Você está na página 1de 106

RICARDO ZOLINGER ZANIN

O GROTESCO NAS HISTÓRIAS EM QUADRINHOS


DE MARCATTI

Londrina
2016
RICARDO ZOLINGER ZANIN

O GROTESCO NAS HISTÓRIAS EM QUADRINHOS


DE MARCATTI

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-


Graduação (Mestrado) em Comunicação do
Centro de Educação, Comunicação e Artes
(CECA) da Universidade Estadual de Londrina
para obtenção do título de mestre

Orientador: Prof. Dr. Rozinaldo Antonio Miani

Londrina
2016
2
RICARDO ZOLINGER ZANIN

O GROTESCO NAS HISTÓRIAS EM QUADRINHOS


DE MARCATTI

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-


Graduação (Mestrado) em Comunicação do
Centro de Educação, Comunicação e Artes
(CECA) da Universidade Estadual de Londrina
para obtenção do título de mestre

BANCA EXAMINADORA

______________________________________
Prof. Dr. Rozinaldo Antonio Miani (orientador)
Universidade Estadual de Londrina - UEL

______________________________________
Profª. Drª. Ana Paula Silva Oliveira
Universidade Estadual de Londrina - UEL

______________________________________
Prof. Dr. Gazy Andraus
Centro Universitário Metropolitano de São
Paulo UNIMESP - UNIFIG

Londrina, 3 de Agosto de 2016.


Rapava bem o cu, pois resolvia

na mente altas idéias:

- ia gerar naquela heróica foda

o grande e pio Enéias.

Mas a navalha tinha o fio rombo,

e a deusa, que gemia,

arrancava os pentelhos e, peidando,

caretas mil fazia!

Nesse entretanto, a ninfa Galatéia,

acaso ali passava,

e vendo a deusa assim tão agachada,

julgou que ela cagava...

Bernardo Guimarães

4
DEDICATÓRIA

Para Flavio Colin

5
AGRADECIMENTOS

À minha esposa Marcela pela paciência, ao meu irmão Gustavo pelo


incentivo e ajuda, ao meu orientador Prof. Dr. Rozinaldo Antonio Miani e a todos que
tiveram fala neste trabalho: Profª Drª. Ana Paula Silva Oliveira, Prof. Dr. Silvio
Ricardo Demétrio e o amigo Danilo Hokama Goveia. De maneira especial agradeço
ao Marcatti e à sua esposa Tata pela hospitalidade e carinho.

6
ZANIN, Ricardo Zolinger. O grotesco nas histórias em quadrinhos de Marcatti.
2016. 104f. Dissertação (Mestrado em Comunicação). Centro de Educação,
Comunicação e Artes, Universidade Estadual de Londrina, Londrina, 2016.

RESUMO

Esta dissertação tem como objetivo analisar a presença do grotesco e da


escatologia nas histórias em quadrinhos de Francisco Marcatti Jr. O autor sustenta
que o grotesco, enquanto categoria estética, não deve ser encarado como recurso
que visa unicamente o escândalo e sim manifestação legítima das histórias em
quadrinhos e sua vocação de humor iconoclasta. Tomamos como centro do estudo a
tipologia de imagens grotescas, principalmente em sua modalidade escatológica,
que emerge dos pressupostos de Mikhail Bakhtin relacionados ao conceito de “corpo
grotesco” em seu livro A Cultura Popular na Idade Média e no Renascimento.

Palavras-chave: História em quadrinhos. Marcatti. Grotesco. Mikhail Bakhtin.


ZANIN, Ricardo Zolinger. O grotesco nas histórias em quadrinhos de Marcatti.
2016. 104p. Dissertação (Mestrado em Comunicação). Centro de Educação,
Comunicação e Artes, Universidade Estadual de Londrina, Londrina, 2016.

ABSTRACT

This thesis aims to analyze the presence of the grotesque and eschatology in the
comic book stories of Francisco Marcatti Jr. The author argues that the grotesque as
an aesthetic category should not be seen as a resource which points toward only to
the scandal, but it is a genuine manifestation of comic books and their iconoclast
humor vocation. We consider the typology of grotesque images as the focus of this
study, mainly in its eschatological sort, that emerge from assumptions of Mikhail
Bakhtin related to the concept of "grotesque body" from his book Rabelais and his
World.

Keywords: Comic book. Marcatti. Grotesque. Mikhail Bakhtin.


LISTA DE FIGURAS

FIGURA 1 ............................................................................................................. 17
FIGURA 2 ............................................................................................................. 20
FIGURA 3 ............................................................................................................. 21
FIGURA 4 ............................................................................................................. 41
FIGURA 5 ............................................................................................................. 43
FIGURA 6 ............................................................................................................. 44
FIGURA 7 ............................................................................................................. 46
FIGURA 8 ............................................................................................................. 48
FIGURA 9 ............................................................................................................. 49
FIGURA 10 ............................................................................................................. 50
FIGURA 11 ............................................................................................................. 51
FIGURA 12 ............................................................................................................. 52
FIGURA 13 ............................................................................................................. 54
FIGURA 14 ............................................................................................................. 55
FIGURA 15 ............................................................................................................. 57
FIGURA 16 ............................................................................................................. 58
FIGURA 17 ............................................................................................................. 59
FIGURA 18 ............................................................................................................. 60
FIGURA 19 ............................................................................................................. 61
FIGURA 20 ............................................................................................................. 62
FIGURA 21 ............................................................................................................. 64
FIGURA 22 ............................................................................................................. 65
FIGURA 23 ............................................................................................................. 67
FIGURA 24 ............................................................................................................. 69
FIGURA 25 ............................................................................................................. 71
FIGURA 26 ............................................................................................................. 73
FIGURA 27 ............................................................................................................. 74
FIGURA 28 ............................................................................................................. 76
FIGURA 29 ............................................................................................................. 77
FIGURA 30 ............................................................................................................. 79
FIGURA 31 ............................................................................................................. 81
FIGURA 32 ............................................................................................................. 82
FIGURA 33 ............................................................................................................. 83
FIGURA 34 ............................................................................................................. 84
FIGURA 35 ............................................................................................................. 86
FIGURA 36 ............................................................................................................. 87
SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ......................................................................................................... 11

1. A LINGUAGEM DOS QUADRINHOS ................................................. 15


1.1 Elementos das histórias em quadrinhos............................................... 17

2. O GROTESCO .................................................................................... 22

3. A TRAJETÓRIA DE MARCATTI ........................................................ 32

4. HISTÓRIAS EM QUADRINHOS DE MARCATTI: UMA


ANÁLISE ............................................................................................. 41
4.1 Simbiose ............................................................................................. 41
4.2 Morve Blanc ........................................................................................ 50
4.3 Escravos do amor ............................................................................... 60
4.4 Creme de milho com bacon ................................................................ 69
4.5 Mariposa ............................................................................................. 77

5. CONSIDERAÇÕES FINAIS ................................................................ 89

REFERÊNCIAS ........................................................................................................ 92

ANEXO - ENTREVISTA COM MARCATTI ............................................................... 96


INTRODUÇÃO

Este trabalho analisa a presença do tópos grotesco nas histórias em


quadrinhos de Francisco de Assis Marcatti Júnior, um autor que produziu uma obra
singular no panorama da “nona arte” brasileira. Obra esta que, em uma crítica
ligeira, corre o risco de ser vista - com a presença frequente de práticas sexuais não
convencionais e do ato de excretar explicitamente detalhado no que se refere aos
movimentos intestinais - como exercícios de simples deboche ou mau gosto. Trata-
se então, neste trabalho, de dar destaque para uma produção artística original que,
quando vista com a atenção que merece, cresce em seu potencial contestador e
estético.
De Aristófanes com seus trovões flatulentos a Glauco Mattoso o podólatra,
passando pelo pantagruélico Rabelais e Bernardo Guimarães que bebeu o elixir do
pajé, não são poucos os escritores e artistas que fizeram uso do grotesco e da
escatologia em suas obras. Mesmo assim, embora excretar e defecar sejam ações
naturais, o registro cru dessas banalidades orgânicas, quando visto em livros,
pinturas, filmes ou histórias em quadrinhos, ainda causa repulsa ou até revolta. Há
quem se sinta ofendido e menospreze qualquer manifestação artística que traga a
visão ou descrição de excrementos. Civilizadas, vermifugadas, bem alimentadas,
cheias de pudores e nojo, tudo o que algumas pessoas não querem é pensar sobre
a condição humana, lembrar-se de que são animais e que, como disse Santo
Agostinho, são nascidas entre fezes e urina.
Crescem ano a ano as pesquisas sobre histórias em quadrinhos no Brasil. No
entanto, sobre o tema do grotesco, especificamente, a bibliografia ainda é minguada.
Sobre Marcatti encontra-se alguma coisa relacionada aos quadrinhos underground e
ao movimento das revistas independentes da década de 1980, muito aquém de sua
importância. A ideia para esta dissertação surgiu quando da leitura de um artigo de
Fabio Luiz C. M. Silva (2011) intitulado Considerações sobre o conceito de grotesco
nos quadrinhos. Neste texto são apresentados os conceitos fundamentais de Mikhail
Bakhtin ligados ao tema do grotesco, além de uma lista não exaustiva de autores e
de histórias em quadrinhos que possuíam afinidades com o assunto. A saber: o
exagero caricatural, referências às partes baixas e à crítica paródica. Entre os
citados por Silva (2011) aparecem os nomes do americano Robert Crumb e do

11
brasileiro Francisco Marcatti. É curioso como “onze em dez” alusões a Marcatti - seja
em entrevistas ou reportagens sobre quadrinhos, artigos científicos ou conversas de
bar - vão ligá-lo umbilicalmente a Robert Crumb. De fato, se considerarmos os
desenhos dos dois, podemos perceber afinidades: em ambos existe um grande
exagero, típico da caricatura, na representação da figura humana que é saturada de
hachuras; assim também o ambiente, as casas, os objetos, o que confere um
aspecto “sujo” às histórias. Ambos, com muita frequência e de maneira explícita,
narram episódios de sexo e ficaram conhecidos por publicarem suas histórias de
forma independente, à margem da indústria editorial. E, finalmente, tanto Crumb
quanto Marcatti, seriam exímios praticantes de uma crítica dos valores tradicionais,
questionando as verdades do senso-comum.
Contudo, se analisarmos com cuidado este último elemento, percebe-se uma
grande diferença de conteúdo. As histórias de Robert Crumb estão ligadas ao
movimento da contracultura norte-americana e são cheias de referências a ela. Para
apreciarmos devidamente os quadrinhos de Crumb temos que “dominar” estas
referências, sacar do que se trata e perceber o elemento paródico ali existente. As
histórias de Crumb, aparentemente, ficaram mais “datadas”. Este não é o caso do
universo narrativo de Marcatti. Seus personagens existem em um mundo autônomo
que, embora identificável, não faz referência a algo externo a ele.
Para analisarmos os elementos grotescos presentes na produção
quadrinística de Marcatti utilizamos como referência fundamental o livro A cultura
popular na Idade Média e no Renascimento: o contexto de François Rebelais, onde
Mikhail Bakhtin (2013) apresenta reflexões sobre o grotesco em sua faceta
humorística e carnavalesca; um mundo às avessas onde personalidades elevadas
como o rei ganham uma versão rebaixada, grotescamente representada pelo Momo.
No sentido inverso, o povo se permite imitar os nababos e o luxo da nobreza e dos
endinheirados. São frequentes no livro de Bakhtin (especialmente, no capítulo 6 - O
“baixo” material e corporal em Rabelais) o registro das grosserias escatológicas
presentes em imagens “exageradas e hipertrofiadas” de mijo, fezes, peido, odores,
vômito, catarro e cuspe, além das grosserias, blasfêmias e palavrões. O grotesco se
compraz de conceitos como o feio, o escatológico e o cômico: é subversivo e
contestador ao encarar a vida e as dores do mundo.

12
Como complemento do levantamento bibliográfico fizemos uso também de
dissertações, revistas, documentários e artigos da internet. Gostaríamos de destacar
aqui o número 16 da revista londrinense Coyote (2008) e o Site Contraversão, que
trazem duas excelentes entrevistas com Marcatti, e a tese de doutorado de Rogério
Caetano de Almeida (2012), intitulada Recortes do grotesco na história da Literatura
Portuguesa, fundamental para nossa compreensão sobre o universo do grotesco
(além, obviamente, de autores já consagrados como Muniz Sodré e Raquel Paiva).
É nesse quadro que a análise se desenvolve, como um estudo de estética,
atualizada para as pesquisas em comunicação, que tenta pensar sobre o grotesco
como elemento presente nas histórias em quadrinhos.
Na busca por referências teórico-conceituais encontramos um número
razoável de pesquisas literárias considerando certos pressupostos de Bakhtin,
principalmente poesia, e um menor número de artigos e teses relacionados a artes
visuais. E os quadrinhos? Um meio termo? Mais para o texto ou mais para a
imagem? Amparado por autores fundamentais como Will Eisner e Scott McCloud,
defendemos a ideia de que em sua raiz mais elementar, de um quadro para outro,
existe uma afinidade “genética” muito maior entre quadrinhos e literatura e a
narrativa cinematográfica do que entre quadrinhos e o universo das artes visuais.
Como estrutura de organização desta dissertação no primeiro capítulo
faremos uma pequena apresentação da linguagem dos quadrinhos, de seus
elementos narrativos e de como estes se fazem presentes (quando se fazem) nos
quadrinhos de Marcatti.
O segundo capítulo versará sobre a categoria estética do grotesco, das suas
origens até o conjunto conceitual especificamente bakhtiniano e sua caracterização;
discutirá, ainda, o grotesco em sua modalidade escatológica, o corpo, e sua relação
com o humor.
No terceiro capítulo será realizada uma apresentação do quadrinista Marcatti,
apresentando dados de sua biografia e alguns trechos de entrevistas onde ele
comenta seu trabalho.
Finalmente, no quarto capítulo, analisaremos três histórias selecionadas do
personagem Frauzio - Simbiose, Morve Blanc e Escravos do Amor –, além de
Creme de Milho com Bacon e Mariposa. Acreditamos que estas cinco narrativas são
uma amostra significativa da melhor produção de Marcatti. A presença das três

13
histórias do personagem Frauzio se justifica por se tratar de um protagonista fixo,
caso único no universo do autor. Mariposa foi escolhida porque é uma de suas
histórias mais conhecidas e sua primeira novela gráfica. Creme de Milho com Bacon
está aqui porque nesta história de 1991 Marcatti inaugurou o “estilo” de páginas com
no máximo quatro quadros, praticado atualmente. No entanto, independente de qual
fosse o critério e história escolhida - produzidas entre 1986 e 2016 -, temos
convicção de que os quadrinhos de Marcatti estão marcados pelo grotesco.

14
1. A LINGUAGEM DOS QUADRINHOS

A criação de imagens antecede em milhares de anos o desenvolvimento da


palavra escrita e do alfabeto. Parece bastante razoável pensar que essas imagens
eram ferramentas de comunicação. Entretanto, é com certo exagero que alguns
pesquisadores consideram a arte rupestre como rudimentares histórias em
quadrinhos. Se observarmos seus melhores exemplos, como na caverna de Chauvet
1
Pont D‟Arc , no sudoeste da França, fica evidente que lhes falta algo para
reivindicarem tal primazia: apesar da inegável beleza e sofisticação das imagens, é
difícil lhes atribuir alguma ordem “sequencial deliberada”. É muito mais provável que
tais pinturas servissem de cenário e ilustração para contação de histórias e
realização de performances rituais, algo que acontece ainda hoje entre algumas
tribos australianas que possuem a escola artística - no sentido de estilo e tradição -
mais antiga do mundo, que existe há 20.000 anos, como pode ser visto no
documentário da BBC Como a Arte Fez o Mundo - Episódio 4 (2005) 2.
A origem das histórias em quadrinhos está cercada de polêmicas: datas
fundadoras, especificidades da linguagem, artistas e países precursores. Muitos são
os que reivindicam pioneirismo. Entre os pais do gênero estão o suíço Rodolph
Töpffer, o alemão Wilhelm Busch, o francês Georges Colomb e o ítalo-brasileiro
Angelo Agostini. Nesse último caso, sua obra As Aventuras de Nhô Quim ou
Impressões de uma Viagem à Corte (1869) é vista por muitos estudiosos como a
primeira história em quadrinhos do Brasil (CIRNE, 1990; PATATI; BRAGA, 2006).
Segundo Álvaro de Moya (1994), a primeira história em quadrinhos foi criação de
Richard Fenton Outcalt, em 1895, nos Estados Unidos. Apesar de todos estes
pioneiros serem relevantes e suas criações possuírem características típicas dos
quadrinhos, como serem narradas em sequência e terem personagens fixos, o que
mais conta para o veredicto do pesquisador é a utilização dos balões de texto;
apenas depois que os balões foram acrescentados é que a coisa se completa.
De país em país, de cultura em cultura, as histórias em quadrinhos carregam
várias nomenclaturas que fazem referência a elementos característicos de sua
linguagem ou estão associadas a revistas de muito sucesso que marcaram época

1
Ver o filme “A caverna dos sonhos esquecidos” de Werner Herzog.
2
Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=atuOVM8eYk4>.

15
como ocorre no Brasil com o termo Gibi 3. Na Itália, “fumetti”, (fumacinha) em alusão
aos balões de texto. Na França, “bande dessinée”, o que significa, literalmente, faixa
desenhada; como em Portugal, que também as reconhece como “histórias aos
quadradinhos”; “mangá” (desenho engraçado), no Japão e “comic strips” (tirinhas) ou
“comics”, nos Estados Unidos (ANDRAUS, 1999, p.48).
Will Eisner (2001) e Scott McCloud (1993) são dois autores com pesquisas
realmente significativas e tornaram-se leitura obrigatória no que se refere a histórias
em quadrinhos. O termo “arte sequencial” colocado em circulação por Eisner, que
também popularizou o conceito de “Graphic Novels” (romances gráficos), recebe o
aceite de McCloud que define quadrinhos como “Imagens pictóricas e outras
justapostas em seqüência deliberada destinadas a transmitir informações e/ou a
produzir uma resposta no espectador” (MCCLOUD, 1993, p.9). A definição está
correta, pois histórias em quadrinhos são uma forma de arte sequencial, mas nem
toda arte sequencial é história em quadrinhos. Para a finalidade deste trabalho
restrinjo o uso do termo “histórias em quadrinhos” - ou apenas quadrinhos - às artes
4
sequenciais de caráter gráfico surgidas no final do século XIX juntamente com a
impressa de massas.
Se McCloud amplia o sentido de arte sequencial, Will Eisner vai contribuir
para expandir o conceito de leitura para além do texto escrito. Para Eisner a leitura
de palavras é apenas parte de uma atividade humana mais ampla.

