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Diálogos com a Música Extrema

Diálogos com a Música Extrema

Organizador
Rodrigo Barchi
Diagramação: Marcelo A. S. Alves
Capa: Lucas Margoni
Arte de Capa: Luis Felipe Loyola

O padrão ortográfico e o sistema de citações e referências bibliográficas são prerrogativas de


cada autor. Da mesma forma, o conteúdo de cada capítulo é de inteira e exclusiva
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Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)


BARCHI, Rodrigo (Org.)

Diálogos com a música extrema [recurso eletrônico] / Rodrigo Barchi (Org.) -- Porto Alegre, RS: Editora Fi, 2021.

290 p.

ISBN - 978-65-5917-167-5
DOI - 10.22350/9786559171675

Disponível em: http://www.editorafi.org

1. Diálogos; 2. Música Extrema; 3. Rock; 4. Cultura; 5. Death Metal; I. Título.

CDD: 780
Índices para catálogo sistemático:
1. Música 780
Dedicado ao Alex Bucho e às demais queridas
pessoas que perdemos no desastre da pandemia

In memorian
Sumário

Prefácio 11
Marcos Reigota

Apresentação 19
Rodrigo Barchi

1 29
Do noisecore ao noise : a tradução do precário em The Hermeneutics of Fear of God
Cristiano dos Passos

2 67
“Do it ourselves, together, as working class: thrash metal e luta de classes”
Fábio Alexandre Tardelli Filho

3 96
O Death Metal e a desnaturalização do demoníaco sob a perspectiva do ethos
discursivo
Lucas Martins Gama Khalil

4 121
Anarchopunk e tecnologias sociais de resistência: antirracismo e subversão da
branquitude na música do grupo Aus Rotten
Moacir Oliveira de Alcântara

5 153
O antipátria: ensaio de uma transvaloração dos valores no Black Metal
Roberto Scienza

6 221
O que a Música Extrema tem a dizer às ecologias?
Rodrigo Barchi
7 247
O que acontece no palco é pretexto: Ecologia da Comunicação e capilaridades
comunicacionais visitam o submundo musical
Tadeu Rodrigues Iuama

8 264
(ENTRE) Educações: crust punk, arte de viver e e e...
Wescley Dinali

Sobre os autores (por eles mesmos) 285

Sobre os ilustradores (por eles mesmos) 288

Sobre o revisor 289


Prefácio

Marcos Reigota 1

“Sempre existirá quem resista!” 2


Ao som de Corubo:
https://www.youtube.com/watch?v=FukNN_Q16EU

No primeiro semestre de 2001, Rodrigo Barchi me presenteou com


seis fitas K-7. Todas elas trazem, de forma muito didática, informações
sobre as bandas e sobre cada música que ele gravou especialmente para
mim e me chamando a atenção para determinadas passagens e particula-
ridades. Foi a forma que ele encontrou para responder minhas perguntas
e me apresentar seu universo sonoro, cultural e político. Na época ele era
estudante de Geografia na Universidade de Sorocaba e fazia a Iniciação
Científica comigo. A cada reunião nossa ele chegava com uma camiseta
diferente e eu perguntava que banda era aquela. Ele me dava todas as in-
formações. Eu não conhecia nenhuma das bandas a que ele se referia.
Creio que foi no nosso primeiro encontro que pedi a ele que me fi-
zesse uma lista das 20 maiores bandas de todos os tempos. Pensei que iria
encontrar ali, Deep Purple, Led Zeppelin, Black Sabbath, talvez The Clash,
Iron Maiden, ou quem sabe o Alice Cooper. Mas não. Quando chegou a
lista, nenhuma das bandas que eu aguardava encontrar estava incluída.
Cada vez mais fui ficando interessado no processo de recepção e de difusão

1
Professor e pesquisador do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade de Sorocaba, pesquisador
do CNPQ, e autor de diversos livros no campo da Educação Ambiental e da Ecologia Política, como “O que é Educação
Ambiental”, “Meio Ambiente e Representação Social”, “A Floresta e a Escola: por uma educação ambiental pós-mo-
derna” e “Ecologistas” entre outros.
2
Título de uma música da banda Corubo, gravado no EP de 2001 “Nem a Morte Cala a Voz do Guerreiro”, que conheci
graças a um dos artigos desse livro.
12 | Diálogos com a Música Extrema

daquelas bandas caras ao Rodrigo e que eu desconhecia completamente.


Isso me fez sugerir a ele que mudássemos o tema de pesquisa e que ele se
dedicasse a trazer ao espaço acadêmico a cartografia da contracultura na
cidade. Ele hesitou, pois pensava que não havia lugar para o underground
na universidade e que talvez pudesse trair o movimento. Insisti, (freirea-
namente e pautado da contracultura dos anos 1970, que chamávamos de
“udigrudi” em que me formei), dizendo que a universidade precisava co-
nhecer essa vertente cultural e política. Ele concordou com a minha
proposta e considerando a dificuldade de encontrar referências a outras
pesquisas na época, o trabalho que o Rodrigo realizou na graduação é um
estudo precursor. Depois veio a dissertação de mestrado em educação, que
orientei, e o doutorado com o Silvio Gallo na Unicamp. Para essa vaga na
Unicamp ele aguardou quatro anos.
Depois vieram os artigos que são referências incontornáveis no nosso
campo específico (educação e meio ambiente) e agora o livro “Diálogos
com a música extrema” que foi sendo gestado ao longo de décadas. Mas
voltando às fitas k-7, na primeira delas se encontram as bandas Terrorizer,
Napalm Death, Agathocles, Cripple Bastards, Rot, Brujeria, Carcass, Ex-
treme Noise Terror, Defecation, S.O.B, Fear of God e New York Against
the Belzebu. Sobre essa última ele escreveu: “Banda brasileira, de São
Paulo, que faz um grindcore debochado e som sem nenhuma preocupação
harmônica. Tiram sarro de deus, do diabo, do sistema, dos amigos e da
própria mãe (se for possível). Músicas tiradas do EP Going the Putrid Re-
ality, de 1994”. Essa foi a primeira fita... ainda tem mais cinco! Guardei
essas fitas, assim como os livros, fanzines e cartazes que o Rodrigo me
presenteou desde que nos conhecemos.
Com isso creio não ser necessário, mas quero enfatizar, que ter sido
convidado para escrever esse prefácio, é uma enorme satisfação, por vá-
rios motivos: 1-) pelas possibilidades e alternativas que traz, seja como
Marcos Reigota | 13

formas de resistência, seja como questionamentos culturais, possibilidades


de pesquisa acadêmica, 2-) por consolidar uma rede de pesquisadores, que
tem na música extrema, não só um tema em comum, mas uma vivência
compartilhada 3-) Pelo que provocou em mim, como professor, pesquisa-
dor e ativista marcado pela música & sonoridades experimentais mais
voltadas para o silêncio que para o ruído. Faço parte da geração que ex-
perimentou (“quando o sonho acabou e nós nem tínhamos ainda dormido
em um sleeping bag”3) várias possibilidades culturais e sonoras.
Presenciei o surgimento do movimento punk em São Paulo e por
causa disso, quando fazia o mestrado, tive um embate com um famoso
professor da PUCSP, que desconhecia completamente o que a juventude
de origem operária que vivia nas periferias, nas repúblicas, nas pensões
infestadas de ratos e baratas, que invadiram o CRUSP4, interditado pela
ditadura, e que trabalhava o dia todo para poder estudar à noite, estava
pensando e fazendo culturalmente. Por pouco não levei para o seminário
com o famoso professor ortodoxo o disco de 1982 (que tenho até hoje)
“Grito Suburbano” com as bandas Olho Seco, Inocentes e Cólera. Eu era
um estranho no ninho, bem verde, no meio de tantos colegas e professores
da esquerda bem-comportada e institucionalizada. Não havia espaço ali
para se falar do “Pânico em SP”5, nem do que significava o surgimento de
bandas como As Mercenárias, Verminose, Camisa de Vênus, Itamar As-
sumpção e a Banda Isca de Polícia, Arrigo Barnabé e a Banda Sabor de
Veneno e tantas outras...O Brasil, dos últimos anos da ditadura civil-mili-
tar, apenas engatinhava na discussão política, cultural, ecológica e
pedagógica, na qual milhares de jovens (nascidos após o golpe militar de

3
Referência à música “O Sonho Acabou” de Gilberto Gil, gravada em 1972, no álbum “Expresso 2222”.
4
CRUSP- Centro Residencial da Universidade de São Paulo.
5
Música do grupo “Inocentes”, gravada no disco ‘Grito Suburbano “de 1982.
14 | Diálogos com a Música Extrema

1964 ou que eram crianças quando o golpe foi dado) não queriam seguir
regras e cartilhas de partido nenhum. Eu era um deles.
Se abordo aqui alguns desses acontecimentos é porque eles estão pre-
sentes nos artigos que compõem essa coletânea que nos convida ao
diálogo. Esse convite nos traz um pouco de oxigênio e nos provoca a rever
nossas origens e trajetórias política, cultural e educacional.
No conjunto de artigos desse livro encontramos ousadia e pertenci-
mento. Os autores escrevem sobre temas e universos que conhecem muito
bem, que participam como sujeitos ativos, que estudam e deglutem as
mais diversas informações, autores e conceitos cristalizados e nos devol-
vem questionamentos com coragem pouco vista em livros e artigos “Made
in Brazil”6. Tem sido cansativo e com pouco ou nenhum impacto político
a produção acadêmica nas Humanidades no Brasil, mais voltadas para
obedecer a critérios de produtividade e de pertencimento institucional e a
grupos de prestígio. Isso é visível e facilmente localizado mesmo entre
aquelas e aqueles colegas que se querem e autoproclamam como “rebel-
des”, mas que não fazem mais que repetir nos trópicos o que consideram
ser de bom tom, e de ilusória acolhida nas instituições culturais e educaci-
onais, colonizadas e colonizadoras.
Ao longo desse livro se encontra, de forma explicita ou implícita, os
processos de desnaturalização/desconstrução de conceitos e argumentos
caros às Humanidades, como, por exemplo, os de “aura da arte”, de “mú-
sica”, de “cultura” e de “indústria cultural”. O processo desconstrucionista
está pautado em autores clássicos de diferentes epistemologias e intima-
mente relacionado com os impactos políticos que provoca e possibilita.
Entre os autores clássicos encontram-se autores brasileiros contemporâ-
neos cuja trajetória de lida&luta está longe de ter sido esgotada. Entre eles

6
Para não nos esquecermos dessa banda, “que só quer tocar rock and roll”.
Marcos Reigota | 15

e elas, estão autores e autoras de diferentes gerações como Nita Freire e


Djamila Ribeiro.
Com a presença desses nomes, conceitos, sonoridades e perspectivas
políticas, me permito empregar o mesmo argumento de um dos autores
da coletânea , quando ao escrever sobre a música extrema enfatiza que o
objetivo é “perturbar e não entreter”: Trata-se de um livro que não tem
nenhuma intenção de entreter, mas sim de perturbar a acomodada (e
“produtiva”) comunidade universitária dos tristes trópicos. Na sua dimen-
são política, “Diálogos com a Música Extrema” refaz percursos
experimentados por outras gerações como o anarquismo, o socialismo e o
comunismo e enfrenta no tempo presente, com vigor, os autoritarismos e
totalitarismos, sejam eles religiosos, ideológicos ou econômicos.
Mas nem tudo caminha no sentido de crítica ao mainstream ou de
repúdio às variantes e adeptos do capitalismo voraz, como se constata com
o ocorrido com o Black Metal que “nasceu como contestação, como liber-
tação. Hoje, entretanto, é espaço, palco e palanque para nacionalistas e
supremacistas raciais”. Nesse contexto se insere a banda sueca Bathory
que propaga “o orgulho pelo sangue, pela nação e pela raça e a glorificação
da hipermasculinidade viking”. Ao ler essa passagem pensei imediata-
mente numa foto que correu o mundo recentemente, foto essa que registra
alguns dos invasores do Capitólio em Washington.
Os autores nos levam por diferentes contextos culturais, políticos e
localidades. Passamos por Iracemápolis, Várzea Paulista, Estocolmo, Oslo,
Halden e inclusive pela San Francisco marcada pelo legado dos hippies.
Passamos por universidades, bares, igrejas e prisões. Generosamente eles
nos convidam para explorarmos as suas bandas e sonoridades preferidas.
Fazem relações audaciosas como a seguinte: “Por meio das letras do Pro-
fecium e da Uprising, mostra-se que Nietzsche está vivo e presente no
16 | Diálogos com a Música Extrema

Black Metal antifascista, inspirando ideias libertárias, de revolta, antio-


pressão e antiexploração”.
Nos remetem também às possibilidades das práticas sociais, culturais
e pedagógicas cotidianas das quais são testemunhas e sujeitos e que têm
sido experimentas e vivenciadas em diferentes espaços. Mostram a aco-
lhida que a música extrema tem encontrado nas universidades brasileiras
e de outros países e as conexões possíveis com as diferentes formas de luta
de libertação frentes aos fascismos, racismos, fanatismos religiosos e de-
vastação ecológica. Assim como as referências sonoras, as referências
bibliográficas são exaustivas, convidativas e dialogam com as artes plásti-
cas, seja nas capas dos álbuns, seja nos fanzines e nas referências a artistas
desestabilizadores.
Os ilustradores que aqui se encontram complementam e dialogam
com as sonoridades e com a escrita do grupo e encontram no gesto de um
deles, o Leandro, uma síntese do argumento central do livro. A cada apre-
sentação num bar de Várzea Paulista, no interior de São Paulo, o Leandro
desenha numa lousa “os logos das bandas, ininteligíveis aos olhos do pú-
blico externo, mas que contam uma história”. Pois é disso que se trata: de
histórias vividas e contadas sobre as alternativas extremas de experimen-
tar (e experimentadas) de se “viver nas ruínas”7 e de “sobreviver no
inferno”8. Que vocês, leitoras e leitores possam deglutir cada palavra, ru-
ído e imagem desse livro com a sensação de respirar o cada vez mais raro
oxigênio.

São Paulo, 13 de março de 2021.

7
Noção extraída do livro “Viver nas ruínas: paisagens multiespécies no Antropoceno” de Anna Lowenhaupt Tsing.
Brasília: IEB, 2019.
8
Para nos lembrarmos do Racionais MC’s.
Foto MR- Fitas gravadas pelo Rodrigo Barchi, com as devidas explicações manuscritas,
que ele me presenteou em 2001.
Apresentação

Rodrigo Barchi

Rise, rise, rise my friends, rise


Spirits rising from their grave
Burning shadows in the dead of night
Icy fingers all over my hand
Try to make me understand
"finally we have returned all of us"

Ao som de King Diamond - “At the Graves”


Do album Conspiracy (1989)
https://www.youtube.com/watch?v=O8SX-CFkPjI

Antes de ser uma coletânea de textos acadêmicos, esse dossiê é a reu-


nião de uma série de velhos e jovens membros do underground brasileiro.
A vida acadêmica de todos os autores que escreveram para esse livro, in-
clusive o organizador, veio depois de suas imersões no metal e/ou no punk
brasileiro.
Os textos aqui reunidos são de vocalistas, bateristas, baixistas, gui-
tarristas, elaboradores e produtores de zines e revistas que, por um tempo
e/ou até hoje, fazem parte da continuidade e da sobrevivência da música
extrema no Brasil. Gente que coleciona, troca, produz e distribui EP’S,
LP’S, CD’S, pôsteres, ingressos de shows e gigs, revistas, zines, catálogos
de gravadoras independentes, patches, adesivos, bonés, camisetas. É uma
galera que dedicou boa parte de suas vidas aos ensaios, entrevistas, shows,
encontros em pré-shows, e, entre os mais antigos, à escrita e leitura inces-
sante de cartas às e aos colegas de outras cidades, estados e países,
20 | Diálogos com a Música Extrema

A terminologia que usamos aqui, “Música Extrema”, foi, entre o or-


ganizador e os colaboradores, consensual, pois, de uma forma ou outra, as
vertentes mais rápidas e agressivas do metal (death metal, black metal,
splatter) e do punk (hardcore, crustcore, grindcore, noisecore), mais do
que serem ramificações e/ou subestilos de uma sonoridade rock, a qual
devem sempre se considerar tributárias, são muito mais dissidências e
rupturas constantes com aquilo que foi, em algum determinado momento,
tido como revolucionário, e por diversas questões, acabou sendo cooptado
pelo mercado fonográfico e pela indústria cultural.
De forma alguma os textos são ingratos, desleais ou caluniadores com
as origens e influências da música extrema, ou seja, o rock clássico, o heavy
metal tradicional e o punk setentista. Na realidade, eles justamente, entre
outras coisas, estão cobrando e reivindicando, por parte das novas gera-
ções, que se renove e se fortaleça a vibração rebelde, revolucionária e
radical que permeou as origens dos movimentos.
Se hoje as composições de bandas consideradas clássicas no metal e
no punk são amplamente tocadas em festivais permeados de “rockeiros de
fim de semana”, que estão muito mais atrelados aos discursos fascistóides
de governanças militarizadas e apoiadas por seitas fundamentalistas pseu-
doreligiosas, não é por isso que sua importância histórica deva ser
desconsiderada.
No entanto, as dissidências e resistências que trazemos aqui como
música extrema, ocorridas em momentos históricos distintos do surgi-
mento do metal e do punk, e com perspectivas ainda mais radicais que os
pioneiros dos gêneros, estão inseridas justamente em um início de século
XXI onde são cada vez mais abrangentes os discursos e posicionamentos
atrelados aos fascismos contemporâneos1. E aqui, consideramos

1
Sobre os fascismos contemporâneos, vero prefácio da edição estadunidense de “O Anti-Édipo: capitalismo e esqui-
zofrenia”, de Deleuze e Guattari, publicado no Brasil em: FOUCAULT, Michel. Estratégia Poder-Saber. MOTTA,
Rodrigo Barchi | 21

justamente a música extrema como aquela que está posicionada anarqui-


camente como antiestatal e anticapital, diabolicamente como anticlerical e
iconoclasta, e radicalmente autogestionária, por existir constantemente às
margens e bordas.
Todos os textos aqui, de uma forma ou outra, buscam enaltecer a
força combativa e resistente da música extrema, realizando diálogos com
a filosofia, a história, a sociologia, a geografia, a linguística, a ecologia, a
educação, a antropologia, a comunicação, os estudos culturais, entre ou-
tras áreas do conhecimento. São artigos e ensaios de pesquisas já
concluídas ou em andamento, que estão ampliando o campo de discussão
e investigação ao redor dessas sonoridades.
Além de apresentar as pesquisas realizadas, essa reunião busca tam-
bém colaborar com o pontapé inicial para a criação de um ou mais grupos
que sejam ao mesmo tempo interinstitucionais e não exclusivamente,
nesse momento de proposta inicial e pioneira, aos grupos de pesquisa da
pós-graduação no Brasil, apesar de todos os participantes serem vincula-
dos ou já terem tido o vínculo em algum momento, como estudantes dos
programas de Mestrado e Doutorado.
Apesar da perspectiva marginal das pesquisas e dos pesquisadores
participantes, a proposta também é que a música extrema seja compreen-
dida como fenômeno e realidade que traga às ciências acadêmicas e
institucionalizadas, contribuições sobre a compreensão do mundo con-
temporâneo, mas sem necessariamente serem exclusivamente definidas,
descritas ou cooptáveis por completo pelas ciências modernas e pós-mo-
dernas. Esse alerta se faz necessário justamente para que não chegue o
momento onde somente a geografia, a história, a filosofia, a sociologia, a

Manoel Barros da (Org.). Tradução de Vera Lucia Avellar Ribeiro. 3 ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2012.
(Ditos e Escritos: IV).
22 | Diálogos com a Música Extrema

teoria da comunicação ou a linguística, entre outras, queiram explicar de


modo monopolizador o que é cada uma das músicas extremas, de forma
que tirem das próprias a possibilidade e legitimidade de se compreende-
rem e se explicarem o que são.
Por isso enaltecemos, repetimos e reforçamos a questão de dizer que
antes de cientistas profissionais, os colegas que contribuem são, antes de
tudo, headbangers e/ou punks extremos. Conhecedores dos movimentos
não somente por terem lido ou estudado sobre os mesmos, mas são parti-
cipantes e produtores da realidade e do contexto atual dessa música
extrema. E trazem às suas formações e respectivos campos de pesquisa,
conhecimentos, saberes e contextos que ainda não haviam sido estudados.
Epistemologicamente, o desafio é enorme, pois além do próprio tra-
balho de pesquisa, há a necessidade de convencimento dos pares, no
campo científico, de que aquilo que é trazido pela música extrema neces-
sariamente é “válido” ou “legítimo” para suas devidas áreas do saber. Por
isso o caráter transdisciplinar dessa coletânea, já que cada um dos textos
atravessa suas áreas do saber, construindo diálogos outros entre as ciên-
cias, como se fossem pontes que, na periferia, estão sendo criadas de
modos e formas estranhas e mutantes ao que é ainda proposto pelas ciên-
cias modernas. Não que haja o interesse a fazer desmoronar ou implodir
a estrutura de cada uma das ciências onde esses diálogos ocorreram pri-
meiramente, ou que haja uma completa desconsideração pela ciência
como ela ocorre até hoje.
Longe disso. A proposta é reforçar o saber científico com os conheci-
mentos criados e disseminados por essas marginalidades sociais, culturais,
políticas, ecológicas, econômicas, antropológicas, linguísticas, filosóficas.
De negação da ciência já bastam os movimentos atuais antivacinas, terra-
planistas e neoeugenistas, aos quais a música extrema, como trazida e
discutida pelos textos presentes aqui, é incisivamente contrária e
Rodrigo Barchi | 23

combativa. No entanto, a ideia é que as marginalidades da música extrema


façam com que a ciência não seja tão dura, a ponto de recusar a contribui-
ção do que é produzido pelos movimentos que apresentamos e debatemos
nesse livro.
E como forma de não apresenta um material que tenha um caráter e
aparência estritamente acadêmica, algumas imagens presentes no co-
meço, no meio e no fim do livro, ajudam a quebrar um pouco a dureza do
aspecto acadêmico desse dossiê. São gravuras produzidas especialmente
para nossa coletânea – e cedidas gentilmente sem despesas – de artistas
também marginais/periféricos, que contribuem constantemente para ca-
pas de álbuns de bandas extremas, para zines ou páginas da World Wide
Web sobre o universo underground, para divulgação de shows e coletâ-
neas de bandas, além dos próprios desenhos de divulgação dos conjuntos.
E aqui nossos agradecimentos a Luis Felipe, Diego Sebold e Marcio Destito.
O primeiro texto é do doutorando em Estudos da Tradução pela Uni-
versidade Federal de Santa Catarina e com longa trajetória no
underground nacional, Cristiano dos Passos, intitulado “Do Noisecore ao
noise: A tradução do precário em The Hermeneutics of Fear of God”, onde
ele realiza um vigoroso debate sobre o trabalho do artista performático
Dave Phillips, baixista e membro da clássica e lendária banda suíça Fear of
God.
O ensaio seguinte é do Mestre em Educação pela Universidade Fede-
ral de São Carlos, Fábio Alexandre Tardelli Filho, chamado “Do It
Ourselves, Together, As Working Class: Thrash Metal e Luta de Classes”,
no qual ele, a partir das entrevistas realizadas pelo webzine Resíduos Tó-
xicos, pelo qual é responsável, com bandas de thrash metal, realiza uma
discussão sobre a presença dos discursos críticos – em especial a luta de
classes – entre os membros e letras das composições das bandas.
24 | Diálogos com a Música Extrema

O artigo “O Death Metal e a desnaturalização do demoníaco sob a


perspectiva do ethos discursivo”, do professor do Departamento de Letras
Vernáculas da Universidade Federal de Rondônia, Lucas Martins Gama
Khalil, aborda justamente a questão da voz gutural, grave e distorcida das
composições dos grupos de death metal, e sua associação direta ao diabó-
lico, trazendo para isso um diálogo muito pertinente ao redor dos campos
da análise do discurso, da produção de sentidos e da semântica.
O quarto texto dessa coletânea é “Anarchopunk e tecnologias sociais
de resistência: antirracismo e subversão da branquitude na música do
grupo Aus Rotten”, do Mestre em História pela Universidade de Brasília
Moacir Oliveira de Alcântara, que traz todo aspecto militante das canções
do grupo anarcopunk estadunidense Aus Rotten, em especial o caráter an-
tirracista da questão Absent Mind, que é minuciosamente discutida, em
diálogos intensos com Stuart Hall, Frantz Fanon e Felix Guattari, entre
outros.
Os aspectos militantes antifascistas e antirracistas da música ex-
trema, em especial do Red and Anarchist Black Metal, em um diálogo
direto com alguns aspectos do pensamento de Friedrich Nietzsche, são o
foco do debate trazido pelo texto do doutorando em Filosofia pela Univer-
sidade Estadual do Oeste do Paraná e produtor visual do canal
Flashbanger, Roberto Scienza, intitulado “O Antipátria: Ensaio de uma
transvaloração dos valores no Black Metal”.
O texto seguinte, de nossa autoria, “O que a Música Extrema tem a
dizer às ecologias?”, busca construir um diálogo direto entre os aspectos
mais radicais da Ecologia Política, e das educações ambientais que lhes são
tributárias, e aquilo que é mais rebelde e revolucionário nas perspectivas
da música extrema, tendo como interlocução o pensamento de Paulo
Freire em seu caráter mais indignado e ao redor do que o educador per-
nambucano sugeriu como “Pedagogia da Raiva”.
Rodrigo Barchi | 25

O penúltimo texto é do Doutor em Comunicação pela Universidade


Paulista e professor do Belas Artes, Tadeu Rodrigues Iuama, chamado “O
que acontece no palco é pretexto: ecologia da comunicação e capilaridades
comunicacionais visitam o submundo musical”, que a partir de uma expe-
riência, em palco, de sua banda, elabora uma série de conexões entre o que
ocorre em um show de black metal e os debates promovidos pela Teoria
da Comunicação.
Fecha nossa coletânea o texto “(Entre)Educações: Crust punk, arte de
viver e e e...” de Wescley Dinali, Doutor em Educação pela Universidade
Federal de Juiz de Fora, que aqui enaltece as resistências e potencialidades
educativas, libertárias, éticas e políticas do punk e do crust, em um diálogo
intenso com as Filosofias da Diferença e a Filosofia da Educação, em espe-
cial ao redor do pensamento de Michel Foucault e Gilles Deleuze.
Essas breves apresentações são para trazer às leitoras e leitores a di-
versidade dessa coletânea. Diversidade temática, diversidade
(anti)musical, diversidade científica. Sem necessariamente aprofundar ou
esmiuçar em demasia a especificidade de cada um dos belos textos que os
colegas convidados.
Por último, atente a leitora e leitor que cada um dos textos tem como
epitáfio – ou um dos epitáfios – um trecho de uma composição de uma
banda escolhida ou discutida pelos autores, e o consequente link para ouvir
e/ou ver o vídeo da mesma. Privilégio de quem baixar a edição digital, que
poderá ler o texto ao som da banda, assim como, até o fim dos anos no-
venta, líamos e escrevíamos cartas às e aos colegas de outras cidades e
estados, ao som de algum de nossos conjuntos favoritos.
Como fizemos, no início dessa apresentação, ao trazer o dinamarquês
King Diamond, em sua notória evocação aos espíritos no início do álbum
Conspiracy, pois ao sugerir que os colegas levantem-se e tragam aqui os
seus textos, e em coletividade, de uma vez, consigamos apavorar,
26 | Diálogos com a Música Extrema

horrorizar e assustar quaisquer formas de preconceitos, negacionismos e


reacionarismos que tanto a música extrema, em suas vertentes mais radi-
cais, teima em fazer. Assim como o sempre fez o professor e querido amigo
Marcos Reigota, a quem tenho que agradecer por aceitar fazer o prefácio
dessa obra.
Agradecimentos especiais também à minha amada companheira Ana
Paula Aduan Rached, sem a qual esse livro não seria possível.
Rise, my friends, rise!!!
Boa leitura a todas e todos!!!
Autor: Diego Sebold
1

Do noisecore ao noise:
a tradução do precário em The Hermeneutics of Fear of God

Cristiano dos Passos

“Music is more than an object of study: it is a way of perceiving the world.


A tool of understanding.”
(Jacques Attali)
Ao som de Fear of God – “As statues fell” (1988)
https://www.youtube.com/watch?v=2M6kC9ibNhE

Introdução

Em sua obra Uma teoria da adaptação (2011), Linda Hutcheon fala


sobre as diferentes formas de adaptar uma obra original e transformá-la
em uma nova obra. Esforça-se a autora, porém, em colocar em xeque a
antiga noção de primazia do original sobre a adaptação e provar que a obra
adaptada não é inferior à original, mas outra obra. Essa discussão ecoa há
muito no campo da tradução, porém, pensadores como Walter Benjamin
(1992), no século XX, procuraram romper com essa ideia. Como nos in-
forma Hutcheon (2011, p. 40), “a tradução não é uma versão de algum
significado não textual fixo que deva ser copiado, parafraseado ou repro-
duzido”, mas sim “um engajamento com o texto original que nos permite
vê-lo de diferentes formas”. É nesse sentido benjaminiano que a autora
canadense vai aproximar adaptação e tradução, pois toda nova versão de
um texto, filme ou música compreende uma recodificação dos signos ori-
ginais, os quais são recombinados de acordo com as concepções estéticas
e políticas do seu “tradutor”, dependendo ainda das condições materiais
30 | Diálogos com a Música Extrema

envolvidas em cada produção. De fundo, há que se levar em consideração


ainda o questionamento acerca do que vem a ser o “original” no campo da
arte, principalmente nos debates que têm como norte a ideia da reprodu-
tibilidade técnica lançada pelo próprio Benjamin, além da concepção de
morte do autor que Barthes trouxe à tona.
No trabalho de Hutcheon, contudo, percebe-se uma ênfase na adap-
tação da obra de um determinado autor versionada por um autor
diferente, geralmente de epóca e estética distintas, sem que se dê a devida
atenção à possibilidade de recriação de uma obra pelo seu próprio autor,
lançando mão de um sistema de signos muito semelhante ao original, po-
rém, com uma abordagem diferenciada, invarialvelmente fruto do
processo de maturação pelo qual passa todo artista. Tal é o caso da obra
The Hermeneutics of Fear of God (2003),de Dave Phillips, artista suíço per-
formático que atua desde a década de 1980 na área musical, ou mais
especificamente, na área de experimentação estética com ruídos e ima-
gens. Nessa obra, como material básico para composição do álbum, Dave
Phillips usou as antigas gravações de banda Fear of God, na qual ele atuou
como baixista entre os anos de 1987 e 1988, bem como num breve retorno
do grupo em 2003. Essas gravações são, em sua maioria, registros precá-
rios de ensaios e shows, além de takes de estúdio retirados de seu único
álbum oficial, As statues fell, lançado em 1988 por um pequeno selo fun-
dado pelo próprio vocalista da banda, Erich Keller. Vale registrar que o
Fear of God foi um grupo com uma história muito curta, porém, firme em
seus propósitos de fazer barulho e não música, além de ter uma postura
política bastante importante na sua concepção. O fato de ter durado por
um punhado de anos e ter feito um par de ensaios e apresentações não
impediu, contudo, que a banda se tornasse um marco na história da mú-
sica extrema, a ponto de seus antigos registros sonoros terem sido
exaustivamente copiados e relançados em formatos diversos, da fita
Cristiano dos Passos | 31

cassete a discos em vinil com esmerada produção, contrariando a própria


concepção do grupo, que jamais almejou atingir o mainstream ou obter
altas vendagens de discos.
Independentemente dessa questão, entretanto, interessa-nos aqui
perceber como Dave Phillips realizou essa tradução do seu próprio traba-
lho mais de 15 anos após seu registro, analisando as estratégias escolhidas
pelo autor para recompor um material considerado clássico pelos fãs do
grupo Fear of God. Afinal de contas, embora tanto os velhos registros do
grupo quanto o resultado obtido por Phillips em The Hermeneutics soem
extremamente barulhentos e desconfortáveis para a maioria dos ouvintes
de música, há diferenças inegáveis entre os materiais, as quais podem ser
melhor analisadas se lançarmos mão de alguns conceitos caros à teoria da
arte contemporânea, como a ideia de precariedade e as questões de tradu-
ção/adaptação envolvidas no processo de transcodificação do material
bruto da primeira banda no álbum em tela.
Entre essas diferenças, uma das que mais nos interessa é o fato de as
duas obras estarem inscritas em gêneros esteticamente diferentes, pois
enquanto a obra do grupo Fear of God filia-se ao que se convencionou cha-
mar de grind/noisecore - subgênero que cuja origem se situa em algum
lugar entre as formas mais barulhentas e ásperas do hardcore/punk e as
vozes guturais do metal extremo - o disco de 2003 de Dave Phillips é ge-
ralmente categorizado no(sub)gênero denominado como noise, cujo
vínculo com a música eletrônica é bastante claro. Em linhas gerais, pode-
se dizer, a fim de simplificar um pouco as concepções nesta introdução,
que o primeiro gênero é geralmente realizado por uma banda com instru-
mentos musicais mais convencionais, como baixo, guitarra, bateria e voz,
ao passo que o segundo é normalmente produzido por meio de recursos
eletrônicos ou “instrumentos” nada convencionais, além de muitas vezes
contar com apenas um integrante na sua criação e execução.
32 | Diálogos com a Música Extrema

Além dessa questão central acerca das semelhanças e diferenças en-


volvidas na tradução do material original da banda Fear of God, bem como
das implicações desse processo, nos interessa no presente artigo o conceito
de precário, entendido aqui no sentido que lhe empregaram Haroldo de
Campos e, mais recentemente, Nicolas Bourriaud, além de outros pensa-
dores de nossa época. Aliás, essa ideia, que certamente nos auxiliará a
compreender melhor o objeto a ser analisado, vem sendo explorada com
certa ênfase pelos teóricos de arte contemporânea e aplicada, consciente-
mente ou não, por muitos artistas de campos estéticos diferentes. Entre
esses nomes, vale citar a artista chilena Cecília Vicuña, por meio da qual
entrei em contato mais profundo com o precário e sua urgência em tempos
semoventes como os que vivemos, marcados pela instabilidade e imper-
manência generalizada.
Vale ressaltar que tais reflexões foram motivadas pelas discussões em
curso sobre o precário e a tradução realizado na Pós-Graduação em Estu-
dos da Tradução e conduzido pelo professor Sérgio Medeiros, que também
trouxe à luz os trabalhos da já citada Cecília Vicuña, além de Ana Mendieta,
Juan Luis Martínez e Manoel de Barros, entre outros. Por meio desses ar-
tistas, iniciou-se um fértil debate a respeito das condições precárias de
alguns de seus trabalhos em comparação com a chamada arte monumen-
tal. Nesse sentido, o álbum The Hermeneutics of Fear of God pareceu
bastante adequado ao tema, por se tratar de obra que se situa à margem
dessa arte monumental e, principalmente, por ter sido concebida sob os
escombros de uma banda underground já extinta e que atuou em um meio
costumeiramente avesso aos meios de arte mais tradicionais, ou seja, o
meio punk/metal. A propósito, considero importante apontar que, além
das motivações teóricas, há nas reflexões subsequentes um componente
claramente pessoal, em virtude do meu envolvimento de mais de 30 anos
com a música extrema, tendo atuado nas mais diversas funções nesse
Cristiano dos Passos | 33

universo, incluindo as de ouvinte, músico, produtor de shows e escri-


tor/colaborador de fanzines, diversidade que, aliás, é bem comum entre
os participantes dessa cena.
Assim, parto de um ponto de vista de engajamento e, como disse Ste-
wart Home, é dessa posição privilegiada que pretendo tecer minhas
considerações, as quais não se pretendem tornar verdades científicas, mas
parte de um rol de reflexões que podem ajudar a elucidar algumas das
questões colocadas pela música extrema. Para tal, além dos já menciona-
dos Benjamin, Haroldo de Campos, Hutcheon e Bourriaud, pretendo
contar ainda com a contribuição de Angela Rodel, Steven Wilson, Jacques
Attali, David Novak e Paul Hegarty, autores que buscam pensar as noções
de barulho no panorama da música contemporânea, seu impacto estético
e social, além de outras questões importantes para estas reflexões, como a
chamada inépcia técnica ou o que é música boa ou ruim.
Dadas as dificuldades de encontrar material teórico acerca do artista
a ser estudado, contarei ainda com uma entrevista com Dave Phillips, con-
duzida por mim em fins de 2018 exatamente em virtude do presente
artigo. Ao fim do texto, meu objetivo principal é mostrar o quanto Dave
Phillips amplia o seu próprio trabalho, aquele realizado com o Fear of God,
acrescentando-lhe novos significados e expandindo as fronteiras do gê-
nero que inicialmente o acomodava (noisecore), por meio de recursos
semelhantes aos utilizados por outras formas de arte contemporânea,
como a pós-produção, o reaproveitamento de obras anteriores e, princi-
palmente a noção de precariedade, elemento cuja presença é inegável na
cena musical extrema.
34 | Diálogos com a Música Extrema

Hardcore extremo e o precário

“Spreading noise is, in essence, the same as spreading


resistance: a sonic critique of the traditional struc-
tures of music and traditional structures of power”
Angela Rodel

Em meados da década de 1980, como consequência natural da popu-


larização da música punk, que parecia ter sido absorvida pelo mainstream,
e do seu filho mais barulhento até então, o hardcore, naquela época já am-
plamente espalhados pelos quatro cantos do planeta, começaram a
aparecer alguns grupos que visavam levar essa sonoridade agressiva a ní-
veis ainda não conhecidos na música popular. Mais do que o simples
choque visual, o deboche musical ou a ácida crítica política, esses novos
grupos queriam superar seus antecessores em velocidade e ruído, bus-
cando atingir um estado caótico e praticamente ininteligível para uma boa
parte dos ouvintes, principalmente no âmbito da música popular. Eviden-
temente, a ideia era dar um passo além do punk/hardcore em termos de
agressão sonora e assim garantir a manutenção de sua independência e
marginalidade em relação ao mundo dos negócios, resgatando de forma
radical as origens do estilo.
Entre esses grupos, pode-se citar Asocial (Suécia), Brigada do Ódio e
SP Caos (Brasil), Lärm (Holanda), Rapt (França), The Corporate Whores
(EUA), Kuolema (Finlândia), Seven Minutes of Nausea (Austrália), Plasmid
(Inglaterra), Hellsaw (Bélgica), Leviatan (Peru), Patareni (Iugoslávia/Cro-
ácia), S.O.B. (Japão), entre outros, como precursores dessa linhagem mais
violenta do punk, mas ainda chamada de hardcore (ou HC), embora seu
som fosse mais rápido e barulhento do que o das bandas que eram assim
denominadas, como Discharge, Dead Kennedys, Ratos de Porão, Bad Bra-
ins, Disorder ou Crass. Interessante notar que a distribuição geográfica
Cristiano dos Passos | 35

desses grupos é bem diversificada, o que talvez possa caracterízar a emer-


gência de um fenômeno cultural amplo e descentralizado, como algo que
invade o centro a partir de suas margens, movimento possivelmente esti-
mulado pela independência dessa cena underground. Contudo, guardemos
esta hipótese para futuras pesquisas...
Voltando às origens terminológicas do hardcore extremo, em 1987,
um novo rótulo seria introduzido na cena underground pela banda Na-
palm Death em seu primeiro disco – Scum – separando essa corrente mais
veloz da velha guarda. Assim, surgia o grindcore, logo seguido pelo termo
noisecore, que identificava as formas mais intensas do gênero, posto que
havia sempre essa necessidade de dar um passo a mais no sentido de
des(cons)truir a música popular. A fim de simplificar essa discussão ter-
minológica, é necessário citar o trabalho de Angela Rodel (2004), que se
refere a essas formas difusas e ruidosas de música punk como “hardcore
extremo”, termo que parece melhor se adequar ao presente artigo1. Se-
gundo a autora, “extreme hardcore includes sub-genres that go by various
category names such as thrash, fastcore, noisecore, grind(core) and power
violence” (p. 187).
Dessa forma, além do citado Napalm Death, alguns grupos que pas-
saram a atuar nessa linha mais extrema da música foram Fear of God,
Crawl Noise, Sore Throat, Deathnoise, entre outros. Contudo, o que os di-
ferenciava de seus antecessores era, além da velocidade e do caos
deliberado, a influência das guitarras mais pesadas do heavy metal. Assim,
o hardcore extremo é, na verdade, um híbrido de gêneros diferentes,

1
Como não é objetivo aqui desenvolver um extenso debate acerca da precisão terminológica, optamos por usar o
termo de Rodel até para facilitar a compreensão de eventuais leitores leigos quanto ao universo da música extrema.
Assim, quando se estiver fazendo referência ao som de origem punk, o termo usado será “hardcore extremo”, ao
passo que o termo “noise” servirá para identificar as formas mais eletrônicas e experimentais de som. Em alguns
momentos, entretanto, me permitirei usar o termo “antimúsica” para o primeiro grupo, pois este é amplamente
utilizado pela cena para se referir à sua própria arte (ou antiarte?) sonora.
36 | Diálogos com a Música Extrema

somado a uma atitude mais iconoclasta em relação à técnica musical e ao


conteúdo lírico mais organizado desses gêneros. Segundo Dave Phillips, a
intenção era “destruir a música”: “We wanted to push our music and our-
selves as far as possible”, disse em entrevista concedida ao autor do
presente artigo em 2019, ou como diria Erich Keller (2006), outro ex-
membro da banda, o foco do grupo era “perturbar e não entreter”.
Embora seja um subgênero de fronteiras um tanto quanto difusas,
em parte devido ao próprio caráter underground de suas produções e gru-
pos, ainda assim é possível traçar algumas características comuns em meio
à multiplicidade de propostas espalhadas pelo globo. Além disso, como não
há até o momento nenhum estudo acadêmico exaustivo acerca do tema,
muitas das observações a serem feitas a partir daqui partirão da experiên-
cia do autor, envolvido desde a segunda metade da década de 1980 com a
referida cena.
Assim, o chamado hardcore extremo se caracteriza pelo uso de estru-
turas de som simples e altamente caóticas e ruidosas, produzidas pelos
instrumentos musicais tradicionais do rock, quais sejam, guitarra, baixo e
bateria. Em algumas formações, entretanto, o baixo pode ser dispensado,
ou então a guitarra é substituída por um contrabaixo distorcido. As “mú-
sicas” são geralmente de curta duração, sendo contadas por segundos, e
não por minutos, e muitas vezes são apenas pequenas explosões de baru-
lho com pouco espaço entre as faixas, o que aumenta a sensação de
descontrole. Às vezes, há algumas partes mais musicais, mas que servem
apenas como introdução ao caos definitivo que se segue e é resolvido em
poucos segundos. A técnica musical é quase completamente desprezada
nesse meio e a maioria dos “músicos” não tem formação – e nem fazem
questão de dominar seu instrumento. Há, porém, algumas exceções, como
é o caso do próprio Fear of God, pois embora não seja formado por músicos
talentosos, ainda é possível perceber em suas composições alguma
Cristiano dos Passos | 37

estruturação musical capaz de ser repetida posteriormente. Nesse aspecto,


aliás, reside uma diferença importante entre os subgêneros grindcore e
noisecore, pois o primeiro ainda aposta em um mínimo de musicalidade
em suas canções, ao passo que o segundo zomba abertamente dessa ques-
tão, adotando inclusive o termo “antimúsica” para categorizar o seu som.
Nesse sentido, vale mencionar o trabalho de Paul Hegarty (2007), que
em Noise/Music – A History, dedica um capítulo ao tema da inépcia mu-
sical falando exatamente sobre essa questão como parte importante da
estética e da filosofia punk. Tal concepção tem por detrás a ideia simples
de que “qualquer um pode tocar”, seguida pelo seu corolário natural – “en-
tão vá e faça” (p. 89), que vai ao encontro do que afirma Benjamin (1987)
em seu célebre ensaio acerca da reprodutibilidade técnica, quando este
ressalta a possibilidade de que as fronteiras entre autor e público desapa-
reçam ou se tornem mais permeáveis, posto que “a cada instante, o leitor
está pronto a converter-se num escritor” (p. 184). Assim, a atitude punk
em relação aos excessos técnicos do rock progressivo, ao mesmo tempo
em que era uma forma de confrontar o estereótipo da estrela do rock, tam-
bém era uma maneira de contribuir para a destruição da aura da obra de
arte (e do artista) por meio da criatividade, que não era necessariamente
determinada pela habilidade em tocar um instrumento (HEGARTY, 2007,
p. 89). Nas palavras de Albert Mudrian (2004):

Proficência musical geralmente era um pensmento secundário para as bandas;


velocidade e urgência pintadas com uma raiva justificada eram o que impor-
tava. Em última instância, essa forma de musica agressiva era a única maneira
pela qual esses adolescentes poderiam se expressar adequadamente2 (p. 26).

2
Tradução do autor para: "Musical proficiency was generally an afterthought to the bands; velocity and urgency
colored with a righteous anger were what mattered. Ultimately, this form of aggressive music was the only manner
in which these adolescents could properly express themselves." (p. 26)
38 | Diálogos com a Música Extrema

Essa falta de habilidade, praticamente uma virtude dentro da cena


punk, tem sido uma marca inquestionável do hardcore extremo, o que
pode ser observado principalmente nas performances ao vivo, quando os
erros são incorporados às gravações e não são apagados posteriormente,
como normalmente é feito nos discos ao vivo oficiais de grupos mais liga-
dos ao mainstream. Da mesma forma, Rodel (2004), em ensaio publicado
no livro Bad music: the music we love to hate, afirma que os punks sempre
defenderam “a estética da ruindade3 como parte de uma tentativa de reter
o controle sobre os sons e as imagens punk” (p. 182), pois elementos como
o nível técnico deficitário e as gravações precárias contribuíram para o de-
sinteresse da indústria fonográfica em relação ao punk, segundo aponta
também Dave Laing em um estudo de 19854.
No caso específico do Fear of God, a banda assumiu claramente essa
posição antagônica à técnica musical desde o início: “Our aim had always
been to play as fast, as brutal – as uncompromising as possible. We weren’t
interested in technical skills and the little of which we called our own
seemed to be sufficient for our goal” (KELLER, 2003). Aliás, segundo Kel-
ler, apesar de não ter domínio técnico dos instrumentos, no início da
banda eles ainda produziam algumas músicas mais ou menos controladas,
mas à medida que o tempo passava, eles tiveram que “esquecer como fazer
música”, adotando um som cada vez mais ruidoso: “every member of the
band was under pressure to deliver his contribution with the utmost in-
tensity. The drums had to as fast as possible, the guitars should grind out
riffs as well as produce a wall of noise (…)” (2003).
Outro ponto importante diz respeito exatamente a essa questão da
precariedade das gravações feitas pelas bandas ligadas ao hardcore

3
O termo usado pela autora é “badness”, mas como o livro não tem tradução para o português, preferi usar o termo
“ruindade”, que pode ser visto como um correlato do termo “inépcia” usado por Hegarty (2007).
4
LAING, Dave. One-chord wonders: power and meaning in punk rock. Open University Press, 1985.
Cristiano dos Passos | 39

extremo. Inicialmente, em meados da década de 1980, a baixa qualidade


das gravações podia ser atribuída a diversos fatores, como a falta de estú-
dios e técnicos de som apropriados ao gênero ainda incipiente, a
necessidade de fazer a cena acontecer sem depender dos recursos da in-
dústria musical e a falta de recursos financeiros próprios, considerando
que os grupos em sua maioria tinham origem entre jovens filhos da classe
trabalhadora, o que implicava a ausência de bons instrumentos para exe-
cução das músicas, bem como o uso de métodos amadores de captação do
som. A baixa qualidade das gravações é uma das características valorizadas
dentro da cena musical mais pesada até os dias de hoje, principalmente no
hardcore extremo. Aliás, uma gravação de boa qualidade comumente des-
pertaria suspeitas de pretensões comerciais por parte dos participantes da
cena (RODEL, 2004). Desde os primórdios, dadas as dificuldades de se ob-
ter aparelhagem profissional, bastava um gravador ou alguns microfones
para que se fizesse uma gravação “oficial” da banda, mesmo que esta fosse
realizada em um ensaio e registrada em apenas um take, sem pós-produ-
ção ou qualquer recurso tecnológico extra. No que tange ao Fear of God, é
interessante notar a completa ausência de edição do material gravado,
sendo preservados ruídos diversos entre as músicas, vozes dos membros
e de outros convidados na sala de ensaio ou da plateia, no caso dos shows,
risadas, pausas grandes entre cada faixa, inícios de músicas que se repe-
tem após algum erro, microfonias, entre outros detritos sonoros que
seriam prontamente desprezados em uma gravação oficial de um grupo
mainstream.
Não é à toa que o primeiro e único registro em disco feito pela banda
enquanto estava em atividade, o LP As statues fell (1988), compila material
de duas apresentações ao vivo, na Suíça e na Alemanha, capturadas em
plena performance do grupo, momento privilegiado para sentir a força de
seu som, segundo os seus próprios membros. Ambas as gravações
40 | Diálogos com a Música Extrema

ostentam diversas “falhas” de produção, como volumes de instrumentos


não equalizados, saturações, microfonias, entre outros, contando ainda
com a possibilidade de ter duas versões da mesma música em cada show5.
Aliás, contribui para essa precariedade a forma amadora com que a banda
encarava sua posição na cena musical, não havendo nenhum interesse em
transformar o grupo em algo profissional, com gravações de estúdio e um
planejamento futuro. Sobre esse amadorismo, afirma Erich Keller: “The
word ‘amateur’ derives from the latin word ‘amare’ which means ‘to love’.
That’s what we were: Amateurs” (2014).
Além disso, a própria história do Fear of God e sua constituição como
grupo é precária, assentada sobre uma formação inconstante e com várias
divergências entre os membros ajudavam a criar uma atmosfera hostil,
que também contribuía para o ambiente de destruição musical que mar-
cava seus ensaios e apresentações. Em contraposição ao típico sonho do
rock star de ter uma banda duradoura, com altas vendagens de disco, fama
e dinheiro, a história do Fear of God foi, nas palavras de Keller, uma ver-
dadeira tragédia de uma banda que praticamente não existiu, em virtude
dos seus poucos ensaios e shows e apenas uma sessão de estúdio de 4 ho-
ras (KELLER, 2003).
Interessante que essa precariedade vem ao encontro de outra prática
comum à cena hardcore extrema, que é a utilização de suportes de baixa
qualidade ou de menor durabilidade, como fitas cassetes (as quais podem
inclusive ser apagadas ou perder qualidade com o tempo) e CDs regravá-
veis, considerados descartáveis e, por isso mesmo, costumeiramente
desprezados por alguns colecionadores pelo baixo valor de mercado e pela
pequena resistência física do material. Nos anos de 1980, quando os CDs

5
Boa parte desse material é que sera aproveitado posteriormente por Dave Phillips em The Hermeneutics of Fear of
God.
Cristiano dos Passos | 41

ainda não existiam, essas gravações se espalhavam mundo afora em fitas


gravadas e trocadas (raramente envolvendo valor financeiro, além dos va-
lores de transporte, posto que o escambo é muito comum na cena) de mão
em mão ou via correio6, indo do México à Suíça, do Brasil ao Japão ou do
Canadá à Itália em alguns meses, espalhando-se rapidamente, porém, per-
dendo sua qualidade cópia após cópia, o que não impedia a apreciação do
material. Mais contemporaneamente, com a ascensão do CD e da mídia
regravável, nota-se muito ainda o uso desse suporte frágil, principalmente
na cena noisecore, como forma de escapar à comodificação promovida pela
indústria. Colaboram para essa fuga também o uso de capas fotocopiadas
(muitas vezes, apresentando cópias de baixa qualidade), normalmente em
preto e branco ou com apenas uma cor (detalhe que barateia o custo da
produção do material), desenhadas ou montadas pelos próprios autores
da “música”, contando vez ou outra com alguma colaboração de amigos
nesse aspecto. No caso das gravações em CD-r, vale ressaltar que o que
realmente importa é que o som seja distribuído, sem a obrigatoriedade de
que aquela gravação dure para sempre, como acontece com os produtos
lançados oficialmente pelas gravadoras maiores.
Em seu célebre ensaio sobre a reprodutibilidade técnica, Benjamin
(1992) já apontava essa questão ao comentar como os dadaístas promo-
viam a desvalorização de seu próprio material como forma de escapar à
mercantilização da arte, bem como ao hábito de contemplação burguesa.
Assim, ao utilizar materiais baratos e pouco duráveis, os quais são repro-
duzidos de forma livre e indiscriminada, a cena do hardcore extremo
praticamente elimina a aura da obra de arte e se opõe à fetichização da

6
Em trabalho pioneiro sobre a importância da troca de fitas para o desenvolvimento da música extrema, Jones (2016)
comenta a ideia de Netherton (2007) a respeito de como as fitas contribuíram não apenas para espalhar a música
mundo afora, mas também influenciaram o som extremo. Em virtude da baixa qualidade das gravações, que se
tornavam ainda mais precárias à medida que eram regravadas, a própria cena incorporou a sonoridade crua à sua
estética.
42 | Diálogos com a Música Extrema

mercadoria, tornando o suporte por meio do qual essas obras são apre-
sentadas em algo descartável, que não se presta à coleção e muito menos
à contemplação, além de ter um custo de produção e difusão baixíssimo, o
que torna esse tipo de material bastante acessível.
Curioso notar, porém, que atualmente diversos selos pequenos têm
se dedicado a resgatar boa parte desse material e lançá-lo em um formato
mais nobre, o disco de vinil, o qual, embora seja mais luxuoso e tenha um
custo mais alto, não deixa de aproveitar os detritos e sobras de baixa qua-
lidade. Assim, os discos se tornam compilações de materiais que seriam
desprezados pela indústria fonográfica e também pelo público acostumado
à alta qualidade das gravações profissionais. São registros de gravações ao
vivo em que nem todos os instrumentos estão perfeitamente audíveis, re-
gistros de ensaios sem edição alguma, muitas vezes captados apenas por
um gravador situado no meio do local de ensaio, que geralmente não é um
estúdio, mas uma garagem ou um quarto de fundos da casa de um dos
integrantes da banda. Juntem-se a isso diversos materiais gráficos artesa-
nais coletados de antigas publicações independentes (os fanzines) ou do
arquivo pessoal dos integrantes ou amigos dos grupos, como capas de
demo-tapes, flyers, velhas entrevistas e resenhas dos registros sonoros,
cartazes de shows, entre outros. É importante perceber que a baixa quali-
dade desses materiais não diminui o valor desses produtos, posto que a
precariedade estética é considerada uma espécie de virtude na cena do
hardcore extremo, pois contribui para manter intacta a sua autonomia,
posição que ao mesmo tempo também é precária, considerando a ameaça
latente de que um grupo possa abraçar a indústria musical e “se vender”,
conforme aponta Rodel (2004).
Nesse sentido, cabe aqui introduzir o conceito de precariedade, bas-
tante discutido na arte contemporânea e que parece guardar uma forte
relação com o hardcore extremo, ainda que esta seja muito mais uma
Cristiano dos Passos | 43

relação natural do que consequência de uma reflexão acerca da inserção


desse tipo de música no panorama artístico. Em outras palavras, essas re-
lações, no caso do hardcore extremo, são espontâneas e, com raras
exceções, não são fruto de uma reflexão crítica acerca da estética e do seu
espaço no campo da arte. Há no subgênero muito mais uma inclinação
política no sentido de protestar contra o capitalismo, razão pela qual sua
estética é muito mais um corolário de sua crítica aos valores da indústria
fonográfica, dominada por multinacionais, do que um anseio por um lugar
na galeria de arte. Assim, a precariedade no hardcore extremo é irrefletida,
despretensiosa, um sintoma mesmo do Zeitgeist contemporâneo, que, en-
tretanto, não impede a sua resistência em tempos líquidos, em que somos
arrastados pela “generalização do descartável”, como diria o teórico e cu-
rador Nicolas Bourriaud (2011).
É o mesmo Bourriaud (2011) que vai, no campo da teoria da arte,
defender o precário como uma forma de resistência da arte contemporâ-
nea, que, segundo ao autor, contraria “os critérios estabelecidos por
Hannah Arendt para definir a cultura (seu caráter duradouro, sua posição
de recuo em relação aos processos sociais, a recusa do funcional e da co-
mercialização)”. Contudo, para o curador, estamos vivendo na era do
“culto industrial ao efêmero” e a arte encontrou, por meio do precário,
uma forma de responder e resistir a este tempo, lançando mão de recursos
que obrigam o pensamento crítico a rever certezas anteriores acerca da
cultura (BOURRIAUD, 2011). Na verdade, a falência de um regime estético
marcado pela durabilidade levou ao surgimento de uma nova cultura que
procura resistir a esse ambiente de instabilidade e que tem como base a
“velocidade, a intermitência, a desfocagem e a fragilidade” (BOURRIAUD,
2009, p. 3). Essa precariedade substitui a durabilidade física da obra de
arte pela sua durabilidade como informação, como arquivo, privilegiando
muito mais o seu caráter reapresentável; daí, a centralidade do evento, do
44 | Diálogos com a Música Extrema

“aqui e agora”, na arte contemporânea. Aliás, nesse sentido, o hardcore


extremo é pródigo em valorizar a performance viva, natural e espontânea
em detrimento da obra de arte acabada e aprisionada em um formato ir-
reversível, como é caso das gravações de ensaios e shows sem edição
posterior de estúdio, preservando o instante como informação.
Voltando à questão do precário, é importante resgatar esse conceito
a partir do que já dizia Haroldo de Campos em ensaio publicado em 1969,
A poética do precário, quando refletia acerca de Kurt Schwitters, artista
que também interessaria Bourriaud em Radicante, obra de 2011. No pri-
meiro artigo, Haroldo aborda o uso de objetos diversos na obra de
Schwitters, com destaque para os detritos, as sobras da civilização ociden-
tal aparentemente sem valor algum que ele acumulava em suas colagens
visuais, bem como os dejetos da própria linguagem em suas colagens ver-
bais, nas quais ele aproveitava o material considerado não poético pela alta
arte, como frases feitas, anúncios, sílabas soltas etc., para questionar as
convenções beletrísticas.
Aliás, nesse sentido, em poemas como Anna Blume ou mesmo nas
suas composições poético-musicais, como Lautsonate (“Sonata Fonética”)
ou Ursonate (“Sonata Primordial”, também chamada Sonate in Urlauten –
“Sonata Fundamental do Som ou Pré-Silábica”), Schwitters questiona as
fronteiras entre linguagem e não linguagem ao utilizar sons silábicos pri-
mitivos como poesia/música, contando apenas com seu corpo (sua voz e
seus gestos) como instrumento. Diz Haroldo (1969) o seguinte:

São blocos de som, organizados por fatores de timbre e duração, que, despidos
da investidura léxica, traçam uma espécie de pré-história do auditivo, reve-
lando a infraestrutura fonética adormecida sob as cunhagens gastas tanto do
idioma da comunicação utilitária, como do de convenção “belartística”; possi-
bilitam um retorno às matrizes do material poético, um puro júbilo do objeto
Cristiano dos Passos | 45

verbal resgatado à grilheta dos hábitos semânticos e morfológicos e ativado


por novos oxigênios (p. 44).

