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Currículo e Estética Da Arte de Educar - Janete e CIA
Currículo e Estética Da Arte de Educar - Janete e CIA
E ESTÉTICA
1
Revisão
Janete Magalhães Carvalho
Sandra Kretli da Silva (PPGE/UFES)
Tânia Mara Zanotti Guerra Frizzera Delboni (PPGE/UFES)
Tiragem
E-book (PDF)
C975
TÍTULO
Currículo e estética da arte de educar / Janete Magalhães Carvalho, Sandra Kretli da Silva,
Tânia Mara Zanotti Guerra Frizzera Delboni (organizadoras) – Curitiba: CRV, 2020.
476 p.
Bibliografia
ISBN Digital 978-65-5868-719-1
ISBN Físico 978-65-5868-720-7
DOI 10.24824/978655868720.7
1. Educação 2. Currículo I. Carvalho, Janete Magalhães. org. II. Silva, Sandra Kretli da. org. III. Del-
boni, Tânia Mara Zanotti Guerra Frizzera. org. IV. Título V. Série
Impresso no Brasil
1a Edição – dezembro | 2020
CURRÍCULO E ESTÉTICA DA ARTE DE EDUCAR
3
CURRÍCULO
E ESTÉTICA
1 a E D I Ç ÃO | 2 0 2 0
Curitiba – PR
Sumário 2 Currículo da
cidade e o direito
de aparecer:
PREFÁCIO 9 aliançar que faz
diferença
OS SIGNOS ACERCAM-SE
Glaucia Carneiro
Antonio Carlos Rodrigues
de Amorim (FE/UNICAMP) (UFMG) e Marlucy
Alves Paraíso
APRESENTAÇÃO 15 (UFMG) 49
CURRÍCULO E ESTÉTICA DA ARTE DE EDUCAR
Janete Magalhães Carvalho (PPGE/UFES),
Sandra Kretli da Silva (PPGE/UFES) e Tânia Mara
Zanotti Guerra Frizzera Delboni (PPGE/UFES)
4
TÍTULO
3 Transcriação de signos:
infantil, aula, docência
Janete Magalhães
Carvalho (UFES/CNPq),
Steferson Zanoni Roseiro
Sandra Mara Corazza
(UFES) e Suzany Goulart
(UFRGS/CNPq) e Silas
Lourenço (UVV) 89
Borges Monteiro (UFMT) 69
5 9
DE EDUCAR
Graziele Corrêa
| CURRÍCULO
O cinema abrindo alas para os Amorim (UFV) e
devires passarem Eduardo Simonini
DA ARTE
Ana Cláudia Santiago Zouain (UFV)
SUMÁRIO
(UFES), Nathan Moretto Guzzo 211
CURRÍCULO E ESTÉTICA
Fernandes (UFES) e Sandra
Kretli da Silva (UFES) 169
6
e Rita de Cássia Prazeres Frangella (UERJ) 193
Signos artísticos
10
e aprendizagens
involuntárias “Mamãe, vamos nos esconder?”:
Carlos Eduardo as artes crianceiras em tempos de
Ferraço (UFES/ monstruosidades necropolíticas
CNPq) e Marco Luciane Tavares dos Santos (UFF)
Antonio Oliva e Marcio Caetano (UFPel) 231
Gomes (UFES) 137
13 Força, forma e pintura: movimentos na formação continuada de
professores a distância
Jaqueline Magalhães Brum (UFES) e Nilcea Elias Rodrigues (UFES) 291
11 Vestido, quimono e
peruca: produções 14 Quando as imagens
vão à guerra: currículo,
narrativas e mosquitos, bactérias,
imagéticas de vírus, ciências,
si, rostidade e tecnologias…
professoras em devir Thiago Ranniery (UFRJ) e
Maria da Conceição Júlia Pompeu (UFRJ) 319
Silva Soares (UERJ) e
Simone Gomes da
Costa (UERJ) 257
6
TÍTULO
15 As imagens-cinema como
SUMÁRIO | CURRÍCULO E ESTÉTICA DA ARTE DE EDUCAR
máquinas de guerra do
pensamento: currículos e
12 (Des)caminhos: as imagens-
cartazes potencializando
docências e...
Camilla Borini Vazzoler
Gonçalves (UFES), Eliana
a vida coletiva com as
aprendências insurgentes na Aparecida de Jesus Reis
diferença (SEME/SERRA) e Tânia
Juliana Paoliello (UFES), Mara Zanotti Guerra
Priscila dos Santos Moreira Frizzera Delboni (UFES) 339
(IFES) e Alba Jane Santos
Lima (IFES/UNIRIO) 273
17 Pensando com a 20 Materiais artístico-
DE EDUCAR
| CURRÍCULO
19
Barbosa de Oliveira
Signos artísticos e conhecimento: (UNESA/UERJ) e
DA ARTE
um ensaio contra-epistemológico Marina Santos Nunes
SUMÁRIO
Patrick Stefenoni Kuster (UFES) 435 de Campos (URFJ) 453
CURRÍCULO E ESTÉTICA
7
16 Oficinas artísticas
18
na periferia: práticas
educativas para O que pode a escola?
aprender e afetar o Atravessamentos do cinema
corpo coletivo nos/dos processos de
Lysia da Silva insurreições e resistências
Almeida (IFES), nos cotidianos escolares
Davis Moreira Alvim Terezinha Maria Schuchter
(IFES) e Izabel Rizzi (UFES), Fabio Luiz Alves de
Mação (UFES) Amorim (Faculdade Estácio
365
de Sá) e Jaconias Dias
Rodrigues (UFES) 409
8
TÍTULO
PREFÁCIO
OS SIGNOS
ACERCAM-SE
Antonio Carlos Rodrigues de Amorim
PREFÁCIO
Faculdade de Educação, Unicamp
9
Dizer de uma vida qualquer, como é a que os currículos (com)
portam e liberam, é arrastar, simultaneamente, seu esgotamen-
to para fora das lógicas do possível e reivindicar o acesso da
areia do deserto ao liso espaço do mar que ondula. Não sei se
pelo serpentear dos trilhos de trem que recortam as montanhas
e acabam por instaurar na vida que ali é vivida à espera pelo
acontecimento que, de tão lento, não chega ou que, de tão sur-
preso, passa-nos despercebido.
Os cortes da linha de trem em montanhas fazem delas frações de deslocamento
e criam o novo das cicatrizes na vida da qual se exige ressurgir sob o ferro, a
pressão e o atrito das faíscas, pequenas e invisíveis ruínas da resistência – da
semente, da flor, do verme esmagado, do lodo que encontra aderência entre os
pedaços de carvão.
Nesta época do ano, em que o vento inicia sua jornada em busca de uma umi-
dade perdida do tempo e que o céu vai ao encontro de um azul pa[li]decido, a
“maria-fumaça não canta mais para as moças flores, janelas e quintais”, versos
de Ponta de Areia de Milton Nascimento e Fernando Brandt. Arranca em mim
os trilhos sazonais que não me deixam esquecer as praças vazias e as casas es-
10
quecidas das quais sou a viúva no portal.
PREFÁCIO | OS SIGNOS ACERCAM-SE
Desse modo, vagueante, vem chegando uma questão à superfície, que se es-
tende para dois campos de estudo de meu interesse – imagem e currículo – e
assim ela se pronuncia: seria mesmo de uma realidade capturável e unívoca que
eles falariam? Currículo e imagem ganham intensidades diferenciais à medida
que não têm mais a função de referir-se apenas à palavra ou ao conhecimento.
Portanto, a subjetivação que a imagem faz ao currículo indica-lhe, em termos
Para Deleuze, a imagem não é objeto, mas sim processo; isso exige a percepção
das realidades e sua apre(he)ndizagem marcadas pela passagem de uma cultura
dos objetos e das estabilidades para uma cultura dos fluxos e das instabilidades,
geradas em um universo de redes e devires, gérmens de questionamentos sobre
onde começa e onde acaba a imagem, nos entremeios de transparências e di- 11
versos tipos de fluidez.
Será que as linhas curriculares sobreviveriam aos pontos que finalizam e que-
bram cada seção de uma vida segmentar, larva que contém a asa da borboleta, e
que também abre a pele e a ferida por gosto exatamente da carne que putrefaria?
CURRÍCULO E ESTÉTICA DA ARTE DE EDUCAR
Referência
APRESENTAÇÃO
CURRÍCULO E
APRESENTAÇÃO
Janete Magalhães Carvalho
Sandra Kretli da Silva
Tânia Mara Zanotti Guerra Frizzera Delboni
Organizadoras
15
15
Os gestos infantis instaurados nas escolas públicas, nos encontros com os signos
18 artísticos, fazem-nos ver singularidades de um pensamento acerca desses espa-
çostempos. Daí, portanto, buscamos agenciar com a arte a experiência de criar
APRESENTAÇÃO
Desse modo, objetiva este livro a abertura dos intermundos que habitam nossas
infâncias e nossas pesquisas. É composto não somente de textos escritos por
participantes do Grupo de Pesquisa Com-Versações, mas também congrega re-
sultados de pesquisas e ensaios muito plurais em duplo sentido: a) pelos signos
artísticos enfocados (teatro, literatura, cinema, oficinas, desenho, pinturas etc.;
b) pelo número expressivo de instituições de ensino superior aqui representadas
por meio de seus pesquisadores que conosco se envolveram nessa viagem atrás
de um Coelho Branco que, olhando o relógio retirado do bolso do colete, conti-
nua a correr e, passando por este livro, sempre faz uma reverência e diz:
Assim esperamos que vicejem outras ideias, outras parcerias, outros afetos e
afecções que, atravessando estas páginas, potencializem novas discussões, pro-
blematizações e que, incansavelmente, sempre comecemos tudo de novo na
diferença da repetição.
O livro, antes que jorrem novas ideias e comece tudo de novo, apresenta vinte
20
capítulos.
APRESENTAÇÃO
O quarto capítulo, escrito por Janete Magalhães Carvalho (Ufes), Steferson Zano-
ni Roseiro (Ufes) e Suzany Goulart Lourenço (UVV), denominado Por docências
não dogmáticas e existências não mínimas nos cotidianos escolares, opera
com a noção de uma docência não dogmática que reconhece a pluralidade dos
intermundos. Utiliza pinturas feitas pelos alunos, atreladas a trechos das conver-
sas estabelecidas entre eles, concluindo pela necessária instauração de gestos e/
ou modos de criação em frente à lógica de controle e redução da vida infantil
das crianças de periferia das escolas públicas a uma “existência mínima”.
O décimo primeiro capítulo, escrito por Maria da Conceição Silva Soares (Uerj) e
Simone Gomes da Costa (Uerj), intitulado Vestido, quimono e peruca, produ-
ções narrativas e imagéticas de si: rostidade e professoras em devir, objeti-
va a criação de espaçostempos para, por meio de fabulações imagéticas sobre si,
simultaneamente, interrogar, refuncionalizar, potencializar as tessituras das redes
de práticas e significações de professoras sobre o feminino e a docência, suas po-
tências e invenções e, assim, problematizar o sistema corpo-genêro-sexualidade.
O décimo terceiro capítulo, escrito por Jaqueline Magalhães Brum (Ufes) e Nil-
cea Elias Rodrigues (Ufes), denominado Força, forma e pintura: movimentos
na formação continuada de professores a distância, problematiza como a
força micropolítica produzida nas relações de afetos e afecções em um curso
EAD em Matemática pode afetar a forma macropolítica, utilizando elementos
25
da pintura (forças, elementos relacionais e formas) para análise dos enunciados
discursivos dos cursistas sobre o curso a distância.
Boa leitura!
Referências
30
1.
CURRÍCULO E ESTÉTICA DA ARTE DE EDUCAR
31
A FERRAMENTA
E O OBJETO DO
TEATRO NUMA IDEIA
DE APRENDIZADO
Renato Mendes
Sílvio Gallo
Renato Mendes1
Sílvio Gallo2
1 Sempre à mão
Ao longo de diversas experiências educativas que emergiram em diferentes mo-
mentos da história, o caráter lúdico e pedagógico das artes, a experiência do
fazer bem como a fruição estética por parte dos aprendizes, foi um aliado valo-
32 roso dos mais variados projetos de aprendizagem. Se tomamos como exemplo
a pedagogia racional proposta e praticada por Francesc Ferrer i Guàrdia nos
A FERRAMENTA E O OBJETO DO TEATRO NUMA IDEIA DE APRENDIZADO
primeiros anos do século XX,3 o projeto de uma educação integral era marcado
pela afetividade, evidenciando a importância estética no aprender, como pode-
mos ver no seguinte trecho:
1 Ator, dramaturgo e professor de teatro, mestrando em Educação na FE-Unicamp. Graduado em Licenciatura em Arte-Teatro pelo
Instituto de Artes da Unesp.
3 O educador catalão criou em 1901 a Escuela Moderna de Barcelona, que seria fechada pelo Estado espanhol em 1905. Ferrer
propôs uma pedagogia racionalista, fortemente amparada nas ciências naturais, com um aprendizado baseado na experiência e
na experimentação. O racionalismo de Ferrer, no entanto, dava extrema importância ao afetivo nos processos de aprendizagem.
Os protestos contra seu fuzilamento pelo governo espanhol em 1909 espalharam suas ideias pelos quatro cantos do mundo, tendo
animado inúmeras escolas anarquistas, inclusive no Brasil.
sentimento que ele as ame intensamente. Porque o sentimento, quan-
do é forte, penetra e se difunde pelo mais profundo do organismo
do homem, perfilando e colorindo o caráter das pessoas. (FERRER Y
GUARDIA, 2014, p 43-44)
Não é totalmente outra a direção que tomou Deleuze (2006) ao tratar do apren-
der em seu livro Diferença e Repetição: ainda que o aprender seja uma expe-
riência no pensamento, ele é totalmente marcado pelo afetivo e pelo estético,
visto que somos levados a aprender – e a pensar – pelo encontro com signos
Num exemplo pontual não muito distante de nós, embora muito bem ocultado
pela historiografia que se pretende hegemônica, podemos encontrar a arte tea-
tral exercendo o caráter formativo de comunidades inteiras, propondo uma refle-
xão crítica acerca de questões sociais. Foi o caso das vilas operárias, organizadas
e engajadas por anarquistas que compunham a linha de frente dos primeiros
anos da luta proletária no Brasil, no então nascente século XX. Uma das poucas
pesquisadoras a se desdobrar sobre o tema, num trabalho verdadeiramente ar-
queológico em busca do que era mantido ocultado nesse capítulo história, Ma-
ria Thereza Vargas surpreende ao revelar que é na experiência estética, cênica,
que os sujeitos integrantes dessas comunidades se instruíam e se formavam, bem
como ensaiavam insurgências contra o entendimento de mundo premido pelo
senso comum e imposto subjetiva e diariamente pelos meios convencionais,
inclusive escolares.
34
Pois não apenas o caráter informativo e de difusão de ideias era próprio dessa
expressão popular, mas nela, e a partir dela, intentava-se fomentar a produção
de saberes pela estética, e uma formação sensível de quem a praticava. Atores
e atrizes, criadores no palco – ou nos mais variados espaços improvisados que
de palco lhes serviam – operários e operárias ensaiavam serem sujeitos ato-
res ativos, não alienados das relações cotidianas fora do espaço da represen-
tação.4 É o que podemos afluir do pensamento de Edgar Rodrigues, historiador
luso brasileiro que conviveu e biografou grande parte do movimento operário
brasileiro, principalmente influenciado pela imigração italiana, mas que de
forma alguma se limitava a ela:
É evidente que os anarquistas exerciam essa ação com o teatro, em seu caráter
didático, de maneira própria, particular, de maneira instrumental aos seus obje-
tivos enquanto projeto de sujeito e projeto de mundo – ideias que perpassam e
4 Jacques Rancière (1988) no belo livro A noite dos proletários – arquivos do sonho operário narra as histórias de diversos operários
das primeiras décadas do século XIX, de variados ramos e articulados em uma liga saint-simoniana de cooperação, que apro-
veitavam suas horas de lazer e de descanso – suas noites – para exercer atividades artísticas: pintavam, esculpiam, desenhavam,
escreviam poesia e prosa, escreviam peças e as montavam, atuando como atores. Para o filósofo, tal exercício estético que, em
princípio, não estava reservado a eles, era sua forma de emancipar-se da condição de exploração e de dominação, exercitando as
atividades estéticas.
constituem a educação. Porém o exemplo a que acima recorremos, ainda que
com certo vanguardismo, não é algo novo ou sequer único na história.
5
Em tradução livre: “É desnecessário fazer comparações entre grandes artistas: a vida é suficientemente complexa para dar a cada
um seu lugar no grande esquema das coisas”.
mais modernos, cientes de suas particularidades. Se nos propusermos a pensar
a educação para além do campo institucional escolar, mas não o excluindo, e a
pensarmos de maneira atrelada à sociedade em seu entorno, o que de nenhum
modo, querendo-se ou não, ela deixa de estar, podemos perceber potências cria-
doras de diferença e resistência subjetiva nessas experiências de teatro muitas
vezes tidas como “panfletárias”.
Pensamos aqui, portanto, num teatro que é didático, formativo e filosófico. Ana-
lisemos então a possibilidade de aprendizado por meio lúdico teatral, exami-
nando tal proposta de devir brechtiano.
37
2 Percepção afetiva do mundo: aprender teatro /
aprender com teatro
O teatro, assim como a educação, e sobretudo o teatro na educação tem a ca-
pacidade de apurar uma percepção afetiva do mundo por parte dos sujeitos.
A construção e interpretação cognitiva e também física corporal de imagens
interpretativas e representativas adentra um entendimento que extrapola o pen-
samento simbólico, e produz saberes de campo sensível. Quem talvez melhor
tenha desenvolvido um pensamento base acerca de tal possibilidade de apren-
dizado, e a utilizado de maneira engajada com um entendimento crítico e uma
proposta de transformação de mundo, foi o diretor e pedagogo teatral brasileiro
Augusto Boal, em seu laboratório de criação que culminou na consolidação da
Estética do oprimido (2009) enquanto conceito. De muitos modos um continua-
dor da obra de Brecht, acerca das múltiplas possibilidades da linguagem sensível
como produção de saber, ele é categórico quanto ao ato político que representa:
[...] temos que repudiar a ideia de que só com palavras se pensa, pois
que pensamos também com sons e imagens, ainda que de forma su-
bliminal, inconsciente, profunda! Temos que repudiar a ideia de que
existe uma só estética, soberana, à qual estamos submetidos – tal ati-
tude seria nossa rendição ao Pensamento Único, à ditadura da palavra
(BOAL, 2009, p 16).
6 Em tradução livre: “Pais e professores são a mais ignorante e mentalmente indolente classe em relação às necessidades da criança”.
Contudo, entender que arte e ciência são saberes complementares, e que são
mutuamente permeadas uma pela outra, exige não desconsiderar que a ciência
possui sua própria estética, suas próprias imagens e seus próprios sons, consti-
tuindo sua forma de se apresentar e ser lida. De maneira recíproca, há arte na
ciência, e os saberes científicos produzem e emanam beleza. Beleza esta melhor
observável quando se lhe ensina em uma relação de prazer e diversão.
8 Em tradução livre: “Não necessariamente porque seu objetivo é fazer proselitismo, mas porque ele pode se expressar melhor
sendo fiel à vida [...] Tanto o radical quanto o conservador precisam aprender que qualquer modo de trabalho criativo, que com
percepção verdadeira retrata os erros sociais com seriedade e ousadia , pode ser uma ameaça maior ao nosso tecido social e uma
inspiração mais poderosa do que a arenga mais selvagem do orador de palanque”.
O que a arte teatral tem a oferecer no ensino da ciência é, sobretudo, o trei-
namento do olhar do sujeito para que seja capaz de traduzir essa estética do
objeto científico, interpretando a origem e a função de tal estética. É uma forma
de expropriar o monopólio da linguagem que pertence aos que Boal chama
opressores, e tornar os signos da ciência e, consequentemente, seu conteúdo,
acessíveis, legíveis, reescrevíveis e defrontados com a sua dimensão social. O
entendimento teatral que contém a relação com as outras artes em movimento
e jogo, treina a ler estéticas e ressignificá-las. Pela estética pode-se aprender de
maneira ativa e crítica, tornando-se sujeito do conhecimento e expropriando os
saberes do opressor.
É, pois, o teatro uma útil ferramenta para o ensino, e uma arte que se alimenta e
contribui para as demais ciências, não se encerrando em si. Porém não devemos
presumir que só haja sentido na arte teatral quando dela se extrai algo de útil.
A estética, apropriada e na contramão do entendimento estéril de mundo que
as imagens prontas nos oferecem, mesmo sem perder sua essência combativa,
pode muito bem ser um fim em si, em nada perdendo legitimidade ao fazê-lo. A
qualidade pedagógica que aqui analisamos é uma possibilidade, não um limite,
muito menos uma fronteira. À arte, bem como à e ao artista, reserva-se o direito
44
de se ser supérfluo(a). De outra maneira há o risco de tentar-se capturar uma
força de produção de estética e olhares de mundo, castrando-a de toda a sua
A FERRAMENTA E O OBJETO DO TEATRO NUMA IDEIA DE APRENDIZADO
9 Em tradução livre: “É a dinamite que mina a superstição, abala os pilares sociais e prepara homens e mulheres para a reconstrução”.
As possibilidades artísticas, pedagógicas e subjetivantes do teatro apontam fi-
nalmente não para uma determinada estética, uma forma ou uma função, mas
sim para a perspectiva do múltiplo que dele se abstrai e expande. “Tornando a
crítica, ou seja, o grande método da produtividade, um prazer, nenhum dever
se deparará ao teatro no campo da moral; deparar-se-ão, sim, múltiplas possi-
bilidades (BRECHT, 1978, p 25)”. Múltiplo esse que não precisa ser constante,
permitindo e até fluindo organicamente à inconstância das linhas de fuga que
Essa forma nômade de estetização do social e do pessoal nos levam a uma for-
mação constante, repleta de aprendizagem que é crítica ao longo que consegue
divertir, e que é divertida, produzindo formas e linguagens a partir dessa diver-
são, como: “o teatro leva o seu espectador a uma atitude fecunda, para além do
simples ato de olhar [...] o espectador tem a possibilidade de formar a si próprio
da maneira mais simples, pois a forma mais simples de existência é a arte que
no-la proporciona (BRECHT, 1978, p 134)”. Atitude e atividade, meio e modo de
45
viver que formam ao sujeito artista de maneira autogerida sobre si. Isso ciente de
que essa auto formação, mesmo sobre si, se dá sempre em relação.
Assim como não há teatro solitário, uma proposta pedagógica que se pensa a
partir da teatralidade necessita do encontro com o outro. A despeito de ensaios,
que preparam a estética e a formação para o momento em que se dão, mesmo
em monólogo, o teatro se dá no mínimo do encontro entre este que atua e ao
menos uma pessoa que lhe expecta. Trata-se de uma arte que ocorre no espa-
ço invisível que há entre duas ou mais pessoas durante o momento em que se
relacionam, tornando-o visível, palpável, palatável e criticável. Revela-se assim
o invisível unindo olhares. “É que a unidade social mínima não é o homem, e
sim dois homens. Também na vida real nos formamos uns aos outros (BRECHT,
1978, p 123)”.
Uma educação que se pense a partir da relação artística que chamamos teatro
habita, portanto, o convívio sensível. É atenta à estética que emerge da contradi-
ção. Estetiza de maneira ativa o mundo que se produz com o olhar e, sobretudo,
seu significado social.
5 A potência menor do teatro... e do aprender
Gilles Deleuze conclui um ensaio intitulado Um manifesto de menos, dedicado
à obra teatral de Carmelo Bene, relevando o caráter minoritário da arte e do tea-
tro, afirmando “um devir minoritário universal. Minoria designa aqui a potência
de um devir, enquanto maioria designa o poder ou a impotência de um estado,
de uma situação. É aqui que o teatro ou a arte pode surgir com uma função po-
lítica específica” (DELEUZE, 2010, p 63-64).
49
2.
Glaucia Carneiro1
Marlucy Alves Paraíso2
50
TÍTULO
1 Doutora em Educação pela UFMG, Professora da Rede Municipal de Educação de Belo Horizonte, Pesquisadora do GECC: Grupo
de Estudos e Pesquisas em Currículos e Culturas da FaE/UFMG.
2 Professora Titular da Faculdade de Educação da UFMG, Pesquisadora 1C do CNPq, Criadora e Coordenadora do GECC: Grupo de
Estudos e Pesquisas em Currículos e Culturas da FaE/UFMG.
3 Caderno de Achados e Inventados é o nome dado ao caderno de campo onde foram realizados registros das perfografias feitas
com a transartivista Ed Marte em Belo Horizonte (2016/2018) para a pesquisa de doutorado que subsidia este artigo. Os trabalhos
de colagem de imagens que compõe este artigo foram realizados por Thiago Viana Barbosa, a quem somos imensamente gratas.
O direito à cidade é considerado, atualmente, parte dos direitos humanos a
serem garantidos pela sociedade civil. Se, por um lado, as metrópoles são espa-
ços violentos, segregadores, excludentes, depredados e que não oferecem con-
dições de vida igualitária para seus habitantes, principalmente, corporalidades
consideradas desviantes, por outro lado, ao desmontar a linguagem da gramá-
tica normalizadora, os artivismos produzem desterritorializações que inventam
saídas para a indiferença, a estagnação e o fechamento dos corpos na cidade.
4 Ed Marte se auto declara uma Artivista Queer em suas redes sociais https://m.facebook.com/edmartebh/. Acesso em 30 de jun.
2020.
5 O Baixo Centro de Belo Horizonte tem como coração a Praça da Estação, ladeada pelos viadutos: Santa Tereza e Floresta. A região
fica logo abaixo da Praça Sete, ponto de referência central da cidade. “Para quem conhece o Rio de Janeiro, é a Lapa de Belo
Horizonte” (PERDIGÃO, 2016).
Uma das perfografias que consideramos mais marcantes foi o encontro entre a
Academia TransLiterária, um agrupamento artivista que Ed Marte faz parte, com
Jota Mombaça, uma transartivista nordestina, cujos trabalhos são reconhecidos
no circuito internacional de performances das dissidências de gênero/sexuali-
dade. A chegada de Jota Mombaça a Belo Horizonte foi um acontecimento que
atualizou as potências de um aliançar em nossas perfografias. Mombaça foi uma
espécie de vapor, névoa, um raio que atravessou o 14º Festival Internacional de
Teatro de Belo Horizonte, o FIT, em setembro de 2018. Assim como quando nos
deparamos com Ed Marte pelas ruas da cidade, o encontro com Jota Mombaça
provocou um bloco de sensações. Não porque tal artista se autodenominava er-
rática, e, estávamos a busca de práticas errantes para dar mais vida a um currícu-
lo. Não se tratava da subjetividade de Jota Mombaça, mas, das forças produzidas
pelo encontro com os signos artivistas experimentados.
Jota Mombaça recusa qualquer tipo de normatividade onde parece não haver lu-
gar para a vida. Sua corpografia errante/errada tem por objetivo “proliferar falhas
na matriz representacional” (MOMBAÇA, 2017a, s/p). Para tal artivista, o “gesto
55
político de convidar um homem cis eurobranco a calar-se para pensar melhor
antes de falar, introduz, na realidade, uma ruptura no regime de autorizações vi-
gente” (MOMBAÇA, 2017b, s/p). Rompe com a “forma particularizada advinda
de privilégios epistêmicos da branquitude e da cisgeneridade de se comunicar e
de estabelecer regimes de inteligibilidade, falabilidade e escuta política” (MOM-
BAÇA, 2017, s/p). Não é que brancos não possam falar de racismo ou as pessoas
cis não possam falar de transfobia! O que Jota Mombaça chama atenção é, sobre
o modo como uma uma “matriz de produção de subjetividade sanciona a igno-
rância, sacraliza o direito à fala, secundariza o trabalho da escuta e naturaliza
a própria autoridade” (MOMBAÇA, 2017b, s/p). A noção de “saberes situados”,
marcado pelo “lugar de fala”, precisa, segundo Jota Mombaça (2017b), “come-
çar a servir para que pessoas brancas se situem de sua branquitude” e “pessoas
cis de sua cisgeneridade”.
8 Corpografias são inscrições urbanas gravadas nas corporeidades que circulam nas ruas das cidades (JACQUES, 2008).
2 “Não mexe comigo que eu não ando só”:
currículo e corpos em aliança pelo direito
de aparecer nas ruas
O “direito de aparecer”, como vem sendo pensado por Judith Butler (2018a),
trata-se de um tipo de agenciamento que liga as minorias sexuais e de gênero
às populações precárias. Trata-se não só de uma questão de virada, ética, mas,
também, de “justiça social”. Judith Butler esteve no Brasil em 2017 para o se-
minário internacional: “Os fins da democracia: estratégias populistas, ceticismo
sobre a democracia e a busca por soberania popular” promovido em conjunto
pela Universidade de Berkeley, a Universidade de São Paulo e o SESC/Pompeia.
Durante todo o tempo em que Butler esteve em São Paulo, ela foi escoltada por
seguranças, já que, ela, foi citada nominalmente, em uma petição pública que
exortava “o cidadão de bem” a exigir o urgente “Cancelamento da Palestra de
Judith Butler em São Paulo”. Apesar de o seminário ter transcorrido com todo o
êxito, ao se dirigir ao portão de embarque no Aeroporto de Congonhas, Judith
56 Butler e sua companheira, Wendy Brown, foram assediadas e agredidas por uma
militante em fúria, que segurava um cartaz em defesa da família tradicional, e
CURRÍCULO DA CIDADE E O DIREITO DE APARECER: ALIANÇAR QUE FAZ DIFERENÇA
Para Butler (2018b) a rubrica que une mulheres, indígenas, pobres, pessoas trans-
gêneras, com habilidades diferenciadas, corporeidades apátridas, corpos queers,
mas também minorias raciais e religiosas é a precariedade. Não se trata, obvia-
mente de uma identidade, mas, de um marcador que atravessa as fronteiras das
categorias estanques e “produz alianças potenciais” (BUTLER, 2018b). Ed Marte
possui muitas características que admiramos e que, costumam ser atribuídas a
corporeidades femininas. O acolhimento, a doçura e a atenção cuidadosa
57
que dá aos corpos que moram nas ruas, prostitutas, pessoas com proble-
mas de alcoolismo e principalmente jovens que cumprem penas e/ou medidas
socioeducativas, tudo isso somado a uma invejável agenda ligada a diversos
movimentos políticos e artísticos da cidade de Belo Horizonte, bem como
seu envolvimento com projetos na periferia, como o Favela é isso aí9 e A Casa
Rosa10 de Ed Marte, dão evidências das potências dos corpos em aliança. Jota
Mombaça, ressalta, ainda, que o modo de “criação errorista” e “fracassado” das
corporeidades precárias é justamente seu vetor de força política. Esse modo de
criação surge como uma importante linha desviante em relação a projetos ar-
tísticos “bem sucedidos e comercializáveis” (MOMBAÇA, 2016, s/p). A aliança
entre Jota Mombaça, Academia TransLiterária e artistas de performance/teatro
por ocasião do 14° FIT de Belo Horizonte é um bom exemplo das virtualidades
dos “corpos em aliança” (BUTLER, 2018a).
“Os afectos atravessam o corpo como flechas, são armas de guerra” (DELEUZE;
GUATTARI, 1997, p. 18), como podemos ver no trecho a seguir de uma
performance de Ed Marte, ocorrida em um domingo no Parque Municipal de
BeloHorizonte:
Ed Marte não sai de casa no domingo para ir ao parque explicar o que significa
ser uma pessoa não binária e nem tenta convencer ninguém de que ser assim é
algo bom. A presença da artivista naquele espaço também não tem a intenção
60
de convencer ninguém de que os corpos GLBTs têm os mesmos direitos que os
corpos héteros e cis gêneros. Contudo, ao colocar o seu corpo desobediente
CURRÍCULO DA CIDADE E O DIREITO DE APARECER: ALIANÇAR QUE FAZ DIFERENÇA
na rua, a artivista já está performando esse direito pelo simples fato de existir,
como qualquer outra pessoa ali. As performances de Ed Marte são, portanto,
minimalistas, sutis, delicadas, a voz e os gestos da artista são suaves, amorosos,
seu corpo exala um delicado cheiro de incenso, por se tratar também de uma
instrutora de kundalini yoga. Apesar da barba e do corpo peludo remeterem a
certa imagem-clichê de que corpos assim têm que performar uma postura viril,
masculina, máscula, Ed Marte é bastante suave. Todas essas emissões de signos
discrepantes produzem uma atmosfera no sense no parque. Há grande possibili-
dade de, ao se passar pelo corpo da artista de maiô, hesitar e, em seguida, sorrir.
Ora, o verbo hesitar vem do latim hesitarae que carrega o sentido de não saber
como agir ou o que dizer; não ter a certeza em relação a algo; ficar indeciso; 61
agir de modo confuso ou desconexo; balbuciar. O procedimento da hesitação
no currículo investigado é responsável pela produção de uma fricção no modo
acelerado como os corpos passantes caminham pela cidade. Tal procedimento é
um componente importante no currículo da cidade por produzir uma hesitação
nos corpos; produzir uma espécie de gagueira, isto é, fazer a língua da gramática
normalizadora dos corpos tremer, vacilar, diminuir a velocidade corriqueira e
perceber algo diferente.
63
64
PRESENÇA
JURACI
65
66
Referências
BUTLER, J. O fantasma do gênero: reflexões sobre liberdade e violência.
Folha de S. Paulo, Ilustríssima, 19 nov. 2017. Disponível em: https://m.
folha.uol.com.br/ilustrissima/2015/09/1683172-sem-medo-de-fazer-ge-
nero-entrevista-com-a-filosofa-americana-judith-butler.shtml Acesso em:
17/10/2018.
BUTLER, J. Corpos em aliança e a política das ruas: notas para uma teoria
performativa de assembleia. São Paulo: Civilização Brasileira, 2018a.
68
CURRÍCULO DA CIDADE E O DIREITO DE APARECER: ALIANÇAR QUE FAZ DIFERENÇA
Sandra Mara Corazza
Silas Borges Monteiro
TRANSCRIAÇÃO DE
SIGNOS: INFANTIL,
AULA, DOCÊNCIA
3.
Sandra Mara Corazza (UFRGS/CNPq)
Silas Borges Monteiro (UFMT)
Temos, por insistência histórica e cultural, que docentes são, igualmente, edu-
cadores; educadores ensinam, no limite, a viver. Essa impossibilidade apontada
por Freud “aceitei o bon mot que estabelece existirem três profissões impossíveis
– educar, curar e governar –, e eu já estava inteiramente ocupado com a segun-
da delas. Isto, contudo, não significa que desprezo o alto valor social do tra-
balho realizado por aqueles de meus amigos que se empenham na educação.”
(FREUD, 1996, ePub.) Se encontramos mais facilidade em usar o verbo “apren-
der” como ação de dar a saber alguma matéria, aplicá-lo à vida cria dificuldades
desde Sêneca, se assumirmos que “É preciso durante toda a vida aprender a viver
e, o que talvez cause maior admiração, preciso durante toda a vida aprender a
morrer. (SÊNECA, 2017, ePub.).
