”.22 Entre esses editores estariam, além tiques et effets de sens, op. cit.,
p. 6.
de Andersson, François Maspero e Jérôme Lindon (Éditions du Minuit)
18
Idem.
na França, Giangiacomo Feltrinelli na Itália e, alguns anos depois, Klaus
Wagenbach na Alemanha. Eles levaram adiante “o mesmo combate
19
Idem.

pela liberdade de expressão contra a razão de Estado, um interesse pelo 20


Idem.
terceiro-mundismo e pelos debates que agitavam a ‘nova esquerda’ nestes 21
Idem.
anos”.23 22
VALLOTON, François. Edi-
A partir dessa amálgama de sugestões, como podemos definir a tion et militantisme: le ca-
talogue de La Cité: Editeur
edição política? A edição política pode ser definida como aquela que vin- (1958-1967). In: BURNAND,
cula de modo direto engajamento político e ação editorial, o que significa Léonard, CARRON, Damien
et JEANNERET, Pierre. Livre
dizer que é a edição feita com intenção política de intervenção social, ou
et militantisme: La Cité Editeur,
seja, que parte de um projeto editorial e/ou empresarial de fundo político, 1958-1967. Lausanne: Editions
cujo objetivo é promover a divulgação e o debate de determinadas ideias d’en bas, 2007, p. 20.

políticas publicamente na sociedade, posicionando-se em defesa dessas 23


Idem.

ArtCultura Uberlândia, v. 21, n. 39, p. 155-171, jul.-dez. 2019 159


24
MACHADO, Ivan Pinheiro. ideias. Assim, a editora política caracteriza-se pelo engajamento político,
Entrevista ao autor em 4 de
julho de 2016. Todas as de- que estrutura o seu catálogo.
mais citações de Machado são A casa editorial que realiza a edição política poderá, em certos casos,
dessa entrevista, a menos que
manter vínculos orgânicos com instituições políticas, como por exemplo
sejam identificadas de forma
diferente. partidos e associações cívicas. Mas poderá também ser iniciativa de um
25
Ver MACHADO, Rosana indivíduo, ou grupo de indivíduos, que a título pessoal (ou do grupo)
Pinheiro e SALAINI, Cristian empenha-se no ramo editorial e busca que esta atividade reflita, em alguma
Jobi. Coleção L&PM Pocket: de-
safios do mercado editorial bra-
medida, a sua forma de ver e interpretar o mundo (este é o caso da L&PM,
sileiro. Disponível em <http:// analisada neste artigo). Em ambos os casos o engajamento se dá pela defesa
www.espm.br/Publicacoes/ de certos princípios, ideias e causas, e se materializa nos livros editados,
CentralDeCases/Documents/
LPM.pdf>. 2010. Acesso em como resultado da íntima ligação entre edição e engajamento.
maio 2012. Principalmente nas editoras políticas que tinham vínculos com gru-
26
VASQUES, Edgar. O consu- pos ou partidos, era marcante a militância de editores, autores e colabora-
mo do não consumidor. Jornal dores em torno das ideias que as animavam. Por isso, estas editoras podem
do Brasil, Rio de Janeiro, 9 nov.
1974. também ser caracterizadas como editoras políticas militantes.
27
CYRNE, Moacy. Humor
gráfico: do Sul ao Nordeste. A L&PM Editores
Jornal do Brasil, Rio de Janeiro,
10 jan. 1976.
A L&PM Editores foi fundada em Porto Alegre em agosto de 1974
pelos arquitetos gaúchos Ivan Gomes Pinheiro Machado e Paulo de Almeida
Lima. Inicialmente chamou-se Lima & Pinheiro Machado Editores, pas-
sando pouco depois a ser denominada d L&PM Editores. A editora surgiu
para publicar um livro com as charges do personagem Rango, de autoria
do cartunista Edgar Vasques, amigo de Pinheiro e Lima na Faculdade de
Arquitetura da Universidade Federal do Rio Grande do Sul.
Ivan Pinheiro Machado relembra as origens da editora: “Nós tivemos
uma agência de publicidade, éramos muito guris, e a gente fez essa agên-
cia porque tinha a possibilidade de ter clientes e tal. E era o Paulo Lima, o
Edgar Vasques e eu. E o Edgar Vasques era muito conhecido porque era
um grande desenhista e fazia um personagem que era o Rango, que era
muito famoso, inclusive ele fez até n’O Pasquim, mas era publicado aqui
pela Caldas Júnior.”24
O personagem surgira quando Vasques foi chamado para cobrir as
férias de Luis Fernando Veríssimo no jornal Folha da Manhã, e logo se tornou
sucesso.25 Com o fim da agência de publicidade, os três jovens amigos se
viram diante da questão do que fazer em termos profissionais. “E aí, até
numa provocação ao sistema, falamos: Vamos publicar o Rango, vamos
fazer uma editorinha e publicar o Rango. Aí em 1974 a gente reuniu o
material do Rango e publicamos”, conta Machado. Para ele, a iniciativa
tinha muito a ver com o que o antropólogo Darcy Ribeiro chamava de
“insciência da juventude”.
Rango era um personagem que fugia aos padrões, ainda mais no
momento de ditadura em que vivia o país. Vasques o definia como “o mar-
ginal, o cara que está à margem, não o bandido”.26 Nas palavras do crítico
Moacy Cyrne, “Rango move-se em um mundo dominado pela fome e pela
marginalização social, cujas referências concretas podem ser localizadas
no contexto político e econômico da própria latino-americanidade”.27 Para
Machado,

O Rango era muito gozado porque ele era super-radical, contra o sistema, era um
miserável que vivia dentro de uma lata de lixo e de lá ele fazia filosofia a respeito
da pobreza, a respeito do país, tudo que acontecia ele comentava, sempre do viés

160 ArtCultura Uberlândia, v. 21, n. 39, p. 155-171, jul.-dez. 2019


do miserável, do marginal, política ou economicamente. E era um negócio que era

Artigos
odiado pela direita, mas paradoxalmente era publicado no jornal mais conservador
de Porto Alegre, e pelo cara mais poderoso do estado, que era o Breno Caldas,
dono da Companhia Caldas Júnior. Era publicado na Folha da Manhã, que era
o jornal “moderno” da Caldas Júnior, que publicava o tradicionalíssimo e cente-
nário Correio do Povo. Então, isso era contraditório, ninguém entendia como o
Breno Caldas permitia publicar. E como era publicado no jornal do Breno Caldas,
a própria censura, a repressão, tinha medo de meter a mão, entende? Então ele ia
publicando lá o Rango.28

Para editar o livro, havia a necessidade de abrir uma empresa, uma


editora. Foi então que surgiu a L&PM. Machado recorda: “E de sacanagem
a gente fez aquela coisa das empresas antigas, Lima e Pinheiro Machado
Editores Ltda. De sacanagem! E registramos. Mas vimos que ficou muito
grande, e botamos L&PM. E o pessoal da faculdade fez o logotipo, que na
época era um logotipo meio parecido com os do beisebol americano. Ali-
ás, o logotipo se mantém até hoje. A gente tem dois, o clássico, que é esse
original, e depois fizemos o outro, que é da L&PM Pocket”.29

Origens familiares ligadas à política e ao jornalismo

As trajetórias familiares de Ivan Pinheiro Machado e Paulo Lima


são importantes para se entender o perfil que a L&PM teve desde a sua
fundação. Machado é filho do advogado Antônio Pinheiro Machado Neto,
que havia sido deputado constituinte estadual em 1946 pelo Partido Co-
munista Brasileiro (PCB), com pouco mais de 20 anos de idade. Depois
do golpe de 1964, exilou-se na Itália no começo dos anos 1970. Retornou
em pouco tempo e era uma figura de destaque na oposição à ditadura em
Porto Alegre. Ivan teve alguma atuação política na faculdade e esteve na
Itália algum tempo, acompanhando seu pai no exílio. Paulo Lima é filho
do jornalista Mario de Almeida Lima, diretor da sucursal de O Estado de S.
Paulo em Porto Alegre. Seu pai era grande amigo de Paulo Brossard, figura
de referência na oposição legal ao regime, e muito ligado à oposição. Mario
Lima tinha uma livraria muito conhecida na cidade, a Livraria Lima.
Assim, ambos os fundadores da editora vinham de ambientes de opo-
sição, em que se buscavam caminhos para combater a ditadura brasileira.
Machado, vinha do lado da oposição comunista do PCB, muito importante
nesse período, e Lima do lado da oposição mais liberal, “democrática”. É
da amizade entre Machado, Lima e Vasques que vai surgir o livro Rango,
28
MACHADO, Ivan Pinheiro,
op. cit.
que deu origem à L&PM. Machado conta como foi: “Então fizemos o Rango, 29
Idem.
que era um livro de 80 páginas. O livro foi feito de forma curiosa, porque
30
Ver LUCCHESE, Alexandre.
a gente não tinha um tostão, então a gente fez graças a um amigo nosso, Ivan Pinheiro Machado: pesso-
muito engraçado, que tinha uma gráfica, que deixou a gente imprimir o as que criam ideias para livros
livro num sábado”. Este amigo era Alfredo Oliveira.30 digitais não entendem de cul-
tura. Zero Hora, Porto Alegre,
Machado recorda como foi a impressão do primeiro livro: “Ele liberou 9 ago. 2014. Disponível em
a gráfica depois de a gente encher o saco dele, mas colocou uma condição: <http://zh.clicrbs.com.br/rs/en-
tretenimento/noticia/2014/08/
só não pode usar o preto. Dissemos: tá bom. Então chegamos na gráfica e ivan-pinheiro-machado-pes-
tinha um monte de latas de tinta meio vazias, e a gente começou a misturar soas-que-criam-ideias-para-
tudo, vermelho, amarelo, verde, misturamos aquele monte de tinta que ia -livros-digitais-nao-entendem-
-de-cultura-4571719.html>.
ser jogada fora e deu uma lata de tinta que ficou marrom. E imprimimos Acesso em 23 mar. 2015.
o livro com aquela tinta”.31 Aliás, a cor usada na impressão gera até hoje 31
MACHADO, Ivan Pinheiro,
interessantes interpretações: op. cit.

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32
Idem. Eu dei várias palestras em universidades, e uma vez uma moça na faculdade de
33
Idem. comunicação, aqui em Porto Alegre, comentou: “A L&PM sempre foi de vanguarda,
34
Idem. no primeiro livro ela rompe com o paradigma da tinta preta, é impresso com tinta
35
Idem. marrom”. E foi mesmo. Eu até achei legal a interpretação dela, mas tive que dizer o
que ocorreu. Eu falei: olha, eu lamento destruir a tua belíssima tese, mas acontece
o seguinte... Como fizeram pra nós de favor o Rango.32

A primeira edição, em agosto de 1974, foi de 5 mil exemplares. Os


editores queriam realizar um ato político para marcar o lançamento do
livro. E, de acordo com Machado, isso ocorreu:

Fizemos o lançamento na Faculdade de Arquitetura. Naquela época não tinha rede


social, mas tinha uma coisa incrível, quando tu lançava uma ideia era um rastilho,
ainda mais no campus, que era no centro da cidade. E convidamos o Brossard, o
Pedro Simon, os caras. O pai do Lima fez uma divulgação pelo lado da esquerda
mais democrática, o meu pai pelo lado da esquerda mais radical. E foi um grande
acontecimento, incrível, foram mais de mil pessoas, vendemos mais de mil livros.
Durou quase oito horas o lançamento, tinha comício, pessoas fazendo discurso. E
chegavam todas as personalidades da oposição gaúcha pra participar.33

O evento foi no mês de agosto, pouco mais de três meses antes das
eleições de novembro de 1974 que marcaram uma grande vitória do partido
da oposição, o MDB (Movimento Democrático Brasileiro), inclusive no Rio
Grande do Sul, onde Paulo Brossard foi eleito senador. O lançamento, na
memória de Machado, tornou-se um grande ato de reunião de todos os
setores de oposição no estado.
Logo em seguida, outro fato veio marcar este primeiro momento da
L&PM. A Feira do Livro Porto Alegre, tradicional evento da cidade, que
ocorre anualmente no mês de outubro desde 1955. A L&PM, que havia lan-
çado em agosto de 1974 Rango, vai participar de sua primeira feira naquele
ano. E não passou despercebida: seu único livro foi o mais o mais vendido
durante o evento. Machado e Lima alugaram uma Kombi e colocaram na
praça onde se realizava a feira. “E tiramos outra edição, antes da feira, aí
já foi numa gráfica, foi uma briga pra conseguir chegar no mesmo marrom
da primeira edição, até que chegamos num marrom parecido. E foi o livro
mais vendido da Feira do Livro”, conta Machado.34
Durante esses primeiros momentos da L&PM a editora não tinha
sede, funcionava numa sala improvisada no escritório de advocacia do pai
de Ivan. Apesar desse sucesso inicial, a editora não garantia o sustento dos
proprietários. Machado relata que só foram “viver da editora muito tempo
depois”. Segundo ele, “durante certo tempo a gente subsidiava o nosso
trabalho fazendo trabalhos fora da editora. Eu trabalhei como jornalista,
tanto com fotografia como com texto, trabalhei em muitos veículos aqui
de Porto Alegre, as sucursais... Pra ganhar a vida”.35
Mas o sucesso de Rango teve também o seu preço. A repercussão da
obra chamou a atenção da censura, que se sentia incomodada por um per-
sonagem cuja característica maior era ser miserável e faminto, numa época
de “Brasil grande potência” e de “milagre econômico”. E os procedimenos
habituais de intimidação foram colocados em prática:

Entrementes, eu fui chamado à Polícia Federal [...] me chamaram pra prestar escla-
recimentos sobre uma obra que estava sendo lançada ilegalmente. Eles não podiam

162 ArtCultura Uberlândia, v. 21, n. 39, p. 155-171, jul.-dez. 2019


obviamente apreender porque já tinha saído no jornal. Mas aí eles inventaram...

Artigos
Como o formato era um formato meio estranho36, eles inventaram que era uma
revista. E como revista, na época, tinha que ter o registro junto à Polícia Federal,
tinha que ter um registro especial pra circular... e a gente não tinha esse registro,
obviamente, porque era um livro.37

Quem interrogou Machado foi Roque Chedid, que chefiava o setor


de censura da Polícia Federal em Porto Alegre.

Aí o cara me chama e diz: “Nós vamos apreender esse negócio”. E aí nós arma-
mos um esquema, porque o grande medo era entrar [no interrogatório] e não
sair... então armamos um grande esquema em que até o Érico Verissimo estava
no meio, estava todo mundo em alerta com a minha entrada na PF, e o Érico,
que era muito amigo do pai do Lima, inclusive fez o prefácio do Rango... O
Érico era um cara importante, escritor, então qualquer rolo, se eu demorasse a
sair lá da Polícia Federal, iam mobilizar o pessoal. [...] E o cara da PF começa a
ler na minha frente. Eu sentado... O livro tinha 80 páginas, ele folheava, folha
por folha. E falava: “O que é isso aqui? Piada de coronel, isso não dá, isso é um
lixo”. E folheava, e folheava... e quando chegou no final ele disse: “Nós vamos
recolher porque isso aí não é livro, é revista”. E eu disse: “Não, doutor (tinha
que chamar de doutor), isso aí é livro”. “Não é nada, desde quando livro é essa
porra! Grampeado, porra!”. Aí eu disse. “O senhor leia o prefácio!”. E aí foi
um negócio sensacional, inesquecível, porque no prefácio o Érico abre assim:
“Recomendo este livro com o maior entusiasmo”. E eu disse: “É o Érico Veris-
simo quem está dizendo”. Aí deu um rolo na cabeça do cara da PF. Pô, o Érico
Verissimo dizendo que era um livro? Ele me olhou com uma cara de ódio e disse:
“Olha, te manda daqui. Pega essa tua imundície. Tu te livrou dessa vez, agora
abre o teu olho, guri”. Eu lembro dele dizendo isso.38

O sucesso de Rango alavancou a editora e também a carreira de Edgar


Vasques como cartunista. O personagem gerou mais cinco livros: Rango 2
e Rango 3 foram lançados em 1975; Rango 4, em 1976; Rango 5 e Rango Bis
(que reunia os volumes já lançados) em 1977.

A consolidação, com humor e política

Diante do êxito obtido com Rango, Lima e Machado viram que seria
possível pensar seriamente em se tornarem editores profissionais. “De
repente, tu és o campeão de vendas da Feira do Livro. O que fazer depois 36
O livro tem o formato de 15,5
cm X 22,5 cm, mas o que o dife-
disso? Editar outro livro. Ganhar dinheiro a gente nunca ganhou (risos). rencia dos livros em geral é que
O que conseguimos fazer foi montar uma empresa e viver dessa empresa. ele deve ser lido na horizontal,
Isso custou mais de 10 anos”.39 ou seja, a lombada do livro é na
parte menor (15,5 cm).
O humor marcou o início da L&PM e a editora prosseguiu nessa linha.
37
MACHADO, Ivan Pinheiro,
Além da sequência da série Rango, foram lançadas obras como Tubarão parte op. cit.
II, coletânea de Luis Fernando Veríssimo, Edgar Vasques, Fraga, Ronaldo, 38
Idem.
Juska, Merten, Santiago, R. Pereira, Canini, Batisow, Marco Aurélio, em
Idem apud LUCHESE, Alexan-
39
1976; Nobre do princípio ao fim, de Carlos Nobre (1976) e O time do bagaço, de dre, op. cit.
Zequinha (1976). Essa linha se consolidou nesse ano com a edição dos dois 40
Ver CAPORAL, Angela. De
volumes da Antologia do humor, obra que reunia 82 humoristas brasileiros. Edgar Vasques a Woody Allen.
Posteriormente autores como Millôr Fernandes, Caulus e Luis Fernando Jornal do Brasil, 20 maio 1978.
Disponível em <http://bndigi-
Verissimo tornariam a L&PM uma referência nacional em livros de humor.40 tal.bn.br/acervodigital>. Acesso
Para Machado, “Apesar da feroz censura que havia na época, tinha uma em 1 abr. 2015.

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41
MACHADO, Ivan Pinheiro, válvula de escape que era o humor. Então os caras ficavam muito perple-
op. cit.
xos... a gente publicou muito livro de humor”.41
42
LIMA, Mário de Almeida.
Prefácio. In: BROSSARD,
Ao mesmo tempo, desde 1975, a L&PM iniciou também uma linha
Paulo. Oposição. Porto Alegre, de livros mais diretamente voltados para a política. Esta linha, que seria
L&PM, 1976, p. 9. uma das marcas registradas da L&PM em sua primeira fase, levou à criação
43
MAUÉS, Flamarion. Os livros da Coleção Política, em 1975. O primeiro livro da coleção foi Oposição, que
de denúncia da tortura após o
golpe de 1964. Cadernos Cedem,
reunia discursos parlamentares de Paulo Brossard, já então eleito senador
v. 2, n. 1, São Paulo, 2011, p. 50. pelo MDB gaúcho. A obra é composta por discursos proferidos por Bros-
44
MACHADO, Ivan Pinheiro, sard como deputado federal (1967-71) e senador (1975), e reproduzidos
op. cit. praticamente da mesma forma como foram publicados nos Anais do Senado
45
Idem. Federal. Como destaca Mario de Almeida Lima no prefácio do livro, tais
discursos “não sofreram uma revisão final e trazem assim os defeitos da
improvisação a que faltam, ainda, a vibração da voz do orador e a pug-
nacidade que Brossard costuma dar às suas intervenções nos debates”.42
Esse tipo de obra com a reprodução de discursos parlamentares havia
surgido em 1974, quando a Editora Paz e Terra, de Fernando Gasparian,
publicou Oposição no Brasil, hoje, “um livro de pronunciamentos políticos
de Marcos Freire, advogado pernambucano e deputado federal pelo MDB,
que concorria à eleição para o Senado naquele ano, e sairia vencedor”.43
Esse livro parece ser o modelo inicial para vários outros que surgiram
posteriormente, sempre de autoria de parlamentares da oposição e com a
reprodução de discursos proferidos no parlamento e, quase sempre, pu-
blicados da mesma forma como haviam sido editados nos anais oficiais.
Criou-se, podemos dizer, um gênero editorial: o livro de parlamentar da
oposição. Tais obras parecem ter sido uma forma de apoiar a ação de par-
lamentares oposicionistas (inclusive nos períodos eleitorais) e, ao mesmo
tempo, um modo das editoras que publicavam esses livros se precaverem
contra problemas com a censura, uma vez que tais obras reproduziam
textos já editados nos Anais do Senado ou da Câmara Federal, o que de
certa dificultava a ação da censura contra elas.

Ivan Pinheiro Machado confirma que a inspiração para o lançamento do livro de


Brossard veio de Gasparian, de quem era muito amigo: “E a gente descobriu um
grande veio, que eram os discursos, porque uma vez publicados nos Anais do Senado
eles não podiam ser censurados. Então a gente passou, com o Gasparian... O Gaspa-
rian tinha o [semanário] Opinião, tinha a [editora] Paz e Terra... a gente fez uma
frente e publicamos um monte de coisas. Até estivemos na lista da Veja várias vezes
com discursos parlamentares. Isso começou em 1975, por aí, foi bem no começo.44

Machado afirma também que foi Fernando Gasparian quem teve a


ideia inicial de publicar os discursos de parlamentares da oposição:

O Gasparian inventou esse negócio. Ele tinha know-how de censura, por causa do
Opinião. [...] O Gasparian chega um dia e me diz: vamos pegar os discursos dos
caras e vamos publicar. Aí ele começou com o Marcos Freire, depois ele publicou
outros. E nós publicamos o Simon, o Brossard, o Teotônio Vilela, que era o cara
do outro lado que passou pro nosso lado. Era uma figura emblemática da oposição,
porque era o cara que era da Arena e que recusou a ditadura. Publicamos dele A
pregação da liberdade [1977], na época ele ainda era da Arena.45

Em outubro de 1976, ou seja, cerca de um ano após o lançamento do


livro Oposição, a L&PM publicou o segundo volume da Coleção Política,

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o livro MDB: uma opção democrática, do então deputado estadual Pedro

Artigos
Simon, presidente do Diretório Estadual gaúcho do partido.Brossard lan-
çaria, sempre pela L&PM, mais três livros do mesmo tipo: O ballet proibido
(1976), É hora de mudar (1977) e Chega de arbítrio (1978), que alcançaram
grande sucesso de vendas, tendo figurado por várias semanas nas listas
de livros mais vendidos de não ficção da revista Veja e do jornal Leia Livros.
O sucesso dos livros de Paulo Brossard teve dois aspectos funda-
mentais para a L&PM: a consolidou como uma editora de oposição, já que
o senador era uma das principais vozes de denúncia das arbitrariedades
no parlamento; ao mesmo tempo, representou um grande apoio econô-
mico à editora, uma vez que não foi necessário pagar direitos autorais
ao autor. De acordo com Machado, “O Brossard nunca cobrou direitos
autorais, e vendeu muito livro! Nunca quis receber!”.46 Isso se devia
basicamente à relação de amizade que havia entre Brossard e o pai de
Paulo Lima. Desse modo, sem dúvida Brossard colaborou muito para o
desenvolvimento da editora e para sua saúde financeira. E nessa linha de
livros de parlamentares, houve ainda Pregação da liberdade, de Teotônio
Vilela, lançado em 1977. Vilela era senador por Alagoas, tornara-se um
dissidente da Arena (o partido do governo) e viria a ser um dos líderes
da luta pela anistia.
Depois dos dois primeiros anos de atividade quase semiamadora,
a L&PM começou a se organizar de forma mais profissional. A partir de
1977 a L&PM passou a editar obras de autores de literatura e teatro: Josué
Guimarães (É tarde para saber, 1977; Enquanto a noite não chega, 1978), Millôr
Ferandes (Devora-me ou te decifro; É..., 1977; Flávia, cabeça, troncos; A história
é uma história, 1978), Moacyr Scliar (Mês de cães danados, 1977; Deuses de
Raquel, 1978), Mario Quintana (Pé de pilão; A vaca e o hipogrifo; e Esconderijos
do tempo, 1980) eram alguns dos autores brasileiros, aos quais se juntaram,
no final da década de 1970, os estrangeiros Woody Allen (Cuca fundida;
Nada e mais alguma coisa, 1978; Sem plumas, 1979), Eduardo Galeano, Carlos
Fuentes e Adolfo Bioy Casares, entre outros.
Em abril de 1977, a edição do livro 1964 visto e comentado pela Casa
Branca, do jornalista Marcos Sá Correa, que tratava da Operação Brother
Sam em 1964, gerou certo receio nos editores da L&PM. “A gente come-
çou a ter problema de ser seguido, tinha uns caras que ficavam na frente
do escritório [...]. Aí fomos para o Rio de Janeiro, eu e o Lima. E quando
livro saiu a gente achou que ele ia ser apreendido, mas não foi”, relembra
Machado.47

As memórias do general

Em 1978 ocorreu o que Machado chama de “o grande problema”,


com a publicação do livro do general Olympio Mourão Filho, Memórias:
a verdade de um revolucionário. O general havia sido um dos comandantes
militares do golpe de 1964, mas posteriormente passou a discordar dos
rumos do regime militar e foi colocado no ostracismo. Essas memórias,
publicadas apenas após a sua morte, seriam “um documento precioso para
o estudo dos idos de março e de seus protagonistas e figurantes”, feito 46
Idem.
por um personagem “passional”, e seriam “contraditórias, imodestas [...] 47
Idem.
sinceras e desbocadas”.48
48
NUNES, Augusto. Rude e
Paulo Sérgio Pinheiro, na época professor de Ciência Política na franco. Veja, São Paulo, 15 fev.
Unicamp e colaborador da revista IstoÉ, afirmou que os textos do livro 1979.

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49
PINHEIRO, Paulo Sérgio. “provavelmente não receberam nenhum retoque, tais as atrocidades que
O velho general botou para
quebrar. IstoÉ, São Paulo, 14 contêm nos comentários contra seus pares e os homens de seu tempo”.49
fev. 1979. Machado narra como o livro chegou até a L&PM:
50
MACHADO, Ivan Pinheiro,
op. cit. O historiador Hélio Silva era muito amigo do meu pai. [...] Um dia, estávamos num
51
Idem. jantar, ele diz: “Puxa, eu tenho um texto bombástico que eu dei pro Ênio [Silveira,
52
Ver Filha não quer livro de da editora Civilização Brasileira], mas ele não quis publicar, o [Fernando]
Mourão. Folha de S.Paulo, São Gasparian [da editora Paz e Terra] também não quis, ninguém quis publicar, a
Paulo, 24 ago. 1978.
Vozes não quis, porque realmente é estapafúrdio o texto, o autor diz horrores dos
53
MACHADO, Ivan Pinheiro,
op. cit.
milicos”. Era o livro do Olympio Mourão Filho [...]. Estávamos eu e o Lima, e nós
dissemos: “Nós publicamos”. Meu pai ainda disse: “Vamos ver, quem sabe a gente
pensa melhor...”. E eu disse: “Não pai, o cara é milico, o que vai acontecer?”. O Hélio
Silva ficou feliz da vida. [...] o Mourão doou pra ele os originais com a incumbência
de publicar, então ele estava louco com isso, ele queria publicar de qualquer jeito.50

Machado recebeu os originais e os leu. Eis sua reação:

Aí eu li o livro e eu me apavorei. Eu até dei uma censurada. Isso é uma coisa que
eu nunca disse, eu tirei umas coisas que ele falava, algumas poucas coisinhas, por-
que eu falei, isso vai... Porque ele dizia horrores do Médici, do Costa e Silva – dele
dizia que era viciado em jogo e corno; era daí pra baixo. [...] Uma das coisas que
eu tirei, por exemplo... Ele chegava e dizia assim: “O filho da puta do Médici”. Eu
não posso botar isso. Eu tirei o “filho da puta”.A a história que me perdoe, mas não
eram as bolas dele que estavam em jogo, eram as minhas. E mesmo assim o livro
foi apreendido. A orientação que eu tinha do advogado, meu pai, com esse livro, é
que devíamos tirar aquilo que pudesse dar motivo a uma apreensão não política.51

A notícia da publicação foi veiculada na segunda semana de fevereiro


de 1978 pelo CooJornal, periódico alternativo editado por uma cooperativa
de jornalistas de Porto Alegre, que divulgou trechos da obra. No entanto,
o livro somente foi publicado em fins de agosto de 1978. Porém, quando
o livro estava pronto mas ainda na gráfica, a filha de Mourão pediu na
Justiça a apreensão da obra, alegando que as memórias eram propriedade
dos descendentes do general.52
Machado fala sobre o episódio de apreensão, que teve ares rocam-
bolescos:

Meu pai estava no fórum quando viu uma movimentação, foi ver o que era, e alguém
disse a ele que estavam fazendo a apreensão de um livro em segredo de justiça. [...]
Aí ele nos ligou e disse que iam prender o livro: “Vão pra lá, avisem a imprensa”.
Aí nós avisamos a sucursal d’O Estado de S. Paulo, d’O Globo, do Jornal do
Brasil, todo mundo, e aí os jornalistas foram pra lá, e chegaram junto com a polícia.
Foi um rolo. [...] A polícia chega e diz: “O senhor é o editor? Então o senhor está
detido”. [...] Tudo isso era na expedição da gráfica, então os carros estavam todos
por ali, bem perto do lugar onde o livro estava sendo apreendido. [...] Quando eles
[os policiais] foram lacrar os livros, eu falei com o Aramis, que era o motorista, e a
Ângela Caporal, que era a repórter do Jornal do Brasil... falei pra Ângela: “Fala
pro Aramis que eu vou me atirar ali atrás”. O carro deles era uma Brasília. “Vamos
ver o que acontece”. E ela falou: “Por mim tudo bem”. Eu fui saindo devagarinho,
ninguém estava olhando e eu pum! E a Brasília ainda não era quatro portas, tinha
que abrir, e eu abri, empurrei o banco e mergulhei. E fiquei lá. E o Aramis foi saindo,
saindo, e eu fui embora.53

166 ArtCultura Uberlândia, v. 21, n. 39, p. 155-171, jul.-dez. 2019


A liberação da obra ocorreu somente em fevereiro de 1979, cerca de

Artigos
seis meses depois: “Houve uma batalha judicial e o meu pai fez um traba-
lho incrível, conseguiu uma liminar. Como era uma liminar ficamos com
medo de que ela fosse cassada. Então armamos um superesquema com a
Varig – a velha e gloriosa Varig –, nós tínhamos amigos lá, e eles disseram
que iam armar um esquema em que a polícia não ia conseguir entrar [para
impedir a distribuição do livro]”.54
O livro tornou-se imediatamente um best-seller, inclusive graças à
repercussão que a sua apreensão em 1978 havia tido, gerando grande
expectativa em torno da obra. Ela apareceu pela primeira vez na lista dos
livros mais vendidos de não ficção da revista Veja em 15 de fevereiro de
1979, já em segundo lugar. E nela permaneceu por mais de 8 meses.

O grande best-seller: O analista de Bagé

Entre 1979 e 1984 a L&PM editou a revista Oitenta, que teve nove
edições e era publicada no formato de livro, reunindo ensaios, artigos,
entrevistas, resenhas de livros e quadrinhos. Os editores da revista eram
Ivan Pinheiro Machado, José Antonio Pinheiro Machado, Paulo de Almeida
Lima, Eduardo Bueno, José Onofre e Jorge Polydoro.55
Machado lembra com orgulho da revista:

A Oitenta foi inspirada na Revista da Civilização Brasileira. A nossa ideia era


fazer uma revista cultural, de oposição. E passamos a editar um monte de gente,
desde o Leandro Konder, o Carlos Nelson Coutinho, Marcos Faerman, deputados, 54
Idem.
o Luis Fernando Verissimo, textos estrangeiros, fomos a primeira revista brasileira 55
Ver L&PM 40 anos: uma
a publicar o Cornelius Castoriadis. Era uma revista aberta, culturalmente aberta a história de ideias e aven-
todas as manifestações. Não tinha uma linha editorial, a linha editorial era ser uma turas. Página eletrônica da
L&PM Editores. Disponível
revista de oposição, mas que não era só de oposição, porque a gente publicava de em <http://www.lpm.com.br/
tudo, o discurso do Neruda quando recebeu o Nobel, textos jornalísticos do Gabriel site/default.asp?TroncoID=80
5133&SecaoID=845253&Subse
Garcia Marques. [...] A revista vendia uma edição, vendia pouco. A tiragem era de
caoID=384748>. Acesso em 16
5 mil exemplares. Ela virou cult depois que acabou.56 maio 2015.
56
MACHADO, Ivan Pinheiro,
Um marco que consolidou a L&PM no mercado editorial brasileiro foi op. cit.
o enorme sucesso do livro O analista de Bagé, de Luis Fernando Veríssimo, 57
Cf. MACHADO, Rosana
publicado em 1981, um dos maiores sucessos de venda da década.57 De Pinheiro e SALAINI, Cristian
Jobi, op. cit.
acordo com Machado, ele representou “o upgrade da editora como business”,
58
MACHADO, Ivan Pinheiro
pois o livro “explodiu na Feira do Livro e depois foi para a capa da Veja”.58 apud LUCHESE, Alexandre,
A primeira edição, em 1981, esgotou-se rapidamente, e em oito me- op. cit.
ses o livro já estava na 50ª edição, tendo vendido 160 mil exemplares.59 O 59
Informação dos editores cons-
livro de crônicas tem como personagem central o personagem o “analista tante da orelha do livro Outras
do analista de Bagé (Porto Alegre,
de Bagé”, uma sátira a alguns lugares-comuns sobre práticas psicanalíticas L&PM, 1982), de Luis Fernando
e a certos aspectos da cultura regional gauchesca. “Em O analista de Bagé, Veríssimo.
o autor ilustra o estereótipo imputado aos bageenses, de pessoas rudes, 60
CONTAVE, Natalia de Fi-
muito práticas e objetivas, com a cultura completamente centrada no Rio gueiredo. Amor Veríssimo: estu-
do sobre a adaptação de crônicas
Grande do Sul e nos hábitos dos gaúchos, para criar histórias pitorescas, de L. F. Veríssimo. Dissertação
nas quais descreve o relacionamento entre um psicanalista e seus pacien- (Mestrado em Letras) – Uni-
tes”60, fazendo também críticas a questões políticas e sociais em destaque versidade Presbiteriana Ma-
ckenzie, São Paulo, 2016, p.
naqueles anos. 24. Disponível em <http://tede.
Na crônica “Bagé”, Veríssimo descreve algumas características do mackenzie.br/jspui/bitstream/
tede/2979/5/Natalia%20de%20
“analista”: “Ele recebe os pacientes de bombacha e pé no chão” e chama Figueiredo%20Contave.pdf>.
seus clientes de “índio velho”. Já na crônica “Finitude”, ele esclarece: Acesso em 19 set. 2019.

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VERÍSSIMO, Luis Fernando.
61
Existem muitas histórias sobre o analista de Bagé, mas não sei se todas são verda-
O analista de Bagé. Porto Alegre:
L&PM, 1981, p. 48.
deiras. Seus métodos são certamente pouco ortodoxos, embora ele mesmo se descreva
como ‘freudiano barbaridade’. [...] Foi ele que desenvolveu a terapia do joelhaço.
62
Ver CONTAVE, Natalia de
Figueiredo, op. cit. Diz que quando recebe um paciente novo no seu consultório a primeira coisa que o
63
MACHADO, Rosana Pinhei- analista de Bagé faz é lhe dar um joelhaço. Em paciente homem, claro [...]. Depois do
ro; SALAINI, Cristian Jobi, joelhaço o paciente é levado, dobrado ao meio, para o divã coberto com um pelego.61
op. cit.
64
Idem. Os casos de O analista de Bagé foram também publicados como
65
L&PM 40 anos: uma história crônicas em alguns jornais, além de serem adaptados como histórias em
de ideias e aventuras. Página
eletrônica da L&PM Editores,
quadrinhos, também editadas pela LP&M. Foram ainda adaptados para o
op. cit. teatro.62 De certa forma, seu sucesso retomou as origens da L&PM, ligadas
ao humor crítico e cáustico de Rango. Sete anos depois do início de suas
atividades, a editora chegava, novamente pelo humor, ao êxito comercial
que lhe possibilitaria dar um salto na sua trajetória empresarial.
Outras coleções da editora nesse período foram Alma Beat, que
publicou autores como Jack Kerouac, Allen Ginsberg, William Burroughs
e Lawrence Ferlinghetti, Quadrinhos L&PM (que chegou a 120 títulos), a
Revista de Filosofia Política (em convênio com o Departamento de Filosofia
da UFRGS), além de obras de ficção, reportagens, biografias e filosofia.

Uma editora que soube se reinventar

Apesar dos êxitos editoriais, a empresa enfrentou graves problemas


financeiros nos anos 1990, em virtude da crise econômica do país e de
problemas administrativos: “A instabilidade econômica que gerava índi-
ces inflacionários de até 80% ao mês fez com que a empresa fizesse uso de
duplicatas, recurso financeiro que levou a um processo de endividamento
crescente. A editora não resistiu ao início do Plano Real [1994], momento
em que vivia de empréstimos e a renda obtida com a venda de livros era
usada para o pagamento de juros. Na época, a L&PM não conseguia mais
pagar seus fornecedores, nem os autores”.63
Nesse quadro, em 1997 a editora estava tecnicamente falida. Face
a essa situação, os proprietários viram-se diante da opção de vendê-la
ou realizar uma mudança nos seus rumos. Em 1998 surgiu concreta-
mente uma proposta de compra da L&PM, feita pela Editora Ediouro.
Nesse contesto, “Para sair da crise, os sócios estavam em dúvida entre
adotar um novo modelo de publicação (inspirado nos livros europeus de
bolso) ou vender a empresa. Nesse cenário, eles haviam contratado um
consultor inglês, Ken Baxter, para pensar em soluções para a empresa.
[...] o conselho mais marcante recebido por este profissional foi passado
da seguinte maneira: ‘Não a vendam; vocês ainda vão ficar ricos com esse
negócio de livro de bolso’”.64
Machado e Lima optaram por não vender a L&PM. Adotaram um
novo modelo de publicação, cuja base eram os livros de bolso (pocket-book).
Isso passou por um plano estratégico de pagamento de dívidas e pela rees-
truturação geral da empresa. Em 2002 teve início a coleção L&PM Pocket
(livros de bolso no formato 11 cm x 18 cm), que transformou o perfil da
editora e a colocou em um novo patamar no mercado brasileiro. A cole-
ção foi, de acordo com a editora, “construída com base em quatro pilares
fundamentais: textos integrais, alta qualidade editorial e industrial, preços
baixos e distribuição ‘total’, atingindo todo o Brasil”.65 Ela se caracteriza
pela ampla abrangência de temas e obras editadas, pelo preço mais baixo,

168 ArtCultura Uberlândia, v. 21, n. 39, p. 155-171, jul.-dez. 2019


pela ampla distribuição, inclusive em pontos de venda não tradicionais,

Artigos
e pelo bom acabamento dos livros (costurados e colados, e com papel de
qualidade).

O papel político da L&PM

A L&PM foi uma editora criada por jovens com o objetivo de par-
ticipação política e cultural, em uma situação de repressão e ditadura.
Sem ter sido inicialmente pensada como um empreendimento comercial
de fôlego, acabou descobrindo um nicho de atuação que fez com que al-
cançasse sucesso imediato e, por isso, deu continuidade a suas iniciativas
buscando aproveitar e ampliar o espaço aberto pelo seu primeiro título,
Rango. Foi a partir disso que surgiram planos mais amplos e audaciosos,
tanto politicamente como comercialmente.
Desde seu primeiro lançamento, a L&PM marcou seu perfil político
e de oposição à ditadura. Mas certamente foi com a Coleção Política, de
livros de parlamentares de oposição – com destaque para o gaúcho Paulo
Brossard –, que esse perfil se consolidou, ao mesmo tempo que o sucesso
desses livros fez repercutir a ação da editora nacionalmente e colaborou
decisivamente para o êxito comercial da L&PM. As obras de Paulo Bros-
sard formaram um conjunto de quatro livros, editados entre 1975 e 1978,
que tiveram ampla repercussão e ótima vendagem, mostrando a aceitação
que tinham junto a uma parcela do público leitor, e mostrando também
que foram um eficiente instrumento de reverberação da ação parlamentar
da oposição, levando mais longe os discursos proferidos no parlamento e
que, até a sua edição em livro, estavam disponíveis somente aos leitores
do Diário Oficial.
Pinheiro Machado recorda do clima político do momento em que
esses livros foram lançados: “Eu acho que a gente tinha medo, é óbvio que
tinha medo. Mas a gente fazia as coisas. [...] Mas sempre tinha um certo
receio. Eu tinha mais cuidado, porque tinha minha história familiar, meu
pai tinha sido preso várias vezes, meu irmão tinha sido preso”.66
Com a edição dessas obras, a L&PM ajudou a abrir um novo espaço
no campo editorial brasileiro para os livros políticos, que ganhavam cada
vez mais destaque. A imprensa registrou esse movimento editorial e o
sucesso de vendas que ele obteve, como podemos ver neste comentário:
“A política como tema capaz de levar aos primeiros lugares nas paradas
de sucessos literários, eis uma surpresa impossível de ser adivinhada para
este 13º ano [1977] do regime instalado em 1964”.67
Esse ressurgimento de livros sobre a conjuntura política, e ainda
por cima com um caráter francamente crítico ao governo ditatorial, mar-
cava uma mudança, ainda que limitada, no clima político do país, o que
também era registrado pela imprensa: “A ressurreição dos livros políticos
revela, em última análise, que a situação, por pior que esteja, está muito 66
MACHADO, Ivan Pinheiro,
longe da época em que não se falava nem se escrevia por puro e simples op. cit.
medo”.68 Para Pinheiro Machado, “Todos esses livros eram atos políticos, 67
GAJARDONI, Almyr. Tempo
e geraram eventos políticos, lançamentos, noite de autógrafos”.69 Assim, de política. Veja, São Paulo, 15
jun. 1977, p. 119.
constatamos que a atuação de algumas editoras de livros, entre as quais a
ABADE, João. As livrarias
68
L&PM, colaborou nessa alteração da situação política nacional, ao mesmo
como tribuna. Jornal do Brasil,
tempo em que refletia tais mudanças, ousando cada vez mais politicamente, Rio de Janeiro, 31 dez. 1977.
com novos lançamentos que denunciavam as arbitrariedades às quais os 69
MACHADO, Ivan Pinheiro,
brasileiros ainda estavam submetidos. op. cit.

ArtCultura Uberlândia, v. 21, n. 39, p. 155-171, jul.-dez. 2019 169


70
MACHADO, Ivan Pinheiro, As histórias pessoais e familiares de Ivan Pinheiro Machado e Paulo
op. cit.
Lima foram determinantes para a linha de oposição seguida pela editora
71
Idem.
em seus primeiros anos, tanto pela orientação política seguida como pelos
contatos que possibilitaram. Mas a ação política da L&PM não se restringia
à Coleção Política. Outras obras lançadas pela editora, além da revista Oi-
tenta, tinham um claro viés político oposicionista. Foi o caso, por exemplo,
dos livros de humor, que, como destacou Pinheiro Machado, traziam quase
sempre um conteúdo político de forma mais leve. Um autor representativo
dessa linha era Millôr Fernandes, de quem a L&PM editou, entre outras
obras, Liberdade, Liberdade (em parceria com Flávio Rangel, 1977), Flávia,
cabeça, troncos (1977) e Bons tempos hein?! (1979).
Outra linha em que a política se destacava foi a de livros sobre a re-
alidade brasileira sob a ditadura. Aí destacaram-se: 1964 visto e comentado
pela Casa Branca, de Marcos Sá Correa (1977); Opinião x censura: momentos
da luta de um jornal pela liberdade, de José Antônio Pinheiro Machado
(1978); 1964: golpe ou contragolpe?, de Hélio Silva (1978); Memórias: a verdade
de um revolucionário, de Olympio Mourão Filho (1978); 113 dias de angústia,
de Carlos Chagas (1979); Os expurgos na UFRGS (1979); Ensaios insólitos,
de Darcy Ribeiro (1979); Estado de sítio (roteiro do filme), de Costa Gavras
(1979); A invasão (ficção política, 1979), de José Antonio Severo.
Houve ainda uma série de lançamentos de obras de ou sobre pensado-
res e líderes de esquerda: Lênin no poder, com textos de Lênin (1979); Fidel: a
nova escalada dos não alinhados, organizado por José Montserrat Junior (1980);
Lukács, de Leandro Konder (1980); Gramsci, de Carlos Nelson Coutinho
(1981); Testamento de Sartre, com textos de Jean Paul Sartre (1980); Grandes
escritos anarquistas, organizado por George Woodcock (1981).
Machado julga, mais de 40 anos após o surgimento da editora, que
sua trajetória tem a marca da coerência:

Acho que a L&PM é a editora que sobrou daquela época, ou seja, que não mudou
o seu caráter e a sua personalidade. Nós somos uma evolução daquilo que a gente
começou lá na década de 1970. Acho que a própria linha editorial da editora sempre
foi coerente com um pensamento cultural democrático, de liberdade de valores hu-
manísticos, ela nunca se afastou disso. A gente nunca optou por questões comerciais
em detrimento deste nosso caráter, desta nossa ideia de trabalho, e de vida também.70

Sobre o papel político que a editora teve, ele avalia:

A gente fez o que achava que tinha que fazer. Ninguém estava ali querendo entrar
pra história. Era uma parte de uma geração que tentou se expressar de alguma forma
e protestar, enfim, incomodar. A gente incomodou muito, tenho muito orgulho disso.
Claro que teve outros, como o Ênio Silveira, o Fernando Gasparian, que foram caras
que estavam nos centros maiores, Rio e São Paulo, que eram muito mais visados do
que nós. Mas a gente também não estava pensando em ser mais do que ninguém.
A gente fez o que podia fazer, e o que achava que podia fazer. [...] A editora sempre
foi uma expressão do que a gente achava.71

Após a reformulação pela qual passou a editora no final dos anos


1990, a L&PM vem expandindo sua atuação nos últimos anos, tendo como
suporte principal a Coleção L&PM Pocket, da qual já foram lançados mais
de mil títulos e vendidos mais de 30 milhões de exemplares. Ela publica
também livros nos formatos tradicionais e, desde 2010, sem falar de ou-

170 ArtCultura Uberlândia, v. 21, n. 39, p. 155-171, jul.-dez. 2019


tros em formato eletrônico, havendo se associado à sido empresa DLD

Artigos
(Distribuidora de Livros Digitais), ao lado das editoras Record, Objetiva,
Sextante, Rocco e Planeta.72

Artigo recebido em 24 de maio de 2019. Aprovado em 17 de julho de 2019.

72
Em 2017 a DLD foi comprada
pela Bookwire Brasil, filial na-
cional da distribuidora de con-
teúdo digital alemã Bookwire.
Ver KOIKE, Beth. DLD, de livro
digital, é vendida para Bookwi-
re Brasil. Valor Econômico, São
Paulo, 1 out. 2017. Disponível
em <https://valor.globo.com/
empresas/noticia/2017/10/01/
dld-de-livro-digital-e-vendida-
-para-bookwire-brasil.ghtml>.
Acesso em 20 set. 2019.

ArtCultura Uberlândia, v. 21, n. 39, p. 155-171, jul.-dez. 2019 171


A questão racial e a identidade negra
na produção intelectual da Campanha
de Defesa do Folclore Brasileiro:
a Revista Brasileira de Folclore
e o Museu da Campanha
de Defesa do Folclore
Brasileiro (1961-1974)
O povo do santo. Raul Lody. 2006, capa do livro, fotografia (detalhe).