Curiosamente, no que diz respeito às vozes utilizadas no hardcore


extremo, pode-se tecer algumas comparações com os textos sonoros de
Schwitters. Afinal, bandas como Fear of God abusaram das vozes guturais
sem se preocupar necessariamente com a inteligibilidade de suas letras
para o ouvinte, trazendo à tona um aspecto selvagem às composições e
aproximando o som vocal humano às vocalizações animais. Assim, os ur-
ros profundos e graves, além dos gritos mais agudos, remetem o ouvinte
a essa “pré-história do auditivo”, confundindo as fronteiras entre o hu-
mano e animal e levando o ouvinte a questionar sua própria cultura. Como
dizia Keller, o vocalista do grupo, “I did everything I could to make my
voice sound non-human” (2014).
Mais do que isso, ao usar vozes distorcidas e ininteligíveis, o hardcore
extremo põe em xeque a visão mais ou menos dominante de que o cantor
deve comunicar uma mensagem aos seus ouvintes por meio de uma letra
apresentada de forma clara e inteligível. Em se tratando de Fear of God,
suas letras veiculavam conteúdo de crítica social e política extremamente
raivosa, porém, parecia-lhes mais impactante apresentar essa raiva por
meio de sua performance física intensa do que através de uma mensagem
racional e compreensiva. Aliás, é importante que se diga que, apesar dessa
mensagem de revolta social e política herdada do punk, as letras do Fear
of God não eram panfletárias e objetivas como as de seus antecessores,
sendo mais subjetivas e metafóricas do que a média lírica do movimento
punk.
Deve-se levar em conta, ainda, que junto com essas vozes, há uma
massa sonora instrumental barulhenta e ensurdecedora que dificulta
ainda mais o entendimento racional da “mensagem”. Assim, se Schwitters
46 | Diálogos com a Música Extrema

embaralhava os limites entre linguagem e não linguagem, o que o hardcore


extremo faz é também diluir as fronteiras entre música e ruído, ou seja,
entre um conjunto de notas e melodias racionalmente arranjadas e um
amontoado de sons aparentemente desconexos (RODEL, 2004).
À guisa de uma exemplificação mais objetiva, dentre os materiais gra-
vados pela banda, vamos nos ater a um deles em especial, o já citado mini-
LP As statues fell, que parece reunir boa parte dos elementos citados até o
momento. Lançado em 1988, o disco contém 26 faixas e 17 minutos e 42
segundos de duração, deixando clara uma das características mais proe-
minentes do hardcore extremo, ou seja, a presença de músicas que, em
comparação com o padrão de duração das canções – mesmo no caso da
música comercial – parecem mais com pequenos fragmentos sonoros, es-
tilhaços de uma cultura decadente que se combinam formando uma obra
única. Há canções que se resolvem em apenas alguns segundos, enquanto
outras duram pouco mais que um minuto, indo ao encontro do que Rodel
(2004) fala a respeito desse subgênero da música extrema. Da mesma
forma, unem-se a essa efemeridade a velocidade (i.e., o alto número de
BPMs – batidas por minuto) e o aspecto barulhento já mencionado anteri-
ormente, fazendo com que o disco soe como um amontoado de lixo sonoro
a ouvidos pouco acostumados com o hardcore extremo.
Nesse sentido, é interessante retomar a ideia de precário debatida em
sala de aula, quando nos dizia Sérgio Medeiros que o precário se opunha à
arte monumental exatamente pela sua efemeridade e por sua semelhança
com o aquilo que a alta cultura rejeita como lixo. O próprio título do álbum
(As statues fell – "Enquanto as estátuas caem") traz essa ideia de demoli-
ção das velhas estátuas, daquilo que nossa cultura erigiu como memorável,
do que merece ser lembrado pela posteridade e do que tem valor cultu-
ral/artístico, como se cada um dos fragmentos sonoros ali presentes
Cristiano dos Passos | 47

fossem mesmo os restos dessas estátuas e o ruído que as acompanha sim-


bolizasse o som da destruição desses monumentos.
A capa original do disco também é bastante interessante, como se
pode ver na Figura 1 abaixo: sobre um fundo branco, sem nenhuma ins-
crição, duas linhas pretas perpendiculares se cruzam e, em seu ponto de
convergência, abre-se um pequeno círculo – como um buraco em uma fe-
chadura – no qual se vê a imagem de Cristo, símbolo monumental da
religião católica, abraçado por um dos seus apóstolos e trocando um olhar
profundo de cumplicidade (Fig. 1). Na contracapa, há a reprodução das
mesmas linhas sobre um fundo branco e, no canto direito superior, uma
pequena figura mostra um antigo templo desmoronando, com suas colu-
nas gigantes ruindo e caindo sobre as pessoas que tentam fugir nas
escadas logo abaixo (detalhe na Fig. 2). A religião, para uma banda que se
chama Fear of God, é um dos alvos principais de sua crítica. Nesse con-
texto, a religião é o monumento prestes a virar ruína, detrito, desordem.
Acima dessa figura cristã, lê-se o nome da banda e, embaixo, o título do
disco. No canto inferior, veem-se apenas os nomes das músicas e a infor-
mação sobre seus locais de registro. Não há mais nenhuma outra
informação, como se a obra prescindisse de outra linguagem que não a
própria música e os enxutos elementos visuais.
48 | Diálogos com a Música Extrema

Fig. 1: Capa e contracapa de As statues fell (1988). Fonte: www.discogs.com.


Cristiano dos Passos | 49

Fig. 2: detalhe da contracapa de As statuesfell.

A primeira faixa é exatamente As statues fell, composta por ruídos de


baixo e guitarra distorcidos e várias vozes monstruosas, que se alternam
entre gritos e grunhidos desesperados para dar início a Controlled by fear,
cuja letra, além de explicitar o conceito por detrás do nome do grupo, fala
sobre como o medo de Deus aprisiona as pessoas, lançando uma crítica
direta às Cruzadas que puniram os pagãos com a “civilização”. Daí em di-
ante, são despejadas toneladas de ruído e velocidade nas faixas restantes,
que se sucedem sem muito espaço entre si, com vocais e volumes satura-
dos acima da média, criando uma massa em que é bastante difícil
distinguir todos os sons que compõem a performance. Assim como na
faixa inicial, a música que encerra o disco é extremamente caótica: First
class people, sob gritos incompreensíveis e camadas de ruídos, entre gui-
tarras, baixo, bateria e muita microfonia, o álbum termina com aplausos e
risadas captadas do próprio público presente. Ao fim, a sensação é de que
50 | Diálogos com a Música Extrema

a “música” do Fear of God é composta por um amontoado de sons preca-


riamente dispostos em sequência.
Em Radicante (2011), Bourriaud apresenta um panorama seme-
lhante, ao falar sobre como a nossa civilização da superprodução nos faz
viver em um mundo do entulhamento, em que a paisagem urbana e cul-
tural é marcada pela saturação e pela desordem, panorama cuja linhagem
remete aos trabalhos de Schwitters, Rauschenberg, entre outros, além dos
movimentos da Arte Povera e Fluxus (p. 86). Ao comentar sobre o disco
Loveless, do grupo inglês My Bloody Valentine, o autor traz uma ideia se-
melhante: “dentro de um caos sonoro uniforme produzido por guitarras,
a melodia de cada trecho parecia surgir por meio de subtrações progressi-
vas, por entalhamento, como que recortada na espessura de um magma
que lhe preexistia” (p. 87).
Assim, é nesse ambiente precário, descartável, entulhado, desorde-
nado e saturado que o grupo Fear of God já antecipa o século XXI em duas
décadas, percebendo, tal como diversos artistas contemporâneos analisa-
dos por Bourriaud (2011), que seria preciso operar a partir do centro de
um caos preexistente para subverter a lógica da arte. Nas palavras do cu-
rador francês, a ambição comum de alguns artistas seria “tornar
monumental uma iconografia oriunda da precariedade contemporânea”
(p. 90). É essa subversão que o hardcore extremo opera por meio de gru-
pos como Fear of God e suas obras fragmentadas e barulhentas, compostas
nas margens da indústria cultural e da erudição acadêmica, mas perfeita-
mente compatíveis com nossa era da precariedade.

A tradução do precário – a hermenêutica do Fear of God

Cerca de 15 anos após o fim do grupo, seu antigo baixista, Dave Phil-
lips, artista performático dedicado a explorar os limites do som por meio
Cristiano dos Passos | 51

de uma estética radical com forte conotação ambientalista, resolveu apro-


veitar o material de sua antiga banda e traduzi-lo em sua linguagem
sonora daquele início de século XXI. Assim, em 2003, nascia The Herme-
neutics of Fear of God (doravante THOFOG), álbum que reúne, recombina
e reapresenta – e dessa forma, re/plurissignifica – o material cru do Fear
of God7.
A operação de releitura da obra recebeu o título de “hermenêutica”
por influência das leituras de Gadamer e Derrida feitas à época pelo ex-
parceiro de Fear of God Erich Keller, segundo admitiram ambos em mo-
mentos diferentes. Para Phillips, entretanto, conforme entrevista cedida
ao autor deste artigo, não havia nenhuma ideia específica ao criar
THOFOG, embora ele reconheça que a ideia de hermenêutica lhe pareceu
bastante adequada quando o disco foi gravado (PASSOS, 2018). Em suas
palavras, as faixas “não são ‘canções’ ou ‘versões’. Eu usei os sons e can-
ções do Fear of God como ‘material cru’, para então cortá-los em pedaços,
dissecá-los, justapor as partes para rearranjá-las, fodê-las (...) sem objeti-
vos específicos em mente” (PASSOS, 2018).
Nessa mesma entrevista, ao ser questionado acerca das conexões en-
tre a hermenêutica e a tradução, Phillips afirma que certamente há uma
forte relação entre esses campos, que são mais próximos do que se ima-
gina, até porque a própria linguagem seria uma “bengala” que media a
nossa relação com o mundo, posto que é ela mesma uma interpretação da
realidade, e não a realidade em si (2019). Assim, em concordância com a
ideia de Gadamer de que toda tradução já é uma interpretação, pode-se

7
O disco original, em LP, é de 2003, foi lançado pelo selo alemão Tochnit Aleph e continha 33 faixas de curtíssima
duração. Interessante registrar que a versão em CD foi feita em formato CDr. A versão que vamos analisar aqui,
contudo, é a versão brasileira, lançada em CD pela Absurd Records em 2008, que conta com diversos materiais
extras, totalizando 62 faixas (61 sons e um vídeo extra, o único que traz um título – I shot myself). Consideramos
que, apesar das diferenças, é válido estender a leitura original para a versão que ora se apresenta, pois ideia básica
de todas as faixas é reaproveitar os restos/fragmentos da obra do Fear of God como material para (re/de)composição.
52 | Diálogos com a Música Extrema

afirmar que o conceito de hermenêutica aqui serve como forma de escla-


recer que o álbum apresenta uma tradução do hardcore extremo em outra
linguagem.
Como toda tradução pressupõe a existência de pelo menos duas lin-
guagens, cabe esclarecer aqui quais seriam as linguagens distintas
presentes nesse processo de tradução conduzido por Dave Phillips. Se, no
material original, temos como linguagem o que convencionamos chamar
aqui de hardcore extremo, cuja matriz é a música popular, em virtude de
sua origem na música não erudita (punk rock), na obra THOFOG, a lin-
guagem utilizada é o que vamos chamar genericamente de Noise. O termo
é um tanto amplo e, por isso mesmo, merece alguns esclarecimentos,
posto que envolve muitas variações e subgêneros, além de comportar ar-
tistas com pontos de vista diversos acerca da própria nomenclatura do
gênero, sendo que muitos deles discordam completamente do seu uso
(NOVAK, 2013). Contudo, como não nos interessa aqui aprofundar o de-
bate terminológico, optaremos por ora pelo uso do nome Noise para nos
referirmos ao som produzido por Dave Phillips.
Porém, a que tipo de arte musical nos referimos quando falamos em
“noise”? Steven Wilson (2014) prefere usar o termo “expressive noise”
para se referir ao som produzido intencionalmente como música, ou seja,
é uma “expressão sonora estética e intencional”, mas que foge completa-
mente às convenções musicais. É um som que resiste à assimilação e
aponta para algo além dessas convenções (2014, p. 10). Em O som e o sen-
tido (1989), Wisnik traz uma definição de ruído que aponta para esse
mesmo princípio de negatividade, ao diferenciá-lo da música e suas con-
venções:

A natureza oferece dois grandes modos de experiência da onda complexa que


faz o som: frequências regulares, constantes, estáveis, como aquelas que
Cristiano dos Passos | 53

produzem o som afinado, com altura definida, e frequências irregulares, in-


constantes, instáveis, como aquelas que produzem barulhos, machas, rabiscos
sonoros, ruídos. (...) No nível rítmico, a batida do coração tende à constância
periódica, à continuidade do pulso; um espirro ou um trovão, à descontinui-
dade ruidosa (...) Um ruído é uma mancha onde não distinguimos frequência
constante, oscilação que nos soa desordenada. (p. 24)

Assim, Wisnik (1989) insiste na tese de que a música funda um prin-


cípio de ordem no universo ao falar sobre a afinação ritual de vozes de
todo o canto em conjunto, argumentando que as origens da música esta-
riam exatamente na necessidade de extrair um “som ordenado e periódico
do meio turbulento dos ruídos”, pois “um único som musical afinado di-
minui o grau de incerteza no universo” (p. 24).
Por sua vez, Hegarty (2007), autor de Noise/Music – A history, inicia
sua pesquisa falando sobre a subjetividade envolvida na definição do que
é o ruído/barulho, considerando que sua ocorrência guarda relação com a
percepção individual e que nós somos fisicamente afetados pela sua pre-
sença. De certa forma, isso explica a utilização de certos sons de frequência
alta ou baixa em sessões de tortura, pois estes podem afetar o sistema di-
gestivo, o funcionamento normal do coração e serem até mesmo
mentalmente perturbadores (2007, p. 4).
Embora a complexa relação entre som e ruído seja o que define a
música, em consonância com Hegarty, Wisnik também afirma que o grau
de separação entre essas duas categorias é culturalmente definido, sendo
que algumas culturas permitem uma maior ou menor separação entre
som e ruído, de acordo com os seus valores. Na história ocidental, porém,
pode-se afirmar que há um predomínio do som ordenado e controlado so-
bre os sons caóticos (ruídos), correlação de forças que foi mudando
principalmente a partir do início do século XX, com o surgimento das van-
guardas artísticas.
54 | Diálogos com a Música Extrema

É Hegarty (2007) quem vai traçar uma linha histórica no uso do ru-
ído como forma de composição, que inicia com Luigi Russolo, autor do
manifesto The Art of Noises, publicado em 1913, na esteira das inovações
estéticas produzidas pelos futuristas, e que proclama a necessidade de uma
“Arte dos Ruídos” baseada no som das máquinas e das cidades barulhentas
do período pós-Revolução Industrial. Na visão de Russolo, antes da inven-
ção das máquinas, o mundo era um lugar silencioso:

A vida antiga foi só silêncio. No século XIX com a invenção das máquinas, nasce
o Ruído. Hoje, o ruído triunfa e reina soberano sobre a sensibilidade dos ho-
mens. Por muitos séculos a vida fluiu em silêncio, ou, quando muito, em
surdina. Os ruídos mais fortes que quebravam esse silêncio não eram nem
intensos, nem prolongados, nem variados. De fato, tirando os excepcionais
movimentos telúricos, os furacões, as tempestades, as avalanches e as cacho-
eiras, a natureza é silenciosa.

Segundo Russolo, o homem primeiro inventou os instrumentos,


quase sempre atribuindo caráter sagrado à música, restrita aos sacerdotes
e aos seus rituais, o que contribuiu para um certo isolamento da arte mu-
sical em relação a outras formas de expressão estética. Inicialmente,
buscava-se um som puro, limpo e doce, mas à medida que o mundo se
tornava mais complexo e ruidoso, a música também adquiriu complexi-
dade semelhante, considerando que o “som puro, na sua exiguidade e
monotonia”, já não despertava mais emoção em meio à “variedade e con-
corrência de ruídos” gerada pela presença das máquinas. Para obter um
som adequado à sociedade urbana moderna, mais próximo do que Russolo
chama de “som-ruído”, seria necessário desenvolver novos “instrumen-
tos” para reproduzir a atmosfera sonora daquele período, mais áspera e
dissonante aos ouvidos. Assim, o futurista italiano cria os intonarumori,
visando suplantar a limitação dos chamados sons musicais, cujos timbres
Cristiano dos Passos | 55

não mais atendiam às complexas necessidades auditivas do século XX. So-


bre o tema, também discorre Haroldo de Campos em Poética do aleatório
(1969) ao falar sobre a arte contemporânea e destacar a “elevação do ruído
(inclusive dos ruídos típicos da civilização industrial e mecânica) ao plano
antes reservado ao som (...) para efeito de composição musical” (p. 16).
Assim, desafiando as convenções musicais e sonoras por meio de re-
cursos não usuais, outros artistas sucederam a Russolo: nas décadas de
1920 e 1930, Kurt Schwitters utilizou somente a voz como forma de pro-
duzir peças sonoras, explorando sílabas, gritos, sussurros e outros sons
ruidosos pré-verbais, em vez de palavras, como já haviam feito os futuris-
tas, principalmente Marinetti, e também dadaístas como Raoul Hausmann
e Richard Huelsenbeck, em suas anárquicas e barulhentas reuniões no Ca-
baret Voltaire, praticando aquilo que Kahn chama de “linguistic noise” (p.
48) na área da poesia. Nesse mesmo campo, vale citar ainda Antonin Ar-
taud, também lançou mão de ruídos humanamente produzidos para
apresentar seu Para acabar com o julgamento de Deus na rádio francesa
em 1947, assim como os experimentos letristas de Isidore Isou nos anos
seguintes.
Na música, Edgard Varèse, embora discordasse das propostas dos fu-
turistas, adicionou ruídos ao seu trabalho, assim como Pierre Schaeffer e
sua música concreta, produzida a partir da manipulação de fitas magnéti-
cas, seu parceiro de composição Pierre Henry, Karlheinz Stockhausen e
suas experimentações eletrônicas, além de John Cage, um dos nomes mais
importantes da chamada música de vanguarda contemporânea
(HEGARTY, 2007; KAHN, 1999). Num plano mais radical, posicionando-
se mais como uma forma de antiarte ao estilo dadaísta, no sentido de fugir
da noção que confunde arte com alta cultura burguesa, merece destaque o
trabalho do grupo Fluxus, que reunia artistas como La Monte Young, Ro-
bert Filliou, Juan Hidalgo, Dick Higgins, entre outros, cuja atitude
56 | Diálogos com a Música Extrema

despreocupada com relação ao domínio técnico da música os aproximava


também da chamada musique brut, de Jean Dubuffet (HEGARTY, 2007).
Em linhas gerais, embora se esteja falando aqui de artistas com pro-
postas extremamente diversas, os une a necessidade de romper com as
convenções musicais principalmente por meio do recurso a fontes sonoras
não usuais, ou seja, sem o uso dos instrumentos tradicionalmente associ-
ados à música, além da valorização do ruído como parte relevante da
composição. Em outras palavras, diz Wisnik (1989), que “barulhos de todo
tipo passam a ser concebidos como integrantes efetivos da linguagem mu-
sical”, permitindo “uma liberação generalizada de materiais sonoros” (p.
39). Dessa forma, máquinas, sons aleatórios do cotidiano, além dos sons
naturais (produzidos por animais ou por elementos da natureza), passam
a fazer parte do repertório musical também, embaralhando as fronteiras
entre cultura e natureza na produção sonora artística.
Contudo, é importante ressaltar que, apesar da atitude anticonvenci-
onal em relação às formas artísticas clássicas, praticamente todos esses
movimentos tinham em sua origem alguma erudição acadêmica, ainda
que buscassem negá-la. Com maior ou menor intensidade, praticamente
todas essas experimentações opunham-se à música clássica, porém, o fa-
ziam por meio de conceitos e abordagens também eruditas, tanto que não
atingiam o público ordinário, que não frequentava os circuitos de arte,
como os museus, teatros e academias (RUBIO, 2011).
Assim, essa música que aqui chamaremos de forma genérica como
“Noise”, praticada por Dave Phillips desde os tempos em que este deixou
sua banda nos anos 808, como “uma continuação, ou melhor dizendo, uma

8
DAVE PHILLIPS, after the initial split up of our band FEAR OF GOD in 1988, had found his own way of dealing
with the inevitable void such a break up leaves behind, yet following the path we had set foot on. Whereas I pretty
much kept stranded on the HC and political nonsense thing for many years to follow, he got himself involved with
the electronic avantgarde. He has since produced a vast amount of releases, collaborating with the who’s-who of
avantgarde noise, performing worldwidely and constantly. (KELLER, 2006)
Cristiano dos Passos | 57

expansão de algumas das ideias que eu conectei, em um nível pessoal, com


o Fear of God” (PASSOS, 2018), tem suas raízes nos movimentos de van-
guarda artística do século XX. Por outro lado, o hardcore extremo da antiga
banda de Phillips tem origem na música popular, por sua evidente relação
com o rock e seu uso de instrumentos convencionais, além de contar com
uma formação que usualmente se chama de banda, ao passo que, em boa
parte do material concebido como noise, os artistas assinam os registros e
performances com seu próprio nome.
Basicamente é essa diferença que motiva o debate acerca da tradução
do material precário do Fear of God feita em The Hermeneutics of Fear of
God, cujas diferenças e semelhanças passamos a apontar em uma breve
análise do subproduto dessa tradução, ou seja, o cd lançado no Brasil so-
mente em 2008 pela Absurd Records. Segundo o próprio Dave Phillips,
“THOFOG é uma continuação de algumas ideias pessoais, muitas das quais
sempre foram parte da minha abordagem, com o auxílio de uma retros-
pectiva (o tempo muda a percepção) e de acordo com a minha
subjetividade” (PASSOS, 2018).
Antes de entrarmos na análise do som propriamente dito, cabe tecer
algumas pequenas considerações acerca do material gráfico empregado,
considerando que há uma linha de (des)continuidade entre o trabalho de
Dave Phillips e o do Fear of God também nesse aspecto. A capa em preto e
branco conta com uma logo desconstruída da banda mesclada a um dos
antigos desenhos usados pelo grupo, ou seja, duas figuras semelhantes a
pessoas, sendo que uma delas está de pé com um martelo nas mãos, en-
quanto a outra, de joelhos, oferece a cabeça para as marteladas do que está
de pé. O encarte, por sua vez, traz, em negativo, as duas linhas perpendi-
culares de As statues fell, acompanhadas de semelhante crítica à religião,
como no disco do Fear of God. As frases são as seguintes: “Quando uma
pessoa sofre de um delírio, isso se chama insanidade. Quando muitas
58 | Diálogos com a Música Extrema

pessoas sofrem de um delírio, isso se chama religião”; “a religião é um


erro”; e por fim “aqueles que podem fazer você acreditar em absurdos po-
dem fazer você cometer atrocidades” (PHILLIPS, 2008). Nota-se, assim, a
persistência da oposição ao poder monumental da igreja como uma carac-
terística que, de certa forma, une os discursos do Fear of God com o de
Dave Phillips.
Entrando na questão sonora, o disco inicia com um conjunto de ruí-
dos extremamente agudos, que soam como uma microfonia ou uma
guitarra distorcida e que vão, de alguma forma, trazer alguma unidade a
um material feito de recortes e fragmentos sonoros que se embaralham e
se recombinam de maneira caótica, pois estes vão se repetir em outras
faixas de curtíssima duração (variando entre 4 e 21 segundos). Aliás, a
faixa de maior duração tem 1 minutos e 31 segundos, característica tam-
bém presente no hardcore extremo e que leva ao questionamento acerca
de temas caros à arte, como o tempo e o próprio valor de eternidade
(BENJAMIN, 1987). Assim, cada faixa sucede uma à outra em grande velo-
cidade, criando uma massa sonora à qual não é possível “consagrar algum
tempo ao recolhimento ou à avaliação”, assim como os dadaístas haviam
feito. A obra de arte, para os dadaístas, “tinha que satisfazer uma exigência
básica: suscitar a indignação pública. De espetáculo atraente para o olhar
e sedutor para o ouvido, a obra convertia-se num tiro. Atingia, pela agres-
são, o espectador” (p. 191, 1987).
Assim, são apresentadas diversas sobreposições de camadas sonoras
de uma mesma música do antigo Fear of God (ou às vezes de mais de uma
música), mixadas e remixadas, tornando cada faixa uma recomposição de
detritos, os quais foram previamente separados de sua forma original e
reagrupados em novas faixas. O resultado dessa recomposição soa bas-
tante caótico mesmo para um ouvinte do hardcore extremo, como seu
Cristiano dos Passos | 59

antigo parceiro de banda, Erich Keller (2006), mas pode ser intolerável
para um ouvinte de música popular ou erudita tradicional9.
Outro aspecto em que a tradução do material diverge do hardcore
extremo é que, no disco de Dave Phillips, nenhuma faixa tem nome, mas
apenas um número, o que também cria uma unidade entre elas e torna
difícil discriminar esta ou aquela faixa. Não há canções independentes,
mas uma só massa sonora que agride o ouvinte e compromete o estado
contemplativo, como também dizia Benjamin (1987) ao falar sobre a dife-
rença entre a tela do cinema e um quadro.
No disco de Dave, é possível reconhecer diversos trechos das antigas
faixas do Fear of God, os quais são sampleados e transformados em uma
massa sonora muito mais impenetrável do que em suas versões originais.
De algumas faixas clássicas da banda, são recortados riffs e vozes conheci-
das, os quais são repetidos ad nauseam, têm sua rotação alterada ou são
tocados de trás pra frente. Dave aproveita também sobras sonoras que
normalmente não seriam utilizados no produto final de uma gravação mu-
sical popular, fazendo dos detritos seu material de composição. A faixa nº
10, por exemplo, traz apenas o toque das baquetas, comumente usado em
apresentações ao vivo para avisar aos outros membros da banda o início
exato da música, que é repetido diversas vezes até os 45 segundos, até que
a "música" propriamente dita comece e leve menos de dez segundos para
ser resolvida de forma caótica.
Assim como em uma obra de Schwitters, todo o lixo que a indústria
da música rejeita é reciclado e recomposto em uma colagem do material
precário do Fear of God. Porém, nessa nova composição, busca-se

9
Earlier this very year, a friend of mine from Germany, a philosopher and educationalist, paid me a visit during which
he wanted me to play FEAR OF GOD to him finally. I did so by choosing the remastered debut EP on Mini-CD and
this[referring to THOFOG]. After 10 minutes, he asked me to stop this 12″. He looked at me, saying he didn’t want
me to be mad at him, but he felt this music would alienate me from him or vice versa maybe. “It’s inhumane”, he said.
(KELLER, 2006)
60 | Diálogos com a Música Extrema

aprofundar ainda mais o questionamento das fronteiras musicais que a


banda já apontava nos anos de 1980, e a massa original sonora original,
que dispunha de um mínimo de instrumentação vinculada à música po-
pular, agora se torna totalmente inumana, pois sua decomposição e
execução fixam um quadro de som instável, irregular, desestruturado,
desprovido de aura contemplativa ou fetichismo mercadológico. Tome-se
como exemplo a faixa nº 40, em que a música "Circle A" é deixada somente
com sua frase inicial "Put that circle A", que é posta em loop, ao passo que
se sucedem de forma desordenada e sobreposta as respostas à frase inicial
("on your car", "on your skateboard", "on your pants", "up your ass"), mas
sem seguir a lógica original, intermediadas por pancadas de bateria. Cer-
tamente, o nível de agressão pretendido pela banda ao criar essa letra –
uma crítica àqueles que usavam a letra A dentro de um círculo, símbolo do
anarquismo, como uma marca de consumo – tem sua potência elevada na
versão de Dave Phillips. Outra característica antiga da banda, a utilização
de vozes guturais e gritadas a fim de ampliar a sensação de agressividade
sonora, se realiza de forma mais plena no disco de Dave. A faixa nº 47, por
exemplo, reagrupa em seus 16 segundos registros vocálicos urrados de di-
ferentes faixas, fazendo com que se embaralhem diversas vozes com
ruídos eletronicamente manipulados, como se houvesse um confuso coro
de gritos e não apenas a voz original.
Evidentemente, o conteúdo lírico do Fear of God é desconstruído em
prol da destruição da linguagem lógica e racional, pois as letras são mistu-
radas, as palavras são fragmentadas e recompostas numa lógica muito
mais semelhante aos experimentalismos de vanguarda, como os de
Schwitters, por exemplo, fugindo do realismo revolucionário dos tempos
da banda. A voz, em THOFOG, é muito mais um instrumento para produ-
zir ruído e desconforto e não apenas uma mensagem clara de
inconformismo social, sendo que ela é inclusive usada como único
Cristiano dos Passos | 61

instrumento em faixas como a de número 58, em que a música 7 up, na


qual a voz originalmente já era destaque, é transformada em uma faixa
quase exclusivamente vocal, sobrando-lhe do original apenas o urro inicial
e a repetição da partícula "up" por sete vezes. Assim, ao despedaçar as
letras e recombiná-las de forma caótica e aleatória, Dave Phillips questiona
ainda mais profundamente a lógica que aprisiona as mentes a uma rede
de significações pautadas em um sistema de signos racional, buscando
transcender as limitações estéticas que a banda também buscava nos tem-
pos de hardcore extremo, dando um passo além ao pôr em xeque a
racionalidade ocidental.
A velocidade das músicas, por meio da mesma manipulação eletrô-
nica, foi aumentada (ou diminuída ao máximo, em alguns casos) a ponto
de não se conseguir mais distinguir os beats, tornando praticamente qual-
quer contagem de BPMs. Assim, se um dos intentos do Fear of God era
atingir níveis inumanos de velocidade, é em THOFOG que tal finalidade é
alcançada ao extremo, como nas faixas 24 e 25, por exemplo. Em termos
de andamento, há uma quebra constante da sua lógica no disco de Dave
Phillips, pois as rupturas sucessivas e sobreposição de colagens tornam
impossível, em diversos momentos, distinguir tempos e contratempos,
como na faixa 28. A clareza também é prejudicada pela saturação de vo-
lume de algumas faixas, como a 12, por exemplo, ou a de número 51, em
que o tema original, sobre o preconceito aos soropositivos, é amplificado
pelo som saturado, como se lançasse na cara do ouvinte a mesma proble-
mática, porém, de forma mais inescapável. Em outras palavras, é
impossível manter-se impassível diante de tamanho incômodo sonoro,
conforme pretendiam os membros da banda já na década de 1980, mas na
versão de Dave Phillips, tais estratégias de desestabilização são alcançadas
com mais eficiência.
62 | Diálogos com a Música Extrema

Enfim, dadas as limitações de espaço do presente artigo, não teria


como analisar o disco inteiro faixa a faixa, sem contar que tal empreendi-
mento poderia se tornar enfadonho ao leitor. Contudo, vale reafirmar que
essa tradução do material original do Fear of God em uma versão ainda
mais caótica e barulhenta realmente torna mais sólidos os objetivos inici-
ais do grupo cerca de duas décadas após suas gravações. Como diz Keller
(2006), "O que ele fez foi cortar o material em pedaços e reagrupá-lo se-
gundo o foco do Fear of God, que era perturbar e não entreter. Então, o
que ele realizou foi o desfecho de tal esforço"10. Além disso, essa operação
de tradução coloca essa obra precária e um tanto quanto rudimentar no
panorama da arte contemporânea, em que o recurso a obras anteriores,
às vezes desprezadas, como forma de reinseri-las no debate cultural e criar
uma rede de signos e significações, é transformado naquilo que Bourriaud
(2009) chama de pós-produção. Em suas próprias palavras:

Essa arte da pós-produção corresponde tanto a uma multiplicação da oferta


cultural quanto – de forma mais indireta – à anexação ao mundo da arte de
formas até então ignoradas ou desprezadas. Pode-se dizer que esses artistas
que inserem seu trabalho no dos outros contribuem para abolir a distinção
tradicional entre produção e consumo, criação e cópia, ready-made e obra ori-
ginal. Já não lidam com uma matéria-prima (p. 8).

Ao falar sobre a música, Bourriaud (2009) recorre à figura contem-


porânea do DJ, que segundo ele, "aciona a história da música,
copiando/colando circuitos sonoros, relacionando produtos gravados" (p.
15). Não à toa, a forma de trabalho de Dave Phillips em muito lembra a
atividade do DJ, considerando que suas gravações são colagens de retalhos

10
Tradução livre de: "What he did was cut the stuff up and into pieces and reassemble it, following the focus of FEAR
OF GOD that was: To disturb instead of to entertain. So what Dave achieved is, at least to me, the endpoint of such
an endeavor.”
Cristiano dos Passos | 63

sonoros de outros materiais, como é o caso do álbum em tela. Nesse caso,


específico, ao traduzir a fúria musical do seu antigo grupo, Dave Phillips
reinsere aquela produção na rede atual de signos e lhe atribui um novo
significado nessa nova cadeia sonora.

Considerações finais

Sem a pretensão de finalizar debate tão prolífico, devo ao menos en-


cerrar esta sessão para poder dar margem a novas pesquisas que
englobem a marginalizada e precária cena underground do hardcore ex-
tremo e que possam lhe conferir o status de obras de arte, apesar da sua
insistência em se manter fora dos padrões acadêmicos e dos museus em
busca de sua autenticidade. Assim, pela combinação de uma música feita
pela soma das máquinas contemporâneas com guitarras, percussão e a vo-
calização que vêm do hardcore extremo, Dave Phillips criou uma obra
híbrida que amplifica ainda mais o potencial agressivo do som original.
Como prova de que o debate mal se iniciou, vale mencionar ainda
que, após o lançamento de The Hermeneutics of Fear of God, foi lançado
mais um álbum com o sugestivo título de The end of Fear of God, em 2004,
com a participação do próprio Dave Phillips e de mais alguns grupos e
artistas contemporâneos, cujo objetivo foi de dissecar mais uma vez a obra
da banda original e também dos experimentos de Dave no disco aqui ana-
lisado. Além disso, valeria também uma ampla reflexão sobre a
contribuição de outros grupos contemporâneos ao Fear of God, que trilha-
ram caminhos semelhantes em termos de experimentação usando a
linguagem do hardcore extremo, como a banda inglesa Sore Throat e seu
seminal disco Disgrace to the corpse of Sid, ou a dupla teuto-australiana
Seven Minutes of Nausea, que desde 1985 se dedica a destruir os
64 | Diálogos com a Música Extrema

parâmetros da música tradicional por meio da precariedade e do barulho


extremos.
Ao fim, resta ainda deixar os links para que possa ao menos ouvir
parte do material aqui mencionado, cuja audição coroa de forma exemplar
tudo que foi dito até aqui.

Fear of God - As statues fell:


https://www.youtube.com/watch?v=2M6kC9ibNhE

Dave Phillips - The Hermeneutics of Fear of God


https://www.youtube.com/watch?v=a3ixR-E5S54

Referências

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Minnesota Press, 2009.

BENJAMIN, Walter. A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica. In:


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Trad. Denise Bottmann. São Paulo: Martins Fontes, 2009.

BOURRIAUD, Nicolas. Precarious Constructions Answer to Jacques Rancière on Art and


Politics.November 1, 2009. Disponível em: https://onlineopen.org/download.php?
id=240. Acesso em: 15.1.2019.

BOURRIAUD, Nicolas. Radicante – Por uma estética da globalização. Trad. Dorothée de


Bruchard. São Paulo: Martins Fontes, 2011.

CAMPOS, Haroldo de. A arte no horizonte do provável e outros ensaios. São Paulo:
Perspectiva, 1969.

FEAR OF GOD.As statues fell. Switzerland: Off the Disk Records, 1988. 1 Lp (17min42s).
Cristiano dos Passos | 65

FEAR OF GOD.Zeitgeist. Brasil: Absurd Records, 2004.2x LP.

IOMMI, Tony. Iron Man: My Journey through Heaven and Hell with Black Sabbath. Boston,
MA: Da Capo Press, 2012.

JONES, Steven. Tapes, Transgression and Mundanity: the participatory engenderment of


death metal and grindcore. Master’s Thesis (Mestrado em Estudos de Cultura
Popular – Musicologia).School of History, Culture and Arts Studies, University of
Turku, 2016.

KAHN, Douglas. Noise, water, meat: a history of sound in arts. MIT Press:
Cambridge/Massachussets, 1999.

KELLER, Erich. Dave Phillips – The Hermeneutics of Fear Of God 12"Ep (Tochnit Aleph,
Germany, 2003). Disponível em: http://www.goodbadmusic.com/2006/11/10/
dave-phillips-the-hermeneutics-of-fear-of-god-12ep-tochnit-aleph-germany-2003/.
Acesso em: 25.2.2019.

KELLER, Erich. Dave Phillips – The Hermeneutics of Fear Of God LP (Absurd Records,
Brasil, 2008). Disponível em: http://www.goodbadmusic.com/2008/04/21/dave-
phillips-the-hermeneutics-of-fear-of-god-lp-absurd-records-brazil-2008/. Acesso
em: 24.2.2019.

LAING, Dave. One-chord wonders: power and meaning in punk rock. Open University
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MUDRIAN, Albert. Choosing death: the improbable history of death metal & grindcore. Los
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2013.

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66 | Diálogos com a Música Extrema

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2014.

WISNIK, José Miguel. O som e o sentido: uma outra história das músicas. 3. ed. São Paulo:
Companhia das Letras, 2017
2

“Do it ourselves, together, as working class:


thrash metal e luta de classes”1

Fábio Alexandre Tardelli Filho

Desafiando sua ganância


Vamos reivindicar as ruas
Pronto para lutar para destronar você
Nós não vamos aceitar ser o seu lixo

Ficaremos organizados
Porque viver não é um benefício
Sua pretensão de controle
Encontrou um fim iminente
Deve respeitar a existência
Ou esperar resistência

(Respect Existence or Expect Resitance,


música do álbum Scenarios of Brutality,
da banda Violator, 2013, tradução nossa)
https://www.youtube.com/watch?v=3JPLRFdG9xE

Da fundação do Resíduos Tóxicos até as entrevistas.

Não cheguei à toa na fonte primária que é a web zine Resíduos Tóxi-
cos2 muito pelo contrário, pois em 2011 fundei junto a uma amiga3 essa

1
Tradução “Façamos por nós mesmos, juntos, como na luta de classes”. Essa frase é uma adaptação do célebre lema
punk “Do it yourself” que significa “faça por você mesmo”, parto da referência da entrevista e colaborador do Resí-
duos Tóxicos: o camarada Felipe Nizuma, que citou essa frase em sua entrevista em 2013 ao zine Resíduos Tóxicos.
2
Para efeitos de abreviaturas usávamos também RxTx, e para demais efeitos de menção usaremos em diversas
ocasiões nesse texto.
3
A historiadora Keyla Rosado.
68 | Diálogos com a Música Extrema

web zine e, até hoje, volta e meia penso em retomar esse projeto4. A histó-
ria do nome passava por duas referências que tínhamos na época, a
primeira eram as bandas de thrash metal como Violator, Toxic Holocaust,
Anthrax e Municipal Waste e todo um conjunto de grupos que traziam essa
temática de guerra biológicas (ou nucleares) e despejos de produtos quí-
micos no meio ambiente (e todo aquela distopia envolvida) e a segunda
referência eram alguns intelectuais que gostávamos de estudar e que ava-
liávamos terem análises sociais “ácidas” entre eles o historiador Eric
Hobsbawm e o antropólogo Massimo Canevacci5, que viriam a ser a base
do meu tcc sobre heavy metal em Sorocaba6.
O zine foi crescendo em torno de publicações de notas sobre shows,
indicação de bandas e documentários, algumas menções sobre fatos da
Educação (já que ambos cursávamos História e estávamos nas caminhadas
iniciais da docência) e até algumas coisas compartilhadas de outros zines.
Até que, no final de 2011, começamos a entrevistar bandas, e posso dizer
que era a forma era risível. Eu mandava uma mensagem em alguma rede
social da banda perguntando se queriam responder uma média de sete
perguntas para o nosso zine e, em geral, aceitavam, logo em seguida bo-
lava as perguntas e mandava num documento de word que tinham umas
orientações e aguardava. Acontecia que não raro tinha que estudar e caçar
informações das bandas que, não conhecia nada além de um som ou outro,
que chegavam aos meus ouvidos por indicação de amigos ou algo visto na
web, e decidia tentar a entrevista quase de forma aleatória. Assim conheci
muitas bandas que mal tinha parado para ouvir na vida.

4
A última publicação foi em 30 de outubro de 2016.
5
Inclusive chegamos à entrevista o Massimo Canevacci em 2013 no Resíduos Tóxicos.
6
Heavy metal em Sorocaba: de 1995 a 2000, tcc apresentado em 2011 na UNISO. O objetivo fora estudar o que para
muitos havia sido o ápice da cena sorocabana e trazer contribuições marxistas para pensar o heavy metal a partir da
totalidade concreta.
Fábio Alexandre Tardelli Filho | 69

Outro fator era que nós não entendíamos nada de teoria musical, e
eu particularmente ainda não entendo, esse é meu lado punk (no mais ho-
nesto e positivo sentido que isso pode ter), então não perguntava sobre
nada de ordem instrumental. E foi disso que ligamos nosso interesse polí-
tico-social com as entrevistas, afinal uma coisa era entrevistar uma banda
que conhecia e curtia, mas as bandas que não conhecia? Não tinha como
enrolar.
Das sete perguntas, dedicava duas para questões políticas da época e
uma para despedida. A coisa no começo era desorganizada chegando a pu-
blicar duas entrevistas no mesmo dia e dez em uma semana. Enfim, em
2011 podíamos dizer que fazíamos a coisa no clássico estilo underground;
desbravando. Inclusive posso dizer que a maestria com a qual a Keyla Ro-
sado conduziu a organização do layout do blogspot foi fora de série,
recordo-me de um músico que trabalhava com páginas ter perguntando
quando pagamos para ter a página daquele jeito.
Com o passar do tempo amigos e amigas da cena foram integrando
nossa equipe, alguns convidados (que podiam ser bem aleatórios) como
Eduarda Yumi (minha ex-aluna) ou (mais ligados ao metal) Guilherme de
Assis o “Volstag”, e nossos “editores”/ “colaboradores” como Augusto Mi-
randa (um desenhista profissional formidável, que inclusive fez a arte
símbolo do RxTx para nós, Augusto tocava na época na banda Mito da Ca-
verna um crust/ doom perturbador e maravilhoso), o Leonardo “Apollo”
(o Léo estava terminando o ensino médio na escola na qual eu era tutor do
Grêmio no qual ele fazia parte, sempre curtiu metal e rap e hoje segue
carreira de rapper), o “Bolaxa” (o Matheus tinha uma rádio virtual desde
adolescente e nos conhecemos por isso, já no ensino superior ajudei ele
apoiando alguns shows que organizou na UFSCar São Carlos como o Con-
quest For Death dos Estados Unidos) e o Felipe Nizuma (o Felipe vi tocando
no Metal For All de Salto com o BrainDeath e ficamos amigos, escrevia
70 | Diálogos com a Música Extrema

textos para nós e nos apoiava bastante com envio de alguns materiais para
distribuir aos envolvidos no projeto e meus alunos e os da Keyla, esses
materiais foram livros do Lenin e Florestan). Entre outros diversos nomes,
eram esses que colaboraram com maior frequência cada um à sua forma.
Fonte apresentada, hora de falar das bandas.

O Thrash metal ataca! As entrevistas de Anthares e Chakal ao RxTx.

Esse subgênero do metal já havia ganho o mundo em outra ocasião:


o final dos anos 80 e começo dos anos 90, com bandas explodindo no Bra-
sil, Alemanha, Dinamarca, Canadá e Estados Unidos. É possível que
mesmo o leitor menos ligado no metal já tenha ouvido alguma vez Metal-
lica, Sepultura ou Slayer. Seja por amigos, trilhas sonoras de filmes, vídeo
games e jogos ou por conta. De toda forma o objetivo não é contar a His-
tória do thrash e o que aconteceu com ele nos anos 80, ainda que deva dar
uma interessante análise historiográfica, mas vamos avançando!
O thrash metal, dos anos 80, tinha como características de recrutar
as bandas mais rebeldes e politizadas da cena de heavy metal, até por suas
letras mais trabalhadas e manter um diálogo com outros gêneros musicais
como punk, hardcore e o rap, ainda que pensar que isso seja um tipo de
regra do cenário musical não passe de mero idealismo do mais barato, afi-
nal como Marx pontua “Os homens fazem a sua própria história; contudo,
não a fazem de livre e espontânea vontade, pois não são eles que escolhem
as circunstâncias sob as quais ela é feita, mas estas lhes foram transmitidas
assim como se encontram” (MARX, 2011, p.25). Mais do que pertencentes
a um cenário musical as pessoas e as “cenas” que articulam são parte de
uma totalidade concreta.
De toda forma foi nesse subgênero do heavy metal que algumas das
mais contestadoras bandas oitentistas criaram base: Anthrax, Nuclear
Fábio Alexandre Tardelli Filho | 71

Assault, Exodus, Voivod, Vio-Lence. Mas o que seria esse subgênero? Ian
Christe em Heavy metal: a história completa (2010) cunhou a seguinte sín-
tese:

Em 1985, o power metal já não era rápido o suficiente para conter o ritmo do
underground. Uma nova geração de bandas de thrash metal passou a fazer
riffs no estilo Metallica, aparentemente da noite para o dia. Enquanto o power
metal era uma espécie de heavy metal com esteroides, o thrash metal repetia
as notas palpitantes sustentadas sem esforço, num fluxo contínuo. A música
estava em constante movimento, um intricado corpo de sonoridade grandiosa.
Os looks no palco e outras armadilhas do mundo comercial foram abandona-
das, à medida em que bangers se debruçaram sobre sua música e se
concentraram em fazer letras mais sérias. Outros também o chamavam de
speed metal; puristas apontavam que o thrash metal contava mais com pausas
rítmicas longas e violentas, enquanto o speed metal, como era tocado por
Agent Steel e Destruction, era uma subcategoria mais limpa e musicalmente
complexa, ainda fiel às melodias conflitantes do thrash metal clássico.
(Christe, 2010, p.179)

Na segunda metade dos anos 80 o Brasil teve sua leva de bandas de


thrash e algumas das mais ácidas nas letras e postura como Dorsal Atlân-
tica, Chakal, Witchhammer, Sepultura e o Anthares, a notável qualidade de
letras e postura das bandas brasileiras assumidamente influenciou muito
outros grandes nomes do metal mundo a fora. Das bandas oitentistas bra-
sileiras duas delas foram entrevistadas no RxTx o Chakal (Vladimir Korg
e Cassio Corsino) e o Anthares (Evandro Júnior e Diego Nogueira).
O Anthares, banda paulista, fora descrito na seguinte forma na re-
vista nacional especializada em heavy metal Rodie Crew:

Em meio ao Thrash Metal rápido, agressivo e repleto de paradinhas para bater


cabeça, as composições tratavam de temas instigantes e que se mantém atuais.
Henrique “Poço”, o nosso “Paul Baloff”, cantava e gritava em alto e bom
72 | Diálogos com a Música Extrema

português sobre alienação e violência social, distúrbios da mente, guerra e pe-


sadelo nuclear, assuntos que cabem no cenário que vivemos hoje. (RODIE
CREW, 60 Grandes álbuns do metal brasileiro, 2013, p. 21)

Já o Chakal pertencia a leva dos “quatro cavaleiros do apocalipse do


metal mineiro7”:

Musicalmente à frente de seu tempo, Abominable Anno Domini8 teve papel


fundamental na efervescência metálica mineira. Para Mark, a banda superou
as limitações técnicas da época em busca de riffs poderosos e solos mais tra-
balhados, enquanto muitos grupos do nascente Death/Thrash brasileiro
abraçavam o primitivismo. Outro diferencial foram as linhas vocais e as letras
de Vladmir Korg, um letrista nato, que viria a escrever verdadeirashistórias no
The Mist. (RODIE CREW, 60 Grandes álbuns do metal brasileiro, 2013, p. 22)

Duas lendas do metal nacional e que tinham em comum a questão


ácida nas letras não passaram despercebidas aos nossos ouvidos e, dife-
rente da maioria das entrevistas daquela época, conseguimos explorar
vários assuntos com as bandas na entrevista ao RxTx.
As duas bandas abordaram a questão da ditadura civil-militar brasi-
leira (até porque se estavam gravando materiais entre 1986 e 1987, haviam
vivido boa parte de sua juventude sob o regime), o Chakal ainda trouxe a
questão do universalismo e a história do pai de Korg que foi exilado polí-
tico nos anos de chumbo; “Meu pai foi exilado político e tal. Morar em Belo
Horizonte era a ditadura da ditadura. As coisas aqui eram graves. Tudo
isso, para um artista, é material essencial para sua expressão. Qualquer
um que viveu naquela época tem suas cicatrizes” (RESÍDUOS TÓXICOS,

7
Uma referência ao Warfare Noise I de 1986, nas palavras de Casito do Witchhammer: “A coletânea abriu os olhos
do Brasil para o cenário de Minas.” (RODIE CREW, 60 Grandes álbuns do metal brasileiro, 2013, p. 20). Essa coletâ-
nea, lançada pelo Cogumelo Records, continha quatro bandas do metal mineiro: Chakal, Sarcófago, Mutilator e
Holocausto.
8
Esse é o título do álbum de 1987 do Chakal considerado por muitos, seu maior clássico.
Fábio Alexandre Tardelli Filho | 73

Entrevista com a banda Chakal, lenda do Death Metal brasileiro, 25 de de-


zembro de 2011) e o Anthares reivindicou o metal como gênero musical
contestador do neoliberalismo:

Na minha modesta opinião o heavy metal já exerce seu papel de contestador


contra todo o sistema falido em que vivemos. A mensagem está na música, nas
letras, no visual, na atitude de um estilo de vida que aponta o dedo e mostra
para o mundo corporativista, corrupto, violento que há saída: ouçam metal e
se libertem! (RESÍDUOS TÓXICOS, Entrevista com a banda Anthares!, 06 de
setembro de 2012)

A respeito da ditadura civil-militar o próprio Evandro Jr. do Anthares


também abordou esse assunto quando indagado sobre crescer jovem e he-
adbanger na cidade de São Paulo nos anos oitenta:

Surra de cacetetes, humilhação...isso tá na memória sempre. A gente era tra-


tado como animais. Vi coisas absurdas naqueles anos, até a metade dos anos
90, resquícios da ditadura. Desde moleque já ia em quase todos os shows de
rock em SP e a violência dos fardados com a galera do metal era revoltante,
mas era uma época de muito preconceito ainda erraigado (sic) e prá eles, he-
adbanger era só vagabundo sujo, desordeiro e bêbado. No início, por volta de
83/85 até que éramos sim, pois havia essa raiva nos olhos contra a ditadura
que finalmente tinha sucumbido, e o metal foi um gênero musical que surgiu
como legítimo representante da rebeldia. Depois as coisas foram mudando, as
ideologias também. (RESÍDUOS TÓXICOS, Entrevista com a banda Anthares!,
06 de setembro de 2012)

E quando indagado a respeito da letra da música The plane is dead


do clássico álbum Abominable Anno Domini (1987), Korg respondeu:

Sou ainda fissurado com essa ideia do universalismo. Mundo sem fronteiras e
essas coisas. Estávamos saindo de um regime ditatorial e para mim foi natural
gritar com liberdade o que eu pensava. Pouca coisa mudou mas hoje tento
74 | Diálogos com a Música Extrema

compreender as nossas limitações para assumirmos nossa posição como seres


universais com mais resignação. Infelizmente. (RESÍDUOS TÓXICOS, Entre-
vista com a banda Chakal, lenda do Death Metal brasileiro, 25 de dezembro de
2011)

A máxima marxiana de o 18 de brumário de Luís Bonaparte (2011)


sobre a relação entre os indivíduos e sua subjetividade ante a totalidade
concreta da História e as questões dialéticas diante das possibilidades de
transformação são elementos ricos para refletirmos essas passagens das
duas bandas brasileiras:

Os homens fazem a própria história; contudo não a fazem de livre e espontâ-


nea vontade, pois não são eles que escolhem as circunstancias sobre as quais
ela é feita, mas estas lhes foram transmitidas assim como se encontram. A
tradição de todas as gerações passadas é como um pesadelo que comprime o
cérebro dos vivos. E justamente quando parecem estar empenhados em trans-
formar a si mesmos e as coisas, em criar algo nunca antes visto, exatamente
nessas épocas de crise revolucionária, eles conjuram temerosamente a ajuda
dos espíritos do passado, tomam emprestados os seus nomes, as suas palavras
de ordem, o seu figurino, a fim de representar, com essa venerável roupagem
tradicional e essa linguagem tomada de empréstimo, as novas cenas da histó-
ria mundial. (MARX, 2011, p. 25)

Até porque, além da questão histórica das duas bandas já menciona-


das, foi justamente no final da década de 2000 e começo da década de 2010
que o thrash teve seu revival e foi o momento de nomes Critical Fear e o
BrainDeath terem essa “ajuda dos espíritos do passado” e “as suas palavras
de ordem”, ainda que sob outras faces do capitalismo.
Nos anos 2000 já não estávamos mais em uma ditadura dos militares
e frações burguesas à serviço da pavimentação do modelo econômico do
neoliberalismo, ao contrário, nós agora estávamos sob o regime desse mo-
delo após passarmos as décadas de 80 e 90 sob governos privatistas e
Fábio Alexandre Tardelli Filho | 75

contrários aos direitos dos trabalhadores. E foi justamente após essas dé-
cadas de crise e espezinhamento de direitos sociais que houve uma
ascensão de governos de linha liberal-progressista no país, com a chega de
Lula e Dilma (ambos do Partido dos Trabalhadores, o PT) à presidência da
República. Mas, independentemente de reconhecer algumas questões de
avanço nos campos econômicos e sociais, se trataram de gestões longe de
estarem em diálogo franco com a classe trabalhadora, não à toa sua polí-
tica de conciliação de classes veio acompanhada de supressão pesada aos
movimentos sociais populares. E foi exatamente nesse contexto que o
thrash metal voltou com força total.

O revival do thrash metal. Conciliação de classes x Luta de classes e as


entrevistas de BrainDeath e Critical Fear ao RxTx.

Entre meados e final da década de 2000 experimentávamos a reelei-


ção de um presidente dito “progressista”, Lula (PT), e a mídia burguesa
disparava capas de revistas e chamadas de jornais contra o presidente e
seu partido ao mesmo tempo em que a bolha imobiliária dos Estados Uni-
dos explode afetando o mercado internacional. Especuladores,
economistas, mídias burguesas e afins declaravam todos os dias que o Bra-
sil seria devorado pela crise caso o governo não cortasse os “gastos”
sociais, em uma pauta privatista e pró injeção de dinheiro público nas bur-
guesias. Esse tiro das burguesias de apostar em um colapso financeiro do
governo Lulo-PTista foi pelos ares e o país saiu fortalecido diante de uma
economia estadunidense em frangalhos.
Nesse mesmo período, da explosão da bolha imobiliária dos Estados
Unidos, outros países latinos de governos alinhados na pauta liberal-pro-
gressista ou esquerda-nacionalista, também tiveram seu fortalecimento; o
Uruguai de José Mujica e a Venezuela de Hugo Chávez. E Fidel Castro, o
76 | Diálogos com a Música Extrema

herdeiro de Toussaint L’Ouverture9, estava vivo apesar de todas as tenta-


tivas10 estadunidenses após a Revolução Cubana, enquanto Raul Castro
estava assumindo a presidência. Eu e muitos músicos da nova geração do
thrash crescemos nesse contexto, bombardeados por ódio de classes de
burguesias raivosas e também publicando artigos em revistas como a Veja
atacando punks e bangers (como a capa11 da Veja São Paulo de outubro de
2007 com o título “Selvagens e Covardes”).
Mas não nos iludamos de que ter um governo “de esquerda” foi o
avanço de uma revolução social e se esmerou na excelência aos trabalha-
dores. Lula ao assumir entregou a chamada “Carta ao povo brasileiro12” e
não tardou para que a democracia burguesa pesasse sobre a classe traba-
lhadora chegando aos fatos de repressão violenta aos manifestantes de
movimentos sociais populares, vide os atos contra a realização da Copa do
Mundo de 2014 no Brasil, as repressões ao MTST, ao movimento do Passe
Livre (que desembestou nas fatídicas Jornadas de junho de 2013) e claro,
a lei de Antiterrorismo13 (13.260/2016) de autoria da então presidenta da
República, Dilma Rousseff (PT).

9
Uma referência ao apêndice De Toussaint L'Ouverture a Fidel Castro do livro Os jacobinos negros. Toussaint L'Ou-
verture e a revolução de São Domingos (2010) de C.L.R. James.
10
No livro Balas de Washington (2020), o indiano Vijay Prashad cita uma menção de Fidel Castro ao senador esta-
dunidense George McGovern em 1975 que foram VINTE E QUATRO tentativas de depô-lo, entre assassinatos e golpes
(PRASHAD, 2020, p. 57).
11
VEJA. São Paulo: outubro, ano 40, n. 43, 31 Out. 2007.
12
Na própria página do Partido dos Trabalhadores há esse material: https://pt.org.br/ha-16-anos-lula-lancava-a-
carta-ao-povo-brasileiro/. Apesar de na carta abordar direitos sociais e garantias aos trabalhadores o que se aplicou
de fato foi “[...] esforço conjugado de exportar mais e de criar um amplo mercado interno de consumo de massas”
(CARTA AO POVO BRASILEIRO, 22 de junho 2002). Vale lembrar que Lula realizou uma “Contrarreforma Previden-
ciária” (Marques; Mendes, 2004, p. 3-15) bastante agressiva e Dilma assentou menos famílias que Fernando Henrique
Cardoso (FHC) (http://g1.globo.com/politica/noticia/2015/03/dilma-assentou-menos-familias-que-lula-e-fhc-
meta-e-120-mil-ate-2018.html).
13
E Foi justamente entre maio e junho de 2020 que o então presidente Jair Bolsonaro (sem partido) tentou tipificar
o movimento antifascista como grupo terrorista para enquadrar nessa lei. Já diria Marx, parafraseando e comple-
tando Hegel, “[...] todos os grandes fatos e todos os grandes personagens da história mundial são encenados por
assim dizer, duas vezes. (...) a primeira vez como tragédia, a segunda como farsa” (MARX, 2011, p. 25).
Fábio Alexandre Tardelli Filho | 77

Não seria por acaso que o subgênero mais ácido do heavy metal vol-
taria a todo vapor, e para explicar essas razões haviam muitas hipóteses
levantadas por bandas, revistas especializadas e fãs. Em geral avaliavam
como um desgaste do power metal, metal melódico e as bandas do gothic
metal, ou por razões de saturamento de ouvidos, brigas e rupturas nas
principais bandas desses estilos e a qualidade das novas bandas de thrash.
Particularmente vejo a conjunção desses três fatores com mais um: o acir-
ramento da luta de classes em oposição ao pacto de classes em decorrência
da ascensão de governos progressistas e liberais que estavam consolidados
ou ascendendo ao poder pela primeira vez em muitos países após ditadu-
ras civis-militares impostas com apoio dos Estados Unidos ao longo da
Guerra Fria e do macarthismo14.
É justamente nessa direção que encontramos um caminho para nossa
hipótese: a entrevista de Felipe Nizuma do BrainDeath, quando indagado
em entrevista ao Resíduos a respeito das manifestações de junho de 2013
que ainda estavam começando e não haviam descarrilhado da forma como
foi:

Penso que tem uma insatisfação geral sobre o transporte público, mas ela ge-
ralmente se dá no plano individual. Sozinho se faz o que? É muito caro, sempre
lotado, aqui em São Paulo é um inferno. 2 ou 3 horas no trânsito só pra ir,
mais 9 horas de trampo, depois a volta, quando você vê, são 13 ou 14 horas na
rua... Sempre que tem aumento o MPL e outras organizações chamam o ato.
Dessa vez talvez esteja sendo diferente porque a insatisfação individual se tor-
nou coletiva. O Sindicato dos Metroviários, um dos mais combativos hoje por
aqui, já estava em campanha contra o aumento das passagens algumas sema-
nas antes - o abaixo assinado oficial foi divulgado por eles e replicado pelo MPL
-, então o que se tira disso é que a politização não é espontânea, mas sim fruto

14
Foi um controverso movimento político estadunidense que para combater o comunismo iniciou uma verdadeira
caça aos movimentos de esquerda. Inclusive com muita propaganda falsa e acusações graves e sem fundamentos
sobre países alinhados com a União Soviética (URSS).
78 | Diálogos com a Música Extrema

da luta permanente de muitas organizações que tentam moralizar o resto da


população de que sim é possível pressionar. E a ideologia da classe dominante
se mostrou bem dessa vez, são muitos vídeos, fotos e etc que demonstram o
que a gente que tá do lado de cá sempre disse, que quem vandaliza é a Polícia
Militar, sempre a serviço do governo e dos empresários do transporte, neste
caso. Outro ponto é que a população apostou na "frente popular" do PT na
prefeitura com o Haddad esperando respostas, mas que tem demonstrado de
que lado está, pois não coloca seu cargo a serviço dos movimentos sociais, não
ficando claro em que o PT se diferencia do PSDB. Isso ficou claro também na
greve dos professores municipais. (RESÍDUOS TÓXICOS, Entrevista com Fe-
lipe Nizuma (Urutu, BrainDeath e Six & Rebels), 15 de junho de 2013)

O BrainDeath era uma banda de São Paulo (SP) que se formou em


2008 e tinha lançado seu primeiro cd em 2012, após vários matérias como
singles e uma demo, intitulado Crossing over the Pit. A banda já havia acu-
mulado muitos shows com outras bandas importantes do undergorund
como Anthares e Lobotomia e vinha na explosão das bandas de thrash, e
demais subgêneros relacionados como o crossover, hardcore e o metal
punk, de São Paulo com nomes como Bandanos, Infected, Nuclear Fröst,
FxHxCx e Critical Fear. Entre seus temas de músicas estavam protestos,
política, questões sociais e horror (um gênero literário e cinematográfico
comum nas bandas de thrash).
Trazendo referências do materialismo histórico dialético ao ser ques-
tionado a respeito dos matérias que estava produzindo com suas bandas:
“Estou tocando em três bandas hoje (Braindeath, Urutu e Six & Rebels) e
como elas se originaram nesse mundo, de algumas forma elas expressam
o momento” (RESÍDUOS TÓXICOS, Entrevista com Felipe Nizuma (Urutu,
BrainDeath e Six & Rebels), 15 de junho de 2013), ele ainda vai além
quando perguntado do sentido que quis auferir na expressão “originaram
nesse mundo” e então respondeu:
Fábio Alexandre Tardelli Filho | 79

Sobre "nasceram nesse mundo", só quer dizer, que na arte, às vezes as pessoas
(inclusive intelectuais) tendem a achar que é um mundo separado. O que de-
termina a arte são os meios materiais para a produção da arte. Então
relativamente, o The Force do Paraguai é qualitativamente muito mais bem
elaborado do que o Bonded By Blood dos EUA, porque a falta de condição ma-
terial-financeira latino-americana para se produzir música impõe que se
elabore muito mais o que está se fazendo do que quem tem um estúdio enorme
e uma gravadora bancando. (RESÍDUOS TÓXICOS, Entrevista com Felipe
Nizuma (Urutu, BrainDeath e Six & Rebels), 15 de junho de 2013)

Importante destacar que Nizuma trabalhava em uma editora de li-


vros ligada ao MST, cursava geografia na USP e também cerrava as fileiras
do PSTU (Partido Socialista dos Trabalhadores Unificados), e consequen-
temente sua práxis aparecia em cada aspecto das bandas com as quais
construía como o BrainDeath e também o Urutu que reunia outras figuras
extremamente politizadas da cena como Thiago Nascimento do D.E.R..

