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Processo é tudo o que Pisho Xodô- A

escrita como ato quis revelar. Mais do que a


busca por objetos finais que mostrassem o en-
contro entre pixadores e calígrafos do shodô,
as escolhas da mostra, a forma de realizar a
abertura, a oficina e o debate privilegiaram a
duração deste encontro.
O corte transversal da proposta que nós fi-
zemos para aproximar essas linguagens, foi
abraçada e construída pelas pessoas que fa-
zem da Casa das Rosas uma instituição dedi-
cada à palavra poética e por Gabriel Kerhart,
Rafael Miyashiro, Monica J. Terada, Reinaldo
Daniel, Lissa Sakajiri, pelos colaboradores do
projeto e por todos os participantes que divi-
diram a experiência de olhar além da tradição,
das convenções sociais e do isolamento do
conhecimento, para generosamente trocar vi-
sões de mundo e experiências que se revelam
através do ato da escrita.
Parte do material, fruto do encontro, está aqui
como registro e como propulsor da vontade
de conhecer o outro, ou melhor, de reconhe-
cer o familiar no diferente e de tornar estranho
aquilo que é sabido.
Dez pessoas, dez opiniões.

Juliana Kase e Cadós Sanchez

Exorc... – Yume (sonho) – Exorcity, 2016


Gabriel Kerhart, Monica J. Terada, Reinaldo Daniel
Parede com pesquisa e trabalhos para a mostra Pisho Xodô - A escrita como ato
O PROCESSO DE CONSTRUÇÃO DE UM PROJETO De conversas com muitas pessoas, os que abraçaram a possibilidade de
aproximar escritas que costumam estar circunscritas em âmbitos inconciliáveis,
Juliana Kase e Cadós Sanchez sobrepujando o febril ritmo da vida na cidade de São Paulo, as distâncias e os
preconceitos foram Gabriel Kerhart, Rafael Miyashiro, Monica Terada e Reinaldo
Em 27 de setembro de 2014, eu e Cadós assistíamos a demostração de Daniel de Souza, Rei.
shodô que encerra todos os anos a Exposição de Caligrafia Japonesa, que estava Em um dos encontros que surgiram do projeto, Monica tirou de sua pasta
na sua 35a edição. Durante a performance dos praticantes de shodô, pertencentes um trabalho em shodô que dizia 十人十色, foneticamente jyu nin to iro, dez pessoas
a diversos grupos que atuam no Brasil, em especial a expressiva gestualidade da dez cores, ou seja, cada pessoa possui uma experiência, opiniões e visões de mun-
sensei Etsuko Ishikawa e a grafia dos ideogramas ancestrais pelo experiente sensei do que não se repetem. O provérbio japonês caiu como uma luva para traduzir o
Joku Wakamatsu, conversávamos sobre as impressões que a escrita suscitava. Essas sentimento da proposta de aproximar as expressões escritas do pixo e do shodô. E
impressões só eram possíveis pelos anos de experiência de arte na rua de Cadós hoje, 21 de março de 2016, quando o país aparece tão polarizado e intolerante ao
e os anos de minha experiência com instalações e trabalhos para lugares especí- universo singular de cada indivíduo, ele ganha a sabedoria poética que só pode se
ficos e algumas parcas tentativas com shodô. A grafia que víamos se desenvolver apreender, mas não se pode ensinar.
naquele momento não era só letra, mãos, olhos e cérebro, era também ato, síntese A pixação e a caligrafia japonesa foram originadas em condições sociais
de uma experiência. Ato do corpo em movimento, da duração do movimento, do e históricas quase antagônicas. A primeira, talvez a manifestação mais radical no
espaço entre os elementos grafados e dos elementos com o papel, ato da intensi- e do espaço urbano, se desenvolveu exponencialmente ao passo do crescimento
dade e do vigor individual, ato da matéria, da poesia, da arte que não se despren- das grandes cidades e das condições sociais desiguais das metrópoles, podendo
de da experiência de viver, do entendimento de todos os elementos da escrita de se ressaltar a grafia muito particular que surgiu em São Paulo a partir dos 1980. A
modo tão singular e expresso de forma particular, irrepetível, incorrigível. Todas segunda, primordialmente influenciada pela escrita chinesa, levada ao Japão por
essas observações não se referiam apenas à tradicional caligrafia milenar japonesa, monges budistas a partir do século VI, se desenvolveu em âmbito da nobreza e
mas também à grafia urbana contemporânea, a pixação. Haveria concepções e de classes em situação privilegiada, tendo atualmente alguns princípios difundi-
visões entre ambas que poderiam ser compartilhadas ou seria uma idiossincrasia a dos no currículo escolar no país. A despeito de suas diferenças originárias, ambas
dois? caligrafias resvalam em questões mais amplas e mais profundas que a forma. Para
O acolhimento da Casa das Rosas em São Paulo, foi a primeira confirmação olhar essas escritas é necessário um olhar-além-objeto e acompanhar o traço, que
de que a ideia poderia se desenvolver em projeto, principalmente pela pessoa a permanece pulsante, do movimento, do sentimento e da experiência de vida que
compartilhar do nosso vislumbre ainda em 2014, a educadora Luciana Felix, que o gerou.
percebeu como a ideia poderia contribuir com a pesquisa sobre a palavra e a lin- Diante da lacuna no provérbio japonês caligrafado por Monica, Gabriel
guagem escrita da instituição, que também guarda o nome Espaço Haroldo de inseriu, perspicazmente, no lugar ocupado pelo 人, pessoa, o i de Exorcity – um
Campos de Poesia e Literatura. Após o acolhimento receptivo da equipe da Casa, rosto, que sintetiza toda a palavra. Assim, a letra não só ganhou uma nova forma
começamos a contatar pixadores e calígrafos do shodô, que mostravam através do antropomórfica, um novo ideograma em associação aos demais, mas conferiu um
seu trabalho um interesse profundo pela letra, pelo ato da escrita e uma possibili- peso visual associado ao 色, colocando ritmo aos dois 十.
dade de diálogo um com o outro.

PARA ALÉM DO OBJETO, A TEMPORALIDADE DA ESCRITA

É um desperdício, senão um engano, olhar para a pixação e para o shodô


com um olhar sobre o que eles sejam, isto porque a partir da compreensão de
tempo de ambos só há o estar. Tudo é mais efêmero nessas expressões, nada “é”
por muito tempo1. Essa noção temporal pode ser observada na própria atitude não
conservacionista do que se produz, na contramão da arte feita para o museu. Seja
parede ou papel, a atitude que parece aceitar o mundo movente, mostra a ciência
de que nenhum ato individual perdura, mas a ação de uma coletividade, de vários
sujeitos produzindo em um determinado tempo histórico talvez.
Apesar da hierarquia e a possível vaidade que aflora nessa condição, pode
se dizer que a maior herança do shodô é imaterial, ou seja, passar o conhecimento
para outra pessoa. O valor do saber-fazer está presente na cultura japonesa em
vários aspectos da vida cotidiana e é visto em ações distintas como a reconstrução
periódica do templo Ise Jingu, desconstruído e reconstruído a cada 20 anos, há
1300 anos. Por vezes não se sabe, ou não se reflete, que os pixos mais recorrentes
na cidade são feitos não por um indivíduo, mas por um grupo de pessoas que pi-
xam o mesmo nome. Independentemente do bairro onde habitam ou da entrada e
saída de uma pessoa da turma, há nomes que se desenvolvem nas ruas há mais de
duas décadas. A estratégia coletiva, vence a escala urbana e o apagamento insis-
tente, realizado pelos órgãos gestores da cidade, sendo antes o exercício de uma
coletividade.
A noção anti-perene também está condensada no próprio ato da escrita.
Em ambos não se corrige os traços. O gesto é síntese de um preparo anterior. Os
traços realizados com o pincel no shodô ou com o spray e o rolinho na pixação
evidenciam o movimento do corpo que o grafou. Obviamente, a consciência cor-
poral no espaço é indispensável. Seja andando sobre ou percorrendo uma folha de
papel, seja escalando ou tateando uma parede, há uma compreensão de espaço
que é coisa física tanto quanto mental.