Na verdade, pode-se pensar na leitura - no sentido mais genérico -


como uma forma de atividade de percepção. A leitura de palavras é
uma manifestação dessa atividade; mas existem muitas outras
leituras - de figuras, mapas, diagramas, circuitos, notas musicais...
(EISNER, 2001, p.08).

Basicamente, então, uma história em quadrinhos é uma narrativa em que


texto e imagem contam uma história. E, mesmo quando prescinde do texto, o
determinante de uma história em quadrinhos é a capacidade de narrar alguma coisa.
Histórias em quadrinhos, portanto, “são constituídas de no mínimo dois desenhos,
sendo que o segundo é uma continuação do primeiro” (ANDRAUS, 1999, p.52). Sem

3
Revista de histórias em quadrinhos lançada em 1939 por Roberto Marinho.
4
“Arte de reprodução”: xilogravura, litogravura, gravura em metal, fotografia e tipografia.

16
o elemento narrativo (sequência) e a simbiose entre imagem (forma) e narrativa
(conteúdo), os quadrinhos perdem sua “essência”, passam a ser algo diferente 5.

1.1 Elementos das histórias em quadrinhos

Estão destacados, a seguir, alguns elementos constitutivos das histórias em


quadrinhos:
a) Narrativa visual: nós ocidentais escrevemos da esquerda para a direita, de
cima para baixo. A disposição dos quadros nas páginas e a arte neles contida
devem levar isso em consideração (EISNER, 2001, p.41). Por exemplo, ao ler uma
história em quadrinhos japonesa, com texto traduzido, mas com a arte mantendo o
padrão oriental da direita para a esquerda, a sensação de desconforto é evidente.
Por isso, na maioria dos mangás, além da tradução do texto a arte é invertida,
“espelhada”.
b) Página: é o espaço da página que contém os quadrinhos, que contêm o
desenho. Os quadrinhos também contêm o balão, que contém o texto. É o espaço
total onde a história ganha seu ritmo: quanto mais quadros em uma página, mais
“tempo” transcorrido é mostrado. É “dentro dos quadrinhos que se desenrola a ação
narrativa. Eles são o dispositivo de controle da arte seqüencial” (EISNER, 2001,
p.41).
No caso das histórias em quadrinhos de Marcatti, os originais são
desenhados, pelo menos atualmente, em folhas de tamanho A4 (21 x 29,7 cm) o
que limita o número de quadros por página. Assim, uma página típica de Marcatti vai
de “um” (página inteira) a “quatro” quadros. Isso confere um ritmo sempre constante
de leitura e a narrativa se desenrola de forma contida, sem muitas variações visuais
e praticamente sem onomatopeias. O desenho de Marcatti possui uma linha
orgânica e elegante, os personagens parecem não ter ossos e seu acabamento é
hachurado no capricho com um excelente domínio de “luz e sombra”. Destaque para

5
Cartuns, charges e caricaturas frequentemente são constituídas por um único desenho ou
ilustração e seriam, a partir dessa definição, linguagens diferentes das histórias em quadrinhos. O
cartum tem vocação humorística e geralmente satiriza a condição humana ou arquétipos universais
como, por exemplo, a figura do náufrago. A charge tem ação mais restrita a fatos e acontecimentos
de relevância política; é uma crítica mais pontual, de acontecimentos atuais. A caricatura é a
representação exagerada de características, comportamentos ou hábitos de uma pessoa, geralmente
alguém famoso.

17
a arte de Ares de Primavera, Mariposa e A Relíquia. Algumas histórias dos anos 80
e 90 têm até nove quadrinhos por página (Glaucomix). Marcatti comenta um pouco
de suas técnicas:

A finalização é feita com dois tipos de canetas. Para os contornos,


tenho utilizado a futura. Substitui o bom e velho nanquim porque a
ponta dessa caneta me faz lembrar as técnicas de desenhar a pincel.
Que na verdade é minha grande frustração. Admiro muito caras
como Uderzo (Asterix) ou Hunt Emerson (Firkin) que fazem seus
traços com pincel. Os tratamentos hachurados são feitos com uma
caneta tipo roller ball da Faber Castell chamada Vision Micro
(MARCATTI, 2002, p.38).

c) Quadro, requadro ou vinheta: é o espaço onde acontece a ação da história.


Tradicionalmente desenhado de forma retangular, tem a função de separar as cenas
e as sequências. Além disso, a disposição dos quadros cumpre a função de dar
dinamismo e marcar o ritmo da narração (ALVES, 2003, p.19). Segundo Will Eisner,
“além da função principal de moldura dentro da qual se colocam objetos e ações”, o
requadro pode ser usado como informação visual da história (Figura 1).

FIGURA 1

Fonte: Ilustração da página 44 do livro Quadrinhos e arte sequencial

18
Conforme exemplos apresentados, requadros retangulares com traçado reto
(A) geralmente sugerem que as ações contidas estão no tempo presente; traçado
sinuoso (B) ou ondulado (C) é o indicador mais comum de passado, enquanto que
uma linha mais angulosa e abrupta (D) indicaria forte emoção ou som (EISNER,
2001, p.44).
d) Calha: é o espaço que existe entre um quadrinho e outro; um texto
subliminar cujas lacunas são preenchidas na mente do leitor (ALVES, 2003, p.19).
Eisner também chama a calha de um “não-espaço”, mas que nem por isso deixa de
ter “significado dentro da estrutura narrativa” (EISNER, 2001, p.49). A calha pode
ajudar a delimitar o tempo: mais larga, indica mais tempo entre um quadro e outro,
se é mais curta ou inexistente indica uma ação mais rápida e imediata.
e) Balão: o elemento visual mais característico da linguagem dos quadrinhos.
Segundo Eisner, “o balão é um recurso extremo. Ele tenta captar e tornar visível um
elemento etéreo: o som” (EISNER, 2001, p.26). Sobre os balões em suas histórias
Marcatti comenta:

Diferente dos velhos tempos jurássicos, os textos e balões não são


mais colocados na arte final. Hoje eu digitalizo as páginas e,
diretamente no computador, vou criando os textos finais e os
contornos dos balões. Alguns puristas podem não gostar muito disso,
mas essa tecnologia facilitou pra caralho! Os textos e balões são
feitos no programa FreeHand e exportados para o Photoshop para
serem combinados com as páginas desenhadas. As letras dos
balões são uma fonte True Type que desenvolvi para que tivessem o
mesmo perfil de quando os fazia a mão (MARCATTI, 2002, p.44).

Do ponto de vista histórico, possivelmente o balão é uma evolução dos


filactérios, pequenas e irregulares flâmulas de texto presentes em gravuras da Idade
Média (D‟OLIVEIRA, 2009, p.27). Com o desenvolvimento da linguagem, os balões
começaram a ser manipulados e a interagir com os desenhos. Em casos extremos,
como nos quadrinhos de Marcelo Saravá (Figura 2), os balões, que normalmente
são elementos secundários como as onomatopeias, aparecem como protagonistas
da própria história.

19
FIGURA 2

Fonte: Tirinha de Marcelo Saravá. Disponível em: <http://marcelosarava.com.br/>.

f) Onomatopeia: “é a representação dos sons no quadrinho” (CAMPOS;


LOMBOGLIA, 1989, p.15). Indica, especificamente nos quadrinhos, a representação
visual de sons. Segundo Antonio Luiz Cagnin, apresenta um duplo aspecto:
analógico e linguístico: “Enquanto analógico, com motivação fácil (tamanho dos
grafemas, volume, tridimensionalidade [...]), participa da montagem da cena.
Enquanto lingüístico, normalmente só aproveita a qualidade sonora do grafema
representado” (CAGNIN, 1975, p.135). Porém, a onomatopeia não é exclusiva dos
quadrinhos, podendo ser encontrada na literatura, na publicidade, na poesia
concreta, na televisão. No entanto, foi nas histórias em quadrinhos que a mesma
alcançou um desenvolvimento sem precedentes (ALVES, 2003, p.18). Neste
exemplo do desenhista Ziraldo (Figura 3), as onomatopeias dominam a página.

20
FIGURA 3

Fonte: Ilustração de Ziraldo. Disponível em: <http://www.ziraldo.com.br/>.

21
2. O GROTESCO

Grotesco é tudo aquilo que é estranho e cômico. Ou ainda, como


manifestação do feio, a extensa lista de Umberto Eco:

[...] abominável, vomitante, odioso, indecente, imundo, sujo, obsceno,


repugnante, assustador, abjeto, monstruoso, horrível, hórrido,
horripilante, nojento, terrível, terrificante, tremendo, revoltante,
repulsivo, desgostante, aflitivo, nauseabundo, fétido, apavorante,
ignóbil, desgracioso, desprezível, pesado, indecente, deformado,
disforme, desfigurado (ECO, 2007, p.19).

O termo grotesco existe desde o século XV quando escavações em Roma


encontraram afrescos e ornamentos com figuras extraordinárias de corpos híbridos
de seres humanos, outros animais e plantas. Como o achado se assemelhava a
uma caverna ou gruta (grotta em italiano) o nome pegou (BAKHTIN, 2013, p.28). O
grotesco, como gênero estético, sempre esteve sob a desconfiança de artistas e
pensadores que questionaram seu valor com o argumento de que a temática
grotesca tende a ser fantasiosa ou monstruosa e, portanto, carecer daquilo que até
pouco tempo atrás era considerado padrão em arte: proporção, equilíbrio, simetria e
verossimilhança. Vejamos a explicação de Bento Itamar Borges:

As relações entre o grotesco e a ficção passam pela intencionalidade


da imaginação, que complementa a fonte fortuita das aberrações e
coincidências naturais. Sem dúvida, certas irregularidades são
“caprichos da natureza”, mas o que mais interessa em uma
abordagem sobre o grotesco é a distorção promovida pela atividade
da imaginação humana. A distorção parece ir em direção ao caos,
mas nunca o atinge; as manchas de tinta completamente disformes
não nos tocam como grotescas e sim aquelas que em algum sentido
são reconhecíveis como criaturas inéditas e antinaturais. O processo
da imaginação, embora cheio de fantasia, tem resultados
completamente concretos, com substância, vigor e profundidade, de
modo que a impossibilidade completa não é um traço necessário do
grotesco (BORGES, 2002).

Como gênero, o grotesco deve responder a um sistema organizado de


procedimentos artísticos no intuito de despertar reações emocionais específicas no
espectador. No caso, ambiguamente, espanto e riso (SODRÉ; PAIVA, 2014, p.32-

22
33). Estes “procedimentos artísticos” em Marcatti estão presentes em seu desenho
caricatural - avesso à beleza das formas bem proporcionadas - e suas narrativas
cheias de distorções da realidade e do comportamento dos personagens (espanto).
É um universo todo desalinhado que tem como único ponto fixo o humor (riso).
Muniz Sodré e Raquel Paiva também descrevem as “modalidades expressivas do
grotesco”:

Escatológico - Trata-se das situações escatológicas ou


coprológicamente caracterizadas, por referência a dejetos humanos,
secreções, partes baixas do corpo, etc; Teratológico - são referências
risíveis a monstruosidades, aberrações, deformações, bestialismos,
etc; Chocante - seja escatológico ou teratológico, quando voltado
apenas para provocação superficial de um choque perceptivo,
geralmente com intenções sensacionalistas, o fenômeno pode ser
classificado como “grotesco chocante”; Crítico - neste caso, o
grotesco dá margem a um discernimento formativo do objeto visado.
Ou seja, não propicia apenas uma privada percepção sensorial do
fenômeno, mas principalmente o desenvolvimento público [...] um
recurso estético para desmascarar convenções e ideais, ora
rebaixando as identidades poderosas e pretensiosas, ora expondo de
modo risível ou tragicômico os mecanismos do poder abusivo
(SODRÉ; PAIVA, 2014, p.64-65).

Entre os estudiosos do tema, destacam-se Wolfgang Kayser (2013) e Mikhail


Bakhtin (2013), que apresentam pontos de vista diferentes, mas de certo modo
complementares, pois Bakhtin leu Kayser. Para este, o grotesco se faz presente
quando transtorna o mundo conhecido e familiar e de repente o torna sinistro e hostil
(KAYSER, 2013, p.159). “Em Kayser o grotesco é uma força ameaçadora e
sobrenatural que invade o mundo com formas perturbadoras, é o horror e o
fantástico” (CÂMARA, 2013, p.03).
Para a finalidade deste trabalho destaca-se o “escatológico”, a manifestação
do grotesco mais associada ao corpo, mais relevante, portanto, para o grotesco
propriamente bakhtiniano - Mikhail Bakhtin desenvolveu uma teoria sobre o “corpo
grotesco” - e mais afim com o universo das histórias em quadrinhos de Marcatti.
Obviamente, em alguma medida, todas estas modalidades se fazem presentes em
Marcatti. Para efeito de comparação, apresentamos um resumo de Rogério Caetano
de Almeida (2012) sobre cada um dos autores, Kayser e Bakhtin. Entretanto, neste
trabalho, não nos deteremos nos elementos apontados pelo pensador alemão.
Sobre o grotesco em Wolfgang Kayser:

23
[...] estranhamento; atmosfera rígida e morta; perplexidade, portanto
a comicidade e a sátira não são grotescas; fantástico mundo lúdico;
turbulento, fantasioso, angustiante e sinistro; não possui uma
determinada maneira de representação (polimorfo); perturbador e
monstruoso; contraditório e heterogêneo, o que o aproxima da
tragicomédia; o-que-não-devia-existir; grotesco desumano é oposto à
razão humana, portanto é irracional; antinatural; estilização,
exageração e deformação; excentricidade, caráter demoníaco e
autômato do humano, enfim o grotesco é uma reificação;
incompreensível; anticlássico e inatural; humor + horror = grotesco;
grotesco necessita da metafísica para não perder sua caracterização
estranha; tensão entre forma e conteúdo; fantasioso e inanimado;
despedaçamento do encadeamento racional; abissal; impuro,
portanto plurívoco e disforme; carrega a contradição de ser
inacabado em um lugar em que tudo é acabado (ALMEIDA, 2012,
p.37).

A ideia ou o efeito do grotesco de Kayser é inseparável do horror; são


imagens torturadas de pesadelo, daquilo que irrompe inesperadamente na realidade
e amplia a fratura entre o indivíduo e o mundo: “Aqui não há comicidade nem sátira”
(KAYSER, 2013, p.39). Sobre o grotesco de Mikhail Bakhtin, Almeida apresenta:

Origem do grotesco nas fontes populares; mundo dual (sério e


cômico); associação do grotesco com o riso; lógica às avessas (baixo
no lugar do alto: travestis, degradações, profanações, obscenidades
e destronamentos); ambivalência; elemento corporal exagerado,
infinito, cósmico; rebaixamento como traço marcante; degradação é a
comunhão com o baixo - destrói e reconstrói (ambivalência);
degradação do sublime; carnavalização - conceito que remete às
festas da Antiguidade clássica; grotesco (inacabado e imperfeito) x
Clássico (acabado e perfeito); transitório e metamorfoseado;
grotesco mais corporal e empírico do que abstrato e metafísico
(ALMEIDA, 2012, p.46).

Bakhtin vai criticar Kayser, pois este teria se esquecido do principal efeito do
grotesco: o cômico que desarma o poder do mal e da autoridade por meio do humor
e do riso. “O riso não impõe nenhuma interdição, nenhuma restrição. Jamais o
poder, a violência, a autoridade empregam a linguagem do riso” (BAKHTIN, 2013,
p.78). Bakhtin destaca a importância do riso nas obras de arte grotescas, sejam elas
representadas como a literatura, pintura, escultura ou histórias em quadrinhos,
sejam elas atuadas, encenadas ou performáticas como as piadas, os rituais e as
festas populares (SODRÉ; PAIVA, 2014, p.63).

24
Bakhtin ainda lembra a célebre fórmula de Aristóteles: “O homem é o único
ser vivente que ri”6. O riso é prerrogativa e privilégio supremo do homem (BAKHTIN,
2013, p.59). Bergson complementaria dizendo que não há riso fora do humano; tudo
que provoca o riso deve ser semelhante com o humano (a raiz de mandrágora será
engraçada por ter forma humana; um animal parecerá engraçado quando fizer algo
humano, etc) (BERGSON, 1983, p.07). A respeito do cômico, relacionado ao tema
do grotesco, nos deparamos frequentemente com a concepção de riso do filósofo
Henry Bergson (1983):

Alguém, a correr pela rua, tropeça e cai: os transeuntes riem. Não se


riria dele, acho eu, caso se pudesse supor que de repente lhe veio a
vontade de sentar-se no chão. Ri-se porque a pessoa sentou-se sem
querer. Não é, pois, a mudança brusca de atitude o que causa riso,
mas o que há de involuntário na mudança, é o desajeitamento. [...] O
cômico é, pois, casual; permanece, por assim dizer, na superfície da
pessoa. Como se interiorizará? Para se revelar a rigidez mecânica,
será preciso não mais haver um obstáculo anteposto à pessoa pelo
acaso das circunstâncias ou pela galhofa de alguém. Será preciso
que venha do seu próprio fundo, por uma operação natural, o ensejo
incessantemente renovado de se manifestar exteriormente.
Imaginemos, pois, um espírito que seja como uma melodia em atraso
quanto ao acompanhamento, sempre em relação ao que acaba de
fazer, mas nunca em relação ao que está fazendo. Imaginemos certa
fixidez natural dos sentidos e da inteligência, pela qual continuemos
a ver o que não mais está à vista, ouvir o que já não soa, dizer o que
já não convém, enfim, adaptar-se a certa situação passada e
imaginária quando nos deveríamos ajustar à realidade atual. [...] Com
o desvio, de fato, talvez não estejamos na fonte propriamente do
cômico, mas sem dúvida em certa corrente de fatos e idéias que
provêm diretamente dela. Estamos com certeza numa das grandes
tendências naturais do riso (BERGSON, 1983, p.09-11).

Este contraste mencionado acima por Bergson, da “melodia em atraso quanto


ao acompanhamento” do “desvio” como origem do cômico, está presente em
Marcatti. Em todas as suas histórias o humor deriva de dois níveis de contraste entre
forma e conteúdo. O primeiro ocorre entre a arte (forma) de caráter cartunesco,
normalmente associada a quadrinhos para crianças, e a ação aberrante do
personagem (conteúdo). O segundo acontece nos casos em que o texto diz alguma
coisa (conteúdo) e o desenho (forma) mostra uma imagem inusitada, diferente do

6
Aparentemente, animais como macacos, cães e ratos também riem conforme:
http://www. http://ciencia.estadao.com.br/noticias/geral,riso-de-seres-humanos-e-de-animais-e-
assunto-serio-para-os-cientistas,531998 .

25
que se espera como complemento para o sentido da cena. Neste processo fica
verificado o “rebaixamento” bakhtiniano: frases e ditos associados ao amor sublime
são rebatidos com imagens de ações escatológicas. Sobre a roteirização de suas
histórias, Marcatti afirma:

O primeiro estágio na criação de uma HQ é o desenvolvimento da


história. Como método de trabalho, parto sempre de um conceito
único. Escolho ao acaso uma palavra, uma expressão ou qualquer
coisa que, de início, não tem muita importância. A partir disso, me
obrigo a desenrolar uma história (MARCATTI, 2002, p.08).

