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Universidade

Organizadoras
Dani Marino
Laluña Machado

Revisão:
Aline Cardoso Braz

Arte da capa
Alice Monstrinho
Dani Marino & Laluña Machado
Organizadoras

Universidade
Conheça a produção científica de grandes quadrinistas.
Este livro é de distribuição gratuita.

O livro impresso “Mulheres & Quadrinhos”


pode ser adquirido via Amazon
(www.amazon.com.br).

Arte de Tebhata Spekman


INTRODUÇÃO
Dani Marino e Laluña Machado

A ideia do livro Mulheres & Quadrinhos surgiu com o intuito não só de


fortalecer artistas, pesquisadoras e jornalistas que têm buscado ampliar o
espaço para que as mulheres - sejam elas cis, trans, não-binárias, lésbicas,
bissexuais, brancas, negras, asiáticas, altas, baixas, magras, gordas… - pos-
sam exibir seus trabalhos, como também para desmitificar alguns equívo-
cos baseados no senso comum, que prejudicam a inserção dessas mulheres
no mercado de quadrinhos brasileiro.

E quais seriam esses equívocos?

1. Mulheres não leem quadrinhos: a pesquisadora Natania Nogueira, di-


retora da Associação de Pesquisadores em Arte Sequencial, realizou um
estudo que demonstra que esse é um mito infundado, afinal, mulheres cor-
respondem a uma parcela significativa de leitores de quadrinhos, ainda que
por volta dos anos 1980 e 1990, elas tenham deixado de consumir quadri-
nhos mainstream. Isso porque nessa época, os quadrinhos de super-heróis,
carro-chefe das grandes editoras, traziam narrativas violentas onde as mu-
lheres eram constantemente mortas, estupradas, violentadas, apenas para
justificar o protagonismo masculino. Ou seja, que mulher iria consumir um
material onde ela é visivelmente atacada e que, para comprá-lo, era preciso

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frequentar espaços onde ela não se sentia bem-vinda?

2. Mulheres não produzem quadrinhos: alguns números são bem signifi-


cativos quando pensamos nas artistas brasileiras. A roteirista e editora Ana
Recalde realizou uma convocatória de novas quadrinistas para o selo Pagu
Comics (Social Comics) em fevereiro de 2017 e mais 700 mulheres envia-
ram portfólios de seus trabalhos, indicando que há muitas mulheres produ-
zindo ou querendo produzir quadrinhos no Brasil, ainda que as publicações
impressas pareçam demonstrar o contrário. A pesquisadora Jessica Dami-
nelli, em sua dissertação de Mestrado intitulada Elas Fazem HQ! Mulheres
Brasileiras no Campo das Histórias em Quadrinhos Independentes (2017),
relacionou mais de 500 páginas de quadrinistas brasileiras em redes sociais
como o Facebook. Além disso, o Banco de Quadrinistas das Lady’s Co-
mics e o Guia dos Quadrinhos das Minas, das Minas Nerds, já divulgaram
em seus sites mais de uma centena de artistas de vários estados do país.

3. Mulheres só produzem quadrinhos fofos ou sobre emoções e rela-


cionamentos: a pesquisadora, quadrinista e jornalista Carol Ito, em sua
dissertação de Mestrado intitulada Um Panorama da produção feminina
de quadrinhos publicados na Internet no Brasil (2018), demonstrou que a
incidência de temas relacionados ao escopo do que muitas pessoas consi-
derariam feminino não é tão grande quanto se imagina, pois as mulheres
abordam uma variedade de assuntos em suas produções, que vão desde o
cotidiano e situações realmente femininas, a cinema, política, piadas, ter-
ror, erotismo etc. Produções como Gibi de Menininha (2018), Spam (2015)
e Red (2018), cujas autoras também se encontram em nosso livro, compro-
vam que mulheres, assim como homens, são capazes de muita versatilidade
na hora de contarem suas histórias.

4. Mulheres não atingem um grande público porque não tratam de


temas universais: o que é um tema universal? Se sexo, por exemplo é uma

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atividade que concerne seres humanos adultos, por que que uma produção
masculina sobre sexo é universal, mas uma feminina é considerada produ-
ção voltada ao público feminino? Muita literatura promovendo um revisio-
nismo feminista das obras já produzidas até então ressaltam a ideia de que
não existiria uma narrativa universal, pois, como diz a filósofa Djamila Ri-
beiro, é um equívoco acreditar que uma pessoa, ao produzir conhecimento
a partir do seu lugar social, poderia se pretender neutra, universal e pudesse
abarcar as complexidades culturais e sociais que existem no mundo, afinal,
como uma única visão de mundo, centrada em um conhecimento acessado
por uma minoria dominante, poderia ser capaz de “julgar todo tipo de co-
nhecimento originado de diversas localizações culturais e sociais?”. Não
só isso, ainda que certos temas fossem mais facilmente identificáveis como
femininos, o que aconteceria às pessoas de outros gêneros ao conhecerem
perspectivas diversas sobre um determinado assunto, além de se tornarem
mais empáticas? Também é preciso ter em mente que as artistas podem
ter como principal objetivo de suas publicações a livre expressão de seus
sentimentos, ou seja, não deveriam se preocupar em agradar um núme-
ro significativo de pessoas apenas visando o lucro, até porque, em termos
editoriais, dados de sites especializados em vendas de livros e quadrinhos
comprovam que a venda de produtos de nicho somada é maior do que a
venda individual de best sellers, por exemplo.

5. Publicações e eventos exclusivos são segregatórios: em um artigo de


2012, no Los Angeles Times, Women in Comics and the Tricky Art of Equa-
lity, a escritora Noelene Clark relata que as mulheres em geral não têm a
mesma visibilidade em comparação com os seus colegas do sexo mascu-
lino. Embora os quadrinhos sejam produzidos em massa, eles espelham
os discursos machistas e racistas encontrados em diversos âmbitos da so-
ciedade. Clark reforça que as mulheres estão cansadas de discutir sua pre-
sença nos quadrinhos, em vez da legitimidade de sua arte, e que, por isso,
já passou da hora de pararmos de dizer “Ah, meu Deus, existem mulheres

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nos quadrinhos!”. No entanto, ao menos no que diz respeito ao Brasil, a
ausência das mulheres nos eventos, publicações e prêmios indica que pro-
jetos como Mulheres & Quadrinhos seguirão sendo necessários enquanto
os equívocos mencionados continuarem sendo reproduzidos, pois são esses
equívocos que promovem uma segregação real, que é a das mulheres do
mercado editorial dos quadrinhos no Brasil.
Sabemos que entre as várias funções da ficção, uma delas é a de
nos propiciar recursos para que possamos interpretar a realidade que nos
cerca. Narrativas, ficcionais ou não, nos contam muito sobre quem somos,
sobre nossos medos e angústias, sobre nossos sonhos e expectativas. Por
isso, as histórias em quadrinhos, ainda que tenham sido popularizadas em
um contexto conhecido como cultura de massa, integram um apanhado de
expressões artísticas que nos trazem entretenimento, reflexão, aventura,
diversão, crítica e mais uma infinidade de emoções que nem sempre são
compartilhadas igualmente por todos os seus leitores, afinal, as pessoas
partem de vivências diferentes que muitas vezes não são representadas nes-
sas histórias.
Muitas das narrativas consideradas universais, na verdade, partiam
de um pressuposto que um pequeno grupo de pessoas, majoritariamente
formado por homens brancos, julgava ser ou não universal ou que poderia
contemplar todos os seres humanos, independentemente de suas vivências,
histórias, realidades... Isso significa dizer que, por muitas vezes, vários
grupos cujos integrantes não guardavam qualquer semelhança com esses
homens brancos, não se sentiam representados nessas histórias.
Bom, se as narrativas nos ajudam a construir a noção que temos
de nós mesmos, o que aconteceria se ao longo da história da humanidade
certas pessoas nunca se vissem representadas nesses espaços? O que acon-
teceria se o mundo e todas as produções indicassem que você não existe ou,
quando existe, é sempre de uma maneira estereotipada e pejorativa?
As consequências da ausência de pessoas nas histórias ou de sua
subrepresentatividade têm sido objeto de estudos de acadêmicos e pes-

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quisadores de diversas áreas do conhecimento, e os quadrinhos não ficam
fora deles. Considerados por muito tempo como subliteratura ou uma ex-
pressão artística inferior, os quadrinhos enfrentaram muita resistência até
passarem a ser reconhecidos como uma linguagem e uma mídia legítima e
esse processo pode ser observado a partir da pesquisa de Beatriz Sequei-
ra de Carvalho, em sua dissertação de Mestrado intitulada O processo de
legitimação cultural das histórias em quadrinhos (2017). No entanto, por
estarem inseridos em contextos sociais onde o machismo, o racismo e a
homofobia se fazem tão presentes, não é de se estranhar que essas mesmas
lógicas sejam encontradas na produção das HQ, influenciando de maneira
significativa não só a criação e circulação, mas a maneira que consumimos
esses materiais.
Por isso, o trabalho de integrantes dos grupos que nunca se sentiram
representados na Nona Arte, tem sido fundamental para que suas histórias
cheguem até um público que encontra, principalmente na produção inde-
pendente, obras que dialogam com suas experiências. Entre esses grupos,
estão as mulheres e seus coletivos, que têm buscado por meio da autopubli-
cação e da publicação em sites e redes sociais, conseguir maior visibilidade
em um meio que as segrega em função de gênero e orientação sexual.
Para que a realização desse projeto fosse possível, foi preciso que
outras mulheres antes de nós trilhassem um caminho tortuoso envolvendo
muitas batalhas para que quadrinistas conseguissem algum espaço em an-
tologias, indicações em prêmios e participação em eventos. Desde Trina
Robbins, com sua pesquisa sobre as cartunistas estadunidenses, e Sonia
Luyten, uma das mais importantes pesquisadoras de quadrinhos do mundo
e que assina nosso prefácio, às precursoras como Nair de Teffé, Pagu, Hilda
Weber, Ciça Pinto e tantas outras no Brasil e no mundo, aos coletivos como
Lady’s Comics, Minas Nerds, Fanzinada, Zine XXX, Mulheres em Quadri-
nhos, Mina de HQ e vários outros espalhados pelos quatro cantos do país,
foi graças ao esforço contínuo dessas pioneiras que conseguimos conectar
todas as autoras envolvidas nesse projeto, que conta com 120 mulheres li-

10
gadas aos quadrinhos, entre ilustradoras, roteiristas, letristas, editoras, jor-
nalistas, pesquisadoras, coloristas...
Então, muito obrigada por apoiar e divulgar o trabalho dessas mu-
lheres presentes no livro, assim, em breve talvez as pessoas não se surpre-
endam mais com sua ausência nos espaços, mas se encantem com a quali-
dade e diversidade de suas produções.
Muito Obrigada!

Dani Marino e Laluña Machado


Organizadoras

11
SUMÁRIO

INTRODUÇÃO
Dani Marino e Laluña Machado....................................................................006
A VULNERABILIDADE COMO RESISTÊNCIA POLÍTICA EM DESCONSTRUINDO
UNA
Raquel Vitorelo..............................................................................................013
“SE VOCÊ NÃO DORMIR, AS FEMINISTAS VIRÃO”: HUMOR GRÁFICO FE-
MINISTA E PODER NA EMERGÊNCIA DOS FEMINISMOS NO CONE SUL
Cintia Lima Crescêncio...................................................................................022
O DEVIR-MONSTRO EM MY FAVORITE THING IS MONSTERS
Alice Grosseman Mattosinho.........................................................................041
MAGRA DE RUIM E AS (RE) INVENÇÕES DE SI
Mariana Souza Paim.....................................................................................057
A MULHER E OS EVENTOS DE QUADRINHOS: UMA CARTOGRAFIA
Keli Vasconcelos.............................................................................................072
RECORTES DA PRODUÇÃO DE SHOUJO MANGÁ NO BRASIL
Mariana Petrovana Ferreira da Silva.............................................................078
LIBERTE-SE!!
Sabrina da Paixão Brésio...............................................................................098
AS NARRATIVAS VISUAIS URBANAS FEMINISTAS E LGBT
Thais Linhares................................................................................................111

SILÊNCIOS NO PASSADO: QUANTITATIVO DE PRODUÇÃO DE QUADRI-


NISTAS MULHERES NA REVISTA METAL PESADO (1997)
Luana Balieiro Cosme....................................................................................131

Arte de Ana Livia Cardoso


A VULNERABILIDADE COMO
RESISTÊNCIA POLÍTICA EM
DESCONSTRUINDO UNA
Raquel Vitorelo
(Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP)

O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoa-


mento de Pessoal de Nível Superior - Brasil (CAPES) - Código de Financia-
mento 001, e é parte de uma dissertação de mestrado desenvolvida no curso
de pós-graduação em Comunicação e Semiótica na PUC-SP.

Publicado originalmente sob o título de Becoming Unbecoming em


2015 na Inglaterra, Desconstruindo Una (editora Nemo, 2016; 208 páginas)
é uma obra autobiográfica da artista Una, que narra sua trajetória da in-
fância à vida adulta, permeada tanto pelas violências sexuais que sofreu,
como pelo entrelaçamento com o caso do estripador de Yorkshire (1972),
cuja investigação policial é hoje criticada por uma série de erros e deslei-
xos, muitos deles associados ao fato de que a maior parte das vítimas do
estripador eram mulheres de “moral questionável” (UNA, p. 204). A au-
tora fundamentou-se principalmente no ensaio There’s Only One Yorkshire
Ripper de Joan Smith. Neste trabalho, propõe-se a análise das estratégias
estéticas empregadas na obra e sua eficiência enquanto colocação política,
partindo da noção de vulnerabilidade proposta em Vulnerability In Resis-
tance (BUTLER; GAMBETTI; SABSAY, 2016), onde a vulnerabilidade con-
figura novas estratégias de resistência, indo assim contra a ideia de que a
vulnerabilidade se opõe ao agenciamento político. Dessa forma, no livro a

13
resistência pode se dar através de exposições artísticas, protestos silenciosos
e não-violentos, em um texto que se dá pelos relatos pessoais das próprias
autoras, indo contra a linguagem convencional do discurso acadêmico. Su-
gere-se aqui, principalmente, um paralelo entre o capítulo escrito por Ma-
rianne Hirsch (2016) e a HQ analisada.

Do ponto de vista técnico, Desconstruindo Una é composto quase em sua


totalidade por desenhos em tinta preta, transparências em tons de cinza, e
preenchimentos mais pontuais em cores chapadas, principalmente verme-
lho; há também alguns detalhes e ilustrações em lápis, e páginas dedicadas a
pinturas em técnica aguada. Imagens que simulam recortes de jornal trazem
manchetes e textos publicados na época dos assassinatos. Indo além de uma
possível análise voltada para a mistura de características de várias mídias,
observa-se que por estarem lado a lado com episódios da vida de Una, o que
interessa à autora é pontuar e ilustrar como as pessoas e acontecimentos à
sua volta a moldaram.

Assim, a obra conduz o leitor entre elementos que são justapostos


tanto na composição de uma única página, como também entre uma página
e outra: o relato verbal da autora; os trechos em quadrinhos (com requadros,
balões de fala, nuvem de pensamento etc.); e as ilustrações que, descoladas
da lógica sequencial dos quadrinhos, funcionam como metáforas visuais
estáticas (Figura 1).
Figura 1 - Metáfora visual em Desconstruindo Una

Fonte: UNA (2016, p.16).

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Essas ilustrações são intermitências da narração e recorrem ao re-
pertório do leitor para dar significado à metáfora, num processo semelhante
ao dos livros ilustrados (NIKOLAJEVA; SCOTT. 2011). A maior parte da
narrativa se dá em quadrinhos, contudo, ressalta-se a apropriação dramá-
tica feita pela autora dos signos gráficos típicos das HQs: elementos como
balões de fala e pensamento ganham dimensão física e interagem com a
personagem, que se vê incapaz de falar sobre as violências que sofreu - a
voz que a princípio “flutua” e carrega a menina, passa a ser literalmente um
fardo, como um saco em suas costas (Figura 2, Figura 3 e Figura 4).
Figura 2 - Capa da versão brasileira Figura 3 - Apropriação dramática dos
de Desconstruindo Una signos gráficos dos quadrinhos

Fonte: UNA (2016). Fonte: UNA (2016, p. 164).

Essa imagem relaciona-se diretamente a um dos temas centrais da


obra: o silenciamento de vítimas de abuso sexual. Na experiência pessoal
de Una, um de seus abusadores se certificou de que ela não o denunciaria
ao intimidá-la alguns dias após o ataque, e o próprio momento do abuso
é representado pela autora de forma quase cartográfica, planejada (Figura
5). No caso do estripador de Yorkshire, uma jovem agredida reconheceu
o estripador no retrato falado de outras mulheres em 1975; contudo, seu

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depoimento foi desconsiderado pelos investigadores, pois ela não se pare-
ceria com uma “prostituta” e, portanto, o estripador não teria interesse em
matá-la. Peter Sutcliffe só seria preso em 1981 por acaso, após uma patrulha
identificar que a placa de seu carro era roubada. Descobriu-se então que
Sutcliffe já havia sido entrevistado pela polícia diversas vezes durante a in-
vestigação e, ao colocar lado a lado os 92 retratos falados de crimes sexuais
cometidos em West Yorkshire desde 1972, era possível reconhecer seu rosto
em vários desenhos.

Figura 4 - O balão de fala se Figura 5 - “Cartografia”


torna um fardo do abuso

Fonte: UNA (2016, p. 25). Fonte: UNA (2016, p. 86).


Entende-se que o motivo de Sutcliffe ter sido descartado como sus-


peito em diferentes ocasiões seria o fato de que os perfis que os investigado-
res e a imprensa tinham tanto do criminoso como das vítimas não tinham
fundamento. Sutcliffe era um “homem casado comum” (p. 146), descrito
pelos vizinhos como “um homem amável” (p. 154), e foi liberado todas as
vezes em que foi interrogado porque seu comportamento não condizia com
a imagem de um criminoso cruel que havia sido construída em torno do
estripador (Figura 7).

A suposta preferência do criminoso por prostitutas foi assumida pe-


los investigadores de forma arbitrária, que chegaram a se referir às vítimas
como “prostitutas ou mulheres de moral questionável” no dossiê policial (p.

16
204), negligenciando assim outras vítimas de Sutcliffe que não se encaixa-
vam nesse perfil subjetivo, e encorajando a imprensa e o público a fazer um
julgamento moral das vítimas.
Figura 6 - Imagens da mulher Figura 7 - Imagens do homem

Fonte: UNA (2016, p. 106). Fonte: UNA (2016, p. 151).


A postura dos investigadores e da imprensa refletem o que Una so-


freu durante a infância e adolescência ao ser taxada de “vadia” por conta de
um comportamento considerado inapropriado e que, na realidade, era con-
sequência dos abusos cometidos contra ela. Incapaz de frequentar a escola
por conta dos traumas e ao fazer tratamento psiquiátrico, Una se tornaria
“uma testemunha não confiável e uma vítima perfeita” (p. 82), ou seja, o alvo
ideal de predadores sexuais, que geralmente são descritos como charmo-
sos e confiáveis antes de demonstrar comportamento hostil. Dessa forma,
a própria vítima passa a ser responsabilizada pela violência que sofreu, e o
receio de ser considerada mentirosa (por ser “vadia”, “má”, e assim mere-
cedora do abuso) ou louca (a “testemunha não confiável”) contribui ainda
mais para seu silenciamento. Essa simplificação grosseira do perfil de víti-
mas e abusadores é ilustrada em dois momentos do livro: primeiro, quando
Una descreve como os traumas que passou tiveram efeitos incapacitantes

17
e a subsequente falta de compreensão de sua família (Figura 6); segundo,
quando o livro finalmente descreve a prisão de Sutcliffe (Figura 7). Essas
duas figuras são análogas ao entendimento de Cagnin (2004) da relevância
nos quadrinhos do contexto intraicônico, e da relação dos elementos que
constituem o desenho - a mudança de um deles pode alterar o significado
de todo o conjunto (Figura 8). Semelhantemente, os códigos ilustrados por
Una se referem às expectativas arbitrárias de gênero, e satirizam a classifi-
cação simplista da investigação, desenvolvida sem basear-se em evidências,
mas em hábitos e características das vítimas, como o hábito de beber que era
o suficiente para considerar sua moral “questionável”.

Figura 8 - O contexto intraicônico

Fonte: CAGNIN (2014, p. 63).

A autora ainda faz referência a diversas figuras marcantes do ima-


ginário feminino, como a figura da histérica (p. 108, com ilustração basea-
da em fotografias de 1876 - 18801), a pintura Judite decapitando Holofernes
de Artemisia Gentileschi (ela mesma uma vítima de abuso), e a Ofélia de
Shakespeare (com um desenho baseado na pintura de John Everett Millais),
retratando-se como protagonista de cada imagem. Após os abusos sofridos
e diante das consequências do trauma, Una passa a se sentir desconfortável
em seu próprio corpo, transformada em algo que não reconhece. Os autor-
retratos da autora colocam seu rosto em ilustrações detalhadas de insetos,
cujos desenhos reproduzem referências a anatomia humana: o clitóris, a
1 BOURNEVILLE; RÉGNARD, Paris: 1876 - 1880. Disponível em <http://www.loc.gov/
exhibits/freud/freud02.html#obj035>, acesso em 03 de março de 2019.

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vulva e a vagina.
Figura 9 - Autorretrato de Una Figura 10 - Autorretrato de Una

Fonte: UNA (2016, p. 40). Fonte: UNA (2016, p. 41).


Ao reconhecer-se nessa forma monstruosa, com as asas apenas “de-
corativas”, Una ilustra seu percurso através da infância e adolescência arras-
tando um par de asas inúteis. É somente ao fim de sua jornada que a perso-
nagem se vê capaz de dar função a essas asas e literalmente voar para longe
de sua antiga vida, após a resolução do caso do estripador e após abdicar de
seu próprio nome, tornando-se “Una”: “uma vida, uma de muitas...” (p. 10).
O que a princípio era uma fuga do passado e da “reputação” com a qual foi
rotulada, se tornaria então o caminho para construir uma nova vida. Con-
tudo, ao final do livro, Una ecoa suas primeiras páginas:

Enquanto eu crescia, treze mulheres perderam a


vida por causa de um homem. Não há um memorial
para elas. Elas existem apenas na memória de seus
entes queridos... Ou como retratos embaçados nos
inúmeros livros e websites feitos por pessoas fasci-
nadas pelo homem que as matou. Um de muitos.
(p. 169)

19
As páginas finais do livro dedicam-se a ser o memorial que essas
vítimas nunca tiveram: ao perguntar-se o que essas mulheres estariam fa-
zendo hoje, Una retratou-as sem limitá-las a vítimas, mas sim como pessoas
completas, refletindo a vida que poderiam ter vivido. Una optou por de-
senhá-las em situações corriqueiras e que seriam absolutamente banais, se
não representassem o exercício do direito à vida que lhes foi negado.

Figura 11 - Memorial

Fonte: UNA (2016).

Os retratos que a autora faz dessa “história potencial” são extrema-


mente poderosos e delimitam, por um lado, a permanência inexorável do
trauma e, em contraposição, a temporalidade flexível e, portanto, manejável
que a vulnerabilidade permite. Esse conceito proposto por Hirsch (2016)
está associado às possibilidades de uma estratégia estética que conduz diá-
logos sobre memória, trauma e história, mas sem causar uma noção de em-
patia ou identificação distante, apática. Ao justapor o caso do Estripador de
Yorkshire e sua própria vivência, Una compõe uma temporalidade narrativa
própria que evidencia a urgência de uma violência que acontece hoje e surge
com uma violência histórica que claramente não está superada.

20
Bibliografia
CAGNIN, Antonio Luiz. Os Quadrinhos: um estudo abrangente da arte se-
quencial: linguagem e semiótica. São Paulo: Criativo, 2014.
EISNER, Will. Quadrinhos e Arte Sequencial. São Paulo: Martins Fontes,
1989.
EISNER, Will. Narrativas Gráficas. São Paulo: Devir, 2005.
HIRSCH, Marianne. Vulnerable Times. In: BUTLER, Judith; GAMBETTI,
Zeynep; SABSAY, Leticia (ed.). Vulnerability in resistance. Durham and
London: Duke University Press, 2016.
MCCLOUD, Scott. Desvendando os Quadrinhos. São Paulo: Makron
Books, 1995.
NIKOLAJEVA, Maria; SCOTT, Carole. Livro ilustrado: palavras e imagens.
São Paulo: Cosac Naify, 2011.
UNA. Desconstruindo Una. São Paulo: Nemo, 2016.
VAN DER LINDEN, Sophie. Para ler o livro ilustrado. São Paulo: Cosac
Naify, 2011.
VERGUEIRO, Waldomiro. “A Contribuição de Antonio Luiz Cagnin aos
estudos sobre a linguagem dos quadrinhos no Brasil”. In: VERGUEIRO, W.;
SANTOS, R. E. (Org.). A Linguagem dos Quadrinhos: estudos de estética,
linguística e semiótica. São Paulo: Criativo, 2015.

21
“SE VOCÊ NÃO DORMIR, AS FEMINIS-
TAS VIRÃO”: HUMOR GRÁFICO FEMI-
NISTA E PODER NA EMERGÊNCIA DOS
FEMINISMOS NO CONE SUL
Cintia Lima Crescêncio
UFMS
cintia.crescencio@ufms.br

O ato de escrever, para as mulheres, sempre foi uma forma de afir-


mar-se como sujeito autônomo, capaz. Olympe de Gouges, no final do sé-
culo XVIII, destacava que escrever, e ver-se publicada, era uma obsessão
e uma forma das mulheres mostrarem que eram autoras, mesmo que a lei
não as considerasse cidadãs de direitos e, menos ainda, capazes de produzir
arte, conhecimento (SCOTT, 2002, p. 74-76). O ato de produzir conteúdo
para rir, articulado à ideia da escrita, é assumir uma posição de poder e de
controle, é colocar-se em uma posição de superioridade, é reconhecer que
se tem autoridade para falar e ser ouvida, escrever e ter seus textos lidos,
desenhar e ter sua arte apreciada, fazer humor e fazer o outro rir. Tal ato foi
assumido por feministas de países do Cone Sul a partir da década de 1970,
momento de emergência dos feminismos nesses países em contexto de dita-
duras. Através da imprensa feminista, fenômeno do período, o humor gráfi-
co feminista foi explorado como forma de luta e de afirmação do poder das
mulheres. É sobre isso que esse texto pretende refletir1.

1 Este texto é resultado de minha tese de doutorado, defendida no Programa de Pós-Gra-


duação em História da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), e contou com o financiamen-

22
Para as mulheres o ato de tomar para si o lugar de sujeito assertivo,
que provoca o riso, é por si só um ato de transgressão, na medida em que
essa ação ignora a premissa das mulheres como sujeitos passivos e, princi-
palmente, sem senso de humor. A ação de deslocamento do sujeito que é
alvo do humor para o sujeito que ri é, por si só, subversora e a iniciativa de
produzir humor a partir da perspectiva das mulheres tem, definitivamente,
resultados diversos. Não é coerente afirmar de maneira categórica que o
humor das mulheres e o humor feminista é sempre revolucionário. Assim
como os homens, elas são capazes de produzir humor depreciativo – inclu-
sive autodepreciativo – e baseado nos estereótipos mais cruéis. Contudo,
dadas as justificativas históricas e científicas que rondam o senso de humor
das mulheres, é importante pontuar que a tomada de lugar, ou melhor, que
a tomada do humor é um ato de autoridade assumido por elas.

Freud, em estudos menos conhecidos, dedicou importantes refle-


xões para explicar as nuances psicológicas que envolviam o chiste, categoria
que seria englobada pelo conceito de humor. Em sua obra O chiste e sua re-
lação com o inconsciente ele deu pistas que motivaram muitos estudos sobre
o riso. Entretanto, no que se refere às mulheres, o pai da psicanálise aponta
que elas têm estrutura psíquica menos complexa, uma vez que nosso supe-
rego não teria domínio suficiente sobre o ego a ponto de permitir que nosso
senso de humor aflore (FREUD, 2002).

Muitas atrizes especialistas em comédias, cartunistas, escri-


toras e comediantes ficariam felizes em voltar no tempo e mostrar
a ele que tal discurso, e de muitos outros, pode ser facilmente con-
testado. As mulheres não só riem, como produzem humor. Os câno-
nes, frequentemente apoiados em discursos científicos como o de
Freud, é que as têm insistentemente ignorado.

Segundo Nancy Walker, o discurso que tem negado às mulheres

to do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) e da Coordenação de


Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES).

