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Londrina
2016
RICARDO ZOLINGER ZANIN
Londrina
2016
2
RICARDO ZOLINGER ZANIN
BANCA EXAMINADORA
______________________________________
Prof. Dr. Rozinaldo Antonio Miani (orientador)
Universidade Estadual de Londrina - UEL
______________________________________
Profª. Drª. Ana Paula Silva Oliveira
Universidade Estadual de Londrina - UEL
______________________________________
Prof. Dr. Gazy Andraus
Centro Universitário Metropolitano de São
Paulo UNIMESP - UNIFIG
Bernardo Guimarães
4
DEDICATÓRIA
5
AGRADECIMENTOS
6
ZANIN, Ricardo Zolinger. O grotesco nas histórias em quadrinhos de Marcatti.
2016. 104f. Dissertação (Mestrado em Comunicação). Centro de Educação,
Comunicação e Artes, Universidade Estadual de Londrina, Londrina, 2016.
RESUMO
ABSTRACT
This thesis aims to analyze the presence of the grotesque and eschatology in the
comic book stories of Francisco Marcatti Jr. The author argues that the grotesque as
an aesthetic category should not be seen as a resource which points toward only to
the scandal, but it is a genuine manifestation of comic books and their iconoclast
humor vocation. We consider the typology of grotesque images as the focus of this
study, mainly in its eschatological sort, that emerge from assumptions of Mikhail
Bakhtin related to the concept of "grotesque body" from his book Rabelais and his
World.
FIGURA 1 ............................................................................................................. 17
FIGURA 2 ............................................................................................................. 20
FIGURA 3 ............................................................................................................. 21
FIGURA 4 ............................................................................................................. 41
FIGURA 5 ............................................................................................................. 43
FIGURA 6 ............................................................................................................. 44
FIGURA 7 ............................................................................................................. 46
FIGURA 8 ............................................................................................................. 48
FIGURA 9 ............................................................................................................. 49
FIGURA 10 ............................................................................................................. 50
FIGURA 11 ............................................................................................................. 51
FIGURA 12 ............................................................................................................. 52
FIGURA 13 ............................................................................................................. 54
FIGURA 14 ............................................................................................................. 55
FIGURA 15 ............................................................................................................. 57
FIGURA 16 ............................................................................................................. 58
FIGURA 17 ............................................................................................................. 59
FIGURA 18 ............................................................................................................. 60
FIGURA 19 ............................................................................................................. 61
FIGURA 20 ............................................................................................................. 62
FIGURA 21 ............................................................................................................. 64
FIGURA 22 ............................................................................................................. 65
FIGURA 23 ............................................................................................................. 67
FIGURA 24 ............................................................................................................. 69
FIGURA 25 ............................................................................................................. 71
FIGURA 26 ............................................................................................................. 73
FIGURA 27 ............................................................................................................. 74
FIGURA 28 ............................................................................................................. 76
FIGURA 29 ............................................................................................................. 77
FIGURA 30 ............................................................................................................. 79
FIGURA 31 ............................................................................................................. 81
FIGURA 32 ............................................................................................................. 82
FIGURA 33 ............................................................................................................. 83
FIGURA 34 ............................................................................................................. 84
FIGURA 35 ............................................................................................................. 86
FIGURA 36 ............................................................................................................. 87
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO ......................................................................................................... 11
2. O GROTESCO .................................................................................... 22
REFERÊNCIAS ........................................................................................................ 92
11
brasileiro Francisco Marcatti. É curioso como “onze em dez” alusões a Marcatti - seja
em entrevistas ou reportagens sobre quadrinhos, artigos científicos ou conversas de
bar - vão ligá-lo umbilicalmente a Robert Crumb. De fato, se considerarmos os
desenhos dos dois, podemos perceber afinidades: em ambos existe um grande
exagero, típico da caricatura, na representação da figura humana que é saturada de
hachuras; assim também o ambiente, as casas, os objetos, o que confere um
aspecto “sujo” às histórias. Ambos, com muita frequência e de maneira explícita,
narram episódios de sexo e ficaram conhecidos por publicarem suas histórias de
forma independente, à margem da indústria editorial. E, finalmente, tanto Crumb
quanto Marcatti, seriam exímios praticantes de uma crítica dos valores tradicionais,
questionando as verdades do senso-comum.
Contudo, se analisarmos com cuidado este último elemento, percebe-se uma
grande diferença de conteúdo. As histórias de Robert Crumb estão ligadas ao
movimento da contracultura norte-americana e são cheias de referências a ela. Para
apreciarmos devidamente os quadrinhos de Crumb temos que “dominar” estas
referências, sacar do que se trata e perceber o elemento paródico ali existente. As
histórias de Crumb, aparentemente, ficaram mais “datadas”. Este não é o caso do
universo narrativo de Marcatti. Seus personagens existem em um mundo autônomo
que, embora identificável, não faz referência a algo externo a ele.
Para analisarmos os elementos grotescos presentes na produção
quadrinística de Marcatti utilizamos como referência fundamental o livro A cultura
popular na Idade Média e no Renascimento: o contexto de François Rebelais, onde
Mikhail Bakhtin (2013) apresenta reflexões sobre o grotesco em sua faceta
humorística e carnavalesca; um mundo às avessas onde personalidades elevadas
como o rei ganham uma versão rebaixada, grotescamente representada pelo Momo.
No sentido inverso, o povo se permite imitar os nababos e o luxo da nobreza e dos
endinheirados. São frequentes no livro de Bakhtin (especialmente, no capítulo 6 - O
“baixo” material e corporal em Rabelais) o registro das grosserias escatológicas
presentes em imagens “exageradas e hipertrofiadas” de mijo, fezes, peido, odores,
vômito, catarro e cuspe, além das grosserias, blasfêmias e palavrões. O grotesco se
compraz de conceitos como o feio, o escatológico e o cômico: é subversivo e
contestador ao encarar a vida e as dores do mundo.
12
Como complemento do levantamento bibliográfico fizemos uso também de
dissertações, revistas, documentários e artigos da internet. Gostaríamos de destacar
aqui o número 16 da revista londrinense Coyote (2008) e o Site Contraversão, que
trazem duas excelentes entrevistas com Marcatti, e a tese de doutorado de Rogério
Caetano de Almeida (2012), intitulada Recortes do grotesco na história da Literatura
Portuguesa, fundamental para nossa compreensão sobre o universo do grotesco
(além, obviamente, de autores já consagrados como Muniz Sodré e Raquel Paiva).
É nesse quadro que a análise se desenvolve, como um estudo de estética,
atualizada para as pesquisas em comunicação, que tenta pensar sobre o grotesco
como elemento presente nas histórias em quadrinhos.
Na busca por referências teórico-conceituais encontramos um número
razoável de pesquisas literárias considerando certos pressupostos de Bakhtin,
principalmente poesia, e um menor número de artigos e teses relacionados a artes
visuais. E os quadrinhos? Um meio termo? Mais para o texto ou mais para a
imagem? Amparado por autores fundamentais como Will Eisner e Scott McCloud,
defendemos a ideia de que em sua raiz mais elementar, de um quadro para outro,
existe uma afinidade “genética” muito maior entre quadrinhos e literatura e a
narrativa cinematográfica do que entre quadrinhos e o universo das artes visuais.
Como estrutura de organização desta dissertação no primeiro capítulo
faremos uma pequena apresentação da linguagem dos quadrinhos, de seus
elementos narrativos e de como estes se fazem presentes (quando se fazem) nos
quadrinhos de Marcatti.
O segundo capítulo versará sobre a categoria estética do grotesco, das suas
origens até o conjunto conceitual especificamente bakhtiniano e sua caracterização;
discutirá, ainda, o grotesco em sua modalidade escatológica, o corpo, e sua relação
com o humor.
No terceiro capítulo será realizada uma apresentação do quadrinista Marcatti,
apresentando dados de sua biografia e alguns trechos de entrevistas onde ele
comenta seu trabalho.
Finalmente, no quarto capítulo, analisaremos três histórias selecionadas do
personagem Frauzio - Simbiose, Morve Blanc e Escravos do Amor –, além de
Creme de Milho com Bacon e Mariposa. Acreditamos que estas cinco narrativas são
uma amostra significativa da melhor produção de Marcatti. A presença das três
13
histórias do personagem Frauzio se justifica por se tratar de um protagonista fixo,
caso único no universo do autor. Mariposa foi escolhida porque é uma de suas
histórias mais conhecidas e sua primeira novela gráfica. Creme de Milho com Bacon
está aqui porque nesta história de 1991 Marcatti inaugurou o “estilo” de páginas com
no máximo quatro quadros, praticado atualmente. No entanto, independente de qual
fosse o critério e história escolhida - produzidas entre 1986 e 2016 -, temos
convicção de que os quadrinhos de Marcatti estão marcados pelo grotesco.
14
1. A LINGUAGEM DOS QUADRINHOS
1
Ver o filme “A caverna dos sonhos esquecidos” de Werner Herzog.
2
Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=atuOVM8eYk4>.
15
como ocorre no Brasil com o termo Gibi 3. Na Itália, “fumetti”, (fumacinha) em alusão
aos balões de texto. Na França, “bande dessinée”, o que significa, literalmente, faixa
desenhada; como em Portugal, que também as reconhece como “histórias aos
quadradinhos”; “mangá” (desenho engraçado), no Japão e “comic strips” (tirinhas) ou
“comics”, nos Estados Unidos (ANDRAUS, 1999, p.48).