1 há uma expressão japonesa 一期一会 ichi-go ichi-e, um período, um encontro. Habitualmente rela-
cionada aos princípios da cerimônia de chá, que tem como mestre Sen no Rikyu do século XVI, ela se
Dez pessoas dez cores, Monica J. Terada e Gabriel Kerhart, 2016 fundamenta na transitoriedade zen budista e lembra que um encontro é único e não volta a se repetir.
foto: Juliana Kase Mesmo que as mesmas pessoas voltem a se encontrar, a ocasião nunca é a mesma. Panta rei, tudo flui,
como disse Heráclito.
A escrita-corpo no pixo muitas vezes utiliza vários corpos para grafar uma PARA ALÉM DO OBJETO, A ESPACIALIDADE PRENHE DE TEMPO
palavra, com os pés nas costas, por exemplo, ou na emblemática ação conjunta que
durou oito horas, com cinco turmas de pixação - Porões, Dominios, Viela13, Je e A noção de espaço para o shodô e para a pixação não é um grau zero.
Exorcity- para pintar as iniciais OS+IM, da griff Os + Imundos, na fachada do prédio Papel e parede não são suportes equivalentes a um fundo neutro onde a letra pode
localizado à Rua dos Timbiras, centro de São Paulo em 2009. Na escrita-corpo do se destacar. No pixo, a cidade é que recebe a letra e isso inevitavelmente levanta
shodô o praticante logo nota que tentar escrever somente com a mão e o punho é debates sociais, confrontos entre diferentes concepções de público/privado, de
um equívoco. Uma única tentativa em qualquer uma dessas escritas revela a neces- cultura e de arte. O muro privado em seu lado público recebe a tinta e mostra quão
sidade de perceber o corpo em sentido ampliado e o posicionamento intuitivo da fina é a camada que divide essas esferas. No shodô, o espaço é tão importante
postura em relação ao espaço e aos instrumentos de caligrafia. Esse entendimento, quanto a tinta preta. A idéia de que o branco ou o invisível é nulo, vazio, não existe
no entanto, deriva da prática. na cultura japonesa. O que não é visível na verdade coincide com o que é muito
valorizado*1, no Japão o que tem valor é recôndito. O antagonismo figura/fundo,
tradicional nas artes visuais de tradição européia, perde assim valor, já que não há
fundo neutro, há uma relação dinâmica e interdependente entre os elementos. Não
é possível falar de pixação e de shodô sem atentar para o contexto e as noções
espaço-temporais que as constituem. O calígrafo atento desenha com o suporte
que é ao mesmo tempo social, plástico e ontológico no shodô e na pixação.
Dois exemplos. Os poucos centímetros do papel deixados sem tinta no
trabalho de Morimoto sensei em que ele escreve a palavra 無“mu”, o nada zen-bu-
dista, revelam a potência do vazio. Eles testemunham que a negritude do papel ad-
vém da tinta, que foi conduzida pelo papel mesmo após o gesto terminado. A tinta
sedimentada no fino papel por sua vez, aponta para esse percurso fluido iniciado
pelo movimento e pelos traços que compõe a palavra無. Nas intervenções urbanas
de Zero hum, os elementos arquitetônicos e os espaços também escrevem como as
letras, ela parece ressaltar mais o entorno do que sobrepô-lo, o que torna a relação
entre grafia e cidade entrelaçada ao ponto dos limites de ambas se perderem de
vista.

Os + Imundos, Porões, Dominios, Viela13, Je e Exorcity, 1 Para mais sobre o assunto ver sobre o conceito de 奥“oku”, o interior, o fundo de um lugar como a
Rua dos Timbiras, São Paulo, 2009 casa e também do coração.
無, Mu, Morimoto sensei
itijisho, 61x91cm
PARA ALÉM DO OBJETO, O SABER-FAZER, O SABER-OLHAR

Com toda a natureza não objetual do pixo e do shodô e os encontros em
andamento, realizados desde o começo de 2016, decidimos para a mostra privi-
legiar o processo e focar no que foi produzido nos encontros através de vídeos,
originais e fotos. No dia da montagem na Casa das Rosas, um dos trabalhos fixados
temporariamente no painel para visualização caiu no vão, entre o painel e a mesa
expositora, fixa. Se o fato ocorrera em um contexto aurático de arte1, se constituiria
um problema de difícil resolução. Mas a solução partiu da oportuna presença de
Monica, que havia feito o trabalho ‘perdido’ . Fazer outro.
“O que importa no shodô não é o shodô. O que importa no pixo não é o
pixo.” Assim escreveu Gabriel no pixo realizado na rua e transmitido ao vivo para a
Casa das Rosas, na abertura do evento no dia 5 de abril de 2016.
Em conversa com Mitty Nakamura, educadora do espaço, sucessora de
Luciana Felix, que já não trabalhava mais ali, ela me relatou que as pessoas per-
guntavam sobre o por quê da aproximação. O que poderia apontar era apenas a
importância do como e do onde e dos por quês. Não se pode dizer que o pixo
e o shodô sejam narrativos, mas a apreciação dessas escritas são conduzidas em
uma duração que está sintetizada na imagem escrita. Como não objetuais, o que
importa na letra é aquilo à que remete, seja o movimento, o tempo, o espaço, o
sentimento, a experiência de vida condensada em gesto no momento da escrita ou
todos os elementos juntos, pois não se separam. De fato, há uma busca de simbio-
se entre todos os elementos que compõe essas escritas. Como há uma busca de
Zero1, bairro da Liberdade, São Paulo, 2016 diálogo na aproximação anacrônica em Pisho Xodô.
Dez pessoas dez opiniões. Nem por isso a convivência é impossível.

1 O termo se refere ao texto “A obra de arte na era da sua reprodutibilidade técnica” de


Walter Benjamin
Pisho Xodô, oficina, Casa das Rosas, São Paulo, 2016
uma escrita que não quer dizer

julio mendonça

na escrita interessa o que não é escrita, diria o signatari. a cultura ocidental é marca-
da por oposições excludentes e antíteses esquizofrênicas e uma das mais decisivas
delas é a que se deu e se dá entre escrita e imagem. a natureza motivada, icônica e não linear da escrita ideogrâmica permite uma escri-
o exercício escolar padronizado estendeu o acesso à prática letrada para uma par- ta mais sensível, concreta e multidirecional que, (re)descoberta por artistas e poetas
cela muito maior da população, ao mesmo tempo que disseminou uma visão lo- ocidentais, contribuiu para dar novas formas ao signo icônico, reprimido na escrita
gocêntrica que só encontra resistência na cultura popular e entre artistas e poetas. ocidental – isto é, aquilo que em nossa cultura letrada se convencionou chamar de
somos adestrados, de maneira complementar, para o trabalho – que “nos dignifi- “o indizível” (ou “inefável”). “indizível” porque não pode ser expresso (apenas) por
ca” – e para a escrita – que passamos a considerar o repositório último e necessário palavras.
do sentido. a cultura oriental desenvolveu essa milenar e maravilhosa tradição – uma tradição
eric e. havelock, no seu grande livro a revolução da escrita na grécia, observa que que inclui e [até onde conheço] não reprime a experimentação – da escrita intima-
a invenção da escrita trouxe uma condição física, material, para a linguagem, mas mente associada à imagem, que podemos observar na arte caligráfica e na pintura
logo depois, na própria grécia antiga, constata-se um crescente intelectualismo: chinesas e japonesas e na arte caligráfica árabe. a partir do final do séc. XIX, a arte
e a poesia experimentais do ocidente passaram a beber dessa outra fonte (dessa
“um discurso escrito vem a ser separado daquele que o pronunciou, e assim tam- outra bolha).
bém o conteúdo das declarações feitas. estas vêm a ser objetivadas como pensa- a poesia experimental brasileira – principalmente, a poesia concreta – estudando
mentos, idéias, noções que têm existência própria.” e questionando essas duas diferentes tradições, passou a explorar os caminhos da
verbivocovisualidade e da intersemiose. uma poesia de misturas, de hibridismos,
desta forma, havelock flagra na grécia do séc. V o surgimento da tendência oci- que tem transitado entre uma linguagem de leitura rápida e instantânea como num
dental à abstração e ao logocentrismo. foi preciso que, no ocidente, voltássemos a cartaz e a (i)legibilidade de alguns experimentos intersemióticos. entre a ortogo-
observar os aspectos físicos e materiais da escrita, estudar a história de suas trans- nalidade construtivista e a informalidade e o brutalismo de muitos experimentos
formações e comparar com a história da escrita em outras culturas – notadamente, caligráficos.
na cultura oriental – para que pudéssemos começar a por a cabeça fora de nossa para a experimentação poética pós-concreta, esse caminho inclui não só a pesquisa
bolha. dos suportes materiais de uma escrita que não se quer apenas mensagem/sentido,
a tendência ocidental à abstração e, consequentemente, ao logocentrismo, tem mas também uma relação direta, física, da linguagem com o corpo – uma dimensão
origem na realidade física de organização de sua escrita: a natureza arbitrária, con- performática de uma escrita que é mais/menos que escrita. uma escrita que não
vencional e linear dos elementos básicos da escrita alfabética. o desenvolvimento quer dizer. na escrita interessa o que está depoisagorantes do seu escreviver. uma
da lingüística e da semiótica, a pesquisa histórica comparada sobre as transforma- excrita que (in)diz.
ções materiais da escrita e sua confrontação com a cultura oral e o advento das
experimentações na poesia moderna ocidental lançaram luz sobre outras formas de
escrita no oriente, principalmente o ideograma chinês.
初Hatsu (A primeira vez) e a letra "A", Andre Luis Vieira
瑞氣集門 zui ki shu mon (boas energias que se avizinham), Monica J. Terada
realizados durante a abertura de Pisho Xodô, Casa das Rosas, São Paulo, 2016
Transmissão ao vivo de pixação realizada durante a abertura de Pisho Xodô,
Casa das Rosas, São Paulo, 2016
Sobre a caligrafia japonesa, o corpo e a expressão

