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Arte & Ensaios

vol. 27, n. 41,


jan.-jun. 2021

Universidade Federal do Rio de Janeiro Apoio


Federal University of Rio de Janeiro Support
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Arte & Ensaios
Periódico do Programa de Pós-graduação em Artes Visuais - PPGAV/EBA/UFRJ
Apoio CNPq e Capes
Arte & Ensaios
vol. 27, n. 41,
jan.-jun. 2021 UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO

Reitora: Denise Pires de Carvalho


Decana do Centro de Letras e Artes: Cristina Grafanassi Tranjan
Diretora da Escola de Belas Artes: Madalena Ribeiro Grimaldi
Coordenador do Programa de Pós-graduação em Artes Visuais: Ivair Reinaldim

Cânones em rotação
@2021 autores @2021 Programa de Pós-graduação em Artes Visuais
Imagem da capa: Jaider Esbell. Carta aberta ao velho mundo. Livro-objeto,
posca sobre impressão off-set, 37,5 x 27,7cm, 2019
Foto: Marcelo Camacho

Editoria
Livia Flores (Universidade Federal do Rio de Janeiro, Brasil)
Tadeu Capistrano (Universidade Federal do Rio de Janeiro, Brasil)

Conselho Editorial
Adele Nelson (University of Texas, Estados Unidos)
Jacques Leenhardt (École de Hautes Études en Sciences Sociales, França)
João Paulo Queiroz (Universidade de Lisboa, Portugal)
José Emilio Burucúa (Universidad Nacional de General San Martin, Argentina)
Maria Amélia Bulhões (Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Brasil)
Maria Luisa Luz Tavora, (Universidade Federal do Rio de Janeiro, Brasil)
Michael Asbury (University of the Arts London, Reino Unido)
Paulo Venancio Filho (Universidade Federal do Rio de Janeiro, Brasil)
Pedro Pablo Gómez Moreno (Universidad Distrital Francisco José Caldas, Colômbia)
Ricardo Basbaum (Universidade Federal Fluminense, Brasil)
Roberto Conduru (Methodist University, Estados Unidos)
Sonia Gomes Pereira (Universidade Federal do Rio de Janeiro, Brasil)
Sonia Salzstein (Universidade de São Paulo, Brasil)

Dados Internacionais de Catalogação na publicação (CIP)


(Universidade Federal do Rio de Janeiro, RJ, Brasil)

Arte e Ensaios : Revista do Programa de Pós-graduação em Artes Visuais da Escola de Belas Artes da Universidade
Federal do Rio de Janeiro [recurso eletrônico]. Rio de Janeiro : PPGAV/EBA/UFRJ, vol. 27, n. 41, jan.-jun. 2021.
Semestral
Resumos em português e inglês
ISSN eletrônico: 2448-3338
Disponível tem: https://revistas.ufrj.br/index.php/ae/index
Anual: 1994-2006
ISSN impresso: 1516-1692 (até 2016)

Arte & Ensaios, Rio de Janeiro, EBA/UFRJ, vol. 1, n. 1, 1994 - .


1. Artes Visuais. 2. História e Crítica de Arte. 3. Imagem e Cultura. 4. Linguagens Visuais. 5. Poéticas
Interdisciplinares. I. Universidade Federal do Rio de Janeiro. Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais. II.
Universidade Federal do Rio de Janeiro. Escola de Belas Artes. III. Título: Arte e Ensaios.

CDU: 7.01(05)
Comissão de Políticas Editoriais Marta Strambi (Unicamp)
Ana Cavalcanti (UFRJ) Maurício Barros de Castro (Uerj)
Cezar Bartholomeu (UFRJ) Mayana Redin (UFRJ)
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Paulo Venancio Filho (UFRJ)
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Daria Jaremtchuk (USP) Equipe de produção (PPGAV/EBA/UFRJ)
Dinah de Oliveira (UFRJ) Ana Soares
Doris Kosminsky (UFRJ) André Arçari
Elisa de Magalhães (UFRJ) Ignez Capovilla
Elisa de Souza Martinez (UNB) João Paulo Ovídio
Felipe Scovino (UFRJ) Luisa Marques
Fernanda Albertoni (UFRJ) Marcela Cavallini
Fernando Gerheim (UFRJ) Mario Cascardo
Francini Barros (Ufpe) Paulo Holanda
Frederico Benevides (UFRJ) Thiago Fernandes
Frederico Carvalho (UFRJ) Vanessa Magalhães Pinto
Hanna Claudia Rodrigues (UFRJ) Veronica Valle
Inês de Araújo (Uerj)
Coordenação
Izabela Pucu (pesquisadora independente)
Helena Eilers
Jorge Soledar (UFRJ)
Julia Machado (UFRJ) Editoração eletrônica
Lorraine Mendes (UFRJ) Fátima Alfredo
Luana Aguiar (UFRJ)
Lucas Sargentelli Icó (UFRGS) Projeto gráfico e diagramação
Lucia Gouvêa Pimentel (UFMG) Lu Martins
Luciano Vinhosa (UFF) Revisão
Luiz Cláudio da Costa (Uerj) Maria Helena Torres
Luiza Leite (pesquisadora independente)
Marcelo Campos (Uerj) Tradução
Maria Luiza Fragoso (UFRJ) Elvyn Marshall

Arte & Ensaios


Programa de Pós-graduação em Artes Visuais https://www.ppgav.eba.ufrj.br/
Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ https://revistas.ufrj.br/index.php/ae
Rua Maurício Joppert da Silva, s/n - Cidade Universitária https://revistas.ufrj.br/
Fundão - CEP 21941-972 - Rio de Janeiro - RJ - Brasil Contato: arte.ensaios@gmail.com
SUMÁRIO SUMMARY

EDITORIAL

7 Cânones em rotação
Canons turning
Tadeu Capistrano, Livia Flores

ENTREVISTA

14 Na sociedade indígena, todos são artistas


In indigenous society everyone is an artist
Jaider Esbell

ARTIGOS

50 “Vende tela, compra terra” e outras formas de atuação política do Movimento


dos Artistas Huni Kuin (MAHKU)
“Sell painting, buy land” and other forms of political action by the Movement
of Huni Kuin Artists (MAHKU)
Daniel Dinato
74 Matula cheia de voz: a voracidade vocal de Grace Passô em Vaga carne
A carrier bag full of voice: Grace Passô’s vocal voracity in Dazed Flesh
Maria de Abreu Altberg

93 Filosofias de arkhé como enfrentamento ao ontocídio: oralidade e cultura afro-brasileira


Arkhé Philosophies against the Ontocide: Orality and Afro-Brazilian culture
Mateus Raynner André de Souza

110 Ballet Folclórico Mercedes Baptista: entre brasilidade e negritude no Rio de Janeiro
das décadas de 1950 e 1960
Mercedes Baptista Folk Ballet: between Brazilianess and Blackness in Rio de Janeiro
during the 1950’s and 1960’s
Erika Villeroy
127 Corpos femininos na performance: por uma subversão
Female bodies in performance: for a subversion
Beatriz Nascimento Triles

141 Acontecimento performático para o nascimento de uma vida-virilha: uma


experiência compartilhada
Performative event for the birth of a virilha-life: a shared experience
Sandra Bonomini

167 A alma encantadora do Beco ou as crônicas de um vagabundo: arte drag,


performance e urbanidades
Alley’s lovely soul or the chronicles of a tramp: art of drag, performance and urbanities
Fábio de Sousa Fernandes
193 Dando bandeira: relatos para comunidades imaginadas
Dando bandeira: stories for imagined communities
Caio Riscado
212 Do habitat natural ao sistema da arte: o corpo do animal como evidência do
complexo de mudanças do mundo
From natural habitat to the art system: the animal’s body as evidence of
a changing world
Marco Túlio Lustosa de Alencar

233 Ensaio para o acidental: a loucura e a queda em Rancière, Bas Jan Ader
e dom Quixote
Essay for the accidental: loucura and fall in Rancière, Bas Jan Ader
and Dom Quixote
Daniela Cunha Blanco

251 Monumentos urbanos e arte pública: os obeliscos em rotação


Urban monuments and public art: the obelisks in rotation
Edilson Pereira

279 Performance – empreendimentos [i]mobiliários


Performance – real [e]developments
Bárbara Silva da Veiga Cabral

298 Nem teatro nem cinema: a performance no espaço de exclusão


Nor theatre nor cinema: performance in the exclusion area
Luciano Vinhosa

315 As “situações” gráficas de Anna Bella Geiger e o livre jogo das transfigurações
Anna Bella Geiger’s “situations”: the free play of transfiguration
Luiz Cláudio da Costa

331 “Aqui está a opção do Terceiro Mundo: um futuro aberto ou a miséria eterna”.
Reflexões sobre a obra tardia de Mário Pedrosa
“Here is the Third World option: an open future or eternal misery”: reflections on
Mário Pedrosa’s late work
Luiza Mader Paladino

DOSSIÊ GUY BRETT

350 Beyond Brazil: remembering Guy Brett through his own eyes
Além do Brasil: lembrando Guy Brett através de seus próprios olhos
Michael Asbury
Tradução: Felipe Scovino
DOSSIÊ AMÉRICA LATINA ARTE & COMBATE

409 América Latina | Arte & Combate


Latin America Dossier | Art & Combat
Michelle Sommer

414 Poéticas Situadas


Situated Poetics
Andrea Giunta e Michelle Farias Sommer

423 Algunas preguntas sobre el arte contemporáneo en México


tableros, posiciones y cambios de juego
Some questions about contemporary art in Mexico.
Boards, positions and game changes
Amanda de la Garza Mata

430 Em torno da ordem: arte e instituições no Brasil de agora


About order: art and institutions in Brazil, today
Clarissa Diniz

437 Nuevas latitudes del arte contemporáneo


New contemporary art latitudes
Rodolfo Andaur

448 Vozes negras e suas amplificações nas artes visuais brasileiras


Black voices and their amplifications in Brazilian visual arts
Igor Moraes Simões
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Cânones em rotação

Arte & Ensaios apresenta o número 41, correspondente à chamada pública


“Cânones em rotação”, publicada em dezembro de 2020. Ao final daquele primeiro
ano de pandemia anunciava-se a possibilidade de as primeiras vacinas virem
a ser disseminadas em larga escala pelo mundo, o que de fato aconteceu em
muitos países. Mas não no Brasil. A crise humanitária, ética e política – e, por
que não dizer?, também estética – que vivemos se expressa de forma brutal e
trágica na morte de mais de meio milhão de pessoas. Junto ao luto generalizado,
cresce a precarização e a ameaça de aniquilação de formas de vida minoritárias.
Sabemos que grupos indígenas e a maioria afrodescendente da população são
especialmente atingidos por um processo histórico de longa data que se acirra
de forma radical, o mesmo que, a partir de seu fundamento patriarcal, estende
sua violenta intolerância às questões feministas e dissidências de gênero,
suscitando as mais variadas respostas.
Considerando que o cânone, por sua vez, é igualmente uma construção
histórica, legitimada pela ação (e tradição) crítica de grupos sociais dominantes
que buscam sedimentar suas escolhas na memória social por meio de meca-
nismos de transmissão como a educação e a publicação, abrimos nesta edição
espaço para que vozes plurais imprimam deslocamentos sutis ou enérgicos ao
campo sempre em disputa do pensamento e da escrita sobre arte.
Exemplar de um giro imposto ao cânone modernista, tão central para a
formação cultural brasileira, é a torção proposta por Jaider Esbell, artista e
escritor macuxi, que abre este número com uma das páginas do seu livro Carta
ao velho mundo na capa, seguida da entrevista Na sociedade indígena, todos são
artistas, concedida à revista. Ao reivindicar a agência de seu avô Makunaima, que
vê na oportunidade de colar-se à capa do livro Macunaíma, de Mário de Andrade
(1928), uma forma de ganhar o mundo e escapar à apropriação e à vitimização,
fazendo cumprir sua energia de transformação, Jaider Esbell convida os Macuxi
e outros povos originários e também a nós, não indígenas, a rever posições
PPGAV/EBA/UFRJ relativas ao mito, à história e à arte.
Rio de Janeiro, Brasil
Escolhidos mediante avaliação cega por pares, os 15 artigos subsequentes
ISSN: 2448-3338
DOI: 10.37235/ae.n41.1 trazem questionamentos que contribuem para desdobramentos da temática.
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Trata-se de uma “gira” de textos que incorpora vozes dissonantes e denuncia as


heranças coloniais que assombram o presente. Contra uma atualidade violentada
pelas ofensivas neoconservadoras, a revista abre espaço para a polifonia textual
que ecoa dos movimentos indígenas, da cultura afro-brasileira, da reivindicação
igualitária dos gêneros, da reinvenção das experiências urbanas e do engaja-
mento crítico das práticas artísticas diante do mal-estar contemporâneo.
Por fim, dois dossiês encerram o número. O primeiro é dedicado à memória
de Guy Brett, importante crítico de arte e curador britânico. Falecido em fevereiro
deste ano, Brett foi responsável pelo acolhimento da obra de artistas como
Hélio Oiticica, Lygia Clark, Mira Schendel e Sérgio Camargo no ambiente artístico
londrino da década de 1960, contribuindo desde então para a consolidação da
presença brasileira no circuito internacional de arte. No artigo Beyond Brazil:
remembering Guy Brett through his own eyes, Michael Asbury, historiador, crítico
e curador anglo-brasileiro, retraça a trajetória intelectual do amigo, dando-lhe
voz por meio de excertos de textos de sua autoria que abrangem uma atuação
de caráter cosmopolita e transdisciplinar, aberta a produções culturais e artísticas
não europeias, numa abordagem sensível e precursora do que viria a ser chamado
de virada decolonial. De forma sucinta, o artigo indica múltiplas entradas ao
legado crítico de Guy Brett, que extrapola largamente sua relação com o Brasil.
Entretanto, justamente devido a seu interesse para pesquisadores, apresentamos
junto ao texto original em inglês, a tradução para o português gentilmente realizada
pelo crítico, curador e professor Felipe Scovino.
O segundo dossiê, América Latina: arte & combate, organizado pela
pesquisadora e curadora Michelle Sommer, reúne uma entrevista a ela concedida
por Andrea Giunta (Argentina) e quatro breves ensaios críticos de Amanda de la
Garza Mata (México), Clarissa Diniz (Brasil), Rodolfo Andaur (Chile) e Igor Moraes
Simões (Brasil). Esses textos integraram a edição especial da revista francesa
Artpress sobre América Latina (2020), coeditada por Michelle Sommer e Diego
Milos (Chile) a convite da crítica de arte francesa Catherine Millet. Em seu
conjunto, ora publicados em seus idiomas originais, eles desenham um panorama
extremamente complexo e rico de questões que emergem das práticas artísticas
e curatoriais e/ou institucionais no contexto latino-americano. Nele reconhecemos
muitos dos tópicos que atravessam a presente edição, colaborando para nos
refletir no amplo campo das “poéticas situadas”, expressão utilizada por Andrea
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Giunta, que nos parece especialmente produtiva para pensar impulsos funda-
mentais à criação e à crítica em meio ao intenso e urgente aqui e agora em que
nos encontramos.
Expressamos nossa absoluta solidariedade à dor e ao luto das pessoas
que sofreram a perda de entes queridos nesses tempos sombrios. Lembramos
os tantos e tantas artistas, pensadores e ativistas que fazem falta ao país e cujas
mortes por covid-19 lamentamos profundamente.
Agradecemos a todas as pessoas que colaboraram com sua energia e
profissionalismo para que o número 41 da Arte & Ensaios viesse a público:
autoras e autores, avaliadoras e avaliadores, integrantes da equipe de produção
composta por estudantes do PPGAV-UFRJ e profissionais responsáveis pela
revisão, tradução do editorial, design e editoração eletrônica. Por fim, registramos
especiais agradecimentos aos ex-editores Tatiana da Costa Martins, Felipe Scovino
e Rogéria de Ipanema, que nos confiaram um importante legado de atualizações
nas práticas e modos de funcionamento da revista Arte & Ensaios qualificando-a
para enfrentar os desafios de dar continuidade ao trabalho de formação e difusão
do conhecimento na área de artes. Que venham dias melhores para a saúde, a
cultura e a educação!

Livia Flores
Tadeu Capistrano
Editoria Arte & Ensaios

Como citar:
FLORES, Livia; CAPISTRANO, Tadeu. Cânones em rotação. Arte & Ensaios, Rio de
Janeiro, PPGAV-UFRJ, v. 27, n. 41, p. 7-9, jan.-jun. 2021. ISSN-2448-3338.
DOI: https://doi.org/10.37235/ae.n41.1. Disponível em: http://revistas.ufrj.br/
index.php/ae
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Canons turning

Arte & Ensaios presents number 41 corresponding to the public call for
Canons turning, published in December 2020. At the end of that first pandemic
year the possibility of a large-scale dissemination of the first vaccines worldwide
was announced, which in fact occurred in many countries – but not in Brazil. The
ethical, humanitarian and political – and why not also aesthetic crisis – which
we experience, is expressed brutally and tragically in the death of more than half
a million people. Alongside the generalized struggle, there is an increase in the
instability and threat of extermination of nonhegemonic ways of life. We know that
in the population indigenous groups and most people of African descent are being
especially affected by a longstanding historic process that is steadily intensifying.
The same process that from its patriarchal roots stretches its violent intolerance to
feminist issues and gender dissents, eliciting a wide variety of responses.
We consider that the canon, in its turn, is also a historic construction legitimized
by critical action (and tradition) of dominant social groups seeking to sediment their
choices in the social memory through transmission mechanisms such as education
and publication. So we open up this edition to multi-voices boosting vibrant or
subtle displacements to the field forever in dispute of reflection and the written
word about art.
An example of a spin put on the modernist canon, so central for Brazilian
cultural formation, is the twist proposed by Macuxi artist and writer Jaider Esbell
who opens this edition with one of the pages from his book Letter to the Old World
[Carta ao velho mundo] on the cover, followed by the interview In the indigenous
society, everyone is an artist given to the magazine. After claiming through his
grandfather Makunaima who sees in the opportunity to adhere to the cover of
Macunaíma, the book by Mário de Andrade (1928), a way in which to win the world
and flee from appropriation and victimization, upholding his energy of transformation,
Jaider Esbell invites the Macuxi people and other indigenous nations as well as our
own non-indigenous people, to review positions relating to myth, history and art.
Selected from a double blind review, the 15 subsequent articles address
PPGAV/EBA/UFRJ
questions that contribute to developments of the theme. This is a “spin” of texts that
Rio de Janeiro, Brasil includes dissenting voices and denounces colonial legacies that haunt the present
ISSN: 2448-3338
DOI: 10.37235/ae.n41.2
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day. Against a reality violated by neo-conservative offensives, the magazine makes


room for the textual polyphony echoing from the indigenous movements, from the
Afro-Brazilian culture, from gender equality claims, urban rebranding and the critical
engagement of artistic practices faced with the contemporary malaise.
Lastly, two dossiers close the current edition. The first is dedicated to the
memory of Guy Brett, influential British art critic and curator who died in February
this year. Brett was responsible for welcoming the work of artists such as Hélio
Oiticica, Lygia Clark, Mira Schendel and Sergio Camargo to the London art world
of the 1960s, contributing since then to consolidating the Brazilian presence in
the international art circuit. In his article “Beyond Brazil: remembering Guy Brett
through his own eyes”, Michael Asbury, British-Brazilian historian, critic and curator,
traces back his friend’s intellectual journey, giving him a voice through excerpts from
texts of his authorship that covers a cosmopolitan cross-disciplinary performance,
open to non-European art and cultural productions, in a groundbreaking sensitive
approach that came to be called a decolonial turn. In short, the article opens
many gateways to the critical legacy of Guy Brett, which broadly extrapolates his
relationship with Brazil. However, precisely because of its interest for researchers
in the country, we present both Asbury’s original text in English and the Portuguese
version kindly translated by the critic, curator and professor Felipe Scovino.
The second dossier, Latin America: art & combat, organized by the
researcher and curator Michelle Sommer, combines her interview with Andrea
Giunta (Argentina) and four short critical essays by Amanda de la Garza Mata
(Mexico), Clarissa Diniz (Brazil), Rodolfo Andaur (Chile) and Igor Moraes Simões
(Brazil). Those texts were part of the special edition of the French magazine Artpress
about Latin America (2020), co-edited by Michelle Sommer and Diego Milos (Chile)
at the invitation of French art critic Catherine Millet. Together the texts, now published
in their original languages, portray an extremely complex rich panorama of questions
arising from the artistic and curatorial and or institutional practices in the Latin
American context. Here we recognize many of the topics addressed in this current
edition, collaborating for us to reflect on the wide range of “situated poetics”, a
term used by Andrea Giunta, who appears to be especially productive in thinking of
fundamental boosts for the creation and critique amidst the intense urgent here
and now in which we find ourselves.
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We express our wholehearted solidarity for the pain and grief of those who
have suffered the loss of loved ones in these dark times. We remember so many
artists, thinkers and activists who are so sadly missed in the country and whose
deaths from Covid-19 we deeply mourn.
Thank you all who have collaborated with your energy and professionalism so
that number 41 of Arte & Ensaios is available: authors, appraisers, members of the
production team made up of students from the Post-graduate Program of Visual
Arts of the Federal University of Rio de Janeiro (PPGAV-UFRJ) and professionals
responsible for revision, editorial translation, design and desktop publishing.
Lastly, we give special thanks to the former editors Tatiana da Costa Martins,
Felipe Scovino and Rogéria de Ipanema, who entrusted us with a valuable legacy
of updates in working practices and methods of the Arte & Ensaios magazine,
enabling it to confront the challenges to continue the formation and dissemination
of knowledge in the field of Arts. Hoping for better days to come for health,
culture and education!

Livia Flores
Tadeu Capistrano
Editorial Arte & Ensaios

Como citar:
FLORES, Livia; CAPISTRANO, Tadeu. Canons turning. Trad. Elvyn Marshall. Arte &
Ensaios, Rio de Janeiro, PPGAV-UFRJ, v. 27, n. 41, p. 10-12, jan.-jun. 2021. ISSN-
2448-3338. DOI: https://doi.org/10.37235/ae.n41.2. Disponível em: http://revistas.
ufrj.br/index.php/ae
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ENTREVISTA 14

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Na sociedade indígena, todos são artistas


In indigenous society everyone is an artist

Entrevista de Jaider Esbell a Arte & Ensaios, com a participação


de Anderson Arêas, Clarissa Diniz, Daiara Tukano, Livia Flores,
Paula Berbert, Pedro Cesarino e Ronald Duarte, realizada
em 15 de abril de 2021 por via remota.

Livia Flores / Em primeiro lugar eu agradeço a presença do Jaider, a gene-


rosidade em disponibilizar o seu tempo, hoje em dia altamente disputado, para
estar conosco e conversar sobre a sua vida, obra, vida-obra de artista e escritor
makuxi. Agradeço também aos interlocutores e interlocutoras que puderam
atender a nosso convite para participar da entrevista. Estão aqui Daiara Tukano,
artista e ativista dos direitos indígenas; Paula Berbert, antropóloga, educadora
e articuladora de projetos ligados à pesquisa e ação em arte indígena contem-
porânea; Clarissa Diniz, curadora, escritora e professora em arte; Ronald Duarte,
artista e arquicolaborador da Arte & Ensaios; Anderson Arêas, doutorando do
PPGAV, com pesquisa em arte indígena contemporânea; e Pedro Cesarino,
professor da USP, antropólogo e escritor, que não pôde juntar-se a nós por
conta de outros compromissos, mas enviou perguntas que lerei em breve. Tenho
certeza de que o tempo vai ser curto para as muitas perguntas que irão surgir.
Então, para dar o pontapé inicial, eu destaco que a capa desta edição da Arte &
Ensaios é a primeira ocupada por um artista indígena contemporâneo, o que é
motivo de grande alegria para nós. Lembro também que a temática deste número,
“cânones em rotação”, é certamente inspirada no gesto do Jaider. Considero que
ele imprime um giro fundamental ao grande cânone da cultura brasileira − o
cânone modernista − ao se assumir neto de Makunaima e, com isso, reivindicar a
agência do ancestral que se cola à capa do livro de Mário de Andrade por vontade
própria, por desejo de intervenção no debate cultural.1 Ao mesmo tempo, Jaider

PPGAV/EBA/UFRJ
Rio de Janeiro, Brasil
1
A esse respeito, ver Makunaima, O meu avô em mim!, texto de Jaider Esbell publicado na revista
ISSN: 2448-3338 Iluminuras, BIEV/LAS/PPGAS/IFCH/UFRGS, Porto Alegre, v.19, n.46, jan-jul 2018, disponível em
DOI: 10.37235/ae.n41.3 https://seer.ufrgs.br/iluminuras/article/view/85241/49065
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Entrevista de Jaider Esbell a Arte & Ensaios 15

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restitui ao seu povo uma voz que foi confiscada e a restitui para contestar os
célebres mal-entendidos da preguiça e da falta de caráter. Então, minha pergunta,
para começar, é se é daí que vem a sua virada como artista, como pensador e
propositor de um “sistema de arte indígena contemporâneo”. Nessa formulação
me chama atenção a palavra “sistema”. Então uma segunda pergunta é: por que
o uso dessa palavra? Jaider congelou? Acho que ele caiu.
Jaider Esbell / … a ideia do sistema. Então, eu acredito que hoje, Livia
e amigos que estão aqui reunidos, eu começo a ter um pouco mais dessa
dimensão do que eu tenho tentado fazer, que une essas expoências, que é a
identidade, que é cultura, arte…
[Problema na conexão]
JE / Então, Livia, eu estava falando dessa consciência da pesquisa e da
trajetória. De entender como esses mundos se aproximam. Essa é uma forma
de pensar para sair da forma de mundo “engolindo o mundo” ou “acabando com
o outro mundo”. Acho que esse pensamento enquanto sistema busca alimentar
outra ideia de lógica, juntar elementos ainda tão dispersos. A forma como as
sociedades que estavam aqui desde sempre foram sendo apresentadas de
qualquer jeito, sob outros valores. Então, digamos, tudo é mesmo uma estratégia.
Pensar os fazeres indígenas enquanto práticas artísticas, enquanto estados da
arte. Botar isso tudo num sistema porque aí conseguimos sinalizar um princípio,
uma conexão de gênese e um sentido que não se dissocia da sua lógica, da sua
aplicabilidade. E isso coloca uma possibilidade de tentar ver o que o povo fala
dessa coisa do “tempo circular” — “o tempo dos indígenas é um tempo circular”.
Então vamos colocando essas palavras, essas proposições, como a própria AIC.
Buscar esse contraponto, de chamar de arte indígena contemporânea, até porque
precisamos nos sentir ali dentro, não é? Enquanto essa ideia da autoria também,
passando já para o campo do pensamento.
LF / Você entende como uma estratégia linguística, não é? De formação
de um conceito, de uma tomada de posição?
JE / Como eu falei, essa consciência de ser neto de Makunaima vem sendo
construída ao longo do tempo, com essa criticidade. No meu caso, mergulhando
para dentro da própria cultura, me encontrando mais nisso tudo. Então, o livro
Terreiro de Makunaima, lá de 2009, vem como um primeiro elemento, uma peça
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gráfica, artística, uma publicação literária, conceitual, sei lá. Ela já vem sinalizando
para esta análise: entender o que é esse Macunaíma, e ao mesmo tempo,
ir engordando, alimentando mais o Makunaima desses contatos da matriz do
povo. E aí você vai para esse mundo artístico, você vai fazer o quê? Você não vai
procurar uma narrativa ou outra para explorar, tem muitos elementos já de
lógica de pensamento: o Makunaima está há mais de 100 anos aí, tem essa coisa
toda da cultura, do Modernismo, identidade e tudo. E tem também esse levante
dessa identidade que está sendo requisitada aqui no Brasil por pessoas de
várias gerações e realidades. Então a história do Macunaíma serve para motivar
essas pessoas a buscar suas raízes, suas histórias. É possível falar de outras pos-
sibilidades; são várias coisas que vêm com esse trabalho. Acho que o Makunaima
serve para muita gente, para muitos povos; ao mesmo tempo que é reflexo dessa
ideia de cultura e Brasil, ele chama para essa diversidade toda.
LF / É uma pluralidade articulada, não é? Porque me parece que é para
isso que a palavra “sistema” aponta. Uma articulação de diferentes elementos e
agentes. Passo a palavra para quem quiser continuar com uma pergunta.
JE / Só não me perguntem como é o meu processo criativo. [risos]
Ronald Duarte / Eu queria falar, mas não nessa direção de sistema nem
nada disso. Eu queria ir lá para a floresta. Porque Makunaima tem toda essa relação
com brasilidade, com Macunaíma, e eu pensei em falar de canaimé, Jaider. Fala
um pouco do canaimé para nós. Você pinta tanto ele, cara.
JE / O canaimé é uma das primeiras figuras que eu retrato dentro da
produção pictórica. Está tanto na publicação do primeiro livro quanto numa tela
de 2011, da primeira leva de produção. O canaimé é essa figura muito presente
nas culturas que se partilham aqui no chamado circum-Roraima, as etnias que
se comungam aqui, tanto os Karíb quanto os Arawak os Wai Wai e os Wapichana.
É um objeto de curiosidade, de pesquisa e de fascínio, muito associada à figura
do mal, do fantástico, e também à figura do sobrenatural, da metafísica, essas
paradas todas. Em resumo, o canaimé é um estado, um estado performático,
transitório, metamórfico mesmo, porque se trata de manipulação de poder, de
feitiços...
RD / Congelou, será? Foi falar em feitiço…
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Figura 1
Jaider Esbell,
O Ataque do Kanaimé, 2011,
acrílica sobre tela,
168 x 129cm
Foto: Marcelo Camacho
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JE / Eu estava falando de como o canaimé se constitui, que é um indi-


víduo, uma pessoa que tem curiosidade de saber como funciona esse mundo
e vai atrás desses conhecimentos. E vai fazendo a aproximação desse estado
de ser canaimé. Essas informações são conhecimentos preciosos, que não se
repassam de qualquer modo, não é? São formações mesmo. As pessoas querem
se tornar canaimé e acabam achando um mestre, ou os mestres achando seus
iniciados e começam a manter essa prática, que é o domínio de algumas orações
que têm a capacidade de abrir portais. As orações trazem energia para o mundo
de cá, e junto com a relação que se desenvolve com o espírito de algumas
plantas, então, como fazem cultos, como alimentar as plantas com sangue, outras
coisas, vão juntando esses saberes até chegar na condição de virar o canaimé,
de estar na corporificação do canaimé. E quanto mais avançado é o estudo do
canaimé, ele pode realmente desaparecer e se transformar em outras coisas,
pássaros, sumir e tal. Ele está associado à ideia de justiça para uns e maldade
para outros, porque o canaimé sempre faz um ataque, como se fosse a vingança
de alguém. Uma comunidade ou uma família teve uma intriga com outra família,
as pessoas não vão meter as suas mãos no sangue, não é? Então elas invocam
canaimé, contatam o canaimé, e o canaimé vai e faz justiça. Então realmente é
uma morte muito severa, perversa mesmo. Quando não são depositados feitiços
também, em que a morte é lenta, gradual... Uma prática muito bem elaborada,
sofisticada, de praticar vários feitiços e também a violência física propriamente
dita. O canaimé faz esse trabalho, maltrata as pessoas, bate, deixa bastante
maltratada. A pessoa vai para casa, quando dá tempo de chamar um pajé, o pajé
vem, e quando o pajé é bom, ele descobre qual foi canaimé que atacou, qual o
motivo, quem mandou fazer e tal. São formas em que a cultura se complementa
e se desafia, não é? Porque se tem o canaimé, tem o pajé, e no meio disso tudo
tem o reles mortal, que é o parente que foi pescar, o parente que foi caçar... O
que também está muito associado com a ideia do equilíbrio social no campo da
justiça, do direito. Seria uma lei comunitária, uma lei entre sociedades. Então
o canaimé é um pouco de tudo isso. Uma das formas mais relatadas é que ele
aparece vestido de pele de animais, grandes ou pequenos, enfim, é uma com-
posição de adereços que artisticamente é muito interessante. Impressionante
como essas entidades se compõem com esses elementos da natureza, sendo da
própria natureza, não é? Ela busca não só espiritualmente, mas plasticamente a
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constituição dessa vestimenta. É muito interessante, não é? Essas composições


com couro, pele, unhas, dentes, as várias faces com que o canaimé se apresenta.
Essa diversidade é uma coisa que me fascina muito artisticamente. E aí eu tenho
levado essa poética, essa narrativa, enfim, essa curadoria para a Bienal. Que é
trabalhar a ideia de guerra de mundos, de conflito a partir da própria figura do
canaimé. Como ele interage com o mundo, como se forma, como se desforma,
falando dessas camadas de sobreposições de corpos e forças ou sutilezas mesmo,
e o contexto disso na ideia de cultura, e principalmente na ideia de presente.
RD / Jaider, eu fiz essa pergunta justamente pelo momento que estamos
vivendo. É muito a energia do canaimé, não é?
JE / Tem, tem muitos canaimés, lobisomens, esses bichos assustadores.
Eles estão por aí. Mas ao mesmo tempo essa questão é interessante porque esse
estado que estamos vivendo, de sobressalto, de susto, de medo, é uma coisa
que acaba nos aproximando da nossa própria origem. De entender que a floresta
é um lugar a que se deva recorrer mas que, ao mesmo tempo, tem seus próprios
mundos, seus próprios ciclos. Tudo o que acontece dentro da floresta, como se
constitui, as várias coisas que acontecem e findam por ali mesmo. Então vemos
que o fim do mundo não é uma coisa única, um evento isolado, instantâneo e
definitivo. É um negócio que acontece simultaneamente.
LF / Talvez o recurso a essas figuras míticas da cultura tenha um pouco
a ver com a pergunta do Pedro Cesarino sobre quais são as matrizes das quais
você parte para a produção do seu trabalho. E como é que você pensa a autoria
na produção das suas obras.
JE / Acho que “matriz” que o Pedro fala deve ser o fundamento, não é?
Como eu falei, eu venho tentando usufruir um pouco desse privilégio, conside-
rando que a maioria dos povos não tem isso, uma clareza mínima do seu ponto
de conexão com o mundo terreno e com o mundo cósmico e tal. Então eu
venho tratando de entender como a mídia, o fascínio, essa coisa da coloni-
zação icônica vem e nos estabelece, por exemplo, coloca o Macunaíma como
uma grande figura, para o bem ou para o mal. Mas como isso também impacta
esse equilíbrio das naturezas das entidades. Por exemplo: Makunaima, Anik’ê,
Insikiran, Sikan são quatro, pelo menos, são seres superpoderosos e tal, essa
coisa toda. E aí o Macunaíma acaba levando a cena porque vai para capa do
livro porque alguém achou as histórias dele mais interessantes, ou cometeram
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Figura 2
Jaider Esbell,
Berçário de Kanaimé, 2021,
posca e acrílica sobre tela,
100 x 75cm.
Foto: Marcelo Camacho
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essa coisa de desconectar a história de um dos demais. Então a minha pesquisa


