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História e imagem

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Alexandre Carneiro Cerqueira Lima
(Organizador)

História e imagem
múltiplas leituras

Niterói, 2013
Copyright © 2013 by Alexandre Carneiro Cerqueira Lima (Organizador)
Direitos desta edição reservados à Editora da Universidade Federal Fluminense 
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É proibida a reprodução total ou parcial desta obra sem autorização expressa da Editora.
Normalização: Maria Lúcia Gonçalves
Revisão: Alexandre Carneiro Cerqueira Lima
Capa e projeto gráfico: Alternativa Editora e Produção Cultural
Desenhos: Patricia Vivian von Benkö Horvat
Supervisão gráfica: Káthia M. P. Macedo

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)


asdf História e imagem: múltiplas leituras / Alexandre Carneiro Cerqueira Lima (Organizador).
– Niterói : Editora da UFF, 2013.
127 p. : Il. ; 23cm.

Inclui bibliografia
ISBN 978-85-228-0981-3
BISAC HIS000000 HISTORY

1. História Antiga. I. Lima, Alexandre Carneiro Cerqueira.


CDD 930
UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE
Reitor: Roberto de Souza Salles
Vice-Reitor: Sidney Luiz de Matos Mello
Pró-Reitor de Pesquisa, Pós-Graduação e Inovação: Antonio Claudio Lucas da Nóbrega
Diretor da Editora da UFF: Mauro Romero Leal Passos
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Assessora de Comunicação: Ana Paula Campos

Comissão Editorial
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Gizlene Neder
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Humberto Fernandes Machado
Luiz Sérgio de Oliveira
Marco Antonio Sloboda Cortez
Maria Lais Pereira da Silva
Renato de Souza Bravo
Editora filiada à
Rita Leal Paixão
Simoni Lahud Guedes
Tania de Vasconcellos
SUMÁRIO

A, 7

I   , 9


Pauline Schmitt Pantel

L    :     


   , 29
François Lissarrague

O  I:     , 41


Patricia Vivian von Benkö Horvat
Claudia Beltrão da Rosa

É         


":       
    , 55
Ana Livia Bomfim Vieira

I       


:         M
A, 67
Alexandre Carneiro Cerqueira Lima,
Márcio Mendes de Lima,
Talita Nunes Silva,
Mariana Figueiredo Virgolino
Camila Alves Jourdan
Apresentação

O
presente livro é fruto de um profícuo debate ocorrido entre os dias 4 e
6 de outubro de 2011 no Auditório do Instituto de Ciências Humanas
e Filosofia da Universidade Federal Fluminense. O evento, que deu
origem ao título deste livro, História e imagem: múltiplas leituras, contou com
a presença dos professores Pauline Schmitt Pantel e François Lissarrague,
pesquisadores do Anhima dedicados há três décadas aos estudos de imagens
da cerâmica grega.1
O Colóquio contou com duas conferências, publicadas neste volume, e três
oficinas ministradas pelos referidos professores. As oficinas tiveram as seguintes
temáticas: “imagens e gênero”; “imagens e rituais”; e “em torno de Dionisos”. Além
dessas atividades, o evento proporcionou o III Encontro do Grupo de Pesquisa
Imagens, Representações e Cerâmica Antiga, composto pelos pesquisadores do
Nereida/ UFF, cujos trabalhos ajudam a compor esta obra.
O primeiro capítulo do livro, de Pauline Schmitt Pantel, intitulado “Ima-
gens e história grega”, discute a utilização das imagens da cerâmica helênica,
estudadas no decorrer do século XX, como “fonte histórica”. De acordo com
a autora, os historiadores utilizavam, inicialmente, a documentação imagética
de maneira ilustrativa. Manuais escolares e obras da de “vida cotidiana” na
Grécia não tinham a preocupação de trabalhar as imagens nos vasos por meio
de uma metodologia e referenciais teóricos. A alteração dessa postura se deu
nas últimas décadas do século XX, com autores interessados em dialogar com
outras disciplinas, especialmente com a Antropologia. Tais estudos buscaram
montar um corpus imagético e trabalhar as representações pictóricas a partir
de métodos que extraíssem informações, de modo a garantir uma melhor
compreensão acerca da cultura de uma determinada pólis.

1
O Núcleo de Estudos de Representações e de Imagens da Antiguidade (NEREIDA) obteve apoio financeiro
da FAPERJ para a realização do III Encontro do Grupo de Pesquisa “Imagens, Representações e Cerâmica
Antiga”.
8 Alexandre Carneiro Cerqueira Lima (Organizador)

O segundo capítulo, “Ler e olhar a imagem: balanço e perspectivas de


pesquisa sobre a imagética grega”, de François Lissarrague, apresenta um
levantamento atualizado das contribuições de diversas disciplinas para o
estudo das imagens. Além de uma rica discussão bibliográfica, Lissarrague
explica de forma clara e objetiva os projetos do ceramólogo Edmond Pottier e
do arqueólogo John Beazley para a catalogação de vasos gregos. Trata-se, pois,
de um texto crucial para pesquisadores brasileiros interessados em trabalhar
com as criações dos artesãos helenos.
Posteriormente, no capítulo intulado “Ontofanias de Io: Variações na Figu-
ração do Mito”, Patricia Horvat e Claudia Beltrão analisam as representações de
Io na cerâmica ática de figuras vermelhas e em pinturas parietais pompeianas.
Já as imagens de pesca e das técnicas utilizadas pelos pescadores da Ática são o
alvo das investigações de Ana Livia Bomfim Vieira no quarto capítulo, intitulado
“É preciso ao pescador um espírito pleno de sutilezas e prudências: as técnicas
da pesca nas imagens da cerâmica ática do período clássico”.
Desenvolvido por cinco autores, o último capítulo reflete a preocupação
dos pesquisadores do Nereida em incentivar o trabalho em equipe. No texto
“Imagens e representações forjadas por poetas e artesãos gregos: a circulação
de ideias e signos no Mediterrâneo Antigo”, Alexandre Carneiro, Márcio Mendes
de Lima, Talita Nunes Silva, Mariana Virgolino e Camila Alves Jourdan buscaram
explorar as representações criadas por artesãos e teatrólogos atenienses sobre
os corpos, a sexualidade, os ritos e a atuação de personagens míticos. Tais
“representações” não ficaram restritas somente na região da Ática, haja vista
que elas circularam em outras regiões do mundo helênico e no Mediterrâneo
Ocidental (Etrúria).
Isto posto, observa-se, neste livro, uma preocupação constante dos au-
tores em cruzar as informações de documentações de natureza distintas para
melhor compreender os fenômenos estudados. Desse modo, pode-se afirmar
que esta obra é fruto dos esforços de professores e de pesquisadores brasilei-
ros e franceses em apresentar suas pesquisas, a fim de estimular estudantes
e leitores interessados no assunto ao estudo de documentos imagéticos das
culturas antigas.

Alexandre Carneiro Cerqueira Lima


Imagens e história grega

Pauline Schmitt Pantel1

A
o se deparar com a imagem, o historiador do mundo grego antigo
tende a encontrar dificuldades, haja vista que sua formação tornou-o,
grosso modo, muito mais familiarizado com os textos do que com os
documentos iconográficos.Em função disso, pode se sentir despreparado fren-
te a essa massa de testemunhos que constitui a imagética da cerâmica grega.
Por isso, percebemos um descompasso muito nítido entre o que dizem alguns
arqueólogos e historiadores da arte, conhecidos como semiólogos da imagem,
e a forma como estes historiadores fazem uso, na maior parte do tempo, das
imagens, como se não houvesse nada de errado.
A mesma exigência crítica que conduz o historiador quando ele aborda
um texto – isto é, levar em conta todos seus componentes, seu gênero literário
e sua estrutura linguística, por exemplo –, deveria incitá-lo, da mesma forma, a
abordar as imagens, levando a questionar a si mesmo o que elas estão lhe ensi-
nando, tentando compreender como funcionava esse sistema de comunicação
no seio da cultura que a produziu.

I) Belas imagens: a imagem como ilustração

Ao examinar um certo número de obras da história grega de tipos muito


diferentes e destinadas a públicos variados, chegamos a essa constatação: a
imagem é utilizada, frequentemente, como ilustração de um discurso histórico,

1
Professora Emérita da Université Paris I – Panthéon Sorbonne. Este capítulo inicialmente foi escrito por
Pauline Schmitt Pantel e François Thelamon, em 1983, com o título “Image et Histoire: Illustration ou
Document”. In: Lissarrague, F. et Thelamon (Orgs.). Image et Céramique Grecque. Rouen: Publications
de l´Université de Rouen, 1983. Para a palestra do evento do Nereida de 2011 e para a presente obra, a
professora dra. Pauline Schmitt Pantel atualizou o texto e as referências bibliográficas. Texto traduzido e
adaptado pela Profª. ms. Denise Milon del Peloso.
10 Pauline Schmitt Pantel

inteiramente construído a partir de outros documentos, seja para corroborar


as fontes escritas, seja para comprovar alguma hipótese do historiador. No pior
dos casos, ela revela-se uma mera ilustração estética que poderíamos eliminar,
como acontece algumas vezes.
Uma amostra que inclui manuais,2 obras centradas em temas como
o trabalho (BOURRIOT, [1969]), a família (WLACEY, 1968), a vida cotidiana
(PICARD. 1930,1946,; FLACELIERE, 1959; BLANCK, 1976), obras de síntese
sobre a civilização grega pode servir como base para a reflexão (CHAMOUX,
1963, 1981).
Ainda que para os especialistas, historiadores da arte e arqueólogos,
que há muito tempo lidam com problemas relativos à iconografia, esteja bem
claro que as imagens – e inclusive as que nos interessam nesse caso: as ima-
gens pintadas em vasos gregos – são representações, construções intelectuais,
constatamos que em muitos casos as imagens são abordadas ou utilizadas
como figurações diretas da realidade cuja compreensão remete à evidência fo-
tográfica.3 É o que se confirma, por exemplo, na obra de Horst Blanck (1976, p.
12) sobre a vida privada dos gregos e dos romanos. Em seu estudo, entretanto,
alerta para a utilização das fontes iconográficas, levando-nos a observar que
as cenas representadas não são uma imagem fiel da realidade social porque
elas colocam frequentemente em cena comportamentos de luxo. A iconografia
é, portanto, concebida, nesse caso, não como uma figuração do real, mas sim
como uma representação do real; o escrúpulo é sociológico, mas não é evocada
a necessidade de um método para a leitura das imagens.
Em muitos casos, tudo se passa como se tal cena figurada sobre um
vaso grego – notadamente quando se trata de uma cena dita da vida cotidia-
na – fosse um instantâneo fotográfico capaz de, supostamente, fornecer ao
historiador uma informação concreta que pudesse ser diretamente utilizada.
A isto acrescentamos o procedimento do amálgama, que consiste em se referir
a uma documentação iconográfica subjacente jamais citada de forma precisa,
mas evocada por observações tais como “como representam as pinturas so-
bre vasos...”, “como os vasos mostram...” ou “as pinturas de taças do V século
revelam que...”, por exemplo.4

2
Manuais do sexto ano do ensino fundamental : Nathan, 1981 ; Belin, 1977 ; Larousse, 1977 ; o dossiê
pedagógico La vie publique à Athènes au Vè siècle, C. N. D. P., Paris, 1977. Podemos considerar a obra de M.
Meuleau (1965), como um manual destinado ao ensino superior.
3
Ver o aviso de F. Lissarrague e A. Schnapp (1981, p. 275-297).
4
Menções extraídas de Ch. Picard (1930).
Imagens e história grega 11

Na maioria das vezes, o discurso do historiador é construído primeira-


mente a partir de fontes escritas às quais ele dá prioridade, como se somente
estas fossem documentos. No livro de R. Flacelière, A vida cotidiana na Grécia no
século de Péricles [essa pode deixar em português, pois saiu o livro em português],
observamos uma verdadeira preocupação com as fontes, de modo que o autor
menciona, em mais de 3/4 dos casos, fontes escritas.5 O documento literário
é utilizado diretamente e até mesmo citado (tal como os textos de Platão ou
Aristófanes, por exemplo) enquanto a referência do documento iconográfico ou
arqueológico não é dada diretamente, apesar de uma descrição ter sido feita.
Quando decidimos considerar, aparentemente da mesma forma, textos e
imagens, recorremos, às vezes, a dois especialistas: o historiador da arte, que
faz uma seleção de imagens com referências, e o literário, que monta o dossiê
de textos. As duas partes justapostas poderiam até ser apresentadas separada-
mente; cabe ao leitor fazer sua síntese. Na obra de R. Flacelière e P. Devambez
(1966, p. 69), Héraclès. Images et récits, a própria estrutura da obra é justificada
pela margem existente entre textos literários e imagens, que é explicada da
seguinte forma: “Os primeiros nos dão uma representação do herói tal como
poderia desejar a elite do público”, enquanto “nas pinturas de vasos ou de
relevos é um Héracles muito mais popular que surge diante de nossos olhos”.
P. Devambez identifica “dois ciclos bem distintos, um popular e narrativo
explorado amplamente pelos pintores e escultores, o outro no qual se apoiam
os escritores e que dão margem para dramas psicológicos” (FLACELIÈRE; DE-
VAMBEZ, 1966, p. 70). Podemos contestar essa equação que diz que imagem se
iguala à tradição popular. Nesse sentido, observamos, na prática, que, na maioria
dos casos, a imagem isolada é apresentada como simples ilustração dos textos
antigos, algumas vezes para completá-los, mais raramente para infirmá-los ou
dar-lhes nuança.
Para muitos autores de obras históricas de diferentes níveis, a imagética
é uma espécie de reservatório no qual pegamos elementos para responder a ne-
cessidades diversas. A atitude mais simples é a de isolar elementos e de capturar
detalhes; podemos, assim, tirar do estoque das pinturas de vasos numerosas
informações sobre objetos diversos: móveis, roupas, armas, barcos, instrumen-
tos de música, ferramentas etc. Pedimos à imagem uma informação pontual e
factual, utilizando-a apenas como documento. Dessa forma, é possível extrair

5
Por exemplo, no Capítulo III: “Mariage et famille”, de um total de 95 notas nenhuma remete à iconografia;
no Capítulo VI: “Toilette et vêtements”, de um total de 61 notas, 13 remetem a imagens.
12 Pauline Schmitt Pantel

de uma imagem aparentemente desarticulada, sem coerência interna, informa-


ções precisas, mas certamente passamos ao largo de questões propriamente
históricas. Um exemplo que pode melhor ilustrar esta questão encontra-se na
pesquisa de H. Blanck. Aqui, o autor estabelece a nomenclatura dos diferentes
tipos de cintos, porém não vê que as imagens também nos informam que o uso
do cinto é determinado socialmente e ritualisticamente tanto para o homem
quanto para a mulher.
Além disso, pode acontecer também de o historiador buscar nesse
grande reservatório das imagens aquela que lhe convém – e, às vezes, um caso
único – para ratificar sua demonstração, corroborar suas hipóteses. Ora, talvez
não seja um método adequado isolar uma imagem da série na qual ela adquire
sentido, não levando em conta seus critérios iconográficos característicos, ou
até mesmo o local e a data de sua produção, nem a função do vaso sobre o qual
ela está pintada; assim, a expressão figurada de determinado esquema mítico
torna-se diferente, isto é, conforme ela aparece em um vaso do sexto ou do
quarto século por exemplo.6
Porém, a imagética funciona ainda mais frequentemente como um reser-
vatório de ilustrações intercambiáveis cuja escolha parece francamente arbi-
trária. É o caso dos manuais e obras de grande difusão, onde qualquer imagem,
produzida em qualquer lugar, em qualquer época, por vezes acoplada a textos
de uma outra época, pode servir. É verdade que o leitor praticamente não pode
perceber isso, porque quase sempre a data e a proveniência não são indicadas.
Assim, o livro de R. Flacelière sobre a vida cotidiana, constituído a partir
de fontes essencialmente literárias, foi primeiramente publicado sem ilustrações
e, posteriormente, como uma edição ilustrada de clube, mas sem que o texto
fosse modificado. Acrescentadas a um texto que as ignora, as imagens são exi-
bidas com uma perfeita desenvoltura: elas servem tão somente para conferir ao
livro um caráter de produto de luxo. A operação inversa é igualmente frequente:
uma obra cujo texto é escrito levando em consideração as imagens – ainda
que estas tenham sido tratadas como fotografias da vida dos gregos – primeiro
é publicada com um dossiê iconográfico e, em seguida, sem esse dossiê, em
uma edição de grande divulgação. Este foi o destino da obra de Ch. Picard, La
vie privée dans la Grèce classique,7 cujo texto só foi publicado novamente com

6
Ver, por exemplo, Hommes, dieux et héros de la Grèce, Rouen, 1982, n. 98 et 99, p. 238-243, a evolução
da figuração de Héracles no jardim das Hespéridas; H. Metzger (1951, p. 369-421).
7
Publicado nas edições Rieder, Paris, 1930, na coleção “Bibliothèque générale illustrée”. Ele continha um
texto contínuo de 101 páginas e um caderno com 60 pranchas.
Imagens e história grega 13

algumas modificações na coleção “Que sais-je?”. O dossiê fotográfico havia de-


saparecido, porém a utilização da iconografia como ilustração dos diferentes
temas foi mantida.
Mais do que os documentos escritos, a imagem é utilizada para ilustrar
as ideias preconcebidas: assim, no dossiê pedagógico sobre La vie publique à
Athènes au Ve siècle, uma cena de “visita à mulher casada”, descrita como sendo
uma exata representação da realidade, vem acompanhada do seguinte comentá-
rio: “Esta obra ilustra bem a ideia que nos fazemos habitualmente da mulher que
passa seus dias no gineceu”.8 Uma habilidosa montagem de elementos díspares,
arbitrariamente escolhidos nas imagens, que são citados como provas, porém
sem possuírem referência precisa e sem serem mostrados, permite construir um
discurso com uma conotação de veracidade, veículo da ideologia do momento
ou do etnocentrismo ordinário. Assim, no capítulo da La vie dans la Grèce anti-
que, no qual Ch. Picard aborda “A vida íntima nas moradias”, afirmam-se, com
grande apoio de textos e sobretudo de imagens, muitos lugares-comuns, como
“A limpeza era em homenagem [...]. Nos interiores modestos e no campo era
possível lavar-se perto do poço do pátio (textos e imagens como apoio). Havia
banhos [...], para homens e para mulheres [...] onde cada sexo banhava-se em
comum, na nudez primitiva [textos e imagens]. Os costumes não eram mais
desrespeitados que alhures. Os pintores das taças do V século nos desvelaram
alguns episódios, com um estilo século XVIII francês, de roupas íntimas: cenas
de depilação à luz da lamparina, de banhos parciais ou de lavagens em comum
[imagens]” (PICARD, 1946, p. 9). Justamente por ser uma leitura literal, aparen-
temente objetiva e completa, pode dar a ilusão de que o significado da imagem
está compreendido integralmente, inferindo que esta pode ser, mais ainda do
que no caso do documento escrito, manipulada ou mal conhecida.
Uma mesma imagem pode ser assim utilizada por diversos autores
que se apoiam em discursos diferentes: tomemos o exemplo da “sapataria”
representada sobre a péliké de Oxford 563, atribuída ao pintor de Eucharidés,
datada de 490-480 a.C. Ela é apresentada na obra L’Histoire générale du travail
com a legenda: “sapateiro tomando as medidas do pé de um cliente” (BURRIOT,
[1969], p. 36), vindo corroborar a menção no texto da “exiguidade dos ateliês”,
onde “instrumentos precários são pendurados na parede” Nesse sentido,
ela é utilizada também para dar uma nuança ao texto de Xenofonte sobre a

8
La vie publique à Athènes, p. 42.
14 Pauline Schmitt Pantel

especialização das tarefas quando da fabricação dos sapatos,9 descritas pelo


autor da seguinte forma: “Normalmente, mesmo em Atenas, os sapateiros tra-
balham de modo muito mais simples, como o indicam as pinturas dos vasos”
(BURRIOT, [1969], p. 208). M. Meuleau (1965, p. 462), no livro Le monde antique,
apresenta a mesma imagem com o título: “Os vendedores e sua clientela”, afir-
mando no texto: “Todo artesão era ao mesmo tempo fabricante e vendedor”,
acrescenta, ainda, sob a foto, o seguinte comentário: “ um jovem dandy manda
fazer seus sapatos sob medida.; O enfoque muda, então, de acordo com a técnica
e as condições de trabalho do artesão para o status social do cliente. W.K Lacey
(1968, p. 20) que, em sua obra sobre a família, utiliza a mesma cena com o título:
“Um jovem e seu pedagogo no sapateiro”. Assim, enfatiza primeiramente o que
ele considera como evidências: “Vemos... a pequena escala do artesanato em
Atenas” e também “um sapateiro está recortando...”. Em seguida, questiona-se
a respeito do status do personagem em pé à direita: trata-se do pedagogo do
jovem ou do proprietário do estabelecimento vigiando o trabalho de um escra-
vo? A primeira hipótese parece-lhe ser a mais provável, porém o autor não diz
o porquê. Podemos notar nesses três autores que os critérios iconográficos não
são levados em conta; a imagem não é descrita, haja vista que um certo número
de elementos cuja interpretação é difícil passam desapercebidos.
A situação é diferente na obra Les représentations d’artisans sur les vases
attiques,10 de J. Ziomecki. Porém, trata-se de um outro tipo de obra.11 A imagem
está inserida na curta série da qual ela faz parte – há, ao todo, três figurações
de sapateiros sobre os vasos áticos –, sendo descrita com precisão em diversos
momentos: atitudes, coroas sobre a cabeça dos personagens, longos ramos no
campo, mobília, instrumentos, operação técnica em curso. O autor que busca
“conhecer as técnicas de fabricação”, assim como “as relações sociais”, percebe
bem que ele só pode considerar essa cena como sendo uma figuração realista,
perguntando-se, em vários momentos, sobre o significado de certos elementos
que aparecem em determinadas imagens, mas que são perceptíveis, também,
em outras figuras, em particular, as coroas sobre a cabeça dos personagens e os
grandes caules vegetais em volta do homem em pé à direita,12 o banco de tipo

9
XENOFONTE, Ciropédica, VIII, II, 5; “Tal homem calça os homens, o outro, as mulheres; é até possível que
eles ganhem a vida contentando-se , um em costurar o couro, outro em cortá-lo, um outro em unicamente
cortar a parte de cima do sapato, um outro em unicamente juntar essas peças [...]”.
10
Wroclaw, 1975, doc. 38 et p. 35 ; 113 ; 116 ; 123 ; v. Jahn (1867).
11
Ver infra p. 16.
12
Loc. cit., p. 73; 83, 137.
Imagens e história grega 15

okladias e a grande bacia diante da mesa. Tais elementos, contudo, não eram
considerados pelos autores anteriormente mencionados.
Enfim, muitos belos dossiês fotográficos são apresentados nas obras de
síntese sobre a civilização grega;13 a abundância e a qualidade estética dessa
ilustração é muito sedutora, porém o autor, no seu texto, nunca nos remete a
ela diretamente. Embora faça referência a fontes literárias precisas, imagens
e discursos do historiador quase nunca se encontram. O autor delegou aos
outros “o cuidado de estabelecer a ilustração tanto com eficácia quanto bom
gosto” (CHAMOUX, 1981, p. 17), procedimento, aliás, frequente. A preocupação
com a estética prevalece, ao que parece, na escolha da ilustração; já no que
diz respeito à escolha das figurações de Héracles, R. Flacelière e P. Devambez
(1966, p. 70) nos dizia que ele não tinha procurado “nada além de uma diversão
para o olho do leitor”.

II) Imagens para a história:

Temas históricos e corpus de imagens

A imagem nem sempre é tratada com tamanha desenvoltura.14 Da mesma


forma que os filólogos que montam corpus de textos, os arqueólogos e historia-
dores da arte reúnem as cenas figuras e constituem grandes corpora em torno
de temas precisos. Com isso, eles fazem um estudo quantitativo, cronológico,
estilístico (seus trabalhos falam do “ornamento”) e retiram do estudo elementos
que a história pode utilizar. É, sobretudo, o caso de recentes estudos nos quais os
autores utilizam uma problemática histórica para produzir, a partir das imagens,
documentos próprios à história. Tais autores consideram, de fato, que esses
documentos iconográficos são fontes suscetíveis de completar, de enriquecer
os temas abordados pelo historiador e de responder a certas questões às quais
a documentação essencialmente textual do historiador não permite responder.
A questão parte da história e a resposta cabe unicamente a ela. Impomos às
imagens questões vindas de fora em vez de ficarmos atentos aos problemas

13
De F. Chamoux, voir supra n. 5.
14
Ver as coletâneas de artigos publicados em alemão: M. Kunze (1979) et H.Brunner, R. Kannicht, K. Schwager
(1979). A vontade metodológica anunciada pelo título de um colóquio: Méthodologie Iconographique,
Actes du colloque de Strasbourg, 17-18 avril 1979, éd. par G. SIEBERT, Strasbourg. 1981 não é seguida na
obra, conforme observa o próprio editor em seu prefácio: “Se fragmentos de doutrinas se destacam de
um seminário para o outro, como já ocorreu às vezes com as discussões orais, caberá ao leitor captá-los
e formulá-los”.
16 Pauline Schmitt Pantel

que ela mesma levanta.15 É aí que reside um dos limites do empreendimento,


qualquer que seja o campo considerado.
Corpora de imagens foram constituídos sobre os artesãos, os pastores,
os escravos, diferentes tipos de guerreiros (os hóplitas, os cavaleiros, os ar-
queiros), sobre as atividades no ginásio, a educação dos banquetes, a homos-
sexualidade, os trabalhos femininos, os casamentos, os funerais, sobre rituais
religiosos, personagens divinos ou heroicos, múltiplos episódios mitológicos,
entre outros. Sem retomar detalhadamente os ganhos obtidos com esses dife-
rentes estudos, tentemos reunir os tipos de informação que eles pensam poder
dar à história.
Tais conjuntos de imagens fornecem informações precisas sobre os
instrumentos, as técnicas de fabricação, os diferentes tipos de armamento, as
vestimentas, os penteados, a mobília, as técnicas do corpo, os gestos, a repre-
sentação do espaço. As informações sobre a cultura material são inumeráveis,
mas o risco é grande se estas forem isoladas do contexto geral da imagem, como
por exemplo, elencá-las apenas como artigos de enciclopédia.
Além disso, a imagem nos possibilita uma reflexão sobre diferentes práti-
cas sociais. Graças às representações de artesãos (ZIOMECKI, 1975), esperamos
poder conhecer melhor o tamanho dos ateliês, sua relativa especialização, a
estrutura do trabalho (livre ou servil); graças às representações dos escravos
(HIMMELMANN, 1971), reconhecemos sua importância e seu lugar na produção;
graças às imagens de cavaleiros (GREENHALGH, 1973), ou de banqueteiros
(FEHR, 1971 ; DENTZER, 1982), tomamos conhecimento sobre seu status social,
a função da cavalaria em diferentes épocas e em diferentes cidades e, conse-
quentemente, o papel de sociabilidade que é o banquete na cidade. Podemos,
até mesmo, ainda que raramente, tentar rastrear uma instituição política como
a dokimasia (CAHN, 1973) ou a recepção das embaixadas pela assembléia
(BERARD, 1977).
Em outros períodos históricos, a imagética grega permite uma aproxi-
mação das representações mentais dos cidadãos: a ideologia da guerra e da
morte heroica, a visão do bárbaro (olhar que insiste sobre a diferença e não
sobre a inferioridade) (BOVON, 1963), a posição dos artesãos ou dos escravos:
valorização ou desdém, o reconhecimento da bissexualidade (DOVER, 1982), o
lugar das mulheres no imaginário.

15
Este é o grande problema do documento-monumento. Para uma reflexão geral, conduzida a partir
unicamente dos textos, ver: J. Le Goff (1978) e para a cidade grega ver o artigo de N. Loraux, (1980). Esse
mesmo tipo de análise poderia ser feita para as imagens.
Imagens e história grega 17

Enfim, as imagens são objeto de discussão entre os historiadores nos de-


bates sobre o assunto. Como exemplo, podemos mencionar a polêmica quanto à
cavalaria e, em particular, a discussão sobre a data da constituição da cavalaria
ateniense, e o debate sobre a importância a ser dada à reforma hoplítica para
explicar as transformações econômicas, sociais e políticas do fim do período
arcaico (GREENHALGH, 1973, supra n. 32; SALMON, 1977; CARTLEDGE, 1977;
RIDLEY, 1973).
A datação, a princípio exata, das cenas de vaso funciona para sustentar
argumentos cronológicos: os vasos protocoríntios “permitiriam datar” o surgi-
mento da falange hoplítica (SALMON, 1977, supra n. 38), duas taças contendo
cenas de dokimasia “provariam” que a cavalaria ateniense existe desde o fim
do século VI a.C (CAHN, 1973, supra n. 34).
Esses corpora temáticos se mostram, por vezes, exaustivos. Entretanto,
segundo questões históricas, outras seleções e agrupamentos mais parciais de
imagens são efetuados. Procuramos cenas que representariam acontecimentos
históricos precisos (HOLSCHER, 1973) e os fantasmas de Maratona aparecem
em uma taça de Oxford.16 O simbolismo político também estaria expresso na
imagem. As cenas mitológicas e o gesto dos heróis se prestam a esse tipo de
leitura: a preponderância das representações de Héracles na cerâmica ática
do VI século a.C. está, por exemplo, associada à política dos Pisistrátidas
(BOARDMAN, 1972, 1975; GLYNN, 1981). Ninguém chega a falar em propaganda
mitológica de forma consciente, mas alguns veem nos temas míticos o reflexo
de mudanças históricas muito precisas.17
Todavia, a constituição de tais corpora encontra dificuldades e apresenta
problemas de método. Para melhor explorar esta questão, tomemos um exemplo
que resume bem os diferentes momentos em que a leitura “historicista” é revela-
da: o corpus das imagens de artesãos (ZIOMECKI, 1975, supra n. 31). No início da
pesquisa, uma primeira dificuldade aparece: a delimitação do corpus. Os artesãos

16
BARRETE; VICKERS, 1978, p. 17-24. O número dos guerreiros do friso do Partenon é posto em relação com
o número de mortos em Maraton por J. Boardman (1977).
17
Para Williams (1980), , a popularidade repentina de Ajax pouco antes de 500 a.c. refletiria o interesse
ateniense contemporâneo por Salamina. Mas seu artigo é bastante matizado, como também é sua
contribuição nessa coletânea : « Herakles, Peisistratos and the Alcmeonides » (v. infra pp. 131-141). É
muito menos matizada por outro lado, a interpretação feita por J. Defradas (1954, p. 123-156), do tema
iconográfico da disputa do tripé entre Héracles e Apolo. O autor procura e encontra o acontecimento que,
segundo ele, estaria na origem desse tema: a agressão dos povos da anfictionia de Antela (herói: Héracles)
contra o povo de Delfos (Focídios de Krisa ou de Delfos) antes do final do V século. O conjunto de imagens
poderia também ser o reflexo de uma vida religiosa: é assim que J. M. Moret (1982) interpreta, pela crise
que afetava as relações entre Atenas e Delfos.
18 Pauline Schmitt Pantel

seriam, unicamente, “as pessoas ocupadas em produzir objetos artesanais”, mas


excluímos as mulheres que se ocupam com tarefas consideradas como sendo
domésticas, inclusive fabricação de têxteis. Em seguida, limites são impostos
pela documentação: só encontramos representadas algumas profissões, com
foco mais voltado para os instrumentos do que para as operações técnicas. A
informação é, portanto, desigual. Enfim, o autor mostra que não há critérios
figurativos para designar e identificar o artesão (a não ser seus instrumentos)
nem para especificar seu estatuto (homem livre ou escravo). Contudo, a maior
dificuldade reside em todos os traços contidos nas imagens, que, muitas vezes,
não convêm para uma descrição “realista” dos artesãos: a nudez, o aspecto
juvenil, a presença de coroas sobre a cabeça, a presença de uma divindade etc.
O autor tenta interpretá-las, visualizando um procedimento para “glorificar os
personagens e adquirir seu respeito” (referindo-se assim à ideia do desprezo
dos artesãos que foi teorizada bem depois da produção dessas imagens).
Dessa forma, nos deparamos com as mesmas hesitações, as mesmas
ambiguidades quando do estudo do escravo, que pode ser o escudeiro e em
seguida o pais (jovem rapaz) das imagens, antes de aparecer sob um habitus
estrangeiro que o designa como sendo escravo (HIMMELMANN, 1971, v. supra
n. 32), independente do tema escolhido. Esse tipo de enfoque, que segue volun-
tariamente um corpus fechado, impede de dar conta de todas as interferências
entre as imagens. Esse fio diretor foi escolhido antes mesmo de olhar as cenas;
ora, a iconografia dos artesãos, se retomarmos esse exemplo, cruza com outras:
a dos belos jovens, a das cenas de culto, a da guerra por intermédio das armas,
a das cenas mitológicas, entre outras.
A separação entre “cena não mitológica” e “cena mitológica” apresenta
um problema. A imagem não mitológica seria uma reprodução do real, tal
como a cena mitológica reproduziria um texto, uma sequência de Homero,
por exemplo. Vários estudos já demonstraram o quanto isso era uma ilusão
e insistiram no trabalho que a imagem efetua sobre o real para chegar a uma
construção frequentemente muito abstrata.18 O trabalho é o mesmo tanto para
as representações mitológicas quanto para as outras cenas.19 A representação do

18
Entre outros: F. Lissarrague e A. Schnapp (1981, supra n. 6), C. Berard (1983). Seria necessário igualmente
levar em conta, mas esse não é o objeto de um tal artigo, o problema da estrutura do desenho e em
particular da perspectiva como faz Schweitzer (1953). E o da escolha do tempo e do momento captado
pelo pintor, como indica F. Brommer (1969).
19
A autonomia das representações mitológicas em relação aos textos é afirmada por A. M. Snodgrass(1979).
A relação entre texto e imagem é o objeto da comunicação de O. Touchefeu (1983), Moret (1984).
Imagens e história grega 19

Persa, por exemplo, no início do V século a.C. , é o resultado de uma montagem


entre o repertório das cenas de combate arcaicas e a observação realista mais
recente, consequência do choque das guerras médicas (BOVON, 1963, supra
n. 36). Os detalhes observados – indumentária e armamentos, em particular –,
são introduzidos em esquemas de combate tradicional tipicamente gregos.
A ausência de “realismo” das imagens explica a quase inexistência na
arte grega arcaica e clássica de representações de acontecimentos históricos
(SCHNAPP, 1978). Ela deveria incitar, singelamente, a manipulação de qualquer
leitura “historicista” das imagens e, em particular, o questionamento acerca do
benefício de se fazer um uso estritamente cronológico das imagens. Mostramos
a respeito da tragédia grega que nenhuma obra trágica poderia ser interpretada
seguindo o princípio do acontecimento (VIDAL-NAQUET, 1973); que nada ou
quase nada de toda a aventura política ateniense do V se refletia nas obras. O
vínculo entre tragédia e política ateniense existe; todavia, ele está situado em
outro patamar. Não poderíamos proceder a uma análise semelhante para as
imagens e, particularmente, para todas as cenas onde percebemos a expressão
de um simbolismo político demasiadamente preciso? A imagem está obviamente
inscrita em um momento histórico particular – o de sua produção –, e, por isso,
é capaz de traduzir, de uma maneira que lhe é específica, o imaginário social.
Porém, é válido atentar que esta não é um “reflexo” da sociedade, nem pode,
igualmente, ser tomada como “imagem” no sentido que conhecemos atualmente.
Lembremo-nos que a elaboração da categoria da imagem só é encerrada com
a teoria platônica da mimesis (VERNANT, 1979). Portanto, não se deve tratar a
imagem como um documento bruto, mudo, sem discurso próprio.