Rafael Miyashiro

1.
No Ocidente, a caligrafia é vista como a prática de uma escrita bonita – di-
retamente ligada à origem da palavra grega, que une κάλλος kalli (beleza) e
γραφή graphẽ (escrita). A caligrafia japonesa, no entanto, vai além da escrita bela.
Isso porque no Oriente, na China e Japão, por exemplo, a escrita é vista como
uma arte refinada, capaz de revelar a presença, força e personalidade de quem
a escreve, o que exige mais que a habilidade técnica de uma escrita harmoniosa.
Fuyubi Nakamura (2006) cita cinco palavras1 que se relacionam à caligrafia japone-
sa, o que mostra também usos distintos a cada uma delas, podendo estar ligadas
ao contexto educacional, religioso ou artístico. No Brasil, as que mais se usam são
shodô, sho e shuji. Embora vários imigrantes japoneses relacionem a caligrafia ja-
ponesa a shuji, que se refere ao aprendizado correto do ideograma, o que lembra
a caligrafia escolar ocidental, no Brasil, shodô é o termo mais conhecido. Formado
pelos ideogramas sho, escrita, e dô, caminho, ou ‘caminho da escrita’ – é uma das
‘artes do caminho’2. Por ter influência zen, o shodô apresenta características como
a experiência do momento presente, o dinamismo e a relação com o espaço (West-
geest, 1997). O presente é valorizado no instante em que se faz a caligrafia, pois o
shodô não permite o retoque, e pede concentração e atenção. O dinamismo afasta
o dualismo presente no Ocidente, propondo unidade entre a escrita e o calígrafo,
o calígrafo e o espaço, a linha e espaço a ser ativado por ela3. Da mesma forma, o
espaço na cultura nipônica tem uma peculiaridade japonesa, o que pode ser visto
no ma, que faz referência a intervalos de tempo, espaço e espaço-tempo, e está
presente nas artes, na arquitetura e no cotidiano, podendo indicar potencialidade
artística4.
Sho tem conotação artística e expressiva, e está ligado ao movimento da caligrafia
moderna no Pós-Guerra no Japão, que buscava novas formas de expressão e que-
ria se desvincular do que considerava uma caligrafia tradicional estagnada. Por isso
denominaram o que faziam como sho, um contraponto ao shodô, fomentando uma
caligrafia na qual a expressividade e a autoria eram mais importantes que a

1 shodô, sho, shuji, shosha e shohô.


2 Práticas que tem influências do zen budismo, como ikebana, sumie e karate.
3 Christine Flint Sato (1999, p.55) diz: “o calígrafo, encarando o branco da página, antes de escrever,
não se pergunta como vai preenchê-lo, mas qual a melhor forma de ativá-lo”. Monica J. Terada, demostração de shodô durante a
4 Ver Okano (2007). abertura de Pisho Xodô, Casa das Rosas, São Paulo, 2016
legibilidade. Vale observar, no entanto, que o sho parece ser mais um desdobra- pois foi o registro desse momento em que a palavra e a vida se misturaram e se
mento moderno do shodô, já que partilha a sua essência – a história e a vivência entrelaçaram, tornando algo único, numa realidade transcendente, tal qual Morita
da caligrafia, seus textos clássicos e filosofia. Nesse sentido, sho e shodô estão Shiryû descreveu, se referindo ao sho:
próximos, mas distantes da caligrafia no contexto educacional, mais ligado ao shuji.
As palavras shodô, shuji e sho demonstram que a caligrafia japonesa tem suas Sho é a escrita dos ideogramas num movimento único, sem retoque. [...] quando o

especificidades, e que falar de caligrafia japonesa requer, antes, perguntar de qual próprio ser emerge com o ideograma e é identificado com o movimento da mão e

caligrafia estamos falando. Uma prática não é melhor que a outra: são apenas es- do corpo, o sho transborda. [...] isto é sho…
Um movimento único e sem volta, que assimila e absorve tudo – ideograma, pincel,
colhas que marcam o percurso de cada um e canalizam seus interesses, objetivos
papel, espaço – em si mesmo… Quando o movimento, que é a convergência de
e afeições.
todas as forças numa única execução, vem à tona, e mais, quando ele é transcen-
dido, e eu, ideograma, pincel, papel, forma, ritmo, tempo, espaço, minha mente,
enfim, quando tudo foi transcendido, tudo existe como um. Neste momento, nada
me segura e eu posso ser eu mesmo (HOLMBERG, 1998).