Este ensaio pode soar taciturno demais a um tempo já entregue às paixões tristes;
em movimento de alegria, Zaratustra profetiza: “Querer liberta: pois querer é cri-
ar: assim ensino eu. E somente para criar deveis aprender! E também a aprender
deveis primeiramente comigo aprender, a bem aprender! — Quem tem ouvidos,
que ouça!” (NIETZSCHE, 2011, ePub.) Ouvidos que aprenderam a ter a espe-
rança de que o fenômeno acústico da docência lhe trará saber; uma questão:
”Por que ainda acreditava que todos deveriam aprender tudo o que ela lhes
ensinava?”, pergunta a professora. (CORAZZA, 2005, p. 121). Ensaia respostas
que não respondem mas faz mover a vida: “desaprender o dado e o feito, que é
o melhor caminho para que ela possa retomar, no tempo certo do intempestivo,
o caminho por-fazer.” (Idem, p. 139). Ao traduzir a matéria, a docência aprende
que sua apresentação é recebida pelos estudantes como “signo que é preciso
decifrar, interpretar, explicar” (p. 115). Sua formação lhe permite resistir a tratar
o ato de educar, do aprender, do pensar como experiências morais (p. 117). Seu
desaprender, como Zaratustra, vê a seriedade do aprender como trânsito de si-
gnos, pois, diferente do “método acroamático” (NIETZCHE, 2012, p. 146) é com
o signo que a docência geografa o “chão da escola” para si e para a estudantada.
Essa posição do infantil, como desejo de estar reunidos para manipulação de si-
gnos, traz a criança de Zaratustra ao jogo dos signos – da filosofia, arte e ciência.
72
Em aula, nesse tempo de distanciamento, a docência vê a si mesmo em um mon-
itor, uma imagem entre outras, em mosaico, em destaque, a depender da plata-
TRANSCRIAÇÃO DE SIGNOS: INFANTIL, AULA, DOCÊNCIA
forma; esse encontro de fantasmas jogando com signos, torna a pedagogia uma
espécie de espectralidade em duas dimensões. Outras vez, a professora indaga,
com anúncio de dias possíveis à vida e à alegria do infantil: “O que, atualmente,
temos condições de saber e fazer? O que, daqui para a frente, poderemos fazer
com tudo isso? E também temos condições de responder: – Já fizemos muita coisa
e sabemos outras tantas.” (CORAZZA, 2005, p. 11), ao que responde outra vez:
Contra o princípio do cogito cartesiano, que requer uma natureza decaída para
justificar o não saber e a dependência do “bom deus”, essa inescapável ori-
gem é rompida com nova construção conceitual, articulada com uma filosofia,
e sua pedagogia, não cristã, mas, igualmente, não iluminista, mas, ao modo
de Nietzsche, trágica. Há um infantil trágico em Nietzsche, como já lido no
Zaratustra, mas sinalizado em 1872: “Os gregos são, como dizem os sacerdotes
egípcios, eternas crianças, e também na arte trágica são apenas crianças que não
sabem que sublime brinquedo nasceu sob suas mãos — e nelas foi destroçado.”
(NIETZSCHE, 1996, § 17, ePub). Corazza argumenta sobre essa Figura, o Infantil, como
74
“um combate incessante e sistemático contra as formas que [essa Figura] veio adquirin-
do, ao longo da história do senso comum, do bom senso e do consenso educacionais.”
TRANSCRIAÇÃO DE SIGNOS: INFANTIL, AULA, DOCÊNCIA
(CORAZZA, 2017, p. 242). Combate feito com as filosofias da diferença, não por se
darem como alternativa, mas por recolocarem as antigas questões do pensamento oci-
dental em outros platôs. Neste capítulo, não basta dizer que as questões ligadas à escola
e às crianças devem ser atualizadas em função das atuais circunstâncias, pois haverá
sempre o risco da camuflagem de antigos códigos com novos termos.
Notas de INVENÇÃO
Sem dúvida, elevada suspeita de impostura paira sobre essa docência, que so-
nha e traduz. Porém, afirma Nietzsche (1992, p. 46), “ao redor de todo espírito
profundo cresce continuamente uma máscara, graças à interpretação perpetua-
Como docentes que criam suas aulas, trabalhamos em direção ao seu secreto
poético, de maneira que, mesmo que lhe atribuamos aparência de similaridade
com o original, procedemos a uma mudança de timbre, na maneira de apresen-
tá-la e deslocá-la, sem descaracterizá-la. Logo, somos mais do que intermedia-
dores, pois, na prática de liberdade de recriação dos originais, velamos para que
não percam a sua luminosidade de criação. Como autores-operadores, zelamos
76
pela pervivência (Fortleben) não somente das matérias traduzidas, para além da
época de sua produção, em que são relevantes (CAMPOS, 2013); bem como
TRANSCRIAÇÃO DE SIGNOS: INFANTIL, AULA, DOCÊNCIA
Essa sobrevida, sob o signo da invenção, faz a docência criar em paralelo, porém
de modo autônomo, na radicalidade da ritmanálise do sonho e da vigília: criar
como ação de resistência e depressa, com pressa, tal como afirma Bachelard
(1985, p. 10): “eis o grande segredo para criar vivendo. A vida não espera, a vida
não reflete. Jamais esboços, sempre centelhas”. Tendo a terra como escrivani-
nha, escrevemos centelhas de aulas, em sonhos de tinta, traduzindo uma escrita
cósmica, que nos outorga o direito de sonhar com a mutação paradigmática e
com a dignidade humana. Lidamos não somente com a profissão, em termos
factuais, mas, sobretudo, com as noções de história e tradição, cultura e civili-
zação, que fomentam a desqualificação de nossa existência como secundária,
insignificante, ou mesmo negada, mediante a outorga de uma não-existência,
por carecer de um efetivo valor de criação.
Notas de SIGNO
No mesmo ano que Friedrich Nietzsche nasceu, Freud publicou sua mais co-
nhecida obra, Die Traumdeutung. Em 1975, Foucault encontrou em Nietzsche
e Freud, ao lado de Marx, a profunda modificação que fizeram na natureza do
símbolo e a forma como o interpretar. (FOUCAULT, 1997, p. 18). Qual seria a
natureza do símbolo? Foucault usa sêmeion, que diz sobre a marca pela qual
algo é conhecido, como uma verruga no rosto, uma cicatriz no queixo, o amor
o seu sentido. É isso exilante (by Mirk Oh)? O bom estilo “não se equivoca nos
signos, no tempo dos signos”. Um português pega sua pena, entre sonhos, fan-
tasmas, poetisa: “O sonho é ver as formas invisíveis”. Como saber “se é sonho,
se realidade, se uma mistura de sonho e vida”? É preciso haver sonho? Que valor
há no real? Em que nos servem signos? “Ah, nessa terra também, também O mal
não cessa, não dura o bem”. Servem signos à educação? Melancolia saturnina?
Pintura de Francisco Goya: “O sonho da razão produz monstros”.
Notas de AULA
Deixamos para trás a ênfase tecnicista que nos tomou um dia. Como espectro,
ainda nos ronda, ainda mais com as tecnologias da informação e da comu-
nicação servindo de espaço virtual para tratarmos dos signos da filosofia-arte-
-ciência. Também, aprendemos a desinvestir em pedagogia humanista, marxista,
construtivista, psicanalítica, crítica ou pós-crítica, o que não significa ignorar
nosso aprendizado pelos enganos já cometidos em nome de nossas convicções.
Imantada pelo arquivo EIS AICE (CORAZZA, 2017), a aula acontece através de 79
constelações intertextuais e intervivenciais, urdidura do entreaberto e entrecru-
zamento de vozes, que nos levam a vivê-la poeticamente (AQUINO; CORAZZA;
ADÓ, 2017). Poética de aula, constituída pela necessidade dos acontecimentos,
formulada por desamores, paixões súbitas, golpes de misericórdia, grau zero de
substituições, que nos faz desaprender o costume, as crenças e o bom senso: “a
aula como gesto fronteiriço entre violência e celebração. Um ato feito a navalha-
das, enfim” (AQUINO, 2014, p. 183). Poética, que engendra o nosso gosto por
aula e concede o que esta não possui, nem dá, mas pode criar: “Amar + escrever
= fazer justiça àqueles que conhecemos e amamos, isto é, testemunhar por eles,
(no sentido religioso), isto é, imortalizá-los” (BARTHES, 2005, p. 28).
Feita a partir de espectros, deve haver outra docência, não feita por cópia e re-
produção do mesmo, como exercício do adoecimento da vontade, presa a uma
só forma. Pelo contrário, no caminho inverso da cópia, da imitação, há de se
encontrar outro caminho, tortuoso, de disseminação. O sentido não está dado.
A produção de sentido é efetivada em disseminação. A pedagogia há de ganhar
outra conotação, não mais a da codificação simbólica do acúmulo da cultura, das
ciências, das artes, da filosofia, da linguagem, mas como produção de sentido.
O ato tradutório adentra as trilhas sugeridas por Campos: “não se traduz apenas
o significado, traduz-se o próprio signo, ou seja, sua fisicalidade, sua materiali-
dade mesma (propriedades sonoras, de imagética visual, enfim tudo aquilo que
forma”. (CAMPOS, 2013, p. 5).
[3] A expressão cartesiana “At certe videre videor, audite, calescere” (DES-
CARTES, 2011, ePub), que pode ser traduzido por “é certo que me parece ver,
ouvir, aquecer” como suspeita ante a imagem supostamente objetiva, pois há
sempre um certo parecer-a-si, algo que é visto-não-visto, visto-de-si, um golpe
narcísico às pretensões de estabilidade. Esse espectro autobioimagético compõe
matéria e exposições didática. O retrato inerte das condensações metafísicas
evapora em possibilidades de leitura e escrita, meios e suportes, como convite à
experimentação tradutória das novas circunstâncias e suas práticas.
Direi ao mesmo tempo uma palavra geral sobre a minha arte do esti-
lo. Comunicar um estado, uma tensão interna de pathos por meio de
signos, incluído o tempo desses signos — eis o sentido de todo estilo;
e considerando que a multiplicidade de estados interiores é em mim
extraordinária, há em mim muitas possibilidades de estilo — a mais
multifária arte do estilo de que um homem já dispôs. Bom é todo es-
tilo que realmente comunica um estado interior, que não se equivoca
nos signos, no tempo dos signos, nos gestos — todas as leis do perío-
do são arte dos gestos.
84
po dos signos. Aqui, talvez, seja o ponto que inaugura os diversos começos do
ensino, como experimentação recorrente das circunstâncias das vivências, com
atropelos e conquistas. A resposta a isso está em lugar algum. Será por invenção
das crianças de Zaratustra e do infantil da docência, transcriando signos para
outra educação.
Referências
ARAGON, Louis. O camponês de Paris. Tradução Flávia Nascimento. Rio de
Janeiro: Imago, 1996.
BACHELARD, Gaston. O direito de sonhar. Tradução José Américo Motta
Pessanha et al. São Paulo: DIFEL, 1985.
BACHELARD, Gaston. A poética do espaço. Tradução Antonio de Pádua Da-
nesi. São Paulo: Martins Fontes, 2008.
88
4.
POR DOCÊNCIAS
Introdução
1 Artista mato-grossense, mas que viveu boa parte de sua vida no Espírito Santo, formando-se na Universidade Federal do Espírito
Santo (Ufes).
a arte e/ou os signos artísticos possuem o caráter especial de explorar afetos e
afecções inusitados, ampliando nossas relações com o mundo.
Mas, por que apostar nas existências mínimas? Por que defendê-las?
Buscamos, assim, seguir as linhas dos gestos docentes e infantis que evidencias-
sem a intensificação de suas realidades, apostando em modos de criação e de
resistência em frente à lógica de controle e diminuição das potências de vida,
procurando fazer ver enunciações infantis e docentes, na tentativa de ir ao en-
contro de seus mundos e de nos colocarmos com esses mundos.
2 “O agenciamento de enunciação é desde sempre coletivo, pois se dá num plano de fluxos heterogêneos e múltiplos que se cruzam
incessantemente. Os dois polos do conceito de agenciamento não são, portanto, o coletivo e o individual: são antes dois sentidos,
dois modos do coletivo. Pois se é verdade que o agenciamento é individuante, fica claro que ele não se enuncia do ponto de vista
de um sujeito preexistente que lhe poderia ser atribuído: logo, o próprio está na medida de seu anonimato, e é por esse motivo
que o devir singular de alguém concerne de direito a todos [...]” (ZOURABICHVILI, 2004, p. 9).
De acordo com Lapoujade (2017), diferentes modos de existência povoam o mun-
do, não sendo consideradas tanto as existências mínimas de seres reais, como,
principalmente, as de seres virtuais como potencialidades que acompanham cada
existência: aquilo que ela poderia ser dentro de um quadro de possibilidades.
Os gestos infantis instaurados nas escolas públicas, nos encontros com os signos
artísticos, nos fazem ver singularidades de um pensamento acerca desses espa-
çostempos. Daí, portanto, buscamos agenciar com a arte a experiência de criar
modos de produzir docências capazes de potencializar as infinitas possibilida-
des de vida.
Desse modo perspectivar uma docência não dogmática implica visualizar uma
docência aberta à diferença e à instauração de uma docência que considere a
alteridade. Docência como um propiciar de encontros nômades, e não como
uma palavra de ordem. Um conversar com, no lugar de um falar sobre, nutrindo
os “bons encontros” marcados pelo desejo ético e estético de criação.
Uma docência exercida num plano de imanência que vai assumindo consis-
tência à medida que o criam por meio de experimentações. Plano povoado por
docentes em devires-simulacros compostos por processos transversais de “artis-
tagens” que se instauram nos encontros entre corpos potencializando a multipli-
cidade de mundos possíveis (CORAZZA, 2013).
A consideração dos possíveis de uma docência não dogmática passa pela inven-
ção dos desacordos e criação das diferenças numa espécie de alteridade dese-
jante, isto é, uma alteridade que supere as representações binárias e modulares
do tipo: “[...] eu, macho, em meu lugar, falando em nome das mulheres; eu,
poder patrimonial, em meu lugar, falando sobre os ‘desvalidos’; eu, professor,
em meu lugar, falando em nome dos alunos” (LINS, 2005, p. 1235).
Uma alteridade como uma invenção e não um dado. O outro que está em mim
supera a visão de um outro apartado de mim, abrindo-se ao não humano do
homem, à natureza, à coletividade, ao universo múltiplo, como um desejo de
agenciamento de uma comunalidade expansiva, devir aos mil afetos e desejos.
94 Outro, portanto, que reage: outro em devir, um devir outro que resiste inclusive
à fundação da docência, mesmo porque “[...] o que deve ser fundado é sempre
POR DOCÊNCIAS NÃO DOGMÁTICAS E EXISTÊNCIAS NÃO MÍNIMAS NOS COTIDIANOS ESCOLARES
Eis nosso ponto de partida: explorar as existências que, reduzidas ao quase nada
– o nada é sempre inatingível –, não fazem outra coisa senão amiudar-se. E, pe-
queninas, multiplicam-se infinitamente.
Ora, no contexto escolar, esse tipo de ação é palpável. Ainda que um professor
trabalhe toda sexta-feira com pinturas em conversas com sua turma, no momen-
to em que ele estende aos alunos um conjunto de pincéis, tinta e papel gros-
so próprio para tinta, a turma começa a perguntar o que eles precisam pintar.
Pedem instruções, ordens. Como é um trabalho realizado na escola, evidente-
mente se caracteriza como uma atividade escolar e, por efeito, deve haver uma
resposta correta.
Talvez por isso Etienne Souriau (apud LAPOUJADE, 2017, p. 37) distinga quatro
universos concomitantes que invadem as existências e nelas se intercruzam,
permitindo-lhes ocupação real do plano da vida: “[...] o mundo dos fenômenos,
Por um lado, é o universo mais vasto, mas é também o mais evanescente, o mais
inconsistente, o mais próximo, aparentemente, do nada.
IMAGEM 1 _ Escravas na cozinha
98
POR DOCÊNCIAS NÃO DOGMÁTICAS E EXISTÊNCIAS NÃO MÍNIMAS NOS COTIDIANOS ESCOLARES
Não há uma só realidade que não esteja acompanhada de uma nuvem de po-
tencialidades que a segue como se fosse sua sombra. Cada existência pode tor-
nar-se uma incitação, uma sugestão ou o germe de outra coisa, o fragmento de
uma nova realidade futura. Toda existência torna-se legitimamente inacabada e,
portanto, com abertura para uma existência singular.
Isso não significa que, quando os virtuais se atualizam no real, deixam de existir
como virtuais, pelo contrário. São eles, os virtuais, que ditam as condições de
sua passagem para a existência, apesar da sua indistinção. A conversa com as
crianças que pintaram a cena Escravas na cozinha deixa isso bem claro: não se
trata, em absoluto, de recriar a memória tal qual ela se efetivou; ao mesmo tem-
po, não se trata de fazer de um modo qualquer. O virtual, ao se atualizar, cobra
do real as condições cabíveis para sua existência. Cada esforço criador, cada
investida é como uma proposição de existência que o virtual consente ou não,
segundo as exigências cambiantes da construção/organização que se esboça.
Eis que, se, nas escolas – de modo geral –, predominam as existências assujeita-
das pelas macropolíticas e/ou pelos modelos prescritivos de ensinar e aprender
que negam às crianças a afirmação do seu direito de existir, os virtuais, quando
se apresentam, ganham força equiparável a de um fenômeno da natureza – uma
tempestade, uma erupção vulcânica. As escolas públicas periféricas são conhe-
cidas como berços de existências “despossuídas” de seres sempre diminuídos,
esquecidos pelas forças políticas majoritárias que tendem a capitalizar tudo o
que lhes for apresentado. Todavia, tal qual o professor preocupado com as práti-
cas de liberdade e seus alunos que explodiram em um arrombo de escravas-não-
-escravizadas, há, ainda, estouros de vida que intensificam a realidade das exis-
tências afirmando seus direitos de existir, conquistando sempre mais realidades
com a instauração de gestos que afirmem a multiplicidade de mundos.
Além de Deleuze (2006b), outros leitores de Spinoza (2007), como Negri (1993),
atribuem à imaginação um importante papel na formação de um entendimento
ativo. Negri focaliza sua atenção na dimensão social da imaginação, ao invés de
pensá-la nas redes afetivas individuais. Para o autor, ao refletir sobre os efeitos
da imaginação, a mente compreende não apenas suas inadequações, mas tam-
bém o mundo socialmente constituído de sua experiência, de modo que razão e
imaginação não seriam polos excludentes, visto que o objeto do conhecimento
imaginativo – configurações afetivas, hábitos culturais, associações mnemôni-
cas, crenças herdadas socialmente – deve ser pensado como o que nos permite
3 Em “Carta ao pai”, Franz Kafka critica a maneira de educar do pai, afirmando que ele era muito rígido e que seus métodos de
educação o deixaram com traumas. Por conta disso, ele aprendeu a ver o mundo do modo do pai, e a última coisa que desejaria
era ver o mundo por tal perspectiva autoritária.
Apesar dessa luta pela sobrevivência, ambicionam alguma coisa. Os despossuí-
dos não reivindicam nenhum direito sobre nada, não aspiram a nenhuma posse.
Na maioria das vezes, nem compreendem o que lhes perguntam. Só que eles
nunca podem satisfazer essa pretensão de somente sobreviver, pois nunca con-
seguem ficar totalmente calados, não pensar ou não se mexer. Sempre circulam
vibrações que impedem de acabar com aquilo, pois os virtuais, em relação com
o real, agem acenando alternativas possíveis.
105
IMAGEM 4 _ “Só de boa”
vagarosa. “Só de boa” diz sua pintura e, de alguma forma, é justamente essa
despreocupação que ela usa como modo de resistência, como modo de cruzar
os mundos travando batalhas com um sorriso tímido, com uma paz singela. Seja
fazendo florescerem bocas-melões risonhas, seja tomando a tranquilidade como
seu modo de existir, as existências mínimas em contato com a força da arte e de
seus signos são lembradas em suas potências vitalistas. A arte pode funcionar,
para as crianças, como um modo de criar mundos desejantes.
Forças ético-estético-políticas
disparadas pelos signos artísticos
Em Deleuze, potência rima, decerto, com imanência.
Como pode ser definida como uma intensidade de forças criativas disparadas
por signos, a potência implica também a compreensão de que a política, em De-
leuze, é inseparável de acontecimentos éticos e estéticos (NASCIMENTO, 2013).
Assim, não para menos, o signo artístico pode nos fazer pensar a experiência
intensiva de novas formas de sentir, enfrentando as forças dominantes ao mesmo
tempo em que torna possível o surgimento de mundos inesperados. Por essa ra-
zão, a teoria deleuziana dos signos se torna uma prática política, isto é, o signo
107
se torna um elemento multiplicador das estratégias de intervenção política, re-
forçando a luta em favor de uma “vida não-fascista” (FOUCAULT, 1997, p. 199).
Para Deleuze e Guattari (2010), assim como para Lapoujade (2017), essa é uma
tendência que atravessa todas as artes. Há sempre a tentativa de povoar novas
entidades das zonas tidas como estéreis ou inabitáveis para a sensibilidade. A
força da arte aparece justamente onde os terrenos mórbidos parecem prosperar.
Visto que as artes não se chocam com o limite das suas possibilidades, seu desejo
de alcançar outros possíveis povoados de qualidades puras e abstratas extrapola
qualquer maquinismo do capital (LAPOUJADE, 2017). “O branco, o negro, o
silêncio, o nada, como limites supremos que encarnam o fim ou a quintessência
de uma arte? Como instaurar novos seres nessas zonas, se for verdade que não
existe nada além do branco, do negro, do silencio ou do vazio?” (LAPOUJADE,
2017, p. 110).
Daí, justamente, que o concreto não é a materialidade dos corpos neles mes-
mos; antes, é o ruído da sua vibração. O concreto da vida é animado por movi-
mentos, palpitações vibrantes, pela brisa litorânea que, ainda que fraca, nunca
cessa – carrega consigo grãos de areia e maresia. A catástrofe não precisa ser
apocalíptica; deve, antes, atravessar as concretudes com maior intensidade da
vida. Desse modo, precisamos criar captores, transmissores, detectores de movi-
mentos. Isso vale, para transformar sensibilidades, para todas as artes.
Assim, falar sobre uma docência não dogmática implica problematizar, expe-
rimentar, acompanhar movimentos que vão transformando a cultura da escola,
fortalecendo a criação coletiva, conduzindo para o questionamento e a carto-
grafia do campo dos “possíveis” do movimento do pensamento para engendrar
aprendizagens inventivas (CARVALHO, 2009). Sendo assim, concluímos indi-
cando a necessidade de abertura para o aprender e o ensinar na perspectiva do
pensamento em movimento, considerando que, para que alunos e professores
110
produzam as suas aprendizagens sem medo, eles necessitam que sejam opor-
tunizados “encontros” de ideias, espaçostempos para capturá-las e afetos que
POR DOCÊNCIAS NÃO DOGMÁTICAS E EXISTÊNCIAS NÃO MÍNIMAS NOS COTIDIANOS ESCOLARES
111
Referências
BERGSON, Henri. Matéria e memória: ensaio sobre a relação do corpo com
o seu espírito. Tradução de Paulo Neves. São Paulo: Martins Fontes, 2006.
BRASIL. Base Nacional Comum Curricular (BNCC): educação é a base. Bra-
sília: MEC/Consed/Undime, 2017. Disponível em: http://basenacionalco-
mum.mec.gov.br/images/BNCC_publicacao.pdf. Acesso em: 2 jun. 2017.
CANGI, Adrián. La identidade dramática de los dinamismos, sobre la virtuali-
zación de lo vivente. In: BRITO, Maria dos Remédios de; COSTA, Dhemer-
son Warly Santos (org.). Variações deleuzianas: educação e pensamento e
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CARVALHO, Janete Magalhães. O cotidiano escolar como comunidade de
afetos. Petrópolis, RJ: DP et Alii; Brasília, DF: CNPq, 2009.
CARVALHO, Janete Magalhães. Dar a falar: redes de conversações nas pes-
quisas em currículos com os cotidianos escolares. Revista Linha Mestra,
Campinas, n. 24, p. 77-86, jan./jul. 2014.
CORAZZA, Sandra Mara. O que se transcria em educação? Porto Alegre:
112 UFRGS/Doisa, 2013.
DELEUZE, Gilles. Diferença e repetição. Rio de Janeiro: Graal, 1988.
POR DOCÊNCIAS NÃO DOGMÁTICAS E EXISTÊNCIAS NÃO MÍNIMAS NOS COTIDIANOS ESCOLARES
114
5.
CURRÍCULO E ESTÉTICA DA ARTE DE EDUCAR
‘FAZER MORADA’
NA INFÂNCIA:
IMAGENS DE 115
CURRÍCULOS EM
DEVIR-CRIANÇA
3 Universidade Federal de Juiz de Fora. Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” -Campus Rio Claro.
Fazer morada
“Eu estava sentado no chão de uma sala ‘de aula’, perto da porta. Observava
as crianças explorando câmeras filmadoras, tablets, máquinas fotográficas. As
crianças tinham cerca de 4 anos de idade. Em certo momento dois garotos se
aproximam e me oferecem um carrinho de brinquedo para que eu possa junto
com eles brincar. Depois de algum tempo uma das crianças começa a passar um
carrinho na sola de minha sandália, enquanto a outra usa meu braço de ponte,
Os espaços vão aos poucos sendo fissurados por espacialidades que criam fluxos
eescapam àquilo que é previsto nos modos de pensar as crianças, a escola, as
imagens que ali se apresentam e as imagens que as crianças apresentam em suas
capturas através dos equipamentos, das tecnologias. Passamos, eu e as crianças, 117
um bom tempo sentados, brincando. Esse momento foi interrompido pela che-
gada do Diretor da creche, que parou ao lado de fora da sala. Eu me levanto
para cumprimentá-lo e saio, ficamos conversando por alguns minutos, até que
vemos se aproximando a nós a professora do berçário II de mãos dadas com uma
criança. Ao chegar a professora, apontando para mim, ela diz: “ele te viu e me
trouxe até aqui”. Olho para a criança e prontamente me abaixo até ela, fixamos
um no outro o olhar, ficamos na condição de uma verdadeira conversação silen-
ciosa, sem palavras, sem sons, sem ruídos. A troca de olhares durou vários mi-
nutos, o silêncio ali instalado era povoado de sensações, de aprendizagens, de
deslocamentos. Ali, pelo olho, pela imagem fixa da criança que se apresentava
a mim, pude, ao menos no campo do sensível – no campo sensível –, saber algo
sobre pesquisar com crianças, pesquisar com crianças e produção de imagens,
pude ver e enveredar por uma rede de saberes que se conectam a afetos, ideias,
pensamentos, imagens e montagens. Pude ver, pelo e com o olhar do Joaquim
(nome da referida criança), que estar e pesquisar com crianças, professores, pro-
dução de imagens na Educação Infantil, tem alguma coisa a ver com procurar
formas de dar visibilidade ao que a nós se apresenta; que o que o olho captura
e que captura o olhar talvez seja algum tipo de gesto, algum tipo de movimento,
algo que suspende nosso fôlego, que nos deixa distante e sem palavras, algo
que ensina que a experiência é uma dobra que nos coloca de alguma forma em
contato com o fora; que pesquisar e experimentar com imagens, com produção
de imagens realizada por crianças pequenas e professores de Educação Infantil
é se lançar em uma aventura com o fora, com a infância das coisas, com os ‘não
sei’ de partida e de chegada, com as incertezas, com os medos, com os mundos
possíveis.” (LEITE E OLIVEIRA, 2019, p. 169-170)
***
Antonin Artaud se pergunta: “Quem sou? De onde venho? Eu sou Antonin Ar-
taud, e basta dizê-lo e imediatamente vereis o meu corpo atuar. Voar em esti-
lhaços e em dois mil aspectos notórios refazer um novo corpo onde nunca mais
podereis esquecer-me.” (ARTAUD, 1983, p. 161). Seria a Educação Infantil esse
corpo preso por discursos, Leis, Políticas, saberes? Poderíamos em e com cada
119
fragmento do universo da Educação Infantil compor um ou muitos novos corpos
para isso que chamamos de Educação Infantil?
Um texto em blocos: fazer morada naquilo que a infância investe como ins-
‘FAZER MORADA’ NA INFÂNCIA: IMAGENS DE CURRÍCULOS EM DEVIR-CRIANÇA
Em um olhar mais atento para as Escolas de Educação Infantil o que talvez ve-
mos são pés e mãos e olhos e bocas e dedos e cabelos e pelos e dentes e unhas
e chinelos e sapatos e gritos e sons e ruídos e palavras e objetos e cenas e focos 121
e des-focos e cadeiras e tetos e chãos e pessoas e meninas e meninos e riscos
e riscas e choros. Temos espaços e percursos e travessias e andanças e chão e
crianças e crianças e crianças e crianças e crianças e e e....
Poderia isso nos dizer algo sobre a Educação? Sobre a Educação Infantil? Sobre
a Educação de crianças? Sobre crianças?
Um menino e seu tesouro, uma ameaça a uma tradição que se traduz em currí-
culo: curricularizado, um caramujo se afasta do periculum e da travessia singu-
lar de um coletivo de crianças que se encontram, se chocam inesperadamente
com um novo. Enquadrada, uma certa travessia é tomada como uma travessia
certa: C de caracol, desenho de caracol, história de caracol. Todo um fluxo de
123
desejo no encontro com um caramujo é represado e canalizado em um currícu-
lo, um corte no fluxo, um controle dos fluxos e dos cortes. E, ainda assim, uma
próxima visita a horta ainda faz vazar todo corte, todo controle. Um periculum
se repete e difere antes que se poder virar a esquina para voltar à sala de aula.
***
Entre as possíveis ideias que acenam
podemos pensar o currículo aliado a
ideia de experiências.
Esta possui um ex, que se apresenta como um prefixo – ex-terior. Esse ‘ex’ nos
liga a certa exterioridade, nos liga ao exterior. A experiência então, nesse sen-
tido, não é algo de um mundo pessoal, interior, de uma faculdade psicológica
alocada nos sujeitos, mas sim algo que flerta com uma exterioridade, com o
fora, com o mundo, pois além desse prefixo “ex” a ‘experiência’ carrega o ra-
dical ‘per’ – que, como radical etimológico “indo-europeu”, se liga a ideia de
travessia, percurso, caminho, viagem... A palavra experiência presume portanto
a saída de um lócus, de um lugar, a saída de ‘si’ até uma outra coisa, um passo,
um caminho até outra coisa. Essa travessia, esse percurso, esse caminho se apre-
sentam como uma aventura e, portanto, tem algo de incertezas, supõem riscos!
É um perigo! Assim, se currículo alude a perspectiva de uma experiência, de um
percurso, ele nos coloca diante de incertezas, de caminhos e travessias a fazer.
Porém, sendo assim, o currículo não tem relação alguma com lugares de que
partimos, ou lugares que buscamos. Ele não é utópico, nem tampouco atópico,
não tem topos, não tem lugar – currículo é travessia ou, dito de outra forma,
“currículo é experiência”. Como aquele que atravessa uma paisagem, que cria e
124 faz um percurso o Currículo seria então nômade. Um currículo nômade investe
em travessias, não se fixa em territórios, não se restringe a um local físico nem
‘FAZER MORADA’ NA INFÂNCIA: IMAGENS DE CURRÍCULOS EM DEVIR-CRIANÇA
Sendo assim, pensar um Currículo para a infância, para a Educação Infantil seria
então colocar em jogo uma prática: cartografar espaços nômades de/em tra-
vessias, mapear um percurso no qual, junto à criança, atento ao acontecimen-
to, possamos atravessar, aventurar. Traçar linhas! Linhas nômades! Linhas que
possam às vezes tortas, às vezes longas, outras vezes curtas, retas e sinuosas,
largas, grossas e finas, são linhas curvas e paralelas, perpendiculares, linhas que
transversam, que cortam e são cortadas. Interrompidas e pontilhadas, são linhas
fortes, forçam, definem, são intensas e diferentes. Seguir, acompanhar, caminhar
pelas linhas são modos de cartografar os espaços, os afetos.
Grosso modo podemos pensar que para Deleuze e Guattari somos constituídos,
produzidos por linhas. Somos singularmente, coletivamente e também como
massas (e)feitos de linhas. São muitas linhas, são muitas as suas formas. Na vida
se entrelaçam em um emaranhado imanente, intensivo em uma constelação de
vida. Existem as linhas duras – as dos próprios currículos, das leis, das políticas,
das produções acadêmicas, mas também as mais flexíveis, produzem sempre o
que pode ser chamado de um segmento, que diz algo, que sempre apontam para
certa mobilidade.
“Entrar na linha” pode significar muitas coisas: entrar na linha de uma empresa,
de um emprego, de uma religião, de uma doutrina, de uma abordagem, entrar
na linha de uma escola. São segmentaridades duras. Definem modos, formas,
127
128
Entre linhas e corpos temos/vemos imagens, povoamos e somos povoados por
signos. Imagem: do latim imago, semelhança, representação, retrato. Signo: do
latim signum, marca. Qual é a marca de uma semelhança, de uma representa-
ção, de um retrato? Como um currículo chega a operar pela marca da semelhan-
ça, da representação e do retrato? Era uma vez um lugar distante, mas muito
perto também. Neste lugar, como em outros dias, crianças sonecam. Pela força
da semelhança, uma rotina, pela força da representação, um sono, pela força do
E a sonecagem... o que há nisso que acontece e que desvia esse suposto Mesmo
de direito no currículo? O que há, nisso que ainda pulsa com, sob e sobre as
rotinas de um currículo, insistindo num rasgo de pausas e ligeirezas, às vezes
velocidade da luz, às vezes lesmatartaruga? Toda imagem é signo, todo signo
é imagem. Na seara de um outro dueto, signo é aquilo no mundo que força a
pensar, que escapa completamente ao Mesmo de direito suposto sempre lá. Não
será signo essa força do que acontece, a aventura, o perigo, a experiência? Não
será aquilo que só é posto debaixo de um tapete interpretativo do Mesmo de
direito por uma força das mais reativas?
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O que podem imagens dizer ao currículo tecido, fiel à trama, à urdidura e ao estriado?
Do que gostas?
O que queres?
O que promove?
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O que pretende?
“E se tudo fosse uma questão de imagem? Se a infância, para a qual preparamos, organizamos
e desenvolvemos o currículo, que lhe corresponde, nada mais fosse do que tão-somente
imagem?
Se esse movimento formador de imagens fosse a sua própria gênese, à qual lhe seguisse
o pensar?
para a seara de uma relação de poder que é, no mais das vezes, uma relação de
dominação e de modulação. Esse currículo expressa uma vontade de potência
negativa, um triunfo de forças reativas, pois ele se quer como manutenção e con-
servação e ele só pode conservar às custas de uma morte da variação.
Porém, quando o signo, se apresenta como algo violento, porque faz pensar, o
jogo se inverte completamente. A aposta é exatamente que o fora constitui o pe-
riculum a ser enfrentado e que ele não só não está garantido de antemão (já que
o “perigo” das relações mais representacionais, hegemônica, sempre nos ronda)
como também coloca em perigo toda uma tradição expressa, toda uma cultura
dada, o corpo não está contido no espaço, mas é o próprio espaço da diferença,
como no caso da cena apresentada no ‘fazer morada’; o caramujo como ele-
mento que põe em jogo todo um movimento de contenção da experiência e do
perigo em forma de representação, ainda que subsista como desejo pulsante em
um menino que acaba encontrando outro caramujo; ou ainda a sonecagem, que
desloca todo um tempo ritmado e previsto e atrapalha a alimentação do Tingo.
Podem esses signos, essas imagens, essas cenas se apresentarem como motores
de currículos nômades? A imagem aqui pouco ou nada representam, elas não
são mais imagens dogmáticas do pensamento. Pois, somente no exercício de
composição com as crianças que algo pode brotar, que algo pode efetivamente
ser criado. Essa é a experiência, esse é o periculum: o de um pensamento que
não se sedentariza e não supõe sua verdade, universalidade e unicidade como
Assim, a educação entra em devir, em devir-criança, pois nos tira das imagens
dogmáticas que ligam nossas práticas de poderes aos nossos modelos de infân-
cia. Nossas composições se conectam aos corpos, as linhas, as fissuras, pois os 133
deslocamentos, no corpo, nos afetos, deslocamento tão necessários e pulsantes
presentes na cena com Joaquim, ou ainda outros tempos que emergem no caso
da sonecagem e os saberes e poderes que atravessam o episódio do caramujo.