23
senso de humor é o mesmo que, por muito tempo, – principalmente du-
rante o século XIX – questionou sua capacidade intelectual com base em
argumentos de clérigos, de cientistas, de filósofos. Estando inteligência e
senso de humor interligados, parece bastante claro que “[...] quem negou
o senso de humor das mulheres, por conseguinte, começou negando-lhes a
capacidade de pensamento lógico” (WALKER, 1988, p. 82, tradução livre)2.
Assim como muitos outros discursos que, apesar da necessidade de serem
repetidamente reforçados, figuram como verdades e constituem as vivências
das mulheres, o esforço de provar sua inabilidade de rir, e principalmente de
fazer rir, precisam hoje ser desconstruídos. Um vasto universo de produções
de mulheres que fazem uso do humor questionam tais premissas e isso vale
para diversos contextos, incluído o dos países do Cone Sul das décadas de
1970-1980.

Para Ricky Goodwin (2011), o humor gráfico que emergiu com for-
ça nos anos 1950 no Brasil e se fortaleceu nas décadas seguintes, foi um
campo dominado por homens. É difícil negar tal afirmação, uma vez que
ela se refere ao domínio de um campo. Contudo, é motivo de desconfiança
a inexistência de mulheres na extensa lista de cartunistas reconhecidos cita-
dos pelo autor em um intervalo de quase 50 anos. Reconhecer o domínio do
campo como masculino não pressupõe ignorar mulheres cartunistas que,
na época, eram sim reconhecidas. Ciça, Mariza, Cahu, Hilde Weber, Crau
são alguns exemplos.

É sempre perigoso que a invisibilidade de produções assinadas por


mulheres, incluída aí as humorísticas, seja naturalizada, afinal, se o campo
é dominado por homens, é porque as mulheres não contribuíram com esse
campo (CRESCÊNCIO, 2018). As fontes nos mostram o contrário. Presumir
que o campo do humor é masculino, é assumir que só conhecemos metade
dessa história. Nancy Walker (1988), referindo-se ao humor estadunidense,

2 “[…] who deny woman the sense of humor thus have begun by denying her capacity for
logical thought”.

24
afirma que o que muitos entendem por humor estadunidense é, na verdade,
o humor masculino dos Estados Unidos. Chegamos a conclusão parecida
quando lançamos um olhar atento ao humor gráfico brasileiro e dos outros
países do Cone Sul.

Regina Barreca, refletindo sobre a invisibilidade do humor assinado


por mulheres, afirma que “O homem que teme o riso das mulheres é o ho-
mem que teme o poder das mulheres” (BARRECA, 1991, p. 130, tradução
livre)3. A citação pode facilmente ser apropriada como uma premissa e ade-
quada a muitas outras realidades vividas por diferentes mulheres em varia-
dos tempos. Para as mulheres sempre foi uma luta, e não um direito natu-
ralmente concebido, o de protagonizar espaços de fala. O fazer humor nada
mais é que ser protagonista, assumir o controle e, de certo modo, o domínio
de um campo que tem sido entendido, desde sempre, como um domínio
masculino. Uma série de discursos tem construído e naturalizado a inapti-
dão das mulheres para a produção de humor em toda e qualquer modalida-
de, o que tem relação direta com a invisibilização do humor produzido por
elas.

O humor, sendo uma ação considerada assertiva, de imposição,


tornou-se uma espécie de oposição ao “feminino”, uma vez que uma das
características que marcariam as mulheres, seria exatamente a passividade
(WALKER, 1988). As leitoras mulheres certamente estão se questionando
sobre essa premissa. Todas nós estamos perfeitamente habituadas a rir e rir
muito, assim como não é novidade, para nós, que somos capazes de causar o
riso de outras pessoas, especialmente de outras mulheres. O humor gráfico
difundido na imprensa feminista durante a emergência dos feminismos do
Cone Sul confirma essa habilidade. Há uma vasta produção com autoria de
mulheres e com uma perspectiva feminista dedicada também a mulheres.
O problema é que, apesar de integradas a uma vivência que inclui homens e
mulheres, nossas sociabilidades que envolvem o humor são compartilhadas

3 “The man who fears the laughter of women is the man who fears the power of women”.

25
majoritariamente com outras mulheres, sendo elas feministas ou não. As-
sim, espelhado na cultura, o humor é demarcado pelo gênero, tanto em sua
produção como na forma de reagir a ele.

Variadas produções que têm enfoque no humor sinalizam os demar-


cadores de gênero que atravessam os modos de rir e fazer rir. O humor feito
por mulheres, seja ele com perspectiva feminista ou não, se comunica de
maneira diferente com o mundo, tanto do ponto de vista temático, quanto
na abordagem. De acordo com Nancy Walker, “[...] o humor das mulheres
se desenvolve sob uma premissa diferente: elas vivem em um mundo que
não é feito por elas, e frequentemente não as agrada, então suas táticas de-
vem ser de sobreviventes ao invés de salvadoras” (WALKER, 1988, p. 36,
tradução livre)4. Se a sociabilidade das mulheres é distinta da dos homens e
se sua relação com o mundo é diferente, suas formas de significar esse mun-
do provocam marcas inegáveis, e até essenciais, nas suas formas de lidar
com o humor.

Muitos foram os teóricos que se debruçaram sob o conceito de hu-


mor na tentativa de defini-lo, explicá-lo, sistematizá-lo. Há uma série de
debates que procuram decidir qual seria o termo mais adequado para lidar
com tudo aquilo que faz rir: comédia, chiste, cômico, ironia, riso, humor
etc. Nenhum desses esforços, no entanto, parece suficiente quando o olhar
é lançado para uma produção humorística que leva a assinatura de mulhe-
res feministas. Umberto Eco, no entanto, parece ter chegado perto de uma
definição que contempla a necessidade de pensarmos no humor como, no
mínimo, revolucionário e que, portanto, adequa-se aos desejos feministas.

Umberto Eco faz uma importante distinção entre a comédia produ-


zida na antiguidade, que funcionava como um reforço das leis, uma lem-
brança recorrente de quem está no poder, uma máscara de permissividade e
o humor, esse sim um instrumento de mudança em potencial.
4 “[...] women’s humor develops from a difference premise: the world they inhabit is not of
their making, and often not to much their liking, so their tactics must be those of survivors rather
than those of saviors”.

26
O humor não simula, como o carnaval, conduzir-nos
além dos nossos próprios limites. Ele nos dá o sentimen-
to, ou melhor, a imagem da estrutura dos nossos limites.
Ele nunca é fora dos limites. Ele enfraquece os limites
por dentro. Não procura uma liberdade impossível, mas
é um verdadeiro movimento de liberdade. Humor não
nos promete a libertação: pelo contrário, ele nos alerta
sobre a impossibilidade de libertação global, lembran-
do-nos da presença de uma lei que não temos razão de
obedecer. Essa lembrança enfraquece a lei (ECO, 2011,
p. 8, tradução livre)5.

Para o autor o humor é um movimento de liberdade, embora ele não


a garanta. O humor como instrumento não faz uma promessa de libertação,
mas ele reforça a existência da lei e a não obrigatoriedade de vivermos sob
ela. O humor feminista produzido por cartunistas no Brasil e nos países
vizinhos, definitivamente, é um movimento legítimo de libertação que em
diferentes níveis evidencia a existência de uma lei/cultura que não só não
beneficia as mulheres, como as pune pelo simples fato de serem mulheres.

A charge em destaque é um excelente exemplo para ilustrar essa


concepção de humor que se diferencia profundamente do que é produzido
e publicado, por exemplo, por cartunistas homens na década de 1970. Na
imagem, uma mulher com o corpo curvado se esforça para segurar com as
próprias costas algo que parece um globo terrestre, enquanto o homem é re-
presentado de postura ereta, olhos revirados – olhar típico de quem está dis-
farçando um mau comportamento – e usando apenas uma ponta do dedo
para sustentar o mesmo globo.

5 “Humor does not pretend, like carnival, to lead us beyond our own limits. It gives us the
feeling, or better, the picture of the structure of our limits. It is never off limits, it undermines limits
from inside. It does no fish for an impossible freedom, yet it is a true movement of freedom. Humor
does not promise us liberation: on the contrary, it warns us about the impossibility of global liber-
ation, reminding us of the presence of a law that we no longer have reason to obey. In doing so it
undermines the law”.

27
Imagem 1 – Autoria Ilegível. Mulherio, Brasil, março-agosto de 1986.
Edição 25, p. 17.

A postura do homem pode ser analisada em níveis diversos, já que


nesse momento são muito comuns as representações do masculino relacio-
nadas à passividade e à acomodação, como os inúmeros pais de família que
figuravam nas charges sentados em confortáveis poltronas, lendo jornais em
frente à televisão enquanto as mulheres cuidam de filhos e da casa. A lei que
é questionada é a cultura sexista que rege o mundo e beneficia homens em
detrimento de mulheres que têm jornada dupla de trabalho, sofrem violên-
cia em números sempre crescentes, têm suas vidas sexuais e reprodutivas
reguladas.

O riso provocado pela charge, contudo, não é qualquer riso, é um


riso muito parecido com o que costuma ser provocado por produções hu-
morísticas de minorias políticas. Esse riso é um riso triste, um riso de des-
coberta como aponta Eco: “Nós sorrimos porque nos sentimos tristes por
temos descobertos, por apenas um momento, a verdade” (ECO, 2011, p. 8,
tradução livre).6 O riso seria, nessa abordagem, resultado de um lampejo

6 “We smile because we feel sad for having discovered, only for a moment, the truth”.

28
de plena consciência das injustiças do mundo. O riso feminista é, em sua
maioria, um triste riso de descoberta, como bem demonstra a tira de Sylvia
Bruno.

Imagem 2 – BRUNO, Sylvia. Persona, Argentina, dezembro de 1974.


Edição 3, p. 30.

A tira de Sylvia Bruno parece ilustrar com ainda mais perfeição a


menção à lei a qual Umberto Eco se refere, lei que, vale reforçar, pode ser
traduzida como a cultura que subjuga mulheres e o “feminino” aos homens
e ao “masculino”.

No primeiro quadro quatro personagens debatem a distribuição de


direitos e deveres: “– Sostengo que es un derecho. – Sostengo que es un
dever. – Sostengo lo que sostuve. – Sostengo lo que sostengo.” O debate é
ilustrado por dedos em riste, olhares bravos e uma postura aparentemente
agressiva. No quadro seguinte, abaixo da discussão empreendida por perso-
nagens que concluímos serem homens, uma personagem mulher, estrate-
gicamente demarcada por símbolos que nos fazem reconhecê-la como tal,
é representada sentada e com um balão de pensamento que informa seu
desejo mais íntimo: “Me pergunto quien les ortogo el ‘derecho’ e ‘deber’ de

29
decidir sobre mi persona”.

A conclusão de que as mulheres não legislam sobre suas próprias


vidas, inclusive, adequa-se ao uso da expressão lei proposta por Eco, mas
também reitera o fato de que uma lei que não nos atende, não precisa ser
respeitada. Nesse caso o feminismo, estampado na pele da personagem que
lamenta a trágica realidade das mulheres argentinas, mas também de todas
nós, emerge como um movimento não apenas legítimo, como necessário, de
contestação da lei, uma vez que a descoberta e o riso triste nos fazem per-
ceber “[...] a falta de sentido de viver sob uma lei, qualquer lei” (ECO, 2011,
p. 8, tradução livre)7. Se a cultura não nos contempla, não precisamos nos
submeter a ela e o humor feminista, definitivamente, é uma excelente forma
de contestá-la. A tristeza causada pelo lampejo de consciência emerge junto
a um sentimento de revolta e incômodo. Conforme Regina Barreca, é esse
sentimento que inspira o desejo de mudança.
Esse tipo de comédia é arriscada. É confrontacional e
rompe limites uma vez que você vai embora sentindo-
-se brava mesmo que você ria. Esse tipo de comédia não
encerra os sentimentos de impotência das mulheres –
ao invés disso ela sublinha a natureza política do papel
das mulheres. Ela nos deixa ainda mais determinadas a
transformar aqueles aspectos de nossa situação que nos
confina. É uma comédia que inspira e também entretém
(BARRECA, 1992, p. 14-15, tradução livre)8.

O humor com viés feminista é, portanto, um humor que ameaça a


ordem vigente, desestabiliza a norma, desafia a autoridade, reforça a impor-
tância de se repensar uma estrutura política, social e cultural que é baseada
na evidente desigualdade entre homens e mulheres (CRESCÊNCIO, 2019).
Para Barreca esse tipo de humor inspira e entretém: “Humor feminista […]
7 “ [...] the uneasiness of leaving under a law – any law”.
8 “Such comedy is risky. It’s confrontational and boundary breaking since you walk away
feeling angry even as you laugh. This sort of comedy does not do away with women’s feelings of
powerlessness – instead it underscores the political nature of a woman’s role. It should make us even
more determined to change those aspects of our situation that confine us. It is comedy that inspires
as well as entertains”.

30
ri da própria ideia da desigualdade de gênero numa tentativa de tornar essa
desigualdade algo absurdo e impotente” (WALKER, 1988, p. 145, tradução
livre)9.

Seguindo uma direção oposta afirma-se o humor autodepreciativo,


considerado umas das formas mais populares de humor entre as minorias,
particularmente mulheres. Regina Barreca elabora forte crítica ao exercício
de tal humor, uma vez que ele não subverte modelos, pelo contrário, ele
apropria-se de estereótipos – por exemplo, de gordas, solteiras – para provo-
car o riso no outro através do riso de si. Ao investir em um riso autorizado
as mulheres estariam apenas reproduzindo velhos modelos.
Se contamos uma piada sobre nós mesmas, nós faremos do ho-
mem heterossexual, branco, patriarcal um parceiro, porque ele
também diverte-se com tais piadas. Ele provavelmente sabe que
não é autorizado a contar essas mesmas piadas, pelo menos não
na companhia de homens e mulheres, mas ainda assim ele di-
verte-se ouvindo-as. Se uma piada, principalmente uma piada
construída com agressividade é direcionada a uma estrutura de
poder diante de um membro da estrutura de poder, entretanto,
os resultados podem ser perigosos (BARRECA, 1992, p. 25,
tradução livre)10.

A crítica da autora reforça o papel conciliador do humor autode-


preciativo produzido por mulheres que, ao provocarem um riso que busca
a concordância da audiência, especialmente a masculina, branca e heteros-
sexual, nada mais faz que aliar o humor hegemônico a “novos sujeitos” do
humor, as mulheres. Embora tal modalidade de humor seja comum, ela não
é frequente no humor com perspectiva feminista. No humor gráfico de pe-
riódicos feministas do Cone Sul o humor é, sem dúvida, dedicado a questio-
nar as estruturas de poder.

9 “Feminist humor [...] laughs at the very idea of gender inequality in an attempt to render
such inequality absurd and powerless”.
10 “If we tell these jokes about ourselves, we’ll make the straight, white, patriarchal man our
pal, because he finds these jokes funny too. He knows at this point that he’s probably not allowed to
tell any of these jokes himself, at least not in mixed company, but he still enjoys hearing them. If a
joke, especially a joke laced with aggression, is directed at the power structure in front of a member
of the power structure, however, the results can be dangerous”.

31
A partir do conceito de humor de Umberto Eco, baseado no movi-
mento de liberdade e na descoberta que resulta em um riso triste, mas reve-
lador, parece coerente presumir que o humor gráfico feminista produzido
nos países do Cone Sul carrega em si uma possibilidade de transgressão.
Mais do que tirar do anonimato o humor feminista produzido abaixo da
linha do Equador, contestando inúmeros paradigmas que desconsideram e
invisibilizam esse tipo de produção, ainda podemos celebrar o fato de que
o conteúdo desse tipo de humor era, e ainda é, potencialmente transforma-
dor. A transformação, por sua vez, não é fruto apenas do riso de descoberta,
eminentemente triste, é também derivado de um riso que celebra, um riso
esperançoso.

A ilustração assinada por Lilita simboliza exatamente essa modali-


dade de humor feminista que se constrói de uma maneira muito específica.
Segundo Regina Barreca, enquanto os homens contam piadas, as mulheres
contam histórias, histórias sobre si e sobre outras mulheres (BARRECA,
1992). Sendo assim, o humor feito por mulheres feministas tem, geralmen-
te, objetivos maiores a serem atingidos.

Imagem 3 – LILITA. Mulherio, Brasil, maio-junho de 1983. Edição 13, p. 20.

Observar a ilustração do Mulherio é reconhecer nela o papel que a


Igreja Católica e o discurso religioso como um todo tem na vida de milhões
de mulheres que têm suas vidas sexuais reguladas, seu direito ao corpo ne-
gado, seu desejo de seguir uma vida religiosa, inclusive, (re)submetido às

32
normas de gênero impostas socialmente. Observar os detalhes da ilustração
é, entretanto, reconhecer a cruz sendo transformada no símbolo do femi-
nino, com tinta, publicamente. As duas mulheres representadas na imagem
mostram satisfação, uma sorri e a outra tem os braços para o alto, sugerindo
felicidade. Celebra-se o poder das mulheres de contestar e mudar a lei.

Tal concepção de lei, que aqui opto por entender como cultura, ser-
ve de maneira muito eficaz para explicar e entender as lutas feministas que
foram empreendidas na segunda metade do século XX no Cone Sul, espe-
cialmente se olharmos para a maneira como o humor gráfico foi explorado
para esses fins.

O humor feminista que não figura nos cânones que celebram a lin-
guagem inédita e satírica fundada por alguns poucos e significativos jornais
alternativos, como aconteceu no Brasil, pode não ter seus melhores mo-
mentos publicados em belas edições de capa dura a venda por uma pequena
fortuna, mas ele é potente e capaz de contestar privilégios e injustiças. Tendo
potencial de transformação, portanto, ele causa medo, sentimento muito co-
mum na sociedade em relação ao feminismo. “Si no te duermes, vendrán las
feministas”, anuncia a charge assinada por Arana e publicada no Mulherio.

Imagem 4 – ARANA. Mulherio, Brasil, junho de 1981. Edição 5, p. 13.

As feministas, desde suas primeiras manifestações, ainda em fins


do século XVIII, causam medo. Era medo que Olympe de Gouges causava
ao afirmar que as mulheres eram tão cidadãs quanto os homens no período

33
pós-revolucionário francês.

Havia medo que as mulheres ingressassem nas universidades. Havia


medo que a elas fosse dado o direito de votar. Havia medo que as mulheres
integrassem de maneira maciça o mercado de trabalho, sob pena dos lares
serem abandonados a própria sorte. Havia medo que as mulheres praticas-
sem esportes porque, biologicamente, isso poderia prejudicar sua fertilida-
de. Havia medo que as mulheres fossem autônomas para controlar sua vida
sexual e reprodutiva. Havia medo que as mulheres se descobrissem sendo
exploradas em jornadas dupla de trabalho e remuneradas com salários me-
nores que os dos homens. Havia medo de mudanças, de perda de privilé-
gios. Havia e há medo.

Os movimentos feministas do Cone Sul, em manifestações humo-


rísticas bastante semelhantes as que aconteciam no mesmo período nos Es-
tados Unidos, no Reino Unido, na França, no México, traziam à tona todos
os medos, frutos do vislumbre de mulheres contestando um sistema social
baseado na desigualdade e na injustiça.

Os mesmos jornais que contêm centenas de charges e tiras contes-


tando os mecanismos que mantêm as mulheres submetidas a um sistema
que não as leva em consideração, contêm também inúmeros textos reite-
rando tal descontentamento. A diferença reside no fato de que usando o
humor explora-se um recurso debochado que se recusa a levar a autoridade
a sério. O humor feminista desqualifica quem se coloca contra os direitos
das mulheres, mas não se trata de uma desqualificação que combina com as
definições de Quentin Skinner (2002), que pressupõe a destruição do ad-
versário. O humor feminista desarma, cria identificação, faz pensar, coloca
em destaque os absurdos aos quais as mulheres são submetidas, causa in-
cômodo, revolta, indignação e desmoraliza quem sustenta esse sistema. De
acordo com Nancy Walker (1988), o humor feito por mulheres – feministas
ou não – é um humor de esperança, que contesta estruturas.

34
No humor feminista produzido por mulheres no Cone Sul, a de-
sigualdade, a injustiça, o machismo são, notadamente, representados por
faces descontentes e furiosas de homens. Alguns personagens podem, even-
tualmente, não ter nenhuma identificação de gênero, mas em sua maioria
o personagem que tem uma premissa questionada, é desenhado com ele-
mentos que o identificam com o masculino. Em tais imagens as mulheres
raramente são representadas como as vilãs da história. O exemplo do jornal
uruguaio La Cacerola se adequa bem a essa importante característica do
humor feminista produzido em forma de arte gráfica no Cone Sul.

Imagem 5 – Autoria Ilegível. La Cacerola, Uruguai. Novembro de 1986.


Edição 6, p. 9.

As personagens da charge não têm muitas identificações de gênero.


Se olharmos apenas para o grupo da esquerda concluímos que não é pos-
sível identificar se são homens ou mulheres. No entanto, um olhar para o
solitário protagonista da direita nos indica que se trata de uma figura que re-
presenta o masculino, a lei. É o bigode o principal elemento de identificação.
Enquanto o grupo sem marcadores de gênero levanta placas celebrando a
paz, a democracia, a felicidade e a liberdade, o personagem solitário celebra
o poder e vocifera: “Feministas!” Na imagem a lei brada enquanto as mili-
tantes mantêm um olhar desconfiado, de canto, de descrença, de increduli-
dade, de estranhamento. Para as personagens “insultadas” de feministas, a
lei não têm sentido.

35
Quem pesquisa humor não tem o dever de explicar porque algo é
engraçado, até porque aprendemos desde sempre que uma piada que pre-
cisa ser explicada perde a graça (WALKER, 1998). A explicação da piada,
do cartum, do chiste, desnuda o gracejo de seu original potencial de fazer
rir. Sendo assim, explicar os motivos pelos quais as mulheres feministas do
Cone Sul riem de certas charges e tiras não é minha intenção. Entretanto, é
crucial procurar entender os assuntos que mobilizam esse humor gráfico, já
que essa compreensão ajuda a iluminar não só as preocupações feministas
do período, como também as formas como essas mulheres procuraram rir
e, como dito anteriormente, colocar em cheque algumas premissas.

Ao narrar a experiência com o humor das mulheres estaduniden-


ses, Nancy Wlaker identifica uma série de características que marcam essa
modalidade de fazer rir. Vale reforçar que, apesar da autora focar no uso do
humor por mulheres escritoras – feministas ou não – ela faz movimentos de
articulação com as mulheres produtoras de humor gráfico, com comedian-
tes etc. Reconhecendo as diferenças na sociabilidade de homens e mulheres
a autora destaca:
[…] as mulheres, como qualquer outro grupo, produ-
ziram humor a partir daquilo que conhecem melhor e
daquilo que as preocupam [...] elas escreveram sobre
vizinhos, relacionamentos, círculos de costura, e crian-
ças. Quando o humor das mulheres foi político, como
aconteceu frequentemente, ele tendeu a focar nos direi-
tos das mulheres – sufrágio até 1920, e outras formas de
igualdade desde que as mulheres conquistaram o direi-
to ao voto [...] o humor das mulheres tem sido menos
agressivo e hostil do que o dos homens [...] por causa de
sua condição desigual na sociedade, as mulheres podem
ser mais conscientes do que os homens […] (WALKER,
1998, p. 32, tradução livre)11.

11 “[...] women – like anyone else, for that matter – have created humor about what they
know best and what concerns they most […] they have written about neighbors, relationships, sewing
circles, and children. When their humor has been political, as it often has, it has tended to focus on
women’s rights – suffrage until 1920, and other forms of equality since women won the right to vote
[…] women’s humor has been less aggressive and hostile than has that of men [...] because of their
unequal position in society, women may be even more conscious than men [...]”

36
A forma de produzir humor assinado por mulheres é identificada
como distinta daquela dos homens, tanto em termos temáticos, quanto do
ponto de vista da forma. Elas, assim como eles, produziram humor sobre
temas que conhecem e as preocupam, no caso da realidade americana: vi-
zinhos, relacionamentos, crianças e questões políticas, como o voto femini-
no e seus desdobramentos pós-sufrágio. É comumente aceito que o humor
produzido por mulheres é menos agressivo que o dos homens. Obviamente
há exceções, e elas não são recusadas, mas em termos gerais é importante
tentarmos compreender as marcas que caracterizam esse humor feito por
mulheres que se desdobra no humor feminista. Nancy Walker finaliza afir-
mando que, em função da posição política, social e econômica das mulhe-
res, elas foram capazes de ser mais conscientes em relação aos homens na
produção do humor. Esta última assertiva pode, certamente, causar contro-
vérsias, no entanto, parece difícil negar que a produção humorística delas
baseou-se com muito mais frequência em questionamentos conscientes e
engajados.

O humor gráfico produzido por mulheres, portanto, é construído


de um modo diferente e podemos estender essa visão ao humor feminis-
ta. Apesar de Regina Barreca (1991) entender que todo e qualquer humor
assinado por mulheres é um gesto feminista, é importante não confundir-
mos, sob o risco da generalização, humor feito por mulheres com o humor
feminista. No entanto, no caso do humor gráfico dos periódicos feministas
que circularam durante as ditaduras no Cone Sul, é tarefa muito comple-
xa, talvez impossível, diferenciar estes dois tipos de humor, uma vez que
muitos dos temas que preocupavam as mulheres feministas eram também
preocupação de mulheres que não se consideravam feministas. É preciso
ter em vista que as fronteiras entre o humor produzido por mulheres femi-
nistas e por mulheres não-feministas são muito fluidas, uma vez que suas
experiências de socialização são muito parecidas. Tal modalidade de humor
rompe barreiras de raça, de classe e, também, barreiras ideológicas, uma vez
que se baseia na identificação.

37
Incongruência tem sido um grande dispositivo para de-
codificar os mitos do patriarcado, porque no humor das
mulheres frustração e raiva, baseadas nas desigualdades
de gênero, tiveram de ser expressas de maneira dissi-
mulada. Expondo as disparidades entre as realidades da
vida das mulheres e as imagens das mulheres promovi-
das pela cultura, entre as desigualdades às quais as mu-
lheres são submetidas e os ideais igualitários aos quais a
nação foi fundada. As humoristas americanas têm como
alvo o sistema patriarcal (WALKER & DRESNER, 1998,
p. 174, tradução nossa)12.

O humor produzido por mulheres, em termos gerais, questiona o


sistema patriarcal que promove uma cultura baseada na desigualdade e na
exploração. A autora refere-se especificamente aos Estados Unidos, mas
charges e tiras feministas publicadas no Cone Sul parecem seguir o mesmo
caminho, com temas que dialogam e criticam diretamente um sistema que
não as contempla.

Os assuntos que mobilizaram o humor gráfico feminista são os


mesmos que mobilizaram as reivindicações dos jornais citados. O humor
gráfico feminista do Cone Sul acionava temas locais como eleições, demo-
cracia, liberdade de expressão, carestia, contracepção, divórcio, assuntos
que dialogavam com o contexto vivido por países que experienciavam regi-
mes ditatoriais e a organização dos movimentos feministas. Em termos glo-
bais charges e tiras debatiam trabalho doméstico, maternidade, sexualidade,
aborto, mercado de trabalho, feminismo, educação das mulheres, religião e
muitos outros, tudo de um ponto de vista feminista. A novidade reside no
esforço de rir de tais temas, alguns deles debatidos desde os finais do sécu-
lo XIX e todos eles ainda presentes nas preocupações feministas do século
XXI.
12 “Because in women’s humor, frustration and anger at gender-based inequities have had to
be expressed obliquely, incongruity has been a major device for decoding the myths of the patriarchy.
By exposing the discrepancies between the realities of women’s life and the images of women pro-
moted by the culture, between the inequities to which women have been subjected and the egalitarian
ideals upon which the nation was founded. American women humorists have targeted the patriarchal
social system”.

38
Comédia é contextual, ela dialoga com as preocupações de um de-
terminado período (BARRECA, 1991). Talvez o grande estranhamento em
relação ao humor feminista seja o fato de ele continuar aparentando atua-
lidade mesmo depois de décadas e até séculos. Além deste elemento, é im-
portante ressaltar que ele ainda supera barreiras geográficas. Humor gráfico
feminista com conteúdos muito parecidos promovem o riso no Brasil e na
Bolívia.

A afirmação das mulheres como sujeitos autônomos e capazes atra-


vessa um processo repetido e constante de denúncia de modelos de socie-
dade e de indivíduo que não as contempla. Nesse sentido, para elas, o ato de
escrever, criar arte e produzir humor transfigura-se em um ato de tomada
de poder e de imaginação de um mundo de justiça e igualdade. O humor
gráfico feminista do Cone Sul, através de preocupações globais e locais, é
exemplo de esforço de transgressão de uma lei/cultura que insiste no apa-
gamento das mulheres como sujeitos de direitos e mesmo como agentes da
história e da própria construção do humor como domínio teórico/acadêmi-
co. O humor e o riso, nesse processo de descoberta e denúncia, é alívio, mas
também ferramenta de luta.

