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A MENTALIDADE FÚNEBRE DO SÉCULO XIX EXPRESSA NO MÁRMORE DO

CAMPO SANTO, SALVADOR – BAHIA.

1
Cibele de Mattos Mendes

Resumo: Constitui objeto desta investigação os monumentos funerários referentes ao séc. XIX
localizados no Cemitério do Campo Santo, em Salvador – Ba; confeccionados pela Família Salles de
Portugal, que simbolizam e mantém a recordação dos mortos, bem como as atitudes e representações
sócio-culturais referentes às interpretações da morte, que contribuíram para a formação de um
imaginário coletivo perpetuado no mármore, através de símbolos, formas, dimensões e temas.

Palavras-Chave: Cemitério; Mausoléus; Identidade.

No Cemitério do Campo Santo estão contidas as representações da História e preservação


da Memória visual fúnebre da Cidade do Salvador, assim como o processo de luto vivido até o
século XIX, expressos nos túmulos e mausoléus de mármore, importados de Lisboa e Itália.
Pertencente à Santa Casa de Misericórdia, esta necrópole surgiu em meio às discussões das
autoridades com a ameaça dos mortos à saúde dos vivos, cuja recomendação era de que se
parassem os enterros nas igrejas, pois eram considerados insalubres.

Muitas leis regulamentaram essas práticas, mas a primeira lei colonial que combatia todo
tipo de enterramento dentro dos limites urbanos foi a Carta Régia nº. 18, de 14 de janeiro de
1801, no entanto não foi posta em prática. Em novembro de 1825, um decreto imperial atacava
as práticas tradicionais de enterro como anti-higiênicas e supersticiosas, e, o imperador ordenava
que os sepultamentos fossem transferidos para fora da cidade.

Em outubro de 1828 foi promulgada a lei imperial que regulava a estrutura,


funcionamento, eleições, funções e outras matérias referentes às câmaras municipais do Império
do Brasil (REIS, 1998, pp.274-276).

A criação dos cemitérios fazia parte da batalha pelo saneamento das cidades e instauração
de uma vida civilizada, cujo objetivo era a expulsão dos mortos das cidades, por estarem os
mortos associados a águas infectas e à “corrupção do ar”.

O movimento de medicalização estendeu-se por muitos anos, sendo o ano de 1835,


decisivo na campanha contra enterros nas igrejas de Salvador, ganhando adeptos até no clero e
inimigos entre as irmandades, que eram as responsáveis pelos funerais baianos (REIS, 1998, p.
288).

Uma representação é enviada à Assembléia Provincial pelos empresários José Augusto


Pereira de Matos & Cia, para a construção de um novo cemitério, denominado Campo Santo,

1
Museóloga e Mestre em Artes Visuais pela Escola de Belas Artes da UFBA. Professora Substituta de História da
Arte e do Mobiliário da EBA/ UFBA. Aluna Especial Doutorado em História da FFCH/ UFBA.
cibelemm@gmail.com
cujo requerimento segue para avaliação, foi aprovado e sancionado em junho de 1835, como lei
provincial nº 17. O texto do projeto que vai ao público omite o monopólio de construção e
transportes de cadáveres pelo prazo de trinta anos.

Para a construção do Cemitério do Campo Santo foi escolhida uma área elevada e arejada
fora dos domínios da Cidade, na antiga estrada do Rio Vermelho, em terras da então Fazenda
São Gonçalo. A construção desse Cemitério teve início com grande confusão, com a liderança do
Visconde de Pirajá e entidades interessadas nos resultados financeiros dos enterros, como: as
confrarias, irmandades, mosteiros, conventos e paróquias.

O anúncio da inauguração concorreu para acirrar os ânimos dos descontentes, que


anunciavam que a inauguração não aconteceria. Dois dias após a inauguração as entidades
promoveram uma passeata de protesto pelas ruas de Salvador, constituindo-se no episódio
denominado “Cemiterada”. A resistência do povo e, principalmente das Ordens Terceiras foi
muito grande, mas não houve jeito. No dia 1º de maio de 1844 tiveram início os sepultamentos
no Cemitério do Campo Santo (COSTA, 2003, pp. 62-65; 68).

O Cemitério do Campo Santo, um dos mais belos e antigos do país, no gênero “Campo
Santo”, apresenta a tipologia de um cemitério denominado de convencional, por organizar-se de
maneira comum, seguindo o padrão europeu, com alamedas internas, direcionadas para a igreja
e/ ou cruzeiro (BORGES, 2002, p.144).