Will Eisner (2001) e Scott McCloud (1993) são dois autores com pesquisas
realmente significativas e tornaram-se leitura obrigatória no que se refere a histórias
em quadrinhos. O termo “arte sequencial” colocado em circulação por Eisner, que
também popularizou o conceito de “Graphic Novels” (romances gráficos), recebe o
aceite de McCloud que define quadrinhos como “Imagens pictóricas e outras
justapostas em seqüência deliberada destinadas a transmitir informações e/ou a
produzir uma resposta no espectador” (MCCLOUD, 1993, p.9). A definição está
correta, pois histórias em quadrinhos são uma forma de arte sequencial, mas nem
toda arte sequencial é história em quadrinhos. Para a finalidade deste trabalho
restrinjo o uso do termo “histórias em quadrinhos” - ou apenas quadrinhos - às artes
4
sequenciais de caráter gráfico surgidas no final do século XIX juntamente com a
impressa de massas.
Se McCloud amplia o sentido de arte sequencial, Will Eisner vai contribuir
para expandir o conceito de leitura para além do texto escrito. Para Eisner a leitura
de palavras é apenas parte de uma atividade humana mais ampla.
3
Revista de histórias em quadrinhos lançada em 1939 por Roberto Marinho.
4
“Arte de reprodução”: xilogravura, litogravura, gravura em metal, fotografia e tipografia.
16
o elemento narrativo (sequência) e a simbiose entre imagem (forma) e narrativa
(conteúdo), os quadrinhos perdem sua “essência”, passam a ser algo diferente 5.
5
Cartuns, charges e caricaturas frequentemente são constituídas por um único desenho ou
ilustração e seriam, a partir dessa definição, linguagens diferentes das histórias em quadrinhos. O
cartum tem vocação humorística e geralmente satiriza a condição humana ou arquétipos universais
como, por exemplo, a figura do náufrago. A charge tem ação mais restrita a fatos e acontecimentos
de relevância política; é uma crítica mais pontual, de acontecimentos atuais. A caricatura é a
representação exagerada de características, comportamentos ou hábitos de uma pessoa, geralmente
alguém famoso.
17
a arte de Ares de Primavera, Mariposa e A Relíquia. Algumas histórias dos anos 80
e 90 têm até nove quadrinhos por página (Glaucomix). Marcatti comenta um pouco
de suas técnicas:
FIGURA 1
18
Conforme exemplos apresentados, requadros retangulares com traçado reto
(A) geralmente sugerem que as ações contidas estão no tempo presente; traçado
sinuoso (B) ou ondulado (C) é o indicador mais comum de passado, enquanto que
uma linha mais angulosa e abrupta (D) indicaria forte emoção ou som (EISNER,
2001, p.44).
d) Calha: é o espaço que existe entre um quadrinho e outro; um texto
subliminar cujas lacunas são preenchidas na mente do leitor (ALVES, 2003, p.19).
Eisner também chama a calha de um “não-espaço”, mas que nem por isso deixa de
ter “significado dentro da estrutura narrativa” (EISNER, 2001, p.49). A calha pode
ajudar a delimitar o tempo: mais larga, indica mais tempo entre um quadro e outro,
se é mais curta ou inexistente indica uma ação mais rápida e imediata.
e) Balão: o elemento visual mais característico da linguagem dos quadrinhos.
Segundo Eisner, “o balão é um recurso extremo. Ele tenta captar e tornar visível um
elemento etéreo: o som” (EISNER, 2001, p.26). Sobre os balões em suas histórias
Marcatti comenta:
19
FIGURA 2
20
FIGURA 3
21
2. O GROTESCO
22
33). Estes “procedimentos artísticos” em Marcatti estão presentes em seu desenho
caricatural - avesso à beleza das formas bem proporcionadas - e suas narrativas
cheias de distorções da realidade e do comportamento dos personagens (espanto).
É um universo todo desalinhado que tem como único ponto fixo o humor (riso).
Muniz Sodré e Raquel Paiva também descrevem as “modalidades expressivas do
grotesco”:
23
[...] estranhamento; atmosfera rígida e morta; perplexidade, portanto
a comicidade e a sátira não são grotescas; fantástico mundo lúdico;
turbulento, fantasioso, angustiante e sinistro; não possui uma
determinada maneira de representação (polimorfo); perturbador e
monstruoso; contraditório e heterogêneo, o que o aproxima da
tragicomédia; o-que-não-devia-existir; grotesco desumano é oposto à
razão humana, portanto é irracional; antinatural; estilização,
exageração e deformação; excentricidade, caráter demoníaco e
autômato do humano, enfim o grotesco é uma reificação;
incompreensível; anticlássico e inatural; humor + horror = grotesco;
grotesco necessita da metafísica para não perder sua caracterização
estranha; tensão entre forma e conteúdo; fantasioso e inanimado;
despedaçamento do encadeamento racional; abissal; impuro,
portanto plurívoco e disforme; carrega a contradição de ser
inacabado em um lugar em que tudo é acabado (ALMEIDA, 2012,
p.37).
Bakhtin vai criticar Kayser, pois este teria se esquecido do principal efeito do
grotesco: o cômico que desarma o poder do mal e da autoridade por meio do humor
e do riso. “O riso não impõe nenhuma interdição, nenhuma restrição. Jamais o
poder, a violência, a autoridade empregam a linguagem do riso” (BAKHTIN, 2013,
p.78). Bakhtin destaca a importância do riso nas obras de arte grotescas, sejam elas
representadas como a literatura, pintura, escultura ou histórias em quadrinhos,
sejam elas atuadas, encenadas ou performáticas como as piadas, os rituais e as
festas populares (SODRÉ; PAIVA, 2014, p.63).
24
Bakhtin ainda lembra a célebre fórmula de Aristóteles: “O homem é o único
ser vivente que ri”6. O riso é prerrogativa e privilégio supremo do homem (BAKHTIN,
2013, p.59). Bergson complementaria dizendo que não há riso fora do humano; tudo
que provoca o riso deve ser semelhante com o humano (a raiz de mandrágora será
engraçada por ter forma humana; um animal parecerá engraçado quando fizer algo
humano, etc) (BERGSON, 1983, p.07). A respeito do cômico, relacionado ao tema
do grotesco, nos deparamos frequentemente com a concepção de riso do filósofo
Henry Bergson (1983):
6
Aparentemente, animais como macacos, cães e ratos também riem conforme:
http://www. http://ciencia.estadao.com.br/noticias/geral,riso-de-seres-humanos-e-de-animais-e-
assunto-serio-para-os-cientistas,531998 .
25
que se espera como complemento para o sentido da cena. Neste processo fica
verificado o “rebaixamento” bakhtiniano: frases e ditos associados ao amor sublime
são rebatidos com imagens de ações escatológicas. Sobre a roteirização de suas
histórias, Marcatti afirma:
No âmbito popular tão caro a Bakhtin, o riso que desarma o “poder do mal” - o
riso que transforma imagens graves e traumáticas - pode ser constatado, por
exemplo, na festa do “Dia dos Mortos” que ocorre no México no dia dois de
novembro. A lenda diz que neste dia os mortos vêm visitar seus parentes e
encontram por toda parte música, comida, bolos e caveirinhas esculpidas com
açúcar que enfeitam as ruas e os cemitérios. A figura do esqueleto e da caveira, que
no catolicismo é um símbolo de vaidade e da brevidade da vida, na cultura popular
representa uma pessoa magra exibindo um último e eterno sorriso de deboche. O
grotesco não disfarça sua filiação com o “indecente, imundo, sujo, obsceno”, o caos
e a corrupção; não disfarça o elemento infernal presente na vida.
Outro exemplo de evento festivo que lida com imagens maléficas de maneira
ambígua são os shows de Hard Rock e Heavy Metal. Neste exemplo, a figura do
Diabo está associada à rebeldia, vitalidade e ao sexo. Como a tradição cristã, que
considera Lúcifer um anjo caído, caracteriza o Diabo? Uma criatura hibrida que
rasteja como uma serpente e tem chifres, asas e cauda pontiaguda. Um perfeito
habitante da grotta que ambiguamente dá medo e faz rir. Como aponta Adriano
Fiore (2011), mesmo na tradição da literatura popular, o máximo representante do
mal pode ser manipulado, logrado e ridicularizado (FIORE, 2011, p.108-109).
Ao estudar a obra Gargântua e Pantagruel, Bakhtin vai notar a influência que
o carnaval medieval - com seus monstros, danças, piadas chulas, palavrões, sexo,
fantasias, palhaços e máscaras - teve sobre a narrativa dos gigantes de Rabelais. O
livro alardeava os prazeres físicos e cotidianos da vida: a comida, a bebida e o sexo
e ainda escarnecia da Igreja e da cobiça dos poderosos. O carnaval seria o ponto
alto da contestadora “cultura cômica popular”, e carnavalização é o conceito
26
expandido desta relação entre o riso e o grotesco. Enquanto a cultura oficial
consagra a estabilidade e a permanência, o carnaval celebra a inversão, o
movimento e a mudança. Rebaixar é “entrar em comunhão com a vida da parte
inferior do corpo, a do ventre e dos órgãos genitais, e portanto com atos como o
coito, a concepção, a gravidez, o parto, a absorção de alimentos e a satisfação das
necessidades naturais” (BAKHTIN, 2013, p.19).
