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CURRÍCULO

E ESTÉTICA
1

CURRÍCULO E ESTÉTICA DA ARTE DE EDUCAR ORG.


Janete Magalhães Carvalho | Sandra Kretli da Silva | Tânia Mara Zanotti Guerra Frizzera Delboni ORG.
CURRÍCULO
E ESTÉTICA
Organizadoras
Janete Magalhães Carvalho (PPGE/UFES)
Sandra Kretli da Silva (PPGE/UFES)
Tânia Mara Zanotti Guerra Frizzera Delboni (PPGE/UFES)

Capa, editoração, diagramação, ilustração


Fernanda Cristina Martins Pestana

Revisão
Janete Magalhães Carvalho
Sandra Kretli da Silva (PPGE/UFES)
Tânia Mara Zanotti Guerra Frizzera Delboni (PPGE/UFES)

Tiragem
E-book (PDF)

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) Catalogação na fonte – Editora CRV


2 Bibliotecária responsável: Luzenira Alves dos Santos CRB9/1506

C975
TÍTULO

Currículo e estética da arte de educar / Janete Magalhães Carvalho, Sandra Kretli da Silva,
Tânia Mara Zanotti Guerra Frizzera Delboni (organizadoras) – Curitiba: CRV, 2020.
476 p.

Bibliografia
ISBN Digital 978-65-5868-719-1
ISBN Físico 978-65-5868-720-7
DOI 10.24824/978655868720.7

1. Educação 2. Currículo I. Carvalho, Janete Magalhães. org. II. Silva, Sandra Kretli da. org. III. Del-
boni, Tânia Mara Zanotti Guerra Frizzera. org. IV. Título V. Série

CDU 37 CDD 375

Índice para catálogo sistemático


1. Educação – currículo 375

Impresso no Brasil
1a Edição – dezembro | 2020
CURRÍCULO E ESTÉTICA DA ARTE DE EDUCAR
3

CURRÍCULO
E ESTÉTICA

Janete Magalhães Carvalho


Sandra Kretli da Silva
Tânia Mara Zanotti Guerra Frizzera Delboni (org.)

1 a E D I Ç ÃO | 2 0 2 0
Curitiba – PR
Sumário 2 Currículo da
cidade e o direito
de aparecer:
PREFÁCIO 9 aliançar que faz
diferença
OS SIGNOS ACERCAM-SE
Glaucia Carneiro
Antonio Carlos Rodrigues
de Amorim (FE/UNICAMP) (UFMG) e Marlucy
Alves Paraíso
APRESENTAÇÃO 15 (UFMG) 49
CURRÍCULO E ESTÉTICA DA ARTE DE EDUCAR
Janete Magalhães Carvalho (PPGE/UFES),
Sandra Kretli da Silva (PPGE/UFES) e Tânia Mara
Zanotti Guerra Frizzera Delboni (PPGE/UFES)

4
TÍTULO

1 A ferramenta e o objeto do teatro


numa ideia de aprendizado
Renato Mendes (Unicamp) e
Sílvio Gallo (Unicamp) 31 4 Por docências não
dogmáticas e existências
não mínimas nos
cotidianos escolares

3 Transcriação de signos:
infantil, aula, docência
Janete Magalhães
Carvalho (UFES/CNPq),
Steferson Zanoni Roseiro
Sandra Mara Corazza
(UFES) e Suzany Goulart
(UFRGS/CNPq) e Silas
Lourenço (UVV) 89
Borges Monteiro (UFMT) 69
5 9

E ESTÉTICA DA ARTE DE EDUCAR


Fazer morada na infância: imagens
Narrativa,
de currículos em devir-criança
cinema e
César Donizetti Pereira Leite
realidade: a
(UNESP), Bianca Santos Chisté (UFR)
ousadia de
e Giovani Cammarota (UFJF) 115 pensar-estranhar
outros mundos

DE EDUCAR
Graziele Corrêa

| CURRÍCULO
O cinema abrindo alas para os Amorim (UFV) e
devires passarem Eduardo Simonini

DA ARTE
Ana Cláudia Santiago Zouain (UFV)

SUMÁRIO
(UFES), Nathan Moretto Guzzo 211

CURRÍCULO E ESTÉTICA
Fernandes (UFES) e Sandra
Kretli da Silva (UFES) 169

8 Encenações curriculares: inspirações nas obras


de Pina Bausch
Ana Paula Pereira Marques de Carvalho (UERJ)

6
e Rita de Cássia Prazeres Frangella (UERJ) 193
Signos artísticos

10
e aprendizagens
involuntárias “Mamãe, vamos nos esconder?”:
Carlos Eduardo as artes crianceiras em tempos de
Ferraço (UFES/ monstruosidades necropolíticas
CNPq) e Marco Luciane Tavares dos Santos (UFF)
Antonio Oliva e Marcio Caetano (UFPel) 231
Gomes (UFES) 137
13 Força, forma e pintura: movimentos na formação continuada de
professores a distância
Jaqueline Magalhães Brum (UFES) e Nilcea Elias Rodrigues (UFES) 291

11 Vestido, quimono e
peruca: produções 14 Quando as imagens
vão à guerra: currículo,
narrativas e mosquitos, bactérias,
imagéticas de vírus, ciências,
si, rostidade e tecnologias…
professoras em devir Thiago Ranniery (UFRJ) e
Maria da Conceição Júlia Pompeu (UFRJ) 319
Silva Soares (UERJ) e
Simone Gomes da
Costa (UERJ) 257

6
TÍTULO

15 As imagens-cinema como
SUMÁRIO | CURRÍCULO E ESTÉTICA DA ARTE DE EDUCAR

máquinas de guerra do
pensamento: currículos e

12 (Des)caminhos: as imagens-
cartazes potencializando
docências e...
Camilla Borini Vazzoler
Gonçalves (UFES), Eliana
a vida coletiva com as
aprendências insurgentes na Aparecida de Jesus Reis
diferença (SEME/SERRA) e Tânia
Juliana Paoliello (UFES), Mara Zanotti Guerra
Priscila dos Santos Moreira Frizzera Delboni (UFES) 339
(IFES) e Alba Jane Santos
Lima (IFES/UNIRIO) 273
17 Pensando com a 20 Materiais artístico-

E ESTÉTICA DA ARTE DE EDUCAR


presença: currículos como narrativos, cotidianos
performances cotidianas e formação docente:
Alexandra Garcia (UERJ), fluxos aprendentes
Allan Rodrigues (UERJ) e coletivos na
Leonardo Alburquerque perspectiva das
(SEEDUC/RJ) epistemologias do Sul
387
Graça Reis (UFRJ), Inês

DE EDUCAR
| CURRÍCULO
19
Barbosa de Oliveira
Signos artísticos e conhecimento: (UNESA/UERJ) e

DA ARTE
um ensaio contra-epistemológico Marina Santos Nunes

SUMÁRIO
Patrick Stefenoni Kuster (UFES) 435 de Campos (URFJ) 453

CURRÍCULO E ESTÉTICA
7

16 Oficinas artísticas

18
na periferia: práticas
educativas para O que pode a escola?
aprender e afetar o Atravessamentos do cinema
corpo coletivo nos/dos processos de
Lysia da Silva insurreições e resistências
Almeida (IFES), nos cotidianos escolares
Davis Moreira Alvim Terezinha Maria Schuchter
(IFES) e Izabel Rizzi (UFES), Fabio Luiz Alves de
Mação (UFES) Amorim (Faculdade Estácio
365
de Sá) e Jaconias Dias
Rodrigues (UFES) 409
8
TÍTULO

PREFÁCIO
OS SIGNOS
ACERCAM-SE
Antonio Carlos Rodrigues de Amorim

PREFÁCIO
Faculdade de Educação, Unicamp

9
Dizer de uma vida qualquer, como é a que os currículos (com)
portam e liberam, é arrastar, simultaneamente, seu esgotamen-
to para fora das lógicas do possível e reivindicar o acesso da
areia do deserto ao liso espaço do mar que ondula. Não sei se
pelo serpentear dos trilhos de trem que recortam as montanhas
e acabam por instaurar na vida que ali é vivida à espera pelo
acontecimento que, de tão lento, não chega ou que, de tão sur-
preso, passa-nos despercebido.
Os cortes da linha de trem em montanhas fazem delas frações de deslocamento
e criam o novo das cicatrizes na vida da qual se exige ressurgir sob o ferro, a
pressão e o atrito das faíscas, pequenas e invisíveis ruínas da resistência – da
semente, da flor, do verme esmagado, do lodo que encontra aderência entre os
pedaços de carvão.

Nesta época do ano, em que o vento inicia sua jornada em busca de uma umi-
dade perdida do tempo e que o céu vai ao encontro de um azul pa[li]decido, a
“maria-fumaça não canta mais para as moças flores, janelas e quintais”, versos
de Ponta de Areia de Milton Nascimento e Fernando Brandt. Arranca em mim
os trilhos sazonais que não me deixam esquecer as praças vazias e as casas es-
10
quecidas das quais sou a viúva no portal.
PREFÁCIO | OS SIGNOS ACERCAM-SE

Perder-me, no percurso do deserto ao mar, e misturar-me com os cristais minús-


culos e quase invisíveis da areia, cuja ponta enuncia o final de sua significação
a um todo ou fragmento representável.

Desse modo, vagueante, vem chegando uma questão à superfície, que se es-
tende para dois campos de estudo de meu interesse – imagem e currículo – e
assim ela se pronuncia: seria mesmo de uma realidade capturável e unívoca que
eles falariam? Currículo e imagem ganham intensidades diferenciais à medida
que não têm mais a função de referir-se apenas à palavra ou ao conhecimento.
Portanto, a subjetivação que a imagem faz ao currículo indica-lhe, em termos

CURRÍCULO E ESTÉTICA DA ARTE DE EDUCAR


discursivos, tanto sua vinculação aos signos e às marcas, quanto à incapacidade
de transferir adequadamente as significações. Nos atravessamentos com con-
ceitos da filosofia de Gilles Deleuze, as funções-imagens, as funções-currículos
trabalham intensivamente à busca dos deslocamentos.

Para Deleuze, a imagem não é objeto, mas sim processo; isso exige a percepção
das realidades e sua apre(he)ndizagem marcadas pela passagem de uma cultura
dos objetos e das estabilidades para uma cultura dos fluxos e das instabilidades,
geradas em um universo de redes e devires, gérmens de questionamentos sobre
onde começa e onde acaba a imagem, nos entremeios de transparências e di- 11
versos tipos de fluidez.

O possível, com as imagens, acontece sem mediação; o currículo (qualidade


dada pela coincidência entre objeto e sujeito) subjetiva-se por imagens que in-
terpretam, circulam e falam delas mesmas. Nasce uma condição paradoxal entre
signos e currículos.

Desfere-se um curricular que exige radicalizar a imagem. Segundo Buci-


-Gluskamann (2007), isso significa voltar ao que é o domínio de qualquer ima-
gem criativa: o funcionamento do pensamento, seu poder e seu impoder. Pois é
realmente através da imagem que o pensamento se vincula com seus limites e
margens: o impensado, o irrevogável, o inexplicável, o intolerável, até da vio-
lência e da morte.

Prolifera-se um contexto de relação entre mente-mundo em um tipo de am-


biência próxima a processos de apre(he)ndizagem que estão mais associados
a dobras, a dispositivos de se voltar do exterior para o interior e ao exterior ser
devolvido. Deixando nascer uma corporeidade táctil, de percepção dispersiva e
membranosa do ambiente, de estar vivo como uma característica de retorno da
imagem que passa por algum anteparo humano- não humano que a apreende,
para, em seguida, retornar ao mundo/à realidade/às visualidades com as inten-
sidades de tal encontro.
12
Rastreiam-se movimentos local/cotidianamente distintos de devir, modulados
PREFÁCIO | OS SIGNOS ACERCAM-SE

pelas experiências idiossincráticas de resistência; um revés a um processo em


que um povo, uma escola, uma multidão, uma matilha, uma onda sonora, uma
invasão de raios luminosos, se esforçariam para produzir sociedades que per-
mitem a coexistência pacífica de auto-identificação, comunidades mutuamente
envolvidas em atos afirmativos de reconhecimento compartilhado.

Será que as linhas curriculares sobreviveriam aos pontos que finalizam e que-
bram cada seção de uma vida segmentar, larva que contém a asa da borboleta, e
que também abre a pele e a ferida por gosto exatamente da carne que putrefaria?
CURRÍCULO E ESTÉTICA DA ARTE DE EDUCAR
Referência

BUCI-GLUSKAMANN, Christine. Variações sobre a imagem: estética e política.


In: LINS, Daniel (org.). Nietzsche Deleuze, imagem, literatura, educação. 13
Fortaleza: Forense Universitária. 2007. p. 70-71.
14
TÍTULO

APRESENTAÇÃO
CURRÍCULO E

CURRÍCULO E ESTÉTICA DA ARTE DE EDUCAR


ESTÉTICA DA
ARTE DE EDUCAR

APRESENTAÇÃO
Janete Magalhães Carvalho
Sandra Kretli da Silva
Tânia Mara Zanotti Guerra Frizzera Delboni
Organizadoras
15
15

Este livro nasce de pesquisa financiada pelo CNPq, coordenada


pela professora Dra. Janete Magalhães Carvalho, denominada Ima-
gens, signos artísticos instigando aprendizagens nos currículos em
cotidianos escolares: potencializando a constituição de corpos co-
letivos (período 2020-2025), cujo objetivo principal foi e é estimu-
lar os movimentos experimentados na constituição dos campos in-
tensivos em seu desenvolvimento, por meio do agenciamento com
as forças que configuram o diagrama curricular de escolas da edu-
cação básica. Isso com a pretensão de envolver a multiplicidade de
pensamentos e desejos e pensar diferencialmente a aprendizagem
tanto de estudantes como de professores, a partir das relações que
estão sendo engendradas, buscando o restabelecimento nos coti-
dianos escolares do sentido do público e do coletivo.
A trajetória percorrida pelo grupo de pesquisa “Com-Versações com a Filosofia
da Diferença em Currículos e Formação de Professores”, nestes últimos anos, so-
bre aprendizagem de professores, estudantes e currículos nos cotidianos, aponta
a dificuldade da constituição dessas aprendizagens inseridas no coletivo escolar
de modo que ultrapassem a dimensão estritamente disciplinar. Nesse sentido, é
relevante a realização de pesquisas que tratem da problemática de o coletivo
escolar se constituir como comunidade compartilhada, em processos de comu-
nalidade expansiva (CARVALHO, 2009); e de estudos que, abordando a rela-
ção entre imagens, signos artísticos e aprendizagem, pesquisem como imagens,
constituídas de potências objetivas (de fora), podem promover alterações pro-
16 fundas nas formas subjetivas (de dentro), conferindo singularidades que, com-
partilhadas, podem influir nos modos coletivos de ver e sentir o mundo, pois as
APRESENTAÇÃO

imagens põem o pensamento para funcionar e podem fazê-lo estremecer...

Buscamos, assim, o agenciamento do desejo de aprender potencializado pe-


los signos artísticos, visando a uma estética da arte de educar que ultrapasse a
dimensão de uma docência dogmática e um ensino compartimentalizado. To-
mamos o conceito de signo em Deleuze que aparece ao longo de toda a sua
obra, ligando cada um de seus livros e artigos ao desenvolvimento de diferentes
problemas em pauta. Tais variações afirmam a complexidade de uma teoria dos
signos que insiste virtualmente em seus livros e artigos. Pode-se dizer mesmo
que as diferentes problemáticas às quais se dedica Deleuze se enriquecem quan-

CURRÍCULO E ESTÉTICA DA ARTE DE EDUCAR


do apreendidas tendo em consideração a experiência do signo. Nessa teoria, o
signo é afecto, ou seja, é um sentir diferentemente nos encontros e corresponde
à variação de nossa potência de existir. Isso ocorre porque o signo envolve uma
diferença de nível constitutiva, uma heterogeneidade irredutível aos dispositivos
que seguram a diferença pela analogia no juízo, pela semelhança no objeto,
pela identidade no conceito e pela oposição no predicado. Um dos aspectos
mais inovadores dessa teoria é que, nela, o signo deixa de ser definido pela so-
berania do significante sobre o significado e o a-significante. Sendo assim, o sig-
nificante passa a caracterizar apenas um dos regimes de signos, que não é nem
17
o mais aberto nem o mais importante. Além disso, nessa teoria o pensamento
deixa de ser um ato de boa vontade de uma consciência soberana, como ocorre
nas imagens tradicionais do pensamento, pois, para Deleuze, pensar implica
uma violência, ou seja, é uma atividade disparada involuntariamente pela força
de um signo, pela violência de tal encontro (NASCIMENTO, 2012).

Cada existência provém de gestos que a instauram e não advém de um criador


como ponto de origem, pois é imanente à própria existência. Desse ponto de
vista, podemos pensar a existência a partir dos limites dos seres ou podemos
pensar a existência a partir dos gestos que instaura, da forma tomada pelos seres
quando aparecem. No primeiro caso, a potência de existir é limitada, enquanto
no segundo é revelada a maneira do existir, a curvatura singular, que, assim,
mostra uma “arte” (LAPOUJADE, 2017).

Nas escolas, o contato com as crianças evidencia as existências dos mundos


infinitos que nos envolvem. Basta que nos demos ao afeto com uma criança
e, de imediato, seremos atravessados pelos mundos de todas as espécies que a
alcançam – seres imaginados coletivamente, experiências ordinárias, expressões
e situações improváveis. Tudo, nessa relação, aponta para a multiplicidade de
possíveis da existência.

Os gestos infantis instaurados nas escolas públicas, nos encontros com os signos
18 artísticos, fazem-nos ver singularidades de um pensamento acerca desses espa-
çostempos. Daí, portanto, buscamos agenciar com a arte a experiência de criar
APRESENTAÇÃO

modos de produzir docências capazes de potencializar as infinitas possibilida-


des de vida.

Dessa forma, buscamos em Gilles Deleuze e Félix Guattari (2010) a aposta na


potência artística. Para os autores, a arte cria as condições de existência dos
mundos ao traçar planos de afecções que, circulando, esbarram no plano da
vida continuamente. A arte cria mundos justamente para sacudir a vida estag-
nada, por fazer ruir os fundamentos demasiadamente certos da paz ensejada a
gritos da professora que exige um silêncio que nem mesmo ela suporta. “Trata-se
sempre de liberar a vida lá onde ela é prisioneira, ou de tentar fazê-lo num com-

CURRÍCULO E ESTÉTICA DA ARTE DE EDUCAR


bate incerto” (DELEUZE; GUATTARI, 2010, p. 202).

Busca-se forçar o pensamento a pensar, movimentá-lo em meio a signos que nos


transportem para outros possíveis, tal como no Mundo de Sofia (GAARDNER,
1995, p. 399), quando, ao baterem fortemente à porta, a menina se dispôs a abrir:
— Olá! Disse Sofia. —Quem é você?
— Meu nome é Alice. Respondeu a menina enquanto fazia um gesto de
cortesia meio envergonhada.
— Foi o que pensei! Disse Alberto. — É Alice do País das Maravilhas.
— Mas como ela chegou até aqui? 19
A própria Alice explicou:
— O País das Maravilhas é um lugar sem fronteiras, o que significa que
ele está por toda a parte.

Desse modo, objetiva este livro a abertura dos intermundos que habitam nossas
infâncias e nossas pesquisas. É composto não somente de textos escritos por
participantes do Grupo de Pesquisa Com-Versações, mas também congrega re-
sultados de pesquisas e ensaios muito plurais em duplo sentido: a) pelos signos
artísticos enfocados (teatro, literatura, cinema, oficinas, desenho, pinturas etc.;
b) pelo número expressivo de instituições de ensino superior aqui representadas
por meio de seus pesquisadores que conosco se envolveram nessa viagem atrás
de um Coelho Branco que, olhando o relógio retirado do bolso do colete, conti-
nua a correr e, passando por este livro, sempre faz uma reverência e diz:

— Vai começar tudo de novo!

Assim esperamos que vicejem outras ideias, outras parcerias, outros afetos e
afecções que, atravessando estas páginas, potencializem novas discussões, pro-
blematizações e que, incansavelmente, sempre comecemos tudo de novo na
diferença da repetição.

O livro, antes que jorrem novas ideias e comece tudo de novo, apresenta vinte
20
capítulos.
APRESENTAÇÃO

O primeiro tem o título A ferramenta e o objeto do teatro numa ideia de


aprendizado, de autoria de Renato Mendes (Unicamp) e Sílvio Gallo (Unicamp).
Aborda alguns elementos da sensibilidade estética no processo de aprendizado
em torno de experiências possibilitadas pelo exercício do teatro. Tais experiên-
cias estéticas não são dissociadas de sua perspectiva social, abrindo-se pois os
horizontes para uma educação transformadora de si e do mundo.

O segundo, escrito por Glaucia Carneiro (UFMG) e Marlucy Alves Paraíso


(UFMG), com o título Currículo da cidade e o direito de aparecer: aliançar
que faz diferença, explora a noção de cidade como um currículo, um território
onde é possível aprender no encontro com signos e afectos, que podem atra-

CURRÍCULO E ESTÉTICA DA ARTE DE EDUCAR


vessar o corpo de quem transita pelas ruas. As performances de Ed Marte − seu
movimento desviante e, por vezes, incompreensível − realizadas nas ruas do
baixo centro de Belo Horizonte, provocaram a sensação de uma baforada de
caos, de um sopro de vida selvagem. Um “currículo das errâncias” composto de
matérias-forças, dentre as quais destaca: o aliançar e o hesitar.

O terceiro, Transcriação de signos: infantil, aula, docência, de autoria de


Sandra Mara Corazza (UFRGS) e Silas Borges Monteiro (UFMT), debate o infan-
til, a aula e a docência em sua relação com a transcriação de signos. Aborda
como em aula, nesse tempo de distanciamento, a docência vê a si mesmo em 21
um monitor, uma imagem entre outras, em mosaico, em destaque, a depender
da plataforma. Esse encontro de fantasmas jogando com signos torna a pedago-
gia uma espécie de espectralidade que deve ser transcriada em outra docência,
outra aula e outro infantil.

O quarto capítulo, escrito por Janete Magalhães Carvalho (Ufes), Steferson Zano-
ni Roseiro (Ufes) e Suzany Goulart Lourenço (UVV), denominado Por docências
não dogmáticas e existências não mínimas nos cotidianos escolares, opera
com a noção de uma docência não dogmática que reconhece a pluralidade dos
intermundos. Utiliza pinturas feitas pelos alunos, atreladas a trechos das conver-
sas estabelecidas entre eles, concluindo pela necessária instauração de gestos e/
ou modos de criação em frente à lógica de controle e redução da vida infantil
das crianças de periferia das escolas públicas a uma “existência mínima”.

O quinto, Fazer morada na infância: imagens de currículos em devir-


-criança, de autoria de César Donizetti Pereira Leite (Unesp), Bianca Santos
Chisté (UFRR) e Giovani Cammarota (UFJF), questiona: entre corpos e desejos,
será possível caracterizar a educação infantil? Currículos como modos de expe-
rimentar mundos ou currículos que pretendem formar? O que podem as imagens
fotográficas produzidas por professores, auxiliares, crianças? Conclui por um
outro limiar de currículo, um devir-criança como aquele território que se projeta
como fora, como perigo e como experiência.
22
O sexto capítulo, escrito por Carlos Eduardo Ferraço (Ufes) e Marco Antonio
APRESENTAÇÃO

Oliva Gomes (Ufes), denominado Signos artísticos e aprendizagens involun-


tárias, enfoca a força dos signos artísticos como condição de re-existência ante
os mecanismos de diminuição de vidas, reverberando na produção de múltiplas
aprendizagens, caracterizadas como involuntárias, que insurgem em diferentes
processos-movimentos educacionais. A produção de possíveis para as vidas to-
madas em suas diferenças atravessa o texto afirmando arte-grafite como possibi-
lidade de produção de movimentos de re-existência e de criação.
O sétimo, de autoria de Ana Cláudia Santiago Zouain (Ufes), Nathan Moretto

CURRÍCULO E ESTÉTICA DA ARTE DE EDUCAR


Guzzo Fernandes (Ufes) e Sandra Kretli da Silva (Ufes), O cinema abrindo alas
para os devires passarem, argumenta que o encontro com as imagens-cinema
em redes de conversas força o pensamento, impulsionando o corpo coletivo na
invenção de novos movimentos curriculares e na busca de mais sentidos para os
processos de aprendizagensensino.

O oitavo capítulo, com o título Encenações curriculares: inspirações nas


obras de Pina Bausch, escrito por Ana Paula Pereira Marques de Carvalho
(Uerj) e Rita de Cássia Prazeres Frangella (Uerj), propõe a discussão de uma
concepção de currículo a partir de uma inspiração bauschiana, na potência das 23
provocações que ela nos incita, especialmente no que diz respeito à tensão am-
bivalente entre as dimensões pedagógicas e performáticas que dessacralizam o
currículo como lugar da tradição e, nessas articulações ambivalentes, contingen-
cialmente, evocam uma temporalidade iterativa e intersticial.

O nono capítulo, de autoria de Graziele Corrêa Amorim (UFV) e Eduardo Si-


monini (UFV), denominado Narrativa, cinema e realidade: a ousadia de
pensar-estranhar outros mundos, toma como base um documentário sobre
Manoel de Barros em sua perspectiva de realidade inventada, no movimento de
construir outros arranjos de sentido-sensações. Conclui que, no estranhamento
de certezas, as imagens-narrativas fílmicas podem fazer com que sejamos convi-
dados e/ou obrigados à (re)invenção de um mundo.

No décimo capítulo, “Mamãe, vamos nos esconder?”: as artes criancei-


ras em tempos de monstruosidades necropolíticas, de Luciane Tavares dos
Santos (UFF) e Marcio Caetano (UFPel), os autores buscam pensar e escrever os
modos como a arte imaginativa da criança ressignifica a casa, como familiares
trabalham e incorporam os acontecimentosexperiências com a pandemia nas
artes cotidianas do cuidado com as crianças da casa e das escolas. Narra como
a arte das crianças e seus desenhos se revelam potente recurso de um mundo
para além do isolamento, do medo do contágio e do que vem ou pode vir em
24
decorrência dele.
APRESENTAÇÃO

O décimo primeiro capítulo, escrito por Maria da Conceição Silva Soares (Uerj) e
Simone Gomes da Costa (Uerj), intitulado Vestido, quimono e peruca, produ-
ções narrativas e imagéticas de si: rostidade e professoras em devir, objeti-
va a criação de espaçostempos para, por meio de fabulações imagéticas sobre si,
simultaneamente, interrogar, refuncionalizar, potencializar as tessituras das redes
de práticas e significações de professoras sobre o feminino e a docência, suas po-
tências e invenções e, assim, problematizar o sistema corpo-genêro-sexualidade.

O décimo segundo capítulo, (Des)caminhos: as imagens-cartazes potencia-


lizando a vida coletiva com as aprendências insurgentes na diferença, de
Juliana Paoliello (Ufes), Priscila dos Santos Moreira (Ifes) e Alba Jane Santos Lima
(Ifes/Unirio), discute sobre o movimento de ocupação das escolas públicas de
ensino médio do Brasil (2016) pelos estudantes secundaristas. Por se tratar de

CURRÍCULO E ESTÉTICA DA ARTE DE EDUCAR


um ensaio, a escrita tangencia uma análise a partir de signos artísticos como a
obra Caminhando, de Lygia Clark, e alguns trechos da literatura de Guimarães
Rosa, em sua relação com as linhas desejantes que emergiram insurgentes nos
movimentos de ocupação.

O décimo terceiro capítulo, escrito por Jaqueline Magalhães Brum (Ufes) e Nil-
cea Elias Rodrigues (Ufes), denominado Força, forma e pintura: movimentos
na formação continuada de professores a distância, problematiza como a
força micropolítica produzida nas relações de afetos e afecções em um curso
EAD em Matemática pode afetar a forma macropolítica, utilizando elementos
25
da pintura (forças, elementos relacionais e formas) para análise dos enunciados
discursivos dos cursistas sobre o curso a distância.

Os autores Thiago Ranniery (UFRJ) e Júlia Pompeu (UFRJ) apresentam o décimo


quarto capítulo, Quando as imagens vão à guerra: currículo, mosquitos,
bactérias, vírus, ciências, tecnologias… O texto sugere como a imagem é
convocada para lidar com a presença monstruosa da combinação mosquito,
bactéria e tecnologia sem que dispense ou preceda essa fantasmagoria. Essas re-
lações e suas recalcitrâncias ensinam sobre as “normatividades sujas” que operam
nas tramas curriculares. Exploram como essa convocação torna ambivalente agir
enquanto estamos juntos com esses outros, visto que o currículo se torna o campo
para construir uma aliança ecoimagética interespécies.
O décimo quinto capítulo, As imagens-cinema como máquinas de guerra do
pensamento: currículos e docências e..., escrito por Camilla Borini Vazzoler
Gonçalves (Ufes), Eliana Aparecida de Jesus Reis (Seme/Serra) e Tânia Mara Za-
notti Guerra Frizzera Delboni (Ufes), objetiva cartografar os fluxos liberados e as
linhas de fuga intensificadas para fazer a língua delirar, experimentar conceitos,
abrir linhas, devires, agenciamentos, acontecimentos nos encontros com ima-
gens-cinema entendidas como máquina de guerra do pensamento que permite a
abertura para outros/novos territórios ainda não sentidos e vividos de currículos
e docências e aprendências.

No décimo sexto capítulo, os pesquisadores Lysia da Silva Almeida (Ifes), Da-


26
vis Moreira Alvim (Ifes) e Izabel Rizzi Mação (Ufes), em Oficinas artísticas
APRESENTAÇÃO

na periferia: práticas educativas para aprender e afetar o corpo coletivo,


enfocam algumas das atividades realizadas em oficinas artísticas em parceria
com o Ponto de Cultura Varal Agência de Comunicação, projeto vinculado à As-
sociação Ateliê de Ideias – ponto de cultura e espaço de produção e divulgação
de projetos de comunicação, como formações, reuniões de grupos comunitários
e eventos culturais. Os autores abordam, em especial, o encontro elaborado a
partir de material disponibilizado pelo Núcleo de Ação Educativa da Pinacoteca
de São Paulo, a oficina de colagens e a de zines.
O décimo sétimo capítulo, Pensando com a presença: currículos como per-

CURRÍCULO E ESTÉTICA DA ARTE DE EDUCAR


formances cotidianas, de Alexandra Garcia (Uerj), Allan Rodrigues (Uerj) e
Leonardo Alburquerque (Seeduc/RJ), discute como somos, como performers, su-
portes vivos. Nossos corpos e falas são as narrativas de imagens móveis que bus-
cam ressignificar as desimportâncias do cotidiano. Pensar as narrativas dos pra-
ticantes do cotidiano em deslocamentos mobilizados com performances, sons
e imagens busca desdobramentos de uma escrita de si permeável e inacabada
como a própria arte.

O décimo oitavo capítulo, de autoria de Terezinha Maria Schuchter (Ufes), Fa-


bio Luiz Alves de Amorim (Unesa) e Jaconias Dias Rodrigues (Ufes), intitulado 27
O que pode a escola? Atravessamentos do cinema nos/dos processos de
insurreições e resistências nos cotidianos escolares, visa a tecer problema-
tizações sobre a conjuntura política, econômica, social e cultural em relação
com os processos de subjetivação na contemporaneidade, observando como
os filmes podem ser inseridos no cotidiano escolar como artefato disparador e
questionador das questões vivenciadas no tempo presente.

No décimo nono capítulo, Patrick Stefenoni Kuster (Ufes), em Signos artísti-


cos e conhecimento: um ensaio contra-epistemológico, objetiva explorar as
possíveis relações entre os signos artísticos e a atividade do conhecer inerente a uma
pesquisa. No alcance dessa análise, na relação entre experiência sensível e produção
de conhecimento, assumindo seu caráter inventivo, acena para o estatuto necessaria-
mente clínico-ético-estético-político na produção de conhecimento. Na perspectiva da
produção, um conhecimento insurgente a toda forma de exploração da vida aponta a
força de se pesquisar por meio dos signos artísticos.

O vigésimo e último capítulo de autoria de Graça Reis (UFRJ), Inês Barbosa de


Oliveira (UNESA/UERJ) e Marina Santos Nunes de Campos (URFJ) denomina-
do Materiais artístico-narrativos, cotidianos e formação docente: fluxos
aprendentes coletivos na perspectiva das epistemologias do Sul, associa
narrativas de si presentes em bordados e em histórias contadas por professores
28 em sua relação com processos coletivos de aprender, sobre si e sobre o mundo, e
promover, a partir daí, uma ecologia de saberes, como pressupõem as epistemo-
APRESENTAÇÃO

logias do Sul, estabelecendo relações mais igualitárias entre diferentes saberes e


racionalidades. Reconhece, assim, nas situações e experiências bordadasnarra-
das, possibilidades emancipatórias e coletivas de formação.

Boa leitura!
Referências

CURRÍCULO E ESTÉTICA DA ARTE DE EDUCAR


CARVALHO, Janete Magalhães. O cotidiano escolar como comunidade de
afetos. Petrópolis, RJ: DP et Alii; Brasília, DF: CNPq, 2009.

DELEUZE, Gilles. Proust e os signos. Tradução de Antônio Carlos Piquet e Ro-


berto Machado. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2010.

DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. O que é filosofia? Tradução de Bento Pra-


do Jr. e Alberto Alonso Muñoz. 3. ed. São Paulo: Ed. 34, 2010.

GAARDNER, Jostein. O mundo de Sofia: romance da história da filosofia. Tradu-


ção de João Azenha Jr. São Paulo: Companhia das Letras, 1995. 29

LAPOUJADE, David. As existências mínimas. Tradução de Hortencia Santos


Lencastre. São Paulo: n-1 Edições, 2017.

NASCIMENTO, Roberto Duarte Santana. Teoria dos signos no pensamento


de Gilles Deleuze. 2012. Tese (Doutorado em Filosofia) – Universidade de
Campinas, Campinas, 2012.
TÍTULO

30

1.
CURRÍCULO E ESTÉTICA DA ARTE DE EDUCAR
31

A FERRAMENTA
E O OBJETO DO
TEATRO NUMA IDEIA
DE APRENDIZADO

Renato Mendes
Sílvio Gallo
Renato Mendes1
Sílvio Gallo2

“Vida e arte são as chamas gêmeas da revolta”


Emma Goldman

1 Sempre à mão
Ao longo de diversas experiências educativas que emergiram em diferentes mo-
mentos da história, o caráter lúdico e pedagógico das artes, a experiência do
fazer bem como a fruição estética por parte dos aprendizes, foi um aliado valo-
32 roso dos mais variados projetos de aprendizagem. Se tomamos como exemplo
a pedagogia racional proposta e praticada por Francesc Ferrer i Guàrdia nos
A FERRAMENTA E O OBJETO DO TEATRO NUMA IDEIA DE APRENDIZADO

primeiros anos do século XX,3 o projeto de uma educação integral era marcado
pela afetividade, evidenciando a importância estética no aprender, como pode-
mos ver no seguinte trecho:

Ademais, não se educa integralmente o homem disciplinando sua


inteligência, fazendo caso do coração e relegando a vontade. O ho-
mem, na unidade de sua funcionalidade cerebral, é um complexo;
tem várias facetas fundamentais, é uma energia que vê, afeto que
rejeita ou adere ao concebido, e vontade que se cristaliza em atos,
o percebido e amado [...] Cuidaremos para que as representações
intelectuais que a ciência sugerir ao educado sejam convertidas em

1 Ator, dramaturgo e professor de teatro, mestrando em Educação na FE-Unicamp. Graduado em Licenciatura em Arte-Teatro pelo
Instituto de Artes da Unesp.

2 Professor Titular da Faculdade de Educação da Universidade Estadual de Campinas e Pesquisador do CNPq.

3 O educador catalão criou em 1901 a Escuela Moderna de Barcelona, que seria fechada pelo Estado espanhol em 1905. Ferrer
propôs uma pedagogia racionalista, fortemente amparada nas ciências naturais, com um aprendizado baseado na experiência e
na experimentação. O racionalismo de Ferrer, no entanto, dava extrema importância ao afetivo nos processos de aprendizagem.
Os protestos contra seu fuzilamento pelo governo espanhol em 1909 espalharam suas ideias pelos quatro cantos do mundo, tendo
animado inúmeras escolas anarquistas, inclusive no Brasil.
sentimento que ele as ame intensamente. Porque o sentimento, quan-
do é forte, penetra e se difunde pelo mais profundo do organismo
do homem, perfilando e colorindo o caráter das pessoas. (FERRER Y
GUARDIA, 2014, p 43-44)

Não é totalmente outra a direção que tomou Deleuze (2006) ao tratar do apren-
der em seu livro Diferença e Repetição: ainda que o aprender seja uma expe-
riência no pensamento, ele é totalmente marcado pelo afetivo e pelo estético,
visto que somos levados a aprender – e a pensar – pelo encontro com signos

CURRÍCULO E ESTÉTICA DA ARTE DE EDUCAR


enigmáticos que nos provocam problemas que são da ordem da sensibilidade. É
a sensibilidade, pois, que nos move a aprender.

Neste texto, perseguiremos alguns elementos da sensibilidade estética no pro-


cesso de aprendizado em torno de experiências possibilitadas pelo exercício
do teatro. Tais experiências estéticas não serão dissociadas de sua perspectiva
social, abrindo-se pois os horizontes para uma educação transformadora, de si
e do mundo.

Lancemos um olhar para o caráter didático da arte teatral e seus conceitos, e


33
como até em determinados momentos em que a instituição escolar não estava
disponível – ou exercia uma função contrária à formação subjetiva emancipado-
ra dos sujeitos – ela foi usada como recurso para a construção de imagens e lin-
guagens que provoquem movimento tanto pessoal quanto, e sobretudo, social. O
teatro, para o (a) fazedor (a) e para o (a) espectador (a), se mostra desafiador con-
tra a manutenção de um corpo cotidiano, e possibilita estremecer subjetividades.

Aqui, podemos recorrer a Foucault (1991) e pensar o teatro contra a docilização


dos corpos. O filósofo mostrou como a escola é o lugar da disciplina, sendo
um de seus produtos os corpos docilizados, longamente amansados nos bancos
escolares através dos anos, preparados para a obediência, para os ritmos de
trabalho, para a produtividade requerida pelo mundo capitalista. O teatro, com
seu trabalho corporal, também passa pela disciplina, visto que sem disciplinar
o corpo a atuação não é possível. Mas, trata-se de um disciplinamento que abre
horizontes, que possibilita estar no mundo de formas outras, implicando em pro-
cessos singulares de subjetivação. Diferentemente de uma sala de aula, o corpo
no espaço de cena, ou “palco”, deve procurar sempre modos diferentes de ser e
estar, ressignificando e reinventando a si. Que subjetividades outras, para além
da serialização produzida em nossa sociedade, visando a submissão e a obe-
diência, uma prática teatral poderia ensejar?

Num exemplo pontual não muito distante de nós, embora muito bem ocultado
pela historiografia que se pretende hegemônica, podemos encontrar a arte tea-
tral exercendo o caráter formativo de comunidades inteiras, propondo uma refle-
xão crítica acerca de questões sociais. Foi o caso das vilas operárias, organizadas
e engajadas por anarquistas que compunham a linha de frente dos primeiros
anos da luta proletária no Brasil, no então nascente século XX. Uma das poucas
pesquisadoras a se desdobrar sobre o tema, num trabalho verdadeiramente ar-
queológico em busca do que era mantido ocultado nesse capítulo história, Ma-
ria Thereza Vargas surpreende ao revelar que é na experiência estética, cênica,
que os sujeitos integrantes dessas comunidades se instruíam e se formavam, bem
como ensaiavam insurgências contra o entendimento de mundo premido pelo
senso comum e imposto subjetiva e diariamente pelos meios convencionais,
inclusive escolares.
34

Coube, nos primórdios das lutas sociais, ao movimento anarquista


A FERRAMENTA E O OBJETO DO TEATRO NUMA IDEIA DE APRENDIZADO

no Brasil, amparado por vozes estrangeiras e brasileiras, a luta contra


a exploração imposta por um sistema injusto. Para que isso fosse al-
cançado, foi necessário um trabalho sistemático de conscientização
voltado para a classe trabalhadora [...] Um meio mais forte e direto
veio juntar-se aos jornais, livros e palestras: o teatro social, como o
chamavam. Impressionando ouvido e visão, o teatro anarquista estava
apto a se constituir numa força, tanto ou mais eficaz que a imprensa
(VARGAS, 2012, p 362-363).

Pois não apenas o caráter informativo e de difusão de ideias era próprio dessa
expressão popular, mas nela, e a partir dela, intentava-se fomentar a produção
de saberes pela estética, e uma formação sensível de quem a praticava. Atores
e atrizes, criadores no palco – ou nos mais variados espaços improvisados que
de palco lhes serviam – operários e operárias ensaiavam serem sujeitos ato-
res ativos, não alienados das relações cotidianas fora do espaço da represen-
tação.4 É o que podemos afluir do pensamento de Edgar Rodrigues, historiador
luso brasileiro que conviveu e biografou grande parte do movimento operário
brasileiro, principalmente influenciado pela imigração italiana, mas que de
forma alguma se limitava a ela:

A imprensa publicada em idioma italiano também comentava o Teatro


Social, libertário, fundado em São Paulo, exaltando seu valor como
veículo de propaganda ideológica e de protesto contra a exploração

CURRÍCULO E ESTÉTICA DA ARTE DE EDUCAR


do homem pelo homem, e como divertimento sadio a nível familiar,
de educação ácrata e revelador de talentos artísticos (RODRIGUES,
1992, p 110).

Ao buscar fontes diretamente ligadas ao período, Vargas encontrará reiterada-


mente a popularidade dos teatros formativos, e a consciência de seus partíci-
pes de que era nesse teatro, feito amadoramente pelos próprios operários, que
essa camada da população tinha sua experiência pedagógica: “Toda região,
toda vila italiana se orgulha de sua ou de suas associações filodramáticas, que
não tem apenas finalidade recreativa, mas são também poderoso fator educativo
35
(PETTINATI, apud VARGAS, 2012, p 361)”. De fato, educativo, pois não só os
ideais sócio-políticos ácratas ou o ofício cenológico eram apreendidos nessas
representações. Era por meio do aspecto lúdico do Teatro Social que anarquistas
e demais trabalhadores e trabalhadoras estudavam de maneira livre sua própria
formação ética e também os demais temas do conhecimento humano, como
nos lembra Rodrigues: “É lícito dizer que um dos grandes méritos do movimento
anarquista foi o Teatro Social, ativo em todos os campos do conhecimento, da
ciência, da cultura, da solidariedade humana e ideológica, a níveis nacional e
internacional (RODRIGUES, 1992, p 113)”.

É evidente que os anarquistas exerciam essa ação com o teatro, em seu caráter
didático, de maneira própria, particular, de maneira instrumental aos seus obje-
tivos enquanto projeto de sujeito e projeto de mundo – ideias que perpassam e

4 Jacques Rancière (1988) no belo livro A noite dos proletários – arquivos do sonho operário narra as histórias de diversos operários
das primeiras décadas do século XIX, de variados ramos e articulados em uma liga saint-simoniana de cooperação, que apro-
veitavam suas horas de lazer e de descanso – suas noites – para exercer atividades artísticas: pintavam, esculpiam, desenhavam,
escreviam poesia e prosa, escreviam peças e as montavam, atuando como atores. Para o filósofo, tal exercício estético que, em
princípio, não estava reservado a eles, era sua forma de emancipar-se da condição de exploração e de dominação, exercitando as
atividades estéticas.
constituem a educação. Porém o exemplo a que acima recorremos, ainda que
com certo vanguardismo, não é algo novo ou sequer único na história.

Se nos avançarmos à segunda metade do século XX, poderemos observar uma


das mais profícuas propostas de utilização das artes cênicas como instrumento
formativo que se tem. O dramatista alemão Bertolt Brecht desenvolverá seu no-
minado Teatro Didático, prática que compõe o corpo do que se convencionou
chamar Teatro Épico. Em seus aprofundados Estudos sobre teatro (1978), Brecht
frisará que, a sua maneira e segundo seus interesses, sua experiência ecoa outras
vozes dessa emergência na história: “o teatro épico nada apresenta de especial-
mente novo [...] já os mistérios medievais, o teatro clássico espanhol e o tea-
tro jesuíta evidenciavam tendências didáticas (BRECHT, 1978, p 54)”. Também
preocupado com as grandes lutas políticas de seu tempo, o marxista Brecht se
engajará na investigação acerca de uma arte teatral que, buscando exercer sua
qualidade educativa, permita examinar de maneira crítica a sociedade, forme
ética e esteticamente tanto quem o exerce quanto quem o assiste, e sirva como
ferramenta de oposição à “exploração do homem pelo homem”.
36
Não buscamos aqui apropriar e atribuir o arcabouço brechtiano ao bojo do Tea-
A FERRAMENTA E O OBJETO DO TEATRO NUMA IDEIA DE APRENDIZADO

tro Social anarquista, tampouco descaracterizar a experiência pedagógica lúdica


e social ácrata, adequando-a à proposta épica. Apenas partimos do mote seme-
lhante, até certo ponto aliado, no comprometimento com um pensamento e
uma prática educativa que emancipe os sujeitos por meio de sua sensibilização
e conscientização ante às relações sociais que caracterizam opressão. No seio
das grandes pensadoras anarquistas do início do movimento, Emma Goldman
lembrará que todo grande artista tem seu espaço e sua relevância determinados
por si, sendo comparações entre eles de caráter apenas analítico. Numa impor-
tante, embora pouco estudada, obra de análise de diversos textos teatrais de seu
tempo, infelizmente ainda carente de publicação em português, ela afirmará:
“It is unnecessary to make comparisons between great artists: life is sufficiently
complex to give each his place in the great scheme of things (GOLDMAN, 2014,
p 24)”.5 Partamos do exemplo histórico dos primeiros anarquistas para conceitos

5
Em tradução livre: “É desnecessário fazer comparações entre grandes artistas: a vida é suficientemente complexa para dar a cada
um seu lugar no grande esquema das coisas”.
mais modernos, cientes de suas particularidades. Se nos propusermos a pensar
a educação para além do campo institucional escolar, mas não o excluindo, e a
pensarmos de maneira atrelada à sociedade em seu entorno, o que de nenhum
modo, querendo-se ou não, ela deixa de estar, podemos perceber potências cria-
doras de diferença e resistência subjetiva nessas experiências de teatro muitas
vezes tidas como “panfletárias”.

CURRÍCULO E ESTÉTICA DA ARTE DE EDUCAR


O palco principiou a ter uma ação didática. [...] O teatro passou a ofe-
recer aos filósofos uma excelente oportunidade, oportunidade, aliás,
aberta apenas a todos aqueles que desejavam não só explicar como
também modificar o mundo. Fazia-se filosofia; ensinava-se, portanto
(BRECHT, 1978, p 48).

Pensamos aqui, portanto, num teatro que é didático, formativo e filosófico. Ana-
lisemos então a possibilidade de aprendizado por meio lúdico teatral, exami-
nando tal proposta de devir brechtiano.

37
2 Percepção afetiva do mundo: aprender teatro /
aprender com teatro
O teatro, assim como a educação, e sobretudo o teatro na educação tem a ca-
pacidade de apurar uma percepção afetiva do mundo por parte dos sujeitos.
A construção e interpretação cognitiva e também física corporal de imagens
interpretativas e representativas adentra um entendimento que extrapola o pen-
samento simbólico, e produz saberes de campo sensível. Quem talvez melhor
tenha desenvolvido um pensamento base acerca de tal possibilidade de apren-
dizado, e a utilizado de maneira engajada com um entendimento crítico e uma
proposta de transformação de mundo, foi o diretor e pedagogo teatral brasileiro
Augusto Boal, em seu laboratório de criação que culminou na consolidação da
Estética do oprimido (2009) enquanto conceito. De muitos modos um continua-
dor da obra de Brecht, acerca das múltiplas possibilidades da linguagem sensível
como produção de saber, ele é categórico quanto ao ato político que representa:
[...] temos que repudiar a ideia de que só com palavras se pensa, pois
que pensamos também com sons e imagens, ainda que de forma su-
bliminal, inconsciente, profunda! Temos que repudiar a ideia de que
existe uma só estética, soberana, à qual estamos submetidos – tal ati-
tude seria nossa rendição ao Pensamento Único, à ditadura da palavra
(BOAL, 2009, p 16).

A palavra como universo conhecido tende a aprisionar o pensamento nos lu-


gares conhecidos. No entanto, o pensamento sensível, dos sons e das imagens,
que impressiona ouvido e visão constituindo uma força, não se basta em si para
combater o Pensamento Único. É necessário dominar o campo das palavras
para conseguir opor-se a elas, criar palavras novas, somar e pluralizar símbolo
e sensação. A formação dos sujeitos por meio das ferramentas teatrais perpassa
o campo da razão e da palavra enquanto leitura crítica de sociedade, como de-
termina Brecht:

[...] um dos elementos mais característicos do teatro épico, o chama-


do efeito de distanciamento. Tal efeito depende de uma técnica espe-
cial, pela qual se confere aos acontecimentos representados (acon-
38 tecimentos que se desenrolam entre os homens nas suas relações
recíprocas) um cunho de sensacionalismo; os acontecimentos passam
A FERRAMENTA E O OBJETO DO TEATRO NUMA IDEIA DE APRENDIZADO

a exigir uma explicação, deixam de ser evidentes, naturais. O objetivo


do efeito de distanciamento é possibilitar ao espectador uma crítica
fecunda, dentro de uma perspectiva social (BRECHT, 1978, p 74).

Nas perspectivas de Boal e Brecht, podemos perceber uma evidente preocupa-


ção com a função social da arte, o entendimento do artista como cidadão e tam-
bém a qualidade do cidadão como artista. Essa qualidade em que, entendendo
o mundo como experiência estética, o sujeito passa a agir simbólica e pratica-
mente no seu meio social, é fundamental não só para o objetivo das formulações
teatrais pedagógicas em que nos aportamos, mas é inerente à sua própria defini-
ção. O fazer e o fruir artístico pouco ou nada se distinguem, e existem no sentido
de constituir e educar um sujeito emancipado, jamais alheio, ao seu todo. Não
se constrói assim nada de novo, mas se revela algo já existente na palavra, no
sensível e no trato com o outro.
O artista mostra o escondido, não o óbvio, e nos faz entender através
dos sentidos – torna consciente o que estava em nós impregnado. No
tempo, surpreende o instante; no espaço, o invisível.
No teatro – a mais complexa de todas as artes porque a todas inclui
com suas complexidades –, os artistas (cidadãos) devem fazer-nos ver
o que temos diante do nariz e não vemos, entender o que é claro e
nos aparece obscuro (BOAL, 2009, p 57).

Sendo o trabalho artístico um ato de criação, não necessariamente de algo novo,

CURRÍCULO E ESTÉTICA DA ARTE DE EDUCAR


e não a partir do nada ou sem referências anteriores, ainda assim um exercício
criativo, é imperativo que essa criação de si seja uma criação estética autônoma,
emancipada. A apropriação da palavra e o desvelamento dos sons e imagens são
ferramentas da construção de si, potencializadas pela vivência estética do fazer
fruir teatral, e se mostram ferramentas educativas fundamentais para se pensar
uma cultura outra. “Criar nossa própria cultura, sem servidão àquelas que nos
são impostas, é ato político e não apenas estético; ato estético, não apenas polí-
tico (BOAL, 2009, p 36)”!

A atividade teatral pedagógica perpassa, portanto, o campo da formação do 39


sujeito enquanto produtor de sua própria linguagem. A partir desse sujeito auto
constituído e em relação constante com o seu todo, o teatro também pode ser
pensado como instrumento de aprendizado de outros campos do saber. Como
linguagem, o teatro pode e é usado também como comunicação educativa.

3 Aprender com teatro


A formação nas ciências também é constitutiva na personalidade do sujeito,
tanto quanto a arte, de maneira que “A ciência e a arte têm de comum o fato
de ambas existirem para simplificar a vida do homem; a primeira, ocupada com
a sua subsistência, a segunda, em proporcionar-lhe diversão (BRECHT, 1978, p
107)”. Arte e ciência, portanto, são complementares e conviventes na formação
pedagógica. Evidente que esse convívio não se dá sem um contágio saudável
entre os saberes, de forma que nenhum se mantém puro. Do teatro, podemos
dizer que não representa a si, ou não se basta tendo a si mesmo como único
tema. Ao representar qualquer relação social, o teatro permite e até exige, se se
pretende bom teatro, entender e analisar o objeto representado, alimentando-
se de sua ciência. Seu aprendizado se dá de maneira objetiva ao jogo de cena,
e esse jogo se dá, ou ao menos assim deve prosseguir, de maneira divertida,
visando enquanto forma, entreter.

Em contrapartida a esse ensino prazeroso, são muitas as críticas à maneira dura


como a instituição escolar engessa o saber e torna o ensino algo penoso, numa
herança evidentemente clerical em seu modo de ser. Numa de suas muitas e
mordazes críticas aos educadores, ao comparar sua capacidade educativa à po-
tencialidade didática da arte dramática, Goldman dirá que: “parents and tea-
chers are, in relation to the child’s needs, the most ignorant and mentally indo-
lent class (GOLDMAN, 2014, p 33)”.6 Por tal distância do universo cognitivo e
social daqueles que deveriam educar, a pensadora concluirá com espanto que
as instituições, da maneira como são concebidas a priori, pouco têm a de fato
ensinar: “It is astonishing how little education and college degrees teach people
40
(GOLDMAN, 2014, p 54)”.7 De maneira mais polida, mas não menos crítica,
Brecht enfatizará que o ensino costuma se dar de modo enfadonho, e propõe o
A FERRAMENTA E O OBJETO DO TEATRO NUMA IDEIA DE APRENDIZADO

teatro como forma divertida e, portanto, mais eficiente, de se estabelecer uma


educação mais ampla em seu escopo, e mais engajada no saber e no discurso
crítico acerca dele:

É voz corrente que existe uma diferença marcante entre aprender


e divertir-se. É possível que aprender seja útil, mas só divertir-se é
agradável [...] O que podemos dizer é que a oposição entre aprender e
divertir-se não é uma oposição necessária por natureza, uma oposição
que sempre existiu e sempre terá de existir.
A aprendizagem que conhecemos da escola, da preparação profissio-
nal, etc... é indubitavelmente penosa. Mas deve ter-se em conta em
que circunstâncias e para que objetivo ela se processa. Trata-se, na
realidade, de uma compra. A instrução é mera mercadoria, adquirida
com objetivo de revenda. Em todos aqueles que ultrapassaram a idade
escolar a instrução tem de ser levada a efeito quase que em sigilo,

6 Em tradução livre: “Pais e professores são a mais ignorante e mentalmente indolente classe em relação às necessidades da criança”.

7 Em tradução livre: “É impressionante o quão pouco títulos acadêmicos ensinam às pessoas”.


pois quem confessa ter de aprender coloca-se, simultaneamente, num
plano inferior, considerando-se alguém que sabe pouco. [...] O gosto
pela instrução depende então de muitos e variados fatores. Mas, não
obstante, há uma forma de instrução que causa prazer, que é alegre e
combativa (BRECHT, 1978, p 48-49).

Acerca da maior eficácia e atratividade do ator ou da atriz diante do modelo


clássico de professor, ou mesmo de outras formas de instrutor, Goldman ecoa
Brecht. Sobre o ator que consegue inflamar os corações do público com uma

CURRÍCULO E ESTÉTICA DA ARTE DE EDUCAR


representação de um texto político, definirá que a sinceridade para com a
vida e seu modo de trabalho criativo, portanto estetizado, o tornam uma ins-
piração mais poderosa e uma maior ameaça ao tecido social do que qualquer
outro orador:

Not necessarily because his aim is to proselyte, but because he can


best express himself by being true to life [...] Both radical and conser-
vative have to learn that any mode of creative work, which with true
perception portrays social wrongs earnestly and boldly, may be a great-
er menace to our social fabric and a more powerful inspiration than
the wildest harangue of the soapbox orator (GOLDMAN, 2014, p 1).8 41

Contudo, entender que arte e ciência são saberes complementares, e que são
mutuamente permeadas uma pela outra, exige não desconsiderar que a ciência
possui sua própria estética, suas próprias imagens e seus próprios sons, consti-
tuindo sua forma de se apresentar e ser lida. De maneira recíproca, há arte na
ciência, e os saberes científicos produzem e emanam beleza. Beleza esta melhor
observável quando se lhe ensina em uma relação de prazer e diversão.

Poder-se-ia mesmo escrever, hoje em dia, uma estética das ciências


exatas. Galileu já falava da elegância de certas fórmulas e do humor
das experiências; Einstein atribuiu ao sentido da beleza uma função
de descoberta e o físico atômico R. Oppenheimer enaltece a atitude
científica afirmando que ela “tem uma beleza própria e se revela
perfeitamente adequada à posição do homem na Terra” (BRECHT,
1978, p 100).

8 Em tradução livre: “Não necessariamente porque seu objetivo é fazer proselitismo, mas porque ele pode se expressar melhor
sendo fiel à vida [...] Tanto o radical quanto o conservador precisam aprender que qualquer modo de trabalho criativo, que com
percepção verdadeira retrata os erros sociais com seriedade e ousadia , pode ser uma ameaça maior ao nosso tecido social e uma
inspiração mais poderosa do que a arenga mais selvagem do orador de palanque”.
O que a arte teatral tem a oferecer no ensino da ciência é, sobretudo, o trei-
namento do olhar do sujeito para que seja capaz de traduzir essa estética do
objeto científico, interpretando a origem e a função de tal estética. É uma forma
de expropriar o monopólio da linguagem que pertence aos que Boal chama
opressores, e tornar os signos da ciência e, consequentemente, seu conteúdo,
acessíveis, legíveis, reescrevíveis e defrontados com a sua dimensão social. O
entendimento teatral que contém a relação com as outras artes em movimento
e jogo, treina a ler estéticas e ressignificá-las. Pela estética pode-se aprender de
maneira ativa e crítica, tornando-se sujeito do conhecimento e expropriando os
saberes do opressor.

Como cidadãos, antes de tudo, como artistas por vocação ou profis-


são, temos que entender que só através da contracomunicação, da
contracultura-de-massas, do contradogmatismo; só a favor do diálo-
go, da criatividade e da liberdade de produção e transmissão da arte,
do pleno e livre exercício das duas formas humanas de pensar, só as-
sim será possível a liberação consciente e solidária dos oprimidos e a
criação de uma sociedade democrática – no seu sentido etimológico,
pois, historicamente, a democracia jamais existiu. Dela, pedaços sim.
42
Palavra, imagem e som, que hoje são canais de opressão, devem ser
usados pelos oprimidos como formas de rebeldia e ação, não passi-
A FERRAMENTA E O OBJETO DO TEATRO NUMA IDEIA DE APRENDIZADO

va contemplação absorta. Não basta consumir cultura: é necessário


produzi-la. Não basta gozar arte: necessário é ser artista! Não basta
produzir ideias: necessário é transformá-las em atos sociais, concretos
e continuados.
Em algum momento escrevi que ser humano é ser teatro. Devo am-
pliar o conceito: ser humano é ser artista!
Arte e Estética são instrumentos de libertação (BOAL, 2009, p 18-19).

Entender o sujeito – ou cidadão, como queria Boal – como artista é perceber a


vida e as relações entre vidas como obra de arte, e a arte em que os sujeitos se
relacionam em situação tem nome e história: teatro. As relações se estetizam
de maneira consciente, apropriada, e então o aprendizado e a constituição de
sujeito fluem de maneira ativa. Aprender por meio do olhar estético e da esteti-
zação das relações. O aprendizado, dessa forma, desenvolve sua potência por
ser divertido, como um jogo teatral. “Não fora esta possibilidade de uma apren-
dizagem divertida, e o teatro, em que pese toda sua estrutura, não seria capaz
de ensinar. O teatro não deixa de ser teatro, mesmo quando é didático; e, desde
que seja bom teatro, diverte (BRECHT, 1978, p 50)”.

Comumente infere-se que as formas teatrais engajadas, panfletárias, pretenden-


do-se didáticas ou não, propõe apenas a difusão de um determinado discurso
político, deformando os aprendizes a meros reprodutores de conteúdo. De todo,
não é o que pensamos junto ao material referido: “O verdadeiro propósito do
teatro épico era, mais do que moralizar, analisar. Assim, primeiro, analisava-se a

CURRÍCULO E ESTÉTICA DA ARTE DE EDUCAR


questão, e só depois vinha a “substância”, a moral da história (BRECHT, 1978, p
53)”. Assim, o aprendizado se dá de maneira em que se aceita ou recusa, ou em
partes se aproveita do objeto. Mais e diferentemente de se educar sujeitos conta-
minados por um determinado discurso de quem professa, provoca-se reflexões,
análises e, no limite, uma deliberada e consciente auto formação.

Vemos assim na aliança da ferramenta teatral ao objeto do ensino uma poderosa


tática de oposição ao discurso único, à violência de uma subjetividade imposta
e passiva que determina a estética de mundo e de agir. Uma vida que se coloca
enquanto obra de arte é um constante aprendizado contra a violência unicizan- 43
te. Dela se cria e recria constantemente uma estética de si (FOUCAULT, 1984;
1985; 2004).

[...] a violência do poder não está apenas no seu exercício – está na


sua existência! Como a violência pode se manifestar sem que seja
exercitada? Pelo espetáculo, pela estética. Como se revela e pode ser
combatida? Pela estética e pelo espetáculo, que se extrapola para a
realidade onde se torna real e nela se completa. Uma Nova Estética é
urgente (BOAL, 2009, p 158).

Urgente, de fato, se se quer uma educação emancipatória, para o muito, e não


para o um. Urgente que aprendamos. Urgente que atuemos.

4 O olhar estético é uma estética


Pudemos observar que para pensadores e pedagogos teatrais engajados em pau-
tas sociais o exercício e a fruição da arte teatral podem ter utilidade educativa
para a formação de sujeitos, tanto quanto para uma proposta de transformação
de mundo. Goldman determinará que a arte da cena é uma bomba contra valo-
res pétreos como a superstição, e que prepara homens e mulheres para recons-
truir a sociedade: “It is the dynamite which undermines superstition, shakes the
social pillars, and prepares men and women for the reconstruction (GOLDMAN,
2014, p 2)”.9 Falhando como pedagogia se tentar impor novos valores que subs-
tituam os velhos em seus dogmas, a grande qualidade didática do teatro estaria
em abalar os pilares dos costumes e das relações.

É, pois, o teatro uma útil ferramenta para o ensino, e uma arte que se alimenta e
contribui para as demais ciências, não se encerrando em si. Porém não devemos
presumir que só haja sentido na arte teatral quando dela se extrai algo de útil.
A estética, apropriada e na contramão do entendimento estéril de mundo que
as imagens prontas nos oferecem, mesmo sem perder sua essência combativa,
pode muito bem ser um fim em si, em nada perdendo legitimidade ao fazê-lo. A
qualidade pedagógica que aqui analisamos é uma possibilidade, não um limite,
muito menos uma fronteira. À arte, bem como à e ao artista, reserva-se o direito
44
de se ser supérfluo(a). De outra maneira há o risco de tentar-se capturar uma
força de produção de estética e olhares de mundo, castrando-a de toda a sua
A FERRAMENTA E O OBJETO DO TEATRO NUMA IDEIA DE APRENDIZADO

pulsão e autenticidade. Poder ser supérfluo também é um aprendizado, ainda


que aprender não seja a função de quem estetiza despretensiosamente. Mesmo
o engajado Brecht, comprometido com uma ideia clara e objetiva de revolução
social, que se vale de maneira inequívoca da estética como ferramenta, reco-
nhece e defende que: “Nem sequer se deverá exigir ao teatro que ensine, ou que
possua utilidade maior do que a de uma emoção de prazer, quer orgânica, quer
psicológica. O teatro precisa poder continuar a ser algo absolutamente supérfluo
(BRECHT, 1978, p 101)”. Ao recorrer-se a uma lente que se usa para enxergar o
mundo mais nitidamente, deve-se atentar também para a forma, imagem e até
som da própria lente, reconhecendo-a como beleza em si. A lente é forma antes
mesmo de ser lente. Sem o direito de também não ser didático, o teatro nada
teria a ensinar.

9 Em tradução livre: “É a dinamite que mina a superstição, abala os pilares sociais e prepara homens e mulheres para a reconstrução”.
As possibilidades artísticas, pedagógicas e subjetivantes do teatro apontam fi-
nalmente não para uma determinada estética, uma forma ou uma função, mas
sim para a perspectiva do múltiplo que dele se abstrai e expande. “Tornando a
crítica, ou seja, o grande método da produtividade, um prazer, nenhum dever
se deparará ao teatro no campo da moral; deparar-se-ão, sim, múltiplas possi-
bilidades (BRECHT, 1978, p 25)”. Múltiplo esse que não precisa ser constante,
permitindo e até fluindo organicamente à inconstância das linhas de fuga que

CURRÍCULO E ESTÉTICA DA ARTE DE EDUCAR


compõem um nomadismo de linguagem. “Não sou: estou sendo. Caminhante,
sou devir. Não estou: vim e vou (BOAL, 2009, p 100)”.

Essa forma nômade de estetização do social e do pessoal nos levam a uma for-
mação constante, repleta de aprendizagem que é crítica ao longo que consegue
divertir, e que é divertida, produzindo formas e linguagens a partir dessa diver-
são, como: “o teatro leva o seu espectador a uma atitude fecunda, para além do
simples ato de olhar [...] o espectador tem a possibilidade de formar a si próprio
da maneira mais simples, pois a forma mais simples de existência é a arte que
no-la proporciona (BRECHT, 1978, p 134)”. Atitude e atividade, meio e modo de
45
viver que formam ao sujeito artista de maneira autogerida sobre si. Isso ciente de
que essa auto formação, mesmo sobre si, se dá sempre em relação.

Assim como não há teatro solitário, uma proposta pedagógica que se pensa a
partir da teatralidade necessita do encontro com o outro. A despeito de ensaios,
que preparam a estética e a formação para o momento em que se dão, mesmo
em monólogo, o teatro se dá no mínimo do encontro entre este que atua e ao
menos uma pessoa que lhe expecta. Trata-se de uma arte que ocorre no espa-
ço invisível que há entre duas ou mais pessoas durante o momento em que se
relacionam, tornando-o visível, palpável, palatável e criticável. Revela-se assim
o invisível unindo olhares. “É que a unidade social mínima não é o homem, e
sim dois homens. Também na vida real nos formamos uns aos outros (BRECHT,
1978, p 123)”.

Uma educação que se pense a partir da relação artística que chamamos teatro
habita, portanto, o convívio sensível. É atenta à estética que emerge da contradi-
ção. Estetiza de maneira ativa o mundo que se produz com o olhar e, sobretudo,
seu significado social.
5 A potência menor do teatro... e do aprender
Gilles Deleuze conclui um ensaio intitulado Um manifesto de menos, dedicado
à obra teatral de Carmelo Bene, relevando o caráter minoritário da arte e do tea-
tro, afirmando “um devir minoritário universal. Minoria designa aqui a potência
de um devir, enquanto maioria designa o poder ou a impotência de um estado,
de uma situação. É aqui que o teatro ou a arte pode surgir com uma função po-
lítica específica” (DELEUZE, 2010, p 63-64).

No pensamento de Deleuze, em sua aliança com Guattari, toda a possibilidade


de transformação reside nos movimentos de minoria, visto que o maior é por
eles identificado como aquilo que está estabelecido e que se constitui como
força de conservação, de permanência, de manutenção do status quo. O devir-
-menor é o que desestabiliza, introduz novas variáveis, abre um horizonte de
possibilidades, convida a experimentar potências outras de pensar e de existir.
A arte é um dos vetores de possibilidade de devir-menor, quando produz sensa-
ções que disparam esse desejo de ser outramente. Aí reside sua função política,
46 como afirmado antes. Estes elementos Deleuze identificou no teatro de Bene, e
para eles chama nossa atenção.
A FERRAMENTA E O OBJETO DO TEATRO NUMA IDEIA DE APRENDIZADO

O teatro surgirá como o que não representa nada, mas apresenta e


constitui uma consciência de minoria, enquanto devir-universal,
operando alianças aqui ou ali conforme o caso, seguindo linhas de
transformação que saltam para fora do teatro e assumem uma outra
forma, ou se reconvertem em teatro para um novo salto. Trata-se de
uma tomada de consciência, embora ela nada tenha a ver com uma
consciência psicanalítica, tampouco com uma consciência política
marxista ou brechtiana. A consciência, a tomada de consciência, é
uma grande potência, mas não é feita para as soluções nem para as
interpretações. É quando a consciência abandona as soluções e inter-
pretações que ela conquista sua luz, seus gestos e seus sons, sua trans-
formação decisiva. Henry James escreve: “Por fim ela sabia tanto que
não podia mais interpretar nada; não havia mais obscuridades que
a fizessem ver claro, só restava uma luz crua.” Quanto mais alguém
atinge essa forma de consciência de minoria, menos se sente só. Luz.
Sozinho se é uma massa, “a massa de meus átomos”. E, sob a ambi-
ção das fórmulas, há a mais modesta apreciação do que poderia ser
um teatro revolucionário, uma simples potencialidade amorosa, um
elemento para um novo devir da consciência. (DELEUZE, 2010, p. 64)
Reencontramos assim com Deleuze, mas também trilhando uma outra direção,
aquilo que ao longo deste texto perseguimos com Brecht e com Boal e na com-
panhia dos anarquistas: um teatro político, que em sua própria ação é formativo,
produz educação, mobilizando as sensibilidades. Aqui o processo político de
conscientização perde sua carga de buscar uma maioridade, uma emancipação
que se produz ao se sair de uma condição de menoridade, de inferioridade, que
implica em ser dominado, oprimido. Conscientização, aqui, é entrar em um

CURRÍCULO E ESTÉTICA DA ARTE DE EDUCAR


devir-menor que oportuniza novas possibilidades; não se trata de ser iluminado
nem de iluminar quem quer que seja, mas de encontrar a alegria sensível das
múltiplas potências que podem ser experimentadas.

Uma trilha semelhante encontramos nos processos educativos. Também aqui


se pode pensar a conscientização como um devir-menor do aprender, que se
produz nos múltiplos encontros com signos, para além de uma emancipação na
qual somos guiados pela iluminação de outrem.

Enfim, na confluência teatro-educação encontramos formas de experimentar as


potências estéticas no e do aprender. Para além dos corpos docilizados pela 47
disciplina da instituição escolar o teatro potencializa experiências corporais de
liberdade, de sentir o intangível, de experimentar devires-menores e aberturas
de novos horizontes. Processos singulares de constituição de si mesmo, no com-
bate aos modos massivos de subjetivação em série a que somos submetidos. Arte
e vida como chamas da revolta. Em outras palavras, uma experiência libertária
de educação.
Referências bibliográficas
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de Janeiro: Graal: 1984.
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48
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A FERRAMENTA E O OBJETO DO TEATRO NUMA IDEIA DE APRENDIZADO

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RODRIGUES, Edgar. O anarquismo na escola, no teatro, na poesia. Rio de
Janeiro: Achiamé, 1992.
VARGAS, Maria Thereza. Teatro filodramático, operário e anarquista. In: FA-
RIA, João Roberto. História do teatro brasileiro, volume I: Das origens
ao teatro profissional da primeira metade do século XX. São Paulo:
Perspectiva, 2012. p 358-370.
CURRÍCULO DA CIDADE
E O DIREITO DE
APARECER: ALIANÇAR

CURRÍCULO E ESTÉTICA DA ARTE DE EDUCAR


QUE FAZ DIFERENÇA
Glaucia Carneiro
Marlucy Alves

49

2.
Glaucia Carneiro1
Marlucy Alves Paraíso2

Função-educadora das dissidências artivistas de gênero e sexualidade na cidade


Naquele dia chego em casa e registro no caderno de notas que estava cada vez
mais convencida de que, mesmo fugazes, havia nas performances de Ed Marte
potências de uma função-educadora na cidade. Uma função ao mesmo tempo
desmanteladora da ordem e das normas de gênero/sexualidade atribuídas aos
corpos, e afirmadora de possíveis. Ora, se o aprender demanda a articulação do
pensamento com o acaso, com um pouco de caos, ao criar algumas instabilizações
no cotidiano das cidades, as performances artivistas de Ed Marte acabam
inventando outras pedagogias, pedagogias em movimento, pedagogias clandestinas,
pedagogias disparadoras de signos dissidentes.
Caderno de Achados e Inventados, 2020, p. 1073

50
TÍTULO

1 Doutora em Educação pela UFMG, Professora da Rede Municipal de Educação de Belo Horizonte, Pesquisadora do GECC: Grupo
de Estudos e Pesquisas em Currículos e Culturas da FaE/UFMG.

2 Professora Titular da Faculdade de Educação da UFMG, Pesquisadora 1C do CNPq, Criadora e Coordenadora do GECC: Grupo de
Estudos e Pesquisas em Currículos e Culturas da FaE/UFMG.

3 Caderno de Achados e Inventados é o nome dado ao caderno de campo onde foram realizados registros das perfografias feitas
com a transartivista Ed Marte em Belo Horizonte (2016/2018) para a pesquisa de doutorado que subsidia este artigo. Os trabalhos
de colagem de imagens que compõe este artigo foram realizados por Thiago Viana Barbosa, a quem somos imensamente gratas.
O direito à cidade é considerado, atualmente, parte dos direitos humanos a
serem garantidos pela sociedade civil. Se, por um lado, as metrópoles são espa-
ços violentos, segregadores, excludentes, depredados e que não oferecem con-
dições de vida igualitária para seus habitantes, principalmente, corporalidades
consideradas desviantes, por outro lado, ao desmontar a linguagem da gramá-
tica normalizadora, os artivismos produzem desterritorializações que inventam
saídas para a indiferença, a estagnação e o fechamento dos corpos na cidade.

CURRÍCULO E ESTÉTICA DA ARTE DE EDUCAR


Ao acionarem o riso e conectarem-se com a alegria e o humor mordaz dos arti-
vismos, os corpos que transitam pelas ruas podem se abrir e experimentar novos
aprenderes. Por meio das práticas artivistas uma rede de corpos em aliança, flu-
xos e signos acionam um outro modo de compor com a cidade. Em tempos de
fechamento dos corpos, isso soa como um convite à abertura.

Exploramos aqui a noção de que, a cidade é um currículo, um território onde


se é possível aprender no encontro com signos e afectos, que podem atravessar
o corpo de quem transita pelas ruas (CARNEIRO, PARAÍSO, 2018). Quando os
corpos se deixam afetar pelos signos artivistas, ampliam-se a capacidade de sen-
51
tir e de permitir que eles sejam atravessados, tocados e sensibilizados pela dife-
rença que emerge do encontro com a arte. As performances de Ed Marte4, seu
movimento desviante e, por vezes, incompreensível, realizada nas ruas do baixo
centro da cidade de Belo Horizonte5, provocaram em nosso grupo de pesquisa6
a sensação de uma baforada de caos, de um sopro de vida selvagem.

Entendemos currículo como “território político, ético e estético incontrolável”


que, se é usado para “regular e ordenar”, também, pode ser “território de esca-
pes de todos os tipos” no qual “se definem e constroem percursos inusitados”,
“caminhos mais leves”, “trajetos grávidos de esperança a serem percorridos”
(PARAÍSO; CALDEIRA, 2018, p. 13). Um destes currículos é o currículo das er-
râncias, que cartografamos com Ed Marte. O currículo das errâncias tem como

4 Ed Marte se auto declara uma Artivista Queer em suas redes sociais https://m.facebook.com/edmartebh/. Acesso em 30 de jun.​
2020.

5 O Baixo Centro de Belo Horizonte tem como coração a Praça da Estação, ladeada pelos viadutos: Santa Tereza e Floresta. A região
fica logo abaixo da Praça Sete, ponto de referência central da cidade. “Para quem conhece o Rio de Janeiro, é a Lapa de Belo
Horizonte” (PERDIGÃO, 2016).

6 GECC/FaE/UFMG – Grupo de Estudos e Pesquisas em Currículos, Culturas e Diferença.


matérias-força diferentes componentes, dos quais destacaremos, neste trabalho,
o aliançar e o hesitar. Argumentamos que, ao reivindicar o direito de corpos
ilegíveis, como as corporalidades trans, aparecerem, circularem e vivenciarem
as ruas, os artivismos criam uma aliança intensiva, fazendo deste aliançar um
componente relevante do currículo das errâncias cartografado. Para desenvolver
tal argumento, dividimos este capítulo em três partes. Na primeira, apresenta-
mos como o encontro entre Ed Marte, via Academia TransLiterária, com Jota
Mombaça, pode ser compreendida como uma aliança intensiva na cidade. Na
segunda parte, desenvolvemos a noção de “corpos em aliança”, que tomamos
do pensamento de Judith Butler (2018a) para problematizar as práticas artivista
produzidas pelas corporalidades desobedientes, reunidas ao redor de Ed Mar-
te. Na última parte, discutimos como o modo de vida errante das dissidências
de gênero e sexualidade dispara uma pedagogia hesitante, que faz com que se
aprenda algo novo, mesmo que, à primeira vista, seja considerado estranho,
incerto e pareça não compor com o corpo que passa no momento em que as
performances acontecem.
52
CURRÍCULO DA CIDADE E O DIREITO DE APARECER: ALIANÇAR QUE FAZ DIFERENÇA

1 “O mundo é meu trauma”:


currículo, corpografias e errâncias
Quando se realiza uma cartografia de performances realizadas nas ruas, como
as que Ed Marte inventa nas ruas de Belo Horizonte, o corpo que acompanha
tais performances, também acaba participando dessas ações. O procedimento
experimentado, na pesquisa que subsidia este artigo, de recolher coisas efême-
ras do currículo da cidade investigado e, ao mesmo tempo, experimentá-las no
ponto de contato com o corpo de uma artivista trans, bem como no atrito com
os corpos passantes, isto é, das pessoas que circulavam pelo centro no momento
em que se davam as performances, é aqui denominado perfografias – como se
pode ver no trecho a seguir:

Perfografias de um currículo desviante


Saia para rua depois de acenar, como faz todos os dias, para o por-
teiro. Escolha o caminho da esquerda [nunca vire para a direita!] e
não se intimide se o vento congelante, que vem do noroeste da ave-
nida ameaçar paralisar seu corpo. Esfregue as mãos, aqueça o rosto e,
com os olhos levemente cerrados, se incline para vencer a resistência
afiada do vento. Ande cerca de cinquenta metros. Pare no sinal e es-
pere os carros passarem. Cruze os braços e proteja o peito, enquanto
imagina de onde vem tanto frio, já que nas últimas décadas, em Belo
Horizonte, o inverno quase nunca dá “o ar da graça”. Aperte nova-
mente as mãos no rosto buscando alívio. Reinicie a caminhada e,
pare na esquina, para esperar o ônibus. Reconheça o perfume doce
da senhora sentada ao seu lado, que provocará uma sequência de
seis espirros em você. Reze para o ônibus não demorar e, assim que

CURRÍCULO E ESTÉTICA DA ARTE DE EDUCAR


chegar, suba com cuidado os sete degraus para não tropeçar. Olhe ao
redor e localize aquele “lugar vazio”. Ninguém senta com ninguém
em um ônibus, desde que existam lugares disponíveis. Não! Não abra
a bolsa, não pegue o livro! Isso, guarde-o! Coloque os fones de ou-
vido, faça como “todo mundo” e plugue-o no celular. Acompanhe
a música mentalmente, não, não cante! Faça “cara de paisagem” e
vamos em frente. Isso! Desça na Avenida Santos Dumont. Siga em
direção ao viaduto Santa Tereza. Olhe ligeiramente ao redor e observe
como quase todas as pessoas são cinzentas e apressadas. Observe o
corpo magro do hippie vendendo artesanato na esquina, seus dedos
ossudos e cheios de anéis e, por favor, não pare para conversar dessa
vez. Lembre-se, você tem uma cartografia pela frente! Siga o fluxo!
Desvie com cuidado do corpo adormecido e, anestesiado pela cacha-
ça, do morador de rua e se vier àquela vontade de chorar, chore! Se 53
não acontecer, caso sinta que já tenha derramado todas as lágrimas
possíveis ante a temerosa situação do seu País-Pós-Golpe, continue
andando. Veja que o viaduto já está há uns trinta metros de distância
e Ed Marte, em breve, iniciará suas performances pelas ruas do baixo
centro. Sinta que um raio de sol desponta entre as nuvens atrás do
Parque Municipal anunciando que a tarde vai esquentar. Pare! Olhe!
Diminua a velocidade! Um Currículo DESVIANTE e desVIADO lhe
aguarda logo à frente!
Caderno de Achados e Inventados, 2020, s/p.

Uma das perfografias que consideramos mais marcantes foi o encontro entre a
Academia TransLiterária, um agrupamento artivista que Ed Marte faz parte, com
Jota Mombaça, uma transartivista nordestina, cujos trabalhos são reconhecidos
no circuito internacional de performances das dissidências de gênero/sexuali-
dade. A chegada de Jota Mombaça a Belo Horizonte foi um acontecimento que
atualizou as potências de um aliançar em nossas perfografias. Mombaça foi uma
espécie de vapor, névoa, um raio que atravessou o 14º Festival Internacional de
Teatro de Belo Horizonte, o FIT, em setembro de 2018. Assim como quando nos
deparamos com Ed Marte pelas ruas da cidade, o encontro com Jota Mombaça
provocou um bloco de sensações. Não porque tal artista se autodenominava er-
rática, e, estávamos a busca de práticas errantes para dar mais vida a um currícu-
lo. Não se tratava da subjetividade de Jota Mombaça, mas, das forças produzidas
pelo encontro com os signos artivistas experimentados.

“O mundo é meu trauma”7, espécie de texto-despacho que Jota Mombaça es-


colheu para performar em seu encontro com a Academia TransLiterária, expôs
de modo visceral como é doloroso criminalizar a apresentação de gênero dos
corpos. Sendo que, em relação à transfobia, ao discurso de ódio e ao racismo, a
Academia TransLiterária ocupa um lugar de fala, já que é um coletivo de cultura
transgênera e periférica, o primeiro coletivo mineiro a lançar uma coletânea de
poemas e textos exclusivamente de autoria trans.

Um “acontecimento” seria o que Deleuze (2015) denominou de “pensamento


sem imagem” (DELEUZE, 2015, p. 66), quer dizer, aquilo que está em latência e
não pode ser reduzido às pessoas, às coisas ou às enunciações. De um aconteci-
mento não se pode extrair definições. Por isso é muito difícil descrever os afectos
54 que atravessaram os corpos das pessoas que participaram da performance rea-
lizada por Jota Mombaça naquele 14° FIT de Belo Horizonte. O acontecimento
CURRÍCULO DA CIDADE E O DIREITO DE APARECER: ALIANÇAR QUE FAZ DIFERENÇA

é feito de expressividades que ainda não foram comprometidas pela representa-


ção, recognição, opiniões e/ou clichês. Os acontecimentos ganham uma impli-
cação política forte por sinalizarem mundos por vir. Não por indicarem um fu-
turo a ser atingido, não se trata disto, mas pelas aberturas que proporcionam no
instante mesmo que irrompem. A espécie de leitura-despacho realizada por Jota
Mombaça, naquela tarde de setembro, acionou a ativação/potencialização do
corpo pelo corpo. Atualizou no currículo perfografado, alianças que produziram
afecções e mudanças nos corpos de quem participou da performance proposta
por Jota Mombaça.

Ao trabalhar em torno das relações que se dão entre “monstruosidade e hu-


manidade”, “redistribuição da violência” e “justiça anticolonial” Jota Mombaça
(2017) opera com a noção de errância dos artivismos que advém da capacidade
transitiva e desviante que é própria da vida e de corpos que assumem um modo

7 Texto disponível em: https://piseagrama.org/o-mundo-e-meu-trauma/. Acesso em: 30 de jun. 2020.


errático de existência como forma de resistência. Os corpos dissidentes são uma
espécie de manifesto vivo contra qualquer tipo de normatividade que rebaixa a
vida. Manifestam por meio de suas corpografias8 a capacidade de se transmu-
tarem, de entrarem em devires, passando de uma situação a outras, recusando
limitações impostas ao seu modo de reexistir. O vitalismo que emerge de corpos
em desobediência de gênero/sexualidade, como os de Jota Mombaça e os que
compõem a Academia TransLiterária referem-se justamente à capacidade de

CURRÍCULO E ESTÉTICA DA ARTE DE EDUCAR


que o que é vivo tem de mudar continuamente, mudar de formas, de normas,
de se desviar, de inventar errâncias, de produzir o que Brian Massumi denomina
de “entusiasmo do corpo” ou “afecto de vitalidade” (MASSUMI, 2017, p. 24).
Esse vitalismo é uma questão de ética já que, de um ponto de vista spinozista,
pode ser lido na chave dos afectos de que um corpo é capaz a fim de aumentar
a sua potência de existir e de, portanto, reexistir.

Jota Mombaça recusa qualquer tipo de normatividade onde parece não haver lu-
gar para a vida. Sua corpografia errante/errada tem por objetivo “proliferar falhas
na matriz representacional” (MOMBAÇA, 2017a, s/p). Para tal artivista, o “gesto
55
político de convidar um homem cis eurobranco a calar-se para pensar melhor
antes de falar, introduz, na realidade, uma ruptura no regime de autorizações vi-
gente” (MOMBAÇA, 2017b, s/p). Rompe com a “forma particularizada advinda
de privilégios epistêmicos da branquitude e da cisgeneridade de se comunicar e
de estabelecer regimes de inteligibilidade, falabilidade e escuta política” (MOM-
BAÇA, 2017, s/p). Não é que brancos não possam falar de racismo ou as pessoas
cis não possam falar de transfobia! O que Jota Mombaça chama atenção é, sobre
o modo como uma uma “matriz de produção de subjetividade sanciona a igno-
rância, sacraliza o direito à fala, secundariza o trabalho da escuta e naturaliza
a própria autoridade” (MOMBAÇA, 2017b, s/p). A noção de “saberes situados”,
marcado pelo “lugar de fala”, precisa, segundo Jota Mombaça (2017b), “come-
çar a servir para que pessoas brancas se situem de sua branquitude” e “pessoas
cis de sua cisgeneridade”.

8 Corpografias são inscrições urbanas gravadas nas corporeidades que circulam nas ruas das cidades (JACQUES, 2008).
2 “Não mexe comigo que eu não ando só”:
currículo e corpos em aliança pelo direito
de aparecer nas ruas
O “direito de aparecer”, como vem sendo pensado por Judith Butler (2018a),
trata-se de um tipo de agenciamento que liga as minorias sexuais e de gênero
às populações precárias. Trata-se não só de uma questão de virada, ética, mas,
também, de “justiça social”. Judith Butler esteve no Brasil em 2017 para o se-
minário internacional: “Os fins da democracia: estratégias populistas, ceticismo
sobre a democracia e a busca por soberania popular” promovido em conjunto
pela Universidade de Berkeley, a Universidade de São Paulo e o SESC/Pompeia.

Durante todo o tempo em que Butler esteve em São Paulo, ela foi escoltada por
seguranças, já que, ela, foi citada nominalmente, em uma petição pública que
exortava “o cidadão de bem” a exigir o urgente “Cancelamento da Palestra de
Judith Butler em São Paulo”. Apesar de o seminário ter transcorrido com todo o
êxito, ao se dirigir ao portão de embarque no Aeroporto de Congonhas, Judith
56 Butler e sua companheira, Wendy Brown, foram assediadas e agredidas por uma
militante em fúria, que segurava um cartaz em defesa da família tradicional, e
CURRÍCULO DA CIDADE E O DIREITO DE APARECER: ALIANÇAR QUE FAZ DIFERENÇA

aos berros, desqualificava as duas com termos depreciativos como “assassinas”,


“antissemitas” e “pedófilas”. O incidente repercutiu bastante nas redes sociais.

Em matéria publicada pelo “Caderno Ilustríssima” da Folha de S. Paulo em 19


de novembro de 2017, Butler comentou que, antes, ela esteve focada na teoria
queer e nos direitos das minorias sexuais e de gênero. Ocorre que, atualmente,
a filósofa, afirmou estar preocupada de um modo mais geral, com as maneiras
pelas quais a guerra ou condições sociais designam determinadas populações
como “não passíveis de luto” (BUTLER, 2018b). De tal modo que a noção de
“corpos em aliança” que Butler (2018a) desenvolve em seu livro “Corpos em
aliança e a política das ruas: notas para uma teoria performativa de assembleia”
parece indicar uma conexão entre as coletividades LGBTs e as populações pre-
cárias de modo mais abrangente.
Entender como a precariedade se liga aos processos de reconhecimento das nor-
mas de gênero não é difícil. Afinal, corporeidades que não vivem sua sexualida-
de de acordo com os padrões definidos pela matriz heteronormativa se tornam
socialmente expostas a um risco muito mais alto. Todavia, torna-se importante
relacionar esses marcadores de violência às intersecções de raça e pobreza que
reforçam significativamente a condição precária de tais coletividades. Opera-
ções necropolíticas de inviabilidade da vida das coletividades “matáveis” ocor-

CURRÍCULO E ESTÉTICA DA ARTE DE EDUCAR


rem não apenas no Brasil, mas, encontram-se em operação em todo o chamado
Sul global.

Para Butler (2018b) a rubrica que une mulheres, indígenas, pobres, pessoas trans-
gêneras, com habilidades diferenciadas, corporeidades apátridas, corpos queers,
mas também minorias raciais e religiosas é a precariedade. Não se trata, obvia-
mente de uma identidade, mas, de um marcador que atravessa as fronteiras das
categorias estanques e “produz alianças potenciais” (BUTLER, 2018b). Ed Marte
possui muitas características que admiramos e que, costumam ser atribuídas a
corporeidades femininas. O acolhimento, a doçura e a atenção cuidadosa
57
que dá aos corpos que moram nas ruas, prostitutas, pessoas com proble-
mas de alcoolismo e principalmente jovens que cumprem penas e/ou medidas
socioeducativas, tudo isso somado a uma invejável agenda ligada a diversos
movimentos políticos e artísticos da cidade de Belo Horizonte, bem como
seu envolvimento com projetos na periferia, como o Favela é isso aí9 e A Casa
Rosa10 de Ed Marte, dão evidências das potências dos corpos em aliança. Jota
Mombaça, ressalta, ainda, que o modo de “criação errorista” e “fracassado” das
corporeidades precárias é justamente seu vetor de força política. Esse modo de
criação surge como uma importante linha desviante em relação a projetos ar-
tísticos “bem sucedidos e comercializáveis” (MOMBAÇA, 2016, s/p). A aliança
entre Jota Mombaça, Academia TransLiterária e artistas de performance/teatro
por ocasião do 14° FIT de Belo Horizonte é um bom exemplo das virtualidades
dos “corpos em aliança” (BUTLER, 2018a).

9 http://www.favelaeissoai.com.br. Acesso em: 20 ago. 2019.

10 http://www.guaja.cc/guia/inauguracao-da-casa-rosa-de-marte. Acesso em: 20 ago. 2019.


O ato de aparecer e ocupar as ruas das cidades não constitui apenas uma
instância de expressão, de reivindicação de certas pautas políticas, mas, da pro-
dução e transformação das “condições para seu próprio aparecimento”. Isso
significa que, ao se reunirem nas ruas, os corpos em aliança estão afirmando o
seu direito de aparecer. Ao fazerem isso, estão expandindo o campo visual e po-
lítico para seu próprio reconhecimento, configurando-se, de acordo com Butler
(2018a), em um gesto “performativo” preponderante. O direito de aparecer, se
afirmar e/ou se mover junto e dentro de uma ou várias categorias sociais subal-
ternizadas, torna-se, assim, um marcador transversal de um agir em conjunto.
Afinal, “quando corpos se juntam na rua, na praça ou em outras formas de espa-
ço público” (BUTLER, 2018a, p. 17), incluindo os virtuais, os corpos em aliança
estão afirmando que não se faz política sem o corpo.

3 Currículo das errâncias e a pedagogia da hesitação:


quando um corpo estranho faz a gramática
58 normalizadora vacilar
CURRÍCULO DA CIDADE E O DIREITO DE APARECER: ALIANÇAR QUE FAZ DIFERENÇA

Os signos que fazem vibrar o estranhamento e a perplexidade disparados pelas


performances tanto de Ed Marte, quanto da Academia TransLiterária e de Jota
Mombaça têm a potência de atravessar os corpos que caminham pela cida-
de e colocá-los em estado de hesitação. A arte sabe muito bem jogar com às
incertitudes. Cabe à arte movimentar, agitar, tremer, fazer a língua costumeira
“gaguejar”. Isso porque “mais importante que o pensamento é o que dá a pen-
sar” (DELEUZE, 2003, p. 87). Os signos da arte, por serem imateriais, incorpo-
rais, virtuais são capazes de “realizar plenamente o que a vida apenas esboça”
(DELEUZE, 2003, p. 52). Cabe à arte, portanto, fazer tremer o poder excessivo
dado ao racional. As performances dos artivismo trans fazem, por sua vez, ver o
não visto e o não enunciável em relação aos gêneros e à sexualidade que apa-
rece nas ruas das cidades. Tal uso dialógico, disjuntivo e heterogêneo é extraído
dos encontros e atritos que ocorrem entre os corpos passantes com as perfor-
mances artivistas de gênero e sexualidade. O que pode um corpo que não se
afeta? Ele não pode nada! Deleuze (2003) afirma que “nunca dispomos de todas
as faculdades ao mesmo tempo” e que “a inteligência vem sempre depois do
encontro com os signos” (DELEUZE, 2003, p. 100).

“Os afectos atravessam o corpo como flechas, são armas de guerra” (DELEUZE;
GUATTARI, 1997, p. 18), como podemos ver no trecho a seguir de uma
performance de Ed Marte, ocorrida em um domingo no Parque Municipal de
Belo​Horizonte:

CURRÍCULO E ESTÉTICA DA ARTE DE EDUCAR


Prazer, Ed! Retratinhos com você
O burburinho começa quando a artivista chega ao Parque Américo
Rennê Giannetti – conhecido como Parque Municipal de Belo Hori-
zonte – maquiada, trajando maiô, meia arrastão, salto alto, echarpe
e chapéu, segurando uma sombrinha em uma mão e, na outra, uma
placa com os seguintes dizeres: “Tire uma foto com Ed Marte”. Antes
mesmo de encontrar um local para pendurar a placa e dar início à
performance, uma profusão de olhares curiosos provoca uma movi-
mentação ao redor da artista. Além da curiosidade, sinto que outros
blocos de sensações são experimentados ativando no corpo passante
o riso, o estranhamento, a inquietação, as incertezas, até o repúdio
por aquele encontro com o estranho, o esquisito. Tão cedo e logo ali
no parque? O parque está lotado e a artivista resolve ficar bem em
frente ao lago onde muitas famílias passeavam de barco, de pedali- 59
nho ou no cisne. Do outro lado do lago, avista-se a roda-gigante e o
carrossel onde muitas crianças gritavam alto, se divertindo. Contor-
nando o lago, há o vai e vem de cavalinhos e charretes e vendedo-
ras ambulantes de algodão doce e fotógrafas de lambe-lambe. Sinto
que o cenário de languidez do parque contrastava com a corpografia
não binária da artivista, provocando uma sensação de estranhamento
ainda maior. A artista, então, se posiciona ao lado da placa. Passam
alguns segundos e a primeira pessoa vê a cena, lê a placa, olha para
Ed Marte, lê a placa de novo, para de caminhar, olha pra Ed Marte no-
vamente e não esconde o riso ao constatar que se tratava de “tirar uma
foto” com o corpo de um homem peluda, de barba, com salto alto,
maquiagem, vestida de maiô. A grande maioria das pessoas que passa
em frente ao lago e depara-se com a cena, para minha surpresa, deci-
de tirar um retratinho 3x4, participando da performance e recebendo
em troca abraços amorosos de Ed Marte. Até mesmo a lambe-lambe
que trabalha há 55 anos no parque adere à performance e aceita tirar
um retratinho com Ed Marte.

E tudo o que separava corpografias tão distantes


subitamente falha
por força de um despretensioso
encontro com a diferença no parque!

Caderno de Achados e Inventados, 2020, p. 46


Durante a performance Prazer, Ed, retratinhos com você foi possível cap-
tar certos traços, marcas, ritmos, graus de variações que atravessam os corpos
no encontro com as sensações de estranhamento produzidas pelos signos do
transartivismo. A presença híbrida, hiperbólica e performática de Ed Marte nos
locais mais corriqueiros da cidade, como o parque municipal de Belo Hori-
zonte, faz vacilar as noções de certo e errado, normal e anormal obrigando o
pensamento a sair dos trilhos da racionalidade. O espaço público é para todas
as pessoas! Isto é o que parecem afirmar as performances artivistas de Ed Marte.
Sem intenção de brigar, elas brincam, ao colocar no parque da cidade uma cor-
poreidade ininteligível naquela manhã corriqueira de domingo. A artista faz isso
sem panfletar, sem levantar bandeiras ou pegar microfones e tentar convencer
os corpos diferentes do seu de que a diferença é uma coisa boa, que é certo ser
diferente ou o certo é ser diferente.

Ed Marte não sai de casa no domingo para ir ao parque explicar o que significa
ser uma pessoa não binária e nem tenta convencer ninguém de que ser assim é
algo bom. A presença da artivista naquele espaço também não tem a intenção
60
de convencer ninguém de que os corpos GLBTs têm os mesmos direitos que os
corpos héteros e cis gêneros. Contudo, ao colocar o seu corpo desobediente
CURRÍCULO DA CIDADE E O DIREITO DE APARECER: ALIANÇAR QUE FAZ DIFERENÇA

na rua, a artivista já está performando esse direito pelo simples fato de existir,
como qualquer outra pessoa ali. As performances de Ed Marte são, portanto,
minimalistas, sutis, delicadas, a voz e os gestos da artista são suaves, amorosos,
seu corpo exala um delicado cheiro de incenso, por se tratar também de uma
instrutora de kundalini yoga. Apesar da barba e do corpo peludo remeterem a
certa imagem-clichê de que corpos assim têm que performar uma postura viril,
masculina, máscula, Ed Marte é bastante suave. Todas essas emissões de signos
discrepantes produzem uma atmosfera no sense no parque. Há grande possibili-
dade de, ao se passar pelo corpo da artista de maiô, hesitar e, em seguida, sorrir.

As performances artivistas também produzem uma espécie de hesitação nos cor-


pos que ativa uma função-criadora, disparada pelos signos dos transartivismos.
Tais signos que emitem sensações de estranhamento e perplexidade nos corpos
passantes. Esta função-criadora chamamos de Pedagogia da Hesitação. Ao pro-
duzir essa espécie de gagueira na língua normativa e controladora dos corpos, a
pedagogia da hesitação opera uma desmontagem nos códigos de normalização
dos gêneros e da sexualidade.

Em Deleuze e Guattari (2017, p. 33) a gagueira é fruto de um uso desviante da


língua. Em “Kafka, por uma literatura menor” questionam o que é o gaguejar
senão algo que faz a língua tremer diante de determinadas palavras? Haveria,

CURRÍCULO E ESTÉTICA DA ARTE DE EDUCAR


portanto, na gagueira, a produção de uma espécie de abalo, uma fricção na li-
nearidade dos dizeres. Isso implicaria na produção de uma série de suspensões
e, ao mesmo tempo, de prolongamentos não esperados. Ora, gaguejar é um tipo
de expressão desviante, uma maneira de fazer a língua maior tremer, vacilar.
Para Deleuze (1997), esse modo hesitante é um vetor desorganizador, um fator
de desterritorialização do pensamento. Um modo de fazer a língua maior hesi-
tar, tremer, entrar em variação e produzir uma vibração.

Ora, o verbo hesitar vem do latim hesitarae que carrega o sentido de não saber
como agir ou o que dizer; não ter a certeza em relação a algo; ficar indeciso; 61
agir de modo confuso ou desconexo; balbuciar. O procedimento da hesitação
no currículo investigado é responsável pela produção de uma fricção no modo
acelerado como os corpos passantes caminham pela cidade. Tal procedimento é
um componente importante no currículo da cidade por produzir uma hesitação
nos corpos; produzir uma espécie de gagueira, isto é, fazer a língua da gramática
normalizadora dos corpos tremer, vacilar, diminuir a velocidade corriqueira e
perceber algo diferente.

O ato de gaguejar, que Deleuze e Guattari (2017) extraem de leituras considera-


das desviantes como a literatura de Kafka, por exemplo, produz uma desterrito-
rialização em certos códigos costumeiros. O uso desviante da literatura possibi-
lita, por exemplo, a invenção de objetos e temas menores cuja potência política
é extremamente maior. As performances artivistas de Ed Marte, ao seu modo,
também produzem algo novo nas práticas de gênero e sexualidade comumente
aceitas, sob a condição não de negar outras práticas, mas de multiplicá-las.
A pedagogia da hesitação torna-se um componente importante no currículo da
cidade por produzir desvios e desterritorializações tanto nas práticas urbanas
quanto nas políticas identitárias que costumam configurar e policiar o gênero
das pessoas. Produzir errâncias, hesitar, aliançar, diferençar é, também, curri-
cularizar, isto é, produzir novos currículos tanto quanto a nossa capacidade de
desejá-los. Curricularizar tem a ver com a nossa tenacidade e capacidade de
inventar currículos que acolham a diferença. E, o que sacode o corpo, o que faz
a vida vibrar, senão a diferença? Sem os fluxos produzidos pelo diferençar a vida
seca, engessa e morre.

O diferençar mostra que sempre é possível experimentar outros modos de exis-


tência, reexistir, existir de outras maneiras e que, apesar de todas as diferenças
que nos separam, não perdermos o comum a tudo que é vivo e tem vida. Mesmo
os rios mortos podem renascer dos filamentos que correm debaixo da terra. São
rios invisíveis, possíveis, esperando uma pequena fissura para jorrar de novo, de
outras maneiras. É a inconstância que compõe e decompõe a vida e os currícu-
los, entre eles, o currículo das errâncias aqui apresentado.
62
CURRÍCULO DA CIDADE E O DIREITO DE APARECER: ALIANÇAR QUE FAZ DIFERENÇA
Juraci
RETRATINHOS

63

CURRÍCULO E ESTÉTICA DA ARTE DE EDUCAR


CURRÍCULO DA CIDADE E O DIREITO DE APARECER: ALIANÇAR QUE FAZ DIFERENÇA

64
PRESENÇA
JURACI

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CURRÍCULO E ESTÉTICA DA ARTE DE EDUCAR


CURRÍCULO DA CIDADE E O DIREITO DE APARECER: ALIANÇAR QUE FAZ DIFERENÇA

66
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CURRÍCULO E ESTÉTICA DA ARTE DE EDUCAR


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CURRÍCULO DA CIDADE E O DIREITO DE APARECER: ALIANÇAR QUE FAZ DIFERENÇA
Sandra Mara Corazza
Silas Borges Monteiro

CURRÍCULO E ESTÉTICA DA ARTE DE EDUCAR


69

TRANSCRIAÇÃO DE
SIGNOS: INFANTIL,
AULA, DOCÊNCIA

3.
Sandra Mara Corazza (UFRGS/CNPq)
Silas Borges Monteiro (UFMT)

Este texto é uma composição de notas. Foram trazidas de outras circunstâncias


para serem experimentadas nesse momento em que emergem indagações de-
correntes da experiência do distanciamento social produzido pela pandemia
da COVID-19. Enquanto laboratórios apresentam suas armas contra a amea-
ça viral, pesquisadores das humanidades também trabalham para dar respos-
tas aos efeitos da impossibilidade dos estudantes irem aos prédios escolares,
na educação básica e no ensino superior. Aprendemos a tratar o ensino como
70 um fazer-em-proximidade física; essa geração experimentou a formação escolar
como presença, como Heidegger afirma, presença “entendido em referência a
TRANSCRIAÇÃO DE SIGNOS: INFANTIL, AULA, DOCÊNCIA

um determinado modus do tempo” (HEIDEGGER, 2012). Docentes aprendem,


rapidamente, a contabilidade da aula, anotando quantas vezes ouve a palavra
“presente” em seguida à leitura em voz alta de um nome; as variações na res-
posta dos estudantes, “aqui”, “eu”, “oi” etc., não fazem mais do que indicar que
estão ali na aula, aguardando a apresentação do conteúdo do dia que será feita
pela docência responsável por aquele tempo-presente.