vem de como isso se constitui. E de como podemos, a partir da compreensão
mínima de como esse intrincamento se faz, desintrincar um pouco. E ao mesmo
tempo, como não entender que o caminho da usurpação, do roubo, do vilipêndio
seja o único caminho em que conseguimos aparecer dentro dessa conexão, desse
súbito de mundos, que é essa coisa da colonização em cima de nós. Então não
tínhamos nenhuma opção, nenhuma estratégia, não saberíamos usar nenhum
dos nossos encantamentos para nos infiltrar subjetivamente nesse sistema que
chegou tão avassalador, então essa coisa de... bom, Makunaima talvez ele tenha
de fato querido estar na capa desse livro para fazer um pouco esse movimento
todo, servir de evidência de uma possibilidade dentro de milhões que podem ter,
e tem de fato. E é isso. A forma que eu tento viver essa coisa toda da vida dentro
da cultura que é uma coisa tão distante, não é? Então eu vivo tentando entender
isso. De fato não somos mitos, tem até uma narrativa de um livro que estamos
produzindo. De uma hora para outra, descobrimos que já estamos vivendo em
estado de mito, não é? Somos um mito. O índio é um mito. Então é muito divertido,
no mínimo, ser artista indígena, viver dentro da história. A história que vazou, se
não nos alcançou, estamos tentando entrar nela. A história e a arte e o mito, tudo
passando junto.
LF / Então eu vou aproveitar para fazer a terceira pergunta do Pedro
Cesarino. Acho que se conecta bem com algumas das coisas que você falou. A
questão ética, com relação ao seu povo. Ele pergunta quais são os vínculos éticos
que dão sentido à AIC e como eles se diferenciam da arte contemporânea.
JE / Eu acho que esses vínculos éticos… primeiro que a ética é colocada
como uma coisa para olhar de longe, não é? Quando estamos trabalhando
a própria vida, estamos manipulando, vivendo, performando a nossa existência,
estamos tentando fazer com que nós não nos compreendamos como à parte
de uma continuidade. Quando hoje, por exemplo, evitamos falar a palavra
“ancestral” e tentamos falar mais “os nossos parentes mais velhos”, ou “nossos
vovôs”, a coisa muda um pouco, não é? Como falei, eu tenho usufruído muito de
todo esse composto, embora muita coisa ainda fragmentada, não é? Mas temos
de fato uma raiz, uma lógica e também uma ética de mundo, de se posicionar
e tal. E para nós, para o povo makuxi, temos avançado bem nesse sentido da
comunicação, de como usufruir da nossa cultura, com a liberdade de transitar
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nisso. Então o meu deslocamento desde a Raposa da Serra do Sol, a passar por
outros lugares da estrutura urbana e da teia do que sejam as cidades e tudo. E
é mais um pouco desse passeio para poder estar analisando esses sistemas,
como eles funcionam. O nosso trabalho é feito dentro do campo da autoria, do
posicionamento do indivíduo. E aí, chega um ponto em que começamos a emitir
os relatórios, fazer as prestações de contas, mostrar para as comunidades o que
estamos fazendo. Porque para as sociedades indígenas, quem sai da aldeia deve
voltar com alguma coisa, deve dar um retorno, alguma resposta, porque para nós
os mundos não se desintegram assim tão facilmente. Não existe essa de “cortei
relações com a aldeia, não sou mais isso”. Por mais longo que o bordejo do
parente possa parecer, ele nunca vai estar exatamente além dessa ligação que
não chega a ser um compromisso, mas é uma conexão. Ao mesmo tempo que esse
passeio no mundo até subverte alguma coisa, essas coisas da lógica, pensando
como os elementos da cultura são trabalhados pelos próprios indígenas. Enfim,
é muito complexa a pergunta do Pedro, a questão da ética. Mas, em princípio,
para mim, ela funciona exatamente dentro desse posicionamento, de entender
sua função enquanto uma estrutura social que está em deslocamento constante,
enquanto sociedade, falando da relação com o Estado, com a sociedade dominante.
Então, essa noção de ética que o Pedro fala muitas das vezes ela não funciona, não
faz o menor sentido. Por exemplo, quando colocamos a própria atuação do canaimé,
uma coisa que não tem lógica, e até a ideia de justiça não cabe, não é? Pensando
que a ideia de justiça, de valores que estamos tratando, é o valor de um elemento
colonial, não é? Então tem horas que não há conexão. E outras vezes tem, talvez
falte avançar mais nessa questão da tradução.
Clarissa Diniz / Queria pedir para Jaider, se possível, falar um pouco mais
sobre a ideia de transformação e a centralidade que a transformação tem na sua
vida, pensamento, obra. Mas também como tensiona e torna mais complexa uma
estrutura muito binária de mundo que ancora a própria experiência da arte numa
ideia de criação meio tabula rasa. E o modo como você experimenta, performa,
usa, reivindica a ideia de transformação traz uma riqueza de possibilidades. Então,
se você puder falar um pouquinho mais de transformação, seria legal.
JE / Então… Essa natureza inconstante da turma do Makunaima acaba
sendo motor para pensarmos as coisas como uma frequência de passagens, de
um estado para o outro, que acontece em várias velocidades e cada uma tenta
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chamar atenção para si, e algumas conseguem estar mais presentes na nossa
lógica de mundo, visão, sensação, audição, percepção, e outras não conseguem
estar na tela principal das nossas sensibilidades, digamos assim. Então você vê
um pássaro que voa. É algo que acontece rápido, passou, voou. Você não
consegue, por exemplo, ver uma montanha que está crescendo, não é? Eu tive
a chance de ver. Quando eu estava nos Estados Unidos, fui caminhar nessas
montanhas novas que ainda estão em formação. Você vê aquelas pedrinhas
rolando, tipo uma avalanche de pedregulhos, a montanha está em movimento,
está crescendo. Então colocamos isso tudo dentro do que é a razão da nossa
vida. Acho que o tempo da nossa vida acaba sendo como um quadro mesmo,
um negócio expositivo, né? Porque as coisas só ganham essas estabilidades,
esse sentido, enquanto estamos vivos, não é? Enquanto estamos aqui, de
corpo e matéria, pesado no chão, não pode ter tanta fluidez. Depois que morreu,
que volta para o campo espiritual, então você volta a fazer parte dessa conexão
muito mais dinâmica, interativa e integrada. Eu estava pensando hoje de manhã
mesmo: eu tenho dificuldade em pensar, em criar nos formatos mais retan-
gulares, alinhados, diretos. Sou muito mais circular, muito mais linhas soltas
e essas energias que se entrecruzam. Dentro da minha capacidade, tento expe-
rimentar esse tempo da transformação contínua, que é esse em que Macunaíma
vem andando, passando, tocando nas coisas ou erguendo a mão, falando palavras
de comando, e as coisas vão se transformando. E aí no outro momento, ele vem
voltando e desfazendo aquilo, e já em outras coisas exemplificando como é
possível criar seu próprio ambiente ou não aprisionar forma, não eternizar nada,
não colocar nada como definitivo, duradouro demais. Isso tudo é muito fascinante.
E aí, acho que essa aproximação mais cuidadosa com as medicinas também
vem nos auxiliando nessa compreensão mínima de como a transformação ou o
movimento... nesse borbulhar das ideias que surgem, podem ser propostas
enquanto linhas de pensamento e de possibilidades de sair desse estado de
apatia. Como podemos encontrar recursos que passam pela própria anatomia,
não é? Como nosso corpo está preparado para estar na floresta, como ele sofre
quando esse distanciamento é provocado de forma súbita, não é? Como temos
que transformar, buscar elementos da sutileza da transformação para aplicar
onde estivermos e ir nos transformando. Porque nós tentamos dar outro sentido
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Figura 3
Jaider Esbell,
A guerra dos Kanaimés 5,
2020, posca e acrílica
sobre tela, 145 x 110cm.
Foto: Marcelo Camacho
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para a palavra transformação, coloca ela muito longe da realidade, nesse


campo de uma coisa gloriosa porque é raro acontecer. Mas nos transformamos
constantemente, nos adaptamos, nos adequamos – nós performamos, como se
fala. Se eu estou na cidade é uma performance de cidade, se estou na aldeia é
uma performance de aldeia, e se, de repente, vou de uma região para outra, a
performance tem que mudar, mas uma essência fica, não é? Que é a clareza de
que há de fato uma necessidade de adaptabilidade para cada situação; isso
também é, de certa forma, um sistema, uma transformação também.
RD / Mas, Jaider, eu fico curioso, porque tem uma hora que esse Makunaima
aí fica meio Jesus Cristo, sei lá, não sei se eu estou viajando. Esse lance de sair
andando e deixando a parada lá, como é que faz, não sei o quê. Será que não tem
uma influência católica? Como é essa relação aí? Porque eu fiquei meio chocado
daquela vez que você trouxe o Mário Taurepang aqui para o ateliê, e o cara é
evangélico, lembra? E o cara foi cantar um hino evangélico em Taurepang, para
o nosso amigo…
JE / Zeca Ligiéro.
RD / Então, essa experiência foi interessante, e essa relação que a Igreja
entra nas tribos, como essa transversalidade entra na situação... Cadê o Jaider? Caiu?
JE / Estou aqui, Ronald. Não, essa passagem que eu te falei do Makunaima
andando para lá e cá, enfim, tem a história e tem a evidência, não é? Porque
tem uns lugares lá que tem as pegadas gigantes do Makunaima mesmo, tem as
pedras em formato de bicho e tal. Então, é a história do Makunaima, a história do
povo macuxi, da cultura macuxi; ela não tem nada exatamente especial, é uma
cultura como qualquer outra ou talvez o que diferencie seja a estrutura material
que nós temos, não é? Temos o tronco da grande árvore, da Wazaká. Então,
Makunaima jogou essa árvore no chão e do tronco da árvore minou água que
inundou toda a região, acabou o mundo. Isso é o dilúvio da Bíblia, está lá na
Bíblia, não é? Antes de Jesus Cristo. Então é uma cultura que tem um fundamento
muito antigo, ela não se diferencia muito da grande ideia de cultura, não é? Tem
uma grande árvore, tem um deus, tem todo um sofrimento, tem toda uma pere-
grinação e tal. A história do Makunaima, como se conseguiu rastrear até agora
pelos mais antigos, conta essa excepcionalidade dele, de ser assassinado pelos
filhos e depois ressuscitar. Então a história tem essas passagens todas, e são, de
uma certa forma, muito próximas do cristianismo, e de várias outras filosofias.
E aí, o que diferencia, como eu te falei, talvez seja essas evidências, não é? De
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que temos de fato o tronco da grande árvore, e essa árvore foi cortada, jogada no
chão, e essas sementes se espalharam no mundo, no universo, pela velocidade
da queda da árvore, estão até hoje circulando por aí, brotando, se miscigenando,
né? Então acho que Makunaima, a história do povo macuxi, não tem essa
reivindicação de uma pureza, de uma raiz única. Ao redor do Monte Roraima tem
muitas outras árvores que já foram cortadas em outros tempos, em outros fins
de mundo, que já foram construídos e reconstruídos, mas até onde se entende,
a árvore que foi cortada por último é esse Monte Roraima, e a última floresta viva
é essa Floresta Amazônica, não é? Dentro dessa lógica, a Floresta Amazônica é a
copa dessa grande árvore, de todos os saberes, de todas as coisas que existem.
Esse tronco acaba graficamente, geograficamente, fisicamente, servindo como
uma potência de ilustração para esse questionamento de mundo, mas como é
que isso funciona? Está ali uma evidência. Se o que a ciência quer é a evidência,
tem a prova, que é o tronco da grande árvore. E que para dentro da grande árvore,
da raiz, tem o buraco onde os Macuxi têm o mundo reserva, não é? A história de
que a galera vai para outro lugar depois que aqui já acabou, que é o ovo, a rainha,
a ideia de como a natureza vai, a origem das coisas, a fonte. É um pouco assim
que funciona a cultura.
CD / Jaider, sobre essa coisa do cristianismo que o Ronald falou, lá num
trecho de O meu avô em mim, você diz que uma diferença entre Cristo, a narrativa
bíblica cristã, e a história do Makunaima, é que Makunaima não estaria na chave
vítima-mártir. Acho que quando você nos conta sobre a agência de Makunaima,
você também desmonta esse complexo da vitimização e da martirização. E aí você
fala uma coisa que eu acho muito massa, que é sobre a coragem, sobre os atos,
os gestos plenos de coragem, como o próprio corte da Wazaká que você narra,
que são cortadas nessa aposta do tempo, numa escala muito maior. E eu acho
muito bonito quando nessa hora você fez essa diferença, já que estamos falando
de religião, de cristianismo, e dessa chave, de coragem versus martirização, ou
vitimização. Acho que você usa talvez os dois termos, não lembro exatamente
qual. É algo que me veio na pergunta de Ronald.
JE / Então, um dos elementos bem marcantes, se é que precisa dessa coisa
de um diferenciador do makunaimismo para o cristianismo, essa coisa de ser
essencialmente do bem. Makunaima nunca tem essa reivindicação de ser um
elemento que represente o bem. Dentro da estrutura da língua, aliás, a termino-
logia Makunaimã, o “ã” significa o mal, o grande mal. Ele vem de uma natureza,
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Entrevista de Jaider Esbell a Arte & Ensaios 27

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Figura 4
Jaider Esbell,
A guerra dos Kanaimés 6,
2020, posca e acrílica
sobre tela, 145 x 110cm.
Foto: Marcelo Camacho
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não diria que seja uma natureza de paz e harmonia, ele vem de uma natureza
de constância. De uma frequência de convulsão, não é? Então o que é essencial
nessas passagens de Makunaima é essa coisa de desestabilizar. De tirar a situação
de um ponto de equilíbrio e a colocar para andar, para movimentar. Então mexe
com a zona de equilíbrio mesmo, é uma energia forte, propulsora, provocadora,
ela vem passando para fazer com que alguma coisa se movimente ali naquele
momento, naquela ocasião, um pouco isso.
LF / Jaider, pegando aqui um gancho na pergunta da Clarissa sobre a trans-
formação, você está sempre performando a própria transformação, me parece.
Vendo seus trabalhos mais recentes − um vídeo que está no site do Instituto
Moreira Salles ou a live que você fez na abertura da exposição na Galeria Milan, se
colocando em estado performático, eu percebo uma ampliação enorme de seus
recursos, dos materiais que você usa, das direções pelas quais o seu trabalho vai
se expandindo. Achei bem interessante no vídeo do Instituto Moreira Salles, que
você coloca uma paleta e um instrumento de medição. Eu não consegui identificar
muito bem o que era, mas deixa evidente a presença da tecnologia como um
instrumento de trabalho. Se você puder falar um pouco sobre isso…
JE / Então, o que acontece é que eu tento pensar que, artisticamente ou
enquanto um ser sobrevivente de tanto tempo, até mesmo privilegiado por fazer
parte disso tudo, que, de fato e consciência, podemos usufruir de qualquer coisa
que exista neste mundo. E tudo que há de recurso, tecnologia, conhecimento,
acaba sendo também nosso, de direito, direito de usufruto, de experimentação,
direito de aplicar isso no nosso corpo, na nossa voz, na nossa entrega. Artisti-
camente, para mim, tem funcionado muito essa evolução. Não vamos falar de
evolução... nesse caminhar, nessa entrega de entender a sutileza que há entre a
coisa da espiritualidade, da arte, da política. E como esses encontros podem ser
projetados por meio dessas tecnologias, mídias, espaços. É essa noção de que
estamos dentro de um sistema, que em princípio nos conhecemos e nos reconhe-
cemos, que é o sistema das nossas próprias artes, e aí conseguimos ir um pouco
nesse sistemão, em que temos é que fazer um recorte dentro de uma perfor-
mance maior, que é um estado constante de performance, de estar em vigilância,
em espreita, em estado político constante. E aí reforçamos ainda mais essa coisa
da performance do figurativo e da invocação dessas forças, dos elementos, por
meio de concentrações, de tentar integrar isso na poética, no conceito da obra que
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é contínua, coletiva, que é uma obra de urgência e de estratégias também. Então,


performance tem funcionado muito pra mim, ela tem me possibilitado socializar
muito dessas energias que eu tenho conseguido alcançar nessa caminhada e é
uma forma de fazer uma arte que não seja visual. Eu tenho batido um pouco
nessa tecla, que a arte fica muito no campo da visualidade ainda, não é? Tem essa
necessidade de alcançar os sentidos, os sentidos a mais do que a visão. Então a
sonoridade, a energia que a gente consegue colocar por meio do canto, da voz, ao
criar movimento corporal gerando frequência, isso funciona muito pra mim. É um
trabalho que eu gosto de fazer, é mais uma forma de entregar o corpo e o espírito
para que uma força maior se manifeste. Não seria exatamente uma incorporação,
mas um estado de ponte, de teletransporte.
LF / Linha de transmissão, não é?
JE / É, uma linha de transmissão [risos].
LF / Adoro essa sua profissão original, de eletricista de linha de trans-
missão, e como você agora opera outras centrais energéticas. Às vezes tenho
essa impressão, quando vejo sua atuação, não apenas no trabalho plástico,
visual, artístico, mas também político, não é? Pessoal convidado, não quer
entrar na conversa? Gostaríamos de ouvir vocês.
Anderson Arêas / Boa tarde, Jaider e todos. Eu venho acompanhando o
trabalho de vocês nos últimos anos e ano passado vi a série de pinturas do
Jaider, A guerra dos Kanaimés (2020), na 34a Bienal de São Paulo e também
Pameri Yukese, individual da Daiara Tukano no CCSP, e Véxoa: nós sabemos, a
primeira exposição de arte indígena contemporânea na Pinacoteca de São Paulo.
Eu tenho aprendido muito com a arte indígena contemporânea e com a literatura
indígena contemporânea: destacaria os trabalhos da Eliane Potiguara, Firmiano
e Luiz Gomes Lana, Kaká Werá, Davi Kopenawa, Ailton Krenak, Jaider Esbell,
Daniel Munduruku, Graça Graúna, entre outros. Tenho aprendido muito com
vocês, principalmente sobre as transmissões entre ancestralidade, arte e espiritua-
lidade. Entrevistei o Jaider em 2019 e ele me devolveu uma pergunta que ainda
vem tendo em mim um efeito bastante medicinal: “Quem são vocês, cientistas?”,
ele me questionou. Agora, aproveito o tema da revista, Cânones em rotação,
para multiplicar a pergunta: Quem somos nós, cientistas e artistas, diante deste
milenar esfriamento do espírito nas suas formas de ver e ser no mundo? Como
enfrentamos esta vencida razão sem espírito?
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Figura 5
Jaider Esbell,
A guerra dos Kanaimés 7,
2020, posca e acrílica
sobre tela, 145 x 110cm.
Foto: Marcelo Camacho
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JE / Tudo bom, Anderson? Então, pensando como vamos vivendo e nos


colocando um pouco fora desta realidade que vivemos, ou que acha que é reali-
dade, e faz uma análise, como ficamos sujeitos a esse descontrole que impera,
essa confusão que é estado constante de conflito e de embaraçamento, que se
complica ainda mais quando se traduz, essa falta de controle de qualquer
coisa que seja, até de identidade. Que é um pouco próximo do que o Davi chama
de Larara, o grande estado, que vai engolindo tudo e ninguém consegue chegar
na origem da situação. Eu acho que o trabalho que a AIC vem fazendo acaba
existindo enquanto um movimento que surge a partir de alguns personagens
que corporificam essa coletividade: o Denilson Baniwa, a Daiara, a Naine Terena,
o Gustavo Caboclo vêm estudando com muita dedicação a passagem dessas
grandes questões nesse tempo que estamos circulando pelas academias,
pela política partidária e por alguns outros lugares dessa sociedade, com esse
conjunto de pensamentos, ações, trajetórias... a própria vida é colocada nisso,
sugerindo, talvez, por outra forma de linguagem, o que os mais velhos sempre
quiseram dizer do respeito mínimo pela existência de cada povo enquanto
constituição própria e por toda diversidade que há. Povos, universos próprios,
que são inteiros e íntegros, ainda não se completou esse distanciamento tão
esperado do sistema dominante que é de integrar o espírito da natureza dos
nossos povos com o universo como um todo. E aí, nós encontramos na palavra
arte uma forma de fazer essas políticas todas. Fazemos um trabalho diversificado,
desde o trabalho de professor, um trabalho de base para alcançar um elemento
fundamental dessa ideia da transformação social, da educação, que é o imaginário,
a curiosidade, despertar para a sinapse do primeiro impacto. Então a ideia de
arte é boa porque ela é uma boa armadilha, um ponto de atracação muito forte.
Para nós, a arte indígena contemporânea funciona como armadilha, enquanto
estratégia contracolonial.
AA / Pensando em dois trabalhos recentes que, para mim, deixaram uma
importante marca historiográfica: na pintura do Denilson Baniwa, Reantropofagia
(2019) – apresentada na entrada da exposição de arte indígena contemporânea
intitulada Reantropofagia (Centro de Artes UFF, 2019) – em que vemos a cabeça
do Mário de Andrade e o livro Macunaíma em um cesto com sementes de urucum,
milho, mandioca e outras tecnologias indígenas. E o outro momento foi a ativação
que o Jaider Esbell e a Daiara Tukano fizeram na Pinacoteca, no contexto de
Véxoa: Nós sabemos (2020), em que a Daiara vestiu um manto tupinambá
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vermelho, feito por ela, e o Jaider vestiu um manto branco, todo desenhado
e juntos os dois fizeram uma defumação com canto passando pelas salas da
Pinacoteca. E num dado momento eles dois enfrentaram a pintura Antropofagia
(1929), de Tarsila do Amaral. No catálogo de Véxoa tem umas fotografias
belíssimas desses momentos de enfrentamento entre os cânones. Eu gostaria
muito que vocês comentassem a respeito desse momento específico de ativação
artística e historiográfica.
Daiara Tukano / Responde aí, macuxi [Silêncio]. Boa tarde, pessoal, estou
aqui ouvindo, não é? Eu queria até aproveitar para fazer uma pergunta para o
Jaider: Você não fica de saco cheio desse povo perguntando toda hora sobre
Makunaima, não? [Risos]. Desculpa. Mas assim, por favor, não me levem a mal.
É porque às vezes eu tenho a sensação que tem uma tara com essa parada da
Semana de Arte Moderna e da Antropofagia, do Mário e do Makunaima, e tudo mais.
RD / Concordo.
DT / É uma tara do exotismo, com um racismo muito mal velado, sabe,
dessa construção de pensamento brasileiro, de se refletir o Brasil por um viés
que é racista mesmo, não é? Um autorracismo. Um autoetnocídio, o que estamos
vendo hoje. E, desculpa, por favor, não é nada pessoal mesmo. Mas é porque eu
tenho acompanhado um pouco o Jaider nos últimos anos [risos] e eu admiro
profundamente essa paciência para ficar falando disso, porque eu fico sem
paciência [risos]. Desculpa, acho que eu estou um pouco de TPM. “Ai, puta merda,
tanta coisa para perguntar e fica falando de Macunaima toda hora, meu.” Sabe…
LF / Vocês também, não é, pessoal?
DT / Pois é, mas é uma dinâmica meio maluca. Desculpa a sinceridade. E
pode ser uma coisa muito pessoal minha, porque dentro do meu percurso
acadêmico… Eu sou formada em artes visuais pela UnB. Então eu tive alguns
anos para ficar ouvindo durante aulas e aulas essa galerinha e compreender o
quão canônicos, icônicos e poderosos se tornaram nesse coletivo imaginário
brasileiro a Semana de Arte Moderna, a Tarsilinha querida, o Oswald, o Mário,
essas obras e tal, poxa, que legal. Mas também foram anos e anos vendo a
ausência absoluta da menção respeitosa em relação aos povos indígenas na
história da arte, não é? E nós vamos e estudamos o livro daquela senhora lá,
como que é? Puta merda, esqueci o nome dela.
CD / Araci?
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Entrevista de Jaider Esbell a Arte & Ensaios 33

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JE / Lux Vidal.
DT / Não, que Lux o quê! Quando vamos estudar história da arte… No
Brasil, temos que ler um livro da… Ai, pior que eu tenho esse livro aqui na prate-
leira, mas é um livro que cai no vestibular, sabe? [risos] Da história da arte. Não
vou lembrar do nome dela agora, estou bloqueando isso da minha cabeça, que
absurdo. Mas, enfim, a representação do indígena é praticamente inexistente,
o que tem é a representação do “índio”. Entre muitas aspas, não é? E é o índio
morto, o índio catequizado. É o índio que vai se misturando, mas é uma visão
extremamente superficial, manchada por esse fetichismo que só consegue ficar
nessa tara, na superficialidade. E é exatamente com isso que nos incomodamos
quando entramos num espaço museológico, desses muito reverenciados, seja
no Brasil ou no resto do mundo, pela maneira como os povos indígenas são
colocados nesse espaço do museu… Essa coisa da etnografia, como se apresenta,
como se contextualiza é de uma violência escrotíssima, não é? Eu sei que vocês
vão publicar, por favor corrijam minhas palavras, caso vocês queiram publicar
isso daí [risos]. Ou então bota que é escroto mesmo, aí se colocar ESCROTO,
bota em caps lock, em negrito. Porque não se vê em nenhum lugar, em nenhum
museu se discutir de uma maneira mínima o processo de genocídio e o processo
colonial, não é? Então, entrar na Pinacoteca, todo esse processo de construção da
Véxoa como uma primeira exposição com curadoria indígena, uma exposição de
AIC, inclusive se compreendendo que a arte tradicional também é contempo-
rânea, não é? Aquilo que foi muito tempo tachado como objeto, artefato, artesanato,
essas coisas. Também é arte, também é contemporânea, não é? Romper várias
dinâmicas de poder dentro dessa coisa de se debater arte, não é? E nós entrando
lá dentro, para visitar com liberdade. Que o manto tupinambá, por exemplo, não
tem no Brasil, não é? Os que estão em pé, estão lá na Europa, engaiolados
naqueles aquários, nem patrimônio brasileiro são. Os mantos tupinambás
são patrimônio da Noruega, da Bélgica e da França. No Brasil, o povo tupinambá
continua sendo massacrado, o cacique Babau é um dos caciques mais perseguidos
que tem. Já perdeu até a conta de quantos são os atentados que foram feitos
contra ele. Então, é um ato muito político se fazer essa ativação, justamente
dentro desse espaço da Pinacoteca que tem um acervo histórico da arte brasileira.
Tendo estudado história da arte − eu até iniciei o mestrado em história da arte,
mas tive que abandonar − eu fiquei tão emocionada vendo aquela escultura
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da Moema na Pinacoteca. Se vocês foram na Pinacoteca, bem na entrada tem


aquela estátua de bronze que é a Moema… Que é uma menina de uns 15 anos
afogada, morta na praia. Ela não chama muita atenção de quem passa pela
Pinacoteca. O pessoal não entende muito, não é? Mas quando eu vi, eu chorei,
eu me arrepiei, me emocionei, dá um aperto no peito ver esse fetichismo e esse
erotismo com a mulher indígena assassinada durante o processo de 1500, não
é? É violento. É muito violento. E eu sei do que estou falando, já fui estuprada…
Quantas notícias… Quantos… Mais de mil parentes morreram esse ano de covid.
Esse sentimento, para quem é indígena, é muito real. Ele não consegue ser
abraçado por essa tara de quem fala dessas coisas com tanta superficialidade.
Seja o Oswald, seja a Tarsila. Com todo respeito. Visitar esse tipo de obras, como
a Moema, ou a Fundação de São Paulo, ou a própria antropofagia, ou as gravuras
daqueles franceses que passaram ali em São Paulo, os expedicionistas. É um
trabalho espiritual muito grande, não é? Caramba, quando passamos na frente
da Moema, para mim foi assim… Eu pensei, nossa, eu senti, temos que rezar para
libertar essas almas dessa representação. Mas eu te juro que se eu não falasse
isso aqui agora para vocês... duvido que algum branco tenha entendido uma coisa
dessas. Duvido muito. Tinha gente que assistiu e nem faz ideia do que é um manto
tupinambá. A grande maioria nem faz ideia que escultura é essa. Moema tem
várias representações, vai estudar Iracema, o Guarani, sei lá, mas não tem o vínculo
afetivo de gerações, né? Como isso é uma constante na nossa identidade, poxa
vida! O Jaider sabe o que foi todo o processo de demarcação da Raposa Serra
do Sol. A mãe dele morreu de covid durante essa pandemia. A gente está aqui
presenciando a continuidade dessas coisas, mas o que prevalece ainda é a curio-
sidade fetichista da tara sobre essa aproximação. Como se aproxima, como se
chega para tratar de AIC? É muito desafiador para mim isso. Estou divagando um
pouco, que é assim que nós funcionamos, mas eu fico observando até que ponto
as pessoas dentro desse âmbito acadêmico, parece que nós vamos, é, como eu
diria? Eu me sentia muito assim na pós-graduação em direitos humanos, como
se nós fôssemos domesticados pela Universidade a querer atender um sistema
de pensamento, um sistema de ciência, que, lamentavelmente, se alimenta, se
baseia e serve para reforçar essas estruturas de racismo, de violência estrutural
contra povos que são considerados minorias, incluindo os povos indígenas, ou
qualquer outro grupo social que seja considerado minoria, não é? E consegue
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Entrevista de Jaider Esbell a Arte & Ensaios 35

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Figura 6
Jaider Esbell,
A guerra dos Kanaimés 8,
2020, posca e acrílica
sobre tela, 145 x 110cm.
Foto: Marcelo Camacho
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Figura 7
Jaider Esbell,
A guerra dos Kanaimés 9,
2020, posca e acrílica
sobre tela, 145 x 110cm.
Foto: Marcelo Camacho
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Entrevista de Jaider Esbell a Arte & Ensaios 37

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fechar os olhos, os ouvidos, a pele, o tato, o gosto, o nariz a sentir o cheiro de


outras compreensões, de outras coisas que estamos enxergando. Então com
relação a essa performance, essa ativação...É cerimônia mesmo. Precisávamos
lavar um pouco da nossa alma. Eu sei que eu estava precisando. Lavar um pouco
desse sentimento. Procurar dialogar com essas obras por todas as memórias
que estavam lá, que estão lá, de outra forma. Marcar uma presença distinta.
Viva, em vários níveis, viva mesmo. Um manto tupinambá vivo. Que anda, que
tem autonomia, que tem liberdade para entrar e para sair daquele lugar… E
poder principalmente reverenciar com muito respeito os trabalhos de cada povo,
cada parente, cada representante que participou da Véxoa. A ponto de fazer uma
reverência mesmo. Mas é isso, e desculpa aí qualquer coisa.
LF / Agradecemos. Intervenção importante.
RD / A Lygia Pape certa vez me chamou atenção e falou: “Você fica
exaltando esse europeu Duarte, você deveria procurar suas raízes”. E acho que
todo brasileiro deveria respeitar e procurar suas raízes. Eu concordo com tudo
que ela falou por conta disso, de o quanto as pessoas estão viradas olhando para
o horizonte do colonizador. Sempre o colonizador. Sempre repetindo, repetindo.
A própria academia sempre repetindo.
DT / Te fiz uma pergunta, Jaider [risos].
JE / Oi, Daiara. Então, acho que essa parte da paciência vem [risos] da
presença marcante do vovô Jabuti nessa constituição toda do Makunaima. Acho
que o Makunaima paga seus pecados de peraltice quando ele tem que ser o vovô
Jabuti. Que é ir devagarzinho. Ou ter que explicar tudo de novo, sempre. Acho
que faz parte da dinâmica. Como imprimir uma história no mundo se não for
contando milhares de vezes? Passa por esse exercício braçal de repetir. É a tradição.
Faz parte da nossa oralidade, vamos por esse lado que facilita e deixa mais leve,
esse exercício. É isso. Queria dizer que vai ter que falar muito mais sobre a canoa
da transformação. Muito brevemente, ainda mais [risos].
DT / [Risos]. Que bom que nenhum antropofagista resolveu roubar ou
escrever a respeito da nossa canoa antes [risos].
Paula Berbert / Deixa eu pedir licença aqui…
JE / Bora lá gente, que eu ainda vou receber o Davi Kopenawa aqui na galeria.
PB / Você usou a ideia da armadilha, algo que tem aparecido nos seus
textos recentes sobre a AIC, e em alguns trabalhos seus, como aquele apresentado
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ao Prêmio Pipa Emergencial, em que você performa na rede instalada aí na


galeria com o artista José Taurepang – “A rede pra esperar a caça grande”. Acho
que a primeira vez que eu vi foi em post seu no Facebook, de 2018, em que você
diz que a AIC é uma armadilha, um ponto de encontro. Em um outro texto seu
publicado no meio do ano passado, você avança nessa reflexão ao definir a AIC
como uma armadilha para pegar armadilhas. E aí fico pensando que o livro do
Mário de Andrade, nesse sentido, foi uma armadilha: a crítica pensa que quem
caiu na armadilha foi Makunaima e de repente você nos conta que Mário de
Andrade é quem foi capturado, numa armadilha montada pelo Grande Avô. Pode
ser produtivo então refletir sobre a diferença entre a caça e o caçador, quem é
que cai na armadilha. E nesse sentido resgato a sua definição sobre a AIC como
um dispositivo para pegar outras armadilhas para pensarmos os desafios de expor
a arte indígena nos espaços dos brancos, nos contextos que não são aqueles
nos quais essas obras foram produzidas. E aí tem um desafio de tradução que
é gigantesco, e me parece que a AIC lida com esses desafios de tradução de
mundos em diversas camadas. Queria te provocar a pensar sobre que armadilhas
são essas que a AIC serve para capturar nesse encontro de mundos.
JE / Boa, Paula! A AIC é uma armadilha porque nos convida a aprofundar
essa questão da identidade. E quando ela vem com essa densidade, puxa para
a ideia de essência, de matriz, até mesmo de pureza, que é essa relação ainda
muito romantizada da integração plena do homem com a natureza. E aí, ela vem
nos fazendo questionar como fazer essa transição, essa transposição nos mundos.
Ela vem como uma armadilha para pegar armadilha porque pressupõe se lançar
nesses espaços do enquadramento, do encaixotamento, do emolduramento.
Tem que entrar lá para ver como funciona essa dinâmica, com a habilidade de
não ficar aprisionada. Ela vem com a chance de operar códigos muito sutis, muito
distintos, nessa ideia de intermundo da comunicação, passando pela ideia da
tradução. Porque ela vem trabalhando uma segunda parte da ideia de existência,
que é o tempo presente, a questão do protagonismo da atuação, da corporificação
da presença do indivíduo. Essa coisa que ainda falta, não é? Tem o índio, mas não
tem o indígena. E aí, a parte do indígena tem ainda mais desdobramento para a
questão do indivíduo e o seu papel na sociedade. Então é uma armadilha porque
vem cheia de proposições. Em certo ponto, ela aumenta ainda mais essa ideia
da exotização, provoca ainda mais essa tara. Além de provocar, acaba dando
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Entrevista de Jaider Esbell a Arte & Ensaios 39