III) Imagens produtoras de história: novas questões

Novas abordagens partem do postulado que a representação figurada é


um dos modos de expressão e de articulação do pensamento em uma socieda-
de, concebendo-a como uma linguagem que tem sua própria lógica. A análise
das imagens gregas deve ser realizada, primeiramente, seguindo um método
rigoroso que, tanto quanto possível, não deixa de lado nenhum dos traços
da figuração. Os diferentes elementos que constituem a representação têm,
a priori, importância, tanto uns quanto outros, de modo que todos devem ser
levados em conta para dar o significado da imagem. A combinação de vários
elementos ou a presença de um só deles pode servir de ponto de partida para
a busca de uma série de imagens e, também, para a elaboração de um corpus.
20 Pauline Schmitt Pantel

Este, diferentemente do apresentado outrora neste capítulo – que estavam


centrados em temas precisos e preestabelecidos –, nunca estarão encerrados;
eles podem ser muito amplos e seguir várias direções. Os temas que aparecem
são, sobretudo, desenvolvidos a partir das relações entre os elementos que
constituem as imagens, isto é, a história e a imagem. É interessante notar que
sua existência não era reconhecida pela história. Dessa forma, surgem os no-
vos temas e, com eles, novas questões. Exemplo disso são as imagens de caça.
Pesquisas foram empreendidas a respeito da iconografia da caça ao javali, não
para estabelecer uma nova tipologia das representações cinegéticas,20 mas para
“colocar em evidência as regras de um discurso iconográfico” que age com seus
próprios meios (SCHNAPP, 1979a). Assim, a partir “[...] de uma análise de con-
junto das representações e das práticas cinegéticas”, Alain Schnapp mostrou,
primeiramente, os critérios iconográficos que distinguem, sobre os vasos áticos
da primeira metade do século VI, a figura narrativa de um episódio mitológico
preciso, a caça de Calydon, das outras figurações cinegéticas; e a interferência
desses critérios que marca a transformação da imagética da caça a partir da
segunda metade do século VI.
Em sua complexidade, as imagens de caça remetem a um sistema de valo-
res sociais que leva em conta o feito cinegético individual frente à caça coletiva
montada dos efebos, à caça com cachorros como a perseguição de pequenas
presas (SCHNAPP, 1979b), que joga com as interferências entre a iconografia
da presa e a dos donativos amorosos21 e que põe em cena o casal pederasta no
retorno da caça.22 Assim, passa da cinegética para o erotismo, no qual “a caça
é uma metáfora comum da perseguição homossexual” (DOVER1982, p. 104-116,
em particular p. 111). Articulado à figuração do banquete individual ou coletivo,
a volta da caça adquire ainda um sentido diferente (SCHMITT; SCHNAPP, 1982;
Schmitt Pantel, 1992). Com tal abordagem fugimos de um corpus temático
fechado. Vemos, pelo contrário, surgirem novas redes de relações que implicam
novas conquistas.
A imagética funerária, o sacrifício (DURAND, 1979, 1986, 1984), os rituais
em torno de Dionísio (DURAND; FRONTISI. 1982; Lissarrague, 1987. Frontisi-
-Ducroux, 1991, 1995) já passaram por análises análogas. Entretanto, como
exemplo de um novo direcionamento, podemos selecionar um tema que está
subjacente em vários artigos publicados e em pesquisas em andamento: a

20
Ver em último lugar K. Schauenburg (1969).
21
Ver por exemplo em Hommes, dieux et héros de la Grèce, n. 81, 82, p. 194-197 e A. Schnapp (1997).
22
Ver por exemplo em Hommes, dieux et héros de la Grèce, n. 80, p. 191-193.
Imagens e história grega 21

forma como é apresentada na imagética a relação entre o mundo masculino e


o mundo feminino. É possível destacar alguns aspectos característicos dessa
relação observando a disposição na imagem dos personagens masculinos e fe-
mininos em uma mesma cena ou a substituição de uns em proveito dos outros
em cenas paralelas.
Nas cenas de hieroscopia (exame das entranhas) (DURAND; LISSARRAGUE,
1979), de armamento do guerreiro (LISSARRAGUE, 1990), de retorno do guerreiro
morto em combate (LISSARRAGUE; SCHNAPP, 1981, supra n. 7), personagens
diversos são acrescentados, às vezes em torno do grupo central: arqueiro, idoso,
outro guerreiro, divindade, mulher. Nessas cenas complexas, em que homens e
mulheres são apresentados na imagem, são estabelecidos diferentes espaços que
se cruzam e interferem. Nenhum dos personagens é exclusivamente masculino
ou exclusivamente feminino. Eis alguns exemplos:
a) se a mulher parece representar o espaço do oikos, também o é o hóplita
que se prepara para deixar o oikos nas cenas de hieroscopia e de armamento,
ou que retorna ao oikos quando ele é um cadáver carregado por seus compa-
nheiros de combate;
b) se a mulher faz parte daqueles que permanecem na cidade em opo-
sição àqueles que combatem no exterior (o hóplita, o arqueiro), ela está em
companhia do idoso;
c) em algumas imagens, a mulher é ativa: ela dá as armas ao guerreiro
que parte para o combate por exemplo. Em outras, como a hieroscopia, ela é
mais espectadora do que atriz; como o arqueiro, que está ao mesmo tempo
presente e à parte.
A imagem revela o jogo de relações múltiplas entre os personagens. A
especificidade dos papéis masculinos e femininos é de fato bem marcada – o
gestual das mulheres diante da morte não é o mesmo que o dos homens, por
exemplo –, mas a chave para a leitura dessas cenas não pode ser a dicotomia ou
até mesmo a oposição entre o mundo masculino e o mundo feminino. A imagem
nos obriga a reconsiderar essa dupla equação tão valorizada pelos historiadores:
a mulher = ambiente doméstico ou privado, homem = ambiente cívico ou público.
A imagem, ao que parece, coloca mais a ênfase sobre as passagens necessárias
de um espaço para o outro, sobre o pertencimento ambíguo de cada personagem
a vários espaços ao mesmo tempo, sobre a interferência entre os espaços. Ela
nos leva, talvez, a nos perguntarmos sobre o benefício desse corte que lemos
o tempo todo entre público e privado. Os gestos de recolhimento – a mulher
coloca parte de sua roupa em seu rosto no momento da hieroscopia –, os gestos
22 Pauline Schmitt Pantel

de lamentação – quando do retorno do guerreiro morto –, o gesto de entregar


as armas, todos esses gestos femininos não podem ser somente interpretados
como sendo os da boa esposa legítima que chora e ajuda seu marido que parte
para a guerra (Lissarrague, 2002, 1999).
Em outras séries de imagens, os personagens masculinos e os per-
sonagens femininos se alternam em cenas que podem ser comparadas em
função da presença, por exemplo, de um objeto “indicador de espaço” como
o louterion (grande caldeirão ou bacia de pedra cheia de água) (DURAND;
LISSARRAGUE,1980). Em volta do louterion, vemos ora um ou mais efebos, ora
uma ou várias mulheres. Em um caso, homens e mulheres se alternam, ora
de um lado do vaso, ora de outro (quatro homens com o pacote que indicam
que eles estão na palestra, quatro mulheres diante do espelho fazendo sua
toilette). Nessas cenas, os espaços masculinos e femininos são nitidamente
separados e as atividades representadas remetem aos papéis respectivos dos
dois gêneros: homens na palestra, mulheres se ocupando de sua toilette. Porém,
a presença do louterion permite colocar em paralelo essas cenas. Embora não
indique nenhuma hierarquia entre esses dois tipos de atividade colocadas no
mesmo plano, o louterion faz a transição entre esses dois espaços e essas duas
atividades – que poderíamos também considerar como sendo os cuidados
necessários à beleza do corpo – e que interferem no campo do erotismo. Em
alguns casos, em volta do louterion, encontramos um homem e uma mulher,
Peleu e Atalante, por exemplo.
O erotismo é um dos domínios em que vemos mais nitidamente na imagem
a substituição do masculino pelo feminino. Em cenas de doações amorosas ou
de atividades eróticas, podemos encontrar jovens rapazes e mulheres ocupando
lugares semelhantes na imagem. Essas doações amorosas de presas ou de ani-
mais de celeiro ocorrem, sobretudo, entre erastes e eromenos, quando do amor
homossexual (SCHNAPP, 1981, supra n. 57), mas elas podem ocorrer, também,
entre homem e mulher. Cenas de corte homossexual têm seu paralelo no domínio
heterossexual. Enfim, no banquete a alternância entre homens adultos/efebos e
homens/hetairas é bem conhecida. Seria, é claro, necessário ver se em todas as
expressões do erotismo grego encontramos um mesmo paralelo. Essas imagens
põem em cena o caráter dúbio do erótico grego, e a permuta possível dos atores
parece enfatizar a equivalência nesse domínio entre a hetaira e o belo rapaz,23

23
Este problema entre hetaira e belo efebo levanta questões. Os trabalhos recentes (ver supra n. 38)
sobre a homossexualidade masculina marcaram nitidamente a diferença entre o amor homossexual
entre cidadãos, altamente valorizado, e a prostituição masculina que, por sua vez teria sido reprovada e
Imagens e história grega 23

o caráter intercambiável, e sua comum exterioridade a um tipo de sexualidade


que nunca é representado: a sexualidade conjugal.
Esses poucos exemplos mostram de que forma a aplicação de outro
método de leitura das imagens pode renovar a pesquisa e, às vezes, questionar
algumas certezas do historiador, como, por exemplo, a questão da dicotomia
entre os domínios masculinos e femininos que dizemos ser um dos fundamen-
tos da cidade grega. Além disso, essas manipulações de séries de imagens
esboçam um programa e trazem para a história questões gerais. Para concluir,
citaremos dois exemplos. O primeiro diz respeito ao lugar específico da imagem
no sistema das representações da cidade grega. É preciso, primeiramente,
compreender qual é o “trabalho” da imagem; a imagem não é ilustração do
real, não é realista. Ela se vale, pois, de elementos do real, escolhendo-os e
selecionando-os, para operar montagens, transposições e implementações. A
imagem é, nesse sentido, um sistema de signos. O trabalho de abstração da
imagem faz parte do pensar em uma teoria da imagem, da figuração, teoria da
criação da imagem e teoria da recepção grega da imagem.24 Essa necessidade
de se ter uma ciência das imagens interessa, em primeiro lugar, ao historia-
dor. Ela seria, assim, uma parte da reflexão geral sobre o sistema simbólico
da sociedade grega.
A segunda questão diz respeito à relação entre imagens e cidade. É neces-
sário ser prudente para evitar cair na leitura de tipo historicista que reduziria
mais uma vez a imagem ao papel de documento ilustrado. Um consenso está
surgindo para dizer que as imagens são construções do imaginário social e
que sua relação com a cidade é da ordem do simbólico. Para muitos, um dis-
tanciamento da cidade é necessário, pelo menos num primeiro tempo. Outros
especificam mais essa relação com a cidade: as imagens são um “espetáculo
social”, elas colocam em cena um conjunto de valores, que são os da cidade, haja
vista que elas também podem ser, em certa medida, a expressão das tensões,
das mudanças que afetam a cidade (Lissarrague; Schnapp, 2007). Dessa forma,
surge todo o problema decorrente da evolução do estilo.

reprimida. Todos os belos jovens dos vasos seriam então erômenos e não prostituídos. Ora, no domínio
da erótica heterossexual, as parceiras femininas são segunda interpretação unânime, hetairas e, portanto,
exclusivamente prostitutas. A leitura geralmente feita: expressão do amor no primeiro caso, simples prazer
venal no segundo, talvez não seja suficiente. Ver P. Schmitt Pantel (2009).
24
VERNANT, 1979, supra n. 54 et Extraits de l’Annuaire du Collège de France, 1976 à 1981, ainsi que : « Les
problèmes de l’image dans la Grèce ancienne » transcrição de uma conferência pronunciada em uma mesa
redonda sobre: « De la figuration des dieux aux catégories de l’Image, de l’Imaginaire et de l’Imagination»,
Recherches et Documents du Centre Thomas More, n. 35, 1982 (Vernant,1990).
24 Pauline Schmitt Pantel

Em função de ser um texto breve, tivemos de deixar de lado muitos tipos


de imagens e, por isso, só nos resta acrescentar que atribuir à imagem um es-
tatuto verdadeiro de documento exige um longo aprendizado e, sobretudo, a
“desambientalização” do historiador. Talvez estejamos hoje em dia mais cons-
cientes da nossa incapacidade em compreender de forma imediata a imagem
do kouros arcaico ou da cena de gineceu porque aprendemos a reconhecer o
caráter etnocêntrico do nosso olhar, tanto para com os gregos quanto para
com os Outros.

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Ler e olhar a imagem: balanço e perspectivas
de pesquisa sobre a imagética grega1

François Lissarrague2

V
imos em anos recentes darem um lugar cada vez mais importante à
imagem na pesquisa histórica. Não somente em te rmos de presença
enquanto fonte complementar, mas, como lembrou Pauline Schmitt
Pantel, igualmente como área de pesquisa por si só com suas especificidades.
Pudemos assim falar de um “retorno das imagens” – é o título de um im-
portante artigo de Gotfried Bohme em 1994 – ou de um “retorno iconográfico”
(“iconic turn”, segundo a expressão de Thomas Mitchell em 1994) assimilável
ao “retorno linguístico”, que marcou a história no final dos anos 1960 (Rorty,
1967). Além dos efeitos da moda – há atualmente uma grande quantidade de
“retorno”, a tal ponto que ficamos confusos – e da busca por um rotulamento
que permite se situar na corrente historiográfica, podemos perceber mudanças
teóricas e metodológicas profundas no estudo das culturas visuais.
Só me debruçarei sobre algumas etapas simplificando uma história com-
plexa cujas especificidades nacionais vão além deste resumo forçosamente
esquemático.
Na tradição francesa, a forte corrente semiótica dos anos 1960 levou à obra
de Louis Marin, cujos Estudos semióticos, publicados em 1972, transformaram
profundamente nossas abordagens, ao abrir para uma lógica do significado e o
estudo da imagem como elemento de comunicação.
Essa tradição, que podemos encontrar nos Estados Unidos nos trabalhos
de Meyer Shapiro e que é transmitido por Norman Bryson, privilegia a procura
pelo significado em vez da orientação estética que dominava o campo da his-
tória da arte até então.

1
Texto traduzido pela Profa Ms Denise Milon del Peloso.
2
Professor Doutor Pesquisador da École des Hautes Études en Sciences Sociales (EHESS).
30 François Lissarrague

Uma outra via é aberta na Alemanha pelos trabalhos de Hans Belting


(1998), com seu livro Image et culte, une histoire de l´image avant l´époque de
l´art (publicado na Alemanha em 1990) que confirma um deslocamento radical
ao afastar a hegemonia de uma história da arte, da qual ele enfatiza a historici-
dade. Belting amplia mais seu campo de pesquisa em 2001 com uma outra obra
cujo título é programático. Bild-Anthropologie. Entwürfe für eine Bildwissenschaft.
Aby Warburg, ignorado na sua época, já havia aberto uma via análoga e lançado
uma antropologia da imagem que foi desde então enfatizada pelos numerosos
trabalhos de Georges Didi-Huberman.
Enfim, ao lado da antropologia histórica desenvolveu-se uma série de
trabalhos sobre o poder da imagem, particularmente com David Freedberg
(1991), autor de The power of images, cujo subtítulo define bem o enfoque de
estudo privilegiado: Studies in the History and Theory of Response – (estudos
sobre a história e a teoria da recepção) e principalmente com os de Alfred Gell,
que deixou inacabado um livro importante e difícil, Art and Agency: an Anthro-
pological Theory (1998).
O termo-chave do título e de seu estudo, “agência”, é um termo difícil
de ser traduzido, que mostra a capacidade da imagem de agir, a eficiência das
imagens.
Esses estudos privilegiam um ponto de vista, o que dá um lugar a um
terceiro, o espectador, como agente, entre a obra (o medium) e seu produtor.
E como está a situação na área antiga? Vernant (de quem Belting faz refe-
rência) já tinha, nos anos 1960, deslocado o enfoque da análise das produções
figuradas para o lado da figuração dos deuses. Em seu estudo do vocabulário
grego da imagem, ele enfatizou com Benveniste uma característica particular:
não há uma única palavra para designar uma estátua em uma cultura que as
multiplicou e as utilizaram bastante. O grego possui uma terminologia que
coloca em evidência um aspecto do objeto: o colossus como substituto, duplo;
agalma como objeto que brilha e regozija e não somente como estátua, como
é o caso na época imperial; xoanon como objeto trabalhado, raspado (e poste-
riormente, na terminologia de Pausânias, como mostrou Donohue, uma estátua
“ primitive” “arcáica”).
Partindo assim do vocabulário, privilegiamos a principal via de acesso ao
conhecimento da cultura grega, a que nos dão os textos, ao lado da arqueologia
e dos artefatos figurativos, estátuas, relevos, vasos: imagens em geral.
Eu gostaria de parar aqui no lugar que adota nos estudos clássicos, o
modelo filológico e literário, textual. Entre os trabalhos recentes, em particular
Ler e olhar a imagem: balanço e perspectivas de pesquisa sobre a imagética grega 31

no mundo anglo-saxão, notamos a proliferação de obras que incluem os termos


looking ou reading, aplicados ao estudo da cultura grega e das imagens.
Duas obras importantes de Christiane Sourvinou-Inwood têm no título o
termo de “leitura”: “Reading” Greek Culture: texts and, myth, ritual and images,
publicado em 1991, e “Reading” Greek Death, publicado em 1995. A autora to-
mou o cuidado de colocar o termo “reading” entre aspas e explica a atitude da
seguinte forma: “Reading is in quotation marks in the title because it refers to
the attempt to make sense of a whole society and its cultural artefacts” (“Ler
está entre aspas no título porque ele faz referência à tentativa de dar sentido
a toda a sociedade e seus artefatos culturais”), e este uso é evidente e perfei-
tamente aceitável. Mas essa noção de leitura, aplicada a algo diferente de um
texto escrito guarda um valor metafórico. Essa metáfora está presente no título
do conjunto de artigos de Nikolaus Himmelmann, Reading Greek art (1998). Em
uma obra mais recente, Reading Greek Vases, Ann Steiner (2007) utiliza esse
termo no sentido estrito; ela procura localizar os procedimentos linguísticos
na pintura de vasos e discute exaustivamente sobre o papel das inscrições na
imagem. Temos aí verdadeiras letras para ler, que estão integradas à imagem.
A partir desse ponto de vista, e mesmo que isso seja do nível da anedota,
gostaria de relembrar aqui uma observação feita por um comentador tardio
do gramático grego Dionysus Thrax. O erudito bizantino nota que Dionysus
especifica que em grego há dois termos diferentes para designar as letras, e ele
continua acrescentando que “alguns dizem que elas são chamadas de grammata
quando as escrevemos, e stoichea quando as lemos”. Grammata designa, de fato,
a forma individual de um sinal gráfico, enquanto stoichease aplica ao conjunto
das letras que forma uma palavra e produz um sentido. Assim, por exemplo, E,
R, L, T, T, E são grammata; mas se as dispusermos em uma ordem determinada,
encadeadas, (stoichos) L, E, T, T, E, R, elas se tornam stoichea e formam uma
palavra com significado. Assim, nesse caso a operação de leitura – reading –
está ligada à conexão entre diferentes elementos, uma ordenação que permite
produzir um sentido. E é claramente o que tentamos fazer quando estudamos
imagens antigas verdadeiramente.
Encontramos cada vez mais um outro termo nas pesquisas recentes para
designar uma nova orientação no estudo da cerâmica em particular : é o do
“contexto”, termo muito útil mas que comporta um grande leque de conota-
ções. Encontramos ele, por exemplo, na capa de uma conferência publicada em
Estocolmo em 2001: “Ceramics in context”. Nesse caso, trata-se, sobretudo, de
proveniências arqueológicas e de contexto de escavações. Por outro lado, no
32 François Lissarrague

caso do volume publicado por B. Schmaltz, Griechische Keramik in kulturellen


Kontext, a noção de context implica qualquer situação à qual as imagens se
referem – quer dizer, qualquer situação. É a mesma situação para a recente
coleção publicada em Berlim com o título genérico Icon, Image and Context.
Em todos esses exemplos, a ideia é tirar os vasos de seu isolamento e procurar
observar a sociedade por trás dessas imagens. Um livro ainda mais recente,
editado por C. Marconi (2004), tem como título Greek vases: Images, contexts,
and controversies, e procura igualmente retirar a pesquisa da pura tradição da
história da arte e do atribucionismo.
Essas tensões e o debate aparentemente recente entre essas orientações
– as quais eu só faço aqui uma sugestão de esboço – não são inteiramente no-
vos. Podemos fazê-los remontar pelo menos até a forte oposição entre Edmond
Pottier, o fundador do Corpus Vasorum Antiquorum, e John Davidson Beazley,
que transformou completamente nossa percepção e nosso conhecimento dos
pintores de vasos áticos. Pottier considerava a pintura de vasos como um te-
souro inestimável pelo menos por três razões, como ele relembra em seu artigo
“Para que serve um museu de vasos gregos?”, publicado em 1894 e retomado
como prefácio ao seu catálogo dos vasos do Louvre em 1896. Os vasos gregos
são úteis em um museu porque: 1) eles podem educar o gosto artístico; 2) eles
são um testemunho da produção artesanal antiga; 3) eles nos fornecem uma
enorme quantidade de informações sobre a mitologia antiga e sobre a vida no
cotidiano.
Pottier, quando era conservador no Louvre, tinha reorganizado as cole-
ções e sua apresentação; ele redigiu um catálogo dos vasos em três volumes
publicados entre 1896 e 1909, sem ilustrações, e rapidamente ele sentiu a neces-
sidade de publicar fotografias desses vasos. Ele foi um dos primeiros a utilizar a
fotografia para esse tipo de catálogo, e criou o Corpus Vasorum Antiquorum logo
após a Primeira Guerra Mundial. A ideia era reunir em forma de fotografias uma
documentação completa, classificada por categoria de produção (ática, coríntia
etc.), ou seja, todas as cerâmicas antigas presentes nos museus da Europa e da
América. Ele pensava, de forma bastante otimista, que esse empreendimento
seria concluído em 20 anos aproximadamente – estamos hoje em dia longe do
cálculo: existem mais de 380 fascículos e o trabalho não está terminado.
Beazley, uma geração mais jovem do que Pottier, publicou seu primeiro
artigo sobre a cerâmica ática em 1908 e começou muito cedo seu trabalho de
atribuição que o ocupou ao longo de uma vida. Não entrarei aqui no detalhe
dessa história; ela foi estudada por Donna Kurtz e por Philippe Rouet, entre
Ler e olhar a imagem: balanço e perspectivas de pesquisa sobre a imagética grega 33

outros. Gostaria somente de relembrar a forte hostilidade de Pottier a esse


tipo de pesquisa, que ele não compreendia e que não o convencia de forma
alguma, apesar dele ter uma forte admiração pela erudição de Beazley. Este foi
durante muito tempo ignorado na França, enquanto conquistou rapidamente
uma posição dominante não somente em Oxford, mas também na Inglaterra
e Alemanha.
Todavia, Pottier tentou naquele momento propor uma atribuição (infeliz-
mente equivocada, como Beazley mostra com uma ponta de ironia) e Beazley
fez mais de uma vez uma iconografia excelente, sem limitar-se às questões
de estilo. Na verdade essas tensões e oposições são mais fundamentadas
em questões de estatuto e de poder institucionais em um dado momento, do
que em uma incompatibilidade teórica ou metodológica. Poderíamos dizer
que Pottier “lê” as imagens e utiliza seu conteúdo para produzir uma história
social, enquanto Beazley as “enxerga” para identificar um estilo, uma forma
de desenhar, a fim de produzir uma história dos pintores de vasos. Eles não
tomam a mesma direção, mas não há, a meu ver, uma incompatibilidade entre
essas duas abordagens.
A integração recente do CVA no arquivo de Beazley em discussão parece,
a meu ver, marcar um avanço considerável nesse ramo de pesquisa e indicar a
complementaridade dessas abordagens. É preciso ler e, também, olhar as ima-
gens, com a maior precisão possível; não somente as grammata, mas também
as stoichea.
Essa metáfora da leitura continua, todavia, sendo enganadora, porque
texto e imagem se diferem de várias formas, como bem o sabemos desde o
Laocoon de Lessing (1766). Eu gostaria de abordar agora uma série de questões
que são todas ligadas a essa metáfora implícita da imagem como texto, ou à
forte influência da cultura textual sobre nossa abordagem da imagem. Essas
questões são de natureza diferente, mas elas são interligadas e falam:
1) Do estabelecimento da imagem, análogo ao que os filólogos praticam
para estabelecer um texto;
2) Sobre a relação entre as palavras enunciadas e as imagens, ou como
nomear ou descrever os elementos de uma imagem;
3) Sobre a dimensão narrativa da imagem e dos textos;
4) Sobre o tratamento moderno da imagem no livro impresso, do vaso à
prancha fotográfica;
5) Sobre as relações entre vários tipos de imagem e de medium, e sobre
a necessidade de conectá-los.
34 François Lissarrague

1) Se existe uma analogia entre imagem e texto, é seguramente em torno


da necessidade de se assegurar que estamos, de fato, analisando um texto ou
uma imagem autêntica. Assim como os filólogos estabelecem o texto que eles
estudam, verificando que o que nós lemos é o que tinha sido escrito original-
mente – e não o resultado de transmissões equivocadas –, é preciso, da mesma,
forma assegurar que o que nós vemos está bem presente e é verdadeiramente
autêntico. Uma das funções do CVA é precisamente ajudar o leitor a ver melhor
o que a melhor fotografia não mostra sempre de forma clara, e também indicar
com precisão o que está restaurado ou com a pintura refeita em um vaso. Não
faltam exemplos e é desnecessário insistir muito nisso. Sobre um skyphos da
coleção Robinson em Baltimore, um jovem rapaz persegue uma mulher com uma
espada na mão. Ela não parece estar fugindo, mas, pelo contrário, volta-se para
ele, segurando uma oenochoé na mão esquerda, como se faz em uma libação. Há
uma contradição aparente entre o movimento do jovem rapaz que ataca e deve-
ria fazer a mulher fugir como vemos em outras imagens, e o gesto de acolhida
que se endereça habitualmente a um personagem estático. Olhando de mais
perto vemos que a mão direita da mulher está estendida em direção ao jovem
rapaz, mas que seu braço esquerdo, que parece estar segurando a oenochoé,
está na verdade se prolongando horizontalmente na altura do cotovelo. Parece
que ela tem duas mãos esquerdas! Na verdade, o fragmento inferior, que revela
os joelhos e a mão com a oenochoé, não pertence a esse vaso como indicam o
CVA e Beazley. O restaurador completou habilidosamente a imagem da mulher,
mas criou, dessa forma, uma imagem improvável.
Outro tipo de problema ocorre quando uma fotografia em preto e branco
não restitui os detalhes pintados em branco ou em vermelho sobreposto, que
são muito frequentemente apagados pelo tempo. Isso pode induzir ao erro.
Sobre uma taça em Stuttgart, atribuída ao pintor de Amphitrite, uma mulher está
diante de um altar, segurando na mão um objeto que foi descrito como sendo
uma roca, mas que é na verdade uma tocha como bem observou E. Bohr. As
chamas em vermelho acrescentado, assim como a chama sobre o altar, não se
viam nas fotos em preto e branco fortemente contrastadas que foram publicadas.
Sobre um pequeno lécito em Chicago, a mulher à esquerda parece ter
uma cabeça de passarinho; esse detalhe estranho foi longamente comentado.
Mas na verdade o branco do rosto humano desapareceu, deixando somente
o traço do vernis preto embaixo, que não cobre a mesma superfície e dá uma
forma diferente do rosto definitivo. Originalmente, a mulher era completamente
humana e olhava para baixo em direção do personagem sentado diante dela.
Ler e olhar a imagem: balanço e perspectivas de pesquisa sobre a imagética grega 35

2) Eu não discutirei a vasta questão da ekphrasis, que é essencial na cultura


grega, mas gostaria aqui de enfatizar um ponto que diz respeito à relação entre
a imagem e a linguagem, no âmbito da descrição. É preciso necessariamente,
quando descrevemos uma imagem, colocar palavras. Não podemos fugir disso. E
assim que escolhemos uma palavra, escolhemos uma interpretação, daí a neces-
sidade de estarmos atentos a nossas escolhas quando designamos o elemento de
uma imagem. Os pesquisadores fizeram um esforço enorme para nomear corre-
tamente os personagens mitológicos, às vezes menos para os objetos presentes
na imagem. Em alguns casos, é melhor, sem dúvida alguma, utilizar termos gre-
gos do que as palavras das línguas modernas. Assim, um detalhe curioso sobre
a cratera de Euphronios, que estava antigamente em Nova York, adquire todo
seu sentido se utilizarmos o termo grego que melhor o descreve. Sobre a face
principal dessa incrível cratera vemos Hypnos e Thanatos retirar o corpo de
Sarpédon, sob o olhar de Hermes. No lado oposto, cinco jovens hóplitas estão
se armando; o do meio segura um escudo cujo emblema é impressionante ; é
um caranguejo – em grego karkinos – que segura dois canos de aulos em suas
pinças. Encontramos em Ateneu a citação de um poeta cômico que explica que
“como um bom jogador de aulos, você deve articular seus dedos” e o termo grego
para “articular os dedos” é karkinoun, literalmente “se fazer de caranguejo”. O
termo grego é utilizado quase que de forma literal pelo pintor, e esse detalhe
curioso torna-se um jogo de palavra visual sobre um vaso de banquete. Esse
tipo de interpretação tem, é claro, seus limites e é necessário evitar que se caia
em uma espécie de Cratilismo iconográfico. 
Sobre uma taça de figuras negras da Villa Giulia, vemos um grupo de
golfinhos, tendo um deles um aspecto curiosamente antropormófico; ele tem
braços, segura um aulos duplo e está com um pedaço de pano sobre a boca,
uma phorbeia, que regula o sopro dos músicos. Trata-se, portanto, de um gol-
finho músico. Mas um detalhe linguístico reforça o jogo visual. O termo que
designa o instrumento musical – aulos, o cano – é também o que designa os
canais respiratórios do golfinho. Dessa forma, o campo semântico de aulos
engloba, ao mesmo tempo, a anatomia do animal músico e o instrumento que
ele toca.
Um último exemplo. Sobre uma cratera em forma de sino atribuída ao
pintor de Altamura vemos a partida de dois guerreiros entre uma mulher que
segura uma phiale à esquerda, e um homem barbudo à direita. O mais jovem
dos guerreiros tem como emblema de escudo um escorpião, o barbudo uma
serpente. Se utilizarmos um termo grego para designar a serpente, podemos
36 François Lissarrague

chamá-la de ophys ou aspis. Mas aspis é também uma palavra em grego que
significa escudo. Aí mais uma vez o vocabulário grego brinca com o sentido e
cria efeitos de surpresa entre palavra e imagem.