A impossibilidade da presença na mesma sala fez surgir a necessidade de que


plataformas de comunicação pela internet viessem a ser utilizadas como um
simulacro da sala dos prédios escolares. Mas a boa e conhecida “presença”
permaneceu acionada. Há certa tolerância na ocultação da imagem estudantil,
substituída, nesse caso, por avatares ou a simples tela sem imagem. Isso tam-
bém não é novo; estudantes se desligam da aula, rabiscam cadernos, encenam
interesse, mesmo estando a pensar em outras coisas. Isso não é novidade para
docente algum.
Embora haja transposição de grande parte do vivido em sala de prédio e na sala
virtual, há um “espectro que ronda” (MARX, 2012, ePub.) quando todos se en-
contram no dia e hora marcados para a aula, a própria imagem vista, a exaustão
narcísica, a conversão em fantasma, tal como Derrida se refere a Marx: “aprender
a viver com os fantasmas, no encontro, na companhia ou no corporativismo, no
comércio sem comércio dos fantasmas.” (DERRIDA, 1994, p. 11) Escrito por Der-
rida em 1993, “aprender finalmente a viver” retornou como indagação feita por

CURRÍCULO E ESTÉTICA DA ARTE DE EDUCAR


Jean Bimbaum, em 2004, alguns meses da morte do filósofo, destino sabido para
quem tem câncer de pâncreas: “Volvidos mais de dez anos, em que pé se encontra
hoje, em relação a este desejo de «saber viver»”?, ao que Derrida responde:

Aprender a viver é amadurecer, e também educar: ensinar ao outro e


sobretudo a si mesmo. Apostrofar alguém para lhe dizer «vou-te en-
sinar a viver», significa, por vezes em tom de ameaça, vou-te formar,
ou mesmo domar. A seguir, e o equívoco deste jogo importa-me ainda
mais, este suspiro abre-se também a uma interrogação mais difícil: a
viver, poderá isso aprender-se? Ensinar-se? Poder-se-á aprender, por
disciplina ou por ensinamento, por experiência ou experimentação, a
aceitar, melhor, a afirmar a vida? […] não, eu nunca aprendi-a-viver.
Francamente, nada mesmo. (DERRIDA, 2005, p. 23-24) 71

Temos, por insistência histórica e cultural, que docentes são, igualmente, edu-
cadores; educadores ensinam, no limite, a viver. Essa impossibilidade apontada
por Freud “aceitei o bon mot que estabelece existirem três profissões impossíveis
– educar, curar e governar –, e eu já estava inteiramente ocupado com a segun-
da delas. Isto, contudo, não significa que desprezo o alto valor social do tra-
balho realizado por aqueles de meus amigos que se empenham na educação.”
(FREUD, 1996, ePub.) Se encontramos mais facilidade em usar o verbo “apren-
der” como ação de dar a saber alguma matéria, aplicá-lo à vida cria dificuldades
desde Sêneca, se assumirmos que “É preciso durante toda a vida aprender a viver
e, o que talvez cause maior admiração, preciso durante toda a vida aprender a
morrer. (SÊNECA, 2017, ePub.).

Este ensaio pode soar taciturno demais a um tempo já entregue às paixões tristes;
em movimento de alegria, Zaratustra profetiza: “Querer liberta: pois querer é cri-
ar: assim ensino eu. E somente para criar deveis aprender! E também a aprender
deveis primeiramente comigo aprender, a bem aprender! — Quem tem ouvidos,
que ouça!” (NIETZSCHE, 2011, ePub.) Ouvidos que aprenderam a ter a espe-
rança de que o fenômeno acústico da docência lhe trará saber; uma questão:
”Por que ainda acreditava que todos deveriam aprender tudo o que ela lhes
ensinava?”, pergunta a professora. (CORAZZA, 2005, p. 121). Ensaia respostas
que não respondem mas faz mover a vida: “desaprender o dado e o feito, que é
o melhor caminho para que ela possa retomar, no tempo certo do intempestivo,
o caminho por-fazer.” (Idem, p. 139). Ao traduzir a matéria, a docência aprende
que sua apresentação é recebida pelos estudantes como “signo que é preciso
decifrar, interpretar, explicar” (p. 115). Sua formação lhe permite resistir a tratar
o ato de educar, do aprender, do pensar como experiências morais (p. 117). Seu
desaprender, como Zaratustra, vê a seriedade do aprender como trânsito de si-
gnos, pois, diferente do “método acroamático” (NIETZCHE, 2012, p. 146) é com
o signo que a docência geografa o “chão da escola” para si e para a estudantada.
Essa posição do infantil, como desejo de estar reunidos para manipulação de si-
gnos, traz a criança de Zaratustra ao jogo dos signos – da filosofia, arte e ciência.
72
Em aula, nesse tempo de distanciamento, a docência vê a si mesmo em um mon-
itor, uma imagem entre outras, em mosaico, em destaque, a depender da plata-
TRANSCRIAÇÃO DE SIGNOS: INFANTIL, AULA, DOCÊNCIA

forma; esse encontro de fantasmas jogando com signos, torna a pedagogia uma
espécie de espectralidade em duas dimensões. Outras vez, a professora indaga,
com anúncio de dias possíveis à vida e à alegria do infantil: “O que, atualmente,
temos condições de saber e fazer? O que, daqui para a frente, poderemos fazer
com tudo isso? E também temos condições de responder: – Já fizemos muita coisa
e sabemos outras tantas.” (CORAZZA, 2005, p. 11), ao que responde outra vez:

Para isso é preciso desaprender-perder-esquecer o dado e o feito, que


nos legaram de herança, fazer deles uma coisa-nenhuma ou nenhum-
-dado, nenhum-feito. É preciso desaprender o aprendido para poder
ser partícipe da força de transformação, transfiguração, procriação
e criação da educação. Ser educador não é só acumular, guardar,
conservar, usar, mas também abandonar, largar, gastar e, neste gasto,
readquirir, retomar, para poder se revitalizar. (CORAZZA, 2005, p. 13)

Tais possibilidades virão com fragmentos 1) do infantil, 2) do signo, 3) da aula,


da invenção, 4) da pedagogia.
Notas de INFANTIL
Imre Kertész, escritor húngaro, sobrevivente do Holocausto, escreve sobre so-
nhos recorrentes, muros fantasmais e criança; é dele a frase: “o maior delito do
homem é ter nascido” (KERTÉSZ, 2007). Infância não romantizada; também não
taciturna. O infantil nos acompanha pela vida, posição subsumida por Freud
quando escreve: “o desejo representado no sonho é necessariamente infantil”
(FREUD, 2019), ao que se entende que representação – quanto mais na psica-

CURRÍCULO E ESTÉTICA DA ARTE DE EDUCAR


nálise freudiana – não é especular; o conceito encontra seu nexo na afirmação
de Nietzsche: “fatos não há, só interpretações. [...] É por fim necessário colo-
car ainda o intérprete por detrás da interpretação? Já isso é poesia, hipótese.
[...] São nossas necessidades que interpretam o mundo: nossos impulsos e seus
prós e contras. Cada impulso é uma espécie de despotismo, cada um tem a sua
perspectiva que ele gostaria de impor como norma a todos os outros impulsos.
(NIETZSCHE, 2013, pp. 262-263). Ora, se o sonho é a cena onde o desejo faz
sua interpretação, o infantil poderia ser uma forma de despotismo que quer im-
por como norma aos outros impulsos. O infantil, que experimentou invergações
73
no século XX, do adulto em miniatura ao déspota do consumo, do sujeitado ao
sujeitador, traz-nos questões encharcadas de dubiedades ao primeiro quarto de
tempo do século XXI com uma poderosa expansão viral que exigiu confinamen-
to doméstico, com efeitos às pessoas da infância, acostumadas aos encontros
sociais da instituição escolar se veem impostas às telas dos computadores, não
como virtualidade do jogo ou do audio visual, mas como espectador do que
fazia junto com outras pessoas de sua idade.

A infância, como criação moderna, não se confunde com o infantil. O infantil


em Freud não é da ordem do clichê da “criança sempre viva em nós”. Como
quanta de força, infantil é o anúncio do adiamento de que haverá uma suposta
idade da maturidade – conjugação do tempo fisiológico com desenvolvimento
psicológico. Zaratustra discursa, não com metáfora: “No verdadeiro homem há
uma criança escondida, que quer brincar.” (NIETZSCHE, 2011, Das velhas e
novas mulherezinhas, ePub). Deleuze interpreta como segmento da vida, junto
com “habitar, circular, trabalhar” (DELEUZE, 2012, p. 92) e como aquele que
faz “aquilo que o homem superior não sabe: rir, brincar, dançar, isto é, afirmar.”
(DELEUZE, 1997, p. 117) Infantil, como impulso à criação, como força de re-
sistência ao homem superior, e não como infância:

A infância é a primeira manifestação da deficiência que, na natureza


chama a suplência. A pedagogia esclarece, talvez mais cruamente,
os paradoxos do suplemento. Como é possível uma fraqueza natural?
Como pode a natureza solicitar forças que não fornece? Como é pos-
sível uma criança em geral? (DERRIDA, 1973, p. 180)

Contra o princípio do cogito cartesiano, que requer uma natureza decaída para
justificar o não saber e a dependência do “bom deus”, essa inescapável ori-
gem é rompida com nova construção conceitual, articulada com uma filosofia,
e sua pedagogia, não cristã, mas, igualmente, não iluminista, mas, ao modo
de Nietzsche, trágica. Há um infantil trágico em Nietzsche, como já lido no
Zaratustra, mas sinalizado em 1872: “Os gregos são, como dizem os sacerdotes
egípcios, eternas crianças, e também na arte trágica são apenas crianças que não
sabem que sublime brinquedo nasceu sob suas mãos — e nelas foi destroçado.”
(NIETZSCHE, 1996, § 17, ePub). Corazza argumenta sobre essa Figura, o Infantil, como
74
“um combate incessante e sistemático contra as formas que [essa Figura] veio adquirin-
do, ao longo da história do senso comum, do bom senso e do consenso educacionais.”
TRANSCRIAÇÃO DE SIGNOS: INFANTIL, AULA, DOCÊNCIA

(CORAZZA, 2017, p. 242). Combate feito com as filosofias da diferença, não por se
darem como alternativa, mas por recolocarem as antigas questões do pensamento oci-
dental em outros platôs. Neste capítulo, não basta dizer que as questões ligadas à escola
e às crianças devem ser atualizadas em função das atuais circunstâncias, pois haverá
sempre o risco da camuflagem de antigos códigos com novos termos.

Se já estamos convencidos das ambiguidades experimentadas pelo vivente em seu


nascimento até sua “maioridade” (termo igualmente volátil), o impedimento das
crianças em estar no prédio escolar fez ver como se trata, atualmente, a infância.
A exigência de uma política de ocupação dos espaços em meio a uma pandemia
evidenciou limites da compreensão da criança, embaralhando a infância com o
infantil. Embora vinculados, a margem da distinção da filosofia ocidental supôs
heterogeneizar o que é atravessado, e sua evidência é a fácil sinonímia – o que
Heidegger chama de “velamento da diferença” (HEIDEGGER, 1973, p. 391) – ou
a heteronomia típica do pensamento da representação. Assumimos com Derrida
que para além da conceitualização que distingue, entre esses conceitos “não há
uma margem branca, virgem, vazia” mas “um tecido de diferenças de forças sem
nenhum centro de referência presente” (DERRIDA, 1991, p. 25)

Notas de INVENÇÃO
Sem dúvida, elevada suspeita de impostura paira sobre essa docência, que so-
nha e traduz. Porém, afirma Nietzsche (1992, p. 46), “ao redor de todo espírito
profundo cresce continuamente uma máscara, graças à interpretação perpetua-

CURRÍCULO E ESTÉTICA DA ARTE DE EDUCAR


mente falsa”. Nesse tipo de injunção falsária, como transformamos a docência,
que nos foi impingida pela sociedade como simples transmissão, no direito à
docência criadora? Em qual resolução ou lei, está garantido o direito de so-
nhar aulas? Em qual política pública, assenta-se o direito de exercer a profissão
como escrileitura poética? Em qual cartório é reconhecida a firma da tomada
de consciência imaginante do professor? Em que audiovisual ficam registradas
as imagens que impelem o professor a uma transformação efetiva da docência,
a partir da retomada criadora de si e do seu fazer? Como pesquisar a lucidez
onirocrítica e, ao mesmo tempo, manter as ambivalências entre sonho diurno e
noturno, ciência e poesia, masculino e feminino, subida e descida, mortificação 75

e renascimento (BACHELARD, 2008)?

Escrileiturar (CORAZZA, 2015) a docência é tratar de si mesmo, confronto bio-


grafemático dos seres que a docência cria na ordem da necessidade, cuja crença
cultural repousa sobre um fantasma compartilhado, espectro docente que escre-
ve, isto é: distingue, escolhe, seleciona, ao preparar as palavras para interpretar
o enxame móvel de sua aula. Palavras que seguem hábitos de generalização,
mas que também lutam contra a trama da própria linguagem e fazem experi-
mentações, ao, supostamente, estabelecerem regras e descrições. Como poetas
e intérpretes, a docência é da ordem de seres da sensação artística, coproduto-
res da ciência e da filosofia, que produzem e retificam o passado, segundo as
necessidades do presente, executando operações intervencionistas, feitas numa
comunidade de críticas, para que não se tornem totalitárias: cogitamus.

Não insistimos acerca do episódio central de um enredo metafísico para a aula,


que abrigaria a imprecisão ociosa, as ciladas da persuasão e a ganga da facili-
dade; ao contrário, encontramos nesse complexo poetizar um pulverizador de
certezas, cujo paradoxo retoma a questão da pseudoidentificação de um autor:
aquele que foi por não ser existindo. Aparecendo como um espírito antigo, que
busca nova morada no mundo dos sonhos, a docência dá a impressão de reali-
zar um “leve rapto poético característico dos dormentes de olhos abertos e dos
sonhadores lúcidos” (CARVALHO, 2013, p. 17). Realizando itinerários por pre-
cipícios mágicos, cava cogitos surracionais, outorga continuidade descontínua
a obras e autores, penetra em controversas relações e individua a tradição com
outras problemáticas, para fazer jus ao sentido de traditio, enquanto ato de passar
de mão em mão. Vira as costas ao tipo passivo de tradição docente, por incorpo-
rar a permutação e o movimento como agentes estruturantes da aula sonhada.

Como docentes que criam suas aulas, trabalhamos em direção ao seu secreto
poético, de maneira que, mesmo que lhe atribuamos aparência de similaridade
com o original, procedemos a uma mudança de timbre, na maneira de apresen-
tá-la e deslocá-la, sem descaracterizá-la. Logo, somos mais do que intermedia-
dores, pois, na prática de liberdade de recriação dos originais, velamos para que
não percam a sua luminosidade de criação. Como autores-operadores, zelamos
76
pela pervivência (Fortleben) não somente das matérias traduzidas, para além da
época de sua produção, em que são relevantes (CAMPOS, 2013); bem como
TRANSCRIAÇÃO DE SIGNOS: INFANTIL, AULA, DOCÊNCIA

implicamos a nossa própria pervivência, ultrapassando a docência que garante


a sobrevivência.

Essa sobrevida, sob o signo da invenção, faz a docência criar em paralelo, porém
de modo autônomo, na radicalidade da ritmanálise do sonho e da vigília: criar
como ação de resistência e depressa, com pressa, tal como afirma Bachelard
(1985, p. 10): “eis o grande segredo para criar vivendo. A vida não espera, a vida
não reflete. Jamais esboços, sempre centelhas”. Tendo a terra como escrivani-
nha, escrevemos centelhas de aulas, em sonhos de tinta, traduzindo uma escrita
cósmica, que nos outorga o direito de sonhar com a mutação paradigmática e
com a dignidade humana. Lidamos não somente com a profissão, em termos
factuais, mas, sobretudo, com as noções de história e tradição, cultura e civili-
zação, que fomentam a desqualificação de nossa existência como secundária,
insignificante, ou mesmo negada, mediante a outorga de uma não-existência,
por carecer de um efetivo valor de criação.
Notas de SIGNO
No mesmo ano que Friedrich Nietzsche nasceu, Freud publicou sua mais co-
nhecida obra, Die Traumdeutung. Em 1975, Foucault encontrou em Nietzsche
e Freud, ao lado de Marx, a profunda modificação que fizeram na natureza do
símbolo e a forma como o interpretar. (FOUCAULT, 1997, p. 18). Qual seria a
natureza do símbolo? Foucault usa sêmeion, que diz sobre a marca pela qual
algo é conhecido, como uma verruga no rosto, uma cicatriz no queixo, o amor

CURRÍCULO E ESTÉTICA DA ARTE DE EDUCAR


pelo cinema, a pontualidade obsessiva da hora da caminhada; em Marx, Ni-
etzsche e Freud semeion se tornam symbolos. Contudo, há nuances semânticas,
aqui, pois sêmeion é marca identitária; symbolos tem uma história mais com-
plexa, aqui assumido como junção de duas partes. Antagonista do symbolos,
diabolos é aquilo que divide. Se vencermos a tentação do pensamento fácil
para escaparmos das tramas da representação que vincula esses termos com
o uso ordinário, juntar o que era separado e desmontar o que estava edificado
são dispositivos que, de algum modo, cria um intermédio onde não havia, ao
que faz sentido na teoria psicanalítica de Freud na interpretação dos sonhos. Se
77
o sonho for efetividade do desejo, sua realização é juntar o que era separado o
faz de modo único, pois o sonhador sabe que as junções são coladas com fratu-
ras criando um apagamento do que reúne e do que separa com a evidência do
jogo cartilaginoso de confluência-distinção, que cria tensão entre signo-usado
e signo-interpretado. É pela via da interpretação que o signo força o pensamen-
to a pensar e o abre a novas interpretações. Tal como uma colcha que junta
retalhos de memória e as tece aleatoriamente, como Aracne, que ao ver seu
lenço destruído por Atena, enforcou-se de tristeza. Tecidos de signos aracnêmi-
cos, nascidos da falta de ar, transformado em pesadelo. Como nos sonhos, os
signos podem ser feitos de material aleatório sem encapsulá-lo na via de mão
dupla do significado-significante, como se houvesse uma relação comensálica
amentando ou conjurando uma presença que já não é e talvez nunca tenha
sido. Ambos, signo e sonho se furtam a um todo, não cabem no logos e não se
permitem totalizar, por mais que as indagações por significados queiram atingir
a exatidão circunstancial de sua produção.
Derrida leva adiante as indagações sobre o logos: o vê dando as cartas mais do
que a mão lhe permite. Ao longo do modo como se conta a história de tudo que
sucedeu ao jeito de falar-pensar dos gregos o logos deu as cartas como um crou-
pier, quando, na visão do filósofo que queria ser jogador de futebol profission-
al, o jogo deveria ser descentralizado. Esse centramento do logos como aquele
que dá significado, portanto, instaura o signo, alimenta uma fantasia de que
o símbolo-imagem-som é um veículo de transporte de carga cujo conteúdo é
composto de pacotes muito bem organizados e empilhados de todos os sentidos
possíveis. O logos De certo modo, é do que trata a ordenação do logos como
operador de sentido do pensamento e do mundo. Assim, ele dirá que a filosofia,
e portanto a metafísica ocidental, é logocêntrica, pois ela é determinada a partir
de um fundamento: “todos os nomes do fundamento, do princípio ou do cen-
tro, sempre designaram o invariante de uma presença” (1971, 231) A presença
é garantida pela imagem sonora? É a presença estrutura de origem? Seriam si-
gnos composições de cadeias suplementares? Sontag escreve: “loucura é signo”.
Nietzsche escreveu: “Comunicar um estado, uma tensão interna de pathos por
78 meio de signos, incluído o tempo desses signos – eis o sentido de todo estilo”
(1995, p. 57) De trás pra frente: o estilo tem no tempo dos signos pathológicos
TRANSCRIAÇÃO DE SIGNOS: INFANTIL, AULA, DOCÊNCIA

o seu sentido. É isso exilante (by Mirk Oh)? O bom estilo “não se equivoca nos
signos, no tempo dos signos”. Um português pega sua pena, entre sonhos, fan-
tasmas, poetisa: “O sonho é ver as formas invisíveis”. Como saber “se é sonho,
se realidade, se uma mistura de sonho e vida”? É preciso haver sonho? Que valor
há no real? Em que nos servem signos? “Ah, nessa terra também, também O mal
não cessa, não dura o bem”. Servem signos à educação? Melancolia saturnina?
Pintura de Francisco Goya: “O sonho da razão produz monstros”.
Notas de AULA
Deixamos para trás a ênfase tecnicista que nos tomou um dia. Como espectro,
ainda nos ronda, ainda mais com as tecnologias da informação e da comu-
nicação servindo de espaço virtual para tratarmos dos signos da filosofia-arte-
-ciência. Também, aprendemos a desinvestir em pedagogia humanista, marxista,
construtivista, psicanalítica, crítica ou pós-crítica, o que não significa ignorar
nosso aprendizado pelos enganos já cometidos em nome de nossas convicções.

CURRÍCULO E ESTÉTICA DA ARTE DE EDUCAR


Como andarilhos, seguimos os movimentos recentes da docência, produzidos
por nossas pesquisas que problematizam a especificidade do ato de criação dos
professores, desde a perspectiva afirmativa da vontade de potência de educar.
Inflexionamos a docência como invenção de currículo e de didática, por meio
da tradução transcriadora (CORAZZA, 2013; 2016). Tradução que se, de um
lado, transmite, recupera e preserva a tradição; de outro, transgride os cânones
científicos, artísticos e filosóficos, ao transcriar obras, autores, fórmulas, funções,
valores, maneiras de existir e modos de subjetivação.

Imantada pelo arquivo EIS AICE (CORAZZA, 2017), a aula acontece através de 79
constelações intertextuais e intervivenciais, urdidura do entreaberto e entrecru-
zamento de vozes, que nos levam a vivê-la poeticamente (AQUINO; CORAZZA;
ADÓ, 2017). Poética de aula, constituída pela necessidade dos acontecimentos,
formulada por desamores, paixões súbitas, golpes de misericórdia, grau zero de
substituições, que nos faz desaprender o costume, as crenças e o bom senso: “a
aula como gesto fronteiriço entre violência e celebração. Um ato feito a navalha-
das, enfim” (AQUINO, 2014, p. 183). Poética, que engendra o nosso gosto por
aula e concede o que esta não possui, nem dá, mas pode criar: “Amar + escrever
= fazer justiça àqueles que conhecemos e amamos, isto é, testemunhar por eles,
(no sentido religioso), isto é, imortalizá-los” (BARTHES, 2005, p. 28).

Para além do processo tradutório, da singularidade criadora do fazer didático e


curricular e do caráter transcriador da profissão, valorizamos a imaginação e a
fantasia de Aula, cientes de que “uma vontade, uma fantasia circula mais rápido
que o sangue” (FERRANTE, 2017, p. 367). Essas posições desenham uma outra
morada de afetos, quadro de poiesis e paragem de estudo, que dissipam a cama-
da de poeira do sempre-igual, que principiava a recobrir a noção pesquisada de
docência-pesquisa tradutória (CORAZZA, 2017a).
Em meio ao drama do mundo, somos ocupados, outra vez, pela inquietude do
espírito analítico e distância do que ameaçava tornar-se repetitivo. Tal volta no
parafuso dá-se por intermédio de choques e solavancos, contorções violentas,
zonas viscosas e o despertar de um presente, tido como a ruína de um tempo
que queda. Isso porque, se não estivermos presos por correntes, de que vale ain-
da trabalhar como professor, a não ser como um profissional da não-alienação e
da vigília, que combate a ditadura do consensual e o fascismo social, mediante o
desejo de mudar o ler e o escrever, o pesquisar e o pensar, fazendo eco ao con-
vite de Aragon (1996, p. 40) à sensualidade: “Entre, senhora, este é o meu corpo,
este é o seu trono. Adulo meu delírio como um lindo cavalo. Falsa dualidade do
homem, deixe-me sonhar um pouco com sua mentira”.

Então, para que, na dimensão poética, transcriemos arquivos didáticos e curricu-


lares – dos quais somos arcontes, guardiões e traidores –, a docência se apresenta
como o nosso direito de sonhar aulas (Corazza). Direito exercido sob a condição
de uma docência artista (LOPONTE, 2005), efetivada num tempo trabalhado
de artistagem, que promove minorização e disfarce, duplicidade literária, tela
80
pintada de logros, passos em falso, alucinação de um pensamento que pode
ser inconsistente, embora não esteja em desacordo com a realidade. Sonho,
TRANSCRIAÇÃO DE SIGNOS: INFANTIL, AULA, DOCÊNCIA

assegurado como ficção, que investe de afeto e alegria a amizade intelectual


(AQUINO, 2014; LOPONTE, 2009), forjada entre aqueles que não estão mais lá
e aqueles que ainda aqui não estão.

Ao poetizar uma aula, traduzindo imagens fantasiosas – dotadas de anterioridade


psíquica, relativamente às ideias e à linguagem –, sonhamos matérias excepcio-
nais ou gastas pelo hábito e opacas ao olhar, que adivinhamos, escavamos e
recolhemos, criando a paixão encontrada em toda obra artistada. Na Aula, de
qualidade acontecimental, sonhamos em voz alta a pesquisa, como diz Barthes
(1989, p. 9): “o professor não tem aqui outra atividade senão a de pesquisar e de
falar – eu diria prazerosamente de sonhar alto sua pesquisa”. Feito um real que
resiste e cede, como carne amante, o sonho faz a docência ganhar em valência
e operância vitais, pois reúne forças encantadas, que existem apesar de seus cri-
adores: aqueles que acreditam, junto aos poetas, que nada pode “ser estudado,
conhecido, que não tenha sido antes sonhado” (JAPIASSU, 1976, p. 11).
Notas de DOCÊNCIA
O termo espectro, de Jacques Derrida, apresentado em Espectros de Marx, suste-
nta uma posição de possibilidade do pensamento da não-presença, característica
de todo texto, ente ou ser. O que resta (trace) em um texto não é espiritualmente
transcendental, nem pleno de corporeidade: “a palavra phantasma, em grego,
significa espectro, embora indique indecisão entre [...] o que não é real, nem
fictício, o que não é simplesmente indivíduo, nem um personagem, nem um

CURRÍCULO E ESTÉTICA DA ARTE DE EDUCAR


ator [...] ela é decisiva, ele toca a decisão (DERRIDA, 1997, p. 24); o conceito,
como força de decisão, se refere mais à potência de cindir do que aterrorizar.
A noção de espectro é essa não-presença operatória; embora espectros estejam
rondando, é a presença-ausente que interrompe o espaço-tempo do movimento,
melhor visto no cinema, pois é “arte do fantasma, isto é, ele não é nem imagem
nem percepção. Não é como a fotografia ou como a pintura. A voz ao telefone
tem também uma aparência fantasmática. É algo que não é nem real nem irreal”
(DERRIDA, 2012, p. 362). Fantasmas rondam, assombram, andarilhas caotica-
mente entregues ao destino: incontroláveis, presenças não vistas, sem imagens,
81
sem “realidade”, pura imagética. Fantasmagoria como jogo do duplo real-irreal,
assim como o espectro é o jogo da presença-ausência: uma tragédia-metáfora.

Feita a partir de espectros, deve haver outra docência, não feita por cópia e re-
produção do mesmo, como exercício do adoecimento da vontade, presa a uma
só forma. Pelo contrário, no caminho inverso da cópia, da imitação, há de se
encontrar outro caminho, tortuoso, de disseminação. O sentido não está dado.
A produção de sentido é efetivada em disseminação. A pedagogia há de ganhar
outra conotação, não mais a da codificação simbólica do acúmulo da cultura, das
ciências, das artes, da filosofia, da linguagem, mas como produção de sentido.

A potência de uma docência dos espectros é ser feita com a disposição de


pensar e criar à partir da diferença, trazer matérias e formas escolhidas para o
ato educativo em uma posição que arrisca descarregar o peso da orientação ou
direcionamento do ato pedagógico. O debate põe sob suspeita a “transposição
didática” como realização da matéria da filosofia, arte e ciência como imagem
original, especular, como reprodutibilidade própria dos espelhos, que se submete
ao original; docência dos espectros é reino da indecidibilidade. A dependên-
cia da origem, que cria um movimento de replicação simplificada do original,
colide com o conceito de espectro. A ideia de transposição didática prende-se à
história ocidental metafísica, qual seja, de que determinado conteúdo científico
deve ser transposto do âmbito do especialista ao do não-especialista. Ao invés
da transposição didática, a docência dos espectros pede uma didática como ato
tradutório; no lugar da transposição, que seja a tradução, investindo seu empen-
ho em criar modos e sentidos tradutores no ensino:

Tratamos, desse modo, a concepção de didática como um movimento


do pensamento, uma direção tradutória dos atos curriculares — por
si próprios, transcriadores de elementos artísticos, filosóficos e cien-
tíficos. Tradução, que implica menos transportar ou transpor [...] os
sentidos de uma língua para outra e mais verter ou recriar: dotando-se
da consistência de romper com o estabelecido; empreendendo novos
recomeços; apropriando-se do antigo ou do estrangeiro e tornando-os
seus, ao entrecruzá-los com a língua didática e fazer ressoar a sua voz
(CORAZZA, 2015, p. 108).

Como convite à tradução, a docência transcria seus conteúdos traduzindo-os,


82 pois abandona a instrução catequética e se abre à cena trágica como oferta dio-
nisíaca ao jogo da indecidibilidade, ao ato de criação, à força da disseminação.
TRANSCRIAÇÃO DE SIGNOS: INFANTIL, AULA, DOCÊNCIA

Ler e escrever transfiguram-se em pensar que subverte platonismo por “recusar


o primado de um original sobre a cópia, de um modelo sobre a imagem.” (DE-
LEUZE, 2018, ePub.), cuja docência faz de si mesmo experiência do pensamen-
to, da vida, um estilo.
Conclusão —
DOCÊNCIA TRANSCRIADORA
[1] As rupturas vividas em tais dias de distanciamento extrapolam argumentos
pedagógicos de resistência ou adesão. É uma situação-limite que afeta com po-
tência ainda não experimentada os modos regulares de viver e de fazer educa-
ção. Eis aqui uma consideração de espectatura: o rompimento da resistência
de manter-se naquilo que sempre foi. Um novo cenário quer forças de criação

CURRÍCULO E ESTÉTICA DA ARTE DE EDUCAR


e domínio. Assim, há que se considerar a criação de novas experiências com a
leitura e a escrita, com a aula, com a docência.

[2] A realização de um didática-artista concebe “esse território didático indis-


sociável de uma ética, de uma política e de uma prática tradutórias” (CORAZ-
ZA, 2013, p. 41). Práticas tradutórias trazem em questão a superação das ade-
quações das velhas práticas aos novos tempos. É preciso vencer a vontade de
verdade (NIETZSCHE, 2011) ou de literalidade de procedimentos e de conteú-
dos. Nossa petulância não pode sustentar que a resposta às circunstâncias já
está dada pelas práticas e meios tão bem reconhecidos na esfera educacional. 83

O ato tradutório adentra as trilhas sugeridas por Campos: “não se traduz apenas
o significado, traduz-se o próprio signo, ou seja, sua fisicalidade, sua materiali-
dade mesma (propriedades sonoras, de imagética visual, enfim tudo aquilo que
forma”. (CAMPOS, 2013, p. 5).

[3] A expressão cartesiana “At certe videre videor, audite, calescere” (DES-
CARTES, 2011, ePub), que pode ser traduzido por “é certo que me parece ver,
ouvir, aquecer” como suspeita ante a imagem supostamente objetiva, pois há
sempre um certo parecer-a-si, algo que é visto-não-visto, visto-de-si, um golpe
narcísico às pretensões de estabilidade. Esse espectro autobioimagético compõe
matéria e exposições didática. O retrato inerte das condensações metafísicas
evapora em possibilidades de leitura e escrita, meios e suportes, como convite à
experimentação tradutória das novas circunstâncias e suas práticas.

[4] Como tradutores, docentes exploram a força da virtualidade dos instrumen-


tos que lhe estão ao dispor. A tecnologia, giz ou tablet, se mantém como po-
tência de uso. O desafio dos tempos não está nas tecnologias da informação e
comunicação, embora façam parte, como toda tecnologia, da emergência do
novo; a questão não é o suporte e sua força de reprodução. Acerca da fotografia,
Benjamin escreve: “Já se disse que ‘o analfabeto do futuro não será quem não
sabe escrever, e sim quem não sabe fotografar’. Mas um fotógrafo que não sabe
ler suas próprias imagens não é pior que um analfabeto?” (BENJAMIN, 1985,
ePub). Analfabeto digital, como se diz hoje, soa igualmente problemático. As
circunstâncias do distanciamento não pede solução técnica, mas a bem conhe-
cida forma como fazemos aula; deslocado da centralidade do problema da téc-
nica, há que manter a indagação quanto ao estilo:

Direi ao mesmo tempo uma palavra geral sobre a minha arte do esti-
lo. Comunicar um estado, uma tensão interna de pathos por meio de
signos, incluído o tempo desses signos — eis o sentido de todo estilo;
e considerando que a multiplicidade de estados interiores é em mim
extraordinária, há em mim muitas possibilidades de estilo — a mais
multifária arte do estilo de que um homem já dispôs. Bom é todo es-
tilo que realmente comunica um estado interior, que não se equivoca
nos signos, no tempo dos signos, nos gestos — todas as leis do perío-
do são arte dos gestos.
84

O bom estilo sabe comunicar a potência de um estado interno no ritmo do tem-


TRANSCRIAÇÃO DE SIGNOS: INFANTIL, AULA, DOCÊNCIA

po dos signos. Aqui, talvez, seja o ponto que inaugura os diversos começos do
ensino, como experimentação recorrente das circunstâncias das vivências, com
atropelos e conquistas. A resposta a isso está em lugar algum. Será por invenção
das crianças de Zaratustra e do infantil da docência, transcriando signos para
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TÍTULO

88

4.
POR DOCÊNCIAS

CURRÍCULO E ESTÉTICA DA ARTE DE EDUCAR


NÃO DOGMÁTICAS
E EXISTÊNCIAS
NÃO MÍNIMAS
NOS COTIDIANOS
ESCOLARES 89

Janete Magalhães Carvalho


Steferson Zanoni Roseiro
Suzany Goulart Lourenço
Janete Magalhães Carvalho (CNPq/UFES)
Steferson Zanoni Roseiro (UFES)
Suzany Goulart Lourenço (UVV)

Introdução

Prática recorrente: sexta-feira, um professor monta o projetor na sala, instala o


notebook que leva na mochila, abre uma galeria de pinturas. Todas elas de pin-
tores desconhecidos, pessoas “comuns” dos arredores do mundo. Duas horas de
conversa com sua turma sobre o que aparece na tela: modos de pintar, artistas e
lares distantes, política, temas discutidos em sala em outros momentos.

Em outro espaçotempo escolar, as crianças são convidadas a conhecer obras de


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Nelma Guimarães. 1 Elas vão percebendo que essa artista trabalha com porme-
nores: linhas, traços falhos, desenhos nem sempre figurativos, miçangas, pala-
POR DOCÊNCIAS NÃO DOGMÁTICAS E EXISTÊNCIAS NÃO MÍNIMAS NOS COTIDIANOS ESCOLARES

vras soltas... As conversas se delineiam a partir da história da artista, mas princi-


palmente da força de suas obras. O movimento do pensamento busca encontros
com o que experienciam na escola. Que efeitos os processos aprendentes pro-
duzem em suas vidas? De que modo a escola pública possibilita alçar outros
horizontes? Uma indagação emerge com ênfase: podemos exercitar a arte de
sonhar a própria vida? Ou nos arrancaram a possibilidade de sonhar?

Assim, a intencionalidade deste artigo é promover um exercício de deslocamen-


to conceitual e ético-estético das existências mínimas no âmbito da docência.
Isto é, visamos a operar com a noção de uma docência não dogmática para uma
abertura existencial que reconheça a pluralidade dos intermundos e almeje a
superação do estado passivo dos alunos. Para tanto, partimos da premissa de que

1 Artista mato-grossense, mas que viveu boa parte de sua vida no Espírito Santo, formando-se na Universidade Federal do Espírito
Santo (Ufes).
a arte e/ou os signos artísticos possuem o caráter especial de explorar afetos e
afecções inusitados, ampliando nossas relações com o mundo.

Mas, por que apostar nas existências mínimas? Por que defendê-las?

Todas as existências deveriam conquistar por elas mesmas sua legitimidade ou


realidade, como afirma David Lapoujade (2017). Entretanto, quando falamos
de escolas públicas brasileiras e de crianças e professores que ocupam esses

CURRÍCULO E ESTÉTICA DA ARTE DE EDUCAR


espaçostempos, estamos falando de existências que são a todo momento con-
testadas. Existências que são sempre questionadas: devem ou não ocupar deter-
minados lugares?

Metodologicamente, na escola foi efetuada uma rede cartográfica (ROLNIK,


2011) dos processos de aprender, de conversas entre alunos e professores em
torno das potencialidades dos signos artísticos. As falas foram gravadas e trans-
critas e parte das produções dessas cartografias são apresentadas ao longo do
texto, como pinturas feitas pelos alunos, conjugadas aos trechos das conversas
estabelecidas. Ao longo do texto, as falas aparecerão em itálico e com espaço
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simples, sem nenhum tipo de identificação ou diferenciação dos participantes.
A não diferenciação dos participantes encontra sua justificativa no conceito de
agenciamento coletivo de enunciação (DELEUZE, 2006b), visto que a narrati-
va não remete a um sujeito, pois o sujeito é ele próprio um agenciamento de
enunciação, isto é, ele se constitui em um plano de consistência por meio de
agenciamentos.2 Em todos os momentos, as conversas ocorreram em múltiplas
vozes, típico de um trabalho em sala de aula.

Buscamos, assim, seguir as linhas dos gestos docentes e infantis que evidencias-
sem a intensificação de suas realidades, apostando em modos de criação e de
resistência em frente à lógica de controle e diminuição das potências de vida,
procurando fazer ver enunciações infantis e docentes, na tentativa de ir ao en-
contro de seus mundos e de nos colocarmos com esses mundos.

2 “O agenciamento de enunciação é desde sempre coletivo, pois se dá num plano de fluxos heterogêneos e múltiplos que se cruzam
incessantemente. Os dois polos do conceito de agenciamento não são, portanto, o coletivo e o individual: são antes dois sentidos,
dois modos do coletivo. Pois se é verdade que o agenciamento é individuante, fica claro que ele não se enuncia do ponto de vista
de um sujeito preexistente que lhe poderia ser atribuído: logo, o próprio está na medida de seu anonimato, e é por esse motivo
que o devir singular de alguém concerne de direito a todos [...]” (ZOURABICHVILI, 2004, p. 9).
De acordo com Lapoujade (2017), diferentes modos de existência povoam o mun-
do, não sendo consideradas tanto as existências mínimas de seres reais, como,
principalmente, as de seres virtuais como potencialidades que acompanham cada
existência: aquilo que ela poderia ser dentro de um quadro de possibilidades.

Pensando nos processos educacionais, o direito à educação atravessa toda a


trajetória da luta pela educação pública e da valorização do exercício docen-
te. Brigamos avidamente pela escola pública, pelo direito à educação de todos
os sujeitos. Todavia, com o avanço das políticas neoliberais, vimos o direito à
educação ceder espaço ao direito à aprendizagem. Durante o início da década
de 2010, aglutinaram-se discussões nas universidades em prol ora dos direitos à
educação, ora dos direitos à aprendizagem. Decerto nenhuma das duas defesas
minava os males possíveis ou instaurava uma realidade educacional ideal para
as condições reais de trabalho. Ainda assim, toda a discussão sobre os direitos à
educação foi substituída após a promulgação da Base Nacional Comum Curri-
cular (BNCC, 2017) por direitos das crianças à aprendizagem, entendidos como
desenvolvimento de habilidades e competências, ignorando-se que, sem aber-
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tura para o campo dos possíveis, docentes e crianças são privados do direito de
existir de tal e qual maneira.
POR DOCÊNCIAS NÃO DOGMÁTICAS E EXISTÊNCIAS NÃO MÍNIMAS NOS COTIDIANOS ESCOLARES

Contrapondo essa redução, faz-se necessária a compreensão de que uma crian-


ça pode participar de muitos planos de existência como se pertencesse a vários
mundos. Ela existe neste mundo, existe como corpo, existe como “psiquismo”,
mas também existe como reflexo em um espelho, como tema, ideia ou lem-
brança no espírito de outro. Tantas maneiras de existir em outros planos... Nesse
sentido, os seres são realidades plurimodais, multimodais; e aquilo que chama-
mos de mundo é, de fato, o lugar de vários intermundos, de um emaranhado de
planos que ora chamam uns aos outros à existência, ora se dispersam entre os
mundos que lhes são cabíveis.

Cada existência provém de gestos que a instauram e não advém de um criador


como ponto de origem, pois é imanente à própria existência. Desse ponto de
vista, podemos pensar a existência a partir dos limites dos seres ou podemos
pensar a existência a partir dos gestos que instaura, da forma tomada pelos seres
quando aparecem. No primeiro caso, a potência de existir é limitada, enquanto
no segundo é revelada a maneira do existir, a curvatura singular, que, assim,
mostra uma “arte” (LAPOUJADE, 2017).

Nas escolas, o contato com as crianças evidencia as existências dos mundos


infinitos que nos envolvem. Basta que nos demos ao afeto com uma criança
e, de imediato, seremos atravessados pelos mundos de todas as espécies que a
alcança – seres imaginados coletivamente, experiências ordinárias, expressões
e situações improváveis. Tudo, nessa relação, aponta para a multiplicidade de

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possíveis da existência.

Os gestos infantis instaurados nas escolas públicas, nos encontros com os signos
artísticos, nos fazem ver singularidades de um pensamento acerca desses espa-
çostempos. Daí, portanto, buscamos agenciar com a arte a experiência de criar
modos de produzir docências capazes de potencializar as infinitas possibilida-
des de vida.

Dessa forma, buscamos em Gilles Deleuze e Félix Guattari (2010) a aposta na


potência artística. Para os autores, a arte cria as condições de existência dos
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mundos ao traçar planos de afecções que, circulando, esbarram no plano da
vida continuamente. A arte cria mundos justamente para sacudir a vida estag-
nada, para fazer ruir os fundamentos demasiadamente certos da paz ensejada a
gritos da professora que exige um silêncio que nem mesmo ela suporta. “Trata-se
sempre de liberar a vida lá onde ela é prisioneira, ou de tentar fazê-lo num com-
bate incerto” (DELEUZE; GUATTARI, 2010, p. 202).

Importa, assim, assumir uma concepção de docência que, inserida no plano


de imanência do cotidiano escolar como uma micropolítica, se configure na
complexidade e multiplicidade dos encontros dos corpos que se esforçam para
perseverar e potencializar a vida ativa e, portanto, ético-política.

Desse modo perspectivar uma docência não dogmática implica visualizar uma
docência aberta à diferença e à instauração de uma docência que considere a
alteridade. Docência como um propiciar de encontros nômades, e não como
uma palavra de ordem. Um conversar com, no lugar de um falar sobre, nutrindo
os “bons encontros” marcados pelo desejo ético e estético de criação.
Uma docência exercida num plano de imanência que vai assumindo consis-
tência à medida que o criam por meio de experimentações. Plano povoado por
docentes em devires-simulacros compostos por processos transversais de “artis-
tagens” que se instauram nos encontros entre corpos potencializando a multipli-
cidade de mundos possíveis (CORAZZA, 2013).

A consideração dos possíveis de uma docência não dogmática passa pela inven-
ção dos desacordos e criação das diferenças numa espécie de alteridade dese-
jante, isto é, uma alteridade que supere as representações binárias e modulares
do tipo: “[...] eu, macho, em meu lugar, falando em nome das mulheres; eu,
poder patrimonial, em meu lugar, falando sobre os ‘desvalidos’; eu, professor,
em meu lugar, falando em nome dos alunos” (LINS, 2005, p. 1235).

Uma alteridade como uma invenção e não um dado. O outro que está em mim
supera a visão de um outro apartado de mim, abrindo-se ao não humano do
homem, à natureza, à coletividade, ao universo múltiplo, como um desejo de
agenciamento de uma comunalidade expansiva, devir aos mil afetos e desejos.
94 Outro, portanto, que reage: outro em devir, um devir outro que resiste inclusive
à fundação da docência, mesmo porque “[...] o que deve ser fundado é sempre
POR DOCÊNCIAS NÃO DOGMÁTICAS E EXISTÊNCIAS NÃO MÍNIMAS NOS COTIDIANOS ESCOLARES

uma pretensão” (DELEUZE, 1988, p. 260).

Deve-se, pois, resistir à representação da docência como objeto de fascinação


programado, de controle, que aniquila o outro pelas paixões tristes e que pre-
tende a uniformização e homogeneização dos alunos enclausurados num futuro
longínquo do porvir, fabricados pelas leis do mercado, apartados da transversa-
lidade do presente, tratados como invólucros. Alunos como jogo regressivo dos
adultos que, numa caricatura de docência, se permitem falar pelo outro, pensar
para o outro, inserindo-o na tentação conservadora cuja fabricação equivale a
sustentar a validade de superioridade de algumas existências sobre outras.

Importa, portanto, intensificar as maneiras singulares do existir. Ao contrário


do que tradicionalmente ocorre nas escolas nas quais é valorizado o princípio
formal que organiza as práticas e fundamenta as existências, torna-se necessário
amplificar a multiplicidade das existências, considerando a potência do exis-
tir de uma maneira especial, singular. Importa, portanto, intensificar os modos
coletivos de criar vida e de fazer surgir sementes caóticas em meio aos ordena-
dos demasiadamente fundamentados. Afinal, como propõe Lapoujade (2017, p.
116), “[...] a ‘catástrofe’ é necessária como ponto de conversão do limite”.

Eis nosso ponto de partida: explorar as existências que, reduzidas ao quase nada
– o nada é sempre inatingível –, não fazem outra coisa senão amiudar-se. E, pe-
queninas, multiplicam-se infinitamente.

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O s virtuais como vetores de transformação
Uma existência é marcada por uma dose de real que lhe permite ou lhe nega
ações, pensamentos e afetos. Afinal, como destaca Lapoujade (2017, p. 14),
“[...] não há um único modo de existência para todos os seres que povoam o
mundo, como também não existe um único mundo para todos esses seres”. Isto
é, as existências são tão infinitas quanto os mundos que coexistem o que, entre-
tanto, não implica dizer que o infinito das existências consegue criar livremente
os mundos necessários para que todas os seres continuem a viver.
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Ainda que os mundos sejam compossíveis, há sempre a sobrepujança de uns
sobre outros; há sempre a diminuição de mundos quando esses, de algum modo,
se retiram do arcabouço de mundos necessários para a alimentação do modo
capitalístico de existir.

Quando não mais necessários, mundos inteiros somem ou misturam-se a ou-


tros que, entretanto, não mais lhes dão as condições necessárias de existência.
Esse é, por princípio, o modo de efetivação das forças capitalísticas: o consumo
radical de mundos e o descarte imediato quando as existências e os mundos
não lhes são mais vantajosos. As existências, por acaso desse movimento, são
diminuídas e empurradas para outros mundos que nem sempre as suportam ou
as desejam.

Ora, no contexto escolar, esse tipo de ação é palpável. Ainda que um professor
trabalhe toda sexta-feira com pinturas em conversas com sua turma, no momen-
to em que ele estende aos alunos um conjunto de pincéis, tinta e papel gros-
so próprio para tinta, a turma começa a perguntar o que eles precisam pintar.
Pedem instruções, ordens. Como é um trabalho realizado na escola, evidente-
mente se caracteriza como uma atividade escolar e, por efeito, deve haver uma
resposta correta.

— Era um trabalho sobre práticas de liberdade. Já tinha um tempo que a gente


vinha enfatizando aquele tema, sabe? A gente tinha trabalhado com as pinturas
do Haris na semana anterior... As crianças tinham adorado ele, a pintura de
uma cidade em chamas, de uma bailarina no meio das chamas dançando sem
medo... Aí, quando faço a surpresa para eles, a reação: “Mas o que é pra gente
pintar?”. Cadê tudo que a gente conversou? Cadê a liberdade?

A questão é pertinente: como praticar qualquer liberdade em face às expectati-


vas prévias? Expectativas das crianças – que esperam algo “certo” para fazer –,
mas também expectativas do professor que, de algum modo, espera poder exer-
96
citar liberdades de uma única vez.

Há um estranhamento na relação: o que se pode em termos de liberdade? As


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crianças estranham, mas também o professor. O choque é duplo. Podem as


crianças instaurar novas realidades, novas experimentações, diante da usurpa-
ção de suas singularidades? Podem, no limite da inexistência, conquistar uma
existência mais real, mais consistente? Com que gesto? A arte permite que as
existências aumentem sua realidade? Qual o efeito da arte na relação entre o
plano dos virtuais, do real e da atualização da potencialidade das crianças nos
cotidianos escolares? As existências mais frágeis, próximas do nada, exigem com
força tornarem-se mais reais?

A questão, aqui, é sobre nossa capacidade de percepção, de apreender o valor e


a importância dos modos de enxergar os mundos e suas nuanças. Portanto, antes
de problematizar o ato criador que permite às crianças instaurar existências sin-
gulares, é preciso se perguntar o que e como percebê-las e, para isso, é preciso
vê-las em suas existências, muitas vezes, mínima, e ver o “ponto de vista” da
criança e a sua presença.
As existências, por sua vez, são regidas por linhas infinitas que se lançam sobre
nós, em práticas de controle e de criação. Afetamo-nos com elas continuamente,
todavia nem sempre sabemos como agir diante desses afetos que invadem
nossos corpos.

Talvez por isso Etienne Souriau (apud LAPOUJADE, 2017, p. 37) distinga quatro
universos concomitantes que invadem as existências e nelas se intercruzam,
permitindo-lhes ocupação real do plano da vida: “[...] o mundo dos fenômenos,

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o cosmos das coisas, o reino das ficções” e acrescenta a todos esses a nuvem
dos virtuais.

Na definição de Souriau (2017), o mundo dos fenômenos seria, basicamente,


o mundo tátil ou facilmente exprimível. O cosmo das coisas seria marcado por
certa duração, isto é, uma coisa sendo compreendida por sua capacidade de
durar e por uma interdependência com outras coisas. O reino das ficções seria
o marcado justamente pelos seres que povoam nossas imaginações, que preci-
sam que acreditemos neles e continuemos a espalhá-los para que afirmem suas
existências. Junto a isso tudo, além e aquém de todos os outros mundos, con- 97
viveríamos com as infinitas virtualidades. Os virtuais parecem ter um estatuto à
parte. Eles estão aí, à nossa volta, eles aparecem, desaparecem e se transformam
à medida que a própria realidade muda. Aparecem como ideias, pequenos lap-
sos, rugas que surgem no canto dos olhos da criança que titubeia com um lápis
na mão enquanto pensa em fazer um desenho no canto do caderno – faz ou não
faz? Faz um traço, cria uma imagem; o pensamento já se foi; arregala os olhos,
apaga.

Por um lado, é o universo mais vasto, mas é também o mais evanescente, o mais
inconsistente, o mais próximo, aparentemente, do nada.
IMAGEM 1 _ Escravas na cozinha

98
POR DOCÊNCIAS NÃO DOGMÁTICAS E EXISTÊNCIAS NÃO MÍNIMAS NOS COTIDIANOS ESCOLARES

Fonte: Acervo da pesquisa (criação das crianças).

— Isso são escravas!


— É, a gente sabe que elas não deviam ser brancas... mas é essa mesma a ideia!
Elas são as escravas da nossa história! E são brancas!
— A gente pensou assim: e se as brancas fossem as escravas? E se não importasse
a cor da escravidão? Por que a escravidão foi negra?
— Não era pra ter nenhuma!
— É, não era! Mas, e se as cores fossem diferentes? E se tudo fosse diferente?
— E se nem fossem escravas?
O virtual interpela a realidade das coisas a partir de sua necessidade de fazer-
-existir, de fazer-ver.

Não há uma só realidade que não esteja acompanhada de uma nuvem de po-
tencialidades que a segue como se fosse sua sombra. Cada existência pode tor-
nar-se uma incitação, uma sugestão ou o germe de outra coisa, o fragmento de
uma nova realidade futura. Toda existência torna-se legitimamente inacabada e,
portanto, com abertura para uma existência singular.

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Real, atual e virtual são imanentes um ao outro, existindo uma diferença de
natureza, mas não de grau, ou seja, o virtual é simultâneo ao atual, visto que a
lembrança é simultânea à percepção. Desse modo, o atual exprime as forças do
virtual em produzir diferenciação no real, podemos, então, dizer que o possível
e o virtual se tocam duplicando o real (BERGSON, 2006).

Nesse enredamento entre real, atual e virtual, produzimos movimentos de atua-


lização que nos forçam à diferenciação, potencializando impulsos vitais que
deslocam o pensamento e, tratando-se das enunciações infantis produzidas nas
99
escolas públicas e atravessadas pelos signos artísticos, fazem-nos desprender das
formas e apostar nas forças. As forças das tintas, tecidos, bordados, miçangas,
palavras e desenhos da artista Nelma Guimarães provoca a criação de outras
forças: as crianças saltam na/com as obras da artista, compõem também seus
blocos de sensações, visto que a arte é um modo de liberar a vida. Com a arte
tornamos “[...] sensíveis as forças insensíveis que povoam o mundo, e que nos
afetam” (DELEUZE; GUATTARI, 2010, p. 215).

— Os desenhos dela parecem de criança! [risos]


— Verdade, parece que foi uma criança que fez isso!
— Será que é difícil pintar nos quadros?
— Ela usa muito pintura em tecido, usa um tecido mais grosso, pois ela usa tinta
e também vai bordando traços e palavras nas obras. Vocês viram que nas obras
dela tem sempre algo escrito?
— Sim!!
— Eu gostei, porque são bem coloridas, alegres...
— Mas tem uma ali que deu medo! Parece um monstro! [ri com cara de assustado]
— Eu escolhi a da árvore, porque eu acho que tem que ter amor pra todo mundo
mesmo. Tá escrito: “Pé de amor pra quem não tem”.
Vemos, portanto, que as existências podem se modificar e se transformar, inten-
sificar sua realidade, passar de um modo para outro, conjugar o virtual, o real ao
atual. Entramos no domínio do transmodal.

Isso não significa que, quando os virtuais se atualizam no real, deixam de existir
como virtuais, pelo contrário. São eles, os virtuais, que ditam as condições de
sua passagem para a existência, apesar da sua indistinção. A conversa com as
crianças que pintaram a cena Escravas na cozinha deixa isso bem claro: não se
trata, em absoluto, de recriar a memória tal qual ela se efetivou; ao mesmo tem-
po, não se trata de fazer de um modo qualquer. O virtual, ao se atualizar, cobra
do real as condições cabíveis para sua existência. Cada esforço criador, cada
investida é como uma proposição de existência que o virtual consente ou não,
segundo as exigências cambiantes da construção/organização que se esboça.

As enunciações infantis produzidas nos encontros com as obras da artista Nelma


Guimarães também nos evidenciam a força dos virtuais: “Acho que tem que ter
amor pra todo mundo mesmo”, lembra-nos uma criança. O exercício da arte
100 de sonhar a própria vida interpela as condições dessas existências – existências
despossuídas. Isso porque estamos a fazer ver enunciações infantis que se des-
POR DOCÊNCIAS NÃO DOGMÁTICAS E EXISTÊNCIAS NÃO MÍNIMAS NOS COTIDIANOS ESCOLARES

dobram em meio a condições obscuras de existência, mas que, mesmo assim,


buscam criar máquinas de luta.

Desse modo, a relação entre a existência virtual e a existência concreta, em que


a única certeza parece ser a passagem de um modo a outro para ver como essa
existência virtual se transforma pouco a pouco em existência concreta, é deno-
minada por Souriau (apud CANGI, 2019, p. 35) “transposição progressiva” por
um “processo instaurativo”, em que o virtual, por metamorfose, se transforma
em existência concreta.

Eis que, se, nas escolas – de modo geral –, predominam as existências assujeita-
das pelas macropolíticas e/ou pelos modelos prescritivos de ensinar e aprender
que negam às crianças a afirmação do seu direito de existir, os virtuais, quando
se apresentam, ganham força equiparável a de um fenômeno da natureza – uma
tempestade, uma erupção vulcânica. As escolas públicas periféricas são conhe-
cidas como berços de existências “despossuídas” de seres sempre diminuídos,
esquecidos pelas forças políticas majoritárias que tendem a capitalizar tudo o
que lhes for apresentado. Todavia, tal qual o professor preocupado com as práti-
cas de liberdade e seus alunos que explodiram em um arrombo de escravas-não-
-escravizadas, há, ainda, estouros de vida que intensificam a realidade das exis-
tências afirmando seus direitos de existir, conquistando sempre mais realidades
com a instauração de gestos que afirmem a multiplicidade de mundos.

IMAGEM 2 – O chão sob nossos pés

CURRÍCULO E ESTÉTICA DA ARTE DE EDUCAR


101

Fonte: Acervo da pesquisa (criação das crianças).


— A gente teve a ideia de fazer o chão, porque nada é mais livre que o chão, né?
O chão conhece todas as histórias, vê tudo, ouve tudo, conhece tudo...
— Todo mundo deixa uma marca no chão. A gente ia fazer marca de pé, mas
ninguém ia aguentar o chulé aqui...
— Vai ver os meninos tão plantando bananeira, ué! Tem mão de tudo no chão,
mão de mãe, de índio, de branco, de escravo, de criança, de fazendeiro...
— A terra conta histórias...

Contrários às “políticas maiores”, no caso, educação maior – caracterizadas em


nossa realidade pelos planos decenais, pelos parâmetros e diretrizes, pela BNCC
etc. –, Deleuze e Guattari (2014, p. 126) pontuam para a necessidade de “Agar-
rar o mundo’ em lugar de extrair impressões dele, trabalhar nos objetos, nas
pessoas, nos acontecimentos, colado ao real [em sua relação com o virtual e
sua atualização] e não nas representações”. Assim, agarrando-nos ao mundo e à
vida, lutamos pelo direito de existir nas escolas públicas.

102 O direito de existir


POR DOCÊNCIAS NÃO DOGMÁTICAS E EXISTÊNCIAS NÃO MÍNIMAS NOS COTIDIANOS ESCOLARES

Mas o que acontece quando nossas crianças estão totalmente despossuídas –


tanto político-econômica quanto pedagogicamente – do direito de existir se-
gundo determinado modo? O que acontece quando não é oportunizada uma
existência não mínima, tanto no sentido das condições concretas de existência,
como com relação à abertura para os possíveis virtuais se atualizarem produzin-
do novas experimentações no real?

A partir de nossas apostas e defesa pelas existências mínimas, compreendemos


que tal luta perpassa pela dimensão político-afetiva, tendo em vista que o pro-
cesso de atualização que coloca em jogo as forças dos virtuais é potencializado
pelos afetos/afecções engendrados num contexto, no caso, das escolas públicas.
Nesse sentido, nossa defesa não pode se dar apartada do entendimento de que
há afetos/afecções que afirmam a vida, assim como há aqueles que nos colocam
em condições existenciais ainda mais limitadas.

Além de Deleuze (2006b), outros leitores de Spinoza (2007), como Negri (1993),
atribuem à imaginação um importante papel na formação de um entendimento
ativo. Negri focaliza sua atenção na dimensão social da imaginação, ao invés de
pensá-la nas redes afetivas individuais. Para o autor, ao refletir sobre os efeitos
da imaginação, a mente compreende não apenas suas inadequações, mas tam-
bém o mundo socialmente constituído de sua experiência, de modo que razão e
imaginação não seriam polos excludentes, visto que o objeto do conhecimento
imaginativo – configurações afetivas, hábitos culturais, associações mnemôni-
cas, crenças herdadas socialmente – deve ser pensado como o que nos permite

CURRÍCULO E ESTÉTICA DA ARTE DE EDUCAR


intensificar nosso pensamento, como crítica social e ação no mundo.

Nessa compreensão, a base afetivo-imaginativa é fundamental para a inserção


das crianças na problematização e experimentação do mundo, porém estaria a
educação escolar abrindo possibilidades para a ampliação do campo existen-
cial? Abertas às paixões alegres, as crianças das escolas públicas compartilham
seus desejos por essa ampliação e buscam as potencialidades do mundo.

IMAGEM 3 _ Pé de risos para todos


103
Fonte: Acervo da pesquisa (criação das crian-
ças).
— Nossa! Não sabia que pintar era tão difícil!
— Eu gosto, estou gostando... Tia, eu peguei o desenho da árvore. A Nelma fala
do amor, eu queria fazer da alegria, porque eu acho que na escola a gente tem
que ser alegre, mas não sei o que vou desenhar na árvore...
— Desenha uma fruta!
— Desenha melão, igual teve hoje na merenda! [risos]

Como afirma Kafka (2009)3, o problema da existência não é o da sua facticidade,


da sua irredutível contingência ou do seu absurdo. O problema é mais elemen-
tar: trata-se de existir realmente. Para ele, seria necessário compreender que a
questão é tanto política quanto estética. A pergunta de Kafka é a mesma que
deveriam fazer, se pudessem “ver,” todos aqueles que, de uma maneira ou de
outra, estão privados desse direito, como os docentes e as crianças, subjugados
pelas prescrições e hierarquizações, na ambiência escolar.

No mapa do mundo, as crianças despossuídas ocupam um ponto minúsculo,


quase invisível. Elas vivem num espaço cada vez mais exíguo e o tempo perde
104 toda a continuidade e se reduz a uma sucessão de instantes. Ele é tão pouco real
que nem tem mais certeza de ter um corpo (KAFKA, 2011).
POR DOCÊNCIAS NÃO DOGMÁTICAS E EXISTÊNCIAS NÃO MÍNIMAS NOS COTIDIANOS ESCOLARES

Os despossuídos vivem, portanto, uma espécie de condição a priori. Para eles


a espoliação tornou-se uma aquisição e eles não reivindicam mais nenhum
direito. Nasceram despossuídos e, como não têm os meios de possuir a si
mesmos, perguntam-se a quem devem pertencer. Quem os instalou naquele
lugar? Quem cuida deles? Mais ainda: quem fala, quem pensa no lugar deles?
(LAPOUJADE, 2017).

Mas a grande questão é que o sistema capitalista maquínico os captura de tal


modo que eles nem mesmo mais se incomodam com esse estado de espoliação,
pois têm outros problemas dos quais o mais importante é menos o viver – é so-
breviver (PELBART, 2011, 2014).

3 Em “Carta ao pai”, Franz Kafka critica a maneira de educar do pai, afirmando que ele era muito rígido e que seus métodos de
educação o deixaram com traumas. Por conta disso, ele aprendeu a ver o mundo do modo do pai, e a última coisa que desejaria
era ver o mundo por tal perspectiva autoritária. 
Apesar dessa luta pela sobrevivência, ambicionam alguma coisa. Os despossuí-
dos não reivindicam nenhum direito sobre nada, não aspiram a nenhuma posse.
Na maioria das vezes, nem compreendem o que lhes perguntam. Só que eles
nunca podem satisfazer essa pretensão de somente sobreviver, pois nunca con-
seguem ficar totalmente calados, não pensar ou não se mexer. Sempre circulam
vibrações que impedem de acabar com aquilo, pois os virtuais, em relação com
o real, agem acenando alternativas possíveis.

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Entretanto, se essa decisão não lhes pertence, não mais do que o resto, de modo
que têm que continuar se submetendo aos gestos, às vozes, às percepções que
os agitam, apesar de tudo, eles descobrem o interminável, negando o silêncio,
a imobilidade, o negro, o cinza ou o branco como derradeiros limites, pois o
negro nunca é total, o silêncio nunca é completo, a imobilidade nunca é per-
feita. Alguma coisa persiste inexoravelmente. Podemos chamar de vitalidade, se
quisermos, uma força que não lhes pertence, mas à qual eles pertencem e que
lhes impõe um mínimo de atividade.

105
IMAGEM 4 _ “Só de boa”

Fonte: Acervo da pesquisa (criação das crian-


ças).
— Teve uma pintura que o professor nos mostrou muito irada. Acho que se cha-
mava “Chuva” e tinha uma garota parada no meio de uma chuva, com um sor-
riso pequeno na boca. Mais nada! Caía o maior toró lá e ela tranquila na chuva.
_ Hoje o professor falou para a gente pintar nossa liberdade. Lembrei da garota,
da chuva.
_ Pintei uma chuva preta que caía do céu, mas eu estava num mar muito azul e
muito grande onde essa chuva se desmanchava e eu numa boa, sem me preo-
cupar com nada... sabe? Tipo... “Só de boa”. É isso.

Assim, os despossuídos, em existências mínimas político-socioeconômicas, são


agitados por existências mínimas virtuais que se manifestam em tremores, so-
bressaltos, lembranças que os ajudam a alcançar zonas de atualização de possí-
veis, em que novas problematizações e experimentações surgem em modos de
resistência. “Só de boa” se torna uma força para uma criança que, sendo negra,
conta histórias de fuga da polícia, conta sobre os anos em que esteve longe da
escola, conta sobre as tantas vezes em que se calou por obrigação. Nada a abate.
106
Ela segue driblando os ocasos das adversidades. “Só de boa” deseja seu mundo
menos como uma ausência de vontade de vida e mais como uma vida vagante,
POR DOCÊNCIAS NÃO DOGMÁTICAS E EXISTÊNCIAS NÃO MÍNIMAS NOS COTIDIANOS ESCOLARES

vagarosa. “Só de boa” diz sua pintura e, de alguma forma, é justamente essa
despreocupação que ela usa como modo de resistência, como modo de cruzar
os mundos travando batalhas com um sorriso tímido, com uma paz singela. Seja
fazendo florescerem bocas-melões risonhas, seja tomando a tranquilidade como
seu modo de existir, as existências mínimas em contato com a força da arte e de
seus signos são lembradas em suas potências vitalistas. A arte pode funcionar,
para as crianças, como um modo de criar mundos desejantes.
Forças ético-estético-políticas
disparadas pelos signos artísticos
Em Deleuze, potência rima, decerto, com imanência.

Como pode ser definida como uma intensidade de forças criativas disparadas
por signos, a potência implica também a compreensão de que a política, em De-
leuze, é inseparável de acontecimentos éticos e estéticos (NASCIMENTO, 2013).

CURRÍCULO E ESTÉTICA DA ARTE DE EDUCAR


Éticos porque os modos de existência envolvem a corrosão da ordem moral das
coletividades dominantes, ligando-se não a modelos, mas ao poder de afetar e
ser afetado nos encontros. Estéticos, visto que os estilos de vida são efeitos de
acontecimentos inconscientes pré-individuais que criam novos modos de sentir,
ver e dizer.

Assim, não para menos, o signo artístico pode nos fazer pensar a experiência
intensiva de novas formas de sentir, enfrentando as forças dominantes ao mesmo
tempo em que torna possível o surgimento de mundos inesperados. Por essa ra-
zão, a teoria deleuziana dos signos se torna uma prática política, isto é, o signo
107
se torna um elemento multiplicador das estratégias de intervenção política, re-
forçando a luta em favor de uma “vida não-fascista” (FOUCAULT, 1997, p. 199).

Para Deleuze e Guattari (2010), assim como para Lapoujade (2017), essa é uma
tendência que atravessa todas as artes. Há sempre a tentativa de povoar novas
entidades das zonas tidas como estéreis ou inabitáveis para a sensibilidade. A
força da arte aparece justamente onde os terrenos mórbidos parecem prosperar.
Visto que as artes não se chocam com o limite das suas possibilidades, seu desejo
de alcançar outros possíveis povoados de qualidades puras e abstratas extrapola
qualquer maquinismo do capital (LAPOUJADE, 2017). “O branco, o negro, o
silêncio, o nada, como limites supremos que encarnam o fim ou a quintessência
de uma arte? Como instaurar novos seres nessas zonas, se for verdade que não
existe nada além do branco, do negro, do silencio ou do vazio?” (LAPOUJADE,
2017, p. 110).

Dizíamos, inicialmente, que a catástrofe é necessária para a conversão dos limi-


tes entre o atual e o virtual, para a composição de mundos entre mundos. Aqui,
voltamos justamente a isso: para que o plano das concretudes (fenômenos e
coisidades) efetivamente se cruze com os virtuais, para que haja atualização da
virtualidade na vida, é preciso que as movimentações dos virtuais intensifiquem
os rasgos dos limites – os limites do aceitável, os limites dos afetos, os limites do
cabível. É preciso que uma catástrofe seja semeada.

Daí, justamente, que o concreto não é a materialidade dos corpos neles mes-
mos; antes, é o ruído da sua vibração. O concreto da vida é animado por movi-
mentos, palpitações vibrantes, pela brisa litorânea que, ainda que fraca, nunca
cessa – carrega consigo grãos de areia e maresia. A catástrofe não precisa ser
apocalíptica; deve, antes, atravessar as concretudes com maior intensidade da
vida. Desse modo, precisamos criar captores, transmissores, detectores de movi-
mentos. Isso vale, para transformar sensibilidades, para todas as artes.

Quando a heterogenia da arte articula a própria heterogenia da vida na produ-


ção de infinitos afetivos, torna-se ímpar indagar pelo como da arte – isto é, como
fazer a vida expandir suas possibilidades artísticas. Nessa expansão, as crianças
fazem pulsar, em tracejados, pontilhados, linhas, cores e figuras, lutas por suas
108 existências na escola pública. Existências mais alegres, sonhadoras, coloríveis,
livres. Os signos artísticos convidam as crianças a sonhar a própria vida e as
POR DOCÊNCIAS NÃO DOGMÁTICAS E EXISTÊNCIAS NÃO MÍNIMAS NOS COTIDIANOS ESCOLARES

afetam a experimentar a vida como prática de liberdade.


IMAGEM 5 _ Alegria de aprender

CURRÍCULO E ESTÉTICA DA ARTE DE EDUCAR


109

Fonte: Acervo da pesquisa (criação das crianças).

— Eu vou fazer desse menino voando... um anjo!


— Mas, você não é anjo, né, João? [risos]
— Mas eu escolhi essa... Vou desenhar um menino aprendendo e voando.
— Como assim?
— Ele aprende um pouquinho e voa... Por isso tá com o lápis na mão.
— A professora disse que a gente pode voar com os livros, na imaginação...
— Então, pronto! Fechou!
O trabalho com signos artísticos tem se mostrado extremamente potente como
possibilidade menos estruturada e formal de entendimento dos processos de
aprendizagem que acontecem nas escolas. Assim, mesmo considerando a força
dos determinismos prescritivos que hoje buscam conformar a vida das esco-
las, faz-se necessário investigar a multiplicidade de mundos que nelas coexis-
tem, exigindo-se, para isso, a atitude de mergulhar nesses universos de virtuais,
atuais, reais sempre em busca de produzir mais mundos compossíveis para as
existências que, de algum modo, arranjam modos de se apequenar (CARVA-
LHO, 2014).

Assim, falar sobre uma docência não dogmática implica problematizar, expe-
rimentar, acompanhar movimentos que vão transformando a cultura da escola,
fortalecendo a criação coletiva, conduzindo para o questionamento e a carto-
grafia do campo dos “possíveis” do movimento do pensamento para engendrar
aprendizagens inventivas (CARVALHO, 2009). Sendo assim, concluímos indi-
cando a necessidade de abertura para o aprender e o ensinar na perspectiva do
pensamento em movimento, considerando que, para que alunos e professores
110
produzam as suas aprendizagens sem medo, eles necessitam que sejam opor-
tunizados “encontros” de ideias, espaçostempos para capturá-las e afetos que
POR DOCÊNCIAS NÃO DOGMÁTICAS E EXISTÊNCIAS NÃO MÍNIMAS NOS COTIDIANOS ESCOLARES

potencializem modos coletivos de se constituírem como aprendentes no plano


cotidiano de imanência da vida.

A constituição de encontros produtivos que fomentem a emergência do públi-


co e do coletivo, potencializados pelas experimentações, fundamenta-se em
processos nos quais os fluxos intensivos de composições signos-sentidos são
fundamentais.

As experiências com as pinturas da Nelma Guimarães e os exercícios de prati-


car a liberdade em pintura fazem-nos não apenas rir, mas também tropeçar nos
próprios pensamentos em modos de agir e pensar. Em uma sala de aula, per-
guntar pelos virtuais que atravessam os universos é possível? Como atentar-se a
eles? Talvez, tal qual a criança descobre as dificuldades de pintar, o desafio seja
manter a produção de vida sem que, com isso, outras existências sejam afeta-
das. Jogo de pincéis: aplicar camadas de cores sem que nenhuma delas se perca
totalmente, deixando, ainda, vislumbres das cores em camadas, em diferentes
pontos. Produzir um mapa das cores. Encontrar, em meio às existências míni-
mas, o menor (GALLO, 2002), porque ali, onde as coisas se apequenam, não
falamos mais de despossuídos. Onde as minoridades fazem vez, as existências
exigem que olhemos de perto bem atentamente, com o olhar colado nelas para
enxergar até o calor dos corpos, o brilho dos olhos, o tremor das vozes.

Quando nos apequenamos, os mundos se multiplicam, crescem ao infinito e


tudo é visto sob nova perspectiva, de ângulos, cheiros e tamanhos diferentes.

CURRÍCULO E ESTÉTICA DA ARTE DE EDUCAR


Ali, deparamo-nos com existências que resistem ao modelo imposto produzin-
do vida como reinvenção. Ali, as existências mínimas transitam em seu duplo
sentido – primeiro como corpos mínimos que incitam a abertura perceptual
para anular o segundo sentido, isto é, anular a lógica dos corpos de nossas
crianças despossuídas político-econômico-pedagogicamente. Esse é o sentido
para as existências que interessa instaurar para produzir uma vida na educação
escolar pública.

111
Referências
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o seu espírito. Tradução de Paulo Neves. São Paulo: Martins Fontes, 2006.
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CURRÍCULO E ESTÉTICA DA ARTE DE EDUCAR


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TÍTULO

114

5.
CURRÍCULO E ESTÉTICA DA ARTE DE EDUCAR
‘FAZER MORADA’
NA INFÂNCIA:
IMAGENS DE 115

CURRÍCULOS EM
DEVIR-CRIANÇA

César Donizetti Pereira Leite


Bianca Santos Chisté
Giovani Cammarota
César Donizetti Pereira Leite1
Bianca Santos Chisté2
Giovani Cammarota3

Aforismo de descurricularizar um currículo


Um currículo em devir-criança é possível?
O que pode um currículo crianceiro?
O que pode um currículo arteiro?
O que pode um currículo infantil? Infantilizar o currículo é possível?
E se um currículo fosse muitos? Nos plurais?
para ser lambido, babado, melado – currículo pirulito –
lírico, alvoroçado, festivo – currículo palhaço
vassoura, gancho, ponte, estrada, cama – currículo brinquedo
delirante, embriagante, insano – currículo brigadeiro
misterioso, profano – currículo só-riso
falante, barulhento, cortante, extravagante – currículo periquito
onde às coisas que não servem para nada – currículo-inutilezas
E se ele não desejasse formar? Mas…
116 Experimentar mundos
Correr mundos
‘FAZER MORADA’ NA INFÂNCIA: IMAGENS DE CURRÍCULOS EM DEVIR-CRIANÇA

Cair nos mundos


Ser de outros mundos
Girar mundos
Viver (extensivo e intensivo) no mundo da lua, do sol, de todos os astros, constelações e e e e e
Petecar mundo
Saltitar mundos e fundos
Sair do mundo
E se ele não tivesse vontade de enunciar verdades resididas em lugar fixo, mas fizesse morada …
Sob a pele do chão
Em terra chã e safada
Na comunhão com bandos e matilhas
Nos corpos vibrantes e desejantes
Nos resíduos, nas miudezas, nos inutensílios e ignorãças
No vento cumprido que vai para além do mundo
Como fazer para si um currículo em estado árvore, em estado infância?

1 Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, Campus Rio Claro.

2 Universidade Federal de Rondônia, Campus Rolim de Moura.

3 Universidade Federal de Juiz de Fora. Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” -Campus Rio Claro.
Fazer morada
“Eu estava sentado no chão de uma sala ‘de aula’, perto da porta. Observava
as crianças explorando câmeras filmadoras, tablets, máquinas fotográficas. As
crianças tinham cerca de 4 anos de idade. Em certo momento dois garotos se
aproximam e me oferecem um carrinho de brinquedo para que eu possa junto
com eles brincar. Depois de algum tempo uma das crianças começa a passar um
carrinho na sola de minha sandália, enquanto a outra usa meu braço de ponte,

CURRÍCULO E ESTÉTICA DA ARTE DE EDUCAR


para com outro carrinho passar de um lado para o outro de meu corpo. Os cor-
pos das crianças se misturam, buscam espaço, criam espaços, exploram o espa-
ço. Os corpos das crianças rompem, nos movimentos, os espaços dos próprios
corpos identitários, misturando braços, pernas, atravessando os sons, criando
ruídos marcados por palavras, risos, verdadeiros corpos sem órgãos. 

Os espaços vão aos poucos sendo fissurados por espacialidades que criam fluxos
eescapam àquilo que é previsto nos modos de pensar as crianças, a escola, as
imagens que ali se apresentam e as imagens que as crianças apresentam em suas
capturas através dos equipamentos, das tecnologias. Passamos, eu e as crianças, 117
um bom tempo sentados, brincando. Esse momento foi interrompido pela che-
gada do Diretor da creche, que parou ao lado de fora da sala. Eu me levanto
para cumprimentá-lo e saio, ficamos conversando por alguns minutos, até que
vemos se aproximando a nós a professora do berçário II de mãos dadas com uma
criança. Ao chegar a professora, apontando para mim, ela diz: “ele te viu e me
trouxe até aqui”. Olho para a criança e prontamente me abaixo até ela, fixamos
um no outro o olhar, ficamos na condição de uma verdadeira conversação silen-
ciosa, sem palavras, sem sons, sem ruídos. A troca de olhares durou vários mi-
nutos, o silêncio ali instalado era povoado de sensações, de aprendizagens, de
deslocamentos. Ali, pelo olho, pela imagem fixa da criança que se apresentava
a mim, pude, ao menos no campo do sensível – no campo sensível –, saber algo
sobre pesquisar com crianças, pesquisar com crianças e produção de imagens,
pude ver e enveredar por uma rede de saberes que se conectam a afetos, ideias,
pensamentos, imagens e montagens. Pude ver, pelo e com o olhar do Joaquim
(nome da referida criança), que estar e pesquisar com crianças, professores, pro-
dução de imagens na Educação Infantil, tem alguma coisa a ver com procurar
formas de dar visibilidade ao que a nós se apresenta; que o que o olho captura
e que captura o olhar talvez seja algum tipo de gesto, algum tipo de movimento,
algo que suspende nosso fôlego, que nos deixa distante e sem palavras, algo
que ensina que a experiência é uma dobra que nos coloca de alguma forma em
contato com o fora; que pesquisar e experimentar com imagens, com produção
de imagens realizada por crianças pequenas e professores de Educação Infantil
é se lançar em uma aventura com o fora, com a infância das coisas, com os ‘não
sei’ de partida e de chegada, com as incertezas, com os medos, com os mundos
possíveis.” (LEITE E OLIVEIRA, 2019, p. 169-170)

***

Ninguém, na verdade, até o presente, determinou o que pode o cor-


po, isto é, a experiência não ensinou a ninguém, até o presente, o
que, considerado apenas como corporal pelas leis da Natureza, o cor-
po pode fazer e o que não pode fazer, a não ser que seja determinado
pela alma. (ESPINOSA, 1973, p. 186).
118

Partimos de duas ideias centrais: a ideia de “descaracterização da Educação


‘FAZER MORADA’ NA INFÂNCIA: IMAGENS DE CURRÍCULOS EM DEVIR-CRIANÇA

Infantil” e a de uma “exclusão da criança” e tomemos as considerações de Es-


pinosa (1973) acerca da seguinte pergunta: “o que pode o corpo?”. Tomemos
essas considerações e as desloquemos para nos colocar diante de questões que
se fazem presentes e que vazam constantemente no universo da Educação e,
mais especificamente, da Educação Infantil. O que pode a Educação? O que
pode a Educação Infantil? O que pode a infância nos ajudar a pensar acerca da
Educação e da Educação Infantil?

Ainda retomando as questões apresentadas acerca do ‘corpo’ e de suas potên-


cias na Educação Infantil poderíamos nos perguntar: que corpo habita a Edu-
cação Infantil? Quais corpos compõem o universo daquilo que chamamos de
Educação das crianças pequenas? Corpos plurais, povoados de multiplicidades
metamorfoseado em gestos, em posturas, em imagens, em modos de conhecer,
em formas de criar conhecimento. Um corpo vivo, confuso, desfocado, frag-
mentado, pulsante das crianças pequenas e das imagens que rodeiam o univer-
so da pequena infância. Um corpo que converge um povoamento de modos
e formas de conhecer, de apresentar o que conhecemos, ou ainda, na mesma
perspectiva de Michel Serres, “vejam o que quero mostrar: que não existe nada
no conhecimento que não tenha estado primeiramente no corpo inteiro, cujas
metamorfoses gestuais, posturais e a própria evolução imitam tudo aquilo que
o rodeiam” (SERRES, 2004, p. 68). Talvez e diante disso, para pensarmos uma
suposta “descaracterização” da Educação Infantil, deveríamos, antes de mais

CURRÍCULO E ESTÉTICA DA ARTE DE EDUCAR


nada, nos perguntar sobre quais conhecimentos “caracterizam” o que pode-
ríamos chamar de um corpo para a Educação Infantil. Será possível pensar um
corpo único, identitário para a Educação Infantil? Ou ainda, seria possível carac-
terizar a Educação Infantil? 

Antonin Artaud se pergunta: “Quem sou? De onde venho? Eu sou Antonin Ar-
taud, e basta dizê-lo e imediatamente vereis o meu corpo atuar. Voar em esti-
lhaços e em dois mil aspectos notórios refazer um novo corpo onde nunca mais
podereis esquecer-me.” (ARTAUD, 1983, p. 161). Seria a Educação Infantil esse
corpo preso por discursos, Leis, Políticas, saberes? Poderíamos em e com cada
119
fragmento do universo da Educação Infantil compor um ou muitos novos corpos
para isso que chamamos de Educação Infantil?

Entre corpos e desejos e sonhos será possível ‘caracterizar’ a Educação Infantil?


Será possível definir espaços específicos demarcados por territórios e tempos
dados, circunscritos por aquilo que falamos sobre a Educação Infantil e sobre a
infância? Como estar a altura do acontecimento educação infantil e seus tantos
territórios habitados por espacialidades de geografias que se compõem em tem-
poralidades urgentes, como estar a altura disso que estas muitas vezes escapam
aos discursos seguros e objetivos de modos demarcados pelos espaços e tempos
adultos da educação?

Mergulhados em experiências infantis, que perpassam por diferentes movimentos,


criamos, pelas imagens, pelas palavras, pelo texto, não um corpo único, dado,
um corpo homogêneo, mas sim ‘blocos de infância’, como afirmam Deleuze e
Guattari (2015). Os blocos de infância são “a única verdadeira vida da criança;
ele é desterritorializante; desloca-se no tempo, com o tempo, para reativar o de-
sejo e fazer suas conexões proliferarem.” (DELEUZE; GUATTARI, 2015, p. 140).
Pensar a educação Infantil por e com blocos talvez nos façam escapar ao olhar
adulto, presente nos discursos acadêmicos, sociais, nas Políticas Públicas, que
dizem, pensam e produzem ideias, modos de agir com a criança e modos de
ser criança, que ao mesmo tempo em que proliferam formas de incluir, de inclu-
são, povoam nos seus agenciamentos identitários espaços possíveis de exclusão,
pois criam corpos, criam modulação de corpos, modulam corpos. Modulações
que operam para fazer o corpo seguir uma certa linearidade, uma determinada
normalidade, uma prescrição determinante, circunscrita pelas culturas sobre e
em torno de modos que fixam e definem modos de ser criança. Aqui, aponta-
mos para as possibilidades (e apostamos em possibilidades) não dos discursos
moduladores e homogêneo das massas, mas sim para as potências dos coletivos
de crianças pequenas. Para isso, o texto se apresenta na perspectiva de ‘blocos’,
composições que escapam à linearidade do texto acadêmico para dar vez a
expressões de multiplicidades, de proliferações coletivas que se constituem no
encontro com crianças. Tais blocos apresentam como problema enfrentamentos
entre infância e currículo, entre o corpo vivo de uma infância e de um currículo
120 que compõe com e apesar de modulações, normalizações.

Um texto em blocos: fazer morada naquilo que a infância investe como ins-
‘FAZER MORADA’ NA INFÂNCIA: IMAGENS DE CURRÍCULOS EM DEVIR-CRIANÇA

tância sempre problemática. Sola de sandália ou estrada de carrinho? Braço


ou ponte? Passar de lado a outro do corpo ou fazer travessia com um carrinho?
Tudo se passa como se Joaquim nos convidasse a abandonar a lógica do ou: é
que ou nos levaria a um binarismo do verdadeiro e do falso, fazendo colar um
fato ao acontecimento: é uma sola de sandália, é um braço, é mover um objeto
de um lado ao outro do corpo. Estrada, ponte e travessia, elementos do falso,
expressariam tão somente aquilo que a criança tem de imaginação, aquilo que a
criança cedo ou tarde terá de abandonar em favor de uma modulação, de uma
representação. Tudo se passa como se Joaquim nos convidasse a fazer morada
nas conexões, entrar em um bloco de composição do e. Livre do peso do fato,
um acontecimento pode afirmar o desejo e suas conexões inusitadas: sola de
sandália e estrada de carrinho e braço e ponto e passagem de um lado a outro e
travessia com carrinho e e e...
Currículo: e se ele não desejasse formar, mas...
Como pensar o Currículo, pensar o currículo na Educação infantil? Dentre as
muitas possíveis escolhas – poderíamos discutir a Base Nacional Comum Cur-
ricular, algo sempre presente colocando-se como ‘ordem do dia’ –, uma opção
política se apresenta: a de produzir, quem sabe, uma discussão infantil do currí-
culo na educação infantil. Para tal, não procuraremos por uma escrita ordenada,
com começo, meio e fim (e caberia a pergunta: tem a infância e a educação

CURRÍCULO E ESTÉTICA DA ARTE DE EDUCAR


começo, meio e fim?), por uma escrita que se alongue e certas prolixidades
(pois também a infância talvez não seja tão prolixa), nem por uma ordenação
alinhada a uma certa cronologia nos modos de pensar e para pensar o currículo
(pois a infância não é uma condição de certa cronologia, mas uma condição da
e de uma experiência). Aqui a proposta é a de infantilizar o currículo para poder,
quem sabe, pensar um currículo para a infância.

Em um olhar mais atento para as Escolas de Educação Infantil o que talvez ve-
mos são pés e mãos e olhos e bocas e dedos e cabelos e pelos e dentes e unhas
e chinelos e sapatos e gritos e sons e ruídos e palavras e objetos e cenas e focos 121
e des-focos e cadeiras e tetos e chãos e pessoas e meninas e meninos e riscos
e riscas e choros. Temos espaços e percursos e travessias e andanças e chão e
crianças e crianças e crianças e crianças e crianças e e e....

Poderia isso nos dizer algo sobre a Educação? Sobre a Educação Infantil? Sobre
a Educação de crianças? Sobre crianças?

Segundo o Dicionário Etimológico do Ensinar e Aprender de Castello e Mársico


(2007, p. 85), podemos dizer que:

Tudo o que se estuda dentro do sistema educativo está organizado em


um currículo organizador da prática. Curriculum é, em latim, o dimi-
nutivo de currus e alude tanto a uma corrida como àquilo que faz a
corrida, quer dizer o “carro” – no campo educacional o Currículo faz
referência às instâncias que devem ser percorridas, ao estilo de uma
corrida, as experiências presentes nessas corridas, para poder dar por
cumprido um trajeto educativo, uma experiência – Currículo é próxi-
mo, íntimo à travessia, currículo e travessia se confundem.
E ainda, nesse dicionário temos que “Esse substantivo neutro latino tem sua cor-
reta transcrição para o português na expressão “o currículo” – como ‘periculum,
o perigo’.” (CASTELLO; MÁRSICO, 2007, p. 85).

Currículo: um enfrentamento do mundo como periculum, como travessia perigo-


sa. Quer dizer, o mundo perde a imagem de estabilidade que permite antecipar
as conexões que nele produzimos. Com isso, é a própria imagem do currículo
como espelho de saberes derivados de um mundo desde sempre aí que se esvai.
O periculum coloca em xeque a tradição e suas modulações, sua imagem esta-
bilizada do mundo e da experiência, convocando uma travessia sem caminho
necessário que só pode ser feita flertando com a criação, com novos territórios.

Periculum: experimentar mundos ou entre currículos


Hora do brincar livre, uma turma de educação infantil na horta-estacionamento
da escola. O espaço, contíguo ao prédio das salas de aulas e dos pátios e espaços
122 cheios de cimento, faz a escola ocupar o quarteirão todinho. Tem espaço para
uma horta idealizada e cuidada por professores e alunos do ensino fundamental
‘FAZER MORADA’ NA INFÂNCIA: IMAGENS DE CURRÍCULOS EM DEVIR-CRIANÇA

e tem espaço para árvore e tem espaço para um estacionamento improvisado


para professores e funcionários da escola. Para meninas e meninos da educação
infantil, tem espaço para brincar de esconder entre os carros, subir na árvore,
comer amora que ainda não amadureceu, mexer em plantas de uma horta em
construção. Lá pelas tantas, um periculum: um menino encontra um caramujo.
Encantado, ele o toma nas mãos e sai correndo, exibindo o pequeno tesouro que
ele segurava pela concha. O molusco não dava as caras, estava “escondido”. Um
periculum passa de mão em mão: umas mais, outras menos, as crianças querem
saber o que era aquilo. E as perguntas vêm: é um caiacólis? Ele não vai sair?
Cadê a mamãe e o papai do caiacólis? Hora de voltar da horta para a sala, e o
menino leva o caramujo consigo. No caminho, exibe o pequeno tesouro a quem
encontra pela frente. E assim, uma adulta logo ralha: isso traz doença, menino!
Joga aqui, vamos, joga aqui! Periculum, o caramujo é arremessado ao lixo por
um menino choroso, carente do tesouro abandonado. Agora vai lavar essa mão!
E lava bem lavada, que é para não dar doença! A tia não viu isso não?
Os dias passam e o menino faz retornar o caramujo. Quer saber onde está o ca-
ramujo, quer levar o caramujo para casa. E também no dia seguinte, e também
no outro e também no outro... Diante de um caramujo que parece insistir em re-
tornar, um periculum deveio currículo: atividades para fazer desenhar caracóis,
para fazer escrever C de caracol, para fazer ouvir histórias de caracóis... E o me-
nino, sem caracol... Na semana seguinte, hora de voltar para a horta. No meio
de tanto currículo, outro caramujo, outra festa, outro tesouro: eis que o menino

CURRÍCULO E ESTÉTICA DA ARTE DE EDUCAR


encontra outro caramujo. Dessa vez, cauteloso, leva o novo tesouro para a sala
em silêncio, quase clandestinamente. Sem alarde, põe o caramujo na mochila.
Vou levar para casa! Caiacólis é do El! E apontava para si mesmo, sorriso de fes-
ta. Ele não tem papai e mamãe, o caiacólis é do El!

Um menino e seu tesouro, uma ameaça a uma tradição que se traduz em currí-
culo: curricularizado, um caramujo se afasta do periculum e da travessia singu-
lar de um coletivo de crianças que se encontram, se chocam inesperadamente
com um novo. Enquadrada, uma certa travessia é tomada como uma travessia
certa: C de caracol, desenho de caracol, história de caracol. Todo um fluxo de
123
desejo no encontro com um caramujo é represado e canalizado em um currícu-
lo, um corte no fluxo, um controle dos fluxos e dos cortes. E, ainda assim, uma
próxima visita a horta ainda faz vazar todo corte, todo controle. Um periculum
se repete e difere antes que se poder virar a esquina para voltar à sala de aula.

***
Entre as possíveis ideias que acenam
podemos pensar o currículo aliado a
ideia de experiências.
Esta possui um ex, que se apresenta como um prefixo – ex-terior. Esse ‘ex’ nos
liga a certa exterioridade, nos liga ao exterior. A experiência então, nesse sen-
tido, não é algo de um mundo pessoal, interior, de uma faculdade psicológica
alocada nos sujeitos, mas sim algo que flerta com uma exterioridade, com o
fora, com o mundo, pois além desse prefixo “ex” a ‘experiência’ carrega o ra-
dical ‘per’ – que, como radical etimológico “indo-europeu”, se liga a ideia de
travessia, percurso, caminho, viagem... A palavra experiência presume portanto
a saída de um lócus, de um lugar, a saída de ‘si’ até uma outra coisa, um passo,
um caminho até outra coisa.  Essa travessia, esse percurso, esse caminho se apre-
sentam como uma aventura e, portanto, tem algo de incertezas, supõem riscos!
É um perigo! Assim, se currículo alude a perspectiva de uma experiência, de um
percurso, ele nos coloca diante de incertezas, de caminhos e travessias a fazer.
Porém, sendo assim, o currículo não tem relação alguma com lugares de que
partimos, ou lugares que buscamos. Ele não é utópico, nem tampouco atópico,
não tem topos, não tem lugar – currículo é travessia ou, dito de outra forma,
“currículo é experiência”. Como aquele que atravessa uma paisagem, que cria e
124 faz um percurso o Currículo seria então nômade. Um currículo nômade investe
em travessias, não se fixa em territórios, não se restringe a um local físico nem
‘FAZER MORADA’ NA INFÂNCIA: IMAGENS DE CURRÍCULOS EM DEVIR-CRIANÇA

serve de referência para uma utopia: é aventura, sorte, destino e acaso.

Sendo assim, pensar um Currículo para a infância, para a Educação Infantil seria
então colocar em jogo uma prática: cartografar espaços nômades de/em tra-
vessias, mapear um percurso no qual, junto à criança, atento ao acontecimen-
to, possamos atravessar, aventurar. Traçar linhas! Linhas nômades! Linhas que
possam às vezes tortas, às vezes longas, outras vezes curtas, retas e sinuosas,
largas, grossas e finas, são linhas curvas e paralelas, perpendiculares, linhas que
transversam, que cortam e são cortadas. Interrompidas e pontilhadas, são linhas
fortes, forçam, definem, são intensas e diferentes. Seguir, acompanhar, caminhar
pelas linhas são modos de cartografar os espaços, os afetos.

Grosso modo podemos pensar que para Deleuze e Guattari somos constituídos,
produzidos por linhas. Somos singularmente, coletivamente e também como
massas (e)feitos de linhas. São muitas linhas, são muitas as suas formas. Na vida
se entrelaçam em um emaranhado imanente, intensivo em uma constelação de
vida. Existem as linhas duras – as dos próprios currículos, das leis, das políticas,
das produções acadêmicas, mas também as mais flexíveis, produzem sempre o
que pode ser chamado de um segmento, que diz algo, que sempre apontam para
certa mobilidade.

“Entrar na linha” pode significar muitas coisas: entrar na linha de uma empresa,
de um emprego, de uma religião, de uma doutrina, de uma abordagem, entrar
na linha de uma escola. São segmentaridades duras. Definem modos, formas,

CURRÍCULO E ESTÉTICA DA ARTE DE EDUCAR


modos de ser nos diferentes espaços, modos de ser homem, modos de ser mu-
lher. Essas linhas de segmentaridade duras parecem ser importantes, talvez até
necessárias nos processos de subjetivação, mas é possível estar em uma linha
e ao mesmo tempo traçar outra(s). As linearidades duras criam mecanismos re-
gulatórios de controle, os Currículos muitas vezes se apresentam como linhas
dessas segmentaridades duras. Nas escolas, pelo currículo definimos muitas coi-
sas, muitos lugares, muitos modos, nas escolas muitas vezes, pelo currículo,
anulamos as multiplicidades com as poucas saídas. Talvez, possamos produzir,
juntamente às crianças, ou ainda de modo mais radical guiados pelas mãos, pe-
125
los olhares, desejos, necessidades das crianças algumas linhas possam ser mais
flexíveis, possam ser linhas de fuga as linhas duras, possam ter múltiplas saídas,
possam ter algo de arte, de dança, de artes visuais, de corte e costura, da trama
e da urdidura, do ponto em cruz, do patchwork e as linhas que fazem parte do
desenrolar de nossas práticas no cotidiano. Se alguém te perguntar qual é a sua
linha, crie uma linha de fuga.
126
‘FAZER MORADA’ NA INFÂNCIA: IMAGENS DE CURRÍCULOS EM DEVIR-CRIANÇA

Linhas / Arquivo Grupo IMAGO/UNESP

Linhas de fuga, algo tal como um desalinhar, formas e modos de propor


novos arranjos para poder alinhar novamente, perder a linha, mas sem
perder o traço da linha, o trajeto das linhas, as marcas de singularidades,
os modos de alinhar, realinhar, escapar, produzir o novo. Traçar uma li-
nha de fuga é produzir algo real, no real. Traçando linhas e outras linhas,
depois e com outras linhas. Entrelaçamentos de linhas e encruzilhadas,
cruzamento de linhas.
para não manter um estado de coisa, é preciso movimentar o
indeterminado
Era uma vez um lugar distante, mas muito perto também.
Um lugar habitado por crianças, e também por adultos.
Um lugar cercado de céu, sol, ar, e parede, cimento, e teto também.
Lá onde crianças e adultos transitam, estacionam, se movem em ritmos, pausas e ligeirezas,
ora mais rápido, como a velocidade da luz, ora lentamente como uma lesmatartaruga,

CURRÍCULO E ESTÉTICA DA ARTE DE EDUCAR


ora descansando como o coelho da fábula que compete com sua amiga de casca dura.
Neste lugar, em um dia e tarde qualquer, como em outros dias, crianças sonecam.
Crianças suspensas dormem encostadas a um berço, a um chão, a um colchão armadas
no tempo.
Abre. Fecha. Olha entreolho. Se move. De um lado, do outro, para o outro. Escuta. Silêncio.
Uuuuuu ziiizziiiz bumbumbumbum nhanaaanhaaahanhaa. Sornam espalhadas entregues
às sombras. É hora! De que? Pra quem? Que voz que ressoa, entoa, ecoa…

127

É HORA? Para. Suspenda. Interrompa. Rouba. Corta o fluxo. Vozes ao longe


ressoam: O sono atrapalhou a alimentação de Tingo! Ouça de novo! O
sono atrapalhou a alimentação de Tingo! De novo, mais devagar. O sono
atrapalhou a alimentação de Tingo! Comichões!! Um corpo clama cama.
Quantos corpos bradam cama? Quantos corpos trovejam comida? Quantos
corpos clamam? O que os corpos gritam? A vontade está no corpo ou fora
do corpo? O currículo tem vontade de sujeito sem corpo, sem desejo, sem
sonho, sem afetos, sem nada! O aconteceria se não interrompermos o curso?
E se desejássemos um outro currículo tecido de matéria-fluxo impalpável?
“Trata-se sempre de liberar a vida lá onde ela é prisioneira, ou de tentar
fazê-lo num combate incerto.” (DELEUZE; GUATTARI, 2010, p. 202). Por
um currículo que não corta os fluxos, que não institua práticas, movimentos,
desejos, vontades que não sejam de infâncias.
‘FAZER MORADA’ NA INFÂNCIA: IMAGENS DE CURRÍCULOS EM DEVIR-CRIANÇA

128
Entre linhas e corpos temos/vemos imagens, povoamos e somos povoados por
signos. Imagem: do latim imago, semelhança, representação, retrato. Signo: do
latim signum, marca. Qual é a marca de uma semelhança, de uma representa-
ção, de um retrato? Como um currículo chega a operar pela marca da semelhan-
ça, da representação e do retrato? Era uma vez um lugar distante, mas muito
perto também. Neste lugar, como em outros dias, crianças sonecam. Pela força
da semelhança, uma rotina, pela força da representação, um sono, pela força do

CURRÍCULO E ESTÉTICA DA ARTE DE EDUCAR


retrato, crianças que dormem. Uma marca curricular: inserir na rotina de crian-
ças da educação infantil um momento dedicado ao descanso, ao sono. E o en-
treolho... para fora da imagem! E se se move... isso não é currículo! E se Uuuuuu
ziiizziiiz bumbumbumbum nhanaaanhaaahanhaa... é só um desvio! Restos de
uma semelhança, de uma representação, de um retrato querem fazer domar
uma vida que pulsa com a sonecagem. Fazer domar: adequar corpos a espaços
e tempos, conjurar para mais longe da rotina da hora de dormir o entreolho que
abre, o corpo que mexe sem sono, o balbucio – baixinho ou não!. Não parece
tão difícil de direito, não é? É só saber fazer obedecer, conjugar rotina e poder,
separar o pode do não pode, insistir em fazer de crianças uma imagem, uma 129
semelhança, um retrato... de um currículo. Repetir, repetir, até ficar tudo o Mes-
mo, até a criança Mesma aprenda o currículo Mesmo e controle o Mesmo não
só nela, mas também por aí, com a coleguinha Mesma, a professora Mesma, o
mundo Mesmo.

E a sonecagem... o que há nisso que acontece e que desvia esse suposto Mesmo
de direito no currículo? O que há, nisso que ainda pulsa com, sob e sobre as
rotinas de um currículo, insistindo num rasgo de pausas e ligeirezas, às vezes
velocidade da luz, às vezes lesmatartaruga? Toda imagem é signo, todo signo
é imagem. Na seara de um outro dueto, signo é aquilo no mundo que força a
pensar, que escapa completamente ao Mesmo de direito suposto sempre lá. Não
será signo essa força do que acontece, a aventura, o perigo, a experiência? Não
será aquilo que só é posto debaixo de um tapete interpretativo do Mesmo de
direito por uma força das mais reativas?

Entre linhas e corpos produzimos e criamos imagens, rasgamos e somos rasga-


dos por signos:
‘FAZER MORADA’ NA INFÂNCIA: IMAGENS DE CURRÍCULOS EM DEVIR-CRIANÇA

130

FISSURAS / Arquivo Grupo IMAGO/UNESP


O “fundo de um pátio da infância”, essa imagem despojada e ainda
assim úmida de sentimento
O que podem as imagens fotográficas produzidas por professores, auxiliares, estagiários,
gestores, familiares e crianças?