‘Ser eu mesmo’, por meio da caligrafia, soa zen: não há dicotomia sujeito e objeto.
Isso não acontece sempre – por vezes falta comprometimento, tempo, intimidade,
Lissa Sakajiri, demostração de shodô durante a abertura de Pisho Xodô, e tantas outras coisas que se impõem na nossa vida. A descrição de Morita Shiryû
Casa das Rosas, São Paulo, 2016
não diz respeito a algo que deve ser buscado (no zen o mais importante é o meio, e
2. não o fim), mas, sim, vivenciado – a cada ato de caligrafar, seja nos treinamentos, no
No universo da escrita, a palavra media a comunicação – tanto em situações que aprendizado técnico, na experimentação e na produção artística. ‘Ser eu mesmo’,
requerem clareza, rapidez e eficiência, como naquelas em que seu conteúdo é am- por outro lado, também, requer reconhecer e explorar a subjetividade de cada um,
bíguo e aberto à interpretações. Essa mediação é expressa, visualmente, no que é tecendo relações com as coisas e pessoas ao seu redor. São coisas que potencia-
o próprio ‘corpo’ da palavra ou dos ideogramas, por meio de atributos que lhe dão lizarão a caligrafia japonesa praticada – seja ela um sho ou um shodô – e que trarão
forma e identidade, que podem mostrar beleza, poder ou simplicidade. No caso da caligrafias únicas, singulares e cheias de vida.
caligrafia japonesa, esse corpo belo, poderoso ou simples, pode revelar um outro
corpo, escondido, que é aquele que, com seu sopro, por meio dos seus gestos, cria
a palavra no ato da caligrafia japonesa. Referências bibliográficas
No contexto do sho ou shodô, esse ato envolve o calígrafo, sua realidade psicofísica
HOLMBERG, R. Dragon knows dragon. (Tese de doutorado). Art History Department, Boston University,
e afetiva, os materiais e suas propriedades, o ambiente, a história da escrita, entre
Boston, Estados Unidos, 1998.
outros. Toda essa complexidade se revela por meio da linha, considerada, no shodô MIYASHIRO, R.T. Entre tempos: a criação artística da caligrafia japonesa (Dissertação de mestrado em
e no sho, algo profundo, capaz de revelar a pessoa que a escreveu. Anos atrás, um Artes), Instituto de Artes, UNICAMP, Campinas, Brasil, 2009.
sensei de caligrafia japonesa, reconhecido internacionalmente, ao ver o ideograma NAKAMURA, F. Creating new forms of “Visualized” Words: An study of Contemporary Japanese Calli-
graphy (Tese de Doutorado em Antropologia Visual), University of Oxford, Oxford, Inglaterra, 2006.
‘boi’ que eu tinha escrito, com traços que aparentavam trazer vida e força ao meu
OKANO, M. Ma, entre espaço da comunicação: Um estudo acerca dos diálogos entre Oriente e Oci-
boi, disse que era um boi triste. Durante muito tempo guardei isso para mim: como
dente (Tese de Doutorado em Comunicação e Semiótica), Pontifícia Universidade Católica, São Paulo,
poderia alguém saber que, por trás daquele boi cheio de traços expressivos, se es- Brasil, 2007.
condia o momento de tristeza sob o qual foi gerado? (E o que era mais admirável, SATO, C. F. Japanese Calligraphy: The Art of Line and Space. Osaka, Mitsuru Sakui, Kaifusha Co, 1999.
como alguém poderia saber isso simplesmente olhando a caligrafia?). O boi triste, WESTGEEST, H. Zen in the fifties: interaction in art between East and West. Zwolle, Waanders Uitgevers,
1997.
nesse caso, revelava mais do que a aparência (‘um simples trabalho de caligrafia’),
Pisho Xodô, vista da exposição, Casa das Rosas, São Paulo, 2016
pixar é humano1
da questão: a poesia pintou à frente ñ só nos livros, mas a duras tintas &
poesia concreta é poesia visual para cegos2 através dos muros. interessa a materialidade das palavras experienciadas
através desta estranha grafia q se projeta em espaço urbano & se propa-
pra q tanto sangue? ga em escala humana, q monta palavras como totens q o olho apalpa &
antes aumentar a produção d tinta!3
q parece transfigurar todas as palavras em poemas, sem facilitar a leitura.
eu vou buscar no pixo (...)
um oriente ao oriente do oriente4 depois d pixar muito concreto veio d presente 1 livro d poesia concre-
ta: relação q incomoda os defensores da muralha & dos bons tapumes. xxxxxxxx
a grande muralha da especialização dificulta a interação entre ≠s realidades: re-
TRANSPIXAÇÃO dundância no sistema: baixa informação: repressão da transa entre linguagens &
gabriel kerhart linguagens são tramas d transformação da percepção humana.
exortara 1 cadeia d signos
quando rei & eu pixamos a frase & eu errei1: o q interessa no pixo ñ é o pixo
/ o q interessa no shodō ñ é o shodō, estávamos querendo assinalar q a não-disci-
toda pixação desencadeia 1 lance d tato & se equilibra na linha tênue plina é indispensável para a sobrevivência & renovação dos ≠s sistemas sígnicos.
entre caligrafia & pintura (pictografia), entre legalidade & ilegalidade espacialização X especialização. assim assassinar a representação & assinar 1 nova
(marginal), entre código & mensagem (criptografia). se comunica era dentro da gente:
através do incomunicável, desenvolve a legibilidade dentro da ilegibi-
lidade. é, à risca, aquela q ñ se ajusta aos ideais restauradores d cultura, ñ é regra, a história do exorcity, como em 1 progressão geométrica fractal, remonta
é exceção & por definição se destina a fornecer informação ñ usual, informação a história da escrita. se, por 1 economia d traços, a letra triangular da turma,
nova, signo novo na quebrada. o signo novo atropela a legislação vigente. & por metamorfoseada em letra redonda, remonta a transformação do quadrado
estas & outras q a pixação divide opiniões. d 1 lado os aduladores & d outro os q a romano em carolíngio. também em relação fractal, a crise da representação no
odeiam. d 1 lado, 1 classe artística disposta a arrancar todas as lascas possíveis do pixo do séc. xx–xxi remonta a crise da representação na arte do séc. xix–xx.
pixo & a todo custo. d outro, 1 parcela conservadora da sociedade, pautada pelo
senso comum, guiada por 1 ideia fixa & d louvor à propriedade privada, q repudia enrascada exemplar 1 - exorcity: cantigas d escárnio
veementemente essa exprayação. enquanto uns se apossariam até do 1º rabisco da
mulher das cavernas, outros estão sempre a reboco da istóriah, neste interregno, 物語: certa vez deu maldizer numa aula d língua portuguesa ao pixar 1
fazer o q? exorcity no cabeçalho da prova sobre cantigas d escárnio. a professora perspicaz ao
: muros são túmulos, merecem epitáfios. visualizar aquela enigmática inscrição deduziu quem pixara sua casa. o q era pra ser
só 1 prova-teste virou 1 fornecimento d provas incriminatórias.
& pixação & tato & linha & caligrafia & pintura & pictografia & legalidade &
ilegalidade & marginalidade & código & mensagem & criptografia & comunicação re-apresentação x re-presentação
& contracomunicação & legibilidade & ilegibilidade & ideais & cultura & regra &
exceção & informação & signo & lascas & sociedade & exprayação & rabisco & só interessere o q ñ é meu (oa/dp): se duchamp escandalizou o pensamen-
mulher & cavernas & istóriah & interregno &xorcity, tudo isto tem a ver com poesia: to pictórico d sua época ao pixar no alvo mictório sua quase-turma, r. mutt, o q dirá
violência organizada contra a língua (hc). o mercado imobiliário d 1 pixador q assina 1 muro, 1 av. inteira, 1 cidade. a pixação
bebeu da fonte dadá (?), tatuou & tomou para si o q nunca foi dado: são paulo:
1- edimilson marcena d oliveira (1975-1997). terra d arranhacéu.
2 - sampaio sensei
3 - mantive os versos na versão q minha memória distorcera. os versos corretos, do poema: a sierguéi
iessiênin d vladmir maiakovski, na tradução d haroldo d campos, são: para q / aumentar / o rol d suici- 1 - fraseado baseado no poema interessere d décio pignatari. no nervosismo da ação modificamos a
das? / antes / aumentar / a produção d tinta! sintaxe parafraseando a estrutura, q seria: no pixo interessa o q não é pixo, no shodō interessa o q não
4 - paráfrase álvaro d campos in opiário é shodō; erros corretos?
Sho (Escrita) e Exorcity, Monica J. Terada e Reinaldo Daniel
saída de pixo, São Paulo, 2016
marcel expandido em novas escalas & escaladas, injetan- 1 exemplo ainda + complexo d simplificação é o kanji 馬, ‘uma’:
do na circulação sangüínea da city o antídoto contra o prédio: kanji-cavalo: cavá-lo:
obsessivas assassinaturas re-apresentando o vazio: a representação já era: pixo é
risco.

repetição x representação

u: a mutação se esconde na repetição (dp): a exaustiva repetição perfaz


& rarefaz a representação: transfiguração: os traços & suas qualidades
agora 1 ex.: ocidental: o ‘i’ do alfabeto latino não é assIm desde o in-
finalmente são identificados como informação principal. & informação
ício. não. ele é 1 código q já foi símbolo. 1 letra q vem do desenho. é resultado
principal é inimitável. cada exorcity é 1 universo em crise. ≠s pessoas
metamórfico d seu tataravô fenício, o yod q representa a mão vergada sobre o pul-
fazendo o mesmo letreiro (imitável, difícil d imitar, mas imitável). o olhar + atento
so pérvio d xerxes, o rei da pérsia: . os gregos, polidos q são, helenizaram: linha
percebe q o traço d cada integrante é distinto 1 do outro: a assinatura é o traço:
reta: I. & os romanos romantizaram a serifa: I. os pixos também querem reiventar a
risco d vida.
escrita; espichando o alfabeto latino:

os kanjis pictográficos1 nascem símbolos, provêem d provas figurativas,


mas através da repetição secular, passam por processos d reinvenção (iconização).
permanece apenas a identidade d estrutura com o seu objeto. o ideograma d fogo
deixa d imitar a fôrma do fogo, queima o q é excessivo para iluminar apenas os seus
traços estruturais.