Elaine Cristina Ventura Ferreira


Mestre em Museologia e Patrimônio pela Universidade Federal do Estado do Rio de
Janeiro (UniRio). Doutoranda em História pela Universidade Federal Rural do Rio de
Janeiro (UFRRJ). cristi-nane@oi.com.br
A questão racial e a identidade negra na produção intelectual da
Campanha de Defesa do Folclore Brasileiro: a Revista Brasileira
de Folclore e o Museu da Campanha de Defesa do Folclore
Brasileiro (1961-1974)
The racial issue and black identity in the intellectual production of the Campaign for the Defense
of Brazilian Folklore: the Revista Brasileira de Folclore and the Campaign for the Defense of
Brazilian Folklore Museum (1961-1974)

Elaine Cristina Ventura Ferreira

resumo abstract
O objetivo deste artigo é traçar uma This article reflects about the racial is-
reflexão sobre a questão racial na sue in the intellectual production of the
produção intelectual da Campanha de Campaign for the Defense of Brazilian
Defesa do Folclore Brasileiro (CDFB) Folklore (CDFB, as per its Portuguese
e verificar até que ponto a identidade acronym) and explores to what extent the
negra em torno das religiões de matri- black identity built around African-derived
zes africanas foi ou não afirmada no religions was or not asserted in the national
discurso nacional. Para tanto, as fontes discourse. To this end, the sources analyzed
analisadas se basearam em alguns were based on a number of articles from
artigos contidos na Revista Brasileira the Revista Brasileira de Folclore and on
de Folclore e nos catálogos da exposição the exhibition hosted by the Campaign for
do Museu da Campanha de Defesa the Defense of Brazilian Folklore Museum
do Folclore Brasileiro (MCDFB). A (MCDFB as per its Portuguese acronym).
abordagem comparativa fundamentou The study methodology was a comparative
a metodologia do estudo. A pesquisa approach. The research identified that, du-
1
Ver GRYNSPAN, Mário. Ci- permitiu identificar que, no momento ring the period when the CDFB intellectual
ência, política e trajetórias sociais:
em que a produção intelectual da CDFB production built national identity through
uma sociologia histórica as
elites. Rio de Janeiro: Edito- operou a construção da identidade na- folklore, the racial conflicts involving those
ra Fundação Getúlio Vargas, cional pela via do folclore, os conflitos religions were concealed, and the black
1999. O conceito de elites é
uma categoria instrumental raciais que envolviam aquelas religiões identity was asserted in a different way.
que deve ser contextualizado foram ocultados, reafirmando de um
para ser compreendido. No
modo diferente a identidade negra.
campo das Ciências Sociais e
da História, ele é polivalente palavras-chave: Revista Brasileira de keywords: Revista Brasileira de Folclo-
e assume diferentes faces de Folclore; Museu da Campanha de De- re; Campaign for the Defense of Brazilian
acordo com o substantivo que
o qualifica. Isso se dá porque fesa do Folclore Brasileiro; identidade Folklore Museum; black identity.
o termo elites pode se referir a negra.
um segmento, seja político, eco-
nômico, militar, jurídico, entre


outros. Em sentido genérico, o
conceito se refere aos setores
que estão no topo da hierarquia
social, detendo privilégios
variados. O que chamamos de
elites brancas, neste trabalho,
A formação do campo de estudos sobre o folclore e o negro no Bra-
se liga aos setores dirigentes
que, ao elaborarem um projeto sil associou-se ao processo de construção da identidade nacional, o qual,
de nação, privilegiaram a si simultaneamente, definiu o “outro” na abordagem sobre a nacionalidade.
próprios como protagonistas
no discurso da identidade Esse “outro” eram os setores não pertencentes ao universo das elites bran-
nacional em detrimento dos cas1: os índios e os negros em particular. O antropólogo Vagner Gonçalves
segmentos negros, mas tam-
da Silva, por exemplo, assinalou que os estudos sobre o folclore no Brasil
bém dos indígenas, que ficaram
em posições subalternas. Esses surgiram, no século XIX, vinculados à literatura. Para o autor, na prática
grupos excluídos vieram a intelectual brasileira, desde os Oitocentos, o folclore havia se tornado um
ser denominados, por certos
historiadores, como o “outro” campo de estudos dos segmentos não pertencentes ao universo das elites,
no discurso da nação. os não “letrados”, e nesta classificação estavam inclusos negros e índios.

174 ArtCultura Uberlândia, v. 21, n. 39, p. 173-185, jul.-dez. 2019


Desde pelo menos o século XIX os intelectuais brasileiros utilizavam o termo “fol-

Artigos
clore” para designar as tradições culturais, ou seu estudo, produzidas pelas camadas
“não ilustradas” da população e tidas como espontâneas e preservadas em contos
lendas, mitos festas, etc.
[...] As manifestações culturais do negro, por preencherem essas definições, foram
particularmente alvo dos primeiros estudos de folclore no Brasil, como os de Sílvio
Romero, nos quais se ressaltou a contribuição dos africanos na literatura nacional.2

A historiadora Vanda Serafim, em sua dissertação de mestrado sobre


a trajetória intelectual do médico maranhense Raimundo Nina Rodrigues
(1862-1906), chamou a atenção para o pioneirismo do autor nos estudos
sobre as religiões de matrizes africanas e para os diferentes posicionamentos
disciplinares por ele assumidos.3 Para Serafim, Nina Rodrigues pode ser
visto, ao mesmo tempo, como médico, ogã, folclorista, etnólogo, antropó-
logo e católico. Intelectual consagrado e cientista, abordou as religiões de
matrizes africanas como legítimos objetos de estudo, sob a influência do
cientificismo e evolucionismo de seu tempo. De acordo com Vanda Serafim,
em razão dos diferentes lugares disciplinares que ocupou Nina Rodrigues,
seu pensamento não pode se restringido às teorias evolucionistas. Vem daí
sua proposta: “Mostraremos os diferentes sujeitos existentes no discurso
de Nina Rodrigues, enfatizando o caráter sociológico/antropológico de sua
obra, a fim de compreender que seu discurso sobre as religiões africanas 2
SILVA, Vagner Gonçalves da.
não deve ser pensado como mero reflexo das teorias sociais darwinistas Construção e legitimação de
e evolucionistas sociais, mas inserido num contexto amplo de conflitos um campo do saber acadêmico
(1900-1960). Revista USP, n. 55,
sócio-culturais”.4
São Paulo, set.-nov. 2002, p. 101.
Segundo o antropólogo Sérgio Ferretti, após trinta anos do falecimen- 3
O que chamamos hoje de
to de Nina Rodrigues e durante duas décadas, o alagoano Arthur Ramos religiões de matrizes africa-
(1903-1949), formado em medicina e conhecido etnólogo, folclorista, psicó- nas, com o passar dos anos,
foi ganhando novas signifi-
logo social e antropólogo, deu continuidade aos estudos sobre as religiões cações. Nos tempos de Nina
de matrizes africanas e o folclore. Para Ferretti, enquanto na época de Nina Rodrigues, eram designados
Rodrigues o pensamento cientificista fundamentou os estudos sobre as cultos fetichistas. Com Édison
Carneiro e Arthur Ramos, esses
práticas religiosas de matrizes africanas, com Arthur Ramos a teoria cul- cultos foram denominados
turalista, desenvolvida pela antropologia americana, orientou as pesquisas religiões negras. O estudo das
fontes nos fez perceber que, na
sobre essas culturas.5 Já para a antropóloga Mariza Corrêa, a retomada dos medida em que os estudos do
estudos sobre o negro se deu com a fundação, na Bahia, da Escola Nina folclore se consolidavam, os
Rodrigues, por Arthur Ramos em 1931, agregando diferentes intelectuais, cultos fetichistas passaram po-
pularmente a ser chamados de
entre os quais se destaca, por exemplo, Édison de Souza Carneiro (1912- macumba, catimbó, pagelança,
1972), negro e filho de pais baianos.6 A partir da instituição fundada por candomblé etc. Ao longo deste
artigo, optamos por nos referir
Ramos, pode-se perceber a emergência de um campo intelectual sobre o às práticas religiosas de origem
negro brasileiro. africana como “religiões de
Em sua pesquisa de mestrado, o historiador Júlio Cláudio da Silva matrizes africanas”.

salientou o labor intelectual que surgiu no cenário brasileiro na década de 4


SERAFIM, Vanda Fortuna.
O discurso de Nina Rodrigues
1930, época de intensos estudos sobre as culturas de matrizes africanas, acerca das religiões africanas na
o folclore e o negro. Para o autor, a formação desse campo intelectual Bahia do século XIX. Dissertação
ocorreu em torno de interpretações a respeito do papel das populações e (Mestrado em História) – UEM,
Maringá, 2010, p. 25.
das culturas de origem africana na sociedade brasileira, demonstrando a
5
Ver FERRETTI, Sérgio. Repen-
importância do tema. Assim, estavam em jogo, na formação dessa área de sando o sincretismo. São Paulo:
estudos, a consagração de uma intelectualidade que buscava para si um Edusp, 2013.
pioneirismo, por um lado, e, por outro, a identificação das contribuições 6
Ver CORRÊA, Mariza. O mis-
das culturas africanas no debate sobre a identidade nacional. E, nessa linha, tério dos orixás e das bonecas:
raça, gênero na Antropologia
Júlio da Silva assinala que, “ao buscar uma explicação para o retardo do brasileira. Etnográfica, v. 4, n.
‘estudo dos elementos africanos incorporados à nossa nacionalidade’, Ro- 2, Lisboa, 2000.

ArtCultura Uberlândia, v. 21, n. 39, p. 173-185, jul.-dez. 2019 175


7
SILVA, Júlio Cláudio da. quete–Pinto revela a incipiência da antropologia e da etnografia no Brasil,
O nascimento dos estudos das
culturas africanas, o movimento sem que com isso deixe de propor uma direção ou encaminhamento para o
negro no Brasil e o antirracismo problema – a construção da disciplina, ou em suas palavras, ‘um programa’
em Arthur Ramos (1934-1949).
de estudos afro-brasileiros”.7
Dissertação (Mestrado em
História) – UFF, Niterói, 2005. O ambiente intelectual da década de 1930 gerou diversas obras sobre
8
Ver SILVA, Vagner Gonçalves as culturas africanas, escritas sob o ângulo da religião e do folclore, assim
da, op. cit., p. 92. como eventos sobre o negro no Brasil. Em 1933, foi publicado Casa-grande
9
Cf. LIMA, Vivaldo da Costa e & senzala, livro que, como aponta o antropólogo Vagner Gonçalves da Silva,
OLIVEIRA, Waldir Freitas de consagrou Gilberto Freyre como intelectual renomado nos estudos sobre o
Oliveira. In: Cartas de Édison
Carneiro a Arthur Ramos. São negro no Brasil e ampliou a visibilidade da Escola do Recife e dos intelec-
Paulo: Corrupio, 1987. No tuais pernambucanos nos estudos sobre a cultura nacional.8 Na esteira de
começo dos anos 1930 vinham
despertando interesse as pes-
sua publicação, foi realizado, em 1934, o 1º Congresso Afro-Brasileiro em
quisas efetuadas pelo médico Recife, liderado pelo médico Ulisses Pernambucano, fundador da Escola de
psiquiatra Ulysses Pernam- Medicina do Recife e responsável pelo Departamento de Higiene Mental,
bucano, as quais procuravam
estabelecer relações válidas além de primo de Gilberto Freyre.9 Para o surgimento dos estudos sobre
entre os processos mentais e as culturas de matrizes africanas, dois campos de saberes foram decisivos:
a presença, em determinados
setores, da cultura popular de
a antropologia e o folclore. Ao discutir as contribuições do folclore para
procedência africana. Não obs- a antropologia, Luigi Lombardi Satriani destacou que as duas disciplinas
tante certas acusações feitas ao têm em comum o estudo da cultura, embora a disciplina do folclore tenha
referido congresso, como a de
haver estimulado a exploração sido criada sob a ótica burguesa e buscasse estabelecer critérios de dife-
política do negro brasileiro, renciação entre a cultura das elites e a do povo. Para o autor, nos estudos
ele foi capaz de incentivar os
estudos sobre esse tema e de
oficiais de folclore, os conflitos sociais foram silenciados, prevalecendo a
ressaltar a necessidade do seu abordagem do povo como subalterno.10 Seja como for, os trabalhos sobre
aprofundamento. as culturas de matrizes africanas no Brasil transitaram entre o folclore e a
10
Ver SATRIANI, Luigi M. antropologia e, portanto, não foi por acaso que diversos autores da década
Lombardi. Antropologia cultural
e análise da cultura subalterna.
de 1930 escreveram obras em contato com esses dois campos.
São Paulo: Hucitec, 1986, p. 53. Assim, livros emblemáticos sobre as religiões de matrizes africanas
11
Ver SILVA, Rita Gama. A cul- na perspectiva do folclore foram lançados, demarcando o posicionamento
tura popular no Museu de Folclore dos intelectuais nos debates a respeito das culturas de origem afro no Brasil.
Édison Carneiro. Rio de Janeiro:
Aeroplano, 2012.
Arthur Ramos publicou Etnologia religiosa e O folclore negro do Brasil em 1934
e 1935, respectivamente. Também em 1935, Édison Carneiro lançou Religiões
12
CARNEIRO, Édison. Aber-
tura. In: VÁRIOS AUTORES. negras e, em 1936, Negros bantos. Nesse mesmo ano, foi criada a Sociedade de
O negro no Brasil: trabalhos Etnografia e Folclore no interior do Departamento de Cultura do Município
apresentados ao 2º Congresso
Afro-Brasileiro (Bahia). Rio de
de São Paulo, sob a direção de Mário de Andrade.11 Em 1937, ocorreu, na
Janeiro: Civilização Brasileira, Bahia, o 2º Congresso Afro-Brasileiro. Na abertura, o organizador Édison
1937. Carneiro reafirmou que o propósito dos estudos ali apresentados era traçar
uma reflexão sobre a influência da cultura africana na formação do Brasil,
reforçando o lugar do negro nos estudos do folclore.

Este Congresso tem por fim estudar a influência do elemento africano no desenvol-
vimento do Brasil, sob o ponto de vista da etnografia, do folclore, da arte, da antro-
pologia, da história, da sociologia, do direito, da psicologia social, enfim, de todos
os problemas de relações de raça no país. Eminentemente científico, mas também
eminentemente popular, o Congresso não reúne apenas trabalhos de especialistas e
intelectuais do Brasil e do estrangeiro, mas também interessa a massa popular, aos
elementos ligados por tradições de cultura, por atavismo ou por quaisquer outras
razões, à própria vida artística, econômica, e religiosa do Negro no Brasil.12

O elemento central desses eventos e dessas obras era a inclusão das


culturas de origem africana no discurso da nacionalidade; daí a sua rele-
vância. Na mesma época em que essas iniciativas foram concretizadas, as
religiões de matrizes africanas eram alvos da perseguição estatal durante o

176 ArtCultura Uberlândia, v. 21, n. 39, p. 173-185, jul.-dez. 2019


governo de Getúlio Vargas. Os estudos sobre as culturas africanas marcaram

Artigos
exatamente essa descoberta do “outro” e a sua inscrição na nacionalidade.
Outra iniciativa importante no desenvolvimento nos estudos sobre
o negro e o folclore foi a criação da revista Cultura Política. Ao longo do
período de sua circulação (1941-1945), esse periódico, editado no Rio de
Janeiro por Almir de Andrade, sob as bênçãos do Departamento de Im-
prensa e Propaganda do Estado Novo, publicou 151 números com textos
sobre a evolução social e política do Brasil, além de propagar os feitos do
governo Vargas. O folclore e o negro faziam-se presentes, sobretudo, nas
seções com o subtítulo de “a evolução social”, cujos artigos apresentavam
o título de “o povo brasileiro através do folclore”. Objetivava-se, dessa
forma, por meio do folclore, retratar um “rosto” para o Brasil em uma
perspectiva evolucionista. O autor de grande parte desses artigos foi Basílio
de Magalhães, que nasceu em Barbacena em 1874 e se formou em Enge-
nharia pela Escola de Minas em Ouro Preto. Em seus textos, ao abordar
o folclore, inscrevia as religiões de matrizes africanas em um conjunto de
crenças pertencentes a uma coletividade, a brasileira, reforçando a relação
entre folclore e nacionalidade. Lia-se, então, na chamada do artigo, feita
pela editoria da revista:

Em sua crônica inaugural reproduziu o autor uma sinopse dos folcloristas argen-
tinos Rafael Jijena Sánches e Bruno Jacovella, sobre a qual tenciona basear as suas
explanações acerca do folclore brasileiro. Distingue aqueles escritores o folclore
espiritual do folclore etnográfico. Para a crônica de hoje escolheu o autor a letra “d”
da primeira divisão, ou seja, o folclore místico religioso do Brasil. Inicia ele assim,
o estudo das nossas crendices e superstições, da teologia e devoções do nosso povo:
devoções aos santos, misturados ao fetichismo ameríndio e africano.13

Em 1942, Gustavo Adolfo Luiz Guilherme Dodt da Cunha Barroso,


nascido em Fortaleza, em 1888 e formado em Direito, publicou, nos anais
do Museu Histórico Nacional, o artigo “O Museu Ergológico Brasilei-
ro”.14 Para antropóloga Regina Abreu, o projeto de um museu ergológico
revelava que a intelectualidade da época procurava, a partir do folclore,
criar um discurso sobre a nacionalidade e materializar essa narrativa em
uma instituição museológica. A autora observa que Gustavo Barroso teve
atuação importante na produção desse discurso, especialmente através
de suas ações no Museu Histórico Nacional, criado no Rio de Janeiro em
1922. Para Abreu, Gustavo Barroso foi um ator expressivo no processo de
invenção da memória nacional que, ao projetar a criação de um museu
ergológico, reconheceu o papel do folclore para alavancar um discurso
sobre a nacionalidade capaz de incluir atores não pertencentes ao mundo
das elites brancas.15
Em relação à emergência desse campo de reflexões sobre o folclore 13
MAGALHÃES, Basílio de. O
e as religiões de matrizes africanas, foi da maior relevância o papel desem- povo brasileiro através do fol-
penhado pelo Instituto Brasileiro de Educação Ciência e Cultura (Ibecc), clore. Cultura Política, n. 2, Rio
de Janeiro, 1941, p. 267.
órgão de representação da Unesco no Brasil pertencente ao Ministério das 14
BARROSO, Gustavo. O Mu-
Relações Exteriores e presidido por Levi Carneiro, com Renato Almeida seu Ergológico Brasileiro. Anais
à frente da sua secretaria geral. Este último merece menção especial por do Museu Histórico Nacional, v.
3, Rio de Janeiro.
sua decisiva atuação. Diplomata, advogado e folclorista de origem baiana,
nasceu em 1895, formou-se em Direito pela Faculdade de Ciências Jurídicas 15
Ver ABREU, Regina. Por um
Museu de Cultura Popular.
e Sociais e trabalhou como advogado e jornalista, tendo falecido em 1981. Ciências em Museus, v. 2, Rio de
Colaborou em diversos periódicos, como o Monitor Mercantil e América Janeiro, out. 1990, p. 61.

ArtCultura Uberlândia, v. 21, n. 39, p. 173-185, jul.-dez. 2019 177


16
A virada da década de 1930 Brasileira, do qual chegou a ser redator-chefe. Foi também diretor do Lycée
para 1940 deixou um solo fértil
para os estudos de folclore no Français (hoje Colégio Franco-Brasileiro) do Rio de Janeiro e chefe do ser-
Brasil. As raízes da CDFB se viço de documentação do Itamaraty, representando-o em missões oficiais
ligam à criação da Unesco. O
no exterior. Possuía relações de amizade com os intelectuais de São Paulo
preâmbulo da Convenção de
Londres que instituiu a Unesco, e participou de movimentos artísticos, como a Semana de Arte Moderna
em 16 de novembro de 1946, de 1922. Seu empenho em favor do folclore também pode ser visto na sua
determinou, em seu artigo 7, o
estabelecimento, em cada país, própria atuação diplomática em países como França e Portugal.
de organismos compostos por Paralelamente, as iniciativas da Unesco16 ampliaram o cenário in-
delegados governamentais e
telectual que reunia, desde os anos 30 e 40, uma grande diversidade de
por grupos interessados em
educação, ciência e cultura. autores que estudavam o folclore e o negro brasileiro, como se constata
Esses agentes deveriam co- no relato abaixo:
ordenar esforços nacionais,
associá-los à atividade daquela
organização e assessorar os res- Reuniu-se no Salão de Leitura da Biblioteca do Itamaraty a Comissão de Folclore do
pectivos governos e delegados
IBECC, convocada pelo senhor Renato Almeida, seu Secretário Geral, para serem
em conferências e congressos.
estabelecidos os programas de trabalho e tomadas várias outras providências, a fim
17
Diário Oficial, Rio de Janeiro,
27 nov. 1947. Disponível na de poder ser a mesma instalada em definitivo, pelo senhor Levi Carneiro, presidente
Comissão Nacional de Folclore. do IBECC, em sessão plenária deste. Estiveram presentes D. Heloísa Torres, D.
Biblioteca Amadeu Amaral do
Dulce Martins Lamas, Doutor Gustavo Barroso, Maestro Lourenzo Fernandez e
Centro Nacional de Folclore
e Cultura Popular, no Rio de Dr. Herbert Serpa, tendo secretariado a sessão o Cônsul Vasco Mariz. Escusaram-
Janeiro. -se o Maestro Villa-Lobos e o Dr. Arthur Ramos [que] não puderam comparecer.
18
“Abertos os trabalhos [...] Aberta a sessão, o Senhor Renato Almeida expôs as diretivas que a Comissão deve
ficou estabelecido em definitivo
seguir, levantando desde logo um arquivo com os nomes das sociedades folclóricas
o seguinte Plano de Atividades
da Comissão Nacional de Fol- e dos folcloristas brasileiros e estrangeiros, a fim de facilitar a permuta de dados,
clore: IV- Reedição de obras informações e material de estudos. Ajuntou que, na forma estabelecida pelas bases
clássicas brasileiras sobre o
folclore, devidamente anota- organizadas pela Diretoria do IBECC, [..] deveriam cooperar com os seus trabalhos
das, para o que a Comissão e, desde logo, indicava os nomes dos Srs. Basílio de Magalhães, Luís da Câmara
deverá entender-se com quem
Cascudo, Cecília Meirelles, Joaquim Ribeiro, Oneyda Alvarenga e Mariza Lira.17
de direito”. Jornal do Comércio
do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro,
10 jan. 1948. Instituto Brasileiro Depois de instalada a Comissão Nacional de Folclore, foi elaborado
de Educação Ciência e Cultura/
Biblioteca Amadeu Amaral do um plano de trabalho que teve como objetivo a cooperação entre intelectuais
Centro Nacional de Folclore brasileiros e estrangeiros por meio de atividades de intercâmbio. Desde
e Cultura Popular, Rio de Ja-
neiro.
os anos 30 e 40, alguns intelectuais da comissão vinham desenvolvendo
estudos sobre o folclore no Brasil e mantinham contatos pessoais, como, por
19
Édison Carneiro chegou a
se retratar diante de Luis da exemplo, Arthur Ramos, Édison Carneiro e Gilberto Freyre, participantes
Câmara Cascudo pelo fato de dos 1º e 2º congressos afro-brasileiros. Outros autores, como Basílio de Ma-
haver anteriormente esquecido
de classificá-lo como folclorista
galhães, Gustavo Barroso e Câmara Cascudo já possuíam reconhecimento
e, na sequência, ressaltou a público. Nas propostas de trabalho da comissão incluíam-se o estabeleci-
sua contribuição no campo da mento de relações entre as instituições federais, estaduais municipais de
poesia popular. CARNEIRO,
Édison. Evolução dos estudos pesquisas sobre o folclore e a reedição de obras clássicas brasileiras.18 Essas
de folclore no Brasil – adendo iniciativas demonstravam que os folcloristas brasileiros buscavam delinear
e retificação. Revista Brasileira
de Folclore (RBF), n. 3, Rio de
não só um campo intelectual e um posicionamento mais visível na cena
Janeiro, set.-dez. 1962, p. 48. cultural, mas igualmente uma rede de memórias, vista como um passo
No mesmo número, Nina Ro- importante para o reconhecimento desse segmento intelectual. Não por
drigues foi lembrado, no cen-
tenário de seu nascimento, por acaso, nos artigos publicados na Revista Brasileira de Folclore (RBF), Sílvio
suas produções intelectuais, Romero, Amadeu Amaral, e até mesmo Nina Rodrigues, eram homena-
situadas como pesquisas sobre
folclore, e por seu pioneirismo
geados como folcloristas e tidos pelos autores da Comissão Nacional de
no campo de estudo sobre as Folclore como referências significativas.19
religiões de matrizes africanas. Estabeleceu-se uma relação direta entre folclore e a construção da
identidade nacional e, nessa perspectiva, em 1958, sob o governo de Jus-
celino Kubitschek, a antiga Comissão Nacional de Folclore passou a ser
chamada de Campanha de Defesa do Folclore Brasileiro (CDFB), contando
com Renato Almeida como um dos seus mais ativos integrantes.

178 ArtCultura Uberlândia, v. 21, n. 39, p. 173-185, jul.-dez. 2019


Às dezessete horas e trinta minutos do dia vinte seis de agosto de mil novecentos e

Artigos
cinquenta e oito, no Salão nobre do Palácio da Educação, foi solenemente instalada,
pelo Senhor Ministro da Educação e Cultura, Professor Clóvis Salgado, a Campanha
de Defesa do Folclore Brasileiro, instituída pelo Decreto de número 43.178 de 05
de fevereiro de 1958 com a posse de membros do Conselho técnico do folclore órgão
dirigente daquela Campanha, designados por portarias ministeriais publicadas no
Diário Oficial de cinco de agosto de mil novecentos e cinquenta e oito, a saber: Mozart
de Araújo, membro e Diretor Executivo da Campanha, Renato Almeida, membro
nato, na qualidade de Secretário Geral da Comissão Nacional de Folclore, Manoel
Diegues Júnior, este ausente por doença, Édison Carneiro e Joaquim Ribeiro.20

O folclore se afirmou, assim, como um campo do saber e as religiões


de matrizes africanas, como um de seus objetos privilegiados de inves-
tigação. Nessas circunstâncias é pertinente, a nosso ver, a formulação
uma indagação que nos parece fundamental: como a identidade negra e
a questão racial foram encaradas, nas produções intelectuais da CDFB,
nesse momento em que o folclore passou a ser compreendido em uma
perspectiva mais ampla, ou seja, sob a égide da construção de uma iden-
tidade nacional? Para responder a esta questão dividimos o restante do
artigo em dois itens. No primeiro, faremos uma reflexão sobre a questão
racial e a identidade negra na RBF. No segundo, mediante uma abordagem
comparativa, identificaremos as semelhanças entre a abordagem da RBF e
do MCDFB e refletiremos sobre como a questão racial e a identidade negra
foram destacadas nesses espaços intelectuais.

A questão racial e a identidade negra na


Revista Brasileira de Folclore

Os anos 1961-1964 marcaram a gestão do folclorista Édison Carneiro,


na CDFB em substituição ao músico Mozart de Araújo, que ficou no cargo
entre 1958 e 1961. Aquele período gestão coincidiu com um momento de
grande instabilidade política, econômica e social, de alta inflacionária, da
renúncia de Jânio Quadro se do crescimento dos movimentos sociais. Para
o antropólogo Luis Rodolfo Vilhena, as ideias (de inclinação marxista,
diga-se de passagem) de Édison Carneiro foram atrativas tanto para o
governo Jânio Quadros quanto para o de João Goulart, uma vez que não
lhe faltavam planos e projetos para o desenvolvimento dos estudos sobre
o folclore brasileiro.21
Carneiro tomou posse no dia 21 de março de 1961, na sede da campa-
nha, na Rua Santa Luiza, no Rio de Janeiro, assumindo a condição de res-
ponsável pela RBF, periódico de publicação quadrimestral, anteriormente
dirigido por Renato Almeida, e que circulou de 1961 a 1976 em quarenta e
uma edições. Suas páginas registravam, principalmente, a produção inte- 20
Ata de Instalação da Campa-
lectual da CDFB, selecionando e legitimando o que seria objeto do folclore, nha de Defesa ao Folclore Bra-
portanto, da identidade nacional.22 Na RBF, os autores dialogavam entre sileiro. Disponível na Biblioteca
Amadeu Amaral, já cit.
si e conquistavam o status de folcloristas por meio de suas publicações ou
21
Cf. VILHENA, Luis Rodolfo.
das homenagens recebidas. Para Édison Carneiro, a revista foi um órgão Projeto e missão: o movimento fol-
de expressão, de grande valor simbólico, da CDFB e da cultura popular clórico brasileiro – 1947-1964. Rio
brasileira de uma maneira geral: de Janeiro: Editora Fundação
Getúlio Vargas, 1997.
22
Cf. CARNEIRO, Édison.
Todo movimento cultural tem seus próprios órgãos de expressão. Ao movimento fol- Dinâmica do folclore. São Paulo:
clórico brasileiro não faltaram publicações, de variada periodicidade – durante algum Martins Fontes, 2008.

ArtCultura Uberlândia, v. 21, n. 39, p. 173-185, jul.-dez. 2019 179


23
Idem, Apresentação. Revista tempo no Estado do Rio de Janeiro e em São Paulo, atualmente no Espírito Santo,
Brasileira de Folclore, n. 1, Rio de
Janeiro, set.-dez. 1961.
e Alagoas e em Santa Catarina. Faltava, porém uma revista de caráter nacional,
posição que esta corajosamente assume. Apenas as páginas dessa revista serão um
24
SILVA, Ana Teles da. Na
trincheira do folclore: intelectuais, espelho do nosso entendimento crescente da realidade da vida popular brasileira.23
cultura popular e formação da
brasilidade – 1961-1982. Tese
(Doutorado em Sociologia e
Em seu estudo sobre a RBF, a antropóloga Ana Teles da Silva
Antropologia) – UFRJ, Rio de examinou o lugar ocupado pelos estudos sobre o folclore, após o golpe
Janeiro, 2015, p. 94. civil-militar, e a construção da ideia de brasilidade. A autora tomou por
25
JÚNIOR, Manoel Diégues. A folcloristas um grupo de estudiosos, acreditando que, dessa maneira, seria
formação do folclore brasileiro:
origens e características cultu- possível identificar a heterogeneidade de seus perfis e os diferentes lugares
rais. Revista Brasileira de Folclore, institucionais de cada um no conjunto dessa produção intelectual. Para ela,
v. 2, n. 4, set.-out. 1962, p. 45.
ao negro foi reservado um espaço de destaque nos textos sobre o folclore,
fato que, no seu entender, se relacionava diretamente aos debates sobre a
temática da identidade nacional.

De modo geral, os autores publicados na RBF (1961-1976) e nos Cadernos de Fol-


clore (2º Série – 1975-1986) compreendiam as expressões populares de populações
negras e pardas pelo viés de suas origens africanas. É preciso contextualizar essa
abordagem retomando os debates sobre raça que tiveram início no Brasil no final do
século XIX, pois esses estudiosos estavam inseridos num debate mais amplo sobre
a influência africana na formação da cultura brasileira. Esta perspectiva ajudará
também a entender as escolhas desses estudiosos quanto aos autores que utilizavam
em seus artigos.24

A citação da autora nos ajuda a entender que, para além do conceito


de folclore, estava em debate a ideia de uma identidade mestiça como dis-
curso oficial da nação brasileira. Esta constatação nos conduz a perguntar
como a questão racial e o problema da identidade negra em torno das
religiões de matrizes africanas foram tratados no momento em que a ideia
de um país mestiço estava sendo legitimada pelo folclore. Tal pergunta é
socialmente relevante, pois estabelece uma relação direta com o tema da
identidade negra e a sua reafirmação diante da nacionalidade. Se, no século
XIX, as teorias raciais, como as defendias por Nina Rodrigues, viam a mes-
tiçagem como fracasso biológico e como degeneração, o folclore forneceu
novos contornos a esse discurso, o que pode ser verificado em artigo do
folclorista Manoel Diegues Júnior, publicado na RBF:

Três correntes étnicas, portanto, apresentando exteriormente, cada uma delas, re-
lativa unidade, mas jamais uniformização, portadoras, no fundo, de diversificadas
condições culturais – e, no caso, os mais variados níveis de cultura –, trouxeram
sua contribuição para a formação do Brasil; não só a sua formação populacional,
mas também a sua formação cultural. O folclore brasileiro é basicamente o produto
dessas três correntes, sem que se possa esconder o alicerce fundamental em que as-
sentou; e que foi sem dúvida, o elemento português. Natural que assim sucedesse,
por diversas razões. Em primeiro lugar, sendo a cultura mais adiantada, seria claro
que se tornasse a preponderante, ou quando menos, a mais importante sem prejuízo
da aceitação de valores culturais oriundos das outras correntes. [...] Surgiu, assim,
desse entrelaçamento, ao contacto dos três grupos que aqui se encontraram, num
momento histórico, os fundamentos do nosso folclore. E em consequência esse fol-
clore se tornou um produto mestiço, um resultado disso que poderíamos chamar de
mestiçamento cultural; ou, mais exatamente transculturação, que representa, no
fundo, toda a formação brasileira.25

180 ArtCultura Uberlândia, v. 21, n. 39, p. 173-185, jul.-dez. 2019


A mestiçagem, reconhecida como símbolo da nacionalidade pela

Artigos
via do folclore, apresentava-se como tema central na produção desses
intelectuais exatamente num contexto em que as teorias raciais do século
XIX eram vistas como ultrapassadas. O antropólogo Kabengele Munanga
analisou o discurso da identidade de um país mestiço, tendo como ponto
de partida o ocultamento dos conflitos raciais e os impactos sobre a rea-
firmação da identidade negra. No caso da identidade nacional brasileira,
tais impactos são sentidos, acima de tudo, pelos efeitos da ideia de um país
mestiço que põe a identidade negra na condição de subordinada perante
à identidade nacional, porque, por serem mestiças, as heranças africanas
acabam sendo suprimidas.

O mito de democracia racial, baseado na dupla mestiçagem biológica e cultural


entre as três raças originárias, tem uma penetração muito profunda na sociedade
brasileira: exalta a ideia de convivência harmoniosa entre os indivíduos de todas
as camadas sociais e grupos étnicos, permitindo às elites dominantes dissimular
as desigualdades e impedindo os membros das comunidades não brancas de terem
consciência dos sutis mecanismos de exclusão da qual são vítimas na sociedade.26

Em 1966, o folclorista Plínio de Almeida, noutro artigo inserido na


RBF, buscou lançar luzes sobre a presença das culturas e religiões de ma-
trizes africanas no folclore e defendeu a ideia de que os usos da tradição
nas práticas culturais dos escravos se davam predominantemente pela
perspectiva da adaptação, da aceitação e não do conflito ou da resistência.
E isso acabava por silenciar as negociações, as tensões, as apropriações e
ressignificações que marcam as experiências culturais da história da escravi-
dão. Assim, “enquanto faltavam barulhos e levantes formados por escravos,
sobravam, contudo, os batuques e os candomblés, que se espalhavam por
toda a cidade, a ponto de ser preciso a polícia proibir alguns. E, cercadas
as casas, nunca houve resistência por parte dos escravos”.27
Avançando no tempo, em 1968, em mais um texto publicado na RBF,
Renato Almeida discorreu sobre a contribuição do negro à formação do
folclore nacional e reforçou a ideia de que a mestiçagem proporcionou a
permanência dos africanos no Brasil. Como decorrência disso, ele reiterou
a tese da tendência natural do negro a se adaptar, sempre na condição de
subalterno, destituído de protagonismo e de capacidade de resistência:

O negro se integrou ao folclore brasileiro pelos folk-ways que carreou e pela adap-
tação com outros povos formadores da nacionalidade. Não foi uma contribuição
tranquila nem ordenada, como em certos aspectos a portuguesa, mas intensa e
confusa, na qual dada, sobretudo, a sua condição de escravo, teria de cingir-se
às variáveis condições do meio, onde era o elemento servil. E a penetração dos
26
MUNANGA, Kabengele. Re-
elementos afróides não veio apenas de sua presença, mas do seu próprio valor, pois discutindo a mestiçagem no Brasil:
a formação brasileira foi beneficiada pelo melhor da cultura negra na África, como identidade nacional versus
observa Gilberto Freyre. E isso, explica a importância e persistência do negro no identidade negra. Belo Hori-
zonte: Autêntica, 2004, p. 89.
Brasil. Em todas as manifestações do nosso folclore, quer na cultural espiritual,
ALMEIDA, Plínio. Pequenas
27
quer na material, a presença do negro é constante e, com a sua facilidade extrema histórias de Macu-lê-lê. Revista
de adaptar, apropriou-se de um sem-número de fatos e lhes deu o seu estilo, a tal Brasileira de Folclore, v. 6, n. 16,
ponto que os tornou coisa sua.28 set.-dez. 1966, p. 268.
28
ALMEIDA, Renato. O fol-
clore negro do Brasil. Revista
Já em 1970, a RBF, em sua seção de notícias, referiu-se ao decreto-lei Brasileira de Folclore, v. 8, n. 21,
1.100-A/63, que instituía a comemoração do “Dia da Mãe Preta”. A abor- maio-ago. 1968, p. 105.

ArtCultura Uberlândia, v. 21, n. 39, p. 173-185, jul.-dez. 2019 181


29
Noticiário. Revista Brasileira dagem do periódico privilegiou, mais uma vez, uma visão harmônica do
de Folclore, v. 10, n. 27, Rio de
Janeiro, maio-ago. 1970, p. contato entre o negro e as outras matrizes culturais, encobrindo os conflitos
151. Disponível na Biblioteca raciais, excluindo os preconceitos e exaltando a mestiçagem como discurso
Amadeu Amaral, já cit.
que, no final das contas, relega ao negro um lugar inferior na identidade
30
Ver FONTES, Virgínia Maria nacional.
e MENDONÇA, Sônia Regina
de. História do Brasil recente –
1964-1992. São Paulo: Ática, Considerando que o negro representa um dos elementos constitutivos da etnia
2006.
brasileira e considerando ainda que a formação cultural do país se fez isenta de
31
Ver QUADRAT, Samantha preconceitos explosivos e que, ao contrário, a interação social se processou, entre
Vaz e ROLLEMBERG, Denise
(orgs.). A construção social dos nós, de forma equilibrada e contínua, possibilitando a fusão dos elementos primários
regimes autoritários: legitimando básicos, a Campanha de Defesa do Folclore Brasileiro é de parecer que a institui-
consenso e gerando consenti-
ção do Dia da Mãe Preta, conforme o projeto de lei 1.100- A/63, se traduz numa
mento no século XX – Brasil e
América Latina. Rio de Janeiro: homenagem do povo brasileiro àquela mulher que nutriu sucessivas gerações de
Civilização Brasileira, 2010. brasileiros, alguns dos mais ilustres homens da nossa pátria, nas letras, nas artes,
32
Ver SILVA, Jeferson Santos nas atividades liberais em geral, no sacerdócio, nas armas, enfim, em todos os mo-
da. O que restou é folclore: o
negro na historiografia alagoana.
mentos, inclusive, no labor cotidiano, em que o Brasil se fez presente na História.29
Tese (Doutorado em Ciências
Sociais) – PUC-SP, São Paulo, Retomar o contexto das publicações da RBF se mostra, portanto, um
2014, p. 10.
exercício importante, sobretudo pelo fato de que estávamos diante de um
processo de afirmação de um discurso que, pela via do folclore, exaltava
a mestiçagem quando o país vivia uma experiência política ditatorial.
Como lembram as historiadoras Virgínia Fontes e Sônia Mendonça, o Es-
tado brasileiro, sob a ditadura vigente, propagou uma ideologia de base
organicista que teve como propósito difundir, por intermédio de políticas
culturais específicas, a ideia de estabilidade e harmonia social por todo o
chamado bloco ocidental.30 Sobre este aspecto, Samantha Quadrat e Deni-
se Rollemberg questionam como, nesse mesmo cenário, consensos foram
criados e interesses diversos se acomodaram através de mecanismos que
se traduziam em ganhos materiais e/ou simbólicos para distintos grupos
sociais.31 No momento em que a RBF se consolidava como veículo de
produção do conhecimento sobre o folclore – sendo este entendido como
parte da identidade nacional – , a questão racial foi tratada sob o ponto
de vista da harmonia e a identidade negra foi reafirmada de uma maneira
diferente em torno do discurso nacional. Prosseguiremos a investigação,
no próximo item, tentando perceber as formas pelas quais, mediante as
abordagens sobre as religiões de matrizes africanas, a problemática racial
e a identidade negra foram enfocadas no MCDFB. Além disso, e como
complementarmente, discutiremos como o negro foi estudado na história
social dos museus brasileiros, quando essas instituições passaram a exercer
papéis indispensáveis na construção da identidade nacional.

A questão racial e a identidade negra em torno das religiões de matrizes


africanas no Museu da Campanha de Defesa do Folclore Brasileiro

Para o antropólogo Jeferson Santos da Silva, coube aos estudiosos do


folclore, na virada do século XIX para o XX, se debruçar sobre os estudos
sobre o negro.32 Por isso, é pertinente nos interrogarmos acerca do seu
lugar nos museus brasileiros no momento em que essas instituições eram
acionadas para a construção da identidade nacional. É possível pensar que
tal lugar poderia estar nos museus de folclore? Segundo a historiadora
Nila Barbosa Rodrigues, na perspectiva museológica do antigo Serviço
do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (SPHAN), o projeto de nação

182 ArtCultura Uberlândia, v. 21, n. 39, p. 173-185, jul.-dez. 2019


elaborado em torno do patrimônio nacional demarcava fronteiras sociais e

Artigos
raciais e, portanto, negros e índios não deveriam ser apresentados nessas
instituições destinadas às elites brancas e aos seus grandes feitos.33 Daí a
conveniência de refletir sobre o próprio conceito de museu, levando em
consideração a sua relação com as estruturas de poder, pois, historicamen-
te, ele teve papel ativo nas discussões sobre a identidade nacional. Como
salienta Michel Foucault, toda prática discursiva é uma forma de poder.
Desse modo, o discurso, além de se associar ao poder, legitima uma vontade
de verdade, o que significa dizer que a essência do discurso é o poder.34
Sob tal ótica, é indispensável traçarmos uma reflexão sobre a perspectiva
de nação que se difundiu nos museus de história e nos museus de folclore
na medida em que, enquanto os primeiros elegeram como protagonistas
as elites brancas (os grandes homens consagrados uma história factual), o
“povo” teve o seu espaço nos segundos. Pudera! Essas instituições muse-
ológicas foram criadas como elementos de construção da identidade e da
memória nacional, revelando, a existência de “dois Brasis”.
Em seus estudos sobre o Museu Histórico Nacional e o Museu Impe-
rial, criados, respectivamente, em 1922 e em 1940, a historiadora e socióloga
Myrian Sepúlveda dos Santos privilegiou uma abordagem conceitual da
noção de museu no Brasil, buscando compreendê-lo, ao longo do tempo,
em sua associação com o poder institucionalizado e em sua capacidade
de conviver com os padrões dominantes do mundo atual. Tomando a
relação entre história e memória como referencial teórico fundamental, a
autora considerou o museu como espaço de reafirmação de um tempo e
de uma memória. Sob esse aspecto, enquanto a narrativa do Museu His-
tórico Nacional foi construída para reafirmar os valores do passado e, por
meio dos objetos expostos, legitimar uma história magistra vitae vinculada
aos grandes homens da nação e aos feitos das elites, o Museu Imperial foi
um instrumento de evocação da memória da monarquia e de D. Pedro II,
cultivando-se a sua imagem como a de um homem patriótico, amigo da
nação brasileira e fiel aos preceitos da família.35
Sem perder de vista as observações acima, retomemos nosso tema
mais específico. A partir de 1964, em substituição a Édison Carneiro, Renato
Almeida passou a dirigir a CDFB e sua gestão marcou a criação do MCDFB,
cuja concepção era prendia à ideia de construção da nação: 33
Cf. BARBOSA, Nila Ro-
drigues. Museus e etnicidade
– o negro no pensamento museal:
Há duas faces predominantes no processo de uma cultura nacional. Uma pátria, SPHAN, Museu da Inconfidên-
qualquer pátria, não será, nunca, só um nome, uma bandeira, uma frase, um país. cia, Museu do Ouro Minas Ge-
rais. Dissertação (Mestrado em
Uma Pátria só existirá, de fato, no limite em que houver uma continuidade de Estudos Étnicos e Africanos) – a
valores e de ideias, marcando, historicamente, a trajetória de um grupo humano UFBA, Salvador, 2012.
sobre a face da terra. Os museus integram justamente a infraestrutura a que me 34
Ver FOUCAULT, Michael.
referi, usada para retenção da experiência nacional. Os museus fazem, por assim A ordem do discurso. São Paulo:
Loyola, 1996.
dizer, a permanente captura das realidades importantes da vida nacional, através
do armazenamento de imagens e coisas e promovem a verdade nacional junto às
35
Ver SANTOS, Myrian Se-
púlveda dos. História, tempo e
gerações que vão chegando. Sem museu não se estuda folclore. Sem museus, as memória: um estudo sobre mu-
nações acabariam por perder o conhecimento da própria identidade.36 seus. Dissertação (Mestrado
em Sociologia) – Iuperj, Rio de
Janeiro, 1989.
Conforme noticiado pela RBF, o MCDFB foi inaugurado em uma 36
Projetos prioritários à orga-
data emblemática: 22 de agosto de 1968, Dia do Folclore: nização do Museu de Folclore
da Campanha de Defesa do
Folclore Brasileiro. S./d. Dis-
Realizou-se, no Parque do Palácio do Catete, onde funciona o Museu da República, ponível na Biblioteca Amadeu
a inauguração do Museu de Folclore do Rio de Janeiro, resultante de um Convênio Amaral, já cit.

ArtCultura Uberlândia, v. 21, n. 39, p. 173-185, jul.-dez. 2019 183


37
Noticiário. Revista Brasileira entre o Museu Histórico Nacional e a Campanha de Defesa do Folclore Brasileiro,
de Folclore, v. 8, n. 21, maio-ago.
1968, p. 173.
pelo qual aquele incumbe à administração do novo órgão e a Campanha de Defesa
do Folclore Brasileiro a sua organização técnico-folclórica. [...] A seguir os presentes
38
ALMEIDA, Renato. Discur-
so de abertura do Museu de visitaram os vários mostruários do Museu, com as suas coleções dispostas, conforme
Folclore, 22 de agosto de 1968. o gênero: instrumentos musicais, cerâmica figurativa e utilitária, objetos de pano
Disponível na Biblioteca Ama-
deu Amaral, já cit.
e madeira, cestaria e esculturas etc., dentro do critério regional. Foi servida aos
convidados uma taça de Champanha.37
39
CARVALHO, Wilma Thereza
Rodrigues de. Cultos afro-
-brasileiros. Pronunciamento O MCDFB e a RBF objetivaram, em uma perspectiva mais abrangente,
em 8 dez. 1972 no Museu de
Folclore, Rio de Janeiro. Dis- representar a identidade nacional pela via do folclore. A abordagem com-
ponível na Biblioteca Amadeu parativa permite identificar semelhanças entre as narrativas da RBF e do
Amaral, já cit.
MCDFB a respeito da questão racial e da identidade negra. Nessa visão,
40
LODY, Raul. O povo do santo: vale ressaltar a concepção de folclore de Renato Almeida, que assumiu a
religião, história e cultura dos
orixás, voduns, inquices e cabo- direção do MCDFB desde sua criação, em 1968, até 1974: “o folclore é en-
clos. São Paulo: Martins Fontes, tendido como elemento que proporciona o intercruzamento cultural. [...]
2006, p. XV.
A cultura em suas diferentes faces é entendida como elemento regulador
da sociedade devido ao seu aspecto harmônico”.38
Se o folclore é concebido como um elemento cultural harmônico,
como a questão racial e a identidade negra em torno das religiões de
matrizes africanas foram tratadas nessa instituição? Em dezembro de
1972, o MCDFB inaugurou sua exposição “Cultos afro-brasileiros”, cuja
narrativa sobre as religiões de matrizes africanas incorporou, na linha do
pensamento de Renato Almeida, o discurso que harmonizava o folclore e
diluía os conflitos raciais.