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mais elementos para que essas discussões se ampliem e para que acabem
conectando tempos distintos das trajetórias. E fazendo uma colocação com a
história de Makunaima, o povo não aguenta mais, como Daiara diz, não é? Em
relação à canoa de transformação, a escola do Feliciano Lana, do povo do Rio
Negro, que está cada vez mais popular, vamos usar essa palavra, assim como a
arte dos Maxakali, essa coisa toda, como a AIC vem de certa forma…
RD / Passou um avião!
JE / É de garimpeiro.
[Risos gerais]
JE / Então, Paula Berbert, a AIC é isso, talvez seja uma caça, um ato de
caçar. Você vai usando várias armadilhas, dependendo da ocasião que encontra.
E num outro movimento, é tentar fazer essa tradução de mundo. Ir lá, ver como
acontece, falar para os parentes como as coisas funcionam, como é que não é, os
riscos… Tem essa figura de dar a mão um ao outro, é uma forma de apresentar,
de tentar fazer com que role algum diálogo.
PB / Escutando você, vão se produzindo várias sinapses no meu pensa-
mento. Quando você coloca a questão da armadilha como dispositivo de tradução,
penso que uma armadilha, para ser eficiente, subverte o comportamento daquela
caça que se deseja capturar. Tem um tipo de armadilha específico para pegar
macaco ou peixe... A armadilha é esse ardil com que o caçador, conhecendo
muito bem o comportamento daquele bicho, consegue pegá-lo. E aí queria
trazer suas formulações sobre como a AIC serve compartilhar o modo de
funcionamento do mundo branco com os parentes, com as comunidades... E
ainda essa perspectiva de que os termos que você usa nas suas elaborações
sobre a arte indígena têm muito a ver com essa dinâmica de pesquisa... Como
quando você analisa o período em que trabalhou como eletricista de alta tensão
e define toda a sua trajetória até o momento atual, dedicando-se exclusivamente
à tarefa de artista, como uma grande trajetória de pesquisa, desde que começou
a se dar conta da história dos Macuxi, a entender a violência ... E retomando a
ideia de que a armadilha é em si um mecanismo de tradução daquilo que se
quer pegar, e pensando no que você vai apresentar como curador no MAM SP, no
título da exposição e no argumento curatorial que você está trabalhando, que é a
ideia do moquém... Queria que você falasse sobre isso, sobre a AIC como estra-
tégia de hackeamento do comportamento dos brancos, dos críticos de arte, dos
antropólogos, dessas expectativas. E como entendê-las na sua perspectiva de
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pesquisador intermundos, na partilha com os parentes e com as comunidades,


é uma forma de atender a essas dimensões artivistas... Esse vínculo indissociável
que seu trabalho como artista, curador, pensador, tem com a causa dos povos
indígenas de maneira ampla, e também com os compromissos que você tem
com as comunidades com quem tem uma relação próxima, como na Terra Indígena
Raposa Serra do Sol... Enfim, não sei se ficou uma grande viagem essa pergunta,
mas fiquei pensando nisto: se a AIC pode ser uma armadilha, você, como artista,
seria uma espécie de caçador do sistemão e de todos os recursos que podem se
transformar nesse moquém [...]
JE / A ideia da AIC encontra esse conjunto de realizações e evidências, e
se constitui enquanto movimento de resposta prática para as comunidades porque
não é exatamente uma teoria. A AIC não é uma sigla teórica, ela é tentativa de
reunir, é o que nós vimos fazendo. Uma das coisas que eu tenho observado é que
a AIC, quando tratada como deve ser tratada, nesse caráter coletivo, consegue
colocar uma perspectiva bem interessante que é a comunidade se rever, e isso
não deixa de passar por esse lugar do conflito. Porque para uma comunidade
se rever, melhorar – vou usar essa palavra – ela precisa se movimentar interna-
mente, e isso mexe com questões em que acaba prevalecendo essa natureza do
conflito. Então isso pode ser também uma das armadilhas que a arte indígena
contemporânea acaba trazendo à tona. Mas de fato ela tem feito vários exemplos,
na Raposa Serra do Sol, no povo da Daiara, no povo do Denilson, no povo aí dos
artistas, da Naíne, na galera do sul, não é? A AIC, quando consegue passear um
pouco por esse lado de cá da ideia do sistemão, reforça a urgência de as comu-
nidades se unirem mais em torno de sua própria cultura, se pesquisarem mais,
não é? E isso é gostoso, ver esse levante, esse fortalecimento mútuo, que vem
desse reforço. Quando esses espaços em construção são protagonizados dentro
da lógica do movimento, que é partilha, multiplicação, inclusão, cada vez mais
dessa diversificação, ocupando amplamente territórios e espaços coloniais,
avançando para dentro da ideia de reconquista de si mesmo, que é a história
da decolonialidade e imprimindo sua presença no tempo, que é essa coisa da
contracolonialidade.
LF / Jaider, a partir dessa sua resposta e dos últimos diálogos que foram
travados com Daiara, com Paula, me salta aos olhos a dimensão pedagógica do
projeto AIC. Com relação aos próprios povos que se mobilizam, mas também
com relação aos brancos, com o mundo da arte. A Daiara é veemente na cobrança
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Entrevista de Jaider Esbell a Arte & Ensaios 41

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Figura 8
Jaider Esbell,
Os Parixaras das serras,
2021, posca e acrílica
sobre tela, 100 x 75cm.
Foto: Marcelo Camacho
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de que outros assuntos nós, brancos, podemos trazer para a conversa, no sen-
tido de uma ampliação de nosso repertório. E me parece interessante pensar na
sua capacidade de transitar entre diferentes culturas. Que não é uma experiência
apenas sua, mas também da Daiara, da Paula, do Anderson, enfim, de pessoas
que vêm de outras culturas ou que procuram esse contato... talvez todos nós
tenhamos aí nossos atravessamentos, enfim... a pureza é um mito.
JE / Então, pensar nesse conjunto de práticas e fazeres que a AIC vem
trazendo é realmente muito pedagógico, conseguindo estar hoje mais presente
na própria escola com essa coisa da virtualização. As escolas, que teriam muito
mais dificuldade de acessar alguma comunidade, algum artista indígena, enfim,
qualquer pessoa que tenha interesse pelo universo indígena está hoje podendo ter
mais contato, interação, não é? E esse trabalho todo e essa repercussão passam
pela necessidade, ou oportunidade, que nós temos dessa midiatização, fazendo
uso das redes sociais, dessa coisa do artivismo, que é se posicionar enquanto
artista, ativista e se utilizar dessas linguagens todas para fazer política e marcar
presença, demarcar territórios. Então a AIC está criando essas ambiências, que
nos atravessam de uma forma ou de outra. Você falou essa coisa da pureza, da
mestiçagem, essa reivindicação do povo que tem muita gente atrás de...quem é
a minha tribo. Enfim, como isso é interessante e também complexo, não é? Nesse
campo da utilização da própria cultura como forma de se posicionar socialmente,
passando pela ideia de promoção, apropriação, e todas essas questões. Então é
muito pedagógico nesse sentido porque faz esses assuntos se aproximarem, se
confrontarem. E isso é muito bom porque reflete de fato uma tensão mínima, dá
uma energizada na coisa.
LF / Colocando até questões sobre o sentido de fazer arte, não é? Porque
é a partir de outra concepção, com algo muito mais coletivo, muito mais ligado à
própria memória.
JE / Então, a arte contemporânea é isso, ela vai lá no palco, vai no cubo
branco, chega lá e diz que a arte não é necessariamente aquilo e, por ser um
reflexo dessa coletividade, reflete para essa base a ideia de que vivemos, de fato,
um estado pleno de arte, que cada um pode ser artista, não é? E não se prender
nessa limitação de que no mundo branco o artista é uma ou duas ou dez pessoas
na sociedade de 100 mil pessoas. Na sociedade indígena, todos são artistas. Em
resumo, um mundo com artistas, feito de artistas, é um mundo muito mais viável.
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LF / Pode falar um pouquinho mais sobre essas noções de arte, que vêm
por intermédio dos povos indígenas? Como é isso? Essa compreensão de arte?
JE / Tenho falado sobre arte e memória, então, essa história de trabalhar
conceitualmente, politicamente a arte reflete essa coisa da comunidade. E o
estímulo à memória traz a necessidade de diálogo, de pesquisa própria, de
aproximação e de reconstituição memorial. E quando ela coloca a comunidade
nesse estágio de se rememorar e de se reencontrar, acaba não exatamente
virando as costas para a grande sociedade, mas tem a chance de imergir em si
mesma e esquecer momentaneamente que está rolando uma colonização e tal.
E ela pode, de fato, viver o seu tempo presente. Então, a AIC tem alcançado essa
condição de provocar um estado de consciência coletiva de que, com todo esse
aparato do mundo branco, é possível estar presente no nosso próprio tempo,
essa coisa de ser indígena e ser contemporâneo, um pouco por aí.
LF / Maravilha! Não sei se há ainda desejo de fazer mais alguma pergunta...
Podemos ir nos encaminhando para uma finalização.
JE / Esse é um assunto que estamos pesquisando muito, entramos nessa
canoa, da AIC e tal... Fizemos várias movimentações, temos usado muito rede
social para ir disseminando essas ideias, e a coisa tem repercutido aí, tem
movimentado muita coisa; estamos com uma passagem boa pelo cenário da
arte nacional, internacional, olhando com muito cuidado o que isso significa e o
que pode significar, quais as chances e os perigos que tem a aproximação com
esse sistemão. É um momento de muita atenção que estamos vivendo e é um
momento também que as universidades especialmente têm que estar alinhadas
conosco, como sempre estiveram, lembrando que nós temos na universidade
boa parte da nossa formação, não é? Então, enquanto parceiros, eu acho que
é fundamental que estejamos juntos, conectados, nessa costura de se apoiar
nesse entendimento de buscar se comunicar cada vez mais assertivamente
com a ideia de comunidade; institucionalmente o artista como uma referência,
influência, a universidade também; como isso deve ser tratado, constituído, repor-
tado e também deixado muito aberto, para que haja essa participação. Esse é
um assunto que não dá para ser tratado dentro da perspectiva de um artista sem
correr o risco de ser uma opinião muito pessoal, muito individual, pois sempre
perpassa por trabalhos de uma coletividade, não é? O nosso desafio é exata-
mente sair dessa pessoalização das coisas e tentar integrar o caráter coletivo,
corporativo, que o movimento tem.
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LF / E como é que você processa esse agenciamento de outras coletivi-


dades? Essa penetração, o espalhamento dessa ideia e a participação de outros
artistas e povos?
JE / Nosso passeio por essas dimensões do sistemão tem sido muito cons-
trutivo para ambas as partes. Temos conseguido fazer com que se compreenda
minimamente que para nós a arte faz parte da vida e, portanto, não faz muito
sentido quando é tratada dentro da individualização; ela é sempre colocada
nesse contexto da coletividade, então, podemos tratar a minha trajetória enquanto
performação de neto de Macunaimã para dar essa visibilização para um lado
da história e aí vem a história do Gustavo Caboclo, com sua família e com a
coletividade, trazendo dentro do universo que tenta ser criado em volta da figura
dele, toda a família, toda uma narrativa, todo um argumento; e mostrando que
uma arte é feita de memória, portanto, ela é tecida e construída dentro da cole-
tividade, dentro do contexto de família e isso coloca um patamar de que todos
da família são artistas e realmente coloca muito em risco a fragilidade da figura
do artista. Então, eu acho que a AIC tem passado por esses lugares todos e tem
chegado para cada comunidade dentro do seu contexto, do seu tempo, do seu
momento, na sua intensidade, mas está viva, está circulando, não é? E tem
mexido com esse sistema que está aí há 500 anos operando, que é a ideia da
arte propriamente oficial.
LF / É muito bom ouvir essas notícias. Notícias de transformações, de
movimentos...
JE / Hoje estamos com a presença mais marcante dentro da academia,
enquanto cocurador de algumas pesquisas, co-orientador. E experimentando
essa questão da autoria coletiva, da pesquisa coletiva. Os campos que temos
experimentado são desdobramentos dessas ações, temos expectativas boas
dessa coisa de marcar uma presença histórica em vários espaços. Temos feito
aí os protocolos se questionarem em relação a eles mesmos, não é? Tenho visto
o trabalho da coletividade crescer, cada vez mais os artistas assumindo a res-
ponsabilidade, tendo esse desempenho muito bom de levar onde quer que eles
estejam, esse desafio que é uma atuação conjunta.
LF / Você pode falar alguma coisa sobre o projeto da Bienal, do moquém?
É esse o seu projeto? A Paula falou do argumento curatorial...
JE / A exposição Moquém nasce do convite da Bienal para fazer parte
desta edição. Pesquisando o meu trabalho, eles conheceram o trabalho que eu
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Entrevista de Jaider Esbell a Arte & Ensaios 45

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desenvolvo aqui em Roraima, a constituição da galeria, todo esse trabalho


intenso de constituição das coisas. E aí, além de me convidar, propuseram que
eu assinasse, junto com a Paula Berbert e o Pedro Cesarino, uma curadoria para
apresentar uma exposição, a princípio, individual para mostrar tudo o que eu
faço e tal, e fomos construindo isso e pensamos que a individual não seria
interessante, mas que fizéssemos uma coletiva. Depois de alguns adiamentos
da exposição, reformulamos, e acabei assumindo a curadoria, e a Paula passou
a ser a nossa assistente, e o Pedro, consultor. Foi a forma que encontramos para
atender à expectativa desse arranjo de mundos, de figuras, instituições e tal...
protagonismo e justiça das coisas, tudo junto. Pedro veio aqui em Roraima, e
a Paula também. Começamos a estudar a partir do acervo da galeria, a ideia
da exposição coletiva e chegamos na formulação da poética do moquém, que é
essa conjuntura de ações, movimentos e intenções, que é a saída dos caçadores
por um longo período, vários dias na mata para ficar caçando para grandes
ocasiões comunitárias; eles vão, caçam o animal e então, como não têm como
conservar a carne com gelo ou com sal, eles moqueiam a caça. Eles fazem um
jirau de varas, colocam um fogo lento, com muita fumaça embaixo e vão lenta-
mente desidratando a carne e ela vai ficar completamente seca e dá para preservar
por vários dias. Então, os caçadores voltam para a comunidade e distribuem a
carne para o povo e não comem daquela comida, comem outras coisas. Nesse
sentido, o moquém é sair para caçar, coletar, voltar e distribuir para a coletividade.
Então, a gente começou a trabalhar essa poética do moquém surarî, surarî não
é, moquém surarî; surarî é a palavra moquém na língua macuxi. Moquém é uma
palavra tupi, de alcance nacional. E aí, tem isso também... ela é linkada com a
nossa cosmovisão. Moquém era essa mulher-ser, que é esse ato de ser um jirau
e ao mesmo tempo, uma pessoa, no tempo em que as coisas passavam de uma
metamorfose para outra com muita facilidade. Uma vez a moquém se vê aban-
donada e resolve ir embora para o céu atrás do dono que largou ela na Terra e aí,
chegando lá, não encontra o dono e fica sem serventia e resolve ser uma cons-
telação que vai indicar para os macuxi quando é o tempo das primeiras chuvas
para recomeçar a plantação. Então, tem todo esse trânsito de cosmos, não é?
Desde ser um jirau a ser uma constelação. A exposição abre no dia 14 de agosto
com 24 ou 23 artistas e coletivos, se não me falha a memória, trazendo várias
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Na sociedade indígena, todos são artistas 46

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narrativas, cosmologias, tempos, migrações, vários cosmos, né? E aí tem a


coleção Vacas nas terras de Makunaima − De malditas a desejadas, que é uma
das primeiras coleções do acervo da galeria, de 2013. Essa exposição foi levada
para os Estados Unidos, quando estive por lá, e vai ser apresentada no MAM, como
um dos carros-chefes da exposição e traz obras da Carmésia, do Emiliano, do
Isaías Miliano, do Bartô, do Amazoner Arawak, do Diogo Lima, do Luiz Matheus,
do Mário Taurepang, obras minhas também e de vários outros artistas como a
própria Bernaudina, que já está em memória, né? Vamos levar um conjunto de
obras dela, do Charles Gabriel, filho dela, também do Elisclésio, que é a turma
do Maturu, que é da resistência mesmo, e vamos levando também, dando um
spoiler aqui, trabalhos potentes da Sueli Maxakali, da própria Daiara Tukano, Ailton
Krenak, obras de artistas do Xingu, como Rivaldo, Tapirapé, pessoas aqui do sul,
os Yanomami, então tem uma constelação de artistas que estamos trabalhando.
Naquele ritmo de embate intergaláctico, não é? De realidades entre instituições
e sistema, tem bastante desafio, mas temos avançado. Acho que hoje o projeto
está bem mais adiantado. Eu já assinei o contrato da curadoria, enfim, acho que
vai ser muito potente.
LF / Que bom! Vou reservar a data para ir lá ver.
JE / Sim, vai ficar até o final de novembro.
LF / Você tem uma presença individual como artista na Bienal ou só como
curador dessa exposição?
JE / Não, tem a minha exposição, tem o meu trabalho na Bienal... Pavilhão,
voltam os doze canaimés e também vai ser apresentado o livro Carta ao Velho
Mundo, que faz parte de uma performance com princípio contracolonial, que se
apropria do objeto-arte, da ideia-arte. Enquanto indígena, você pega um livro de
arte rabiscado, revisitado, ressignificado, cheio de outras informações e leva isso
para a Europa, não mais levado pela Funai ou pelo governo, mas indo autonoma-
mente enquanto artista, artivista e tal. E aí, você faz todo um percurso por lá com
esse livro e traz de volta e apresenta para o Brasil na Bienal, como objeto/livro.
Vão ser impressas 400 páginas, tamanho maior que A3 e coladas pelo Pavilhão
da Bienal e vai ter também a exposição, uma coleção que eu fiz com o professor
Charles Gabriel, da comunidade do Maturuca, junto com as crianças e alguns
adolescentes, com a escola e com a comunidade, que é trabalhando essa coisa
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Entrevista de Jaider Esbell a Arte & Ensaios 47

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Figura 9
Jaider Esbell,
Carta aberta ao Velho
Mundo, 2019,
livro-objeto, posca sobre
impressão off-set,
37,5 x 27,7cm.
Foto: Marcelo Camacho
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de Makunaima, de novo... usando essa coisa da mitologia da história da origem


para deseducar um pouco as crianças, descristianizar; claro que é um trabalho
muito sutil mesmo, que vimos fazendo... mas é necessário. E o que mais que vai
ter? Vai ter também as cobras grandes que estiveram em Belo Horizonte, vão ser
instaladas em princípio lá naqueles lagos do Ibirapuera. Então, é muita obra... se
for contar, são quase 500 obras. Se for contar as 400 páginas do livro que vão
ser impressas, mais os canaimés..., então vai ser uma overdose de Jaider Esbell
na Bienal.

Como citar:
ESBELL, Jaider. Na sociedade indígena, todos são artistas. Arte & Ensaios,
Rio de Janeiro, PPGAV-UFRJ, v. 27, n. 41, p. 14-48, jan.-jun. 2021.
ISSN-2448-3338. DOI: https://doi.org/10.37235/ae.n41.3. Disponível
em: http://revistas.ufrj.br/index.php/ae
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“Vende tela, compra terra” e outras formas de atuação


política do Movimento dos Artistas Huni Kuin (MAHKU)
“Sell painting, buy land” and other forms of political action
by the Movement of Huni Kuin Artists (MAHKU)

Daniel Dinato
0000-0002-9066-0939
daniel@dinato.com.br

Resumo
Neste artigo explicito algumas formas de atuação política do Movimento dos
Artistas Huni Kuin (MAHKU). Partindo de um evento ocorrido em 2014, a compra
por parte do MAHKU de dez hectares de terra no Acre com recursos obtidos com
a venda de uma pintura, reflito sobre os caminhos abertos, as conexões possi-
bilitadas e a agência causada pelas imagens-pontes produzidas pelo coletivo no
contato entre mundos.

Palavras-chave
Imagens-pontes; Movimento dos Artistas Huni Kuin;
arte indígena contemporânea.

Abstract
In this article I explain some forms of political action by the Huni Kuin Artists Movement
(MAHKU). Based on an event that took place in 2014, MAHKU bought ten hectares of
land in Acre with funds obtained from the sale of a painting, I will reflect on the open
paths, the connections made possible and the agency caused by the bridge-images
produced by the collective in the contact in-between-worlds.

PPGAV/EBA/UFRJ
Keywords
Rio de Janeiro, Brasil Bridge-images; Movement of Huni Kuin Artists;
ISSN: 2448-3338
DOI: 10.37235/ae.n41.4 contemporary indigenous art.
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Há 30 anos, em 1990, famílias Huni Kuin/Kaxinawá1 ocuparam os seringais


Nova Empresa e São Joaquim, no baixo curso do rio Jordão (Acre), os quais,
na época, se encontravam sem patrão (Iglesias, 2003, 2008). Atualmente,
essa área ocupada é parte da terra indígena do baixo rio Jordão, nove mil
hectares nos quais residem cerca de 200 pessoas.2 Em 1993, a Associação
dos Seringueiros Kaxinawá do Rio Jordão (Askarj), liderada por Siã Sales,
comprou os seringais Altamira e Independência (Iglesias, 2003, 2008), cerca
de 12 mil hectares, hoje transformados no dominial indígena Kaxinawá Seringal
Independência, onde vivem, aproximadamente, 210 pessoas. Vinte anos depois,
em 2014, com o valor arrecadado com a venda de uma pintura, o Movimento
dos Artistas Huni Kuin (MAHKU), liderado por Ibã Sales Huni Kuin, comprou
um terreno de cerca de dez hectares de floresta amazônica nas margens do rio
Tarauacá. “Vende tela, compra terra”, diz Ibã. Atualmente, nesse território está
sendo gestado o Centro MAHKU Independente.
A prática de “ocupar e comprar” (Iglesias, 2003) terras para construir um
território não é recente entre os Huni Kuin. Ainda que, nos casos aqui narrados, as
dimensões territoriais e os fins pretendidos para as terras sejam absolutamente
distintos, entre eles há uma curiosa semelhança: o processo de compra, ao invés
de individualizar, torna coletivo. Vale ressaltar aqui que não estou projetando uma
ideia romântica dos indígenas. Essas terras, certamente, não pertencem a todos,
sequer a todos os Huni Kuin, dado que existem inúmeras questões em torno de
parentesco, além de alianças políticas que determinam quem vive onde e com
quem. Certamente, porém, essas terras não são apenas de um indivíduo, e seu
usufruto não está limitado a uma só pessoa ou família.

1
A etnia Huni Kuin/Kaxinawá é composta por mais de 12 mil pessoas, habitantes do Acre e leste
do Peru. No estado do Acre, os Huni Kuin vivem em 12 terras indígenas e são estimados em 7,9
mil indivíduos (Oliveira, 2016), constituindo cerca de metade da população indígena do estado.
Kaxinawá (também escrito como Kashinawa, Caxinauá, Cashinauá etc.) é o modo como a etnia Huni
Kuin foi chamada inicialmente pelos estrangeiros. Kaxi significa morcego e nawa significa gente.
Kaxinawá, portanto, designa a gente-morcego. Esse nome, entretanto, não é bem-visto pelos próprios,
que se autodesignam Huni Kuin.
2
A terra indígena do Baixo Rio Jordão é contígua à terra indígena do Rio Jordão. Juntas somam 96 mil
hectares, nos quais vivem cerca de 1.650 pessoas distribuídas por dezenas de aldeias.
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Neste artigo, não refletirei sobre os casos específicos dos anos 1990,
já bem narrados e analisados por Iglesias (2003, 2008). Cito esses eventos
apenas para situar o movimento recente feito pelo MAHKU em um contexto mais
amplo. Acredito que existe na região do município de Jordão, uma memória de
que é possível que os indígenas Huni Kuin comprem terras e construam formas
particulares de autonomia. Para o MAHKU, esse evento específico da compra
é parte de um caminho mais amplo, um agenciamento, entre tantos outros, e
que começou muito antes. Visando a melhor compreensão dessa e de demais
formas de atuação política envolvidas nas práticas artísticas do MAHKU, ofereço
neste artigo uma possível análise. Venho trabalhando com o coletivo desde 2016,
especialmente com seu fundador, Ibã Huni Kuin, para quem é fundamental
olharmos agora.

Ibã

Ibã Huni Kuin (Isaias Sales, seu nome registrado pelo Estado brasileiro)
nasceu em 28 de março de 1964 e, junto com ele, nasceu também a possibili-
dade de existência do Movimento dos Artistas Huni Kuin (MAHKU). Ibã é a figura
central do coletivo, pois foi a partir de suas pesquisas com seu pai e tios sobre
os cantos huni meka (cantos que conduzem os rituais nos quais os participantes
tomam ayahuasca3) que o grupo surgiu. Como mostro em minha dissertação de
mestrado (Dinato, 2018), a partir da qual desenvolvo este artigo, Ibã é um
pesquisador da própria cultura e a figura principal do coletivo.
Ibã trabalhou a maior parte da sua infância e juventude como seringueiro.
O duro processo de extrair látex da seringa (Hevea brasiliensis), armazená-lo,
secá-lo e depois vendê-lo às casas aviadoras foi sua realidade durante boa parte
da vida. Aos 19 anos, em 1983, ele teve sua primeira experiência na capital do
estado do Acre, quando viaja a Rio Branco para participar do “I Curso de Formação
de Mentores Indígenas”, realizado na Comissão Pró-Índio do Acre (CPI-Acre).

3
A ayahuasca é uma bebida composta a partir da cocção do cipó Banisteriopsis caapi com diversas
plantas, em especial a Psychotria viridis. De caráter psicoativo, é utilizada em contextos rituais também
por outras etnias indígenas da Amazônia.
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Foi durante esse curso que Ibã aperfeiçoaria o aprendizado da língua portuguesa.
Pesquisar já estava dentro dele, segundo afirma. Pesquisar era aprender com os
mais velhos, olhar como se faz, perguntar como se canta, quais palavras devem
ser ditas, quais folhas usar para curar. Seu pai, Romão Sales, foi um grande conhe-
cedor das cantorias da ayahuasca (os cantos huni meka) e das ervas medicinais,
pesquisas a que Ibã irá dar sequência, tornando-se ele próprio um txana (cantor).
Além de estudar com seu pai, Ibã formou-se também com seus tios Miguel
Macário e Agostinho Manduca. Aprendeu os cantos que conduzem os rituais de
nixi pae (ayahuasca) e os três conjuntos de músicas cantadas no processo ritual:
os do grupo pae txanima (cantados no início do ritual para chamar a força da
bebida), os hawe dautibuya (entoados assim que as visões começam a surgir) e,
por fim, os kayatibu (cantados até que as visões terminem e a força da bebida
diminua seu efeito sobre o corpo dos participantes).
Um dos desdobramentos dessa longa pesquisa foi a publicação, em 2006,
do livro Nixi Pae – o espírito da floresta (Ibã, 2006),4 com os registros dos
cantos do nixi pae coletados de três txanas (cantores) huni kuin das terras indí-
genas do Rio Jordão. O livro tornou-se fundamental para a retomada dos cantos
(que vinham sendo substituídos por hinários do Santo Daime5) e para o forta-
lecimento da língua hantxa kuin, a língua dos Huni Kuin. Ao registrar e publicar
os cantos, Ibã possibilitou que os demais Huni Kuin também os aprendessem.
É a partir desse livro que Bane, filho mais velho de Ibã, começará a desenhar os
cantos huni mekas, dando origem ao que viria ser o MAHKU.
Desenhar os cantos consiste em uma forma específica de tradução de
palavras e sons em imagens. Os artistas do coletivo partem das “letras” dos
cantos registrados no livro publicado por Ibã e transformam alguns elementos
do canto em imagens. O livro e os cantos nele compilados são, portanto, a base
de onde os artistas partem para compor as imagens. Essa prática se espalhou na

4
Além desse livro, também contou com a pesquisa de Ibã (2007) o livro-cd Huni Meka – Cantos do
Nixi Pae, organizado por Dedé Maia e publicado pela CPI-Acre em 2007, incluindo dois cds com os
registros de 24 huni mekas.
5
O Santo Daime é um movimento religioso que congrega influências católicas, espíritas, esotéricas,
caboclas e indígenas em torno do uso da ayahuasca, o daime. Surgiu no interior da floresta amazônica,
conduzido inicialmente por Raimundo Irineu Serra (1890-1971), o Mestre Irineu.
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região e, atualmente, diversos indígenas Huni Kuin, sobretudo jovens, desenham


cantos e mitos. O livro de Ibã, um objeto material poderoso, teve a importância
de retomar e reviver tradições, tornando-se um transformador de relações e
detonador de criações futuras.
O MAHKU, portanto, insere-se neste contexto de retomar, recriar e trans-
formar tradições Huni Kuin. Pode-se dizer que essa é apenas uma, a primeira, de
suas formas de atuação política. Como Ibã define, “o MAHKU é pesquisa espi-
ritual”. Materializa conhecimentos imateriais, ajudando para que eles não se
percam. É a continuação das pesquisas de Ibã mas, agora, com novos integrantes,
coletivo e compartilhado. É um movimento de artistas que nasce de uma pesquisa
própria de Ibã, movimento depois ampliado por seu filho, Bane. Com o decorrer
do tempo, o MAHKU seduz e atrai novos aliados, indígenas e não indígenas.
Nesse aspecto, esse grupo de artistas é, a seu modo, um grupo de pesqui-
sadores de suas próprias tradições e, também, inventores de novas possibilidades.
As práticas artísticas do MAHKU não são e não podem ser vistas dissociadas das
práticas de estudo, reflexão, retomada e compartilhamento de aspectos especí-
ficos do modo de ser Huni Kuin, em especial os saberes que envolvem o nixi pae.
É um projeto grande, sem fim, Ibã diz. Conforme afirma o site do grupo,

O MAHKU – Movimento dos artistas Huni Kuin – tem sua gênese no


processo tradicional de formação de Ibã Huni Kuin (Isaias Sales) com
seu pai Tuin Huni Kuin (Romão Sales), notável pesquisador dos conheci-
mentos desse povo. Ao longo de sua vida resguardou os saberes
musicais e rituais que corriam o risco de desaparecer na sociedade
seringalista. Ibã aliou essa formação tradicional com os instrumentos
da escrita e da pesquisa ao se formar professor, passando a registrar e
publicar esses cantos (MAHKU, 2011).

Em suas falas, Ibã costuma valorizar sua longa e cuidadosa pesquisa,


durante a qual ele aprende e registra os cantos junto aos mais velhos, sobretudo
com seu avô e seu seu pai. Na primeira vez em que nos encontramos ele disse
que, quando jovem, percebeu que muito de sua cultura estava se perdendo ou
já havia desaparecido. A ausência de registros materiais contribuiu para esse
apagamento. “Vocês têm computador, têm papel”, diz Ibã, “mas nós não”.
O conhecimento, portanto, depende da memória e do interesse do jovem para
seguir se atualizando e se transformando.
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Em 2007, Bane começou a desenhar alguns desses cantos registrados no


livro, com objetivo de dar sequência à pesquisa de seu pai, atribuindo-lhe uma
nova forma. Conforme Bane conta no filme Sonho do Nixi Pae, ele também
“recebeu na miração6 a mensagem de dar continuidade à pesquisa do seu pai”.
Nesse momento, aquilo que até então era uma pesquisa sobre os conhecimentos
que envolvem as cerimônias com ayahuasca passou a, gradualmente, também
transformar-se em arte. O conhecimento sobre os cantos, até então registrado
sob forma escrita, tornou-se visualizável.
Em 2008, Ibã ingressou na Licenciatura Intercultural Indígena e consolidou
uma parceria com Amilton Mattos, professor no curso de Licenciatura Intercultural
na Ufac. É nesse contexto universitário que, em 2011, será organizada a primeira
oficina coletiva de desenhos conduzida por Ibã e Bane com outros jovens artistas
Huni Kuin. O resultado impressionou pela riqueza de formas e cores. Os desenhos,
então, foram escaneados e colocados no site do grupo para que outras pessoas
pudessem acessá-los. A oficina foi um modo de ensinar e compartilhar simulta-
neamente uma técnica expressiva (o desenho) e uma forma de conhecimento (a
pesquisa e o saber sobre os huni mekas) com nove jovens Huni Kuin.
O processo de expansão, a partir de então, foi rápido. No mesmo ano, os
desenhos foram expostos no Sesc em Rio Branco, na exposição O espírito da
floresta – desenhando os cantos do nixi pae. Ainda em 2011, o antropólogo Bruce
Albert7 fez a intermediação com Hervé Chandes, diretor da Fondation Cartier em
Paris, onde os desenhos foram mostrados na exposição Histoires de voir, ocorrida
entre 15 de maio de 2012 e 21 de outubro de 2012. A pesquisa espiritual trans-
formava-se em arte, passando a ser institucionalmente reconhecida. A dimensão
dessa exposição afetou os integrantes do coletivo, e, ali, os desenhos passaram
do contexto de pesquisa da cultura Huni Kuin e do contexto acadêmico para o
contexto de arte. Ocorreu um processo de “artificação”8 daquelas imagens.