Bakhtin dá grande importância aos gêneros literários considerados menores
como a comédia. Menor porque, como afirma Aristóteles, é “imitação de pessoas
inferiores” (ARISTÓTELES, 2012, p.23). Para Bakhtin, inferior é virtude. Segundo
ele, existe uma espécie de charme chulo nas formas cômicas populares que
valorizam o material e o corpóreo; o humor da Idade Média valoriza o drama da vida
orgânica. O carnaval e a carnavalização são fundamentais porque é em seu domínio
que explodem as paixões e os apetites mais animalescos, são rompidas todas as
hierarquias, há o contato livre e fraternal entre os homens e o mundo é rebaixado.
Do inferior e periférico surge o novo. Afirma Bakhtin:
27
“classe baixa”, a classe do corpo, das virtudes corporais. O universo dos quadrinhos
de Marcatti está centrado na modalidade escatológica do grotesco e, para o
escatológico, o corpo é a matéria prima:
28
maravilhoso tem sua semente nas narrativas míticas (MARINHO,
2006, p.13).
29
Pantagruel são dois monstruosos e inventivos gigantes. No capítulo XIII do livro
Gargântua e Pantagruel, o pai de Gargântua, Grandgousier, pergunta a seu filho
sobre as suas engenhosas invenções para manter-se limpo:
- Vou contar como foi, disse Gargântua. Limpei uma vez com uma
meia máscara de veludo de uma moça, e achei bom, pois a maciez
de sua seda me causou uma voluptuosidade no traseiro. Uma outra
vez com um véu, e foi a mesma coisa. Uma outra vez ainda com uma
faixa; outra com orelheiras de cetim carmesim, mas ao arremate de
um bolo de merda que lá se achava me arranhou o traseiro todo.
Que o fogo de Santo Antônio queime as tripas do ourives que as fez
e da donzela que as usou. Logo que o mal passou, eu me limpei com
um gorro de pajem, bem emplumado à suíça. Depois, andando atrás
de uma moita, encontrei uma marta e me limpei com ela, mas as
suas unhas me feriram todo o períneo. Logo que me curei, no dia
seguinte, limpei-me com as luvas de minha mãe, bem perfumadas de
benjoim. Depois me limpei com feno, aneto, Mangerona, rosas,
folhas de abóbora, de couve, de beterraba, de parreira, de alface e
de espinafre. Tudo isso me fez muito bem à perna. Mercuriais,
persicárias e consolda, mas passei muito mal, e só me curei
limpando-me com minha braguilha. Depois, limpei-me com lençóis,
as cobertas, a cortina, uma almofada, um tapete, um outro tapete
verde, uma toalha de mesa, um guardanapo, um lenço e um
penhoar. Em tudo achei prazer, mais do que coçar uma sarna. [...] eu
me limpei com um gorro, um chinelo, uma bolsa, um cesto, mas que
limpa-cu desagradável! Depois com um chapéu. Mas vê que chapéus
são, uns lisos, outros peludos, outros aveludados, outros e tafetá,
outros de cetim. O melhor de todos é o peludo, pois faz boa absorção
da matéria fecal. Depois eu me limpei com uma galinha, um galo, um
frango, um couro de boi, um pombo, um alcatraz, uma pasta de
advogado, uma touca. Mas, concluindo, digo e sustento que não há
limpa-cu igual a um ganso novinho, bem emplumado, contanto que
se mantenha a cabeça dele entre as pernas. E, pode acreditar,
palavra de honra. Pois a gente sente no olho do cu uma volúpia
mirífica, tanto pela maciez das penas, como pelo calor temperado do
ganso, a qual facilmente é comunicada ao cano de cagação e a
outros intestinos, até chegar à região do coração e do cérebro
(RABELAIS, 2003, p.70-73).
30
Rabelais (e nas alegres e debochadas criações de Marcatti), como algo prenhe de
humor, de cômico. A morte e a arbitrariedade são rebatidas com gargalhadas e
vitalidade infantil.
Esta comicidade com origem nas festas e nas proezas físicas é uma
afirmação de que, no final das contas, vale a pena viver e mesmo com todas as
dificuldades, quando percebermos que a felicidade é impossível, pelo menos a
alegria está garantida. “O riso e a visão carnavalesca do mundo, que estão na base
do grotesco, destroem a seriedade unilateral e as pretensões de significação
incondicional e intemporal e liberam a consciência, o pensamento e a imaginação
humana, que ficam disponíveis para o desenvolvimento de novas possibilidades”
(BAKHTIN, 2013, p. 43).
31
3. A TRAJETÓRIA DE MARCATTI
9
Francisco de Assis Marcatti nasceu na cidade de São Paulo, no bairro do
Tatuapé, em junho de 1962 e é um dos mais originais autores brasileiros de histórias
7
Comparação 1967-2007 - Tiragem: “É possível perceber alguns sinais de que as vendas são
menores. A revista do Recruta Zero tinha, em 1967, tiragem de 75 mil exemplares/mês. Em
dezembro de 2006, a editora Mythos, de São Paulo, recolocou a revista nas bancas. A publicação foi
cancelada meses depois por falta de compradores. Outro indicador são as revistas Disney, da Editora
Abril. Quatro delas, Mickey, Tio Patinhas, Pato Donald e Zé Carioca (as duas últimas quinzenais),
somavam quase 1,114 milhão de exemplares em 1967” (RAMOS, 2008 p.5).
8
O grande marco da publicação de mangás no Brasil acontece por volta de dezembro de 2000, com o
lançamento dos títulos Samurai X, Dragon Ball e Cavaleiros do Zodíaco:
<http://www. https://omelete.uol.com.br/quadrinhos/artigo/quadrinhos-japoneses-invadem-as-bancas-
tupiniquins>.
9
As informações obtidas sobre Francisco Marcatti foram extraídas dos seguintes endereços:
<http://www.infoescola.com/biografias/frauzio-marcatti>.
<http://sujeirawebzine.wordpress.com/2011/12/01/marcatti-e-o-underground-paulista-dos-quadrinhos>.
<http://universofantastico.wordpress.com/2009/02/19/marcatti-volta-a-produzir-historias-de-frauzio>.
<http://www.monkix.com.br/marcatti/frauzio-ares-da-primavera.html>.
32
em quadrinhos. Ao seu nome estão associados vários adjetivos como underground,
independente, escatológico e nojento. Tornou-se conhecido na cena cultural da
cidade por seu desenho exagerado e histórias absurdas e grotescas ambientadas
nos subúrbios da capital paulista.
10
Em entrevista à revista Coyote , o editor da publicação, Ademir Assunção,
pergunta: “Você começou a publicar muito cedo. Sua primeira história em
quadrinhos saiu quando você estava com 15 anos. O que borbulhava na sua
cabeça? Você vem de uma família que tinha ligação com literatura ou com
quadrinhos?”. Marcatti responde:
Venho de uma família católica, só que meus pais eram ligados à ala
progressista da Igreja, a ala do Dom Paulo Evaristo Arns. Existia uma
consciência um pouco mais avançada politicamente. Mas eu sempre
fui alheio. Meu negócio sempre foi desenhar. Desde criança. Tenho
histórias em quadrinhos guardadas de quando eu tinha 7 anos.
Minha irmã, sim, era uma devoradora de livros. Ela sempre foi a mais
intelectual da casa. Foi através dela que eu comecei a me ligar em
Herman Hesse, Jean Paul Sartre. Moleque eu lia essas coisas
(MARCATTI, 2008).
<http://hqmaniacs.uol.com.br>.
10
Revista Coyote, n.16, verão de 2008.
11
<http://observatoriodaimprensa.com.br/entre-aspas/joao-gabriel-de-lima-29010>.
12
Talvez o maior desenhista brasileiro de quadrinhos de todos os tempos, morto em 2002 sem
sequer ser mencionado na grande imprensa.
33
udigrudi) da pesquisadora Aline Martins Santos que apenas cita o nome do autor
máximo do underground brasileiro sem se referir ao seu trabalho, quer seja sobre o
conteúdo, quer seja sobre a sua prática. O que seria “nem sempre com objetivo
crítico”? Seria uma insinuação de falta de engajamento, uma acusação de humor
alienado? Isso é no mínimo curioso, porque todo o trabalho de Bakhtin tenta mostrar
que é no humor tosco, repugnante e escatológico de Rabelais que reside a força de
sua obra. O que falta ao humor de Marcatti para ser crítico? Como disse Tihanov,
comentando Bakhtin:
13
Em 1954 o psiquiatra Frederic Wertham publicou A Sedução dos Inocentes, que descrevia em
detalhes os efeitos nefastos das histórias em quadrinhos sobre crianças e adolescentes: estimulavam
a delinqüência juvenil, a discórdia entre irmãos, o mau hábito de não comer legumes além de
fomentar a homossexualidade e violência em geral. Na época, os quadrinhos mais populares eram as
histórias policiais, ficção científica e terror. “O aparecimento das revistas de terror obedece a uma
escala crescente do próprio gênero. Com o término da guerra, os super-heróis um tanto desgastados
com o uso e o abuso de seus poderes para vencer o „inimigo comum‟ tinham caído no desprestígio da
constante repetição” (MOYA apud GOMES, 2008, p.08). O livro de Wertham incentivou o Congresso
americano a investigar as editoras. A indústria dos quadrinhos, temendo uma regulamentação do
governo, criou o Comics Code, um código de autocensura.