)o oriente caminha para o ocidente o ocidente caminha para o oriente(

mas se a caretinha da letra é 1 figurativização do ‘i’ latino, agora, per-


sonalizado & rostificado, se transfigura conforme suas próprias réguas:
velocidade-traço, ritmo-execução, material-tensão, proporção-corpo. 1 letra q vira
figura q se transforma em assinatura: transpixação.

& subvertendo estes fundamentos & desrespeitando a linearidade evolutiva &

eu vou buscar no pixo / 1 oriente ao oriente do oriente:

1 - cito apenas 1 das inúmeras categorias d kanjis (ideogramas): shoukei moji (kanjis pictográficos), shiji
moji (kanjis indicativos), kaki moji (kanjis ideográficos), keisei moji (kanjis fonético-ideográficos), tenchuu
moji (caracteres derivados), kashaku moji (caracteres tomados emprestados)
anedota exemplar 2 - a caminho da escrita pisho x crítico

ao fim do 1º encontro d shodō, depois d tomar aula com joku wakamatsu a pixação ñ é profissionalizável. enquanto os críticos, profissionais, esque-
sensei, recebo 1 texto d rafael miyashiro, vou com juliana kase & cadós sanches à cem o q temos d sensorial, sempre pré-dispostos a caírem na armadilha da repre-
1 exposição d 刻字 no hotel matsubara. longe daquele estereótipo d pessoas q sentação. a pixação se esquiva, esguia.
exercitam 1 estilo tradicional, naquela exposição presencio 1 encontro restrito d
artistas com espírito d vanguarda. lembro do point d pixo, penso naquelas reuniões é d extrema urgência a publicação d material pensamental sobre pixação
lendárias do pesssoal da poesia concreta anos 50/60/70. ao ler o texto do rafael, feita por pixadores. pixadores q por sua vez interajam com outras linguagens.
na volta d trem a caminho d casa, descubro q além do shodō, existe o sho, excrita reinaldo & eu (exorcity) temos feito alguns esforços d ação & reflexão neste sentido.
criada por calígrafos modernos do pós-guerra. os sentidos começam a fazer coisas: realizamos em 2012 exposição no CCJ na zona norte da cidade q relacionava o pixo
não siga as pegadas dos antigos, procure o q eles procuraram (bashō) & o pixo é o à 1 gama d manifestações icônicas, da pedra da roseta aos logotipos da era indus-
levante dos pós do pós-guerra. trial. reinaldo nos últimos 10 anos oxigenou o pixo com suas inovações, 1 delas o
exorstencil, no qual deu 1 salto quântico da caligrafia à tipografia do exorcity. tenho
& por q 書 sho 道 dō ? feito pixo-experimentos no âmbito da performance, da poesia & da tradução. aca-
bamos d fazer para a exposição pisho/xodō talvez o primeiro pisho streaming (com
afael miyashiro em entretempos: a criação artística na caligrafia japone- ajuda d gregório gananian & danielly o.m.m). há também outrxs operárixs do pixo
sa, escreve, citando helen westgeest, q o artista tradicional japonês: “... q se esmeram em dialogar com outras linguagens: barbara (aura). bia (fúria). jack
vê o espaço “ao redor”, o que significa que, durante seu trabalho, ele (parceiros). dina (só minas). penal (os+ativos). tripa (bereta). bruno (locuras). fabio
está consciente do espaço que o permeia. nesse sentido, ele difere do fotorua (fantasmas). kamikase (caligrapixo). djan (cripta), cujo 1 dos seus grandes
pintor ocidental tradicional, que, sob a influência dos princípios da perspectiva, só feitos, num devir duchamp, foi ter pixado o curador: parla!
está consciente do espaço à frente dele, & observa como que para dentro. nishi-
da kitarô descreveu o modo de sugerir o espaço tradicional como o seguinte: “o
espaço na arte do extremo oriente não é o espaço encarando o ser, mas o espaço pisho
no qual o ser está situado”. xodō

assim, 1 exorcity atrai o significado do ambiente q ex-orbita.


omo em 1 progressão fractal, + 1 vez, a metamorfose permanente dos si-
o shodō reforça a complexidade do pixo. desloca, acrescenta, ou melhor, gnos, ícones, palavras, resulta numa estrondosa coincidência fonética – oci-
destrói pautas além daquelas q tanto têm sido riscadas sobre a pixação: subversão, dente/oriente – entre 2 códigos linguísticos totalmente distintos: o japonês
contextação, liberdade d expressão. revela a questão presencial: corpo=mente: & o português (brasileiro) shodō / sho / pixação / pixo.sho, a grosso modo,
pensamento corporal. quer dizer escrita, & dō, caminho. da mesma forma q os artistas japoneses reduzi-
ram a palavra shodō à palavra shō para diferenciar 1 escrita tradicional d 1 excrita
predominância preto; compressão & expansão do traço; redução, na maio- moderna. aqui no brasil, a palavra pichação q vem d piche virou pixação q virou
ria dos casos, à materialização d apenas 1 kanji, 1 sílaba, 1 palavra, 1 letra para pixo.
construir toda 1 ideia: características bases d ambas as linguagens. 1 antiarte tão
antiga reforça a importância d 1 linhagem tão recente.


Exorcity, pixação realizada durante a abertura Pisho Xodô, São Paulo, 2016
anedota exemplar 3 - identidades d estruturas numa parede d azulejos, a tal letra in(d)icial da turma exorcity (o I d exorcity1) &
monica faz ao lado o kanji radical d shodō, o sho. espantosamente a relação es-
na 1ª aula d shodō do reinaldo (exorcity rei), 1 notável ocorrido: trutural (longe d ser 1 relação óbvia d aparência figurativa) salta aos olhos d todos.
o mesmo tb ocorre quando reinaldo faz em aula 1 com pincel japonês & tinta
monica j. terada ao se deparar com reinaldo reforçando 1 traço d kanji q nanquim em papel washi. aquele , ao lado d outros trabalhos d shodō funciona
havia saído falhado tem 1 reação corporal quase instintiva: toca sutilmente em seu como 1 espécie d ideograma punk-ocidental.
braço dizendo: “nunca reforce o traço.” afinal 1 dos fundamentos do shodō é este,
nunca fazer 2x o mesmo traço porq ñ é 1 questão d resultado final, d reproduzir 1 aproximação dos procedimentos
fôrma no papel, mas 1 questão d forma vital ocupada no tempespaço, corpo, ges-
to, postura & movimento, respiração, vazio. dentre algumas coisas q aparecem no pixo & no shodō 1 delas é a incor-
poração do acaso. a contribuição milionária d todos os erros. se no shodō a sua
no mesmo dia, após a aula, todos para rua experienciar a pixação. nos- caligrafia sai ≠ a cada dia dependendo do seu estado d espírito, na pixação tam-
sos traços (meu & do reinaldo): retilíneos & uniformes, os traços da monica & do bém. sem borracha, sem massagem: o q está feito ñ pode ser desfeito.
rafael: esfumaçados & sinuosos (interessante mistura da não-disciplina do spray &
influência – charme sutil – do shodō) ao meu ver, muito bonitos, mas talvez naquele o comportamento da tinta
momento, aquilo parecia errado para eles, q tentavam assimilar a quase-técnica
do pixo. monica sensei parte para reforçar os traços q havia acabado d fazer & q inta: a diferença básica entrelinguagens se dá principalmente na uti-
saíram com preciosas falhas. instintivo, grito, reverente, d longe, entre ruínas: “ñ lização dos materiais. quando as ≠s escritas são feitas com o mesmo
reforça!”. instrumento aquelas disparidades tão aparentemente óbvias deixam
d existir. ou pelo menos, deixa d existir 1 abismo intransponível entre
estas. para o calígrafo d shodō & para o pixador 1/2 pala basta. tudo é pretexto para
revelar o gestual do traço & a qualidade do material.