Acho que bandas como Violator, D.E.R. e Defy têm ajudado a elevar o grau de
consciência sobre as coisas. Pode notar que as três atingem os objetivos de
cada "estilo" muito bem. A galera sabe o que tá fazendo. Não acham que são
diferentes porque tocam thrash-grind-crust. São diferentes porque sabem que
não é roupa, nem cabelo que vai fazer a pessoa ser diferente. Creio que ajuda
sim a criar um setor de resistência. Ainda que bem pequeno, porque não são
músicas que atingem as "massas", mas ajudam a organizar um setor jovem,
moraliza bastante sobretudo, a juventude. Mas ainda acho que o embate po-
deria ser maior, e aí que entraria o papel de auto organizar em fóruns pelo
menos - porque as denúncias dentro do "underground" ainda têm caráter
muito grande de insatisfação individual, e tendem a achar que denúncias de
nazismo, fascismo, machismo, homofobia, dividem o underground. Inclusive
com discursinho de direita, que sempre vai dizer que é "patrulha ideológica"
como ouvi certa vez de um "colega" que dizia coisas racistas/machistas/ho-
mofóbicas em fóruns do antigo orkut. Tá vendo como faz falta a auto-
organização? (RESÍDUOS TÓXICOS, Entrevista com Felipe Nizuma (Urutu,
BrainDeath e Six & Rebels), 15 de junho de 2013)
80 | Diálogos com a Música Extrema

Em uma linha parecida o Critical Fear chegava gritando pela neces-


sidade de revolução15. A banda de Iracemápolis-SP foi formada em 2008 e
tem como seus temas musicais política e sociedade, e uma posição desde o
começo claramente comunista como é nítido na música CCCP (é a abrevi-
atura em russo de União das repúblicas Socialistas Soviéticas, que em
português é URSS). Um trecho da letra16:

Glory the Soviet Union


Land of immortal Lenin
Born through october's revolutionIs was the will of all people
The burguesy faded away
People are free
By constitution, just one class
Worker's victory
(CCCP, música do álbum Conflicts da banda Critical Fear, 2011)

Em entrevista ao RxTx o integrante da banda Perci afirmou a res-


peito da música Revolution’s Necessary:

O som fala sobre luta de classes de maneira bem simples, porém o conceito
está ali. Parto do seguinte pensamento “Luta de Classes tem todo dia”. Sendo
nosso país capitalista temos, portanto, luta de classes. É verdade que as coisas
estão um tanto diferentes que na época de Marx, porém o conflito entre “Pa-
trão e Peão” continua dado. Temos ainda uma série de mecanismos que já no
século XIX Marx havia visto como a mais valia, os monopólios, Estado burguês
e coisas do tipo. Portando a luta de classes continua viva, Burgueses e Proletá-
rios continuam em conflito. (RESÍDUOS TÓXICOS, Entrevista com a banda
Critical Fear thrash metal!, 19 de março de 2012)

15
Uma referência à música Revolution’s Necessary do álbum Conflicts (2011).
16
Em tradução nossa a letra fica assim: “Gloria à União Soviética/ Terra do imortal Lenin/ Nascida pela Revolução
de Outubro, foi a vontade de todas as pessoas/ A burguesia desapareceu/ As pessoas são livres/ Por constituição
apenas uma classe/ Vitória dos trabalhadores”.
Fábio Alexandre Tardelli Filho | 81

Perci mantém a linha de trazer sua práxis ao underground sendo ele


professor de História que chegou a ser eleito vereador em Iracemápolis-
SP pelo PCdoB (Partido Comunista do Brasil). Quando indagado sobre o
processo de composição das músicas, se era uma postura dele ou se dos
demais membros da banda, respondeu:

As letras são escritas, e passam por avaliação do restante da banda, qualquer


um na banda pode chegar e colocar suas ideias no papel e escrever letras, o
interessante é que a banda toda tem a mesma orientação política então acaba-
mos tendo pensamentos um tanto parecidos. (RESÍDUOS TÓXICOS,
Entrevista com a banda Critical Fear thrash metal!, 19 de março de 2012)

Outras bandas da época marcaram o underground com suas concep-


ções político-sociais variando entre as visões de mundo anarquistas e
comunistas. Socializando o espaço, como uma grande comunidade, veio a
ser para muitos dos integrantes de bandas e fãs alguns dos primeiros con-
tatos com experiências de classe. Mas cabe reforçar e reafirmar que
entender isso como uma regra “inerente” do estilo é mero idealismo ba-
rato, e é, infelizmente, comum nos tratados das cenas de subcultura. Bem
como a luta de classes encontra no lumpemproletariado17 sua mais lamen-
tável contradição não seria por meio da música, ainda mais com toda

17
Essa categoria aparece justamente nos dois textos de Marx que trabalhamos até aqui. No Manifesto do Partido
Comunista (2004) Marx afirma: “[...] essa putrefação passiva dos estratos mais baixos da velha sociedade, pode, aqui
e ali, ser arrastado ao movimento por uma revolução proletária; no entanto, suas condições da existência o predispõe
bem mais a se deixar comprar por tramas reacionárias” (MARX, 2004, p. 55). Já no 18 de brumário essa definição
aparece da seguinte forma: “Roués ´[rufiões] decadentes com meios de subsistência duvidosos e de origem duvidosa,
rebentos arruinados e aventurescos da burguesia eram ladeados por vagabundos, soldados exonerados, ex-presidiá-
rios, escravos fugidos pelas galeras, gatunos, trapaceiros, lazzaroni [lazarones], batedores de carteira,
prestidigitadores, jogadores, maquereaux [cafetões], donos de bordel, carregadores, literatos, tocadores de realejo,
trapadeiros, amoladores de tesoura, funileiros, mendigos, em suma, toda essa massa indefinida, desestruturada e
jogada de um lado para outro, que os franceses denominam la bohème [a boemia] [...]” (MARX, 2011, p. 91). Ainda
que nesse caso esteja abordando um contexto, a França, e um momento específico, a formação por Luís Bonaparte
da Sociedade 10 de dezembro, nos serve justamente para pensar a respeito dessas figuras dos aventureiros e boêmios
que se jogam a depender para aonde a História pesa, inclusive servindo sem pestanejar aos interesses das classes
dominantes e contra as lutas dos trabalhadores.
82 | Diálogos com a Música Extrema

estruturação da indústria cultural a partir da segunda metade do século


XX, a “bolha” anticapitalista e revolucionária que algum gênero musical
teria por si. Retoma-se a lógica do 18 de brumário de Luís Bonaparte.
Os estranhamentos com bandas de orientação liberal e, sobretudo,
nazifascistas apareciam com frequência. Mesmo o próprio thrash metal
tendo em sua história flerte e aproximações com rap, punk e hardcore não
era insignificante o número de bandas que fugiam intencionalmente dessa
temática político-social ou mesmo se afastava dessas bandas mais engaja-
das como mecanismo de “manter o purismo” de música não política. Mero
engano, pois “[...] toda luta de classes é uma luta política” (MARX, 2004,
p. 54), ao negar tomar um lado na História, reforçavam o posicionamento
de lumpemproletariado, “A história de todas as sociedades que existiram
até hoje é a história de luta de classes” (MARX, 2004, p. 45).
Como bem disse Felipe Nizuma na entrevista ao Resíduos: “Penso
que a gente tenha que caminhar do famoso "do it yourself" para um "do it
ourselves, together, as working class"” (RESÍDUOS TÓXICOS, Entrevista
com Felipe Nizuma (Urutu, BrainDeath e Six & Rebels), 15 de junho de
2013).

Conceitos de consciência de classes, subcultura e arte: quem agora toca são


os historiadores britânicos.

Até esse agora apresentei, a partir de um viés histórico, as quatro


bandas e suas entrevistas para nossa relação que construiremos com a
consciência de classes e nessa trajetória já apresentamos alguns conceitos,
ainda que evitando aprofundar demais certas discussões que acreditamos
podem vir a ser mais exploradas em outros momentos. Entretendo para
dar continuidade nessa análise é preciso passar por algumas definições e
são elas: cultura, subcultura e consciência de classes.
Fábio Alexandre Tardelli Filho | 83

Arte e subcultura trago mais para evidenciar a relação do pensa-


mento materialista histórico dialético a respeito de nosso objeto de análise
que são as bandas de heavy metal. Adentrar a floresta de discussões teóri-
cas sobre cultura seria se perder em mata fechada e nesse momento essa
aventura não seria oportuna. Afinal até mesmo nosso guia sobre arte,
Raymond Willians, alerta que:

Culture é uma das duas ou três palavras mais complicadas da língua inglesa.
Isso ocorre em parte por causa de seu intrincado desenvolvimento histórico
em diversas línguas europeias, mas principalmente porque passou a ser usada
para referir-se a conceitos importantes em diversas disciplinas intelectuais
distintas e em diversos sistemas de pensamento distintos e incompatíveis
(WILLIANS, 2007, p. 117).

Optei em trabalhar com Raymond Willians e sua discussão sobre arte


por duas razões: primeiro em seu livro Palavras-chave [um vocabulário de
cultura e sociedade] (2007) essa categoria aparece bem sintética e organi-
zada e a segunda razão é que como abordei ao longo desse texto questões
sobre projeções idealistas sobre as subculturas e seus signos, considerei
importante definir arte ao leitor mais acostumado com senso comum so-
bre essa categoria e que esse meu texto pode justamente vir, em uma má
interpretação, reforçar o que quer combater: idealismos baratos.
Raymond Willians apresenta arte (artista) a partir da seguinte aná-
lise:

O termo art é usado no inglês desde o séc. 13, da p.i. art, do francês antigo, e
da p. r. latina artem, habilidade. Teve ampla aplicação, sem especialização pre-
dominante, até finais do séc. 17, em assuntos tão diversos quanto matemática,
medicina e pesca com vara. Nos currículos das universidades medievais, as
artes (“as sete artes” e, mais tarde, “as artes LIBERAIS” [v.]) eram a gramática,
a lógica, a retórica, a aritmética, a geometria, a música e a astronomia; e
84 | Diálogos com a Música Extrema

artista, a partir do séc. 16, foi primeiro usado nesse contexto, embora com
desenvolvimentos quase contemporâneos para descrever qualquer pessoa ha-
bilidosa (como tal, o termo é substancialmente idêntico a artesão até finais do
séc. 16) ou praticamente de uma das artes correspondentes ao grupo presidido
pelas sete musas: história, poesia, comédia, tragédia, música, dança e astrono-
mia. Adiante, a partir do final do séc. 17, tornou-se cada vez mais comum uma
aplicação especializada a um conjunto de habilidades até então não represen-
tadas formalmente: pintura, desenho, gravura e escultura. O uso hoje
dominante de arte e artista para referir-se a essa habilidade ainda não estava
estabelecido plenamente até o final do séc. 19 [...]” (WILLIANS, 2007, p. 60).

Como podemos observar o termo nos remete justamente à sua ori-


gem trabalhadora dos artesãos feudais e na medida com que as condições
materiais vão se transformando o termo vai se ampliando, uma relação
dialética comum no que se refere aos sentidos sociais das palavras e tam-
bém das condições de trabalho. Marcelo Badaró Mattos em A classe
trabalhadora de Marx ao nosso tempo (2019) traz uma série de valiosas
reflexões a respeito de classe trabalhadora, mas é trabalhando com Marx,
e sua distinção entre trabalho produtivo e improdutivo, que a proletariza-
ção do artista e a exploração de seu mais valor aparece por via de, assim
como professor, ter seu caráter de trabalho produtivo:

Uma cantora que entoa como um pássaro é um trabalhador improdutivo. Na


medida em que vende seu canto, é assalariada ou comerciante. Mas, a mesma
cantora, contratada por um empresário, que faz cantar para ganhar dinheiro,
é um trabalhador produtivo, já que produz diretamente capital. Um mestre-
escola que é contratado com outros, para valorizar, mediante seu trabalho, o
dinheiro, do empresário da instituição que trafica com conhecimento, é traba-
lhador produtivo (MARX apud MATTOS, 2019, p. 27)

E porque estamos discutindo a questão do trabalho produtivo de ar-


tistas junto à discussão de arte? Porque a arte não é espontânea, fruto de
Fábio Alexandre Tardelli Filho | 85

almas iluminadas por forças para além da totalidade histórica e da reali-


dade, ela é fruto de processos culturais como mediações da totalidade
concreta, por tanto é histórica e aquelas que a produzem são membros da
classe trabalhadora e como bem Mattos (2019) definiu, a partir de Marx,:
“[...] conjunto de pessoas que vivem e vendem sua força de trabalho por
meio, primordialmente, do assalariamento” (MATTOS, 2019, p. 26).
Ainda que estejamos abordando quatro bandas independentes, por-
tanto não geram mais valor pelo seu thrash a empresários, gravadoras e
afins, não são nada além do que projeções artísticas de trabalhadores que
de outras categorias para além da arte vivem de vender sua força de tra-
balho. Daí seu lugar na luta de classes e a sua práxis, que por via dessa
arte, numa relação histórico dialética, ela aparece manifestada de diferen-
tes formas na sua arte, ou como Felipe Nizuma do BrainDeath colocou:

Mas nem acho que seja obrigação de artistas fazerem isso18, a diversão e a
distração tem que sim fazer parte de uma nova sociedade, porque a "aliena-
ção" cultural de hoje tem mais a ver com quem domina a difusão cultural,
então temos que tomar as rédeas. Não queremos uma sociedade em preto-e-
branco com fábricas cinzas ao fundo, creio que o que tem que emergir em
termos de "cultura" seja todas as frentes de arte e cultura nas mãos da classe
trabalhadora, para retratarem o mundo da forma como achar melhor. Não é
que o artista tenha que ter a obrigação de retratar a "realidade" de denunciar,
tem que ser livre pra denunciar ou não, mas a obrigação talvez, seja a de tomar
a direção de quem comanda a "cultura". (RESÍDUOS TÓXICOS, Entrevista
com Felipe Nizuma (Urutu, BrainDeath e Six & Rebels), 15 de junho de 2013)

18
Músicas políticas e trazerem assuntos sociais em suas letras. Essa resposta é um trecho para a seguinte pergunta:
“RxTx - Indo para o lado das bandas das quais você faz parte. Vocês têm alguma letra ou algum material preparado,
que aborde esse momento histórico, especificamente? Ou não pretendem nada nessa direção, pelo menos nesse mo-
mento?” (RESÍDUOS TÓXICOS, Entrevista com Felipe Nizuma (Urutu, BrainDeath e Six & Rebels), 15 de junho de
2013).
86 | Diálogos com a Música Extrema

Encerrando a abordagem sobre arte, artistas e cultura retomamos à


Raymond Willians (2011) para destacar que os meios de comunicação, e aí
podemos encaixar vários campos da indústria cultural, como meios de
produção, portanto: “[...] a comunicação e seus meios materiais são in-
trínsecos a todas as formas distintamente humanas de trabalho e de
organização social, constituindo-se assim elementos indispensáveis tanto
para as forças produtivas quanto para as relações sociais de produção”
(WILLIANS, 2011, p. 69).
Isso nos joga algumas questões, que não responderemos nesse texto,
sobre a transformação de arte, a relação entre subjetividades e historici-
dade, em produto reificado e por tal razão temos afirmado de pensar os
subgêneros do metal (e pode aplicar qualquer estilo musical) para além
dos idealismos, e sim criticamente ou seja em sua relação dialética como
mediação de uma totalidade concreta, histórica e econômica, e por isso
diversas vezes contraditória assim como a classe trabalhadora. É aí que
adentramos no conceito de subcultura partindo das reflexões de Terry Ea-
gleton.
Normalmente subcultura é um conceito discutido e bastante valori-
zado nos ciclos undergrounds como algo transcendente a uma suposta
supracultura, e não raro nada mais é do que uma projeção pessoal de quem
fala19, como se por si mesma uma subcultura rompa com as mediações do
modo de produção capitalista, a totalidade concreta, e em um lampejo,
nada dialético, produza uma subversão deste para uma pseudo pauta
emancipatória de seus iguais. E foi justamente para desmistificar isso que
discutimos a relação de arte e artistas com trabalho produtivo e a geração

19
É muito comum fãs de heavy metal alegarem, por exemplo, que odeiam o funk porque é uma modinha e mero
consumismo. Oras e o que foi o metal nos anos 80? Foi justamente se opondo a isso que, entre outros estilos e
inclusive dentro do próprio metal, que vieram subgêneros como grunge (e que ironicamente virou outra “modinha”).
Por outro lado, há também aqueles que tentam significar o funk em uma pauta identitarista, acima de espaço e
tempo, como ele estivesse por si enfrentando a supracultura expressa nos gêneros de rock e outras subculturas.
Fábio Alexandre Tardelli Filho | 87

de mais valor, seja pela arte ou na condição de trabalhador dentro de uma


estrutura bastante organizada e desenvolvida que a tudo transforma em
mercadoria e conduz os seus próprios valores e sentidos.
Indo além desse idealismo, as subculturas podem ter um caráter ex-
tremamente alienante, fetichizante e reificante, reproduzindo concepções
liberais e conservadoras com muito mais amplitude do que se pode imagi-
nar enquanto mercadoriza sujeitos e concepções de mundo.

Dividida entre evangelismo e emancipação, entre Forrest Gump e Pulp Fiction,


a cultura ocidental é assim mais enfraquecida ainda na sua confrontação com
o mundo além dela. O termo “subcultura” é, entre outras coisas, um modo
inconsciente de negar essa desunião, sugerindo uma oposição a alguma supra-
cultura facilmente identificável. Mas a maioria das sociedades modernas é, de
fato, um grupo de subculturas que se intersectam, e está tornando-se mais
difícil dizer de que o mundo cultural normativo deriva uma particular subcul-
tura. Se aqueles com narizes com argolas e cabelos roxos constituem uma
subcultura, então também o são, em um úmero cada vez maior de lugares, os
lares onde todos os filhos são a progênie conjunta dos pais que lá residem.
(EAGLETON, 2011, p. 110)

Um falso universalismo pode na verdade reforçar atropelos consu-


mistas, liberais e conservadores sobre identidades específicas. Um “funk
empoderante” ou um “thrash revolucionário” podem perfeitamente servi-
rem de pavimentação a toda uma rede de consumos alienantes e
reificantes pelo modo de produção dos meios de comunicação e da indús-
tría cultural sobre comunidades tradicionais do campo ou um quilombo,
por exemplo. Ou pior, alimentar ressentimentos perigosos em torno das
outras identidades, reforçando individualismo em um looping sem fim de
negação um do outro. Enquanto se digladiam em identitarismos e frag-
mentações não concebem o aspecto que em comum os identifica, o fato de
88 | Diálogos com a Música Extrema

serem todos classe trabalhadora dentro de uma única totalidade: o modo


de produção capitalista.

Aqueles para quem a cultura é o reverso da militância defrontam-se com aque-


les para quem cultura e militância são inseparáveis. Enquanto passa sem
consideração alguma por cima de comunidades locais e sentimentos tradicio-
nais, a sociedade ocidental deixa uma cultura de ressentimento latente em seu
rasto. Quanto mais um falso universalismo desrespeita identidades específi-
cas, mais inflexivelmente essas identidades se afirmam. Cada posição, assim,
coloca resolutamente a outra contra a parede. Uma vez que a Cultura reduz o
revolucionário William Blake a uma asserção humana atemporal, fica também
muito mais fácil para a cultura como identidade rejeita-lo como “Homem
Branco Morto”, provando-se assim perversamente de preciosos recursos polí-
ticos. (EAGLETON, 2011, p. 121)

Talvez, uma hipótese a se estudar, tenha sido por justamente ir além


das barreiras de um subgênero do metal um dos fatores do thrash metal
ter um alinhamento mais forte na luta de classes. Vale lembrar o contexto
de São Francisco (Califórnia), a terra marcada pelo thrash da Bay Area,
mas anteriormente, também, com uma forte presença de bandas hippies
nos anos 70, um forte movimento LGBT organizado que inclusive culmi-
nou na eleição de Harvey Milk (o primeiro homem assumido homossexual
a ser eleito para um cargo público na História dos Estados Unidos), uma
heterogeneidade no que tange as origens geográficas e culturais dos mú-
sicos, com bandas que mesclariam punk, hardcore, rap e até black metal
em seus sons.

O metal havia quebrado algumas barreiras e avançado muito até o final da


década de 1980. Após o PMRC ter atacado sua proeminência, os metaleiros
entraram em uma guerra cultural que estava se formando desde os anos de
1950. Na época de Elvis Presley, muitos desses pregadores fundamentalistas
começaram a queimar discos de rock, embora o congresso estivesse mais
Fábio Alexandre Tardelli Filho | 89

preocupado com comunistas do que satanistas. Agora, o Metallica encarava o


desafio de responsabilidade social. Se a qualidade crescente da música não era
o suficiente para manter os oponentes afastado, pelo menos a briga seria sobre
os méritos do conteúdo. Mais importante: se os líderes nacionais se ocupassem
policiando o rock, então seria função dos músicos falarem com os jovens sobre
questões substanciosas. (CHRISTE, 2010, p. 168)

Por fim, trazemos nossa discussão sobre consciência de classe e a re-


lação que pudemos identificar até o momento ao redor bandas
aapresentadas. E.P. Thompson pontua classe como categoria histórica:
“Por classe, entendo fenômeno histórico, que unifica uma série de aconte-
cimentos díspares e aparentemente desconectados, tanto na matéria-
prima da experiência como na consciência. Ressalto é um fenômeno his-
tórico” (THOMPSON, 2011, p. 9). Ou seja, é o comportamento classicista
das pessoas em repostas às situações de conflito geradas por outra classe
social, por isso é fundamental não nos perdemos em antagonismos por
nossas distinções, ainda que historicamente algumas precisem ser mais
refletidas, respeitadas e ouvidas diante da imensa violência histórica pro-
duzida pelo modo de produção capitalista, por exemplo; a questão das
mulheres, LGBTs e pessoas negras – é necessário pensar e construir a
consciência de classe heterogeneamente20.
Mas observe que nessa concepção de classe como fenômeno histórico,
ela pode ser muitas coisas, menos uma categoria estática: “A classe acon-
tece quando alguns homens, como resultado de experiências comuns
(herdadas ou partilhadas), sentem e articulam a identidade de seus inte-
resses entre si, e contra outros homens cujos interesses diferem (e
geralmente se opõe) dos seus” (THOMPSON, 2011, p. 10). Portanto não se
trata de uma questão quantitativa sobre a quantidade de profissionais de

20
Abordei esse debate com maior profundidade em minha defesa de mestrado na qual discuti diversas questões a
respeito da categoria de classe social, entre elas heterogeneidade com base no historiador britânico Eric Hobsbawm.
90 | Diálogos com a Música Extrema

uma categoria terem a consciência de classe por serem da mesma catego-


ria e terem seu trabalho explorado na relação mais valor pelos donos dos
meios de produção. Essa seria uma análise estática que desconsidera que
a consciência de classe se forja nas lutas, reflexões e processos históricos e
não é inerente como o nascimento do sol.
Tocar músicas com letras políticas não torna um artista engajado21 e
tocar músicas sobre amor e outras questões cotidianas não fazem o artista
“alienado”22, isso inclusive já foi apresentado nesse texto pela fala do Felipe
Nizuma do BrainDeath. Mas as disputas históricas não passavam desper-
cebidas como se esses sujeitos fossem meros passivos da História, na
verdade ao olharmos para essas quatro bandas em comum tivemos duas
relações de tensão e conflito direto em seu tempo histórico.
Em especial a partir da ditadura civil-militar de 1964-1985 e dos epi-
sódios de Anthares e Chakal, inclusive o caso do pai de Korg ser um preso
político, e nos casos de 2000 e 2010 ter um engajamento social em decor-
rência de militância dos membros de Critical Fear e BrainDeath, que
inclusive culminou com filiação em partidos de esquerda bem ligados a
correntes marxistas. Em uma relação dialética os sujeitos, como fruto de
seu tempo, encontravam mecanismos de agir sobre essas circunstâncias
que lhes estavam postas fosse nos casos de militância externo à arte ou na
forma de artistas produzindo arte.

21
No thrash metal quem bem exprime esse caso é o Slayer. Com músicas bastante contestadoras, mas na posição
política de Tom Araya, o vocalista chileno, assume um papel extremamente conservador que em nada combina com
álbuns como Hell Awaits (1985) e God Hates us All (2001). Outro exemplo famoso é Alice Cooper, base para bandas
como Anthrax, Rage Against The Machine e até mesmo sendo referência para uma moça transsexual na qual Gilberto
Gil se baseou para escrever Edyth Cooper, mas o próprio Vicent Damon (o nome verdadeiro de Alice Cooper) já deu
inúmeras entrevistas de que não liga para questões político-sociais e que política deve passar longe da música, ainda
que ele mesmo seja considerado um músico politizado com algumas de suas músicas.
22
Uma banda que me surpreendeu, positivamente, nesse sentido foi o Asomvel da Inglaterra. Com seu heavy metal
bastante despretensioso musicalmente, ou como definem sem nenhum assunto específico em suas letras, os ingleses
se engajaram bastante na pauta do Black Lives Matter se assumindo antirracistas e antifascistas.
Fábio Alexandre Tardelli Filho | 91

Suponho que ninguém possa pensar, por tudo isso, que eu corrobore a ideia
de a formação da classe ser independente de determinações objetivas, nem
que eu sustente que classe possa ser definida como simples fenômeno cultural,
ou coisa semelhante. [...] A classe se delineia segundo o modo como homens e
mulheres vivem suas relações de produção e segundo a experiência de suas
situações determinadas, no interior do “conjunto de suas relações sociais”,
com a cultura e as expectativas a eles transmitidas e com base no modo pelo
qual se valeram dessas experiências em nível cultural. De tal sorte que, afinal,
nenhum modelo pode dar-nos aquilo que deveria ser a “verdadeira” formação
de classe em um certo “estágio” do processo. (THOMPSON, 2012, p. 277)

Finalizamos essa reflexão com as palavras de Perci do Critical Fear:

A música para mim é simplesmente o combustível da minha alma, sendo feita


na raça, com garra, com amor, está valendo e é por isso que o underground
sempre me encantou, é justamente nesse ambiente que temos música, uma
boa quantia de música executada na raça. Por pessoas que não estão ali por
pressão de um selo e afins, mas por curtir o que faz e por amor ao que faz. O
underground para mim é um espaço de camaradagem, onde o DIY acontece e
para mim, fazer um role, chamar bandas, divulgar e tentar fazer acontecer é
infinitamente mais importante que entrar numa van e ir ver uma banda
Gringa. (RESÍDUOS TÓXICOS, Entrevista com a banda Critical Fear thrash
metal!, 19 de março de 2012)

“Saideira”? Sigamos juntos, como na luta de classes!

Nos propusemos discutir a relação de consciência de classe em quatro


bandas que entrevistei ao longo dos anos de atividade com o web zine Re-
síduos Tóxicos com objetivo de compreender a forma como os artistas
traziam de suas movimentações externas à cena de metal, e também po-
deriam levar da cena a esses outros espaços, a sua consciência de classe na
forma de arte ou de posicionamentos como músicos.
92 | Diálogos com a Música Extrema

Percorremos um caminho entre o thrash dos anos 80 até seu revival


nos anos 2000, com duas bandas de cada contexto. E como método, notá-
vel não? O bom e velho materialismo histórico dialético focado em um
filósofo (Eagleton) e dois historiadores (Willians e E.P.Thompson) britâni-
cos que amplamente discutem arte, cultura e classes. Assim como Marx e
Badaró Mattos deram as caras nos ajudando em diversas discussões.
Ao longo dos anos como professor da escola pública estadual encon-
trei e desenvolvi projetos com arte musical, o metal sempre estava ali
naquela veia, mas foi com o rap que desenvolvi os trabalhos mais críticos
com arte chegando a revelar talentosos alunos que se desenvolveram a
ponto de se tornarem rappers da nossa região. A própria aluna que con-
tribui com o texto ao Resíduos nunca gostou de metal e essas músicas
extremas, e ela fala isso até hoje quando conversamos sobre música. Claro
que passei por alunos muito ligados ao emocore e funk, e nunca foi a mú-
sica em si que impediu a construção de uma visão social. Na verdade, salvo
as vezes que algum aluno se tornava banger pela proximidade ou admira-
ção para comigo ou mesmo pelas minhas camisetas “legais” a maioria nem
se ligava das dimensões político-sociais da música extrema, muitas vezes
era só algo passado de pai para filho (ou irmão mais velho, primo... enfim)
ou visual. E esse também era meu objetivo com esse texto, combater essa
visão paradigmática de que heavy metal é um estilo racista como alguns
embalados por algum material de blog e entrevistas aleatórias como Seu
Jorge, que por sinal tem precisado responder por seu apoio ao presidente
Bolsonaro (que vamos convir, é cercado de polêmicas com racismo), e
também não é, como muitos gostam de acreditar (e eu gostaria mesmo de
ser verdade isso), que o metal é “contestador por essência”.
De toda forma é muito gostoso ouvir bem alto um Kreator ou uma
Nervosa em uma van indo para uma greve de professores em São Paulo.
Que possamos seguir juntos na construção de um projeto de sociedade
Fábio Alexandre Tardelli Filho | 93

igualitário e derrubar as amarras do capitalismo, para nos emancipar e


caminharmos em toda essa imensa diversidade da classe trabalhadora
mundial! “Façamos por nós mesmos, juntos, como na luta de classes”.

Referências

CARTA AO POVO BRASILEIRO, 22 de junho 2004. < https://pt.org.br/ha-16-anos-lula-


lancava-a-carta-ao-povo-brasileiro/ >, Acessado em: 21 de maio de 2020.

CHRISTE, Ian. Heavy metal: a história completa. Trad. Milena Durante e Augusto Zantoz.
São Paulo: Arx, Saraiva, 2010.

EAGLETON, Terry. A ideia de cultura. Trad. Sandra Castello Branco; ver. tec. Cezar
Mortari. 2ª ed. São Paulo: Editora Unesp, 2011.

JAMES, C.L.R. Os jacobinos negros: Toussaint L’Ouverture e a revolução de São Domingos.


São Paulo: Boitempo, 2010.

MARQUES, Rosa Maria; MEDES, Áquilas. O governo Lula e a Contra-Reforma


previdenciária. São Paulo em Perspectiva, 18(3), p. 3-15, 2004.

MARX, Karl. Manifesto do partido comunista. Trad. Pietro Nassetti. São Paulo: Editora
Martin Claret, 2004.

__________. O 18 de brumário de Luís Bonaparte. Trad. e notas Nélio Schneider; prólogo


Herbert Marcuse. São Paulo: Boitempo, 2011.

MATTOS, Marcelo Badaró. A classe trabalhadora: de Marx ao nosso tempo. 1ª ed. São
Paulo: Boitempo, 2019.

PRASHAD, Vijay. Balas de Washington: Uma história da CIA, golpes e assassinatos. 1ª ed.
São Paulo: Editora Expressão Popular, 2020.
94 | Diálogos com a Música Extrema

THOMPSON, E. P. A formação da classe operária inglesa 1: a árvore da liberdade. Trad.


Denise Bottmann. São Paulo: Editora Paz e Terra, 2011.

__________. A peculiaridade dos ingleses e outros artigos. Org. Antonio Luigi Negro e
Sergio Silva. 2ª Ed. Campinhas-SP: Editora da Unicamp, 2012.

WILLIANS, Raymond. Palavras-chave: um vocabulário de cultura e sociedade. Trad.


Sandra Guardini Vasconcelos. São Paulo: Boitempo, 2007.

__________. Cultura e Materialismo. Trad. Adré Glaser. São Paulo: Editora Unesp, 2011.

Leis

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brasileiro.

Sites e entrevistas

Dilma assentou menos famílias que Lula e FHC; meta é 120mil até 2018, G1 <
http://g1.globo.com/politica/noticia/2015/03/dilma-assentou-menos-familias-que-
lula-e-fhc-meta-e-120-mil-ate-2018.html > Acessado em: 19 de maio de 2020.

Entrevista com a banda Anthares!, Resíduos Tóxicos <


http://residuotoxico.blogspot.com/2012/09/entrevista-com-banda-anthares.html
> Acessado em: 21 de maio de 2020.

Entrevista com a banda Chakal, lenda do Death metal brasileiro, Resíduos Tóxicos <
http://residuotoxico.blogspot.com/2011/12/entrevista-com-banda-chakal-lenda-
do.html > Acessado em: 21 de maio de 2020.

Entrevista com Felipe Nizuma (Urutu, Brain Death e Six & Rebels), Resíduos Tóxicos <
http://residuotoxico.blogspot.com/2013/06/entrevista-com-felipe-nizuma-
urutu.html > Acessado em: 23 de maio de 2020.
Fábio Alexandre Tardelli Filho | 95

Entrevista com a banda Critical Fear thrash metal!, Resíduos Tóxicos <
http://residuotoxico.blogspot.com/2012/03/entrevista-com-banda-critical-
fear.html > Acessado em: 23 de maio de 2020.

Revista

RODIE CREW, 60 grandes álbuns do metal brasileiro, ano 16, n° 172. Maio de 2013.

VEJA. São Paulo: outubro, ano 40, n. 43, 31 Out. 2007.

Letras de músicas

CCCP, música do álbum Conflicts da banda Critical Fear, 2011.

Respect Existence or Expect Resitance, música do álbum Scenarios of Brutality, da banda


Violator, 2013.
3

O Death Metal e a desnaturalização do


demoníaco sob a perspectiva do ethos discursivo

Lucas Martins Gama Khalil

I can see the light


I don't want to burn
Help me save my soul
Let me live

Your curse is not my fear


Demons within me hear
I will escape your wrath
666

Ao som de Possessed – “The Exorcist”


Do álbum “Seven Churches” (1985)
https://www.youtube.com/watch?v=2lnJxL9OcXI

A audição de uma canção de death metal, sobretudo por alguém não


familiarizado com esse gênero musical, comumente desencadeia impres-
sões que associam a sonoridade a uma espécie de materialização do
“demoníaco”, ou, melhor dizendo, do modo como a sociedade ocidental
representa imaginariamente o demoníaco. “Parece um monstro can-
tando”, “Você consegue entender alguma coisa?”, “Isso é coisa do
demônio!” são enunciados que todo fã de metal extremo provavelmente já
tenha ouvido, com uma ou outra variação.
Como fã de metal extremo e hardcore, não apenas ouvi comentários
como os apontados acima, mas também experienciei situações que iam
Lucas Martins Gama Khalil | 97

confirmando, de alguma forma, certas representações estereotipadas.


Lembro-me da primeira vez que ouvi a introdução da música Hell Awaits,
da banda de thrash metal Slayer... na verdade, precisei ouvir o restante da
canção alguns dias depois, já que, naquela época, entre o final da infância
e o início da adolescência, as vozes ao contrário e sobrepostas da introdu-
ção soavam como algo realmente “maligno” para mim;
comparativamente, era como assistir a um filme de terror, porém, sozinho
em um quarto (no caso dos filmes, o costume era assistir em família).
A questão da voz – distorcida, obscura, grave –, conforme se observa,
é central para o tipo de representação que se sustenta recorrentemente em
relação ao “demoníaco”, e isso já me inquietava desde a adolescência,
mesmo ainda sem um interesse propriamente científico. Algo que logo
percebi, intuitivamente, foi: a associação apontada no início deste pará-
grafo ultrapassava a condição de se ir ou não à igreja, de se seguir ou não
uma religião; ela se apresentava, praticamente, como “natural”, fator que
motiva, em parte, o título deste texto.
Ingressei na graduação em Letras devido ao interesse em literatura,
mas aos poucos minha atenção foi sendo direcionada à área dos estudos
linguísticos, na qual dei sequência em minha formação acadêmica. No
mestrado, eu já havia trabalhado com um tema que tinha relação com a
música: versões em português, produzidas por artistas “brega”, de canções
de rock originalmente cantadas em inglês. Porém, foi na elaboração de um
projeto de tese para cursar o doutorado em Linguística que recuperei todas
aquelas inquietações sobre a suposta “voz demoníaca” para, a partir de um
tratamento teórico específico, investigar certas questões linguísticas e dis-
cursivas no âmbito do death metal.
Na tese de doutorado, defendida em 2017, analisei a constituição, no
death metal, de um ethos discursivo pautado em um modo de enunciação
estereotipicamente “demoníaco”. Parti da hipótese, fundamental em
98 | Diálogos com a Música Extrema

Análise do Discurso, de que a relação entre os elementos linguísticos e os


sentidos por eles produzidos não é da mesma ordem que a relação que se
verificaria entre um item lexical e seu significado, de um ponto de vista
internalista, restrito ao funcionamento semântico do sistema linguístico.
Em outras palavras, é preciso investigar as condições sócio-históricas de
emergência dos discursos, procedimento que possibilita, ao analista do
discurso, demonstrar como determinados efeitos de sentido são produzi-
dos por e para sujeitos. Ao lado da análise propriamente discursiva, foi
necessário, no caso de minha pesquisa, desenvolver um estudo de base
fonética, visando à descrição articulatória e acústica da chamada “voz gu-
tural”, característica recorrente do death metal, tendo em vista que essa
voz se apresentava como elemento crucial da semântica discursiva em
análise.
Este texto, que propõe apresentar algumas questões relacionadas ao
death metal e às possibilidades de análise de seu funcionamento discur-
sivo, será composto pelas seguintes seções: na primeira, apresentarei
aspectos teóricos concernentes aos estudos linguísticos e à Análise do Dis-
curso, especificamente acerca das reflexões sobre a produção de sentido;
na seção posterior, alguns apontamentos analíticos serão realizados, con-
siderando, sobretudo, os conceitos de ethos discursivo e semântica global;
e, na última seção, o espaço será reservado para uma breve reflexão que
recupere a ideia de “desnaturalização”, presente no título.

Da língua ao discurso

Na seção anterior, mencionei brevemente minha entrada e formação


acadêmica na área dos estudos linguísticos. Como os leitores potenciais
deste texto são, provavelmente, sujeitos interessados no metal extremo,
mas não necessariamente pesquisadores da área em que minha pesquisa
Lucas Martins Gama Khalil | 99

se inscreve, penso que seja importante traçar um panorama geral, mas


não exaustivo, e introdutório acerca da Linguística, tendo em vista que se
trata de um campo bastante amplo e heterogêneo. O título da seção, “da
língua ao discurso”, deve-se ao fato de a teoria da Análise do Discurso, no
final da década de 1960, emergir justamente questionando certos posicio-
namentos sobre a língua cristalizados na Linguística.
Embora haja estudos sobre a linguagem conhecidos desde a Antigui-
dade na Grécia e na Índia, a chamada Linguística Moderna tem como
marco fundador a publicação da obra “Curso de Linguística Geral”, do pro-
fessor suíço Ferdinand de Saussure, em 1916. Nela, o linguista propõe uma
área de estudos que reivindica uma forte autonomia, tendo em vista que a
língua, conforme Saussure (1972), sempre vinha sendo estudada em fun-
ção de outra coisa (da história, da cultura, da literatura etc.). Para a
Linguística saussureana, a língua deve ser estudada como um sistema au-
tônomo, que tem uma ordem própria, e o fundamental desse sistema são
suas correlações internas (provém da noção de sistema o termo Estrutu-
ralismo, corrente epistemológica que acabou não se restringindo à
Linguística), e não propriamente o que cada indivíduo, com suas particu-
laridades, faz a partir do sistema linguístico.
A teoria estruturalista de Saussure tem papel fundamental no desen-
volvimento dessa ciência, sobretudo no que concerne à Linguística
descritiva. Considerar a língua como um sistema é não somente opor os
signos em relações constitutivas de valor, mas possibilitar a visualização
de operações de seleção e combinação que funcionam em variados níveis,
como na fonologia e na sintaxe. Com a constituição dessa base teórica,
muitos foram os impulsos, por exemplo, para a descrição de línguas ame-
ríndias, sobretudo nos Estados Unidos, onde a Linguística teve diversos
desdobramentos teóricos ao longo do século XX, dentre os quais se des-
taca, a partir de meados da década de 1950, o Gerativismo, iniciado por
100 | Diálogos com a Música Extrema

Noam Chomsky. A teoria gerativa é significativamente diferente da teoria


estruturalista; passa-se a estudar as operações mentais que o falante rea-
liza ao produzir, por exemplo, uma sentença; em outras palavras, trata-se
de explicar as regras que constituem o conhecimento intuitivo do falante.
No entanto, um ponto de aproximação entre os dois quadros teóricos men-
cionados é o de que, em ambos, o uso efetivo da língua em situações
concretas de interação (a parole saussureana e o desempenho, no Gerati-
vismo) fica em segundo plano, preterido ou pela noção de sistema, no
primeiro caso, ou pela noção de competência, no segundo.
Em Linguística, pode-se afirmar que o fato de Saussure requerer a
língua como objeto autônomo foi crucial para que essa ciência pudesse se
estabelecer. Entretanto, principalmente da metade do século XX até os dias
atuais, vários são os desenvolvimentos teóricos que, ora questionam a au-
tonomia do sistema linguístico, ora pretendem integrar um
funcionamento formal da língua a elementos exteriores a ela. O Funciona-
lismo, por exemplo, propõe como objeto a língua em uso, subordinando,
de certa forma, o sistema linguístico à diversidade de funções sociocomu-
nicativas. A Sociolinguística Variacionista, por sua vez, coloca em cena a
heterogeneidade de falantes e grupos sociais (faixa etária, classe social, gê-
nero, região etc.), associando-a a regularidades de uso linguístico. Os
estudos da enunciação, como os de Émile Benveniste, estudam a produção
enunciativa a partir do eu-aqui-agora implicados no ato de colocar a língua
em funcionamento.
Diferentemente das perspectivas teóricas mencionadas no parágrafo
anterior, a Análise do Discurso não surge propriamente como “teoria lin-
guística”, mas como uma abordagem transdisciplinar que, para se
constituir, necessita romper com a Linguística ora praticada em alguns de
seus fundamentos. Não é consenso dizer que a Análise do Discurso esteja
“dentro” dos estudos linguísticos, mas, principalmente no Brasil, são
Lucas Martins Gama Khalil | 101

majoritariamente pesquisadores em Linguística que a desenvolvem; afi-


nal, mesmo que o objeto seja o discurso, propõe-se que ele seja estudado
a partir de sua materialização na língua.
A Análise do Discurso de corrente francesa foi iniciada por Michel
Pêcheux no final da década de 1960. Vinculando a teoria do discurso a uma
tríade – a Linguística, o marxismo e a psicanálise –, Pêcheux sustenta a
tese de uma autonomia relativa da língua: não se trata mais do falante que
se apropria do sistema linguístico e dispõe das possibilidades de seleção e
combinação que esse sistema engendra; no lugar, tem-se um sujeito (pa-
lavra que remete ao assujeitamento ideológico) que enuncia sempre a
partir de restrições relativas às condições sócio-históricas de produção dos
discursos. Esse sujeito não é nem uma figura individual, o falante em suas
particularidades e intenções, nem o falante-ideal, instância que se relacio-
naria a certa universalidade do sistema.
O questionamento à autonomia do sistema linguístico recai prepon-
derantemente sobre o estudo da significação. Para além de uma teoria da
interpretação, a Análise do Discurso se constitui, nessa perspectiva, como
uma semântica do discurso; ela se propõe a investigar como determinados
efeitos de sentido são possíveis em dada produção discursiva. Fala-se em
“efeitos de sentido”, e não de significado, justamente porque não se consi-
dera suficiente, na Análise do Discurso, estender para a semântica um
funcionamento de ordem estritamente sistemática, aos moldes do que se
observaria, de um ponto de vista estrutural, na fonologia, na morfologia e
na sintaxe. O processo de significação, portanto, não pode ser concebido
integralmente como resultado da conjunção e oposição de certos semas,
unidades semânticas mínimas, de forma análoga a como um fonema se
opõe a outro por relações binárias (surdo/sonoro, por exemplo). Se a pro-
dução de sentido é regular e regrada, isso se deve à atuação de uma
102 | Diálogos com a Música Extrema

exterioridade à língua, não como mero pano de fundo, mas uma exterio-
ridade sócio-histórica constitutiva de toda produção enunciativa.
A Análise do Discurso é uma área bastante ampla e, atualmente, abor-
dagens teóricas diversas identificam-se a essa denominação disciplinar.
Assim, o que fizemos nos parágrafos acima foi uma apresentação bastante
sintética, sem pretender ser completa. Como, em minha pesquisa de dou-
torado, fundamentei-me especificamente em um teórico chamado
Dominique Maingueneau, dedico a parte final desta seção para apresentar,
também brevemente, alguns desenvolvimentos teóricos que constituem os
estudos desse autor e que foram importantes para que eu pudesse analisar
o discurso do death metal.
Maingueneau é um analista de discurso com uma extensa, e ainda
ativa, produção na área. Em uma de suas principais obras, Gênese dos Dis-
cursos (2008 [1984]), ele apresenta sete hipóteses que direcionam
metodologicamente suas pesquisas. Em outras obras, algumas delas mais
recentes, o autor tem tratado de variados temas e questões: o discurso li-
terário, a hipergenericidade, o ethos discursivo, as cenas de enunciação, o
discurso pornográfico, a enunciação aforizante etc.
Dentre as sete hipóteses referidas no parágrafo anterior, abordarei
brevemente apenas duas delas, devido à limitação espacial, tendo em vista
que são as mais pertinentes para que a exposição propriamente dita da
análise que fiz sobre o death metal torne-se mais palpável. São elas a pri-
meira e a terceira hipóteses propostas em Gênese dos Discursos. Conforme
a primeira, o interdiscurso tem precedência sobre o discurso. Em outras
palavras, esse primado do interdiscurso faz com que a unidade pertinente
de análise não seja um discurso em suas relações internas, mas um espaço
de trocas entre discursos de um mesmo campo (e tal espaço só se constitui
a partir de uma problemática de pesquisa levantada pelo analista). É a re-
lação interdiscursiva, sendo assim, que estrutura a identidade semântica
Lucas Martins Gama Khalil | 103

de um discurso, na medida em que um posicionamento discursivo, para


se constituir, explora sistematicamente dados simulacros que sustentam
sua relação com o outro. A terceira hipótese, por sua vez, propõe a exis-
tência de um sistema de restrições semânticas globais que funciona em
todos os planos da produção enunciativa vinculada a um posicionamento.
Essa semântica global (delineada por Maingueneau a partir de semas rei-
vindicados e rejeitados) perpassaria elementos diversos do discurso, tais
como: a seleção lexical, com uma específica exploração semântica; a rede
de relações intertextuais legítima ao posicionamento; as regularidades de
ordem sintática; os estatutos, produzidos discursivamente, de enunciador
e enunciatário; uma dêixis enunciativo-discursiva; o modo de enunciação,
ou “tom” reivindicado por certo discurso; as formas de coesão/construção
dos textos; etc. Maingueneau (2008, p. 22) insiste no tema da semântica
global a fim de “[...] libertar-nos de uma problemática do signo, ou mesmo
da sentença, para apreender o dinamismo da ‘significância’ que domina
toda a discursividade: o enunciado, mas também a enunciação, e mesmo
além dela”.
Em Gênese dos Discursos, Maingueneau menciona o modo de enun-
ciação como um dos planos em que age a semântica global e, na exposição
que o teórico empreende, gera-se o embrião daquilo que viria a ser tema-
tizado mais a fundo por ele a partir da década de 1990: o ethos discursivo.
A exploração desse conceito se deve à compreensão de que, ao produzir
um discurso, todo enunciador, a partir do modo como enuncia, suscita a
constituição de uma imagem de si. A problemática do ethos não é uma
discussão nova, tampouco exclusiva da Análise do Discurso; trata-se de
uma noção que ganha destaque na Retórica aristotélica e que se faz pre-
sente em diversas abordagens relativamente mais recentes, como a
Pragmática, a Nova Retórica e a Semântica Argumentativa. O diferencial
da perspectiva discursiva, porém, é considerar a imagem de enunciador
104 | Diálogos com a Música Extrema

dentro de um quadro fortemente marcado pelo papel das coerções sócio-


históricas que definem a identidade dos discursos. Além de ultrapassar a
barreira entre o oral e o escrito (já que mesmo um texto escrito teria uma
“voz”), a abordagem discursiva do ethos, como não poderia deixar de ser,
fundamenta-se na ideia de um sujeito que, com a ilusão de um controle
absoluto do que diz e significa, sempre enuncia a partir das restrições de
dado posicionamento.
Para que um determinado ethos seja eficaz, isto é, legítimo no âmbito
do discurso que o sustenta, é necessário que a imagem de enunciador se
ancore em determinadas representações cristalizadas que, em dada cul-
tura, “façam sentido”. É por isso que pesquisadores como Ruth Amossy
(2013) e o próprio Maingueneau (2011; 2013) ressaltam a relação indisso-
ciável entre ethos e estereótipo. Em minha pesquisa de doutorado,
particularmente, tratou-se de um ponto crucial para o desenvolvimento
do estudo, pois minha hipótese acerca de um suposto ethos demoníaco
relativo ao modo de enunciação do death metal não poderia deixar de de-
mandar uma investigação sobre a construção estereotípica do demoníaco.

Death metal: uma análise do ethos discursivo

O olhar que eu havia lançado para o death metal, logo no início de


minha pesquisa de doutorado, focalizava um elemento específico: a voz
conhecida como “gutural”. Levando em consideração que há, no sistema
fonológico de algumas línguas naturais, consoantes também denominadas
como “guturais”, surgiu a necessidade de definir o que seria a tal “voz gu-
tural”. Nessa etapa, tratou-se de um estudo de cunho mais descritivo, na
medida em que o objetivo foi caracterizar, com base nas fonéticas acústica
e articulatória, os elementos básicos de uma qualidade de voz (LAVER,
1980) específica.
Lucas Martins Gama Khalil | 105

Neste artigo, minha intenção principal é alcançar a análise do ethos


discursivo e, por isso, não me demorarei muito na explanação sobre a ca-
racterização da qualidade de voz; no entanto, descrevo a seguir,
sinteticamente, algumas das características da qualidade de voz “gutural”.
Para a análise acústica, utilizei o programa Praat, desenvolvido por Paul
Boersma e David Weenink, e gerei os espectrogramas a partir de arquivos
de áudio com vocais isolados da banda Cannibal Corpse. Em comparação
com gravações dos mesmos segmentos com voz modal, observei, além de
diversas irregularidades nas formas de onda e na constituição dos forman-
tes, um elemento que acaba sendo definidor do aspecto ruidoso da voz
gutural: as vogais assemelham-se, no espectrograma, a segmentos fricati-
vos, que, a princípio, aplicar-se-iam a sons consonantais. Deve-se ressaltar
que, do ponto de vista articulatório, uma vogal é assim chamada por ser
um som em que a passagem de ar ocorre sem obstrução (o que define a
diferença entre as vogais é uma série de fatores, como a altura da língua,
seu recuo ou avanço e o arredondamento dos lábios). Na prática, portanto,
uma vogal produzida pela voz gutural acaba, de certa forma, deixando de
se comportar como vogal, na medida em que há algum grau de obstrução,
e, nesse caso, fricção, na passagem do ar. A partir de outros estudos
(ECKERS et al., 2009; SMIALEK et al., 2012; GICK et al., 2004), verifiquei
que a fricção geradora do efeito ruidoso dos segmentos na voz gutural está
relacionada à vibração das pregas ariepiglóticas e das chamadas falsas cor-
das (ventriculares). Complementarmente, observei os próprios vocalistas,
ou discorrendo metalinguisticamente sobre a voz gutural, ou mesmo em
vídeos cantando, considerando-se as configurações labiais, por exemplo.
Pode-se verificar, por meio desse tipo de observação, uma recorrente pro-
trusão labial, com constrição horizontal e expansão vertical, de forma que
mesmo as vogais não arredondadas “ganham” uma feição de arredonda-
mento. Atuam, junto à configuração labial, o recuo da língua e o eventual
106 | Diálogos com a Música Extrema

encurvamento, que intensificam o aspecto distorcido ao resultar em cons-


trições na região da faringe.
As questões apontadas no parágrafo anterior são objeto de estudo
para um foneticista. Colocando-me agora no lugar de analista de discurso,
são diferentes questões de pesquisa que emergem, sempre relacionadas à
produção de (efeitos de) sentido. Conforme pontuamos na seção anterior,
passa-se do conceito de significado, proveniente de uma Linguística for-
mal, à problemática da circunscrição sócio-histórica dos enunciados e das
condições em que eles produzem determinados sentidos. Nesse sentido,
pude, de início, propor a seguinte questão: como a voz gutural produz,
recorrentemente, o sentido de uma enunciação “demoníaca”? Um ele-
mento de linguagem, neste caso, a voz, não pode ser considerado
isoladamente, mas sim como constituinte da identidade de um discurso (o
death metal enquanto posicionamento), e, por isso, logo foi preciso que eu
concebesse como objeto, mais amplamente, o death metal, não deixando
de reconhecer a voz como um dos elementos representativos, e sintetiza-
dores, de certa forma, da semântica global desse discurso.
Na perspectiva do ethos discursivo, em conformidade com os estudos
de Maingueneau, afirmar que um modo de enunciação soa “demoníaco”
demanda a investigação da relação que essa imagem de enunciador esta-
belece com determinado estereótipo. Isso quer dizer que o ethos é
produzido e legitimado não apenas a partir de determinada configuração
linguística e enunciativa, mas, sobretudo, considerando-se a forma como
os elementos da linguagem ativam certas representações prévias, sempre
historicamente circunscritas. A voz gutural, em seu aspecto distorcido e
obscuro, pode vir a representar uma enunciação diabólica, mas desde que
vinculada a uma representação estereotípica que a sustente.
Dentre as características da voz gutural, observei que a ininteligibili-
dade cumpria um papel fundamental na ativação do estereótipo em
Lucas Martins Gama Khalil | 107

questão. De fato, sobretudo para os ouvintes não acostumados com o me-


tal extremo, as letras são pouco ou nada compreensíveis, o que gera a
possível interpretação de que as vozes sejam gritos ou urros inarticulados.
Um paralelo com as representações cinematográficas/televisivas do demô-
nio ou de criaturas demoníacas (incluindo seres possuídos) ajuda a
demonstrar a recorrência ao aspecto da ininteligibilidade. Os recursos são
variados, mas, em maior ou menor grau, perpassam uma enunciação afe-
tada por algo que a deforma: vozes extremamente graves e distorcidas,
gravações ao contrário, falas em línguas desconhecidas, sobreposição de
diferentes vozes etc. As características são tão regulares que a impressão
gerada é a de que o Diabo tem, sim, uma “voz” reconhecida, quer se acre-
dite nele ou não.
Qual seria, então, a relação entre a ininteligibilidade (ou da gama de
recursos que atuam de alguma forma em direção a uma enunciação menos
inteligível) e a percepção do aspecto demoníaco? Com essa questão em
mente, comecei a pesquisar diversos textos que podem ter contribuído
para que a relação supracitada fosse possível em nossa cultura; dentre eles,
a Bíblia, na qual estão presentes algumas das representações mais difun-
didas do demoníaco. Trago aqui, devido às limitações de espaço, alguns
poucos, mas representativos, exemplos desse processo de constituição; ou-
tros podem ser encontrados em Khalil (2018), obra em que constam os
resultados de minha pesquisa de doutorado.
Nos textos doutrinários, como a Bíblia, pode-se “ouvir” uma voz de-
moníaca não por meio, apenas, da representação do Diabo propriamente
dita. As menções à palavra divina são igualmente indiciadoras, enquanto
contraparte constitutiva do demoníaco, bem como todas as passagens em
que se expressa o reconhecimento de uma voz, ou de uma língua, que gui-
aria aqueles que se desviam do caminho de Deus. Em relação à palavra do
Senhor, ela é “pura” (2 Sm. 22:31), “instrui o simples” (Sl. 18:8-9), nela
108 | Diálogos com a Música Extrema

“nada há de tortuoso”, é clara e reta para os que a entendem (Pv. 8:6-9).