34
carregado de traços e hachuras, expressando a sensibilidade do autor”
(MAGALHÃES, 2009, p.04). Após vários conflitos e protestos estudantis o
emblemático ano de 1968 terminou em 13 de dezembro com o decreto do Ato
Institucional Número 5 (AI-5):
É nos anos 80, inspirado pelo conceito punk do “faça você mesmo,” que o
underground brasileiro começou a dar seus melhores frutos. Foi a década dos
quadrinhos para adultos. As revistas Piratas do Tietê e Chiclete com Banana
vendiam quase tantos exemplares quanto a Turma da Mônica de Maurício de Sousa.
Marcatti até chegou a publicar na revista Chiclete com Banana aquele que, por esse
motivo mesmo, se tornou o seu maior “hit”, “Tia Surubinha”:
35
conceitos de moral e ética que regem as relações sociais” (MAGALHÃES, 2009,
p.09).
Pensando um pouco sobre esta afirmação de Edgar Franco podemos
considerar que sim, Marcatti criou algo novo a partir de suas referências mais
importantes: Hunt Emerson, Basil Wolverton, Harvey Kurtzman e Gilbert Shelton,
principalmente, se as considerarmos referências visuais. E sim, os quadrinhos de
Marcatti trazem uma “escatologia crua” e são corrosivos de “conceitos de moral e
ética que regem as relações sociais”, mas não, não consideramos sua estética
grotesca como “doentia”; não existe uma atmosfera de horror, de terror, angústia ou
culpa em suas narrativas: o grotesco de Marcatti é alegre, engraçado e vitalista.
Mesmo as limitações ou deformações dos personagens podem se revelar virtuosas
e passíveis de prodigiosas transformações orgânicas. Neste plano, do “baixo”
material, onde todos se igualam, tudo termina bem.
Além de possuir uma grande produção autoral e independente, Marcatti já
colaborou com revistas alternativas como Mil Perigos, Mega, Casseta & Planeta,
Monga, Tralha e também trabalhou na imprensa sindical ao lado de nomes
consagrados como Henfil, Laerte, Angeli, Chico Caruso, Paulo Caruso, Jota, Márcio
Baraldi, Milton, Jaime Prates, Moa, Bira, Carlos Latuff e Maringoni.
A Pro-C (segundo o próprio Marcatti uma corruptela de “PARA VOCÊ”) lançou
ininterruptamente 38 revistas no decorrer de uma década. Além dos trabalhos
próprios, publicou também quadrinhos de Lourenço Mutarelli. Os títulos dos
quadrinhos eram grotescamente sugestivos, como Ventosa, Prega, Lodo e Mijo. Em
14
uma entrevista concedida a João Pedro Ramos, do site “Contraversão” , Marcatti é
perguntado: “De onde surgiu a inspiração para revistas com nomes como Mijo?”. E
responde:
14
Disponível em: <http://contraversao.com/catoteca-6-entrevista-com-marcatti-o-mestre-das-hqs>.
36
parece ser levemente temperada por uma linha editorial específica.
Um detalhe importante: isso se aplica apenas às revistas que
publicaram exclusivamente HQs minhas. As revistas de coletivo
tiveram seus nomes discutidos e debatidos entre os colaboradores.
Para ficar mais claro, “Refugo” (4 números), “Cupim” (1 número),
“Pântano”(1 número) são exemplos de revistas de coletivos de
autores. Já “Lôdo” (assim mesmo: com acento circunflexo), “Soslaio”,
“Mijo”, “Um dia a casa cai” foram revistas com apenas HQs minhas
(MARCATTI, 2012).
15
Este procedimento ficará demonstrado quando analisarmos a página 70 (figura 34) da novela
gráfica Mariposa.
37
16
Assunção pergunta: “Mas seu trabalho pára na escatologia? . Quando você
trabalha com a escatologia, de alguma forma está querendo nos lembrar da nossa
condição animal?”. Marcatti responde:
16
Doutrina que trata em tom profético ou apocalíptico do destino final do homem e do mundo (do
grego éskhatos: extremo, último); também significa tratado sobre os excrementos (do grego skatós:
excremento).
17
Um Marcatti mais pessimista e exaltado pode ser visto na reportagem “Documento Especial - A
criatividade e a ousadia dos quadrinhos brasileiros” da extinta TV Manchete disponível no Youtube:
<https://www.youtube.com/watch?v=dpIUqq8G4zc>.
38
Sinceramente, nunca consegui responder direito essa pergunta
porque não sei de onde vem a enxurrada de escatologia. Costumo
dizer que meu estômago está ligado ao cérebro. Quando estou
criando uma história é uma novelinha mesmo, mas o grotesco vem
com enorme fluência. Já disseram que meus quadrinhos são infantis
porque lido com eles como uma criança que cutuca a fralda e põe na
boca (MARCATTI, 2015).
OBRAS DE MARCATTI
Glaucomix - Mattoso e Marcatti 1990
Creme de milho com bacon - Marcatti 1991/2013
Restolhada (Opera Graphica) 2000
Mariposa (Conrad Editora) 2005
A relíquia (Conrad Editora) 2007
A risada de Arnaldo - André Pijamar e Marcatti 2012
Coprólitos - coletânea com histórias de 1986 a 1992 - Marcatti 2013
18
Ver citação completa na página 28 deste trabalho.
39
Lauro, a larva: Aqui me tens de regresso - André Pijamar e Marcatti 2014
Crônicas supuradas - coletânea com as histórias publicadas na 2014
revista Mad de 2008 a 2013 - Marcatti
Visões de Claudeciro - Marcatti 2014
Dedos mágicos - Marcatti e Laudo 2015
Cavacos - Marcatti 2015
Além dessas publicações, Marcatti produziu várias histórias com seu principal
personagem, Frauzio. São elas: Arte viva; Doce sabores da infância; Simbiose /
Pesadelos em pencas; Prato principal / Sobremesa; O balsamo da paixão; Vai à
praia; Questão de paternidade; Morve Blanc; Sementes de Goiabeira; Carnegão;
Escravos do amor; Ares de primavera; e Perpétua Serenata.
40
4. HISTÓRIAS EM QUADRINHOS DE MARCATTI: UMA ANÁLISE
4.1 Simbiose
FIGURA 4
41
Determinado a cuidar de seu parente, Frauzio usa inseticida para acabar com
os cupins (Figura 5). Quando os cupins voam em alvoroço “como em noite de
verão”, da boca espasmódica de seu tio emerge um aruanã - peixe carnívoro
conhecido por saltar fora da água na captura de insetos - que devora um punhado
deles (Figura 6). Completando o movimento, o enorme peixe volta novamente para
as tripas através do cu de tio Ernesto. Frauzio assinala ironicamente que o peixe
“retorna a seu abrigo através da passagem que, normalmente, é a porta dos fundos”.
Tio Ernesto foi convertido em lugar, em geografia, em ecossistema, um
conjunto formado por seres vivos, o meio ambiente e suas inter-relações. Frauzio
não se perturba com este fato tão inusitado e impossível: existe uma total suspensão
da “racionalidade”, como nas narrativas míticas o corpo humano dá origem a um
cosmos.
Um peixe habita os intestinos cheios de água de tio Ernesto e se alimenta de
cupins que vivem em sua barba. O aruanã percorre todo o sistema digestivo de
Ernesto: da boca para o cu e do cu para a boca. Um movimento circular que
simboliza um todo perfeitamente ajustado, um pequeno mundo “simbioticamente”
organizado onde a vida se abriga. É assim também quando Bakhtin comenta o
bloqueio estomacal de Pantagruel em que, armados com pás e cestas, alguns
homens, protegidos em esferas de cobre, mergulham dentro do gigante e começam
a desobstruir seu estômago: “aproximaram-se da matéria fecal e dos humores
corrompidos. Finalmente encontraram um montão de porcaria, que os sapadores
atacaram para derrubá-lo, e os outros, com suas panelas encheram os cestos, e
quando tudo ficou limpo, cada um se retirou para sua esfera” (RABELAIS, 2003,
p.381). O estômago de Pantagruel é descrito em uma escala grandiosa, “meia légua
de um abismo horrível” onde todos os elementos estão organizados e são
experimentados:
42
FIGURA 5
Fonte: Página 06 da revista em quadrinhos Frauzio (número 03, 2001) - Editora Escala
43
FIGURA 6
Fonte: Página 07 da revista em quadrinhos Frauzio (número 03, 2001) - Editora Escala
44
Voltando à narrativa, Frauzio persiste na tentativa de restituir tio Ernesto ao
convívio familiar e libertá-lo do ágil aruanã (Figura 7): “Com grande esforço,
arranquei o indivíduo de dentro do tio Ernesto pela mesma porta em que ele entrou.