Referências Bibliográficas
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strategie use of humor. Penguin Book’s: USA, 1991.
CRESCÊNCIO, Cintia Lima. As mulheres ou os silêncios do humor: uma
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DEU: Walter de Gruyter, p. 1-9, 2011.

39
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GOODWIN, Ricky. A monovisão dos estereótipos no desenho de humor
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SCOTT, Joan. Cidadã Paradoxal: as feministas francesas e os direitos do
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SKINNER, Quentin. Hobbes e a teoria clássica do riso. São Leopoldo: Edito-
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culture. United States: American Culture, 1988.
______. What’s so funny? Humor in American Culture. American Visions:
United States, 1998.

40
O DEVIR-MONSTRO EM MY FAVORITE
THING IS MONSTERS
Alice Grosseman Mattosinho
Alexandre Linck Vargas (Professor)

Resumo: O presente artigo científico tem como objetivo traçar uma análise
estética da história em quadrinhos “My favorite thing is monsters” da autora
norte-americana Emil Ferris, publicada em 2017, que recebeu as premia-
ções Ignatz , três prêmios Eisner e a premiação de Angoulême International
Comics Festival. O quadrinho já possui sua edição nacional e é apresentado
na forma dos cadernos de Karen Reyes, uma garota de 10 anos apaixonada
por monstros e terror, que se representa como menina-lobo em seus dese-
nhos. Ambientado em Chicago nos anos 60, a trama inicia-se quando Karen
descobre que sua vizinha, uma sobrevivente do holocausto, supostamente
comete suicídio e a garota decide investigar as causas de sua morte. Ilustra-
do através de diários, Karen precisa enfrentar seus medos, anseios e desejos
enquanto criança numa área pobre da cidade, passando por acontecimentos
como a morte de sua vizinha, o assassinato do reverendo Martin Luther
King e o câncer de sua mãe. As ilustrações utilizam apenas caneta esferográ-
fica sob páginas pautadas com espirais de caderno, e muito da trama remete
à infância da própria autora. Será utilizada a obra de Gilles Deleuze e seus
conceitos para analisar como interferem o devir-animal da protagonista,
analisando esteticamente o roteiro, arte e a maneira que a autora traduz o
terror através de sua obra.
Palavras-chave: Histórias em quadrinhos. Terror. Monstro. Devir.

41
1 Introdução

Por muito tempo as histórias em quadrinhos tiveram jovens e crian-


ças como principal público alvo no mercado estadunidense, subestimando,
muitas vezes, sua relevância como mídia (CHENAULT, 2007). A partir de
1992, histórias em quadrinhos ganharam destaque mundial como material
de relevância literária quando a graphic novel (quadrinhos em formato de
livro) “Maus”, uma autobiografia de Art Spiegelman retratando sua relação
com seu pai e a memória de sua família de judeus na Segunda Guerra Mun-
dial, venceu o prêmio Pulitzer, valorizando ainda mais os “quadrinhos como
forma de arte” (VARGAS, 2016).

A quantidade de mulheres trabalhando na indústria de quadrinhos


sempre foi pouco expressiva quando em comparação com os homens. Na
década de 90 ocorreu aumento na quantidade de mulheres trabalhando es-
pecialmente em editoras de quadrinhos independentes, que buscavam, com
as novas contratações, angariar um público alvo diferente para combater
o decréscimo de leitores de quadrinhos mainstream que as grandes edito-
ras sofriam e a variedade de tipos de quadrinho tornou o gênero de terror
popular. Seguindo a tendência no mercado de trabalho de quadrinhos, o
número de mulheres quadrinistas de horror tem sido menor do que o de
homens, mas, ainda assim, as obras de mulheres têm alcançado prestígio em
anos recentes (CHENAULT, 2017). Uma delas é Emil Ferris, uma quadrinis-
ta estadunidense e autora da graphic novel “My favorite thing is monsters”.
A obra de 700 páginas recebe em 2017 o prêmio Ignatz (MACDONALD,
2017), em 2018 recebe três prêmios Eisner como melhor colorista, melhor
artista e roteirista, e melhor graphic novel (GN) inédita (GAGLIONI, 2018)
e em 2019 recebe os prêmios Fauve d’Or (prêmio de ouro) e Gran prix de la
critique no festival de quadrinhos de Angoulême (MACDONALD, 2019).
No ano de seu lançamento, “My favorite thing is monsters” vendeu 70 mil
exemplares (FLORO, 2018), que levou a autora a um grande reconhecimen-
to de público e de outros autores, como é o caso de Art Spiegelman, que

42
afirma que “Emil Ferris é uma das quadrinistas mais importantes da atuali-
dade” (JENNINGS, 2017).

“My favorite thing is Monsters” conta o drama de Karen Reyes, uma


garota de 10 anos apaixonada por monstros e terror, que se desenha como
menina-lobo em seus desenhos. Ambientado em Chicago nos anos 60, a
trama inicia-se quando Karen descobre que sua vizinha, uma sobrevivente
do holocausto, supostamente comete suicídio e a garota decide investigar as
causas de sua morte. Ilustrado através de diários, Karen precisa enfrentar
seus medos, anseios e desejos enquanto criança numa área pobre da cidade,
passando por acontecimentos como a morte de sua vizinha, o assassinato do
reverendo Martin Luther King e o câncer de sua mãe. Os questionamentos
e apresentação visual da protagonista trazem a discussão sobre devir, con-
ceito abordado pela obra de Deleuze e Guattari (2009), que será elaborado
conforme apresentadas imagens e seu contexto dentro da obra de Ferris.

2.1 Devir-monstro

A GN é apresentada visualmente como o diário de Karen Reyes, a


protagonista. O formato de páginas simula folhas pautadas de cadernos de
escola e o uso de caneta esferográfica como mídia traz uma pessoalidade nos
relatos da garota, mostrando o mundo aos olhos dela e de qual maneira ela
entende, vê e reimagina pessoas e acontecimentos. Isso ressalta a narrativa
intimista e autobiográfica consolidada por Chute (2010) mesmo em contos
de terror, visto que Ferris também cresceu em Chicago lendo quadrinhos
e consumindo obras de horror e sentia-se deslocada do normativo de sua
época, pensando sobre sua monstruosidade interna (JENNINGS, 2017).

43
Figura 1: “Karen Reyes”

Fonte: Emil Ferris, 2019.


A jovem Karen desenha-se sempre como uma garota lobisomem,


fruto não apenas de seu gosto pessoal por filmes e quadrinhos de terror, mas
como fruto de sentir-se uma estranha, forasteira, uma monstra. A protago-
nista sente-se lobisomem, vê-se lobisomem e torna-se lobisomem em seus
diários. Além disso, Karen é homossexual, adicionando uma camada ainda
maior de distância do normativo da sociedade estadunidense em 1960. Se-
gundo Deleuze e Guattari, “essas multiplicidades de termos heterogêneos,
e de co-funcionamento de contágio, entram em certos agenciamentos e é
neles que o homem opera seus devires-animais.” (DELEUZE, 2009, pg. 20).
Como dita o título da obra, a monstruosidade de Karen é presente em todo
seu diário e é tratada com violência e estranheza apesar da garota não ser
uma literal lobisomem. Ao conjecturar sobre a filosofia do horror e a defini-
ção de “monstro”, Noel Carroll afirma:
Eles [monstros] são uma relação não-natural ao conceito
natural de uma certa cultura. Se não se enquadram nela,
a violam. Além disso, monstros não são apenas fisica-

44
mente ameaçadores; são cognitivamente ameaçadores.
São ameaças ao senso comum. Sem dúvidas, é em virtude
dessa ameaça cognitiva que esses monstros terríveis são
remontados; mas também pela maneira a qual afetam
aqueles que os encontram, tornando-os loucos, raivo-
sos, degenerados e assim por diante. Isso ocorre porque
monstros são, de certa forma, desafios à base da maneira
de pensar de uma cultura.
(CARROLL, 1990, pg. 34).

Karen, uma garota pobre, homossexual, que não conheceu seu pai,
com uma mãe cigana e supersticiosa, um irmão latino, tatuado e mulheren-
go, seria, portanto, um monstro perante à cultura de sua época. Um outro,
um desvio. Sua ligação com monstros se faz além do lúdico, criando um
devir-animal, um devir-monstro:
Um devir não é uma correspondência de relações. Mas
tampouco é ele uma semelhança, uma imitação e, em últi-
ma instância, uma identificação. Toda a crítica estrutura-
lista da série parece inevitável. Devir não é progredir nem
regredir segundo uma série. E sobretudo devir não se faz
na imaginação, mesmo quando a imaginação atinge o ní-
vel cósmico ou dinâmico mais elevado, como em Jung ou
Bachelard. Os devires-animais não são sonhos nem fan-
tasmas. Eles são perfeitamente reais. Mas de que realidade
se trata? Pois se o devir animal não consiste em se fazer de
animal ou imitá-lo, é evidente também que o homem não
se torna “realmente” animal, como tampouco o animal se
torna “realmente” outra coisa. O devir não produz outra
coisa senão ele próprio. É uma falsa alternativa que nos
faz dizer: ou imitamos, ou somos.
(DELEUZE, 2009, pg. 15)

45
Figura 2: “Anka”

Fonte: Emil Ferris, 2019.

A importância de sua vizinha é retratada pela cor azul em seus dese-


nhos e estando presente na capa da graphic novel, visto na figura 2. Enquan-
to os demais personagens não possuem cores específicas, Anka é ilustrada
com pele azulada e lábios vermelhos. Suas cores frias dão a ela uma identi-
dade visual, uma peculiaridade, que a torna singular quando em compara-
ção com todos os outros personagens – inclusive a protagonista. Além do
uso da cor, Anka normalmente ocupa um espaço maior da página quando
é mostrada, artifício utilizado pela quadrinista Ferris para, novamente, res-
saltar a importância da personagem à história e até mesmo para representar
o quanto Karen era apegada a ela.

Chocada com a morte de sua vizinha, a protagonista suspeita de um


assassinato com base nas histórias estranhas que Anka lhe contara. Esse tor-
na-se o ponto inicial para alavancar a história de “My favorite thing is mons-
ters”, quando a jovem decide aventurar-se como detetive para solucionar o

46
caso. Anka era, na realidade, uma sobrevivente do holocausto e histórias de
sua vida como prostituta e prisioneira na Alemanha nazista foram gravadas
em um gravador caseiro para uma entrevista que ela havia dado anos atrás.
O marido de Anka, sr. Silverberg, mostra uma fita de áudio à Karen, que
rouba o restante das fitas quando o sr. Silverberg encontra-se bêbado, na
esperança de utilizar essas informações para desvendar quem a assassinou.

Entre suas investigações, vemos a relação de Karen com seu irmão


Deeze, um artista tatuado que tem muito carinho por sua irmã mais nova e
a leva em museus de arte com frequência. Ele é muito mulherengo e Karen
suspeita que seu irmão teve um caso amoroso com Anka. Deeze é uma figu-
ra central na obra de Ferris, trazendo sempre sua irmã para a difícil rotina
que se encontra, querendo afastá-la dos monstros que ele acredita não se-
rem reais.

2.2 Monstros e sociedade do controle

Vemos diversas cenas de passeios dos irmãos em museus, onde ques-


tionam-se quem são os verdadeiros monstros. Passam por obras de Goya,
Fuseli, Ehrmann e Frédeau. A maior parte dos questionamentos da protago-
nista ao observar essas pinturas são sobre a natureza humana e natureza de
monstros.

Figura 3: “Monstros maus só querem saber de ter o controle.”

Fonte: Emil Ferris, 2019.

47
Ao observar no museu a pintura “O abençoado Guillaume de Tou-
louse atormentado por demônios” de Ambroise Frédeau, Karen questiona-
-se sobre ela própria querer ser um monstro e segrega monstros em duas
categorias: os bons e os maus. Os maus, para a protagonista, são aqueles
que assassinaram o reverendo Martin Luther King, o pior tipo de mons-
tro. Monstros maus não querem que os outros sejam livres, querem que o
mundo torne-se do jeito que eles desejarem e, enquanto monstros bons são
assustadores por uma razão além de seu controle, monstros maus só que-
rem saber de ter o controle. Aplicando a definição de Noel Carroll (1990)
mencionada anteriormente, monstros bons são aqueles que se desvirtuam
de uma certa cultura regente. Já os monstros maus são a cultura regente
tentando se impor aos demais.

O conceito de sociedade do controle, criado por Deleuze a partir de


William S. Burroughs e polido por Hardt (2000) diz respeito à forma a qual
as instituições aplicam a disciplina e o controle. Enquanto antes a lógica
disciplinar era um claro diferenciamento da borda do “dentro” e “fora”, na
sociedade do controle essas bordas, muros, caem, abrindo espaço para que
a maneira vigilante e punitiva venha dos próprios membros da sociedade,
não mais das instituições. A passagem dessa sociedade onde instituições
aplicam a disciplina para a sociedade do controle, após o desmoronamento
dos muros que definem essas sociedades, deixa de distinguir o que é estar
dentro ou fora (HARDT, 2000). Michael Hardt aprofunda-se:
“Ele [Deleuze] constata que as instituições que consti-
tuíam a sociedade disciplinar – escola, família, hospital,
prisão, fábrica, etc – estão, todas elas e em todos os luga-
res, em crise. Os muros das instituições estão desmoro-
nando de tal maneira que suas lógicas disciplinares não se
tornam ineficazes, mas se encontram, antes, generalizadas
como formas fluidas através de todo o campo social. O
“espaço estriado” das instituições da sociedade disciplinar
dá lugar ao “espaço liso” da sociedade de controle. Ou,
para retomar a bela imagem de Deleuze, os túneis estrutu-
rais da toupeira estão sendo substituídos pelas ondulações
infinitas da serpente. Enquanto a sociedade disciplinar
forjava moldagens fixas, distintas, a sociedade de controle

48
funciona por redes flexíveis modulares, “como uma mol-
dagem auto-deformante que mudasse continuamente, a
cada instante, ou como uma peneira cujas malhas mudas-
sem de um ponto a outro”
(HARDT, 2000, p. 357, tradução da autora)

Ao mencionar o assassinato do reverendo Martin Luther King, fi-


gura da luta contra o racismo, pode-se, também, aprofundar na forma que
o racismo se altera na sociedade do controle. Enquanto antes as barreiras
do outro eram explícitas e a soberania imperial empurrava essa diferença
ao extremo, o racismo da sociedade do controle integra os outros e traz
as diferenças em seu sistema de controle. Ela pré-define que haverá dife-
renças, mas não a permite serem, de fato, diferentes, pois são perdidas na
multiplicidade: “As noções fixas e biológicas dos povos tendem, pois, a se
dissolver em uma multiplicidade fluida e amorfa, atravessada, sem dúvida
alguma, por linhas de conflito e de antagonismo, sem que nenhuma delas
apareça como fronteira fixa e eterna.” (HARDT, 2000, p. 366). Na sociedade
do controle, é possível ver a celebridade negra no outdoor, para aqueles que
comemoram a ocupação das identidades, mas, ao mesmo tempo, a polícia
ter negros como maior foco de massacre.

Karen Reyes conhece novos amigos na escola: Franklin, um garo-


to negro a quem ela compara e desenha como o monstro de Frankenstein,
porém bondoso; e Sandy, uma garota muito magra, pálida e também fã de
histórias de terror, a quem Karen compara e ilustra como uma fantasma.
Em seu devir-monstro, quando a protagonista também enxerga seus ami-
gos como monstros, conforme visto na figura 4, é como se construísse uma
matilha, como se aquela fosse sua normalidade, pois “num devir-animal,
estamos sempre lidando com uma matilha, um bando, uma população, um
povoamento, em suma, com uma multiplicidade” (DELEUZE, 2009, pg. 17).
Essa multiplicidade específica e amorfa para Hardt (2000) caracteriza uma
pseudo-diversidade, como em um shopping center. É uma estratégia de in-
tegração das diferenças no seio da sociedade capitalista e como Franklin e

49
Sandy também não possuem suas diferenças integradas na ordem da socie-
dade do controle, são considerados párias, como Karen.

Figura 4: “Franklin e Sandy.”

Fonte: Montagem da autora, 2019.

Nos entremeios de sua investigação, Karen participa da festa de ani-


versário de Missy, sua colega da escola e antiga melhor amiga sofria bullying
de crianças e adultos por conta de seu jeito diferente. Missy e Karen eram
muito unidas e sua amiga de infância também gostava de monstros até que
sua família a proibiu de ter contato com esse tipo de material, apontando
uma má-influência de Karen. Essa proibição coincide com os anos em que
as histórias em quadrinhos sofreram censura nos EUA. Mostra-se a con-
sequência de fatos verídicos em personagens fictícios, tanto na censura de
quadrinhos de horror como no assassinato do reverendo Martin Luther
King.

Tal qual apontado por Carroll (1990), a cultura regente teme o poder
de cognição causado pelo contato de monstros perante suas vítimas. Mons-
tros podem afetar e mudar quem estiver perto (CARROLL, 1990), tendo na
figura dos pais a cultura vigente, na figura de Missy a vítima e na figura de
Karen, o monstro. Em alguns momentos da obra é implícito que Karen es-

50
tivesse apaixonada por ela, o que torna sua rejeição como amiga ainda mais
dolorida à protagonista.
Figura 5: “Noiva da filha de Drácula.”

Fonte: Emily Carroll, 2018.

A segunda decepção de Karen é que o gosto de sua amiga por mons-


tros trata-se apenas de uma particularidade, e por essa razão Missy não pos-
sui um devir monstro, apenas uma afinidade com o tema de monstros. Em
vista disso, apesar de se ilustrar como lobisomem em seus diários, Karen
ilustra sua amiga como uma garota normal, mesmo com seu antigo interesse
por monstros e, principalmente, vampiros. Para Missy, gostar de monstros é
apenas uma fase, enquanto para Karen é um devir, portanto uma realidade,
como afirmam Deleuze e Guattari (2009).

4.3 Reflexo

Karen também sofre uma tentativa de assédio sexual por parte de


garotos na escola e é salva por Franklin. Após ser suspensa na escola, Deeze
lhe revela que a mãe deles está com câncer de mama em um estágio avança-
do, e por essa razão a escola permitiu que ficasse sem ir à aula pelo restante
do ano. Enquanto seu irmão tenta aceitar o fato que a morte de sua mãe é
iminente, Karen aprofunda-se ainda mais em sua imaginação, na tentativa

51
de buscar algum tipo de superstição que curasse a doença e, ao mesmo tem-
po, reclama sobre não a levarem a sério por terem escondido a seriedade do
câncer de sua mãe. Próximo ao final do quadrinho, com a morte vindoura
de sua mãe, Deeze a leva para um espelho e lhe pergunta o que ela vê. Após
responder que “me vejo”, Deeze pressiona sua irmã, dizendo “Karen, você
diz que quer saber a verdade, então olhe para seu reflexo” (FERRIS, 2017).

Figura 6: “O que você vê?" Figura 7: “Reflexo"

Fonte: Emily Carroll, 2018. Fonte: Emily Carroll, 2018.

Com algum esforço após olhar para sua imagem, Karen vê, pela pri-
meira e única vez na GN, seu reflexo humano. Enxerga uma garota de 10
anos, fragilizada segundo seu irmão, que talvez precise de ajuda. No entan-
to, a estranheza de Karen ao ver um rosto humano em seu rosto a assusta
mais que qualquer reflexo monstruoso, já que não mais se enxergava como
qualquer outra coisa que não um monstro. Tal reação poderia significar que
sua realidade como monstro é tão forte que Karen já não é mais a menina.
Ela parece uma humana em sua casca, mas seu cerne é monstro, e seu lado
humano é apenas uma semelhança aos demais humanos. Não se torna além
do similar, da cópia da ideia (DELEUZE, 2000, p. 4) do que seria um hu-

52
mano. Enquanto seu irmão pensa que Karen é uma garota tentando escon-
der-se na casca de um monstro, Karen é o monstro que se assusta quando
relembra que sua casca é uma garota.
Figura 8: “Uma garota!”

Fonte: Emily Carroll, 2018.

Seu irmão comete uma violência ao forçá-la a ver seu próprio re-
flexo, impondo uma representação pré-determinada. Faz uso do controle
para estabelecer uma relação de poder, para impor à sua irmã uma maneira
de vê-la própria dele, mesmo enquanto Karen vê-se, sente-se um monstro.
Na sociedade do controle, as possibilidades são identificadas, previstas e
apesar de não necessariamente binárias, precisam ser catalogadas. Não há
espaço para o devir dentro controle. O devir é a fuga, pois o monstro pode
ser controlado e pode vir a ter um espaço na sociedade do controle, porém
o devir-monstro, enquanto linha de fuga, não participa do controle. Para
o paradigma da sociedade do controle, o problema principal não é ser um
monstro, mas ser uma garota em rota de fuga ontológica em direção ao
monstruoso. Essa é a alternativa indecidível entre verdade e aparência, a
potência do falso.

53
Olhar para seu reflexo no espelho e ver uma garota ao invés de um
monstro assemelha-se a uma maneira invertida de olhar para o abismo.
“Quem deve enfrentar monstros deve permanecer atento para não se tornar
também um monstro. Se olhares demasiado tempo dentro de um abismo, o
abismo acabará por olhar dentro de ti.” (NIETZSCHE, 2001, pg. 89). Como
para Karen, monstros são bons, enxergar-se como uma menina é a visão
mais assustadora que poderia ter.

3 Conclusão

A partir da graphic novel de terror “My favorite thing is monsters”


da quadrinista Emil Ferris, foi possível identificar em sua narrativa, história
e arte conceitos deleuzianos. O início da história em quadrinhos aponta o
devir-monstro, visto por meio da representação da personagem principal
como lobisomem durante toda a história e sentindo-se uma estranha no
ninho. Sua investigação pelo assassino de sua vizinha torna-se inconclusi-
vo, apesar da suspeita que seu próprio irmão possa tê-la assassinado, rea-
firmando a ideia da protagonista que há monstros bons e monstros maus
e ressaltando a definição de Carroll quanto a monstros como quebra de
hábitos de uma cultura. O verdadeiro embate de Karen Reyes é, na verdade,
sua dificuldade em ser aceita num mundo onde monstros são mal-vistos e
humanos-maus são rotineiros.

Referências

CARROLL, Noel. The Philosophy of horror. Reino Unido: Routledge, 1990.

CHUTE, Hillary. Graphic Women: Life Narrative and Contemporary Co-


mics (Gender and Culture Series). Nova Iorque: Columbia University Press,
2010.

CHENAULT, Wesley. Working the Margins: Women in the Comic Book

54
Industry. Tese-Social Works, Georgia State University, 2007.

DELEUZE, Gilles. Lógica do sentido. 4ed. São Paulo: Perspectiva, 2000. pp.
259-271 (Estudos).

DELEUZE, Gilles e GUATTARI, Feliz. Mil platôs - volume 4. São Paulo:


Editora 34, 2009.

FLORO, Paulo. My favorite thing is Monsters é o fenômeno das HQs autorais


este ano. Disponível em: <http://revistaogrito.com/jazzmetal/2017/05/24/
my-favorite-things-is-monsters-e-o-fenomeno-das-hqs-autorais-este-a-
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GAGLIONI, Cesar. Conheça os vencedores do Eisner awards 2018!. Dispo-


nível em: <https://jovemnerd.com.br/nerdbunker/conheca-os-vencedores-
-do-eisner-awards-2018/ >. Acesso em 01 ag. 2019.

HARDT, Michael. A sociedade mundial de controle. In: Alliez , Éric . Gilles


Deleuze: uma vida filosófica. São Paulo: Ed. 34, 2000.

JENNINGS, Dana. First, Emil Ferris was paralyzed. Then her book got lost
at sea. Disponível em: <https://www.nytimes.com/2017/02/17/arts/design/
first-emil-ferris-was-paralyzed-then-her-book-got-lost-at-sea.html>. Aces-
so em 27 jun. 2019.

MACDONALD, Heidi. The 2017 Ignatz Awards: MONSTERS and Ferris


win two, and a big night for diversity. Disponível em: <http://www.comics-
beat.com/the-2017-ignatz-awards-monsters-and-ferris-win-two/>. Acesso
em: 20 abr. 2018.

MACDONALD, Heidi. Emil Ferris wins the Fauve D’Or for My Favorite
thing is Monsters. Disponível em: <https://www.comicsbeat.com/emil-fer-
ris-wins-the-fauve-dor-for-my-favorite-thing-is-monsters/>. Acesso em: 20
fev. 2020.

NIETZSCHE, Friedrich. Além do bem e do mal ou Prelúdio de uma filoso-

55
fia do futuro. São Paulo: Editora Hemus AS, 2001.

VARGAS, Alexandre Linck. A invenção dos quadrinhos autorais: uma breve


história da arte da segunda metade do século XX. história, histórias. Brasí-
lia, vol. 4, n. 7, 2016. pp. 25-37.

56
MAGRA DE RUIM E AS
(RE) INVENÇÕES DE SI
Mariana Souza Paim1

Resumo: O objetivo do presente trabalho é analisar as representações de gênero


e sexualidade presentes na publicação Magra de Ruim de autoria de Sirlanney
Nogueira, editada em formato impresso em 2014. O volume reúne boa parte de
sua obra enquanto roteirista/ilustradora que fora publicada inicialmente em meio
virtual e em diferentes zines entre os anos de 2012 e 2014. Magra de Ruim foge
a classificações mais sistemáticas a partir das quais se convencionou agrupar as
narrativas gráficas, e lança mão, através de diferentes técnicas e procedimentos,
de uma narrativa que perpassa em múltiplas questões, como aquelas em torno do
corpo, desejo, prazer, solidão, família, autonomia feminina e dos relacionamentos
afetivos/sexuais. Nessas narrativas podemos ainda destacar o empreendimento
de um discurso que pode ser localizado no bojo do feminismo e que, além de
fissurar muitos dos constructos sociais pelos quais se tenta apreender as vivencias
femininas, aponta para as constantes reelaborações de si, a partir de uma in-scrita
de traços e relatos biográficos.
Palavras-chave: Narrativas Gráficas, Autobiografia, Gênero, Sexualidade,
Feminismo.

1 É licenciada em História (2011) pela Universidade Estadual de Feira de Santana, mestra


em Estudos Literários (2014) pela mesma instituição e doutoranda em Literatura e Cultura na
Universidade Federal da Bahia, atua também como professora da rede estadual de educação do
estado da Bahia, no município de Tanquinho, Brasil. Contato: marianaspiam@gmail.com

57
Introdução

Ao menos há 100 anos as mulheres vêm se inserindo na cena


de quadrinhos brasileira2, mas nessa história parecem haver várias
descontinuidades com relação ao acesso, inserção e a visibilidade alcançada
pela produção das mulheres nesse meio, algo que se reflete no número
de publicações que chegam ao público via grandes editoras, bem como
se relaciona diretamente a questão do reconhecimento e as premiações3
dessas obras, sendo esta uma ausência que se faz sentir também em meio
as pesquisas científicas acerca dessa produção. O que pode ser entendido
enquanto reflexo de um imaginário que associa tanto a produção quanto
o consumo dos quadrinhos a dimensão masculina e as pensa como uma
produção cultural menor.

Entretanto, nos últimos anos podemos constatar uma crescente


movimentação tanto com relação a inserção das mulheres nas artes visuais,
e mais especificamente nas narrativas gráficas4, como da crítica. No contexto
brasileiro essa produção está em efervescência ao menos desde o ano de
2010, sendo que muito dessa movimentação tem se dado pela facilidade
e contatos estabelecidos pela disseminação e acesso às novas tecnologias
de informação, mas principalmente pelo anseio de autorepresentação
e autoexpressão em um meio quase que dominado exclusivamente por
homens.

2 Muitas/os autoras/es apontam a produção de caricaturas de Nair de Teffé enquanto


iniciativa pioneira na história dos quadrinhos no Brasil. Nascida no Rio de Janeiro no ano de
1886, a artista publicava suas charges em diversos jornais e revistas nacionais, como a Fon-Fon!, e
internacionais sob o pseudônimo “Rian”. Segundo a pesquisadora Natânia Nogueira, “Rian foi uma
pioneira na caricatura no Brasil e há quem afirme que tenha sido a primeira mulher no mundo a
publicar uma caricatura. Ela adentra a um espaço tipicamente masculino.” (2011, p. 14).
3 Entre outros, lembramos aqui do Festival Internacional de Quadrinhos de Angoulême,
considerado uma das mais importantes premiações ao lado do Eisner, que em 2015 entre os 30
indicados a principal categoria não contava com nenhuma mulher na lista e no qual, ao longo de
42 edições, apenas uma mulher chegou a vencer o Grande Prêmio – a francesa Florence Cestac, em
2000. De forma semelhante no Brasil, o Troféu HQMix é um bom exemplo dessa exclusão. Em suas
27 edições, houve anos em que nenhuma mulher foi premiada. (D’ANGELO, 2016).
4 Aqui utilizamos o termo narrativa gráfica enquanto uma “forma artística e literária que lida
com a disposição de figuras ou imagens e palavras para narrar ou dramatizar uma ideia”. (EISNER,
1989, p. 5), sendo as histórias em quadrinhos uma das suas expressões.