***
Um currículo em devir-criança o que pode produzir? Um invencio didática?
Indícios de uma “invencio didática” que para entrar em devir-criança é pre-
ciso saber:
m. Etc....
Desinventar objetos;
Repetir, repetir, até ficar diferente;
Partir sempre do descomeço;
Mudar a função das coisas
“Desaprender oito horas por dia”.
(BARROS, 2013, p. 299-300).
Referências
ARTAUD, Antonin. Escritos. Porto Alegre: Lp&m, 1983.
BARROS, Manoel de. Poesia Completa. São Paulo: Leya, 2010.
CASTELLO, Luis; MÁRSICO, Cláudia. Oculto nas palavras: dicionário
etimológico para ensinar e aprender. Belo Horizonte: Autêntica, 2007.
136
6.
CURRÍCULO E ESTÉTICA DA ARTE DE EDUCAR
SIGNOS
ARTÍSTICOS E
APRENDIZAGENS
INVOLUNTÁRIAS 137
Nessa direção, seria possível conjecturar, com Deleuze (2006), que as leis que
presidem às mudanças no mundo são aquelas nas quais prevalece o vazio, con-
siderado por ele como o meio portador de generalidades que, aliadas à burrice
e ao esquecimento, produziriam seres estúpidos, pessoas tolas que, em seus
gestos, palavras e sentimentos, involuntariamente expressos, manifestariam leis
e generalizações que não percebem.
Nada mais atual e oportuno para pensar sobre os tempos sombrios que estamos
Tais tempos convocam-nos, mais do que nunca, a usar a inteligência sobre as 139
1 Termo usado por Achile Mbembe (2018) para se referir às formas contemporâneas que subjugam a vida ao poder da morte. Como
infere o autor (2018, p. 71): “[...] propus a noção de necropolítica e de necropoder para dar conta das várias maneiras pelas quais,
em nosso mundo contemporâneo, as armas de fogo são dispostas com o objetivo de provocar a destruição máxima de pessoas e
criar ‘mundos de morte’, formas únicas e novas de existência social, nas quais as vastas populações são submetidas a condições
de vida que lhes conferem o estatuto de ‘mortos-vivos’-”.
2 “Vidas que são como se não tivessem existido, vidas que só sobrevivem do choque com um poder que não quis senão aniquilá-las,
ou pelo menos apagá-las, vidas que só nos retornam pelo efeito de múltiplos acasos, eis aí as infâmias das quais eu quis, aqui,
juntar alguns restos” (FOUCAULT, 2015, p. 210).
3 Contrária a essa lógica, destaca-se o movimento ativista internacional Black Lives Matter (Vidas Negras Contam), com origem na
comunidade afro-americana, que faz campanha contra a violência direcionada às pessoas negras. Acesso em: https://pt.wikipedia.
org/wiki/Black_Lives_Matter
Disponível em: https://g1.globo.com/df/distrito-federal/noticia/2019/02/14/apos-repercussao-escola-com-gestao-mili-
tar-no-df-refaz-mural-com-rosto-de-mandela.ghtml
140
Na educação, a lógica do obscurantismo dos tempos atuais faz-se valer por meio
SIGNOS ARTÍSTICOS E APRENDIZAGENS INVOLUNTÁRIAS
4 “O Programa Escola sem Partido foi [...] criado em 2004, no Brasil, e divulgado em todo o país pelo advogado Miguel Nagib [...].
Quase 60 projetos de lei foram apresentados em todo o país sob a influência do movimento. Analisando essas propostas e os
documentos disponibilizados pela campanha, o Conselho Nacional de Direitos Humanos emitiu uma resolução em que repudiou
todas as iniciativas do Escola sem Partido”. Acesso em: https://pt.wikipedia.org/wiki/Escola_sem_Partido.
Evidentemente, nenhuma micropolítica existe em estado puro; esta-
mos sempre oscilando entre várias. O que faz diferença é nos dispor-
mos a combater as tendências reativas a nós mesmos, ou seja, em
nossas ações e relações. Este é um trabalho de uma vida: um trabalho
incessante e que está no âmago da ética de uma existência.
5 “A mobilização estudantil no Brasil, em 2016, correspondeu a uma série de manifestações e ocupações de escolas secundárias
e universidades brasileiras que se intensificaram durante o segundo semestre de 2016 [...]. Os estudantes protestaram contra os
projetos de lei da ‘PEC do teto de gastos’ a PEC 241, projeto ‘Escola sem Partido’, PL 44 e da medida provisória do Novo Ensino
Médio”. Acesso em: https://pt.wikipedia.org/wiki/Mobiliza%C3%A7%C3%A3o_estudantil_no_Brasil_em_2016.
142
SIGNOS ARTÍSTICOS E APRENDIZAGENS INVOLUNTÁRIAS
7 “Abordamos uma época em que, esfumando-se os antagonismos da guerra fria, aparecem mais distintamente as ameaças princi-
pais que nossas sociedades produtivistas fazem pairar sobre a espécie humana, cuja sobrevivência nesse planeta está ameaçada,
não apenas pelas degradações ambientais mas também pela degenerescência do tecido das solidariedades sociais e dos modos
de vida psíquicos que convém literalmente reinventar. A refundação do político deverá passar pelas dimensões estéticas e analí-
ticas que estão implicadas nas três ecologias: do meio ambiente, do socius e da psique. [...] A única finalidade aceitável das ati-
vidades humanas é a promoção de uma subjetividade que enriqueça de modo contínuo sua relação com o mundo” (GUATTARI,
1992, p. 32-33).
8 Deleuze (2006) chama de signo “[...] qualquer relação com a realidade [...] seja referente a uma imagem, à natureza, à sanidade,
à doença, à subjetividade, a pensamentos, a sentimentos, à política, à sociedade, a uma folha que cai, um cheiro ou um sabor
[...] desde que permita a interpretação como uma ação de significar o signo, atribuir-lhe um sentido, isto é, seja capaz de disparar
sensações e pensamentos inusitados na natureza em questão. [...] Há uma complexidade nesse conceito [...] a ausência de uma
única definição totalizante do que seria o signo em tal filosofia. Com efeito, a noção de sino da filosofia de Deleuze é pluralista
(NEUSCHARANK; OLIVEIRA, 2017, p. 587)”.
9 Como observa Antunes (2019), a discussão que Deleuze (2006) faz sobre os signos por intermédio de Proust não será igual à que
encontramos em seus estudos sobre Nietszche, que também é diferente da ideia de signo criada com Félix Guattari nos anos 1970.
De acordo com o autor (2019, p. 6): “Entretanto, antes mesmo de ter uma primeira definição sistemática e detalhada, o que ocorre
na obra sobre Proust, há um processo de elaboração que se desdobra, paralelamente, em outros escritos publicados que antece-
dem o livro. Movimento que será observado nas resenhas produzidas pelo autor e, especialmente, em duas que podem fornecer
rastros sutis de um processo de gênese da noção de signo: ‘Ferdinand Alquié, philosophie du surréalisme (1956)’ e ‘Raymond
Roussel ou l’horreur du vide (1963)’-”. Disponível em: http://www.revistas.fflch.usp.br/manuscritica/article/view/3392
caracterizadas por nós como involuntárias, que insurgem em diferentes proces-
sos-movimentos educacionais.
Para tanto, ao mesmo tempo que pensamos com Deleuze (2006) a potência
dos signos artísticos na produção de possíveis para as vidas tomadas em suas
diferenças, também nos valemos de imagens de grafites produzidos por dife-
rentes sujeitos-coletivos em diferentes espaços-tempos educacionais, incluindo
as ocupações.
As referidas imagens não foram trazidas como exemplos ou aplicações das dis-
cussões teóricas, mas como rasgos, como atravessamentos, como cortes no de-
correr do texto, com a intenção de afirmar a arte-grafite como possibilidade de
produção de movimentos de re-existência e de criação de possíveis. Em compo-
sição com o texto, também foram trazidas imagens do movimento #ocupaesco-
la, nas quais a própria escrita foi assumida como imagem: imagem-texto-escri-
ta-fotografia.
144
TÍTULO
Não existe meio que emita e concentre tantos signos em espaços tão
reduzidos e em tão grande velocidade. Em um mesmo momento eles
se diferenciam, não somente segundo as classes, mas segundo ‘famí-
lias espirituais’ ainda mais profundas. De um momento para outro
eles evoluem, imobilizam-se ou são substituídos por outros signos.
11 Deleuze (2006), na obra sobre Proust, usa diferentes palavras para se referir aos signos: sistema, círculo, tipo, mundo, espécie...
Nesse sentido, no decorrer do texto, usamos alternadamente cada uma delas.
Como escreve Deleuze (2006), os signos mundanos surgem de modo a substituir
uma ação ou até mesmo um pensamento. Ocupam o lugar dos nossos pensa-
mentos e, assim, não remetem a nada, a não ser ao próprio imediatismo. São
emitidos no vazio, por isso se propagam com velocidade. Estão desprovidos de
sentidos, porque são portadores de muitas generalidades. O autor (2006, p. 6)
ressalta: “Por essa razão a mundanidade, julgada do ponto de vista das ações
é decepcionante e cruel e, do ponto de vista do pensamento, estúpida. Não se
Se, como infere o autor (2006), os signos mundanos se constituem como vazios
que têm por efeito substituir o pensamento e a ação, os amorosos, por sua vez,
são tidos como mentirosos, uma vez que não podem dirigir-se a nós, a não ser
escondendo e/ou camuflando o que exprimem. Assim, os signos amorosos não
invocariam uma exaltação nervosa, “[...] mas o sofrimento de um aprofunda-
mento. As mentiras do amado são hieróglifos do amor. O intérprete dos signos
amorosos é necessariamente um intérprete de mentiras. O seu destino está con-
tido no lema ‘Amar sem ser amado (p. 9)’-”.
12 Para a ampliação da discussão sobre a amizade em Deleuze, ver: CARDOSO JÚNIOR, Hélio Rebello. A amizade como paisagem
conceitual e o amigo como personagem conceitual, segundo Deleuze e Guattari. Kriterion, Belo Horizonte, n. 115, p. 33-45,
jun./2007.
Outro mundo de signos apresentado por Deleuze (2006) refere-se às impressões
ou qualidades sensíveis, isto é, os signos sensíveis, que nos proporcionariam
“[...] uma estranha alegria, ao mesmo tempo em que nos transmite uma espécie
de imperativo” (p. 10), como poeticamente descreve o autor (2006, p. 10-11):
14 “Cada sofrimento é particular na medida em que é sentido, na medida em que é provocado por determinada criatura, em determi-
nado amor. Mas, porque esses sofrimentos se reproduzem e se entrelaçam, a inteligência extrai deles alguma coisa de geral, que
também é alegria. [...] O que repetimos é, cada vez, um sofrimento particular, mas a repetição é algo alegre, o fato da repetição
constitui uma alegria generalizada. Ou melhor, os fatos são sempre tristes e particulares, mas a ideia que deles extraímos é geral e
alegre” (DELEUZE, 2006, p. 69-70).
15 “O que é uma essência, tal como revelada na obra de arte? É uma diferença, a Diferença última e absoluta. É ela que constitui o
ser, que nos faz concebê-lo. [...] Mas, o que é uma diferença última e absoluta? Não é uma diferença empírica, sempre extrínseca,
entre duas coisas ou dois objetos. “[...] ela é alguma coisa em um sujeito, como a presença de uma qualidade última no âmago
de um sujeito: diferença interna, ‘diferença qualitativa’ decorrente da maneira pela qual encaramos o mundo, diferença que, sem
a arte, seria o eterno segredo de cada um de nós (DELEUZE, 2006, p. 39).
a vida: todos os signos que encontramos na vida ainda são signos materiais e seu
sentido, estando sempre em outra coisa, não é inteiramente espiritual”.
Por essa razão uma grande música deve ser tocada muitas vezes, um
poema, aprendido de cor e recitado. A diferença e a repetição só se
opõem aparentemente e não existe um grande artista cuja obra não
nos faça dizer: ‘A mesma e no entanto outra’.
A diferença, como qualidade do mundo, só se afirma através de uma
espécie de auto-repetição que percorre os mais variados meios e reú-
ne objetos diversos; a repetição constitui os graus de uma diferença
original, como, por sua vez, a diversidade constitui os níveis de uma
repetição não menos fundamental.
Como propõe Deleuze (2006), diferença e repetição não se opõem, mas são
duas potências, duas dimensões inseparáveis e correlatas da essência. Assim, te-
ríamos que um artista não envelheceria por se repetir, uma vez que a repetição é
a grande força da diferença e vice-versa. De fato, como conclui o autor (2006), o
artista envelhece quando, “[...] pelo desgaste de seu cérebro, julga mais simples
encontrar na vida, como pronto e acabado, aquilo que ele só poderia exprimir
em sua obra, aquilo que deveria distinguir e repetir através de sua obra” (p. 47).
16 “Indivíduos ou grupos, somos feitos de linhas, e essas linhas são de muito diversa natureza. O primeiro tipo de linhas que nos cons-
titui é segmentário, de segmentaridade dura (na realidade há muitas linhas desse tipo); a família – a profissão; o trabalho – as férias;
a família – e depois a escola. [...] Numa palavra, todos os tipos de segmentos bem determinados, em todas as espécies e direções,
que nos fragmentam em todos os sentidos, pacotes de linhas segmentadas. E ao mesmo tempo temos linhas de segmentaridade
mais flexíveis, de algum modo moleculares. Não que sejam mais intimas ou pessoais, pois atravessam as sociedades. [...] Traçam
pequenas modificações, fazem desvios, esboçam quedas ou impulsos. [...] Passa-se muita coisa neste tipo de linhas, de devires,
de micro-devires, que não têm o mesmo ritmo que a nossa história. [...] Ao mesmo tempo ainda, há como que um terceiro tipo de
linha, este ainda mais estranho; como se algo nos levasse, através de nossos segmentos, mas também através de nossos limiares,
para um destino desconhecido, não previsível, não preexistente. Esta linha é simples, abstracta, e contudo a mais complicada de
todas, a mais sinuosa: é a linha de gravidade ou de celeridade, é a linha de fuga e de maior declive” (DELEUZE; PARNET, 2004,
p. 152).
Disponível em: https://novaescola.org.br/conteudo/3283/grafite-tracos-da-cidadania
154
Aprendizagens involuntárias
SIGNOS ARTÍSTICOS E APRENDIZAGENS INVOLUNTÁRIAS
Entretanto, decifrar os signos que constituem os domínios da vida e nos colocam 155
17 Aqui, de acordo com Deleuze (2006, p. 92), é preciso lembrar: “Tanto na ciência quanto na filosofia, a inteligência vem antes; mas
a especificidade dos signos é que eles recorrem à inteligência como algo que vem depois, que deve vir depois”.
Ser sensível aos signos, considerar o mundo como coisa a ser decifrada
é, sem dúvida, um dom. Mas esse dom correria o risco de permanecer
oculto em nós mesmos se não tivéssemos os encontros necessários;
e esses encontros ficariam sem efeito se não conseguíssemos vencer
certas crenças. [...] Passamos ao largo dos mais belos encontros, nos
esquivando dos imperativos que deles emanam: ao aprofundamento
dos encontros, preferimos a facilidade das recognições.
18 “O artigo de indefinido que antecede a palavra aprendizagem não marca ausência de determinação, mas a singularidade de um
encontro que não é particular nem universal. Está em jogo a intensidade de uma aprendizagem que não se produz na generalidade
e totalidade, mas numa singularidade no mais elevado grau, uma potência intensiva, uma força viva” (NEUSCHARANK; OLIVEI-
RA, 2017, p. 585).
Durante o texto, fizemos alguns grifos19 tentando deslocar sentidos em termos
das aprendizagens que acontecem em meio aos sistemas de signos, como aque-
les trazidos por Deleuze (2006). Trata-se de um exercício de problematização
em relação aos sentidos afetos às aprendizagens que acontecem entre os signos
mundanos, isto é, em seus planos de imanência e de intensificação da vida,
como defende Deleuze (2001, p. 98):
Carvalho (2008)20, com base em Deleuze (2006), diz que a imagem que se tor-
nou clássica para o pensamento traz uma tirania implícita pela pretensão de ser
a única possível. De modo a questionar essa tirania, a autora traz, ainda com
Deleuze (2006), a ideia de involuntário, quando o autor advoga que a nova ima-
gem do pensamento se constitui como uma aventura do involuntário, uma força
de atuação no pensamento que o força a pensar e ultrapassa as faculdades. Nas
palavras da autora (2008, p. 4):
20 Disponível
em: https://www.google.com/search?q=Imagens+de+pensamento+em+gilles+deleuze+Margareth+carvalho&sour-
ce=lmns&bih=589&biw=1366&hl=pt-BR&sa=X&ved=2ahUKEwjSmbeJ-JPrAhUAM7kGHeP5AV4Q_AUoAHoECAEQAA
meio aos fluxos de composições dos signos mundanos, amorosos e sensíveis e
nos levam, com uma dose de sorte-acaso, em direção aos signos artísticos.
161
Ao considerarmos o que nos força a pensar e, ainda, a condição de indetermi-
nação e permanente abertura ao acaso das aprendizagens involuntárias, enten-
demos que, assim como acontece com o ato de pensar, as aprendizagens volun-
tárias não necessitam de um método prévio, nem de uma boa vontade, como
infere Deleuze (2006), para acontecer, mas da força de um signo que violente
nosso pensamento. Nas palavras do autor (2006, p. 98): “[...] Em lugar do pensa-
mento voluntário, tudo o que força a pensar, tudo que é forçado a pensar, todo
o pensamento involuntário, que só pode pensar a essência”.
Com essas questões, Foucault (1995) alerta-nos sobre o que cada um de nós está
162 fazendo da própria existência. Em que estamos nos transformando? Para o filóso-
fo (1995), estamos tornando-nos alguma coisa que não sabemos ao certo o que
SIGNOS ARTÍSTICOS E APRENDIZAGENS INVOLUNTÁRIAS
De fato, para uma nova existência em que a ascese se institui como força para
que cada um de nós constitua a própria ética, tendo a estética da existência
de uma vida bonita como referência, não interessariam as ações pautadas pelo
Mas, como voltar a acreditar no mundo não apenas como uma atitude indi-
vidual, uma ação protagonizada por um sujeito autocentrado, mas como um
efeito de forças que se insinuam coletivamente, como aconteceu no movimento
#ocupaescola? Sem negarmos as possibilidades de ações particulares de enga-
jamento político-social, interessa-nos pensar na dimensão das multiplicidades,
das linhas de forças e dos devires.
164
Nesse sentido, encontramos, na teorização de Deleuze (2008) sobre o devir,
SIGNOS ARTÍSTICOS E APRENDIZAGENS INVOLUNTÁRIAS
uma ideia do autor que nos pareceu interessante, a saber: a aposta no que De-
leuze chama de devir todo mundo, isto é, a possibilidade do exercício de uma
involução criadora, de modo a fazer mundo, fazer um mundo. Nas palavras do
autor (2008, p. 73):
Talvez a única coisa que nos reste, em nossas singularidades, é acreditar, como
propõe Deleuze (2001, p. 99), não na existência transcendental de um mundo
ideal, mas “[...] acreditar em suas possibilidades em movimentos e em intensi-
dades, para fazer nascer ainda novos modos de existência, mais próximos dos
animais e dos rochedos”.
Pode ser que acreditar neste mundo, acreditar nesta vida, tendo em vista todas as
crueldades e absurdos presenciados cotidianamente, tenha se tornado algo mui-
to difícil e, para alguns, até mesmo impossível. Entretanto, é preciso não desistir
nem sucumbir e, cada vez mais, acreditar na força das redes de laços afetivos
e sociais, como aquelas que os estudantes produziram com as ocupações das
escolas. É preciso poder acreditar nas possibilidades de outro mundo, como nos
alerta Rago (2009, p. 258):
Talvez, a única coisa que nos reste, em nossas singularidades, é acreditar no pos-
sível como categoria estética: Possível, por favor, senão sufoco! Talvez a única 167
coisa que nos reste em nossas singularidades é seguir em frente de braços dados
ou não, mas sempre caminhando e cantando, pois, logo ali na esquina do tem-
po, quem sabe a arte nos assalte de surpresa e nos faça continuar acreditando
que nossa vida sempre vale a pena. Não a vida como algo transcendental, ideali-
zado e supérfluo, mas uma vida, cada vida. Para isso, como nos ensina o poeta,23
precisamos, ainda, fazer da flor nosso mais forte refrão...
23 VANDRÉ, Geraldo. Pra não dizer que não falei das flores. Álbum Geraldo Vandré no Chile. Som Maior, 1968.
Referências
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Porto Alegre, UFRGS, v. 27, n. 2, p. 10-18, jul./dez. 2002.
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Rio de Janeiro: Ed. 34, 1996. v. 1.
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168 neiro: Forense Universitária, 1995.
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SIGNOS ARTÍSTICOS E APRENDIZAGENS INVOLUNTÁRIAS
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ROLNIK, Suely. A hora da micropolítica. São Paulo: N-1 edições, 2016.
CURRÍCULO E ESTÉTICA DA ARTE DE EDUCAR
O CINEMA
ABRINDO
ALAS PARA
OS DEVIRES
PASSAREM 169
Ana Cláudia Santiago Zouain
Nathan Moretto Guzzo Fernandes
Sandra Kretli da Silva
7.
Ana Cláudia Santiago Zouain (UFES)
Nathan Moretto Guzzo Fernandes (UFES)
Sandra Kretli da Silva (UFES)
Ô abre alas
que eu quero passar
Ô abre alas
que eu quero passar
Eu sou da lira
Não posso negar
Ô abre alas
Que eu quero passar
(Chiquinha Gonzaga)
170
O CINEMA ABRINDO ALAS PARA OS DEVIRES PASSAREM
A musicista Chiquinha Gonzaga1 fez ecoar esse canto por muitos e muitos anos
em diversos carnavais abrindo alas para movimentos de alegria ao povo brasi-
leiro. Por entre corredores, movimentos intensivos, corpos, imagens, crianças,
jovens, professores e professoras, rotina, invenção, adentramos as escolas com a
força do abre alas, buscando atravessar nos fluxos dos devires, dos agenciamen-
tos e dos encontros com as imagens-cinema.
1 Chiquinha Gonzaga foi a promotora do encontro do carnaval com a música para se tornar o grande espetáculo da nacionalidade
brasileira. Foi com a música Ó abre alas que o carnaval se consagra como festa popular.
rimentamos imagens que duraram e perduraram nos sentidos, intensificando-se
em imagens-afecção (DELEUZE, 2007) que nos interessam nesse movimento de
escrita, pois afetaram nossos corpos-pensamentos.
Com Deleuze (2007, p. 170) problematizamos: o que resta desses encontros com
as imagens-cinema em processos de formação inventiva em redes de conversa-
ções? “[...] Restam os corpos, que são forças, nada mais que forças. Mas a força
já não se reporta a um centro, tampouco enfrenta um meio ou obstáculos. Ela
Para Bergson (2006), o universo material é composto por imagens. E, se tudo são
imagens, logo, nosso corpo-pensamento é constituído por elas. Somos atraves-
sados por imagens-forças e forças-imagens. Imagens de todos os tipos. Imagens
reais e imagens virtuais. Imagens-movimento e imagens-tempo. Imagens orgâni-
cas e imagens cristais, que configuram o nosso corpo em devir.
Deleuze (2007) nos diz que na vida tudo é questão de forças. Quando adentra-
mos os cotidianos escolares e nos envolvemos em meio às redes de conversações
171
(CARVALHO, 2009) com os praticantes daqueles espaços-tempos, mobilizamos
forças e somos mobilizados por forças que passam a habitar nossos corpos. For-
ças-imagens que agem e reagem umas sobre as outras.
Nesse sentido, nossos corpos são forças que se entrecruzam com outras forças.
E é em busca desse desejo de nos afetar e sermos afetados e, assim, expandir a
potência de ação coletiva, que o presente texto-imagem se compõe com as rela-
ções de forças produzidas com crianças, jovens e professoras no encontro com
diferentes imagens cinematográficas, na tentativa de disparar afetos e afecções
que impulsionem a criação de outras/novas imagens de escola possíveis.
Dialoga com Bergson (1979, 2006), Deleuze (2007, 2010), e Deleuze e Guattari
(1997, 2000), como intercessores teóricos principais, a partir da discussão em
torno dos conceitos de imagem-cinema, movimentos aberrantes e pensamento
nômade. Toma como aporte teórico-metodológico as redes de conversações en-
172 tre praticantes dos cotidianos escolares, apostando na capacidade de indivíduos
e grupos colocarem-se em relação para produzirem e trocarem conhecimentos,
O CINEMA ABRINDO ALAS PARA OS DEVIRES PASSAREM
Esse ar que nos sufoca tem se espalhado densamente com a força de uma ima-
gem dogmática do pensamento que emoldura a educação brasileira. Essa ima-
gem, além de ditar os interesses curriculares dominantes, legitima uma maneira
de aprender em detrimento das demais, distanciando assim, de novos processos
de subjetivação e de outras possibilidades de criação.
Buscamos, assim, por meio do encontro das crianças e das professoras com os
signos artísticos do cinema, driblar a imagem dominante fixada tanto nos pro-
cessos curriculares instituídos quanto nos processos aprendentes, para pensar
a complexidade de acontecimentos inventivos e de vida que vibram na escola
movidos pelos afectos, compreendendo que há um “corpo-vibrátil” ou “corpo-
-pulsional” que se constitui e se orienta por uma “prolífera vida, vida singular,
uma vida” (ROLNIK, 2018, p. 65).
“Eba! Hoje tem cinema”, vibrava uma criança enquanto nos preparávamos para
ir à sala de vídeo. Já estávamos inseridos nas redes de conversações antes mesmo
de o filme começar. Corpos atentos, curiosos, inquietos, entravam em composi-
ção com as redes afetivas que iam se tecendo junto aos movimentos aberrantes
que abrem alas para os devires passarem.
Nesse sentido, a professora fabula uma nova imagem para o Dia das Mães na
escola: “[...] Eu estou super incomodada com esse tal de Dia das Mães”, de-
sabafa uma professora em uma das redes de conversas movida pelas afecções
das imagens-cinema: “[...] Já problematizamos esse currículo movido por datas
comemorativas. Desculpem-me, mas eu me recuso a parar o que estou fazendo
com as crianças, para produzir cartão de Dia das Mães!”.
Ora, a infância e suas imagens, juntamente com aquilo que nela e por
ela deriva em múltiplas formas, acenam-nos para uma efetiva políti-
ca inventiva que, escapando das normativas e das disposições gerais,
criam campos de experiências que vazam por micro-poros; apresen-
tam virtualidades estéticas impensáveis.
177
Fonte: https://www.youtube.com/watch?v=j_KT_c22fiU
Dessa narrativa que emerge a partir das imagens de uma animação nasce uma
composição que se constitui “[...] nos fluxos intensivos engendrados nas linhas
de vida, que produzem subjetivações desejantes, singularidades nômades: má-
quinas de fazer delírio com a intensidade da vida” (CARVALHO; SILVA; DELBO-
NI, 2016, p. 218). Assim emerge delírios e com eles novas problematizações:
Como estão os nossos corpos? Que efeitos3 as imagens provocam no corpo-es-
cola? O que faz expandir a força vibrátil inventiva da escola?
Como afirma Carvalho (2012, p. 8), “[...] nas crianças, pode-se melhor observar
o devir manifestando-se num único e mesmo plano da vida”. As crianças pen-
sam em devir. Devir-outro. Devir-criança. Habitam um tempo aiônico, tempo
intensivo, inventivo. Tempo-duração. Deslocam pensamentos. Função de fabu-
lação. Circuito de imagem real-imaginário. Imagens atuais e virtuais que se mis-
turam e se confundem.
Como a imagem a seguir que movido pelas afecções das imagens-cinema, uma
criança desobedece à regra da professora de assistir ao filme sentado, ela se le-
vanta, ela precisa falar sobre o que as imagens deram a pensar. As que seguem a
norma pedem silêncio: “[...] quero ouvir!”, “Shiu!”. A professora coloca a crian-
ça de volta ao seu lugar. A criança levanta-se novamente.
IMAGEM 2 _ Um menino que não para...
A potência dos signos artísticos nos move em meio às afecções que tocam nos-
sos corpos e nos impulsionam a um agir impensado pela racionalidade modeli-
zante, mas que passa a emergir em nossos corpos-pensamentos com as experi-
mentações afetivas vivenciadas.
Nesse sentido, as crianças e as professoras, movidas pelo devir-criança e im-
pulsionadas com as imagens-cinema, insurgem, deslocam e fabulam imagens
escola para além de uma imagem petrificada que tenta aprisionar os corpos,
vertendo-as em imagens impensadas, aberrantes e falsificantes, da ordem do
acontecimento, compondo resistências que nunca deixam o corpo parar, mas o
movimenta em constante devir.
Como dito, o que nos interessa, são os movimentos aberrantes, no sentido de-
leuziano do termo, daquilo que insurge dentro de um movimento e extrai, dele,
novos fluxos e forças com intensidades para desalinhar o que está estabelecido,
para perfurar o que se repete, possibilitando outras relações, dando abertura
para novas composições.
Nesse sentido, segue nossa opção de acompanhar a potência de criação que 181
habita os espaçostempos de um cineclube no cotidiano escolar, que desde 2016
vêm utilizando as imagens-cinema como disparadoras de conversas e amplifi-
cadoras dos processos de aprenderensinar em uma escola pública de Vitória-ES.
Neste ano, de 2019, o projeto tem trabalhado com curtas-metragens produzi-
dos no estado do Espírito Santo, por realizadores capixabas. Uma exibição que
acompanhamos teve como temática o meio ambiente. Assim, problematizamos:
O que pode o cinema na escola? Que redes são produzidas quando estamos
organizados em cineclubes? Que conversas um filme pode disparar? Qual o
potencial do cinema nos processos de aprenderensinar?
Deleuze (2007) faz um grande esforço para nos mostrar que há na imagem-mo-
vimento um outro tipo de movimento, que foge à centragem, à coordenação-
-seleção, à construção vertical, que é a aberração de movimento ou movimento
aberrante. “Mas, longe de o próprio tempo ficar abalado, ele encontra nisso a
ocasião de surgir diretamente, e de livrar-se da subordinação ao movimento,
de reverter essa subordinação” (DELEUZE, 2007, p. 50), de apresentar o tempo
como abertura infinita.
Nessa linha, afirmamos que o cineclube4 que acompanhamos possui uma forma
aberrante de exibição, pois não se limita a exibir filmes corriqueiros, hollywoo-
dianos, clichês, para contemplação. Ao contrário se associam a filmes nacionais,
locais, que trazem outras imagens, sons, paisagens e se preocupam em buscar
filmes que problematizem o contexto atual. Ao darem abertura para conversas
após as exibições engendram possibilidades de ampliar os efeitos provocados
pelas imagens cinematográficas com as redes de conversações e seus atravessa-
mentos. A partir de uma intencionalidade ético-político e estética, com a “forma-
-aberrante de exibição” [...] “criam-se exibições ativas que se prolongam pelas
intensidades dos encontros-imagens-conversas” (FERNANDES, 2019, p. 102).
182 O curta-metragem Rio das lágrimas secas5, dirigido por Saskia Sá (24’, 2018), é
um curta-documentário. Nele, a cineasta apresenta um recorte em três atos, que,
O CINEMA ABRINDO ALAS PARA OS DEVIRES PASSAREM
4 O cineclube que acompanhamos chama-se Cineclube Valente, é um projeto desenvolvido na EEEM Des. Carlos Xavier Paes Barre-
to, em Vitória-ES, composto por estudantes de 1°, 2° e 3° ano do ensino médio e coordenado por uma professora. Eles organizam
as mostras e de acordo com a temática, escolhem os curtas-metragens que serão exibidos, bem como o roteiro para as conversas.
Todo o desenvolvimento é feito de maneira coletiva pelos integrantes e as exibições são para alunos da mesma escola.
5 O filme ganhou o prêmio principal da 5ª Mostra Velho Chico de Cinema Ambiental. Venceu também a categoria Melhor Filme nas
mostras Foco Capixaba e Cinema Ambiental, do 25° Festival de Cinema de Vitória.
IMAGEM 3
Cena 01: Rio das lágrimas secas, dirigido por SaskiaSá.
O objetivo dos cineclubistas com a exibição, que teve como tema o meio am-
biente, foi movimentar o pensamento em relação às questões relacionadas à po-
luição, ao desperdício de água, à produção de lixo, ao desperdício de alimento,
ao excesso de consumo. Após a exibição, encaminhávamos para as conversas e
o roteiro preparado pelos cineclubistas traziam algumas perguntas para intensi-
ficar o debate.
Logo de início, estudantes associaram as imagens do filme Rio das lágrimas se-
cas à poluição da praia de Camburi, em Vitória: “[...] Tipo quando você vai na
praia de Camburi, você olha e você vê o mar, aí quando você olha para a sua
esquerda você vê o fogo subindo, da Vale, poluindo o ar”. Tem o pó de minério
também, que aqui cai na praia, no filme, no rio”.
Algumas questões foram apresentadas problematizando as nossas relações com
o mundo “[...] que práticas nós temos que levam ao desperdício de água?”; “o
que pode ser feito a partir de pequenas atitudes, para conter a poluição no nosso
bairro, na nossa cidade, da nossa escola?” Uma rede de conversas possibilitou
os estudantes e professores a confrontarem as relações que eles desenvolvem na
escola, no trabalho e nos vários espaçostempos que eles transitam com práticas
que preservam ou não o meio ambiente e, ainda, que expandem a potência do
corpo-coletivo.
— Justamente, assim como ela falou, muitas vezes, que tem a sujeira
é porque a gente vê o lixo no chão e a gente não pega porque não foi
a gente que jogou. Assim, a gente acaba sendo egoísta com a nossa
escola, com nossa rua. Aí, quando chove e tem enchente, o bueiro
enche, por causa desses motivos.
Mais adiante, a partir de uma pergunta acerca da importância dos nossos rios
para nossa vida de forma individual e coletiva, os estudantes revelam conheci-
mentos que são atravessados pelas experiências de vida, pelas vivências nos es-
paçostempos que eles residem, mostrando que os processos de aprenderensinar
extrapolam a escola por que se constituem em redes de afectos e de afecções,
Entendendo que uma proposta, uma atividade ou a imagem que se produz delas,
antes que prisioneiras das imposições podem ser sem fronteiras, pode circular
por caminhos indefinidos, tendo capacidade de afetar e ser afetada, criando ou-
tras imagens, outros movimentos de pensamentos.
Para que isso ocorra, é fundamental que haja o fortalecimento dos grupos, ban-
dos escolares que afirmam outros modos de aprenderensinar e outros currículos
no cotidiano escolar, para aumentar assim a “potência da ação coletiva”, como
afirma Carvalho (2011), pois essa “potência” depende de modo fundamental
da capacidade dos grupos e indivíduos estabelecerem e criarem relações “para
produzirem e trocarem conhecimentos, resultando, então, no agenciamento de
formas/forças comunitárias, com vistas a melhorar os processos de aprendiza-
gem e criação nas coletividades” (CARVALHO, 2011, p. 75).
186 É na coletividade que se inscreve esse currículo, se desdobrando a partir dos
encontros no cineclube, que se compõe na coletividade como corpo político.
O CINEMA ABRINDO ALAS PARA OS DEVIRES PASSAREM
“Como a aula passou rápido”: essa afirmação de uma professora nos sugere que
há um tempo de intensidades que não pode ser apenas o tempo cronológico,
linear ou sequencial. O que temos experimentado muitas vezes, no encontro
com as imagens-cinema no cineclube, é abertura para tempos outros. É um tem-
po de experiências, acontecimental, que dá sovas nas formas rígidas de certas
hierarquizações e controle dos tempos escolares. Um tempo preenchido por
reticencias, que mesmo sendo curto – feito os curtas-metragens –, dura pelas
intensidades que produz. 187
Um tempo duração que esfolia nossa pele deixando o rastro dos seus efeitos no
corpo, pois como assevera Bergson (1979, p. 49), “a duração real é aquela que
morde as coisas e nelas deixa a marca do seu dente”.