Por outro lado, as referências aos caminhos desviantes passam pelas “ar-
madilhas de tua língua” (Ec. 5:16), por uma “língua dúbia” (Ec. 5:17), pelas
“ciladas da língua injusta” (Ec. 51:3), pelos “rugidos de animais ferozes”
(Ec. 51:3), pela recusa da transmissão da Palavra a um povo “de linguagem
incompreensível, de linguagem bárbara” (Ez. 2:4-5). Uma das passagens
mais emblemáticas, no que diz respeito ao contraste entre a transparência
divina e a obscuridade/ininteligibilidade demoníaca, encontra-se na Pri-
meira Epístola aos Coríntios (14:11): “Se eu ignorar o sentido da voz, serei
bárbaro para aquele a quem falo, e o que fala será bárbaro para mim”.
O que emerge na representação discursiva da fala divina, como se
observa, é um ideal de transparência e, por consequência, o opositor é
sempre marcado pelo traço da obscuridade, de diferentes formas possí-
veis: nas construções ambíguas, nas línguas incompreensíveis, nas vozes
animalescas. As representações do demoníaco no cinema, por exemplo,
reverberam o estereótipo sobre o qual discorri brevemente acima. Um
filme clássico, como O Exorcista, de 1973, com as vozes heterogêneas, dis-
torcidas e sobrepostas da personagem possuída, é bastante ilustrativo, e,
devido à grande repercussão, não apenas se vale do estereótipo para “fazer
sentido”, como também o alimenta, fazendo-o circular.
Voltando ao âmbito da música, a afirmação de que “rock é coisa do
capeta” parece não depender necessariamente da voz gutural, embora ela
possa reforçar tal representação, ou de letras que contenham uma temá-
tica considerada satânica. Isso ocorre, em parte, pelo sentido que
eventualmente se atribui ao ruído, em oposição a uma “limpidez” sonora.
O pregador inglês John Blanchard, em seu livro Rock in... Igreja!?, ao de-
fender a impossibilidade de se conciliar a música de louvor com a
sonoridade do rock, declara concordância com a fala de músicos do cenário
evangélico, por ele entrevistados: “O maior problema da música rock é o
Lucas Martins Gama Khalil | 109

nível de ruído. As palavras são frequentemente inaudíveis, e mesmo que


fossem audíveis, as verdades nelas contidas seriam fatalmente negligenci-
adas” (BLANCHARD, 1993, p. 22). Novamente, o que se coloca em cena é
a transparência da mensagem, e o ruído atua de forma a corrompê-la.
Deve-se ressaltar que as referências a artistas de rock, na obra de Blan-
chard, não são relacionadas ao death metal (a banda mais “pesada”, por
assim dizer, mencionada no livro é o Judas Priest), o que nos faz imaginar
o que o pregador diria se ouvisse as bandas que recorrem à voz gutural.
Quando se associa o death metal e o demoníaco, retornando agora o
objeto de minha pesquisa, uma primeira aproximação poderia supor, sim-
plesmente, que a relação se dá por meio do que é abordado nas letras. De
fato, algumas das principais bandas do gênero, como Possessed, Morbid
Angel e Deicide, se valem recorrentemente de temáticas anticristãs e/ou
satanistas. No entanto, a morte, como não poderia deixar de ser, vide o
nome do gênero, é um tema constante, e muitas das bandas apostam na
abordagem da morte e de temas afins sem necessariamente se referir ao
Diabo; vale citar a banda Cannibal Corpse, que retrata a morte a partir de
uma exposição extremamente explícita da violência. Não se pode resumir
o escopo temático do death metal à morte e ao demônio, certamente; há
bandas que desenvolvem letras sobre conflitos psicológicos, questões soci-
ais, existenciais..., porém, há algo que, de alguma maneira, confere
identidade às bandas do gênero no que diz respeito ao que chamei de ethos
“demoníaco”. E não se trata, como visto, de uma questão meramente te-
mática (simplesmente, “falar do demônio”). O ethos se refere menos ao
“conteúdo” do enunciado e mais ao modo de enunciação, modo este que
se inscreve em certas condições sócio-históricas que legitimam seu funci-
onamento. Ademais, com “demoníaco” não interpretamos um mero
equivalente do adjunto adnominal “do demônio”; pode-se apreender aí um
sentido mais amplo, relacionado a um conjunto de representações sobre o
110 | Diálogos com a Música Extrema

horrendo, o monstruoso, o animalesco, o obsceno. Uma face esmagada por


um martelo, uma ejaculação de sangue ou uma infecção que leva ao apo-
drecimento da pele às entranhas soam, nessa linha de raciocínio,
“demoníacas”1.
Vejamos o caso da banda inglesa Carcass, que, sobretudo, em seus
primeiros álbuns, traz, de modo bem particular, um léxico característico
de áreas como a medicina e a anatomia. A letra de Manifestation of Verru-
cose Urethra, canção de pouco mais de um minuto do álbum Reek of
Putrefaction (1988), contém os versos a seguir: “Bloody hypertrophy of
papillae spewing urethritis like urticarial/ Septicaemia filled dermis scor-
ched by acidic uric nocturia// Verrucose urethra/ Glutenous condyloma//
Ureterocoeles excreting warm, decaying, cystic pemphigus/ Gnawing at
flesh with rancid uraturial lust” 2. O tema não é o demônio stricto sensu,
por assim dizer, mas um processo infeccioso na uretra. Porém, o mais re-
levante, aqui, é a forma aparentemente técnica que essa enunciação
reivindica. Qual é o possível efeito de sentido desse modo técnico (e in-
compreensível para os leigos) de enunciar? O médico ocupa, em nossa
sociedade, a posição daquele que trata as doenças, mas não só: ele recor-
rentemente esclarece aos pacientes o estado e a gravidade da doença, em
termos relativamente acessíveis. O enunciador da canção, ao contrário,
opta por preservar uma barreira de interpretabilidade que produz uma
sensação de inépcia, na medida em que a indecifrabilidade das palavras
tem o potencial de provocar no enunciatário mais o pavor diante da situ-
ação aparentemente grave do que a compreensão de um estado de saúde.
O “demoníaco” da imagem de enunciador está, assim, no repulsivo, no

1
Faz-se alusão, respectivamente, a canções das bandas Cannibal Corpse (Hammer Smashed Face e I Cum Blood) e
Obituary (Infected).
2
Tradução nossa: Hipertrofia sangrenta das papilas vomitando uretrite como urticária/ Septicemia preenche a
derme queimada pela noctúria úrica ácida// Uretra verrucosa/ Condiloma glutinoso// Ureterocele excretando pên-
figos quentes, apodrecidos e císticos/ Corroendo na carne com rançoso desejo uraturial.
Lucas Martins Gama Khalil | 111

horrífico e, confirmando aquilo que apontamos acerca do estereótipo, no


traço de obscuridade.
Depois de tratar de uma explicitude biológica que soa repugnante e
violenta, podemos mencionar uma violência de caráter mais social, recor-
rente no death metal. A banda norte-americana Cannibal Corpse costuma
abordar temas nos quais a repugnância é produzida a partir da exposição
de práticas condenáveis e, ao mesmo tempo, presentes no cotidiano de
uma sociedade, como o assassinato e o estupro, por exemplo. Novamente,
o que focalizamos não é meramente o tema, mas, de forma mais ampla, os
modos de enunciar e seus efeitos para o discurso. A canção Shredded Hu-
mans, do álbum Eaten Back to Life (1990), por exemplo, tematiza a
violência no trânsito: trata-se da descrição de um acidente de carro que
vitima um casal e seus três filhos. Até aí, nada tão distante do que poderia
ser objeto de notícia em meios jornalísticos. A diferença é que o enunciador
da canção do Cannibal Corpse não nos poupa de nenhum detalhe. Sua des-
crição extremamente minuciosa produz a impressão de que ele observa e
relata a cena em câmera lenta, fazendo o enunciatário acompanhá-lo do
momento do acidente ao estado dos corpos pós-tragédia. Nas páginas de
um jornal, podemos encontrar certos detalhes de um acidente automobi-
lístico (o período do dia, a localização, as prováveis causas etc.), mas não é
permitido ao jornalista enunciar, ao menos de forma explícita, que uma
vítima foi cortada ao meio, que outra teve as pernas esmagadas, ou que
ficou empalada em um sinal de trânsito, como ocorre na canção mencio-
nada. Este é um dos exemplos que ajudam a demonstrar que o death metal
transforma em motivo central de suas cenografias o que é interdito, as
produções enunciativas que, conforme Maingueneau (2010), teriam na so-
ciedade um estatuto de discurso atópico (noção desenvolvida pelo teórico
na obra Discurso Pornográfico). É a visibilização da violência explícita,
nesse caso, que soa “demoníaca”.
112 | Diálogos com a Música Extrema

No death metal, há, por exemplo, canções em que o enunciador en-


carna a figura de um psicopata e descreve, em primeira pessoa, seus
crimes e as sensações deles decorrentes. Trata-se de um objeto privilegi-
ado para o gênero, na medida em que representa o demoníaco como faceta
humana, e não necessariamente enquanto fenômeno sobrenatural. Um
paralelo pode ser traçado com a canção Candiru (2016), da banda holan-
desa Asphyx. O candiru é um peixe típico da região amazônica; à primeira
vista, uma escolha excêntrica, mas não se soubermos que, sendo atraído
pela urina, ele pode penetrar na uretra ou no reto e causar hemorragias.
Tanto o psicopata quanto o candiru não são personagens, por assim dizer,
em evidência, eles esgueiram-se pelos interstícios da sociedade e da natu-
reza, respectivamente. Porém, não são raros ou irreais e, quando notados,
representam uma grande ameaça.
Esse breve percurso constituído de referências a algumas bandas e
canções de death metal, mais do que demonstrar uma recorrência temá-
tica, possibilita que façamos as devidas associações com o que
Maingueneau (2008) chama de semântica global. Para o autor, uma for-
mação discursiva tem a sua identidade pautada em restrições semânticas
que regulam os variados elementos da produção enunciativa. Não se trata,
isoladamente, da seleção temática, como vimos, mas de certos modos de
enunciação que vão dando a esses temas os contornos peculiares na pro-
dução de determinados sentidos. Da mesma forma, não se pode olhar
apenas para a seleção lexical, mas também para certas regularidades sin-
táticas, para as formatações textuais que cada posicionamento privilegia,
para as relações intertextuais que se legitimam no interior de um discurso,
dentre outros elementos.
Outra noção proposta por Maingueneau (2008), relacionada à se-
mântica global, é a de prática discursiva como prática intersemiótica. As
mesmas restrições semânticas que regem as produções verbais de um
Lucas Martins Gama Khalil | 113

discurso podem ser identificadas, com as devidas especificidades, em ou-


tras semioses vinculadas à prática discursiva de um dado posicionamento.
Tomemos, por exemplo, a “obscuridade” como sema reivindicado pelo sis-
tema de restrições do death metal; é possível identificar seu
funcionamento a partir da voz gutural, vinculada à produção verbal, e o
efeito de ininteligibilidade que ela produz, mas se observa, também, que
algo de análogo ocorre com os logotipos das bandas, sobretudo o design
das letras (e não a expressão verbal em si). Embora relativamente mais
“compreensíveis”, à primeira vista, que os logos de bandas de black metal,
os traços, de variadas formas, rompem com uma certa nitidez dos grafe-
mas. Logotipos de bandas como Unleashed e Cryptopsy são
representativos em relação a esse aspecto. Outrossim, se considerarmos a
agressividade como outro sema reivindicado, sendo observável através das
letras das canções e dos modos de enunciação, temos também nos logoti-
pos uma outra correspondência pertinente: a regularidade de formas
pontiagudas, que simulam objetos cortantes (Obituary), bem como de tra-
ços que remetem a fogo (Deicide) e sangue (Autopsy).
Se, no parágrafo anterior, fizemos algumas considerações sobre re-
cursos gráficos que compõem a representação imagética das bandas,
podemos ampliar essa reflexão acerca do caráter intersemiótico da prática
discursiva ao mencionar, também, questões relacionadas à sonoridade que
caracteriza o death metal. Assim como a voz, em seu aspecto distorcido, os
instrumentos de corda, sobretudo as guitarras, valem-se de efeitos de dis-
torção em um grau que, para ouvidos pouco acostumados ao gênero,
fazem as canções soarem como “barulho sem sentido”. Isso é ainda refor-
çado, por exemplo, por técnicas de bateria como o blast-beat, que integram
a suposta aparência caótica da sonoridade.
A mise-en-scène dos espetáculos musicais também pode ser mencio-
nada como um dos elementos integrantes da prática discursiva em
114 | Diálogos com a Música Extrema

questão, na medida em que ajuda a constituir o modo de enunciação, des-


locando o enfoque do chamado “conteúdo” do enunciado para a imagem
de enunciador que se produz a partir de como este enuncia. No que con-
cerne às apresentações ao vivo, é prototípica a imagem do vocalista
cantando (ou urrando, para certos ouvidos), com os cabelos escondendo
parte do rosto, e do baixista e dos guitarristas tocando seus instrumentos
ao mesmo tempo em que balançam a cabeça em um movimento conhecido
como headbanging ou bate-cabeça. Em conformidade com a noção de se-
mântica global, é possível identificar também nessas outras materialidades
traços que constituiriam o ethos do death metal. Se a voz soa “demoníaca”
por meio de seu caráter obscuro, nada mais alinhado que a obliteração
parcial ou total da face de quem canta; da mesma forma, se a voz asseme-
lha-se a urros animalescos, a movimentação aparentemente irracional (ao
menos para quem vê “de fora”) das cabeças reforça tal aspecto. A prática
discursiva é, portanto, uma exploração sistemática de um sistema de res-
trições semânticas, e não um mero conjunto de elementos de diversas
naturezas que, por acaso, se encontram.
Na seção teórica deste artigo, apresentamos introdutoriamente a no-
ção de interdiscurso, que, em Maingueneau (2008), adquire um
direcionamento metodológico que demanda uma constante contraposição
do posicionamento em estudo com o seu “Outro constitutivo”. De forma
bastante sintética, entende-se que um posicionamento, dentro de um
campo discursivo determinado – o político, o religioso, o filosófico... e,
neste caso, o artístico-musical –, sempre tem a necessidade de estabelecer
um espaço de trocas no qual, ao distinguir-se de seu Outro, vise à garantia
da legitimidade no modo como pretende preencher dada função social (afi-
nal, no campo discursivo, os diferentes posicionamentos entram em
disputa justamente devido ao fato de reivindicarem o mesmo papel na so-
ciedade). Ao iniciar minha pesquisa sobre o death metal e o ethos
Lucas Martins Gama Khalil | 115

“demoníaco”, levantei a hipótese de que o Outro, no caso em questão, seria


o discurso cristão, o que constituía um problema metodológico, tendo em
vista que eu estava propondo opor o sistema de restrições semânticas de
um posicionamento do campo artístico-musical a um posicionamento (de
forma bastante genérica, inclusive) do campo religioso. De fato, a afronta
ao Cristianismo constitui parte significativa das temáticas abordadas pelo
death metal, mas, aprofundando-me na teorização de Maingueneau
(2008) acerca do interdiscurso, fui percebendo paulatinamente que o Ou-
tro do death metal seria, na verdade, uma construção discursiva de dado
lugar no próprio campo artístico-musical: o mainstream. Dar visibilidade
ao que a sociedade encara como interdito é a principal maneira de opor-
se a esse Outro; nesse sentido, não é apenas o ritual satânico que garante
espaço no gênero, mas também o relato de um psicopata, a exposição de
vísceras, a violência explícita e abordagens afins. Para que eu pudesse tra-
çar as relações interdiscursivas pertinentes, foi necessário ir além das
letras e das capas dos álbuns, e analisar outras produções que também
constituem o posicionamento em questão, como os recados das bandas
nos encartes3 ou certas declarações dos integrantes em documentários4 e
outras publicações5.
Da mesma forma que se pode imaginar, no campo artístico-musical,
as canções como produções básicas de um posicionamento (e já vimos que
há outras igualmente importantes), pode-se pensar, a princípio, que os
enunciadores são, simplesmente, os músicos. Certamente, eles são enun-
ciadores com estatuto privilegiado dentre desse campo discursivo, mas

3
“Um Completo Foda-se a todas as pessoas que nos rotulam como rockstars ou dizem que nos vendemos” (encarte
do álbum Harmony Corruption, da banda Napalm Death).
4
“Não é algo que eu faça pela imagem, pelo dinheiro ou por promoção, é tudo pessoal” (David Vincent, vocalista e
baixista da banda Morbid Angel, no documentário 666 at Calling Death)
5
“Aquilo foi uma parte de seu charme: seu espírito rebelde, um dedo do meio na cara do mainstream” (Karl Sanders,
da banda Nile, sobre a aparição da banda Cannibal Corpse no filme Ace Ventura). Retirado de Purcell (2003, p. 27).
116 | Diálogos com a Música Extrema

podemos considerar, de modo mais amplo, toda uma comunidade discur-


siva, que inclui, por exemplo, o modo como os fãs incorporam o ethos
característico do posicionamento. No que concerne à relação interdiscur-
siva com o mainstream, que discutíamos no parágrafo anterior, há uma
recorrente valorização do underground por parte dos fãs, e isso ajuda a
demonstrar a procura por algo supostamente livre de amarras comerciais
e, por consequência, autêntico no âmbito da música. CDs, LPs, fanzines
são comumente chamados de “materiais” pelos headbangers, e essa esco-
lha linguística não é aleatória; ela indicia que as produções devem ser
“estudadas”, no sentido de que não basta serem “curtidas”, mas tornarem-
se objetos de uma apreciação dedicada. Valoriza-se, por exemplo, conhecer
certas informações das bandas e dos álbuns e, por outro lado, desvaloriza-
se o chamado fã “poser”, que estaria na cena apenas pela imagem, da
mesma forma que a banda que “se vende”, isto é, que abandona suas ori-
gens para adentrar em um mercado mais popular.
Finalizamos esta seção com apontamentos acerca da noção de comu-
nidade discursiva com o propósito de indicar, ao leitor não familiarizado
com a Análise do Discurso, que falar em discurso implica necessariamente
abordar uma prática discursiva. Em outras palavras, o discurso é materi-
alizado pela língua e, de fato, são os textos efetivamente produzidos que
constituem o material do analista; mas é preciso observar como os textos
estão circunscritos, por determinadas relações institucionais e por especí-
ficos modos de subjetivação, fatores que assinalam o caráter sócio-
histórico da produção enunciativa.

Considerações Finais: “desnaturalizando” o demoníaco

O título deste artigo contém a expressão “desnaturalização do demo-


níaco” e, para estas considerações finais, é importante que recuperemos
Lucas Martins Gama Khalil | 117

tal ideia, com o próposito de darmos um aspecto de fechamento ao texto.


Quando fizemos menções a “demoníaco”, principalmente em relação ao
ethos que supomos funcionar na prática discursiva do death metal, o que
se colocou em questão não foi uma referência à figura que, para o Cristia-
nismo, rivaliza com Deus, podendo, inclusive, agir sobre os corpos que se
desviam de um caminho divino. Para além de uma abordagem referencial,
que implicaria na visualização do demônio como mero objeto de conheci-
mento passível de ser naturalmente designado, este artigo orientou-se por
uma perspectiva que nos leva a considerar o demoníaco como uma cons-
trução discursiva, e isso significa que os efeitos de sentido a ela
relacionados só tornam-se possíveis no interior de dada conjuntura sócio-
histórica e em relação com uma rede enunciativa exterior e anterior ao
que é efetivamente dito. Vimos, por exemplo, que o demoníaco pode ser
produzido como efeito a partir da visibilização do que é interdito em de-
terminada sociedade, considerando-se certas condições de funcionamento
dos discursos.
A Análise do Discurso emergiu, no campo de estudos da linguagem,
justamente a partir do questionamento que Pêcheux (1997) faz às chama-
das “evidências” de sentido. Não basta dizer que um enunciado significa e,
como prova, discriminar seus elementos referenciais e as relações de com-
binação nele engendradas. Os sentidos são sempre produzidos para
sujeitos inscritos em posicionamentos e, nesse processo, nada há de trans-
parente. Para essa reflexão, a questão da voz é bastante ilustrativa. Há, nos
estudos linguísticos, uma prática que relaciona as diferentes qualidades de
voz a aspectos chamados paralinguísticos, indicadores de atitudes mais ou
menos previstas do falante. Associa-se, por exemplo, a voz em falsete ao
deboche, a harsh voice à raiva/agressividade, a creaky voice ao tédio, e as-
sim por diante. Esse tipo de correspondência traz descobertas relevantes
à área, mas, por vezes, ancora-se tacitamente nas “evidências” tão
118 | Diálogos com a Música Extrema

criticadas por Pêcheux, na medida em que as associações entre voz e ati-


tude podem parecer naturais e, de certo modo, a-históricas. Quando
pesquisamos a voz gutural e a sua suposta identificação com uma imagem
“demoníaca”, assumimos a posição de analisar as especificidades históri-
cas dessa enunciação, partindo da hipótese de que o ethos discursivo
sempre se alimenta de estereótipos para adquirir sua legitimidade.
Uma das questões que confere unidade aos diversos elementos trazi-
dos para a análise empreendida neste artigo é a obscuridade, que,
constituindo traço fundamental do estereótipo relacionado ao demoníaco,
emerge como sema reivindicado no discurso do death metal. Na voz, ela se
materializa na aparente ininteligibilidade do que se canta; nas temáticas
abordadas, temos, em um movimento inverso, aquilo que é interdito
sendo visibilizado, pois o que é dado a ver deveria, por assim dizer, se
manter na obscuridade; em certos logotipos, há os recursos que dificultam
parcialmente a identificação dos grafemas; no funcionamento da comuni-
dade discursiva, valoriza-se uma circulação afetada por determinadas
restrições (gerando a ideia de que quanto menos comercial, mais autên-
tico). Esses são alguns exemplos de como analisar um posicionamento
discursivo consiste em investigar a semântica global que o rege. O ethos,
enquanto imagem de enunciador produzida nos textos efetivos, integra-
se, dessa forma, a um funcionamento mais amplo, a partir do qual todas
as seleções e combinações linguísticas e de outros elementos de linguagem
“fazem sentido”.
Para concluir estas considerações finais, faço a necessária ressalva de
que algumas das discussões aqui presentes podem ser pertinentes ao me-
tal extremo, de modo geral. É o caso, por exemplo, dos apontamentos
sobre a dinâmica do underground, os logotipos e a própria questão da voz,
tendo em vista que outras técnicas, além do vocal gutural, podem também
suscitar o efeito de ininteligibilidade. Por esse motivo, em alguns
Lucas Martins Gama Khalil | 119

momentos, foi empregada neste artigo a expressão “metal extremo” em


vez da referência mais específica “death metal”. Apesar da ressalva, há
sempre a necessidade de um recorte e, no caso da Análise do Discurso, esse
recorte pode se delimitar a partir da investigação de uma formação dis-
cursiva, de um posicionamento em específico, pois considera-se que os
elementos linguísticos não produzem os sentidos simplesmente por assim
significarem, como se houvesse uma relação natural e a-histórica de sig-
nificação, mas produzem efeitos de sentidos justamente vinculados ao
sistema de restrições semânticas característicos dos posicionamentos.

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4

Anarchopunk e tecnologias sociais de resistência:


antirracismo e subversão da branquitude
na música do grupo Aus Rotten

Moacir Oliveira de Alcântara 1

Introdução

Sem compreensão ou coerência/ Fanáticos mesquinhos se escondendo da di-


versidade/ Fazendo as minorias de bode expiatório de todos os defeitos da
sociedade/ Criando falsas estatísticas para justificar a sua causa/ O recruta-
mento se fez através da fraude/ Vomitando estereótipos para manipular
crenças/ Condicionados pela retórica que confirma os seus medos/ Alheios à
realidade de que o preconceito jamais ouve/ [...] é patético que a característica
da qual mais se orgulham seja a cor de sua pele/ Estou cansado da intimidação
e da manipulação que eles usam/ Estou cansado de ouvir sobre outro ataque
com motivações raciais/ É por isso que é tão importante que nunca viremos
as costas/ Nossa inércia e indiferença os fortalece/ Quando nos mantemos em
silêncio nós convidamos essa ameaça racista/ Faremos com que esses fanáti-
cos sejam tão inexistentes quanto as suas mentes/ Eles não merecem
nenhuma simpatia com a qual possam se esconder.

Ao som de Aus Rotten – Absent Minded,


Do album The Rotten Agenda (2001).
https://www.youtube.com/watch?v=Zg3Pn2IFL7I

Neste artigo analisamos as representações do racismo na canção Ab-


sent Minded, faixa que integra o long play (LP/vinil) intitulado The Rotten
Agenda (2001) do grupo anarchopunk estadunidense Aus Rotten,

1
Mestre em História pelo Programa de Pós-Graduação em História da Universidade de Brasília (PPGHIS/UnB). E-
mail: <moa7782@gmail.com>.
122 | Diálogos com a Música Extrema

originário da cidade de Pittsburgh, Pensilvânia. Trata-se de um estudo fo-


cado em enunciados antirracistas veiculados através da música no punk,
atentando para a desnaturalização da branquitude e para os efeitos desse
discurso em processos de subjetivação no anarchopunk. No que tange a
questões metodológicas, escolhemos como itinerário uma abordagem dis-
cursiva das representações, modalidade de análise do discurso voltada à
problematização e a historicização do simbólico na vida social. Como bem
ensina Hall, falar de representação é falar de sentidos que são produzidos
por meio da linguagem (2016, p. 32), não compreendida de forma fixa ou
geral, mas em suas condições e implicações histórica e culturalmente lo-
calizadas. Ainda segundo Hall, os sentidos produzidos pela linguagem
assim compreendida nos informam valores, conceitos, afetividades, mo-
dos de funcionamento e regulação de práticas, condutas e identidades em
dado panorama social (HALL, 2016, p. 17-22). Permeando as ações intera-
tivas entre os indivíduos, as instituições e a indústria cultural, incluindo os
artefatos fonográficos, como é o caso do long play The Rotten Agenda, as
representações demarcam posições de sujeitos, seus modos de ser e as prá-
ticas discursivas que os definem em suas relações sociais (SPINK, 2013).
Como é possível apreender a partir das colocações de Alfredo Veiga-
Neto em “Foucault e a Educação” (2007), a análise focada em uma abor-
dagem discursiva das representações se interessa pelas implicações da
relação saber-poder nos processos de subjetivação. Assim, focalizamos
nesse artigo as posições, funções e a ordem do discurso nas quais esse su-
jeito anarchopunk catalisador de uma branquitude antirracista se encontra
imerso, sem que caiba laurear o que se considera “certo” e condenar o que
é visto como “errado” com base em juízos de valor. São as condições de
produção desse discurso antirracista e as suas implicações na subjetivi-
dade anarchopunk que constituem o núcleo de nossa análise.
Moacir Oliveira de Alcântara | 123

Tendo em conta a natureza da fonte de pesquisa, nos respaldamos


nas contribuições de Marcos Napolitano (2002). Ao falar dos usos da can-
ção como fonte de pesquisa histórica e como recurso didático no ensino de
humanidades, o autor se refere à música brasileira como “termômetro,
caleidoscópio e espelho não só das mudanças sociais, mas, sobretudo, das
nossas sociabilidades e sensibilidades coletivas mais profundas”
(NAPOLITANO, 2002, p. 78). Análise similar pode ser feita se relacionar-
mos o hardcore/punk e as formas pelas quais ele incide no sujeito do qual
falamos, como orienta suas posições no mundo, os modos de subjetivação
que o envolvem e, ainda, na conformação das “cenas”2, os sentidos e sig-
nificados que o punk adquire também enquanto coletividade. A música
hardcore/punk e os discursos que ela mobiliza integram os meios pelos
quais esses sujeitos (re)elaboram repertórios interpretativos3 acerca de si
mesmos e do mundo, além de esses serem também marcadores de suas
identidades e subjetividades.
Ainda considerando o tipo de fonte escolhido para a presente análise,
buscamos o aporte das pesquisas feitas pela professora Eleonora Zicari
Costa de Brito do Departamento de História da Universidade de Brasília.
No artigo intitulado “História e música: tecendo memórias, compondo
identidades”, a historiadora nos ensina que a pesquisa histórica que opte
pela música como fonte de pesquisa deverá atentar para elementos outros
que não a mera análise das letras das canções, uma vez que a música pode
informar também sem o intermédio das palavras (BRITO, 2007, p. 212-
213). Nesse sentido, é possível assumir que, enquanto veículo que divulga
certos tipos de representações – não apenas na forma de canções, mas

2
O’Hara faz a seguinte definição para a ideia de “cena punk”: “a cena é a comunidade punk e a palavra que os
punks usam para descrevê-la. Há cenas locais, cenas nacionais e cenas mundiais” (2005, p.22).
3
Repertórios interpretativos podem ser compreendidos como “dispositivos linguísticos que utilizamos para cons-
truir versões das ações, eventos e outros fenômenos que estão a nossa volta” (POTTER; WETHERELL Apud SPINK,
2013, p. 28).
124 | Diálogos com a Música Extrema

também nas dimensões de sua agressividade sonora, timbres dissonantes,


andamentos acelerados, iconografias, design gráfico – um artefato fono-
gráfico como The Rotten Agenda está carregado de sentidos e significados
que podem regular e informar perspectivas, posicionamentos, condutas e
práticas constituintes das subjetividades de sujeitos anarchopunks em um
dado recorte temporal.
Disso decorre o fato de a noção de subjetividade ser uma das mais
imprescindíveis e centrais à análise que ora se apresenta. Subjetividade diz
respeito ao

modo no qual o sujeito faz a experiência de si mesmo num jogo de verdade em


que ele está em relação consigo mesmo. Isso remete aos modos de ser engen-
drados no social, na cultura. Assim, trata-se de uma consciência de si
permanentemente em produção, uma formação existencial constituída em um
determinado tempo-espaço. [...] não se trata de um mero si mesmo, algo da
ordem de uma condição de individualidade, mas constitui formas pelas quais
“o sujeito se observa e se reconhece como um lugar de saber e de produção de
verdade” (HENNIGEN; GUARESCH, 2006, p.69).

Compreende-se, assim, a impossibilidade de se fixar a subjetividade


punk. Ela está sempre em constante movimento de (re)significações e
(re)elaborações, se caracteriza por ser um fluxo e não algo estável, regular
ou constante. Como iremos observar adiante, um aspecto crucial dos
enunciados da canção Absent Minded são as representações que assinalam
as subjetividades dos supremacistas brancos da organização neonazista
Aryan Nations. No processo de produção de sentidos para as subjetivida-
des de integrantes do grupo racista ao qual a banda Aus Rotten se opõe
ideologicamente, Absent Minded revela, de maneira subjacente, traços das
subjetividades antirracistas dos anarchopunks, assinalando práticas dis-
cursivas em que esses sujeitos se inscrevem. Trata-se de subjetividades
Moacir Oliveira de Alcântara | 125

desviantes, acometidas em um projeto de subversão das identidades amol-


dadas pelo racismo estrutural. Sua estratégia é a desconstrução normativa
da identidade branca que se quer desracializada e universal.
As representações do racismo que perpassam a canção analisada, re-
fletindo práticas de desnaturalização na esfera do anarchopunk, emergem
como tecnologias ou pedagogias sociais de resistência4, regulando posici-
onamentos, perspectivas e ações de sujeitos anarchopunks diante de
conceitos e práticas que envolvem raça, racismo e antirracismo. Sintetica-
mente, esses enunciados e as formações discursivas do universo
anarchopunk exercem funções pedagógicas de crítica e autocrítica racial,
estatuindo referenciais antirracistas de subjetividade. Os exercícios de des-
construção/desnaturalização da raça nos círculos anarchopunks, sem que
se entre nos méritos de que se são efetivos ou não, se alicerçam na própria
cultura de resistência, protesto, insubordinação e ativismo político libertá-
rio representado pelo punk desde a sua gênese. Se o projeto histórico da
nação estadunidense criou e recriou condições para as hierarquizações en-
tre raças, a eugenia, o escravismo, o Jim Crow, a segregação e o
encarceramento em massa da população negra, o fito ideológico de anar-
chopunks sempre se manteve sob valores de tolerância e antirracismo.
Esta análise reitera os propósitos de desconstrução/desnaturalização
de estereótipos associados ao movimento punk, perspectiva iniciada em
pesquisa anterior5. Pensamos o punk como uma manifestação cultural

4
Navarro-Swain (2011) ensina que são “tecnologias” ou ‘pedagogias’ sociais a educação formal, as mídias, a internet
e tudo aquilo que, de alguma forma, participa da construção e mediação do conhecimento socialmente partilhado,
criando “verdades, estruturas mentais, instituições, normas, modelos, comportamento [...]. As pedagogias sociais
encarregam-se de sua divulgação em termos de tradição, evidências, valores [...], reiterando imagens naturalizadas
[...]. As representações sociais atravessam assim todo ensinamento e aprendizado, tornando evidente aquilo que é
construído social e politicamente”. Falamos aqui de “pedagogias sociais de resistência” no intento de delinear alter-
nativas libertárias que se opõem às estruturas de poder dominantes que operam disciplinamento e opressão de
condutas.
5
A dissertação “Violentos, selvagens e baderneiros: representações e modos de subjetivação do punk no jornal Cor-
reio Braziliense (1990-2014)”, resultante de minha pesquisa de mestrado no Programa de Pós-Graduação em História
da Universidade de Brasília (PPGHIS/UnB).
126 | Diálogos com a Música Extrema

que, após mais de quarenta anos de uma história de ebulições, quebras de


padrões e de legados musicais, políticos, estéticos e comportamentais re-
correntemente mediados de maneira estereotipada nos meios de
comunicação (ALCÂNTARA, 2019, p. 14), constitui resistência nos círculos
underground e, de diferentes maneiras, insiste em suas aspirações anti-
conformistas. Se no decorrer desse período a indústria cultural intentou
fazer do punk algo efêmero e inofensivo, tendo diversas vezes obtido su-
cesso nesse empreendimento, uma parcela considerável dos punks optou
por políticas radicais libertárias e pelo rompimento para com as estrutu-
ras, instituições e formas predominantes de pensamento no mundo
contemporâneo (O’HARA, 2005, p. 32-34). Os aspectos citados são acen-
tuados na vertente anarchopunk, inspirada em expressões semelhantes
originadas nos anos 1970 e 1980 e que, dentre outras estratégias, usa a
música para expressar desde emoções e modos de ser de seus adeptos até
os valores antissexistas, antifascistas, antiespecistas, anti-homofóbicos e
antirracistas que opõem esses sujeitos ao ethos capitalístico.
Assim, sublinhamos a fulcral relevância do uso de documentos musi-
cais produzidos pelo punk em análises históricas referentes a esse
movimento contracultural, no qual a banda Aus Rotten se situa. De acordo
com entrevista concedida pelos membros Corey Lyons (baixista) e Eric
Good (Guitarrista/vocalista) ao fanzine online “Fear Of Society”, a banda
foi formada em 1991 com a finalidade de difundir políticas e filosofias li-
bertárias (AUS ROTTEN, 2000), se tornando no decorrer da década de
1990 um dos pilares da movimentação anarchopunk nos Estados Unidos.
No documentário “The Art Of Revolution – An ABC No Rio Benefit” (1997)
a banda declara que os seu ativismo político anarquista de ação direta, an-
tirracista, pró-LGBTQIA+, antissexista e antifascista os colocou em
confronto com a extrema-direita estadunidense, o que fez da banda um
Moacir Oliveira de Alcântara | 127

alvo constante de ameaças desses grupos (THE ART OF REVOLUTION...,


1997).
O álbum The Rotten Agenda, constante no catálogo da Rotten Propa-
ganda Records, gravadora de propriedade dos integrantes do Aus Rotten,
foi lançado em 2001 e é composto por treze faixas que majoritariamente
exploram temáticas referentes à luta antissexista e de direitos sociais aos
grupos LGBTQIA+ (The Rotten Agenda, Modern Day Witch Hunt, Right
Wing Warfare, The Second Rape e Isolation Or Solution). Entretanto, essas
temáticas e os sentidos que produzem não são dispostos de modo estanque
na referida obra, mas relacionadas e localizadas em articulação a uma crí-
tica à direita fundamentalista cristã norte-americana do início do século
XXI. Esse conjunto temático confere a tônica em The Rotten Agenda, par-
tindo de representações do protestantismo televangelista estadunidense,
responsável por acolher e cultivar posicionamentos pautados pela intole-
rância, homofobia, racismo e outros valores inerentes ao conservadorismo
de extrema-direita. O período de composição do álbum se dá no contexto
imediatamente posterior aos ataques organizados pela organização funda-
mentalista islâmica Al-Qaeda aos Estados Unidos em 11 de setembro de
2001, fato histórico a partir do qual ocorre um recrudescimento de ações
terroristas de extrema-direita em solo estadunidense, alentando, assim,
uma volátil combinação de islamofobia, xenofobia e racismo (TOSTES,
2011, p. 137) gestados na virulência do radicalismo cristão-protestante
norte-americano, sempre norteado pela ideologia da “lei e ordem”.
Em seu enfoque temático de denúncia das estruturas de opressão e
dominação vigentes nos Estados Unidos, The Rotten Agenda também evi-
dencia outros debates libertários que refletem preocupações coletivas e
subjetivas de anarchopunks: o controle midiático da informação (Who’s
Calling The Shots e Media Blackout), direito à moradia (Tax Shelter), o
imperialismo norte-americano (The World Bank e Plausible Deniability),
128 | Diálogos com a Música Extrema

direitos dos animais (Factory) e o antirracismo (Capital Punishment e Ab-


sent Minded).
Esse mapeamento temático das canções de The Rotten Agenda nos
permitiu caracterizar os sentidos atribuídos pelos membros do Aus Rotten
aos “‘lugares praticados’ que servem de lugar de fala ao discurso desses
artistas” (BRITO, 2007, p. 214), ou seja, acessar memórias, percepções e
modos de lidar e de se posicionar desses sujeitos em relação a questões
sociais, políticas, identitárias, de gênero, classe, sexualidade e de raça.
Como suporte difusor de tais perspectivas político-libertárias, a música de
The Rotten Agenda estabelece nexos de sentido com os processos de cons-
tituição de “subjetividades subversivas” (GUATTARI, 1990, p. 2),
subjetividades que são investidas na resistência ao autoritarismo e às vio-
lências cotidianas da sociedade estadunidense contemporânea.
Ressalte-se que, diante da impossibilidade de contemplar nesse es-
paço todas as questões interseccionais6 que perpassam as práticas
discursivas do anarchopunk refletidas em The Rotten Agenda, circunscre-
vemos esta análise às representações do racismo identificadas em Absent
Minded. A escolha dessa canção não foi feita ao acaso, deu-se com base no
lugar de fala que ocupo enquanto homem negro, periférico, imerso na cul-
tura punk e comprometido com exercícios que apontem para a
subversão/desnaturalização/crítica/desconstrução do cisheteropatriar-
cado-racista-capitalista. Não percamos de vista que a banda Aus Rotten se

6
Nesse sentido, me apoio na perspectiva pós-estruturalista butleriana acerca das identidades. Ao questionar a uni-
versalidade da categoria “mulher” no pensamento feminista, Judith Butler irá afirmar que o gênero não é uma
categoria totalizante sob a qual alguém é definido enquanto mulher. Segundo a teórica, “o gênero estabelece inter-
seções com modalidades raciais, classistas, étnicas, sexuais e regionais de identidades discursivamente constituídas”
(BUTLER, 2003, p. 20). De modo semelhante, não é possível compreender questões que envolvem sexualidade, classe
e raça sem levar em conta os entrecruzamentos ou intersecções que essas categorias mantêm em relação aos con-
textos políticos, históricos e culturais nos quais são produzidas. Nessa mesma toada, ensina-nos Stuart Hall, a
identidade não corresponde a modelos estáticos, mas se processa como “‘celebração móvel’, formada e transformada
continuamente em relação às formas pelas quais somos representados ou interpelados nos sistemas culturais que
nos rodeiam” (HALL, 2006, p. 13), ou seja, falar de identidade é falar de algo submetido às contingências, algo fugidio
e em constante transformação. Assim, a raça, o racismo e as identidades raciais, como construtos culturais e históri-
cos, são passíveis de problematização e podem ser desconstruídos/desnaturalizados.
Moacir Oliveira de Alcântara | 129

constituiu como uma experiência na qual as subjetividades de seus inte-


grantes são demarcadas por muitos hibridismos e atravessamentos
advindos não apenas na simples crítica aos privilégios da branquitude,
mas de uma asseveração de suas posturas veementemente antirracistas.
Ainda que, majoritariamente, o Aus Rotten tenha sido uma banda
formada por norte-americanos brancos que, em decorrência do racismo
estrutural, não escapem à lógica de privilégios da qual usufrui toda bran-
quitude, a diversidade encontrada em espaços punks em que são bem-
vindos hispânicos, negros, indígenas, mulheres, imigrantes, indocumen-
tados, transexuais, homossexuais e toda a escumalha das classes sociais
menos favorecidas, lhes fornece uma percepção de diferentes formas de se
experimentar opressões. Desse modo, esses sujeitos falam em suas músi-
cas de questões relacionadas a classe, gênero, sexualidade e raça a partir
de seus lugares de fala como forma de desconstruir privilégios e de desna-
turalizar desigualdades, hierarquias, pobreza, racismo e sexismo
(RIBEIRO, 2017, p. 46). O foco que estabeleço nas questões raciais não im-
plica em uma hierarquização entre formas de opressão (RIBEIRO, 2017, p.
39), mas é dado em função de um standpoint específico que se inscreve
em minha experiência pessoal de pertencimento à contracultura punk, for-
temente interceptada por questões de raça e classe social nesse caso.
O que está proposto nesta análise é a compreensão das interpenetra-
ções entre a música hardcore/punk e a história, atentando para o fato de
que essa música é reveladora de valores e códigos do anarchopunk em es-
calas subjetivas e coletivas. Como artefato fonográfico urdido na cultura
punk, o álbum The Rotten Agenda não cumpre estritas funções de produzir
deleite estético, é pensado para expressar coisas para além da dimensão
lírica da canção. Letras, riffs, entonações vocais, distorções, dissonâncias,
andamentos, design gráfico do LP, a atitude da banda nas gigs (shows
punks), declarações dadas em entrevistas, todos esses são elementos de
130 | Diálogos com a Música Extrema

um mesmo discurso demarcado pela recusa e a crítica em relação ao or-


denamento cisheteropatriarcal-racista-capitalista.
Com base nesse entendimento, apresentamos esse exercício interpre-
tativo das representações do racismo em Absent Minded. Temos como
escopo a desconstrução/desnaturalização de privilégios advindos da bran-
quitude, ou seja, os efeitos de subjetivação originados da crítica/autocrítica
de brancos antirracistas imersos na cultura punk. Intentamos, assim, evi-
denciar o caráter substancial da canção escolhida na produção de
representações do racismo de grupos supremacistas brancos estaduniden-
ses. Buscamos também os sentidos que identificam os poderes
hierarquizantes constitutivos das relações raciais (ALMEIDA, 2019, p. 40),
observando os modos com que esses enunciados assinalam a subjetividade
do grupo anarchopunk e suas posições quanto aos privilégios que advêm
da branquitude.

As diferentes identidades raciais do branco

Antes de dar início à análise da canção Absent Minded, cabe apresen-


tar algumas questões relacionadas à categoria branquitude e como essa
noção se conecta às práticas antirracistas que se desenrolam nos espaços
da militância anarchopunk.
O uso da categoria branquitude como instrumento de análise histó-
rica demanda atenção para a mutabilidade temporal e espacial da
identidade racial branca. Entretanto, a compreensão do racismo enquanto
elemento histórico sob o qual se estruturam relações de poder, opressão e
ordenamentos hierárquicos instituídos entre sujeitos “brancos” e “não
brancos” nos permite, sinoticamente, falar da branquitude como um lugar
de vantagem em uma sociedade fundamentada no racismo. É nesse lugar
de vantagem estrutural que as subjetividades engendradas pela
Moacir Oliveira de Alcântara | 131

branquitude são perpassadas por maneiras específicas de enxergar a si


mesmas e de se posicionar no mundo, sendo orientadas normativamente
em termos de superioridade estética, moral e intelectual (ALMEIDA, 2019).
Como bem ensina Schucman, mencionar a branquitude é se referir a

[...] uma posição em que sujeitos que ocupam esta posição foram sistematica-
mente privilegiados no que diz respeito ao acesso a recursos materiais e
simbólicos, gerados inicialmente pelo colonialismo e pelo imperialismo, e que
se mantêm e são preservados na contemporaneidade (SCHUCMAN Apud
ALMEIDA, 2019, p. 75).

Essa perspectiva quanto à constituição da identidade racial branca é


herdeira dos estudos de Fanon (2008) sobre a raça e o racismo. Fanon
identifica no ordenamento racista legado pelas estruturas do colonialismo
escravagista e do imperialismo os elementos constitutivos das subjetivida-
des de colonizados e colonizadores: na condição de pertencimento à raça
branca residiriam os sentimentos de superioridade e os privilégios de
brancos em relação aos demais grupos raciais. Assim, a ideia de branqui-
tude reflete na contemporaneidade “um lugar de privilégios simbólicos,
subjetivos, objetivos, isto é, materiais palpáveis que colaboram para a
construção social e reprodução do preconceito racial, discriminação ‘in-
justa’ e racismo” (CARDOSO, 2010, p. 50)7 fundamental à sustentação do
sistema do capital. As noções de racismo e de branquitude, entretanto, não
irão se confundir: como processo histórico e político que incide direta-
mente na produção das subjetividades inscritas sob seu regime, o racismo
opera práticas sociais das quais negros e brancos participam e que, em seu
funcionamento regular, perduram quando esses sujeitos naturalizam a

7
Cardoso faz distinção entre formas de discriminação “justas” e “injustas”. Para tanto, o autor se utiliza das ações
afirmativas para fins de exemplificação do tipo justo de discriminação racial, ou seja, aquela que se emprega na
promoção da igualdade racial. No sentido inverso, a discriminação racial “injusta” seria coincidente com o próprio
racismo e os seus efeitos na criação das desigualdades e subalternizações entre diferentes raças.
132 | Diálogos com a Música Extrema

discriminação, as desigualdades e as violências raciais, não se questio-


nando a respeito de uma classificação hierárquica e desigual que
categoriza “brancos” e “não brancos” (ALMEIDA, 2019, p. 63). Assim, o
racismo não é exclusivo da organização das subjetividades de pessoas ne-
gras – subalternizadas, inferiorizadas, à quais são atribuídas adjetivações
negativas – mas igualmente articula processos de subjetivação de pessoas
brancas em suas posições sociais de vantagem/privilégio.
Até esse ponto entendemos a branquitude como metáfora de poder
cujos efeitos, em derradeira análise, estão todos conectados à subalterni-
zação do negro e à conservação da preeminência branca que decorre do
racismo estrutural. Trata-se de pensar o lugar do branco no panorama de
um ordenamento histórico de hierarquização racial, reiteradamente natu-
ralizado como o lugar de superioridade, exclusividade, garantias,
liberdades e oportunidades em detrimento das posições subalternas asso-
ciadas simbólica e materialmente ao grupo social negro. No entanto,
novamente recorrendo às contribuições de Schucman aos estudos acerca
da branquitude, é necessário levar em conta que os múltiplos aspectos da
identidade racial branca

produzem significados, sentidos e formas de agir e se movimentar no mundo


diferentes em cada sujeito, ao passo que cada sujeito percebe de forma dife-
rente cada um destes aspectos, cada sujeito se torna branco e exerce o poder
da branquitude de uma maneira, entrecruzando sempre com outros aspectos
relacionados a classe, gênero, história de vida etc. (SCHUCMAN, 2012, p.
30).

Nesse sentido, é possível estabelecer distinção entre diferentes for-


mas da branquitude, como assinala Cardoso. Segundo o autor, indivíduos
e grupos apologistas da supremacia racial branca (Ku Klux Klan e
Moacir Oliveira de Alcântara | 133

neonazistas como o Misanthropic Division8, por exemplo) correspondem


à branquitude acrítica, ao passo que os brancos que declaram publica-
mente a sua desaprovação ao racismo e aos seus efeitos evidenciam a
branquitude crítica (CARDOSO, 2010). Ainda segundo Cardoso, ambas as
formas da branquitude se constituem como lugar de privilégio, sendo di-
ferenciadas em função dos aspectos de sua letalidade: se a branquitude
crítica corresponde a práticas racistas sutis, ainda que publicamente de-
clare desaprovação ao racismo, a branquitude acrítica resulta em práticas
homicidas que se assentam em ideias de pureza e superioridade da raça
branca. Nesse sentido, o autor argumenta ser imprescindível a supressão
da concepção hierárquica que se confere à ideia de raça (CARDOSO Apud
CARDOSO, 2010, p. 67), identificando a visibilidade racial branca como
etapa necessária da construção de uma branquitude antirracista e capaz
de desconstruir os próprios privilégios.
Absent Minded é uma canção reveladora de subjetividades perpassa-
das por esse tipo de branquitude antirracista, uma vez que os seus autores
são norte-americanos brancos, sujeitos imersos no ordenamento racista
da sociedade estadunidense externando suas posturas de rechaço ao ra-
cismo e ao privilégio branco, mesmo que, em decorrência do caráter
sistêmico do racismo, não escapem de se beneficiar dele. Por conseguinte,
a análise dessa canção se constituiria como um exercício falho e incom-
pleto caso não atentasse para o fato de que os sujeitos se tornam negros,
brancos, racistas ou antirracistas no próprio tear das relações sociais, in-
terpessoais e intersubjetivas. Desse modo, compreendemos que a
branquitude

8
Misanthropic Division é um grupo neonazista originário da Ucrânia com células espalhadas em diversas partes do
mundo, incluindo o Brasil. Segundo o site Ponte.org, em abril de 2020 a Polícia Civil do Estado de São Paulo recebeu
denúncias e passou a investigar pessoas ligadas ao grupo por apologia ao nazismo e ataques virtuais a minorias,
especialmente judeus. Disponível em: < https://ponte.org/policia-civil-de-sp-investiga-grupo-por-apologia-ao-na-
zismo/ >. Acesso em 31 jul. 2020.
134 | Diálogos com a Música Extrema

tem um significado construído sócio-historicamente dentro da cultura ociden-


tal. Ela carrega significados de norma, de beleza, de civilização etc. Porém,
estes significados podem ser desconstruídos através de vivências e afetos di-
versos que irão produzir sentidos e tramas de significações não
necessariamente coincidentes com aqueles construídos em nossa sociedade de
maneira supostamente objetiva, desvinculando e separando a brancura da
pele do lugar de poder dado a branquitude (SCHUCMAN, 2012, p. 103).

Podemos, assim, pensar a canção Absent Minded não apenas como


mero suporte de propaganda de militância, mas, sobretudo, como um
marcador de posições, perspectivas e subjetividades perpassadas pelas
práticas antirracistas dos membros da banda Aus Rotten. Essa canção é,
ainda, indicativa dos modos pelos quais esses sujeitos anarchopunks per-
cebem o lugar do branco na luta antirracista e nos processos de
desconstrução da raça e do racismo: ela assinala o problema de que, sendo
o racismo estrutural, essa não é uma questão reduzível ao simples debate
identitário, mas que está relacionada primordialmente ao combate à desi-
gualdade racia
Desse modo, evocando as contribuições de Maria Aparecida Bento,
compreendemos a referida canção como um exercício ou declaração de
ruptura com o chamado “pacto narcísico” entre brancos, ou seja, uma re-
cusa em reproduzir o silenciamento de pessoas brancas acerca de questões
raciais e em se reconhecer enquanto racializadas. Trata-se de uma tenta-
tiva de resistência aos processos que Bento define como naturalização do
branco em sua posição de referencial universal da condição humana
(BENTO Apud ALMEIDA, 2019, p. 77). Tendo em vista que as enunciações
observadas em Absent Minded promovem crítica/autocrítica no que tange
à questão do privilégio branco, ela assinala, nesse caso, traços do compro-
metimento público de sujeitos anarchopunks com a quebra do pacto
Moacir Oliveira de Alcântara | 135

racial/racista da branquitude estadunidense. É precisamente nessa rup-


tura que reside o papel de pessoas brancas na luta antirracista
(SCHUCMAN, 2012, p. 13).
É importante pontuar que práticas antirracistas e, por consequência,
a produção de subjetividades demarcadas por léxicos raciais que propi-
ciam o debate acerca das temáticas da raça, racismo, branquitude e
antirracismo estão historicamente conectadas ao movimento punk tal qual
é possível observar em The Rotten Agenda. Em especial, essas práticas se
inscrevem no campo dos valores de tolerância do punk anarquista que, se
não praticados por totalidade dos punks, ao menos figuram entre os ideais
compartilhados por um quantitativo muito expressivo de seus adeptos
(BESTLEY, 2016).
Absent Minded é uma canção que responde, a partir da perspectiva
de brancos antirracistas, a determinadas tensões originadas da hierarqui-
zação racial. Como expressão artística urdida sob o horizonte de um racial
literacy9 daqueles que a elaboraram, essa canção tem os seus enunciados
relacionados a práticas discursivas sinalizadoras dos posicionamentos an-
tirracistas de anarchopunks, revelando nesses sujeitos a “capacidade de
traduzir e interpretar os códigos e práticas racializadas de nossa socie-
dade” (TWINE Apud SCHUCMAN, 2012, p. 104).

Rompendo o “pacto narcísico”: práticas discursivas antirracistas em Absent


Minded

Absent Minded é uma canção calcada em representações do racismo


característico dos membros, da plataforma política e das ações da

9
A tradução literal da expressão seria “alfabetização racial”. No entanto, Schucman (2012) a traduz como “letramento
racial”, ideia que remete de maneira mais imediata à desnaturalização/desconstrução de formas de agir e pensar
orientadas por privilégios de raça. Em outro sentido, a ideia de letramento racial também remete à construção de
narrativas positivas acerca da população negra, possibilitando a superação de sua condição histórica de subalterni-
dade.
136 | Diálogos com a Música Extrema

organização terrorista de extrema-direita Aryan Nations (Nações Aria-


nas)10, grupo autodenominado cristão e defensor de uma doutrina que
mescla fundamentalismo religioso, neonazismo, antissemitismo e defesa
da supremacia branca. Em linhas gerais, a letra de Absent Minded é um
manifesto que rechaça de maneira veemente os atos de intolerância, o fa-
natismo, o orgulho baseado na brancura11, a propaganda fundamentada
em estereótipos racistas e a violência dos ataques terroristas perpetrados
pela Aryan Nations contra negros, hispânicos, muçulmanos e imigrantes
nos Estados Unidos no início da primeira década do século XXI. Assim,
trata-se de uma canção que assinala identidades de sujeitos brancos situ-
ados em posições definidas em práticas discursivas diametralmente
inversas as de grupos neonazistas estadunidenses. Observemos os versos
que introduzem a canção:

Fodam-se os seus estereótipos racistas/ Foda-se a Nação Ariana!/ Foda-se o


seu antissemitismo/ Foda-se a Nação Ariana!/ Foda-se a sua homofobia/
Foda-se a Nação Ariana!/ Foda-se a sua xenofobia/ Foda-se a Nação Ariana!
(ABSENT..., 2001, tradução nossa). 12

A força afirmativa desses versos quanto à postura antirracista dos


anarchopunks do Aus Rotten se expressa na própria simplicidade do tre-
cho supracitado. A análise do excerto é de suma relevância para a
apreensão das subjetividades que são assinaladas pelo discurso

10
Segundo informações do site da Anti-Defamation League, organização judaica com sede em Nova York, a Aryan
Nations é um dos mais longevos grupos neonazistas estadunidenses. A organização, enfraquecida após a morte do
seu líder fundador Richard Butler em 2004, teve o seu auge entre as décadas de 1980 e 1990 e se destaca pelo extre-
mismo na defesa de suas posições racistas e xenófobas (ARYAN..., 2020).
11
Há que se distinguir as noções de branquitude e brancura. Se a primeira, como já exposto, diz respeito “a um lugar
de poder, de vantagem sistêmica nas sociedades estruturadas pela dominação racial”, a segunda é definida pelas
“características fenotípicas que se referem à cor da pele clara, traços finos e cabelos lisos de sujeitos que, na maioria
dos casos, são europeus ou euro-descendentes” (SCHUCMAN, 2012, p. 102).
12
“Fuck your racist stereotypes/ Fuck the Aryan Nation!/ Fuck your anti-semitism/ Fuck the Aryan Nation!/ Fuck
your homofobia/ Fuck the Aryan Nation!/ Fuck your xenofobia/ Fuck the Aryan Nation!” (ABSENT..., 2001).
Moacir Oliveira de Alcântara | 137

antirracista anarchopunk que perpassa Absent Minded. Ainda que não tra-
gam manifestamente representações do grupo neonazista opositor, esses
versos devem ser avaliados em sua relação de intertextualidade com enun-
ciados antirracistas disseminados em zines, informativos, na arte, nas
iconografias, performances e outras práticas culturais do punk, já que si-
nalizam relações entre identidades e subjetividades anarchopunks e
práticas antirracistas.
No trecho destacado, a expressão “fuck” aparece repetidas vezes
sendo direcionada às crenças defendidas pelo grupo racista Aryan Nations.
Tida como uma das mais chulas e ofensivas expressões do idioma inglês,
“fuck it” equivale à expressão “foda-se” em português, utilizada quando se
tem a intenção de repelir, rechaçar ou opor-se a algo ou a alguém de ma-
neira grosseira, manifestando irritação ou indignação. O instrumental da
parte introdutória da canção é composto sobre uma única nota que ressoa
por quatro vezes sobre uma sequência de viradas de bateria. Esse recurso
erige uma atmosfera de tensão na introdução da canção, reforçando os
efeitos de afirmação e agressividade que emolduram a mensagem antirra-
cista. A mensagem se processa tanto na dimensão da letra quanto do
instrumental da música, criando um efeito enfático. Aquilo que se atribui
ao grupo neonazista representado em Absent Minded – antissemitismo,
homofobia, xenofobia e ideário baseado em estereótipos racistas – é ex-
presso enquanto atributos do “Outro”, ou seja, implicitamente classificado
como pertencente à esfera da branquitude acrítica (CARDOSO, 2010). A
estratégia discursiva empregada no excerto destacado demarca traços sub-
jetivos e identitários de anarchopunks que se posicionam radicalmente
enquanto antirracistas.
Nesse sentido, os versos que abrem Absent Minded apontam para
uma noção crucial à delimitação de uma branquitude antirracista no anar-
chopunk, ou seja, que não apenas desaprova publicamente o racismo, mas
138 | Diálogos com a Música Extrema

que é aprovisionada por condições de desnaturalização/desconstrução da


identidade racial branca acrítica. Trata-se da noção de “diferença”, aspecto
que emerge na oposição entre as identidades e subjetividades antirracistas
dos sujeitos anarchopunks brancos que integram a banda Aus Rotten e os
supremacistas da Aryan Nations, aos quais a letra da canção se refere. O
principal aspecto a ser compreendido acerca da produção de sentidos para
as identidades sociais e as autopercepções subjetivas é que esses são pro-
cessos dados sempre em relações com o “Outro”, nexo normalmente
fixado de maneira binária, ainda que nem sempre seja dado na forma de
absoluta oposição. Apoiando-se nas teorias de Bakthin no campo da lin-
guística, Stuart Hall dirá que o significado “é fundamentalmente dialógico.
Tudo o que dizemos e significamos é modificado pela interação e pela troca
com o outro. O significado surge através da ‘diferença’ entre os participan-
tes de qualquer diálogo. O ‘Outro’, em suma, é essencial para o significado”
(HALL, 2016, p. 155, grifo do autor). Por conseguinte, a oposição binária
“anarchopunks/neonazistas” que perpassa os enunciados de Absent Min-
ded assinala a radical diferença identitária entre ambos os grupos.
Visto que a branquitude se constrói por meio de processos de signifi-
cação identitária e de elaboração das percepções do sujeito branco acerca
de si mesmo, as subjetividades de anarchopunks brancos também podem
resultar da subversão das identidades raciais hegemônicas da branqui-
tude, tal qual demarcam os versos iniciais de Absent Minded. Essa
perspectiva encontra respaldo mais uma vez nos argumentos de Hall que
nos ensina:

Uma vez que a identidade muda de acordo com a forma como o sujeito é in-
terpelado ou representado, a identificação não é automática, mas pode ser
ganhada ou perdida. Ela tornou-se politizada. Esse processo é, às vezes, des-
crito como constituindo uma mudança de uma política de identidade (de
classe) para uma política de diferença (HALL, 2006, p. 21).
Moacir Oliveira de Alcântara | 139

Assim, a branquitude desses sujeitos anarchopunks resulta de um es-


forço de desconstrução da identidade racial branca predominante,
suplantando os limites da mera branquitude crítica e se afirmando en-
quanto branquitude antirracista. Distinguir-se radicalmente de racistas,
neonazistas e da extrema-direita norte-americana como um todo é um dos
referenciais identitários dessas subjetividades anarchopunks. A oposição
anarchopunks/neonazistas, antagonismo explicitado nos versos de aber-
tura da canção analisada, emerge como efeito dos atravessamentos de um
discurso antirracista que permeia os espaços anarchopunks. Uma das es-
tratégias dessa militância consiste no reforço de representações negativas
de ativistas e organizações de extrema-direita, seja por meio da música ou
de outras expressões artístico-culturais do anarchopunk. São essas ima-
gens que interpelam o sujeito anarchopunk acerca daquilo que ele não é:
sujeitos são anarchopunks na medida em que não são racistas, intolerantes
ou supremacistas. É assim que se estabelece a diferença entre a branqui-
tude antirracista de sujeitos anarchopunks e a branquitude acrítica
supremacista/racista dos membros da organização Aryan Nations.
Após a parte introdutória, a letra de Absent Minded faz emergir, de
maneira propriamente dita, as representações do racismo dos suprema-
cistas brancos estadunidenses segundo a perspectiva das subjetividades
anarchopunks dos integrantes do Aus Rotten. A letra assim enuncia:

Sem compreensão ou coerência/ Fanáticos mesquinhos se escondendo da di-


versidade/ Fazendo as minorias de bode expiatório de todos os defeitos da
sociedade/ Criando falsas estatísticas para justificar a sua causa/ O recruta-
mento se fez através da fraude/ Vomitando estereótipos para manipular
crenças/ Condicionados pela retórica que confirma os seus medos/ Alheios à
140 | Diálogos com a Música Extrema

realidade de que o preconceito jamais ouve (ABSENT..., 2001, tradução


nossa).13

Nessa estrofe as subjetividades dos supremacistas brancos da Aryan


Nations são representadas como atravessadas pela incoerência e a contra-
dição, além de serem desprovidas da capacidade de se reconhecer como
parte de um mundo perpassado pela diversidade racial. Dessas caracterís-
ticas decorrem o acovardamento e as concepções estereotipadas por meio
dos quais esse grupo racista percebe as minorias raciais. A essas represen-
tações somam-se sentidos que atribuem ao grupo supremacista branco a
responsabilidade por forjar estatísticas para embasar as perspectivas ra-
cistas que defendem e por recrutar novos adeptos com base em
argumentos inverídicos sobre grupos raciais minoritários. Nos dois últi-
mos versos desse trecho as subjetividades dos supremacistas brancos são
descritas como resultantes de uma “lavagem cerebral” (brainwash) ope-
rada pelo racismo. Infere-se desses versos que o racismo dos
supremacistas brancos seria resultante de ideias que confirmam o medo
que esse grupo teria em relação a outros grupos raciais como os negros,
percebidos como inimigos. Por último, esse excerto traz uma representa-
ção dos membros da Aryan Nations como sujeitos que não se dão conta de
que os preconceitos que cultivam ofuscam as suas percepções em torno da
real dinâmica das relações raciais.
Constata-se, pois, que é característica das subjetividades que se pro-
cessam em uma banda anarchopunk como o Aus Rotten os entendimentos
de que o racismo se sustenta sobre mitos e estereótipos raciais e que a
desconstrução do racismo passa necessariamente pelo desenvolvimento,

13
“Lacking understanding and longing for consistency/ Small-minded bigots cowering in the face of diversity/ Scape-
goating the minorities for all of society's flaws/ Projecting false statistics to legitimize their cause/ The amassing of
recruits has been rendered by deceit/ Spewing racist stereotypes to influence beliefs/ Brainwashed by the rhetoric
that reaffirms their fears/ Oblivious to the reality that prejudice never hears” (ABSENT..., 2001).
Moacir Oliveira de Alcântara | 141

entre brancos, da capacidade de falar sobre tais questões e de assumir que


da condição racial branca decorrem privilégios.
Chamamos atenção, especialmente, para os dois últimos versos do
excerto destacado, no qual os membros da Aryan Nations são descritos
como “condicionados pela retórica que confirma os seus medos/ alheios à
realidade de que o preconceito jamais ouve” (ABSENT..., 2001, tradução
nossa). Esse trecho remete-nos aos estudos da cientista social Robin DiAn-
gelo acerca da branquitude nos Estados Unidos. Segundo DiAngelo (2018),
um dos efeitos do racismo sistêmico observado na sociedade estaduni-
dense se manifesta na forma de posturas defensivas e silenciamentos por
parte de pessoas brancas quanto a discussões e situações nas quais elas
são confrontadas com questões acerca de raça e racismo. De acordo com a
autora, tais reações cumprem papeis na manutenção de posicionamentos
e visões de mundo racistas que sustentam o privilégio branco. A segrega-
ção e a desigualdade racial da sociedade norte-americana resultam no
isolamento do grupo racial branco que, assim, raramente é levado a se
questionar sobre assuntos que envolvam a raça (DIANGELO, 2018, p. 37).
Desse modo, o sujeito subjetivado pelos paradigmas da branquitude acaba
guiado pela naturalização/internalização de sentimentos de superioridade
e de merecimento quanto às vantagens sociais a que tem acesso. Ainda
segundo DiAngelo,

falar diretamente sobre poder e privilégio branco, além de fornecer informa-


ções muito necessárias e definições compartilhadas, também é em si uma
poderosa interrupção de padrões discursivos comuns (e opressivos) em torno
da raça. Ao mesmo tempo, os brancos muitas vezes precisam refletir sobre
informações raciais e poder fazer conexões entre as informações e suas pró-
prias vidas. [...]. Ver a ira branca, a defensibilidade, o silêncio e a retirada em
resposta a questões de raça através da estrutura da Fragilidade Branca podem
ajudar a estruturar o problema como uma questão de construção de
142 | Diálogos com a Música Extrema

resistência e, assim, orientar nossas intervenções de acordo com ela


(DIANGELO, 2018, p. 53-54).