58
Existe atualmente uma enorme quantidade de grupos, fóruns,
comunidades em diversas redes sociais e paginas próprias e/ou coletivas
hospedadas em plataformas como o tumblr, instagram, facebook, entre
outras. Essas movimentações em meio virtual constantemente tem se
desdobrado em ações e encontros presenciais, como as feiras e estandes de
publicações, como o Vênus Press, cursos de formação e encontros, como o
Lady’s Comics5 e o [Des]enquadradas6 e as publicações coletivas, como a
Zine XXX, publicada através de financiamento coletivo em 2014, em cinco
volumes que reúnem as obras de diversas quadrinistas brasileiras. Sendo
uma produção bastante heterogênea, com relação ao modo de produzir,
técnicas e temas, as mulheres que fazem quadrinhos no país atualmente se
autopublicam seja através da internet ou dos impressos de baixa tiragem e
orçamento.

Grande parte dessas publicações são constituídas de fanzines, mas


também têm sido mais constante as publicações impressas via crowdfunding,
ou financiamento coletivo, e guardam consigo uma forte relação com os
movimentos de mulheres da década de 1970, tanto com relação as questões
políticas que são tematizadas em boa parte dessas produções, quanto com
as publicações do período, como Wimmen’s Comix7, mas também com o
movimento riot girrrl e a ideia do Do it yourself! (Faça você mesm@!)8.

Os fanzines surgem inicialmente nos Estados Unidos em 1930 como

5 Lady’s Comics foi um coletivo que surgiu em 2010 como uma inciativa pautada na busca
por pensar e refletir a produção de quadrinhos, especialmente das mulheres. O coletivo desenvolveu
diversas ações relacionadas a crítica e visibilidade da produção das mulheres nos quadrinhos, como
a manutenção do site homônimo com resenhas, entrevistas e um banco de mulheres quadrinistas,
o BAMQ!, a publicação da revista Risca! (2015), além de encontros e oficinas de formação para
educadoras/es.
6 A primeira edição do evento ocorreu em Fortaleza no ano de 2014, tendo como proposta
o debate sobre a relação entre consumo e produção dos quadrinhos feitos por mulheres.
7 Surgido na década de 1970 inicialmente com o nome It Aint Me Babe Comix, o Wimmen’s
Comics Collective era um coletivo formado exclusivamente por mulheres voltado a publicação
de quadrinhos feitos por mulheres, tendo como objetivo estabelecer um espaço de visibilidade e
circulação dessa produção frente ao machismo e misoginia da cena underground do período.
8 É o nome de um movimento surgido nos Estados Unidos na década de 1990, envolvendo
fanzines, música hardcore e punk rock feminista e festivais. O termo é uma referência a fanzine Riot
Girrrl feita por Alison Wolfe, da Bratmobile, questionando o espaço das mulheres nas bandas de rock.

59
boletins de histórias de ficção cientifica criadas fora do circuito editorial,
mas ao longo do tempo tiveram seu sentido ampliado, podendo ser definido
como:
Uma publicação independente e amadora, quase sempre de
pequena tiragem, impressa em mimeógrafos, fotocopiadoras,
ou pequenas impressoras offset. Para sua edição, contamos
com fãs isolados, grupos e associações ou fãs-clubes de
determinada arte, personagem, personalidade, hobby ou
gênero de expressão artística, para um público dirigido,
podendo abordar um único tema ou uma mistura de vários
(MAGALHÃES, 2004, p. 27).

Sendo que no Brasil esse tipo de publicação se tornou mais comum a


partir da década de 1960, no contexto da ditadura e da censura aos meios de
comunicação. E ganha novo fôlego, outras roupagens e formatos atualmente
principalmente através das publicações dos coletivos compostos por mulheres
quadrinistas como o Mandíbula, Zinas, Whatever 21, Foca no Rolê, Studio
Seasons e Selo Pequi, e da autoras Beatriz Lopes, Gabi LoveLove6, Laura
Athayde, Débora Santos, Dharilya Sales, Luiza de Souza, Renata Nolasco,
Lila Cruz, Thays Koshino, Mariana Paraizo e Sirlanney Nogueira. Aqui
buscaremos analisar as representações de gênero e sexualidade presentes
na publicação Magra de Ruim de autoria de Sirlanney Nogueira, editada em
formato impresso em 2014.

Magra de Ruim

Magra de Ruim é uma das personagens criadas por Sirlanney Freire


Nogueira, autora da publicação homônima que foi impressa pela primeira
vez através de uma campanha de financiamento coletivo pelo Catarse em
2014. A publicação é uma compilação da sua produção entre os anos de
2012 e 2014 e já conta com uma segunda edição feita em 2016, pela editora
Lote 42. A série lhe rendeu grande visibilidade, tendo recebido prêmios,
indicações em festivais e concursos de quadrinhos9 e possibilitando que
9 Em 2016 Sirlanney ganhou o prêmio Dente de Ouro de Melhor Quadrinho, da Feira Dente
- Brasilia - DF. Em 2015, foi finalista do prêmio HQ Mix, na categoria Publicação Independente de
Autor. Ainda em 2015, venceu o prêmio Al Rio de Quadrinhos na categoria Revelação na GeekExpo

60
seu trabalho fosse veiculado em revistas, jornais e campanhas publicitarias
de grande circulação nacional, tanto que a página do facebook Magra de
Ruim já conta com mais de 200.0000 seguidores. Além de fazer quadrinhos,
Sirlanney, participa de rodas de discussão sobre feminismo e quadrinhos,
ministra oficinas e cursos de quadrinhos e fanzines por todo o país.
Além disso, lançou uma campanha pelo Apoia-se, uma plataforma de
financiamento coletivo que funciona com a arrecadação de contribuições
de quantias variadas destinadas ao custeio das despesas da artista.

Sirlanney nasceu em Morada Nova, cidade do interior do Ceará, em


1984, e publica seus textos e desenhos na internet, em zines e revistas há
mais de 15 anos. Magra de Ruim surgiu inicialmente enquanto personagem/
alter- ego para os contos que publicava em seu blog pessoal em 2011. Sendo
que a autora só viria a construir narrativas gráficas a partir dessa personagem
em 2012, segundo a mesma em entrevista ao Canal Curta!, após o contato
com outras narrativas gráficas de caráter biográfico10 de outras autoras,
como Persepólis11 de Marjane Satrapi.

Os quadrinhos da Sirlanney possuem diversas técnicas e formatos,


passando da ilustração às tiras e narrativas curtas ou longas em sequência12
e transitando entre a aquarela, colorização digital ou p&b. Ao longo do
volume é possível notar a profissionalização do traço e técnicas utilizadas
pela artista ao longo dos trabalhos compilados no livro, que oferecem um
panorama do início da sua investida no campo das narrativas gráficas até

2015, em Fortaleza. (informações disponíveis no site da autora: <www.sirlanney.com>).


10 O gênero autobiográfico nos quadrinhos, segundo a crítica, surge na década de 1970 a
partir de publicações underground, como as de Robert Crumb, Harvey Pekar, Justin Green, Art
Spilgeman, entre outros. Sendo este um dos gêneros de produção que mais crescem nos últimos
tempos, chegando inclusive a leitores que comumente não leem quadrinhos. (Souza, 2014, p. 14).
11 Escrita e desenhada por Marjane Satrapi, Persépolis é uma história em quadrinhos
autobiográfica que se volta para as memórias de sua infância e adolescência em meio a revolução
islâmica de 1979 e o governo xiita que se estabeleceu no Irã e seus desdobramentos. Em 2007 foi
adaptada em formato de animação com título homônimo.
12 A tira geralmente é definida como um texto curto, formado de um ou mais quadros, em
que os personagens podem ser fixos ou não e comumente apresenta um desfecho narrativo no último
quadro. A definição de quadrinho pode ser simplificada aqui, como já mencionamos, enquanto
narrativa gráfica.

61
o ano de 2014. O livro inclui também seu primeiro zine autopublicado, o
SddS, que foi produzido em 2013, com a temática escolhida pelos leitores
que já acompanhavam sua página, Magra de Ruim, na internet.

Muito inspirada pela literatura beat13, segundo a própria autora,


a narrativa desenvolvida ao longo da publicação se volta a pensar
principalmente o cotidiano e os movimentos interiores da personagem. De
modo que conseguimos encontrar uma série de pistas sobre a influência
dessa literatura para a construção de suas narrativas gráficas, como a
narrativa do cotidiano, a experiência com drogas e a temática do exercício
da sexualidade, além do sentimento de inadequação e a crítica social e aos
padrões, que foi se fazendo mais presente em sua produção após a publicação
do volume impresso.

Eu, os outros: reinvenções e a ficcionalização de si

O nome da personagem/ alter-ego da artista faz referência a forma


como a autora era chamada na infância e adolescência, “magra de ruim”
é uma expressão de sentido pejorativo que se refere a um corpo feminino
considerado abaixo do peso padrão. É interessante perceber o jogo que a
autora empreende ao se utilizar da mesma expressão enquanto estratégia para
neutralizar a sua conotação negativa, já que nas narrativas não há nenhuma
menção ou indicativo de uma sensação que aponte para a inadequação ou
desconforto ocasionado pela aparência da personagem/autora.

Mesclando diversas técnicas, estilos e linguagens, a narrativa


gráfica tecida por Sirlanney transita sobre várias questões como a própria
produção artística, reconhecimento profissional, família, solidão, ansiedade,
sexualidade, gênero e feminismo. Aqui procuraremos analisar como a autora

13 O termo beat generation teria surgido no final da década de 1940 e se refere a uma literatura
que dava conta de refletir principalmente sobre as experiências subjetivas. Os beats inauguraram e
reelaboraram novas modalidades de escrita, como o fluxo de pensamento, realizando inovações tanto
na prosa quanto na poética, onde os poemas desenhavam outras manchas gráficas, sem rimas ou
cortes convencionais, mas se voltavam também a tecer críticas a sociedade conservadora estabelecida
nos Estados Unidos na década de 1950. Alguns dos autores desse geração são: Jack Kerouack, Alen
Ginsberg, Diane di Prima, dentre outros.

62
explora em suas ilustrações a ficcionalização de si, bem como as questões de
gênero e sexualidade.

Apesar de destoar de algumas das conceituações sobre o


gênero autobiográfico14, podemos caracterizar a publicação enquanto
autobiográfica, pois a mesma se volta para a representação de experiências
da autora e, mais raramente, as que chegam até a mesma através dos relatos
das pessoas em seu entorno. Nesse sentido, encontramos os aspectos de
autoreferencialidade através da construção imagética da personagem e
da construção da narrativa em primeira pessoa, além dos depoimentos e
entrevistas da própria autora.

Ao longo da publicação a autora elabora um interessante jogo


intertextual onde suas referências literárias e das artes plásticas são
reelaboradas em meio as suas narrativas autobiográficas. São extremante
bem articulados os diálogos e as imagens evocadas a partir da inserção
e releitura de outros personagens como a Valentina15, assim como com
trechos de William Shakespeare, Platão, Henri Miller, Charles Bukowski
Emily Dickinson, Patti Smith, dentre outras.

Sua inscrição no campo da autorepresentação pode ser entendido


também como uma possibilidade de ressignificação de suas experiências
e leituras. As ilustrações constantemente representam o corpo feminino e
sua nudez, mas a artista retrata uma nudez que se esquiva da objetificação
e erotização do corpo nu feminino há muito já escrutinado e representado
pelo olhar masculino. Esse outro lugar que ocupa a representação do corpo
em Magra de Ruim reflete uma posição política há muito em pauta em meio
aos movimentos feministas.
Durante séculos, esse corpo foi tema de discursos masculinos,

14 Nos referimos em especial a construção do conceito de pacto autobiográfico assim como o


estabeleceu Philippe Lejeune (2008).
15 É uma personagem icônica dos quadrinhos, desenhada pelo italiano Guido Crepax entre
os anos 1960 à 1990. Suas histórias abordam ficção cientifica e a dimensão erótica. A personagem é
caracterizada como uma fotografa que entre clicks e aventuras, mergulha em um universo onírico
surreal, permeado também pela temática sexual, como o BDSM.

63
objeto dos mais variados saberes, lugar de uma fala
abundante, relegando a voz feminina ao silêncio. Hoje, as
mulheres apropriaram-se dele, lutando pelo conhecimento e
pela autonomia de seu corpo, grande bandeira do feminismo
contemporâneo. (XAVIER, 2008, p. 22)

Discursos estes que povoam o imaginário social, ao menos desde o


século XVIII, e permeiam ainda hoje as ideias relacionadas a construção do
gênero feminino no ocidente e por consequência estabelecem mecanismos
que visam regular a sexualidade através do controle do corpo das mulheres.
(FOUCAULT, 2014 p.113). Entretanto, ao menos desde a década de 1970, os
movimentos feministas têm se voltado para expor e pensar o funcionamento
desses discursos, bem como batalhado pela autonomia e agência do seu
corpo e do exercício da sexualidade. De maneira semelhante, boa parte
das narrativas presentes na publicação Magra de Ruim se voltam para a
representação do exercício da sexualidade e do prazer, partindo da ótica do
seu lugar enquanto mulher e sujeito ativo do desejo, ao passo que, revisita,
e em boa medida rompe, com as construções que ligam o desejo à ideia do
amor romântico e a do sexo a dimensão do interdito e da procriação, como
podemos analisar na figura abaixo:

Figura 1, 2014, p. 137.

64
Há assim um investimento que se desdobra na tentativa de se pensar
a sexualidade centrada no prazer, bem como levar a sexualidade feminina
para além do agenciamento dos constructos relacionados ao gênero e
sua dinâmica em nossa sociedade patriarcal. Dessa forma, as narrativas
caminham no sentido em que pensa Butler,
[...] a sexualidade que emerge na matriz das relações de poder
não é uma simples duplicação ou cópia da lei ela mesma,
uma repetição uniforme de uma economia masculinista
da identidade. As produções se desviam de seus propósitos
originais e mobilizam inadvertidamente possibilidades
de “sujeitos” que não apenas ultrapassam os limites da
inteligibilidade cultural como efetivamente expandem as
fronteiras do que é de fato culturalmente inteligível (2015, p.
54).

Sendo o desejo constantemente figurado e naturalizado nas


narrativas, ele ocupa um outro plano do que comumente tem sido retratado
nas histórias em quadrinhos. Na sequência abaixo é interessante notar que
a personagem faz referência a figura d@ outr@ através da percepção do
sentimento de saudade, sendo que o desejo se manifesta assim a uma/um
destinatária/o ausente, mas que em sua ausência, não impede a realização
do prazer.

65
Figura 2, 2013, p.112.

Nessa sequência narrativa é interessante notar o jogo que a autora


faz entre os termos “dar” e “comi”. O “dar” remete a uma ideia de passividade
que tradicionalmente foi associada a performatividade sexual das mulheres,
mas a subversão se dá, no segundo e último quadro, quando a personagem
muda a voz ou a direcionalidade da ação para si, ou seja “comi” um termo
que alude a ideia de atividade, e por conseguinte a penetração, que justaposto
ao corpo/voz feminina desordena o binômio passivo X ativo e mais uma vez
investe na posição de autonomia e agência da personagem com relação a
sua sexualidade. Sobre a questão do desejo a autora ainda produz, em outras
sequencias narrativas, um discurso que tensiona a hipocrisia da sociedade
com relação ao exercício da sexualidade, refletindo sobre a dicotomia
público X privado, em meio a reflexão sobre falácia e hipocrisia morais.

66
As personagens masculinas presentes na publicação tanto provocam
e despertam o erótico, como também representam de certa maneira a
manutenção ou o chamado a uma ordem que se inscreve através do universo
das interdições sobre o comportamento e escolhas da personagem. Sendo a
família, e mais especificamente a figura paterna, uma das personagens que
representam esse apelo a normatização da conduta da personagem.

Figura 3, 2013, p. 65.

A insegurança, temor em meio a escolha profissional, assim como a


questão da profissionalização também são representadas nos quadrinhos.
Na tira que se segue há uma evocação dos constructos pelos quais os
comportamentos transgressores das mulheres têm sido historicamente
enquadrados. A ideia de ser/viver enquanto artista é assombrada pelos
fantasmas da loucura e da mendicância, pela falta de reconhecimento,
como há muito tem acontecido na história da arte, vide biografias de
Camile Claudel e Emily Dickinson, e outras/os artistas citadas/os em meio
as narrativas.

67
Figura 4, 2014, p.136.

Segundo a autora em entrevista, essas reflexões e a própria questão


de se pensar enquanto mulher e artista, produtora de narrativas gráficas de
caráter autobiográfico, bem como refletir sobre as temáticas relacionadas as
ideias de gênero e ao feminismo só foi se dando com o transcorrer do tempo.
Nós pudemos notar também que as narrativas de caráter mais abertamente
feminista começam a se fazerem mais presentes a partir das publicações
relacionadas ao ano de 2014, como a figura abaixo:

68
Figura 5, 2014, p. 31.

Dentre elas, escolhemos esta figura por a considerarmos uma das


mais emblemáticas no que se refere a visibilidade dada pela artista em
torno das reflexões sobre gênero e feminismo. Nesta narrativa, a autora não
só reflete sobre a questão da construção da rivalidade entre mulheres e a
possibilidade de desenvolver empatia e sororidade, mas também sobre a
descoberta do desejo sexual por outras mulheres e de tentar representá-las

69
em sua produção.

Nesse sentido, concluímos por ora, destacando que ao longo das


narrativas da Magra de Ruim pudemos identificar o empreendimento de
um discurso que pode ser localizado no bojo do feminismo, dialogando
com muitas das pautas debatidas pelo movimento, como a politização das
dimensões associadas tradicionalmente ao âmbito do privado e individual,
como as que se referem ao desejo, exercício da sexualidade, autonomia e
agência sobre o próprio corpo. Além de fissurar muitos dos constructos
sociais pelos quais se tenta apreender as vivências femininas, as narrativas
presentes na publicação, apontam para as constantes reelaborações de si, a
partir de uma in-scrita de traços e relatos biográficos.

Referências

BALDA, Maria Antonia Díez. La imagen de la mujer en el cómic: Cómic


feminista, cómic futurista y de cienciaficción. s/d. Disponivel em: <http://
www.amit-es.org/sites/default/files/pdf/publicaciones/antonia_diez_
balda_2004.pdf> Acesso em: 10 de dezembro de 2016.

BUTLER, Judith. Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade.


São Paulo: Civilização Brasileira, 2015.

Canal Curta!, Entrevista Sirlanney. Disponível em: https://youtu.be/


v6QkgekFfU8>. Acesso em: 14 de maio de 2015.

D’ANGELO, Helô. As mulheres e os quadrinhos. In: Revista Fórum Virtual,


janeiro, 2016. Disponível em: <http://www.revistaforum.com.br/semanal/
mulheres-e-os-quadrinhos/>. Acesso em: 15 de março de 2017.

Documentário The punk singer. (2013). Disnponível em: https://www.


youtube.com/watch?v=DdTHg4SQNGE>. Acesso em: 16 de janeiro de
2017.

EISNER, Will. Quadrinhos e arte sequencial. São Paulo: Martins Fontes,


1989.

70
FOUCAULT, Michel. História da sexualidade 1: A vontade de saber. São
Paulo: Paz e Terra, 2014.

LEJEUNE, Philippe. O pacto autobiográfico: de Rousseau à internet. Belo


Horizonte: Editora UFMG, 2008

MELO, Erica Isabel de. Riot Grrrl: feminismo na cultura juvenil punk. In:
Anais do VII Fazendo Gênero, Florianópolis, 2006. Disponível em: <http://
www.fazendogenero.ufsc.br/7/artigos/E/Erica_Melo_Riot_01.pdf>. Acesso
em 13 de novembro de 2016.

NOCHLIN, Linda. Por que não houve grandes mulheres artistas? São Paulo:
Edições Aurora, 2016.

NOGUEIRA, Natânia. Rian: Caricatura e pioneirismo feminino


no Brasil. In: Anais do XXVI Simpósio Nacional de História –
ANPUH. São Paulo, julho, 2011. Disponível em: <http://www.
snh2011.anpuh.org/resources/anais/14/1312664266_ARQUIVO_
RIANEOPIONEIRISMOFEMININONACARICATURA.pdf>. Acesso em:
20 de dezembro de 2016.

NOGUEIRA, Sirlanney. Magra de Ruim. Rio de Janeiro: Edição da autora,


2014.

POLLOCK, Griselda. A modernidade e os espaços de feminilidade. In:


MACEDO, A.G.; RAYNER, F. Gênero, cultura visual e performance. Portugal:
Húmus, 2011.
SATRAPI, Marjane. Persepólis. São Paulo: Quadrinhos da Cia, 2007.
Site Lady’s Comics: <http://ladyscomics.com.br/>
Site Syrlanney Nogueira: <https://www.sirlanney.com/>.
SOUZA, Jucelino Neco de. O discurso autobiográfico nos quadrinhos: uma
arqueologia do eu na obra de Robert Crumb e Angeli, São Paulo: USP, Tese
de Doutorado em Ciências da Comunicação, 2014.
XAVIER, Elódia. A representação do corpo no imaginário feminino:
subalternidade e exclusão. In: PIRES, Maria Isabel Edom (Org.). Formas e
dilemas da representação da mulher na literatura contemporânea. Brasília:
UnB, 2008. p. 19-34.

71
A MULHER E OS EVENTOS DE
QUADRINHOS: UMA CARTOGRAFIA
Keli Vasconcelos1

“Existe ainda um tabu muito grande quando se fala de quadrinhos feitos


por mulheres. O feminismo em si precisa ultrapassar uma série de
barreiras para ser visto e respeitado”
Thaïs Gualberto2

As aspas aqui, penso eu, nem a própria autora de “Olga, A sexóloga”


deve se recordar. Mas eu estava lá, no Festival Internacional de Quadrinhos
de Belo Horizonte de 2015, quando ela disse a frase em uma palestra sobre
Jornalismo e Quadrinhos. E nem precisei ir muito longe para conversar com
ela depois: a mesa onde estava era ao lado a do Quadro-a-Quadro, blog que
atuei até 2017.

Hoje, convidada a fazer parte deste livro, faço essa cartografia desses
anos como frequentadora/repórter/curiosa de eventos de Quadrinhos, das
pessoas que conheci e do quanto tenho que aprender. Recordo-me também
quando adolesci, indo às convenções de Animês e Mangás, aí conta-se uns
quinze anos atrás.

1 Jornalista freelancer e cobre eventos de Quadrinhos desde 2014.


2 Matéria publicada no blog Quadro-a-Quadro (quadro-a-quadro.blog.br) em novembro
de 2015.

72
Selecionei e editei frases (e suas respectivas notas de rodapé) das mulheres
que palestraram nessas ocasiões, e que resultou em matérias3, para este ca-
pítulo.

Vamos aos eventos

Pois bem, comecei indo às feiras bem underground, cujo cenário


resume-se em mesas e bate-papo cara a cara com artistas. Ainda dou prefe-
rência a momentos assim, pois sei que não estamparão as grandes mídias. O
FIQ foi o primeiro grande evento que compareci, diga-se.

Confesso que ia mais para ver as palestras com o tópico: “como co-
meçar a publicar”, por conta do gosto pelo desenho, já que permeia em mim
a vontade de experimentar. E nessas experimentações, passei a buscar even-
tos onde a presença feminina tenha vez e voz. A cada palestra, mais me
instigava entender esse universo. A coragem veio e, por um ano, ilustrei a
tira “Sensações” para o site Jornalirismo4, que eu já atuava como cronista
voluntária.

Por falar em início na área, destaco dois relatos: o primeiro é de


Tayla Nicoletti5, autora do zine “Patagônia”: “Lembro que quando entrei na
aula para estudar desenho, me sentia um ‘ET’, porque não haviam mulheres
na sala, e, principalmente, professoras (...). Hoje, já temos muitas meninas
que são alunas, dão aulas e fazem suas produções (...)”.

Já o segundo, é o da consagrada Germana Viana6. Letrista de várias


publicações, outrora, não ‘botava fé’ nos seus próprios quadrinhos: “Sen-
do bem sincera, a mulher é educada para ser modesta. Não achava meu
trabalho à altura. Mas, com ajuda dos amigos, tomei coragem e comecei a
publicar. Deu certo”, exclamou Germana, de “Lizzie Bordello e as Piratas do

3 Os trabalhos estão disponíveis em keliv1.tumblr.com e no perfil do LinkedIn: keliv1.


4 Atuei por dez anos (jornalirismo.com.br – encontra-se desativado atualmente) e em
2017, produzi a tira “Sensações”. Tiras disponíveis no blog keliv1.tumblr.com
5 “Nerd, substantivo feminino” – novembro de 2016.
6 Elas nas HQs, sempre” – setembro de 2017.

73
Espaço” e “Gibi de Menininha – 1 e 2”.

Toda essa corrente fez-me corrigir da memória uma situação de


bullying que sofri no passado. Sim, ouvi por diversas vezes que era “incapaz
de desenhar e de escrever”.

Tornei-me ‘sem vergonha’ e capaz. Atual e esporadicamente (e com


meus erros), participo do coletivo Políticas. O que era uma resposta de amor
ao que me incomodava, tonou-se propósito. Participei de salões de humor
gráfico anos de 2018 e 20197 e, mesmo não sendo mostras competitivas, fico
feliz demais por ter participado. E, para meu espanto, muitos desses salões
ainda têm poucas participações (e premiações) femininas. Ou seria falta de
visibilidade?

Isso me rememora também o relato de Gabriela Borges8, do site


Mina de HQ, durante o evento “Grito das Minas nas HQs”, de 2017: “Infeliz-
mente é ainda muito segregado, por isso o compromisso de publicações que
falem das mulheres. Em salões de humor e feiras, por exemplo, é perceptível
que o destaque para elas é muito tímido. Vale lembrar que não existe ‘litera-
tura feminina, quadrinhos femininos’. É Literatura. É Quadrinhos. É evento
para todos, com participação de todos (...)”.

E esse tal de Erotismo?

Mesmo com todos os avanços, muitos assuntos ainda despontam


polêmicas. Sim, estou falando de Erotismo, que está aí, nas páginas das
HQs, livros, filmes, na internet... E essa foi a pauta de um dos painéis capi-
taneados pelo site Minas Nerds durante a Virada Nerd de 2018: “Erotismo
e pornografia nas HQs: uma ótica feminista”9 e estive lá para prestigiar. As
integrantes Daniela Marino, Danielle Lhoret, Laluña Machado e Gabriela
7 O mais recente, a mostra de Humor Gráfico do seminário Fake News e Saúde, Fiocruz –
Brasília (2019).
8 “Elas nas HQs, sempre” – setembro de 2017.
9 “De Gotham ao erotismo, site Minas Nerds participa da Virada Nerd” – novembro de
2018.

74
Franco fizeram o recorte na indústria cinematográfica e streaming do gêne-
ro, sem deixar de lado os Quadrinhos.

Lhoret, que é Mestra em Teoria Literária e estudou Grego, falou da


etimologia do termo “Pornografia”, que vem do grego. Essas referências
mostraram a visão do povo da Grécia Antiga ao papel da mulher na socie-
dade: “Infelizmente, isso ainda permeia nos dias atuais, ou seja, a mulher
que não tem opinião própria, que deve ser apenas fruto para o bel-prazer
masculino, colocada em uma posição subjugada”.

“O que entendemos como sexo e pornografia é vindo de uma visão


predominantemente masculina, que enxerga na violência uma maneira de
a mulher sentir prazer”, completou Gabriela Franco, na ocasião, que usou
como exemplo, no cinema, o da atriz Linda Lovelace10, que sofria ameaças e
espancamentos do então esposo para realizar as filmagens.

Outro ponto interessante, levantado por Dani Marino, foi ainda a


grande “neura” em relação ao corpo feminino e a constante procura por
uma suposta “perfeição”. “Para termos ideia, o Brasil é um dos campeões em
cirurgias íntimas estéticas. Muitas vezes, realizada mais por uma questão de
agradar o companheiro do que por parte da própria mulher”, disse.

Ela também mostrou alguns exemplos de HQs em que a mulher tem


o seu protagonismo, como em “Red”, de Chairim Arrais. Na publicação, ex-
tremamente delicada, com poucas falas e predominância de tons aquare-
lados, a personagem conta de forma descontraída a busca pelo prazer sem
preconceitos ou tabus. Protagonismo e empoderamento, em suma. “O que
chama a atenção é que a personagem não tem um padrão do senso comum
de beleza, muito menos receio de aceitar o seu corpo como é”, arrematou a
pesquisadora.

10 Linda Susan Boreman (Nova York, 10 de janeiro de 1949 — Denver, 22 de abril de 2002) –
ficou conhecida pelo filme “Garganta Profunda” (1972). Em sua autobiografia, revelou ter sido vítima
de estupro e violência doméstica (1980).