o espírito do spray

se é relativamente fácil distinguir as mídias utilizadas nas diferentes lingua-


gens (ex.: caligrafos usam pincéis redondos, os pincéis achatados são comumente
usados nas pinturas à óleo, o pixador geralmente usa spray), não é tão fácil perce-
Trabalhos realizados durante aula de Shodô, ber o q está implicado nisto, o corpo d quem age também é mídia, complexifican-
Associação Brasileira de Shodô, 2016 do esta relação.

identidade d istrutura no livro taction : the drama of the stylus in oriental calligraphy, ishikawa
kyuyoh distingue a caligrafia d outras linguagens a partir d duas propriedades:
nesperada relação esta q ocorre ao acaso. depois d 1 relação ñ tão reciprocidade (reciprocity) & simultaneidade (simultaneity). para o autor, a recipro-
bem sucedida, q consiste em deixarmos 1 espaço em branco nos lu- cidade & a simultaneidade táctil são inerentes à caligrafia.
gares das letras “o” & “i” da palavra ex_rc_ty para serem preenchidas
com caracteres do silabário katakana q correspondem fonéticamente à
1 - se na gramática corrente é regra usar a 1ª letra d 1 nome para abreviá-lo. na pixação, a letra q sinteti-
letra O & I do alfabeto romano respectivamente por monica & rafael, reinaldo faz, sa 1 turma nem sempre é a sua letra inicial, muitas vezes a letra escolhida para corporificar a turma está
no meio da palavra ou em qualquer outra parte dela. no pixo, a letra q define a turma, ou o nome, é a
letra q contém > personalidade gráfica, q emite + informação, 1 letra d destaque q se diferencia das
letras dos outros pixos. o procedimento d escolha desta letra subverte a lógica ocidental. a letra corpo-
reificada passa a existir como 1 radical da palavra, assim como na linguagem ideogrâmica oriental onde
nem sempre o radical do kanji está em seu início.
o calígrafo está constantemente recebendo d volta, através do pincel, parte da corpotexto
energia q ele emiti através do mesmo & q ricochetea no papel. a grosso modo o
calígrafo golpeia o papel através do pincel & através deste mesmo pincel recebe 1 a cidade é texto. o texto é têxtil.
golpe em resposta. esta reciprocidade & simultaneidade d ação & reação anima a 1 A d 5 metros d altura não é + a letra A, é a própria altura.
relação entre calígrafo & caligrafia. 1 questão vetorial.
performance / demonstração / despistamento
ñ à toa no shodō é tão importante a escolha do pincel: 筆, fude. do papel:
和紙, washi. & da tinta: 墨, sumi. para dar ao pincel determinada característica há no panorama das artes cênicas ocidentais a palavra performance pode sig-
cerdas d ≠s animais, há ≠s densidades d tinta, assim como há ≠s texturas & grama- nificar o q há d + avançado em arte não representativa & q rompe com a ideia d
turas d papel. durante 1 treinamento d shodō há 1 alteração do estado sensorial espetáculo. no shodō mesmo a ideia d performance ainda soa excessivamente
devido ao contacto atento com estes materiais. espetacular. os calígrafos preferem usar a palavra demonstração. no shodō, para
o êxito da performance/demonstração é imprescindível q os acontecimentos se
na pixação o mesmo ocorre, mas em outra escala. o estado sensorial é desenrolem d maneira menos performática possível.
alterado devido à multiplos fatores. a relação d reciprocidade & simultaneidade no
pixo se dá não apenas em relação vetorial entre muro, spray & corpo, mas entre os na pixação esta questão da não-performance é ainda + radical. êxodo: para
carros q passam, as pessoas q olham, a possível polícia q chega. entram em campo, o êxito total da performance é melhor q ninguém leia/veja a ação ocorrendo. o
por 1 questão d sobrevivência, visão periférica, audição, sexto sentido. q acontece com esta cidade q está totalmente pixada, mas ninguém vê ninguém
pixando? despistamentos. o pixador é por excelência o escritor da penumbra. q a
se os utensílios do shodō são maravilhas do mundo artesanal, os aparatos leitura se dê ao alvorecer. signo novo na quebrada.
do pixo, sobretudo o spray, são maravilhas da era industrial. durante a feitura d 1
pixo fica muito forte a questão do som & do cheiro. a tinta sintética expelida em 1 enrascada exemplar 5 – o pixo em apuros
jato d ar comprimido ludibria o sentido olfativo d quem faz & d quem flagra. isto é
1 característica inerente da sprayação, assim como o sssssssssom. em 1 aula d shodō, num domingo à tarde etsuko ishikawa sensei se dire-
ciona a mim & diz: “não vai misturar pixação com minha arte. prefiro cortar/vão
o shodō geralmente é praticado em 1 local silencioso q propicie a con- cortar meu pescoço.”1 minha reação ñ poderia ser outra: 1 sorriso extinto: aceno
centração & a busca da perfeita tonalidade do traço. no pixo, o spray em meio ao silente para a sensei, penso: ok, すみません, ごめんなさい, 失礼 し ます sumimas-
turbilhão barulhento da cidade emite 1 som d silêncio. sem, gomenasai, shitsureishimasu. se eu cair, 土下座, não caio d joelhos.

anedota exemplar 4, q poderia virar enrascada anedota exemplar 6 – roubar/honrar

av. paulista, a lista d suspeitos, madrugada, semáforos alternando verde em 1 aula d shodô, num outro domingo à tarde wakamatsu sensei fala a
amarelo vermelho reluzindo a superfície muro, calígrafos embriagados, microtons d todos: “tenho 85 anos, ñ devo viver por muito tempo, é dever d vocês, roubarem/
tinta em projeção, os transeuntes, passam, fazem sombras, vultos excogitam pelos honrarem minha tecnologia do traço.”2 aquilo me arrepia. fico pensando nos
cantos o q a pixação havia dito & aquele cheiro d solvente noir. sirenes. nem me milhares d pixadores q morrem, muitas vezes assassinados, com 1/4 desta idade,
viu já sumi na neblina. somente por estarem assinando 1 muro num mundo onde a propriedade privada
vale + do q 1 vida em plena capacidade libertária d sua expressão.

1 - 1 falha d comunicação entre nós. não pude entender com exatidão se a sensei havia dito ‘prefiro’
ou ‘vão cortar’ meu pescoço. interessante pensar q para adentrar no diálogo pixo / shodō, é preciso
energia, atenção e disponibilidade, já há previamente 1 dificuldade entre línguas, quem dirá entre
linguagens, mas me parece q deste caminho difícil nasce a invenção.
2 - idem. não entendi com exatidão se o sensei havia dito ‘roubar’ ou ‘honrar’. achei perfeita esta con-
fusão. roubar/honrar neste caso, são verbos q se complementam.
finício

ing yang: estas anedotas demonstram como há no shodō ≠s estilos. da


minha parte, ñ me incomoda a advertência da etsuko ishikawa sensei &
se sensei ñ se alimenta da minha linguagem: mim deglutir linguagem
da sensei & sem autorização prévia & + do q aprender com afinco-
strictu-sensus a arte tradicional do shodō me compraz roubar/honrar esta tecnolo-
gia (wakamatsu dixit) & aproximar os procedimentos & perceber o q isto pode resul-
tar enquanto processo antiartístico & anartístico: desautomatizar & ñ me interessa
+ o pixo especializado & estanque & intolerante a outros pensamentos sígnicos
& o significado d 1 shodō é sempre outro shodō & onde se lê shodō leia-se pixo
& abrir novos caminhos auto-biblio-bio-cali-carto-cinemato-coreo-cosmo-cripto-
dactilo-demo-epi-fono-geo-historio-icono-lexico-lito-micro-nano-orto-paleo-picto-
psico-quiro-seri-sismo-taqui-tele-tipo-topo-gráficos & a cada mil latas sai 1 milagre
& todo muro está grávido d pixo & coressonscheiros, pixos para ouver, cheirar,
comer, tocar & é desta liberdade d relações q poderá surgir algo novo &

mmxvi anno domini: 13,9 bilhões do big bang: 4,50 bilhões do


planeta terra: 200.000 do homo sapiens na áfrica: 8.000 dos
1ºs indícios d escrita, fenômeno recente: 2222 do shodō como
arte: 468 da deglutição do bispo sardinha: 250 da 1º revolução
industrial: 227 da tomada da bastilha: 126 da invenção da tinta
spray: 116 do fim da era gutenberg. agora, eletrônica é a nossa
era: 89 do spray em lata: 52 do golpe d 64: 48 do maio d 68:
28 da queda do muro d berlim: 平 成 28 年 (28 da era heisei):
28 da era exorcity. o pixo, em sp, caminha para a 4ª década:
estamos vivendo a tomada das pastilhas. a julgar pela datação
d carbono, a história do pixo está só começando &