Escolhemos o dia 08 de dezembro para inaugurar a presente exposição porque é


uma das datas mais importantes dentro dos rituais dos cultos afro-brasileiros. É o
dia dedicado à “Oxum”, Orixá dos rios e das fontes, deusa do rio Oxum, na África,
filha de Yemanjá, casada com seu irmão Xangô. Outro motivo para escolhermos
como tema de nossa exposição os cultos afro-brasileiros é a grande aceitação e difusão
dos mesmos, em todos os estados brasileiros, e sua aceitação em todas as camadas
sociais, sem distinção de raça, nível cultural ou religioso. As peças expostas são: a
indumentária de “Omulú” confeccionada em palha da Costa; o “xarará”, bastão do
deus Omulú; o adjá, sineta em metal para chamar o santo. As peças expostas fazem
parte da coleção particular do Professor Raul Giovanni da Mota Lody e do acervo
do Museu de Folclore Édison Carneiro.39

Na concepção de folclore do MCDFB, a questão racial e a identidade


negra propagada em torno das religiões de matrizes africanas ocultavam
os conflitos entre as raças. E, dessa maneira, no momento em que o museu,
pela via do folclore, foi acionado para construção da identidade nacional,
a identidade negra foi reafirmada como parte integrante da nacionalidade,
porém “higienizada” e domesticada. De acordo com o antropólogo Raul
Giovanni da Mota Lody, “quando se convertem símbolos de ‘fronteiras’
étnicas em símbolos que afirmam os limites da nacionalidade, converte-se
o que era originalmente perigoso em algo ‘limpo’, ‘seguro’ e ‘domesticado’.
Agora que o candomblé e o samba são considerados chiques e respeitáveis,
perderam o poder que antes possuíam”.40
Embora não seja nossa proposta estender a análise, frise-se que essa
interpretação se manteve na história social do MCDFB até a década de
oitenta, como se verificou, por exemplo, na gestão do antigo assistente de
Édison Carneiro, o professor negro e folclorista Bráulio do Nascimento, que

184 ArtCultura Uberlândia, v. 21, n. 39, p. 173-185, jul.-dez. 2019


conduziu a instituição por seis anos, de 1975 a 1981. Ao assumir a direção

Artigos
do museu, Nascimento imprimiu continuidade às diretrizes estabelecidas
por seus antecessores, ou seja, por Édison Carneiro e Renato Almeida.41 Isso
significou que as religiões de matrizes africanas mantiveram-se inseridas em
uma perspectiva estabilizadora do folclore nacional, reforçando o discurso
da harmonia racial, o que pode ser percebido pela leitura do catálogo da
exposição permanente de 1980, segundo o próprio Bráulio do Nascimento:

A importância do folclore, entre os componentes fundamentais da fisionomia cultural


de um país, vem sendo cada vez mais destacada como elemento de equilíbrio entre
os diversos fatores que se entrecruzam no processo cultural. A cultura popular pode
intervir como elemento moderador no processo cultural, pois dispõe de instrumentos
próprios para o equilíbrio necessário ao seu harmônico desenvolvimento.42

Considerando o contexto social e político em que discurso da harmo-


nia racial foi legitimado, Amilcar Araujo Pereira refletiu sobre as relações
entre as raças e a presença do movimento negro no Brasil, inserindo-as
em um amplo panorama tanto de caráter histórico quanto de natureza
social, destacando, em especial, os negros em situação diaspórica. O autor
relembrou o longo percurso percorrido pelo movimento negro brasileiro
em busca de projeção nacional e do reconhecimento do racismo como um
aspecto estruturante da sociedade brasileira, sobretudo por meio do comba-
te ao mito da democracia racial na década de 1970. Pereira ressaltou ainda
a formação complexa do movimento negro contemporâneo, que engloba
uma série de entidades, organizações e indivíduos em luta contra todas as
formas de racismo e pela melhoria das condições de vida para os negros
em geral.43 Em um contexto de experiência autoritária, o campo de estudos
do folclore e, em particular, a produção intelectual da CDFB legitimaram
a identidade de um país mestiço e silenciaram os conflitos raciais, sendo
estas exatamente, segundo Amilcar Araújo Pereira, as questões que os in-
telectuais do movimento negro, na mesma época, procuraram combater.
Assim, no momento em que o discurso da mestiçagem e da harmonia racial
ecoava nas produções intelectuais aqui analisadas, o Estado ditatorial bus-
cava fortalecer-se politicamente recorrendo, entre outras coisas, à ideia de
estabilidade social e de uma identidade que pairava sobre determinados
embates que marcaram nossa história. E é aqui que situamos, portanto,
as contribuições do campo de estudos do folclore, ao se afinarem com um
projeto político-social mais amplo que, em nome da institucionalização do
discurso de um país mestiço, promoveu a marginalização da identidade
negra na própria linguagem museológica.
Ver NASCIMENTO, Bráulio.
41

Discurso ao assumir o cargo


Artigo recebido em 7 de abril de 2019. Aprovado em 16 de outubro de 2019. de diretor executivo da Cam-
panha de Defesa ao Folclore
Brasileiro. Rio de Janeiro, 1975.
Disponível na Biblioteca Ama-
deu Amaral, já cit.
42
Ver idem, Introdução. Catálogo
da Exposição Permanente de 1980,
p. 9. Disponível na Biblioteca
Amadeu Amaral, já cit.
43
Ver PEREIRA, Amilcar Arau-
jo. O mundo negro: relações
raciais e a constituição do mo-
vimento negro no Brasil. Rio
de Janeiro: Pallas/Faperj, 2013.

ArtCultura Uberlândia, v. 21, n. 39, p. 173-185, jul.-dez. 2019 185


Desenho rococó nos manuscritos
do Brasil do século XVIII:
caminhos e expressões

Mapa do caminho entre o passo de Turitama e Santo Antonio.


Rio Grande do Sul. Sem autoria. 1753, fotografia (detalhe).

Figura 2. Carta geográfica.

Antonio Wilson Silva de Souza


Doutor em História da Arte pela Universidade do Porto, de Portugal. Professor de
História da Arte e de Desenho Artístico em vários cursos de graduação e de Teoria e
História da Arte no Programa de Pós-graduação em Desenho, Cultura e Interatividade
da Universidade Estadual de Feira de Santana (UEFS). antoniowilsonsilv@gmail.com
Desenho rococó nos manuscritos do Brasil do século XVIII:
caminhos e expressões
Rococo drawing in eighteenth-century brazilian manuscripts: routes and expressions

Antonio Wilson Silva de Souza

resumo abstract
Este artigo aborda origens, caracterís- The present article considers the origins,
ticas e difusão do rococó, destacando, characteristics and diffusion of the rococo,
de modo especial, a ornamentação dos highlighting, especially, ornamentation
manuscritos do Brasil no século XVIII. in eighteenth-century Brazilian manus-
Apesar dos estudos realizados sobre o cripts. Despite the existence of stylistic
estilo, as peculiaridades do desenvolvi- studies, the peculiarities of rococo deve-
mento do rococó merecem uma análise lopment deserve analysis that is always
sempre atualizada e pormenorizada, current and detailed, above all in order to
sobretudo para se entender melhor a understand better the influence that Fren-
influência que a gravura francesa exer- chen graving exercised over the creation,
ceu sobre a criação, o desenvolvimento development and diffusion of the style in
e a propagação do estilo na Europa e Europe and Brazil. An emphasis on graphic
no Brasil. A ênfase na ornamentação ornamentation is the basis of the analysis
gráfica fundamenta o exame das suas concerning the particularities of the style,
particularidades, ao possibilitar maior making possible a greater understanding of
entendimento sobre o significado que the significance which the design assumes
o desenho assume como manifestação as an authentic manifestation of art and
autêntica da arte, o que permite afirmar allowing it to be established that the roco-
que o rococó se tornou uma singular re- co became a singular reality in Brazilian
alidade na expressão da arte brasileira. artistic expression.
palavras-chave: ornato; rococó; arte keywords: ornate; rococo; Brazilian art.
brasileira.


O conhecimento sobre o estilo rococó é devedor de um considerável
número de obras de arte, estudos e pesquisas, hoje integrantes do acervo
de bibliotecas, arquivos e museus com reconhecido mérito internacional.
De crédito inconteste, essas instituições reservam largo espaço à produção
dimanada do mundo acadêmico-científico, cujos autores (pesquisadores
na sua maioria) revelam um sublinhado desejo de descortinar ainda mais
as particularidades do também alcunhado estilo rocaille.
Nascido imediatamente após o estilo barroco, de cujo húmus extraiu,
em boa parte, os nutrientes de seu pronunciado gosto decorativo, o rococó
se viu entendido como extensão daquele estilo, permanecendo, deste modo,
e por muito tempo, a ele vinculado como subordinado e dependente. E
essa visão foi mantida e propalada por um número expressivo de histo-
riadores da arte.
O clarão das luzes do rococó se fez perceber pela primeira vez em

188 ArtCultura Uberlândia, v. 21, n. 39, p. 187-203, jul.-dez. 2019


Paris, no século XVIII.1 Nasceu com o predominante objetivo de revestir

Artigos
os espaços habitados e frequentados pela burguesia e nobreza francesas
e, aos poucos, se tornou um engenho artístico de fino trato ornamental.
Contudo, na nascente, recebeu, de grande parte dos seus contemporâneos,
um olhar depreciativo, visto que estavam habituados com o barroco que,
apesar das inovações estilísticas propostas, acolhia as linhas gerais do clás-
sico. Foi chamado, segundo essa visão detratora, de “gosto pitoresco” ou
“gosto moderno”.2 No entanto, o que designavam por esses termos nada
mais eram que composições exibidoras de figuras bizarras. Tais figuras,
cuja inclusão e predominância soavam descabidas, eram conhecidas na arte
europeia, como bem podem provar os grotescos do renascentista Rafael
Sanzio e as torsas figurações em água-forte de Jacques Callot, seiscentista
francês. A observável recorrência de figuras estranhas – à época já conheci-
das –, acompanhada de metódica assimetria e do abuso de formas curvas,
dá configuração ao interesse pelo exótico, proporcionando, desta sorte, o
surgimento do então chamado “gosto moderno”. Os artistas do estilo rococó
abandonaram o peso decorativo do barroco, para apresentar obras comum
fulgor ornamental mais delicado, no entanto, assumiram a liberdade de
expressões fantasistas. Mesmo em meio à visão desqualificativa de que foi
objeto, o rococó se disseminou pela Europa, alcançando destacada posição
no universo das artes decorativas.
Com identidade definida, de clara verve ornamental, o rococó assi-
nalou várias expressões da arte setecentista europeia, de modo particular 1
Para datação inicial do esti-
lo rococó, seguimos referên-
a arquitetura (fachadas e interiores), o mobiliário, a tapeçaria e a joalheria. cias da maior conhecedora
Difundiu-se também na América, chegando ao Brasil, onde deu mostras da história da ornamentação
de existência desde o século XVIII, vindo, no entanto, a se consolidar, en- rococó no mundo luso-brasi-
leiro: MANDROUX-FRANÇA,
quanto estilo, em meados do século XIX. Marie-Thérèse. Information
Na arte brasileira, o rococó trilhou uma senda equiparável à dos seus artistique et ‘mass media’ au
XVIIIèmesiècle: la diffusion de
ascendentes europeus. Por essa razão, há frequentes e significativas pesqui- l’ornement grave rococó au
sas sobre o estilo, de modo especial, na área da arquitetura e do mobiliário. Portugal. Bracara Augusta, v. 27,
No entanto, não é habitual encontrar referências ao rocaille no Brasil, no n. 64, Braga, 1973.

domínio da ornamentação gráfica, mais especificamente, na decoração 2


Essas denominações, que
assumimos neste artigo, são
de manuscritos. Assim, a realização de um recente estudo sistemático3 referências da pesquisado-
direcionado a esse tema tornou possível indagar e buscar substratos para ra MANDROUX-FRANÇA,
atualizar a análise da produção rocaille. Esse espaço aberto instiga a novo Marie-Thérèse, op. cit. p. 4.

olhar sobre abrangência e peculiaridades do rococó. 3


Trata-se da investigação cien-
tífica empreendida no estágio
pós-doutoral (out. 2015-set.
O ornato: paradigma do estilo rocaille 2016), na Universidade Paris
I – Panthéon Sorbonne, com a
colaboração do Professor Dou-
Um estudo que tematize o estilo rococó requer uma prévia reflexão tor Jacinto Lageira. O projeto de
sobre a concepção do seu elemento paradigmático: o ornato. Assunto pesquisa intitulado “O rococó
e a linguagem do desenho no
controverso, o conceito de ornato nunca assistiu a uma convergência de século XVIII: influências da arte
entendimento na história da arte. Ponto de discordância, foi, por vezes, francesa na ornamentação de
compreendido fora do seu contexto e, em decorrência, uma leitura desen- manuscritos luso-brasileiros”,
obteve apoio financeiro da Ca-
raizada o reduziu a acessório. Nessa direção, sublevaram-se teorias de pes. Neste texto se lança mão de
cunho tradicionalista que “como verdadeiras fórmulas antiornamentais pesquisas realizadas durante o
pós-doutoramento.
conferiram ao ornamento um caráter complementar, como se, em sua reti-
rada, não viesse a sofrer nenhum tipo de prejuízo senão estético e formal”.4
4
PEDRONI, Fabiana. Por uma
definição do ornamento. Atas
A ênfase no ornato como mero aparato a auxiliar na busca de datação do IX Encontro de História da
e procedência de obras de arte tornou-o um simples recurso estilístico, o Arte: circulação e trânsito de
imagens e ideias na História
que reforçou sua dependência como expressão artística. Em contraposição a da Arte. Campinas, Unicamp/
essa visão, o ornato é aqui assumido como tradutor da capacidade humana IFCH/CHAA, 2013, p. 80.

ArtCultura Uberlândia, v. 21, n. 39, p. 187-203, jul.-dez. 2019 189


5
BONNE, Jean-Claude. De de criar e abstrair, de gerar e transformar, de individualizar e universalizar.
l’ornement à l’ornementalité:
la mosaïque absidiale de San Concebida desse modo, a ornamentação ganha foro de expressão artística
Clement de Rome. Actes du em si mesma. Reconhecido ao ornamento seu grau de autêntica obra de
Colloque International: le rôle
arte, “sua função primeira é de celebração, qualquer que seja, aliás, a capa-
de l’ornement dans la peinture
murale du Moyen Âge. Poitiers, cidade dos motivos ornamentais de cumprir a outras funções (simbólicas,
Université de Poitiers, 1997, mágicas, rituais ...)”.5
p. 103: “sa première fonction
est de celébration, quelle que Um outro aporte vem também reafirmar a concepção de ornato
soit par ailleurs la capacité des como obra de arte em si. Trata-se da etimologia da palavra ‘ornato’ que se
motifs ornementaux à remplir
origina na língua latina ‘ordo’6, com significado de ‘ordem’ e fundamenta
d’autres fonctions (symboli-
ques, magiques, rituelles...)” o conceito de beleza na Antiguidade Clássica. Com base na genealogia
(tradução nossa). linguística, a palavra ornato traduz o belo por ser gerado com o propósito
6
Ver REY, Alain. Dictionnaire de transcrever a beleza presente na natureza. Ademais, os latinos, em cujas
de la langue française. Paris: Le
Robert, 2000. Considerando a
origens terminológicas aqui buscamos fundamento, beberam de ainda
fonte linguística das línguas mais longínqua fonte, que dava testemunho do harmonioso entrecruzar
portuguesa e a francesa, a das concepções de ordem e de beleza. A tríade fundamental da filosofia
base etimológica do vocábulo
“ornato” é a mesma. Assim, grega assim o entendia. Sócrates, Platão e Aristóteles reconheciam que se
igual concepção de ornato alcança a beleza através da imitação da Natureza. E nesse aspecto, im-
permeia o repertório lusófono
e o francófono. À vista disso, o
porta dimensionar o peso da palavra “imitar” na cultura da Grécia antiga
recurso a esse léxico da língua que, em relação à criação de uma obra de arte, significava muito mais
francesa reforça nosso enten- que transpor elementos para uma nova composição. A imitação traduzia
dimento. Ademais, é bom ter
presente que o ‘ornato rococó’, o respeito pela proporção, pelo equilíbrio, pela harmonia, dentre outros
objeto deste artigo, teve origem fatores observáveis da natureza. A eleição e agregação de componentes
circunscrita à cultura francesa,
tornando, assim, pertinente
da natureza direcionava a elaboração de uma nova ordem. Nesse sentido,
esse apoio lexical de fundamen- no que se refere ao estilo rococó, o ornato caracteriza essa habilidade de
to francofônico. ordenar, ou reordenar, elementos da cultura visual antecedente ou coeva
do século XVIII; dessa atuação ‘organizadora’ têm origem composições
de singular identidade a contribuir para a implantação e estabelecimento
do perfil estilístico.
Tomada apenas sob o prisma da transmutação e composição, ou
recomposição, de símbolos, a estética rocaille não se apresentaria como
inusitada, nem apontaria singularidade. Pondo, contudo, a ênfase nos
caprichosos elementos figurativos, na frugalidade requintada do surto
ornamental e na luminosidade atenuada e oposta ao marcado contraste
do barroco, pode-se chancelar ao rococó o posto de linguagem de elevada
qualidade estética na arte de ornamentar, o que, aliás, constituía a sua
especificidade.
O valor estético do rococó delata o papel que o ornato exerceu na
geração e no estabelecimento da arte do século XVIII. Este valor, aliás,
alcançou nas estampas seu meio mais habitual de disseminação e nos
manuscritos, encontrou um recorrente espaço de expressão.

O desenho (ornato) rococó: percursos e propagação

As fronteiras cronológicas e boa parte das balizas temporais indica-


tivas na história da arte são porosas, permitindo um certo grau de fluidez
no estabelecimento da periodização dos estilos. Por essa razão, não se pode
apenas considerar os referenciais matematicamente estabelecidos (século,
década, ano etc.) como único fator delimitador para o enquadramento
temporal dos estilos. A pluralidade de fatores implicados no processo de
datação, tais como a política, a cultura, a geografia, dentre outros, leva a não
negligenciar também a base filosófica que, associada aos demais aspectos,
interfere na maturação estética. Sem esse entendimento, dificilmente se

190 ArtCultura Uberlândia, v. 21, n. 39, p. 187-203, jul.-dez. 2019


alcançaria uma visão realista da sociedade, da gênese e desenvolvimento

Artigos
da arte, como de resto tornaria dubitável a caracterização dos múltiplos e
cambiantes estilos artísticos.
Pondo ênfase somente na ornamentação em geral, a dificuldade para
firmar periodização é mais intensa, por força de seu pertencimento (segun-
do visão tradicional), como adereço (ou acréscimo), à variadas expressões
da arte. No entanto, apesar dessa dificuldade, a tradicional análise histórica
mantém o ano de 1700, na França, como delimitação para o começo da fase
de criação do rococó7, ou o que se poderia chamar ‘proto-rococó’. O estilo
rococó atingiu seu apogeu na França, entre 1730 e 1765. Contudo, é bom
deixar claro que as circunstâncias ideais para o seu nascimento ocorreram
durante o reinado de Luís XV (1715-1774), e por essa razão é também
conhecido pelo nome deste rei.8 Essas datas já acolhidas pela história da
arte são igualmente válidas para a história específica da ornamentação,
considerando que o ornamento configura a face mais característica do
estilo rocaille.
No que se refere à ornamentação de manuscritos, objeto em destaque
no presente texto, o estabelecimento de cronologia para o estilo é muito 7
Ver MANDROUX-FRANÇA,
Marie-Thérèse, op. cit.
frágil, porque não sendo o desenho considerado, à época (século XVIII),
uma arte autônoma, não alcançou reconhecimento de sua dimensão estética.
8
Ver HUNTER-STIEBEL, Pe-
nelope. The continuing curve.
Embora os manuscritos sejam datados, os ornatos que neles tomaram forma In: COFFIN, Sarah D. et al.
interpenetram os limites de estilos variados, em que se reflete o movimento Rococo: the continuing curve,
1730-2008. New York: Smithso-
gradual das correntes artísticas. Correspondendo às demandas das demais nian’s Cooper-Hewitt, National
expressões da arte, às quais se integrava como elemento estruturante sub- Design Museum, 2008.
jacente, o desenho, mesmo apresentando essa noção de projeto9, não se viu 9
Uma substancial referência
elevado, no século XVIII, ao patamar de expressão artística autônoma. Esse para o aprofundamento des-
sa questão é GOMES, Luiz
pormenor, aliado ao caminhar descompassado entre as diversas técnicas Vidal Negreiros. Desenhismo.
artísticas, criou para a história do rococó uma periodização que não encon- 2. ed. Santa Maria: Editora
daUFSM, 1996. A leitura deste
tra equivalência plena com a ornamentação de manuscritos.
livro permite-nos afirmar que,
Para se entender melhor a história da ornamentação rococó, convém em meio a constatações biblio-
considerar as fases por que passa um estilo até chegar a sua plenitude: gráficas e documentais, se en-
contram registros de exaltação
criação e maturação, implantação e estabilidade. Estas últimas etapas são do desenho enquanto técnica
garantidas, em boa parte, pela publicidade dos princípios fundantes do de representação, sobretudo
como auxiliar na execução de
estilo, pela vulgarização de seu caráter (sua compleição), o que decorre
outras expressões da arte. Era
dos meios disponíveis de difusão que permitem a evolução, a expansão e recomendada a aprendizagem
o desdobramento do paradigma do estilo. do desenho, em vários ma-
nuais de desenho dos séculos
A difusão de um estilo se dá, geralmente, através da propagação XVII, XVIII e XIX, sobretudo
do padrão visual que o caracteriza e que é mantido pela pluralidade de aqueles devotados à formação
militar. Verdadeiro paradoxo:
expressões artísticas que o acolhem. Os primeiros exemplares do rococó
o desenho não gozava do esta-
chegaram à luz no final do terceiro decênio do século XVIII, na França. E, tuto de arte autônoma e, ainda
devido ao aperfeiçoamento dos métodos de imprensa na época, a difusão assim, outras fontes também
recomendavam seu domínio,
mais usual desse estilo ocorreu através das estampas, que serviam como apresentando-se mesmo como
meio de comunicação, codificando a informação visual oferecida na fase de material de caráter pedagógico
auxiliar no aprendizado do
produção. Atente-se para o fato que a produção se fundava na transcrição
desenho, como era o caso dos
gráfica de uma obra de arte pré-existente para a configurar em outra técnica. manuais de caligrafia.
Contribuem também para a difusão do estilo as consequentes tiragens, as 10
Ver HERMAN, Sandrine.
redes comerciais, as cópias e falsificações, bem como a utilização que era Estampes de l’ornementsous Louis
XIV: création, interpretation &
feita das imagens.10 Essa recepção ou utilização do padrão estilístico é de
réception de l’oeuvre gravée
importância para o estudo sobre a ornamentação de manuscritos, como se de Paul Androuet du Cerce-
verá um pouco mais adiante. au (vers 1630-1710). Thèse
(Doctorat) – École Doctorale
O emprego da estampa nos séculos XVII e XVIII fundamenta um VI-Paris IV/La Sorbonne, Paris,
entendimento mais lúcido sobre a ornamentação em geral e permite co- 2008, p. 1.

ArtCultura Uberlândia, v. 21, n. 39, p. 187-203, jul.-dez. 2019 191


11
Ver idem. nhecer melhor a feição rocaille da decoração de manuscritos. Porém, há
12
No original: “Le véritable aqui certa dose de dificuldade, porque não se trata somente da tentativa
créateur du rococó ornemen-
tal”. MANDROUX-FRANÇA,
por uma circunscrição cronológica da produção ornamental, mas sobre-
Marie-Thérèse, op. cit, p. 8 tudo de, paralelamente, penetrar um horizonte visual de composições e
(tradução nossa). confrontações que propiciam embasado diagnóstico do caráter dinâmico
13
Ver idem, op. cit. de uma obra gravada.11
14
THUILLIER, Jacques. Cata- Desta sorte, a difusão da estampa levou também à difusão do ro-
logues de la collection d’estampes cocó, que se espalhou pela Europa e também pela América, onde ocupou
de D. Jean V, roi de Portugal.
Organisée par Marie-Thérèse expressivo lugar no universo das artes visuais. Uma série de estampas foi
Mandroux-França. Lisbonne/ responsável por esse feito, sendo que algumas das quais foram extraídas
Paris: Fundação Calouste Gul-
benkian/Bibliothèque Nationa-
de uma coleção de estampas intitulada Livre d’ornementsinventés et dessinés,
le de France-Fundação da Casa publicada em 1733, cujo autor, o francês Juste-Aurèle Meissonnier (1695-
de Bragança, 2003, p. 27. 1750), considerado por Mandroux-França como “o verdadeiro criador do
15
KLAUSING, Flávia Gervásio. rococó ornamental”12, deu indiscutível contribuição para a disseminação
O rococó religioso no Brasil e
seus antecedentes europeus.
do ornamento tipicamente rocaille.13 Sob o impulso dessa coletânea de es-
Varia História, v . 2 0 , n . 3 1 , tampa de ornamento, como das coevas de mesma e diversa autoria, todas
Belo Horizonte, jan. 2004, regidas por forte tom ornamental, o estilo rococó também se viu aplicado
p. 279 e 280.
às laudas de manuscritos que se imbuíram da estilística vigente. Nesse
contexto em que a estampa se tornou “fonte de uma outra História da
Arte”14, o rococó colheu frutos do desenvolvimento editorial que tinha,
então, como centros irradiadores a França e a Alemanha, sendo que esta
última, nesse processo, se destacava.

É também importante ressaltar o processo de internacionalização do estilo, através


do intercâmbio de obras e artistas, mas, principalmente, por meio da divulgação em
fontes impressas. Com a ascensão do mercado editorial de livros leigos — que tinha
nas cidades francesas e na cidade germânica de Augsburg, seus principais centros
irradiadores —, se deu a circularidade dos elementos constitutivos do rococó através
dos tratados teóricos, manuais e gravuras, usados permanentemente nas oficinas e
levados para terras distantes da Europa Central, Portugal e colônias, onde foram,
posteriormente, reinventados.15

Os autores citados, portanto, constataram que, em paralelo à gra-


vura, houve outros meios de divulgação do rococó, fazendo menção a
tratados de arquitetura e a manuais, entre os quais, podemos incluir, sem
restar dúvida, aqueles dedicados à aprendizagem da caligrafia. Todavia,
a gravura se sobressaia dos demais meios pelo seu forte impacto visual e
pela sua aceitação social, razão por que desempenhou significativo papel
na disseminação do paradigma do estilo. Com base nisso, se pode resumir
essencialmente o percurso do ornato rocaille: estampa (gravura) – pintura
decorativa – escultura, em geral, e estuque. Ponto de partida desse caminho,
a estampa era fonte segura para pintores. A imagem impressa serviu de
modelo a escultores e estucadores que, em trabalho colaborativo nos ate-
liers, não somente a copiavam, reproduzindo-a na inteireza, mas também
a recriavam, reinventando, assim, os signos do estilo.
O desenvolvimento e a difusão do estilo rococó possibilitam entender
melhor a própria natureza da arte de ornamentar, como também permitem
aprofundar o conhecimento sobre a ornamentação dos manuscritos do
Brasil no século XVIII. No entanto, tendo em mente os desdobramentos
de que se imbuiu a arte de ornamentar, este estudo assume um caráter
de desbravamento de um território com trilhas ainda a seguir. Esse in-
vestimento, entretanto, torna-se significativo e necessário porque pode

192 ArtCultura Uberlândia, v. 21, n. 39, p. 187-203, jul.-dez. 2019


conduzir a reconhecer o desenho como uma autêntica manifestação da

Artigos
arte setecentista brasileira.

O rococó no desenho: os manuscritos e sua ornamentação

A convergência da atenção nos manuscritos encontra plausível justifi-


cativa para sua incorporação à presente reflexão sobre o rococó no desenho.
De fato, os vínculos entre esse estilo artístico e o ornamento presente na
literatura manuscrita se pautam sobre conexões históricas que confessam,
e de certo modo emblematizam, a relação entre a escrita e o desenho. Uma
outra razão vem também respaldar o olhar para essa associação: apesar
do progresso das técnicas de impressão na Europa, a cultura no Brasil do
século XVIII se manteve basicamente manuscrita.16 E os manuais de cali-
grafia17que circulavam no mundo luso-brasileiro o comprovam.
Perpetrava a cultura brasileira setecentista a necessidade de aprender
a escrever, o que impulsionou o desenvolvimento da habilidade de repre-
sentação gráfico-visual, visto que o domínio da caligrafia evocava um saber
sobre ornamentação e, por essa razão, conduzia à prática do desenho. Em
estudo precedente18, foi possível constatar a dileção da sociedade do Brasil
do século XVIII pela aprendizagem da escrita que, em evidente paralelismo,
estimulava a destreza na técnica do desenho à pena para poder estampar
as laudas dos documentos manuscritos (civis, militares e eclesiásticos) 16
Verificar informações mais
com primorosos ornamentos. A respeito do mérito de que se reveste o ato aprofundadas a esse respeito
de escrever e, por consequência, a produção que dele resulta, é cabível em ALMADA, Márcia. Livros
manuscritos iluminados na era
mencionar que o manuscrito “possuía um caráter simbólico que não pode
moderna: compromissos de
ser menos-prezado: singularidade, beleza e ineditismo eram paradigmas irmandades mineiras. Disser-
cultivados ainda durante o século XVIII. Nestes casos, a ornamentação tação (Mestrado em História)
– FFCHF-UFMG, Belo Hori-
dos documentos e a caligrafia erudita aumentavam o valor simbólico do zonte, 2006.
objeto”.19 17
Um dos mais destacados,
Desse modo, se foram tornando constantes, na consciência do mundo sobretudo pela ornamentação
subtropical de domínio lusitano de então, as possibilidades de expressão que emprega e divulga, é de
autoria do brasileiro Manuel
gráfico-ornamental que se poderia galgar por meio do exercício do desenho. Andrade de Figueiredo, publi-
Elaborado recurso da comunicação escrita, o desenho, através do seu tom cado em Lisboa em 1722: A nova
escola para aprender a ler, escrever
decorativo, acolhia os padrões estéticos dos estilos da arte, motivo pelo qual e contar. O uso desse manual
o manuscrito se tornou, no século das Luzes, locus indispensável para a dá testemunho do apreço ao
realização de esmeradas composições de caris barroco. Convém aqui expli- aprendizado da escrita no
século XVIII, seja em Portugal,
citar que, sob a invocação da palavra barroco, seja entendida não somente quanto no Brasil.
a unidade artística, mas também um sistema cultural e civilizacional. No 18
Ver SOUZA, Antonio Wilson
entanto, é necessário afirmar que, se coube ao barroco a preponderância Silva de Souza. O desenho no
enquanto estilo que ultrapassou o âmbito da arte – impregnando toda a Brasil do século XVIII: ornato
de documentos e figurinos
cultura, a mentalidade, da Europa seiscentista e do Brasil setecentista –, militares. Tese (Doutorado
cumpriu também à estética rococó certo grau de coetâneo comparecimento, em Letras) – Universidade do
Porto, Porto, 2008.
cuja dosagem foi suficiente para fertilizar a ação de decorar manuscritos,
deixando, por seu turno, na cultura e na arte, um bem pronunciado vinco
19
ALMADA, Márcia. Caligrafia
artística no século XVIII: Brasil
de fulgor ornamental. e Portugal enlaçados nas letras
Caprichosos como os traços barrocos, os ornatos rococós apresentam, de Manoel de Andrade de Fi-
gueiredo. Navegações: Revista
no entanto, uma desconcertante sobriedade, firmando identidade às com- de Cultura e Literaturas de Lín-
posições que, na sua quase totalidade, reservavam largo espaço à fantasia. gua Portuguesa, v. 4, n. 2, Porto
Toda a investida ornamental do período baseava-se em um desenho no qual Alegre, jul.-dez. 2011, p. 172.

as regras compositivas, derivadas do estudo dos clássicos, cediam lugar à 20


Ver COLLE, Enrico. Il mobille
rococó in Italia: arredi e decora-
liberdade do autor, do artista.20 Em relação ao rococó, essa liberdade tem zioni dal 1738 al 1775. Milano:
origem no seu desprendimento das amarras ideológicas. A mais renomada Electa, 2003.

ArtCultura Uberlândia, v. 21, n. 39, p. 187-203, jul.-dez. 2019 193


21
OLIVEIRA, Myriam Andrade autoridade no rococó no Brasil, Myriam Ribeiro, admite a dificuldade no
Ribeiro de. Barroco e rococó nas
igrejas do Rio de Janeiro. Brasília: entendimento do estilo que deixou sinais na arquitetura e na mobiliária
IPHAN/Programa Monumen- brasileiras, nos períodos colonial e imperial, ao afirmar que o rococó “é de
ta, 2008, v. 1, p. 139.
mais difícil compreensão que o barroco, em virtude do descompromisso de
22
Importa ressaltar que a so- origem desse estilo com qualquer tipo de ideologia, de natureza religiosa
ciedade francesa do século
XVIII viu surgir, em seu seio, o ou até mesmo política”.21 Os rompantes do desenho barroco nasciam de
Iluminismo, que atribuía valor acentuado impulso da esfera emocional, a retratar temas, na maioria das
ao desenvolvimento da razão,
portanto, de forte teor huma-
vezes, de cunho religioso; os desenhos rococós se originavam do engenhoso
nista, como também todo o terreno da fantasia e, desatados dos grilhões da religião, davam vida às
processo que, na década de 80, composições quiméricas que somente uma mão consciente da liberdade
eclodirá na Revolução France-
sa, trazendo consigo os direitos de expressão, dos desprendimentos ideológicos22 poderia realizar.
humanos e os ideais libertários. No que tange à ornamentação gráfica, essa liberdade dava mostra
Sem dúvida, esses e outros
impulsos de natureza ideoló-
de maior flexibilidade, cuja abrangência alcançava um raio de proporções
gica e política influenciaram jamais visto. É bom ter presente que aqueles que sabiam escrever gozavam
os artistas e, por conseguinte, de credibilidade e respeito no mundo luso-brasileiro.23 Assim, é muito pou-
o estilo rococó que, apesar de
não ter demonstrado sujeição a co provável que o domínio da ornamentação de manuscrito tivesse sido
nenhuma instituição específica, alvo de vigilância e censura.24 Nesse contexto, a iconografia rococó se viu
acolheu a desdobramentos na-
turais da evolução da sociedade
acrescida de elementos fantasiosos advindos da consciência e do exercício
da época. de uma assentada liberdade expressiva.
23
Sobre o assunto, ver ADÃO, Esse caráter de criação desvinculada de amarras ideológicas fez avul-
Áurea. Estado absoluto e ensino tar na ornamentação rocaille a tendência a exibir o inusitado. A propensão
das primeiras letras: as escolas
régias (1772-1794). Lisboa: Fun-
ao inabitual deriva-se do fato que o rococó, ao contrário do barroco, buscava
dação Calouste Gulbenkian, preponderantemente tematizar a vida secular e galante da sociedade; não
1997. uma expressão contida nos meandros de regras religiosas, mas a vivência
24
Em Portugal e no Brasil de uma liberdade que evocava os “prazeres da surpresa”25, vertente que
do século XVIII, aqueles que
aprendiam a escrever o faziam
compõe a base desse estilo. No rococó, é exatamente a busca do inusita-
com o auxílio de um mestre do para surpreender o espectador que move o artista, razão pela qual as
de primeiras letras que, via composições do estilo são esquematicamente labirínticas, refletindo uma
de regra, se beneficiavam de
manuais de caligrafia. Estes configuração típica dos jardins franceses. Deste modo, a fruição é direcio-
ensinavam a escrever, ler e nada para a busca do excepcional em cada pormenor, que se torna, por
contar. Porém, apresentavam
estampas de ornamento que
essa via, uma janela entreaberta a descortinar um horizonte de múltiplas
deveriam ser copiadas e, desse interpretações e sensações. A busca da surpresa, radicada em uma expres-
modo, tinham também claro são desatada, é a motriz das ornamentações próprias da estética rocaille.
objetivo de ensinar a desenhar,
ou seja, ornamentar. Em geral, Todavia, o florescimento do rococó não se explica somente pela liber-
os aprendizes da escrita eram dade de expressão. A oratória barroca foi rejeitada em função de critérios
apenas homens membros da
família real e os comerciantes.
que punham a ênfase no “pitoresco”, no caprichoso, no “maravilhoso”.
Em paralelo, registrava-se uma vertiginosa procura por variada tipologia
25
No original, “piaceri dela
sorpresa”. COLLE, Enrico, op. ornamental, sem, contudo, se negligenciar o apreço pela ordem composi-
cit. p. 7 (tradução nossa). tiva necessária à elaboração e ao bom êxito de uma obra de arte26, postura
26
Idem. que deixa injustificadas as ferrenhas críticas de que o rococó foi objeto na
27
Tomamos esse empréstimo sua origem.
do étimo francófono para dar Por princípio, a ornamentação típica do estilo rocaille apresenta con-
maior ênfase à excentricidade
original do estilo rococó. tornos extraordinários, uma confusa mistura de indiscriminados atributos,
28
Ver DAVIDSON, Gail S.
elementos “bizarros”27 aguçados pela imaginação do artista. Seguindo essa
Ornamento of bizarre ima- direção, os desenhos decorativos de manuscritos exibiam uma irregular
gination. Rococo prints and e confusa composição de juncos, palma, e uma variedade de plantas ima-
drawings from cooper-hewitt’s
Léon Decloux Collection. In: ginárias que tanto provocaram tumulto no mundo da decoração.28 Bem
COFFIN, Sarah D. et al., op. cit. analisado, o “sinuoso, orgânico e sensual – que é o mantra desse projeto
29
No original: “sinuous, organ- [rococó]”29 consagrou os ‘prazeres da surpresa’ sem, contudo, pôr em causa
ic, sensuous – that is the mantra as premissas da linguagem visual; tornou solene o fantasioso sem, porém,
of this project”. HUNTER-
-STIEBEL, Penelope, op. cit., p. descurar a atenção ao realismo clássico; celebrizou o exótico mas – por
1 (tradução nossa). paradoxo! – rendeu culto ao trivial. É por estampar o selo dessas proprie-

194 ArtCultura Uberlândia, v. 21, n. 39, p. 187-203, jul.-dez. 2019


dades que, em grande parte, refletem aspirações de cunho social, que o 30
Muitos historiadores da arte

Artigos
consideram o barroco um es-
ornato rocaille detém distinto e indiscutível valor estético. Considerando tilo de vida, mais do que um
essa reflexão, pode-se afirmar que, assim como o barroco30, o rococó foi simples estilo artístico. É o caso
de Maria Helena Occhi Flexor.
não apenas um estilo da arte, mas um estilo de vida.
Irrompida na Europa do Setecentos, a mentalidade rocaille é atestada 31
Ver MANDROUX-FRANÇA,
Marie-Thérèse, op. cit. Segundo
pelo conjunto de impressos daquela centúria. Parte significativa desses a pesquisadora, outros houve
documentos foi compulsada por nós ao longo de um ano de pesquisa de que tiveram atuação, tais como
Jacques de Lajoue (1687-17610,
pós-doutorado (out. 2015-set. 2016), na França, efetivada em algumas das p. e. Babel (1720-1775), F. de
mais célebres e fidedignas instituições, tais como a Biblioteca Nacional de Cuvilliers (1698-1786) e F. Bou-
Paris (de modo especial, no Setor de Estampas e Imagens), no Instituto cher (1703-1770). Destes, no
entanto, encontramos pouca
Nacional de História da Arte e na Biblioteca do Museu de Artes Decorati- referência que fosse de real in-
vas. A documentação compulsada se compõe, na sua quase totalidade, de teresse para o presente estudo,
razão pela qual, preferimos
estampas, a modo de pranchas individuais ou reunidas em volumes, cujos apresentar Meissonnier, con-
autores (decoradores e gravadores) tiveram atuação na França a partir de siderado o genitor do rococó
1730. Alguns lograram reconhecimento à época, em razão de suas estampas ornamental.

serem consideradas como modelo para a arte da ornamentação de então. 32


Ver LIEURE, Jules. La gra-
vureen France au XVeme siècle:
Dentre eles se deve, por mencionar, aqui, Juste-Aurèle Meissonnier (1695- la gravure dans le livre et
1750).31 Toda a produção desse ornamentador32, e de outros que lhe deram l’ornement. Paris et Bruxel-
prosseguimento, se tornou mais conhecida através da ação dos editores, les: Librairie Nationale d’Art
d’Histoire G. Van Oest, Éditeur,
em especial da Alemanha, que, acolhedores da expressão ornamental de 1927, p. 4. No original: “Vers la
origem francesa, a copiaram e a divulgaram. A publicação de estampas foi a fin du XIXèmesiècleon a appelé
les artistes qui avaient utilisé
garantia de difusão nacional e internacional do estilo rococó. Expandiu-se, cet artles ‘ornemaniste’”. “No
assim, pela França e por outros países da Europa, entretanto, teve como fim do século XIX se começou
centro difusor a Alemanha do Sul. a chamar os artistas que se
dedicavam a essa arte de ‘os
ornamentadores’” (tradução
Augsburg era, no começo do século XVIII, um centro editorial muito ativo e um nossa).
importante difusor da circulação internacional dos modelos de ornamentos grava- 33
Idem, ibidem, p. 6. No origi-
dos. Editores como Jeremias Wolff (?-1724) fez lá uma especializada imitação de nal: “Augsburg était au début
du XVIII ème siècle un centre
estampas estrangeiras, que eles exportavam em seguida para a Europa ou para a d’edition três actif et un relais
América Latina. Em Portugal, em particular, os ornamentos franceses [...] foram important de la circulation
internacional e des modèles
conhecidos, não somente em suas edições originais, mas sobretudo por suas imita- d’ornements gravés. Des édi-
ções [...] alemãs das quais os mais numerosos exemplares estão ainda conservados teurs comme Jeremias Wolff
nas coleções nacionais.33 (?-1724) s’y étaient fait une
spécialité de la contrefaçon
d’estampes étrangères, qu’ils
As edições francesa e alemã foram, assim, as primeiras responsáveis exportaient ensuite en Euro-
pe ou en Amérique Latine.
pela difusão do rococó na Europa, através das estampas de ornamento, Au Portugal, em particulier,
que eram elaboradas à guisa de modelo. Para se ter uma ideia do papel desornemanistes français [...]
das edições de estampas na difusão do rococó, cabe aqui referir que em furent connus, non seulement
em leurs éditions originales, ma
Portugal, na primeira metade do século XVIII, “o novo estilo foi apenas surtout par des contrefaçons
conhecido através de gravuras”.34 [...] allemandes don’t de plus
nombreux exemplaires sont
Devido à temática abordada neste texto, torna-se importante fazer encore consevés dans les col-
menção ao fato que “circulavam no mundo português, do Ocidente e do lections nationales” (tradução
Oriente, e pela Europa, os riscos, ou coleções de estampas, de manuais e nossa).

tratados, que serviam de modelos aos artistas”.35 De fato, “a circulação de 34


OLIVEIRA, Myriam Andrade
Ribeiro de, op. cit., p. 497.
modelos e estampas [portanto] foi uma prática muito comum [também]
na América portuguesa”.36 E a mentalidade estética da época o exigia. Sem
35
FLEXOR, Maria Helena Oc-
chi. Escultura barroca brasileira:
contar que o entroncamento de símbolos animado pelo uso da estampa questões de autoria. Disponível
orientou uma proposta estilística motivadora da criatividade dos artistas, em <https://www.upo.es/depa/
webdhuma/areas/arte/3cb/
a maioria dos quais nem sempre adstrita às artes decorativas, o que indica documentos/39f.pdf>. Acesso
possibilidade de uma transposição de divisas dos gêneros artísticos. em 10 fev. 2018.
Em Portugal, as estampas mantiveram função especial no desenvol- 36
NÓBREGA, Michael Dou-
vimento das artes decorativas, sobretudo a partir do reinado (1707-1750) glas dos Santos. Circulação de
imagens lusitanas no Além-Mar:

ArtCultura Uberlândia, v. 21, n. 39, p. 187-203, jul.-dez. 2019 195


cultura histórica e cultura ar- do “magnânimo”, D. João V, monarca que teve como um dos nortes de
tística na azulejaria barroca de
Teotónio dos Santos na Paraíba seu governo investir no florescimento das artes e, para tanto, encomen-
colonial. Dissertação (Mestrado dou “vários volumes de gravura dos mais notáveis gravadores da época,
em História) – UFPB, João Pes-
destinados à Biblioteca do Paço Real”.37 Dom João V chegou até mesmo
soa, 2015, p. 44.
a contratar artistas, equipe de gravadores, com a finalidade de ilustrar as
37
PEREIRA, José Fernandes e
PEREIRA, Paulo (orgs.). Dicio- edições da Academia Real de História.38 Esse procedimento, em verdade,
nário da arte barroca em Portugal. nunca foi estranho aos reis europeus do tempo do Iluminismo. E os re-
Lisboa: Presença,1989, p. 248.
gistros dessa investida se fazem notar também além-mar, pois devido à
Ver MANDROUX-FRANÇA, colonização portuguesa, no Brasil há testemunhos verídicos da influência
38

Marie-Thérèse, op. cit.


na arte do século XVIII que absorveu a estética rococó, apesar da vigência
39
KLAUSING, Flávia Gervásio,
op. cit., p. 280 e 281.
do barroco. Das Minas Gerais de então, encontram-se exemplos portado-
res de peculiaridades dignas de máxima atenção e, por esse motivo, mais
adiante, encontrarão aqui destaque.

A circularidade propiciada pelas fontes impressas permitiu à colônia brasileira


receber a influência não só de Portugal, mas também da região da Alemanha e da
França e, juntamente com as tradições locais, realizou-se um mosaico de interpreta-
ções do estilo rococó. É elucidativo pensar a aproximação entre o rococó germânico
e aquele produzido em Minas — muitas vezes o que se delega como “original”, é
uma peculiaridade do rococó religioso — e também a grande semelhança entre as
duas sociedades, visto que, em ambas, a maioria dos artistas eram locais, formados
em oficinas e eram fortemente ligados às tradições artísticas próprias da região e ao
seu tipo específico de sensibilidade estética.39

Uma leitura e análise da ornamentação gráfica apresentada nos


manuscritos deixa em evidência o seu vínculo com as estampas, lúcida
consequência do processo de produção e circulação dessas gravuras.
Processo que proporcionou a expansão do estilo rococó, que se prolife-
rou de maneira a deixar sulcos na arte de ornamentar em todas as socie-
dades que tenha alcançado. É oportuno, e de certo modo torna-se uma
questão de justa distinção, conduzir à esta reflexão um testemunho da
propagação do estilo através do recurso à estampa, expondo, na figura
1, um exemplar em que se pode vislumbrar uma magistral representação
do repertório da arte rococó, realizada pelo ornamentador francês Juste-
-Aurèle Meissonnier.
De origem setecentista, a estampa da figura 1 integra uma obra de tal
modo representativa da época que mereceu ser reeditada pela Biblioteca
do Instituto Nacional de História da Arte de Paris, onde tivemos a opor-
tunidade de a compulsar. Inspirado por ares de grande originalidade, o
traço de Meissonnier revestiu esse exemplar de ornamento de larga sin-
gularidade compositiva: construída com base em uma ritmada conjugação
de formas curvilíneas que se volteiam e revolteiam, reproduzindo-se qual
eco do modelo côncavo da rocalha, motivo decorativo utilizado com mais
frequência pelos artistas nessa época. A sutileza do sombreado de baixo
contraste produz uma auréola de sobriedade já esperada pela sociedade
francesa do século XVIII. Atenção requer a representação floral que se
conforma ao todo retratado, mas que também se lança sob o provável co-
mando de um punho ansioso por esvoaçar as formas para criar ambiente
propício ao fantasioso no conjunto. O caráter intencionalmente assimétrico
dos elementos presentes na figura (cartelas, molduras) transmite tamanha
força ao modelo que a estampa se torna anúncio de um novo estilo marca-
damente distinto do antecessor barroco.

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Artigos
Figura 1. Estampa de ornamento. Juste-Aurèle Meissonnier. 1733.