75
Mais espaço, mais diversidade
Pois é, diversidade. E insisto: será que jamais existiu nessas feiras,
nesses salões, nas páginas de HQs, eróticas ou não? Agora, digitando essas
palavras, percebo que as mulheres sempre estiveram e têm protagonismo
em desenhar, escrever, entender o seu jeito de ser.

O que necessita mesmo é mudar o olhar. É apurar o senso. É praticar


a empatia.

E é sabido que ainda esse olhar é muito estereotipado. E é preciso


estar disponível para essa mudança.

Mariamma Fonseca11, do Lady’s Comics, frisou esse ponto no even-


to promovido pelo coletivo, em 2017: “Estar em um nicho é bom, melhor
quando podemos atingir ainda mais pessoas. No começo do Lady’s, em tem-
pos que não tinham redes sociais, cheguei a ouvir que não iríamos ter tantos
assuntos para abordar e até que não existiam referências de quadrinistas
mulheres no Brasil! Como não? Fomos correr atrás. (...) E vimos uma pro-
dução imensa, só não havia visibilidade que mereciam”.

Isso vai de encontro a um painel que fui recentemente, sobre “Os


Novos Horizontes para o Quadrinho Nacional”, e perguntei à Verônica Ber-
ta12 sobre a importância da presença e visibilidade das mulheres nesse meio.
Na ocasião, ela falou da sua HQ de estreia, “Ânsia Eterna” – baseada em
contos da escritora Júlia Lopes de Almeida13: “(...) Não é que as meninas
desistem de fazer Quadrinhos, elas estão produzindo. Dentre vários fatores,
um deles que pode pegar é o alcance, mas isso não pode ser um impeditivo”.

Chego à conclusão que a questão é não a existência de evento para

11 “Vamos falar de mulheres nos Quadrinhos?” – maio de 2017.


12 Post do blog keliv1.tumblr.com – abril de 2019.
13 A escritora carioca Júlia Lopes de Almeida (1862-1934) foi uma das idealizadoras da
Academia Brasileira de Letras, contudo foi vetada quando foi decidido, à época, ter apenas ‘imor-
tais’ homens. O feito foi quebrado em 1977, com a nomeação de Rachel de Queiroz para a cadeira
número cinco da ABL.

76
“A” ou “B”, e sim para todas as letras, cores, para quem começa, para quem
prossegue.

Assim, descobriremos que o foco é dar chances para reverberar a


Nona Arte, em especial quando se é produzida, difundida e consumida por
mulheres.

Nona Arte é, pois, ato de resistência.


Finalizo com a fala de Rebeca Puig14, do site Collant sem Decote:
“Quadrinho é arte, é política. Ocupar espaço para falar de gênero, de se-
xualidade, de produção cultural, temáticas tão difíceis de alcançar todos os
públicos. E quando há a oportunidade de falar para o maior número de
pessoas possível, é sim um ato político”.

Sim, é resistir, é seguir.

Sigamos, portanto.

14 “Vamos falar de mulheres nos Quadrinhos?” – maio de 2017.

77
RECORTES DA PRODUÇÃO DE SHOUJO
MANGÁ NO BRASIL
Mariana Petrovana Ferreira da Silva1

Os quadrinhos japoneses, mangás, se estabeleceram como fortes de


consumo no mercado de HQs no Brasil desde os anos 2000. Essa apreciação
se intensificou ao longo dessa trajetória de quase 20 anos, ao ponto que ni-
chos específicos de gêneros e demografias se formaram. Em específico, no
território brasileiro prevalece o consumo de demografias destinadas a ado-
lescentes, os shonens, para jovens rapazes, e os shoujos, para jovens garotas.
Apesar do consumo de mangás adultos ter crescido, os dois citados ante-
riormente ainda prevalecem com maior expressão no mercado. No entanto,
a demografia shoujo sofrem estigma por serem considerados quadrinhos
“que não vendem”, ou com pouca repercussão mercadológica. Este artigo
versa sobre produções brasileiras onde é perceptível a influência da visua-
lidade característica de mangás shoujos, fazendo recortes de produções que
obtiveram expressão significativa no mercado brasileiro, pontuando traba-
lhos e revistas que foram relevantes para o desenvolvimento do nicho na
produção de mangás brasileiro.

Palavras chaves: mangá, shoujo, mercado editorial, história em quadrinhos.

1 Bacharela em Design pela UFAL, pós-graduanda em estratégias didáticas para educação


básica com uso de TIC pelo CEDU/ UFAL.

78
1. Porque Shoujo Mangá?

O termo shoujo despontou no Brasil um pouco antes dos quadrinhos


propriamente ditos chegarem as mãos do público consumidor. O termo era
popularizado através de matérias de revistas otakus2, como: Ultrajovem,
AnimeDO, Animax e outras tantas que preenchiam as bancas de revista em
meados dos anos 2000. A grande maioria das revistas focava nas animações
japonesas – animes – que estavam em alta tanto na TV a cabo quanto na
TV aberta. O público brasileiro passou por uma instrumentalização inversa
ao processo nipônico, na relação (mangá x anime). No Japão, o público lê o
quadrinho, e se ele obtiver sucesso, receberá um anime, no Brasil, as anima-
ções vieram primeiro, e apenas posteriormente que os mangás chegaram as
bancas, e o público tomou ciência da existência desses quadrinhos. (BRA-
GA JR. 2010)

Em algum momento nessa troca de informações de revistas otakus,


o termo shoujo, recebeu uma associação a “gênero” de história, como se todo
mangá ou animação que recebesse aquela nomenclatura, estaria se tratando
de um: “romance colegial com protagonistas insossas”.

O termo shoujo se refere a uma demografia, ou seja, a um nicho edi-


torial de produção de quadrinhos, destinado a jovens garotas. O Kanji - 少
女 - quer dizer menina, e estes tipos de produções, tornaram-se cada vez
mais populares entre elas, principalmente pós-segunda guerra, com Osamu
Tezuka, que cunhou parte dos elementos estéticos comuns a essas histórias.
(LUYTEN, 2002)

Para o shoujo mangá o período considerado “de ouro” foram nos


anos 70, podendo tomar como exemplo Riyoko Ikeda, (figura 01) com Rosa
de Versailles, que teve grande expressão internacional. As editoras demons-
traram crescimento vertiginoso, e por consequências várias novas revistas

2 Otaku: Termo utilizado para se referir a uma pessoa doente, obcecada por algo, porém
no Brasil, o termo recebeu um contexto diferente, se referindo a fãs exclusivamente de cultura pop
japonesa.

79
surgiram dentro da demografia. Segundo site de cultura pop, Jbox (2012),
a Revista Nakayoshi, surgiu em 1954, uma das mais significativas da de-
mografia, e que se mantem em publicação até hoje. Na década seguinte, o
crescimento geral do mercado foi intenso para todos os setores editoriais de
mangás e algumas revistas alcançaram valores de tiragens recorde. Houve
momento onde essas tiragens alcançaram a casa dos milhões, mas os núme-
ros nunca foram equivalentes aos das revistas shonens, para rapazes.

Figura 01- Riyoko Ikeda, autora de Rosa de Versailles

Disponível em: https://deliriumnerd.com/2017/01/23/manga-ryoko-ikeda/

Pode-se destacar como algo particular do mercado editorial shoujo


japonêso fato da maioria massiva das revistas serem desenhadas por mu-
lheres e produzida por mulheres. E isso é um ponto que vale ser destacado
porque em nenhum outro lugar do mundo, é possível encontrar um mer-
cado editorial onde existem tantas autoras, escrevendo e produzindo, com
foco em jovens garotas. Claro que o processo de editoração em si, ainda é
direcionado por homens, e ainda existem problemas de ordem social sobre

80
a posição da mulher na sociedade, que este artigo não pretende contemplar
estes aspectos em particular.

Vale frisar nesse contexto, que quando essas histórias shoujos che-
garam no Brasil, a narrativa delas dialogava de uma forma diferente com as
leitoras mulheres e jovens garotas. Mesmo que não houvesse uma instru-
mentalização por parte desse público acerca dos hábitos e costumes japone-
ses, os mangás ainda assim caíram no gosto do público, pois já tinha se esta-
belecido um contato prévio advindo do “BOM” das animações distribuídas
pela TV aberta, (BRAGA JR. 2010)

Embora o equívoco sobre shoujo ser “gênero x demografia”, ainda


persista em muitos grupos otakus de mídias sociais, é possível vislumbrar
que se firmou um nicho consumidor desses quadrinhos japoneses em ter-
ritório nacional. E apesar da maioria massiva dos títulos publicados no país
serem shonens, diversos títulos da demografia shoujo foram publicados por
editoras brasileiras, dentre os quais: Sakura Card Captor, Guerreiras Mágicas
de Rayearth, Fushigi Yuugi, Kimini no Todoke, Aoharaido, Sailor Moon. A
ponto de que mangás clássicos como o próprio Rosa de Versailles citado an-
teriormente neste trabalho, já tem versão brasileira distribuída pela editora
JBC, disponível em livrarias em versão luxuosa para colecionadores. (JBC,
2019).

Seguindo essa linha de fatos, é possível considerar que se um públi-


co, mesmo que pequeno, porém fiel de leitoras se estabeleceu, não obstan-
te, também seria formado um núcleo de produção influenciado por essas
narrativas para garotas. Muitos dos produtores de mangás desse primeiro
momento, após anos 2000, trabalharam principalmente com ilustração co-
mercial, pois não haviam muitas revistas destinadas a publicação de mangás
brasileiros, as coletâneas surgiriam mais tarde. Mas já era perceptível certa
predileção pelo uso da estética shoujo em si, e esteve fortemente presente
nos tipos de traçados apresentados em diversos meios, tais como: ilustrando
matérias de revistas otakus, capas, cartazes, manuais de desenho, ilustrando

81
livros de RPG, propagandas e mais.

Quando as coletâneas começaram a surgir, Mangá Tropical, 2003,


Editora via Lettera, foi uma das mais significativas nesse primeiro momen-
to, e apesar da grande maioria das histórias retratadas terem aspectos co-
muns a shonens, ainda assim, haviam exemplos de traços mais próximos da
estética shoujo.

2. Reverberação por todo o país.

Em primeiro momento, a “estética shoujo” foi a que primeiro ga-


nhou espaço, e por estética para este artigo, entende-se o conjunto dos ele-
mentos de desenho que conferem visualidade ao trabalho. Esses elementos
de visualidade podem ser identificados dentro de obras da demografia shou-
jo, tais como: olhos de tamanhos maiores muito expressivos, com efeitos de
brilho em vários pontos das cenas desenhadas, cabelos com traçados finos e
detalhados, corpo arredondado, mãos pequenas e análogos.
Figura 02 – Página do Mangá Sakura Carcd Captor Clear Card, CLAMP

Disponível em: https://www.comixology.com/Cardcaptor-Sakura-Clear-Card-Vol-1/digital-co-


mic/544141

Muito embora houvessem muitas ilustrações com temáticas que re-

82
metesse a animes populares como: Dragon Ball e Cavaleiros do Zodíaco,
animes amplamente divulgados nesse primeiro momento do quadrinho ja-
ponês no país. É possível perceber que vários manuais que se destinavam a
ensinar o traçado nipônico foram produzidos e distribuídos em banca de
revista. Um dos mais conhecidos e que recebeu diversas republicações, foi a
revista: “Como desenhar mangá”, dos anos 2000, as ilustrações que compu-
nham o manual, eram da artista brasileira, Denise Akemi, da editora escala.
E em comparação com a figura 02, é possível ver na figura 03 que existe um
traçado que é facilmente reconhecível com esses elementos típicos da visua-
lidade e estética característica do shoujo.
Figura 03 – Revista como desenhar mulheres, Ed. Escala, 1999, Denise Akemi

Disponível em: https://issuu.com/nankinn/docs/como_desenhar_manga_vol._2_mulhe-


res

Para além das ilustrações disponíveis em manuais de desenho e re-


vistas destinadas ao público otakus, até mesmo revistas de RPG brasileiras
possuíam ilustrações no estilo mangá que remetia a demografia shoujo. (fi-
gura 04) Nesses trabalhos diversos era possível perceber que o estilo ni-

83
pônico estava sendo absorvido e amplamente reproduzido nas primeiras
iniciativas de coletâneas de mangás. E era visível a tendência dos desenhos a
seguir o tipo de visualidade e estética característica do shoujo, mesmo que a
narrativa das histórias tivesse outros desenvolvimentos.

Figura 04 - Arte para o RPG brasileiro: Tormenta, Erica Horita.

Disponível em: http://tabuleirodekhalmyr.blogspot.com/2012/09/arte-da-tormenta-erica-horita.


html

A cena do shoujo em si no Brasil, começou a se desenvolver com


maior proximidade das produções japonesas com o surgimento do Studio
Seasons, que de fato publicou histórias com estética e narrativa influenciada
pela demografia (figura 06). Fundado em 1996, segundo site das próprias
autoras, com a finalidade de produzir séries e manuais de desenho, o grupo
é formado por três artistas, Montserrat, Sylvia Feer e Simone Beatriz, e por
Maruchan, que é colaboradora do grupo.

84
Figura 05 – Mangás, Oiran, Studio Seasons, 2002.

Disponível em: http://www.studio.seasons.nom.br/trabalhos.htm

Entende-se para este trabalho, que uma narrativa típica da demogra-


fia shoujo, esteja relacionada fortemente a um enredo que se desenvolve em
torno de uma jornada emocional das personagens. Onde para além de bus-
car os diversos objetivos que a história se propõem: vencer inimigos, coletar
cartas, governar a lua, passar no vestibular ou mesmo arrumar um parceiro
romântico, haja uma jornada com foco no desenvolvimento emocional das
personagens protagonistas.

Da Narrativa visual, mangás shoujo, tendem a suprimir os cenários,


para que as personagens e suas expressões faciais tenham maior destaque.
Obviamente, isso não impede que histórias possuam cenários ricamente de-
talhados, porém, em situações onde o foco é o desenvolvimento psicológico

85
da personagem, é comum, os cenários serem descartados, deixando os fun-
dos com gradientes de cinza simples ou totalmente brancos.

E mesmo Holy Avenger, de Érica Awano, o mangá brasileiro com


maior tempo de permanência em bancas de revista, vencedor de diversos
prêmios em todo o território nacional, têm características que podem ser
compreendidas como influências por estética shoujo. A narrativa em si da
história não tem a influência direta do tipo de enredo comum a demografia
shoujo, porém, ainda assim, a própria autora homenageou séries que são
compreendidas como pertencentes a demografia shoujo em algumas pági-
nas da história, e até mesmo na capa da edição 13. (figura 06)

Figura 06 - Holy Avenger, edição 13, Dragão Brasil. arte de Érica


Awano.

Disponível em: https://www.flogao.com.br/eramedieval/4728733

Destaca-se nos exemplos citados Denise Akemi e Érica Awano, sen-

86
do autoras com sobrenomes japoneses, não é estranho pensar que essas ilus-
tradoras já tinham acesso aos mangás antes mesmo deles chegarem ao gran-
de público nacional. Mas também é perceptível em casos como do próprio
Studio Seasons, que o interesse pela demografia se desenvolveu para além
de terem componentes na equipe que sejam descendentes de japoneses.

O Studio Seasons seguindo firme com produções dentro da estética,


além das participações com ilustrações em revistas, calendários e simila-
res é possível destacar também obras como Zucker (2010) que foi lançado
inicialmente pela revista Neo Tokyo, e posteriormente recebeu uma edição
compilando todos os capítulos em um único volume pela editora New Pop
(2010). (Figura 07)

Figura 07 –Zucker na imagem promocional para lançamento na revista


Neo Tokyo 2009

Disponível em: http://blog.studioseasons.com.br/?p=52

Para além dos elementos estéticos, como já foi descrito nesse tra-
balho, o enredo e desenvolvimento do roteiro, também traz em si caracte-
rísticas comuns a demografia. E é possível citar roteiristas mulheres, que

87
trabalharam enredos de suas histórias com influência do tipo de narrativa
japonesa, seja ela mimética ou apenas inspirada. Montserrat do próprio Stu-
dio Seasons é roteirista de vários dos trabalhos apresentados pelo studio:
Sete dias em Alesh, Zucker, Mitsar e vários outros.

Outra Roteirista que trabalha com enredos, que exploram o desen-


volvimento psicológico e emocional dos personagens é a autora Fran Brig-
gs, trabalhou em diversos títulos em conjunto com a Jambo Editora. Têm
seu próprio grupo de produção de quadrinhos que é o Pumpkinhourcomic,
que possui títulos publicados inclusive no exterior. Atualmente a maioria
das histórias produzidas por Fran Briggs estão disponíveis pelo site Tapas, a
própria autora já declarou que dentro de seu acervo de obras, existem traba-
lhos que podem ser considerados de demografia shoujo e josei.

Figura 08 –Never Ending Road, Pumplinhourcomic, Fran Briggs.

Disponível em: https://tapas.io/series/Never-Ending-Road---PTBR

Outra roteirista premiada por seus trabalhos e que tem influência de


narrativa mangá é a autora Petra Leão, responsável pelo roteiro do quadri-
nho Assombrado, desenhado pela autora Roberta Pares, o quadrinho foi pu-
blicado na Revista Ação Magazine, da Lancaster editora em 2012, no mes-
mo ano, o quadrinho recebeu o prêmio Angelo Agostini de roteiro. Petra
Leão já é amplamente conhecida no meio de produção de quadrinhos já que
é responsável pelos roteiros da turma da mônica jovem, e cuidou de vários
momentos históricos da franquia.

88
Figura 09 –Ação Magazine, ed 03, Assombrado de Petra Leão e Roberta
Pares, 2012..

Disponível em: https://petraleao.wordpress.com/2013/01/14/29o-premio-angelo-agostini/

3. A cara do shoujo Mangá Brasileiro.

No período de 2010, os quadrinhos shoujos trazidos por editoras


para o Brasil já demonstravam maior espaço no mercado editorial, muito
embora, o sucesso em si do mangá no país se deva principalmente ao suces-
so de títulos da demografia shonen. Vale destacar o período dos anos 10 em
diante, pelo surgimento de revistas e sites para leituras de mangás brasilei-
ros, partindo de iniciativas independentes.

Uma das revistas pioneiras que teve grande repercussão e perdurou


por anos on-line foi a Revista Conexão Naquim, do grupo Reação edito-
ra, que publicou várias histórias da demografia shonen, ajudando a lançar
vários autores que persistem produzindo até hoje. Mas o que vale ressaltar
na iniciativa feita pela “Conequin” como também era chamada a revista, foi
a criação de uma revista irmã, exclusiva para obras da demografia Shoujo,

89
Popcake Magazine. (figura 10)
Figura 10 -Edições da Revista on-line Popcake Magazine, Reação Editora, 2013.

Disponível em: Disponível em: https://www.flogao.com.br/eramedieval/4728733

O grupo de produção da revista Popcake Magazine foi o mais próxi-


mo de uma produção japonesa, no sentindo da grande maioria das autoras
serem mulheres, e para além disso, a maior parte do editorial da revista era
composto por mulheres também:
o Editor Executivo: Caique Felipe Serafim
o Editora chefe: Kari Esteves
o Editora Assistente de Edição: Adriana Yumi

90
o Editoras de Texto: Lilith Lior Et Leihan, Ellen Momo
o Mascote: Tabby chan

A revista Popcake Magazine ficou em publicação durante os anos de


2013 e 2014, contando com 4 edições trimestrais e uma edição especial de
natal, a revista tinha boa aceitação do público que era misto não composto
apenas por mulheres. A revista foi descontinuada quando a Reação edito-
ra encerrou o site que disponibilizava tanto a Conexão Nanquim quanto a
Popcake Magazine. Da mesma forma que a revista shonen lançou autores
que persistiram produzindo até hoje, muitas das autoras e autores da revista
Popcake Magazine prosseguiram produzindo mangás.

Vale ressaltar alguns destes trabalhos como o Sigma Pi da autora


Adriana Yumi, que já produzia seus fanzines3 e distribuía em eventos an-
tes do nascimento da revista. Aliando interesse científico de um projeto de
pesquisa sobre química ao interesse pela produção de mangá, a autora criou
uma narrativa adolescente, onde consegue trabalhar com o desenvolvimen-
to emocional das personagens e o ensino de conceitos básicos de química.
Sigma Pi é uma obra que prossegue em publicação, disponível para leitura
on-line pelo Tapas.

A obra Calendar, da autora Lígia Zanella, inicialmente publicado


pela revista, a história trata de um universo que transcende o shoujo con-
vencional e aborda a vida adulta de uma mulher, o que já se encaixaria em
uma narrativa Josei, já que aborda problemas diários sejam eles de trabalho
ou de relacionamento. Porém, como a publicação inicial foi através de uma
revista da demografia shoujo, para este trabalho, ele está sendo caracteri-
zado como dentro da demografia. A obra acaba de concluir seu desfecho
em um terceiro volume, são mais de 250 páginas desenhadas, três Catarses

3 Fanzine: é o termo utilizado para produções caseiras de quadrinhos, feitas por iniciantes
para feiras e eventos.

91
bem-sucedidos, 2017 para o vol 01, 2018 para o vol 02 e 2019 para o vol 03.

Na mesma revista ainda foi publicada a história SPY Project de Kari


Esteves, que foi uma das idealizadoras da revista Popcake Magazine e quem
fez a chamada inicial de autoras. Kari Esteves tem um histórico de participa-
ção em sites para leitura de quadrinhos e sempre foi ativa, mesmo que fosse
a única mulher desenhando e publicando ativamente. Após o fechamento
da revista Popcake Magazine, a história SPY Project ainda passou por outro
site de leitura de mangás brasileiros, o Lamen em 2015, até a descontinuida-
de deste projeto também em 2016. Kari Esteves também foi bem-sucedida
em uma campanha de financiamento coletivo pelo Catarse em 2017, para o
lançamento físico das edições de sua história SPY Project.

Ainda do grupo de autoras produtoras da revista Popcake Magazine,


vale ressaltar a história Eruvë: O conto da dama de vidro, do coletivo Studio
Pau Brasil. Após o fechamento da revista, o grupo migrou a publicação para
o DeviantART4, site de artistas, mas não necessariamente destinado a leitu-
ra de quadrinhos 2015 a 2018, e em 2019 migrou para o site internacional
Tapas5, que é focado para distribuição de webcomics. O coletivo destaca-se
por ser composto em sua maioria por mulheres, e elas serem a força de pro-
dução principal da obra: desenho, roteiro e editoração. O projeto também
teve uma campanha bem-sucedida pelo Catarse em 2015.

Outros autores e autoras, seguiram produzindo, porém, fora da de-


mografia shoujo, por isso suas trajetórias não serão citados nesse trabalho.

Ainda em 2014, o Studio Seasons fez um grande lançamento da


adaptação do conto de Machado de Assis para mangá: Helena, pela editora
New Pop, que teve grande repercussão nacional.

4 DeviantART: site americano onde é possível montar um portfólio on-line, e participar de


comunidades e fóruns.
5 Tapas: Anteriormente chamado de “Tapastic”, site internacional destinado a distribuição
de webcomics, vários cartunistas famosos foram lançados pela plataforma. Atualmente é um dos sites
mais utilizado por brasileiros que visam publicação e visibilidade on-line.

92
Outra produtora de trajetória fortemente marcada por aspectos de
visualidade shoujo é a autora Cah Poszar, que tem sua própria série com-
pleta: Terra & Windy, além de duas oneshots que são: The little good Wolf,
e A Torre; Tendo este último se classificado entre os 15 melhores títulos
no BMA (Brasil Mangá Awards), organizado pela editora JBC em 2016. No
mesmo ano, a história ainda ficou em 2° lugar no tradicional prêmio literá-
rio Nikkei do Bunkyo.

4. Onde está o Shoujo Mangá agora?

Dentro dessa trajetória, é possível perceber que o período após os


anos de 2010, foi cerceado de iniciativa de revistas on-line, sites para leitura,
e muitos financiamentos coletivos. Apesar das divergências do grande pú-
blico otaku que consome mangás japoneses, é possível identificar que um
grupo de consumidores de mangás brasileiros se formou, menos tímido,
mais presente e disposto a apoiar em catarses, acompanhar as obras on-line,
e ir em eventos de cultura pop.

Atualmente, existem alguns espaços para leitura de quadrinhos bra-


sileiros, um deles é o aplicativo: Agakê que distribui quadrinhos diversos
desde 2018.

A Action Hiken, do Estúdio Armon, com publicação frequente, e re-


vistas impressas em períodos bimestrais ou trimestrais é atualmente a revis-
ta on-line de mangás com maior tempo de publicação. As histórias com as-
pectos que se relacionam com a demografia shoujo, disputam espaço nesses
lugares com outras histórias de outras demografias, ou mesmo com outros
títulos que não são mangás propriamente ditos como é o caso do aplicativo
Agakê.

Porém, a falta de espaço específico nunca impediu que autoras se-


guissem produzindo suas histórias, fosse aliado a revistas ou de forma com-
pletamente independente através de sites próprios, ou mesmo se utilizando

93
de plataformas internacionais. E toda essa trajetória coloca o shoujo mangá
no momento atual.

Figura 11 –Capa da coletânea Shoujo Bomb, produção independente,


2019.

Disponível em: Disponível em: https://www.flogao.com.br/eramedieval/4728733

O ano de 2019 já pode ser colocado como um momento histórico


para a demografia com o projeto intitulado: Shoujo Bomb. Composto por
seis autoras do cenário de produção independente da demografia, o projeto
pode ser compreendido como a primeira coletânea shoujo feita de forma
independente, com repercussão a nível nacional, e lançada sem o auxílio
de uma revista shonen parceira. Renata Rinaldi, conhecida também como
“Tinta de Raposa” encabeça o projeto, que visou desmistificar que a demo-
grafia não vende ou não é interessante, aliando os trabalhos a autoras como:
Cah Poszar, Lígia Zanella, Ju Loyola, Mari Petrovana e Janaina Araújo, o
quadrinho ainda contou com capa de Simone Beatriz do Studio Seasons,
prefácio por Sônia B. Lyuten, além de ilustrações de: Adriana Yumi, Demi
Goldheart, Kátia Schitine, Ava Francine, Eliana Oda e Tabby Chan. Muitos
nomes desse projeto já foram citados anteriormente neste mesmo trabalho,

94
e isso explicita que a trajetória do shoujo foi se fortalecendo sendo respalda-
do pelo trabalho de muitas autoras.

O projeto além de alcançar e ultrapassar as metas de financiamen-


to coletivo, ainda conseguiu o apoio inédito da Crunchyroll, maior site de
streaming de animes do mundo. Além de apoio de eventos de cultura pop e
anime, foi amplamente noticiado por sites, fóruns e blogs. Ao final da cam-
panha alcançou um público de 400 pessoas, para projetos de mangá em si
que já foram financiados pela plataforma do Catarse, independente da de-
mografia, isso foi um número considerável.

Figura 12 –trecho do Mangá turma da Mônica geração 12, MSP, ed. Panini
2019.

Disponível em https://maisdeoitomil.wordpress.com

Maurício de Souza produções, também não perdeu tempo em mar-


car presença com mangás cada vez mais precisos para nichos que necessitam
de títulos, não à toa, as autoras Petra Leão e Roberta Pares, são responsáveis
pelo novo título, Turma da Mônica geração 12, que inaugura o novo selo de
mangá da empresa. Disponível gratuitamente através do site da amazona
para apreciação.

Como resultado de toda essa transformação dos quadinhos com


tendências e elementos de visualidade característicos do shoujo, é possí-
vel vislumbrar que a demografia cresceu e recebe novos títulos, e cada vez

95
mais autoras. As abordagens já mostram versatilidade nos temas, estes, cada
vez mais alinhadas com o tipo de público brasileiro. Indo além do simples
mimetismo de obras japonesas, esse shoujo mangá nacional, desponta em
obras que unem a visualidade japonesa, com enredos e roteiros cada vez
mais plurais de referências.