O que podem imagens dizer ao currículo tecido, fiel à trama, à urdidura e ao estriado?

E se fosse uma conversa entre o currículo (armado, ordenado, seriado, temporalizado) e as


imagens vertiginosas, embaçadas, viradas, focadas.

CURRÍCULO E ESTÉTICA DA ARTE DE EDUCAR


Que perguntas as imagens com seus véus transparentes e azulados fariam ao currículo?
Quais seus desejos?

Do que gostas?

De onde vem sua força?

Do que você ri?

Que perguntas o currículo em seu fraque escuro e engomado faria às imagens?

O que queres?

O que promove?
131
O que pretende?

Para que serve?

“E se tudo fosse uma questão de imagem? Se a infância, para a qual preparamos, organizamos
e desenvolvemos o currículo, que lhe corresponde, nada mais fosse do que tão-somente
imagem?

Se também esse currículo fosse apenas imagem?

E se o próprio pesquisador só pesquisasse a partir da imagem que faz da pesquisa?

Se, antes, inclusive, de o pesquisador pensar o currículo da infância e a infância do currículo


fosse necessário ter inventado essas imagens – dentre elas, a de pesquisa e a do próprio
pesquisador – para, só então, poder pensar?

Se esse movimento formador de imagens fosse a sua própria gênese, à qual lhe seguisse
o pensar?

“E se essas pesquisas, que extraem imagens e forjam modos de existência, tornassem o


pensamento que os pensa de novo possível, promovendo inéditas articulações entre arte,
conhecimento e vida?” (CORAZZA, 2013, p. 183)
Entre linhas, corpos, fissuras: a educação em devir
Pode, a educação, povoada por suas normas, leis, regras, por seus discursos,
conceitos, saberes, poderes devir? Pode a educação com suas imagens dogmá-
ticas ser outra? Pode a educação discutir seu(s) currículo(s) a partir de imagem,
das imagens, pensando que currículo e imagem guardam relações com signos?
E se tomarmos o signo como na semiótica mais clássica, como representação,
bem como a imagem também o é, pode a educação devir? E se a imagem,
com sua marca de imagem dogmática, que tudo representa, revela aliada a um
currículo pronto, acabado, fechado, nos apresentariam apenas um espelho do
pensamento que contém as representações para as coisas?

Mas, e se também, nos afastarmos destas proposições-perguntas e tomarmos


como experiências educativas as linhas que atravessam espaços, tempos, corpos,
ou mesmo os corpos que fissuram as linhas, os currículos e abrirmos fissuras,
outras linhas, criarmos novos corpos pelos currículos? Quais os perigos? Que
encontros podem povoar nossas experiências com o fora e como periculum?
132 Seria o periculum, uma aposta na travessia e no acontecimento?

O signo, de muitas dessas semióticas, ditas como clássicas, arrasta o currículo


‘FAZER MORADA’ NA INFÂNCIA: IMAGENS DE CURRÍCULOS EM DEVIR-CRIANÇA

para a seara de uma relação de poder que é, no mais das vezes, uma relação de
dominação e de modulação. Esse currículo expressa uma vontade de potência
negativa, um triunfo de forças reativas, pois ele se quer como manutenção e con-
servação e ele só pode conservar às custas de uma morte da variação.

Porém, quando o signo, se apresenta como algo violento, porque faz pensar, o
jogo se inverte completamente. A aposta é exatamente que o fora constitui o pe-
riculum a ser enfrentado e que ele não só não está garantido de antemão (já que
o “perigo” das relações mais representacionais, hegemônica, sempre nos ronda)
como também coloca em perigo toda uma tradição expressa, toda uma cultura
dada, o corpo não está contido no espaço, mas é o próprio espaço da diferença,
como no caso da cena apresentada no ‘fazer morada’; o caramujo como ele-
mento que põe em jogo todo um movimento de contenção da experiência e do
perigo em forma de representação, ainda que subsista como desejo pulsante em
um menino que acaba encontrando outro caramujo; ou ainda a sonecagem, que
desloca todo um tempo ritmado e previsto e atrapalha a alimentação do Tingo.

Podem esses signos, essas imagens, essas cenas se apresentarem como motores
de currículos nômades? A imagem aqui pouco ou nada representam, elas não
são mais imagens dogmáticas do pensamento. Pois, somente no exercício de
composição com as crianças que algo pode brotar, que algo pode efetivamente
ser criado. Essa é a experiência, esse é o periculum: o de um pensamento que
não se sedentariza e não supõe sua verdade, universalidade e unicidade como

CURRÍCULO E ESTÉTICA DA ARTE DE EDUCAR


valores. Um tal currículo seria a própria travessia, quase uma cartografia, não
no sentido metodológico, mas sim como aquilo que acontece. Esses currícu-
los expressam vontade de potência afirmativa, a conservação apenas como um
mínimo de possível para constituir o movimento perigoso, para produzir a ex-
periência do próprio nomadismo, para encontrar nesse nomadismo sua própria
necessidade.

Assim, a educação entra em devir, em devir-criança, pois nos tira das imagens
dogmáticas que ligam nossas práticas de poderes aos nossos modelos de infân-
cia. Nossas composições se conectam aos corpos, as linhas, as fissuras, pois os 133
deslocamentos, no corpo, nos afetos, deslocamento tão necessários e pulsantes
presentes na cena com Joaquim, ou ainda outros tempos que emergem no caso
da sonecagem e os saberes e poderes que atravessam o episódio do caramujo.

O elemento problemático que esses deslocamentos efetuam acabam por inse-


rir essa condição infantil no seio mesmo do acontecimento, um efeito in-fans,
uma suspensão das modulações, da linguagem e da racionalidade que se impõe
como imagem dogmática. Um devir-criança seria quase que como o limiar do
currículo, aquela região, aquele território que se projeta como fora, como pe-
rigo e como experiência dentro disso que está esquadrinhado e previsto. Daí
toda a aposta muda de figura: o fora, o perigo e a experiência não compõem um
além-mundo, algo fora do currículo. Eles compõem essa região fronteiriça mais
interna que todo o interior.

***
Um currículo em devir-criança o que pode produzir? Um invencio didática?
Indícios de uma “invencio didática” que para entrar em devir-criança é pre-
ciso saber:

a. Se rodá fica rodando o céu;

b. O modo que o macaco faz uma trilha de cimento para chegar ao


topo da árvore;

c. Que o quadrado da cara é mais líquido do que a água.

d. Como agarrar o sol pelo rabo;

e. Que um monte de pedrinhas carrega mais enormidade de


encantamento que uma pedreira;

f. Por que é que chegamos de ida quando nem partimos de volta;

g. Que o gato no braço da criança mia tão alto que estremece


mundos.
134
h. Entrar no trem para não chegar em lugar algum.
‘FAZER MORADA’ NA INFÂNCIA: IMAGENS DE CURRÍCULOS EM DEVIR-CRIANÇA

i. Qual é o lado do tempo que corre primeiro.

j. Que o dedim da formiga cabe nos olhos da câmera, mas não a


formiga.

k. Que as pedrinhas são pedacinhos da lua.

l. Que sob a pele do chão crianças enamoram-se em modo zoom.

m. Etc....

Desinventar objetos;
Repetir, repetir, até ficar diferente;
Partir sempre do descomeço;
Mudar a função das coisas
“Desaprender oito horas por dia”.
(BARROS, 2013, p. 299-300).
Referências
ARTAUD, Antonin. Escritos. Porto Alegre: Lp&m, 1983.
BARROS, Manoel de. Poesia Completa. São Paulo: Leya, 2010.
CASTELLO, Luis; MÁRSICO, Cláudia. Oculto nas palavras: dicionário
etimológico para ensinar e aprender. Belo Horizonte: Autêntica, 2007.

CURRÍCULO E ESTÉTICA DA ARTE DE EDUCAR


CORAZZA, Sandra Mara. O que se transcria em educação?. Porto Alegre-
RS: Doisa, 2013.
DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. Kafka: por uma literatura menor. Belo
Horizonte: Autêntica, 2015.
ESPINOZA, Baruch. Ética III. São Paulo: Abril Cultural, 1973.
LEITE, César Donizetti e OLIVEIRA, Luana Priscila de. Pesquisa-experiênica:
relatos, corpos, acontecimentos. Revista Digital do LAV, Santa Maria, v. 12,
n. 3, dez 2019.
SERRES, Michel. Variações sobre o corpo. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 135
2004.
TÍTULO

136
6.
CURRÍCULO E ESTÉTICA DA ARTE DE EDUCAR
SIGNOS
ARTÍSTICOS E
APRENDIZAGENS
INVOLUNTÁRIAS 137

Carlos Eduardo Ferraço


Marco Antonio Oliva Gomes
Carlos Eduardo Ferraço
Marco Antonio Oliva Gomes

A arte afugenta os medíocres


(Karin Aïnouz)

Entre vazios, burrices e esquecimentos


No livro “Proust e os signos”, Gilles Deleuze (2006) força-nos a pensar quando
infere que não há como desconsiderar que “o mundo” expressa forças sociais,
históricas e políticas e, nesse sentido, o que interessaria não seriam a individua-
138 lidade nem o detalhe, mas as leis e as generalidades; não o microscópio, mas
o telescópio.
SIGNOS ARTÍSTICOS E APRENDIZAGENS INVOLUNTÁRIAS

Nessa direção, seria possível conjecturar, com Deleuze (2006), que as leis que
presidem às mudanças no mundo são aquelas nas quais prevalece o vazio, con-
siderado por ele como o meio portador de generalidades que, aliadas à burrice
e ao esquecimento, produziriam seres estúpidos, pessoas tolas que, em seus
gestos, palavras e sentimentos, involuntariamente expressos, manifestariam leis
e generalizações que não percebem.

Ao se referir à análise que Proust realizou sobre o poder do esquecimento social,


Deleuze (2006) conclui que poucos fizeram um comentário melhor da frase de
Lênin sobre a capacidade que a sociedade demonstra de substituir “os velhos
preconceitos apodrecidos” por novos preconceitos, ainda mais infames e estúpi-
dos. De modo irônico, o autor (2006, p. 78) dispara: “Nada provoca tanto nossa
curiosidade como saber o que se passa na cabeça de um tolo. Num grupo, aque-
les que são como papagaios são também ‘aves proféticas’: sua tagarelice assinala
a presença de uma lei”.
Vazios, burrice, esquecimento: essa é a trindade do grupo mundano.
Mas com ela o mundanismo ganha velocidade na emissão dos signos,
perfeição no formalismo e generalidade no sentido: coisas essas que
formam um meio indispensável ao aprendizado. À medida que a
essência se encarna de modo cada vez mais fraco, os signos adquirem
uma importância cômica. Provocam-nos uma espécie de exaltação
nervosa cada vez mais exterior, excitam a inteligência para serem in-
terpretados (DELEUZE, 2006, p. 78). (g.n.).

Nada mais atual e oportuno para pensar sobre os tempos sombrios que estamos

CURRÍCULO E ESTÉTICA DA ARTE DE EDUCAR


vivendo do que essa passagem do livro de Deleuze (2006). A sensação experi-
mentada é que, a cada dia, somos tragados por acontecimentos de um tempo
de retrocessos, de esquecimentos, de vazios e de burrices, que afirmam precon-
ceitos ainda mais infames ou mais estúpidos do que os já vividos. Negacionis-
mo, xenofobia, racismo, homofobia, ódio, terraplanismo, infâmia e violência
são algumas das principais características dos tempos atuais, que têm produzido
diferentes mecanismos de diminuição e muitas vezes de anulação da potência
das vidas, sobretudo daqueles considerados diferentes.

Tais tempos convocam-nos, mais do que nunca, a usar a inteligência sobre as 139

burrices, os vazios e os esquecimentos que imperam, pois, conforme observa


Deleuze (2006), para ser interpretado, o mundanismo requer inteligência para –
quem sabe? – abrir caminhos para a finalidade do mundo que é a arte.

De fato, vivemos tempos em que prevalecem necropolíticas1 que dizimam vidas


daqueles considerados inferiores, mal afamados, espúrias sociais. Vidas como
as dos homens infames2 (FOUCAULT, 2015), cujas existências pouco ou nada
importam3 e precisam ser banidas do convívio social por meio de tecnologias
de destruição que, para Mbembe (2018, p. 59), se tornaram “mais táteis, mais
anatômicas e sensoriais”.

1 Termo usado por Achile Mbembe (2018) para se referir às formas contemporâneas que subjugam a vida ao poder da morte. Como
infere o autor (2018, p. 71): “[...] propus a noção de necropolítica e de necropoder para dar conta das várias maneiras pelas quais,
em nosso mundo contemporâneo, as armas de fogo são dispostas com o objetivo de provocar a destruição máxima de pessoas e
criar ‘mundos de morte’, formas únicas e novas de existência social, nas quais as vastas populações são submetidas a condições
de vida que lhes conferem o estatuto de ‘mortos-vivos’-”.

2 “Vidas que são como se não tivessem existido, vidas que só sobrevivem do choque com um poder que não quis senão aniquilá-las,
ou pelo menos apagá-las, vidas que só nos retornam pelo efeito de múltiplos acasos, eis aí as infâmias das quais eu quis, aqui,
juntar alguns restos” (FOUCAULT, 2015, p. 210).

3 Contrária a essa lógica, destaca-se o movimento ativista internacional Black Lives Matter (Vidas Negras Contam), com origem na
comunidade afro-americana, que faz campanha contra a violência direcionada às pessoas negras. Acesso em: https://pt.wikipedia.
org/wiki/Black_Lives_Matter
Disponível em: https://g1.globo.com/df/distrito-federal/noticia/2019/02/14/apos-repercussao-escola-com-gestao-mili-
tar-no-df-refaz-mural-com-rosto-de-mandela.ghtml

140

Na educação, a lógica do obscurantismo dos tempos atuais faz-se valer por meio
SIGNOS ARTÍSTICOS E APRENDIZAGENS INVOLUNTÁRIAS

de programas que defendem princípios antidemocráticos, privatistas, excluden-


tes e autoritários, como o Escola sem Partido4, que tem incentivado práticas de
perseguição, de ódio e de violência contra os educadores e os estudantes que
re-existem às inúmeras tentativas de extermínio da diferença e de negação do
Outro como legítimo Outro.

No entanto, apesar dos diferentes mecanismos de opressão que, a cada dia, se


tornam mais cruéis e mais sofisticados, abarcando diferentes domínios sociais, é
preciso destacar a existência de inúmeros movimentos capilares de resistência,
de re-existências que cotidianamente insurgem em meio à micropolíticas ativas
de conservação do vivo e de movimentos de produção do real social. Como
observa Rolnik (2016, p. 13):

4 “O Programa Escola sem Partido foi [...] criado em 2004, no Brasil, e divulgado em todo o país pelo advogado Miguel Nagib [...].
Quase 60 projetos de lei foram apresentados em todo o país sob a influência do movimento. Analisando essas propostas e os
documentos disponibilizados pela campanha, o Conselho Nacional de Direitos Humanos emitiu uma resolução em que repudiou
todas as iniciativas do Escola sem Partido”. Acesso em: https://pt.wikipedia.org/wiki/Escola_sem_Partido.
Evidentemente, nenhuma micropolítica existe em estado puro; esta-
mos sempre oscilando entre várias. O que faz diferença é nos dispor-
mos a combater as tendências reativas a nós mesmos, ou seja, em
nossas ações e relações. Este é um trabalho de uma vida: um trabalho
incessante e que está no âmago da ética de uma existência.

Movimentos insurgentes, como as lutas e os enfrentamentos protagonizados por


diferentes coletivos estudantis educacionais que, com o lema #ocupaescola,5
partem de uma ação localizada, conseguiram envolver milhares de estudantes

CURRÍCULO E ESTÉTICA DA ARTE DE EDUCAR


em todo o Brasil em defesa de princípios, tais como democratização, gratuidade,
laicidade, pluralidade, qualidade, inclusão e direito à diferença para a escola
pública brasileira.

Trata-se de coletivos estudantis educacionais assumidos desde a superação da


dicotomia indivíduo x sociedade, não se reduzindo a uma dada dimensão da
realidade que se opõe à individualidade, característica da modernidade, mas
como plano de coengendramento e de criação. Planos de consistência ou de
composição de hecceidades que insurgem por entre os planos das formas-subs-
tâncias mediante ações-relações coletivas comuns e dispensam protagonismos, 141

conforme atestam Escóssia e Kastrup (2005, p. 297):6

Conceber o conceito de coletivo para além das dicotomias historica-


mente constituídas é dar visibilidade a uma outra lógica – uma lógica
atenta ao engendramento, ao processo que antecede, integra e consti-
tui os seres. Lógica das relações ou ‘filosofia da relação’.

Partindo dos conceitos de prática, molaridade-molecularidade e rede, as auto-


ras (2005) também questionam o conceito de relação limitado aos seus termos
constituídos, indo em direção à ideia de plano relacional produtor dos termos.
Desse modo, do ponto de vista ontogenético, tal plano é anterior às próprias
interações e fusões operadas entre indivíduo e sociedade e topologicamente se
situa no entre, nos interstícios, no hífen indivíduo-sociedade, como ampliam
Escóssia e Kastrup (2005, p. 303):

5 “A mobilização estudantil no Brasil, em 2016, correspondeu a uma série de manifestações e ocupações de escolas secundárias
e universidades brasileiras que se intensificaram durante o segundo semestre de 2016 [...]. Os estudantes protestaram contra os
projetos de lei da ‘PEC do teto de gastos’ a PEC 241, projeto ‘Escola sem Partido’, PL 44 e da medida provisória do Novo Ensino
Médio”. Acesso em: https://pt.wikipedia.org/wiki/Mobiliza%C3%A7%C3%A3o_estudantil_no_Brasil_em_2016.

6 Disponível em: https://www.scielo.br/pdf/pe/v10n2/v10n2a17.pdf


Denominamos esse plano como ‘coletivo’, insistindo que ele não se
reduz ao social totalizado e que seu funcionamento não pode ser
apreendido através de dinâmicas das relações interindividuais ou gru-
pais, uma vez que essas acontecem entre seres já individuados.

Para as autoras (2005), o plano de coengendramento, coletivo ou de criação


constitui-se, ainda, como um plano de produção de subjetividades. Subjetivida-
de não como algo reduzido ao Eu, identificável no indivíduo, identitário, mas
como processos de subjetivação, sempre coletivos, uma vez que agenciam estra-
tos heterogêneos do ser, como escrevem as autoras (2005, p. 303):

Subjetividade não é sinônimo de indivíduo, sujeito ou pessoa, pois


inclui sistemas pré-individuais/pré-pessoais (perceptivos, de sensibili-
dade, etc.) e extrapessoais ou sociais (maquínicos, econômicos, tec-
nológicos, ecológicos, etc.) [...]. Podemos até falar em subjetividades
individuais e subjetividades coletivas. Individuais, porque ‘em certos
contextos sociais e semiológicos a subjetividade se individua’ [...]. Co-
letivas, porque ‘em outras condições a subjetividade se faz coletiva,
o que não significa que ela se torne por isso exclusivamente social’.

142
SIGNOS ARTÍSTICOS E APRENDIZAGENS INVOLUNTÁRIAS

Disponível em: https://www.google.com/search?q=grafites+e+educa%C3%A7%C3%A3o&sxsrf=ALeKk03W3TB-


2cihUo49sk8KfiosYxfPwrw:1596825667737&source=lnms&tbm=isch&sa=X&ved=2ahUKEwjFgMaV34nrAhWkD7k-
GHaj2BZYQ_AUoAXoECAwQAw&biw=1366&bih=638#imgrc=k6R4xQrmITfBsM
Com isso, quando nos referimos aos coletivos estudantis educacionais, estamos
falando não dos sujeitos que protagonizaram as ocupações, apesar da impor-
tância que eles tiveram, mas das multiplicidades que proliferaram e se expandi-
ram além desses sujeitos, encharcadas pela lógica dos afetos (GUATTARI, 1992),
como possibilidade de enfrentamento das atuais condições de degradação das
relações de solidariedade.7

Coletivo impessoal como plano de coengedramento e de criação que, como

CURRÍCULO E ESTÉTICA DA ARTE DE EDUCAR


visto durante os movimentos de ocupação, os jovens resistiram, re-existindo co-
letivamente, potencializando processos de produção de subjetividades ante o
vazio, a burrice e o esquecimento das políticas governamentais de educação em
vigor naquela época que continuam a produzir efeitos perversos e desastrosos
nas escolas públicas brasileiras.

Movimentos de re-existências, planos de coengedramento e de criação que são


produzidos em meio a diferentes signos mundanos, amorosos, sensíveis e artísti-
cos. Como conclui Deleuze (2006, p. 69): “Erramos quando acreditamos nos fa-
tos: só há signos. Erramos quando acreditamos na verdade: só há interpretações”. 143

Considerando, então, a teoria que Deleuze (2006) desenvolveu sobre os signos8


com base na obra de Proust9, este texto tem por objetivo central potencializar a
força dos signos artísticos como condição de re-existência ante os mecanismos
de diminuição de vidas, reverberando na produção de múltiplas aprendizagens,

7 “Abordamos uma época em que, esfumando-se os antagonismos da guerra fria, aparecem mais distintamente as ameaças princi-
pais que nossas sociedades produtivistas fazem pairar sobre a espécie humana, cuja sobrevivência nesse planeta está ameaçada,
não apenas pelas degradações ambientais mas também pela degenerescência do tecido das solidariedades sociais e dos modos
de vida psíquicos que convém literalmente reinventar. A refundação do político deverá passar pelas dimensões estéticas e analí-
ticas que estão implicadas nas três ecologias: do meio ambiente, do socius e da psique. [...] A única finalidade aceitável das ati-
vidades humanas é a promoção de uma subjetividade que enriqueça de modo contínuo sua relação com o mundo” (GUATTARI,
1992, p. 32-33).

8 Deleuze (2006) chama de signo “[...] qualquer relação com a realidade [...] seja referente a uma imagem, à natureza, à sanidade,
à doença, à subjetividade, a pensamentos, a sentimentos, à política, à sociedade, a uma folha que cai, um cheiro ou um sabor
[...] desde que permita a interpretação como uma ação de significar o signo, atribuir-lhe um sentido, isto é, seja capaz de disparar
sensações e pensamentos inusitados na natureza em questão. [...] Há uma complexidade nesse conceito [...] a ausência de uma
única definição totalizante do que seria o signo em tal filosofia. Com efeito, a noção de sino da filosofia de Deleuze é pluralista
(NEUSCHARANK; OLIVEIRA, 2017, p. 587)”.

9 Como observa Antunes (2019), a discussão que Deleuze (2006) faz sobre os signos por intermédio de Proust não será igual à que
encontramos em seus estudos sobre Nietszche, que também é diferente da ideia de signo criada com Félix Guattari nos anos 1970.
De acordo com o autor (2019, p. 6): “Entretanto, antes mesmo de ter uma primeira definição sistemática e detalhada, o que ocorre
na obra sobre Proust, há um processo de elaboração que se desdobra, paralelamente, em outros escritos publicados que antece-
dem o livro. Movimento que será observado nas resenhas produzidas pelo autor e, especialmente, em duas que podem fornecer
rastros sutis de um processo de gênese da noção de signo: ‘Ferdinand Alquié, philosophie du surréalisme (1956)’ e ‘Raymond
Roussel ou l’horreur du vide (1963)’-”. Disponível em: http://www.revistas.fflch.usp.br/manuscritica/article/view/3392
caracterizadas por nós como involuntárias, que insurgem em diferentes proces-
sos-movimentos educacionais.

Para tanto, ao mesmo tempo que pensamos com Deleuze (2006) a potência
dos signos artísticos na produção de possíveis para as vidas tomadas em suas
diferenças, também nos valemos de imagens de grafites produzidos por dife-
rentes sujeitos-coletivos em diferentes espaços-tempos educacionais, incluindo
as ocupações.

As referidas imagens não foram trazidas como exemplos ou aplicações das dis-
cussões teóricas, mas como rasgos, como atravessamentos, como cortes no de-
correr do texto, com a intenção de afirmar a arte-grafite como possibilidade de
produção de movimentos de re-existência e de criação de possíveis. Em compo-
sição com o texto, também foram trazidas imagens do movimento #ocupaesco-
la, nas quais a própria escrita foi assumida como imagem: imagem-texto-escri-
ta-fotografia.

144
TÍTULO

Disponível em: https://tribunademinas.com.br/noticias/cidade/29-11-2017/muro-pichado-com-frase-racista-ganha-aula-


-de-grafite.html
Sistemas de signos:
...mundanos e amorosos e sensíveis
e artísticos e mundanos e...
Em seu livro sobre Proust, Deleuze (2006) apresenta os signos de modo a formar
sistemas que recortam o mundo, mediante uma discussão do tempo que rompe
com a doxa, que supõe uma temporalidade linear e segmentar de um sujeito
sitiado no presente, capaz de rememorar coisas de um passado e prever algo

CURRÍCULO E ESTÉTICA DA ARTE DE EDUCAR


para o futuro.

De outro modo, o autor (2006) afasta-se da visão sequencial e retilínea do senso


comum para pensar o tempo em meio a multiplicidades com acelerações, di-
minuições, saltos e rupturas em lugar de passado-presente-futuro, emaranhado
de temporalidades.

Tempo turbilhão com suas variações e durações em lugar do Chrónos, do tempo


medido, implicando, assim, outras possibilidades para pensar a aprendizagem,
não mais reduzida à cognição, mas como invenção. Aprendizagens inventivas 145
como efeitos de diferentes encontros com os signos. Sordi (2009, p. 5)10, ao dis-
cutir a obra de Proust, dá-nos algumas pistas:

Na obra proustiana, os signos aparecem formando sistemas totalmente


recusados pelo logos, por meio do qual a Filosofia delimita um méto-
do prévio para resolver um problema: na Recherche, os signos recor-
tam o mundo sem formar relações entre continente e conteúdo, nem
relações entre as partes e o todo. [...] Se o caminho do aprendizado
passa pelos signos mundanos, amorosos, sensíveis, até chegarem aos
signos da arte, tais como detectados por Deleuze (2006), este sistema
não se dá de forma linear: há como que linhas de tempo privilegiadas,
que atravessam cada sistema de signos, num movimento ascenden-
te e descendente, em que cada sistema de signo participa de modo
desigual. Uma vez alcançado o universo mais espiritual – signos da
arte –, esse sistema arrasta consigo todos os outros, como um atrator
caótico, conferindo um sentido totalmente novo para os sistemas que
o precedem. O ponto de vista da arte constitui o aprendizado final.
Na Recherche, os signos da arte reagem e retroagem sobre os outros
sistemas e tempos – tempo que se perde (signos mundanos), tempo
perdido (signos amorosos), tempo que se redescobre (signos sensíveis)
– para conferir-lhes um caráter de verdade que, de outra forma, cada
sistema em si mesmo não conseguiria alcançar. (g.n.)

10 Disponível em: https://www.scielo.br/pdf/pe/v10n2/v10n2a17.pdf


Em sua caracterização do sistema de signos, Deleuze (2006) apresenta a obra
de Proust como “[...] a exploração dos diferentes mundos dos signos, que se
organizam em círculos e se cruzam em certos pontos. Os signos são específicos
e constituem a matéria desse ou daquele mundo” (p. 4). Assim, podemos ser, ao
mesmo tempo, muito hábeis em decifrar signos de uma especialidade e conti-
nuar completamente idiotas para os demais. Não há como saber nem prever.
Nas palavras de Deleuze (2006, p. 5):

A unidade de todos os mundos está em que eles formam sistemas de


signos emitidos por pessoas, objetos, matérias; não se descobre ne-
nhuma verdade, não se aprende nada, se não por decifração e inter-
pretação. Mas a pluralidade dos mundos consiste no fato de que estes
signos não são do mesmo tipo, não aparecem da mesma maneira,
não podem ser decifrados do mesmo modo, não mantêm com o seu
sentido uma relação idêntica. (g.n.).

Em linhas gerais, Deleuze (2006) apresenta quatro sistemas11 de signos, a saber:


mundanos, amorosos, sensíveis e artísticos. Em um primeiro círculo, teríamos os
146 signos mundanos. De acordo com o autor (2006, p. 5):
SIGNOS ARTÍSTICOS E APRENDIZAGENS INVOLUNTÁRIAS

Não existe meio que emita e concentre tantos signos em espaços tão
reduzidos e em tão grande velocidade. Em um mesmo momento eles
se diferenciam, não somente segundo as classes, mas segundo ‘famí-
lias espirituais’ ainda mais profundas. De um momento para outro
eles evoluem, imobilizam-se ou são substituídos por outros signos.

Disponível em: https://www.facebook.com/1658384031115747/photos/a.1658407081113442/1681832412104242/?-


type=1&theater

11 Deleuze (2006), na obra sobre Proust, usa diferentes palavras para se referir aos signos: sistema, círculo, tipo, mundo, espécie...
Nesse sentido, no decorrer do texto, usamos alternadamente cada uma delas.
Como escreve Deleuze (2006), os signos mundanos surgem de modo a substituir
uma ação ou até mesmo um pensamento. Ocupam o lugar dos nossos pensa-
mentos e, assim, não remetem a nada, a não ser ao próprio imediatismo. São
emitidos no vazio, por isso se propagam com velocidade. Estão desprovidos de
sentidos, porque são portadores de muitas generalidades. O autor (2006, p. 6)
ressalta: “Por essa razão a mundanidade, julgada do ponto de vista das ações
é decepcionante e cruel e, do ponto de vista do pensamento, estúpida. Não se

CURRÍCULO E ESTÉTICA DA ARTE DE EDUCAR


pensa, não se age, mas emitem-se signos”. Mais uma vez, recorremos a Deleuze
(2006, p. 6):

O signo mundano não remete a alguma coisa; ele a ‘substitui’, preten-


de valer por seu sentido. Antecipa ação e pensamento, anula pensa-
mento e ação, e se declara suficiente. Daí seu aspecto estereotipado e
sua vacuidade, embora não se possa concluir que esses signos sejam
desprezíveis. O aprendizado seria imperfeito e até mesmo impossível
se não passasse por eles. Eles são vazios, mas essa vacuidade lhes
confere uma perfeição ritual [...] Somente os signos mundanos são
capazes de provocar uma espécie de exaltação nervosa, exprimindo
sobre nós o efeito das pessoas que sabem produzi-los (g.n.).
147

Em outro momento, Deleuze (2006) remete-nos ao círculo do amor, entendendo


que estar apaixonado significa tornar alguém especial, individualizado em fun-
ção dos signos que esse alguém traz consigo ou é capaz de emitir. Amar seria,
então, tornar-se sensível a esses signos do outro, buscando apreendê-los. Para
Deleuze (2006, p. 7):

O amor nasce e se alimenta de interpretação silenciosa. O ser amado


aparece como um signo, uma ‘alma’: exprime um mundo possível,
desconhecido de nós. O amado implica, envolve, aprisiona um mun-
do, que é preciso decifrar, isto é, interpretar. Trata-se mesmo de uma
pluralidade de mundos; o pluralismo do amor não diz respeito apenas
à multiplicidade dos seres amados, mas também à multiplicidade das
almas ou dos mundos contidos em cada um deles. Amar é procurar
‘explicar’, ‘desenvolver’ esses mundos desconhecidos que permane-
cem envolvidos no amado.

Se, como infere o autor (2006), os signos mundanos se constituem como vazios
que têm por efeito substituir o pensamento e a ação, os amorosos, por sua vez,
são tidos como mentirosos, uma vez que não podem dirigir-se a nós, a não ser
escondendo e/ou camuflando o que exprimem. Assim, os signos amorosos não
invocariam uma exaltação nervosa, “[...] mas o sofrimento de um aprofunda-
mento. As mentiras do amado são hieróglifos do amor. O intérprete dos signos
amorosos é necessariamente um intérprete de mentiras. O seu destino está con-
tido no lema ‘Amar sem ser amado (p. 9)’-”.

Em algumas passagens, Deleuze (2006), com base em Proust, estabelece uma


dada relação entre os signos do amor e a amizade:12 “[...] Um amor medíocre
vale mais do que uma amizade: porque o amor é rico em signos e se nutre de
interpretação silenciosa (p. 29)”, enquanto os amigos são espíritos de boa vonta-
de que “[...] estão explicitamente de acordo sobre a significação das coisas, das
palavras e das ideias (p. 28)”.

Ou seja, se na amizade há a busca por uma significação comum, por um acordo,


que, de certo modo, nos deixa confortáveis, nas relações amorosas somos con-
vocados a decifrar os signos da pessoa amada, silenciosamente. Assim, conclui
148 Deleuze (2006, p. 20): “Ora, um ser medíocre ou mesmo estúpido, desde que o
amemos, é mais rico em signos do que o espírito mais profundo e inteligente”.
SIGNOS ARTÍSTICOS E APRENDIZAGENS INVOLUNTÁRIAS

Disponível em: https://www.campograndenews.com.br/lado-b/artes-23-08-2011-08/em-escola-estadual-fachada-a-


gora-exibe-mulheres-fortes-desenhadas-por-alunas?fbclid=IwAR3nW1uYTiYlqbFSFB_wOknSJQ85lWn4ZJVFrYX7_3k-
QJMU6RB63zDcjr6U

12 Para a ampliação da discussão sobre a amizade em Deleuze, ver: CARDOSO JÚNIOR, Hélio Rebello. A amizade como paisagem
conceitual e o amigo como personagem conceitual, segundo Deleuze e Guattari. Kriterion, Belo Horizonte, n. 115, p. 33-45,
jun./2007.
Outro mundo de signos apresentado por Deleuze (2006) refere-se às impressões
ou qualidades sensíveis, isto é, os signos sensíveis, que nos proporcionariam
“[...] uma estranha alegria, ao mesmo tempo em que nos transmite uma espécie
de imperativo” (p. 10), como poeticamente descreve o autor (2006, p. 10-11):

Uma vez experimentada, a qualidade não aparece mais como uma


propriedade do objeto que a possui no momento, mas como o signo
de um objeto ‘completamente diferente’, que devemos tentar decifrar

CURRÍCULO E ESTÉTICA DA ARTE DE EDUCAR


através de um esforço sempre sujeito a fracasso. Tudo se passa como
se a qualidade envolvesse, mantivesse aprisionada, a alma de um ob-
jeto diferente daquele que ela agora designa. Nós ‘desenvolvemos’
esta qualidade, esta impressão sensível, como um pedacinho de papel
japonês que se abre na água e libera a forma aprisionada.

Embasadas na obra de Deleuze (2006), Neuscharank e Oliveira (2017)13 asso-


ciam os signos sensíveis aos signos da natureza. São signos que exalam sensi-
bilidades, produzem alegria e brincam com o imprevisível. De acordo com as
autoras (2017, p. 58):
149
A estes signos se devem os encontros que nos surpreendem por sen-
sações, por memórias revisitadas, por vapores inexplicáveis. [...] No
entanto, seu efeito imediato é a necessidade de um trabalho no pen-
samento: procurar o sentido do signo, organizar novamente o pen-
samento para representar o que ele despertou. E por assim dizer, o
fracasso diante do retorno a organização, a materialização, pois não
há possibilidade de estabelecer uma imagem pelo que afetou corpo-
ralmente, por uma sensação corporal: no final o intérprete compreen-
de que ‘o sentido material não é nada sem uma essência ideal que ele
encarna’.

Ao tentar estabelecer relações entre os signos mundanos, amorosos e sensíveis,


Deleuze (2006) observa que, mesmo que consigam ser bem interpretadas, as
impressões e as qualidades sensíveis, por si sós, ainda são insuficientes para
nos libertar dos estados de limitação-representação-materialidade a que estamos
submetidos cotidianamente.

13 Disponível em: https://periodicos.ufsm.br/reveducacao/article/view/22579


Ou seja, com os signos sensíveis, ainda não conseguimos atingir a dimensão
de uma vida bonita, espiritual, como acontece com os signos artísticos. Mesmo
assim, as qualidades sensíveis e as impressões nos colocam nesse caminho, pois
produzem, mesmo com toda sua materialidade, efeitos de alegria14 e afirmação.
Nas palavras do autor (2006, p. 12):

[Os signos sensíveis] não são mais signos vazios, provocando-nos


uma exaltação artificial, como os signos mundanos. Também não são
signos enganadores que nos fazem sofrer como os do amor, cujo ver-
dadeiro sentido nos provoca um sofrimento cada vez maior. São sig-
nos verídicos, que imediatamente nos dão uma sensação de alegria
incomum, signos plenos, afirmativos e alegres. ‘São signos materiais’.

Completando, com base em Proust, sua discussão sobre os signos, Deleuze


(2006) traz o mundo da arte que, para o autor (2006), sendo imaterial, encontra
seu sentido em uma essência ideal15. Ao dizer que os outros signos convergem
para a arte, pois, no nível mais profundo, o essencial está nos signos artísticos,
Deleuze (2006, 37) problematiza:
150

Qual a superioridade dos signos da Arte com relação a todos os ou-


SIGNOS ARTÍSTICOS E APRENDIZAGENS INVOLUNTÁRIAS

tros? É que os outros são signos materiais. São materiais, em primeiro


lugar, por causa de sua emissão: eles surgem parcialmente encobertos
no objeto que porta. As qualidades sensíveis, os rostos amados, são
ainda matéria. [...] ‘Os signos da arte são os únicos imateriais’.

Segundo o autor (2006), só a arte possibilitaria uma verdadeira unidade entre um


signo imaterial e um sentido inteiramente espiritual, cuja essência seria exata-
mente a unidade entre signo e sentido, tal como é revelada em uma obra de arte.
O autor (2006, p. 39) salienta: “[...] Nisto consiste a superioridade da arte sobre

14 “Cada sofrimento é particular na medida em que é sentido, na medida em que é provocado por determinada criatura, em determi-
nado amor. Mas, porque esses sofrimentos se reproduzem e se entrelaçam, a inteligência extrai deles alguma coisa de geral, que
também é alegria. [...] O que repetimos é, cada vez, um sofrimento particular, mas a repetição é algo alegre, o fato da repetição
constitui uma alegria generalizada. Ou melhor, os fatos são sempre tristes e particulares, mas a ideia que deles extraímos é geral e
alegre” (DELEUZE, 2006, p. 69-70).

15 “O que é uma essência, tal como revelada na obra de arte? É uma diferença, a Diferença última e absoluta. É ela que constitui o
ser, que nos faz concebê-lo. [...] Mas, o que é uma diferença última e absoluta? Não é uma diferença empírica, sempre extrínseca,
entre duas coisas ou dois objetos. “[...] ela é alguma coisa em um sujeito, como a presença de uma qualidade última no âmago
de um sujeito: diferença interna, ‘diferença qualitativa’ decorrente da maneira pela qual encaramos o mundo, diferença que, sem
a arte, seria o eterno segredo de cada um de nós (DELEUZE, 2006, p. 39).
a vida: todos os signos que encontramos na vida ainda são signos materiais e seu
sentido, estando sempre em outra coisa, não é inteiramente espiritual”.

Só pela arte podemos sair de nós mesmos, saber o que vê outrem de


seu universo que não é o nosso, cujas paisagens nos seriam tão estra-
nhas como as que porventura existem na Lua. Graças à arte, em vez
de contemplar um só mundo, o nosso, vemo-lo multiplicar-se, e dispo-
mos de tantos mundos quantos artistas originais existem, mais diversos
entre si do que os que rolam no infinito (DELEUZE, 2006, p. 40).

CURRÍCULO E ESTÉTICA DA ARTE DE EDUCAR


151

Disponível em: http://pioneiro.clicrbs.com.br/rs/geral/noticia/2017/11/alunos-de-escola-de-caxias-do-sul-usam-o-grafi-


te-para-recuperar-muro-pichado-10035232.html
Ao pensar os signos artísticos como superiores aos signos da vida e, ainda, como
os únicos capazes de fazer coincidir signo imaterial e sentido espiritual, Deleuze
(2006, p. 44) questiona: “Como a essência se encarna na obra de arte? Ou, o que
vem a dar no mesmo, como o sujeito-artista consegue ‘comunicar’ a essência
que o individualiza e o torna eterno?”.

Ao responder a essas questões, o autor (2006) destaca a potência do estilo de um


artista em transformar elementos da materialidade da vida (a cor para o pintor,
o som para um músico, a palavra para um poeta...) em coisas inteiramente espi-
rituais, fazendo coincidir estilo e essência. Deleuze (2006, p. 45) assim pensa:

O verdadeiro tema de uma obra de arte não é o assunto tratado, sujei-


to consciente e voluntário que se confunde com aquilo que as pala-
vras designam, mas os temas inconscientes, os arquétipos involuntá-
rios, dos quais as palavras, como as cores e os sons tiram o seu sentido
e a sua vida. A arte é uma verdadeira transmutação da matéria. Nela
a matéria se espiritualiza, os meios físicos se desmaterializam, para
refratar a essência, isto é, a qualidade de um mundo original. Esse
tratamento da matéria é o ‘estilo’.
152
Ao fazer coincidir essência e estilo, uma vez que, em princípio, a essência seria
SIGNOS ARTÍSTICOS E APRENDIZAGENS INVOLUNTÁRIAS

sempre um nascimento do mundo e o estilo esse nascimento continuado, re-


descoberto e refratado, o autor (2006) infere que a essência seria, em si mesma,
diferença, diferença pura e, com isso, não teria o poder de se diversificar sem a
possibilidade de, ao mesmo tempo, se repetir, conforme afirma, de modo insti-
gante, Deleuze (2006, p. 46-47):

Por essa razão uma grande música deve ser tocada muitas vezes, um
poema, aprendido de cor e recitado. A diferença e a repetição só se
opõem aparentemente e não existe um grande artista cuja obra não
nos faça dizer: ‘A mesma e no entanto outra’.
A diferença, como qualidade do mundo, só se afirma através de uma
espécie de auto-repetição que percorre os mais variados meios e reú-
ne objetos diversos; a repetição constitui os graus de uma diferença
original, como, por sua vez, a diversidade constitui os níveis de uma
repetição não menos fundamental.
Como propõe Deleuze (2006), diferença e repetição não se opõem, mas são
duas potências, duas dimensões inseparáveis e correlatas da essência. Assim, te-
ríamos que um artista não envelheceria por se repetir, uma vez que a repetição é
a grande força da diferença e vice-versa. De fato, como conclui o autor (2006), o
artista envelhece quando, “[...] pelo desgaste de seu cérebro, julga mais simples
encontrar na vida, como pronto e acabado, aquilo que ele só poderia exprimir
em sua obra, aquilo que deveria distinguir e repetir através de sua obra” (p. 47).

CURRÍCULO E ESTÉTICA DA ARTE DE EDUCAR


Ainda pensando com Deleuze (2006) sobre a potência dos signos artísticos em
meio aos tempos de embrutecimento dos afetos, estupidez, ofensas, infâmias, ca-
lúnias e extermínio de vidas, somos forçados a questionar: Que significaria, neste
momento por que passamos, fazer de nossa vida obras de arte? Que efeitos-re-
verberações os signos artísticos potencializariam no sentido de ajudar-nos a re-
-existir ante a barbárie e os individualismos que caracterizam o real social atual?

Se apostamos na ideia de multiplicidade em composição com a coexistência


de linhas molares, moleculares e de fuga,16 então é possível acreditar que nem
tudo está dominado. É possível promover-fortalecer movimentos, como os que 153
aconteceram com os coletivos estudantis no #ocupaescola, de modo a favorecer
encontros, cada vez mais frequentes, com os signos da arte. Não se trata de se
tornar artista, mas de fazer valer a força desses signos na produção de um mundo
de possíveis, cada vez mais plural, onde a diferença se constitua como o destino
a que todos nós estamos sujeitos.

16 “Indivíduos ou grupos, somos feitos de linhas, e essas linhas são de muito diversa natureza. O primeiro tipo de linhas que nos cons-
titui é segmentário, de segmentaridade dura (na realidade há muitas linhas desse tipo); a família – a profissão; o trabalho – as férias;
a família – e depois a escola. [...] Numa palavra, todos os tipos de segmentos bem determinados, em todas as espécies e direções,
que nos fragmentam em todos os sentidos, pacotes de linhas segmentadas. E ao mesmo tempo temos linhas de segmentaridade
mais flexíveis, de algum modo moleculares. Não que sejam mais intimas ou pessoais, pois atravessam as sociedades. [...] Traçam
pequenas modificações, fazem desvios, esboçam quedas ou impulsos. [...] Passa-se muita coisa neste tipo de linhas, de devires,
de micro-devires, que não têm o mesmo ritmo que a nossa história. [...] Ao mesmo tempo ainda, há como que um terceiro tipo de
linha, este ainda mais estranho; como se algo nos levasse, através de nossos segmentos, mas também através de nossos limiares,
para um destino desconhecido, não previsível, não preexistente. Esta linha é simples, abstracta, e contudo a mais complicada de
todas, a mais sinuosa: é a linha de gravidade ou de celeridade, é a linha de fuga e de maior declive” (DELEUZE; PARNET, 2004,
p. 152).
Disponível em: https://novaescola.org.br/conteudo/3283/grafite-tracos-da-cidadania

154

Aprendizagens involuntárias
SIGNOS ARTÍSTICOS E APRENDIZAGENS INVOLUNTÁRIAS

Apesar de entender que cada sistema de signos possui especificidades próprias


[talvez, por isso, em alguns momentos, Deleuze (2006) afirme que eles se or-
ganizam em círculos], é preciso pensar que eles se cruzam, se interseccionam,
possuem interligações mostrando que, mesmo com dimensões temporais privi-
legiadas, “[...] cada um também se cruza com as outras linhas e participa das
outras dimensões do tempo” (p. 23). Assim, ao se interceptarem, temporalmente,
tendo “[...] a arte como finalidade do mundo, como o destino inconsciente do
aprendiz” (p. 48), Deleuze (2006, p. 48) questiona:

Que valor têm os outros signos, os que constituem os domínios da


vida? Por si mesmos o que nos ensinam? Podemos dizer que eles nos
põem no caminho da arte? De que maneira? Mas, sobretudo, uma
vez que tenhamos a revelação final da arte, como essa revelação vai
reagir sobre os outros campos e tornar-se o centro de um sistema que
nada deixa de fora de seu âmbito?
As questões postas pelo autor (2006) são fundamentais para pensarmos que, em
primeiro lugar, o que nos soa óbvio, que não é possível fazer da vida uma obra
de arte, não é possível “chegar” aos signos artísticos sem passar, sem “com-viver”,
sem interagir com os demais signos, isto é, os signos artísticos só se fazem poten-
tes em nossa vida à medida que atuam sobre os outros signos do domínio da vida.

Em segundo lugar, é urgente afirmar que, em nossas vivências cotidianas com os


signos mundanos, precisamos usar nossa inteligência ante o tsunami de atroci-

CURRÍCULO E ESTÉTICA DA ARTE DE EDUCAR


dades, esquecimentos, burrices e vazios que têm caracterizado os tempos atuais,
antes mesmo de cogitar a possibilidade de uma vida como obra de arte. De acor-
do com o autor (2006, p. 49):

Os signos mundanos e os signos amorosos, para serem interpretados,


precisam da inteligência. É a inteligência que os decifra: com a con-
dição de ‘vir depois’,17 de ser, de certa forma, obrigada a pôr-se em
movimento, sob a exaltação nervosa que nos provoca a mundanida-
de, ou, ainda mais, sob a dor que o amor nos instila.

Entretanto, decifrar os signos que constituem os domínios da vida e nos colocam 155

no caminho da arte não é algo que ocorre de maneira premeditada, natural,


intencional. É preciso sempre um encontro-acontecimento, um acaso, uma con-
tingência que nos force a pensar, trace uma linha de fuga e nos jogue para fora
dos sistemas constituídos por esses signos. Partindo do pressuposto de que o que
nos força a pensar é o signo, o autor (2006, p. 93) atesta: “[...] é precisamente a
contingência do encontro que garante a necessidade daquilo que ele [o signo]
faz pensar”.

Nessa direção, ao tomar para si a proposta de Proust de opor as ideias de coação


e de acaso à ideia de método, Deleuze (2006) sugere que o acaso dos encon-
tros e a pressão das coações seriam os dois temas fundamentais do escritor. A
verdade, então, vai depender de um encontro que violente nosso pensamento,
forçando-o a buscar o que é verdadeiro. Conforme os escritos de Deleuze (2006,
p. 25-26):

17 Aqui, de acordo com Deleuze (2006, p. 92), é preciso lembrar: “Tanto na ciência quanto na filosofia, a inteligência vem antes; mas
a especificidade dos signos é que eles recorrem à inteligência como algo que vem depois, que deve vir depois”.
Ser sensível aos signos, considerar o mundo como coisa a ser decifrada
é, sem dúvida, um dom. Mas esse dom correria o risco de permanecer
oculto em nós mesmos se não tivéssemos os encontros necessários;
e esses encontros ficariam sem efeito se não conseguíssemos vencer
certas crenças. [...] Passamos ao largo dos mais belos encontros, nos
esquivando dos imperativos que deles emanam: ao aprofundamento
dos encontros, preferimos a facilidade das recognições.

Assim, pensar não se limitaria à representação, à recognição, ao reconhecimen-


to ou a algo que se caracteriza como voluntário, apesar de o autor (2006) não
negligenciar essas possibilidades. De fato, para ele (2006), pensar se situaria na
dimensão da criação, entendida como gênese do próprio ato de pensar, sempre
surgindo do encontro com os signos, conforme propõe Deleuze (2006, p. 93):

Em lugar do pensamento voluntário, tudo que força a pensar, tudo


que é forçado a pensar, todo pensamento involuntário que só pode
pensar a essência. Só a sensibilidade apreende o signo como tal: só
a inteligência, a memória ou a imaginação explicam o sentido, cada
qual segundo uma determinada espécie de signo; só o pensamento
puro descobre a essência, é forçado a pensar a essência como a razão
156 suficiente do signo e de seu sentido.
SIGNOS ARTÍSTICOS E APRENDIZAGENS INVOLUNTÁRIAS

Assim, se acordamos sob a força da inteligência contra a estupidez, a


mentira, a frivolidade e o vazio que vigoram nos signos dos domínios da vida,
não é possível negligenciar a potência do imprevisível-acaso-acontecimento
movendo-nos em direção aos signos artísticos. Diante disso, Deleuze (2006, p.
48) alerta: “A arte é a finalidade do mundo, o destino inconsciente do aprendiz”.
O autor ainda (2006, p. 52) ressalta:

Só a arte realiza plenamente o que a vida apenas esboçou. As remi-


niscências, na memória involuntária, são ainda vida: arte no nível da
vida, consequentemente metáforas ruins. Ao contrário, a arte em sua
essência, a arte superior à vida, não se baseia na memória involun-
tária, nem mesmo na imaginação e nas figuras do inconsciente. Os
signos da arte se explicam pelo pensamento puro como faculdade das
essências.
CURRÍCULO E ESTÉTICA DA ARTE DE EDUCAR
157

Disponível em: https://www.cartacapital.com.br/opiniao/aposta-nos-colegios-militares-e-um-projeto-de-conservado-


rismo-moral/

Nessa direção, perguntamos: Como pensar, então, as aprendizagens em meio


aos diferentes signos com os quais “inter-agimos” cotidianamente? Que carac-
terísticas, pistas, sentidos, movimentos, processos poderiam ser esboçados, de
modo a violentar nosso pensamento em direção a uma18 aprendizagem não res-
trita aos territórios da recognição-representação, mas entendida como um efeito
de nossos encontros com os signos? Por que Deleuze (2006) afirma que a arte é
o destino inconsciente do aprendiz?

18 “O artigo de indefinido que antecede a palavra aprendizagem não marca ausência de determinação, mas a singularidade de um
encontro que não é particular nem universal. Está em jogo a intensidade de uma aprendizagem que não se produz na generalidade
e totalidade, mas numa singularidade no mais elevado grau, uma potência intensiva, uma força viva” (NEUSCHARANK; OLIVEI-
RA, 2017, p. 585).
Durante o texto, fizemos alguns grifos19 tentando deslocar sentidos em termos
das aprendizagens que acontecem em meio aos sistemas de signos, como aque-
les trazidos por Deleuze (2006). Trata-se de um exercício de problematização
em relação aos sentidos afetos às aprendizagens que acontecem entre os signos
mundanos, isto é, em seus planos de imanência e de intensificação da vida,
como defende Deleuze (2001, p. 98):

Não temos a menor razão para pensar que os modos de existência


tenham necessidade de valores transcendentes que os comparariam,
os selecionariam e decidiriam que um é ‘melhor’ que o outro. Ao con-
trário, não há critérios senão imanentes, e uma possibilidade de vida
se avalia nela mesma, pelos movimentos que ela traça e pelas inten-
sidades que ela cria, sobre um plano de imanência; é rejeitado o que
não traça nem cria. Um modo de existência é bom ou mau, nobre ou
vulgar, cheio ou vazio, independente Bem e do Mal, e de todo valor
transcendente: não há nunca outro critério senão o teor da existência,
a intensificação da vida (g.n.).

Assim, considerando a força dos planos de imanência e os teores das existên-


158 cias na produção de sentidos nas diferentes vidas, importa, então, não mais
pensar em um conceito transcendental de aprendizagem, “a aprendizagem”,
SIGNOS ARTÍSTICOS E APRENDIZAGENS INVOLUNTÁRIAS

como acontece nas teorias tradicionais da recognição, mas pensar em “aprendi-


zagens”, tantas quantas forem nossas experiências com os diferentes sistemas de
signos em suas múltiplas temporalidades.

De fato, se esses sistemas constituem multiplicidades temporais e se diferenciam


constantemente, então não seria possível considerar que a aprendizagem teria
uma única dimensão, mas se diferenciaria tantas vezes quantos forem nossos
encontros com os signos; afinal, como citado, podemos ser hábeis em decifrar
determinados signos e continuar completamente idiotas para os demais.

19 Estamos referindo-nos especificamente aos grifos que fizemos em algumas citações.


CURRÍCULO E ESTÉTICA DA ARTE DE EDUCAR
Disponível em: https://www.facebook.com/JornalAPatria/photos/a.391032447673106/787973287979018/?-
type=3&theater

Ou seja, não há como saber-prever que signos produzirão, ou não, aprendiza-


gens em nós. No entanto, de qualquer modo, sempre será necessário sentir o
efeito violento de um signo que excite, force, ameace, violente nosso pensamen-
to a decifrar-interpretar, a procurar os seus sentidos, conforme infere Deleuze 159
(2006, p. 4):

Aprender diz respeito essencialmente aos ‘signos’. Os signos são ob-


jeto de um aprendizado temporal, não de um saber abstrato. Aprender
é, de início, considerar uma matéria, um objeto, um ser, como se
emitissem signos a serem decifrados, interpretados. Não existe apren-
diz que não seja ‘egiptólogo’ de alguma coisa. Alguém só se torna
marceneiro tornando-se sensível aos signos da madeira, e médico tor-
nando-se sensível aos signos da doença. A vocação é sempre uma
predestinação com relação aos signos. Tudo que nos ensina alguma
coisa, emite signos, todo ato de aprender é uma interpretação de sig-
nos ou de hieróglifos.

Se, de fato, como defende Deleuze (2006), o “caminho” do aprendizado passa


inexoravelmente pelos diferentes encontros-acasos com os signos mundanos,
amorosos, sensíveis até chegarem aos signos da arte, então é forçoso pensar
que esse caminho jamais será linear, sequenciado, hierarquizado, gradativo e
cumulativo, mas acontecerá ao sabor das experiências, dos acasos, das tempo-
ralidades, do involuntário.
Aprendizagens involuntárias sujeitas ao fracasso, por isso mesmo potentes para
a produção de possíveis para o mundo. Aprendizagens involuntárias quando,
então, a experimentação ocupa o lugar da interpretação-significação-represen-
tação e o devir é precipitado pelo insignificante. De acordo com Deleuze (2008,
p. 89): “Você não se desvia da maioria sem um pequeno detalhe que vai se pôr
a estufar, e que lhe arrasta”.

Carvalho (2008)20, com base em Deleuze (2006), diz que a imagem que se tor-
nou clássica para o pensamento traz uma tirania implícita pela pretensão de ser
a única possível. De modo a questionar essa tirania, a autora traz, ainda com
Deleuze (2006), a ideia de involuntário, quando o autor advoga que a nova ima-
gem do pensamento se constitui como uma aventura do involuntário, uma força
de atuação no pensamento que o força a pensar e ultrapassa as faculdades. Nas
palavras da autora (2008, p. 4):

O pensamento involuntário é diferente da inteligência, que é volun-


tária. O pensamento não é um componente da nossa estrutura psico-
lógica, porque esta estrutura, que seriam as faculdades, funcionaria
160 segundo a nossa própria vontade, seriam volitivas. A nossa percepção
e a nossa inteligência, por exemplo, buscam as organizações lógicas,
SIGNOS ARTÍSTICOS E APRENDIZAGENS INVOLUNTÁRIAS

as verdades lógicas, as formas abstratas, as significações dominantes,


sempre a serviço do nosso interesse e da nossa utilidade. Nitidamente
há em Proust uma distinção entre inteligência e pensamento, pois o
pensamento não pertence a nossa estrutura psicológica, é involuntá-
rio, e seria através do pensamento que poderíamos fazer arte, novos
mundos e não a mera reprodução, a mera representação que a inteli-
gência dotada de uma lógica abstrata busca, pois esta se organiza em
um campo social, buscando a compreensão das significações dadas,
o reconhecimento, a recognição Na hora que o pensamento emerge,
as faculdades voluntárias rompem com o reconhecimento, tornam-se
involuntárias, são forçadas a pensar o novo, e aí emerge o pensamen-
to como faculdade das essências (g.n.).

Assim, como defendemos, a aprendizagem não seria da ordem da inteligência-


-representação-recognição, apesar de não desconsiderarmos sua importância,
mas estaria implicada no próprio ato de pensar que, como dito, acontece em

20 Disponível
em: https://www.google.com/search?q=Imagens+de+pensamento+em+gilles+deleuze+Margareth+carvalho&sour-
ce=lmns&bih=589&biw=1366&hl=pt-BR&sa=X&ved=2ahUKEwjSmbeJ-JPrAhUAM7kGHeP5AV4Q_AUoAHoECAEQAA
meio aos fluxos de composições dos signos mundanos, amorosos e sensíveis e
nos levam, com uma dose de sorte-acaso, em direção aos signos artísticos.

Diferentemente da visão clássica de inteligência, que reduz a aprendizagem à bus-


ca da verdade, as aprendizagens involuntárias acontecem nas fissuras abertas pelo
acaso-caos. São vórtices que arrastam os signos tentando decifrá-los sem a preten-
são de obter o verdadeiro. Outra vez, recorremos a Carvalho (2008, p. 9-10), quan-
do defende que, para as imagens como vórtices abertos ao caos, o pensamento

CURRÍCULO E ESTÉTICA DA ARTE DE EDUCAR


[...] não ama a verdade nem quer a verdade, porque nós estamos no
ápice do involuntário. O involuntário é a aventura de um pensamento
não mais submetido à vontade de verdade. [...] No exercício involun-
tário, todas as faculdades atingem seu próprio limite [...] O objeto da
imaginação é o imaginado, o objeto da percepção é o perceptível, o
objeto da memória é o memorial. Quando essas faculdades estão no
exercício transcendente, involuntário, fora dos seus limites, ao invés
de uma percepção indiferente, a percepção apreenderá o impercep-
tível, a memória apreenderá o imemorial, o pensamento apreenderá
o impensável.

161
Ao considerarmos o que nos força a pensar e, ainda, a condição de indetermi-
nação e permanente abertura ao acaso das aprendizagens involuntárias, enten-
demos que, assim como acontece com o ato de pensar, as aprendizagens volun-
tárias não necessitam de um método prévio, nem de uma boa vontade, como
infere Deleuze (2006), para acontecer, mas da força de um signo que violente
nosso pensamento. Nas palavras do autor (2006, p. 98): “[...] Em lugar do pensa-
mento voluntário, tudo o que força a pensar, tudo que é forçado a pensar, todo
o pensamento involuntário, que só pode pensar a essência”.

Disponível em: https://www.facebook.com/ocupaciri/photos/a.332828356841121/333262156797741/?type=3&theater


Por uma vida como obra de arte ou...
É preciso estar na hora do mundo!
Finalizamos este texto trazendo Foucault (1995), por sua aposta na busca pelo
que ele (1994) chama de uma arte de viver. Assim, ao ponderar que sempre esta-
mos passando por mudanças em nossa vida, que criam outras-novas relações en-
tre vida e arte, o autor (1995) alude à condição de inventar a vida a cada instante
e simultaneamente assumi-la como obra de arte. Ao estabelecer relações entre
a arte e os valores com os quais vivemos, Foucault (1995, p. 261) problematiza:

O que me surpreende, em nossa sociedade, é que a arte se relacione


apenas com objetos e não com indivíduos ou a vida; e que também
seja um domínio especializado, um domínio de peritos, que são os
artistas. Mas a vida de todo indivíduo não poderia ser uma obra de
arte? Por que uma mesa ou uma casa são objetos de arte, mas nossas
vidas não?

Com essas questões, Foucault (1995) alerta-nos sobre o que cada um de nós está
162 fazendo da própria existência. Em que estamos nos transformando? Para o filóso-
fo (1995), estamos tornando-nos alguma coisa que não sabemos ao certo o que
SIGNOS ARTÍSTICOS E APRENDIZAGENS INVOLUNTÁRIAS

é e, nesse sentido, precisaríamos forçar-nos a buscar uma nova estilística da exis-


tência, compondo “[...] a forma de relação que se tem consigo mesmo à ativida-
de criativa” (p. 262). Nessa composição, Zanetti (2017, p. 1452)21 contextualiza:

Assim, não se trataria de sublinhar a relação de um homem consigo


mesmo, mas de implicar a forma de relação que se tem consigo mes-
mo a uma atividade criativa, como uma prática em que é possível
criar uma forma singular de vida, a qual, ao ser experimentada, pode-
rá ser aceita, ou não, no campo social. [...]
A vida bela não precisaria ser uma lida de confronto direto com a
sociedade, com a moral ou com a ética; todavia tratar-se-ia de um do-
mínio estratégico em que o indivíduo criaria continuamente um modo
de vida e de constituição de uma forma sujeito nos atos diários. [...]
Nessa direção, em uma estética da existência, a qual pressupõe a re-
lação do sujeito com a vida como algo da ordem da criação e na qual
se negaria justamente a noção de autocentramento, a autenticidade

21 Disponível em: https://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S2175-62362017000401439&lng=pt&nrm=iso#B9


poderia emergir do resultado da relação que o sujeito estabelece com
a existência, em seus atos diários. Sendo assim, a autenticidade de
uma obra ou de uma vida viria das relações que o sujeito estabelece
com a existência e com o viver e não de uma suposta autenticidade
do sujeito.

De fato, para uma nova existência em que a ascese se institui como força para
que cada um de nós constitua a própria ética, tendo a estética da existência
de uma vida bonita como referência, não interessariam as ações pautadas pelo

CURRÍCULO E ESTÉTICA DA ARTE DE EDUCAR


narcisismo, pelas práticas individualistas e egocêntricas, mas aquilo que o autor
(1995) entende por uma autenticidade das ações que, na dimensão política que
assumimos, tentariam escapar das inúmeras e recorrentes estratégias de sobre-
codificação que atuam como indústrias de sentidos serializados que, nos dias
atuais, se converteram em necropololíticas.

Trata-se, então, de uma autenticidade em direção à produção de uma vida bo-


nita em nossas ações cotidianas, movidos pela criação de outros-novos modos
estéticos-éticos-políticos de vida, como temos encontrado nos escritos de Gilles
Deleuze. São escritos que nos mobilizam a produzir movimentos em favor de 163

em uma vida potente e proativa, e não apenas contemplativa. Nas palavras de


Pougy (2006)22:

A filosofia deleuziana não é uma saída para os problemas atuais. Ela


é, antes de tudo, uma injeção de entusiasmo e de alegria num mo-
mento em que o desânimo e o pessimismo tomam conta de todas
as críticas. Ela nos leva a um tipo de otimismo que não consiste em
pensar de forma positiva, racionalista, sempre buscando algo melhor
a ser alcançado, como uma forma constante de auto-engano. De uma
forma mais realista e pragmática, a filosofia deleuziana reconhece
que tudo repousa sobre uma base frágil, fugidia, contingente, e, as-
sim, tudo pode mudar, tudo pode ser possível, se distanciando, dessa
forma, de todo e qualquer tipo de niilismo.

Assim, movidos pelos pensamentos de Michel Foucault e de Gilles Deleuze,


faz-se urgente, em nossa vida, um exercício ético-estético-político, de modo
a potencializar ações autênticas em favor de uma vida bonita (FOUCAULT,

22 Disponível em: https://pt.scribd.com/document/227218158/O-Discurso-o-Saber-o-Poder-e-a-Linguagem-Na-Optica-Da-Filosofia-


-Da-Diferenca
1995) cujos efeitos nos estimulem a voltar a acreditar no mundo, pois, como
conclui Deleuze (2000), isso é o que mais nos falta. Nas palavras do filósofo
(2000, p. 218):

Acreditar no mundo é o que mais nos falta; nós perdemos completa-


mente o mundo, nos desapossaram dele. Acreditar no mundo signi-
fica principalmente suscitar acontecimentos, mesmo pequenos, que
escapem ao controle, ou engendrar novos espaços-tempos, mesmo
de superfície ou volume reduzidos. É o que você chama de pietás. É
no nível de cada tentativa que se avaliam a capacidade de resistência
ou, ao contrário, a submissão a um controle. Necessita-se ao mesmo
tempo de criação e povo.

Mas, como voltar a acreditar no mundo não apenas como uma atitude indi-
vidual, uma ação protagonizada por um sujeito autocentrado, mas como um
efeito de forças que se insinuam coletivamente, como aconteceu no movimento
#ocupaescola? Sem negarmos as possibilidades de ações particulares de enga-
jamento político-social, interessa-nos pensar na dimensão das multiplicidades,
das linhas de forças e dos devires.
164
Nesse sentido, encontramos, na teorização de Deleuze (2008) sobre o devir,
SIGNOS ARTÍSTICOS E APRENDIZAGENS INVOLUNTÁRIAS

uma ideia do autor que nos pareceu interessante, a saber: a aposta no que De-
leuze chama de devir todo mundo, isto é, a possibilidade do exercício de uma
involução criadora, de modo a fazer mundo, fazer um mundo. Nas palavras do
autor (2008, p. 73):

Se é tão difícil ser ‘como’ todo mundo, é porque há uma questão de


devir. Não é todo mundo que se torna como todo mundo, que faz de
todo mundo um devir. É preciso para isso muita ascese, sobriedade,
involução criadora: uma elegância inglesa, um tecido inglês, confun-
dir-se com as paredes, eliminar o percebido demais, o excessivo para
perceber. ‘Eliminar tudo o que é dejeto, morte e superficialidade’,
queixa e ofensa, desejo não satisfeito, defesa ou arrazoado, tudo que
enraíza alguém (todo mundo) em si mesmo, em sua molaridade. Pois
todo mundo é o conjunto molar, mas ‘devir todo mundo’ é outro caso,
que põe em jogo o cosmo com seus componentes. Devir todo mundo
é fazer mundo, fazer um mundo [...]. É neste sentido que devir todo
mundo, fazer do mundo um devir, é fazer mundo, é fazer um mundo,
mundos, isto é, encontrar suas vizinhanças e suas zonas de indiscer-
nibilidade. [...] É o mundo que entra em devir e nós nos tornamos
todo mundo.
Mas, para nos tornarmos todo mundo, é preciso, como propõe Deleuze (2008,
p. 74), abdicarmos dos protagonismos e arrogâncias em direção à impessoalida-
de, para poder estar na hora do mundo, isto é, eliminar tudo aquilo que excede
o momento e concomitantemente incluir tudo o que ele inclui, pois, conforme
pensa o autor (2008, p. 74), “[...] o momento não é o instantâneo, é a hecceida-
de em que nos situamos e se insinua em outras hecceidades por transparência.
Pensando com Deleuze (2008, p. 74):

CURRÍCULO E ESTÉTICA DA ARTE DE EDUCAR


Eis a ligação entre imperceptível, indiscernível, impessoal, as três vir-
tudes. Reduzir-se a uma linha abstrata, um traço, para encontrar sua
zona de indiscernibilidade com outros traços e entrar, assim, na hec-
ceidade como na impersonalidade do criador. Então se é capim: se
fez do mundo, de todo mundo, um devir, porque se fez um mundo
necessariamente comunicante, porque se suprimiu de si tudo o que
impedia de deslizar entre as coisas, de irromper no meio das coisas.

Ao voltarmos ao início do texto, quando falamos sobre os tempos sombrios em


que vivemos na atualidade, pensamos que só com a força-potência da inteli-
gência e da arte, em meio às aprendências involuntárias, é que teremos alguma 165
chance de estar na hora do mundo e quem sabe nos tornemos todo mundo em
um devir mundo. Sabemos que não é tarefa fácil, pois, como já afirmado, não
depende de nós, individualmente. Trata-se de algo que acontece ao acaso entre
as coisas e as pessoas. Teríamos que devir-capim em lugar de desejar ser árvore,
como desabafa Deleuze (1996, p. 25):

Estamos cansados da árvore. Não devemos mais acreditar em árvores,


em raízes ou radículas, já sofremos muito. Toda cultura arborescente
é fundada sobre elas, da biologia à lingüística. Ao contrário, nada é
belo, nada é amoroso, nada é político a não ser que sejam arbustos
subterrâneos e as raízes aéreas, o adventício e o rizoma. [...] Muitas
pessoas têm uma árvore plantada na cabeça, mas o próprio cérebro é
muito mais uma erva do que uma árvore.
166
SIGNOS ARTÍSTICOS E APRENDIZAGENS INVOLUNTÁRIAS

Disponível em: https://www.blogdoandersonpereira.com/2013/12/atividade-grafite-diversidade-vai.html

Talvez a única coisa que nos reste, em nossas singularidades, é acreditar, como
propõe Deleuze (2001, p. 99), não na existência transcendental de um mundo
ideal, mas “[...] acreditar em suas possibilidades em movimentos e em intensi-
dades, para fazer nascer ainda novos modos de existência, mais próximos dos
animais e dos rochedos”.
Pode ser que acreditar neste mundo, acreditar nesta vida, tendo em vista todas as
crueldades e absurdos presenciados cotidianamente, tenha se tornado algo mui-
to difícil e, para alguns, até mesmo impossível. Entretanto, é preciso não desistir
nem sucumbir e, cada vez mais, acreditar na força das redes de laços afetivos
e sociais, como aquelas que os estudantes produziram com as ocupações das
escolas. É preciso poder acreditar nas possibilidades de outro mundo, como nos
alerta Rago (2009, p. 258):

CURRÍCULO E ESTÉTICA DA ARTE DE EDUCAR


Sem laços afetivos e sociais suficientemente fortes para ancorá-los, sem
compromissos políticos que os envolvam e articulem, sem História co-
mum, os indivíduos ficam soltos e cada vez mais fragilizados em sua
solidão; isolados e desamparados, tornam-se vulneráveis à propagan-
da totalitária, presas fáceis do poder. [...] Indivíduos isolados uns dos
outros, incapazes de estabelecer redes solidárias, carentes de interação
humana possível com o mundo na esfera pública e provada tornam-se
indiferentes e desinteressados também em relação a si mesmos.

Talvez, a única coisa que nos reste, em nossas singularidades, é acreditar no pos-
sível como categoria estética: Possível, por favor, senão sufoco! Talvez a única 167
coisa que nos reste em nossas singularidades é seguir em frente de braços dados
ou não, mas sempre caminhando e cantando, pois, logo ali na esquina do tem-
po, quem sabe a arte nos assalte de surpresa e nos faça continuar acreditando
que nossa vida sempre vale a pena. Não a vida como algo transcendental, ideali-
zado e supérfluo, mas uma vida, cada vida. Para isso, como nos ensina o poeta,23
precisamos, ainda, fazer da flor nosso mais forte refrão...

Pelas ruas marchando indecisos cordões


Ainda fazem da flor seu mais forte refrão
E acreditam nas flores vencendo o canhão.

23 VANDRÉ, Geraldo. Pra não dizer que não falei das flores. Álbum Geraldo Vandré no Chile. Som Maior, 1968.
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GUATTARI, Félix. Caosmose: um novo paradigma estético. Rio de Janeiro: Ed.
SIGNOS ARTÍSTICOS E APRENDIZAGENS INVOLUNTÁRIAS

34, 1992.
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RABINOW, Paul; DREYFUS, Hubert. Michel Foucault, uma trajetória filosó-
fica. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1995.
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Alfredo. Para uma vida não-fascista. Belo Horizonte: Autêntica, 2009.
ROLNIK, Suely. A hora da micropolítica. São Paulo: N-1 edições, 2016.
CURRÍCULO E ESTÉTICA DA ARTE DE EDUCAR
O CINEMA
ABRINDO
ALAS PARA
OS DEVIRES
PASSAREM 169
Ana Cláudia Santiago Zouain
Nathan Moretto Guzzo Fernandes
Sandra Kretli da Silva

7.
Ana Cláudia Santiago Zouain (UFES)
Nathan Moretto Guzzo Fernandes (UFES)
Sandra Kretli da Silva (UFES)

O cinema abrindo alas


para os devires passarem produzindo linhas de vida

Ô abre alas
que eu quero passar
Ô abre alas
que eu quero passar
Eu sou da lira
Não posso negar
Ô abre alas
Que eu quero passar
(Chiquinha Gonzaga)
170
O CINEMA ABRINDO ALAS PARA OS DEVIRES PASSAREM

A musicista Chiquinha Gonzaga1 fez ecoar esse canto por muitos e muitos anos
em diversos carnavais abrindo alas para movimentos de alegria ao povo brasi-
leiro. Por entre corredores, movimentos intensivos, corpos, imagens, crianças,
jovens, professores e professoras, rotina, invenção, adentramos as escolas com a
força do abre alas, buscando atravessar nos fluxos dos devires, dos agenciamen-
tos e dos encontros com as imagens-cinema.

Nossos corpos trouxeram consigo imagens-lembrança (BERGSON, 2006) que


foram armazenadas de outros encontros com os cotidianos escolares. Imagens
rotineiras, fixadas na memória, que nos levam a uma reprodução habitual por
meio de imagens-ação (DELEUZE, 2007). Essas imagens encontraram ainda, ou-
tras, produzidas externamente, que movimentaram nossos corpos em imagens-
-percepção (BERGSON, 2006). E nesse processo de afetação dos corpos, expe-

1 Chiquinha Gonzaga foi a promotora do encontro do carnaval com a música para se tornar o grande espetáculo da nacionalidade
brasileira. Foi com a música Ó abre alas que o carnaval se consagra como festa popular.
rimentamos imagens que duraram e perduraram nos sentidos, intensificando-se
em imagens-afecção (DELEUZE, 2007) que nos interessam nesse movimento de
escrita, pois afetaram nossos corpos-pensamentos.

Com Deleuze (2007, p. 170) problematizamos: o que resta desses encontros com
as imagens-cinema em processos de formação inventiva em redes de conversa-
ções? “[...] Restam os corpos, que são forças, nada mais que forças. Mas a força
já não se reporta a um centro, tampouco enfrenta um meio ou obstáculos. Ela

CURRÍCULO E ESTÉTICA DA ARTE DE EDUCAR


só enfrenta outras forças, se refere a outras forças, que ela afeta e que a afetam”.

Para Bergson (2006), o universo material é composto por imagens. E, se tudo são
imagens, logo, nosso corpo-pensamento é constituído por elas. Somos atraves-
sados por imagens-forças e forças-imagens. Imagens de todos os tipos. Imagens
reais e imagens virtuais. Imagens-movimento e imagens-tempo. Imagens orgâni-
cas e imagens cristais, que configuram o nosso corpo em devir.

Deleuze (2007) nos diz que na vida tudo é questão de forças. Quando adentra-
mos os cotidianos escolares e nos envolvemos em meio às redes de conversações
171
(CARVALHO, 2009) com os praticantes daqueles espaços-tempos, mobilizamos
forças e somos mobilizados por forças que passam a habitar nossos corpos. For-
ças-imagens que agem e reagem umas sobre as outras.

Nesse sentido, nossos corpos são forças que se entrecruzam com outras forças.
E é em busca desse desejo de nos afetar e sermos afetados e, assim, expandir a
potência de ação coletiva, que o presente texto-imagem se compõe com as rela-
ções de forças produzidas com crianças, jovens e professoras no encontro com
diferentes imagens cinematográficas, na tentativa de disparar afetos e afecções
que impulsionem a criação de outras/novas imagens de escola possíveis.

Portanto, nesse duplo de imagens reais e imaginárias, verdadeiras e falsifican-


tes, habitamos um corpo atravessado por imagens diversas. Um corpo múltiplo,
rizomático, pulsante. Que se lança aos movimentos provocados pelas imagens.
Imagens cinema. Imagens escola. Imagens de vida. Na com-posição de um cor-
po-força-coletivo que se encontra com o outro do pensamento, que afeta e é
afetado nas relações estabelecidas.
Assim, o presente artigo objetiva problematizar a força das imagens cinemato-
gráficas com crianças, jovens e professoras, argumentando que o encontro com
as imagens cinema, em redes de conversações, força o pensamento, impulsio-
nando o corpo-coletivo a problematizar os processos de aprendizagemensino e
a criar movimentos aberrantes que impulsionam as invenções curriculares.

Sua justificativa se tece em meio às tentativas de centralização curricular de


modelizar e padronizar as escolas, os professores, as crianças e os jovens. Apos-
tando que os encontros com as imagens em processos formativos possibilitam
movimentos aberrantes que provoca uma ruptura nos mecanismos de aprisiona-
mento, abrindo alas para os devires e linhas de fuga para a expansão dos proces-
sos de criação coletiva.

Dialoga com Bergson (1979, 2006), Deleuze (2007, 2010), e Deleuze e Guattari
(1997, 2000), como intercessores teóricos principais, a partir da discussão em
torno dos conceitos de imagem-cinema, movimentos aberrantes e pensamento
nômade. Toma como aporte teórico-metodológico as redes de conversações en-
172 tre praticantes dos cotidianos escolares, apostando na capacidade de indivíduos
e grupos colocarem-se em relação para produzirem e trocarem conhecimentos,
O CINEMA ABRINDO ALAS PARA OS DEVIRES PASSAREM

saberes e afetos movidos pelos agenciamentos de formas/forças comunitárias,


objetivando a expansão da potência de ação coletiva (CARVALHO, 2009).

Nesse contexto, o campo problemático deste texto se constitui com o seguin-


te questionamento: Que potências as imagens cinematográficas produzem na
construção coletiva de outros possíveis para os processos aprendentes e os mo-
vimentos curriculares inventivos?

Vale ressaltar que, as cartografias dos movimentos de pesquisa com as imagens


cinematográficas em redes de conversações, constituem-se como espaços de
trocas de experiências e de criação coletiva, pois as conversas mobilizadas pelas
afecções das imagens mobilizam o pensamento fazendo o corpo-coletivo pul-
sar e vibrar, abrindo alas para uma multiplicidade de devires, afectos, saberes,
linguagens e culturas circularem, provocando novos movimentos curriculares e
outros possíveis para as escolas.
Para caminhar nessa discussão, apresentaremos alguns movimentos de nossas
experiências de pesquisa em diálogo com pensamentos de outros pesquisado-
res, na tentativa de afirmar a escola como um lugar de vida, vida intensiva, vida
inventiva, vida nômade.

O primeiro movimento intitulado “Movimento um: cartografias de encontros


com crianças e professoras da educação infantil e imagens cinema”, trata de
movimentos de pesquisas junto às crianças e professoras de Educação Infantil

CURRÍCULO E ESTÉTICA DA ARTE DE EDUCAR


que, no encontro com as imagens cinema, produzem diferentes imagens de pen-
samentos, abrindo o campo dos possíveis para a composição de novas imagens
escola por meio do devir-criança inventivo (DELEUZE; GUATTARI, 1997).

Já o segundo, “Movimento dois: cartografias de um encontro com jovens e ado-


lescentes e imagens-cinema”, busca capturar os efeitos das ações criadas no ci-
neclube Valente, localizado em uma escola estadual de ensino médio do muni-
cípio de Vitória, ES, problematizando que forças fazem movimentar o currículo
e os processos de aprenderensinar na escola.
173
Por fim, trazemos “Movimentos in-conclusivos” não para fechar a discussão,
mas como uma pausa para retomar alguns questionamentos e para se pensar
nos movimentos diversos que se tecem no encontro entre imagens-cinema e
Educação.
MOVIMENTO UM:

Cartografias de encontros com crianças e professoras


de educação infantil e imagens-cinema
Acreditamos com Rolnik (2018, p. 29) que “[...] uma atmosfera sinistra envol-
ve o planeta. Saturado de partículas tóxicas do regime colonial-capitalístico,
o ar ambiente nos sufoca”, e se apropriando da vida dos indivíduos, tentam
aprisioná-los.

Esse ar que nos sufoca tem se espalhado densamente com a força de uma ima-
gem dogmática do pensamento que emoldura a educação brasileira. Essa ima-
gem, além de ditar os interesses curriculares dominantes, legitima uma maneira
de aprender em detrimento das demais, distanciando assim, de novos processos
de subjetivação e de outras possibilidades de criação.

No entanto, em meio às linhas duras, linhas flexíveis também compõem o plano


de imanência da escola, e a estas mobilizamos nosso desejo de escrita, pois, por
174 meio delas fomos afetados, sendo, portanto, impossível pensar em uma única
imagem idealizadora de educação e, sim, em imagens outras possíveis de inven-
O CINEMA ABRINDO ALAS PARA OS DEVIRES PASSAREM

tividades na/da escola.

Buscamos, assim, por meio do encontro das crianças e das professoras com os
signos artísticos do cinema, driblar a imagem dominante fixada tanto nos pro-
cessos curriculares instituídos quanto nos processos aprendentes, para pensar
a complexidade de acontecimentos inventivos e de vida que vibram na escola
movidos pelos afectos, compreendendo que há um “corpo-vibrátil” ou “corpo-
-pulsional” que se constitui e se orienta por uma “prolífera vida, vida singular,
uma vida” (ROLNIK, 2018, p. 65).

Para tanto, trazemos cartografias de nossas imagens de pesquisa para afirmar a


aposta na potência das imagens-cinema enquanto forças que movimentam os
pensamentos de crianças e professores em devires outros.

“Eba! Hoje tem cinema”, vibrava uma criança enquanto nos preparávamos para
ir à sala de vídeo. Já estávamos inseridos nas redes de conversações antes mesmo
de o filme começar. Corpos atentos, curiosos, inquietos, entravam em composi-
ção com as redes afetivas que iam se tecendo junto aos movimentos aberrantes
que abrem alas para os devires passarem.

Os encontros das crianças e das professoras com as imagens-cinema não se re-


duziam apenas aos momentos de exibição e de conversas na sala de vídeo, mas
eram eternizados nos corpos-pensamentos, pois as imagens-afecções que desli-
zavam por entre imagens-cinema e imagens-escola na composição de cenas de
vida intensiva e inventiva.

CURRÍCULO E ESTÉTICA DA ARTE DE EDUCAR


Por entre curtas-metragens, filmes de animação, elaboração de roteiros, produ-
ções de imagens fílmicas, as crianças e professoras percorriam com a câmera do
desejo, em corpos-coletivos vibráteis, abrindo alas para o devir-criança fabular e
inventar outras imagens para as infâncias, para os processos de aprenderensinar
e para os currículos.

Emergiam-se movimentos aberrantes e inventivos em meio às afetações dos cor-


pos com a força das imagens cinematográficas. Essa força era impulsionada pela
potência das imagens que distanciava os corpos orgânicos de um regime fechado
175
e veraz. Mobilizando imagens por meio de movimentos falsificantes de corpos
que se abriram ao campo dos possíveis. Corpos que se abriam para a força dos
encontros com as imagens. Forças que se expandiam na rede de conversações,
fazendo pulsar a vida emergente “[...] que sabe se transformar, se metamorfosear
de acordo com as forças que encontra, e que compõe com elas uma potência
sempre maior, aumentando sempre a potência de viver, abrindo sempre novas
possibilidades” (DELEUZE, 2007, p. 173).

Ao nos aproximarmos dos encontros com os signos artísticos do cinema, des-


locamos diferentes imagens-escola possibilitando-as ir além de uma imagem
habitual e dogmática que tenta endurecer nossos corpos em uma ação prees-
tabelecida. Assim, somos movidos por nossos impulsos criadores a fabular, a
entrar em composição com um devir-criança inventivo e a viver intensamente os
movimentos por meio da potência criadora da infância.

Nesse sentido, a professora fabula uma nova imagem para o Dia das Mães na
escola: “[...] Eu estou super incomodada com esse tal de Dia das Mães”, de-
sabafa uma professora em uma das redes de conversas movida pelas afecções
das imagens-cinema: “[...] Já problematizamos esse currículo movido por datas
comemorativas. Desculpem-me, mas eu me recuso a parar o que estou fazendo
com as crianças, para produzir cartão de Dia das Mães!”.

A professora questiona porque temos tantas dificuldades para se permitir a expe-


rimentar outras linhas, a apostar nas linhas de fuga, nas linhas de vida intensiva
e inventiva que se movimentam pelos afectos e afecções cotidianas. Ressalta
que está com um projeto com as crianças denominado Invencionices infantis
e que todos os dias as crianças produzem coisas extraordinárias, por isso, não
precisaria parar para confeccionar cartões: “[...] Eu gostaria mesmo era de expor
as invencionices das crianças e mostrar as suas aprendizagens e que os pais
reconhecessem e valorizassem a potência desses processos inventivos criados
com as crianças”, destaca a professora.

As crianças compõem todos os dias novas imagens para as escolas. Em alguns


momentos, as professoras entram em composição e acompanham as linhas de
fuga de seus alunos, dando brechas para o devir-criança habitar o corpo-escola.
176 Ao mesmo tempo em que são capturadas pelas políticas de avaliação ou pelas
diretrizes curriculares centralizadoras, deixam o corpo deslizar entre as peralta-
O CINEMA ABRINDO ALAS PARA OS DEVIRES PASSAREM

gens e fabulações infantis como aponta Carvalho e Leite (2018, p. 398):

Ora, a infância e suas imagens, juntamente com aquilo que nela e por
ela deriva em múltiplas formas, acenam-nos para uma efetiva políti-
ca inventiva que, escapando das normativas e das disposições gerais,
criam campos de experiências que vazam por micro-poros; apresen-
tam virtualidades estéticas impensáveis.

O encontro com as imagens cinematográficas do curta “Carregando as baterias”2


em redes de conversações com as professoras de Educação Infantil possibilitou
pensar as relações cotidianas:

“[...] Este curta-metragem me faz lembrar uma imagem que me mar-


cou no encontro passado. Percebi em uma das cenas em que aparece
o robô que compraram para cuidar da velhinha, que lá no fundo havia

2 Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=j_KT_c22fiU


uma cadeira vazia. Como aquela cadeira vazia, pequena, desfocada,
me impactou, me afetou! Remete-me uma ausência, ausência de nós
mesmos. A gente fica se enrolando com tanta coisa que dizem para
nós fazermos e, assim, estamos interagindo cada vez menos. Lem-
bro, também, de uma reportagem de um senhor que vendia picolé
em frente a uma escola há mais de trinta anos que se emocionou ao
aprender a ler. Uma aluna se sensibilizou ao perceber que o amigo
era analfabeto e resolveu ensiná-lo. Eu fiquei querendo entrar nesse
movimento da aluna. Estamos com a bateria muito baixa como no fil-
me. As crianças se esforçam para expandir a nossa vibração. Estamos
como bolhas circulando sem conseguir se conectar”.

CURRÍCULO E ESTÉTICA DA ARTE DE EDUCAR


IMAGEM 1
Cena do curta-metragem “Carregando as baterias”

177

Fonte: https://www.youtube.com/watch?v=j_KT_c22fiU

Dessa narrativa que emerge a partir das imagens de uma animação nasce uma
composição que se constitui “[...] nos fluxos intensivos engendrados nas linhas
de vida, que produzem subjetivações desejantes, singularidades nômades: má-
quinas de fazer delírio com a intensidade da vida” (CARVALHO; SILVA; DELBO-
NI, 2016, p. 218). Assim emerge delírios e com eles novas problematizações:
Como estão os nossos corpos? Que efeitos3 as imagens provocam no corpo-es-
cola? O que faz expandir a força vibrátil inventiva da escola?

3 Entendemos efeitos como produções coletivas em devir.


As professoras apontam que são as invenções cotidianas que expandem a potên-
cia de ação coletiva. São os encontros com as crianças que as revigoram. Ressal-
tam que as conversas com as famílias quando buscam a escola para comparti-
lhar as experiências vivenciadas com os filhos, também, são afectos alegres que
expandem a potência de ação coletiva. Destacam que se faz necessário apostar
e acreditar nas experiências cotidianas tecidas com as crianças.

Como afirma Carvalho (2012, p. 8), “[...] nas crianças, pode-se melhor observar
o devir manifestando-se num único e mesmo plano da vida”. As crianças pen-
sam em devir. Devir-outro. Devir-criança. Habitam um tempo aiônico, tempo
intensivo, inventivo. Tempo-duração. Deslocam pensamentos. Função de fabu-
lação. Circuito de imagem real-imaginário. Imagens atuais e virtuais que se mis-
turam e se confundem.

A fabulação, no entanto, se diferencia da imaginação, pois “[...] a fabulação


criadora nada tem a ver com uma lembrança mesmo amplificada, nem com
um fantasma. Com efeito, o artista, entre eles o romancista, excede os estados
178 perceptivos e as passagens afetivas do vivido” (DELEUZE, GUATTARI, 2000, p.
222). Ao fabular, as crianças e professoras entram em um tempo outro, deslocam
O CINEMA ABRINDO ALAS PARA OS DEVIRES PASSAREM

os sentidos e produzem diferentes imagens.

Apostamos, então, no encontro com imagens-cinema e imagens-escola na com-


posição de imagens-infância que desterritorializam os territórios escolares, ima-
gens que se configuram como “laboratórios ensaísticos de uma micropolítica
estética sem pretensão de convencimento porque o registro produtivo de suas
imagens é da consistência do devir-infância” (CARVALHO; LEITE, 2018, p. 398).

Como a imagem a seguir que movido pelas afecções das imagens-cinema, uma
criança desobedece à regra da professora de assistir ao filme sentado, ela se le-
vanta, ela precisa falar sobre o que as imagens deram a pensar. As que seguem a
norma pedem silêncio: “[...] quero ouvir!”, “Shiu!”. A professora coloca a crian-
ça de volta ao seu lugar. A criança levanta-se novamente.
IMAGEM 2 _ Um menino que não para...

CURRÍCULO E ESTÉTICA DA ARTE DE EDUCAR


179

Fonte: ZOUAIN, 2019.

De modo geral, as crianças e as professoras, no encontro com as imagens-cine-


ma, compõem diferentes imagens-escola que se distanciam de um movimento
hierárquico e linear. A potência das imagens nos provoca a produzir movimen-
tos aberrantes (DELEUZE, 2007) por uma educação não soberana. Movimentos
que pensam a educação para além das lógicas normatizantes, que reproduzem
uma imagem dogmática de pensamento, do currículo e da aprendizagem. Mas,
que se lançam em prol de uma educação em devir, engendrada aos seus acon-
tecimentos inventivos.

A potência dos signos artísticos nos move em meio às afecções que tocam nos-
sos corpos e nos impulsionam a um agir impensado pela racionalidade modeli-
zante, mas que passa a emergir em nossos corpos-pensamentos com as experi-
mentações afetivas vivenciadas.
Nesse sentido, as crianças e as professoras, movidas pelo devir-criança e im-
pulsionadas com as imagens-cinema, insurgem, deslocam e fabulam imagens
escola para além de uma imagem petrificada que tenta aprisionar os corpos,
vertendo-as em imagens impensadas, aberrantes e falsificantes, da ordem do
acontecimento, compondo resistências que nunca deixam o corpo parar, mas o
movimenta em constante devir.

Portanto, nesse movimento de afetação com imagens e com crianças, afrouxa-


mos o arco sensório-motor habitual, deslocando práticas verticais de currículos
e de docências, “por atos de criação de um corpo-pensamento em devir-deva-
neios” (ZOUAIN, 2019, p. 45). Pois, somente um relaxamento dessa tensão, nos
permite ir além, e assim, nos colocamos, “de algum modo, na vida do sonho”
(BERGSON, 2006, p. 180).

Vida sonhada com crianças, professores, imagens cinema e imagens escola no


entrecruzamento de forças que habitam os corpos e os permitem sonhar. Por
entre potências de vida que se tecem no real e no imaginário, nas dobras da re-
180 presentação e da invenção, dando passagem para o devir-alegria (CARVALHO,
2019) perdurar.
O CINEMA ABRINDO ALAS PARA OS DEVIRES PASSAREM
MOVIMENTO DOIS:
Cartografias de um encontro com jovens
e adolescentes e imagens-cinema

Depois do Cineclube Valente


eu não consigo mais assistir a um filme
e não conversar. Eu preciso muito falar!

CURRÍCULO E ESTÉTICA DA ARTE DE EDUCAR


(Estudante e cineclubista)

Como dito, o que nos interessa, são os movimentos aberrantes, no sentido de-
leuziano do termo, daquilo que insurge dentro de um movimento e extrai, dele,
novos fluxos e forças com intensidades para desalinhar o que está estabelecido,
para perfurar o que se repete, possibilitando outras relações, dando abertura
para novas composições.

Nesse sentido, segue nossa opção de acompanhar a potência de criação que 181
habita os espaçostempos de um cineclube no cotidiano escolar, que desde 2016
vêm utilizando as imagens-cinema como disparadoras de conversas e amplifi-
cadoras dos processos de aprenderensinar em uma escola pública de Vitória-ES.
Neste ano, de 2019, o projeto tem trabalhado com curtas-metragens produzi-
dos no estado do Espírito Santo, por realizadores capixabas. Uma exibição que
acompanhamos teve como temática o meio ambiente. Assim, problematizamos:
O que pode o cinema na escola? Que redes são produzidas quando estamos
organizados em cineclubes? Que conversas um filme pode disparar? Qual o
potencial do cinema nos processos de aprenderensinar?

Deleuze (2007) faz um grande esforço para nos mostrar que há na imagem-mo-
vimento um outro tipo de movimento, que foge à centragem, à coordenação-
-seleção, à construção vertical, que é a aberração de movimento ou movimento
aberrante. “Mas, longe de o próprio tempo ficar abalado, ele encontra nisso a
ocasião de surgir diretamente, e de livrar-se da subordinação ao movimento,
de reverter essa subordinação” (DELEUZE, 2007, p. 50), de apresentar o tempo
como abertura infinita.
Nessa linha, afirmamos que o cineclube4 que acompanhamos possui uma forma
aberrante de exibição, pois não se limita a exibir filmes corriqueiros, hollywoo-
dianos, clichês, para contemplação. Ao contrário se associam a filmes nacionais,
locais, que trazem outras imagens, sons, paisagens e se preocupam em buscar
filmes que problematizem o contexto atual. Ao darem abertura para conversas
após as exibições engendram possibilidades de ampliar os efeitos provocados
pelas imagens cinematográficas com as redes de conversações e seus atravessa-
mentos. A partir de uma intencionalidade ético-político e estética, com a “forma-
-aberrante de exibição” [...] “criam-se exibições ativas que se prolongam pelas
intensidades dos encontros-imagens-conversas” (FERNANDES, 2019, p. 102).

Quando pensamos na força das imagens cinematográficas no cotidiano escolar,


apostamos que o cinema possui imenso potencial para colocar o pensamento
em movimento. Assim, buscando imprimir alguns efeitos de um encontro no
cineclube na escola, destacamos os agenciamentos reverberados a partir da exi-
bição do curta-metragem Rio das lágrimas secas.

182 O curta-metragem Rio das lágrimas secas5, dirigido por Saskia Sá (24’, 2018), é
um curta-documentário. Nele, a cineasta apresenta um recorte em três atos, que,
O CINEMA ABRINDO ALAS PARA OS DEVIRES PASSAREM

passando por três lugares, delineiam os efeitos catastróficos da lama em diferen-


tes pontos do rio após o rompimento da barragem de rejeitos no desastre-crime
promovido pela Samarco S.A. em corresponsabilidade com Vale S.A. e BHB
Billiton, em novembro de 2015. Em 3 atos, a história passa por Mariana/MG,
próximo ao epicentro do desmoronamento da lama; por Resplendor/MG, na
aldeia Krenak, Uatu; e pela Vila de Regência – Linhares/ES, na foz do rio Doce.

4 O cineclube que acompanhamos chama-se Cineclube Valente, é um projeto desenvolvido na EEEM Des. Carlos Xavier Paes Barre-
to, em Vitória-ES, composto por estudantes de 1°, 2° e 3° ano do ensino médio e coordenado por uma professora. Eles organizam
as mostras e de acordo com a temática, escolhem os curtas-metragens que serão exibidos, bem como o roteiro para as conversas.
Todo o desenvolvimento é feito de maneira coletiva pelos integrantes e as exibições são para alunos da mesma escola.

5 O filme ganhou o prêmio principal da 5ª Mostra Velho Chico de Cinema Ambiental. Venceu também a categoria Melhor Filme nas
mostras Foco Capixaba e Cinema Ambiental, do 25° Festival de Cinema de Vitória.
IMAGEM 3
Cena 01: Rio das lágrimas secas, dirigido por SaskiaSá.

CURRÍCULO E ESTÉTICA DA ARTE DE EDUCAR


Fonte: https://vimeo.com/281859929

Em todos os atos elencados, mulheres, moradoras das comunidades atingidas,


contam as histórias do que mudou com a chegada da lama, seus dramas, medos,
183
expondo perdas que ultrapassam questões materiais, como as memórias de um
lugar que não existe mais, a relação de vidas que são tecidas na relação com o
Rio ou com o mar e que já não podem mais. As imagens do filme, feito nôma-
des, viajam pelas paisagens, pelas culturas, pelas memórias das mulheres, pelas
comunidades afetadas (FERNANDES, 2019).

O objetivo dos cineclubistas com a exibição, que teve como tema o meio am-
biente, foi movimentar o pensamento em relação às questões relacionadas à po-
luição, ao desperdício de água, à produção de lixo, ao desperdício de alimento,
ao excesso de consumo. Após a exibição, encaminhávamos para as conversas e
o roteiro preparado pelos cineclubistas traziam algumas perguntas para intensi-
ficar o debate.

Logo de início, estudantes associaram as imagens do filme Rio das lágrimas se-
cas à poluição da praia de Camburi, em Vitória: “[...] Tipo quando você vai na
praia de Camburi, você olha e você vê o mar, aí quando você olha para a sua
esquerda você vê o fogo subindo, da Vale, poluindo o ar”. Tem o pó de minério
também, que aqui cai na praia, no filme, no rio”.
Algumas questões foram apresentadas problematizando as nossas relações com
o mundo “[...] que práticas nós temos que levam ao desperdício de água?”; “o
que pode ser feito a partir de pequenas atitudes, para conter a poluição no nosso
bairro, na nossa cidade, da nossa escola?” Uma rede de conversas possibilitou
os estudantes e professores a confrontarem as relações que eles desenvolvem na
escola, no trabalho e nos vários espaçostempos que eles transitam com práticas
que preservam ou não o meio ambiente e, ainda, que expandem a potência do
corpo-coletivo.

— No meu serviço veio um monte de papel impresso errado, tive


que jogar tudo fora, foi um saco de papel. Lá usam muito papel. Tem
muito processo e é tudo descartado. Devíamos reutilizar.
— Na escola está difícil, o diretor não colabora.
— Você falou do diretor, mas também poderia partir de qualquer
aluno.
— Igual eu vejo geral na hora do recreio, a pessoa sentada assim na
frente de uma lixeira, e joga o papel no chão. Ou sai do portão, e tem
uma lixeira do lado do portão, eles trazem aqui para fora e joga o
184 plástico no chão. Ou seja, deveria tentar reutilizar ao máximo, igual
garrafinha de água, sempre estar usando a mesma, porque não é algo
que você precisa estar trocando sempre.
O CINEMA ABRINDO ALAS PARA OS DEVIRES PASSAREM

— Justamente, assim como ela falou, muitas vezes, que tem a sujeira
é porque a gente vê o lixo no chão e a gente não pega porque não foi
a gente que jogou. Assim, a gente acaba sendo egoísta com a nossa
escola, com nossa rua. Aí, quando chove e tem enchente, o bueiro
enche, por causa desses motivos.

Em outro momento, nas conversas, apontamentos para possíveis soluções foram


levantados, como disse uma estudante, “[...] a gente poderia reciclar algumas
coisas e reutilizar algo que dá para usar de novo” ou “o lixo não é apenas um
lixo. Ele pode ser considerado uma semente”¸ como afirma de outro modo,
outro estudante.

Ao propor discutir o meio ambiente tendo como disparador as imagens cinema,


o cineclube acaba por abrir possibilidades para, em meio as redes de conver-
sações, que imagens-lembranças sejam confrontadas, expandidas e atualizadas
por novas imagens narrativas. Em processos aprendentes que decorrem de um
jogo coletivo, de convergências, confrontações, discordâncias, problematiza-
ções e, sobretudo, abertura e exposição para que, neste jogo, fossemos atraves-
sados pelos múltiplos corpos-experiências que compõem aquele cenário.

Mais adiante, a partir de uma pergunta acerca da importância dos nossos rios
para nossa vida de forma individual e coletiva, os estudantes revelam conheci-
mentos que são atravessados pelas experiências de vida, pelas vivências nos es-
paçostempos que eles residem, mostrando que os processos de aprenderensinar
extrapolam a escola por que se constituem em redes de afectos e de afecções,

CURRÍCULO E ESTÉTICA DA ARTE DE EDUCAR


a fim de inventar problemas e criar novos mundos. Outro jovem pede a palavra
para com-partilhar a sua experiência de vida:

— No filme a índia chora porque não pode entrar no rio depois da


lama. Eu já chorei porque meus pais não deixam eu entrar na lagoa
que tem perto da minha casa pois está poluída, quem entrava pegava
doença. Eu já vi um cano enorme que joga lixo lá dentro, ele foi co-
locado há pouco tempo, deve aumentar muito as bactérias no rio, por
isso as doenças. Parece que o tempo passa, mas a mentalidade dos
políticos volta pra trás.
— Eu tenho um tio que pesca. Antigamente ele fica ficava 20, 30 dias
no mar, e agora ele fica 10 e volta. Está péssimo para pescar! Os por- 185
tos e os barcos grandes estão acabando com os peixes.
— É o capitalismo!
— Mas no mangue está ruim também?
— Pelo jeito está bom, porque o preço do caranguejo está acessível.
Quando está bem difícil o preço aumenta bastante.

Por vezes silenciadas pelos processos colonizadores de uma cultura-escola-currí-


culo maior, tanto com os filmes, quanto com as conversas, vimos imagens-enun-
ciações que navegam por paisagens e culturas menores, que proclamam como
forças descoloniais outras formas de vida, outros modos de habitar, de saber.

Apresentam-nos processos aprendentes que não se restringem à escola, exce-


dem, como quando, a partir de suas experiências, uma estudante nos conta sobre
a relação da disponibilidade do caranguejo na natureza e o valor no comércio.