Pude sentir o resvalar encaroçado de suas escamas esfolando as paredes
intestinais do meu ente querido!” Então, com o aruanã aprisionado em um aquário, é
a hora de matar os cupins e raspar toda a barba que servia de cupinzeiro para a
colônia. Mas, depois de dedicar dias à recuperação de Ernesto, Frauzio nota que
“uma tristeza profunda” debilitava seu tio. Subitamente, um cupim gigante, maior que
o próprio Ernesto, aparece em sua casa e isso também não perturba Frauzio: afinal
nenhum problema com um cupim falante gigante que mora na barba de seu tio, um
lugar onde obviamente não cabe. Bakhtin comenta assim a loucura e o absurdo:
Com sua chegada o cupim revela saber a causa dos problemas de Ernesto:
quando Frauzio extraiu o aruanã de dentro de seu tio e deu cabo de quase todos os
cupins, ele quebrou o círculo virtuoso da simbiose - tio Ernesto, os cupins e o aruanã
viviam em uma relação mutuamente vantajosa - e foi isso que afetou seu tio. Frauzio
retruca que Ernesto não ganhava nada com esta relação, que ele foi prejudicado
porque os cupins devoraram seu cérebro. O cupim gigante calmamente explica que
cupins não são carnívoros e que pagavam sua hospedagem na barba de Ernesto
“engordando o aruanã”. Frauzio conclui então que quem devorou os miolos de seu
tio foi o aruanã, mas que só o fez porque este também carece de um cérebro.
Frauzio então questiona Ernesto sobre a pescaria e pergunta se o tio jogou fora o
cérebro do bicho “junto com a buchada toda?” Ernesto resmunga uma explicação
dizendo que “engoliu o aruanã inteiro”.
45
FIGURA 7
Fonte: Página 14 da revista em quadrinhos Frauzio (número 03, 2001) - Editora Escala
46
O que acontece em seguida é a suma do absurdo e da ausência de razão, do
maravilhoso e do arcaico e, obviamente, do grotesco: Frauzio se lembra que Ernesto
não engoliu o aruanã inteiro porque ele, Frauzio, comeu o cérebro do peixe e que o
cérebro, mesmo anos depois de ter sido “devorado”, ainda estava preso no buraco
do seu dente. Frauzio então arranca seu molar para restituir os miolos ao aruanã
(Figura 8). O peixe engole os miolos e recupera sua “razão” e se transforma ele
também, além do cupim gigante, em um animal falante. Frauzio arremata tudo com o
seguinte comentário: “Foi o momento mais tocante da minha vida! O aruanã
retomando a sua sabedoria, reabsorvendo seus conhecimentos. Sua inteligência foi
enriquecida ainda mais pelo meu canal!”.
Em Marcatti, o grotesco assume dimensões míticas e tudo está em constante
mudança, passado e futuro não são categorias rígidas; tudo está carregado de
fluidez. “O grotesco é o cômico no seu aspecto maravilhoso, é o cômico mitológico”
(BAKHTIN, 2013, p.39).
A história termina com Ernesto sendo alimentado com “saborosas sopas de
miolos de galinha” e com o aruanã e a colônia de cupins, incluindo o cupinzão,
convivendo pacificamente com Frauzio - tio Ernesto e seus simbiontes apareceram
novamente em outra história de Frauzio, Ares de Primavera, como integrantes da
família - que arremata: “São inestimáveis o prazer e o sabor em reestabelecer (sic) o
curso natural da vida! Uma agora verdadeira simbiose teve lugar na minha sala! Um
maravilhoso microssistema (sic) fluía diante dos meus olhos. Melhor que isso é
testemunhar a alegria com que eles compartilham seus próprios recursos”
(Figura 9).
47
FIGURA 8
Fonte: Página 14 da revista em quadrinhos Frauzio (número 03, 2001) - Editora Escala
48
FIGURA 9
Fonte: Página 20 da revista em quadrinhos Frauzio (número 03, 2001) - Editora Escala
49
4.2 Morve Blanc
FIGURA 10
50
mundo. Aqui, de novo, temos o tema do exagero, do corpo tornado cósmico, do
corpo como fonte e origem de coisas que beneficiam toda a humanidade.
FIGURA 11
Fonte: Página 15 da revista em quadrinhos Desventuras de Frauzio (número 01, 2003) - Editora Pro-c
51
FIGURA 12
Fonte: Página 14 da revista em quadrinhos Desventuras de Frauzio (número 01, 2003) - Editora Pro-c
52
Como em muitas mitologias, a topografia do mundo surge do corpo
despedaçado de gigantes; de Salésio e seu “corpo grotesco” jorra queijo. Vejamos
os comentários de Bakhtin que se associam a esta questão:
53
FIGURA 13
Fonte: Página 19 da revista em quadrinhos Desventuras de Frauzio (número 01, 2003) - Editora Pro-c
54
FIGURA 14
Fonte: Página 20 da revista em quadrinhos Desventuras de Frauzio (número 01, 2003) - Editora Pro-c
55
Para se vingar de Rivércia, Frauzio dedura a filha para Clemer. Quando
Clemer encontra Rivércia se “fartando de sua miséria”, Jovinalva ataca indignada e
espreme de dentro de Rivécia (Figura 15) todo Morve Blanc engolido pela garota -
em momento algum Clemer e Frauzio acham inusitado o fato de Salésio ejacular
queijo. Na dimensão destas narrativas escatológicas, nada é desviante ou
surpreendente demais, todos os personagens estão engajados para legitimar o
absurdo e o grotesco - mas o queijo não é mais o mesmo: fermentado pelas
entranhas de Rivércia, ele apresenta agora uma coloração “rósea ligeiramente
espumante” e um sabor que nem mesmo Clemer, um grande conhecedor de queijos
e apreciador da alta gastronomia, consegue explicar (figura 16).
Clemer, com seu tino empresarial, sabe que aquilo que saiu dos intestinos, da
parte mais baixa de sua filha, é ouro puro. Frauzio termina desolado. Ele acreditava
que dedurar Rivércia o faria cair nas graças do empresário e a colocaria a “seus
pés”, mas, na verdade, abriu caminho para que a filha de Clemer continuasse
cultivando a sua paixão por Salésio. Satisfeitos, Clemer e Jovinalva agora
“dominavam” cada um uma parte do processo de um novo queijo, o Morve Rosé:
Salésio ejacula Morve Blanc que é engolido por Rivércia e defecado na forma do
superior Morve Rosé. A matéria sai do gigante para ser transformada em algo
diferente quando passa pelas tripas de Rivércia.
O corpo grotesco “absorve e dá à luz, toma e restitui. O corpo, formado pelas
profundidades fecundas e excrescências reprodutoras, jamais se delimita
rigorosamente do mundo: ele se transforma neste último, mistura-se e confunde-se
com ele” (BAKHTIN, 2013, p.297). O corpo agigantado e aberto ao mundo, pelo
processo transformador de suas entranhas, devolve algo diferente, superior. As
coisas são rebaixadas para serem melhoradas e novamente se renovarem:
“Imagens da urina e dos excrementos, por exemplo, conservam uma relação
substancial com o nascimento, a fecundidade (ligação com a fertilidade do solo, da
terra), a renovação e o bem-estar” (FIORE, 2011, p.41).
Clemer não mais precisava dos serviços de Frauzio e o demite por ser “dedo-
duro” e “contrata mão-de-obra escrava” para seu novo negócio de produtor e
distribuidor de Morve Rosé. Mas acaba sendo um final feliz para todos, inclusive
para Frauzio: “No fim, até que não me saí tão mal... enquanto aqueles dois
56
enriqueciam colhendo a safra da filial, consolidei minha carreira profissional
fertilizando a matriz” (Figura 17).
FIGURA 15
Fonte: Página 26 da revista em quadrinhos Desventuras de Frauzio (número 01, 2003) - Editora Pro-c
57
FIGURA 16
Fonte: Página 27 da revista em quadrinhos Desventuras de Frauzio (número 01, 2003) - Editora Pro-c
58
FIGURA 17
Fonte: Página 30 da revista em quadrinhos Desventuras de Frauzio (número 01, 2003) - Editora Pro-c
59
4.3 Escravos do amor
FIGURA 18
60
FIGURA 19
Fonte: Página 11 da revista em quadrinhos Desventuras de Frauzio (número 04, 2004) - Editora Pro-c
61
FIGURA 20
Fonte: Página 12 da revista em quadrinhos Desventuras de Frauzio (número 04, 2004) - Editora Pro-c
62
É significativo descobrir que Bakhtin comenta uma cena bastante parecida na
obra de Rabelais por ocasião do parto de Gargamelle, mãe de Gargântua:
Além de lhe saltar o “olho do cu”, Frauzio percebe que seu intestino ganhou
vida própria e possui uma força descomunal a ponto de arrastá-lo direto para a casa
abandonada onde seu cu encontra outro cu pelo qual se apaixona (Figura 21). Este
intestino estranho se projeta para fora das entranhas de uma mulher esfarrapada
que se apresenta como sendo a filha de Armindo.