Movimentos in/conclusivos
Não acreditamos ser possível concluir uma escrita que se pretende pensar e
afirmar a vida em devir-criança. Devir que é experimentador, potência criadora,
que se constitui por encontros afetivos e intensivos. Por isso, continuamos a nos
perguntar: Que afectos foram suscitados nos encontros das crianças, jovens e
professores com as imagens cinematográficas em redes de conversações nas es-
colas públicas municipais e estaduais do Espírito Santo? Acreditamos que muitos
foram os afectos, pois apostamos que o cinema abre alas para os devires. Devi-
res-crianças, devires revolucionários, devires...
A nossa cartografia buscou mapear afectos alegres que expandem a força co-
letiva. Claro que também nos deparamos com afectos tristes que reduzem a
potência de agir de crianças, jovens e professoras, porém, logo que os afectos
tristes emergiam, um fluxo de afirmação da vida também surgia, e assim, nos
agarrávamos a essas forças vibrantes, revigorantes de vida.
como bem explica Deleuze (2010, p. 55), ao falar sobre as perguntas de Godart
em programas televisivos: “[...] que, é próprio do devir-presente, é a gagueira nas
ideias; isso só pode se exprimir na forma de questões, que de preferência fazem
calar as respostas. Ou mostrar algo simples, que quebra todas as demonstrações”.
Nesse caso, poderíamos afirmar, com Silva e Delboni (2017, p. 63), sobre a po-
tência da imagem-cinema nos encontros que estabelecemos com crianças, estu-
dantes e professores para fazer a língua gaguejar em meio às redes de conversa-
ções. É necessário intensificar a “[...] gagueira da língua, gerando outros/novos
modos de pensar, fazer e de viver os cotidianos das escolas, abrindo frestas para
línguas menores, que possibilitem a problematização do território-escola”.
Deleuze aponta que a relação do homem com o mundo só pode ser restabele-
cida pela fé na imanência. A relação do homem e do mundo é, portanto, o in-
-possível, o in-pensável que precisa ser pensado e construído com os possíveis.
Machado (2010, p. 288) alerta-nos: “[...] quanto menos o mundo é humano,
mais cabe ao artista acreditar e fazer acreditar numa relação do homem com o 189
mundo”.
192
8.
ENCENAÇÕES
Entrée3
Dizem os artistas que cada encenação é sempre única. Mesmo numa temporada
longa, cada momento de entrada no palco tem sua própria dinâmica; luz, som,
cores, movimentos que se repetem, mas irrompem novas possibilidades, sensa-
ções outras que o encontro corpo-som-movimento provoca, sempre outras. Os
tradicionais repertórios dos espetáculos de ballet abrem espaço para variações
que permitem, ainda que sob a marcação ritmada, tradição, música e enredo,
corpos fluidos e movimentos tradutórios, numa tensão permanente do paradoxo
da transmissão/tradução, da encenação que remete a uma origem e que a rasura
194
em suas variações. Mas tudo é movimento... E as performances curriculares, a
que movimentos remetem?
ENCENAÇÕES CURRICULARES: INSPIRAÇÕES NAS OBRAS DE PINA BAUSCH
1 Doutora em Educação pelo Proped/UERJ. Coordenadora do Programa Institucional de Bolsas de Iniciação Científica/ DCARH/
Pró-reitoria de Pós-Graduação e Pesquisa da Universidade do Estado do Rio de Janeiro.
3 Os subtítulos, que marcam as seções no texto, nominamos como as partes que compõem um grand pas de deux nos grandes es-
petáculos de ballet. Um grand pas de deux normalmente tem cinco partes, que consiste em uma entrada (introdução), um adagio,
duas variações (um solo para cada bailarino), e uma coda (conclusão). http://www.mundobailarinistico.com.br/2017/02/a-estrutu-
ra-de-um-grand-pas-de-deux.html. Acesso em: ago. 2020.
4 Nas investigações encaminhadas na tese de Carvalho (2020), a arte da bailarina Pina Bausch se entrecruzou na discussão sobre as
novas formas de participação do terceiro setor nas políticas públicas educacionais. O foco da investigação era um projeto chama-
do Trilhas que vem sendo desenvolvido pelo Instituto Natura no Brasil, “uma associação sem fins lucrativos ou econômicos, com
prazo de duração indeterminado” (INSTITUTO NATURA, 2018), vinculada diretamente à empresa brasileira Natura Cosméticos
S.A. O Projeto Trilhas, considerado uma importante política pública pelo Ministério da Educação, visa à formação continuada
de professores alfabetizadores e uma das vertentes de ação do Projeto é o estímulo para que os professores publiquem vídeos no
YouTube utilizando os materiais do Trilhas em sala de aula. Nos imbricamentos desses vídeos, a pesquisa foi se deslocando entre
performances que suscitaram também questionamentos sobre os sentidos de realidade e de ficção. Nesta trajetória, em diálogo
com autores que discutem a perspectiva da desconstrução proposta por Jacques Derrida, a obra bauschiana se destacou como
uma proposta de contestação às formas prontas e às tentativas de reprodução das práticas de sala de aula, estimuladas pelo Projeto
Trilhas.
convida a enxergar a arte não somente como possibilidades para o processo de
ensino-aprendizagem em sala de aula, seja na educação básica ou na formação
de professores, mas também contribui para intensificar nossa leitura do campo
político-curricular sob a perspectiva da experiência inesperada, deslocando nos-
so olhar para a o pulsar da vida que faz parte da prática docente. Assim, neste
texto, propomos a discussão de uma concepção de currículo a partir de uma
inspiração bauschiana, na potência das provocações que ela nos incita, espe-
196
ENCENAÇÕES CURRICULARES: INSPIRAÇÕES NAS OBRAS DE PINA BAUSCH
Fonte: PORTAL PRESS. Oficina na Casa de Cultura Mario Quintana homenageia Pina Bausch. 16 jul. 2019. Portal
Press. Disponível em: http://revistapress.com.br/jornal-da-capital/oficina-na-casa-de-cultura-mario- quintana-homena-
geia-pina-bausch/. Acesso em: 3 fev. 2020.
O processo de criação de seus espetáculos envolve a experimentação do cor-
po, sem a preocupação com a prescrição dos movimentos. Esse era o grande
diferencial de suas peças que variavam – trechos eram cortados, outros eram
incluídos – a cada apresentação. Entre os temas recorrentes em suas obras, des-
tacam-se as interações entre masculino e feminino, inspirando, inclusive, Pedro
Almodóvar5 na criação do filme Fale com ela, em que Pina participa, apresen-
tando uma sequência de dança. Pina Bausch era, então, conhecida pelas danças
Por exemplo, para a obra intitulada “Mazurca Fogo”6, Pina faz uma residência
artística de três semanas em Lisboa, Portugal. Parte do processo de experimenta-
ção é mostrado num vídeo, postado no YouTube, cujo título é “Pina Bausch Lis-
sabon Wuppertal”. Logo no início, o narrador comenta: “[...] chegam de olhos
e ouvidos bem abertos, de veias bem temperadas, atentíssimos aos sinais, às
cintilações, aos sons, aos perfumes e às emoções que a cidade lhes for sugerindo
[...]” (RODRIGUES, 2014).
5 Pedro Almodóvar Caballero é ator, produtor de cinema e roteirista, sendo um dos mais premiados realizadores da história do
cinema. Seus filmes trazem a temática da sexualidade abordada de maneira bastante aberta (PEDRO..., 2020).
6 Peça criada em 1998, “Mazurca Fogo” apresenta a visão de Pina Bausch e seus bailarinos sobre Lisboa. Fruto de pesquisas e um
olhar sensível sobre a vida e os costumes portugueses, apresenta no palco uma multiculturalidade de sentimentos: engano, alegria,
pobreza, tradição, prostituição, saudade, inocência, tempo, riso e choro. Como característica de todos os seus trabalhos, Bausch
usa e abusa dos recursos de cenário, figurino, voz, entre outros, proporcionando uma atmosfera teatral e mágica (TOSTA, 2013).
Ou seja, Pina não chega a Lisboa com um espetáculo pronto, mas permite que
Lisboa seja o outro com quem dança, que provoca, numa relação alteritária que
desloca sentidos, numa negociação que põe em questão o próprio ser/não ser
da encenação. É dança? É teatro? Para além, de polarizações ou superposições,
está o investimento no ato criativo performado. Bausch (apud CALDEIRA, 2010,
p. 119) diz sobre seu trabalho: “Eu não estou interessada tanto em como as pes-
soas se movem como ‘no que’ as move”. E continua: “Você pode ver isto assim
ou assim. Depende do modo que você assiste. [...] Você sempre pode assistir de
outro modo” (Ibdem)
O filósofo português José Gil (2004, p. 178-179 apud ALMEIDA, 2017, p. 120),
observa que, em suas criações, Pina Bausch não se limita aos gestos habituais
de cada situação:
A coreo-grafia de Pina Bausch pode ser lida como prática de tradução (KLEIN,
ENCENAÇÕES CURRICULARES: INSPIRAÇÕES NAS OBRAS DE PINA BAUSCH
Assim, ao trazer uma outra perspectiva dos atos tradicionais do ballet através
da dança-teatro, Pina Bausch suscita que a tradição dos atos de variação dos
grandes espetáculos de ballet podem se performar não somente com o foco em
uma única linguagem que visa às demonstrações físicas dos bailarinos, mas que
o ballet pode ser lido nas múltiplas possibilidades que quebram uma suposta 201
linearidade atribuída à tradição, trazendo o performático como potência política
de contestação às representações aparentemente fixas das diversas questões que
lidamos em nossas vidas.
Não se tratando de uma lógica opositiva binária, não se apaga a história, a tra-
dição, mas se trata de pensar a “inscrição do mesmo que não é idêntico, mas
como différance” (DERRIDA, 2004, p. 34). Mobilizar tais sentidos para pensar o
currículo nos leva à superficialidade dos questionamentos que parecem sugerir
que a afirmação do currículo como acontecimento, experiência que se desdobra
para além do cálculo maquínico, mas que demanda decisão – responsável em
sua dimensão de alteridade –implica no esvaziamento da própria tarefa edu-
cativa, o que inferimos a tomada do ensino pela educação, num deslocamen-
to de sentidos que imputa o reconhecimento como tarefa da escola, tal como
problematiza Macedo (2017). Uma produção de mesmidade e como a autora,
as reflexões que trazemos propõem discutir o inacabamento do currículo, “um
2a VARIAÇÃO:
Kontakthof
Das experimentações de Pina Bausch, destacamos a obra Kontakthof, traduzido
como pátio, lugar de encontro, encenada pela primeira vez em 1978. Em 2000,
foi remontada com “bailarinos” a partir dos 60 anos e sem experiência profis- 203
sional em dança e em 2008 foi remontada com a participação de adolescentes
a partir de 14 anos, alunos de escolas públicas e também sem experiência em
dança. Cabe chamar atenção para o título dado: “segundo Climenhaga (2009,
p. 73), o termo traduzido do alemão pode tanto significar lugar de encontro, nor-
malmente se referindo a pátios de escola ou de prisões, como local em que as
prostitutas encontram seus clientes” (apud MEDEIROS; PEREIRA, 2017, p. 145)
e, como as autoras destacam, um traço de uma lógica do paradoxo que impreg-
na o trabalho de Pina Bausch. A obra trata das relações humanas, com material
trazido pelos bailarinos e a partir da utilização de uma gestural cotidiano.
corpo de baile não apresenta uma repetição da obra de 1978, mas irrompe signi-
ficações contingenciais; qualquer tentativa de previsibilidade transita na ordem
do im-possível, na medida em que, ao ser performado, vivido, abrem-se outras
possibilidades de sentidos, sobrelevando a incomensurabilidade da linguagem,
produzida entre as tentativas de rotina e aquilo que o outro nos apresenta num
processo que é negociado constantemente. Assim, também os movimentos cur-
riculares encenados em cada escola, rede de ensino.
Bhabha (2001) observa que as relações com o outro são marcadas por muitas es-
critas brancas no canto negro da floresta que mobilizam espaços enunciatórios
decorrentes das negociações e reinscrevem constantemente histórias descontí-
nuas. Signos duplicados que mobilizam sentidos num processo em que a auto-
ridade docente constitui-se como algo fronteiriço, intersticial, deslocada entre a
moldura de referência e o estado de espírito, movimentando-se em função do
rompimento contínuo dos significados sobre o processo de ensino-aprendiza-
gem, bem como sobre o papel do professor. Em nossas concepções, as relações
envolvem resistência, não sob o prisma da negação, mas como duplo, transitan-
do por entre ambivalências produzidas na tentativa de fixação de sentidos e se
deslocam na tensão entre o pedagógico e o performático que remete ao híbrido
como presença imprevisível e inadiável.
8 Trata-se de texto coletivo, produzido pela coordenadora do GRPESq Currículo, formação e educação em direitos humanos – GC-
DEH, Rita de Cássia Prazeres Frangella em co-autoria com 6 outros membros do grupo de pesquisa, todas doutoras em educação
formadas no/com o grupo. Apresentado na Sessão Trabalho Encomendado do GT Currículo na 39a. Reunião Anual da ANPEd em
Niterói/RJ, out 2019.
Nos termos do autor, um entre-lugar mediatório que não está nem dentro nem
fora da arte, mas nas bordas da inscrição/observação, como acontecimento e
significação. Daí nossa negociação com a obra bauschiana traz inspirações para
pensar o processo político-curricular mais amplo num jogo de disputas por sig-
nificação que difere o tempo todo. A obra de Pina Bausch traz uma questão
importante que nos ajuda a refletir sobre a prevalência de discursos que tentam
legitimar uma agenda de políticas com modelos universais para currículo, esco-
Corpos desnudos nos mostram que há sempre outras possibilidades, que há sem-
pre um outro a ser considerado e que a perfeição é uma ilusão, mas é ela que
nos movimenta, que nos alimenta e também nos contribui para mobilizar o lugar
mediatório que ocupamos e dele não escapamos. Um lugar que está na esfera da
negociação de diferentes linguagens, ações, imersa em processos de tradução.
9 Remetemos ao contexto de recente promulgação pelo Conselho Nacional de Educação/ CNE da Base Nacional Comum para a
formação de Professores da Educação Básica/BNC-Formação (2019) e Diretrizes Curriculares Nacionais e Base Nacional Comum
para a formação continuada de professores da Educação básica/ BNCC_Formação Continuada (2020)
Tal qual Pina observa, “Na nossa fragilidade está a nossa força” e é essa fragili-
dade e abertura à ela que nos move. Pina nos estimula a pensar nos horizontes
frágeis da sala de aula e na importância de se pensar a educação como um pro-
cesso de subjetivação que só pode ocorrer na relação com a alteridade (MILLER;
MACEDO, 2018).
208
ENCENAÇÕES CURRICULARES: INSPIRAÇÕES NAS OBRAS DE PINA BAUSCH
Referências
ALMEIDA, M. F. de. A desconstrução derridiana e o processo criativo de Pina
Bausch. ETD – Educação Temática Digital, v. 20, n. 1, p. 118, 15 jan.
2018. DOI: 10.20396/etd.v20i1.8647809. Disponível em: https://periodi-
cos.sbu.unicamp.br/ojs/index.php/etd/article/view/8647809. Acesso em: 11
dez. 2019.
BHABHA, Homi. O local da Cultura. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2001.
9.
Graziele Corrêa Amorim1
Eduardo Simonini2
1 Pedagoga, mestre em Educação, professora dos Anos Iniciais do Ensino Fundamental na rede municipal de ensino de São Geral-
do/MG.
2 Psicólogo, mestre em Psicologia Social, doutor em Educação, pós-doutor em Psicologia, professor Associado no departamento de
Educação e professor permanente no Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal de Viçosa/MG.
que tal escolha não se configura em uma prática neutra e desencarnada de um
mundo. Os nomes que nos individualizam são efeitos de um novelo de afetos,
de tramas e de enredos a se encarnarem não apenas nos documentos de um car-
tório, mas nas significações com as quais montamos nossa imagem identitária.
Dessa maneira, um nome não é apenas uma propriedade particular, mas uma
marca permeada de significações afetivas que também trazem consigo expe-
riências e sentidos socialmente construídos nas comunidades. Podemos, assim,
Portanto, assumimos neste trabalho que o mundo não é um dado pronto, mas
fabricado em narrativas que constantemente podem arquitetar e produzir efeitos
de verdades, de afetos e de memórias. Narradores de mundos, somos efeitos de
histórias, mas também “(co)inventores” das nossas existências: constituímo-nos
através dos significados que atribuímos a nós mesmos em meio às narrativas nas
quais nos enovelamos.
Cada história narrada, cria, assim, uma dimensão ficcional que, ainda segundo
Bateson (1985), nada tem a ver com a produção de uma ilusão. Para justificar
seu posicionamento, Bateson retoma a etimologia da palavra “ficção”, a qual é
derivada do latim “fictio”, que, por sua vez, é um substantivo verbal de “fingo”:
palavra latina que significa “fazer”. Nesse sentido, a palavra “ficção” não se refe-
re a uma ilusória fantasia, mas a algo que é feito, fabricado e produzido no viver
humano. Assim, as narrativas, enquanto ficções, são fabricadoras de realidades,
produzindo sentidos a mundos que não se encontram pré-definidos àqueles que
os narram. E cada narrativa é sempre coletiva, apesar de algumas vezes parecer
individualizada e particular, como no caso de um nome próprio. Mas, da mesma
forma que nosso nome não se constitui em uma marca isolada das histórias a ele
atreladas, inventamo-nos nas narrativas que nos inventam, uma vez que:
quem escuta uma história se compõe junto com a mesma, enredando, assim,
muitas outras interpretações e sentidos que se concretizam em diferentes modos
de viver (BENJAMIN, 2012).
Neste contexto de transformações pelas quais o cinema mais uma vez se encon-
216
trava, percebemos a dualidade entre dois entendimentos a respeito da realidade:
o entendimento dos críticos e o dos adeptos do processo da montagem. Portan-
NARRATIVA, CINEMA E REALIDADE: A OUSADIA DE PENSAR-ESTRANHAR OUTROS MUNDOS
Uma atitude cartográfica de pesquisa se dedica a fazer mapas dos afetos que
ganham intensidade em determinada cena social, e que indicam, a partir de suas
singularidades, os (novos) territórios a trilhar. Contudo, é importante considerar
que cartografar não se configura em:
[...] uma ação sem direção, já que a cartografia reverte o sentido tra-
dicional de método sem abrir mão da orientação do percurso da pes-
quisa. O desafio é o de realizar uma reversão do sentido tradicional
de método – não mais um caminhar para alcançar metas prefixadas,
mas o primado do caminhar que traça, no percurso, suas metas [...].
A diretriz cartográfica se faz por pistas que orientam o percurso da
pesquisa sempre considerando os efeitos do processo do pesquisar
sobre o objeto da pesquisa, o pesquisador e os resultados (PASSOS;
BARROS, 2015, p. 17).
Simonini (2019, p. 80-81), igualmente salienta que:
O grupo em questão era composto por cerca de dez discentes do primeiro pe-
ríodo do curso de Pedagogia que participaram de sete encontros (um a cada se-
mana) de três horas de duração. Em cada encontro, um filme foi exibido, sendo
este seguido por debates nos quais utilizamos de técnicas de dinâmica de grupo
para ativar estranhamentos, no deslocar os discentes de seus lugares de conforto
identitário e, assim, abrir passagem a possíveis invenções no agenciar de dife-
rentes experiências vividas com e para além dos filmes. Estranhar-se, pois, atra-
vessado por uma música, uma poesia, uma leitura, um filme..., é estar exposto a
flutuar-navegar em caminhos em que a angústia do desconhecido pode vir a se
conjugar com o verbo inventar. Dessa maneira, o pensamento, enquanto inven-
ção, só é possível no estranhamento, nas fronteiras, nas rupturas, pois:
Quando digo que eu era viajado, me refiro a fazer coisas que eu gos-
tava sem me preocupar se agradaria ou não os outros. Eu não queria
ter perdido essa minha liberdade, mas perdi e sinto que preciso dar
mais valor para essa minha parte...
[...] considerei que para ser feliz não é necessário seguir padrões –
estar casado por causa dos filhos, deixar de viver da música por ser
considerada uma atividade da ordem da “vagabundagem”, etc. A meu
ver, para se alcançar “um pedaço de tudo” – sendo viver a simplici-
dade, as coisas banais... – é preciso abdicar dos elementos univer-
sais. Estou, portanto, me sentido renovado tendo coisas consideradas
“nada” para os pessimistas e “tudo” para mim.
3 Nesse sentido, vale a oportunidade de assistir à animação “Mais Valia”, que também partilha do incômodo de aprisionamento
social vivenciado por Bruno. – https://www.youtube.com/watch?v=zn7ADZRh53I
possível diante da coragem sensível de se permeabilizar a novas aprendizagens,
narrativas e partilhas, experimentando o ficcionar de outros mundos, gostos e
pensamentos, ainda que potencialmente “desagradáveis” diante da insegurança
de seu ineditismo.
Assumir a vida como fabricação inventiva não nos furta, contudo, da experiên-
cia de nos agenciarmos a medos, a angústias e a estranhamentos de nossas cer-
tezas. Nesse sentido, as imagens-narrativas podem nos lançar a estranhamentos
de sabores e sensações que, por seu exotismo, podem fazer com que fujamos
apavorados de universos em que não sustentamos um chão. Mas que, outras
tantas vezes, também podem nos deliciar com a produção de um novo prazer.
Apavorados ou deliciados, somos convidados – e tantas vezes obrigados – à (re)
invenção de um mundo.
228
NARRATIVA, CINEMA E REALIDADE: A OUSADIA DE PENSAR-ESTRANHAR OUTROS MUNDOS
Referências
BARROS, Manoel de. Autorretrato. In: BARROS, Manoel de. Poesia completa.
São Paulo: Leya, 2010.
BATESON, Gregory. Mente e Natureza. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1986.
BATESON, Gregory. Steps to na ecology of mind. New York: Ballantine, 13a.
ed, 1985.
BAZIN, André. O que é cinema? São Paulo: Cosac Naify, 2014.
230
NARRATIVA, CINEMA E REALIDADE: A OUSADIA DE PENSAR-ESTRANHAR OUTROS MUNDOS
“MAMÃE, VAMOS
NOS ESCONDER?”:
AS ARTES
10.
Luciane Tavares dos Santos1
Marcio Caetano2
1 Doutoranda no Programa de Pós-graduação em Educação da Universidade Federal Fluminense (UFF) sob orientação da Profa.
Dra. Mary Rangel e Coorientação do Prof. Dr. Marcio Caetano. Estudante vinculada aos Grupos de Pesquisa: Diversidade Sexual
na Educação e na Escola: estado da arte (UFF) e Políticas do Corpo e Diferenças – POC’s (UFPel). E-mail: tavaressluciane@gmail.
com
2 Pós-doutor em Currículo, com apoio do PNPD-CAPES, no Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade do Estado
do Rio de Janeiro (UERJ). Coordenador do Centro de Memória LGBTI João Antônio Mascarenhas (UFPEL/UFES/UFOB), líder do
Grupo de Pesquisa POC’s – Políticas do Corpo e Diferenças e docente na Universidade Federal de Pelotas (UFPel) onde orienta
investigações desenvolvidas no Programa de Pós-graduação em Educação. E-mail: mrvcaetano@gmail.com
deral na repatriação do grupo de brasileiros/as que estava em Wuhan. Em carta
aberta, gravada e publicada no YouTube, no dia 2 de fevereiro de 2020, o grupo
se dirigia ao Presidente da República, Jair Messias Bolsonaro, e ao Ministro das
Relações Exteriores, Ernesto Henrique Fraga Araújo, lembrando-os acerca das
operações de evacuação já realizadas por diversos países, enquanto sua situação
era/estava delicada, e clamando por medidas: “Brasil, casa de todos nós”.
3 Samba-enredo que homenageia as Ganhadeiras de Itapuã: “história viva, referência cultural batizado com este nome em homena-
gem às mulheres que, desde o século XIX e início do século XX, faziam ‘lavagem de ganho’ (lavando roupas) ou saiam com seus balaios
a pé para vender peixe e quitutes pela cidade e assim ganhar o sustento da família. O grupo se formou por mulheres guerreiras que se
reuniam para conversar sobre as antigas tradições de Itapuã, cantar e dançar samba de roda. Em 2004, os grupo As Ganhadeiras tomou
forma e hoje conta a história de Salvador, da nossa cultura, das mulheres do Brasil, em forma de cantigas e sambas” (Fonte: https://
www.salvadordabahia.com/experiencias/as-ganhadeiras-de-itapua/).
4 Especialistas dizem que talvez seja impossível identificar como o vírus chegou ao Brasil e qual foi de fato o primeiro caso. (BBC
News Brasil, 2020, s. p.).
Era inevitável! Em tempos de avanços tecnológicos, a mobilidade daquelas pes-
soas que não catam latinhas no carnaval assumiu dimensões impressionantes em
meio as possibilidades de transportes, aéreos, terrestres, marítimos e ferroviários.
Em questão de horas, uma pessoa foge dos blocos barulhentos que invadem a
Zona Sul carioca para a Europa e se delicia em restaurantes italianos. Ainda as-
sim, muitos se perguntavam: são quilômetros e quilômetros de distância entre as
nações, como seria possível uma doença de velhos/as chegar ao Brasil?
5 Em janeiro de 2020, a água distribuída pela Companhia Estadual de Águas e Esgotos do Rio de Janeiro (CEDAE) começou a chegar
com coloração barrenta e cheiro desagradável em mais de 30 bairros da região metropolitana, muitos relatos de cheiro e gosto
semelhante à terra e sensação de banhar-se em/beber água de esgoto. A CEDAE oficialmente atribuiu o problema à presença de
uma alga chamada Geosmina, matéria orgânica formada quando cianobactérias presentes na água se alimentam de outras matérias orgâni-
cas, como algas ou coliformes fecais. A crise suscitou aumento do preço da água mineral e consequentemente falta do produto nos
mercados, problemas de saúde na população, como diarreia, e demissões no alto escalão da Companhia. Até hoje, ao que consta,
a população não foi ressarcida devida e apropriadamente. (G1, 2020, s. p.).
“gripezinha”. Propagada no Brasil, com apoio do Deputado Federal Eduardo
Bolsonaro, como doença do “vírus chinês6”, foi logo carimbada como letífera
aos corpos velhos, com enfermidades crônicas e/ou práticas insalubres (ausên-
cias de dietas vistas como saudáveis e práticas esportivas): o grupo de risco – do
qual inclusive, pedimos que nos permitam a ambiguidade, faz parte o presidente
que não se comporta como tal.
Confiantes muitos/as de nós ficamos, mas o fato é que pessoas que viajaram de
férias ao exterior, porque não precisam/precisaram catar latinhas, vender ade-
reços no carnaval ou se transportarem em trens, metrôs e ônibus superlotados,
trouxeram nas malas o vírus como souvenir. O primeiro caso confirmado no
estado do Rio de Janeiro, em 5 de março, foi o de uma mulher jovem, do muni-
cípio de Barra Mansa, que havia contraído o vírus em uma viagem feita à Itália
e à Alemanha, no entanto a primeira morte foi de uma empregada doméstica
(MELO, 2020, s. p.), negra, pobre, periférica e usuária de transporte superlotado,
que o contraiu em seu local de trabalho na capital: sua patroa também viajou e
trouxe, para a rica Zona Sul, a doença como souvenir.
6 A proliferação da ideia de que a China é responsável pelo vírus serviu de justificativa para atos violentos e segregações sociais e
raciais experimentadas pelos(as) chineses(as) mundo afora.
8 Expressão comumente usada para se referir aos trabalhos não oficiais, emprego formal. Entretanto, com o aumento da informali-
dade, o que seria “um extra” tornou-se a principal fonte de renda da população.
Em meio ao turbilhão de notícias, a docência que não se deixa parar se movi-
menta para refletir suas ações diante dos desafios que se apresentam. À época,
Gabi, mãe de uma menina de 2 anos, já estava preocupadíssima sobre como
faria para se proteger e, consequentemente, proteger a filha. Ela é professora,
trabalha em 6 escolas, 5 privadas e 1 pública, em locais distintos da cidade, tem
um marido, também professor, a filha pequena, e, não se pode esquecer, um
doutorado em andamento. “Como fazer tudo isso?” talvez seja a pergunta, e a
resposta vem com a sabedoria popular: “a necessidade faz o sapo pular”. O fato
é que, em meados de março, torcia pelo decreto que suspenderia as atividades
na cidade, incluso as escolares, pois, cruzando a cidade de carro, metrô e BRT
(Bus Rapid Transit)9, seria impossível não se contaminar. Uma rotina estressante,
em transporte público quase sempre superlotado e sem circulação de ar, como
ela mesma descreve às vezes, tornou-se ainda mais insuportável por conta da
redução da frota na cidade, aumentando o risco de contágio.
Quando pensamos na vida de Gabi, somos levados a crer que talvez a experi-
ência de ser mulher sem filhos/filhas seja ausente de estresse. No entanto, Bel,
236
também professora e estudante de doutorado, mesmo sem ter cria gerada em seu
útero, dedica parte do seu tempo aos cuidados de uma afilhada para que a mãe,
“MAMÃE, VAMOS NOS ESCONDER?”: AS ARTES CRIANCEIRAS
EM TEMPOS DE MONSTRUOSIDADES NECROPOLÍTICAS
9 O sistema de ônibus de trânsito rápido, com trechos inaugurados entre 2012 e 2016, conta com 3 corredores ligando os seguintes
bairros: TransOeste, Santa Cruz à Barra da Tijuca; TransCarioca, Barra da Tijuca ao Aeroporto Internacional Tom Jobim; e TransO-
límpica, Recreio dos Bandeirantes a Deodoro.
dar conta das exigências estabelecidas pelos empregadores, representados pelo
empresariado educacional ou pelas instâncias do Estado (federal, estadual ou
municipal), cuidar de crianças que também têm suas exigências, em um contex-
to que trouxe, dentre outras preocupações, a educação remota, além de cuidar
de suas necessidades pessoais e constituídas a partir do mundo de exigência
estética às mulheres.
Com a suspensão das aulas, se mantivermos, em 2020, o que foi estimado pelo
Censo Escolar de 2019 (BRASIL/INEP, 2019), aproximadamente 47,9 milhões
de estudantes de escolas públicas ou privadas ficarão sem atividades. Em casa,
inúmeras famílias conciliaram a luta diária pela subsistência, a manutenção do
trabalho formal ou informal e os cuidados domésticos com as atividades escola-
res que mantinham alunos/as em rotina de estudos. Agora, as aulas são virtuais
ou em transmissão por TV. Ainda existem aqueles municípios ou escolas que
criaram grupos de WhatsApp11 em que docentes enviam vídeos e áudios com
atividades e conteúdo ou folhas mimeografadas/cópias com exercícios.
10 No geral, é entendido como um conjunto de políticas e práticas cujo objetivo é reduzir os impactos ou danos associados ao
uso de drogas psicoativas em pessoas que não podem ou não querem parar de usar drogas. Neste caso, tomamos emprestado o
conceito para pensar um conjunto de práticas e de políticas de pessoas que não podem realizar totalmente o isolamento social
e buscam conjugar o máximo das recomendações dos organismos de saúde com as necessidades cotidianas de subsistência no
mundo de precarização do trabalho e de necropolíticas governamentais.
11 O WhatsApp envia mensagens de texto e de voz, imagem, vídeo e documento em PDF de modo instantâneo, além de possibilitar
a criação de lista de discussão a partir dos contatos telefônicos, realização de chamada de vídeo envolvendo até oito pessoas
(número aumentado de 4 para 8 no contexto pandêmico) e chamada telefônica por meio de conexão com a internet.
Nesse cenário, o âmbito da casa e do trabalho assumiram o mesmo contorno.
Se Hannah Arendt (2007, p. 37) nos levou a crer que “a distinção entre uma es-
fera de vida privada e uma esfera de vida pública corresponde à existência das
esferas da família e da política como entidades diferentes e separadas”, com a
pandemia, as dinâmicas impostas pelo mundo do trabalho derrubaram de vez a
falaciosa promessa moderna em que se distinguia o público e o privado (CAE-
TANO, 2016). Na arte de fazer-se professora, mãe e responsável pelos trabalhos
domésticos, as dimensões da vida se implicam dentro das casas.
É nesse espaço em que tudo ocorre ao mesmo tempo e misturado que a arte
das crianças se revela como potente recurso possibilitador de um mundo outro
para além do isolamento, do medo do contágio e do que vem ou pode vir em
decorrência dele. São essas experiências de ser/fazer que nos motivam, no cená-
rio de pandemia, a pensar e escrever este artigo com e a partir dos modos como
a arte imaginativa da criança ressignifica a casa. Na experiência interseccional
de ser mulher, mãe, cuidadora, professora e sobrevivente na necropolítica, as
mãos das pequenas estão constantemente sujas de tinta guache, giz branco ou
238
de cera desenhando múltiplas janelas que as potencializam a imaginar carnavais
particulares, a parte boa daquele delírio coletivo de suor e confete todo bem
“MAMÃE, VAMOS NOS ESCONDER?”: AS ARTES CRIANCEIRAS
EM TEMPOS DE MONSTRUOSIDADES NECROPOLÍTICAS
Nesses lugares polissêmicos, o corpo humano pode ser entendido como lugar
“implacável” que faz surgir todos os demais lugares, incluso as utopias, isto é,
“o não lugar”, que surge do próprio corpo numa tentativa de reduzi-lo ou de
apagá-lo (FOUCAULT, 2013).
Quando Foucault (2013, p. 14) nos diz que o corpo é o “ponto zero do mundo”
ou que nunca se está só aqui, mas em “todos os outros lugares do mundo” e “em
outro lugar que não o mundo”, pensamos no nosso locus de investigação, um
grupo de WhatsApp, e nas suas participantes: corpos que estão naquele espaço
e em tantos outros ao mesmo tempo, tudo junto e misturado.
Trazemos, portanto, as artes de fazer das mulheres e das crianças. A arte que faz
parte das experiências de ser das crianças, inserindo-se muito espontaneamen-
te nas suas brincadeiras, e que permite às mulheres dar continuidade aos seus
processos de aprender, agora que a escola está fechada, e realizar outras tarefas,
sendo adotada como tática. A produção de desenhos é possibilitada pelas mães
para deslocar as crianças e, mais do que ocupá-las, permite às mulheres estarem
e produzirem com elas espaços de criação, inventividade e de imaginação.
242 Na ilustração a seguir, apresentamos, alguns desenhos feitos pelas crianças, de
diferentes idades, ao longo dos meses em isolamentos social. Observamos neles
“MAMÃE, VAMOS NOS ESCONDER?”: AS ARTES CRIANCEIRAS
EM TEMPOS DE MONSTRUOSIDADES NECROPOLÍTICAS
Por meio das produções, é possível termos ideia também do grau de elaboração
das pinturas, cores, traços, detalhes que demandam pensar no que se quer re-
presentar, como e por quê, quais cores usar, que tamanho cada elemento terá,
enfim, para ficarem (ou quase) do jeito que a imaginação almejou. Frente ao
caos pandêmico, a arte se torna acontecimento heterotópico. Pela arte, é possí-
vel imaginar outro lugar no mundo ou fora de seus limites, agora todo ocupado
pelo medo, um lugar em que brincar, sonhar, imaginar ainda é possível mesmo
com a enxurrada de notícias estarrecedoras.