Face ao elevado grau de apuro técnico e ao proeminente teor es-


tético, as estampas suscitavam nas aspirações decorativas da sociedade
setecentista o acolhimento dos então conhecidos fenômenos da repetição
e da imitação, o que não destituía o valor artístico das produções orna-
mentais deles resultantes. Bem ao contrário, pois “é bom lembrar que o
curso livre da cópia, na época, pode ser entendido como uma forma de
expressar admiração”.40 Imitar ou copiar não significava uma espécie de
desvalorização da criatividade, mas o reconhecimento de méritos das mãos
que conformaram novos caminhos na arte. “A execução da imagem [obras
de arte em geral] baseava-se em modelos pré-existentes, e copiava, se não
fielmente, pelo menos dentro do mesmo padrão e da mesma tipologia”.41
Desta sorte, “era considerado mais habilitado aquele que copiasse o mais
fielmente possível os modelos ou os mestres”.42
Não se perca de vista que, mesmo em meio às peculiaridades da nova
proposta estética, os desenhistas e gravadores do século XVIII mantiveram
profunda admiração pelos artistas do classicismo e respeitavam os câno-
nes ou padrões por eles estabelecidos. Por longo tempo, na história e na
cultura do vasto mundo ocidental se seguiu como parâmetro de qualidade
estética os referenciais implantados pelos clássicos, ainda que, na maioria
das vezes, se tenha notado o acréscimo de dados inovadores.
A admiração pelos clássicos fez reafirmar a função pedagógica das
estampas. Nos ateliers, elas eram utilizadas com o fito de proporcionar boa
formação de artesãos e artistas, de modo especial aqueles que se dedicavam
à aprendizagem das expressões da arte requerentes de maior superfície, 40
OLIVEIRA, Myriam Andrade
Ribeiro de, op. cit. , p. 497.
como são os casos da talha e da escultura. Para o domínio dessas manifes-
41
FLEXOR, Maria Helena Oc-
tações artísticas se propugnava como necessidade fundamental o desen- chi, op. cit.
volvimento da habilidade de desenhar e para esse concurso as estampas 42
Idem.
se aplicavam de modo eficaz. Algumas dentre elas foram deliberadamente
43
Ver DECROSSAS, Michael
realizadas para essa causa. Há registros de manuais de arquitetura da época et FLÉJOU, Luice (dirs.). Orne-
que avivavam a imprescindibilidade do exercício do desenho e, por essa ments. XVe-XVIIIe siècles: chefs-
razão, eram acompanhados de estampas.43 Episódicos e esparsos, esses -d’oeuvre de la Bibliothèque
de l’INHA, collection Jacques
manuais se apresentavam como real fonte inspiradora para a criação da Doucet. Paris: Mare & Martin/
estética rocaille. Inha, 2014.

ArtCultura Uberlândia, v. 21, n. 39, p. 187-203, jul.-dez. 2019 197


No quadro geral de entendimento da história da ornamentação
gráfica, torna-se significativo e necessário considerar que as estampas
apresentavam um nível acentuado de aplicabilidade e adaptação aos gostos
da moda. Além do que, seus temas podiam ser transpostos para diversos
materiais e suportes e isso porque elas emergiram como fonte para uma
relativamente expressiva parcela de manifestações da arte.
Embora pouco se considere, a expressão da arte que de modo mais
imediato acolheu a influência da decoração rocaille das estampas foi a
ornamentação de manuscritos que, sob esse influxo, também revelou o
dito ‘gosto moderno’. A habilidade em reproduzir, adaptar, criar e recriar
daqueles que executavam a arte de ornamentar merece ser posta em des-
taque. Nessa perícia técnica e na capacidade de apropriação e reconstrução
iconográfica tiveram origem desenhos dignos de apreço. No entanto, por
não terem sido assinados, quedaram-se no anonimato. Dentre esses dese-
nhos, há espécimes que proscrevem toda dúvida a respeito da influência
da gravura na ornamentação dos documentos do Brasil no século XVIII,
como atestam as figuras 2 e 3 postas mais adiante.
Para o estudo da ornamentação, expõe-se aqui, na figura 2, uma carta
geográfica do Rio Grande do Sul, de origem setecentista. O autor optou
por emoldurar todo o mapa e o fez com primor, posto que recorreu ao vo-
cabulário da arquitetura religiosa do Setecentos, dando-lhe um tratamento
baseado no chiaroscuro tipicamente barroco, tendente, no entanto, ao rococó,
como se pode, com aplicada atenção, verificar. O mapa, assim, reclama a
atenção exatamente pela presença dos ornatos, cujo traçado denota claro
seguimento das normas de um estilo que já começava a dar sinais de vida
no Brasil e que, caminhando, por certo período, pari passu ao barroco, se
ia afirmando em virtude da sua fertilidade ornamental.

Figura 2. Carta geográfica. Sem autoria. 1753.

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No sombreamento, o autor demonstra grande habilidade, assim como

Artigos
no desenho que revela maestria, visto que assimétrico nos pormenores e
equilibrado no conjunto, formando uma composição em que o geometrismo
e o classicismo se entrecruzam, através da reprodução de elementos de um
imaginário que foge um pouco da linguagem religiosa para desembocar
numa expressão mais ornamental, sintomática de avanço na transmutação
estilística, ou na travessia para uma nova estética. Observe-se, na figura em
alusão, a sintonia com o rococó que se apresentou com esplendor em algu-
mas expressões da arte no Brasil do século XVIII. Esse caráter de exaltação
e fulgor decorativo rocaille, apesar de apresentar maior conformação na
arquitetura e na escultura, pode também ser atestado na ornamentação de
manuscritos, dos quais as cartas geográficas se levantam com propriedade
identificativa da índole ornamental. A configuração dos ornatos teve como
provável referência para leitura e reprodução a padronagem difundida
através de impressos de origem francesa ou alemã, considerando-se o
transporte desses dados pela ação colonizadora portuguesa. É de consenso
que “Portugal era o motor Atlântico e dominava boa parte dos trópicos no
século XVIII”.44 Essa influência europeia pode ser verificada no exemplar
de carta geográfica. Tomando como referência a estampa do mestre Meis-
sonnier (figura 1), logo se encontra a paridade dos elementos vegetalistas
e dos concheados.
A frugalidade e a serenidade que abrandaram o forte esquema de
organização ornamental barroca conduzem a um entendimento mais am-
pliado sobre a compleição deste exemplar. Atribuindo relevo à concentração
regular de unidades ornamentais ao longo da cercadura, os arranjos não
somente a integram como a definem. Contudo, a composição dos elementos
ornamentais esparsos, mas coordenados, impregna esse exemplar de um
inconfundível feitio rocaille.
Pode muito apropriadamente ser considerado como digno exemplar
da arte brasileira o mapa apresentado na figura 3. Trata-se de um mapa
comercial da capitania do Rio Negro.45 O apuro técnico e a cor avermelhada
do espécime infundiram na composição em aguada, técnica de desenho
comum à época, um cunho solene. Revelando domínio da linguagem visual,
o autor se mostra conhecedor das formas clássicas, porque constrói uma
composição com austeridade e rigor próprios de um classicismo típico da
fase final do Renascimento, porém cumulada do discurso visual barroco.
No entanto, a composição é perpassada pela soltura e leveza almejadas
pelo espírito e modo de expressão rococó. Uma vista pouco apurada sobre
a figura 3 deduziria por uma simetria. Um olhar refinado, contudo, reco-
nhecerá, na disposição das formas, uma tênue assimetria que não corrói
o equilíbrio, mas, bem ao contrário, para ele contribui e o assegura sem
o compromisso de uma combinação equitativa de elementos repetitivos.
Os concheados, as folhas de acanto, as reentrâncias, o contraste
44
NÓBREGA, Michael Douglas
atenuado e um suave sombreamento, aliados à assimetria, conduzem ao
dos Santos, op. cit., p. 45.
reconhecimento de uma obra típica do terceiro quartel do século XVIII (no 45
Fundada em 3 de março de
Brasil), quando elementos do rococó começavam a se afirmar com maior 1755, a chamada Capitania de
nitidez, sem, contudo, desnudar o caráter barroco animador desse desenho. São José do Rio Negro, embora
independente, era subordinada
Aos elementos destacados se acresce o tom avermelha do que contribui
ao Estado do Grão-Pará e Mara-
para a leitura de uma obra com cariz ornamental digno de nota. nhão. Cf. SERRÃO, Joel e MAR-
Importa também lembrar que o mapa da figura 3 ostenta QUES, A. H. de Oliveira. Nova
história da expansão portuguesa:
uma cercadura com decoração similar à de alguns dos seus congêneres o império luso-brasileiro (1750-
contemporâneos, que registram a preocupação setecentista com a função 1822). Lisboa: Estampa, 1986.

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46
No original: “parfois même
plus d’importance et plus
d’agrément que le sujet princi-
pal”. LIEURE, Jules, op. cit., p.
22 (tradução nossa).

Figura 3. Mapa comercial do Rio Negro. 1766.

ornamental do desenho. Atenção às formas onduladas que se movimen-


tam com uma sensualidade delicada. Elementos florais transmitem graça
e leveza ao conjunto, provável influência do envolvimento do autor com
a estética rocaille. A representação de folhagens da figura acena, por seu
turno, para essa possibilidade.
A aplicação do tom claro do vermelho, amenizando a carga vibrante
desta cor, pode traduzir uma visão serena da vida, uma concepção de mun-
do eivada de brandura, materializada no modo de projetar e organizar o
ambiente social, que também perpassou boa parte das sociedades europeias
no século XVIII. Reflexo desse sentimento, os ornatos eram recobertos pela
sobriedade de tons para o que a técnica do desenho aquarelado se prestava
com eficiência e adequação. A ornamentação de per si deve ser entendi-
da como a chave da leitura estética dos desenhos, em razão das formas
curvas que exibe, da harmoniosa disposição de côncavos e convexos que,
compactuando com a suavidade de tons, introduz no conjunto ares de
transparência e luminosidade. Essas características deixam evidente um
sucinto abandono da proposta barroca e uma leve marcha em direção a
novo projeto acentuadamente ornamental insuflado pelo rococó.
Era recorrente a ornamentação de manuscritos se apresentar sob a
forma de cercadura. A esta se atribuiu sempre atenção, visto que ocupa-
vam um espaço de real valor, chegando a ter “às vezes, até mesmo, mais
importância e mais atrativo que o assunto principal”.46 Em geral, eram, em
grande parte, comandadas por força do exercício da caligrafia e, no caso do
rococó, prestando-se a um intento meramente ornamental, sem obediência
a ditames quaisquer da simbologia cristã, como se pode exemplificar na
figura 3 destituída de revestimentos ideológicos ou espirituais, deixando
à parte dados que para esses sentidos também convergiriam, como a re-
presentação de flores.
Essas particularidades envolvem o manuscrito da figura 3 em uma
marcante dificuldade de classificação estética. De um lado, a estrutura
clássica e as formas acentuadamente barrocas; de outro, o refinamento e a

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delicadeza dos moderados, mas evidentes, motivos rocaille. Entende-se essa

Artigos
dificuldade pelo fato que “na segunda metade do século XVIII, as doutrinas
estéticas do barroco são substituídas pelas do rococó. O luxo permanece,
mas se evidencia de um modo mais discreto, alastrando-se a uma base social
mais ampla, diversificando-se na escala social dos encomendantes”.47 Não
se perca de vista que na época (segundo a datação) do mapa em questão
(terceiro quartel do século XVIII), Portugal havia retomado o classicismo;
o Brasil, porém, permanecia na expressão barroca que se mesclava com os
rebentos da ornamentação rocaille, e de tal descompasso decorrem a sutileza
e a complexidade na análise.
Se o olhar percorrer a estampa exibida na figura 1 e, logo em segui-
da, o mapa da figura 3 encontrará paridade nas formas e sobreposição,
ou melhor, cruzamento de peculiaridades no desenho. Não passarão
despercebidas as curvas em “C”, a dinamicidade das formas conchoidais
e florais (estas ainda que parcas), a elaborada aplicação do atenuado, mas
firme, sombreado na cercadura do mapa. Esses atributos modelam na
ornamentação do mapa um semblante rococó. O barroco punha a tônica
nos símbolos religiosos, como imagens de santos e anjos, fazendo eco ao
discurso catequético e doutrinal da Igreja Católica; punha também acento
no exagero e na abundância sempre chocantes. No rococó era evidente a
noble simplicité articulada com um claro requinte. No entanto, há que se
esclarecer que nos ornatos selecionados e aqui expostos, o tímido caráter
não oculta a intensidade do espírito, nem a lentidão dos passos do estilo
encobre a lucidez do percurso, nem a clarividência de objetivos e metas. Se
é verdade que na gênese desses ornatos se encontra um provável impulso
barroco, seu nascimento e sua evolução derivam de planejada maturação
rocaille.
Interessa aqui reconhecer que não se registra perfeita correspondência
estética entre a produção artística colonial (brasileira) e a metropolitana
(portuguesa), o que leva a considerar os ornatos apresentados nas figuras
2 e 3 como expressões de culturas distintas que, no entanto, sorveram de
comum fonte de inspiração, como atestam as estampas europeias. Assim,
os signos da ornamentação, tais como concheados, curvas, flores, folhagens,
dentre outros, por pertencerem ao universo figurativo corrente às estam-
pas e às outras artes visuais (de modo especial a escultura, a arquitetura
e a mobiliária) constatam a possibilidade de adaptação iconográfica, fun-
damentando o que se pode considerar como uma miscigenação estética.
Ademais, a ausência de absoluta correspondência tem plausível explicação
também no fenômeno já referido da cópia. “Imitar, aqui, não significa
simplesmente copiar servilmente, mas selecionar o que imitar e reelaborar 47
MARQUES, Maria da Luz
seu modelo mediante conhecimentos de regras da arte, da natureza e das Vasconcelos e Souza Paula.
Mobiliário português do apara-
criações antigas, concepção pertinente ao período. Ao mirar modelos gra- to do século XVIII: credência,
vados como fontes criativas, os artistas atualizavam-nas, em suas obras, a consolas e tremós. Dissertação
(Mestrado em História da Arte)
partir de concepções estéticas e habilidades que os circundavam”.48
– Universidade do Porto, Porto,
A cópia, de certa maneira, pode explicar essa hibridação e de modo al- 1997, p. 8.
gum resultava de uma reprodução irrefletida. O contato com elementos das 48
SANTIAGO, Camila Fer-
culturas envolvidas e o cruzamento de dados identitários desdobravam-se nanda Guimarães. Os usos de
gravuras europeias como mo-
em possibilidades de multivariada interpretação e de reconstrução, refleti-
delos pelos pintores coloniais:
das nas obras de arte como significativos acréscimos. Foi essa habilidade de três pinturas mineiras baseadas
reelaboração, de recriação, que fez despoletar a transição do barroco para em uma gravura portuguesa
que representa a Anunciação.
o rococó. Myriam Ribeiro de Oliveira chega mesmo a afirmar que a fase do Temporalidades, v. 3, n. 1, Belo
rococó no Brasil “foi o período mais criativo da contribuição mineira para Horizonte, jan.-jul. 2011, p. 189.

ArtCultura Uberlândia, v. 21, n. 39, p. 187-203, jul.-dez. 2019 201


49
OLIVEIRA, Myriam Andrade a arte colonial”.49 E pode-se aqui comprovar, através dos exemplares de
Ribeiro de., op. cit., p. 497.
ornamentação em estudo (figuras 2 e 3), e afirmar que essa criatividade,em
50
MINGUET, Philipe. Esthétique
du rococo. Paris: J. Vrin, 1966, p.
especial no âmbito da decoração de manuscritos, não estava circunscrita
676. No original: “il faut penser às Minas Gerais.
les styles de façon relative. Le A análise dos desenhos aqui realizada permite constatar um hibridis-
classicisme détient une priorité
de droit. Le baroques’en écarté, mo de estilos, aliás recorrente em vários exemplares da arte luso-brasileira
il ne vise plus à la beauté, mais do século XVIII, quando o barroco e o rococó viviam de mãos dadas, com
au sublime dans as puissance
et sa grandeur. Le rococó de
predominância ora de um, ora de outro, sendo que, no caso da ornamen-
son côté vise au jeu de la grâce” tação gráfica, tomando como referência os espécimes em foco (figuras 2 e
(tradução nossa). 3) este último estilo deixou sinais mais elucidativos. Contudo, “é preciso
51
Ver PEDRONI, Fabiana, op. pensar os estilos de modo relativo. O classicismo detém uma prioridade
cit., p. 80.
de direito. O barroco se distancia, pois não visa mais à beleza, e sim ao
sublime em sua potência e grandeza. O rococó, por seu turno, visa ao jogo
da graça”.50 Portanto, os estilos paralelos ou sucessivos se interceptam
através da partilha de elementos comuns, dialogam apoiados na comunhão
de signos e, por vezes, anulam as contradições de seus propósitos, quando
se acolhem mutuamente.
Seria uma temeridade ajuizar pela exclusiva atuação da gravura como
influente no desenvolvimento do rococó no Brasil. No entanto, do papel que
ela exerceu na evolução da ornamentação rocaille dos manuscritos não há
que duvidar. Provam-no as equivalências formais, estilísticas e iconográfi-
cas. Grande parte do vocabulário ornamental constitutivo da arte brasileira
do século XVIII era difundido pelas estampas europeias que, desse modo,
operaram como uma gramática para a linguagem do estilo rococó.
O reconhecimento de que as gravuras não foram a única fonte, mas
certamente a principal referência, não representa uma restrição da cria-
tividade, mas implica afirmar um influxo enriquecedor da concepção e
produção de obras de arte, elaboradas e realizadas mediante a confluência
de elementos culturais relacionados às vivências do ornamentador, seu en-
tendimento da arte, sua formação. É a partir da aproximação entre a fonte
inspiradora e o contexto de sua própria história, suas experiências e saberes,
que o autor dos ornatos exerce a faculdade de criar. O desenvolvimento da
comunicação visual se fundamenta não somente na reprodução do que se
vê, mas também e com maior propriedade na transcrição do que se sabe,
na experiência de conhecimentos adquiridos na vivência em sociedade,
resulta, deste modo, da equipagem cultural.
A especificidade da difusão do rococó e os caminhos trilhados pelo
estilo podem esclarecer a própria natureza da arte de ornamentar: apro-
priação do conjunto de símbolos peculiares das culturas e sociedades im-
plicadas, interpretação dos dados, elaboração temática com reprodução e/
ou recriação de signos. Em abono da verdade, esse é um caminho encetado
por toda expressão da arte. É desta maneira que o ornato ultrapassa sua
existência enquanto paramento identificador de estilo e se reveste do caráter
estético distintivo de toda manifestação artística. Nesse sentido, toda arte
é, na sua essência, ornamental – e aqui se evoca o sentido etimológico do
termo. Na sequência dessa linha de pensamento, vale mencionar que pes-
quisadores atentos à história do ornamento têm chegado à compreensão de
quefazer história da arte abstendo-se de fazer a história da ornamentação
seria assumir o risco de incorrer em problemas delicados51, sobretudo em
se tratando da arte do Brasil colonial.
Não se deve perder de vista que tratamos aqui de uma expressão da
arte (o ornato) que, embora se tenha consolidado no Oitocentos (no Brasil),

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já havia dado mostras de vida no século XVIII na Europa e no Brasil e, por

Artigos
essa razão, não deve haver estranhamento face à ocorrência das consequen-
tes interpenetrações das balizas temporais, que em nada desautorizam a
análise realizada, mas põe em destaque o caráter inusitado do modo de
criação, desenvolvimento e difusão do estilo rococó.
A necessidade de se entender melhor o papel que o rococó desem-
penhou na História da Arte Brasileira fez o olhar incidir, mais uma vez,
sobre a arte decorativa. E, nesse sentido, toldar a atenção sobre a ornamen-
tação de manuscritos vem exaltar não somente fatores de ordem técnica
específicos da representação gráfica, mas, sobretudo, significa reconhecer
o valor do desenho enquanto formador e expressão do pensamento, fator
que desempenha a mais segura função na apreensão e no evoluir da ciência,
reflexo ímpar da história do pensamento e das culturas.
O desenho é um dos mais convincentes meios de que o ser humano
se utiliza para desenvolver sua habilidade de criar novas formas e estetizar
a natureza. O caminho da ornamentação é incontornável ao historiador da
arte, porque lhe possibilita conhecimento mais enraizado na origem do
ato de criação que parte stricto sensu de um projeto, aqui entendido como
desenho. Universalmente constitutivo da essência das artes, o ornato é um
testemunho da faculdade humana de representação. Manifesto, por vezes,
em ínfimas dimensões, cada ornato é um horizonte de infinitas possibilida-
des em que se pode encontrar a amplitude do ato de criar. O rococó abriu
as portas para que a graça e o requinte se tornassem fantasia na realidade
de um novo modo de conceber a vida, razão por que toda a decoração desse
estilo não pode ser vista como apêndice da arte do século XVIII, ou como
um desmembramento do barroco. O rococó deu luz à fantasia, estigmati-
zando a História da Arte de um labiríntico contorno da existência através
da, paradoxalmente moderada, aspiração ao absurdo. Uma simbiose de
sonhos e naturalismo, um cruzamento de natureza e ficção, uma conciliação
de luxo e simplicidade, um entrelaçamento de rompante e inação.
À luz da reflexão realizada neste texto, que pôs em destaque os
percursos e as expressões peculiares do estilo rocaille, podemos afirmar
que uma condensada harmonia entre o real e o sonho proporcionou uma
estética fundada no baixo contraste, na quase nula contradição, conspirando
para a gestação das formas de puro requinte que insuflaram o frescor de
uma nova aurora na ornamentação de manuscritos: o despertar de outro
e singular estilo da arte no Brasil do século XVIII. Voilà le rococo!

Artigo recebido em 25 junho de 2019. Aprovado em 8 de setembro de 2019.

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Elocução de proa:
o Diário da navegação
(1769-1771) de Teotônio
José Juzarte
Navegação. Montagem, fotografia (detalhe).

Jean Pierre Chauvin


Doutor em Teoria Literária e Literatura Comparada pela Universidade de São Paulo
(USP). Professor do Departamento de Jornalismo e Editoração da Escola de Comuni-
cações e Artes (ECA) e do Programa de Pós-graduação em Estudos Comparados de
Literaturas de Língua Portuguesa da USP. Autor, entre outros livros, de Crimes de festim:
ensaios sobre Agatha Christie. São Paulo: Todas as Musas, 2017. tupiano@usp.br
Elocução de proa: o Diário da navegação (1769-1771)
de Teotônio José Juzarte
Bow’s elocution: about Diário da navegação (1769-1771) by Teotônio José Juzarte

Jean Pierre Chauvin

resumo abstract
Neste artigo, examina-se o Diário da In this article, we examine Diário da
navegação, escrito pelo sargento-mor navegação, written by Major Teotônio
Teotônio José Juzarte no final do século José Juzarte on the end of 18th century.
XVIII. Orientado por preceitos de retó- Guided by precepts of rhetoric and poetics,
rica e poética, pretende-se aproximar o we intended to bring the reader closer to
leitor da mentalidade concebida pela the mentality conceived by the Portuguese
coroa portuguesa, durante o reinado crown during the reign of Dom José I. In
de Dom José I. Na análise, discute-se this analysis we discuss the place of the
o lugar da narrativa de viagem, com- travel narrative as a genre close to the
preendida aqui como gênero próximo epic form, which presupposes reading this
da épica, o que pressupõe ler o relato report beyond the anachronistic criteria
para além dos critérios anacrônicos de of originality, marks of subjectivity and
originalidade, marcas de subjetividade authorship. In this way, we rescue links be-
e autoria. Para isso, resgatam-se os vín- tween History (according to the conception
culos entre a História (segundo a con- of Herodotus) and Rhetoric, in agreement
cepção de Heródoto) e a Retórica, em with the precepts of Aristotle. This study
acordo com os preceitos de Aristóteles. considers the lexicon used by Juzarte and
O estudo considera o léxico empregado propose that his repertoire is appropriate to
por Juzarte, propondo que o repertório the theme, the style and the genre.
1
ARISTÓTELES. Retórica. São adequa-se a tema, estilo e gênero afins.
Paulo: Martins Fontes, 2012, palavras-chave: Teotônio José Juzar- keywords: Teotônio José Juzarte; History;
p. 6.
te; História; Retórica. Rhetoric.
2
JUZARTE, Teotônio José.
Diário da navegação. São Paulo:
Edusp/Imprensa Oficial, 2000,
p. 93.

3
TA U N AY , A l f r e d o
d’Escragnolle. História das ban-
deiras aulistas, tomo 2. São
Paulo: Melhoramentos, 1953, […] é possível estudar a razão pela qual tanto são bem-sucedidos os que
p. 144.
agem por hábito como os que agem espontaneamente, e todos facilmente
4
LE GOFF, Jacques. História e concordarão que tal estudo é tarefa de uma arte.
memória. Campinas: Editora da
Unicamp, 2016, p. 22. Aristóteles1
5
“Literatura, nessa acepção, só
seria criado no final do século Isso é tudo o acontecido, na verdade além de muitas outras coisas, que, por
XVIII na França e na Alema- não parecerem duvidosas ou menos verdadeiras, as não declaro.
nha, quando o termo passou a
designar o conjunto de todos Teotônio José Juzarte2
os textos que imitam ou repre-
sentam as paixões por meio
da palavra, com sensibilidade
Era imaginoso o nosso itinerante.
e imaginação”. TEIXEIRA, Alfredo d’Escragnolle Taunay3
Ivan. Hermenêutica, retórica e
poética nas letras da América
Portuguesa. Revista USP, n. 53,
São Paulo, 2003, p. 140. Desaprendemos na escola: a escrita da história seria imparcial e

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desinteressada, produzida por homens honestos, em busca da verdade. 6
Em nova transcrição do Diário

Artigos
da navegação, que apresenta
Atento aos fatos e evidências (documentos, testemunhos ou monumentos), emendas à edição comemora-
o historiador seria uma dentre as espécies de narrador dotada de virtudes tiva da Edusp – utilizada neste
trabalho –, Maria Aparecida
imprescindíveis ao relato fidedigno e, portanto, desprovido de artifícios,
Mendes Borges comenta o
já que reproduziria fielmente os eventos em estreita obediência e adesão sentido originalmente dado
à realidade que o circundava. Mas, como nos ensinou Jacques Le Goff, à palavra “monção”, que se
costumava aplicar a viagens da-
“Uma história é uma narrativa, verdadeira ou falsa, com base na ‘realidade quele feitio e porte: “A palavra
histórica’ ou puramente imaginária”.4 Há décadas se sabe que, pelo menos ‘monção’ significa ‘época ou
vento favorável à navegação –
até o final do Setecentos, a historiografia – assim como a poesia e outras
do árabe m’ausim: a estação da
artes – escrevia-se em acordo com determinadas convenções, herdeiras da peregrinação a Meca, tempo
tradição greco-latina, na Antiguidade. O que sucede à seleção e recolha de Ceifa’. E era usada pelos
portugueses para denominar os
de eventos, teoricamente dignos de compor o repertório do historiador, ventos periódicos que ocorriam
costuma acarretar em virulentas controvérsias no ensino de “literatura” nas costas da Ásia meridional.
A monção de Juzarte [...] como
(termo que só passou a existir, com o sentido que lhe damos hoje, a partir
todas no Brasil [...] submetia-se
do Oitocentos).5 Costuma-se atribuir pouca importância aos documentos e ao regime dos rios, partindo
versos produzidos no território luso-brasileiro, entre os séculos XVI e XVIII, normalmente na época das
cheias (março e abril), quando
a começar pela denominação de que seriam obras “maiores” e “menores”. os rios eram mais facilmente
Por essas e outras razões, supõe-se ser de interesse comentar o Diário da navegáveis; assim, viagens
menos arriscadas”. BORGES,
navegação, redigido pelo sargento-mor Teotônio José Juzarte entre março
Maria Aparecida Mendes. Diá-
de 1769 e maio de 1771.6 rio da navegação: edição e estudo
Para isso, seria importante lembrar que a arte de investigar e a arte de variantes dos manuscritos
luso-brasileiros. Tese (Doutorado
de persuadir nasceram durante o século V a. C., na Grécia: a História (cujo em Letras Clássicas) – USP, São
paradigma são as Histórias de Hérodoto) e a Retórica (sistematizada por Paulo, 2011, p. 14. Ver CUNHA,
Antônio Geraldo da. Dicionário
Aristóteles, no século seguinte). Examinadas de perto, elas compartilhavam
de etimologia. Rio de Janeiro:
alguns procedimentos: 1. sendo “artes” da palavra, envolviam a aplicação Nova Fronteira, 1986.
de artifícios específicos que produziam “efeito de verdade”; 2. pressupu- 7
“Decerto, sabemos que He-
nham a adequação do gênero, léxico e estilo à matéria de que tratavam. ródoto é o autor das Histórias,
obra na qual relata a guerra
Nesse sentido, uma e outra traduziriam o conceito grego de tekhné (ars, travada entre persas e gregos
segundo os latinos). durante os anos 481 a 479
a.C., constituindo-se na mais
Mas História e Retórica têm outra virtude em comum: ambas foram antiga obra historiográfica do
alvo de duras ressalvas durante a Antiguidade. Como se sabe, no Górgias Ocidente. Sobre o conteúdo do
de Platão, Sócrates criticava a atuação dos sofistas, que se supunham escrito herodotiano, Schlögl
informa que os debates polí-
capazes de persuadir quem quisessem sobre qualquer assunto. Seis ticos e religiosos fomentados
séculos depois, um filósofo latino adepto das ideias de Platão faria algo pela democracia ateniense, bem
como o pensamento filosófico e
parecido em relação às Histórias de Heródoto.7 Com efeito, em Da malícia as encenações trágicas nos tea-
de Heródoto, Plutarco fez ressalvas ao investigador grego, supondo que o tros de Atenas, influenciaram
seu estilo vivaz e agradável teria maior comprometimento com o “efeito” sobremaneira a composição de
sua obra”. SILVA, Maria Apa-
exercido pelas palavras do que com a sua exatidão, que se deveria pautar recida de Oliveira. Introdução.
pelo testemunho e precisão dos fatos. A questão é controversa. Villalba In: PLUTARCO. Da malícia de
Heródoto. São Paulo: Edusp,
I Varneda apresenta um contraponto fundamental ao de Plutarco, ao 2013, p. 42.
abordar a “Ars narrandi”: “No que diz respeito ao estilo e à forma da 8
VARNEDA, Père Villalba I.
narrativa histórica, poderíamos lembrar que, para Políbio, o historiador Ars narrandi. In: The histori-
deve dar atenção literária para que a narração [histórica] ilumine e não cal method of Flavius Josephus.
Leiden: E. J. Brill, 1986, p. 68.
confunda”.8 De todo modo, a aproximação entre a História e a Retórica No original: “On the question
não será despropositada. No estudo à tradução das Histórias de Heródoto, of the style and the form of his-
torical narrative, we may recall
Maria Aparecida de Oliveira Silva salienta que, “escrito em dialeto iônico, that for Polybius the historian
o texto de Heródoto traz expressões marcadamente orais, demonstrando must take great literary care
que seu conteúdo passou por longo processo de composição oral. Sabe- so that historical narrating en-
lightens and does not confuse”.
mos ainda que parte do seu texto foi recitado em público, nas cidades 9
SILVA, Maria Aparecida de
de Atenas e Olímpia, o que lhe rendeu a fama de ser um bom recitador, Oliveira. Introdução. In: HE-
tendo recebido uma quantia significativa como prêmio pela qualidade RÓDOTO. Histórias: Livro I,
Clio. São Paulo: Edipro, 2015,
da sua leitura”.9 p. 8.

ArtCultura Uberlândia, v. 21, n. 39, p. 205-222, jul.-dez. 2019 207


10
Argumento de Górgias, per- Tanto Sócrates, no século V a. C., quanto Plutarco, no primeiro sécu-
sonagem do diálogo homôni-
mo: “Maus, portanto, não são lo da era cristã, quiseram antepor discutíveis margens da honestidade (ao
os que ensinam; responsável orador) e da veracidade (ao historiador), já que a arte retórica, conforme
por isso e ruim não é a arte, sim
ensinada por Górgias, revelaria a má-fé do preceptor10; e a investigação,
segundo penso, quem a empre-
gou para fins menos bons. A proposta como salvaguarda da memória por Heródoto, revelaria a sua
oratória está no mesmo caso”. malícia.11
PLATÃO. Górgias. São Paulo:
Cultrix, 1970, p. 67. Como defende Christian Meier, durante a Modernidade os gêneros
11
Argumento de Plutarco,
históricos continuam a retomar modelos, a partir de discursos conside-
adepto da tradicional escola rados paradigmáticos. Esse estado de coisas se manteve, sem profundas
platônica: “A muitos, ó Ale- alterações conceituais, pelo menos até o final do Setecentos, quando a
xandre, o discurso simples e
fácil de Heródoto, que não se “História” deixou de significar “relato” e passou ao estatuto de Ciência,
aprofunda nos acontecimentos, Área do Conhecimento, Disciplina etc.: “Parece paradoxal que a palavra
ilude. A maioria vivencia isso
em razão de seu caráter, pois,
que mais tarde viria a designar ‘História’ não podia ser aplicada em seu
como afirma Platão, não é so- significado específico original à pesquisa sobre a maior parte da História,
mente de extrema injustiça, o porque, metodologicamente o passado, segundo Heródoto, só é pesquisável
que não é parecer ser justo, mas
também é obra de elevada ma- para as duas ou três últimas gerações”.12
lícia imitar um temperamento Ora, o Diário da navegação de Teotônio José Juzarte atende, ainda que
doce e generoso para que ela
seja escondida”. PLUTARCO,
parcialmente, tanto aos preceitos de Heródoto quanto os de Aristóteles: é
op. cit., p. 161. relato produzido “para que os acontecimentos passados não sejam extintos
12
MEIER, Christian. Antiguida- entre os homens com o tempo”13 e gênero “adequado a cada caso com o fim
de. In: KOSELLECK, Reinhart de persuadir”.14 O relato retém outro pressuposto do antigo modo de se
et al. O conceito de História. Belo
Horizonte: Autêntica, 2013,
fazer história: a longa e perigosa travessia pelos rios Tietê, Grande Paraná
p. 42. e Iguatemi, entre 1769 e 1771, embora narrada segundo um testemunho,
13
HERÓDOTO, op. cit., p. 28. não reivindicava para o comandante, em pessoa, a ideia de que se tratasse
14
ARISTÓTELES, op. cit., p. 12.
de uma jornada particular. Analogamente às jornadas épicas em verso, de
que os navegantes portugueses provavelmente teriam notícia e buscavam se
15
HANSEN, João Adolfo. Bar-
roco, neobarroco e outras ruí- aproximar, os episódios do Diário: a) imbuem-se da noção de coletividade;
nas. Revista Destiempos, México b) evidenciam a submissão da persona que escreve à Coroa, em acordo com
D. F., 2008, p. 201.
o pactum subjectionis. De acordo com João Adolfo Hansen,
16
KANTOROWICZ, Ernst H.
The King’s two bodies: a study
in mediaeval political theology. Os juristas contrarreformados juntaram à noção de res publica a de corpus
Princeton: Princeton University mysticum, fundando com ambas a de corpo político. É a doutrina suareziana do
Press, 1997, p. 193 e 194. No
original: “Under the pontifica- pactum subjectionis do todo do reino como “corpo místico”, que fundamenta a
lis maiestas of the pope, who sistematização e a centralização do poder monárquico e a conceituação do “bem
was styled also ‘Prince’ and
comum”, que no século XVII define o estatuto jurídico da pessoa em Portugal e
‘true emperor’, the hierarchical
apparatus of the Roman Chur- no Brasil. Lutero e outros reformados afirmam que o poder decorre diretamente de
ch tended to become the perfect Deus, que envia os reis para impor ordem à anarquia dos homens corrompidos pelo
prototype of an absolute and
rational monarchy on a mysti- Pecado original. Por meio dos jesuítas, principalmente, a Igreja católica combate as
cal basis, while at the same time teses reformadas, afirmando que Deus certamente é origem do poder, como causa
the State showed increasingly
universalis ou causa universal da natureza e da história, mas não causa direta
a tendency to become a quasi-
-Church or a mystical corpora- do mesmo, pois o poder decorre de um pacto de sujeição. Logo, a conceituação da
tion on a rational basis”. natureza do Direito Natural que estrutura a forma mentis e a posição social dos
súditos luso-brasileiros no pacto de sujeição é fundamental na definição do estatuto
jurídico da “pessoa humana” figurada nas representações.15

E, por fim, c) explicitam a causa a que se dedicam, como item de


pertencimento ao corpus mysticum, nos termos de Ernst Kantorowicz: “Sob
a pontificalis maiestas do papa, que era considerado ‘Príncipe’ e ‘Verdadeiro
Imperador’, o aparato hierárquico da Igreja romana tendia a ser o protótipo
perfeito de uma monarquia absoluta e racional de base mística, enquanto
simultaneamente o Estado mostrava incrementar a tendência a se tornar
uma quase Igreja ou uma corporação mística de base racional”.16

208 ArtCultura Uberlândia, v. 21, n. 39, p. 205-222, jul.-dez. 2019


No século XVIII, estávamos longe dos diários de teor privado, que

Artigos
passaram a circular como artefato literário (burguês, individual e mercantil)
durante o Oitocentos. Isso porque o Diário da navegação de Teotônio José 17
SILVEIRA, Marco Antonio.
Juzarte não era “propriedade” intelectual de um “autor”, ou de um “sujeito” O universo do indistinto: Estado
e sociedade nas Minas Setecen-
que tentasse soar “original” por aspirar à glória “literária”, nem suporia tistas (1735-1808). São Paulo:
a eventual circulação massiva do Diário entre os “plebeus” que cercavam, Hucitec, 1997, p. 46 e 47.
sem acessar, os espaços da corte. Seu relato seguia de perto a tradição das 18
“A questão que se coloca é a
crônicas e relações de viagem que circulavam em Portugal desde o final da de não confundir ou hierarqui-
zar as narrativas entendidas
Idade Média. A produção de versos ou narrativas, durante o Setecentos, como ‘históricas’ e as narrativas
também era um modo de se distinguir na sociedade cortesã. Observar, de ‘literárias’, como se uma corres-
perto, as regras encontradas nos tratados de História, Retórica (e Poética) da pondesse ao ‘real’ e a outra à
‘ficção’. O que distingue um e
Antiguidade – sem esquecer os manuais de cortesania –; seguir estritamente outro são os usos diferenciados
as Ordenações do Reino (conjunto de leis assinadas por Filipe II vigoravam que fazem das tópicas discur-
sivas, da disposição textual e,
desde 1603, nos domínios ibéricos) e renovar fidelidades à Igreja Católica muitas vezes, das figuras de
conferem àquele tempo e lugar, ações codificadas, pautadas pela prescrição elocução incorporadas no cor-
e a concepção moralizante. O diálogo entre os relatos de viagem e a forma po do texto, mas não uma su-
posta fidedignidade em relação
mentis do reino português eram evidentes. Na síntese de Marco Antonio a um possível ‘real’ sobreposto
Silveira, ao texto ou incorporado às suas
entrelinhas”. FELIPE, Cleber
Vinicius do Amaral. Itinerários
Apesar das variadas classes sociais existentes no interior do Império lusitano, o que da conquista: uma travessia por
definia primordialmente a participação no grupo dirigente era o prestígio; daí o fato mares de papel e tinta (Portu-
gal, séculos XVI, XVII e XVIII).
de a sociedade portuguesa apresentar uma estratificação estamental. Tal prestígio, Tese (Doutorado em História)
capaz de conferir “nobreza” aos membros do estamento, cada vez menos, durante – Unicamp, Campinas, 2015,
p. 18.
a época moderna, constituía privilégio exclusivo das antigas famílias proprietárias
de terra. Pelo contrário, à proporção que as conquistas no Ultramar avançavam
19
“A epopeia e a história, em
termos retóricos, afinam-se
e tornava-se mais evidente que a economia lusa era eminentemente mercantil, os aos gêneros demonstrativo
títulos honoríficos e a incrustação na máquina administrativa afirmavam-se como (ou epidítico) e deliberativo,
elogiando/aconselhando e/ou
meios de distinção. Ambos os caminhos, afinal, aproximam do rei.17 censurando/desaconselhando
de forma instrutiva e deleitosa.
Em nossos dias, a menor atenção ao gênero (diário) e ao tema (via- Quanto às etapas do discurso,
ambos os gêneros propõem
gem), especialmente na área de Letras, parece guardar relação com a su- tópicas de invenção, partes
premacia dos gêneros artísticos, em detrimento dos textos circunstanciais da disposição e figuras de elo-
cução em conformidade com
ou de cunho “administrativo”18 – como sugere o título dado ao relato de a verossimilhança e decoro
Juzarte. Essa distinção, que se supõe tão objetiva e clara, entre os textos próprios, propondo um estilo
“artísticos” e os de cunho “administrativo”, provavelmente seja reforçada conveniente à matéria tratada”.
Idem, ibidem, p. 17.
desde meados do século XIX, quando se passou a acreditar e defender
20
LULIO, Antonio. Sobre el deco-
que houvesse maior “espontaneidade” nas letras produzidas a partir da ro de la poética. Madri: Ediciones
segunda metade do Setecentos (durante o chamado “arcadismo”), compa- Clasicas, 1994, p. 57 e 59.
rativamente aos artifícios abusivos de que se fez uso entre os séculos XVI e 21
Adota-se esta terminologia
XVII. Analogamente à desvalorização das preceptivas como componentes em conformidade com o que
sugerem Michel Patillon (Cf.
nas letras coloniais, inverteu-se o sinal de “artístico” que, até o final dos RUFUS. Art rhétorique. Paris:
Setecentos, era entendido segundo a concepção tradicional de representação Belles Lettres, 2001) e Marcelo
Lachat, a quem agradeço por
verbal sujeita às regras da “arte” (tekhné > ars > arte), em que tema, gênero,
ter facultado a leitura de seu
léxico e forma eram acionados de acordo com o conceito de decorum – que ensaio (ainda inédito) Nuevo
pressupunha a adequação entre o assunto e a composição que o enfor- descubrimiento del gran Río de las
Amazonas (1641), de Cristóbal
mava.19 Conforme prescrevia o espanhol Antonio Lulio, no século XVI, de Acuña, e Viagem (1746), de
ao evocar as lições de Aristóteles: “Resta-nos indagar que coisa convém Pedro de Santo Eliseu: história,
poesia e política sobre o Rio
à poesia de cada classe, que forma merece elogio. A primeira de todas e
das Amazonas. Ver LACHAT,
a mais destacada do gênero dramático é a tragédia. Nela se apresentam Marcelo. Nuevo descubrimiento,
personagens [muito] insignes, por exemplo, heróis e reis cujas façanhas e op. cit., ArtCultura: Revista de
História, Cultura e Arte, v.
memória contém os antigos monumentos”.20 21, n. 38, Uberlândia, jan.-jun.
Ressalvadas as diferenças entre as “espécies”21 de relato, poder-se-ia 2019.

ArtCultura Uberlândia, v. 21, n. 39, p. 205-222, jul.-dez. 2019 209


FELIPE, Cleber Vinicius do
22
aplicar ao Diário de Juzarte as precauções contra abordagens superficiais e
Amaral, op. cit., p. 13.
impressionistas, que atribuem critérios indevidos a textos de outro tempo
23
PÉCORA, Alcir. Máquina
de gêneros. São Paulo: Edusp,
e lugar. Conforme salienta Cleber Vinicius do Amaral Felipe,
2001, p. 18.
24
Cícero defendia três modos É possível distinguir, em geral, três posturas recorrentes no que se refere aos estudos
de lograr persuasão (tria officia): da História Trágico-Marítima: uma delas apreende esta narrativa como gênero novo,
convencimento (pela razão),
noticioso, marginal, híbrido, escrito com maior “liberdade” em relação aos proto-
comoção (pela paixão) e agrado
(pelo deleite). A esse respeito, colos retóricos se comparado aos gêneros “canônicos”; outra costuma associá-los à
ver TRINGALI, Dante. Introdu- estética maneirista ou barroca para justificar a presença de uma suposta “retórica
ção à retórica. São Paulo: Livraria
Duas Cidades, 1988, p. 21 e 22. da decadência”; a última destaca seu teor “disfórico” e apreende os relatos como
25
Ver MARCOVITCH, Jacques.
sendo a contraparte “realista” da fantasiosa “euforia” épica.22
Prólogo. In: JUZARTE, Teotô-
nio José, op. cit., p. 8. Alguns dos Do mesmo modo que não se aplicavam juízos de valor, como “obscu-
exemplares da coleção Uspiana
foram comercializados por ro”, “confuso” ou “dicotômico” à poesia dita “barroca”, não se atribuíam
preço diferenciado, na época, elementos “pré-românticos” aos versos produzidos durante o chamado
graças à qualidade do papel
(couché fosco com gramatura
“arcadismo”, nem se julgavam os diários de navegação como mais ou menos
de 120g/m2) e capa dura (em “agradáveis”, “espontâneos”, “originais” etc.; mas, sim, de acordo com o
cartão supremo, com gramatu- grau de informatividade e clareza que traziam, o potencial de exploração
ra de 350 g/m2), encimada por
letras douradas. Nessa edição, do lugar, a possibilidade de aumentar os súditos da Coroa nas possessões
o Diário da navegação ocupa do reino etc. Como pretende produzir certos efeitos, o Diário da navegação
setenta e quatro páginas, no
formato de 22,5 por 29,5cm. A
exagerava feitos, com vistas a estimular determinadas reações, de modo
despeito do apelo estético com similar ao que sucedia na correspondência dos jesuítas, que não eram
que o exemplar foi editado, “absolutamente uma tábua em branco impressionada por acontecimen-
não é o nome do sargento-mor
Teotônio José Juzarte que vai tos vividos pelos missionários – nem objetivamente, como representação
na capa, tampouco na lombada ou notícia da gente e terra do Brasil; nem subjetivamente, como impacto
do volume. O Diário é assinado
por Jonas Soares de Souza e
sentimental ou expressivo dessa notícia em certa mentalidade católica
Miyoko Makino, identificados europeia”.23 Tudo isso sem perder de vista a maior ou menor obediência –
como organizadores do mate- do cronista, piloto ou comandante de expedição – aos preceitos do gênero
rial. Somente na página 12, a
primeira da “Apresentação” ao em que a sua narrativa se inscrevia, com a expectativa de persuadir(em)
livro, consta o nome do relator os destinatários, os mais e os menos graúdos, a que se destinavam, como
da viagem realizada entre 1669
e 1671.
ensinava Cícero.24
26
FRANÇA, Jean Michel Car-
valho. Um épico da coloniza- Reedição
ção. Folha de S. Paulo, 8 abr.
2001. Disponível em <https://
www1.folha.uol.com.br/fsp/
Em 2000, duzentos e vinte e nove anos após a redação do Diário, a
mais/fs0804200114.htm>. Aces- Editora da Universidade de São Paulo, em parceria com a Imprensa Oficial
so em 6 jan. 2019. do Estado editou doze obras consideradas representativas da historiografia
nacional, como forma de celebrar os “500 anos do Brasil”, como afirmava
o ex-reitor Jacques Marcovitch no “Prólogo”.25 A edição foi saudada por
diversos jornais, em que se destaca a resenha de Jean Michel Carvalho
França, para quem: “Juzarte não é um homem de grande cultura nem tem
destacados dotes literários, mas seu diário, escrito numa linguagem seca
e objetiva, constitui, ao lado do Divertimento admirável (1783), de Manuel
Cardoso de Abreu, o mais precioso e rico documento disponível sobre a
navegação fluvial no Brasil Colônia”.26
De volta ao livro. Após a sucinta “Apresentação” (oito páginas, in-
cluindo as dez notas de rodapé) escrita por Jonas Soares de Souza e Miyoko
Makino, somos introduzidos ao texto, iniciado na página vinte e um do vo-
lume. O Diário da navegação se estende por setenta e quatro páginas e precede
a versão fac-similar, bem como os mapas da navegação – desenhados pelo
próprio sargento-mor – e reunidos pela primeira vez, em único volume, ao
texto. Os pesquisadores concluíram tratar-se de “notas de viagem, toscas e

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rudes, de soldado semianalfabeto, mais cheias de interessantíssimos infor-

Artigos
mes”.27 Talvez se pudesse supor, com muitas reservas, que não houvesse
primor de estilo na redação, desde que o Diário de Teotônio José Juzarte
fosse comparado com outros relatos de seu tempo e lugar.
Por outro lado, deve-se salientar que o documento foi escrito por um
homem de graduação relativamente modesta, incumbido de comandar a
“jornada monçoeira” (termos de Afonso d’Escragnolle Taunay).28 De todo
modo, para além de discussões em torno da linguagem e do estilo, trata-se
de documento importantíssimo, especialmente caso a hipótese do leitor
seja reconstituir parcialmente a forma mentis de um punhado de homens
letrados, a ocupar cargos nas forças subordinadas à capitania de São Paulo
e, em segunda instância, à Coroa.
O Diário da navegação constitui documento de outros tempos e luga-
res. Portanto, precisa ser lido com olhos menos viciados que os autores de
histórias da literatura “brasileira” – quase sempre fundados em anacro-
nismos – que comprometem o teor e a pertinência do que se lê, à cata das
“intenções” do “autor”. Conforme alertava Ivan Teixeira, “nesse processo
de acomodação do passado aos interesses do presente, formulou-se um
programa de desconsideração sistemática pelo conhecimento das normas
específicas de produção textual de cada um dos períodos”.29 Objetivamen-
te, expedições como aquela sob o comando de Teotônio José Juzarte eram
operações complexas e de enorme proporção, maiormente para os padrões
da época. No espaço de três dias, o sargento-mor nomeia os principais
rios a serem percorridos por “quase oitocentas pessoas” em “trinta e seis
embarcações”.30 Eles partem do porto de Araraitaguaba (que corresponde,
atualmente, ao município de Porto Feliz, no interior de São Paulo) e seguem
até as bordas do Iguatemi.
Espécies discursivas produzidas entre os séculos XV e XVIII, os di-
ários são aparentados às crônicas do reino e das relações de viagem. Esta
lição, ensinada por Jaime Cortesão no estudo introdutório à Carta de Pero 27
SOUZA, Jonas Soares de e
MAKINO, Miyoko. Apresen-
Vaz de Caminha (publicado em 1943), autoriza-nos a discutir alguns as- tação. In: JUZARTE, Teotônio
pectos que se imagina serem levados em conta pelo leitor. De acordo com José, op. cit., p. 18.
o historiador português, 28
Ve r TA U N AY, A l f r e d o
d’Escragnolle, op. cit., p. 139.
As primeiras relações [de viagem] foram por certo traçadas no mar pelos escrivães 29
TEIXEIRA, Ivan, op. cit., p.
das caravelas do Infante D. Henrique. No livro ou livros de bordo, inscreviam-se 138 e 139. Por sua vez, Cleber
Felipe ressalta que “discorrer
com os dados de carácter geográfico sobre os novos descobrimentos – rumos, número sobre um mundo extinto sig-
de milhas ou léguas percorridas, terras descobertas e nomenclatura imposta – as nifica admitir a impossibili-
dade de reconstitui-lo em sua
trocas comerciais realizadas com os indígenas, sob a forma de despesa e de receita. completude. Logo, refazer os
Como era lógico os escrivães apontavam essas notas progressivamente e dia a dia, ao passos dos homens de outrora
sabor dos acontecimentos. Daí os livros ou relações dos escrivães tomarem a forma não significa ressuscitar suas
intenções ou vontades, mas
de diários, ainda que sem continuidade inalterada.31 repor suas escolhas narrativas,
levantar hipóteses sobre seus
encadeamentos e propor uma
Em Portugal, a tradição de escrever diários e congêneres remontaria forma verossímil de concebê-
a meados do século XV, o que explicaria o fato de que “todos os oficiais de -las”. FELIPE, Cleber Vinicius
el-rei, desde o capitão-mor da Índia até aos escrivães e pilotos, empolgados do Amaral, op. cit., p. 9.

pela epopeia, deslumbrados pelo cenário sempre variado dos mundos no- 30
JUZARTE, Teotônio, op. cit.,
p. 21.
vos, quando não trabalhados por ambições secretas e ruins, tomavam da
31
CORTESÃO, JAIME. O autor
pena e endereçavam ao rei cartas-narrativas, em que fulguram catanadas
e sua obra. In: A Carta de Pero
épicas ou palpitam informações de gentes e terras peregrinas”.32 Vaz de Caminha. Lisboa: INCM,
Teotônio José Juzarte não foi o primeiro (nem o último) a empreender 1994, p. 15 e 16.

a jornada pelos rios do Tietê, Paraná e Iguatemi. Antes desse português 32


Idem, ibidem, p. 17.