3) Nós podemos utilizar a mesma cratera do pintor de Altamura para


discutir uma outra dimensão verbal da imagem, sua dimensão narrativa, e a
relação entre imagem e textos. Um grande número de estudos recentes são
dedicados a esse problema, em particular o livro de Mark Stansbury-O’Donnell,
Pictorial Narrative in Greek Art (1999), que tenta definir as estratégias narrati-
vas utilizadas para contar histórias em imagens, e o de Luca Giuliani, Bild und
Mythos. Geschichte des Bilderzählung in der griechischen Kunst (2003), que retraça
a longa história da relação entre as imagens e o mito, assim como o modo que
os eruditos discutiram esse problema.
Para dizê-lo de modo abrupto, eu teria uma tendência em pensar que
as imagens não contam histórias – elas são mudas no final das contas –, mas
mostram os elementos de uma história e se referem a aspectos precisos que
nós reconhecemos e compreendemos. Se nós não temos em mente a história
adequada, nós não compreendemos a imagem.
É preciso também fazer uma distinção entre espectador antigo e moderno.
O espectador antigo está imerso na cultura da qual a imagem faz parte e por
isso supõe-se que ele sabe o que a imagem está representando ou pelo menos
é capaz de explicá-la – uma narrativa verbal que dá sentido à imagem. Alguns
textos antigos nos dão uma ideia desse processo de reconhecimento, apesar de
não serem nunca textos simples, como por exemplo os Eikones de Philostrate.
O espectador moderno não tem acesso direto à cultura antiga. O único
meio que ele tem de encontrar a referência correta é encontrar o bom texto, que
resolve o problema e coincide com os detalhes da imagem. Os eruditos foram
frequentemente brilhantes nesse terreno, mas é preciso manter no espírito que
se os textos que possuimos nos abrem a via da interpretação, isso não significa
necessariamente que o pintor antigo tinha presente em mente esse mesmo
texto, nem sequer um texto qualquer. Ou para dizê-lo de outra forma, se o texto
é para nós uma chave de compreensão, a imagem não é necessariamente uma
iluustração desse texto.
Se voltarmos à cratera do pintor de Altamura, notamos um detalhe cu-
rioso. O jovem guerreiro tem não somente um escudo como também um porta
flechas; trata-se ao mesmo tempo de um hóplita e de um arqueiro. O guerreiro
com mais idade tem um escudo provido de um dispositivo que protege suas
Ler e olhar a imagem: balanço e perspectivas de pesquisa sobre a imagética grega 37

pernas das flechas. Esse segundo guerreiro é maior; a crista do seu capacete
ultrapassa o limite superior da imagem. Sugeriram que essa dupla de guerrei-
ros – um arqueiro e um grande hóplita – poderiam ser Ajax filho de Télamon e
Teucros. Nós temos para isso um bom texto, a Ilíada, no qual o poeta enfatiza o
grande tamanho de Ajax e associa constantemente os dois heróis, e os chama
frequentemente para um duelo. Poderíamos acrescentar que o rabo do escor-
pião no escudo é um toxão, assim como a flecha daquele que está carregando
o escudo; os dois emblemas enfatizam, assim, a natureza agressiva desses dois
guerreiros. Mas podemos estar certos de que o pintor tinha a Ilíada em mente e
que ele queria representar esses dois heróis? Ou será que a imagem representa
dois heróis quaisquer? Como não temos nenhuma outra imagem desse tipo, é
difícil escolher entre essas opções, e deixarei a interpretação em aberto. Anthony
Snodgrass, em seu recente livro, Homer and the Artists (1998),3 insistiu justa-
mente na possibilidade de se ter outras versões épicas e a necessidade de não
confundir nosso conhecimento moderno de Homero com a tradição épica antiga.

4) Nossa percepção moderna da pintura de vasos pesa bastante sobre


nossas interpretações, e a forma como vemos os vasos na maioria dos casos
não é feita por um exame direto dos objetos, mas por intermédio de fotos ou
de desenhos, que pode modificar bastante a imagem original. Um dos exemplos
mais claros dessas deformações é fornecido pelo vaso dito de Pronomos, onde
vemos Dionísio e uma trupe de atores de um lado, Dionísio e seu cortejo de
sátiras e mênades do outro. Essa cratera em espiral foi descoberta em Ruvo
em 1837 e descrita pela primeira vez nos Annali dell´Instituto, em 1841. Durante
mais de um século esse vaso foi conhecido graças a um desenho publicado
nos Monumenti (e retomado ainda em 1886 no Wiener Vorlegeblaeter), que dava
os dois lados do vaso como sendo uma única frisa contínua. Uma parte desse
desenho está estourada e disposta em cruz no Dictionnaire des Antiquités de
Daremberg e Saglio, no artigo “Chorus”, para permitir que se utilize melhor o
espaço da página impressa. A combinação de uma foto e desse mesmo desenho
no livro de Margaret Bieber (1961), History of the Greek and Roman Theater, dá
uma melhor ideia do conjunto. Mas é somente o desenho de Reichhold, mais
preciso, que dá conta da policromia do vaso e da relação entre o desenho e o
ambiente, assim como da posição das alças em relação à imagem. Ele permite
ao espectador moderno ver melhor o modo como um dos sátiros coreutas,

3
SNODGRASS, 2004.
38 François Lissarrague

ainda revestido de sua máscara, pula para fora do quadro da imagem. Contudo,
achatando a imagem, descolando-a do vaso suporte, perdemos o volume da
representação que brinca com a passagem de um lado para o outro e utiliza as
alças e a arquitetura do vaso como um eco da arquitetura representada na ima-
gem. A pintura de vasos nunca é achatada como imagens nos livros; o volume do
vaso produz efeitos dinâmicos, como procurei mostrar em outro lugar e como
bem o demonstrou Didier Martens em seu importante livro Le Vase grec ; une
esthétique de la transgression (1992).

É desnecessário insistir longamente sobre as inúmeras manipulações que


os editores ou os designers submetem às imagens nos livros, mas devemos
permanecer atentos às distorções produzidas pela transformação de um
vaso redondo em uma prancha iconográfica achatada. Não existe solução
para esse problema, mas é preciso ter consciência dele.5 )O último ponto
desse rápido exame dos problemas em torno da questão do visual e do
textual vai nos afastar do campo da cerâmica pintada. A necessidade
da especialização é evidente, e o número de coleções especializadas,
de corpus dos quais dispomos, para cada tipo de suporte – inscrições,
moedas, espelhos, pedras gravadas, etc. – é precioso. Cada categoria
de objeto – assim como cada gênero literário, poderíamos dizer assim –
tem suas próprias regras de produção, de utilização e de interpretação,
e é necessário estudar cada uma dessas categorias nela mesma, em um
primeiro momento. Mas é preciso todavia lembrar-se que a cultura antiga
não está fechada como se fosse à prova d´água ; é um sistema contínuo
de valores e de representações que atuam umas sobre as outras e se
inspiram mutuamente. É preciso portanto que procuremos tornar-nos os
historiadores e os antropólogos do mundo antigo mais do que especialistas
em um ou outro desses artefatos, e tentar ligar entre eles os diferentes
elementos da cultura que nós estudamos. E portanto levar em consideração
não somente os textos e as imagens como também os diferentes tipos de
imagens segundo diferentes tipos de suporte. (MARTENS, 1992)

Tomarei como exemplo a iconografia de Eros e os efeitos visuais que ele


produz em diferentes meios de comunicação. Sobre uma taça de Macron em
Berlim, o jovem Páris está sentado sobre um rochedo e Hermes conduz em
sua direção as três deusas, entre as quais ele deve designar a mais bela, o que
desencadeará a guerra de Tróia. Atena abre a marcha, seguida Hera, que, por
Ler e olhar a imagem: balanço e perspectivas de pesquisa sobre a imagética grega 39

sua vez, é seguida por Afrodite, que está perto da alça da taça. Em torno dela
quatro erotes que estão voando carregam flores e elementos vegetais para coroar
a deusa, criando assim uma espécie de quadro que enfatiza sua beleza e seu
charme. Esses erotes que vêm ornamentar a deusa estão próximos da corrente
de palmetas que envolve a alça (e contrasta com a ausência de palmeta sob a
outra alça) ; o vaso está assim ornamentado como a deusa.
Encontramos um círculo de erotes semelhante em vários espelhos arcaicos
e clássicos com suporte vertical. Em um exemplar em Nova York, vemos uma
mulher que segura uma pomba – e pensamos que tratava-se de Afrodite. Na
base do disco que espelha dois erotes, que estão voando, estendem o braço em
direção à mulher. Em volta do disco, dois cachorros perseguem duas lebres: essa
imagem de caça é uma metáfora da perseguição erótica. No topo do disco está
sentada uma esfinge, frontal, entre duas flores. Podemos facilmente imaginar
que, quando uma mulher se olhava em um espelho como esse, o reflexo de sua
imagem era, por sua vez, enquadrado por erotes.
O mesmo dispositivo é encontrado em cenas de casamento, por exemplo
sobre uma loutrophore em Boston. O jovem rapaz que conduz a noiva segurando-
-a pelo punho se volta para ela; ela é bela e dois erotes enquadram sua cabeça,
segurando uma coroa e um colar. O mesmo efeito de enquadramento pode ser
obtido com brincos. Um bom número de brincos em ouro tem a forma de erotes
e, quando eles estão pendurados nas orelhas, dão a impressão que Eros está
voando em volta do rosto daquela que carrega tais joias. Às vezes, esse Eros
segura uma phiale, como que para acolher o espectador. Dessa forma, executa o
mesmo gesto que aquele que é representado quando Eros interrompe o impulso
vingador de Menelau quando este reencontra Helena derramando uma libação,
transformando, assim, uma cena de vingança e de assassinato em reconciliação,
sob os olhos de Afrodite. Em alguns casos, o pequeno Eros segura um espelho,
nos levando assim ao ponto de partida: o espelho é um objeto erótico e Eros,
um ator em espelho na imagem. O efeito de interação entre imagem e ornamento
está frequentemente presente na imagética dos vasos, e é também o caso dos
espelhos e das joias.
Para concluir, os problemas discutidos em esse rápido balanço não são
todos de mesma natureza, e eu não pretendo propor um sistema definitivo, uma
teoria pronta para iniciantes sobre como ler e olhar as imagens. Isso não signi-
fica que possamos nos valer de uma teoria da imagem, mas eu privilegiei uma
prática empírica que é preciso associar a uma reflexão crítica, a uma atenção
reflexiva sobre nossas maneiras de trabalhar e de analisar a imagem. A metáfora
40 François Lissarrague

linguística que domina a maioria de nossas práticas analíticas deve ser identi-
ficada como tal, e não deve nos impedir de olhar atentamente os objetos que
estudamos. Ler a imagem, se quisermos olhá-la, principalmente, para melhor
compreender não somente a imagética em seu conjunto, mas também a cultura
grega de forma mais ampla.

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Ontofanias de Io:
variações na figuração do mito

Patricia Vivian von Benkö Horvat1


Claudia Beltrão da Rosa2

quem não admite a pintura comete uma injustiça contra a verdade, contra a
sabedoria que é conferida aos poetas – pois a pintura, assim como a poesia,
representa-nos os traços e ações dos heróis –, e não louva a conformidade à
medida, por meio da qual, inclusive, a arte apreende a razão.
Filóstrato, Eikones, 1.

O
mito de Io é uma combinação de tradições distintas. Suas peripécias e
as de seus descendentes são narradas com algumas variantes: desde
versões mítico-religiosas, nas quais a princesa de Argos, sacerdotisa de
Hera, fora transformada em vaca devido a uma união – voluntária ou não – com
Zeus, até versões nas quais os elementos míticos estão ausentes, mantendo-se,
contudo, os relatos das viagens de Io e sua presença no Egito, bem como a ligação
de seus descendentes com as Danaides e Héracles. Seu filho Épafo – identificado
com o egípcio Ápis, o touro sagrado (e.g. Her. II, 27, 38, 153) – teria se casado
com Memphis, filha do Nilo, fundado a cidade de Mênfis e gerado Líbia, cujos
descendentes seriam Egito, Danaos e outras personagens que nomeariam – ou
teriam governado – regiões e povos conhecidos à época clássica. Ressaltamos
os elementos convergentes, o que pode ser útil para nossos propósitos: um mito
de fundo argivo, da princesa cujo nome significa “lua”, que se torna amante de
Zeus, é metamorfoseada em vaca e erra pelo mundo, encerrando suas andanças

1
Artista Plástica e doutoranda em Psicanálise. Pesquisadora do Núcleo de Estudos de Representações e de
Imagens da Antiguidade – NEREIDA/ UFF.
2
Professora Associada de História Antiga da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro – UNIRIO.
Pesquisadora do Núcleo de Estudos e Referências sobre a Antiguidade e o Medievo –NERO– e Pesquisadora
do Núcleo de Estudos de Representações e de Imagens da Antiguidade – NEREIDA.
42 Patricia Vivian von Benkö Horvat e Claudia Beltrão da Rosa

no Egito. Observemos, em primeiro lugar, duas versões literárias, distantes no


tempo e na experiência, e uma versão dramática, para denotarmos a longa duração
e variantes do mito: o relato de Heródoto, historiador do século V a.C., a versão
do Prometeu Acorrentado, tragédia atribuída a Ésquilo, também do século V a.C.,3
e um diálogo de Luciano de Samósata, poeta satírico do século II d.C. A seguir,
observaremos duas imagens visuais, a pintura de uma hydria ática do século V a.C,
e dois afrescos do Templo de Ísis, Pompéia, do século I d.C., buscando variações
significativas no mito de Io.
Segundo Heródoto, seus informantes persas e fenícios contavam versões
divergentes da história de Io, princesa de Argos: na versão “persa”, comercian-
tes fenícios negociavam no porto de Argos e raptaram Io e outras moças para
venderem no Egito. Na versão “fenícia”, Io teria embarcado voluntariamente,
pois se unira ao comandante do navio e temia a ira de seus pais (Her. I, 1-2; 5).
Éforo acrescenta que o faraó enviara um touro a Ínaco, como “compensação”
pela perda de sua filha (Éf. fr. 79). Heródoto também se refere a uma identificação
Io-Ísis, em sua ligação com a deusa-vaca Hathor, e o historiador grego chama a
atenção para a semelhança na representação de Io com chifres de vaca e Isis-
-Hathor, na cultura popular grega e nas representações artísticas (Her. II, 41).
No Prometeu Acorrentado, uma das mais extensas e complexas versões
do mito, Io, filha do deus-rio Ínaco, surge repentinamente no terceiro episó-
dio perseguida por um moscardo, ou pelo espectro de Argos, o pastor de mil
olhos. Io conta sua história: Zeus tomou-se de desejo por ela, que o recusou.
Furioso, Zeus forçou seu pai, o filho do Oceano, a expulsá-la de casa, quando
em sua testa brotaram chifres de vaca. A moça-vaca passou a ser vigiada por
Argos, o vaqueiro de mil olhos, que, morto por Hermes, assombrava-a sob a
forma de um moscardo monstruoso; este não cessava de picá-la e a condenava
a fugir incessantemente dele. Na tragédia, Prometeu narra a Io a longa viagem
que faria, e seu término, às margens do Nilo. Ali, estaria destinada a dar à luz
Épafo, de quem descenderiam as Danaides e, após muitas gerações, Héracles,
o libertador de Prometeu.
É consenso atualmente que o dramaturgo realizou uma inovação ao
misturar múltiplas tradições, especialmente na fusão dos mitos independentes
de Prometeu e de Io. Tal fusão de mitos não era usual na tragédia ateniense, e
os dramaturgos costumavam manter suas alusões e reinterpretações de mitos

3
De acordo com John Davidson (2005), que discutiu as dúvidas sobre a autenticidade do Prometeu
Acorrentado, apresentando extensa análise sobre os elementos cênicos e a marcação dos atores no Teatro
de Dionisos, concluindo que a atribuição da peça a Ésquilo é coerente.
Ontofanias de Io: variações na figuração do mito 43

no interior do mesmo ciclo narrativo ou da tradição em que seu tema se inseria.


Além de estarem ligados pelo fato de que ambas as personagens, Prometeu e
Io, são vítimas de Zeus, e de que suas consequentes punições os lançaram à
extremidade do mundo, ou seja, os lançaram fora da civilização, estão vinculados
por um descendente longínquo de Io, Héracles, indicado como o libertador de
Prometeu (ANDERSON, 2005, p. 135). Para Phyllis Katz, por exemplo, o episódio
de Io apresenta um rito de passagem que reforça uma lição para a comunidade:
a necessária transição das meninas atenienses para o papel social de mães
submissas às necessidades masculinas.4
Percebe-se que em algumas versões literárias e teatrais do mito, Io fora
totalmente metamorfoseada em vaca (e.g. Esq. Suppl. 299), enquanto outras
versões a representam como uma mulher com chifres ou cabeça de vaca (e.g.
Heródoto, II, 41).5 No Prometeu Acorrentado, a personagem surge com chifres
de vaca, uma solução cênica compreensível, dada a dificuldade de se colocar
uma vaca real em cena, mas significativa para a compreensão do episódio
(BELTRÃO; HORVAT, 2010). Unido a Prometeu, o mito de Io torna-se claramente
um “mito de fundação”: as peripécias da moça-vaca e de seus descendentes
fundam a ordem políade. Stephen White (2001) ressalta a importância do
mito de Io enquanto mito de fundação: as viagens involuntárias de Io a desti-
navam ao papel de “mãe” de uma nova família de mortais que introduziriam
e garantiriam as normas e as instituições da polis e da cultura cívica grega.
A personagem fundaria povos e lugares, inserindo-os no universo helênico
(MARTINS DE JESUS, 2009), e o dramaturgo trouxe à cena uma versão peculiar
deste mito, unindo-a ao mito de Prometeu, fundador da própria humanidade.
A mensagem final é: após a reconciliação de Prometeu e Zeus, o Olímpico se
reconciliaria também com a humanidade, instaurando a kosmós, o universo
ordenado, e o sofrimento de Io ganharia um sentido político de instauração de
um modus vivendi “civilizado”. Este sentido é dado pela narrativa das andan-
ças de Io por Prometeu, criando um mapa de regiões hostis e selvagens, fora
da kosmós grega, distante da polis, com a promessa futura de envolvimento e
ordenação de tal mundo “bárbaro” no universo político (androcêntrico), sob
a égide de um Zeus reconciliado.

4
Ph. Katz (1999, p. 131) apresenta interessantes exemplos de como a medicina ateniense apresentava
supostos distúrbios da mulher sem filhos.
5
Cf. outras versões literárias em língua grega e latina: Hesíodo, fr. 47; Pausânias, 2 , 16,1 e 3, 18, 15; Ovídio,
Met. 1, 583 ss; Apolônio de Rhodes, Arg. 2, 168; Plínio, Nat. Hist 16, 239; Diodoro Sículo, 1, 25; 3, 74; 5, 60;
Marcial, Epig. 11, 47, 4; Herodiano, 1, 1; 2, 41.
44 Patricia Vivian von Benkö Horvat e Claudia Beltrão da Rosa

Luciano de Samósata, séculos mais tarde, refere-se a Io no Diálogo dos


Deuses: Zeus a Hermes:

ZEUS – (Com ar casual) Conheces a formosa filha de Ínaco, Hermes?

HERMES – Sim, se é que estás a referir-te a Io.

ZEUS – Ela agora já não é uma rapariga, mas sim uma vitela.

HERMES – (Admirado) Que prodígio! Então ela mudou de forma?

ZEUS – Foi Hera, que tomada pela inveja, a metamorfoseou. E fez ainda
algo mais de extraordinário e de terrível contra essa desgraçada. Colocou
junto dela um pastor chamado Argos, com muitos olhos, que apascenta a
vitela e que nunca dorme.

HERMES – E o que é que agora pode fazer-se?

ZEUS – Vai até Nemeia – pois é aí que Argos pastoreia – mata-o, leva Io
para o Egito, pelo mar, e transforma-a em Ísis. E que ela se torne numa
divindade dessa região, que faça subir o Nilo, que envie os ventos e proteja
os marinheiros.

Na versão de Luciano, Io é metamorfoseada em vaca, e Hermes, após ma-


tar Argos, a leva para o Egito, transformando-a em Ísis. Esse poeta escreveu no
momento em que o Império Romano tornara o Mediterrâneo um imenso sistema
de trocas e comunicações entre distintas regiões e povos, desenvolvendo-se um
“mercado de religiões”, segundo a metáfora advinda da antropologia econômica
utilizada por J. North (1992), e, em sua versão, Io é a própria Ísis, aqui citada em
sua epifania de “Senhora dos Navegantes”, como foi mais conhecida e cultuada
no Mediterrâneo romano.
Voltemo-nos agora para algumas imagens visuais, no caso pinturas e
desenhos, que criaram/veicularam formas de representar Io na antiguidade,
buscando entrever nuanças interpretativas e sígnicas do mito.
É certo que os artistas têm de escolher entre um número determinado
de esquemas de pensamento, formas e materiais possíveis, pois desenhos e
pinturas não são feitos no abstrato – nem nenhuma outra obra de arte. Além
disso, as obras de arte servem a necessidades, intenções e inquietações
individuais e coletivas. Observando-as, analisando-as, apreendemos muito
sobre as capacidades técnicas e sobre a organização social de um grupo, pois
Ontofanias de Io: variações na figuração do mito 45

as pinturas e as esculturas são também objetos funcionais. Mas as obras de arte


não são nem puramente funcionais, nem puramente gratuitas, livres expressões
“egoicas” de seus autores. São, como disse Francastel (1993, p. 79), objetos de
civilização, mesmo que tenhamos restrições justificadas ao uso do termo “ci-
vilização” e os definamos como objetos de cultura.
Do mesmo modo, como o ser humano vive sua vida em níveis múltiplos
e variados, as obras estão inseridas em várias categorias de nossas atividades.
Como objetos culturais, as obras de arte têm diversos aspectos e modos de
ser. São simultaneamente instrumentos materiais e mentais. São o resultado de
técnica, mas não são técnica pura; pela arte, entramos no domínio da intuição.
E é preciso ver nas obras de arte não apenas produtos ou testemunhos da
vida, como faz boa parte da análise historiográfica; elas são também agentes
de outras obras e da conduta humana, orientando-as, fornecendo-lhes modelos
e escolhas entre as várias possíveis, comprometidas que são com a matéria e
com o espírito.
A arte figurativa não reproduz seres preexistentes – sejam formais,
reais ou imaginários. Pensar ou figurar não é transcrever ou reproduzir. Figu-
rar é integrar dentro de um sistema, ao mesmo tempo material e imaginário,
elementos que, pela justaposição, criam novos objetos, que são passíveis de
reconhecimento e interpretação. Os elementos da arte figurativa não existem
apenas na mente do artista, mas existem também nas mentes de todos que
– espectadores – conferem à obra sua realidade. Desde A vida das formas, de
Henri Focillon (2001), ninguém mais ignora o valor das obras de arte como
signos expressivos. A obra de arte, simultaneamente produto da imaginação
do artista e de sua habilidade como artesão, é um fenômeno técnico e intelec-
tual, assim como é produto de uma época, com um sentido simbólico e social.
E, na antiguidade, a obra de arte ocupou um lugar privilegiado, pois a vida
não era dominada pelo signo escrito e, menos ainda, impresso, ou seja, pelo
imperialismo do texto. A obra de arte, portanto, nos fornece uma visão das
formas de sensibilidade e percepção do mundo dos grupos humanos de que
nos ocupamos e, no mínimo, nos oferecem um meio de apreender fenômenos
e tendências que de outro modo nos escapam, seja o pitoresco ou o efêmero,
sejam as aspirações e forças mais profundas dos grupos humanos. Mesclando
elementos da realidade percebida com elementos provenientes da vida ima-
ginária e cultural, o artista utiliza técnicas e instrumentos para informar uma
matéria, criando objetos que permitem a uma sociedade tomar consciência de
si mesma, e, a nós, formular hipóteses de leitura.
46 Patricia Vivian von Benkö Horvat e Claudia Beltrão da Rosa

Figura 1 - Hydria ática de pinturas vermelhas do século V a.C


(ca. –470), encontrada na Campânia e atribuída por Beazley
ao “pintor de Agrigento” (Att. V. p. 245 no. 39; ARV.1 p. 381
no. 62; ARV.2 p. 579 no. 84; Beazley 206686), atualmente no
Museu de Belas Artes de Boston. (nº 80.417)

Observemos a Figura 1. À direita da cena vemos um altar e uma coluna,


possivelmente remetendo ao Heraion argivo. Io, uma vaca, e Argos ocupam o
centro da cena. Hermes saca sua espada para atacar Argos Panoptes, reconhe-
cível pelos diversos olhos em seu corpo, que se afasta. À direita da sacerdotisa,
uma figura masculina adulta levanta a mão esquerda num gesto de surpresa.
Correspondendo a esta figura masculina, no extremo oposto da cena, à esquerda
de Hermes, uma figura feminina também expressa surpresa, elevando os dois
braços. A figura feminina à direita de Hermes (nossa esquerda) pode ser uma
sacerdotisa de Hera (kleidouchos), distinta de Io, portando o cetro em sua mão
esquerda e as chaves (do Heraion) em sua mão direita (um elemento recorrente
em representações de sacerdotisas). O penteado da “sacerdotisa” é bastante
elaborado, e a outra figura feminina tem os cabelos presos numa touca. Argos
Ontofanias de Io: variações na figuração do mito 47

é caracterizado como um pastor, com o manto de pele nos ombros, uma espa-
da e um clava; Hermes veste uma clâmide; a figura feminina veste o chiton, o
himation, e tem brincos e braceletes. A imagem, de nítida estrutura narrativa,
traz Io em sua forma de vaca; Io é uma vaca, como nas demais representações
visuais de Io na cerâmica ática do século V a.C.
Séculos mais tarde, em Pompéia, no interior do Templo de Ísis (insula
VII – Regio VIII, próximo ao teatro), no ekklesiasterion, duas pinturas parietais
nos interessam:6

Figura 2 - Io, Hermes e Argos. Afresco da parede norte do


ekklesiasterion do Iseum, Pompéia. Museu Arqueológico
Nacional de Nápoles, nº 7207.

6
Os afrescos estão atualmente no acervo do Museu Arqueológico Nacional de Nápoles.
48 Patricia Vivian von Benkö Horvat e Claudia Beltrão da Rosa

Figura 3 - Ísis recebendo Io. Afresco do ekklesiasterion. Iseum,


Pompéia. Museu Arqueológico Nacional de Nápoles, nº 7210.

Os dois afrescos são do quarto estilo (também chamado estilo cenográfico,


de aspecto teatral e luxuoso) e faziam parte de um conjunto de cinco afrescos,
três deles com temas de paisagens de um Egito idílico. Na parede norte, o pri-
meiro afresco (Fig. 1) representa uma passagem do mito de Io: Hermes, com
seu caduceu e asas nos pés, dá ao pastor Argos a erva que irá fazê-lo dormir, a
fim de matá-lo, segundo as ordens de Zeus. O segundo (Fig. 2) traz a chegada
de Io, com chifres de vaca, a Canopo, conduzida por Nilo (ou outra deidade
aquática) e recebida por Ísis. Os afrescos são datados dos anos entre o terre-
moto de 62 d.C. e a erupção vulcânica de 79 d.C, a partir de uma epígrafe votiva
encontrada no pórtico, indicando a reconstrução a fundamento do templo por
Numerio Popídio Celsino – na verdade, por seu pai, Ampliato, pela honra de ter
sido admitido entre os decuriões da cidade. O ekklesiasterion, provavelmente
uma adição feita na reconstrução (o mosaico preto que cobre o chão indica os
nomes de Numerio, Ampliato e Cornelia Celsa, em tesserae brancas, como seus
Ontofanias de Io: variações na figuração do mito 49

doadores), era destinado a banquetes e reuniões. Segundo R. Turcan (2001, p.


106-7), a sala retangular servia para a recepção de neófitos e permitia a pas-
sagem para uma área mais restrita, o sacrarium, decorado com afrescos que
narram passagens do mito de Isis, no qual não apenas objetos sagrados eram
guardados, como também as ações preliminares do culto ocorriam. Notamos
que, no sacrarium, afrescos apresentam o mito de Ísis, em sua busca – no final
bem-sucedida – pelo marido Osíris, incluindo o afresco mais famoso – Adoração
da Múmia –, no qual sacerdotes cultuam Osíris, trazido à vida por Ísis, enquanto
esculturas encontradas no local apresentam Ísis amamentando seu filho.
Os dois afrescos com tema sobre Io estão ladeados pelas paisagens, e
foram encontrados numa posição central atraindo o olhar de quem entrasse
pela porta principal, sendo visíveis também para quem estivesse do lado de
fora da sala, o que nos permite depreender a proeminência de Io no culto isía-
co em Pompéia, especialmente porque os afrescos não unem as duas em uma
mesma pessoa.
Os afrescos de Io no templo podem ter sido poderosos chamarizes como
narrativas alegóricas atraindo mulheres para o culto de Ísis, e nos parece razoá-
vel que Io aí estivesse por uma razão maior do que uma simples citação do lugar
do final de suas andanças, pois os afrescos estão localizados no centro da visão
das pessoas que estivessem no pórtico. Os afrescos laterais, que representam o
que consideramos ser apenas paisagens, servem de pano de fundo à narrativa
de Io, e o segundo afresco que nos interessa apresenta, à direita do olhar do
espectador, os sacerdotes e um sarcófago, o que pode ser entendido como o
ponto final de uma história de sofrimento e uma nova vida para Io (um elemento
central da religião isíaca). Se observarmos as pinturas das duas salas – ekkle-
siasterion e sacrarium –, poderemos depreender uma complementaridade nas
narrativas: a de Io, para um público mais amplo, e a de Ísis, para os “iniciados”.
No primeiro afresco, Hermes e Argos são os protagonistas. Io está sentada
passivamente, porém, majestosa, numa rocha. De sua testa despontam chifres,
talvez um recurso do pintor para lembrar ao espectador a metamorfose que
a personagem sofrerá. Na segunda imagem, Io ainda tem os chifres em sua ca-
beça e à sua esquerda está uma vitela, ajudando o espectador a reconhecer a
personagem. Infelizmente, uma parede do ekklesiasterion se perdeu, e não há
descrições de suas pinturas.
Lembremos que os afrescos fazem parte dos elementos de um templo de
uma deusa de origem egípcia, mas localizado em Pompéia, município romano
de origem osca na Campânia, região que pertencia à Magna Graecia há muitos
50 Patricia Vivian von Benkö Horvat e Claudia Beltrão da Rosa

séculos. Além disso, apesar de as versões do mito concordarem que o fim de


suas andanças ocorreu no Egito, não há nenhuma indicação anterior a Io ter sido
uma iniciada do culto de Isis. Em comum entre Io e Isis, além do fato de serem
personagens femininas, há os relatos de sofrimentos que levam a andanças. No
segundo afresco, Ísis é identificada pelo crocodilo a seus pés e a serpente em
sua mão, tópicos da representação figurativa do Egito. E os fiéis de Ísis podiam
ler os afrescos como tendo sido Ísis a trazer Io de volta à humanidade, após uma
jornada de sofrimentos que a levou não a Zeus, mas a Ísis, cujo culto incluía
elementos de salvação pessoal (cf. O Asno de Ouro, de Apuleio). Mais uma vez,
e reiterando uma característica da personagem, Io é passiva, incapaz de reger
seu destino; é a deusa da salvação que a “toca”, o que, para os espectadores,
tem um ótimo potencial de proselitismo religioso (e sabemos que o culto de Ísis
em Pompéia atraía especialmente escravos, libertos e mulheres).
Ísis é uma deusa autossuficiente, apesar de mãe e esposa dedicada à
salvação de seu marido (Osíris), mas percebe-se claramente que é ela quem age
em todas as versões de seu mito. Io, ao contrário, é passiva sempre, excetuando-
-se, de certo modo, a cena no Prometeu Acorrentado, no qual surge em pleno
ataque histérico. Nos afrescos pompeianos a mensagem é clara: eis uma deusa
poderosa, a quem você deve cultuar; eis uma mulher que sofre, a quem a deusa
liberta. É certo que a expansão de Roma no Mediterrâneo fez multiplicarem-se
os casos de interpretatio religiosa, a partir da intensificação do contato dos con-
quistadores com as divindades e cultos dos conquistados e vice versa, e se os
mitos e rituais faziam parte da esfera religiosa, eram também, não esqueçamos,
parte das lições morais dos povos do Mediterrâneo.
No que concerne às aparições de Io, de cunho religioso e ideológico e sob
signos e axiologias diferentes, embora remetam sempre à origem de gerações,
seja de seres divinos, seja de seres humanos, têm significados diferentes. Suas
ontofanias são ora direta e exclusivamente ligadas à fertilidade e à geração de
vida, subsumindo e veiculando a subordinação do elemento feminino ao papel
social de gerar filhos, ora ligadas à subversão deste mesmo papel (e.g. Prometeu
Acorrentado). Podemos compreender a figuração de Io/vaca como resultante
de sua experiência como sacerdotisa no santuário de Hera, com seus rebanhos
sagrados, e incorporação da ideia de fertilidade da vaca, suscitada pelo inte-
resse sexual de Zeus. Junto a esse valor de verdade cultural, o símbolo tem a
função de indicar um sentido de decifração, abrindo caminho para seus corre-
latos imaginários possíveis. Este signo, cujo significante é a imagem da vaca,
era, para os espectadores destas imagens, plena de sentido. Io sob a forma de
Ontofanias de Io: variações na figuração do mito 51

vaca seria o símbolo de fertilidade que as mulheres deveriam imitar. Nos vasos
cerâmicos dos séculos V a.C., utilizados também no âmbito doméstico, por
mulheres, Io aparece, então, como uma reiteração da fertilidade, sob forma de
vaca e pano de fundo das ações que ocorrem a seu redor, em função dela, nas
quais, contudo, não toma parte ativa, nem tem poder decisório. Tudo gira em
torno da promessa futura de fundação de gerações, da qual Io é o repositório
estático, instância de passagem no percurso do desejo masculino em direção
à realização do poder masculino, com a criação de proles para a consecução
de anseios políticos. Assim, didaticamente, as mulheres eram instruídas pelas
imagens diárias modelares para si mesmas, adequando-se à personagem que
lhes cabia pelo ordenamento social que se instaurava.
Quanto aos afrescos pompeianos do século I a.C., Io aparece sob a forma
humana, pois já fora personagem de Ésquilo e outros, debatendo-se contra o seu
destino traçado de ser a geradora de uma nova humanidade em detrimento dos
seus talentos para o sacerdócio, que lhe conferiam, por aproximação, a similari-
dade à Hera. Io é um animal falante, e, como tal, agente. Restam como elemento
sígnico os chifres, que, embora remetendo à vaca, mas diferentes dela, trazem
equivocidade ao significado unívoco do animal e, como tal, um remetimento à
mãe ancestral, a Grande Mãe, força geradora, e já não mais um ser meramente
sacrificial. A Io ambígua é um ser em transformação, em processo de superação
do estado de natureza para o âmbito da cultura. Ela se estabelece como um ser
sobrenatural, com intelecto e com a potência desafiadora dos chifres, anunciando
uma possibilidade de subversão do instituído pelas suas descendentes Danaides
(cf. Esq. Supp). Segundo Cirlot (1969) e Chevalier e Gheerbrant (1973) os chifres
têm o valor simbólico da abertura de caminhos, de início de fase, de elevação,
prestígio e glória. A fertilidade emblemática dos cornos não é a mesma que a da
imagem da terra nutriz, mas é a de uma potência geradora que define o destino
da progenitura. Desse modo, a representação de Io com chifres traz em si a fer-
tilidade tanto no seu sentido de geração como de prosperidade e de potência.
Concluindo, as “lições” transmitidas pelas várias imagens diziam às mu-
lheres que elas podiam ter “uma vida melhor”, caso aceitassem seu destino de
mães e esposas, em vez de fugirem incessantemente de seu “destino” e, por isso,
perderem suas características “humanas”, isto é, “políades”, tornando-se estran-
geiras: “errante e só até o fim do mundo”. (Prom. vv. 655 –665). Enquanto vaca,
ser da natureza e fora da linguagem, Io é figura secundária na história; enquanto
ser humano com chifres, ela se passa ao primeiro plano das representações
pictóricas. A personagem sofre quando se recusa a cumprir seu “dever” de ter
52 Patricia Vivian von Benkö Horvat e Claudia Beltrão da Rosa

filhos, mas, quando o aceita, torna-se a matriarca da grande “raça argiva”. Io tornou-
-se a mãe de uma longa geração de reis e fundadores de cidades. E, remetendo
à potência geradora, conquista a humanidade mesmo antes de ser “mãe”, para
depois, na imaginação de um Luciano, ascender à divindade e transformar-se em
Ísis. Io é, então, protagonista de um mito de fundação, que ensina às mulheres a
importância de se ter filhos, mas de tê-los consciente e ativamente, não apenas
como incubadoras da alteridade como única opção de vida e como ilusão de par-
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“É preciso ao pescador um espírito pleno de
sutilezas e prudências”: as técnicas da pesca nas
imagens da cerâmica ática do período clássico