6
Miração é como são chamadas as imagens que, costumeiramente, se dão a ver após a ingestão da ayahuaska.
7
Bruce Albert nasceu em 1952 no Marrocos. É antropólogo e coautor, com Davi Kopenawa, do livro A queda do
céu – palavras de um xamã yanomami.
8
Shapiro e Heinich (2013, p. 18) definem a artificação como “um processo de processos”. Segundo as autoras,
o processo total de artificação envolve dez processos “menores”. São eles: “deslocamento, renomeação, reca-
tegorização, mudança institucional e organizacional, patrocínio, consolidação jurídica, redefinição do tempo,
individualização do trabalho, disseminacão e intelectualização” (p. 18). Acredito ser evidente que os processos
de deslocamento, recategorização e mudança institucional dos desenhos, realizados primeiramente em
contexto de pesquisa e que se transformam em obras de arte, são centrais para o MAHKU.
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Figura 1
Um dos primeiros desenhos
realizados por Bane Huni Kuin,
do canto Dua Meke Newane
Disponível em: https://
br.pinterest.com/
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O Movimento dos Artistas Huni Kuin (MAHKU)

Em 3 de março de 2013, o Movimento dos Artistas Huni Kuin foi oficialmente


criado em assembleia que contou com Isaias (Ibã), João Sereno (Txanakixtin),
Romão Sereno (Tuin), Cleiber (Bane), José Romão (Tene), Franciso Sabino (Ixã),
Miguel Sales (Siã), Manuel Vandique (Dua Buse) e Vanderlon Pinheiro (Shanehuni).
Dentre as exposições de que o coletivo já participou, destaco Mira – artes visuais
contemporâneas dos povos indígenas (Centro Cultural da UFMG, Belo Hori-
zonte, com curadoria de Maria Inês de Almeida, 2013-2014), Histórias mestiças
(Instituto Tomie Ohtake, São Paulo, com curadoria de Adriano Pedrosa e Lilia
Schwarcz), 35o panorama da arte brasileira: Brasil por multiplicação (MAM-SP,
São Paulo, com curadoria de Luiz Camillo Osório), Avenida Paulista (Masp, São
Paulo, com curadoria de Adriano Pedrosa, Tomás Toledo, Camila Bechelany, Luiza
Proença, Fernando Oliva e Amilton Mattos), Vaivém (Centro Cultural Banco do
Brasil, São Paulo, Rio de Janeiro, Belo Horizonte e Brasília, com curadoria de
Raphael Fonseca) e Vexoá: nós sabemos (Pinacoteca do Estado de São Paulo,
São Paulo, com curadoria de Naine Terena). Dos objetivos propostos pelo coletivo
na sua ata de fundação, sublinho os de número 1, 4, 9 e 11:

1. Dar continuidade às atividades de pesquisa e arte, fortalecendo a


tradição e o idioma Huni Kuin; 4. Promover encontros e intercâmbios
visando a constituição, fortalecimento e ampliação da rede de artistas
Huni Kuin; 9. Proporcionar ao povo Huni Kuin uma fonte de renda
digna, voltada à pesquisa nas suas antigas tradições; e 11. Estruturar
um espaço de trabalho que funcione como sede e oficina para os artistas
trabalharem e se reunirem (MAHKU, 2013).

Nos objetivos destacados transparecem características centrais para o


MAHKU: o projeto artístico consolidado por Ibã está diretamente associado a
um modo de conhecimento particular (os mitos e cantos huni meka), ao mesmo
tempo em que constrói alianças e estratégias de autonomia, sendo esse um de
seus aspectos políticos. Essa política, entretanto, não é a política de cargos e
votos.9 A mediação e a representação não estão personificadas em alguém

9
Sobre a relação dos Huni Kuin com a política partidária ver Zoppi (2019).
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“Vende tela, compra terra” e outras formas de atuação política
do Movimento dos Artistas Huni Kuin (MAHKU)
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distante: o político. O MAHKU cria sua própria mediação, as pinturas e, com elas,
age. Como Ibã costuma dizer: “Eu não sou político, minha política é o MAHKU”
(Vieira, 2018). Uma “política dos artistas”, afirma. Uma política, poderíamos
arriscar dizer, da ação direta. Não seriam as obras do coletivo MAHKU formas de
(pintur)ações diretas?
Em 2014, após participar da exposição Made by... feito por brasileiros
(ocorrida de 9 de setembro a 12 de outubro de 2014 nas ruínas do antigo hospital
Matarazzo, em São Paulo, com curadoria de Marc Pottier), quando realizou um
trabalho junto da artista belga Naziha Mestaoui (1975-2020),10 o MAHKU
vendeu uma obra e, com o recurso obtido, comprou a terra mencionada no início
deste artigo. Tal como as compras feitas nos anos 1990, o MAHKU retoma uma
área pela compra, em uma região que, há séculos, é habitada pelos Huni Kuin.
Esse lugar, ressalto, ainda está em elaboração, é um sonho sendo construído aos
poucos e, até o momento, preserva-se intacta a área. O MAHKU pretende
que lá exista um espaço de trabalho para o coletivo e que seja, ao mesmo
tempo, um local para a realização de intercâmbios com outros artistas, indígenas
e não indígenas, concretizando dois dos objetivos citados em sua ata de fundação.
Alianças que geram novas alianças. Telas, pinturas, obras de arte que são pontes
entre mundos. Imagens que são caminhos. Construir alianças é uma das
maneiras de atuação política do coletivo. A terra comprada, parte de uma cadeia
de eventos que envolve nixi pae, cantos huni mekas, metrópoles como Paris e
São Paulo, além de inúmeras pessoas, é um exemplo claro da potência dessa
forma de fazer política.
Os objetivos 1 e 9, também dialogam, ainda que indiretamente, com o
tempo da seringa e do cativeiro, quando os Huni Kuin, em geral, viviam sob o mando
de patrões que cerceavam, entre outros impedimentos, violências e censuras,
a liberdade financeira e de costumes do grupo. Se, naquele tempo, a cultura e a
própria língua hantxa kuin estavam se perdendo e não havia nenhuma possibi-
lidade de autonomia financeira, hoje, com a venda de obras, criam-se alternativas
que retomam e consolidam saberes e, ao mesmo tempo, viabilizam economica-
mente seus projetos.

Naziha Mestaoui foi uma artista franco-belga cujos trabalhos se situam na interface entre arte,
10

meio ambiente e tecnologia.


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Lembro que, durante todo o período da borracha, o chamado sistema de


aviamento predominou. Tratava-se de “um sistema de adiantamento de merca-
dorias a crédito” (Aramburu, 1994, p. 82) que marcou as relações econômicas
entre os seringalistas e os seringueiros (nesse caso, os indígenas). Tratava-se,
também, de uma forma de escravidão por dívidas, tendo em vista que a merca-
doria adiantada (“aviada”) nunca chegava a ser paga, mantendo os indígenas em
uma dívida constante e eterna.
A escravidão por dívidas refletia-se na dura carga horária diária de trabalho
a que eram submetidos os seringueiros. Muito trabalho, uma constante luta por
pagar suas dívidas e pouco tempo para exercer sua “cultura”, em especial os
rituais com nixi pae, que costumam durar sete, oito horas. Nesse contexto,
portanto, viveu o pai de Ibã e, parcialmente, o próprio Ibã. Seu pai, levava tatuadas
no braço as iniciais de seu patrão, Felizardo Cerqueira, assim como tantos
outros Huni Kuin. Seria impossível que o MAHKU não negociasse com esse
período de sua própria história. Dessa forma, penso que os objetivos destacados
acima transparecem a necessidade de autonomia financeira dos Huni Kuin, assim
como o fortalecimento cultural sem, com isso, negar as trocas e a constituição de
redes com outros agentes e grupos, sobretudo não indígenas.
Hoje em dia, é importante dizer, os artistas conseguem obter alguma
renda com a venda de seus trabalhos, não precisando estar submetidos a
empregos considerados menos prazerosos.11 A venda de obras, portanto, mesmo
que esparsas, é importante fonte de renda para os membros do coletivo e para
suas famílias. Trata-se de um duplo movimento de fortalecimento cultural e
construção de alternativas financeiras que tem seu motor na relação ativa com
uma diversidade de outros, ou seja, na constante ampliação e diversificação da
teia do MAHKU.

11
Jordão, o município mais próximo da aldeia Chico Curumim, onde Ibã vive, tem um índice de
desenvolvimento humano (IDH) de 0,469 (2010), sétimo pior do país, e mortalidade infantil de 22,56
óbitos por mil nascimentos. Além disso, segundo os dados do IBGE, 48% da população vivia em
2010 com até meio salário mínimo. Um estudo realizado com 836 crianças das áreas urbanas e
rurais do município apontou que 49,2% sofrem com a desnutrição infantil. Entre as crianças indígenas,
entretanto, a situação é pior, chegando a “apresentar prevalências de desnutrição superiores a 80%”
(Araújo, 2017, p. 46).
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“Vende tela, compra terra” e outras formas de atuação política
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O MAHKU, assim, se constitui também como movimento voltado para


a autonomia e o controle das relações com a alteridade. Esse controle, por
sua vez, é possível a partir do envolvimento e da multiplicidade de conexões
propostas pelo grupo com o mundo não indígena. O MAHKU possibilita que
os integrantes estabeleçam relações com esse mundo de uma maneira mais
simétrica e, com isso, fortalece o que consideram ser a cultura Huni Kuin. Ao
mesmo tempo, viabilizam financeiramente alguns de seus desejos. “O mundo
“branco” é muito forte”, diz Ibã. É preciso controlá-lo, e o MAHKU faz isso por
meio de seus trabalhos e ações.
O MAHKU também proporciona aos artistas viajar e conhecer novos lugares.
Viajar, aliás, é um elemento central para o coletivo e seus membros. A oportuni-
dade de participar de exposições nas grandes cidades brasileiras ou no exterior
é, igualmente, a chance de tecer alianças. É a partir dessas conexões que novas
ideias e práticas podem ser geradas, e foi em uma dessas ocasiões que pude
conhecer Ibã. Essas são também ocasiões nas quais o coletivo faz política. Não
por acaso, o logotipo do MAHKU é o jacaré-ponte Kapetawã, estampado em
copos e camisetas que o grupo tem produzido, como podemos ver na imagem
das canecas (figura 2). Afinal, trata-se de um coletivo que tece teias e (novos)
caminhos entre indígenas e não indígenas.
O mito do Kapetawã conta a história de um grupo, os primeiros humanos,
que se depararam com um grande rio impossível de atravessar. Perceberam,
entretanto, que lá havia um jacaré gigante (Kapetawã) que, com seu enorme
corpo, poderia servir de ponte para o outro lado. Negociaram com ele a passagem
por suas costas em troca de caças. A única restrição feita pelo jacaré era a de não

Figura 2
Caneca do MAHKU
Foto do autor
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lhe oferecerem nenhum outro jacaré como alimento, pois ele não era canibal. Os
humanos caçaram anta, veado, macacos e outros animais, dando-os ao jacaré
que, em retribuição, permitia a passagem por suas costas até a outra margem.
Em determinado momento, por um descuido, alguém deu a Kapetawã um
pequeno jacaré como alimento. O jacaré-ponte então revoltou-se e não permitiu
que ninguém mais passasse por cima dele. Aqueles que não passaram, a história
conta, tornaram-se os huni kuin,12 todos os indígenas que vivem na floresta. Nós,
os brancos13 (nawa), passamos. Assim, do ponto de vista mítico Huni Kuin, foi
feita a separação inicial entre povos distintos. O mito também está registrado
por Lagrou (2007), narrado por seu interlocutor Augusto. A autora conta que as
pessoas caminhavam em busca de um barro melhor e mais consistente, pois as
panelas quebravam-se facilmente devido à má qualidade do barro disponível.
Augusto, ao terminar de lhe contar o mito, disse: “os estrangeiros são nossa
metade partida há muito tempo” (Lagrou, 2007, p. 451). É preciso ter em mente
que o MAHKU funciona como um meio de atravessar e colocar em relação dife-
rentes realidades e mundos. Vai além, ao fazer das suas obras instrumento de
acesso e relativo controle de um mundo potencialmente perigoso (o mundo dos
brancos e o “mundo” da arte14).

12
Utilizo nesse caso letras minúsculas pois não se trata do etnônimo Huni Kuin. Lembro que huni kuin
é, ao mesmo tempo, um etnônimo e um “pronome cosmológico” (Viveiros de Castro, 1996) passível
de ser utilizado por todo grupo que fale línguas Pano. Nesse caso, huni pode ser entendido como “ser
humano” ou “pessoa”, enquanto kuin pode ser pensando como “verdadeiro” ou “de verdade”, no sentido
de estar mais próximo ao núcleo interno do coletivo. Nós, pessoas de verdade. Esse pronome, portanto,
pode ser utilizado por todos os outros grupos falantes de línguas Pano. Existe uma dinâmica relacional
e posicional específica nessa classificação da alteridade, bem analisada por Keifenheim (1990, p. 80).
13
“Branco” é a forma utilizada pelos próprios Huni Kuin (e por diversas outras etnias indígenas do Brasil)
para fazer referência aos não indígenas de forma geral. Nawa é o termo empregado pelos Huni Kuin para
se referir aos não indígenas, também chamados de maneira generalizante de “brancos”. Nesse caso
em específico, o termo está sendo utilizado dessa maneira. Nawa, entretanto, pode funcionar também
como um sufixo formador de etnônimo dentro da etnia linguística Pano. Para mais informações, ver
Keifenhein (1990) e Saez (2002).
14
Há, evidentemente, uma possível contradição nisso. Ao participar de distintas exposições de arte, os
integrantes do MAHKU, assim como todos os artistas indígenas contemporâneos, acessam um universo
culturalmente valorizado por certos não indígenas e, com isso, passam a ser também valorizados. Assim,
pode ser que eles estejam sendo valorizados apenas por produzir algo culturalmente relevante para um
determinado grupo, arte, e não, simplesmente, por ser humanos, como, por obvio, deveria ser. Essa
questão é extremamente complexa e não será o tema deste artigo. Penso que será preciso acompanhar
os desdobramentos históricos do ingresso de artistas indígenas contemporâneos no cenário artístico
nacional para elaborar uma análise mais densa sobre o assunto.
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Imagens-pontes

Se, como defendo, uma das principais práticas políticas do coletivo


MAHKU é construir caminhos, pontes e colocar em relação mundos díspares por
meio de obras e ações, lembro que são caminhos os próprios cantos (huni meka)
desenhados. Os cantos huni meka operam como passagens e são instrumentos
de mediação entre os mundos visível e invisível. Sua transmutação em imagens,
sugiro, também gera instrumentos mediadores do entremundos, nesse caso, o
mundo indígena com o não indígena, em particular com o campo artístico e seu
público. Nesse sentido, arrisco dizer que os cantos “incorporam-se” às imagens,
garantindo-lhes uma forma de operação análoga à dos próprios cantos: a de ca-
minhos e agentes conectivos. Cesarino (2006, p. 111) aponta que

os huni muka são propriamente caminhos. Os dami, suas imagens,


representações ou transformações visionárias são os caminhos (bai)
abertos pelo nixi pae capazes de colocarem o cantador em relação aos
yuxin (“espíritos”) ali presentes, ou ao “povo do nixi pae”, aqueles que
realmente compreendem as palavras especiais do canto composto na
língua dos antigos (shenipabu hãtxa). O huni muka sobrepõe/comunica
o huni, a pessoa que canta, a Yube, a sucuri ancestral hipóstase do cipó,
bem como o próprio cipó-homem (pois a ayahuasca é uma pessoa para
os Kaxinawá e tantos outros povos amazônicos).

Dami, assim como as imagens que surgem durante as visões, é também o


nome dado às imagens figurativas produzidas pelo coletivo MAHKU. Um desenho
figurativo que “imita” uma árvore ou um animal, por exemplo, é dami. Lagrou
(2018b, p. 149) lembra que “para ver corretamente, é preciso ouvir. As linhas
da canção e as linhas da visão estão intrinsicamente entrelaçadas”.15 Segundo
a autora,

15
Nessa e nas demais citações de originais em idiomas estrangeiros, a tradução é nossa. Aqui,
o original é: To see properly, one has to listen. Song lines and the lines of vision are intrinsically
interwoven (Lagrou, 2018b, p. 149).
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A canção [...] traça caminhos a ser seguidos pela alma-olho perdida da


pessoa que sofre. A alma-olho tem que seguir o desenho da música
enquanto este se desdobra diante de seus olhos para poder voltar, para
chegar perto do corpo daquele que canta e, assim, retornar ao seu pró-
prio corpo. Essa é a razão pela qual o mestre da música se apoia no
corpo trêmulo daquele que se perdeu no mundo das imagens, e canta
com a voz plural de Yube, espírito-anaconda, que nós, eu, você, senti-
mos falta do seu corpo16 (Lagrou, 2018b, p. 151).

Aquele que canta, o txana, seria uma espécie de maestro das visões
alheias. Cantar e ver estão intimamente conectados no ritual. O txana auxilia,
com seus cantos, a viagem e o encontro da “alma-olho” (bedu yuxin) com
duplos espíritos de animais. Segundo a autora, durante o ritual, ocorre uma
espécie de “batalha estética” (Lagrou, 2018a, 2018b) e existe um risco constante
de a bedu yuxin daquele que participa ser capturada e envelopada em um novo
corpo, por algum espírito-animal (yuxin), que se vinga. São os cantos, portanto,
que colocam o participante, em especial a alma-olho, em diálogo minimamente
controlado com esse universo poderoso e potencialmente perigoso, e o ajudam
a encontrar seu caminho com segurança.
Lagrou (2018a, 2018b) afirma também que o ritual de nixi pae envolve
uma complexa dinâmica relacional, durante a qual as posições de predador e
presa se invertem e estão em disputa. “Nixi pae é um universo mimético, agonís-
tico e altamente estético em constante processo de devir-Outro: devir-animal,
devir-mulher, devir-criança, devir-planta e videira e até devir-molecular”17

16
The song, in other words, traces paths to be followed by the lost eye-soul of the person suffering. The
eye-soul has to follow the design of the song as it unfolds before his eyes in order to be able to come back,
to come close to the body of the one who sings, and hence to return to his own body. This is the reason
why the master of song will lean against the shivering body of the one lost in the world of images, and
sing in the plural voice of Yube, anaconda spirit, that we, I, you miss your body (Lagrou, 2018b, p. 151).
17
Nixi pae is a mimetic, agonistic and highly aesthetic world in constant process of other-becoming:
animal-becoming, women-becoming, child-becoming, plant and vine-becoming and even becoming-mo-
lecular (Lagrou, 2018a, p. 41).
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(Lagrou, 2018a, p. 41). Um desses possíveis devires presentes no nixi pae é o de


tornar-se Yube,18 pois quem bebe o chá está tomando o sangue19 de Yube para,
em seguida, ser devorado por ela e, com isso, poder ver com seus olhos. Assim,
quando Bane pinta uma obra do canto Yube Nawa Aibu20 (figura 3), em que a
Figura 3 jiboia é vista com rosto humano, penso que o ponto de vista dominante na obra
Bane Huni Kuin, Yube Nawa
Aibu, 2017, lápis de cor
seria o da jiboia. Com sua obra, então, Bane nos daria a ver esse outro mundo, já
sobre papel, 42 x 59,4cm acessado por meio dos rituais com nixi pae.

Yube é a jiboia mítica ancestral dona de todos os yuxin e de todos os padrões de grafismos. Ver
18

mais em Lagrou (2018a, 2018b).


19
A ayahuasca, segundo Lagrou (2018a, 2018b), é também compreendida como o sangue de Yube.
20
Yube Nawa Aibu foi traduzido por Ibã como “mulher do povo-jiboia”.
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Ibã, por sua vez, costuma dizer que as músicas são como conversas com o
nixi pae e é por isso que, nos cantos, há o pedido para se entrar e sair da “força”
que a bebida traz. Ibã também afirma que os cantos são a própria fala do nixi
pae. Essas falas trazem uma importante questão, já que para estar em posição
de se relacionar (conversar) com os yuxin (espíritos) e com Yube, é preciso ser,
antes, visto por eles. Ser visto por eles, por sua vez, requer que você veja como
eles. Conforme mostra Lagrou (2018b, p. 149),

Ver e ser visto depende de uma qualidade eminentemente relacional


que nunca é dada. O que o xamã Yanomami Davi Kopenawa disse
dos espíritos ajudantes xapiri também se aplica a Yube, o espírito-jiboia dos
Huni Kuin, e a revelação de seu mundo de seres-imagem: para ver esses
seres-imagem é preciso primeiro ser visto por eles. Eles olham para você
e, assim, tornam-se visíveis para você (Kopenawa & Albert, 2010). Para
ver o xapiri é preciso se tornar um deles e ver com seus olhos. Da mesma
forma, para ver Yube e seu mundo transformacional, você precisa ver
através de seus olhos. Portanto, não é suficiente ingerir a substância-alma
dele, a videira visionária, índice de sua agência dentro de seu corpo. Yube,
o espírito anaconda, pode decidir não olhar para você, não se mostrar para
você; pode mostrar apenas “mentiras” ou simplesmente não mostrar nada.
O processo de devir-anaconda, condição para a obtenção de capacidades
visionárias, não é de todo evidente − além de ser um empreendimento
muito arriscado21 (Lagrou, 2018a, p. 149).

21
To see and to be seen depends on an eminently relational quality that is never given. What the Yanomami
shaman Davi Kopenawa has said of the xapiri spirit-helpers also holds true for Yube, the anaconda
spirit of the Huni Kuin, and his revelation of his world of image-beings: to see these image-beings it is
necessary to first be seen by them. They look at you and thus become visible for you (Kopenawa & Albert,
2010). To see xapiri one needs to become one of them and see with their eyes. In the same way, to see
Yube and his transformational world, you need to see through his eyes. It is therefore not enough to ingest
his soul-substance, the visionary vine, index of his agency inside your body. Yube, the anaconda spirit,
can decide not to look at you, not to show himself to you; to show only ‘lies’ or simply show you nothing
at all. The process of anaconda-becoming, a condition for obtaining visionary capacities, is not evident at
all – besides being a very risky enterprise (Lagrou, 2018b, p. 149).
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Ibã conta que não é possível explicar os cantos huni mekas e suas mirações.
Idealmente, ensina, é apenas “na força” (sob efeito da ayahuasca) que se
compreende o que os cantos dizem e mostram. É preciso tornar-se outro para
ver. Frente a demandas contínuas de não indígenas querendo saber o que dizem
os cantos e como são as mirações, o MAHKU resolveu pintar. É o que Ibã chama
de “colocar os cantos no sentido”. Com paciência e na posição de professores,
eles nos ensinam a ver através das suas próprias formas de tradução dos cantos
em imagens. Trata-se, guardadas as devidas proporções, de algo semelhante ao
ocorrido com Castañeda e Don Juan, a saber: a “venganza del ‘objeto’ antro-
pológico (un brujo) sobre el antropólogo hasta convertirlo en un hechicero.
Antiantropología” (Paz, 2013, p. 19). O MAHKU, podemos arriscar, pratica sua
Figura 4 própria “antiantropologia” ao produzir imagens que nos ensinam e capturam. As
Pedro Maná Huni Kuin
(MAHKU), Mito de origem da obras de arte do MAHKU, ao ser objetos de um olhar, agem. Há, portanto, uma
ayahuasca, 2018, acrílica inversão do que seria esperado, e, nessa inversão, há um esforço de compor
sobre tela e lápis de cor
sobre papel, 165 x 240cm
conjuntamente, de construir alianças e de criar uma relação de forças mais
Foto: Rochelle Costi simétrica com os não indígenas.
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Figura 5 Conclusão
Bane, Isaka e Ibã (MAHKU),
detalhe de Nai Mapu Yubekã,
abril 2019 A operação artística do MAHKU envolve, portanto, um processo de conexão
Foto do autor
e composição com dois mundos distintos, ambos potencialmente perigosos e
fascinantes: o mundo de Yube e dos yuxin (espíritos) e o mundo dos nawa (os
não indigenas, “brancos”). É um processo simultaneamente político e xamânico,
no qual as pinturas-cantos são meio de acesso e relação com outros universos.
Os cantos são imagens, e ambos são caminhos entre mundos. Cantos, imagens,
caminhos. Arrisco dizer que as obras do coletivo estariam, dessa forma, não
apenas representando os cantos huni mekas, mas transformando-se neles e na
sua forma de operar. Se lembrarmos do jacaré Kapetawã, símbolo do MAHKU, é
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possível propor que as imagens produzidas pelo coletivo sejam imagens-pontes.


Obras de arte, telas, imagens que, assim como Kapetawã, fazem a conexão entre
mundos. Imagens que refazem o mito de Kapetawã agem sobre os espectadores
e os encantam22 (Gell, 2005). Imagens-pontes, imagens-conexão.
Extrapolando a dinâmica interna do ritual e olhando para a relação inte-
rétnica, sobram questões e possibilidades em aberto a ser exploradas no futuro.
Ao se tornar artistas e produzir obras de arte, não estariam os integrantes do
MAHKU tornando-se, ainda que momentaneamente, “brancos”, ou seja, adotando
o seu ponto de vista estrategicamente? Poderia essa ser uma estratégia para ser
vistos e posição de melhor se relacionar com os não indígenas? Ao transmutar
cantos, os próprios artistas do MAHKU não estariam se transmutando, ainda que
por instantes? Não seria essa uma transmutação essencialmente política e que
visa à autonomia?
Parece-me, tal como proposto por Jolene Rickard (1995, p. 51), intelectual
Tuscarora, que

Soberania é a fronteira que transforma a experiência indígena de uma


posição vitimizada em uma posição estratégica. [...] Como parte de
uma contínua estratégia para sobrevivência, o trabalho dos artistas
indígenas precisa ser compreendido através das lentes da soberania
e da autodeterminação, e não somente em termos de assimilação,
colonização e das políticas identitárias.23

As obras do MAHKU, nesse sentido, defendo, são literalmente políticas,


pois agem estrategicamente sobre os não indígenas, visando à autonomia e à
soberania. Autonomia não apenas na produção de discursos, mas também terri-
torial. Lembremos quando Ibã diz: a minha política é a política dos artistas. Frase
complementar à outra: Vende tela, compra terra.

22
Gell fala do encantamento pela técnica necessária para a produção de determinados objetos. O
argumento aqui é semelhante, mas possui diferenças, tendo em vista que as imagens produzidas
pelo MAHKU, acredito, encantam mais pelo “mistério” do seu conteúdo. O foco, portanto, não é
sobre a técnica necessária para produzi-las.
23
Sovereignty is the border that shifts indigenous experience from a victimized stance to a strategic one.
[…] As part of an ongoing strategy for survival, the work of indigenous artists needs to be understood
through the clarifying lens of sovereignty and self-determination, not just in terms of assimilation, colonization,
and identity politics (Rickard, 1995, p. 51).
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A estratégia xamânica, política e artística do coletivo dialoga com o tempo


do cativeiro, momento em que viveram sob o regime da escravidão por dívidas
durante o ciclo da borracha, mas não só: somos índios, estamos resistindo há
500 anos, lembra-nos Aílton Krenak (2018). Nesse sentido, é importante perceber
a produção do MAHKU, mas também a de outros artistas indígenas contempo-
râneos, como Jaider Esbell, Denilson Baniwa, Sueli Maxakali e Daiara Tukano,
dentro de um contínuo temporal, enquanto uma continuidade dos processos de
estratégia e de relação com alteridade visando à autonomia praticados pelos
indígenas. A arte indígena contemporânea, então, estaria ligada e daria continui-
dade a práticas xamânicas e políticas ancestrais indígenas. Haveria, assim, uma
continuidade, não uma ruptura com os tempos “de antes”. Nos termos de Gerald
Vizenor (1999), intelectual Ojibwe, poderíamos pensar os artistas indígenas
contemporâneos enquanto guerreiros pós-indígenas (postindians warriors) a
produzir “atos de sobrevivência” (acts of survivance) e a criar novos imaginários
de soberania.
Em uma live veiculada no dia 26 de novembro de 2020, na página do
Facebook da Bienal de São Paulo, Jaider Esbell afirmou:

Eu acredito que vai ser a arte que dará condição de que o povo Maxakali,
essas famílias todas, tenha o direito de ter de volta seu território, mesmo
que seja preciso comprar a terra. Aí entra na política do artista e pajé
Ibã, que já cantou essa pedra lá atrás. Vendo tela e compro terra. Essa
é a realidade não romântica do nosso país.

As palavras de Jaider ecoavam a fala do também artista Isael Maxakali,24


apresentada um pouco antes na live. Isael contou que os Maxakali25 tiveram de
escolher entre ter uma terra ou permanecer com a língua. Os pajés antigos
escolheram a língua, e, dessa forma, eles ainda falam tikmũ’ũn, a língua própria.

24
Isael Maxakali e sua esposa Sueli Maxakali são artistas. Isael foi o vencedor do Prêmio Pipa
Online de 2020.
25
Os Maxakali são um povo indígena de cerca de 2.000 pessoas habitantes do norte de Minas Gerais. Mais
informações em: https://pib.socioambiental.org/pt/Povo:Maxakali.
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Nessa “realidade não romântica”, que se estende por cinco séculos, os artistas
indígenas vão inventando mundos, novos imaginários, e negociando suas autono-
mias por meio da arte. Nesse sentido, o gesto do MAHKU de comprar terras com
a venda de telas abriu uma nova possibilidade de autonomia entre os (artistas)
indígenas.26 Em um país onde os direitos indígenas são constantemente violados,
a compra de terra torna-se uma alternativa plausível. Frente a uma realidade não
romântica, uma escolha não romântica. Além de tudo, desmonta a ideia roman-
tizada do indígena.
Evidentemente, isso não quer dizer que a resolução dos conflitos e disputas
territoriais indígenas irá ocorrer por meio da compra de terras. As demarcações
realizadas pelo governo federal precisam continuar. A prática de comprar terra
não está em oposição às demarcações, mas ao lado. Há muito para fazer,
urgentemente, e todo esforço se complementa. Talvez, devamos olhar para esse
ato de Ibã e do MAHKU como um gesto performático, como mais uma das obras
do coletivo. De uma só vez, acenderam uma luz, uma possibilidade de futuro
e romperam com uma ideia do passado: aquela de que os indígenas não são
realmente contemporâneos, de que estão em algum tempo distante e podem
viver apenas com recursos naturais. Alguns, felizmente, ainda podem, mas são
minoria. O MAHKU e os artistas indígenas contemporâneos vivem, cada um a sua
maneira, imersos nas contradições desse campo e deste tempo.
Outra contradição reside em ser eu a estar escrevendo este artigo. Eu, que
não falo hantxa kuin, a língua Huni Kuin, jamais compreenderei completamente o
que são as obras do MAHKU. Apenas as margeio. Assim, lembro-me da antropóloga
Townsend-Gault (1992) quando diz que “nós podemos saber muitas coisas, seja
quem for o “nós”. Mas nunca podemos saber de tudo”.27 Conto, aqui, portanto, o
que senti, o que vivenciei nestes últimos quatro anos em diálogo com alguns inte-
grantes do coletivo. Busquei tecer uma análise possível cruzando perspectivas dos

26
Futuramente, será importante comparar os movimentos de autonomia territorial pela arte ocorrendo no
Brasil com as práticas artísticas em torno do movimento Land Back, ocorrendo em território norte-
americano. A recente obra Never forget, de Nicholas Galanin, artista Tlingit e Unangax, acompanhada
de um financiamento coletivo, insere-se nessa “tradição”. Para ver mais: https://desertx.org/dx/
desert-x-21/nicholas-galanin e https://www.gofundme.com/f/landback.
27
We can know many things, whoever ‘we’ may be. But we can never know everything (Towsend-Gault, 1992).
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próprios artistas, somando com teóricos indígenas e, também, antropólogos.


Espero, evidentemente, que, em breve, os Huni Kuin estejam, eles mesmos,
também escrevendo sobre suas próprias produções. Tudo ficará mais interessante
e complexo, tenho certeza.
Para concluir, ressalto que acredito que o MAHKU não possui, nem almeja,
ter uma história única pois ela seria, sempre, incompleta. Essa, portanto, não é a
história do MAHKU, mas uma de suas muitas histórias e olhares. Esse é um olhar
sobre o MAHKU construído a partir de uma relação que venho tecendo há alguns
anos. O MAHKU é um movimento aberto a novas pessoas e técnicas. Resulta de
vontades individuais, indígenas e não indígenas, humanas e não humanas, que
se cruzam e se fortalecem. É um rio sinuoso, com diversos igarapés de onde os
integrantes entram e saem, sem aviso prévio, sem protocolos ou carteirinhas
de pertencimento. O MAHKU é uma jiboia, como disse Ibã, e Yube é “a maior
dos xamãs em função de ser um mensageiro, nunca restrito a um único mundo,
viajando do mundo da água para a terra e retornando, trocando de pele todo o
tempo, transformando-se a si própria e o mundo a sua volta” (Lagrou, 2007,
p. 216). O MAHKU está só começando.

Daniel Dinato é mestre em antropologia social pela Universidade de Campinas


(Unicamp) e especialista em estudos e práticas curatoriais pela Fundação
Armando Álvares Penteado (Faap). Atualmente é doutorando em estudos e
práticas das artes na Universidade do Quebec em Montréal (Uqam). Membro
do Centre interuniversitaire d’études et de recherches autochtones (Ciéra)
e do Groupe de recherche interdisciplinaire sur les affirmations autochtones
contemporaines (Griaac).

Referências

ARAÚJO, Thiago Santos de. Desnutrição infantil no município de maior risco nutricional do
Brasil: Jordão, Acre, Amazônia Ocidental (2005-2012). Tese (Doutorado em Epidemiologia) −
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Artigo submetido em março de 2021 e aprovado em junho de 2021.

Como citar:
DINATO, Daniel. “Vende tela, compra terra” e outras formas de atuação política
do Movimento dos Artistas Huni Kuin (MAHKU). Arte & Ensaios, Rio de Janeiro,
PPGAV-UFRJ, v. 27, n. 41, p. 50-73, jan.-jun. 2021. ISSN-2448-3338. DOI:
https://doi.org/10.37235/ae.n41.4. Disponível em: http://revistas.ufrj.br/index.php/ae
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Matula cheia de voz: a voracidade vocal de


Grace Passô em Vaga carne1
A carrier bag full of voice: Grace Passô’s vocal
voracity in Dazed Flesh

Maria Altberg
0000-0002-4678-3587
maria.altberg@gmail.com

Resumo
No filme Vaga carne (2019), dirigido (em parceria com Ricardo Alves Jr.) e
protagonizado por Grace Passô, acompanhamos a jornada de uma voz que tem
o poder de transitar por diferentes matérias. Novos e inesperados afetos são
conhecidos quando a voz se vê presa a determinado corpo feminino e passa a
ser submetida às implicações sociais de encarnar essa identidade. A partir da
narrativa do filme, e em diálogo com teóricas como Ursula K. Le Guin, Anne Carson
e Adriana Cavarero, o trabalho propõe pensar a afirmação de vozes plurais como
enfrentamento poético a silenciamentos históricos.
Palavras-chave
Voz; Grace Passô; Vaga carne; Palavra; Corpo.

Abstract
In the film Dazed Flesh (2019), directed by Grace Passô and Ricardo Alves Jr., and
starring Passô, we follow the journey of a voice that has the power to transit through
different substances. Unexpected new affections appear when this voice finds itself
attached to a certain female body and becomes subjected to the social implications of
embodying this identity. Based on the narrative of the film, and in dialogue with theorists
such as Ursula K. Le Guin, Anne Carson and Adriana Cavarero, we propose to think about
the affirmation of plural voices as a poetic confrontation with historical silences.
Keywords
Voice; Grace Passô; Dazed Flesh; Word; Body.