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33
Ve r TA U N AY, A l f r e d o assumir aquela longa e temerária empresa, havia relatos de que a viagem
d’Escragnolle, op. cit., p. 140
e ss. teria sido aventada, e parcialmente levada adiante, por D. Luís de Céspe-
34
Ver SOUZA, Jonas Soares
des, em 1628; por João Antônio Cabral Camelo, em 1727; por D. Antônio
de e MAKINO, Miyoko, op. Rolim de Moura (futuro conde de Azambuja), em 1751.33 Decorridos alguns
cit., p. 19. anos da façanha operada pela tripulação e passageiros sob o comando de
35
JUZARTE, Teotônio, op. cit., Juzarte, o brigadeiro José Custódio de Faria escreveu um Diário de viagem
p. 15.
da cidade de S. Paulo à Praça de Nossa Senhora dos Prazeres do Rio Iguatemi
36
“Teotônio José Juzarte, que (1774-1775).34 É razoável supor que o conhecimento de experiências prévias
na folha de rosto do seu Di-
ário se intitula sargento-mor, em navegação pelos perigosos rios tenha prevenido os tripulantes sobre
posto outrora correspondente como proceder, ao se depararem com redemoinhos, corredeiras, ondas,
à graduação de major, desem-
penhou papel de destaque
tempestades e outros fenômenos.
sobretudo no governo de Dom
Luís Antônio de Sousa, de 1765 Narração
a 1775”. SOUZA, Jonas Soares
de e MAKINO, Miyoko, op.
cit., p. 15. Percorramos o Diário da navegação. Antes de principiar a jornada,
37
JUZARTE, Teotônio, op. cit., vinham os preparativos. Cada canoa compunha-se de “oito homens”, a
p. 24. saber: piloto, proeiro e remeiros. Durante a jornada, tripulação e passa-
38
Idem, ibidem, p. 25. geiros se alimentariam basicamente de “feijão, farinha de mandioca ou de
39
Idem, ibidem, p. 27. milho, toucinho e sal […], exceto alguma caça ou peixe se o há”. Súditos
40
Idem. que são, os navegantes hasteiam, na popa da canoa maior (denominada
“capitânia”) “uma bandeira com as armas portuguesas”.35
Além de relacionar e descrever as pessoas, seus mantimentos e demais
haveres, o sargento-mor36 reproduz o modo como conduziam a embarca-
ção: “Nesta canoa embarca o guia [...] que é um homem dos mais práticos
e inteligentes daquele sertão, ao qual todos os mais pilotos obedecem”.37
O depoimento é muito relevante. A disposição dos tripulantes reproduz a
concepção hierárquica que caracteriza o burocrático Estado português: o
guia precede os pilotos, que estão acima dos proeiros; estes, por sua vez,
mandam nos remeiros.
No Diário de Teotônio José Juzarte, chamam atenção os constantes
anúncios sobre os “perigos” enfrentados pela expedição, dentre eles a
convivência com “bichos que se metem muito, os quais são as cobras de
extraordinária grandeza e diversas qualidades”.38 Embora pretenda ser
“relato de navegação”, o diário prenuncia ações, o que vai de encontro
às normas que regulavam a composição de diários, relações, crônicas de
viagem e congêneres, destinados às autoridades locais e à Metrópole: “Das
dificuldades destes rios e seus perigos darei ao diante notícia, como também
do gentio suas armas, e figuras”.39
Mas, a viagem ainda não começou. Antes de partirem, as trinta e seis
embarcações assistirão ao conjunto de rezas coletivas e receberão a bênção
do “pároco”. Após entoarem todos a “ladainha de N. Senhora”, as canoas
finalmente deixam o porto. O narrador declara ter gasto “entre o porto
de Araraitaguaba e a povoação de Guatemi dois meses e dois dias, e em
toda a viagem dois anos e dois meses; que, pelo expressado […] se virá no
conhecimento dos trabalhos, fomes, necessidades, perigos e mortandade
que sofremos”.40 Afora repetir certas fórmulas discursivas, outra caracte-
rística merece ser destacada. Relato parcial que o diário é, determinados
episódios são sumariados, tratados como acontecimentos de menor monta,
enquanto outros são sobrevalorizados – como se constituíssem episódios
mais relevantes ou dignos de figurar em uma obra sabidamente destinada
à Coroa, que dava sequência à tradição de narrar as conquistas ibéricas na
América, entre os séculos XVI e XVIII. Alfonso Mendiola recorda, a esse

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respeito, que

Artigos
Alguns manuais de retórica da segunda metade do século XVI espanhol começam a
tomar la proposta de Petrus Ramus: dar primazia à lógica (argumentação) sobre a
retórica (estilística). A lógica aparece como una espécie de armação formal e a retó-
rica como seu vestido. Ao final do século XVII, o discurso sobre o método terminará
por substituir os manuais de retórica. Todavia, apesar do impulso de Ramus para a
retórica restringida, a educação jesuíta manterá a vigência da retórica, em sentido
amplo, no século XVIII adiante.41

A tradição ensina o decoro. O ajuste conveniente de lentes, por parte


do diarista, não era sinal de idiossincrasia, nem marca exclusivista do “seu”
Diário. Algo similar se observa na Carta redigida por Pero Vaz de Caminha,
em que Capistrano de Abreu atesta que “uma lacuna e bem notável sente-se
na epístola [...]: o sol ardente, o luar, as constelações novas, tão diversas das
do hemisfério setentrional, não lhe arrancaram uma referência sequer. A
sua ignorância de singraduras e marinharias se estenderia aos fenômenos
astronômicos?”.42
Reembarquemos. Tendo-se abordado de que matéria o Diário trata,
passemos à distribuição de suas partes: Introito/Preparativos para a Viagem
– entre as páginas 22 e 31; Narração sobre o Rio Tietê – entre as páginas 32
e 51; Relação de Cachoeiras do Rio Tietê – entre as páginas 52 e 53; Nar-
ração sobre o Grande Paraná – entre as páginas 54 e 68; Narração sobre o
Iguatemi – entre as páginas 69 e 94. Os relatos do sargento-mor detalham a
dura rotina dos tripulantes. Ela se divide, basicamente, em três momentos,
ao longo do dia. Os trabalhos relativos à navegação aconteciam todos os
dias, aproximadamente entre as oito e as dezessete horas. Desse horário
em diante, preparavam-se as refeições a serem consumidas no dia seguinte
e, à noite, embicavam-se as embarcações em barrancos, onde tripulação
e passageiros, “arranchados”, pousavam. Alternativamente, atavam-se as
canoas umas às outras, à margem do rio, e se instalavam mosquiteiros, além
de outras coberturas, que protegiam tripulantes e passageiros de insetos e
outros animais, durante o descanso noturno.
Após dois dias e meio, despendidos nos preparativos para a longa
jornada pelos rios, eis que em treze de abril “Principia o Diário da navegação
destes [daqueles] rios”.43 Afora a regularidade que empresta ao relato, as
constantes referências aos perigos, distâncias e procedimentos relacionados 41
MENDIOLA, Alfonso. La am-
à navegação sugerem que essas repetições não seriam gratuitas. Provavel- plificatio en el género epidíctico
del siglo XV. Historia y Grafia,
mente, ao anunciar as “nuvens” de mosquitos, ou descrever “cobras, onças n. 43, México D. F., 2014, p. 5.
e tigres”, Teotônio José Juzarte pretendesse atribuir evidência e emprestar 42
ABREU, J. Capistrano de. O
maior vivacidade ao relato. descobrimento do Brasil. São Pau-
Nesse sentido, o relato se aproxima da tradição épica, pois se trata lo: Martins Fontes, 1999, p. 188.
de uma narrativa de feitos maiores, dignos de figurar no Diário – docu- 43
JUZARTE, Teotônio, op. cit.,
mento cujo destinatário inicial é o governador da capitania de São Paulo p. 30.

e os representantes da Metrópole portuguesa. Como se supõe, Juzarte 44


“[Hypotypose] figura de enun-
ciação, reagrupa o conjunto
teria conhecimento do paradigma herodotiano, o que explicaria, inclusi- variado de procedimentos
ve, a presença da hipérbole e da hipotipose44, como figuras retóricas que que tornam vivaz e realista
uma narração ou descrição,
mobilizam o páthos e produzem efeito de realidade. Essa aproximação do
com o objetivo de provocar
modelo grego parece ser consistente, tendo em vista o modo como procedia emoção, o riso, por um efeito
Heródoto: “Para responder porque havia a guerra, quais eram as suas cau- de realidade”. ROBRIEUX,
Jean-Jacques. Éléments de rhéto-
sas, Heródoto recorre […] ao motivo homérico, ou seja, a acontecimentos rique et d’argumentation. Paris:
que eram interpretados a partir de categorias que derivam da Ilíada. Para Dunod, 1993, p. 71.

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45
EYLER, Flavia Maria Schelee. ele, os grandes confrontos entre os helenos e os bárbaros começaram em
Heródoto de Halicarnaso. In:
PARADA, Maurício (org.). Os virtude do rapto de Ío ou Helena de modo que a “vendeta” repetida trazia
historiadores: clássicos da His- consigo uma escalada de coisas nefastas”.45
tória. Petrópolis-Rio de Janeiro:
Mas, como representar vivacidade no relato testemunhal? João
Vozes/PUC-Rio, 2012, p. 12.
Adolfo Hansen relembra que, “na ekphrasis, a palavra é especificada segun-
46
HANSEN, João Adolfo. Ca-
tegorias epidíticas da ekphrasis. do várias qualidades que se aplicam fazendo o discurso convergir para o
Revista USP, n. 71, São Paulo, efeito de enargeia ou evidentia: pura, clara, nítida, nobre, rude, veemente,
2006, p. 88.
brilhante, vigorosa, complicada, elegante, ingênua, picante, graciosa,
BOULAY, Bérenger. Effets de sutil, agradável, vivaz – bela, enfim”.46 A seu turno, Bérenger Boulay
47

présence et effets de vérité dans


l’historiographie. Littérature, observa que a palavra “latina evidentia traduz o termo grego enargeia, que
n. 159 (Écrire l’histoire), 2010. designa, em contexto retórico, não somente uma figura particular, mas
Disponível em <http://www.
fabula.org/atelier.php?Effets_
um efeito do discurso que consiste em suscitar a imaginação do leitor ou
de_presence#_ftnref>. Acesso do auditório, de maneira a fazê-lo ‘ver’ o que é descrito ou racontado”.47
em 1 jan. 2018.No original: “Le Ao se debruçar sobre os gêneros narrativos que circularam no século
latin evidentia traduit le terme
grec enargeia qui désigne, en XVII, Eduardo Sinkevisque aponta para o fato de que, “na elocução do
contexte rhétorique, non pas gênero histórico seiscentista a ecfrase é fundamental para a composição
une figure particulière, mais
un effet du discours consistant
da narrativa, sendo exercitada de modos específicos pelo gênero. Ela é
à susciter l’imagination du formada a partir de descrições e digressões amplificativas, cujo efeito de
lecteur ou de l’auditeur de ma- verdade, e não sua finalidade, é a vivacidade (enargeia) historiográfica”.48
nière à lui faire «voir» ce qui est
décrit ou raconté”. Com ou sem limitações, em tese, decorrentes de sua ocupação modesta,
48
SINKEVISQUE, Eduardo.
Teotônio José Juzarte parece dar continuidade ao gênero narrativo que
Usos da ecfrase no gênero his- ainda vigorava em Portugal no século seguinte.
tórico seiscentista. História da Quanto à linguagem (ou elocução) empregada pelo comandante
Historiografia, n. 12, Ouro Preto,
2013, p. 46. da expedição, observa-se que ele busca aferir exatidão e objetividade ao
49
“Varonil, a técnica do sublime
relato. Sob essa ótica, a repetição de determinadas expressões, como “ama-
exige do orador tudo o que nhecendo este dia”, parece atribuir à narrativa maior fidelidade e lineari-
também atribui-se, geralmen- dade ao que se descreve, como se a rotina diária contagiasse a dicção do
te às propriedades do herói”.
GAMA, Luciana. A retórica próprio narrador. Simultaneamente, o sargento-mor reivindicava para si
do sublime no “Caramuru”: e a tripulação certos gestos de heroísmo.49 O brilho projetado na narrativa
poema épico do descobrimento
da Bahia. Revista USP, n. 53, São
espelharia as virtudes do comandante que a assina? É possível afirmá-lo,
Paulo, 2003, p. 125. caso aproximemos a espécie “diário” dos poemas épicos que circulavam
50
Idem, ibidem, p. 122 e 123. naquele tempo. Por exemplo, ao analisar O Caramuru de Santa Rita Durão,
51
Ver PÉCORA, Alcir, op. cit., Luciana Gama percebeu que o fato de enaltecer obstáculos e adversários
p. 18 e ss. implicava elevar a estatura dos próprios navegantes, para além do nível
52
“Durante o século XVI já ordinário dos homens fincados na terra: “Estamos sob o domínio do es-
não se realizam juízos legais, tilo sublime quando o que nos deleita não são os engenhos utilizados na
à maneira antiga; por isso a
narração é tematizada com imitação, mas justamente quando o efeito é tão grande que não há espaço
respeito ao gênero epidítico. para que se perceba a técnica utilizada”.50
Além disso, os primeiros ma-
nuais de como escrever história
Ao lançar mão de artifício similar, Juzarte não estaria sendo “es-
são dessa época, e o gênero pontâneo” (como reparou Alcir Pécora51, ao analisar as cartas do padre
histórico se caracteriza como Antônio Vieira, escritas com quase um século de antecedência). Tampouco
una variante do epidíctico. A
história é vista como um relato a persona do diarista estaria empenhada na exatidão do relato (como de-
para jugar através da moral fendia Plutarco, na ressalva a Heródoto). Como amplificatio52, um recurso
as acciones passadas. Por isto,
a qualidade de brevidade da
ensinado nos tratados da Antiguidade, recorrer à descrição hiperbólica de
narratio é abandonada nessas feras, animais peçonhentos, pedras, correntezas e tempestades permitiria
obras, e substituída pela nar- ao narrador aproximar o teor do Diário às grandes jornadas que caracteri-
ração desmembrada, baseada
na amplificatio”. MENDIOLA, zavam os textos de viagem redigidos por escrivães e pilotos portugueses,
Alfonso, op. cit., p. 3. desde meados do século XIV.
Outro efeito logrado pelo sargento-mor era afiliar-se a auctoritas
relacionada ao gênero. A “autoria” não tinha a importância que assumiu
a partir do século XIX53; mas, pode-se supor que fosse imprescindível ao
sargento-mor evidenciar as suas virtudes de homem corajoso e letrado, a

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perseverar como condutor da expedição, soldado de Deus e do Rei, pois

Artigos
habilidoso nas armas e cristãmente virtuoso54, como recomendava a pa-
trística: “Segundo Agostinho, a virtude é uma boa qualidade da mente.
No entanto, não pode estar em alguma espécie de qualidade, senão na
primeira, que é a do hábito. Logo, a virtude é um hábito”.55 Produzido por
um homem que se pretende distinguir entre os seus e exibir-se da melhor
forma perante os superiores na longa correia administrativa – como o go-
vernador da capitania de São Paulo, Dom Luís Antônio de Sousa Botelho
e Mourão, em relação ao sargento-mor –, o Diário alterna acontecimentos
e eventos, conforme a perspectiva (ora rente aos acontecimentos, ora mais
apartada deles) implementada por Juzarte. Logo nos primeiros dias da
longuíssima jornada, relatam-se dois partos entre as passageiras, bem como
uma disfunção intestinal, que atingiu a muitos mais: “assim se levou toda
a manhã do dia doze de abril. Porém, inda aqui não pararam tantos incô-
modos, trabalhos e impertinências, porque estando tudo na forma do dito
sobreveio uma diarreia geral por homens, mulheres e crianças, de tal sorte
que, uns escondidos pelo mato, outros desfalecidos que não se moviam
de um lugar, outras crianças em artigo de morte, a tudo isso se supria na
melhor forma que permitia a ocasião e o país”.56 53
Conforme salienta João Adol-
Além de prometer relatos futuros, o diarista alterna fórmulas discur- fo Hansen, “é apenas no século
sivas que marcam a passagem do tempo, na forma do que foi e ficou “dito” XVIII que surge o autor-presen-
ça e a generalização atual da
ou “expressado”. Essa oscilação entre as matérias que “foram” e “terão autoria, como identidade ideal
sido” soma-se às mudanças de registro (ou elocução) dos assuntos. Ora se e/ou causalidade psicologista, é
invariavelmente a de esquemas
narram gestos maiores, como a proteção de uma jovem mãe, ameaçada de projetivos muito próximos aos
morte por seus familiares contrários à sua gravidez; ora acontecimentos da exegese cristã que alegava
menores, como a narrativa dos métodos com que se enfrentou a diarreia a santidade do Autor quando
se pretendia provar o valor
coletiva “a uns dando-lhes remédios pela boca, a outros ajudando-se com de um texto”. HANSEN, João
cristéis e outros remédios, que se usam, pela via, para impedir a moléstia de Adolfo. Autor. In: JOBIM, José
Luís (org.). Palavras da crítica:
que já estavam todos tocados, a que se chamava vulgarmente corrução”.57 tendências e conceitos no estu-
Como se disse, o Diário de Juzarte não traz inovações, nem se trata de obra do de literatura. Rio de Janeiro:
original, solta no vácuo e desvinculada dos gêneros que a precederam. Imago, 1992, p. 14.

Como salienta Sinkevisque, o testemunho importa como método, e não 54


Ao resgatar a “vita” exemplar
de Bernardo Vieira Ravasco, se-
como traço “individual”: cretário de estado do Brasil, em
exercício na Bahia entre 1646
Os modelos da história seiscentista remontam à chamada Idade Média e à Antigui- e 1697, Marcelo Lachat cons-
tatou que as biografias sobre
dade greco-romana. Trata-se de um gênero das letras a ser lido por meio da Poética o poeta participavam de uma
e da Retórica aristotélicas e da Arte Poética de Horácio, pois o discurso se faz in “elaboração” da vida exemplar
de Ravasco, fundada no “topos
ordo naturalis (Horácio), com elocução na primeira pessoa testemunhal, de um antigo […] das ‘armas e letras’
narrador não autor das matérias, mas ponderador, que discorre ou faz arrazoados e […] recorrente nas letras por-
juízos a respeito de ações sucedidas a particulares. A testemunha ocular é uma das tuguesas e luso-brasileiras dos
séculos XVI a XVIII, confere
posições da persona historiador. Ela pode ser fabricada pelo testemunho de outros, verossimilhança à [sua] persona
por meio da recolha da oralidade ou da leitura das auctoritates do gênero que, histórica”. LACHAT, Marcelo.
Saudades de Lídia e Armido, po-
entretanto, não deixa de se fazer com a credibilidade da visão.58 ema atribuído a Bernardo Vieira
Ravasco: estudo e edição. São
Isso se verifica com frequência nas entradas do Diário. Ao longo Paulo: Alameda, 2018, p. 15.

da travessia, o sargento-mor descreve dezenas de cachoeiras, cada uma 55


AQUINO, Tomás de. As virtu-
des morais. Campinas: Ecclesiae,
identificada por nomes de origem tupi, motivados pela semelhança com 2012, p. 18.
animais e elementos da natureza, ou a assinalar circunstâncias específicas. 56
JUZARTE, Teotônio, op. cit.,
Providencialmente ou não, a primeira queda d’água evoca a presença de p. 30.
ninguém menos que o padre José de Anchieta, que ali estivera com os 57
Idem.
índios, dois séculos antes: 58
SINKEVISQUE, Eduardo, op.
cit., p. 47.

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59
JUZARTE, Teotônio, op. cit., Em outro tempo navegou por esta cachoeira um religioso da companhia de Jesus
p. 32.
de virtude chamado o Pe. José de Anchieta, qual andava catequizando os índios, e
TAUNAY, Alfredo d’Escrag-
60
pregando-lhe missão, os quais vindo com ele em uma canoinha a embarcaram no
nolle, op. cit., p. 144.
meio desta cachoeira, largando o padre no fundo da mesma, passando muito tempo,
61
JUZARTE, Teotônio, op. cit.,
p. 33. vendo que o padre não surgia acima, cuidando estaria já morto, mergulhou um dos
índios ao fundo e o achou vivo sentado em uma pedra rezando no seu breviário, e
62
Idem, ibidem, p. 33 e 34.
por isso ficou o nome a esta cachoeira de Abaramanduaba.59
63
Idem, ibidem, p. 34.
64
Idem.
O acento anedótico do episódio não impediria que fosse lido feito
evento exemplar, como se Juzarte evocasse e justificasse a evangelização
dos índios, realizada duzentos anos atrás. Ao proceder dessa maneira, o
comandante da expedição não só reafirmava as virtudes do perseverante
Anchieta; ressaltava, também, a própria crença do soldado em Deus, sua
fidelidade católica à Igreja e evidente submissão à Coroa. Embora o obje-
tivo da missão fosse povoar vilas à margem do Iguatemi, a aproximação
entre o padre e o sargento convertem a ambos em soldados que agiam em
nome do cetro e da mitra, pela expansão do reino e o aumento do rebanho.
Teotônio José Juzarte sobrevaloriza os “perigos” (talvez a palavra mais
repetida ao longo do seu relato). De acordo com Taunay, “não há passo
difícil em que o nosso autor não lhe pormenorize os trabalhos e riscos”.60
Dentre as sucuris, corais, jararacas e cascavéis que a expedição mata, a tiro
de bala, há aquelas “tão venenosas que mordendo em qualquer pessoa
instantaneamente fica sem vista e entra a exalar sangue pelos olhos, boca
e nariz, e pelas unhas e o mais que dura vivo são vinte e quatro horas”.61
Homens bravios e, no geral, destemidos, sua fé em Deus não impede
padecerem com tormentas vindas do céu, às quais respondem com algu-
ma fuga e muita reza: “passamos esta noite sofrendo esta tão horrorosa
tempestade molhando-se tudo, e caindo dois raios que, despedaçando e
desgalhando grossas árvores, nos vimos quase nos últimos fins de vida
entoando todos a ladainha de N. Senhora e cada um se recomendava ao
santo de sua maior devoção”.62 O dia quinze de abril de 1769 amanhece
com a triste, mas sintética notícia, de uma criança morta, “à qual se deu
sepultura no mato”.63 De modo geral, a tônica do relato é a do desconforto,
no que o Diário também lembra o procedimento adotado pelos jesuítas,
ao redigirem cartas aos irmãos da ordem, a autoridades eclesiásticas e da
coroa, com o intuito de reforçar o caráter emergencial de suas petições.
Na narrativa, aos percalços rotineiros somam-se aos redemoinhos na
água e tormentas no céu as raízes altas e os animais ferozes e peçonhentos.
Ao reiterar os múltiplos desafios enfrentados pela tripulação, o sargento-
-mor realça uma das virtudes cardeais do valoroso soldado, ainda mais se
defensor da fé católica: a coragem. Por aí se vê que o fato de se tratar de
um diário não assegura isenção, tampouco impede que o sargento-mor
acrescente dificuldades aos perigos com que efetivamente lida. Nesse
sentido, ações restauradoras são mencionadas quase “ao acaso”, a sugerir
que houvesse pouco tempo e ralas condições para se banquetear, durante a
tenebrosa viagem: “Depois de comermos alguma coisa […], seguimos nossa
viagem”.64 Nem faltou a narração de episódios aparentemente menores,
como o restabelecimento de um dos passageiros, resistente à “ração” e que
havia desistido de viver: “a este tempo soube que um homem se achava
esmorecido, e que não comia havia três dias, o qual se achava deitado
escondido fora da comunicação das mais pessoas, o qual fiz conduzir, e
consolando-o, e fortificando-o com vinho e sustento, foi tornando a si, e

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me disse que por acanhado e melancólico esperava ocasião de se deixar

Artigos
ficar e morrer naqueles matos”.65

Verdade

Pode-se vislumbrar o impacto que esse relato terá provocado nos


raros e discretos leitores do Setecentos. A elocução (aproximada das pa-
rábolas do Antigo testamento, mas também dos evangelhos) faz com que
Juzarte atribua a si mesmo a virtude da compaixão e encarne o poder de
consolar a alma e curar fortificar o corpo do homem. Como ensinava Santo
Agostinho: “Se com razão é chamado próximo aquele a quem devemos
prestar serviço ou de quem devemos receber o ministério da misericórdia,
está claro que neste preceito, pelo qual nos é ordenado que amemos ao
próximo, estão incluídos também os santos anjos”.66 O fato de Teotônio
José Juzarte ser devotado a Deus também interfere no modo como inventa,
dispõe e se expressa. A memória sobre os procedimentos náuticos deve
ter chegado através de relatos com que tomou contato, ou dos quais teve
notícia. Já as suas ações teriam variada motivação: servir ao governador
da capitania de São Paulo; cumprir os desígnios da Providência; expandir
os negócios e as almas do reino; receber provimentos; lançar o nome na
história do reino etc.
Por essa razão, ao relacionar virtudes próprias, ele parecia seguir
os rigorosos preceitos da tradição escolástica. Como observava Reinhart
Koselleck,

No sentido de uma História revelada por Deus, Agostinho, por exemplo, havia
constatado que as representações históricas tratam de instituições humanas, mas
que a própria História (“ipsa historia”) não é uma instituição humana. Pois aquilo
que aconteceu e não pode ser revertido, isso faz parte da sequência dos tempos (“in
ordine temporum habenda sunt”), cujo fundador e administrador seria Deus. Não
há dúvida de que a historicidade de Jesus como fonte empírica da revelação contri-
buiu em muito para dar ao conceito de História uma pretensão enfática à verdade.67

Ao retratar a si mesmo como homem generoso, enérgico, mas bran-


do, o sargento-mor reforça a projeção do seu éthos paternal. O artifício é
engenhoso, pois lhe permite reafirmar-se como comandante da expedição,
protetor dos oprimidos, súdito fiel de Deus e da Coroa, a conduzir o seu
rebanho com relativa segurança pelos caminhos mais tortuosos, como se
se tratasse de uma via crucis com “dois anos e dois meses” de duração.
Juzarte é quase a imagem de Jesus.
Não só o rio oculta pedras, nem a selva esconde insetos e feras. A
tripulação também lida com solos inférteis e de pouco fruto: “achamos um 65
Idem.
grande campo, no qual fica o morro de Araraquara-mirim e, subindo por 66
AGOSTINHO, Santo, Bispo
ele acima, o que custou muito por ser escabroso e escalvado, chegamos de Hipona. A doutrina cristã.
São Paulo: Edições Paulinas,
sobre a sua coroa, a qual tem muitas cortaduras”.68 1991, p. 78.
As entradas do Diário sugerem que não havia pouso que muito 67
KOSELLECK, Reinhart. A
durasse, nem percurso que percorrido sem maiores sustos e dificuldades. configuração do moderno con-
Alternando a viagem entre navegação e repouso às margens, de um lado ceito de História. In: KOSEL-
LECK, Reinhart et al., op. cit.,
se contornam pedras e desviam de correntes, ondas e redemoinhos; de p. 125.
outro, abrem-se picadas estreitas para atravessar os apetrechos por detrás 68
JUZARTE, Teotônio, op. cit.,
das cachoeiras. No mato, a presença das feras é quase certa: p. 36.

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69
Idem, ibidem., p. 39. passamos a cachoeira chamada Guaimicanga, que quer dizer em português ossos de
70
Idem, ibidem, p. 40. velha; esta cachoeira passamos com muito perigo, porque não tem passagem por terra,
71
Idem, ibidem, p. 41. porque de um e outro lado do rio são paredões de pedra […] daí saímos seguindo
72
Ver PÉCORA, Alcir, op. cit., nossa viagem até as cinco horas, que fizemos pouso para aí ficarmos de noite, o qual
p. 13. roçando-se o mato para se acomodar a gente se achou uma grande cobra cascavel, a
73
T A U N AY , A l f r e d o qual se matou a tiros, que tinha onze palmos de comprido, e quinze cascavéis, que
d’Escragnolle, op. cit., p. 143 e quer dizer tinha quinze anos, porque cada ano lhe nasce um.69
144. Cnforme Pere Villalba I
Varneda, a “arte da narrativa
tem a missão de apresentar Evidentemente, tantos desafios, dentro e fora da água, redundavam
eventos, personalidades e ins-
tituições de modo inteligível e
no endurecimento da faina compartilhada pelos passageiros e membros
racional. Isso pode levar o his- da expedição, comandados por Juzarte. Afora aludir aos perigos da na-
toriador a voos tão exagerados tureza, é recorrente a valorização do trabalho, tópico de primeira plana:
da emoção, a ponto de afetar a
integridade da verdade históri- “chegou a noite, cuidou-se em descansar-se de tão laborioso trabalho”. A
ca”. VARNEDA, Pere Villalba I, expressão é repetida poucas linhas abaixo, associada ao que ficou de fora
op. cit., p. 67.
da narração: “tão laborioso trabalho, além de outros muitos sucessos que
74
JUZARTE, Teotônio, op. cit., por não ser oportuno não declaro”.70 Quer dizer, nem tudo entra no relato,
p. 41.
pois há critérios para se registrar o que vale mais mencionar. Na entrada
75
Idem, ibidem, p. 42.
de vinte e cinco de abril de 1769, apesar de todo o esforço, “soltou [se] uma
embarcação dentro da qual se achavam dormindo uma mulher, seu mari-
do e dois filhos”71, afinal recuperada a muito custo pelos tripulantes, em
uma complexa operação de resgate. Para provocar o maravilhamento dos
leitores, como recomendava Longino, e ressaltar a valentia dos navegan-
tes, determinados episódios contam com artifícios, a exemplo das longas
distâncias percorridas, os árduos trabalhos, os monstruosos fenômenos da
natureza – carro-chefe dos inescrutáveis desígnios de Deus.
Para além de informar os poderes locais (e metropolitanos) sobre os
rios e povoações, no Diário de Juzarte a veracidade importa menos que a
eficácia. Lido dessa forma, ele obedece ao teor, forma e estrutura das rela-
ções de viagem e cartas enviadas pelos jesuítas, quando se aventuravam
entre o litoral e o interior do território. Em acordo com Alcir Pécora72, “A
‘realidade’, pelo menos enquanto dotada de algum sentido e não puro caso
ou ocorrência, imbrica-se de modo inalienável aos enunciados persuasivos”.
Na década de 1920, Afonso d’Escragnolle Taunay já havia chamado
atenção para alguma imprecisão do relato: “Juzarte, que descreve os peri-
gos da navegação do Tietê, cachoeira e corredeira, uma por uma, deixa-se
por vezes levar-se a extraordinárias exagerações.73 Assim, atribui a altura
da queda das águas no Avanhadava […] Talvez um lapsus calami o levasse
a escrever braça por palmo”. De todo modo, a descrição do salto de Ava-
nhadava é uma das mais belas do Diário: “É este salto de Avanhadava uma
obra da natureza cuja altura excede a cinquenta braças que, despenhando-
-se por ele copiosas águas ao ponto que faz uma agradável vista e figura,
causa pavor e medo, porque fazendo várias figuras, em umas partes à
imitação de degraus de sepulcro, em outras fazendo vários redemoinhos
pendurados pelor ar, em outras formando grossas e dilatadas fontes à
maneira de chafarizes”.74
Nada mal para um “soldado semianalfabeto”. O fato é que ao êxito,
que consiste em superar determinado obstáculo, sucedem novos e maiores
desafios: “seguimos nossa viagem, passamos por uma cachoeira de muito
perigo e com muitas voltas, e pedras escondidas debaixo da água, cuja, em
razão dos muitos rodeios, se chama Bacraié, que quer dizer em português
escaramuça do gato”.75 Por vezes, o perigo maior estava em examinar algum
fenômeno mais de perto: “vimos que uma grande sucuri, desenrolando-se

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à maneira de uma amarra de navio fazendo grande batalha na água, nos

Artigos
investia; e como isso fosse quase noite fugimos”.76 À medida que a viagem
prossegue, o sargento-mor enfileira termos do jargão náutico. Como lhe
interessa enaltecer a coragem e a valentia dos navegantes, eventos que não
ofereciam maior perigo recebem menor atenção que os demais: “seguimos
e daí passamos por uma ilha com uma itaipava chamada a ilha de Pirata-
raca, esta não foi muito perigosa; seguimos e fomos passar por outra ilha
chamada do mato seco com uma cachoeira no fim muito perigosa, enquanto
comprida, chamava Iaiva-piru, que quer dizer em português mato feio, a
qual se passou com muitas voltas”.77
Essas e outras desventuras só eram superadas provavelmente graças
à “misericórdia de Deus”78 e às “recomendações que tinha do meu gene-
ral para que não me escapasse coisa alguma”.79 A despeito da tamanha
devoção, o inferno subira até as águas. A quantidade de insetos vorazes
constitui relato à parte. É o caso das “formigas, que eram tantas, e cada
uma do comprimento de uma polegada, que inquietavam tanto a gente
que ninguém dormiu, uns trepados em árvores, outros metidos na água
do rio”.80
Os obstáculos, enfrentados a todo instante pela expedição, não im-
pedem que, instado ao dever do ofício, o sargento-mor perseguisse fugiti-
vos de Cuiabá, o que realça outra virtude do comandante: a sede de fazer
justiça e a prontidão para prender homens à margem da lei: “a isto logo
me embarquei em uma canoinha com cinco solados […] e comigo outra
canoinha com o tenente de aventureiros Bento Cardoso, e fomos dar-lhe
caça rio acima a toda pressa, e navegamos todo o dia sem levarmos nem
quê comer”.81 Embora a ação tivesse sido em vão, Teotônio José Juzarte
justifica o fracasso da “caça” humana, em razão do tempo que teriam de
despender e da reduzida quantidade de alimentos disponível. As jornadas
permitem afirmar que a expedição percorria uma légua por hora, em mé-
dia – de acordo com os cálculos do sargento-mor. No dia quatro de maio
de 1769, ao atravessar por terra uma cachoeira com “quase meia légua”,
passageiros e tripulantes padeceram com uma “nuvem de marimbondos”.
Os insetos “são tais que chegam a matar gente pela sua quantidade, além
de ser finíssima a dor da sua picada, e onde mordem logo incha a parte”.82

Artifício

As aventuras pelo rio Tietê e seus afluentes termina em sete de maio,


ocasião em que a expedição chega ao rio Grande Paraná: “aqui se concluiu
a navegação desde a Araraitaguaba até este lugar, cento e trinta léguas e
meia, quarenta e seis cachoeiras e itaipavas, e demos fim a tantos perigos,
76
Idem, ibidem, p. 43.

tantos trabalhos, tanto sofrer de insetos e bichos”.83 Após relacionar as 77


Idem.

cachoeiras, dando seu nome em tupi e a tradução para o português84, o 78


Idem.
sargento-mor passa a relatar os acontecimentos sucedidos no grande Pa- 79
Idem, ibidem, p. 44.
raná, rio “à semelhança de mar, e assim quer dizer grande Paraná, que em 80
Idem.
Português é o mesmo que grande mar”.85 Uma das principais diferenças 81
Idem, ibidem, p. 45.
deste rio, em relação ao Tietê, está na largura das águas, que chega a “mais 82
Idem, ibidem, p. 48.
de quatro léguas”. Embora seu leito seja navegável, estava sujeito a grandes 83
Idem, ibidem, p. 51.
ondas, provocadas pelo vento e era repleto em “imundícies”86, sem contar
84
Ver idem, ibidem, p. 52 e 53.
a grande população de jacarés.
Dentre as cenas mais impressionantes do Diário há esta: “No meio Idem, ibidem, p. 54.
85

deste grande rio Paraná há um só rodamoinho em porção circular, o qual 86


Idem.

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87
Idem, ibidem, p. 55. alcança de uma margem a outra, que andando continuamente as águas em
88
Idem, ibidem, p. 56. volta, são tais as ondas que causam medo”. Linhas a seguir, o sargento-mor
89
ALBUQUERQUE-GARCÍA, compara a força do rio ao homem: “continuamente estão estas águas nesta
Luis. El “relato de viajes”: hitos paragem à maneira de um homem que respira”. Em meio à travessia do
y formas en la evolución del
género. Revista de Literatura, n. rio, um acidente quase leva o guia; mas “foi Deus servido livrar-nos de
145, Madrid, 2011, p. 16. um tão grande perigo”.87
90
JUZARTE, Teotônio, op. cit., A inconstância pauta os relatos: “fomos saindo com muito trabalho,
p. 58. susto e perigo; aqui saíamos de um perigo, acolá encalhávamos em outro,
91
Idem, ibidem, p. 59. enfim foi este dia o de mais susto”.88 Parece claro tratar-se de um recurso
92
Idem, ibidem, p. 61. empregado pelo sargento-mor para sugerir seu caráter industrioso, como
93
Idem, ibidem, p. 62. persona, e realçar o elevado grau das façanhas realizadas sob seu comando.
94
Idem, ibidem, p. 63. Como mensurar o grau de ficcionalização no relato produzido por Juzarte?
Luis Albuquerque-Garcia tenta responder a essa questão, considerando a
longa tradição “literária”:

Não sou o primeiro a sustentar, portanto, que a maioria das grandes obras da litera-
tura universal são livros de viagem. A Eneida, A Divina Comédia, O Quijote...
Se faz necessário discernir o género “relato de viagens”, sintagma cunhado com
um sentido muito preciso por Carrizo Rueda (1997), da literatura de viagens em
geral. Os “relatos de viagem” contemplam, a meu ver, traços fundamentais […]:
(1) são relatos factuais, em que (2) a modalidade descritiva se impõe à narrativa
e (3) em cujo balanço entre o objetivo e o subjetivo tendem a decantar-se do lado
do primeiro, mas, em consonância, em princípio, com o seu caráter testemunhal.89

Por ser um “diário de navegação” que mapeia os territórios visitados,


há momentos em que a dicção do sargento-mor se aproxima dos tratados
redigidos por naturalistas, antes e durante o século XVIII. Repare-se em
como ele narra a descoberta dos jabutis: “achamos uma ilha no meio do rio
Grande, desembarcamos nela, achamos ser uma grande praia de areia com
algum matinho pequeno e, passando por esta ilha, achamos enterrada na
areia quantidade de dúzias de ovos dos tais bichos chamados Javotins”.90
Herói que pretende ser, Juzarte sabe as artes do comando. No dia
doze de maio, o comandante da expedição menciona dois índios, sem deixar
claro se já integravam a expedição, ou se se tratava de nativos da região,
em trabalho compulsório: “mandamos mergulhar nela [lagoa] dois índios
os quais duvidaram dizendo que ali nunca entrou ninguém, e com efeito
sempre se meteram na água até o pescoço; mas como era muito funda não
só temeram a fundura, como alguma sucuri ou jacaré que os apanhasse;
com efeito saíram os homens, e ao sair vimos que por debaixo da água
havia grande movimento dos tais bichos”.91
À proporção que a viagem avança, avoluma-se a quantidade de “do-
entes”. As desventuras continuam. O Diário reforça os perigos, recorrendo
ao já conhecido vocabulário do infortúnio: “não há muita comodidade para
se fugir depressa desses perigos porque se encontram grandes paredões
de pedras perpendiculares ao barranco do rio; com muito fundo e altura
babojando as águas neles; estas circunstâncias fazem com que se navegue
com muito susto e cuidado”.92 No dia dezessete de maio, após duas horas
de navegação, os navegantes percebem que se armava tempestade. Deus
dá; Deus tira: “quis Deus quando chegamos a ele [barranco] achá-lo com
lugar para saltarmos”.93 Em meio à tormenta, “adoeceu muita gente […] ia
demorando a viagem e os mantimentos já poucos”.94 A julgar pelo relato
do sargento-mor, por diversas vezes os viajantes haviam escapado à morte

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certa, graças aos desígnios do mesmo Deus que lhes despencaram rede-

Artigos
moinhos, correntes, insetos em nuvem, feras e animais peçonhentos. Além
das tempestades, é claro: “estivemos vendo passar esta monstruosidade de
madeiras mais de uma hora, e dando graças a Deus de termos escapado
daquele perigo, porque se nos apanhasse dentro do rio, despedaçando-nos
as embarcações, uma só pessoa escaparia”.95
Ao longo da travessia pelo grande Paraná, o vento “teimoso” foi
um dos piores adversários dos tripulantes. Além de retardar a jornada,
amplificava a quantidade de doentes e induzia a falta de mantimentos,
a ponto de o sargento-mor admitir que cogitavam “abreviar a jornada”.
Após muitas idas e vindas, a contornar as grandes ondas provocadas pe-
los fortes ventos, a expedição chegava ao rio Iguatemi em 24 de maio de
1769. O sargento-mor conclui a segunda parte do relato com novo cálculo:
“Tem este rio Grande Paraná de curso desde a barra do Tietê a barra do rio
Gatemi setenta léguas e três quartos”.96
O rio Iguatemi é descrito como “largo e fundo na sua entrada, suas
águas são boas, são bordadas suas margens de muitos palmitos, corre com
sua violência”.97 A alegria dos viajantes era evidente. Afinal, eles haviam
vencido o Grande Paraná. Mas a sensação de relativa tranquilidade duraria
pouco tempo. Em vinte e oito de maio, logo que saíram a navegar, “veio
uma tão grande tempestade de chuva, relâmpagos e trovões tão arrebatados
com tanta violência que parecia o fim do mundo; com isto, embicando em
terra, juntando-nos todos, se entoou a ladainha de Nossa Senhora”.98
No dia dois de junho, a expedição recebe a ajuda de “duas em-
barcações” com “trinta e tantos homens com o capitão-mor regente João
Martins Barros”. Após trocarem efusivos cumprimentos, “logo se repartiu
a gente de refresco pelas embarcações, descansando os miseráveis, que já
não podiam mais trabalhar”. O Diário da navegação seguia o seu ritmo, com
relatos em todos os dias, desde o início da expedição, no alto do rio Tietê.
Eis que, em três de junho, aconteceu grande mudança: “Aqui ficamos a noite
do dia três para o dia quatro e deste falhamos até o dia onze, que sempre
fez mau tempo, por cuja razão não seguimos viagem para a povoação”.99
De fato, a próxima entrada do Diário será uma breve nota em onze
de junho. No dia seguinte, Juzarte concentra em único tópico o relato
de várias semanas. Daí em diante, os eventos serão bastante resumidos,
considerando que a entrada de doze de junho se estenderá até setembro
daquele ano. Em suma, o relato torna-se menos descritivo e a ação ganha
mais força. Os registros, por data, no Diário da navegação seguem este for-
mato até onze de junho de 1769. A partir do dia seguinte, o relato perde a
divisão explícita em dias e torna-se gradativamente menos parcimonioso.
O sargento-mor passa a sintetizar os acontecimentos e eventos, de modo a
condensar os meses finais daquele ano e os que seguem, até maio de 1771.
Relator disciplinado, Juzarte continua a narrar episódios informati-
vos e, certamente, capazes de provocar maior assombro, como a chegada de 95
Idem, ibidem, p. 64.
um “pedestre” que “trazia cinco flechadas que lhe deu o gentio no campo”, 96
Idem, ibidem, p. 68.
em novembro de 1769100; ou a fuga de “nove soldados pagos e uma mulher”, 97
Idem, ibidem, p. 69.
em fevereiro de 1770101, recapturados e presos pelos portugueses, sob as 98
Idem, ibidem, p. 70 e 71.
ordens do próprio sargento-mor. Impressionam ainda, em particular, as
99
Idem, ibidem, p. 73.
doenças e mortandades, que reduziam drasticamente o efetivo dos soldados
100
Idem, ibidem, p. 84.
e povoadores, ao longo dos meses: em maio de 1770, achavam-se “somente
onze pessoas de trabalho sãs, além de alguns oficiais”.102 Por sinal, somente 101
Idem, ibidem, p. 85.

em janeiro de 1771 chegariam socorros da banda espanhola. 102


Idem, ibidem, p. 87.