Referências.
Livros:
BRAGA JR. A. X. Desvendando o Mangá Nacional. Maceió. Edufal. 2011.
p. 22-60.
CHINEN, N. Linguagem Mangá: Conceitos Básicos. São Paulo. Criativo.
2013. p. 20-28
GUSMAN, S. OKA, A.M. LUYTEN, S.B. (Org) Cultura Pop Japonesa:
Mangá e Animê. São Paulo. Hedra. 2005. p. 49-86.
LUYTEN, S.B. Mangá o Poder dos Quadrinhos Japoneses. São Paulo. He-
dra 2001. p. 19-55.
MOLINÉ, A. O Grande Livro dos Mangás. São Paulo. JBC. 2004. p. 62.
VERGUEIRO, W. Panorama das Histórias em Quadrinhos no Brasil. São
Paulo. Peirópolis. 2017. p. 57.
Artigos:
O Desenvolvimento das Histórias em quadrinhos no Brasil. Santos,I.
G.R.B. De A.; Cruz, T. A. da;Horn, M. L. V. Revista E-LOGOS. Vol. II,
2011.
Os custos ao leitor de Quadrinhos Brasileiros e o efeito o mercado.
Daniel do Canto Oliveira Saks. 2° Jornada Internacional de Histórias em
Quadrinhos. Anais. São Paulo. 2013.
O Consumo de Mangá: Experiência individual e coletiva. Elisabeth
Eglem. 2° Jornada Internacional de Histórias em Quadrinhos. Anais. São
Paulo. 2013.
Websites:

96
Especial: O Mercado Interno Japonês. MIRABOLANTE. site: Jbox. 2012.
Disponível em: <http://www.jbox.com.br/2012/09/12/especial-o-mercado-
-interno-japones-de-mangas/>, 17/06/2017.>
Mangás JBC. JBC Editora. Disponível em: <http://mangasjbc.com.br/titu-
los/card-captor-sakura/ >.

97
LIBERTE-SE!!
Sabrina da Paixão Brésio 1

O convite

Quando recebi o convite das organizadoras para contribuir com esta


obra que você tem agora acesso, meu primeiro impulso foi dizer: Sim!!
Sim!!! Claro que topo, tô dentro! (Com alguns pulinhos para arrematar). No
entanto, me contive antes de respondê-las, para ler melhor a proposta, pon-
derar, pensar sobre isso, sobre como poderia ser minha contribuição para
com esta empreitada tão urgente e necessária. Sendo pesquisadora de qua-
drinhos, foi natural que achasse óbvio seguir o caminho do método acadê-
mico: definir um objeto, buscar as fontes, dissertar sobre, contrapor dados
e fatos, concluir algo. Certo, tudo bem, mas... qual seria o objeto? Virei-me
para minha estante e olhei de cima a baixo, investiguei título por título, pas-
sei o indicador por sobre as lombadas, esperando, como que magicamente,
por uma luz, um brilho, uma voz divina que me dissesse: este aqui...

Nada aconteceu.

Apesar de todas as mulheres, autoras e /ou protagonistas que habitam


nesta estante, não sentia nenhuma vontade em falar sobre elas. Não porque
não merecessem, muito pelo contrário, porque elas já falavam tanto por si!
1 Historiadora, Mestre e doutoranda em Educação pela Universidade de São Paulo. Mem-
bro do Lab_Arte (Laboratório Experimental de Arte-Educação e Cultura), pesquisadora do GEI-
FEC (Grupo de Estudos sobre Itinerários de Formação em Educação e Cultura), membro da ASPAS
(Associação de Pesquisadores em Arte Sequencial), roteirista colaboradora no Gibi Quântico vol. 2
(2016) e cronista nas horas vagas. Contato: sapaixao.hq@gmail.com

98
O que teria eu para acrescentar? Como propor um texto novo, sobre histó-
rias que verdadeiramente amo, sobre mulheres que me inspiram com sua
arte? Há pouco havia escrito um texto, a ser publicado no portal de livros
abertos da USP, sobre a HQ O jogo das andorinhas, de Zeina Abirached,
e não sentia que neste momento tivesse muito mais a acrescentar sobre a
obra (se você ainda não conhece este livro, pare agora e dê uma pesqui-
sada, eu espero). No ano passado já havia me debruçado sobre a obra Sita
conta o Ramayna, das indianas Samhita Arni e Moyna Chitrakar (mais um
quadrinho para conhecer hein, anota aí). Havia acabado de submeter um
trabalho sobre Bordados, de Marjani Satrapi (Ah! Esta você conhece não
é! Não? Vai lá, eu continuo esperando), para ser apresentado durante o IV
Entre ASPAS2. Estava sem ideias, sobre o que propor. Retomar uma destas
autoras? Ampliar o que já havia desenvolvido nos textos anteriores? Marjani
Satrapi, Trina Robbins, Alison Bechdel, são nomes, dentre outras, já supra-
citadas como referências de produção feminina em quadrinhos, e por isso
não achei interessante ser mais uma a expor aqui a obviedade (nem sempre
óbvia), de sua fundamental importância para a ampliação do horizonte de
mulheres quadrinistas, dentre outras do panteão matricial de fazedoras de
quadrinhos.

Parei e me perdi em devaneios, mirando a estante atrás de mim.

Sem saber o que propor, o que poderia ser realmente significante para
mim em uma coletânea deste calibre, eis que a tal luz divina que eu pa-
cientemente esperei veio, mais ou menos assim: De repente, enquanto eu
tamborilava na mesa, com uma gata dormindo no colo, detive o olhar nas
prateleiras entulhadas de mangás e disse a mim mesma: Baka!!!

A trajetória da leitora

Olhando para fora, eu buscava avidamente as jornadas de outras mu-


lheres. Estou atualmente no doutoramento, no qual investigo narrativas fe-
2 Encontro bienal dos associados da ASPAS. Para saber mais sobre a Iniciativa ASPAS aces-
se: http://blogdaaspas.blogspot.com/

99
mininas de auto-formação, uma saga em busca de uma jornada da heroína.
Pois bem, eu poderia naturalmente me enveredar por uma história já co-
nhecida, ou uma autora já referenciada, expondo algum ponto fulcral de
sua obra, mas os mangás deram a dica: por que não retornar às origens de
minha própria relação com os quadrinhos?

Na dissertação de mestrado3 já havia percorrido superficialmente esta


trajetória, onde apontei que a porta oficial de entrada no mundo dos qua-
drinhos como leitora e pesquisadora foi através da minha relação com os
animes e mangás, os quais tive acesso durante a adolescência, e me levaram
a descobrir, durante a graduação, os caminhos das pesquisas acadêmicas
sobre quadrinhos no Brasil. A bem da verdade, apenas durante o processo
do mestrado é que realmente me dei conta da importância dos animes e
mangás na minha trajetória pessoal.

Quando tratamos dos processos formativos da pessoa, dentro do de-


senvolvimento educativo, consideramos todas as esferas que englobam esta
pessoa, e como ela se define a partir das influências e intercâmbios com
estes elementos externos. Deste modo, olhando em retrospecto, os animes
e mangás participaram de grande parte da minha vida, desde criança, e me
auxiliaram a tecer minhas redes de amizades, de leituras, de interesses e de
trocas.

E por que escrevo “animes e mangás”? Enfim, porque no Brasil os pri-


meiros contatos com as produções japonesas se deram pela mediação da
televisão. Como aponta Sandra Monte (2010, p.30), os primeiros animes
vieram para o Brasil nos anos 1960, bem como os tokusatsus4. Assim as
produções televisivas antecederam as publicações de mangás no Brasil. En-
tretanto, os mangás já estavam despontando, seja pelo intercâmbio cultural
3 Nas trilhas do herói: Histórias em quadrinhos & itinerários de formação. Disponível em:
http://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/48/48134/tde-29112016-143725/pt-br.php
4 Séries live action, como Japion, Super Sentai, National Kid, e claro, falando em mulheres,
Estrela Fascinante Patrine, que foram exibidas nas redes televisivas do Brasil a partir dos anos 1960,
e inspiraram séries como Power Rangers. Para saber um pouco mais: http://www.megahero.com.
br/2013/05/historia-tokusatsu-historia-dos.html

100
com as colônias imigrantes presentes no Brasil, onde estes mangás circula-
vam em sua língua original, e pelo interesse que não-descendentes come-
çaram a ter pelo material, ao ponto de estudarem a língua japonesa, prática
que permanece até os dias de hoje entre os fãs, muitos dos quais vão estudar
o idioma e acabam por criar uma rede de trocas virtual de materiais tradu-
zidos, tornando-se fansubbers e ampliando o volume e variedade de títulos
em quadrinhos que dificilmente seriam publicados por aqui.

Pois bem, eu acompanhei, talvez como você e muitos outros de nossa


geração, a era de ouro dos animes em canais abertos, como a TV Manchete
e o SBT, durante os anos de 1990. Minha relação de memória afetiva está
ancorada na animação Os Cavaleiros do Zodíaco (Saint Seiya). Ainda era
criança nesta época, mas me lembro de assistir religiosamente. Também me
recordo de como fiz parte da indústria de consumo que envolve estas pro-
duções. Eu tive o LP dos Cavaleiros do Zodíaco (e sei todas as músicas de
cor até hoje...), tive o álbum de figurinhas, os posters, o jogo de tabuleiro.
Lembro que brincava com meus primos na casa da minha avó, simulando
batalhas e cenas. Lembro como detestava ser a Saori Kido, pois aí minha
parte na brincadeira era ficar sentada esperando-os me salvarem... e por
isso eu geralmente escolhia ser a Marin, e achava muito estranho ela ter
de usar uma máscara no desenho. Neste período outros desenhos estavam
sendo exibidos, e tenho deles vagas lembranças, como Fly, Dragon Ball e
Shurato, todos com um perfil shonen, direcionados ao público masculino.
Estranhamente não me recordo de Sailor Moon ou de Guerreiras Mágicas de
Rayearth terem feito parte de minha experiência neste período. Assim nesta
época acompanhava o que estiva disponível na tv aberta, animes mesclados
a desenhos da Hanna Barbera e outros até 2001 quando tivemos pela pri-
meira vez a possibilidade de assinar uma TV a cabo. Foi a maior descoberta
da adolescência: de repente eu tinha acesso à Cartoon Network, e, abençoa-
damente, ao canal Locomotion. Foi um caminho sem volta.

A Cartoon Network trouxe animes para o horário da tarde, alguns que

101
já haviam sido transmitidos na rede aberta, com cortes, como Sailor Moon,
e novidades como Samurai X (Rurouni Kenshin) e Sakura Card Captors. Já
o canal Locomotion era muito mais direcionado às produções japonesas
e priorizava a exibição de animes, o que me iniciou em um mundo novo,
como uma qualidade de animação muito diferente do saudoso Saint Seiya
dos anos 1990. Neste período tive contato com o blues ciberespacial de
Cowboy Bebop, com as distopias de Akira e Ghost in the Shell, ao ciberfu-
turismo de Bubblegum Crisis Tokyo 2040, com protagonistas femininas, as
Knight Sabers. Neste período eu estudava de manhã, e minha rotina era pau-
tada pela grade destas duas emissoras. Das 13h às 15h assistia os animes da
Locomotin, das 16h às 19h na Cartoon Network, e após as 23h, as reprises
dos episódios que mais gostava.

Neste ponto você deve estar pensando: mas onde estão os mangás mu-
lher??? Desculpe pelo preâmbulo, mas ele é necessário para entender o que
motivou o boom de publicações de mangá no Brasil. Pois bem, este inves-
timento por parte das editoras, notadamente neste período da editora JBC,
dialoga com esta produção televisiva. Houveram tentativas anteriores em
publicar material japonês nos anos 1990, como O lobo solitário¸ Akira, Mai
a garota sensitiva, Kamui¸dentre outros. Entretanto, estas publicações che-
gavam via Estados Unidos, sendo reeditadas em formato ocidental, como
um comic, o que gerou erros de imagem e tradução. Cabe dizer que os man-
gás são lidos da direita para a esquerda, o que para nós, equivale a ler “pelo
final” da revista. Esta foi a aposta das editoras nos anos 2000. Pois bem, esta-
va eu completamente fascinada, imersa nestas experiências estéticas que as
animações me proporcionavam. E eis que um belo dia aparece na banca de
jornais próxima da escola o primeiro volume de Sakura Card Captor, com
orientação original de leitura. Comprei.

Os primeiros mangás lançados espelhavam os animes que estavam


sendo exibidos no Brasil, o que assegurou um mercado direcionado e segu-
ro de investimentos. A JBC trouxe inicialmente além de Sakura o mangá Sa-

102
murai X (Rurouni Kenshin), e paulatinamente outros mangás que já haviam
sido exibidos nos anos 1990, como Yu Yu Hakusho Guerreiras Mágicas de
Rayearth, A princesa e o cavaleiro, já a Conrad trouxe Saint Seiya em 2001.

Figura 1. Capa do primeiro volume publicado no Brasil.

Fonte: http://www.guiadosquadrinhos.com/edicao/sakura-card-captors-n-1/
ca049100/39053

Fui colecionando ao longo do tempo, desde esta primeira edição de


2001, e só fui me dar conta de como tinha participado de um evento tão
importante quando cheguei a graduação.

Tornar-se pesquisadora

Em 2007, quando ingressei na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciên-


cias Humanas da USP (FFLCH-USP), sequer passava pela minha mente que

103
existia um universo acadêmico de pesquisadores da área. Escolhi o curso
História com motivações muito diferentes, queria me tornar egiptóloga. En-
tretanto, eram os volumes de mangás que me acompanhavam no ônibus no
trajeto para as aulas, eram as revistas sobre anime e mangás que estavam
junto aos livros teóricos, os montes de bottons de personagens que deco-
ravam minha mochila. Eram os fãs de cultura japonesa os colegas que fiz
durante a graduação, com quem trocava ideias sobre um novo anime, um
evento, o desejo de fazer cosplay.

Coincidentemente, em 2011 eu estava no lugar certo na hora certa: re-


cebemos no prédio da FFLCH o XXVI Simpósio Nacional de História, orga-
nizado pela ANPUH, e havia uma mesa sobre Quadrinhos e História, a pri-
meira a ser feita neste simpósio, salvo engano da memória. Participei como
ouvinte (possivelmente cabulando alguma aula). Me recordo ainda sobre
como me senti encantada por descobrir tanta gente, de diferentes lugares,
que já pesquisavam a sério este tema há um longo tempo. Neste dia conheci
muitos dos quais são amigos até hoje e participei, mesmo sem perceber, das
primeiras conversas que dariam origem à fundação das ASPAS, Associação
de Pesquisadores em Arte Sequencial, em 2012, da qual faço parte desde
então, atualmente na diretoria cultural. Além deste evento, ocorreu no mes-
mo ano as I Jornadas Internacionais de Histórias em Quadrinhos na ECA/
USP, na qual participei apresentando o ainda inicial trabalho da iniciação
científica. Em 2012 estava indo participar do Segundo Congreso Internacio-
nal sobre Historieta y Humor Gráfico em Buenos Aires. Em 2013 ingressava
no Mestrado em Educação, levando os quadrinhos cada vez mais fundo em
minha vida acadêmica. O que devo aos mangás? Eles efetivamente abriram
as primeiras portas deste universo para mim.

O Brasil é um expoente na pesquisa acadêmica em mangás, sendo pio-


neiro neste sentido, com os trabalhos de referência da professora Sonia Luy-
ten. Investigando sobre a pesquisa de quadrinhos no país, é inevitável que
não encontremos referências sobre seu trabalho. Termos a consciência que

104
de a primeira pesquisa acadêmica realizada sobre mangás partiu daqui é de
tal importância para a compreensão de como este tipo de quadrinhos está
alinhavado à nossa experiência leitora e consumidora. Já na década de 1970,
Sonia Luyten, então redatora da revista/fanzine Quadreca lançava um nú-
mero especial sobre mangás, com uma chamada final para a criação de uma
associação de pesquisa de mangá no Brasil, a Abrademi, fundada em 1978.

Figura 2- Capa digitalizada da edição da revista Quadreca.

Fonte: http://sonialuyten.blogspot.com/p/livros-publicados.html

Além deste, sua tese finalizada em 1989 e primeira a propor um es-


tudo sobre mangás, foi laureada com o prêmio Romano Casili no Festival
Internacional de H.Q em Lucca, Itália, e lançada pela Estação Liberdade
em 1991 sob o título Mangá: o poder dos quadrinhos japoneses. Além desta,
foi organizadora do livro Cultura pop japonesa (2005), e acumula artigos e
entrevistas ampliando o sentido dos quadrinhos japoneses. Toda esta pro-

105
dução acadêmica me auxiliou muito a compreender como eu fazia parte de
uma cultura maior e mais complexa do que eu supunha enquanto leitora
adolescente de mangás. Através das leituras de suas obras, fui conhecendo
outros autores, outros livros, e assim compondo uma vasta bibliografia de
pesquisa, que culminou em um projeto de mestrado e no Núcleo de Expe-
rimentações em HQ que ministrei no lab_arte5 de 2011 a 2017. Em se tra-
tando de mulheres, em meu percurso acadêmico a professora Sonia Luyten
foi essencial para que eu me reconhecesse também como pesquisadora, e
enveredasse por estes meandros acadêmicos.

Contudo, no campo da produção de quadrinhos, quem eram estas mu-


lheres que eu lia?

Mangakás6 e garotas mágicas

Como disse, o primeiro mangá que comprei e que iniciou minha mo-
desta coleção (na listagem atual em quase 600 títulos, e contando), foi Saku-
ra Card Captors. Já acompanhava o anime na televisão, e acumulava posters,
álbum de figurinhas, as cartas Clow, pelúcias, etc... Juntando moedinhas e
cuidando de afazeres domésticos, ia comprando volume a volume e lendo
afoitamente. Sakura trazia um misto de magia, de comédia e romance que
ressoavam em minha vivência pré-adolescente. Eu, rata de biblioteca desde
os 8 anos de idade, encontrava uma história na qual uma menina de 10 anos
descobre um livro mágico repleto de cartas com poderes incríveis. Acompa-
nhar sua história, as relações com os amigos, com os familiares, a crescente
tensão amorosa com o antagonista e futuro parceiro de aventuras, Shaoran-
-Li, tudo isso criava uma aura de encantamento pelo Japão, pelas referências
culturais de gastronomia, educação, artes manuais e mitologia. Claro que
também criava estranhamentos: uma menina do ensino fundamental que
namora o professor? Um menino (ainda que reencarnação do mago mais

5 Lab_Arte: Laboratório Experimental de Arte-Educação e Cultura da FEUSP, mais infor-


mações em: https://www.labarte.fe.usp.br/
6 Nome dado aos autores de quadrinhos no Japão (não apenas de mangá), equivalente ao
nosso quadrinista.

106
poderoso), vive com uma professora?

Claro que com o tempo e com as pesquisas, fui compreendendo o caldo


cultural que envolve todas estas discussões polêmicas e, ao mesmo tempo
naturalizadas dentro das narrativas em mangás. A suavização da relação ho-
moafetiva entre o irmão de Sakura, Toya ( quem esquece o primeiro crush?)
e a criatura mágica que vivia como Yukito, seu melhor amigo, ou mesmo
as inferências do amor que Tomoyo, melhor amiga de Sakura, tem por ela,
inferências que ficam muito mais explícitas no mangá do que no anime.

Eram descobertas que introduziram os temas da diversidade de gênero


e sexualidade de uma forma muito orgânica em minha vida, e, ao mesmo
tempo demonstravam as censuras impostas aos animes. Foi através das re-
vistas especializadas da época que sabíamos que em Sailor Moon S as Sai-
lors Urano e Neturo são um casal lésbico, bem como em Sailor Moon Su-
per S, em que o trio de que compõe as Sailor Starlights são homens que se
transformam em mulheres para lutar, em uma clara referência travesti ou
mesmo transsexual.7 Não apenas nas obras shoujo ou mahō shōjo mas tam-
bém em shonen8 como Samurai X, em que um dos integrantes do bando
Juppontagana, Kamatari Honjou é assumidamente homossexual e travesti,
apaixonada pelo líder e vilão Makoto Shishio.

Retornando a Sakura, para mim o mais importante aqui é ressaltar que,


além de ter sido o primeiro mangá com o qual tive contato, foi conhecer sua
equipe de criação. A CLAMP é um grupo de mulheres que começou a pro-
duzir quadrinhos no final dos anos 1980, ainda no colegial. Em 1990, depois
de algumas publicações, as mangakás lançam seu primeiro grande sucesso
RG Veda, um mangá inspirado na mitologia hindu. Inicialmente composto
por 11 integrantes, desde os anos 1990 a CLAMP é formada por 4 mulheres,
7 Esta discussão pode ser acompanhada aqui: http://valkirias.com.br/representatividade-l-
gbt-em-sailor-moon/
8 Nomenclaturas que definem histórias direcionadas prioritariamente a meninas (shojo ou
shoujo) e a meninos (shonen) com temáticas mais específicas, como no caso do mahō shōjo, livre-
mente traduzido como histórias de “garotas mágicas”. Paul Gravett investiga estas diferenciações es-
téticas em Mangá: Como o Japão reinventou os Quadrinhos.

107
Mokona, Satsuki Igarahi, Tsubaki Nekoi e Ageha Ohkawa, que se organizam
entre a produção de roteiros, concepção de personagens, cenários, arte final,
direção de arte e marketing. O que torna o trabalho desta quatro artistas
fundamental para a minha (e talvez e de muitas outras leitoras) formação
enquanto leitora e fã de quadrinhos é a relevância de suas publicações no
Brasil. Suas produções são as mais publicadas no país 9, pela editora JBC
Guerreiras Mágicas de Rayearth (2 edições), Sakura Card Captors (2 edi-
ções), RG Veda, Chobits, X/1999, Tokyo Babylon, Angelic Layer, xxxHOLiC,
Tsubasa: Reservoir Chronicle, Miyuki-chan no País das Maravilhas, Kobato,
já pela editora Newpop temos disponível A Pessoa Amada, O Homem de
Várias Faces, Gate 7, Shunkaden, Soel & Larg: As Aventuras de Mokona Mo-
doki e Kakyou e se Diário de Conquista da Terra. Se isso não é muito para
qualquer autor de mangá traduzido, o que pode ser?

Como podemos notar nos títulos, esse grupo envereda por diferentes
temáticas, e tem como um ponto fundamental em seus roteiros a trama
dos relacionamentos interpessoais, com protagonistas fortes, e uma gama
de mulheres com personalidades muito bem trabalhadas. O amor, seja ele
hétero ou homossexual, é tratado com delicadeza e nuances de uma intimi-
dade que extrapola gêneros, sendo também colocado em termos de tabus,
como o amor não realizado de Tomoyo por Sakura, que espelha o amor que
a mãe de Tomoyo também nutria pela mãe de Sakura. A questão da dificul-
dade da intimidade e da relação com o outro é muito presente e denota uma
referência muito calcada na realidade japonesa, sobretudo no tema da soli-
dão, como vista em Chobits, no qual o relacionamento afetivo entre pessoas
é transferido para as máquinas, bonecas hiper-realistas feitas sob medida,
que levam a um isolamento social. Outros temas que envolvem a mitologia
e o misticismo, fantasia e o esboço de criação de um universo próprio inter-
ligado entre diferentes obras tornam a CLAMP instigante em sua produção.

Considerações
9 Segundo o blog Biblioteca Brasileira de Mangás: https://blogbbm.com/2017/09/25/bbm-
-lista-6-curiosidades-aleatorias-sobre-o-mercado-de-mangas-no-brasil/

108
O que tentei demonstrar com este breve relato é como é indissociá-
vel para mim a relação entre a leitora, a pesquisadora, a produtora e fã de
quadrinhos. Pensando em um panorama feminino de produções de quadri-
nhos no Brasil, espero que tenha ficado clara a importância destas mulheres
como Sonia Luyten na pesquisa, como as mangakás da Clamp na produção
de quadrinhos, como as protagonistas fortes das histórias que lia, para que
eu me tornasse quem sou.

E agora a conversa continua com você. Em sua trajetória, quantas des-


tas mulheres envolvidas com o universo dos quadrinhos você consegue re-
ferenciar?

Indicações bibliográficas e sitiográficas

Gravett, Paul. Mangá: Como o Japão reinventou os Quadrinhos. São Pau-


lo: Conrad, 2006

Luyten, Sonia Bibe (org.). Cultura pop japonesa. São Paulo: Hedra, 2005.

Luyten, Sonia Bibe. Mangá: o poder dos quadrinhos japoneses. 3ª ed. São
Paulo: Hedra, 2011.

Moliné, Alfons. O grande livro dos mangás. São Paulo: Editora JBC, 2004.

Monte, Sandra. A presença do animê na tv brasileira. São Paulo: Laços,


2010.

http://sonialuyten.blogspot.com/p/livros-publicados.html. Acesso em
18/03/2019

https://blogbbm.com/2017/09/25/bbm-lista-6-curiosidades-aleatorias-so-
bre-o-mercado-de-mangas-no-brasil/ Acesso em 18/03/2019

109
http://www.guiadosquadrinhos.com/edicao/sakura-card-captors-n-1/
ca049100/39053 Acesso em 18/03/2019

http://valkirias.com.br/representatividade-lgbt-em-sailor-moon/ Acesso
em 29/03/2019

https://blogbbm.com/2017/09/25/bbm-lista-6-curiosidades-aleatorias-so-
bre-o-mercado-de-mangas-no-brasil/ Acesso em 01/04/2019

110
AS NARRATIVAS VISUAIS URBANAS
FEMINISTAS E LGBT
Thais Linhares 1

RESUMO

Tomando como base o Primeiro Sarau Lésbico, realizado pelo Slam


das Minas2 em agosto de 2017 no Morro da Providência no centro do Rio
de Janeiro, este artigo sem propõe a apresentar o crescimento de um movi-
mento que através das artes gráficas constrói iconografia de afirmação dos
direitos civis das mulheres. O recorte apreciado nesta apresentação será o
que contempla os grafites, quadrinhos, cartuns e nos ativismos que se alas-
tram tanto por paredes quando pelas redes sociais.

Palavras-chave: Arte-ativismo; Feminismo; LGBTTs.

MÉTODO

Os ambientes e atores que este artigo apresenta, fazem parte de cir-


cuitos onde a autora se insere como ativista. O método é o da observação

1 Mestranda do curso de Tecnologias e Linguagens de Comunicação da PPGTLCOM,


ECO UFRJ. thaislinhares@gmail.com
2 O Slam da Minas tratasse de uma roda de desafio poético exclusivamente para mulheres
que ocorre mensalmente cada vez em um bairro diferente. Ao final do ano a poeta com melhor
desempenho é selecionada para participar do Slam nacional . Há Slam das Minas em outras capitas
brasileiras.

111
participativa. Desde 2014 a autora vem documentando por meio de fotos,
relatos, vídeos e artes gráficas, diversos cenários do ativismo feminista, lés-
bico e LGBT em geral. Opta-se por um recorte preciso sobre a arte dos qua-
drinhos/cartuns e grafitagem urbana – visto que é frequente que as artistas
transitem com fluidez entre estes meios de expressão – com um laço extra
para a poesia de rua, onde as mensagens dos grafites ganha oralidade.

1. “QUEM AMA NÃO MATA” – histórico de representatividade

Em pleno Regime Militar, em 1976, lia-se nos muros da cidade, entre


grafites de insondável significado, como o “lerfa mu” e o “celacanto provoca
maremoto”, o clamor pela vida: “Quem ama não mata”. Tratava-se de uma
frase em protesto pela liberação de Doca Street, assassino da socialite Ângela
Diniz. Eles estiveram juntos por apenas três meses e o motivo do assassinato
teria sido a recusa dele em aceitar o término do relacionamento.

A defesa conseguira obter uma pena pequena, de dois anos, que


não seriam cumpridos por conta de um sursis, alegando “legítima defesa da
honra” (masculina) devido a comportamentos “imorais” de Ângela, descrita
como uma mulher lasciva e com histórico de relações homossexuais. Por-
tanto, aos olhos da sociedade, ali se configurava um corpo onde se justifica-
ria à sua eliminação pela não conformação aos limites impostos à “mulher
direita”.

O levante do então movimento feminista foi intenso e obteve em se-


gundo julgamento uma pena mais condizente: 15 anos. Foram estas mesmas
mulheres que sob a opressão do regime militar, organizariam o movimento
pela Anistia e retorno dos exilados políticos na década seguinte. Já havia
então publicações feministas como, similares, por exemplo, a atual revista
As Periquitas, que exploravam a arte do cartum contra o apagamento da
cidadania da mulher.

É do ano seguinte à condenação de Doca Street, a Lei do Divórcio


e da Separação Judicial (Lei 6515/77). As brasileiras, porém, ainda não

112
conseguiram fazer valer a letra Constitucional garantindo plenos direitos de
autonomia no que tange à interrupção voluntária da gravidez, garantida em
34 países incluindo a França, Alemanha, Estados Unidos, Uruguai, Zâmbia,
Cuba ou Canadá, mas ainda criminalizada aqui. Em agosto de 2006, já
passados mais de 20 anos do fim do regime militar, a Lei Maria da Penha
(Lei 11.340/2006) instituiu agravante para crimes cometidos por parceiros
dentro do contexto da violência doméstica.

Segundo dados da Anistia Internacional de 2017, o Brasil lidera a lis-


ta dos países que mais assassinam pessoas identificadas com grupos LGBT.
É hoje também o quinto colocado mundial no recorte do “feminicídio”, isto
é, o crime cujo motivador está relacionado à condição feminina da vítima.