Assim, as imagens que a banda Aus Rotten difunde acerca dos segui-
dores da Aryan Nations em Absent Minded, para além de revelarem
práticas, discursos, concepções e modos de ser de supremacistas brancos,
trazem, segundo a perspectiva anarchopunk, representações que questio-
nam o tipo de branquitude que caracteriza o referido grupo de extrema-
direita. Ao descrever e questionar os atributos do grupo neonazista, subor-
dinado a discursos que atestam o temor racista em relação à perda de
privilégios e alienado pelos preconceitos que cultiva, a canção acarreta pro-
cessos de subjetivação de sujeitos anarchopunks que constituem
resistência ao racismo a partir da identificação de princípios que regem as
condutas do grupo Aryan Nations, ao qual rechaça. Quando sujeitos anar-
chopunks brancos conscientemente criam seus modos de representar
racistas/neonazistas – covardes, intolerantes, obtusos e crédulos em afir-
mações inverídicas e estereotipadas acerca de grupos raciais não brancos
– esses sujeitos articulam as suas identidades a partir da interrupção dos
parâmetros discursivos sobre a raça branca correntes na cultura estadu-
nidense. Rompendo o silêncio sobre a raça e o racismo com base na crítica
a um grupo racista, os anarchopunks estão a confrontar a própria “fragili-
dade branca” sobre a qual DiAngelo (2018) discorre. Desse modo, Absent
Minded evidencia a opção do sujeito anarchopunk por avançar da mera
desaprovação pública em relação ao racismo (branquitude crítica) para
efetivas práticas antirracistas.
O andamento hardcore/crust de Absent Minded tem continuidade no
refrão e nas estrofes seguintes. No entanto, o riff empregado no refrão,
que se inscreve em uma construção musical baseada em um fraseado de
cromatismo, ressalta ainda mais a atmosfera de tensão presente em toda
Moacir Oliveira de Alcântara | 143

a música. A ordem decrescente cromática do fraseado do refrão, que oscila


de tons agudos para tons mais graves, em combinação com a entonação
vocal que sugere ódio e sarcasmo, dramatiza os sentimentos de repulsa
que a canção quer expressar em relação ao racismo da Aryan Nations. Em
meio a essa atmosfera, chama atenção o verso que diz “é patético que a
característica da qual mais se orgulham seja a cor de sua pele”14
(ABSENT..., 2001, tradução nossa), uma vez que ele se conecta a outros
dois versos da estrofe seguinte em que a canção representa os neonazistas
como indivíduos que seguem “acreditando na própria superioridade en-
quanto atuam como peões/ para políticos manipuladores que plantam
sementes submissas”15 (ABSENT..., 2001, tradução nossa). Vistos em suas
interconexões, os versos assinalados apontam para o fato de que a subje-
tividade anarchopunk antirracista reconhece os efeitos de um dispositivo
de dominação racial que tem sido reproduzido pelo menos desde o século
XIX: a compensação dos brancos norte-americanos das classes inferiores
com um “salário público e psicológico” (DU BOIS Apud ALEXANDER,
2017, p. 350) que os protege de se igualar ao nível de máxima degradação
dentro do ordenamento racial dos Estados Unidos. Esse status é reservado
aos negros e, assim, o branco se vê agraciado com ganhos parcos, mas
reais, sendo capturado na perversa lógica subjacente à ideia de que, ainda
que sofra, “ao menos não é negro”.
Sabendo que grande parte dos militantes supremacistas brancos dos
Estados Unidos é recrutada entre as camadas mais pobres e iletradas da-
quela sociedade, os sentidos que a perspectiva anarchopunk contida nesse
trecho de Absent Minded confere aos neonazistas – “peões” submissos ao
enganoso jogo de políticos que usam a raça como instrumento para a

14
“It's pathetic that their loudest proudest characteristic is the color of their skin” (ABSENT..., 2001).
15
"Believing in their superiority while functioning as pawns/ To manipulative politicians who plant submissive
seeds" (ABSENT..., 2001).
144 | Diálogos com a Música Extrema

divisão das classes menos favorecidas – parecem cabalmente concordantes


com a perspectiva que Michelle Alexander expõe no livro “A nova segrega-
ção: racismo e encarceramento em massa” nesse sentido. Segundo a
defensora dos direitos civis, a partir de Nixon, todos os presidentes dos
Estados Unidos (incluindo Barack Obama) se valeram do discurso profun-
damente racializado da “Guerra às drogas”, de grande apelo entre
expressivo percentual do eleitorado branco dos Estados Unidos, como
parte das táticas para que fossem eleitos16 (ALEXANDER, 2017, p. 89-108).
O item discursivo central apresentado na estrofe final de Absent Min-
ded é uma tomada de posição (stance-taking) dos sujeitos anarchopunks
da banda Aus Rotten em relação às suas convicções e posicionamentos an-
tirracistas. Nesse trecho da canção os seguintes versos são entoados:

Estou cansado da intimidação e da manipulação que eles usam/ Estou cansado


de ouvir sobre outro ataque com motivações raciais/ É por isso que é tão im-
portante que nunca viremos as costas/ Nossa inércia e indiferença os
fortalece/ Quando nos mantemos em silêncio nós convidamos essa ameaça
racista/ Faremos com que esses fanáticos sejam tão inexistentes quanto as
suas mentes/ Eles não merecem nenhuma simpatia com a qual possam se es-
conder (ABSENT..., 2001, tradução nossa)17.

O excerto acima expressa indignação diante das violentas táticas em-


pregadas pela organização neonazista Aryan Nations nos ataques que
promove a negros e outras minorias. No trecho também identificamos o

16
Segundo Alexander (2017), os argumentos que sustentam a chamada “Guerra às drogas”, iniciada pelo governo
norte-americano nos anos 1970, são adjacentes à disseminação de estereótipos de usuários de drogas através da
mídia. A autora assinala que o governo Reagan, por exemplo, foi responsável por iniciar uma campanha midiática
em torno da alavancada do crack nos guetos dos Estados Unidos. “Praticamente da noite para o dia, a mídia estava
saturada de imagens de “putas do crack”, “traficantes do crack” e “bebês do crack” – imagens que pareciam confirmar
os piores estereótipos raciais a respeito dos moradores das regiões empobrecidas dos centros das cidades”
(ALEXANDER, 2017, p. 40).
17
“I'm tired of the intimidation and manipulation that they use/ I'm tired of hearing about another racially motivated
attack/ That's why it's so important that we never turn our backs/ Our inaction and indifference provide the strength
they get/ When we keep our silence we invite this racist threat/ Let's make these bigots as non existent as their
minds/ They don't deserve any sympathy that they can hide behind” (ABSENT..., 2001).
Moacir Oliveira de Alcântara | 145

aspecto da clareza que o sujeito anarchopunk aparenta ter em relação aos


papéis que devem ser desempenhados por brancos na luta antirracista, tal
qual autores como Schucman (2012) e DiAngelo (2018) teorizam. No mo-
mento em que esses sujeitos reconhecem que posturas inertes e
indiferentes alimentam o racismo, eles assumem os encargos da interrup-
ção dos efeitos das estruturas que em que se assenta a hierarquização
racial. Como bem diz Almeida (2019), a perpetuação do racismo é intima-
mente dependente de processos de produção de subjetividades que pouco
sejam sensíveis aos atos de discriminação e violência racial. Para que o
racismo possa operar, são necessários dispositivos de normalização/natu-
ralização de um mundo ordenado de maneira desigual entre “brancos”
(superiores, universais, privilegiados) e “não brancos” (subalternos, par-
ticulares, desfavorecidos) (ALMEIDA, 2019, p.63). É possível inferir, a
partir dessa perspectiva, que a superação do racismo passa necessaria-
mente por um processo de desnaturalização das relações raciais
hierárquicas. O silêncio dos brancos quanto a questões raciais é um dos
múltiplos efeitos do racismo estrutural a propiciar a produção e reprodu-
ção do racismo nas relações cotidianas. Nesse sentido, a interpretação dos
sentidos dos versos que dizem “É por isso que é tão importante que nunca
viremos as costas/ Nossa inércia e indiferença os fortalece/ Quando nos
mantemos em silêncio nós convidamos essa ameaça racista” (ABSENT...,
2001, tradução nossa) pode ser feita como uma declaração de comprome-
timento com posições antirracistas desses sujeitos anarchopunks que
integram a banda Aus Rotten, uma vez que chamam atenção para a neces-
sidade de se romper os silenciamentos que propiciam a reprodução do
racismo nas relações sociais cotidianas.
146 | Diálogos com a Música Extrema

Considerações finais

Como um dos elementos mais evidentes que se relacionam à cultura


punk, a música é uma das vias pelas quais o acesso às múltiplas identida-
des e subjetividades que transcorrem nesse universo se faz possível. A
análise da canção Absent Minded do Aus Rotten, um dos grupos mais re-
presentativos da vertente anarchopunk entre os anos 1990 e princípios do
atual século, nos revela como determinadas estratégias representacionais
são adotadas por punks como táticas de resistência, questionamento e des-
construção de imaginários hegemônicos, os quais sustentam e legitimam
estruturas de poder/dominação como as que têm historicamente definido
as relações entre os diversos grupos raciais, sempre em benefício dos pri-
vilégios e vantagens da branquitude. Historicamente a arte tem sido um
dos mais eficientes métodos para se subverter as múltiplas manifestações
do poder disciplinar que age sobre os corpos, tornando-os dóceis. Repeti-
das vezes, o movimento punk e os sujeitos que dele fazem parte
demonstram ter compreendido essa potência da arte em subversões locais
dos arcabouços de opressão como o sexismo e o racismo, por exemplo.
Desse modo, percebemos que, ao tematizar o racismo em suas músicas, as
subjetividades que integram a banda Aus Rotten assinalam a sua própria
rebelião diante da branquitude racista estadunidense. Em outro sentido, o
que acaba se colocando são também imagens que questionam a insistência
midiática em reforçar arquétipos do punk baseados em imagens de jovens
alienados ou “rebeldes sem causa”. Como se pôde constatar na presente
análise, os modos de ser e as ideias sob as quais a subjetividade anarcho-
punk se coloca apontam para sentidos inversos àqueles que comumente
inundam os noticiários, os jornais e as TV’s quando se trata daqueles que
rompem com normas e padrões sociais, como é o caso dos punks.
Moacir Oliveira de Alcântara | 147

Absent Minded propõe, a partir da perspectiva antirracista de sujeitos


anarchopunks, a problematização do racismo através de imagens que
exercem funções de tecnologias ou pedagogias sociais de resistência. Ao
interpelar o seu público com tais representações, o grupo Aus Rotten cria
sentidos para raça, racismo e antirracismo e, mais importante, coloca em
prática a célebre assertiva de Angela Davis, proferida no Oakland Audito-
rium em setembro de 1979, de que “numa sociedade racista não basta não
ser racista, é necessário ser antirracista” (KENDI, 2016, p. 429). As subje-
tividades desses sujeitos anarchopunks não são cegas em relação aos
privilégios que emanam de sua branquitude, mas clamam pela urgência
histórica em não assentir de maneira apática para com as estruturas e os
efeitos do racismo que incessante e cotidianamente produz vítimas.

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Agenda. Intérprete: Aus Rotten. Pittsburgh: Rotten Propaganda Records, 2001. 1
disco vinil, lado B, faixa 4 (2 min 10 seg).
Autor: Márcio Destito
5

O antipátria:
ensaio de uma transvaloração dos valores no Black Metal

Roberto Scienza

Ao som de Uprising – “Thrones to Overthrow”


Do album uprising (2016)
https://www.youtube.com/watch?v=7igbhMWU7hQ

Introdução

BLACK METAL IST KRIEG!1 Guerra contra o cristianismo, contra os


valores cristãos. Satanás é seu símbolo de resistência anticristã, o adver-
sário, o opositor, que provoca o dissenso, incita a revolta, que ousa provar
do fruto do conhecimento. O Black Metal nasceu como contestação, como
libertação. Hoje, entretanto, é espaço, palco e palanque para nacionalistas
e supremacistas raciais. É inegável dizer: o Black Metal não é apenas mú-
sica. Não é só metal sujo e rápido, repleto de blast beats, guitarras com
trêmolo picking e vocais guturais rasgados. Não é só satanismo e blasfê-
mia, atmosferas sombrias e músicos de corpse paint. Há, certamente, uma
ideologia dominante na cena de Black Metal: um elitismo e nacionalismo
exacerbados, heterossocialidade e, é claro, um anticristianismo violento
que, muitas vezes, é reforçado por meio da utilização de elementos pagãos.
Este ensaio parte da filosofia de Friedrich Nietzsche e sua crítica ao
cristianismo, bem como a sua influência sobre o Black Metal enquanto ex-
pressão artística e ideológica. É inegável a influência que o polêmico

1 Black Metal ist Krieg (Black Metal é Guerra) é o nome do terceiro álbum da banda norueguesa Nargaroth, lançado
em 2001. Seu título é uma das frases mais repetidas na cena de Black Metal no mundo todo.
154 | Diálogos com a Música Extrema

filósofo alemão tem sobre essa vertente extrema do metal, sendo referên-
cia direta na obra de centenas bandas. Algumas notórias referências às
ideias de Nietzsche estão presentes na música do BATHORY, Gorgoroth,
Judas Iscariot, Anaal Nathrakh, Hate Forest, entre outros. No Black Metal,
Nietzsche foi utilizado para afirmar o anticristianismo, glorificar povos pa-
gãos, defender o elitismo e individualismo, críticar a moral e transvalorar
valores. No entanto, assim como fizeram os nazistas, black metallers ra-
cistas se utilizaram de Nietzsche para sustentar valores eugênicos e
supremacistas e propagar políticas de extrema-direita.
Com a finalidade de entender como isso ocorreu, desenvolve-se a re-
lação entre o anticristianismo deste começo da cena do Black Metal e o
anticristianismo de Nietzsche, principalmente por meio da banda sueca
BATHORY. Observa-se que o anticristianismo satânico-nietzschiano no
Black Metal passa a afirmar religiões pagãs e um nacionalismo romântico
ainda com o BATHORY, especialmente quando a banda começa a abordar
histórias sobre os Vikings. Este discurso se desenvolve de maneira bas-
tante expressiva na cena norueguesa, com destaque para o Burzum,
fortalecendo discursos de extrema-direita e de supremacia racial nesses
países, que se estenderam para a cena de National-Socialist Black Metal
(NSBM ou Black Metal Nacional-Socialista) na Europa e no mundo. Afir-
mamos que a influência dos escandinavos não se restringe à música, mas
também à cultura e ideologia do Black Metal ao redor do mundo. Leva-se
em consideração o nacionalismo e a xenofobia presentes na Escandinávia,
uma vez que as bandas que mais influenciaram a cultura black metaller
são dessa região da Europa. Toma-se o BATHORY e a cena norueguesa
(nas personagens de Euronymous e Varg Vikernes) como objetos de aná-
lise. Denuncia-se o conteúdo político e religioso em seus discursos
expresso por meio das bandas BATHORY, Mayhem e Burzum e entrevistas
e declarações públicas de Quorthon, Euronymous e Varg.
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Em seguida, opera-se uma aproximação entre o Black Metal, Nietzs-


che e o nazismo com a finalidade de entender sua utilização no NSBM. Por
meio da análise de declarações dos principais membros da Absurd (Hen-
drick Möbus) e Graveland (Rob Darken), denuncia-se que a filosofia
nietzschiana foi corrompida pelo NSBM no mesmo sentido que os Nazistas
fizeram, com algumas mudanças mais adequadas ao subgênero. Desta-
cam-se as interpretações nazistas de conceitos de Nietzsche, como a
vontade de potência, a moral de senhores e escravos, o übermensch e a
transvaloração dos valores, bem como seus contrapontos presentes na
obra do filósofo alemão. Discute-se que os valores nacionalistas e religiosos
são perniciosos para o Black Metal, pois são valores compartilhados por
black metallers e supremacistas raciais. Ademais, por meio de Nietzsche,
argumenta-se que tais valores são valores de ovelhas, mera moral de re-
banho e escrava que, ressentida pela aniquilação de sua cultura
ancestral/nacional, quer se vingar do mundo moderno abraçando valores
ultraconservadores vigentes, que acabam justamente por afirmar o Estado
moderno e o patriotismo.
Com a finalidade de contrapor o discurso “nazi-nietzschiano”, pro-
põe-se uma interpretação subversiva e monstruosa da filosofia de
Nietzsche. Não é precisamente o que fizeram os nazistas? No entanto, com
um fim diferente: o procedimento adotado neste ensaio consiste na apro-
priação da filosofia nietzschiana com a finalidade de fazer nascer um
monstro anarquista e pluralista, anti-autoridade e antirreligião, também
presente no pensamento de Nietzsche. Por meio das bandas Dawn Ray'd,
Profecium e Uprising, argumenta-se que a resistência está viva e afirma-
tiva no Red And Anarchist Black Metal (RABM ou Black Metal Vermelho e
Anarquista), mas necessita de aliados. Elenca-se no RABM uma forte con-
traposição aos ideais nacionalistas e racistas presentes no Black Metal.
Ademais, por meio das letras da Profecium e da Uprising, mostra-se que
156 | Diálogos com a Música Extrema

Nietzsche está vivo e presente no Black Metal antifascista, inspirando


ideias libertárias, de revolta, anti-opressão e anti-exploração.

Da Encruzilhada ao Inferno

O Rock N' Roll tem uma longa história com Satanás, seja na figura do
pecado e da libertinagem, na do oculto ou ainda na do adversário, aquele
que questiona os valores cristãos. Desde suas raízes no Blues, o diabo era
uma figura bastante abordada por artistas como Robert Johnson, Skip Ja-
mes e Son House. Robert Johnson, aliás, ficou famoso por suas canções
que tinham o diabo como tema, como Crossroads e Me and The Devil
Blues. No metal, as coisas só ficaram mais aparentes. Do Black Sabbath ao
Iron Maiden, Satanás já era trabalhado de maneira explícita.
Os escritos de Anton LaVey (1969) são particularmente populares
entre headbangers. LaVey foi o autor da bíblia satânica e fundador da
Igreja de Satã. O satanismo moderno de LaVey, surgido do contexto con-
tracultural dos Estados Unidos em meados dos anos 1960, criou sua
primeira igreja em 1966, na cidade de São Franciso. Na bíblia satânica,
Satã é tomado como símbolo de soberania e vontade individual. LaVey
(1969) pregava a exaltação do ser humano e a destruição de paradigmas.
Um pensamento bastante progressista. A Igreja de Satã chegou a patroci-
nar bandas de rock psicodélico que estavam emergindo na cena de São
Francisco no final dos anos 1960, como Coven, banda americana que tinha
letras ligadas a magia negra e satanismo (OLSON, 2008). Os satanistas
ligados à LaVey nunca simpatizaram com discursos conservadores, homo-
fóbicos e totalitários, pois viam nisso uma volta a valores cristãos. Não há
adoração a Satanás, sacríficios humanos, nem nada do tipo, mas rituais
teatrais e orgias regadas a drogas, nas quais muitos músicos da época par-
ticiparam.
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A banda que cunhou o termo Black Metal foi a inglesa Venom, por
meio de seu segundo álbum, Black Metal, de 1982. Este álbum, inclusive,
já trazia também uma estética que seria amplamente copiada no subgê-
nero: a monocromia e o uso da fonte Old English. E o som? Bem, o Venom
era certamente mais pesado que as outras bandas da New Wave of British
Heavy Metal (NWOBHM), bastante influenciada pela cena punk e com
uma abordagem lírica e imagética explicitamente satânica. Antes de seu
álbum de 1982, o seu primeiro álbum, Welcome to Hell (1981), já causava
um tremendo desconforto na comunidade cristã.

Figura 1: Capa do álbum Black Metal, de 1982

Nos primórdios do Black Metal, bandas como Venom, Hellhammer e


BATHORY apresentavam um conteúdo satanista calcado na blasfêmia
como elemento teatral. Tratava-se de contestação. De oposição à ordem
dominante. De revolta contra o cristianismo. Afinal, há melhor maneira de
chocar a moral cristã que com seu adversário, Satã? Este satanismo já
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tinha, além de LaVey, uma forte relação com a filosofia nietzschiana, pois
Nietzsche fez inúmeras e notórias críticas ao cristianismo e via no diabo
um símbolo de emancipação. “O Diabo: o mais velho amigo do conheci-
mento” (NIETZSCHE, BM, §129). Nietzsche é o imoralista (EH), o
destruidor par excellence (EH), o anticristo (AC), o anunciador da morte
de deus (ZA). E assim querem ser os black metallers. O alemão era filho e
neto de pastores luteranos e teve uma educação bastante rígida e encami-
nhada para a teologia. Sua crítica ao cristianismo começou a ser moldada
na adolescência. O filósofo via no cristianismo a fonte da pobreza de espí-
rito, que controla seus crentes por meio da culpa e da promessa de um
além-mundo e ideais ascéticos (AC). Em sua obra, Genealogia da Moral,
Nietzsche (GM) denuncia as origens filológicas do Bem e do Mal. Para o
alemão, “necessitamos de uma crítica dos valores morais, o próprio valor
desses valores deverá ser colocado em questão — para isto é necessário um
conhecimento das condições e circunstâncias nas quais nasceram, sob as
quais se desenvolveram e se modificaram” (NIETZSCHE, GM, Prólogo VI).
De que modo inventou o homem estas apreciações de valor “Bem” e
“Mal”? E que valor elas têm em si mesmas? Foram ou não favoráveis ao
desenvolvimento da humanidade? São um sintoma funesto do empobre-
cimento vital, de degeneração? Ou indicam, pelo contrário, plenitude,
força e vontade de viver, coragem, confiança no futuro da vida?
(NIETZSCHE, GM, prólogo III). Para o alemão, a questão do valor dos va-
lores morais é de primeira ordem porque a moral estabelece as condições
em que o futuro da humanidade se desenvolve (NIETZSCHE, EH). Nietzs-
che (ZA, prefácio 9), portanto, advoga pela destruição das tábuas de
valores existentes. Para o alemão, só assim poderemos criar novos valores,
pois o infrator é também o criador.
Cronos, vocalista e baixista da banda Venom, já expressou visões in-
fluenciadas pela filosofia nietzschiana. Em uma entrevista cedida por
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Cronos, é possível visualizarmos a crítica aos valores ascéticos, ao ressen-


timento e à culpa e também a exaltação do Amor Fati. Numa mistura de
filosofia Nietzschiana e satanismo de LaVey, é possível termos uma ideia
do que era o Black Metal em seu estado embrionário:

É nesses termos que nós usamos o satanismo, ou seja, pensando no lado posi-
tivo de todas as coisas. Se você é um desses católicos, cristãos ou sei lá o quê,
está sempre preso aos seus medos. Ao invés de tentar ser perdoado por seus
pecados, por que não assumí-los? Ninguém é responsável por eles, a não ser
você mesmo. Por outro lado, se você fez algo incrivelmente bom, deve receber
o crédito também. Se dê um tapinhas nas costas ao invés de dizer "obrigado,
Deus" e aceite as coisas ruins e as coisas boas (CRONOS, 2006, p. 57).

Um dos aspectos da crítica nietzschiana ao cristianismo é que este


tornou os homens ressentidos. Para o alemão, na esperança de uma re-
compensa posterior, o crente cristão condenou sua vida a dogmas
castradores dos instintos e da vontade, à miséria, à culpa e à punição
(NIETZSCHE, BM). Isso é um problema fisiológico. O ressentido não con-
segue reagir frente aos problemas e sentimentos ruins. O ressentimento o
impede de viver o presente efetivamente (PASCHOAL, 2008). Nietzsche
expressa sua cura para o ressentimento: “minha fórmula para a grandeza
no homem é amor fati: Nada querer diferente, seja para trás, seja para
frente, seja em toda eternidade” (NIETZSCHE, EH, Por que sou tão inteli-
gente?, §10). Trata-se de uma afirmação trágica da existência. Dizer sim
às alegrias e dores. Eis o satanismo de Cronos.

Suécia: o anticristo Viking

A banda sueca BATHORY, encabeçada por Quorthon (1966-2004),


pseudônimo de Thomas Börje Forsberg, é a banda que estava mais à frente
de seu tempo se levarmos em consideração seu debut de 1984, BATHORY,
160 | Diálogos com a Música Extrema

que já trazia um som mais extremo que bandas como Venom e Hellham-
mer, com vocais bem sujos, uma produção bruta e lowfi e uma capa
monocromática com fonte Old English (já influenciada pela capa do álbum
de 1982 do Venom), todos traços que seriam amplamente usados no gê-
nero a partir deste álbum. A influência de bandas como GBH, Motorhead,
Slayer e, é claro, Venom, sobre este primeiro álbum do BATHORY é evi-
dente. Numa mistura pesada de heavy metal veloz e punk rock sujo aliados
a uma temática satânica explícita, o primeiro do BATHORY é um marco
na história do Black Metal e do metal extremo como um todo. Os três pri-
meiros álbuns da banda, BATHORY (1984), The Return... Of Darkness and
Evil (1985) e Under the Sign of the Black Mark (1987), são conhecidos como
a trilogia de Black Metal e foram extremamente influentes na cena.

Figura 2: Capa do álbum BATHORY, de 1984

A Europa tem uma longa tradição racista. Afinal, são os europeus os


colonizadores da humanidade. Etnias diferentes encontradas em “novas
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terras” eram frequentemente tomadas como criaturas próximas dos ani-


mais, apenas bestas selvagens sem intelecto. Na Suécia, país de Quorthon,
o contexto político de 1987 era complicado: o Partido da Suécia, ligado a
extrema-direita sueca, tinha grandes chances de conseguir importantes
cargos políticos. A militância de extrema-direita, com uma juventude de-
terminada e disciplinada, se aliou a skinheads neonazistas e começou a
tomar as ruas: seus maiores alvos eram imigrantes, principalmente não-
europeus (não-brancos). Até mesmo “racistas de armário” passaram a
acompanhar e endossar o discurso proferido pelo Partido da Suécia. Essa
militância tornou-se tão perigosa que a organização nacional Stop Racism
concordou que a ameaça devia ser contida. O embate entre os militantes
de extrema-direita e a resistência antifascista sueca tomou as ruas de Es-
tocolmo por vários meses, o que culminou na dissolução do Partido da
Suécia. Entretanto, com a dissolução, alguns membros fundaram, em
1988, o Partido Democratas Suecos, que persiste até hoje (LARSSON,
1991).
Conforme Spracklen (2020) que, em seu artigo Bathory and Viking
Metal, faz uma análise da carreira do BATHORY e suas ligações com o na-
cionalismo, o quarto álbum, Blood Fire Death (1988), introduziu o
subgênero do Viking Metal ao público headbanger, também chamado de
metal pagão ou Heathen Metal. O autor comenta o título do álbum:

O sangue pode ser o sangue dos antepassados de alguém, o mito da raça e do


sangue sagrado, e não apenas o sangue dos inimigos. O fogo pode ser o fogo
purificador do sacrifício, o fogo da purificação ou o fogo relacionado ao estupro
e a pilhagem. A morte pode ser a própria morte de alguém lutando contra os
inimigos impuros de Odin, os estrangeiros e cristãos ou pode ser a morte de-
les2 (SPRACKLEN, 2020, p. 94, tradução nossa).

2 "Blood could be the blood of one’s forefathers, the myth of race and holy blood, and not just the blood of one’s
enemies. Fire could be the cleansing fire of sacrifice, the fire of purification or the fire that follows rape and pillage.
162 | Diálogos com a Música Extrema

A partir deste álbum o tema principal do BATHORY começou a ser a


mitologia escandinava. O álbum seguinte, Hammerheart (1990), é consi-
derado a essência do Viking Metal, o orgulho pelo sangue, pela nação e
pela raça e a glorificação da hipermasculinidade do Viking. Segundo Sprac-
klen (2020), se ouvirmos com atenção o álbum Hammerheart podemos
ter a seguinte narrativa: A primeira faixa, Shores in Flames, conta a histó-
ria de homens nórdicos fortes, honrados e viris, que cruzam os mares,
batalham e morrem como guerreiros. A faixa seguinte, Valhalla, é uma
sequência de Shores in Flames, na qual estes homens estão cavalgando nos
céus, balançando suas espadas. A terceira faixa, Baptised in Fire and Ice,
conta a história de um filho de uma tribo nórdica, que aprende a ser um
guerreiro pagão com seu pai. Na seguinte, Father to Son, Quorthon des-
creve as aventuras dos Vikings nos ventos, montanhas e florestas nórdicas.
O seguinte verso se destaca: “Prometa-me, meu filho sempre/Valorizar o
que é lar para você/O que é a verdade e/Defender todos de sua raça”3
(HAMMERHEART, 2020, tradução nossa). Spracklen (2020, p. 98, tradu-
ção nossa), com razão, afirma ser esta a prova da presença do
“nacionalismo e racismo (e masculinidade hegemônica) no coração do
tema Viking, a canção continua a dizer ao filho que não traga desonra à
“sua bandeira”. Filhos verdadeiros seguem seus pais na luta pela nação,
por sangue e por raça”4.
Na curta quinta faixa, Song to Hall Up High, Quorthon expressa o
orgulho que o guerreiro Viking (ou ele mesmo) tem por sua ancestralidade

Death might be one’s own death fighting against the impure enemies of Odin, the foreigners and Christians or it could
be their deaths" (SPRACKLEN, 2020, p. 94).
3 "Promise me my son to always/Cherish what is home to you/What is the truth and to/Defend all of your race”.
4 "Nationalism and racism (and hegemonic masculinity) at the heart of this Viking theme, the song continues to tell
the son to not bring dishonour to “his flag”. Sons who are true follow their fathers in fighting for the nation, for blood
and for race” (SPRACKLEN, 2020, p. 98).
Roberto Scienza | 163

e seu deus. A sexta faixa, Home of Once Brave, é o lamento de Quorthon


sobre como os homens hoje não são mais bravos como antes. Conforme
Spracklen (2020), Hammerheart termina com a chegada do cristianismo.
Na última faixa, One Rode to Asa Bay, Quorthon relata rumores sobre a
chegada de um deus estrangeiro e todo poderoso. Então, descreve um ho-
mem sem barba, usando renda roxa e cheirando a flores, não cerveja.

A aparência deste homem é ridicularizada: a nova religião traz consigo desa-


fios ao que significa ser um homem. Eles estão cortando suas barbas e se
tornando mulheres. Quorthon diz que agora há um “Deus estrangeiro” ado-
rado e termina nos avisando que “apenas começou”. O álbum inteiro, então,
se concentra nas mudanças negativas trazidas por outsiders e aqueles que não
pertencem à raça ou nação. Quorthon está infeliz porque a masculinidade do
guerreiro e o código de honra dos Vikings foram substituídos pela estrangeira,
sulista e feminina religião da paz5 (SPRACKLEN, 2020, p. 99, tradução nossa).

Há passagens da filosofia nietzschiana em que o filósofo compara o


cristianismo com as raças fortes e bárbaras do Norte. Nietzsche afirma ser
o cristianismo proveniente de um submundo da antiguidade, onde há ho-
mens fracos e exauridos e que, quando encontrou as fortes e bárbaras
“raças” do Norte, teve que incorporar estratégias e conceitos bárbaros para
se assenhorar delas (NIETZSCHE, AC, §22). Para Nietzsche (AC, §19), “as
raças fortes do Norte da Europa não terem rechaçado o Deus cristão cer-
tamente não honra o seu talento religioso, para não falar do gosto. Elas
tinham de acabar com um produto assim decrépito e doentio da déca-
dence". A utilização de Nietzsche era, desde o começo portanto, óbvia.

5 This man’s appearance is mocked: the new religion brings with it challenges to what it means to be a man. They are
cutting off their beards and becoming women. Quorthon says there is now a “foreign God” worshipped, and ends by
warning us that it has “only just begun”. The entire album, then, dwells on the negative changes brought by outsiders
and those not of the race or nation. Quorthon is unhappy that the warrior masculinity and the code of honour of the
Vikings was replaced by the foreign, southern, feminine religion of peace (SPRACKLEN, 2020, p. 99).
164 | Diálogos com a Música Extrema

O Black Metal escandinavo é uma rejeição da modernidade a favor de


um passado pagão idealizado. Hoje, muitos escandinavos reinterpretam
histórias dos Vikings e da mitologia nórdica para criar uma identidade
para si mesmos, uma que seja o que um verdadeiro escandinavo deveria
ser, sem ser influenciado pela fraqueza do mundo moderno. A fonte de
maior fraqueza para estes é o cristianismo. O Cristo redentor e seus segui-
dores são feminizados em comparação com os deuses guerreiros nórdicos
que, com sua bravura e hipermasculinidade, servem como modelo para o
homem nórdico.
Spracklen (2020) apresenta-nos uma crítica do álbum Hammerheart,
em que o crítico descreve um orgulho e uma raiva silenciosa sobre a faixa
One Road to Asa Bay. Quorthon está com raiva, pois sua cultura foi forço-
samente “estuprada” por forças e religiões estrangeiras. Para o sueco, os
homens falharam em ser verdadeiros homens e lutar contra essas forças
estrangeiras. À luz da filosofia nietzschiana, o cristianismo domesticou os
instintos e desejos do homem (nórdico), domesticou o que havia de caó-
tico, de forte, de grandioso no humano. As críticas de Nietzsche (AC) ao
cristianismo, especialmente em sua obra O Anticristo, chamam atenção
para o fato de que o cristianismo é uma religião estrangeira. Fraca e deca-
dente, ela domestica os instintos e ceifa a vontade. O alemão afirma que o
cristianismo é uma revolta daquilo que é mais baixo e medíocre “contra
tudo o que há de nobre, alegre, magnânimo na Terra, contra nossa felici-
dade na Terra...” (NIETZSCHE, AC, §43). O cristão é um animal
doméstico, um animal de rebanho, uma doentia besta humana e devemos
deixá-lo perecer.

Sem dúvida: com isso o "reino de Deus" ficou maior. Antes ele tinha apenas
seu povo, seu "povo eleito". Nesse meio-tempo, tal como seu povo mesmo, ele
partiu em andança para o exterior, não mais se deteve em nenhum lugar: até
Roberto Scienza | 165

enfim estar em casa em toda parte, o grande cosmopolita - até ter do seu lado
"o grande número" e metade da Terra. Apesar disso, o deus do "grande nú-
mero", o democrata entre os deuses, não se tornou um orgulhoso deus pagão:
continuou judeu, continuou o deus dos pequenos cantos, o deus das esquinas
e paragens sombrias, dos locais insalubres de todo o mundo!... Seu reino do
mundo é sempre um reino do submundo, um hospital, um reino subterrâneo,
um reino-gueto... E ele próprio, tão pálido, tão fraco, tão décadent...
(NIETZSCHE, AC, §17).

A partir da análise de Hammerheart, o discurso político evidenciado


é: o cristianismo reprimiu a honrada cultura nórdica e suas crenças, logo,
estes povos tiveram que se adaptar e abandonar sua religião e cultura.
Hammerheart é puro romantismo conservador e nostalgia por uma Es-
candinávia antes do cristianismo. A capa mesmo traduz isto. Foi utilizada
uma pintura romântica vitoriana chamada O Funeral de um Viking, obra
do inglês Frank Dicksee, de 1893. As fotos promocionais do BATHORY em
sua fase Viking traziam Quorthon na floresta, com outros dois membros
da banda, vestidos como bárbaros, segurando armas e gritando. Suas ves-
tes curtas e poses hiper masculinas são homoeróticas e visam glorificar
um tipo específico de homem: um homem forte, corajoso e viril
(SPRACKLEN, 2020). Seus pressupostos, no entanto, também diziam hé-
tero, europeu e, portanto, branco. A imagem do guerreiro neoviking em
meio a uma gloriosa floresta é uma das imagens mais imitadas do Black
Metal.
166 | Diálogos com a Música Extrema

Figura 3: Capa do álbum Hammerheart, de 1990

Conforme Spracklen (2020), os fãs do BATHORY que preferem a fase


Viking a veem como uma expressão anticristã mais autêntica que o sata-
nismo do começo do Black Metal. Entretanto, a valorização da cultura pagã
nórdica está baseada em uma masculinidade hegemônica simplista e um
nacionalismo romântico e conservador. O autor afirma que a música do
BATHORY prega uma ideologia elitista, nacionalista e antimoderna ao
mesmo tempo que nos faz sentir como se estivéssemos em um Drakkar
(barco nórdico/navio-dragão), mas a comunidade Viking perfeita imagi-
nada por Quorthon é um mito romântico. Os Vikings são um produto da
imaginação social, construído por meio de lendas e fábulas. O que as pes-
soas entendem dos Vikings vem da cultura pop, por meio de livros, filmes,
televisão e, é claro, pela música. O link genético entre as pessoas que vivem
agora e os Vikings é extremamente tênue, mesmo que algumas pessoas
brancas de extrema-direita se achem puros Vikings europeus.
Roberto Scienza | 167

Quorthon (2002), em entrevista, expressa que não é religioso e não


tem ideais políticos, que apenas cria música como quem pinta cenas com
palavras e sons. O sueco diz não se importar com a profundidade e con-
texto de sua música, que é apenas metal atmosférico; que nem sequer leu
muito de Nietzsche quando o utilizou como inspiração filosófica para suas
letras, que a influência pode ter vindo de Wagner6. No entanto, sua visão
romântica de uma Europa antes do cristianismo e dos costumes e crenças
Vikings abriu o caminho para visões nacionalistas dentro do Black Metal.
Isso não quer dizer que o BATHORY estava falando com neonazistas, ou
querendo promover política de extrema-direita em sua música. Quorthon
mesmo, tenta rejeitar a ideia de que sua música é de direita, reacionária,
nacionalista e racista. No entanto, é difícil negar que sua música foi inspi-
rada por valores elitistas e nacionalistas que inspiraram outras pessoas a
ser conservadores românticos ou militantes de extrema-direita. Trafford
e Pluskowski afirmam que o Viking Metal “é, por natureza, evangélico e
tenta envolver o ouvinte em uma visão integrada, senão especialmente
profunda, religiosa, filosófica e, às vezes, política. Ao fazê-lo, assemelha-se
muito mais à apropriação nacionalista, racista e romântica do Viking”7
(TRAFFORD, PLUSKOWSKI, 2007, p. 71, tradução nossa).

Noruega: pela glória dos antigos deuses

Assim como a Suécia, a Noruega está situada na Península Escandi-


nava. Em 1987, ano do lançamento do EP Deathcrush da banda Mayhem,
considerado o primeiro lançamento oficial de uma banda de Black Metal

6 Richard Wagner foi um maestro e compositor alemão especialmente conhecido por suas óperas. A relação de Ni-
etzsche e Wagner é bastante controversa. Nietzsche foi muito influenciado por Wagner nos seus primeiros anos de
produção intelectual até finalmente romper com o músico, quando passou a critica-lo fortemente.
7 "Is, by its nature, evangelical and attempst to engage the listener in an integrated, if not especially profound, reli-
gious, philosophical and sometimes political outlook. In doing so it resembles far more the nationalist, racist and
romantic appropriation of the Viking” (TRAFFORD, PLUSKOWSKI, 2007, p. 71).
168 | Diálogos com a Música Extrema

norueguesa, o racismo aumentou muito na Noruega. O Partido do Pro-


gresso, nacionalista e de direita, queria tornar a quantidade de imigrantes
na Noruega um problema nacional. A imigração de não-europeus para a
Noruega tinha começado nos anos de 1960, com a finalidade de preencher
a demanda de empregos na indústria petrolífera e em empregos indeseja-
dos pelos noruegueses (SALIMI, 1991).
A cena de Black Metal norueguesa dos anos 1990 emergiu ao redor
de Euronymous, pseudônimo de Øystein Aarseth (1968-1993), criador do
Inner Circle e guitarrista do Mayhem, e se tornou um fenômeno global pela
exposição midiática dos crimes que seus membros cometeram. Diversas
igrejas foram queimadas e pessoas foram assassinadas de maneira brutal,
criando um verdadeiro pânico moral. No entanto, Asprem (2008) explica
que esse pânico moral começou a ser desenvolvido pela mídia ainda em
1988, quando jovens que alegavam ter crenças satânicas estavam agre-
dindo pessoas, roubando de igrejas e adorando Satanás. Na cidade de
Halden foi descoberta uma “capela satânica” na qual havia o famoso re-
trato de Baphomet de Eliphas Levi, um altar, facas, crânios e parafernália
ocultista. Havia também preocupação em torno da venda das bíblias satâ-
nicas de Anton LaVey em Oslo. As coisas se tornaram mais sérias a partir
de 1990, quando o mito do SRA8 apareceu pela primeira vez para a audi-
ência norueguesa. Um satanismo aterrorizante passa a tomar a primeira
página dos maiores jornais da Noruega e ser anunciado de maneira fre-
quente na TV. Este cenário dura até 1992. A partir deste ano, o satanismo
midiático passa a ser ainda mais forte com o incêndio de igrejas cristãs
promovido pela cena de Black Metal norueguesa. A cena foi tão expressiva

8 SRA é a sigla para Satanic Ritual Abuse (Abuso de ritual satânico), que foi um pânico moral que se iniciou nos
Estados Unidos na década de 1980 e se espalhou para o mundo. Havia alegações de abusos em supostos rituais
satânicos, relatos de abuso físico e sexual, sacrifícios humanos, pornografia, prostituição e diversas teorias conspira-
tórias.
Roberto Scienza | 169

na Noruega que hoje faz parte do turismo do país, atraindo fãs deste con-
troverso subgênero do metal aos lugares que fazem parte da história do
True Norwegian Black Metal.
Euronymous, em entrevista à zine Kill Yourself, afirmava acreditar
em uma criatura física: “Eu acredito em um diabo com chifres, um Satanás
personificado. Na minha opinião todas as outras formas de Satanismo são
besteira”9 (AARSETH apud PATTERSON, 2013, p. 121, tradução nossa).
Um Satanismo teísta este expressado por Euronymous, no qual Satanás é
entendido como uma entidade que existe, de maneira física ou espiritual,
no mundo. Embora esse caminho, mais ligado a um Satanismo teísta
(como o Luciferianismo, o Caminho da Mão Esquerda, a Ordem dos Nove
Ângulos) tenha sido seguido por muitas outras bandas, como é o caso do
Watain e do Dissection (Ordem Misantrópica Luciferiana), o Satanismo
teísta de Euronymous parecia ser pura estratégia de choque. Euronymous
gostava de provocar pânico midiático e afirmava que o satanismo não de-
veria ser individualista, mas totalitário, opressor. Em entrevista à Isa
Lahdenperä, no ano de 1993, Euronymous declara: “Eu sou uma pessoa
religiosa e vou lutar contra aqueles que usam mal o Seu nome. As pessoas
não devem acreditar em si mesmas e ser individualistas. Eles deveriam
OBEDECER, ser os ESCRAVOS da religião”10 (AARSETH apud OSBORN,
2015, p. 13, tradução nossa). Para Euronymous, todos são apenas servos
de Satanás, inclusive ele.
Os garotos (pois todos eram muito novos) da cena norueguesa acha-
vam o satanismo de LaVey muito humanista e hedonista. Acreditavam que
o Black Metal devia ser opressor e elitista, pois as pessoas normais deviam

9 “I believe in a horned devil, a personified Satan. In my opinion all the other forms of Satanism are bullshit”
(AARSETH apud PATTERSON, 2013, p. 121).
10 "I'm a religious person and I will fight those who misuse His name. People are not supposed to believe in them-
selves and be individualists. They are supposed to OBEY, to be the SLAVES of religion" (AARSETH apud OSBORN,
2015, p. 13).
170 | Diálogos com a Música Extrema

sentir medo do Black Metal. Muitas bandas da cena norueguesa não eram
de fato satanistas, mas utilizavam Satã como um emblema de resistência
pagã, o que fez com que a evolução da cena se voltasse para religiões nór-
dicas pagãs. As bandas se utilizavam da mitologia nórdica, do
conhecimento das runas, poesia germânica e glorificavam a antiga natu-
reza como forma de afirmar o seu passado e herança cultural. A imagem
cartunesca do satanismo de bandas como Venom foi deixada para trás e o
Black Metal se tornou uma ideologia contra a modernidade e pela volta
dos deuses antigos. Shnirelman (2002, p. 204, tradução nossa) afirma isto
ser uma coisa comum entre neopagãos: “Os neopagãos estão profunda-
mente e insaciavelmente apaixonados com o passado pré-cristão, como se
nesse tempo, as pessoas vivessem em pureza virgem, não estavam cor-
rompidas por influências externas”11.
Segundo Granholm (2011), o ressurgimento de religiões pagãs é uma
tendência recorrente na história. Na chamada era do esclarecimento (ou
iluminismo) houve um grande desenvolvimento do neopaganismo na Eu-
ropa. A valorização da razão fez com que a influência da igreja cristã se
exercesse menos sobre a população, o que fez com que as pessoas pudes-
sem, pela primeira vez, praticar outras religiões abertamente.
Euronymous também flertou com a mitologia pagã, com a identidade
nórdica e com o nacionalismo norueguês. Há músicas dessa época do Ma-
yhem com Euronymous, como Pagan Fears, presente no álbum de 1994
De Mysteriis Dom Sathanas que, embora a letra tenha sido escrita pelo ex-
vocalista Per “Dead” Ohlin (1969-1991), demonstram que Euronymous
não tinha qualquer problema com a temática pagã e atavista. Na letra, ele
diz: “A história sangrenta do passado/Humanos falecidos agora

11 “Neo-Pagans are deeply and insatiably in love with the pre-Christian past, as if at that time, peoples lived in virgin
purity, were not corrupted by external influences” (SHNIRELMAN, 2002, p. 204).
Roberto Scienza | 171

esquecidos/Uma época de lendas e medo/Um tempo agora tão distante”12


(DE MYSTERIIS, 2020, tradução nossa). “Medos pagãos/O passado está
vivo”13 (DE MYSTERIIS, 2020, tradução nossa). “Pessoas infelizes com ros-
tos pálidos/Encarando a lua obcecados/Algumas memórias nunca irão
embora/E elas estarão para sempre aqui”14 (DE MYSTERIIS, 2020, tradu-
ção nossa). O discurso aqui é o mesmo de Quorthon. A chegada do
cristianismo dizimou a cultura pagã. Ademais, Euronymous lançou por
seu selo, Deathlike Silence Productions, o primeiro álbum do Enslaved, Vi-
kingligr Veldi (1994), com tema pagão explícito.
No entanto, a banda norueguesa mais notória em relação ao resgate
da cultura pagã e a destruição de elementos cristãos é o Burzum, que é
uma one man band, na qual o único membro é Varg Vikernes, também
chamado de Count Grishnackh. Varg está ligado a pelo menos três igrejas
que foram incendiadas na Noruega. Quando entrevistado para o documen-
tário Until The Light Takes Us, de 2008, argumentou que os incêndios
eram um retorno da glória escandinava e seus valores, que foram arrui-
nados pela cristianização. O cristianismo queimou a cultura nórdica. Eles
não tinham qualquer respeito pela cultura pagã. Foi um processo de geno-
cídio cultural, imposto violentamente, forçando os povos nórdicos a
abandonar seu politeísmo repleto de deuses fortes em favor de um deus
estrangeiro e fraco (UNTIL THE LIGHT TAKES US, 2008). Ou seja, o que
Varg praticou foi um ato de terrorismo pagão (BUESNEL, 2020).
É necessário concordar com Varg em alguns aspectos. O cristianismo,
por meio de uma violenta repressão de outras crenças (como aqui no Bra-
sil), fez com que os costumes e crenças pagãs fossem perdidas. Tanto

12 “The bloody history from the past/Deceased humans now forgotten/An age of legends and fear/A time now so
distant”.
13 “Pagan fears/The past is alive”.
14 “Woeful people with pale faces/Staring obsessed at the moon/Some memories will never go away/And they will
forever be here”.
172 | Diálogos com a Música Extrema

Suécia como Noruega, assim como todos os países nórdicos, foram brutal-
mente convertidos ao cristianismo (louco que um deus “fraco” tenha feito
isso, não?). Basta ver suas bandeiras. A cruz “nórdica” é símbolo da sujei-
ção destes países ao cristianismo. “O cristianismo era pouco familiar e
indesejado, a consolidação de seu poder necessitava de violência, o que
pode ser evidenciado pelo estabelecimento de igrejas cristãs sobre lugares
de importância pagã”15 (BUESNEL, 2020, p. 4, tradução nossa).
A faixa Lost Wisdom do Burzum, presente no álbum Det som engang
var (1993) que, traduzido do norueguês, significa “O que uma vez foi”,
serve de exemplo para que se entenda o discurso de Vikernes. Na faixa, o
norueguês expressa um forte sentimento de negação em relação ao cristi-
anismo, responsabilizando o Deus cristão pela destruição do verdadeiro
conhecimento, a cultura pagã e nórdica. “Negado pela igreja cega/Porque
não são palavras de Deus/O mesmo Deus que queimou o saber”16 (DET,
2020, tradução nossa).
É por este motivo que o posicionamento anticristão nos países nórdi-
cos se deu dessa forma, tomando um caráter pagão e nacionalista, de
resgatar tradições nativas e culturas que foram dizimadas. A cena de Black
Metal norueguesa promovia mitos e arquétipos nórdicos, culto à força, à
guerra, ao totalitarismo, à misantropia e ao elitismo e, frequentemente,
tomava posições machistas e supremacistas (TAYLOR, 2010). “Esses mú-
sicos abraçaram e rejeitaram o satanismo do gênero, sua ideologia
anticristã a favor de um nacionalismo mitificado”17 (LUCAS; DEEKS,
SPRACKLEN, 2011, p. 287, tradução nossa). Em vez de Satã, Odim foi elen-
cado como o herói da resistência pagã em oposição ao cristianismo.

15 “Christianity was both unfamiliar and undesired, its consolidation of power required violence, which can be evi-
denced in the establishment of Christian Churches on sites of Pagan significance” (BUESNEL, 2020, p. 4).
16 “Denied by the blind church/'Cause these are not the words of God/The same God that burnt the knowing”.
17 “These musicians have embraced and rejected the genre’s satanic, anti-Christian ideology in favour of mythologised
nationalism”. (LUCAS; DEEKS, SPRACKLEN, 2011, p. 287).
Roberto Scienza | 173

Segundo Pinkler (2001, p. 135), "a noção de paganismo só pode ser defi-
nida a partir de sua oposição ao cristianismo, uma vez em que a palavra
pagani foi utilizada pelos praticantes de tal religião não apenas para dar
significado ao “não cristão”, mas, também, ao “não judeu”".
O apoio que esses discursos têm em Nietzsche são evidentes. Há in-
terpretações de que "a doença moral do próprio Nietzsche advém da luta
interna entre o cristianismo da alma e um atavismo pagão" (CARPEAUX,
2016, p. 75). Em O Anticristo, Nietzsche ressalta a natureza afirmativa dos
pagãos: “pagãos são todos os que dizem Sim à vida, para os quais "Deus"
é a palavra para o grande Sim a todas as coisas” (NIETZSCHE, AC, §55).
Ora, os pagãos tinham amor fati, diferente dos cristãos que são ressenti-
dos. Mas não seriam estes novos pagãos ressentidos com a sujeição que
seus nobres antepassados tiveram em relação ao cristianismo? Não são
eles ressentidos com o fato de que sua cultura nórdica foi esmagada pelos
cristãos?
As afirmações nietzschianas sobre os judeus também são controver-
sas. Um dos pontos mais discutidos por Nietzsche em relação ao povo
judeu é que estes são mestres na arte da mentira. "No cristianismo, como
a arte de mentir santamente, o judaísmo inteiro, uma milenar técnica e
preparação judaica da maior seriedade, atinge sua derradeira maestria”
(NIETZSCHE, AC, §44). Nietzsche chama atenção para a ideia de que a
falsidade do judeu é genial. "Essa falsificação de palavras e gestos como
arte, não é acidente de algum dom individual, alguma natureza de exceção.
Isso requer raça" (NIETZSCHE, AC, §44). Portanto, a falsidade do judeu
destacada por Nietzsche não tem a ver com talento nem mesmo com a
cultura judaica, é algo inerente à “raça”.
Nietzsche, entretanto, fez duras críticas ao antissemitismo. Em sua
obra Nietzsche contra Wagner, o alemão escreve que se despediu interior-
mente de Wagner no verão de 1876. O motivo disso: ”eu não tolero nada
174 | Diálogos com a Música Extrema

de ambíguo; depois que Wagner se mudou para a Alemanha, ele transigiu


passo a passo com tudo o que desprezo - até mesmo o antissemitismo...
Era o momento para dizer adeus: logo tive a prova disso" (NIETZSCHE,
NW, Como me libertei de Wagner). Para o alemão, a cultura alemã estava
doente, degenerada e decadente. Uma das coisas mais repulsivas da deca-
dência alemã era justamente seu ódio pelos judeus, seu virulento e
irracional antissemitismo (NIETZSCHE apud HICKS, 2010, p. 80).
Muitos black metallers são afiliados à Ásatrú, uma religião fundada
no final dos anos 1960 no Texas que ainda hoje revive o Paganismo do
Norte. Uma porção de seus crentes é composta de tipos que seriam consi-
derados “hippies defensores do meio ambiente” para a maioria dos black
metallers, mas os black metallers que se associam a essa religião constan-
temente proferem discursos patrióticos e racistas, nos quais o cristianismo
é desprezado como uma religião estrangeira e escrava, enquanto os euro-
peus nórdicos deveriam ser verdadeiros para/com seus antigos deuses
(TRAFFORD; PLUSKOWSKI, 2007). Há também, nas capas e letras de
muitas bandas norueguesas, um discurso conservacionista romântico de
paisagens naturais nórdicas.
No dia 10 de agosto de 1993, Varg esfaqueou Euronymous até a morte
em sua casa em Oslo18. Vikernes foi sentenciado no dia 16 de maio de 1994
a 21 anos de prisão pelo assassinato de Euronymous. Ele tinha 21 anos.
Antes do assassinato de Euronymous, Vikernes chegou a contatar a orga-
nização neonazista Zorn 88, que mais tarde mudou seu nome para
Movimento Nacional-Socialista da Noruega. Varg explica que se declarava
nazista porque os nazistas alemães e noruegueses incorporaram a religião
pagã que está presente em seu sangue e rejeitaram a heresia judaico-cristã

18 Há uma lista de supostas motivações para Vikernes ter cometido o crime: briga por dinheiro que Euronymous e
seu selo deviam a Varg, ameaças de morte e as visíveis tensões entre os dois no que diz respeito a liderança do Inner
Circle e a cena norueguesa, mas este não é o foco do presente ensaio.
Roberto Scienza | 175

(VIKERNES, 2005). O que Vikernes destaca aqui é uma espécie de Nazismo


esotérico, nascido do Völkisch, movimento étnico e nacionalista que esteve
ativo do século XIX até o fim do nazismo na Alemanha. O norueguês con-
tinuou a cultivar seus ideais neopagãos, nacionalistas e xenofóbicos na
prisão. Também se tornou um membro da Ásatrú. Segundo Shnirelman
(2002, p. 199, tradução nossa), “a maioria dos Pagãos se identifica com um
grupo étnico ou nação e, portanto, para alguns deles Paganismo significa
nacionalismo ou, mais precisamente, nacionalismo étnico”19. Vikernes
também criou sua própria organização, a Norsk Hedensk Front (Norwe-
gian Heathen Front), “que a certa altura, por meio de suas páginas da web,
apelou à "eutanásia" de homossexuais e deficientes físicos”20 (ASPREM,
2008, p. 59, tradução nossa).
Varg também continuou a fazer música, produzindo dois álbuns en-
quanto encarcerado, que não são álbuns de Black Metal, mas de dark
ambient, devido às limitações de Varg enquanto preso, uma vez que o mú-
sico só tinha acesso a um sintetizador. Sua infâmia e originalidade musical
- pois Vikernes é considerado por muitos como um dos responsáveis pelo
nascimento do Black Metal atmosférico e do Dungeon Synth – legitimaram
suas ideias de militância racista e fizeram de Varg um herói para uma sig-
nificante geração de neonazistas (OLSON, 2008). A postura racista de Varg
é pública e até hoje persuade muitos garotos “satanistas” ou black metal-
lers a seguirem seus passos e se tornarem nacionalistas, raspando suas
cabeças e saudando Odim em vez de Satã. Hoje, Vikernes (2005) se consi-
dera um Odalista, que vem da palavra nórdica Óðal, a runa Elder Futhark
Odal, também conhecida como runa Othala, que significa em língua proto-

19 “Most Pagans identify an ethnic group with a nation, and, thus, for some of them Paganism means nationalism or,
more precisely, ethnic nationalism” (SHNIRELMAN, 2002, p. 199).
20 “Which at one point through its web pages called for “euthanasia” of homosexuals and the physically impaired"
(ASPREM, 2008, p. 59).
176 | Diálogos com a Música Extrema

germânica herança, propriedade herdada, alódio, nação e nobreza. A ide-


ologia de Varg, extremamente elitista e territorial, trata de uma volta à
terra. Para Famine da Peste Noire, importante banda de Black Metal fran-
cesa nacionalista, o Black Metal é música que resgata a ancestralidade. O
casamento da tradição, patrimônio racial e fanatismo com a raiva e o ódio
de uma juventude perdida. “É uma religião CTÓNICA: um culto à TERRA
e um retorno a ela, portanto, um nacionalismo; um culto ao que está
ABAIXO da terra: o Inferno”21 (FAMINE apud BENJAMIN, 2010, p. 111, tra-
dução nossa).
A ideia de fidelidade à terra (no caso aqui, à pátria, à “propriedade
herdada”), de retorno à terra, tem sua inspiração em Nietzsche, mas eis o
que o alemão disse: “Eu vos imploro, irmãos, permanecei fiéis à terra e
não acrediteis nos que vos falam de esperanças supra terrenas! São enve-
nenadores, saibam eles ou não” (ZA, Prólogo de Zaratustra, §3). Nietzsche
critica aqui a percepção de um mundo superior, tanto no cristianismo e
seu reino dos céus, como em Platão e seu mundo suprassensível. Isso não
tem absolutamente nada a ver com herança ou nacionalismo. Para Nietzs-
che, o cristianismo não passa de platonismo para as massas. Afirma que
ambos "são desprezadores da vida, moribundos que a si mesmos envene-
naram, e dos quais a terra está cansada: que partam, então!" (NIETZSCHE,
ZA, Prólogo de Zaratustra, §3).
A ascensão da cena norueguesa de Black Metal demonstra como a
valorização de identidades nacionais e heranças culturais podem, facil-
mente, se tornar declarações de pureza racial e superioridade nórdica. O
racismo dos black metallers noruegueses não pode ser entendido indepen-
dentemente de seu contexto geopolítico, que inclui não apenas a relação

21 “Its is a CHTONIAN religion: a cult of the EARTH and a return to it, therefore a nationalism; a cult of what is
BELOW the earth: Hell - the adjective "chthonian" applies to the Infernal gods as well” (FAMINE apud BENJAMIN,
2010, p. 111).
Roberto Scienza | 177

conturbada entre a Noruega e o cristianismo, a história nacionalista noru-


eguesa e o extremismo Nacional-Socialista contemporâneo, mas também
a força crescente da extrema-direita na política europeia como um todo e
sentimentos hostis em relação a imigrantes na Noruega (TAYLOR, 2010).
“Discursos racistas sem “racismo”, que focam na cultura ou etnia circulam
na Noruega e outras nações que concebem a si mesmas como homogene-
amente brancas”22 (TAYLOR, 2010, p. 166, tradução nossa). O racismo no
Black Metal, portanto, pode ser visto como um reflexo extremo da xenofo-
bia e nacionalismo que prolifera na sociedade norueguesa (TAYLOR,
2010).
Hoje, este discurso é fortalecido pela extrema-direita em ascensão em
grande parte da Europa devido ao ressentimento diante de uma realidade
cada vez mais heterogênea. Cultura se tornou um novo conceito para raça,
pois funciona como um mecanismo reducionista do outro, fazendo dele
menos humano que nós. A noção de cultura hoje, portanto, substitui a no-
ção de raça para a extrema-direita que argumenta frequentemente que
outras culturas deveriam viver separadas, onde elas “pertencem”. Afir-
mam que a cultura branca está ameaçada pelo multiculturalismo e o
influxo de pessoas não-brancas. Uma vez que esta perspectiva política ga-
nha poder institucional, ela se torna ativador de polítcas de exclusão e
discriminação (GULLESTAD, 2004).

NSBM: um Übermensch ariano?

Um dos sintomas mais agudos de todo esse contexto de nacionalismo


e xenofobia europeia, bem como da popularidade da cena de Black Metal
escandinava (especialmente de Varg Vikernes), é o surgimento do Black

22 “‘Raceless’ racist discourses, focusing on culture or ethnicity, circulate Norway and other nations that conceive of
themselves as homogeneously white” (TAYLOR, 2010, p. 166).
178 | Diálogos com a Música Extrema

Metal Nacional-Socialista (NSBM) em meados dos 1990. O NSBM é um


movimento político dentro do Black Metal que promove o neonazismo e
outras ideologias supremacistas. Os músicos de NSBM combinam imagens
neonazistas com paganismo europeu, ocultismo nazista e satanismo23. As
bandas, portanto, promovem discursos anticristãos, antissemitas e anti-
islâmicos, todos por uma perspectiva racial, clamando por uma Europa
que voltará às suas crenças e culturas nativas. O NSBM também está ligado
à Ásatrú e ao movimento Völkisch.
Hendrick Möbus é um músico conhecido dessa cena, fundador da
banda de NSBM alemã Absurd, que ganhou infâmia em 1993 por assassi-
nar, junto de seus companheiros de banda, um garoto de 15 anos de sua
escola chamado Sandro Beyer. Todos eles eram menores de 18. Möbus fi-
cou preso até 1998 em uma instituição correcional para jovens, onde
conseguiu continuar produzindo música racista e política. O primeiro EP
da Absurd, Thuringian Pagan Madness, foi lançado em 1995 e é um dos
primeiros trabalhos notórios de NSBM. A utilização de imagens e símbolos
nazistas e pagãos é explícito no Absurd, como é possível perceber pela logo
da banda, com a estilização da suástica adaptada à estética pagã e também
há um Mjölnir ou Martelo de Thor, deus do trovão.