ArtCultura Uberlândia, v. 21, n. 39, p. 205-222, jul.-dez. 2019 221


Considerem-se essas notas como convite à leitura atenta do Diário da
navegação. Se possível for, a salvo de anacronismos – em particular aqueles
mais evidentes, capazes de sobrepujar as informações (as hipérboles, as
hipotiposes e os demais artifícios, em prol do efeito de verdade) forjados
pelo sargento-mor português.

Artigo recebido em 2 de junho de 2019. Aprovado em 3 de setembro de 2019.

222 ArtCultura Uberlândia, v. 21, n. 39, p. 205-222, jul.-dez. 2019


Errâncias
apollinairianas:

mitos e
fatalidades
do moderno
Guillaume Apollinaire. 1904-1905, pintura (detalhe).

Osvaldo Fontes Filho


Doutor em Filosofia pela Universidade de São Paulo (USP). Professor do Departamento
de História da Arte da Escola de Filosofia, Letras e Ciências Humanas e do Programa
de Pós-graduação em História da Arte da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp).
Autor do livro Merleau-Ponty na trama da experiência sensível. São Paulo: Unifesp, 2012.
osvaldo.fontes@unifesp.br
Errâncias apollinairianas: mitos e fatalidades do moderno
Apollinairian wanderings: myths and fatalities of the modern

Osvaldo Fontes Filho

resumo abstract
Este texto percorre alguns lugares na This text goes through some places in
obra literária de Apollinaire que são the literary work of Apollinaire that are
motivados pelas errâncias urbanas do motivated by the urban wanderings of the
autor. Uma modernização do olhar author. A modernization of the gaze is
ali se evidencia: investido de um viés evident there: invested with an allegorical
alegórico e mítico, a favor de um inusi- and mythical bias, in favor of an unusual
tado sentimento de estranhamento do feeling of estrangement from the banal
banal cotidiano, esse olhar concorre a and the quotidian, it concours to a lyrical,
um jogo lírico, por vezes elegíaco, que sometimes elegiac, game that the writer
o escritor estabelece entre tempos, ob- establishes between objects and figures,
jetos e figuras. O errante apollinairiano and between the past, the present and the
concede, assim, polissêmica profundi- future. The wandering Apollinaire, thus,
dade para o espaço e o tempo vividos, expresses polysemic depth for lived space
sobre fundo de uma despersonalização and time, over an increasing depersonali-
crescente imposta pela metrópole mo- zation imposed by the modern metropolis.
derna. A adesão do poeta às formas The adhesion of Apollinaire to the forms
da vida citadina revela-se, por fim, of urban life reveals, at last, orphic power
potência órfica de transfiguração lírica of lyrical and mythical transfiguration of
e mítica do presente. the present.
palavras-chave: errância; moderni- keywords: wandering; modernity; Apolli-
dade; Apollinaire. naire.


Je ne vis que passant [...] Et détournant mes yeux de ce vide avenir/En
moi-même je vois tout le passé grandir/Rien n’est mort que ce qui n’existe
pas encore/Près du passé luisant demain est incolore.  Apollinaire. Alcools.

Il faut être absolument moderne.


Rimbaud. Une saison en enfer.

Pourquoi faut-il être si moderne ?


Apollinaire. “Manuscrito”.

As práticas do vagar urbano são reconhecidas, desde os primeiros


passos do flâneur baudelairiano, como uma experiência de inequívoca
modernidade por conta da abertura do imaginário que promovem. As
narrativas resultantes da frequentação das descontínuas solicitações da

224 ArtCultura Uberlândia, v. 21, n. 39, p. 223-237, jul.-dez. 2019


grande metrópole, particularmente os agenciamentos de signos dela resul-

Artigos
tantes, invariavelmente operam como desvios das habituais configurações
anestesiadas das identidades e dos desejos. Como bem salienta Walter
Benjamin, o andarilho moderno experimenta o sentido pleno de “uma
palavra lançada ao acaso”, de toda uma “agitação exterior [que] mistura e
sacode as ideias”1, razão por que a flânerie termina por se revelar errância,
um jogo da deriva, rumo aos “fatos-escorregões” e aos “fatos-precipícios”
de um Breton particularmente desorientado, “testemunha espantada” de
tudo quanto intriga no urbano.2 Para a geração de Apollinaire, a deam-
bulação alimenta uma fulgurante constelação de sentidos, apta a propor
o trânsito entre o prosaico e o maravilhoso, entre a pintura dos costumes
e os altos volteios de renovadas lírica e mitologia, entre desencantamento
e transfiguração.
Fato é que o deambular moderno procede a uma “exploração fantas-
mática e mítica do real”.3 Apollinaire, em particular, parece exprimir em
suas andanças uma “dramaticidade agressiva” que bem caracteriza o poetar
moderno.4 Em sua lírica, a multidão revela-se lugar de questionamento dos
sentimentos de absoluto, registro propício aos exercícios de contraposição
que beneficiam um “comportamento inquieto do estilo”. È caso de lembrar
como os espaços evocados em “Zone”, poema liminar de Alcools (publicado
nas Soirées de Paris n. 11, em dezembro de 1912) – urbanidades industriais,
subúrbios fantasmáticos, centrais elétricas que se elevam como catedrais dos
novos tempos – prestam-se a tradução de um cenário de relação consigo
do poeta, nuançada de mortificação e horror da finitude.5 Com efeito, a
multidão em Apollinaire comumente se transfigura em cortejo de mortos,
e lembra que, como anota Paul Valéry em 1924 (em Variété), a metrópole
moderna é o espaço da “infinidade dos indivíduos”, um “rio de vontades
separadas”, fonte de um “maravilhoso mal-estar da multiplicação dos
sós”. Esse mal-estar, diga-se, está na base da modernidade artística, como
o sentimento de uma individualidade que procura imprimir a seu estilo
1
BENJAMIN, Walter. Charles
um valor de intervenção junto às incertezas surgidas com a metrópole. Baudelaire, un poète lyrique à
Uma urbanidade metamórfica reflete a consciência de um eu inquieto; l’apogée du capitalisme. Paris:
excessiva, multifacetada, dir-se-ia “cubista”; ela é o registro mais notável Payot, 1974, p. 470.

de uma irredutível tensão entre representação do eu e do mundo, de um 2


Ver BRETON, André. Nadja.
Rio de Janeiro: Imago, 1999,
sentimento persistente de incompletude, desequilíbrio, dissonância. p. 20.
Não surpreende, pois, que se insinue na expressão da solidão mo- 3
ANDRIOT-SAILLANT, Ca-
derna uma ambiguidade entre fascínio pelo novo e angústia pelo antigo roline. «Tu marches dans Paris
que desaparece, esta um sentimento não propriamente nostálgico, mas tout seul parmi la foule ”: la
poésie moderne en quête de
reação incomodada às incertezas advindas da repentina transformação soi (Baudelaire, Apollinaire,
urbana, social e cultural.6 “Incertitude, ô mes délices; vous et moi nous Breton). In: PAUL, Jean-Marie.
nous en allons ; comme s’en vont les écrevisses ; à réculons, à réculons ”, La foule: mythes et figures.
Rennes : Presses Universitaires
lê-se em Le bestiaire ou cortège d’Orphée (1911). Há em Apollinaire um modo de Rennes, 2005. Disponível
do deambular que é a condição a um tempo do arlequim e do moderno em <https://books.openedition.
org/pur/34637>. Acesso em 15
andarilho urbano: desinteressado de persistir na caritas baudelairiana, jul. 2018.
que exige ao fim o compromisso com certa idealidade, o poeta enceta um 4
Ver FRIEDRICH, Hugo. Es-
olhar enviesado, equilibrista entre o elegíaco e o burlesco, modo de levar a trutura da lírica moderna: da
expressão pessoal, ainda que ancorada em sólida erudição emprestada aos metade do século XIX a meados
do século XX. São Paulo: Duas
fundos cruzados da mitologia antiga e da Bíblia, às múltiplas personagens Cidades, 1978, p. 17.
deslocadas da metrópole. Apollinaire é um “ilegítimo”, como o quer Max 5
Ver idem.
Jacob, e tal desde L’enchanteur pourrissant  de 1909 (uma busca da identidade, 6
Ver JACQUES, Paola B. Elogio
na figura de Merlin, filho do diabo). Razão porque desvela-se próximo aos aos errantes. Salvador: Edufba,
“sem nome”, imigrantes, loucos e saltimbancos que povoam os versos de 2012, p. 61.

ArtCultura Uberlândia, v. 21, n. 39, p. 223-237, jul.-dez. 2019 225


7
Ve r R E N A U D , P h i l i - Alcools, figuras de certa deriva e desenraizamento modernos. Não parece,
ppe. Le musicien de Saint-
Merry. Cahiers de l’AIEF, n. pois, despropositado atribuir-lhe aquela “alegria de errar” – “je chante la
23, 1971, p. 190. Disponível joie d’errer et le plaisir d’en mourir” – que caracteriza “O músico de Saint-
em <https://www.persee.fr/
-Merry”, avatar do poeta que tanto se assemelha a um misterioso espectro
doc/caief_0571-5865_1971_
num_23_1_981>. Acesso em 2 vindo de Além para testemunhar presenças e ausências, o passado longín-
ago. 2018. quo e o presente já fugidio. Um errante pelas ruas de Paris, o maravilhoso
8
Ver APOLLINAIRE, Gul- “Músico” erra igualmente pela imensidão caótica do psiquismo do autor,
laume. Œuvres poétiques com-
plètes : tome I, Paris: Gallimard,
como nas profundezas de um labirinto.7
Coll. Bibliothèque de la Pléiade, O poeta experimenta, efetivamente, o sentimento de ser “o especta-
1965, p. 89. dor da Humanidade que [se] oferece maravilhosos divertimentos”, como
9
Ver CLIFFORD, James. Eth- escreve em “Le passant de Prague”.8 “Você é um homem-época”, assim
nographie polyphonie collage.
Revue de Musicologie, 68, 1982.
o define em 1916 o compositor Alberto Savinio. Mas essa presença em seu
tempo – ainda que nos ditos “poemas-conversação” ela se faça na dispersão
10
Ver JACQUES, Paola B. , op.
cit., p.116. e desinvestimento mesmo do eu do poeta – não resulta tanto num exercí-
11
BAUDELAIRE, Charles. Le
cio de afastamento voluntário do lugar mais familiar e cotidiano, quanto
peintre de la vie moderne. In : numa identificação com o que ali ocorre de excepcional. Nesse sentido, a
Ecrits sur l’art. Paris: Le Livre de poesia de Apollinaire confirma aquela “etnologia às avessas“ de que fala
Poche, 1992, p. 517 e 519.
James Clifford (1982)9, tão ao gosto da época, e que implica em inverter
12
APOLLINAIRE, Guillaume.
Le voyageur. Alcools. Édition de
postura clássica: não tornar familiar o estranho longínquo ou exótico, mas
Didier Alexandre. Université flertar com uma estranheza (no sentido do Unheimlich freudiano, vetor de
Paris-Sorbonne/ Labex Obvil, desorientação) encontrável no prosaísmo cotidiano da cidade moderna
2014. Disponível em <http://
obvil.sorbonne-universite.site/ em transformação, capaz de, num virar de esquina, oferecer ao olhar o
corpus/apollinaire/html/apolli- incompreensível do que é propriamente familiar.10
naire_alcools.html>. Acesso em
13 ago. 2018.
Em Le peintre de la vie moderne, Charles Baudelaire já identificara no
flâneur a essência da experiência do tempo presente: através do “grande
13
APOLLINAIRE, Guillaume.
Œuvres poétiques complètes: deserto de homens“, ver para além do  “prazer fugidio das circunstâncias,
tome I, op. cit., p. 183. [...] esse algo que nos permitirá chamar a modernidade”. Baudelaire entende
14
FRIEDRICH, Hugo, op. cit., assim “extrair da moda o que ela pode conter de poético no histórico, tirar
p. 148.
o eterno do transitório”: dualidade, pois, que anuncia a célebre definição 
que obriga a representação moderna (em particular a poesia) a renovar
seus modos expressivos, entre finitude e eternidade: “a modernidade é o
transitório, o fugidio, o contingente, a metade da arte, cuja outra metade
é o eterno e imutável”.11
À leitura de Alcools, vê-se que a evocação dessa nova sensibilidade
parece se abrir por motivos elegíacos que carregam no tom pático: “Ouvrez-
-moi cette porte où je frappe en pleurant”.12 O poeta, mitólogo das excitações
modernas, carrega sua voz lírica de um tom agônico, dilacerado entre as
“duas margens”: o íntimo e o universal, o familiar e o estranho, o antigo e
o novo – ele que se quer o juiz da “longa querela da tradição e da inven-
ção, da Ordem e da Aventura”.13 Fato é que a moderna metrópole pontua
a impossibilidade de uma relação regeneradora com o mundo. Assim, se
a voz lírica parece por vezes se comprazer com o que está à margem, nas
brechas, nos desvios, é por gosto do que modifica expectativas, do que
surpreende, e não do que se reconhece cabalmente ou que se promete a
alguma eternidade. É conhecida, a propósito, a poética do bizarro e da
surpresa na prosa de imaginação de Apollinaire. Ela se configura na confe-
rência de 1917 L’esprit nouveau et les poètes, espécie de manifesto fundador de
uma estética que inscreve as surpresas do cotidiano nas práticas artísticas.
Cumpre lembrar que é na surpresa – “na dramaticidade agressiva de sua
forma de expressão dirigida contra o leitor”14 – que Apollinaire identifica
o diferencial de novidade da lírica moderna. Breton, mais tarde, chamará
a atenção ao elemento de imprevisto nos textos de Apollinaire, em parte

226 ArtCultura Uberlândia, v. 21, n. 39, p. 223-237, jul.-dez. 2019


para valorar as trouvailles propostas pela escritura automática, em parte

Artigos
para acentuar certo “gosto moderno”, paradigmático no autor de Alcools.
Gosto pela desarmonia dos sons e cores das ruas industriais da “ci-
dade metálica”, pelas “viris aglomerações onde vomitam e cantam os me-
tálicos santos de nossas santas usinas”, pelas “noites de Paris embriagadas
do gim flamejante da eletricidade”, ou então pela estridência da “manada
de ônibus berrantes”.15 Os lugares “sem qualidade” que a cidade moderna
multiplica, suas máquinas, objetos e sons que comumente o bom gosto
repulsa, não estão presentes nos poemas de Apollinaire em favor de alguma
apologia futurista do moderno ou então de uma sublimação surrealista de
primeira hora: são, antes, dignificados como objetos líricos, elementos de
uma renovada composição elegíaca do presente. As chaminés esfumaçadas,
as pontes e os aeródromos, as ruas dos subúrbios industriais, os ruídos e
luzes da noite, as inscrições e placas que “estrepitam como papagaios”: mil
detalhes que reportam o liame visceral de Apollinaire, que se diz o “esôfago
de Paris”, com o domínio do visível e do sensível. “Domínio do devir, de
que se desvia o simbolismo idealista, e que o poeta de Alcools considera
por ainda guardar fé na capacidade de transfiguração do real por parte
da linguagem poética”.16 “Apenas renovam o mundo aqueles assentados
em poesia”, sustenta Apollinaire em 13 de julho de 1909 em poema lido
por ocasião do casamento do amigo André Salmon, uma epifania poética
que se detém, voz litânica, no desencantamento do mundo, na descida
aos Infernos, nas errâncias alucinadas. “Nous partîmes alors pèlerins de
la perdition/A travers les rues à travers les contrées à travers la raison”.17
Ocorre de o errante apollinairiano não esconder sua ambiguidade:
deixa-se fascinar pela modernização, mas também reage a ela, lastima o
fugidio que ela produz. A ressaltar que Le flâneur des deux rives se inicia nos
ritmos de uma reminiscência pesarosa: o poeta recorda como “as pálidas
chamas de algumas lâmpadas de petróleo” outrora iluminavam em par-
ticular rua parisiense um “maravilhoso concerto de pássaros”, lembrança
sobre fundo de arqueologia urbana das inscrições murais em deterioração
– das ruas “sobrecarregadas de inscrições, de graffiti, para falar como os
antiquários” –, dentre outras reverberações da vida anônima da grande
cidade. Assim, em 1913, Apollinaire profetiza o fim da Montparnasse que
abrigara os emigrados da Montmartre desfigurada pelos “proprietários e
arquitetos”: ele deplora que “cubistas, bandidos, poetas órficos”, pequenos
ateliês assim como seus lugares de boemia, sejam pouco a pouco expulsos
pela fisionomia renovada da metrópole.18
Nessa metrópole metamórfica o poeta experimenta um café barato
num balcão de “bar vigarista”, ou o ar viciado da estação de trem plena
de pobres emigrantes; observa sair embriagada de uma taberna de rua 15
APOLLINAIRE, Guillaume.
barulhenta “a falsidade mesma do amor”; perambula por uma Paris de Zone. Alcools, op. cit.

violenta luxuria, de “mulheres ensanguentadas” no “declínio da beleza”; 16


LENTENGRE, Marie-Louise.
Apollinaire : le nouveau lyrisme.
lamenta, por fim, o próprio errar por entre as vitalidades do presente (“J’ai Paris: J.-M. Place, 1996, p. 209
vécu comme un fou et j’ai perdu mon temps”). Se “Zone” coloca no cora- e 210.
ção mesmo da poética moderna a multidão anônima da zona comercial/ 17
APOLLINAIRE, Guillaume.
industrial parisiense (“os diretores, os trabalhadores, as belas estenodati- Poème lu au mariage d’André.
Alcools, op. cit.
lógrafas”), a evocação de uma inusitada rítmica das massas desencoraja
18
Ver HAZAN, Eric. A invenção
qualquer sentimento de continuidade: “j’ai vu ce matin une jolie rue dont j’ai
de Paris. São Paulo: Estação
oublié le nom”. O valor de evocação permanece como novidade poética, na Liberdade, 2017, p. 184 e 185.
ligação que insinua entre uma exterioridade saturada e uma interioridade 19
Ver ANDRIOT-SAILLANT,
esvaziada19, mas também como capacidade de “abarcar de um só golpe de Caroline, op. cit.

ArtCultura Uberlândia, v. 21, n. 39, p. 223-237, jul.-dez. 2019 227


20
Ver APOLLINAIRE, Guil- vista passado, presente e futuro”, de arrematar uma “unidade essencial
laume. L’esprit nouveau et
les poètes. OEuvres en prose capaz de provocar o êxtase”, como preconiza o teórico das artes visuais.20
complètes: tome II. Paris : Gal- Apollinaire é filho de uma época em que a eletricidade se torna
limard, coll. Bibliothèque de la
“matéria moderna, depurada de todo mito”.21 O crepitar da mecha de gás
Pléiade, 1991, p. 7. Disponível
em <https://fr.wikisource.org/ de outrora “animava as sombras”, mesclava de inquietude o conhecido;
wiki/L%E2%80%99Esprit_nou- mas também “estendia para o fora os mitos pelos quais se reforçavam as
veau_et_les_po%C3%A8tes>.
Acesso em 2 ago. 2018. convicções, as crenças”.22 Com a iluminação elétrica, o alhures se faz o
21
BONNEFOY, Yves. Poésie
outro do aqui, “nos cerca de nada”, e torna a cidade “sugestão de exterio-
et photographie. Paris: Galilée, ridade, de matéria nua, de acaso”. Donde a constância com que os versos
2014, p. 36. apollinairianas jogam com o movimentar contrastado de luz e sombra.
22
Idem. “Les étincelles de ton rire dorent le fond de ta vie”23 : a imagem retoma
APOLLINAIRE, Guillaume.
23 o papel da luz; a luz que vem se combinar com o fundo faz-se símbolo
Zone. Alcools, op. cit. de uma existência insistente em seu tom bariolado que o poeta procura
24
Ver LIGER MARIE, Fabienne. estimar.24 A percepção intensificada pela iluminação artificial produz suas
Le moi et le monde : quête iden-
titaire et esthétique du monde
particulares fantasmagorias. “Au tournant d’une rue brûlant/De tous les
moderne dans l’oeuvre poé- feux de ses façades/Plaies du brouillard sanguinolent/Où se lamentaient
tique de Guillaume Apolli- les façades”.25 É possível mesmo assumir que “o poder da experiência
naire, Blaise Cendrars et Vla-
dimir Maïakovski, 2014, p. 127 moderna se completa ao deparar-se com um sujeito esvaído identificado
e 128. Disponível em <https:// com o nada. Superação da metafísica e desbordamento interpretativo si-
tel.archives-ouvertes.fr/tel-
01207047/document>. Acesso
mulam assim marchar pari passu”.26 De fato, no esvaziamento dos signos
em 13 ago. 2018. e emblemas de uma concepção de conjunto do mundo, pode-se dizer que
25
APOLLINAIRE, Guillaume. “o ambiente humano se tornou anônimo, neutro, tristemente desconheci-
La chanson du mal-aimé. Alco- do”.27 Ao transbordamento de sentidos da trama de símbolos dos pórticos
ols, op. cit..
das igrejas sucede uma onipresente “declaração de não-ser ”, e a aspirada
26
ANTELO, Raúl. O ponto
aptidão a escutá-la, apanágio do poeta. A Paris de Apollinaire é já matéria
de vista subjectile. Travessia:
Revista de Literatura, n. 33, para a memorabilia fotográfica, “complemento das próximas insinuações
Florianópolis, 1996, p. 88. da placa fotográfica”, o que a iluminação elétrica não faz senão confirmar,
27
BONNEFOY, Yves, op. cit., “tornando-as [essas insinuações] mais imediatamente perceptíveis”. As-
p. 38.
sim, por entre as diversidades do mundo moderno, o poeta avança uma
APOLLINAIRE, Guillaume. composição por vezes cintilante: “Du rouge au vert tout le jaune se meurt/
28

Calligrammes. Paris: Gallimard,


1966, p. 26. [...] La fenêtre s’ouvre comme une Orange/Le beau fruit de la lumière”.28
29
JACOB, Max apud PLEY-
Apollinaire procura pelos matizes de si mesmo na homotopia de luz que
NET, Marcelin. Apollinaire doravante se impõe.
illégitime. In: Comme la poésie Seria possível, então, ver em Apollinaire aquela “intensificação da
la peinture. Saint-Loup-de-
Naud: Éditions du Sandre/ vida nervosa” que resulta da mudança rápida e ininterrupta de estímulos
Éditions Marciana, 2010, p. 10. interiores e exteriores gerados pelo ambiente urbano de que fala Georg
Disponível em <http://www.
pilefacebis.com/sollers/IMG/
Simmel em seu ensaio fundador de 1903 intitulado “As grandes cidades
pdf/Apollinaire_illegitime. e a vida do espírito”? Procura, como o homem das multidões de Edgar
pdf>. Acesso em 11 ago.2018. Allan Poe, comentado por Baudelaire, “onde fervilha vivamente a matéria
humana”, nessa paradoxal consonância entre o transitório e o imutável?
Seja como for, Max Jacob descreve sua dinâmica particular: “eterna ronda
[...] de uma calçada a outra, em todos os quarteirões de Paris, a todas as
horas. Volteava, rodava, olhava, ria, revelava os detalhes dos séculos pas-
sados, os bolsos repletos de papéis que lhe inflavam as ancas, ria ainda, se
espantava”.29 Agarrar-se à agitação pública é dar mostra de sensibilidade
à potência de estranhamento do cotidiano, que reside exatamente em seu
estado de eminente obsolescência e desaparecimento. Donde o paradoxo
de “Zone”: o poema que reflete a sensibilidade aos novos tempos se inicia
sob os auspícios de um fim (“A la fin tu es las de ce monde ancien”), para
imediatamente prosseguir com o sentimento de usura dos próprios signos
de modernidade e da vacuidade de todo empenho em demover o passa-
do: “Ici même les automobiles on tl’air d’être anciennes/La religion seule

228 ArtCultura Uberlândia, v. 21, n. 39, p. 223-237, jul.-dez. 2019


est restée toute neuve la religion/Est restée simple comme les hangars de

Artigos
Port-Aviation”. Por vezes, o tom blasfematório denuncia o impulso em
marcar de melancólica ironia a apreciação do moderno: “C’estle Christqui
monte au ciel mieux que les aviateurs/Il détient le record du monde pour
la hauteur”.30 Não surpreende que o poeta, que em seu caminhar dá-se
um mostruário do mundo, termine por evocar o paradoxo da escritura
poética: um movimento imóvel, suspenso, ainda que no ritmo perpétuo
da criação. “Nous marchons nous marchons d’un immobile pas”, escreve
nos Poèmes à Lou.

Sedução mortífera das vitrines

Janelas sobre o mundo, as vitrines são para Apollinaire metonímias


do moderno –como o foram para Balzac, que exaltava em 1830 “o grande
poema da vitrine [que] canta suas estrofes coloridas desde a Madeleine
até a porta Saint-Denis”.31 Mas a janela não vale tanto pela transparência
quanto pela concentração luminosa que propõe. O ofuscamento parece
cristalizar “em sua pátina enrijecida toda a inquietante e vaga espessura
outrora dispersa no tecido concreto da sombra”.32 No conto “Le départ de
l’ombre” (1911), da coletânea Le poète assassine – uma transposição fanta-
sioso e mítica do destino imaginário do autor, entre o vivido e o sonhado
–, a vitrine reverbera fatais emanações. Um casal se detém diante de uma
loja de antiguidades na qual se expõem “mercadorias provenientes do
serviço de penhoras”: objetos de disparatadas origens, quinquilharias de
toda ordem formam ali “um lamentável manual de história civil”. Jóias,
roupas, quadros, bronzes, bibelôs, livros, “o mundo inteiro e todas as épo-
cas” se misturam “como os mortos no cemitério”.33 Um renovado estatuto
dos objetos parece então se ilustrar, afeito aos mostruários da moderna
metrópole, como fósseis inéditos de uma mistura, desordem ou indistin-
ção, como detalhes por vezes ínfimos do infernal fluxo de uma grande
cidade. De certo modo, diga-se ainda, o poeta é sensível aos marcadores
dos momentos “depressivos” do objeto moderno, como assinalaria dentro
em pouco Walter Benjamin.
Não é por acaso que no conto de Apollinaire venha-se acrescentar
às seduções da mercadoria um sentimento de inquietante estranheza e,
sobretudo, de suspeita: o episódio de deslumbre diante de uma vitrine
teria algo a ver com uma poética do declínio (ou mesmo do destino fatal)
– o que se dispersa e/ou se deposita alimenta continuamente a imaginação
do poeta.“Le départ de l’ombre” é marcado pelo prenúncio misterioso da
morte da personagem feminina. O bricabraque de vitrine é mesmo porta
de entrada para um mundo de sortilégios, por conta do proprietário judeu
da loja que no passado “examinava as sombras”, nelas previa o destino,
“ao sol do sabbat”. Um judeu errante, com a lembrança de ter um dia se
tornado “o próprio acaso”, inicia o jovem casal aos sortilégios hebraicos.
Por fim, o narrador constata, não sem “um prazer singularmente atroz”, que 30
APOLLINAIRE, Guillaume.
Louise, companheira de um amor já findo, não mais se fazia acompanhar Zone. Alcools, op. cit.

de sua sombra. Iniciada nos jogos sedutores dos brilharecos de vitrine, a 31


BALZAC, Honoré de apud
HAZAN, Eric, op. cit., p. 366.
cena aponta para seu alegórico desenlace fatal. Contada na primeira pessoa,
a narrativa mostra-se a confissão um tanto obsessional de uma voz tene-
32
LIGER MARIE, Fabienne, op.
cit., p. 244.
broso – suas lembranças lhe vêm como “moscas [que] pousam sobre a face 33
APOLLINAIRE, Guillaume.
ou sobre as mãos” (de um cadáver, entende-se) –, voz que usufrui de sua Œuvres poétiques complètes:
secreta inclinação a apreciar “a morte de uma bela mulher”– “Aujourd’hui tome I, op. cit., p. 336.

ArtCultura Uberlândia, v. 21, n. 39, p. 223-237, jul.-dez. 2019 229


34
Idem, ibidem, p. 335. tu marches dans Paris les femmes sont ensanglantées”, lê-se, ao final de
35
Idem. O motivo já estava pre- “Zone”–, a pressentir “o cadáver de uma jovem quando se passa diante
sente no conto de 1902 “L’obi-
tuaire”, inspirado em uma
de uma morgue com porta ornada de pinturas brancas”.34 Assim proce-
visita ao cemitério de Munique: dem, na narrativa esotérica de Apollinaire, as transferências entre a loja e
“un cimetière presque désert / a morgue, entre o desejo e a perda.
les morts grimaçaient dans leur
cellule vitrée / un visiteur seul Um olhar crepuscular, no começo do poema “La maison des morts”,
qui claquai[t] des dents [...]». depara-se com a exposição através de uma vitrine dos corpos de recém-
Os mortos serão resgatados à
vida por um “anjo em diaman-
-falecidos “à espera da sepultura”. O poeta não reprime aqui a analogia
te”, dando início a alegre pas- com as mercadorias expostas nas butiques da moda. Os ancestrais lugares
seio das sombras na companhia dos signos e emblemas cedem espaço doravante aos renovados locais de
do narrador, que retira por fim
a moralidade, ligada às formas exposição. O efêmero dos novos costumes não prescinde do reconheci-
alegóricas com que Apollinaire mento público a qualquer preço. “A l’intérieur de ses vitrines/Pareilles à
investe suas memórias: “y a-t-
-il rien qui vous élève comme
celles des boutiques de modes/Au lieu de sourire debout/Les mannequins
d’avoir aimé um mort ou une grimaçaient pour l’éternité”.35 A comparação mostra um olhar de apreço
morte? On devient si pur qu’on pela fabulação, pelo resgate que o maravilhoso pode propor. Ao enqua-
en arrive dans les glaciers de la
mémoire à se confondre avec le drar uma visão fantasmagórica que aproxima mortos e vivos, a vitrine é
souvenir. On est fortifié pour abertura metonímica ao mundo e suas alteridades; ela transparece, ainda,o
la vie et l’on n’a plus besoin
de personne”. A poesia, em
desejo de materializar alguma forma de sublimação do tempo presente.36
seu viés de exorcização dos Assim, convidadas pelo poeta a deixar seu mórbido mostruário no cemi-
desencantos (amorosos), pro- tério, os mortos passam a integrar “de braços dados” alegre cortejo: “Nous
cura reter o passado. A geleira,
o diamante, a célula vítrea, o traversâmes la ville/ Et rencontrions souvent/ Des parents des amis qui
que se apresenta translúcido e se joignaient/ À la petite troupe des morts récents/ Tous étaient si gais/ Si
resistente presta-se, pois, a figu-
rar um quimérico intemporal,
charmants si bien portants/ Que bien malin que aurait pu/ Distinguer les
“o tempo que se cristaliza no morts des vivants”.37
seio do transitório”. ONDO, A vitrine significa a um tempo o insaciável sonho de transparência do
Marina. La peinture dans la
poésie du XXe siècle: tome 1. lirismo, sua aspiração a certa transcendência e seu face a face com o inefá-
Paris: Éditions Conaissances et vel . À semelhança da janela, em sua transitividade, “ela figura o trabalho
Savoirs, 2014, p. 66. Disponí-
vel em <https://livreonlinetre.
de cristalização da escritura”.38 Ambiguidade última de uma consciência
fr/209501-la-peinture-dans- poética que une apoteose modernista do poeta e sua relativização : “Mais
-la-po%C3%A9sie-du-xxe- nos pieds ne se détachent qu’en vain du sol qui contient les morts ”, re-
-si%C3%A8cle>. Acesso em 1
ago. 2018. tém Apollinaire, em seu Les peintres cubistes, como um recalque da tensão
36
Ver LIGER MARIE, Fabienne,
entre tradição e modernidade. O olhar do poeta, como aquele do teórico
op. cit., p. 154. das artes visuais, permanece atrelado à história, às formas fugidias de seu
37
APOLLINAIRE, Guillaume. passado; o olhar em Alcools não deixa de ser, afinal, reminiscente: “ j’ai
La maison des morts. Alcools, eu le courage deregarder en arrière/ les cadavres de mes joursmarquent
op. cit.
ma route et je les pleure/ [...] Et les roses de l’électricité s’ouvrent encore/
38
MAULPOIX, Jean-Michel Dans le jardin de ma mémoire ”, assinala Apollinaire em “Les fiançailles”.39
apud LIGER MARIE, Fabienne,
op. cit., p. 241. A poética apollinairiana assume que o espaço urbano moderno, em
39
APOLLINAIRE, Guillaume.
seu expurgo do antigo, fornece ao imaginário matéria renovada para uma
Les fiançailles. Alcools, op. cit. transfiguração poética. As imagens, ali, empreendem uma visão agônica
dessa virada dos tempos. O poeta escreve comumente na familiaridade das
técnicas. Alguns versos de “La maison des morts” fazem mesmo pensar
como a celeridade da memória vai paripassu com a dinâmica das impres-
sões visuais : “Rapide comme une mémoire/Les yeux se rallumèrent /De
cellule vitrée en cellule vitrée”. Em seguida se lê: “ Le ciel se peupla d’une
apocalypse/ Vivace/ Et la terre plate à l’infini/ Comme avant Galilée/ Se
couvrit de mille mythologes immobiles”. Uma vivacidade apocalíptica
resgata do outrora figuras, lendas, mitologias, com que despertar os mor-
tos. A cidade nunca deixa de ser universo mítico, palco de narrativas nas
quais aparecem e desaparecem corpos, gestos, sentimentos, nas quais se
joga a sorte frente à morte.

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Inventários e bricabraques do efêmero

Artigos
Um conjunto heteróclito de artigos, de objetos perdidos na memória e
de outros achados nas reminiscências; uma enumeração caótica, por vezes
paratática, determina um modo de reconstruir e de proferir a experiência
fatal da modernidade. O bazar de “Le départ de l’ombre” remete, inevi-
tavelmente, àquele outro a que nos convida Balzac em A pele de onagro.
A modernidade se define por um “sensível heterogêneo”, para usar da
expressão de Jacques Rancière40, a partir do qual retraçar os esquemas da
nova arte de modo a construir “um poema interminável”. A perspectiva
do heteróclito, diga-se,não é raro na obra de Apollinaire. Testemunham seu
gosto particular pelo ecletismo e pela alteridade as célebres fotografias de
seu apartamento do Boulevard Saint Michel, cafarnaum no qual se mistu-
ram pinturas de vanguarda, fetiches africanos, marionetes, objets trouvés
de toda natureza. Assim, seus textos por vezes evocam objetos fragmen-
tários, detritos, restos abandonados, comumente de pouco valor. A cada
vez, esses objetos se veem reunidos segundo uma associação inquietante,
a favor de um tom fantástico da narrativa (o reconhecido gosto do poeta
pelas histórias extraordinárias; pela poética da “surpresa” que está no cerne
mesmo do “espírito novo”), ou então por simples gosto da incongruência e
de bizarrices de toda ordem. A enumeração seria fastidiosa: dos “materiais
disparatados” dos artistas negros em La vie anecdotique aos punhados de
ervas, os dentes de suínos e os pedaços de ferragens em “Mélanophilie”,
passando pelas inúmeras referências ao mundo industrial das máquinas
e objetos comerciais em Alcools.
Em Le poète assassiné, um capítulo intitulado “Mode” fornece o in-
ventário de uma estética da vida citadina em que se conjugam o “bizarro”,
o “fantasioso” e o “heteróclito”, três elementos-chave da estética apolli-
nairiana.41 Enumera-se ali uma série de elementos do vestuário (pelerines,
chapéus, botas, luvas), ornados dos mais inverossímeis materiais: pedaços
de cortiça, papéis envelhecidos, espinhas de peixe, conchas, pequenos
espelhos, cascas de nozes, grãos de café etc. A inovação se faz ousada, 40
Ver RANCIÈRE, Jacques.
pois que se fabricam “sapatos em vidro de Veneza e chapéus em cristal de A revolução estética e seus re-
Baccarat” em lugar dos usuais tecidos e couros. É possível reconhecer nessa sultados. São Paulo: Projeto
Revoluções, 2011. Disponível
voracidade da moda algo da perspectiva da arte plástica contemporânea
em <http://www.revolucoes.
a Apollinaire que se serve dos materiais provenientes de outros domínios org.br>. Acesso em 30 jul. 2018.
ou desprovidos a priori de valor estético de modo a ampliar os recursos 41
Ver LEE, Yi-Pei. La poétique
de sua poética.42 du ”bizarre” et de ”la surprise”
dans la prose d’imagination de
O léxico proveniente de uma vida citadina enriquecida em suas Guillaume Apollinaire. Thèse
excentricidades marca doravante um esforço de poetização do ordinário, (Doctoract en Littérature et
do insignificante, mesmo do vulgar. Uma poética considerada a partir dos Civilisation Françaises) – Uni-
versité Sorbonne Paris Cité,
objetos da nova cultura material (usinas, linhas elétricas, trens, estações), Paris, 2016, p. 324. Disponível
que ela faz entrar na esfera da combinação artística, talvez ajude a entender em<https://tel.archives-ouver-
tes.fr/tel-01539432/document>.
a célebre crítica de Georges Duhamel (em Mercure de France, n. 384, 15 jun. Acesso em 10 ago. 2018.
1913) quando da publicação de Alcools, em abril de 1913: “veio desaguar 42
Ver idem.
nessa pocilga uma multidão de objetos heteróclitos, alguns de valor, mas
43
DUHAMEL, Georges apud
nenhum produto da indústria do próprio mercador. Esta é uma das carac- DÉCAUDIN, Michel. Apolli-
terísticas da feirante de velharias: ela revende, não fabrica”.43 naire. Paris: Le Livre de Poche,
Uma cultura do heteróclito prescinde das regras do bom gosto, ou Coll. Inédit: Littérature, 2002,
p. 103.
das hierarquias da estética. “É possível partir de um fato cotidiano: um
44
APOLLINAIRE, Guillaume.
lenço que cai pode ser para o poeta uma alavanca com a qual ele erguerá Le flâneur des deux rives. Paris:
um universo”.44 A passagem, em L’esprit nouveau et les poètes, permite Éditions de la Sirène, 1918.

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45
MAULPOIX, Jean-Michel. lembrar como em Apollinaire o lirismo permanece “uma questão de
Apollinaire en Arlequin. Ob-
servations sur le lyrisme de elevação e de queda”.45 O termo “lirismo”, sabe-se, é impregnado dos
Guillaume Apollinaire dans Al- sentimentos de exaltação, de entusiasmo, de paixão; modernamente, ele
cools. Fabula / Les colloques. Dis-
conserva por vezes o sentido pejorativo do que é excessivo. Contudo, no
ponível em <http://recherche.
fabula.org/colloques/docu- lirismo de Apollinaire uma disposição de espírito renovada se desenha
ment1688.php>. Acesso em 5 e pela desdramatização corrente entre o alto e o baixo, o spleen e o ideal.
6 ago.2018.
O poeta aspira ao enlevo, mas não teme a queda, fatalidade de uma mo-
46
MAULPOIX, Jean-Michel,
op. cit.
dernidade imersa no circunstancial. Donde a exaltação que se perfila ao
longo de alguns poemas a todo um heteróclito/heterogêneo advindo do
47
Cf. APOLLINAIRE, Guil-
laume. Saltimbanquese crépus- baixo, do ordinário: cartazes publicitários, placas de rua, bicos de gás
cule. Alcools, op. cit. ou os gastos edredons dos emigrantes. Intersticial, o eu lírico “empresta
48
BARTHES, Roland. Le degré voz ao que não a tem (as coisas mudas) ou ao que é impossível, fora de
zéro de l’écriture. Paris: Éditions alcance, estrangulado (o desejo, a aspiração) ou evanescente como as
du Seuil, Coll. Points, 1972,
p. 39. sombras remontando do passado”.46 Ele lhes moderniza as vestes, ainda
49
Idem.
que seja para ornar os novos alteregos do poeta: errantes e oniristas de
todo gênero, ciganos, boêmios, saltimbancos vindos do teatro de feira,
50
Idem.
ou mesmo o Arlequim da comedia dell’arte.47
A multiplicação das facetas de si, por força desse nomadismo poético
e sentimental sensível ao efêmero, trai um sentido agudo da descontinuida-
de. “Exaltar a vida sob qualquer forma que ela se apresente”: a proposição
programática que caracteriza o “espírito novo” desdobra-se a partir da
apreciação do cubismo (“físico” e “órfico”), ocupado em desconstruir os
objetos em variados fragmentos, em inundá-los de tempos sucessivos. Mas
a descontinuidade constitui, igualmente, marca composicional: versos de
rítmica quebrada, afeitos a contrastes e rupturas sintáxicas, os calembours,
as associações inesperadas, visam alimentar a surpresa moderna, retém de
certo modo um caminhar que se quer disfuncional, vagabundo.
Barthes fornece a justa medida do estatuto que o objeto assume nesse
universo da descontinuidade: “no momento mesmo em que a retração das
funções faz a noite sobre os nexos do mundo, o objeto assume no discurso
um lugar de concessão: a poesia moderna é uma poesia objetiva”.48 Se
a natureza se torna “um descontínuo de objetos solitários e terríveis”, é
porque nada mais lhes garante “um sentido privilegiado, um emprego
ou um serviço, ninguém lhes impõe uma hierarquia, ninguém os reduz
à significação de um comportamento mental ou de uma intenção”.49 Se
Apollinaire é justo representante do que Barthes diz ser o “esfacelamento
da palavra poética”, é porque em sua poesia o objeto de algum modo se
absolutiza em suas venalidades, torna-se “uma sucessão de verticalida-
des”, manifesta-se “pleno de todos os seus possíveis”. Conclui Barthes:
“ele não pode senão balizar um mundo não preenchido, por isso mesmo
terrível”.50
O nascimento é um acaso, mas a morte que faz da reunião de hete-
róclitos uma totalidade momentânea reduz ou anula esse acaso, e o trans-
forma em destino. Os destinos em “La chanson du mal-aimé” permanecem
impenetráveis, por força dos “demônios do acaso”, cuja música “faz dançar
nossa raça humana”, na descida de costas aos Infernos, condição que de
certo modo antecipa aquela do Angelus novus que Paul Klee pintaria em 1920
e que se tornaria posteriormente o anjo da história de Benjamin Seja como
for, uma poética do acaso persegue caligrafias de objetos cuja errância de
algum modo se deposita, permitindo inesgotável leitura. Assim, o inves-
timento nos bricabraques poéticos – as enumerações paratáticas de objetos
se oferecendo às mais diversas associações de ideias; sem falar do caráter

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acumulativo do lirismo novo que procede por justaposição e composição–,

Artigos
procedimento que Apollinaire partilha com Blaise Cendrars dentre outros,
é prova de um crescente gosto pela disjunção dos elementos formais, por
uma dispersão sintáxica que permite romper com a comunicação clássica
em favor de uma aposta na aproximação entre realidades distantes.51
A propósito, talvez se possa falar de um processo de eclosão de um
mundo sensível no qual, e para o qual, no que diz respeito à arte, o conceito
de meio (milieu) substitui o de medium. Assim, um caligrama de Apollinaire,
à semelhança das solarizações de Man Ray ou das fantasias noturnas de
Brassaï, é arte de um renovado mundo sensível no qual, comenta Rancière,
“luz e movimento são ambas direta e simultaneamente experimentadas e
experimentadoras: um mundo de interstícios e velocidades onde a matéria
é espiritualizada numa força luminosa e condutora e onde pensamento e
sonho têm a mesma solidez ”.52 O que nos leva ao encontro dessa ideia de
arte e de mundo ligada ao regime milieu, prossegue Rancière, é a intenção,
moderna por excelência, de formar, no coração mesmo desse “sensório
global chamado ser de massa, o sensório particular do homem de massa
capaz de ler os sinais sociais e apropriar a produção em massa para si pró-
prio”, como o faz Apollinaire em face dos prospectos, catálogos, cartazes
“que cantam alto”53 no cotidiano de uma Paris que se moderniza.
A arte seria uma inscrição mnemônica que, ao transpor o vivido para 51
Ver WEISGERBER, Jean
o âmbito do jogo de apresentação, tenta dominar o passado. Dessa forma, (org.). Les avant gardes littéraires
bem o sabe um moderno como Apollinaire, as narrativas se transformam au XXeme siècle. Budapeste:
Akadémiai Kiadó, 1984, p. 804.
também em receptáculos que transportam diferentes momentos, que apor- 52
RANCIÈRE, Jacques. O que
tam e penetram em outros presentes e que, nesse empenho, os ressignifi- “médium” pode querer di-
cam. Toda arte é, pois, arte da memória e da recordação. Tal é o caso de Le zer: o exemplo da fotografia.
ARTisON, n. 4, 2016, p. 34.
flâneur des deux rives, inteiramente consagrado a lembranças parisienses,
Disponível em <http://artison.
como uma resistência ao fluxo do tempo, resistência que a consciência da letras.ulisboa.pt/index.php/ao/
saúde precária intensifica. “A salvaguarda literária de paisagens efêmeras article/view/101>. Acesso em 27
jul. 2018.
[como bem observa Peter Read] nem por isso anula uma tristeza, ainda
53
APOLLINAIRE, Guillaume.
que lírica, diante da mortalidade e usura do tempo”.54 Zone. Alcools, op. cit.
As errâncias pelo tecido urbano permitem atos de indulgência no 54
READ, Peter. Améthyste
recolhimento de todo um mostruário do caos residual, que Benjamin et labyrinthe architextures
dirá, um pouco mais tarde, possibilitar uma completa arqueologia da parisiennes dans l’oeuvre
de Guillaume Apollinaire.
cidade humana. De fato, não deixa de haverem Apollinaire um pouco da Cahiers de l’AIEF, n. 42 ,
disposição do lumpensammler da grande metrópole; consequentemente, a 1990,  p. 96 e 97. Disponível
exuberância do mundo apreendida doravante do ponto de vista do baixo, em <https://www.persee.fr/
doc/caief_0571-5865_1990_
dos refugos da história. Alguém já disse, a propósito das crônicas do poe- num_42_1_1730 >. Acesso em
ta em torno das enchentes de Paris em 1908, que a modernidade se inicia 26 jul. 2018.
pela (auto)destruição. Assim, a embriaguez de Alcools, pode-se estimar, é 55
Cf. FAUDEMAY, Alain. La
a um tempo moderna e decadente.55 Não surpreendente, pois, o renascer brisure et l’écoulement : plaisirs
de la douleur dans l’écriture
dos misticismos (das mitologias revisitadas) em uma ordem discursiva que d’Apollinaire. In : BIONDI,
a princípio oferece as garantias da razão experimental. Contrariamente a Carminella et al (orgs.). La
quête du bonheur et l’expression
seus escritos de arte, em sua lírica Apollinaire não enuncia um diagnóstico de la douleur dans la littérature
sobre os destinos da arte moderna, mas designa o milieu, por assim dizer, et la pensée françaises. Genebra:
de toda sensibilidade atualizada junto ao conhecimento do mundo na Droz, 1995, p. 335. Disponível
em <https://www.droz.org/
perspectiva do que neste declina ou se transfigura. Talvez a modernidade france/fr/1762-9782600001090.
não se deixe equacionar tanto por afirmações beatas das grandezas da html>. Acesso em 15 ago. 2018.
eletricidade ou da velocidade quanto pelos signos que restam por ser de- 56
RANCIÈRE, Jacques. Le
cifrados nos “fósseis das revoluções passadas ou nos hieróglifos bárbaros poète du monde nouveau. In :
Aisthesis : scènes du régime es-
da novidade industrial”.56 thétique de l’art. Paris : Galilée,
2011, p. 87.