No âmbito popular tão caro a Bakhtin, o riso que desarma o “poder do mal” - o
riso que transforma imagens graves e traumáticas - pode ser constatado, por
exemplo, na festa do “Dia dos Mortos” que ocorre no México no dia dois de
novembro. A lenda diz que neste dia os mortos vêm visitar seus parentes e
encontram por toda parte música, comida, bolos e caveirinhas esculpidas com
açúcar que enfeitam as ruas e os cemitérios. A figura do esqueleto e da caveira, que
no catolicismo é um símbolo de vaidade e da brevidade da vida, na cultura popular
representa uma pessoa magra exibindo um último e eterno sorriso de deboche. O
grotesco não disfarça sua filiação com o “indecente, imundo, sujo, obsceno”, o caos
e a corrupção; não disfarça o elemento infernal presente na vida.
Outro exemplo de evento festivo que lida com imagens maléficas de maneira
ambígua são os shows de Hard Rock e Heavy Metal. Neste exemplo, a figura do
Diabo está associada à rebeldia, vitalidade e ao sexo. Como a tradição cristã, que
considera Lúcifer um anjo caído, caracteriza o Diabo? Uma criatura hibrida que
rasteja como uma serpente e tem chifres, asas e cauda pontiaguda. Um perfeito
habitante da grotta que ambiguamente dá medo e faz rir. Como aponta Adriano
Fiore (2011), mesmo na tradição da literatura popular, o máximo representante do
mal pode ser manipulado, logrado e ridicularizado (FIORE, 2011, p.108-109).
Ao estudar a obra Gargântua e Pantagruel, Bakhtin vai notar a influência que
o carnaval medieval - com seus monstros, danças, piadas chulas, palavrões, sexo,
fantasias, palhaços e máscaras - teve sobre a narrativa dos gigantes de Rabelais. O
livro alardeava os prazeres físicos e cotidianos da vida: a comida, a bebida e o sexo
e ainda escarnecia da Igreja e da cobiça dos poderosos. O carnaval seria o ponto
alto da contestadora “cultura cômica popular”, e carnavalização é o conceito

26
expandido desta relação entre o riso e o grotesco. Enquanto a cultura oficial
consagra a estabilidade e a permanência, o carnaval celebra a inversão, o
movimento e a mudança. Rebaixar é “entrar em comunhão com a vida da parte
inferior do corpo, a do ventre e dos órgãos genitais, e portanto com atos como o
coito, a concepção, a gravidez, o parto, a absorção de alimentos e a satisfação das
necessidades naturais” (BAKHTIN, 2013, p.19).
Bakhtin dá grande importância aos gêneros literários considerados menores
como a comédia. Menor porque, como afirma Aristóteles, é “imitação de pessoas
inferiores” (ARISTÓTELES, 2012, p.23). Para Bakhtin, inferior é virtude. Segundo
ele, existe uma espécie de charme chulo nas formas cômicas populares que
valorizam o material e o corpóreo; o humor da Idade Média valoriza o drama da vida
orgânica. O carnaval e a carnavalização são fundamentais porque é em seu domínio
que explodem as paixões e os apetites mais animalescos, são rompidas todas as
hierarquias, há o contato livre e fraternal entre os homens e o mundo é rebaixado.
Do inferior e periférico surge o novo. Afirma Bakhtin:

Coloca-se ênfase nas partes do corpo em que ele se abre ao mundo


exterior, isto é, onde o mundo penetra nele ou dele sai ou ele mesmo
sai para o mundo, através de orifícios, protuberâncias, ramificações e
excrescências, tais como a boca aberta, os órgãos genitais, seios,
falo, barriga e nariz. É em atos tais como o coito, a gravidez, o parto,
a agonia, o comer, o beber, e a satisfação de necessidades naturais,
que o corpo revela sua essência como princípio em crescimento que
ultrapassa seus próprios limites. É um corpo eternamente
incompleto, eternamente criado e criador, um elo na cadeia da
evolução da espécie ou, mais exatamente, dois elos observados no
ponto onde se unem, onde entram um no outro. Isso é
particularmente evidente em relação ao período arcaico do grotesco
(BAKHTIN, 2013, p.23).

O grotesco pensado por Bakhtin no livro A Cultura Popular na Idade Média e


no Renascimento (especialmente os capítulos 5 e 6) gira em torno dos conceitos do
“corpo grotesco”, do “carnaval” que é um segundo mundo da realidade social e do
“rebaixamento” que aproxima as coisas da terra, do fisiológico e do orgânico
(SODRÉ; PAIVA, 2014, p.53). Cria-se assim uma oposição entre alto e baixo:
podemos associar o “alto” com o céu, a cabeça, a inteligência, a luz; e o “baixo”,
com a terra, o túmulo, o ventre, os genitais, o ânus e também o inferno. Do ponto de
vista social temos a “classe alta”, a classe do espírito, das virtudes espirituais e a

27
“classe baixa”, a classe do corpo, das virtudes corporais. O universo dos quadrinhos
de Marcatti está centrado na modalidade escatológica do grotesco e, para o
escatológico, o corpo é a matéria prima:

Na base das imagens grotescas, encontra-se uma concepção


especial do conjunto corporal e dos seus limites. As fronteiras entre o
corpo e o mundo, e entre os diferentes corpos, traçam-se de maneira
completamente diferente do que nas imagens clássicas e naturalistas
(BAKHTIN, 2013, p.275).

Todas essas imagens que derivam do corpo grotesco, escatológico,


teratológico, têm uma forte presença da cultura cômica popular e sua disciplina
férrea de praticar o “rebaixamento”, a primazia das funções corporais sobre as do
espírito: trazer o espiritual e o abstrato para o plano do terreno e do corporal, ao
nível do traseiro, por assim dizer.
Na escatologia das histórias em quadrinhos de Marcatti encontramos todos os
tipos de monstruosidades, metamorfoses, canibalismo e uma lista infindável de
parafilias: coprofagia, podolatria, zoofilia, acrotomofilia, teratofilia, salirofilia,
formicofilia etc. Tudo encarado com naturalidade por personagens urbanos que
vivem nos subúrbios, em casas e pequenos apartamentos de cidades nunca
nomeadas (com duas exceções, as histórias Glaucomix e Lauro, a larva - Aqui me
tens de regresso), mas perfeitamente presumíveis pelo leitor. Normalmente, os
personagens aparecem em apenas uma história, um conto e não retornam. De novo
com duas exceções, o personagem Frauzio - que já protagonizou 15 histórias - e
Lauro, a larva - com três histórias. Existem personagens e elementos que lembram
narrativas primitivas ou mitos de povos arcaicos, pré-filosóficos, intocados pelo
racionalismo aristotélico. Este mundo lúdico e fantasioso está presente no conceito
de “maravilhoso” posto por Celisa Marinho:

[...] o maravilhoso se circunscreve no sobrenatural e recorre ao


mesmo sobrenatural para se “explicar”, de modo que os
acontecimentos relatados se justificam em consonância com a
própria estrutura interna das narrativas. O maravilhoso revela o
oculto, ou seja, aquilo que se esconde atrás da realidade cotidiana e
nela se realiza, impondo a força da imaginação que rompe os limites
do possível. Ele se alia às descobertas daquilo que é primeiro ou
anterior e, sendo assim, se faz seminal e dotado de grande força
criativa que dá vazão à sua poeticidade. Essa poeticidade do

28
maravilhoso tem sua semente nas narrativas míticas (MARINHO,
2006, p.13).

O mito nasce para dar conta do espanto diante do mundo. Os mitos


primitivos, com suas narrativas fantasiosas e até absurdas, prescindem de lógica e
até de uma mínima comprovação empírica (CHAUI, 2000, p.32-35). Assim são as
histórias de Marcatti, impregnadas de fluidez. Fluidez porque os personagens
passam de uma realidade para outra, mudam de natureza, se transformam: de
homem em bicho, de ser único em vários, de indivíduo em ecossistema. Tudo está
cheio de qualidades repulsivas e exagero. Há também muitos animais
antropomorfos, coisa bastante comum tanto em histórias em quadrinhos - o universo
Disney é todo antropomórfico - quanto em fábulas. Todos os objetos do cotidiano
estão lá e nos são familiares: uma realidade material brasileira com coadores de
café, filtros de barro, panelas de pressão, isqueiros bic, casas com muros, cercas e
quintais. Os nomes dos personagens são sonoros e incrivelmente originais:
Claudeciro, Frauzio, Marlésia, Percivânio, Salésio etc.
Nas narrativas de Marcatti os protagonistas podem assumir qualquer forma e
enganar a morte no último instante com uma súbita transformação (Mariposa, Dedos
Mágicos); o tempo pode transcorrer de maneira diferente e arbitrária para cada
personagem (Cê Viu a Chave do Carro?); as partes amputadas do corpo e as fezes
podem surpreender com virtudes e propriedades mágicas (As sementes da
Goiabeira, Doces Sabores da Infância). São imagens sempre relacionadas ao corpo,
sempre cheias de deformações, excrementos e putrefações. Como em Rabelais, no
universo de Marcatti o corpo é ilimitado:

Encontram-se naturalmente gigantes, anões e pigmeus, personagens


dotadas de diversas anomalias físicas: seres de uma só perna, ou
sem cabeça, que tem rosto no peito, com um único olho na testa,
com os olhos sobre as espáduas, nas costas, outros com seis braços
ou que comem pelo nariz, etc. Tudo isso constitui as fantasias
anatômicas de um grotesco descabelado, que gozavam de imenso
favor na Idade Média. [...] brincar com os corpos e os órgãos:
lembremo-nos dos anõezinhos gerados por um peido de Pantagruel
que têm o coração ao lado do ânus [...] (BAKHTIN, 2013, p.303).

O humor de Rabelais ecoa as festas do povo, as piadas escatológicas e é


sempre hiperbólico, exagerado. Não à toa seus personagens Gargântua e

29
Pantagruel são dois monstruosos e inventivos gigantes. No capítulo XIII do livro
Gargântua e Pantagruel, o pai de Gargântua, Grandgousier, pergunta a seu filho
sobre as suas engenhosas invenções para manter-se limpo:

- Vou contar como foi, disse Gargântua. Limpei uma vez com uma
meia máscara de veludo de uma moça, e achei bom, pois a maciez
de sua seda me causou uma voluptuosidade no traseiro. Uma outra
vez com um véu, e foi a mesma coisa. Uma outra vez ainda com uma
faixa; outra com orelheiras de cetim carmesim, mas ao arremate de
um bolo de merda que lá se achava me arranhou o traseiro todo.
Que o fogo de Santo Antônio queime as tripas do ourives que as fez
e da donzela que as usou. Logo que o mal passou, eu me limpei com
um gorro de pajem, bem emplumado à suíça. Depois, andando atrás
de uma moita, encontrei uma marta e me limpei com ela, mas as
suas unhas me feriram todo o períneo. Logo que me curei, no dia
seguinte, limpei-me com as luvas de minha mãe, bem perfumadas de
benjoim. Depois me limpei com feno, aneto, Mangerona, rosas,
folhas de abóbora, de couve, de beterraba, de parreira, de alface e
de espinafre. Tudo isso me fez muito bem à perna. Mercuriais,
persicárias e consolda, mas passei muito mal, e só me curei
limpando-me com minha braguilha. Depois, limpei-me com lençóis,
as cobertas, a cortina, uma almofada, um tapete, um outro tapete
verde, uma toalha de mesa, um guardanapo, um lenço e um
penhoar. Em tudo achei prazer, mais do que coçar uma sarna. [...] eu
me limpei com um gorro, um chinelo, uma bolsa, um cesto, mas que
limpa-cu desagradável! Depois com um chapéu. Mas vê que chapéus
são, uns lisos, outros peludos, outros aveludados, outros e tafetá,
outros de cetim. O melhor de todos é o peludo, pois faz boa absorção
da matéria fecal. Depois eu me limpei com uma galinha, um galo, um
frango, um couro de boi, um pombo, um alcatraz, uma pasta de
advogado, uma touca. Mas, concluindo, digo e sustento que não há
limpa-cu igual a um ganso novinho, bem emplumado, contanto que
se mantenha a cabeça dele entre as pernas. E, pode acreditar,
palavra de honra. Pois a gente sente no olho do cu uma volúpia
mirífica, tanto pela maciez das penas, como pelo calor temperado do
ganso, a qual facilmente é comunicada ao cano de cagação e a
outros intestinos, até chegar à região do coração e do cérebro
(RABELAIS, 2003, p.70-73).

O corpo grotesco é celebrado e afirma-se na escatologia. Afirma-se e não se


impõe, bem entendido. O exercício da escatologia é algo ativo e não reativo. O que
se impõe é o mal-estar, o drama do homem em luta contra seus orifícios, contra sua
dimensão animal, contra tudo que é problemático, frágil e contingente na existência.
No sentido de Bakhtin, escatologia é sinal de saúde, de transitoriedade da matéria,
de mudança. Este mal-estar que deveria culminar na loucura ou no desespero da
morte, renasce, nas mãos de Bakhtin, apoiado nos ombros dos faceiros gigantes de

30
Rabelais (e nas alegres e debochadas criações de Marcatti), como algo prenhe de
humor, de cômico. A morte e a arbitrariedade são rebatidas com gargalhadas e
vitalidade infantil.
Esta comicidade com origem nas festas e nas proezas físicas é uma
afirmação de que, no final das contas, vale a pena viver e mesmo com todas as
dificuldades, quando percebermos que a felicidade é impossível, pelo menos a
alegria está garantida. “O riso e a visão carnavalesca do mundo, que estão na base
do grotesco, destroem a seriedade unilateral e as pretensões de significação
incondicional e intemporal e liberam a consciência, o pensamento e a imaginação
humana, que ficam disponíveis para o desenvolvimento de novas possibilidades”
(BAKHTIN, 2013, p. 43).

31
3. A TRAJETÓRIA DE MARCATTI

É muito difícil precisar o número de quadrinhos vendidos no Brasil 7. Mesmo


que o momento seja bom, com novos autores publicando trabalhos de qualidade e
de álbuns encadernados ocupando seu espaço nas livrarias, também é difícil definir
o perfil dos leitores e, quando os encontramos, provavelmente são leitores de
quadrinhos americanos de super-heróis, quadrinhos Disney ou, entre os
adolescentes e as crianças - além dos onipresentes quadrinhos da Turma da Mônica
-, leitores de mangás, a grande novidade editorial da última década no Brasil8. De
Marcatti então, “ninguém sabe, ninguém viu”. É uma pena, pois o potencial do
quadrinho como forma de arte é ilimitado. Podemos até mesmo afirmar que desde
seus primórdios no século XIX ele já nasceu auspicioso e sob influência de uma
estética popular. De feitura tosca e barata, sempre fazendo uso de uma imaginação
sem limites e, por conseguinte, geralmente mal visto pelas autoridades (pais,
professores, políticos), como afirma Silva que, desde o berço, foi tachada de arte
secundária, periférica:

[...] sua essência popular em algumas frentes permanece intocável


com uma ênfase no grotesco, se estabelecendo com uma postura
combativa contra valores tradicionais de uma elite que, seja na
instituição ou na mídia que for, promove articulações visando seus
interesses (SILVA, 2011, p.15).

9
Francisco de Assis Marcatti nasceu na cidade de São Paulo, no bairro do
Tatuapé, em junho de 1962 e é um dos mais originais autores brasileiros de histórias

7
Comparação 1967-2007 - Tiragem: “É possível perceber alguns sinais de que as vendas são
menores. A revista do Recruta Zero tinha, em 1967, tiragem de 75 mil exemplares/mês. Em
dezembro de 2006, a editora Mythos, de São Paulo, recolocou a revista nas bancas. A publicação foi
cancelada meses depois por falta de compradores. Outro indicador são as revistas Disney, da Editora
Abril. Quatro delas, Mickey, Tio Patinhas, Pato Donald e Zé Carioca (as duas últimas quinzenais),
somavam quase 1,114 milhão de exemplares em 1967” (RAMOS, 2008 p.5).
8
O grande marco da publicação de mangás no Brasil acontece por volta de dezembro de 2000, com o
lançamento dos títulos Samurai X, Dragon Ball e Cavaleiros do Zodíaco:
<http://www. https://omelete.uol.com.br/quadrinhos/artigo/quadrinhos-japoneses-invadem-as-bancas-
tupiniquins>.
9
As informações obtidas sobre Francisco Marcatti foram extraídas dos seguintes endereços:
<http://www.infoescola.com/biografias/frauzio-marcatti>.
<http://sujeirawebzine.wordpress.com/2011/12/01/marcatti-e-o-underground-paulista-dos-quadrinhos>.
<http://universofantastico.wordpress.com/2009/02/19/marcatti-volta-a-produzir-historias-de-frauzio>.
<http://www.monkix.com.br/marcatti/frauzio-ares-da-primavera.html>.

32
em quadrinhos. Ao seu nome estão associados vários adjetivos como underground,
independente, escatológico e nojento. Tornou-se conhecido na cena cultural da
cidade por seu desenho exagerado e histórias absurdas e grotescas ambientadas
nos subúrbios da capital paulista.
10
Em entrevista à revista Coyote , o editor da publicação, Ademir Assunção,
pergunta: “Você começou a publicar muito cedo. Sua primeira história em
quadrinhos saiu quando você estava com 15 anos. O que borbulhava na sua
cabeça? Você vem de uma família que tinha ligação com literatura ou com
quadrinhos?”. Marcatti responde:

Venho de uma família católica, só que meus pais eram ligados à ala
progressista da Igreja, a ala do Dom Paulo Evaristo Arns. Existia uma
consciência um pouco mais avançada politicamente. Mas eu sempre
fui alheio. Meu negócio sempre foi desenhar. Desde criança. Tenho
histórias em quadrinhos guardadas de quando eu tinha 7 anos.
Minha irmã, sim, era uma devoradora de livros. Ela sempre foi a mais
intelectual da casa. Foi através dela que eu comecei a me ligar em
Herman Hesse, Jean Paul Sartre. Moleque eu lia essas coisas
(MARCATTI, 2008).