Ela revela para Frauzio que seu cu ganhou vida própria e passou a tiranizá-la
exatamente como seu pai fazia depois que ela bebeu a água do copo onde repousa
a dentadura do finado Armindo: “Às vezes, quando meu rabo estava dormindo, eu
tentava me desfazer da „poção‟ maldita de papai... jogava pela janela no mato atrás
de casa. Mas, meu cu acabava descobrindo e eu me punha três ou quatro dias
trancada novamente no armário”. Frauzio entendeu que o chá que ele bebeu foi o
culpado por seu intestino ter se tornado seu “feitor”, pois o mato misterioso que sua
vó usou era regado com a “gosma” da dentadura do Armindo. Saliente, aceitando
sua condição de “escravo do amor” de seu cu, Frauzio tenta se aproveitar da
situação e seduzir a filha de Armindo, mas a amargurada mendiga se recusa a
dialogar. Frauzio, nervoso e decidido, ataca os entrelaçados intestinos, mas é
repelido com a assustadora ameaça de seu eloquente cu: “Nem pense nisso,
babaca! Se encostar um dedo em um de nós, vai comer merda até o fim dos seus
dias!” Neste exato momento, vovó Frauzio entra em cena para defender seu netinho.
Quando bebe a gosma da dentadura - que não lhe causa o mesmo efeito nefasto
porque ela possui intestinos “podres e atrofiados” - sua força é triplicada e a velha,
19
Em Bakhtin, na página 196, existe a transcrição do parto de Gargamelle e o texto diz :”tripa do cu”
ao invés de “intestino grosso”. Nesta variante da tradução da Ediouro a expressão usada é “olho-do-
cu”: “Pouco tempo depois, ela começou a suspirar, a gemer e a gritar. Numerosas parteiras chegaram
de todos os lados e, apalpando-a por baixo, encontraram uns pedaços de pele de muito mau gosto.
Pensaram que fosse a criança, mas era o reto que lhe escapara, por se ter afrouxado o ânus, que vós
chamais de olho-do-cu. Como narramos acima ela tinha comido tripas” (RABELAIS, 1985, p.43).
63
com golpes de facão, massacra em “delgadas fatias mortas” os apaixonados
prolapsos (Figura 22).
FIGURA 21
Fonte: Página 15 da revista em quadrinhos Desventuras de Frauzio (número 04, 2004) - Editora Pro-c
64
FIGURA 22
Fonte: Página 21 da revista em quadrinhos Desventuras de Frauzio (número 04, 2004) - Editora Pro-c
65
No dia seguinte tudo retorna à normalidade e os personagens desta grotesca
aventura estão satisfeitos e reunidos para um festim canibal onde comerão uma
deliciosa dobradinha preparada com suas próprias tripas. O banquete antropofágico
é, antes de tudo, um ato simbólico, por meio do qual se assimila o outro e apropria-
se de sua matéria e qualidades; é festejar o triunfo sobre o inimigo derrotado por
meio de sua deglutição (Figura 23).
Em Bakhtin todo o episódio do parto de Gargamelle enseja uma reflexão
sobre as tripas; as tripas que por ela foram comidas no jantar que precedeu o
trabalho de parto e as tripas que lhe saltaram pelo “olho do cu” no momento em que
forcejava Gargântua. O coito, a concepção, o parto e a absorção de alimentos estão
sempre em “comunhão com a terra”. As tripas, os intestinos, o cu, estes fardos
orgânicos de toda a vida complexa que respira, come e caga, são metáforas para
aquilo que é baixo, rasteiro, orgânico. Ser dominado e estar à mercê de um
monstruoso e consciente cu, orifício infernal sobre todos, é a degradação máxima.
Curiosamente, as fezes, o esterco e os dejetos são também signos de vida, pois
fecundam a terra gerando abundância e crescimento. Afirma Bakhtin:
66
FIGURA 23
Fonte: Página 22 da revista em quadrinhos Desventuras de Frauzio (número 04, 2004) - Editora Pro-c
67
Bakhtin argumenta que esta é a comunhão da festa, do banquete, do animal e
do homem, daquele que é comido e daquele que come: tripas e fezes, sexo e parto,
fezes e fertilidade:
68
4.4 Creme de milho com bacon
FIGURA 24
69
práticas sexuais muito específicas: bestialismo, com Bernice a porca, e formicofilia,
com as moscas: “mais rápido com as asas, assim dá mais tesão!”.
Aqui temos a imagem do princípio “gordo”, o banquete como triunfo da vida
sobre a morte, quando Bakhtin comenta a figura do monge comilão na literatura
medieval, figura esta que estaria ligada ao “beber, comer, virilidade, alegria”
(BAKHTIN, 2013, p.247). Nesta história, como em todo o universo de Marcatti, os
animais são antropomorfos. Bernice não fala por ser caladona mesmo. Clércio vai
seguindo nessa rotina até que Armindo, um velho amigo do ginásio reaparece
trazendo um pouco mais de alegria para sua vida. Todas as quintas-feiras, Armindo
visitava o amigo, levando consigo uma “loiruda” - provavelmente uma prostituta - e
seu prato favorito, o creme de milho com bacon que dá título à história. Clércio
devora 12 quilos de lavagem de creme de milho de uma vez, um verdadeiro
“banquete pantagruélico”. Armindo, como bom amigo, além de fornecer o bródio
ainda alimenta o amigo na boca e lambuza sua “rôla” para que Bernice receba sua
parte (Figura 25) incrementada pela farta ejaculação de Clércio. Toda esta narrativa,
com uma atmosfera estranha, gira em torno da realização de necessidades
primárias da vida cotidiana: alimentação e sexo. Descreve Bakhtin:
70
com aquilo e providenciou para que tudo fosse servido com abundância”
(RABELAIS, 2003, p.36).
FIGURA 25
Fonte: Página 09 da revista em quadrinhos Creme de Milho com Bacon (2013) - Edição do autor
71
Mas a tranquilidade das tardes de quinta está para acabar. Motivada pela
desconfiança da mãe, Izilda, a mulher de Armindo o segue para descobrir onde o
marido tem ido todas as quintas. Ao chegar à chácara, Izilda metralha Armindo com
uma avalanche de insinuações: “- Seu canalha! Vai me explicar direitinho o que você
vem fazer aqui toda semana? - Nada não, Izildinha, venho ajudar meu amigo do
colégio, é o Clércio! Lembra dele? - Vá à merda! Ou tem mulher escondida ou você
é viado! - Não, benzinho, o Clércio precisa muito de mim. Sou o único amigo que ele
tem no mundo!”.
Mesmo com o esforço de Armindo para contar a verdade, de dizer que ele
apenas está amparando Clércio e cultivando a amizade, uma discussão matrimonial
tem início. Nesse momento, a filha de Armindo e Izilda, a maliciosa Ritinha, movida
por sua curiosidade infantil, vai até o chiqueiro. Ao ver a massa insólita que Clércio
é, Ritinha despeja uma porção de ofensas ao amigo de seu pai: “Ai, caralho! Esse
monte de bosta embrulhada em pelanca é o amigo do meu pai?!” Clércio, ao ver a
boca suja de Ritinha, fica excitado e, incentivado pelas moscas, tenta levantar. Mas
suas pernas são fracas, estão atrofiadas, e não aguentam o corpanzil flácido de
Clércio que cai estrondosamente no chão. Quando cai, Clércio está vulnerável. As
moscas nada podem fazer e Armindo ainda está discutindo com Izilda. Neste
instante, centenas de baratas surgem das “frestas e cantos” do chiqueiro e com um
apetite voraz comem o pênis ainda sujo de creme de milho com bacon de Clércio
(Figura 26).
Foi-se a “Rôla”, foi-se a razão de viver! Clércio decide morrer. Para as
moscas ele pede: “Basta que eu abra a boca para vocês, quero vomitar até a última
gota!” As moscas então estimulam sua garganta e provocam um cataclismo de
vômito que “venceu a pequena porteira e transbordou as muretas formando um
córrego gordurento pela encosta do morro”! (Figura 27).
72
FIGURA 26
Fonte: Página 18 da revista em quadrinhos Creme de Milho com Bacon (2013) - Edição do autor
73
FIGURA 27
Fonte: Página 20 da revista em quadrinhos Creme de Milho com Bacon (2013) - Edição do autor
74
Clércio vomitou tudo: vomitou o que era, vomitou sua própria vida. Só restou
sua pele gelada e vazia. Como interpretar este fato? Clércio estava tão
morbidamente gordo e identificado com sua bocarra insaciável, seu estômago
balofo, seu pênis, suas tripas, que os tinha em total controle. Clércio se converteu
ele todo em consciência de seu ventre, de suas partes baixas. Todo o alimento que
ele ingeriu ao longo da vida, toda a matéria que se transformou naquilo que ele era,
pôde ser posto para fora numa única e explosiva manobra. Clércio pôde renunciar à
vida e devolver ao cosmos com um jato de vômito aquilo de que ele havia se
apropriado, mas que em absoluto não lhe pertencia. A matéria deve estar em
constante câmbio porque, como diz Bossuet, “a natureza precisa dela para outras
formas, ela a reclama para outras obras”. E ainda, sobre a matéria em trânsito,
temos esta reflexão de Georges Bataille:
Armindo retorna depois de terminar seu casamento para, como homem livre,
poder viver em definitivo com seu amigo, mas descobre desolado que Clércio se foi.