Está localizado entre os bairros da Federação, Graça e Barra, reunindo túmulos e


mausoléus pomposos, capelas e obeliscos em mármore, talhados e esculpidos, importados de
Lisboa (um dos maiores acervos conservados no Brasil em arte).

A partir de 1875 escasseiam os túmulos mandados fazer em Lisboa, cessando os reflexos


do Neoclassicismo na estatuária e canteiros, surgindo em seu lugar importações de túmulos da
Itália e França, bem como aqueles túmulos produzidos por artesãos Rio de Janeiro e São Paulo
(VALLADARES, 1972, v. 1. pp. 1.313 – 1.325).

Neste Cemitério encontram-se sepultados desde escravos, ricos comerciantes, traficantes,


magistrados, freiras, barões e personalidades das artes e ciências, destacando-se: Antônio de
Castro Alves; Joaquim Pereira Marinho, Francisco José Godinho e Antônio Pedroso de
Albuquerque; José Alves da Cruz Rios; Alfredo Thomé Britto; Aloysio de Carvalho Filho;
Anfrísia Santiago Antônio de Lacerda; Aristides Maltez; Barão de Cajayba; Bernardo Martins
Catharino; Cipriano Barbosa Betâmio; Edgar Santos; J. J. Seabra; Raimundo Nina Rodrigues,
Francisco Marques de Góes Calmon, Luis Tarquínio (COSTA, 2003. pp. 101-102).

Nos anos de 1853 e 1858, foi incentivada a compra de campas e lotes de jazigos, motivo
pelo qual são identificados nesta data um elevado número de túmulos importados, na maioria dos
marmoristas Francisco, Germano e Cesario Salles, de Lisboa. Dos numerosos túmulos
monumentais procedentes dos marmoristas lisboetas, há uma quantidade maior entre os anos de
1855 e 1870.

Para a confecção desses túmulos foram gastas enormes fortunas, com riqueza de
materiais em mármore, com ornatos em folhas de acanto e de liz; retratos de porcelana; alegorias
e epígrafes sob a forma de acróstico; urnas funerárias com garra e bola; caveiras com tíbias;
figuras de anjos orantes e mãos postas; anjos sexuados; urnas funerárias; ânforas; caveiras com
tíbias em santor; cruzes góticas; colunas partidas; globos; corujas; guirlandas; festões, etc. Há
túmulos e capelas neo-góticas pertencentes a famílias que deixaram de existir ou as
abandonaram, cabendo a sua manutenção à administração da Santa Casa de Misericórdia, que, na
atualidade, inseriu a necrópole como parte do circuito turístico de Salvador.

Particularmente neste cemitério não foi realizado um estudo sobre a História e Memória
preservadas no mármore dos túmulos importados de Lisboa; fato este revelado pelo pesquisador
Francisco Queiroz, afirmando não possuir ainda informações dos arquivos da Alfândega
brasileira, acerca desses monumentos funerários.

As pesquisas realizadas no Cemitério do Campo Santo aprofundam as questões lançadas


na dissertação de Mestrado de Cibele Mendes (2007) sobre os Cemitérios do Convento de São
Francisco e Venerável Ordem Terceira do Carmo, ambos localizados em Salvador – Ba; em que
foram identificados túmulos e artistas, também, provenientes de Portugal.

O Cemitério do Campo Santo perpetua o status quo das famílias baianas, através do
mármore dos seus túmulos, dado o vínculo que mantêm com as representações do luto,
alicerçadas no discurso religioso, moral e econômico da sociedade baiana do século XIX,
tornando-se necessária uma maior reflexão da História e Memória perpetuadas no mármore, bem
como a análise iconográfica e iconológica desses monumentos.

As construções de rara beleza existentes neste Cemitério partiram de uma nova dimensão
social, surgida no âmago da sociedade baiana e católica do século XIX, que convencida a mudar
suas tradições, em detrimento das teorias de higienização e urbanização, transferiram das igrejas
para os túmulos do cemitério extra-muros, os seus anseios de reconhecimento e ostentação.

O cerne desta Pesquisa está situado nos túmulos e mausoléus importados de Lisboa, num
período em que a mudança dos enterramentos das igrejas para fora dos muros da cidade implicou
numa mudança de atitudes, práticas e representações, expressos através da opulência dos
monumentos funerários, eternizando um momento, um desejo, um pedido, estilo e /ou padrão.