23 Embora haja, por exemplo, a Pagan Front, organização chave na promoção de propaganda de extrema-direita no
Black Metal, que se opõe a utilização do satanismo dentro do NSBM.
Roberto Scienza | 179

Figura 4: Logo da banda Absurd

Quando Möbus saiu da instituição, em condicional, ele liderou a ala


alemã do movimento Heathen Front. Todavia, sua liberdade condicional
foi revogada por distribuição de propaganda Nacional-Socialista em sua
terra natal. Então, Möbus fugiu para Seattle em 1999, onde se juntou a
várias gravadoras estadunidenses para disseminar o NSBM. Para Möbus
(apud SEMENYAKA, 2013, tradução nossa), o Nacional-Socialismo é “a
mais perfeita síntese da vontade de potência Luciferiana, e princípios e
simbolismo neopagãos”24. A vontade de potência luciferiana, baseada no
conceito de Nietzsche de vontade de potência, é um desejo de tornar-se
cada vez mais forte e poderoso. Um desejo de tornar-se algo superior
(FORD, 2009).
Na filosofia nietzschiana, o conceito de vontade de potência (Wille zur
Macht) é tomado como critério para criação e avaliação dos valores morais.
“O que é bom? - Tudo o que eleva a sensação de poder, a vontade de poder,
o próprio poder no homem” (NIETZSCHE, AC, Prólogo §2). O alemão de-
fende que a vida e o mundo em si são vontade de potência e nada mais

24 “The most perfect synthesis of the Luciferian will-to power, and neo-heathen principles and symbolism” (MÖBUS
apud SEMENYAKA, 2013).
180 | Diálogos com a Música Extrema

(NIETZSCHE, BM, §36). Que uma vida superior é uma vida pautada na
superação de si e na elevação da potência. Em um de seus Fragmentos
Póstumos, Nietzsche (FP, Outono de 1885 – Outono de 1886, §190) ques-
tiona: “qual é o valor de nossas estimativas de valor e nossas próprias
tábuas de valores? O que resulta do seu domínio? Para quem? A respeito
de quê? - Resposta: para a vida”25. A crítica nietzschiana se posiciona para
além de qualquer fundamento moral, pois avalia os valores morais a partir
da vida como vontade de potência. Portanto, um tipo de vida ascendente
ou decadente serviria de critério para sua promoção ou obstrução
(AZEREDO, 2000).
Na Alemanha do Terceiro Reich, este conceito foi bastante corrom-
pido para servir aos ideólogos nazistas, que viam na vontade de potência
um motor político para a história, a vitória sobre aqueles que se opunham
ao Nazismo, a vontade de potência como expansão imperialista. Na con-
cepção dos nazistas a vontade de potência sugere uma agressão, uma
política de expansão perfeitamente ilustrada pela ascensão de Hitler ao po-
der (BRINTON, 1940). “E é aí que repousa inteiramente a organização
nacional-socialista. É na submissão do rebanho à “vontade de poder” do
chefe” (REGO, 2016, p. 89). O documentário Triumph des Willens, ou o
Triunfo da Vontade, dirigido por Leni Riefenstahl26, é um dos filmes de
propaganda política mais conhecidos da história e tinha como conceito o
triunfo dessa vontade de potência torpe, mostrando a grandiosidade do
governo alemão e de seu ideal eugênico.
A associação que se faz entre Nietzsche e o nazismo é recorrente,
principalmente entre não estudiosos do alemão. Isso se dá por uma série
de fatores. A primeira delas é que o destino do Nietzsche-Archiv em

25 “¿Qué valor tienen nuestras estimaciones de valor y nuestras tablas de bienes mismas? ¿Qué resulta de su domi-
nio? ¿Para quién? ¿Respecto de qué? — Respuesta: para la vida".
26 Cineasta alemã e figura importante para a construção imagética nazista e propaganda de seus ideais.
Roberto Scienza | 181

Weimar foi para a ideolodia Nacional-Socialista, graças a sua irmã, Elisa-


beth Förster-Nietzsche, que era militante nazista (SEMENYAKA, 2019).
Conforme Cilento (2000), Elizabeth fundou o Nietzsche-Archiv com a
ajuda de Peter Gast, adulterando vários textos de Nietzsche. Então, o Ni-
etzsche-Archiv apresentou a obra - Vontade de Potência (ou Poder)27,
reunindo os aforismos selecionados com a finalidade de fortalecer a ideo-
logia nacionalista e antissemita dos nazistas. Mas a irmã de Nietzsche não
foi a única a corromper o conteúdo da obra nietzschiana. Aliás, conforme
Montinari (1999), Alfred Bäumler, um dos principais ideólogos do Terceiro
Reich e um dos grandes nomes em relação à interpretação nazista de Ni-
etzsche, não precisou ser “iludido” pela irmã do filósofo, por exemplo.
Bäumler queria fazer da filosofia nietzschiana uma concepção política, ger-
mânica. Ele pretendia, de certa forma, sistematizar o pensamento
nietzschiano. O que é uma grande besteira quando se leva em conta a re-
pulsa de Nietzsche por sistemas. Ademais, “toda a teoria da raça, a base
das concepções hitlerianas, era profundamente estranha a Nietzsche”
(MONTINARI, 1999, p. 56).
As bandas de NSBM nem sempre são apologistas explícitas do na-
zismo. Muitas vezes, abordam temas nacionalistas, eurocentristas e
paganismo nórdico. Letras sobre a natureza europeia, guerra, orgulho e
nacionalismo. Descrevem a pureza, a vitalidade e a bravura de seus ances-
trais. Há também um culto ao sangue e ao solo, ao guerreiro herói, à força
e à masculinidade e virilidade. Glorificam um passado idealizado e uma
Europa branca ancestral, antes das imigrações de “sub-humanos”, tudo
tratado de maneira romântica, inclusive e principalmente a guerra.

27 "Vontade de Poder" e "Vontade de Potência" são duas traduções distintas para o conceito nietzschiano de Wille
zur Macht. O autor deste ensaio prefere Vontade de potência devido à interpretação deleuzeana de poder e potência,
mas há várias motivos para se usar "Vontade de Poder" ou "Vontade de Potência" e uma vasta discussão sobre, que
não me cabe neste ensaio.
182 | Diálogos com a Música Extrema

Atacam a cultura e o povo cristão, os judeus, os muçulmanos e a homoa-


fetividade. O NSBM também ataca, de maneira conservadora, os Estados
modernos. De maneira conservadora, pois os traços atacados são justa-
mente as características democráticas. O Estado moderno, para o black
metaller, é a relização da moral de rebanho. É “fraco”, pois descentrali-
zado. A relação com o lema nazista “Sê forte!” é evidente. Este lema era
visto nas bandeiras, nos discursos de Hitler e na própria condução do Es-
tado e manipulação das massas. Um culto à força, à ação e a virilidade
(GAUDEFROY-DEMOMBYNES, 2016). Nietzsche também condenou o Es-
tado moderno. Em Assim Falava Zaratustra teve um discurso parecido em
relação ao Estado: chamou-o de decadente, fraco e indigno de confiança
(NIETZSCHE, ZA).
Para os black metallers, o Estado não valoriza o que é importante: a
cultura e a religião nacional. Sua predileção pelo lucro abriu as portas para
estrangeiros indesejados, “principalmente “aquele com mais dinheiro”, o
judeu, fomentando assim uma indiferenciação, no limite uma mistura, en-
tre o forasteiro, “de cor” e o nativo, ariano” (CAMPOY, 2008, p. 29). A
origem desta ideologia está na dicotomia entre Nós e Eles. Nós daqui, eles
estrangeiros. Nós estabelecidos e eles outsiders. “A diferença primária
para o NSBM é a polarização da dicotomia Eles/Nós em categorias estrita-
mente raciais e nacionais”28 (OLSON, 2008, p. 99, tradução nossa). De
acordo com o sociólogo Norbert Elias e o professor e pesquisador John L.
Scottson (2000), o grupo de referência na dicotomia é um establish-
ment/established, ou seja, um grupo que vê a si mesmo e é visto como uma
boa sociedade, possuidora de uma identidade constituída pela autoridade,
influência e tradição. Do outro lado, estão os outsiders, grupo que está à

28 “The primary difference for NSBM is the polarization of the them/us dichotomy into strictly racial and national
categories” (OLSON, 2008, p. 99).
Roberto Scienza | 183

margem dos valores instituídos pelo grupo de referência. Para a dupla,


“um grupo só pode estigmatizar outro com eficácia quando está bem ins-
talado em posições de poder das quais o grupo estigmatizado é excluído”
(ELIAS; SCOTSON, 2000, p. 17). No caso de diferenciais muito grandes de
poder e de uma violenta opressão, outros são vistos até mesmo como sujos
e inumanos (ELIAS; SCOTSON, 2000). A lógica é simples: se desumanizá-
los, o black metaller não estará eliminando humanos, mas vermes,
“subhumanos”. A eliminação deste outro “não-europeu” ou simplesmente
“não-branco”, torna-se, portanto, um objetivo nobre. Eles são sujos; indig-
nos; indisciplinados; inumanos. “É assim que seres humanos tentam
desumanizar outros, num esforço para assegurar que eles são superiores
— e que matar o inimigo não significa matar seres humanos iguais a eles”
(ZWEIG; ABRAMS, 1991, p. 19).
E falando em “subhumanos” sob a perspectiva de nazistas, no leste
europeu, apesar do fato histórico de que os alemães do Terceiro Reich
viam o povo eslavo como racialmente inferiores, há uma cena incrivel-
mente forte de NSBM. Uma das bandas mais importantes dessa cena é o
Graveland. Seu líder Rob Darken (apud BENNET, 2007) nega ter qualquer
ligação com o NSBM, pois acredita que o Graveland não é uma banda de
NSBM, apenas é tomada assim pois suas convicções políticas são de ex-
trema-direita e Nacional-Socialista. Para Darken (2002, apud BUESNEL,
2020, p. 3, tradução nossa) “sem dúvida, a personalidade mais marcante
da Europa foi Adolf Hitler. O que ele tentou construir merece o maior res-
peito”29. O polonês afirma que “Os nazistas perceberam o valor de uma
Europa ariana pura. Hitler deu um corpo à ideia de um império de bran-
cos. Ele descobriu e percebeu o verdadeiro destino escondido no sangue

29 “Undoubtedly, the most striking personality in Europe was Adolf Hitler. What he tried to build deserves the great-
est respect” (DARKEN, 2002, apud BUESNEL, 2020, p. 3).
184 | Diálogos com a Música Extrema

dos brancos”30 (DARKEN, 2002, apud BUESNEL, 2020, p. 3, tradução


nossa). Entretanto, o conteúdo lírico do Graveland também apresenta afi-
nidades com o extremismo de direita e o nacionalismo exacerbado
(Buesnel, 2020). Suas letras frequentemente glorificam a guerra contra
povos estrangeiros e canalizam o ressentimento neopagão, como é possí-
vel atestar na letra Thousand Swords, do álbum de mesmo nome de 1995:
“Seu pedido de misericórdia não era nada para nós/Eles não tiveram res-
peito por nossos ancestrais/Hoje não é um dia de misericórdia”31
(THOUSAND, 2020).
A glorificação da guerra e de uma vingança (ressentida) em relação
ao cristianismo é manifestada frequentemente nas falas de Darken. Se-
gundo Darken, temos de continuar o trabalho que os noruegueses
começaram. “Incêndio de igrejas. Na Polônia, novas forças neofascistas es-
tão ascendendo. Suas teorias são próximas a nossa ideologia, então nós
apoiamos. A guerra é o primeiro dever de todos nós que vivemos pela Es-
curidão ou Paganismo”32 (DARKEN apud OLSON, 2008, p. 117, tradução
nossa). Darken convoca a “raça” ariana para a guerra contra os cristãos e
judeus.

O Graveland nasceu do ódio sonhando em nossas terras. Nós nos vingamos


por nossos ancestrais moribundos que protegeram nossas terras pagãs de nos-
sos inimigos que queriam destruir a harmonia da natureza. O cristianismo
trouxe uma falsa bondade... O Graveland sabia disso. Nossas almas ardem com
o fogo do ódio e da retribuição! Acorde, raça ariana! A nova era de paganismo
e escuridão está chegando. Graveland mostrará o caminho a vocês. Comece o
holocausto novamente, mate judeus e cristãos. Destrua o falso deus de Jesus

30 “The Nazis realized the value of a pure Aryan Europe. Hitler embodied the idea of an empire of white people. He
discovered and realized the true destiny hidden in the blood of white people” (DARKEN, 2002, apud BUESNEL, 2020,
p. 3).
31 "Their request for mercy was nothing for us/They had no respect for our ancestors/Today is not a day for mercy".
32 “Churches burn. In Poland, new neo-fascism powers are rising. Its theories are near to our ideology, so we support
it. War is the first duty of all who live for Darkness or Paganism” (DARKEN apud OLSON, 2008, p. 117)
Roberto Scienza | 185

Cristo! Eu, Darken, o Druida Negro da Escuridão, Karcharoth do Infernum e


Capricornus, somos os espíritos da guerra. Viemos da terra dos funerais eter-
nos; do inverno profano. Somos três anjos da retribuição. Guerra!33 (DARKEN
apud OLSON, 2008, p.116, tradução nossa).

Segundo Elias (1997), a penetração do ethos guerreiro na cultura


burguesa do II Reich normalizou a violência e uma hierarquia suposta-
mente natural entre homens a ser preservada. Isto se estendeu para o III
Reich. O Black Metal, como destacado anteriormente, é guerra. O black
metaller é um nobre “guerreiro” (Viking, pagão, nacionalista ou somente
branco mesmo), com valores elitistas e de uma raça superior, que luta con-
tra o cristianismo (e outras religiões que não são a sua), contra forças
estrangeiras e subumanos. As bandas são hordas, as canções são hinos. A
construção imagética dos black metallers destaca cintos de bala, armas
brancas e de fogo, botas militares pretas, calças camufladas, cabeças ras-
padas (ou cabelos longos lisos). O próprio corpse paint é uma referência
às pinturas de guerra. A guerra é, de fato, um elemento de extrema im-
portância para o Black Metal e pode ser evidenciado na fala de vários
artistas ligados ao NSBM.

Na Europa, o neofascismo renasce e a Europa deve ressurgir com um novo


espírito. Isso levará a grandes mudanças no futuro. Temos que resgatar o po-
der das antigas e verdadeiras tradições dessas terras. Escolhemos o caminho
da guerra, porque temos que fazer guerra contra as raças subumanas da Tur-
quia, África e Romênia. Destruir os negros e outros sub-homens! Eles
destroem nossas tradições e cultura. A Europa deve ser limpa dessa merda!

33 Graveland was born from hate dreaming in our lands. We take revenge for our dying ancestors who protected
our pagan lands from our foes who wanted to destroy the harmony of nature. Christianity brought false goodness…
Graveland knew this. Our souls burn with fire of hate and retribution! Aryan race wake up! The new era of paganism
and darkness is coming. Graveland will show you the way. Start the holocaust again, kill Jews and Christians. Destroy
the false god of Jesus Christ! I, Darken, the Black Druid of Darkness, Karcharoth of Infernum and Capricornus are
the spirits of war. We come from the land of everlasting funerals; from the unholy winter. We are three angels of
retribution. War! (DARKEN apud OLSON, 2008, p.116).
186 | Diálogos com a Música Extrema

Europa apenas para raça ariana branca!34(DARKEN apud OLSON, 2008, p.


117, tradução nossa).

No Leste Europeu esse tipo de discurso de ódio incita jovens raivosos


que estão procurando por formas de empoderamento, sentido e identi-
dade. O Graveland, portanto, é um projeto com um elemento missionário
e que procura influenciar e persuadir ouvintes que simpatizam com a
causa pagã/ariana (BUESNEL, 2020). Trata-se de uma vingança contra as
forças estrangeiras que massacraram a cultura/raça ariana. Todavia,
como atesta Paschoal (2011, p. 219), “o ódio e a sede de vingança nascem
do espírito do ressentimento”. O homem de vingança é um homem res-
sentido, que concentra todas as suas forças no ressentir. Dono de uma
prodigiosa memória, não consegue esquecer (a derrota e aniquilação de
sua cultura ancestral) e viver o presente, por isso ressente. "Vemos qual é
o sintoma principal desse tipo: uma prodigiosa memória. Nietzsche insiste
nessa incapacidade de esquecer qualquer coisa, nessa faculdade de nada
esquecer, na natureza profundamente reativa dessa faculdade"
(DELEUZE, 1976, p. 54). Completamente obcecados com a ideia de um
passado pré-cristão, muitos neopagãos se ressentem com o desapareci-
mento de sua cultura ancestral. Essa dor não cessa, pois é algo que já
aconteceu. “Grava-se algo a fogo, para que fique na memória: apenas o
que não cessa de causar dor fica na memória” (NIETZSCHE, GM, II, §3).
O NSBM, portanto, não passa de um sintoma desse ressentimento.
Há um longo histórico de supremacistas e neonazistas e sua influên-
cia na música e nas artes visuais. Mesmo os nazistas da segunda guerra se
utilizaram da música de Wagner, das esculturas gregas e romanas, do

34 In Europe, neofascism is re-born and Europe must re-emerge in a new spirit. It will lead to big changes in the
future. We have to take power from old, true traditions of these lands. We chose the way of war, because we have to
wage war against the sub-human races from Turkey, Africa and Rumania. Destroy Negroes and other sub-men!
They destroy our traditions and culture. Europe must be cleansed from this fucking shit! Europe only for white Aryan
race! (DARKEN apud OLSON, 2008, p. 117).
Roberto Scienza | 187

cinema de Leni Riefenstahl. O argumento dos supremacistas é de que a


cultura/raça branca está ameaçada por forças estrangeiras, “sub-culturas”
e miscigenação. No NSBM, o argumento é o mesmo. O Black Metal, por
cultivar valores nacionalistas e de extrema-direita, serve como terreno de
recrutamento, unificação e radicalização (WILLIAMS, 2018). Propaganda
supremacista com corpse paint e blast beats. O NSBM é um fenômeno glo-
bal que tem diretas ligações com a política de extrema-direita. Muitos dos
músicos membros de bandas de NSBM têm relação com organizações e
grupos de extrema-direita e alguns são até mesmo políticos atuantes.
Segundo Benjamin (2010), se formos definir um marco zero para a
política no Black Metal seria uma amálgama do egoísmo de Max Stirner e
o aristocracismo nietzschiano. Um anti-humanismo e individualismo hos-
til comprometido em criar uma aristocracia do futuro. Quem faz parte do
Black Metal é uma elite. “A maioria dos blackmetallers se vê como seres
intelectual e ideologicamente superiores ao resto da cena Metal e da hu-
manidade em si” (SENA, 2019, p. 136). Logo, ideais supremacistas,
misantrópicos, de uma nova hierarquia social, são extremamente comuns
no Black Metal. Os valores elitistas e supremacistas do Black Metal são ins-
pirados, principalmente, em dois conceitos nietzschianos: a moral de
senhores e escravos e o conceito de Übermensch. Alguns black metallers
até vocalizam traços de políticas nietzschianas aristocráticas. No entanto,
mesmo a crítica de Nietzsche ao cristianismo expressa relações hierárqui-
cas.

O cristianismo foi, até hoje, a mais funesta das presunções. Homens sem du-
reza e elevação suficientes para poder, como artistas, dar forma ao homem;
homens sem longividência e força suficientes para, com uma sublime vitória
sobre si, deixar de valer a lei primordial das mil formas de malogro e pereci-
mento; homens sem nobreza suficiente para perceber o hiato e a hierarquia
188 | Diálogos com a Música Extrema

abissalmente diversos existentes entre homem e homem (NIETZSCHE, BM,


§62).

Esses traços políticos aristocráticos e hierárquicos repousam sobre a


ideia de que há uma moral de senhores e uma moral de escravos. A deter-
minação do tipo senhor e do tipo escravo advém de um pathos de distância
(NIETZSCHE, GM; NIETZSCHE, AC). O primeiro modo de ser é afirmador,
pois parte de si criar valores. O escravo, por outro lado, só é capaz de in-
verter e deformar os valores criados pelo senhor. A moral do senhor
afirma uma diferença. A do escravo, pelo contrário, faz um esforço pela
supressão da diferença. “O escravo, consequentemente, é tido como pre-
cursor de uma moral de rebanho, pois a supressão da diferença implica
necessariamente a preservação do populacho” (AZEREDO, 2000, p. 64). O
escravo funda sua moral sobre o medo da diferença, trata-se de uma in-
versão da moral do senhor, pois o escravo teme aqueles que são potentes
e diferentes dele e, portanto, propõe uma moral homogênea e absoluta.
Essa moral homogênea é nada mais que uma reação de medo diante da
diferença. O escravo estabelece sua moral como pré-existente e absoluta.
“Ora, a absolutização da moral tem como pano de fundo a autodefesa, que
visa justamente a mascarar o medo através da universalização de seus pre-
ceitos” (AZEREDO, 2000, p. 74). Segundo o próprio Nietzsche,

toda moralidade que afirma exclusivamente a si própria mata muitas forças


boas e vem a sair muito cara para a humanidade. Os divergentes, que tantas
vezes são os inventivos e fecundos, não devem mais ser sacrificados; já não
deve ser tido por vergonhoso divergir da moral, em atos e pensamentos; de-
vem ser feitas inúmeras tentativas novas de existência e de comunidade
(NIETZSCHE, A, Livro II, §164).

Mas não seria a moral defendida pelo NSBM uma moral que coloca a
si mesma como pré-existente (antes do cristianismo) e absoluta? Os tipos
Roberto Scienza | 189

do NSBM são os verdadeiros, seu conhecimento é o conhecimento verda-


deiro (religioso/nacional/ariano). Sua força se mostra contra os que são
diferentes dele. Para eles, a besta loura e ariana destruirá os “sub-huma-
nos” que infectam sua cultura e reinará! A aristocracia do futuro será
instituída por eles, homens superiores, supremacistas raciais, será “uma
sociedade dura e heróica, uma nova Esparta de Super-homens”35
(BRINTON, 1940, p. 135, tradução nossa). Este era o desejo de Hitler.
Segundo Nietzsche (ZA, De velhas e novas tábuas, §3), “o homem é
algo que tem de ser superado, — que o homem é uma ponte e não um fim:
declarando-se bem aventurado por seu meio-dia e entardecer, como o ca-
minho para novas auroras”. O homem é uma ponte para o Übermensch
(Super-homem, Além-Homem ou Além-do-homem), conceito desenvol-
vido por Nietzsche que diz respeito aquele que vive a plena vontade de
potência. Que superou a morte de Deus para exercer seu poder criador.
“Um dia se falou “Deus”, ao olhar para os mares distantes; mas agora vos
ensinei a falar: “super-homem”” (NIETZSCHE, ZA, Nas ilhas bem-aventu-
radas). O Übermensch nietzschiano, obviamente, é dono de uma
moralidade de senhores, criadora, que não teme o diferente.
A besta loura é uma metáfora utilizada por Nietzsche para descrever
raças nobres e fortes. Os chamados povos bárbaros. No entanto, os nazis-
tas utilizaram uma pequena parte do aforismo 17 da Genealogia da Moral,
uma vez que Nietzsche continua a descrever a besta loura, também inter-
pretada como leão, e associa-a com a “nobreza romana, árabe, germânica,
japonesa, heróis homéricos, vikings escandinavos: nesta necessidade todos
se assemelham. Foram as raças nobres que deixaram na sua esteira a no-
ção de “bárbaro”" (NIETZSCHE, GM, I, 11). Esse aforismo não tem nada a
ver com um bicho loiro que vira rei dos animais, como queria Hitler e o

35 "A society harsh and heroic, a new Sparta of Supermen" (BRINTON, 1940, p. 135).
190 | Diálogos com a Música Extrema

NSBM. Conforme Rego (2016, p. 89), a partir deste “Nietzsche brutal, o


pensador sem dó e sem piedade, criaram a teoria da raça eleita, a raça que
libertará as alegrias naturais do homem. O “bicho louro” passará a ser o
rei dos animais. Este é o Nietzsche copiado ao pé da letra, profeta de uma
nova religião” (REGO, 2016, p. 89).
Ainda mais problemático que a supremacia branca na Europa, é a
supremacia branca em países da América do Sul, como o caso do Brasil,
uma vez que os supremacistas raciais brasileiros jamais seriam considera-
dos sequer brancos pelos europeus. Segundo Campoy (2008), as bandas
de NSBM brasileiras também não são bem vindas no underground brasi-
leiro por conta da aversão ao caráter racial do movimento, assim, acabam
por se isolar em uma cena própria. A hierarquização racial inerente ao
NSBM vai de encontro com o contexto de um Brasil plural e multiétnico,
ou seja, “impuro”. No entanto, sabe-se o quanto essas ideologias contradi-
tórias e extremas têm surgido no Brasil hoje dominado pela extrema-
direita. As bandas brasileiras de NSBM (ou que estão ligadas ao NSBM) ou
abordam explicitamente o Nacional-Socialismo ou estão ligadas a mitolo-
gia pagã nórdica. A grande maioria das bandas de NSBM são do sul e
sudeste, onde há maior concentração de descendentes de imigrantes eu-
ropeus recentes, principalmente alemães e italianos, vindos da imigração
europeia do século XIX e XX. Entretanto, muitas bandas não são neonazis-
tas, apenas de extrema-direita e nacionalistas. Para Famine (apud
BENJAMIN, 2010, p. 108, tradução nossa) do Peste Noire, "sem ser neces-
sariamente N[acional] S[ocialista], o verdadeiro Black Metal é sempre
música de extrema-direita - seja da Ásia ou da América Latina, já que a
política de extrema-direita não é um apanágio da raça branca"36.

36 “Without being necessarily N[ational] S[ocialist], real Black Metal is always extreme right-wing music - be it from
Asia or Latin America as extreme-right politics are not the appanage of the white race" (FAMINE apud BENJAMIN,
2010, p. 108)
Roberto Scienza | 191

No entanto, no Brasil, as coisas de delineiam de outras maneiras tam-


bém. Há uma leva de bandas de Black Metal anticolonialistas, que
resgatam religiões pagãs indígenas e elementos culturais tradicionalmente
brasileiros, mas, até então, não há registro de atividade ou discurso racista
ou supremacista por parte desses grupos nem qualquer ligação com o
NSBM. O NSBM no Brasil, portanto, é uma ideologia importada e adaptada
à realidade de jovens brasileiros brancos que se enxergam como superio-
res racialmente e culturalmente, mas que jamais seriam incluídos em
círculos neonazistas reais fora do Brasil. Jovens que têm uma inclinação a
ideologias de extrema-direita, como nacionalismo, autoritarismo, conser-
vadorismo e culto à guerra, além de reproduzirem preconceitos típicos
desse meio como misoginia e homofobia.
Mas o “Black Metal tem que ser mau”, né? “Black metal é opressão”.
“Ninguém tem que gostar de Black Metal”. “É feito pra uma elite” (cultural,
espiritual e racial). “As pessoas devem ter medo do que fazemos”. “O Black
Metal é guerra”. “Minha horda” (banda); “meu hino” (canção); “meus ar-
tefatos” (merchandising); “minhas armas” (instrumentos). “Hail,
guerreiro!”; “Hail, Satã!”; “Hail, Odin!”; “Hail, Hitler”! Este parece ser o
grande argumento por trás da utilização de símbolos neonazistas no Black
Metal. Satanic Tyrant Werwolf, da banda de NSBM Satanic Warmaster,
expressa sua visão no documentário finlandês Loputon Gehennan liekki
(Eternal Flame of Gehenna), de 2011: ““as pessoas não conseguem lidar
com isso. Na verdade, é uma daquelas poucas coisas em que a maldade
ainda mostra sua cara para o povo. Coisas que as pessoas temem e que as
assustam”37 (LOPUTON, 2011, tradução nossa). Há um culto à força, ao
ódio e à guerra ao lado de um gosto pelo choque, por aquilo que faz as

37 ”People cannot deal with it. It's actually one of those few things. In which the evilness still shows its face to the
people. Things that people are afraid of and startled by.” (SATANIC WARMASTER, 2011).
192 | Diálogos com a Música Extrema

pessoas terem medo. “É por isso que nunca devemos desistir desses tipos
de símbolos no Black Metal. Devemos usá-los mais, porque as pessoas te-
mem esses símbolos. Isso sublinha e cultiva novamente aquilo que ainda
deveria ser a força que faz do Black Metal alguma coisa”38 (Satanic Tyrant
Werwolf In: LOPUTON, 2011, tradução nossa).

Em alguns casos, isso é tudo que o NSBM é; mais um significante transgressivo


entre muitos outros. Para outros, noções de ultranacionalismo e racismo mi-
litante assumem conotações profundamente significativas quando colocadas
dentro de um contexto de Black Metal. O Black Metal, em todas as suas formas,
glorifica o passado distante e busca aniquilar o presente mundano. O neona-
zismo torna essa afirmação muito simples, impondo noções de alteridade a
praticamente todos que são diferentes e elevando o zangado e megalomaníaco
black metaller ao status de Deus entre ovelhas. Noções de modernidade e civi-
lização parecem vagas e intelectuais para muitos black metallers; raça, nação
e tradição são menos39 (OLSON, 2008, p. 99, tradução nossa).

A criação de “novos” valores

O Black Metal é uma ideologia contra o mundo moderno, contra seus


valores, que afirma um niilismo, portanto, uma depreciação dos valores
(cristãos e humanistas). A misantropia do Black Metal está ligada ao nii-
lismo e ao ódio destinado ao mundo moderno. O niilismo é a ideia de que
os valores se depreciaram. Com a perda de valor dos valores morais, o
absurdo da existência de Deus e da transcendência, surge a ideia de que

38 “That's why we should never give up on those kind of symbols in black metal. We should use them more, because
people fear those symbols. That underlines and cultivates again the thing that sould still be the strength that makes
black metal something.” (SATANIC WARMASTER, 2011).
39 “In some cases this is all NSBM is; one more transgressive signifier among many others. For others, notions of
ultra-nationalism and militant racism take on deeply meaningful connotations when placed within a black metal
context. Black metal, in all of its forms, glorifies the distant past and seeks to annihilate the mundane present. Neo-
Nazism makes this assertion very simple by imposing notions of otherness onto virtually everyone unlike oneself and
elevating the angry, megalomaniacal back metaler to the status of a God among sheep. Notions of modernity and
civilization seem vague and intellectual to many black metalers; race, nation and tradition are less so.” (OLSON, 2008,
p. 99).
Roberto Scienza | 193

não há valor ou sentido nas coisas ou na existência. É interessante ressal-


tar a passagem de Assim Falava Zaratustra em que Zaratustra, após se
despedir do santo, dispara: “como será possível? Este velho santo, na sua
floresta, ainda não soube que Deus está morto!” (NIETZSCHE, ZA, Prólogo
2). Se Deus morreu, logo os velhos valores se foram com ele. “Deus está
morto, combatei também então sua sombra! As tábuas de valores que até
aqui elevastes sobre vós não têm nenhuma validade!” (MÜLLER-LAUTER.
1997, p. 135). Entretanto, embora o niilismo leve a moral à sua morte, tam-
bém leva ao pensamento de que não existe nada de novo para substituí-la.
Assim, é fácil afundar-se num abismo niilista onde nada mais tem valor.
Mas Nietzsche incita que o dever do ser humano é criar novos valores.
“Não vos deixeis mais determinar por esses valores, determinai vós mes-
mos os valores! Transvalorai os valores antigos, a partir de vossa
autocompreensão como querer-poder, criai novos valores” (MÜLLER-
LAUTER. 1997, p. 135).
Segundo Olena Semenyaka (2013), filósofa ucraniana e ativista polí-
tica de extrema-direita, o Black Metal visa destruir a modernidade e o que
ela representa com a finalidade de criar “novos” valores reacionários. O
“Black Metal, à primeira vista, é a própria personificação de uma fase nii-
lista ativa em um processo metafísico de transvaloração de todos os
valores anunciado por Friedrich Nietzsche”40 (SEMENYAKA, 2013, tradu-
ção nossa). A volta aos valores anteriores aos cristãos promovida pelo
Black Metal, para a autora, pretende um processo de transvaloração.
Ishan, da banda norueguesa Emperor reforça esta ideia quando diz que o
sistema moral do Black Metal é muito diferente daquilo que é ensinado em
casa ou na escola. Ele parece destrutivo porque é: você deve quebrar os

40 “Black Metal at a glance is the very embodiment of an active-nihilistic phase in a metaphysical process of trans-
valuation of all values heralded by Friedrich Nietzsche.” (SEMENYAKA, 2013).
194 | Diálogos com a Música Extrema

velhos sistemas de valores e substituí-los por novos (IHSHAN apud


OLSON, 2008).
Para Semenyaka (2019, tradução nossa), “o maior niilista europeu foi
ao mesmo tempo o maior elitista, aristocrático, individualista e tradicio-
nalista que ansiava pelo início de uma nova era de ouro”41. Na concepção
da ucraniana, o conceito de transvaloração dos valores de Nietzsche mos-
tra o caminho para o fim da eterna batalha entre direita e esquerda sobre
a interpretação de sua filosofia e elenca uma “nova” via (lê-se extrema-
direita). Semenyaka (2013) advoga por uma revolução conservadora, a
terceira via, nem de esquerda nem de direita (lê-se direita) e elogia o Black
Metal como movimento de contracultura que visa cancelar toda a era con-
temporânea. Para Semenyaka (2019), a grande política de Nietzsche é um
aristocracismo radical fundado na nobreza de espírito. A ucraniana diz que
Nietzsche propõe uma nova aristocracia para uma Europa unida, anti-
igualitária fundada no pathos da distância da moral dos senhores e um
desprezo pela mediocridade democrática. Semenyaka afirma que essas ca-
racterísticas da filosofia nietzschiana foram deixadas de lado por
humanistas da esquerda. A autora se mostra orgulhosa da cena ucraniana
de Black Metal, famosa por bandas como Nokturnal Mortum, Kroda,
Drudkh e Hate Forest, todas bandas ligadas ao NSBM.
Nietzsche (ZA) apresenta a transvaloração dos valores – a abolição e
superação de tais valores e a criação de novos – como solução para o pro-
blema moral (morte de deus, depreciação de valores e decadência). O
filósofo defende que apenas espíritos-livres (os filósofos do futuro) podem
provocar a transvaloração dos valores e assim construir a ponte para o
super-homem. Mas o Black Metal pode ser considerado importante para

41 “The greatest European nihilist was simultaneously the greatest elitist, aristocratic individualist and traditionalist
who looked forward to the beginning of the new golden age.” (SEMENYAKA, 2019).
Roberto Scienza | 195

um suposto movimento de transvaloração se os valores levantados pelos


black metallers são valores que fortalecem ainda mais o modelo instituído
de identidade? Se são os valores que glorificam o modelo: o homem
branco, europeu e heterossexual? Como podem ser novos valores? São os
black metallers espíritos-livres como eles acreditam ser? Ou ressentidos
vingativos? Moralistas dogmáticos?
Em contrapartida, é provável que a imagem de uma Igreja em cha-
mas tivesse agradado a Nietzsche. Talvez visse nesses atos a destruição das
velhas tábuas de valores. Mas condenaria a motivação se esta fosse mera
vingança religiosa pagã. Afirmaria este ser um motivo ressentido, pois o
ressentido é movido pelo ódio e pela vingança. O ressentido não consegue
jamais esquecer sua dor, seja ela qual for, e conforta-se em uma moral de
rebanho, uma moral escrava, que o impede de viver o presente efetiva-
mente. Diferente dos Vikings escandinavos e seus nobres povos bárbaros
ancestrais, o black metaller pagão e nacional-socialista não tem amor fati.
É um atavista que deseja uma moral pré-existente (antes do cristianismo)
e dogmática (o “verdadeiro” conhecimento). Um ressentido, um sofredor.
“É nesse sofrimento originário que a vingança tem sua raiz psicológica e
metafísica: o ressentido vislumbra naquele a quem se opõe o culpado por
seu sofrimento” (GIACÓIA JR, 2001, p. 28).
Tanto Quorthon, (“prometa-me, meu filho, sempre valorizar o que é
lar para você, o que é a verdade”), como Varg Vikernes (“O mesmo Deus
que queimou o conhecer”), como Rob Darken (“[Hitler] descobriu e per-
cebeu o verdadeiro destino escondido no sangue dos brancos”), enaltecem
suas verdades, seu conhecimento, como se eles refletissem a única e uni-
versal verdade e não apenas criações demasiado humanas. Menos
nietzschiano impossível. Segundo o alemão, a própria noção de verdade é
uma construção moral, pois ela sempre pressupõe uma moral. O imora-
lista denuncia que a verdade remete a um conjunto de ilusões que estão
196 | Diálogos com a Música Extrema

conforme uma convenção consolidada. É nada mais que mentira contada


em rebanho (NIETZSCHE, VM).
A crítica de Nietzsche à verdade e à moral expõe um dos traços mais
significativos de sua filosofia: seu pluralismo. “O pluralismo é a maneira
de pensar propriamente filosófica, inventada pela filosofia: único fiador da
verdade no espírito concreto, único princípio de um violento ateísmo”
(DELEUZE, 1976, p. 3). A afirmação do múltiplo e desigual, portanto, da
diferença, é imprescindível para Nietzsche na distinção entre uma moral
mais elevada ou nobre (lê-se ética) e uma moral escrava ou inferior (moral
no sentido dogmático). O senhor afirma a si mesmo, estabelecendo uma
diferença entre ele, enquanto criador de valores, e os demais (que podem
ou não criar valores). O estabelecimento da diferença enquanto diferença
faz com que seus valores sejam afirmadores de sua existência, signos da
potência como poder criador. O escravo, por outro lado, visa despotencia-
lizar o diferente e a supremacia de seus iguais, estabelecendo
generalizações e igualações (NIETZSCHE, BM, §260). O medo é fundador
da moral escrava, que teme o diferente. A vingança e o ódio são seus mo-
tores. Nehamas explica na prática:

Quando, por exemplo, me sinto justificado ao discriminar você porque minha


pele é branca enquanto a sua não é, foco num traço que é simplesmente parte
do meu “ser assim e assim” e o considero um mérito, uma realização, o tipo
de coisa que seria o resultado de força e escolha, independentemente de qual-
quer coisa que eu tenha de fato realizado. Digo, portanto, que quem eu sou –
neste caso, branco – confere a mim e a outros como eu um valor à parte de
qualquer coisa que façamos, que isso confere valor a qualquer coisa que faça-
mos, e que a ausência desse traço em você impede que seus feitos, quaisquer
que sejam, tenham um valor que possa alguma vez igualar o meu (NEHAMAS,
2016, p. 265).
Roberto Scienza | 197

O pluralismo e perspectivismo nietzschianos são absolutamente im-


portantes para o entendimento de sua filosofia. Conforme Medrado (2017,
p. 74), “a renúncia de Nietzsche a afirmar qualquer conteúdo universali-
zante parece exprimir um tipo de absoluto respeito pelas diferentes
perspectivas, na medida em que a “perspectiva” seria o “aspecto funda-
mental” da própria vida”. A ideia de que um tipo de moral pode ser a
“moral em si” é falsa. Trata-se de uma interpretação errônea. Nietzsche
(CI) faz frente às estruturas morais dominantes que oprimem outras pos-
sibilidades de vida ética, questionando suas autoridades supostamente
absolutas. Para o autor, a uniformização e absolutização da moral constitui
uma tirania. Nietzsche é um pluralista, um perspectivista e reprova vio-
lentamente a ideia de uma única maneira de viver em detrimento de
qualquer outra. Apenas um tipo humano, considerado perfeito em sua
composição, caráter e conduta.

Consideremos, por último, quanta candura há em dizer: o homem deveria ser


desta maneira. A realidade nos mostra uma maravilhosa riqueza de tipos, uma
verdadeira exuberância na variedade e na profusão das formas. Todavia, surge
qualquer moralista de praça e afirma: “Não, o homem deveria ser de outra
maneira” (NIETZSCHE, CI, Moral como antinatureza, §6).

Em um de seus Fragmentos Póstumos, Nietzsche escreve (FP, Ca-


derno 36, Junho – Julho de 1885, §21): “Quanto maior é o impulso para a
unidade, mais a fraqueza pode ser concluída; quanto mais o ímpeto para
a variedade, à diferença, à desintegração interna, mais força existe”42. Afir-
mar a vontade de potência, portanto, não é afirmar o uno, pois este é
apenas a organização, estratificação ou convenção de um fundo múltiplo,
caótico. A filosofia nietzschiana é uma filosofia do múltiplo, pluralista e

42 “Cuanto mayor es el impulso hacia la unidad, tanto más se puede concluir la debilidad; cuanto más el ímpetu hacia
la variedad, la diferencia, la interna disgregación, tanto más fuerza hay.”
198 | Diálogos com a Música Extrema

perspectivista. A interpretação que os black metallers fizeram de sua filo-


sofia não passa de uma tentativa torpe, como fizeram os nazistas, de
refinar sua moral escrava, sua moral de rebanho.

Moral é hoje, na Europa, moral de animal de rebanho: - logo, tal como enten-
demos as coisas, apenas uma espécie de moral humana, ao lado da qual, antes
da qual, depois da qual muitas outras morais, sobretudo mais elevadas, são ou
deveriam ser possíveis. Contra tal "possibilidade", contra tal "deveriam" essa
moral se defende com todas as forças, porém: ela diz, obstinada e inexorável:
"Eu sou a moral mesma, e nada além é moral!" (NIETZSCHE, BM, §202).

A afirmação de um individualismo radical e, ao mesmo tempo, uma


coletividade reacionária pautada num espírito ancestral é uma das grandes
contradições do Black Metal (OLSON, 2008). Diferente do individualismo
nietzschiano e satanista, o etnocentrismo, o nacionalismo e o paganismo
do Black Metal também se constituem enquanto moralidades de rebanho.
Apenas moralidades escravas tentam atribuir naturalidade a seus valores.
Apenas a massa se deixa levar por moralidades pautadas no costume e na
tradição (NIETZSCHE, A). Para o alemão, a moral de costume é mais fácil
de ser adotada pois não há esforço algum em tomá-la como um manual de
instruções da existência, afinal, ela não pede reflexão. Segui-la cegamente
é até prazeroso, uma vez que os costumes são regulados pela instância
superior da tradição, "uma autoridade superior, a que se obedece não por-
que ordena o que nos é útil, mas porque ordena” (NIETZSCHE, A, Livro I,
§9). Quem não obedece ao costume, deve enfrentar a tradição. Aquele que
se sacrifica ao costume é tomado como mais ético.
Segundo Eco (1995), a primeira característica dos regimes fascistas é
o culto à tradição, o que leva à rejeição da sociedade moderna e o medo
das diferenças. Então, o fascismo começa a se opor a “intrusos”. Um grupo
é tomado como bode expiatório, pois é de outra cultura ou raça. Há um
Roberto Scienza | 199

certo apelo à frustração social, principalmente da classe média, que se


sente ameaçada por grupos sociais mais pobres. Outro traço é o desprezo
pelos fracos, aliado a um elitismo reacionário. No fascismo, “todo líder su-
bordinado despreza seus próprios subalternos, e cada um deles despreza
seus inferiores. Isso reforça o senso de elitismo de massa”43 (ECO, 1995, p.
7, tradução nossa) O inimigo fraco é também muito forte. Há um culto ao
guerreiro e ao herói, aquele que afirma uma vida heroica e que morre com
bravura. Por fim, o machismo e a heterossocialidade, que estão intima-
mente ligados à cultura bélica. Qualquer prática sexual que fuja a
heterossocialidade é tida como imoral e a mulher deve ser submissa e re-
catada, assim, a atividade com armas se torna uma exercício fálico falso.

RABM: por uma transvaloração dos valores

Nietzsche foi utilizado para reforçar as mais diferentes narrativas. As


interpretações que existem da filosofia nietzschiana são absolutamente
plurais, e também são assim no Black Metal. É sempre difícil afirmar ou
negar algo categoricamente sobre Nietzsche e sobre suas posições, pois o
filósofo tinha críticas para tudo, tamanho era sua vontade e poder de crí-
tica. É possível, por exemplo, ter uma interpretação de extrema-direita,
elitista e autoritária. Há também uma interpretação libertária, anti-estatal
e antirreligião. Sabe-se que Nietzsche não é nenhum dos dois, mas tam-
bém eles dois e muitos outros mais. Numa configuração que o imoralista
certamente condenaria44, faz-se uma interpretação subversiva do alemão,
fazendo nascer um monstro anarco-comunista, antifascista, pluralista e
antirreligião. Satanás, aqui, é um símbolo de libertação e revolta. De

43 “Every subordinate leader despises his own underlings, and each of them despises his inferiors. This reinforces
the sense of mass elitism.” (ECO, 1995, p. 7).
44 Nietzsche fez duras críticas aos anarquistas e comunistas de sua época, pois afirmava que os grupos baseavam
suas ideias em uma moral cristã humanista e igualitária.
200 | Diálogos com a Música Extrema

oposição a qualquer tipo de opressão. Tudo isso também está presente na


filosofia de Nietzsche.
A nossa guerra é cultural. Aliás, falou-se tanto de guerra e cultura
sem ao menos defini-las. Façamos um exercício: a partir de agora, enten-
damos a guerra não da maneira que os governos a concebem, mas sim à
maneira dos gregos do tempo de Heráclito. É o Ágon. Relações de força.
Jogo; disputa. Conforme Mota (2009), o Ágon era a realização da vida
grega (povo peculiarmente competitivo). O Ágon se estendia a disputas
esportivas, artísticas, políticas. No século V a.C., a Ágora tornou-se um es-
paço para debates políticos, de modo que a democracia ateniense pode ser
dita uma efetivação do Ágon no plano da política. O Ágon, para Heráclito
(1973), é inevitável e sem fim. Uma força só se define no confronto com
outra força. A extinção de uma delas encerra o embate. A resistência deve,
portanto, sempre estar firme em contraposição à constante ameaça naci-
onal-fascista.

Por meio da noção de ágon, a guerra heraclitiana, é possível, então, pensar a


política à base de uma teoria das forças. Cada cidadão no seio das relações que
trava com os demais é uma força. Todas as forças contrapõem-se entre si. A
contraposição, a contradição, a correlação de forças, a guerra é o modo como
se dá o conjunto das relações a que chamamos política. A política é, portanto,
uma teoria das forças (MOTA, 2009, p. 49)

E a cultura? Bom, para os semioticistas de Tártu-Moscou, cultura é


“um mecanismo supra-individual de conservação e transmissão de certos
comunicados e elaboração de outros novos” (MACHADO, 2003, p. 13). Um
tecido de relações e informações geradas, acumuladas, organizadas, pro-
cessadas, sistematizadas e transmitidas ao longo das gerações. Tais
fenômenos (enquanto informação não processada) transformam-se em
cultura por meio da capacidade imaginativa humana. A capacidade que o
Roberto Scienza | 201

humano tem de narrativizar sua existência. A cultura é um universo sim-


bólico, uma segunda realidade ou semiosfera, e o texto é sua unidade
mínima (BAITELLO JUNIOR, 1999). Conforme Lotman (apud BYSTRINA,
1995, p. 16), cultura é “o conjunto sincrônico dos textos imaginativos e
criativos”. A guerra cultural é, portanto, uma guerra do discurso. Guerra
da narrativa.
As bandas de NSBM já foram obrigadas a se fechar em uma cena es-
pecífica. Isso se dá pois grande parte dos headbangers que consome Black
Metal não é racista e repudia tais atitudes. Ademais, há resistência antifas-
cista e aliados sonoros. Há uma cena com posição antifascista explícita que
contrapõe todo esse discurso do NSBM: o Red and Anarchist Black Metal
(RABM). Os músicos dessa cena, em vez de se entregar a ideologias nacio-
nalistas e racistas, resolveram-se posicionar politicamente, de maneira
lírica e imagética, como antifascistas, anarquistas e comunistas.
O Dawn Ray'd, banda inglesa de Black Metal, é uma das mais influ-
entes bandas de RABM. Seus membros são anarquistas e expressam suas
visões explicitamente em sua música. Seu segundo álbum, Behold Sedition
Plainsong, de 2019, traz um Black Metal com vocais bem sujos e linhas
melódicas de violino. Suas letras falam, de maneira poética, sobre luta de
classes, revolução e tecem duras críticas ao capitalismo, à igreja e à cena
de Black Metal. Uma das faixas, Songs in the Key of Compromise, chama
atenção para o fato de que o Black Metal e a igreja são os “dois lados de
uma mesma moeda inútil”45 (BEHOLD, 2019). “Um tinha marionetes –
Cristo/O outro empunha Satanás/Mas é o mesmo desgraçado/Que se es-
conde atrás da cortina”46 (BEHOLD, 2019).

45 “Two sides of a worthless coin.”


46 “One had puppets Christ/The other wields Satan/But it is the same wretch/That skulks behind the curtain.”
202 | Diálogos com a Música Extrema

Em entrevista à Kez Whelan, Simon Barr (DAWN RAY'D, 2017), vo-


calista, violinista e letrista da Dawn Ray'd, diz acreditar que muitas das
bandas que se utilizaram de imagens nazistas e supremacistas nos anos
1990 só queriam ser controversas e levantar polêmica. Ademais, o inglês
acredita que apenas uma minoria da cena do Black Metal simpatiza de fato
com a extrema-direita, que o problema real é a tolerância dessas ideias
dentro da cena. Dar plataforma para ideias como fascismo, mesmo quando
feito sem maturidade ou consciência política (e também sem qualquer crí-
tica), acaba por atrair pessoas que genuinamente acreditam nisso e
rapidamente alinha o Black Metal à extrema-direita. É claro que isso pode
ser combatido, como aconteceu com os shows do Graveland que foram
cancelados no Estados Unidos e Canadá. Isso envia uma importante men-
sagem para outras bandas: não vale a pena brincar com essas ideias. Em
contrapartida, Barr (2020) chama atenção, em entrevista a Shane Burley,
que toda cena é um microcosmo da sociedade. Se bandas falam sobre an-
tirracismo e antitransfobia na cena (como acontece no RABM), faz com
que pessoas marginalizadas se sintam seguras em shows, o que é uma vi-
tória.

A profecia do Socialismo Satânico

A Profecium, banda argentina, é certamente uma das primeiras ban-


das de RABM que se tem notícia. Há registro de duas demos de 1994, uma
delas chamada Ensayo, na qual há versões mais brutas de faixas que esta-
riam em seu primeiro álbum, Socialismo Satánico, de 1997. Em Socialismo
Satánico, a Profecium inicia o álbum com uma crítica à sociedade capita-
lista, composta por um Deus Capital, uma Santa Burguesia e o Proletariado
Infernal. Eles dizem estar cumprindo a profecia do Socialismo Satânico.
Roberto Scienza | 203

Damos nossa morte em cumprimento da profecia da sangrenta e satânica re-


volução socialista, que conclua e implante uma república operária, baseada em
organismos de democracia direta da classe trabalhadora e dos pobres urbanos
e rurais, incluindo-nos como loucos marginalizados, lutando para espalhar a
revolução socialista em todo o mundo47 (SOCIALISMO, 2010, tradução nossa).

O conceito trabalhado nessa primeira faixa é, por meio de uma ima-


gem satânica, anticristã e revolucionária, a luta de classes. Para Marx e
Engels (2008), a luta de classes se desenvolve sob os nossos olhos e é sobre
a luta de classes que as ideias e princípios comunistas se assentam. Para a
Profecium, a “santa burguesia” e o “proletariado infernal” têm interesses
opostos. "É por isso que a única estratégia realista é a guerra de classes
contra o inimigo. Nós lutamos pela independência da classe trabalhadora
de todos os patrões e do Estado evangelista burguês”48 (SOCIALISMO,
2010). Este conceito se estende por todo o álbum, mas Nietzsche também
está aqui. Na faixa Socialismo Satánico, anunciam: “Não haverá Estado,
Havemos matado a Deus”49 (SOCIALISMO, 2010). A Profecium elenca uma
das ideias mais icônicas do alemão: a morte de Deus, que não se estende
apenas à religião e à metafísica de tradição platônica, mas também ao Es-
tado.
A crítica nietzschiana ao Estado está intimamente associada à sua cri-
tica, à cultura e à sociedade moderna massificada, que ele vê como
homogeneizadoras e nocivas às energias vitais, à criatividade e à individu-
alidade superior. É bem próxima a de Bakunin nesse sentido. Para o Russo,
o Estado é um grande sacrificador de homens, pois centraliza todos os

47 Damos nuestra muerte en el cumplimiento por la profecía de la sangrienta y satánica revolución socialista, que
concluya e implante una república obrera, basada en organismos de democracia directa de la clase obrera y de los
pobres urbanos y del campo, incluyéndonos como marginales dementes, combatiendo por expandir la revolución
socialista en todo el mundo.
48 “Es por eso que la única estrategia realista es le guerra de clase contra el enemigo luchamos por la independencia
de la clase obrera de toda variante patronal y del estado evangelista burgués”.
49 "No habrá estado, Habremos matado a Dios”.
204 | Diálogos com a Música Extrema

interesses do povo, captura seus desejos, e elenca o dele na expressão 'von-


tade popular', que supostamente carrega o interesse comum, o desejo
comum e o bem comum (BAKUNIN, 2020). Para Nietzsche (ZA), crer que
o Estado é o verdadeiro representante do povo é crer em uma grande e
fria mentira. “Estado é o nome do mais frio de todos os monstros frios. E
de modo frio ele também mente; e esta mentira rasteja de sua boca: “Eu,
o Estado, sou o povo”” (NIETZSCHE, ZA, Do novo ídolo). O Estado não é
o povo. Ele afirma apenas seus próprios interesses. Ademais, conforme
Bakunin (2020, p. 1), a ideia de uma democracia representativa não passa
de ilusão. “Toda decepção com o sistema representativo está na ilusão de
que um governo e uma legislação surgidos de uma eleição popular devem
e podem representar a verdadeira vontade do povo”.
Bakunin (1977) critica a moral do Estado da mesma maneira Nietzs-
che (GM; BM, A) critica a moral enquanto conceito. Bakunin elenca o que
ele chama de uma moral de Estado, que funciona da seguinte maneira:
“sendo o Estado o objetivo supremo, tudo o que possa contribuir para o
aumento dos seus poderes é bom e tudo que se opuser a este objetivo,
mesmo que seja a melhor das causas, é mau. A isto se dá o nome de Patri-
otismo” (BAKUNIN, 1977, p. 128). Segundo Bakunin (1975), a liberdade
não é possível sob o Estado. Ele é uma instituição dogmática. Instituciona-
liza sua moral e opera de maneira coercitiva sobre aqueles que não se
submetem a ela.
Durante a modernidade as culturas nacionais emergiram com força
significativa. “A lealdade e a identificação que, numa era pré-moderna ou
em sociedades mais tradicionais, eram dadas à tribo, ao povo, à religião e
à região, foram transferidas, gradualmente, nas sociedades ocidentais, à
cultura nacional” (HALL, 2006, p. 49). A cultura nacional é um discurso,
pois apresenta-se como um modo de construção de sentidos, que afeta e
unifica ações sociais. Uma cultura nacional cria e ressignifica símbolos e
Roberto Scienza | 205

institucionaliza representações, as chamadas “identidades nacionais”


(HALL, 2006). Também pode estereotipar a imagem de outros intrusos. O
nacionalismo cresce quando aliado ao discurso democrático, o que pode
ser perigoso (BURNS; KAMALI; RYDGREN, 2001, p. 18). Xenofobia e ra-
cismo, assim como a mistura de ambos, tornam-se orgulho e patriotismo,
defesa da tradição e da liberdade de expressão. “Enfrentamos, de forma
crescente, um racismo que evita ser reconhecido como tal, porque é capaz
de alinhar “raça” com nacionalidade, patriotismo e nacionalismo”
(GILROY, 1992, p. 87 apud HALL, 2006, p. 64).
A anarquista Emma Goldman (2007) associa o patriotismo à supers-
tição. Uma injúria mais inumana que a religião. Para a autora, a
superstição da religião surge da inabilidade do homem de explicar fenô-
menos naturais. Quando o homem primitivo ouviu os trovões e viu os
raios, concluiu que só poderia vir de uma força maior que ele mesmo. Da
mesma maneira, o patriotismo é uma superstição, mas artificialmente cri-
ada e mantida por uma rede de mentiras, uma superstição que rouba do
homem a dignidade e o respeito próprio, e aumenta sua arrogância e vai-
dade. O patriotismo acredita que o planeta está dividido em territórios
fechados, cada um deles cercado por um muro de ferro. Os que foram
afortunados de nascer em um determinado lugar consideram a si mesmos
melhores, mais nobres, mais inteligentes que aqueles que nasceram em
qualquer outro lugar. É seu dever portanto como cidadão matar ou morrer
na tentativa de impor esta superioridade sobre todos os outros
(GOLDMAN, 2007).

Tronos para derrubar!

Nietzsche sabia que seu desejo, o Übermensch, só poderia ser reali-


zado para além do Estado, e não nele, como queria Hitler. “Ali onde cessa
206 | Diálogos com a Música Extrema

o Estado — olhai para ali, meus irmãos! Não vedes o arco-íris e as pontes
do super-homem?” (ZA, Do novo ídolo). O Übermensch não é de uma raça
ariana, é um espírito livre e bárbaro, que cria linhas de fuga, linhas resis-
tentes à moral, ao Estado, à religião, ao capitalismo. Uma força afirmadora
e múltipla contra a vontade de verdade, de dogmatismo e unicidade.
E assim é o Black Metal da Uprising. A one man band alemã, na ativa
desde 2014, explicita, por meio de uma perspectiva anarco-satânica, diver-
sos traços da filosofia nietzschiana, aliados à luta contra a opressão em seu
primeiro álbum Uprising, de 2016. Na faixa Uprise, W. (pseudônimo utili-
zado pela pessoa por trás do projeto), convoca todos para a revolta até que
todos os reis e deuses estejam mortos. W. diz: “Revolte-se – não siga
mais/Revolte-se – até que todos reis e deuses estejam mortos/Revolte-se
– você nasceu com o direito de lutar/Revolte-se – voe para ser seu próprio
deus”50 (UPRISING, 2016). A moral de senhores nietzschiana, daquele que
não segue ninguém, que afirma somente a si mesmo, é aliada à revolta
contra aqueles que oprimem a liberdade e à ideia satanista de autodeifica-
ção, presente em escritos como os de LaVey (1969) e de Ford (2009). Em
Ford (2009), o único Deus existente é o humano, pois todos os deuses e
espíritos a serem canalizados se manifestam por meio dele. “Anjo do Sol,
Estrela da Manhã! Dê-me o Fogo de sua Divindade. Deixe os raios do sol
me preencherem! Eu sou meu Próprio Deus ao recebê-lo [Lúcifer] dentro
de mim51” (FORD, 2009, p. 290, tradução nossa).
A faixa seguinte, Thrones to Overthrow, inicia com um diálogo sobre
a morte. Sobre a diferença entre um homem livre e um escravo quando
morrem: se “o homem livre morre ele perde o prazer da vida, o escravo

50 "Uprise – do no longer follow/ Uprise – until all kings and gods are dead/ Uprise – you were born with the right
to fight/ Uprise – soar to be your own god”.
51 “Angel of the Sun, Morning Star! Give unto me the Fire of your Divinity. Let the rays of the sun fill me! I am my
Own God as I welcome you within!” (FORD, 2009, p. 290).
Roberto Scienza | 207

perde sua dor”52 (UPRISING, 2016). W. denuncia a depreciação dos valores


e da verdade, “Na ausência da verdade, Impérios foram criados”53 e invoca
os espíritos livres para a revolta: “Tronos para derrubar - Levantem-se
espíritos livres/Tronos para derrubar - Derrube o que devora sua alma”54
(UPRISING, 2016). O espírito livre é aquele que não segue o seu tempo, a
moral de seu tempo. Que pensa por si mesmo. Que elabora suas próprias
leis. Um nômade que toma a vida como experimento, que sente prazer na
vida. "queremos nos tornar aqueles que somos - os novos, únicos, incom-
paráveis, que dão leis a si mesmos, que criam a si mesmos!" (NIETZSCHE,
GC, §335). O escravo, por outro lado, é um ressentido que, com uma me-
mória prodigiosa calcada na dor aliada a uma sede de vingança, visa a
despotencialização do outro, a aniquilação daquele diferente dele
(NIETZSCHE, GM).
W. clama para que a doutrina da vontade (de potência) chegue ao
coração das pessoas: “Deixe os corações queimarem com vontade/Deixe o
fogo devorar seus tronos/ Reclame aquilo que foi tirado de você”55
(UPRISING, 2016). A Uprising quer que as pessoas se levantem e lutem
contra o que as oprimem. Não seria na vontade de potência nietzschiana
um bom caminho para tal? Como se não fosse o bastante, na penúltima
faixa do álbum, Nihilistic Chants, W. faz referências ao abismo nietzschi-
ano e discussões niilistas.
Uprising é a prova de que Nietzsche pode ser utilizado para promover
valores libertários e progressitas. Ademais, o filósofo alemão sabia que os
anarquistas eram uma força considerável de contraposição à opressão go-
vernamental, à opressão de Estado. “Nós imoralistas prejudicamos a

52 “A freeman dies he loses the pleasure of life, the slave loses his pain”.
53 “In the absence of truth, Empires were created”.
54 “Thrones to overthrow - Rise free spirits/Thrones to overthrow - Bring down what devours your soul”.
55 "Let hearts burn with will/Let the fire devour their thrones/Claim back what was taken from you”.
208 | Diálogos com a Música Extrema

virtude? — Tanto quanto os anarquistas prejudicam os príncipes”


(NIETZSCHE, CI, Máximas e Sátiras, §36). Para derrubar tronos é neces-
sária a criação de forças de resistência. É necessária a criação de uma
máquina de guerra contra o aparelho de Estado. Segundo Deleuze e Gua-
ttari (1980, p. 465, tradução nossa), “o Estado dá ao pensamento uma
forma de interioridade, mas o pensamento dá a essa interioridade uma
forma de universalidade”56. A máquina de guerra, por outro lado, é

a forma de exterioridade do pensamento — a força sempre exterior a si ou a


última força, a enésima potência — não é de modo algum uma outra imagem
que se oporia à imagem inspirada no aparelho de Estado. Ao contrário, é a
força que destrói a imagem e suas cópias, o modelo e suas reproduções, toda
possibilidade de subordinar o pensamento a um modelo do Verdadeiro, do
Justo ou do Direito (o verdadeiro cartesiano, o justo kantiano, o direito hege-
liano, etc). Um "método" é o espaço estriado da cogitatio universalis, e traça
um caminho que deve ser seguido de um ponto a outro. Mas a forma de exte-
rioridade situa o pensamento dentro de um espaço liso que ele deve ocupar
sem poder contá-lo, e para o qual não há método possível, reprodução conce-
bível, mas somente revezamentos, intermezzi, relances57 (DELEUZE;
GUATTARI, 1980, p. 467-8, tradução nossa).