PPGAV/EBA/UFRJ
Rio de Janeiro, Brasil
ISSN: 2448-3338
1
Trabalho realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior
DOI: 10.37235/ae.n41.5 (Capes). Código de Financiamento 001.
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eu perco meus gritos


como uma pessoa perde
seu dinheiro, suas moedas,
seu coração, meus gritos mais
altos eu perco em
roma, em todo lugar, em
berlim, pelas ruas eu
efetivamente perco
meus gritos, até que
meu cérebro se cobre
de névoa vermelha, eu perco tudo,
a única coisa que eu
não perco é esse pavor
de saber que uma pessoa
pode perder seus gritos
todos os dias
em qualquer lugar

Ingeborg Bachman
(tradução Adelaide Ivánova)

No ensaio The carrier bag theory of fiction, Ursula K. Le Guin (2019)


defende novas maneiras de contar histórias a partir da hipótese de que a
primeira ferramenta inventada pela humanidade tenha sido um recipiente e não
uma arma (ao contrário do que sugere a clássica cena de um primata descobrindo
a potência destruidora de um osso animal em 2001 – Uma odisseia no espaço, de
Stanley Kubrick). A autora recupera a ideia de Elizabeth Fischer (apud Le Guin,
2019, p. 29) de que nossos ancestrais eram predominantemente coletores,
podendo sobreviver perfeitamente de uma alimentação à base de folhas, frutas,
raízes e sementes apanhadas por onde andavam. Segundo Le Guin, em vez de
objetos feitos de ossos, galhos ou pedras, com a função de quebrar e matar, o
ser humano na verdade necessitava de uma bolsa para transportar alimentos
coletados e a própria cria em seus deslocamentos. O que moveria a caça de
animais de grande porte seria menos a necessidade vital de ingerir carne e sim
a possibilidade de narrar batalhas heroicas na volta de uma caçada. A teoria
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da cesta como ferramenta primordial lançada por Ursula implica o desejo de


outras histórias, narradas de um ponto de vista mais acolhedor que o do herói
que vence lutas (comumente associado ao gênero masculino e que, além de
colonizar nosso olhar, nos coloca a serviço de uma narrativa).2 Os conflitos não
ficariam fora dessa nova maneira de contar histórias, mas esse não seria seu
motor central:

todos nós ouvimos tudo sobre todos os paus, lanças e espadas, as


coisas para esmagar e cutucar e bater, as coisas longas e duras, mas
não ouvimos falar da coisa para colocar as coisas, o recipiente para
a coisa contida. Essa é uma história nova. Isso é novidade3 (Le Guin,
2019, p. 29).

Em conversa com Ricardo Aleixo na série Janelas Abertas,4 a atriz, drama-


turga e diretora Grace Passô lança mão de uma imagem que faz ressoar a teoria de
Ursula Le Guin. Ao contar que escreve seus textos teatrais já pensando no corpo
que vai vocalizar aquelas palavras, diz sobre o processo: “como se estivesse fabri-
cando um escudo para alguém, uma matula, algum objeto estranho, cheio de
macumba para uma pessoa que em algum momento vai performar algo” (Passô,
Aleixo, 2020, s.p). O recipiente que Grace preencheu com o texto de Vaga carne
foi ofertado a seu próprio corpo, em cena a serviço de uma voz. Escrito e prota-
gonizado por ela, o monólogo estreou em 2016 em Curitiba e no mesmo ano
foi laureado com os prêmios Shell e Cesgranrio. Recebeu o prêmio Leda Maria
Martins de artes cênicas negras de Belo Horizonte em 2017. Desde a escrita do

2
A literatura de Ursula Le Guin (1929-2018) caracteriza-se por abordar, na ficção científica, temas
como política, religião, sexualidade e questões de gênero.
3
Tradução minha do original: We’ve heard it, we’ve all heard all about all the sticks, spears and swords,
the things to bash and poke and hit with, the long, hard things, but we have not heard about the thing to
put things in, the container for the thing contained. That is a new story. That is news.
4
O programa Janelas Abertas foi criado pelo Núcleo Experimental de Performance (NEP), coordenado
pelas professoras Adriana Schneider e Eleonora Fabião, do Programa de Pós-graduação em Artes da
Cena, da Escola de Comunicação da UFRJ. O projeto promoveu 17 encontros virtuais entre pensa-
dores e artistas. Com transmissões ao vivo pelo YouTube, a série teve como objetivo principal estimular
doações financeiras para as unidades de saúde do Complexo Hospitalar da UFRJ no combate à
pandemia da covid-19.
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texto, a autora enxergava uma identidade porosa no material, que a convidava ao


exercício de articular diferentes linguagens. O filme de mesmo título foi exibido
pela primeira vez na Mostra de Cinema de Tiradentes, em 2019, ano em que
Grace Passô foi a homenageada do evento.
Informada no site da distribuidora Embaúba Filmes, a sinopse do mé-
dia-metragem,5 dirigido por Grace em parceria com Ricardo Alves Jr.,6 revela: “Uma
estranha voz toma posse do corpo de uma mulher. Juntos, a voz e o corpo
procuram por pertencimento e por uma identidade própria enquanto questionam
seus papéis dentro da sociedade. O filme é uma transcriação do espetáculo teatral
da atriz e dramaturga Grace Passô”. A ideia de transcriação sugere um trânsito
criativo entre fazeres artísticos para além de uma adaptação. Apesar de usar uma
sala de teatro como locação, os diretores encararam o desafio de explorar
uma potencialidade própria do meio audiovisual que vai muito além do que seria
um registro da peça. Como afirma o crítico Juliano Gomes (2020, s.p.),

Um filme engendra em si inúmeros atos de recorte e recomposição.


Daí, por exemplo, a tensão inerente ao teatro ou performance filmados.
A premissa pictórica do cinema cria um dentro e um fora, cria uma
dimensão de mostração ótica onde os dados gráficos e pictóricos
organizam um vetor de energia inerente que cinde-se em pelo menos
dois planos, aqui e lá. Enquadrar é escolher um ângulo e um conjunto
de elementos, enquanto se deixa outros de fora. Um plano é sempre
um ato de ênfase, de apontamento de uma concentração de forças – e
também um ato criador de um “fora”.

5
Vaga carne tem duração de 45 minutos. Como estratégia de lançamento em salas de cinema (que
exibem apenas sessões de longa-metragem, com duração a partir de 70 minutos), a distribuidora
Embaúba Filmes havia programado sessões combinadas de Vaga carne com outro média-metragem,
Sete anos em maio, de Affonso Uchôa. Os filmes estavam prestes a ser lançados quando os cinemas
fecharam devido à pandemia da covid-19. Desde então, os títulos podem ser vistos separadamente
no site da distribuidora.
6
Ricardo Alves Jr. dirigiu alguns curtas-metragens e o longa Elon não acredita na morte (2016). Fez
parte da equipe de criação do espetáculo Vaga carne desde sua origem.
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Antes da realização do filme, o livro com o texto da peça havia sido publi-
cado pela editora Javali em 2018. O texto com as rubricas é disposto em uma
diagramação que provoca interação com a voz-personagem que tudo é capaz de
invadir – algumas páginas em branco (representando o silêncio) e outras com
apenas poucas palavras intercalam páginas completamente preenchidas.
Na tradução intersemiótica da peça e do texto para o cinema, o filme
começa sem imagens; vê-se somente o breu e ouve-se a voz que entoa: “Vozes
existem. Vorazes. Pelas matérias” (Passô, 2018, p. 15-16). A narração sugere
olharmos para situações que são perturbadas sem uma causa aparente, como
um vidro que trinca, uma rã que salta de uma altura atípica ou uma torneira que
goteja sem parar: essas matérias podem ter sido invadidas por vozes. E então a
personagem voz se apresenta narrando sua aventura de invadir corpos de seres
vivos e também inanimados, atribuindo características a cada um: os cães seriam
superiores; os cremes são deslizantes; o café, um rock − “te movimenta” (p. 16);
a mostarda é estranha e respeitosa; estátuas, indiferentes; as estalactites possi-
bilitam que se medite dentro delas. A voz enfatiza que escolheu se comunicar
com as palavras do bicho-homem, “porque vocês são tão egoístas, tão egoístas,
que só entendem as próprias línguas” (p. 17). A fala se estende sobre a tela
preta durante os cinco minutos iniciais do filme, até o momento em que surgem
flashes de detalhes de um cão. Ouvimos um ruído de água seguido do que
parece ser o som de fogo estalando ao fundo do elemento sonoro principal da
voz, que lista imagens em que penetrou: “imagem cadeira, imagem sofá, imagem
azeite, imagem âmbar, imagem pato, imagem cavalo, imagem cachorro, imagem
mulher” (p. 17). Nesse momento, aparece pela primeira vez a figura de um corpo
humano feminino – que ainda não é o de Passô (e sim da atriz Tássia d’Paula).
Em seguida vemos as cadeiras da plateia de uma sala de teatro vazia – que a voz
sugere que também pode invadir – luzes desfocadas e, finalmente, a imagem de
Grace Passô, de perfil e estática. A voz, ainda em off, vai descrevendo o interior
do corpo invadido dessa mulher: “Nada é oco por aqui. [...] Se virássemos este
corpo ao avesso, vocês entenderiam: aqui é um lugar escuro, escuro” (p. 18).
Em transição sutil, a voice over que pairava passa a sair da boca da mulher
em quadro. A atuação precisa de Passô e a edição sonora dão conta de tornar
concreta a sensação um tanto esquizofrênica de ver um corpo inerte emitir uma
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voz que narra e modula um fluxo de movimento constante. Nos primeiros


momentos de invasão da voz no corpo de Grace, o que se ouve e o que se vê são
estranhamente distintos (mesmo que saibamos tratar-se na realidade da voz da
atriz). Da garganta de um corpo ainda praticamente imóvel, a voz nos conta: “é
uma textura, estou puro sangue violento, puro sangue veloz, verdade, o sangue
é tempestade e tudo move, move, move, freneticamente move, move, vocês
percebem?” (p. 19).

Figura 1
Um corpo invadido por
uma voz
frame de Vaga carne

Laura Erber chama a atenção para o fato de que o cinema, desde que se
tornou sonoro, carrega um elemento de tensão no efeito de sincronia entre
imagem e som. Devido à pouca mobilidade dos microfones antigos para acom-
panhar todos os movimentos dos atores que falavam em cena, recorria-se à
posterior dublagem. Além de deixar as vozes distorcidas e artificiais por causa
da deficiência técnica, “por conta das técnicas dramatúrgicas da época, a voz
com a qual o espectador se deparava nos filmes estava a muitos quilômetros
de distância da língua falada na realidade cotidiana. Havia uma obrigação de
eloquência que pouco refletia a fala ordinária” (Erber, 2012, p. 225). Erber
problematiza assim a divisão colocada por Deleuze entre os conceitos de ima-
gem-movimento e imagem-tempo − atribuídos pelo autor aos cinemas clássico
e moderno, respectivamente. Para Deleuze, alguns cineastas que despontaram
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na década de 1960 fizeram ruir o esquema em que se procurava unir imagem e


som. Diretores como Jean-Luc Godard e Alain Resnais trabalhavam justamente
a não sincronia dos elementos na montagem, inaugurando uma linguagem fílmica
disruptiva. Erber (p. 227) aponta que a consideração deleuziana do que seria o
período da imagem-movimento se refere mais à utopia desse cinema do que ao
resultado prático que ele apresentava:

o modelo de sincronicidade entre as ações e a dimensão visual é uma


utopia, um ideal estético e motor implícito do cinema clássico, porém
nem sempre realizado ou “experimentável” dessa forma. O cinema
moderno se contrapõe ao ideal do cinema clássico, mas não necessaria-
mente à sua realização real, que ele acabou absorvendo, mesmo que à
sua própria revelia. Aquilo que do ponto de vista do ideal de realização
do cinema sensório-motor é um defeito, do ponto de vista do ideal da
imagem-tempo é uma potência.

Seja por defeito técnico ou por opção estética, o jogo entre dissimular e
escancarar uma descostura entre corpo e voz faz parte da história do cinema. Em
Vaga carne, a operação apresenta-se ainda mais complexa: o filme não apenas
usa alguns recursos disruptivos próprios da montagem e da pós-produção de
som (como voice over, distorções na voz, ruídos), mas uma proposital colagem
imperfeita entre a voz que é protagonista e o corpo da mulher que é ocupado, no
próprio ato da encenação – procedimento que estava no cerne da performance
de Grace desde a peça. Há a constante hesitação entre som, imagem e sentido
do que é dito.
Em seu percurso veloz, a voz segue reconhecendo o corpo da mulher.
Experimenta movimentos no corpo dominado enquanto descreve impressões:
ergue um braço: “É como uma embarcação, estou erguendo uma vela gigantesca”
(Passô, 2018, p. 19); balança a cabeça, “espécie de sino, espécie de grande
capela” (p. 19) e então há um corte do plano médio para um close up nos olhos
de Grace. A voz continua em sua descoberta: “Olhos são faróis. Ou são facas? Ou
moluscos. É um susto. É o diabo. É tudo junto” (p. 19). A partir daí, a voz se dá
conta de que é olhada e inicia de fato um apelo por diálogo com outros corpos
que são mostrados na plateia – não por acaso, todos de pessoas negras. São
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personalidades da cena cultural mineira: Aline Vila Real, André Novais,7 dona
Jandira, Hélio Ricardo, Pacotinho, Ronaldo Coisa Nossa, Sabrina Hauta, Tássia
d’Paula, Valeria Aissatu Sane, Zora Santos. Afirma Bárbara Bergamaschi (2019,
s.p.) que “Não são corpos quaisquer, são ‘Cor-corpo’, como diz Grace em certa
altura da narrativa. O fato de essas corporeidades específicas ocuparem o
espaço historicamente reservado à branquitude já é em si um gesto de potência
disruptiva e política”.

Figura 2
Cor-corpos
frame de Vaga carne

A expressão “cor-corpo” é dita pela voz encarnada no corpo da mulher


quando ela convoca a plateia a ocupar seu corpo com palavras. No teatro, esse
era um momento de improviso, em que Grace reproduzia livremente cada palavra
que lhe era lançada pelo público. Grace incluiu na peça e no filme um procedi-
mento que já havia experimentado enquanto performance em 2017 a convite do
projeto Polifônica Negra. O trabalho consistia em repetir durante 15 minutos a
palavra macaca. A reiteração exaustiva leva a uma desconstrução do significado

7
Vale destacar que o cineasta mineiro André Novais é um dos sócios fundadores da produtora Filmes de
Plástico, responsável por dois longas-metragens que têm presença decisiva de Grace Passô no elenco:
Temporada (2019), dirigido pelo próprio Novais, e No coração do mundo (2019), com direção de Gabriel
Martins e Maurilio Martins. Surgida na periferia de Contagem (região da Grande Belo Horizonte), a produ-
tora cresceu com o projeto de democratização da distribuição de recursos financeiros à cadeia produtiva
audiovisual mediante editais públicos durante os governos do Partido dos Trabalhadores (PT). Seus
filmes têm como marca a ambientação em paisagens que fazem parte do cotidiano de seus realizadores.
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da palavra e desvia a atenção para a materialidade da voz e sua ligação com o


corpo, produzindo um efeito de porosidade da palavra falada. Se a palavra é um
elemento político do contemporâneo, o gesto de desmontagem de Grace caminha
em um sentido decolonial de seus significados, procurando descolonizar também
a escuta.
A pensadora Adriana Cavarero critica a maneira como a metafísica tratou
de desvocalizar o logos, destituindo-o de corporeidade e delimitando-o à esfera
do pensamento. Apesar de a palavra logos derivar do verbo legein, que significa
“falar”, “ligar” ou “contar”, Platão e Aristóteles teriam desconsiderado seu feitio
acústico e restringido sua definição a ligação. Por um procedimento mental, a
palavra exprime um objeto que é ligado a uma imagem. A esfera semântica é
assim subordinada à esfera visual e então levada à mente. Para Cavarero (2011,
p. 203), o ápice da metafísica se dá no pensamento cartesiano que, negando a
própria matéria da existência, faz instaurar uma desvocalização ontológica: “o
pensamento não tem voz, não invoca nem fala, cogita”. Cavarero aponta o
procedimento experimental de escrita em fluxo na literatura moderna8 como a
busca de um caminho inverso à urgência de significação. Lembra o mito de Eco,
a ninfa que, de tão conversadora, foi capaz de distrair a deusa Juno com seus
relatos enquanto outras ninfas assediavam seu esposo Júpiter. Como vingança
pelo engano causado por Eco, a deusa condenou a ninfa a viver eternamente
repetindo palavras dos outros. A voz de Eco

resulta, como mero resíduo material, de sua subtração ao registro


semântico do logos. Mais que repetir palavras, Eco repete sons. Se esses
sons, separados do contexto da frase, recompõem-se em palavras que
ainda significam alguma coisa, ou melhor, significam outra coisa, esse é
um aspecto que diz respeito a quem ouve, não à ninfa. [...] A re-vocalização
é, assim, uma des-semantização (Cavarero, 2011, p. 195-196).

8
Cavarero cita Samuel Beckett como exemplo de escrita de experimentação da linguagem pela
repetição. O monólogo Not I guarda alguma semelhança com a encenação de Vaga carne no aspecto
de fluxo e relativa autonomia de uma voz. A peça de Beckett apresenta uma boca falante como único
personagem.
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Em Vaga carne, a voz suplica: “Vamos invadir o corpo desta mulher com
palavras! Vamos transbordar o corpo desta mulher com palavras! Gritem palavras,
eu boto aqui dentro – eu, não ela. Esta mulher aqui é só um microfone, coitada,
ela não tem nada a dizer!” (Passô, 2018, p. 22). No filme, chegam da plateia no
extracampo as palavras “corpo”, “política” e “amor”, que Passô repete alternada
e ritmicamente. Na performance de entoar as palavras repetidamente, seus
sentidos acabam por se dissolver em um jogo de respiração, voz e corporeidade.
Ainda segundo Cavarero (2011, p. 198),

Justamente a repetição, conhecido expediente performativo que é


indispensável à língua para estabilizar os significados, torna-se assim
um mecanismo que produz o efeito oposto. Carregada de uma potência
dissolutiva em relação ao registro do semântico, a repetição de Eco
é um balbucio que recua à cena da infância em que a voz ainda não é
palavra.

Em entrevistas sobre a peça e posteriormente sobre o filme, Grace


menciona a intenção, em seu dispositivo dramatúrgico, de causar um estranha-
mento de uma esperada harmonia entre gesto e fala. A ideia é justamente
tensionar essa relação, retirando as palavras de um lugar estável e colocando-as
em movimento. O momento de repetição performática no filme é subitamente
interrompido por uma expressão da vontade da voz em querer deixar o corpo da
mulher. Grace sai de quadro, e voltamos ao vazio escuro da locação sem cenário.
A voice over da protagonista segue pedindo para abandonar o corpo. Grace surge
caminhado com aparente esforço em se movimentar, e a voz paira ameaçando:
“Eu vou ficar gritando aqui, até você não me suportar!” (Passô, 2018, p. 22).
Na sequência, algumas das pessoas que estavam na plateia também aparecem
cruzando o quadro. A voz passa a proferir xingamentos como “idiota”, “babaca”,
“gorda”, enquanto a câmera enquadra Grace, de costas, executando movimentos
corporais incomuns. A voz segue: “Você me quer como um coerente espelho
barato, isso sim! Quer que eu te ajude a ser a imagem do que o outro quer ver.
Mas não!” (p. 22). A voz, antes dotada de plena autonomia para entrar e sair de
matérias, vê-se aprisionada num dado corpo de mulher e passa a perceber, aos
poucos, as implicações de encarnar determinada identidade na sociedade.
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Figura 3
Movimentos do corpo
frame de Vaga carne

Em O gênero do som, Anne Carson (2020), ensaísta e tradutora com


declarado interesse pelo que é da ordem do deslocamento de sensibilidades
calcificadas, parte da constatação de que o som da voz humana dispara juízos
a respeito de quem emite a voz. Segundo a autora, o som tem gênero e carrega
uma série de atributos cristalizados pela cultura patriarcal desde a Antiguidade:
“Sua estratégia principal é criar uma associação ideológica do som produzido
pelas mulheres com o monstruoso, a desordem e a morte” (p. 117). Ao investigar
o porquê de a voz feminina causar tanto desconforto, ela sugere que há nessa
voz algo que perturba a descontinuidade entre o dentro e o fora: “É como se o
gênero feminino fosse de modo geral um tipo desagradável de memória coletiva
das coisas indizíveis” (p. 134). Segundo Carson, a voz é submetida a uma história
de construção em relação ao gênero do corpo a que pertence, e as associações
negativas em torno das vozes femininas visariam manter as mulheres em
silêncio, as impedir de ter voz. A escrita de Grace Passô, segundo Helena Martins
(2020, p. 985), enseja “perturbar sensivelmente os modos com que nos habitua-
mos a pensar o dentro e o fora do corpo, da língua, da comunidade. O dentro e o
fora reciprocam, na carne”.
Em Vaga carne, a voz tem seu atributo de movimento de livre entrar e
sair comprometido ao descobrir o corpo que habita enquanto construção social.
Quando a voz entra no corpo de uma mulher negra, não há mais separação
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possível entre interior e exterior, a voz não consegue mais dominar esse corpo e
com ele passa a ser submetida a julgamentos dos olhares dos outros. Se, como
lembra Djamila Ribeiro (2017) ao introduzir a questão do lugar de fala, a mulher
para Simone de Beauvoir é o Outro, a mulher negra seria, para Grada Kilomba
(apud Ribeiro, 2017, p. 23), o Outro do Outro:

As mulheres negras foram assim postas em vários discursos que


deturpam nossa realidade: um debate sobre o racismo onde o sujeito
é o homem negro; um discurso de gênero onde o sujeito é a mulher
branca; e um discurso sobre a classe onde “raça” não tem lugar. Nós
ocupamos um lugar muito crítico, em teoria. É por causa dessa falta
ideológica, argumenta Heidi Safia Mirza (1997) que as mulheres negras
habitam um espaço vazio, um espaço que se sobrepõe às margens da
“raça” e do gênero, o chamado “terceiro espaço”. Nós habitamos um tipo
de vácuo de apagamento e contradição “sustentado pela polarização do
mundo em um lado negro e de outro lado, de mulheres” (Mirza, 1997: 4).
Nós no meio. Este é, é claro, um dilema teórico sério, em que os
conceitos de “raça” e gênero se fundem estreitamente em um só. Tais
narrativas separativas mantêm a invisibilidade das mulheres negras
nos debates acadêmicos e políticos.

A própria Grace, em depoimento para a série documental Afronta! (Vicente,


2017), lembra que ser mulher negra no Brasil de hoje é um lugar de vibração
permanente. Sigamos a jornada da voz em Vaga carne, que ainda tenta resistir a
se fundir ao corpo da mulher. Contrariada, ela profere:

Não sou uma mulher andando entre corpos humanos. Eu só estou presa
aqui. Eu me recuso a entrar nesse sistema, nessa ilusão. Há outras
formas de vida e isso precisa ser dito. Tem uma palavra na sua língua
que eu adoro gritar, uma palavra que explica muito bem toda essa
situação. Eu vou gritá-la pra você, sua carne pequena insuportável,
escuta essa palavra com todos os sons (Passô, 2018, p. 23).

Mas, depois de alguns segundos em silêncio, a voz/mulher admite que


esqueceu o que queria dizer. O contato com o esquecimento lhe desperta reações
ambíguas: irritação com o fato de absorver características humanas: “Isso é
sonso” (Passô, 2018, p. 33), e logo algum tipo de satisfação com a novidade:
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“Que nada absoluto, que vagação sem rumo, esquecer é gostoso demais,
esquecer é meditante” (p. 37).
O tremor produzido pelo encontro de voz e corpo vivos acentua-se quando a
protagonista se percebe grávida. A mulher acende um cigarro e, conduzida pela
voz, move-se do centro dos holofotes para uma espécie de coxia. A urgência em
sair do corpo da mulher vai dando lugar à euforia, a um apego da voz a esse
corpo e mesmo à necessidade de proteger a vida que descobre gerar. Zora Santos
se aproxima, fala algo, cujo som não nos chega, ao pé do ouvido de Grace e
sai. Contrariada, a voz/mulher resiste: “Não vou deixar meu repolhinho viver
de qualquer jeito nesse mundo do capeta, com esses bichos ferozes...” (Passô,
2018, p. 48). A partir desse momento, um alarme atordoante soa, luzes piscam
rapidamente, enquanto o nervosismo da mulher/voz se intensifica: “Tenho que
ensinar essa carninha a viver. [...] O que vamos dizer a ela sobre o mundo? Eu
quero ensinar a ela [...] afinal de contas, eu tenho responsabilidade” (p. 48). E,
pela primeira vez: “afinal de contas... eu sou uma mulher” (p. 48). A fala, mani-
pulada na edição de som com efeito ecoante, coincide com o corte para a tela
preta. No escuro ficamos por alguns segundos e, depois de fade lento, a câmera
passeia pelo corpo de dona Jandira, que canta “Juízo final”, célebre samba de
Nelson Cavaquinho. Tal momento de suspensão na narrativa é próprio do trânsito
da peça para o filme (já que no espetáculo teatral não havia o número musical).
Finda a performance da cantora, a protagonista volta à cena e continua
expressando preocupação com o destino de sua cria: “Precisamos ensinar a ela.
[...] que isto são cadeiras, que um dia chegaram aqui carregadas nas costas de
alguém. E depois vieram os parafusos. E, um por um, foram colocados para que
fosse possível suportar o peso dos corpos. [...] Ensinar que isto é um homem?”
(Passô, 2018, p. 48) − nesse momento a montagem revela a imagem de uma
mulher. Grace prossegue: “Que isto é uma mulher?” (p. 48), e vemos o rosto de
um homem da plateia. Tal jogada dá a ver poeticamente a crítica a estereótipos
estanques de gênero, assim como problematiza o pensamento antropocêntrico,
condutas já presentes na essência do texto original da peça. Mais adiante no
filme, outro comentário incisivo, imbricado na fluência da narrativa: “Que se eu
levanto a mão, eu sou responsável. Se nada falo, eu sou responsável, que nada
tem o direito de invadir seu corpo e que se alguma coisa invadir seu corpo, que
lhe peça licença, que lhe peça licença” (p. 49). E repete, aos berros: “que lhe
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peça licença!” (p. 49). A reflexão política contida no filme (e que se arrisque a
dizer: em toda a obra dramatúrgica de Grace Passô) é sutilmente desenvolvida
por meio de uma série procedimentos poéticos, que faz o trabalho prescindir
de um discurso didático sobre as ideias que percorre. Como afirmou Deleuze
(1999, p. 13),

A obra de arte não é um instrumento de comunicação. A obra de arte


não tem nada a ver com a comunicação. A obra de arte não contém,
estritamente, a mínima informação. Em compensação, existe uma
afinidade fundamental entre a obra de arte e o ato de resistência. Isto
sim. Ela tem algo a ver com a informação e a comunicação a título de
ato de resistência.

Investigando os limites da linguagem nas artes da cena e sua expansão


no meio audiovisual, Grace Passô produz contrainformação como ato de resistência
ao discurso eurocêntrico colonizador, e o faz fugindo aos bordões a respeito do
lugar de fala.
Anne Carson (2008, s.p.) identifica em certas práticas de tradução a
ideia de catástrofe como uma resposta de gênio a partir de uma “fúria contra o
clichê”. A permanência na catástrofe vai ao encontro da definição de Chthuluceno
trazida por Donna Haraway (2016) e à ideia de ficar com o problema. Contra-
pondo-se a conceitos que seriam diagnósticos históricos, como o antropoceno e
o capitaloceno, Haraway propõe outras formas de mirar o contexto, considerando
não um período na escala de tempo geológico, mas um estado que atravessa
passado, presente e porvir em um movimento serpenteante, um espaço-tempo
da fabulação:

Chthuluceno é uma palavra simples. É um amálgama de duas raízes


gregas (khatôn e kainos) que, juntas, nomeiam uma espécie de es-
paço-tempo para aprender a ficar com o problema de viver e morrer
com respons-(h)abilidade [response-ability] sobre uma terra arruinada
(Haraway, 2016, p. 2).9

9
Tradução de Helena Martins do original: Chthulucene is a simple word. It is a compound of two Greek
roots (khthôn and kainos) that together name a kind of timeplace for learning to stay with the trouble of
living and dying in response-ability on a damaged earth.”
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Nessa desorganização da experiência temporal linear, nos encontraríamos


em um presente espesso em que o humano sai do lugar de centralidade e
situa-se horizontalmente entre outros seres e coisas, criando elos inventivos –
assim como fazia a voz perambulante de Vaga carne. A “catastrofização da
comunicação” (Carson, 2008, s.p.) fica evidente no segmento final de Vaga carne.
A protagonista adentra um espaço que podemos identificar como uma sala de
controle, com ruídos de fundo (que, ouvidos em um contexto de violenta pande-
mia, causam arrepios por remeter a unidades hospitalares). Em seu discurso
contraditório, a voz agora volta a avisar que precisa sair do corpo da mulher.
Queixa-se do fluxo interrompido nesse corpo, um corpo que ameaça a memória
de variados contornos até então experimentada pela voz:

Entrei um dia no corpo de um cachorro e no primeiro latido eu já estava


cuspida no mundo. Mas aqui não, aqui a gente se agarra nas paredes...
Já estou imaginando minha pirralhinha crescendo, andando, correndo
pelo mundo. Já estou imaginando o futuro e o futuro nem existe ainda,
eu já estou aceitando o tempo, que horror! (Passô, 2018, p. 49).

Ela arranca um objeto preso numa das máquinas, desculpa-se e crava o


objeto perfurante no ventre. Em plano fechado no rosto de Grace, um líquido
escuro escorre de sua boca. A mulher vai perdendo força, e a voz resiste: “A
máquina desta mulher está desviando o percurso correto do sangue. Sua consis-
tência está invadindo tudo e eu ainda não consigo sair daqui” (Passô, 2018, p.
50). No ato de autoimolação, a protagonista contraditoriamente acaba por fazer
o que vinha tentando evitar, a quebra definitiva dos diques que seguravam o
vazamento da carne, aqui concretizado no líquido que jorra da boca. Afinal, como
disse Hilda Hilst (Diniz, 2013, p. 88-90), uma das escritoras por quem Passô
admite ter tido a vontade de escrever despertada na juventude: “a vida trans-
borda, não existe uma xícara arrumada para conter a vida! De repente, você vai
encher um cálice e tudo se esparrama, cai em você, você se suja, e não dá pra
fazer um esquema agradável, bonito, simpático”.
A voz serpenteante que animava matérias e atravessava tempos está agora
completamente emaranhada ao corpo da mulher e a seus afetos. Reconhece
finalmente que habita a existência de uma mulher negra e, como tal, faz um
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último apelo à câmera, mas as palavras saem sem o respectivo som, não há mais
voz. O forte ruído do ambiente maquínico toma conta.

É uma língua de palavras interrompidas – uma língua que dá notícia de


uma possibilidade que se liberta. Se essa língua não se deixa escutar é
porque, para escutá-la, é preciso mais do que a disposição de escutar
o outro. Para escutar, é preciso catastrofizar o corpo, mudar fatalmente
a sua paisagem. Acordar para uma língua que já está lá (Martins,
2020, p. 987).

Figura 4
Corpo e voz saindo de cena
frame de Vaga carne

Corta para a tela preta. Enquanto os créditos finais sobem, uma música
com batidas de tambor se mistura a conhecidas vozes femininas, como as de
Dilma Roussef e Marielle Franco.
Na já mencionada conversa da série Janelas Abertas, Ricardo Aleixo
comenta com Grace que o controle rigoroso da cadência da fala que ela mostra
em seus trabalhos o faz lembrar de certas brincadeiras de infância. Grace conta
que tinha muita ansiedade em fazer “parcerias com as palavras” (Passô, Aleixo,
2020, s.p) na fase de aprender a ler e escrever, e que essa sensação a acompanha
até hoje enquanto potência de criação. A tentativa de entendimento do que pode
uma palavra (que ela mesma afirma não poder tudo) gera nela um estranhamento,
um arrebatamento com a não naturalidade do lidar com linguagem na fala e na
escrita. Em Vaga carne, é nítido o trabalho de alteração e modulação da voz,
buscando relações com o aparato cinematográfico que fogem ao naturalismo
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esperado na interpretação para o meio. “É quase como se eu colocasse uma


lupa na musicalidade que há na fala”10 (s.p).
No mesmo diálogo, Grace sugere a refundação da ideia de escuta como
algo ativo, referindo-se especificamente à história do Brasil, marcada por silencia-
mentos de tantas ordens. O fato de Passô ter começado a escrever e dirigir teatro
por uma necessidade de dar vida a textos em que finalmente conseguisse se
reconhecer diz muito sobre a premência de uma nova maneira de enxergar corpos
e escutar vozes pulsantes de memórias que vêm resistindo à diuturna tentativa
de apagamento. Podemos voltar à proposta da ficção como cesta:

O problema é que todos nós nos deixamos fazer parte da história


assassina, e por isso podemos chegar ao fim junto com ela. Assim, é
com um certo sentimento de urgência que procuro a natureza, o
assunto, as palavras da outra história, a história não contada, a história
de vida (Le Guin, 2019 p. 33).11

A protagonista de Vaga carne conta que certa vez invadiu uma caixa de
som que dizia que o país era justo – “Ela concorda?”, indaga a voz à plateia a
respeito da mulher que ela incorpora. A própria Grace parece responder à
pergunta com um de seus mais recentes trabalhos audiovisuais, o curta-metragem
República. Dirigido e protagonizado por ela dentro do programa Convida do
Instituto Moreira Salles, a ficção distópica mostra uma personagem constatando
que o Brasil é na verdade um sonho, uma bad trip vivida por alguém que pode
acordar a qualquer momento e dar fim a tal realidade. O mote do curta faz
lembrar o enunciado de Ailton Krenak de que os seres humanos investem na
ilusão de produzir mecanismos de defesa e contra-ataque entre si para evitar
cair no abismo, sem perceber que já caem há tempos. Para ele, “talvez o que a

10
A experimentação com a voz é o centro do trabalho de Grace apresentado na décima edição do
Festival Novas Frequências (realizado virtualmente em dezembro de 2020 por conta da pandemia da
covid-19). Coprodução da artista com a Fundação Bienal de São Paulo, a obra Ficções Sônicas é, segundo
catálogo do evento, “uma imaginação sonora da peça radiofônica Pra dar um fim no juízo de Deus, de
Antonin Artaud, mergulhada na noção de não lugar de experiências diaspóricas”.
11
Tradução de Helena Martins do original: The trouble is, we’ve all let ourselves become part of the killer
story, and so we may get finished along with it. Hence it is with a certain feeling of urgency that I seek the
nature, subject, words of the other story, the untold one, the life story.
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gente tenha que fazer é descobrir um paraquedas. Não eliminar a queda, mas
inventar e fabricar milhares de paraquedas coloridos, divertidos, inclusive
prazerosos” (Krenak, 2019, p. 63).
A resistência à narrativa heroica tem se dado no fortalecimento de vozes
que contam suas próprias histórias, “o frenético dinamismo mitológico dos
fodidos, sugados e pisados deste mundo” (Leminski, 2011, p. 100). Pela língua
da arte, vozes como a de Grace Passô nos fornecem alimento para preencher
matulas, bolsas, mochilas e cestas a carregarmos durante a árdua travessia neste
sonho ruim em que fomos colocados – sem perder de vista o despertar em
novas histórias que revelem tramas mais humanas e plurais.