ArtCultura Uberlândia, v. 21, n. 39, p. 223-237, jul.-dez. 2019 233


57
APOLLINAIRE, Guillaume. Fantasmagorias
Œuvres poétiques complètes:
tome I, op. cit., p. 191.
58
Idem, ibidem, p. 502.
Apollinaire é frequentador assíduo dos lugares de produção de arte.
Ali descortina uma mescla de ignóbil e de maravilhoso que lhe nutre o
imaginário. No conto “La serviette des poètes”, um pintor “colocado no
limite da vida, nos confins da arte”, leva uma vida de notívago doméstico
com sua companheira em um humilde ateliê. Em tempos distintos, quatro
poetas são convidados à sua mesa, sem nunca se encontrarem. A cada visita,
fazem uso do mesmo guardanapo. Restos então se acumulam ali. Pouco
a pouco, a sujeira se coagula no tecido: manchas de ovo, um rastro escuro
de espinafre, marcas de lábios vinosos, uma espinha de peixe, um grão de
arroz ressequido, cinzas de tabaco. Um dos convivas, estando tuberculoso,
o guardanapo infame pouco a pouco transmite seu mal aos demais poetas.
Um a um, estes adoecem. Um a um, falecem. Após as mortes sucessivas
dos quatro amigos, o pintor e sua companheira descobrem que os rostos
dos poetas defuntos começam a se delinear nos quatro cantos do guarda-
napo. Eles ali compõem uma espécie de lençol de Verônica, trama sobre a
qual se depositam os traços daqueles que convidavam a “fugir aos limites
da arte, nos confins da vida”. Um milagre assim se produz em um local de
profanas libações, longe da austeridade dos lugares de devoção religiosa.
Uma signalética sagrada se reproduz em lugar inesperado, sob um teto
coberto de “percevejos a guisa de estrelas”.57 Ainda que infecto, o ateliê de
Justin Prérogue não deixa de ser um lugar de peregrinação dos espíritos,
templo divino das trocas e criações artísticas e literárias. Ali, os “quatro
poetas incomparáveis“ se prestam à mesma precariedade dos meios; seus
poemas, contudo, mostram-se invariavelmente “admiráveis“. O tecido es-
tranhamente maculado constitui, pois, inesperado emblema de uma poética
que mescla o sórdido e o maravilhoso. Deposição dos vestígios do passado,
transposição como que aquiropoiético dos traços de figuras mortas, vocação
memorialista de uma poética sobre fundo de fantasmagórico alegorismo.
Não se poderia pensar que com as sombras principiam os problemas
para o espírito? Enxergá-las à plena luz do dia força a considerar os sorti-
légios da visão, seus modos de manipulação do espectador. Frequentá-las
na obscuridade da noite implica fazer a parte das reverberações de lem-
branças, o balanço entre invenção e alucinação, a estimativa do poder das
sobrevivências. Em Apollinaire, as sombras propiciam o aparecimento de
uma espectralidade de vida própria. O conto“La promenade de l’ombre”
(1918) joga sutilmente com a dissociação do corpo e de sua sombra. Ape-
sar da morte física (o desaparecimento do corpo), a sombra de um militar
permanece viva, flanando pelas ruas. O narrador, seguindo os passos
dessa misteriosa aparição, “mancha viva e sutil”, medita sobre o sentido
da morte. O espectro errante (que procura por sua noiva, a quem, por fim,
oferece terno beijo de adeus) faz pensar num mundo povoado de formas
efêmeras ou inconsistentes, propício a encontros exaltantes. O conto, a
caráter fabular, termina por uma espécie de “moralidade”, raro momento
positivo no tenebrismo apollinairiano: vã é a morte, mera atenuação da
presença; ela não tem menos realidade que “a sombra interior da qual
podemos seguir os contornos projetados sobre a memória e cuja sutileza
azulada esposa a lembrança”.58
A imagem fugaz da sombra, anamorfose implacável da silhueta
humana, talvez seja um dos motivos mais recorrentes de uma nova sen-
sibilidade às incertezas expressas pela modernidade. A sombra é mesmo

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a imagem da labilidade, do indefinível, do fugaz. Privação de luz, ela é

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ausência por toda parte presente no mundo, um não-ser que por fim conta
no visível. E visto a frequência com que aparecem em Alcools “sombras vi-
vazes”, sobre fundo de paisagem em trânsito, de uma cidade-instante, por
vezes espetáculo acelerado a bordo do trem, vê-se como elas incorporam
particular virtude evocatória.
As silhuetas sombreadas sempre foram consideradas capazes de
expor a alma, mesmo em seus aspectos ignorados. Razão porque o motivo
da sombra indicia, ainda, o tema do duplo, o obsessivo temor da dispersão
do eu: sua deambulação invariavelmente equivale a uma decomposição.
Ao interrogar a realidade dos corpos, a sombra denuncia a infidelidade
das imagens capturadas pelo olhar errante na metrópole. Ganha, porém,
contornos fascinantes ao exteriorizar uma inquirição doloroso de si, em
meio a um clima de fatal instabilidade.

Caráter fatal das coisas modernas

Observe-se a obra de um artista caro a Apollinaire, Giorgio De Chi-


rico, particularmente empenhado em reativar mitos arcaicos na moderni-
dade. Apollinaire ali reconhece uma arquitetônica de “sensações agudas e
modernas”: torres ornadas de relógios, de estátuas, imensas praças desertas,
arcadas fantasmagóricas, por vezes um trem surreal no horizonte. São esses
marcadores de uma “arte interior cerebral”, analisa Apollinaire, na cria-
ção de espaços de um onirismo investigativo. Com o que seduzir o poeta.
Mesmo porque “das inquietações que abalam o princípio de identidade,
passa-se à consciência do absurdo da realidade; da ‘mirada interior’ que
submete a percepção do real à ambivalência do onírico passa-se à repre-
sentação concreta dos sonhos”.59
Em uma pintura como Still life Turin, a sombra de uma mão desen-
carnada pintada sobre um muro denota inquietante indicialidade. O gosto
pelo mistério, que o pintor partilha com o poeta, investe ainda o “enigma
da fatalidade”, título de uma tela de 1914 na qual uma bizarra luva rosa
evoca esotéricos efeitos de formas geométricas. Escreve a seu respeito De
Chirico: “os tristes sopros da tarde balouçavam sobre a porta da butique
a luva de borracha colorida de terríveis unhas douradas ; ela me indicava
de seu índex, dirigido para a calçada, os signos impenetráveis de uma nova
melancolia”. A propósito dessa luva inquietante Apollinaire registra, na
edição de Paris-Journal de julho de 1914: “o Sr. Giorgio de Chirico acaba
de adquirir uma luva de borracha rosa que é uma das mercadorias mais
impressionantes que se encontram à venda”; artefato destinado a tornar
“mais comoventes e assustadoras” as obras por vir, deduz o articulista.
“Interrogado sobre o pavor que poderia suscitar essa luva”, complementa
sarcasticamente Apollinaire, “ele fala prontamente de escovas de dente
ainda mais medonhas, inventadas recentemente pela arte dentária, a mais 59
ROBERT MORAES, Eliane.
recente e talvez a mais útil de todas as artes”.60 O corpo impossível. São Paulo:
Não deixa de haver, aqui, o reconhecimento da utilidade do que se Iluminuras, 2010, p.102.
presta a transfigurar sensações inconfessas. Nas pinturas “estranhamente 60
APOLLINAIRE, Guillaume.
metafísicas” de De Chirico particular topografia alquímica, restos de uma Articles au Paris-Journal. Univer-
sité Paris-Sorbonne/Labex Ob-
cidade-fantasma ou então “interiores metafísicos” prestam-se a enquadrar vil, 2015. Disponível em <http://
mesas que invadem o primeiro plano, aonde vem se depositar toda sorte obvil.sorbonne-universite.site/
corpus/apollinaire/apollinai-
de objetos de procedência onírica. Assim, a luva de borracha rosa refaz sua re_paris-journal#apo1914-05-
aparição no célebre Le chant de l’amour ao lado de um busto antigo: uma -05B>. Acesso em 15 ago. 2018.

ArtCultura Uberlândia, v. 21, n. 39, p. 223-237, jul.-dez. 2019 235


61
André Breton retoma a pas- composição de elementos heteróclitos em seu paroxismo. Ao convocar de-
sagem, ligeiramente modifi-
cada, em Les pas perdus: “Pour liberadamente o bricabraque da cultura urbana do início do século XX, ao
dépeindre le caractère fatal des fornecer-lhe a mesma potencialidade simbólica que aquela dos objetos do
choses modernes, la surprise
nobre gosto, o surrealismo (diga-se, o “espírito novo”) consegue particu-
est le ressort le plus moderne
auquel on puisse avoir re- larizar uma fórmula para o maravilhoso e extrair uma mitologia renovada
cours”. O motivo retornaria das banalidades do mundo contemporâneo.
uma vez mais em Le surréalisme
et la peinture , mas desta feita re- Artefatos industriais enigmáticos alimentaram continuamente o
ferido ao pintor Francis Picabia. imaginário surrealista. Assim, a máscara de metal descoberta por Breton e
62
RIBEMONT-DESSAIGNES, Giacometti no mercado das pulgas e fotografada por Man Ray para L’amour
Georges apud DIDI-HUBER- fou, a máquina de caça-níqueis de Éden Casino dos Vases communicants
MAN, Georges. La ressemblance
informe: ou le gai savoir visuel ou, ainda, a luva de bronze de Nadja. A luva rosa de De Chirico, presente
selon Georges Bataille. Paris : em Le chant de l’amour e em L’énigme de la fatalité, inscreve-se assim num
Minuit, 1995, p. 103.
inventário de materializações talismáticas da novidade e do absurdo da
vida moderna.Vê-se, enfim, o compromisso surrealista com uma mitologia
explicitamente moderna, donde se sobressai o acúmulo incongruente de
objetos mostrados nas vitrines, como aquela da “Passage de l’ Opéra” em
Le paysan de Paris de Aragon: uma espécie de arqueologia do inconsciente
contemporâneo — “o ponto nevrálgico da consciência de uma época”,
como assinala Aragon —, e uma implícita rede de alusões poéticas a favor
da predileção por decisivas, porque irredutíveis, conexões entre ordens
heteróclitas de objetos. O mais significativo é que Apollinaire associe o viés
combinatório do estilo de De Chirico com a insígnia mesma do modernis-
mo, qual seja, a capacidade de surpreender: “É ao meio mais moderno,
a surpresa, que esse pintor recorre para retratar o caráter fatal das coisas
modernas”, escreve em 15 de março de 1914 em Soirées de Paris.61
Por volta de 1914 surge o motivo mais instigante, comum aos dois
autores: o manequim sem rosto. O novo personagem povoaria os espaços
picturais de De Chirico nos próximos anos. A figura se tornaria emblemática
para o surrealismo de Breton, assim como para os neo-Dadaístas. Quanto a
Apollinaire, ele lhe inspira uma pantomima intitulada A quelle heure un train
partira-t-il pour Paris? na qual um flautista sem rosto empreende enigmática
perambulação por um antigo quarteirão de Paris. A peça retoma motivo
já presente em “Le musicien de Saint-Merry”, poema de extraordinário
caráter heteróclito escrito seis meses antes, com seu personagem de um
enigmático “homem sem olhos, nariz ou orelhas”. Surgindo no início do
poema como figura de esperança, desintegra-se por fim, após promover
estranha e espectral procissão – motivo claro em Apollinaire da errância
(“Je chante la joie d’errer”) – de “mordonnantes mériennes” (prostitutas
que ministram “la petite mort”). Um antropomorfismo assim mortificado,
de fundo sexual, de que dão testemunho tantas representações contempo-
râneas a Apollinaire, nada tem de metafísico. Como lembrará alguns anos
mais tarde Ribemont-Dessaignes, relativamente à figura sem rosto de De
Chirico, tratar-se-ia, ali, de uma “realidade inegável”, em nada devedora
da metafísica, realidade indicativa que seres vivos “parecem ter-se tornado
objetos inanimados, mais mortos que os mortos”.62
A insistência das aparições do manequim mutilado nos textos de
Apollinaire é, uma vez mais, emblemática do investimento nos reflexos
fantasmáticos de si, sobre fundo de uma modernidade que engendra seus
artifícios e desvios. Desde “L’emigrant de Landor Road”, de 1904-1905, a
figura do manequim de vitrine surgia premonitória de uma partida aven-
turosa, e infrutífera, para longe da memória de si. Manequins sem cabeça,
“desnudos” e “vítimas” funcionam como o bizarro desdobramento do eu,

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reverberando em uma lírica para a qual as errâncias marcam de fatalidade

Artigos
cada dobra da vertigem urbana moderna oferecida ao olhar do poeta.

Artigo recebido em 14 de abril de 2019. Aprovado em 11 de junho de 2019.

ArtCultura Uberlândia, v. 21, n. 39, p. 223-237, jul.-dez. 2019 237


Primeira mão

Mistérios
da canção
regionalista
Ruy Barata, Paulo André e Fafá de Belém. S./d., fotografia (detalhe).

Antonio Maurício Dias da Costa


Doutor em Ciências Sociais pela Universidade de São Paulo (USP). Professor da Facul-
dade de História e dos Programas de Pós-graduação em História Social da Amazônia
e em Antropologia e Sociologia da Universidade Federal do Pará (UFPA). Pesquisador
do CNPq. Autor, entre outros livros, de Cidade dos sonoros e dos cantores: estudo sobre a
era do rádio a partir da capital paraense. Belém: Imprensa Oficial do Estado do Pará,
2015. makosta@bol.com.br
Mistérios da canção regionalista*
Mysteries of regional songs

Antonio Maurício Dias da Costa


Na floresta
O canto das Iaras ecoou
Uma estrela surgiu tão cintilante
E a mata iluminou
Luz menina
Voz que encanta, sobressai
Entre tantas
No Teatro da Paz
O canto da sereia ecoou
Na mais linda tradução do poeta
Paranatingueando
O Brasil cantou
Esse rio
Minha e tua mururé
Piso no peito da lua
Deito no chão da maré

Samba-enredo “Fafá de Belém, estrela do norte em fá maior”. Escola


de Samba-Rancho Não Posso Me Amofiná. Campeã Especial de 2002
de Belém do Pará. Carnavalesco: Cláudio Rêgo de Miranda

A canção e seus mistérios. É por esse caminho que Edilson Mateus


Costa da Silva nos conduz neste seu livro revelador, Ruy, Paulo e Fafá. Mas
não por mistérios do sobrenatural. As revelações aí contidas apontam
para a eficácia da canção como canal de comunicação entre os artistas, os
produtores, a mídia e o público em geral. Letra e música tornam-se, nas
palavras do pesquisador, modelos e conceitos, oriundos da vida social e
aptos a reinventá-la por meio da imaginação artística. Na obra dos artistas
em foco, a palavra cantada (e musicada) propõe-se como narrativa de uma
sociedade sobre si mesma, na direção do que o autor chama de regional-
* Este texto figurará como pre- -popular. Voltarei a isso adiante.
fácio do livro de SILVA, Edilson
Vai longe no tempo a proposição intelectual de que a música ex-
Mateus Costa da. Ruy, Paulo e
Fafá: a identidade amazônica pressa a “alma do povo”. A ideia desenvolvida pelos filósofos românticos
na canção paraense. Belém: europeus desde fins do século XVIII desembarcou no Brasil das primeiras
Nepam (no prelo), que contará
com orelha assinada por Adal- décadas do século XX, com a busca modernista pela “verdadeira música
berto Paranhos. brasileira”. É certo que a “música nacional” não foi descoberta de forma

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pura, como se queria. Entretanto, o trabalho de musicólogos, folcloristas

Primeira mão
e literatos revelou os vários caminhos da produção da música popular,
especialmente numa primeira fase correspondente ao intervalo entre 1920
e 1940. Tal variedade, por sinal, contribuiu inclusive para se repensar a
ideia de popular na música, dadas as influências estrangeiras e eruditas
detectadas pelos pesquisadores nas criações de origem rural.
O que se descobriu com essas pesquisas, ou se constatou mais tarde,
é que a produção musical e sua repercussão são campos dinâmicos de
interação entre sujeitos, de intercâmbio entre visões de mundo e de circu-
lação cultural, considerada a sua fluidez e predominante imaterialidade.
Mas, simultaneamente, ela pode estipular repertórios simbólicos que se
impõem junto à sociedade, dotados até mesmo de força política. É nesta
chave que entra em cena a noção de regional-popular desenvolvida por
Edilson Mateus Silva. Enunciados e imagens propostos na canção popular
produzida na capital paraense nos anos de 1970 emergiram como narrativas
catalisadoras de visões socialmente estabelecidas sobre o regional.
O regional, em termos políticos e culturais, acaba por ser uma ex-
pressão menor do nacional, ao mesmo tempo a ele condicionado. Nação
e região formam um par combinado e se reforçam mutuamente quando
agentes políticos e artísticos atuam em seus nomes. Mais ainda: região não
pode ser pensada em exclusão ao nacional. Há entre os dois planos uma
continuidade visceral, uma relação complementar, pela qual se mantém
o jogo metonímico entre a parte e o todo. No mundo da canção popular,
a região desponta também como um constructo poético, com força para
imiscuir-se na imaginação coletiva a ela devotada.
O regional-popular presente nas canções de Ruy Barata, Paulo André
e Fafá de Belém constituiu uma vertente do regionalismo musical brasileiro
na Amazônia, recriado a partir da década de 1970. O regionalismo amazô-
nico que aí se enuncia é concebido e imaginado como comunidade política
e cultural, a despeito da diversidade etnicorracial e dos caminhos diversos
na história de ocupação socioespacial da região. A suposta unidade hu-
mana e espacial amazônica é promovida como evidência poético-musical,
componente do repertório mais amplo da música popular brasileira.
A música regional amazônica de Ruy, Paulo e Fafá ganhou ressso-
nância ancorada em condicionantes estilísticos, mercadológicos, políticos
e culturais próprios dos anos de 1970 no Brasil. É o caso, por exemplo, dos
projetos de “integração” da Amazônia ao país ensejados pelos governos
militares. Em meio à propaganda do regime pelo povoamento das “terras
sem homens” pelos “homens sem terras” da região Nordeste, a expressão
poética do regional na obra de escritores paraenses do período invocava
paisagens naturais e elementos da vida cotidiana da população ribeirinha.1
Esta foi uma temática orientadora do discurso político incorporado de for-
ma implícita ou explícita nas canções do trio de artistas. Além do mais, tal
orientação criativa permitiu o ingresso dessas obras na vitrine do mercado
musical brasileiro, exatamente quando se consolidava o rótulo MPB como 1
Vide os livros lançados nesse
complexo artístico-musical de escala nacional. período por Dalcídio Jurandir,
Benedicto Monteiro, Lindanor
Ruy, Paulo e Fafá formam como que um contínuo de produção mu- Celina e João de Jesus Paes
sical que vai da atividade poético-musical da cena artística belenense nos Loureiro.
anos 1960 até a inserção no mercado fonográfico no Brasil a partir de 1976. 2
Por isso o “paranatingue-
Ruy Paranatinga2 Barata, literato oriundo da geração de poetas emergentes ando” no samba-enredo da
Escola de Samba-Rancho Não
em Belém nos anos 1940, desenvolveu sua carreira artística e política na Posso me Amofiná, na epígrafe
capital paraense, tornando-se referência como intelectual de esquerda que deste texto.

ArtCultura Uberlândia, v. 21, n. 39, p. 239-243, jul.-dez. 2019 241


3
O primeiro LP de Fafá (de combateu o regime militar instalado em 1964. Barata atuou como militante
1976) tem como título uma
composição de Waldemar Hen- do Partido Comunista Brasileiro por longo período de sua vida e legou à
rique, “Tamba-tajá”, presente literatura brasileira uma importante obra assinalada por engajamento po-
na segunda faixa do lado A do
lítico e vinculação a temas regionais. Suas criações poéticas mais relevantes
disco. Ela foi lançada original-
mente pelo músico paraense no estão nos livros Anjo dos abismos (publicado em 1943 pela José Olympio
Teatro do Cassino Beira-Mar, Editora), A linha imaginária  (lançado em 1951 pela Edição Norte) e Violão
no Rio de Janeiro, em 1934, e
gravada pela primeira vez pela de rua (volume da série “Cadernos do Povo Brasileiro”, do Centro Popular
cantora Antonieta Fleury de de Cultura da UNE, editado pela Civilização Brasileira em 1962).
Barros em 1949.
Alguns dos poemas de Ruy Barata foram convertidos em “canções”
4
Canções gravadas por Fafá pelo “violão de rua” de seu filho Paulo André, cantor e compositor surgido
de Belém foram acolhidas na
teledramaturgia da Rede Globo em Belém nos festivais musicais estudantis realizados na cidade desde fins
quase ininterruptamente entre dos anos1960. Paulo André integrou uma geração de jovens inovadores da
1975 e 2002, ocorrendo um
salto após isso para telenovelas
canção popular e da poesia feita no Pará, que reuniu personagens como João
exibidas em 2014 e em 2017: de Jesus Paes Loureiro, Simão Jatene, Cleodon Gondim, Galdino Penna. Sua
“Filho da Bahia” (Gabriela, produção acompanhou os desdobramentos da Música Popular Brasileira
1975); “Xamego” (Saraman-
daia, 1976); “Sedução” (O pulo no cenário nacional entre as décadas de 1960 e 1970. Sua obra, portanto,
do gato, 1978); “Foi assim” (Te assumiu o emblema da MPB como marcador cultural orientador de uma
contei?, 1978); “Ontem ao luar”
(A sucessora, 1978); “Confidên-
vertente dominante no mercado musical brasileiro no período. Paulo André
cia” (Cabocla, 1979); “Sexto viu sua carreira deslanchar a ponto de adquirir relativa projeção nacional
sentido” (As 3 Marias, 1980); nessa época, com a gravação dos LPs Nativo, em 1978, e Amazon River, em
“Pano de fundo” (Baila comigo,
1981); “Bicho homem” (Terras 1980, ambos pela Continental. Apesar disso, suas composições somente
do sem fim, 1981); “Bilhete” alcançariam grande repercussão na voz de Maria de Fátima Moura Palha,
(Sol de verão, 1982); “Paixão”
(Guerra dos sexos, 1983); “Pro-
a Fafá de Belém.
messas” (Eu prometo, 1983); O nome artístico da cantora denota sua posição adventícia nos círcu-
“Aconteceu você” (Champagne, los de cantores e compositores baseados no eixo Rio de Janeiro-São Paulo
1983); “Você em minha vida”
(Amor com amor se paga, 1984); em meados dos anos 1970. Desde o primeiro disco gravado, Fafá passou a
“Coração aprendiz” (Roque ser uma espécie de porta-voz (ou “porta-bandeira”) nacional de um novo
Santeiro, 1985); “Doce magia”
(De quina pra lua, 1985); “Pra
regionalismo amazônico. Seus registros das canções de Paulo André e Ruy
não mais voltar” (Sinhá moça, Barata compuseram , vistos em sequência, como que um conjunto discur-
1986); “Personagem” (Manda- sivo sobre a Amazônia. O regionalismo da MPB feita na Amazônia pela
la, 1987); “Cheiro no cangote”
(Sassaricando, 1987); “Coração tríade artística acrescentou-se às ondas regionalistas abrigadas nas artes
do agreste” (Tieta, 1989); “Con- paraenses desde a segunda metade do século XIX.
versa bonita” (Rainha da sucata,
1990); “Nuvem de lágrimas”
Especulo que haja uma linha de continuidade longínqua e embaralha-
(Barriga de aluguel, 1990 /A regra da que liga o repertório amazônico das canções interpretadas por Fafá de
do jogo, 2015); “O homem que Belém aos escritos de José Verissimo e Inglês de Souza sobre “cenas ama-
amei” (Pedra sobre pedra, 1992);
“Poeira de estrelas” (A viagem, zônicas”, surgidos a partir da década de 1870. A linha sutil mantém ligação
1994); “É tão bom te amar” (A com as obras de escritores modernistas do Pará dos anos 1920, como Bruno
indomada, 1997); “Eternamente”
(Torre de Babel, 1998); “Doce
de Menezes e Abguar Bastos, incorporadores de temas negros e indígenas
prisão” (Força de um desejo, na literatura regional. Essa conexão se estende também às composições
1999); “Sob medida” (Porto dos regionalistas de destacados pianistas como Waldemar Henrique3 e Gentil
milagres, 2001/A força do querer,
2017); “Só nós dois” (Sabor da Puget, igualmente filiados à geração de artistas inovadores da década de
paixão, 2002); “Pauapixuna” 1920. Adiante, a conexão tornou-se direta com a obra poética de escritores
(Amor eterno amor, 2012) e “Es-
cândalo” (Alto astral, 2014).
que despontaram na Belém dos anos 1940 em diante, entre eles o próprio
Ruy Barata. Esse acúmulo de antecedentes artísticos somou-se à difusão
e à criação de repertórios regionalistas da MPB na década de 1970, com
possibilidades de ingresso no mercado musical nacional. Nesse período,
a Amazônia, nas canções de Fafá, embalou parte da trilha de novelas da
Rede Globo4 e virou tema de videoclipes, recheados de imagens de florestas,
rios, vestes e adereços indígenas e rurais.
Fafá foi catapultada à condição de representante do “novo” exotismo
amazônico no âmbito da canção popular brasileira. Seus discos de início de
carreira seguiram a trilha das constantes “redescobertas” da Amazônia pelo

242 ArtCultura Uberlândia, v. 21, n. 39, p. 239-243, jul.-dez. 2019


Brasil, particularmente no mercado fonográfico. Os LPs Tambá tajá (1976),

Primeira mão
Água (1977), Banho de cheiro (1978), Estrela radiante (1979) e Crença (1980)
apresentaram, com regularidade, uma ou duas composições da dupla Paulo
André e Ruy Barata. Suas letras e mesmo o clima musical das gravações
evocam uma atmosfera amazônica, com referências fluviais, beiras de rio,
vento, flora regional, preamar, sem contar temas românticos ambientados
na zona boêmia de Belém.
Na linha de raciocínio do importante estudo de Durval Muniz de
Albuquerque Júnior sobre a “invenção do Nordeste”, a música de Paulo
André e Ruy Barata nos discos de Fafá de Belém contribuiu com a pro-
dução do imaginário nacional sobre a Amazônia em meio à proliferação
de poemas, romances, filmes e peças teatrais sobre essa temática nos anos
1970. Nesse sentido, a obra de arte voltada para o entretenimento assume
o papel de produtora de realidade, ao disseminar modos de dizer e ver o
regional no palanque privilegiado dos meios de comunicação.
No período, os governos ditatoriais dos militares conduziam projetos
econômicos de integração da região Norte à matriz de desenvolvimento
do país. A modernização conservadora do regime militar impôs a explo-
ração de recursos naturais na Amazônia em detrimento da melhoria das
condições de vida da população local e das levas de migrantes vindas em
busca de trabalho e de novas perspectivas de subsistência. Nas grandes
cidades, a expansão do acesso a bens de consumo ampliou a possibilidade
de compra de discos, aparelhos de som e televisões a pessoas situadas nas
camadas médias. O investimento de gravadoras estrangeiras no mercado
fonográfico brasileiro, ao lado da iniciativa de empresários locais, abriu
caminho para a crescente inserção, no sistema de estrelato nacional, de
artistas da canção popular oriundos do Norte e Nordeste.
Tal conjuntura explica a conexão entre regional-popular e nacional-
-popular no domínio da canção nessa época: a moderna tradição musical
paraense representada por artistas como Ruy, Paulo e Fafá prestou sua
contribuição, a partir das margens e na chave do exótico, para a formação
de uma vertente artístico-mercadológica da Música Popular Brasileira
, com desdobramentos até os dias atuais. Este é o principal “mistério”
elucidado neste livro. Peço perdão pela revelação antecipada! O autor
enfrenta a polissemia da música-canção, das capas de disco e dos video-
clipes cruzando-os com textos jornalísticos e registros memorialísticos. O
resultado foi uma brilhante dissertação de mestrado, a qual tive a honra
de orientar, e que chega agora ao público na forma (mais leve!) de livro.
Que o prazer da leitura nos ajude a entender e apreciar a força sociológica
da canção, da performance e da criação em nosso mundo aparentemente
duro e materialista.

Texto recebido em 17 de outubro de 2019. Aprovado em 7 de novembro de 2019.

ArtCultura Uberlândia, v. 21, n. 39, p. 239-243, jul.-dez. 2019 243


Resenhas

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Roberto Camargos
Doutor em História pela Universidade Federal de Uberlândia (UFU). Pós-doutorando
vinculado ao Programa de Pós-graduação em História da UFU. Bolsista PNPD/Capes.
Autor de Rap e política: percepções da vida social brasileira. São Paulo: Boitempo, 2015.
robertoxcamargos@gmail.com
Ao redor do rap: economia, cultura e resistências juvenis no
noroeste do México
Around rap: economy, culture, and youth resistances in northwestern Mexico

Roberto Camargos

OLVERA GUDIÑO, José Juan. Economías del rap en el noreste de México:


empreendimentos y resistencias juveniles alrededor de la música po-
pular. Ciudad de México: Ciesas, 2018, 274 p.


José Juan Olvera Gudiño, doutor em Humanidades e sociólogo das
questões culturais, dedicou parte dos últimos sete anos de suas atividades
profissionais – como professor e pesquisador do Centro de Investigacio-
nes y Estudios Superiores em Antropología Social (Ciesas), localizado em
Monterrey/México – a investigações acerca de músicas e artistas populares
da região noroeste do México1. Interessado especialmente nas experiências
dos/das rappers, ele produziu e coletou uma vasta documentação sobre MCs,
DJs, beatmakers, produtores culturais, empresários, lojistas, entusiastas e ou-
tros sujeitos que empenharam parte de suas vidas na configuração de uma
cena local de hip hop. Conjugando elementos dessa rica pesquisa etnográfica
e documental com pertinentes aportes teóricos, metodológicos e históricos,
o autor analisa e descreve as redes econômicas e de sociabilidades em torno
do rap sem perder de vista aspectos sociais de um contexto marcado por
violências e inseguranças (física, social, econômica etc.). Dialogando com
artistas e sujeitos de pouca projeção e com outros de inegável impacto
em âmbito nacional, as análises expostas em Economías del rap en el noreste
de México passam por processos econômicos, migratórios, educacionais,
culturais, midiáticos e políticos, assinalando forte presença social do rap
na região estudada.
O trabalho mobiliza reflexões sociais e material empírico variado na
tentativa de entender aspectos relevantes das novas configurações culturais
do país em que foi desenvolvido, elegendo como pilares do exercício de
interpretação e análise social as dificuldades em se pensar os fenômenos
culturais no México sem levar em conta os fluxos migratórios com os EUA,
o papel dos jovens nos processos de culturalização da economia e, ainda,
a importância de associar os dados e indicadores macrossociais às práticas
dos jovens (como encaram a incerteza laboral e de renda, como criam meios
de subsistência e como constroem redes de colaboração, por exemplo). Es-
sas e outras potentes questões para se refletir sobre a sociedade e a cultura
1
O autor define o território emergem do interesse primário de José Juan Olvera: compreender e explicar
delimitado para a pesquisa o que fazem os rappers para viver com o rap e, especialmente, para viver
como um conjunto de espaços
do rap. Aqui, cabe destacar, viver com/do rap engloba um amplo e flexível
sociais formado pelos estados
de Tamaulipas, Coahuila, Nue- conjunto de estratégias que permite a seus promotores a existência mate-
vo Léon e a parte sul do Texas, rial (organização de eventos com vendas de ingressos, cobrança de cachês,
considerados ainda os vínculos
socioculturais com Zacatecas, venda de camisetas, produção musical, trabalhos educativos relacionados
Durango e San Luis Potosí. ou em diálogo com o hip hop) para criar e interpretar suas composições.

246 ArtCultura Uberlândia, v. 21, n. 39, p. 245-250, jul.-dez. 2019


O livro, que oferece ao leitor um substancial e detalhado painel das

Resenhas
práticas vinculadas ao rap produzido por jovens de 15 a 35 anos da região
noroeste do México, organiza sua narrativa em dois eixos expositivos que
sintetizam os movimentos de pesquisa e reflexão enfrentados pelo autor.
O primeiro, “Enfoques, conceptos y contexto sociohistórico”, se debruça
sobre a questões de ordem teórica e histórica. Já o segundo, “Etonografía.
Economías del rap en el noreste de México”, é focado na investigação
empírica e documental que se valeu de fotografias, impressos diversos,
dados estatísticos, indicadores sociais, diários de campo e de observação
participante, entrevistas, músicas, vídeos e toda sorte de rastros que enri-
quecem suas análises. Ao final alinham-se conclusões gerais que resumem
as condições de certos grupos de jovens mexicanos, submetidos a experiên-
cias de uma dinâmica laboral acelerada e de pouca estabilidade, expostos a
vulnerabilidades sociais diversas e com vidas profundamente impactadas
pela intensificação da violência no contexto/momento da pesquisa.
O capítulo 1, “La diversidad de economias en un contexto regio-
nal”, é integralmente direcionado à construção de um contexto para a
pesquisa. Aí o sociólogo descortina aos seus interlocutores o México do
qual se ocupa, tomado como terreno de grandes e profundas diferenças
regionais que atingem de maneira mais aguda enormes parcelas da ju-
ventude que constituem o grosso da população desempregada do país.
Esses jovens tiveram suas vidas comprometidas pelas mudanças estru-
turais geradas pelas reformas neoliberais implantadas pelo Estado, que
reduziu investimentos nas áreas sociais e abriu espaços da economia e da
cultura para maior controle de empresas privadas, acelerando processos
de acúmulo de desvantagens de setores mais pobres. O capítulo analisa,
também, diferentes economias em torno da arte e que podem ajudar a
caracterizar as práticas de músicos de rap dentro do recorte socioespacial
da investigação, problematizando e adensando as reflexões sobre a partir
das relações entre o local e o global.
Nas palavras de José Juan Olvera, “abordo primero el enfoque de las
industrias culturales y creativas, así como sus limitaciones y alcances. A con-
tinuación, lo pongo em discussión con otras economias que permiten una
mejor explicación de mi evidencia empírica y las relaciono con prácticas,
espacios y redes de relaciones en forma de escenas musicales” (p. 33). Além
disso, o autor enfoca, pelo viés da economia da cultura e do contexto regio-
nal, problemas referentes às discussões sobre juventude, música, relações
fronteiriças – o que conduz ao entendimento da região com base em trocas
simbólicas e em fluxos de pessoas, e não pelas delimitações geográficas
oficiais de Estado – e aspectos sociodemográficos, protagonismo cultural
e consumo, novas tecnologias e seu papel nas configurações e produções
culturais, práticas de economia alternativa, solidária e de resistência. Esse
percurso, alimentado com muitos dados e indicadores extraídos de copiosa
bibliografia consultada, ganha especial relevo ao evidenciar o

contraste entre macroindicadores sociales y económicos positivos y las realidades


etnográficas que muestran precariedade, exclusión y violencia. Em la frontera
noreste, los indicadores de regazo social, que están todos por encima de la media
nacional, se vem opacados por otros indicadores de la violencia. [...] Frente a la en-
gañosa buena situación de algunos indicadores queda la alternativa de la observación
presencial; mis recorridos por Nuevo Laredo, Reynosa y Matamoros me revelaron
que la violencia está expresada en el abondono de la ciudad, la desolación de suas

ArtCultura Uberlândia, v. 21, n. 39, p. 245-250, jul.-dez. 2019 247


calles, particularmente de sus zonas centro. Aun con sus particularidades, las tres
ciudades compartían el hecho de estar militarizadas (p. 37).

O capítulo 2, “Contexto histórico del rap en el noreste, 1985-2015”,


visa proceder a uma leitura da prática do rap na região e, mais especifica-
mente, em Monterrey, que “es centro de la narración por su papel como
espacio fundamental para el nascimento y desarrollo de casi todas las
variantes del rap, y por su influencia hacia a fuera de la región y más allá,
como referencia del rap mexicano” (p. 61). É o momento em que José Juan
Olvera detém-se em detalhes que conformam a chegada da prática de
ouvir e cantar raps em Monterrey e, progressivamente, em toda a região
noroeste pelos circuitos da indústria cultural e dos trânsitos de migrantes
entre México e EUA. Se isso comporta semelhanças e possíveis pontes
com o caso brasileiro e de outros países da América Latina, a circulação
de informações e produtos culturais relativos a essa prática por meio de
fluxos de migrantes (notadamente trabalhadores das camadas populares)
lhe confere peculiaridades que impactam seus significados na realidade
local e a geração de uma nova cultura juvenil do país. O autor, por inter-
médio de seu corpus documental, mostra que “el hip hop en general y el rap
en particular llegaron a México casi desde sus próprios inicios, allí donde
hubiera migrantes presentes en las escenas fundantes, que retomaran algo
de su cultura y que, al retornar a México, la compartieran con sus pares
mexicanos” (p. 63).
A longa trajetória dos praticantes do rap no México o leva a dividir o
processo histórico de seu desenvolvimento em quatro fases: (a) as apropria-
ções iniciais graças às famílias transnacionais que aceleravam a circulação
de informações, dados culturais e objetos como discos, revistas, fitas e
indumentária entre 1985-1989; (b) a consolidação de uma cena de música
rap na região noroeste, marcada pela existência dos primeiros grupos
locais, pela consolidação de espaços populares que acolhiam performance
de variados elementos da cultura hip hop, pela produção dos primeiros
discos e pela constituição de uma identidade – nomeada de rap chicano –
que “tiene un poderoso componente del gangsta rap, alusivo a la vida de
pandillas, la vida del barrio, las drogas, la defensa del territorio y la vida
criminal dentro y fuera de las prisiones” (p. 85) entre 1990 e 1999; (c) um
momento de clímax expresso pelo número de grupos, pela diversidade dos
agentes culturais e pela existência de espaços destinados exclusivamente
ao rap/hip hop entre 2000 e 2005; e (d) uma fase de crise das práticas pú-
blicas ligadas ao rap e um intenso processo de declínio da cena na região,
fruto de dinâmicas próprias da vida dos praticantes e do crescimento da
violência em algumas zonas urbanas, entre 2006 e 2013, que “dejaro nun
impacto específico importante: el narcorrap, un subgénero que canta a los
comandantes y la gente alegada a las organizaciones criminales, ya sea para
narrar su muerte en memoria, o para ensalzar sus cualidades en vida” (p.
93). Esse itinerário elaborado pelo autor para o rap do noroeste do México,
no entanto, não é um ponto de chegada, mas um ponto de partida: “El rap
como industria sufre, pero como cultura resiste y se extiende. Dejó de
verse y cantar seen bares, pero se refugió y a crecido en las casas, al igual
que otras expresiones juveniles” (p. 95).
No capítulo 3, “Monterrey: una escena en recomposición”, o pesqui-
sador segue os rastros de uma cultura que, eclipsada no espaço público pela
violência das ruas, se instalou nas esferas do privado para se reconfigurar

248 ArtCultura Uberlândia, v. 21, n. 39, p. 245-250, jul.-dez. 2019


em novas formas e práticas: “el periodo de intensa violencia había termi-

Resenhas
nado com gran parte de la vida nocturna: los jóvenes habían abandonado
las esquinas y convertido las casas en centros de reunión, laboratorios de
creación y hasta en pequenos negocios” (p. 104). O sociólogo lança mão de
depoimentos (ao todo foram efetuadas 25 entrevistas) e outros documentos
para tecer um significativo painel da recomposição da cena local de rap,
caracterizado pela hegemonia do “rap consciente”, assim chamado “por-
que no sólo hace un retrato de uma situación o narra una circunstancia,
sino que toma una posición crítica respecto a las causas que originan tales
hechos” (p. 101).
Delineia-se aí o profundo e rigoroso trabalho etnográfico da pesquisa,
à medida que se relatam e se analisam em minúcias as novas figurações das
práticas dos rappers e os espaços de produção do “novo” rap (beneficiado,
em muito, pelo avanço das tecnologias computacionais e pela populari-
zação da internet). Em meio a tudo isso, atenção especial é dispensada à
economia – em sua maior parte dominada pela informalidade – que se
formou em torno das atividades concernentes ao rap. De maneira original
e criativa, Juan José Olvera elege os cartazes e flyers de eventos e shows
para mapear o crescimento ou decréscimo no número de festas, preços de
entradas, existência ou não de patrocinadores, artistas, espaços e relações
econômicas no interior da cena de rap e o seu potencial como gerador de
renda para as pessoas envolvidas com eles. Nos três capítulos subsequentes,
o autor envereda por casos de jovens que trabalham conectados ao mundo
do rap, ainda que de modos e de perspectivas diversificados.
Daí que, no capítulo 4, “Economías de la escena subterránea”, o foco
se concentra no exame pormenorizado de situações coladas ao ambiente
underground de rap, principalmente os empreendimentos artísticos regionais
que não estão presentes nos meios massivos de comunicação e nas redes
da indústria cultural e do entretenimento musical. Assim, destacam-se as
práticas e artistas de resistência, “que defino como formas de valorización
de la producción musical del rap para la sobrevivencia económica, en medio
de ambientes particularmente hostiles” (p. 114). Integram esse campo os
“raperos de pesera”, jovens artistas que utilizam o transporte público para
cantar suas rimas e fazer algum dinheiro, os “narcoraperos”, que produzem,
mediante pagamento, composições encomendadas por pessoas associadas
ao crime organizado [“llamadas ‘dedicaciones’, o réquiems, ‘descanse en
paz’” (p. 152)] e que buscam legitimar e eternizar sua figura por meio de
uma narrativa épica, e uma vasta rede de artistas, grupos, crews e “famí-
lias” que movimentam atividades econômicas alternativas, solidárias e
destoantes das operações e valores dominantes do capitalismo neoliberal.
As reflexões são, pois, alinhavadas com base em trajetórias pessoais e ar-
tísticas, evidenciando que, para José Juan Olvera, a economia da música
não está centrada em ver como a música sustenta o artista, mas, sim, em
entender como se financia a atividade artística.
O capítulo 5, “Economías de la escena alternativa independiente”,
centra fogo em casos de rappers com maior nível de escolarização formal,
como alguns pertencentes a estratos socioeconômicos médios. Calcado
nas experiências de Erik Santos, Aldo Ce, DJ Jonta e do grupo Caballeros
del Plan G, a análise privilegia projetos musicais que expressam ou são
desenvolvidos sob lema “faça você mesmo” ou em práticas de economias
alternativas em conexão com pequenos empreendimentos culturais. O autor
salienta que nas práticas e discursos desses sujeitos há linhas de continuação

ArtCultura Uberlândia, v. 21, n. 39, p. 245-250, jul.-dez. 2019 249


2
Ver AZEVEDO, Amailton dos valores e ideias dominantes na cidade de Monterrey, embaladas por
Magno. No ritmo do rap: mú-
sica, cotidiano e sociabilidade uma cultural laboral e empresarial que concebe o trabalho como sentido
negra – São Paulo, 1980-1997. da vida e promove certo culto ao empreendedorismo que aponta o homem
Dissertação (Mestrado em
industrioso como o símbolo máximo da cultura do esforço e dos valores
História) – PUC-SP, São Paulo,
2000, e FELIX, João Batista de liberais do progresso e da mobilidade social: “Sostengo que algunos dis-
Jesus. Hip hop: cultura e política cursos de los raperos recogidos en este capítulo, como las expresiones de
no contexto paulistano. Tese
(Doutorado em Antropologia Erik Santos, las actitudes de Aldo Ce [...] son expresión de esta realidade, y
Social) — USP, São Paulo, 2005. que se han fusionado o han embonado con la ideología do DIY, y han sido
3
Ver CAMARGOS, Roberto. incubados y potenciados cuanto más tempo tienem sus famílias asentadas
Rap e política: percepções da en la ciudad, absorbiendo esta práxis y visión del mundo” (p. 218).
vida social brasileira. São Pau-
lo: Boitempo, 2015, e SILVA, Por fim, no capítulo 6, “Economías alrededor de la gestión cultural:
Rogério de Souza. A periferia antes, al lado y delante del Estado”, o pesquisador dirige seus esforços para
pede passagem: trajetória social
e intelectual de Mano Brown.
entender e descrever as práticas de rappers que trabalham em parceria ou
Tese (Doutorado em Sociolo- como empregados de instituições públicas ou privadas da área cultural.
gia) – Unicamp, Campinas, As reflexões se voltam para pessoas que realizam atividades de produção
2012.
cultural em nível institucional como parte de um conjunto maior de ações
4
Ver SILVA, José Carlos Gomes
da. Rap na cidade de São Paulo:
relacionadas às suas vidas como rappers e/ou agentes do universo do hip
música, etnicidade e experiên- hop que, mesmo não sendo rappers, incorporam o rap na implementação
cia urbana. Uberlândia: Edufu, de políticas culturais e/ou trabalham com o gênero como ferramenta de
2015, MAGALHÃES, Maria
Cristina Prado Fleury. Hibrida- transformação ou intervenção social. Ao longo do capítulo se analisam as
ções locais e processos identitários: potencialidades e os limites do uso do rap como fator de empoderamento
o rap em Goiânia e Apareci-
da de Goiânia. Dissertação
dos jovens – “se oferecen [...] cursos de historia y filosofia del rap, cons-
(Mestrado em Música) – UFG, trucción de rimas, ejecución de performance o elaboración de pistas, entre
Goiânia, 2015, e ANASTÁCIO, otros” (p. 222) – e, também, a natureza das ligações entre esses sujeitos e as
Edmilson Souza. Periferia é
sempre periferia? Um estudo instituições que os forçam a viver em constante negociação para suportar
sobre a construção de identi- “los vaivenes, inconsistencias e incongruencias de la política partidista
dades periféricas positivadas
a partir do rap em Uberlândia-
vinculada a la gestión de la cultura” (p. 224). Após explorar os campos de
-MG (1999-2004). Dissertação tensões e os conflitos que nascem ou reverberam nas relações estabelecidas
(Mestrado em História) – UFU, entre agentes do hip hop e instituições (especialmente as estatais) que não
Uberlândia, 2005.
desejam acolher práticas cujos valores e ideias podem perturbar o sistema,
o sociólogo se atém ao caso do Festival Callegenera de Monterrey, tido
como um exemplo bastante exitoso das possibilidades das políticas públicas
em torno das culturas juvenis e como espaço aglutinador e catalisador da
cena local/regional.
Publicada no ano passado no México, a obra de José Juan Olvera Gu-
diño é, ainda, desconhecida entre o público brasileiro. Suas contribuições,
no entanto, são muito relevantes para as Ciências Humanas e Sociais no
país, principalmente se considerarmos que nos últimos dez anos é notável
e crescente o interesse dos pesquisadores das mais diferentes áreas, no Bra-
sil, pelas práticas culturais do hip hop (ou seja, pelo rap, break e/ou graffiti).
Apesar da área/tema de estudos contar com pouca ressonância editorial,
as revistas acadêmicas e os programas de pós-graduação, com seus bancos
de dissertações e teses, atestam a presença do hip hop, e particularmente
do rap, nas pesquisas dos acadêmicos brasileiros. Por aqui, os trabalhos
exploram, por exemplo, as redes de sociabilidades2, as dimensões políticas
dessa prática cultural3, o seu papel na constituição de processos identitários4
e muitas outras questões, porém são praticamente inexistentes estudos
sobre uma economia do rap no Brasil. Sob esse aspecto, o livro Economías
del rap en el noreste de México pode inspirar e abrir caminhos até então não
trilhados pelos pesquisadores brasileiros.

Resenha recebida em 24 de outubro de 2019. Aprovada em 17 de novembro de 2019.

250 ArtCultura Uberlândia, v. 21, n. 39, p. 245-250, jul.-dez. 2019


História e vida:
andando pelos
‘tristes subúrbios’
cariocas

Lurian José Reis da Silva Lima


Mestre em Música pela Universidade Federal do Paraná (UFPR). Doutorando em Histó-
ria na Universidade Federal Fluminense (UFF). Bolsista do CNPq. lurianlima@gmail.com
História e vida: andando pelos ‘tristes subúrbios’ cariocas
History and life: walking around the sad Rio de Janeiro (carioca) outskirts

Lurian José Reis da Silva Lima

BELCHIOR, Pedro. Tristes subúrbios: literatura, cidade e memória em


Lima Barreto (1881-1922). Rio de Janeiro: Eduff, 2017, 224 p.