ILUSTRAÇÃO 1 – Mosaico de desenhos feitos no isolamento social
O espaço da casa agora precisa ser, mais do que nunca, o espaço das artes e é
com tal realidade que queremos aqui dialogar: de fazer comida contando histó-
ria sobre legumes, de fazer bolo com a ajuda das pequeninas, de inventar jogos
e mais jogos para passar o tempo, de criar castelos com tampinhas de garrafas
PET, de modelar com massinha colorida uma mensagem enorme de “mamãe,
nós te amamos” e grudá-la no corredor, mas sobretudo com as artes de misturar
cores primárias para fazer surgir as secundárias, tão desejosas de fazer surgir
mais colorido, como resultado de magia, feitiço ou encantamento.
com mais diálogo e respeito, explorando o mundo com ela. Enfim, o áudio ter-
mina com um “vamos nos esconder, sim, filha”, já na quase terça-feira.
Antes de Gabi aceitar o convite para se esconder com a filha, como se não hou-
vesse aula remota amanhã, Vivi pediu socorro: metodologia. Por volta das 21h,
mandou um áudio “arrasem e me ajudem”. Depois disso, com certeza, entrou
no mundo da sua pesquisa, pois não mais retornou. Flavs também sumiu, talvez
estivesse lendo seu referencial teórico. Bel passou a madrugada escrevendo arti-
Gabi, no meio disso tudo, ainda precisa organizar seu tempo para corrigir avalia-
ções de seus muitos/as alunos/as, programar o envio de e-mails em massa para
as turmas com mensagens de estímulos que o coordenador pediu e pensar nas
atividades das disciplinas que serão dadas na semana, isso tudo sem se esquecer
de alimentar, brincar, além de ensinar, educar sua filha, que, não adianta, não
dorme cedo, mas acorda cedinho pela manhã. As figuras a seguir ilustram um
246
pouco da rotina da pequena insone com a arte.
TÍTULO
Começamos a nos questionar quem ensina quem quando vemos Gabi fascina-
da com as artes produzidas pela filha, tentando avidamente, e com seu humor
inconfundível, decifrá-las não para os diários escolares ou para avaliá-las com
notas de 1 a 10. Naquele momento, quem cuida de Gabi é a pequena insone,
ativando sua imaginação, retirando-a do mundo do capital maldito, do álcool
em gel, do vírus, do tal de novo normal... de tudo. Por um momento, ambas se
247
convertem em estado de folia.
Não podemos deixar de lembrar dos lendários tapetes voadores do Oriente dos
quais nos fala Foucault (2013, p. 24): antes o cavalete e agora a parede azul,
assim como o tapete, parecem ter significação mágica, constituindo-se como
lugares de utopia. Chamativa, inconfundível, tentadora e convidativa, parece
berrar risque-me sem medo de ser feliz assim como o tapete nos convida para
dar uma volta pelo céu. Claro que, em uma das fotos, perfeitamente se vê o giz
saindo dos limites do azul, que é inconfundível. A partilha de alegrias em cliques
já era tão parte do grupo que é óbvio que alguém se perderia tanto na belezura
da foto a ponto de reparar a rebeldia do pintor.
O guri apenas estava desenhando a sua casa como a imagina, com janelas,
chaminé, plantas na frente, mas o grupo é de professoraspesquisadoras, prati-
248 cantespensantes, problematizadorascríticoengraçadinhas e ficamos ali a imagi-
nar muitas possibilidades para a imagem: o corpo do pequeno não se deixaria
“MAMÃE, VAMOS NOS ESCONDER?”: AS ARTES CRIANCEIRAS
EM TEMPOS DE MONSTRUOSIDADES NECROPOLÍTICAS
disciplinar pela mãe pedagoga tão facilmente e Bel, no seu momento visitante
do museu cotidiano do WhatsApp, imaginou que o guri pensava algo como nin-
guém me controla aqui nessa meleca!, porque o original mesmo foi um exemplo
clássico do falar cariocado cheio de palavrões nas vírgulas. Normal, o nosso
normal, que nada tem de novo.
Os jeitos que misturamos nossas teorias e conceitos favoritos aos mais triviais
assuntos é uma das coisas mais bonitas e engraçadas do grupo. Talvez o simples
fato de escrever isso escandalize até os murais pomposos que anunciam defesas
sérias e sisudas nas paredes das universidades, mas é um elemento importante
na nossa central de apoio acadêmico. Entre um áudio e outro de “meninas, me
ajudem”, Gabi aparece para nos levar de volta para aquele mundo com mais
cor, complementando que “o corpo da criança não é dócil”, enquanto ria.
Flavs mudou a sua mesa de trabalho para o quarto do filho: “para a gente ficar
perto enquanto estudo”. Ele brinca, imagina, ela cuida, mantendo-o em seu cam-
po de visão enquanto estuda. Só que, assim como, em nossas casasescolas, so-
mos transportadas magicamente para lugares outros por meio da imensidão azul,
Flavs estuda, mas também pega carona no tapete voador possibilitado por ela ao
pequeno. Todas nós somos beneficiadas com ele, todas aprendemos com ele em
nossos estudos entrecortados pelas análises das criações das nossas arteirinhas.
A viagem acaba quando começamos a falar sobre o conteúdo das lives do Se-
cretário Estadual de Educação (RJ), Pedro Fernandes Neto. Parece que ele só se
comunica assim agora e o que diz não dá vontade de rir, embora pareça piada:
enviar exercícios por SMS para as turmas que, muitas vezes, sequer aparelho
de celular têm e lutam para conseguir lavar as mãos, em lugares onde a falta de
água é rotineira, como Manguinhos e Complexo da Maré, desabafa Gabi em
uma de suas mensagens no WhatsApp.
São do sobrinho de Vivi também as produções que retratam o Big Brother Brasil e
o Bob Esponja, as quais revelam o espaço heterotópico aberto pela televisão para
as crianças um pouco maiores no #fiqueemcasa. Reagimos com “Muito lindo!
Adorei” enquanto Gabi exclamou um “Genteeee” em que cabe tanta coisa. O
BBB se tornou uma festa coletiva no início da pandemia. Lá em março, até quem
não acompanhava o programa passou a saber tudo sobre seus personagens, par-
251
ticipava das festas, comentava os acontecimentos e berrava com as eliminações
dos menos favoritos. Ouvíamos parte da vizinhança berrando e batendo palmas,
como em final de campeonato, “BABU, BABU” enquanto outros vaiavam. Era,
no mínimo, engraçada a experiência de estar em casa trancafiado/a assistindo a
um reality show cujo enredo se desenrola em torno do confinamento.
Na televisão, a todo momento fala-se no tal “novo normal” e ficamos a nos per-
guntar o que seria se os que morriam antes são os que continuam morrendo, se
os/as professores/as, como nós, que eram massacrados/as antes pela opinião pú-
blica continuam sendo por aparentemente serem frescurentos/as e adeptos/as à
vadiagem por se recusarem a arriscar suas vidas e de suas/seus alunas/os em um
retorno escolar pensado para dar conta do delírio governamental da imunidade
brasileira ao vírus – surrealidade que para muitos/as parece trazer algum tipo de
conforto e transforma a realidade das 110 mil mortes em mentira.
Nossa rede de apoio também tem desconhecido a ordem dos dias da semana e
o conceito de domingo e feriados e isso é um efeito da pandemia também. O
grupo comprova que um mito das mulheres serem competitivas entre si foi cria-
do para que nos odiássemos, como pontuou Gabi. Isso nos é imposto, nos causa
problemas dos mais diversos, Bel complementa. Estamos exaustas de tudo e ain- 253
da temos que lutar contra a ideia muito bem estabelecida de que nos odiamos.
Nessa bonita conversa sobre a solidariedade ativa entre nós, todas se manifesta-
ram e se expressaram sobre experiências enlouquecedoras que nos atravessam
enquanto mulheres porque, como analisamos aqui, ousamos existir e não nos
privamos de frequentar espaços para além dos limites impostos. Sonhamos e
colocamos os sonhos em prática com a ajuda de tantas outras. Somos como o
arteiro pintando o azul e o branco da parede. Quando não estamos pintando,
estamos ajudando outras a colorir espaços e a enxergar cor onde não parece ter.
No mundo de faz de conta dos Bolsonaros, mulheres arteiras precisam ser si-
lenciadas à força para não servirem de exemplo para as que infelizmente já
tiveram suas vozes roubadas antes mesmo de a ouvirem soar. Não sabemos, de
fato, como tudo terminará e quando sairemos novamente de casa para além de
comprar e fazer o essencial, mas, com nossas artices e risadas escandalosas,
avançamos e seguimos tentando avançar, de preferência, vivas.
Referências
ARENDT, H. A Condição Humana. 10. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitá-
ria, 2007.
BRASIL. INEP. Censo Escolar 2019. Disponível em: http://portal.inep.gov.br/
web/guest/censo-escolar. Acesso em: 20 ago. 2020.
BRASIL. Pronunciamento do Senhor Presidente da República, Jair Bolso-
naro, em cadeia de rádio e televisão, 24 de março de 2020, 21h25. Dis-
ponível em: https://bit.ly/3jiZcmO. Acesso em: 30 jul. 2020.
BRASILEIROS em Wuhan #brasilcasadetodosnos. 2020. 1 vídeo (6 min.). Publi-
cado pelo canal Brasileiros em Wuhan. Disponível em: https://www.youtu-
be.com/watch?v=CEQeOGhZDaU&feature=emb_logo. Acesso em: 28 ago.
2020.
CAETANO, M. Performatividades reguladas: heteronormatividade, narrativas
biográficas e educação. Curitiba: Appris, 2016.
CRISE da água veja perguntas e respostas sobre o tema. G1 Rio. Rio de Janei-
ro, 18 de janeiro de 2020. Disponível em: https://glo.bo/2YzB07J. Acesso
254 em: 13 ago. 2020.
FEBRABAN-IPESPE. Pandemia fortalece estruturas familiares e dá mais poder
“MAMÃE, VAMOS NOS ESCONDER?”: AS ARTES CRIANCEIRAS
EM TEMPOS DE MONSTRUOSIDADES NECROPOLÍTICAS
256
TÍTULO
VESTIDO,
QUIMONO
E PERUCA:
EM DEVIR
Maria da Conceição Silva Soares
Simone Gomes da Costa
Maria da Conceição Silva Soares (UERJ)
Simone Gomes da Costa (UERJ)
258
Ao lançarmos mão da frase do narrador-personagem do conto O espelho, de
João Guimarães Rosa, “Se quer seguir-me, narro-lhe”, fazemos um convite ao
VESTIDO, QUIMONO E PERUCA
PRODUÇÕES NARRATIVAS E IMAGÉTICAS DE SI: ROSTIDADE E PROFESSORAS EM DEVIR
1 Pesquisa desenvolvida na Universidade do Estado do Rio de Janeiro, no Grupo de Pesquisa CNPq “Currículos, Audiovisuais e
Diferença”, coordenado pela professora Maria da Conceição Silva Soares. E-mail: ceicavix@gmail.com.
entre saber e poder, se exercitam relações de força e se constituem as disputas
em torno das significações e da criação de valores forjados com os múltiplos
contextos de formação e com as redes curriculares tecidas cotidianamente e,
com isso, criar espaçostempos para produzir com as mulheres que participam
da pesquisa novas/outras imagens de si e outras/novas imagens para pensarmos
a docência e os currículos. A produção de ensaios fotográficos e videográficos
das professoras, nos quais elas decidiram como se darão a ver, como querem ser
Neste artigo, vamos nos valer do conto rosiano O Espelho a fim de fazer uma
aproximação e buscar decantar das experiências narradas pelas professoras par-
ticipantes da pesquisa os conceitos de rosto e rostidade desenvolvidos por De-
leuze e Guattari (2012), em Mil Platôs. No conto, o narrador é surpreendido por
sua imagem refletida em um jogo de espelhos em um banheiro público e, de
imediato, de pronto, não se reconhece nela. Sua reação diante da imagem que
vê refletida, o efeito perturbador que ela causou nele, foi o que nos sugeriu, nos
259
remeteu, de saída, ao conceito de rostidade dos autores. No decorrer da história
de Guimarães Rosa, o personagem narra as suas inquietações, questionando as
limitações próprias do olhar, que padecem de viciação. Ele narra as suas refle-
xões, série de raciocínios e intuições, a sua experiência em uma procura do eu
por detrás de mim. A seguir, nas palavras do escritor, o seu espanto inicial:
O rosto, segundo Deleuze e Guattari (2012, p. 36), não é invólucro exterior, mas
sim produzido através de operações de significação e processos de subjetiva-
ção. Nele, como em um muro, se constrói uma superfície onde os significantes
são inscritos e também se escava o buraco que a subjetivação necessita para
atravessar. É esboçado no muro branco, onde inscrevem-se os signos, e no bura-
co negro, necessário para processos de subjetivações, paixões e redundâncias.
Marques (2015), pautada pelo pensamento destes autores, de modo bastante
contundente, pontua que o rosto não é um universal. Rosto é política. É uma
produção (p. 167).
E nós perguntamos: tais fenômenos sutis descritos por Guimarães Rosa não se-
riam, justamente, os que operam as inscrições da rostidade, como proposto por
Deleuze e Guattari? Seriam as máscaras moldadas no rosto?! A superfície onde
se faz a planificação, o falquejo das formas para que não haja a explosão da
expressão, nem os dinamismos fisionômicos?
Trazemos para este artigo três professoras que se dispuseram a participar deste
projeto, com suas narrativas e produções imagéticas videográficas e fotográfi-
cas, feitas em estúdio montado pelo grupo de pesquisa, se autoapresentando
do modo como desejam ser representadas. Esses fragmentos e imagens con-
tribuem para reflexões pertinentes à problematização da máquina abstrata de
produzir rostos, incluindo-se aí o rosto-professora. Tatiana, Shênia e Anna Paula
são professoras de diferentes segmentos da educação e, ao narrarem episódios
pontuais de suas trajetórias de vida e formação, nos oferecem as pistas para
compreender o funcionamento, a maneira como opera esta engrenagem polí-
tica. A partir da reação, das respostas, dos olhares que obtiveram e refletiram
suas imagens, seus rostos, seus corpos, seus cabelos ou suas vestimentas, ou
seja, pelo efeito causado no outro diante de seus modos de existir, podemos
verificar em suas narrativas a ação da máquina abstrata de rostidades, identifi-
cando, classificando, distinguindo e discernindo como estas professoras subje-
tivam a existência, o modo como cada uma delas fabrica estética de existência,
sua produção de si e de mundo (KASTRUP, 2005 ), suas táticas (CERTEAU,
2012) de praticantes dos cotidianos, além de suas formas de habitar os espa-
çostempos do saberfazer pedagógico.
262
VESTIDO, QUIMONO E PERUCA
PRODUÇÕES NARRATIVAS E IMAGÉTICAS DE SI: ROSTIDADE E PROFESSORAS EM DEVIR
O vestido _ Tatiana
f*** u de vez! Não existe um lugar que eu me sinta melhor que a sala
de aula e é por isso que é o lugar onde eu sou mais sapatão (risos),
porque eu me sinto muito confortável, eu me sito à vontade, eu fico
emocionada, eu fico muito feliz. Eu fiquei muito tempo longe de sala,
eu sinto falta, mas é impossível eu não ser eu mesma lá.
Meu ensino médio foi horrível, eu terminei muito nova, com 15 anos.
Eram professores que faziam bullying comigo, a própria direção che-
gou a me chamar só porque eu estava conversando com uma amiga
no banheiro; daí eu fui chamada pela direção do colégio porque en-
tendiam que eu queria experimentar coisas novas. Eu dizia assim: “eu
nem experimentei nada ainda, na verdade eu nem sei o que é o novo”
e isso foi muito difícil e foi assim a vida toda. [...]
Um dia, minha mãe foi me procurar na ginástica olímpica e eu não
estava lá. Eu estava querendo fazer Karatê. Eu já tinha brigado com
meia turma que tinha implicado comigo. E aí eu gosto muito do meu
quimono porque não tem quimono feminino ou masculino, não exis-
te essa diferença. No Karatê ocidental a gente, nos campeonatos, a
gente separou: mulher compete com mulher, homem compete com
homem, mas isso não existe no Karatê tradicional, você é uma pessoa
só e a gente tem um código de honra que a gente chama de “Dojo-
-Kun”, que são cinco mandamentos, todos eles começam com a pa-
lavra hitotsu, que significa “em primeiro lugar”, quer dizer que todos
são importantes, não existe uma coisa mais importante que outra e o
primeiro de tudo é respeito; respeito e cortesia. Então, quando você
veste um quimono e entra no dojo, você não é um homem, você não
é uma mulher, você é uma pessoa, e você precisa do outro. Se é mu-
lher, se é homem, se é criança, o respeito é sempre o mesmo. Então,
essa coisa de você se despir da sua sexualidade – porque você se
despe mesmo da sua sexualidade – para você virar uma coisa com os
outros, com um conjunto, isso faz eu me sentir muito bem. Mas é por
isso que o quimono é muito importante para mim. Foi lá que eu me
senti mais respeitada, foi lá que eu resgatei minha autoestima, que eu
entendi que os corpos não são mostrados, eles são respeitados pelas
O quimono é uma peça relevante para Shênia, porque ele borra a imagem que
pretende classificar o corpo por gênero. Sem ele, o corpo não exibe os traços ne-
cessários à produção da classificação, do dualismo de gênero. A rostidade não
267
alcança a professora “sapatão”. Ela encontrou nas artes maciais um espaçotem-
po em que as relações pessoais e de poder não se produzem e se reproduzem
partindo de uma correlação binária. Ainda com Deleuze e Guattari (2012).
Para ser professora de uma instituição de ensino, a candidata à vaga deve mos-
trar que tem o “perfil”. A professora Anna Paula ouviu e, depois de um tempo,
passou a entender do que se tratava. Reparou entre suas colegas quem não tinha
270
os traços que a máquina abstrata da rostidade indicada para ocupar a posição
tão desejada naquela escola, isso incluía seu cabelo, que depois de um tempo,
VESTIDO, QUIMONO E PERUCA
PRODUÇÕES NARRATIVAS E IMAGÉTICAS DE SI: ROSTIDADE E PROFESSORAS EM DEVIR
se tornou laranja. Para a instituição, não era “natural”, com isso ela se deslocou
e, consequentemente, foi demitida. Ao buscar outra instituição, novamente sur-
ge um empecilho, a altura. Não pode ser muito alta. Por fim, desse recorte que
ela nos traz, em outro momento, faltou o “tato” e o “tom maternal”, segundo a
representante da instituição, para atuar com aquelas crianças, para convencer
aqueles adultos da sua condição, do seu rosto de professora.
Do que digo, descubro, deduzo. Será, se? [...] Se sim, a “vida” consiste
em experiência extrema e séria; sua técnica — ou pelo menos parte —
exigindo o consciente alijamento, o despojamento, de tudo o que obs-
trui o crescer da alma, o que a atulha e soterra? (ROSA, 2019, p. 75).
271
DIFERENÇA
12.
Juliana Paoliello
Priscila dos Santos Moreira
Alba Jane Santos Lima
*O texto aposta na arte de Lygia Clark, para fabular uma escrita inspirada por sua obra Caminhando.
Além disso, traz fragmentos da literatura brasileira e músicas na composição desta escrita.
Juliana Paoliello (UFES)
Priscila dos Santos Moreira (IFES)
Alba Jane Santos Lima (UNIRIO)
No novo tempo,
Apesar dos castigos!
Estamos em cena...
Estamos na rua...
Quebrando as algemas...
Pra nos socorrer...
274 (Ivan Lins)
(DES)CAMINHOS1: AS IMAGENS-CARTAZES POTENCIALIZANDO A VIDA COLETIVA
COM AS APRENDÊNCIAS INSURGENTES NA DIFERENÇA
Foi nesse contexto que o movimento das ocupações de 2016, conhecido como
“primavera secundarista”, afirmou-se num movimento-corte que denunciava
e resistia às lógicas sedimentares do Estado. O corpo estudantil, engendrado
com as intensidades das famílias, professores, artistas, intelectuais, invocava um
movimento de resistência que desestabilizava a racionalidade predominante
acerca das escolas e dos estudantes que nelas estudavam.
1 Entendemos, a partir do próprio Deleuze e Guattari, que macro e micro coexistem e, portanto, ao fazermos menção ao micro, não
podemos deixar de citar o macro, vice-versa.
os afetos” (LAZZARATO, 2006, p. 31-32). Já no tocante à matéria de expressão,
as intensidades a procuram para se fazerem efetuar. Nesse entendimento, com
Rolnik (1979, p. 31), afirmamos que
A artista quis despertar, por meio da produção dessas sucessões de cortes, que a
vida é um caminho cheio de curvas, cujas marcas das nossas atitudes e as conse-
quências das nossas escolhas ficam registradas ali para sempre. “Tudo que já foi,
é o começo do que vai vir, toda a hora a gente está num cômpito” (Grande Ser-
tão Veredas – Guimarães Rosa). É a transformação do papel de um jeito que ele
jamais será o mesmo novamente, um caminho que pode voltar ao mesmo lugar
- tudo que vai volta -, um caminho que vai se estreitando a cada curva da vida.
Ao usar a Fita de Moebius, Rolnik (2018, p. 51) expõe que “os sinais e formas
do mundo são captados pela via da percepção (a experiência sensível) e do sen-
timento (a experiência da emoção psicológica) ”. Nesse sentido, se a realidade
é feita das experiências mais imediatas que fazemos do mundo, logo as linhas
sensíveis que reverberam as palavras-forças nas imagens-cartazes exibidas pelos
estudantes, nos afetam pela sua condição de efeitos de resistência e, portanto,
de insurgência! A vida é um caminhando com curvas, idas e voltas, a fim de
trilharem novos e outros caminhos que surgirão. Sertão é isto: o senhor empurra
para trás, mas de repente ele volta a rodear o senhor dos lados. Sertão é quando
menos se espera” (Grande Sertão Veredas – Guimarães Rosa).
No novo tempo,
Apesar dos perigos!
A gente se encontra...
Cantando na praça...
Fazendo pirraça...
Pra sobreviver!
(Ivan Lins)
279
Os gritos ecoam nas vozes dos estudantes proliferando e fazendo chegar às uni-
versidades e institutos federais. Pirraçar, reivindicar, protestar, resistir! Resistir é
permitir que forças entrem em relação com outras forças: forças do devir, forças
da transformação, forças do intolerável (LAZZARATO, 2006). São forças em mo-
vimento. Insurgência!
Estamos imersos num sistema capitalístico maquínico. Sistema esse que procura
se estabelecer a partir de relações de forças que sujeitam a sociedade à servidão
(LAZZARATO, 2014) e, por isso, tendem a despotencializar os movimentos de
criação de mundos os quais produzem modos de existir que escapam aos me-
canismos de controle.
Podemos afirmar, nesse sentido, que tudo é de ordem política e, portanto, a pro-
blematização dos modos de existência é produzida, e entra em cooperação, nos
diferentes contextos de resistência. “As pessoas não estão sempre iguais, ainda
não foram terminadas – mas [...] elas vão sempre mudando” (Grande Sertão Ve-
redas – Guimarães Rosa). São forças que entram em relação com outras forças e
criam sentidos outros que transformam os modos de percepção de si e de mundo
na produção da diferença.
281
“Sertão é quando menos se espera”
(Grande Sertão Veredas – GUIMARÃES ROSA)
3 No sentido que se opõe e substitui a dicotomia de público e privado, socialista e capitalista, e as políticas baseadas nessa polari-
zação (HARDT; NEGRI, 2016).
p. 27), quando se refere à possibilidade de sairmos de uma proposta totalitária,
universal, única de produção de mundos, para afirmar a vida como potência
inventiva que dá lugar à criação de valores e afirma que “[...] tudo o que Leibniz
menos quer é a ideia de um só mundo [...]”.
Desse modo, indagamos: que tipo de subjetividade a máquina abstrata tem pro-
duzido? Será que “obedecer é mais fácil do que entender? ” (Grande Sertão
Veredas – Guimarães Rosa). O domínio de vidas que se sujeitam pela captura
capitalística se engendra no exercício da servidão social (LAZZARATO, 2014).
Entretanto, os protestos nos apontam que, quando os estudantes reivindicaram o
esclarecimento das políticas dos cortes pela via da insurgência, eles agenciaram
abertura para os possíveis.
filosofia de Leibniz; não está dado, precisa ser criado. As novas pos-
sibilidades são bem reais, mas existem fora daquilo que as exprime
(signos, linguagem, gestos); os possíveis devem atualizar ou efetuar,
trata-se de desenvolver aquilo que o possível envolve, de explicar
aquilo que ele a implica.
Assim, habitar mundos que já estão postos não promovem rupturas nem cria
aberturas. É permanência do mesmo. Romper não é uma tarefa fácil; demanda
esforço, demanda perseverar na existência, é vontade de potência. Ao acompa-
nhar os movimentos de ocupação dos estudantes em 2016, foi possível observar
algumas linhas de resistência que delineavam paisagens problematizadoras so-
bre a possibilidade de subverter algumas lógicas contidas no império da máqui-
na abstrata.
4 A Proposta de Emenda Constitucional cria um teto para os gastos públicos durante vinte anos. Essa emenda inclui saúde e educação.
Nesse sentido, ocupar é um movimento de resistência, é reivindicar, é dizer “eu
ocupo porque também é meu”. Docentes e discentes são, portanto, partes po-
tentes desses movimentos que emergem na e pela escola. Tais acontecimentos
dobram, desdobram e produzem outras maneiras de afetar e serem afetados pelo
mundo. A experiência da ocupação produz pertencimento, participação, ação
coletiva, sem centro unificador.
Assim sendo, se não há lugar nas mídias oficiais, os discentes criam outros espa-
ços de diálogos: redes sociais, vídeos, fotos e outros veículos de circulação para
fomentarem a problemática vivida nesse contexto. Os enunciados discentes se
proliferaram por meio dos agenciamentos coletivos em uma multitude que se
espalhava. Pelas imagens, é possível fazer a “escuta” dessa polifonia que afetou
todo o Brasil.
As redes sociais, como força virtual, também foram canais de incentivo ao movi-
mento. Encontramos um canal no youtube, denominado “Mexeu com os secun-
das mexeu comigo”, em que a comunidade escolar, artistas, professores, intelec-
tuais e pesquisadores se posicionaram em favor do movimento dos estudantes
secundaristas que reconfiguraram o cenário das políticas na e para a educação,
apontando que política se “faz com” e não “para”.
“Vivendo, se aprende;
mas o que se aprende, mais,
é só fazer outras maiores perguntas”.
(Grande sertão veredas – Guimarães Rosa)
como força na constituição de uma política, são diagramas que, aumentam nos-
sa condição questionadora e afirmam as aprendências produzidas a partir da
relação com outro, na composição coletiva.
Em consonância com Bonfá (2016), percebemos que essas ocupações dos estu-
dantes secundaristas exprimem o devir revolucionário e resistente da juventude
brasileira contemporânea que ocupa e insurge na escola, afirmando a aposta
nesse território como produção de possíveis.
288
(DES)CAMINHOS1: AS IMAGENS-CARTAZES POTENCIALIZANDO A VIDA COLETIVA
COM AS APRENDÊNCIAS INSURGENTES NA DIFERENÇA
Referências
BONFÁ, Junior. As ocupações dos estudantes secundaristas sob a luz da
Esquizoanálise. nov. 2016. Disponível em: http://cartografiasdesi.blogspot.
com.br/2016/11/ocupacoes-estudantes-secundaristas-pec241-esquizoanali-
se.html. Acesso em: 18 abr. 2017.
DELEUZE, G. Conversações. São Paulo: Editora 34, 1992. (Coleção Trans).
DELEUZE, G. Diferença e repetição. Tradução de Luiz Orlandi e Roberto Ma-
290
(DES)CAMINHOS1: AS IMAGENS-CARTAZES POTENCIALIZANDO A VIDA COLETIVA
COM AS APRENDÊNCIAS INSURGENTES NA DIFERENÇA
FORÇA, FORMA
E PINTURA:
13.
Jaqueline Magalhães Brum1
Nilcéa Elias Rodrigues Moreira2
1 Introdução
Esta escrita busca problematizar como a força micropolítica produzida nas rela-
ções entre coordenação, professores, tutores e alunos de um curso de especiali-
zação em Matemática para professores do ensino médio, ministrado a distância
pela Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes), via Secretaria de Educação
a Distância (Sead) e Universidade Aberta do Brasil (UAB), pode, por meio das
práticas discursivas desse coletivo, produzir agenciamentos, problematizações
que possibilitem ou não... afetar na forma macropolítica do referido curso.
1 Doutora em Educação e Professora Adjunta da Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes), no Departamento de Teorias do Ensi-
no e Práticas Educacionais (DTEPE); integrante do grupo de pesquisa Com-Versações (PPGE-UFES) jackiemagalhaesbrum@gmail.
com.
2 Doutora em Educação pela Universidade Federal do Espírito Santo (UFES), professora da Educação Básica do Município de Serra –
ES e Pedagoga no município de Vitória – ES; integrante do grupo de pesquisa Com-Versações (PPGE-UFES) doutoradonermoreira@
gmail.com.
3 Moodle – Plataforma de Ambiente Virtual de Aprendizagem baseada em software livre, a qual é adotada pela EaD da Ufes. Trata-se
de uma ferramenta que possui diversas possibilidades de comunicação entre professor-aluno, aluno-aluno e aluno-professor, como
chats, fóruns de discussão, entre outras.
Com base nos enunciados discursivos produzidos pelos profissionais que atuam
nos polos (coordenadores/as, tutoras, professores/as...), nas redes de conversa-
ção se constituem as análises e problematizações dessa composição. Nesse de-
bate, utilizamos como intercessores teóricos autores de base pós-estruturalista:
Roberto Machado (2009), ao analisar a pintura, com os conceitos deleuzianos
que concernem à noção de área redonda, contorno, superfície plana e figura
desfigurada atuam como intercessores teóricos na composição desta escrita, ao
Deleuze (1997) alerta-nos que, no sentido restrito, a filosofia cria, fabrica concei-
tos, no entanto as ciências, as artes são igualmente criadoras; na esteira de Vas-
294 concelos (2005), consideramos que a relação da filosofia com a arte ocorre com
a criação de conceitos e a intercessão teórica é a força que atua na conexão entre
FORÇA, FORMA E PINTURA: MOVIMENTOS NA FORMAÇÃO CONTINUADA
DE PROFESSORES A DISTÂNCIA
295
“A matéria é de qualidade, porém precisaria de uma maior interação
com os professores.” Polo Frédéric 5
4 Para não identificarmos alunos e professores, utilizamos nomes de pintores de tela de diferentes continentes.
DOBRA 15 _ Carlos Chenier de Magalhães. Expansão XIV. 1968.
296
FORÇA, FORMA E PINTURA: MOVIMENTOS NA FORMAÇÃO CONTINUADA
DE PROFESSORES A DISTÂNCIA
Fonte: INDOLPHO BARBOSA LIMA E CARLOS CHENIER: A crítica de arte em Vitória-ES entre as décadas de 1940-1980.
(Acesso em 12-11-2019) L
5 As dobras são como um terceiro que atrapalha a binaridade. Estão ora dentro e ora fora, produzindo uma desterritorialização. A
dobra é como uma linha de fuga... (BRUM, 2010). Assim utilizamos, em alguns momentos, a pintura de Carlos Chenier de Maga-
lhães para fugir das representações na pintura.
2.1 Macro e micropolítica
Nesse sentido, “[...] decifrar os sinais das formas nos permite existir social-
mente” (ROLNIK, 2018, p. 52). Com essa frase, a autora instiga-nos a perceber
como os modelos socialmente aceitos acabam por fazer parte e controle de
nossa subjetividade, mostrando, a partir daí, que forças podem modificar esse
statu quo. Uma vez que nossos corpos podem contestar a partir das relações
que são estabelecidas com outros corpos e não só necessariamente corpos,
6 Expressão de Rolnik (2018, p. 32) para cafetinagem: “Se a base da economia capitalista é a exploração de força de trabalho e da
cooperação intrínseca à produção para delas extrair mais-valia, tal operação – que podemos chamar de “cafetinagem” para lhe dar
um nome que diga mais precisamente a frequência de vibração de seus efeitos em nossos corpos. Portanto cafetinada seria uma
vida explorada e não uma vida em sua potência de existir”.
Na continuidade desse tecer, trazemos uma pergunta de Rolnik (2018, p. 92):
“Mas o que, afinal, teria a arte a ver com tudo isso?” Ela passa uma visão pouco
otimista do poder da arte no início de sua conversa, devido ao consumo capi-
talístico que acontece no meio das artes, nos tempos atuais. No entanto, ela
leva depois à discussão a ideia da potência política da arte que, na sua pulsão,
pode modificar ou não, dependendo das forças ativas ou reativas em questão e
de toda uma conjuntura política, social, econômica e cultural. Machado (2009),
problematizando conceitos deleuzianos (1997), por sua vez aposta nos signos
artísticos: literatura, pintura, cinema, teatro, entre outros, como intercessores po-
tentes para problematizar o instituído e como uma possibilidade de vida não
“cafetinada”. Aqui, neste texto, escolhemos a pintura.
nik (2018) e Machado (2009). Este último, ao falar sobre Deleuze e a pintura
(p. 225-244), diz-nos que Deleuze, em seu livro Francis Bacon: a lógica da
sensação, ao definir a pintura de Francis Bacon, faz dois tipos de análises: uma
estrutural e outra genética. Em relação à análise estrutural, ele identifica três
elementos: a figura, o contorno e a grande superfície plana. Em nosso estudo,
vamos ater-nos à análise estrutural.
Fonte: Imagem da pintura de Francis Bacon disponibilizada e compartilhada pela internet (acesso em 29-7-2019)
Ele vai chamar esse estilo de pintura como de uma carne, uma vianda, em que o
corpo e os ossos se confrontam, e problematiza a questão dizendo: “O corpo só
se revela quando deixa de ser sustentado pelos ossos, ou quando a carne deixa
de recobrir os ossos, quando ambos existem um para o outro, em tensão em
confronto, mas cada um em seu lugar” (MACHADO, 2009, p. 228). Esse pensa-
mento remete-nos às questões apontadas por Rolnik (2018) sobre o que move os
agentes, suas intenções, critérios de avaliação, modos de operação, modos de
cooperação na macro e na micropolítica (p. 131-145).
Ao problematizar a figura desfigurada, Deleuze nos brindará com vários con-
ceitos, criados por ele e Guattari, tais como: rostidade, corpo sem órgãos,
devir animal, desterritorialização, diferença entre virtual e atual, sensações,
intensividades, entre outros (DELEUZE; GUATTARI, 1995, 1997). Ele o faz para
concluir que:
300
O terceiro elemento – a área redonda ou contorno. Funciona como limite co-
mum, é o elo, o lugar de troca, nos dois sentidos: da figura para a superfície plana
FORÇA, FORMA E PINTURA: MOVIMENTOS NA FORMAÇÃO CONTINUADA
DE PROFESSORES A DISTÂNCIA
Fonte: Imagem da pintura de Francis Bacon disponibilizada e compartilhada pela internet (acesso em 29-7-2019)
Como que essas conceituações podem nos forçar a pensar a formação docente a
distância, tendo o signo da pintura compondo com essa problematização? A no-
ção de figura em Bacon ajuda-nos nesse movimento, sobretudo ao questionar o
modelo, a placa, a representação. Na primeira etapa do curso de especialização
em Matemática na Prática, foram produzidos fascículos com registro de conteú-
dos e atividades a serem cumpridos pelos(as) professores(as) em formação. A for-
ça prescritiva do fascículo (figura, representação, forma) parece compor com o
“bom resultado” na aprendizagem do curso; no entanto, forças outras se movem
questionando o uso do fascículo como única fonte e avaliando como potente o
fato de alguns professores utilizarem estratégias para além da apostila, como nos
relatos que se seguem:
Essa tensão e esse deslocamento de mão dupla, que Deleuze observa na pintu-
FORÇA, FORMA E PINTURA: MOVIMENTOS NA FORMAÇÃO CONTINUADA
DE PROFESSORES A DISTÂNCIA
7 O Abecedário de Gilles Deleuze é uma realização de Pierre-André Boutang, produzido pelas Éditions Montparnasse, Paris. No
Brasil, foi divulgado pela TV Escola, Ministério da Educação. Tradução e Legendas: Raccord [com modificações] Fonte:http://
escolanomade.org/wp-content/downloads/deleuze-o-abecedario.pdf.