As imagens e narrativas expressam saberes que são inseparáveis do conhecer,


sentir, viver, habitar, experienciar, que se nutrem um do/no/com outro, num
processo de constante antropofagia encontram conhecimentos que extrapolam
a escola, mas, também, retornam a ela nas matemáticas, geografias, biologias
e nas possibilidades de intercâmbio com os contextos vividos pelos estudantes
e professores.

Entendendo que uma proposta, uma atividade ou a imagem que se produz delas,
antes que prisioneiras das imposições podem ser sem fronteiras, pode circular
por caminhos indefinidos, tendo capacidade de afetar e ser afetada, criando ou-
tras imagens, outros movimentos de pensamentos.

Para que isso ocorra, é fundamental que haja o fortalecimento dos grupos, ban-
dos escolares que afirmam outros modos de aprenderensinar e outros currículos
no cotidiano escolar, para aumentar assim a “potência da ação coletiva”, como
afirma Carvalho (2011), pois essa “potência” depende de modo fundamental
da capacidade dos grupos e indivíduos estabelecerem e criarem relações “para
produzirem e trocarem conhecimentos, resultando, então, no agenciamento de
formas/forças comunitárias, com vistas a melhorar os processos de aprendiza-
gem e criação nas coletividades” (CARVALHO, 2011, p. 75).
186 É na coletividade que se inscreve esse currículo, se desdobrando a partir dos
encontros no cineclube, que se compõe na coletividade como corpo político.
O CINEMA ABRINDO ALAS PARA OS DEVIRES PASSAREM

Muito embora, coletividade não deve ser entendida como homogeneidade ou


espaço estriado, mas como “o aparecimento da pluralidade e da diferença que
interrompem a mesmidade” (CARVALHO, 2011, p. 86), como máquina política
— de guerra?! “Que não diz o que é de modo universal ou o que deve ser, mas
força a comunidade a se transformar e que faz seu devir sempre aberto e per-
meável, logo, sempre outro ‘possível’” (p. 86).

No caso da escola e dos currículos, esses tipos de filmes, atrelados à “forma-


-aberrante de exibição” no cineclube, plantam elementos que podem molecu-
larmente impulsionar agenciamentos coletivos de enunciação para pensar o im-
pensável no cotidiano escolar, ver o que não é visto, sentir o que não é sentido,
produzindo um transe a partir da quebra dos automatismos da imagem-pensa-
mento. Indicam fugas das situações globalizantes nos modos de aprenderensi-
nar, pois, em vez disso, optam por situações dispersivas, cotidianas. Há nesse
sentido uma atitude claramente estética e ético-política na escolha dos filmes
que serão exibidos, bem como, das problematizações que serão lançadas no
cineclube (FERNANDES, 2019).

Em um exercício que sendo inseparável da sua intencionalidade, intensifica a fa-


culdade de ver, educando o olhar, onde as imagens possibilitam uma ruptura com
o vínculo sensório-motor como unidade do movimento, trazendo novas forças
deslocantes para as exibições. E “[...] educar o olhar é justamente permitir que
ele seja sem educação, isto é, jamais passivo de ser tolhido na potência de seu

CURRÍCULO E ESTÉTICA DA ARTE DE EDUCAR


alcance e na lucidez de sua singularidade” (CARVALHO; LEITE, 2018, p. 409).

“Como a aula passou rápido”: essa afirmação de uma professora nos sugere que
há um tempo de intensidades que não pode ser apenas o tempo cronológico,
linear ou sequencial. O que temos experimentado muitas vezes, no encontro
com as imagens-cinema no cineclube, é abertura para tempos outros. É um tem-
po de experiências, acontecimental, que dá sovas nas formas rígidas de certas
hierarquizações e controle dos tempos escolares. Um tempo preenchido por
reticencias, que mesmo sendo curto – feito os curtas-metragens –, dura pelas
intensidades que produz. 187

Um tempo duração que esfolia nossa pele deixando o rastro dos seus efeitos no
corpo, pois como assevera Bergson (1979, p. 49), “a duração real é aquela que
morde as coisas e nelas deixa a marca do seu dente”.
Movimentos in/conclusivos
Não acreditamos ser possível concluir uma escrita que se pretende pensar e
afirmar a vida em devir-criança. Devir que é experimentador, potência criadora,
que se constitui por encontros afetivos e intensivos. Por isso, continuamos a nos
perguntar: Que afectos foram suscitados nos encontros das crianças, jovens e
professores com as imagens cinematográficas em redes de conversações nas es-
colas públicas municipais e estaduais do Espírito Santo? Acreditamos que muitos
foram os afectos, pois apostamos que o cinema abre alas para os devires. Devi-
res-crianças, devires revolucionários, devires...

A nossa cartografia buscou mapear afectos alegres que expandem a força co-
letiva. Claro que também nos deparamos com afectos tristes que reduzem a
potência de agir de crianças, jovens e professoras, porém, logo que os afectos
tristes emergiam, um fluxo de afirmação da vida também surgia, e assim, nos
agarrávamos a essas forças vibrantes, revigorantes de vida.

Procuramos no encontro com as imagens-cinema não apenas falar sobre os fil-


188
mes, mas, sobretudo, conversar e problematizar sobre os seus efeitos no nosso
pensamento. Assim, buscamos nesses encontros com as imagens justo ideias,
O CINEMA ABRINDO ALAS PARA OS DEVIRES PASSAREM

como bem explica Deleuze (2010, p. 55), ao falar sobre as perguntas de Godart
em programas televisivos: “[...] que, é próprio do devir-presente, é a gagueira nas
ideias; isso só pode se exprimir na forma de questões, que de preferência fazem
calar as respostas. Ou mostrar algo simples, que quebra todas as demonstrações”.

Nesse caso, poderíamos afirmar, com Silva e Delboni (2017, p. 63), sobre a po-
tência da imagem-cinema nos encontros que estabelecemos com crianças, estu-
dantes e professores para fazer a língua gaguejar em meio às redes de conversa-
ções. É necessário intensificar a “[...] gagueira da língua, gerando outros/novos
modos de pensar, fazer e de viver os cotidianos das escolas, abrindo frestas para
línguas menores, que possibilitem a problematização do território-escola”.

A coletividade se fortalece em redes de conversações produzindo um posiciona-


mento político, marcado por experiências que desacomodam e abrem alas para
os devires passarem. “[...] O plano de vida, o plano da imanência é atravessado
por diferentes linhas, forças e formas, o que implica dizer que entrar em relação
à escola é entrar em relação à vida (SILVA; DELBONI, 2017, p. 71)

Acreditamos, portanto, que as imagens cinematográficas em redes de conversa-


ções com crianças, jovens e professoras como aponta Machado (2009, p. 296)
ao citar Deleuze atuam, “[...] como uma força de fora que se aprofunda (se creu-
se), nos fisga e atrai o de dentro”. A força das afecções que emergem no encontro
com as imagens possibilita a ruptura sensório-motora que leva a situações óticas

CURRÍCULO E ESTÉTICA DA ARTE DE EDUCAR


e sonoras puras, fazendo com que os praticantes do cotidiano se deparem com
o intolerável presente na banalidade cotidiana, como o exemplo da inquietude
do menino que não para diante das imagens-cinema e dos jovens que coletiva-
mente tentam inventar melhores relações com o mundo.

Deleuze aponta que a relação do homem com o mundo só pode ser restabele-
cida pela fé na imanência. A relação do homem e do mundo é, portanto, o in-
-possível, o in-pensável que precisa ser pensado e construído com os possíveis.
Machado (2010, p. 288) alerta-nos: “[...] quanto menos o mundo é humano,
mais cabe ao artista acreditar e fazer acreditar numa relação do homem com o 189
mundo”.

Os movimentos de pesquisa com as imagens cinematográficas em redes de con-


versações constituem-se como espaços de trocas de experiências e de criação
coletiva, pois as conversas mobilizadas pelas afecções das imagens violentam o
pensamento fazendo circular uma multiplicidade de saberes e de culturas, que
provocam uma aprendizagem movida pela rede de afectos, fazendo emergir no-
vos movimentos curriculares e outros possíveis para as escolas.

Nossas experiências com as imagens cinema têm mostrado que professores e


estudantes instigados por elas expressam sentimentos/pensamentos que expan-
dem a força do coletivo nas redes de conversações. Compondo momentos inten-
sivos-inventivos de formação, que possibilitam múltiplas criações curriculares,
tecidas em meio a uma grupalidade que se expande de maneira intempestiva,
revolucionária, democrática, colaborativa, sensitiva, inventiva, e...
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O CINEMA ABRINDO ALAS PARA OS DEVIRES PASSAREM

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Educação) – UFES, Vitória, 2019.
191
TÍTULO

192
8.
ENCENAÇÕES

CURRÍCULO E ESTÉTICA DA ARTE DE EDUCAR


CURRICULARES:
INSPIRAÇÕES
NAS OBRAS DE
PINA BAUSCH
Ana Paula Pereira Marques de Carvalho 193

Rita de Cássia Prazeres Frangella


Ana Paula Pereira Marques de Carvalho1
Rita de Cássia Prazeres Frangella2

Entrée3
Dizem os artistas que cada encenação é sempre única. Mesmo numa temporada
longa, cada momento de entrada no palco tem sua própria dinâmica; luz, som,
cores, movimentos que se repetem, mas irrompem novas possibilidades, sensa-
ções outras que o encontro corpo-som-movimento provoca, sempre outras. Os
tradicionais repertórios dos espetáculos de ballet abrem espaço para variações
que permitem, ainda que sob a marcação ritmada, tradição, música e enredo,
corpos fluidos e movimentos tradutórios, numa tensão permanente do paradoxo
da transmissão/tradução, da encenação que remete a uma origem e que a rasura
194
em suas variações. Mas tudo é movimento... E as performances curriculares, a
que movimentos remetem?
ENCENAÇÕES CURRICULARES: INSPIRAÇÕES NAS OBRAS DE PINA BAUSCH

A abertura ao outro e às diversas interpenetrações de sentidos que percebe-


mos na prática docente nos abriu um leque de significações e nos trouxe um
entrelaçamento com a dança – a arte da bailarina Pina Bausch4. Sua obra nos

1 Doutora em Educação pelo Proped/UERJ. Coordenadora do Programa Institucional de Bolsas de Iniciação Científica/ DCARH/
Pró-reitoria de Pós-Graduação e Pesquisa da Universidade do Estado do Rio de Janeiro.

2 Professora Associada da Faculdade de Educação e do Programa de Pós-Graduação em Educação – Proped da Universidade do


Estado do Rio de Janeiro/ UERJ. Bolsista de Produtividade em Pesquisa/ CNPq, Cientista do Nosso Estado/ FAPERJ, Procientista/
UERJ. Presidente da Associação Brasileira de Currículo (2019-20202).

3 Os subtítulos, que marcam as seções no texto, nominamos como as partes que compõem um grand pas de deux nos grandes es-
petáculos de ballet. Um grand pas de deux normalmente tem cinco partes, que consiste em uma entrada (introdução), um adagio,
duas variações (um solo para cada bailarino), e uma coda (conclusão). http://www.mundobailarinistico.com.br/2017/02/a-estrutu-
ra-de-um-grand-pas-de-deux.html. Acesso em: ago. 2020.

4 Nas investigações encaminhadas na tese de Carvalho (2020), a arte da bailarina Pina Bausch se entrecruzou na discussão sobre as
novas formas de participação do terceiro setor nas políticas públicas educacionais. O foco da investigação era um projeto chama-
do Trilhas que vem sendo desenvolvido pelo Instituto Natura no Brasil, “uma associação sem fins lucrativos ou econômicos, com
prazo de duração indeterminado” (INSTITUTO NATURA, 2018), vinculada diretamente à empresa brasileira Natura Cosméticos
S.A. O Projeto Trilhas, considerado uma importante política pública pelo Ministério da Educação, visa à formação continuada
de professores alfabetizadores e uma das vertentes de ação do Projeto é o estímulo para que os professores publiquem vídeos no
YouTube utilizando os materiais do Trilhas em sala de aula. Nos imbricamentos desses vídeos, a pesquisa foi se deslocando entre
performances que suscitaram também questionamentos sobre os sentidos de realidade e de ficção. Nesta trajetória, em diálogo
com autores que discutem a perspectiva da desconstrução proposta por Jacques Derrida, a obra bauschiana se destacou como
uma proposta de contestação às formas prontas e às tentativas de reprodução das práticas de sala de aula, estimuladas pelo Projeto
Trilhas.
convida a enxergar a arte não somente como possibilidades para o processo de
ensino-aprendizagem em sala de aula, seja na educação básica ou na formação
de professores, mas também contribui para intensificar nossa leitura do campo
político-curricular sob a perspectiva da experiência inesperada, deslocando nos-
so olhar para a o pulsar da vida que faz parte da prática docente. Assim, neste
texto, propomos a discussão de uma concepção de currículo a partir de uma
inspiração bauschiana, na potência das provocações que ela nos incita, espe-

CURRÍCULO E ESTÉTICA DA ARTE DE EDUCAR


cialmente no que diz respeito à tensão ambivalente entre as dimensões pedagó-
gicas e performáticas (BHABHA, 2001) que dessacraliza o currículo como lugar
da tradição e, nessas articulações ambivalentes, contingencialmente, evoca uma
temporalidade iterativa e intersticial.

Dialogamos a partir de uma trajetória de pesquisas no campo do currículo que


vem defendendo a produção curricular como produção cultural, como enun-
ciação e nesse sentido, como processo de tradução-negociação em meio à im-
previsibilidade inerente às relações com o outro. Talvez seja exatamente essa
imprevisibilidade que viabilize a riqueza do processo de reflexão e discussão
195
nas nossas investigações no campo das políticas curriculares sob o entendimen-
to de que o currículo é um campo fluido, marcado por relações de poder em
constante disputa. Movimentos/variações contingentes que se dão em ritmos
alternados, que compõem outras cenas que mesmo já coreografadas, marcam-se
pela iterabilidade que põe em cheque a ideia de reprodução.

Adágio – do encontro com Pina Bausch


A bailarina Pina Bausch (figura 1) nasceu em Solingen, Alemanha. Iniciou seus
estudos pela dança clássica aos 15 anos, formando-se em Dança e Pedagogia da
Dança em 1958. Passou por escolas de dança em Nova Iorque e na Alemanha e,
aos 33 anos, foi contratada para dirigir a companhia de dança Wuppertaler que,
anos mais tarde, agregou ao nome aquilo que marca sua obra e a destaca como
uma das bailarinas mais influentes da dança contemporânea: Tanztheater – a
dança teatral. Assim, a companhia passa a se chamar Tanztheater Wuppertaler,
incrementando a dança-teatro (MEDEIROS; PEREIRA, 2012).
FIGURA 1 _ Pina Bausch.

196
ENCENAÇÕES CURRICULARES: INSPIRAÇÕES NAS OBRAS DE PINA BAUSCH

Fonte: PORTAL PRESS. Oficina na Casa de Cultura Mario Quintana homenageia Pina Bausch. 16 jul. 2019. Portal
Press. Disponível em: http://revistapress.com.br/jornal-da-capital/oficina-na-casa-de-cultura-mario- quintana-homena-
geia-pina-bausch/. Acesso em: 3 fev. 2020.
O processo de criação de seus espetáculos envolve a experimentação do cor-
po, sem a preocupação com a prescrição dos movimentos. Esse era o grande
diferencial de suas peças que variavam – trechos eram cortados, outros eram
incluídos – a cada apresentação. Entre os temas recorrentes em suas obras, des-
tacam-se as interações entre masculino e feminino, inspirando, inclusive, Pedro
Almodóvar5 na criação do filme Fale com ela, em que Pina participa, apresen-
tando uma sequência de dança. Pina Bausch era, então, conhecida pelas danças

CURRÍCULO E ESTÉTICA DA ARTE DE EDUCAR


que contavam histórias. Suas coreografias eram pensadas em conjunto com seus
atores-bailarinos e se baseavam nas experiências de cada um, incorporando um
pedaço de suas vidas. Porém, cada gesto deveria remeter a um outro gesto im-
previsível (ALMEIDA, 2017), como atos performáticos que questionam relações
de poder, inclusive na própria dança.

As experimentações na dramaturgia corporal (CALDEIRA, 2010) problematizam


a ideia de reprodutibilidade do movimento, da reprodução da coreografia – seus
espetáculos não tinham roteiro prévio, tampouco uma metodologia coreográfica
que os constituísse a priori, mas se davam a partir das múltiplas e imprevisíveis
197
possibilidades que se apresentavam com os bailarinos na provocação à improvi-
sação na montagem da encenação.

Por exemplo, para a obra intitulada “Mazurca Fogo”6, Pina faz uma residência
artística de três semanas em Lisboa, Portugal. Parte do processo de experimenta-
ção é mostrado num vídeo, postado no YouTube, cujo título é “Pina Bausch Lis-
sabon Wuppertal”. Logo no início, o narrador comenta: “[...] chegam de olhos
e ouvidos bem abertos, de veias bem temperadas, atentíssimos aos sinais, às
cintilações, aos sons, aos perfumes e às emoções que a cidade lhes for sugerindo
[...]” (RODRIGUES, 2014).

5 Pedro Almodóvar Caballero é ator, produtor de cinema e roteirista, sendo um dos mais premiados realizadores da história do
cinema. Seus filmes trazem a temática da sexualidade abordada de maneira bastante aberta (PEDRO..., 2020).

6 Peça criada em 1998, “Mazurca Fogo” apresenta a visão de Pina Bausch e seus bailarinos sobre Lisboa. Fruto de pesquisas e um
olhar sensível sobre a vida e os costumes portugueses, apresenta no palco uma multiculturalidade de sentimentos: engano, alegria,
pobreza, tradição, prostituição, saudade, inocência, tempo, riso e choro. Como característica de todos os seus trabalhos, Bausch
usa e abusa dos recursos de cenário, figurino, voz, entre outros, proporcionando uma atmosfera teatral e mágica (TOSTA, 2013).
Ou seja, Pina não chega a Lisboa com um espetáculo pronto, mas permite que
Lisboa seja o outro com quem dança, que provoca, numa relação alteritária que
desloca sentidos, numa negociação que põe em questão o próprio ser/não ser
da encenação. É dança? É teatro? Para além, de polarizações ou superposições,
está o investimento no ato criativo performado. Bausch (apud CALDEIRA, 2010,
p. 119) diz sobre seu trabalho: “Eu não estou interessada tanto em como as pes-
soas se movem como ‘no que’ as move”. E continua: “Você pode ver isto assim
ou assim. Depende do modo que você assiste. [...] Você sempre pode assistir de
outro modo” (Ibdem)

Almeida (2017) analisa as obras de Bausch como performances em constante


processo de diferimento que se lançam, continuamente, à possibilidade de sur-
gimento do novo em um não lugar que não é “um fora” e nem “um dentro”, mas
um “entre” a realidade e a ficção (ALMEIDA, 2017, p. 120). Almeida (2017) co-
menta, ainda, que os trabalhos de Pina fissuram a dualidade entre dança e teatro
na contemporaneidade, de maneira que o teatro adentra a dança e vice-versa,
através do estímulo ao improviso de cada um do seu elenco, no movimento das
198
memórias de infância, desejos e angústias.
ENCENAÇÕES CURRICULARES: INSPIRAÇÕES NAS OBRAS DE PINA BAUSCH

O filósofo português José Gil (2004, p. 178-179 apud ALMEIDA, 2017, p. 120),
observa que, em suas criações, Pina Bausch não se limita aos gestos habituais
de cada situação:

[...] não se limita a atualizar a géstica do pensamento e das emoções


que envolve qualquer situação. As improvisações a propósito de um
tema podem provocar associações de palavras que o gesto transpor-
ta consigo e que remetem eventualmente para outros gestos, outras
palavras e outros pensamentos [...] não utiliza, pois, de uma só ma-
neira a relação palavra-gesto; sobretudo, porque não constrói um
tipo apenas de gestos. [...] Os seus gestos podem assim parodiar os
do ballet clássico ou reproduzir uma cena “real” de violência entre
os dois membros de um par; podem sugerir os gestos do circo, bem
como dos jogos infantis; etc. O enxerto, a associação, o cruzamento,
a sobreposição incessante de inumeráveis tipos de gestos codificados
e conhecidos tornam-se apêndices, variações e prolongamentos de
um outro gênero de gestos [...] (GIL, 2004, p. 178-179 apud ALMEI-
DA, 2017, p. 120).
Desse modo, por meio de atos transgressivos, as criações bauschianas tensionam
as fronteiras dos campos das atividades humanas (ALMEIDA, 2017). A autora
ainda acrescenta que, sob seu ponto de vista, as criações realçam as descon-
tinuidades e avivam uma atitude desconstrucionista ao levarem para o palco
gestos cotidianos presentes em diversas práticas que, através da repetição e de
remetimentos contínuos, rompem significados únicos de movimentos padroni-
zados. Nos trabalhos de Bausch, o significado nunca é fixo e estável, ou seja, a

CURRÍCULO E ESTÉTICA DA ARTE DE EDUCAR


significação se encontra num movimento permanente de busca do ‘significante
do significante’. “Dessa maneira, os remetimentos constantes acabam por impe-
dir que o significante esteja presente em si mesmo, passando então a se consti-
tuir a partir dos rastros de outros.” (ALMEIDA, 2017, p. 120).

Sob as perspectivas de que há um rompimento contínuo da linearidade do tem-


po e que a transparência do fato é impossível na sua totalidade, a arte transita
numa linha tênue entre o pedagógico e o performático a que Bhabha (2001)
se refere, ao discutir o movimento da autoridade colonial. Sendo movimentos
que se interpenetram, o pedagógico relaciona-se à tradição, impossível de ser
199
descartada, algo que Derrida (2004 apud ALMEIDA, 2017) menciona como a
impossibilidade de se evadir da metafísica que alicerça o pensamento. Porém,
devido ao próprio ato de repetição, que torna o político possível, a autoridade
colonial é sempre enunciada de forma diferente e a tradição é sempre rompida.
Neste sentido, a autoridade é produzida de modo ambivalente, em função dos
processos de tradução através do qual os sentidos são contestados continuamen-
te, reconfigurados e se deslocam entre o verdadeiro e falso, realidade e ficção,
como um “re-curso de luz” (BHABHA, 2001, p. 183) que envolve capacidade,
estratégia e agência do outro.
1a VARIAÇÃO:
Acontecimentos coreográficos
O encontro com Pina Bausch nos leva a repensar o que no ballet clássico fica
tão patente: a notação precisa do movimento, a repetição em busca do deta-
lhamento e perfeição do movimento – arabesques, pliès, en dehors, en dedans7
que requerem pernas, pontas, braços, posturas... a dança contemporânea, da
qual Pina é expoente, põe em questão a própria lógica de transmissão hierár-
quica da dança, numa leitura desconstrutiva que negocia com o corpo outros
movimentos possíveis, que observa, nas conexões com outros objetos cênicos,
um corpo indócil.

A ideia de transmissão e conservação de um repertório é tensionada pelo des-


locamento incitado pelo processo de criação de Pina Bausch: a elaboração dos
seus espetáculos se dá a partir de improvisações, de perguntas feitas por Pina e
as respostas/movimentos dados pelos bailarinos que geravam notações pessoais
de Pina e notações feitas pelos bailarinos. Notações diferentes que se entrecru-
200 zavam na coreografia que emerge como um pós-escrito.

A coreo-grafia de Pina Bausch pode ser lida como prática de tradução (KLEIN,
ENCENAÇÕES CURRICULARES: INSPIRAÇÕES NAS OBRAS DE PINA BAUSCH

2018) na sua desestabilização do movimento fixado, nas performances trans-


gressoras, mas que não nega a herança da tradição clássica da sua formação – os
processos de produção da sua companhia envolvem aquecimento, exercícios,
movimentos do corpo não prescindem do ballet, mas o traz como herança. Der-
rida (2004), em diálogo com Roudinesco, sobre isso, discorre:

A ideia de herança implica não apenas reafirmação e dupla injun-


ção, mas a cada instante, em um contexto diferente, uma filtragem,
uma escolha, uma estratégia. Um herdeiro não é apenas alguém que
recebe, é alguém que escolhe, e que se empenha em decidir. [...]
A herança também, no sentido amplo mais preciso que dou a essa
palavra, é um “texto”. A afirmação do herdeiro consiste naturalmente
na sua interpretação, em escolher. Ele discerne de maneira crítica, ele
diferencia, e é isso o que explica a mobilidade das alianças (DERRI-
DA, 2004, p. 17).

7 Nomenclatura de passos do ballet, tradicionalmente mencionados em francês.


Uma herança que, para além da conservação, exige resposta; uma tensão en-
tre recepção e decisão, afirmação e interrupção. O herdeiro, nos termos derri-
dianos, está duplamente endividado, assinatura contra assinatura. A coreografia
bauschiana se dá nessa ambivalência, na tensão entre a tradição e a performan-
ce, no caso da dança, entre precisão da técnica e fluidez do movimento. A pró-
pria Pina trata disso em entrevista e diz:

CURRÍCULO E ESTÉTICA DA ARTE DE EDUCAR


A técnica é muito importante, tem de seguir todo o percurso das téc-
nicas, isso é indiscutível. Mas depois ela está lá para ser usada para
qualquer outra coisa, para ser esquecida. É para isso que temos que
aprender, para esquecer e criar momentos de poesia, ou seja o que for
acima disso. (apud GUERREIRO, 2007, p. 68)

Assim, ao trazer uma outra perspectiva dos atos tradicionais do ballet através
da dança-teatro, Pina Bausch suscita que a tradição dos atos de variação dos
grandes espetáculos de ballet podem se performar não somente com o foco em
uma única linguagem que visa às demonstrações físicas dos bailarinos, mas que
o ballet pode ser lido nas múltiplas possibilidades que quebram uma suposta 201
linearidade atribuída à tradição, trazendo o performático como potência política
de contestação às representações aparentemente fixas das diversas questões que
lidamos em nossas vidas.

Os movimentos constantes de rompimento da tradição inerente ao ballet, ainda


que essa tradição não se apague, remete-nos a questões importantes no campo
do currículo que dizem respeito ao que temos discutido/defendido: currículo
como enunciação cultural, como experiência. Entender o currículo como expe-
riência significa se abrir ao surgimento de outros corpos e subjetividades, dei-
xando-se oscilar entre práticas de rotina e o novo constante, por entre atividades
que são da ordem do “im-possível”. Ou seja, o currículo só é possível porque o
impossível lhe é inerente e o constitui. E é na vivência do dia a dia que o currí-
culo é performado, no jogo do possível/impossível, demarcando a incomensura-
bilidade inerente à prática docente. Defendemos, portanto, que o currículo deve
ser percebido como um movimento de negociação de diferentes linguagens,
ações, imersa em processos de tradução.
Nesse sentido, a inspiração bauschiana nos faz interrogar a significação das prá-
ticas curriculares na Educação Básica. Que currículo? Tal como Macedo (2017)
problematiza, ao discutir como esquemas normativos naturalizam interpelações
sobre se não cabe a escola ensinar, o encontro com a dança-teatro de Pina Baus-
ch põe em questão tais perspectivas: não se trata de re-conhecimento, mas a
imprevisibilidade do gesto, da diferença imprevisível.

Inspirações bauschianas para pensar o currículo implicam em observar que não


se trata da negação da tradição, no caso, do ballet e sua técnica, mas um pro-
cesso criativo que se move no terreno da contingência e com ela negocia; sua
iteralibilidade desestabiliza uma autoridade posta como dada e absoluta. Iterabi-
lidade que se dá na inscrição performática da repetição – o gesto repetível, mas
sempre outro; repetição que não é mesmidade, mas o eu e o outro atravessado
pela alteridade.

Nesse sentido, é possível tomar essa inscrição performática como acontecimen-


to liminar. A ideia de liminaridade associada aqui é potente porque, ao afastar-se
202 da ideia de margem delimitadora, articula-se à ideia de Bhabha de entre-lugar
(in-between no original em inglês), implica atravessamento, estar entre – transi-
ENCENAÇÕES CURRICULARES: INSPIRAÇÕES NAS OBRAS DE PINA BAUSCH

tório e transitivo, borrado – no fluxo de forças que se dão contingencialmente.


Poderíamos alinhar a ideia de liminaridade à indecidibilidade. Recorremos aí à
Jacques Derrida para compreender o que chama de indecidibilidade: um rom-
pimento com a lógica opositiva e binária no transbordamento do cálculo ma-
quínico, não se trata de um ou outro e sim do que advém como outro e impre-
visivelmente rasura a pretensão de ordem, origem, presença/ausência. É o que
chega verticalmente –impossível de antever/prever, que nos chega “de cima”,
não como transcendência, mas acontecimento inesperado. Daí que indecibili-
dade não significa imobilismo, exige decisão, mas fora do julgo do cálculo, é
incalculável dado sua contingencialidade e singular, uma vez que também o é
acontecimento.

Não se tratando de uma lógica opositiva binária, não se apaga a história, a tra-
dição, mas se trata de pensar a “inscrição do mesmo que não é idêntico, mas
como différance” (DERRIDA, 2004, p. 34). Mobilizar tais sentidos para pensar o
currículo nos leva à superficialidade dos questionamentos que parecem sugerir
que a afirmação do currículo como acontecimento, experiência que se desdobra
para além do cálculo maquínico, mas que demanda decisão – responsável em
sua dimensão de alteridade –implica no esvaziamento da própria tarefa edu-
cativa, o que inferimos a tomada do ensino pela educação, num deslocamen-
to de sentidos que imputa o reconhecimento como tarefa da escola, tal como
problematiza Macedo (2017). Uma produção de mesmidade e como a autora,
as reflexões que trazemos propõem discutir o inacabamento do currículo, “um

CURRÍCULO E ESTÉTICA DA ARTE DE EDUCAR


movimento de espaçamento, um devir-espaço do tempo, uma devir-tempo do
espaço, uma referência à alteridade[...]” (Ibdem, p. 34).

2a VARIAÇÃO:
Kontakthof
Das experimentações de Pina Bausch, destacamos a obra Kontakthof, traduzido
como pátio, lugar de encontro, encenada pela primeira vez em 1978. Em 2000,
foi remontada com “bailarinos” a partir dos 60 anos e sem experiência profis- 203
sional em dança e em 2008 foi remontada com a participação de adolescentes
a partir de 14 anos, alunos de escolas públicas e também sem experiência em
dança. Cabe chamar atenção para o título dado: “segundo Climenhaga (2009,
p. 73), o termo traduzido do alemão pode tanto significar lugar de encontro, nor-
malmente se referindo a pátios de escola ou de prisões, como local em que as
prostitutas encontram seus clientes” (apud MEDEIROS; PEREIRA, 2017, p. 145)
e, como as autoras destacam, um traço de uma lógica do paradoxo que impreg-
na o trabalho de Pina Bausch. A obra trata das relações humanas, com material
trazido pelos bailarinos e a partir da utilização de uma gestural cotidiano.

No dizer de Margel (2015), há que se observar a força da nomeação, “antes de


designar uma coisa, um objeto já aqui, já pensado ou representado, a palavra
convoca, chama ou faz alguma coisa vir à existência” (p. 163), numa dimensão
espectral que mais evidencia sua virtualidade, o caráter performativo e iterativo
da nomeação, o que Pina dramatiza na evidenciação da ambivalência do ato
de nominar.
Das tantas questões que emergem nos rastros das questões postas em Kontakhof,
elas nos remetem a pensar currículo, trabalho docente como performances cur-
riculares. Em tempos em que o trabalho docente vai sendo diminuído em sua
dimensão autoral, subsumido à repetição a partir de determinações apriorísticas,
o encontro proposto por Bausch desafia convencionalidades postas como dadas.

Propõe-se muitos e diferentes encontros, na interrogação mesmo de quem dan-


ça. Não bailarinos como bailarinos – mais que polarização, uma tensão perfor-
mática – é o mesmo e o outro ao mesmo tempo, o gesto deslocado em jogos de
linguagem indecidíveis, sempre instáveis, numa ambiguidade constitutiva.

Em nossa perspectiva, temos discutido o professor como curriculista, ou seja,


aquele que produz currículo e, por conseguinte, produz política. Empenhado
no fazer educacional e na sua relação com o outro, constrói outros modos de
vida para o espaço escolar, desafiando a lógica da previsibilidade, de materia-
lização e reificação do currículo (FRANGELLA, 2016). A re-encenação da obra
por diferentes “bailarinos” não prescinde a existência de um planejamento, que
204 na dança bauschiana transita na ordem da imprevisibilidade. A norma nos cons-
titui, mas aqui pensamos no que extrapola, como cada nova encenação, cada
ENCENAÇÕES CURRICULARES: INSPIRAÇÕES NAS OBRAS DE PINA BAUSCH

corpo de baile não apresenta uma repetição da obra de 1978, mas irrompe signi-
ficações contingenciais; qualquer tentativa de previsibilidade transita na ordem
do im-possível, na medida em que, ao ser performado, vivido, abrem-se outras
possibilidades de sentidos, sobrelevando a incomensurabilidade da linguagem,
produzida entre as tentativas de rotina e aquilo que o outro nos apresenta num
processo que é negociado constantemente. Assim, também os movimentos cur-
riculares encenados em cada escola, rede de ensino.

Bhabha (2001) observa que as relações com o outro são marcadas por muitas es-
critas brancas no canto negro da floresta que mobilizam espaços enunciatórios
decorrentes das negociações e reinscrevem constantemente histórias descontí-
nuas. Signos duplicados que mobilizam sentidos num processo em que a auto-
ridade docente constitui-se como algo fronteiriço, intersticial, deslocada entre a
moldura de referência e o estado de espírito, movimentando-se em função do
rompimento contínuo dos significados sobre o processo de ensino-aprendiza-
gem, bem como sobre o papel do professor. Em nossas concepções, as relações
envolvem resistência, não sob o prisma da negação, mas como duplo, transitan-
do por entre ambivalências produzidas na tentativa de fixação de sentidos e se
deslocam na tensão entre o pedagógico e o performático que remete ao híbrido
como presença imprevisível e inadiável.

Cabe-nos pensar em performances curriculares, discutindo a ideia de performan-


ce a partir da noção de iterabilidade discutida por Derrida (1991) e retomada
por Bhabha (2001). Com Bhabha (2001) pensamos que essa iteração que marca

CURRÍCULO E ESTÉTICA DA ARTE DE EDUCAR


o performativo lança uma sombra que desestabiliza a fixação e homogeneidade
da significação, “ o performativo introduz a temporalidade do entre-lugar” (p.
209) o que se alinha ao que defendemos acerca do fazer curricular que

[...] pode encenar-se enquanto estratégia híbrida em si, entre-meio de


emergência política contingente, performática na medida em que em
seus atos, repetindo e reinscrevendo políticas, o faz de forma iterativa,
atos tradutórios em que “o presente da tradução pode não ser uma
transição tranquila, uma continuidade consensual, mas sim a configu-
ração da reescrita disjuntiva [...] (Bhabha, 2001, p. 311)”. Uma defesa
do entendimento do produção curricular como híbrido se dá na per-
cepção da performatividade da tradução, no inevitável encontro com 205
o intraduzível – diferença e alteridade – que uma perspectiva híbrida
mantém viva. (FRANGELLA, 2016, p. 220)

Coda: das inspirações bauschianas


Em geral, essa é uma discussão que é trazida logo no início de um artigo, mas
tal ousamos a subverter os movimentos, deslocando-os e pondo em cheque uma
lógica continuísta. Dançamos conforme a obra de Pina Bausch para dizer do que
nos motivou a decisão de com ela nos colocarmos em diálogo.

Em nosso grupo de pesquisa o desenvolvimento de nossas reflexões percorrem


caminhos não lineares. Dos muitos textos que se dão a ler, nossos diálogos se
articulam de forma multifacetada, nos atravessamentos entre os diferentes con-
textos que entrelaçam pesquisa-ensino-formação. Lemos/produzimos artigos,
teses, dissertações, apresentações em eventos, imagens, vídeos, e tantos outros
que borram as fronteiras do que pode ser pensado como produção do conheci-
mento e pesquisa-escritura, ou um para além disso. Então imagens, sons, filmes,
poemas nos convidam, nos incitam, numa concepção de formação que ressigni-
fica, na dinâmica de produção de conhecimento, os sentidos de conhecimento,
ciência, educação. O que coletivamente afirmamos:

[...]a fronteira é compreendida como lugar impetuoso, que não fixa


limites, mas ao contrário, as tornam borradas, deslizantes, indefinidas
pelas negociações e traduções culturais, que cria um espaço de ambi-
valência dos significados, um terceiro espaço de enunciação.
É nesse terceiro espaço, nesse ir e vir que se mobilizam movimentos
que “não cabem na escrita” porque se dão nos diferentes contextos
onde circulamos e neles produzimos – não só teses, artigos, textos
– mas planejamos, damos aulas, participamos/criamos blogs, grupos
de conversa, sites, Facebook, produzimos imagens, pensamos as in-
venções possíveis do cotidiano, colocamo-nos na roda que, em seus
movimentos, fazem outras posições emergirem, geram algo diferente
e irreconhecível, trata-se de um tempo de tradução entre a autorida-
de e suas práticas performativas. É aí que nos confrontamos com as
impossibilidades que, paradoxalmente, são condição de possibilida-
de. É, como diz Derrida (2004), a teimosia do talvez que, de forma
inapreensível, deixa um traço de chance e ameaça que faz o possível
206 emergir de forma incalculável, como interrupção (FRANGELLA, CAR-
VALHO et al., 2019, p. 6-7)8
ENCENAÇÕES CURRICULARES: INSPIRAÇÕES NAS OBRAS DE PINA BAUSCH

Nas teses e dissertações produzidas no grupo são frequentes os remetimentos a


tantos e diferentes signos artísticos. Bhabha (2001) em texto que discute a narra-
tiva da arte o processo de articulação da aura e da ágora, argumenta acerca da
narrativa mediatória da arte e afirma:

a arte tem a capacidade de revelar o quase impossível, o limite ate-


nuado em que aura e a ágora se justapõem, a fim de encontrar uma
linguagem para os altos horizontes da própria humanidade e – na
sua mais delicada especificidade, sua inspirada diversidade, nos seus
estilos visionários, nos seus vocabulários de vicissitude – para revelar
a sua própria fabulação, a sua fragilidade , no momento de sua articu-
lação. (BHABHA, 2001, p. 99)

8 Trata-se de texto coletivo, produzido pela coordenadora do GRPESq Currículo, formação e educação em direitos humanos – GC-
DEH, Rita de Cássia Prazeres Frangella em co-autoria com 6 outros membros do grupo de pesquisa, todas doutoras em educação
formadas no/com o grupo. Apresentado na Sessão Trabalho Encomendado do GT Currículo na 39a. Reunião Anual da ANPEd em
Niterói/RJ, out 2019.
Nos termos do autor, um entre-lugar mediatório que não está nem dentro nem
fora da arte, mas nas bordas da inscrição/observação, como acontecimento e
significação. Daí nossa negociação com a obra bauschiana traz inspirações para
pensar o processo político-curricular mais amplo num jogo de disputas por sig-
nificação que difere o tempo todo. A obra de Pina Bausch traz uma questão
importante que nos ajuda a refletir sobre a prevalência de discursos que tentam
legitimar uma agenda de políticas com modelos universais para currículo, esco-

CURRÍCULO E ESTÉTICA DA ARTE DE EDUCAR


la, formação de professores, aprendizado, avaliação.

Pensando em nosso processo e observando um contexto em que se prevê uma


formação de professores roteirizada9, de tônica prescritiva, nas tentativas de
tornar a prática docente linear e colocar na atuação do professor a centralidade
das questões relativas aos problemas educacionais, a defesa por uma formação
numa perspectiva alteritária é pauta importante nas discussões sobre outras pos-
sibilidades de Educação.

Observa-se, portanto, que as tentativas de se projetar uma identidade docente,


bem como os caminhos para sua formação e prática, através de proposta polí- 207
ticas que incidem sobre uma rotina padrão, estruturada, para o sucesso do seu
trabalho, de fato estão tentando controlar o imponderável, dada a impossibili-
dade de se prever o ato de ensinar, assim como o ato de bailar que depende da
interação da plateia, por exemplo, para que o bailarino sinta a vibração dos seus
movimentos. Assim, a tradição é sempre quebrada enquanto os bailarinos com
suas sapatilhas de ponta e seus movimentos alongados tentam atingir o ápice
de suas performances, imprimindo cada vez mais energia a cada um deles, com
vistas à perfeição, o ballet de Pina nos apresenta um outro olhar.

Corpos desnudos nos mostram que há sempre outras possibilidades, que há sem-
pre um outro a ser considerado e que a perfeição é uma ilusão, mas é ela que
nos movimenta, que nos alimenta e também nos contribui para mobilizar o lugar
mediatório que ocupamos e dele não escapamos. Um lugar que está na esfera da
negociação de diferentes linguagens, ações, imersa em processos de tradução.

9 Remetemos ao contexto de recente promulgação pelo Conselho Nacional de Educação/ CNE da Base Nacional Comum para a
formação de Professores da Educação Básica/BNC-Formação (2019) e Diretrizes Curriculares Nacionais e Base Nacional Comum
para a formação continuada de professores da Educação básica/ BNCC_Formação Continuada (2020)
Tal qual Pina observa, “Na nossa fragilidade está a nossa força” e é essa fragili-
dade e abertura à ela que nos move. Pina nos estimula a pensar nos horizontes
frágeis da sala de aula e na importância de se pensar a educação como um pro-
cesso de subjetivação que só pode ocorrer na relação com a alteridade (MILLER;
MACEDO, 2018).

Tal como a obra bauschiana, como um processo inusitado escrito a posteriori,


a formação se dá entre movimentos discursivos que sempre são mobilizados
pelas tentativas de fixação de sentidos, mas que produzem efeitos de poder sob
as mais diversas formas, nas enunciações duplicadas e repetidas como processo
de intermediação e iteração.

A transgressão faz parte do currículo e no nosso último (e novamente o primeiro)


ato, a tradicional Coda se rompe para refletirmos sobre o universo multifacetado
em que o currículo se inscreve, inclusive no que diz respeito à formação de pro-
fessores e suas práticas em sala de aula, sempre inacabadas.

208
ENCENAÇÕES CURRICULARES: INSPIRAÇÕES NAS OBRAS DE PINA BAUSCH
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ENCENAÇÕES CURRICULARES: INSPIRAÇÕES NAS OBRAS DE PINA BAUSCH
CURRÍCULO E ESTÉTICA DA ARTE DE EDUCAR
NARRATIVA, CINEMA
E REALIDADE:
A OUSADIA DE
PENSAR-ESTRANHAR
OUTROS MUNDOS 211

Graziele Corrêa Amorim


Eduardo Simonini

9.
Graziele Corrêa Amorim1
Eduardo Simonini2

As coisas são porque as vemos,


e o que vemos,
e como vemos,
depende das artes que tenham influído em nós.
(WILDE, 2003, p. 1086 – tradução nossa).

O antropólogo Gregory Bateson gostava de, em suas aulas, contar a seguinte


212 anedota:
NARRATIVA, CINEMA E REALIDADE: A OUSADIA DE PENSAR-ESTRANHAR OUTROS MUNDOS

Um homem desejava saber sobre a mente, não na natureza, mas em


seu grande computador particular. Ele perguntou à máquina: “Você
computa que você algum dia pensará como um ser humano?”. O
computador começou então trabalhar para analisar seus hábitos com-
putacionais. Finalmente, a máquina imprimiu sua resposta numa fo-
lha de papel, como tais máquinas fazem. O homem correu para obter
a resposta e encontrou, caprichosamente datilografadas, as palavras:
“isso me lembra uma história”. (BATESON, 1986, p. 21).

Em sua anedota, Bateson indicou que a experiência humana está intimamente


relacionada à capacidade de construir histórias que, por sua vez, tendem a esta-
belecer coerências a organizar o existir de um indivíduo e de uma comunidade.
Quando pensamos, por exemplo, na escolha do nosso nome – nessa marca
identitária com a qual somos registrados nos códigos da sociedade civil – temos

1 Pedagoga, mestre em Educação, professora dos Anos Iniciais do Ensino Fundamental na rede municipal de ensino de São Geral-
do/MG.

2 Psicólogo, mestre em Psicologia Social, doutor em Educação, pós-doutor em Psicologia, professor Associado no departamento de
Educação e professor permanente no Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal de Viçosa/MG.
que tal escolha não se configura em uma prática neutra e desencarnada de um
mundo. Os nomes que nos individualizam são efeitos de um novelo de afetos,
de tramas e de enredos a se encarnarem não apenas nos documentos de um car-
tório, mas nas significações com as quais montamos nossa imagem identitária.

Dessa maneira, um nome não é apenas uma propriedade particular, mas uma
marca permeada de significações afetivas que também trazem consigo expe-
riências e sentidos socialmente construídos nas comunidades. Podemos, assim,

CURRÍCULO E ESTÉTICA DA ARTE DE EDUCAR


considerar que os nossos nomes carregam os fios de histórias que se nutrem em
sentidos que em muito antecedem os nossos nascimentos. Mas a história do
nosso nome é apenas uma das primeiras a se colar ao nosso registro social. Isso
porque ao longo de nossas existências nos compomos em um emaranhado de
outras histórias – que narramos e pelas quais somos igualmente narrados – que
ganham sentido e consistência nos espaços cotidianos em que estamos imersos.
É, pois, narrando as nossas próprias histórias na interrelação com outras tantas
que nos são contadas em diferentes dimensões do viver, que atribuímos sentido
aos mundos pelos quais transitamos e, consequentemente, sentidos a nós mes-
213
mos. É, pois, junto às narrativas que outras tramas-existências emergem, enri-
quecendo e/ou empobrecendo um mundo que surge inseparável dessas mesmas
narrativas tecidas nos mais diversos convívios sociais.

Portanto, assumimos neste trabalho que o mundo não é um dado pronto, mas
fabricado em narrativas que constantemente podem arquitetar e produzir efeitos
de verdades, de afetos e de memórias. Narradores de mundos, somos efeitos de
histórias, mas também “(co)inventores” das nossas existências: constituímo-nos
através dos significados que atribuímos a nós mesmos em meio às narrativas nas
quais nos enovelamos.

Cada história narrada, cria, assim, uma dimensão ficcional que, ainda segundo
Bateson (1985), nada tem a ver com a produção de uma ilusão. Para justificar
seu posicionamento, Bateson retoma a etimologia da palavra “ficção”, a qual é
derivada do latim “fictio”, que, por sua vez, é um substantivo verbal de “fingo”:
palavra latina que significa “fazer”. Nesse sentido, a palavra “ficção” não se refe-
re a uma ilusória fantasia, mas a algo que é feito, fabricado e produzido no viver
humano. Assim, as narrativas, enquanto ficções, são fabricadoras de realidades,
produzindo sentidos a mundos que não se encontram pré-definidos àqueles que
os narram. E cada narrativa é sempre coletiva, apesar de algumas vezes parecer
individualizada e particular, como no caso de um nome próprio. Mas, da mesma
forma que nosso nome não se constitui em uma marca isolada das histórias a ele
atreladas, inventamo-nos nas narrativas que nos inventam, uma vez que:

[...] ninguém pôs sentido no mundo, ninguém além de nós. O sentido


depende do humano, e o humano depende do sentido. [...] não su-
portarmos o vazio. Somos incapazes de constatar sem imediatamente
buscar ‘entender’. E compreendemos essencialmente [essa nomea-
ção] por intermédio das narrativas, ou seja, das ficções. (HUSTON,
2010, p. 18).

Vivemos o nosso existir ao ficcionar narrativas que diminuem ou engrandecem


nossos mundos enquanto construímos, selecionamos e editamos histórias que
(re)significam o presente, sonham o futuro e (re)inventam o passado. Huston
(2010, p. 18), assim, alertou que o “real-real: ele não existe, para os humanos.
Real-ficção, apenas, por todos os lados, sempre, uma vez que vivemos no tem-
214 po”. E viver no tempo é se compor em um processo em movimento, sempre
inacabado, em que as histórias narradas não se exaurem em si mesmas, pois
NARRATIVA, CINEMA E REALIDADE: A OUSADIA DE PENSAR-ESTRANHAR OUTROS MUNDOS

quem escuta uma história se compõe junto com a mesma, enredando, assim,
muitas outras interpretações e sentidos que se concretizam em diferentes modos
de viver (BENJAMIN, 2012).

Portanto, as narrativas que compõem os nossos cotidianos acabam por estabilizar


um sentido de concretude e essas histórias produzidas passam a ser as referên-
cias norteadoras das nossas existências. Desse modo, podemos considerar que
os termos “realidade”, “verdade”, “correto”, “errado”, “bonito”, “feio”, “ruim”,
“bom”, “triste”, “alegre” não têm valor absoluto, sendo nomeações ficcionadas
que ganham valores diferentes em grupos e tempos circunscritos. É nessa pers-
pectiva que Foucault (1999, p. 22) apontou que “os seres humanos não temos
outra forma de viver que não inventando-nos a nós mesmos, daí a ficção, as
ficções, o papel da literatura”. E acreditamos que seja este também o caso da
produção de imagens, como, por exemplo, nas narrativas cinematográficas.
O cinema como narrativa
Na primeira metade do século XX, nos Estados Unidos, o cinema, até então uma
experiência nascente no mundo, ganhou uma nova linguagem quando David
Llewelyn Wark Griffith (1875-1948) aperfeiçoou a técnica das montagens nos
filmes, marcando “o início da maturidade linguística do cinema, sistematizando
as mudanças que ele e outros vinham, intuitivamente, tentando produzir” (BER-
NADETE, apud. DUARTE, 2009, p. 24). Desse modo, a montagem:

CURRÍCULO E ESTÉTICA DA ARTE DE EDUCAR


[...] é a ordem em que os planos se sucedem em uma sequência tem-
poral, assim como a forma como os elementos que compõem um
mesmo plano são apresentados – simultânea ou sucessivamente. Co-
locadas juntas, as imagens se unem em uma nova ideia; estendemos
fios invisíveis entre elas, de modo que façam sentido para nós (DUAR-
TE, 2009, p. 43).

O recurso da montagem possibilitou com que as imagens fossem editadas e


selecionadas antes de serem apresentadas ao público, sendo que, para Bazin
(2014, p. 96): 215

A utilização da montagem pode ser “invisível” [...] mas é sua lógica


que faz com que essa análise passe despercebida; a mente do espec-
tador adota naturalmente os pontos de vista que o diretor lhe propõe,
pois são justificados pela geografia da ação ou pelo deslocamento do
interesse dramático.

Conforme Costa (2006), a montagem realizada por Griffith foi denominada de


“montagem alternada ou paralela”, sendo que nela diferentes cenas simultanea-
mente passam a compor os filmes. Se em seus primórdios o cinema se desen-
rolava a partir de uma sequência de imagens – muitas vezes desconexas – em
movimento, o desenvolvimento das técnicas de montagem permitiu a manipula-
ção tanto do movimento, da sequência narrativa e do tempo. Com a montagem,
a imagem igualmente passou a ser manipulada em uma intenção narrativa que
permitisse com que o diretor trabalhasse os afetos e induzisse maneiras de sentir
no espectador. Segundo Costa (2006, p. 46-47):
Ele [Griffth] teve um papel único ao utilizar a montagem paralela não
apenas para misturar diferentes linhas de ação, de modo a criar sus-
pense e emoção, mas também para construir contrastes dramáticos,
delinear o desenvolvimento psicológico de personagens e criar julga-
mentos morais. O uso desse tipo de montagem revela-se como clara
intervenção do narrador que, pelos contrastes, aponta motivações, in-
justiças e paralelismos. Como explica Gunning, na montagem paralela
de Griffith, percebemos “a mão do narrador, à medida que ele nos leva
de um lugar para outro tecendo uma nova continuidade narrativa”.

No entanto, essa nova forma de se fazer e de se pensar o cinema sofreu críticas


de alguns diretores que consideravam que “a montagem não desempenha em
seus filmes nenhum papel, a não ser o papel negativo de eliminação inevitável
numa realidade abundante demais” (BAZIN, 2014, p. 98). Na visão desses crí-
ticos, existiria “o” real e este poderia ser captado sem interferências, sendo que
a montagem seria capaz de influenciar a proliferação de falsas interpretações
sobre o mesmo.

Neste contexto de transformações pelas quais o cinema mais uma vez se encon-
216
trava, percebemos a dualidade entre dois entendimentos a respeito da realidade:
o entendimento dos críticos e o dos adeptos do processo da montagem. Portan-
NARRATIVA, CINEMA E REALIDADE: A OUSADIA DE PENSAR-ESTRANHAR OUTROS MUNDOS

to, para os primeiros existia “a” realidade e a montagem poderia deturpá-la; já


os defensores do processo da montagem não estavam preocupados com a fide-
dignidade do “real”, mas em produzir “uma” realidade narrativa, ficcionando
outras realidades para os espectadores. Assim, enquanto os primeiros acredita-
vam que a imagem tinha que reproduzir o real, os segundos ousavam na pers-
pectiva de que o cinema poderia também produzir realidades. A partir de então,
houve uma proliferação de diferentes narrativas cinematográficas, dentre elas:
o romance, a comédia, o terror, o suspense, a aventura, o documentário, entre
tantas formas de narrar-produzir realidades que permitiam aos espectadores ex-
perimentar diferentes sensações-percepções-afetos.

É, pois, nos aliando à perspectiva de que as imagens-narrativas cinematográficas


são produtoras de realidades, que assumimos aqui um caminho investigativo
que considera que a realidade se configura não como um estado de verdade
absoluta, mas como uma contínua montagem a sempre (re)abrir maneiras de
sentir e pensar. Contudo, consideramos importante destacar, neste trabalho, cha-
mamos pelo termo “imagens-narrativas” expressões como fotografias, desenhos,
pinturas, esculturas e principalmente produções cinematográficas. Considera-
mos, assim, que toda imagem é inseparável da produção de uma narrativa que
a ela se adere, seja por um contexto histórico, seja pelas construções de sentido
que cada pessoa faz ao agenciar seu mundo à imagem apresentada. As imagens-
-narrativas ganham sentidos diferentes no processo de entrarem em contágio
com as configurações de realidade daqueles que dela se aproximam, compondo

CURRÍCULO E ESTÉTICA DA ARTE DE EDUCAR


blocos de sensações e vetores de pensamento. O que faz com que narrativas que
organizam (e são também organizadas por) um filme não se refiram a uma mera
descrição da realidade apresentada, constituindo-se também em uma fabricação
legítima de efeitos de realidade nos espectadores.

Só 10% é mentira, o resto é invenção


Procurando, pois, investigar e acompanhar os processos de pensar-aprender em
encontros com um grupo de estudantes do primeiro período do curso de Peda- 217
gogia da Universidade Federal de Viçosa/MG, resolvemos utilizar de diferentes
produções cinematográficas para cartografar sensações, pensamentos e inven-
ções dos discentes a respeito de como pensavam a prática docente.

Uma atitude cartográfica de pesquisa se dedica a fazer mapas dos afetos que
ganham intensidade em determinada cena social, e que indicam, a partir de suas
singularidades, os (novos) territórios a trilhar. Contudo, é importante considerar
que cartografar não se configura em:

[...] uma ação sem direção, já que a cartografia reverte o sentido tra-
dicional de método sem abrir mão da orientação do percurso da pes-
quisa. O desafio é o de realizar uma reversão do sentido tradicional
de método – não mais um caminhar para alcançar metas prefixadas,
mas o primado do caminhar que traça, no percurso, suas metas [...].
A diretriz cartográfica se faz por pistas que orientam o percurso da
pesquisa sempre considerando os efeitos do processo do pesquisar
sobre o objeto da pesquisa, o pesquisador e os resultados (PASSOS;
BARROS, 2015, p. 17).
Simonini (2019, p. 80-81), igualmente salienta que:

[...] praticar uma cartografia no processo de pesquisar paisagens so-


ciais não consiste na tarefa de a re-apresentar a realidade, uma vez
que o próprio conceito de realidade – enquanto dimensão indepen-
dente do pesquisador – é questionado. Ao contrário da tarefa de re-
presentação, a proposta de uma cartografia é a de seguir linhas que,
em seu tramar, compõem mundos imanentes ao próprio viver. Então,
no movimento de cartografar realidades temos que o que está em jogo
é algo muito mais complexo do que reduzir a dinâmica cartográfica
a um método de pesquisa. Isso porque no processo da cartografia
não basta ao pesquisador se munir de instrumental metodológico; a
principal atitude que o mesmo deve assumir é tanto epistemológica
quanto existencial, ao considerar que não existe um mundo indepen-
dente das tramas que o tecem.

Então, cartografar é seguir processos – políticos, sociais, afetivos, estéticos, ima-


géticos... – que, estando abertos ao agenciamento com outros saberes e possi-
bilidades de existências, ganham intensidade em uma pesquisa. Praticar, pois,
uma pesquisa cartográfica, leva-nos a uma maior flexibilidade no acompanhar
218 os encontros em seus aspectos inusitados, imprevistos e inventivos. Desse modo,
“o método, assim, reverte seu sentido, dando primado ao caminho que vai sendo
NARRATIVA, CINEMA E REALIDADE: A OUSADIA DE PENSAR-ESTRANHAR OUTROS MUNDOS

traçado sem determinações ou prescrições de antemão dadas” (PASSOS; BAR-


ROS, 2015, p. 30 e 31).

Foi, pois, no movimento de agenciar imagens, narrativas, histórias de vida, afetos


e sensações que iniciamos uma pesquisa com o referido grupo de estudantes
calouros do curso de Pedagogia da Universidade Federal de Viçosa. Junto àque-
les estudantes, buscamos, a partir da apresentação de produções cinematográfi-
cas diversas, promover discussões ativadas por palavras-chave como docência,
aprendizagem, relação professor-aluno, construção profissional e escola.

O grupo em questão era composto por cerca de dez discentes do primeiro pe-
ríodo do curso de Pedagogia que participaram de sete encontros (um a cada se-
mana) de três horas de duração. Em cada encontro, um filme foi exibido, sendo
este seguido por debates nos quais utilizamos de técnicas de dinâmica de grupo
para ativar estranhamentos, no deslocar os discentes de seus lugares de conforto
identitário e, assim, abrir passagem a possíveis invenções no agenciar de dife-
rentes experiências vividas com e para além dos filmes. Estranhar-se, pois, atra-
vessado por uma música, uma poesia, uma leitura, um filme..., é estar exposto a
flutuar-navegar em caminhos em que a angústia do desconhecido pode vir a se
conjugar com o verbo inventar. Dessa maneira, o pensamento, enquanto inven-
ção, só é possível no estranhamento, nas fronteiras, nas rupturas, pois:

Pensar, com efeito, é o resultado catastrófico, mas inevitável, de um


desabamento íntimo, uma aventura involuntária. Por isso, o pensa-

CURRÍCULO E ESTÉTICA DA ARTE DE EDUCAR


mento promove tantas dissensões, tantos dissensos e se confronta
com tantas iniquidades. Nesse sentido o pensamento, o ato de pen-
sar equivale a uma espécie de grito que proferimos convulsionados,
exasperados, quando desabam nossas convicções rotineiras e somos
arrancados simultaneamente das certezas do senso comum e das di-
retrizes do bom senso; quando somos lançados em uma aventura que
não planejamos, arrebatados em pleno voo pelo desconhecido. [...]
O pensamento resulta, pois, de uma urgência nova que irrompe em
nós como uma perda de centralidade, um desapossamento, um im-
pulso que nos atira além do domínio da utilidade prática da vida [...].
Essa experiência vertiginosa, fruto do desregramento das faculdades
intelectivas, se apresenta, para cada um de nós, certamente como um
risco. (BRUNO, 2007, p. 14).
219

Assim, neste artigo nos dedicamos a apresentar uma experiência de estranhar-


-pensar que se intensificou em um dos encontros daquele grupo com estudan-
tes calouros, especialmente quando foi trabalhado o documentário “Só dez por
cento é mentira: a desbiografia oficial de Manoel de Barros” (CESAR, 2009), o
qual acompanha a produção literária do poeta Manoel de Barros. Consideramos,
contudo, importante destacar que um documentário, enquanto uma experiência
cinematográfica, também se encontra na batalha de significações a respeito do
que é a realidade e do quanto esta pode ser re-apresentada com fidedignidade.
O cineasta português Manoel de Oliveira pressupunha, por exemplo, a existên-
cia desse acesso direto à realidade quando sustentou que:

O documentário e a ficção não deixam de ser um problema. Ou me-


lhor, podemos dizer que o documentário é a realidade, e a ficção, a
imitação da realidade. [...] Se eles preparam a cena, é uma ficção, se
não preparam a cena, é um documentário. A realidade está no docu-
mentário filmado, porque não é o que o cineasta põe, é o que lá está.
(BESSA-LUÍS, OLIVEIRA, AVELLA, 2007, p. 51, 52).
Manoel de Oliveira acreditava, pois, na realidade enquanto um fato externo ao
cineasta e igualmente independente do processo de uma edição. O documen-
tário seria, então, exterior a interpretações, sendo a re-apresentação de uma
verdade em estado puro. O contrário disso seria ficção, pois fabricado. É, pois,
uma posição muito diferente daquela assumida por Michel de Certeau (2011,
p. 52) que, mesmo não sendo cineasta, não se furtou de problematizar sobre
o documentário, trazendo para o debate o fato de que não existe neutralidade
representacional no cinema e muito menos no documentário, uma vez que:

O “documentário” não mostra que ele é, antes de mais nada, o re-


sultado de uma instituição socioeconômica seletiva e de um aparato
técnico codificador, o diário ou a televisão. Tudo se passa como se,
através de Dan Rather, o Afeganistão se mostrasse. Na verdade, ele
nos é contado em uma narrativa que é produto de um meio, de um
poder, de contratos entre a empresa e seus clientes, assim como da
lógica de uma técnica. A clareza da informação dissimula as leis
do trabalho complexo que constrói; trata-se de uma falsa aparência
que, diferentemente da perspectiva ilusória de outrora, deixou de
fornecer tanto a visibilidade de seu estatuto de teatro quanto o códi-
go de sua fabricação.
220
NARRATIVA, CINEMA E REALIDADE: A OUSADIA DE PENSAR-ESTRANHAR OUTROS MUNDOS

Assim, um documentário não “re-apresentaria” uma suposta pureza da realida-


de, pois ele é construído em arranjos complexos em que as narrativas são a todo
momento atravessadas por interesses políticos, econômicos, históricos, interpre-
tativos que fabricam a realidade no ato de narrá-la. Nesse sentido, a própria
realidade, enquanto fenômeno narrativo e igualmente político, não existiria em
um estado puro, sendo sempre inventada nas narrativas.

E é exatamente essa perspectiva de realidade inventada que atravessa a temática


de todo o documentário sobre Manoel de Barros, sendo esta uma produção que
segue a poética deste escritor, no movimento que este empreende de construir
outros arranjos de sentido-sensações com elementos aparentemente insignifi-
cantes: como o cisco, a poeira, a formiga, o caramujo, as latas enferrujadas, etc.
E logo nas primeiras cenas do documentário, é lançada ao espectador a seguinte
questão: a imagem retrata a realidade ou a inventa?
Todo o documentário, portanto, dialoga com a invenção na obra daquele poeta,
sendo que este considerava que inventar é uma atitude diferente do ato de men-
tir. Pois, enquanto a mentira é uma ação deliberada de falsear algo, a invenção
serve para aumentar o mundo. Como a realidade, em Manoel de Barros, não é
um fato cristalizado numa essência, mas dobras poéticas que ampliam a vida no
ato de fecundar as palavras, declarou ele (em um poema título ao documentário)
que “tenho uma confissão: noventa por cento do que escrevo é invenção; só dez

CURRÍCULO E ESTÉTICA DA ARTE DE EDUCAR


por cento que é mentira” (BARROS, 2010, p. 389).

Assim, o próprio documentário sobre aquele poeta se apresentou igualmente


como uma invenção multiplicadora de sensações e afetos naqueles que partici-
pavam do grupo de estudantes por nós fomentado. E, na discussão que se seguiu
à apresentação de “Só dez por cento é mentira”, um dos participantes – que aqui
chamaremos de Bruno – se manifestou dizendo que achou:

[...] muito bom esse documentário! Mexe com as nossas sensibili-


dades, pois estamos sempre em busca de algo “grande”, exaltando
coisas universais, em busca de dinheiro e nos esquecemos das coisas
221
banais, como, por exemplo, dar um abraço no outro e dizer que o
ama. Esse documentário me remeteu à minha infância, eu também
fui muito viajado.

A fala do Bruno aguçou risadas e afirmações dos demais estudantes-amigos pre-


sentes, que alegaram que o mesmo ainda continuava a ser “viajado”. O termo
“viajado” flutuou no ar e se multiplicou em comentários e sorrisos dos discentes
até que Bruno considerou que:

Quando digo que eu era viajado, me refiro a fazer coisas que eu gos-
tava sem me preocupar se agradaria ou não os outros. Eu não queria
ter perdido essa minha liberdade, mas perdi e sinto que preciso dar
mais valor para essa minha parte...

No decorrer da conversa, as questões que envolviam obrigação-prazer; traba-


lho-ócio; manifestaram-se no debate, inspirados por falas trazidas por Manoel
de Barros quando o poeta narrou a tensão entre essas polaridades em sua vida,
especialmente quando disse que:
meu pai me sustentou muito tempo. Primeiro dava tudo errado; ar-
ranjava muitos empregos. [Eu]Trabalhava um pouco, achava chato,
desistia. Passei dez anos no Pantanal com minha mulher. Depois de
dez anos eu consegui que a minha fazenda desse renda para eu ficar
à toa. Significa o seguinte: eu ficar à toa é eu ficar à disposição da
poesia. Então eu comprei o ócio e aí que eu pude ser o vagabundo
profissional como eu sou agora. (CEZAR, 2009).

A atitude de ficar “à toa”, entregue “à disposição da poesia”, ativou no grupo


debates sobre o sentido do trabalho produtivo e as possibilidades de realizá-lo
em uma contemporaneidade marcada pela priorização do lucro financeiro, pe-
las cobranças de sucesso e urgências por eficiência. Assim, para potencializar a
discussão que se estabelecia naquele momento, solicitamos aos estudantes que
narrassem, através de desenhos, de escritos e/ou de qualquer outra expressão
gráfica, as sensações que tiveram junto com a história da vida de Manoel de
Barros. Foi, então, que a produção gráfica feita por Bruno causou o efeito de es-
tranhamento em todos os presentes, até porque os colegas o enxergavam como
pessoa distraída, “leve” e “viajada”. Apresentamos a seguir o desenho de Bruno
222 que produziu incômodos no grupo:
NARRATIVA, CINEMA E REALIDADE: A OUSADIA DE PENSAR-ESTRANHAR OUTROS MUNDOS
FIGURA 1 _
ilustração de Bruno

CURRÍCULO E ESTÉTICA DA ARTE DE EDUCAR


223
Quando Bruno apresentou a imagem, um apavoramento pareceu ter atraves-
sado seus colegas, sendo que, ao perceber que foi desenhada uma pessoa que
aparentemente estava enforcada em uma corda, uma das estudantes questionou
Bruno se ele estava pensando em suicidar. Bruno respondeu dizendo que ela
poderia interpretar aquele desenho como desejasse; resposta esta que, por sua
vez, não suprimiu as apreensões que haviam surgido.

Todos ali já se conheciam do curso; estudavam na mesma turma; e em encontros


passados Bruno havia narrado vários episódios de sua vida. Entre eles, contou
que gostava de tocar violão, tendo inclusive convidado seus colegas calouros do
curso de Pedagogia para assistirem à apresentação que faria em um bar da cida-
de. A música era uma expressão imaterial importante na vida de Bruno, sendo
que, quando morava com os pais em sua cidade natal, teve uma banda de pop/
rock. A música o revigorava, fazendo se sentir liberto das pressões cotidianas,
porém, enquanto profissão, não era uma alternativa viável para ele, pois este
carecia do apoio de seus pais para seguir aquela vereda profissional. Segundo
Bruno, os pais consideravam que “músico vive na vagabundagem”.
224
Diante do protesto dos pais, o estudante abandonou a antiga banda e o proje-
NARRATIVA, CINEMA E REALIDADE: A OUSADIA DE PENSAR-ESTRANHAR OUTROS MUNDOS

to de profissionalização musical, embora continuasse a tocar esporadicamente


em bares. Mas, buscando seguir o caminho indicado por seus genitores, aden-
trou o Ensino Superior cursando primeiro Gestão Ambiental em uma faculdade
particular de sua cidade. No momento, contudo, em que sentiu que não tinha
interesse pelas disciplinas oferecidas, abandonou o curso. Para sair do campo
de visão de sua família e ambicionando uma maior liberdade, foi, então, morar
na casa de um familiar em uma cidade do litoral paulista, retornando à casa
dos pais um ano depois. Logo após esse retorno, iniciou um namoro e, ainda
no início do relacionamento, o casal acabou tendo que lidar com uma gravidez
não planejada. Diante de tal fato, Bruno e a namorada decidiram morar juntos.
Ele se viu, então, diante de novas responsabilidades e decidiu retornar ao Ensi-
no Superior, fazendo a opção pelo curso de Pedagogia. Este era para Bruno um
curso de fácil acesso e a família (tanto a que constituíra com seus pais, quanto
a que constituía com sua companheira) insistia que ele precisava de um curso
superior para conseguir um emprego “digno”. Assim, sua relação com a música
ficou ainda mais restrita no momento em que ele se viu assumindo o papel (e as
responsabilidades) de pai, de marido, de estudante universitário.

Quando do encontro com o documentário de Manoel de Barros, a filha de Bru-


no estava com dois anos de idade e ele morava com a mãe da criança, que es-
perava de seu companheiro posturas “adultas” que se materializassem em segu-
rança financeira e emocional para a família. Segundo Bruno, sua companheira
funcionava como uma instância tanto de motivação quanto de pressão para que

CURRÍCULO E ESTÉTICA DA ARTE DE EDUCAR


ele estudasse, trabalhasse, fosse pai e companheiro “responsável”. Contudo, ex-
plicando um pouco o desenho que fez no encontro com o documentário sobre
Manoel de Barros, relatou ao grupo que as expectativas de sua companheira e
de seus pais o deixavam sufocado, “enforcado”, sem liberdade, enfim, vivendo
uma vida triste.

Foi quando, segundo Bruno, assistir ao documentário sobre Manoel de Barros


o desnorteou. O modo como o poeta escolheu para si uma vida simples, volta-
da à “vagabundagem” da poesia, provocou no estudante uma angústia e uma
ansiedade que o obrigaram a (re)pensar o modo como vinha fabricando o seu 225
mundo. Passou, então, a se questionar: “quando e como perdi a minha liberda-
de? É possível recuperá-la? A liberdade de fato existe em um mundo que, a todo
o instante, dita regras ao viver? Para ser feliz é necessário ter liberdade? Que
liberdade eu perdi?”

Diante de tais questionamentos levantados pelo estudante, a partir do encontro


com o documentário apresentado, pensamos, junto a Migliorin e Fresquet (2016),
que os filmes podem ser dispositivos de aprendizagem que não se restringem
apenas a “transmitir informações”, mas que também oportunizam acontecimen-
tos. Acontecimentos estes que ativam aprendizagens sustentadas não na “coleta
de informações”, mas no ato de estranhar, de problematizar, entrelaçando as nar-
rativas cinematográficas com a vida vivida de espectadores, como ocorreu com
Bruno. Este não se sentia contente com o roteiro de aprisionamentos em que
sentia construir sua existência, e partilhou no grupo que aqueles encontros – em
seu entrelaçar entre filmes, conversas, acolhimentos, reflexões – contribuíram
para que tomasse a atitude não apenas de se separar de sua companheira, como
também de assumir uma rota existencial mais coerente com suas motivações
musicais. Tanto é que semanas depois de seu depoimento a respeito do desenho
que realizou, anunciou ao grupo que havia se separado de sua companheira,
concluindo que “não pensem que estou mal, ao contrário, nunca estive tão certo
da atitude que poderia ter tomado. O melhor e maior consolo que poderiam me
proporcionar foram às discussões que daqui surgiram”. O estudante ainda afir-
mou que não se considerava “perdido”, sendo, que, conforme o mesmo:

[...] considerei que para ser feliz não é necessário seguir padrões –
estar casado por causa dos filhos, deixar de viver da música por ser
considerada uma atividade da ordem da “vagabundagem”, etc. A meu
ver, para se alcançar “um pedaço de tudo” – sendo viver a simplici-
dade, as coisas banais... – é preciso abdicar dos elementos univer-
sais. Estou, portanto, me sentido renovado tendo coisas consideradas
“nada” para os pessimistas e “tudo” para mim.

As palavras de Bruno nos remetem às considerações de Coutinho (2008), quan-


do esta ponderou que nos filmes nos são apresentados um emaranhado de mo-
dos de existir e cabe aos espectadores permitir se sensibilizar com as narrativas
226 que mais lhes convêm; ou seja, que mais lhes afetam na cotidiana experiência
vivida. Acreditar, pois, na potência do cinema é percebê-lo para além de um
NARRATIVA, CINEMA E REALIDADE: A OUSADIA DE PENSAR-ESTRANHAR OUTROS MUNDOS

recurso de transmissão de informações ou de divertimento, podendo o cinema


acionar aprendizagens-estranhamentos a outras realidades e distintos modos de
viver. Memórias podem ser tanto ativadas quando ressignificadas, promovendo
a abertura a diferentes maneiras de enxergar uma perspectiva de existência vista
até então como natural e/ou imutável.

O tempo da imagem-narrativa não é, pois, o tempo do relógio, mas o dos afetos.


E mesmo que a tendência de nossa percepção seja a de produzir constâncias,
ordens e estabilidades – lançando-nos tantas vezes na cegueira de só conse-
guirmos ver o que desejamos enxergar – uma imagem-narrativa pode produzir
novos blocos de afetos que, suspendendo a inércia do fluxo temporal, instauram
um acontecimento a partejar outras temporalidades (DELEUZE, 2006), sensa-
ções e percepções. Assim, uma imagem-narrativa, como acontecimento, não se
restringiria à perspectiva de produção de uma catarse – no sentido de expurgar
angústias passadas – mas de abertura ao futuro. Isso porque uma imagem-nar-
rativa, mais do que “re-apresentar” uma determinada realidade, pode também
ter a potência de ativar conexões inventoras de realidades: outras montagens de
mundos que mais do que serem “pontos de vista” sobre o real, são a produção
de novas coordenadas de universo. Um filme, como imagem-narrativa, em seu
agenciar com a vida privada do espectador, pode, pois, se dobrar e/ou se multi-
plicar em variadas significações.

Apostamos, portanto, que as imagens-narrativas cinematográficas têm a potên-


cia de, para além de representar uma maneira de pensar, oferecer passagem a

CURRÍCULO E ESTÉTICA DA ARTE DE EDUCAR


diferentes afetos. Estes poderão produzir múltiplas compreensões e efeitos a de-
pender de como cada espectador ou grupo de espectadores entra em composi-
ção não apenas com a história narrada nos filmes, mas também com a constela-
ção de circunstâncias (políticas, econômicas, estéticas, arquitetônicas, afetivas,
etc) envolvidas no encontro. Bruno, por exemplo, se compôs, junto ao filme de
Manoel de Barros, com a poesia, a música, a família, o emprego, o matrimônio,
a paternidade, a liberdade, a prisão, o enforcamento e também com a própria
narrativa de vida “vagabunda” de Manoel de Barros. Foi nessa composição sin-
gular que ele se abriu a uma outra – e arriscada – ficção existencial quando, mais
227
do que se separar de sua esposa, assumiu a música como um dos propósitos
principais de sua vida. Tal decisão poderia vir a transformá-lo em um pedagogo
mais comprometido com a prática educacional – caso não viesse ele a também
desistir do curso –, uma vez que teria que confrontar também sua escolha pela
Pedagogia com o questionamento se aquele caminho era coerente com a reali-
dade que fabricava para si? Esta é uma questão para a qual não temos resposta.

Contudo, as tensões que atravessaram aquele grupo, e particularmente Bruno,


não são redutíveis a uma particularidade identitária. Elas se amplificam na he-
gemonização das maneiras coletivas de produção da realidade que, ao susten-
tarem narrativas que equacionam o “sucesso na vida” à realização financeira,
desqualificam os movimentos3 que não se atrelam às maneiras de existir narra-
das como socialmente válidas. Porém, ser “fecundada(o)” em novas realidades
quando do encontro com um filme, um livro, uma pintura, um desenho..., é

3 Nesse sentido, vale a oportunidade de assistir à animação “Mais Valia”, que também partilha do incômodo de aprisionamento
social vivenciado por Bruno. – https://www.youtube.com/watch?v=zn7ADZRh53I
possível diante da coragem sensível de se permeabilizar a novas aprendizagens,
narrativas e partilhas, experimentando o ficcionar de outros mundos, gostos e
pensamentos, ainda que potencialmente “desagradáveis” diante da insegurança
de seu ineditismo.

Assumir a vida como fabricação inventiva não nos furta, contudo, da experiên-
cia de nos agenciarmos a medos, a angústias e a estranhamentos de nossas cer-
tezas. Nesse sentido, as imagens-narrativas podem nos lançar a estranhamentos
de sabores e sensações que, por seu exotismo, podem fazer com que fujamos
apavorados de universos em que não sustentamos um chão. Mas que, outras
tantas vezes, também podem nos deliciar com a produção de um novo prazer.
Apavorados ou deliciados, somos convidados – e tantas vezes obrigados – à (re)
invenção de um mundo.

228
NARRATIVA, CINEMA E REALIDADE: A OUSADIA DE PENSAR-ESTRANHAR OUTROS MUNDOS
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230
NARRATIVA, CINEMA E REALIDADE: A OUSADIA DE PENSAR-ESTRANHAR OUTROS MUNDOS
“MAMÃE, VAMOS
NOS ESCONDER?”:
AS ARTES

CURRÍCULO E ESTÉTICA DA ARTE DE EDUCAR


CRIANCEIRAS
EM TEMPOS DE
MONSTRUOSIDADES
NECROPOLÍTICAS
231
Luciane Tavares dos Santos
Marcio Caetano

10.
Luciane Tavares dos Santos1
Marcio Caetano2

Do esporro ao silêncio do isolamento social


Em janeiro de 2020, já circulava pela cidade do Rio de Janeiro, junto com lis-
tas de local/hora de festas e blocos de pré-carnaval, a notícia de que uma nova
doença, à época sem nome, assolava a população chinesa da cidade central
de Wuhan, onde foram detectados os primeiros casos dela em humanos (LIAN,
2020). Os boatos davam conta de que o vírus inevitavelmente se espalharia
mundo afora como já ocorria com os coloridos blocos que se multiplicavam pe-
las ruas da Zona Sul ou avenidas e ruelas históricas do Centro do Rio, carregadas
também de memórias com cheiro de suor e de sangue preto, agora cobertas de
232
restos de confetes e de purpurina que não sai nem com chuva torrencial (para o
horror de ambientalistas).
“MAMÃE, VAMOS NOS ESCONDER?”: AS ARTES CRIANCEIRAS
EM TEMPOS DE MONSTRUOSIDADES NECROPOLÍTICAS

Os blocos já causavam aglomerações, modificando o tráfego e contagiando de


outros modos trabalhadores/as a adereçarem seus uniformes com balangandãs
vendidos pelos/as ambulantes que aproveitavam o momento para turbinar o ga-
nha-pão da família. Prenúncios do carnaval de rua: tantas pessoas espremidas
entre as ruas ricas da Zona Sul carioca ou nas ruelas que compõem o espaço da
Cinelândia, Praça Mauá, Lapa e tantos outros becos festivos da cidade maravi-
lhosa e cheia de encantos mil (FILHO, 2015).

Enquanto várias pessoas se “perdiam” em meio aos rebolation e beijos com


gosto de malte, a imprensa dava conta de denunciar as omissões do Governo Fe-

1 Doutoranda no Programa de Pós-graduação em Educação da Universidade Federal Fluminense (UFF) sob orientação da Profa.
Dra. Mary Rangel e Coorientação do Prof. Dr. Marcio Caetano. Estudante vinculada aos Grupos de Pesquisa: Diversidade Sexual
na Educação e na Escola: estado da arte (UFF) e Políticas do Corpo e Diferenças – POC’s (UFPel). E-mail: tavaressluciane@gmail.
com

2 Pós-doutor em Currículo, com apoio do PNPD-CAPES, no Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade do Estado
do Rio de Janeiro (UERJ). Coordenador do Centro de Memória LGBTI João Antônio Mascarenhas (UFPEL/UFES/UFOB), líder do
Grupo de Pesquisa POC’s – Políticas do Corpo e Diferenças e docente na Universidade Federal de Pelotas (UFPel) onde orienta
investigações desenvolvidas no Programa de Pós-graduação em Educação. E-mail: mrvcaetano@gmail.com
deral na repatriação do grupo de brasileiros/as que estava em Wuhan. Em carta
aberta, gravada e publicada no YouTube, no dia 2 de fevereiro de 2020, o grupo
se dirigia ao Presidente da República, Jair Messias Bolsonaro, e ao Ministro das
Relações Exteriores, Ernesto Henrique Fraga Araújo, lembrando-os acerca das
operações de evacuação já realizadas por diversos países, enquanto sua situação
era/estava delicada, e clamando por medidas: “Brasil, casa de todos nós”.

Por aqui, talvez embalados pela política negacionista do Governo Bolsonaro,

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que insistia em menosprezar a já nomeada COVID-19, produzida pelo vírus
SARS-CoV-2, e inebriados não só pelas bebidas alcoólicas, muitos corpos exala-
vam alegria junto aos que buscavam, nas festividades, os meios para suas susten-
tabilidades, afinal vendedoras/es de adereços, de bebidas alcoólicas, com gran-
des caixas de isopor, ou catadores/as, incluso crianças e idosos/as, recolhendo
latinhas jogadas no chão pelos/as foliões/ãs, passaram a compor o cenário dos
bumbum-praticumbum-prugurunduns (MACHADO; SEM BRAÇO, 1982) que
toma a cidade do samba no início do ano. Naquele momento é difícil crer que
qualquer pessoa imaginasse o que estava por vir: É carnaval, é folia, neste dia
233
ninguém chora (MACHADO; SEM BRAÇO, 1982).

Corpos foliões ainda se curavam da ressaca, a G.R.E.S. Unidos do Viradouro


comemorava o seu segundo campeonato no carnaval da Marquês de Sapucaí;
crianças e idosos/as, quase todos/as pretos/as, ainda mais empobrecidos/as com
as reformas neoliberais, contavam as moedas obtidas com as vendas de latinhas.
Ainda sob os ecos do enredo de Ó mãe! Ensaboa, mãe! Ensaboa para depois
quarar3 (LEMOS; FIONDA; RUSSO; DADINHO; NICOLAU; ALVES; MANOLO;
FEITAL; SEIXAS, 2020), as pessoas se preparavam, como já instituído no cotidia-
no, para, de fato, iniciar o bonito e simétrico ano de 2020. Em 25 de fevereiro,
os jornais davam conta de noticiar o primeiro caso daquela doença estranha, a
COVID-194, aqui no Brasil.

3 Samba-enredo que homenageia as Ganhadeiras de Itapuã: “história viva, referência cultural batizado com este nome em homena-
gem às mulheres que, desde o século XIX e início do século XX, faziam ‘lavagem de ganho’ (lavando roupas) ou saiam com seus balaios
a pé para vender peixe e quitutes pela cidade e assim ganhar o sustento da família. O grupo se formou por mulheres guerreiras que se
reuniam para conversar sobre as antigas tradições de Itapuã, cantar e dançar samba de roda. Em 2004, os grupo As Ganhadeiras tomou
forma e hoje conta a história de Salvador, da nossa cultura, das mulheres do Brasil, em forma de cantigas e sambas” (Fonte: https://
www.salvadordabahia.com/experiencias/as-ganhadeiras-de-itapua/).

4 Especialistas dizem que talvez seja impossível identificar como o vírus chegou ao Brasil e qual foi de fato o primeiro caso. (BBC
News Brasil, 2020, s. p.).
Era inevitável! Em tempos de avanços tecnológicos, a mobilidade daquelas pes-
soas que não catam latinhas no carnaval assumiu dimensões impressionantes em
meio as possibilidades de transportes, aéreos, terrestres, marítimos e ferroviários.
Em questão de horas, uma pessoa foge dos blocos barulhentos que invadem a
Zona Sul carioca para a Europa e se delicia em restaurantes italianos. Ainda as-
sim, muitos se perguntavam: são quilômetros e quilômetros de distância entre as
nações, como seria possível uma doença de velhos/as chegar ao Brasil?

O Sr. Jair MESSIAS Bolsonaro garantiu e ainda garante, com ar profético, a


imunidade brasileira, mesmo após milhões de casos. Não havia muito tempo a
água chegava às casas cariocas com gosto/cheiro de esgoto5 e nada aconteceu.
Uma gripezinha não causaria danos a ponto de matar, disse mais ou menos o
presidente.

[...] O vírus chegou, está sendo enfrentado por nós e brevemente


passará. [...] No meu caso particular, pelo meu histórico de atleta,
caso fosse contaminado pelo vírus, não precisaria me preocupar,
nada sentiria ou seria, quando muito, acometido de uma gripezinha
234 ou resfriadinho, como bem disse aquele conhecido médico daquela
conhecida televisão. Enquanto estou falando, o mundo busca um tra-
tamento para a doença. O FDA americano e o Hospital Albert Einsten,
“MAMÃE, VAMOS NOS ESCONDER?”: AS ARTES CRIANCEIRAS
EM TEMPOS DE MONSTRUOSIDADES NECROPOLÍTICAS

em São Paulo, buscam a comprovação da eficácia da cloroquina no


tratamento do Covid-19. [...] Sem pânico ou histeria, como venho fa-
lando desde o início, venceremos o vírus e nos orgulharemos de estar
vivendo neste novo Brasil, que tem tudo, sim, para ser uma grande
Nação. Estamos juntos, cada vez mais unidos, Deus abençoe nossa
pátria querida. (BRASIL. Pronunciamento do Senhor Presidente da Re-
pública, Jair Bolsonaro, em cadeia de rádio e televisão, 24 de março
de 2020, 21h25.).

O negacionismo bolsonariano ainda continua latente. Em discurso enfático, o


presidente brasileiro anunciou: “Eu, pelo o meu histórico de atleta [...] não pre-
cisaria me preocupar”. Em outras palavras, mesmo sendo funesta, é apenas uma

5 Em janeiro de 2020, a água distribuída pela Companhia Estadual de Águas e Esgotos do Rio de Janeiro (CEDAE) começou a chegar
com coloração barrenta e cheiro desagradável em mais de 30 bairros da região metropolitana, muitos relatos de cheiro e gosto
semelhante à terra e sensação de banhar-se em/beber água de esgoto. A CEDAE oficialmente atribuiu o problema à presença de
uma alga chamada Geosmina, matéria orgânica formada quando cianobactérias presentes na água se alimentam de outras matérias orgâni-
cas, como algas ou coliformes fecais. A crise suscitou aumento do preço da água mineral e consequentemente falta do produto nos
mercados, problemas de saúde na população, como diarreia, e demissões no alto escalão da Companhia. Até hoje, ao que consta,
a população não foi ressarcida devida e apropriadamente. (G1, 2020, s. p.).
“gripezinha”. Propagada no Brasil, com apoio do Deputado Federal Eduardo
Bolsonaro, como doença do “vírus chinês6”, foi logo carimbada como letífera
aos corpos velhos, com enfermidades crônicas e/ou práticas insalubres (ausên-
cias de dietas vistas como saudáveis e práticas esportivas): o grupo de risco – do
qual inclusive, pedimos que nos permitam a ambiguidade, faz parte o presidente
que não se comporta como tal.

O discurso amplamente divulgado pela família Bolsonaro, em certo sentido, re-

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troalimentou a sensação de que pessoas com práticas saudáveis, com histórico
de atleta, que pularam amarelinha na infância eteceteras estariam imunes. Algo
semelhante observamos em relação às pessoas que não integravam o grupo de
risco, que supostamente passariam intactas pela pandemia. O fato é que a ne-
cropolítica (MBEMBE, 2016) negacionista do Governo Bolsonaro já alcançou a
marca de 100 mil vidas que foram deixadas à morte7. Seus corpos, de trabalha-
dores/as autônomos/as, são quase todos pretos, vivem nas periferias urbanas e,
para ganhar a vida nas zonas que possuem frentes para “fazer bicos8”, viajam em
trens, metrôs e ônibus superlotados (MARINO; KLINTOWITZ; BRITO; ROLNIK;
235
SANTORO, MENDONÇA, 2020).

Confiantes muitos/as de nós ficamos, mas o fato é que pessoas que viajaram de
férias ao exterior, porque não precisam/precisaram catar latinhas, vender ade-
reços no carnaval ou se transportarem em trens, metrôs e ônibus superlotados,
trouxeram nas malas o vírus como souvenir. O primeiro caso confirmado no
estado do Rio de Janeiro, em 5 de março, foi o de uma mulher jovem, do muni-
cípio de Barra Mansa, que havia contraído o vírus em uma viagem feita à Itália
e à Alemanha, no entanto a primeira morte foi de uma empregada doméstica
(MELO, 2020, s. p.), negra, pobre, periférica e usuária de transporte superlotado,
que o contraiu em seu local de trabalho na capital: sua patroa também viajou e
trouxe, para a rica Zona Sul, a doença como souvenir.

6 A proliferação da ideia de que a China é responsável pelo vírus serviu de justificativa para atos violentos e segregações sociais e
raciais experimentadas pelos(as) chineses(as) mundo afora.

7 Boletim atualizado às 19h30, 24 ago. 2020. Disponível em: covid.saude.gov.br.

8 Expressão comumente usada para se referir aos trabalhos não oficiais, emprego formal. Entretanto, com o aumento da informali-
dade, o que seria “um extra” tornou-se a principal fonte de renda da população.
Em meio ao turbilhão de notícias, a docência que não se deixa parar se movi-
menta para refletir suas ações diante dos desafios que se apresentam. À época,
Gabi, mãe de uma menina de 2 anos, já estava preocupadíssima sobre como
faria para se proteger e, consequentemente, proteger a filha. Ela é professora,
trabalha em 6 escolas, 5 privadas e 1 pública, em locais distintos da cidade, tem
um marido, também professor, a filha pequena, e, não se pode esquecer, um
doutorado em andamento. “Como fazer tudo isso?” talvez seja a pergunta, e a
resposta vem com a sabedoria popular: “a necessidade faz o sapo pular”. O fato
é que, em meados de março, torcia pelo decreto que suspenderia as atividades
na cidade, incluso as escolares, pois, cruzando a cidade de carro, metrô e BRT
(Bus Rapid Transit)9, seria impossível não se contaminar. Uma rotina estressante,
em transporte público quase sempre superlotado e sem circulação de ar, como
ela mesma descreve às vezes, tornou-se ainda mais insuportável por conta da
redução da frota na cidade, aumentando o risco de contágio.

Quando pensamos na vida de Gabi, somos levados a crer que talvez a experi-
ência de ser mulher sem filhos/filhas seja ausente de estresse. No entanto, Bel,
236
também professora e estudante de doutorado, mesmo sem ter cria gerada em seu
útero, dedica parte do seu tempo aos cuidados de uma afilhada para que a mãe,
“MAMÃE, VAMOS NOS ESCONDER?”: AS ARTES CRIANCEIRAS
EM TEMPOS DE MONSTRUOSIDADES NECROPOLÍTICAS

profissional de saúde, possa trabalhar minimamente tranquila, com a certeza de


que a sua pequenina estará protegida. O exemplo corrobora com o que já sabe-
mos, enquanto mulheres das camadas populares e pesquisadoras/es de gênero,
a rede de apoio social e afetivo entre mulheres de periferias é fundamental para
que consigamos seguir com nossas carreiras profissionais, acadêmicas, também
a maternidade, vida social, sexual-afetiva.

Acreditem ou não, Gabi ainda arrumou um jeito e um espaço para cuidar da


filha de uma amiga do marido quando esta precisa realizar suas sessões de qui-
mioterapia. Estas e tantas outras mulheres da classe trabalhadora têm enfrentado
desafios diários para sobreviver ao isolamento social e as redes de solidarie-
dade são fundamentais para isso. No que diz respeito às professoras, têm que

9 O sistema de ônibus de trânsito rápido, com trechos inaugurados entre 2012 e 2016, conta com 3 corredores ligando os seguintes
bairros: TransOeste, Santa Cruz à Barra da Tijuca; TransCarioca, Barra da Tijuca ao Aeroporto Internacional Tom Jobim; e TransO-
límpica, Recreio dos Bandeirantes a Deodoro.
dar conta das exigências estabelecidas pelos empregadores, representados pelo
empresariado educacional ou pelas instâncias do Estado (federal, estadual ou
municipal), cuidar de crianças que também têm suas exigências, em um contex-
to que trouxe, dentre outras preocupações, a educação remota, além de cuidar
de suas necessidades pessoais e constituídas a partir do mundo de exigência
estética às mulheres.

A COVID-19 nos obrigou a refletir sobre as sociabilidades e os nossos modos

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de comportamento ante a realidade objetiva da vida em meio à letalidade do
vírus. Com a pandemia e o início do isolamento social, parte significativa da
sociedade assistiu as redes de afetos tornarem-se online, mas muitas pessoas
foram obrigadas a trabalhar com a perspectiva de redução de danos10. Nesse
caminho, a internet assumiu contornos imensuráveis e várias dinâmicas do tra-
balho produtivo entraram no estágio de home office. As ações governamentais
assumidas para conter a pandemia impuseram desafios às famílias, obrigan-
do-as a conciliar rotinas de trabalho, com o cuidado de crianças e de pessoas
idosas, com horas extensas de convívio, muitas vezes, em espaços pequenos e
237
sob condições desfavoráveis.

Com a suspensão das aulas, se mantivermos, em 2020, o que foi estimado pelo
Censo Escolar de 2019 (BRASIL/INEP, 2019), aproximadamente 47,9 milhões
de estudantes de escolas públicas ou privadas ficarão sem atividades. Em casa,
inúmeras famílias conciliaram a luta diária pela subsistência, a manutenção do
trabalho formal ou informal e os cuidados domésticos com as atividades escola-
res que mantinham alunos/as em rotina de estudos. Agora, as aulas são virtuais
ou em transmissão por TV. Ainda existem aqueles municípios ou escolas que
criaram grupos de WhatsApp11 em que docentes enviam vídeos e áudios com
atividades e conteúdo ou folhas mimeografadas/cópias com exercícios.

10 No geral, é entendido como um conjunto de políticas e práticas cujo objetivo é reduzir os impactos ou danos associados ao
uso de drogas psicoativas em pessoas que não podem ou não querem parar de usar drogas. Neste caso, tomamos emprestado o
conceito para pensar um conjunto de práticas e de políticas de pessoas que não podem realizar totalmente o isolamento social
e buscam conjugar o máximo das recomendações dos organismos de saúde com as necessidades cotidianas de subsistência no
mundo de precarização do trabalho e de necropolíticas governamentais.

11 O WhatsApp envia mensagens de texto e de voz, imagem, vídeo e documento em PDF de modo instantâneo, além de possibilitar
a criação de lista de discussão a partir dos contatos telefônicos, realização de chamada de vídeo envolvendo até oito pessoas
(número aumentado de 4 para 8 no contexto pandêmico) e chamada telefônica por meio de conexão com a internet.
Nesse cenário, o âmbito da casa e do trabalho assumiram o mesmo contorno.
Se Hannah Arendt (2007, p. 37) nos levou a crer que “a distinção entre uma es-
fera de vida privada e uma esfera de vida pública corresponde à existência das
esferas da família e da política como entidades diferentes e separadas”, com a
pandemia, as dinâmicas impostas pelo mundo do trabalho derrubaram de vez a
falaciosa promessa moderna em que se distinguia o público e o privado (CAE-
TANO, 2016). Na arte de fazer-se professora, mãe e responsável pelos trabalhos
domésticos, as dimensões da vida se implicam dentro das casas.

É nesse espaço em que tudo ocorre ao mesmo tempo e misturado que a arte
das crianças se revela como potente recurso possibilitador de um mundo outro
para além do isolamento, do medo do contágio e do que vem ou pode vir em
decorrência dele. São essas experiências de ser/fazer que nos motivam, no cená-
rio de pandemia, a pensar e escrever este artigo com e a partir dos modos como
a arte imaginativa da criança ressignifica a casa. Na experiência interseccional
de ser mulher, mãe, cuidadora, professora e sobrevivente na necropolítica, as
mãos das pequenas estão constantemente sujas de tinta guache, giz branco ou
238
de cera desenhando múltiplas janelas que as potencializam a imaginar carnavais
particulares, a parte boa daquele delírio coletivo de suor e confete todo bem
“MAMÃE, VAMOS NOS ESCONDER?”: AS ARTES CRIANCEIRAS
EM TEMPOS DE MONSTRUOSIDADES NECROPOLÍTICAS

pertinho, sem o suor, mas com as serpentinas imaginárias e a segurança possível


de estar #emcasa.

A partir de fios narrativos de cinco mulheres, torcidos e retorcidos com os de


seus pares, que teceremos este artigo, que é apenas uma entre as múltiplas pos-
sibilidades de entrelaçamento narrativo, embebido das experiências e posicio-
namentos das pessoas pesquisadoras que ora o escrevem, sendo que uma delas
faz parte do grupo. Assim, interessa-nos saber como as mulheres inseridas em
seus contextos familiares trabalham e incorporam os acontecimentosexperiên-
cias com a pandemia nas artes cotidianas do cuidado com as crianças da casa
e das escolas.

O grupo com o qual dialogamos se constituiu por ocasião de um curso de pós-


-graduação, na área da educação, da Universidade Federal Fluminense, bem
antes da pandemia; mulheres de diferentes regiões se encontraram em uma sala
de aula e formaram um grupo de WhatsApp, em 2019, para manter os laços afe-
tivos e, especialmente, para trocar ideias sobre as pesquisas em andamento, para
se apoiarem sobre questões acadêmicas, ou seja, formou-se, para além de trocas
de risadas e de momentos de prazer entre amigas, uma rede de solidariedade.

No isolamento, tornaram-se comuns no cotidiano do grupo trocas não sobre


questões acadêmicas, mas sobre maternidade; diálogos entrecortados sobre “ter
ou não crias e como criar as que se têm?” ganharam espaço devido as extensas
jornadas de trabalho das que são mães, também porque há aquela que deseja ser

CURRÍCULO E ESTÉTICA DA ARTE DE EDUCAR


em breve e a que ainda não se decidiu se ainda quererá. O tópico de discussão
serve, muitas vezes, de ponte para conversas outras sobre como ser e o que é ser
mulher nos mais diferentes espaços e papéis, momentos em que são expostas
angústias, alegrias, descontentamentos com o mundo social instituído que afeta
mulheres dos mais distintos modos, momentos em que falam sobre como resistir,
responder a isso ou simplesmente desabafam.

Artes de ser e de fazer no/do/com o cotidiano do 239


#fiqueemcasa
São nesses estranhos caminhos, em que corpos são deixados aos coveiros e enfi-
leirados em buracos rasos, que somos levados a pensar sobre práticas cotidianas
de mulheres ditas comuns, que se jogam na arte de fazer, com a reorganização
dos espaçostempos, a elas imposta pela pandemia, de suas casasescolas. Esse
nos parece um caminho a seguir pelos subsídios que nos fornece para pensar os
modos como as pessoas se expressam e o que fazem com o que lhes acontece
(OLIVEIRA, 2012).

Nesses lugares polissêmicos, o corpo humano pode ser entendido como lugar
“implacável” que faz surgir todos os demais lugares, incluso as utopias, isto é,
“o não lugar”, que surge do próprio corpo numa tentativa de reduzi-lo ou de
apagá-lo (FOUCAULT, 2013).

Meu corpo está, de fato, sempre em outro lugar, ligado a todos os


outros lugares do mundo e, na verdade, está em outro lugar que não o
mundo. Pois, é em torno dele que as coisas estão dispostas, e em rela-
ção a ele – e em relação a ele como em relação a um soberano – que
há um acima, um abaixo, uma direita, uma esquerda, um diante, um
atrás, um próximo, um longínquo. O corpo é o ponto zero do mundo,
lá onde os caminhos e os espaços se cruzam, o corpo está em parte
alguma: ele está no coração do mundo, este pequeno fulcro utópico,
a partir do qual eu sonho, falo, avanço, imagino, percebo as coisas
em seu lugar e também as nego pelo poder indefinido das utopias que
imagino. Meu corpo é como a Cidade do Sol, não tem lugar, mas é
dele que saem e se irradiam todos os lugares possíveis, reais ou utópi-
cos. (FOUCAULT, 2013, p. 14, grifo do autor).

Quando Foucault (2013, p. 14) nos diz que o corpo é o “ponto zero do mundo”
ou que nunca se está só aqui, mas em “todos os outros lugares do mundo” e “em
outro lugar que não o mundo”, pensamos no nosso locus de investigação, um
grupo de WhatsApp, e nas suas participantes: corpos que estão naquele espaço
e em tantos outros ao mesmo tempo, tudo junto e misturado.

O aplicativo, acessado pelo celular ou computador, tornou-se há alguns anos


espaço digital de muitos espaços e tempos. Privilegiado no isolamento forçado,
junto com outras redes sociais, nele são realizadas diária e ininterruptamente
240
trocas de informação, planejamentos profissionais, as mais variadas formas de
afeto etc. Cada grupo parece se constituir como um espaço absolutamente outro,
“MAMÃE, VAMOS NOS ESCONDER?”: AS ARTES CRIANCEIRAS
EM TEMPOS DE MONSTRUOSIDADES NECROPOLÍTICAS

cada um seguindo uma organização e ordenamento, contendo suas lógicas, o


que nos parece coadunar com um dos princípios que Foucault (2013, p. 24) vai
formular para explicar as heterotopias, a justaposição de “vários espaços que,
normalmente, seriam ou deveriam ser incompatíveis” em um lugar constituído
com acontecimentos distintos daqueles delimitados pela linearidade histórica
dos fatos. Isso “[…] implica não só a interrupção temporária do tempo (passado
e futuro), mas também a remoção das expectativas, necessidades, papéis e deve-
res ligados a um determinado espaço” (MASSCHELEIN; SIMONS, 2014, p. 36).

Nessas estranhezas em que corpos são deixados a morrer pelas necropolíticas


governamentais, buscaremos as sensações criativas de práticas heterotópicas ba-
seados naquilo que Veiga Neto (2011) nos ensina:

À medida que nos movemos para o horizonte, novos horizontes vão


surgindo, num processo infinito. Mas, ao invés de isso nos desanimar,
é justamente isso que tem de nos botar, sem arrogância e o quanto
antes, a caminho (VEIGA NETO, 2011, p. 26).
Com o autor, vamos percebendo os movimentos de narrar o imaginado, a cria-
ção íntima e anônima dos fazeres emergidos das possibilidades mexidas pelas
estranhezas de sentimentos que trazem reflexões críticas sobre os lugares outros,
heterotópicos, frente as durezas dos números que não cansam de nos escanda-
lizar e criar covas rasas.