Saída de pixo, bairro da Liberdade, São Paulo, 2016

este texto foi vocalizado na casa das rosas - 29/04/16 - com trilha de gregorio gananian q por sinal co-
laborou para vários acertos nesta trama têxtil. aproveito também para agradecer pelas urdiduras: irana
gaia, reinaldo daniel, reuben da rocha e walter vetor.
Três poemas, três momentos, três estações, Rafael Miyashiro, 2015
estilo Kimdaishibunsho (poesia moderna)
MONICA J. TERADA pergunta
EXORCITY REI responde

1) Quando você teve interesse pelo pixo?


Na década de 90, quando estava subindo uma ladeira parei com minha mãe em um
banco para comer uma bolacha, isso no Jd. Santo Elias e ali vi um pixo escrito Exorcity
no qual me chamou atenção.

2) Lembra o 1º Pixo que viu e fez (foi fazendo parte do Exorcity)?


Talvez não sejam os primeiros (risos), mas me lembro de ver na Z.O. os pixos Có –
Wilson nº1 – Exorcity – Buiu – Fator35 – ArtCity – Senha4 – dentre outros.

3) O que motivou a começar a Pixar?


A escrita. O desenvolver da caligrafia. Quanto aos pixos, não compreendia direito isso,
foi como se eu estivesse me alfabetizando, aprendendo a escrever, de fato.

4) E atualmente a motivação mudou; o que motiva?


Bom… Com o passar do tempo ganhamos maturidade, discernimento. O que realmente
motiva o prazer de riscar? A ação, o ato é algo indescritível, algo que fala mais que
palavras, eu não saberia descrever os meus sentimentos. Neste momento de ação o
mais gratificante é a liberdade de expressão.

5) Antes da mostra PISHO XODŌ tinha algum contato com a cultura japonesa?
Antes da mostra eu não tinha nenhum contato. Totalmente leigo, sem conhecimento. O
mais próximo que eu cheguei foi cortar sushi, sashimi… (risos)

6) Algum ponto parecido/próximo entre o Pixo e o Shodö?


Sim, a escrita como ação, como objetivo, como vida.

7) E diferença(s)?
Seguir em frente sempre, defendendo o que se acredita, no que fazemos, porque isso é
o que somos.

8) O que achou dessa aproximação Pisho Xodō?


Incrível, fantastico, fascinante. Algo de novo que me dá outros direcionamentos, outra
visao, amplia meu entendimento, minha vontade em buscar crescimento pessoal.

9) O que espera?
Aprender, entender, poder me expressar de igual pra igual.

10) Algo a acrescentar, curiosidade?


Estamos no context, resistimos, existimos, escrevemos a história. Isso é o que
construímos. EXORCITY resiste e existe, since 1988.
春湖白暁岫青 parte da poesia antiga sobre a paisagem de um alvorecer primaveril ……………………………………………………….
estilo Tensho- ideograma/ kanji primitivo, surgido na China por volta de 221a.C.
EXORCITY REI pergunta
MONICA J. TERADA responde

1) Qual era seu conceito sobre pixação antes desta proposta de relacionar pixação com 7) Seria legal transpor o shodō para alguns espaços urbanos, topa ir pintar no “vandal”?
SHODŌ? (risos)
Os pixos chamavam minha atenção e curiosidade; como uma forma original de manifestar, Vou pensar…topo! Rss
de autoafirmação: o pixo pode ser mais.... Por enquanto, na maioria dos trabalhos de shodô
procuro expressar o que acredito. 8) Existem alguns SHODÔS que mesmo quem é japonês não entende ? Como se dá esta
distorção das letras no SHODÔ?
2) Pelo fato da cultura japonesa ser um pouco conservadora em alguns aspectos vc sofreu Sim, quanto mais cursivo (estilo Sosho) ou expressivo (Sho) for, a escrita tende a ficar abstra-
algum tipo de preconceito nesta conexão entre shodō e pixação? ta: distorcendo o próprio formato da letra, simplificando os traços (reduzindo a quantidade
Preconceito direto não; percebi pouca ou nenhuma receptividade em algumas pessoas, mas de traços: de 6 traços para 2, por exemplo), etc.
também simpatia e interesse de muitas outras por acharem a conexão inusitada!
9) O que acontece quando um kanji que é comumente feito com os materiais do shodô é
3) Vc acredita que a arte do shodō pode ser aberta para qualquer indivíduo? Explique essa feito com spray na parede? Por exemplo o kanji de sonho yume, o que muda?
acessibilidade? No shodo, você pode escrever várias folhas até ficar próximo ao que imaginou, dentro da
Sim, pois basicamente é escrever com pincel reproduzindo letras japonesas conforme uma possibilidade e tempo. No pixo é a escrita que saiu na hora, muitas vezes (e pela falta de
amostra ou não. Além disso, para se ter aulas, o valor da mensalidade, ao menos na Associa- experiência) pode não ficar como planejado. Vou escrever Yume na parede e depois digo o
ção Brasileira de Shodô, é abaixo da média, bem que mudou, rss.
menos que 50 Reais por mês. Ressalva: pode ser
difícil para quem quer resultado imediato. 10) Algo a acrescentar ? Curiosidades?
Escritas escolhidas ao acaso ou não para a
4) O que é necessário para prática do shodō? Mostra Pisho Xodo: 十人十色(que mal há em
Treino, perseverança: pois leva-se tempo para ter 10 pessoas=10 visões, experiências, cores
o domínio básico na escrita com pincel de shodô. diferentes!);夢(sonho); 縁(conexão, possibili-
dade); 瑞氣集門(boas energias que se avizi-
5) Eu posso criar kanjis com significados próprios? nham): ilustram o espírito da Mostra...
Pode, mas não saberia dizer se seria considerado
kanji..