Marcatti é também um artista obcecado que domina todas as etapas de


criação de seus quadrinhos, da impressão à comercialização. Segundo o jornalista
Jotabê Medeiros: “A rejeição pública esconde também uma grande dose de
11
ignorância: o sujeito é um dos mais geniais artistas dos quadrinhos no País” . De
fato, em certa medida, podemos aceitar esta afirmação de rejeição ao trabalho do
quadrinista. Não apenas por parte do grande público, que também ignora nomes
12
como Flávio Colin e Julio Shimamoto, mas até entre pesquisadores do tema.
Autores da mesma geração como Angeli, Laerte, Luiz Gê e Lourenço Mutarelli, por
exemplo, possuem mais cartaz e são muito mais celebrados do que Marcatti.
Mesmo Fábio Luiz C. Mourilhe Silva que pesquisou o tema do grotesco nos
quadrinhos afirma que o trabalho de Marcatti “se articula tendo em vista uma prática
que caracterizou o grotesco, porém nem sempre com objetivo crítico” (SILVA, 2011,
p.08), ou ainda a apuração sobre quadrinhos underground (também chamado

<http://hqmaniacs.uol.com.br>.
10
Revista Coyote, n.16, verão de 2008.
11
<http://observatoriodaimprensa.com.br/entre-aspas/joao-gabriel-de-lima-29010>.
12
Talvez o maior desenhista brasileiro de quadrinhos de todos os tempos, morto em 2002 sem
sequer ser mencionado na grande imprensa.

33
udigrudi) da pesquisadora Aline Martins Santos que apenas cita o nome do autor
máximo do underground brasileiro sem se referir ao seu trabalho, quer seja sobre o
conteúdo, quer seja sobre a sua prática. O que seria “nem sempre com objetivo
crítico”? Seria uma insinuação de falta de engajamento, uma acusação de humor
alienado? Isso é no mínimo curioso, porque todo o trabalho de Bakhtin tenta mostrar
que é no humor tosco, repugnante e escatológico de Rabelais que reside a força de
sua obra. O que falta ao humor de Marcatti para ser crítico? Como disse Tihanov,
comentando Bakhtin:

Quanto mais profundamente o homem mergulha no abismo orgânico,


mais claramente a redentora estrela da utopia brilha sobre ele:
privado da dignidade individual, parece ser-lhe concedida em troca
uma garantia de que cada respiração e cada movimento de seus
músculos, inevitavelmente, produzirá cultura e liberdade no
acolhedor seio da comunidade (TIHANOV, 2012, p.172).

Pois bem, ninguém mergulhou tanto no “abismo orgânico” quanto Marcatti.


Suas histórias são tão originais e estão tão impregnadas destes elementos que seu
universo vai além de Bakhtin e chega a ser rabelaisiano.
As histórias em quadrinhos underground - produzidas de maneira
13
independente e não submetidas às regulamentações das grandes editoras
revelaram a arte de Gilbert Shelton, Robert Crumb, Clay Wilson, Victor Moscoso e
Bill Griffin - surgem em um período de grande ebulição cultural: os anos 60. Nesta
década se consolidam experiências políticas radicais e experimentos estéticos que
rejeitaram o sistema de valores básico e o estilo de vida da classe média norte-
americana, além de questionar a política imperialista dos Estados Unidos e a Guerra
no Vietnã. No Brasil, contracultural significava ser contra a ditadura civil-militar
(1964-1985). “Os quadrinhos underground apresentavam estilos e propostas visuais
variados, utilizando uma estética caricatural e realista, mas com aspecto sujo,

13
Em 1954 o psiquiatra Frederic Wertham publicou A Sedução dos Inocentes, que descrevia em
detalhes os efeitos nefastos das histórias em quadrinhos sobre crianças e adolescentes: estimulavam
a delinqüência juvenil, a discórdia entre irmãos, o mau hábito de não comer legumes além de
fomentar a homossexualidade e violência em geral. Na época, os quadrinhos mais populares eram as
histórias policiais, ficção científica e terror. “O aparecimento das revistas de terror obedece a uma
escala crescente do próprio gênero. Com o término da guerra, os super-heróis um tanto desgastados
com o uso e o abuso de seus poderes para vencer o „inimigo comum‟ tinham caído no desprestígio da
constante repetição” (MOYA apud GOMES, 2008, p.08). O livro de Wertham incentivou o Congresso
americano a investigar as editoras. A indústria dos quadrinhos, temendo uma regulamentação do
governo, criou o Comics Code, um código de autocensura.

34
carregado de traços e hachuras, expressando a sensibilidade do autor”
(MAGALHÃES, 2009, p.04). Após vários conflitos e protestos estudantis o
emblemático ano de 1968 terminou em 13 de dezembro com o decreto do Ato
Institucional Número 5 (AI-5):

Essa onda de contestação ficou conhecida como movimento


underground, ou contracultura, que pretendia transformar todo o
sistema e cultura vigentes. A cultura underground - não comercial,
autoral, crítica e revolucionária, à margem do sistema oficial -
alastrou-se por várias expressões artísticas, como o cinema (com
produções anti-hollywoodianas feitas por artistas de vanguarda,
como Derek Jarman e Andy Warhol), moda (colares e roupas com
estilo psicodélico), música (do folk de Boby Dylan ao rock de Jimi
Hendrix e Janis Joplin) e os quadrinhos foram um dos expoentes
desse movimento (SANTOS, 2012, p.50).

É nos anos 80, inspirado pelo conceito punk do “faça você mesmo,” que o
underground brasileiro começou a dar seus melhores frutos. Foi a década dos
quadrinhos para adultos. As revistas Piratas do Tietê e Chiclete com Banana
vendiam quase tantos exemplares quanto a Turma da Mônica de Maurício de Sousa.
Marcatti até chegou a publicar na revista Chiclete com Banana aquele que, por esse
motivo mesmo, se tornou o seu maior “hit”, “Tia Surubinha”:

O nome verdadeiro da história é “Saudosa Velhota” e narra a relação


de um cara que vive com uma senhora que cuida dele e, inclusive, o
mima ao trazer drogas. Todo dia, ela faz uma gulosa para ele, bem...
É uma história horrenda de quatro páginas que saiu na revista
Chiclete com Banana. Aí a velha morre e ele a esquarteja. Triste,
para não morrer de saudade, ele conserva a buceta dela num
aquário e se masturba diariamente vendo aquilo (MARCATTI, 2015).

Em 1980, com 18 anos e emancipado, Marcatti recebeu uma herança e usou


o dinheiro para comprar uma impressora offset de mesa. Como havia frequentado o
colegial técnico de Artes Gráficas do Senai e era um apaixonado por maquinário, ele
acabou fundando a “Pro-C”, onde fazia todos os serviços, desde escrever e
desenhar, até vender suas revistas de bar em bar, de mão em mão, em portas de
cineclubes, casas de shows, teatros e boates de São Paulo. Henrique Magalhães
cita uma frase de Edgar Franco onde este crava que Marcatti “soube canibalizar a
influência dos quadrinhos underground norte-americano e criar algo novo, com uma
escatologia crua e doentia, trazendo um humor baseado na destruição absoluta dos

35
conceitos de moral e ética que regem as relações sociais” (MAGALHÃES, 2009,
p.09).
Pensando um pouco sobre esta afirmação de Edgar Franco podemos
considerar que sim, Marcatti criou algo novo a partir de suas referências mais
importantes: Hunt Emerson, Basil Wolverton, Harvey Kurtzman e Gilbert Shelton,
principalmente, se as considerarmos referências visuais. E sim, os quadrinhos de
Marcatti trazem uma “escatologia crua” e são corrosivos de “conceitos de moral e
ética que regem as relações sociais”, mas não, não consideramos sua estética
grotesca como “doentia”; não existe uma atmosfera de horror, de terror, angústia ou
culpa em suas narrativas: o grotesco de Marcatti é alegre, engraçado e vitalista.
Mesmo as limitações ou deformações dos personagens podem se revelar virtuosas
e passíveis de prodigiosas transformações orgânicas. Neste plano, do “baixo”
material, onde todos se igualam, tudo termina bem.
Além de possuir uma grande produção autoral e independente, Marcatti já
colaborou com revistas alternativas como Mil Perigos, Mega, Casseta & Planeta,
Monga, Tralha e também trabalhou na imprensa sindical ao lado de nomes
consagrados como Henfil, Laerte, Angeli, Chico Caruso, Paulo Caruso, Jota, Márcio
Baraldi, Milton, Jaime Prates, Moa, Bira, Carlos Latuff e Maringoni.
A Pro-C (segundo o próprio Marcatti uma corruptela de “PARA VOCÊ”) lançou
ininterruptamente 38 revistas no decorrer de uma década. Além dos trabalhos
próprios, publicou também quadrinhos de Lourenço Mutarelli. Os títulos dos
quadrinhos eram grotescamente sugestivos, como Ventosa, Prega, Lodo e Mijo. Em
14
uma entrevista concedida a João Pedro Ramos, do site “Contraversão” , Marcatti é
perguntado: “De onde surgiu a inspiração para revistas com nomes como Mijo?”. E
responde:

Quando ainda tinha minha impressora offset, lançava minhas HQs


em revistas de 24 ou 28 páginas. Nessa época, buscava todas as
formas de desvincular meu trabalho da imagem de regimes editoriais.
Assim, cada vez que eu montava o volume de uma nova revista, ao
invés de tratá-lo como um novo número de uma antiga revista, optei
por lançar novos títulos. E a escolha do título era sempre pelo
sentido e pela sonoridade das palavras. Olhando para trás, percebo
que, apesar desse aparente raciocínio lógico, tinha uma coisa
inexplicável que conduzia esse conceito. Cada revista lançada,

14
Disponível em: <http://contraversao.com/catoteca-6-entrevista-com-marcatti-o-mestre-das-hqs>.

36
parece ser levemente temperada por uma linha editorial específica.
Um detalhe importante: isso se aplica apenas às revistas que
publicaram exclusivamente HQs minhas. As revistas de coletivo
tiveram seus nomes discutidos e debatidos entre os colaboradores.
Para ficar mais claro, “Refugo” (4 números), “Cupim” (1 número),
“Pântano”(1 número) são exemplos de revistas de coletivos de
autores. Já “Lôdo” (assim mesmo: com acento circunflexo), “Soslaio”,
“Mijo”, “Um dia a casa cai” foram revistas com apenas HQs minhas
(MARCATTI, 2012).

Em 2001, algo que parecia inimaginável para um autor tão “maldito”


aconteceu: os quadrinhos de Marcatti - com um personagem fixo como exigência -
foram lançados com grande tiragem pela editora Escala e Frauzio chegou às bancas
de todo o Brasil. Após seis números, Frauzio passou a ser publicado pela Pro-C.
Foram quatro edições de Desventuras de Frauzio. Em 2004, Desventuras de Frauzio
recebeu o prêmio de melhor revista independente no 16º Troféu HQ Mix. Entre as
duas fases no formato periódico, a editora Opera Graphica publicou o álbum
Frauzio: Questão de Paternidade (2002). Na mesma entrevista da revista
londrinense (Coyote), Assunção pergunta a respeito do conteúdo das histórias e da
temática repulsiva carregada de tabus. Marcatti afirma:

Se você pegar todas as minhas histórias, na ordem cronológica, vai


perceber que houve uma quebra muito grande de temática, num
determinado momento. De 1976 até mais ou menos 1986 todas as
minhas histórias eram sempre pessimistas, tinham um tom derrotista.
Inclusive não gosto daquela fase. Em 86 houve uma mudança
completa do desenho e das historias. O humor veio de vez. Foi um
momento muito importante. [...] Liberô Geral é uma putaria brava.
Todas as histórias a seguir vieram assim, sem preocupação de falar
nada. Só uma tiração de sarro. Uma coisa meio irresponsável, uma
puta diversão. O humor foi crescendo e partindo mais para uma coisa
do relacionamento (MARCATTI, 2008).

Boa parte das histórias de Marcatti trata de relações afetivas ou amorosas


que se equilibram e se resolvem por meio de situações grotescas. Elas irrompem em
narrativas que, de outra maneira (se fossem apenas contos), seriam açucaradas
love story. Marcatti recorre a uma espécie de contraponto entre texto e imagem:
onde o texto carrega nos clichês dos “apaixonados”, na babugem melíflua, o
15
desenho mostra algo chocante ou sórdido em flagrante contraste . Ademir

15
Este procedimento ficará demonstrado quando analisarmos a página 70 (figura 34) da novela
gráfica Mariposa.

37
16
Assunção pergunta: “Mas seu trabalho pára na escatologia? . Quando você
trabalha com a escatologia, de alguma forma está querendo nos lembrar da nossa
condição animal?”. Marcatti responde:

Quadrinistas que estão começando, que têm influência do meu


trabalho, eles pensam pela escatologia. Começam a fazer uma
história, falam de coisas nojentas. Não é a forma que eu penso. Uso
a escatologia como uma explicação da história principal, como uma
parábola para falar de certas situações. [...] Antes de 86, daquela
fase em que houve uma ruptura no meu trabalho, eu nutria um ódio
imenso pela raça humana 17. Como se a melhor coisa que pudesse
acontecer com o planeta fosse a extinção da raça humana. [...] Hoje
tenho adoração a tudo o que é humano. Principalmente as cagadas.
[...] O homem equilibrado, na visão da sociedade, é aquele que vai
escondendo seus instintos. Tenta-se a todo custo criar uma
identidade como ser racional. O que é uma grande besteira. Se a
gente visse como as coisas funcionam por dentro, entenderíamos
que somos animais como o gato, o cachorro. A gente é um bicho que
pensa. E esse pensar é que é divertido. Esse dilema de estabelecer
regras e metas é que cria toda essa coisa doente. O cara que acha
que conseguiu alguma coisa, provavelmente aniquilou todas as
vontades, todos os desejos e todos os instintos. É um cara bem
problemático (MARCATTI, 2008).

Bastante estimulante essa resposta, já que muitos aspectos do gênero


grotesco (referências às partes baixas, híbridos entre homem e animal, monstros,
etc) são uma derivação do tema da animalidade presente na reflexão filosófica
desde a Antiguidade. Como exemplo, a reflexão de Nietzsche que “erige como
verdadeiro sujeito da estética (e de toda a filosofia) o animal da boa consciência”.
Não mais a alma idealista, apoiada em bons sentimentos, mas o indivíduo em sua
realidade visceral (SODRÉ; PAIVA, 2014, p.45-47). Caio Luiz, arrematando o tema
da escatologia, pergunta: “Considera que a escatologia une as pessoas por ser algo
universal e comum a todos os seres humanos?”. A essa indagação, Marcatti
responde:

16
Doutrina que trata em tom profético ou apocalíptico do destino final do homem e do mundo (do
grego éskhatos: extremo, último); também significa tratado sobre os excrementos (do grego skatós:
excremento).
17
Um Marcatti mais pessimista e exaltado pode ser visto na reportagem “Documento Especial - A
criatividade e a ousadia dos quadrinhos brasileiros” da extinta TV Manchete disponível no Youtube:
<https://www.youtube.com/watch?v=dpIUqq8G4zc>.

38
Sinceramente, nunca consegui responder direito essa pergunta
porque não sei de onde vem a enxurrada de escatologia. Costumo
dizer que meu estômago está ligado ao cérebro. Quando estou
criando uma história é uma novelinha mesmo, mas o grotesco vem
com enorme fluência. Já disseram que meus quadrinhos são infantis
porque lido com eles como uma criança que cutuca a fralda e põe na
boca (MARCATTI, 2015).

Curiosamente essa imagem do estômago ligado ao cérebro aparece no


18
trecho de Rabelais que reproduzimos anteriormente : “pelo calor temperado de
ganso, que facilmente se comunica aos intestinos e atinge, depois, a região do
coração e do cérebro”. O grotesco e a escatologia são o corpo por inteiro, a
nenhuma parte se renuncia e nada se perde.
Em 2005, Marcatti publicou sua primeira Graphic Novel, Mariposa, pela
Editora Conrad. Segundo o autor, esta é sua história preferida. Também pela
Conrad, algum tempo depois, fez a adaptação para os quadrinhos do romance A
Relíquia, de Eça de Queiroz. Um trabalho impressionante em termos de desenho e
que foge do cenário urbano da maior parte das histórias de Marcatti. Entre os anos
de 2008 e 2013 ele trabalhou como colaborador da versão nacional da revista Mad.
Deste período existe a coletânea de histórias Crônicas Supuradas. No ano de 2015
lançou Cavacos a partir de financiamento coletivo. Desde o início de 2016 edita a
revista bimestral Lascas de Quirica que já possui 4 números e publica, além de
histórias do próprio Marcatti, HQ‟s de autores convidados. Em 2012 recebeu o troféu
HQMix de “Grande Mestre dos Quadrinhos Brasileiros”.
Apresentamos abaixo um quadro com as obras de Marcatti:

OBRAS DE MARCATTI
Glaucomix - Mattoso e Marcatti 1990
Creme de milho com bacon - Marcatti 1991/2013
Restolhada (Opera Graphica) 2000
Mariposa (Conrad Editora) 2005
A relíquia (Conrad Editora) 2007
A risada de Arnaldo - André Pijamar e Marcatti 2012
Coprólitos - coletânea com histórias de 1986 a 1992 - Marcatti 2013

18
Ver citação completa na página 28 deste trabalho.

39
Lauro, a larva: Aqui me tens de regresso - André Pijamar e Marcatti 2014
Crônicas supuradas - coletânea com as histórias publicadas na 2014
revista Mad de 2008 a 2013 - Marcatti
Visões de Claudeciro - Marcatti 2014
Dedos mágicos - Marcatti e Laudo 2015
Cavacos - Marcatti 2015

Além dessas publicações, Marcatti produziu várias histórias com seu principal
personagem, Frauzio. São elas: Arte viva; Doce sabores da infância; Simbiose /
Pesadelos em pencas; Prato principal / Sobremesa; O balsamo da paixão; Vai à
praia; Questão de paternidade; Morve Blanc; Sementes de Goiabeira; Carnegão;
Escravos do amor; Ares de primavera; e Perpétua Serenata.

40
4. HISTÓRIAS EM QUADRINHOS DE MARCATTI: UMA ANÁLISE

A partir das reflexões apresentadas anteriormente, passaremos à análise de


algumas histórias em quadrinhos de Marcatti, com o objetivo de identificar a
presença de uma “estética do grotesco” em suas narrativas. São elas Simbiose,
Morve Blanc e Escravos do Amor, que têm como protagonista o personagem
Frauzio, além de Creme de Milho com Bacon e Mariposa.

4.1 Simbiose

Esta história de 20 páginas foi publicada em 2001 pela Editora Escala; é o


número 03 da revista Frauzio. Em um dia qualquer, enquanto se “ocupava do ócio,”
Frauzio (Figura 4) se lembra de um violão que ganhou de seu tio Ernesto. Quando o
encontra embaixo da cama percebe que o violão havia sido devorado por cupins.
Com objetivo “vingancista”, Frauzio persegue o rastro dos bichos em demanda do
cupinzeiro. Enquanto ele os persegue, os cupins que estão dentro do túnel - um
túnel de cupins é feito com fezes e terra cimentados com saliva - fogem e
conversam entre si. Quando Frauzio chega ao fim do rastro dos cupins ele percebe
que este acaba na barba gigantesca de um sujeito com olhar vidrado que está
jogado no terreno baldio atrás de sua casa. Deste sujeito emana uma fedentina
horrorosa, mas é justamente pelo cheiro que Frauzio reconhece que aquele farrapo
é, surpreendentemente, seu tio Ernesto, o querido tio Ernesto que alguns anos antes
o havia levado para uma pescaria pelo Rio Negro, na Amazônia.