Com ousadia, colocamo-nos a pensar nos grupos de WhatsApp como exemplo


contemporâneo de cotidiano, lugar de estudo, trabalho, mas também de prazer

CURRÍCULO E ESTÉTICA DA ARTE DE EDUCAR


e de invenção, em que se está e não se está, em que se pode ser um e outro,
assim como nos colocamos a pensar na casa, lugar instituído a priori como lu-
gar de moradia, mas ressignificado como um lugar que é absolutamente outro
quando os olhos do trabalho entram pela tela do celular, tablete ou computador
e visualizam a professora juntamente com os portarretratos, as cores desbotadas
e buracos das paredes, os corpos mal ou pouco vestidos que passam por trás das
cadeiras ou ainda os gritos das crianças que, mesmo sabendo que a mãe está tra-
balhando, insistem em perguntar sobre como se faz o dever. Afinal, se a mamãe
é professora deles, é minha também, talvez pensem.
241
Entre tantos aprendizados, confusões, desesperanças e surtos diários provocados
por este novo cenário, um alento! Pausa forçada na educação remota que nos
sufoca com mensagens que revelam esquecimento sobre a ordem dos dias da
semana, desmemoriadas sobre o conceito de domingos e de feriados: as docen-
tesalunasmãestrabalhadoras param para apreciar um desenho das pequeninas
que, por não terem suas atenções, buscam ao seu gosto o que fazer. Por alguns
minutos, paramos qualquer plantão de notícias que parecem irreais ou tutorial
sobre como usar a plataforma x, y ou z para aulas e somente apreciamos as pe-
quenas na sua produção artística, capturadas, sem se darem conta, pelas câme-
ras de celular sempre a postos.

Para o alento sufocante do dia a dia da educação remota, momentos de captu-


ras tornaram-se rotineiros. Uma magia, um fascínio que não é só o da mãe que
acha lindo tudo o que faz a cria em crescimento. As imagens compartilhadas
no grupo despertam nossos olhos espertos que buscam decifrá-las ou deter-
minar os estágios de aprendizagem da criança criadora, mas o fato é que elas
rizomaticamente somem as nossas explicações. São momentos de alegria com-
partilhados e, talvez por isso, a sensação de deslocamento a um lugar outro,
imaginado e colorido.

Os desenhos contam histórias e, por que não, ensinam a fugir da lógica da


pandemia, embora sejam/estejam atravessados por ela. Histórias que as crian-
ças transpõem para o papel e que chegam ao grupo pela captura fotográfica, a
apropriação artística das outras mulheres que, em meio ao caos de suas vidas,
enxergam, nas folhas rabiscadas das crianças, a aprendizagem e muitos tons de
leveza para continuar o dia que segue e se emenda com a noite.

Trazemos, portanto, as artes de fazer das mulheres e das crianças. A arte que faz
parte das experiências de ser das crianças, inserindo-se muito espontaneamen-
te nas suas brincadeiras, e que permite às mulheres dar continuidade aos seus
processos de aprender, agora que a escola está fechada, e realizar outras tarefas,
sendo adotada como tática. A produção de desenhos é possibilitada pelas mães
para deslocar as crianças e, mais do que ocupá-las, permite às mulheres estarem
e produzirem com elas espaços de criação, inventividade e de imaginação.
242 Na ilustração a seguir, apresentamos, alguns desenhos feitos pelas crianças, de
diferentes idades, ao longo dos meses em isolamentos social. Observamos neles
“MAMÃE, VAMOS NOS ESCONDER?”: AS ARTES CRIANCEIRAS
EM TEMPOS DE MONSTRUOSIDADES NECROPOLÍTICAS

representações dos mundos das crianças em distintas fases, desde a garatuja


(último da fileira inferior, à direita) até os desenhos de bandeiras de diferentes
países (primeiro da fileira superior, à esquerda), que simbolizam preferências
musicais, exploradas mais a frente; também de participantes de um reality show
chamado Big Brother Brasil (terceiro da fileira superior, à direita), e o perso-
nagem de desenho animado Bob Esponja, calça quadrada (primeiro da fileira
inferior, à esquerda).

Por meio das produções, é possível termos ideia também do grau de elaboração
das pinturas, cores, traços, detalhes que demandam pensar no que se quer re-
presentar, como e por quê, quais cores usar, que tamanho cada elemento terá,
enfim, para ficarem (ou quase) do jeito que a imaginação almejou. Frente ao
caos pandêmico, a arte se torna acontecimento heterotópico. Pela arte, é possí-
vel imaginar outro lugar no mundo ou fora de seus limites, agora todo ocupado
pelo medo, um lugar em que brincar, sonhar, imaginar ainda é possível mesmo
com a enxurrada de notícias estarrecedoras.
ILUSTRAÇÃO 1 – Mosaico de desenhos feitos no isolamento social

CURRÍCULO E ESTÉTICA DA ARTE DE EDUCAR


Fonte: Fotos disponibilizadas pelas interlocutoras da pesquisa, 2020.
243

O espaço da casa agora precisa ser, mais do que nunca, o espaço das artes e é
com tal realidade que queremos aqui dialogar: de fazer comida contando histó-
ria sobre legumes, de fazer bolo com a ajuda das pequeninas, de inventar jogos
e mais jogos para passar o tempo, de criar castelos com tampinhas de garrafas
PET, de modelar com massinha colorida uma mensagem enorme de “mamãe,
nós te amamos” e grudá-la no corredor, mas sobretudo com as artes de misturar
cores primárias para fazer surgir as secundárias, tão desejosas de fazer surgir
mais colorido, como resultado de magia, feitiço ou encantamento.

Como são arteiras as mulheres e suas crias em isolamento social; precisam,


mais do que nunca, serem arteiras para produzirem artes e sentidos outros para
as palavras que buscam colonizar o cotidiano, que nem sempre são positivas.
Preferimos aquelas ligadas às traquinagens, subversões e molecagens do me-
nino/a danado/a que insiste em não descer dali. São e precisam ser espertas,
sagazes, engenhosas para reinventar suas existências, criando e inventando mil
aventuras em casa, produzindo artes e sendo travessas, com sutileza e sensibi-
lidade, com risadas emocionadas e escandalosas via áudio ou textos em Caps
Lock, capazes de calar as angústias de não saber para onde estamos indo. Não
sabem, mas as arteiras dão as mãos, completa e absolutamente higienizadas
com tintas, e vão juntas.

A tinta guache (re)colorindo o #fiqueemcasa


“Mamãe, vamos nos esconder?”. 23h49, de uma segunda-feira, fazendo a se-
gunda voz em um áudio sobre assuntos diversos – aquelas conversas em que
se perde o fio do começo e não há fim –, ouvimos a insone filha de Gabi con-
vidando-a para alguma brincadeira. Muitas vezes, Gabi se questiona se não é
muito permissiva por criá-la assim opinativa, expressando livremente vontades e
desejos. Não raro se culpa por trabalhar além da conta e perder o crescimento
da filha. Maldito capital!, vira-e-mexe xinga a superexploração de seu corpo e
de sua força de trabalho enquanto movimenta-se para concentrar tudo em um
244
único lugar de trabalho, pelo menos. Pelo sim ou pelo não, opta por educá-la
“MAMÃE, VAMOS NOS ESCONDER?”: AS ARTES CRIANCEIRAS
EM TEMPOS DE MONSTRUOSIDADES NECROPOLÍTICAS

com mais diálogo e respeito, explorando o mundo com ela. Enfim, o áudio ter-
mina com um “vamos nos esconder, sim, filha”, já na quase terça-feira.

No grupo, todas são professoras da Educação Básica, convivem, aprendem com-


-e-ensinam crianças, adolescentes e jovens adultos. A maioria têm filhos/as ou
sobrinhas/os ou afilhados/as sob seus cuidados: 01 tem uma filha de 02 anos e
9 meses; 01 tem um filho de 03; 01 tem filhos adolescentes, mas convive com
sobrinhos/as de 7 anos; 01 não tem filhos/as, mas cuida de uma afilhada de 02
anos, que inclusive fez aniversário durante o isolamento.

São pedagogas, cientistas sociais/sociólogas, historiadoras, todas formadas em


nível de pós-graduação. São de origem de classes populares, periféricas, filhas
de nordestinos/as e nortistas que no Rio de Janeiro chegaram em busca de refú-
gio e trabalho, de empregadas domésticas. São as filhas, netas de mulheres de
muita luta que antes delas vieram e se estabeleceram em lugares periféricos do
bonito estado do sudeste em que muitos/as sonham em passar férias. Todas têm
rotinas em mais de um lugar de trabalho, em distintos bairros da capital e de
outros municípios da Baixada Fluminense. São professoras ou coordenadoras
pedagógicas, além de serem alunas de pós-graduação.

Antes de Gabi aceitar o convite para se esconder com a filha, como se não hou-
vesse aula remota amanhã, Vivi pediu socorro: metodologia. Por volta das 21h,
mandou um áudio “arrasem e me ajudem”. Depois disso, com certeza, entrou
no mundo da sua pesquisa, pois não mais retornou. Flavs também sumiu, talvez
estivesse lendo seu referencial teórico. Bel passou a madrugada escrevendo arti-

CURRÍCULO E ESTÉTICA DA ARTE DE EDUCAR


go. Assim terminou mais um dia para as mães, professoras, doutorandas, respon-
sáveis pelo cuidado do lar: “Por favor, desligue seu microfone. Tem uma criança
gritando no fundo”, “estão me ouvindo? Eu tenho que passar pra você a atividade
de avaliação do segundo ano”, “erro... acesso negado... verifique o servidor”, “a
chamada está sendo feita, respondam!”, “professores não podem ficar inativos
por mais de 48h na plataforma, reforço a importância do diálogo contínuo com
os estudantes, mesmo fora do horário da aula... atenciosamente, o coordenador”.

Completamente exaustas, descansam ou desmaiam na cama? Não parece im-


portar, pois o trabalho as despertará às cinco, seis da manhã para maquiar a 245
casa e o rosto antes de aparecerem na tela para interagir com alunos/as. Mesmo
tendo “preguiça de vaidade”, Bel diz que gosta de batom e que seus “alunos
cobram!”. O ensino remoto na escola dela começa em setembro e ela já anda
tendo pesadelos sobre como fará isso, no Fundamental I, pois tem alunos/as com
necessidades educacionais especiais, como autismo. Como fará não sabe, mas
trabalhará, pois precisa. O batom também nos parece livre de dúvidas; mesmo
que não gostasse, não poderia aparecer na tela de qualquer jeito, descabelada
ou com remelas.

Falamos aqui de mulheres responsáveis pelo sustento de suas casas e de familia-


res, sozinhas ou com seus maridos e amigas, o que corrobora com uma pesquisa
realizada pelo Observatório da Federação Brasileira de Bancos, a Febraban, em
parceria com o Instituto de Pesquisas Econômicas, Sociais e Políticas, o IPESPE,
em julho de 2020. O levantamento realizado, “com 1,5 mil chefes de família,
homens e mulheres responsáveis pelo sustento da casa (isoladamente ou de for-
ma compartilhada), de todas as regiões do país”, revelou que mulheres assu-
miram o orçamento doméstico em mais de 50% dos lares (FEBRABAN-IPESPE,
2020, s. p.).
No entanto, o orçamento doméstico já era assumido por mulheres antes. O fato de
Gabi trabalhar em 6 escolas dialoga bastante com essa pesquisa. Como professo-
ra de Sociologia/Filosofia tem menos tempos no horário curricular, e certamente
o número de escolas reflete motivações financeiras, subsistência. As disciplinas
que leciona vivem sob ameaças constantes de terem seus tempos reduzidos a
zero por agentes estatais adeptos às teses de que professoras como Gabi são dou-
trinadoras que carregam outro vírus, o esquerdovírus, disseminando-o por meio
de lavagem de cérebros em prol do comunismo. Não raro, tais agentes alegam
que Sociologia e Filosofia nem são importantes o suficiente para a educação que
se quer para o Brasil, que deve ser pautada em números, tecnologia.

Gabi, no meio disso tudo, ainda precisa organizar seu tempo para corrigir avalia-
ções de seus muitos/as alunos/as, programar o envio de e-mails em massa para
as turmas com mensagens de estímulos que o coordenador pediu e pensar nas
atividades das disciplinas que serão dadas na semana, isso tudo sem se esquecer
de alimentar, brincar, além de ensinar, educar sua filha, que, não adianta, não
dorme cedo, mas acorda cedinho pela manhã. As figuras a seguir ilustram um
246
pouco da rotina da pequena insone com a arte.
TÍTULO

ILUSTRAÇÃO 2 _ A filha insone de Gabi

Fonte: Fotos disponibilizadas pelas interlocutoras da pesquisa, 2020.


A escola remota parece uma live sem fim, não acaba. A casa de Gabi agora é o
espaço de, no mínimo, nove: suas seis escolas, além de ser o espaço da escola
da filha e o espaço das escolas do marido, também professor. No entanto, em
meio a isso tudo, a casa ainda é o espaço em que a família de Gabi mora. Nessa
perspectiva, criar espaços utópicos com o cavalete de desenhos nos parece não
só a Gabi tentando fugir dos prédios e agentes escolares que agora invadem até
seu banheiro com avisos sobre notas não lançadas e diários não preenchidos no

CURRÍCULO E ESTÉTICA DA ARTE DE EDUCAR


isolamento; o cavalete serve como modo de acompanhar o desenvolvimento da
filha, uma das breves alegrias desse tenso período para ela: estar mais próxima
da menina.

Começamos a nos questionar quem ensina quem quando vemos Gabi fascina-
da com as artes produzidas pela filha, tentando avidamente, e com seu humor
inconfundível, decifrá-las não para os diários escolares ou para avaliá-las com
notas de 1 a 10. Naquele momento, quem cuida de Gabi é a pequena insone,
ativando sua imaginação, retirando-a do mundo do capital maldito, do álcool
em gel, do vírus, do tal de novo normal... de tudo. Por um momento, ambas se
247
convertem em estado de folia.

Pintei só um pedacinho da parede para ele desenhar. O estado de folia na casa


de Flavs se materializa em uma parede azul, ou melhor meia parede azul e che-
ga até o grupo pela fotografia: “Que belezuraaaa”, “Linda!”, reagiram Gabi e
Bel. A história dessa parede é incrível, pois nos parece a tentativa de criação de
um lugar fora de todos os espaços da casa, o outro lugar, ainda que nela, ainda
que fixo. A mãe, agora isolada socialmente com seu filho e marido, tendo que
sair para comprar apenas itens essenciais para manter sua subsistência, muda
sua rota do mercado para uma loja de tintas, e nela compra uma lata de tinta
azul, inconfundivelmente azul, uma que já é própria para que crianças risquem,
rabisquem sem, certamente, danificar as demais paredes da casa.

Não podemos deixar de lembrar dos lendários tapetes voadores do Oriente dos
quais nos fala Foucault (2013, p. 24): antes o cavalete e agora a parede azul,
assim como o tapete, parecem ter significação mágica, constituindo-se como
lugares de utopia. Chamativa, inconfundível, tentadora e convidativa, parece
berrar risque-me sem medo de ser feliz assim como o tapete nos convida para
dar uma volta pelo céu. Claro que, em uma das fotos, perfeitamente se vê o giz
saindo dos limites do azul, que é inconfundível. A partilha de alegrias em cliques
já era tão parte do grupo que é óbvio que alguém se perderia tanto na belezura
da foto a ponto de reparar a rebeldia do pintor.

Na ocasião, também nos colocamos a imaginar, seguindo a vertente engraçadi-


nha-mas-intelectual, comentamos o quanto que era sensacional a indisciplina
do pequeno arteiro e que esta parecia ser um traço humano, a não aceitação
a ser enquadrado. Quando menor, maior a resistência? Tanto espaço azul e o
pequeno de ousadia lá no limite entre o permitido e o proibido. Por mais lindo
que seja o espaço, a imaginação e a capacidade de desenhá-la ultrapassa a meia
parede. Gabi complementou dizendo que também fez uma parede no quartinho
de sua filhota, mas que o giz a trazia de volta para a realidade, pois lhe dava uma
baita alergia.

O guri apenas estava desenhando a sua casa como a imagina, com janelas,
chaminé, plantas na frente, mas o grupo é de professoraspesquisadoras, prati-
248 cantespensantes, problematizadorascríticoengraçadinhas e ficamos ali a imagi-
nar muitas possibilidades para a imagem: o corpo do pequeno não se deixaria
“MAMÃE, VAMOS NOS ESCONDER?”: AS ARTES CRIANCEIRAS
EM TEMPOS DE MONSTRUOSIDADES NECROPOLÍTICAS

disciplinar pela mãe pedagoga tão facilmente e Bel, no seu momento visitante
do museu cotidiano do WhatsApp, imaginou que o guri pensava algo como nin-
guém me controla aqui nessa meleca!, porque o original mesmo foi um exemplo
clássico do falar cariocado cheio de palavrões nas vírgulas. Normal, o nosso
normal, que nada tem de novo.

De súbito, voltamos a falar sobre assuntos acadêmicos que estavam na ordem do


dia porque as mensagens não cessam e invadem os limites da nossa parede azul,
que tanto nos aconchega na dureza dos dias que já não sabemos quais são, só
sabemos que parece que trabalhamos mais. Digo voltamos, mas nunca deixa-
mos o mundo acadêmico de lado, já o modificamos há muito, já acrescentamos
tantas camadas de “me recuso a surtar” com pitadas de “a gente vai rir sim”!

Os jeitos que misturamos nossas teorias e conceitos favoritos aos mais triviais
assuntos é uma das coisas mais bonitas e engraçadas do grupo. Talvez o simples
fato de escrever isso escandalize até os murais pomposos que anunciam defesas
sérias e sisudas nas paredes das universidades, mas é um elemento importante
na nossa central de apoio acadêmico. Entre um áudio e outro de “meninas, me
ajudem”, Gabi aparece para nos levar de volta para aquele mundo com mais
cor, complementando que “o corpo da criança não é dócil”, enquanto ria.

ILUSTRAÇÃO 3 _ A parede azul do filho de Flavs

CURRÍCULO E ESTÉTICA DA ARTE DE EDUCAR


249

Fonte: Fotos disponibilizadas pelas interlocutoras da pesquisa, 2020.

Flavs mudou a sua mesa de trabalho para o quarto do filho: “para a gente ficar
perto enquanto estudo”. Ele brinca, imagina, ela cuida, mantendo-o em seu cam-
po de visão enquanto estuda. Só que, assim como, em nossas casasescolas, so-
mos transportadas magicamente para lugares outros por meio da imensidão azul,
Flavs estuda, mas também pega carona no tapete voador possibilitado por ela ao
pequeno. Todas nós somos beneficiadas com ele, todas aprendemos com ele em
nossos estudos entrecortados pelas análises das criações das nossas arteirinhas.

A viagem acaba quando começamos a falar sobre o conteúdo das lives do Se-
cretário Estadual de Educação (RJ), Pedro Fernandes Neto. Parece que ele só se
comunica assim agora e o que diz não dá vontade de rir, embora pareça piada:
enviar exercícios por SMS para as turmas que, muitas vezes, sequer aparelho
de celular têm e lutam para conseguir lavar as mãos, em lugares onde a falta de
água é rotineira, como Manguinhos e Complexo da Maré, desabafa Gabi em
uma de suas mensagens no WhatsApp.

Memórias do cárcere (Quarentena) da afilhada. Na casa de Bel, o chão e a


agenda, ou planner, é que se tornam outros espaços, tornam-se acontecimen-
tos. Segundo narra, a pequenina gosta de montar legos, brinca com tampinhas
de garrafa PET, risca agendas, espalha papel, mas ama mesmo destruir o que
montou. “Vai entender criança”, diz Gabi, ouvindo o relato e complementando
que sua filha ficava impaciente com o pai montando legos, todo certinho, tudo
bonitinho, “tudo manerão” e “ela quebrava tudo”. “A gente cria umas ideias na
nossa cabeça, a criança quer só brincar sem compromisso”, diz Bel. Flavs apa-
rece e diz que seu filho também adora montar coisas. Falaram um pouco sobre a
visão adultocêntrica que depositamos sobre as crias, no sentido de colocar nelas
o peso das regras a seguir e jeitos únicos de brincar. “Isso... dos nossos corpos
disciplinados e docificados”, complementa Gabi.

O grupo agora viaja pelos desenhos da afilhada de Bel, ou suas memórias do


250 cárcere, como podemos ler no rodapé da agenda, agora personalizada especial-
mente para a professora.
“MAMÃE, VAMOS NOS ESCONDER?”: AS ARTES CRIANCEIRAS
EM TEMPOS DE MONSTRUOSIDADES NECROPOLÍTICAS

ILUSTRAÇÃO 4 _ Memórias do cárcere da afilhada de Bel

Fonte: Fotos disponibilizadas pelas interlocutoras da pesquisa, 2020.


Os desenhos do meu sobrinho são sensacionais. Na casa de Vivi, as preferên-
cias individuais ganham destaque nos desenhos do sobrinho de 7 anos. São
desenhos animados, programas de TV, grupos musicais, mas também o amigo,
distante do toque e do espaço do abraço, das brincadeiras em que temos a cer-
teza de que o corpo é topia (FOUCAULT, 2013), em que sujar as mãos é quase
que uma exigência. Segundo Vivi, ele sempre retrata o amiguinho nas artes. No
papel, imaginamos que é como se estivessem juntos novamente, as cores sujam,

CURRÍCULO E ESTÉTICA DA ARTE DE EDUCAR


em um ótimo sentido, o branco sem graça da folha e aproximam os corpos dos
amigos saudosos de afeto no espaço tamanho A4; assim o confinamento ganha
outra significação.

São do sobrinho de Vivi também as produções que retratam o Big Brother Brasil e
o Bob Esponja, as quais revelam o espaço heterotópico aberto pela televisão para
as crianças um pouco maiores no #fiqueemcasa. Reagimos com “Muito lindo!
Adorei” enquanto Gabi exclamou um “Genteeee” em que cabe tanta coisa. O
BBB se tornou uma festa coletiva no início da pandemia. Lá em março, até quem
não acompanhava o programa passou a saber tudo sobre seus personagens, par-
251
ticipava das festas, comentava os acontecimentos e berrava com as eliminações
dos menos favoritos. Ouvíamos parte da vizinhança berrando e batendo palmas,
como em final de campeonato, “BABU, BABU” enquanto outros vaiavam. Era,
no mínimo, engraçada a experiência de estar em casa trancafiado/a assistindo a
um reality show cujo enredo se desenrola em torno do confinamento.

ILUSTRAÇÃO 5 _ Os sensacionais desenhos do sobrinho de Vivi

Fonte: Fotos disponibilizadas pelas interlocutoras da pesquisa, 2020.


Talvez o sobrinho dela tenha entendido um pouco melhor o que era uma pan-
demia e o que é necessário para superá-la ou vencê-la em comparação com as/
os demais arteiros/as por conta de sua idade. A percepção ganha ainda mais
potência se soubermos que o “Now United” é um grupo musical formado por
integrantes de diversos países do mundo, muito famoso entre o público infantil,
que teve que adiar sua turnê, que passaria pelo Brasil, em março, por causa da
COVID-19. Imaginamos que o menino aprenda muito sobre a doença por meio
dessas interações com a televisão aberta o tempo todo e com a escola que, ago-
ra fechada, não o deixa ver suas amigas, amigos e professoras. Talvez só esteja
entediado com tudo e com muita saudade de ser arteiro em sentidos outros,
arriscamos dizer quando nos imaginamos crianças arteiras com muito potencial
para a molecagem.

A arte de concluir o que ainda está em acontecimento


Somos pessoas se apoiando nesse caos. Ainda estamos em casa, as artes ainda
252
nos transportam para momentos de alegria e risadas tão frouxas quanto as más-
“MAMÃE, VAMOS NOS ESCONDER?”: AS ARTES CRIANCEIRAS
EM TEMPOS DE MONSTRUOSIDADES NECROPOLÍTICAS

caras dos governantes negacionistas, os quais seguem largando a própria sorte


tantas pessoas pobres para as quais parar é sinônimo de luxo. Ainda não estamos
de volta aos transportes superlotados que pegamos em dias comuns de trabalho,
no que chamávamos de rotina, mas já circula a notícia de que as aulas presen-
ciais retornam em outubro.

Na televisão, a todo momento fala-se no tal “novo normal” e ficamos a nos per-
guntar o que seria se os que morriam antes são os que continuam morrendo, se
os/as professores/as, como nós, que eram massacrados/as antes pela opinião pú-
blica continuam sendo por aparentemente serem frescurentos/as e adeptos/as à
vadiagem por se recusarem a arriscar suas vidas e de suas/seus alunas/os em um
retorno escolar pensado para dar conta do delírio governamental da imunidade
brasileira ao vírus – surrealidade que para muitos/as parece trazer algum tipo de
conforto e transforma a realidade das 110 mil mortes em mentira.

Estranhos tempos, estranha doença. Enquanto isso continuamos com a “soro-


ridade da práxis”, como disse certa vez Gabi, ao falarmos desta pesquisa no
nosso grupo. Quimioterapia, pós-graduação, disciplinas online, maternidade,
educação remota a todo o vapor, nossas relações afetivas na corda bamba da
volatilidade das emoções nesse contexto... tudo segue em modo de resistência
contínua para que nenhuma fique para trás ou sozinha.

Estamos exaustas, mas transformamos em confete e serpentina tudo o que pode


parecer pequeno perto de uma palavra horrenda e assustadora como pandemia:
desenhos, fotografias, abraços virtuais, áudios com risadas, entregas de comidi-

CURRÍCULO E ESTÉTICA DA ARTE DE EDUCAR


nhas, compartilhar virtualmente a sensação gostosa que é sentar-se para relaxar
tomando uma bebida com gosto de malte enquanto as/os demais moradores/as
dormem ou de transformar a lavagem de legumes em um grandioso aconteci-
mento para as crias.

Nossa rede de apoio também tem desconhecido a ordem dos dias da semana e
o conceito de domingo e feriados e isso é um efeito da pandemia também. O
grupo comprova que um mito das mulheres serem competitivas entre si foi cria-
do para que nos odiássemos, como pontuou Gabi. Isso nos é imposto, nos causa
problemas dos mais diversos, Bel complementa. Estamos exaustas de tudo e ain- 253
da temos que lutar contra a ideia muito bem estabelecida de que nos odiamos.

Nessa bonita conversa sobre a solidariedade ativa entre nós, todas se manifesta-
ram e se expressaram sobre experiências enlouquecedoras que nos atravessam
enquanto mulheres porque, como analisamos aqui, ousamos existir e não nos
privamos de frequentar espaços para além dos limites impostos. Sonhamos e
colocamos os sonhos em prática com a ajuda de tantas outras. Somos como o
arteiro pintando o azul e o branco da parede. Quando não estamos pintando,
estamos ajudando outras a colorir espaços e a enxergar cor onde não parece ter.

No mundo de faz de conta dos Bolsonaros, mulheres arteiras precisam ser si-
lenciadas à força para não servirem de exemplo para as que infelizmente já
tiveram suas vozes roubadas antes mesmo de a ouvirem soar. Não sabemos, de
fato, como tudo terminará e quando sairemos novamente de casa para além de
comprar e fazer o essencial, mas, com nossas artices e risadas escandalosas,
avançamos e seguimos tentando avançar, de preferência, vivas.
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“MAMÃE, VAMOS NOS ESCONDER?”: AS ARTES CRIANCEIRAS
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1ed. Petrópolis: DP et Alli, 2012. p. 47-70.
VEIGA-NETO, A. Foucault e Educação. BH: Autêntica Editora, 2011.
11.

256
TÍTULO
VESTIDO,
QUIMONO
E PERUCA:

CURRÍCULO E ESTÉTICA DA ARTE DE EDUCAR


PRODUÇÕES
NARRATIVAS E
IMAGÉTICAS DE SI,
ROSTIDADE E
PROFESSORAS 257

EM DEVIR
Maria da Conceição Silva Soares
Simone Gomes da Costa
Maria da Conceição Silva Soares (UERJ)
Simone Gomes da Costa (UERJ)

“Se quer seguir-me, narro-lhe;


não uma aventura, mas experiência,
a que me induziram, alternadamente,
séries e raciocínios e intuições.
Tomou-me tempo, desânimos, esforços.
Dela me prezo, sem vangloriar-me”
(ROSA, 2019, p. 69).

258
Ao lançarmos mão da frase do narrador-personagem do conto O espelho, de
João Guimarães Rosa, “Se quer seguir-me, narro-lhe”, fazemos um convite ao
VESTIDO, QUIMONO E PERUCA
PRODUÇÕES NARRATIVAS E IMAGÉTICAS DE SI: ROSTIDADE E PROFESSORAS EM DEVIR

compartilhamento pelo leitor das experiências narradas por professoras sobre as


suas formações docentes, entremeadas, indissociavelmente, por seus sonhos e
trajetórias de vida, a partir do recorte e do registro de alguns fragmentos destas
narrativas que aqui tivemos o critério de transcrever. Para tanto, nos debruçar-
mos sobre a pesquisa em andamento intitulada Professoras em devir: fabulações
imagéticas de si, problematizações do feminino e implicações para a docência1,
cuja proposta consiste na criação de espaçostempos para, através de fabulações
imagéticas sobre si, simultaneamente, interrogar, refuncionalizar, potencializar,
esgarçar e alargar as tessituras das redes de práticas e significações de professoras
sobre o feminino e a docência, suas potências e invenções, e, dessa forma, por
tabela, problematizar o sistema corpo-genêro-sexualidade. Interessa compreen-
der como nessa tessitura de estéticas de existência se estabelecem articulações

1 Pesquisa desenvolvida na Universidade do Estado do Rio de Janeiro, no Grupo de Pesquisa CNPq “Currículos, Audiovisuais e
Diferença”, coordenado pela professora Maria da Conceição Silva Soares. E-mail: ceicavix@gmail.com.
entre saber e poder, se exercitam relações de força e se constituem as disputas
em torno das significações e da criação de valores forjados com os múltiplos
contextos de formação e com as redes curriculares tecidas cotidianamente e,
com isso, criar espaçostempos para produzir com as mulheres que participam
da pesquisa novas/outras imagens de si e outras/novas imagens para pensarmos
a docência e os currículos. A produção de ensaios fotográficos e videográficos
das professoras, nos quais elas decidiram como se darão a ver, como querem ser

CURRÍCULO E ESTÉTICA DA ARTE DE EDUCAR


vistas e ouvidas, pode se constituir em um espaçotempo para que esses objeti-
vos, juntos e misturados, sejam exercitados.

Neste artigo, vamos nos valer do conto rosiano O Espelho a fim de fazer uma
aproximação e buscar decantar das experiências narradas pelas professoras par-
ticipantes da pesquisa os conceitos de rosto e rostidade desenvolvidos por De-
leuze e Guattari (2012), em Mil Platôs. No conto, o narrador é surpreendido por
sua imagem refletida em um jogo de espelhos em um banheiro público e, de
imediato, de pronto, não se reconhece nela. Sua reação diante da imagem que
vê refletida, o efeito perturbador que ela causou nele, foi o que nos sugeriu, nos
259
remeteu, de saída, ao conceito de rostidade dos autores. No decorrer da história
de Guimarães Rosa, o personagem narra as suas inquietações, questionando as
limitações próprias do olhar, que padecem de viciação. Ele narra as suas refle-
xões, série de raciocínios e intuições, a sua experiência em uma procura do eu
por detrás de mim. A seguir, nas palavras do escritor, o seu espanto inicial:

Dois espelhos – um de parede, o outro de porta lateral, aberta em


ângulo propício – faziam jogo. E o que enxerguei, por instante, foi
uma figura, perfil humano, desagradável ao derradeiro grau, repul-
sivo senão hediondo. Deu-me náusea, aquele homem, causava-me
ódio e susto, eriçamento, pavor. E era – logo descobri... era eu mesmo
(ROSA, 2019, p. 71).

O rosto, segundo Deleuze e Guattari (2012, p. 36), não é invólucro exterior, mas
sim produzido através de operações de significação e processos de subjetiva-
ção. Nele, como em um muro, se constrói uma superfície onde os significantes
são inscritos e também se escava o buraco que a subjetivação necessita para
atravessar. É esboçado no muro branco, onde inscrevem-se os signos, e no bura-
co negro, necessário para processos de subjetivações, paixões e redundâncias.
Marques (2015), pautada pelo pensamento destes autores, de modo bastante
contundente, pontua que o rosto não é um universal. Rosto é política. É uma
produção (p. 167).

Os rostos não são primeiramente individuais, eles definem zonas de


frequência ou de probabilidade, delimitam um campo que neutrali-
zam antecipadamente as expressões e conexões rebeldes às significa-
ções conformes. Do mesmo modo, a forma da subjetividade, cons-
ciência ou paixão, permaneceria absolutamente vazia se os rostos
não formassem lugares de ressonância que selecionam o real mental
ou sentido, tornando-o antecipadamente conforme a uma realida-
de dominante. O rosto é, ele mesmo, redundância. E faz ele mesmo
redundância com as redundâncias de significâncias ou frequência,
e também com as de ressonâncias ou de subjetividades (DELEUZE;
GUATTARI, 2012, p. 36).

O reflexo inquietante com o qual o personagem se depara, tentando, sem su-


cesso, reconhecer-se nele, pensamos ser possível relacioná-lo à projeção da ros-
tidade. Uma imagem constituída pelos processos da máquina abstrata a partir
260
não de aspectos humanos, mas políticos e econômicos associados às relações
VESTIDO, QUIMONO E PERUCA
PRODUÇÕES NARRATIVAS E IMAGÉTICAS DE SI: ROSTIDADE E PROFESSORAS EM DEVIR

de poder. Daí o não reconhecimento por parte tanto do personagem do conto,


que busca reconhecer-se na imagem refletida no espelho, como das professoras
apresentadas neste trabalho, ao narrarem fragmentos de suas experiências e tra-
jetórias docentes em contextos que a remeteram à ação deformadora da engre-
nagem da máquina abstrata (DELEUZE-GUATTARI, 2012) – que surge quando
não a esperamos nos meandros de um adormecimento, de estado crepuscular,
de uma alucinação, de uma experiência de física curiosa (p. 37). Guimarães
Rosa, mediante a narrativa de seu personagem, adverte aos incautos:

Se nunca atentou nisso, é porque vivemos, de modo incorrigível, dis-


traído das coisas mais importantes. E as máscaras, moldadas no rosto?
Valem, grosso modo, para o falquejo das formas, não para explodir da
expressão, o dinamismo fisionômico. Não se esqueça, é de fenôme-
nos sutis que estamos tratando (ROSA, 2019, p. 69).

E nós perguntamos: tais fenômenos sutis descritos por Guimarães Rosa não se-
riam, justamente, os que operam as inscrições da rostidade, como proposto por
Deleuze e Guattari? Seriam as máscaras moldadas no rosto?! A superfície onde
se faz a planificação, o falquejo das formas para que não haja a explosão da
expressão, nem os dinamismos fisionômicos?

Os rostos concretos nascem de uma máquina abstrata de rostidade,


que irá produzi-los ao mesmo tempo que der ao significante seu muro
branco, à subjetividade seu buraco negro. O sistema buraco negro-
-muro branco não seria então já um rosto, seria a máquina abstrata que
o produz, segundo as combinações deformáveis de suas engrenagens.

CURRÍCULO E ESTÉTICA DA ARTE DE EDUCAR


Não esperemos que a máquina abstrata se pareça com o que ela pro-
duziu, com o que irá produzir (DELEUZE; GUATTARI, 2012, p. 37).

Buscamos destacar em nossos trabalhos as praticantespensantes dos cotidianos,


por entendermos, em acordo com a linha de pesquisa à qual nos associamos,
a relevância dos saberesfazeres que as mesmas produzem em suas respectivas
práticas pedagógicas e os modos como vão se constituindo como professoras.
O enredamento dos diferentes fios que compõem a produção do conhecimento
em rede possui, além da habilidade desenvolvida junto a sua formação inicial,
as tramas vivenciadas em suas trajetórias de meninas, mulheres, alunas, mães, 261
professoras e pesquisadoras. Interessa-nos, ainda, pensar como o emaranhado
de todos esses fios constituem as produtoras e as produções dos espaçostempos
das escolas, do fazer pedagógico e das aventuras do ensinaraprender. Em acordo
com os movimentos sugeridos pelas pesquisas nos/dos/com os cotidianos, faz-se
de grande importância, indispensável a incorporação dessas praticantes.

Nesse movimento, o mais importante nas pesquisas nos cotidianos é


identificar e incorporar os praticantespensantes com suas memórias de
suas tão diferentes criações culturais e curriculares tratando dos “co-
nhecimentossignificações” que produzem em suas tantas narrativas,
como resposta a suas necessidades cotidianas, com seus modos de
compreender o mundo e nele agir, nas tantas redes educativas que for-
mam e nas quais se formam (ALVES; CALDAS; ANDRADE, 2019 p. 33).

Trazemos para este artigo três professoras que se dispuseram a participar deste
projeto, com suas narrativas e produções imagéticas videográficas e fotográfi-
cas, feitas em estúdio montado pelo grupo de pesquisa, se autoapresentando
do modo como desejam ser representadas. Esses fragmentos e imagens con-
tribuem para reflexões pertinentes à problematização da máquina abstrata de
produzir rostos, incluindo-se aí o rosto-professora. Tatiana, Shênia e Anna Paula
são professoras de diferentes segmentos da educação e, ao narrarem episódios
pontuais de suas trajetórias de vida e formação, nos oferecem as pistas para
compreender o funcionamento, a maneira como opera esta engrenagem polí-
tica. A partir da reação, das respostas, dos olhares que obtiveram e refletiram
suas imagens, seus rostos, seus corpos, seus cabelos ou suas vestimentas, ou
seja, pelo efeito causado no outro diante de seus modos de existir, podemos
verificar em suas narrativas a ação da máquina abstrata de rostidades, identifi-
cando, classificando, distinguindo e discernindo como estas professoras subje-
tivam a existência, o modo como cada uma delas fabrica estética de existência,
sua produção de si e de mundo (KASTRUP, 2005 ), suas táticas (CERTEAU,
2012) de praticantes dos cotidianos, além de suas formas de habitar os espa-
çostempos do saberfazer pedagógico.

262
VESTIDO, QUIMONO E PERUCA
PRODUÇÕES NARRATIVAS E IMAGÉTICAS DE SI: ROSTIDADE E PROFESSORAS EM DEVIR
O vestido _ Tatiana

CURRÍCULO E ESTÉTICA DA ARTE DE EDUCAR


Imagens do acervo da pesquisa. Foto: Maíra Mello

Meu nome é Tatiana, sou professora de Artes. Eu comecei a lecionar


em 2012; em 2014, eu entrei na instituição privada onde trabalhei por
um ano e retornei ao ensino público onde, desde então, dou aula nos
turnos da manhã e tarde, para as turmas de fundamental I até o ensino
médio. Eu tive várias experiências com crianças, até adultos, porque 263
na EJA a gente pegava principalmente idosos retomando o ensino.
Diante disso tudo, eu já tive várias experiências de boas até experiên-
cias ruins. Começando pelo fato de que eu não queria ser professora,
apesar de ser formada em artes visuais, eu nunca pensei que eu iria
ser professora. Eu prometi para mim mesma no fundamental I que
jamais eu voltaria a pisar numa escola. Não foi o que aconteceu, né?!
Quando eu entrei na sala para dar aula, foi numa comunidade da
cidade de Vitória-ES, comecei a ver coisas diferentes e principalmen-
te a capacidade que eu, como professora, tinha de mudar a vida de
alguém. E foi a partir daí que comecei a enxergar a educação de ma-
neira diferente, em que eu poderia estar no comando da sala de aula,
que seria do meu jeito, porque desde pequena falava que nasci para
mandar e não para ser mandada. Quando eu vi que estava na posição
de mandar e não de obedecer, como quando fui criança, quando eu
sofri bullying e tinha que seguir o padrão da escola, percebi que eu,
como professora, seria diferente. Isso fez com que eu seguisse fazen-
do pós-graduação em arte-educação e tentasse os concursos públicos
para poder ingressar numa escola e ficar efetiva. Em 2016, eu fiz o
concurso e efetivei em 2017.
Na escola pública, no fundamental, onde eu cursei o primeiro ano
até a oitava série, até mesmo no ensino médio, não tive uma visão
de professor como alguém que me incentivasse a fazer alguma coisa.
Eu sofri muito preconceito em relação a uma síndrome que eu tenho,
que traz uma deformação craniofacial e afeta a audição. Eu usava
aparelhos auditivos desde um ano de idade e até entrar na faculdade,
o aparelho auditivo era extremamente visível, parecia um walkmen,
era uma coisa meio assustadora. Então, as crianças não queriam se
enturmar, nem eu mesma queria me enturmar com outras crianças
deficientes, e, naquela época, a escola não conscientizava quanto ao
bullying, preconceito, porque eu mesma fui sentir isso na pele, en-
tender o que era o preconceito, entender que o bullying era algo que
poderia me afetar na vida, eu já era adulta.
Quando resolvi fazer uma segunda faculdade – porque eu achava
que não queria ser professora – no último período, fui procurar está-
gio e eu teria que ter contato direto com o cliente; clientes de uma
classe social alta, era design de interiores e eu não consegui nenhum
estágio, porque todas as empresas foram bem claras em dizer que a
minha aparência física iria afetar o contato com o cliente, o contato
com o fornecedor, com depósito, então, apesar do meu currículo ser
bom para eles, a minha aparência física não era. Foi quando eu falei:
“o que eu vou fazer para mudar? Não tem como eu mudar minha
aparência física”.
Aí eu parei para pensar, eu já tinha dado aula, sofri preconceito na
época que eu era aluna, mas como professora eu nunca tinha sido
questionada, nem por meus alunos, nem pelos meus colegas de tra-
balho, sobre o que é que eu tinha, se isso ia atrapalhar meu traba-
264 lho. Claro que tem alunos que são curiosos e perguntam: “Tia, o que
aconteceu com você?” “Você está com sono?” “O que é isso na sua
cabeça?” Mas uma curiosidade natural, que nunca colocou minha
VESTIDO, QUIMONO E PERUCA
PRODUÇÕES NARRATIVAS E IMAGÉTICAS DE SI: ROSTIDADE E PROFESSORAS EM DEVIR

capacidade de trabalhar no meio disso tudo. Foi quando eu decidi


abandonar essa segunda faculdade no último período mesmo e me
dedicar à sala de aula. Daí resolvi mudar esse conceito de bullying
e preconceito de todas as áreas, seja um preconceito em relação à
aparência física, a gênero, à sexualidade, cor, raça, entre várias outras
coisas, e isso é um tema que eu abordo semanalmente nas salas de
aulas. Não é de vez em quando, é semanalmente, e tá sendo mais
natural do que foi na minha época, quando o professor não podia
nem parar para falar o que era. Eu tive uma professora que disse que
eu tinha que aprender a lidar com isso, principalmente os alunos, os
colegas xingando, batendo, botando apelido, a culpa era minha. Já
disseram que se eu nasci assim era porque meus pais cometeram pe-
cado no passado. Já ouvi de professor que pessoas deficientes têm que
andar juntas e não todo mundo junto. Agora, comigo em sala de aula,
é o contrário, todo mundo tem que andar junto, independentemente
de qualquer coisa.
As duas escolas em que trabalho – uma próxima da outra e também
uma mais violenta que a outra – têm um problema muito sério que é
a religião; a religião predomina na comunidade. Tudo que eu, como
uma professora, quero trabalhar, tem que passar pela comunidade an-
tes. Uma vez eu fui dar aula, era em março desse ano, eu estava com
este vestido, estava uma sensação térmica na sala de aula de 44°C,
um calor desses, a escola sem estrutura, sem ventilador, mas jamais
me preocupei com a maneira que eu iria me vestir. Quando chegou
lá no intervalo eu fui comunicada pela pedagoga que uma mãe me
viu acompanhando os alunos até a sala de aula e falou que tinha uma
piriguete dando aula, porque estava com um vestido curto. Então eu
conversei com a escola e ninguém me falou para ir mais com esse
vestido, porque a mãe não aprovara. Eu não me preocupei mais em
relação à roupa, mas me preocupo em relação ao que a comunidade
pensa da gente. Já questionaram a diretora sobre qual processo o pro-
fessor passa para estar lá. “É a diretora que chama?” Tem pai que acha
que a diretora vai na rua e cata um professor.

CURRÍCULO E ESTÉTICA DA ARTE DE EDUCAR


A professora Tatiana não atribui a sua escolha pelos espaçostempos escolares às
boas recordações de seu tempo de escola, assim como sua formação em artes vi-
suais também não despertou nela o desejo do exercício docente. Ao longo de sua
fala, vamos percebendo um pouco do caminho percorrido em seu processo de
formação e o momento que percebe que sua presença nos espaçotempos escola-
res, na condição de docente, poderia ser um lugar de produção de saberesfazeres
outros ao abordar temas como discriminação e preconceito, diferente do que
vivera na sua experiência como estudante. O lugar de poder que passou a ocu- 265
par não seria exercido com práticas de repetição do que vivenciara; ela escolhe
tratar sobre situações que abordam a diferença não como elemento de produzir
exclusão, mas com a abordagem constante sobre o tema para buscar despertar
em seus estudantes a possibilidade de pensar a diferença como potência.

A relação com a comunidade escolar, apresentada em sua fala, destaca os li-


mites que cerceiam seu cotidiano enquanto professora de artes. Há temas que
não podem ser apresentados por supostamente representarem uma oposição ao
pensamento dos religiosos que fazem parte do entorno.

O vestido da professora, em um dia quente de verão, lhe valeu uma classificação


que não atende aos enquadramentos do rosto professora. “Quais os critérios que
a escola usa para escolher seus professores?”, pergunta uma responsável. Há de
se repensar tais critérios quando as docentes que compõem a instituição não
possuem o rosto que a máquina abstrata o reconhece como pertencente a uma
professora. O currículo aqui entendido como o conjunto de saberes que com-
põem o fazer escolar deve se enquadrar no rosto aluno. A professora Tatiana não
se reconhece no rosto professora refletido no espelho do olhar do outro.
O quimono _ Shênia
Imagens do acervo da pesquisa. Foto: Maíra Mello

Eu brincava de ser professora, mas eu não tinha o sonho de ser profes-


sora. Pobre não tem o sonho de ser nada. Eu estudei no ensino médio
o curso técnico de contabilidade para ser auxiliar de contabilidade
ou, no máximo, secretária. Mas vim para o Rio aos 19 anos; sou de
uma cidade pequena, do interior, Nova Friburgo. Sofri muito precon-
ceito lá porque eu não sou apenas homossexual, eu sou homossexual
que dá uma mancha, uma pinta enorme. Perdi o meu primeiro empre-
go por conta de ser homossexual e aí vim para o Rio de Janeiro [...].
Quando comecei a fazer faculdade eu não queria ser professora, que-
266
ria trabalhar com tradução, por isso escolhi Português/Inglês, mas aí é
fogo, quando entrei na sala de aula para dar minha primeira aula, aí
VESTIDO, QUIMONO E PERUCA
PRODUÇÕES NARRATIVAS E IMAGÉTICAS DE SI: ROSTIDADE E PROFESSORAS EM DEVIR

f*** u de vez! Não existe um lugar que eu me sinta melhor que a sala
de aula e é por isso que é o lugar onde eu sou mais sapatão (risos),
porque eu me sinto muito confortável, eu me sito à vontade, eu fico
emocionada, eu fico muito feliz. Eu fiquei muito tempo longe de sala,
eu sinto falta, mas é impossível eu não ser eu mesma lá.
Meu ensino médio foi horrível, eu terminei muito nova, com 15 anos.
Eram professores que faziam bullying comigo, a própria direção che-
gou a me chamar só porque eu estava conversando com uma amiga
no banheiro; daí eu fui chamada pela direção do colégio porque en-
tendiam que eu queria experimentar coisas novas. Eu dizia assim: “eu
nem experimentei nada ainda, na verdade eu nem sei o que é o novo”
e isso foi muito difícil e foi assim a vida toda. [...]
Um dia, minha mãe foi me procurar na ginástica olímpica e eu não
estava lá. Eu estava querendo fazer Karatê. Eu já tinha brigado com
meia turma que tinha implicado comigo. E aí eu gosto muito do meu
quimono porque não tem quimono feminino ou masculino, não exis-
te essa diferença. No Karatê ocidental a gente, nos campeonatos, a
gente separou: mulher compete com mulher, homem compete com
homem, mas isso não existe no Karatê tradicional, você é uma pessoa
só e a gente tem um código de honra que a gente chama de “Dojo-
-Kun”, que são cinco mandamentos, todos eles começam com a pa-
lavra hitotsu, que significa “em primeiro lugar”, quer dizer que todos
são importantes, não existe uma coisa mais importante que outra e o
primeiro de tudo é respeito; respeito e cortesia. Então, quando você
veste um quimono e entra no dojo, você não é um homem, você não
é uma mulher, você é uma pessoa, e você precisa do outro. Se é mu-
lher, se é homem, se é criança, o respeito é sempre o mesmo. Então,
essa coisa de você se despir da sua sexualidade – porque você se
despe mesmo da sua sexualidade – para você virar uma coisa com os
outros, com um conjunto, isso faz eu me sentir muito bem. Mas é por
isso que o quimono é muito importante para mim. Foi lá que eu me
senti mais respeitada, foi lá que eu resgatei minha autoestima, que eu
entendi que os corpos não são mostrados, eles são respeitados pelas

CURRÍCULO E ESTÉTICA DA ARTE DE EDUCAR


suas idades, pelo que eles podem fazer, pelo que eles contribuíram
para o outro. Você não é boa porque faz o melhor movimento, você
é boa porque você serve para me ajudar a crescer também e esse é o
princípio da educação freireana, aprender com o outro o tempo todo,
Karatê você faz sozinho. E lá dentro você não tem isso, não tem um
homem que é o melhor. Por isso, para mim, isso é tão representativo,
eu coloco isso aqui e acabou, eu sou só a Shênia.

O quimono é uma peça relevante para Shênia, porque ele borra a imagem que
pretende classificar o corpo por gênero. Sem ele, o corpo não exibe os traços ne-
cessários à produção da classificação, do dualismo de gênero. A rostidade não
267
alcança a professora “sapatão”. Ela encontrou nas artes maciais um espaçotem-
po em que as relações pessoais e de poder não se produzem e se reproduzem
partindo de uma correlação binária. Ainda com Deleuze e Guattari (2012).

[...] a máquina abstrata de rostidade assume um papel de resposta


seletiva ou de escolha: dado um rosto concreto, a máquina julga se
passa ou não passa, se vai ou não vai, segundo as unidades de rostos
elementares. A correlação binária desta vez é “sim-não” (p. 49).
A peruca _ Anna Paula

Imagens do acervo da pesquisa. Foto: Maíra Mello

Meu nome é Anna Paula, sou professora de educação infantil. Quan-


do eu cheguei na faculdade, eu me apaixonei pela educação infantil,
então eu me intitulo professora de educação infantil, eu não me inti-
268 tulo professora no geral, apesar de já ter dado aula em (escola) parti-
cular, na EJA e para crianças pequenas de 8 anos, eu preferi trabalhar
VESTIDO, QUIMONO E PERUCA
PRODUÇÕES NARRATIVAS E IMAGÉTICAS DE SI: ROSTIDADE E PROFESSORAS EM DEVIR

com criança pequenininha, de 0 a 3 anos. É a minha praia.


Eu achei uma escola na zona sul de classe alta que estava precisando
de uma estagiária, e como era uma oportunidade que seria mais “fá-
cil” de entrar, porque era indicação, eu acabei indo. Eu lembro que
desde a entrevista inicial, eles gostaram muito do meu perfil, e eles fa-
lavam isso: “perfil”. Eles não falavam: “gostei da sua história”, “gostei
do seu trabalho”, eles falavam: “eu gostei do seu perfil”. Na época eu
era muito novinha, deveria ter uns 20 anos; eu achava que era normal
a pessoa se referir a você como “perfil”. Hoje em dia, eu vejo que
perfil era “perfil” (aponta enquadrando o rosto). Branca, cabelinho
no estilinho padrão e esse jeito mega-fofa que eu falo quando estou
muito à vontade. Aí eu entrei como estagiária e almejava ser profes-
sora lá dentro, mas realmente era muito difícil, era uma escola super-
concorrida e todo mundo sempre falava: “é impossível, é impossível,
é impossível!” Só que é impossível, por quê? As outras estagiárias – e
isso é horrível dizer – mas a maioria das estagiárias eram “fora do
padrão”, eram negras, eram gordas, eram com o cabelo estranho e
isso fazia com que elas não pudessem ser professoras lá, e isso eu não
entendia na época, porque tinha muita gente lá que era muito boa, só
que era negra e não podia ser professora. É ridículo isso. E lá nessa es-
cola éramos 25 professoras de educação infantil, professoras mesmo,
que lideravam a turma. E, dessas 25, uma era negra. [...]
Só que quando eu virei professora, foi o ápice da minha vida, foi o
primeiro ápice na minha vida profissional. Eu me sentia superconfor-
tável, na época eu não tinha noção de onde estava me metendo, eu
não enxergava aquilo da maneira que realmente era, eu conversava
muito sobre o meu papel dentro da escola e estava em êxtase. Na
época – eu sempre quis – eu pintei o cabelo de laranja, eu era profes-
sora dessa escola, classe A, da zona sul. Assim que eu pintei não teve
problema nenhum. A minha coordenadora falou que estava bonito e
tal, dá aquele charminho, só que depois de mais ou menos um mês
começou um clima estranho, ela começou a dar uma ignorada de
leve, eu sentia que ela não estava me tratando mais como ela me

CURRÍCULO E ESTÉTICA DA ARTE DE EDUCAR


tratava. Um dia, eu cheguei na sala dela para conversar sobre um
assunto lá da escola e ela falou para mim com todas as letras que eu
teria que pintar meu cabelo de volta, que meu cabelo laranja não era
natural; ela usou outras palavras: “não existe gente que nasce com os
cabelos laranja, isso não é natural”. Na hora, eu até falei para ela: “o
seu cabelo é loiro e pintado, também não é natural”. E ela falou assim:
“Não, mas é muito mais comum, porque você não pensa num loiro,
num platinado?” Aí eu falei: “Porque eu não gosto, simplesmente por-
que não é a minha cara, porque não acho legal”. Então você imagina,
para uma pessoa que acabou de ter o sonho realizado de ser profes-
sora, ouvir uma coisa dessa. Eu era muito novinha, então naquele
momento eu me vi num dilema, porque assim que eu entrei para
a UERJ eu passei a ser muito mais reflexiva sobre a minha posição,
como mulher, como professora e quando eu me vi naquela situação, 269
eu pensei: “Gente, eu vou ser vendida ou vou ser Anna Paula?” Na
época, eu refleti muito, eu levei em consideração toda a conjuntura
e falei assim: “Não, vou pintar meu cabelo com paz na minha mente
para que eu possa conseguir continuar nessa escola, que é uma coisa
que eu quero agora, isso não vai me mudar”. Eu fiz essa paz comigo
mesma, pintei o cabelo. Isso foi no mês de junho; em dezembro, eu
fui demitida. [...] Depois que fui demitida, fui procurar outro empre-
go, batendo de escola em escola, sempre procurei ocupar o espaço
de professora de educação infantil, porque é quem eu sou, eu sou
professora de educação infantil e quando eu chegava nas escolas as
pessoas perguntavam: “Será que você não quer uma turma maior?
Porque você é muito grande, é muito alta”. Aí eu ficava pensando as-
sim: “Será que para ser professora de educação infantil você tem que
ser pequena? Tem que ser anã, talvez, miudinha?” Porque realmente
eu sou uma pessoa grande, não sou uma pessoa enorme, tenho 1.71m
de altura; não sou enorme, mas sou grande pra dar aula pra criança
pequena, tem gente que acha estranho. Eu fui nessa escola que eu
trabalho hoje em dia, que foi a escola que eu estudei e eu ouvi isso
de novo. Eu estava tentando convencer a minha diretora que eu servia
para fazer aquele papel, falei dos cursos, da experiência, da pesquisa,
a convenci! Beleza, na época não tinha turma de maternal e ela resol-
veu me colocar no pré (pré-escola). Fiquei um ano no pré e voltei para
o maternal. Aí quando eu voltei pro maternal, volta essa questão do
“perfil” da professora de criança pequena. Ela me chamou, porque os
pais estavam reclamando de mim, porque achavam que eu era muito
distante das crianças, sendo que nessa escola nova que eu trabalho,
os pais não entram na sala de aula, eles não circulam, eles não veem
o que está acontecendo. Só que eles viam só na entrada e na saída e
eles achavam que eu era distante das crianças. Essa era a palavra que
eles usavam. E quando a irmã que é diretora (lá é uma escola católica)
ela me pediu para sentar e falou: “Você tem filhos?” Aí respondi que
não tinha filhos. Ela segue: “Mas tem alguma criança na sua família?”
Eu: “Não!” Aí ela falou: “Não sei se você sabe como é que lida com
criança...” Eu falei para ela: “Eu sei o quanto que eu estudei, desde
que entrei na faculdade; cinco anos estudando sobre educação in-
fantil, eu sei isso, não sei se é o suficiente para você”. “Ah, não, você
estudou sim, claro, mas às vezes o tato com crianças tem que ter um
tom maternal, de mãe, de cuidado, de ser mais próxima à criança”.

Para ser professora de uma instituição de ensino, a candidata à vaga deve mos-
trar que tem o “perfil”. A professora Anna Paula ouviu e, depois de um tempo,
passou a entender do que se tratava. Reparou entre suas colegas quem não tinha
270
os traços que a máquina abstrata da rostidade indicada para ocupar a posição
tão desejada naquela escola, isso incluía seu cabelo, que depois de um tempo,
VESTIDO, QUIMONO E PERUCA
PRODUÇÕES NARRATIVAS E IMAGÉTICAS DE SI: ROSTIDADE E PROFESSORAS EM DEVIR

se tornou laranja. Para a instituição, não era “natural”, com isso ela se deslocou
e, consequentemente, foi demitida. Ao buscar outra instituição, novamente sur-
ge um empecilho, a altura. Não pode ser muito alta. Por fim, desse recorte que
ela nos traz, em outro momento, faltou o “tato” e o “tom maternal”, segundo a
representante da instituição, para atuar com aquelas crianças, para convencer
aqueles adultos da sua condição, do seu rosto de professora.

Assim, as três narrativas nos ajudam a refletir sobre os processos de formação si


e a produção de mundos. Conforme Kastrup (2005, p. 1276), o si e o mundo são
co-engendrados pela ação, de modo recíproco e indissociável. Encontram-se,
por sua vez, mergulhados num processo de transformação permanente. Des-
se modo, professoras se formam e são formadas, são produtos e produtoras de
mundos, engendradas num processo permanente de transformação, escapando
ao rosto e às rostificações, criando o clandestino, como bem nos apontam De-
leuze e Guattari (2012).
[...] se o homem tem um destino, esse será mais o de escapar ao rosto
e às rostificações, tornar-se imperceptível, tornar-se clandestino, não
por um retorno à animalidade, nem mesmo pelos retornos à cabeça,
mas por devires-animais muito especiais, por estranhos devires que
certamente ultrapassarão o muro e sairão dos buracos negros, que
farão com que os próprios traços de rostidade se subtraiam à organi-
zação do rosto, não se deixem mais subsumir pelo rosto, sardas que
escoam no horizonte, cabelos levados pelo vento, olhos que atraves-
samos ao invés de nos vermos neles (p. 40).

CURRÍCULO E ESTÉTICA DA ARTE DE EDUCAR


A ideia de “subtração da rostidade, da organização do rosto” de Deleuze e Guat-
tari nos leva de volta ao conto, em que o personagem sugere em sua reflexão que
a vida é “experiência séria” e que nos exige despojamento do que nos obstrui,
nos cerceia, nos soterra. Podemos, assim, pensar as possibilidades de ultrapassar
os muros e escapar dos buracos negros.

Do que digo, descubro, deduzo. Será, se? [...] Se sim, a “vida” consiste
em experiência extrema e séria; sua técnica — ou pelo menos parte —
exigindo o consciente alijamento, o despojamento, de tudo o que obs-
trui o crescer da alma, o que a atulha e soterra? (ROSA, 2019, p. 75).
271

Mas, então, está irremediavelmente destruída a concepção de vivermos em


agradável acaso, sem razão nenhuma, num vale de bobagens? (op.cit.). Sim,
destruímos essa concepção nos valendo da fabulação que contribui para nos-
sos processos de subjetivação, nossos processos de formação, além de ousar a
pensarmos em professoras que vão além do rosto, que fazem de suas trajetórias
experiências de produção de mundos, escampando pelas brechas das amarras
limitadoras da rostidade.
Referências
ALVES, N.; CALDAS, A. N.; ANDRADE, N. Os movimentos necessários às
pesquisas com os cotidianos – após muitas “conversas” acerca deles. In:
OLIVEIRA, Inês Barbosa de; PEIXOTO, Leonardo Ferreira; SÜSSEKIND, Ma-
ria Maria Luiza. (org.). Estudos do cotidiano, currículo e formação do-
cente: questões metodológicas, políticas e epistemológicas. Curitiba: CRV,
2019.
CERTEAU, Michel de. A invenção do cotidiano: 1. Artes de fazer. Petrópolis,
RJ: Vozes, 2014.
DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. Mil platôs: capitalismo e esquizofrenia.
Tradução: Aurélio Guerra Neto, Ana Lúcia de Oliveira, Lúcia C. Leão e
Suely Rolnik. 2. ed. São Paulo: Editora 34, 2012.
KASTRUP, Virgínia. Políticas cognitivas na formação do professor e o problema
do devir-mestre. Revista Educação & Sociedade, Campinas, v. 26, n. 93,
p. 1273-1288, set./dez. 2005.
KASTRUP, Virgínia. A Invenção de si e do mundo. Belo Horizonte: Autênti-
ca, 2007.
272
MARQUES, D. Entre fabulações de uma formação docente. Revista Digital
do LAV, [s.l.], v. 8, n. 2, p. 160-174, 2015. Disponível em: http://dx.doi.
VESTIDO, QUIMONO E PERUCA
PRODUÇÕES NARRATIVAS E IMAGÉTICAS DE SI: ROSTIDADE E PROFESSORAS EM DEVIR

org/10.5902/198373481 9870. Acesso em: 10 ago. 2020.


ROSA, João G. O espelho. In: Primeiras estórias. 1. ed. São Paulo: Global
editora, 2019.
(DES)CAMINHOS * :

CURRÍCULO E ESTÉTICA DA ARTE DE EDUCAR


AS IMAGENS-CARTAZES
POTENCIALIZANDO A
VIDA COLETIVA COM
AS APRENDÊNCIAS
INSURGENTES NA 273

DIFERENÇA

12.
Juliana Paoliello
Priscila dos Santos Moreira
Alba Jane Santos Lima

*O texto aposta na arte de Lygia Clark, para fabular uma escrita inspirada por sua obra Caminhando.
Além disso, traz fragmentos da literatura brasileira e músicas na composição desta escrita.
Juliana Paoliello (UFES)
Priscila dos Santos Moreira (IFES)
Alba Jane Santos Lima (UNIRIO)

(DES)CAMINHOS: cortes-linhas da insurgência


e da produção do desejo na diferença

No novo tempo,
Apesar dos castigos!
Estamos em cena...
Estamos na rua...
Quebrando as algemas...
Pra nos socorrer...
274 (Ivan Lins)
(DES)CAMINHOS1: AS IMAGENS-CARTAZES POTENCIALIZANDO A VIDA COLETIVA
COM AS APRENDÊNCIAS INSURGENTES NA DIFERENÇA

FIGURA 1 _ Polifonia secundarista

Fonte: Disponível em: https://theintercept.com/2016/12/02/o-ministerio-da-educacao-como-exemplo-da-guerra-interna-


-pelo-poder-entre-governo-e-psdb. Acesso em: 12 out. 2019 e disponível em: https://jornalggn.com.br/educacao/cineg-
nose-ve-o-futuro-em-escola-ocupada/ Acesso em: 12 out. 2019.
CURRÍCULO E ESTÉTICA DA ARTE DE EDUCAR
A escola é nossa! Ocupamos ela! Em defesa da educação! O Estado não pode
dar educação pois a educação derruba o Estado! Entre tantos outros enuncia-
dos, os cartazes entram em cena nas ruas brasileiras com a força de um coletivo
estudantil (resistindo aos ataques e algemas) e gritam polifonicamente palavras-
-forças que afirmam o pertencimento de estudantes secundaristas nos espaços-
-tempos escolares, que insurgem num contexto real social em que as políticas
Estatais tentam desmobilizar e enfraquecer fluxos potentes que se movem na
constituição dos possíveis. 275

Foi nesse contexto que o movimento das ocupações de 2016, conhecido como
“primavera secundarista”, afirmou-se num movimento-corte que denunciava
e resistia às lógicas sedimentares do Estado. O corpo estudantil, engendrado
com as intensidades das famílias, professores, artistas, intelectuais, invocava um
movimento de resistência que desestabilizava a racionalidade predominante
acerca das escolas e dos estudantes que nelas estudavam.

A insurgência praticada pelos estudantes secundaristas nos chama a atenção


para uma reinvenção nos modos de criar que impactou, sobretudo, nossos go-
vernantes, quando esses alunos protestaram ocupando um lugar, legítimo, da-
queles que compõem-habitam o território escolar.

Potencializar o que docentes e discentes têm produzido em movimentos que


escapam ao que a máquina abstrata (DELEUZE; GUATTARI, 2011) tenta impor
como forças para capturar as singularidades é, portanto, apostar nos possíveis
que as subjetividades produzidas em meio às insurgências são capazes de efetuar.
(DES)CAMINHOS DOS DESEJOS...
Seguindo por diferentes pontos

“O sertão é sem lugar”.


(Guimarães Rosa)

O território escolar se constitui como espaço micromacropolítico1 (DELEUZE;


GUATTARI 2012a) de singularidades, afetos, agenciamentos, devires, intensida-
des, desejos... Desejos que agenciam todos os que povoam a instituição educa-
tiva, tecendo intercâmbios com outros campos do plano social. Desse modo, o
desejo aqui descrito se atualiza por sua condição de produção e não pela condi-
ção da falta, como sustenta o viés capitalístico. Nesse sentido, não há falta. Há
produções desejantes.

O filósofo francês Gilles Deleuze produziu o pensamento acerca do desejo a


276 partir do pensamento de Nietzsche e de Espinosa, em oposição à filosofia idea-
lista de Hegel, ao platonismo e à psicanálise (Freud e Lacan), para escapar do
(DES)CAMINHOS1: AS IMAGENS-CARTAZES POTENCIALIZANDO A VIDA COLETIVA
COM AS APRENDÊNCIAS INSURGENTES NA DIFERENÇA

pensamento ocidental que adotou o caminho da ausência para pensar o desejo.


Isso muda radicalmente nossa concepção de desejo herdada desde Platão para
uma concepção do desejo como uma construção coletiva. Desejo é sempre um
agenciamento. É sempre revolucionário. É intensidade! (TRINDADE, 2013a).
Desejar é insurgir!

Somos máquinas desejantes. “Máquinas acopladas a outras máquinas, máquinas


produzindo conexões, máquinas passando fluxos. Tudo em nós cria, faz, corta,
torce, processa, produz. Nosso corpo é uma usina” (TRINDADE, 2013b).

O desejo inscrito com as intensidades (afetos e afecções) bifurca-se como ma-


téria de expressão e modos de existência. Por existência, entendemos aquilo
que diz respeito ao modo de sentir, “[...] criar e efetuar mundos que ajam sobre
crenças e sobre desejos, sobre vontades e inteligências, ou seja, que ajam sobre

1 Entendemos, a partir do próprio Deleuze e Guattari, que macro e micro coexistem e, portanto, ao fazermos menção ao micro, não
podemos deixar de citar o macro, vice-versa.
os afetos” (LAZZARATO, 2006, p. 31-32). Já no tocante à matéria de expressão,
as intensidades a procuram para se fazerem efetuar. Nesse entendimento, com
Rolnik (1979, p. 31), afirmamos que

[...] as intensidades em si mesmas não têm forma nem substância, a


não ser através de sua efetuação em certas matérias cujo resultado
é uma máscara. Ou seja, intensidades em si mesmas não existem:
estão sempre efetuadas em máscaras-compostas, em composição ou
em decomposição.

CURRÍCULO E ESTÉTICA DA ARTE DE EDUCAR


Dessa forma, é a partir do desejo que esses planos se estabelecem, criando mo-
dos de existência mais potentes, ou não. Modos de existência que são produzi-
dos a partir dos acontecimentos que, por meio da problematização, transformam
as subjetividades. O acontecimento é tudo aquilo que transforma, cria, modifica
uma paisagem, um contexto político. É quando o modo de desejar também se
modifica nas dobras do real social.

FIGURA 2 _ Fita de Moebius por Lygia Clark


277

Fonte: Disponível em: http:// www.artefazparte.com/2012/09/sempre-em-frente.html: Acesso


em: 10 de out. 2019
Em Grande Sertão Veredas, Guimarães Rosa mostra que “[...] o real não está
no início nem no fim, ele se mostra pra gente é no meio da travessia...”. Tra-
vessias, fronteiras, bifurcações e encruzilhadas nos movem a perceber o mundo
como uma fita de Moebius (ROLNIK, 2018), sem dentro nem fora, sem início
nem fim. Ao compor essa paisagem movente, seguimos caminhos que podem
levar tanto a uma vida encapsulada em quadrículas estabelecidas na cartografia
social vigente (micropolítica reativa/mísera vida) quanto àquela que consegue
engendrar as sinuosidades do saber-do-corpo (ROLNIK, 2018) para produzir
micropolíticas ativas.

Como exemplo destas formas de perceber o mundo em um dentro-fora, um fo-


ra-dentro, aparece a arte da artista Lygia Clark, que usa a fita de Moebius na sua
obra denominada Caminhando (1964). A fita de Moebius recebeu esse nome em
homenagem ao matemático e astrônomo alemão August Ferdinando Moebius e
gerou um novo campo de estudo: a Topologia. A partir disso, Clark pega uma tira
de papel e une as pontas para formar um círculo. Antes, porém, gira uma delas
e a cola do lado contrário, de modo que esse círculo se transforme numa fita de
278
Moebius, na qual não se pode dizer onde é o dentro e onde é o fora.
(DES)CAMINHOS1: AS IMAGENS-CARTAZES POTENCIALIZANDO A VIDA COLETIVA
COM AS APRENDÊNCIAS INSURGENTES NA DIFERENÇA

A artista quis despertar, por meio da produção dessas sucessões de cortes, que a
vida é um caminho cheio de curvas, cujas marcas das nossas atitudes e as conse-
quências das nossas escolhas ficam registradas ali para sempre. “Tudo que já foi,
é o começo do que vai vir, toda a hora a gente está num cômpito” (Grande Ser-
tão Veredas – Guimarães Rosa). É a transformação do papel de um jeito que ele
jamais será o mesmo novamente, um caminho que pode voltar ao mesmo lugar
- tudo que vai volta -, um caminho que vai se estreitando a cada curva da vida.

Ao usar a Fita de Moebius, Rolnik (2018, p. 51) expõe que “os sinais e formas
do mundo são captados pela via da percepção (a experiência sensível) e do sen-
timento (a experiência da emoção psicológica) ”. Nesse sentido, se a realidade
é feita das experiências mais imediatas que fazemos do mundo, logo as linhas
sensíveis que reverberam as palavras-forças nas imagens-cartazes exibidas pelos
estudantes, nos afetam pela sua condição de efeitos de resistência e, portanto,
de insurgência! A vida é um caminhando com curvas, idas e voltas, a fim de
trilharem novos e outros caminhos que surgirão. Sertão é isto: o senhor empurra
para trás, mas de repente ele volta a rodear o senhor dos lados. Sertão é quando
menos se espera” (Grande Sertão Veredas – Guimarães Rosa).

É preciso impulsionar o movimento das práticas sociais, assim como Clark em


sua obra traz à tona o movimento das práticas artísticas. Importa ativar o clínico
político da arte, sua potência micropolítica (ROLNIK, 2018).

CURRÍCULO E ESTÉTICA DA ARTE DE EDUCAR


(DES)CAMINHOS das políticas e das diferenças e.....

No novo tempo,
Apesar dos perigos!
A gente se encontra...
Cantando na praça...
Fazendo pirraça...
Pra sobreviver!
(Ivan Lins)

279

Resistência pela educação! Política desinteressada! Chega de corrupção! Estig-


ma, digna, indignação! Qual seria o tema do debate em questão? A rua é nossa!
Ocupar e resistir!2

Os gritos ecoam nas vozes dos estudantes proliferando e fazendo chegar às uni-
versidades e institutos federais. Pirraçar, reivindicar, protestar, resistir! Resistir é
permitir que forças entrem em relação com outras forças: forças do devir, forças
da transformação, forças do intolerável (LAZZARATO, 2006). São forças em mo-
vimento. Insurgência!

Estamos imersos num sistema capitalístico maquínico. Sistema esse que procura
se estabelecer a partir de relações de forças que sujeitam a sociedade à servidão
(LAZZARATO, 2014) e, por isso, tendem a despotencializar os movimentos de
criação de mundos os quais produzem modos de existir que escapam aos me-
canismos de controle.

2 Algumas frases pronunciadas nas manifestações exibidas em telejornais nacionais.


O sistema capitalista da sociedade de controle fornece um mundo cuja formata-
ção se sustenta numa lógica que busca estancar os fluxos inventivos e singulares
ao compactuar com a ideia da manutenção de um mundo único, preconcebido.
À criação de possibilidades de existência, a partir de composições de forças que
afirmam a vida como potência de criação, chamamos resistência. Nesse sentido,
a resistência não conota o sentido da recusa ou de reação, mas de (re)existência
ou insistência em outros modos de vida.

Esses contornos nos convocam a compor linhas de pensamento que contribuem


para movimentar ideias-forças que produzam sentidos acerca dos processos de
subjetivação discente e docente mais potentes, ao mesmo tempo em que afir-
mam mundos possíveis para uma vida em expansão, ou seja, a criação de uma
política da multiplicidade.

O sistema capitalístico, então, afeta subjetivamente o mundo e, por isso, influen-


cia ativamente os desejos. Ao delinear paisagens que compõem o cenário socio-
político e suas interfaces com o campo da educação, linhas mais éticas poderão
280 emergir como força de constituição de mundos que operam pela potência da
composição com o coletivo.
(DES)CAMINHOS1: AS IMAGENS-CARTAZES POTENCIALIZANDO A VIDA COLETIVA
COM AS APRENDÊNCIAS INSURGENTES NA DIFERENÇA

Podemos afirmar, nesse sentido, que tudo é de ordem política e, portanto, a pro-
blematização dos modos de existência é produzida, e entra em cooperação, nos
diferentes contextos de resistência. “As pessoas não estão sempre iguais, ainda
não foram terminadas – mas [...] elas vão sempre mudando” (Grande Sertão Ve-
redas – Guimarães Rosa). São forças que entram em relação com outras forças e
criam sentidos outros que transformam os modos de percepção de si e de mundo
na produção da diferença.

Lazzarato (2006, p. 31), ao definir a diferença, evidencia que, “[...] segundo


Tarde, para definir a existência de uma mônada, não é mais necessário referir-se
à ideia de substância; basta recorrer à ideia de diferença: existir é diferir”.

A afirmação ocorre ao sublinhar que a definição da existência de uma mônada


não se constitui pela ideia de substância, mas, sobretudo, pela ideia da diferença.
As mônadas tardianas se compõem por duas características principais: permitir
conceber a atividade não mais como produção, mas como criação e efetuação
dos mundos, considerando a lógica do acontecimento, e permitir pensar a re-
lação entre singularidade e multiplicidade como alternativa à oposição entre
individualismo e holismo.

Nessa perspectiva, o conceito de diferença percebida no diálogo com Deleuze


e Guattari (2012b) como território de multiplicidades e com Deleuze (1988)
como o que vem primeiro, e não como um desvio-padrão entre modelos
preconcebidos, compõe com planos que agenciam modos de pensar coletivos

CURRÍCULO E ESTÉTICA DA ARTE DE EDUCAR


e evidencia que o mundo é tecido por um conjunto de relações (físicas, vitais,
sociais) que constituem uma sociedade, ou seja, cérebros em cooperação
(LAZZARATO, 2006).

(DES)CAMINHANDO... expansão da potência


por uma política da aprendência: política se faz “com”

281
“Sertão é quando menos se espera”
(Grande Sertão Veredas – GUIMARÃES ROSA)

Quando menos se espera, o coletivo se ativa: sertão nessa multiplicidade de for-


ças e produção de subjetivação é singularidade que se constitui em um ser-tão:
um ser-tão potente e tão-autônomo e tão-insurgente e tão-coletivo e tão-sorratei-
ro e tão-fugidio e tão-inventivo e tão-inesperado e...

A cartografia dos processos de resistência, a partir da ocupação dos estudan-


tes secundaristas, problematiza a ideia de política pelo viés do comum3. Nesse
sentido, os modos de existência que resistem, não por via da recusa, mas pela
abertura à diferença, são subjetivações que não se sujeitam a planos institucio-
nalizados e que, portanto, não se opõem à dimensão criadora, instituinte e ativa
da vida. Nesse sentido, concordamos com Deleuze, citado por Lazzarato (2006,

3 No sentido que se opõe e substitui a dicotomia de público e privado, socialista e capitalista, e as políticas baseadas nessa polari-
zação (HARDT; NEGRI, 2016).
p. 27), quando se refere à possibilidade de sairmos de uma proposta totalitária,
universal, única de produção de mundos, para afirmar a vida como potência
inventiva que dá lugar à criação de valores e afirma que “[...] tudo o que Leibniz
menos quer é a ideia de um só mundo [...]”.

Desse modo, indagamos: que tipo de subjetividade a máquina abstrata tem pro-
duzido? Será que “obedecer é mais fácil do que entender? ” (Grande Sertão
Veredas – Guimarães Rosa). O domínio de vidas que se sujeitam pela captura
capitalística se engendra no exercício da servidão social (LAZZARATO, 2014).
Entretanto, os protestos nos apontam que, quando os estudantes reivindicaram o
esclarecimento das políticas dos cortes pela via da insurgência, eles agenciaram
abertura para os possíveis.

A aposta nos possíveis, como produção de subjetividades mais potentes, opera


pela multiplicidade, pelos processos de singularização e de efetuação de mun-
dos/sociedade. Em diálogo com Lazzarato (2006, p. 17), afirmamos que

[...] O mundo é virtual, uma multiplicidade de relações, de aconteci-


282
mentos que se expressam nos agenciamentos coletivos de enunciação
(nas almas) e criam o possível. O possível não existe a priori como na
(DES)CAMINHOS1: AS IMAGENS-CARTAZES POTENCIALIZANDO A VIDA COLETIVA
COM AS APRENDÊNCIAS INSURGENTES NA DIFERENÇA

filosofia de Leibniz; não está dado, precisa ser criado. As novas pos-
sibilidades são bem reais, mas existem fora daquilo que as exprime
(signos, linguagem, gestos); os possíveis devem atualizar ou efetuar,
trata-se de desenvolver aquilo que o possível envolve, de explicar
aquilo que ele a implica.

Assim, habitar mundos que já estão postos não promovem rupturas nem cria
aberturas. É permanência do mesmo. Romper não é uma tarefa fácil; demanda
esforço, demanda perseverar na existência, é vontade de potência. Ao acompa-
nhar os movimentos de ocupação dos estudantes em 2016, foi possível observar
algumas linhas de resistência que delineavam paisagens problematizadoras so-
bre a possibilidade de subverter algumas lógicas contidas no império da máqui-
na abstrata.

Nesse movimento, a força-resistência dos estudantes (apoiados por grande parte


dos docentes) potencializou as danças inventivas de mundos possíveis. Mundos
esses que não estão postos pelo pensamento único que impõe um modo de ser
estudante, uma rostidade (DELEUZE, 1992) discente.

Os enunciados dos discentes evidenciavam que, diante das situações postas


e impostas, era possível criar condições (mundos) que bifurcassem caminhos
para efetuar trajetos que seguem por linhas múltiplas e se conectam em pontos
diversos, operando pela multiplicidade. Isso nos faz afirmar, com Deleuze e
Guattari (1995, p. 13), que “[...] toda vez que uma multiplicidade se encontra

CURRÍCULO E ESTÉTICA DA ARTE DE EDUCAR


presa numa estrutura, seu crescimento é compensado por uma redução das leis
de combinação”.

Todos esses cérebros em cooperação efetuaram em nós um processo de inter-


venção que desterritorializa nossas concepções acerca da produção de políticas
para a educação. Os cartazes com enunciados “A escola é nossa! Ocupamos
ela!” (Figura 5) estiveram presentes nas escolas e universidades a partir de reivin-
dicações atinentes à não aceitação da Medida Provisória para o Ensino Médio e
à PEC 2414.
283

FIGURA 5 _ Enunciados da resistência

Fonte: Disponível em:https://www.vice.com/pt_br/article/vv48m9/primeiro-colegio-ocupado.Acesso em: 10 de


Out. 2019.

4 A Proposta de Emenda Constitucional cria um teto para os gastos públicos durante vinte anos. Essa emenda inclui saúde e educação.
Nesse sentido, ocupar é um movimento de resistência, é reivindicar, é dizer “eu
ocupo porque também é meu”. Docentes e discentes são, portanto, partes po-
tentes desses movimentos que emergem na e pela escola. Tais acontecimentos
dobram, desdobram e produzem outras maneiras de afetar e serem afetados pelo
mundo. A experiência da ocupação produz pertencimento, participação, ação
coletiva, sem centro unificador.

Ao afirmamos os movimentos de resistência, apostamos nos processos de des-


construção de racionalidades totalizantes que insistem em afirmar que o corpo
social é um consumidor passivo dos processos de lutas e desterritorializações.
Nessas experiências de ocupação, a relação dos discentes na “Primavera es-
tudantil” com as escolas foi fortalecida e, portanto, modos outros de pertenci-
mentos fizeram emergir outros sentidos concernentes às escolas e às políticas
públicas para elas estabelecidas.

Nesse sentido, o movimento ressaltou que os estudantes, apoiados pelos docen-


tes e por boa parte da comunidade escolar, estão profundamente interessados
284 no que acontece ali e se sentem corresponsáveis pelo formato e pelas condições
das aulas e dos processos aprendentes.
(DES)CAMINHOS1: AS IMAGENS-CARTAZES POTENCIALIZANDO A VIDA COLETIVA
COM AS APRENDÊNCIAS INSURGENTES NA DIFERENÇA

Assim sendo, se não há lugar nas mídias oficiais, os discentes criam outros espa-
ços de diálogos: redes sociais, vídeos, fotos e outros veículos de circulação para
fomentarem a problemática vivida nesse contexto. Os enunciados discentes se
proliferaram por meio dos agenciamentos coletivos em uma multitude que se
espalhava. Pelas imagens, é possível fazer a “escuta” dessa polifonia que afetou
todo o Brasil.

As redes sociais, como força virtual, também foram canais de incentivo ao movi-
mento. Encontramos um canal no youtube, denominado “Mexeu com os secun-
das mexeu comigo”, em que a comunidade escolar, artistas, professores, intelec-
tuais e pesquisadores se posicionaram em favor do movimento dos estudantes
secundaristas que reconfiguraram o cenário das políticas na e para a educação,
apontando que política se “faz com” e não “para”.

O movimento “Mexeu com os secundas mexeu comigo”, em pergunta à Mar-


gareth Rago, sobre a reação do Estado ao movimento secundarista, publica o
posicionamento da professora da Faculdade de Campinas, que considera que
“[...] a reação do Estado a este tipo de movimento só pode ser muito negativa,
porque é um governo reacionário, [...] eles não entendem essa linguagem nova
da política, eles não entendem do que se trata”.

Nesse sentido, o professor Sílvio Gallo, da mesma Universidade, endossa: “[...]


uma reação do Estado me parece uma reação de repressão”. O professor e filó-
sofo Peter Pál Pelbart, também teve sua contribuição nessa rede afirmando que,
pertencer é

CURRÍCULO E ESTÉTICA DA ARTE DE EDUCAR


Ocupar o território que deveria ser deles [estudantes] e que, por ra-
zões absolutamente absurdas, é considerado propriedade de outros,
ou propriedade do Estado, ou da prefeitura, ou dos burocratas, ou dos
políticos, ou dos economistas, ou dos empresários, quer dizer, todos
se sentem no direito de decidir sobre a vida de pessoas em vias de se
tornarem adultas e que têm direitos sobre a própria vida. O primeiro
contragolpe que eles [estudantes] produziram foi dizer: essa vida é
nossa, esse território é nosso, nós temos condição de pensá-lo, nós
temos até condição de geri-lo e de propor coisas que são cruciais
para nós. Eles manifestaram com a própria voz algo que deveria ser
evidente, deveria ser óbvio.
285

O poder sobre a vida subjuga domínios de territórios e, portanto, em composi-


ção com estes intelectuais, corroboramos que o empoderamento dos dirigentes
deste país se coloca desfavorável aos movimentos que se constituem num co-
letivo. Entretanto, mesmo não operando o equipamento, discentes e docentes
compõem as maquinarias que, são engrenagens desse sistema complexo que
atua por meio de fluxos extensivos e intensivos, desterritorializando as sedimen-
tações dessas políticas reacionárias que buscam desqualificar e menosprezar os
movimentos-força que agem na produção dos possíveis.

Os possíveis são mundos criados a partir dos modos de pertencimentos/resistência


dos estudantes que tensionam as obscuridades contidas em planos sobrecodifican-
tes para compor territórios nômades, fluidos, tornando o movimento (a)centrado.

A potência criadora e inteligente dos adolescentes secundaristas se articulou


politicamente e produziu mundos possíveis em meio a tanta repressão. Os enun-
ciados desse contexto de luta nos advertiram sobre um governo reacionário que
tenta inibir modos de vida que buscam a produção e expansão de aprendências
mais potentes.
(DES)CAMINHAR continuum...

“Vivendo, se aprende;
mas o que se aprende, mais,
é só fazer outras maiores perguntas”.
(Grande sertão veredas – Guimarães Rosa)

Ao analisarmos o movimento desses estudantes como vetor de transformação


nas formas-forças do pensar, pudemos compor uma cartografia que problema-
tiza a resistência à máquina sobrecodificante (DELEUZE; GUATTARI, 2011) na
produção de “possíveis” e invenções de mundos outros.

Nesse sentido, a escolha/aposta pelo movimento de ocupação foi engendrada


por meio da potência irreverente dos adolescentes que evidenciaram que políti-
ca se produz no plano imanente dos territórios escolares (e não escolares) e que,
portanto, elementos como idade, formação acadêmica, condição econômica e
286
social não destituem suas possibilidades de pensar e resistir sobre a conjuntura
na qual eles estão inseridos. A potência insurgente da produção dos desejos
(DES)CAMINHOS1: AS IMAGENS-CARTAZES POTENCIALIZANDO A VIDA COLETIVA
COM AS APRENDÊNCIAS INSURGENTES NA DIFERENÇA

como força na constituição de uma política, são diagramas que, aumentam nos-
sa condição questionadora e afirmam as aprendências produzidas a partir da
relação com outro, na composição coletiva.

Como percebemos, o sistema é uma máquina performativa que produz subjeti-


vidades passivas e, nesse sentido, o acontecimento enquanto mudança/transfor-
mação nos enredamentos da atuação do corpus que compõem as escolas pro-
duz sentidos distintos daqueles com os quais fomos habituados a conceber. O
pensamento moderno, cuja pungência de um pensamento único se empondera,
cria tentáculos para toda forma de captura, não somente da ordem mercadoló-
gica, mas também dos modos de existência que se aninham nas entranhas deste
capitalismo maquínico aos quais estamos involuntariamente filiados.

Em consonância com Bonfá (2016), percebemos que essas ocupações dos estu-
dantes secundaristas exprimem o devir revolucionário e resistente da juventude
brasileira contemporânea que ocupa e insurge na escola, afirmando a aposta
nesse território como produção de possíveis.

Produzir sentidos com o acontecimento da “primavera secundarista” no Bra-


sil nesses três últimos anos é produzir insurgências cotidianas nos territórios
escolares. Ao produzirmos mundos com contornos mais desafiadores, perce-
beremos possibilidades outras no campo da educação, do trabalho docente,
da militância discente e, portanto, de políticas mais comprometidas com uma

CURRÍCULO E ESTÉTICA DA ARTE DE EDUCAR


ética da diferença.

Esse devir revolucionário, protagonizado pelo corpo estudantil, desestabilizou


os dispositivos da máquina abstrata, efetuando forças que se movem na super-
fície de um plano imanente, tornando as tentativas de capturas mais escorrega-
dias. Os acontecimentos insurgentes se efetuam pela condição da transformação
dos modos de existir e, por isso, pensar, problematizar, romper é compor com as
significações de uma ontologia do presente (FOUCAULT, 2008).

A governamentalidade furta formas de vida, desapropriando os modos de vi-


287
ver, os modos de existência e, portanto, as subjetividades. Então, eis que uma
expressão emerge como possível para exprimir certa dimensão da vida hoje: a
força-invenção (PELBART, 2015).

Nesse sentido, mundos outros poderão emergir como força-invenção da consti-


tuição de possíveis como aposta nas singularidades. Podemos, então, dizer que
uma política do comum está em conjunção com a perspectiva que concebe a
atuação dos docentes e discentes como campo de lutas e os currículos como
campo de disputa e invenção de outros modos de existência.

Retomando a ideia de que existir é diferir, afirmamos que produzir a diferença


é produzir modos outros de existência nos acontecimentos experienciados no
campo educacional. Esses modos de existência abrem bifurcações que podem
produzir possibilidades de rompimento com o instituído. Dessa forma, a aber-
tura à diferença permite que as singularidades engendrem coletivos e cria-se
um corpo ativo que não se deixa submeter aos agenciamentos maquínicos que
o Estado tenta sujeitar. A condição da criação dos mundos possíveis é também
o “drible” aos movimentos reacionários que reprimem a vida na tentativa de
fazê-la recuar. Assim, o acontecimento, enquanto força transformadora, pode
produzir mundos no mais alto grau de potência com abertura à diferença.

A abertura de mundos possíveis não está pautada na busca de soluções e/ou


respostas, todavia requer escapar das formas preexistentes que têm por efeito
a anulação de mundos que não compartilham uma política do comum. A po-
tência do comum, ou a política do comum, produz (des)caminhos nos quais as
aprendências engendram sentidos para vidas que são tecidas na imanência dos
cotidianos das escolas públicas.

288
(DES)CAMINHOS1: AS IMAGENS-CARTAZES POTENCIALIZANDO A VIDA COLETIVA
COM AS APRENDÊNCIAS INSURGENTES NA DIFERENÇA
Referências
BONFÁ, Junior. As ocupações dos estudantes secundaristas sob a luz da
Esquizoanálise. nov. 2016. Disponível em: http://cartografiasdesi.blogspot.
com.br/2016/11/ocupacoes-estudantes-secundaristas-pec241-esquizoanali-
se.html. Acesso em: 18 abr. 2017.
DELEUZE, G. Conversações. São Paulo: Editora 34, 1992. (Coleção Trans).
DELEUZE, G. Diferença e repetição. Tradução de Luiz Orlandi e Roberto Ma-

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chado. Rio de Janeiro: Graal, 1988.
DELEUZE, G. Deleuze: máquinas desejantes. 2013b. Disponível em: https://
razaoinadequada.com/2013/05/10/deleuze-maquinas-desejantes/. Acesso
em: 18 abr. 2018
DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. Mil platôs: capitalismo e esquizofrenia.
Rio de Janeiro: Editora 34, 1995. Vol. 1 (Coleção TRANS).
DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. Mil platôs: capitalismo e esquizofrenia 2.
Tradução de Ana Lúcia de Oliveira e Lúcia Cláudia Leão. São Paulo: Editora
34, 2011. v. 2.
289
DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. Mil platôs: capitalismo e esquizofrenia
2. Tradução de Aurélio Guerra Neto, Ana Lúcia de Oliveira, Lúcia Cláudia
Leão e Suely Rolnik. São Paulo: Editora 34, 2012a, v. 3.
DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. Mil platôs: capitalismo e esquizofrenia 2.
Tradução de Suely Rolnik. São Paulo: Editora 34, 2012b. v. 4.
FOUCAULT,, M. Le gouvernement de soi et des autres. Paris: Gallimard/
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HARDT, Michael; NEGRI, Antônio. Bem-estar comum. Rio de Janeiro: Re-
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Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pi-
d=S0104-12902015000500019&lng=en&nrm=iso. Acesso em: 18 abr. 2017.
PELBART, Peter Pal. Vida nua, vida besta, uma vida. In: HAMBURGUER, Es-
ther; LAGNADO, Lisette; LEITE NETO, Alcino (ed.). Trópico: ideias de
norte a sul. 2006. Disponível em: http://p.php.uol.com.br/tropico/html/tex-
tos/2792,1.shl. Acesso em: 18 abr. 2018.
ROLNIK, Sueli. Cartografia sentimental: transformações contemporâneas do
desejo. São Paulo: Estação Liberdade, 1979.
ROLNIK, Suely. Esferas da insurreição: Notas para uma vida não cafetinada.
São Paulo:  N-1 edições; Edição: 1, 2018.
ROSA, Guimarães. 60 Frases de “Grande Sertão: Veredas” em comemoração
aos seus 60 anos de publicação. 2016. Disponível em: https://www.upf.br/
biblioteca/noticia/60-frases-de-grande-sertao-veredas-em-comemoracao-
-aos-seus-60-anos-de-publicacao/. Acesso em: 15 de out. 2019
TRINDADE, Rafael. Deleuze e o desejo. 2013a. Disponível em: https://razaoi-
nadequada.com/2013/02/08/deleuze-desejo/. Acesso em: 18 abr. 2018.

290
(DES)CAMINHOS1: AS IMAGENS-CARTAZES POTENCIALIZANDO A VIDA COLETIVA
COM AS APRENDÊNCIAS INSURGENTES NA DIFERENÇA
FORÇA, FORMA
E PINTURA:

CURRÍCULO E ESTÉTICA DA ARTE DE EDUCAR


MOVIMENTOS
NA FORMAÇÃO
CONTINUADA
DE PROFESSORES
291
A DISTÂNCIA
Jaqueline Magalhães Brum
Nilcea Elias Rodrigues

13.
Jaqueline Magalhães Brum1
Nilcéa Elias Rodrigues Moreira2

1 Introdução
Esta escrita busca problematizar como a força micropolítica produzida nas rela-
ções entre coordenação, professores, tutores e alunos de um curso de especiali-
zação em Matemática para professores do ensino médio, ministrado a distância
pela Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes), via Secretaria de Educação
a Distância (Sead) e Universidade Aberta do Brasil (UAB), pode, por meio das
práticas discursivas desse coletivo, produzir agenciamentos, problematizações
que possibilitem ou não... afetar na forma macropolítica do referido curso.

Em 2018, estivemos em quatro polos do estado do Espírito Santo: norte (São


Mateus), sul (Alegre), leste (Vitória) e oeste (Nova Venécia), para realizarmos um
292 trabalho de pesquisa. A partir daí, tivemos a ideia de buscar informações sobre
o andamento do curso, uma vez que ele havia iniciado as aulas no segundo se-
FORÇA, FORMA E PINTURA: MOVIMENTOS NA FORMAÇÃO CONTINUADA
DE PROFESSORES A DISTÂNCIA

mestre de 2017, e, já quase terminando o segundo módulo, achamos que seria


importante saber sobre o seu andamento. Para tal, antes de irmos aos polos, fize-
mos um levantamento das dúvidas mais frequentes que apareciam na plataforma
Moodle3, a respeito do andamento do curso, com o intuito inicial de sabermos
um pouco mais sobre quem eram esses alunos, por que estavam fazendo o cur-
so, o que esperavam e a opinião deles sobre o trabalho pedagógico exercido por
professores e tutores de forma geral, já pensando em melhorias que poderiam ser
sugeridas para as próximas turmas.

1 Doutora em Educação e Professora Adjunta da Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes), no Departamento de Teorias do Ensi-
no e Práticas Educacionais (DTEPE); integrante do grupo de pesquisa Com-Versações (PPGE-UFES) jackiemagalhaesbrum@gmail.
com.

2 Doutora em Educação pela Universidade Federal do Espírito Santo (UFES), professora da Educação Básica do Município de Serra –
ES e Pedagoga no município de Vitória – ES; integrante do grupo de pesquisa Com-Versações (PPGE-UFES) doutoradonermoreira@
gmail.com.

3 Moodle – Plataforma de Ambiente Virtual de Aprendizagem baseada em software livre, a qual é adotada pela EaD da Ufes. Trata-se
de uma ferramenta que possui diversas possibilidades de comunicação entre professor-aluno, aluno-aluno e aluno-professor, como
chats, fóruns de discussão, entre outras.
Com base nos enunciados discursivos produzidos pelos profissionais que atuam
nos polos (coordenadores/as, tutoras, professores/as...), nas redes de conversa-
ção se constituem as análises e problematizações dessa composição. Nesse de-
bate, utilizamos como intercessores teóricos autores de base pós-estruturalista:
Roberto Machado (2009), ao analisar a pintura, com os conceitos deleuzianos
que concernem à noção de área redonda, contorno, superfície plana e figura
desfigurada atuam como intercessores teóricos na composição desta escrita, ao

CURRÍCULO E ESTÉTICA DA ARTE DE EDUCAR


problematizar como a força micropolítica produzida nas relações em um curso
de especialização em Matemática para professores do ensino médio, ministra-
do a distância, pode ou não mudar aspectos da forma macropolítica; a escrita
em composição também com Deleuze (1992, 2006), Deleuze e Guattari (1995,
1997) ante a concepção de micropolítica, acontecimento, afectos e perceptos,
rizoma e filosofia da diferença; Rolnik (2018) com a noção de entrelaçamento
entre micro e macropolítica. Esses fios teóricos engendrados à fala de professo-
res sobre seus perceptos em relação ao curso, comporão as problematizações
sobre a formação docente a distância.
293

2 Compondo com a teoria

‘Teoria’, nesses casos, é algo assim como reorganizar uma biblioteca,


colocar alguns textos junto a outros, com os quais não têm aparente-
mente nada a ver, e produzir, assim, um novo efeito de sentido. [...]
[Deleuze, Guattari, Espinosa, Hardt, Negri, Lazzarato, Foucault] são
selecionados porque ‘dão o que pensar’, porque permitem ‘pensar de
outro modo’, explorar novos sentidos, ensaiar novas apostas (LARRO-
SA, 1994, p. 35).

Arriscamos afirmar que, em Deleuze, a função primordial do pensamento é a


criação; pensar é, sobretudo, produzir o novo, fabricar ideias que escapam da
tradição filosófica, reivindicando o pensamento fora da representação; um pen-
samento sem imagem por um pensamento da diferença. O filósofo como criador
de ideias rompe com a perspectiva clássica da filosofia como reflexão e amplia
novos meios de expressão. Deleuze (2006) ajuda-nos nessa problematização,
ao questionar o velho estilo de fazer filosofia, destacando que Nietzsche iniciou
a busca por novos meios de expressão da filosofia que prossegue na atualida-
de, os quais reverberam em outras artes, como teatro e o cinema. “Parece-nos
que a História da Filosofia deve desempenhar um papel bastante análogo ao da
colagem numa pintura. [...] Seria preciso conseguir apresentar um livro real da
Filosofia passada como se tratasse de um livro imaginário e fingido” (DELEUZE,
2006, p. 18).

Ideias na filosofia são conceitos e a filosofia é a arte de formar, inventar, fabricar


conceitos e, mais que isso, consiste na possibilidade de criar conceitos: a criação
do novo como objeto da filosofia e o filósofo como quem tem o conceito em po-
tência. “Nietzsche determinou a tarefa da filosofia quando escreveu: os filósofos
não devem mais contentar-se em aceitar os conceitos que lhes são dados, para
somente limpá-los e fazê-los reluzir, mas é necessário que eles comecem por fa-
bricá-los, criá-los, afirmá-los, persuadindo”. (DELEUZE; GUATTARI, 1997, p. 13)

Deleuze (1997) alerta-nos que, no sentido restrito, a filosofia cria, fabrica concei-
tos, no entanto as ciências, as artes são igualmente criadoras; na esteira de Vas-
294 concelos (2005), consideramos que a relação da filosofia com a arte ocorre com
a criação de conceitos e a intercessão teórica é a força que atua na conexão entre
FORÇA, FORMA E PINTURA: MOVIMENTOS NA FORMAÇÃO CONTINUADA
DE PROFESSORES A DISTÂNCIA

filosofia, arte e criação. “Ideias na filosofia são conceitos, as da matemática fun-


ções, e as da arte blocos de afectos e perceptos, blocos de sensações” (p. 1226).

O essencial são os intercessores. A criação são os intercessores. Sem


eles não há obra. Podem ser pessoas – para um filósofo, artista ou
cientista; para um cientista, filósofos ou artistas – mas também coisas,
plantas, animais como em Castañeda. Fictícios ou reais, animados
ou inanimados é preciso fabricar seus próprios intercessores [...]. Eu
preciso de meus intercessores para me exprimir e eles jamais se expri-
miriam sem mim: sempre se trabalha em vários, mesmo quando isto
não se vê. (DELEUZE, 1992, p. 156)

Os intercessores atuam nos encontros, nas conexões, que forçam o pensamento


para que saia de sua imobilidade, de sua letargia. Nesse movimento, reconhe-
cemos que sem os intercessores não há criação. E essa criação [de conceitos]
conectada a um plano de imanência e acoplada ao extrafilosófico produz uma
intensa e violenta onda de forças que faz pensar.
Essa noção de criação interessa-nos, sobretudo por compreendermos sua rele-
vância para a profissionalização docente a distância. O automatismo, o cumpri-
mento de tarefas com prazos controlados remotamente e o esforço para transpor
o que é aprendido no curso para a sala de aula como modelo a ser seguido coe-
xistem com uma discursividade que aponta a importância do curso na prática
docente, com a possibilidade de acessar a formação superior pela universidade
pública, com os agenciamentos produzidos em redes coletivas que reverberam

CURRÍCULO E ESTÉTICA DA ARTE DE EDUCAR


em aprendizagens.

Os enunciados produzidos por professores em um dos encontros da rede de


conversa demonstram essas tensões, sobretudo no que se refere à importância
do curso para a docência na unidade escolar:

“O curso apresenta uma boa proposta. A metodologia aplicada pro-


porciona uma reflexão na prática docente.” Polo Frédéric4

295
“A matéria é de qualidade, porém precisaria de uma maior interação
com os professores.” Polo Frédéric 5

“Com as experiências nas aulas aplicadas, pude aprender bastante


coisa, não sabia o que era um plano de aula, sem falar no contato
com os alunos.” Polo Michelangelo 1

“Acredito que a prática é superimportante, no decorrer do curso per-


cebi o quanto isso não é aplicado nas escolas. Portanto, com esse
curso já estamos sendo preparados para fazer diferente, ou seja, ser o
diferencial.” Polo Michelangelo 2

4 Para não identificarmos alunos e professores, utilizamos nomes de pintores de tela de diferentes continentes.
DOBRA 15 _ Carlos Chenier de Magalhães. Expansão XIV. 1968.

296
FORÇA, FORMA E PINTURA: MOVIMENTOS NA FORMAÇÃO CONTINUADA
DE PROFESSORES A DISTÂNCIA

Fonte: INDOLPHO BARBOSA LIMA E CARLOS CHENIER: A crítica de arte em Vitória-ES entre as décadas de 1940-1980.
(Acesso em 12-11-2019) L

Reconhecemos que fazer pensar e sobretudo forçar o pensamento na busca de


modos outros de docência é compor, com a noção de criação, o “fazer dife-
rente” na fala do professor. Mesmo que a noção de “preparo” nos remeta para
linhas mais duras, esses fluxos reverberam em múltiplas intensidades de forças
que podem afetar tanto os movimentos formativos quanto a docência na educa-
ção básica.