A máquina de guerra é a destruidora par excellence. Mas o destruidor


é também quem cria. A máquina de guerra não tem por objetivo a guerra.
Seu objetivo é destruir o Estado. Uma máquina de guerra pode ser bem
mais revolucionária (ou artística) que bélica (CASTRO-SERRANO, 2018).

56 “L'Etat donne à la pensée une forme d'intériorité, mais la pensée donne à cette intériorité une forme d'universalité”
(DELEUZE; GUATTARI, 1980, p. 465).
57 Mais la forme d'extériorité de la pensée - la force toujours extérieure à soi ou la dernière force, la nieme puissance
- n'est pas du tout une autre image qui s'opposerait à l'image inspirée de l'appareil d'Etat. C'est au contraire la force
qui détruit l'image et ses copies, le modèle et ses reproductions, tou te possibilité de subordonner la pensée à un
modèle du V rai, du Juste ou du Droit ( le vrai cartésien, le juste kantien, le droit hégélien, etc. ). Une « méthode » est
l'espace strié de la cogitatio universalis, et trace un chemin qui doit être suivi d'un point à un autre. !vlais la forme
d'extériorité met la pensée dans un espace lisse qu 'elle doit occuper sans pouvoir le compter, et pour lequel il n'y a
pas de méthode possible, pas de reproduction concevable, mais seulement des relais, des intermezzi, des relances
(DELEUZE; GUATTARI, 1980, p. 467-8).
Roberto Scienza | 209

Muito mais punk que skin. Muito mais RABM que NSBM. Seu papel é tra-
çar linhas de fuga criadoras, compor o espaço liso. O Estado é uno, a
máquina de guerra é múltipla. O Estado é do ser, a máquina de guerra é
do devir. O Estado é moralista, a máquina de guerra é amoral.
Como nos dizem Deleuze e Guattarii (1980), o Estado, quando aliado
à religião, anseia pelo absolutismo, e é a religião que converte o absoluto.
“A religião, nesse sentido, é uma peça do aparelho de Estado (e isto, sob as
duas formas, do "liame" e do "pacto ou da aliança"), mesmo se ela tem a
potência própria de elevar esse modelo ao universal ou de constituir um
Imperium absoluto”58 (DELEUZE; GUATTARI, 1980, p. 475, tradução
nossa). Como aponta Nietzsche (BM), a religião é nada mais que uma in-
terpretação da vida e do mundo, de moralidade ensinada, antinatural e
inimiga dos instintos vitais. No entanto, é uma instituição dogmática, que
se posiciona de maneira categórica. “A fórmula geral que serve de base a
toda religião e a toda moral pode ser expressada assim: "Faça isto, e mais
isto, não faça aquilo e mais aquilo — e então serás feliz, do contrário...”
(NIETZSCHE, CI, Os quatro grandes erros, §2). Tais valores moralistas,
quando aliados ao Estado, são extreamamente perniciosos para a demo-
cracia, para a autonomia e liberdade da população.
O teórico anarquista Michel Onfray (2011, p. 198) declara que “o que
define os regimes totalitários hoje corresponde ponto a ponto ao Estado
cristão conforme foi construído pelos sucessores de Constantino”59. Suas
ferramentas reguladoras, destruição de bibliotecas e lugares simbólicos,
poder absoluto ao líder, extermínio de oponentes, monopólio dos meios de
comunicação e o aniquilamento da diferença. Num país como o Brasil,

58 “La religion en ce sens est une pièce de l'appareil d'Etat (et cela, sous les deux formes du « lien », et du « pacte ou
de l'alliance »), même si elle a la puissance propre de porter ce modèle à l'universel ou de constituer un Imperium
absolu” (DELEUZE; GUATTARI, 1980, p. 475).
59 “What defines totalitarian regimes today corresponds point by point with the Christian state as it was constructed
by Constantine's successors” (ONFRAY, 2011, p. 198).
210 | Diálogos com a Música Extrema

sobre o qual o cristianismo botou suas garras, não só impondo-o violenta-


mente aos “nossos ancestrais” e suas culturas que foram perdidas, mas
que ainda hoje infecta a já podre e corrupta política brasileira com seu
moralismo e seus preconceitos, a crítica e luta contra a religião deve ser
reforçada. Contra a religião, pois os cristãos não são os únicos dogmáticos.
O dogmatismo se estende a qualquer tipo de religião (ou ideologia) com
pretensões morais universalistas.
Contra tais pretensões, eis o papel do RABM: o Red and Anarchist
Black Metal mostra que o Black Metal pode dirigir seu ódio natural contra
os opressores modernos. As bandas entendem que a cena de Black Metal
não pode mais se submeter aos nacionalistas, aos religiosos e aos supre-
macistas. Não se pode mais deixá-los passar. A maior parte do público de
Black Metal, entretanto, ainda prefere permanecer “apolítico” ou não pa-
rece ver o racismo e o nacionalismo como problemas tão grandes assim.
Principalmente o público branco. Que surpresa!
Por isso, o RABM precisa de aliados. A cena de RABM possui fortes
laços com a cenas de Punk, Hardcore e Grindcore, onde há muitos antifas-
cistas. O RABM hoje se mistura com todos os tipos de som (post-metal,
shoegaze, industrial, doom metal, death metal, etc), mas o Crust Punk é o
principal deles. Isso evidencia nas raízes do Black Metal a mistura entre o
metal e o punk. Voltar às raízes punks do Black Metal, característica pre-
sente em bandas como Venom, Hellhammer e BATHORY, dá uma sensação
de recomeço e ressignificação, ou melhor, de transvaloração de valores.
Paradigmas caindo e novos devires se delineando. A cena se posiciona con-
tra qualquer tipo de opressão. Há anarquistas, comunistas, socialistas,
feministas, ambientalistas, anti-especistas, queers. É uma cena que cresce
a cada ano em todo o mundo. Bandas de vários lugares se opõem a essa
volta à tradição, à nação e à raça e buscam um ideal libertário e antifas-
cista. O RABM, portanto, apresenta-se enquanto máquina de guerra contra
Roberto Scienza | 211

o Estado. Máquina anti-opressão religiosa, anti-exploração capitalista,


anti-autoritarismo e antirrascismo. Guerra contra a ideologia dominante
no Black Metal. Tudo isso ainda pode ser nietzschiano.

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Anexo 1

Siglas para os textos de Nietzsche citados

A - Aurora (M – Morgenröte)

GC - A gaia Ciência (FW - Die fröhliche Wissenschaft)

ZA - Assim falou Zaratustra (Za - Also sprach Zarathustra)

BM - Além do bem e do mal (JGB - Jenseits von Gut und Böse)

GM - Genealogia da Moral (GM - Zur Genealogie der Moral)

CI - Crepúsculo dos Ídolos (GD – Götzen-Dämmerung)

NW – Nietzsche contra Wagner

AC - O anticristo (AC - Der Antichrist)


220 | Diálogos com a Música Extrema

EH - Ecce homo

VM - Sobre verdade e mentira no sentido extramoral (WL - Über Wahrheit und Lüge im
aussermoralischen Sinn)

FP - Fragmentos póstumos (Nachlass)


6

O que a Música Extrema tem a dizer às ecologias?

Rodrigo Barchi

A radicalidade sempre democrática, dialógica, portanto, nos motiva ir a cada


vez mais profundamente à procura da ou das razões de ser das coisas, a não
nos satisfazer com a pura aparência das coisas, a recusar a falsidade dos pre-
conceitos. A radicalidade exige de nós uma “convivência” maior com a raiz dos
problemas
(Paulo Freire, Pedagogia da Tolerância, 2014)

Fracturing the structure of nature


Iconic catalysts to slaughter
A stalemate bursting bound by contradictions

Heartless - divine blueprints of hatred


Selfless - Diseased masterplans
Shameless - the powers that butcher
Ignorant to the deeds that they commit

Decoded treachery shielding the tyranny


Black Bible tyrants behind masks of righteousness
Relentless - the onslaught of misunderstanding
Descending into a unified chaos

(Ao som de Napalm Death - When all is said and done


Do album Smear Campaign, 2006)
https://www.youtube.com/watch?v=SIRUzqHTNh8
222 | Diálogos com a Música Extrema

Quando o inferno pega fogo!

Há um forte vento lá fora. Após dias de uma intensa secura, com


baixíssima circulação atmosférica, e calor intenso e crescente, aparente-
mente uma frente fria se aproxima, as temperaturas começam a arrefecer
lentamente, e a previsão é que os próximos dias sejam mais frescos. Pelo
menos, é o que parece vendo das janelas e do portão. Ainda estamos, em
meados de setembro 2020, no fim do inverno, e foram dias escaldantes,
de aridez semidesértica. Por todo o país, especialmente em suas regiões
mais centrais, as características meteorológicas são basicamente as mes-
mas, criando um cenário perfeito para que a temporada de queimadas
fosse, como sempre, intensa.
Mas sempre diante desse refresco, há algo pior que se espalha no ar,
e espasmos de sossego e fleuma são somente respiros antes de novos ata-
ques de barbárie e violência.
Uma governança de extrema direita, aliada às alas mais radicais do
neopentecostalismo populista, do militarismo saudosista de uma ditadura
genocida, de um empresariado do agronegócio e de milicianos que buscam
substituir os traficantes no comando da criminalidade, que não cansa de
dizer barbaridades e discursos inflamados de ódio contra militantes ecolo-
gistas, e que não vem se esforçando e muito menos cumprindo o mínimo
da responsabilidade governamental, no combate aos incêndios gigantescos
que tomam conta da Floresta Amazônica, do Pantanal e do Cerrado. E que,
ao mundo todo, na abertura da Assembleia Geral das Nações Unidas, em
22 de setembro, disse que o maior problema do Brasil era uma tal de “cris-
tofobia”... E se pensarmos no que disse, algumas semanas depois, sobre
eleições americanas e a “covardia” dos mortos pela pandemia...
Some-se a isso, uma série de escândalos de corrupção, envolvendo
lavagem de dinheiro por parte de setores do governo, assassinatos
Rodrigo Barchi | 223

cometidos por líderanças evangélicas aliadas à extrema direita, um es-


quema gigantesco de superfaturamento de itens na criação de uma
basílica, no interior do país, por padres carismáticos aliados à extrema di-
reita, estupros e assédios cometidos por gurus espirituais de perspectiva
conservadora, além dos constantes escândalos de desvio e uso de igrejas,
por parte das seitas neopentecostais, em especial no Estado do Rio de Ja-
neiro, onde as mesmas estão diretamente alinhadas com a governança
municipal. A qual, inclusive, cria grupos de intimidação a repórteres e des-
contentes com o setor público, em uma ação muito semelhante ao que o
governo Papa Doc exercia através dos Tonton Macoutes, no Haiti, entre os
anos 60 e 90.
Uma governança alinhada diretamente ao Exército, Marinha e Aero-
náutica, que ocupam, em setembro de 2020, uma quantidade maior de
cargos que ocupavam durante a própria ditadura civil-militar (1964-1985),
que é saudosista de práticas escabrosas de sequestro, cárcere, tortura e
assassinato de suspeitos de serem críticos ao sistema vigente. Não à toa,
são notórias as homenagens aos ditadores estrangeiros que estabeleceram
sistemas muito próximos aos piores regimes totalitaristas europeus, entre
os países do Terceiro Mundo. Párias como Stroessner, Pinochet e até
Franco, são exaltados, mesmo sendo amplamente divulgadas suas filiações
a grupos fascistas, e seus crimes que incluíam pedofilia e tráfico de entor-
pecentes.
Travestida de uma moral conservadora, familiar e religiosa, as práti-
cas desses grupos se associam, justamente e cada vez mais, a tudo aquilo
que já foi amplamente divulgado como práticas dos piores regimes auto-
ritários de direita, que assolaram o planeta durante o século XX.
A grande novidade dessas governanças nefastas é a inimizade e o ódio
explícito às perspectivas ecologistas. Se antes, durante a ditadura civil-mi-
litar, havia críticas ao ecologismo – seja como uma preocupação de jovens
224 | Diálogos com a Música Extrema

ricos da Europa Ocidental, seja como uma perspectiva socialista mais new
age – hoje, declara-se uma guerra praticamente aberta contra os grupos e
pessoas que lutam em prol da defesa da vida selvagem e das áreas ainda
preservadas. Além dos discursos abundantes da presidência da República
do Brasil contra as Organizações Não-Governamentais ambientalistas, al-
gumas calúnias e difamações são constantemente realizadas, como as
acusações de que elas são as responsáveis pela destruição, com o intuito
somente de atacar o governo e manchar a imagem do Brasil perante o
mercado internacional.
Apesar da estupidez e irresponsabilidade desse discurso, há uma
enorme aceitação dessa fala por parte de defensores da governança, e até
por quem não conhece o trabalho sério e comprometido de centenas de
instituições espalhadas Brasil afora. Para que instituições sérias, que há
décadas vem trabalhando com monitoramento, observação, reprodução e
proteção de uma série de onças-pintadas, lobos-guarás, araras azuis, ta-
manduás-bandeira, e uma série de outras espécies severamente
ameaçadas de extinção, iriam colocar fogo nos habitats, e destruir todo o
esforço, que envolve, inclusive, capital de empresas, fundos de pesquisas
públicos e privados, além do apoio de muitos setores da sociedade civil?
O discurso anti-ecologista que se espalha – mas que ainda não é he-
gemônico – ocorre antes mesmo que as reivindicações ecologistas
tivessem se tornado conquistas efetivas perante toda a sociedade civil e o
próprio estado brasileiro. Isso, apesar de uma boa quantidade de políticas
públicas já terem sido promulgadas e, inclusive, terem garantido a criação
de órgãos devidamente sistematizados e estruturados para dar conta das
demandas requeridas pelos movimentos ecológicos1, parece que

1
Como o Orgão Gestor da Educação Ambiental brasileira, vinculado aos Ministérios da Educação e do Meio Ambiente,
e que foi extinto no segundo dia de mandato de Jair Bolsonaro, ainda no início de 2019.
Rodrigo Barchi | 225

retrocedemos décadas em relação ao que se pensa sobre a ecologia política.


Em relação à educação ambiental, especificamente, parece que há uma le-
tra morta, perante a governança e, inclusive, a toda dimensão social,
política, econômica e cultural, nesse contexto de pandemia, avanço dos ne-
ofascismos e nazismos, crise econômica, e mesmo em relação à destruição
brutal da Amazônia, do Pantanal, do Cerrado e da Mata Atlântica.
Ou o que restou disso tudo...

Quem tem a dizer o que...

Por isso, que a pergunta título, sobre o que a Música Extrema tem a
dizer – ou melhor, urrar, berrar, gritar, vociferar - às ecologias políticas e
às educações ambientais, se faz pertinente, não somente perante a pro-
posta dessa coletânea, mas face ao terror que se impõe e que não tem
perspectiva de que acabe tão já.
Mas do que se trata essa Música Extrema? E, apesar do que ela grita,
enuncia e denúncia, será que as ecologias políticas e as educações ambien-
tais estão dispostas e/ou se interessam pelo que elas têm a dizer e urrar?
Para essa conversa é necessário que eu faça dois esclarecimentos.
Em primeiro, e invertendo a ordem da questão, é sobre o que estou
sugerindo como ecologias políticas e educações ambientais. No plural e em
minúsculo. Sabendo que as(os) leitoras(os) desse livro não serão somente
aquelas(es) que tem familiaridade sobre o debate ao redor das ecologias
(GODOY, 2008), educações (GALLO, 2002) e educações ambientais maio-
res, menores (HENNING; MUTZ; VIEIRA, 2018) e outras (SAMPAIO,
2019), mas interessados naquilo que os pesquisadores aqui presentes têm
a dizer sobre a música extrema e suas áreas de formação, atuação e pes-
quisa, acredito que seja impositiva essa breve explanação.
226 | Diálogos com a Música Extrema

O segundo é justamente sobre aquilo que sugiro, nesse texto como


Música Extrema. Se em diversos trabalhos, o termo mais comum é, na
verdade, Metal Extremo, (CAMPOY, 2010; RUBIO, 2016), considero que
seria injusto e até incompleto colocar gêneros como grindcore, splatter,
noise, goregrind, entre outros, dentro, exclusivamente, do saco do gênero
metal. A influência punk e hardcore os configura de modos muito mais
híbridos, e até mais punks, do que necessariamente metal.
E a questão não é só musical. É também de perspectiva política, ética
e estética. Quando escolhi um trecho de uma composição do King Diamond
para abrir a apresentação dessa coletânea, é porque acredito, apesar da
aparente não posição política que as histórias de horror do artista dina-
marquês apresentam, a estética do corpse paint e a constante evocação dos
demônios e espíritos das trevas em suas músicas, fazem guerrilha perante
as normatividades impostas pelos cristianismos, militarismos e conserva-
dorismos de todas as espécies. Não à toa os discos do Mercyful Fate foram
perseguidos pela comissão presidida pela Tiper Gore nos anos 80
(CHRISTE, 2010; POPOFF, 2020).
Considero, portanto, a perspectiva dos contos de horror e a pintura
facial blasfema (corpse paint) de King Diamond, tão extremas quanto o
posicionamento explícito do Napalm Death contra a sociedade capitalista,
contra os Estados neoliberais, e a religiosidades mercantis e cristofóbicas.
Assim como entendo as capas e as letras do Nuclear Assault, banda thrash
clássica da Bay Area californiana, tão extremas quanto as do Agathocles,
histórico conjunto grindcore/mincecore belga.
Porque escolhi o termo extremo, ao invés, por exemplo, de sugerir
“anti-música”, como propõe o próprio símbolo das bandas grindcore, da
nota musical com o símbolo de proibido a sobrepondo? Ou até algo como
“contramúsica”, seguindo a sugestão do termo contracultura? Não há o
risco de colocar estilos tão distintos, como o heavy tradicional e o
Rodrigo Barchi | 227

grindcore, o thrash metal e o noise, dentro de um mesmo saco, e dizer que


tudo é extremo?
A resposta arriscada que dou a esses três questionamentos é categó-
rica: não! Se estivesse falando somente do grindcore ou do noise, poderia
sim falar de antimúsica, não somente por causa da cacofonia, mas por
causa de sua postura contrária ao uso comercial das sonoridades
(MUDRIAN, 2009). Coisa que nem sempre é comum a esses conjuntos, os
quais, além de suas posições políticas, que considero libertárias – por não
se submeterem aos normatismos, há uma tentativa, mesmo que “Do It
Yourself”, de terem grande repercussão, público e venda de seus trabalhos.
Principalmente quando as bandas estão há tanto tempo batalhando por
seu lugar ao sol.
Não digo também que são especificamente contraculturais não so-
mente para evitar a confusão com o movimento dos anos 60, mas porque
entendo a dinâmica da música extrema muito mais como em um exercício
de resistência foucaultiana ao presente, do que necessariamente uma uto-
pia metafísica banhada de ilusões fourieristas e/ou certos cristianismos
místicos de comunidades isoladas. A música extrema está imersa em uma
sociedade capitalista globalizada, excludente, classificatória, hierarqui-
zante, exploratória e, agora, repleta de macrofascismos, que refletem
microfacismos até então sutis, escondidos e até então tocaiados.
E serei largamente spinozista – em uma interpretação peculiarmente
negriana – por dizer que o que chamo de música extrema é uma multidão
de singularidades – individuais e coletivas – que apesar de ter uma enorme
quantidade de diferenças éticas e afetivas, tem em comum uma série de
combates e resistências, que nos permitem identificá-las sob um teto me-
nos identitário que conectado estética e politicamente. Se o metal extremo
é identificado sob uma determinada sonoridade mais caótica e ruidosa, a
música extrema é mais abrangente, sugerindo uma série de rupturas e
228 | Diálogos com a Música Extrema

trincheiras que as impedem de se submeter a um jugo modelar e unifica-


dor.
Sim. Entendo a música extrema como séries de manifestos de uma
multidão. Tendo em comum uma série – ou várias séries – de lutas, liber-
dades, resistências, rompimentos, revoltas e rebeldias, a partir de
movimentos sonoros levemente distintos, com intensidades e velocidades
diferentes, mas exercendo políticas combativas e insubmissas.
Uma multidão que desde os anos 80, encontrou na ecologia – en-
quanto denúncia e alerta, e não como impositivo de comportamento – uma
das dimensões de sua crítica e contestação, se utilizando da imagem da
morte como símbolo máximo das sociedades contemporâneas, que a par-
tir do uso de armas nucleares, da destruição das áreas verdes e da extinção
de espécies animais, são muito mais cultuadoras de práticas necrófilas do
que necessariamente de qualquer modo de apego à vida. Ecologia, como
discurso em comum, de conjuntos e sonoridades tão distintas entre si,
como em “2 Minutes to Midnight”, do Iron Maiden, “After of Holocaust”,
do Nuclear Assault, “Arise”, do Sepultura,
E que se faz ecologia, ao desfrutar de ambientes onde outras formas
de relações estão constantemente se produzindo, dando outros sentidos e
dimensões à catástrofe ecológica. De forma que, inequivocamente, a im-
posição de um modo de vida ecológico que se torne uma prática
“simpática, correta e salvacionista”, a partir da preocupação com o meio,
seja vista e considerada mais como uma nova forma de normatização e
imposição de condutas, ou uma militarização da existência a partir do “cui-
dado e proteção do meio ambiente”, do que necessariamente uma
perspectiva democrática e participativa de vida coletiva.
No entanto, é preciso que não se engane em relação às posturas dessa
multidão, pois, apesar de ecologias, a perspectiva não é nem intensamente
pacifista e nem otimista tal qual a contracultura hippie dos anos 60. Apesar
Rodrigo Barchi | 229

das críticas à violência estatal-policial e também da privada à vida indivi-


dual e social das pessoas, do intenso discurso antimilitarista e antibelicista,
da denúncia às guerras e conflitos em nome do capital e do nacionalismo,
e dos constantes discursos contra a barbárie promovida contra o Terceiro
Mundo, os negros, os índios, as mulheres, aos LGBTQIA+ e aos animais, o
pacifismo e a não violência nem sempre soçobram plenas e hegemônicas
nestes movimentos. Se não há um discurso pela guerra, pela violência, pela
barbárie e pela morte, todas elas atravessam e dão suporte à música ex-
trema, que se sabe imanente a elas...
E é nesse sentido que, no que cabe a qual aquilo que a música ex-
trema, tem três coisas a dizer às ecologias e às educações ambientais, no
momento em que estamos inseridos, e rodeados de uma série de discursos
e práticas barbáricas em nome de conservadorismos tradicionalistas, em-
bebidos em desejos de morte, extermínio e imposição categórica de uma
lógica de terror contra todas as políticas e práticas de diversidade e todas
as formas de vida.

Os irascíveis!

A primeira delas é em relação à ira, à indignação e a raiva perante o


estado de coisas ao qual não só a humanidade torna cada vez mais insalu-
bre a vida na Terra, mas a todo o processo degringolado do avanço dos
fascismos, associados às perspectivas brutalmente cristofascistas, que, de
todas as formas, buscam implantar suas doutrinas excludentes, antidialó-
gicas e persecutórias.
Não à toa, aparentemente, a banda Krisiun tenha voltado a tocar um
som que há muito tempo não tocava em seus shows, que é a faixa título
do álbum “Conquerors of Armageddon”, e seu forte refrão: Conquerors of
armageddon, Impaling spike on the damned cross Kill, kill, kill lord Jesus
230 | Diálogos com a Música Extrema

Christ. Na live que realizaram no programa Kiss Club Live, no dia 04 de


setembro de 2020, e transmitida pelo canal YouTube, antes de tocarem a
composição, o vocalista Moises Kolense fez um pesado discurso contra o
avanço do conservadorismo e das perspectivas religiosas intolerantes às
diferenças. Um posicionamento que não é exclusivo da banda, mas, como
eu já escrevi em outros momentos, de diversas bandas brasileiras da Mú-
sica Extrema do Brasil.
Aliás, o posicionamento de indignação e raiva sempre foi constante
entre as bandas de música extrema. E a evocação do diabo, dos zumbis,
dos monstros, das caveiras, dos vampiros e da imagem da morte nas capas
e nos materiais de divulgação das bandas estão intimamente ligadas à frus-
tração, ao ódio e a desesperança perante às sociedades majoritariamente
cristãs, modelares, normatizadoras, eugenicamente higienistas, patriar-
cais, detratoras da noite. Não à toa, as imagens de morcegos, atreladas às
asas dos demônios, sempre foram bem-vindas nas gravuras dos álbuns,
zines e estampas das bandas e admiradores. A imagem da morte e suas
gigantescas asas de quirópteros na capa do álbum Scum, do Napalm De-
ath, de 1987, não nos deixa mentir.
Essa ira e indignação sempre vieram acompanhadas de discursos e
letras muito pesadas e intensas, tanto contra o Estado e o capital – nas
bandas mais anárquicas – como contra a cristandade, no caso do Thrash,
do Death e do Black Metal. Talvez, a única ira que não seja mais tolerada
pelas extremidades seja justamente aquela depositada na imagem do de-
miurgo cristão:

Book of contradiction, the one that I despise


In the words of truth I speak, the lords of lords will die
End the wrath of God, end the wrath of God
Book of contradiction, the one that I despise
In the words of truth I speak, the lords of lords will die
Rodrigo Barchi | 231

(Deicide, End of Wrath of God)

É evidente que toda essa fúria possa gerar uma série de riscos, devido
tanto as ameaças por parte dos poderes hegemônicos contra os discursos
anticapital, anti Estado e anticristãos. As abordagens policiais contra
punks e cabeludos nos anos 80 e 90, além da já citada ação da PMRC nos
EUA, assim como uma série de outras ameaças e violências menores – o
caso do Krisiun no aeroporto da Indonésia, por exemplo – e cotidianas, são
mostras do quanto um discurso antiestablishment pode causar danos a
quem arrisca se colocar contra. Ética, estética e politicamente.
Por mais que as manifestações dos grupos de música extrema não
sejam capazes de ameaçar bélica e economicamente a estrutura contem-
porânea, há sempre um temor, por parte de quem exerce o poder, de que
a fala – aqui a partir de letras, sonoridades, imagens e vestimentas – desses
grupos e seus admiradores, possa representar alguma ameaça. E o medo
se dá, principalmente, por que há algo de parresiástico na música extrema.

A parresia é, portanto, em duas palavras, a coragem da verdade naquele que


fala e assume o risco de dizer, a despeito de tudo, toda a verdade que pensa,
mas também a coragem do interlocutor que aceita receber a verdade ferina
que houve (FOUCAULT, 2011, p. 13)

Foucault sugere que a parresía, ao dizer a verdade, seja instaurada


no enfrentamento e no risco de ferir, irritar e fazer com que o outro, in-
clusive, possa promover a violência. Ou seja, a coragem da verdade
presente na parresía inclui até o próprio risco de minar a relação que até
permite que ela seja expressa. (FOUCAULT, 2011, p. 12). Esse “quê” de
parresía presente na existência das bandas de música extrema é constan-
temente uma existência de risco, justamente por expor sua raiva e
indignação contra a situação e contexto do mundo. E o risco se torna
232 | Diálogos com a Música Extrema

maior, pois assume uma forma dos inimigos do Estado, do Capital e da


Religião: o anarquista, o comunista e o diabo.
No entanto, o recuo por parte das comissões moralistas instauradas
nas casas parlamentares estadunidenses, a popularização da música ex-
trema – que apesar de nunca ser pop, é capaz de reunir algumas multidões
– e a diversidade de gravadoras, sites, revistas e lojas, promoveram uma
interlocução que, se por um lado, carrega as possibilidades de cooptações
que podem diminuir o impacto dessa música extrema, por outro, se tor-
nam justamente a segunda etapa da parresía, que é o acusado ouvir o que
o parresiasta tem a dizer. Porém, perante o avanço dos conservadorismos,
militarismos, neoliberalismos e neopentecostalismos cristofascistas, apa-
rentemente há um recuo da interlocução, e essa certa parresía presente na
música extrema se posiciona de forma cada vez mais arriscada, mais uma
vez.
A indignação e a raiva estão presentes na sonoridade e nas imagens
das bandas de música extrema como exercício de exposição da verdade, e
se deparam com o risco da violência reacionária, pois são justamente, to-
talmente ou em parte, exercícios de alinhamento político e solidariedade
àqueles que, de uma forma ou outra, não foram contemplados e privilegi-
ados pelos exercícios de poder que visavam garantir o poder macho,
branco, hétero, cristão e financeiro.
A exposição dessa fúria por parte da música extrema é muito análoga,
justamente, à legitimação da indignação e da raiva que Paulo Freire suge-
ria como catalisadores e motivadores de uma ação política na educação. A
enorme quantidade de apontamentos heréticos e anárquicos feitos pelo
Grindcore, pelo Death Metal, Thrash Metal e Black Metal, estão muito ali-
nhados àquilo que Nita Freire, ao falar sobre a indignação em Paulo Freire,
sugeriu como a dinâmica da denúncia-anúncio elaborada pelo educador
pernambucano:
Rodrigo Barchi | 233

Dava-se o direito de sentir profundamente as raivas, legítimas, como dizia,


então elaborava o acontecido científica e politicamente nos seus dizeres pau-
tados pela compostura ética através de uma criação linguístico-estética de rara
beleza. Assim, quando repudiava o feito ou o fato, os denunciava para, dialeti-
camente, certo da razão de ser dos fatos e das coisas, amorosamente anunciar
o novo. Esta é a dinâmica da denúncia-anúncio em Paulo, o seu ser educador,
político e ético. (FREIRE, 2008, p. 178-179).

Assim como Paulo Freire constantemente se arriscou – sendo inclu-


sive preso, exilado e hoje com sua memória vilipendiada – por sua
indignação, por sua constante fala da verdade e sua tentativa incansável
de transformação da realidade, apesar de uma série de interlocutores
sendo ainda capaz de lhe ouvir, a música extrema foi capaz, em sua rup-
tura e radicalidade na música e para pequenas multidões, de trazer à tona
uma série de denúncias-anúncios, capaz de inquietar, no mínimo, uma sé-
rie de verdades estabelecidas como inquestionáveis e poucas vezes
desafiadas. A raiva que expõe a violência até então travestida de disciplina.
A indignação que expõe o assédio disfarçado de bons costumes e salvação
espiritual. A fúria que não mais se continha por deixar nas mãos de poucos
grupos, o monopólio da música e do discurso da transformação.

Revolta, rebelião, insurgência

Se ainda pensarmos na legitimação dessa inquietude irascível pre-


sente na música extrema a partir do pensamento de Paulo Freire, ainda
podemos, e de modo mais arriscado ainda, sugerir que ela garante que a
rebeldia não seja compreendida somente como um momento de juventu-
des não conformadas, mas com desejos de combate aos processos de
opressão e submissão dos desprivilegiados e de transformação radical da
234 | Diálogos com a Música Extrema

realidade. E essa revolta é a segunda coisa que a música extrema tem a


dizer às ecologias.
Paulo Freire sugeria, lá em suas últimas obras, como Pedagogia da
Indignação e Pedagogia da Autonomia, que a rebeldia se fundamenta na
resistência que nos mantêm vivos e que compreende o futuro como pro-
blema (MORETTI, 2019, p. 400). Ou seja, para quem não pode – por
hereditariedade, posse de propriedade, poder financeiro, religioso ou es-
tatal – ter os privilégios e benefícios dos agentes dominantes, a rebeldia é
condição primordial na luta pelos direitos mais básicos. E não somente
para ter o reconhecimento do poder hegemônico, mas na construção de
sociedades mais justas, igualitárias, comunais e solidárias.
Em Pedagogia da Autonomia, Freire sugeria que não era na resigna-
ção e na aceitação do mundo como está, em uma esperança de mudança
milagrosa da realidade, que a transformação poderia ocorrer, mas na re-
beldia e na resposta direta às ofensas que a desigualdade e a exploração
nos impunham:

Uma das questões centrais com que temos de lidar é a promoção de posturas
rebeldes em posturas revolucionárias que nos engajam no processo radical de
transformação do mundo. A rebeldia é ponto de partida indispensável, é de-
flagração da justa ira, mas não é suficiente. A rebeldia enquanto denúncia
precisa se alongar até uma posição mais radical e crítica, a revolucionária, fun-
damentalmente anunciadora. A mudança do mundo implica a dialetização
entre a denúncia da situação desumanizante e o anúncio de sua superação, no
fundo, o nosso sonho. (FREIRE, 2000a, p. 88)

É aqui que o sentimento de raiva e indignação, em Freire, abandonam


o campo da resiliência resignada – que por mais que esteja furiosa, não se
expõe, justamente por falta da coragem da verdade – se transforma em
revolta e rebeldia, na exposição do posicionamento ético, político e estético
Rodrigo Barchi | 235

– aqui pensando na música extrema e sua colocação perante a realidade –


sobre as injustiças, os devaneios, as ideologias e as barbáries presentes na
realidade.
E, nesse exercício particular que venho fazendo em pensar a música
extrema tanto em práticas educativas quanto em perspectivas ecológicas
– que é a tarefa mais específica desse texto – é justamente em apontar o
quanto esses grupos, de forma mais sarcástica – como nos conjuntos mais
satanistas – ou de forma mais direta – em grupos mais libertários/anár-
quicos – ao denunciar as ofensas, faz educação e faz ecologia ao
desnaturalizar os processos de violência, predação e assédio sofrido não
somente pelos animais e pelas paisagens naturais, mas pelos índios, pelos
negros, pelas mulheres, pelos grupos LGBTQIA+, pelos pobres e excluídos.
A potência educativa e ecológica presente nas letras, capas, gravuras,
shows, zines e outros materiais de divulgação da música extrema carrega
a coragem parresiástica da verdade, que não quer lisonjear ou enganar os
agentes de poder, mas desafiar suas imposições, como a denúncia que en-
frentará – exitosamente ou não – a razão que legitimava as injustiças, as
violências, as predações e as destruições promovidas no exercício do poder
religioso, estatal e financeiro. E também traz a rebeldia de grupos que de
forma alguma se conformaram com a resignação e a submissão aos mo-
delos institucionais, familiares e religiosos, gritando muito alto contra
essas imposições.
Seriam os integrantes da música extrema os cínicos contemporâ-
neos? Cada uma das bandas, em especial as mais precursoras de cada um
dos estilos mais extremos do metal e do punk, herdeiros de Antístenes,
Diógenes de Sínope, Crates de Tebas e Hiparquia? A coragem de refutar o
discurso dominante de submissão, disciplinamento e aceitação das impo-
sições sociais, econômicas, políticas, culturais e morais, contrapondo-lhe
com uma musicalidade cacofônica, e um desejo de revolta, rebeldia,
236 | Diálogos com a Música Extrema

insubmissão e revolução, não seria justamente um constante envio de ga-


linhas depenadas, tal qual o homem do barril havia feito com o filósofo
ateniense?
O que torna essa questão ainda mais inquietante, é que no trabalho
desenvolvido em sua tese de doutorado sobre a possibilidade de pensar-
mos a crise ecológica em uma perspectiva cínica, José Alberto Cuesta
(2011) sugere que há muito de parresiástico no próprio movimento ecoló-
gico, em especial no posicionamento ao redor das noções de ecologia
política nos movimentos altermundistas do início do século XXI, quando
estes resolvem contestar a falsidade presente no discurso neoliberal sobre
inclusão. Cuesta realiza um deslocamento temporal e conceitual impor-
tante, que é necessário citar:

El cinismo antíguo se burlaba de los desechos de la democracia ateniense y


trató de transmutar los valores vigentes denunciando, desde sua posición de
parias, primero la segregación orquestrada em función del derecho de ciuda-
danía, y luego el falso cosmopolitismo derivado del imperialismo alejandrino.
De forma análoga, el quinismo del actual movimento de alterglobalización
trata hoy de incentivar la participación ciudadana para revitalizar uma demo-
cracia gastada, que sólo obedece a interesses particulares, y crear outro tipo
de globalización: um verdadeiro cosmopolitismo basado em las relaciones de
solidaridad entre el Norte y el Sur, invalidando los interesses econômicos de
um minoritária plutocracia, para que “otro mundo sea posible”. (CUESTA,
2011, p. 350).

Nesse sentido é que o anarquismo presente nos discursos e nas prá-


ticas Do It Yourself de muitas das bandas de música extrema – como já
discuti em diversos outros momentos (BARCHI, 2016, 2017, 2018, 2020)
– contesta, constantemente, a democracia representativa dos Estados con-
temporâneos, associando-a muito mais às plutocracias e oligarquias
liberais, do que necessariamente entendê-los espaços de tomada coletiva
Rodrigo Barchi | 237

de decisão. Em suma, o que a música extrema realiza é justamente atirar


a galinha depenada na face da democracia representativa que, se no mo-
mento em que Cuesta escreveu seu trabalho, atendia justamente à
globalização neoliberal e às instituições multilaterais, hoje atende aos in-
teresses – no caso brasileiro – de facções militares, neopentecostais e do
agronegócio.
Portanto, se a primeira coisa que a música extrema tem a dizer às
ecologias é justamente sobre a ira e da indignação perante a condição vi-
vida não somente pelos oprimidos, mas também pela situação de
destruição ambiental promovida pela ação exploratória sobre as paisagens
naturais e os outros seres vivos, o segundo ponto é justamente ao redor da
rebeldia necessária às duas primeiras, de forma que ela possa se tornar
uma ação contra o estado atual das coisas, e não se submeta a uma resig-
nação subserviente e conformada, que espera uma salvação do além ou
um paraíso como recompensa por ter justamente vivido uma vida mansa
e não contestatória.

Radicalidade

Nesse sentido, e pensando com Paulo Freire, se a raiva e indignação,


transformadas em rebeldia, só podem se tornar ações efetivas de constru-
ções de novas realidades se derem asas às perspectivas revolucionárias de
transformação do mundo, de modo a não se perderem em vitalismos e
espontaneidades estéreis. Nesse sentido, a terceira coisa que a música ex-
trema possa dizer às ecologias é sobre a radicalidade.
Apesar de nunca ter citado diretamente o trecho específico da intro-
dução da “Crítica da Filosofia do Direito de Hegel”, de Marx2 – onde o

2
A minuciosa análise realizada por Ana Maria Araújo Freire das citações da obra de Paulo Freire mostra que essa
obra não é citada, assim como no dicionário Paulo Freire (STRECK; REDIN; ZITKOSKI, 2019), no verbete
238 | Diálogos com a Música Extrema

pensador alemão, ao enaltecer a crítica positiva da religião, fala em radical


aquilo que toma a coisa pela raiz, sendo a raiz “para o homem, o próprio
homem” (MARX, 2010, p. 151) – a noção de radicalidade como a necessi-
dade de compreensão e transformação profunda da realidade sempre
permeou o pensamento de Paulo Freire.
Lá nas primeiras palavras de “Pedagogia do Oprimido” (FREIRE,
1983), Paulo é enfático em distinguir sectarização de radicalização. En-
quanto a primeira é promotora de castração, fanatismo e segregação, a
segunda é propositora de criação e criticidade, sendo, portanto, libertadora
“porque, implicando no enraizamento que os homens fazem na opção que
fizeram, os engaja cada vez mais no esforço de transformação da realidade
concreta, objetiva” (FREIRE, 1983, p. 22). E esse engajamento torna im-
possível a passividade perante a barbárie e violência do opressor, fazendo
com que o radical jamais se permita manter na resiliência, mas insistir na
luta.

Não teme enfrentar, não teme ouvir, não teme o desvelamento do mundo. Não
teme o encontro com o povo. Não teme o diálogo com ele, de que resulta o
crescente saber de ambos. Não se sente dono do tempo, nem dono dos ho-
mens, nem libertador dos oprimidos. Com eles se compromete, dentro do
tempo, para com eles lutar. (FREIRE, 1983, p. 24)

Quando revisita a “Pedagogia do Oprimido”, quinze anos depois, na


obra “Pedagogia da Esperança”, Paulo Freire enfatiza que a radicalidade
nunca se fez tão necessária no combate aos sedentarismos e às verdades
únicas, e que nunca se poderiam perder a “ética da luta e a boniteza da
briga” (FREIRE, 2018, p. 71). Sua reivindicação e insistência pela “radica-
lidade democrática” (FREIRE, 2018, p.216), se faziam imperativas na

RADICALIDADE, escrito por Jenifer Crawford e Peter Mclaren, não há nenhuma referência direta a essa obra do
pensador alemão.
Rodrigo Barchi | 239

prática pedagógica e na presença de mundo não somente pela revolta con-


tra a falta de escola, moradia e comida, mas na imposição de identificar a
fundo a origem e a estrutura dessas problemáticas, e resolvê-las de modo
amplo e constante. Se Paulo Freire enfatizava essas questões lá no contexto
do governo Collor, imagina o apelo que estaria fazendo durante a esquizo-
frenia de 2020...
A radicalidade freireana, insistentemente democrática, tem suas ori-
gens, de acordo com o próprio Paulo Freire em “Cartas à Cristina”, na sua
infância e juventude, lá em Jaboatão, ao perceber a exploração e miséria
dos camponeses, os quais, “mais ‘fatalistas’ que mansos” (FREIRE, 2013,
p. 115), revelavam a realidade dramática de uma sociedade que de demo-
crática, mesmo nos períodos menos ditatoriais de nossa história, não tinha
nada, no que diz respeito à esmagadora quantidade de trabalhadores opri-
midos e submetidos à falta de seus direitos mais básicos.
Uma democracia que, como argumenta Freire (2013, p. 182), está sob
o monopólio de burguesias, que a detém sob a argumentação na qual ou
se faz essa democracia burocrática, representativa e litúrgica de forma es-
porádica e espasmódica, ou se submete a socialismos, cujos interesses são
estabelecer “ditaduras expropriadoras de posses materiais e defensora de
quem não produz e trabalha”. Tanto em “Cartas a Cristina”, como “À som-
bra desta mangueira” (FREIRE, 2012, p. 107), Paulo Freire sempre fazia
questão de lembrar que o socialismo democrático participativo que defen-
dia estava longe de ser o socialismo burocrático dos regimes soviéticos, e
que também aí estava sua radicalidade. Ou seja, a de romper com as pers-
pectivas sectaristas cegas, que dualizavam democracia representativa
burguesa e socialismo burocratizado tirânico, para sugerir propostas par-
ticipativas democráticas comunais e mais igualitárias.
O que é bastante pertinente no contexto dessas democracias partici-
pativas radicais no pensamento de Paulo Freire, na contribuição que
240 | Diálogos com a Música Extrema

sugiro que a Música Extrema dá às ecologias, é que o próprio pernambu-


cano sugere que essa postura de denúncia e rompimento com as
dualidades míopes dos sectarismos, e vista como uma ação diabólica.
Ainda em “Cartas à Cristina”, Freire afirmou que era constantemente ta-
chado de diabólico, um capeta que atormentava as pessoas por
conscientizá-las de sua condição de exploração e opressão, e que, por causa
disso, as ameaçava com a perdição de suas almas. Que deveriam aceitar
seu destino trágico com toda resiliência e resignação do mundo, pois o que
estava guardado para elas em outra vida, era uma eternidade plena e mag-
nífica.
O diabo, o ser das profundezas, que recusa a classificação hierárquica
transcendente, eterna e aparente do mundo. Que precisa, com seu grito,
com sua fúria, com sua ira, rebeldia e radicalidade, mostrar e denunciar
que a realidade é como é, não porque há uma ordem divina ou uma natu-
reza impositiva que determina a razão do mundo como está, mas que é
politicamente e economicamente construída em uma relação de expropri-
ação, exploração, opressão, submissão e acumulação, e que sugere
explicações superficiais e rápidas sejam inquestionáveis:

Sou radical não porque tema cair no pensamento crítico de vitrine. Sou radical
porque procuro ir às raízes das coisas, das ideias, dos fatos, porque não me é
possível sonhar sem enraizer-me, porque não me é possível simplesmente es-
tar sendo no mundo sem ter amanhã e não é viável lidar com ele, o amanhã,
sem sonhar. Por isso também sou esperançoso e não por pura teimosia como
antes afirmei e poderia parecer. (FREIRE, 2014, p. 243-244)

Ao propor-se como ontologicamente radical (FREIRE, 2014, p. 239),


nessa mesma entrevista resgatada e registrada por sua viúva, Ana Maria
Araújo Freire, Paulo Freire sugere que sua radicalidade é produto de uma
história de vida e militância, que não lhe permitem ser educador sem, ao
Rodrigo Barchi | 241

mesmo tempo, ser um pesquisador da realidade. A radicalidade, mais do


que uma intransigente cisma ou um obstinado fundamentalismo inconse-
quente e cego, é uma incansável e infindável busca e construção de saber
e diálogo com o mundo.
Nessa dialogia, as injustiças, a desigualdade, a predação, a violência,
a barbárie e as tentativas de apagamentos, não são somente objeto neu-
tralizado de estudo científico ou pesquisa acadêmica, mas uma realidade
construída, muitas vezes, sob a escravidão, o racismo, o machismo, o ge-
nocídio, o etnocídio e o ecocídio. Em suma, ao redor das insistentes
tentativas de obliteração das diferenças e de quaisquer possibilidades de
existências outras.

Por ecologias enraivecidas, insurgentes e radicais

Não que o movimento ecológico não tenha sido permeado pela ira,
pela rebeldia e pela radicalidade em sua história. De forma alguma pode-
mos dizer que “Primavera Silenciosa” de Rachel Carson não tenha se
pautado pela indignação em relação à matança de insetos e aves devido ao
uso indiscriminado de agrotóxicos, de venenos. Assim como não podemos
deixar de citar a insurgência e rebelião dos povos da floresta, ao verem,
como Chico Mendes, a floresta dizimada e sua possibilidade de subsistên-
cia ser destruída. Como afirmar que não há raiva, rebelião e radicalidade
nas ações políticas e alertas feitos por Ailton Krenak (2019) e Davi Kape-
nawa (2015)? Ou ainda na ação incansável de Paul Watson e pelos
membros da Sea Shepherd, na defesa dos animais marinhos e dos oceanos,
e que são constantemente apoiados, entre outros, por bandas da música
extrema como Napalm Death?
A ecologia é permeada de insubmissão e revolta. A ecologia que as
bandas de música extrema constantemente trazem à tona está cheia de
242 | Diálogos com a Música Extrema

raiva, de insubmissão e de radicalidade, como já sugeri em outros momen-


tos (BARCHI 2017, 2018, 2020). E são ecologias que não se isolaram
somente na denúncia da hecatombe ecológica, mas as entrelaçam com as
suas perspectivas ácidas ao redor das corrupções políticas, das mazelas so-
ciais, das devassidões e explorações econômico-financeiras e as barbáricas
padronizações culturais.
E é nesse sentido que, mais do que responder à questão sobre o que
a música extrema tem a dizer às ecologias, é o que é necessário lembrar às
ecologias sobre as suas possibilidades e necessidades de existência. Apesar
das conquistas que o movimento ecológico conseguiu ao redor das políti-
cas públicas, no que diz respeito à proteção de áreas silvestres, de punição
aos criminosos ambientais e de implantação de planos e programas de
sustentabilidade e educação ambiental, a atual governança da extrema di-
reita mostra – do modo mais criminoso e pirotécnico imaginável – que há
uma fragilidade dessas conquistas.
O risco da estatização e da institucionalização das demandas ecológi-
cas está intimamente vinculado à fragilização dos movimentos e sujeitos,
que de vigilantes e combativos aos desmandos e violências contra a ecolo-
gia (pensando-a como perspectiva política de movimento e pensamento
filosófico, político, econômico, social e cultural) e o meio ambiente, podem
cair na letargia, na indolência e na cooptação do trabalho no setor público
e privado. Quando não, como denunciou Reigota, tornam-se cúmplices de
esquemas antiecológicos e promotores do apagamento acadêmico e polí-
tico dos dissidentes.
Portanto, mais do que dizer algo novo, a música extrema é um cons-
tante exercício de lembrança para as práticas políticas da ecologia, para
que não percam sua capacidade de ser potencializadora de transformação
e mudança, perante iminentes grandes e pequenas catástrofes ecológicas,
que não cessam de ocorrer. O que é a pandemia da Covid-17 senão, entre
Rodrigo Barchi | 243

outras coisas, uma chaga de aglomerações humanas em cada vez menores


espaços de moradia, transporte e trabalho?
A lembrança é que as ecologias nunca percam sua capacidade de se
indignar e se irritar perante a queima da floresta amazônica, do cerrado e
do Pantanal. Que não deixem de se enraivecer perante a matança de ani-
mais silvestres e um número cada vez maior de espécies em extinção. Que
nunca se permitam ficar incólumes ou tranquilas perante o sofrimento dos
outros seres vivos que compartilham o planeta conosco.
A música extrema, em segundo lugar, com sua rebeldia revolucioná-
ria insubmissa, lembra às ecologias que se elas não se levantarem contra
quaisquer possibilidades e iniciativas de violência contra o meio ambiente,
elas serão brutalmente massacradas. E mais. Se não se alinharem aos ou-
tros movimentos que tem na brutalidade estatal e na bestialidade
neoliberal inimigos em comum (movimentos negros, quilombolas, indíge-
nas, sem-terra, camponeses, das mulheres, LGBTQIA+, das periferias e
favelas), não haverá força suficiente para resistir de modo adequado e lon-
gevo.
Por último, se as ecologias não forem, adotando aqui a terminologia
e sugestão de Paulo Freire, ontologicamente radicais, e se contentarem so-
mente com pequenas maquilagens e novas roupagens ao neoliberalismo e
ao capitalismo contemporâneo, elas não conseguirão ser mais do que me-
ras perfumarias simpáticas nos departamentos das grandes empresas ou
nas secretarias e ministérios da educação e do meio ambiente. Quando
conseguirem espaço para isso, pois, como já afirmei, uma canetada pode
apagar a existência estatal e institucional e sobrar, somente, para quem
sobrar como autêntico, a mesma marginalidade vivenciada, desde sempre,
pela música extrema.
Sim. É no grito, no barulho e no ruído, e de forma radical e raivosa
se levantarem e insurgirem, que talvez, nesse momento de recuo e
244 | Diálogos com a Música Extrema

derrotas, as ecologias possam promover o que nunca deveriam ter deixado


de propor, que é uma intensa, profunda e imanente transformação da re-
alidade, buscando, de uma vez por todas, impedir a chacina, a brutalidade
e a insanidade que o planeta sofre pelas ações humanas. Precisará ser no
grito, e num grito, ao máximo possível e necessário, e ao mesmo tempo,
dialógico, indignado, insurgente, profundo.

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de 2020.
7

O que acontece no palco é pretexto:


Ecologia da Comunicação e capilaridades
comunicacionais visitam o submundo musical

Tadeu Rodrigues Iuama

Para isso nos criamos


para lutar sem temer a vida
sem se acomodar, sem dar submissão.

Ao som de Corubo – “25.09.2007. Meu irmão”


Do álbum Ypykuera (2008)
https://www.youtube.com/watch?v=Y--bLdPckEI

Intro

O presente texto se propõe a relatar a percepção de como um deter-


minado enquadramento teórico encontra ressonâncias numa prática que
me é cotidiana. Diferentemente de um relato corriqueiro, aqui os critérios
de cientificidade são embasados pelo uso da autoetnografia (ELLIS;
ADAMS; BOCHNER, 2011; ELLINGSON; ELLIS, 2008), uma abordagem
metodológica que advoga as inter-relações e interdependências entre a ob-
servação de caráter etnográfico na pesquisa de campo com a história de
vida do próprio pesquisador. Observa ainda uma perspectiva fenomenoló-
gica, ao concordar que:

Para o método fenomenológico, a vivência singular é universalizada: pesqui-


sadores e leitores da pesquisa podem compreendê-la porque são também
participantes da condição humana. O que se busca, portanto, é uma descrição
248 | Diálogos com a Música Extrema

direta, intuitiva, da experiência baseada na observação, ainda assim sabendo


que ela permite várias interpretações (MARTINEZ; SILVA, 2014, p. 6)

Por fim, opto pelo ensaio como forma de expressão (KÜNSCH;


CARRARO, 2012), dada a abertura e transitoriedade do presente texto que,
mais do que tributar a presunção, ao se propor a responder, visa inquietar,
para provocar ao diálogo.
Uma vez adotado esse composto metodológico, as lentes que condici-
onam meu olhar evocam tanto a ecologia da comunicação (ROMANO,
2004) quanto as capilaridades comunicacionais (FLUSSER, 2019;
BAITELLO JUNIOR, 2010). Os dois aportes teóricos já possuem ressonân-
cias traçadas (MENEZES, 2013), de maneira que a proposta desse trabalho
não é discutir a pertinência de relacionar ambos, e sim aplicar tal perspec-
tiva ao fenômeno de interesse.
Nesse sentido, a busca é por rememorar a participação em um evento
ocorrido em 23 de fevereiro de 2020, o 2º Evil Várzea Celebration, ocor-
rido no Bar’Phomet, na cidade de Várzea Paulista, interior de São Paulo. A
intenção é traçar um diálogo entre e a participação do evento e as teorias
que me são cotidianas no âmbito acadêmico.

Capilaridade presencial

É lugar comum associarmos a comunicação aos seus meios mais con-


temporâneos, tais como os computadores, smartphones e televisores. Mas
o fato é, como Norval Baitello Junior (2010) aprendeu em suas leituras de
Harry Pross, que toda comunicação inicia e termina com um ser humano
– a existência de aparatos intermediando o processo é acessória.
Nesse sentido, ignorar a comunicação presencial em prol das teleco-
municações é apagar muitas das potencialidades de vinculação entre os
indivíduos. O submundo (underground, se formos optar pelo termo
Tadeu Rodrigues Iuama | 249

anglófono) musical parece saber disso quase que instintivamente. Estar


num show é algo muito diferente de ouvir uma música em casa. Quanto
menos mediado for o processo, parece que mais nos sentimos pertencen-
tes àquela cena.
O que experimentamos em termos presenciais num show extrapola
a música, sem sombra de dúvidas. As conversas que fazem com que o pú-
blico passe boa parte da duração dos eventos na calçada, e não no interior
do estabelecimento, é prova cabal disso. Ali é um lugar de encontrarmos
nossos pares, de colocar a conversa em dia com pessoas queridas que nem
sempre temos oportunidade de encontrar.
Engana-se aquele que imagina que a música é o único assunto. Nesse
dia, recordo ter discutido sobre o projeto urbanístico na praça (aliás, praça
é um eufemismo para aquele lugar que mais parece um parque) em frente
ao estabelecimento. A discussão enveredou sobre o planejamento torpe do
poder público, que não dá a devida atenção para o projeto de iluminação
do ambiente, assim como não leva em conta o ciclo solar para escolher
onde os bancos serão colocados (de maneira que fica inviável sentar nos
bancos da praça).
Subitamente, o debate sobre urbanismo é interrompido pelo convite
de um grupo dar um passeio e tirar umas fotos na mata que envolve a
praça. É hora de discutir uma coisa ou outra sobre o bioma regional. E
também sobre a relação da nossa sociedade com a natureza, que a encap-
sula em bolsões especificamente planejados, para que o oceano cinza no
entorno expresse uma noção de progresso.
Hora de voltar para o estabelecimento. Afinal, nem só de conversas
vivem as pessoas. Juliano e Adalini, o casal que cuida do Bar’Phomet, de-
vem ter passado os últimos dias em claro para preparar o lugar para seus
frequentadores. Além dos produtos industrializados habituais, destacam-
se a cerveja artesanal desenvolvida na casa, assim como os pastéis e
250 | Diálogos com a Música Extrema

lanches preparados com carinho e esmero. Aliás, é digno de nota o Erzebet,


pastel de pimenta produzido pelo casal. O nome, nada fortuito, remete a
Isabel Bathory, nobre húngara responsável por uma série de crimes hedi-
ondos que lhe renderam a alcunha de condessa sangrenta. A figura de
Bathory, evocada em diversas músicas de metal extremo e responsável in-
clusive por nomear uma das bandas mais icônicas do meio, transporta
habilmente o extremismo da música para a gastronomia – sobretudo
quando o pastel em questão é feito de Bhut Jolokia, uma das pimentas mais
picantes do mundo. A cerveja do bar, carregada de gengibre, também faz
uma tradução intersemiótica da rispidez musical que ali era presente.
Mas ir ao balcão saborear as delícias do ambiente não passa desper-
cebido. É hora de bater um papo sobre existencialismo com o Juliano –
fissurado em ler os autores canônicos do tema. Também é hora de combi-
nar que depois irei mandar um artigo que havia acabado de publicar, para
que ele leia. Pode parecer surpresa para quem não é do meio, mas está
longe de ser incomum conversas mais profundas no meio de shows.
A ida e a volta são um, perdão pelo trocadilho, espetáculo a parte. Na
van, além da banda, nossos amigos preenchem os lugares disponíveis. É
hora de conversarmos sobre os mais diversos assuntos, dos sérios aos pi-
torescos. É a hora que cada um, com seus conhecimentos, traduz para uma
linguagem acessível aos demais1. É hora de compartilhar as histórias tra-
dicionais daquele grupo. É hora de tentar dormir e não conseguir, dada a
agitação das pessoas.
As cervejas são divididas. Estando entre amigos como se está ali, não
faz sentido dividir o meu do nosso. As bandas trocam materiais, e experi-
ências, entre si. Os equipamentos ficam ali no canto, ao alcance de todo

1
Embora o trabalho em questão não seja sobre o metal extremo, a dinâmica social é similar ao que foi observado nos
processos folkcomunicacionais no âmbito do blues e do hip hop (POSTALI, 2011).
Tadeu Rodrigues Iuama | 251

mundo, e ninguém mexe. Afirmações como essas podem parecer ingênuas


e otimistas demais, mas quem frequenta tais ambientes sabe que a dinâ-
mica é essa mesma. Qualquer desvio disso são exceções pontuais, e aqui é
importante reconhecer uma das grandes qualidades negativas desses am-
bientes: essas exceções, esses desvios a um código de conduta
implícito/tácito, geralmente são punidas com violência. Por ser um meio
socialmente marginalizado, os problemas que porventura ocorram ali são
resolvidos imediatamente: na maior parte das vezes, com uma discussão
acalorada. Em outras, as coisas escalam para além das ameaças verbais.
Felizmente, não foi o caso de nada parecido nesse dia.

Capilaridade alfabética

Quando o ser humano quer extrapolar os limites espaço-temporais


de sua presença, desenvolve técnicas de ampliação de suas capacidades co-
municacionais, ou então de registro das mesmas. Sobre a ampliação, basta
pensar todo o tipo de aparatos que permitem que os sinais emitidos cor-
poralmente por uma pessoa passam a alcançar um número muito maior
de pessoas: com um microfone, eu consigo que minha voz alcance muito
mais pessoas do que com o mais visceral dos meus gritos. A bateria é um
aparato que amplia o meu batucar nas coisas. Já sobre o registro, inserem-
se aqui todas as formas de escrita, seja ela imagética ou alfabética
(BAITELLO JUNIOR, 2010).
Aqui, talvez, estejam algumas das características mais evidentes de
um show. O show em si, ou seja, a apresentação das bandas, é um fenô-
meno pautado de ponta a ponta por essas amplificações dos sinais
emitidos pelos musicistas. Amplificadores (o nome do equipamento já de-
nuncia a função), instrumentos musicais, mesas de som, caixas de som –
252 | Diálogos com a Música Extrema

tudo isso a serviço de permitir que as notas tocadas cheguem a todas as


pessoas presentes (inclusive àquelas conversando nas calçadas).
Mas as inscrições, as escritas, estão longe de pertencerem a um se-
gundo plano. Os cartazes, as artes das camisetas (quem nunca ouviu um
você gosta de rock? ao vestir uma camiseta de banda, que atire a primeira
pedra), os panos de fundo de palco – tudo isso consolida a atmosfera de
que realmente estamos num evento do submundo. O destaque desse
evento específico vai para o letreiro na porta do evento.