6) O que vc está achando desta experiência entre


os estes dois caminhos de escrita?
Experiência enriquecedora: muitas possibilidades a
serem exploradas!
Além de perceber pontos em comum como o cál-
culo do espaço, controle da distância e pressão,
legível ou não, cada escrita ser única, do momento,
entre outros. Diferenças? Ambiente: calmo x ten-
so! Expressão individual: no shodô, no meu caso é
você com você para os demais. No pixo: você com
você COM os demais.
Grifes do Exorcity
de 1988 a 2016
Pisho Xodô, vista da exposição, Casa das Rosas, São Paulo, 2016
Pisho Xodô, oficina, Casa das Rosas, São Paulo, 2016
Pishô, do popular e punk ao zen
vez e não por acaso surge do Letrismo. As colagens situacionistas dão início as
Cadós Sanchez colagens da estética punk e por sua vez se tornam influência da pixação (basta ver
as folhinhas e convites de festa para notar a semelhança). A pixação vai trabalhar
Conversava com um amigo há pouco tempo, ex-punk e atualmente pesquisador
com essas mesmas influências de maneira mais intuitiva do que teórica e acadêmica.
e fazedor da cultura popular de raiz. Na ocasião falávamos dos problemas que a
Ela assimila como um espírito do tempo e a sua maneira, os ditos dos letristas e
música popular menos domesticada tem, em ganhar espaço na mídia, tanto quanto
situacionistas sobre a arte integrada a vida, como meio de subversão do cotidiano
a musica experimental. Isso não deveria acontecer, se pensarmos que essa música
e também a arte de expressão individual e subjetiva dos habitantes e seu método
é parte da raiz popular e sendo assim, do seu imaginário. Por que essa música está
de psicocartografia como luta pela autonomia do ser na cidade.
tão distante da massa, que atualmente consome a música divulgada pela grande
mídia? O pixador é o cartógrafo do imaginário da cidade. Age nos espaços comuns
a partir da contestação da propriedade privada e constrói seu mapa, sua
É fácil entender o problema da arte de tendência experimental que na sua busca
psicocartografia da cidade terceiro mundista. Vai realizar muitas das tentativas
pela invenção se aproxima da atitude de vanguarda (individual) e se distancia das
das vanguardas integrando a arte ao cotidiano da cidade e com isso trabalha
raízes populares (coletivas) e consequentemente da mídia da cultura de massa.
completamente fora do universo de mercado e do registro da arte ocidental.
Acredito que a pixação seja um possível elo entre a atitude das vanguardas
A pixação possui esse vínculo com o experimentalismo e estética européia de
modernas, o experimentalismo dos 60, o Dada e o Futurismo do início do século,
vanguarda e não deve nada à tradição anarquista pensada por Gui Debord, Raoul
que surgem junto com a formação das metrópoles e o desenraizamento cultural.
Vaneigem, Jean Dubuffet ou mesmo Marcel Duchamp. A pixação surge desse
Isto o leva à prática da arte de uma expressão individual e à cultura popular de raiz,
espírito do tempo, mas ela não se vinculou à arte até há pouco tempo atrás. Aliás,
que tem uma conexão maior com a vida, com o coletivo.
sempre fez pouco caso das preocupações artísticas.
A ligação do pixo com as vanguardas européias não é difícil de traçar quando
O pixo me parece ir além da negação consciente da arte de tradição burguesa
enxergamos a conexão do pixo com o punk da dédacada de 80. Vários pixos levam
mercadológica que as vanguardas trouxeram e me parece conectar-se (como toda
até hoje o nome de bandas punk da época e o Situacionismo de 60/70 por sua
a cultura popular de raiz) com algo antes da própria
palavra “arte” surgir.

Nesse sentido, é a única manifestação popular (não


é de massa, movimento artístico ou vanguarda), que
surge dessa negação (ou pouco caso) com a arte e
que se mantém até hoje viva na cidade, impregnada
dela e vice-versa.

Existe o clichê de associar o pixo às pinturas rupestres


nas cavernas, mas vai além dessa mera aparência de
primitivismo de seu ato. Ele se desenvolve de modo
simultaneamente conservador e subversivo como
toda a cultura popular que já existiu e resistiu e que
hoje se dilui perdendo o teor do espírito do tempo
de que foi fruto.
Uma questão que surge na atualidade e que não pretendo responder aqui é:
quando o pixo aceita o título de movimento, ou manifestação de arte, pode-se
iniciar o processo de diluição do teor de sua origem e de enfraquecimento da sua
prática?

Acredito que a questão seja mais fluida do que escrevi acima e que cada indivíduo
construirá os caminhos para que essa resposta torne-se possível e relevante.

Antes de finalizar, gostaria de citar algo sobre o início da organização do projeto


Pisho Xodô e que talvez possa acrescentar a tudo que levantei até agora nesse
texto. Pensei em convidar uma pessoa ligada à pixação com “x” de São Paulo que
falei durante o texto e outra pessoa mais ligada ao graffiti vândalo, que também
atua pichando, agora com “ch”, pois trabalha com sprays e pinos especiais para
graffiti que dão possibilidades ao traço pouco usadas pelo pixo. Acreditava que as
duas somariam no diálogo com o shodô. Teremos o Pishô?

O pixador que convidei é pesquisador de poesia visual e no momento do convite


tinha iniciado estudos do idioma Japonês e não hesitou em participar do projeto.

O grafiteiro convidado estava envolvido com galerias e com diversas exposições


e demonstrou interesse no projeto desde que os valores fossem gratificantes e no
fim, acabou não participando do projeto.

Claro que o número de convites que fiz foi limitado por lugares e pessoas que
conhecia e que, certamente a maioria dos pixadores e grafiteiros que lerem esse
texto não irão se identificar com nenhuma dessas pessoas, mas conto esse causo
pois talvez essa minha experiência possa trazer reflexões aos fazedores da escrita
de rua.

Quis apontar nesse texto possíveis caminhos que me influenciaram e que acredito
terem influenciado muitos pixadores, no entanto, como narrei acima, os indivíduos
e seus caminhos são diversos, a classe média e a favela pixam, o japonês e todas
outras etnias também. O pixo tem essa estética cosmopolita, multi-cultural e surgiu
como as culturas populares das colônias, mais espontâneas e compromissadas
demasiadamente com a vida para se comprometerem com a arte.

O pixador, considerando-se ou não, um artista, ainda segue além da cartoGrafia.


Ele atua no topos (lugar) e na divisa do público e privado, segue criando suas
utopoGrafias do imaginário urbano.
Saída de pixo, bairro da Liberdade, São Paulo, 2016
Pisho Xodô, oficina, Casa das Rosas, São Paulo, 2016
PISHO Projeto realizado por
XO DÔ Cadós Sanchez, Juliana Kase, Monica J. Terada, Reinaldo Daniel, Gabriel Kerhart,
Rafael Miyashiro
Mostra e
De 5 de abril a 29 de maio de 2016 Equipe da Casa das Rosas
Curadoria Juliana Kase e Cadós Sanchez Daniel Moreira, Julio Mendonça, Irana Gaia, Anelise Csapo, Rafael Gatuzzo, Mitty
Nakamura, Alan Zanatta, Valdecir Araujo Souza, Jackson Oliveira, Débora Nazari,
Oficina Mariana Lobo.
16 de abril de 2016, sábado, das 14h às 18h
Com: Reinaldo Daniel de Souza e Gabriel Kerhart, Monica J. Terada e Rafael Colaboradores:
Miyashiro Lissa Sakajiri, Marina Hitomi Nakagawa, Djan Cripta, Maicon Bruno MN, Daniel
Scandurra, Danielly Omm.
Mesa Redonda
29 de abril de 2016, sexta-feira, 19h30 Edição e diagramação: Kamikaze Publicações (Ilma Guideroli e Daniel Marques).
com: Gabriel Kerhart, Rafael Miyashiro, Reinaldo Daniel, Djan Cripta, Monica J.
Terada, Maicon Bruno MN Capa: Monica J. Terada e Reinaldo Daniel.
mediação: Juliana Kase e Cadós Sanchez
Agradecimentos
Luciana Felix, Associação Brasileira de Shodô (www.facebook.com/shodobrasil),
Exorcity (todos), Grilo, participantes da demonstração na abertura, participantes e
Biografias inscritos nas oficinas, participantes no debate.
Juliana Kase é artista plástica e documentarista.Trabalha e investiga a função e a
tempo-espacialidade da imagem em diferentes contextos facebook: pisho xodô - a escrita como ato
Cadós Sanchez é educador, criador de instrumentos sonoros. Pesquisa e desen-
volve trabalhos em espaços públicos há 20 anos

Gabriel Kerhart é performer e poetixador. Pesquisa as possibilidades da pixação


como linguagem há mais de 20 anos

Rafael Tadashi Miyashiro é designer gráfico e doutor em Artes Visuais pela Unicamp.
Pratica shodô desde 2002 e fez seu mestrado sobre o tema em 2009 na Unicamp

Monica Jury Terada é professora da Associação Shodô do Brasil, iniciou o estudo


de Shodô no Taikei Kai de Shizuoka Shi, Japão e pratica shodô há 23 anos

Reinaldo Daniel de Souza caligrafo e escritor de rua. Trabalha sempre em diálogo


com o espaço urbano, que abrange diversos tipos de intervenções dentro da arte
de rua.

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