Armindo se cobre com a pele do amigo (Figura 28) e com um sorriso de satisfação
no rosto assume o seu lugar no chiqueiro. O narrador conclui de maneira
enigmática: “A noite deita sobre a cidade e seus subúrbios. Só a luz da lua vem
beijar nossos sonhos e nossos segredos”.
75
FIGURA 28
Fonte: Página 22 da revista em quadrinhos Creme de Milho com Bacon (2013) - Edição do autor
76
4.5 Mariposa
FIGURA 29
A boate sem Fernícia vai de mal a pior, mas Nevair continua a frequentá-la e,
então, sua atenção é atraída pelas curvas generosas de Marlésia (Figura 30), amiga
de Fernícia. Por obra do destino, Marlésia também engravida de Nevair. Essa
gravidez indesejada chama a atenção de Herminiano, que junto com Marlésia,
começa a chantagear Nevair. Herminiano ameaça revelar para Fernícia a gravidez
de Marlésia se o jovem empresário não lhe der uma de suas casas e um
“rendimento mensal vitalício”. Acuado, Nevair cede às ameaças de Herminiano. O
que Nevair não sabe é que Marlésia havia perdido o bebê. O tempo passa e o filho
de Fernícia - que é o narrador sem nome da história - já é um jovem estudante que
77
ao se envolver numa briga por causa de seu amor platônico, Valência, é acolhido
pela faxineira da escola. A faxineira é Marlésia, bastante decadente.
78
FIGURA 30
79
Marlésia leva o filho de Fernícia para casa e cuida de seus machucados e,
aos poucos, vai “estreitando” a relação até que faz dele um homem.
Inesperadamente, o esperma do “inominado” filho de Fernícia tem poder
rejuvenescedor sobre Marlésia: “os anos que ela recuperava eram extraídos da
minha essência. Mas jamais me senti consumido. Ao contrário: era nobre a troca
que abençoava nosso romance. Eu lhe dava vida nova e ela me devolvia maturidade
e sabedoria. E chupa quenem (sic) um ralo!” Aos poucos o garoto vai envelhecendo
e se tornando um velho decrépito (Figuras 31 e 32).
E assim, os anos vão passando até que Nevair, desconfiado de que tem algo
errado na situação, investiga e descobre que o bebê de Marlésia havia morrido.
Enfurecido, ele mata Herminiano. Para ajudar o pai, o inominado esconde o corpo e
o serve para Marlésia comer em uma prática de canibalismo consentido. Ela
consome, dia após dia, o cadáver de Herminiano até restar apenas um esqueleto no
freezer.
O que Marlésia não sabia era que o inominado mantinha uma vida dupla.
Enquanto ela tirava a juventude dele e lhe dava a maturidade - na mesma proporção
que mamava seu esperma -, o inominado mantinha uma relação não menos curiosa
com Valência, a garota que o desprezava no colégio, mas que agora nutria estranha
atração pelo rapaz. E dela é que vinha o elixir da juventude do qual o inominado
precisava para manter o equilíbrio em sua relação com Marlésia. Aqui se repete, de
certo modo, o tema da simbiose: ele perde a juventude e a vida nos braços de
Marlésia e recupera tudo bebendo litros e litros do sangue menstrual de Valência
(Figuras 33 e 34). O que uma tira, a outra dá. Mais do que os personagens é o
trânsito dos fluídos corporais, o sangue e o esperma, que está em jogo. O sangue
como símbolo máximo da vida e o esperma como símbolo de renovação da vida;
vitalidade e saúde versus reprodução e imortalidade. A esse respeito, Bakhtin
afirma:
80
FIGURA 31
81
FIGURA 32
82
FIGURA 33
83
FIGURA 34
84
Nestas páginas também estão caracterizados aquilo que chamei de
contraponto entre o texto e a imagem, responsável pelo efeito cômico. Um texto
“parnasiano”, um modo de falar de coisas sublimes e elevadas: “O júvene néctar
jorra farto e pungente. Seu paladar cremoso estremece minhas entranhas e infla
meu espírito”, é acompanhado da imagem (o primeiro quadrinho da página 69 da
Figura 33) de Valência expelindo para fora de sua vagina uma quantidade imensa de
sangue menstrual. As referências de Bakhtin sobre o “baixo” material e corporal no
que diz respeito ao corpo grotesco estão presentes aqui: esperma, sangue, urina,
fezes e excreções de toda a natureza. Tudo narrado e desenhado de forma
escatológica pela caneta de Marcatti. Para Bakhtin,
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FIGURA 35
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FIGURA 36
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Sem Marlésia, Valência não vê mais aquela maturidade atraente no rapaz que
agora parece cada vez mais infantil. Sem a presença de Marlésia, o equilíbrio foi
rompido e o inominado, que permanece fiel à sua dieta de sangue menstrual, está
regredindo, se tornando novamente criança no corpo e na alma. Assim, o inominado
é abandonado, ficando apenas com as doces lembranças de seus amores: “Antes
de sair, lançou-me um último olhar de desprezo e me chamou de criança. Talvez
não tenha se dado conta de onde sempre me apoiei. Acho que ela não percebeu
que, como homem, jamais criarei minhas próprias asas. Sem o jugo de minhas
fêmeas, sou apenas pó.”
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CONSIDERAÇÕES FINAIS
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de devir histórico, o corpo é central para entender o homem e adquire dimensões
cósmicas em suas medidas, em suas mudanças e no trânsito de sua matéria.
No campo iconográfico, no sentido de repertório de imagens, avulta nos
quadrinhos de Marcatti o grotesco (cômico) escatológico como principal afeto para
impugnar o poder do mal, da autoridade e da decrepitude. Em Mariposa, os
personagens que se alimentam de secreções rejuvenescem e um deles, em
extremo, escapa da morte por meio da metamorfose. O corpo grotesco é cósmico,
hiperbólico e agigantado como Salésio de Morv Blanc que, tal e qual um verdadeiro
e dadivoso herói civilizador, ao ejacular alimento garante a sobrevivência do povo.
Em Simbiose, tio Ernesto também é um corpo que renuncia sua individualidade e se
transforma em topografia, um pedaço de mundo perfeitamente ordenado e
simbiótico com cupins vivendo em sua barba e um aruanã em suas tripas. Nesta
história de Marcatti o grotesco também mostra sua afinidade com o primitivo e com
as narrativas míticas onde passado e futuro não são formas rígidas, onde nem o
tempo exerce sua autoridade. Não que seus personagens nunca morram, mas é
como se algum tipo de intuição originada em suas entranhas e em seus genitais lhes
permitisse submeter-se e conformar-se com a dissolução do indivíduo. Esta intuição
lhes diz que não é a sério, que a vida em nada é atingida por isso e que a entropia
não deve ser temida, mas festejada com riso e espanto. É assim com Clércio de
Creme de Milho com Bacon que morre vomitando toda a comida que ingeriu ao
longo da vida e que se transformou naquilo que ele era: toda essa matéria foi
expelida e explodiu em renovação.
Os personagens de Marcatti são demasiadamente humanos. São
personagens marcados por suas obsessões, taras, manias e peculiaridades físicas.
Curiosamente essas idiossincrasias de seus corpos nunca são limitantes ou
restritivas, pelo contrário, são extraordinárias e, ao mesmo tempo, em nada se
parecem com superpoderes. São signos extravagantes de nossa animalidade que
conseguem celebrar por meio do humor as partes baixas da humanidade. Em suma,
a obra de Marcatti - como as de Rabelais e Bakhtin - é tributária de uma forma de
humanismo que se deixa seduzir pela ideia de que o homem é um animal excelente,
um sobrevivente que perpetuamente cria seu próprio sentido e que é capaz de se
alegrar mesmo quando pressente seu regresso contingente ao estômago da terra.
Marcatti nos apresenta um homem superlativo e transgressor de todos os tabus e
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fronteiras entre os seres e os corpos, entre o eu e o outro, entre o um e o dois, entre
a vida e a morte, recusando qualquer tipo de hierarquia.
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REFERÊNCIAS
92
BORGES, Bento Itamar. O (mau) gosto e o grotesco. Revista Mars Gradivus, Porto
Alegre, ano I, n.1, 2002. Disponível em:
<http://www.ufrgs.br/psicopatologia/lpa/bento_01.htm>.
EISNER, Will. Quadrinhos e arte sequencial. São Paulo: Martins Fontes, 2001.
93
GUAZZELLI, Eloar. Canini e o anti-herói brasileiro: do Zé Candango ao Zé -
realmente - carioca. 2009. Dissertação (Mestrado em Ciências da Comunicação).
Escola de Comunicação e Artes, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2009.
Disponível em: <http://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/27/27154/tde-16092009-
205951/pt-br.php>.
PATATI, Carlos; BRAGA, Flavio. Almanaque dos quadrinhos: 100 anos de uma
mídia popular. Rio de Janeiro: Ediouro, 2006.
94
SILVA, Fabio Luiz C. M. Considerações sobre o conceito de grotesco nos
quadrinhos. Anais. XXXIV Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação -
Intercom, Recife, setembro de 2011. Disponível em:
<http://www.intercom.org.br/papers/nacionais/2011/resumos/R6-0624-1.html>.