5 As dobras são como um terceiro que atrapalha a binaridade. Estão ora dentro e ora fora, produzindo uma desterritorialização. A
dobra é como uma linha de fuga... (BRUM, 2010). Assim utilizamos, em alguns momentos, a pintura de Carlos Chenier de Maga-
lhães para fugir das representações na pintura.
2.1 Macro e micropolítica
Nesse sentido, “[...] decifrar os sinais das formas nos permite existir social-
mente” (ROLNIK, 2018, p. 52). Com essa frase, a autora instiga-nos a perceber
como os modelos socialmente aceitos acabam por fazer parte e controle de
nossa subjetividade, mostrando, a partir daí, que forças podem modificar esse
statu quo. Uma vez que nossos corpos podem contestar a partir das relações
que são estabelecidas com outros corpos e não só necessariamente corpos,

CURRÍCULO E ESTÉTICA DA ARTE DE EDUCAR


mas tudo aquilo que pode nos tocar no sentido de transformação (LARROSA,
2004) e que é vital em nós que segundo Deleuze e Guattari (1997) seriam os
“perceptos” e os “afectos”, já que os perceptos são as sensações e os afectos são
os devires, forças que transbordam o que passa pelos perceptos positivamente
ou negativamente.
A mesma autora define dois tipos de forças micropolíticas: as ativas (éticas) e as
reativas (morais). As forças ativas são as que nos colocam em relação às formas
como potências de vida, de transformação e de desterritorialização, de uma
vida não “cafetinada”6 e produtoras de outros mundos possíveis. Já as forças
297
reativas seriam aquelas que em nada nos ajudam a mudar o que está instituído,
seriam mais ou menos como um quebra-cabeça no qual todas as partes já es-
tão determinadas e apenas um mundo seria possível; portanto, nada pode ser
transformado. A força ativa luta pela mudança, enquanto a força reativa apenas
reclama de não ser atendida pelas formas. “Sendo assim, é do embate entre
políticas do desejo (ativas e reativas) que esse constitui o campo de batalha na
esfera micropolítica” (ROLNIK, 2018, p. 113).
Mas o que dizer das formas? Se depender de micropolíticas de reatividade,

[...] tende a impor-se em maior ou menor escala o movimento de con-


servação das formas de existência em que a vida se encontra corpo-
rificada no presente. É que, dissociada de sua condição de vivente e
desconhecendo o processo contínuo de mutação próprio à dinâmica
vital (dinâmica pulsional, no humano), a subjetividade vive a pressão
dos embriões do mundo cm ameaça de desagregação de si mesma e
de seu campo existencial, já que ‘este mundo’, aquele que o sujeito o
habita e no qual se estrutura, é por ela vivido como ‘o mundo’, único
e absoluto. (ROLNIK, 2018, p. 114))

6 Expressão de Rolnik (2018, p. 32) para cafetinagem: “Se a base da economia capitalista é a exploração de força de trabalho e da
cooperação intrínseca à produção para delas extrair mais-valia, tal operação – que podemos chamar de “cafetinagem” para lhe dar
um nome que diga mais precisamente a frequência de vibração de seus efeitos em nossos corpos. Portanto cafetinada seria uma
vida explorada e não uma vida em sua potência de existir”.
Na continuidade desse tecer, trazemos uma pergunta de Rolnik (2018, p. 92):
“Mas o que, afinal, teria a arte a ver com tudo isso?” Ela passa uma visão pouco
otimista do poder da arte no início de sua conversa, devido ao consumo capi-
talístico que acontece no meio das artes, nos tempos atuais. No entanto, ela
leva depois à discussão a ideia da potência política da arte que, na sua pulsão,
pode modificar ou não, dependendo das forças ativas ou reativas em questão e
de toda uma conjuntura política, social, econômica e cultural. Machado (2009),
problematizando conceitos deleuzianos (1997), por sua vez aposta nos signos
artísticos: literatura, pintura, cinema, teatro, entre outros, como intercessores po-
tentes para problematizar o instituído e como uma possibilidade de vida não
“cafetinada”. Aqui, neste texto, escolhemos a pintura.

2.2 Signos artísticos – noção de figura, contorno


e superfície plana na pintura
298
Uma vez que a arte entrou em nosso contexto e escolhemos o signo da pintura
para ser nosso intercessor poético, procuramos relacionar as discussões de Rol-
FORÇA, FORMA E PINTURA: MOVIMENTOS NA FORMAÇÃO CONTINUADA
DE PROFESSORES A DISTÂNCIA

nik (2018) e Machado (2009). Este último, ao falar sobre Deleuze e a pintura
(p. 225-244), diz-nos que Deleuze, em seu livro Francis Bacon: a lógica da
sensação, ao definir a pintura de Francis Bacon, faz dois tipos de análises: uma
estrutural e outra genética. Em relação à análise estrutural, ele identifica três
elementos: a figura, o contorno e a grande superfície plana. Em nosso estudo,
vamos ater-nos à análise estrutural.

Em relação ao primeiro elemento – a figura. Segundo Machado (2019), Deleuze


dirá que Bacon consegue afastar-se tanto da representação, por não privilegiar
a forma, como da abstração, porque, apesar da abstração, em sua obra, a figura
ainda mantém algo de figurativo. Para o autor, Deleuze, ao diferenciar uma fi-
guração primária e uma figuração secundária, aponta a ideia de uma figura que
não é figurativa e, na pintura de Bacon, é chamada de figural (termo utilizado por
Lyotard), que é uma figura sem a figuração primária, considerada como forma,
[...] mas forma deformada; é figura, mas figura desfigurada, despojada
da função figurativa. [...] O estudo deleuziano da figura privilegia o
corpo. O que está pintado como figura é o corpo, não representado
como objeto, nem representando um objeto, mas experimentando
uma sensação. (p. 227-228)

PINTURA 1 _ Crussification (1933)

CURRÍCULO E ESTÉTICA DA ARTE DE EDUCAR


299

Fonte: Imagem da pintura de Francis Bacon disponibilizada e compartilhada pela internet (acesso em 29-7-2019)

Ele vai chamar esse estilo de pintura como de uma carne, uma vianda, em que o
corpo e os ossos se confrontam, e problematiza a questão dizendo: “O corpo só
se revela quando deixa de ser sustentado pelos ossos, ou quando a carne deixa
de recobrir os ossos, quando ambos existem um para o outro, em tensão em
confronto, mas cada um em seu lugar” (MACHADO, 2009, p. 228). Esse pensa-
mento remete-nos às questões apontadas por Rolnik (2018) sobre o que move os
agentes, suas intenções, critérios de avaliação, modos de operação, modos de
cooperação na macro e na micropolítica (p. 131-145).
Ao problematizar a figura desfigurada, Deleuze nos brindará com vários con-
ceitos, criados por ele e Guattari, tais como: rostidade, corpo sem órgãos,
devir animal, desterritorialização, diferença entre virtual e atual, sensações,
intensividades, entre outros (DELEUZE; GUATTARI, 1995, 1997). Ele o faz para
concluir que:

É fundamental destruir a organização em proveito de uma vida não


orgânica. Ou seja, ao desfazer “[...] o organismo em proveito do cor-
po, o rosto em proveito da cabeça, Bacon pinta corpos sem órgãos,
o fato intensivo do corpo, a presença intensa das figuras, um corpo
sem órgãos que é carne, intensidade, sensação” (MACHADO, 2009,
p. 234).

O segundo elemento – a grande superfície plana. É a estrutura, o suporte. Não


está atrás, na frente nem ao lado, mas em volta. Para Deleuze, não existe grande
diferença de profundidade entre a figura e a grande superfície plana, e esta é
modulada pela cor.

300
O terceiro elemento – a área redonda ou contorno. Funciona como limite co-
mum, é o elo, o lugar de troca, nos dois sentidos: da figura para a superfície plana
FORÇA, FORMA E PINTURA: MOVIMENTOS NA FORMAÇÃO CONTINUADA
DE PROFESSORES A DISTÂNCIA

e da superfície plana para a figura. É chamado também de duplo movimento de


tensão. O primeiro vai da estrutura para figura, que, forçada pelo contorno, exer-
ce uma força centrípeta, a qual por sua vez isola, envolve, aprisiona e deforma a
figura. Para Deleuze, esse isolar e deformar fazem com que a figura liberada fuja
da representação, da ilustração. “[...] Isso leva Deleuze a falar de um ‘atletismo’
singular da figura, de uma ‘violência cômica’, em que o contorno vira aparelho
de ginástica para a figura” (MACHADO, 2009, p. 235-236). O segundo vai da
figura para a superfície plana e exerce uma força centrífuga de expansão. Porém,

Contraindo-se ou distendendo-se, o corpo tenta escapar de sua forma,


de sua organização, por um de seus órgãos, para se dissipar na grande
superfície plana e é apresentado pelo pintor no estado intermediário
entre corpo organizado e dissipado, como um corpo em devir. (MA-
CHADO, 2009, p. 236)
PINTURAS 2 E 3 _ Exemplos de superfície plana e área redonda

CURRÍCULO E ESTÉTICA DA ARTE DE EDUCAR


301

Fonte: Imagem da pintura de Francis Bacon disponibilizada e compartilhada pela internet (acesso em 29-7-2019)
Como que essas conceituações podem nos forçar a pensar a formação docente a
distância, tendo o signo da pintura compondo com essa problematização? A no-
ção de figura em Bacon ajuda-nos nesse movimento, sobretudo ao questionar o
modelo, a placa, a representação. Na primeira etapa do curso de especialização
em Matemática na Prática, foram produzidos fascículos com registro de conteú-
dos e atividades a serem cumpridos pelos(as) professores(as) em formação. A for-
ça prescritiva do fascículo (figura, representação, forma) parece compor com o
“bom resultado” na aprendizagem do curso; no entanto, forças outras se movem
questionando o uso do fascículo como única fonte e avaliando como potente o
fato de alguns professores utilizarem estratégias para além da apostila, como nos
relatos que se seguem:

“Sempre me dirigia aos conteúdos dos artigos e fascículos. Portanto


meu aprendizado se deu mais quanto a esses recursos.” Polo Frédéric 1

“Base da disciplina foi a apostila, porém alguns deles utilizaram pró-


prias estratégias.” Polo Katsushika 4
302

Essa tensão e esse deslocamento de mão dupla, que Deleuze observa na pintu-
FORÇA, FORMA E PINTURA: MOVIMENTOS NA FORMAÇÃO CONTINUADA
DE PROFESSORES A DISTÂNCIA

ra de Bacon, da área plana para a figura e vice-versa, também nos remetem à


tensão e ao movimento existente entre macro e micropolítica (ROLNIK, 2018).
Para Deleuze, a arte tem a potência de capturar as forças e esse movimento de
captura ele nomeia de sensação: “[...] a arte não é a representação ou comemo-
ração do que já foi ou do que já passou, o que as obras de arte fazem é entregar
ao futuro um bloco de sensações que fixaram do acontecimento”. (VITKOWSKI,
2014, p. 92)
2.3 Educação a distância e profissionalização docente
A Educação à distância (EaD) é tecida pelas mãos de vários atores: coordena-
ção pedagógica, professores, tutores presenciais e a distância, estudantes, entre
outros. Além de ela estar conectada a todos esses atores, conecta-se a polos,
ambientes virtuais, mídias e políticas públicas, formando um ambiente favorável
à criação e construção de um “conhecimento tecido em rede ou rizomático”.
(BRUM, 2010, p. 122-134).

CURRÍCULO E ESTÉTICA DA ARTE DE EDUCAR


Os cursos a distância ofertados pela UAB são dirigidos àqueles que não podem
frequentar o modelo presencial, por questões financeiras, de trabalho ou de lo-
comoção, mas que buscam uma qualificação profissional e, neste caso, uma
qualificação docente. Na famosa série de entrevistas realizadas por Claire Parnet
com Deleuze, filmada nos anos 1988-1989, o Abecedário, ao chegar à letra “p”,
é perguntado a Deleuze o que é para ele ser professor? E o autor responde como
ele pensa ser uma aula: é algo muito preparado, ensaiado, e isso nos remete ao
que seja um professor, ele precisa de inspiração...
303
É preciso estar totalmente impregnado do assunto e amar o assunto do
qual falamos. Isso não acontece sozinho. É preciso ensaiar, preparar.
É preciso ensaiar na própria cabeça, encontrar o ponto em que... É
muito divertido, é preciso encontrar... É como uma porta que não
conseguimos atravessar em qualquer posição (DELEUZE, 1988-
1989)7.

As considerações de Deleuze sobre o professor se confundem com as problema-


tizações sobre a aula. Nas conversas com os(as) professores(as) e alunos(as) do
curso, emergiram discursos que destacam a relevância da formação para o ato
de ensinar e aprender. Os relatos que se seguem podem exemplificar essa força.

“O curso é muito bom, um conteúdo enriquecedor. Por ainda não


atuar como professor, trouxe um preparo, uma perspectiva mais acen-
tuada sobre o mundo da educação, sobretudo o ensino da matemáti-
ca.” Polo Frédéric 1

7 O Abecedário de Gilles Deleuze é uma realização de Pierre-André Boutang, produzido pelas Éditions Montparnasse, Paris. No
Brasil, foi divulgado pela TV Escola, Ministério da Educação. Tradução e Legendas: Raccord [com modificações] Fonte:http://
escolanomade.org/wp-content/downloads/deleuze-o-abecedario.pdf.
“Tem me feito estudar mais e me dá oportunidade de melhorar mi-
nhas atividades em sala de aula.” Polo Dionísio 2

A docência, a aula, o encontro, essa “porta que não conseguimos atravessar em


qualquer posição” (DELEUZE, 1988-1989) nos ajudam a forçar o pensamento no
sentido de buscar escapar da lógica template, que busca moldar a formação do-
cente na EaD e se evidencia entre tantas outras dimensões, no caráter represen-
tacional e prescritivo dos cursos: a forte ênfase instrucional estabelece, a priori,
o que o(a) professor(a) em formação deve ser, o que deve saber e como deve agir,
estabelecendo uma medida única. Esses movimentos de captura tentam excluir
os outros modos de vida que deslizam, escapam da medida única. No entanto,
apostamos que esses fluxos insistem em outros movimentos, os quais se desviam
do cálculo, da medida.

Em um dos polos visitados, o grupo tecia redes de afetos com a poesia, o teatro,
a música, em bons encontros possibilitados entre os estudantes, professores, tu-
tores e tantos outros que se movimentaram na composição do Sarau8, do Projeto
304
Faróis9; em outro, conhecemos o relato de experiências nos ambientes virtuais
(não apenas no Moodle) de redes de conversas, coexistindo com o formato dito
FORÇA, FORMA E PINTURA: MOVIMENTOS NA FORMAÇÃO CONTINUADA
DE PROFESSORES A DISTÂNCIA

oficial.

Seguem algumas interações via e-mail, são escapamentos que aconteceram na


vivência do curso:

Boa noite Professora “Esther”,


[...] fui aluna da Especialização Matemática na Prática no Polo UAB
[...]. A professora “A” orientou-me na escrita do meu TCC e fez parte
da banca de apresentação junto com você. O meu trabalho fala sobre
interdisciplinaridade, Escher e a matemática – uma aula interdiscipli-
nar. No dia da apresentação surgiu a possibilidade do meu trabalho
ser organizado em forma de artigo para publicação. Gostaria de sa-
ber se isso ainda vai acontecer. Estou interessada em apresentá-lo no

8 Encontros promovidos por um dos Polos, pelo menos uma vez no ano, povoados de afetos em que a poesia, a música e performan-
ces coexistem em uma noite de bons encontros entre alunos, professores, coordenadores e tantos outros que quisessem compor
com as grupalidades.

9 Projeto de extensão que possibilita o acesso da comunidade ao espaço do Polo com oferta de cursos para a comunidade local...
Para além dos editais e seleções oficiais.
CONCEFOR no IFES, mas tenho preferência pela publicação.
Obrigada pela atenção e aguardo retorno breve.
Atenciosamente,
“O Senhor é o meu Pastor e nada me faltará.”
(Mensagem recebida por e-mail em 4-5-2018)

Prezada “Esther”, boa noite!


Você pode fazer as duas coisas. Apresente no Ifes e depois faça uma

CURRÍCULO E ESTÉTICA DA ARTE DE EDUCAR


adaptação e publique também em forma de artigo.
Em relação ao curso, ainda pensamos sim, mas somos muito atrope-
lados no cotidiano e não queremos de jeito nenhum que você fique
esperando.
Prometo que, se conseguirmos fazer o livro, entrarei em contato.
Abraços e sucesso.
Profa. “Esther”
(Mensagem respondida por e-mail em 5-5-2018)

***
305

Olá “Esther”.
Foi publicado um artigo de uma ex-aluna juntamente comigo referen-
te ao trabalho realizado no curso de especialização em matemática
na prática da Ufes. Segue o texto em anexo.
Um abraço,
“Van Gogh”

“Van Gogh”,
Meus parabéns! Por favor, transmita minha alegria também a sua alu-
na de TCC. É muito bom para o curso, inclusive colocarei no relatório
final da segunda turma.
Abraço,
Profa. “Esther”
(Mensagens trocadas em 3-7-2019)
DOBRA 2 _ Carlos Chenier. S/t.

306
FORÇA, FORMA E PINTURA: MOVIMENTOS NA FORMAÇÃO CONTINUADA
DE PROFESSORES A DISTÂNCIA

Fonte: LINDOLPHO BARBOSA LIMA E CARLOS CHENIER: A crítica de arte em Vitória/ES entre as décadas de 1940-
1980. (acesso em 12-11-2019)
Nessa tensão, qual seria o limite comum? O elo, o lugar de troca, nos dois sen-
tidos: da figura para a superfície plana e da superfície plana para a figura? Da
prescrição e da criação? Apostamos, como na pintura em Bacon, nas composi-
ções que buscam escapar de uma forma, expandir, dissipar, por uma docência
em devir.

A aposta de uma formação inventiva é fazer com o outro, e formar


é criar outros modos de viver-trabalhar, aprender, desaprender e não

CURRÍCULO E ESTÉTICA DA ARTE DE EDUCAR


apenas instrumentalizar o outro com novas tecnologias ou ainda dar
uma consciência crítica ao outro. Uma formação inventiva é exercí-
cio de potência de criação que constitui o vivo, é invenção de si e do
mundo, se forja nas redes de saberes e fazeres produzidas histórica e
coletivamente (DIAS, 2012, p. 36).

São essas composições que se movem nos encontros, bons encontros, que nos
fazem apostar na formação continuada, na modalidade à distância, no poder de
invenção e de criação de nossos professores e alunos, apesar de toda a prescri-
ção. São obras de arte – pinturas – em aberto.
307

3 Conversações
Como dito, realizamos uma pesquisa de natureza qualitativa e utilizamos ele-
mentos da pintura de Francis Bacon – figura (forças), contorno (elemento rela-
cional) e grande área plana (formas), para fazermos uma análise discursiva dos
sujeitos envolvidos.

Além das problematizações já tratadas aqui no texto, linhas outras compo-


rão nossa escrita mediante os enunciados produzidos nas conversações com
as equipes atuantes nos polos UAB de Vitória, Nova Venécia, São Mateus e
Alegre. Optamos por tecer as problematizações em blocos, no intuito de se
apresentarem em camadas acopladas, não desassociadas. Participaram da
composição da conversa escrita e falada 35 pessoas, entre cursistas, tutores,
coordenadores de polo: Alegre com 7 participantes; Nova Venécia, 12; São
Mateus, 10; e 6 de Vitória.
No primeiro bloco, problematizamos sobre questões gerais, tais como: gradua-
ção e ano de formação; atuação ou não na docência, nível e disciplina; avalia-
ção do curso; pontos positivos e negativos das disciplinas cursadas; sugestões
de melhoria para uma nova oferta da disciplina; maneira pela qual o curso pode
contribuir com a prática docente; importância atribuída à formação docente.

O grupo que compôs a rede de conversas tem, em sua maioria, licenciatura em


Matemática, e a complementação pedagógica em Matemática também é parte
constituinte da formação, como detalhado na tabela a seguir:

Habilitação Docência Ano de formação* Disciplina/Nível


Licenciatura em 16 Atua 25 2000-2005 01 Matemática - 11
Matemática Ensino Médio
Complementação 04 Não 08 Matemática - 08
Pedagógica em atua 2006-2010 08 Fundamental II
Matemática
Outras habilitações 14 Atua na 02 2011-2017 26 Outros 06
gestão
*Consideramos que a formação mais recente na área de matemática seja licenciatura ou complementação; para os casos
de não possuir licenciatura ou complementação, consideramos o ano de conclusão do curso de graduação.
308
FORÇA, FORMA E PINTURA: MOVIMENTOS NA FORMAÇÃO CONTINUADA
DE PROFESSORES A DISTÂNCIA

A avaliação do curso nas camadas desse bloco, no desenrolar das conversas,


emerge em discursos sobre a relevância do curso para a formação acadêmica,
para a prática docente, e sobre a qualidade dos materiais usados na especializa-
ção. Ademais, reverberam questionamentos sobre prazos de postagem das tare-
fas, atraso na publicação das notas e necessidade de padronização dos trabalhos
acadêmicos. Os relatos a seguir podem exemplificar:

“O curso está sendo maravilhoso, muito enriquecedor para a minha


formação. Estou tendo a oportunidade de estudar novos conceitos,
participar de novas discussões que não tive na graduação.” Polo Ka-
tsushika 1

“Estou gostando do curso. Tem agregado bastante conhecimentos,


especialmente as atividades práticas. Mas achei a plataforma desor-
ganizada, seria interessante se todos os professores nos dessem um
feedback em relação às notas. E outro ponto é uma relação à forma-
tação de trabalhos, alguns professores passavam um modelo e outros
passavam diferentes. Seria bom adotar um modelo-padrão para todas
as disciplinas.” Polo Frédéric 4passavam diferentes. Seria bom adot
“A proposta do curso é boa, porém um pouco tumultuado com re-
lação à quantidade de conteúdo, apostilas. Fica complicado para
acompanhar, com isso prejudica a qualidade do desenvolvimento.”
Polo Dionísio 6

DOBRA 3 _ Carlos Chenier. Tropicália. Década 1960.

CURRÍCULO E ESTÉTICA DA ARTE DE EDUCAR


309

Fonte: LINDOLPHO BARBOSA LIMA E CARLOS CHENIER: A crítica de arte em Vitória-ES entre as
décadas de 1940-1980. (Acesso em 12-11-2019)
Observamos que a forma está presente nos discursos, uma vez que a fala de
uma aluna aqui transcrita demonstrou que gostaria de que houvesse apenas
um modelo para a apresentação de trabalhos, mas ela não é a única a pedir
que os documentos sejam os mais prescritivos possíveis. Por outro lado, há for-
ças ativas agindo, pois confirmaram gostar do curso, reconheceram a potência
das interações e das aprendizagens produzidas. Ou seja, algum agenciamento
positivo os tocou.

Conforme indicado na denominação da especialização, “Matemática na Práti-


ca”, a ênfase nos discursos assume força, sobretudo por apontar como/quanto
o curso agrega conhecimentos para a prática de matemática no contexto da
sala de aula.

“Estou achando que está sendo enriquecedor o conhecimento, adqui-


rindo uma concepção ampla em matemática voltado realmente para
a prática, despertando um interesse maior no conteúdo pelos alunos.”
Polo Katsushika 2

310
“Particularmente estou amando o curso, tem sido enriquecedor para a
minha formação e preparo para a profissão; mesmo o curso sendo se-
FORÇA, FORMA E PINTURA: MOVIMENTOS NA FORMAÇÃO CONTINUADA
DE PROFESSORES A DISTÂNCIA

mipresencial, a dinâmica entre os tutores e alunos tem sido presente”.


Polo Katsushika 3

“Curso bom, que possibilita um aprendizado a mais, principalmente


no que se refere à troca de experiências nos encontros presencias.”
Polo Dionísio 1

“Material excelente para estudo, com sugestões de atividades enri-


quecedoras para prática em sala de aula.” Polo Dionísio 7

Percebemos aqui também a ação de forças ativas, ao enfatizarem a importân-


cia da especialização para a prática docente, mesmo porque o curso articula,
o tempo todo, conteúdo (o que ensinar) e prática (como ensinar) como ações
indissociáveis.

Os enunciados discursivos, tecidos na rede de conversas, apontam como po-


tência nas disciplinas já trabalhadas no curso: conteúdo diversificado; troca de
experiências nos encontros presenciais; novas sugestões de métodos; atividades
inovadoras incluindo softwares; desafio aos estudos e à melhoria da prática
pedagógica; professores bem preparados; os conteúdos; o envolvimento da ma-
temática, no dia a dia, em outras disciplinas e outras vivências; disponibilidade
da equipe do curso, do professor, do tutor, conteúdos, como evidenciados nas
conversas seguintes:

CURRÍCULO E ESTÉTICA DA ARTE DE EDUCAR


“O curso está me proporcionando grande aprendizado e oportunida-
des para ampliar meus conhecimentos de maneira muito mais abran-
gente, em campos matemáticos como a geometria.” Polo Dionísio 4

“Fiz minha inscrição para o curso de pós-graduação em “Matemática


na Prática”, com uma vontade enorme de adquirir conhecimentos e
não tenho me decepcionado. O curso tem atendido minhas expecta-
tivas no que diz respeito às atividades e disciplinas propostas.” Polo
Dionísio 2

Conforme dito, das conversas emergiram sugestões, consideradas pelos participan-


tes, como relevantes para a melhoria das disciplinas, entre as quais destacamos: 311

“Mais vídeo aulas, pois eu penso que ajuda muito, e senti falta de We-
bconferência, porque, mesmo o curso sendo a distância, eu aprendo
mais quando o professor fala.” Polo Dionísio 3

“Deveria ter resposta aos feedbacks das perguntas realizadas na pla-


taforma ou por e-mail.” Polo Frédéric 10

“Ter uma interação com os cursistas dos outros polos, como por
exemplo, uma aula na UFES antes de iniciar cada disciplina.” Polo
Frédéric 10

“Fornecer material impresso, e não apenas online em formato PDF”.


Polo Frédéric 10

Destacamos aqui a força do micro no macro, propondo um movimento nas es-


truturas estabelecidas de comunicação e de infraestrutura. Em relação à infraes-
trutura e à falta de material impresso, cabe ressaltar que, na primeira turma, os
polos e os professores receberam o material impresso, contudo os textos para a
discussão da teoria sempre foram disponibilizados no Moodle por todos os pro-
fessores nas respectivas disciplinas.

Na camada Formação Continuada e sua importância para o cursista, os dis-


cursos apresentaram forte ênfase à metodologia e conteúdos curriculares de
matemática trabalhados no curso, citando a geometria, probabilidade, sólidos
geométricos, análise combinatória, entre outras, como aprendizagens relevantes
produzidas no curso. Em intensidade de força menor, aparece nos discursos a re-
levância da formação continuada, sobretudo para renovar a prática docente, tro-
car experiência, aprender novos métodos e melhorar a interação com os alunos.

“Aplicar probabilidade utilizando jogos; utilização de Tangram em


Geometria; construção de sólidos geométricos com material reutili-
zado.” Polo Dionísio 8

312 “Jogos de discos; experimento da função exponencial; batalha naval


e trabalhando o plano cartesiano.” Polo Michelangelo 7
FORÇA, FORMA E PINTURA: MOVIMENTOS NA FORMAÇÃO CONTINUADA
DE PROFESSORES A DISTÂNCIA

“Despoluição; uso de materiais manipuláveis; uso de criptografia.”


Polo Frédéric 4

“As aulas de Geometria, na confecção dos sólidos, o uso de tabuleiros


(jogos de discos).” Polo Katsushika 6

“A formação continuada ajuda a renovar a prática docente, a própria


troca de experiências com colegas nos ajuda a renovar ideias de apli-
cação de métodos.” Polo Michelangelo 4

“Me proporcionou mais segurança para atuar na sala de aula. Ino-


vação nas aulas. Saiu um pouco dos métodos ‘engessados’. Desen-
volveu práticas pedagógicas mais ‘chamativas’, lúdicas que propor-
cionam melhor interação/envolvimento dos alunos com o conteúdo
aplicado.” Polo Frédéric 6
“A formação continuada dá ao docente maior suporte e conhecimen-
to na área afim. Desenvolver suas capacidades com finalidade de ob-
ter mais conhecimento.” Polo Frédéric 7

“O bom professor não pode parar no tempo, precisa estar sempre


atualizado, portanto a formação continuada é de extrema importân-
cia para um bom desenvolvimento de suas atividades em sala.” Polo
Michelangelo 4

CURRÍCULO E ESTÉTICA DA ARTE DE EDUCAR


Aqui percebemos como os alunos privilegiam os componentes curriculares para
sua formação. Pensávamos que, por ser um curso de formação continuada, que
eles já tivessem consolidados alguns conhecimentos de conteúdo, pedagógico
e curricular (SHULMAN, 1986). No entanto, verificamos que eles necessitam
expandir seus conhecimentos como uma força centrífuga de dentro (micro) para
fora (macro), ao invés de se aproximarem dos componentes curriculares como
sinônimo da formação continuada, apesar de, pela fala deles, termos percebido
que o curso os ajudou nessa expansão e que eles se sentem mais preparados e
mais confiantes no seu desenvolvimento profissional.
313
No bloco referente às problematizações sobre questões específicas, como atua-
ção dos professores e atuação dos tutores presenciais e a distância, as conver-
sas evidenciaram o reconhecimento do trabalho dos tutores, ao atenderem os
cursistas até mesmo no fim de semana, via aplicativos de mensagens e também
presencialmente, participação dos tutores nos encontros estimulando os deba-
tes. Em relação aos professores, o fato de serem da área foi considerado muito
relevante, pois consideraram também como potente a orientação por vídeo ou
mensagem de texto, utilização de estratégias metodológicas próprias, e não ape-
nas o uso das apostilas e divulgação na plataforma das orientações sobre a ava-
liação da disciplina. Como fatores negativos apontaram: tutores não conseguiam
responder às dúvidas; mudanças de datas nos encontros presenciais; demora
em postar as notas, ausência de assistência nas atividades pelos professores a
distância; pouca diversidade de metodologias10; sugestão para que a interação
aconteça por outras vias de acesso para além da plataforma Moodle.

10 Em parágrafo anterior, as enunciações apresentaram forte ênfase à metodologia e conteúdos curriculares de matemática trabalhados
no curso. Nesse momento da conversa, no entanto, as metodologias são citadas como trabalhadas em menor intensidade no curso.
“No caso da matemática discreta, o material foi bom, porém soli-
citei vídeos para facilitar o aprendizado. A tutora solicitou que eu
pesquisasse no Google, assim fiz, mas acho que, quando o professor
seleciona esse material, fica mais direcionado.” Polo Michelangelo 4

“Professores preparados no momento dos vídeos, porém a questão


de resolver os exercícios e tirar dúvidas deixou muito a desejar.”
Polo Frédéric 6

Sobre os tutores: “Satisfeita e agradecida por dar atenção devida e


contribuído para o meu aprendizado”. Polo Frédéric 9

“O tutor teve muito interesse e por ser um profissional da área do


curso, isso fez muita diferença no aprendizado, quanto aos professore
também.” Polo Dionísio 4

“Em relação aos conteúdos, alguns professores deixaram de dar o


apoio necessário, não respondendo às mensagens.” Polo Frédéric 7

314
DOBRA 4 _ Carlos Chenier. Rivers, A Flor. 1968.
FORÇA, FORMA E PINTURA: MOVIMENTOS NA FORMAÇÃO CONTINUADA
DE PROFESSORES A DISTÂNCIA

Fonte: LINDOLPHO BARBOSA LIMA E CARLOS CHENIER: A crítica de arte em Vitória/ES entre as décadas de 1940-
1980. (acesso em 12-11-2019)
Ao olharmos para essas cinco ou seis camadas elencadas aqui, constatamos
que o curso tem potencial, apesar de prescritivo, que os professores (estudantes)
precisam de uma formação continuada de qualidade e que a comunicação en-
tre professores e alunos precisa melhorar. Ou seja, vimos claramente a tensão
existente entre estrutura e figura, quando a estrutura tenta contrair, diminuir a
potência de criação e ao mesmo tempo a figura busca expandir-se em um corpo
sem órgãos, em uma pintura em devir. E todo esse movimento só será capaz de

CURRÍCULO E ESTÉTICA DA ARTE DE EDUCAR


acontecer se o contorno (professores, professores tutores presenciais e a distân-
cia) estiver atento a esse duplo movimento.

4 Para não finalizar


A noção de “organização orgânica” que se opõe ao corpo sem órgãos, na pers-
pectiva de Deleuze (MACHADO, 2009), aproxima-se da noção macro de orga-
nização da oferta de cursos a distância no Brasil, sobretudo no que se refere ao
Programa Universidade Aberta do Brasil. No sistema descentralizado, as univer- 315
sidades públicas ofertantes são parte de um consórcio de instituições denomina-
do UAB. Nessa organização, os polos, criados de um acordo de cooperação en-
tre o ente federado (estado ou município) e a Coordenação de Aperfeiçoamento
de Pessoal de Nível Superior (Capes/MEC), configura-se, assim, na extensão da
comunidade acadêmica. Parece que o princípio de unidade orgânica se eviden-
cia na política dessas ofertas por meio de editais, de uma gestão que visa dar
uma organicidade entre a União, estados e municípios numa via estabilizada,
orgânica e linear.

Essa organização parece reverberar nos discursos produzidos nas redes de con-
versação que apontam a necessidade de garantir os formatos, os mapas das dis-
ciplinas, os projetos de cursos, como perenes, por vezes, estáticos. No entanto,
as brechas, fissuras, intensidades e forças se engendram na busca de outros pos-
síveis da formação docentes que perfurem os clichês e permitam que experiên-
cias fluam em compassos provisórios, em que órgãos determinados (política de
federalismo, diretrizes, por exemplo) se constituam provisoriamente, sobretudo
quando a intensidade de forças micropolíticas avançar no sentido de aprendiza-
gens outras, inventivas; “[...] é abrir o corpo a conexões de intensidades, é liber-
tar ou produzir intensidades” (MACHADO, 2009, p. 233). Quando nos referimos
à provisoriedade, não estamos desconsiderando a existência das normatizações
e políticas públicas de oferta da formação docente em EaD, mas considerando
que esses engendramentos coexistem com outras forças que atuam para além da
prescrição, animam o corpo, captam forças e produzem a diferença, rompendo
com o dogmatismo e templates que insistem em engessar modos outros que
pulsam na formação docente.

Para não finalizarmos, reconhecemos o potencial das redes de conversações vir-


tuais para a problematização dessas questões, no encontro dos corpos e das ideias.
Emergem nas conversas tecidas uma busca pelas interações, pelo fazer que possi-
bilite a experiência, e não apenas a reprodução dos conteúdos dos fascículos, das
metodologias que se repetem, do contato distante e da pouca conversa.

Talvez aí a possibilidade que se apresenta seja apostar em micropolíticas (forças)


ativas, para problematizar o instituído. Já que o macro (formas) se move a partir
316 de organizações identitárias; e no micro apesar da dupla inscrição apostar nas
forças ressonantes e nas afecções (afetos positivos) que perpassam o corpo nas
FORÇA, FORMA E PINTURA: MOVIMENTOS NA FORMAÇÃO CONTINUADA
DE PROFESSORES A DISTÂNCIA

políticas ativas ser um possível para a transformação, visto que as forças reativas
não conseguem afetar e... mudar o instituído.
Referências
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máticos: sobre possíveis potências e experiências de vida. (2010), 122-134
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CURRÍCULO E ESTÉTICA DA ARTE DE EDUCAR


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317
DIAS, Rosimeri de Oliveira. Formação inventiva de professores. Rio de Janeiro:
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MACHADO, Roberto. Deleuze, a arte e a filosofia. Rio de Janeiro: Editora
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NEUSCHARANK, Angélica e OLIVIERA, Marilda Oliveira de. Encontros com
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ta Catarina, Florianópolis.

318
FORÇA, FORMA E PINTURA: MOVIMENTOS NA FORMAÇÃO CONTINUADA
DE PROFESSORES A DISTÂNCIA
QUANDO AS
IMAGENS VÃO
À GUERRA:
CURRÍCULO,

CURRÍCULO E ESTÉTICA DA ARTE DE EDUCAR


MOSQUITOS,
BACTÉRIAS,
VÍRUS, CIÊNCIAS,
TECNOLOGIAS…
319

Thiago Ranniery
Júlia Pompeu

14.
Thiago Ranniery1
Universidade Federal do Rio de Janeiro

Júlia Pompeu2
Universidade Federal do Rio de Janeiro

Ponto.com/combate: um profícuo arquivo visual

FIG.1 _ Abertura do site www.wolbito.com.br3

320
TÍTULO

1 Professor do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal do Rio Janeiro, líder do Bafo! Grupo de Estu-
dos e Pesquisas em Currículo, Ética e Diferença e atual Vice-Diretor da Faculdade de Educação. É Jovem Cientista Nosso Estado
da FAPERJ.

2 Graduação em Ciências Biológicas Licenciatura pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, foi Bolsista de Iniciação Científica
da FAPERJ (2019-2020) e é atualmente Bolsista de Iniciação Científica do CNPq.

3 Abriremos cada uma das sessões deste texto com uma imagem do arquivo por nós explorado, esperando que funcionem como
epígrafes.
Wolbito. O nome pode soar um tanto estranho à pesquisa em currículo. Trata-
se, contudo, de uma forma de combate a transmissão de doenças epidêmicas
como a Dengue, Zika e Chikungunya, promovido pelo World Mosquito Program
(WMP), uma iniciativa global sem fins lucrativos. O programa WMP, iniciado na
Austrália e trazido ao Brasil por iniciativa da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz)
no Rio de Janeiro, pretende combater as epidemias virais transmitidas por mos-
quitos Aedes aegypti ao redor do mundo. O método é relativamente simples

CURRÍCULO E ESTÉTICA DA ARTE DE EDUCAR


e se resume em inserir a bactéria do gênero Wolbachia, no mosquito Aedes
aegypti com o uso de uma agulha apropriada de microinjeção. A presença da
bactéria, já associada a vários insetos, reduz a capacidade infecciosa dos vírus4.
Para tanto, seria necessário liberar, sucessivamente, mosquitos adultos e ovos
com Wolbachia no ambiente. Com os cruzamentos5, espera-se que a população
de mosquitos do local de liberação seja toda composta por Aedes aegypti com
Wolbachia, o Wolbito. Através do site www.wolbitonobrasil.com.br, o programa
divulga a iniciativa e o método do programa. Um dos seus braços é o site www.
wolbitonaescola.org, um projeto de aproximação com escolas públicas da re-
gião de atuação da Fiocruz e que busca integrar ao currículo de ciências expe- 321
rimentos sobre o desenvolvimento do Aedes aegypti. Esses dois sites juntamente
com alguns vídeos do canal WMP Brasil no You Tube serão nossos objetos de
exploração neste texto6. 

Nos últimos trinta anos, as estratégias de combate às doenças transmitidas pelo


Aedes aegypti, articuladas entre práticas científicas e políticas estatais (MIT-
CHELL, 2002), deslocaram-se das reformas urbanas dos séculos XIX e XX para
um foco cada vez mais centralizado nos mosquitos e na produção de vulne-
rabilidade (SEGATA, 2017; 2016). Talvez mais do que quaisquer outras, essas
políticas geraram um arquivo visual profícuo, densamente mediado, na maioria
das vezes, por tecnologias imagéticas e plataformas de compartilhamento di-
gital. Este profícuo arquivo de imagens abre espaços para um debate sobre os

4 A principal hipótese é que há uma disputa entre vírus e bactérias por nutrientes no espaço intracelular dos mosquitos.

5 Por meio de um mecanismo chamado incompatibilidade citoplasmática, uma fêmea do mosquito com a bactéria ao copular um
macho com ou sem a presença da bactéria produz ovos com a Wolbachia. No entanto, quando machos com a bactéria copulam
com fêmeas sem bactéria, não há produção de prole.

6 Texto produzido no âmbito do projeto Currículo, ontologias e estudos queers: o vírus como uma figura de poder com financia-
mento da FAPERJ e do CNPq.
“cruzamentos perpétuos” (DELEUZE; GUATTARI, 2010, p. 33) entre “a ciência
[que] tira prospectos (proposições que não se confundem com juízos), e a arte
[que] tira perceptos e afectos (que também não se confundem com percepções
ou sentimentos)” (DELEUZE; GUATTARI, 2010, p. 33) e nos quais “a linguagem
é submetida a provas e usos incomparáveis” (DELEUZE; GUATTARI, 2010, p.
33). E, se, assim, insistimos em aproximar imagem, ciência e currículo é porque,
como, certa vez, Dumit (2008, p. xiii) afirmou, “simplesmente não há espaço
fora do laboratório, [...] e há nenhuma parte do laboratório que não seja um
local de [...] invenção social, política e artística”. Essas imbricações nos in-
vestigam a pensar sobre o lugar oscilante das imagens nas economias globais
da biossegurança7 – e damos ênfase a oscilação a fim de ressaltar as ambíguas
possibilidades de abertura de futuros alternativos. 

Ao percorrer os sites, não é nada difícil perceber como a figura do Wolbito é de


um mosquito aliado ao combate das arboviroses, caracterizado por possuir um
jeito próprio, em virtude da co-presença da bactéria Wolbachia no seu organis-
mo, possibilitada pelo método tecnológico-científico laboratorial de experimen-
322
tação. No site www.wolbitonobrasil.com.br, a imagem, uma alegoria desenhada,
do mosquito apresenta o método do programa e as doenças transmitidas pelo
QUANDO AS IMAGENS VÃO À GUERRA: CURRÍCULO, MOSQUITOS, BACTÉRIAS,
VÍRUS, CIÊNCIAS, TECNOLOGIAS…

mosquito Aedes, como se o próprio Wolbito conversasse com os visitantes inter-


nautas (Fig. 1). Já no site endereçado as escolas, o Wolbito funciona como uma
espécie de atrativo para as atividades didáticas e de experimentação propostas.
Seria preciso ressaltar, contudo, que o endereçamento de cada site é modulado de
forma diferente segundo o público imaginado. Enquanto o www.wolbitonobrasil.
com.br objetiva um público generalizado e com foco na divulgação do programa,
o site www.wolbitonaescola.org procura voltar o seu conteúdo para professores e
estudantes de ciências, buscando alcançar escolas. Os dois endereços apresentam
um número de telefone pelo qual o leitor pode contactar diretamente o Wolbito
e enviar suas dúvidas para que o mosquito responda. Juntos, esses emaranhados
entre práticas científicas, tecnologias, currículos, mosquitos e bactérias são, para
nós, marcos através dos quais se testemunha a convocação das imagens à guerra.

7 Extrapolaria aos limites deste texto qualquer caracterização ampla da contestada noção de biossegurança. Nós nos contentamos,
aqui, em aceitar provisoriamente a sugestão de Heather Paxson (2008) sobre a emergência de práticas que transformam os micró-
bios em elementos a serem exterminados para que as práticas humanas possam florescer.
Em certo sentido, o que estamos chamando de um profícuo arquivo visual acom-
panha esses sites em eco com uma consideração de Strathern (2014, p. 219) ao
defender que “um artefato ou uma performance [...] são como imagem”. O arte-
fato Wolbito, isto é, um “corpo tecnocientífico” (HARAWAY, 1997, p. 47), é um
arquivo performático imagético. Para seguir nesse direção, nós seguimos também
com a notação de Edwards (2001, p. 18) sobre como as imagens “tem uma quali-
dade performática, um tom afetivo, uma relação com o observador, uma fenome-

CURRÍCULO E ESTÉTICA DA ARTE DE EDUCAR


nologia não apenas do conteúdo, mas como objetos sociais ativos projetando e se
movendo entre outros tempos e espaços”. Estamos, assim, nos aproximando desse
arquivo a partir dos seus efeitos e afetos, a partir de uma passagem do que Ann
Stoler (2009, p. 44) chama de “o arquivo-como-recurso para o arquivo-como-su-
jeito”. Para nós, este arquivo visual é um agente de relações – “se há arquivo, não
estamos sós” entoam Andrade et al. (2018, p. 50) –, implicando considerar como
enrosca criaturas, seres e entes, arrasta um elemento de incerteza e problematiza
as dicotomias salientes – natural/não-natural, humano/animal – constitutiva dos
encontros educacionais. Em virtude dessa ponderação, engajamos ainda nossa
análise com os estudos multiespécies que, concentrando-se nas espécies que co- 323
-constituem nossas vidas e histórias trabalham para romper como a suposta cen-
tralidade da vontade humana para a história8.

Para tanto, dividimos este texto em duas seções. Na primeira, sugerimos como
a imagem é convocada para lidar com a a presença monstruosa da combinação
mosquito, bactéria e tecnologia sem que dispense ou preceda essa fantasmagoria.
Essas relações não são simétricas, envolvem trabalho mútuo, produzem atritos e
fricções e podem levar ao fracasso, de modo que suas recalcitrâncias ensinam
sobre as “normatividades sujas” (ABRAHAMSSON; BERTONI, 2014, p. 140) que
operam nas tramas curriculares. Esta é uma trama que implica, já afirmava William
Pinar (2016), um material compartilhado com os outros; em nosso caso, com “os
nossos outros da Terra”, na aguda expressão de Plumwood (2002, p. 27). Na se-
gunda parte, exploramos como essa convocação torna ambivalente agir enquanto
estamos juntos com esses outros: o currículo se torna o campo de construir uma

8 Ver, por exemplo, Kirsey e Helmreich (2010) e Van Dooren. Kirskey e Münster (2016).
aliança eco-imagética interespécies. O Wolbito não é apenas uma ferramenta
usada para documentar um experimento científico e visualizar uma prática social
realizada por cientista endereçada para professores e estudantes. Ao invés disso,
como um artefato imagético, envolve o currículo em processos co-constitutivos
de tornar-se com (HARAWAY, 2008) que quebram as distinções entre natureza e
cultura, humano e não-humano, o social, o tecnológico e o ecológico.

Heróis contra a dengue: fazendo junto,


o que não foi possível fazer sozinho

FIG. 2 _Abertura
da sessão sobre a bactéria do gênero Wolbachia no site
Wolbito na Escola

324
TÍTULO
“A natureza humana”, como escreve Anna Tsing (2012, p. 144), “é uma rela-
ção entre espécies” e é, portanto, perpetuamente mutável. Somos uma espécie
contingente à história, ela própria contingente a outras espécies, às “várias teias
de domesticação nas quais nós, humanos, nos enredamos” (TSING, 2012, p.
144). Essas teias estruturam não apenas práticas de consumo e de trabalho, mas
também de intimidade e afeto. Tsing (2012), ao escrever sobre o emaranhado
histórico de cereais, fungos e humanos, traça o lento desenvolvimento de um

CURRÍCULO E ESTÉTICA DA ARTE DE EDUCAR


império rizomático de domesticação e regimes de propriedade centrado em tor-
no da casa da família, onde “humanos se enroscaram em suas poltronas com
seus animais de estimação e seus lanches simulados pela espécie para assistir
à destruição do resto do mundo na TV” (TSING, 2012, p. 152). Seduzidos pela
formulação de Tsing (2012), oferecemos, nesta sessão, uma breve consideração
da relacionalidade interespécie promovida pelo arquivo visual Wolbito. Preocu-
pados como relações interespécies são proporcionadas por plataformas digitais
de compartilhamento, mediando composições entre estado, educação e ciência,
perguntamos sobre como imagens participam das instituições que planejam a
criação e a circulação de aliados biotecnocientíficos para uma guerra em curso. 325

Espetacular, o arquivo Wolbito é uma ocorrência posta em circulação por pro-


cessos materiais de produção imagética e a partir do modo como vinculam
histórias interespécies com dispositivos eletrônicos e ferramentas tecnológicas.
Testar a chamada das imagens à guerra é, pois, um modo de colocar a relação
entre currículo e ciências de uma maneira ligeiramente diferente: a conversão
do mosquito em um problema de segurança doméstica e, por meio desse quali-
dade performática das imagens, oferecer uma perspectiva sobre como a divulga-
ção científica e de formação educacional são conjuradas em formas de tornar o
Wolbito, um inseto biotecnoimageticamente fabricado, em um agente protetor
da intimidade de populações humanas contra vírus. Quando insistimos que o
Wolbito é um arquivo imagético, é porque, talvez, não esteja muito distante
da figura da modesta testemunha mutante traçada por Haraway (1997), funcio-
nando “simultaneamente [como] uma metáfora, uma tecnologia e uma besta”.
Como um arquivo visual testemunha e performa, uma complexidade viva da
experiência curricular que emerge, agora, “a partir de interações onde todos os
atores não são humanos” (HARAWAY, 1997, p. 181). No entanto, antes se seguir
adiante, seria preciso considerar o ciclo de vida do Aedes aegypti.
O mosquito possui uma metamorfose completa, passando por quatro estágios
ovo, larva, pupa e adulto. Os ovos são depositados próximo a uma superfície
aquosa e, quando entram em contato com a água podem, vir a eclodir. As fases
de larva e pupa são aquáticas e a fase adulta é terrestre, evitando, assim, compe-
tição por nicho. As larvas são detritívoras, alimentando-se de detritos suspensos
ou no fundo da água. Já os adultos se alimentam de líquidos açucarados, como
néctar das flores, no entanto, as fêmeas após a cópula, passam a se alimentar
de sangue, elemento necessário para a maturação dos ovos. É nessa etapa que
a fêmea pode se infectar, ao picar um humano que possui a doença, e se tornar
um vetor do vírus (CASTRO et al., 2013; BESERRA et al., 2009). Presume-se
que o Aedes tenha vindo do Egito e que, com séculos sucessivos de encontros
coloniais, foi levado para os outros continentes. Hoje, largamente estabelecido
em zonas tropicais e subtropicais ao redor do mundo, o Aedes é um mosquito
descrito na literatura especializada como antropofílico, isto é, prefere viver nos
ambientes urbanos próximos aos humanos porque as condições das cidades
propiciam seus hábitos de vida com maior disponibilidade de focos de água
326 com matéria orgânica e maior disponibilidade de sangue (NATAL, 2002).

Esta é a história contada em diversos dispositivos (vídeos, manual de orientação


QUANDO AS IMAGENS VÃO À GUERRA: CURRÍCULO, MOSQUITOS, BACTÉRIAS,
VÍRUS, CIÊNCIAS, TECNOLOGIAS…

e sessões dos sites) em torno do Wolbito. Uma história, sem dúvida, de ansie-
dades, posto que reúne guerra, mosquitos, vírus e práticas científicas, afetando
uns aos outros mutuamente em ligações que são, ao mesmo tempo, “hidráuli-
cas, químicas, militares, políticas, etiológicas e mecânicas” (MITCHELL, 2002,
p. 23). Essas ligações retêm alguma heterogeneidade que resiste à explicação ao
misturar os mundos natural e social e exigir “reconceber a própria vida como um
conjunto interdependentes em sua maior parte não desejadas, [...] o que implica
que a ‘ontologia’ do humano não pode ser separada da ‘ontologia’ do animal”
(BUTLER, 2015, p. 116). Em nossa sugestão, o Wolbito medeia, materializa e tor-
na visível não somente o vírus, mas o modo pelo qual esta mistura ambivalente
de fronteiras é performada. Ao comentar as fotografias da guerra, Butler (2015, p.
110) sugere que a questão “não concerne apenas ao que ela mostra, mas como
mostra o que ela mostra”. De tal modo, no argumento da autora, a imagem
não estaria à espera de ser interpretada por um sujeito, antes “ela mesma está
interpretando ativamente” (BUTLER, 2015, p. 110). Inspirado nessa afirmação,
podemos apontar que o arquivo visual não apenas retrata o experimento políti-
co-científico de combate chamado Wolbito, mas se torna crucial para produção
da política e seu estatuto de legibilidade.

De fato, Stevens (2013, p. 157), em sua etnografia sobre a digitalização dos labo-
ratórios de ciências biológicas, argumenta que “modos biológicos de conhecer
o mundo e modos de digitais de conhecer o mundo são colocados em diálogo
[...] através da imagem”. O ponto que nos interessa dessa ponderação é como

CURRÍCULO E ESTÉTICA DA ARTE DE EDUCAR


o trabalho com a imagem gera formas não previstas de relações entre objetos
biológicos que são cruciais na emergência daquilo que Latour (2013) chama de
recalcitrâncias na tessitura da política de combate. Isso porque, o que arquivo
visual não pode ser tomado desde uma pretensão realista do experimento cien-
tífico; antes produz ativiamente o Wolbito e captura aspectos desse artefato a
fim de torná-lo sucessivamente traduzível entre práticas científicas laboratoriais,
educacionais e outras práticas sociais. É, aqui, que as imagens implicam o cur-
rículo. No vídeo de apresentação do DLO, o Dispositivo de Liberação de Ovos,
por exemplo, professores são convidados a realizar o experimento de liberação
327
dos mosquitos com Wolbachia nas escolas. O experimento basicamente consis-
te em colocar ovos do mosquito com a bactéria em um ambiente com água e
alimento dentro de uma caixa protetora coberta com uma tela e acompanhar os
estágios da metamorfose do inseto.

Um fator importante dessa história é como a imagem “que atua sobre nós em
parte sobrevivendo à vida que documenta” (BUTLER, 2015, p. 145). A propaga-
ção do arquivo visual Wolbito é importante para o programa, não apenas porque
ampliaria o número de mosquitos com as bactérias nos ambientes ou porque o
criaria uma população civil treinada para trabalhar e reconhecer os mosquitos
transmissores de vírus. É importante, sobretudo, porque a inteligibilidade da mis-
tura é fortemente afetada e dependente da convocação da imagem à guerra. Muito
embora tenhamos nossas dúvidas de tomar tal prática um exemplo de ciência
nômade, tal como discutida por Deleuze e Guattari (2012), em parte pela longa
associação com o idioma militar, o arquivo visual não deixa de testemunhar um
regime através do qual se permite uma organização alimentar a própria variação.
Todavia, podemos sugerir que que a imagem nos faz olhar não para uma ciência
em geral e abstrata, mas para uma ciência que se exprime por “obsessões, rema-
nências e reaparições das formas” (DIDI-HUBERMAN, 2013, p. 25). Aqui, práticas
tecnológicas, científicas e educacionais que “não est[ão] convergindo para uma
verdade final, mas sim crescendo e divergindo enquanto rastreia[m] uma realida-
de que é ela mesma divergente” (DE LANDA, 2010, p. 93).

Para seguir com Didi-Huberman (2013, p. 32-33), todo o percurso pelo arquivo
visual do Wolbito traz “mais do que um saber em formação, [é] antes um saber
em movimento que aos poucos se constituiu, pela ação – aparentemente errática
– de todos esses deslocamentos metodológicos”. Um aparente paradoxo? Talvez.
Porém, seja de que for, por meio de uma série de experimentos imagéticos –
vídeos, desenhos, esquemas, disponibilidade de canais para comunicação – o
Wolbito não deixa de ser enquadrado como mais sociável que o Aedes, mesmo
quando um está embutido no outro. O Wolbito é melhor não somente em virtu-
de da bactéria dificultar a replicação viral, mas porque esses mosquitos bio-tec-
no-imageticamente criados são criados conosco e por nós. A virada visual está
nesta mobilização de alianças afetivas. Enquanto outras políticas de combate
328
dependem do Estado adquirir meios de acessar a população e no controle dos
hábitos humanos como forma de reduzir as contaminações, O WMP é condicio-
QUANDO AS IMAGENS VÃO À GUERRA: CURRÍCULO, MOSQUITOS, BACTÉRIAS,
VÍRUS, CIÊNCIAS, TECNOLOGIAS…

nado pela mobilização das imagens criar o Wolbito de acordo com afetos de in-
timidade – o Heróis contra a dengue, no título de uns dos vídeos. Nem o Aedes
nem a bactéria estão contra nós, eles estão conosco quando se percebe que as
imagens participam desse enovelados de obrigações articuladas nos emaranha-
dos de naturecultura, na provocadora e instigante expressão de Haraway (2008).

Levando a sério a convocação das imagens à guerra, podemos retornar à su-


gestão assombrosa de Tsing (2012) sobre lares familiares íntimos protegidos por
regimes de propriedade, afeto e domesticação dentro de um império colonial. A
domesticação nos obriga a repensar modelos de controle total e resistência resi-
liente. Nem o Aedes estará exterminado, nem o Wolbito testemunha uma altera-
ção genética através da qual o mosquito abandona sua necessidade de sangue.
Também não podemos afirmar que a Wolbachia permitirá sobreviver à epidemia.
Muito pelo contrário, as imagens relações afetuosas como condição para um tra-
balho interespécies eficaz. Não há contradição nessa dupla demanda por afeição
não planejada e por guerra rigorosamente promovida. Na verdade, as “margens
indomáveis” (TSING, 2012) das imagens, na qual os humanos são flagrados em
diálogo com outras espécies, não nos deixa nenhuma certeza de como os mun-
dos das alteridades interespécies deveriam funcionar. Ao navegar entre educação,
ciência e estado, o arquivo visual complicam a pretensão de história das políticas
de combate sejam apenas um reflexo nefasto de nós mesmos. Trata-se de uma
aliança nas quais nem os efeitos nem os parceiros estão garantidos, inscrita em

CURRÍCULO E ESTÉTICA DA ARTE DE EDUCAR


um pragmática imagem, isto é, em sua ação no mundo, ao invés de princípios
morais abstratos.

É, em virtude disso, o arquivo visual Wolbito não é simplesmente o lugar da


apresentação ou divulgação dos resultados finais do trabalho de cientistas para
um público mais amplo e, quase sempre, leigo. Antes, expõe como práticas
científicas, políticas de estado e práticas educacionais são implicadas umas nas
outras e como ocorre a tradução e a comunicação entre elas. Tomar o Wolbito
como imagem é cartografar como é como incarna e performa um objeto afetivo
relacional, ao mesmo tempo, biológico, educacional e estatal. Nesta direção,
329
já que não é mais possível combater as arboviroses transmitidas pelo Aedes
sozinhos9, é preciso juntar forças ao mosquito e a bactéria, aliar-se, se não para
ganhar a guerra, ao menos para sobreviver a ela. A guerra não é mais tanto
contra o mosquito e, sim, contra o invisível vírus10. Logo, o que implicaria esse
deslocar-se da separação radical entre o mosquito e o humano para uni-los em
um combate? Enlaçar histórias que eram construídas em cima de um clima béli-
co de ódio (MITCHELL, 2002) não é simples. É preciso construir respeito. Como
Haraway (2008, p. 19) afirma, “a interdependência das espécies é o nome do
jogo mundial na Terra, e esse jogo deve ser de respostas e respeito”.

Um passo para promover esse respeito é, ao que parece, convocar a imagem


para tornar-se um meio de cultivar a aliança diante e dentro do combate, apro-
ximando um parceiro, uma espécie companheira, para realizar outro sequestro

9 Em 2019, foram registrados no Brasil 1.439.471 casos prováveis de dengue, 110.627 casos prováveis de Chikungunya e 9.813
casos prováveis de Zika em 2019 (BRASIL, 2019).

10 Os vírus pesam como aquilo que jaz excluído do complexo enquadramento dessas teias emaranhadas de tecnologia, ciência e edu-
cação. No entanto, extrapolaria aos limites deste texto explorar o enredamento imagético que estamos explorando nesta direção.
de uma expressão de Haraway (2008). Se o Aedes é quem traz a doença, o Wol-
bito é artefato aliado, signo imageticamente de uma união tecno-científica entre
bactéria e tecnologia. O que estamos sublinhando é, assim, que um aspecto
deste arquivo visual é como as relações interespécies, fomentadas por institui-
ções científicas e programas estatais de educação e divulgação científica, são
performadas através das imagens. Não seria sem propósito, portanto, aproximar
a convocação das imagens à guerra de um trabalho de tornar-se com, de modo
que impulsiona o currículo para um tornar-se com outros, sejam insetos, bac-
térias, tecnologias e as próprias imagens. Ao aplicar a provocação de Haraway
(2008) ao arquivo visual Wolbito, essa teia emaranhada de mosquitos, bactérias,
tecnologia e vírus é uma parte extensa, embora nem sempre considerada, da
relação entre currículo e subjetividade. Ao testemunhar uma infinidade de seres,
lugares e coisas em contínua relação de deriva, a imagem traça um conjunto
mais amplo e aberto formado pelo que Rotman (2008, p. 104) considerou como
para-selfies a fim de sugerir que estamos “fora de nós com alegria e dissolução,
intermitentemente presente para nós mesmos, cada um de nós um para-self”.
330
Para-selfs têm uma relação subsidiária conosco, podem ser irregulares, desorde-
nados ou impróprios. De tal modo, as imagens também são, aqui, para-sites, ao
QUANDO AS IMAGENS VÃO À GUERRA: CURRÍCULO, MOSQUITOS, BACTÉRIAS,
VÍRUS, CIÊNCIAS, TECNOLOGIAS…

estilo do trocadilho proposto por Kirsey (2012, p. 50), “assumindo valores dife-
rentes dependendo de suas posições em relação a outros seres que vivem com
elas sistemas comuns”. Em resumo, quando Paul Kockelman (2010) entende a
subjetividade como um agenciamento, uma montagem de seres e coisas que
chamamos de nossas, não é despropositado concluir que ações orientadas para
o combate aos outros os incluem no próprio agenciamento e, no arquivo visual
Wolbito, só podem fazê-lo através da imagem, ou ainda, da imagem como meio,
como um campo de montagem e aliança, de montagem de alianças. Neste com-
plexo campo das relações eco-imagéticas, uma advertência de Dumit (2008, p.
xii) é instrutiva: “Nunca pense que você conhece todas as espécies envolvidas
em uma decisão. Corolário: Nunca pense que você fala por si mesmo”. Ao invés
da universalidade da ciência e da narrativa da composição de seus objetos e dis-
cursos tecno-científicos, convertido, por meio da imagem, é possível perceber
como se é submetido a um campo de afecção que espraia a atividade das prá-
ticas científicas entre entidades e processos heterogêneos, abrangendo fluidez,
transformação e mutabilidade.
Alianças eco-imagéticas, imagem-vetor

FIG. 3 _ Abertura da sessão sobre o Aedes no site Wolbito na escola

CURRÍCULO E ESTÉTICA DA ARTE DE EDUCAR


331

Com esta imagem do Aedes, nós nos voltamos, agora, para a provocação de
Haraway (2008, p. 82), de que “às vezes uma ‘cura’ para o que nos mata, seja o
que for, simplesmente não é razão suficiente para manter as máquinas de matar
funcionando no nível ao qual nós (quem?) nos acostumamos”. De fato, quando
Haraway (2008) questiona, não o uso de animais em laboratórios, mas como
esses animais são tratados e encaminhados à morte, levando a normalização da
morte do outro por um bem humano maior, nossa questão não é tanto indicar
que as imagens tornariam mais palatável a manipulação laboratorial de mosqui-
tos e bactérias soltos nas cidades. Nossa ponderação final caminha no sentido de
como a imagem, junto com a bactéria Wolbachia, é convocada a também com-
por o mosquito em laboratório nas múltiplas camadas das políticas de combate
a fim de permiti-lo retornar à vida social sem a máscara de vetor. Em um deslo-
camento, entretanto, a imagem, tanto quanto a agulha da microinjeção, torna-se
um vetor de relações. Nossa insistência em implicar currículo e imagem a partir
do arquivo visual Wolbito é por suspeitar que, nesse retorno imageticamente
mediado, caberia à educação suspeitar da persistente lógica de matança, aquela
de ensinar que é possível dizer quem morre e quem vive, seja esse “quem” hu-
mano ou não. Afinal, “não é matar que nos leva ao exterminismo, mas sim tornar
os animais matáveis.” (HARAWAY, 2008, p. 80).  

O título desta sessão conclusiva possa soar um tanto tentador. Contudo, não
estamos reivindicando nenhuma inocência sob o título de alianças eco-imagé-
ticas, mas perguntando sobre como arranjos ecológicos e tecno-científicos são
retrabalhados pelo currículo e como suas ressurgências e recalcitrâncias giram
em torno da vida e da morte. É, bem verdade, que Serres (2009) argumentou que
o parasita é uma fonte de vida. Porém, em alguns momentos, sugere que deve-
mos pôr um fim definitivo ao problema de viver com parasitas e que “pode ser
332
perigoso não decidir quem é o anfitrião e quem é o convidado, quem dá e quem
recebe, [..] quem ganha e quem perde, e onde a hostilidade começa dentro da
QUANDO AS IMAGENS VÃO À GUERRA: CURRÍCULO, MOSQUITOS, BACTÉRIAS,
VÍRUS, CIÊNCIAS, TECNOLOGIAS…

hospitalidade” (SERRES, 2009, p. 16). Com efeito, exploramos, na sessão ante-


rior, o quão provocador o Wolbito pode ser ao não se concentrar na erradicação
dos mosquitos e, ao invés de demandar implacavelmente soluções finais, como
convida a bancar um jogo afetivo relacional interespécies. Produto de um pro-
grama global de combate às epidemias transmitidas pelo mosquito Aedes, o ar-
quivo visual Wolbito é um artefato que, ao ser performado, torna-se uma aliança
eco-imagética, cujas condições de possibilidade emaranham currículo, práticas
científicas, pessoas, mosquitos e bactérias em relações que ora se desgastam, ora
se debelam, quando a política de combate – e seu correlato apelo à distância
e ao extermínio – desloca-se para o idioma da domesticação – e seu pedido de
proximidade e intimidade.

Esperamos, entretanto, que considerar essas alianças eco-imagéticas não soe


como uma alternativa branda. Alianças sempre envolvem uma violência constitu-
tiva (BUTLER, 2018, não implicam um vale tudo para todos, muito menos holismo
integrador e transcendental. Alianças eco-imagéticas envolvem muitas espécies,
florescendo juntas, imbricadas em paisagens múltiplas, trabalhando com e contra. 
Alianças eco-imagéticas são um nome que, longe de apostar nas imagens para re-
solver definitivamente as relações entre “parasitas” e “parasitados”, “hóspedes” e
“hospedeiros”, insiste em como se mantém presente uma ambivalente multiplici-
dade de perspectivas. Em resumo, nós buscamos escapar da fadiga crescente com
o idioma da guerra aplicado aos parasitas que vivem no corpo humano, notada

CURRÍCULO E ESTÉTICA DA ARTE DE EDUCAR


por Caitilin Berrigan (2012), e que bem pode ser estendível aos cansados discur-
sos e imagens que são aplicados a organismos indesejados.

Embora uma sensação de segurança, de não ser devorado por animais selva-
gens grandes e ferozes, seja visceralmente poderosa, os humanos são mortos
com muito mais frequência por bactérias e vírus (BULLER, 2008). Com histórias
descritas como de sucesso evolutivo, os mosquitos e vírus mataram juntos mais
humanos do que qualquer outro animal nas redes globais de segurança (CLARK,
2013). De fato, suas combinações destacaram-se pela capacidade de desencadear
inseguranças infecciosas em grande escala (BARKER, 2011). Logo, apesar das ten-
333
tativas de tornar os espaços de interação humano-não-humano seguros, o arquivo
visual Wolbito não deixa de testemunhar, à contrapelo, uma agência tenaz, adap-
tativa e disruptiva, muitas vezes escapando das práticas regulatórias. Vidas hu-
manas, mosquitos, bactérias e vírus não podem ser separados, mas coexistem ao
longo de teias incertas de interação humano-não-humano (HINCHLIFFE; ALLEN;
LAVAU; BINGHAM; CARTER, 2013). A biossegurança não é o resultado de fron-
teiras rigorosamente policiadas e extermínio implacável que a educação deveria
garantir, mas “configurações espaciais de práticas de conhecimento, organismos e
materiais, [e é] sua diferenciação contínua e não sua integração, que torna a vida
segura uma possibilidade” (HINCHLIFFE; LAVAU, 2013, p. 266).

Longe de imaginar o currículo e suas relações com as práticas científicas como


uma solução para o problema de viver com essas criaturas, tratamos de apontar,
ao longo deste texto, para como as imagens convocadas à guerra inserem um
persistente murmúrio: pensemos currículo com cuidado. Pensar com cuidado é
um requisito vital para estar em mundos interdependentes, nas palavras de Bella-
casa (2012), e gerar ressonâncias ontológicas, promovendo relações entre seres
e imagens. As imagens podem servir, assim, como um campo de aprendizagem
de repensar cuidadosamente o currículo desde nossas relações com espécies
ontologicamente flexíveis. Nossa aposta preliminar diante dos problemas que
nos assolam é que a imagem, mesmo diante, ou ainda em virtude de estar den-
tro de campo saturado de poderes, é um vetor que aponta para a imaginação de
outros e novos mundos. Uma imagem-vetor transmite e inocula o sinal deles nos
currículos. Seus sinais cintilantes tornam-se figuras do desconhecido além das
estruturas frágeis do conhecimento humano, cheio de estranhos à espreita que
podem ser amigos ou inimigos.

Alianças eco-imagéticas são uma dança complexa que equilibra as forças da


vida, do crescimento e do cuidado, de um lado, e da morte, da decadência e
da dissolução, do outro, ao mesmo tempo e no mesmo espaço. Esperamos que
o arquivo visual Wolbito possa ter mostrado as diferentes maneiras pelas quais
a alteridade-em-relação está compreendida nessa coreografia. Também espera-
mos ter demonstrado as maneiras pelas quais vulnerabilidade, violência e morte
são parte de compromissos contínuos e generativos com outros não humanos,
334
em vez de serem elementos negativos que podem ser reprimidos, ignorados ou
resolvidos. Enfim, o arquivo visual é equipado para mostrar as complexidades
QUANDO AS IMAGENS VÃO À GUERRA: CURRÍCULO, MOSQUITOS, BACTÉRIAS,
VÍRUS, CIÊNCIAS, TECNOLOGIAS…

pungentes do florescimento de várias espécies, um florescimento que nunca é


inocente, nem bom para todos os envolvidos, mas um processo desajeitado e
desastrado, pois as forças do cuidado e da morte fluem pelos mesmos circuitos
imagéticos que são convocados à guerra.
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338
TÍTULO

15.
CURRÍCULO E ESTÉTICA DA ARTE DE EDUCAR
AS IMAGENS-
CINEMA COMO
MÁQUINAS DE
GUERRA DO 339

PENSAMENTO:
CURRÍCULOS E
DOCÊNCIAS E...
Camilla Borini Vazzoler Gonçalves
Eliana Aparecida de Jesus Reis
Tânia Mara Zanotti Guerra Frizzera Delboni
Camilla Borini Vazzoler Gonçalves (UFES)
Eliana Aparecida de Jesus Reis (SEME/SERRA)
Tânia Mara Zanotti Guerra Frizzera Delboni (UFES)

Esta escrita-ensaio-experimentação foi produzida por afectos, intensidades e


experiências. Inspiradas em Deleuze, inventamos uma composição de escrita
como fluxos, como movimentos que foram criados ao entrarmos em relação
com os signos artísticos das imagens-cinema, com os intercessores teóricos, com
o fora. “Escrever é um fluxo entre outros, sem nenhum privilégio em relação aos
demais, e que entra em relações de corrente, contracorrente, de redemoinho
com outros fluxos [...]” (DELEUZE, 1992, p. 17).

A experimentação que provocou esta escrita foi um movimento de (tentar) li-


340
berar os fluxos, intensificar as linhas de fuga, maquinar, fazer a língua delirar
AS IMAGENS-CINEMA COMO MÁQUINAS DE GUERRA DO PENSAMENTO:
CURRÍCULOS E DOCÊNCIAS E...

nos encontros com as imagens-cinema. Experimentar conceitos. Abrir nova vida.


Linhas, devires, agenciamentos, acontecimentos... em movimentos de aposta
na crença de um mundo. Acreditar no mundo como forma de resistência para
afirmar a vida: “Acreditar no mundo é o que mais nos falta [...]. Acreditar no
mundo significa principalmente suscitar acontecimentos, mesmo pequenos, que
escapem ao controle, ou engendrar novos espaços-tempos, mesmo de superfície
ou volume reduzidos” (DELEUZE, 1992, p. 218).

Nesta escrita-ensaio-experimentação trazemos alguns encontros com as ima-


gens-cinema a partir de três curtas-metragens: Piirongin Piiloissa, Comme um
elephant dans um magasin de porcelaine e The song for rain. Ao entrar em rela-
ção com os signos do cinema, propusemo-nos uma experimentação intensiva:
quais afecções são produzidas? O que nos é forçado a pensar nesse encontro
com as imagens-cinema em relação a currículos, docências, escolas? De tão
violento o encontro, o que o nosso pensamento não suporta pensar e, de tão
intenso, provoca rachaduras, rasuras, linhas de fuga?
É a violência de um encontro com uma exterioridade que dá lugar à
problematização, à criação de pensamento. Para Zourabichvili (2016, p. 61),
“[...] a verdade, levada ao nível dos problemas, liberada de toda conexão de
adequação a uma realidade exterior pressuposta, coincide com a emergência do
novo”. Assim, o que nos afeta no encontro com as imagens-cinema é: como elas
podem dar a pensar de outro modo?

Se pensar é pensar de outro modo e só se pensa de outro modo (ZOURABICHVI-

CURRÍCULO E ESTÉTICA DA ARTE DE EDUCAR


LI, 2016), argumentamos que a força, a violência, o arroubo provocados nos en-
contros com os signos artísticos, podem engendrar pensamentos intensivos para
problematizar sentidos outros de currículos e docências e aprendências e vida...

O pensamento e seu fora: encontros, signos, afetos

O que nos força a pensar é o signo. O signo é o objeto de um encon-


tro; mas é precisamente a contingência do encontro que garante a
necessidade daquilo que ele faz pensar. O ato de pensar não decorre 341
de uma simples possibilidade natural; é, ao contrário, a única criação
verdadeira. A criação é a gênese do ato de pensar no próprio pensa-
mento (DELEUZE, 2010, p. 91).

Deleuze (2010) instaura um deslocamento na noção de signo, desviando-o do


domínio da significação, da esfera subjetiva e manifestação psíquica, para “[...]
se revelar como um afeto ou potência de afetar, relação entre corpos e afecções,
efeitos do devir, troca e captura; e implica em relação e experimentação, com-
posição de encontros e variação da potência” (SANTOS, 2013, p. 123). O signo
é efeito de encontros, composição de relação e variação de potência, de forças,
de perceptos e afectos, experimentação.

A origem do ato de pensar implica alguma coisa que violente o pensamento, que
o abale e o arraste numa busca, constituindo-se em um problema. Ao invés de
uma disposição natural, há forças instigadas fortuitamente, provocadas por um
encontro. O que é primeiro no pensamento é o arrombamento e a violência pro-
vocados pelo encontro, entendidos como uma relação que se estabelece com o
exterior, com o fora.
Dessa forma, ao entrar em relação com o fora, o pensamento assume as con-
dições de um encontro efetivo, de uma conexão, e afirma o imprevisível e o
impensável, alojando-se sobre um chão movediço não dominado por ele para
além da imagem dogmática que se assenta, a priori, em uma forma ao fora. Nes-
se tipo de imagem, que se exprime no modelo da recognição, há a preexistência
de um objeto no qual o pensamento deve se alicerçar. “O objeto pensado é
menos o objeto de uma descoberta do que o objeto de um reconhecimento,
pois o pensamento, não estando em conexão de absoluta estranheza com o que
ele pensa ou se esforça por pensar, antecipa-se de algum modo, prejulgando a
forma de seu objeto” (ZOURABICHVILI, 2016, p. 41).

O pensamento não é exercido ao extrair o conteúdo explícito de uma coisa,


mas tratando-a como um signo: o signo de uma força que se afirma ao traçar
uma diferença. Assim, “[...] o encontro com um signo em um corpo intensivo,
movimenta o pensamento em processos de diferenciação aprendente, produzin-
do dobras que caminham da virtualidade para a sua atualização e realização”
(GONÇALVES, 2019, p. 22). O que antes de tudo interessa ao pensamento é a
342
heterogeneidade das maneiras de viver e de pensar para decifrar as suas impli-
cações e atravessamentos para fazer emergir o novo.
AS IMAGENS-CINEMA COMO MÁQUINAS DE GUERRA DO PENSAMENTO:
CURRÍCULOS E DOCÊNCIAS E...

Para Deleuze (2010), o pensamento só pensa sob a condição de um encon-


tro; “[...] sem algo que force a pensar, sem algo que violente o pensamento,
este nada significa; se mais importante que o pensamento é o que dá a pensar”
(2010, 89), apostamos que o encontro com as imagens-cinema podem produzir
um pensamento nômade.
O encontro com as imagens-cinema
como máquina de guerra do pensamento nômade
Para compreender a máquina de guerra, precisamos falar do nomadismo, pois,
para Deleuze e Guattari (2012, p. 53), “[…] a máquina de guerra é invenção
dos nômades”. Entretanto, ser nômade não significa não ter território. Seguindo
trajetos rotineiros, indo de um ponto a outro, o nômade não ignora os pontos
(pontos de sobrevivência, de água, de habitação, de assembleia etc.). Mas é

CURRÍCULO E ESTÉTICA DA ARTE DE EDUCAR


preciso distinguir “[…] o que é princípio do que é somente consequência da
vida nômade” (p. 53), pois o nômade vagueia não para se fixar em algum ponto.
Mesmo que os pontos determinem trajetos, estes estão exatamente subordina-
dos aos trajetos estabelecidos por eles, ao contrário do que sucede no caso do
sedentário. Um ponto, no trajeto do nômade, só existe para ser abandonado; ele
é “[…] uma alternância e só existe como alternância” (p. 53). Mesmo que um
trajeto esteja sempre entre dois pontos, é o “entre-dois”, o “intermezzo”, que
constitui a vida do nômade.

O trajeto nômade pode seguir pistas ou caminhos habituais, mas não tem a 343

função do caminho sedentário, que “[…] consiste em distribuir aos homens um


lugar fechado, atribuindo a cada um a sua parte, e regulando a comunicação
entre as partes” (DELEUZE; GUATTARI, 2012, p. 54). O trajeto nômade faz o
contrário, distribui os homens num espaço aberto, indefinido, para experenciar
um espaço sem fronteiras, não cercado.

Enquanto o espaço sedentário é estriado, apresenta muros, cercados e cami-


nhos, o espaço nômade é liso, marcado apenas por “traços” que se apagam e se
deslocam com o trajeto. O nômade se distribui num espaço liso e ocupa, habita,
mantém esse espaço, e aí reside seu princípio territorial. Por isso é falso definir
o nômade pelo movimento. O nômade é antes aquele que não se move: “[…] O
nômade é aquele que não parte, não quer partir, que se agarra a esse espaço liso
onde a floresta recua, onde a estepe ou o deserto crescem e inventa o nomadis-
mo como resposta a esse desafio” (DELEUZE; GUATTARI, 2012, p. 55).

É por isso que o nômade não apresenta pontos, trajetos ou terra, embora eviden-
temente ele os tenha, segundo Deleuze e Guattari (2012). O nômade pode ser
chamado de o “desterritorializado por excelência”, porque a reterritorialização
não se faz depois, como no caso do migrante, e nem em “outra coisa”, como no
caso do sedentário, em que sua relação com a terra está mediatizada por outra
coisa, por exemplo, regime de propriedade, aparelho de Estado etc.

De modo outro, é a desterritorialização que constitui a relação do nômade com


a terra e é por isso que ele se “[…] reterritorializa na própria desterritorialização.
É a terra que se desterritorializa ela mesma, de modo que o nômade aí encontra
um território. A terra deixa de ser terra e tende a tornar-se simples solo ou supor-
te” (DELEUZE; GUATTARI, 2012, p. 53). O nômade aparece ali, na terra, sempre
que se forma um espaço liso que corrói e tende a crescer em todas as direções.
“O nômade habita esses lugares, permanece nesses lugares, e ele próprio os faz
crescer, no sentido em que se constata que o nômade cria o deserto tanto quanto
é criado por ele. Ele é vetor de desterritorialização” (p. 53).

Fazer do pensamento uma máquina de guerra é colocar o pensamento em rela-


ção imediata com o fora, com as forças do fora, que “[...] não é de modo algum
344 uma outra imagem que se oporia à imagem inspirada no aparelho de Estado.
Ao contrário, é a força que destrói a imagem e suas cópias, o modelo e suas
AS IMAGENS-CINEMA COMO MÁQUINAS DE GUERRA DO PENSAMENTO:
CURRÍCULOS E DOCÊNCIAS E...

reproduções, toda possibilidade de subordinar o pensamento a um modelo [...]”


(DELEUZE; GUATTARI, 2012, p. 48). Assim, a forma de exterioridade situa o
pensamento em um espaço liso, que ele ocupa sem medi-lo e para o qual não
há método e/ou reprodução possível, mas somente “revezamentos, intermezzi,
relances” (DELEUZE; GUATTARI, 2012, p. 49). O pensamento não tem imagem
nem para constituir modelo e nem para fazer cópia. Assim, uma máquina de
guerra do pensamento é formada

[...] por um pensamento às voltas com forças exteriores em vez de ser


recolhido numa forma interior, operando por revezamento em vez
de formar uma imagem, um pensamento-acontecimento, hecceidade,
em vez de um pensamento-sujeito, um pensamento-problema no lu-
gar de um pensamento-essência ou teorema, um pensamento que faz
apelo a um povo em vez de se tomar por um ministério (DELEUZE;
GUATTARI, 2012, p. 51).
Enquanto o aparelho de Estado limita o elemento-problema para subordiná-lo a
um teorema com suas proposições demonstráveis, a máquina de guerra é o pa-
radigma da experimentação que instaura um devir-problematizante, ameaçando
tudo aquilo que é da ordem do saber, como conquista ou posse. E qual a relação
que fazemos das imagens-cinema como máquinas de guerra do pensamento?

O cinema, segundo Deleuze (1997), é um tipo de filosofia, é um exercício de


pensamento, com a ressalva de que não carece de conceitos, mas de sensações

CURRÍCULO E ESTÉTICA DA ARTE DE EDUCAR


que produzem subjetividades na medida em que causam um estado de estra-
nhamento entre o olhar e o desenrolar da história. “É uma força que nos leva ao
movimento do pensar, que propicia encontros, experiências, que nos possibilita
a surpresa, o choque, o silêncio, a indagação. Permite-nos habitar outros/novos
territórios ainda não sentidos e vividos” (CARVALHO; DELBONI; SILVA, 2016,
p. 207). Também incomoda, causa desconforto, inquietude, desequilibra. Incita.
Provoca. Faz a língua gaguejar (DELEUZE, 1997). Faz a língua pegar delírio.

Assim, entendemos as imagens-cinema como campo possível de experimenta-


ção do pensamento e, como máquina de guerra do pensamento, elas disparam, 345
forçam o pensamento, colocam-no em movimento, produzindo o novo, a dife-
rença; liberam fluxos em intensidades, multiplicidades e inventividades, maqui-
nando outros/novos modos de pensar. “Algo só é experimentado, só consiste,
no sentido forte, quando posto numa perspectiva que desloca pontos de vista,
fazendo com que eles se retomem desigualmente uns nos outros” (ZOURABI-
CHVILI, 2016, p. 150).

Dessa forma, a nossa experimentação aqui consiste em, no encontro com as


imagens-cinema, liberar tantos seres e coisas que pensam em nós, pois “[...]
somos viventes, intensos e pensamos tão somente enquanto pelo menos algum
outro pensa em nós” (ZOURABICHVILI, 2016, p. 150).
EXPERIMENTAÇÃO 1:

Piirongin Piiloissa
Caixas, compartimentos, sequências, números, horários, gavetas. Choca-nos o
curta Piirongin Piiloissa1 quando acompanhamos a sequência de imagens cujas
gavetas armazenam ordenadamente tudo aquilo que aparentemente correspon-
de aos elementos essenciais à sobrevivência da personagem-cômoda. Abre uma
pequena gaveta, lá está o despertador tocando para avisar que é hora de acor-
dar. Fecha. Abre outra que contém apetrechos para fazer e tomar café; há outra
com linhas e adereços ordenamente arrumados; há ainda outras gavetas onde
são guardados esquadros, réguas, pequenos cartões com fórmulas matemáticas;
uma outra onde os objetos/caixinhas estão organizados em ordem de tamanho.
Abre gaveta. Fecha gaveta. Movimentos síncronos. Manter-se ordenada, organi-
zada e limpa parece ser a maior ocupação da personagem-cômoda, pois, dessa
forma, ela se sente tranquila: “Quanto mais a segmentaridade for dura, mais ela
nos tranquiliza” (DELEUZE; GUATTARI, 1996, p. 109). Como não bastasse, a
personagem-cômoda e suas gavetas moram em uma outra caixa, grande e cinza,
346
sem aberturas. A vida, para a personagem, cabe em uma caixa, em uma cômoda.
AS IMAGENS-CINEMA COMO MÁQUINAS DE GUERRA DO PENSAMENTO:
CURRÍCULOS E DOCÊNCIAS E...

IMAGEM 1 _ Estratificação. Segmentaridade. Sobrecodificação

Fonte: Piirongin Piiloissa (YouTube).

1 Piirongin Piiloissa é um curta-metragem finladês, produzido em 2011, por Anni Lahtinen, quando se formou no Departamento de
Animação da Turku Arts Academy. Traduzido em inglês como Chest of drawers, ou Cômoda, em português (tradução nossa. Dispo-
nível em: https://www.youtube.com/watch?v=HwUZ2kH1id0).
O que nos violenta no encontro com os signos artísticos do curta-metragem é
o quanto nos reconhecemos na personagem, capturados pela produção de dis-
cursos-formas que operam em planos de subjetivação do indivíduo, no plano
individual, em identidades fixas do pensamento, de currículos, de docências,
enfim, de vida. Os três grandes estratos com os quais nos relacionamos e que
nos amarram mais diretamente são o organismo, a significância e a subjetiva-
ção: “A superfície de organismo, o ângulo de significância e de interpretação, o

CURRÍCULO E ESTÉTICA DA ARTE DE EDUCAR


ponto de subjetivação ou de sujeição” (DELEUZE; GUATTARI, 1996, p. 22). No
encontro com a imagem, o que o nosso pensamento não suporta pensar é que,
tal como um oráculo, vemos o quanto somos estratificados.

Você será organizado, você será um organismo, articulará seu corpo


– senão você será um depravado. Você será significante e significado,
intérprete e interpretado – senão será um desviante. Você será sujeito
e, como tal, fixado, sujeito de enunciação rebatido sobre um sujeito
de enunciado – senão você será apenas um vagabundo (DELEUZE;
GUATTARI, 1996, p. 22).

347
Isso ocorre nos modos pelos quais temos produzido processos de ensinoaprendi-
zagem com as crianças nos quais, muitas vezes, há um anseio pela manutenção
de gavetas: de conhecimentos, de horários, de etapas, do tempo chronos. Pres-
crição. Mecanização. Há práticas discursivas que insistem em afirmar que, para
aprender, é necessário abrir e fechar os compartimentos do conhecimento. Para
tal, devemos seguir as batidas do tempo chronos, que sempre está de prontidão
para indicar o momento de abrir e fechar as gavetas. As crianças, as professoras
e os currículos bailam na cronometria desse tempo que corre e, muitas vezes,
escorre pelas mãos.

Pode até parecer que a única preocupação da personagem-cômoda é a manu-


tenção das suas gavetas. Entretanto, por mais que as práticas discursivas ambi-
cionem o condicionamento dos corpos, na manutenção de currículos prescriti-
vos e regidos pela cronicidade do tempo, sempre há escapes, outros modos de
produzir afecções e aprendências. É isso que a personagem-cômoda nos indica
quando, abraçada à sua pequena manta de patchwork, esquece, por alguns ins-
tantes, o tempo chronos em seu “tique-taque”. Entretanto, o tempo chronos
logo volta a operar e a manta é guardada de volta na gaveta, seguindo-se, assim,
as suas atividades corriqueiras e cadenciadas de abrir e fechar gavetas. No en-
contro com as afecções da personagem-cômoda produzidas no aconchego da
manta, perguntamo-nos: qual o lugar dos afetos/afecções em meio à mecaniza-
ção e à regulação da vida?

Por mais insistentes que sejam esses discursos em manter-se intocáveis e imutá-
veis, no que concerne aos processos de ensinoaprendizagem, os corpos sempre
buscam pelos afetos e afeções. Por isso, mesmo que um corpo se mostre despo-
tencializado, “[...] endurecido em suas ações e pensamentos, e, insensível ante
as miudezas da vida, ele pode, no encontro com um signo (uma coisa, uma
música, uma poesia, um cheiro, um corpo), ser afetado por outra forma de exis-
tência; então, esse pensamento se move” (GONÇALVES, 2019, p. 119). Sempre
há o fora que provoca processos de desterritorialização convidando a seguir ou-
tros caminhos aprendentes, mais coletivos e afetivos, cujo tempo não consegue
ser demarcado. Por isso, ele escorre pelas mãos, uma vez que as intensidades
ocupam uma outra temporalidade. Como fazer escapar afetos/afecções para in-
348
tensificar modos outros de escolas, de currículos, de docências?
AS IMAGENS-CINEMA COMO MÁQUINAS DE GUERRA DO PENSAMENTO:
CURRÍCULOS E DOCÊNCIAS E...

IMAGEM 2 _ O caos se instaura

Fonte: Piirongin Piiloissa (YouTube).


Quando a personagem-cômoda poderia imaginar que, dentro da sua caixa se-
gura, ordenada, modelada e confortável, algo de fora pudesse tocá-la e desor-
ganizar as suas gavetas? O inusitado acontece quando uma criatura (será uma
traça?) invade o mundo de organização da personagem-cômoda reverberando
uma multiplicidade de forças e relações de afetos que se convertem em um
pensamento da experiência para nós. Em movimentos de desterritorialização, a
personagem-cômoda é instigada a sentir a vida de outro modo. Nessas desor-

CURRÍCULO E ESTÉTICA DA ARTE DE EDUCAR


ganizações se constroem (des)caminhos aprendentes. As gavetas bagunçadas,
desordenadas, com elementos que nunca sequer tinham contato, fazem com
que a personagem-cômoda olhe para si e para fora; é o dentro-fora em conexão,
sempre em produção. Produção de produção. Uma força penetra, insinua-se em
outra forma, na brecha, na exterioridade, no fora. “O de-fora surge dentro como
aquilo que o pensamento não pensa, como impensado” (MACHADO, 2009, p.
177). Violência. Formas e forças travam uma batalha. Máquina de guerra.

Os movimentos da criatura-traça distribuem-se nas gavetas, ocupando o espaço


e preservando a possibilidade de surgir em qualquer ponto: o movimento já não
349
vai de um ponto a outro, de uma gaveta a outra, mas devém incessantemente,
sem alvo e nem destino, sem partida e nem chegada. A máquina de guerra “[...]
tem por objeto um espaço muito especial, espaço liso, que ela compõe, ocupa
e propaga” (DELEUZE, 1992, p. 47).

No encontro com a personagem-cômoda, a criatura-traça movimenta-se entre


o espaço liso e o espaço estriado (espaço nômade e espaço sedentário), terri-
torializa e desterritorializa, faz do fora um território no espaço, consolida esse
território mediante a construção de um segundo território adjacente, “[...] des-
territorializa o inimigo através da ruptura interna de seu território, desterritoria-
liza a si mesmo, vai a outra parte” (DELEUZE; GUATTARI, 2012, p. 14). Aqui a
criatura-traça-máquina-de-guerra é ela mesma uma “[...] pura forma de exte-
rioridade, ao passo que o aparelho de Estado constitui a forma de interioridade
que tomamos habitualmente por modelo, ou segundo a qual temos o hábito de
pensar” (p. 15-16): a personagem-cômoda e sua preocupação com a perpetua-
ção e conservação.
Pensar é habitar o risco. O corpo-pensamento como corpo ético-estético-polí-
tico vive a invenção de outro modo de vida, de existência. Para Reis (2019, p.
113), “[...] pensar habitando o risco é experimentar de modo ativo a arte do des-
locamento de forças reguladoras”, produzindo distanciamentos da perpetuação
e conservação da oposição moral certo versus errado, ordem versus desordem,
dentro versus fora na composição de coletivos para manejar outros possíveis de
si e do mundo.

Temos, assim, um turbilhão de movimentos: as coisas-fluxo que se distribuem


em um espaço aberto traçado pela criatura-traça em meio às coisas lineares e só-
lidas distribuídas em um espaço fechado. Para Deleuze e Guattari (2012, p. 26),
trata-se da “[...] diferença entre um espaço liso (vetorial, projetivo ou topológico)
e um espaço estriado (métrico): num caso, ‘ocupa-se o espaço sem medi-lo’, no
outro, ‘mede-se o espaço a fim de ocupá-lo’” (grifo dos autores).

O que esperar quando a personagem-cômoda olha para o fora? Nunca se sabe,


pois os caminhos de aprendizagens são sempre um mistério cujos desdobra-
350 mentos derivam na amplidão das afecções que os corpos estão dispostos a pro-
duzir. São virtualidades que se atualizam e, na íntima relação afetiva dos corpos
AS IMAGENS-CINEMA COMO MÁQUINAS DE GUERRA DO PENSAMENTO:
CURRÍCULOS E DOCÊNCIAS E...

com outros corpos e signos, desterritorizamos os pensamentos e produzimos


uma vida que anseia por composição. Olhamos para fora, ambicionando olhar
para dentro, são cortes-fluxos produzidos na máquina desejante que criam e
fabulam aprendências.
Experimentação 2:

Comme un elephant dans un magasin de porcelaine

IMAGEM 3 _ O vendedor e as porcelanas

CURRÍCULO E ESTÉTICA DA ARTE DE EDUCAR


351
Fonte: Comme un elephant dans un magasin de porcelaine (YouTube).

O que de pior poderia acontecer em uma loja de objetos frágeis como porce-
lana? No curta-metragem de animação Comme un elephant dans un magasin
de porcelaine,2 o vendedor atento cuida de cada objeto de modo a garantir que
xícaras, pires, pratos, bules, jarras e peças de decoração de porcelana estejam
sempre bem limpos e dispostos meticulosamente nas também frágeis prateleiras
de vidro. Mas quem imaginaria que, em um dia aparentemente “normal”, um
enorme elefante azul adentraria misteriosamente a pequena loja? Elefante e
vendedor se veem desafiados para que a “monstruosidade” saia da loja. Entre as
prateleiras de vidro, o lustre de cristais e as delicadas (e lindas) peças de porce-
lana, o enorme elefante tenta se contorcer e se mover em direção à única saída
para a porta.

2 Produzido em 2017 por Louise Chevrier, Luka Fischer, Rodolphe Groshens, Marie Guillon, Estelle Martinez, Benoit Paillard e
Lisa Rasasombat, da École Supérieure des Métiers Artistiques (Esma). (Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=h_aC8p-
GY1aY&ab_channel=ESMAMovies).
IMAGEM 4 _ O inusitado acontece

352
Fonte: Comme un elephant dans un magasin de porcelaine (YouTube).
AS IMAGENS-CINEMA COMO MÁQUINAS DE GUERRA DO PENSAMENTO:
CURRÍCULOS E DOCÊNCIAS E...

Aqui, os agenciamentos coletivos de enunciação se dão por meio de um con-


junto de forças: sons, gestos, silêncios, olhares. Não há vozes. Há sons de uma
música cadenciados pelos movimentos dos corpos, dos gestos, dos objetos. “Um
agenciamento é precisamente este crescimento das dimensões numa multiplici-
dade que muda necessariamente de natureza à medida que ela aumenta suas
conexões” (DELEUZE; GUATTARI, 1995, p. 17).

O que a força intensiva, provocada pelo encontro com a imagem-cinema, pro-


duz em nós, fazendo proliferar multiplicidades? Arrebatamento. Ressonâncias e
interferências instauram em nós um pensamento outro que faz deslizar as nossas
“certezas”, como por exemplo, de que o tamanho do elefante está diretamente
relacionado com a brutalidade e a força física em contraste com a fragilidade
das porcelanas. Ao mesmo tempo em que o elefante é grande, rude e pesado, ele
age com leveza e delicadeza ao pegar um vaso de porcelana que estava prestes
a cair devido ao susto do vendedor ao se deparar com o animal dentro da loja.
Como imaginar a delicadeza em um enorme elefante azul? Será possível o en-
contro entre a singeleza do enorme elefante em confronto com a delicadeza das
pequeninas peças de porcelana e o organizado vendedor no desejo de equili-
brar os desequilíbrios do elefante, do vendedor e das peças de porcelana? No
encontro com as linhas de segmentaridade dura ou molar, que produz uma terri-
torialidade, organização, significado, estratificação, somos atravessados pelo ar-
roubo das linhas de desterritorialização que causa uma ruptura. Para Deleuze e

CURRÍCULO E ESTÉTICA DA ARTE DE EDUCAR


Guattari (1995), as multiplicidades são definidas pelo fora, pelas linhas abstratas
de fuga ou de desterritorialização, e elas mudam de natureza ao se conectarem
às outras.

Para Deleuze e Guattari (1996), o inapropriado não é permanecer estratifica-


do, ou seja, organizado, significado, sujeitado, mas precipitar os estratos numa
“queda suicida ou demente”, que os faz recair sobre nós, mais pesados do que
nunca. Então, o que fazer?

[...] instalar-se sobre um estrato, experimentar as oportunidades que


ele nos oferece, buscar aí um lugar favorável, eventuais movimentos 353
de desterritorialização, linhas de fuga possíveis, vivenciá-las, assegu-
rar aqui e ali conjunções de fluxos, experimentar segmento por seg-
mento dos contínuos de intensidades, ter sempre um pequeno pedaço
de uma nova terra. É seguindo uma relação meticulosa com os estra-
tos que se consegue liberar as linhas de fuga, fazer passar e rugir os
fluxos conjugados, desprender intensidades contínuas [...] (DELEUE-
ZE; GUATTARI, p. 24).

Conectar. Conjugar. Entrar em relação. Para os autores, imersos em uma for-


mação social, precisamos ver o quanto essa formação está estratificada para
nós e em nós, para irmos dos estratos ao agenciamento mais profundo no qual
estamos envolvidos; fazer com que o agenciamento oscile... Conexão. Fluxos.
Experimentação.

Em uma articulação de forças, somos capturados pelos arroubos que o efeito das
imagens-cinema provoca em nós. O que nos dá a pensar? A força do pensamen-
to é intensificada e produzimos outras imagens. As linhas não param de se reme-
ter umas às outras, pois os movimentos de desterritorialização e os processos de
reterritorialização estão presos uns aos outros, coexistem e se complementam.
Os caminhos de aprendências com as crianças também têm dessas coisas: ser
sensível à delicadeza e singularidade delas e caminhar junto aos (des)equilí-
brios curriculares que elas produzem. Talvez o professor seja como o cuidadoso
vendedor que, no encontro das crianças com os signos, sensibiliza-se às suas
criações e atualiza as virtualidades fabuladas por elas, produzindo, assim, pos-
sibilidades inesperadas para caminhar por currículos imanentes que escapam à
lógica de controle imposta pela ciência moderna.

Voltamos aqui à máquina de guerra do pensamento. Deleuze e Guattari (2012,


p. 77), no Tratado de nomadologia, afirmam que “[...] a existência nômade tem
por ‘afectos’ as armas de uma máquina de guerra’”. Se o regime da máquina de
guerra é o dos afectos, que remetem a velocidades e a composições de veloci-
dade entre os elementos, tem-se, assim, que “[...] os afectos são projéteis, tanto
quanto as armas” (p. 84). O agenciamento produzido com porcelanas e elefante
e vendedor e prateleiras e lustre e ferramentas e armas e signos, enfim, com uma
multiplicidade de elementos singulares, produziu em nós afecções para proble-
matizar a máquina de guerra do pensamento no sentido da invenção: “Aprender
354
a desfazer, e a desfazer-se, é próprio da máquina de guerra: o não-fazer do guer-
reiro, desfazer o sujeito” (p. 85).
AS IMAGENS-CINEMA COMO MÁQUINAS DE GUERRA DO PENSAMENTO:
CURRÍCULOS E DOCÊNCIAS E...

É no encontro entre o elefante e as porcelanas e o vendedor que a produção de


processos afetivos acontece. O elefante, com medo do inesperado, aspira a um
acolhimento e, no contato afetuoso do homem cuidadoso, o medo e o pavor de
se ver preso em um espaço pequeno e inóspito transformam-se em calmaria. Em
um mesmo compasso e numa sinestesia – inspira, expira −, ambos se apoiam e,
juntos, criam um caminho para passar pelas apertadas prateleiras de vidro com
as delicadas porcelanas em direção à saída. Juntos traçam possíveis, mas quan-
do, finalmente, tudo parecia resolvido, o enorme sensível elefante azul simples-
mente desaparece do mesmo jeito que apareceu, abruptamente.

Entretanto, o que nos afeta aqui não é a saída do elefante da loja, mas os agen-
ciamentos produzidos, os afectos que criaram movimentos, velocidades, inten-
sidades. “Os afectos atravessam o corpo como flechas, são armas de guerra”
(DELEUZE; GUATTARI, 2012, p. 18).
Nas criações aprendentes que produzimos com as crianças, os signos que por
elas são fabulados, às vezes, podem parecer enormes elefantes que, no plano da
virtualidade, buscam a atualização. Afetar-se às fabulações das crianças corres-
ponde a sensibilizar-se com o inesperado, o inusitado e o fantasioso. Quando
essas virtualidades se atualizam e se realizam em mundos compossíveis, cria-
ções imanentes de currículos aparecem misteriosamente indicando-nos (des)ca-
minhos inusitados de proliferação de aprendências com as crianças.

CURRÍCULO E ESTÉTICA DA ARTE DE EDUCAR


Experimentação 3:

The song for rain


A relação professor, aluno e as aprendizagens e ensinagens tem os seus misté-
rios. Há um esforço em nossas pesquisas em problematizar os agenciamentos
produzidos nesse processo, sempre no exercício de problematizar as interações
afetivas criadas. Afinal, quem pode definir como o outro aprende? Ou quando
aprende? De que modo aprende? Ou para qual finalidade aprende? O curta The
355
song for rain3 convida-nos a colocar o pensamento em movimento, no sentido
de intensificar o pensamento.

A pequena raposa busca meios para coletar um pouco de água de chuva que
cai incessantemente. A água escorre pela organização cinza da metrópole, cujos
prédios, praças e pessoas demostram certa apatia pela cidade. Porém, a raposa,
em seu pelo em tom alaranjado e munida de uma pequena sacola furada, cor-
re por todos os cantos em busca de um pouco de água. Um menino com seu
guarda-chuva é capturado pela cena inusitada e, logo, identifica que aquela não
poderia ser uma boa alternativa para coletar a água de chuva. Aproxima-se, en-
tão, da raposa e, agarrado a ela, sai correndo, pois imaginava qual deveria ser a
resolução para aquele problema.

3 Curta-metragem em animação dirigido e escrito pelo chinês Zheng Ya Wen (2012). (Diponível em: https://www.youtube.com/


watch?v=pBB1-UVCzPo&ab_channel=HoangBn).
IMAGEM 4 _ O encontro

Fonte: The song for rain (YouTube)

Muitas vezes, nas relações com as crianças, acreditamos ser possível indicar
os caminhos e meios para a aprendizagem, assim como fez o menino, obser-
356 vando de longe o problema e, imediatamente, buscando a solução. Todavia, as
aprendências e as ensinagens acontecem nas relações, no contato, na criação
AS IMAGENS-CINEMA COMO MÁQUINAS DE GUERRA DO PENSAMENTO:
CURRÍCULOS E DOCÊNCIAS E...

de mundos e nos acontecimentos e agenciamentos que os encontros produzem.