“Tem me feito estudar mais e me dá oportunidade de melhorar mi-
nhas atividades em sala de aula.” Polo Dionísio 2
Em um dos polos visitados, o grupo tecia redes de afetos com a poesia, o teatro,
a música, em bons encontros possibilitados entre os estudantes, professores, tu-
tores e tantos outros que se movimentaram na composição do Sarau8, do Projeto
304
Faróis9; em outro, conhecemos o relato de experiências nos ambientes virtuais
(não apenas no Moodle) de redes de conversas, coexistindo com o formato dito
FORÇA, FORMA E PINTURA: MOVIMENTOS NA FORMAÇÃO CONTINUADA
DE PROFESSORES A DISTÂNCIA
oficial.
8 Encontros promovidos por um dos Polos, pelo menos uma vez no ano, povoados de afetos em que a poesia, a música e performan-
ces coexistem em uma noite de bons encontros entre alunos, professores, coordenadores e tantos outros que quisessem compor
com as grupalidades.
9 Projeto de extensão que possibilita o acesso da comunidade ao espaço do Polo com oferta de cursos para a comunidade local...
Para além dos editais e seleções oficiais.
CONCEFOR no IFES, mas tenho preferência pela publicação.
Obrigada pela atenção e aguardo retorno breve.
Atenciosamente,
“O Senhor é o meu Pastor e nada me faltará.”
(Mensagem recebida por e-mail em 4-5-2018)
***
305
Olá “Esther”.
Foi publicado um artigo de uma ex-aluna juntamente comigo referen-
te ao trabalho realizado no curso de especialização em matemática
na prática da Ufes. Segue o texto em anexo.
Um abraço,
“Van Gogh”
“Van Gogh”,
Meus parabéns! Por favor, transmita minha alegria também a sua alu-
na de TCC. É muito bom para o curso, inclusive colocarei no relatório
final da segunda turma.
Abraço,
Profa. “Esther”
(Mensagens trocadas em 3-7-2019)
DOBRA 2 _ Carlos Chenier. S/t.
306
FORÇA, FORMA E PINTURA: MOVIMENTOS NA FORMAÇÃO CONTINUADA
DE PROFESSORES A DISTÂNCIA
Fonte: LINDOLPHO BARBOSA LIMA E CARLOS CHENIER: A crítica de arte em Vitória/ES entre as décadas de 1940-
1980. (acesso em 12-11-2019)
Nessa tensão, qual seria o limite comum? O elo, o lugar de troca, nos dois sen-
tidos: da figura para a superfície plana e da superfície plana para a figura? Da
prescrição e da criação? Apostamos, como na pintura em Bacon, nas composi-
ções que buscam escapar de uma forma, expandir, dissipar, por uma docência
em devir.
São essas composições que se movem nos encontros, bons encontros, que nos
fazem apostar na formação continuada, na modalidade à distância, no poder de
invenção e de criação de nossos professores e alunos, apesar de toda a prescri-
ção. São obras de arte – pinturas – em aberto.
307
3 Conversações
Como dito, realizamos uma pesquisa de natureza qualitativa e utilizamos ele-
mentos da pintura de Francis Bacon – figura (forças), contorno (elemento rela-
cional) e grande área plana (formas), para fazermos uma análise discursiva dos
sujeitos envolvidos.
Fonte: LINDOLPHO BARBOSA LIMA E CARLOS CHENIER: A crítica de arte em Vitória-ES entre as
décadas de 1940-1980. (Acesso em 12-11-2019)
Observamos que a forma está presente nos discursos, uma vez que a fala de
uma aluna aqui transcrita demonstrou que gostaria de que houvesse apenas
um modelo para a apresentação de trabalhos, mas ela não é a única a pedir
que os documentos sejam os mais prescritivos possíveis. Por outro lado, há for-
ças ativas agindo, pois confirmaram gostar do curso, reconheceram a potência
das interações e das aprendizagens produzidas. Ou seja, algum agenciamento
positivo os tocou.
310
“Particularmente estou amando o curso, tem sido enriquecedor para a
minha formação e preparo para a profissão; mesmo o curso sendo se-
FORÇA, FORMA E PINTURA: MOVIMENTOS NA FORMAÇÃO CONTINUADA
DE PROFESSORES A DISTÂNCIA
“Mais vídeo aulas, pois eu penso que ajuda muito, e senti falta de We-
bconferência, porque, mesmo o curso sendo a distância, eu aprendo
mais quando o professor fala.” Polo Dionísio 3
“Ter uma interação com os cursistas dos outros polos, como por
exemplo, uma aula na UFES antes de iniciar cada disciplina.” Polo
Frédéric 10
10 Em parágrafo anterior, as enunciações apresentaram forte ênfase à metodologia e conteúdos curriculares de matemática trabalhados
no curso. Nesse momento da conversa, no entanto, as metodologias são citadas como trabalhadas em menor intensidade no curso.
“No caso da matemática discreta, o material foi bom, porém soli-
citei vídeos para facilitar o aprendizado. A tutora solicitou que eu
pesquisasse no Google, assim fiz, mas acho que, quando o professor
seleciona esse material, fica mais direcionado.” Polo Michelangelo 4
314
DOBRA 4 _ Carlos Chenier. Rivers, A Flor. 1968.
FORÇA, FORMA E PINTURA: MOVIMENTOS NA FORMAÇÃO CONTINUADA
DE PROFESSORES A DISTÂNCIA
Fonte: LINDOLPHO BARBOSA LIMA E CARLOS CHENIER: A crítica de arte em Vitória/ES entre as décadas de 1940-
1980. (acesso em 12-11-2019)
Ao olharmos para essas cinco ou seis camadas elencadas aqui, constatamos
que o curso tem potencial, apesar de prescritivo, que os professores (estudantes)
precisam de uma formação continuada de qualidade e que a comunicação en-
tre professores e alunos precisa melhorar. Ou seja, vimos claramente a tensão
existente entre estrutura e figura, quando a estrutura tenta contrair, diminuir a
potência de criação e ao mesmo tempo a figura busca expandir-se em um corpo
sem órgãos, em uma pintura em devir. E todo esse movimento só será capaz de
Essa organização parece reverberar nos discursos produzidos nas redes de con-
versação que apontam a necessidade de garantir os formatos, os mapas das dis-
ciplinas, os projetos de cursos, como perenes, por vezes, estáticos. No entanto,
as brechas, fissuras, intensidades e forças se engendram na busca de outros pos-
síveis da formação docentes que perfurem os clichês e permitam que experiên-
cias fluam em compassos provisórios, em que órgãos determinados (política de
federalismo, diretrizes, por exemplo) se constituam provisoriamente, sobretudo
quando a intensidade de forças micropolíticas avançar no sentido de aprendiza-
gens outras, inventivas; “[...] é abrir o corpo a conexões de intensidades, é liber-
tar ou produzir intensidades” (MACHADO, 2009, p. 233). Quando nos referimos
à provisoriedade, não estamos desconsiderando a existência das normatizações
e políticas públicas de oferta da formação docente em EaD, mas considerando
que esses engendramentos coexistem com outras forças que atuam para além da
prescrição, animam o corpo, captam forças e produzem a diferença, rompendo
com o dogmatismo e templates que insistem em engessar modos outros que
pulsam na formação docente.
políticas ativas ser um possível para a transformação, visto que as forças reativas
não conseguem afetar e... mudar o instituído.
Referências
BRUM, Jaqueline Magalhães. Redes cotidianas de saberes e fazeres mate-
máticos: sobre possíveis potências e experiências de vida. (2010), 122-134
f. Tese (Doutorado em Educação) – Programa de Pós-Graduação em Edu-
cação do Centro de Educação da Universidade Federal do Espírito Santo,
Vitória.
DELEUZE, Gilles. Conversações. Tradução Peter Pál Pelbart. Rio de Janeiro:
Editora 34, 1992.
318
FORÇA, FORMA E PINTURA: MOVIMENTOS NA FORMAÇÃO CONTINUADA
DE PROFESSORES A DISTÂNCIA
QUANDO AS
IMAGENS VÃO
À GUERRA:
CURRÍCULO,
Thiago Ranniery
Júlia Pompeu
14.
Thiago Ranniery1
Universidade Federal do Rio de Janeiro
Júlia Pompeu2
Universidade Federal do Rio de Janeiro
320
TÍTULO
1 Professor do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal do Rio Janeiro, líder do Bafo! Grupo de Estu-
dos e Pesquisas em Currículo, Ética e Diferença e atual Vice-Diretor da Faculdade de Educação. É Jovem Cientista Nosso Estado
da FAPERJ.
2 Graduação em Ciências Biológicas Licenciatura pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, foi Bolsista de Iniciação Científica
da FAPERJ (2019-2020) e é atualmente Bolsista de Iniciação Científica do CNPq.
3 Abriremos cada uma das sessões deste texto com uma imagem do arquivo por nós explorado, esperando que funcionem como
epígrafes.
Wolbito. O nome pode soar um tanto estranho à pesquisa em currículo. Trata-
se, contudo, de uma forma de combate a transmissão de doenças epidêmicas
como a Dengue, Zika e Chikungunya, promovido pelo World Mosquito Program
(WMP), uma iniciativa global sem fins lucrativos. O programa WMP, iniciado na
Austrália e trazido ao Brasil por iniciativa da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz)
no Rio de Janeiro, pretende combater as epidemias virais transmitidas por mos-
quitos Aedes aegypti ao redor do mundo. O método é relativamente simples
4 A principal hipótese é que há uma disputa entre vírus e bactérias por nutrientes no espaço intracelular dos mosquitos.
5 Por meio de um mecanismo chamado incompatibilidade citoplasmática, uma fêmea do mosquito com a bactéria ao copular um
macho com ou sem a presença da bactéria produz ovos com a Wolbachia. No entanto, quando machos com a bactéria copulam
com fêmeas sem bactéria, não há produção de prole.
6 Texto produzido no âmbito do projeto Currículo, ontologias e estudos queers: o vírus como uma figura de poder com financia-
mento da FAPERJ e do CNPq.
“cruzamentos perpétuos” (DELEUZE; GUATTARI, 2010, p. 33) entre “a ciência
[que] tira prospectos (proposições que não se confundem com juízos), e a arte
[que] tira perceptos e afectos (que também não se confundem com percepções
ou sentimentos)” (DELEUZE; GUATTARI, 2010, p. 33) e nos quais “a linguagem
é submetida a provas e usos incomparáveis” (DELEUZE; GUATTARI, 2010, p.
33). E, se, assim, insistimos em aproximar imagem, ciência e currículo é porque,
como, certa vez, Dumit (2008, p. xiii) afirmou, “simplesmente não há espaço
fora do laboratório, [...] e há nenhuma parte do laboratório que não seja um
local de [...] invenção social, política e artística”. Essas imbricações nos in-
vestigam a pensar sobre o lugar oscilante das imagens nas economias globais
da biossegurança7 – e damos ênfase a oscilação a fim de ressaltar as ambíguas
possibilidades de abertura de futuros alternativos.
7 Extrapolaria aos limites deste texto qualquer caracterização ampla da contestada noção de biossegurança. Nós nos contentamos,
aqui, em aceitar provisoriamente a sugestão de Heather Paxson (2008) sobre a emergência de práticas que transformam os micró-
bios em elementos a serem exterminados para que as práticas humanas possam florescer.
Em certo sentido, o que estamos chamando de um profícuo arquivo visual acom-
panha esses sites em eco com uma consideração de Strathern (2014, p. 219) ao
defender que “um artefato ou uma performance [...] são como imagem”. O arte-
fato Wolbito, isto é, um “corpo tecnocientífico” (HARAWAY, 1997, p. 47), é um
arquivo performático imagético. Para seguir nesse direção, nós seguimos também
com a notação de Edwards (2001, p. 18) sobre como as imagens “tem uma quali-
dade performática, um tom afetivo, uma relação com o observador, uma fenome-
Para tanto, dividimos este texto em duas seções. Na primeira, sugerimos como
a imagem é convocada para lidar com a a presença monstruosa da combinação
mosquito, bactéria e tecnologia sem que dispense ou preceda essa fantasmagoria.
Essas relações não são simétricas, envolvem trabalho mútuo, produzem atritos e
fricções e podem levar ao fracasso, de modo que suas recalcitrâncias ensinam
sobre as “normatividades sujas” (ABRAHAMSSON; BERTONI, 2014, p. 140) que
operam nas tramas curriculares. Esta é uma trama que implica, já afirmava William
Pinar (2016), um material compartilhado com os outros; em nosso caso, com “os
nossos outros da Terra”, na aguda expressão de Plumwood (2002, p. 27). Na se-
gunda parte, exploramos como essa convocação torna ambivalente agir enquanto
estamos juntos com esses outros: o currículo se torna o campo de construir uma
8 Ver, por exemplo, Kirsey e Helmreich (2010) e Van Dooren. Kirskey e Münster (2016).
aliança eco-imagética interespécies. O Wolbito não é apenas uma ferramenta
usada para documentar um experimento científico e visualizar uma prática social
realizada por cientista endereçada para professores e estudantes. Ao invés disso,
como um artefato imagético, envolve o currículo em processos co-constitutivos
de tornar-se com (HARAWAY, 2008) que quebram as distinções entre natureza e
cultura, humano e não-humano, o social, o tecnológico e o ecológico.
FIG. 2 _Abertura
da sessão sobre a bactéria do gênero Wolbachia no site
Wolbito na Escola
324
TÍTULO
“A natureza humana”, como escreve Anna Tsing (2012, p. 144), “é uma rela-
ção entre espécies” e é, portanto, perpetuamente mutável. Somos uma espécie
contingente à história, ela própria contingente a outras espécies, às “várias teias
de domesticação nas quais nós, humanos, nos enredamos” (TSING, 2012, p.
144). Essas teias estruturam não apenas práticas de consumo e de trabalho, mas
também de intimidade e afeto. Tsing (2012), ao escrever sobre o emaranhado
histórico de cereais, fungos e humanos, traça o lento desenvolvimento de um
e sessões dos sites) em torno do Wolbito. Uma história, sem dúvida, de ansie-
dades, posto que reúne guerra, mosquitos, vírus e práticas científicas, afetando
uns aos outros mutuamente em ligações que são, ao mesmo tempo, “hidráuli-
cas, químicas, militares, políticas, etiológicas e mecânicas” (MITCHELL, 2002,
p. 23). Essas ligações retêm alguma heterogeneidade que resiste à explicação ao
misturar os mundos natural e social e exigir “reconceber a própria vida como um
conjunto interdependentes em sua maior parte não desejadas, [...] o que implica
que a ‘ontologia’ do humano não pode ser separada da ‘ontologia’ do animal”
(BUTLER, 2015, p. 116). Em nossa sugestão, o Wolbito medeia, materializa e tor-
na visível não somente o vírus, mas o modo pelo qual esta mistura ambivalente
de fronteiras é performada. Ao comentar as fotografias da guerra, Butler (2015, p.
110) sugere que a questão “não concerne apenas ao que ela mostra, mas como
mostra o que ela mostra”. De tal modo, no argumento da autora, a imagem
não estaria à espera de ser interpretada por um sujeito, antes “ela mesma está
interpretando ativamente” (BUTLER, 2015, p. 110). Inspirado nessa afirmação,
podemos apontar que o arquivo visual não apenas retrata o experimento políti-
co-científico de combate chamado Wolbito, mas se torna crucial para produção
da política e seu estatuto de legibilidade.
De fato, Stevens (2013, p. 157), em sua etnografia sobre a digitalização dos labo-
ratórios de ciências biológicas, argumenta que “modos biológicos de conhecer
o mundo e modos de digitais de conhecer o mundo são colocados em diálogo
[...] através da imagem”. O ponto que nos interessa dessa ponderação é como
Um fator importante dessa história é como a imagem “que atua sobre nós em
parte sobrevivendo à vida que documenta” (BUTLER, 2015, p. 145). A propaga-
ção do arquivo visual Wolbito é importante para o programa, não apenas porque
ampliaria o número de mosquitos com as bactérias nos ambientes ou porque o
criaria uma população civil treinada para trabalhar e reconhecer os mosquitos
transmissores de vírus. É importante, sobretudo, porque a inteligibilidade da mis-
tura é fortemente afetada e dependente da convocação da imagem à guerra. Muito
embora tenhamos nossas dúvidas de tomar tal prática um exemplo de ciência
nômade, tal como discutida por Deleuze e Guattari (2012), em parte pela longa
associação com o idioma militar, o arquivo visual não deixa de testemunhar um
regime através do qual se permite uma organização alimentar a própria variação.
Todavia, podemos sugerir que que a imagem nos faz olhar não para uma ciência
em geral e abstrata, mas para uma ciência que se exprime por “obsessões, rema-
nências e reaparições das formas” (DIDI-HUBERMAN, 2013, p. 25). Aqui, práticas
tecnológicas, científicas e educacionais que “não est[ão] convergindo para uma
verdade final, mas sim crescendo e divergindo enquanto rastreia[m] uma realida-
de que é ela mesma divergente” (DE LANDA, 2010, p. 93).
Para seguir com Didi-Huberman (2013, p. 32-33), todo o percurso pelo arquivo
visual do Wolbito traz “mais do que um saber em formação, [é] antes um saber
em movimento que aos poucos se constituiu, pela ação – aparentemente errática
– de todos esses deslocamentos metodológicos”. Um aparente paradoxo? Talvez.
Porém, seja de que for, por meio de uma série de experimentos imagéticos –
vídeos, desenhos, esquemas, disponibilidade de canais para comunicação – o
Wolbito não deixa de ser enquadrado como mais sociável que o Aedes, mesmo
quando um está embutido no outro. O Wolbito é melhor não somente em virtu-
de da bactéria dificultar a replicação viral, mas porque esses mosquitos bio-tec-
no-imageticamente criados são criados conosco e por nós. A virada visual está
nesta mobilização de alianças afetivas. Enquanto outras políticas de combate
328
dependem do Estado adquirir meios de acessar a população e no controle dos
hábitos humanos como forma de reduzir as contaminações, O WMP é condicio-
QUANDO AS IMAGENS VÃO À GUERRA: CURRÍCULO, MOSQUITOS, BACTÉRIAS,
VÍRUS, CIÊNCIAS, TECNOLOGIAS…
nado pela mobilização das imagens criar o Wolbito de acordo com afetos de in-
timidade – o Heróis contra a dengue, no título de uns dos vídeos. Nem o Aedes
nem a bactéria estão contra nós, eles estão conosco quando se percebe que as
imagens participam desse enovelados de obrigações articuladas nos emaranha-
dos de naturecultura, na provocadora e instigante expressão de Haraway (2008).
9 Em 2019, foram registrados no Brasil 1.439.471 casos prováveis de dengue, 110.627 casos prováveis de Chikungunya e 9.813
casos prováveis de Zika em 2019 (BRASIL, 2019).
10 Os vírus pesam como aquilo que jaz excluído do complexo enquadramento dessas teias emaranhadas de tecnologia, ciência e edu-
cação. No entanto, extrapolaria aos limites deste texto explorar o enredamento imagético que estamos explorando nesta direção.
de uma expressão de Haraway (2008). Se o Aedes é quem traz a doença, o Wol-
bito é artefato aliado, signo imageticamente de uma união tecno-científica entre
bactéria e tecnologia. O que estamos sublinhando é, assim, que um aspecto
deste arquivo visual é como as relações interespécies, fomentadas por institui-
ções científicas e programas estatais de educação e divulgação científica, são
performadas através das imagens. Não seria sem propósito, portanto, aproximar
a convocação das imagens à guerra de um trabalho de tornar-se com, de modo
que impulsiona o currículo para um tornar-se com outros, sejam insetos, bac-
térias, tecnologias e as próprias imagens. Ao aplicar a provocação de Haraway
(2008) ao arquivo visual Wolbito, essa teia emaranhada de mosquitos, bactérias,
tecnologia e vírus é uma parte extensa, embora nem sempre considerada, da
relação entre currículo e subjetividade. Ao testemunhar uma infinidade de seres,
lugares e coisas em contínua relação de deriva, a imagem traça um conjunto
mais amplo e aberto formado pelo que Rotman (2008, p. 104) considerou como
para-selfies a fim de sugerir que estamos “fora de nós com alegria e dissolução,
intermitentemente presente para nós mesmos, cada um de nós um para-self”.
330
Para-selfs têm uma relação subsidiária conosco, podem ser irregulares, desorde-
nados ou impróprios. De tal modo, as imagens também são, aqui, para-sites, ao
QUANDO AS IMAGENS VÃO À GUERRA: CURRÍCULO, MOSQUITOS, BACTÉRIAS,
VÍRUS, CIÊNCIAS, TECNOLOGIAS…
estilo do trocadilho proposto por Kirsey (2012, p. 50), “assumindo valores dife-
rentes dependendo de suas posições em relação a outros seres que vivem com
elas sistemas comuns”. Em resumo, quando Paul Kockelman (2010) entende a
subjetividade como um agenciamento, uma montagem de seres e coisas que
chamamos de nossas, não é despropositado concluir que ações orientadas para
o combate aos outros os incluem no próprio agenciamento e, no arquivo visual
Wolbito, só podem fazê-lo através da imagem, ou ainda, da imagem como meio,
como um campo de montagem e aliança, de montagem de alianças. Neste com-
plexo campo das relações eco-imagéticas, uma advertência de Dumit (2008, p.
xii) é instrutiva: “Nunca pense que você conhece todas as espécies envolvidas
em uma decisão. Corolário: Nunca pense que você fala por si mesmo”. Ao invés
da universalidade da ciência e da narrativa da composição de seus objetos e dis-
cursos tecno-científicos, convertido, por meio da imagem, é possível perceber
como se é submetido a um campo de afecção que espraia a atividade das prá-
ticas científicas entre entidades e processos heterogêneos, abrangendo fluidez,
transformação e mutabilidade.
Alianças eco-imagéticas, imagem-vetor
Com esta imagem do Aedes, nós nos voltamos, agora, para a provocação de
Haraway (2008, p. 82), de que “às vezes uma ‘cura’ para o que nos mata, seja o
que for, simplesmente não é razão suficiente para manter as máquinas de matar
funcionando no nível ao qual nós (quem?) nos acostumamos”. De fato, quando
Haraway (2008) questiona, não o uso de animais em laboratórios, mas como
esses animais são tratados e encaminhados à morte, levando a normalização da
morte do outro por um bem humano maior, nossa questão não é tanto indicar
que as imagens tornariam mais palatável a manipulação laboratorial de mosqui-
tos e bactérias soltos nas cidades. Nossa ponderação final caminha no sentido de
como a imagem, junto com a bactéria Wolbachia, é convocada a também com-
por o mosquito em laboratório nas múltiplas camadas das políticas de combate
a fim de permiti-lo retornar à vida social sem a máscara de vetor. Em um deslo-
camento, entretanto, a imagem, tanto quanto a agulha da microinjeção, torna-se
um vetor de relações. Nossa insistência em implicar currículo e imagem a partir
do arquivo visual Wolbito é por suspeitar que, nesse retorno imageticamente
mediado, caberia à educação suspeitar da persistente lógica de matança, aquela
de ensinar que é possível dizer quem morre e quem vive, seja esse “quem” hu-
mano ou não. Afinal, “não é matar que nos leva ao exterminismo, mas sim tornar
os animais matáveis.” (HARAWAY, 2008, p. 80).
O título desta sessão conclusiva possa soar um tanto tentador. Contudo, não
estamos reivindicando nenhuma inocência sob o título de alianças eco-imagé-
ticas, mas perguntando sobre como arranjos ecológicos e tecno-científicos são
retrabalhados pelo currículo e como suas ressurgências e recalcitrâncias giram
em torno da vida e da morte. É, bem verdade, que Serres (2009) argumentou que
o parasita é uma fonte de vida. Porém, em alguns momentos, sugere que deve-
mos pôr um fim definitivo ao problema de viver com parasitas e que “pode ser
332
perigoso não decidir quem é o anfitrião e quem é o convidado, quem dá e quem
recebe, [..] quem ganha e quem perde, e onde a hostilidade começa dentro da
QUANDO AS IMAGENS VÃO À GUERRA: CURRÍCULO, MOSQUITOS, BACTÉRIAS,
VÍRUS, CIÊNCIAS, TECNOLOGIAS…
Embora uma sensação de segurança, de não ser devorado por animais selva-
gens grandes e ferozes, seja visceralmente poderosa, os humanos são mortos
com muito mais frequência por bactérias e vírus (BULLER, 2008). Com histórias
descritas como de sucesso evolutivo, os mosquitos e vírus mataram juntos mais
humanos do que qualquer outro animal nas redes globais de segurança (CLARK,
2013). De fato, suas combinações destacaram-se pela capacidade de desencadear
inseguranças infecciosas em grande escala (BARKER, 2011). Logo, apesar das ten-
333
tativas de tornar os espaços de interação humano-não-humano seguros, o arquivo
visual Wolbito não deixa de testemunhar, à contrapelo, uma agência tenaz, adap-
tativa e disruptiva, muitas vezes escapando das práticas regulatórias. Vidas hu-
manas, mosquitos, bactérias e vírus não podem ser separados, mas coexistem ao
longo de teias incertas de interação humano-não-humano (HINCHLIFFE; ALLEN;
LAVAU; BINGHAM; CARTER, 2013). A biossegurança não é o resultado de fron-
teiras rigorosamente policiadas e extermínio implacável que a educação deveria
garantir, mas “configurações espaciais de práticas de conhecimento, organismos e
materiais, [e é] sua diferenciação contínua e não sua integração, que torna a vida
segura uma possibilidade” (HINCHLIFFE; LAVAU, 2013, p. 266).
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15.
CURRÍCULO E ESTÉTICA DA ARTE DE EDUCAR
AS IMAGENS-
CINEMA COMO
MÁQUINAS DE
GUERRA DO 339
PENSAMENTO:
CURRÍCULOS E
DOCÊNCIAS E...
Camilla Borini Vazzoler Gonçalves
Eliana Aparecida de Jesus Reis
Tânia Mara Zanotti Guerra Frizzera Delboni
Camilla Borini Vazzoler Gonçalves (UFES)
Eliana Aparecida de Jesus Reis (SEME/SERRA)
Tânia Mara Zanotti Guerra Frizzera Delboni (UFES)
A origem do ato de pensar implica alguma coisa que violente o pensamento, que
o abale e o arraste numa busca, constituindo-se em um problema. Ao invés de
uma disposição natural, há forças instigadas fortuitamente, provocadas por um
encontro. O que é primeiro no pensamento é o arrombamento e a violência pro-
vocados pelo encontro, entendidos como uma relação que se estabelece com o
exterior, com o fora.
Dessa forma, ao entrar em relação com o fora, o pensamento assume as con-
dições de um encontro efetivo, de uma conexão, e afirma o imprevisível e o
impensável, alojando-se sobre um chão movediço não dominado por ele para
além da imagem dogmática que se assenta, a priori, em uma forma ao fora. Nes-
se tipo de imagem, que se exprime no modelo da recognição, há a preexistência
de um objeto no qual o pensamento deve se alicerçar. “O objeto pensado é
menos o objeto de uma descoberta do que o objeto de um reconhecimento,
pois o pensamento, não estando em conexão de absoluta estranheza com o que
ele pensa ou se esforça por pensar, antecipa-se de algum modo, prejulgando a
forma de seu objeto” (ZOURABICHVILI, 2016, p. 41).
O trajeto nômade pode seguir pistas ou caminhos habituais, mas não tem a 343
É por isso que o nômade não apresenta pontos, trajetos ou terra, embora eviden-
temente ele os tenha, segundo Deleuze e Guattari (2012). O nômade pode ser
chamado de o “desterritorializado por excelência”, porque a reterritorialização
não se faz depois, como no caso do migrante, e nem em “outra coisa”, como no
caso do sedentário, em que sua relação com a terra está mediatizada por outra
coisa, por exemplo, regime de propriedade, aparelho de Estado etc.
Piirongin Piiloissa
Caixas, compartimentos, sequências, números, horários, gavetas. Choca-nos o
curta Piirongin Piiloissa1 quando acompanhamos a sequência de imagens cujas
gavetas armazenam ordenadamente tudo aquilo que aparentemente correspon-
de aos elementos essenciais à sobrevivência da personagem-cômoda. Abre uma
pequena gaveta, lá está o despertador tocando para avisar que é hora de acor-
dar. Fecha. Abre outra que contém apetrechos para fazer e tomar café; há outra
com linhas e adereços ordenamente arrumados; há ainda outras gavetas onde
são guardados esquadros, réguas, pequenos cartões com fórmulas matemáticas;
uma outra onde os objetos/caixinhas estão organizados em ordem de tamanho.
Abre gaveta. Fecha gaveta. Movimentos síncronos. Manter-se ordenada, organi-
zada e limpa parece ser a maior ocupação da personagem-cômoda, pois, dessa
forma, ela se sente tranquila: “Quanto mais a segmentaridade for dura, mais ela
nos tranquiliza” (DELEUZE; GUATTARI, 1996, p. 109). Como não bastasse, a
personagem-cômoda e suas gavetas moram em uma outra caixa, grande e cinza,
346
sem aberturas. A vida, para a personagem, cabe em uma caixa, em uma cômoda.
AS IMAGENS-CINEMA COMO MÁQUINAS DE GUERRA DO PENSAMENTO:
CURRÍCULOS E DOCÊNCIAS E...
1 Piirongin Piiloissa é um curta-metragem finladês, produzido em 2011, por Anni Lahtinen, quando se formou no Departamento de
Animação da Turku Arts Academy. Traduzido em inglês como Chest of drawers, ou Cômoda, em português (tradução nossa. Dispo-
nível em: https://www.youtube.com/watch?v=HwUZ2kH1id0).
O que nos violenta no encontro com os signos artísticos do curta-metragem é
o quanto nos reconhecemos na personagem, capturados pela produção de dis-
cursos-formas que operam em planos de subjetivação do indivíduo, no plano
individual, em identidades fixas do pensamento, de currículos, de docências,
enfim, de vida. Os três grandes estratos com os quais nos relacionamos e que
nos amarram mais diretamente são o organismo, a significância e a subjetiva-
ção: “A superfície de organismo, o ângulo de significância e de interpretação, o
347
Isso ocorre nos modos pelos quais temos produzido processos de ensinoaprendi-
zagem com as crianças nos quais, muitas vezes, há um anseio pela manutenção
de gavetas: de conhecimentos, de horários, de etapas, do tempo chronos. Pres-
crição. Mecanização. Há práticas discursivas que insistem em afirmar que, para
aprender, é necessário abrir e fechar os compartimentos do conhecimento. Para
tal, devemos seguir as batidas do tempo chronos, que sempre está de prontidão
para indicar o momento de abrir e fechar as gavetas. As crianças, as professoras
e os currículos bailam na cronometria desse tempo que corre e, muitas vezes,
escorre pelas mãos.
Por mais insistentes que sejam esses discursos em manter-se intocáveis e imutá-
veis, no que concerne aos processos de ensinoaprendizagem, os corpos sempre
buscam pelos afetos e afeções. Por isso, mesmo que um corpo se mostre despo-
tencializado, “[...] endurecido em suas ações e pensamentos, e, insensível ante
as miudezas da vida, ele pode, no encontro com um signo (uma coisa, uma
música, uma poesia, um cheiro, um corpo), ser afetado por outra forma de exis-
tência; então, esse pensamento se move” (GONÇALVES, 2019, p. 119). Sempre
há o fora que provoca processos de desterritorialização convidando a seguir ou-
tros caminhos aprendentes, mais coletivos e afetivos, cujo tempo não consegue
ser demarcado. Por isso, ele escorre pelas mãos, uma vez que as intensidades
ocupam uma outra temporalidade. Como fazer escapar afetos/afecções para in-
348
tensificar modos outros de escolas, de currículos, de docências?
AS IMAGENS-CINEMA COMO MÁQUINAS DE GUERRA DO PENSAMENTO:
CURRÍCULOS E DOCÊNCIAS E...
O que de pior poderia acontecer em uma loja de objetos frágeis como porce-
lana? No curta-metragem de animação Comme un elephant dans un magasin
de porcelaine,2 o vendedor atento cuida de cada objeto de modo a garantir que
xícaras, pires, pratos, bules, jarras e peças de decoração de porcelana estejam
sempre bem limpos e dispostos meticulosamente nas também frágeis prateleiras
de vidro. Mas quem imaginaria que, em um dia aparentemente “normal”, um
enorme elefante azul adentraria misteriosamente a pequena loja? Elefante e
vendedor se veem desafiados para que a “monstruosidade” saia da loja. Entre as
prateleiras de vidro, o lustre de cristais e as delicadas (e lindas) peças de porce-
lana, o enorme elefante tenta se contorcer e se mover em direção à única saída
para a porta.
2 Produzido em 2017 por Louise Chevrier, Luka Fischer, Rodolphe Groshens, Marie Guillon, Estelle Martinez, Benoit Paillard e
Lisa Rasasombat, da École Supérieure des Métiers Artistiques (Esma). (Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=h_aC8p-
GY1aY&ab_channel=ESMAMovies).
IMAGEM 4 _ O inusitado acontece
352
Fonte: Comme un elephant dans un magasin de porcelaine (YouTube).
AS IMAGENS-CINEMA COMO MÁQUINAS DE GUERRA DO PENSAMENTO:
CURRÍCULOS E DOCÊNCIAS E...
Em uma articulação de forças, somos capturados pelos arroubos que o efeito das
imagens-cinema provoca em nós. O que nos dá a pensar? A força do pensamen-
to é intensificada e produzimos outras imagens. As linhas não param de se reme-
ter umas às outras, pois os movimentos de desterritorialização e os processos de
reterritorialização estão presos uns aos outros, coexistem e se complementam.
Os caminhos de aprendências com as crianças também têm dessas coisas: ser
sensível à delicadeza e singularidade delas e caminhar junto aos (des)equilí-
brios curriculares que elas produzem. Talvez o professor seja como o cuidadoso
vendedor que, no encontro das crianças com os signos, sensibiliza-se às suas
criações e atualiza as virtualidades fabuladas por elas, produzindo, assim, pos-
sibilidades inesperadas para caminhar por currículos imanentes que escapam à
lógica de controle imposta pela ciência moderna.
Entretanto, o que nos afeta aqui não é a saída do elefante da loja, mas os agen-
ciamentos produzidos, os afectos que criaram movimentos, velocidades, inten-
sidades. “Os afectos atravessam o corpo como flechas, são armas de guerra”
(DELEUZE; GUATTARI, 2012, p. 18).
Nas criações aprendentes que produzimos com as crianças, os signos que por
elas são fabulados, às vezes, podem parecer enormes elefantes que, no plano da
virtualidade, buscam a atualização. Afetar-se às fabulações das crianças corres-
ponde a sensibilizar-se com o inesperado, o inusitado e o fantasioso. Quando
essas virtualidades se atualizam e se realizam em mundos compossíveis, cria-
ções imanentes de currículos aparecem misteriosamente indicando-nos (des)ca-
minhos inusitados de proliferação de aprendências com as crianças.
A pequena raposa busca meios para coletar um pouco de água de chuva que
cai incessantemente. A água escorre pela organização cinza da metrópole, cujos
prédios, praças e pessoas demostram certa apatia pela cidade. Porém, a raposa,
em seu pelo em tom alaranjado e munida de uma pequena sacola furada, cor-
re por todos os cantos em busca de um pouco de água. Um menino com seu
guarda-chuva é capturado pela cena inusitada e, logo, identifica que aquela não
poderia ser uma boa alternativa para coletar a água de chuva. Aproxima-se, en-
tão, da raposa e, agarrado a ela, sai correndo, pois imaginava qual deveria ser a
resolução para aquele problema.