FIGURA 4

Personagens da história, na sequência: Frauzio, Tio Ernesto, Aruanã e Cupinzão

41
Determinado a cuidar de seu parente, Frauzio usa inseticida para acabar com
os cupins (Figura 5). Quando os cupins voam em alvoroço “como em noite de
verão”, da boca espasmódica de seu tio emerge um aruanã - peixe carnívoro
conhecido por saltar fora da água na captura de insetos - que devora um punhado
deles (Figura 6). Completando o movimento, o enorme peixe volta novamente para
as tripas através do cu de tio Ernesto. Frauzio assinala ironicamente que o peixe
“retorna a seu abrigo através da passagem que, normalmente, é a porta dos fundos”.
Tio Ernesto foi convertido em lugar, em geografia, em ecossistema, um
conjunto formado por seres vivos, o meio ambiente e suas inter-relações. Frauzio
não se perturba com este fato tão inusitado e impossível: existe uma total suspensão
da “racionalidade”, como nas narrativas míticas o corpo humano dá origem a um
cosmos.
Um peixe habita os intestinos cheios de água de tio Ernesto e se alimenta de
cupins que vivem em sua barba. O aruanã percorre todo o sistema digestivo de
Ernesto: da boca para o cu e do cu para a boca. Um movimento circular que
simboliza um todo perfeitamente ajustado, um pequeno mundo “simbioticamente”
organizado onde a vida se abriga. É assim também quando Bakhtin comenta o
bloqueio estomacal de Pantagruel em que, armados com pás e cestas, alguns
homens, protegidos em esferas de cobre, mergulham dentro do gigante e começam
a desobstruir seu estômago: “aproximaram-se da matéria fecal e dos humores
corrompidos. Finalmente encontraram um montão de porcaria, que os sapadores
atacaram para derrubá-lo, e os outros, com suas panelas encheram os cestos, e
quando tudo ficou limpo, cada um se retirou para sua esfera” (RABELAIS, 2003,
p.381). O estômago de Pantagruel é descrito em uma escala grandiosa, “meia légua
de um abismo horrível” onde todos os elementos estão organizados e são
experimentados:

[...] as pessoas assimilavam e sentiam em si mesmas o cosmo


material, com seus elementos naturais, nos atos e funções
eminentemente materiais do corpo: alimentação, excrementos, atos
sexuais; aí é que encontravam em si mesmos e tateavam, por assim
dizer, saindo de seu corpo, a terra, o mar, o ar, o fogo e, de maneira
geral, toda matéria do mundo em todas as suas manifestações
(BAKHTIN, 2013, p.294).

42
FIGURA 5

Fonte: Página 06 da revista em quadrinhos Frauzio (número 03, 2001) - Editora Escala

43
FIGURA 6

Fonte: Página 07 da revista em quadrinhos Frauzio (número 03, 2001) - Editora Escala

44
Voltando à narrativa, Frauzio persiste na tentativa de restituir tio Ernesto ao
convívio familiar e libertá-lo do ágil aruanã (Figura 7): “Com grande esforço,
arranquei o indivíduo de dentro do tio Ernesto pela mesma porta em que ele entrou.
Pude sentir o resvalar encaroçado de suas escamas esfolando as paredes
intestinais do meu ente querido!” Então, com o aruanã aprisionado em um aquário, é
a hora de matar os cupins e raspar toda a barba que servia de cupinzeiro para a
colônia. Mas, depois de dedicar dias à recuperação de Ernesto, Frauzio nota que
“uma tristeza profunda” debilitava seu tio. Subitamente, um cupim gigante, maior que
o próprio Ernesto, aparece em sua casa e isso também não perturba Frauzio: afinal
nenhum problema com um cupim falante gigante que mora na barba de seu tio, um
lugar onde obviamente não cabe. Bakhtin comenta assim a loucura e o absurdo:

O motivo da loucura, por exemplo, é característico de qualquer


grotesco, uma vez que permite observar o mundo com um olhar
diferente, não perturbado pelo ponto de vista “normal”, ou seja, pelas
ideias e juízos comuns. Mas, no grotesco popular, a loucura é uma
alegre paródia do espírito oficial, da gravidade unilateral, da verdade
oficial. É uma loucura festiva (BAKHTIN, 2013, p.35).

Com sua chegada o cupim revela saber a causa dos problemas de Ernesto:
quando Frauzio extraiu o aruanã de dentro de seu tio e deu cabo de quase todos os
cupins, ele quebrou o círculo virtuoso da simbiose - tio Ernesto, os cupins e o aruanã
viviam em uma relação mutuamente vantajosa - e foi isso que afetou seu tio. Frauzio
retruca que Ernesto não ganhava nada com esta relação, que ele foi prejudicado
porque os cupins devoraram seu cérebro. O cupim gigante calmamente explica que
cupins não são carnívoros e que pagavam sua hospedagem na barba de Ernesto
“engordando o aruanã”. Frauzio conclui então que quem devorou os miolos de seu
tio foi o aruanã, mas que só o fez porque este também carece de um cérebro.
Frauzio então questiona Ernesto sobre a pescaria e pergunta se o tio jogou fora o
cérebro do bicho “junto com a buchada toda?” Ernesto resmunga uma explicação
dizendo que “engoliu o aruanã inteiro”.

45
FIGURA 7

Fonte: Página 14 da revista em quadrinhos Frauzio (número 03, 2001) - Editora Escala

46
O que acontece em seguida é a suma do absurdo e da ausência de razão, do
maravilhoso e do arcaico e, obviamente, do grotesco: Frauzio se lembra que Ernesto
não engoliu o aruanã inteiro porque ele, Frauzio, comeu o cérebro do peixe e que o
cérebro, mesmo anos depois de ter sido “devorado”, ainda estava preso no buraco
do seu dente. Frauzio então arranca seu molar para restituir os miolos ao aruanã
(Figura 8). O peixe engole os miolos e recupera sua “razão” e se transforma ele
também, além do cupim gigante, em um animal falante. Frauzio arremata tudo com o
seguinte comentário: “Foi o momento mais tocante da minha vida! O aruanã
retomando a sua sabedoria, reabsorvendo seus conhecimentos. Sua inteligência foi
enriquecida ainda mais pelo meu canal!”.
Em Marcatti, o grotesco assume dimensões míticas e tudo está em constante
mudança, passado e futuro não são categorias rígidas; tudo está carregado de
fluidez. “O grotesco é o cômico no seu aspecto maravilhoso, é o cômico mitológico”
(BAKHTIN, 2013, p.39).
A história termina com Ernesto sendo alimentado com “saborosas sopas de
miolos de galinha” e com o aruanã e a colônia de cupins, incluindo o cupinzão,
convivendo pacificamente com Frauzio - tio Ernesto e seus simbiontes apareceram
novamente em outra história de Frauzio, Ares de Primavera, como integrantes da
família - que arremata: “São inestimáveis o prazer e o sabor em reestabelecer (sic) o
curso natural da vida! Uma agora verdadeira simbiose teve lugar na minha sala! Um
maravilhoso microssistema (sic) fluía diante dos meus olhos. Melhor que isso é
testemunhar a alegria com que eles compartilham seus próprios recursos”
(Figura 9).

47
FIGURA 8

Fonte: Página 14 da revista em quadrinhos Frauzio (número 03, 2001) - Editora Escala

48
FIGURA 9

Fonte: Página 20 da revista em quadrinhos Frauzio (número 03, 2001) - Editora Escala

49
4.2 Morve Blanc

É a revista número 01 de Desventuras de Frauzio. A história possui 30


páginas e foi publicada de forma independente pela Pro-C, editora do próprio
Marcatti. Frauzio está bancando o braço direito do ricaço Clemer, o barão do Morve
Blanc, um tipo de queijo muito apreciado pelas altas esferas da sociedade: “Ah, os
exóticos sabores e prazeres da burguesia!”. No entanto, algo está errado na cadeia
primária da produção do Morve Blanc e Clemer (Figura 10), que detém o monopólio
de distribuição para o mundo todo, sem novos lotes do tal queijo, está se afundando
na falência. Como secretário de Clemer, Frauzio executa o seu trabalho de espião e
bisbilhoteiro com competência. Pelos corredores da mansão do milionário, Frauzio
espreita cada passo de Rivércia, a voluptuosa filha de Clemer. Mas quem lhe dá
atenção é a esposa deste, Nilce, que usa Frauzio como seu brinquedo sexual, com
pleno consentimento de Clemer.

FIGURA 10

Personagens da história, na sequência: Clemer, Jovinalva, Salésio e Rivércia

Entra em cena Jovinalva e o narrador nos adverte: “O amanhecer desperta os


sons e os movimentos que abraçam o cotidiano de pequenas almas.” Descobrimos
que Jovinalva é a única e primária fornecedora do Morve Blanc e que está irritada
porque “o pior de tudo é ser pobre depois de ter desfrutado uma vida milionária”.
Clemer está preocupado com a falta do seu queijo e começa a pressionar Jovinalva.
Aparece Salésio, filho de Jovinalva, um gigante que vive sentado em estado
vegetativo e que, quando “ordenhado,” ejacula Morve Blanc (Figuras 11 e 12).
Salésio, o gigante, é a fonte de onde jorra um dos queijos mais apreciados do

50
mundo. Aqui, de novo, temos o tema do exagero, do corpo tornado cósmico, do
corpo como fonte e origem de coisas que beneficiam toda a humanidade.

FIGURA 11

Fonte: Página 15 da revista em quadrinhos Desventuras de Frauzio (número 01, 2003) - Editora Pro-c

51
FIGURA 12

Fonte: Página 14 da revista em quadrinhos Desventuras de Frauzio (número 01, 2003) - Editora Pro-c

52
Como em muitas mitologias, a topografia do mundo surge do corpo
despedaçado de gigantes; de Salésio e seu “corpo grotesco” jorra queijo. Vejamos
os comentários de Bakhtin que se associam a esta questão:

O Rivegda, primeiro dos quatro livros sagrados hindus, descreve o


nascimento do Mundo, saído do corpo de um humano: Purusha; os
deuses o imolaram e despedaçaram o seu corpo, cujas diferentes
partes criaram os diversos grupos da sociedade e elementos
cósmicos: da sua boca saíram os brâmanes; de seus braços, os
guerreiros; de seus olhos, o Sol; da sua cabeça, o céu; das pernas, a
Terra. Na mitologia alemã cristianizada, encontramos uma
concepção similar: o corpo é formado das diferentes partes do
Mundo: o corpo de Adão que compreende oito partes: a carne,
formada a partir da terra; os ossos, da pedra; o sangue, do mar; os
cabelos, dos vegetais; os pensamentos, das nuvens (BAKHTIN,
2013, p.308).

O gigante Salésio é uma criatura cósmica em estado de graça, inconsciente


do bem que faz, inconsciente de que seus testículos são um manancial de alimento.
Bem, em certa medida, todo corpo é fonte de alimento: toda matéria é apenas
“emprestada” e deve ser restituída incessantemente. Todavia, no caso de Salésio,
não se trata de metáfora. Assim como o gigante Pantagruel de Rabelais que
“engendrou mais de cinquenta e três mil homenzinhos” com um único peido, Salésio,
o gigante de Marcatti, prodigiosamente e de forma ininterrupta, jorra “baldes e mais
baldes diários” de queijo cremoso.
O problema é que Salésio parou de produzir, a fonte secou. Apesar do drama
empresarial vivido por Clemer e Jovinalva, Frauzio só se interessa pela filha do
milionário e suas misteriosas escapadas noturnas. Determinado a descobrir para
onde Rivércia vai todas as noites, Frauzio a segue até uma casa de subúrbio. A
cena presenciada por Frauzio causa indignação. Rivércia tem um caso com o
gigante Salésio. Por que uma mulher como Rivércia teria se envolvido com um
“trôlho” gigante como ele? Mas o que vai chocá-lo de verdade é descobrir pelo
cheiro (sempre o infalível nariz de Frauzio “aberto ao mundo” a desvendar os
mistérios) que o jorro de “triunfo” do gigante é o prestigiado queijo Morve Blanc.
Frauzio então descobre a causa da escassez de Morve Blanc que assola o mercado:
Rivércia estava comendo todo o queijo direto da fonte (Figuras 13 e 14).

53
FIGURA 13

Fonte: Página 19 da revista em quadrinhos Desventuras de Frauzio (número 01, 2003) - Editora Pro-c

54
FIGURA 14

Fonte: Página 20 da revista em quadrinhos Desventuras de Frauzio (número 01, 2003) - Editora Pro-c

55
Para se vingar de Rivércia, Frauzio dedura a filha para Clemer. Quando
Clemer encontra Rivércia se “fartando de sua miséria”, Jovinalva ataca indignada e
espreme de dentro de Rivécia (Figura 15) todo Morve Blanc engolido pela garota -
em momento algum Clemer e Frauzio acham inusitado o fato de Salésio ejacular
queijo. Na dimensão destas narrativas escatológicas, nada é desviante ou
surpreendente demais, todos os personagens estão engajados para legitimar o
absurdo e o grotesco - mas o queijo não é mais o mesmo: fermentado pelas
entranhas de Rivércia, ele apresenta agora uma coloração “rósea ligeiramente
espumante” e um sabor que nem mesmo Clemer, um grande conhecedor de queijos
e apreciador da alta gastronomia, consegue explicar (figura 16).
Clemer, com seu tino empresarial, sabe que aquilo que saiu dos intestinos, da
parte mais baixa de sua filha, é ouro puro. Frauzio termina desolado. Ele acreditava
que dedurar Rivércia o faria cair nas graças do empresário e a colocaria a “seus
pés”, mas, na verdade, abriu caminho para que a filha de Clemer continuasse
cultivando a sua paixão por Salésio. Satisfeitos, Clemer e Jovinalva agora
“dominavam” cada um uma parte do processo de um novo queijo, o Morve Rosé:
Salésio ejacula Morve Blanc que é engolido por Rivércia e defecado na forma do
superior Morve Rosé. A matéria sai do gigante para ser transformada em algo
diferente quando passa pelas tripas de Rivércia.
O corpo grotesco “absorve e dá à luz, toma e restitui. O corpo, formado pelas
profundidades fecundas e excrescências reprodutoras, jamais se delimita
rigorosamente do mundo: ele se transforma neste último, mistura-se e confunde-se
com ele” (BAKHTIN, 2013, p.297). O corpo agigantado e aberto ao mundo, pelo
processo transformador de suas entranhas, devolve algo diferente, superior. As
coisas são rebaixadas para serem melhoradas e novamente se renovarem:
“Imagens da urina e dos excrementos, por exemplo, conservam uma relação
substancial com o nascimento, a fecundidade (ligação com a fertilidade do solo, da
terra), a renovação e o bem-estar” (FIORE, 2011, p.41).
Clemer não mais precisava dos serviços de Frauzio e o demite por ser “dedo-
duro” e “contrata mão-de-obra escrava” para seu novo negócio de produtor e
distribuidor de Morve Rosé. Mas acaba sendo um final feliz para todos, inclusive
para Frauzio: “No fim, até que não me saí tão mal... enquanto aqueles dois

56
enriqueciam colhendo a safra da filial, consolidei minha carreira profissional
fertilizando a matriz” (Figura 17).

FIGURA 15

Fonte: Página 26 da revista em quadrinhos Desventuras de Frauzio (número 01, 2003) - Editora Pro-c

57
FIGURA 16

Fonte: Página 27 da revista em quadrinhos Desventuras de Frauzio (número 01, 2003) - Editora Pro-c

58
FIGURA 17

Fonte: Página 30 da revista em quadrinhos Desventuras de Frauzio (número 01, 2003) - Editora Pro-c

59
4.3 Escravos do amor

É a revista número 04 de Desventuras de Frauzio. A história possui 20


páginas e foi publicada de forma independente pela Pro-c. Frauzio está acometido
por uma grave constipação intestinal e enclausura-se em seu quarto. Sua vó
(apenas vó) (Figura 18) está lhe fazendo companhia e faz o que pode para acabar
com as dores de seu neto. Após seis dias e várias tentativas de fazê-lo cagar, a vó
decide ferver um chá com a erva daninha que cresce no quintal da decrépita casa
vizinha. A velha casa abandonada que, segundo a vó de Frauzio, pertencia a um
sujeito chamado Armindo que passou por uma crise familiar e tomou um “pé na
bunda” da esposa.

FIGURA 18

Personagens da história, na sequência: Vó do Frauzio, Filha do Armindo, Olho do Cu do Frauzio

Após tomar a beberagem da bruxa, Frauzio começa e inchar, pois a bebida


multiplica a merda acumulada. Mais uma vez sua vó acorre para ajudá-lo e com uma
colher de arroz e braço enérgico desatola a merda do cu de Frauzio; o resultado é
uma explosão de “dezenas de kilos (sic)” de merda (Figura 19). Quando se livra
daquele amontoado de fezes, Frauzio percebe que algo não está em seu lugar.
Como reflete a progenitora, ele “num devia ter feito tanta força”, pois um imponente
prolapso retal aponta de sua bunda. Os metros expostos do ânus de Frauzio
parecem ter adquirido vida própria e o intestino de nosso desventurado herói agora
podem fitá-lo com o “olho do cu” (Figura 20).

60
FIGURA 19

Fonte: Página 11 da revista em quadrinhos Desventuras de Frauzio (número 04, 2004) - Editora Pro-c

61
FIGURA 20

Fonte: Página 12 da revista em quadrinhos Desventuras de Frauzio (número 04, 2004) - Editora Pro-c

62
É significativo descobrir que Bakhtin comenta uma cena bastante parecida na
obra de Rabelais por ocasião do parto de Gargamelle, mãe de Gargântua:

Pouco tempo depois, ela começou a suspirar, a se lamentar e a


gritar. De súbito, apareceram parteiras de todos os lados. E,
apalpando por baixo, encontraram aparas de pele, de muito mau
cheiro, e pensaram fosse o filho; mas eram os fundos que se lhe
escapavam, devido ao amolecimento do intestino grosso, por ter
comido muita tripa, como dissemos acima 19 (RABELAIS, 2003,
p.45).