Esta pesquisa objetiva identificar os túmulos importados de Portugal e confeccionados


pela Família Salles, analisando as influências históricas que impulsionaram a construção de
determinados estilos de túmulos, bem como a distinção das atitudes e práticas como
representações advindas da mudança de mentalidade da Europa.

Dessa forma, acredita-se possível alcançar uma visão mais ampla e aprofundada dos
aspectos históricos, econômicos, políticos, sociais e culturais implicados nesse tipo de
procedimento artístico, buscando contribuir para preencher algumas lacunas na historiografia da
arte fúnebre baiana, embasada nos postulados da História das Mentalidades e das Artes.

Pela sua riqueza iconográfica é possível identificar convenções criadas, sentimentos e


motivos de uma época, elementos componentes de uma ideologia; mitos e idéias capazes de
estimularem uma atividade social, aspectos mentais representativos do cotidiano, questões de
saúde, enfermidade e morte.

Em termos gerais, esta pesquisa propõe decifrar a realidade do passado baiano, por meio
das representações fúnebres, identificando atitudes e intenções dos homens que as construíram,
imprimindo diferentes entendimentos.
Os cuidados no trabalho com este tipo de fonte são muitos, pois as imagens são fontes
que se dão aos mais diversos tipos de leitura e interpretação, assim, uma mesma imagem pode ter
seu significado mudado de acordo com o tipo de olhar que é lançado sobre ela. Deve-se sempre
ter em mente também que a imagem não se esgota em si mesma. O historiador que utiliza a
imagem como fonte histórica precisa enxergar além da imagem, ler suas lacunas, silêncios,
decifrar seus códigos. As imagens são representações do mundo elaboradas para serem vistas.

“As imagens estabelecem uma mediação entre o mundo do espectador e do


produtor, tendo como referente a realidade, tal como, no caso do discurso, o
texto é mediador entre o mundo da leitura e o da escrita. Afinal, palavras e
imagens são formas de representação do mundo que constituem o As imagens
estabelecem uma mediação entre o mundo do espectador e do produtor, tendo
como referente a realidade, tal como, no caso do discurso, o texto é mediador
entre o mundo da leitura e o da escrita. Afinal, palavras e imagens são formas
de representação do mundo que constituem o imaginário” (PESAVENTO, 2003, p.
86).

Dessa forma pode-se perceber que a imagem serve como elo entre o tempo de seu
produtor e o tempo de seu observador, transmitindo conceitos e modos de ver e entender a vida,
permitindo conhecer como o mundo seria visto por outras culturas de outras temporalidades.
Como visto, a abordagem culturalista entende a cultura como sendo socialmente construída
através da escolha de determinados símbolos e representações para explicar a visão de mundo, os
valores, enfim, a realidade de um determinado povo situado no espaço e no tempo. Assim, no
livro História Cultural de Chartier (1990, p.17), na introdução, há uma excelente definição para
esta história:

“A história cultural, tal como a entendemos, tem por principal objecto


identificar o modo como em diferentes lugares e momentos uma determinada
realidade social é construída, pensada, dada a ler. Uma tarefa desse tipo supõe
vários caminhos. O primeiro diz respeito às classificações, divisões e
delimitações que organizam a apreensão do mundo social como categorias
fundamentais de percepção e de apreciação do real. Variáveis consoante as
classes sociais ou os meios intelectuais, são produzidas pelas disposições
estáveis e partilhadas, próprias do grupo. São estes esquemas intelectuais
incorporados que criam as figuras graças às quais o presente pode adquirir
sentido, o outro tornar-se inteligível e o espaço ser decifrado”.

A importância de se perceber que “as representações do mundo social assim construídas,


embora aspirem à universalidade de um diagnóstico fundado na razão, são sempre determinadas
pelos interesses de grupo que as forjam” (CHARTIER, 1990, p. 17).

Nesta pesquisa são utilizados como fontes os monumentos funerários, sob a metodologia
proposta por Erwin Panofsky, no seu livro “Significado nas Artes Visuais”, em que propõe que a
análise de um objeto visual seja feita seguindo alguns passos, quais sejam: a descrição pré-
iconográfica (e análise pseudoformal); a análise iconográfica, no sentido mais estrito da palavra;
e a interpretação iconológica, em sentido mais profundo.