SITES CONSULTADOS:
http://omundodogrotesco.blogspot.com.br
http://cruzadorfantasma.com.br/os-primordios-do-quadrinhos-ocidentais
http://www.quadrinho.com/2012/2012/07/a-verdadeira-origem-de-batman
http://www.infoescola.com/biografias/frauzio-marcatti
http://sujeirawebzine.wordpress.com/2011/12/01/marcatti-e-o-underground-paulista-
dos-quadrinhos
http://universofantastico.wordpress.com/2009/02/19/marcatti-volta-a-produzir-
historias-de-frauzio
http://www.monkix.com.br/marcatti/frauzio-ares-da-primavera.html
http://hqmaniacs.uol.com.br
http://www.marcatti.com.br
OBRAS DE MARCATTI
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ANEXO
R – Pois é, isso é quadrinho. Uma coisa não vive sem a outra. Porque se
você isola o texto do desenho, aquilo é novela das oito.
M – Também tem outra coisa que eu penso, que é assim: na lógica do roteiro
e da história, por que eu vou narrar uma coisa que eu vou desenhar embaixo?
Então, assim: “Ele foi e abriu a porta!” – aí tem um cara abrindo a porta. Por que tá
escrito em cima e o cara tá desenhado embaixo? Não precisa. Então, nessa lógica
de evitar uma redundância, uma coisa complementa a outra, ou enriquece a outra,
ou contradiz a outra. Então é legal você chegar e dizer assim: “Ele estava
angustiado”, e ele está abrindo uma porta, você está vendo que ele está abrindo
uma porta. É mais difícil você representar este “angustiado” de uma forma gráfica.
Você pode explorar no texto algo que te atrapalharia no desenho. Com essa lógica
eu fui pegando a brincadeira de fazer os contrapontos. Uma narrativa e o desenho
que vem completamente contraditório.
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R – E é assim que vem a sua maior característica que é a escatologia?
M – Normalmente sim. Porque, assim, eu não sei exatamente como chega a
escatologia, em que momento ela chega. Nunca é antecipado: “vou fazer uma
história de um cara comendo merda”. Isso nunca acontece. Eu começo a
desenvolver a história e se dessem esse argumento para o cara da novela das oito
ia ser uma novela das oito.
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detalhes, vem a sacanagem, a escatologia. Eu costumo me divertir nesse momento:
“puta, que sacanagem ele vai fazer aqui”!
R – Muito bom. Eu lembro desse vídeo que falei pra você, do Documento
Especial da Manchete, você diz: “eu gosto de escrotizar as relações humanas, eu
acho que o ser humano não se descobriu ainda enquanto relação humana”. A base
é essa, histórias de amor, os tipos comuns. O cara do bar que vê a menininha.
Desde essa época, sua relação com os personagens mudou?
M – Ali naquele momento eu estava um pouco ainda... eu não gosto daquele
meu comentário porque eu me coloquei em uma posição um pouco prepotente.
“Escrotizar”, parece que eu estou interferindo em uma coisa e parece uma certa
presunção e um certo moralismo.
R – Talvez o repórter, o cara veio com aquela assim: “você é o cara que faz
os quadrinhos mais sujos do Brasil”.
M – Mas eu estava um pouco inflamado sim. Naquela época eu tava um
pouco inflamado com essa coisa.
R – Sim, mas eu noto que você tem carinho, por exemplo, pelo Frauzio. O
Frauzio se dá bem.
M – Mesmo quando ele se fode ele se dá bem.
98
reveses e ao mesmo tempo ele tem outras compensações das quais não se deu
conta. Ou se deu conta, mas não importa. A vida não é uma coisa linear. O filme é, o
livro é, e eu não gosto dessa coisa linear. É aquela história: “estava tudo bem até
que um dia...” esse “até que um dia” é a mudança de rumo, como se estivesse tudo
bem e de repente. Não, não estava tudo bem, certo? Não tenho que pensar que o
personagem estava em uma linha reta e eu faço uma curva. Não, ele já vinha em
uma frequência alternada.
R – Até porque esse evento, muitas vezes absurdo, não provoca espanto no
personagem. Aquilo faz parte do universo dele. Ele encara com naturalidade um
ânus que ficou independente.
M – Eu faço uma comparação entre dois escritores que me tocaram muito
logo de cara, logo de moleque, que são Henry Miller e Bukowski. Os dois são
diferentes entre si de uma forma brutal. Eu não gosto do Bukowski, porque o
Bukowski põe adjetivo nas coisas. Ele diz: “o feio, o sujo, o nojento”. Então, é ele me
obrigando, como leitor, a entender que aquele cara é sujo. O Henry Miller, a forma
narrativa como ele trata os personagens, ele trata aquela cena com respeito, com
carinho, só que você está lendo, você está vendo o que está vendo: um sujeito
dormindo no frio com outro cara, mendigos, um catando carrapato na barba do
outro. Ele descreve esta cena com tamanho carinho. É você que faz a imagem:
“nossa que coisa nojenta”; “nossa que coisa romântica”; “nossa que amizade
profunda”; “nossa que respeito”. A opinião é sua. Ele não colocou lá. Ele descreveu
com uma naturalidade espetacular. Isso me inspirou muito. Então quando você vê
uma coisa escatológica, horrível no meu desenho, o personagem não tem essa
relação com ela. Faz parte do universo dele ver um cu saindo mais de um metro e
oitenta da bunda de outro. Faz parte. O que incomoda ele são os mesmos dilemas
que nós temos: a mulher traiu, o cara que fez um troço lá, etc.
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não é Maria. Aí você fica misturando para dar uma sonoridade legal. Muito tempo
atrás me disseram que em Portugal, não sei se é verdade isso, quando você tem um
filho e vai escolher o nome do filho, você tem uma cartilha de nomes permitidos.
R – Sim, parece que tem uma regra, em Portugal o moleque não pode se
chamar Madson, Romário, Jeferson.
M – Pô, isso é muito chocante, é meu filho. Tudo bem, eu tenho a
responsabilidade de não foder com a vida dele depois, mas é tão legal criar nome
pra filho, inventar.
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ainda. Eu gosto desses nomes esquisitos e acho legal a gente poder fazer isso
nesse país. Às vezes você fode com seu filho, mas tudo bem.
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adaptação nova?” Eu falei que tinha vontade de fazer uma - ele gostou muito de A
Relíquia -, mas que era muito longa e nenhuma editora iria querer publicar um
negócio desse. Ele perguntou: “qual o tamanho?” e eu respondi umas 700 páginas!
Gostaria de fazer Os Miseráveis. E ele falou: “vamos conversar.” Era uma ideia
minha fazer alguma coisa, eu gosto muito dessa história. Eu não faria por conta,
minha impressora não rodaria 800 páginas, eu ia passar dez anos montando livro.
R – Esse é seu projeto de maior volume agora? Mas não impede que você
continue lançando suas coisas?
M – Não, não posso. Vou ficar uns três anos trabalhando nisso, se eu ficar
três anos sem lançar nada meu, eu morro do coração. Minha impressora vai ficar
empoeirada, não pode. Vai cair poeira na graxa e isso estraga as engrenagens.
R – E você já começou?
M – A desenhar não.
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dessa fluência no meu desenho, os personagens são meio emborrachados,
molengas. E você só consegue isso quando você tem familiaridade. Se eu for
desenhar um hipopótamo pela primeira vez, eu vou ter que desenhá-lo traduzindo o
hipopótamo para o hipopótamo desenhado. Mas isso ainda não me dá a fluência do
hipopótamo interagindo com meus personagens. E isso só vem com treino:
desenhar várias e várias vezes. Ou então eu procuro uma fonte que tenha o
desenho como eu quero e me inspiro aí.
R – Então sua resposta para aquela pergunta do que é mais difícil desenhar é
“aquilo que eu nunca desenhei antes”?
M – É aquilo que eu não vejo. Por isso que meu desenho é urbano pra
caralho, porque eu vejo o urbano. Se eu for desenhar uma roça, cana, por exemplo,
eu tenho que pensar na mecânica do cultivo, todo cultivo tem uma mecânica. O
morro, as valas para escorrer a água. A dificuldade é desenhar uma situação que
não está no meu dia-a-dia. Desenhar um cara indo a uma padaria eu sei como é. A
dificuldade não é tanto desenhar, mas traduzir aquela situação para o meu universo
sujo, sintético, borrachento. Para sintetizar você tem que dominar aquela situação,
aquela coisa. Tem que tomar cuidado com o sotaque. Isso acontece quando você
força um ícone ali dentro, forçou alguma coisa para caracterizar Brasil. Tem que ser
natural. Tem que tomar cuidado com a caricatura.
R – Acaba sendo como o Laerte diz, eu não lembro onde: “não importa como
você vai desenhar os personagens masculinos, quando desenhar mulher tem que
ficar gostosa”.
M – É, tem que ser coerente. Tem que dar tesão.
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R – O Frauzio vai de oito a oitenta, ele pega de todo tipo.
M – Putz, essa última que eu estou fazendo, Perpétua Serenata, é terrível.
Estou louco para pegar ela de volta, está parada já faz um ano. Isso não é comum.
O Frauzio está passando por um processo que não é comum. Eu sempre termino
uma história antes de começar outra. A vida inteira uma história de cada vez.
Misturar as estações, fazer três coisas ao mesmo tempo, é um pouco complicado.
Uma história pode interferir na outra.
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