Além de lhe saltar o “olho do cu”, Frauzio percebe que seu intestino ganhou
vida própria e possui uma força descomunal a ponto de arrastá-lo direto para a casa
abandonada onde seu cu encontra outro cu pelo qual se apaixona (Figura 21). Este
intestino estranho se projeta para fora das entranhas de uma mulher esfarrapada
que se apresenta como sendo a filha de Armindo.
Ela revela para Frauzio que seu cu ganhou vida própria e passou a tiranizá-la
exatamente como seu pai fazia depois que ela bebeu a água do copo onde repousa
a dentadura do finado Armindo: “Às vezes, quando meu rabo estava dormindo, eu
tentava me desfazer da „poção‟ maldita de papai... jogava pela janela no mato atrás
de casa. Mas, meu cu acabava descobrindo e eu me punha três ou quatro dias
trancada novamente no armário”. Frauzio entendeu que o chá que ele bebeu foi o
culpado por seu intestino ter se tornado seu “feitor”, pois o mato misterioso que sua
vó usou era regado com a “gosma” da dentadura do Armindo. Saliente, aceitando
sua condição de “escravo do amor” de seu cu, Frauzio tenta se aproveitar da
situação e seduzir a filha de Armindo, mas a amargurada mendiga se recusa a
dialogar. Frauzio, nervoso e decidido, ataca os entrelaçados intestinos, mas é
repelido com a assustadora ameaça de seu eloquente cu: “Nem pense nisso,
babaca! Se encostar um dedo em um de nós, vai comer merda até o fim dos seus
dias!” Neste exato momento, vovó Frauzio entra em cena para defender seu netinho.
Quando bebe a gosma da dentadura - que não lhe causa o mesmo efeito nefasto
porque ela possui intestinos “podres e atrofiados” - sua força é triplicada e a velha,

19
Em Bakhtin, na página 196, existe a transcrição do parto de Gargamelle e o texto diz :”tripa do cu”
ao invés de “intestino grosso”. Nesta variante da tradução da Ediouro a expressão usada é “olho-do-
cu”: “Pouco tempo depois, ela começou a suspirar, a gemer e a gritar. Numerosas parteiras chegaram
de todos os lados e, apalpando-a por baixo, encontraram uns pedaços de pele de muito mau gosto.
Pensaram que fosse a criança, mas era o reto que lhe escapara, por se ter afrouxado o ânus, que vós
chamais de olho-do-cu. Como narramos acima ela tinha comido tripas” (RABELAIS, 1985, p.43).

63
com golpes de facão, massacra em “delgadas fatias mortas” os apaixonados
prolapsos (Figura 22).

FIGURA 21

Fonte: Página 15 da revista em quadrinhos Desventuras de Frauzio (número 04, 2004) - Editora Pro-c

64
FIGURA 22

Fonte: Página 21 da revista em quadrinhos Desventuras de Frauzio (número 04, 2004) - Editora Pro-c

65
No dia seguinte tudo retorna à normalidade e os personagens desta grotesca
aventura estão satisfeitos e reunidos para um festim canibal onde comerão uma
deliciosa dobradinha preparada com suas próprias tripas. O banquete antropofágico
é, antes de tudo, um ato simbólico, por meio do qual se assimila o outro e apropria-
se de sua matéria e qualidades; é festejar o triunfo sobre o inimigo derrotado por
meio de sua deglutição (Figura 23).
Em Bakhtin todo o episódio do parto de Gargamelle enseja uma reflexão
sobre as tripas; as tripas que por ela foram comidas no jantar que precedeu o
trabalho de parto e as tripas que lhe saltaram pelo “olho do cu” no momento em que
forcejava Gargântua. O coito, a concepção, o parto e a absorção de alimentos estão
sempre em “comunhão com a terra”. As tripas, os intestinos, o cu, estes fardos
orgânicos de toda a vida complexa que respira, come e caga, são metáforas para
aquilo que é baixo, rasteiro, orgânico. Ser dominado e estar à mercê de um
monstruoso e consciente cu, orifício infernal sobre todos, é a degradação máxima.
Curiosamente, as fezes, o esterco e os dejetos são também signos de vida, pois
fecundam a terra gerando abundância e crescimento. Afirma Bakhtin:

Precipita-se não apenas para o baixo, para o nada, a destruição


absoluta, mas também para o baixo produtivo, no qual se realizam a
concepção e o renascimento, e onde tudo cresce profusamente. O
realismo grotesco não conhece outro baixo; o baixo é a terra que dá
vida, e o seio corporal; o baixo é sempre o começo (BAKHTIN, 2013,
p.19).

Todas as imagens da história de Frauzio desenvolvem o tema de forma


semelhante. Em certa medida nossa fisiologia nos domina, exatamente como alguns
metros de intestino temperamental podem fazer. E como age o intestino assim que
assume o controle e ganha autonomia? Cumpre a segunda regra de ouro - a
primeira é a autopreservação - de tudo que está vivo: busca o amor, o sexo, a
reprodução. O cu, assumindo a todo controle do organismo, também age premido,
coagido por condicionamentos animais. Por certo não vai discutir metafísica
platônica e trata logo de se enroscar com sua cara metade. É verdade que o enlace
durou pouco e não deu frutos, mas também nada se perdeu: os dois intestinos foram
incorporados novamente ao organismo, agora não mais invólucro, e sim recheio.

66
FIGURA 23

Fonte: Página 22 da revista em quadrinhos Desventuras de Frauzio (número 04, 2004) - Editora Pro-c

67
Bakhtin argumenta que esta é a comunhão da festa, do banquete, do animal e
do homem, daquele que é comido e daquele que come: tripas e fezes, sexo e parto,
fezes e fertilidade:

Por outro lado, as tripas devoradas-devoradoras são associadas às


entranhas da parturiente. Isso dá uma imagem autenticamente
grotesca de vida corporal única supra-individual: as grandes
entranhas devoradoras-devoradas-parindo-paridas (BAKHTIN, 2013,
p.196-197).

68
4.4 Creme de milho com bacon

“Qual é a razão da existência do ser humano? Qual será o sentimento que


alimenta e dá sentido à vida de algumas pessoas? Para cada um, uma história. Para
cada um, uma razão”. Essa história é uma pequena fábula sobre a amizade e foi
publicada pela primeira vez em 1991 com capa colorida e 22 páginas em preto e
branco. Podemos perceber uma diferença sutil no traço de Marcatti entre esta
história e as demais analisadas aqui: todas publicadas depois do ano 2000. Os
personagens parecem mais atarracados e volumosos; parece que há menos
“espaço” dentro dos quadros. Clércio (Figura 24), aos quinze anos, sofreu com a
morte da mãe e com o abandono do pai, que fugiu da cidade com a “bisneta do
guarda-livros”. Clércio agora vive sozinho em uma chácara encravada na periferia da
cidade. Solitário e desamparado, após tentar “acabar com sua vida”, ele se muda
para o chiqueiro e passa a viver com Bernice, uma porca um ano mais velha que
ele. Aos poucos, submetido a uma dieta de lavagem de creme de milho com bacon,
Clércio começa a engordar. Com o tempo suas pernas se atrofiam e ele já não pode
sair do chiqueiro. Afora Bernice, com quem mantém uma relação amorosa, Clércio
ganha a confiança das moscas que rodeiam as fezes espalhadas pelo local.

FIGURA 24

Personagens da história, na sequência: Armindo, Clércio e Bernice

São excelentes parceiras as moscas; além de lhe fazerem companhia, elas


também lêem contos eróticos que o estimulam. Clércio é glutão e adepto de duas

69
práticas sexuais muito específicas: bestialismo, com Bernice a porca, e formicofilia,
com as moscas: “mais rápido com as asas, assim dá mais tesão!”.
Aqui temos a imagem do princípio “gordo”, o banquete como triunfo da vida
sobre a morte, quando Bakhtin comenta a figura do monge comilão na literatura
medieval, figura esta que estaria ligada ao “beber, comer, virilidade, alegria”
(BAKHTIN, 2013, p.247). Nesta história, como em todo o universo de Marcatti, os
animais são antropomorfos. Bernice não fala por ser caladona mesmo. Clércio vai
seguindo nessa rotina até que Armindo, um velho amigo do ginásio reaparece
trazendo um pouco mais de alegria para sua vida. Todas as quintas-feiras, Armindo
visitava o amigo, levando consigo uma “loiruda” - provavelmente uma prostituta - e
seu prato favorito, o creme de milho com bacon que dá título à história. Clércio
devora 12 quilos de lavagem de creme de milho de uma vez, um verdadeiro
“banquete pantagruélico”. Armindo, como bom amigo, além de fornecer o bródio
ainda alimenta o amigo na boca e lambuza sua “rôla” para que Bernice receba sua
parte (Figura 25) incrementada pela farta ejaculação de Clércio. Toda esta narrativa,
com uma atmosfera estranha, gira em torno da realização de necessidades
primárias da vida cotidiana: alimentação e sexo. Descreve Bakhtin:

O comer e o beber são uma das manifestações mais importantes da


vida do corpo grotesco. As características especiais desse corpo são
que ele é aberto, inacabado, em interação com o mundo. É no comer
que essas particularidades se manifestam da maneira mais tangível
e mais concreta: o corpo escapa às suas fronteiras, ele engole,
devora, despedaça o mundo, fá-lo entrar dentro de si, enriquece-se e
cresce às suas custas. O encontro do homem com o mundo que se
opera na grande boca aberta que mói, corta e mastiga é um dos
assuntos mais antigos e mais marcantes do pensamento humano. O
homem degusta o mundo, o introduz no seu corpo, faz dele uma
parte de si (BAKHTIN, 2013, p.245).

Clércio é um homem pançudo, todo excesso, manias e extravagância. Seu


corpo grotesco é triunfal. Clércio trocou o suicídio pela obesidade: os constantes
banquetes de creme de milho que o cevam são uma celebração da vida. O banquete
também simboliza a morte do antigo, do ultrapassado e a vitória do novo, da
renovação. Daí a alimentação estar relacionada a festejos de nascimento. Como é o
caso do já mencionado parto de Gargântua onde “o bom Grandgousier deleitou-se

70
com aquilo e providenciou para que tudo fosse servido com abundância”
(RABELAIS, 2003, p.36).

FIGURA 25

Fonte: Página 09 da revista em quadrinhos Creme de Milho com Bacon (2013) - Edição do autor

71
Mas a tranquilidade das tardes de quinta está para acabar. Motivada pela
desconfiança da mãe, Izilda, a mulher de Armindo o segue para descobrir onde o
marido tem ido todas as quintas. Ao chegar à chácara, Izilda metralha Armindo com
uma avalanche de insinuações: “- Seu canalha! Vai me explicar direitinho o que você
vem fazer aqui toda semana? - Nada não, Izildinha, venho ajudar meu amigo do
colégio, é o Clércio! Lembra dele? - Vá à merda! Ou tem mulher escondida ou você
é viado! - Não, benzinho, o Clércio precisa muito de mim. Sou o único amigo que ele
tem no mundo!”.
Mesmo com o esforço de Armindo para contar a verdade, de dizer que ele
apenas está amparando Clércio e cultivando a amizade, uma discussão matrimonial
tem início. Nesse momento, a filha de Armindo e Izilda, a maliciosa Ritinha, movida
por sua curiosidade infantil, vai até o chiqueiro. Ao ver a massa insólita que Clércio
é, Ritinha despeja uma porção de ofensas ao amigo de seu pai: “Ai, caralho! Esse
monte de bosta embrulhada em pelanca é o amigo do meu pai?!” Clércio, ao ver a
boca suja de Ritinha, fica excitado e, incentivado pelas moscas, tenta levantar. Mas
suas pernas são fracas, estão atrofiadas, e não aguentam o corpanzil flácido de
Clércio que cai estrondosamente no chão. Quando cai, Clércio está vulnerável. As
moscas nada podem fazer e Armindo ainda está discutindo com Izilda. Neste
instante, centenas de baratas surgem das “frestas e cantos” do chiqueiro e com um
apetite voraz comem o pênis ainda sujo de creme de milho com bacon de Clércio
(Figura 26).
Foi-se a “Rôla”, foi-se a razão de viver! Clércio decide morrer. Para as
moscas ele pede: “Basta que eu abra a boca para vocês, quero vomitar até a última
gota!” As moscas então estimulam sua garganta e provocam um cataclismo de
vômito que “venceu a pequena porteira e transbordou as muretas formando um
córrego gordurento pela encosta do morro”! (Figura 27).

72
FIGURA 26

Fonte: Página 18 da revista em quadrinhos Creme de Milho com Bacon (2013) - Edição do autor

73
FIGURA 27

Fonte: Página 20 da revista em quadrinhos Creme de Milho com Bacon (2013) - Edição do autor

74
Clércio vomitou tudo: vomitou o que era, vomitou sua própria vida. Só restou
sua pele gelada e vazia. Como interpretar este fato? Clércio estava tão
morbidamente gordo e identificado com sua bocarra insaciável, seu estômago
balofo, seu pênis, suas tripas, que os tinha em total controle. Clércio se converteu
ele todo em consciência de seu ventre, de suas partes baixas. Todo o alimento que
ele ingeriu ao longo da vida, toda a matéria que se transformou naquilo que ele era,
pôde ser posto para fora numa única e explosiva manobra. Clércio pôde renunciar à
vida e devolver ao cosmos com um jato de vômito aquilo de que ele havia se
apropriado, mas que em absoluto não lhe pertencia. A matéria deve estar em
constante câmbio porque, como diz Bossuet, “a natureza precisa dela para outras
formas, ela a reclama para outras obras”. E ainda, sobre a matéria em trânsito,
temos esta reflexão de Georges Bataille:

A morte de um é o correlativo do nascimento do outro, que ela


anuncia e do qual ela é a condição. A vida é sempre um produto da
decomposição da vida. Ela é tributária, em primeiro lugar, da morte,
que cede o lugar; em seguida, da decomposição, que sucede a
morte, e recoloca em circulação as substâncias necessárias à
incessante vinda ao mundo de novos seres (BATAILLE, 2004,
p.85).

Armindo retorna depois de terminar seu casamento para, como homem livre,
poder viver em definitivo com seu amigo, mas descobre desolado que Clércio se foi.
Armindo se cobre com a pele do amigo (Figura 28) e com um sorriso de satisfação
no rosto assume o seu lugar no chiqueiro. O narrador conclui de maneira
enigmática: “A noite deita sobre a cidade e seus subúrbios. Só a luz da lua vem
beijar nossos sonhos e nossos segredos”.

75
FIGURA 28

Fonte: Página 22 da revista em quadrinhos Creme de Milho com Bacon (2013) - Edição do autor

76
4.5 Mariposa

Excluindo-se a adaptação de A relíquia de Eça de Queiroz, Mariposa é a


segunda narrativa mais longa de Marcatti. São 88 páginas (Cavacos possui 92)
publicadas pela editora Conrad, com capa colorida e miolo em tom sépia. Mariposa,
em uma alusão óbvia às mulheres que trabalham “na noite”, é uma intrincada
história de amor. Numa boate de quinta categoria, Fernícia e Marlésia (Figura 29)
são exploradas pelo cafetão Herminiano. Mas a sorte de Fernícia muda quando
Nevair, um jovem especulador do ramo imobiliário e um dos clientes mais assíduos
do estabelecimento, a pede em casamento. Fernícia está grávida de Nevair e
entusiasmada para abandonar a “vida fácil” e se tornar uma dedicada dona de casa.

FIGURA 29

Personagens da história, na sequência: “Inominado”, Marlésia e Valência

A boate sem Fernícia vai de mal a pior, mas Nevair continua a frequentá-la e,
então, sua atenção é atraída pelas curvas generosas de Marlésia (Figura 30), amiga
de Fernícia. Por obra do destino, Marlésia também engravida de Nevair. Essa
gravidez indesejada chama a atenção de Herminiano, que junto com Marlésia,
começa a chantagear Nevair. Herminiano ameaça revelar para Fernícia a gravidez
de Marlésia se o jovem empresário não lhe der uma de suas casas e um
“rendimento mensal vitalício”. Acuado, Nevair cede às ameaças de Herminiano. O
que Nevair não sabe é que Marlésia havia perdido o bebê. O tempo passa e o filho
de Fernícia - que é o narrador sem nome da história - já é um jovem estudante que

77
ao se envolver numa briga por causa de seu amor platônico, Valência, é acolhido
pela faxineira da escola. A faxineira é Marlésia, bastante decadente.

78
FIGURA 30

Fonte: Página 18 da revista em quadrinhos Mariposa (2005) - Editora Conrad

79
Marlésia leva o filho de Fernícia para casa e cuida de seus machucados e,
aos poucos, vai “estreitando” a relação até que faz dele um homem.
Inesperadamente, o esperma do “inominado” filho de Fernícia tem poder
rejuvenescedor sobre Marlésia: “os anos que ela recuperava eram extraídos da
minha essência. Mas jamais me senti consumido. Ao contrário: era nobre a troca
que abençoava nosso romance. Eu lhe dava vida nova e ela me devolvia maturidade
e sabedoria. E chupa quenem (sic) um ralo!” Aos poucos o garoto vai envelhecendo
e se tornando um velho decrépito (Figuras 31 e 32).
E assim, os anos vão passando até que Nevair, desconfiado de que tem algo
errado na situação, investiga e descobre que o bebê de Marlésia havia morrido.
Enfurecido, ele mata Herminiano. Para ajudar o pai, o inominado esconde o corpo e
o serve para Marlésia comer em uma prática de canibalismo consentido. Ela
consome, dia após dia, o cadáver de Herminiano até restar apenas um esqueleto no
freezer.
O que Marlésia não sabia era que o inominado mantinha uma vida dupla.
Enquanto ela tirava a juventude dele e lhe dava a maturidade - na mesma proporção
que mamava seu esperma -, o inominado mantinha uma relação não menos curiosa
com Valência, a garota que o desprezava no colégio, mas que agora nutria estranha
atração pelo rapaz. E dela é que vinha o elixir da juventude do qual o inominado
precisava para manter o equilíbrio em sua relação com Marlésia. Aqui se repete, de
certo modo, o tema da simbiose: ele perde a juventude e a vida nos braços de
Marlésia e recupera tudo bebendo litros e litros do sangue menstrual de Valência
(Figuras 33 e 34). O que uma tira, a outra dá. Mais do que os personagens é o
trânsito dos fluídos corporais, o sangue e o esperma, que está em jogo. O sangue
como símbolo máximo da vida e o esperma como símbolo de renovação da vida;
vitalidade e saúde versus reprodução e imortalidade. A esse respeito, Bakhtin
afirma:

O corpo grotesco é um corpo em movimento. Ele jamais está pronto


nem acabado: está sempre em estado de construção de criação, e
ele mesmo constrói outro corpo; além disso, esse corpo absorve o
mundo e é absorvido por ele. [...] Todas as excrescências e orifícios
caracterizam-se pelo fato de que são o lugar onde se ultrapassam as
fronteiras entre dois corpos e entre o corpo e o mundo, onde se
efetuam as trocas e as orientações recíprocas (BAKHTIN, 2013,
p.277).