Ana Livia Bomfim Vieira1

A
pólis dos atenienses se constituiu numa sociedade em que a comu-
nicação era predominantemente oral até o final do IV século a.C.,
embora a escrita tenha sido conhecida a partir do VIII século a.C.. A
sociedade se organizou por meio das relações “face a face, do ver e do ouvir”,
produzindo, reproduzindo e criando, durante a sua história, imagens textuais e
icônicas, com as quais nomeavam, representavam e simbolizavam a sociedade
e os que nela viviam (COULET, 1996).
Podemos dizer, pelo estado atual do conhecimento, que os atenienses,
por outro lado, contavam histórias de vários tipos, nas quais as imagens ver-
bais e pictóricas se constituíam em verdades, aparências, ilusões e opiniões.
Com elas, teceram a rede complexa da cultura helênica, retomada e revisitada
até os nossos dias (VERNANT, 1996). Desse modo, essa sociedade nos deixou
documentos de naturezas diferentes, tais como: textos de diversos gêneros,
esculturas, esquemas variados de composição arquitetônica, imagens em su-
porte cerâmico e uma variedade de objetos de uso cotidiano que permitem ao
historiador levantar questões em relação aos valores, as práticas, as tensões e
aos conflitos sociais próprios da estrutura políade.
Entendemos imagem como uma manifestação do aparecer na ordem fe-
nomenal. A imagem restitui ao olhar a eclosão do visível. As imagens não subs-
tituem as coisas, mas mostra como elas se abrem e como nós entramos nelas.
A imagem torna sensível a presença do ausente (ausência metafísica da coisa).

1
Professora Adjunta de História Antiga da Universidade Estadual do Maranhão. Pesquisadora do NEREIDA/
UFF. Citação do título: OPPIEN. Halieutica. Londres: Loeb, 1928, III, v. 41-43.
56 Ana Livia Bomfim Vieira

A matéria da imagem se dá por grau de percepção, de um só golpe. Pela imagem,


nós somos duplamente reconduzidos ao real. De um lado, porque a represen-
tação traz a marca da insuficiência em relação à realidade; ela reforça o desejo
de se reencontrar efetivamente com o mundo. De outro lado, a imagem possui
o poder próprio que não deixa a realidade intacta. A imagem é um constante
jogo ou tensão entre a presença e a ausência da coisa (LAVAUD, 1999, p 14, 25).
Pode-se se dizer que a imagem apresenta a forma a posteriori do espaço. O que
a imagem traz ao olhar não é nem o dado sensível, já espacialmente organizado,
nem a forma pura, a priori do espaço, mas a maneira de se reconhecer e se elabo-
rar este dado.2 As imagens passam uma mensagem lúdica e, portanto, possuem
códigos de representação e de leitura. Uma imagem e seus códigos estariam
ligados a um momento. Os vasos áticos, por exemplo, e sua decoração eram,
na sua maioria, destinados aos espaços privados. Nestes espaços, a influência
do político talvez seja menor, mas a da ideologia políade está sempre presente
(FRONTISI-DUCROUX, 1995). A imagem não é uma mera ilustração dos textos;
é, então, uma forma de linguagem específica. Ela não busca representar o real,
e sim dar sentido ao real (SCHNAPP, 1995).
Os escritores e pintores dos vasos (sejam eles cidadãos –eleutheroí–,
estrangeiros domiciliados –metecoi– ou escravos –douloí–) vivem em Atenas,
conhecem os saberes que circulam e a pluralidade cultural interna; estão sub-
metidos às mesmas normas e vivenciam as tensões e conflitos de forma coe-
rente aos seus lugares na hierarquia social. Por outro lado, o que os escritores
e pintores produzem está intimamente ligado aos “consumidores”, isto é, quem
encomenda, compra, ouve ou quer ver alguma coisa. Sendo assim, grupos sociais
em Atenas se interessam em “consumir” e divulgar mensagens que apresentem
as relações entre os diversos grupos sociais e suas atividades. Entre esses
diversos grupos sociais, trabalharemos aqui com o grupo dos pescadores. A
partir da documentação imagética, podemos inferir muitas informações sobre
sua atividade e modo de vida (POTTIER, 1926; GHYKA, 1959; RICHARD, 1997;
DAIN, 1965; SEGAL, 1987; VERNANT, 1990).
A atividade da pesca tinha um lugar de destaque no litoral mediterrâneo
como um todo. Podemos distinguir, de uma forma geral, cinco áreas onde a pes-
ca era praticada de uma forma bastante significativa. São elas: Acarnia (laguna
de Missolongui); o golfo de Argolida; o golfo Sarônico (Pireu); Euripe (entre

2
LAVAUD, 1999, p. 15. A imagem se dá como a ausência da coisa. A imagem imita a ausência da coisa. Ela
anuncia, produz a coisa, p. 16.
“É preciso ao pescador um espírito pleno de sutilezas e prudências”:
as técnicas da pesca nas imagens da cerâmica ática do período clássico 57

Beócia e Eubéia); e a região que engloba Cós e a Iônia (DUMONT, 1981, p. 4).
A construção dessas “zonas privilegiadas de pesca” coincide com a passagem
dos cardumes de peixes migratórios, o que significava peixes maiores e mais
facilmente conserváveis e, logo, vendáveis. Entre essas zonas de pesca, Atenas
estava à frente no comércio de peixes do golfo sarônico, seja nos mercados,
seja nas peixarias. Assim, iremos nos deter à atividade pesqueira realizada na
região do Pireu. Tais dados geográficos, e mais tarde técnicos, nos ajudarão a
reconstruir e compreender essa prática3 e a extensão do lugar ocupado por ela
no cotidiano dos atenienses.
Segundo Gallant (1985), o papel da pesca foi superdimensionado pela
maioria dos autores. Para ele, a pesca possuía um papel secundário, ou melhor,
subordinado e suplementar, sobretudo por conta das técnicas empregadas.
Em contraponto a esta visão, que compartilha com Cartledge (1979), está a de
que a pesca tinha um papel preponderante na economia ateniense (DUMONT,
1981; TOUTIN, 1930, p. 36-37; SEMPLE, 1932, p. 244-245; MICHELL, 1957, p.
286-289; HOPPER, 1979, p. 62; BOARDMAN, 1980, p.244). O peixe seria, depois
dos cereais, o alimento mais importante da dieta e o alimento das massas.
Gostaríamos de nos posicionar dentro desta discussão, apesar de não ser este
o objeto de nosso trabalho, pois o estatuto do pescador ateniense do período
clássico não estava, necessariamente, atrelado ao papel desempenhado pela
pesca dentro dessa sociedade. Admitindo que não podemos falar de uma
“indústria de pesca” ou de uma supremacia dos animais marinhos na alimen-
tação, a pesca possuía, sim, um lugar estabelecido como fornecedora de um
alimento presente em todas as mesas. E, em períodos de guerras prolongadas,
por exemplo, foi uma importante garantia de sustento e sobrevivência para
a população, visto que Atenas importava uma grande parte de seus cereais
(CHEVITARESE, 1996, p.66), e de outros produtos,4 e, por isso, estes ficavam
impossibilitados de chegarem aos portos. Portanto, relativizando a dita su-
pervalorização da pesca como atividade econômica, gostaríamos, entretanto,
de sustentar que é impossível entender a pesca como uma atividade simples-
mente subordinada. Consideramos que o peixe tinha o seu lugar nas mesas

3
Visto que os dados relativos, exclusivamente à Atenas no século V, como mencionamos na introdução, é
bastante escasso. E essa escassez, na nossa opinião, não é gratuita. Mas essa é uma questão que trataremos
mais atentivamente no segundo capítulo.
4
Além de cereais e do peixe seco e salgado vindo do Mar Negro, Atenas importava também: carne de boi
defumada, queijo, tecidos, perfumes, madeira, metais, uva seca, figos, tapetes, marfim, tâmara, sêmola,
incenso, amêndoas, orégano, alho, entre outros (PANAGOS, 1997, p. 83).
58 Ana Livia Bomfim Vieira

da maioria da população5 e a pesca era uma atividade inserida na economia


da pólis. Podemos afirmar isso, pois, se esta atividade não estivesse inserida
no cotidiano da vida dessa sociedade, e se os pescadores não fossem, eles
também, agentes sociais, porque representá-la nos vasos?
Essas representações são fundamentais para a análise das técnicas em-
pregadas nesta atividade. As técnicas de pesca foram contadas, pelos autores
antigos, levando em consideração o gesto, como no caso de Platão,6 que classi-
fica três tipos: com anzol, com armadilhas e com tridente, ou os instrumentos
utilizados, como fez Oppien.7 Como neste momento nosso objetivo é o de apenas
apresentar essas técnicas, sem entrar ainda no campo do julgamento de valor
dado à pesca e ao pescador pelos textos antigos, seguiremos inicialmente a
classificação fornecida por Oppien, ou seja, pesca com linha, pesca com rede,
pesca com armadilhas e pesca com arpão.8 Contudo, acrescentando outras,
claramente menos empregadas: pesca com veneno, pesca com lanterna e pesca
de mergulho (submarina).
A pesca com linha, na verdade, comporta duas subdivisões: pesca de
linha com vara e de linha de fundo. A pesca de linha, ou pesca com anzol, com
vara, era praticada em pequenos barcos ou na borda do mar, rios ou lagunas.
Era, sem dúvida, a técnica mais popular (GALLANT, 1985, p. 14).
A vara era feita, sobretudo, de junco9 encontrado na beira dos rios. À ex-
tremidade, era presa a linha, normalmente em linho, entre a linha e o anzol (de
bronze ou de ferro) (DUMONT, 1981, p. 5); era usado um flutuador em cortiça10
e uma peça em chumbo.11 Como isca para esse tipo de pesca, eram usados, para
os peixes menores, vermes, moscas e outros insetos.12 Para as espécies maiores,
utilizavam-se pequenos peixes e, ainda, restos de tripas de peixe e de carne.13

5
Sobre isso, inclusive, as descobertas no terreno da arqueozoologia nos mostram uma presença do peixe
em um âmbito muito mais amplo do que o da alimentação (BODSON, 1975). Além do mais, a ideia de uma
supremacia dos cereais, em ambos os lados da discussão, denota, abertamente ou não, uma associação
ao conceito de uma “economia antiga” eminentemente agrária.
6
Que emprega, principalmente, uma classificação hierarquizada, empregnada de juízos de valor, dessas
técnicas. (PLATÃO, 1955, 220 b -221 b).
7
OPPIAN, 1928, III, 72-91.
8
OPPIAN 1928, III, 74-91. ELIAN, 1990, XII.
9
OPPIEN, 1928, I, 54; III, 154; PLUTARCO, 1987, v376. Para a utilização de outros materiais, ver: Elian
(1990, XII, 43).
10
Homero conta da utilização de uma peça em forma de chifre, localizada na linha entre a cortiça e o anzol,
que servia para impedir que o peixe tentasse romper a linha para escapar. HOMERO. Odisséia. XII, 251- 254.
11
HOMERO, 1961, XXIV, 80; OPPIEN, 1928, IV, 221-222.
12
OPPIEN, 1928, III, 180; ELIAN, 1990, XIV, 22.
13
OPPIEN, 1928, III, 177-193; IV, 308, 365-366; V, 147; ARISTÓTELES, 1966, IV, 8.
“É preciso ao pescador um espírito pleno de sutilezas e prudências”:
as técnicas da pesca nas imagens da cerâmica ática do período clássico 59

A pesca de linha de fundo tem como diferença da anterior o fato de que é


praticada sem vara.14 Esta modalidade é mais apropriada para a captura de peixes
de tamanho grande, como o atum, por exemplo.15 Também era praticada sobre
pequenos barcos, sendo estes manobrados por, no mínimo, um remador. Nesta
prática, a linha era trançada para que ficasse mais forte, e o anzol era atrelado
a essa espécie de corda por uma corrente de ferro. Como a corda era segurada,
na maioria dos casos, pelas mãos do próprio pescador, este era exposto a feri-
mentos devido à resistência do peixe.16 Portanto, apesar das aparências, era uma
modalidade que nada tinha de fácil. Eram necessárias resistência e força para
segurar e conter a corda, assim como a vara, e não se deixar vencer pela presa.17
Segundo Dumont, a pesca com linha seria a técnica que deixaria a maior parte
do sucesso ou fracasso da empreitada ao azar. Isto porque o pescador é obrigado a
contar com a “pouca astúcia” de sua provável presa. Contudo, nenhuma modalidade,
incluindo a pesca com linha, é desprovida de um conhecimento prático, de uma
techné própria que visavam a diminuir a probabilidade de voltar de mãos vazias.
A pesca com rede era o procedimento que garantia o maior número de
presas ao mesmo tempo (GALLANT, 1985, p.16). Era também a técnica que se
diferenciava da pesca com linha por utilizar a rede, que era, também, um ins-
trumento de caça. Isto lhe conferia um caráter ambivalente, pois a “caça” para
a qual era destinada era proveniente do mar.18
As redes eram comumente feitas de linho. Contudo, podemos identificar
alguns outros tipos mais específicos, como uma espécie de rede vertical; ou
uma rede longa que era deixada no fundo de águas arenosas e pouco profundas;
ou uma pequena rede cônica com pequenos pedaços de chumbo na borda; e,
ainda, uma rede para pequenos crustáceos, preferencialmente o camarão; entre
outras (DUMONT, 1981, p. 5).
A terceira técnica apresentada pelos textos é a pesca com armadilha.19
Essas armadilhas, na maioria uma espécie de cesto feito de junco com uma

14
OPPIEN, 1928, III, 77, 139.
15
O atum era a presa principal da pesca com arpão também, como falaremos mais adiante.
16
OPPIEN, 1928,III, 261, 313.
17
Em alguns casos, era comum amarrar esta linha trançada na borda, vindo retirá-la após algum tempo. O
problema é que esse procedimento, embora mais simples e menos doloroso, só poderia ser aplicado para
a pesca em rios (ARISTÓTELES, 1966, IV. 10, 3).
18
Existem questões bastante interessantes no que refere à nomenclatura referente ao que chamamos “pesca”.
Contudo, trataremos dessas questões no próximo capítulo, pois está intimamente ligada ao lugar de
ambivalência no qual o pescador estaria inserido.
19
ARISTÓTELES, 1966, VIII, 20, 13.
60 Ana Livia Bomfim Vieira

abertura móvel para possibilitar a captura da presa, eram utilizadas, sobretudo,


para a pesca de rio e tinham a vantagem, sobre a pesca com linha, de serem
capazes de capturar, obviamente, um número maior de peixes, mas também
outras espécies de animais marinhos.
Costumava-se, também, armar engenhos em forma de labirinto e de peque-
nas redes em forma de saco. O peixe atraído pela isca – as mesmas utilizadas na
pesca com linha – entrava no labirinto, por exemplo, e não conseguia mais sair.
Esse procedimento era largamente utilizado e, ao contrário das outras
técnicas de pesca comumente praticadas, a força física não era um atributo
exigido para o sucesso da empreitada. E não foram poucas as críticas a esse
procedimento, calcadas em uma pretensa “ociosidade” por parte do pescador.
Platão foi um grande crítico dessa forma de pesca em especial, já que, para ele,
o pescador não demonstraria nenhuma força, coragem ou destreza, deixando
o trabalho para o artefato. Acreditamos, é claro, que a pesca com armadilhas,
assim como todas as outras técnicas de pesca, exigiam um conhecimento prático
e uma astúcia por parte do pescador, não deixando espaço para a “preguiça”.20
Observemos a imagem a seguir:

Figura 1 - Medalhão de taça ática de figuras vermelhas

20
PLATÃO, 1984, 823 e- 824 a.
“É preciso ao pescador um espírito pleno de sutilezas e prudências”:
as técnicas da pesca nas imagens da cerâmica ática do período clássico 61

A pesca com vara é, sem dúvida, a técnica de pesca mais representada


na imagética dos vasos áticos. O que nos indica, inclusive, sua maior proximi-
dade em relação ao olhar dos outros membros da pólis. De cócoras sobre o que
parece ser um ponto qualquer do litoral está o pescador representado nesta
imagem.21 Neste medalhão de uma taça ática (480 a.C.), podemos perceber que
o personagem da cena, um homem jovem –imberbe– segura com a mão direita
uma vara e com a esquerda o cesto, que, provavelmente, será usado para guardar
o peixe que fisga sua linha. Uma nova representação da pesca com vara nos é
apresentada. Podemos ainda salientar a presença, no fundo da água, de uma
outra espécie de cesto, sugerindo a ideia de uma armadilha.
Gostaríamos de acrescentar, nesse sentido, que a preferência pela repre-
sentação da chamada pequena pesca não coincide com os dados textuais. Na
documentação textual, as informações obtidas sobre a atividade pesqueira e,
sobretudo, sobre o pecador, dão conta, prioritariamente, da pesca em alto-mar
seja com rede ou com arpão.22 Isto vem reforçar a nossa ideia de que, sendo
a pequena pesca uma atividade complementar, por exemplo, à agricultura, a
grande pesca era, ao contrário, uma atividade em sí, realizada por homens que
se dedicavam exclusivamente a essa atividade e que, por ser realizada em alto-
-mar, ou seja, longe do olhar “civilizado”, era desconhecida o bastante para ser
representada pelos pintores.
A quarta técnica de pesca era a pesca com arpão ou com tridente. Os
dois instrumentos eram utilizados para a captura de cetáceos, isto é, dos peixes
maiores como o atum, mas também dos peixes de tamanho médio.23 Era uma
técnica utilizada principalmente para águas pouco profundas e, naturalmente,
límpidas. Os instrumentos eram confeccionados em ferro, tendo como base um
longo cabo feito em madeira de oliveira. Era comum, com o intuito de aumentar
o alcance da arma, amarrar uma corda na extremidade do cabo.
Ao contrário da pesca com armadilhas, na qual a astúcia do pescador era
o dado que fazia a diferença entre o sucesso ou não da atividade, a pesca com
arpão, ou com tridente, era considerada a mais nobre, pois proporcionava a
ocasião do pescador demonstrar o agôn (DUMONT, 1981, p.5). Lembremos que
o tridente tinha ainda o status de ser o instrumento representativo de Poseidon,
e era a arma principal para a pesca ao golfinho, animal ligado ao Deus marinho.

21
Boston, Museum of fine arts (01.8024) (VILLANUEVA-PUIG, 1992, p. 75).
22
As duas formas mais comumente citadas.
23
OPPIEN, 1928 III, 553, 631; IV, 252, 646; ARISTÓTELES, 1966, IV, 10; X, 1; PLATÃO, 1955, 220 e.
62 Ana Livia Bomfim Vieira

A pesca ao atum,24 por exemplo, é bem representativa da presença do agôn.


Essas grandes empreitadas de pesca aconteciam, aproximadamente, de
15 de maio – thargélion – a 25 de outubro – mémactérion.25 Alguns homens, pro-
vavelmente pescadores, eram responsáveis pela observação dos cardumes. Eles
posicionavam-se, durante horas, em algumas cabanas26 construídas sobre os.
O objetivo, com isso, era o de vigiar, identificar e dar o sinal da passagem dos
cardumes migratórios.27 Dado o sinal, os barcos agrupavam-se sob o comando
de um deles. Uma enorme rede era jogada, e os barcos cercavam de tal forma
o cardume que o único caminho era o fundo da rede. Após a captura, os barcos
se aproximavam entre si e, após trazer os peixes à tona, ainda dentro da rede,
estes eram transpassados a golpes de tridente.28 Era quando se dava o âgon
final, em um sangrento abate.
Contudo, entre os animais marinhos, um destacava-se por ter a simpatia
e o respeito dos pescadores. Estamos falando do golfinho.29 Além de serem con-
siderados protegidos dos deuses – o golfinho era um dos animais de Apolo, de
Afrodite e acima de tudo de Poseidon, o senhor dos mares – e como anunciadores
do bom tempo e do mar calmo e doce, esses cetáceos eram tidos como amigos
do homem, ajudando os náufragos a encontrarem terra firme e os pescadores,
conduzindo os peixes para dentro da rede.30
Ainda não tratamos, todavia, das três últimas técnicas de pesca, são elas:
pesca com veneno, com lanterna e de mergulho.
A primeira, com veneno, apesar de relativamente utilizada, era bastante
condenada. Na verdade, segundo Platão, esse era um procedimento proibido.31
Nesta prática, a substância, alucinógena ou sedativa era jogada na água com o

24
Duas espécies de Atum eram prioritariamente numerosas: o qunnoj de carne vermelha, o Atum como
nós conhecemos e o amia, ou o nosso Bonito (DUMONT1981, p.7).
25
ARISTÓTELES, 1966, VIII, 101.
26
ARISTÓFANES, 1960, p. 321-354; OPPIEN, 1928, IV, 637.
27
ELIAN, 1990, XV, 5; OPPIEN, 1928, III, 638.
28
Também era utilizado uma espécie de bastão em madeira para bater no – pesca à mandraga. ÉSQUILO.
Os persas. Londres: Loeb, vol I, 1996, 416. Sobre essa especialidade, Gallant nos diz que não foi utilizada
na Antiguidade o que ele chama de “verdadeira mandraga”, que é conhecida no mundo de hoje e ainda
muito praticada na Espanha e na Itália. Pensamos ser, no entanto, uma conclusão um tanto quanto
anacrônica, visto que encontramos nos autores antigos referência a esse tipo de procedimento, mesmo
que não possamos compará-lo com os métodos, conhecimentos e utensílios que encontramos na pesca
moderna (GALLANT, 1985, p.21). Contrariamente a essa ideia, ver: Thompson ( 1957, p.87), Dumont (1981,
p.198), Vatin (1981, p. 448).
29
No Entanto, Isdo Não Quer Dizer Que O Golfinho Não Fosse Pescado. Ele Era Também Uma Presa.
30
OPPIEN, 1928, V, 416-588; ELIAN, 1990, I, 18. ARISTÓTELES, 1966, 631a ,13.
31
PLATÃO, 1984, VII, 823.
“É preciso ao pescador um espírito pleno de sutilezas e prudências”:
as técnicas da pesca nas imagens da cerâmica ática do período clássico 63

intuito de deixar a presa incapaz de reagir.32 Esta pesca, segundo Aristóteles, era
realizada em rios e lagos. Era utilizada a mirra, mas a droga mais utilizada era
a molena, pelos seus poderes narcóticos.33 E todas essas substâncias eram co-
mumente misturadas ao vinho antes de serem derramadas junto a um cardume.
Os atenienses praticavam também a pesca com lanterna, ou, melhor
dizendo, a pesca com tocha, pois, obviamente, não se trata do instrumento
moderno.34 Era, na verdade, uma tocha de resina colocada na proa do barco.
Trata-se, assim, de uma pesca noturna, de modo que a luz servia tanto para
a identificação e localização dos cardumes, como para atrair os peixes, que
ficavam como que hipnotizados pela luz e, portanto, à mercê dos golpes de
arpão. Essa pesca era especialmente dedicada aos peixes pequenos, como as
sardinhas, por exemplo.
Por fim, a pesca de mergulho, ou a chamada, por nós, de pesca subma-
rina, era também praticada entre os gregos. Aristóteles menciona mesmo uma
espécie de aparelho respiratório utilizado na prática desta técnica.35 No entanto,
em termos de produtividade, esta prática não rendia os mesmos frutos que as
principais técnicas – de linha, de rede e com arpão/tridente –, mesmo em com-
paração com a pesca noturna, com tocha, que parece ter sido muito apreciada.
Todas essas técnicas de pesca – umas mais, outras menos frutíferas –
conheciam o sucesso pela quantidade de peixe e de outros animais marinhos
capturados. E estes seriam, pelo menos no que diz respeito à pesca no mar,
comercializados. Contudo, essas técnicas podem ser compreendidas também
como fatores de diferenciação de status dentro do grupo dos pescadores.
Portanto, a partir da análise das técnicas de pesca, representadas nas
imagens da cerâmica ática de figuras vermelhas, podemos observar as relações
intragrupos, além de perceber como esses grupos eram vistos e representados
por aqueles que não participavam da mesma atividade.

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32
ARISTÓTELES, 1966, VIII, 132; OPPIEN, 1928, IV, 647; TEOFRASTO, [s.d.], IX, 10.
33
Mas também a elébora (ARISTÓTELES, 1966, VIII, 603 a, 2).
34
ARISTÓTELES, 1966, IV, 115; PLATÃO, 1955, 220 d; ATENEU, 1956, XV, 699; OPPIEN, 1928, I, 181; IV, 644.
35
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Imagens e representações forjadas por poetas
e artesãos gregos: a circulação de ideias
e de signos no Mediterrâneo Antigo

Alexandre Carneiro Cerqueira Lima


marcio mendes de Lima
Talita nunes Silva
mariana Figueiredo Virgolino
Camila Alves Jourdan

Introdução
Alexandre Carneiro Cerqueira Lima1

proposta deste capítulo surgiu a partir do exercício de debate e da


discussão entre os pesquisadores do NEREIDA/ UFF. O Grupo de Pes-
quisa Imagens, Representações e Cerâmica Antiga2 reúne-se periodica-
mente e discute textos e documentos com o objetivo de tentar responder a uma
questão comum: como ocorre o processo de produção e de circulação de imagens
e significados dos signos criados pelos artesãos antigos?
Tentaremos responder a essa pergunta por meio de pesquisas desenvol-
vidas no NEREIDA e no Programa de Pós-Graduação em História (PPGH/ UFF),
à luz da História Social da Cultura. As temáticas abordadas aqui nos permitem
refletir o Mediterrâneo Antigo, nos séculos V e IV a. C., como uma vasta espa-
cialidade em que os gregos, em particular os atenienses, transmitiram e fizeram

1
Professor Adjunto IV do Departamento de História e do Programa de Pós-Graduação em História (PPGH)
da Universidade Federal Fluminense. Pesquisador do NEREIDA/ UFF.
2
O NEREIDA possui dois Grupos de Pesquisas, a saber: 1) Imagens, Representações e Cerâmica Antiga liderado
por Alexandre Carneiro Cerqueira Lima (PPGH/ UFF); 2) Antiguidade e Contemporaneidade em Perspectiva:
Espaços, Identidades e Hibridismos, liderado por Adriene Baron Tacla (PPGH/UFF).
Alexandre Carneiro Cerqueira Lima, Marcio Mendes de Lima,
68 Talita Nunes Silva, Mariana Figueiredo Virgolino e Camila Alves Jourdan

circular ideias, signos, práticas sociais e manifestações culturais. Dessa forma,


acreditamos ser pertinente a escolha do conceito de representações sociais. Tal
conceito foi inicialmente pensado pelo sociólogo Émile Durkheim e recuperado
pelo psicólogo francês Serge Moscovici (2001) nos anos 1960.3 Seguidora de
Moscovici, Denise Jodelet afirma que:

Na realidade, a observação das representações sociai é algo natural em


múltiplas ocasiões. Elas circulam nos discursos, são trazidas pelas palavras
e veiculadas em mensagens e imagens midiáticas, cristalizadas em con-
dutas e em organizações materiais e espaciais. (JODELET, 2001, p. 17, 18)

Tanto as representações pictóricas criadas pelos artesãos domiciliados


nas póleis quanto as peças teatrais de tragediógrafos e de comediógrafos
atenienses, do V século a. C., circularam pelas culturas e pelas sociedades es-
palhadas na bacia do Mediterrâneo. Interessa-nos, aqui, investigar justamente
esse “consumo” e essa “troca” de “imagens” textuais e pictóricas.
Dividimos, portanto, o capítulo em cinco partes com o objetivo de mostrar
que os temas relacionados à sexualidade, à mulher transgressora (Clitemnestra),
ao ritual das backaí, ao culto de Deméter e às viagens de Odisseu circularam pelo
mundo helênico e “estrangeiro” (etruscos). As pesquisas apresentadas nesse
trabalho alimentam um projeto coletivo de estudo, ainda em andamento, no
NEREIDA, voltado para o estudo dessas representações forjadas pelos gregos
e compartilhadas/ consumidas no Mediterrâneo Ocidental.