O primeiro passo na apreensão do significado dos objetos visuais é dado a partir de sua
precisa descrição e distinção dos objetos e elementos que constituem a obra a ser analisada.
Obedecendo a esses passos o pesquisador reconhecerá o que é denominado de momento da
identificação do tema natural ou primário, apreendido,
(...) pela identificação das formas puras, ou seja, certas configurações de linha e
cor, ou determinados pedaços de bronze ou pedra de forma peculiar, como
representativos de objetos naturais tais que seres humanos, animais, plantas,
casas, ferramentas e assim por diante; pela identificação de suas relações
mútuas como acontecimentos, e pela percepção de algumas qualidades
expressionais, como o caráter pesaroso de uma pose ou gesto, ou a atmosfera
doméstica e pacífica de um interior. O mundo das formas puras assim
reconhecidas como portadoras de significados primários ou naturais pode ser
chamado de mundo dos motivos artísticos. Uma enumeração desses motivos
constituiria uma descrição pré-iconográfica de uma obra de arte (PANOFSKY,
1991, p. 50).

Feita essa primeira etapa, onde se identifica a expressão contida no objeto a ser analisado,
busca-se o conteúdo secundário ou convencional, que consiste na relação existente entre o objeto
já identificado e o tema ou conceito específico que ele representa. Para tal é necessário o
conhecimento de fontes literárias que possibilitem a compreensão do processo civilizatório em
que o objeto visual foi produzido. Nessa etapa a utilização de grandes dicionários e enciclopédias
torna-se indispensável para a identificação e familiarização com os temas e conceitos retratados
no objeto visual.

Realizada essa segunda etapa, resta a interpretação iconológica, que consiste na procura
do que Panofsky chama de significado intrínseco ou conteúdo propriamente dito do objeto visual
que consiste na descoberta dos valores simbólicos deste objeto. Para ele, uma,

(...) interpretação realmente exaustiva do significado intrínseco ou conteúdo


poderia até nos mostrar técnicas características de um certo país, período ou
artista (...) são sintomáticos de uma mesma atitude básica, que é discernível em
todas as outras qualidades específicas de seu estilo. Ao concebermos assim as
formas puras, os motivos, imagens, estórias e alegorias, como manifestações de
princípios básicos e gerais, interpretamos todos estes elementos como sendo o
que Ernest Cassirrer chamou de valores ‘simbólicos’.

A análise de um objeto visual deve partir da sua descrição e correlação com o significado
intrínseco e sua função naquela sociedade, transformando-o em registro de uma época. A
realização destas etapas chega-se ao ponto em que o objeto visual, descrito, identificado e
decodificado, passa a explicar, em conjunto com outros documentos ou solitariamente (no caso
de ser ele o único registro restante), o momento histórico, a conjuntura em que foi concebido,
finalidades e objetivos (PANOFSKY, 1991, p. 50).

REFERÊNCIAS

BORGES, Maria Elizia. Arte Funerária no Brasil (1890–1930): oficio de marmoristas italianos em
Ribeirão Preto. Funerary Art in Brazil (1890-1930): Italian Marble Carver Craft. In: Ribeirão Preto.
Belo Horizonte: Editora C/ Arte, 2002.

CHARTIER, Roger. A História Cultural: entre práticas e representações. Rio de Janeiro: Bertrand,
1990.

COSTA, Paulo Segundo da. Campo Santo: Resumo Histórico. Salvador: Contexto Arte Editorial
LTDA, 2003.
MENDES, Cibele de Mattos. Práticas e Representações Artísticas nos Cemitérios do Convento de
São Francisco e Venerável Ordem Terceira do Carmo: EBA/ UFBA, 2007.

PANOFSKY, Erwin. Significado das artes visuais. São Paulo: Perspectiva, 1991.

PESAVENTO, Sandra Jatahy. História & História Cultural. Belo Horizonte: Autêntica (Coleção
História &.Reflexões), 2003.

REIS, João José. A Morte é uma Festa. Ritos fúnebres e revolta popular no Brasil do século XIX.
São Paulo: Cia das Letras, 1998.

SILVA, Sérgio Roberto Rocha da. SABALLA, Viviane Adriana. Pelotas: A arte imortalizada. Pelotas.
Ed. da UFpel, 1998.

VALLADARES, C. do Prado. Arte e sociedade nos cemitérios brasileiros. Rio de Janeiro: Conselho
Federal de Cultura – Departamento de Imprensa Nacional. 1972.

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