80
FIGURA 31

Fonte: Página 27 da revista em quadrinhos Mariposa (2005) - Editora Conrad

81
FIGURA 32

Fonte: Página 28 da revista em quadrinhos Mariposa (2005) - Editora Conrad

82
FIGURA 33

Fonte: Página 69 da revista em quadrinhos Mariposa (2005) - Editora Conrad

83
FIGURA 34

Fonte: Página 70 da revista em quadrinhos Mariposa (2005) - Editora Conrad

84
Nestas páginas também estão caracterizados aquilo que chamei de
contraponto entre o texto e a imagem, responsável pelo efeito cômico. Um texto
“parnasiano”, um modo de falar de coisas sublimes e elevadas: “O júvene néctar
jorra farto e pungente. Seu paladar cremoso estremece minhas entranhas e infla
meu espírito”, é acompanhado da imagem (o primeiro quadrinho da página 69 da
Figura 33) de Valência expelindo para fora de sua vagina uma quantidade imensa de
sangue menstrual. As referências de Bakhtin sobre o “baixo” material e corporal no
que diz respeito ao corpo grotesco estão presentes aqui: esperma, sangue, urina,
fezes e excreções de toda a natureza. Tudo narrado e desenhado de forma
escatológica pela caneta de Marcatti. Para Bakhtin,

Por essa razão, as imagens da urina e dos excrementos conservam


uma relação substancial com o nascimento, a fecundidade, a
renovação, o bem-estar. Na época de Rabelais, esse aspecto
positivo era ainda perfeitamente vivo e sentido de maneira mais clara
(BAKHTIN, 2013, p.128).

Finalmente, dias depois de comer o último pedaço de carne do cadáver de


Herminiano, Marlésia começa a se transformar em uma mariposa e o inominado
reflete: “Marlésia nunca escondeu que esse dia iria chegar. Às vezes, invadia a
madrugada descrevendo como se libertaria. Seus olhinhos brilhavam sempre que
pensava no pouco tempo que ainda lhe restava” (Figuras 35 e 36). Marlésia
completa sua transformação. Se antes apenas rejuvenescia por meio do esperma,
agora, depois de consumir todo o cadáver de Herminiano, ela se metamorfoseou em
uma exuberante mariposa que permaneceu ao lado do filho de Fernícia. Cabe a
reflexão de Bakhtin:

A imagem grotesca caracteriza um fenômeno em estado de


transformação, de metamorfose ainda incompleta, no estágio da
morte e do nascimento, do crescimento e da evolução. A atitude em
relação ao tempo, à evolução, é um traço construtivo (determinante)
indispensável da imagem grotesca. Seu segundo traço
indispensável, que decorre do primeiro, é sua ambivalência: os dois
pólos da mudança - o antigo e o novo, o que morre e o que nasce, o
princípio e o fim da metamorfose - são expressados (ou esboçados)
em uma ou outra forma (BAKHTIN, 2008, p.212).

85
FIGURA 35

Fonte: Página 75 da revista em quadrinhos Mariposa (2005) - Editora Conrad

86
FIGURA 36

Fonte: Página 76 da revista em quadrinhos Mariposa (2005) - Editora Conrad

87
Sem Marlésia, Valência não vê mais aquela maturidade atraente no rapaz que
agora parece cada vez mais infantil. Sem a presença de Marlésia, o equilíbrio foi
rompido e o inominado, que permanece fiel à sua dieta de sangue menstrual, está
regredindo, se tornando novamente criança no corpo e na alma. Assim, o inominado
é abandonado, ficando apenas com as doces lembranças de seus amores: “Antes
de sair, lançou-me um último olhar de desprezo e me chamou de criança. Talvez
não tenha se dado conta de onde sempre me apoiei. Acho que ela não percebeu
que, como homem, jamais criarei minhas próprias asas. Sem o jugo de minhas
fêmeas, sou apenas pó.”

88
CONSIDERAÇÕES FINAIS

Esta dissertação se propôs a estudar as manifestações do grotesco presente


nas histórias em quadrinhos de Marcatti e tinha dois objetivos centrais. O primeiro
era prestar reverência a um dos mais interessantes quadrinistas brasileiros de todos
os tempos e que não tem o reconhecimento que merece: não bastasse a enorme
qualidade de sua obra gráfica elaborada de forma autônoma, o sujeito ainda é
responsável pela impressão e comercialização de suas próprias revistas em um
esforço produtivo que já ultrapassa 30 anos. O segundo objetivo era mostrar como
por trás da aparente imaturidade em seu humor - sempre enganosamente pueril -,
que brinca com sexo e fezes, existe a possibilidade de diálogo com uma tradição
cômica muito antiga, o que lhe coloca em excelente companhia e reforça o potencial
contestador de sua obra. Para a pesquisa, do ponto de vista prático, a obra de
Marcatti está bastante acessível e conta com frequentes reimpressões. Nessas
revistas se revela um universo habitado por personagens - geralmente pessoas
comuns pertencentes a classes populares - repletos de sexualidade, deformidades
físicas, habilidades fantásticas e fluídos miraculosos: todos elementos unidos pela
centralidade do corpo e de suas excreções como um problema fundamental. São
histórias onde a vida cotidiana e o aberrante não têm fronteiras.
É nas reflexões de Mikhail Bakhtin sobre Rabelais, ou seja, é no grotesco de
viés Bakhtiniano, que vamos encontrar os elementos interpretativos para esclarecer
a escatologia de Marcatti. Apesar deste estudo não ser exaustivo, acreditamos que
as histórias escolhidas foram suficientes para apresentar nosso argumento e
também sugerir algumas possibilidades para futuros interessados em pesquisar
histórias em quadrinhos e, obviamente, novos interessados na obra de Marcatti.
Confiamos que os objetivos estabelecidos foram realizados a contento.
Voltemos a Bakhtin. Refletindo sobre a obra de Rabelais ele vai demonstrar o
valor cultural do grotesco e da escatologia, não apenas como categorias estéticas,
mas como modos mais abrangentes de interpretar o homem e seu engajamento no
mundo. O grotesco é para Bakhtin um ponto de vista a partir do qual uma nova
concepção do humano surge, um humanismo, como vai destacar TIHANOV, que
não é mais ligado a uma crença no indivíduo ao modo cartesiano; não mais as
virtudes da medida, proporção, razão e permanência. Neste humanismo carregado

89
de devir histórico, o corpo é central para entender o homem e adquire dimensões
cósmicas em suas medidas, em suas mudanças e no trânsito de sua matéria.
No campo iconográfico, no sentido de repertório de imagens, avulta nos
quadrinhos de Marcatti o grotesco (cômico) escatológico como principal afeto para
impugnar o poder do mal, da autoridade e da decrepitude. Em Mariposa, os
personagens que se alimentam de secreções rejuvenescem e um deles, em
extremo, escapa da morte por meio da metamorfose. O corpo grotesco é cósmico,
hiperbólico e agigantado como Salésio de Morv Blanc que, tal e qual um verdadeiro
e dadivoso herói civilizador, ao ejacular alimento garante a sobrevivência do povo.
Em Simbiose, tio Ernesto também é um corpo que renuncia sua individualidade e se
transforma em topografia, um pedaço de mundo perfeitamente ordenado e
simbiótico com cupins vivendo em sua barba e um aruanã em suas tripas. Nesta
história de Marcatti o grotesco também mostra sua afinidade com o primitivo e com
as narrativas míticas onde passado e futuro não são formas rígidas, onde nem o
tempo exerce sua autoridade. Não que seus personagens nunca morram, mas é
como se algum tipo de intuição originada em suas entranhas e em seus genitais lhes
permitisse submeter-se e conformar-se com a dissolução do indivíduo. Esta intuição
lhes diz que não é a sério, que a vida em nada é atingida por isso e que a entropia
não deve ser temida, mas festejada com riso e espanto. É assim com Clércio de
Creme de Milho com Bacon que morre vomitando toda a comida que ingeriu ao
longo da vida e que se transformou naquilo que ele era: toda essa matéria foi
expelida e explodiu em renovação.
Os personagens de Marcatti são demasiadamente humanos. São
personagens marcados por suas obsessões, taras, manias e peculiaridades físicas.
Curiosamente essas idiossincrasias de seus corpos nunca são limitantes ou
restritivas, pelo contrário, são extraordinárias e, ao mesmo tempo, em nada se
parecem com superpoderes. São signos extravagantes de nossa animalidade que
conseguem celebrar por meio do humor as partes baixas da humanidade. Em suma,
a obra de Marcatti - como as de Rabelais e Bakhtin - é tributária de uma forma de
humanismo que se deixa seduzir pela ideia de que o homem é um animal excelente,
um sobrevivente que perpetuamente cria seu próprio sentido e que é capaz de se
alegrar mesmo quando pressente seu regresso contingente ao estômago da terra.
Marcatti nos apresenta um homem superlativo e transgressor de todos os tabus e

90
fronteiras entre os seres e os corpos, entre o eu e o outro, entre o um e o dois, entre
a vida e a morte, recusando qualquer tipo de hierarquia.

91
REFERÊNCIAS

ALMEIDA, Rogério Caetano. O corpo grotesco como elemento de construção


poética nas obras de Augusto dos Anjos, Mario de Sá Carneiro e Ramon Lopez
Velarde. 2007. Dissertação (Mestrado em Estudos Comparados de Literaturas de
Língua Portuguesa). Departamento de Letras Clássicas e Vernáculas, Faculdade de
Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2007.
Disponível em: <http://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/8/8156/tde-02102007-
152309/pt-br.php>.

ALMEIDA, Rogério Caetano. Recortes do grotesco na história da literatura


portuguesa: cantigas de maldizeres; satíricos barrocos; Bocage; Camilo Pessanha;
Mário de Sá-Carneiro e Alberto. 2012. Tese (Doutorado em Literatura Portuguesa).
Departamento de Letras Clássicas e Vernáculas, Faculdade de Filosofia, Letras e
Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2012.
Disponível em: <http://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/8/8150/tde-27062013-
120335/pt-br.php>.

ALVES, Bruno Fernandes. Superpoderes, malandros e heróis: o discurso da


identidade nacional nos quadrinhos brasileiros de super-heróis. 2003. Dissertação
(Mestrado em Comunicação). Centro de Artes e Comunicação, Universidade Federal
de Pernambuco, Recife, 2003. Disponível em:
<http://repositorio.ufpe.br/handle/123456789/3331>.

ANDRAUS, Gazy. Existe o quadrinho no vazio entre dois quadrinhos? (ou: o


Koan nas histórias em quadrinhos autorais adultas). 1999. Dissertação (Mestrado
em Artes Visuais). Instituto de Artes, Universidade Estadual Paulista “Júlio de
Mesquita Filho” - UNESP, São Paulo, 1999. Disponível em:
<http://repositorio.unesp.br/handle/11449/87003>.

ANDRAUS, Gazy. As histórias em quadrinhos como informação imagética


integrada ao ensino universitário. 2006. Tese (Doutorado em Ciências da
Comunicação). Escola de Comunicação e Artes, Universidade de São Paulo, São
Paulo, 2006. Disponível em: <http://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/27/27154/
tde-13112008-182154/pt-br.php>.

ARISTÓTELES; HORÁCIO; LONGINO. A poética clássica. São Paulo: Cultrix,


2012.

BAKHTIN, Mikhail. A cultura popular na Idade Média e no Renascimento: o


contexto de François Rabelais. São Paulo: Hucitec, 2013.

BAKHTIN, Mikhail. Questões de literatura e de estética: a teoria do romance. São


Paulo: Editora da Unesp / Hucitec, 1990.

BATAILLE, Georges. O Erotismo. São Paulo: Editora Arx, 2004.

BERGSON, Henri. O riso: ensaio sobre a significação do cômico. Rio de Janeiro:


Zahar Editores, 1983.

92
BORGES, Bento Itamar. O (mau) gosto e o grotesco. Revista Mars Gradivus, Porto
Alegre, ano I, n.1, 2002. Disponível em:
<http://www.ufrgs.br/psicopatologia/lpa/bento_01.htm>.

CAGNIN, Antonio Luiz. Os quadrinhos. São Paulo: Editora Ática, 1975.

CAMARA, Raphael da Silva. O grotesco: um corpo estranho na literatura do medo


no Brasil. 2013. Disponível em:
<https://sobreomedo.files.wordpress.com/2013/06/15062013.pdf>.

CAMPOS, Maria de Fátima Hanaque; LOMBOGLIA, Ruth. HQ: uma manifestação de


arte. In: BIBE-LUYTEN, Sônia M. (org.). 3.ed. Histórias em quadrinhos: uma leitura
crítica. São Paulo: Paulinas, 1989.

CHAUI, Marilena. Convite à filosofia. São Paulo: Editora Ática, 2000.

CIRNE, Moacy. História e crítica dos quadrinhos brasileiros. Rio de Janeiro:


Editora Europa / Funarte,1990.

D‟OLIVEIRA, Geisa Fernandes. Saberes enquadrados: histórias em quadrinhos e


(re) construções identitárias. 2009. Tese (Doutorado em Ciências da Comunicação).
Escola de Comunicação e Artes, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2009.
Disponível em: <http://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/27/27154/tde-22062010-
164918/pt-br.php>.

ECO, Umberto (org.). História da feiúra. Rio de Janeiro: Record, 2007.

EISNER, Will. Quadrinhos e arte sequencial. São Paulo: Martins Fontes, 2001.

ESQUIVEL, Talita Gabriela Robles. Corpo grotesco. 2009. Dissertação (Mestrado


em Artes Visuais). Centro de Artes, Universidade do Estado de Santa Catarina,
Florianópolis, 2009 Disponível em:
<http://ppgav.ceart.udesc.br/turma3_2007/dissertacoes/talita_esquivel.pdf>.

FEBVRE, Lucien. O problema da incredulidade no século XVI: a religião de


Rabelais. São Paulo: Companhia das Letras, 2009.

FIORE, Adriano Alves. Carnavalização bakhtiniana do grotesco em imagens do


hard rock e heavy metal. 2011. Dissertação (Mestrado em Comunicação). Centro
de Educação, Comunicação e Artes, Universidade Estadual de Londrina, Londrina,
2011. Disponível em: <http://www.uel.br/pos/mestradocomunicacao/wp-
content/uploads/ADRIANO-ALVES-FIORE-Exemplar-Capa-Dura.pdf>.

GOMES, Ivan Lima. Uma breve introdução à história das histórias em


quadrinhos no Brasil. Anais. VI Encontro Nacional de História da Mídia, Niterói,
maio de 2008. Disponível em: <http://www.ufrgs.br/alcar/encontros-nacionais-
1/encontros-nacionais/6o-encontro-2008-1/Uma%20breve%20introducao%20a%20
historia%20das %20historias%20em%20quadrinhos%20no%20Brasil.pdf>.

93
GUAZZELLI, Eloar. Canini e o anti-herói brasileiro: do Zé Candango ao Zé -
realmente - carioca. 2009. Dissertação (Mestrado em Ciências da Comunicação).
Escola de Comunicação e Artes, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2009.
Disponível em: <http://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/27/27154/tde-16092009-
205951/pt-br.php>.

KAISER, Wolfgang. O grotesco: configuração na pintura e na literatura. São Paulo:


Perspectiva, 2013.

MCCLOUD, Scott. Desvendando os quadrinhos. São Paulo: Makron Books, 1993.

MAGALHÃES, Henrique. Indigestos e sedutores: o submundo dos quadrinhos


marginais. Cultura Midiática, João Pessoa, vol. II, n. 1, jan./jun. 2009.

MARINHO, Celisa Carolina Alvares. Contribuições para uma poética do


maravilhoso. Um estudo comparativo entre narratividade literária e cinematográfica.
Tese (Doutorado em literatura comparada). Departamento de Letras Clássicas e
Vernáculas, Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de
São Paulo, São Paulo, 2006. Disponível em:
<http://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/8/8156/tde-21082007-151253/pt-br.php>

MOYA, Álvaro de. História da história em quadrinhos. 3.ed. São Paulo:


Brasiliense, 1994.

PATATI, Carlos; BRAGA, Flavio. Almanaque dos quadrinhos: 100 anos de uma
mídia popular. Rio de Janeiro: Ediouro, 2006.

RABELAIS, François. Gargântua e Pantagruel. Belo Horizonte: Itatiaia, 2003.

RABELAIS, François. Gargantua. São Paulo: Ediouro, 1985.

RAMOS, Paulo. As mudanças no mercado de quadrinhos nos últimos 40 anos.


Anais. XXXI Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação, Natal/RN, 2 a 6 de
setembro de 2008. (Coleção PROPG Digital - UNESP). Disponível em:
<http://www.intercom.org.br/papers/nacionais/2008/resumos/R3-0524-1>.

SANTOS, Aline Martins. “Udigrudi”: o underground tupiniquim. Chiclete com


banana e o humor em tempos de redemocratização brasileira. 2012. Dissertação
(Mestrado em História). Centro de Estudos Gerais, Instituto de Ciências Humanas e
Filosofia, Universidade Federal Fluminense, Rio de Janeiro, 2012. Disponível em:
<http://www.historia.uff.br/stricto/td/1616.pdf>.

SANTOS, Fabiano Rodrigo da Silva. Lira dissonante: considerações sobre


aspectos do grotesco na poesia de Bernardo Guimarães e Cruz e Sousa. São Paulo:
Cultura Acadêmica, 2009. (Coleção PROPG Digital - UNESP). Disponível em:
<http://hdl.handle.net/11449/109120>.

94
SILVA, Fabio Luiz C. M. Considerações sobre o conceito de grotesco nos
quadrinhos. Anais. XXXIV Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação -
Intercom, Recife, setembro de 2011. Disponível em:
<http://www.intercom.org.br/papers/nacionais/2011/resumos/R6-0624-1.html>.

SODRÉ, Muniz; PAIVA, Raquel. O império do grotesco. Rio de Janeiro, Mauad,


2014.

TIHANOV, Galin. A importância do grotesco. Bakhtiniana, São Paulo, 7 (2): 165-


178, Jul./Dez. 2012. Disponível em:
<http://revistas.pucsp.br/index.php/bakhtiniana/article/view/11381>.

SITES CONSULTADOS:

http://omundodogrotesco.blogspot.com.br

http://cruzadorfantasma.com.br/os-primordios-do-quadrinhos-ocidentais

http://www.quadrinho.com/2012/2012/07/a-verdadeira-origem-de-batman

http://www.infoescola.com/biografias/frauzio-marcatti

http://sujeirawebzine.wordpress.com/2011/12/01/marcatti-e-o-underground-paulista-
dos-quadrinhos

http://universofantastico.wordpress.com/2009/02/19/marcatti-volta-a-produzir-
historias-de-frauzio

http://www.monkix.com.br/marcatti/frauzio-ares-da-primavera.html

http://hqmaniacs.uol.com.br

http://www.marcatti.com.br

OBRAS DE MARCATTI

Creme de Milho com Bacon (2013) - Edição do autor.

Desventuras de Frauzio (número 01, 2003) - Editora Pro-c.

Desventuras de Frauzio (número 04, 2004) - Editora Pro-c.

Frauzio (número 03, 2001) - Editora Escala.

Frauzio: Questão de Paternidade (2002) - Opera Graphica.

Mariposa (2005) - Editora Conrad.