Imagens eróticas criadas nas olarias do Cerâmico

Neste item, busco compreender a circulação de signos relacionados à


sexualidade entre a pólis de Atenas e o mundo etrusco. Os pintores áticos, do
estilo de pintura de figuras vermelhas, conferiram um acentuado destaque às
cenas de hetero philía e homo philía em suas obras. O tipo de vaso que mais
acolheu tal temática foi o kýlix, a taça, utilizada nos symposia, nos banquetes
privados e nos kômoi (procissões catárticas pelas ruas de Atenas).
O tema do banquete privado e de cenas relacionadas às práticas sexuais
teve um período bem delimitado de produção: entre 520 e 460 a.C., no contexto
do estilo de figuras vermelhas. Tal estilo privilegiou a segunda parte da festa,

3
DURKHEIM, 2007; MOSCOVICI, 2001, p. 47; CARDOSO, 2000.
Imagens e representações forjadas por poetas e artesãos gregos: a circulação de ideias
e de signos no Mediterrâneo Antigo 69

o sympósion, a reunião de bebedores e a prática dos jogos eróticos. As “cenas


sexuais” envolviam homens (cidadãos/ politai) e suas cortesãs (hetaírai), bem
como rapazes e homens adultos (representados com barba e calvos). Hetero
e homoerotismo foram representados e valorizados em um contexto político
específico: o de transição da Tirania dos Psistrátidas para o da Democracia
em Atenas (LIMA, 2000, p. 49). Este último regime provavelmente “censurou”
as cenas sexuais e a própria representação do sympósion na cerâmica ática.
No lugar dessas temáticas, os pintores do Cerâmico representaram cenas re-
lacionadas às práticas urbanas (oficinas de artesãos). Percebe-se claramente
uma escolha pelas imagens relacionadas ao Dêmos em detrimento daquelas
relativas ao espaço rural (caça, pesca, colheita) e à camada dos aristocratas
(SHAPIRO, 1992, p. 71, 72). Não só no campo político os aristocratas atenienses
saíram derrotados. Signos que veiculavam um “estilo de vida aristocrático”
foram silenciados. Como ensinam Pauline Schmitt Pantel e Françoise Thela-
mon (1983, p. 19, 20), as imagens dos pintores são construções simbólicas
e expressam as tensões e as mudanças que atingem uma determinada pólis.
Contudo, grande parte dos vasos e das taças produzidos no Cerâmico
contendo as cenas “eróticas” não foram encontrados na Ática. As cidades-
-Estados etruscas foram o principal “mercado” consumidor desses artefatos.
E de acordo com os etruscólogos Bruno d´Agostino e Lucas Cerchiai, os vasos
gregos – tanto a cerâmica coríntia arcaica quanto a ática do período clássico –
serviram como uma espécie de referência para os artesãos etruscos. As imagens
nos vasos gregos inspiraram os artífices etruscos em suas pinturas murais. Aqui,
ficam bem marcadas as trocas culturais e as trocas entre distintas esferas do
artesanato no Mediterrâneo Ocidental (THEML; MENDES; LIMA, 2012).4 Fran-
cis Croissant (1999, p. 259), por exemplo, explica que o pintor domiciliado em
Corinto da famosa “Ólpe de Chigi” inspirou-se na pintura parietal do santuário
de Poseidon no Istmo.
É evidente que a assimilação de uma determinada prática e/ou
representação não significa um consumo passivo. Michel de Certeau, em sua
obra A Invenção do Cotidiano, trabalha com as noções de estratégias e de táticas.5

4
No sub item, intitulado ‘Navegação no Período Arcaico Grego’, desse capítulo trabalhei justamente com
a ideia de contatos e trocas culturais entre gregos e etruscos.
5
Michel de Certeau (1996, p. 47) baseia-se na noção de métis (ardil/astúcia) estudada por M. Detienne e J.
P. Vernant (2008) para compreender as transgressões cotidianas cometidas pelos consumidores, ou seja,
“pequenos sucessos, artes de dar golpes, astúcias de ‘caçadores’ [...] Essas performances operacionais
dependem de saberes muito antigoss. Os gregos as designavam pela métis”.
Alexandre Carneiro Cerqueira Lima, Marcio Mendes de Lima,
70 Talita Nunes Silva, Mariana Figueiredo Virgolino e Camila Alves Jourdan

O consumidor possui uma astúcia própria (métis) em manipular, inventar e


reinventar os usos dos produtos/artefatos. A elite etrusca agiu de forma muito
similar ao que Certeau pensou para os consumidores da era capitalista. Em
primeiro lugar, os vasos provenientes de Corinto e de Atenas tiveram um uso
diferenciado na Etrúria. Uma taça e uma cratera (vaso para misturar vinho e
água) no contexto cultural helênico poderiam ser usadas em um sympósion.
Entretanto, os aristocratas etruscos depositavam-nos em suas tumbas com um
sentido claramente de explicitação de seu prestígio social. Além disso, eles não
ritualizavam da mesma maneira o banquete e o kômos. A elite etrusca aceitava
um banquete com a presença da mulher bem-nascida, o chamado “simposio
di coppia”. E o kômos etrusco poderia ser uma alegre e festiva procissão con-
gregando todos os membros da família, ou seja, o pai/ chefe, esposa e filhos
(D’AGOSTINO; CERCHIAI, 1999). Jamais um heleno aceitaria a presença de sua
esposa em um sympósion e na procissão dionisíaca. A elite etrusca, portanto,
fez uma leitura e um consumo diferenciados das práticas culturais e dos signos
representados pelos artesãos do mundo grego.
O estudo dessas imagens, concebidas como criações simbólicas dos
artesãos, nos permite compreender o “imaginário social” de uma dada comu-
nidade (VERNANT, 1984, p. 5). Daí a necessidade de cruzarmos os dados da
documentação imagética com os da textual. No “imaginário” helênico, divinda-
des como Éros e Aphrodite, por exemplo, aparecem nos textos relacionadas às
noções de sexualidade.6 Não farei um estudo exaustivo desses termos,7 porém
é bom destacar os que estão bastante relacionados à prática do sympósion,
a saber: hetairiké e philía. Hetairiké é uma espécie de camaradagem guerrei-
ra. Hetaíros é o companheiro de guerra, o combatente nas fileiras da falange
hoplítica (PIZZOLATO, 1993, p. 4). Uma outra variação do termo é hetaireía e
significa grupo de amigos que comungam com os mesmos princípios políti-
cos. Tais grupos se reuniam em banquetes para beber, conversar, confabular
e praticar atos sexuais com as suas cortesãs – hetaírai.
Philía pode ser traduzido como amizade e envolve vários tipos de rela-
cionamentos, ou seja, entre os membros de uma família, parceiros de negócios

6
Lugares/ ocasiões de intervenção de Eros: salas de banquete, ginásio/ palestra e em cerimônias de
casamento (CALAME, 1996).
7
Platão e Xenofonte indicam a existência de duas Aphrodites: a Urânia (Celestial) e a Pandêmia ou
Popular (PLATÃO. O Banquete, 180 d-e; XENOFONTE. O Banquete, VIII, 9-10). Outros termos relacionados
à sexualidade: porneía (prostituição); pórne (prostituta ‘vulgar’); pothos (anseio, desejo, busca); hímeros
(desejo gerado fora de si) (DAVIDSON, 2007, p. 4).
Imagens e representações forjadas por poetas e artesãos gregos: a circulação de ideias
e de signos no Mediterrâneo Antigo 71

e círculo de amigos. Pode significar “queridos e amantes”. Há uma referência


bastante interessante do período clássico na pólis de Atenas. Xenofonte, em
sua Memorabilia, promove o encontro entre o seu mestre e pensador, Sócrates,
com a hetaíra Teódota. O velho sábio vai à casa da mulher onde era comum
artesãos estarem lá admirando a sua beleza. Ela era uma espécie de “modelo”
para as representações dos pintores. Além da beleza e dos encantos do corpo
de Teódota, Xenofonte, por meio das palavras de Sócrates, aconselha a corte-
sã a “caçar” amigos. Tal tarefa só será possível por meio do uso dos encantos
não só de seu corpo, bem como de sua alma, aliados à astúcia e ardil.8 James
Davidson (2007, p. 31) explica que a hetaíra Teódota, no relato de Xenofonte,
descreve seus clientes como phíloi – amigos.
Michel Foucault (2007) apresenta também um vocabulário direcionado
ao bom “uso dos prazeres”, ao controle de si em especial durante os symposia.
O banquete pode ser compreendido como uma “prova de temperança” (so-
phrosýne), uma ocasião em que o jovem deve exercer seu equilíbrio e sua justa
medida (métrion). E, no “imaginário” grego, os aristocratas etruscos fugiam
completamente a esse padrão valorizado de temperança. Os etruscos eram
“voluptuosos”.9 Em grego, o termo truphé pode sugerir as ideias de moleza, de
fraqueza e de volúpia. Além disso, pode indicar, também, um homem delicado
e afeminado (BAILLY, 1950, p. 1971).
Como disse anteriormente, o estilo ático de figuras vermelhas irá explicitar
os jogos eróticos, os atos sexuais (ta aphrodisia) entre homens e suas hetaírai,
bem como entre jovens e homens mais velhos (representados com barba e
alguns calvos). Tais imagens foram bastante apreciadas pela elite etrusca. E
esses vasos serviram de “inspiração” e de “modelo” para os pintores de afrescos
etruscos. As tumbas de Tarquínia possibilitam constatar essas trocas culturais.
Para efeito de demonstração, irei comparar duas imagens: 1) uma taça
ática de figuras vermelhas do estilo severo (primeira metade do V século); 2)
uma cena erótica que compõe a pintura parietal da “Tumba da Fustigação”, na
cidade-Estado etrusca de Tarquínia, c. 490 a. C..
Na taça ática, o pintor representou no medalhão um jovem despido por-
tando o himátion nos ombros; segura na mão direita um skýphos e na esquerda
um bárbitos. No exterior A da taça, a temática é de sympósion, claramente refor-

8
XENOFONTE. Memoráveis, 3, 11, 6-10.
9
Em sua obra Os Costumes dos Tirrenos, Aristóteles utiliza a noção de truphé relacionada aos etruscos.
ATENEU. Deipnosophistes, I, 42, (23 d).
Alexandre Carneiro Cerqueira Lima, Marcio Mendes de Lima,
72 Talita Nunes Silva, Mariana Figueiredo Virgolino e Camila Alves Jourdan

çada pelas seguintes “unidades formais mínimas” (signos):10 dois jovens – o da


direita encontra-se apoiado no bastão – assistem uma hetaíra beber diretamente
na boca de uma ânfora; a cortesã está sentada em uma almofada colocada no
chão. Já no exterior B podemos vislumbrar a preparação de um ato sexual. Os
gestos explicitam que a jovem se posiciona para o ato com dois jovens rapazes.
Um deles encontra-se à sua frente e o outro atrás dela, com a mão esquerda
apoiada nas ancas da cortesã. Esse mesmo jovem provavelmente realiza um
gesto “obsceno” com a mão direita. A hetaíra dessa parte da taça também utiliza
a almofada para sua comodidade. Nas paredes da sala do festim, há sapatos
pendurados (alusão aos jogos eróticos) (DENTZER, 1982, p. 110). Nessa taça
encontramos vários elementos que sustentam a interpretação de que o pintor
desejou explicitar os “excessos” possíveis em um sympósion.11 Conduzidos por
Dionisos (DETIENNE, 1988), esses convivas com suas hetaírai se entregaram aos
prazeres da música (elemento explicitado no medalhão pelo bárbitos), aos da
bebida sem o controle de si (prostituta utilizando a ânfora para beber vinho,
bem como skýphos representado no medalhão) e os jogos eróticos (jovens
e hetaíra no ato sexual). Apesar da representação do bastão/cajado, signo
alusivo ao cidadão, os jovens da taça se afastam da justa medida (métrion) e
da temperanla (sophrosýne) tão valorizadas entre os autores atenienses. Eles
se entregaram aos seus desejos e, de acordo com a interpretação de Michel
Foucault, tornaram-se “escravos dos prazeres”. É interessante notar que esse
sintagma será bastante frequente entre os pintores do Cerâmico nessa época
(final do VI até meados do V século a. C.). Provavelmente, os pintores etruscos
irão se inspirar nessas cenas eróticas da cerâmica ática para comporem seus
afrescos, como veremos na imagem a seguir.

10
Claude Bérard (1983), em seu célebre artigo, propôs um método que trabalhasse com cenas pintadas na
cerâmica grega. O autor enfoca as unidades formais de cada cena, que podem ser elementos anatômicos,
utensílios ou o mobiliário representado. A combinação das unidades formais constitui um sintagma; este,
por sua vez, é suscetível de se articular com outras unidades ou com outros sintagamas para constituir
uma imagem com conteúdo narrativo.
11
LIMA, 2000. Capítulo 2: As Imagens Carnavalescas de Sympósion e de Kômos na Cerâmica Ática de Figuras
Vermelhas.
Imagens e representações forjadas por poetas e artesãos gregos: a circulação de ideias
e de signos no Mediterrâneo Antigo 73

Figura 1 - Medalhão da Taça Ática.

Figura 1.1 - Exterior A.


Alexandre Carneiro Cerqueira Lima, Marcio Mendes de Lima,
74 Talita Nunes Silva, Mariana Figueiredo Virgolino e Camila Alves Jourdan

Figura 1.2 - Exterior B

Nas paredes da “Tumba da Fustigação” em Tarquínia, os artesãos etruscos


representaram uma prostituta praticando felação com um homem barbado à
direita e, provavelmente, coito com um jovem à esquerda. Além disso, há um
elemento importante nessa cena: gestos de “excitação” – o jovem possui uma
vara em sua mão esquerda e o homem adulto (barbado) está com o braço direito
levantado, sugerindo que irá “bater” na cortesã no “calor” do ato sexual. Na
parede de entrada à esquerda da porta, o artífice pintou um jovem “boxeador”,
de acordo com a descrição de Stephan Steingraber (2006, p. 99).12 Era bastante
comum a associação entre cenas de banquete e de jogos atléticos na Etrúria.
Todo esse repertório pictórico está intimamente relacionado ao imaginário e
às práticas sociais da elite aristocrática etrusca (BRIQUEL, 1999, p. 186, 187;
ROBERT, 2007, p. 277). Mas é interessante resaltar aqui a semelhança dos sin-
tagmas (hetaíra/ cortesã entre dois homens sugerindo ato sexual) de imagens
da Ática com os das tumbas etruscas do mesmo período (primeira metade do
V século a. C.).

12
Na ‘Tumba da Fustigação’ os komástai, dançarinos, servidores e grupos eróticos apontam para uma esfera
dominada pelo dionisismo.
Imagens e representações forjadas por poetas e artesãos gregos: a circulação de ideias
e de signos no Mediterrâneo Antigo 75

Figura 2 - Afresco de Tarquínia – cena erótica.

Figura 2.1 - Afresco de Tarquína – “boxeador”.


Alexandre Carneiro Cerqueira Lima, Marcio Mendes de Lima,
76 Talita Nunes Silva, Mariana Figueiredo Virgolino e Camila Alves Jourdan

A representação de “excitação”, ou seja, sacudir e bater em uma hetaíra


com bastão, ou mesmo com uma sandália,13 pode sugerir não só o afastamento
da medida e da temperança, mas a própria submissão da mulher ao homem
(SUTTON, 1992, p. 12). Isso nos permite pensar no ato sexual como uma das
formas de se exercer o domínio sobre outra pessoa, seja ela do mesmo sexo
(erastés/ erômenos) ou entre um homem e a cortesã, prostituta paga para sa-
tisfazer seus desejos em um ambiente privado.
A comparação dessas duas cenas “eróticas” nos permite pensar em trocas
constantes entre os artesãos gregos e etruscos desde a época arcaica. Tais repre-
sentações circularam pelo Mediterrâneo Ocidental estimulando o trabalho dos
artesãos e criando um imaginário acerca das práticas sexuais, principalmente
entre as elites de Atenas e de Tarquínia. O conceito de representações sociais
pode ser uma boa ferramenta para compreendermos a circulação de ideias,
práticas e imagens. Nos próximos itens deste capítulo, veremos que em outras
temáticas relacionadas ao teatro e à religiosidade ocorreu esse movimento rico
de trocas no Mediterrâneo.

Dioniso, Bacantes e a tragédia euripidiana

Márcio Mendes de Lima14

Neste item, mostraremos como circulou na pólis de Atenas e na Itália,


durante o V século a. C., representações em torno dos ritos praticados pelas
backaí. Em vasos confeccionados pelos artesãos do Cerâmico (Ática), consu-
midos internamente e exportados para a Itália, o mito envolvendo as mulheres
de Tebas, o rei Penteu e o Dioniso foi revisitado tanto por pintores quanto pelo
tragediógrafo Eurípides. Procuraremos, dessa forma, estudar a circulação de
relatos, de práticas e de signos compartilhados por artesãos, teatrólogos e
cidadãos comuns (mulheres em particular) na Atenas Clássica e no mundo
Mediterrâneo Ocidental.
Dioniso é o deus da diferença, do Outro, da transgressão das regras
e parâmetros estabelecidos. Ele mistura o civilizado e o selvagem, cria um

13
Em uma taça ática de figuras vermelhas, c. 510 a. C., no Museu do Louvre, há a representação polêmica
de uma hetaíra (alguns autores apontam que pode ser um jovem rapaz) praticando coito anal e felação
(THEML, 1998, p. 310) (CVA França 28 – Museu do Louvre 19 G 13 Inventário: Cp 9689).
14
Pesquisador do NEREIDA/UFF. Professor Mestre pelo PPGH/UFF defendeu a dissertação intitulada:
Representações do Corpo das Backaí no Teatro e na Imagética (Atenas V Século a.C.), 2011.
Imagens e representações forjadas por poetas e artesãos gregos: a circulação de ideias
e de signos no Mediterrâneo Antigo 77

novo tempo e espaço com suas próprias regras. Ele revela o Outro no Mesmo
(VERNANT, 2006, p. 80). Dioniso retira os homens de seus lugares, interferindo
na ordem das coisas e confundindo as categorias estabelecidas. Masculino e
feminino, jovem e velho, longínquo e próximo, grego e bárbaro, selvagem e civi-
lizado. Os parâmetros da sociedade ateniense do século V a.C. se mesclam e se
tornam indiscerníveis (VERNANT; VIDAL-NAQUET, 2005, p. 349), estabelecendo
assim outro espaço de atuação que não o racional/políade. Maria Daraki (1994,
p. 13) se refere ao dionisismo como uma heterodoxia instalada no coração da
ortodoxia que ela contradiz. O culto a um deus que tem como característica
marcante o rompimento das normas e barreiras arrisca subverter a ordem social
da pólis, e por isso é perigoso. O que a autora declara acerca do dionisismo em
geral podemos aplicar ao ritual das backaí. As bacantes trazem a desmedida, o
desregramento e a selvageria para o centro da sociedade ateniense. O êxtase, a
manipulação do vinho, o movimento, a fecundidade, são elementos que podem
subverter a ordem políade porque estabelecem uma existência que escapa a esta,
uma temporalidade e espacialidade distintas, e por isso não se deve permitir
que esse ritual fuja ao controle do regime democrático ateniense.
A ideia de quebra das regras, de transgressão, é central em nosso trabalho.
Mas a transgressão a que nos referimos não é real, uma vez que é permitida e cir-
cunscrita em um espaço/tempo determinado pelo regime democrático ateniense.
Trata-se de uma transgressão autorizada, uma violação sancionada pelo regime
vigente com o intuito de reforçar as mesmas regras que desrespeita (ECO; IVA-
NOV; RECTOR, 1989, p. 16). O que observamos é o desrespeito a uma regra para
reforçá-la, lembrar a todos os membros da sociedade a importância e a validade
das normas sociais. Dessa forma, as cenas de vasos dos corpos e do comporta-
mento das backaí nos permitem verificar uma opção de controle social da manía.
As bacantes são representadas no espaço da margem (bosque, montanhas), da
fronteira, em oposição aos espaços da ásty/ agorá – espaços masculinos, regidos
pela medida/ equilíbrio, do debate e da política. Destacamos ainda que apesar das
representações das backaí transferirem a atuação das mesmas para a margem, o
ritual das bacantes na Atenas do século V a.C. circulava tanto no espaço público
quanto no privado, disseminando comportamentos, gestos, maneiras de expor
os corpos, adequados aos efeitos da manía, da loucura dionisíaca.
Nosso estudo parte da análise da imagética, delimitada no corpus, em
dois diferentes níveis: o das cenas comuns, cenas tipo, que se repetem com
algumas variações, método utilizado por Sarah Peirce (1998); e o das unidades
que formam um sintagma, como definidas por Claude Bérard (1983). De acor-
Alexandre Carneiro Cerqueira Lima, Marcio Mendes de Lima,
78 Talita Nunes Silva, Mariana Figueiredo Virgolino e Camila Alves Jourdan

do com Claude Bérard (1983, p. 7), as imagens são construídas a partir de um


conjunto de elementos estáveis e constantes, as unidades formais mínimas,
utilizadas pelos artesãos para construir uma imagem coerente que transmita
um significado. Considerando nosso corpus e aspectos importantes do dioni-
sismo e do ritual das backaí, elencamos as seguintes unidades formais mínimas:
corpo dionisíaco, ambiente rural/selvagem, caracteres vegetais, temporalidade,
movimento, êxtase e transformação física e/ou de comportamento. Sarah Peirce
(1998, tradução nossa) trabalha com cenas tipo, “composições convencionais
repetidas por diferentes pintores com um grau limitado de variações”. Por
fim, podemos contar ainda com a abordagem metodológica de Claude Calame
(1986), que recomenda enumerar as vestimentas, adereços e gestos, e observar
os olhares dos personagens representados, bem como suas posições espaciais.
No que se refere ao espaço, utilizaremos ideias e noções de Neyde Theml
(1998, p. 9, 68), que defende que “público e privado formaram uma esfera tensio-
nal na sociedade da pólis dos atenienses”. A autora analisa a sociedade ateniense
a partir de duas categorias, a pólis e o oîkos – a cidade e a casa, o público e o
privado. Estes dois espaços presentes em Atenas são partes que constituem a
totalidade políade, definindo comportamentos e relações distintas e complemen-
tares entre o habitante da cidade e o mundo que ele ocupa e transforma. Normas
sociais delimitavam o comportamento no público e no privado, e determinavam
o que cabia a cada lugar, de modo que a passagem de um espaço a outro não se
dava impunemente. A relação entre estes dois espaços era conflituosa e com-
plementar, e se caracterizava pela constante busca de equilíbrio.
É importante considerar que, em determinadas circunstâncias, uma visão
de mundo, uma maneira de interpretar o espaço em que vivemos, pode sobrepujar
outras, tornando-se, assim, momentaneamente central para a sociedade em que
foi criada. Este é um processo em que uma parte temporariamente engloba o
todo. “O ‘englobamento’ é uma operação lógica em que um elemento é capaz
de totalizar o outro em certas situações específicas” (DA MATTA, 1997, p. 17).
O território cívico era composto por ásty e chôra, o urbano e o rural,
respectivamente. Juntas, estas duas partes representavam para os habitantes
de Atenas o espaço da ordem, da segurança e da civilidade, em contraposição
ao espaço da desordem, do selvagem e do “bárbaro”. Intermediando estes dois
mundos – o mundo do selvagem e o mundo da cultura e da ordem políade – e,
ao mesmo tempo, interpenetrando-os, está a margem. Por margem entendemos
o espaço exterior à pólis e ao oîkos. A margem é estranha a ambos, é o espaço
do bosque, da montanha, da incivilidade, do Outro. É o espaço de fronteira
Imagens e representações forjadas por poetas e artesãos gregos: a circulação de ideias
e de signos no Mediterrâneo Antigo 79

em que a terra cívica, a terra de Atenas, encontra o Outro, a terra estrangeira,


bárbara. Por isso, a margem é uma zona estranha e perigosa, alheia e oposta
à pólis e ao oîkos. A margem, apesar de ser vista algumas vezes como terreno
do sobrenatural, é parte constituinte do mundo físico; deve ser evitada, mas,
de tão próxima, não é possível desconsiderá-la. Para a Atenas democrática, a
margem é um espaço singular, um espaço onde se situa “tudo o está relacionado
ao paradoxo, ao conflito ou à contradição” (DA MATTA, 1997, p. 45).
Acreditamos que o ritual das bacantes cria, como ritual festivo, um
espaço novo, um espaço que engloba os outros espaços e os transforma tem-
porariamente no espaço da margem, situando neste espaço e nele permitindo
as manifestações e transformações do corpo dionisíaco. Logo, as backaí e suas
representações circulam em Atenas em ambientes distintos, a pólis, o oîkos, a
ásty e a chôra. Mas estes são temporariamente “esquecidos”, englobados por
outro espaço. Independentemente do lugar onde seus ritos se realizem, o espaço
será transformado. Portanto, mesmo que circulem por quaisquer dos espaços
constituintes da totalidade políade, as bacantes e seus ritos sempre se situam
na margem. Desse modo, as backaí estabelecem um espaço de transgressão
autorizada, circunscrevendo nele, e apenas nele sancionando, os aspectos do
dionisismo menos favoráveis à pólis. Assistimos, assim, à domesticação do culto,
que passa, então, a legitimar e reforçar a ordem políade vigente.

Figura 3 – Vaso1: Stamnos de Figuras Vermelhas.


Alexandre Carneiro Cerqueira Lima, Marcio Mendes de Lima,
80 Talita Nunes Silva, Mariana Figueiredo Virgolino e Camila Alves Jourdan

Observando inicialmente o nosso corpus imagético, não se pode apontar


uma indicação clara do espaço em que os ritos representados ocorreram. De
acordo com Dimitris Paleothodoros – que estuda os rituais dionisíacos intra
muros em um artigo sobre o espaço público e o doméstico na imagética ática15 –,
raramente o local onde um rito ocorria era explicitado nas representações da
cerâmica ática do século V a.C. (PALEOTHODOROS, 2008, p. 231). Observemos
um stamnos de figuras vermelhas datado de 460-450 a.C.. Na figura 3, podemos
considerar a manipulação de bebida por mulheres como uma transformação
física e/ou de comportamento, e as folhagens presentes na imagem são carac-
teres vegetais. A posição central da efígie de Dioniso divide a imagem em duas
metades não espelhadas, mas muito próximas em sua concepção. A efígie da
divindade é o eixo de simetria da imagem.16

Figura 3.1 – Vaso 1: Stamnos de Figuras Vermelhas.

15
Utilizamos a definição de imagética de Claude Bérard (1983, p. 5, tradução nossa): “A imagética é
constituída por todas as imagens sobre centenas de milhares de vasos produzidos em Atenas no curso
do VIº, Vº e IVº séculos.”
16
Em sua análise do sacrifício, Jean-Louis Durand afirma que a simetria era utilizada pelos pintores nas
representações na cerâmica ática para expressar a ordem necessária ao espaço sacrificial. Não refutamos
a ideia de que a simetria aparenta expressar um espaço/tempo ordenado, mas questionamos a análise
da intenção dos artesãos antigos (DURAND, 1986, p. 95).
Imagens e representações forjadas por poetas e artesãos gregos: a circulação de ideias
e de signos no Mediterrâneo Antigo 81

Na figura 3.1, vemos três mulheres se movendo para a direita. Todas as


três personagens se encontram descalças e vestidas com o chiton e o himation.
A mulher do centro carrega um tirso. A mulher à direita da imagem carrega um
skýphos na mão esquerda. Como dissemos anteriormente, os signos observáveis
nessas imagens não parecem apontar para um espaço particular onde poderia ter
ocorrido o rito representado. Procuramos, assim,signos que poderiam representar
um ambiente público ou privado. Similar a outras imagens de nosso corpus, as
cenas deste vaso não têm indícios claros que façam referência à espacialidade
políade. Podemos listar aqui a presença da trapeza e da coluna, que, adornada,
forma a efígie de Dioniso, como elementos que nos remeteriam automaticamente
ao oîkos. Porém, este não é o único espaço na pólis onde se encontram aqueles
signos representados. A coluna é um objeto arquitetural de importância na aná-
lise de Jean-Louis Durand (1986, p. 91, 94). Para este autor, a coluna representada
delimita o espaço do santuário. Contrapondo-se a Durand, Dimitris Paleothodoros
atribui à arquitetura um papel relativamente limitado na imagética ática, apesar
de o autor utilizar uma classificação baseada em elementos arquitetônicos como
ponto de partida para a definição do objeto de sua pesquisa.17 Mesmo Durand
(1986, p. 94) não toma a presença de uma coluna como a certeza de que o espaço
cerimonial está delimitado, havendo casos em que o conjunto da imagem o levou
a formular outra conclusão. Nesse sentido, é o contexto, isto é, a totalidade da
imagem, que pode nos permite aferir o significado de um determinado signo.

Figura 4 - Vaso 2: Stamnos de Figuras Vermelhas

17
O autor pesquisa as imagens do thiaso intra muros (PALEOTHODOROS, 2008, p. 232).
Alexandre Carneiro Cerqueira Lima, Marcio Mendes de Lima,
82 Talita Nunes Silva, Mariana Figueiredo Virgolino e Camila Alves Jourdan

Levando em conta as imagens que temos em nosso corpus, devemos con-


cordar com Paleothodoros e não atribuir a elementos arquiteturais uma grande
relevância nas cenas referentes às bacantes na imagética ática de figuras negras
ou vermelhas. A coluna que compõe a imagem de Dioniso é a única referência
à arquitetura que se repete com frequência em nosso corpus. Como elemento
constituinte do ídolo da divindade de culto, a coluna tem um papel central no
ritual representado. Adornada com uma máscara, vestida com um manto e
adornada com ramos e folhagens, a coluna estabelece, como dissemos ante-
riormente, o eixo da imagem, o foco da ação cultual. A posição e a atuação das
outras personagens presentes nas imagens são, em todos os vasos selecionados
e catalogados, direcionadas ao Dioniso-pilar ou por ele influenciadas. Mesmo as
cenas do verso dos vasos aparentam ter sua ordem estabelecida pela efígie de
Dioniso. A imagem de Dioniso é o ponto central das imagens que estudamos,
mesmo quando esta é representada de maneira diferente ou é ausente em uma
cena. A falta da imagem do deus ou uma distribuição distinta desta ou dos ele-
mentos que a cercam deve ser considerada em relação ao corpus. A ausência ou
variação de uma cena comum ao repertório de cenas tipo de um mesmo corpus
é também uma mensagem plena de significado (PEIRCE, 1998, p. 62). Vejamos a
seguir um vaso de figuras vermelhas em que o Dioniso-pilar não é representado.

Figura 4.1 - Vaso 2: Stamnos de Figuras Vermelhas


Imagens e representações forjadas por poetas e artesãos gregos: a circulação de ideias
e de signos no Mediterrâneo Antigo 83

O vaso 2 é um stamnos de figuras vermelhas datado entre de 460 a 450


a.C.. As cenas presentes neste vaso são tipicamente dionisíacas e remetem ao
ritual que tanto podemos observar em nosso corpus de figuras vermelhas. Na
figura 4A, uma mulher toca a dupla flauta, instrumento presente nos cortejos
dionisíacos cuja sonoridade tem por função ajudar a alcançar o êxtase (BÉLIS,
1988, p. 10). Uma bacante tem um skýphos em mãos, o que é um indicador de
manipulação de bebida.18 Já a outra pega bebida do stamnos com um kyathos.
O stamnos sobre a mesa é o centro do rito; é para o conjunto mesa/stamnos que
as personagens estão voltadas. A imagem de Dioniso não está presente, mas a
mesa com o stamnos – que usualmente aparecem nas representações à frente
da efígie do deus – toma seu lugar como centro da ação ritual. Apesar de uma
ausência relevante, a cena não foge ao padrão que encontramos nos vasos de
nosso corpus. Com a exceção da falta da imagem de Dioniso, o ritual representado
não difere do que pudemos apreender do rito das bacantes a partir de nosso
corpus imagético. O mesmo pode ser dito acerca da figura 4.1. A procissão das
bacantes representada nesta cena não muda substancialmente nenhum dos
parâmetros que encontramos em outros vasos da cerâmica ática com o tema
das backaí. A vestimenta – chiton e himation –, a coroa de flores ou hera, o tirso
e os skýphoi são signos recorrentes nas faces dos vasos.
O papel da efígie de Dioniso na representação é o primeiro motivo para
pensarmos com mais atenção na importância da coluna. Em segundo lugar,
ainda que permaneçamos tratando da centralidade do Dioniso-pilar, devemos
considerar que a própria construção da efígie do deus depende de um objeto
arquitetônico, a coluna. O processo de formação do ídolo representado envol-
ve o ato de vestir e adornar uma coluna que recebe a máscara. Partindo do
pressuposto de que é necessário que haja uma coluna para que a imagem de
culto seja construída, podemos inferir que o rito representado pelas cenas de
cerâmica ática em nosso corpus ocorre em ambiente urbano. Aparentemente,
poderíamos confirmar essa hipótese, mas um empecilho se faz presente. Não
podemos afirmar com certeza que o ritual das backaí representado não ocorreu,
por exemplo, em um santuário rural.19 Tudo o que podemos concluir a partir da
representação de um elemento arquitetônico é que o espaço em que ocorreu o
ritual foi previamente transformado pelo homem, que algum tipo de construção

18
Referimo-nos, em mais de uma ocasião, à manipulação de bebida; preferimos esta expressão para evitar
a discussão sobre a relação entre as backaí e a bebida.
19
Esta é uma das hipóteses levantadas por Paleothodoros (2008, p. 240). Este autor também defende que
os ritos representados na imagética ocorrem no oîkos.
Alexandre Carneiro Cerqueira Lima, Marcio Mendes de Lima,
84 Talita Nunes Silva, Mariana Figueiredo Virgolino e Camila Alves Jourdan

foi ali erigido. Não poderíamos afirmar de que espaço se trata na cena. Estabe-
lecer uma relação automática entre a presença da coluna e o espaço urbano
seria precipitado e empobrecedor.
Uma vez que a presença da coluna não nos permite afirmar a priori que
trabalhamos com a representação de um espaço urbano, é para o restante
dos signos e caracteres presentes nas imagens de que dispomos que devemos
nos voltar, de modo a estabelecer qual espaço é contemplado nas imagens do
rito das backaí. Na tragédia As Bacantes, de Eurípides, as mulheres de Tebas
são possuídas pela loucura como punição à cidade por terem se recusado a
reconhecer Dioniso como um deus, filho de Zeus e de Sêmele. Tomadas pela
manía de Dioniso, as mulheres fogem da cidade, indo habitar na montanha.
Lá, no sopé do Citéron, as backaí cultuam ao deus em um ambiente selvagem,
livre de homens. Neste espaço marginal, as regras da cidade de Tebas não se
aplicam; as leis humanas não cabem neste espaço. O alimento flui do chão, as
mulheres correm descalças e dormem ao relento, sobre o abrigo de nada mais
do que pedras e árvores. Bacantes caçam com as mãos, ao mesmo tempo que
amamentam filhotes de feras em seus próprios seios. Mais do que tudo, estas
mulheres correm, saltam e adoram Dioniso. Uma caracterização inicial das
backaí que podemos extrair da tragédia nos leva a buscar nas imagens um
ambiente selvagem e desregrado, alheio às regras da pólis, a justa medida e
a sophrosýne. Entretanto, os vasos observados até o presente momento não
revelam essas características. Vasos que demonstrem sinais de uma maior
transgressão dos ideais políades são uma exceção em nosso corpus.