Maria Altberg é mestre em artes da cena pela UFRJ. Doutoranda


em literatura, cultura e contemporaneidade na PUC-Rio.

Referências
BERGAMASCHI, Bárbara. Vasta Carne. Beira, 24 de janeiro de 2019. Disponível em: https://
medium.com/revista-beira/vasta-carne-ceca0dc32fe9. Acesso em 5 dez. 2020.
CARSON, Anne. O gênero do som. Serrote. Rio de Janeiro, n. 34, p. 114-136, 2020.
CARSON, Anne. Variations on the right to remain silent. A Public Space, n. 7, 2008.
CAVARERO, Adriana. Vozes plurais: filosofia da expressão vocal. Belo Horizonte: Editora
UFMG, 2011.
DELEUZE, Gilles. O ato de criação. Palestra proferida em Paris em 1987, transcrita e publicada
em Folha de S. Paulo, 27 jun. 1999, Caderno Mais!, p. 4-5.
DINIZ, Cristiano (org.). Fico besta quando me entendem: entrevistas com Hilda Hilst. São
Paulo: Globo, 2013.
ERBER, Laura Rabelo. A captura dos corpos falantes no cinema de Carl Th. Dreyer. Tese
(Doutorado em Letras) – Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, 2012.
GOMES, Juliano. A fartura da fratura. Cinética, 21 maio 2020. Disponível em: http://revistaci-
netica.com.br/nova/vaga-carne-juliano/. Acesso em 8 dez. 2020.
HARAWAY, Donna. Staying with the trouble: making kin in the Cthulhucene. Durham; London:
Duke University Press, 2016.
KRENAK, Ailton. A humanidade que pensamos ser. In: KRENAK, Ailton. Ideias para adiar
o fim do mundo. São Paulo: Companhia das Letras, 2019.
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LE GUIN, Ursula. The carrier bag theory of fiction. Introduced by Donna Haraway. London:
Ignota Books, 2019.
LEMINSKI, Paulo. Forma é poder. In: LEMINSKI, Paulo. Ensaios e anseios crípticos. São Paulo:
Unicamp, 2011.
MARTINS, Helena. Língua comum indecifrada: Grace Passô, Adília Lopes. Gragoatá, v. 25,
n. 53, p. 972-992, set-dez. 2020.
PASSÔ, Grace. Vaga carne. Belo Horizonte: Javali, 2018.
PASSÔ, Grace; ALEIXO, Ricardo. Janelas abertas #9. Curadoria e organização de ALCURE,
Adriana S. e FABIÃO, Elenora B. Série de encontros no canal do YouTube do Núcleo Experimental
de Performance. Disponível em: https://youtu.be/rcFDfSpX6Ks. Acesso em 24 jun. 2020.
RIBEIRO, Djamila. O que é lugar de fala?. Belo Horizonte: Letramento, 2017.

Filmografia

KUBRIK, Stanley. 2001: uma odisseia no espaço. Estados Unidos/Reino Unido, 1968, 164 min.
PASSÔ, Grace. República, Brasil, 2020, 15 min.
PASSÔ, Grace; ALVES JR., Ricardo. Vaga carne. Brasil, 2019, 45 min.
VICENTE, Juliana. Afronta!. Brasil, 2017, 15 min.

Artigo submetido em março de 2021 e aprovado em junho de 2021.

Como citar:
ALTBERG, Maria. Matula cheia de voz: a voracidade vocal de Grace Passô em Vaga
carne. Arte & Ensaios, Rio de Janeiro, PPGAV-UFRJ, v. 27, n. 41, p. 74-92, jan.-jun.
2021. ISSN-2448-3338. DOI: https://doi.org/10.37235/ae.n41.5. Disponível em:
http://revistas.ufrj.br/index.php/ae
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Filosofias de arkhé como enfrentamento ao ontocídio:


oralidade e cultura afro-brasileira
Arkhé Philosophies against the Ontocide:
Orality and Afro-Brazilian culture

Mateus Raynner Andre de Souza


0000-0002-7639-3977
mateusraynner@gmail.com

Resumo
Neste ensaio parto de uma compreensão da modernidade como um momento na história
do pensamento que, entre outras coisas, em sua prática de dominação e subjugação dos
corpos africanos e afrodiaspóricos – e por que não citar os corpos ameríndios? –, acabou
por sobrevalorizar somente o conhecimento escrito e letrado, descartando a oralidade e
a identificando como algo menor. Defendo a hipótese de que, ao negar a esses corpos a
Palavra, negou-lhes também o Ser, movimento que denomino ontocídio. Defendo também
a compreensão das festas afro-brasileiras como filosofias – compreendidas como
filosofias de arkhé – e as demonstro como locais de enfretamento das práticas coloniais
e de reontologização. Considero que esta discussão, desenvolvida mediante uma revisão
bibliográfica, possa promover novas reflexões para um conhecimento menos colonizado.

Palavras-chave
Manifestações culturais; Modernidade; Filosofias africanas
e da diáspora; Ontocídio.

Abstract
This essay presupposes a meaning of modernity as a moment in the history and as practice
of domination and subjugation of African and Afro-diasporic bodies – and why not mention
Amerindian bodies –, ended up overvaluing knowledge as something written and literate,
discarding oral knowledge and identifying it as something less. The hypothesis to be defended
is that by denying these beings the Word, they also denied the Being, a movement that I am
calling here ontocide. It is also a hypothesis that Afro-Brazilian manifestations are understood
as philosophies, called here arkhé philosophies, I intend to show them precisely as a form to
confront colonial practices and as a site for reontologization. I believe that the discussion marked
through a bibliographic review can promote new reflections for a less colonized knowledge.
PPGAV/EBA/UFRJ
Keywords
Rio de Janeiro, Brasil
ISSN: 2448-3338 Cultural manifestations; Modernity; African and
DOI: 10.37235/ae.n41.6 Diaspora philosophies; Ontocide.
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Falar para não morrer é sem dúvida uma


tarefa tão antiga quanto a própria fala.
(Foucault)

Parto, neste ensaio, da perspectiva de que a modernidade, ao sobreva-


lorizar o conhecimento letrado/escrito em detrimento do conhecimento oral
– sobretudo a oralidade produzida em território não europeu –, criou o que
denomino ontocídio, ou seja, a exclusão do Ser pela negação da Palavra.
Entendo a modernidade como um fenômeno construído na Europa que
considera o letramento a única forma válida de conhecer o mundo, taxada de
científica, ou seja, dependente de um método de observação, de classificação
e de verificação de hipóteses (Castiano, 2013, p. 40). No entanto, compreender
saberes locais baseados na oralidade inseridos nesse escopo é um processo de
difícil sucesso; eventualmente eles irão ser tratados como crendices ou especu-
lações, quando não como folclóricos ou populares.
Castiano (2013, p. 45-48) demonstra que essa concepção moderna de
conhecimento, ao ser entendida como universal, constituiu um sistema de domi-
nação eurocêntrico que não é construído somente na Europa, mas compreende
o território europeu e a academia ocidental como locais exclusivos do saber
científico. O autor afirma que as diferentes áreas do conhecimento, mesmo que
possuam influências de partes diversas do mundo, continuam sendo estudadas
e difundidas como de posse exclusiva dos europeus.
Compreendo que essa concepção de universal não diz somente respeito
ao fato de que algo possa ser aplicado a todos e por todos, mas se constitui como
um ideal moderno-europeu que se difunde como possuidor de origem única – o
mundo greco-romano – e que se pretende ser o único conhecimento científico
digno de validade. Por outro lado, considero o saber africano e afrodiaspórico
constituições teórico-metodológicas e inovações nas diversas áreas do conhe-
cimento, sejam elas na arte, na matemática, na história, na geografia, na biologia,
na filosofia, na botânica etc., surgidas no continente africano e pensadas desde
seu local de origem.1

1
Para uma reflexão ampliada sobre o assunto, ver Castiano (2013).
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Thomas (2005) demonstra que a modernidade arquitetou ao longo dos


séculos, como universal, uma noção de letramento que contempla apenas
uma mera técnica mecânica de escrita de palavras em um suporte. Essa visão
tecnicista supõe o letramento como um agente de transformação social, cultural
e econômico, e pressupõe que a sociedade europeia seja a herdeira direta de uma
sociedade avançada e letrada, a grega. A compreensão de que há uma relação
intricada entre o letramento – como algo ligado somente ao saber escrever e
ler – e a civilidade é uma questão moderna e irrelevante para sociedades antigas
– a grega incluída –, não sendo também um dado histórico nas sociedades não
europeias.
O que essa visão de letramento torna universal é a primazia do ler e
escrever sobre o ouvir e falar, além da crença de que o alfabeto é uma necessi-
dade inerente ao ser humano civilizado. Esses pressupostos, segundo Thomas
(2005), não estão presentes na história antes do advento da modernidade e não
devem ser tomados como universais. Dessa forma, é urgente o seu combate e
questionamento. A consequência primordial dessa visão europeia, que pretendo
combater ao longo deste trabalho, é a criação de um olhar naïf sobre as culturas
e as sociedades orais, o que difunde um preconceito histórico que as tacha como
menos complexas e/ou primitivas.
Com esse ponto de partida é possível referenciar as festas afro-brasileiras
como um dos locais de contestação da universalização do pensamento e da
negação explícita da oralidade em razão do letramento. Esse esforço tem
também o intento de compreender as festas como filosofias, as quais denominei
filosofias de arkhé. Essas manifestações culturais e filosóficas demandam, por
intermédio dos seres que as compõem, compreensões críticas que questionem
a supremacia do letramento e as possibilidades de reconstrução do Ser por meio
da Palavra, isto é, de reontologização.
Não pretendo recriar hierarquias para provar uma suposta supremacia da
oralidade. Muito pelo contrário, quero demonstrar que é o compromisso do Ser
com a Palavra que garante que ela irá construir um pensamento crítico, seja de
forma escrita ou oral. Declaro ser possível olhar para os indivíduos das chamadas
sociedades orais – aqui as festas afro-brasileiras – como seres que se autoinscrevem
no mundo e constroem, a todo momento, um saber filosófico. Espero que as
reflexões e os debates realizados possam lançar luz aos problemas relacionados
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ao se tomar contato com a história da cultura oral em sociedades não europeias,


as suas expressões culturais e as suas contribuições críticas ao pensamento
filosófico e artístico. Proponho o ontocídio como um conceito constituinte do
problema histórico da negação do Ser pela impossibilidade da Palavra. E a reon-
tologização como alternativa a ser reconstruída para um saber verdadeiramente
plural por meio das filosofias de arkhé.

A universalidade do pensamento

Renato Nogueira (in Nascimento, 2020b), no prefácio do livro Entre apostas


e heranças, aponta que as pluralidades africanas – que foram revividas, ressig-
nificadas, reexperimentadas em solo brasileiro e nos mais diversos países da
diáspora africana – aproximam-nos de um pensamento filosófico que evoca
um sistema de memórias e ancestralidade da cultura negra. Ao realizar esse
movimento, personificam-se, em nossa sociedade, diferentes modos de vida
que possuem a festa como um dos locais de autoinscrição dessa experiência.
Investigar uma filosofia afro-brasileira enseja uma reflexão metafilosófica
capaz de questionar os sentidos e as dimensões de um sistema de pensamento
e reflexão que historicamente vem sendo chamado de filosófico. Para dimensionar
a existência ou validade da filosofia no contexto afro-brasileiro, é necessário nos
propor algumas questões iniciais: “O pensamento tem cor?” “A filosofia tem
geografia?” (Nascimento, 2020b, p. 19).
Ao negar as dimensões históricas e geográficas do pensamento em defesa
de uma suposta universalidade filosófica e das questões humanas, induziu-se,
ao longo dos séculos, um apagamento da diversidade e das múltiplas formas de
pensar, de agir e de vivenciar o mundo. Nascimento (2020b) enfatiza que esse
projeto realizou um apagamento acadêmico de tudo aquilo que se produz filoso-
ficamente no continente africano e no contexto afro-brasileiro.
O que se convencionou foi a teoria de que a universalidade do pensamento
iria beneficiar a pluralidade das produções humanas por meio da primazia de
hierarquias conceituais e teóricas. No entanto, ao considerar universal o pensar
filosófico sem levar em conta a história e as ideologias que operam na institucio-
nalização do conhecimento, estaremos nada mais nada menos que reproduzindo
uma lógica colonialista.
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Isso poderia ser interessante, se nossas práticas não camuflassem


uma desigualdade no trato do pensamento, no trato com os diversos
sujeitos envolvidos nos processos educativos. Se não recusasse os
conhecimentos produzidos por pessoas africanas negras e suas descen-
dentes ao redor do mundo. Se não supusesse que indígenas não sabem
pensar direito. Se não fingissem não saber – ou, de fato desconhecer
– que todos os povos do mundo produzem filosofia, de modos distintos,
constroem e legam saberes. Se nossos sistemas educacionais não
operassem sob a vigilância de um silencioso racismo epistêmico, que
nega não apenas os conhecimentos produzidos por povos não brancos,
mas também suas maneiras de conhecer e pensar. Se os currículos não
julgassem como relevantes apenas os saberes forjados por uma parte
do Ocidente, julgando-os como universais (Nascimento, 2020b).

Vejo que há um projeto de constituição do pensamento como único e


universal, o que apaga os demais. Antônio Bispo do Santos (2019) irá chamar
essa concepção “euro-cristã-colonialista-monoteísta” de uma maneira “mono”
de pensar (p.26), ou seja, autocentrada e voltada para uma única visão de mundo
– para um único deus –, que se empobrece. Daí a necessidade de rechaçar onto-
logias que se propõem universalizantes para promover um “olhar rodando”, isto
é, olhar o mundo através de muitas lentes e assumir uma verdadeira pluralidade.
Olhar para vários lugares ao mesmo tempo, e não só para um lugar demarcado
historicamente como o único detentor de conhecimento.
Santos (2019) denomina esse saber “sintético”, justamente porque
pretende sintetizar o mundo. E duas características de um saber sintético são
importantes para levar em conta nesta pesquisa. A primeira diz respeito a uma
noção de “ter”, quero dizer, corrobora-se a ideia de que o pensamento sintético
pertence a alguém e a um lugar específico – a academia de origem europeia –,
de forma que tudo que se encontra à margem desse ambiente não “tem”
pensamento.
A segunda característica nos informa sobre a maneira como o saber sinté-
tico irá enxergar o seu oposto, chamado por Santos (2019) de “orgânico”. Ao se
assumir a universalidade como um pressuposto do conhecimento, necessitou-se
de universalizar o Outro e a forma de apreensão desse Outro. No pensamento
sintético, há a compressão de que todos aqueles que se encontram fora dos
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limites universais são subalternos. Existem diversas taxonomias que difundem


essa visão: popular, naïf, primitivo, são algumas delas, frequentes no jargão das
artes. Santos (2019, p. 27), contudo, afirma que essas nomenclaturas não são
capazes de abranger a complexidade das formas subalternizadas de conhecimento:

Por isso, para nós não se sustenta de que a academia produz ciência e
nós produzimos saber popular. Essa nomeação é por demais colonialista,
feita para nos esvaziar. Que popular é esse? Popular de quem? Produzimos
saber quilombola, saber indígena, saber do povo de terreiro. Esses
saberes têm nomes. Popular é uma palavra vazia.

Compreendo “criar palavras vazias” como estratégias de classificação


e de generalização do conhecimento, em que a palavra nada significa. Cria-se
uma espécie de guarda-chuva para abarcar um sistema plural. Movimento que
encontra confluências com o conceito de epistemicídio, em voga em discursos
políticos e na mídia. Com intuito de não esvaziar palavras, detenho-me, em
seguida, a debater essa ideia como compreendida por Sueli Carneiro, ou seja,
em suas relações com os dispositivos de poder e raça.

Epistemicídio

Em sua tese, A construção do outro como não ser, Sueli Carneiro (2005),
parte dos conceitos de dispositivo e biopoder, como definidos por Foucault, para
investigar um longo processo ocorrido no Brasil desde o período colonial. Não
me cabe aqui historiar as genealogias e as raízes do pensamento foucaultiano,
tarefa bem desempenhada na tese de Carneiro. Não obstante, é importante
salientar que esses conceitos são trazidos ao debate para desvelar as estruturas
de poder existentes na sociedade capitalista, as quais decidem quem e como
deve morrer e viver.
Nesse processo, uma elite, que se autointitulou branca, adquiriu poder
ao categorizar o Outro como raça inferior, o negro. É um cenário que demarcou
papéis muito bem definidos a cada um dos grupos: o grupo branco, entre outros
aspectos, se categoriza como o detentor do saber e do conhecimento. Já o outro
grupo, o negro, ao ser delegado ao trabalho braçal e à força física, assumiu-se
não possuir conhecimentos e formas de saber próprias, mas, poderia, caso
necessário, ser educado e ensinado nos moldes de seu antagonista.
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Carneiro (2005) frisa que buscou, nos escritos de Boaventura de Sousa


Santos,2 possibilidades conceituais para definir sua ideia de espistemicídio. A
autora, no entanto, se diferencia do sociólogo português por demarcar problemas
étnico-raciais como parte importante e constituinte do problema, em detrimento
de uma relação puramente territorial.
Por espistemicídio, portanto, compreendo uma das práticas de colonização
e genocídio de povos considerados subalternos. Ao tentar subjugar, dominar e
eliminar o Outro, torna-se necessário negar sua racionalidade, uma vez que
pensar se torna ameaçador ao sistema e aos povos dominantes. Dessa maneira,
não só a cultura de outros povos é desconsiderada, mas é também combatida,
apagada, inferiorizada e objeto de escárnio do colonizador. Matar o pensamento
seria uma das estruturas de poder que governam as vidas.
Gostaria de exemplificar esse tópico com a metáfora da “Árvore do Esque-
cimento”. Conta-se que no porto de Ouidah, atual República do Benim, os escra-
vizados eram forçados a dar um número determinado de voltas em uma árvore. A
árvore do esquecimento, como é chamada, teria o poder de apagar a memória do
nativo. Desconectando-o de seus saberes, tornava-se muito mais fácil exercer a
dominação, bem como ser assimilada a maneira de pensar o mundo do colonizador.
A metáfora descreve como a memória é um dispositivo importante de poder e
dominação; o esquecer suas raízes e o aprender as formas de ser e agir de seus
algozes são processos intricadamente conectados ao colonialismo.
Para Sueli Carneiro (2005), o epistemicídio se apresenta como uma
prática recorrente no mundo capitalista. E está diretamente ligado ao processo
de universalização do conhecimento, uma vez que apenas uma matriz é dada

2
Pesquisador português ligado ao movimento pós-colonial, seus escritos transitam entre a sociologia, o
direito, as ciências políticas e os direitos humanos. No Brasil, é especialmente conhecido pela concei-
tualização das Epistemologias do Sul, cunhada como estratégia para expandir o escopo epistemológico
das ciências sociais. Sousa Santos demarca uma diferença entre o conhecimento do norte e do sul
globais, estando no norte os grandes polos do mundo capitalista/imperialista. A partir dessa relação de
poder econômico no sistema capitalista, Boaventura mostra como nele se operam relações hierárquicas
de conhecimento. Ao norte, fora delegada a imagem de detentor supremo do conhecimento em que
pouco existe ou inexiste a presença do conhecimento produzido no sul global (Epistemologia do Sul).
Essa divisão é demarcada em razão de vislumbrar um momento de superação da colonialidade
(pós-colonialismo) em que esses saberes do sul adentrariam os saberes produzidos no norte.
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como válida e é ela a que será ensinada e perpetuada pelas instituições. Dessa
maneira, não apenas se nega o saber do outro, mas também o apaga por uma
série de mecanismos educacionais/doutrinários em que irá se ensinar a gnose
universal. “Por isso o epistemicídio fere de morte a racionalidade do subjugado
ou a sequestra, mutila a capacidade de aprender etc.” (Carneiro, 2005, p. 97).
Elejo a desqualificação da oralidade como um desses múltiplos processos
de apagamento das matrizes não europeias de conhecimento; afinal, é pela
oralidade que o pensamento é construído e perpassado, e que a memória e o
próprio Ser se constituem.
Evoco Sueli Carneiro, pois é com ela que a ideia de epistemicídio adquire
um caráter para além da lógica de dominação territorial. Carneiro é responsável
por conectar o racismo como agente da lógica de genocídio epistêmico e as
desigualdades raciais como imperativos categóricos dos diversos campos do
saber. Evidencio que as práticas de desqualificação das filosofias africanas e
suas derivações são históricas e se encontram conectadas com dispositivos de
poder, como raça e colonialismo.
Todo esse cenário causa um prejuízo também para o dominador, que deixa
de ter a sua disposição uma pluralidade verdadeiramente rica de ferramentas
e instrumentos com os quais possa produzir conhecimento. Sua matriz “mono”
não apenas o impede de ver outras formas de pensar, mas deseja dominar e
eliminar o Outro a todo custo, o que causa um prejuízo universal que aflige a
todos, isto é, um verdadeiro empobrecimento ontológico (Mbembe, 2014), que
elege um único modo de ser como válido. É justamente, com base nos pressu-
postos trabalhados, que nomeio esse movimento como ontocídio.

Descredenciamento da oralidade como ontocídio

Mediante os múltiplos processos de constituição da modernidade,


destaquei a criação de hierarquias pelo descrédito da oralidade e pela supervalo-
rização do letramento. Esse mesmo entendimento causa uma compreensão rasa
de que a colonização criou vítimas subdesenvolvidas incapazes de pensar por si
mesmas, cabendo-lhes apenas o papel de objeto de estudo (Castiano, 2013).
Pretendo desconstruir essa visão ao demonstrar uma ligação em meio aos povos
africanos e seus descendentes com a Palavra.
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Hampaté Bâ (2010), em sua pesquisa pelo oeste africano, destaca intrín-


seca ligação das comunidades com a oralidade; essa conexão está interligada de
tal modo, que podemos afirmar que o Ser é a própria Palavra. Esse laço mantém
a tradição sempre viva e não presa no tempo nem deslocada do indivíduo; é um
compromisso, ao mesmo tempo, ético e ontológico. Esse comprometimento é o
que garante ao testemunho oral valor de confiança igual ao que atribuímos ao
texto escrito. É justamente a ligação inquebrantável do homem com aquilo que
ele diz que o impede de testemunhar falsamente. “[A] palavra encerra um teste-
munho daquilo que é” (p. 168). Nessa lógica, mentir, enganar, ludibriar seria o
mesmo que trair-se, que negar a própria existência. A palavra é ao mesmo tempo
o Ser e o conhecimento do Ser e, assim, religião, arte, ciências, história, lazer.
Nascimento (2020b, p. 47-48), de uma perspectiva Ubuntu,3 demonstra
que esse compromisso com a Palavra possui caráter comunitário. As relações
entre os seres se dão justamente pela Palavra, o que irá constituir um movimento
de troca intersubjetiva constante, de autoformação coletiva. Com isso, não
pretendo afirmar que há uma unicidade utópica entre os seres que compõem o
coletivo, mas é importante delinear que a Palavra não é uma categoria particular
que se possa isolar de todo o resto. Essa construção coletiva pela Palavra não
acontece apenas e exclusivamente entre os humanos, mas com o Todo que irá
compor o universo.
Compreendendo o contexto das festas afro-brasileiras como locais em
que o poder da Palavra pode ser pensado de maneira similar ao sobredito, elas
configuram fator que agencia forças na ritualização do cotidiano. Martins (1997)
define a oralidade como aquilo que grafa o Ser no território, podendo dramatizar
a memória por meio da performance. A autora propõe, nesse escopo, o conceito
de oralitura: a grafia do corpo no território pela oralidade.

3
Nas palavras de Nascimento (2020b, p.46) Ubuntu “seria a expressão do princípio fundamental de
toda a existência de modo inexoravelmente interconectado e interdependente, para o qual nada teria
sentido ontológico, epistemológico, ético ou estético se existisse isoladamente”. Isto é, ainda que não
haja consenso entre os pesquisadores que se dedicam à questão, é possível compreender Ubuntu
enquanto princípio que torna a existência articulada e coletiva, em que o indivíduo não se encontra
separado da coletividade. Essa comunidade verdadeiramente coletiva não se restringe aos humanos,
mas a todo o entorno interligado de forma permanente.
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O termo oralitura, da forma como o apresento, não nos remete univo-


camente ao repertório de formas e procedimentos culturais da tradição
linguística, mas especificamente ao que em sua performance indica
a presença de um traço cultural estilístico, mnemônico, significante e
constitutivo, inscrito na grafia do corpo em movimento e na velocidade
(Martins, 2001, p. 84).

Mesmo já tendo reconhecido o valor da oralidade, podemos nos indagar


sobre como trabalhar esse conhecimento na academia. Ainda que autores como
Castiano (2013) defendam que os textos da cultura oral devam ser transcritos
nas argumentações acadêmicas, a oralidade mesmo escrita não perde, de
maneira nenhuma, seu compromisso primordial com o Ser. Por outro lado, negar
suas capacidades de formulação crítica é o mesmo que matar o próprio Ser, é
cometer o que estou chamando de ontocídio. Isto é, uma série de práticas de
empobrecimento ontológico que se dão pela impossibilidade de diálogo e pela
aniquilação do Outro.
É necessária uma reflexão atenta sobre o ontocídio enquanto prática violenta
de subjugação e inferiorização do pensamento e das culturas orais. Afinal, somente
nas tentativas de refletir e buscar soluções o problema começa a ser desvelado e
emergem possibilidades práticas de combate e de construção coletiva.

Enfretamento ao ontocídio e à universalização do pensamento

Afirmo a necessidade de olhar atentamente para manifestações culturais


afro-brasileiras como o congado, reisado, moçambique, maracatu, caboclinho e
etc. como integrantes de uma série de práticas de afirmação étnica, cultural,
humana e de liberdade que começam a adquirir novos contornos acadêmicos
para além das meras descrições etnográficas e de folcloristas, principalmente
com os avanços da lei 10.639, de 2003, que propõe a inclusão das culturas
africanas e afro-brasileiras no ensino (Brasil, 2003).
Entendo, de antemão, essas experiências circunscritas no escopo da
cultura de arkhé, como definida por Muniz Sodré (2017). Ainda que se tenha
voltado de forma mais enfática para as experiências ketu-nagô no Brasil, como o
candomblé, Sodré define culturas de arkhé como todas as expressões culturais
que possuem um compromisso real com a ancestralidade e que se diferenciam,
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de forma mais ou menos enfática, do referencial ocidental. Nesse escopo, os


sentidos são construídos coletivamente, perpassando vivos e mortos, e a vivência
se dá no reconhecimento do outro como si mesmo e da ancestralidade.4 É possível
considerarmos sociedades de arkhé tanto as culturas africanas e afrodiásporicas
como as culturas ameríndias. Possuem, como características em comum, a
ancestralidade como origem e destino, a centralidade do ritual, múltiplas
temporalidades e a transmissão oral.
Lélia Gonzalez (1989) definiu as festas populares como locais em que está
viva a arkhé negra, uma vez que se trata de expressões culturais que preservam
e carregam os jeitos afro-brasileiros de falar, cantar, dançar, jogar e brincar, bem
como os mistérios, os segredos, os valores e a história nacional. São exemplos de
territórios em que a cultura oral se inscreve no tempo e espaço. Podem também
ser compreendidas como locais de questionamento da supremacia imposta pelo
letramento, uma vez que nesses ambientes o conhecimento não só é preservado,
como também é frequentemente vivido e reatualizado, ganhando dimensões
diversas nos espaços de vida e morte dos seres que as experimentam
Compreendo essas manifestações como filosofias que carregam e mantêm
uma “tradição viva” (Hampaté Bâ, 2010). Como, porém, atenta Gonzalez (1989),
não há a mera continuidade e permanência dessas práticas com relação às suas
origens diversas no continente africano, uma vez que foram recriadas em solo
brasileiro. Assim, permanecem circunscritas também à história da escravidão e às
múltiplas relações – violentas ou não – que ocorreram no Brasil desde a diáspora.

As festas afro-brasileiras são o efeito simbólico de um extraordinário


esforço de preservação de formas culturais essenciais trazidas de um
outro continente e que, aqui, foram recriadas sob condições as mais
adversas. Afinal a população negra não veio para o Brasil como imigrante,
mas como escrava (Gonzalez, 1989, p. 90).

4
“Vai para além do culto aos nossos antepassados, e a manutenção da história clânica e das nossas
linhagens biológicas, envolvendo formas de cultivar também linhagens simbólicas que fortalecem nossos
laços comunitários. Um exemplo é a capoeira, onde nos ligamos a mestres e mestras que transmitiram
conhecimentos numa linhagem de família não sanguínea (como na expressão “meu avô de capoeira”). O
senso de ancestralidade é fundamental na arkhé africana que só se sustenta através de práticas, rituais e
vivências que atualizam constantemente nossos laços” (Machado, Petit, 2020, p. 26).
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Mesmo que esse conhecimento esteja vivo nas festas e elas sejam
compreendidas como filosofias, não devemos entender que esse saber é menos
crítico do que o universitário. Os indivíduos que compõem essas manifestações
também convergem, divergem, debatem e reatualizam os conhecimentos,
tornando esse ambiente um lugar de inovação constante, sem que se perca de
vista a tradição.
Tanto em Gonzalez (1989) quanto em Hampaté Bâ (2010) há uma forte
defesa de que, nas tradições orais africanas e da diáspora, os indivíduos apreendem
o mundo de forma crítica se valendo de todos os sentidos; Hampaté Bâ chega a
citar exemplos em que o homem pode sentir a água ou ouvir sons a milhares de
quilômetros. Esses saberes corporais, pelos quais os indivíduos interagem entre
si e com o meio a sua volta são – assim como a forma crítica que o conhecimento
universitário pretende ser – uma possibilidade de conhecer, de reconhecer e de
interagir com o ambiente. Nas festas, para citar a pesquisa de Gonzalez (1989)
como parâmetro, o conhecimento é preservado e perpassado em cantos, ritmos,
danças, adivinhas, jogos e brincadeiras.
Esses conhecimentos filosóficos das comunidades, que constituem as
expressões culturais afro-brasileiras, não se resumem à cosmovisão ou à visão
de mundo em que sua espiritualidade está circunscrita, ainda que muito prova-
velmente as orientações diversas sobre as diferentes áreas do conhecimento
estarão imbricadas com essa forma de ver o mundo. É necessário, todavia, defender
uma multiorientação que dialogue tanto com as heranças africanas como com as
europeias. Mediante esse processo, compreendo, com Sodré (2017), a existência
de um pensar nagô circunscrito nas comunidades das festas, onde está viva a
arkhé negra, ou seja, onde operam as filosofias de arkhé.
Sodré (2017) define como pensar nagô um conhecimento que não nega
as influências e a tradição ocidental, mas se volta constantemente para a matriz
ancestral. O pensar nagô é uma maneira de refletir e fazer pensamento calcada
em referências negroancestrais que ora divergem do cânone, ora a ele convergem.
Dessa forma, encontram-se multipossibilidades transculturais, sempre atentas
às marcas, aos vícios e aos perigos advindos de uma colonialidade epistemológica.
Sodré produz um pensamento extremante relacional, transitando ora pela
filosofia nagô produzida nos terreiros de candomblé, ora pela história da filosofia
ocidental.
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Retorno à discussão sobre o pensar universal para introduzir duas noções


propostas por Edouard Glissant (2005). O autor chama de continental o
pensamento universalizante, que apaga os demais. E propõe como categoria de
enfretamento o que denomina pensamento arquipélago. Valendo-se de metá-
foras geográficas, o pensamento continental é unificado, isto é, sintético. Já o
pensamento arquipélago, está ligado à multiplicidade em seus níveis locais e
específicos, necessitando da pluralidade de vozes sem que alguma sobressaia
sobre as outras.
Enxergo, nessa metáfora, a capacidade de construir arquipélagos com os
saberes orgânicos compreendidos nas culturas de arkhé afro-brasileiras – as
filosofias de arkhé –, colocando em diálogo o pensamento já estabelecido na
academia em convivência epistêmica e plural que garanta a coletividade em sua
construção. Em que seja possível identificar similaridades, divergências e lugares
de diálogo. Nesse sistema, então, vislumbro uma polifonia futura na universidade.
Enxergo a universidade aqui não como local em que se guarda o pensa-
mento universal, mas como ponto nodal de encontro das diferenças que
convivem, sejam elas compatíveis ou não. Sendo, assim, um território em que a
presença do outro não possa ser impensada ou incompreendida. Enseja,
portanto, a saída de um plano monoepistêmico – em que há apenas uma episteme
válida e verdadeira – para um plano pluriepistêmico, que possa verdadeiramente
abarcar a pluralidade que compõe a Terra e a riqueza filosófica que acompanha
a oralidade (Carvalho, 2018).
Não é meu intento afirmar que essa seria uma saída fácil; um território
plural prevê também a possibilidade da coexistência de conhecimentos
antagônicos, incompatíveis e conflitantes convivendo com aqueles entendidos
como equivalente e complementares. Lidar com a pluralidade é desafio posto
todas as vezes que se pretende realizá-lo, e todas as suas possíveis respostas
serão sempre distintas e temporárias.
São, também, as filosofias de arkhé que nos impulsionam a rever a
universalidade e as certezas de um conhecimento que quer sempre encontrar
e dar respostas prontas. Elas nos fazem retornar para a oralidade como um
conhecimento legítimo, demandando uma reontologização do Ser, cuja existência
o pensar sintético negou. Compreendem um conhecimento que está em constante
mutação e se deixa modificar pelas pluralidades existentes.
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Entendo reontologizar como tomar caminhos diversos de devolução da


Palavra ao Ser, por meio dos processos de reafirmação e transmissão de conhe-
cimento que os indivíduos tornaram possíveis graças aos festejos, aos cantos,
à contação de histórias e à performance do corpo como forma de resistência
ao imperativo da escrita. E também pela afirmação de um lugar não rebaixado
dentro das nossas instituições, um lugar que permita a valorização das potencia-
lidades da oralidade – ainda que escritas.