Muitas vezes, nas relações com as crianças, acreditamos ser possível indicar
os caminhos e meios para a aprendizagem, assim como fez o menino, obser-
356 vando de longe o problema e, imediatamente, buscando a solução. Todavia, as
aprendências e as ensinagens acontecem nas relações, no contato, na criação
AS IMAGENS-CINEMA COMO MÁQUINAS DE GUERRA DO PENSAMENTO:
CURRÍCULOS E DOCÊNCIAS E...
O menino, então, segue para uma loja para comprar um pote e resolver o pro-
blema da raposa, mas, com poucos recursos, sai da loja frustrado com a peque-
na raposa e seu guarda-chuva. A raposa segue com a sua sacola em busca de
água e o menino abre o seu guarda-chuva para tentar proteger a raposa. Prosse-
guem caminhando menino e raposa, até que o inesperado os surpreende e, no
envolvimento afetivo, outras possibilidades de criação de caminhos aprendentes
se manifestam. Um vento inesperado leva o guarda-chuva que cai no chão vira-
do ao contrário. A pequena raposa e o menino identificam que aquele objeto,
usado de outro modo, pode servir de coletor de água de chuva. Eles saem em
busca das pequenas gotas pela cidade. A cada gota de chuva, o menino e a ra-
posa ficavam mais próximos, mais amigos, desafiando-se a experimentar outros
modos de agenciamentos, desterritorizalizando, juntos, caminhos aprendentes
que, na relação, ambos ensinam e aprendem.
IMAGEM 4 _ Composição de afetos
Tal qual a relação professor-aluno, ora ensinamos, ora aprendemos, ora fazemos
as duas coisas ao mesmo tempo. Mecanismos de controle instituídos em proces-
sos educativos, quando orquestrados pela lógica de um desenvolvimento linear
e progressivo da aprendizagem, tentam reduzir a docência à mera mecaniza-
ção dos processos de aprenderensinar. No encontro com o corpo-escola, nosso
corpo-pensamento é sacudido por um cotidiano encharcado de vida imanente
em que há inúmeras possibilidades de fazer a vida expandir. Desse modo, a
relação entre quem aprende e quem ensina extrapola os modelos padronizados
de currículo, de docências, de crianças. No corpo-escola, “[...] experimentamos
os possíveis de um currículo ‘arteiro’, implicante, em composição/relação com
outros corpos, fazendo proliferações com múltiplas variações, tensionadas por
forças de diferentes grandezas e intensidades” (REIS, 2019, p. 80).
Encontros. Afetos. Afecções... Para Spinoza (2008), corpos e ideias são definidos
pela capacidade de afetar e serem afetados e, para o autor, “afeto” é afecção cor-
poral: “Por afeto compreendo as afecções do corpo, pelas quais sua potência de
agir é aumentada ou diminuída, estimulada ou refreada, e, ao mesmo tempo, as
ideias dessas afecções” (SPINOZA, 2008, p. 163). Assim, uma simples alegria é,
358 no corpo, uma afecção que aumenta ou estimula a potência de agir e, na mente,
é uma ideia que aumenta ou estimula sua potência de pensar.
AS IMAGENS-CINEMA COMO MÁQUINAS DE GUERRA DO PENSAMENTO:
CURRÍCULOS E DOCÊNCIAS E...
Em sua ontologia, Spinoza apresenta que corpo e mente são modos de uma
mesma substância, na qual um corpo se distingue de outro por meio de uma
dinâmica própria: “Os corpos se distinguem entre si pelo movimento e pelo re-
pouso, pela velocidade e pela lentidão, e não pela substância” (SPINOZA, 2008,
p. 99). A dinâmica própria do corpo dá-se pelos atravessamentos ou, no sentido
spinozano, pela composição de outros indivíduos: “O corpo humano compõe-
-se de muitos indivíduos (de natureza diferente), cada um dos quais é também
altamente composto” (SPINOZA, 2008, p. 105) e afetado por outros corpos de
várias maneiras: “Os indivíduos que compõem o corpo humano e, consequente-
mente, o próprio corpo humano, são afetados pelos corpos exteriores de muitas
maneiras” (SPINOZA, 2008, p. 105).
Assim, o corpo deixa de ser definido como uma máquina que funciona como
um sistema fechado e passa a ser concebido como uma pluralidade mantida
por uma série de trocas com o ambiente. Os “[...] afetos não têm imagem, nem
palavra, nem gesto que lhes correspondam – enfim, nada que os expresse – e,
no entanto, são reais, pois dizem respeito ao vivo em nós mesmos e fora de nós”
(ROLNIK, 2018, p. 53).
Devido ao fato de vivermos em relação, sendo esta que nos constitui, podemos
dizer que um corpo é definido por tudo aquilo que o distingue de outros corpos
(movimento e repouso, velocidade e lentidão) e também pelos afetos produzi-
dos por outros corpos. A capacidade de um corpo ser afetado por outro deve-se
Qual relação você estabelece com a arte? Qual a relação dos seus alunos
com a arte? Quais os possíveis abertos no encontro entre a arte e a educação?
Foi com questionamentos como esses germinando em nossos corpos que,
ao longo do processo de pesquisa do Mestrado Profissional em Ensino de
Humanidades (PPGEH/Ifes), decidimos montar uma série de oficinas artísticas
junto à comunidade do Território do Bem4 – região periférica5 localizada em
Vitória, Espírito Santo – em parceria com o Ponto de Cultura Varal Agência
de Comunicação6. A escolha da Varal se deu por entendermos o local como
um espaço educativo não-formal, onde se produzem, conforme a percepção
366 de Valéria Aroeira Garcia e Daltro Cardoso Rotta (2012, n.p.), “saberes que
não se baseiam na formalidade educacional”, os quais, com frequência, “são
OFICINAS ARTÍSTICAS NA PERIFERIA:
PRÁTICAS EDUCATIVAS PARA APRENDER E AFETAR O CORPO COLETIVO
1 Mestre pelo Programa de Pós-Graduação em Ensino de Humanidades do Instituto Federal do Espírito Santo (PPGEH/Ifes).
2 Doutor em Filosofia pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC/SP), professor do Instituto Federal do Espírito Santo
(Ifes), professor do Programa de Pós-Graduação em Ensino de Humanidades do Instituto Federal do Espírito Santo (PPGEH/Ifes) e
do Programa de Pós-Graduação em Psicologia Institucional da Universidade Federal do Espírito Santo (PPGPsi/Ufes).
3 Mestre e doutoranda pelo Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal do Espírito Santo (PPGHis/Ufes).
Bolsista da Fundação de Amparo à Pesquisa e Inovação do Espírito Santo (FAPES).
4 Oficialmente, a região é denominada pela Prefeitura Municipal de Vitória como Poligonal 1 e engloba os bairros Bonfim, Conso-
lação, Engenharia, Floresta, Gurigica, Itararé, Jaburu, da Penha e São Benedito. Ver: https://m.vitoria.es.gov.br/cidade/programa-
-terra. No entanto, preferimos nomear tal espaço como Território do Bem – em conformidade com a identificação dos moradores
locais.
5 A região está localizada em uma área central da Ilha de Vitória e próxima a bairros nobres, contudo, a configuração espacial soma-
da aos indicadores sociais e econômicos permitem que seja considerada uma área de periferia, como indica Clara Luiza Miranda
(2017).
6 A Varal é um projeto vinculado à Associação Ateliê de Ideias. Sua sede está no bairro Itararé e serve como ponto de cultura e espa-
ço de produção e divulgação de projetos de comunicação, como formações, reuniões de grupos comunitários e eventos culturais.
As oficinas aconteceram durante os meses de janeiro e fevereiro de 2020, tiveram
várias temáticas e frentes de atuação artística. Este capítulo se dispõe a colocar
em foco algumas das atividades realizadas ao longo dos encontros, destacando
aquelas que nos mobilizaram a pensar uma arte-educação na qual, como indica
Kelly Cristine Sabino (2015), há espaço para a criação de novos modos de vida.
Dentre as diversas atividades realizadas nas oficinas, abordaremos as seguintes:
o encontro elaborado a partir de um material disponibilizado pelo Núcleo de
A “arte é presença de algo que não estava antes; não se trata de revelação de
algo que se escondia, mas de tornar presente um vir a ser ali flutuante. Quando
o jogo artístico acontece, a arte inventa realidades” (ANDRÉ, 2011, p. 437).
Compreendemos, aqui, que a arte é uma das formas pelas quais o sujeito se
relaciona com a intensidade dos afetos (SOLER; KAWAHALA, 2017). Isso significa
que a arte tem a potência de compor linhas de fuga, criar afetos e multiplicar as
singularidades. Ela não pode, portanto, ser reduzida a algo figurativo, a uma mera
representação, pois a arte é, segundo Gilles Deleuze e Félix Guattari (1992), uma
atividade criadora: ela cria blocos de sensações. A arte acontece por intermédio
de percepções e afetações. Por isso, não necessita de uma reflexão sobre ela –
a potência da arte reside nas sensações que experimentamos (DAMASCENO,
2017). Antes de uma técnica ou da produção de uma imagem representativa da
realidade, a arte ocupa o âmbito difuso e conflitivo da experimentação. Não é
nossa intenção, com isso, desconsiderar o lugar da técnica artística, do estudo,
da preparação e da dedicação – fundamentais aos processos em artes. Assim
como no trabalho do filósofo ou do cientista, também há, no trabalho artístico,
muita preparação e atenção. Afinal, não se faz arte de qualquer jeito, porque não
se experimenta de qualquer jeito (DELEUZE; GUATTARI, 1992).
[...] uma arte que seja motriz de uma docência que, ao mesmo tempo
em que se exerce, se experimenta, se (re)inventa e, fundamentalmente,
se vê num plano de construção ética, estética – e, mais do que
368 pedagógico, político –, atuando na diferença, sem pretender acabar
com ela, mas problematizando o consenso e as ideias prontas por
OFICINAS ARTÍSTICAS NA PERIFERIA:
PRÁTICAS EDUCATIVAS PARA APRENDER E AFETAR O CORPO COLETIVO
A educação artística pode, então, atuar como uma potente fusão entre a arte e a
vida, uma experiência que não mais se associa “ao simulacro ou à elevação das
aparências do mundo, mas como projeto ético capaz de modelar a experiência
tanto política quanto estética dentro da própria vida” (SABINO, 2015, p. 205).
Para Liev Vygotsky (2003, p. 227), por exemplo, o ensino de arte se torna
caricaturesco quando procura o “sentido fundamental de qualquer obra
pela explicação ‘do que o autor quis dizer’ e do significado moral de cada
personagem separadamente”. Esta tentativa, de exprimir significados e dogmas
morais das vivências artísticas, deságua em uma compreensão limitada e
estreita da educação artística. Vygotsky parte, diferentemente, do princípio de
uma educação estética como um fim em si mesmo e não apenas como meio
para obter resultados pedagógicos. Para ele, a educação deve se preocupar em
estimular a criatividade e as aptidões criativas.
Para Deleuze e Guattari (1996), o CsO não é uma noção ou conceito. Ele é,
antes, uma prática, uma experimentação inevitável, um limite, um devir outro
do corpo. O CsO passa pela busca de novas formas de experimentar a vida e
coloca o corpo no movimento das sensações e das afetações. Ele intenta compor
subjetividades outras, já não mais assujeitadas às capturas dos dispositivos de
poder, traçando um mundo e produzindo outros modos de ser. A arte pode,
portanto, despertar potências do viver, convidar a uma experimentação e
370
ensejar modos de ser e existir (SOLER; KAWAHALA, 2017). Com as oficinas na
Varal, buscamos seguir os possíveis processos de subjetivação a partir da arte,
OFICINAS ARTÍSTICAS NA PERIFERIA:
PRÁTICAS EDUCATIVAS PARA APRENDER E AFETAR O CORPO COLETIVO
O oficineiro que nos guiava nesse encontro – João Paulo Rocetti, ilustrador,
quadrinista e morador do Território do Bem – fez algumas considerações sobre
o que nomeou “arte política”. Para ele, a política que envolve a arte não trata de
algo necessariamente partidário ou vinculado a alguma ideologia. Só o fato de
registrar as vivências já era o suficiente para “politizar a arte”. Para Rocetti, a arte
está em tudo, no cotidiano, na vida corriqueira, e a produção artística surge daí:
quando alguém está sensível a algo no mundo e compartilha sua sensibilidade
371
em alguma produção artística, de modo que, ocasionalmente, encontra outras
pessoas que também se sensibilizam com ela, mesmo que de formas diferentes.
Movidas pelo desejo de trabalhar com a arte e, ao mesmo tempo, pensá-la com
o corpo, utilizamos, em outra de nossas oficinas, um material elaborado pelo
Núcleo de Ação Educativa da Pinacoteca de São Paulo e distribuído gratuitamente
para professores, com o objetivo de realizar atividades em sala de aula. O
material é composto por uma série de envelopes coloridos, desenvolvidos em
épocas diferentes, e contém neles obras que estão no acervo fixo do museu ou
que passaram por lá temporariamente. As obras são acompanhadas de textos
que instigam reflexões e debates sobre elas, um convite para conhecê-las e
aos artistas responsáveis. Nesses envelopes também há textos de apoio, com
orientações aos educadores e propostas de usos. Um deles nos chamou atenção.
Trata-se de um incentivo aos professores e nos convidava a perceber o ensino
de arte como um estímulo para construir sentidos a partir das experiências. O
professor atuaria, assim, como um mediador e criador de possibilidades para
que os alunos percebam as obras e inventem sentidos para elas a partir de
suas singularidades (CHIOVATTO, 2016). Sendo assim, o material ressalta que
nenhuma utilização rígida pode se impor à obra, porque o encontro com a arte
é sempre singular.
acaso, ao improvável e, especialmente, aos modos pelos quais a arte afeta cada
corpo e, com isso, produz subjetividades.
FIGURA 2 _
Detalhe da obra Parede da Memória (1994-2015), de Rosana Paulino
374
OFICINAS ARTÍSTICAS NA PERIFERIA:
PRÁTICAS EDUCATIVAS PARA APRENDER E AFETAR O CORPO COLETIVO
375
Como, desde o início, apostamos na experiência de compor com arte, uma das
oficinas realizadas foi de elaboração de zines, também guiada por João Paulo
Rocetti. Segundo ele, as zines são uma espécie de livreto ou revista; publicações
independentes, autônomas, de baixo custo e fácil elaboração. De acordo
com Omar Rico (2017), as zines são publicações alternativas que surgiram da
necessidade dos artistas de se autopublicarem com liberdade de expressão e de
não dependerem do mercado editorial para divulgação e distribuição do material
artístico. Justamente por isso, geralmente as zines exigem pouca técnica e baixo
investimento financeiro, já que não são produzidas de modo industrializado, ou
seja, a confecção usa técnicas artesanais, lançando mão de recursos acessíveis,
como fotocopiadora, costura manual ou com grampeador, por exemplo. As
zines abarcam, ainda, vários estilos de publicação: divulgação de bandas e de
artistas, notícias sobre quadrinhos, desenhos, poesias, histórias eróticas, diários
de fotografia, histórias autobiográficas, entre muitos outros. Grande parte das
publicações em forma de zine têm, inclusive, certo caráter contestatório e
militante, uma “ligação constante com movimentos anarquistas, ambientalista,
de gênero, ou que manifestam algum tipo de reivindicação social” (RICO, 2017,
p. 110).
7 Este material está disponível em formato físico na biblioteca do IFES campus Vitória e na sede da Varal. Em formato digital (e-zine),
pode ser encontrada no site do PPGEH, na seção de produtos educacionais. Disponível em: https://ppgeh.vitoria.ifes.edu.br/index.
php/producao-academica
além de incentivar a potência singular, como se vê nas zines individuais, também
nos perguntamos o que podemos enquanto corpo coletivo. Podemos criar outras
formas de agir, sentir, pensar ou de estar no mundo? O que podemos compor
juntos? Essas perguntas rondaram nossos corpos durante o percurso da pesquisa,
e apostamos em colocar os participantes não como objetos de estudos, mas
sim como componentes de sua construção. Optamos, portanto, por lançar Um
corpo em comum: lições que aprendemos em oficinas na Varal com autoria
coletiva, englobando todos os participantes das oficinas.
mais potente foi exercer uma educação que visa à relação dos corpos e como
eles se afetam nessa relação. Ou melhor, buscamos criar, em conjunto, um
espaço onde conhecimento e afeto operassem simultaneamente. Na companhia
de Luiz Givigi (2019), apostamos em um ambiente de aprendizado mútuo, no
qual a construção do conhecimento se dá no plano afetivo de composição dos
corpos. Nessa composição, o conhecimento aumenta a potência de agir e a
capacidade de inteligir, e isso se passa em um plano comum.
A arte coloca em risco a concepção que temos de nós mesmos e nos ajuda a
escapar do corpo disciplinado, moldado e limitado. Ela nos chama à invenção e
à reinvenção constante de nós (ANDRÉ, 2013). Desse modo, o aprendizado por
meio da arte se relaciona com a vida, pois ela pode nos provoca a ultrapassar
os limites que nos constituem, nos inspira a buscar uma visão singular que foge
dos discursos totalizantes. A arte movimenta afetos e sensações que fazem a
matéria vibrar (SABINO, 2016). Em nossas oficinas, a arte apareceu em meio
a discussões sobre várias temáticas e foi entrelaçada por elas. Acreditamos,
381
portanto, que traçamos um modo de fazer arte como uma experiência de vida,
ética, estética, política e educativa.
Para Alfredo Veiga-Neto (2019, p. 22) o campo da educação está tomado por algo
como uma sacralização pedagógica, quer dizer, alguns educadores, conduzidos
por certezas absolutas e caminhos rígidos, se tornaram “militantes sombrios do
pensamento único e totalizante”, estando imersos na “lastimável celebração das
verdades únicas anunciadas pelos arautos que arrogam a si a tarefa de ‘salvar
a Educação’ e com isso ‘salvar o Mundo’”. Para nós, diferente disso, as oficinas
com arte tiveram a função de descobrir e inventar possibilidades de mundo,
rascunhar modos de existência, aumentar a potência de si e do outro. Foi um
espaço de sensibilidade e de experimentação de vida. Conforme indica Peter
Pál Pelbart (2014), no cruzamento entre modos de existência diversos, algo novo
pode surgir e ser gestado. Por isso, escolhemos praticar arte em conjunto, dando
espaço para multiplicar as singularidades. Nosso pequeno guia coletivo, a zine
Um corpo em comum: lições que aprendemos em oficinas na Varal, pode servir
para que outros espaços, semelhantes e diferentes daquele construído por nós,
possam ser provocados e colocados em prática, realçando as potências políticas
e inventivas dos corpos no contato com a arte e com os espaços educativos que
transbordam a dicotomia do aprender-ensinar.
382
OFICINAS ARTÍSTICAS NA PERIFERIA:
PRÁTICAS EDUCATIVAS PARA APRENDER E AFETAR O CORPO COLETIVO
Referências
ANDRÉ, Carminda Mendes. Artes como mediadoras de afetos. Rebento, São
Paulo, n. 4, p. 123-130, 2013. Disponível em: https://bit.ly/2DabO0p.
Acesso em: 11 jun. 2020.
ANDRÉ, Carminda Mendes. Arte, Biopolítica e Resistência. Revista brasileira
de estudos da presença, Porto Alegre, v. 1, n. 2, p. 426-442, jul./dez.,
2011. Disponível em: https://bit.ly/2PocxNR. Acesso em: 12 jun. 2020.
385
386
TÍTULO
17.
PENSANDO COM
Alexandra Garcia
Allan Rodrigues
Leonardo Alburquerque
Alexandra Garcia – UERJ1
Allan Rodrigues – UERJ2
Leonardo Alburquerque – SEEDUC/RJ3
1o Ato
Cenário: Auditório de um CIEP4 no bairro de São Bento, conhecido como um
388 dos “bairros dormitórios” do município de Duque de Caxias.
1 Professora Associada da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (FFP/PPGEDU e PROPEd-UERJ) Procientista. Jovem Cientista
do Nosso Estado (JCNE-FAPERJ). Líder do Grupo de Pesquisa “Diálogos Escolas-Universidade: Processos Formativos, Currículos e
Cotidianos”-CNPQ. E-mail: alegarcialima@hotmail.com
2 Doutorando em Educação pelo Programa de Pós Graduação em Educação – Capes. Membro do grupo de pesquisa: “Diálogos
Escolas-Universidade: Processos Formativos, Currículos e Cotidianos”. Email: allancr@id.uff.br
3 Mestre em Educação – UERJ (FFP/PPGEUD) e Professor da Secretaria Estadual de Educação- RJ. Membro do Grupo de pesquisa:
Diálogos Escolas-Universidade: Processos Formativos, Currículos e Cotidianos”. Email: albuleo@yahoo.com.br
4 Sigla pela qual são conhecidos os Centros Integrados de Educação Pública, criados durante o governo de Leonel Brizola no estado
do Rio de Janeiro e projeto do antropólogo Darcy Ribeiro.
Ao final da leitura do segundo poema todos voltam aos seus lugares e se sentam
391
Puxando a prosa:
Performances cotidianas em inscrições curriculares
O corpo, o som, a voz, os gestos, o inesperado, o olhar, uma imagem, fragmentos
de pensamentos que se inscrevem nos espaçotempo das escolas e inscrevem os
currículos pela inevitável presença (GUMBRECHT, 2010), O texto dialoga com
fragmentos de uma pesquisa realizada com estudantes dos três anos do ensino
médio na disciplina de sociologia em duas escolas públicas: CIEP 201 Aarão
Steinbruch, localizado no bairro de São Bento, município de Duque De Caxias
– RJ; CIEP 208 Alceu Amoroso Lima, localizado no bairro de Jardim Primavera,
também no município de Duque De Caxias – RJ7. Essa pesquisa compartilhou do
entendimento dos sujeitos da escola como praticantes dos cotidianos, com base
em Michel de Certeau (1994) e defende, na trilha das abordagens de pesquisa
7 Os dois CIEPS são localizados em bairros que são próximos e com características parecidas, ambos periféricos da cidade do Rio
de janeiro e do próprio município em que estão localizados – Duque de Caxias.
pós-qualitativas em Educação, que tais sujeitos são colaboradores da pesquisa,
posto que sem o envolvimento ativo desses praticantes, o que se teceu como
processo e como compreensões não seria possível.
As compreensões tecidas no texto são, para nós, ensaios no sentido do que pro-
põe Jorge Larrosa (2004), “o ensaiar e ensaiar-se” que recusa o mero movimento
de repetição ou de treino. Sem a intenção de que o texto soe como pensamento
acabado experimentamos o ensaio como pensamento-escrita na busca de senti-
dos menos colonizados pelas lógicas da racionalidade cognitiva instrumental ao
dialogarmos com os currículos produzidos. Busca-se com os praticantes, jovens
do ensino médio de uma escola pública do Estado do Rio de Janeiro, habitar o
espaçotempo escolar com inscrições de currículo desapegadas do velho para-
digma cognitivo. O “Velho demônio do conhecimento” (COSTA, 2011, p. 290)
obsessor do currículo.
O texto é uma composição que se faz a partir do diálogo com a dimensão po-
393
lítica e artística das inscrições curriculares que os praticantes esboçam através
da invenção de si. Chamaremos essa dimensão de artepolítica, fazendo uso do
neologismo como recurso ao juntar as palavras e seus possíveis sentidos. Propõe
e acompanha intervenções que acionam os corpos, as vozes, o silêncio e o ba-
rulho, as imagens em fotografias e as escritas de si no espaçotempo da escola em
que os estudantes inscrevem suas biografias vividas-inventadas sobre as tramas
curriculares em performances que expõem e denunciam a invisibilidade das
identidades e de suas presenças na escola e no currículo. Cabe lembrar um tre-
cho frequentemente citado do pensamento de Certeau (1994) pelo tanto que ele
nos permite intensificar nossa percepção dessas artes de inventar-se que emerge
com as narrativas e que nos soa como a presença das criações que se impõem ou
que são desviantes das conformações, centralizações e sentidos hegemônicos.
Insistimos que frente à
8 Pesquisa realizada por um dos autores, professor de sociologia das escolas citadas, no contexto das propostas do Grupo Diálogos
Escolas-Universidade: Processos Formativos, Currículos e Cotidianos
[...] uma produção racionalizada, expansionista além de centraliza-
da, barulhenta e espetacular, corresponde outra produção, qualifica-
da de ‘consumo’: esta é astuciosa, é dispersa, mas ao mesmo tempo
ela se insinua ubiquamente, silenciosa e quase invisível, pois não
se faz notar com produtos próprios, mas nas maneiras de empregar
os produtos impostos por uma ordem econômica dominante. (CER-
TEAU, 1994, p. 39).
Escolhemos trabalhar com a ideia de performance para falar de currículo nos uti-
lizando pensando a partir da invenção e escrita de si (FAEDRICH, 2013). Tendo
por base o pensamento da autora, não buscamos a escrita de si como representa-
ções, relatos retrospectivos de alguma coisa ou dos sujeitos, que poderiam estar
ligados a uma ideia de autobiografia. Estamos pensando a partir da criação de
narrativas como autoficções, escritas do e no tempo presente, atravessadas pela
ambiguidade entre real e ficcional, para multiplicar percepções com os cotidia-
nos da periferia. Cotidianos que ao serem trazidos e reescritos pelos estudantes
nas performances expressam sua dimensão de artepolítica. Embora tratemos de
uma atividade de performance intencional, entendemos que esse movimento é
394 constitutivo dos cotidianos e do que compõe e mobiliza os currículos e as inven-
ções de si. Todavia, afirmamos que o sentido de arte, tal como apropriado por
PENSANDO COM A PRESENÇA: CURRÍCULOS COMO PERFORMANCES COTIDIANAS
Aqui cabe explicitar o que pensamos como artepolítica enquanto uma poética
que opera como criação artística, como arte e como política enquanto aspectos
inseparáveis. Assim, a criação de uma narrativa na performance não se pretende
política, mas, inevitavelmente toca em questões políticas, culturais e mesmo
epistemológicas. Quando um estudante propõe “Vou escrever [no cartão de visi-
ta] os anúncios de feitiços para trazer a pessoa amada”, esse fazer como trabalho
e forma de sustento para alguns se refere a uma ocupação que envolve saberes,
ritos e práticas de trabalhos religiosos. Quando no interior de uma produção
curricular esse trabalho é assumido como uma atividade produtiva, um trabalho
exercido para atingir determinado fim por isso ofertado por anúncios escritos
nos murros que delimitam a linha do trem, essa produção assume uma posição
política em que aqueles saberes e aquele fazer são compreendidos como exis-
tentes e legítimos.
A performance narrada no início desse texto trouxe para o espaçotempo da es- 395
cola cartões de visitas contendo a pesquisa dos alunos e alunas sobre os servi-
ços de trabalhadores dos lugares em que eles residem e transitam diariamente.
Alguns desses serviços oferecidos por estudantes daquela escola. A proposta
buscou perceber e pensar com os estudantes as práticas de trabalhadores urba-
nos, como por exemplo, pedreiros, manicures, padeiros atendentes de pequenos
comércios, dentre outras ocupações, que são trazidas por eles para a escola en-
quanto sujeitos que moram, trabalham e estudam numa área periférica da região
metropolitana do Estado. Também para perceber, no transitar ordinário os traba-
lhadores que ali residem e talvez até que estudem naquela escola, comumente
invisibilizados pelo correr da vida. Nesse sentido, as aulas eram encontros em
que se buscava problematizar as relações que perpassam ser estudante, trabalha-
dor, morador daquela região e a (in)visibilidade das vidas de sujeitos da periferia
e de suas trajetórias no currículo. A performance como um ato de marcar com
pequenos pedaços de papel onde se liam nomes, ocupação e contato consistiu
num ato de marcar a presença dessas pessoas ali. Trabalhar, morar na periferia e
estudar não são, em geral, percebidos como resultante de jogos políticos e cultu-
rais históricos que vão deixando para as pessoas os lugares sociais e ocupações
no trabalho que restam e não necessariamente são escolhas. Muitas vezes, as
não escolhas resultando de exclusões perpetuadas. Prestar pequenos serviços
como forma de garantir algum sustento a partir de um certo momento da vida,
principalmente ao término do Ensino Médio é algo comum entre os estudantes
dessa e de outras tantas escolas públicas.
por essa escola pública. Nesse sentido, a ideia de currículo aqui proposta dialoga
com entendimento de currículo menor, inspirado pelo encontro entre o pensa-
mento deleuziano e as pesquisas com os cotidianos para propor que
9 A noção de práticapolitica foi criada por Nilda Alves (2010) para pensar a indissociabilidade entre essas palavras posto que enten-
de que todas as práticas são políticas e todas as políticas são práticas.
Conversamos nesse texto com as produções a partir de espaçostempos de perfor-
mances que apresentam momentos distintos de vivências na escola. As conver-
sas são mobilizadas com essas vivências no contexto dos estudos e discussões
do grupo Diálogos escolas-universidade.
10 A Fonte, 1917/64, porcelana, altura 33,5 cm, Marcel Duchamp, Indiana University Art Museum (Eskenazi Museum of Art),
Bloomington.
rarquia de materiais e funções ordinárias e obras de arte. De algum modo expõe
que o que caracteriza essa divisão arbitrária e hierárquica se pauta e sustentan-
do pelo discurso. Dessa forma, pensamos a performance de acordo com o que
propõe Gonçalves (2004):
Nos pareceu interessante pensar nesse espaço em que criação, uso e ficção se
confundem ao discutirmos as produções curriculares nas práticas produzidas
com os estudantes. Cabe esclarecer que as atividades aconteceram como pro-
posta por um dos autores desse texto que é professor de sociologia nas escolas
do estado do Rio de Janeiro com as quais o trabalho se desenvolveu. Para melhor
compreender esse exercício da performance a que pretendemos chegar, parti-
398 mos do que dizem Victorio Filho e Berino (2014):
PENSANDO COM A PRESENÇA: CURRÍCULOS COMO PERFORMANCES COTIDIANAS
Suportes vivos e cujos corpos e falas são, por sua vez, imagens mó-
veis, transitórias e transitantes de uma torrente de narrativas. Poéticas
que explicitam as redes de sentidos por meio das quais seus jovens
autores escrevem e descrevem suas vidas. Redes imagéticas em cujos
movimentos fulguram suas criações, reproduções, irrealizações, fabu-
lações e evocações, na permanente produção de suas próprias signifi-
cações, na produção de seus sentimentos de existir (p. 240).
Em passagem na qual Certeau (1994) dialoga com uma das obras de Duchamp,
o autor propõe pensar mitos que falam do encerramento nas operações de uma
escritura que se maquina indefinidamente e não encontra nunca a não ser a si
mesma. Só há saídas em ficções, janelas pintadas, espelhos de vidro. Só há bre-
chas e rompimentos escritos. São comédias de desnudamentos e torturas, relatos
“automatos” de desfolhamentos de sentidos, estragos teatrais de rostos decom-
postos. Essas produções têm um ar fantástico, não pela indecisão de um real que
mostrariam nas fronteiras da linguagem, mas pela relação entre os dispositivos
produtores de simulacros e a ausência de outra coisa. Essas ficções romanescas
ou icônicas narram que não existem, para escritura, nem entrada nem saída, mas
somente o interminável jogo de suas fabricações.
Janelas que são narrativas que mostram para fora, e também, para dentro. Espie
pela janela dessa estudante: 401
Essas “desimportâncias” despercebidas pelo fazer repetitivo tornam-se “im-
portantes” quando colocadas no centro de práticas curriculares que têm como
“conteúdo” o viver em contextos cotidianos. Nesse sentido, as produções curri-
culares consistem em artespolíticas quando pensadas a partir da ideia de colocar
em movimento as coisas do mundo, essas coisas vistas como desimportantes
mesmo. São, em nossa compreensão, criações que tentam conversar com a ra-
cionalidade estético-expressiva, que como propõe Santos (2007):
ser considerado como ato política ou entendida como arte. Nesse sentido, o que
se propõe é justamente afirmar que a dimensão política e artística já está lá, no
que as narrativas do cotidiano proposta em cada performance buscaram tornar
visível e presente. Essas dimensões simplesmente nos cercam e atravessam, com
sentidos, significações, afetos e percepções daquilo que é tido como “desimpor-
tante”, que nos constitui e tece o social.
CURRÍCULO E ESTÉTICA DA ARTE DE EDUCAR
403
Por sua forma de apresentação a foto seduz aquele que a observa como algo
dado ou constatação em uma realidade. Diante da foto, para aquele que vê, isso
não pode ser controlado, mas aqui podemos apresenta-la por meio do exercício
que busca estimular outros sentidos sobre si mesmos. Sendo assim, a perfor-
mance pelas janelas ainda se encontra em criação, vistos serem olhares de um
mundo em movimento. Até agora temos um, conjunto de 64 fotografias envia-
das pelas estudantes e estudantes que tiveram condições técnicas e quiseram
enviá-las. Esse conjunto de fotos foi organizado em um vídeo de 1 minuto e 49
segundos, em que as imagens foram agrupadas em uma sequência ficcional em
cinco momento: manhã, meio da manhã, tarde, tarde quase noite e noite. Dá-se
nesse ponto um deslocamento da imagem fotográfica ao ser transformada em
um vídeo de um recorte particular e configuração espaço temporal para um con-
junto de imagens que fogem ao controle inicial de cada praticante e compõem
outra narrativa por edição.
404 Pensar a performance na escola, seja a performance da qual tratamos nesse tex-
to, sejam as performances cotidianas de professores e estudantes em seus fazeres
PENSANDO COM A PRESENÇA: CURRÍCULOS COMO PERFORMANCES COTIDIANAS
Finalizando esse ensaio que transita pelo cotidiano escolar a partir de perfor-
mances de dois momentos distinto, antes da pandemia e durante a pandemia,
reafirmamos que a dimensão política dessas produções curriculares está na arte
dos praticantes que criam esse cotidiano em movimento. As narrativas dos cor-
pos, gestos, sons e imagens em fotografias podem, assim, ser lidas enquanto
espaço de possibilidades que mediam ações e pensamentos por meio da sua
criação. O que nos faz propor que essa escrita de si se refere ao espaçotem-
po presente que os praticantes criam ao se debruçarem sobre seus cotidianos.
Somos enquanto performer esses suportes vivos, nossos corpos e falas são as
narrativas de imagens móveis que buscam ressignificar as desimportâncias do
cotidiano. Pensar as narrativas dos praticantes em deslocamentos mobilizados
com performances, sons e imagens busca desdobramentos de uma escrita de si
405
Referências
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formação de professores. Simpósio: Currículo e cotidiano escolar, XVI
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406 Fronteiras, v. 14, p. 91-108, 2014.
GONÇALVES, F. N. Performance: um fenômeno de arte-corpo-comunicação.
PENSANDO COM A PRESENÇA: CURRÍCULOS COMO PERFORMANCES COTIDIANAS
18.
O QUE PODE A ESCOLA?
COTIDIANOS ESCOLARES
Introdução
Não vai ter golpe! Fora Temer! Não queremos a PEC do fim do mundo! Somos
contra a reforma trabalhista! Lula livre! Mariele vive! Ele não! Abaixo a reforma
da Previdência!
É inútil resistir? O sinal está fechado para nós? Que palavras de ordem teremos
que fazer ecoar? Teve golpe. Michel Temer governou durante o período previsto.