Figura 5 - Vaso 3: Taça de Figuras Vermelhas


Imagens e representações forjadas por poetas e artesãos gregos: a circulação de ideias
e de signos no Mediterrâneo Antigo 85

O vaso 3, uma taça de figuras vermelhas de cerca de 510 a.C., apresenta


diversos signos referentes às categorias que listamos anteriormente como
unidades formais mínimas, e apresenta, ainda, elementos que não havíamos
observado. As mulheres representadas neste vaso dançam e tocam o crótalos,
instrumento musical típico da orquestra dionisíaca cuja sonoridade leva ao
transe (BÉKIS, 1988, p. 10). Com isso, temos sinais de movimento e de corpo
dionisíaco, uma vez que os braços jogados para trás e os pés em movimento
aludem a essa categoria. Estes mesmos signos podem ser vistos como um in-
dicador do êxtase, estado de possessão que se atinge em parte com a música
e a dança. Quanto a caracteres vegetais, podemos contar como pertencente a
esta categoria as coroas de hera ou flores nas cabeças dos sátiros e o ramo de
vinha que o próprio deus segura e que se espraia pelas duas cenas. A videira
e a hera, plantas quase tentaculares que se espalham pelas cenas que obser-
vamos, demarcam a energia vegetal e a fertilidade que caracterizam Dioniso
(LISSARAGUE, 1999, p. 200). No vaso 3, este papel é ocupado pela videira, que
parte do deus e toca a todos, demonstrando o potencial de vida de Dioniso. O
corno de beber aparece três vezes, o que poderíamos considerar como uma
transformação física e/ou de comportamento, mas ele nunca é carregado por
uma mulher. É Dioniso quem carrega um corno, no que é acompanhado por
dois sátiros. São estes últimos que apresentam uma sexualidade exacerbada,
o que também indica uma transformação de comportamento. A presença de
animais, os dois burros, e de sátiros podem ser interpretada como indicador
de que as imagens do vaso representam um ambiente rural/selvagem. No que
se refere à temporalidade, pode-se afirmar com segurança que o conjunto que
observamos nas duas cenas dessa taça ática situam a ação representada em
um tempo festivo. Referimo-nos ao tempo festivo como entendido por Louise
Bruit Zaidman (2001, p. 22), que o considera como um tempo/espaço que foge à
ordem humana cotidiana, que tem seu tempo e suas regras à margem do tempo
e das regras do dia a dia, porque está em contato com o mundo sagrado dos
deuses. As cenas de cerâmica ática (figuras 5 e 5.1) mostram um espaço/tempo
particular, temporariamente desconectado do mundo dos homens e da pólis.
As personagens representadas estão em comunhão com o deus, compartilham
mesmo de sua presença. A dança, a música e a sexualidade são permitidas e
incentivadas. Encontramos nesta imagem uma representação mais próxima das
backaí que podemos observar inicialmente na tragédia.
Alexandre Carneiro Cerqueira Lima, Marcio Mendes de Lima,
86 Talita Nunes Silva, Mariana Figueiredo Virgolino e Camila Alves Jourdan

Figura 5.1 - Vaso 3: Taça de Figuras Vermelhas

Entretanto, essas imagens carregam elementos que aparentemente não


nos permitiriam tomá-las como documentação pertinente à prática cultual
na Atenas do século V a.C.. Não temos neste vaso a representação de uma
imagem de culto de Dioniso; é a própria divindade que observamos interagir
com as mulheres e sátiros representados. A presença destes últimos também
se torna um obstáculo. Sátiros são figuras míticas que podiam ser “imitados”,
ter sua aparência e comportamento reproduzidos em peças teatrais e outras
representações na pólis democrática. Mas o que vemos nos vasos não são ho-
mens interpretando sátiros, mas os próprios seres mitológicos. Desse modo,
poderíamos argumentar que o vaso 3 apresenta representações míticas e não
aborda o ritual políade, não sendo então pertinente à nossa pesquisa. Porém,
tal argumento seria precipitado. Ao analisar os “vasos de Lenéias”, Sarah Peirce
(1998, p. 67) afirma que o que encontramos neste corpus é uma mistura de ele-
mentos míticos e cultuais, e que não há oposição conceitual entre conjuntos
de elementos reais ou irreais em um contexto dionisíaco. Acreditamos que essa
afirmação não apenas é correta no que se refere aos “vasos de Lenéias”, mas
pode ser aplicada à imagética ática referente a Dioniso e seu thiasos como um
todo. Tratando especificamente do objeto de nossa pesquisa, Marie-Christine
Villanueva Puig (2009, p. 25) afirma que na construção imagética das backaí se
mesclam elementos míticos e cultuais. Desse modo, as cenas que compõem o
vaso 3 não representam uma ação cultual ou festividade ocorrida em Atenas, e
também não elaboram uma narrativa baseada em uma tradição mítica acerca
Imagens e representações forjadas por poetas e artesãos gregos: a circulação de ideias
e de signos no Mediterrâneo Antigo 87

de Dioniso e seu culto. O que temos nestas e nas outras cenas que utilizamos
como documentação neste trabalho é uma mistura de referenciais tomados
da tradição mítica e dos rituais e festividades realizados na cidade de Atenas.
Apesar de tomarmos a imagética ática como um amálgama de mito e
rito da sociedade clássica ateniense, acreditamos ser possível apreender desta
documentação as informações necessárias à nossa pesquisa. Determinar qual a
festividade representada nas cenas é uma tarefa difícil, talvez impossível, e tam-
bém desnecessária. Uma representação cuja construção passe por assimilações
e pelo uso de signos tão diversos e de origens tão distintas quanto à tradição
mítica em suas várias vertentes e a enorme gama de rituais presentes na pólis do
século V a.C., quer seja imagética ou textual, não pode ser facilmente atribuída
a uma festividade ou mito em particular. O número de fatores empregados na
formulação de uma determinada mensagem – se considerarmos a representação
na cerâmica como uma forma de linguagem (PIERCE, 1998, p. 61; SCHMITT PAN-
TEL; THELAMON, 1983, p. 9, 10) – não nos permite reduzir cada elemento, cena
ou conjunto de cenas a uma única fonte original. Acreditamos, em concordância
com Jean-Louis Durand e Françoise Frontisi-Ducroux, que, no lugar de um ritual
preciso ou uma cerimônia em particular, o que encontramos nos vasos áticos do
século V a.C. é “uma representação onde se combinam diversos dados, tirados
do vivido ritual, em uma escolha eclética, mas não arbitrária”(DURAND, 1986; e
FRONTISI-DUCROUX, 1975, p. 83, tradução nossa). Com essa afirmação, os autores
permanecem em uma linha de pensamento iniciada por H. Jeanmaire (1985, p.
12, 13), que acreditava não ser possível determinar a “origem” cultual ou festiva
das cenas da cerâmica ática referente ao dionisismo, pois essas representações
não foram inspiradas em um culto ou imagem de culto específicos, mas em um
tipo de ídolo e em uma certa forma de culto recorrente no dionisismo.
Na abordagem da documentação imagética, partimos então do princípio
de que não devemos nos concentrar em uma possível “descoberta” da festi-
vidade ou cerimonial específico representado nas imagens. O caminho a ser
adotado é a busca por signos que expressem não uma concretude ritualística
ou herança mitológica, mas a busca por um sentido empregado na representa-
ção das bacantes. Trata-se, então, de tentar compreender a maneira como os
gregos antigos – especificamente atenienses do século V a.C. – viam as backaí,
o modo como interpretavam e construíam as imagens que tinham dessas perso-
nagens. É imprescindível observarmos o que tomavam por certo no comporta-
mento e nas atitudes delas, o papel que tinham na sociedade e o que lhes era
condenável e, consequentemente, o que ameaçava a pólis. Nesse sentido,
Alexandre Carneiro Cerqueira Lima, Marcio Mendes de Lima,
88 Talita Nunes Silva, Mariana Figueiredo Virgolino e Camila Alves Jourdan

seguimos a orientação de Cornelia Isler-Kerényi (2009, p. 77, tradução nossa), que


afirma “[...] que a intenção dos pintores de cerâmica não era fixar nas imagens
uma seqüência de ações, mas de transmitir pela imagem, o sentido do ato ritual,
uma mensagem sobre a relação dos oficiantes com o deus”. Assim, as cenas são
concebidas como um possível indicador da visão de mundo daqueles que as
produziram, como uma forma de se compreender como estes interpretavam a
pólis e seus habitantes. Em nosso caso, como as bacantes eram enxergadas pela
população da Atenas democrática.
Não queremos dizer, então, que não é possível aferir de modo algum a
maneira como os rituais das bacantes eram realizados ou o espaço onde eles
ocorriam. Apenas afirmamos que não obteremos, ao final de nossa análise, uma
resposta definitiva que nos esclareça qual ritual é representado nas cenas de
cerâmica ática de figuras vermelhas e negras que estudamos, pois acreditamos
que essas fontes não nos permitem responder tal pergunta. O que as cenas de
cerâmica nos permitem concluir é em quais tipos de espaços as bacantes po-
diam realizar seus ritos, de que maneira a pólis exercia um controle sobre esses
ritos se utilizando de uma delimitação espacial e como as backaí interagiam e
transformavam os espaços que habitavam. O que buscamos aqui é o espaço em
que as backaí e suas representações circulavam – público ou privado, rural ou
urbano. Não temos como saber qual o santuário em que os ritos ocorreram, mas
podemos, a partir da cerâmica ática, saber em qual dos espaços constituintes
da totalidade políade as backaí atuavam.
Como dissemos anteriormente, na tragédia As Bacantes, de Eurípides,
vemos as mulheres de Tebas afastadas da cidade, do espaço urbano – ásty – e da
convivência com os homens. As backaí abandonam o mundo cívico, civilizado,
e passam a habitar a margem. Neste espaço, que no caso é uma montanha, o
Citéron, as mulheres de Tebas cultuam em um ambiente selvagem a divindade
que para lá as direcionou. As bacantes fogem às tarefas domésticas femininas
e aos parâmetros comportamentais esperados. Correm, dançam e saltam des-
calças, caçam com as mãos e não se ferem frente às armas masculinas. Desse
modo, a tragédia deixa marcada a oposição entre natureza selvagem e espaço
cívico, civilização e barbarismo, seguindo um critério importante na tradição
mítica dionisíaca, e, ao mesmo tempo, se contrapondo à prática ritual, que não
delimita claramente essa divisão (PALEOTHODOROS, 2008, p. 240). Nas cenas
de cerâmica ática, não encontramos inicialmente elementos que nos certificas-
sem de uma posição ou outra. Concordamos que a presença do Dioniso-pilar,
apesar de ser plena de significado e central às cenas de nossos corpora, não
Imagens e representações forjadas por poetas e artesãos gregos: a circulação de ideias
e de signos no Mediterrâneo Antigo 89

nos esclarece a questão espacial. O ritual pode ser realizado em um ambiente


público ou privado, rural ou urbano, desde que haja uma construção humana,
uma coluna. O Dioniso-pilar pode também ser uma referência ao nascimento do
deus, “[...] a criança divina, nascida de Sêmele fulminada, é salva do incêndio
do palácio de Cadmo, miraculosamente protegida pela hera que encerra as
colunas” (DURAND, 1986; e FRONTISI-DUCROUX, 1975, p. 83, tradução nossa).
Segundo Cornelia Isler-Kerényi (2008, p. 78), o ritual representado nos
stamnoi áticos é efetuado por mulheres em um ambiente doméstico, tendo como
objeto de culto uma efígie provisória do deus, o Dioniso-pilar. Para a autora, é
possível que não se trate de um ritual oficial em um ambiente preciso, mas de
uma cerimônia que poderia acontecer em lugares variados e com regras fluidas,
pouco rígidas, como no caso de um ritual privado. As variações ritualísticas que
observamos nas representações e o uso de uma imagem de culto provisória são
dois argumentos importantes para demonstrar que o rito das backaí era um
rito doméstico, ou ao menos não era um rito cívico patrocinado e organizado
pelo regime democrático ateniense.20 Esses dois fatores podem ser observados
também em outros tipos de vasos, como no vaso 4, uma Oinochoe datada de
cerca de 430 a.C.. Nesta cena, temos uma variação da imagem de culto. Aqui a
efígie do deus é formada por uma máscara de perfil colocada sobre uma mesa,
adornada com hera e uma coroa também feita de hera. A cena apresenta os
dois critérios enumerados por Isler-Kerényi. A imagem de culto é provisória e
o ritual representado, tanto na ambientação quanto na ação das personagens,
o que a torna diferente das cenas que observamos anteriormente. Em nosso
corpus, observamos duas cenas tipo, representações que são recorrentes e
formam um conjunto. A primeira cena é composta pelo Dioniso-pilar, uma mesa
com vaso ou oferendas, e bacantes que podem tocar instrumentos musicais,
dançar e manipular bebida. A efígie do deus pode ocupar ou não o centro da
imagem, mas é a partir dela que o ritual é organizado e as personagens são
orientadas. A segunda cena tipo é a procissão, em que um grupo de bacantes
pode ser representado dançando, tocando instrumentos musicais e manipu-
lando bebida. Esta é a forma mais usual de representação, mas encontramos
variações dessas cenas tipo, como os já apontados nos vasos três e quatro.
No que se refere à imagem de culto, devemos concordar com Isler-Kerényi
quando afirma que a efígie formada pelo pilar adornado claramente é provisória.

20
A autora se refere a um “ritual oficial canônico”. Porém, optamos por não utilizar este último termo devido
às suas implicações, haja vista que faz referência a uma religião centralizada e organizada, cujos fiéis se
orientam por um dogma ou cânone, mas não a religião grega antiga (ISLER-KERÉNYI, 2008, p. 78).
Alexandre Carneiro Cerqueira Lima, Marcio Mendes de Lima,
90 Talita Nunes Silva, Mariana Figueiredo Virgolino e Camila Alves Jourdan

Entretanto, a fluidez de regras de que fala a autora não se comprova. As imagens


da cerâmica ática que têm como tema as bacantes ou o dionisismo em geral,
sejam de figuras vermelhas ou negras, realmente apresentam variações, mas
dificilmente podemos atribuí-las a uma cerimônia com regras e espaços pouco
rígidos. Como já mencionado, as representações tendem a mesclar a tradição
mítica e a experiência ritual políade, sendo esta a origem provável das variações
e divergências que observamos.
Afastamos-nos também da hipótese de Paleothodoros (2008, p. 240), que
afirma que as imagens nos orientam a um ambiente de festas privadas, nos
santuários rupestres ou no oîkos, distante, desse modo, da polarização entre
natureza selvagem e espaço cívico. Apesar de concordar que as representações
não apresentam uma polarização entre a pólis e o ambiente selvagem, nos va-
sos que analisamos até o presente momento não fomos capazes de discernir
o espaço específico em que as backaí atuaram. A recorrente representação
da coluna que forma a efígie do deus não pôde ser tomada como critério de
confirmação do espaço ritual. Da mesma maneira, não pudemos confirmar a
localização das backaí nos baseando em qualquer outro signo utilizado pelos
pintores de cerâmica ática. Afirmar qual é a localização do rito das backaí nos
baseando em cenas de uma imagética cujas imagens são formadas a partir de
um amálgama de elementos míticos e rituais apresenta obstáculos. As imagens
que analisamos podem representar diversos mitos e rituais distintos. Assim,
não é possível identificar dentro deste corpus um único ambiente.

Figura 6 - Vaso 4: Oinochoe de Figuras Vermelhas


Imagens e representações forjadas por poetas e artesãos gregos: a circulação de ideias
e de signos no Mediterrâneo Antigo 91

As cenas dos vasos parecem não demonstrar a localização dos ritos dentro
do espaço políade. Todas as imagens que analisamos demarcam claramente um
momento ritual, um espaço/tempo deslocado do cotidiano, o que torna este
um espaço/tempo festivo. Durante a festa, foge-se à ordem cotidiana para se
estabelecer outra ordem dentro da cidade. É definido um espaço sagrado que
é ritualizado pelo tempo da cerimônia. Este espaço é delimitado pelo percurso
das procissões e rituais que abrem o tempo festivo e substituem o espaço da
cidade por outro, ligando o centro urbano e o espaço rural – ásty e chôra. O
espetáculo suspende o tempo cívico e modifica o espaço da cidade (ZAIDMAN,
2001, p. 22, 23).

Conclusão

As representações tendem a não explicitar o espaço da pólis em que o


ritual ocorria porque o espaço/tempo dos rituais das backaí era um tempo festivo
e, portanto, distinto do tempo/espaço cotidiano da pólis. Os ritos das backaí
transformam o espaço políade, criando na Atenas do século V a.C. um espaço
que não é necessariamente público ou privado, ásty ou chôra, mas perpassa e
interage com esses distintos espaços que constituem a totalidade políade. Este
novo espaço é, então, a margem, um espaço de transgressão autorizada, que en-
globa o público e o privado, o rural e o urbano, modificando e, temporariamente,
substituindo ambos. Dioniso garante a ordem ao instituir os ritos urbanos que
selam o pacto entre o deus e a cidade (PALEOTHODOROS, 2008, p. 242). Porém, é
necessário controlar o rito, manter as bacantes sob a regulamentação do regime
democrático ateniense. Desse modo, pintores de cerâmica ática retrataram as
backaí em um espaço distinto, demonstrando a sua ação ritual na pólis, situando-
-a, contudo, em um espaço seguro, demonstrando, assim, o quanto este rito,
como o deus que lhe é objeto de culto, é excepcional. Coloca, portanto, o Outro
em meio ao Mesmo, trazendo outro mundo para o centro de Atenas.
Alexandre Carneiro Cerqueira Lima, Marcio Mendes de Lima,
92 Talita Nunes Silva, Mariana Figueiredo Virgolino e Camila Alves Jourdan

Fichas descritivas dos vasos

Vaso 1
Tipo de Vaso: Stamnos.
Estilo: Figuras vermelhas.
Proveniência: falerii Veteres (Civita Castellana). Necrop. De Celle, tumba 67.
Publicação: Rome, Villa Giulia inv. 983 (FRONTISI-DUCROUX, 1991), figuras 7-8 (L3).
Pintor: Pintor da Villa Giulia.
Datação: 460-450 a.C.

VASO 2
Tipo de vaso: Stamnos.
Estilo: Figuras vermelhas.
Proveniência: Gela
Publicação: Oxford 523 (FRONTISI-DUCROUX, 1991), figuras 30-31 (L 20).
Pintor: Pintor de Villa Giulia.
Datação: 460-450 a.C.

VASO 3
Tipo de vaso: Taça.
Estilo: Figuras vermelhas.
Publicação: Corpus Vasorum Antiquorum. França 28. Museu do Louvre 19 (G94
ter),1977. Prancha 70-71.
Pintor: o estilo lembra o de Epictetos.
Datação: Ca. 510 a.C.

VASO 4
Tipo de vaso: Oinochoe.
Estilo: Figuras vermelhas.
Proveniência: (comprada em Nápoles)
Publicação: Athènes, Vlasto (FRONTISI-DUCROUX, 1991), figura 87 (L61).
Pintor: Pintor de Éretrie.
Datação: Ca. 430 a.C.
Imagens e representações forjadas por poetas e artesãos gregos: a circulação de ideias
e de signos no Mediterrâneo Antigo 93

As representações dos signos transgressores das personagens


esquilianas
Talita Nunes Silva21

Neste trabalho, empreenderemos a análise das imagens presentes em dois


vasos da cerâmica ática do século V a.C., no qual aparecem representadas duas
das três personagens por nós analisadas na Oréstia, de Ésquilo: Clitemnestra e
Electra.22 Buscaremos identificar nessas imagens elementos que nos permitam
designar as referidas heroínas como mulheres bem-nascidas e “transgressoras”
ao ideal de comportamento feminino presente na sociedade ateniense do período
clássico. Desse modo, intentaremos demonstrar a possibilidade de afirmar que
as personagens trágicas por nos abordadas “transgrediam”, tanto na tragédia
como na iconografia presente na cerâmica ática, elementos do modelo ideal
de comportamento feminino. Tais representações circularam tanto em Atenas
quanto no Mediterrâneo Ocidental. As cenas contendo representações de Cli-
temnestra “transgressora” foram incorporadas no repertório dos pintores de
vasos da cerâmica italiota no século IV a. C.. Isso nos permite confirmar uma
troca constante de técnicas, temáticas, signos e valores no Mediterrâneo Antigo.
Isto posto, para fins de análise adotaremos a visão da autora Gloria Ferrari,
para quem as imagens nos vasos gregos referentes à vida cotidiana são modos
de representação, gênero, que não necessariamente tiram o seu tema da vida
contemporânea. Ferrari (2003, p. 39) se coloca contrária à “[...] noção de que a
própria vida, como ela é vivida e percebida, comunica essencialmente represen-
tações figurativas, sejam elas míticas ou não.” A autora chama a atenção para
o fato de que a relação dos signos (das imagens) com a realidade é muito mais
complexa, uma vez que as imagens podem fazer referências a seres e coisas
inexistentes. Desse modo, não é possível assumirmos que, através das imagens,
somos “diretamente” confrontados com a vida cotidiana ateniense. Em vez de se

21
Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em História (PPGH) da Universidade Federal Fluminense e
Pesquisadora do Nereida/UFF. Professora Mestre pelo PPGH/UFF; defendeu a dissertação intitulada: As
estratégias de ação das mulheres transgressoras em Atenas no V século a. C., 2011.
22
É importante ressaltar que se possuímos um corpus relativo à Clitemnestra de tamanho considerável, o
mesmo não se pode dizer quanto às demais personagens por nós examinadas em nossa dissertação de
mestrado. As imagens analisadas ao longo de nosso trabalho de pesquisa não mostram a personagem
Cassandra – a nosso ver – em atitudes transgressoras, ou seja, não encontramos imagens que comprovem
a permanência de seu caráter transgressor na tradição iconográfica das cerâmicas de figuras vermelhas
da Atenas Clássica. Diferentemente da Cassandra de Ésquilo, a sacerdotisa de Apolo não é retratada em
nenhum ato descomedido. Por sua vez, temos, certamente, uma única imagem atribuída à Electra que
nos permite considerá-la como uma mulher transgressora ao comportamento idealizado para o feminino.
Alexandre Carneiro Cerqueira Lima, Marcio Mendes de Lima,
94 Talita Nunes Silva, Mariana Figueiredo Virgolino e Camila Alves Jourdan

falar em “referente” de uma imagem, devemos optar por nos ater ao conteúdo
dela, ou seja, à percepção de que ela é uma unidade cultural, pois é fruto de uma
cultura específica e representativa do imaginário social. A imagem é, portanto,
o produto de uma elaboração, ou seja, ela não é uma reprodução objetiva da
realidade, mas uma representação oriunda de escolhas, de técnicas, e de uma
estética calcada no sistema cultural. O pintor, ao imprimir sua técnica em um
vaso cerâmico, escolhia o que iria representar, e esta escolha e a ênfase que dá
a alguns elementos e suprime outros estão cheias de significados. Suas esco-
lhas não são, contudo, frutos unicamente de gostos e concepções individuais,
mas, sobretudo, frutos de uma determinada orientação cultural.23 Desse modo,
em nossa análise de cenas de vasos áticos, procuramos atentar para o fato de
que são produtos da sociedade ateniense do período clássico, cuja “ideologia”
dominante “[...] que orienta as escolhas dos pintores e a sua maneira de ver,
[...] é acima de tudo masculina” (LISSARRAGUE, 1990, p. 205, 206)
Nas imagens por nós analisadas no CVA e no LIMC, aparecem diversas
cenas retratando mulheres e, mais especificamente, esposas bem-nascidas,
na maioria das vezes dentro do espaço privado. Podemos supor que o fato
dessas imagens representarem constantemente esposas bem-nascidas no lócus
doméstico, exercendo atividades relativas a ele, demonstra que esse modelo
ideal do comportamento feminino estava difundido nessa sociedade e que os
pintores valorizavam a postura feminil condizente com o mesmo. No entanto,
algumas dessas imagens nos permitem também visualizar elementos presentes
em cena que mostram essas mulheres cometendo desvios ao comportamento
feminino ideal. Desse modo, buscaremos identificar nas imagens presentes
nos vasos aqui analisados cenas nas quais as personagens Clitemnestra e
Electra apareçam cometendo desvios24 ao ideal de comportamento feminino
ateniense, nos atentando para as unidades formais mínimas (BÉRARD, 1983, p.
5-10) – elementos estáveis e constantes presentes nas imagens – que as mos-
trem como mulheres bem-nascidas e “transgressoras”. Destarte, ao analisar
imagens que embora possam não se referir diretamente à representação da
trilogia esquiliana, mas que nos mostram as personagens por nós estudadas
em atitudes que condigam com as que lhes foram atribuídas pela Oréstia, bus-

23
“As imagens são, portanto, construídas sobre escolhas na continuidade dos gestos, os quais informam a
vida social. Essas escolhas retêm os momentos e as situações, em que, o mais claramente possível para o
contemporâneo, os valores de sua própria sociedade eram dados a conhecer e a expressar-se.” (BÉRARD;
DURAND, 1984, p. 33).
24
Ações transgressoras, ou seja, práticas que burlem o modelo mélissa.
Imagens e representações forjadas por poetas e artesãos gregos: a circulação de ideias
e de signos no Mediterrâneo Antigo 95

camos demonstrar a possibilidade de afirmar que as personagens trágicas por


nós abordadas “transgrediam”, seja na tragédia ou nas cenas dos vasos áticos,
elementos do modelo ideal de comportamento feminino vigente na Atenas do
período clássico.
Iniciaremos a análise da documentação iconográfica a partir das imagens
relativas à Clitemnestra. Em nossa pesquisa, examinamos um conjunto de ce-
nas cuja temática se refere, sobretudo, ao uso do pélekus pela rainha argiva.
As unidades formais mínimas presentes nessas cenas se referem a elementos
que identificam a figura mitológica da rainha de Argos como uma mulher bem-
-nascida (pés descalços, uso de chiton e himation, uso de joias, cabelos presos
ou soltos, frequentemente adornados) e que igualmente a designam como uma
mulher transgressora (transparência da vestimenta e uso do pélekus). Entre-
tanto, neste artigo escolhemos para fins de análise a única ilustração da morte
de Agamêmnon sob um vaso ático de figuras vermelhas do século V a.C. No
entanto, se a figuração do assassinato de Agamêmnon não foi um tema recor-
rente entre os artistas atenienses, o mesmo não se pode dizer sobre a cena da
morte de Egisto.25 Talvez por ser um personagem “detestável”, a representação
de sua morte tenha se tornado um dos temas favoritos dos pintores, que, ao
retratarem o episódio, davam ao assassino e usurpador do trono e da mulher
de Agamêmnon o devido castigo. Portanto, quando a única representação re-
ferente à morte do rei Argivo em um vaso do século V a.C. – a cratera em cálice
do pintor Dokimasia produzida, segundo A.J.N.W. Prag (1991, p. 244), por volta
de 465 a.C. – foi pintada, seu autor “[...] teve que recorrer a uma adaptação da
consolidada iconografia de figuras vermelhas da morte de Egisto, que é ilustrada
no lado oposto do vaso [...].”Como nos mostra Francine Viret-Bernal, o esquema
dessa cena é basicamente sempre o mesmo. Egisto aparece no centro da cena,
enquanto Orestes é caracterizado como um jovem portando elementos da arma-
dura de um guerreiro hóplita. Orestes atinge Egisto – que está sentado em uma
cadeira – com uma espada; Clitemnestra chega correndo ao seu socorro e se
prepara para atingir seu filho. Resumidamente, é este o esquema que direciona
as representações da vingança de Orestes. Foi à essa iconografia que Dokimasia
recorreu para retratar a morte de Agamêmnon. Tal como na outra face do vaso,
o pintor retratou, no lado que se intitulou convencionalmente como lado [A]
(Fig. 7), a rainha argiva portando um pélekus, em vez de uma espada. De acordo

25
“Há uma série de imagens muito populares do fim do século VI e da primeira metade do século V que
representam a vingança de Orestes”, onde o centro da ação é geralmente constituído pela morte de Egisto.
(VIRET-BERNAL, 2006, p.297)
Alexandre Carneiro Cerqueira Lima, Marcio Mendes de Lima,
96 Talita Nunes Silva, Mariana Figueiredo Virgolino e Camila Alves Jourdan

com Prag, ao proceder dessa forma, ele não só transformou o machado duplo na
arma de Clitemnestra, como também a relegou ao papel de coadjuvante dentro
do quadro da morte de Agamêmnon.