O menino, então, segue para uma loja para comprar um pote e resolver o pro-
blema da raposa, mas, com poucos recursos, sai da loja frustrado com a peque-
na raposa e seu guarda-chuva. A raposa segue com a sua sacola em busca de
água e o menino abre o seu guarda-chuva para tentar proteger a raposa. Prosse-
guem caminhando menino e raposa, até que o inesperado os surpreende e, no
envolvimento afetivo, outras possibilidades de criação de caminhos aprendentes
se manifestam. Um vento inesperado leva o guarda-chuva que cai no chão vira-
do ao contrário. A pequena raposa e o menino identificam que aquele objeto,
usado de outro modo, pode servir de coletor de água de chuva. Eles saem em
busca das pequenas gotas pela cidade. A cada gota de chuva, o menino e a ra-
posa ficavam mais próximos, mais amigos, desafiando-se a experimentar outros
modos de agenciamentos, desterritorizalizando, juntos, caminhos aprendentes
que, na relação, ambos ensinam e aprendem.
IMAGEM 4 _ Composição de afetos

CURRÍCULO E ESTÉTICA DA ARTE DE EDUCAR


357

Fonte: The song for rain (YouTube).

Tal qual a relação professor-aluno, ora ensinamos, ora aprendemos, ora fazemos
as duas coisas ao mesmo tempo. Mecanismos de controle instituídos em proces-
sos educativos, quando orquestrados pela lógica de um desenvolvimento linear
e progressivo da aprendizagem, tentam reduzir a docência à mera mecaniza-
ção dos processos de aprenderensinar. No encontro com o corpo-escola, nosso
corpo-pensamento é sacudido por um cotidiano encharcado de vida imanente
em que há inúmeras possibilidades de fazer a vida expandir. Desse modo, a
relação entre quem aprende e quem ensina extrapola os modelos padronizados
de currículo, de docências, de crianças. No corpo-escola, “[...] experimentamos
os possíveis de um currículo ‘arteiro’, implicante, em composição/relação com
outros corpos, fazendo proliferações com múltiplas variações, tensionadas por
forças de diferentes grandezas e intensidades” (REIS, 2019, p. 80).

Um corpo sensível afetivamente em encontro com outro atualizará virtualidades


na composição de currículos, produzindo processos de ensinoaprendizagem.
Construir aprendências com as crianças requer coragem para coletar gotas de
chuva, cuja relação se estabelece a cada dia nas infinitas fabulações que são
criadas. Ao final de um dia chuvoso no recolhimento dessas gotas de afeto, o
menino despede-se da raposa. Ela leva a água para um lugar ensolarado, cheio
de flores, árvores, uma paisagem bem diferente da cidade metropolitana.

Encontros. Afetos. Afecções... Para Spinoza (2008), corpos e ideias são definidos
pela capacidade de afetar e serem afetados e, para o autor, “afeto” é afecção cor-
poral: “Por afeto compreendo as afecções do corpo, pelas quais sua potência de
agir é aumentada ou diminuída, estimulada ou refreada, e, ao mesmo tempo, as
ideias dessas afecções” (SPINOZA, 2008, p. 163). Assim, uma simples alegria é,
358 no corpo, uma afecção que aumenta ou estimula a potência de agir e, na mente,
é uma ideia que aumenta ou estimula sua potência de pensar.
AS IMAGENS-CINEMA COMO MÁQUINAS DE GUERRA DO PENSAMENTO:
CURRÍCULOS E DOCÊNCIAS E...

Em sua ontologia, Spinoza apresenta que corpo e mente são modos de uma
mesma substância, na qual um corpo se distingue de outro por meio de uma
dinâmica própria: “Os corpos se distinguem entre si pelo movimento e pelo re-
pouso, pela velocidade e pela lentidão, e não pela substância” (SPINOZA, 2008,
p. 99). A dinâmica própria do corpo dá-se pelos atravessamentos ou, no sentido
spinozano, pela composição de outros indivíduos: “O corpo humano compõe-
-se de muitos indivíduos (de natureza diferente), cada um dos quais é também
altamente composto” (SPINOZA, 2008, p. 105) e afetado por outros corpos de
várias maneiras: “Os indivíduos que compõem o corpo humano e, consequente-
mente, o próprio corpo humano, são afetados pelos corpos exteriores de muitas
maneiras” (SPINOZA, 2008, p. 105).

Assim, o corpo deixa de ser definido como uma máquina que funciona como
um sistema fechado e passa a ser concebido como uma pluralidade mantida
por uma série de trocas com o ambiente. Os “[...] afetos não têm imagem, nem
palavra, nem gesto que lhes correspondam – enfim, nada que os expresse – e,
no entanto, são reais, pois dizem respeito ao vivo em nós mesmos e fora de nós”
(ROLNIK, 2018, p. 53).

Devido ao fato de vivermos em relação, sendo esta que nos constitui, podemos
dizer que um corpo é definido por tudo aquilo que o distingue de outros corpos
(movimento e repouso, velocidade e lentidão) e também pelos afetos produzi-
dos por outros corpos. A capacidade de um corpo ser afetado por outro deve-se

CURRÍCULO E ESTÉTICA DA ARTE DE EDUCAR


ao grau de complexidade de sua composição interna. Composições: menino,
raposa, guarda-chuva, cidade, chuva. Somos constituídos na relação com o fora
entre dobras, gritos, silêncios, formas, forças, tempos, percursos... Somos enre-
dados nos encontros vividos com a escola em suas composições que seguem
“[...] deslizantes por entre os dedos endurecidos das máquinas de controle que
tentam capturar o corpo- currículo, o corpo-docência, o corpo-criança no coti-
diano escolar” (REIS, 2019, p. 46).

Voltamos ao filme. O menino já não é mais o mesmo. A raposa já não é mais a


mesma. Ambos se afetaram. Criaram, fabularam e construíram caminhos para as 359
aprendências a partir dos acontecimentos que experimentaram. Nós também já
não somos mais os mesmos...

Linhas, composições, itinerâncias traçadas nos encontros


Nesta escrita-ensaio-experimentação, produzida a partir dos encontros com
as imagens-cinema, apostamos nas diferentes linhas que compõem um corpo
vibrátil, corpo coletivo que move o pensamento, impulsiona-o, tenta fazer de
outro modo um modo novo. Novo pensamento, não sedentário, mas nômade,
inventivo e intensivo, para experimentar currículos e docências e aprendências
e escolas e vida.

Numa coexistência, os encontros com a personagem-cômoda e criatura-traça e


elefante e vendedor e porcelanas e menino e raposa e guarda-chuva e cidade
produziram em nós afecções. Como uma máquina de guerra, as imagens-cine-
ma provocaram arroubos, fissuras, rachados. Violentaram o nosso pensamento
para dar lugar a outros movimentos, um pensamento novo... Como máquina
de guerra nômade, instauraram um vetor de desterritorialização e, em meio às
linhas estriadas e aos pontos fixos, vemos a possibilidade de abertura para as va-
riações de orientação e direção que engendram movimentos rizomáticos, tem-
porários e móveis, determinando mudanças de orientação dos percursos, das
certezas, para além da imagem dogmática do pensamento.

Ao entrarmos em relação com os curtas, habitamos espaços lisos e estriados, es-


paços nômades e sedentários e, de natureza diferente, esses espaços só existem
pelas relações recíprocas entre si: de um lado, um espaço não polarizado, fun-
damentalmente aberto, não mensurável, povoado de singularidades e, de outro,
um espaço sobrecodificado, métrico, hierarquizado. São coexistentes.

As imagens-cinema atuaram como disparadoras para fazer a língua delirar, ou


seja, para forçar o pensamento, colocando-o em movimento, produzindo o
novo, a diferença. Os agenciamentos no encontro com as imagens-cinema e
os intercessores teóricos intensificaram a gagueira da língua, fazendo a língua
360 pegar delírio, gerando outros/novos modos de pensar, outras problematizações
concernentes aos currículos e às docências e às aprendências e à vida. Geraram
AS IMAGENS-CINEMA COMO MÁQUINAS DE GUERRA DO PENSAMENTO:
CURRÍCULOS E DOCÊNCIAS E...

intensidades. Multiplicidades. Inventividade.

Nesses encontros com as imagens, entra-se em um movimento com


a vida, pois, ao se colocar em relação a uma imagem-corpo-com-
posição, busca-se experimentar a potência dos afetos engendrados a
partir dos encontros. As imagens-cinema criam potência de vida que
disparam intensidades, produzindo linhas que, ao habitar o plano de
imanência, levam à criação de maneiras de se pensar a vida da/na/
com a escola e, a partir dos afetos disparados, à possibilidade para
se pensar currículos, docência e infância. Nas imagens-cinema, há
encontros de corpos, onde diferentes vidas pulsam. A potência está
nessa multiplicidade (CARVALHO; DELBONI; SILVA, 2016, p. 208).

Assim, nas imagens-cinema, a vida pulsante está nos encontros engendrados


com o outro, possibilitados no espaçotempo da escola, o que produz diferentes
modos de existência, alteridade, formas de se pensar os movimentos curricu-
lares praticados no cotidiano escolar e sua relação com as docências e com as
aprendências e com a vida. A potência de vida presente nas relações impulsiona
a problematização dos modos de constituição de si surgidos na relação com o
outro e consigo mesmo. Assim, problematizamos a potência dos encontros para
dar a pensar outros sentidos para currículos e docências e aprendências enre-
dados à vida imanente, engendrada por meio dos afetos, afecções, linguagens e
conhecimentos que emergem nas/das relações.

Alguns questionamentos foram produzidos pela força intensiva do pensamento

CURRÍCULO E ESTÉTICA DA ARTE DE EDUCAR


no encontro com a personagem-cômoda e a criatura-traça e o vendedor e o ele-
fante e as porcelanas e a loja e o menino e a raposa e o guarda-chuva e a cidade:
como reverberar os fluxos para inventar (des)caminhos e produzir movimentos
de experimentações curriculares e de docência? Como, nas afecções desse en-
contro, fazer ecoar o que mexe, gera, foge, devém, inventa, desliza, em vez de
captar o que, supostamente, é fixo, imutável, eterno, estável, imóvel? De que
modo esses (des)caminhos provocam movimentos de ruptura, de (re)existência e
potencializam novos processos de subjetivação, novas ideias/conceitos, conhe-
cimentos e invenções de currículos e de docências e de aprendências e de vida?
361
Assim, as imagens-cinema, como máquinas de guerra do pensamento, mobili-
zam e liberam uma carga de nomadismo e de desterritorialização, implicando
uma variabilidade de direções e de pensamentos cambiantes. Há um plano de
forças, de relações, que compõe o real social junto com objetos e sujeitos, “[...]
de modo aparentemente tão verdadeiro quanto o espaço-tempo que nos toca,
mas tão mutável quanto a nossa percepção em relação a ele. O que toca são
forças. Sempre há um conjunto de forças agindo em um lugar e o transformando
a cada instante” (CARVALHO; DELBONI; SILVA, 2018, p. 810-811). Pensar cur-
rículos e docências e aprendências como máquina de guerra implica apostar em
movimentos que se voltam contra a forma sujeição/servidão em direção a modos
de liberdade, como força intensiva de aposta e crença no mundo.

Os docentes e as crianças são aprendentes, estão em processos de aprendên-


cia, o que implica a compreensão da necessidade de colocar o pensamento em
movimento para muito além de modelizações curriculares e de docências. Tor-
na-se, então, cada vez mais imprescindível habitar um território como instância
provisória de experimentações para desterritorializar conceitos de currículos e
docências e apostar na articulação realizada no plano de imanência a partir de
uma rede de interações, pois é no encontro entre os corpos que as afecções são
produzidas. Portanto,

[...] nas relações entre crianças e professoras e crianças [...] as dobras


e redobras são produzidas, onde mundos compossíveis contagiam as
singularidades dos indivíduos e criam outros trajetos pelas dobras do
labirinto. Não há, assim, a pretensão de pensar que todos aprendem
de um modo e se afetam pelos currículos da mesma maneira. Há um
labirinto de possibilidades, e cada criança percorrerá o seu à sua ma-
neira (GONÇALVES, 2019, p. 74-75).

Os agenciamentos produzidos com as imagens-cinema são forças que levam


ao movimento do pensar, propiciam encontros, experimentações e possibilitam
surpresa, indagação, desterritorialização. Entre capturas e fugas do pensamento,
os movimentos de desterritorialização entram em uma zona intermediária, uma
zona de intensidade que, em um processo de reterritorialização, leva à constitui-
362 ção de territórios sensíveis rumo a uma vida outra e a um mundo outro. Assim,
continuamos a afirmar a vida!
AS IMAGENS-CINEMA COMO MÁQUINAS DE GUERRA DO PENSAMENTO:
CURRÍCULOS E DOCÊNCIAS E...
Referências
CARVALHO, Janete Magalhães; DELBONI, Tania Mara Zanotti Guerra Frizzera;
SILVA, Sandra Kretli. Movimentos de invenções curriculares no cotidiano
escolar: a potência da imagem-cinema fazendo a língua pegar delírio. Mo-
mento: diálogos em educação, Porto Alegre, v. 25, n.1, p. 205-220, 2016.
DELEUZE, Gilles. Conversações. São Paulo: Ed. 34, 1992.
DELEUZE, Gilles. Crítica e clínica. São Paulo: Ed. 34, 1997.

CURRÍCULO E ESTÉTICA DA ARTE DE EDUCAR


DELEUZE, Gilles. Proust e os signos. Rio de Janeiro: Forense Universitária,
2010.
DELEUZE, Gilles. Diferença e repetição. Rio de Janeiro/São Paulo: Paz e Ter-
ra, 2018.
DELEUZE, Gilles. GUATTARI, Felix. Mil platôs 1. São Paulo: Ed. 34, 1995.
DELEUZE, Gilles. GUATTARI, Felix. Mil platôs 3. São Paulo: Ed. 34, 1996.
DELEUZE, Gilles. GUATTARI, Felix. Mil platôs 5. São Paulo: Ed. 34, 2012.
GONÇALVES, Camilla Borini Vazzoler. As fabuloinvenções das crianças nos
363
agenciamentos dos currículos. 2019. 155 f. Dissertação (Mestrado em
Educação) − Programa de Pós-Graduação em Educação, Universidade Fe-
deral do Espírito Santo, Vitória, 2019.
MACHADO, Roberto. Deleuze, a arte e a filosofia. Rio de Janeiro: Jorge
Zahar Ed., 2009.
REIS, Eliana Aparecida de. Currículos enredados por forças, afetos e afec-
ções: o que pode um corpo-pensamento que deseja dançar. 2019.139 f.
Dissertação (Mestrado em Educação) − Programa de Pós-Graduação de
Mestrado Profissional em Educação, Universidade Federal do Espírito Santo,
Vitória/ES, 2019.
ROLNIK, Suely. Esferas da insurreição: notas para uma vida não cafetinada.
São Paulo: n-1, 2018.
SANTOS, Zamara Araujo dos. A geofilosofia de Deleuze e Guattari. Tese
(Doutorado em Filosofia) − Universidade Estadual de Campinas, Campinas,
SP, 2013.
ZOURABICHVILI, François. Deleuze: uma filosofia do acontecimento. São
Paulo: Editora 34, 2016.
364
16.
TÍTULO
OFICINAS ARTÍSTICAS
NA PERIFERIA:

CURRÍCULO E ESTÉTICA DA ARTE DE EDUCAR


PRÁTICAS EDUCATIVAS
PARA APRENDER E
AFETAR O CORPO
COLETIVO
365

Lysia da Silva Almeida


Davis Moreira Alvim
Izabel Rizzi Mação
Lysia da Silva Almeida1
Davis Moreira Alvim2
Izabel Rizzi Mação3

Qual relação você estabelece com a arte? Qual a relação dos seus alunos
com a arte? Quais os possíveis abertos no encontro entre a arte e a educação?
Foi com questionamentos como esses germinando em nossos corpos que,
ao longo do processo de pesquisa do Mestrado Profissional em Ensino de
Humanidades (PPGEH/Ifes), decidimos montar uma série de oficinas artísticas
junto à comunidade do Território do Bem4 – região periférica5 localizada em
Vitória, Espírito Santo – em parceria com o Ponto de Cultura Varal Agência
de Comunicação6. A escolha da Varal se deu por entendermos o local como
um espaço educativo não-formal, onde se produzem, conforme a percepção
366 de Valéria Aroeira Garcia e Daltro Cardoso Rotta (2012, n.p.), “saberes que
não se baseiam na formalidade educacional”, os quais, com frequência, “são
OFICINAS ARTÍSTICAS NA PERIFERIA:
PRÁTICAS EDUCATIVAS PARA APRENDER E AFETAR O CORPO COLETIVO

considerados como ‘menores’, menos sérios, ingênuos, por operarem muitas


vezes em outros tempos e espaços, que não o da instituição escolar”. Sendo um
ponto de difusão cultural, a Varal é aberta para quem deseja construir ações que
beneficiem a comunidade e, por isso, é palco de diversas oficinas, conversas,
entre outros formatos educativos – ainda que fora da institucionalização escolar.

1 Mestre pelo Programa de Pós-Graduação em Ensino de Humanidades do Instituto Federal do Espírito Santo (PPGEH/Ifes).

2 Doutor em Filosofia pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC/SP), professor do Instituto Federal do Espírito Santo
(Ifes), professor do Programa de Pós-Graduação em Ensino de Humanidades do Instituto Federal do Espírito Santo (PPGEH/Ifes) e
do Programa de Pós-Graduação em Psicologia Institucional da Universidade Federal do Espírito Santo (PPGPsi/Ufes).

3 Mestre e doutoranda pelo Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal do Espírito Santo (PPGHis/Ufes).
Bolsista da Fundação de Amparo à Pesquisa e Inovação do Espírito Santo (FAPES).

4 Oficialmente, a região é denominada pela Prefeitura Municipal de Vitória como Poligonal 1 e engloba os bairros Bonfim, Conso-
lação, Engenharia, Floresta, Gurigica, Itararé, Jaburu, da Penha e São Benedito. Ver: https://m.vitoria.es.gov.br/cidade/programa-
-terra. No entanto, preferimos nomear tal espaço como Território do Bem – em conformidade com a identificação dos moradores
locais.

5 A região está localizada em uma área central da Ilha de Vitória e próxima a bairros nobres, contudo, a configuração espacial soma-
da aos indicadores sociais e econômicos permitem que seja considerada uma área de periferia, como indica Clara Luiza Miranda
(2017).

6 A Varal é um projeto vinculado à Associação Ateliê de Ideias. Sua sede está no bairro Itararé e serve como ponto de cultura e espa-
ço de produção e divulgação de projetos de comunicação, como formações, reuniões de grupos comunitários e eventos culturais.
As oficinas aconteceram durante os meses de janeiro e fevereiro de 2020, tiveram
várias temáticas e frentes de atuação artística. Este capítulo se dispõe a colocar
em foco algumas das atividades realizadas ao longo dos encontros, destacando
aquelas que nos mobilizaram a pensar uma arte-educação na qual, como indica
Kelly Cristine Sabino (2015), há espaço para a criação de novos modos de vida.
Dentre as diversas atividades realizadas nas oficinas, abordaremos as seguintes:
o encontro elaborado a partir de um material disponibilizado pelo Núcleo de

CURRÍCULO E ESTÉTICA DA ARTE DE EDUCAR


Ação Educativa da Pinacoteca de São Paulo, a oficina de colagens e a de zines.

Uma arte-educação que experimenta


outros modos de vida
Existem formas muito diversas de pensar a arte e o campo da produção artística
de modo geral. Pelo menos desde a Modernidade europeia, contudo, opera-se
com uma rede discursiva que reafirma uma suposta verdade da arte, alçando-a
a um pedestal distante da vida (SABINO, 2015) e a definindo como mera 367
representação da realidade. No nosso entendimento, não se trata de perseguir a
arte da representação, pois não há nenhum problema com a arte cujo objetivo é
representar. Propomo-nos, porém, a abordar a arte atentando, em especial, para
seu aspecto inventivo e suas incursões no campo da experimentação.

A “arte é presença de algo que não estava antes; não se trata de revelação de
algo que se escondia, mas de tornar presente um vir a ser ali flutuante. Quando
o jogo artístico acontece, a arte inventa realidades” (ANDRÉ, 2011, p. 437).
Compreendemos, aqui, que a arte é uma das formas pelas quais o sujeito se
relaciona com a intensidade dos afetos (SOLER; KAWAHALA, 2017). Isso significa
que a arte tem a potência de compor linhas de fuga, criar afetos e multiplicar as
singularidades. Ela não pode, portanto, ser reduzida a algo figurativo, a uma mera
representação, pois a arte é, segundo Gilles Deleuze e Félix Guattari (1992), uma
atividade criadora: ela cria blocos de sensações. A arte acontece por intermédio
de percepções e afetações. Por isso, não necessita de uma reflexão sobre ela –
a potência da arte reside nas sensações que experimentamos (DAMASCENO,
2017). Antes de uma técnica ou da produção de uma imagem representativa da
realidade, a arte ocupa o âmbito difuso e conflitivo da experimentação. Não é
nossa intenção, com isso, desconsiderar o lugar da técnica artística, do estudo,
da preparação e da dedicação – fundamentais aos processos em artes. Assim
como no trabalho do filósofo ou do cientista, também há, no trabalho artístico,
muita preparação e atenção. Afinal, não se faz arte de qualquer jeito, porque não
se experimenta de qualquer jeito (DELEUZE; GUATTARI, 1992).

Com a abertura dessa perspectiva, procuramos destacar que há compreensões


sobre a arte nas quais ela já não ocupa o lugar daquilo que, de forma passiva,
recebe significados – a serem interpretados, compreendidos e, por fim,
contextualizados – para se deslocar pelo campo da experimentação. Nessa forma
de se relacionar com a arte e, também, de produzi-la, de vivê-la, de aprendê-
la e ensiná-la, a própria prática docente se configura em uma estética de vida,
ansiosa por

[...] uma arte que seja motriz de uma docência que, ao mesmo tempo
em que se exerce, se experimenta, se (re)inventa e, fundamentalmente,
se vê num plano de construção ética, estética – e, mais do que
368 pedagógico, político –, atuando na diferença, sem pretender acabar
com ela, mas problematizando o consenso e as ideias prontas por
OFICINAS ARTÍSTICAS NA PERIFERIA:
PRÁTICAS EDUCATIVAS PARA APRENDER E AFETAR O CORPO COLETIVO

meio de devires, gestos e inscrições no mundo feitas de potência.


Em suma, essa arte em questão possibilitaria o exercício de outras
relações de poder no interior da aula mantendo, principalmente, uma
atitude crítica de si e do outro – da relação pedagógica –, a fim de
experimentar em si e com os outros diferentes modos de ser (SABINO,
2015, p. 209).

A educação artística pode, então, atuar como uma potente fusão entre a arte e a
vida, uma experiência que não mais se associa “ao simulacro ou à elevação das
aparências do mundo, mas como projeto ético capaz de modelar a experiência
tanto política quanto estética dentro da própria vida” (SABINO, 2015, p. 205).

Para Liev Vygotsky (2003, p. 227), por exemplo, o ensino de arte se torna
caricaturesco quando procura o “sentido fundamental de qualquer obra
pela explicação ‘do que o autor quis dizer’ e do significado moral de cada
personagem separadamente”. Esta tentativa, de exprimir significados e dogmas
morais das vivências artísticas, deságua em uma compreensão limitada e
estreita da educação artística. Vygotsky parte, diferentemente, do princípio de
uma educação estética como um fim em si mesmo e não apenas como meio
para obter resultados pedagógicos. Para ele, a educação deve se preocupar em
estimular a criatividade e as aptidões criativas.

Partilhando dessas sugestões de Vygotsky, assumimos que todos nós já somos


potencialmente artistas e que o espectador/leitor pode ocupar um papel ativo
diante da arte, pois o processo de criação e de percepção artística gera estímulos.

CURRÍCULO E ESTÉTICA DA ARTE DE EDUCAR


Além disso, consideramos que é importante entender que não se pode reduzir
a educação estética à transmissão de normas morais ou de um conjunto de
significados previamente dados. Para nós, no encontro entre a arte e a educação
se desenha um sonho, uma criação do tempo presente que, como na intuição de
Carminda Mendes André (2011), expressa-se na invenção de relações afetivas e
modos de produzir afetos, compondo-se como uma prática ética voltada para a
coletividade horizontal, para a afirmação da diferença e para a busca por outros
possíveis para o corpo, a vida e a arte. Trata-se de pensar uma experimentação
artística que age não apenas contra a eternidade, mas também contra o seu
369
próprio tempo e, assim, opera sobre o tempo, em favor de outros mundos
possíveis (BENEDYKT, 2020).

Para forjar uma arte-educação que mais experimenta do que interpreta,


compreendemos que o elemento artístico na educação não pode ser apenas
um meio para expressar um contexto. A atitude estética é uma percepção e
ação diante do mundo, uma prática em relação à vida. Lidamos, então, com
um conteúdo que surge da vida, das experiências, das subjetividades e que,
portanto, extrapola as fronteiras dos espaços educativos, transbordando no
cotidiano e fazendo aparecer a diferença e o imprevisível do mundo comum
(SABINO, 2015). A arte – mesmo em um contexto educativo – não precisa ser
reduzida a uma apresentação de técnicas, explicação sobre correntes artísticas,
análise de obras, componentes de composição ou cores, pois “um ensino de arte
cujo foco esteja centrado nos códigos das linguagens artísticas pode facilmente
tornar-se uma experiência vazia” (SABINO, 2015, p. 40). Trabalhar com arte na
educação, ou fora dela, pode ser uma operação da ordem do afeto, do sensível
e da percepção (SABINO, 2015).
Nesse sentido, a elaboração de nossas oficinas passou por uma preparação.
Acompanhando as indicações de Sabino (2015), procuramos percorrer a
educação pela arte, extrapolando a obra de arte, os espaços tradicionais da arte
e, inclusive, os próprios artistas. Estivemos menos preocupadas em transmitir
conteúdos e mais inclinadas a ver a arte-educação como uma experimentação de
modos de vida, de criação de modos de vida e, portanto, de focos de resistência.
A nossa experimentação com as oficinas foi uma tentativa de, aos moldes de
Deleuze e Guattari (1996), criar um Corpo sem Órgãos (CsO) – uma experiência
que nasce, por assim dizer, também no meio das artes, com Antonin Artaud.

Para Deleuze e Guattari (1996), o CsO não é uma noção ou conceito. Ele é,
antes, uma prática, uma experimentação inevitável, um limite, um devir outro
do corpo. O CsO passa pela busca de novas formas de experimentar a vida e
coloca o corpo no movimento das sensações e das afetações. Ele intenta compor
subjetividades outras, já não mais assujeitadas às capturas dos dispositivos de
poder, traçando um mundo e produzindo outros modos de ser. A arte pode,
portanto, despertar potências do viver, convidar a uma experimentação e
370
ensejar modos de ser e existir (SOLER; KAWAHALA, 2017). Com as oficinas na
Varal, buscamos seguir os possíveis processos de subjetivação a partir da arte,
OFICINAS ARTÍSTICAS NA PERIFERIA:
PRÁTICAS EDUCATIVAS PARA APRENDER E AFETAR O CORPO COLETIVO

entendendo-a como um movimento que pode tensionar limites, provocar rasgos


e desterritorializar aquilo que os dispositivos de poder organizam e colmatam.

Oficinas artísticas na Varal:


aprender com fotografia, ilustração e literatura
Para construir a prática educativa de um modo afirmativo e potente – patinando,
ainda, por esse campo experimental para o qual a arte nos convoca –,
convidamos artistas para guiar algumas oficinas. Ainda que a arte não esteja
presa, exclusivamente, ao domínio dos artistas, pensamos que, enquanto
professoras, “deveríamos aprender com os artistas a inventar a nós mesmos, a
não nos conformarmos com o que somos, desconfiando das verdades instituídas,
em busca de compor com nossos alunos uma experiência” (SABINO, 2016, p.
154).
Durante uma das oficinas, compartilhamos com os participantes nossa percepção
de que os espaços de cultura tradicionais da cidade estão simbolicamente
distantes da população, pois algumas pessoas não se sentem autorizadas a
acessar esses espaços. Também ao longo desse encontro, conversamos sobre os
processos criativos, momento em que alguns dos participantes relataram seus
entendimentos sobre a arte. Muitos enfatizaram que a arte é política, uma forma
de expressar suas percepções e deixar sua marca no mundo. Ou seja, ela não

CURRÍCULO E ESTÉTICA DA ARTE DE EDUCAR


deveria estar restrita aos espaços dos museus ou salvaguardada por um pequeno
conjunto de pessoas “autorizadas” a participar das produções artísticas.

O oficineiro que nos guiava nesse encontro – João Paulo Rocetti, ilustrador,
quadrinista e morador do Território do Bem – fez algumas considerações sobre
o que nomeou “arte política”. Para ele, a política que envolve a arte não trata de
algo necessariamente partidário ou vinculado a alguma ideologia. Só o fato de
registrar as vivências já era o suficiente para “politizar a arte”. Para Rocetti, a arte
está em tudo, no cotidiano, na vida corriqueira, e a produção artística surge daí:
quando alguém está sensível a algo no mundo e compartilha sua sensibilidade
371
em alguma produção artística, de modo que, ocasionalmente, encontra outras
pessoas que também se sensibilizam com ela, mesmo que de formas diferentes.

Movidas pelo desejo de trabalhar com a arte e, ao mesmo tempo, pensá-la com
o corpo, utilizamos, em outra de nossas oficinas, um material elaborado pelo
Núcleo de Ação Educativa da Pinacoteca de São Paulo e distribuído gratuitamente
para professores, com o objetivo de realizar atividades em sala de aula. O
material é composto por uma série de envelopes coloridos, desenvolvidos em
épocas diferentes, e contém neles obras que estão no acervo fixo do museu ou
que passaram por lá temporariamente. As obras são acompanhadas de textos
que instigam reflexões e debates sobre elas, um convite para conhecê-las e
aos artistas responsáveis. Nesses envelopes também há textos de apoio, com
orientações aos educadores e propostas de usos. Um deles nos chamou atenção.
Trata-se de um incentivo aos professores e nos convidava a perceber o ensino
de arte como um estímulo para construir sentidos a partir das experiências. O
professor atuaria, assim, como um mediador e criador de possibilidades para
que os alunos percebam as obras e inventem sentidos para elas a partir de
suas singularidades (CHIOVATTO, 2016). Sendo assim, o material ressalta que
nenhuma utilização rígida pode se impor à obra, porque o encontro com a arte
é sempre singular.

Durante as oficinas, levamos alguns desses envelopes e entregamos aos


participantes sem mostrar o conteúdo previamente. Quando cada um abriu
seu envelope, foi pedido que eles se imaginassem dentro da cena com a qual
se depararam. O desafio era criar uma história em que eles fizessem parte
integral daquela obra, antes mesmo de ler as informações sobre ela, a partir dos
sentimentos e afetações provocados por seu encontro com aquela cena.

Não desejávamos cumprir as exigências tradicionais de analisar uma obra a partir


das perguntas clássicas, a saber: qual o histórico do autor? Em qual contexto
a obra foi produzida? Qual intenção o autor teve ao fazer essa obra? Essas
questões fizeram parte da experiência de muitos participantes quando alunos de
ensino médio. Mas, por se tratar de uma tentativa de, justamente, desarticular a
institucionalização da arte, procuramos não dissolver a singularidade das obras
372 em questão numa grade conceitual rígida. O contexto pode ser importante em
outros momentos; ali, por outro lado, pretendíamos dar palco à surpresa, ao
OFICINAS ARTÍSTICAS NA PERIFERIA:
PRÁTICAS EDUCATIVAS PARA APRENDER E AFETAR O CORPO COLETIVO

acaso, ao improvável e, especialmente, aos modos pelos quais a arte afeta cada
corpo e, com isso, produz subjetividades.

No percurso dessa atividade, uma participante usou a fotografia de Cristiano


Mascaro, de 1976 (figura 1), para narrar a história de uma manequim que ganha
vida, mas não consegue se adaptar ao mundo ou viver a liberdade.
FIGURA 1 _ Fotografia sem título (1976), de Cristiano Mascaro

CURRÍCULO E ESTÉTICA DA ARTE DE EDUCAR


373

Fonte: Mascaro (1976).

O conto criado pela participante diz assim:

Tinha acabado de me dar conta: todas eram iguais. Figuras


perfeitamente moldadas em suas vestimentas e cortes de cabelo.
Todas falavam com o tom de voz ligeiramente agudo e amaciado e
fingiam frivolidade, enquanto em seus olhos eu procurava suas almas.
Olhei para mim. Percebi que era uma versão caricata e disforme
dessas mulheres que sequer tinha certeza que existiam. Procurei por
todos os lados uma saída [...] Olhei vacilante para o grande papel
em branco que era poder ser qualquer coisa que não um manequim.
Desenhar a mim mesma livre. Sem saber o que fazer, voltei para a
caixa e tentei colar a porta, mas ela não encaixava mais. (Texto com
pequenas alterações gramaticais).
Nessa mesma dinâmica, um participante – cujo encontro se deu com a obra
Parede da Memória (1994-2015) de Rosana Paulino (figura 2) – inventou que
aquela exposição era sobre sua própria família, que tentava recuperar sua
ancestralidade. A obra Parede da Memória é uma instalação de patuás nos quais
se registram fotos antigas de famílias negras, com intervenções de aquarela e
bordados. Nela, Paulino faz uma crítica à falta de representação negra nas artes
visuais, acentuando o modo racista como a sociedade brasileira se constitui,
invisibilizando a população negra. Esses elementos geraram muitos debates nas
oficinas, e foi interessante notar que, quando resolvemos ler as informações
dispostas no verso da imagem – sobre a autora e a obra –, elas se aproximavam
muito da história inventada pelo participante da oficina.

FIGURA 2 _
Detalhe da obra Parede da Memória (1994-2015), de Rosana Paulino

374
OFICINAS ARTÍSTICAS NA PERIFERIA:
PRÁTICAS EDUCATIVAS PARA APRENDER E AFETAR O CORPO COLETIVO

Fonte: Paulino (2018).


Houve, contudo, outro registro muito diferente que afetou o grupo. Uma
participante escolheu uma obra abstrata para criar sua história. Tratava-se do
quadro Ascensão definitiva de Cristo (1932), de Flávio de Carvalho (figura 3).
Ela contou que viu na obra, sem ler o título e as informações, a imagem do
seu subconsciente. Visivelmente emocionada, ela disse que aquilo era, para o
mundo, algo confuso, incompreensível e até impreciso. Para ela, entretanto,
era uma tentativa de entender a si mesma.

CURRÍCULO E ESTÉTICA DA ARTE DE EDUCAR


FIGURA 3 _
Obra Ascensão definitiva de Cristo (1932), de Flávio de Carvalho

375

Fonte: Carvalho (1932).


Essas experiências com obras diferentes – uma fotografia, uma instalação e uma
pintura – mostram que o encontro com a arte cria possibilidades, explora uma
vida possível, trama uma existência potente. Entendemos, a partir dessa dinâmica,
que a arte não pertence ao artista que a criou, não está presa ao contexto em que
foi criada, não se reduz a explicações cronológicas ou aos significados. Ela é,
antes, um território de sensibilidades estéticas, uma composição que pode nos
afetar.

Seguindo com nossas experimentações coletivas, realizamos uma das oficinas


que mais movimentou os participantes: a de colagens (figura 4). Ela foi guiada
pela colagista capixaba Alice Kiefer, que nos ensinou que a colagem é uma
técnica artística e consiste em colar algum material – recorte de revista, retalhos
de roupas, papel, madeira, objetos, entre outros – numa superfície qualquer.
Nesse sentido, entendemos a colagem como uma forma de ilustração. Na
ocasião dessa oficina, espalhamos dezenas de revistas, cola, papéis coloridos e
outros materiais para nos desafiar a fazer. Todos sentiram uma imensa liberdade
de criar diante dos incentivos da artista e tivemos um momento muito prazeroso.
376
OFICINAS ARTÍSTICAS NA PERIFERIA:
PRÁTICAS EDUCATIVAS PARA APRENDER E AFETAR O CORPO COLETIVO

FIGURA 4 _ Foto da oficina de colagens

Fonte: Acervo pessoal da pesquisadora.


O modo como a oficina foi conduzida nos impressionou, porque a artista em
nenhum momento fez um tutorial ou aplicou um passo a passo de como fazer
tal arte. Apenas se sentou no chão junto com os participantes, falou brevemente
sobre sua trajetória e apresentou algumas possibilidades, logo nos convidando a
mergulhar nas próprias produções.

Alguns participantes, de imediato, sentiram medo de arriscar, repetindo,


continuamente, que não sabiam fazer, que não conseguiriam elaborar algo

CURRÍCULO E ESTÉTICA DA ARTE DE EDUCAR


artístico, que não tinham habilidade com a tesoura. Muitas vezes, eles pediram
uma direção mais explícita sobre o que deveria ser feito na atividade. Quando isso
acontecia, a artista se sentava ao lado deles e apenas apresentava possibilidades.
Ela não assumia o controle e sequer fazia por eles. A dinâmica, ali, era outra. Ela
perguntava qual história eles gostariam de contar com a colagem, abria as revistas,
sugeria alguns caminhos, dava ideias e nos incentivava a procurar, sozinhos,
imagens com as quais nos identificássemos. Sua intenção era que seguíssemos a
nossa própria trajetória na composição daquela obra, aproveitando o processo e
sem cobranças sobre o resultado.
377
Essa postura da artista nos lembra que o processo de aprendizado tem uma
dimensão de imprevisibilidade e algo de indômito. Ainda que a pedagogia
tradicional, como indica Silvio Gallo (2012), coloque o processo educativo
numa perspectiva científica na qual o aprendizado é, supostamente, controlado,
ele acontece singularmente com cada um de nós. O processo de aprendizado se
dá a partir de encontros, por isso, muitas vezes nós o vivemos sem nos dar conta
dele. É impossível medir os movimentos de aprendizagem, pois no aprendizado
o objetivo não é imitar. Conforme indica Gallo, não se aprende fazendo como
alguém; mas sim fazendo com, fazemos juntos, mas sempre da nossa maneira.
Foi exatamente isso que presenciamos na oficina de colagens e na ação da
oficineira Alice Kiefer.

Como, desde o início, apostamos na experiência de compor com arte, uma das
oficinas realizadas foi de elaboração de zines, também guiada por João Paulo
Rocetti. Segundo ele, as zines são uma espécie de livreto ou revista; publicações
independentes, autônomas, de baixo custo e fácil elaboração. De acordo
com Omar Rico (2017), as zines são publicações alternativas que surgiram da
necessidade dos artistas de se autopublicarem com liberdade de expressão e de
não dependerem do mercado editorial para divulgação e distribuição do material
artístico. Justamente por isso, geralmente as zines exigem pouca técnica e baixo
investimento financeiro, já que não são produzidas de modo industrializado, ou
seja, a confecção usa técnicas artesanais, lançando mão de recursos acessíveis,
como fotocopiadora, costura manual ou com grampeador, por exemplo. As
zines abarcam, ainda, vários estilos de publicação: divulgação de bandas e de
artistas, notícias sobre quadrinhos, desenhos, poesias, histórias eróticas, diários
de fotografia, histórias autobiográficas, entre muitos outros. Grande parte das
publicações em forma de zine têm, inclusive, certo caráter contestatório e
militante, uma “ligação constante com movimentos anarquistas, ambientalista,
de gênero, ou que manifestam algum tipo de reivindicação social” (RICO, 2017,
p. 110).

Enquanto experiências literárias, as zines costumam ser marcadas pelo uso


subversivo da linguagem. Por se tratar de produções autônomas, elas não estão
preocupadas em utilizar a norma culta da língua. Distantes das produções
378
consideradas como cânones, elas se apresentam como uma forma de literatura
cotidiana, marginal, que provoca em nós o entendimento de que, assim como
OFICINAS ARTÍSTICAS NA PERIFERIA:
PRÁTICAS EDUCATIVAS PARA APRENDER E AFETAR O CORPO COLETIVO

nas outras manifestações artísticas, todos estamos autorizados a produzir. A


escolha por confeccionar as zines em uma das oficinas se deu, principalmente,
porque apostamos, como Rico (2017, p. 109), na “capacidade dos indivíduos de
criar as suas próprias narrativas, de gerar conhecimento, tomando por fonte de
inspiração o próprio cotidiano, subjetivando-se”.

Compreendemos, portanto, que as zines comportam possibilidades para romper


com as lógicas tradicionais de fazer arte. Estamos acostumados com a ideia de
que a obra deve ser um material grandioso, perfeito, bem acabado, elaborado a
partir de muitos recursos e, por vezes, padronizado. A zine é, diferentemente, um
material da ordem da simplicidade e do possível. Sua formatação, seu processo
de produção e as variadas formas em que se apresenta nos ensinam que não
precisamos ter acesso a materiais rebuscados ou recursos. Basta o desejo de
produzir, de se produzir a partir dos materiais disponíveis.
Durante a confecção das zines, Rocetti nos ensinou algumas das técnicas de
fabricação. Depois disso, dispusemos os materiais (folhas brancas e coloridas,
canetas, lápis de cor) no chão e convidamos cada um para criar a sua, com
uma temática livre, que poderia ter ou não relação com aquelas que estávamos
debatendo. O clima naquele dia foi agradável. Todos estávamos, mais uma vez,
juntos, conversando sobre diversos assuntos enquanto criávamos, concentrados
em fazer nosso material. No final, cada um apresentou o que havia produzido e

CURRÍCULO E ESTÉTICA DA ARTE DE EDUCAR


vimos aparecer zines com diversos temas. Uma delas ensinava como fazer tofu
e estava cheia de reflexões sobre veganismo e críticas à exploração ambiental;
outra zine fez um registro da paixão pelo futebol; houve uma de ode ao cérebro;
uma falou sobre os limites que a sociedade impõe ao corpo; outra teve o tema
corpo coletivo; uma sobre corpo como um comum; e tivemos, finalmente, uma
zine ilustrada sobre transplante de mentes. Essa variedade mostra que o processo
de confeccionar a zine toca, como intuiu Rico (2017, p. 113), nas experiências
subjetivas e pode “ser uma forma de pesquisa intuitiva sobre as travessias ao
longo da vida”. Essa liberdade para fabricar a zine “remete à potência criadora
de cada indivíduo” (RICO, 2017, p. 117). 379

Além de zines individuais, também utilizamos as produções artísticas


confeccionadas durante os encontros para compor uma zine coletiva. Esse
material é a expressão das vivências que tivemos juntos em nossos encontros.
No primeiro momento, pensamos que ele seria apenas um registro dos processos
criativos em artes, uma espécie de exposição das artes feitas pelos participantes.
Porém, para além disso, ele se transformou também em um pequeno compilado
de lições que aprendemos nesse processo. Resolvemos chamar nossa zine
coletiva de Um corpo em comum: lições que aprendemos em oficinas na Varal7.
Pode-se dizer que, com essa zine, elaboramos um guia de como fazer oficinas,
mas não no sentido de ser um manual para conduzir os procedimentos, ser
um roteiro ou propor um passo a passo para reproduzir nossa prática. Nossa
zine coletiva segue, antes, as marcas que trouxemos nos corpos por conta dos
encontros, e pode, por isso, inspirar outras práticas educativas. Desse modo,

7 Este material está disponível em formato físico na biblioteca do IFES campus Vitória e na sede da Varal. Em formato digital (e-zine),
pode ser encontrada no site do PPGEH, na seção de produtos educacionais. Disponível em: https://ppgeh.vitoria.ifes.edu.br/index.
php/producao-academica
além de incentivar a potência singular, como se vê nas zines individuais, também
nos perguntamos o que podemos enquanto corpo coletivo. Podemos criar outras
formas de agir, sentir, pensar ou de estar no mundo? O que podemos compor
juntos? Essas perguntas rondaram nossos corpos durante o percurso da pesquisa,
e apostamos em colocar os participantes não como objetos de estudos, mas
sim como componentes de sua construção. Optamos, portanto, por lançar Um
corpo em comum: lições que aprendemos em oficinas na Varal com autoria
coletiva, englobando todos os participantes das oficinas.

Fazer arte: possíveis do corpo comum


Em tantos momentos nos ocorreu o anseio de qual conteúdo tratar nas oficinas.
E não temos dúvidas de que muitos conteúdos foram abordados, sejam eles
da filosofia, da história, das ciências sociais, dos estudos sobre a cultura ou de
outras áreas. Ao mesmo tempo, esses conteúdos foram tratados de forma aberta,
sujeita a interferências e incômodos expressos em nossos encontros. Tentamos
380
constituir uma pedagogia do comum, em que, para além da cognição, o aspecto
OFICINAS ARTÍSTICAS NA PERIFERIA:
PRÁTICAS EDUCATIVAS PARA APRENDER E AFETAR O CORPO COLETIVO

mais potente foi exercer uma educação que visa à relação dos corpos e como
eles se afetam nessa relação. Ou melhor, buscamos criar, em conjunto, um
espaço onde conhecimento e afeto operassem simultaneamente. Na companhia
de Luiz Givigi (2019), apostamos em um ambiente de aprendizado mútuo, no
qual a construção do conhecimento se dá no plano afetivo de composição dos
corpos. Nessa composição, o conhecimento aumenta a potência de agir e a
capacidade de inteligir, e isso se passa em um plano comum.

Nós aprendemos e ensinamos de maneiras diversas e, muitas vezes, inesperadas:


com a convivência, com a presença ou com as paixões. O aprender é,
simplesmente, da ordem do inteligível. O aprendizado, na verdade, se relaciona
mais com o sensível. Aprender é um movimento com o corpo todo, um movimento
na sensibilidade, um acontecimento encarnado, singular, inventivo e demanda,
como indica Gallo (2012, p. 6), “presença, demanda que o aprendiz nele se
coloque por inteiro. E exige relação com o outro. Entrar em contato, em sintonia
com os signos é relacionar-se, deixar-se afetar por eles, na mesma medida em
que os afeta e produz outras afecções”. Sentir e pensar são tão unidos quanto
mente e corpo ou teoria e prática. Nesse sentido, bell hooks (2013) afirma que,
em contextos educativos, subverter a cisão entre corpo e mente significa estar
presente por inteiro no processo de ensinar e aprender, permitindo, assim, que
a sensibilidade nos sirva como guia. Trata-se de trazer a paixão para o processo,
de não o reduzir à transmissão de informações. Isso proporciona “aos alunos
modos de saber que lhes permitam conhecer-se melhor e viver mais plenamente

CURRÍCULO E ESTÉTICA DA ARTE DE EDUCAR


no mundo” (HOOKS, 2013, p. 257).

A arte coloca em risco a concepção que temos de nós mesmos e nos ajuda a
escapar do corpo disciplinado, moldado e limitado. Ela nos chama à invenção e
à reinvenção constante de nós (ANDRÉ, 2013). Desse modo, o aprendizado por
meio da arte se relaciona com a vida, pois ela pode nos provoca a ultrapassar
os limites que nos constituem, nos inspira a buscar uma visão singular que foge
dos discursos totalizantes. A arte movimenta afetos e sensações que fazem a
matéria vibrar (SABINO, 2016). Em nossas oficinas, a arte apareceu em meio
a discussões sobre várias temáticas e foi entrelaçada por elas. Acreditamos,
381
portanto, que traçamos um modo de fazer arte como uma experiência de vida,
ética, estética, política e educativa.

Com isso, compreendemos que as criações e inventividades são resistências


corpóreas, que atuam desde os espaços educativos até às ruas da periferia.
As oficinas artísticas que fizemos no Território do Bem foram um modo de
experimentar essa potência dos encontros entre arte e educação, aconteceram
para compartilhar vivências, afetos e não para recair numa postura salvacionista,
como se estivéssemos “levando a arte” para o território. A arte já está ali de
diversas formas, nas pichações dos muros, na música das casas, nos blocos de
carnaval da comunidade, enfim, esparramada por todos os lugares. Nós não
ensinamos a fazer ou traçamos como objetivo compreender a arte, apenas
montamos um espaço de aprendizado marcado por limites, mas, sobretudo,
pela abertura de outros possíveis para a educação artística.

Para Alfredo Veiga-Neto (2019, p. 22) o campo da educação está tomado por algo
como uma sacralização pedagógica, quer dizer, alguns educadores, conduzidos
por certezas absolutas e caminhos rígidos, se tornaram “militantes sombrios do
pensamento único e totalizante”, estando imersos na “lastimável celebração das
verdades únicas anunciadas pelos arautos que arrogam a si a tarefa de ‘salvar
a Educação’ e com isso ‘salvar o Mundo’”. Para nós, diferente disso, as oficinas
com arte tiveram a função de descobrir e inventar possibilidades de mundo,
rascunhar modos de existência, aumentar a potência de si e do outro. Foi um
espaço de sensibilidade e de experimentação de vida. Conforme indica Peter
Pál Pelbart (2014), no cruzamento entre modos de existência diversos, algo novo
pode surgir e ser gestado. Por isso, escolhemos praticar arte em conjunto, dando
espaço para multiplicar as singularidades. Nosso pequeno guia coletivo, a zine
Um corpo em comum: lições que aprendemos em oficinas na Varal, pode servir
para que outros espaços, semelhantes e diferentes daquele construído por nós,
possam ser provocados e colocados em prática, realçando as potências políticas
e inventivas dos corpos no contato com a arte e com os espaços educativos que
transbordam a dicotomia do aprender-ensinar.

382
OFICINAS ARTÍSTICAS NA PERIFERIA:
PRÁTICAS EDUCATIVAS PARA APRENDER E AFETAR O CORPO COLETIVO
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SOLER, Rodrigo Diaz de Vivar y; KAWAHALA, Edelu. A potência de viver:
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2017. Disponível em: https://bit.ly/30selvB. Acesso em: 20 jan. 2020.
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VEIGA-NETO, Alfredo (org.). Para uma vida não fascista. Belo Horizonte:
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VIGOTSKI, Liev Semionovich. A educação estética. In: Psicologia

CURRÍCULO E ESTÉTICA DA ARTE DE EDUCAR


Pedagógica. Porto Alegre: Artmed, 2003.

385
386
TÍTULO

17.
PENSANDO COM

CURRÍCULO E ESTÉTICA DA ARTE DE EDUCAR


A PRESENÇA:
CURRÍCULOS COMO
PERFORMANCES
COTIDIANAS
387

Alexandra Garcia
Allan Rodrigues
Leonardo Alburquerque
Alexandra Garcia – UERJ1
Allan Rodrigues – UERJ2
Leonardo Alburquerque – SEEDUC/RJ3

A obra de arte é um ser de sensação, e nada mais.


Deleuze (1992)

1o Ato
Cenário: Auditório de um CIEP4 no bairro de São Bento, conhecido como um
388 dos “bairros dormitórios” do município de Duque de Caxias.

O momento é o de espera entre duas peças de teatro, estudantes de várias tur-


PENSANDO COM A PRESENÇA: CURRÍCULOS COMO PERFORMANCES COTIDIANAS

mas se ajeitam nas cadeiras do auditório aguardando a próxima apresentação,


os performers-estudantes, do terceiro ano do Ensino Médio, estão espalhados
na plateia entre os presentes. Ao som de “Canção do Sal” na voz de Elis Regina
que toca no velho aparelho de som da escola, os performers aguardam o final
da música. Agora sim! A música termina e a primeira performer-estudante se
levanta lendo o poema de Bertolt Brecht – Perguntas de um trabalhador que lê 5:

1 Professora Associada da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (FFP/PPGEDU e PROPEd-UERJ) Procientista. Jovem Cientista
do Nosso Estado (JCNE-FAPERJ). Líder do Grupo de Pesquisa “Diálogos Escolas-Universidade: Processos Formativos, Currículos e
Cotidianos”-CNPQ. E-mail: alegarcialima@hotmail.com

2 Doutorando em Educação pelo Programa de Pós Graduação em Educação – Capes. Membro do grupo de pesquisa: “Diálogos
Escolas-Universidade: Processos Formativos, Currículos e Cotidianos”. Email: allancr@id.uff.br

3 Mestre em Educação – UERJ (FFP/PPGEUD) e Professor da Secretaria Estadual de Educação- RJ. Membro do Grupo de pesquisa:
Diálogos Escolas-Universidade: Processos Formativos, Currículos e Cotidianos”. Email: albuleo@yahoo.com.br

4 Sigla pela qual são conhecidos os Centros Integrados de Educação Pública, criados durante o governo de Leonel Brizola no estado
do Rio de Janeiro e projeto do antropólogo Darcy Ribeiro.

5 Bertold Brecht, Poemas (1913-1956), Brasiliense, São Paulo, 1986, p. 167


·1ª estudante (tom de voz enfático):

“— Quem construiu a Tebas de sete portas?


Nos livros estão nomes de reis.
Arrastaram eles os blocos de pedra?
E a Babilônia várias vezes destruída –
Quem a reconstruiu tantas vezes? Em que casas
Da Lima dourada moravam os construtores?

CURRÍCULO E ESTÉTICA DA ARTE DE EDUCAR


Para onde foram os pedreiros, na noite em que a Muralha
da China ficou pronta?
A grande Roma está cheia de arcos do triunfo.
Quem os ergueu? Sobre quem
Triunfaram os Césares? A decantada Bizâncio
Tinha somente palácios para suas habitantes? Mesmo na
lendária Atlântida
Os que se afogavam gritaram por seus escravos
Na noite em que o mar a tragou.
389
O jovem Alexandre conquistou a Índia.
Sozinho?
César bateu os gauleses.
Não levava sequer um cozinheiro?
Filipe da Espanha chorou, quando sua Armada
Naufragou. Ninguém mais chorou?
Frederico II venceu a Guerra dos Sete Anos.
Quem venceu além dele?
Cada página uma vitória.
Quem cozinhava o banquete?
A cada dez anos um grande homem.
Quem pagava a conta?

Simultaneamente outras moças e rapazes, estudantes da turma, se levantam no


meio da plateia e começam a entregar cartões de visita. Na entrega do primeiro
cartão, o espanto aparece no rosto de quem o recebeu ao ler o anúncio:
“Pedreiro – faço serviço de obra em geral. Qualquer coisa é só
chamar no zap!”

Outro estudante entrega o cartão onde se lê:

“Manicure e Pedicure – atende em casa”.

A performance continua com a leitura de um segundo poema, enquanto outros


estudantes da mesma turma continuam a entregar cartões. São vinte integrantes
de uma turma de terceiro ano do Ensino Médio entregando cartões onde se leem
a oferta de advogados, garotas de programa, trabalhos espirituais para trazer a
pessoa amada, mecânico, pintor, dentre outros serviços ofertados cotidianamen-
te nas ruas da cidade. Enquanto isso...

· 2º estudante com voz empostada:

“— As pulgas sonham em comprar um cão, e os ninguéns


com deixar a pobreza, que em algum dia mágico de sorte
chova a boa sorte a cântaros; mas a boa sorte não chova
390 ontem, nem hoje, nem amanhã, nem nunca, nem uma chu-
vinha cai do céu da boa sorte, por mais que os ninguéns a
PENSANDO COM A PRESENÇA: CURRÍCULOS COMO PERFORMANCES COTIDIANAS

chamem e mesmo que a mão esquerda coce, ou se levantem


com o pé direito, ou comecem o ano mudando de vassoura.

Os ninguéns: os filhos de ninguém, os donos de nada.


Os ninguéns: os nenhuns, correndo soltos, morrendo
a vida, fodidos e mal pagos:
Que não são embora sejam.
Que não falam idiomas, falam dialetos.
Que não praticam religiões, praticam superstições.
Que não fazem arte, fazem artesanato.
Que não são seres humanos, são recursos humanos.
Que não tem cultura, têm folclore.
Que não têm cara, têm braços.
Que não têm nome, têm número.
Que não aparecem na história universal, aparecem
nas páginas policiais da imprensa local.
Os ninguéns, que custam menos do que a bala que os
mata.”
(Eduardo Galeano – Os ninguéns6.)

Ao final da leitura do segundo poema todos voltam aos seus lugares e se sentam

CURRÍCULO E ESTÉTICA DA ARTE DE EDUCAR


em silêncio para aguardar a próxima apresentação de teatro. Nas mãos ficam os
cartões, nos rostos algumas interrogações. A colega agora é também manicure,
o pintor será alguém que está ali? Aquele tempo da espera não é mais o mesmo.
Alguns risos e comentários, aos poucos, rompem o silêncio imediato à surpresa
do movimento que ali se deu até que a próxima apresentação se inicia. Com o
ordenamento de gestos e corpos mais esperado – palco e plateia; espectadores e
atores – o rebuliço arrefece. Segue o baile! Digo, o dia de aula.

391
Puxando a prosa:
Performances cotidianas em inscrições curriculares
O corpo, o som, a voz, os gestos, o inesperado, o olhar, uma imagem, fragmentos
de pensamentos que se inscrevem nos espaçotempo das escolas e inscrevem os
currículos pela inevitável presença (GUMBRECHT, 2010), O texto dialoga com
fragmentos de uma pesquisa realizada com estudantes dos três anos do ensino
médio na disciplina de sociologia em duas escolas públicas: CIEP 201 Aarão
Steinbruch, localizado no bairro de São Bento, município de Duque De Caxias
– RJ; CIEP 208 Alceu Amoroso Lima, localizado no bairro de Jardim Primavera,
também no município de Duque De Caxias – RJ7. Essa pesquisa compartilhou do
entendimento dos sujeitos da escola como praticantes dos cotidianos, com base
em Michel de Certeau (1994) e defende, na trilha das abordagens de pesquisa

6 GALEANO, E. O livro dos abraços. São Paulo: L&PM, 2005, p. 71.

7 Os dois CIEPS são localizados em bairros que são próximos e com características parecidas, ambos periféricos da cidade do Rio
de janeiro e do próprio município em que estão localizados – Duque de Caxias.
pós-qualitativas em Educação, que tais sujeitos são colaboradores da pesquisa,
posto que sem o envolvimento ativo desses praticantes, o que se teceu como
processo e como compreensões não seria possível.

As compreensões tecidas no texto são, para nós, ensaios no sentido do que pro-
põe Jorge Larrosa (2004), “o ensaiar e ensaiar-se” que recusa o mero movimento
de repetição ou de treino. Sem a intenção de que o texto soe como pensamento
acabado experimentamos o ensaio como pensamento-escrita na busca de senti-
dos menos colonizados pelas lógicas da racionalidade cognitiva instrumental ao
dialogarmos com os currículos produzidos. Busca-se com os praticantes, jovens
do ensino médio de uma escola pública do Estado do Rio de Janeiro, habitar o
espaçotempo escolar com inscrições de currículo desapegadas do velho para-
digma cognitivo. O “Velho demônio do conhecimento” (COSTA, 2011, p. 290)
obsessor do currículo.

Entendemos que além dos domínios restritos da cognição e da produção de


sentidos os currículos transbordam produções que podem ser percebidas como
392 culturais e como produção de presença. São esboços, gestos, interações pouco
redutíveis ou depuráveis a um sentido posto como intencionalidade interpretá-
PENSANDO COM A PRESENÇA: CURRÍCULOS COMO PERFORMANCES COTIDIANAS

vel. Efêmeras e ocasionais, integram as aprendizagens e processos formativos


sem que possam ser classificáveis e controláveis por referenciais curriculares ou
outros dispositivos. Com esse texto temos a intenção de perceber essa presen-
ça, sem pretensão de evidenciá-la ou interpretá-la, pensando com ela currícu-
los como performances. Pensamos essa presença na esteira das colocações de
Gumbrecht (2010), posto que segundo o autor a experiência estética das pessoas
no mundo, de sua interação com o mundo, traz o componente da presença e
não somente do sentido. Para nós essa experiência é ordinária (CERTEAU, 1994)
e está nas escolas e currículos na medida em que faz parte da invenção coti-
diana dos praticantes. Pensar currículos a partir dessa invenção que tanto é de
si quanto do mundo, para nós é pensar currículo como performance que se faz
com esse componente de presença que a dimensão estética favorece perceber
e que favorece confrontar sentidos previamente postos, sobretudo quando os
sentidos reiteram a hegemonia.
A narrativa inicial é uma passagem do processo de pesquisa e criação8 em con-
junto com as estudantes e estudantes do terceiro ano do ensino médio para pro-
dução e apresentação da performance no CIEP numa atividade em que outras
turmas apresentariam peças de teatro. Uma estudante preocupada com o que
deveria pesquisar, sobre a proposta feita pelo professor de sociologia e que tinha
como tema as ocupações oferecidas por trabalhadores no trajeto até a escola,
sugeriu copiar textos de anúncios de garotas de programa colados em orelhões

CURRÍCULO E ESTÉTICA DA ARTE DE EDUCAR


da companhia telefônica. A conversa com a turma levantou a questão sobre
como se apropriar desses anúncios e como ela se sentiria em apresentar sua
narrativa sobre tal ocupação na performance. Essa conversa já nos permitiria
cogitar um movimento de produção curricular que incluiu trabalho, profissão,
exclusões sociais, gênero, moral, sexualidade, arte, ética e talvez algo mais que
não nos ocorre elencar. Isto apenas para levantar o que circula no movimento de
produção curricular envolvido em poucos minutos de prosa entre um professor
e os estudantes de uma turma.

O texto é uma composição que se faz a partir do diálogo com a dimensão po-
393
lítica e artística das inscrições curriculares que os praticantes esboçam através
da invenção de si. Chamaremos essa dimensão de artepolítica, fazendo uso do
neologismo como recurso ao juntar as palavras e seus possíveis sentidos. Propõe
e acompanha intervenções que acionam os corpos, as vozes, o silêncio e o ba-
rulho, as imagens em fotografias e as escritas de si no espaçotempo da escola em
que os estudantes inscrevem suas biografias vividas-inventadas sobre as tramas
curriculares em performances que expõem e denunciam a invisibilidade das
identidades e de suas presenças na escola e no currículo. Cabe lembrar um tre-
cho frequentemente citado do pensamento de Certeau (1994) pelo tanto que ele
nos permite intensificar nossa percepção dessas artes de inventar-se que emerge
com as narrativas e que nos soa como a presença das criações que se impõem ou
que são desviantes das conformações, centralizações e sentidos hegemônicos.
Insistimos que frente à

8 Pesquisa realizada por um dos autores, professor de sociologia das escolas citadas, no contexto das propostas do Grupo Diálogos
Escolas-Universidade: Processos Formativos, Currículos e Cotidianos
[...] uma produção racionalizada, expansionista além de centraliza-
da, barulhenta e espetacular, corresponde outra produção, qualifica-
da de ‘consumo’: esta é astuciosa, é dispersa, mas ao mesmo tempo
ela se insinua ubiquamente, silenciosa e quase invisível, pois não
se faz notar com produtos próprios, mas nas maneiras de empregar
os produtos impostos por uma ordem econômica dominante. (CER-
TEAU, 1994, p. 39).

Escolhemos trabalhar com a ideia de performance para falar de currículo nos uti-
lizando pensando a partir da invenção e escrita de si (FAEDRICH, 2013). Tendo
por base o pensamento da autora, não buscamos a escrita de si como representa-
ções, relatos retrospectivos de alguma coisa ou dos sujeitos, que poderiam estar
ligados a uma ideia de autobiografia. Estamos pensando a partir da criação de
narrativas como autoficções, escritas do e no tempo presente, atravessadas pela
ambiguidade entre real e ficcional, para multiplicar percepções com os cotidia-
nos da periferia. Cotidianos que ao serem trazidos e reescritos pelos estudantes
nas performances expressam sua dimensão de artepolítica. Embora tratemos de
uma atividade de performance intencional, entendemos que esse movimento é
394 constitutivo dos cotidianos e do que compõe e mobiliza os currículos e as inven-
ções de si. Todavia, afirmamos que o sentido de arte, tal como apropriado por
PENSANDO COM A PRESENÇA: CURRÍCULOS COMO PERFORMANCES COTIDIANAS

esse texto, não se caracteriza por uma disciplina ou um conjunto de sentimen-


tos externos ao que é belo, mas, antes de tudo, um conjunto de afectos que os
praticantes experimentam e com o qual se compõem e compõem sentidos e vi-
vências. “É de toda arte que seria preciso dizer: o artista é mostrador de afectos,
inventor de afectos, criador de afectos, em relação com os perceptos ou visão
que nós dá. (DELEUZE; GUATTARI, 1992, p. 227-228)

Aqui cabe explicitar o que pensamos como artepolítica enquanto uma poética
que opera como criação artística, como arte e como política enquanto aspectos
inseparáveis. Assim, a criação de uma narrativa na performance não se pretende
política, mas, inevitavelmente toca em questões políticas, culturais e mesmo
epistemológicas. Quando um estudante propõe “Vou escrever [no cartão de visi-
ta] os anúncios de feitiços para trazer a pessoa amada”, esse fazer como trabalho
e forma de sustento para alguns se refere a uma ocupação que envolve saberes,
ritos e práticas de trabalhos religiosos. Quando no interior de uma produção
curricular esse trabalho é assumido como uma atividade produtiva, um trabalho
exercido para atingir determinado fim por isso ofertado por anúncios escritos
nos murros que delimitam a linha do trem, essa produção assume uma posição
política em que aqueles saberes e aquele fazer são compreendidos como exis-
tentes e legítimos.

O tempo das intervenções realizadas com os estudantes e de nosso diálogo


com suas ressonâncias é o do acontecimento, um momento oportuno que
move nossas interrogações em torno da temática desse texto. Por isso, um dos

CURRÍCULO E ESTÉTICA DA ARTE DE EDUCAR


momentos com os quais conversamos se passou no ano de 2019, no que apren-
demos a reconhecer como escola tanto no espaço físico quanto nas práticas
culturais mais comuns que levam a reconhecer um espaço como escolar. O ou-
tro momento se passou durante a Pandemia do novo corona vírus – COVID-19,
portanto nas experiências singulares que professores e estudantes produziram
como escolares mediados pelo uso de tecnologias no confinamento que reti-
rou os corpos do espaço físico da escola, mas que, talvez, não tenha retirado a
escola de nossos corpos.

A performance narrada no início desse texto trouxe para o espaçotempo da es- 395
cola cartões de visitas contendo a pesquisa dos alunos e alunas sobre os servi-
ços de trabalhadores dos lugares em que eles residem e transitam diariamente.
Alguns desses serviços oferecidos por estudantes daquela escola. A proposta
buscou perceber e pensar com os estudantes as práticas de trabalhadores urba-
nos, como por exemplo, pedreiros, manicures, padeiros atendentes de pequenos
comércios, dentre outras ocupações, que são trazidas por eles para a escola en-
quanto sujeitos que moram, trabalham e estudam numa área periférica da região
metropolitana do Estado. Também para perceber, no transitar ordinário os traba-
lhadores que ali residem e talvez até que estudem naquela escola, comumente
invisibilizados pelo correr da vida. Nesse sentido, as aulas eram encontros em
que se buscava problematizar as relações que perpassam ser estudante, trabalha-
dor, morador daquela região e a (in)visibilidade das vidas de sujeitos da periferia
e de suas trajetórias no currículo. A performance como um ato de marcar com
pequenos pedaços de papel onde se liam nomes, ocupação e contato consistiu
num ato de marcar a presença dessas pessoas ali. Trabalhar, morar na periferia e
estudar não são, em geral, percebidos como resultante de jogos políticos e cultu-
rais históricos que vão deixando para as pessoas os lugares sociais e ocupações
no trabalho que restam e não necessariamente são escolhas. Muitas vezes, as
não escolhas resultando de exclusões perpetuadas. Prestar pequenos serviços
como forma de garantir algum sustento a partir de um certo momento da vida,
principalmente ao término do Ensino Médio é algo comum entre os estudantes
dessa e de outras tantas escolas públicas.

Buscando compartilhar essas presenças, entendemos narrar “currículos desim-


portantes” que se tecem com esses praticantes. Defendemos que os méritos ou
importâncias dessas produções estão nas tessituras singulares, culturais e de cer-
to modo efêmeras que as narrativas autobiográficas permitem cogitar, posto que
tais narrativas se inscrevem com os saberes e vivências das jovens trajetórias dos
estudantes que conosco compõem esse texto. São seus desejos, suas auto-ficções
e criações que importam e mobilizam produções nos currículos. Pensamos nas
produções curriculares que tais como as narradas nesse texto se deslocam de ten-
dências de centralização curricular e que podemos imaginar como provocações
ao colonialismo da tradição curricular. Sugerem, assim outros modos de habitar
396
o mundo e narrar o mundo desde as práticaspolíticas9 curriculares cotidianas.
Não falamos de um currículo para a escola pública, mas em currículos inscritos
PENSANDO COM A PRESENÇA: CURRÍCULOS COMO PERFORMANCES COTIDIANAS

por essa escola pública. Nesse sentido, a ideia de currículo aqui proposta dialoga
com entendimento de currículo menor, inspirado pelo encontro entre o pensa-
mento deleuziano e as pesquisas com os cotidianos para propor que

a ramificação política do que estamos aqui denominando como cur-


rículo menor, implica olhar para os processos e espaços nos quais
nos fazemos professores como espaços de debate, de democratização
das relações entre os saberes, de viabilização de novas conexões e
entendimentos. Em síntese, espaço do complexo e que só pode ser
compreendido com uma política do cotidiano, repleto das relações
que nele se estabelecem. Esse currículo menor como os processos
e sentidos que alimentam os sentidos de docência é produzido nas
negociações e táticas de praticantes (CERTEAU, 1994) que usam de
modos diferentes, e criam diversas possibilidades de lidar com a mul-
tiplicidade do mundo real. (GARCIA; REIS, 2014, p. 102)

9 A noção de práticapolitica foi criada por Nilda Alves (2010) para pensar a indissociabilidade entre essas palavras posto que enten-
de que todas as práticas são políticas e todas as políticas são práticas.
Conversamos nesse texto com as produções a partir de espaçostempos de perfor-
mances que apresentam momentos distintos de vivências na escola. As conver-
sas são mobilizadas com essas vivências no contexto dos estudos e discussões
do grupo Diálogos escolas-universidade.

Os trabalhos podem ser caracterizados como performances que aconteceram


em momentos diferentes. A primeira delas foi uma atividade presencial com uma
turma do terceiro ano do ensino médio em uma das escolas no ano de 2019.

CURRÍCULO E ESTÉTICA DA ARTE DE EDUCAR


Naquela primeira performance, uma estudante, se apropriou da própria história
enquanto aluna de um curso de manicure e pedicure, “Vou criar meu cartão
de visita!”. Aqui a performance como narrativa de invenção de si expressa uma
forma de dilatação do presente (SANTOS, 2006), posto que torna presente um
tempo que até então poderia ser considerado como momento de espera, visto
ainda estar em treinamento no curso de manicure e pedicure. Torna esse possí-
vel presente e o trabalho como presença encarnada na estudante. Nesse tempo
vislumbrado é viável lidar também com os momentos fugidios, que podem ina-
divertidamente nos parece importar menos enquanto dimensão política, e trazê- 397
-los (os momentos fugidios) como possibilidades de reflexão e ação nos currícu-
los, mesmo que incertas. Trata-se, assim de uma aposta na incerteza posto que:

É esta incerteza que, em meu entender, ao mesmo tempo que dilata


o presente, contrai o futuro, tornando-o escasso e objeto de cuidado.
Em cada momento, há um horizonte limitado de possibilidades e por
isso é importante não desperdiçar a oportunidade única de uma trans-
formação específica que o presente oferece: carpe diem (SANTOS,
2006, p. 795).

Uma performance é em síntese um deslocamento de um ato ou objeto ordiná-


rio de sua função cotidiana para um trabalho artístico. Isso, é claro, dentro da
compreensão que permite entender esse deslocamento de função como arte e
em que se abrem esses espaçostempos, como por exemplo, quando Duchamp
desloca um mictório do seu uso funcional10. A arte contemporânea quebra a hie-

10 A Fonte, 1917/64, porcelana, altura 33,5 cm, Marcel Duchamp, Indiana University Art Museum (Eskenazi Museum of Art),
Bloomington.
rarquia de materiais e funções ordinárias e obras de arte. De algum modo expõe
que o que caracteriza essa divisão arbitrária e hierárquica se pauta e sustentan-
do pelo discurso. Dessa forma, pensamos a performance de acordo com o que
propõe Gonçalves (2004):

A performance surge, portanto, como uma manifestação artística em


que o corpo é utilizado como um instrumento de comunicação e arte
que se apropria de objetos, situações e lugares – quase sempre na-
turalizados e socialmente aceitos – para dar-lhes outros usos e sig-
nificações e propor mudanças nas formas de percepção do que está
estabelecido (p. 88).

Nos pareceu interessante pensar nesse espaço em que criação, uso e ficção se
confundem ao discutirmos as produções curriculares nas práticas produzidas
com os estudantes. Cabe esclarecer que as atividades aconteceram como pro-
posta por um dos autores desse texto que é professor de sociologia nas escolas
do estado do Rio de Janeiro com as quais o trabalho se desenvolveu. Para melhor
compreender esse exercício da performance a que pretendemos chegar, parti-
398 mos do que dizem Victorio Filho e Berino (2014):
PENSANDO COM A PRESENÇA: CURRÍCULOS COMO PERFORMANCES COTIDIANAS

Suportes vivos e cujos corpos e falas são, por sua vez, imagens mó-
veis, transitórias e transitantes de uma torrente de narrativas. Poéticas
que explicitam as redes de sentidos por meio das quais seus jovens
autores escrevem e descrevem suas vidas. Redes imagéticas em cujos
movimentos fulguram suas criações, reproduções, irrealizações, fabu-
lações e evocações, na permanente produção de suas próprias signifi-
cações, na produção de seus sentimentos de existir (p. 240).

Em passagem na qual Certeau (1994) dialoga com uma das obras de Duchamp,
o autor propõe pensar mitos que falam do encerramento nas operações de uma
escritura que se maquina indefinidamente e não encontra nunca a não ser a si
mesma. Só há saídas em ficções, janelas pintadas, espelhos de vidro. Só há bre-
chas e rompimentos escritos. São comédias de desnudamentos e torturas, relatos
“automatos” de desfolhamentos de sentidos, estragos teatrais de rostos decom-
postos. Essas produções têm um ar fantástico, não pela indecisão de um real que
mostrariam nas fronteiras da linguagem, mas pela relação entre os dispositivos
produtores de simulacros e a ausência de outra coisa. Essas ficções romanescas
ou icônicas narram que não existem, para escritura, nem entrada nem saída, mas
somente o interminável jogo de suas fabricações.

Transmutar em uma performance a atividade laboral e o ato de divulgação dos


serviços põe em movimento o viver comum com essas ocupações e como arte.
Coloca a atividade e os praticantes num lugar diferente de sua invisibilidade
corriqueira e seu fazer como algo que se distancia do laboral. Foi um ato de
transmutarmos a visão dos serviços e ocupações dessas pessoas como meras for-

CURRÍCULO E ESTÉTICA DA ARTE DE EDUCAR


mas de sobrevivência individual, trabalhar, morar na periferia e estudar não são
percebidos como resultado de decisões políticas, mas como coisas que todas
as pessoas fazem no dia-a-dia a partir de um certo momento da vida, principal-
mente ao término do ensino médio. Transmutar essas questões é dessinvibilizar e
ressignificar suas atividades laborais, a sua escola e sua moradia como algo que
surge do processo de disputas políticas, questões que são políticas porque en-
volvem as vivências coletivas desses estudantes. Também é entender como arte
o viver miúdo e comum que fervilha nas periferias urbanas sem que se perceba
sua presença no correr que movimenta a vida e os dias.
399
Consideramos que a performance inclui na dinâmica de produção curricular
cotidiana a possibilidade de deslocamento da produção de sentidos naturaliza-
dos como processo privilegiado na produção de conhecimentos (GUMBRECHT,
2010) no espaçotempo escolar. Pensando a dimensão da presença e o modo
como ela está envolvida na produção da experiência, das subjetividades e do
viver à margem ou a despeito da primazia dos sentidos, a performance se coloca
na direção dessa possibilidade de protagonismo da presença nos currículos. A
experiência estética, para Gumbrecht (2010), mobiliza “momentos de intensida-
de” a partir da epifania.

Quando pensamos, ainda, no modo como as noções hegemônicas de currí-


culo, escola e conhecimento são colonizadas pela racionalidade cognitiva-ins-
trumental da ciência e da técnica (SANTOS, 1995, p. 77), a possibilidade de
deslocamento dessa racionalidade caminha na direção da ampliação dos re-
pertórios políticos e epistemológicos necessários para identificar e enfrentar os
problemas e desigualdades que afetam os invisibilizados da história (SANTOS,
2019). Isto porque, o modelo de conhecimento no qual a tradição curricular é
pautada é herdeiro da racionalidade moderna ocidental afetando o modo como
conhecimentos que se distinguem ou se afastam daqueles validados pela ciência
moderna e pela cultura eurocêntrica são vistos (ou ignorados) em relação aos
currículos. Se consideramos as populações atendidas majoritariamente pela es-
cola pública, sobretudo nas periferias urbanas, como é o caso das escolas com
as quais trabalhamos, poderemos perceber que seus saberes e modos de viver
coincidem com o que o pensamento hegemônico invisibiliza. Nesse sentido, ex-
plorarmos com os currículos a produção de presença e aquilo que dialoga com a
racionalidade estético-expressiva e com o fazerpensar coletivo característico do
viver em comum (comunidade) – menos colonizadas pela modernidade – nos
parece necessário. Vale, aqui, resgatar essa potência da estética e da expressão
quando pensamos a produção de conhecimentos nas escolas com os seus pra-
ticantes tendo como princípio a inseparabilidade da justiça cognitiva e social
global (SANTOS, 2019).

“fora do alcance da colonização, manteve-se a irredutível individua-


lidade intersubjetiva do homo ludens, capaz daquilo a que Barthes
400 chamou jouissance, o prazer que resiste ao enclausuramento e difun-
de o jogo entre os seres humanos. Foi no campo da racionalidade es-
PENSANDO COM A PRESENÇA: CURRÍCULOS COMO PERFORMANCES COTIDIANAS

tético-expressiva que o prazer, apesar de semi-enclausurado, se pode


imaginar utopicamente mais do que semiliberto”(SANTOS, 2019, p.
76).

Também nessa direção, o questionamento da primazia do sentido a recuperação


das formas de expressão e produção do viver humano e social que emergem
com a produção de presença como propõe Gumbrecht (2010), mostra-se perti-
nente por deixar notar como os corpos, gestos e performances inscrevem sabe-
res, possibilidades e desvios nos currículos ainda que nem sempre se traduzam
em sentidos. Essas compreensões nos parecem enredar alternativas pulsantes de
vida, emancipação e de empoderamento quando pensamos a produção curricu-
lar cotidiana das escolas com seus praticantes.

Cenário: “O ano é 2020, no início do mês maio um professor do estado a quem


foi dada a tarefa de manter suas aulas por meio de ensino remoto conversa com
estudantes do 1º, 2º, e 3º anos do ensino médio sobre aquele momento de sus-
pensão imposto pela pandemia do covid-19 a partir da seguinte pergunta:
— Qual o mundo que você vê da sua Janela?

Impactado com narrativas de jovens angustiados pelo enclausuramento, propõe


que com seus companheiros diários de vida, os celulares, os estudantes mostrem
em fotos o que veem de suas janelas. As produções de praticantes que exerci-
tam, por meio da invenção de si, os caminhos e aprendizagens compartilhados
no espaçotempo escolar resultam no que ousamos chamar por currículos. Suas
narrativas corporais ou imagéticas trazidas para e pelo o cotidiano escolar, es-

CURRÍCULO E ESTÉTICA DA ARTE DE EDUCAR


boçam as criações de si sobre ações do dia a dia. Com essas criações seus cor-
pos, gestos, imagens e narrativas rasuram qualquer intencionalidade à priorística
pensada para os currículos. Em comum elas compartilham da suposta desimpor-
tância dos serviços prestados, do corpo e da presença de um franzino rapaz que
faz bicos como eletricista ou da vista de telhados em desalinho de uma janela
qualquer de uma modesta casa em que a pulsão de viver de um jovem ou uma
jovem encontra-se supostamente confinada.

Janelas que são narrativas que mostram para fora, e também, para dentro. Espie
pela janela dessa estudante: 401
Essas “desimportâncias” despercebidas pelo fazer repetitivo tornam-se “im-
portantes” quando colocadas no centro de práticas curriculares que têm como
“conteúdo” o viver em contextos cotidianos. Nesse sentido, as produções curri-
culares consistem em artespolíticas quando pensadas a partir da ideia de colocar
em movimento as coisas do mundo, essas coisas vistas como desimportantes
mesmo. São, em nossa compreensão, criações que tentam conversar com a ra-
cionalidade estético-expressiva, que como propõe Santos (2007):

[...] é por “natureza”, tão permeável e inacabada como a própria obra


de arte e, por isso, não pode ser encerrada na prisão flexível do auto-
matismo técnico-científico. O caráter específico da racionalidade es-
tético-expressiva tem sido uma das questões mais debatidas na teoria
estética. Num artigo muito influente, Norris Weitz defende veemente-
mente que a arte não é susceptível de definição e que, por isso, nem
os artistas nem os teóricos a conseguiram definir com sucesso até hoje
(SANTOS, 2007, p. 76).

Em um primeiro momento, as performances que narram o cotidiano em imagens


ou com a presença do corpo e de seus gestos podem não ser encarada como arte
402
e nem mesmo como políticas visto não reivindicarem alguma questão que possa
PENSANDO COM A PRESENÇA: CURRÍCULOS COMO PERFORMANCES COTIDIANAS

ser considerado como ato política ou entendida como arte. Nesse sentido, o que
se propõe é justamente afirmar que a dimensão política e artística já está lá, no
que as narrativas do cotidiano proposta em cada performance buscaram tornar
visível e presente. Essas dimensões simplesmente nos cercam e atravessam, com
sentidos, significações, afetos e percepções daquilo que é tido como “desimpor-
tante”, que nos constitui e tece o social.
CURRÍCULO E ESTÉTICA DA ARTE DE EDUCAR
403

Com suas janelas abertas as narrativas trazem breves ensaios, despretensiosos


pensamentos sobre o momento, o mundo, situações, hesitações... um pouco dos
modos como se inventam e inventam seus olhares para dentro e para fora de si
tendo uma câmera de celular e uma escola que se faz presente pelo contato com
um professor. Essas janelas que se abrem e mostram o que convém insinuam
sutis pistas de currículos como ensaios que se fazem com os praticantes, os pro-
fessores e estudantes.

Por sua forma de apresentação a foto seduz aquele que a observa como algo
dado ou constatação em uma realidade. Diante da foto, para aquele que vê, isso
não pode ser controlado, mas aqui podemos apresenta-la por meio do exercício
que busca estimular outros sentidos sobre si mesmos. Sendo assim, a perfor-
mance pelas janelas ainda se encontra em criação, vistos serem olhares de um
mundo em movimento. Até agora temos um, conjunto de 64 fotografias envia-
das pelas estudantes e estudantes que tiveram condições técnicas e quiseram
enviá-las. Esse conjunto de fotos foi organizado em um vídeo de 1 minuto e 49
segundos, em que as imagens foram agrupadas em uma sequência ficcional em
cinco momento: manhã, meio da manhã, tarde, tarde quase noite e noite. Dá-se
nesse ponto um deslocamento da imagem fotográfica ao ser transformada em
um vídeo de um recorte particular e configuração espaço temporal para um con-
junto de imagens que fogem ao controle inicial de cada praticante e compõem
outra narrativa por edição.

A dimensão política que a narrativa explora mobiliza com os praticantes a cria-


ção estética de si, seja por narrativas escritas, seja na produção de narrativas
imagéticas, gestuais, sonoras, ou, ainda, pela captação de seus sentidos no mun-
do a sua volta. Ensaiam misturar pela captura do instante de uma fotografia ou
pelo deslocamento do gesto de trazer a dimensão constitutiva da vida pelo traba-
lho para o cenário curricular a criação de narrativas permeadas pelo real e o fic-
cional, pela ressignificação do que é entendido por vida real, trazendo também
aspectos do ficcional dados pela relação entre os praticantes e suas histórias.

404 Pensar a performance na escola, seja a performance da qual tratamos nesse tex-
to, sejam as performances cotidianas de professores e estudantes em seus fazeres
PENSANDO COM A PRESENÇA: CURRÍCULOS COMO PERFORMANCES COTIDIANAS

comuns, é pensar nessa arte política. A performance como artepolítica cotidiana


consiste em operar e perceber o (em) movimento de nossa racionalidade estéti-
co-expressiva (SANTOS, 2007) presente em nos cotidianos. Produzir um traba-
lho de arte com as estudantes e estudantes, uma performance, requer produzir
aproximações com o cotidiano de que fazem parte, essa é uma questão política
central aos currículos. Também cabe destacar o óbvio de que essa escrita de si
se dá com um cotidiano que já está em movimento, independente da performan-
ce, da criação de narrativas e do que possa ser proposto. Assim, a artepolítica
da criação curricular que compreende invenções de si nos exige perceber que
entramos nesse movimento já estando nele.

Finalizando esse ensaio que transita pelo cotidiano escolar a partir de perfor-
mances de dois momentos distinto, antes da pandemia e durante a pandemia,
reafirmamos que a dimensão política dessas produções curriculares está na arte
dos praticantes que criam esse cotidiano em movimento. As narrativas dos cor-
pos, gestos, sons e imagens em fotografias podem, assim, ser lidas enquanto
espaço de possibilidades que mediam ações e pensamentos por meio da sua
criação. O que nos faz propor que essa escrita de si se refere ao espaçotem-
po presente que os praticantes criam ao se debruçarem sobre seus cotidianos.
Somos enquanto performer esses suportes vivos, nossos corpos e falas são as
narrativas de imagens móveis que buscam ressignificar as desimportâncias do
cotidiano. Pensar as narrativas dos praticantes em deslocamentos mobilizados
com performances, sons e imagens busca desdobramentos de uma escrita de si

CURRÍCULO E ESTÉTICA DA ARTE DE EDUCAR


permeável e inacabada como a própria arte.

405
Referências
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p. 229-243.

CURRÍCULO E ESTÉTICA DA ARTE DE EDUCAR


407
408
TÍTULO

18.
O QUE PODE A ESCOLA?

CURRÍCULO E ESTÉTICA DA ARTE DE EDUCAR


ATRAVESSAMENTOS
DO CINEMA NOS/
DOS PROCESSOS
DE INSURREIÇÕES E
RESISTÊNCIAS NOS
409

COTIDIANOS ESCOLARES

Terezinha Maria Schuchter


Fábio Luiz Alves de Amorim
Jaconias Dias Rodrigues
Terezinha Maria Schuchter (UFES)
Fábio Luiz Alves de Amorim (UNESA)
Jaconias Dias Rodrigues (SEME/SERRA)

Introdução
Não vai ter golpe! Fora Temer! Não queremos a PEC do fim do mundo! Somos
contra a reforma trabalhista! Lula livre! Mariele vive! Ele não! Abaixo a reforma
da Previdência!

É inútil resistir? O sinal está fechado para nós? Que palavras de ordem teremos
que fazer ecoar? Teve golpe. Michel Temer governou durante o período previsto.
Os investimentos na área social estão congelados e “Ele” ainda cortou as parcas
verbas previstas para a educação. As relações trabalhistas se diluíram e a preca-
410 rização das condições de trabalho está em curso. Mariele vive por meio de suas
causas, mas não está entre nós e sequer sabemos quem mandou matá-la. “Ele”
O QUE PODE A ESCOLA? ATRAVESSAMENTOS DO CINEMA NOS/DOS PROCESSOS
DE INSURREIÇÕES E RESISTÊNCIAS NOS COTIDIANOS ESCOLARES

se elegeu presidente e afirma em alto e bom som – contrariando todas as pesqui-


sas e dor de quem perdeu seus entes amados para a ditadura – que não houve
ditadura e conclamou a população a comemorar o dia 31 de março como o dia
da libertação nacional. Esse é apenas um exemplo dentre tantas outras coisas
que estão acontecendo no governo empossado em janeiro de 2019.

Continuamos – passado tanto tempo – a nos perguntar: É inútil resistir? O sinal


está fechado para nós? Que palavras de ordem teremos que fazer ecoar? O que
precisamos para que as palavras não fiquem apenas nas reverberações? Isso por-
que, segundo Belchior,

[...] Há perigo na esquina


Eles venceram
E o sinal está fechado pra nós
Que somos jovens [...]
Como diria Caetano Veloso: “alguma coisa está fora da ordem? Fora da nova or-
dem mundial?” Sentimos muito em lhe dizer, Caetano. Não. Não tem nada fora
da ordem. Tudo está acontecendo conforme o previsto. E chamamos Nando Reis
para lhe responder:

[...] O que está acontecendo?


O mundo está ao contrário e ninguém reparou
O que está acontecendo?

CURRÍCULO E ESTÉTICA DA ARTE DE EDUCAR


Eu estava em paz quando você chegou [...]
O que você está fazendo?
Milhões de vasos, nenhuma flor [...].

Milhões de vasos sem nenhuma flor. Milhões de crianças sem infância. Milhões
de adolescentes e jovens sem perspectiva de vida. Milhões de brasileiros na faixa
de 18 a 25 anos, negros, pobres, moradores de periferia e com baixa escolarida-
de sendo assassinados. Exterminados. Milhões de brasileiros vivendo da renda
do crime, do tráfico de drogas. Milhões de brasileiros sem emprego. Milhões de
brasileiros vivendo na linha da extrema pobreza. E ao mesmo tempo a concen-
411
tração da renda nas mãos de alguns poucos se acentua. Milhões sem ter o que
comer versus dezenas que vivem da acumulação desenfreada. Essa é a lógica
dominante e que se acentua no tempo presente.

Nesse contexto, pensar o que da escola? Falar o que da escola? E o trabalho


docente? Onde fica? Qual seu sentido? Seu significado? É possível manter a so-
briedade diante das circunstâncias em que vive grande parte dos nossos estudan-
tes? Como professores e estudantes são afetados por essas condições? É possível
viver? Outros mundos e outras escolas são possíveis? Os afetos tristes podem dar
lugar aos afetos alegres e potentes? As insurreições e resistências são possíveis?
Como devem se dar? Nossas demandas manifestadas em nossos gritos foram su-
cumbidas e continuam sendo sucumbidas por esse regime político e econômico
que vem se consolidando. É possível, então, resistir?

No caso brasileiro, esse regime vai se instaurando a partir da década de 1990,


quando podemos ver sendo
[...] destruído os primeiros elementos de “res publica” ou de demo-
cracia social que, com acertos e erros, começavam a ser introduzidos
pelos governos progressistas pós-ditadura. Estes tinham em sua pauta
a formação de um Estado de direito o qual, no Brasil assim como na
maioria dos países do continente sul-americano, nunca chegou de
fato a existir. Esta é a razão pela qual são os protagonistas desses go-
vernos os alvos da nova modalidade de golpe, cujo intuito é chegar
ao final do seriado com a plena instalação de um Estado neoliberal no
país [...] (ROLNIK, 2018, p. 156).

O que de antemão podemos dizer é que esse regime não se consolida apenas a
partir de transformações no campo político e econômico, mas também a partir
de transformações sociais e culturais. O simples fato de não compreendermos a
realidade de forma dicotômica já explicaria isso, ou seja, o econômico, o polí-
tico, o social, o cultural estão imbrincados, enredados. Entretanto não é só isso.
Há mais aspectos nessa nova ordem mundial. E também teríamos que avisar
Caetano: essa ordem não é tão nova.

Dessa forma, nossa intenção neste trabalho é trazer problematizações sobre essa
412
conjuntura política, econômica, social, cultural instaurada, discutindo os pro-
cessos de subjetivação na contemporaneidade, a partir de Rolnik, Lazzarato,
O QUE PODE A ESCOLA? ATRAVESSAMENTOS DO CINEMA NOS/DOS PROCESSOS
DE INSURREIÇÕES E RESISTÊNCIAS NOS COTIDIANOS ESCOLARES

Negri e Hardt, lançando apostas que transitam entre o resistir e o insurgir e en-
gendrar novos modos de ser e estar no mundo. Recorremos, assim, a uma pes-
quisa bibliográfica, em um primeiro momento, no sentido de trazer elementos à
compreensão de como chegamos a esse estado de coisas, desnaturalizando os
fenômenos vividos e os tomando como uma construção histórica, humana, in-
tencional. “Saber como chegamos a ser o que somos é condição absolutamente
necessária, ainda que insuficiente, para resistir, para desarmar, reverter, subverter
o que somos e o que fazemos” (VEIGA NETO, 2003, p. 7).

Em um segundo momento, buscamos, junto a professores do ensino fundamen-


tal e médio de uma escola estadual do município de Serra, por meio do cinema,
observar como os filmes podem ser inseridos no cotidiano escolar, não como
um instrumento utilitário, mas como artefato disparador e problematizador das
questões vivenciadas no tempo presente. Isso porque acreditamos “que o cine-
ma pode ativar a invenção de problemas, a experiência de problematização”,
pois o cinema, “as imagens de uma forma geral emitem signos [...] que afeta[m]
o sujeito. Ou seja, força o movimento da subjetividade” (RAMOS; RODRIGUES,
2018, p. 143). Nós acrescentaríamos que força o movimento de produção da
subjetividade – de outras subjetividades.

Assistimos, junto ao grupo de professores, a dois filmes. O primeiro, Alike1,


mostra um pai como personagem que reproduz comportamentos esperados no
contexto atual, que é de trabalhar fielmente defendendo os interesses da cor-
poração, cumprir horários, ter atenção ou ver apenas o que interessa, cultuar a

CURRÍCULO E ESTÉTICA DA ARTE DE EDUCAR


ideia de que tempo é dinheiro e que tenta fazer com que o filho – que é vivo,
criativo, latente, alegre – também haja dessa forma. Esse filho tenta, inutilmente,
desviar o pai desse comportamento padrão e, no trajeto que faziam juntos para
ir à escola, insiste em parar e admirar um músico tocando violino, mas é abrup-
tamente puxado pelo pai para a “ordem”. Com o passar do tempo, por meio da
força, o pai consegue que o filho também reproduza comportamentos padroni-
zados, mas percebe que ele se tornou uma criança entristecida, acabrunhada,
sem energia. Nesse momento, efetua-se a ruptura. O pai volta ao lugar em que
o filho tentou parar para ver o músico, que não estava mais lá. O pai, carinhosa-
413
mente, assume o lugar do violonista e faz uma performance como quem tocava
um violino.

No filme 19842, as nações são divididas em três grandes potências mundiais:


Oceania, Eurásia e Lestásia. A Oceania – onde o roteiro se desenvolve – é co-
mandada pelo Partido IngSoc (Socialismo Inglês) e a história se passa no mesmo
ano, em um tempo distópico, uma vez que o Estado forjava um sistema de go-
verno extremamente totalitário, por meio da vigilância imposta pelo Partido, na
figura do Grande Irmão, que vigiava a privacidade das pessoas, através de uma
teletela. Oceania estava dominada pelo medo e pela repressão. O medo reinava
porque quem pensava diferente ou contra o regime era acusado de cometer um
crime. Trata-se de uma reflexão e crítica à condição imposta aos cidadãos de
serem reduzidos a peças para servir o Estado, através do controle total da popu-
lação por meio de um processo midiático onipresente e controlado pelo Partido

1 Filme de animação (2016), produzido em Barcelona pelos diretores Daniel Martínez Lara e Rafa Cano Méndez.

2 Filme ficcional (1984) de Michael Radford, baseado no livro de George Orwell (1998) de mesmo nome.
– todos eram observados o tempo inteiro, submetidos às notícias fabricadas para
atender ao regime.

Nosso desejo foi observar como os professores problematizam, veem, sentem e


são afetados no/pelo contexto atual, mas, acima de tudo, como os filmes 1984 e
Alike podem gerar ou fazer emergir subjetividades inconformadas. Isso porque,
no contexto da cafetinagem3, somos aprisionados por um só modo de fazer e
não nos atentamos para o que o espaço, os estudantes, o coletivo da escola nos
anunciam.

Nos diálogos tecidos com Rolnik, Lazzarato, Negri e Hardt, buscamos discutir
outros possíveis para a formação de professores e a gestão de seu trabalho na
sala de aula, bem como as escolas possíveis no contexto do capitalismo globali-
tário, financeirizado e neoliberal. Por fim, ousamos problematizar o trabalho do
professor entre a cafetinagem e a potência/pulsão de criação e transformação e
entre a sujeição e a singularização.

414
Problematizações sobre o contexto
O QUE PODE A ESCOLA? ATRAVESSAMENTOS DO CINEMA NOS/DOS PROCESSOS
DE INSURREIÇÕES E RESISTÊNCIAS NOS COTIDIANOS ESCOLARES

político, econômico, social e cultural:


o que podemos para além de uma vida cafetinada?
Suely Rolnik, Maurizio Lazzarato, Antonio Negri e Michael Hardt são autores que
têm buscado problematizar os processos de subjetivação na contemporaneidade.
O que estamos chamando de subjetivação?

Rolnik ([201-]) discute duas experiências simultâneas que fazemos/estabelece-


mos com o mundo. A primeira, que é imediata e se baseia na percepção, pos-
sibilita-nos uma apreensão desse mundo, que é inseparável do campo cultural,
pois essa experiência é eivada de códigos, símbolos, representações que nos
permitem atribuir sentidos ao que fazemos, tocamos, escutamos – o que a autora
chama de “experiência do sujeito”. Entretanto há uma experiência mais comple-
xa – a subjetividade, que produz algo que está “fora-do-sujeito”. “São as forças

3 Conceito utilizado por Rolnik (2018) e que será explorado posteriormente.


que agitam o mundo enquanto corpo vivo e que produzem efeitos em nosso cor-
po em sua condição de vivente. Tais efeitos consistem em outra maneira de ver
e de sentir aquilo que acontece em cada momento” (ROLNIK, [201-], p. 10). O
mundo vive em nosso corpo. Pulsa. São os perceptos4 e os afectos5 que não têm
uma imagem ou palavras que os representa, mas são reais e “[...] dizem respeito
à dimensão viva do mundo, cujos efeitos compõem um modo de apreensão ex-
tracognitivo” (ROLNIK, [201-], p. 10). É o que constitui o “saber-do-corpo”. Isso

CURRÍCULO E ESTÉTICA DA ARTE DE EDUCAR


não é uma experiência individual.

O mundo “vive” efetivamente em nosso corpo sob o modo de afectos


e perceptos e integra sua/nossa composição, impulsionando o pro-
cesso incessante de recriação de nós mesmos e de nosso entorno. Tais
maneiras de ver e sentir formam uma espécie de germe de mundo que
nos habita. (ROLNIK, [201-], p. 11).

Rolnik ([201-]) ainda nos mostra que essas duas experiências acontecem ao mes-
mo tempo e são indissociáveis. Mas a relação entre elas é paradoxal, gera tensão
e acaba por desestabilizar a subjetividade, causando a sensação de mal-estar. 415
Frente ao que vivemos, desenvolve-se uma política do desejo – que é o modo de
resposta do desejo diante da experiência de desestabilização e mal-estar – que
muda em função de uma época, uma forma de cultura. E o mais importante “[...]
é que a subjetividade consegue se sustentar no mal-estar provocado pela tensão
entre ambas, o que lhe dá condições para se manter à escuta dos afectos e per-
ceptos responsáveis por sua desestabilização” (ROLNIK, [201-], p. 14).

Essa política do desejo que se constitui no âmbito da micropolítica pode ser ativa
ou reativa. No primeiro caso, “o mundo larvário que nela habita terá grandes
chances de germinar: é na ação do desejo que se plasmará a germinação” (ROL-
NIK, [201-], p. 14). Esse germinar traz a força da criação, da pulsação, da conta-
minação, da reverberação das ressonâncias nas subjetividades, com o poder de
contaminar todo o seu entorno. É

4 “É distinto de percepção, pois consiste numa atmosfera que excede as situações vividas e suas representações” (ROLNIK, 2018, p. 53)

5 “[...] emoção vital, a qual pode ser contemplada [...] no sentido do verbo afetar – tocar, perturbar, abalar, atingir [...]. Perceptos e
afectos [...] dizem respeito ao vivo em nós mesmos e fora de nós.” (ROLNIK, 2018, p. 53).
[...] um devir da subjetividade e de seu campo relacional imediato e,
a partir dele, de outros campos relacionais que habitam as subjetivi-
dades que o compõem [...] capilarizando-se rizomaticamente pelo
corpo do mundo e transformando sua paisagem [...] é a potência do
vivo que as ações do desejo buscarão expandir para ampliar nossa
condição de existir. O que a micropolítica ativa visa é, pois, à conser-
vação da potência do vivo que se realiza num incessante processo de
construção da realidade (ROLNIK, [201-], p. 16).

A micropolítica reativa, segundo Rolnik ([201-]), decorre do inconsciente colo-


nial capitalístico que desativa a potência que o corpo tem para decifrar o mun-
do, e a subjetividade passa a ser orientada apenas por sua experiência de sujeito
– a subjetividade antropo-falo-ego-logocêntrica – ou seja, começa e termina no
próprio sujeito. E “por estar bloqueada em sua experiência fora-do-sujeito, ela
se torna surda aos efeitos das forças que agitam o mundo [...] ignorando aquilo
que o saber do corpo lhe indica” (ROLNIK, 2018, p. 65).

Rolnik (2018) vem designando a política de inconsciente dominante no atual


estágio do capitalismo financeirizado e neoliberal de inconsciente colonial-ca-
416 fetinístico, pelo poder de sequestro da força vital, da potência do vivo. Negri
(2015) também aponta que, neste estágio, o capital já considera sua regulação
O QUE PODE A ESCOLA? ATRAVESSAMENTOS DO CINEMA NOS/DOS PROCESSOS
DE INSURREIÇÕES E RESISTÊNCIAS NOS COTIDIANOS ESCOLARES

não mais na relação entre a fábrica e a sociedade, mas no nível social, das for-
mas de exploração da vida, e isso, segundo o autor, já era problematizado na
década de 1970 por alguns companheiros6 de trabalho, que mostravam que o
capitalismo passava a exercer não só a função de controle da sociedade, mas
que entrava no corpo da vida. “O mundo do trabalho explora enquanto bios”,
ou seja, não explora mais apenas a “força de trabalho e sim como forma viva,
não só como máquina de produção e sim como corpo comum da sociedade”
(NEGRI, 2015, p. 61).

Por que cafetinístico? Porque assim como a base da economia capitalista se


constitui por meio da exploração da força de trabalho para extrair a mais valia,
na sua nova versão, o capital se apropria da própria vida, da sua potência de
criação e transformação em seu nascedouro, da sua essência germinativa, da

6 Daniel Cohen, Christian Mazzari, Carlo Vencellone, entre outros.


cooperação da qual tal potência depende para que se efetue em sua singularida-
de. “A força vital de criação e cooperação é assim canalizada pelo regime para
que construa um mundo segundo seus desígnios”. Assim, a “fonte da qual o re-
gime extrai sua força não é mais apenas econômica, mas também intrínseca e in-
dissociavelmente cultural e subjetiva [...]”. Isso lhe confere “[...] um poder mais
amplo, mais sutil e mais difícil de combater.” (ROLNIK, 2018, p. 32-33). Dessa
forma, “a cafetinagem da pulsão vital nos impede de reconhecê-la como nossa,

CURRÍCULO E ESTÉTICA DA ARTE DE EDUCAR


o que faz com que a sua reapropriação não seja tão óbvia [...]” (ROLNIK, 2018,
p. 35). Aí reside o perigo da micropolítica reativa concernente a esse regime: ao
separar a subjetividade de sua força vital, pulsional de germinação, interrompe
a potência desejante de criação de outros mundos, ou seja, essa potência acaba
por ser cafetinada. E esse processo acaba por contaminar toda a teia relacional,
intoxica e estanca os processos de diferenciação e singularização. Somos todos
tomados pelos efeitos da vida sujeitada a esse poder perverso, que gera “uma
vida genérica, vida mínima, vida estéril, mísera vida” (ROLNIK, 2018, p. 76).