Tristes subúrbios, de Pedro Belchior, é o primeiro trabalho analítico de
maior fôlego sobre a relação de Lima Barreto (ele mesmo e sua literatura)
com o Rio de Janeiro, especialmente com seu cenário e tema geo-socio-cul-
tural privilegiado: os subúrbios. Como o autor nos revela na introdução, o
livro é resultado da pesquisa de mestrado que nasceu de sua experiência
de trabalhador-viajante na mesma cidade, onde chegou pouco depois de se
graduar em História no interior de Minas Gerais (São João del Rei). Novo
começo, novas perguntas.
Antoine Prost afirma, em um volume bem conhecido dos estudan-
tes desse “ofício”, que é preciso viver para poder interpretar o passado1;
mais antiga que esta, e certamente mais difundida entre culturas menos
egocêntricas, é a máxima segundo a qual é preciso olhar para o passado
para se poder viver. Pedro Belchior fazia, me parece, esse segundo exercí-
cio – deslocava-se diariamente do subúrbio, onde morava, ao museu onde
trabalha, em Botafogo, e se perguntava: como é que teriam surgido duas
realidades tão distintas que compõem, não obstante, o espaço polarizado
pelo qual tantas pessoas transitam cotidianamente? – quando descobriu
Lima Barreto transeunte dessa mesma rota na “cidade partida” e resolveu
fazer da obra deste o ponto de partida da investigação que nascia. Mas, por
sua complexidade desconcertante, esse sujeito-obra acabou se tornando o
principal motivo da pesquisa.
Sabemos que as dificuldades de utilizar a literatura para fazer
historiografia derivam basicamente do fato de que ela antes cria uma
realidade, mesmo que a partir da realidade, que a descreve. A forma e a
medida dessa deformação dependerão dos propósitos artísticos de quem
escreve, do momento e lugar histórico em que ele se inscreve, e por aí vai.
No caso de Lima Barreto – o que também não é segredo – tal dificuldade
é especialmente potencializada pela intervenção política deliberada da
escrita de alguém que concebe seu trabalho como “missão”.2 Para falar
objetivamente, à maneira dos historiadores, seria impossível fazer dos
textos barretianos fontes razoáveis para análise da cidade a menos que se
1
Ver PROUST, Antoine. Doze os considerem, antes de tudo, como fontes para a análise do próprio Lima
lições sobre história. Belo Hori-
zonte: Autêntica, 1996, p. 142 Barreto em sua relação com a cidade. Sendo, portanto, inócuo buscar “um
e 143. subúrbio autêntico ou verdadeiro” (p. 15) em sua obra, Pedro Belchior
2
Ver SEVCENKO, Nicolau. Li- julgou mais produtivo – e prático, já que uma empresa dessas demandaria
teratura como missão. São Paulo: comparações sistemáticas com dados externos à obra nos limites do prazo
Companhia das Letras, 2003.
exíguo de dois anos – procurar nela um Lima Barreto mais “autêntico e

252 ArtCultura Uberlândia, v. 21, n. 39, p. 251-256, jul.-dez. 2019


verdadeiro”, isto é, mais próximo da complexidade das reflexões sobre o

Resenhas
Rio e os subúrbios presentes nessa obra.
O problema se tornava, assim, mais específico, relativo à “figura
histórica Lima Barreto” e à compreensão que críticos e biógrafos tinham
dele até ali: como ele teria retratado os subúrbios em sua obra? É correto
vê-lo como um “suburbano” militante, um defensor dos pobres contra os
ricos, da periferia contra o centro (marcado no início do século XX pelo
processo duplo de aburguesamento urbanístico e limpeza social, ou seja,
de modernização)? São essas as principais questões que Pedro Belchior
enfrenta em sua pesquisa enquanto procura se afastar da dualidade pressu-
posta por certas análises binárias das condutas políticas. É nessa dualidade
que se fundamentaram as avaliações que conhecidos marxistas fizeram da
vida-obra barretiana – Caio Prado, Jorge Amado e João Antônio –, com os
quais Pedro Belchior dialoga criticamente. Para tanto, o autor se debruçou
sobre todos os escritos de Lima Barreto – produção ficcional e não ficcio-
nal publicada ou não em vida, além de suas cartas e diários. Essa escolha
metodológica lhe permitiu mergulhar na vastidão do pensamento de Lima
Barreto, embora tenha também tolhido o desenvolvimento de algumas
chaves de análise relevantes, como apontarei à frente.
No primeiro capítulo, o autor se dedica precisamente à discussão da
fortuna crítica de Lima Barreto: de sua marginalidade em relação às princi-
pais instâncias de legitimação do campo literário de seu tempo, do processo
que leva a seu reconhecimento pleno e da maneira como esse caminho da
margem à consagração foi interpretado por seus comentadores. Contudo,
longe de uma simples “revisão de literatura”, o que introduz e conduz
essa discussão é a maneira como o próprio Lima Barreto via o seu ofício,
construía o seu estilo e, sobretudo, se via como intelectual em busca de um
lugar no mundo literário, ou melhor, como sujeito em busca de um lugar
no mundo por meio da literatura. Os autorretratos do escritor são vislum-
brados tanto em textos acabados – destaque-se, aqui, o perfil do escrivão
Isaías Caminha, protagonista de seu romance de estreia – quanto em suas
anotações cotidianas e projetos não concretizados em vida – como aquele
de Cemitério dos vivos, seu último romance. Nesse momento, o principal
esforço de Pedro Belchior se concentra em mostrar que o escritor, vivendo
uma “marginalidade amplamente reconhecida”, conseguiu construir redes
de interlocução dentro das quais podia gozar do status de referência para
jovens literatos e contar com o apoio e a admiração de figuras eminentes,
como Monteiro Lobato.
O segundo capítulo avança sobre a construção do estilo e do projeto
político-literário barretiano, concentrando-se no papel que neles ocupa
a experiência na cidade e a própria cidade como palco e agente. Alguns
traços biográficos, dispersos nas páginas precedentes, são retomados
para falar do drama existencial de Lima Barreto: o período de sofrimento
como menino negro na escola politécnica, vivido por insistência do pai; a
libertação para a literatura, possibilitada pelo todavia doloroso declínio da
equilíbrio mental do “chefe” da família; a subsequente obrigação precoce
assumir esse lugar; o emprego no funcionalismo público de baixo escalão e
a vida – algo forçosa, algo escolhida – de sujeito de classe média habitante
dos subúrbios; o racismo. Pedro Belchior aponta para o fato de que essas
experiências no Rio de Janeiro participam da constituição do estilo claro
e despojado, do tom sarcástico e da sua conhecida metodologia criadora,
marca de sua literatura: fazer do vivido o laboratório da ficção.

ArtCultura Uberlândia, v. 21, n. 39, p. 251-256, jul.-dez. 2019 253


3
Esse descompasso pode ser A autocompreensão de Lima Barreto, tema da primeira parte do
efeito do processo de escrita/
pesquisa dentro dos prazos capítulo anterior, é retomada para pensar sua relação, não mais com os
acadêmicos, que geralmente pares literários, mas com o Rio e seus habitantes: “memória”, tempo e
não nos permite ter tanto zelo
modernidade articuladas nas posições por vezes ambíguas do escritor a
e fôlego nos momentos finais.
respeito dos costumes populares, apesar de sua flagrante militância con-
4
Em breve, Pedro Belchior nos
brindará com a publicação de tra a higienização social e o elitismo de superfície que caracterizavam a
sua importante tese sobre a par- reestruturação urbana da capital no início do século XX. Em algumas das
ticipação de Heitor Villa-Lobos
na diplomacia cultural brasilei-
melhores seções do livro, o conceito de bovarismo, central na obra de Lima
ra entre anos 1920 e 1950. Barreto, é acionado por Belchior para interpretar tal vacilação. Trata-se de
uma espécie de “teoria do ser”, uma maneira de relacionar-se consigo mes-
mo enquanto projeto, de imaginar-se “outro que não se é”. Essa projeção
poderia resultar, em casos extremos, em pura fantasia e falsidade ou num
comprometido e consciencioso processo de progresso social (de diminuição
das desigualdades econômicas, de ampliação da liberdade criativa etc.).
Segundo Pedro Belchior, Lima Barreto julgava, com base nesse princípio,
as transformações supostamente “modernizantes” e civilizadoras do Rio
de Janeiro, assim como a atitude dos grupos dirigentes e dos setores mé-
dios, como uma grande fantasia frívola, além de bárbara em sua violência
com os subalternizados. A cultura destes, por outro lado, ainda que mais
autêntica que a cultura das aparências dos homens novos da República,
estava longe de constituir um ideal de progresso. Essa dupla crítica se mos-
tra de maneira muito explícita nos retratos barretianos dos subúrbios, que
abrigam “infelizes” de vários matizes – da classe média frustrada em seu
sonho de riqueza à população negra e miserável – como enfatiza Belchior,
antecipando uma discussão que será retomada no capítulo seguinte.
No último capítulo, o autor procura ressaltar as desigualdades e
tensões dos subúrbios na obra de Lima Barreto, evidenciando que eles não
são “um”, mas vários, e que o escritor definitivamente não foi um defensor
heroico dos infelizes. Por isso mesmo toma Clara dos Anjos, o livro mais
“suburbano” de Lima Barreto, como seu fio condutor. Belchior demonstra
que a periferia sob olhar barretiano não é apenas o lugar do “povo”, mas
um microcosmos organizado espacial e culturalmente com base em hie-
rarquias socioeconômicas e simbólicas. Também não resta dúvida de que
o escritor não tinha um lugar bem definido entre essas fraturas, embora
Belchior não aprofunde a análise do papel que os dramas pessoais de Lima
Barreto (que são sempre sociais) cumprem nessa ausência de identifica-
ção – mesmo a boa ideia do bovarismo não é lembrada aqui. O potencial
desse capítulo final é um pouco enfraquecido pelo fato de que boa parte
das discussões empreendidas nele já havia sido desenvolvida ao longo do
livro, sobretudo no capítulo anterior.3 Nada que comprometa, no entanto,
o interesse do leitor ou a pertinência das conclusões de Belchior quanto ao
problema que o mobilizava.
Mas é tempo de pontuar também certas ausências, que devem ser
vistas menos como falhas do que como possibilidades de desenvolvimento
promissoras (e, pelo menos uma delas, necessária) abandonadas, como
sempre ocorre ao longo do processo decisório de uma pesquisa. Antes de
desenvolver brevemente essas críticas, ressalto que de modo algum elas
diminuem a extraordinária maturidade e a relevância desse trabalho, que
constitui apenas a primeira contribuição mais robusta de um pesquisador
de inteligência brilhante.4
Há determinados, e claros, limites impostos pela escolha de ater-se
exclusivamente (ou quase) ao que escreveu o próprio Lima Barreto na ten-

254 ArtCultura Uberlândia, v. 21, n. 39, p. 251-256, jul.-dez. 2019


tativa de compreender Lima Barreto. O mais evidente deles, a meu ver, é o

Resenhas
pouco diálogo com a historiografia social da cidade5 – não digo com fontes
primárias, observada a dificuldade do prazo, já mencionada. Esse diálogo
conferiria maior nitidez à visão singular do escritor (aquele “não lugar”)
e situaria melhor os leitores nesse cenário-ator que é o tema livro. Nesse
mesmo sentido, sair do ângulo de visão do próprio Lima Barreto poderia
ajudar a desenvolver melhor o tema da “memória” que figura, aliás, no
título do livro. Como as construções literárias a partir da memória e a in-
sinuante ética da relação com história da cidade (das construções antigas à
vegetação secular), que povoam a obra barretiana e o livro de Belchior, se
comunicam, por exemplo, com as densas discussões contemporâneas sobre
memória e história, lugares de memória, patrimônio? Dentro da proposta
de pesquisa do autor, a subteorização da memória representa, a meu ver,
uma promessa que não se cumpriu totalmente.6
Esse relativo “excesso de Lima Barreto” é acompanhado pela escolha
de promover uma visão panorâmica do tema principal (a relação do escritor
com os subúrbios), motivada provavelmente pela ausência de trabalhos
disponíveis sobre esse assunto. Desbravar um vasto terreno novo implica,
geralmente, deixar os detalhes um pouco de lado. O autor executa bem
essa tarefa, mas temos por vezes frustrada a expectativa de vê-lo mergu-
lhar mais fundo em subtemas insinuantes e fundamentar interpretações
mais consequentes. O diálogo entre a etnografia que Lima Barreto faz dos
subúrbios e sua autocompreensão poderia ter ido além do “como” e atingir
certos porquês. Mais do que constatar a ambiguidade do escritor em relação
aos trabalhadores e à cultura popular – para ficar em um exemplo caro ao
corte de classe que fundamenta o livro –, adoraria ter visto Pedro Belchior
arriscar compreender as razões dessa ambiguidade em termos sociológicos
ou psicológicas, detalhar seus matizes, e assim por diante.
Mas, sem dúvida, a ausência mais significativa diz respeito aos temas
da identidade negra e do racismo. Belchior, ao comentar o romance de
estreia de Lima Barreto, que assinala também o início de sua glória sub-
terrânea, ameaça projetar-se sobre esses lugares sensíveis, porém limita-se
a sugerir que o racismo, e sua denúncia aberta por parte de Lima Barreto,
“contribuiu” significativamente para seu fracasso nos espaços do prestígio 5
Lilia Schwarcz fez isso recen-
literário. Já não temos mais o direito de negligenciar o fato de que temente, com a maestria que
lhe é própria.
6
É possível que a teoria tenha
O racismo é um princípio constitutivo que organiza, a partir de dentro, todas as
sido excluída no processo de
relações de dominação da modernidade, desde a divisão internacional do trabalho edição, de transformação da
até as hierarquias epistêmicas, sexuais, de gênero, religiosas, pedagógicas, médicas, dissertação acadêmica em um
texto mais acessível. Se é ver-
junto com as identidades e subjetividades, de tal maneira que divide tudo entre as dade, não creio que haja sido
formas e os seres superiores (civilizados, hiper-humanizados, etc., acima da linha a melhor escolha. A edição,
aliás, diga-se de passagem,
do humano) e outras formas e seres inferiores (selvagens, bárbaros, desumanizados,
deixou passar uma sequência
etc., abaixo da linha do humano).7 de referências erradas nas notas
de rodapé das páginas 188-190.

Reconhecer o poder dessa estrutura é uma necessidade política tanto 7


GROSFOGUEL, Ramón. Para
uma visão decolonial da crise
quanto epistemológica. Uma compreensão precisa da realidade depende civilizatória e dos paradigmas
disso. Permitam-me desenvolver esse ponto em um breve exercício, com da esquerda ocidentalizada. In:
o qual encerro minha apreciação desse belo livro. BERNADINO-COSTA, Joaze,
MALDONADO-TORRES, Nel-
Apesar da convincente ponderação de Belchior, nenhuma glória son e GROSFOGUEL, Ramón.
subterrânea supre a frustração de Lima Barreto por não ser reconhecido Decolonialidade e pensamento
afrodiaspórico. Belo Horizonte:
dentro do stablishment de seu tempo, como comprovam suas tentativas fra- Autêntica/Kindle Edition, 2018,
cassadas de ingressar na Academia Brasileira de Letras. Esse ser-e-não-ser p. 1005.

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8
GILROY, Paul. O Atlântico (reconhecido para si e para o outro) na história do escritor pode ser visto
negro: modernidade e dupla
consciência. São Paulo: Editora como a atualização particular do drama político e poético dos pensadores
34, 2001. negros (e não só os “homens de letras”) que Paul Gilroy8 interpreta por meio
do conceito de “dupla consciência”, elaborado por E. W. Du Bois. Os(as)
negros(as), nas sociedades construídas pelo colonialismo e pela escravidão
racial, são o oposto do modelo colonizador-vigente de humanidade e sua
ação no mundo está sempre envolvida por essa dualidade. Eles(as) são
compelidos(as), por isso, a desenvolver meios de lidar com e subverter sua
atribuída falta de humanidade (incapacidade, inferioridade, matabilidad,
etc.) e seus efeitos práticos (extermínio, segregação, linchamento, epistemi-
cídio). A dupla consciência é o primeiro impulso desse desenvolvimento,
e o próprio desenvolvimento é a bifocalidade potencialmente subversiva
do pensamento negro. Ela se manifesta na reflexão de Isaías Caminha
(citada por Belchior) diante do delegado que não podia acreditar que ele
fosse um “estudante”: “A sua surpresa deixara-o atônito. Que havia nisso
de extraordinário, de impossível? [...] Dessa vez eu tinha-o compreendido,
cheio de ódio, cheio de um santo ódio que nunca mais vi chegar em mim.
Era mais uma variante daquelas tolas humilhações que eu já sofrera; era o
sentimento geral de minha inferioridade, decretada a priori, que adivinhei
na sua pergunta” (p. 51).
O recurso à ideia de dupla consciência é apenas uma das possibilida-
des de análise comprometida com o fato de que Lima Barreto era, a priori
(como ele diz por intermédio de Isaías Caminha), um negro no pós-abolição.
Note-se, aliás, o que também destacou o autor de Tristes subúrbios: o plano
inicial do jovem Lima Barreto para sua estreia no mundo literário era nada
mais nada menos que um romance histórico sobre a escravidão! É uma
pena que Pedro Belchior não tenha aprofundado sua reflexão quanto ao
papel da violência racial na vida-obra de Lima Barreto, sobretudo quando
se tem em mente que a ocupação dos subúrbios guarda direta relação com
a movimentação da população negra do interior para a capital e do centro
desta para a periferia. Ainda que a leve em conta sempre (esse cuidado
não lhe faltou), o autor não toma a raça como categoria central. Priorizar os
“conflitos de classe” é uma escolha legítima, mas incompleta, e certamente
está ligada à quase total ausência de intelectuais negros nos referenciais
teóricos do autor (a exceção é Stuart Hall, que, no entanto, não é acionado
em nenhum momento ao longo do livro). Bem se vê agora meu argumento:
o racismo estrutural fundamentou as recusas da ABL a Lima Barreto assim
como fundamenta a invisibilidade hodierna dos(as) negros(as) no mundo
acadêmico.Observá-lo em todas as suas consequências significa contrariá-lo
hoje, no momento em que o historiador começa a pensar sobre o passado
(para poder viver...). Há uma sólida tradição filosófica, sociológica, psi-
canalítica e literária afro-diaspórica, que alimenta os movimentos negros
mundo afora e que não podemos mais ignorar. Ela diz respeito a todos nós.

Resenha recebida em 14 de junho de 2019. Aprovada em 3 de agosto de 2019.

256 ArtCultura Uberlândia, v. 21, n. 39, p. 251-256, jul.-dez. 2019


A história e o
audiovisual em
tempos de ditadura

Rodrigo Archangelo
Doutor em História Social pela Universidade de São Paulo (USP). Pesquisador da
Cinemateca Brasileira. Autor de Um bandeirante nas telas: o discurso adhemarista em
cinejornais. São Paulo: Alameda Editorial, 2015. rarchangelo03@gmail.com
A história e o audiovisual em tempos de ditadura
History and audiovisual in times of dictatorship

Rodrigo Archangelo

MORETTIN, Eduardo e NAPOLITANO, Marcos (orgs.). O cinema e as


ditaduras militares: contextos, memórias e representações audiovisuais.
São Paulo: Intermeios, 2018, 232 p.


Brasil, 31 de março de 2019. Passados 55 anos da mais traumática
ruptura democrática em nossa história republicana, o golpe civil-militar
de 1964 nunca esteve tão presente. Qualquer discussão sensata sobre o
país, hoje, depara-se com o negacionismo (fenômeno mundial, diga-se)
que entrou pela porta da frente no último e polêmico pleito eleitoral, e vem
retroalimentando um projeto de governo que ameaça avanços estabelecidos
pela Constituição de 1988, assim como conquistas democráticas anteriores.
Vivemos momentos de luta pela garantia de direitos, de disputa política
acerca de quem somos e de defesa do próprio estatuto da História.1 Nessa
conjuntura, compreender a construção da(s) memória(s) sobre os períodos
1
Enquanto campo do conheci- autoritários já vividos torna-se vital, mais ainda diante das deliberadas
mento, da pesquisa acadêmica
à disciplina ensinada nas es-
ações institucionais de negação do passado.2
colas. Diante dessa urgência, Em face dos enfrentamentos cada vez mais urgentes no cenário de
o 30º Simpósio Nacional de disputa por narrativas, o cinema, na intricada relação do audiovisual com a
História da Anpuh discute a
“História e o futuro da educa- história, cumpre importante papel de transmitir e criar conhecimento, seja
ção no Brasil”, preocupando-se como manifestação cultural e artística ou instrumento de reflexão política
com o ensino de História no
atual contexto e nos embates
da realidade. Ao observar essa perspectiva analítica e o atual momento
enfrentados por seus profis- brasileiro, o livro O cinema e as ditaduras militares: contextos, memórias
sionais nos espaços escolares, e representações audiovisuais, lançado no final de 2018, traz relevantes
universitários e centros de
memória e pesquisa; assim contribuições para os dias correntes.
como a “onda conservadora” e Coletânea com dez artigos de pesquisas independentes, a obra aborda
os usos do passado autoritário
no momento presente.
o potencial do audiovisual enquanto articulador do saber histórico, através
de dimensões da história pública e da memória social das ditaduras no
2
Concretamente, o telegrama
diplomático do governo federal Brasil, Chile e Argentina, efetivamente apresentadas em obras ficcionais e
enviado à Comissão de Direitos em documentários, canônicos ou não. Assim, os textos podem (e devem)
Humanos da ONU, em 3 de
abril de 2019, justificando a ten-
ser apreciados em seu conjunto, enquanto um guia para a compreensão
tativa de celebração dos 55 anos do audiovisual nas disputas por narrativas históricas – sobretudo a das
da data ao negar a existência de ditaduras militares, atualmente envoltas pelo mais escancarado discurso
um golpe de estado em 31 de
março de 1964. Também vale negacionista. As pesquisas reunidas no livro trazem reflexões sobre como
lembrar o Decreto 9.759 de 11 a atividade e as linguagens do audiovisual ultrapassam a qualidade de
de abril de 2019, que inviabiliza
a existência do Grupo de Traba-
condutoras da memória, sendo construtoras de novas memórias e do
lho de Perus, responsável pela próprio conhecimento sobre a história, demonstrando quão essencial é a
identificação de desaparecidos conexão entre cinema e história para se pensar e atuar no tempo presente.
políticos entre as ossadas da
vala comum do Cemitério de O cinema e as ditaduras militares resulta da seguinte empreitada: o pro-
Perus, em São Paulo. jeto “Cinema e história no Brasil: estratégias discursivas do documentário

258 ArtCultura Uberlândia, v. 21, n. 39, p. 257-262, jul.-dez. 2019


na construção de uma memória sobre o regime militar”.3 A qualidade dos

Resenhas
trabalhos, porém, é tributária do histórico mais amplo de estudos e debates
obtido no convívio do grupo CNPq História e Audiovisual: circularidades
e formas de comunicação. Criado em 2005 pelos próprios organizadores
do livro – os historiadores e professores Eduardo Morettin (ECA-USP) e
Marcos Napolitano (FFLCH-USP) –, esse grupo acompanha e fomenta
reflexões valiosas para o exame da relação “história e audiovisual” em
circuitos acadêmicos nacionais e internacionais.4 Nota-se, daí, que alguns
artigos foram preparados para o escopo do livro, enquanto outros são des-
dobramentos de pesquisas anteriores a ele, feitas por especialistas que se
dedicam, há tempos, sobre a relação do audiovisual e as ditaduras no Brasil
e na América Latina. O livro apresenta forte complementariedade entre
as abordagens, ao mostrar coesão amadurecida ao longo das discussões
do referido grupo de estudo, que procura valorizar o audiovisual como
documento central no âmbito da pesquisa histórica. As abordagens, no
todo, levam em conta a linguagem e o diálogo do audiovisual com debates
historiográficos, além do seu confronto com as memórias, dominante ou
não, das ditaduras estudadas.
Do subtítulo “contextos, memórias e representações audiovisuais”
é a “memória em disputa” o leitmotiv presente tanto nos capítulos sobre a
produção e os controles burocráticos como nos que esmiúçam as repre-
sentações audiovisuais. Para educadores e pesquisadores, e o público leitor
em geral, vale destacar que as reflexões partem de determinantes estéticas,
ideológicas e conjunturais das atividades audiovisuais pesquisadas. Entre
os temas analisados estão: projetos e políticas oficiais para o cinema nos anos
da ditadura; as opções temáticas e ideológicas nas abordagens do período
ditatorial no cinema e televisão; a reflexividade expressa no documentário
e a representação de condicionantes históricas na obra ficcional. Aspectos e
contextos do audiovisual intrínsecos à construção do saber histórico, e que
se entrecruzam nos dez capítulos, como veremos a seguir. Já as filmografias
apresentadas e seus contextos mostram o “transitar” da memória desde o
aspecto subjetivo dos documentaristas – onde ganham espaço o revisionis-
mo e a problematização do passado – até a construção da memória social
mais ampla pelo drama na ficção– com ênfase na perspectiva de uma con-
ciliação entre grupos antagônicos. Alguns capítulos trazem justamente as 3
Apoiado pelo CNPq e desen-
ramificações desse “transitar”, tanto na comparação de obras audiovisuais volvido entre 2014 e 2016, os
organizadores informam que
específicas como na análise de conjuntos representativos. o projeto também engendrou
No levantamento (inédito) das opções temáticas e ideológicas nas atividades como seminários,
produções ficcional e documental sobre a ditadura brasileira, realizado por mostra de filmes, apresentação
de trabalhos em congressos
Marcos Napolitano e Fernando Seliprandy, o transitar da memória emerge. científicos e em publicações, o
Temáticas como: os “dois demônios”, a “inocência juvenil”, o “enfoque das levantamento bibliográfico e o
estabelecimento de uma filmo-
vítimas”, o “isolamento da luta armada” (e sua “monumentalidade”) e a grafia sobre o tema, disponíveis
“luta continua” parecem convergir para a resistência democrática da socie- em <http://historiaeaudiovi-
dade civil, numa matriz de memória bastante ambígua na conciliação com sual.weebly.com/>.

os que apoiaram o golpe de 1964. Os autores demonstram na decupagem do 4


Além de várias publicações
e encontros, podemos citar o
longa-metragem Paula, a história de uma subversiva (Francisco Ramalho Jr., seminário temático História,
1979), as tensões presentes no “grau zero” da memória hegemônica da re- cinema e televisão: lugares de
disputa pela memória apresen-
sistência democrática no cinema. No contexto da reabertura, esse grau zero
tado nos encontros regionais
já trazia as contradições entre o passado recente e a conciliação incômoda e nacionais da Anpuh desde
diante das expectativas democráticas para o futuro. A partir daí, apontam- 2006, bem como o Colóquio
Internacional de Cinema e His-
se temáticas decorrentes dos conflitos políticos e ideológicos da sociedade tória, que vai para a 4ª edição
brasileira no século XXI, principalmente na produção documental, onde em 2019.

ArtCultura Uberlândia, v. 21, n. 39, p. 257-262, jul.-dez. 2019 259


ganharam espaço a memória “íntima e familiar” e o “balanço geracional”, a
“experiência do exílio” e o “espectro dos desaparecidos”, a “contracultura”
e o “colaboracionismo civil” (bem pouco tratado, ressalvam os autores).
Na produção televisiva, Mônica Kornis retoma sua pesquisa sobre a
construção da memória dos “anos de chumbo”, através da minissérie Anos
rebeldes (Gilberto Braga, 1992), da Rede Globo de Televisão. A análise dessa
paradigmática produção – que se valeu, de forma inovadora, de imagens
de arquivo para o aprofundamento diegético – explicita o viés melodramá-
tico dispensado à memória hegemônica da resistência. A autora destaca a
opção da emissora em ancorar a trama na dimensão individual de jovens
da classe-média, com o crivo da autocensura em alguns capítulos, para
evocar um passado romantizado da resistência juvenil dos anos sessenta,
e se aproximar da vida política nacional e dos “caras pintadas”, que se
manifestavam pelo impeachment de Fernando Collor no início dos anos
1990. Em outra perspectiva, o passado ditatorial também pode ser evocado
por alegorias mais tensas e imersivas, como demonstra Rosane Kaminski ao
analisar o curta-metragem Ressurreição (Arhur Omar, 1988). Na montagem
do filme, os cadáveres remetem ao horror de uma sociedade alicerçada
no mais indecoroso espetáculo midiático e explicitam o mal-estar de uma
ditadura recente. As imagens de arquivo são colhidas da tragédia cotidiana
dos jornais populares e nos conectam a uma experiência histórica brasileira
mais imediata e brutal: a da tortura e repressão institucionalizadas pelo
regime militar.
Outro levantamento de filmes sobre a ditadura brasileira está na
pesquisa de Cristiane Gutfreind sobre a importância do “realismo político”
na produção de documentários dos anos 2000. E sobre como o cinema atua
na realidade da sua sociedade, sobretudo quando integra movimentos de
reparação histórica que ganharam força com as indenizações das vítimas
pelo Estado, as aberturas de arquivos políticos e a própria atuação da Co-
missão da Verdade. Realismo bem presente nos documentários biográficos,
baseados em personagens cuja existência é legitimada pela história, e que
constroem imagens contrapostas às narrativas das instituições oficiais,
contribuindo, assim, para a (re)elaboração da memória e do saber histórico.
Dos documentários biográficos, Reinaldo Cardenuto analisa três
obras que empreenderam narrativas de busca. Segundo o autor, as jorna-
das investigativas trazem um “cavoucar de si mesmo” diante de ausências
pessoais e lacunas históricas, e por isso retratam o trânsito entre as histórias
individual e pública. No filme Em busca de Iara (Flávio Frederico, 2013), o
resgate da trajetória da familiar assassinada resulta no desfecho concilia-
tório, com uma dimensão pública algo romantizada da memória sobre as
guerrilhas. Já em Diário de uma busca (Flávia Castro, 2011), tem-se o tom
inconclusivo e aberto às leituras e representações nada monumentais da
luta armada. Já a reflexividade em Os dias com ele (Maria Clara Escobar,
2013) expõe outra sorte de inquietações coma própria construção do docu-
mentário. De forma bastante clara, o autor explica como o filme se realiza
na disputa por representações advindas do conflito entre a filha e o pai, e
demonstra as complicadas negociações no próprio processo de construção
da memória e da história.
Nas pesquisas de Carolina Aguiar e Ana Laura Lusnich sobre os
regimes do Chile e da Argentina, a disputa pela memória é fator central.
Os textos expõem a urgência e a denúncia nos filmes realizados durante
essas ditaduras e as suas contribuições para combatê-las. No caso chileno,

260 ArtCultura Uberlândia, v. 21, n. 39, p. 257-262, jul.-dez. 2019


Carolina Aguiar analisa dois “filmes solidários”, isto é, documentários de

Resenhas
denúncia feitos por estrangeiros que expõem a repressão de Pinochet e as
inquietações históricas e conjunturais dos próprios cineastas alemães e fran-
ceses envolvidos. Além da analogia aos campos de concentração alemães
e ao apelo à unidade das esquerdas francesas, a solidariedade dos filmes
consiste em revelar o horror ditatorial no extracampo da imagem, através
das estratégias clandestinas, e até farsescas, para driblar o cerceamento e
para desconstruir o autoelogio do regime chileno. Em relação à Argentina,
Ana Laura Lusnich traz um conjunto delongas-metragens ficcionais pro-
duzidos durante a ditadura. O corte alegórico-metafórico destes traduz
o “terrorismo de Estado” presente nas instituições políticas, militares,
no poder econômico, nas entidades sanitárias e até na família de classe-
média do país. A autora escrutina os enredos relativos aos momentos da
produção dos filmes, e nos mostra como personagens, temas e o aspecto
diegético permitem compreender os graus de capilaridade das práticas
ditatoriais. Também expõe o papel de resistência do cinema em circuns-
tâncias repressivas dentro de um contexto onde, mesmo sob a censura do
circuito comercial, tais filmes foram exitosos ao representarem a opressão
do regime militar e a cumplicidade da sociedade civil.
A disputa pela memória também é abordada noutra dimensão: a
dos bastidores de projetos e políticas governamentais para o cinema. Ao
estudar o longa-metragem Independência ou morte (Carlos Coimbra, 1972),
Ignácio Dávila resgata relações de interesses entre cinema e Estado no ses-
quicentenário da Independência, quando se realizou um “filme histórico”
para reforçar o ufanismo midiático do milagre brasileiro. O autor mostra
a intenção do governo Médici de usar o cinema para fortalecer o presente
associando-se ao passado pela atualização de monumentos pré-existentes,
como, por exemplo, a literatura ufanista paulista dos anos 1920 e a icono-
grafia de Pedro Américo. Nessa chave, a personagem de Dom Pedro, ligada
aos temas “religião, nação e descendência” de um nacionalismo pregresso,
evidencia o “deus, pátria e família” de uma pedagogia nacionalista que,
pelo cinema, se atualizava no oximoro tradição-modernização.
A respeito da instrumentalização do filme histórico pela ditadura
brasileira, Eduardo Morettin envereda, no capítulo que abre o livro, pela
tentativa de dirigismo estatal para alavancar uma história oficial pelo cine-
ma. A sua investigação com o fundo Embrafilme dá a ver a continuidade
histórica entre períodos autoritários brasileiros, ao estudar um projeto de
fomento reeditou, nos anos 1970, a prática estado-novista do Ince (Instituto
Nacional de Cinema Educativo): a de pretender a chancela de historiadores
para emplacar o estatuto de verdade aos filmes históricos. O artigo, porém,
trata do papel do historiador na sociedade, ao mostrar a postura de Carlos
Alberto Vesentini – consultor em um dos filmes do projeto irrealizado da
Embrafilme. Vesentini expôs as tensões em encapsular ou mitificar per-
sonagens e eventos históricos na narrativa clássica ficcional. Ao invés da
“chancela histórica”, ele mostrou a potencialidade dialética do espaço de
construção da memória, igualmente aberto a interpretações contrárias àque-
las pretendidas pelo regime militar. Quanto ao mecenato oficial, a pesquisa
de Margarida Adamatti fala de Gustavo Dahl, crítico e cineasta responsável
pela distribuição comercial da Embrafilme no período Geisel. Em textos
dos anos 1960 e 1970, a autora detecta a estratégia de Dahl para adequar
sua luta pelo cinema nacional ao contexto repressivo. Se a cultura política
“nacional-popular” forjou o engajamento cinemanovista dos anos 1960;

ArtCultura Uberlândia, v. 21, n. 39, p. 257-262, jul.-dez. 2019 261


5
ESCOREL, Eduardo. A direita nos anos seguintes Dahl recorre a uma estética do silêncio em seus textos,
na tela: notas sobre um panfleto
audiovisual que revê 1964. Re- conotando certa negação do político. Algo necessário para não confrontara
vista Piauí, edição 152, maio de ditadura e continuar a “ir ao povo”, mas deslocando o político para o apelo
2019. Trata-se do filme 1964: o
estético e emotivo. Estratégia que aproximou o cinema nacional do público,
Brasil entre armas e livros (2019).
e fez brigar pelo mercado ocupado pelo filme estrangeiro e disputando,
assim, espaços para narrativas fílmicas da nossa memória nacional.
As perspectivas apresentadas no livro se baseiam nas disputas pela
memória presentes, direta ou indiretamente, nos recortes temáticos e
temporais; no trânsito entre a história pública e a memória individual nos
documentários; nas representações da ditadura em obras ficcionais; na
instrumentalização do passado para narrativas de poder; e nas estratégias
de resistência em contextos repressivos. Todavia, apesar dos dois consis-
tentes capítulos sobre Argentina e Chile, a presença de mais análises sobre
as experiências ocorridas nesses países, e outros do “Cone Sul”, tornaria
a coletânea uma contribuição ainda mais inestimável para a compreen-
são da relação “história e audiovisual” acerca das ditaduras na América
Latina. Outra ausência também sentida, no caso da ditadura brasileira, é
de uma abordagem com filmes ligados a ações de reparação do Estado e/
ou acervos da repressão política. Documentários na linha de Reparem bem
(Maria de Medeiros, 2012) e Retratos de identificação (Anita Leandro, 2014),
por exemplo, seriam bem-vindos ao rol das análises. De toda forma, o livro
é uma valiosa adição às pesquisas já existentes, e um pronto arsenal para
enfrentamentos necessários, como o do cineasta Eduardo Escorel contra
uma falaciosa produção que desrespeita fatos e experiência históricos – e
tenta travestir de documentário uma peça de propaganda com pretensões
didáticas, que se arvora à tarefa de impor “verdades nunca antes contadas”.5
Olhar a história a partir das questões do presente não é ofício só do
historiador. É, antes de tudo, tarefa cidadã atinente a todos e que envolve
a salutar revisão da história para o enfrentamento de traumas e tabus da
memória social edificada ao longo de décadas. Tratamos aqui da própria
evolução da sociedade, medida pela sua capacidade de salvaguardar a
história fundamentada em fatos comprovados, independentemente dos
sentidos conferidos por diferentes narrativas históricas sobre as ditaduras.
Em 2019 a disputa pela memória passa pelo incontornável combate ao
negacionismo, no Brasil e no mundo, e pelo esforço de incorporar novas
compreensões sobre a experiência histórica que nos trouxe até aqui. Algo
muito bem exposto pelas pesquisas reunidas em O cinema e as ditaduras
militares, ao mostrar as potencialidades do audiovisual em antecipar pau-
tas e debates sobre os nossos passados traumáticos e em contribuir para
a criação e transmissão de conhecimento histórico. Mais do que isso: o
audiovisual como ferramenta para ajudar a entender quem somos, e qual
o lugar queremos ocupar na história.

Resenha recebida em 30 de maio de 2019. Aprovada em 27 de julho de 2019.

262 ArtCultura Uberlândia, v. 21, n. 39, p. 257-262, jul.-dez. 2019


Referências das imagens
Capa WARPECHOWSKI, Eduardo sobre capas de biografias de artistas em
HQs: (a) SPACCA. Debret em viagem histórica e quadrinhesca ao Brasil.
São Paulo: Companhia das Letras, 2006; (b) OUBRERIE, Clément et
BIRMANT, Julie. Pablo. Paris: Dargaud, 2014; (c) SEKSIK, Laurent
et LE HÉNAFF, Fabrice. Modigliani: Prince de la bohème. Bruxelas:
Casterman, 2014; (d) KVERNELAND, Steffen. Munch. Zagreb: VBZ,
2016; (e) CORNETTE, Jean-Luc e BALTHAZAR, Flore. Frida Kahlo:
para que preciso de pés quando tenho asas para voar? São Paulo:
Nemo, 2016; (f) FERLUT, Nathalie et BAUDOUIN, Tamia. Artemisia.
Paris: Delcourt, 2017. Montagem.

p. 13 Citações de pinturas de Rembrandt van Rijn e Albert Eckhout. In:


TORAL, André. Holandeses. São Paulo: Veneta, 2017, p. 37 (1a. quadro
2) e p. 38 (1b. quadro 3), fotografias.

p. 13 Capas de biografias de artistas em HQs: (a) SPACCA. Debret em viagem


histórica e quadrinhesca ao Brasil. São Paulo: Companhia das Letras,
2006; (b) OUBRERIE, Clément et BIRMANT, Julie. Pablo. Paris: Dar-
gaud, 2014; (c) SEKSIK, Laurent et LE HÉNAFF, Fabrice. Modigliani:
Prince de la bohème. Paris: Casterman, 2014; (d) KVERNELAND,
Steffen. Munch. Zagreb: VBZ, 2016; (e) CORNETTE, Jean-Luc e
BALTHAZAR, Flore. Frida Kahlo: para que preciso de pés quando
tenho asas para voar? São Paulo: Nemo, 2016; (f) FERLUT, Nathalie
et BAUDOUIN, Tamia. Artemisia. Paris: Delcourt, 2017. Montagem.

p. 15 GOYA, Francisco. Pinturas negras. In: BLEYS, Olivier et BOZONNET,


Benjamin. Les grands peintres: Goya. Grenoble: Glénat, 2015, p. 29, fo-
tografia (a), e GOYA, Francisco de. Sem título (Saturno devorando um
de seus filhos), c. 1819-1823. Afresco montado em tela, 145 x 82.9 cm.
Madrid: Museo del Prado, fotografia (b).

p. 16 Propostas de reconstituição dos retábulos de (a) Giovanni Bellini para


a Igreja de Santi Giovanni e Paolo; (b) Antonello da Messina para a
Igreja de San Cassiano; (c) Giovanni Bellini para a Igreja de San Gio-
bbe. In: DYTAR, Jean. La vision de Bacchus. Paris: Delcourt, 2013, (a)
p. 38, quadro 1; (b) p. 86, quadro 1; (c) p. 96, quadro 1, fotografias.

p. 17 Gravura a partir do retábulo de Giovanni Bellini para a Igreja de Santi


Giovanni e Paolo, Veneza, obra pintada por volta de 1474-75 e destru-
ída por um incêndio em 1867. In: ZANOTTO, Francesco. Pinacoteca
veneta, ossia, Raccolta dei migliori dipinti delle chiese di Venezia. Veneza:
S./e., 1858, s./p., v. 1, (a) fotografia. Proposta de reconstituição do
retábulo de Giovanni Bellini para a Igreja de Santi Giovanni e Paolo,
Veneza. In: DYTAR, Jean. La vision de Bacchus. Paris: Delcourt, 2013,
p. 38, quadro 1, (b), fotografia.

p. 18 MESSINA, Antonello da. Virgem com o menino, cercados por Santos tam-
bém conhecido como a Pala di San Cassiano, 1475-76. Viena: Kunsthisto-
risches Museum, fotografia. Disponível em <https://www.wga.hu/fra-
mes-e.html?/html/a/antonell/cassiano.html>. Acesso em 18 abr. 2019.

ArtCultura Uberlândia, v. 21, n. 39, p. 263-266, jul.-dez. 2019 263


p. 18 Proposta de reconstituição do retábulo de Antonello da Messina para
a Igreja de San Cassiano, Veneza. In: GERBINO, Carla. La pala di San
Cassiano di Antonello da Messina. Tesi di laurea triennale – Dipartimen-
to di Musicologia e Beni Culturali, Università degli Studi di Pavia,
Pavia, 2015-2016, p. 76, (a), fotografia. Proposta de reconstituição
do retábulo de Antonello da Messina para a Igreja de San Cassiano,
Veneza. In: DYTAR, Jean. La vision de Bacchus. Paris: Delcourt, 2013,
p. 86, quadro 1, (b), fotografia.

p. 20 No ateliê de Giovanni Bellini, seus discípulos preparam, com a técnica


do spolvero, o suporte do retábulo para a Igreja de Santi Giovanni e
Paolo. In: DYTAR, Jean. La vision de Bacchus. Paris: Delcourt, 2013, p.
31, fotografia.

p. 21 MESSINA, Antonello da. Retrato de homem, dito Il Condottiere. 1475.


Óleo sobre madeira, 36 x 30 cm. Paris: Musée du Louvre, (a) fotografia.
Disponível em <https://www.wga.hu/html_m/a/antonell/condotti.
html>. Acesso em 18 abr. 2019. Antonello da Messina pintando em
seu ateliê. In: DYTAR, Jean. La vision de Bacchus. Paris: Delcourt, 2013,
p. 29, (b) fotografia.

p. 22 Proposta de reconstituição do processo de pintura do retrato do ca-


sal Arnolfini, de Jan van Eyck. In: JANUSZCZAK, Waldemar (dir.).
Técnicas de los grandes pintores. Madrid: H. Blume Ediciones, 1981, p.
18, fotografia.

p. 34 SERRANO, Alberto (Tito na Rua). Zé Ninguém. Rio de Janeiro: Edições


de Janeiro, 2015, p. 78, fotografia.

p. 35 SERRANO, Alberto (Tito na Rua). Zé Ninguém. Rio de Janeiro: Edições


de Janeiro, 2015, p. 12, fotografia.

p. 36 COLOMBINO, Jader. Notícias: Zé Ninguém. Porto Maravilha, 1 abr.


2015. Disponivel em <http://portomaravilha.com.br/noticiasdeta-
lhe/3720>. Acesso em 15 jun. 2018.

p. 37 RODRIGUEZ, Diogo. Quadrinhos de rua. Trip, 19 jan. 2011. Dispo-


nível em <https://revistatrip.uol.com.br/trip/quadrinhos-de-rua>.
Acesso em 15 jul. 2018.

p. 43 OSKI y BRUTO. Gran Brutoski biográfico ilustrado. Vea y Lea, n. 279,


Buenos Aires, 1958, p. 19, fotografía.

p. 48 OSKI. La segunda fundación de Buenos Aires. In: Vera historia de Indias.


2. ed. Buenos Aires: Colihue, 1996, p. 87, fotografía.

p. 49 OSKI. Del tiempo antiguo. Confirmado, n. 208, Buenos Aires, 1969,


fotografía.

p. 51 OSKI. La primera fundación de Buenos Aires. Témpera, tinta y acuarela,


1m x 70cmts, 1957. In: REP, Miguel y VACCARI, Laura (eds.). Oski:
um monje enlouquecido. Buenos Aires: Museo Nacional de Bellas
Artes, 2013, p. 142, fotografia.

p. 52 OSKI. La primera fundación de Buenos Aires (segunda versión). In: Vera


historia de Indias. 2. ed. Buenos Aires: Colihue, p. 85, 1996, fotografía.

p. 61 Quatro abordagens do cotidiano. In: SCHNEIDER, Greice. What ha-


ppens when nothing happens: boredom and everyday life in contempo-

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Livro:
SOBRENOME, Nome. Título em itálico. Local de publicação: Editora, ano de publicação, página
citada (p.) ou páginas citadas (p.).
Ex.: DOSSE, François. História e Ciências Sociais. Bauru: Edusc, 2004, p. 65.
Se houver subtítulo, este deve aparecer sem itálico.
Se houver outra edição do mesmo livro, esta deve ser indicada logo após o título.

Coletânea:
SOBRENOME, Nome. Título do capítulo. In: SOBRENOME, Nome (org.). Título em itálico. Local
de publicação: Editora, data, página citada.
Ex.: ABREU, Martha. Cultura política, música popular e cultura afro-brasileira: algumas ques-

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tões para a pesquisa e o ensino de história. In:  SOIHET, Rachel et alii (orgs.). Culturas políticas: ensaios
de história cultural, história política e ensino de história. Rio de Janeiro: Faperj/Mauad, 2005, p. 410.

Artigo:
SOBRENOME, Nome. Título do artigo. Título do periódico em itálico, volume e número, Local,
mês (abreviado) e ano de publicação, página citada.
Ex.: NEVES, Lucilia de Almeida. Memória e História: potencialidades da História Oral. ArtCul-
tura, v. 5, n. 6, Uberlândia, jan.-jun. 2003, p. 33.

Tese acadêmica:
SOBRENOME, Nome. Título da tese em itálico: subtítulo. Tipo de trabalho: Dissertação ou Tese
(Mestrado ou Doutorado, com indicação da área do trabalho) – vinculação acadêmica, Local e data
de apresentação ou defesa, mencionada na folha de apresentação (se houver), página citada.
Ex.: MORETTIN, Eduardo Victorio. Os limites de um projeto de monumentalização cinematográfica:
uma análise de filme. Tese (Doutorado em Ciências da Comunicação) – USP, São Paulo, 2001, p. 40.

Documentos eletrônicos:
AUTOR(ES). Denominação ou Título. Indicações de responsabilidade. Data. Informações sobre
a descrição do meio ou suporte.
Obs.: para documentos on-line, são essenciais as informações sobre o endereço eletrônico, apre-
sentado entre os sinais < >, precedido da expressão “Disponível em” e a data de acesso ao documento,
antecedida por “Acesso em”.
Ex.: GUIMARÃES, Lucia Maria Paschoal. Troca de noivos na família imperial! 2003. Disponível
em <http://www.nossahistória.net>. Acesso em 1 set. 2004.

Endereço:
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