Considerações finais

Tendo em vista que “os discursos não têm apenas origens sócio-históricas,
mas também contextos epistemológicos” (Mudimbe, 2013, p. 10), compreendo
que as possibilidades de uma filosofia de arkhé não são as de negação do cânone
europeu, mas representam a abertura do cânone para se compor conjuntamente.
Ao estar atento para as origens dos discursos e para seus limites frente às
estratégias de dominação, de universalização e de ontocídio, é possível final-
mente tecer críticas ao pensamento que se quer universal e que nega o Outro. A
recusa não é ao pensamento que compõe o cânone, mas à subalternização histórica
que institui um cânone em detrimento das demais formas de conhecer o mundo.
Propor estratégias de compor, juntos, o pensamento oral, o letrado e o
canonizado não concerne somente a uma simples inclusão de filosofias de arkhé
como um capítulo à parte da história; é antes reivindicar as possibilidades múltiplas
de se fazer emergir algo novo, que relacione as contribuições do pensamento
europeu e os diversos valores das sociedades não europeias.
O oposto de um pensamento universal é o pensamento local e endógeno.
Como visto, uma verdadeira possibilidade de se construir coletivamente é por
meio das multiplicidades transculturais em que as vozes não se sobrepõem, mas
são coautoras de reflexões críticas sobre o Ser. É necessário entender não
somente o conhecimento não europeu como localizável, mas buscar a certeza
de que toda forma de conhecimento deve ser compreendida a partir de seu local de
nascimento, em seu próprio contexto.
Esse é um chamado de atenção que, já há algum tempo, autores como
Castiano (2013), Nascimento (2020a), Oyěwùmí (2014, 2016), Sarr (2017),
Diagne (2017) – para citar alguns poucos exemplos no debate recente e não
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ocidental – vêm proporcionando por meio de reflexões transculturais. As principais


inovações desses autores, com relação ao pensamento crítico da própria academia
europeia, estão em trazer a constatação de que as sociedades africanas,
diaspóricas e as demais comunidades não ocidentocêntricas já vêm construindo,
ao longo de suas histórias, um pensamento milenar que questiona a universali-
zação. De forma, que o que é um problema e um desafio posto para nós nos dias
de hoje – como pretendo ter demonstrado ao longo destas páginas – nunca foi
um problema dado no pensamento endógeno.
As formas europeias não são parâmetros universais de pensar e agir que
podemos comparar sempre com as demais, tampouco tomar como base única
na construção de conhecimento. Elas representam, sem sombra de dúvida, mais
uma entre as múltiplas possibilidades que o mundo nos reserva e coloca à
disposição.
A própria contemporaneidade parece favorecer esse cenário em que cada
vez mais se tem consciência das identidades híbridas que nos acompanham.
Sobre isso e olhando o cenário brasileiro, Munanga (2019) afirma que a respeito
do mundo da arte é inegável a existência de um sincretismo cultural, em que
não é raro encontrar a manipulação simultânea de técnicas e modos de pensar
e fazer oriundos das heranças europeias lado a lado com saberes herdados das
contribuições africanas. O desafio que refletir sobre o ontocídio propõe é o de
saber estar atento para essas múltiplas influências e poder reconhecê-las sem
cair nas viciosidades colonialistas, e não apenas se apropriar das diversas locali-
dades filosóficas para reforçar um ocidentocentrismo que subalterniza expressões
não europeias.
Não me parece possível estabelecer uma saída única para o problema
trabalhado nestas páginas; creio estarem justamente na busca por soluções,
ainda que falhas ou incompletas, as possibilidades reais de se deparar com
questões que mobilizem a construção futura de um pensamento capaz de
enfrentar as técnicas já consolidadas e constantemente atualizadas de ontocídio.
Olhar para as filosofias de arkhé me parece um primeiro grande passo na busca
por uma história da filosofia e da arte menos eurocêntrica e mais aberta às
contribuições históricas e possíveis da oralidade. Espero que o exercício reflexivo
aqui empreendido possa nos tornar cada vez mais atentos às dificuldades e aos
problemas que os tempos atuais nos reservaram.
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Filosofias de arkhé como enfrentamento ao ontocídio:
oralidade e cultura afro-brasileira
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Mateus Raynner Andre de Souza é mestrando em filosofia da arte pelo


Programa de Pós-graduação em Metafísica da Universidade de Brasília. Possui
graduação em Teoria, Crítica e História da Arte pela mesma universidade.

Referências

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no 9.394, de 20 de dezembro de 1996, que estabelece as diretrizes e bases da educação
nacional, para incluir no currículo oficial da rede de ensino a obrigatoriedade da temática
“História e Cultura Afro-Brasileira”, e dá outras providências.
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Artigo submetido em março de 2021 e aprovado em junho de 2021.

Como citar:
SOUZA, Mateus Raynner Andre de. Filosofias de arkhé como enfrentamento ao
ontocídio: oralidade e cultura afro-brasileira. Arte & Ensaios, Rio de Janeiro, PPGAV-
UFRJ, v. 27, n. 41, p. 93-109, jan.-jun. 2021. ISSN-2448-3338. DOI: https://doi.
org/10.37235/ae.n41.6. Disponível em: http://revistas.ufrj.br/index.php/ae>
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Ballet Folclórico Mercedes Baptista: entre brasilidade e


negritude no Rio de Janeiro das décadas de 1950 e 1960
Mercedes Baptista Folk Ballet: between Brazilianess and
Blackness in Rio de Janeiro during the 1950’s and 1960’s

Erika Villeroy
0000-0003-2222-1448
evilleroy@gmail.com

Resumo

Abordagem histórico-crítica sobre a emergência de uma dança negra cênica


no Rio de Janeiro, nas décadas de 1950 e 1960, consolidada pela bailarina
e coreógrafa Mercedes Baptista mediante a articulação das técnicas do balé
clássico, das danças modernas e de consistente pesquisa acerca das danças
afro-brasileiras e dos pés de dança do candomblé. Levando em conta as possi-
bilidades de abertura e transformação dos códigos próprios do que hoje é uma
das vertentes de maior peso do que se entende por danças afro, que permitiram
a criação de novas poéticas e metodologias, o texto aponta para a existência de
uma estética negra que se construiu no campo das artes cênicas no contexto da
diáspora negra.
Palavras-chave
Mercedes Baptista; História da dança; Danças negras.

Abstract
This text takes a historical and critical approach to the emergence of Black concert dance in
Rio de Janeiro between the 1950s and 1960s. This movement found its consolidation through
the ballet dancer and choreographer Mercedes Baptista’s articulations between classical
ballet, modern dances, as well as her consistent research regarding secular and religious
Afro-Brazilian dances. By considering the possibilities of openings and transformations
within the codes of Danças Afro that allow for the creation of new poetics and methodologies,
the text also seeks to base the existence of a Black aesthetics in the performance arts within the
context of the black diaspora.
PPGAV/EBA/UFRJ
Rio de Janeiro, Brasil Keywords
ISSN: 2448-3338
DOI: 10.37235/ae.n41.7 Mercedes Baptista; Dance history; Black dance.
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Mercedes Baptista e a história das danças no Brasil

Nas décadas de 1950 e 1960, o Ballet Folclórico Mercedes Baptista teve


projeção no Brasil e no exterior como companhia de danças folclóricas integrada
por bailarinos negros que apresentavam repertório autoral sem precedentes no
país. Ao dividir a cena com o Teatro Folclórico Brasileiro e as performances do
babalorixá e dançarino João da Goméia1 e Didi de Freitas de Vilar dos Teles,
o grupo se destacou por conta do rigor técnico e coreográfico empenhado por
dona Mercedes na adaptação de danças negras brasileiras para a cena – as
danças dos orixás oriundas dos candomblés de nação Ketu e Angola, o lundu, o
frevo, a ciranda, o maracatu, o xaxado, o coco e o baião.
Conhecida também como a primeira bailarina negra a ser aprovada no
concurso para o corpo de baile do Theatro Municipal do Rio de Janeiro,2 Mercedes
Baptista é parte fundamental da história das danças no Brasil. A primeira geração de
bailarinos que ela formou – entre eles, Walter Ribeiro, Gilberto de Assis, Isaura
de Assis e Marlene Silva – deu continuidades múltiplas e diversas ao trabalho de
dona Mercedes a partir de suas próprias práticas artísticas e pedagógicas, que
hoje têm reverberações nas cidades do Rio de Janeiro, Salvador e Belo Horizonte.
Seu nome e seu trabalho, no entanto, seguem à parte dos currículos dos cursos
de dança nas universidades e demais instituições de ensino no país.
Mercedes Ignácia Krieger da Silva nasceu em Campos dos Goytacazes (RJ),
em 1921. Sua trajetória no Theatro Municipal do Rio de Janeiro, as passagens pelo
Teatro Experimental do Negro, de Abdias Nascimento (1914-2011), e a Dunham
School of Dance and Theater, da coreógrafa e antropóloga estadunidense
Katherine Dunham (1906-2006), levaram-na a inaugurar, em 1952, a Academia
de Danças Mercedes Baptista, situada na Gafieira Estudantina da Praça Tiradentes,
no Centro da cidade do Rio de Janeiro. Um ano depois, o Ballet Folclórico
Mercedes Baptista já se apresentava em teatros de revista e cassinos como a
primeira companhia de dança da cidade a levar para a cena elementos da cultura
negra pensada e dançada por artistas negros.

1
Conhecido na imprensa da época como o rei do candomblé, João da Goméia (1914-1971) emigrou
para o Rio de Janeiro em 1944 como dançarino para se apresentar nos cassinos com as danças de
terreiro que já haviam começado a entrar para a cena de Salvador.
2
Assim como Raul Soares foi o primeiro bailarino negro aprovado nesse concurso.
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Figura 1 Dona Mercedes teve parte também na série de transformações que fizeram
Mercedes Baptista
Fonte: Bibliothèque
das escolas de samba cariocas o que são hoje – da verticalização e espetacula-
Nationale de France rização dos desfiles à exploração de temas negros nos sambas-enredo, antes
fortemente influenciados pela política nacionalista do Estado Novo de Getúlio
Figura 2
Ballet Folclórico Mercedes Vargas. Entre elogios e críticas, ao coreografar a Ala dos Importantes do G.R.E.S.
Baptista Acadêmicos do Salgueiro com um minueto, ela ficou conhecida como a intro-
Fonte: Bibliothèque
Nationale de France dutora do passo marcado no carnaval do Rio de Janeiro. Seu nome é marcado
na história da agremiação em 1963, ano em que, passando à frente das gigantes
G.R.E.S. Portela e G.R.E.S. Estação Primeira de Mangueira, a Acadêmicos do
Salgueiro levou o primeiro lugar com o enredo “Xica da Silva”, de Arlindo Rodrigues.
A atuação de Mercedes Baptista no campo das políticas públicas para a
arte foi fundamental também para o reconhecimento e profissionalização dos
bailarinos e coreógrafos das danças afro3 – como aponta o professor e pesqui-
sador da Escola de Danças Maria Olenewa (antiga Escola de Danças do Theatro
Municipal do Rio de Janeiro) Paulo Melgaço. Em 1979, ela participa da criação
do Conselho Brasileiro da Dança como secretária adjunta e em seguida da Asso-
ciação Profissional dos Profissionais da Dança, que veio a ser o atual Sindicato
dos Profissionais da Dança do Município do Rio de Janeiro (SPDDMRJ). Assim,
Mercedes Baptista ficou responsável pelos critérios de avaliação dos candidatos
ao título de bailarino profissional de dança afro-brasileira (Melgaço, 2007).

3
A expressão se refere aqui a uma vertente singular que trabalha a partir de danças e expressões
afro-brasileiras em contexto cênico, sendo frequente, mas não necessária, a articulação transversal
com técnicas das danças modernas e da dança clássica europeia.
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Eros Volúsia, brasilidade e mestiçagem

A ascensão do Ballet Folclórico Mercedes Baptista se deu em meio a


dois contextos sociopolíticos distintos e, de certa forma, antagônicos, que
se entrelaçaram no campo das artes cênicas desde a década de 1930: por um
lado, a construção da identidade nacional associada a uma certa concepção
de mestiçagem que começa a ser veiculada a partir da aliança entre parte
da classe artística modernista e o Estado ao longo da Era Vargas. Por outro, o
surgimento de companhias como a Companhia Negra de Revistas,4 em 1926,
e, mais adiante, o Teatro Experimental do Negro, fundado em 1944 por Abdias
Nascimento. Essas duas companhias determinaram a abertura de outras possi-
bilidades para a representação das culturas e da experiência negra em cena,
em contrapartida às caricaturas referentes a um certo imaginário sobre o sujeito
negro que figurava nos palcos brasileiros até então (Martins, 1995).
No Estado Novo, a ideia de brasilidade foi constituída a partir da imple-
mentação de políticas culturais que, ao selecionar e recriar elementos das
culturas negras, visavam produzir a imagem de um Brasil mestiço, por meio do
que a pesquisadora Lilia Schwarcz (2012) descreve como a desafricanização
desses mesmos elementos, isto é, do embranquecimento e do apagamento de
suas origens africanas. O discurso sobre a mestiçagem, alinhado à falsa projeção
de uma convivência racial pacífica e igualitária, atravessou a produção artística
em suas diversas esferas de circulação e teve forte expressão no trabalho da
bailarina e coreógrafa carioca Eros Volúsia (1914-2004).
Filha dos poetas Gilka e Roberto Machado, Volúsia (1983) ficou conhecida
na elite artística e intelectual por sistematizar o que afirmava ser a folk-dance
brasileira ou a coreografia nacional. Em 1939, a convite do ministro da Educação
e Saúde Gustavo Capanema (1900-1985), ela assumiu a direção do curso de
balé do Serviço Nacional do Teatro (SNT), sediado no Teatro Ginástico Português
− foi ali que, seis anos mais tarde, Mercedes Baptista teve suas primeiras aulas

4
Fundada por João Cândido Ferreira (1887-1956), o Monsieur du Chocolat, e integrada por Grande
Otelo (1915-1993) e Pixinguinha (1897-1973), a Companhia Negra de Revistas marcou o que o
pesquisador Jeferson Bacelar (2007) descreve como o início do teatro negro no Brasil com a estreia
em 1929 da peça Tudo preto.
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de dança com Eros Volúsia. Com o apoio de sua mãe, que se mudara com ela de
Campos para a capital, dona Mercedes teve a oportunidade de considerar uma
carreira que para a maioria das meninas negras da época era um sonho distante.
Enquanto trabalhava na bilheteria de um cinema na Tijuca, tomou conhecimento
do curso de Volúsia, que frequentou por pouco mais de um ano antes de entrar
para a Escola de Danças do Theatro Municipal do Rio de Janeiro.
Eros Volúsia é frequentemente citada como a precursora de Mercedes
Baptista. Ex-bailarina da Escola de Danças do Theatro Municipal do Rio de
Janeiro, ela deixou o balé clássico europeu para se dedicar a uma pesquisa autoral
e interpretação livre de danças afro-brasileiras como o frevo, o maracatu e as
danças de terreiro. Volúsia era uma enfant terrible – entre as décadas de 1930 e
1960, ela, Luz del Fuego5 e Felicitas Barreto6 foram algumas das mulheres que
fizeram nome no Rio de Janeiro levando para a cena performances atravessadas
pelo exotismo que marcou tanto o modernismo nas artes em seu contexto mais
amplo quanto a narrativa da brasilidade em sua demanda pelo embranqueci-
mento da imagem do país.
A partir das ideias de transgressão, liberdade e de um interesse genérico
pelas danças negras e indígenas, cada uma dessas artistas teve suas contribuições
no sentido da ruptura, até certo ponto, de determinados padrões estéticos e do
conservadorismo que recaía sobre os corpos das mulheres brancas. Esse movi-
mento, no entanto, é feito a partir da reiteração de noções de hipersexualização
do corpo das mulheres racializadas e da falta de entendimento das dinâmicas,
lógicas e estéticas próprias de expressões culturais que eram diversas e complexas.
No contexto das danças modernas, Eros Volúsia estava alinhada a artistas
como Isadora Duncan (1877-1927) e Ruth St. Denis (1879-1968) no que se
referia a um ideal de liberdade de movimento – liberdade que no seu trabalho
se traduz em falta de rigor técnico respondendo a seu modo às limitações e à rigidez
dos códigos formais do balé clássico europeu. A referência às danças afro-bra-
sileiras relaciona-se a um imaginário que as projeta, em suas palavras, como

5
Nome artístico de Dora Vivacqua (1917-1967), atriz, naturista e bailarina nascida no Espírito Santo.
6
Bailarina, escritora, pintora e naturista nascida na Alemanha, cujo trabalho artístico e teórico
pode ser descrito como um estudo livre e lúdico sobre elementos das culturas negras e sobretudo
indígenas, a partir de suas viagens por Brasil, Panamá, México, Colômbia, Equador e Venezuela
(Ferraz, 2017).
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Figura 3
Eros Volúsia em ensaio
para a Life Magazine
Fonte: Life Picture Collection

desordenadas e exóticas (Volúsia, 1983). Como argumenta Bell Hooks (1992, p. 24)
em Black looks: race and representation, a fascinação pelo Outro aparece na
modernidade como resposta a uma crise de identidade própria da branquitude
que, mesmo quando se interessa por outras formas de estar no mundo, persiste
em demarcar a distância entre sujeito e objeto.
No sentido de melhor compreender o contexto sociopolítico e as bases
técnicas, poéticas e metodológicas da Escola de Dança Afro-Brasileira, é funda-
mental repensá-la em suas afluências, afastar o trabalho de Mercedes Baptista
da referência de Eros Volúsia e aproximá-lo da emergência de um campo
coreográfico no contexto dos trânsitos, intersecções e tensões da diáspora negra
que vão tecer estéticas próprias e tratar de questões diversas das que atravessavam
a produção artística eurocêntrica. Ao relacionar Volúsia com a lógica de represen-
tação da mestiçagem, é possível desfazer parte dos nós que desconsideram a
agência do sujeito negro na história das danças no Brasil.
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O Theatro Municipal do Rio de Janeiro

Em seus primeiros anos de carreira como bailarina clássica, Mercedes


Baptista chamou a atenção da imprensa por suas participações em espetáculos
como Iracema (1948), Maracatu do Chico-Rei (1951), Danças Indígenas do
Guarany e Sinhô do Bonfim (Melgaço, 2007), que marcaram a produção do corpo
de baile do Theatro Municipal do Rio de Janeiro como expressões do que o
historiador Roberto Pereira (2003) chama de balé brasileiro. Ao mesmo tempo em
que era exaltada por seus professores e colegas de profissão quanto a sua beleza,
seu talento e sua competência técnica na dança clássica europeia, sua atuação na
companhia foi restrita a figurações que, apesar de muito bem recebidas pela mídia
e pelo público, eram pontuais.

Figura 4
Mercedes Baptista
Fonte: Acervo Cedoc –
Fundação Theatro Municipal
do Rio de Janeiro
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A impossibilidade de exercer plenamente sua profissão para além das


passagens nos espetáculos de viés nacionalista a aproximou dos trabalhos do
ator, produtor, escritor e sambista Haroldo Costa, do Teatro Folclórico Brasileiro, e
de Abdias Nascimento, do Teatro Experimental do Negro. Esses dois encontros
são determinantes na sua relação com as representações do que era entendido
como folclore em cena − danças negras e indígenas que exerciam a função de
alegorias no imaginário da identidade nacional −, bem como no seu posiciona-
mento político enquanto mulher e artista negra, refletido em parcerias e escolhas
poéticas e estéticas que resultaram no trabalho do Ballet Folclórico Mercedes
Baptista.
Ao mesmo tempo em que seguia como parte do corpo de baile do Municipal
e já reconhecida na imprensa por sua carreira como bailarina, ela participa tanto
da estreia da companhia de Haroldo Costa quanto dos espetáculos, atividades
culturais e ações políticas do Teatro Experimental do Negro ao lado das atrizes
Ruth de Souza, Arinda Serafim, Marina Gonçalves, Elza de Souza, Ilena Teixeira,
Neusa Paladino, Maria D’Aparecida e Agostinha Reis – integrantes do Departa-
mento Feminino do Teatro Experimental do Negro, pouco mencionado nas
narrativas oficiais sobre o coletivo.

A encruzilhada

Em A Cena em Sombras (1995), a encruzilhada é descrita por Leda Martins


(1995, p. 53) como “o jogo das aparências, a dupla fala, o dialogismo, o massacra-
mento sígnico, o uso da ironia”. Martins se refere às operações de deslocamento de
signos que podem constituir a experiência vivida do negro em diáspora. Para a
autora, a negritude não seria definida como um topos, isto é, como um lugar
definido em termos absolutos, mas sim por uma rede complexa de relações que
se dão a partir de contextos sociopolíticos singulares. Se, em sua dimensão
simbólica, a violência colonial enquadra o sujeito negro mediante a produção,
projeção e fixação de determinadas imagens, a negritude se constitui na negativa
desse processo: por um lado desviando e apropriando-se de generalizações e
estereótipos (falados, dançados); por outro sustentando códigos próprios que
são frequentemente ilegíveis para o branco. Nesse sentido, é possível entender
o corpo negro em diáspora como uma “rede material e de energias, como
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perspectiva de mundo e lugar de conhecimento”, tal como descrito pela pesqui-


sadora Luciane Ramos Silva (2017, p. 24).
O trabalho de Mercedes Baptista passa por uma certa ideia de folclore,
termo aqui entendido como uma ficção que justifica e dá contornos ao que
seria a brasilidade projetada pelo Estado Novo. É essa condição que vai, de certa
forma, legitimá-la como ouro nacional aqui e no exterior. Por outro lado, essa
passagem se fez simultânea e mediante estética e pensamento inevitavelmente
negros, que se originam no conflito, no desvio e nas contradições que constituem
a invenção da identidade do povo brasileiro − e sobre eles operam, como aponta
Martins (1995).
Trata-se aqui de uma técnica que foi historicizada de forma subalterna e
que permanece circunscrita ao campo das danças folclóricas, campo esse que
legitima a pretensa universalidade do que se entende por danças modernas e
danças contemporâneas. A partir desse problema, então, é possível pensar a
necessidade de traçar histórias transculturais da dança (Launay, 2017), entendendo
os trânsitos que hoje ocorrem em escala global e que estabeleceram um campo
de práticas híbridas traçadas a partir de saberes múltiplos e necessariamente
hierarquizados entre si: os intercâmbios entre coreógrafos e bailarinos de
diferentes origens e formações efetivados por meio de relações de poder que
vão determinar espaços de circulação e registro, assim como atravessar os
processos de criação artística, de construção e transmissão de técnicas.

Teatro Experimental do Negro e Katherine Dunham: a diáspora negra em cena

Um ano depois da publicação, em 1943, de Casa-grande & senzala, de


Gilberto Freyre (1900-1987) – obra que teoriza e consolida o mito da democracia
racial em suas descrições idílicas da vida no engenho –, o Teatro Experimental do
Negro participou de um contexto de avanços significativos no debate das questões
raciais no Brasil e na luta por ações afirmativas, causando uma disruptura na
cena teatral do Rio de Janeiro. Abdias Nascimento, escritor, artista plástico,
teatrólogo, político e poeta, juntou-se a uma rede de artistas e intelectuais negros
que, até o golpe militar de 1964, construíram para a cena uma estética negra
que divergia do Brasil mestiço de Eros Volúsia.
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Figura 5
Léa Garcia em O imperador
Jones, de Eugene O’Neill
Fonte: Acervo Itaú Cultural

Mercedes Baptista se aproxima das atividades do coletivo em 1948, ao


vencer o concurso Rainha das Mulatas. A partir de então, ela começa a atuar
também como bailarina, colaboradora e mais adiante como coreógrafa de peças
como “Rapsódia Negra”, encenada em 1952 – ano de seu retorno ao Brasil
depois de um ano na Dunham School of Dance and Theater, em Nova York. Em
1950, passa a integrar o Conselho Nacional de Mulheres Negras, instituído em
18 de maio desse ano pela jornalista e assistente social Maria de Lourdes Vale do
Nascimento, na época companheira de Abdias Nascimento (Larkin, 2008). Maria
de Lourdes participou da criação tanto do Teatro Experimental do Negro quanto
do jornal O Quilombo (1948), redigindo a coluna “Fala Mulher” entre 1948 e
1950, sendo também pioneira na reivindicação dos direitos das empregadas
domésticas e na realização de estudos acerca dos problemas de origem psicossocial
decorrentes da prostituição (Xavier, 2016).
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Sua passagem pelo Teatro Experimental do Negro e sua relação com


Abdias do Nascimento marcam também sua virada enquanto artista negra
alinhada ao discurso de uma militância política que emerge na década de 1930
no Brasil. Não por acaso, foi por intermédio dele que, em 1950, ela chega até
Katherine Dunham. Na condição de coreógrafa, Dunham havia sistematizado
uma das vertentes das danças modernas de maior peso nos Estados Unidos em
função da sua pesquisa sobre as danças negras originárias do Caribe. É o
relacionamento com ela, mais do que o contato com Eros Volúsia, que pode
ser compreendido como um dos elementos-chave para entender a formação da
dança de Mercedes Baptista.
Durante o 1o Congresso do Negro Brasileiro, Katherine Dunham − em
passagem pelo Rio de Janeiro com sua companhia Katherine Dunham Dance
Company −, a convite de Abdias Nascimento, deu a aula inaugural do Curso de
Balé Infantil do Teatro Experimental do Negro. Mercedes é, então, escolhida por
Dunham para estudar na Dunham School of Dance and Theater, situada em
Manhattan, Nova York, instituição em que a coreógrafa desenvolveu técnica e
método de ensino que, para além dos Estados Unidos, tiveram reverberações
nas Américas Central e do Sul, a exemplo de Mercedes Baptista e da coreógrafa
e bailarina haitiana Emérante de Pradines7 (Dee Das, 2017).
A partir dos códigos e da estrutura formal do balé clássico e das danças
modernas, Dunham estabeleceu as bases para a sistematização de danças
afrodiaspóricas que fizeram parte da sua pesquisa de campo. Como discente
do curso de antropologia da Universidade de Chicago, ela recebeu bolsa para
desenvolver pesquisa de campo sobre as danças negras do Caribe. Katherine
Dunham passou pela Jamaica e pelas ilhas de Trindade e Tobago, mas logo
voltou sua atenção para as danças religiosas do culto vodum do Haiti. O estudo
coreográfico do yanvalu, dança feita para o vodum Dangbala Wedo,8 deu origem
a um trabalho extenso de mobilização articular e exercícios de barra, solo, centro
e diagonais que foram associados a um repertório próprio das danças negras
afro-caribenhas.

7
Emérante de Pradines (1919-2018), bailarina, coreógrafa, cantora e folclorista haitiana que desenvolveu
seu trabalho a partir da articulação entre técnicas de dança moderna, a técnica Dunham e danças seculares
e religiosas do Haiti.
8
No culto vodum dos povos Ewe-Fon, Dangbala Wedo é a serpente que participa da criação do universo e
tem seu reflexo nas cores do arco-íris.
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O nome de Katherine Dunham só aparece nas histórias das danças


modernas estadunidenses a partir do final da década de 1990, com o trabalho de
pesquisadores comprometidos com a revisão de narrativas que desconsideram
a agência de artistas não brancos na emergência desse campo. Suas contribuições
para a antropologia e a dança, bem como sua influência sobre o trabalho de Alvin
Ailey (1921-1989), a emergência da jazz dance e de estéticas negras para a cena
na diáspora afro-americana, constituem legado ainda por ser reconhecido em
toda a sua extensão.

Figura 6
Katherine Dunham em
L’Agya (1934)
Fonte: Library of Congress –
Katherine Dunham Collection
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O Ballet Folclórico Mercedes Baptista e a Escola de Dança Afro-Brasileira

Ao chegar no Rio de Janeiro depois de um ano na Dunham School of Dance


and Theater, dona Mercedes não só dá continuidade ao trabalho de Katherine
Dunham, como o atualiza em relação à experiência da negritude no Brasil, que
foi, nas palavras de José Carlos Arandiba, diretor e coreógrafo do Balé Folclórico
da Bahia, terra fértil para a técnica Dunham em seu alcance dos princípios de
movimento das danças afrodiaspóricas.
A Escola de Dança Afro-Brasileira, como é chamada até hoje pela sua
terceira geração de professores e bailarinos, teve reverberações no Rio de
Janeiro, Belo Horizonte e Salvador, onde atravessa a formação da cena contem-
porânea de dança afro-baiana. A extensão do trabalho de Katherine Dunham e
de Mercedes Baptista confirma uma perspectiva sobre as corporeidades negras
em diáspora, que moveu a pesquisa antropológica de Dunham no Caribe, em
que os diálogos e correlações que se dão entre modos de fazer diversos e
heterogêneos se relacionam à dispersão das comunidades escravizadas pelo
continente, fazendo com que elementos e práticas das etnias Ewe-Fon, por
exemplo – no Brasil conhecidos como jeje (estrangeiros) pelos Iorubá –, sejam
encontrados hoje no Haiti, no Brasil e no sul dos Estados Unidos, no estado da
Louisianna.
A criação da Academia de Danças Mercedes Baptista é atravessada não
só pela experiência de dona Mercedes com a técnica Dunham – técnica que ela
optou por levar adiante e que foi transmitida ao longo das gerações de alunos da
Escola de Dança Afro-Brasileira –, mas também pela percepção de que havia
aqui um campo aberto para que, a partir do sistema tecido por Dunham, ela
pudesse fazer sua própria pesquisa em diálogo com as culturas negras locais,
a exemplo do Teatro Folclórico Brasileiro de Haroldo Costa e Miécio Askanasy,
João da Goméia e Didi de Freitas, de Vilar dos Teles. As danças negras brasileiras,
em particular as danças de terreiro, já faziam sucesso nos palcos da cidade. Em
termos técnicos, no entanto, o rigor do seu trabalho vai fazer com que a companhia
se destaque como referência para o folclore em cena.
No segundo andar da Gafieira Estudantina, dona Mercedes dava aulas de
balé clássico e técnica de Katherine Dunham, ao mesmo tempo em que começava
a articular o método de pesquisa da bailarina e antropóloga estadunidense à sua
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Figura 7
Ballet Folclórico Mercedes
Baptista
Fonte: Bibliothèque Nationale
de France

pesquisa acerca das danças de terreiro e afro-brasileiras como lundu, samba,


frevo, xaxado, coco, baião, ciranda e maracatu. Essa pesquisa se deu a partir de
uma rede de relações constituída por seus bailarinos – muitos dos quais eram
iniciados no candomblé –, João da Goméia e o folclorista Edison Carneiro (1912-
1972), de quem era muito próxima e a quem recorreu também na adaptação das
danças dos orixás para o palco. Quinze anos mais tarde, ela foi ainda responsável
pela cadeira de Danças Primitivas, que depois veio a se chamar Dança Afro-Bra-
sileira, na mesma Escola de Danças do Theatro Municipal do Rio de Janeiro
que havia frequentado, e onde ficou de 1968 até sua aposentadoria em 1982
– quando já havia realizado o seu sonho e comprado o imóvel em que inaugurou
a Academia de Danças Étnicas Mercedes Baptista, na Avenida Nossa Senhora de
Copacabana, número 581.
O Ballet Folclórico Mercedes Baptista estreou em 1953 e teve repercussão
nacional logo nos primeiros anos de suas apresentações, que aconteciam a
princípio em teatros populares e cassinos e depois em uma série de produções
para o cinema e na televisão – que na época exaltavam justamente a brasilidade
da qual Baptista fazia bom uso, mas que não poderia definir o seu trabalho por
completo. No exterior, no entanto, a companhia foi ainda mais bem recebida.
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Até 1963, a companhia realizou turnês na América Latina e Europa, contratada


pelo empresário Raymond Guillier. Em 1965, logo antes de levar o Ballet para o
Théatre des Nations em parceria com o Itamaraty, Guillier chegou a afirmar não
compreender por que não se falava tanto em Mercedes Baptista no Brasil, quando
em Paris a coreógrafa havia estampado diversas reportagens de capa e era aguar-
dada ansiosamente pela imprensa e classe artística (Diário Carioca, 22 mai. 1965).
Seus três espetáculos autorais – África (em parceria com Walter Nichs),
A visita do ony de Ifé ao obá de Oyó (1981) e Mondongô (1982) –, resultado de
quase três décadas de trabalho, foram bem recebidos pelo público e pela crítica.
Alguns dos seus alunos e bailarinos também se tornaram professores e coreógrafos,
dando continuidade e múltiplos desdobramentos à técnica que criara – entre
eles, Walter Ribeiro, Isaura de Assis, Marlene Silva e Gilberto de Assis. Gilberto
de Assis, que começou a frequentar a Academia de Danças na Gafieira Estudantina
aos 13 anos de idade, formou a terceira geração de professores da Escola de
Dança Afro-Brasileira no Rio de Janeiro: os mestres Charles Nelson, diretor e
coreógrafo da companhia Ilê Ofé, e Carlos Mutalla, coreógrafo do Afoxé Filhas
de Gandhy, falecido em 2021. Apesar do desmonte das já escassas políticas
públicas voltadas para as culturas negras, Charles Nelson mantém o trabalho de
Mercedes Baptista em movimento há mais de 30 anos.

Considerações finais

Essa passagem por parte da trajetória de Mercedes Baptista é um movi-


mento de olhar para o seu trabalho levando em consideração as dimensões diversas
e contraditórias que o atravessam. Entender a negritude como uma rede de
relações estabelecidas a partir da vivência do negro em diáspora é compreender a
dimensão política que constitui as estéticas que podem ser construídas a partir
dessas condições. A questão aqui é como essa vivência se traduz em deter-
minadas formas de expressão que, simultaneamente diversas, apresentam
suficientes elementos em comum para marcar discurso e corporeidade distintivos
(Martins, 1995). Não se trata, contudo, de achatar o campo das danças negras
aqui referenciado em camada única, mas reconhecê-lo em sua heterogeneidade,
fundamentalmente ligada ao seu aspecto relacional que se dá entre as matrizes
africanas e europeias com as quais os artistas negros em diáspora são confron-
tados em suas práticas.
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Em 1972, Mercedes Baptista recebe um convite do Clark Center for the


Performing Arts de Nova York para lecionar dança afro-brasileira e participar de
apresentações da instituição. Na mesma ocasião foi também convidada pelo
artista e coreógrafo Alvin Ailey (1931-1989) para trabalhar no Dance Theater
of Harlem, companhia cuja fundação é um dos marcos mais relevantes para as
histórias das danças estadunidenses e sobretudo para a consolidação do trabalho
de bailarinos e coreógrafos negros no contexto das danças modernas.
O reconhecimento conferido ao seu trabalho nos Estados Unidos fala tanto
das limitações da crítica e da imprensa brasileiras de um modo geral quanto da
potência da articulação e sistematização de seu trabalho não só enquanto uma
vertente das danças afro, mas como uma dança negra e uma dança moderna.
Descrita no programa do Dance Theater of Harlem como “uma das personali-
dades mais conhecidas em todo o mundo” (Melgaço, 2007, p. 91), Mercedes
Baptista foi certamente mal compreendida em território nacional – esse
mal-entendido, porém, não a impediu de receber o devido reconhecimento por
parte daqueles que contribuíram para a formação de uma rede transnacional de
produção artística e acadêmica – os bailarinos, coreógrafos, críticos e pesqui-
sadores da diáspora negra nas Américas. Seu retorno aos Estados Unidos e sua
relação com Alvin Ailey – que teve seu próprio trabalho influenciado por Katherine
Dunham – marcam o modo como a diáspora negra se constitui enquanto um
continuum que se sustenta de forma transversal, que contraria as limitações
estruturais, materiais e simbólicas que restringem os lugares de agência política
e estética.
O gesto de localizar dona Mercedes em relação a estéticas próprias da
diáspora negra é tomar parte do privilégio de habitar o presente restrito
às danças que se apresentam como modernas e contemporâneas, porque
partem da premissa de que suas epistemologias são universais. Seu trabalho
aparece, portanto, como expressão de resistência e de produção de saber
contra-hegemônico em dança, em um contexto partido e atravessado por
relações de colonialidade que compreendem não só a dimensão macropolítica,
mas também a da subjetividade e do conhecimento.