Os investimentos na área social estão congelados e “Ele” ainda cortou as parcas
verbas previstas para a educação. As relações trabalhistas se diluíram e a preca-
410 rização das condições de trabalho está em curso. Mariele vive por meio de suas
causas, mas não está entre nós e sequer sabemos quem mandou matá-la. “Ele”
O QUE PODE A ESCOLA? ATRAVESSAMENTOS DO CINEMA NOS/DOS PROCESSOS
DE INSURREIÇÕES E RESISTÊNCIAS NOS COTIDIANOS ESCOLARES
Milhões de vasos sem nenhuma flor. Milhões de crianças sem infância. Milhões
de adolescentes e jovens sem perspectiva de vida. Milhões de brasileiros na faixa
de 18 a 25 anos, negros, pobres, moradores de periferia e com baixa escolarida-
de sendo assassinados. Exterminados. Milhões de brasileiros vivendo da renda
do crime, do tráfico de drogas. Milhões de brasileiros sem emprego. Milhões de
brasileiros vivendo na linha da extrema pobreza. E ao mesmo tempo a concen-
411
tração da renda nas mãos de alguns poucos se acentua. Milhões sem ter o que
comer versus dezenas que vivem da acumulação desenfreada. Essa é a lógica
dominante e que se acentua no tempo presente.
O que de antemão podemos dizer é que esse regime não se consolida apenas a
partir de transformações no campo político e econômico, mas também a partir
de transformações sociais e culturais. O simples fato de não compreendermos a
realidade de forma dicotômica já explicaria isso, ou seja, o econômico, o polí-
tico, o social, o cultural estão imbrincados, enredados. Entretanto não é só isso.
Há mais aspectos nessa nova ordem mundial. E também teríamos que avisar
Caetano: essa ordem não é tão nova.
Dessa forma, nossa intenção neste trabalho é trazer problematizações sobre essa
412
conjuntura política, econômica, social, cultural instaurada, discutindo os pro-
cessos de subjetivação na contemporaneidade, a partir de Rolnik, Lazzarato,
O QUE PODE A ESCOLA? ATRAVESSAMENTOS DO CINEMA NOS/DOS PROCESSOS
DE INSURREIÇÕES E RESISTÊNCIAS NOS COTIDIANOS ESCOLARES
Negri e Hardt, lançando apostas que transitam entre o resistir e o insurgir e en-
gendrar novos modos de ser e estar no mundo. Recorremos, assim, a uma pes-
quisa bibliográfica, em um primeiro momento, no sentido de trazer elementos à
compreensão de como chegamos a esse estado de coisas, desnaturalizando os
fenômenos vividos e os tomando como uma construção histórica, humana, in-
tencional. “Saber como chegamos a ser o que somos é condição absolutamente
necessária, ainda que insuficiente, para resistir, para desarmar, reverter, subverter
o que somos e o que fazemos” (VEIGA NETO, 2003, p. 7).
1 Filme de animação (2016), produzido em Barcelona pelos diretores Daniel Martínez Lara e Rafa Cano Méndez.
2 Filme ficcional (1984) de Michael Radford, baseado no livro de George Orwell (1998) de mesmo nome.
– todos eram observados o tempo inteiro, submetidos às notícias fabricadas para
atender ao regime.
Nos diálogos tecidos com Rolnik, Lazzarato, Negri e Hardt, buscamos discutir
outros possíveis para a formação de professores e a gestão de seu trabalho na
sala de aula, bem como as escolas possíveis no contexto do capitalismo globali-
tário, financeirizado e neoliberal. Por fim, ousamos problematizar o trabalho do
professor entre a cafetinagem e a potência/pulsão de criação e transformação e
entre a sujeição e a singularização.
414
Problematizações sobre o contexto
O QUE PODE A ESCOLA? ATRAVESSAMENTOS DO CINEMA NOS/DOS PROCESSOS
DE INSURREIÇÕES E RESISTÊNCIAS NOS COTIDIANOS ESCOLARES
Rolnik ([201-]) ainda nos mostra que essas duas experiências acontecem ao mes-
mo tempo e são indissociáveis. Mas a relação entre elas é paradoxal, gera tensão
e acaba por desestabilizar a subjetividade, causando a sensação de mal-estar. 415
Frente ao que vivemos, desenvolve-se uma política do desejo – que é o modo de
resposta do desejo diante da experiência de desestabilização e mal-estar – que
muda em função de uma época, uma forma de cultura. E o mais importante “[...]
é que a subjetividade consegue se sustentar no mal-estar provocado pela tensão
entre ambas, o que lhe dá condições para se manter à escuta dos afectos e per-
ceptos responsáveis por sua desestabilização” (ROLNIK, [201-], p. 14).
Essa política do desejo que se constitui no âmbito da micropolítica pode ser ativa
ou reativa. No primeiro caso, “o mundo larvário que nela habita terá grandes
chances de germinar: é na ação do desejo que se plasmará a germinação” (ROL-
NIK, [201-], p. 14). Esse germinar traz a força da criação, da pulsação, da conta-
minação, da reverberação das ressonâncias nas subjetividades, com o poder de
contaminar todo o seu entorno. É
4 “É distinto de percepção, pois consiste numa atmosfera que excede as situações vividas e suas representações” (ROLNIK, 2018, p. 53)
5 “[...] emoção vital, a qual pode ser contemplada [...] no sentido do verbo afetar – tocar, perturbar, abalar, atingir [...]. Perceptos e
afectos [...] dizem respeito ao vivo em nós mesmos e fora de nós.” (ROLNIK, 2018, p. 53).
[...] um devir da subjetividade e de seu campo relacional imediato e,
a partir dele, de outros campos relacionais que habitam as subjetivi-
dades que o compõem [...] capilarizando-se rizomaticamente pelo
corpo do mundo e transformando sua paisagem [...] é a potência do
vivo que as ações do desejo buscarão expandir para ampliar nossa
condição de existir. O que a micropolítica ativa visa é, pois, à conser-
vação da potência do vivo que se realiza num incessante processo de
construção da realidade (ROLNIK, [201-], p. 16).
não mais na relação entre a fábrica e a sociedade, mas no nível social, das for-
mas de exploração da vida, e isso, segundo o autor, já era problematizado na
década de 1970 por alguns companheiros6 de trabalho, que mostravam que o
capitalismo passava a exercer não só a função de controle da sociedade, mas
que entrava no corpo da vida. “O mundo do trabalho explora enquanto bios”,
ou seja, não explora mais apenas a “força de trabalho e sim como forma viva,
não só como máquina de produção e sim como corpo comum da sociedade”
(NEGRI, 2015, p. 61).
Os professores sentem esse poder cafetinístico, que extrai nossa força vital:
417
É como no filme Alike, em que o menino parece perder o brilho. Nós também
perdemos o nosso. Muitas vezes, por mais que você faça algo de diferente, não
conseguimos, porque parece estarmos voltando no tempo mesmo. Ao que outro
professor completa: o que nós estamos vivendo hoje, parece um engessamento
maior da escola, parece que não podemos avançar, evoluir no conhecimento
das coisas, parece que a escola tem de tirar o brilho do aluno e não deixar e
fazer ele brilhar.7
E, para aumentar ainda mais nossa perplexidade, o que vemos hoje é algo que,
num primeiro momento, parece paradoxal, contraditório, que é a aliança entre
neoliberalismo e neoconservadorismo10 extremo, porque o alto grau de comple-
xidade e flexibilidade do atual regime de acumulação está longe do arcaísmo e
rigidez das forças conservadoras. Entretanto é possível compreender os motivos
que levam a essa aliança: nesse momento se fazem necessárias forças bem rudes
e abrutalhadas para destruir, por fim, todas as conquistas democráticas conquis-
tadas e fazer ruir todos os protagonistas dessas conquistas e todas as suas in-
fluências sobre a sociedade. E, de preferência, demonizando esses protagonistas
(ROLNIK, 2018).
Uma das primeiras cenas do filme 1984 aponta como a mídia exercia poder so-
bre o comportamento dos cidadãos individualmente e em coletividade. A guerra
entre Oceania e Eurásia é mostrada em um grande telão diante de todos os fun-
cionários do Partido, e o personagem Emmanuel Goldstein será tratado como
o grande traidor do regime. Os cidadãos neste momento passam a caluniá-lo,
mostrando ódio e aversão às suas atitudes e ao que dizia contra o Partido. E, para
nutrir ainda mais o processo de manipulação, o governo possuía departamen-
tos que inviabilizavam qualquer tipo de contato vindo de fora da Oceania. Um
420
professor relata: a maioria na sociedade desconhece essas questões, fica apenas
com o que vê e ouve na mídia, nas redes sociais. Aí qualquer coisa que o pro-
O QUE PODE A ESCOLA? ATRAVESSAMENTOS DO CINEMA NOS/DOS PROCESSOS
DE INSURREIÇÕES E RESISTÊNCIAS NOS COTIDIANOS ESCOLARES
fessor fale que envolva esses assuntos eles já vão logo trazendo o senso comum,
ou poderia dizer senso colonizado. O discurso distorcido dos líderes políticos
reflete na sociedade.
10 O prefixo neo só faz sentido em referência à ideia de uma outra época e circunstância (ROLNIK, 2018).
que considerar que essa não é apenas uma experiência brasileira, mas de todos
os governos em escala mundial, principalmente América Latina, de tendência
democrática e popular. E nossa sensação é de impotência, angústia, mal-estar,
adoecimento, perplexidade, assombramento.
Mas, quando somos tomados por esses sentimentos, aloja em nós a política
de subjetivação guiada pelo inconsciente colonial cafetinístico. Perdemos a po-
tência do combate da micropolítica ativa e tendemos a nos deixar levar pela
Lazzarato (2014, p. 23) aponta que a crise que vivenciamos “[...] produz apenas
sujeições negativas e regressivas (o homem endividado)”. Endividado por quê?
Nesse contexto, no reino do capital e da mercadoria, o consumo passa a ser
visto como uma das poucas possibilidades para a felicidade, mas o consumo 421
endivida. Assim, o consumo também acaba por alimentar paixões tristes, e a res-
ponsabilização pelas dívidas e tristezas recai sobre cada um de nós individual-
mente. Em outra obra, o mesmo autor (2017, p. 27) pergunta: “O que acontece
com o homem endividado na crise? Qual sua principal atividade? [...] ele paga.
Ele deve expiar sua falta – a dívida – pagando sem cessar [...]”.
prontos da família, da igreja, principalmente aqui que temos uma grande parte
de alunos de religiões neopentecostais que, por si só, já têm em sua prática a
vigilância, a punição e o padrão de uma vida controlada.
Nessa mesma esteira, Esteve (1999, p. 12), já no final do século XX, definia essa
condição como mal-estar docente, por sabermos “[...] que algo não vai bem,
mas não sermos capazes de definir o que não funciona e por que [...].” Esse
mal-estar leva o professor à fragilização, despotencialização e questionamento
sobre sua experiência e o sentido de seu trabalho, e o pior, à perda na crença
no poder de sua intervenção como professor. Mas, como discutimos na primeira
parte deste artigo, isso é uma construção discursiva que vai se efetivando nas e
através das relações. Lazzarato (2014, p. 195) vai nos dizer que
Os professores, o tempo todo, pareceram querer mostrar uma relação muito pró-
xima entre a realidade vivenciada nos filmes, a atual conjuntura e o que vivem
nas escolas, mas também trouxeram em suas falas indícios sobre a possibilidade
de insurgir, de resistir: Vivemos, na política atual, uma cultura de vigilância do
professor, da escola e da educação... fomos transformados em ‘inimigos’ e, com
isso, temos a todo momento que nos policiar. Por outro lado, esse movimento
potencializa o fazer do professor, nos possibilitando reinventar a forma de falar
um determinado assunto, um determinado conteúdo, uma prática. São nossas
válvulas de escape.
Outro professor destaca: isso que vimos nos filmes parece o retrato fiel da polí-
tica nacional, da nossa realidade! Porém, ao mesmo tempo que desanimamos,
nos munimos pela inconformidade de sermos vistos de forma distorcida pelo
discurso conservador passado pelo governo, muitas vezes também pela mídia.
O tempo todo temos que fazer o exercício de não nos perdermos nas nossas an-
gústias e nos colocar junto com a vida que acontece aqui na escola, junto com
os alunos, fugir do que está previsto no currículo do Estado, da secretaria.
Considerações finais
Os autores referenciados neste artigo têm apontado algumas formas de insur-
gir, resistir e produzir novos/outros processos de subjetivação que tendem a su-
perar ou minimizar os efeitos perversos e destrutivos do inconsciente colonial
cafetinístico. Não basta resistir macropoliticamente, “é preciso o combate pela
potência afirmativa de uma micropolítica ativa – enfrentar a situação no plano
da subjetividade, do desejo e do pensamento – onde o capitalismo se sustenta”
(ROLNIK, 2018, p. 35-36). Precisamos liberar a vida da cafetinagem – extração
da potência de vida, do poder vital de pulsação – para poder encontrar os pontos
em que o desejo poderá perfurar as condições impostas por esse inconsciente,
para neles inscrever os cortes da força instituinte (ROLNIK, 2018).
431
Referências
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435
De todo modo, era inequívoco que elas agiam me atraindo em secretas cumpli-
cidades. Eclipsando categorias conhecidas, causavam uma deserção terrível e
intrigante. Como num ímpeto imprevisível, adentrava-me nos labirintos de seus
signos insólitos numa experiência irreversível.
Nessa incursão sem volta, suas verdades se revelavam senão pelas próprias mu-
danças que em mim causavam. De sorte, não eram verdades que pré-existissem
indiferenciadamente a quem se revelam, bem como não se revelam a qualquer
um em qualquer tempo bastando ter os melhores instrumentos e os métodos
mais adequados.
Verdades fugazes, são como um saber esotérico que se produz apenas com
aqueles que em seus segredos distintamente se iniciam. E, apreendê-las era uma
peripécia que não podíamos antecipar, muito menos repetir. Ainda assim, ini-
ciar-se em seus segredos não era um exercício cinicamente aleatório.
Apenas as ocasiões difusas do dia-a-dia de uma escola, vividas e feitas por gen-
tes ordinárias, podiam dizer, e em ardis oportunos, dos sentidos obscuros que
nelas se forjavam. À medida que me adentrava em seus segredos instigantes,
entretanto, suas verdades comunicavam acima de tudo um horizonte clandesti-
no de forças em cujas relações faziam esgueirar as próprias gentes e coisas dos 437
limites apertados do hábito e de tal maneira que eu mesmo não podia deixar de
sofrer seus traiçoeiros efeitos.
tura desse cotidiano escolar permeado por terríveis elementos que o transversa-
lizam? Como produzir conhecimento em Educação desde esses acontecimentos
erráticos que, suscitando crises, nos coloca nesses focos de criação num coti-
diano escolar? Como suportar o mal estar que nos causam e o fremido que agita
os anelos que (nos) encerram e (nos) dominam, assumindo todas as suas conse-
quências? Como pensar as coordenadas de pesquisa desde uma transversalidade
que não se subjuga a unidades de categorias e formas homogêneas?
Sem desprezar a força da modalidade epistêmica das ciências e seus efeitos (mo-
nocórdios) sobre a experiência do conhecer, queremos judiciosamente indicar
a possibilidade de maneiras heurísticas irredutíveis às ciências consagradas sem
deixar, num mesmo movimento, de questionar a univocidade das ciências como
linguagem legitimadora da experiência do conhecer.
Com isso, por meio dos signos artísticos, queremos evidenciar uma modalidade
de produção de conhecimento que assume o processo de subjetivação no qual
está imerso, e ao fazê-lo não deixa de mostrar-se como uma atividade que se
realiza coletivamente, ativando a sensibilidade daqueles que o vivem, como
assinala Carvalho (2019).
Há, dessa maneira, uma condição para o ver a fim de que tenha valor epistê-
mico, isto é, o ver ou o sentir na observação científica não se dá de qualquer
1 Seria demasiado pretensioso, com esse ensaio, fazer uma genealogia das ciências, traçando como o faz Gaston Bachelard, Ale-
xandre Koyré, George Canguilhem, Thomas Kuhn e Paul Feyerabend uma história das ciências que é feita por rupturas semânticas,
epistêmicas e ontológicas. Incorremos, com o limite posto por esse texto, em deixar de ver algumas nuances distintas, dando a
impressão ilegítima de continuidade a um rebento histórico que atravessa os séculos. Contudo, vale destacar que no século XX,
entre as duas Grandes Guerras, se reuniam na cidade de Viena cientistas e filósofos para discutir questões pertinentes às ciências,
impulsionando as reflexões sobre método científico. E, vale destacar que o Círculo de Viena ou positivistas lógicos ou neoposi-
tivistas, como eram conhecidos, constituídos, dentre outros representantes, por Moritz Schlick, Rudolf Carnap e Otto Neurath,
debatiam o valor epistemológico da verificação na produção de um conhecimento científico.
maneira, antes ele só é possível como resultado de uma espécie de assepsia do
olhar, isto é, o olhar nas ciências só tem valor epistêmico quando dele é subtraí-
do tudo o que se interponha entre o olho e o estímulo sensível.
Francis Bacon (1984), arauto dessa perspectiva do conhecer, aponta que tudo
o que constitui a subjetivação é um empecilho para que o ver venha tornar-se
observação científica. Ele declara a possibilidade da observação científica no
espectro de um combate aos idolas da percepção, segundo ele, fontes de todas
as ilusões, isto é, um combate às condicionalidades da subjetivação humana
(educação, tradição, comunicação, etc.).
Podemos dizer, como o faz Japiassu (1988), que o principal critério no qual as
ciências se orientam não é o homem e seu processo de subjetivação, mas o
próprio conhecimento. Nesse sentido, não é estranho quando Nietzsche (2009)
diz em seu aforismo 1 do Prólogo de Genealogia da Moral: “Nós, homens do
conhecimento, não nos conhecemos; de nós mesmos somos desconhecidos [...]”
(p. 7).
2 A este respeito, sendo mais preciso, como o faz Thomas Kuhn (2017), os cientista não ignoram os aspectos éticos-estético-políticos
implicados na produção do conhecimento científico, mas esses aspectos sobrevêm ao cientista, mormente, nas situações em que o
paradigma em que as ciências se desenvolvem é colocado sob uma crise irremediável em decorrência de efeitos anômalos dentro
do próprio paradigma.
Mas que conhecimento é esse das ciências? O que se quer alcançar com o ver
da observação científica? Diferentemente do contemplar do homem antigo e
medieval, o ver na observação científica moderna busca alcançar uma “lógica”
que os antigos não sabiam, intrínseca aos fenômenos da natureza.
3 Enfatizando a racionalidade empírico-formal de matriz baconiana, não podemos deixar de mencionar a racionalidade lógico-
-formal de matriz galileneana com seus intercessores matemáticos por meio dos quais cria a linguagem de conhecimento sobre
a natureza. Sobre essa matriz galileneana há um importante trabalho de Alexandre Koyré (1991) intitulado “Estudos de história
do pensamento científico”. Apesar das distintas nuances entre as duas matrizes de racionalidade, as mútuas interferências entre
ambas foram muito importantes para o desenvolvimento da epistemologia científica, influenciando fortemente o debate do Círculo
de Viena no século XX.
Assim, a propósito do ver subsumido na observação científica, nos perguntamos
se ele não seria uma modalidade de idola, a contragosto do postulado baco-
niano. Colocando dessa maneira, entendemos que os idolas que o projeto de
racionalidade baconiano tanto se esforçou para se desvencilhar, pelo mesmo
esforço não pode deixar de produzir seus próprios idolas. Mais do que uma
eventualidade indesejada na epistemologia científica baconiana, isso indica a
pertinência necessária dos idolas na composição da ação do ver. Eles funciona-
riam, sobretudo, como códigos que coordenam o ver, e a ciência, ainda que não
o diga, soube criar os seus.
4 Tomamos por referência os estudos de Gilles Deleuze sobre cinema. Assim, vale ressaltar os riscos de uma argumentação espúria
que assume esse ensaio, pois apropriando do trabalho do filósofo francês sobre imagens na arte cinematográfica, não deixa de
extrapolar suas reflexões para falar de signos artísticos em geral. Destacando o limite desse texto, contudo, reiteramos que não é
pretensão aqui definir o que são os signos artísticos, muito menos explorar as teorizações produzidas nesse campo do conheci-
mento, mas apenas tangenciar sentidos de signos artísticos na medida em que nos ajuda a pensar o que é o sensível suscitado por
eles e a relação com o pensamento/conhecimento.
Dito de outra maneira, os signos artísticos não funcionam como uma função
cognitiva que desvelaria (no sentido de tornar visível) uma suposta realidade
preexistente, antes eles produzem a realidade, eles produzem o sensível. Tería-
mos, por conseguinte, de nos perguntar afinal o que é o sensível inventado e a
experiência sensível que se sabe invenção pelos signos artísticos.
De todo modo, não estamos diante de uma questão fácil de resolver. Todavia
podemos indicar que uma experiência sensível que se sabe invenção não é um
5 Há de se apontar que uma genealogia desse imbricamento seria esclarecedor. Aqui apenas indicamos que essa relação, com
modulações distintas no tempo, é notada desde a Antiguidade quando se atribuía o sentido a theorein (referente de teoria, conhe-
cimento, pensamento) como “ver/fazer ver” ou “contemplar”. Michel de Certeau (2012) também recupera esse sentido antigo em
“A Invenção do Cotidiano”.
[...] Desta forma, cada vez mais, apenas o conhecido é visto, porque
somente ele é passível de identificação, de reconhecimento. Uma
nova impressão, quando atinge a vista, quando chega à consciência,
ou é reduzida a uma outra já conhecida, ou é eliminada como desti-
tuída de sentido. [...] (p. 119).
Com isso, nos indagamos se os signos artísticos se reduziriam a meios nos quais
os idolas professariam sua palavra ou se eles podem outra coisa. Indagamos se
seriam tão somente enredamentos significantes educando nossa sensibilidade
ou se comportam forças a-significantes. Enfim, haveria uma experiência sensível
e um pensar distintos nas artes que não se confundem às pre-visões, aos pré-sen-
timentos e ao já sabido?
idolas confessarem que nem tudo eles mostram, que muito lhes escapam. Sem
os referentes habituais, a experiência sensível fica sob uma deriva.
6 Trazendo as reflexões de Deleuze sobre o cinema, é importante destacar que o filósofo francês, fortemente influenciado por Henri
Bergson, distingue o cinema clássico do cinema moderno pelo modo em que as imagens são construídas. O cinema clássico, de
maneira geral, seria caracterizado pelas imagens-movimento, isto é, imagens submetidas a uma espécie de percepção pragmá-
tica, governadas por esquemas sensórios-motores, orientadas para um campo de ação cujo repertório indica uma forma homem
e uma forma mundo estereotipados. Já o cinema moderno se realizaria em imagens-tempo, isto é, imagens em ruptura com os
esquemas sensório-motores, tornando a ação impossível e tomando a percepção por um excesso, alcançando um limite em que
a forma homem e a forma mundo perdem suas feições habituais, por isso o que torna visível é insuportável. Assim, explorando os
efeitos dos signos artísticos na invenção do sensível, o fazemos tomando por referência principalmente a perspectiva criada pela
imagem-tempo do cinema moderno, ainda que o cinema clássico já indicasse a potência própria às imagens.
Nessa feita, enquanto as ciências normalizam a experiência de produção do
conhecimento, tornando as ocasiões de crises paradigmáticas (KUHN, 2017)
ocasiões de exceção, o escopo do trabalho com signos artísticos é a produção de
crises, é tornar a experiência sensível uma imprecisão e, por isso, uma atividade
clínica-crítica.
Aproximações conclusivas...
O modo como fazemos pesquisa em Educação, seus pressupostos subjacentes,
suas balizas nas quais nos orientamos e suas regras constitutivas não são estra-
nhas a própria concepção que fazemos de Educação, precisamente a própria
concepção que fazemos de uma educação escolar. Afinal, como a concebemos?
7 No campo da Educação, temos vivenciado esses efeitos simultaneamente sutis e insidiosos do poder com a Base Nacional Comum
Curricular que, sob uma unidade pretensamente totalizadora apoiada no discurso da universalização da educação, cria uma série
de condicionalidades concretas que trabalham na desvalorização das singularidades locais e regionais em que homens diversa-
mente se constituem. A proposta da Base Nacional Comum Curricular é, assim, um importante mecanismo de gestão com vistas a
projetar “performances” mensuráveis de um aluno abstrato (MACEDO, E., 2015), caracterizado pela prescritividade sobre o vivo
no que ele tem de singularização (CARVALHO, J. M.; SILVA, S. K.; DELBONI, T. M. Z. G. F., 2017).
surdamente) importantes sentidos de Educação. Todavia, os sentidos que já aí
podemos depreender são demasiados exteriores ao cotidiano escolar e a suas
gentes, quando não sabemos ainda como participam na própria feitura de um
cotidiano escolar.
Contudo, isso não significa que seus sentidos ganham toda sua significação
quando, por outro lado, seus elementos constitutivos são como que escalonados
a uma espécie de mentalidade de grupo ou a uma espécie de representação so-
cial batizados por idolas comungados, como num quadro estável de percepções
e pensamentos que definiriam a identidade das gentes que aí participam.
À medida que entramos em escolas, vivenciamos algo que não se reduz a essa
exterioridade formal, muito menos que se encerra nessa espécie orgânica de
interioridade mental. Nas palavras de Giorgio Passerone (1988), citando Artaud,
vivenciamos um cotidiano escolar sacudido por um fora subexterno mais inau-
dito que todo interior.
pensadas de uma vida inorgânica. É sob seus efeitos terríveis que vemos uma
educação se expor com seus operadores de subjetivação e, simultaneamente,
é sob seus efeitos terríveis, numa estranha afinidade, que somos enlevados a
focos de criação.
20.
MATERIAIS ARTÍSTICO-
EPISTEMOLOGIAS DO SUL
Graça Reis
Inês Barbosa de Oliveira
Marina Santos Nunes de Campos
Graça Reis (CAp/UFRJ e PPGE/UFRJ) 1
1 Professora Associada do CAp/UFRJ e do Programa de Pós-graduação em Educação da UFRJ. Doutora em Educação pelo Proped/
UERJ e membro (consultora ad hoc) do GT Educação Fundamental da ANPEd.
2 Professora Titular da Universidade do Estado do Rio de Janeiro e Professora Adjunta da Universidade Estácio de Sá. Membro do GT
Currículo da ANPEd e ex-presidente da ABdC (2015-2019).
455
Nessa interdependência entre diferentes conhecimentos em processos perma-
nentes de aprendizagem-desaprendizagem, percebemos que quem narra suas
experiências fala sobre si mesmo experienciando de outro modo, e reflexiva-
mente, aquilo que viveu. No processo de narrar, professores podem identifi-
car sua criação curricular cotidiana, tendo a possibilidade de rever e reformu-
lar concepções (JOSSO, 2010) lembrando de outro modo daquilo que criou e
desenvolveu, o que Boaventura identifica com a desaprendizagem, ao afirmar
que “desaprender não significa esquecer. Significa lembrar de modo diferente”
(SANTOS, 2018, p. 261). As experiências vividas em sala de aula, processos de
criação de currículos e conhecimentos, e os processos de reflexão a respeito
delas desenvolvidos nas e pelas narrativas docentes são formadoras, na medida
em que contribuem para que esses docentes reflitam sobre o vivido e o criado,
passando a lembrar de outro modo, desaprendendo o já sabido. Nesse sentido,
a partilha de experiências numa roda de conversa pode contribuir para a atribui-
ção no presente de outros significados ao vivido no passado, gerando reflexões
e novas experiências ao grupo.
Assim, nos aliamos à proposta de investigação-formação (JOSSO, 2002) usando
“a abordagem biográfica como um instrumento ao mesmo tempo de formação
e de pesquisa” (JOSSO, 2010, p. 133), pautando, para isso, nossa pesquisa no
compartilhamento de narrativas de histórias de vida e experiências vividas nas
escolas, percebendo que estas são/estão sempre imbricadas. As narrativas com-
partilhadas são compreendidas como relatos de autoria tanto de criação curri-
cular quanto de histórias de vida que contam partes das histórias da educação
brasileira e o seu compartilhamento proporciona, além de outras criações cur-
riculares, uma formação centrada na experiência que vimos denominando de
(auto)formação.
Nos aliamos, também, às epistemologias do Sul já que por meio desse processo
trabalhamos em prol da desinvisibilização e reconhecimento de conhecimentos
criados nos cotidianos escolares pelos docentes – numa prática associada à so-
ciologia das ausências e das emergências –; entendemos que esses saberes estão
em diálogo e que este se dá entre instâncias e dimensões não hierárquicas, inter-
dependentes na vida e nas práticas docentes – como na ecologia de saberes; e
456
que esses currículos criados nos cotidianos são uma tessitura artesanal, não imi-
tável nem reproduzível em escala. Quanto a esse último item, Santos afirma que:
FLUXOS APRENDENTES COLETIVOS NA PERSPECTIVA DAS EPISTEMOLOGIAS DO SUL
MATERIAIS ARTÍSTICO-NARRATIVOS, COTIDIANOS E FORMAÇÃO DOCENTE:
Temos podido, com isso, contradizer discursos sobre a escola e seus sujeitos que
ocasionam visões tristes e pesadas a respeito daquilo que ela é. Dessa forma,
temos produzido o que denominamos pistas sobre a criação curricular cotidiana 457
e a formação docente, trazendo a profissão docente para um lugar de fazer-saber
autoral e criativo.
ser e estar no mundo. Essa expansão do presente deve então ser um tempo de
reconhecimento de experiências, pensando que estas são vividas por sujeitos
sociais singulares, “cuja diferença não pode ser reduzida à uniformidade, [deve
ser] uma diferença que se mantém diferente” (HARDT; NEGRI, 2005, p. 139).
Podemos pensar as narrativas como outras formas de viver o presente, atribuindo
sentidos às experiências ao invés de desperdiçá-las, desconsiderando suas exis-
tências e validade. (CAMPOS; REIS, 2016, p. 112).
Os bordados como memória:
a narrativização do afeto
Para o trabalho com os materiais narrativos, temos usado diferentes procedimen-
tos: conversas gravadas, vídeos com entrevistas, depoimentos gravados, produ-
ção de memoriais, de narrativas de experiências curriculares e também os bor-
dados, que consideramos como materiais artístico-narrativos.
459
Os bordados livres, técnica que temos usado, têm origem na pré-história, e o
primeiro ponto utilizado foi o ponto cruz com agulhas feitas de ossos e o fio
feito de fibras de vegetais ou tripas de animais. Assim costuravam suas roupas
e estima-se que já naquele tempo as roupas começaram a ser adornadas com
bordados, juntamente com artigos de suas casas.4
Começamos a precisar reafirmar a todo tempo o que nos foi garantido por meio
FLUXOS APRENDENTES COLETIVOS NA PERSPECTIVA DAS EPISTEMOLOGIAS DO SUL
MATERIAIS ARTÍSTICO-NARRATIVOS, COTIDIANOS E FORMAÇÃO DOCENTE:
Lançamos o desafio nas redes sociais e para cada interessado/o, enviamos pelos
Correios os tecidos cortados no tamanho especificado.
461
5 As professoras responsáveis pelo projeto foram: Cristina Miranda, Graça Reis, Olinda Evangelista, Rita Ribes e RitaVaz.
O ano era 1970, e eu, uma garota com seus sete anos recém-chega-
dos. Ela, uma jovem iniciando o caminho da docência...
O lugar... uma vila de agricultores sem luz elétrica, sem mercado ou
água encanada.
A escola... duas salas com carteiras compartilhadas entre duas turmas
de séries diferentes, uma cozinha, onde os alunos preparavam a me-
renda, e uma casinha lá atrás, usada como banheiro e rota de fuga
quando as dificuldades na sala se apresentavam.
A professora... Dona Âmbar Maria Fabeni, que chegou trazendo uma
imensa vontade de ensinar e um olhar terno e respeitoso sobre nossas
deficiências de acesso ao conhecimento letrado. Logo percebeu que
o conhecimento ali não vinha de livros, mas das vivências de crianças
roceiras de pés descalços, roupas e falas simples.
A cor... o azul-marinho das saias e congas do uniforme da Escola
Isolada de Cabras.
A escola era espaço sagrado, e a professora, a pessoa a quem devía-
mos todo o respeito, pois era quem substituía nossos pais no espaço
coletivo enquanto eles estavam em seus afazeres na roça.
Brincadeiras de roda, caderno de música, observação das nuvens, pi-
quenique no gramado e descida do morro em casca de coqueiro. Ela,
senhora do conhecimento, trazia para nós o olhar do mundo, dos
livros e revistas, que não conhecíamos.
462
Meu olhar de menina olhava para o mundo através dos ensinamentos
trazidos por ela com a certeza de que havia aquele centro caloroso
FLUXOS APRENDENTES COLETIVOS NA PERSPECTIVA DAS EPISTEMOLOGIAS DO SUL
MATERIAIS ARTÍSTICO-NARRATIVOS, COTIDIANOS E FORMAÇÃO DOCENTE:
que ela emanava: “Nunca deixes de estudar; teu futuro será brilhan-
te”.
Cresci, estudei muito e ainda estudo. Nunca mais soube do seu des-
tino. Sou sempre muito grata pela sua forma de me mostrar que o
mundo é imenso e ultrapassa as montanhas que me cercavam naque-
la vila.
Com ela, aprendi a olhar para fora do meu pequeno Universo!
Rozemar Maria Candido
CURRÍCULO E ESTÉTICA DA ARTE DE EDUCAR
463
dos Palmares, Dona Ivone Lara, Marielle Franco, a cantora Iza (refe-
rência escolhida pelas crianças) e tantos outros.
Diversão, escrita, concentração, movimento, leitura, música, choca-
lho reciclável, batida, descompasso e descoberta permearam nossas
aulas. Fomos estabelecendo modos outros de criar e lidar com conhe-
cimentos construindo com o cotidiano escolar.
Vira e mexe meninos e meninas começaram a expressar suas ances-
tralidades a partir de seus corpos e de seus desejos de dizer e escrever.
A escrita de Alexsandro, 8 anos, diz muitas coisas: “Negro precisa ser
feliz. Precisa trabalhar. Precisa viver na vida com a sua família. Pre-
cisa de paz. Negro não pode ser maltratado. Negro é um da gente”.
Aline Santos de Lima Ramos
A partir da leitura dos textos e do material bordado, pudemos perceber o quan-
to nas memórias daqueles e daquelas que contaram suas histórias marcantes
por meio dos bordados e das narrativas escritas, há também uma marca da
criação curricular cotidiana, presente tanto nas vozes das professoras que bor-
daram suas práticas, quanto daquelas que foram narrando as histórias que vi-
veram nas escolas.
469
Nas narrativas bordadas, faladas e escritas, cada praticante docente vive e narra
os processos pedagógicos e formativos nos quais está/esteve envolvido, os mo-
dos de estar no mundo e de conhece-lo que lhe são próprios, fornecendo pistas
valiosas sobre o que aconteceu/acontece no cotidiano das escolas em que tra-
balha e trabalhou. Assim, com Manguel (2001), afirmamos que “uma imagem
dá origem a uma história que, por sua vez, dá origem a uma imagem” (p. 24)
noção relevante para todo o trabalho aqui narrado, mas especialmente nas duas
expressões artístico-narrativas que se seguem. Entendemos, ainda, que essas nar-
rativas ampliam nossas possibilidades de pesquisa, porque trazem elementos da
complexidade do real. Desse modo,
7 Imagens cedidas pelo Projeto Águas no planejamento municipal: discutindo a educação ambiental na gestão das bacias hidrográ-
ficas no médio vale do rio Paraíba do Sul e na região metropolitana do Rio de Janeiro
8 Em 2020, estamos vivendo um período logo de isolamento social em função da pandemia de COVID-19.
Considerações finais
Evidenciando neste texto o quanto materiais artístico-narrativos podem promo-
ver fluxos de aprendizagens, de si e da docência, que contribuem para a (auto)
formação de professores, buscamos valorizar as possibilidades inscritas em ou-
tros modos de fazer e de formar, de provocar saberes não formais, que emergem
de outras racionalidades que não a cognitiva.
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