Figura 7 - Lado [A]

Ao observarmos o lado [A] da cratera pintada por Dokimasia, nosso


olhar é imediatamente capturado pelos dois personagens que ocupam o centro
da cena. Egisto, mais à esquerda, porta uma barba longa e muito escura, seus
cabelos igualmente negros estão alinhados, e seus pés descalços. Segundo Viret-
-Bernal, sua vestimenta é constituída por um chiton curto preso por um cinto e
uma clâmide depositada sobre seu ombro esquerdo. Enquano sua mão direita
segura uma espada, a esquerda segura a cabeça de Agamêmnon. Sua expressão
parece tranquila, como se tivesse certeza do sucesso de sua empresa. Seu talhe
se mostra firme, o que pode nos remeter ao caráter premeditado do dolo por
ele praticado. A postura que seu corpo assume é a posição de alguém que tem
segurança daquilo que está praticando. O contrário acontece com Agamêmnon
Imagens e representações forjadas por poetas e artesãos gregos: a circulação de ideias
e de signos no Mediterrâneo Antigo 97

que, com os cabelos e a barba molhados, nu, apresenta-se envolto em um manto


ou rede que lhe cobre da cabeça aos pés, mostrando-se curvado ao ser pego de
forma desprevenida no momento em que saía do banho. Sangue jorra de seu
peito, enquanto Egisto se prepara para lhe desferir outro golpe. Impossibilitado
de reagir pelo manto transparente que cerceia seu movimento, ele não tem mais
nada a fazer a não ser, com as mãos estendidas, clamar pela misericórdia de
seu assassino. Ao lado de Agamêmnon, uma mulher eleva os braços. Seu cabelo
se levanta devido a seu movimento de espanto. Atrás de Egisto, à esquerda da
cena, Clitemnestra corre em sua direção, de forma a dar cobertura ao crime
cometido pelo amante. Ao seu lado, uma outra personagem feminina, com os
cabelos soltos e braços estendidos, foge.
Isto posto, voltemos à esposa de Agamêmnon. Clitemnestra veste um
chiton e himation, está descalça, apresenta os cabelos devidamente penteados e
presos por uma fita, todos elementos que nos permitem identificá-la como uma
mulher bem-nascida. Apesar da dificuldade da visualização, acreditamos que
sua vestimenta apresenta uma certa transparência. As mulheres bem-nascidas
poderiam ser pintadas com roupas transparentes. No entanto, essa forma de
representá-las não era muito usual. Portanto, a diafaneidade da roupa da rainha
é mais um signo que nos permite vê-la como hybristés. Além disso, a personagem
porta um pélekus na mão direita, outro símbolo da sua transgressão ao ideal
de comportamento feminino.26 Embora, Dokimasia, ao contrário de Ésquilo,
coloque Clitemnestra em segundo plano na cena da morte de seu rei e esposo,
ela não deixa de estar presente. Ainda que não seja, como na Oréstia, a autora
do golpe fatal desferido sobre Agamêmnon, ela não deixa de tomar parte ativa
no episódio. Em vez de abster sua presença da cena homicida, se mantendo
distante dos acontecimentos na segurança silenciosa do gineceu, Clitemnestra
vêm prontamente ao auxílio de seu amado. Ela não mostra nenhuma hesitação
em sua face; muito pelo contrário, sua expressão parece transparecer a mesma
serenidade de Egisto.
Seu comparecimento em cena é igualmente uma declaração pública de
sua relação ilícita e de seu conluio com o primo de seu marido; sua presença
marca que ela é – assim como Egisto – culpada pelo trágico desfecho da vida
de Agamêmnon. Dessa forma, embora não seja a autora do homicídio, a Cli-
temnestra representada por Dokimasia também pode ser considerada uma

26
É interessante observar aqui que tanto Clitemnestra, no lado esquerdo da cena, quanto a personagem
na extrema direita e ao lado de Agamêmnon apresentam o braço levantado. Este gesto compartilhado
pelas duas mulheres nos remete ao ideal artístico da simetria.
Alexandre Carneiro Cerqueira Lima, Marcio Mendes de Lima,
98 Talita Nunes Silva, Mariana Figueiredo Virgolino e Camila Alves Jourdan

mulher transgressora. Coautora da morte de seu marido, ela não teme assumir
a responsabilidade ao lado de Egisto. Destemidamente, ela vai ao seu encontro
para, arriscamos dizer, incentivá-lo e, se necessário, agir em seu auxílio. O pé-
lekus que maneja é definido por Viret-Bernal como uma ferramenta agrícola ou
arma de guerreiro, e, também, como instrumento de abate ritual no momento
do sacrifício. Embora concordemos com Prag de que o pélekus é uma arma
de crise e de pânico – ao contrário da espada, ferramenta de guerreiro e da
premeditação – não podemos deixar de observar que o pélekus está também
associado à violência excessiva. E, além disso, enquanto instrumento de abate
da vítima sacrificial, não deveria ser utilizado por pessoas do sexo feminino. O
papel de sacrificador, no sentido do abatedor do animal destinado ao sacrifício,
era uma função reservada somente aos homens. Assim, em função dos elemen-
tos que nos permitem tomar a cena como metáfora de sacrifício, ao empunhar
o pélekus, Clitemnestra se apropria de um instrumento de uso exclusivo dos
homens, assumundo, consequentemente, para si o papel de assassina da víti-
ma sacrifical, ainda que não seja ela quem de fato mata Agamêmnon. A rainha
argiva “[...] se roga um poder reservado ao chefe do oîkos nos tempos antigos,
entregue em seguida nas mãos do sacerdote, mas nunca às mulheres” (VIRET-
-BERNAL,2006, p.296). Não obstante, deixemos de lado por alguns instantes a
análise de Clitemnestra para nos determos sobre a malha mortífera que envolve
Agamêmnon nessa cena.
O manto que envolve a vítima de Egisto e Clitemnestra pode ser compa-
rado à rede da caça – que prende e domestica a força dos animais selvagens
(“malha/rede de caçar fera”, Coéforas. v.998) – que, entretanto, é aqui utilizada
para capturar um ser humano. Ela remete, também, à astúcia em seu aspecto
desleal, como a produtora de mentiras e de traição. Arma das mulheres e dos
covardes. A representação de tal “rede”, devido à sua polissemia, revela todas
as implicações da cena: “[...] desvio das atividades de um universo feminino
perturbado, utilização de técnicas de caça pouco gloriosas [...]” (VIRET-BERNAL,
2006, p. 295). O uso da “di/ktuon” (“rede”; Coéforas. v.1000) pelo pintor Dokima-
sia revela o aspecto traiçoeiro da morte infringida à Agamêmnon; o assassino
se aproveita da debilidade da vítima – imobilizada pelo terrível véu –, a quem
não é dada oportunidade de defesa. Sob a delicadeza e transparência de seu
aspecto se esconde um terrível ardil. Pode-se, assim, fazer uma comparação
com as características da Clitemnestra esquiliana. A rainha que engana o coro
e a seu esposo se fazendo passar pela esposa virtuosa se esconde por trás da
fingida sinceridade de suas palavras e de seu proceder. Por trás da sua doçura
Imagens e representações forjadas por poetas e artesãos gregos: a circulação de ideias
e de signos no Mediterrâneo Antigo 99

e de seu aspecto inofensivo, se encontra uma mulher extremamente cruel que


utiliza sua fala para enganar e confundir. Podemos nos arriscar a supor que o
pintor, ao criar esta imagem – pintada depois da primeira encenação da Oréstia
–, pode ter se baseado no drama de Ésquilo para representar tal instrumento
mortífero, pois foi o dramaturgo quem introduziu o véu letal dentro do tema
da morte de Agamêmnon.27 Portanto, Dokimasia, ao reproduzi-lo, poderia estar
utilizando-o como uma metáfora não só relativa à forma infame que assume a
vingança de Egisto, mas também ao aspecto enganoso do feminino. Além disso,
sua representação reforça a imagem do assassínio de Agamêmnon como um
sacrifício corrompido e, igualmente, de Clitemnestra como sacrificadora. A
utlização do véu (manto) para capturar a vítima tal como um animal selvagem
contraria a espontaneidade da ação, que rege a condução sacrificial do animal
até o holocausto.28 Podemos concluir, então, que a Clitemnestra de Dokimasia
é transgressora não só por assumir um papel masculino ao arrogar-se o status
de sacrificadora – papel desempenhado exclusivamente pelo sexo masculino
–, mas também devido ao sacrifício cometido por ela e seu amante não ser
consentido pela vítima.
Passemos agora à análise da imagem presente no lado [B] (Fig. 7.1) da
cratera. Nas extremidades da cena, encontram-se de cada lado duas mulheres
que mantêm os braços erguidos como um movimento de espanto pelo que
está se sucedendo.29 A mulher à esquerda é identificada como sendo Electra.
No centro da imagem, observamos dois dos personagens presentes na cena do
assassinato de Agamêmnon: Egisto e Clitemnestra. No meio deles, encontra-se
Orestes. Egisto, sentado em uma cadeira, apresenta um sangramento sobre
o peito. Parece se desequilibrar com o golpe desferido por Orestes. Este, ca-
racterizado como um jovem imberbe, utiliza vestimenta característica de um
27
O véu (manto) usado para envolver Agamêmnon é designado na Oréstia como “di/ktuon” (“rede”; Coéforas,
v. 1000), o que nos remete à prática da pesca. Tal atividade era considerada uma caça menor (VIEIRA,
2002, p. 168). “A pesca não é uma atividade bem considerada pelos filósofos ou pelos moralistas. Platão,
que a compara à caça, a julga indigna de um homem bem-nascido.” (CORVISIER, 2008, p.300).
28
Para que um sacrifício fosse propício, o animal deveria “assentir” sua morte, e não ser levado à força ao
momento da execução. A representação da rede faz uma alusão explícita ao ato da captura, o que nos
remete a não aceitação voluntária da vítima de sua morte. Cabe ressaltar que essa é uma interpretação
referente ao uso da rede na representação da morte de Agamêmnon feita pelo pintor Dokimasia. No
Agamêmnon, de Ésquilo, seu emprego, segundo nosso entender, faria alusão ao aspecto enganador do
feminino e mais especificamente de Clitemnestra, e não à captura da vítima sacrificial que se recusa a
consentir com o próprio sacrifício. Nesta peça vemos, pois, como Agamêmnon é conduzido docilmente
por Clitemnestra até o lugar de seu “sacrifício” através do tapete purpúreo.
29
Na extremidade esquerda da imagem, o braço levantado da personagem se encontra atrás de uma
coluna, o que nos remete ao fato de a cena se passar no interior do palácio.
Alexandre Carneiro Cerqueira Lima, Marcio Mendes de Lima,
100 Talita Nunes Silva, Mariana Figueiredo Virgolino e Camila Alves Jourdan

guerreiro hóplita: elmo, couraça e caneleira. Enquanto sua mão esquerda segura
a cabeça de Egisto, sua mão direita se prepara para desferir-lhe novo golpe de
espada. Clitemnestra, à esquerda da cena e atrás de Orestes, toca-o com a mão
esquerda, enquanto empunha um pélekus com a mão direita. Ela veste um chiton
transparente bordado de pontos e um himation. Seu cabelo encontra-se preso
por meio de um stéphané adornado com folhas. Seus pés estão descalços. E
utiliza brincos. Ela aparece assim caracterizada como uma mulher bem-nascida;
suas vestes, a forma como se encontra preso seu cabelo, seus ornatos são to-
dos elementos característicos da representação de uma mulher bem-nascida.
Contudo, a transparência de sua roupa e o porte do pélekus, como já observado
anteriormente, representam-na igualmente como uma mulher transgressora,
aspecto que abordaremos mais adiante ao contrapô-la aos dois personagens
masculinos presentes em cena.

Figura 7.1 - Lado [B]

Como mencionado anteriormente, as imagens relativas à morte de


Egisto se esquematizam em três pares de oposição: Clitemnestra/Egisto;
Egisto/Orestes; Orestes/Clitemnestra. Para a apreciação dessas oposições,
nos basearemos na análise de Francine Viret-Bernal em Quand les Peintres
exécutent une Meurtrière: L’Image de Clytmnestre dans la Céramique Attique.
Imagens e representações forjadas por poetas e artesãos gregos: a circulação de ideias
e de signos no Mediterrâneo Antigo 101

Neste trabalho, a autora pontua que os objetos portados por Clitemnestra e


Egisto são indicativos da contraposição existente entre os dois personagens.
Egisto segura um barbitos, instrumento musical revelador de seu caráter. O
barbitos é um instrumento associado ao mundo dionisíaco e ao vinho, e, por
conseguinte, ao sympósion. Dessa maneira, é ligado ao prazer (VIRET-BERNAL,
2006, p. 298). Então, o uso do barbitos por Egisto faria referência ao seu poder
de sedução, poder este que havia utilizado na conquista de Clitemnestra. Além
disso, o fato dele estar sentado no trono segurando tal instrumento poderia
ser representativo de sua inaptidão para o exercício do poder. Clitemnestra,
ao contrário, “[...] ao se apropriar do pélekus, instrumento de abate reservado
aos homens e em destruir o rei seu marido, expressa reivindicações de ordem
política”(VIRET-BERNAL, 2006, p. 296-297). O crime que ajudou a perpetrar teve
implicações não apenas na esfera privada, mas também na esfera pública.30
Desse modo, podemos entender as razões do crime cometido pela Clitemnestra
de Ésquilo como decorrente não apenas de seu desejo de vingança, mas tam-
bém pelo sacrifício de sua filha Ifigênia e do ciúme despertado pela presença
de Cassandra. Ao morrer, Agamêmnon deixava vago o poder no palácio e,
consequentemente, o poder político. A rainha que havia assumido o controle
de Argos desde sua partida para a guerra de Tróia não parecia disposta a lhe
devolver o poder. E para guardá-lo consigo ela se utiliza de Egisto, homem que
se dedica a um instrumento musical ligado à esfera do prazer. Ele será seu aliado
não só para executar sua vingança, mas também para tornar sua regência um
governo permanente. Dessa forma, tanto a Clitemnestra do Agamêmnon como
a Clitemnestra da cratera em Boston têm características que as apresentam
como mulheres masculinas.
Entretanto, Egisto aparece tanto na imagem de Dokimasia como na Oréstia
de Ésquilo mais afeito às características ligadas ao feminino do que a atributos
viris.31 Diante da impetuosa e astuta Clitemnestra, ele se assemelha mais a uma
mulher do que a um homem, de modo que o vemos, mais de uma vez, ser consi-
derado como uma mulher por não ter ousado a executar Agamêmnon com suas
próprias mãos. Na imagem pintada por Dokimasia, é Egisto, e não Clitemnestra,
quem desfere o golpe fatal sobre o rei argivo.

30
A morte de Agamêmnon representava não apenas a morte do chefe de um oîkos, mas igualmente a morte
do chefe de uma cidade-Estado.
31
Na Oréstia, ele é apenas o coadjuvante que auxilia Clitemnestra no seu ardil contra Agamêmnon. Sua
posição menor é expressa no silêncio de sua voz na primeira peça da trilogia e nos poucos versos onde
ela é expressa nas Coéforas.
Alexandre Carneiro Cerqueira Lima, Marcio Mendes de Lima,
102 Talita Nunes Silva, Mariana Figueiredo Virgolino e Camila Alves Jourdan

Entretanto, ao analisarmos o lado oposto da cratera, o encontramos sur-


preendido enquanto repousava tranquilamente sobre uma cadeira, mais preo-
cupado em cantar do que governar. Sua caracterização física também é alusiva
ao seu preenchimento inadequado dos atributos esperados de um homem. Ele
está cuidadosamente vestido e penteado, aspectos reveladores da tranquilidade
da vida que levava. Enquanto os homens de Argos estão combatendo em Tróia,
ele – ainda que com idade para a função militar – permanece no oîkos à maneira
de mulher. Em contraposição à sua aparente passividade, Clitemnestra, ao vê-lo
em perigo, imediatamente lança mão do pélekus e corre para auxiliá-lo, estando
pronta, inclusive, para ferir seu próprio filho. Distingue-se, assim, a oposição
entre Clitemnestra, mulher masculina, e Egisto, homem feminino, que nos
prepara para a observação de outra contraposição presente na cena: aquela
entre Egisto e Orestes. O filho de Agamêmnon é apresentado como um jovem
guerreiro e, ao ser representado dessa maneira, “[...] encarna num momento
os valores do soldado, a coragem, e igualmente àqueles do combate hoplita, o
combate democrático por excelência. Orestes se apresenta assim como aquele
que elimina o tirano Egisto, detentor de um poder ilegítimo” (VIRET-BERNAL,
2006, p. 298). Ao homem feminino associado à tirania e aos prazeres se sobre-
põe o homem masculino por excelência enquanto personificação dos valores
masculinos da coragem e da democracia.
O último par de oposições presente nesta imagem da morte de Egisto é
a colocada entre mãe (Clitemnestra) e filho (Orestes). A rainha argiva aparece
como a agressora desmedida, cuja preferência pelo amante se sobrepõe aos laços
de sangue com seu filho. Por outro lado, Orestes se apresenta como o executor
da vingança ordenada por Apolo; assim, seu ato é de justiça. Ele atua em nome
do sangue paterno. Já Clitemnestra, a mãe cruel, apresenta-se pronta a atacar
de forma traiçoeira seu rebento. Ela aproveita-se de sua atenção concentrada
em Egisto para intentar contra sua vida. Mulher de violência, reconhecível pelo
machado que brande, pronta a executar mais uma vítima sob a forma de um
sacrifício sacrílego. Descomedimento (loucura vs. razão e justa medida) que,
posteriormente, a levará a ser devidamente punida. Seu ato nos prepara para as
cenas representadas nos vasos cerâmicos relativas a seu assassínio pelas mãos
de Orestes, que nas Eumênides – devido à justiça de seu crime – será liberado
da culpa de matricídio.
A representação de Clitemnestra, feita pelo pintor Dokimasia, nos mostra
uma mulher associada pelo uso do pélekus à violência desmedida. Ao empunhar
o machado duplo com a mão direita, a personagem poderia estar se arrogan-
Imagens e representações forjadas por poetas e artesãos gregos: a circulação de ideias
e de signos no Mediterrâneo Antigo 103

do mais uma característica masculina, haja vista que, dentro do pensamento


profundamente polarizado dos gregos, a destra era associada ao homem,
atribuindo justiça a seu ato e explicando a violência empregada.32 Todavia, a
implicação mais significativa do seu uso do pélekus se deve ao fato de que, ao
dispor desse instrumento, ela se apropria do status masculino de abatedor da
vítima sacrificial. Seu comportamento representa uma afronta tanto à ordem
divina como à ordem social. Ela não só ultrapassa a esfera de ação permitida ao
feminino, como também – juntamente com seu amante – transforma em animal
sacrificial um homem que será traiçoeiramente abatido. Isto posto, além de se
arrogar de um papel reservado aos homens e de reduzir um ser humano ao
status de animal destinado ao holocausto, o sacrifício cometido por ela e Egisto
é um sacrifício corrompido, pelo fato de a vítima ser capturada e levada contra
sua vontade ao altar.
Com relação à Electra, possuímos uma imagem presente num skyphos de
datação por volta de 440 a.C., que mostra a personagem numa atitude por nós
interpretada como possivelmente transgressora. Electra, caracterizada como
uma bem-nascida, está vestindo um péplos e sua cabeça está coberta por um
véu bordado. Seus cabelos encontram-se presos sobre a forma de um coque. À
sua direita, há uma mulher que segura uma bandeja contendo filetes. No verso
do vaso, ao qual não tivemos acesso, encontram-se Orestes e Pílades – vestidos
com petasos e segurando lanças – observando as duas mulheres. Electra e a
segunda mulher, provavelmente uma escrava, estão sobre o túmulo de Aga-
mêmnon, composto por base e estela coroada por um arremate em forma de
folha de palmeira. Na estela está inscrito o nome do rei argivo – AGAMEMNONS.
Nesta cena, vemos Electra e uma serva desempenhando o cuidado relativo ao
morto em seu túmulo. A filha de Clitemnestra e Agamêmnon parece lustrar a
estela funerária, enquanto um vaso sob o túmulo e próximo a ela dá indícios
de libações vertidas ao morto. Embora a vejamos desempenhando uma função
desenvolvida pelas mulheres, acreditamos poder observar através dos resquí-
cios de sua expressão facial, assim como pela expressão assumida pelo rosto da
serva que lhe acompanha, indícios de cólera em seu semblante. Electra, segundo
nossa interpretação, estaria aqui cumprindo uma ordem de Clitemnestra que a
mandara verter libações para apaziguar a fúria do espectro de Agamêmnon. No
entanto, nutrida por um sentimento de rancor contra sua mãe, ela verte libações

32
No Agamêmnon, Clitemnestra considera o crime por ela cometido como um ato de justiça. Uma proeza
executada por sua mão destra, o “justo artífice” de sua vingança (Ag. v.1406).
Alexandre Carneiro Cerqueira Lima, Marcio Mendes de Lima,
104 Talita Nunes Silva, Mariana Figueiredo Virgolino e Camila Alves Jourdan

não para acalmar o morto, mas para pedir-lhe punição a seus crimes. Electra
estaria agindo contrariamente ao ordenado por sua mãe, desobediência que
revela o ódio por quem a gerou. Tal atitude assemelha-se à desenvolvida por
ela nas Coéforas, de Ésquilo, onde a princesa argiva derrama junto às servas
libações, clamando pela morte de Clitemnestra e Egisto, enquanto Orestes e
seu companheiro Pílades observam-nas de longe. Dessa forma, a Electra repre-
sentada neste skyphos pode ser considerada como uma mulher transgressora
do mesmo modo que sua correspondente trágica. Assim, embora lhe fosse de
direito desejar a morte dos assassinos de seu pai, ela não deixa de cometer um
ato desmedido, hýbris, ao desejar a morte de sua mãe.

Figura 8
Imagens e representações forjadas por poetas e artesãos gregos: a circulação de ideias
e de signos no Mediterrâneo Antigo 105

Portanto, ao analisarmos tais imagens podemos concluir que a perso-


nagem Clitemnestra – assim como no gênero trágico – aparece na tradição
iconográfica sob vasos de figuras vermelhas do século V a.C. como uma mulher
transgressora ao ideal de comportamento feminino vigente na sociedade ate-
niense do período clássico. A esposa de Agamêmnon se apresenta tanto nas
imagens como na Oréstia como uma mulher violenta, assassina, sacrificadora,
mãe cruel, esposa adúltera e mulher impudica. Ainda que porte, na grande
maioria das cenas, o pélekus, em vez da espada, ela é caracterizada – tal como
na trilogia esquiliana – como uma mulher masculina. Ao portar o machado
duplo, ela lança mão de um ato reservado aos homens, ou seja, a função de
abatedor da vítima sacrificial. Quanto à irmã de Orestes e Ifigênia, Electra, no-
tamos apenas uma imagem que confirma seu status transgressor presente no
drama de Ésquilo. Podemos afirmar, nesse sentido, que das três personagens
por nós analisadas na Oréstia (Clitemnestra, Cassandra e Electra), Clitemnes-
tra é a única que, de uma forma geral, passou para a tradição com o status de
“mulher transgressora”
Alexandre Carneiro Cerqueira Lima, Marcio Mendes de Lima,
106 Talita Nunes Silva, Mariana Figueiredo Virgolino e Camila Alves Jourdan

FICHAS DESCRITIVAS DOS VASOS

FIGURAS 7[A]; 7.1[B]


Publicação: Lexicon Iconographicum Mythologiae Classicae (LIMC), v.VI (2).
Artemis Verlag Zürich und München, 1992, f.16, p.36.
Temática: Extraída do assassinato de Egisto.
Descrição: (A) Morte de Agamenon em rede, Egisto com a espada e mulheres,
uma com machado duplo (Clitemnestra); (B) Clitemnestra (chiton transparente
com pontos bordados, himation, chignon, stéphané ornada de folhas) chega da
esquerda; a mão direita levantando um pequeno machado duplo; mão esquerda
estendida, ela toca Orestes; à direita Electra.
Vaso: Cratera ática em cálice.
Estilo: Figuras Vermelhas.
Data: Ca. 500-450 a.C.
Pintor: Dokimasia.

FIGURA 8
Publicação: Lexicon Iconographicum Mythologiae Classicae (LIMC), v.III (2),
Artemis Verlag Zürich und München, 1986, I.34, p.54.
Temática: Encontro de Electra e Orestes no túmulo de Agamêmnon.
Descrição: O túmulo é composto por base e estela coroada por um remate em
forma de palmeira; na estela está escrito . Electra está vestin-
do peplos e véu sobre sua cabeça e há laços de um filete sobre a estela. Uma
segunda mulher à direita, vestindo um peplos, detém uma bandeja contendo
filetes. No reverso Orestes e Pilades, ambos vestindo e segurando duas lanças,
assistem à cena no túmulo.
Vaso: Skyphos ático.
Estilo: Figuras Vermelhas.
Data: Ca. 440 a.C.
Imagens e representações forjadas por poetas e artesãos gregos: a circulação de ideias
e de signos no Mediterrâneo Antigo 107

Deméter: mito e culto entre os gregos

Mariana Figueiredo Virgolino33

A relevância da poesia épica na Grécia Antiga já é lugar comum entre


os helenistas. Os trabalhos atribuídos a Homero, frutos da transmissão oral
de geração para geração, são resultados um processo que levou séculos para
se concluir, estando permeado de modificações e interpolações. A Ilíada e a
Odisséia foram fundamentais para fixar os traços marcantes da cultura grega
a partir dos séculos VIII e VII a.C.. Após o colpaso das sociedades palacianas de
tipo micênico e, com ela, o desaparecimento da escrita administrativa (Linear B),
a cultura oral foi de suma relevância para a difusão, de certa forma, da “memó-
ria” da Era do Bronze e dos relatos míticos sobre as divindades e seus poderes,
como é o caso da Teogonia de Hesíodo. A poesia oral helênica é resultado de
seleções e ordenamentos e estava ligada à cultura aristocrática e ao contexto
das colonizações da Ásia Menor no século VIII a.C. (VEGETTI, 1994, p. 237). Nesse
processo de difusão cultural desempenharam papel preponderante os aedos e
os rapsodos, que viajavam entre as cortes de diversas regiões da Hélade entre-
tendo a elite e ganhando a vida cantando as histórias dos heróis e dos deuses,
colaborando para que aqueles grupos desenvolvessem noções semelhantes
sobre as divindades, práticas rituais (HERODOTUS, 1920, p. 53) e outros hábitos
diversos. No período clássico, a relevância dos poemas ganha nova dimensão:
através deles se dá a alfabetização daqueles que possuem meios para custear a
paidéia, e os concursos de récita que ocorriam em festivais, como as Panatenéias,
atraíam gregos e bárbaros, permitindo o alcance de uma audiência ainda mais
ampla. A grande maioria da população grega sabia trechos da Ilíada e da Odisséia
de cor e acreditava que se referiam à história de antepassados comuns.
Se na atualidade os dois poemas citados ainda despertam fascínio entre
acadêmicos e o público geral, os Hinos Homéricos não tiveram tanto apelo sobre
os classicistas. Conhecemos hoje 33 Hinos que relatam as atribuições e façanhas
dos deuses, tendo sido compostos em diferentes regiões por volta dos séculos
VII e VI a.C.. Os antigos atribuíam sua composição a Homero (THUCYDIDES,
1999, p. 104) pois, como a Ilíada e a Odisséia, foram desenvolvidos em hexâme-
tro datílico. Esses poemas também eram recitados em concursos e cerimônias

33
Professora Mestre pelo Programa de Pós-Graduação em História (PPGH) da Universidade Federal
Fluminense; defendeu a dissertação intitulada: Fertilidade e Prosperidade na Ásty de Corinto: o Santuário
de Deméter e Koré nos Períodos Arcaico e Clássico, 2013. Pesquisadora do NEREIDA/UFF.
Alexandre Carneiro Cerqueira Lima, Marcio Mendes de Lima,
108 Talita Nunes Silva, Mariana Figueiredo Virgolino e Camila Alves Jourdan

religiosas, vários deles contendo indicações sobre os rituais e os principais


locais de adoração aos deuses. Atualmente, um dos mais estudados é o segundo
Hino Homérico, cuja narrativa relata o rapto de Koré/Perséfone por Hades e a
busca de Deméter, a quem é dedicado, por sua filha.
O poema trata do mais famoso mito relacionado a essa deusa associada
à agricultura, fertilidade, maternidade e uma das principais divindades do pan-
teão olímpico. Koré/Perséfone, filha de Deméter e Zeus, encontrava-se colhendo
flores na companhia de algumas ninfas. Hades, o senhor do Mundo dos Mor-
tos, decide raptá-la, pedindo a permissão do soberano dos deuses para tomar
Koré como esposa, no que obteve sucesso. Enquanto a deusa se inclina para
colher uma flor, a terra se abre e dela sai um carro que leva a jovem embora.
No momento em que estava sendo tragada pela terra, Koré grita, chamando
a atenção da mãe, que não consegue ver o que está acontecendo, pois chega
demasiadamente tarde.
Deméter, em desespero pelo sumiço da filha, vaga o mundo por nove dias
e noites, com uma tocha à mão. Abstêm-se de comer, beber ou banhar-se, atitu-
des relacionadas à vivência do luto na Grécia Antiga. No décimo dia, encontra
Hécate, deusa ctônica da magia. Juntas, foram até Hélios, o deus-sol, que lhes
revela o que ocorreu. Deméter abdica de suas funções divinas, devido à recusa
de Hades e de Zeus em devolver Koré. Não retorna ao Olimpo, refugiando-se em
Elêusis, onde chora a ausência da filha. Lá, revela seus Mistérios a Triptólemos
e lhe ensina a arte da agricultura, que este deve transmitir para a humanidade.
Com a negligência da deusa, a terra torna-se seca e estéril, os animais
morrem, colocando em perigo não somente a existência dos homens, como o
próprio culto aos deuses. Com o fim da fertilidade dos campos, os deuses não
mais gozam de sacrifícios, e assim há uma crise de natureza cósmica. Zeus
requer o retorno de Deméter ao Olimpo e a seus afazeres, mas ela se nega, pois
não lhe restituíram a filha. Para que a ordem fosse mantida, ele obriga a Hades a
devolver a jovem. Todavia, o último convence a esposa a comer grãos de romã,
o que sela o vínculo entre os dois, impossibilitando-a de retornar ao convívio
pleno da mãe. Acorda-se, então, que Koré/Perséfone – agora a Senhora do Mundo
Subterrâneo – passará 1/3 do ano no Hades, e o restante com Deméter, no Olimpo.
Assim, a terra novamente torna-se fértil, e o equilíbrio do mundo é restaurado.
O caráter ctônico do mito de Deméter e Koré/Perséfone se faz presente
em todo o Hino, reforçando a ligação entre a terra como fonte geradora da vida
e o mundo dos mortos (SERRA; MARTINELLI, 2009, p. 218-225). Walter Burkert
(1993, p. 315, 316) expõe a narrativa mítica como alegoria natural: Koré é a
Imagens e representações forjadas por poetas e artesãos gregos: a circulação de ideias
e de signos no Mediterrâneo Antigo 109

semente que, ao ser posta sob a terra, morrendo aparentemente, renasce pela
germinação de novos frutos. Com o retorno da filha, Deméter se volta às suas
obrigações como divindade associada à fertilidade: além de fazer a terra pro-
duzir, transmitiu aos homens o modo como deveriam ser executados os ritos
dos Mistérios, bem como lhes ensinou a agricultura.
Embora fosse responsável pela vida de todos os vegetais, estava mais inti-
mamente ligada ao trigo e a cevada, às lavouras, ou seja, à própria alimentação
do homem. Seus dons são vitais para a humanidade. Hesíodo expõe os homens
como aqueles que “comem pão” em oposição aos deuses, que se alimentam de
néctar e ambrosia (HESÍODE, 2008, versos 510-515). Um dos epítetos da deusa,
thesmóphoros, 34 deve-se ao fato de ter ensinado o cultivo dos campos aos ho-
mens e assim os tirado de um estado selvagem, tornando-os agricultores. Outros
epítetos reforçam o caráter agrário de Deméter, tais como chloe – verdejante;
sito – grão; himalis – abundância; achaia – ceifadora; polusoros – rica em pilhas
de grãos; e karpophoros – a que traz frutos (COLE, 2000, p. 136).
É possível afirmar que as celebrações em honra a Deméter ocorriam em
todo o mundo grego e tinha origens bastante antigas. Devido à sua ligação com
a agricultura e a fertilidade, seu caráter maternal e essencialmente feminino,
Deméter era uma das divindades mais populares entre as mulheres. Seu culto
era amplamente difundido, sendo possível encontrar santuários e templos em
sua honra em praticamente todas as póleis, da Magna Grécia e Sicília à Jônia.
Os cereais eram a base da economia e da alimentação das sociedades que mar-
geavam o Egeu e o Mediterrâneo e seu armazenamento não se dava de forma
prática. Para os helenos, o cultivo e a estocagem desses gêneros era crucial.
A perda dos mesmos poderia acarretar carestia e fome (COLE, 2000). O Hino
Homérico a Deméter permite ver que se tratava de uma divindade que poderia
trazer alimentos em abundância, mas também tinha o poder de levar a privação
aos homens, sendo necessário honrá-la adequadamente. Entre as festas pro-
movidas à deusa na Ática, é possível citar a Stenia durante o mês Pyanépsion
– aproximadamente outubro, no calendário gregoriano, a Skira (junho/julho), a
Haloa (dezembro/janeiro) (SIMON, 1983, p.17-37; PARKE, 1986, p. 29), os cultos
de Mistério, entre os quais o de Elêusis era o mais famoso, e a principal, as
Thesmophórias, celebradas pelas esposas dos cidadãos não somente em Atenas,
mas em várias partes da Hélade (BURKERT, 1993, p. 317, 464).