Em 7 de março de 2017, é publicado o primeiro “Dossiê sobre Les-


bocídio no Brasil”, elaborado pelo Grupo de Pesquisa Sobre o Lesbocídio
– As histórias que ninguém conta. Nele se registra o alarmante número de
180 assassinatos de lésbicas entre 2000 e 2017, onde 126 destes ocorreram
após 2014. Junto a isso há ainda os suicídios, representativos da rejeição so-
cial, e sobretudo familiar, das jovens lésbicas. É a partir destes contextos que
mulheres heterossexuais, lésbicas e transsexuais se organizam para pautar
as narrativas através das artes do que é “normal” e contra a noção do corpo
“matável” que liberou Doca Street em seu primeiro julgamento.

2. SLAM DAS MINAS edição SLAM DAS SAPATONAS

Em 2017, sob as árvores do Largo do Machado, zona sul do Rio de


Janeiro, nascia o Slam das Minas. Uma de suas criadoras, a poeta Yassu No-
guchi, surpreendeu-se a ver a praça lotada com uma multidão de mulheres,
de idades variadas, muitas delas acompanhadas de bebês e crianças, compa-
nheiros e fãs masculinos de rodas de poesia. Sendo uma iniciativa nova na
cidade, um desafio poético de slam só para participantes mulheres, imagi-
nara que a adesão seria pouca, mas não foi.

O SLAM das MINAS é uma roda de desafio poético itinerante que

113
junta a poesia, os impressos, exposições e grafites. Interferências estéticas
nos corpos como tatuagens, piercings e cortes estilizados de cabelo, também
costumam ocorrer. A predileção é por tatuagens que simbolizem a pauta: o
espelho de Vênus que simboliza o feminismo, solitário ou em dupla repre-
sentando o relacionamento lésbico, flores cujo desenho lembre a forma da
vagina, o machado de dois fios – outro símbolo lésbico, o punho dentro do
espelho de Vênus evocando o ativismo negro, a borboleta significando a
transformação de gênero etc.

O evento circula pela cidade buscando integração de uma urbe que


foi fragmentada pelos discursos de poder que tornam dificultosa a mobi-
lidade urbana, sobretudo dos corpos femininos. Estes são alvos de assédio
nos meios de transporte, do medo em ruas pouco iluminadas, de abusos
de toda sorte contra as que ousam se valer de seu direito básico de estar e
circular. Assim sendo, em sua terceira edição, ainda em agosto de 2017, as
organizadoras optaram por apoiar a pauta da visibilidade lésbica, escolhen-
do como palco o morro da Providência, junto ao Coletivo Favela Cineclube,
sendo este, iniciativa da produtora, lésbica, Fatinha Lima. O evento abriu
com um grafitato pela visibilidade lésbica. O evento, primeiro sarau lésbico
da cidade, foi chamado Slam das Sapatonas.

A iconografia revelada nas tintas que brotavam das latas empunha-


das por meninas e mulheres cis, trans e lésbicas, construiu coletivamente
imagens de um novo imaginário onde orquídeas, mamões, vaginas e corpos
femininos livres e nus, passavam a pautar um novo significado de poder e
liberdade. A ideia foi dar impulso às comemorações d’ “O Dia Nacional da
Visibilidade Lésbica e bissexuais”, estabelecido no Brasil por ativistas lésbi-
cas e bissexuais brasileiras e durante o 1º Seminário Nacional de Lésbicas e
Bissexuais - Senale, ocorrido em 29 de agosto de 1996, no mês da visibilida-
de lésbica e bissexual.

A edição anterior do Slam das Minas, em julho, já pautara a visibi-


lidade LGBT, ocorrendo na Casa Nem, coletivo que abriga homossexuais,

114
sobretudo travestis, expulsas de casa por suas famílias, e promove o Ocupa-
NEM, pré-vestibular para LGBT, usualmente prejudicadas em seus estudos
por conta das agressões homofóbicas promovidas dentro das escolas. Neste
apresentaram-se as poetas mulheres transsexuais do coletivo Sertransnejas.

3. QUADRINHOS das MULHERES MARAVILHAS

Alison Bechdel, quadrinista lésbica norte americana, registrou em


uma de suas histórias em quadrinhos, o diálogo entre duas mulheres que se
tornou um marco na avaliação do sexismo presente em obras cinematográ-
ficas. Na cena, duas mulheres conversam diante da entrada de um cinema.
Uma pergunta: “Você já viu esse filme?”, e a outra retruca, “Hum… Ele não
satisfez o meu índice, não.” Ao que a primeira, curiosa prossegue: “Que índi-
ce?”.

“Eu tenho três demandas para um filme…”– explica a companheira,


detalhando a avaliação positiva de um filme no que diz respeito ao critério
representatividade:

1 – tem de ter duas personagens femininas;

2 – elas possuem nome próprio, não pode ser: “mãe de fulano”, “namo-
rada de sicrano”;

3 – conversam entre si;

4 – o assunto da conversa não pode ser “homem”.

Aplica-se, segundo a proposta, essas perguntas para as obras artísti-


cas em geral. Este ficou como o conhecido “Índice Bechdel” ou “Teste Bech-
del” para avaliar a participação feminina significativa nas artes.

Ainda é difícil fazer com que os homens nos meios de quadrinhos com-
preendam que sua arte não é “normal” no sentido em que se produz conta-
minada por pontos de vista limitantes. O dito “mainstream” dos quadrinhos
é, na realidade, arte masculina. Por outro lado, o dito “quadrinhos femini-

115
nos” é tão mainstream quanto se queira qualquer outra vertente. Apenas
faltava o reconhecimento de que não há de se limitar narrativas. E que estas
são pautadas por demandas bem mais amplas que a de editores homens
heterossexuais.

Uma queixa recorrente das quadrinistas é o papel de “cota” que ain-


da cumprem em certos festivais tradicionais de quadrinhos e afins. São cha-
madas não para expor suas produções, mesmo sendo estas reconhecidas
internacionalmente, com milhares de fãs e boa vendagem, mas para com-
por mesas sobre “o quadrinho feminino”, como que expostas por sua arte
de “criatura exótica”. Os homens ainda não foram capazes de se reconhecer
sua produção como nicho, tanto quanto consideram a arte das mulheres
ou queer. Donde perguntamos o quão pertinentes são as críticas contra os
espaços exclusivos femininos como segregadores ou formadores de guetos
ou novas limitações de padrões.

Porém, as mulheres já se organizaram em grupos onde discutem,


expõem e comercializam suas artes em quadrinhos. Em respostas a constan-
tes evasivas de que não havia quadrinhos femininos publicados por culpa
de uma suposta falta de quadrinistas mulheres, elas organizaram iniciativas
de visibilizar as quadrinistas. Destaque para o coletivo Lady’s Comics, que
criou o BAMQ! O Banco de Mulheres Quadrinistas (ver em http://ladysco-
mics.com.br/bamq) e surgiu no mesmo período o Mulheres nos Quadri-
nhos, que são três coletâneas com artes de quadrinistas mulheres, editadas e
produzidas via financiamento coletivo, por Roberta Araújo.

3.1 As PERIQUITAS

O Coletivo de quadrinistas feministas As Periquitas, surgiu como


uma brincadeira num meio que insiste em ignorar a existência de artistas
mulheres. “A idéia da obra foi uma homenagem à revista de humor O Papa-
gaio, que existiu no começo do século 20. Era feita por desenhistas homens.
Quando perguntavam porque não existiam mulheres cartunistas, eu sabia

116
que existia, então surgiu a ideia deste projeto. Cheguei a pensar em A Ara-
ra, mas havia o Pau-de-arara, da ditadura. Então optei por A Periquita. No
singular. Isso foi no milênio passado. Foram chegando mais artistas, e agora
virou As Periquitas. A conotação maliciosa está na cabeça das pessoas. É
uma revista feita por mulheres de humor e opinião” comenta Cláudia Fran-
ça, a cartunista Crau, editora da revista. Reuniu o time de mulheres para
publicarem quadrinhos e cartuns e promover o debate sobre a participação
feminina nas artes e em especial as fronteiras do dito feminino e masculino,
traçadas pela sociedade, o machismo histórico nas curadorias brasileiras e o
futuro das artes.

Hoje chamamentos para publicações independentes em diversos


formatos, incluindo impressos de qualidade, são recorrentes, e aqui é im-
portantíssimo ressaltar que o acesso a ferramentas de financiamento cole-
tivo, também chamados “crowdfundings”, é vital para que se possibilite as
publicações e apoio de material a eventos, incluindo os grafites urbanos,
circulação das artistas em eventos fora do estado e manutenção de sites e
casas coletivas.

Desde 2008 temos como impresso a Revista Vírus, por estudantes do


Rio de Janeiro da UFF, PUC-Rio, UFRJ e UERJ, então ainda usando o nome
de Vírus Planetário, com uma proposta inclusiva e independente, não pre-
cisando se submeter a discursos de mercado e onde autores podem publicar
pautas progressistas sem censura. Sua equipe se desenvolveu diversificada,
e possivelmente é um dos coletivos de comunicação impressa mais repre-
sentativo para acolher narrativas LGBT e feministas. Quadrinhos, cultura,
políticas e entrevistas, enviados por colaboradores de vários estados.

Em 2017 também, Trina Robins, teórica norte-americana dos qua-


drinhos na atualidade, esteve no Brasil para um encontro com quadrinistas
mulheres durante o SIQ! – Semana Internacional de Quadrinhos da Faculda-
de de Comunicação ECO-UFRJ. Uma iniciativa do núcleo da pós-gradua-
ção, mestrado em produção de Conteúdos Digitais.

117
Trina foi pioneira em alertar para as questões de gênero nos quadri-
nhos e artes gráficas urbanas em geral:

A representação de homens e mulheres nos quadrinhos, particularmen-


te nos primeiros gibis, difere consideravelmente. As mulheres jovens são
bonitas; os homens são vistos, na melhor das hipóteses, grotescos. Essa
tendência muda em meados do século 20, quando homens de traços ca-
ricatos se relacionam com mulheres de também de aparência engraça-
da, assim como homens de aparência realista a mulheres de aparência
realista.

Conta-nos Trina em seu artigo acadêmico “Diferenças de gênero


nos quadrinhos”, publicado em setembro de 2002. E em 2018 é a vez da re-
vista impressa Brejeiras, coletivo lésbico, lançada no Slam das Minas e pos-
teriormente na prestigiada Livraria Blooks, na zona sul do Rio de Janeiro,
um ponto focal da intelectualidade das artes cariocas.

4. MUSEU, GRAFITE, SLAM!

4.1. GUERRILLA GIRLS

As Guerrilla Girls são um grupo fundado em 1985 como reação a


uma exposição do Museu de Arte de Nova Iorque onde a curadoria esco-
lhera 165 artistas das quais apenas 13 eram mulheres. Elas levantaram o
questionamento sobre o papel da mulher nas artes.

É famoso o cartaz produzido pelas Guerrilla Girls em 1989, com o


quadro do pintor Jean Auguste Dominique Ingres, A Grande Odalisca usan-
do uma cabeça de gorila, onde lê-se: As mulheres precisam estar nuas pra
entrar no Museu Metropolitano (de Nova Iorque)? Elas são menos de 5% dos
artistas na seção de arte moderna, mas 85% dos nus retratam mulheres. É
do mesmo ano o manifesto As vantagens de ser uma mulher artista, abaixo,
onde lemos a referência a situações que envolveram artistas famosas. Como
por exemplo, o reconhecimento tardio da arte de Louise Bourgeois, ou Mar-

118
garet Keane, cuja arte fora assinada por seu esposo por anos, antes que se
descobrisse a verdadeira autoria.

As vantagens de ser uma mulher artista:

Trabalhar sem a pressão pelo sucesso.

Não necessitar estar nas exposições onde houver homens.

Ter uma folga do mundo da arte em suas quatro encomendas.

Saber que sua carreira poderá talvez decolar após seus 80 anos.

Estar segura de que qualquer tipo de arte que produzir será rotulada
de “feminina”.

Não ficar presa em uma posição de tutora.

Ver suas artes florescerem através de outros.

Ter a oportunidade de escolher entre carreira ou maternidade.

Não precisar fumar charutos ou pintar com ternos italianos.

Ter mais tempo livre pra produzir quando seu parceiro a largar por
uma mulher mais jovem.

Ser incluída em versões revisionistas da História da Arte.

Não precisar passar o constrangimento de ser chamada de “gênio”.

Ter sua foto publicada em revistas sobre arte usando uma roupa de
gorila.

Quando indagadas se a arte tem seu discurso próprio ou deve incluir


as identificações de gênero, responderam que toda representação tem seus
valores envolvidos, relacionadas às pessoas que decidem sobre o mérito,
no caso: homens, brancos, ricos. O escopo se restringe a um único grupo,
portanto, excludente, onde não se está construindo uma narrativa sobre a

119
arte, mas sim do poder patriarcal. Atualmente as artes das Guerrilla Girls
ocuparam as paredes das mesmas instituições que elas criticam, ainda que
a desigualdade na representatividade feminina esteja longe de se considerar
superada. Em 2017, elas estiveram expostas nos salões do MASP –Museu de
Arte de São Paulo.

4.2 REDE NAMI

Fundada em 2000 por Panmela Castro, a Rede Nami promove os


direitos das mulheres através de arte cultura e treinamento de lideranças.
A proposta é ocupar as narrativas visuais através de painéis urbanos sofis-
ticados. Panmela e suas alunas têm invadido um território eminentemente
masculino: o grafite urbano. Duplamente transgressor, a imagem da mulher
é retrabalhada sob o viés do protagonismo feminino, tornando sujeito aque-
la que tradicionalmente nas artes é feita objeto. Lembrando o reclame das
Guerrilla Girls, que a mulher só entraria em museus como musa, a Rede
Nami comanda as tintas num território tradicionalmente hostil às mulhe-
res. 

O grafite originalmente surge seguindo tendências vindas do ex-


terior e se sobrepondo à pixação. Sobre esta cabe salientar que o “picho”
originalmente, junto ao seu caráter expressivo e transgressor, ao contrário
do grafite, permanece considerado como crime de dano ao patrimônio. Pi-
chadores “marcam território” com suas rubricas similarmente ao compor-
tamento do macho selvagem que urina pra marcar sua área de caça.

Os “Grafitatos”(atos políticos unindo grafite, rodas poéticas, feiras


grátis e oficina de arte-ativismo) ressignificam o espaço como ocupação fe-
minista.

As oficinas temáticas da Rede Nami, se ofertam junto às lições de


desenho, pintura, estêncil e grafite. As mulheres debatem legislação especí-
fica e direitos humanos. Muitas das alunas trazem histórico de abusos, de
opressão. Ali ganham ferramentas para afirmar sua cidadania. Tais trocas

120
alimentam as narrativas poéticas para os embates do slam.

Destaca-se o projeto Afrografiteiras, voltado especialmente às me-


ninas negras, no entendimento de que na base do sistema opressor, o ma-
chismo e o racismo se sobrepõem, ameaçando-as ainda mais que outras.
Exposições de artes gráficas acompanham as rodas. Em cordéis ou cangas
estendidas no chão, pregadas às paredes por fitas, ajudam a divulgar proje-
tos. Junto a isso as campanhas digitais, ativismo de rede (Internet), fomen-
tam a organização de novos atos dentro de um cronograma das pautas.

Trazendo novamente o foco no grafite urbano, as imagens que es-


calam as paredes para questionar a violência do patriarcado são alvos de
apagamento por parte desta mesma violência. Uma pichação feita em maio
de 2017 na parede de uma banca de jornal no centro, onde se via uma vagina
estilizada foi riscada e sobreposta com a pichação de um pênis. Os lambes
da vagina floral “Deixa ela em Paz” são logo arrancados ou sobrepostos com
alguma camada de tinta que desapareça com sua mensagem desafiadora
onde se subentende: mulheres e sua sexualidade, não estão ao dispor dos
machos para serem molestadas.

Para as mais jovens, esse movimento de tomada das ruas prosseguirá


se naturalizando, mas é importante termos em mente que num passado de
menos de duzentos anos, haviam leis como a “proibição de rebolar as ancas”
imposta as mulheres negras no período imediato da pós-escravatura. O fe-
minino não reprimido era considerado causa de “tumulto”, e ainda hoje se
culpa o “comportamento lascivo” da vítima por agressões sexuais sofridas,
ainda que esse “comportamento” seja uma simples peça de roupa, ou se lo-
comover pela cidade sem a escolta de um homem. Em entrevista recente
para a Agência pública sobre As Mulheres o Direito a Cidade, a arquiteta
Iazana Guizzo, discorre:

Você pega um relacionamento entre homem e mulher, por exem-


plo. Uma série de condutas que você toma sem ninguém ter te pedido

121
para tomar, mas é adequado, é correto, é visto com bons olhos, é uma
produção da sua família, é uma produção do bairro, é uma produção
da novela, é uma produção do cinema, está em todo lugar. Como a
gente vem disputando a cidade, quando você transgride algum des-
ses acordos tácitos é que você percebe que ele é um acordo tácito.
Nessa ocupação, nessa disputa pelo seu corpo, “meu corpo, minhas
regras”, você vai, então, se defrontar com isso. (…) o Brasil é um
dos países mais machistas do mundo, e a violência contra a mulher
está muito longe de ser só de chegar às vias de fato, de chegar a ser
estuprada, por exemplo. A violência está em não poder existir, não
poder ocupar os lugares, ou quando pode ocupar, tem que ocupar na
lógica masculina.

A arte de Panmela Castro responde a isso retratando mulheres como


entidades gigantescas, cuja imagem explode de forma colorida e potente.
Grandes formas femininas ou abstratas, que mesclam suavidade e generosa
força, cobrem muitos metros, em grafites feitos com ajuda de andaimes e
guindastes. Seus painéis foram pintados sob encomenda em outros países,
tendo ela sido convidada para festivais e sua arte comissionada por diver-
sas prefeituras. Porém, em final de 2017, ocorreria mais uma vez a reação
violenta à expressão autônoma da sexualidade feminina, isto é, quando esta
não está condicionada exclusivamente ao domínio do macho. Foi na cidade
de Sorocaba – SP, com a obra Femme Maison, que sofreu forte rejeição por
parte de vereadores da câmara municipal. O grafite cobria a lateral do Pala-
cete Scarpa, sede da Secretaria de Cultura e Turismo da cidade, e retratava
dois rostos de mulheres sobrepostos, e nesta sobreposição se via uma flor
de forma semelhante a uma vagina com seus grandes e pequenos lábios, re-
cheadas de estrelas cósmicas. Determinou-se que se cobrisse de tinta cinza
a arte.
Um dos desdobramentos do Afrografiteiras foi o coletivo de arte
PPKrew (pronuncia-se pepéca criu). Mas um movimento que atinge os sim-
bolismos do poder, não ficaria sem uma reação. Além da destruição ou cen-
sura das obras, dos ataques em blocos pelos “trolls” de Internet, agressões e

122
assassinatos de mulheres são um perigo real.

A execução encomendada da vereadora carioca do PSOL (Partido


Socialismo e Liberdade) Marielle Franco, que vitimou também o motorista
do carro onde estava, Anderson Silva, foi o mais duro golpe já sofrido pela
militância dos Direitos Humanos. O caso teve repercussões internacionais,
e a imagem da jovem Marielle se transformou em ícone da luta por direitos
humanos e em especial da mulher negra e lésbica de periferia. O rosto de
Marielle agora se vê grafitado nos muros das capitais, “viralizou” no cenário
urbano da mesma forma que a mensagem da vereadora viralizou nas redes
e veículos de mídia.

5. INTERNET

A considerada “nova onda feminista” ocorre diretamente atrelada


ao processo crescente de democratização de meios de produção e comu-
nicação. Ao puxar o acesso aos meios para as bases populares, vemos uma
reprodução muito mais legítima do recorte demográfico nas manifestações
culturais. Grupos feministas se organizaram de forma a garantir uma maior
proteção e independência tecnológica nas redes.

A FemHack, é um grupo que reune feministas para desenvolver con-


teúdos digitais voltados para o ativismo feminista, LGBT e educação sobre
segurança nas redes. Oficinas nas capitais, seminários, as Hackathon – ma-
ratonas de encontros presenciais de hackers ativistas – estruturam a rede no
offline, enquanto que online, servidores independentes feministas, portais
de compartilhamento, aplicativos e bots organizam a rede de apoio. Tais
articulações acabam por gerar ferramentas que auxiliem a movimentação
segura, como por exemplo, o aplicativo Sai Pra Lá,(https://www.facebook.
com/appsaiprala/), permite que as usuárias marquem no mapa da cidade,
de forma anônima, locais de assédio sexual.

A característica viral e de tessitura ativista das redes tem obtido su-


cesso em revolucionar antigos paradigmas da cultura até então exclusiva-

123
mente macho-hetero-normativa. Mulheres e LGBTs se organizam pra rom-
per a barreira do medo e silêncio se apoiando em táticas coletivistas. Daí
surgem as campanhas que se valem da tecnologia das hashtags (#) com in-
tuito de compartilhar experiências pessoais de assédio, estupro – alertando
e denunciando a opressão de gênero. Como por exemplo a campanha, que
se tornou planetária,

#MeToo, onde as mulheres compartilhavam suas experiências de es-


tupro e abuso sexual, com intuito de apoiar outras mulheres a denunciarem
seus agressores e a alertar para a normatização da violação dos corpos fe-
mininos, a chamada Cultura do Estupro, exatamente a que o ativismo visual
procurar romper. Juntam-se aí grupos que se unem no mundo dos quadri-
nhos e ativismo. Dentre estes:

ZINE XXX – organizado em 2015 por mobilização em rede virtual,


produziu coletâneas de histórias em quadrinhos impressas, totalmente fi-
nanciadas de forma coletiva, com artes feitas por mulheres.

Girls of comics Now! – derrubado por machistas, sob acusação de


ser “excludente”, pois só permite mulheres e LGBTs, esse grupo se organizou
e retornou em menos de 24h após a derrubada.

Mulherio das Letras 2018 – escritoras e poetas, promovem saraus e


coletâneas impressas.

Prosas de Contextação – revista impressa ilustrada de literatura e


poesia, produzidas por advogadas ativistas feministas.

MariaLab network – segurança, ativismo e tecnologia em rede para


mulheres cis e trans.

LGBT Brasil e Arte Representativa LGBT – pautas LGBTs.

Este artigo não ambiciona esgotar as listas dos grupos e das páginas
das redes feministas e LGBT, que prosseguem crescendo em número e di-

124
versidades. O que é importante perceber é que estamos diante de uma nova
dimensão de publicidade de pautas que antes sufocadas pelo não acesso aos
meios de comunicação. Tinha-se a falsa impressão de que “não existiam”,
o que facilitava seu controle e a imposição de um único padrão estético a
delimitar as narrativas visuais de sociedade.

Considerações finais

Em 2017 o maior grafite do mundo feito por uma mulher foi pro-
duzido no centro do Rio, por Luna Buschinelli então uma artista de apenas
17 anos, dentro de um projeto de arte urbana chamado Rio Big Walls da
Secretaria Municipal de Cultura. A obra, intitulada “Contos”, cobre o prédio
da Escola Municipal Rivadávia Corrêa na Av. Presidente Vargas entre a Igre-
ja da Candelária e a Central do Brasil.

Isto é: o grafite é o cartum ocupando as ruas, e o cartum é o grafite


circulando pelas redes sociais na Internet e impressos em eventos e saraus
poéticos. A sobreposição da função de grafiteira, autora de quadrinhos e
poeta é frequentemente vista dentro do arte-ativismo urbano feminista e
LGBT.

Inserido dentro do movimento feminista, o ativismo lésbico e trans


vai aos poucos de destacando a partir de sua produção cultural refletida
em pequenos passos rumos à conquista das instituições democráticas, tais
como linhas de financiamento para desenvolvimento de projetos de lei, es-
tímulo a iniciativas econômicas colaborativas e ações em educação pública.
Trata-se de estratégia de sobrevivência em uma sociedade hostil à autono-
mia dos corpos cuja identidade feminina é vivenciada como sendo um alvo
móvel pra todo tipo de violência.

O protagonismo feminino se mostra flagrantemente perturbador ao


questionar o status quo das artes urbanas com espaço masculino, sobretudo
quando este é definido como de competição e desafio. Algo que tem sido
observado é que durante os SLAMs das Minas, não tem sido poucas as oca-

125
siões em que homens interferem de forma invasiva. O fato do microfone
ser exclusivo para as mulheres é desafiado ou com berros, ou ainda com a
tomada do equipamento, como ocorreu no SLAM das Minas na Casa Nem,
casa de acolhimento da população LGBTT na região da Lapa, do centro do
Rio de Janeiro, em julho de 2017. Um suposto “produtor cultural” confiscou
o microfone e tomou para si o mérito pela apresentação da atriz trans Bian-
ca, do coletivo Sertransnejas. Em outras três ocasiões, homens alcoolizados
gritavam interrompendo a fala de Letícia Brito, organizadora do evento, tão
logo ela anunciava o espaço como sendo de uso exclusivo das poetas. Tais
interrupções não são observadas em eventos de organização mista ou mas-
culina.

A narrativa que riscava a cidade então, era sintoma do compor-


tamento de afirmação machista, de domínio de território. Não cabia de
nenhuma forma expressão feminina nos riscos que agrediam muros, por-
tas e postes. Tomar para mulheres estes espaços, promove o cenário de um
novo imaginário a ser compartilhados por todas que circulam e passam a
usufruir deste espaço.

Corpos femininos são constantemente expostos e abusados em


nome do prazer e lucro masculino. Porém, se for usado como ferramenta
de auto-afirmação ou sujeito de prazer pela mulher, a imagem é automatica-
mente rotulada de imoral, ofensiva pelo potencial destruidor dos símbolos
visuais de poder. É o perigo da mulher que se recusa a ser objeto e se coloca
como sujeito. Como diria o escritor argentino Eduardo Galeano, trata-se do
“medo das mulheres sem medo”.

É ainda recente, mas estamos diante de movimentos que se com-


prometem a recriar sistemas e alterar a percepção geral que a cidade de tem
sobre muitos dos códigos do imaginário sobre questões de gênero. Não à
toa tem eclodido contra-ataques, como o “escola sem partido”, cujo nome
camufla a única intenção de impedir que as pautas progressistas, que já ocu-
pam as ruas, sejam debatidas na educação pública, ou o impulso neo-con-

126
servador de políticos, com discursos que parecem cópias de velhos roteiros
de filmes sem cor. Apesar de parecerem demandas progressistas, colocadas
como grandes novidades, as questões de gênero na realidade sempre esti-
veram à baila. Aguardavam uma porta de entrada no debate público e esta
veio com a popularização de meio de acesso à comunicação, à informação,
à produção e, sobretudo, à articulação em rede e financiamentos coletivos
(onde se passa a gerir tempo e capital de forma horizontal, sem interferência
dos chefes do poder econômico).

Reparamos numa força incontida nas linhas das artes gráficas das
artistas que se apropriaram da linguagem das pichações, dos termos porno-
gráficos e fizeram releituras que as colocam como protagonistas. Os grafites
não se limitam no estilo. Podem se recortes que lembram a estética do cor-
del, pinturas renascentistas, cartuns cômicos, quadrinhos, carimbos e pop
art. A nudez não é erótica, é subversiva. Retorna para a mulher o domínio
sobre seu corpo e o faz circular pela cidade, questionando uma cultura que
a agride e reduz a animal reprodutor ou mesmo de abate. As redes forne-
cem a segurança e reverbera ideias de liberdade e transformação. Captura
olhares e reduz ao escárnio, agressões antes naturalizadas. A arte feminista
é suporte para iniciativas que chegam a transformar políticas empresariais e
estatais. Muda tradições publicitárias e relações de consumo.

Esta autora crê que dificilmente se poderá reverter o processo de


transformação em uma sociedade mais inclusiva, tendo como palco a re-
modelagem do cenário urbano. Os saraus promovem a circulação de sa-
beres políticos, a exposição dos corpos antes invisíveis e alianças de poder
registradas nas artes. Mulheres, entre elas as lésbicas, as sapatonas, as trans-
sexuais, ainda são as grandes vítimas do ódio enquanto aquelas que ques-
tionam as amarras do sistema. O corpo que se nega a se deixar capitalizar é
um corpo perigoso ao poder. Mas, agora, há um panorama de consciência e
união, com um direcionamento cultural que prepara o discurso das políti-
cas. Podemos dizer que, enfim, transpassamos.

127
Slam das Minas 1ª edição no Largo do Machado, zona sul do Rizo, foto de Thais
Linhares, e o encontro das quadrinistas com Trina Robins, em 2017 na SIQ! Se-
mana Internacional de Quadrinhos da Escola de Comunicação da UFRJ. Foto de
Hamilton Kabuna.

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129
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bolos-falicos-protesta-grafiteira-censurada-22178665. Acesso 20 set. 2018.

Entrevista com Panmela Castro na Rádio SulAmérica Paradiso – programa


Hora do Blush – 26 de março de 2018. Disponível em https://www.face-
book.com/sulamericaparadiso/videos/1660146360689966/?hc_ref=ARR-
xBb4GrYyxKLIV6xIobv7knt0DhXyKGhXZTKfDSrgdCK2ikr6q1w8rAaes-
7gou2QM. Acesso dia 20 set. 2018.