Figura 1 – Letreiro do evento. Fonte: acervo pessoal.


Tadeu Rodrigues Iuama | 253

A questão que me parece mais relevante aqui é a dedicação de cada


pessoa envolvida. Se Primordial Idol, Gollum, Caro Data Vermibus e Akuã
(as bandas envolvidas no evento) dedicaram horas e mais horas de com-
posição e de ensaio, muitas vezes pagando por horas de estúdio para que
isso fosse viável, no âmbito visual, destaca-se o trabalho do Leandro, braço
direito do Bar’Phomet: ajuda a coletar as entradas do show, está sempre a
disposição para ajudar em qualquer questão que surja e, de quebra, dedica
horas para elaborar esses letreiros, reproduzindo minuciosamente os in-
trincados logos das bandas participantes. Um dia depois do show, apaga
essa lousa e parte para o próximo evento.
Os próprios logos das bandas, ininteligíveis aos olhos do público ex-
terno, contam uma história. Às pessoas do meio, é quase imediata a
compreensão do estilo musical que o grupo irá apresentar apenas vendo o
logo. Reconhecer a banda a partir da visualização do seu pictograma (por
falta de termo mais acurado) é algo que evoca tons de uma tradição inici-
ática.
Mas as representações imagéticas, sobretudo quando se diz respeito
ao black metal (vertente musical em evidência no referido festival), tem
mais um importante elemento: as pinturas faciais. Geralmente referidas
como corpse paint (pintura cadavérica), são uma escrita imagética que uti-
liza o corpo como plataforma para expressar que, no momento do show,
aquelas pessoas não mais representam os seres humanos que habitual-
mente são fora do palco. Pelo mesmo motivo, é comum que os musicistas
do black metal utilizem-se de pseudônimos. Escapa do escopo desse artigo
discutir as raízes antropológicas do uso de pinturas faciais em rituais ou
em guerras, mas é possível inferir que a aura de tal prática remete a essas
origens.
254 | Diálogos com a Música Extrema

Figura 2 – Apresentação da banda Primordial Idol. Fonte: acervo pessoal.

As imagens impressas nas camisetas das pessoas presentes também


estabelecem uma teia de relações. É possível identificar posicionamentos
políticos, afinidades temáticas, amizades em comum e demais posturas
perante o mundo apenas observando a camiseta de uma pessoa que, até
então, era completamente desconhecida. Nesse sentido, fica patente a co-
municação econômica (o maior número de significados é expresso por um
mesmo significante) desses elementos que extrapolam a noção de mera
vestimenta.

Capilaridade elétrica

Por vezes, amplificar a emissão de sinal não parece ser suficiente. Por
isso, os seres humanos criaram toda uma estrutura de comunicação que
extrapola completamente as limitações espaço-temporais. A eletricidade é
quem possibilita isso: por meio de um aparato, meu sinal é codificado e
emitido como impulsos elétricos e, em qualquer lugar em qualquer época,
Tadeu Rodrigues Iuama | 255

é decodificado novamente de maneira que possa ser fruído pela contra-


parte interessada (BAITELLO JUNIOR, 2010).
É por conta dessa capacidade que, num evento como o 2º Evil Várzea
Celebration, estamos também próximos tanto dos ídolos de outras partes
do mundo quando das nossas referências de outros tempos. Quem dá
conta de fazer isso é o som mecânico que rola antes das bandas começarem
a tocar, entre uma apresentação e outra, e também noite adentro, depois
que todas as bandas tocam. O som mecânico é também acompanhado por
clipes e shows gravados, exibidos em um televisor.
Ali se consolida que, não importa se eu sou de Sorocaba ou de Várzea
Paulista, provavelmente crescemos ouvindo as mesmas coisas. Exercita-
mos nossa nostalgia juntos, e por isso sentimos que somos parte de uma
mesma comunidade. Pouco importa se eu estou no Sudeste do Brasil ou
no Sudeste europeu: quando tocou Rotting Christ (banda helênica rele-
vante ao meio), estávamos conectados a uma comunidade de escala
mundial.
E é por isso que as bandas continuam gravando CDs. O consumo mu-
sical pode até se dar pelas mais diversas plataformas disponíveis
contemporaneamente, mas o simbolismo presente em trocar material com
uma das bandas que dividiu palco com você, ou ainda pegar em mãos um
CD de uma banda que você acaba de ouvir é algo completamente distinto.
É uma forma de carregar, aonde quer que você vá ou quando quer que
você queira, um vestígio daquele dia.
Ao mesmo tempo, é uma maneira de exercitar os vínculos externos
àquele ambiente. Talvez uma pessoa estimada não tenha conseguido com-
parecer, e alguma banda lhe fez lembrar dela. Levar uma gravação da
banda é uma forma de levar uma parcela daquele momento para a pessoa
em questão. É fugir das amarras do espaço e do tempo, em prol do pathos.
256 | Diálogos com a Música Extrema

Gravar um álbum também é um momento que marca os integrantes


de bandas. É um momento em que o sentimento é de eternização. Não
importa o que aconteça com você, aquela ideia, aquela performance,
aquela sensação que te fez escolher fazer a música de determinado jeito,
está gravada para sempre. E acessível para qualquer pessoa em qualquer
lugar do mundo2.
Aqui, cabe também uma crítica. O acesso às gravações de qualquer
tempo e qualquer espaço podem ofuscar/obliterar o aqui e agora. De modo
que, não raro, pessoas estão mais familiarizadas com os clássicos, ou com
os grupos internacionais, do que com os grupos regionais que estão na
ativa. Se, anos atrás, a dificuldade de acesso a esses conteúdos gerava um
público metaforicamente míope, hoje o risco que se apresenta é uma hi-
permetropia.

Capilaridade eólica

Por fim, os meios de comunicação também deixam de prescindir da


materialidade. Como o vento, penetram os ocos das casas, num fluxo que
tende ao permanente (BAITELLO JUNIOR, 2010). Como integrantes do
submundo musical, afirmei que sabemos de uma maneira intuitiva que a
capilaridade presencial fortalece nossos vínculos. Mas também sabemos
que, vivendo no século XXI, ela não seria possível de ocorrer não fosse pela
eólica – aquela típica do ciberespaço.
É por ela que o Juliano conheceu várias das bandas que tocaram no
evento – senão todas elas. É por ela que ele contatou cada uma delas. As
bandas, por sua vez, foram conhecer – pela capilaridade eólica – umas as

2
Uma discussão para outro momento seria a relevância de, em pleno século XXI, querer restringir o acesso a essas
gravações. As pessoas interessadas pela materialidade nunca deixaram de comprar os álbuns físicos. Aquelas inte-
ressadas no conteúdo imaterial, por sua vez, irão conseguir, de um jeito ou de outro, acesso. Melhor nesse caso, penso
eu, é contribuir para a divulgação, característica principal de uma gravação.
Tadeu Rodrigues Iuama | 257

outras, para saber se fazia sentido dividir os palcos dentro da acepção de


mundo de cada uma.
É por meio dela que o Juliano realizou o Testemunhas de Barphomet,
programa de webradio onde ele esbanjou todo seu conhecimento técnico
de anos de teatro, cativando uma audiência que certamente fica curiosa
em conhecer seu estabelecimento.
Hoje, com o acesso mais amplo aos smartphones, as gravações de ví-
deo, posteriormente espalhadas ao vento virtual, também são abundantes.
Poder revisitar a empolgação do ato de tocar ao vivo é inebriante. Mas, por
outro lado, poder ver a si mesmo é um exercício de autocrítica, de poder
ver onde as coisas poderiam ter sido diferentes. É poder ver o vídeo gra-
vado por uma amiga (PRIMORDIAL, 2020) e lembrar da sensação de tocar,
da amiga em questão e do lugar, tudo ao mesmo tempo.
Existe um preciosismo no meio pelo material analógico. Os discos de
vinil são presença constante. As fitas cassete, que o público externo pode
até acreditar que estão extintas, também. Mas é utópico e ucrônico dizer
que o virtual não cravou raízes nesse mundo. Não fosse por essas capila-
ridades eólicas, muito do material hoje disponível seria impossível de ser
acessado. Bandas como a da epígrafe desse texto, por exemplo, tem rarís-
simas, se é que existem, aparições públicas. E, nem por isso, contribuem
menos para o ambiente subterrâneo da música.
Era comum, décadas atrás, ainda no século passado, trocarmos cor-
respondência. Isso solidificava alianças, forjava relações e estimulava
trocas de influências. Hoje, isso continua acontecendo, por plataformas
mais eficientes e assertivas. Hoje, o ex-baixista de uma das bandas helêni-
cas que formou meu gosto musical pode curtir, instantaneamente, as fotos
que posto com minha filhinha. O mundo ficou menor, no sentido de que
várias pessoas que compartilham os mesmos gostos estão mais próximas.
Ao mesmo tempo, o mundo ficou maior, no sentido de que consigo
258 | Diálogos com a Música Extrema

alcançar lugares que jamais imaginava que existiam na época em que era
limitado a trocar correspondências pela saudosa carta social.

Ecossistema subterrâneo

Cada uma dessas capilaridades é imprescindível para que a comuni-


cação aconteça. Aqui, cabe uma exploração do conceito de comunicação.
Se por um lado, comunicação diz respeito às trocas de informação entre
emissores e receptores, por outro lado ela também diz respeito às agluti-
nações entre indivíduos. É Vicente Romano (2004) quem vai dar os termos
que mais me esclareceram a questão: a comunicação possui uma função
informacional e uma função social. De acordo com o autor, hoje nos en-
contramos num descompasso entre a função informacional (abundante) e
a função social (escassa). Daí a pertinência de aplicar a perspectiva ecoló-
gica no âmbito da comunicação, a fim de reestabelecer o equilíbrio entre
as duas funções.
Destarte, no submundo musical, parece haver um movimento con-
trário ao que acontece corriqueiramente. Menos importa o que é
informado do que estar junto. As linhas vocais parecem ser prova disso, já
que o uso de uma voz caracteristicamente gritada (o termo anglófono
shriek por vezes é utilizado para definir tal uso da voz) frequentemente
dificulta a compreensão do que está sendo dito.
Romano (2004) destaca ainda outro descompasso, que acompanha o
anterior: existe escassez de comunicação presencial, e abundância de tele-
comunicações. Algumas vezes, a segunda visa inclusive suprimir a
primeira. É claro que, num ano marcado pela pandemia e decorrente ne-
cessidade de isolamento físico, isso precisa ser relativizado. Ou seja, a
crítica não é quanto ao uso das telecomunicações quando estas se fazem
necessárias. A crítica é sobre as ocasiões em que as telecomunicações, que
por excelência são massivas e massificantes, impedem a diversidade.
Tadeu Rodrigues Iuama | 259

O submundo musical, tão avesso ao mainstream (a ponto dessa aver-


são chegar ao patamar de clichê), parece saber, inconscientemente, disso.
Operando as margens da cultura de massa e da indústria cultural, a busca
pela originalidade parece muito mais privilegiada. É raro ouvir bandas to-
cando músicas de outras bandas. O meio possui suas formas mais
canônicas – sua cartilha, por assim dizer –, mas o espaço para o diverso é
cada vez mais saudado. Seria difícil, por exemplo, definir características
comuns nas propostas musicais das quatro bandas que se apresentaram:
o uso de instrumentos musicais ameríndios em uma delas, e de equipa-
mentos eletrônicos para modular a voz em outra delas, dão uma noção da
amplitude da diversidade sonora.
Parece também que o submundo musical parece operar na contra-
mão do diagnóstico de Vilém Flusser (2019). Para o autor, a comunicação
se divide entre dialógica e discursiva. Na primeira, discursos são colocados
em responsabilidade, para que surja um discurso novo, síntese dos ante-
riores. Na segunda, discursos são transmitidos e armazenados, para que
estejam acessíveis para novos diálogos. Uma comunicação plena se daria
pelo equilíbrio entre discursos e diálogos. Contudo, com nossa cultura al-
tamente midiatizada, existiria abundância de discursos e escassez de
diálogos.
No submundo musical, por sua vez, a impressão é de que os discursos
existem, mas só são recordados quando alguém quer explicar algo para
alguém que é de fora. Internamente, a percepção subjetiva dos indivíduos
gera conversas frequentes entre eles e, não raro, alguma nova ideia surge
ali.
Com tudo isso, pode parecer que estou tentando convencer de que o
submundo musical é a panaceia para os males comunicacionais. Longe
disso. Para mim, fica tão evidente as diferenças com os processos comuni-
cacionais mais habituais justamente porque o submundo opera no outro
260 | Diálogos com a Música Extrema

extremo dos polos apontados por Romano e Flusser. São igualmente de-
sequilibrados. O que fascina, contudo, é que as pessoas que frequentam
esse meio geralmente percebem um equilíbrio comunicacional de segunda
ordem: vivendo num mundo pautado pelos discursos de função informa-
tiva emitidos pelas telecomunicações, e participando também dessas
rupturas do cotidiano delineadas pelos diálogos presenciais de função so-
cial, parece haver uma espécie de harmonia. Como num trítono, é o diabo
quem toca essa terceira nota, que harmoniza as duas outras, dissonantes.
Nesse sentido, as capilaridades comunicacionais são, tal qual uma
música, uma composição entre diferentes instrumentos. A capilaridade
presencial, tal qual o contrabaixo, dá corpo. A capilaridade alfabética, tal
qual a bateria, impõe um ritmo. A capilaridade elétrica, tal qual o teclado,
propaga uma melodia. E a capilaridade eólica, tal qual a guitarra, rasga os
céus.
Pode parecer que alguns dos elementos elencados são supérfluos.
Erro. Algo que aparentemente não tem relação mais consolidada, como o
exemplo dos pastéis cuidadosamente preparados pela Adalini e pelo Juli-
ano, fazem toda a diferença para que eventos como esse aconteçam.
Explico. Quando você, enquanto musicista, deve se transportar de uma ci-
dade para outra, chegar no lugar e preparar os equipamentos, ajustar o
som, tocar na sua vez e prestigiar os colegas, arrumar os equipamentos e
pegar estrada de volta para casa, alimentação passa a ser fundamental. A
critério de exemplo, basta imaginar uma viagem de mais ou menos sete
horas, ou pouco mais de 500 km, rumo a uma cidade para tocar. Depois
dessas sete horas numa van, você se encontra com as outras seis bandas
que irão tocar no festival, cada uma com uma apresentação de mais ou
menos uma hora. No camarim, uma caixa com algumas bananas, mexeri-
cas e maçãs é toda a refeição da qual todos vocês dispõem. Após o festival,
você sabe que também irá passar pelo longo caminho de volta para casa.
Tadeu Rodrigues Iuama | 261

É óbvio que a apresentação não irá ocorrer com a mesma empolgação e


dedicação. Estranho seria se ocorresse. O exemplo é situação não-ficcional
(me recuso a chamar de verídica) pela qual já passei. E que não quero re-
petir.
Elementos que podem parecer sutis fazem com que o submundo mu-
sical perdure. As bandas são no mínimo tão importantes quanto a figura
mítica do fanzineiro, quanto a pessoa que pinta camisetas a mão no fundo
de casa para vender no evento, quanto quem coloca as bebidas para gelar
na geladeira. Tire um desses elementos, e o submundo deixa de existir.
Assim como a comunicação.

Outro

Estudar a comunicação, tanto para mim quanto para a árvore gene-


alógica intelectual da qual sou apenas um broto, é estudar a cultura.
Estudar o arcaico manifesto em nós, e o contemporâneo que já existia, em
potência, nos nossos ancestrais.
O submundo musical transborda o mítico, primitivo, o simbólico.
Pintamos nossos rostos como nossos antepassados, rumo à guerra (à re-
belião) e/ou aos rituais. Entoamos canções não para alcançar todas as
tribos, mas para tocar a nossa própria. Cantamos sobre nós. Cantamos
sobre quem somos. Evocamos, música após música, a saudade por tudo
aquilo que ainda não foi perdido.
E o público percebe. A solenidade permeia o ambiente. Aquela rup-
tura no cotidiano comunica. Une todos num clã, onde a música é o totem.
Ao se opor, odiosamente, ao mundo cotidiano, triunfa. Reestabelece um
equilíbrio, ainda que de segunda ordem, entre o técnico e o visceral.
E, numa metassíntese da proposta aqui pretendida, acadêmico e mu-
sicista também compõem uma amálgama. Se isso é o relato de um
262 | Diálogos com a Música Extrema

musicista que se envereda pelos muros acadêmicos, ou de um acadêmico


que se aventura pelo submundo musical, pouco importa. Importa é que,
para vingar a verdade, é preciso plantar a semente.

Referências

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mídia. São Paulo: Paulus, 2010.

ELLINGSON, Laura L.; ELLIS, Carolyn. Autoethnography as Constructionist Project. In:


HOLSTEIN, James A.; GUBRIUM, Jaber F. (Ed.). Handbook of constructionist
research. New York; London: The Gilford Press, 2008, p. 445-465. Disponível em:
https://goo.gl/Xphv69. Acesso em: 30 nov. 2018.

ELLIS, Carolyn; ADAMS, Tony E; BOCHNER, Arthur P.. Autoethnography: an overview.


Forum: Qualitative Social Research, v. 12, n. 1, 2011. Disponível em:
https://goo.gl/Z71etj. Acesso em: 30 nov. 2018.

FLUSSER, Vilém. Pós-história: vinte instantâneos e um modo de usar. São Paulo: É


Realizações, 2019.

KÜNSCH, D. A.; CARRARO, R.. Comunicação e pensamento compreensivo: o ensaio como


forma de expressão do conhecimento científico. Líbero, São Paulo, v. 15, n. 29, p. 33-
42, jun. 2012. Disponível em: https://goo.gl/jgz6Ru. Acesso em: 25 abr. 2018.

MARTINEZ, M.; SILVA, P. C. da. Fenomenologia: uso como método em educação. E-


Compós (Brasília), v. 17, n. 2, 2014. p. 1-15. Disponível em: https://bit.ly/2Xdqz9E.
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MENEZES, J. E. de O.. Ecologia da comunicação: a cultura como um macrossistema


comunicativo. In: CHIACHIRI FILHO, A. R.; CAZELOTO, E.; MENEZES, J. E. de O.
(Orgs.). Comunicação: tecnologia e cidadania. São Paulo: Plêiade, 2013. Disponível
em: https://bit.ly/2zg0YE7. Acesso em: 8 jun. 2020, p. 55-72.
Tadeu Rodrigues Iuama | 263

POSTALI, Thífani. Blues e Hip Hop: Uma perspectiva folkcomunicacional. Jundiaí: Paco
Editorial, 2011.

PRIMORDIAL Idol. Ódio Triunfal. YouTube, 28 fev. 2020. Disponível em:


https://bit.ly/32p89FM. Acesso em: 13 set. 2020.

ROMANO, V.. Ecología de la comunicación. Hondarribia: Editorial Hiru, 2004.


8

(ENTRE) Educações: crust punk, arte de viver e e e...

Wescley Dinali

Theres a stench in the air,


Death draws near.
Innocents scream as the warmachine starts its gears.

A conquest of butchers,
The bodies pillied high.
So the victor can raise his sword to the sky.

The warplanes above,


Insure their banners will fly.
By releasing hellfire
into winds of genocide.

Ao som de:
Appalachian Terror Unit – Endless Bloodshed
Do album It's Far From Fucking Over (2009)
https://www.youtube.com/watch?v=rFOC-UoqGsU

Introdução

As questões problematizadas nesse texto são dissonâncias da minha


pesquisa de doutorado: “Pesquisar em educação: um passeio estéticoanar-
coesquizonoisepunk”1. É parte de encontros e desencontros daquilo que se
vai (de)compondo como pesquisa, como caminhos, como travessias no fa-
zer pesquisa.

1
Cf. DINALI, Wescley. Pesquisar em educação: um passeio estéticoanarcoesquizonoisepunk. Tese (Doutorado em
Educação) – Universidade Federal de Juiz de Fora, Juiz de Fora, 2020.
Wescley Dinali | 265

Além de propor algumas reflexões sumárias sobre o surgimento do


movimento punk2, no geral, e mais especificamente sobre o subgênero
crust punk, tem como objetivo central problematizar sobre as distintas re-
lações ético-estético-políticas do movimento crust punk, como estética da
existência, como processos de resistências micropolíticas à sujeição dos
corpos na nossa sociedade, em suma, como arte de viver. Para tanto, to-
mando principalmente como arcabouço teórico algumas ideias de
Foucault, mas também de Deleuze e de alguns comentadores e estudiosos
do movimento punk, pretende-se pensar nas possíveis e diferentes cons-
truções de relações de subjetividades na contemporaneidade. Que vidas
são possíveis de serem potencializadas como resistência revolucionária co-
tidiana? Vidas? É possível fazer da vida uma obra de arte?
Ora, compreende-se que Foucault nos possibilita uma multiplicidade
de reflexões sobre os diferentes processos de subjetividades do sujeito, da
singularidade-sujeito no interior das relações sociais cotidianas, como ve-
remos no decorrer do texto. Principalmente, no que diz respeito às
potencialidades possíveis de luta contra os excessos do poder, ou seja, con-
tra os processos de sujeição do corpo. Entendendo sujeição como Foucault
nos traz, ou seja, como as diferentes formas de controle e dominação do
sujeito, do corpo.
Isso representa uma busca em pensar práticas de subjetividades sin-
gulares de resistências, de fabulações de vida, de ética como arte da
existência, da vida como estética das existências a serem experimentadas
como vida radical, como ato de resistência política cotidiana. Como bem
traz Deleuze (1999, documento on-line) “somente o ato de resistência re-
siste à morte, seja sob a forma de uma obra de arte, seja sob a forma de

2
É importante destacar que não é o objetivo deste texto, fazer uma análise profunda do movimento punk, dado a
sua ampla diversidade.
266 | Diálogos com a Música Extrema

uma luta entre os homens”. Morte essa, entendida como aquela que des-
potencializa a vida como processo de luta, a morte fascista3.
É importante destacar também que Foucault nos incita a problema-
tizar as redes de subjetivação como processos educativos mais amplos,
uma vez que elas acontecem no interior de uma cultura e sociedade
(FERRARI; ALMEIDA, DINALI, 2010).

Punk, um breve histórico: das origens ao estilo de vida do movimento crust

No que se refere ao surgimento do punk, parece haver um consenso


de alguns autores (ABRAMO, 1994; BIVAR, 2007; CANHÊTE, 2004;
GALLO, 2008; GONÇALVES, 2005; OLIVEIRA, 2003, OLIVEIRA, 2007)
que ele aconteceu na Inglaterra por volta da década de 1970. Todavia é
bom destacar que embora haja este consenso entre tais autores citados,
existem diferentes discussões que defendem que nos EUA já existiam ban-
das como, por exemplo, os Ramones e outras que posteriormente seriam
consideradas precursoras do punk, antes mesmo da existência de bandas
inglesas como a Sex Pistols e The Clash. Seguramente, estas últimas, são
consideradas as mais representativas bandas punks inglesas da primeira
geração do movimento (Oliveira 2006; McNeil e McCain 2004a, 2004b;
Ramone 2004). Outro acontecimento relevante foi o surgimento do clube
CBGB’S, fundado nos anos de 1970, na cidade de Nova York, onde teria
sido o berço do próprio Ramones e outras bandas como Television, Dead
Boys etc.
Inicialmente o punk apareceu como uma nova cultura juvenil, articu-
lada em torno da música e de um modo inusitado de se vestir, levando em
consideração a época. Nasceu nos subúrbios londrinos, como reação, como

3
Para mais questões cf. DELEUZE. Gilles. Anti-édipo e outras reflexões – AULA de Gilles Deleuze [1980] (legendado
em PT/BR). Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=wtbLZaOpmDQ>. Acesso em: 30 jan. 2019.
Wescley Dinali | 267

subversão ao estrelismo e virtuosismo que imperava no rock and roll desse


período4.

O punk-rock era uma retomada do significado e da função original do rock ‘n’


roll. Era a revolta contra a pasteurização da rebeldia e a acomodação do rock,
que levemente havia-se transformado num “divertimento leve”, superprodu-
zido, longe da vida e da rua. Nessa época, o rock falava sobre um mundo de
fantasia e luxúria onde apenas uma elite de músicos e artistas estavam. Muito
longe da realidade dessa molecada de rua (SANTOS, 1985, p. 23)

É importante dizer também que o punk é filho de um momento de


ascensão dos conservadores ao poder, da recessão econômica que teria
provocado o desemprego e afetado, principalmente, os jovens brancos e
pobres. As desigualdades sociais, a discriminação e a falta de liberdade fo-
mentaram a desesperança e a insubordinação desses jovens. O punk
surgiu, então, nessa época como forma de rebeldia em que jovens mergu-
lhados na falta de perspectivas sociais insurgiam e passaram a utilizar a
música, juntamente com um estilo novo e próprio de se vestir, como lin-
guagem expressiva, principalmente como identidade contestatória
(GALLO, 2008). Daí o sentido de Bivar (2007) dizer que o punk não se
caracteriza apenas como um visual ou um estilo musical, mas antes ele se
define como uma crítica, como um ataque frontal, diz ele, a uma sociedade
“exploradora, estagnada e estagnante nos seus próprios vícios” (p. 49).
Segundo Abramo (1994), o movimento punk, procurando romper
com a estagnação e deflagrar novas ações em torno desses acontecimentos
sociais, atuou como um grande desencadeador de agitação no cenário

4
Algumas bandas que se enquadram nesse período são: Pink Floyd, Led Zeppelin, Yes, Beatles (Sgt. Pepper's), Ge-
nesis, Jethro Tull, The Rolling Stones entre outras.
268 | Diálogos com a Música Extrema

cultural e comportamental da juventude, por isso ele é tão significativo no


que se refere aos movimentos juvenis, de acordo com essa autora5.
Em termos musicais, a ideia seria buscar uma base simples e rudi-
mentar, mais explicitamente o desenvolvimento de um som seco, cru,
gritado, alto, direto e basicamente sem solos de guitarras. Um tipo de so-
noridade minimalista sem a necessidade de grandes aparatos e
virtuosismos musicais. O lema é justamente o do it yourself (faça você
mesmo). A música deve ser, sobretudo, ágil e autêntica, ligada às experi-
ências dos jovens e suas vivências na rua (ABRAMO, 1994).
É significante dizer também, que em torno dessa proposta musical,
articula-se toda uma estética baseada na utilização de materiais rudimen-
tares, até então desvalorizados pela sociedade. Materiais provenientes do
lixo, calças rasgadas, meias furadas, camisas velhas e semidestruídas, rou-
pas coloridas desgastadas e sujas. Como define Abramo (1994), o feio e o
lixo passaram a se constituir como um ideal estético para esse grupo se
manifestar perante a sociedade. Essa estética se torna uma forma de con-
frontar a sociedade.
Em torno de todos esses acontecimentos que explodiram e deram
uma visibilidade enorme para o movimento, no final da década de 1970
ocorreu uma massificação da própria atitude punk, tanto em termos de
desvirtuação por parte da mídia, condenando e generalizando o uso abu-
sivo de drogas, álcool e violência nos shows, quanto em termos de suas
propostas serem esvaziadas. Tal massificação levou o movimento a ser
capturado pelo sistema de mercadorias capitalistas, notoriamente como
apenas mais um produto disponível ao consumo, em termos, sua forma
de vestir sendo copiada e principalmente sua música que entrou no

5
Para a autora o aparecimento do punk foi de fato um dos mais importantes movimentos juvenis nas décadas de
1970 e 1980.
Wescley Dinali | 269

mercado de grandes gravadoras musicais da época. O punk havia se tor-


nado uma moda, isso, de fato, causou um abalo nas estruturas do
movimento no seu sentido original, ou seja, subversivo, subcultural, da
proposta primeira do movimento (GALLO, 2008; BIVAR, 2007; MCNEIL;
MCCAIN, 2004b; OLIVEIRA, 2003).
Com isso, nos anos 1980, contraponto os rumos que o punk havia
tomado, nasceu o subgênero hardcore (caroço-duro, resistência interna)
com uma nova forma, com uma roupagem, digamos mais radical e, sobre-
tudo, mais politizada em termos de existência6. Nesse sentido, os punks
passaram a recusar radicalmente a mídia e estabeleceram um sistema pró-
prio de comunicação e divulgação de sua cultura, como a confecção de
flyers7, de fanzines8 etc. Criaram seus próprios esquemas de gravação e
organização de shows, as chamadas gigs, com equipamentos rudimenta-
res, o que tornou o som mais sujo, mais rápido e bem mais agressivo, se
comparado ao som punk da década de 1970. De fato, esse ressurgimento
implicou uma aproximação dos punks com a filosofia e militância anar-
quista, e é justamente nesse momento que surgiram correntes como o
anarcopunk (OLIVEIRA, 2003, OLIVEIRA, 2006; GALLO, 2008; BIVAR,
2007; CANHÊTE, 2004) e mesmo o crust punk, ou seja, grupos políticos e
mais organizados no interior do próprio movimento (OLIVEIRA, 2006).
É no bojo desse crescimento e diversificação do cenário punk politi-
zado que alguns grupos aderiram às ocupações urbanas, ao ativismo
político radical, ao vegetarianismo, ao veganismo, à própria contestação

6
Bivar (2007, p. 89) vai chamar essa sedição dentro do próprio movimento como retomada do punk, ou, nas suas
palavras: “segundo levante punk”.
7
Filipetas cuja função é divulgar shows, eventos e bandas, entre outros.
8
Fanzine é a junção das palavras fan com magazine. É uma espécie de revista feita pelo fã e para o fã, como nos conta
Bivar (2007). São publicações geralmente feitas em xerox, com pequenas tiragens. Seu conteúdo varia bastante, mas
geralmente busca-se a divulgação de bandas, shows, cultura punk e política entre outras questões. O fanzine procura
socializar ideias, propostas, experiências, estabelecer contatos; enfim, é um tipo de imprensa alternativa no interior
do movimento punk (OLIVEIRA, 2006).
270 | Diálogos com a Música Extrema

do uso e do abuso de álcool e das drogas, muito presente no movimento,


até então. É justamente nesse âmbito que se pode vincular a estética punk
a um estilo de vida, a uma estética de vida. Nota-se que alguns indivíduos
veem o anarcopunk “como uma posição política, uma cultura alternativa e
uma forma de viver”9, um estilo de vida. Notoriamente toda essa evolução
no interior do movimento é marcada, cada vez mais, pela adoção do ideá-
rio filosófico-social anarquista (OLIVEIRA, 2003, OLIVEIRA, 2006),
configurando, dessa forma, o que se convencionou chamar, então, de mo-
vimento anarco-punk.
Por possuir um caráter mais propositivo, positivador, digamos, fi-
xado nessa adoção do ideário anarquista, os punks passaram a exercitar,
de modo espontâneo e informal, práticas de formação de seus integrantes
militantes do anarquismo (OLIVEIRA, 2003, OLIVEIRA, 2006)10. Com isso,
logicamente, o pensamento de alguns anarquistas como Bakunin,
Proudhon, Kropotkin, Élisée Reclus, Errico Malatesta, Nestor Makhno,
Emma Goldman dentre outros, vão influenciar diretamente o pensamento
do movimento. De modo bastante sucinto, posso dizer que os punks veem
no anarquismo uma forma contemporânea de combater o autoritarismo
do Estado, o fascismo cotidiano, os preconceitos impostos, as imposições
e desigualdades sociais etc.11. Os punks dessa geração fizeram do anar-
quismo uma política de identidade para o movimento, uma estética de
vida, de luta anárquica.

9
Fala é de um anarco-punk integrante da banda boliviana Escatofagia entrevistado no fanzine Abdução Extrema.
10
Os fanzines foram de suma importância para o desenvolvimento de tais práticas, uma vez que, como defende
Oliveira (2006), eles foram fundamentais para a divulgação e discussão das ideias anarquistas no interior do movi-
mento.
11
Não é a proposta desse texto discutir sobre o ideal filosófico anarquista. Para questões sobre a filosofia anarquista
Cf. Luizzetto (1987).
Wescley Dinali | 271

Para compreendermos melhor essas questões, vejamos na citação a


seguir, retirada de um informativo do Movimento Anarco-Punk do Rio de
Janeiro, como esse grupo define o próprio anarcopunk:

O QUE É ANARCOPUNK. Com o surgimento do Movimento Punk em 76, e sua


decadência, ressurgiu a princípio dos anos 80 um movimento mais evoluído e
consciente, dando lugar às ideias rebeldes sem direção, a uma ideologia bas-
tante evoluída, a ANARQUIA. Surgiu aí o ANARCO PUNK!!! [...] Baseado nos
ideais anarquistas, que vão da negação da autoridade à luta pela liberdade, os
Anarco Punks sentiram a necessidade de se auto-organizar para uma luta mais
revolucionária [...] Anarco Punk seria indivíduo ou grupo participante das lu-
tas pela Anarquia que não seria esta Anarquia de dicionário, e sim a verdadeira
anarquia que é a capacidade de ORDEM natural e social das coisas onde o ho-
mem se organiza sem a necessidade de líderes ou governos, sem Autoridade
ou poder centralizado, a igualdade entre homens, a solidariedade, e principal-
mente a Liberdade Total!!! Além do ideal anarquista, Anarco Punk também
tem o trabalho voltado à cultura e costumes Punk, por exemplo o visual: É a
quebra de um padrão que a sociedade e o sistema tenta impor, o visual é pro-
testo e mostra a realidade da fome, da miséria do povo acomodado aos
problemas, o visual agride aqueles que se escondem da realidade com roupas
caras por exemplo. Seus pensamentos de luta são pelo fim do capitalismo, de
qualquer governo ou poder, que corrompe o homem, contra toda forma de
opressão à liberdade, de repressão e autoritarismo, por isso o repudio ao Mi-
litarismo, ao patrão, à Igreja (que aliena), ao estado, à política e tudo que é
baseado nas regras do sistema no poder. Lutando por uma sociedade sem go-
verno, justa, igualitária e libertária. Mas harmonia entre os homens, esses e a
natureza, por isso são ecológicos por espontaneidade, e não por moda ou em-
balo. Pelo AMOR LIVRE, pela vida contra os modismos, contra a exploração do
homem pelo homem, sem a manipulação dos mais privilegiados Socialmente
ou Intelectualmente. Pelo coletivo, pelo mutualismo e pela AUTOGESTÃO das
mesmas. Pelo FIM DA PROPRIEDADE. O Anarco punk não é moda, fase ado-
lescente, doidera nem deliquencia juvenil, e sim IDEOLOGIA!!! O sistema
atenta distorcer o PUNK e suas ideias pelo fato deste ameaçar o mesmo fa-
zendo as pessoas, principalmente os jovens a pensarem mais e lutar pelo
272 | Diálogos com a Música Extrema

sentimento mais nobre do Homem, a LIBERDADE. (MOVIMENTO ANARCO


PUNK, 2000, p. 1: grifos do autor).

Foi atrelado a toda essa efervescência produtiva, influenciado princi-


palmente pelo anarcopunk, que o crust surgiu no seio do movimento como
um subgênero. Ele está diretamente associado àquilo que pode ser cha-
mado, de forma representativa, como a segunda geração do punk, depois
da decadência do mesmo na década de 1970. Claro que ele é uma versão
ainda mais radical deste, tanto em termos musicais quanto em termos de
estilo de vida.
Crust, em uma tradução livre seria crosta, o que remete à sujeira que
impregna nas roupas, nos cabelos, enfim, nos corpos cotidianamente. Sua
origem é um tanto quanto distante e incerta em termos históricos. O termo
crust apareceu pela primeira vez na demo “Ripper crust” da banda inglesa
Hellbastard. Todavia, a banda Amebix, formada em 1978 na Inglaterra, é
considerada umas das primeiras a definir o estilo com seu álbum Arise,
lançado somente em meados de 1985.
No início de suas atividades a banda não possuía contrato com gran-
des gravadoras e não retirava da música seu sustento. Seus integrantes
viveram por alguns anos em squats12 e eram adeptos do Dumpster Di-
ving13.
Embora não seja uma regra, o som crust normalmente é bem mais
extremo, agressivo e rápido que o punk. Os vocais são roucos, gritados ou

12
Squats são casas ou prédios abandonados, deteriorados, de propriedade pública ou mesmo privada, onde pessoas,
os chamados ocupas, buscam reabilitar esses imóveis para (re)construção de um novo espaço dedicado tanto à mo-
radia quanto à construção de um local alternativo para educação, cultura e lazer (GALLO, 2008; LIMA, 2009). De
caráter quase exclusivamente urbano, “apresentam-se como formas de ressocialização possível em substituição às
formas de convivência impostas pelo capitalismo” (GALLO, 2008, p. 757). Segundo Rudy (2010), o squat é um local
de possibilidade de vivência prática de teorias libertárias a que esses grupos aderem, da autogestão, da solidariedade
e da recusa aos valores do mundo capitalista, como os da propriedade privada, da massificação da cultura, da indús-
tria alimentícia, das relações heteronormativas e da moda.
13
Trata-se de um estilo de vida cujos praticantes buscam aproveitar a comida do lixo ou os restos de feiras para se
alimentarem. A tradução livre seria literalmente mergulhar na lixeira.
Wescley Dinali | 273

guturais, divididos entre dois ou mais vocalistas. Geralmente, os crusties


se vestem de preto, com roupas rasgadas e cheias de patches (remendos
impressos por serigrafia, no geral, com desenhos brancos sobre fundo
preto). Diferentemente dos punks da geração anterior esse grupo, geral-
mente, não veste couro devido ao protesto contra o abuso, exploração e
matança de animais.
Vale destacar que o crust recebe também outras definições como
anarco crust, crust punk e crustcore. É conhecido pelo extremismo político
dos crusties, pela vivência em squats, pela resistência em procurar empre-
gos formais. Alguns de seus membros se recusam mesmo a tomar banho
(ou tomam o mínimo possível). No caso das mulheres, existe a rejeição em
retirar os pelos das axilas ou de qualquer zona do corpo. Isso se dá pelo
fato de os crusties resistirem em colaborar, efetiva e diretamente com as
indústrias cosméticas (é um protesto contra a experimentação de produtos
em animais), de ter um tipo de vida livre das toxinas e químicas usadas
em muitos produtos de higiene pessoal.
Do mesmo modo, existe uma busca dos sujeitos em ter um estilo de
vida que procura diferentes formas de burlar as normas sociais impostas
e viver em comunidades alternativas, e logicamente, também potencializar
um estilo de vida nômade, sem endereços e lugares fixos.
Majoritariamente são adeptos do vegetarianismo ou veganismo, que
está ligado a uma preocupação ambiental e como vimos anteriormente,
uma luta contra a exploração animal.
Uma marca do movimento também é a bicicleta (conhecido também
como Bike punk). Por uma razão política, é muito comum utilizarem re-
gularmente a bicicleta (símbolo do movimento) como meio de transporte
e lazer, representando uma alternativa ao consumismo, à liberdade indi-
vidual e um protesto contra a utilização em massa dos automóveis que
274 | Diálogos com a Música Extrema

imperam nas cidades, causando a falta de espaços para lazer e a poluição


sistemática do meio ambiente.
Essencialmente os crusties são conhecidos pelo estilo de vida anar-
quista. As bandas de crust punk geralmente defendem radicalmente a
prática do it yourself criando uma rede própria de gravação, distribuição,
produção e divulgação de seus materiais. Seja por meio do correio, inter-
net, fanzines, gigs, encontros entre outros meios de produção. Essa prática
é uma forma de vivenciar o chamado espírito DIY tão aclamado pelo mo-
vimento punk desde sua criação, buscando protestar, rejeitar, e de alguma
forma, manter-se paralelo à indústria capitalista da música e da cultura
normatizadora14.

Foucault, Crust punk e e e...

Foucault (1991) nos ensinou que as práticas de sujeição, como as dis-


ciplinares, as de dominação tornaram-se historicamente uma marca no
que se refere à construção dos sujeitos sociais. Na modernidade, nosso
corpo passou a ser usualmente objeto das relações de poder/saber, que
nos molda, que nos fabrica – nossas ações, nossos comportamentos, nossa
sexualidade, nossa vida, no geral.
A exemplo da disciplina, como uma arte do controle do corpo hu-
mano, ela não visa unicamente o aumento de suas habilidades, mas visa a
formação de uma relação que, no mesmo mecanismo, o torna tanto obe-
diente quanto mais útil e vice-versa. Ela se caracteriza por uma
modalidade de aplicação do poder. Por métodos que permitem o controle
minucioso das operações do corpo e que realizam a sujeição de suas forças,

14
Essas informações foram baseadas em entrevistas e textos presentes em fanzines, revistas e sites de membros de
bandas crusts. Serviram de referência o site https://revoluta.com/2008/10/16/crust-as-origens/; o site
www.vice.com/pt_br/article/9k3a83/martine-blue-entrevista; o fanzine Necrofeelings # 4, 1999; a revista Meta-
lhead, fanzine Náusea # 1, 2010 e o fanzine Insanity Crusties # 1, 2011; # 2, 2012; # 3, 2013.
Wescley Dinali | 275

impondo-lhes uma relação de docilidade-utilidade. É dócil o corpo que


pode ser submetido, utilizado, transformado e aperfeiçoado em função do
poder disciplinar (FOUCAULT, 1991). A função da disciplina é se apropriar
do corpo com a finalidade de aproveitar o máximo de suas potencialidades.
Diz Deleuze (2006, p. 38), que as relações de poder estão presentes
em todos os lugares onde existam “singularidades, ainda que minúsculas,
e relações de forças como discussões de vizinhos, brigas de pais e crianças,
desentendimentos de casais, excessos alcoólicos e sexuais, rixas públicas –
tantas – paixões secretas”. E é por meio dessas relações de forças, que go-
vernamos os outros e a nós mesmos. Governar, aqui entendido, no sentido
de conduzir condutas, as ações das pessoas. Ora, assim vamos nos consti-
tuindo como sujeitos produzidos por essas redes de subjetividades.
Deleuze e Guattari (1997) concordam que o Estado Moderno substi-
tuiu a servidão maquínica por uma sujeição social, sendo esta um correlato
da subjetivação. E discorrem que o exercício do poder moderno implica
processos de sujeição como a normalização, organização etc. O corpo or-
gânico?
Ora, devido a essa aparente prisão, talvez, a princípio, podemos sentir
como se expressou a forte crítica de Berman à Foucault:

Foucault reserva seu mais selvagem desrespeito às pessoas que imaginam ser
possível a liberdade para a moderna humanidade [...] nós estamos apenas
sendo movidos pelas ‘modernas tecnologias do poder que tomam a vida como
objeto’ [...] não há liberdade no mundo de Foucault porque sua linguagem
compõe uma teia inconsútil, um cárcere mais constrangedor do que tudo o
que Weber sonhou, no qual nenhum sopro de vida pode penetrar (BERMAN,
1986, p. 33: aspas do autor).

No entanto, para além dessas questões de controle do corpo, e essa


afirmativa de Berman, Foucault (2006a), também nos traz discussões
276 | Diálogos com a Música Extrema

sobre a potencialidade da não-passividade do sujeito, da resistência, da


luta constante como potência.
Em seu curso no Collège de France entre 1981 e 1982, denominado
então de A Hermenêutica do Sujeito (FOUCAULT, 2006a), o filósofo pro-
blematiza que é fundamental, como estratégia política, superar a
deficiência central das subjetividades hegemônicas, ou seja, das subjetivi-
dades que são impostas ao indivíduo. Foucault, nesse curso, faz um
retorno aos gregos, ele volta na noção da ética na Antiguidade Clássica,
como construção de si, como cuidado de si. O filósofo, de fato, buscou fazer
uma história da subjetividade; porém, mais do que isso, ele procurou “tra-
çar um diagnóstico do nosso presente, para pensar formas de ação no
presente” (GALLO, 2006, p. 628).
Aqui, chegamos, então, em algo fundamental. A meu ver, esse re-
torno de Foucault aos gregos do qual falo, nos ajuda a problematizar
questões relevantes em termos de subjetividades na contemporaneidade,
sobretudo no que se refere às práticas mais autônomas dos indivíduos.
Vejamos que o filósofo concebe ética do cuidado de si como uma forma de
resistência ao poder e localiza esse objetivo na busca, na prática de dife-
rentes formas de subjetividades. Como ele mesmo afirmou: “não há outro
ponto, primeiro e último, de resistência ao poder político senão na relação
de si para consigo” (Foucault, 2006a, p. 306).
À luz dessas questões, penso que o último Foucault propõe uma im-
portante potencialidade em termos de não-passividade do corpo na
contemporaneidade. Resistir ao sequestro da nossa vida, do nosso corpo
pelo poder, passa a ser criar novas formas de vida em meio às relações
postas, passa a ser contestar os sistemas hegemônicos das subjetividades
em nossa sociedade. Branco (2000), nos ajuda a entender com Foucault
que o campo das lutas de resistências passa a ser aquelas que levantam as
questões sobre o estatuto do indivíduo, isto é, as lutas pela individuação.
Wescley Dinali | 277

Dessa maneira, é preciso promover diferentes formas de subjetividades,


elaborar formas de vidas mais autônomas em meio a “sistemas sociopolí-
ticos que trabalham incessantemente para submeter as subjetividades às
práticas divisórias, disciplinares, individualizantes, normalizadoras”
(BRANCO 2000, p. 319). Algo que se coloca a priori é lutar contra os apa-
ratos, as técnicas, os procedimentos desenvolvidos para conhecer, dirigir,
controlar a vida das pessoas, seus estilos de existências, seus comporta-
mentos, suas maneiras de pensar, de sentir; em suma, travar
afrontamentos, resistências diárias contra os excessos do poder. Pode-se
falar que trata-se de uma prática revolucionária, libertária, micropolítica.
Essa reflexão foucaultiana sobre os modos de subjetivação antigos e
contemporâneos mostra que deveríamos atualizar uma constituição de si
estranha às subjetividades impostas, isto é, o indivíduo deve procurar ser
autor de sua própria subjetividade (Pradeau, 2004). Com isso, o filósofo
está chamando atenção para a prática de uma ética individual que busque
lutar constantemente contra o assujeitamento; uma ética como cuidado de
si, que é a criação de uma forma de existência, de uma ética como estética
da existência (Vilela, 2006). Esse cuidado de si, problematizado por Fou-
cault, consiste em dar à vida uma forma bela, uma arte de viver (DINALI,
2011). E viver a vida como uma obra bela constitui-se, antes de tudo, em
dar uma forma libertária, criativa, autônoma à própria existência. A ética
foucaultiana diz respeito mesmo a uma constante prática de liberdade,
pois a liberdade é uma condição ontológica da ética no pensamento fou-
caultiano. Pode-se destacar que a liberdade é um dos objetivos mais
fundamentais na filosofia foucaultiana, como muito bem destacou Vaz
(1992). É, como ele mesmo diz: “o que é a ética senão a prática da liber-
dade, a prática refletida da liberdade?” (Foucault, 2006b, p. 267).
Dialogando com Deleuze (1999) podemos compreender como proces-
sos de subjetivação, as diversas maneiras pelas quais os indivíduos ou
278 | Diálogos com a Música Extrema

coletividades se constituem como sujeitos, e principalmente, quando tais


processos escapam tanto dos saberes quanto dos poderes, produzindo re-
sistências, microrresistências. Tanto Foucault quanto Deleuze,
filosoficamente nos ajudam a problematizar os modos de existir como arte
de viver, como produção de novas subjetividades (VASCONCELLOS,
2013). E isso diz respeito às práticas revolucionárias que se constituem
como fabulações criadoras de vida, sejam resistências, processos de fuga,
devir-revolucionário etc.
Essas práticas revolucionárias de vida, dizem respeito a processos es-
téticos de construção de si e do outro como formas de resistências, como
política radical de existência revolucionária. Grosso modo, pensar a vida
como construção de processos que possam superar as relações de forças
hegemônicas que controlam, que dominam, que organizam o sujeito coti-
dianamente. Logicamente, não se trata de impor um modelo. Essas lutas,
muito menos se configuram como cartilhas revolucionárias, que orientam
no sentindo de fazer revolução (VASCONCELLOS, 2013). Não se trata de
receitas sobre revolução, sobre macrorrevoluções. Aqui se opera a dife-
rença, talvez micropolítica, dos desejos, das experimentações, dos afetos
que se fazem por movimentos minoritários. Linhas de fuga, resistências
que desestabilizam as organizações, as subjetividades impostas.
Um desafio ético-político que se coloca para nós hoje, não é procurar
libertar o indivíduo do Estado e de suas instituições, e sim, nos libertar,
libertar-nos do Estado e das suas formas de subjetivação (Branco, 2000;
Ortega, 1999). Dessa maneira, é preciso promover diferentes formas de
subjetividades, elaborar formas de vida mais autônomas em meio aos “sis-
temas sociopolíticos que trabalham incessantemente para submeter as
subjetividades às práticas divisórias, disciplinares, individualizantes, nor-
malizadoras” (BRANCO 2000, p. 319).
Wescley Dinali | 279

Ora, a partir de tais questões, tanto das vivências políticas do crust


punk, quanto das reflexões problematizadas por Foucault, o que me parece
interessante nisso tudo é pensar nas possíveis problematizações entre esse
movimento e essa desconcertante relação política da subjetividade. Per-
cebe-se uma intrigante relação entre esse movimento, o crust punk, e a
introdução de novas formas de constituição de si mesmo como sujeitos
éticos. Vidas outras? Resistências?
Percebo que, esses indivíduos promovem práticas que negam os pa-
drões vigentes como os modos de pensar o espaço, o comportamento, a
educação, o sujeito, enfim, a própria existência de si e do outro no interior
da sociedade. Assim, o estilo de vida anárquico do crust punk propõe uma
desconstrução de valores universais impostos, construindo uma relação
diferenciada de existência, de subjetividades, em suma, modos de vida re-
sistentes, revolucionários. A forma de vida dos crusties, pela sua
radicalidade anárquica, incomoda, agride, abala subjetividades conserva-
doras; sua música e seu estilo de vida contestam padrões impostos.
Os crusties, de fato, experimentam a partir de suas ações de vivên-
cias, de suas práticas políticas radicais, como vimos, formas de vida
resistentes. Mediante contra posicionamentos de vivências sociais que re-
sultam no estabelecimento de hierarquias e subalternizações de cultura,
eles trazem para o campo da política uma ética como resistência cotidiana,
produzindo, com isso, formas plurais de subjetivação, de se produzirem
como sujeitos singulares de forma cotidiana. A estética crust punk rompe
com padrões predeterminados de vivências, com a massificação e imposi-
ção social, assumindo dessa forma, uma expressiva posição no mundo
diferenciada das normas dominantes. Há de fato algo curioso nos modos
de vida desses sujeitos que diretamente confrontam as normas sociais es-
tabelecidas.
280 | Diálogos com a Música Extrema

Guattari (1996, p. 54) refletindo sobre os punks, diz que mesmo


sendo prisioneiros dos meios de expressão dominante, de numerosos mo-
delos de modelização, eles exprimem um “vetor de revolução molecular”,
pois subvertem a modelização da subjetividade.
Muitas questões podem ser potencializadas, logicamente, porém há
algo de interessante na existência desses indivíduos que permitem serem
problematizadas como forças de criação, de redes de luta, de produção de
combate diário. Penso que o crust punk propõe explosões de forças como
ativismo radical, político e social que nos levam a pensar questões relevan-
tes, no que se refere às construções singulares de subjetividades no interior
da sociedade. Vejo que eles propõem uma forma de existência, uma forma
de vida radical, que busca uma recusa às formas de subjetivação normati-
zadoras impostas pela sociedade contemporânea, seja ela social, cultural,
econômica, educacional etc. É fato que o crust tem suas políticas marcadas
por territórios, representações, porém é fundamental refletir a respeito do
que eles operam como pensamento de criação existencial (moradia, ali-
mentação, vestimenta, lazer, comunicação, sexualidade, locomoção...)
como espaços de fugas, produções de vidas outras. É preciso levar em
conta as muitas maneiras de ser e de se fazer sujeitos nos múltiplos espa-
ços e territórios que compõem nosso mundo cotidiano, juntamente com a
extensão dos nossos corpos em constante processo de construção e de des-
construção.

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Sobre os autores (por eles mesmos)

1. Prefácio Marcos Reigota

2. Apresentação Rodrigo Barchi

3. Cristiano dos Passos - Formado em Letras (Português/Inglês) pela UFSC em 1995,


curso escolhido por afinidade com o idioma inglês e a literatura, paixões construídas nos
anos de cena underground, quando era vocalista de bandas como Necrobutcher e SRMP
(Subversive Reek Mute Perturbation), além de ter participado de diversos projetos parale-
los na época, entre os anos de 1988 e 1993. Na década seguinte, acumulou diversas
experiências como professor, primeiro de inglês e, posteriormente, língua portuguesa, com
foco em redação e literatura, atuando paralelamente na área de revisão e tradução. Tornou-
se baterista por volta de 2005 e passou a tocar na banda performática Dbregas Drama Band
(2008) e no grupo metal/punk Antichrist Hooligans (2010), no qual fiquei até 2018, saindo
deste direto para a banda Sengaya. Fez o mestrado na área de Literatura na UFSC entre
2007 e 2009 e, em 2018, entrou no doutorado na mesma instituição, agora na área de
Estudos da Tradução, tendo como objeto de pesquisa o metal extremo e os processos tra-
dutórios interartísticos. E-mail: cristianosteps@gmail.com
Lattes: http://lattes.cnpq.br/5234076049616465.

4. Fabio Alexandre Tardelli Filho - Professor de História da rede pública estadual, mes-
tre em Educação pela UFSCar, militante e delegado da APEOESP, membro fundador do
podcast Prolecast e fundador da web zine Resíduos Tóxicos. Membro do grupo de pesquisa
do HISTEDBR da UFSCar Sorocaba. Desenvolve pesquisas nas áreas de Educação, História
da Educação, História do Brasil, Haiti e África, Imprensa Operária, uso de jogos, cinema e
literatura nas pedagogias críticas e Educação Popular. E-mail: f.a.tardelli@gmail.com
Lattes: http://lattes.cnpq.br/0345122645229407

5. Lucas Martins Gama Khalil, nascido em Porto Velho-RO, é professor do Departa-


mento Acadêmico de Letras Vernáculas da Universidade Federal de Rondônia – UNIR.
Nessa instituição, leciona disciplinas da área de Linguística na graduação e no mestrado,
além de liderar o grupo de pesquisa Núcleo de Estudos em Análise do Discurso e Ethos –
NEADE. É mestre e doutor em Estudos Linguísticos pela Universidade Federal de
286 | Diálogos com a Música Extrema

Uberlândia – UFU, tendo realizado pesquisas que articularam o estudo do discurso a obje-
tos do âmbito da música, em especial, ao rock e ao metal extremo. Em Uberlândia-MG, foi
guitarrista (2008-2015) da banda de hardcore No Defeat. E-mail: lucas.khalil@unir.br
Lattes: http://lattes.cnpq.br/5480323509113727

6. Moacir Oliveira de Alcântara é mestre em História pela Universidade de Brasília


(UnB). Desenvolve pesquisa que relaciona a História com as representações, identidades,
processos de subjetivação, raça e racismo no âmbito das contraculturas, em especial o
punk. Participa ativamente do underground da capital federal desde os anos 1990. É editor
do zine Estiletes Na Mente, colaborador do espaço Casa Punk (São Paulo) e integrante da
banda rawpunk Síndrome Letal. E-mail: moa7782@gmail.com
Lattes: http://lattes.cnpq.br/9598423029267637

7. Roberto Scienza é doutorando em filosofia na Universidade Estadual do Oeste do


Paraná (UNIOESTE) e Mestre em comunicação pela Universidade Estadual de Londrina
(UEL). Seu trabalho como pesquisador trata, principalmente, de ética, alteridade, crítica a
moral e anarquismo. Também é músico. Suas bandas em atividade são a Creatures, banda
de Hard/Heavy na qual é vocalista e a Rope Bunny, banda de Doom Blues na qual é com-
positor, guitarrista e vocalista. Também faz parte da produtora audiovisual Flashbanger,
onde atua como roteirista, editor de vídeos e apresentador no canal de YouTube. E-mail:
robcorreasc@gmail.com
Lattes: http://lattes.cnpq.br/2353678958794604

8. Rodrigo Barchi é doutor em Filosofia e História da Educação pela Universidade Esta-


dual de Campinas (UNICAMP), Mestre em Educação pela Universidade de Sorocaba
(UNISO), especialista em Educação Ambiental pela EESC-USP, e em Gestão da Educação
Pública pela UNIFESP, licenciado em Pedagogia pela UNICID e em Geografia pela UNISO,
e é atualmente pós-doutorando em Educação em Ciências pela FURG. Professor do Pro-
grama de Pós-Graduação em Educação pela Universidade Ibirapuera, na Linha de Pesquisa
em Educação, Cultura e Subjetividade. Desenvolve e publica pesquisas ao redor da temática
da Música Extrema e suas conexões com as educações ambientais. Foi baterista da banda
de death metal Hippie Hunter, de Sorocaba, entre 2001 e 2003, e ainda tem esperança de
fazer apresentações com uma banda de grindcore própria. E-mail: rodrigo.barchi@ibira-
puera.edu.br.
Lattes: http://lattes.cnpq.br/4330160748846226
Sobre os autores | 287

9. Tadeu Rodrigues Iuama é doutor em Comunicação (UNIP), integrante dos grupos de


pesquisa Narrativas Midiáticas (UNISO/CNPq), Mídia e Estudos do Imaginário
(UNIP/CNPq) e Mídias Lúdicas (UNISO/CNPq). Atualmente, é docente do Centro Univer-
sitário Belas Artes e pós-douturando pela Universidade de Sorocaba. Perambula pelo
subterrâneo da música desde a adolescência. Sob a alcunha de Prometeu, é integrante do
Primordial Idol. Foi um dos idealizadores da coletânea Raízes Ancestrais: Resistência Pagã,
projeto-irmão do Manifesto Resistência Pagã: pela descolonização espiritual, lançados pela
Nyarlathotep Records em 2020. E-mail: tadeu.rodrigues.iuama@gmail.com
Lattes: http://lattes.cnpq.br/9843149945310666

10. Wescley Dinali - Doutor em Educação pela Universidade Federal de Juiz de Fora
(UFJF). Mestre em Educação pela UFJF. Graduado em Pedagogia pela Universidade Federal
de São João del-Rei (UFSJ). Pesquisador associado ao Travessia Grupo de Pesquisa
NEC/PPGE/UFJF, certificado pelo CNPq. Agitador (contra) cultural e zineiro de carteirinha.
Autor do blog “Ocupa Guerrilha Noise Zine. Atuou nos projetos undergrounds: Genital Tu-
mour (splatternoisegrinder) e Anarco Vomit Noise (harsh noise caos). Atualmente mantém
vivo o micro selo Depressive Noise Records e as bandas: Alice Psicodélica (HNW) e Wit-
ching Crusties (black crust) juntamente com seu filho. E-mail:
wescleydinali@yahoo.com.br.
Lattes: http://lattes.cnpq.br/5131927257149426
Sobre os ilustradores (por eles mesmos)

Diego Anderson Sebold – natural da cidade de Florianópolis (SC), tem em sua trajetória
várias participações artísticas dentro da cena underground da região. Admirador da Natu-
reza e da Arte contestadora, segue o rumo do seu destino como um peregrino impaciente,
colhendo sua inspiração pelo misterioso caminho da vida e da morte

Luis Felipe Loyola - “LF Voideath” é o pseudônimo de Luís Felipe Loyola, formado em
Artes Visuais pela Universidade Federal de Uberlândia, no momento concluindo mestrado
em História, também pela Universidade Federal de Uberlândia. Na música, atualmente en-
contra em processo de gravação de um EP com a Deadtrack, banda de Crust/Death Metal
de Uberlândia que fundou em 2014. Também fez parte de bandas de metal e hardcore na
cidade, bem como a realização de alguns eventos de metal e punk ao longo dos anos. Como
Ilustrador, faz trabalhos como capas de discos, merch e cartazes para algumas bandas e
marcas da cena de Uberlândia e também de outras localidades.

Márcio Destito – Ilustrador, ex-punk e coeditor do fanzine “Alice’s Dirty Head”. Autor de
capas para álbuns de bandas (Execradores e Pós-Guerra), flyers (Discarga Violenta, Distúr-
bio Mental, Lisa Cane, Rotten Flies), cartazes de festivais (Wisconsin Old Barn Punk Fest
’98) e fanzines (Profane Existence, Outspoken, Ato Punk) durante a década de 1990.
Sobre o revisor

Davi Fernandes Costa - atua como psicanalista e como professor titular de Língua Portu-
guesa do Governo do Estado de São Paulo. Possui graduação em Pedagogia pela
Universidade Nove de Julho (2019), graduação em Letras - Português / Inglês (2008), Gra-
duação em Letras - Espanhol (2013) e Especialização em Literatura Contemporânea (2014)
pela Universidade Camilo Castelo Branco. É mestrando em Educação pela Universidade
Ibirapuera, além de já ter atuado como professor em cursos de formação docente na Uni-
versidade Brasil e nas Faculdades Metropolitanas Unidas.
Autor: Marcio Destito
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acadêmica/científica das humanidades, sob acesso aberto, produzida em
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