34
Susan Guettel Cole interpreta o termo da seguinte forma: “the one who carries what has been set down”, ou
seja, “aquela que carrega/porta o que foi fixado” (tradução nossa) (COLE, 2000, p.136, 137).
Alexandre Carneiro Cerqueira Lima, Marcio Mendes de Lima,
110 Talita Nunes Silva, Mariana Figueiredo Virgolino e Camila Alves Jourdan

As festas religiosas se apresentam como uma das melhores formas de visu-


alizar as mulheres enquanto parte ativa na sociedade (BLUNDELL, 1995, p.160).
Ao participarem das festas cívicas, agiam em público e em prol da comunidade.
Para a mentalidade grega do período clássico, as mulheres deveriam se restringir
à esfera doméstica, pois o espaço público era local de convergência dos homens
da cidade. As celebrações rituais, todavia, se configuravam em ocasiões onde o
ideal da reclusão feminina era relaxado, permitindo às mulheres uma voz ativa
nos afazeres da cidade, quando organizavam e presidiam as cerimônias que lhes
eram cabíveis, estando essas principalmente relacionadas à fertilidade e ao ciclo
agrícola. Para Barbara Goff (2004, p. 4), os rituais se apresentavam como arena
de renegociação constante entre os ideais da pólis e as mulheres, onde elas se
alternavam cooperando ou resistindo a essas noções. Os festivais se constituíam
em um dos canais de participação cívica feminil, proporcionando um convívio
mais íntimo entre elas e permitindo o estreitamento dos laços de amizade e
colaboração (LESSA, 2004, p. 125-127). O tempo festivo é oposto ao cotidiano,
oferece aos seus participantes uma atmosfera lúdica, onde as barreiras sociais
são derrubadas e a natureza é renovada periodicamente, sacralizando as pas-
sagens que marcam a vida dos indivíduos (MURIEL, 1990, p. 21, 22).
No que tange às Thesmophórias, encontramos nos textos da Antiguidade
algumas referências a essa forma de culto, especialmente ao modo como ele
era celebrado em Atenas no período clássico. Sabemos, contudo, que o festival
ocorria em póleis como Esparta, Abdera, Mileto, Tebas, Halimo, Éfeso, Driméa,
Agrigento, Siracusa, Eritréia, Thasos, Delos, Trezena, Mégara, Hermione, Mitilene,
na Sicília e possivelmente em muitas outras.35 O nome do festival pode ser refe-
rência a um dos epítetos de Deméter – thesmophóros – ao qual já nos referimos
antes e, segundo Diodoro Sículo (1954, 5, 5, 2), comemora o estabelecimento
das leis e da regularização da vida civilizada, o que era associado à Deméter
ter ensinado a humanidade a plantar e colher.
Trata-se, em suma, de uma festa de origem agrária que será acolhida
pelo espaço urbano, sendo a forma do culto a Deméter mais comum no mundo
grego (BURKERT, 1979, p.139). Por ser um festival restrito às mulheres casadas,
esposas dos cidadãos, não há um consenso sobre os detalhes que permeavam
a festividade. Aos homens cabia apenas custear as despesas da festa, sendo-
-lhes interdita a participação e mesmo ter conhecimento sobre o modo como

35
Os autores que falam sobre as póleis onde havia a celebração das Tesmofórias são Pausânias, Plutarco,
Diógenes Laércio, Ateneu de Naucratis, Estrabão, Heródoto, entre outros.
Imagens e representações forjadas por poetas e artesãos gregos: a circulação de ideias
e de signos no Mediterrâneo Antigo 111

os rituais eram executados. O fato de as praticantes deverem guardar segredo


sobre os ritos também impediu uma descrição mais pormenorizada. Seu obje-
tivo é promover a fertilidade, não apenas a agrícola, mas também a humana.
Quanto à celebração da festividade, o calendário é variável, ocorrendo
em diferentes datas dependendo da pólis. Em Delos era celebrada no mês Me-
tageitnion, durante o verão. Na maioria das póleis onde era celebrada, a festa
durava três dias, sendo que nos dias anteriores havia alguma preparação, tal
como a abstenção de sexo. Na Sicília sua duração era de dez dias (DIODORUS
SICULUS, 1954, 5, 4, 7). Em Atenas ocorria próxima à chegada do inverno, pouco
depois da comemoração da Stenia. Sua duração se prolongava por três dias,
durante os quais as mulheres permaneciam acampadas em abrigos organizados
em filas dentro do espaço aberto do Thesmophoríon, o templo a Deméter que
se localizava junto à Pnyx, local de reunião da Ekklesía.
O primeiro dia chamava-se ánodos – ascensão. Tal nome pode se referir à
procissão formada pelas mulheres rumo ao Thesmophórion, localizado junto à
Pnyx, local onde se realizava a assembleia de cidadão em Atenas ou pela subida
dos restos putrefatos dos porcos sacrificados durante a Skira, provavelmente
(PARKE, 1986, p. 83). Os porcos mortos eram lançados com bolos em formato
fálico em valas, chamadas mégaras, onde se presume que havia serpentes, que
também significam fertilidade e estão associadas a outros cultos ctônicos.
Durante o segundo dia da festividade, nestéia, as mulheres jejuavam para
lembrar a tristeza de Deméter durante a ausência de Koré. Tal prática ritual está
ligada ao “luto” que Deméter se impôs inicialmente quando chegou a Elêusis
após o rapto da filha. As esposas permaneciam sentadas no chão, sob galhos
de vítex, planta que se acreditava como inibidora do desejo sexual e era usada
como contraceptivo na antiguidade grega. As participantes também falavam
obscenidades, tal como Jambe fez para alegrar Deméter. Tratava-se de um dia
onde os rituais eram de caráter fúnebre e apotropaico.
O terceiro e último dia era denominado Kalligéneia, que significa “a deusa
do belo nascimento”. Eram realizados sacrifícios e um grande banquete para
as mulheres, pondo fim ao jejum do segundo dia. Essa última etapa do festival
tinha por interesse o nascimento de crianças saudáveis (LESSA, 2004, p.199). A
mensagem de toda a celebração estaria, portanto, endereçada às mulheres que
deveriam cumprir sua função de gerar filhos, futuros cidadãos que perpetuariam
a existência da cidade.
A participação nas Thesmophórias não simbolizava um rompimento
completo com o ideário feminino vigente especialmente nas póleis de cultura
Alexandre Carneiro Cerqueira Lima, Marcio Mendes de Lima,
112 Talita Nunes Silva, Mariana Figueiredo Virgolino e Camila Alves Jourdan

jônia da reclusão (POMEROY, 1995, p. 42), mas permitia às mulheres maior


conscientização de sua importância para a sobrevivência da sociedade. O epí-
teto pelo qual as esposas eram chamadas durante a festa, mélissai (abelhas), se
coaduna ao ideal de virtude doméstica esperado pela pólis, pois as abelhas são
trabalhadoras e abstêm-se sexualmente. Durante a realização das celebrações
feminis, especialmente as Thesmophórias, ideias opostas circulavam pela pólis:
tinha-se a inversão da ordem cotidiana, com os homens longe do centro cívico
e as mulheres ocupando esse espaço ao mesmo tempo que era enfatizado seu
papel para geração de futuros cidadãos (DETIENNE, 1989, p.145-146; VERSNEL,
1993, p. 251-254).
Essas ideias circularam ainda no teatro entre os espectadores da peça
As Tesmoforiantes, de Aristófanes, que trata do temor que Eurípides tem de ser
morto pelas mulheres atenienses, que se encontram reunidas na colina da Pnýx
para a celebração do ritual das Thesmophórias. Para convencê-las a não faze-
rem mal algum contra ele, o tragediógrafo recorre à assistência de um parente
que, disfarçado de mulher, vai até o local da celebração das festividades. Na
comédia em questão, as mulheres são retratadas de forma bem diversa daquela
defendida pela ideologia políade: traem seus maridos, bebem, trabalham para
sustentar a casa, mentem e tramam eliminar aquele que veem como inimigo.
É claro que a comédia deve dar um tom exagerado às situações, mas essa ex-
trapolação também é uma marca do real. A comédia tinha como matéria-prima
o cotidiano, ao contrário da tragédia, que se utilizava do mito para abordar
assuntos relacionados às questões da pólis, e fazia uso de tipos existentes nas
cidades para construir suas histórias. Enquanto filósofos como Platão defen-
diam o recato como característica desejável (PLATO, 1926, VII, 802e-830a), um
comediógrafo como Aristófanes expunha as mulheres atenienses com cores
mais vivas, demonstrando que especialmente aquelas pertencentes aos estratos
menos abastados se faziam presentes na esfera pública não apenas para fins
religiosos, mas para auxiliar na renda de suas famílias.
As comédias do poeta que sobreviveram aos nossos dias foram apre-
sentadas em Atenas durante as celebrações a Dionisos que comportavam
concursos dramáticos. As Dionisias Rurais ocorriam em diferentes datas
nos demos da Ática (SIMON, 1983, p.101), de forma que os grupos teatrais
se apresentavam por diversas vezes, atraindo a população local e os habi-
tantes de outras aldeias para as encenações. As Lenaias também atraíam a
população ateniense durante o inverno. Contudo, o maior afluxo de pessoas
ocorria durante as Grandes Dionisias, que atraiam também estrangeiros de
Imagens e representações forjadas por poetas e artesãos gregos: a circulação de ideias
e de signos no Mediterrâneo Antigo 113

outras póleis para as exibições de tragédia, comédia e coros ditirâmbicos.


Pierre Grimal (2002, p. 7) afirma que o teatro, em tempos antigos, era um
meio de ação bastante forte, pois permite a propagação de mentalidades e
ideias de modo muito eficaz e tem caráter fortemente didático, especialmen-
te a tragédia através do processo catártico, que permite aos espectadores
partilhar emoções e piedade, reforçando o espírito comunitário. O gênero
trágico não seria apenas um reflexo dos problemas políades sob o disfarce
do mito, segundo Charles Segal (1994, p. 190-195), mas também tinha o papel
de reproduzir importantes instituições da cidade. A comédia, apesar de não
recorrer aos mitos, também apresenta a realidade da cidade, mesmo que
sob uma faceta carnavalesca, de inversão da ordem. Essas festas dionisíacas
permitiam o contato entre pessoas de diversas partes da Ática e do mundo
grego, pertencentes a diversas camadas sociais, possibilitando a difusão de
valores e o reconhecimento de laços culturais.
Nesse sentido, temos os Mistérios de Elêusis, referidos no Hino Homérico
a Deméter. Durante sua busca pela filha, diz o relato, Deméter foi a Elêusis sob o
disfarce de uma mulher idosa e foi convidada para cuidar do filho recém-nascido
do rei Celeus, Demofonte. A deusa, na intenção de torná-lo imortal, esfregava-
-o com ambrósia e à noite escondia-o no fogo. Todavia, a rainha descobriu o
filho em meio às brasas e se lamentou. Deméter reclama da tolice dos mortais,
incapazes de distinguir o que é bom ou mal e não concede a imortalidade ao
bebê. Ordena que lhe seja erigido na cidade um grande templo, onde ensinará
seus ritos. Dessa forma deu-se a justificativa mítica dos mistérios: a iniciação
não concede a imortalidade, mas as coisas vistas e ditas durante os rituais
asseguram uma existência bem aventurada post mortem.
Na Ática, informa Jean-Pierre Vernant (2006, p. 70), os mistérios de Elêusis
constituíam um conjunto cultual bem delimitado, gozando do apoio das insti-
tuições políticas atenienses para a sua realização, que se dava em duas etapas:
os Pequenos Mistérios, que constituíam a primeira etapa da iniciação a ser
cumprida, ocorriam anualmente durante o mês Anthestérion (aproximadamente
fevereiro) em Agra, um dos demos áticos. Uma série de rituais, tais como jejuns,
purificações, banhos, danças e sacrifícios eram efetuados a fim de preparar o
mýstes para os Grandes Mistérios, que aconteciam durante o mês Boêdromion
e duravam oito dias (setembro-outubro). A participação nos Grandes Mistérios
estava vinculada, assim, ao cumprimento dos rituais dos Pequenos Mistérios,
ao domínio da língua grega e ao fato dos candidatos terem as “mãos puras”, ou
seja, não podiam ter praticado homicídio anteriormente.
Alexandre Carneiro Cerqueira Lima, Marcio Mendes de Lima,
114 Talita Nunes Silva, Mariana Figueiredo Virgolino e Camila Alves Jourdan

Os cultos de Mistério abriam espaço para a escolha pessoal, pois sua ade-
são, ao contrário da religião políade, não era compulsória. O mystés (iniciado)
recebia um “segredo divino”, que promovia a sua aproximação ao outro mundo
e revelava a continuidade entre a vida e a morte (VERNANT, 2006). Após as ce-
lebrações, os iniciados retornavam às suas casas e suas vidas comuns, ainda
comungando dos cultos de sua pólis. Seria após a morte que eles gozariam de
uma existência diferenciada daqueles que não passaram pelos ritos dos misté-
rios. Eram atraentes, pois ofereciam uma intimidade com a esfera divina que
não era possível de ser atingida pela religião políade.
É durante o século V a.C. que o culto em Elêusis difunde-se largamente,
ganhando caráter pan-helênico. É possível relacionar o crescimento do número
de visitantes a Elêusis à Guerra do Peloponeso (431-404 a.C.). O conflito colocou
em questão muitos valores caros aos helenos, e a proximidade com o caos e a
morte pode ter fomentado a procura pelos cultos de mistério, como o de De-
méter. Era ainda um excelente meio de propaganda da política ateniense, pois
a hostilidade que parte da Hélade nutria por Atenas na época não prejudicou o
culto eleusino. A rede de recrutamento existente permitia que todos os anos os
ritos de iniciação fossem executados por pessoas dos mais diversos recantos
da Grécia (DELCOURT, 1992, p. 136-138).
Todavia, os custos para a iniciação em Elêusis eram elevados. No século
IV a.C., por exemplo, os valores chegavam a 15 dracmas, quantia que permitia
uma família modesta viver por quase um mês (DELCOURT, 1992, p. 136). Os
iniciados nos Mistérios de Elêusis podiam até mesmo ser escravos, contanto
que falassem grego e não houvessem cometido crime de sangue, mas não era
qualquer pessoa que poderia economizar ou gastar tanto dinheiro, mesmo
que o fim fosse uma existência bem-aventurada após a morte. Kevin Clinton
(2005, p. 110-120) defende que os Mistérios eleusinos são uma transformação
da cerimônia das Thesmophória. Aspectos diferentes do mito são enfatizados,
e o drama ritual é o centro das cerimônias. Assim, em Elêusis os rituais seriam
uma variação dos ritos a Deméter, e diversas celebrações do tipo ocorreram
em toda a Hélade: Pausânias relata que havia órgias em Celeia (na Sicônia),
Hermione (Argólida), na Messênia36, entre outros lugares.
Destarte, é possível perceber que noções semelhantes sobre os deuses,
seus mitos e os rituais que lhes eram devidos eram compartilhadas por pessoas
de diversas partes da Grécia Antiga, mesmo que celebradas conforme os costu-

36
PAUSANIAS, 1918, 2.12.5; 2.14.1-4; 2.34.10; 4.1.5-9.
Imagens e representações forjadas por poetas e artesãos gregos: a circulação de ideias
e de signos no Mediterrâneo Antigo 115

mes de cada localidade. Existiam diversas maneiras pelas quais esses saberes
podiam circular, como a poesia oral, as festas pan-helênicas e o teatro, entre
outras, de forma a contribuir com a construção e reforço de um sentimento de
identidade comum entre os gregos.

Imagens das astúcias no mar: o herói polýmetis Odisseu

Camila Alves Jourdan37

Neste último item do capítulo, iremos trabalhar com as “representações”


forjadas pelos helenos – poetas e artesãos – acerca do herói Odisseu. Os autores
Marcel Detienne e Jean-Pierre Vernant (2008, p. 30) afirmam que o rei de Ítaca é
“a astúcia feito homem”. A documentação textual, no que concerne à temática
métis,38 nos possibilita compreender a proeminência do herói como o detentor,
por excelência, das habilidades multifacetadas dos ardis. Ao realizarmos a
análise39 da obra homérica Odisséia,40 encontramos duas formas de referência
a métis de Odisseu:41 palavras que o caracterizam e versos que mostram suas
atitudes ardilosas.
Para o primeiro caso, destacamos que as palavras utilizadas para a carac-
terização de Odisseu como detentor da métis são “inventivo” (III, vv. 163 -164;
X, v. 456; XI v. 405), “engenhoso” (III, vv. 163 -164), “ardiloso” (X, vv. 400-401; XI
vv. 60-61; XI vv. 91-92; XXII v. 60), aquele que possui “muitos recursos” (X, vv.
503-504; XVI vv. 166-167; XVIII vv. 311-312), “multi engenhoso” (XIII, vv. 374-375),
aquele que detém “vastos recursos” (XI, vv. 617-618), o que é “prudente” (XVIII,
vv. 311-312) e “experimentado” (XXIV v. 356).

37
Mestranda do Programa de Pós-Graduação em História (PPGH) da Universidade Federal Fluminense e
Pesquisadora do Nereida.
38
A métis é composta de diversos significados que se complementam, como a astúcia da inteligência, a
prudência ardilosa e o pensamento rápido que prevê os desdobramentos das ações. Permanecendo
nas “fendas” de atuação do cotidiano, a métis é um jogo de práticas intelectuais e sociais que se liga à
praticidade das coisas, atuando no improviso refletido (DETIENNE; VERNANT, 2008, p. 10 -11).
39
O método de “grades de leitura” desenvolvido por Françoise Frontisi-Ducroux pressupõe a isolação de
termos referentes ao objeto de estudo. Para cada ocorrência o contexto nos fornecerá, segundo a autora,
duas tipologias de dados. O primeiro consiste no significado do termo, o seu emprego e os sentidos
utilizados; o segundo refere-se a valores que são associados ao termo e que comungam do mesmo âmbito
de representações (FRONTISI-DUCROUX, 1975).
40
HOMERO, 2007, Telemaquia; Regresso; Ítaca.
41
Na obra homérica Odisséia, podemos destacar 23 referências feitas ao ardil, astúcia, artimanhas, sabedoria
e outros símiles usados para caracterizar Odisseu como aquele que faz uso da métis.
Alexandre Carneiro Cerqueira Lima, Marcio Mendes de Lima,
116 Talita Nunes Silva, Mariana Figueiredo Virgolino e Camila Alves Jourdan

Para o segundo caso, destacamos a existência de dez referências que


evidenciam a caracterização do herói como o homem que é multifacetado nos
ardis. Nos versos, podemos encontrar as ideias de que Odisseu se sobrepõe a
outros mortais devido a seus saberes,42 que consegue ludibriar e sair vitorioso
das situações,43 seus mirabolantes planos44 e como aquele que sabia fazer uso
das habilidades astuciosas.45
Ao retomarmos as características da métis, podemos apontar, entre outras
possibilidades, que ela é tomada como o ardil que prevê os desdobramentos
de ações e respostas futuras, a prudência astuta que sabe reconhecer a hora
certa de agir e a inteligência prática que se sobrepõe à força física. Ora, não são
estas as situações que Odisseu vivencia ao longo de sua jornada de retorno a
Ítaca, após a Guerra de Tróia?
Como mostramos, a métis de Odisseu é colocada em ação em situações
diversas. Neste capítulo, optamos por enfatizar a atuação da métis do herói
relacionada ao mar. Como destacam Detienne e Vernant (2008, p. 215), Odisseu
assume as habilidades da arte de pilotar a nau e também de construí-la – como
é o caso do momento em que constrói uma embarcação para ir embora da ilha
de Calipso e a guia para retornar a Ítaca.
No entanto, o momento de maior evidência da métis de Odisseu no mar
ocorre no canto XII da obra Odisséia. Nele podemos divisar a personagem Circe
falando a Odisseu sobre novas situações que encontrará no seu retorno, entre
as quais as sereias (versos 37 ao 56). Odisseu e seus companheiros partem
da ilha Eéia e o herói fala a seus companheiros que precisarão enfrentar as
sereias.46
No transcorrer do canto, Odisseu encontra o local onde estão as sereias
e, rapidamente, põe cera nos ouvidos de seus companheiros enquanto estes o
amarram ao mastro do navio, como havia sido ordenado por Circe. Dessa ma-

42
“Como poderia eu esquecer o divino Odisseu,/superior aos mortais em saber” (I, vv. 65-66).
43
“Em sagacidade nunca ninguém igualou teu/pai. Não havia ardil em que não levasse os louros/da vitória”
(III, vv. 120 -122); “Falou assim para me sondar./Percebi a intenção dele. Não me enganou. Botei/astúcia na
minha resposta” (IX, vv. 280-282); “Só pensava / em vingança. Atena me concederia essa glória? Tive/ uma
idéia”.(IX, vv. 316-318); “Muitos/ planos e enganos eu revolvia na mente, pois o que/ estava em jogo era a
vida”.(IX, vv. 421-423); “Obtuso [o ciclope], não percebeu a artimanha” (IX, v. 442); “Meu coração gargalhava
em/ festa. Meu nome falso o ludibriou”.(IX, vv. 413-414).
44
“Filho/ de Laertes, descendente de Zeus, Odisseu dos planos/ mirabolantes, estou espantado. Tua
imaginação não tem/ limites?” (XI vv.472-475).
45
“Odisseu respondeu com muita sabedoria” (XVIII, v. 365); “Odisseu/ julgou oportuno o momento para
executar o ardil” (XXI vv. 273-274).
46
Od., XII, vv. 158-165.
Imagens e representações forjadas por poetas e artesãos gregos: a circulação de ideias
e de signos no Mediterrâneo Antigo 117

neira, a nau consegue atravessar firmemente o mar e os remadores conduzem


todos à segurança.
Encontramos tal temática representada em vários vasos. Essas imagens
devem ser compreendidas como uma construção abstrata, no qual “Os pintores
se utilizam de elementos e de signos da vida cotidiana, [onde] eles realizam
uma seleção e elaboram algumas representações simbólicas da pólis”. Desse
modo, devemos entender que a circulação desses pintores – viajando, circulando
em diversos grupos sociais, se relacionando com outros artífices – fomentam
múltiplas apropriações e interpretações que são e serão compartilhadas com
a coletividade, ou seja, a construção da imagem não é uma simples reprodução
dos textos. A iconografia possui seus próprios significados, contrários ou não
a documentação textual (LIMA, 2011, p. 37, 38).
Tomando tal possibilidade de compreensão, analisamos duas cenas pre-
sentes em vasos áticos. Para tanto, nos pautaremos na metodologia proposta por
Claude Bérard, as “unidades formais mínimas”.47 Especificamente para a análise
das imagens, escolhemos um método advindo da semiótica que nos ajudará a
perceber “se existem categorias de signos diferentes, se esses diferentes tipos
de signos têm uma especificidade e leis próprias de organização, processos de
significação particulares” (LIMA, 2011, p. 29)
A primeira cena analisada está em uma oenochoé ática de figuras negras
e datada de c. 525-475 a.C..

47
Este método, proposto por Claude Bérard, parte do pressuposto de transformar a “narrativa
imagética” em uma “narrativa textual”. Para tanto, é preciso realizar um levantamento dos
elementos das cenas relacionados aos temas elencados para a pesquisa. Estes elementos
são compreendidos por Bérard como as “unidades formais mínimas”. Podemos entender
tais unidades formais mínimas como sendo elementos comuns usados para construir
certa representação, que hão de permanecer praticamente estáveis e constantes no
transcorrer dos séculos, e que podem ser utensílios ou mobiliário. (LIMA, 2011, p. 15). Ao
articularmos as unidades formais mínimas, é formado o “sintagma”, que por sua vez pode se
articular com outras unidades formais mínimas ou com outros sintagmas. Ao relacionarmos
todos estes elementos que compõem a metodologia de Bérard (1983), é constituída a
“narrativa”, ou seja, a transformação em um conteúdo narrativo que nos permite interpretar a cena.
Alexandre Carneiro Cerqueira Lima, Marcio Mendes de Lima,
118 Talita Nunes Silva, Mariana Figueiredo Virgolino e Camila Alves Jourdan

Figura 9

Figura 9.1
Imagens e representações forjadas por poetas e artesãos gregos: a circulação de ideias
e de signos no Mediterrâneo Antigo 119

A cena foi disposta pelo pintor no vaso de modo a ocupar uma única face
do vaso – o outro lado não contém nenhuma imagem. Do lado esquerdo, têm-se
perfiladas sobre a terra três sereias com instrumentos musicais e, acima delas,
a nomeação de “serens”. Ao lado direito, na embarcação, Odisseu amarrado ao
mastro da nau e seus companheiros remando.
Por meio da metodologia adotada, destacamos a existência de sete “uni-
dades formais mínimas” – as que se remetem a ambientação da cena são: 1) o
conjunto de velas e cordas da embarcação; 2) o aríete situado à frente da nau;
3) parte de terra (rochedo?); 4) seis remos; e as que se referem aos personagens
da cena: 5) quatro remadores; 6) as sereias; e 7) Odisseu.
Alguns dos signos, ou “unidades formais mínimas”, são facilmente com-
preensíveis, tais como a necessidade de um conjunto de cordas e velas para a
navegabilidade da nau (CARTAULT, 2010), assim como os remadores que per-
manecem em fila única impulsionando o barco com seus remos em números
não compatíveis – talvez o pintor do vaso quisesse transmitir ao espectador a
ideia de movimento desses remos. O aríete da embarcação, para além de suas
funções de enfrentamento no mar e de danificar os inimigos, foi representado
como tendo o formato de uma cabeça de javali. Este animal estava relacionado
com a aristocracia, isto é, um símbolo aristocrático. Desse modo, é preciso
lembrar que Odisseu é um basileus (“rei”), ou seja, é um aristós e seu status está,
sobretudo, relacionado à terra e à agricultura. A caça era uma atividade de um
aristós, e o javali um dos principais animais caçados.48
Entretanto, três elementos destacam-se na tessitura da cena: a parte
terrosa, as sereias e Odisseu. No que se refere à terra, ela está no lado mais à
esquerda de toda a cena, mostrando ao espectador que há a existência de dois
meios, o terrestre e o marinho, constituindo a ideia de oposição entre as duas
esferas. Sobre a parte terrosa estão situadas as três sereias da cena. Em posição
perfilada, as três sereias têm sobre elas a nomeação “serens”, e cada uma está
tocando um instrumento musical, fazendo parte do meio de “seduzir” os nautai
(navegantes). Sua representatividade pauta-se nos perigos da navegação. Des-
tarte, são compreendidas como “figuras da morte marinha”, ou seja, as sereias
representam os muitos perigos que podem ser enfrentados pelos navegadores
durante uma viagem (DAYREU, 2000, p. 1208). Do lado oposto, à direita, está

48
O significado do javali em Aristóteles nos mostra que a caça do javali marca bem a andreia (virilidade/
coragem) do jovem aristós. É possível, ainda, associar a representação do javali junto às sereias com
instrumentos e o barco a uma cena de banquete, no qual a embarcação se assemelha a uma kliné; o javali
remete à aristocracia e as sereias aos músicos.
Alexandre Carneiro Cerqueira Lima, Marcio Mendes de Lima,
120 Talita Nunes Silva, Mariana Figueiredo Virgolino e Camila Alves Jourdan

Odisseu amarrado ao mastro e nomeado – “Olyteus”, da direita para a esquer-


da. Seus olhos bem abertos e seu corpo enrijecido mostram-nos que Odisseu
passava por um momento tenso.
Relacionando as “unidades formais mínimas” desta cena, podemos com-
preendê-la como uma representação de parte do Canto XII da obra Odisséia – o
“sintagma”. Ainda devemos ressaltar que a cena não é uma transformação da tradi-
ção oral para o “texto imagético”, visto que o pintor “filtrou” esse saber tradicional
a partir de seus próprios valores e compreensão de mundo (LIMA, 2011, p. 37-38).
Na formação da “narrativa” imagética dessa cena, o que mais se destaca
é a existência de oposições, seja entre a terra e o mar, seja entre as sereias e
Odisseu. Em ambos os casos, isso se dá pela forma de constituição da cena, na
qual o pintor, de um lado, coloca a terra e, de outro, o mar, as sereias opostas a
Odisseu. Se por um lado a terra tem a característica de estabilidade, o mar, por
outro lado, é, sobretudo, o lugar do instável.
A segunda imagem que analisaremos encontra-se em um lécito datado c.
525 -475 a.C., pintado com a técnica de figuras negras com fundo branco, pro-
duzido em Atenas e atribuído ao pintor de Edimburgo, atualmente encontra-se
sob a tutela do Museu Nacional de Atenas.

Figura 10
Imagens e representações forjadas por poetas e artesãos gregos: a circulação de ideias
e de signos no Mediterrâneo Antigo 121

De acordo com a referência da descrição obtida,49 na cena temos Odisseu


amarrado ao mastro (representado como uma coluna), ladeado por duas sereias
que possuem instrumentos musicais – a da direita toca uma lira e a da esquerda
toca um aulós. Elas encontram-se sobre um pequeno rochedo que possui heras
e, de cada lado do herói, podemos observar golfinhos. A ambientação da cena é
dada pela oposição dos rochedos e de heras ao mar (traços próximos aos pés
de Odisseu) e pela presença de dois golfinhos – naturalmente seres marinhos.
Seguindo a metodologia de análise da documentação imagética, po-
demos apontar a existência de quatro “unidades formais mínimas”, que são:
1) Odisseu; 2) duas sereias e seus respectivos instrumentos musicais; 3) dois
golfinhos; 4) rochedos com hera.
Nessa cena, a centralidade dada a Odisseu pelo pintor é enfática, uma
vez que este personagem está localizado no centro de toda a ação empreen-
dida na cena e é o único ser humano existente.50 As sereias que o margeiam e
que representam os perigos encontrados pelos navegantes, mostram o perigo
enfrentado por Odisseu em sua embarcação – mesmo que esta não tenha sido
representada como um todo na cena. O mastro, que se apresenta como uma
coluna, mantém Odisseu ereto e, ao estar amarrado a ele, permite que o herói
ouça o canto das sereias.
Podemos tomar a existência dos golfinhos, nessa cena, de duas formas.
A primeira como demarcador do espaço marinho; a segunda, que acreditamos
ser ainda mais plausível, é de demonstrar a presença do deus Poseidon na
trama da cena. Não temos dúvidas de compreender a cena como referência ao
canto XII da Odisséia.
Assim, os golfinhos, como seres que são tidos como signos que represen-
tam Poseidon – e que estão também relacionados a Nereu e ao mundo marinho
(LIMA, 2010), mostrariam ao receptor da imagem que aquele momento de di-
ficuldade enfrentado por Odisseu possui relação com o deus. E, considerando
a possibilidade de o receptor conhecer a narrativa mítica, saberia que, por
vontade do deus, Odisseu enfrentava dificuldades em seu retorno à ilha de
Ítaca, onde era rei. Logo, os golfinhos são signos relevantes para compreender
a cena e construir a “narrativa” da mesma.

49
Na página virtual do projeto Beazley de catálogo de vasos antigos, havia a descrição do vaso, mas não a
disponibilização da imagem. Esta, por sua vez, foi encontrada, parcialmente, em outro sítio virtual (http://
mithologiai.blogspot.com.br/)
50
Isso difere do outro vaso analisado e de outros exemplares que possuímos conhecimento, no qual também
estão presentes os companheiros de Odisseu, remando na embarcação.
Alexandre Carneiro Cerqueira Lima, Marcio Mendes de Lima,
122 Talita Nunes Silva, Mariana Figueiredo Virgolino e Camila Alves Jourdan

A musicalidade também se faz evidente, uma vez que as sereias envolvem


suas vítimas e as conduzem ao naufrágio a partir de seu canto. Os instrumentos
musicais surgem, aí, como meio de apresentar a existência do canto das sereias
que encantavam seus ouvintes e os levavam para a morte. Com isso, Odisseu
ouve os saberes cantados pelas sereias sem sucumbir a elas. Este ato só é pos-
sível porque ele usa de uma astúcia para superá-las. A métis é então demarcada
nesta cena a partir do ardil usado por Odisseu contra as sereias.
Uma das questões que pode ser abordada a partir da análise das cenas,
e sua comparação com o texto homérico, centra-se na dualidade mar e terra.51
Poder-se-ia questionar se o pintor representou o sólido para conferir um lugar
onde as sereias pudessem ser colocadas. Caso contrário, elas poderiam estar
voando – como ocorre em outra cena – ou apoiadas no barco. Não descartamos
por completo essa possibilidade, no entanto, defendemos a existência de uma
relação entre a literatura do período arcaico e a construção de cenas em vasos.
Hesíodo utiliza a comparação entre terra e mar para valorizar o primeiro;
Sólon usa a metáfora naval para aludir à situação de caos e “deriva” em que
Atenas se encontrava; Semônides aponta a existência da mulher-mar como um
tipo de mulher volúvel. O mar tem o caráter do inconstante, do ambivalente
(VIEIRA, 2005, 2011). Assim, a terra é a segurança em Hesíodo e o mar a insegu-
rança; a stásys políade é o “desgoverno” da embarcação em Sólon; a mulher que
deveria ser a reclusa na tipologia ideal torna-se voluntariosa quando comparada
ao mar em Semônides.
Acreditamos que isso também possa ser visto na imagética helênica, na
qual existem comparações e modelos para a formulação de sintagmas. Dessa
maneira, opôr terra e mar é muito mais do que informar ao receptor da ima-
gem que a cena se desenvolve em um ou em outro lugar. Significa demarcar a
ambiguidade existente entre esses dois lugares, estando inserido no conjunto
de valores e ideias disseminados entre os helenos: enquanto valoriza a fixidez
terrestre, desvaloriza a fluidez da água. E é neste contexto que a métis é ne-
cessária e desenvolve-se, nos momentos de instabilidades, de “contato com
o mar”. As cenas analisadas aqui evidenciam o ardil de Odisseu que se coloca
no terreno do ambíguo, do instável, do volúvel, do confronto entre mar e terra.
O herói que possui muitas artimanhas lança-se a mais uma: escutar o
canto das sereias que lhe conta muitos saberes. Não há um signo referente à

51
Notamos que em outras cenas é possível ver a representação do ambiente marítimo sem que o pintor
recorresse ao uso do signo “terra/rocha”. Outros signos são, então, adotados para que a referência ao mar
se torne evidente.
Imagens e representações forjadas por poetas e artesãos gregos: a circulação de ideias
e de signos no Mediterrâneo Antigo 123

métis, pois, como já mostramos, ela atua nas “fendas” das ações. No entanto,
sabemos que a façanha de Odisseu só foi possível graças ao engano que tramou
– indicado por Circe –, ou seja, pelo uso da astúcia.
Concebemos, portanto, que na imagética a métis centra-se exclusivamente
em Odisseu, desconsiderando a participação de Circe para o desenvolvimento e
a superação das sereias.52 Aqui, os pintores fizeram suas escolhas, selecionaram
aquilo que desejavam, enfatizando a figura polýmetis de Odisseu. Na documen-
tação textual, há uma dualidade da métis: a astúcia do planejar a ação, de Circe,
e a artimanha do agir, de Odisseu; somente pela junção dessas “duas métis” é
que ocorre a superação das sereias, permitindo que a nau de Odisseu passasse
incólume por elas.
A “circulação” de representações forjadas tanto por poetas quanto por
artesãos continua sendo um campo rico de investigações entre historiadores
e pesquisadores de sociedades antigas. O Mediterrâneo Ocidental, desde o
período arcaico, foi palco de uma intensa troca cultural. Gregos e etruscos
puderam “comercializar” produtos, ideias e representações diversas. Nós pes-
quisadores do Nereida buscamos, neste texto, contribuir para o debate acerca
das transferências e assimilações culturais.

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52
No canto XII, é Circe quem fala a Odisseu sobre as dificuldades que ele e seus companheiros enfrentarão.
Nessa passagem, podemos compreender que inicialmente o ardil é de Circe, pois esta diz como o herói
deverá agir quando encontrar com as sereias. Somente quando ocorre tal encontro é que Odisseu usa
sua métis, ao colocar o que foi planejado em ação.
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PRIMEIRA EDITORA NEUTRA EM CARBONO DO BRASIL

Título conferido pela OSCIP PRIMA (www.prima.org.br)


após a implementação de um Programa Socioambiental
com vistas à ecoeficiência e ao plantio de árvores referentes
à neutralização das emissões dos GEE´s – Gases do Efeito Estufa.

Este livro foi composto na fonte ITC Cheltenham Std, corpo 11


impresso na Globalprint Gráfica e Editora Ltda.,
em papel Off-set 75g. (miolo) e Cartão Supremo 250g (capa)
produzido em harmonia com o meio ambiente.
Esta edição foi impressa em 2013.

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