130
SILÊNCIOS NO PASSADO: QUANTITA-
TIVO DE PRODUÇÃO DE QUADRINIS-
TAS MULHERES NA REVISTA
METAL PESADO (1997)
Luana Balieiro Cosme1

Resumo

Este capítulo tem como objetivo principal problematizar os apaga-


mentos/silenciamentos das produções das mulheres nos quadrinhos brasi-
leiros, durante a década de 1990, dentro da categoria da produção direciona-
da ao público adulto e fantasia. Encontrei poucas mulheres no levantamento
realizado na maioria dos números das revistas do gênero como Brazilian
Heavy Metal e Metal Pesado, todas estas foram publicações em português.
Nomes como: Cynthia Carvalho, Dadí, Natália Forcat, Miriam Tomi, Cláu-
dia Lévay, Cláudia Braga, entre outras, são praticamente inexistentes nas
antologias de quadrinhos, nos próprios meios em que elas foram publica-
das (como jornais, periódicos etc.), nas mídias especializadas e em grande
maioria dos artigos acadêmicos. A partir do corpus documental (BHM – um
volume e Metal Pesado – sete volumes) fiz uma discussão sobre os silêncios
da história e o que eles nos dizem, tendo como referência as discussões bi-
bliográficas acerca dos silêncios.
1 Doutoranda em História no Programa de Pós-Graduação em História da UFSC e Bolsista
CAPES.

131
Palavras-chave: Mulheres quadrinistas, quadrinhos, apagamentos.

A participação das mulheres quadrinistas se tornou “mais visível”


no mercado, a partir dos anos 2000, devido a uma série de fatores, dentre
eles, a própria popularização da internet e a consequente criação de uma
rede de contatos e solidariedade entre as mulheres profissionais e as que
acabavam de se iniciar na carreira. Elas puderam trocar entre si os trabalhos
artísticos e os interesses em comum, assim como pautas por direitos que en-
contraram nos quadrinhos um grande veículo de divulgação. Desde então,
a participação das autoras e artistas mulheres não é mais minimizada nem
relegada a nichos de mercado. Mas para que estas mulheres, hoje, pudessem
mostrar seu trabalho, houve outras que enfrentaram as limitações de gênero
impostas pelo mercado e pelo público.

Desde nomes como Nair de Teffé (1886-1981), Pagu (Patrícia Reh-


der Galvão, 1910-1962)2 e Yolanda Pongetti, as mulheres tiveram partici-
pação ao longo da história da arte sequencial e da produção de cartum no
Brasil. No final da década de 1960 e início dos anos 1970, periódicos como
O Pasquim, O Bicho, O Estado de S. Paulo, entre outros, tinham a colabo-
ração de artistas como Hilde (Hilde Weber, 1913-1994 – Esta já publicava
charges e ilustrações desde muito antes)3, Ciça (Cecília Vicente de Azevedo
Alves Pinto, 1939), Mariza (Mariza Dias Costa, 1952-2019), Crau (Maria
Cláudia França Nogueira, 1956) etc4. Fora das grandes mídias jornalísticas,
existiam outras inúmeras mulheres, como Maria Aparecida (Cida) Godoy

2 Sobre Pagu e suas tirinhas ver o trabalho de Natânia Aparecida Da Silva Nogueira intitula-
do Pagu: Política E Pioneirismo Nas Histórias Em Quadrinhos Nos Anos De 1930, cf referências.
3 Cf. Biblioteca Nacional em O Rio na Caricatura: “Atualmente, uma caricaturista vem man-
tendo a flama da caricatura entre nós, especialmente a política, o que não deixa de ser incomum,
por se tratar, justamente, de uma artista femininamente grácil, possuidora de traço personalíssimo,
vigoroso, espontâneo e belo: a caricaturista Hilde, autora de páginas memoráveis aparecidas, inicial-
mente, em ‘Tribuna de Imprensa’ e colaborando hoje, no “Estado de S. Paulo’”. (Biblioteca Nacional,
1965, p. 25)
4 Deixo claro que esta lista é incompleta, caso queira saber mais nomes ver Lady’s Comics
(2015) e ver também Nogueira (2016).

132
que se dedicou a roteirizar quadrinhos do gênero terror5.

Nos anos 1980, houve um aumento gradativo de mulheres no cená-


rio de produção de quadrinhos. No período entre décadas 1980-1990, vá-
rios nomes já eram conhecidos, incluindo mulheres que trabalhavam tanto
em gibis infantis quanto nas publicações direcionadas a adultos, mas, que
ainda assim, eram numericamente desproporcionais à quantidade de ho-
mens trabalhando no mesmo setor/campo.

Nessa mesma época, temos, no Brasil, o crescimento de quadrinhos


do gênero de fantasia e ficção-científica, crescimento que foi consolidado
nos anos 1990, com o lançamento da edição brasileira da revista Heavy Me-
tal que, por sua vez, era a versão estadunidense da francesa Metal Hurlant,
criada em 1975, por Jean Giraud (conhecido como Moebius que, nessa épo-
ca, já era sua assinatura), Phillipe Druillet, Jean-Pierre Dionnet e Bernard
Farkas. Segundo Roberto Elísio Santos, a Metal Hurlant foi:
Editada até 1987, trazia em suas páginas quadri-
nhos autorais de fantasia e ficção científica. (...)
tendo como protagonistas personagens sem o per-
fil do herói tradicional (...) havia edições em vá-
rios países europeus e nos Estados Unidos, onde
recebeu o título Heavy Metal, que continua a ser
publicado – e da influência que teve em artistas
de vários países, a Metal Hurlant não conseguiu
sobreviver aos anos 1980 [na França]. (Santos,
2011, p.27).

A primeira edição brasileira saiu em 1995, com traduções das histó-


rias da revista publicada nos EUA. Em 1996, saiu um único volume da Bra-
silian Heavy Metal6, revista com apenas autores brasileiros. Um ano depois,
em 1997, é lançada a primeira edição da Metal Pesado. Ambas partilham
da mesma estrutura: um compêndio de pequenas histórias em quadrinhos

5 Cf. Lady’s Comics. Risca! Belo Horizonte, volume 1, novembro de 2015. Ressalto que Ma-
ria Aparecida (Cida) Godoy merece estudos voltados para seu protagonismo em um gênero de hqs
bastante restrito às mulheres.
6 Doravante, irei usar o termo BHM, para me referir à revista Brasilian Heavy Metal.

133
e ilustrações que tinham como temas ficção científica, fantasia, aventura,
erotismo e algumas pinceladas de terror e surrealismo. Foi publicada pela
editora Comix Club, tendo como editores Carlos Mann e Dario Chaves.

Na única edição da Brasilian Heavy Metal houve nove mulheres exe-


cutando uma ou mais funções, conforme demonstra a tabela abaixo.

Tabela 1 - Mulheres que publicaram na revista Brasilian Heavy Metal

Nome Funções Título

Priscila Farias Desenho Hã?

Marisa Furtado Roteiro e arte final O susto

Márcia Rache Co-roteiro Sem título

Thaís Linhares Desenho/arte Sem título

Cynthia Carvalho7 Criadora Sem título

HQ sem título,
série “Leão Negro”

Dadí Desenho Sem título

Simone Turini Roteiro Sem título

Natália Forcat Sem informação sem informação

Miriam Tomi Letrista sem informação



Fonte: (Mann; Chaves, 1996).

7 Cynthia Carvalho é a criadora do Leão Negro. Hoje, existem várias edições próprias de his-
tórias em quadrinhos do universo da Ilha de Gardo, publicando-as pela primeira vez em 1987 (tendo
Ofeliano como desenhista) e em atividade até 2013 (publicação regular pela editora HQM). Ofeliano
foi o primeiro desenhista dos roteiros de Cynthia, depois vieram outros como Danusko Campos.
Porém, no índice de BHM, ela não foi creditada como criadora da história e dos personagens, apenas
aparece o nome de Ofeliano. Na página 139 quando inicia sua história é que podemos ver seu nome
creditado. No livro “Almanaque dos quadrinhos” diz que Eduardo Ofeliano, “ano mais tarde, viria
a criar o Leão Negro, a única tira diária brasileira de aventura em quase vinte anos e muitos outros
personagens”. (Patati e Braga, 2006, p. 203).

134
Para esse artigo, achei importante fazer uma tabela da Brasilian Hea-
vy Metal que servisse de comparação com a Metal Pesado que teve sete edi-
ções regulares.8

Vários quadrinistas homens que publicaram na BHM irão se repetir


nas edições da revista Metal Pesado. O mesmo não vai acontecer com as mu-
lheres quadrinista/ilustradoras, exceto Miriam Tomi9 que executou a fun-
ção de letrista em quatro edições. Isso é uma exceção, já que, por ser letrista,
permitiu um período maior de colaboração com a revista. Tomi pertenceu à
composição de colaboradores de ambas as publicações e de algumas edições
de HQ – Revista do Quadrinho Brasileiro (1998), do qual não tive contato
com todos os volumes, percebi também que Dadí e Natália Forcat participa-
ram de alguns volumes desta revista, porém em números diferentes.

Miriam Tomi é uma das mulheres que se constituiu no campo da


produção de quadrinhos e foi contratada por pequenas, médias e grandes
editoras do ramo. Além disso, ela é proprietária da empresa Lua Azul Estú-
dio Ltda., que está ativa desde 1998, e que presta serviços a outras editoras
de quadrinhos.

Tabela 2 - Mulheres que publicaram na revista Metal Pesado (sete edi-


ções)10

8 No ano de 1998, sairam dois volumes que eram compilações das revistas publicadas no ano
anterior.
9 Ela assumiu algumas assinaturas como “Lilian Toshimi” ou “Miriam Tomi”. Seu nome
completo é Lilian Toshimi Mitsunaga. Não encontrei informações sobre local e ano de nascimento.
Ela também foi letrista da BHM, assim como na Metal Pesado, ela era letrista de algumas das histó-
rias.
10 Como forma de entender a forma como se dava a publicação nesta Revista, aloquei quem
fez ilustração no campo de desenhista (essas função, na maioria dos casos, é exercida pela mesma
pessoa, sendo designada apenas como desenhista). Existia uma sessão fixa intitulada “Paleta” que
tinha como foco a publicação de ilustrações e materiais artísticos experimentais. E, por pela proposta
da revista, não é possível dividir o que é um quadrinho com formato padronizado e o que é uma
ilustração. Até mesmo, não entendo as padronizações como limitações das funções de cada mulher
citada, na verdade, segue a proposta de produção experimental.

135
Nome Funções Título Edição

Miriam Tomi Letrista Vários 2, 3, 4 e 5

Telumi Helen Desenho Drácula e 3


outros vampiros

Eliane Bettocchi Desenho/arte Paleta 3

Cláudia Lévay Roteiro e desenho Galatéia 4

Márcia Széliga Desenho/arte Paleta e 5 e Gibiteca


terceira capa Curitiba

Claudia Braga Desenho e arte Ciclo 6

Fonte: (Moya; Jotapê, 1997a); (Moya; Jotapê, 1997b); (Moya; Pacheco,


1997a); (Moya; Pacheco, 1997b); (Moya; Pacheco, 1997c); (Moya; Pacheco,
1997d); (Moya; Pacheco, 1997e.

Telumi Helen é uma artista da área cênica11. “Formada em Educa-


ção Artística pela Universidade de Mogi das Cruzes (UMC), com pós-gra-
duação em Processo de Criação Artística com o Desenvolvimento para a
Psicologia da Arte” (TELUMI, 2019). Ela “integrou o Centro de Pesquisa
Teatral (CPT), coordenado pelo diretor Antunes Filho, entre os anos de
1987 e 1997” (TELUMI, 2019). E é com Antunes Filho que ela assina (exer-
cendo a função de desenhista) a história em quadrinhos Drácula e outros
vampiros,12 veiculada na edição três da Metal.

Na mesma edição, tem a participação de Eliane Bettocchi13 que,


atualmente, é professora adjunta da Universidade Federal de Juiz de Fora
– UFJF. Coordena o grupo de pesquisa Histórias Interativas: estudo e pro-
11 Não encontrei informações sobre local e ano de nascimento.
12 A diagramação dessa história é de Eloyr Pacheco e a montagem de Eric Tosetti.
13 Nome completo: Eliane Bettocchi Godinho. Não encontrei informações sobre local e ano
de nascimento.

136
dução de ludonarrativas, o subprojeto na área de Artes do Programa Insti-
tucional de Iniciação à Docência (PIBID)-UFJF e o Laboratório Interdisci-
plinar de Linguagens para licenciaturas da UFJF. Atua como pesquisadora
em grupo de pesquisa sobre poéticas centradas no corpo. Possui doutorado
(2008) em Design pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro.
Essas informações foram retiradas do Currículo Lattes (Godinho, 2018).
Eliane também se dedicou à publicação na área de RPG. Por isso, a Metal
Pesado a trouxe na seção Paleta, a qual também promovia artes, quadrinhos
e ilustrações experimentais.

Cláudia (Marina) Lévay (1962-2013) foi uma quadrinista e rotei-


rista de audiovisual. Produziu, na década de 1990, uma série de quadrinhos
sobre ecologia, em formato de gibi, pela editora brasiliense. Nos anos 2000,
roteirizou a série de filmes Tainá, que ganhou prêmios no Brasil e nos Es-
tados Unidos (AdoroCinema, 2001). Lévay também é a única quadrinista
desta lista que tem um verbete na Enciclopédia dos Quadrinhos, conforme
gráfico 1 (Goidanich; Kleinert, 2011).

Márcia Széliga nasceu em Ponta Grossa, Paraná, em 1963. Em 1974,


mudou-se para Curitiba. De 1981 a 1984 estudou na Escola de Belas-Artes
do Paraná, realizando diversas exposições pelo Brasil e Europa. Em 1989,
viveu durante seis meses com os indígenas, quando esteve em Cuiabá, entre
os Xavantes e, na floresta amazônica, com os Kanomaris (Moya; Pacheco,
1997d, p. 63). A quarta capa da edição da Metal Pesado: Edição Comemo-
rativa, 15 anos, Gibiteca de Curitiba e a seção Paleta da número cinco tam-
bém é sobre sua experiência com os indígenas. No mesmo ano, ela foi “pra
Polônia para estudar desenho animado e dar o sopro de vida aos meus de-
senhos” (Márcia, 2019). Ao voltar ao Brasil, em 1992, dedicou-se ao campo
de ilustração literária. No Jornal Bem Paraná, numa edição online de 2017,
afirmam que ela é artista plástica, escritora e já ilustrou mais 100 títulos in-
fantojuvenis (Bem Paraná, 2017).

Na sexta edição, há uma página intitulada Ciclo assinada por Clau-

137
dia Braga. Esta é uma das mulheres colaboradoras de quem eu não en-
contrei absolutamente nada.14 Primeiramente, não consegui identificá-la.
Perguntei a várias pessoas envolvidas na produção e publicação de quadri-
nhos. Procurei homônimas, porém sem sucesso. . Ninguém se lembra dela.
Algumas pessoas me perguntaram se não era Cláudia Lévay, pois não se
recordavam de nenhuma Claudia Braga (o nome consta sem o acento). De
todas as mulheres que pesquisei, esta é a que me fez iniciar uma jornada em
busca das quadrinistas que produziam, mas que não ganharam tanta visibi-
lidade quanto os homens.

Colaboradoras: Patrícia Villalba,15 participou como tal de todas as


sete edições da Metal Pesado. Nascida em São Paulo, é uma jornalista que
atuou principalmente no Estado de S. Paulo, nos anos 1990 até atualmente.
Como colunista, esteve nesse mesmo jornal até 2011. Contribuiu, na mesma
época da Metal Pesado, com artigos que versavam sobre as publicações e
novidades de HQs no Brasil(para o mesmo jornal). Em 1999, escreveu um
roteiro de uma matéria que foi quadrinizada por Gabriel Bá e Fábio Moon
para o Zap!, seção do Estado de S. Paulo. Publicou e publica em outros pe-
riódicos.

Anna Kelma Gallas16, nascida em Caxias, Maranhão, foi criada em


Piauí. Colaborou nas edições finais da Metal Pesado e, no seu currículo lat-
tes, consta que é mestra em Antropologia e Arqueologia pela Universidade
Federal do Piauí (2011-2013), formada em jornalismo, em 1993. Atualmen-
te, é professora titular do Centro Universitário Santo Agostinho (UNIFSA)
e faz parte do Grupo de Pesquisa Sexualidades, Corpo e Gênero – SEXGEN
(Universidade Federal do Pará – UFPA), e o COMGENERO (Universidade
Estadual do Piauí), “que desenvolve estudos acerca dos temas das culturas
sexuais, das identidades homossexuais, da construção social do gênero, da

14 Apesar de que eu não tenho certeza se é uma mulher.


15 Não encontrei informações sobre ano de nascimento.
16 Nome completo: Ana Kelma Cunha Gallas. Não encontrei informações sobre ano de nasci-
mento.

138
diversidade sexual, entre outros.”17 (Gallas, 2019).

Considerações finais

A partir dos dados apresentados nas tabelas 1 e 2, podemos perce-


ber que, em sete volumes da Metal Pesado, apenas seis mulheres exerceram
alguma função relacionada à produção de histórias em quadrinhos. Apesar
de ter duas colaboradoras regulares, neste trabalho não me dedico a proble-
matizar as funções de cada uma, Patrícia e Ana Kelma, já que não possuo
fontes suficientes e precisaria entrevistá-las ou procurar informações com
os editores da revista.

Na BHM, mesmo que tenhamos uma assimetria entre homens e mu-


lheres que publicaram, foram nove (09) quadrinistas (Priscila Farias, Marisa
Furtado, Márcia Rache, Thaís Linhares, Cynthia Carvalho, Dadí, Simone
Turini, Natália Forcat, Miriam Tomi)18 que executaram variadas funções em
um único volume, isso um ano antes da Metal.

Nesse sentido, é possível perceber que duas revistas que tinham se-
melhanças nas temáticas e no projeto editorial publicaram trabalhos de mu-
lheres, porém em proporções distintas. Quando me propus a verificar os
nomes das/dos quadrinistas que apareceram nos índices na Metal Pesado no
livro Enciclopedia dos Quadrinhos (Goidanich; Kleinert, 2011), apenas uma
única mulher estava presente em um verbete dedicado a ela. Vejam o gráfico
abaixo:

Gráfico 1 – Verbetes de quadrinistas que publicaram na Metal Pesado divi-


didos por sexo que são mencionados na Enciclopedia dos Quadrinhos (Goi-
danich; Kleinert, 2011)

17 Em 2013, foi a terceira colocada no Prêmio Freitas Nobre, concedido pela INTERCOM. Cf.
Gallas (2019).
18 Em outro artigo irei trazer a BHM para ser discutida a partir dos mesmos dados apresen-
tados aqui.

139

Fonte: Dados catalogados a partir de todos os índices dos sete volumes da


Metal Pesado (Moya; Jotapê, 1997a); (Moya; Jotapê, 1997b); (Moya; Pacheco,
1997a); (Moya; Pacheco, 1997b); (Moya; Pacheco, 1997c); (Moya; Pacheco,
1997d); (Moya; Pacheco, 1997e.) cruzados com os verbetes da Enciclopedia
dos quadrinhos (Goidanich; Kleinert, 2011).

Assim, Cláudia Lévay, única presente na Enciclopedia (2011) tem o


seguinte texto:
Lévay, Cláudia
Brasil (?)
Na apresentação do álbum Amazônia, da série “Ecologia
em Quadrinhos (Brasiliense, 1996), Cláudia Lévay faz a
seguinte apresentação: “Quem? Eu? Bem, sou advogada
graduada pelo Mackenzie e faço histórias em quadri-
nhos... Passei a desenhar profissionalmente para o jornal
A Gazeta e depois para o Diário Popular, onde desenvol-
vi a tira humorística Papaldo. Criei novos personagens,
entre eles o advogado de porta de cadeia, Dr. Palhares”.
Nos álbuns Amazônia (já citado) e Pantanal (da mesma
coleção), Cláudia uniu seu estilo simples e comunicativo
com a necessidade de passar às crianças noções de con-
servação da natureza. Também colaborou para a revista
HQ Metal Pesado. No cinema, Cláudia atuou como cor-

140
roteirista dos filmes Tainá – uma aventura na Amazônia
(2001) e Tainá 2 (2004). (Goidanich; Kleinert, 2011, p.
278-279).

Percebemos que apesar de ser um verbete relativamente “grande”,


faltam informações simples como ano de nascimento. No ano do lançamen-
to da segunda versão, 2011, ela ainda estava viva, podendo ser inclusive con-
sultada sobre esta informação. No ano da primeira reimpressão (2014), ela
já havia falecido. Entendo que a Enciclopedia dos Quadrinhos (Goidanich;
Kleinert, 2011) é um livro bastante consumido por vários tipos de públicos,
porém ainda não obtive resposta sobre as tiragens19.

Nesse sentido, entendo a importância de procurar construir as mi-


nibiografias que fiz anteriormente como referência para a minha proposta
neste artigo, mesmo que pequenas devido ao espaço reservado para o artigo.
Entendo que fiz um levantamento quantitativo e qualitativo das produções
de mulheres comparadas às produções de homens para os números da Me-
tal Pesado. Nesse sentido, eu utilizei os dados que geraram tabelas e gráficos
e, em seguida, analisei cada um deles. Mas, antes, é importante esclarecer
algumas questões. O quantitativo segue a proposta de tornar visível algumas
alegações discursivas de que “não havia mulheres” na produção de conteú-
do adulto, fantasia, etc., e que esse campo era dominado pelos homens.

Daí surgiu outro problema a ser pensado. A ausência de bibliografia


acadêmica que versassem sobre o assunto e que não continuassem a apagá-
-las. Ao me debruçar sobre essa produção, tive um grande espanto ao ver,
em algumas, a omissão de vários nomes. Para esse artigo, escolhi duas refe-
rências: a) De Maria a Madalena: representações femininas nas histórias em
quadrinhos – tese (2014) de Ediliane De Oliveira Boff (2014) e b) Mulher ao
quadrado (livro) de Selma Regina Nunes de Oliveira (2007).

Na seção intitulada Quadrinhistas no Brasil da tese de Ediliane


19 A primeira versão é de 1990. A segunda versão que consta com isbn 978-85-254-2451-8
conforme a editora possui 536 páginas e foi publicado em 2011, porém na consulta deste número/
registro no site da Biblioteca Nacional, consta o mesmo ano, porém 468 páginas.

141
De Oliveira Boff (2014), há um trecho que explica: “No que diz respeito
à produção de quadrinhistas mulheres, no Brasil, encontramos grande di-
ficuldade em visualizar artistas produzindo personagens femininas relati-
vamente relevantes” (Boff, 2014, p. 218). É interessante questionar o que
seria “personagens femininas relativamente relevantes”, bem como de que
temporalidade a autora estaria falando. Nesse sentido, a afirmação torna-se
incisiva sobre as produções de mulheres quadrinista brasileiras, podendo
ser interpretada como um juízo de valor acerca desta produção, pois não
há explicação dos parâmetros de avaliação do que seria esse conceito. É, in-
clusive, uma alegação recorrente de que mulheres não produziam material
de qualidade e, por isso, elas não eram selecionadas para serem publicadas.

Mais adiante, a mesma autora afirma que “quando as mulheres co-


meçaram a entrar, de maneira consistente, na produção de quadrinhos de
países como Estados Unidos, França (...) o Brasil apresentava uma signifi-
cativa expressão no cenário dessas narrativas, com criações que discutiam
o feminino, como a revista Chiclete com Banana e personagens como Rê
Bordosa” (grifos da autora) (Boff, 2014, p. 215-19). Ela assinalou uma cria-
ção de personagem por um quadrinista homem, que no caso é Angeli. E,
completou: “As mulheres autoras, no entanto, quase não fizeram parte desse
começo” (Boff, 2014, p. 219). Conforme a própria autora cita, nas publica-
ções de Chiclete com Banana houve duas mulheres, Mariza e Priscila Farias
(Boff, 2014, p. 219)20. Chiclete com Banana foi uma revista periódica que ini-
ciou sua vinculação em 1985. Antes disso, já existiam outras publicações em
que mulheres participavam ativamente. Para saber mais sobre o assunto, su-
giro Quem ri por último, ri melhor: Humor gráfico feminista (2016) de Cíntia
Lima Crescêncio21. E, afirmo que ao me debruçar sobre inúmeras coleções
20 Porém, Boff afirmou que “Contudo, o diagnóstico de pouca participação feminina nos
quadrinhos tem sido alterado nos últimos tempos, com o crescente aumento dessa produção no
ambiente online e a organização de grupos de mulheres que pretendem discutir o feminino e os qua-
drinhos”. (Boff, 2014, p. 219). Nesta parte, ela elucidou sobre o boom de quadrinhos produzidos por
mulheres nas últimas décadas.
21 Sobre as produções de mulheres quadrinistas na internet, existem inúmeras bibliografias,
mas indico: MESSIAS, Carolina Ito. Um panorama da produção feminina de quadrinhos publicados
na internet no Brasil. 2018. Dissertação (Mestrado em Cultura e Informação) - Escola de Comunica-

142
presentes em gibitecas ou compradas para acervo pessoal, eu encontrei qua-
drinistas que produziam em vários gêneros das histórias em quadrinhos.
Sendo que as leituras de muitas enciclopédias, antologias e teses, bem como
alegações discursivas, foram as motivações para que eu fizesse a escolha da
publicação Metal Pesado em quanto fonte desta pesquisa.

Poderia me delongar sobre as quadrinistas e ilustradoras que publi-


cavam antes da revista periódica Chiclete com Banana, porém o foco deste
artigo é fazer uma catalogação das que publicaram na Metal Pesado, publi-
cação do final da década de 1990, mas que foram compostas por conteúdos
produzidos anteriormente às datas de vinculação, ou seja, antes de 1997.

Mesmo sendo uma quadrinista e roteirista de audiovisual com certo


prestígio, foi difícil encontrar informações sobre Cláudia Lévay. Sobre as
demais quadrinistas, foi preciso um trabalho de fôlego, bastante truncado
em que fiz várias pesquisas online e visitei gibitecas à procura de materiais
para além daqueles produzidos para a revista. Em inúmeros trabalhos aca-
dêmicos, o discurso de que “não havia mulheres produzindo”, “que existiam
apenas um número muito restrito” ou, que elas não criaram “personagens
femininas relativamente relevantes” é bastante recorrente. Assim, temos a
sensação de que “parece haver uma carência representativa.” (Boff, 2014, p.
219).

No livro intitulado Mulher ao Quadrado (2007) de Selma Regina


Oliveira Nunes há uma sessão que chamada Yes, nós temos quadrinhos, ape-
sar de citar publicações como O Pasquim, nada foi mencionado sobre os
trabalhos de Ciça (Cecília Vicente de Azevedo Alves Pinto) e sobre outras
que publicaram nesse periódico. O livro priorizou um conjunto de produ-
ções realizadas por homens, pois era o objetivo principal do mesmo, porém
há omissões de produções de mulheres que estavam ativas no período em
que ela se propõe a escrever. Reitero que havia mulheres que se dedicaram,
na mesma época, à produção da arte sequencial ou cartum em O Pasquim
ções e Artes, University of São Paulo, São Paulo, 2018.

143
e outras publicações. Não há menção de nenhuma quadrinista no tópico
citado do livro (este é fruto da tese da mesma autora, à qual não tive acesso)
sobre quadrinhos brasileiros.

As duas publicações, tanto de Ediliane De Oliveira Boff (2014)


quanto de Selma Regina Oliveira Nunes (2007) problematizaram questões
relacionadas aos quadrinhos e as representações de mulheres na produção
desta mídia, o que levemente toca nas demandas sobre os apagamentos.

Para provocar mais reflexões, deixo abaixo um quadrinho (figura 1)


de uma quadrinista mineira chamada Aline Lemos (desalinhada) que tem
se dedicado às questões de gênero, sexualidade e quadrinhos:

144
Figura 1: Tirinhas em vertical sobre mulheres quadrinistas e suas lutas por
reconhecimento. Personagem Kabelluda de Aline Lemos (Desalinhada).

Fonte: (Lady’s comics, 2015, p. 77) (Marino; Machado, 2019, n.p)

145
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M337m Marino, Dani

Mulheres & quadrinhos: universidade / Dani Marino, Laluña


Machado. – São José : Skript Editora, 2020.
50 p. ; il.

ISBN: 978-65-86284-00-3

1. Histórias em quadrinhos. I. Machado, Laluña. II. Título.

CDU: 741.5

André Queiroz – CRB-4/2242

Arte de Beatriz Miranda


Projeto gráfico e diagramação
Johnny C. Vargas

Conselho Editorial
Diego Moreau
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