Os professores sentem esse poder cafetinístico, que extrai nossa força vital:
417
É como no filme Alike, em que o menino parece perder o brilho. Nós também
perdemos o nosso. Muitas vezes, por mais que você faça algo de diferente, não
conseguimos, porque parece estarmos voltando no tempo mesmo. Ao que outro
professor completa: o que nós estamos vivendo hoje, parece um engessamento
maior da escola, parece que não podemos avançar, evoluir no conhecimento
das coisas, parece que a escola tem de tirar o brilho do aluno e não deixar e
fazer ele brilhar.7

Não se trata mais, como em outros tempos, do disciplinamento dos corpos,


mas da gestão das diferenças (LAZZARATO, 2011). As técnicas disciplinares e
as técnicas biopolíticas desenvolvidas no período de implementação do Estado
Nação foram políticas que supunham “[...] a neutralização e o controle, em
escala social, da lógica do acontecimento, da criação e da produção do novo”
(LAZZARATO, 2006, p. 71). O poder era localizado e visava a um padrão de
comportamento que se repetia, por meio de dispositivos que buscavam aprisio-

7 As falas dos professores serão introduzidas ao longo do texto destacadas em itálico.


nar a multiplicidade, a potência de transformação, o devir, “[...] neutralizando a
diferença e a repetição e sua potência de variação [...] subordinando-a à repro-
dução” (LAZZARATO, 2006, p. 69).

Na versão do capitalismo financeirizado e neoliberal,

[...] o problema não é mais o de aprisionar o fora e disciplinar as


subjetividades quaisquer [...]. Não se trata, portanto, de discipliná-las
em um espaço fechado, mas de modulá-las em um espaço aberto.
O controle se superpõe, dessa maneira à disciplina [...]. O tempo do
acontecimento, da invenção e da criação de possíveis não pode mais
ser considerado uma exceção, mas aquilo que faz regular e capturar
cotidianamente (LAZZARATO, 2006, p. 72).

Hoje, os aparatos da política, como BNCC8 e, principalmente, avaliação em


larga escala, nos controlam, sem que haja alguém fiscalizando. E aquele que
quer desenvolver um trabalho diferenciado, acaba aprisionado. Por quê? Tem
que trabalhar o que vai cair na avaliação do ENEM9. Nossos alunos, pelo me-
nos alguns, que ainda teimam em manter o brilho, querem também continuar
418
estudando. Ter uma bolsa, ingressar quem sabe em uma universidade. Então, o
Grande Irmão do filme 1984 está entre nós, sem que esteja presente fisicamente.
O QUE PODE A ESCOLA? ATRAVESSAMENTOS DO CINEMA NOS/DOS PROCESSOS
DE INSURREIÇÕES E RESISTÊNCIAS NOS COTIDIANOS ESCOLARES

A forma de poder nessa sociedade – de controle – é diferente e se sustenta nos


aparatos da informação, da tecnologia, das redes de comunicação, dos meca-
nismos virtuais, dos fluxos e redes, dos dispositivos tecnológicos que agem a
distância e que produzem os processos de subjetivação e sujeição correspon-
dentes com capacidade de afetar e ser afetado dos cérebros, midiatizada pela
tecnologia. Isso é “[...] estratégico para o controle do processo de constituição
do mundo social” (LAZZARATO, 2006, p. 76). São formas de controle gestadas
em um neocapitalismo que “[...] atinge as raízes da existência. Ele faz mais que
exigir submissão e obediência; ele molda e modula a subjetividade e a vida dos
indivíduos” (LAZZARATO, 2014, p. 116).

8 Base Nacional Comum Curricular.

9 Exame Nacional do Ensino Médio.


O que nos entristece bastante é perceber que a maioria dos professores estão
adoecidos. E adoecidos por causa dessas questões que estamos aqui conversan-
do. É esse controle sobre o professor. Um controle que a gente não vê, mas sente.
São as questões da política, dos rumos que o país está tomando, o trabalho com
estudantes que estão desesperançados. Teria tantos outros pontos a destacar [...].
Triste mesmo é observar que tudo isso está atingindo nosso ser, nossa vida, nossa
alma em todos os sentidos. Pessoas doentes. Sociedade doente. Escola doente.

CURRÍCULO E ESTÉTICA DA ARTE DE EDUCAR


Esse controle da vida, da subjetividade, é um dos aspectos fundamentais do regi-
me capitalista financeirizado, neoliberal – condição para o processo de coloni-
zação referido anteriormente – e, para levar isso a cabo, supera todas as artima-
nhas e estratégias utilizadas até então. A intervenção passa por um refinamento
e intensificação. O intuito agora não é apenas deixar o corpo dócil e submisso,
mas acelerar ao mesmo tempo sua capacidade de produção do que interessa ao
regime e o alto consumo desses mesmos produtos, desviando-o de seu destino
ético, que é a capacidade de criação associada à vida. Nessa armadilha, nossos
corpos passam a reproduzir também o status quo. Assim, “[...] apenas muda-se,
419
criativamente, suas peças de lugar, fazendo variações sobre o mesmo” (ROLNIK,
2018, p. 164). Essa condição é confirmada por um professor: Não viu o menino
do filme? Também adoeceu. Foi contaminado. É uma estrutura poderosa. Então,
se antes eram os corpos dóceis, agora são necessários os corpos flexíveis, volá-
teis, criativos, conectados, maleáveis, que circulam por vários lugares, enredam-
-se com outros corpos pelas redes virtuais. Transitam, ou pelo menos pensam
que transitam, velozmente, sem barreiras. A única certeza é que o fazem com a
mesma velocidade de circulação do capital mundial. Esse, sim, sem barreiras,
sem fronteiras. Então não é necessária a força bruta para impor suas condições,
mas a mudança da força dos desejos. Corrompe-se a política do desejo, como
vimos com o menino do filme Alike. Seus desejos, seus interesses, sua vida, sua
infância, suas energias sendo corrompidos para atender um jeito de ser e estar
na sociedade.

E, para aumentar ainda mais nossa perplexidade, o que vemos hoje é algo que,
num primeiro momento, parece paradoxal, contraditório, que é a aliança entre
neoliberalismo e neoconservadorismo10 extremo, porque o alto grau de comple-
xidade e flexibilidade do atual regime de acumulação está longe do arcaísmo e
rigidez das forças conservadoras. Entretanto é possível compreender os motivos
que levam a essa aliança: nesse momento se fazem necessárias forças bem rudes
e abrutalhadas para destruir, por fim, todas as conquistas democráticas conquis-
tadas e fazer ruir todos os protagonistas dessas conquistas e todas as suas in-
fluências sobre a sociedade. E, de preferência, demonizando esses protagonistas
(ROLNIK, 2018).

Uma das primeiras cenas do filme 1984 aponta como a mídia exercia poder so-
bre o comportamento dos cidadãos individualmente e em coletividade. A guerra
entre Oceania e Eurásia é mostrada em um grande telão diante de todos os fun-
cionários do Partido, e o personagem Emmanuel Goldstein será tratado como
o grande traidor do regime. Os cidadãos neste momento passam a caluniá-lo,
mostrando ódio e aversão às suas atitudes e ao que dizia contra o Partido. E, para
nutrir ainda mais o processo de manipulação, o governo possuía departamen-
tos que inviabilizavam qualquer tipo de contato vindo de fora da Oceania. Um
420
professor relata: a maioria na sociedade desconhece essas questões, fica apenas
com o que vê e ouve na mídia, nas redes sociais. Aí qualquer coisa que o pro-
O QUE PODE A ESCOLA? ATRAVESSAMENTOS DO CINEMA NOS/DOS PROCESSOS
DE INSURREIÇÕES E RESISTÊNCIAS NOS COTIDIANOS ESCOLARES

fessor fale que envolva esses assuntos eles já vão logo trazendo o senso comum,
ou poderia dizer senso colonizado. O discurso distorcido dos líderes políticos
reflete na sociedade.

Essas situações fictícias, ajudam-nos a compreender – citando aqui apenas dois


exemplos – o caso de Luiz Inácio Lula da Silva, que terminou seu governo como
um dos presidentes mais bem avaliados da história do Brasil, que hoje é pro-
clamado por parte da população que aprovava seu governo como um bandido
de alta periculosidade e, junto com todo o Partido dos Trabalhadores, fonte de
toda corrupção no Brasil. Isso nos faz compreender por que Dilma sofreu o im-
peachment por um crime não cometido, ou pelos menos que outros já haviam
cometido e que não foram afastados de seus postos de comando. E isso tudo em
meio aos nossos gritos: Não vai ter golpe! Como agravamento da situação, temos

10 O prefixo neo só faz sentido em referência à ideia de uma outra época e circunstância (ROLNIK, 2018).
que considerar que essa não é apenas uma experiência brasileira, mas de todos
os governos em escala mundial, principalmente América Latina, de tendência
democrática e popular. E nossa sensação é de impotência, angústia, mal-estar,
adoecimento, perplexidade, assombramento.

Mas, quando somos tomados por esses sentimentos, aloja em nós a política
de subjetivação guiada pelo inconsciente colonial cafetinístico. Perdemos a po-
tência do combate da micropolítica ativa e tendemos a nos deixar levar pela

CURRÍCULO E ESTÉTICA DA ARTE DE EDUCAR


micropolítica reativa ou a reduzir nossas análises à esfera macropolítica, com
foco nas questões sobre a crise da democracia e do Estado de direito, ou sobre
como recuperar as condições de vida democrática e resgatar esse Estado. Nesse
ínterim, nossa incapacidade aflora e dá condições para que as forças regressivas
e conservadoras do mal germinem.

Lazzarato (2014, p. 23) aponta que a crise que vivenciamos “[...] produz apenas
sujeições negativas e regressivas (o homem endividado)”. Endividado por quê?
Nesse contexto, no reino do capital e da mercadoria, o consumo passa a ser
visto como uma das poucas possibilidades para a felicidade, mas o consumo 421
endivida. Assim, o consumo também acaba por alimentar paixões tristes, e a res-
ponsabilização pelas dívidas e tristezas recai sobre cada um de nós individual-
mente. Em outra obra, o mesmo autor (2017, p. 27) pergunta: “O que acontece
com o homem endividado na crise? Qual sua principal atividade? [...] ele paga.
Ele deve expiar sua falta – a dívida – pagando sem cessar [...]”.

Como alternativa, o regime conclama as pessoas a se tornarem “empresárias de


si mesmas”, o que é “[...] o objetivo do capital como máquina de assujeitamen-
to” (LAZZARATO, 2014, p. 23). Assim, como afirmamos, “[...] com o neolibe-
ralismo, as práticas de governo passam pelo indivíduo, pela sua subjetividade,
por seus comportamentos e por seus estilos de vida” (LAZZARATO, 2014, p. 45).

Hardt e Negri (2016b) apontam que o apogeu do neoliberalismo gerou crises na


vida econômica e política, mas, principalmente, operou transformações sociais
e antropológicas. E, junto com os outros autores aqui referenciados, problemati-
zam as consequentes formas de fabricação/produção de novas figuras de subje-
tividade. Para eles, além da subjetividade endividada criada pela hegemonia das
finanças e dos bancos, o
[...] controle das informações e das redes de comunicação criaram
o mediatizado. O regime de segurança e o estado generalizado de
exceção construíram a figura oprimida pelo medo e sequiosa de pro-
teção: o securitizado. E a corrupção da democracia forjou uma figura
estranha, despolitizada: o representado (HARDT; NEGRI, 2016b, p.
21).

O filme 1984 é ilustrativo dessa subjetividade mediatizada. É a Teletela, a mídia


influenciando os comportamentos, criando e veiculando “verdades” e extermi-
nando as que não são geradas pelo alto comando do Partido, a pregação de que
toda a população deve ser totalmente devota ao Grande Irmão, entre outras. Um
professor mencionava sobre esse sentimento de ser influenciado por toda essa
conjuntura: nós temos os temas políticos, filosóficos, religiosos, ou ligados à
sexualidade, hoje chamados de ideologias ou doutrinas, o que dificulta propor
que sejam trabalhados como currículo. Deve-se falar apenas o que é permitido.
Até porque, como no filme, ainda podemos ser filmados pelos próprios alunos.
Por aqueles que, como no filme, foram capturados, acreditam que isso (os te-
mas) não deva ser abordado na escola.
422
Outro professor prossegue: é..., não é uma situação fácil, os discursos vêm
O QUE PODE A ESCOLA? ATRAVESSAMENTOS DO CINEMA NOS/DOS PROCESSOS
DE INSURREIÇÕES E RESISTÊNCIAS NOS COTIDIANOS ESCOLARES

prontos da família, da igreja, principalmente aqui que temos uma grande parte
de alunos de religiões neopentecostais que, por si só, já têm em sua prática a
vigilância, a punição e o padrão de uma vida controlada.

E o filme Alike nos traz outro tipo de subjetividade – a subjetividade securiti-


zada –, ou seja, aquela que se comporta de acordo com os padrões de com-
portamento esperado pelo sistema econômico, para se manter a tranquilidade
e a comodidade geradas por esse sistema, que é continuar tendo um emprego,
salário, casa. Entretanto essa conjuntura nos impede de perceber o quanto esta-
mos aprisionados. Um professor relata: o que está me preocupando, é que tem
muito professor se apequenando, se preocupando demais em trabalhar apenas
com o que é dito como permitido, no que vai cair nas provas nacionais e daqui
do Estado, no que está nos documentos, na BNCC e no currículo do Estado, por
exemplo. Tem professor com medo do que tem aparecido na mídia, de alguns
professores que são denunciados por falar ou fazer algo diferente.
Reiteramos que essas “novas” subjetividades tendem a consolidar a morte da
potência do vivo, do poder de criação, pulsação e singularização. Tornamo-nos
reféns. Rolnik ([201-]) discute o quanto isso ainda é fortalecido pela ideia de
deficiência de si mesmo, e o mal-estar transforma-se ainda em sentimento de
culpa, inferioridade, autodepreciação, vergonha ou ódio, ressentimento. Então,
além do consumo, o desejo conectará a subjetividade a produtos de tarja preta
da indústria farmacológica, a igrejas ou terapias de treinamento da autoestima

CURRÍCULO E ESTÉTICA DA ARTE DE EDUCAR


ou aos complexos discursos intelectuais. Segundo o autor, “[...] tais mercadorias
são usadas como perfumes para esconder o odor infecto de uma vida estagnada”
(ROLNIK, [201-], p. 20).

Os autores referenciados discutem possíveis nesse contexto. Tamanho o estrago


produzido nos processos de subjetivação, é necessária uma descolonização dos
inconscientes. E a descolonização dos inconscientes passa pelo terreno das rela-
ções mais íntimas e, ao mesmo tempo, das relações coletivas, comuns da multi-
dão (HARDT; NEGRI, 2005, 2016a; ROLNIK, 2018). A efetuação de possíveis é
um processo necessário. A resistência é um dos possíveis. “Esta resistência deve-
423
-se abrir a um processo de criação, de transformação da situação, de participa-
ção ativa nesse processo. Nisso consiste resistir [...]” (LAZZARATO, 2006, p. 21).

Os possíveis – é o que buscaremos discutir a partir da experiência vivenciada


com professores de uma escola de ensino fundamental e médio no município de
Serra, no Espírito Santo.

O cinema como disparador


de insurgências e resistências na escola
E a escola neste contexto? E os professores? E o trabalho desenvolvido nas esco-
las? Em que medida as condições impostas pelo atual regime político, econô-
mico, social e cultural interferem nos processos de subjetivação dos professores
e, por consequência, no trabalho desenvolvido nas escolas? Como podemos na
escola insurgir? Como fortalecer a potência do vivo, o impulso vital? Como co-
brir de cores não só as paredes e muros cinzentos da escola, mas a vida vivida
nesse lugar? Enfim, o que pode a escola em tempos de catástrofe?
Muitos grupos de pesquisa, entidades e diversos autores se dedicam a pesquisar
as condições de trabalho e o adoecimento docente apontam altos índices de
afastamento do trabalho por questões físicas, como problemas na coluna, cordas
vocais, rouquidão, gastrites, pressão arterial alta, alergias; ou por questões psí-
quicas originadas de casos de depressão, ansiedade, nervosismo, estresse. Há,
ainda, situações de professores que são readaptados em outras funções por não
apresentarem condições de trabalho em sala de aula (CNTE, 2012).

Nessa mesma esteira, Esteve (1999, p. 12), já no final do século XX, definia essa
condição como mal-estar docente, por sabermos “[...] que algo não vai bem,
mas não sermos capazes de definir o que não funciona e por que [...].” Esse
mal-estar leva o professor à fragilização, despotencialização e questionamento
sobre sua experiência e o sentido de seu trabalho, e o pior, à perda na crença
no poder de sua intervenção como professor. Mas, como discutimos na primeira
parte deste artigo, isso é uma construção discursiva que vai se efetivando nas e
através das relações. Lazzarato (2014, p. 195) vai nos dizer que

424 [...] o capitalismo atual, com suas empresas e instituições, prescreve


um cuidado de si e um trabalhar sobre si, ao mesmo tempo físicos e
O QUE PODE A ESCOLA? ATRAVESSAMENTOS DO CINEMA NOS/DOS PROCESSOS
DE INSURREIÇÕES E RESISTÊNCIAS NOS COTIDIANOS ESCOLARES

psíquicos, um “bem viver” e uma estética da existência que parecem


desenhar as novas fronteiras da sujeição capitalista e da valorização
econômica, que assinalam um empobrecimento sem precedentes da
subjetividade.

O mesmo autor retoma Foucault, que discute os processos de subjetivação inter-


-relacionados às práticas discursivas e aos mecanismos destinados a conduzir a
conduta dos homens, ou seja, a tríade sujeito-poder-saber. E é também Foucault
que “[...] descreve a subjetivação como um processo imanente de ruptura e
constituição do sujeito” (LAZZARATO, 2014, p. 199). Aí residem os possíveis...

O filme de animação Alike sinaliza a busca de ruptura. O gesto do pai – de vol-


tar ao lugar em que o violinista tocava – de simbolicamente tocar violino para
o filho significou sua percepção da força da captura e do quanto estava sendo
sugado. É a força do cinema de problematizar nossa condição e propor o rom-
pimento com todas as formas de amarras em oito minutos.
Esse foi o sentimento vivenciado entre os professores ao assistirmos juntos ao
filme, pois puderam pensar sobre seu trabalho, deslocar as imagens fixas que
aprisionam e criar outras imagens que libertam dos modos únicos de pensar e
agir, provocando movimentos inventivos que emergem na coletividade. Como
já destacamos, o filme se constituiu em um disparador de conversações sobre os
aprisionamentos agenciados pelo capitalismo em tempos de cafetinagem. Um
professor destaca: eu sempre tento fazer algo diferente, mas são muitas coisas

CURRÍCULO E ESTÉTICA DA ARTE DE EDUCAR


para dar conta, fica difícil ouvir violino e, mais difícil ainda, tocar violino.

Assim, ao trabalhar com o cinema, desejávamos problematizar essas questões,


apostando que existem movimentos de resistência ativa e de afirmação da vida.
Recorremos ao pensamento de Rolnik (2018), que discute o devir-larva que en-
tra nas camadas mais obscuras do fascismo e consegue tirar dali algo para cons-
truir um horizonte de vida coletiva. Desse modo, os diálogos com os professores
objetivaram pensar movimentos de resistência possíveis na criação de correntes
de ar vital por entre a lama tóxica gerada pelo capitalismo globalitário na socie-
dade de uma forma geral e, especificamente, nas escolas públicas brasileiras.
425
Os professores também apostam nisso ao afirmarem: Eu tenho esperança, apesar
de tanta coisa que nos afasta dela. Mas acredito sim na humanidade, até por isso
eu sou professor, porque acho que o fato de escolher a escola já é uma forma
de esperança; não acredito em grandes mudanças, acredito em mudanças que
vão acontecendo aos poucos, nos projetos da escola, nas atitudes dos professo-
res, dos alunos. Aí aos poucos vamos recuperando o brilho e, se não tocamos
violino, pelo menos paramos para ouvi-lo. Outro professor relata: apesar desse
tempo estranho, que tanto estranhamento causa, é muito bonito perceber, entre
os alunos, aqueles que demonstram ter consciência da busca de manipulação
incessante no tempo presente, e de como as ideias vão sendo disseminadas e se
tornam verdade. Tem estudante que não quer ser abduzido.

Em uma cena, o personagem principal do filme 1984 fala: “A mentira torna-se


verdade e depois mentira outra vez”. Essa fala é a expressão da manipulação.
“Se eles repetissem aquelas informações e fizessem as pessoas acreditarem que
a situação estava, realmente, muito boa, uma forma de alucinação coletiva seria
criada para reagir positivamente aos interesses do regime” (MORHY, 2007, p. 2).
O filme expressa muito bem o contexto que vivemos e as situações – conforme
já descrevemos – que passamos a vivenciar, principalmente a partir de 2016 e
acentuadas a partir de 2019. É a produção de uma forma de pensar, sentir e viver
que tende a fazer crer que o que se consuma é o inevitável. E ainda as formas
de controle e vigilância. Passamos do panóptico – controle físico e material –,
constituído das técnicas disciplinares, às tecnologias biopolíticas. No primeiro,
produz-se o conhecimento apenas do corpo, do indivíduo; no biopoder, visa-se
à população, ao homem enquanto espécie, ao homem enquanto mente (LAZ-
ZARATO, 2006).

A sociedade disciplinar se estendeu até o final do século XIX, momento em


que outras técnicas de poder já estavam sendo gestadas – técnicas que não se
localizavam mais em um lugar específico, mas que se estendiam para todos os
espaços da vida pública. Esta sociedade nascente – a sociedade de controle ou
de seguridade – fundamenta-se em outro tipo de poder. É um poder que se sus-
tenta nos aparatos da informação, da tecnologia, das redes de comunicação e
de mecanismos virtuais.
426
Essa forma de poder fica evidenciada na personagem Júlia, que trabalha no
O QUE PODE A ESCOLA? ATRAVESSAMENTOS DO CINEMA NOS/DOS PROCESSOS
DE INSURREIÇÕES E RESISTÊNCIAS NOS COTIDIANOS ESCOLARES

ministério da Verdade, no Departamento de Ficção. Sua função é controlar a


literatura a ser lida pelo povo. Nessa empreitada, produz, com o auxílio das
máquinas, narrativas ficcionais que operam na lógica da repetição, do reco-
nhecimento. Desse modo, o Partido totalitário impede que a população tenha
contato com a produção discursiva que possa emergir com a leitura de livros
considerados como ameaças ao poder. Entretanto essa personagem apaixona-se
por Winston, com quem passa a se encontrar às escondidas, porque o Partido
também definia com quem as pessoas deveriam se casar, e a prática sexual era
apenas para fins de reprodução. Conseguem comer chocolate, diferente do que
era distribuído para todos, e passam a ocupar, clandestinamente, os espaços fora
da cidade para viverem o romance.

Os professores comparam essa situação ao que vivenciam na escola: Como os


personagens principais do filme 1984, nós, junto com os estudantes, consegui-
mos burlar muita coisa [...] quando propomos atividades diferentes, como o
projeto institucional que tem temas que envolvem mais os alunos. E isso não
é só com o tema, mas com os métodos utilizados, os alunos fazem paródias,
pintam, dançam, criam novas coisas, assim é que vejo nossa aposta. Outro pro-
fessor complementa: nesses projetos temos mais possibilidades de criar, eu diria
até de reinventar, porque quando você fala para os alunos o que será trabalhado
e que vamos fazer apresentação de dança, de música de arte, eles ficam logo
empolgados, querendo participar, fazer [...] então é nisso que acredito [...] que
se dermos a chance deles fazerem diferente, eles fazem, eles brilham. Os proje-

CURRÍCULO E ESTÉTICA DA ARTE DE EDUCAR


tos que nós já fizemos aqui na escola mostram como é na vida que apostamos,
porque não só os alunos ficam empolgados, os professores também ficam e
parece mesmo algo contagiante. Toda a escola se envolve. Mesmo que tenham
as normas, nunca sai tudo de acordo com elas. Concordo que os projetos são
exemplos disso, como o projeto de robótica, de violoncelo, de fotografia, o de
capoeira e maculelê.

Os professores, assim, como os personagens principais do filme 1984, conse-


guem burlar o sistema e, nesse sentido, provocam-nos a pensar nas possibi-
lidades de fuga, de dobras, de fabulações, invencionices que são produzidas
427
nos currículos das escolas, e nos mostram que, mesmo neste sistema de formas
preestabelecidas, tão presentes na Educação, dá para forjar, insurgir, resistir fugir
do automatismo, da repetição, dos clichês.

Os professores, o tempo todo, pareceram querer mostrar uma relação muito pró-
xima entre a realidade vivenciada nos filmes, a atual conjuntura e o que vivem
nas escolas, mas também trouxeram em suas falas indícios sobre a possibilidade
de insurgir, de resistir: Vivemos, na política atual, uma cultura de vigilância do
professor, da escola e da educação... fomos transformados em ‘inimigos’ e, com
isso, temos a todo momento que nos policiar. Por outro lado, esse movimento
potencializa o fazer do professor, nos possibilitando reinventar a forma de falar
um determinado assunto, um determinado conteúdo, uma prática. São nossas
válvulas de escape.

Outro professor destaca: isso que vimos nos filmes parece o retrato fiel da polí-
tica nacional, da nossa realidade! Porém, ao mesmo tempo que desanimamos,
nos munimos pela inconformidade de sermos vistos de forma distorcida pelo
discurso conservador passado pelo governo, muitas vezes também pela mídia.
O tempo todo temos que fazer o exercício de não nos perdermos nas nossas an-
gústias e nos colocar junto com a vida que acontece aqui na escola, junto com
os alunos, fugir do que está previsto no currículo do Estado, da secretaria.

Nesse movimento de conversar-conversar disparado pelo filme, vemos profes-


sores problematizando, explicitando suas angústias, seus desafios e, ao mesmo
tempo, propondo, buscando, re-existindo no seu fazer pedagógico. Isso porque,
como afirma um professor: por mais que inventem, que produzam ‘inimigos’, a
vida foge ao padrão, pois ela tem cor, tons e formas diferentes, o que vai descon-
certar o que está previsto, ou seja, o que de fato vivenciamos na escola, nossas
existências, nossas experiências deslocam, movimentam os cotidianos escolares
para muito além do que foi ou é predeterminado.

Nesse sentido, nas produções conversacionais dos encontros, observamos o


quanto os professores apostam nas experiências de vida dos/com os estudantes
nos cotidianos escolares; nos fluxos das representações e significações nos es-
paços de enunciação; nos “entre-lugares” e nas fronteiras sempre contingentes,
428
abertas e indefinidas como fios potentes para novas/outras produções e possíveis
formas de re-existir, mover o pensamento para os modos de insurgir e resistir na
O QUE PODE A ESCOLA? ATRAVESSAMENTOS DO CINEMA NOS/DOS PROCESSOS
DE INSURREIÇÕES E RESISTÊNCIAS NOS COTIDIANOS ESCOLARES

escola, mesmo que imersa no contexto da capitalismo financeirizado e neolibe-


ral. E pudemos sentir o quanto o cinema pode contribuir, no sentido de nos levar
a criar, inventar, discutir acerca de novos/outros modos de existir insurgindo,
engendrando resistências no contexto atual.

Considerações finais
Os autores referenciados neste artigo têm apontado algumas formas de insur-
gir, resistir e produzir novos/outros processos de subjetivação que tendem a su-
perar ou minimizar os efeitos perversos e destrutivos do inconsciente colonial
cafetinístico. Não basta resistir macropoliticamente, “é preciso o combate pela
potência afirmativa de uma micropolítica ativa – enfrentar a situação no plano
da subjetividade, do desejo e do pensamento – onde o capitalismo se sustenta”
(ROLNIK, 2018, p. 35-36). Precisamos liberar a vida da cafetinagem – extração
da potência de vida, do poder vital de pulsação – para poder encontrar os pontos
em que o desejo poderá perfurar as condições impostas por esse inconsciente,
para neles inscrever os cortes da força instituinte (ROLNIK, 2018).

A autora nos indica, ainda, a necessidade de pensar e resistir. A ideia do pensar


supõe escutar, sentir os efeitos das forças da atmosfera ambiente no nosso corpo,
mas ao mesmo tempo sentir a pulsação de mundos larvares que são também
gerados e fecundados em nosso corpo e anunciam o saber-do-vivo e implicar-se
com esse saber, em um movimento de desterritorialização que tais gérmens de

CURRÍCULO E ESTÉTICA DA ARTE DE EDUCAR


mundo disparam. Para Rolnik, isso tem a capacidade de um contágio potenciali-
zador das subjetividades e pode nos levar a substituir a perspectiva antro-falo-e-
go-logocêntrica por uma perspectiva ético-estético-clínico-política.

Junto com Negri e Hardt, Rolnik apela para a construção/formação/constituição


do comum, “para isso é preciso tomar para si a responsabilidade como ser vivo
e lutar pela reapropriação das potências de criação e cooperação e pela cons-
trução do comum que dela depende” (ROLNIK, 2018, p. 89). Para Negri e Hardt
(2016a, p. 283), a produção do comum exige a “[...] abertura à alteridade e à
capacidade de formar relações com os outros, de gerar encontros prazerosos 429
e assim criar corpos sociais com capacidade sempre maiores”, recuando das
relações destrutivas e dos corpos perniciosos que essas relações produzem. Os
autores apostam, assim, em um acontecimento biopolítico e retomam Deleuze,
que já nos dizia que esse acontecimento é uma prática daqueles que acreditam
no mundo, é o poder de não só escapar ao controle do inconsciente colonial
capitalístico, como também criar um novo mundo. O acontecimento biopolítico
é, assim, uma subversão ao processo de subjetivação que abala identidades e
normas dominantes, remete-nos à ideia de poder e liberdade e inaugura uma
produção alternativa de subjetividades.

Lazzarato (2006), nessa mesma direção, fala-nos que as singularidades indivi-


duais e coletivas, ao constituírem esses processos de subjetivação, afirmam as
diferenças e a composição de um mundo não totalizável, ou seja, não desejam
a ideia de um só mundo. A política agora não deve se apoiar apenas na ideia
do estou contra, mas no estamos juntos. Entretanto é um estar juntos que supõe
a perspectiva da multiplicidade e diferenciação, o que possibilita a proliferação
de outros mundos possíveis.
Como pensar, então, em outros mundos e outras escolas? Ou como pensar em
outras formas de viver? Acreditamos que precisamos pensar e viver a política
como modo de criação de vida, não como algo transcendente, abstrato, mas
imanente. Política como produção do comum. O que estamos vivendo precisa
nos tensionar a criar outros mundos, outras formas de viver, outras escolas, ou-
tras formas de política.

Os professores com os quais vivenciamos a experiência de assistir aos filmes nos


apontam ou corroboram as questões levantadas pelos autores. Desde o início
deste trabalho, discutimos os processos de subjetivação na contemporaneidade,
que parece assinalar para uma dessubjetivação (PELBART, 2019), que é um pro-
cesso de abandono de si, do mundo, da vida, da luta. E o que acomete os pro-
fessores, perpassa, invade a escola, produzindo a patologização dos processos
vividos, a melancolia e a desesperança, a desterritorialização que faz com que
todos se sintam desambientados, sem lugar. Entretanto essa desterritorialização
pode ser positiva, no sentido de nos encaminhar para outras direções, de nos sa-
cudir. Isso também foi evidenciado nas falas, nas emoções. E o cinema foi capaz
430
de disparar sentimentos que mostram a insatisfação com todas essas formas de
produção do mundo, da escola, da subjetivação. Os professores se identificaram
O QUE PODE A ESCOLA? ATRAVESSAMENTOS DO CINEMA NOS/DOS PROCESSOS
DE INSURREIÇÕES E RESISTÊNCIAS NOS COTIDIANOS ESCOLARES

com os personagens, viram-se no lugar dos personagens. Discutiram que é preci-


so insurgir, resistir, burlar o sistema e todas suas formas de opressão e vigilância.
Criar táticas de não só sobreviver, mas de produzir novas formas de viver. Se não
for possível tocar violino, pelo menos parar para ouvir e sentir o som do violino.

Apostamos, assim, que, apesar de vivermos um momento de mais alta pericu-


losidade, que afeta não apenas questões da ordem econômica, mas dimensões
da ordem cultural e social ligadas diretamente às nossas vidas, individuais e
coletivas, aos processos de subjetivação, não podemos sucumbir. Isso é o que o
regime financeirizado neoliberal espera de nós. Entretanto compreendemos que
esse regime, essa “nova” ordem é uma construção histórica, ideológica, discur-
siva. Se é uma construção histórica, é uma construção humana. Se é uma cons-
trução humana, podemos intervir. Se podemos intervir, podemos crer que outras
formas de viver, que produzem outros mundos, outras escolas, são possíveis. Um
mundo sem tristeza. Porque nossa aposta são mundos e escolas sem tristeza – a
aposta deles é o contrário. Apostam na tristeza. Porque nada alimenta mais este
sistema que a nossa tristeza, porque a tristeza nos fragiliza e imobiliza. Assim,
nada alimenta mais o capitalismo que a nossa tristeza. A tristeza nos impede de
lutar pelo que acreditamos.

É decisivo, pois, que habitemos todos os lugares e especificamente as escolas


onde atuamos, com nossa alegria e vontade de criação. Que transformemos
esses espaços em lugares de bons e potentes encontros, de transbordamento

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de afetos alegres. Nesse sentido, é fundamental que utilizemos em nosso tra-
balho mecanismos disparadores de outras subjetividades, ou que pelo menos
possibilitem aos nossos alunos problematizar as subjetividades que estão sendo
produzidas pelo regime atual e que, no mínimo, questionem e duvidem das
práticas discursivas que querem nos fazer acreditar que tudo decorre de uma
ordem natural e inevitável. Temos que reafirmar que o inevitável é a vida. Vida
digna. Vida plena. Vida alegre. Vida pulsante. Vida com comida e arte! Vida com
educação e cinema!

431
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CURRÍCULO E ESTÉTICA DA ARTE DE EDUCAR


433
19.
434
TÍTULO
SIGNOS ARTÍSTICOS

CURRÍCULO E ESTÉTICA DA ARTE DE EDUCAR


E CONHECIMENTO:
UM ENSAIO
CONTRA-EPISTEMOLÓGICO

435

Patrick Stefenoni Kuster


Patrick Stefenoni Kuster (UFES)

Algumas palavras iniciais


Em ocasiões cotidianas, como em centelhas misteriosas, via em escolas coisas e
gentes se subtraírem de suas supostas ordens pré-estabelecidas ganhando textu-
ras impensadas. Exercendo um progressivo fascínio, esses fulgurantes mistérios
me cativavam. Ficava intrigado em ver em ocasiões propícias gentes e coisas
confessarem algo de si que não se fixava em sentidos homogêneos. Afinal, como
podia ouvir essas confissões? Será que mais alguém as ouvia? O que estava
acontecendo? Será que estava sendo fustigado por um devaneio exacerbado em
imagens oníricas?

Certamente eram o faiscar de digressões em situações tão comuns e próximas


quanto corriqueiramente desprezadas. Elas abriam, na aparente litania ordinária
436 de uma escola, brechas por onde podia ver obtusamente, em lampejos ofuscan-
tes, coisas e gentes mostrarem-se em suas verdades heteróclitas.
SIGNOS ARTÍSTICOS E CONHECIMENTO: UM ENSAIO CONTRA-EPISTEMOLÓGICO

Todavia, não eram espécies de objetos de curiosidades a serem vistos como


excentricidades folclóricas na distância desdenhosa de vitrines. Elas formavam
um conjunto demasiado ignóbil para que não pudessem pelo menos ofender as
sensibilidades mais habituais.

De todo modo, era inequívoco que elas agiam me atraindo em secretas cumpli-
cidades. Eclipsando categorias conhecidas, causavam uma deserção terrível e
intrigante. Como num ímpeto imprevisível, adentrava-me nos labirintos de seus
signos insólitos numa experiência irreversível.

Nessa incursão sem volta, suas verdades se revelavam senão pelas próprias mu-
danças que em mim causavam. De sorte, não eram verdades que pré-existissem
indiferenciadamente a quem se revelam, bem como não se revelam a qualquer
um em qualquer tempo bastando ter os melhores instrumentos e os métodos
mais adequados.
Verdades fugazes, são como um saber esotérico que se produz apenas com
aqueles que em seus segredos distintamente se iniciam. E, apreendê-las era uma
peripécia que não podíamos antecipar, muito menos repetir. Ainda assim, ini-
ciar-se em seus segredos não era um exercício cinicamente aleatório.

Na descentralidade conceptual de um gesto em sua miudeza ordinária, o desper-


tar inquietante de um estranhamento, fazendo mudar a escala de nossa atenção
que se desenvolve senão com os próprios signos suscitados no acontecimento

CURRÍCULO E ESTÉTICA DA ARTE DE EDUCAR


inesperado que, como pistas de um caminho sinuoso e desconhecido, marcam
a cadência da própria marcha. Assim, permeado por acidentes decisivos, neles
o percurso não contrastava com todo um encadear que se fazia necessário na
própria caminhada.

Apenas as ocasiões difusas do dia-a-dia de uma escola, vividas e feitas por gen-
tes ordinárias, podiam dizer, e em ardis oportunos, dos sentidos obscuros que
nelas se forjavam. À medida que me adentrava em seus segredos instigantes,
entretanto, suas verdades comunicavam acima de tudo um horizonte clandesti-
no de forças em cujas relações faziam esgueirar as próprias gentes e coisas dos 437
limites apertados do hábito e de tal maneira que eu mesmo não podia deixar de
sofrer seus traiçoeiros efeitos.

Decerto, na relação com essas situações arredias, algo inexplicavelmente exci-


tante acontecia. Eu mesmo já não repisava monótona e tediosamente as mesmas
coisas, como se suas verdades fossem rasgando a tênue teia que me encerrava
no hábito (NIETZSCHE, F., 2016, §117), entregando-me desamparadamente à
lancinante vastidão, mais sentida do que vista, dessas relações desiguais de for-
ças difusas do cotidiano nas quais parecia que tudo fugia de si.

Havia, ainda assim, ocasiões em que tornavam esses deslumbramentos algo


demasiado vertiginoso. Eram meninos que molhavam formiguinhas e meninos
de cabeças chatas, o subversivo ordinário elevado a seu expoente. Estudantes
nessas escolas, seus gestos formavam expressões dessa terrível experiência co-
tidiana em que perturbadoramente não se fixava em categorias uniforme e ho-
mogeneamente conhecidas. Essa dimensão terrível assumia nos gestos desses
meninos um intolerável que já não podia ser escamoteado.
Tornando a experiência um paroxismo, eram o equívoco anômalo de um co-
tidiano já nada fastidioso e a própria brecha por onde era possível ver tudo
escapar. Formavam, assim, uma condicionalidade pujante na qual era possível
vislumbrar o dia-a-dia de uma escola numa abertura para matizes de realidades
se fazendo.

Funcionando como signos de processualidade (KASTRUP, V., 2007), eram de-


sígnios voluptuosos de forças arredias em cujas intensidades, todavia, sendo ul-
trapassado certo limiar, faziam com que eles deixassem de ser corriqueiramente
desprezados. Eles causavam um íntimo mal-estar do qual não se podia desfazer-
-se facilmente.

Vetores de mundos irredutíveis, despretensiosamente abriam fendas na subje-


tivação vigente por onde mostravam, ainda que não se quisesse ver, que tudo
fugia. E não só mostravam, como contagiosamente instigavam, a contrapelo, a
tudo fugir. Por certo, outros testemunhavam o mal estar causado nessas expe-
riências um tanto desatinadas, o que depunha de certa maneira a meu favor.
438 Com tais testemunhas, pode ser que não estivesse ficando de fato louco.

Assim, nos perguntamos: como fazer pesquisa em Educação, colocando-se a al-


SIGNOS ARTÍSTICOS E CONHECIMENTO: UM ENSAIO CONTRA-EPISTEMOLÓGICO

tura desse cotidiano escolar permeado por terríveis elementos que o transversa-
lizam? Como produzir conhecimento em Educação desde esses acontecimentos
erráticos que, suscitando crises, nos coloca nesses focos de criação num coti-
diano escolar? Como suportar o mal estar que nos causam e o fremido que agita
os anelos que (nos) encerram e (nos) dominam, assumindo todas as suas conse-
quências? Como pensar as coordenadas de pesquisa desde uma transversalidade
que não se subjuga a unidades de categorias e formas homogêneas?

Buscando responder essas perguntas, mostraremos que fazer pesquisa em Edu-


cação colocando-se a altura de um cotidiano escolar permeado por esses terrí-
veis elementos que o transversalizam só é possível quando a própria pesquisa
torna-se ocasião crítica suscitadora de crises. Assim, em coordenadas contra-e-
pistemológicas, mostraremos uma possibilidade de pesquisa que se realiza em
valores estéticos, imitando uma vida em seu vetor de criação.
Nesse sentido, esse trabalho objetiva explorar as possíveis relações entre signos
de estatuto estético e a atividade do conhecer. Trabalhando, por meio de signos
artísticos, dentre outros aspectos, a dimensão clínica-ética-estética-política do
sentir, que é sempre sentir algo, queremos com isso evidenciar a possibilidade
da produção de um pensamento insurgente.

Tomando signos artísticos e, com eles, a possibilidade de produção de conhe-


cimento, realçamos sua distinção da matriz de experiência hegemônica do co-

CURRÍCULO E ESTÉTICA DA ARTE DE EDUCAR


nhecer, a saber, a racionalidade técnica científica criada desde a Modernidade.
Racionalidade, vale dizer, onde a experiência sensível, subsumida no que se
convencionou chamar observação científica, assume uma centralidade no pro-
cedimento de criação e justificação do conhecimento.

Problematizando, inicialmente, as condições que faz da experiência sensível uma


observação científica, sublinhamos, sobretudo, o como a observação só pode se
realizar enquanto invenção, ainda que as ciências não o digam abertamente.
Alcançando essa inteligibilidade, vamos desnaturalizando alguns pressupostos
da epistemologia científica e acenando as possibilidades contra-epistemológicas 439
do conhecimento.

Sem desprezar a força da modalidade epistêmica das ciências e seus efeitos (mo-
nocórdios) sobre a experiência do conhecer, queremos judiciosamente indicar
a possibilidade de maneiras heurísticas irredutíveis às ciências consagradas sem
deixar, num mesmo movimento, de questionar a univocidade das ciências como
linguagem legitimadora da experiência do conhecer.

Assim, a contrapelo do que postula as ciências de matriz baconiana que acre-


dita conhecer quando expurga os idolas da percepção (BACON, F., 1984), esse
ensaio indica a possibilidade do conhecimento pelos signos artísticos (assumin-
do despudoradamente o sentir enquanto invenção) quando acessa e agita todo
idola da percepção comungado entre os homens.

À medida que tomamos a ocasião criadora do conhecimento por meio de ativi-


dade de natureza artística, efetivamente apontamos a possibilidade de um pen-
samento pela arte numa clara digressão ao pensamento científico técnico em-
pirista, sem com isso atribuir um sentido negativo às ciências, instaurando uma
espécie de julgamento contra Galileu como disserta Paolo Rossi (1992).
Ressaltamos, por fim, que todo e qualquer processo de formação do pensamento
não é alheio aos processos de subjetivação (ROLNIK, S., 2019). Nessa perspecti-
va mostramos o como a matriz de experiência hegemônica do conhecer pressu-
põe um sujeito epistêmico que corresponderia a uma tabula rasa, desprezando a
subjetivação implicada no processo do conhecer. Por outro lado, explorando as
relações possíveis entre signos artísticos e a produção de conhecimento, indica-
mos uma maneira de pesquisar que não apenas se reconhece, em sua tessitura,
nos processos de subjetivação em curso, como tem na subjetivação seu escopo.

Com isso, por meio dos signos artísticos, queremos evidenciar uma modalidade
de produção de conhecimento que assume o processo de subjetivação no qual
está imerso, e ao fazê-lo não deixa de mostrar-se como uma atividade que se
realiza coletivamente, ativando a sensibilidade daqueles que o vivem, como
assinala Carvalho (2019).

Portanto, a condição do conhecimento pelos signos artísticos, reportando a uma


relação calcinada da existência com uma peculiar e potente inexatidão do sen-
440 tir, faz dessa situação cognoscitiva uma experiência, tomando essa expressão
nos termos de Larrosa (2002), isto é, como algo que nos acontece, que nos toca.
SIGNOS ARTÍSTICOS E CONHECIMENTO: UM ENSAIO CONTRA-EPISTEMOLÓGICO

Uma experiência coletiva em que, por um golpe sub-reptício, no sensível po-


de-se encontrar fraturados os idolas comungados da percepção, condicionando
um pensamento insurgente.

A experiência sensível na observação científica


Demorando-se sobre a experiência sensível implicada no processo de formação
do pensamento, não podemos desprezar a importância que assume na observa-
ção científica a propósito do projeto de racionalidade técnica na Modernidade.
Com o Novum Organum de Francis Bacon (obra produzida em 1620) por meio
do qual, como o diz Alberto Oliva (1990), criou-se uma concepção amplamente
aceita da atividade do conhecer, dominando o que se tem proclamado sobre a
ciência moderna, é inegável a assunção decisiva da observação como elemento
genuíno do conhecer ou, o que neste caso dá no mesmo, da formulação do dis-
curso de conhecimento.
O sentir, subsumido no termo da observação científica, desde o século XVII
vem constituindo contexto de garantia da formação e da justificação do discurso
legítimo de conhecimento, numa clara desqualificação das outras linguagens
também com pretensões de dizer algo sobre o homem e sobre o mundo.

As diversas maneiras em que o homem fixava e fixa entendimentos comungados


sobre o que lhe acontece (os mitos, as histórias orais, os discursos religiosos...),
com o projeto da racionalidade técnica científica tornam-se linguagens sem sen-

CURRÍCULO E ESTÉTICA DA ARTE DE EDUCAR


tidos na medida em que apelam para seres não observáveis.

Essa perspectiva de uma racionalidade segregacionista que atribui à observação


científica valor epistêmico decisivo na distinção entre o que é conhecimento
válido e o que é linguagem sem sentido, forma uma matriz da experiência cien-
tífica dominante que alcança os debates sobre metodologias científicas através
dos tempos1.

Mas o que é o sentir ou o que é o ver depreendido na observação científica, tão


decisivo na formulação desse tipo de pensamento? Sob esta interrogação, eluci-
441
dando alguns pressupostos das ciências modernas, nos servirá de fio condutor
para colocar em discussão o que seria, por outro lado, o sensível implicado nas
artes como dispositivo também de formação de pensamento, embora de um tipo
de pensamento diferente das ciências.

Assim, no horizonte técnico científico baconiano, o ver como elemento epistê-


mico intrínseco a observação científica é um ver indiferenciado, caracterizado
por uma suposta correspondência biunívoca, estável e invariante entre o que é
visto e seu estímulo gerador (OLIVA, A., 1990).

Há, dessa maneira, uma condição para o ver a fim de que tenha valor epistê-
mico, isto é, o ver ou o sentir na observação científica não se dá de qualquer

1 Seria demasiado pretensioso, com esse ensaio, fazer uma genealogia das ciências, traçando como o faz Gaston Bachelard, Ale-
xandre Koyré, George Canguilhem, Thomas Kuhn e Paul Feyerabend uma história das ciências que é feita por rupturas semânticas,
epistêmicas e ontológicas. Incorremos, com o limite posto por esse texto, em deixar de ver algumas nuances distintas, dando a
impressão ilegítima de continuidade a um rebento histórico que atravessa os séculos. Contudo, vale destacar que no século XX,
entre as duas Grandes Guerras, se reuniam na cidade de Viena cientistas e filósofos para discutir questões pertinentes às ciências,
impulsionando as reflexões sobre método científico. E, vale destacar que o Círculo de Viena ou positivistas lógicos ou neoposi-
tivistas, como eram conhecidos, constituídos, dentre outros representantes, por Moritz Schlick, Rudolf Carnap e Otto Neurath,
debatiam o valor epistemológico da verificação na produção de um conhecimento científico.
maneira, antes ele só é possível como resultado de uma espécie de assepsia do
olhar, isto é, o olhar nas ciências só tem valor epistêmico quando dele é subtraí-
do tudo o que se interponha entre o olho e o estímulo sensível.

Francis Bacon (1984), arauto dessa perspectiva do conhecer, aponta que tudo
o que constitui a subjetivação é um empecilho para que o ver venha tornar-se
observação científica. Ele declara a possibilidade da observação científica no
espectro de um combate aos idolas da percepção, segundo ele, fontes de todas
as ilusões, isto é, um combate às condicionalidades da subjetivação humana
(educação, tradição, comunicação, etc.).

Assim, atribuindo aos idolas a ação de opacizar o ver, prejudicando a acepção


exata do que é visto, nesse horizonte baconiano, o ver implicado na observação
científica só é possível (se é que é possível) quando se gora a ação daquilo que
constitui a subjetivação. O sujeito epistêmico é uma espécie de tabula rasa, fun-
cionando apenas como uma máquina registradora inerte.

Portanto, para que o ver ganhe inteligibilidade científica, o homem que vê no


442 sujeito epistêmico é um estorvo relegado a um plano residual. Para observar, o
homem precisa aniquilar-se. Com isso, com a pretensão de eliminar os idolas
SIGNOS ARTÍSTICOS E CONHECIMENTO: UM ENSAIO CONTRA-EPISTEMOLÓGICO

pertinentes a subjetivação para que o ver torne-se observação científica, numa


reverberação surda, o cientista no subterfúgio de sua técnica, simultaneamente
e num mesmo movimento, ignora (no sentido de que não vê) os aspectos éticos-
-estéticos-políticos, demasiado humanos, que inevitavelmente estão imbricados
em sua atividade legitimadora de um discurso de conhecimento2.

Podemos dizer, como o faz Japiassu (1988), que o principal critério no qual as
ciências se orientam não é o homem e seu processo de subjetivação, mas o
próprio conhecimento. Nesse sentido, não é estranho quando Nietzsche (2009)
diz em seu aforismo 1 do Prólogo de Genealogia da Moral: “Nós, homens do
conhecimento, não nos conhecemos; de nós mesmos somos desconhecidos [...]”
(p. 7).

2 A este respeito, sendo mais preciso, como o faz Thomas Kuhn (2017), os cientista não ignoram os aspectos éticos-estético-políticos
implicados na produção do conhecimento científico, mas esses aspectos sobrevêm ao cientista, mormente, nas situações em que o
paradigma em que as ciências se desenvolvem é colocado sob uma crise irremediável em decorrência de efeitos anômalos dentro
do próprio paradigma.
Mas que conhecimento é esse das ciências? O que se quer alcançar com o ver
da observação científica? Diferentemente do contemplar do homem antigo e
medieval, o ver na observação científica moderna busca alcançar uma “lógica”
que os antigos não sabiam, intrínseca aos fenômenos da natureza.

O alcance do ver na observação científica é a “lógica” intrínseca aos fenômenos


sobre os quais se debruça. Essa “lógica”, sob os auspícios da observação e numa
linguagem rigorosamente desvencilhada de toda palavra metafísica, expressa

CURRÍCULO E ESTÉTICA DA ARTE DE EDUCAR


um conhecimento de vocação praxiológica.

Portanto, conhecendo a “lógica” intrínseca aos fenômenos da natureza, o co-


nhecimento científico torna-se um instrumento universal na mão do homem por
meio do qual se vê habilitado a controlar, dominar e transformar a natureza. No
horizonte baconiano, o entendimento tem voz de comando sobre a natureza.
Em virtude de seu valor praxiológico, o que importa é o conhecimento que serve
de instrumento de domínio sobre a natureza.

Acirrando essa vocação praxiológica da ciência inaugurada por Bacon, chega-se


443
a uma linguagem científica que não se reduz a explicar os fenômenos, mas uma
linguagem com a pretensão de pre-ver os fenômenos e prever para dominar. O
ver, subsumido na observação científica se dimensiona em pre-ver à medida que
inevitavelmente se interpõe entre o olho e o estímulo visível as “lógicas inferen-
ciais” supostas no que é visto, tornando substitutos eficientes do sensível. A as-
sunção de uma linguagem matemática hipostasia uma realidade que se interpõe
no ato do ver3.

A ciência moderna, de todo modo, suscitou uma linguagem distinta. Derivada


do que se convencionou chamar por observação, essa linguagem se dimensiona,
por marcadores matemáticos, em categorias de identidade que tornam iguais os
que são diferentes, em lógicas inferenciais que enredam o acontecer em fórmu-
las de probabilidade cujo conhecimento torna-se ferramenta de manipulação,
controle e domínio.

3 Enfatizando a racionalidade empírico-formal de matriz baconiana, não podemos deixar de mencionar a racionalidade lógico-
-formal de matriz galileneana com seus intercessores matemáticos por meio dos quais cria a linguagem de conhecimento sobre
a natureza. Sobre essa matriz galileneana há um importante trabalho de Alexandre Koyré (1991) intitulado “Estudos de história
do pensamento científico”. Apesar das distintas nuances entre as duas matrizes de racionalidade, as mútuas interferências entre
ambas foram muito importantes para o desenvolvimento da epistemologia científica, influenciando fortemente o debate do Círculo
de Viena no século XX.
Assim, a propósito do ver subsumido na observação científica, nos perguntamos
se ele não seria uma modalidade de idola, a contragosto do postulado baco-
niano. Colocando dessa maneira, entendemos que os idolas que o projeto de
racionalidade baconiano tanto se esforçou para se desvencilhar, pelo mesmo
esforço não pode deixar de produzir seus próprios idolas. Mais do que uma
eventualidade indesejada na epistemologia científica baconiana, isso indica a
pertinência necessária dos idolas na composição da ação do ver. Eles funciona-
riam, sobretudo, como códigos que coordenam o ver, e a ciência, ainda que não
o diga, soube criar os seus.

Por meio da arte,


uma possibilidade contra-epistemológica do conhecer
Evidenciando a invenção do ver na observação científica, inevitavelmente va-
444 mos desnaturalizando pressupostos pretensamente atemporais das ciências mo-
dernas. Não queremos com isso, como já é sabido, apequenar o valor das ciên-
SIGNOS ARTÍSTICOS E CONHECIMENTO: UM ENSAIO CONTRA-EPISTEMOLÓGICO

cias, mas problematizar sua univocidade na atividade do conhecer, realçando o


valor dos signos artísticos como possível cognoscitivo e numa perspectiva con-
tra-epistemológica.

Ensaiando algumas distinções com os pressupostos da epistemologia científica,


dizemos inicialmente de uma arte que, diferentemente das ciências, assume em
sua atividade que um sensível só é possível porque criado. No rastro de Pasolini
como perfaz Deleuze (2018), não concebemos os signos artísticos4 como ex-
pressão correspondente ao real, uma espécie de decalque do real, mas como o
que realiza o real.

4 Tomamos por referência os estudos de Gilles Deleuze sobre cinema. Assim, vale ressaltar os riscos de uma argumentação espúria
que assume esse ensaio, pois apropriando do trabalho do filósofo francês sobre imagens na arte cinematográfica, não deixa de
extrapolar suas reflexões para falar de signos artísticos em geral. Destacando o limite desse texto, contudo, reiteramos que não é
pretensão aqui definir o que são os signos artísticos, muito menos explorar as teorizações produzidas nesse campo do conheci-
mento, mas apenas tangenciar sentidos de signos artísticos na medida em que nos ajuda a pensar o que é o sensível suscitado por
eles e a relação com o pensamento/conhecimento.
Dito de outra maneira, os signos artísticos não funcionam como uma função
cognitiva que desvelaria (no sentido de tornar visível) uma suposta realidade
preexistente, antes eles produzem a realidade, eles produzem o sensível. Tería-
mos, por conseguinte, de nos perguntar afinal o que é o sensível inventado e a
experiência sensível que se sabe invenção pelos signos artísticos.

De todo modo, não estamos diante de uma questão fácil de resolver. Todavia
podemos indicar que uma experiência sensível que se sabe invenção não é um

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sentir indiferenciado (se é que é possível um sentir indiferenciado). Sentir é sem-
pre sentir alguma coisa, e um sentir que se sabe invenção não pode desprezar a
positividade que comporta os idolas da percepção (para recuperar uma expres-
são baconiana) na invenção do sensível. Os idolas, dessa forma, não são os que
opacizam o ver, antes são os que realizam o sensível. Assim, nos perguntamos
se os signos artísticos seriam aqueles que tomariam partido dos idolas na realiza-
ção do sensível, se também não inventariam seus idolas como fazem as ciências,
mas de maneira declarada.

Os idolas como condicionalidades da subjetivação formam uma gravidade de- 445


masiado humana. Eles realizam o sensível, mas o realizam na medida em que o
capturam numa sensação familiar e submetem o sentir e a coisa sentida a coor-
denadas habituais. Assim, tomando partido dos idolas, a experiência sensível
nas artes, como nas ciências, se abriria antes como um pre-ver, um pre-sentir.

No imbricamento entre a experiência sensível e o pensar5, as consequências cog-


noscitivas seriam o equacionamento entre sensível e pensamento condicionado,
isto é, o sensível suscitado se equivaleria a pensamento condicionado ou melhor
se subjugaria a pensamento condicionado como indica Samain Etienne (2012).

A experiência sensível seria demasiadamente já sabida e não teríamos mais o


que pensar, aliás, não teríamos mais o que experimentar. Como nos diz Mosé
(2011) o conhecido torna-se um eficaz substituto da experiência sensível,

5 Há de se apontar que uma genealogia desse imbricamento seria esclarecedor. Aqui apenas indicamos que essa relação, com
modulações distintas no tempo, é notada desde a Antiguidade quando se atribuía o sentido a theorein (referente de teoria, conhe-
cimento, pensamento) como “ver/fazer ver” ou “contemplar”. Michel de Certeau (2012) também recupera esse sentido antigo em
“A Invenção do Cotidiano”.
[...] Desta forma, cada vez mais, apenas o conhecido é visto, porque
somente ele é passível de identificação, de reconhecimento. Uma
nova impressão, quando atinge a vista, quando chega à consciência,
ou é reduzida a uma outra já conhecida, ou é eliminada como desti-
tuída de sentido. [...] (p. 119).

Com isso, nos indagamos se os signos artísticos se reduziriam a meios nos quais
os idolas professariam sua palavra ou se eles podem outra coisa. Indagamos se
seriam tão somente enredamentos significantes educando nossa sensibilidade
ou se comportam forças a-significantes. Enfim, haveria uma experiência sensível
e um pensar distintos nas artes que não se confundem às pre-visões, aos pré-sen-
timentos e ao já sabido?

De certa forma, Deleuze (2018) também se fez essas perguntas e vislumbrou


signos artísticos6 que tornam difusos os centros de gravidade, que “[...] não
reproduz um mundo, mas constitui um mundo autônomo, feito de rupturas e
desproporções, privado de todos os seus centros, dirigindo-se como tal a um
espectador que já não é centro de sua própria percepção. [...]” (p. 62).
446
Os efeitos anômalos que suscitam abrem a experiência sensível a um excesso
insuportável, a um irrepresentável, a uma virtualidade que tem força de fazer os
SIGNOS ARTÍSTICOS E CONHECIMENTO: UM ENSAIO CONTRA-EPISTEMOLÓGICO

idolas confessarem que nem tudo eles mostram, que muito lhes escapam. Sem
os referentes habituais, a experiência sensível fica sob uma deriva.

Desta maneira, suscitando o sensível, afirmamos uma perspectiva em que os sig-


nos artísticos fazem da experiência uma atividade precária, instável e cambiante
onde algo imprevisível e indômito nos acontece, algo sobre o qual não temos
o menor controle (o que seria inaceitável na praxiologia científica). É uma ex-
periência clínica, como nos diz Neves e Josephson (2001) tomando os sentidos
filológicos de klinos e klinamem, isto é, uma deriva ou desvio de um ponto de
direção estabelecido.

6 Trazendo as reflexões de Deleuze sobre o cinema, é importante destacar que o filósofo francês, fortemente influenciado por Henri
Bergson, distingue o cinema clássico do cinema moderno pelo modo em que as imagens são construídas. O cinema clássico, de
maneira geral, seria caracterizado pelas imagens-movimento, isto é, imagens submetidas a uma espécie de percepção pragmá-
tica, governadas por esquemas sensórios-motores, orientadas para um campo de ação cujo repertório indica uma forma homem
e uma forma mundo estereotipados. Já o cinema moderno se realizaria em imagens-tempo, isto é, imagens em ruptura com os
esquemas sensório-motores, tornando a ação impossível e tomando a percepção por um excesso, alcançando um limite em que
a forma homem e a forma mundo perdem suas feições habituais, por isso o que torna visível é insuportável. Assim, explorando os
efeitos dos signos artísticos na invenção do sensível, o fazemos tomando por referência principalmente a perspectiva criada pela
imagem-tempo do cinema moderno, ainda que o cinema clássico já indicasse a potência própria às imagens.
Nessa feita, enquanto as ciências normalizam a experiência de produção do
conhecimento, tornando as ocasiões de crises paradigmáticas (KUHN, 2017)
ocasiões de exceção, o escopo do trabalho com signos artísticos é a produção de
crises, é tornar a experiência sensível uma imprecisão e, por isso, uma atividade
clínica-crítica.

Concebendo o estatuto precário, clínico e crítico da experiência sensível susci-


tada nas artes, o conhecimento que produz não pode deixar de mostrar-se em

CURRÍCULO E ESTÉTICA DA ARTE DE EDUCAR


seus aspectos éticos-políticos no quais, quem conhece, se vê na impossibilidade
da neutralidade. Uma experiência sensível que se sabe invenção, ressaltamos,
não pode ser indiferenciada. Com Rolnik (2019), entendemos que pensar é in-
surgir-se, é resistência ao poder que nos encerra e nos domina, poder cujos efei-
tos, vale dizer, são cada vez mais sutis e insidiosos.7

Assim, os efeitos cognoscitivos pelos signos artísticos não pautam o conhe-


cimento em si ou a forma do conhecer, como o fazem as ciências, mas o
homem e a subjetivação em curso. E, numa experiência crítica, podem desdo-
brar-se num processo de resistência ética-política às configurações de poder 447
que nos atravessam.

Aproximações conclusivas...
O modo como fazemos pesquisa em Educação, seus pressupostos subjacentes,
suas balizas nas quais nos orientamos e suas regras constitutivas não são estra-
nhas a própria concepção que fazemos de Educação, precisamente a própria
concepção que fazemos de uma educação escolar. Afinal, como a concebemos?

Instalações, distribuições de espaço e de tempo, regras oficiais de funciona-


mento, políticas regulamentares, pensamentos pedagógicas, etc., como um
frondoso frontispício, formam uma camada em que se prescreve (muitas vezes

7 No campo da Educação, temos vivenciado esses efeitos simultaneamente sutis e insidiosos do poder com a Base Nacional Comum
Curricular que, sob uma unidade pretensamente totalizadora apoiada no discurso da universalização da educação, cria uma série
de condicionalidades concretas que trabalham na desvalorização das singularidades locais e regionais em que homens diversa-
mente se constituem. A proposta da Base Nacional Comum Curricular é, assim, um importante mecanismo de gestão com vistas a
projetar “performances” mensuráveis de um aluno abstrato (MACEDO, E., 2015), caracterizado pela prescritividade sobre o vivo
no que ele tem de singularização (CARVALHO, J. M.; SILVA, S. K.; DELBONI, T. M. Z. G. F., 2017).
surdamente) importantes sentidos de Educação. Todavia, os sentidos que já aí
podemos depreender são demasiados exteriores ao cotidiano escolar e a suas
gentes, quando não sabemos ainda como participam na própria feitura de um
cotidiano escolar.

Contudo, isso não significa que seus sentidos ganham toda sua significação
quando, por outro lado, seus elementos constitutivos são como que escalonados
a uma espécie de mentalidade de grupo ou a uma espécie de representação so-
cial batizados por idolas comungados, como num quadro estável de percepções
e pensamentos que definiriam a identidade das gentes que aí participam.

À medida que entramos em escolas, vivenciamos algo que não se reduz a essa
exterioridade formal, muito menos que se encerra nessa espécie orgânica de
interioridade mental. Nas palavras de Giorgio Passerone (1988), citando Artaud,
vivenciamos um cotidiano escolar sacudido por um fora subexterno mais inau-
dito que todo interior.

Um cotidiano escolar atravessado sobremaneira por intermitências onde proli-


448 feram acontecimentos silenciosos, obras desprezadas de saltimbancos ordiná-
rios em que, de maneira indômita, gentes e coisas se mostram em texturas im-
SIGNOS ARTÍSTICOS E CONHECIMENTO: UM ENSAIO CONTRA-EPISTEMOLÓGICO

pensadas de uma vida inorgânica. É sob seus efeitos terríveis que vemos uma
educação se expor com seus operadores de subjetivação e, simultaneamente,
é sob seus efeitos terríveis, numa estranha afinidade, que somos enlevados a
focos de criação.

Colocando-se a altura desse cotidiano, mostramos o como uma epistemologia


científica, em sua forma ritual consagrada, é vocacionada a neutralizar os efeitos
anômalos dessa experiência terrível. Indicamos, por outro lado, a possibilidade
de produção de conhecimento senão fazendo da própria pesquisa uma ocasião
terrivelmente crítica suscitadora de crises.

Explorando a relação entre a experiência sensível e o conhecer, mostramos o


como signos artísticos, pela instabilidade da experiência sensível que suscitam,
podem produzir uma experiência limite de homem e de mundo, uma experiên-
cia em que algo imprevisivelmente nos acontece, interpelando-nos a subjetiva-
ção em sua processualidade.
Dessa maneira, em balizas contra-epistemológicas, acenamos a possibilidade de
experiências cognoscitivas que se dimensionam naquilo que há de terrível num
cotidiano escolar. Experiências cognoscitivas com signos artísticos que, em com-
posições coletivas e intensivas, podem resultar em pensamentos insurgentes, em
subjetivações subversivas contra o que nos encerra e nos domina.

CURRÍCULO E ESTÉTICA DA ARTE DE EDUCAR


449
Referências
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SIGNOS ARTÍSTICOS E CONHECIMENTO: UM ENSAIO CONTRA-EPISTEMOLÓGICO

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CURRÍCULO E ESTÉTICA DA ARTE DE EDUCAR


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451
452
TÍTULO

20.
MATERIAIS ARTÍSTICO-

CURRÍCULO E ESTÉTICA DA ARTE DE EDUCAR


NARRATIVOS, COTIDIANOS
E FORMAÇÃO DOCENTE:
FLUXOS APRENDENTES
COLETIVOS NA
PERSPECTIVA DAS
453

EPISTEMOLOGIAS DO SUL

Graça Reis
Inês Barbosa de Oliveira
Marina Santos Nunes de Campos
Graça Reis (CAp/UFRJ e PPGE/UFRJ) 1

Inês Barbosa de Oliveira (PPGE/UNESA e UERJ)2


Marina Santos Nunes de Campos (CAp/UFRJ)3

O compartilhamento de experiências, possibilitado por meio da produção de


materiais artístico-narrativos, traz em si uma possibilidade de produção de no-
vas narrativas potencializando processos de (auto)formação docente (CAMPOS,
REIS, 2019) e de aprendizagens coletivas viabilizadas pela interação entre su-
jeitos e de cada um com sua própria história e trajetória. Nesses processos, di-
ferentes sujeitos desaprendem (SANTOS, 2018; OLIVEIRA, no prelo) aquilo que
antes sabiam, e se reconstituem, “lembrando de outro modo” o anteriormente
sabido. Essas narrativas nos possibilitam, também, perceber que os saberes que
atravessam a docência e a produção de currículos estão para além do que hege-
454 monicamente se pensa conhecer sobre eles, penetrando em esferas individuais
e coletivas em que conhecimentos, afetos e interações operam conjuntamente,
FLUXOS APRENDENTES COLETIVOS NA PERSPECTIVA DAS EPISTEMOLOGIAS DO SUL
MATERIAIS ARTÍSTICO-NARRATIVOS, COTIDIANOS E FORMAÇÃO DOCENTE:

de modo indissociável. Fazemos esta afirmação a partir do projeto que vimos


desenvolvendo e que se configura como espaçotempo de (auto)formação. Temos
trabalhado a partir dos diálogos produzidos em espaços coletivos, entendendo
que estes se configuram como espaçostempos de ação–reflexão-ação num pro-
cesso circular e contínuo.

Central em nossas pesquisas é a opção teórico-epistemológico-metodológica


pela busca do estabelecimento de relações mais ecológicas (SANTOS, 2004) en-
tre diferentes conhecimentos e práticas sociais, privilegiando uma concepção de
mundo mais integrada e democrática. Por isso, consideramos ser fundamental
o trabalho com a troca de experiências vividas para a formação docente. Nesse
sentido, temos compreendido que ao trabalhar com professores precisamos estar

1 Professora Associada do CAp/UFRJ e do Programa de Pós-graduação em Educação da UFRJ. Doutora em Educação pelo Proped/
UERJ e membro (consultora ad hoc) do GT Educação Fundamental da ANPEd.

2 Professora Titular da Universidade do Estado do Rio de Janeiro e Professora Adjunta da Universidade Estácio de Sá. Membro do GT
Currículo da ANPEd e ex-presidente da ABdC (2015-2019).

3 Professora Assistente do CAp/UFRJ. Mestre em Educação e doutoranda do Proped/UERJ.


implicadas com o processo de formação de adultos. Para Josso (2010, p. 34), o
adulto, por seu status antropológico e sociológico, necessita de propostas que
valorizem os processos formativos (GARCIA, 2013) experienciados ao longo de
suas existências, que transcendem os conhecimentos formais, se tecendo como
uma rede plural de conhecimentos interdependentes sem hierarquias entre eles,
como alerta Boaventura (SANTOS, 2007) ao propor a ecologia de saberes como
característica das epistemologias do Sul.

CURRÍCULO E ESTÉTICA DA ARTE DE EDUCAR


Na ecologia de saberes cruzam-se conhecimentos e também igno-
râncias. Não existe uma unidade de conhecimento, assim como não
existe uma unidade de ignorância. As formas de ignorância são tão
heterogêneas e interdependentes quanto as formas de conhecimento.
Dada essa interdependência, a aprendizagem de certos conhecimen-
tos pode envolver o esquecimento e em última instância a ignorância
de outros. Desse modo, na ecologia de saberes a ignorância não é
necessariamente um estado original ou ponto de partida. Pode ser
um ponto de chegada. Pode ser o resultado do esquecimento ou da
desaprendizagem implícito num processo de aprendizagem recíproca
(SANTOS, 2007, p. 87).

455
Nessa interdependência entre diferentes conhecimentos em processos perma-
nentes de aprendizagem-desaprendizagem, percebemos que quem narra suas
experiências fala sobre si mesmo experienciando de outro modo, e reflexiva-
mente, aquilo que viveu. No processo de narrar, professores podem identifi-
car sua criação curricular cotidiana, tendo a possibilidade de rever e reformu-
lar concepções (JOSSO, 2010) lembrando de outro modo daquilo que criou e
desenvolveu, o que Boaventura identifica com a desaprendizagem, ao afirmar
que “desaprender não significa esquecer. Significa lembrar de modo diferente”
(SANTOS, 2018, p. 261). As experiências vividas em sala de aula, processos de
criação de currículos e conhecimentos, e os processos de reflexão a respeito
delas desenvolvidos nas e pelas narrativas docentes são formadoras, na medida
em que contribuem para que esses docentes reflitam sobre o vivido e o criado,
passando a lembrar de outro modo, desaprendendo o já sabido. Nesse sentido,
a partilha de experiências numa roda de conversa pode contribuir para a atribui-
ção no presente de outros significados ao vivido no passado, gerando reflexões
e novas experiências ao grupo.
Assim, nos aliamos à proposta de investigação-formação (JOSSO, 2002) usando
“a abordagem biográfica como um instrumento ao mesmo tempo de formação
e de pesquisa” (JOSSO, 2010, p. 133), pautando, para isso, nossa pesquisa no
compartilhamento de narrativas de histórias de vida e experiências vividas nas
escolas, percebendo que estas são/estão sempre imbricadas. As narrativas com-
partilhadas são compreendidas como relatos de autoria tanto de criação curri-
cular quanto de histórias de vida que contam partes das histórias da educação
brasileira e o seu compartilhamento proporciona, além de outras criações cur-
riculares, uma formação centrada na experiência que vimos denominando de
(auto)formação.

Nos aliamos, também, às epistemologias do Sul já que por meio desse processo
trabalhamos em prol da desinvisibilização e reconhecimento de conhecimentos
criados nos cotidianos escolares pelos docentes – numa prática associada à so-
ciologia das ausências e das emergências –; entendemos que esses saberes estão
em diálogo e que este se dá entre instâncias e dimensões não hierárquicas, inter-
dependentes na vida e nas práticas docentes – como na ecologia de saberes; e
456
que esses currículos criados nos cotidianos são uma tessitura artesanal, não imi-
tável nem reproduzível em escala. Quanto a esse último item, Santos afirma que:
FLUXOS APRENDENTES COLETIVOS NA PERSPECTIVA DAS EPISTEMOLOGIAS DO SUL
MATERIAIS ARTÍSTICO-NARRATIVOS, COTIDIANOS E FORMAÇÃO DOCENTE:

O artesão não trabalha com modelos estandardizados, não faz duas


peças iguais, a sua lógica de construção não é mecânica, mas de re-
petição-criação. Os processos, as ferramentas e os materiais impõem
algumas condições, mas deixam espaço para uma margem significa-
tiva de liberdade (SANTOS, 2018, p. 72).

As artes de fazer (CERTEAU, 1994) docentes na criação curricular seriam, nesse


sentido, uma produção artesanal, processo artístico permanente de reinvenção
dos modos de fazer, como aliás, a arte é, mesmo neste período histórico em que
muitos dos seus produtos podem ser reproduzidos ad infinitum, mas não como
criação artística.

As histórias de vida se fundam na exploração da história pessoal tendo como ob-


jetivo pensar que a formação se dá a todo o tempo e que por meio dela é possível
(re)pensar percursos e mudar trajetos, ou seja, a formação é contínua, cotidiana e
singular (REIS; FLORES, 2014). Singular porque cada aprendizagem só acontece
se vinculada aos entrelaçamentos das redes que se tecem ao longo da vida. Isso
nos leva à compreensão de que as aprendizagens só são possíveis de dentro para
fora, contextualizadas ao que já temos e, portanto, de que toda formação é (auto)
formação e todo conhecimento é autoconhecimento (SANTOS, 1985).

As histórias de vida em formação “são práticas multiformes de ensaio de cons-


trução de sentido por meio de fatos temporais vividos pessoalmente” (PINEAU,

CURRÍCULO E ESTÉTICA DA ARTE DE EDUCAR


2006, p. 333) que se inscrevem como práticas reflexivas, pois se dão como es-
paçotempo de (auto)formação, no próprio curso da vida. Valorizar a sua própria
experiência amplia o conceito de formação questionando as referências habi-
tuais e hegemônicas, pois “entrega ao próprio sujeito o encargo de seus proce-
dimentos de formação e a definição de suas necessidades” (DELORY-MOMBER-
GER, 2008, p. 94).

Temos podido, com isso, contradizer discursos sobre a escola e seus sujeitos que
ocasionam visões tristes e pesadas a respeito daquilo que ela é. Dessa forma,
temos produzido o que denominamos pistas sobre a criação curricular cotidiana 457
e a formação docente, trazendo a profissão docente para um lugar de fazer-saber
autoral e criativo.

O uso das narrativas é compreendido também como forma de desinvisibiliza-


ção de experiências que têm sido desperdiçadas por uma lógica monocultural
hegemônica (SANTOS, 2010) intrínseca à concepção moderna de escola e ao
modelo social no qual ela se inscreve. Por meio das narrativas, pode-se compar-
tilhar experiências e práticas curriculares locais desinvisibilizando e legitimando
dessa forma a produção dos diferentes sujeitos e dos diversos conhecimentos,
tecidos cotidianamente. Temos consciência de que nem todas as experiências-
-praticadas compartilhadas se traduzem em “realidades emancipatórias” (OLI-
VEIRA, 2012), mas entendemos que “o conhecimento emancipação é um co-
nhecimento local criado e disseminado através do discurso argumentativo e que
só pode haver discurso argumentativo dentro de comunidades interpretativas”
(SANTOS, 2010, p. 95). Compreendemos, então, a importância de sair do lugar
das metanarrativas, que são somente uma idealização porque narram o que é
pensado e não o que existe, propiciando espaços e tempos de narrativização das
experiências-praticadas que intentam discutir e argumentar sobre os processos
emancipatórios, criados e por criar.

Nesse sentido, a pesquisa investigação-formação que envolve as narrativas tem


nos mostrado que há experiências curriculares diversas, formadoras e emanci-
patórias que não estão nos “manuais de ensino”, pois professoras e professores
estão longe de serem consumidores passivos de pacotes e novas metodologias
apresentados pelas secretarias de educação, são sim, produtores/as (CERTEAU,
1994) de currículos e conhecimentos, pois no interior dessa escola e de muitas
outras espalhadas pelos cantos e esquinas, visivelmente invisíveis, professores e
professoras estão a construir e reconstruir experiências, fazendo e refazendo a
história, sem glórias, anonimamente (PRADO; MORAIS; ARAUJO, 2011, p. 59).

Por isso, é necessário desinvisibilizar essas produções e as narrativas desses su-


jeitos a fim de exercitarmos o não desperdício de experiências proposto por
Santos (2010) expandindo assim o presente, incorporando a ele essas tantas exis-
tências invisibilizadas, e possibilitando a concretização de um futuro possível.
458 Para “expandir o presente” é necessário, então, viver e narrar, na perspectiva de
multiplicar as experiências que se apresentam por meio das diversas formas de
FLUXOS APRENDENTES COLETIVOS NA PERSPECTIVA DAS EPISTEMOLOGIAS DO SUL
MATERIAIS ARTÍSTICO-NARRATIVOS, COTIDIANOS E FORMAÇÃO DOCENTE:

ser e estar no mundo. Essa expansão do presente deve então ser um tempo de
reconhecimento de experiências, pensando que estas são vividas por sujeitos
sociais singulares, “cuja diferença não pode ser reduzida à uniformidade, [deve
ser] uma diferença que se mantém diferente” (HARDT; NEGRI, 2005, p. 139).
Podemos pensar as narrativas como outras formas de viver o presente, atribuindo
sentidos às experiências ao invés de desperdiçá-las, desconsiderando suas exis-
tências e validade. (CAMPOS; REIS, 2016, p. 112).
Os bordados como memória:
a narrativização do afeto
Para o trabalho com os materiais narrativos, temos usado diferentes procedimen-
tos: conversas gravadas, vídeos com entrevistas, depoimentos gravados, produ-
ção de memoriais, de narrativas de experiências curriculares e também os bor-
dados, que consideramos como materiais artístico-narrativos.

CURRÍCULO E ESTÉTICA DA ARTE DE EDUCAR


Sennet (2009) diz que a mão, dentre todas as partes do corpo huma-
no, é a que detém o maior número de movimentos possíveis, princi-
palmente movimentos controlados conscientemente. A mão, por ser
capaz de obedecer às vontades do homem, demonstra para o autor
uma ligação evidente: mãos e cérebro devem ser ligados. O artífi-
ce é aquele que tem uma mão inteligente e no bordado isso pare-
ce particularmente verdadeiro. O bordado é uma técnica que, quão
mais tempo for praticada, mais naturalmente será executada. É uma
imagem comum e milenar a bordadeira que realiza trabalhos de alta
complexidade com rapidez, sem sequer olhar para o trabalho. Suas
mãos têm uma inteligência própria (GIL, 2018, p. 19)

459
Os bordados livres, técnica que temos usado, têm origem na pré-história, e o
primeiro ponto utilizado foi o ponto cruz com agulhas feitas de ossos e o fio
feito de fibras de vegetais ou tripas de animais. Assim costuravam suas roupas
e estima-se que já naquele tempo as roupas começaram a ser adornadas com
bordados, juntamente com artigos de suas casas.4

O bordado livre, ao longo da história, tem se mostrado um reflexo das culturas


e das experiências vividas por aqueles e aquelas que bordam. Temos percebido
um crescimento do número de coletivos de bordadeiras que se unem para bor-
dar sobre diferentes temas com um viés bem político e atual, pois o bordado se
configura como:

expressão estética, inserida em uma rede produtiva, o bordado produz


encantamento e reciprocidade, incorpora ações e representações por
meio de seus agentes e pode ser concebido como um processo de
comunicação, nos mais variados níveis (LAGROU, 2002). Bordados
trazem em si narrativas sobre quem os produz, apresentam contextos

4 Retirado de: https://www.sites.google.com/site/bordadosuniversal/a-historia-do-bordado. Acesso em: 29/08/2020.


de produção, de distribuição e de recepção das peças, envolvem re-
lações sociais, criadas em torno da arte de bordar (de BRITO, 2013,
p. 145)

Nesse processo de construção das narrativas em nossa pesquisa, usamos o bor-


dado de duas formas: a primeira como um projeto que pretendeu marcar poli-
ticamente um tempo de luta pela docência em função de uma série de ataques
vividos na profissão e a segunda como processo narrativo de fechamento de
diferentes encontros. Assim, o primeiro projeto que realizamos aconteceu em
2018 e se deu a partir do mote relatado abaixo:

No final do ano de 2016, vivemos o golpe jurídico-político-midiático que subs-


tituiu a presidenta eleita, Dilma Rousseff, por seu vice-presidente, Michel Temer.
Durante o ano de 2017, começamos a viver tempos em que os discursos sobre a
docência remetiam a profissão ao status de incompetência, manipulação e culpa
pelos problemas enfrentados na Educação brasileira, desconsiderando todos os
demais problemas ligados a financiamentos, políticas curriculares realistas, re-
460
muneração digna, situação socio-econômica de alunos, entre outros.

Começamos a precisar reafirmar a todo tempo o que nos foi garantido por meio
FLUXOS APRENDENTES COLETIVOS NA PERSPECTIVA DAS EPISTEMOLOGIAS DO SUL
MATERIAIS ARTÍSTICO-NARRATIVOS, COTIDIANOS E FORMAÇÃO DOCENTE:

da Constituição Federal de 1988 no que se refere à liberdade de aprender, en-


sinar, pesquisar e divulgar o pensamento, a arte e o saber e ainda o respeito ao
pluralismo de ideias e de concepções pedagógicas. O projeto de lei Escola sem
Partido, por exemplo, adentrou com força na sociedade, buscando criminalizar
professores e professoras por suas práticas pedagógicas.

A fim de afirmar a importância da escola e da universidade como espaço de


liberdade de cátedra e também a docência como profissão que produz saberes
fundamentais para a o livre pensar, tão necessário à formação de uma sociedade
crítica, reflexiva, com respeito à liberdade e apreço à tolerância, lançamos o
projeto: “A Docência nos fios da memória”.

Nossa intenção era homenagear professores e professoras que trabalham/traba-


lharam cotidianamente na educação/formação de todos nós. A ideia era recupe-
rar memórias registrando afetos e conhecimentos, sempre importantes, produ-
zidos por docentes ao longo de suas vidas. Elegemos o bordado para expressar
nosso profundo respeito aos professores e ao seu trabalho e, por extensão, às
milhares de crianças e jovens que todos os dias vão às escolas e lá passam parte
fundamental de suas vidas.

Queríamos construir um trabalho compartilhado – que pudesse ser exposto em


diferentes espaços –, bordando um grande painel que mostrasse as marcas da
escola e da universidade e a importância de ambas. Acreditamos, dessa forma,
que poderíamos construir coletivamente um retrato do que de fato são e foram as

CURRÍCULO E ESTÉTICA DA ARTE DE EDUCAR


marcas da docência em nossas histórias. Essa foi, em nosso ponto de vista, mais
uma forma de resistência necessária aos tempos vividos5.

Lançamos o desafio nas redes sociais e para cada interessado/o, enviamos pelos
Correios os tecidos cortados no tamanho especificado.

Como resultado recebemos, além dos bordados, narrativas que mostravam o


quanto a escola e os professores estão/são marcas na vida dos sujeitos.

461

5 As professoras responsáveis pelo projeto foram: Cristina Miranda, Graça Reis, Olinda Evangelista, Rita Ribes e RitaVaz.
O ano era 1970, e eu, uma garota com seus sete anos recém-chega-
dos. Ela, uma jovem iniciando o caminho da docência...
O lugar... uma vila de agricultores sem luz elétrica, sem mercado ou
água encanada.
A escola... duas salas com carteiras compartilhadas entre duas turmas
de séries diferentes, uma cozinha, onde os alunos preparavam a me-
renda, e uma casinha lá atrás, usada como banheiro e rota de fuga
quando as dificuldades na sala se apresentavam.
A professora... Dona Âmbar Maria Fabeni, que chegou trazendo uma
imensa vontade de ensinar e um olhar terno e respeitoso sobre nossas
deficiências de acesso ao conhecimento letrado. Logo percebeu que
o conhecimento ali não vinha de livros, mas das vivências de crianças
roceiras de pés descalços, roupas e falas simples.
A cor... o azul-marinho das saias e congas do uniforme da Escola
Isolada de Cabras.
A escola era espaço sagrado, e a professora, a pessoa a quem devía-
mos todo o respeito, pois era quem substituía nossos pais no espaço
coletivo enquanto eles estavam em seus afazeres na roça.
Brincadeiras de roda, caderno de música, observação das nuvens, pi-
quenique no gramado e descida do morro em casca de coqueiro. Ela,
senhora do conhecimento, trazia para nós o olhar do mundo, dos
livros e revistas, que não conhecíamos.
462
Meu olhar de menina olhava para o mundo através dos ensinamentos
trazidos por ela com a certeza de que havia aquele centro caloroso
FLUXOS APRENDENTES COLETIVOS NA PERSPECTIVA DAS EPISTEMOLOGIAS DO SUL
MATERIAIS ARTÍSTICO-NARRATIVOS, COTIDIANOS E FORMAÇÃO DOCENTE:

que ela emanava: “Nunca deixes de estudar; teu futuro será brilhan-
te”.
Cresci, estudei muito e ainda estudo. Nunca mais soube do seu des-
tino. Sou sempre muito grata pela sua forma de me mostrar que o
mundo é imenso e ultrapassa as montanhas que me cercavam naque-
la vila.
Com ela, aprendi a olhar para fora do meu pequeno Universo!
Rozemar Maria Candido
CURRÍCULO E ESTÉTICA DA ARTE DE EDUCAR
463

Uma experiência de encantamento. Como desdobramento da dis-


ciplina Mídia e Arte-educação, desde o período universitário venho
atuando no Cineduc (Cinema e Educação), entidade sem fins lucrati-
vos que realiza, desde os anos 1970, significativo trabalho educativo
na área audiovisual. Foi dessa atuação que cultivei a paixão pelos
brinquedos ópticos e por todo o período do pré-cinema, que se con-
solidou nos temas de meu mestrado e doutorado. Impossível traduzir
aqui a importância em minha formação e a quantidade de atividades
realizadas com o Cineduc em todos esses anos, especialmente junto
à Marialva Monteiro e à Rê Fernandes.
Minha homenagem à cine-educadora Marialva Monteiro. Sua paixão
pelo Cinema, assim, com letra maiúscula mesmo, sua força de mulher
nordestina e seu ideal de fazer do cinema um meio para a educação
libertadora produziram marcas profundas em minha trajetória!
Gratidão, Marialva querida!!!
Cristina Miranda
464
Para quem viveu os anos de escola do Ginásio (agora anos ‘finais’ do
ensino fundamental) nos anos 1970 a memória contempla um am-
FLUXOS APRENDENTES COLETIVOS NA PERSPECTIVA DAS EPISTEMOLOGIAS DO SUL
MATERIAIS ARTÍSTICO-NARRATIVOS, COTIDIANOS E FORMAÇÃO DOCENTE:

biente de muitos silêncios...de uma Pedagogia tecnicista controlada


de fora e dentro da escola. Mas pela sempre possível presença de
quem interroga, formula e desenvolve práticas de transgressão. A me-
mória também contempla o que nos fazia ‘respirar’ nas aulas.
Daí emergiu para minha celebração no bordado, à professora Do-
lores, ensinando Geografia. Com astúcia política e nos encantando
com seus trajes saia e casaco de mesmo tecido, justos, suas blusas
com decotes, modelando seu corpo que desfilava solto e vibrante nos
corredores de uma escola ginasial encharcada de passos duros, rou-
pas escuras e golas altas! Anos de controle social...e assim também
na escola!
A Geografia que a professora Dolores nos propunha, sempre sentada
sobre a mesa ‘professoral’, inclinando-se para nós em cúmplices con-
versas...foi uma Geografia do movimento humano, da transitoriedade
dos territórios...da ação humana. Ela nos fecundava o olhar curioso
e reflexivo! A mim, por certo que coube herdar temperos fortes de
sua Pedagogia, em busca da ocupação das aulas como atividade de
potencial emancipação. Uma memória preciosa para bordar e saudar
a sempre possível transgressão na educação.
Vânia Beatriz Monteiro Silva
A partir da leitura dos textos e do material bordado, pudemos perceber o quanto
as experiências escolares e as atitudes docentes influenciam e influenciaram
positivamente esses adultos que decidiram compartilhar, por meio de bordados,
essas experiências. Narrativas complementares, bordados e falas se juntam para
formar um “desenho” de experiências escolares vividas por essas bordadeiras,
que se dispuseram a participar do projeto. Nelas elas expressam respeito, gra-
tidão e reconhecimento das qualidades de suas professoras para além dos con-

CURRÍCULO E ESTÉTICA DA ARTE DE EDUCAR


teúdos que ensinavam, mostrando o quanto as redes de conhecimentos, sujeitos,
afetos (CARVALHO, 2009) que habitam as escolas e que vêm sendo atacadas
pelos discursos de demonização docente (SÜSSEKIND; PINAR, 2014) e contra
os quais buscávamos nos insurgir naquele momento são importantes, formado-
ras e vão muito além dos problemas de aprendizagem formal ou de políticas
educacionais precárias e precarizantes.

É importante ressaltar que, além das homenagens indicadas acima, recebemos


também narrativas e bordados que contavam sobre a produção curricular das
autoras bordadeiras, muitas, professoras, mostrando o quanto essas narrativas
465
artístico-verbais ajudam a compreender os modos como a docência ocorre em
diferentes espaçostempos escolares, consolidando-os como espaços de criação,
de invenção envolvendo elementos estético-expressivos, tão negligenciados
pelo pensamento cognitivista hegemônico.
Em 2017, entrei em contato com autismo em sala de aula pela pri-
meira vez na minha vida. Foi difícil, doloroso em alguns momentos,
mas também foi muito bonito e engrandecedor. O bordado retrata o
dia em que meu aluno participou pela primeira vez da aula de artes
visuais, integrando-se ao grupo e à proposta... Foi um momento emo-
466 cionante para mim, para turma e para ele. Sua presença na escola mu-
dou muitas coisas, transformando o ambiente e as relações humanas,
espalhando sensibilidade e movimentando barreiras... Muito carinho
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por essa vivência.


Sulamita Inácio Freire
CURRÍCULO E ESTÉTICA DA ARTE DE EDUCAR
467

Meninos e meninas chegam à escola (pública) cada um ao seu modo,


cada um com sua história e trama. Sentar e escutá-los na Roda de
Conversa é sempre um caminho que venho tentando trilhar para bus-
car conhecê-los e organizar centros de interesses.
Há um grupo significativo de crianças que sempre usam da resposta
pronta:
— Tia, tenho nada para falar não.
Suas vozes são sempre baixinhas, olhar cabisbaixo, semblante fecha-
do e pouca participação. Isso incomoda-me profundamente.
Sei que meu papel é acolher todos os alunos e alunas. Minha cabeça
fervilhava de ideias para tentar uma conexão principalmente com os
mais envergonhados.
Um dia, tive uma inspiração após assistir a um filme. Comecei a con-
feccionar 32 estrelas de papel em pulseiras de neon com a seguinte
frase: Deixe sua estrela brilhar!
Na sala de aula, entreguei a crianças uma por crianças e fui puxando
a conversa de como elas eram especiais.
Lancei a proposta de construirmos um mural representando as 32 es-
trelas existentes na nossa turma. Cada aluno(a) foi fazendo releituras
de si, alguns coloram seus nomes e outros desenhos de autoimagem.
A sala borbulhava, mas de algum modo percebi brincadeiras e gestos
que deixavam evidentes atitudes racistas. A boca, o cabelo, a cor, os
olhos dos colegas retratados nas atividades eram motivos de risos e
muita “zoação”. Alguns tentando não ser foco da ironia começaram a
descaracterizar suas feições de seus traçados.
Naquela ocasião tomei esse episódio como pista para delinear o pro-
jeto da turma. Ficava evidente que o trabalho central a ser desenvol-
vido precisava considerar o corpo e a cor como temática urgente.
Pensar a valorização da nossa cultura negra era tão importante quanto
alfabetizá-lo.
Ao longo de nossos encontros passamos a mergulhar na historiografia
e, os corpos negros silenciados pela escravidão cada vez mais pare-
ciam sensibilizar as crianças.
Lembro-me da preocupação em buscar outras histórias, fontes, mú-
sicas, personalidades e literaturas possíveis para ampliar o repertório
com práticas antirracista.
Fomos bebendo das fontes da literatura infantil com representativida-
468
des negras e de personalidades marcantes para criamos uma árvore da
resistência negra com Nelson Mandela, Martin Luther King, Dandara
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dos Palmares, Dona Ivone Lara, Marielle Franco, a cantora Iza (refe-
rência escolhida pelas crianças) e tantos outros.
Diversão, escrita, concentração, movimento, leitura, música, choca-
lho reciclável, batida, descompasso e descoberta permearam nossas
aulas. Fomos estabelecendo modos outros de criar e lidar com conhe-
cimentos construindo com o cotidiano escolar.
Vira e mexe meninos e meninas começaram a expressar suas ances-
tralidades a partir de seus corpos e de seus desejos de dizer e escrever.
A escrita de Alexsandro, 8 anos, diz muitas coisas: “Negro precisa ser
feliz. Precisa trabalhar. Precisa viver na vida com a sua família. Pre-
cisa de paz. Negro não pode ser maltratado. Negro é um da gente”.
Aline Santos de Lima Ramos
A partir da leitura dos textos e do material bordado, pudemos perceber o quan-
to nas memórias daqueles e daquelas que contaram suas histórias marcantes
por meio dos bordados e das narrativas escritas, há também uma marca da
criação curricular cotidiana, presente tanto nas vozes das professoras que bor-
daram suas práticas, quanto daquelas que foram narrando as histórias que vi-
veram nas escolas.

Esse primeiro trabalho foi exposto na Reunião da ANPED 2019 na Universidade

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Federal Fluminense, em Niterói6.

469

6 Imagem do arquivo pessoal


Num segundo momento, começamos a usar os bordados nos encontros de for-
mação, buscando, usar os bordados como um fechamento do curso, como um
registro daquilo que emergia/emerge nos/dos encontros.

Nas narrativas bordadas, faladas e escritas, cada praticante docente vive e narra
os processos pedagógicos e formativos nos quais está/esteve envolvido, os mo-
dos de estar no mundo e de conhece-lo que lhe são próprios, fornecendo pistas
valiosas sobre o que aconteceu/acontece no cotidiano das escolas em que tra-
balha e trabalhou. Assim, com Manguel (2001), afirmamos que “uma imagem
dá origem a uma história que, por sua vez, dá origem a uma imagem” (p. 24)
noção relevante para todo o trabalho aqui narrado, mas especialmente nas duas
expressões artístico-narrativas que se seguem. Entendemos, ainda, que essas nar-
rativas ampliam nossas possibilidades de pesquisa, porque trazem elementos da
complexidade do real. Desse modo,

veremos a imagem como linguagem rica, possuidora de vários có-


digos e, nesse sentido, também de uma dimensão textual... Nesse
particular, não isolaremos a imagem dos outros sistemas de represen-
470 tação, particularmente do verbal (no nosso caso, representado pelos
documentos não-oficiais), tanto mais que as imagens aqui abordadas
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pressupõem, na maior parte dos casos, a co-presença da palavra (CA-


LADO, 1994, p. 20).

Portanto, a combinação que propomos entre bordados e depoimentos, assume


um caráter, para nós e nossos autores, de uma narrativa, expressa em diferentes
“suportes”, mas que se complementam, uma assumindo a co-presença da outra.

Selecionamos, assim, três imagensnarrativas dessa segunda experiência de tra-


balho com os bordados, desta vez sem palavras. No ano de 2019 fomos convi-
dadas pelo Projeto de Extensão “Águas no planejamento municipal: discutindo
a educação ambiental na gestão das bacias hidrográficas no médio vale do rio
Paraíba do Sul e na região metropolitana do Rio de Janeiro” do Instituto de Geo-
grafia da UFRJ em parceria com o Colégio de Aplicação da mesma universidade
para realizar uma atividade de formação com professores/as que estavam par-
ticipando de um curso de extensão. O pedido era o de se fazer uma conversa
sobre a potência do trabalho com as memórias na (auto)formação docente. O
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encontro foi dividido em dois momentos, o primeiro teórico, onde discutimos
o texto enviado previamente e falamos da importância desse compartilhamento
das experiências curriculares na produção de novas experiências.

No segundo momento, ousamos produzir materiais a partir de tecidos, fios e


linhas. Alguns professores e professoras tomaram as agulhas e experimentaram
tecer seus fios de memórias, outros/as, usaram cola para trabalhar com os seus
fios e tecidos. Ao final, todos/as apresentaram seus trabalhos também oralmente, 471

contando o processo de confecção e falando de si, vivendo a experiência de


narrar sua história docente por meio da elaboração de seus trabalhos7.

Os docentes participantes da formação escreveram também suas memórias sus-


citadas por meio do encontro e do trabalho com os fios e panos. No entanto,
apenas o material tecido ficou conosco. As narrativas-memórias escritas foram
entregues às coordenadoras do projeto e, com o período de isolamento8, não ti-
vemos a oportunidade de pegar o material para ser transcrito. Com isso, optamos
por não trazê-las apenas a partir do que nos lembramos, já que, como sabemos,
memórias criam, e podem não tratar com a fidelidade necessária as narrativas
dos nossos interlocutores.

Os tecidos trabalhados foram levados por nós, transformados em almofadas e,


devolvidos às coordenadoras do grupo.

7 Imagens cedidas pelo Projeto Águas no planejamento municipal: discutindo a educação ambiental na gestão das bacias hidrográ-
ficas no médio vale do rio Paraíba do Sul e na região metropolitana do Rio de Janeiro

8 Em 2020, estamos vivendo um período logo de isolamento social em função da pandemia de COVID-19.
Considerações finais
Evidenciando neste texto o quanto materiais artístico-narrativos podem promo-
ver fluxos de aprendizagens, de si e da docência, que contribuem para a (auto)
formação de professores, buscamos valorizar as possibilidades inscritas em ou-
tros modos de fazer e de formar, de provocar saberes não formais, que emergem
de outras racionalidades que não a cognitiva.

As narrativas de si presentes nos bordados e nas histórias contadas por eles e


com eles se combinam em processos coletivos de aprender, sobre si e sobre o
mundo, e promover, a partir daí, uma ecologia de saberes, como pressupõem as
epistemologias do Sul (SANTOS, 2007), estabelecendo relações mais igualitárias
entre diferentes saberes e racionalidades.

Especificamente percebemos, nas diferentes narrativas, a valorização da cultura


negra, do cinema como fonte educativa, de uma geografia mais política do que
física, todas elas práticas narradas nos e pelos bordados e por aquelas que os
fizeram. Teceram histórias, trazendo seus afetos tecidos nas e com as escolas em
472
que estudaram ou nas quais trabalha(ra)m. Lembranças amorosas de professoras
marcantes, ou de um aluno incluído no grupo, lembranças pedagógicas de ativi-
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dades vividas em que estilos de docência se teceram, de experiências discrimi-


natórias e busca da superação delas.

E todo esse exercício forma, coletivamente, docentes, renovando perspectivas


otimistas inscritas em experiências de caráter emancipatório – ecológicas e so-
lidárias – trazendo, assim, para o cento da mesa aquilo que defendemos com as
epistemologias do Sul: o reconhecimento e a valorização da pluralidade episte-
mológica do mundo e das possibilidades do exercício da cidadania horizontal
pela solidariedade.

Reconhecemos, assim, nas situações e experiências bordadasnarradas, possi-


bilidades emancipatórias e coletivas de formação e, portanto, de tessitura de
mais práticas que contribuam para que a escola crescentemente se democratize,
promovendo relações cada vez mais igualitárias entre diferentes conhecimentos
e sujeitos, entendendo, ainda, que não será algo novo ou revolucionário, mas
tão somente o fruto da proliferação de reconhecimentos do que já existe, em
busca de promoção do que pode existir, nas escolas que conhecemos, conforme
entendemos ser possível usar a sociologia das ausências nas nossas ações e pes-
quisas. Como isso, somos levados à necessidade de

mergulhar nos mundos nela (a escola) existentes tornados invisíveis


pelos estudos dos modelos escolares e educativos. Assim, as possi-
bilidades de ampliação da visibilidade das práticas/existências esco-
lares/educativas não-oficiais repousam sobre a identificação dessas
práticas, pela possibilidade de libertá-las do lugar de inexistência e

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inferioridade à qual vêm sendo relegadas devido à sua pouca cientifi-
cidade, à rearticulação dos diferentes aspectos da complexidade vivi-
da nas escolas, à valorização, enfim, das singularidades e das formas
alternativas de se estar no mundo, de compreendê-lo, de senti-lo [e de
expressá-lo] (OLIVEIRA, 2008, p. 84).

Valorização da arte e das possibilidades que ela traz de subversão do status


quo em relação ao que deve ou não estar presente nas escolas e processos de
formação docente, ao que é importante nos processos, sempre contínuos, de
aprendizagens e desaprendizagens – do pensamento moderno, suas hierarquias
e exclusões – que ampliam a compreensão do que existe e pode existir nas expe- 473
riências escolares e no quanto são formadoras. Os fluxos aprendentes aos quais
nos referíamos no título são precisamente esses processos contínuos de forma-
çãoação, nos quais diferentes formas de expressão nas narrativas de si têm uma
contribuição real, e nos permitem professar, apesar de tudo, algum otimismo.

Professores resistem aos ataques, enriquecem seus processos de formação, dia-


logam com pares e produzem aprendizagens coletivas dentrofora das escolas. E
é por isso que podemos pensar na contribuição dessas formaçõesaçõesnarrativas
em andamento para a tessitura de um mundo melhor. São aprendizagens, faze-
ressaberes por meio do uso desses materiais artístico-narrativos que alimentam
“a possibilidade de certo otimismo, pois permite reconhecer que não estivemos
parados, que a luta pela democracia tem aliados em diferentes campos de saber/
pensar/sentir/fazer e já está em andamento” (OLIVEIRA, 2013, p. 198).
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TÍTULO

476

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