95
ANEXO

ENTREVISTA COM MARCATTI

No dia 07 de março de 2015 me encontrei com Francisco Marcatti por ocasião


do lançamento de Dedos Mágicos, álbum em quadrinhos que marcou a primeira
parceria de Marcatti com outro desenhista, Laudo Ferreira. Mais tarde, naquele
mesmo dia, fui recebido em sua casa onde conversamos sobre seu trabalho.
Durante o evento eu perdi o esboço de entrevista que havia preparado. Foi,
portanto, uma quase entrevista:

RICARDO – Uma coisa que percebo na história é como o desenho faz


contraponto ao texto.
MARCATTI – Isso eu gosto bastante.

R – Exatamente, aí é onde eu percebo a beleza da narrativa.


M – A Mariposa é totalmente escorada nisso. A contradição do texto, com o
desenho que tá embaixo.

R – Pois é, isso é quadrinho. Uma coisa não vive sem a outra. Porque se
você isola o texto do desenho, aquilo é novela das oito.
M – Também tem outra coisa que eu penso, que é assim: na lógica do roteiro
e da história, por que eu vou narrar uma coisa que eu vou desenhar embaixo?
Então, assim: “Ele foi e abriu a porta!” – aí tem um cara abrindo a porta. Por que tá
escrito em cima e o cara tá desenhado embaixo? Não precisa. Então, nessa lógica
de evitar uma redundância, uma coisa complementa a outra, ou enriquece a outra,
ou contradiz a outra. Então é legal você chegar e dizer assim: “Ele estava
angustiado”, e ele está abrindo uma porta, você está vendo que ele está abrindo
uma porta. É mais difícil você representar este “angustiado” de uma forma gráfica.
Você pode explorar no texto algo que te atrapalharia no desenho. Com essa lógica
eu fui pegando a brincadeira de fazer os contrapontos. Uma narrativa e o desenho
que vem completamente contraditório.

96
R – E é assim que vem a sua maior característica que é a escatologia?
M – Normalmente sim. Porque, assim, eu não sei exatamente como chega a
escatologia, em que momento ela chega. Nunca é antecipado: “vou fazer uma
história de um cara comendo merda”. Isso nunca acontece. Eu começo a
desenvolver a história e se dessem esse argumento para o cara da novela das oito
ia ser uma novela das oito.

R – O exemplo de Questão de Paternidade.


M – É um draminha. Mariposa é um draminha. É um cara que rejuvenesce
nos braços de uma mulher e toda essa energia ele perde nos braços da outra. Esse
triângulo e tal, parece uma novelinha babaca, só que como ele faz isso é que é o
horror. É esse o espírito da contradição: você vai contar uma história, que poderia
ser uma história comum, e aquilo vai se transformando pelo exagero, pelo
extremado, você cutuca e vai mais fundo na dor. É o sarcasmo e o exagero.
Provavelmente é dessa forma. Então não existe um momento certo. Eu tenho um
método de fazer história que, provavelmente, você já me viu falar sobre isso, e eu
tenho receio, eu julgo uma bobagem, a questão da inspiração: “puta, vou bolar uma
história.” Normalmente quando eu bolo uma história andando na rua eu esqueço e
nunca faço. Então, assim, a inspiração ela não vem. Eu não espero, eu não exijo e
não quero que ela venha. Eu não faço a menor questão. Eu termino uma história,
pronto. Agora vou fazer outra. É metódico: eu abro o meu livro mestre, que se
chama dicionário e escolho uma palavra ao acaso e dessa palavra eu tenho que
fazer uma história. Como se fosse uma tarefa obrigatória, e daí eu ponho um
horário: que horas são agora? Ah, é oito e trinta, então até às dez horas eu tenho
que ter o argumento pronto. Em cima daquela palavra que eu peguei ao acaso. Eu
evito adjetivo, claro, porque o adjetivo já te põe um conceito antecipado. O ideal é
um substantivo. Essa foi a lógica. Vou fazer um livro novo, vou colocar ele no
Kickante e lançar por volta de maio. Eu não tinha uma história. Agora vou pegar a
história, abri o dicionário, abri na letra “C”, comecei a passar o dedo: cavaco. Vou
fazer uma história de cavaco. O que é cavaco? Começo a fazer perguntas para mim
mesmo e vou desenvolvendo um argumento qualquer. Aí eu vou tomando nota. É
um processo racional que vai gerando a relação de uma pessoa com outra: “por que
essa pessoa fez isso?” “Por que aquilo?” E nessa, quando começo a preencher os

97
detalhes, vem a sacanagem, a escatologia. Eu costumo me divertir nesse momento:
“puta, que sacanagem ele vai fazer aqui”!

R – Muito bom. Eu lembro desse vídeo que falei pra você, do Documento
Especial da Manchete, você diz: “eu gosto de escrotizar as relações humanas, eu
acho que o ser humano não se descobriu ainda enquanto relação humana”. A base
é essa, histórias de amor, os tipos comuns. O cara do bar que vê a menininha.
Desde essa época, sua relação com os personagens mudou?
M – Ali naquele momento eu estava um pouco ainda... eu não gosto daquele
meu comentário porque eu me coloquei em uma posição um pouco prepotente.
“Escrotizar”, parece que eu estou interferindo em uma coisa e parece uma certa
presunção e um certo moralismo.

R – Talvez o repórter, o cara veio com aquela assim: “você é o cara que faz
os quadrinhos mais sujos do Brasil”.
M – Mas eu estava um pouco inflamado sim. Naquela época eu tava um
pouco inflamado com essa coisa.

R – Sim, mas eu noto que você tem carinho, por exemplo, pelo Frauzio. O
Frauzio se dá bem.
M – Mesmo quando ele se fode ele se dá bem.

R – Todas as coisas terríveis que acontecem com seus personagens


acontecem com o Frauzio, você não livra a barra dele, mas, por outro lado, você
acha que está mais condescendente com os personagens, mais piedoso?
M – Nisso eu te corrijo, no sentido de que eu não tenho piedade ou tenho
raiva. Eu não quero me colocar em uma posição de ser supremo em relação a eles.
Porque aí eu julgo. Esse é o detalhe. Eu não gosto de julgar meu personagem, eu
não gosto que a história julgue. Então assim: “ele vai se foder, ele vai pagar por
isso.” Eu não coloco dessa forma. O que eu faço é pensar na compensação das
coisas. Porque a gente se fode, a gente como pessoa, quebra a cara em algumas
coisas e se lamenta com essas coisas sem saber que outras coisas deram certo.
Então é uma questão de foco. Eu gosto de colocar situações onde as coisas são

98
reveses e ao mesmo tempo ele tem outras compensações das quais não se deu
conta. Ou se deu conta, mas não importa. A vida não é uma coisa linear. O filme é, o
livro é, e eu não gosto dessa coisa linear. É aquela história: “estava tudo bem até
que um dia...” esse “até que um dia” é a mudança de rumo, como se estivesse tudo
bem e de repente. Não, não estava tudo bem, certo? Não tenho que pensar que o
personagem estava em uma linha reta e eu faço uma curva. Não, ele já vinha em
uma frequência alternada.

R – Até porque esse evento, muitas vezes absurdo, não provoca espanto no
personagem. Aquilo faz parte do universo dele. Ele encara com naturalidade um
ânus que ficou independente.
M – Eu faço uma comparação entre dois escritores que me tocaram muito
logo de cara, logo de moleque, que são Henry Miller e Bukowski. Os dois são
diferentes entre si de uma forma brutal. Eu não gosto do Bukowski, porque o
Bukowski põe adjetivo nas coisas. Ele diz: “o feio, o sujo, o nojento”. Então, é ele me
obrigando, como leitor, a entender que aquele cara é sujo. O Henry Miller, a forma
narrativa como ele trata os personagens, ele trata aquela cena com respeito, com
carinho, só que você está lendo, você está vendo o que está vendo: um sujeito
dormindo no frio com outro cara, mendigos, um catando carrapato na barba do
outro. Ele descreve esta cena com tamanho carinho. É você que faz a imagem:
“nossa que coisa nojenta”; “nossa que coisa romântica”; “nossa que amizade
profunda”; “nossa que respeito”. A opinião é sua. Ele não colocou lá. Ele descreveu
com uma naturalidade espetacular. Isso me inspirou muito. Então quando você vê
uma coisa escatológica, horrível no meu desenho, o personagem não tem essa
relação com ela. Faz parte do universo dele ver um cu saindo mais de um metro e
oitenta da bunda de outro. Faz parte. O que incomoda ele são os mesmos dilemas
que nós temos: a mulher traiu, o cara que fez um troço lá, etc.

R – Outra coisa sobre os personagens, os nomes que você dá. Só existe


outro escritor que tem nomes tão saborosos quanto os seus, que é José Candido de
Carvalho. A criação dos nomes dos personagens, como você faz isso?
M – Eu fico montando nomes. Então você pega: Valdirene, existem tantas
Valdirenes, já conheci Valdirene, mas é um nome que soa diferente. Não é José,

99
não é Maria. Aí você fica misturando para dar uma sonoridade legal. Muito tempo
atrás me disseram que em Portugal, não sei se é verdade isso, quando você tem um
filho e vai escolher o nome do filho, você tem uma cartilha de nomes permitidos.

R – Sim, parece que tem uma regra, em Portugal o moleque não pode se
chamar Madson, Romário, Jeferson.
M – Pô, isso é muito chocante, é meu filho. Tudo bem, eu tenho a
responsabilidade de não foder com a vida dele depois, mas é tão legal criar nome
pra filho, inventar.

R – Você nunca encontrou nenhuma menininha chamada Vanderluzia?


M – Não. Mas o Frauzio já e eu fiquei surpreso, porque eu inventei esse
nome. Frauzio é meio Flavio com Drauzio. Mas, caralho, outro dia entrei no
facebook, cara, o que tem de Frauzio não é brincadeira. Sério, gente com esse
nome. Então eu não inventei, tá vendo como esse povo é criativo. Tem Frauzio sim,
e tem bastante. E com Z. Mas eu curto inventar porque tem uma coisa de evitar, já
que o meu humor é muito agressivo, eu não gosto de pensar que estou agredindo
alguém. Eu acho isso uma falta de respeito. Então eu não vou foder com um
indivíduo ou um grupo, eu acho isso uma falta de respeito muito grande. Eu gosto de
tratar a coisa como um todo: a cena é uma escatologia, não são pessoas, eu não
tenho nada contra as pessoas. Tem um pouco de moralismo nisso, eu não gosto de
chegar e ofender você, ou ofender um jornalista. Não é isso. A raça humana como
um todo é complexa, complicada. Talvez o nome esquisito seja pra evitar que você
tenha esse nome e você ache que estou escrevendo uma história sua. Talvez seja
uma defesa de não colocar Renato na história e na história o cara está se fodendo.
É para evitar: “pô, quem é esse Renato na história?” Aí você coloca Gervêncio,
dificilmente você vai conhecer um Gervêncio.

R – Mas tudo é possível.


M – Tudo é possível, depois do Frauzio, agora, é bem capaz. Estou fazendo
uma reedição de um livrinho que chama Meu Alfabeto, estou fazendo no formato gibi
e alguns nomes eu estou revendo. Os nomes são feitos com as letras do alfabeto e
os nomes são absurdos. Eu estou revendo para fazer uns nomes mais malucos

100
ainda. Eu gosto desses nomes esquisitos e acho legal a gente poder fazer isso
nesse país. Às vezes você fode com seu filho, mas tudo bem.

R – Fale um pouco do cenário de suas histórias, dos objetos do cotidiano que


me parecem sempre muito brasileiros: o bule de café, o coador de pano.
M – Você falou essa coisa de referência de Brasil. Quando eu fui fazer A
Relíquia, foi quando eu percebi que nunca tinha feito quadrinho de época e nunca
tinha feito uma coisa fora do Brasil. Pensei: “como vou fazer isso?”, “vou ter que
fazer pesquisa de roupa, de arquitetura”, “como era Portugal em 1800?”, ficava
buscando essas referências e tal, e eu sou um pouco preguiçoso para fazer esse
tipo de pesquisa, como eu estou preocupado com a história, pra mim isso tudo é
adereço. Porque uma história é uma história e pode ser ambientada em qualquer
época. Mas eu também não queria ambientar a relíquia na atualidade, já vi
adaptações assim, como o Primo Basílio para o século XX e eu não queria fazer
isso. Fica um pouco sotaque, não curti. Aí eu comecei a perceber: “caralho, isso aí é
Minas Gerais. Portugal antigo é Minas Gerais.” E roupa, roupa é alguma coisa lá, um
adereço, um chapéu. Eu sempre fui muito iconográfico, os meus cenários não são
ricos, os detalhes é que são. Então naquele momento tem um elemento ali dentro. É
como você falou, tem aquele detalhe da mulher passando café no coador de pano, o
resto do quadro não tem nada. É como um teatro pobre: só os objetos que servem
pra cena estão ali. Na relíquia é a cartola. Eu tive dificuldade de saber que tipo de
iluminação se usava em Lisboa, que tipo de iluminação se usava em casa. Claro,
não era energia elétrica. Daí simplesmente não coloquei nada que mostra como se
iluminava a casa, porque isso, no caso de contar a história, é secundário. A não ser
que fosse imprescindível. Por exemplo, estou fazendo a adaptação de Os
Miseráveis de Victor Hugo, ali castiçal é fundamental, faz parte da história, então vai
ter castiçal. Dois, na verdade.

R – É alguma encomenda de editora?


M – É curiosa a história. Eu costumo brincar que cigarro faz mal à saúde, pra
mim faz bem. Porque eu estava no FIQ 2013, fui fumar em um cantinho junto com os
excluídos da sociedade e tava lá o André Conti, que é editor da Companhia das
Letras, e ele falou assim: “e aí, Marcatti, quando é que você vai fazer uma

101
adaptação nova?” Eu falei que tinha vontade de fazer uma - ele gostou muito de A
Relíquia -, mas que era muito longa e nenhuma editora iria querer publicar um
negócio desse. Ele perguntou: “qual o tamanho?” e eu respondi umas 700 páginas!
Gostaria de fazer Os Miseráveis. E ele falou: “vamos conversar.” Era uma ideia
minha fazer alguma coisa, eu gosto muito dessa história. Eu não faria por conta,
minha impressora não rodaria 800 páginas, eu ia passar dez anos montando livro.

R – Esse é seu projeto de maior volume agora? Mas não impede que você
continue lançando suas coisas?
M – Não, não posso. Vou ficar uns três anos trabalhando nisso, se eu ficar
três anos sem lançar nada meu, eu morro do coração. Minha impressora vai ficar
empoeirada, não pode. Vai cair poeira na graxa e isso estraga as engrenagens.

R – E você já começou?
M – A desenhar não.

R – Uma curiosidade, você faz estudo de personagem, desenha lá o Jean


Valjean e vê como vai ser?
M – Não, nunca faço isso. O personagem aparece a primeira vez na primeira
página em que ele está desenhado. Eu não faço nenhum esboço.

R – E se você precisar ver de novo um elemento, você volta lá na primeira


página?
M – Eu coloco os originais em pastas para que eu possa facilmente voltar e
ver como eu fiz a cara dele. A cena anterior é que é a referência.

R – Mesmo que você tivesse que desenhar um animal mitológico, por


exemplo, um minotauro?
M – Talvez eu fosse treinar a anatomia dele. Porque é uma coisa que eu não
tenho familiaridade. Por exemplo, cavalo, como é que eu vou desenhar cavalo? Eu
não vejo cavalo na rua, então. Na verdade eu dei um exemplo ruim, porque com
cavalo eu já me virei bem na Relíquia. Claro, eu copiei o Morris, desenhista do Lucky
Luke. Porque o Morris é um cara que tem uma velocidade, uma fluência. Eu gosto

102
dessa fluência no meu desenho, os personagens são meio emborrachados,
molengas. E você só consegue isso quando você tem familiaridade. Se eu for
desenhar um hipopótamo pela primeira vez, eu vou ter que desenhá-lo traduzindo o
hipopótamo para o hipopótamo desenhado. Mas isso ainda não me dá a fluência do
hipopótamo interagindo com meus personagens. E isso só vem com treino:
desenhar várias e várias vezes. Ou então eu procuro uma fonte que tenha o
desenho como eu quero e me inspiro aí.

R – Então sua resposta para aquela pergunta do que é mais difícil desenhar é
“aquilo que eu nunca desenhei antes”?
M – É aquilo que eu não vejo. Por isso que meu desenho é urbano pra
caralho, porque eu vejo o urbano. Se eu for desenhar uma roça, cana, por exemplo,
eu tenho que pensar na mecânica do cultivo, todo cultivo tem uma mecânica. O
morro, as valas para escorrer a água. A dificuldade é desenhar uma situação que
não está no meu dia-a-dia. Desenhar um cara indo a uma padaria eu sei como é. A
dificuldade não é tanto desenhar, mas traduzir aquela situação para o meu universo
sujo, sintético, borrachento. Para sintetizar você tem que dominar aquela situação,
aquela coisa. Tem que tomar cuidado com o sotaque. Isso acontece quando você
força um ícone ali dentro, forçou alguma coisa para caracterizar Brasil. Tem que ser
natural. Tem que tomar cuidado com a caricatura.

R – Eu estou vendo suas Pin-Up‟s, essas ilustrações, você só trabalha assim


com as Pin-Up‟s?
M – Foi uma experiência por um tempo. Eu gostei de desenhar as
gostosonas, tanto que eu vou fazer uma série de Pin-Up‟s para o Cavacos. Eu me
sinto mais confortável com coisas disformes, elas são muito bonitinhas, são muito
gostosinhas, não curti tanto desenhar. Tá exagerado, mas eu gosto de coisas mais
porcas, provocativas.

R – Acaba sendo como o Laerte diz, eu não lembro onde: “não importa como
você vai desenhar os personagens masculinos, quando desenhar mulher tem que
ficar gostosa”.
M – É, tem que ser coerente. Tem que dar tesão.

103
R – O Frauzio vai de oito a oitenta, ele pega de todo tipo.
M – Putz, essa última que eu estou fazendo, Perpétua Serenata, é terrível.
Estou louco para pegar ela de volta, está parada já faz um ano. Isso não é comum.
O Frauzio está passando por um processo que não é comum. Eu sempre termino
uma história antes de começar outra. A vida inteira uma história de cada vez.
Misturar as estações, fazer três coisas ao mesmo tempo, é um pouco complicado.
Uma história pode interferir na outra.

R – E seu processo ainda é o mesmo, lápis, caneta?


M – Dois lápis, um geralzão e depois arte final e hachura. Quadrinho por
quadrinho, não faço a página toda, a história toda. É um quadrinho de cada vez até
a arte final. Quando estou na página 31, na página 32 não tem nada. Eu só faço o
quadrinho dois quando o primeiro está pronto.

Terminamos nossa conversa falando sobre buracos no teto, troca de telhas e


da chuva que caía copiosamente sobre São Paulo escorrendo pela parede através
do forro, logo atrás da Multilith 1250 fabricada em 1954.

104

Você também pode gostar