Erika Villeroy é bailarina e pesquisadora, licenciada em dança pela Faculdade


Angel Vianna. É mestre e doutoranda em Estudos Contemporâneos das Artes
pela Universidade Federal Fluminense.
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Artigo submetido em março de 2021 e aprovado em junho de 2021.

Como citar:
VILLEROY, Erika. Ballet Folclórico Mercedes Baptista: entre brasilidade e negritude no
Rio de Janeiro das décadas de 1950 e 1960. Arte & Ensaios, Rio de Janeiro,
PPGAV-UFRJ, v. 27, n. 41, p. 110-126, jan.-jun. 2021. ISSN-2448-3338. DOI: https://
doi.org/10.37235/ae.n41.7. Disponível em: http://revistas.ufrj.br/index.php/ae
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Corpos femininos na performance: por uma subversão


Female bodies in performance: for a subversion

Beatriz Nascimento Triles


0000-0003-0493-2959
bia@trilles.com.br

Resumo
O presente texto aborda os corpos femininos inseridos na performance artística,
levando em consideração uma estética feminista que preza uma subversão da
perspectiva de fetichização dos corpos femininos, das violências de gênero e das
potências daquelas que se identificam com esses femininos. Os corpos femininos,
enquanto corpos marcados social e culturalmente por imposições, marginali-
zações, estigmatizações etc., ao se tornar ferramentas artísticas da performance,
passam a ser, também, um gesto crítico-político criador, uma vez que, por meio
de sua estética subversiva, atuam como instrumentos e suportes de criação de
novas possibilidades de discurso. Dessarte, é pela análise crítica de alguns
trabalhos performáticos das artistas Regina José Galindo e Celeida Tostes que
se torna possível trazer essas temáticas à tona neste artigo.
Palavras-chave
Corpos femininos; Performance; Subversão.

Abstract
The present text discusses about the female bodies inserted in artistic performance,
taking into account a feminist aesthetic which values a subversion of the perspective
of fetishization of the female bodies, gender violence and of the powers of those who
identify with these females. The female bodies, as bodies socially and culturally marked
by impositions, marginalizations, stigmatizations etc., by becoming artistic tools of
performance, they also become a creative critical-political gesture, to the extent that,
through its subversive aesthetics, act as supporting instruments for the creation of new
possibilities of discourse. Thus, it is through of critical analysis of some performative
works by artists Regina José Galindo and Celeida Tostes that it will become possible to

PPGAV/EBA/UFRJ
bring these themes to the fore in this article.
Rio de Janeiro, Brasil
Keywords
ISSN: 2448-3338
DOI: 10.37235/ae.n40.8 Female bodies; Performance; Subversion.
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Quando se pensa nas conceitualizações feitas a partir dos corpos femininos e


suas nuanças político-sociais nas performances artísticas, é de suma importância
conceituar o tipo de estética na qual as obras se inserem. Especificamente
na abordagem deste texto, tomarei como ponto de partida interpretações e
perspectivas críticas de alguns trabalhos artísticos, levando em consideração
estéticas feministas que atravessam esses fazeres artísticos.
As lutas políticas feministas, quando localizadas no campo artístico, se
desvelam como ações críticas do meio na qual se inserem. Tanto os espaços de
galerias, museus e centros de artes quanto os espaços urbanos sociais macro-
políticos ainda carregam em suas estruturas de poder resquícios de um passado
histórico com inúmeras disparidades entre gêneros. Assim como analisado pela
historiadora de arte americana Linda Nochlin, embora alguns acreditem existir
uma força de reconhecimento artístico imparcial, é perceptível que ao longo da
história da arte as oportunidades e os reconhecimentos dados aos trabalhos
artísticos e a seus autores foram atribuídos, majoritariamente, a artistas do sexo
masculino e brancos.

As coisas como estão e como estiveram, nas artes, bem como em


centenas de outras áreas, são entediantes, opressivas e desestimulantes
para todos aqueles que, como as mulheres, não tiveram a sorte de
nascer brancos, preferencialmente classe média e acima de tudo
homens. A culpa não está nos astros, em nossos hormônios, nos
nossos ciclos menstruais ou em nosso vazio interior, mas sim em
nossas instituições e em nossa educação, entendida como tudo o
que acontece no momento que entramos nesse mundo cheio de
significados, símbolos, signos e sinais (Nochlin, 2016, p. 8-9).

Nessa perspectiva, trazer abordagens estéticas feministas críticas, a fim


de analisar obras de artistas que se identificam como mulheres, torna-se mais
do que apenas uma pretensão de ser uma corrente político-ideológica na arte.
Uma estética feminista é aquela que busca trabalhar as problemáticas sociais
que envolvem as questões de gênero e estão arraigadas nas bases históricas
estruturais das sociedades patriarcais, interseccionadas, também, com as questões
raciais, de classe e de sexualidades. O que se intenciona com esse tipo de estética,
que está intimamente atrelada à política e às formas de (re)existência, é que
mediante uma arte crítica − que contém possibilidades subversivas e propostas
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discursivas a partir de uma micropolítica vivenciada pelas artistas − tais querelas


e discursos hegemônicos possam ser transmutados.

O artivismo, alinhado a uma estética feminista de contestação, subversão


e construção de outras medidas para o corpo, práticas e desejos, se
torna um potente instrumento de visibilidade, de deslocamentos e de
ruptura às normas vigentes. Trata-se mais de uma aposta no inventivo,
de um mergulho no abismo, que propriamente de uma corrente
identitária. O artivismo, arriscamos dizer, é devires que produzem fissuras,
rachaduras que cartografam os mapas dos saberes universais para dar
vazão a saberes sensorializados e não cognoscíveis (Lessa, Stubs,
Teixeira-Filho, 2018, p. 16)

Quando se pensa em subversão pode-se conceituar o termo enquanto


ação que perturba o curso normativo de algo. Assim sendo, o uso do termo neste
texto está atrelado, justamente, a essa característica disruptiva potencializada
por determinados trabalhos artísticos, que buscam romper e transmutar discursos
hegemônicos. Dessarte, penso aqui na potência de uma estética feminista, que
é ao mesmo tempo crítica e subversiva, e, também, criadora.
Uma vez que as estéticas feministas estão atreladas a aspectos críticos,
em busca de subverter paradigmas sociais, é possível aprofundar essas noções
ao explorar as potências trazidas por algumas performances artísticas selecio-
nadas – que esmiuçarei adiante, ao longo dos próximos subitens. É importante
salientar que uma estética feminista inserida no campo da performance opera
como reivindicadora e criadora de possibilidades plurais de novos territórios
existenciais. As palavras corpo e feminino ganham, portanto, contornos potentes
por meio de uma arte que leva em consideração as lutas político-sociais por
emancipação e as trajetórias históricas nesse sentido.

Por uma subversão da fetichização

Pode-se afirmar que, do ponto de vista político-social, em uma cultura


patriarcal opera uma lógica dicotômica, na qual o indivíduo do sexo masculino,
branco, hétero-falocêntrico se encontra hierarquicamente na posição de sujeito
hegemônico – ou seja, enquanto protagonista das cenas sociais em que atua,
sendo, portanto, aquele que coloniza as demais formas de ser e estar no mundo.
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Nesse sentido, os indivíduos que se identificam como mulheres, passam a ser


considerados, dentro dessa escala hierárquica dicotomizante, como “corpos
abjetos”,1 se tornando objetos e não sujeitos no interior dessa suposta lógica.
À medida que esses corpos são classificados como femininos, passam a
habitar o lugar de objeto, ou seja, a posição de um corpo colonizado pelo olhar
daquele que ocupa majoritariamente os lugares hegemônicos na sociedade
patriarcal. Consequentemente, esse corpo subjugado dentro dessa lógica é visto
de maneira objetificada, desumanizada e despersonalizada de suas subjetividades
próprias. Dessarte, visto que existem, de um lado, corpos dominantes e, de outro,
corpos marginalizados e estigmatizados, existe, também, em decorrência, uma
fetichização.
As construções simbólicas culturais fazem com que esses corpos femi-
ninos, justamente por ser objetificados e usurpados de sua humanidade mais
basal, tenham, devido ao olhar colonizador, suas construções pautadas em uma
perspectiva de constante hipersexualização. Dessarte, o espaço de “protago-
nismo” que ocupam dentro dessa lógica patriarcal passa a ser aquele considerado,
principalmente, sob o ponto de vista da beleza, da sexualização e, portanto,
constantemente sob a perspectiva de um desejo colonizante alheio.

É sempre o olhar que reduz, primitiviza ou transmuta. Reduzir a mulher


a uma imagem erótica equivale a uma primitivização que a aproxima da
irracionalidade feroz. E aqui devemos entender “olhar” como um ato
além do individual, devemos pensá-lo como fenômeno social e cultural,
como construção de uma lente política implantada diante de nossa
percepção e nosso imaginário (Jordão, 2017, p. 118).

Ao analisar obras de algumas artistas, pode-se, contudo, notar um movi-


mento crítico que tenciona, por meio de uma estética feminista, expor as nuanças
grotescas dessa lógica perversa. Quando as artistas se apropriam de seus próprios
corpos na performance, a fim de criar potências críticas, rompendo com essas

1
Expressão da filósofa Judith Butler e que tomo aqui por empréstimo para conceituar, justamente,
esses corpos desvalorizados social e culturalmente, ou seja, aqueles corpos excluídos ou que possuem
pouca importância no que tange a suas vivências. Para mais informações, conferir Butler, Meijer,
Prins, 2002 e Butler, 2008.
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lógicas imperativas, buscam desfetichizar esses corpos, tornando-os suporte e


instrumento autêntico de criação de novos gestos políticos. Nessa perspectiva,
percebo esse movimento, por exemplo, nas performances de Regina José
Galindo, que traz elementos pertinentes para pensar essa questão.
Figura 1
Regina José Galindo,
Nascida na Guatemala, é artista visual e poetisa que concentra seus
Recorte por la línea, 2005, trabalhos majoritariamente no campo da performance. Em Recorte por la línea,
performance fotografada
de 2005, performance realizada no Primeiro Festival de Arte Corporal, em Caracas,
por Alejandra Herrera
Disponível em: https://www. ela explora criticamente essa questão da hipersexualização sobre os corpos
reginajosegalindo.com/ femininos e sobre os padrões estéticos de beleza a eles atrelados.
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O corpo da artista, nu e exposto, tem marcadas por um renomado cirurgião


plástico todas as áreas que, supostamente, de acordo com os padrões estéticos
culturais e sociais impostos de corpo feminino desejável, deveriam ser operadas,
com a finalidade de atingir o corpo ideal. É marcado simbolicamente na carne e na
performance o fato de que, além de os corpos femininos serem constantemente
sexualizados, lhes são demandados padrões específicos para que estejam dentro
dos “moldes” hegemonicamente “ideais” das categorias belo e sexual.

As práticas de beleza não são simplesmente um artefato de consumo


capitalista, de feminilização da cultura ou das contradições da Moder-
nidade. São centrais à reprodução das relações de dominação e
subordinação, ao perpetuar as limitações e os efeitos disciplinares da
feminilidade (Almeida, 2014, p. 336).

Ao se tratar da questão da hipersexualização dos corpos femininos, pode-se,


portanto, observar o quão ambíguo pode ser o ato de utilizar o próprio corpo na
performance para estabelecer tal crítica. Isso se dá porque o mesmo corpo
nu, que é constantemente fetichizado na perspectiva patriarcal, é colocado em
evidência e exposto como ferramenta crucial para os trabalhos performáticos
críticos. Ao mesmo tempo, Regina José Galindo consegue, por intermédio de seu
corpo, trazer à tona uma perspectiva de estética feminista que subverte a lógica
de um olhar de mera apreciação sexual. Dessarte, mediante esse corpo artístico,
ela busca subverter um olhar majoritariamente colonizante sobre aquele corpo,
para então criar, pela simbologia dos gestos, uma perspectiva artística ressigni-
ficadora do corpo feminino, de maneira a desfetichizá-lo por si mesmo.

Por uma subversão das violências

Tendo em vista as perspectivas sobre a questão da constante fetichização/


objetificação dos corpos femininos, é necessário delinear outra possível questão
atrelada a esse aspecto. Quando se trata de um corpo colonizado e reduzido
ao olhar e ao lugar de mero objeto de desejo, trata-se, também, de um corpo
constantemente atravessado por violências.
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Posto que as formas de existir em sociedade estão intimamente interligadas


às relações de poder2 preestabelecidas, quanto mais abjetos estão determinados
corpos, mais eles sofrem diretamente os reflexos violentos do poder. Dessarte,
as violências de gênero se configuram não somente como ações pontuais em
escaladas micropolíticas, restritas ao espaço doméstico, familiar ou local, mas,
também, como produto reativo, em escala macropolítica, de uma sociedade
enraizada em um patriarcalismo histórico, que utiliza seus discursos e ações
sexistas/misóginas como ferramentas de manutenção do poder.

Assim, todo tipo de violência contra a mulher é expressão de uma


resposta emocional reativa, instrumentalizada dos homens para manter
ou recuperar as fronteiras de gênero socialmente estabelecidas,
mantendo ou defendendo as prerrogativas e os privilégios masculinos
diante do rebaixamento que representam as margens de empodera-
mento físico, econômico e político, especialmente obtidos pelas
mulheres nas três últimas décadas (Almeida, 2014, p. 333).

Nesse sentido, a arte contemporânea, ao se voltar para contextos


crítico-políticos, revela sintomas sociais que, apesar de muito presentes no
quotidiano, se encontram latentes ou banalizados. As dores das violências que
se repetem, ao ser potencializadas na performance, atuam como ferramentas
desanestesiadoras daquilo que se encontra dormente. Dessarte, “é como se a
violência na arte tornasse ainda mais sensível a violência da vida” (Jordão,
2017, p. 193).
Performers, como Regina José Galindo, mostram proposições artísticas
intrinsecamente atravessadas pela temática da violência vivenciada pelos corpos
de mulheres latino-americanas. Episódios que foram negligenciados e silenciados
são trazidos à tona por meio de suas célebres performances – como é o caso de
La Manada, de 2018.

2
Conceituo poder aqui enquanto instância altamente ramificada e porosa, que majoritariamente
permeia as relações interpessoais na sociedade capitalista. Assim, estabelece as maneiras como os
indivíduos ocupam os espaços e de que modo são afetados pela disciplinarização dos corpos. Para
mais informações, conferir Foucault, 1988.
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Figura 2 Em uma sala da Galeria de Arte Black Balance, em Madrid, sete homens
Regina José Galindo,
La Manada, 2018, se masturbam ao redor da artista, cujo corpo imóvel eles usam como lugar para
performance fotografada depositar seus fluidos. O desenrolar da performance remete fortemente a
por José Luis Isquierdo
Disponível em: https://www.
assédios sexuais que ocorrem quotidianamente, nos mais diversos ambientes,
reginajosegalindo.com/ incluindo espaços públicos, e têm como alvo majoritário os corpos femininos.
Esse corpo-objeto da artista em estado de vulnerabilidade convoca à
reflexão sobre a coletividade, na qual estamos todas inseridas também enquanto
corpos suscetíveis às violências físicas, discursivas e simbólicas. Isso porque,
são os corpos femininos, sobretudo aqueles subalternizados pelos marcadores
raciais e de classe, os primeiros a ser violentados nessa lógica, que opera em
um sistema patriarcal branco hétero-falocêntrico. Dessarte, a performer explicita
uma realidade indelicada e incômoda, que, porém, não deveria ser banalizada e
normalizada como uma trivialidade quotidiana.
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Ainda sobre as performances críticas de Galindo, em El dolor en un pañuelo


– que ocorreu no Plaza G&T na Guatemala, em 1999 – a artista se encontra nua,
amarrada em uma cama vertical e com os olhos vendados, enquanto recortes
de jornais, contendo notícias reais sobre abusos e violações de mulheres na
Guatemala, são projetados em seu corpo, configurando uma estética política
altamente crítica de episódios concretos.

Figura 3
Regina José Galindo,
El dolor en un pañuelo, 1999,
performance fotografada
por Marvin Olivares
Disponível em: https://www.
reginajosegalindo.com/

Uma performance como essa manifesta simbologias que remetem não


só à violência vivenciada por mulheres guatemaltecas no quotidiano, como,
também, à impunidade dos crimes. Os olhos vendados da artista e a posição em
que se encontram seus braços aludem ao famoso símbolo da justiça – a imagem
da deusa grega Têmis, que é representada sempre com os olhos vendados e
com uma balança na mão. Contudo, como as mãos de Galindo estão amarradas,
é como se a justiça estivesse igualmente de mãos atadas quando se trata de
julgar crimes cometidos contra os corpos que se identificam como mulheres.
Torna-se evidente, então, o fato de que, por meio da pesquisa desses
tipos de performance, são trazidos à cena gestos incômodos, desconfortáveis
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e altamente críticos, para atrelar à violência justamente esse caráter indigesto.


A questão da violência de gênero retratada nas performances, portanto, opera
não só como espelho crítico social, mas mostra, também, a subversão da lógica
de que ela ocorre pontual e localmente, revelando seu caráter culturalmente
sintomático e apontando para novos caminhos políticos do fazer artístico.

Por uma subversão das potências

Apesar das marcas violentas e fetichizadoras que atravessam os corpos


femininos, é importante salientar que esse lugar constante que apenas põe em
evidência as dores e as feridas sociais, quando não abre caminhos para a criação
de novas potências do agir, coloca aquelas que se identificam como mulheres
novamente em um ciclo de passividade diante do cenário político-social. Faz-se
necessário, então, revisitar as condições e imposições preestabelecidas que
marginalizam e despotencializam esses corpos enquanto subjetividades.
Os sujeitos e aquilo que definimos como “subjetividade” se produzem no
interior dos discursos. As condições associadas aos gêneros e as maneiras de
se constituir político-socialmente enquanto sujeitos-corpos são construções
simbólicas culturais, que moldam comportamentos, pensamentos e condutas
diante das circunstâncias. Dessarte,

Expandir os limites daquilo que se entende por corpo [...] implica


também deslocar nossas próprias noções de subjetividade e agencia-
mento, de forma a incorporar, nos interstícios da cidadania e da vida
social, novas possibilidades eróticas, políticas e subjetivas. Para tanto,
a estratégia é lançar mão do caráter performativo do gênero para
instaurar novas possibilidades de existência inteligível no espaço social
(Alós, 2011, p. 434).

Tendo em vista elementos tão controversos como gênero, etnia, classe,


saberes e memórias culturais, é possível tecer novos caminhos e formas de
existir no mundo que valorizem as particularidades plurais dos corpos e suas
histórias e, ao mesmo tempo, as potencializem. Essa proposta, embora seja
desafiadora em um cenário político tão instável quanto o atual, se configura
como um dos caminhos micropolíticos possíveis para (re)existir. Desse ponto
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de vista, o corpo enquanto campo de batalha, que afeta o meio em que vive e é
por ele afetado, se torna ferramenta crucial para criar novas formas de existências
possíveis.
Quando se trata do corpo na arte pode-se perceber ainda mais as poten-
cializações daquilo de que ele é capaz. As linguagens utilizadas nas performances,
“como verdadeiras emergências estéticas, são transgressões dentro de uma
cultura em que o corpo, a partir das convenções vigentes, é alienado de si próprio”
(Glusberg, 2005, p. 100). Dessarte, os corpos femininos na performance suscitam,
então, diversos simbolismos que se manifestam como meio de intensificar gestos,
resgatar histórias e propor uma construção de corpos femininos que não cessam
as suas capacidades inventivas de subjetividades, construções políticas e outras
formas de devir.3
A performance de Celeida Tostes é um exemplo de como isso se constrói.
Nascida no Rio de Janeiro, a artista e professora, que trabalhava, sobretudo, com
escultura e cerâmica, fez do barro matéria-prima concreta e simbólica majori-
tária de suas obras. Dessarte, ao propor uma performance, ela utiliza seu corpo
como peça fundamental da obra e, mesclando a carne viva e pulsante ao barro,
dá contorno a gestos e formas que se constroem, desconstroem e reconstroem
à medida que a performance vai sendo executada.
Em Rito de passagem – realizada em 1979, no apartamento da artista,
em Botafogo –, Celeida, com a ajuda de duas assistentes, se despe e envolve-se
inteiramente em argila, de maneira a transformar-se numa espécie de ânfora.
Essa forma tem uma forte ligação com a imagem uterina – lugar em que o
corpo é vivenciado de maneira cíclica, não linear; que constrói memórias, sen-
sações e afetos; e se desfaz em determinado momento, dando lugar a outras
experimentações.

3
Utilizo aqui o termo deleuziano para expressar, justamente, essas possibilidades do vir a ser de
um corpo, ou seja, possibilidades que não buscam uma teleologia daquilo que um corpo é capaz
de ser ou fazer, mas, sim, a plasticidade e a porosidade daquilo que ele porventura possa expressar em
diferentes momentos. Para mais informações, conferir Deleuze, Guattari, 2010.
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Figura 4
Celeida Tostes,
Rito de passagem, 1979,
performance fotografada
por Henry Stahl
Disponível em: http://bibliote-
cadigital.fgv.br/dspace/bitstre-
am/handle/10438/2146/CP-
DOC2006RaquelMartinsSilva.
pdf?sequence=1&isAllowed=y
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Uma estética como a da artista potencializa o corpo feminino uma vez que
lida com simbolismos como o efêmero, os ciclos da vida – aquilo que está em
devir constante de nascimento e morte – e a permanente construção de corpos
e identidades femininas também em devir. Rito de passagem é, portanto, uma
performance que não só utiliza o corpo como metáfora poética, mas também
incorpora a produção de narrativas do corpo feminino por meio do barro e seus
elementos.
Com essa performance − que contém em si numerosos simbolismos que
atravessam os corpos femininos −, os ritmos do corpo, as questões identitárias
que se constituem a partir dos afetos, as pulsões etc. ganham acolhimento e
ressignificações. Dessarte, uma performance como a de Celeida traz à tona
desdobramentos que despertam possibilidades de tecer novos caminhos por
meio do corpo enquanto potência.
São formas que criam estruturas expressivas no campo das artes e são
capazes de criar, também, uma mescla entre arte e vida, impulsionando as
potências vitais e micropolíticas do corpo a agir como protagonistas na cena
político-social contemporânea. Portanto, “chegamos ao ponto de procurar [...]
a plenitude de nosso corpo naquilo que, durante muito tempo, foi um estigma e
como que a ferida neste corpo; nossa identidade, naquilo que se percebia como
obscuro impulso sem nome... (Foucault, 1988, p. 146).

Considerações finais

Levando em conta a discussão proposta neste breve artigo, pode-se


concluir que, ao tratar dos corpos femininos presentes nas proposições artís-
ticas performáticas, percebe-se a existência de questões que os atravessam.
Um corpo que se identifica como feminino é aquele necessariamente permeado
por significados culturais, que historicamente construíram condições para sua
marginalização. Nessa perspectiva, as lutas contemporâneas por emancipação
estão intimamente atreladas à necessidade de subversão de uma lógica patriarcal.
É necessário frisar, entretanto, que as análises das obras focalizadas neste
artigo, bem como seus referenciais teóricos, não buscam essencializar ou encerrar
as possibilidades daquilo que poderia estar atrelado às formas identitárias do
ser mulher em uma sociedade patriarcal. É de suma importância considerar as
limitações críticas, conceituais e existenciais no que tange às definições de
corpo, sujeito feminino e performance esboçadas enquanto discursos linguísticos,
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pois essas são construções político-sociais permanentemente em aberto e em


constantes devires revolucionários e inventivos.
Torna-se evidente, portanto, que ao tratar dos corpos femininos na perfor-
mance artística, mais do que traçar um trajeto político-social linear cristalizado,
buscou-se pensar possibilidades diversas. São elas rotas de fuga que constroem
pontos de vista singulares, sem, contudo, deixar de ressoar na pluralidade coletiva.

Beatriz Nascimento Triles é mestranda no Programa de Estudos Contemporâneos


das Artes, na Universidade Federal Fluminense, e graduada em filosofia pela
mesma universidade.

Referências

ALMEIDA, Tânia Mara Campos. Corpo feminino e violência de gênero: fenômeno persistente e
atualizado em escala mundial. Dossiê: Gêneros e Feminismo(s): Novas Perspectivas Teóricas e
Caminhos Sociais. Sociedade e Estado, Brasília, v. 29, n. 2, maio-ago. 2014.
ALÓS, Anselmo Peres. Gênero, epistemologia e performatividade: estratégias pedagógicas
de subversão. Estudos Feministas, Florianópolis, v. 19, n. 2, p. 421-449, jan. 2011.
BUTLER, Judith. Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade. Rio de
Janeiro: Civilização Brasileira, 2008.
BUTLER, Judith; MEIJER, Irene; PRINS, Baukj. Como os corpos se tornam matéria: entre-
vista com Judith Butler. Estudos Feministas, Florianópolis, v. 10, n. 1, p. 155-167, 2002.
DELEUZE, Gilles; GUATARRI, Félix. O anti-Édipo: capitalismo e esquizofrenia. São Paulo:
Editora 34, 2010.
FOUCAULT, Michel. História da sexualidade I: A vontade de saber. Rio de Janeiro:
Edições Graal, 1988.
GLUSBERG, Jorge. A arte da performance. São Paulo: Perspectiva, 2005.
JORDÃO, Paulo Veiga. Corpos subversivos na performance contemporânea. Tese (Doutorado
em Artes Visuais) – Universidade Federal do Rio de Janeiro. Departamento de Belas Artes, 2017.
LESSA, Patricia; STUBS, Roberta; TEIXEIRA-FILHO, Fernando Silva. Artivismo, estética feminista
e produção de subjetividade. Estudos Feministas, Florianópolis, v. 26, n. 2, p. 1-19, ago. 2018.
NOCHLIN, Linda. Por que não houve grandes mulheres artistas? São Paulo: Edições Aurora, 2016.

Artigo submetido em março de 2021 e aprovado em junho de 2021.

Como citar:
TRILES, Beatriz Nascimento. Corpos femininos na performance: por uma subversão.
Arte & Ensaios, Rio de Janeiro, PPGAV-UFRJ, v. 27, n. 41, p. 127-140, jan.-jun.
2021. ISSN-2448-3338. DOI: https://doi.org/10.37235/ae.n41.8. Disponível
em: http://revistas.ufrj.br/index.php/ae
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Acontecimento performático para o nascimento de


uma vida-virilha: uma experiência compartilhada
Performative event for the birth of a virilha-life: a shared experience

Sandra Bonomini
0000-0001-7032-165X
sandra.bonomini@edu.unirio.br

Resumo
O presente artigo é um diálogo com a performance Viril, da performer e escritora brasileira Ana Luisa
Santos. Viril faz parte da série de trabalhos da artista sobre masculinidades, sobre a experiência
das sexualidades fora do quadro dos binarismos e da heteronormatividade, sistema que governa a
estrutura patriarcal. A performance de Santos tem como ação principal a leitura de um manifesto
de sua autoria, Viril ou por uma performance queer da masculinidade. Mediante falas-falos, a artista
interpela o público, mas também a si mesma, ao expor e tentar desconstruir a ficção violenta de
masculinidade tóxica e seu atributo principal: a virilidade. A relação entre o texto da performer e a
imagem de si que ela mostra é essencial. É a partir do compartilhamento de uma experiência íntima
(autobiográfica), que as palavras adquirem dimensão política, sendo a linguagem da performance o
que permite o intercâmbio e o estabelecimento de interconexões. A análise de Viril está inserida na
necessidade de questionar quem conforma o(s) novo(s) sujeito(s) dos movimentos feministas hoje,
para o que me apoio em pensadoras feministas não hegemônicas e no pensamento decolonial.

Palavras-chave
Performance; corpo; feminismos; descolonização; vida-virilha.

Abstract
This article is an analysis and a dialogue with the performance Viril by Brazilian performance
artist and writer Ana Luisa Santos. Viril is part of the artist’s series of works on masculinities,
on the experience of sexualities outside the framework of binarisms and heteronormativity,
a system that governs the patriarchal structure. Santo’s performance has as main action the
reading of a manifesto, Viril or by a Queer performance of masculinity. Through falas-falos,
the artist challenges the audience, but also herself, by exposing and trying to deconstruct the violent
fiction of toxic masculinity and its main attribute: virility. The relationship between the performer’s
text and the image of herself is essential. It is from the sharing of an intimate (autobiographical)
experience, that words acquire a political dimension, with the language of performance allowing an
exchange between performer and audience, as well as the establishment of interconnections. Viril’s
analysis is inserted in the need to question who shapes the new subjects of feminist movements
PPGAV/EBA/UFRJ
today, for which I rely on non-hegemonic feminist thinkers, as well as on decolonial thinking.
Rio de Janeiro, Brasil
ISSN: 2448-3338
Keywords
DOI: 10.37235/ae.n41.9 Performance; body; feminisms; decolonization; virilha-life.
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A performer entra no espaço nua e senta-se num vaso sanitário branco.


Apoiado em suas pernas, vemos um laptop aberto que ilumina seu rosto no meio
do que poderia ser um palco teatral. Nua, ela lê um texto no computador. Esta é
a ação principal, a leitura-fala de um manifesto de sua autoria no qual, durante
30 minutos, mostra seu corpo e coração abertos como em uma cirurgia sem
anestesia, e conta, declara, confessa, exorciza, repudia, duvida, surge, ressurge,
mata, nos mata, morre, nos faz morrer e renasce outrx. Temos a possibilidade de
nos tornar outrx. Passados os 30 minutos, ela fecha o laptop, se levanta do vaso
sanitário e deixa o espaço.
Viril − junto com Fálica, Espécie e Queda Livre −, faz parte da série de
trabalhos da artista sobre masculinidades, sobre a experiência das sexualidades
fora do quadro dos binarismos e da heteronormatividade, sistema que governa
a estrutura patriarcal. A relação entre o texto da performer e sua imagem é
essencial. Não há representação, não há personagem, não há ficção no sentido
dramático. A análise de Viril está inserida na necessidade de descolonizar as
questões de gênero e sexualidade impostas no passado, mas atualizadas e
reatualizadas no presente, no atual “regime colonial-capitalístico” (Rolnik, 2018)
Esse artigo é acompanhado, de forma entrelaçada no corpo do texto, por trechos
selecionados (grafados em itálico) do manifesto escrito pela artista, um modo
de aproximar − ainda mais − o diálogo entre nós, por uma vontade de apagar ou,
ao menos, diluir fronteiras teórico-práticas, uma vez que esse manifesto é parte
essencial da performance de Santos. Sem dúvida outro “vazamento” voluntário
que perfura esta escrita marcada, também, pela relação de amizade, parceria
e cumplicidade que compartilho com a artista, pois venho acompanhando os
processos artísticos (e de vida) de Ana Luisa Santos desde 2013. A escrita deste
texto nasce do afeto, da partilha de sonhos − e alguns pesadelos −, do desejo e
da reimaginação constantes de outro mundo possível. Daí o título, no qual afirmo
que mais do que entrevistas formais, o que tivemos foi antes um encontro-aconte-
cimento efêmero e marcante.
A série de trabalhos sobre masculinidades em que a artista vem transi-
tando desde 2017, tanto a partir da escrita − da dramaturgia para performance
e para teatro performativo − quanto da performance, propõe a vulnerabilidade,
a fragilidade, a precariedade e o movimento de queda como potências. A coluna
vertebral desses trabalhos é o movimento, com deslocamentos, inversões,
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ressignificação, remoção e a urgente necessidade de cair. Os trabalhos de Santos


são o desvio para uma experiência de queda que, segundo a psicanalista Hélia
Borges (2021, p. 1), é afirmação do lugar outro, é a “queda de uma supremacia
que se pauta na onipotência, superioridade, negação da vida em sua finitude e
multiplicidade, alienada que é na lógica identitária e, portanto, hegemônica do
colonizador”. A queda da estrutura patriarcal-colonial, da capitalização dos afetos,
da normatividade, das dicotomias, dos binarismos, da naturalização sexo-gênero,
das ficções identitárias que violentam, enquadram, nomeiam e diagnosticam. A
queda do monumento fálico. O falo falido.
Dialogar com Viril é atravessar as fronteiras do público e do privado e pensar
nas inter-relações. É por meio do corpo exposto e presente, da voz e da ação
performática que o pessoal se torna político. A artista descreve seu manifesto
Viril ou por uma performance queer da masculinidade, como uma dramaturgia
para performance, na qual a voz e a palavra são corpo que interpela o outrx e a si
mesma, como explico mais adiante. Vejo Viril como uma performance-manifesto
feminista não hegemônica, para além do corpo feminino e da feminilidade ou
da categoria “Mulher” com maiúscula, já que isso tornaria difícil articularmos
as múltiplas diferenças que existem entre as mulheres. Mesmo no plural, como
coloca Butler (2010, p. 20), “mulheres tornou-se um termo problemático, um
ponto de contestação, uma causa de ansiedade”. A afirmação de Butler leva-me
a pensar na questão do sujeito em construção − ou desconstrução − já formulada
por pensadoras feministas de diferentes lugares geográficos e posições, mas cujas
teorias e pensamentos convergem em alguns pontos, como a pós-estrutura-
lista Teresa de Lauretis e a feminista decolonial afro-caribenha Yuderkys Espinosa
Miñoso, e que Santos apresenta com Viril: Quais seriam os novos sujeitos atuantes
na diversidade e multiplicidade de lutas feministas? Coloco a pergunta no plural,
pois hoje a singularidade, tanto do sujeito quanto do feminismo não é mais
suficiente nem coerente. Para Lauretis (1994, p. 217), “o sujeito do feminismo”,
primeiramente não só é diferente de Mulher com maiúscula, mas também
diferente de ‘mulheres’, “os seres reais, históricos e os sujeitos sociais que são
definidos pela tecnologia do gênero e efetivamente engendrados nas relações
sociais”. A autora concebe esse sujeito − aqui pluralizado − como não definido,
em processo; é um sujeito que habita duas formas e nelas se contradiz, “duas
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forças”, dentro e fora da ideologia de gênero,1 dentro e fora do grupo denominado


“mulheres”. Esse movimento que, como Lauretis (1994) propõe, caracterizaria
o(s) sujeito(s) que compõe(m) os feminismos plurais, transita entre a represen-
tação de gênero e aquilo que essa representação exclui, ou escapa a qualquer
definição, tornando-a irrepresentável (Lauretis, 1994). Nesse sentido, a partir
da irrepresentabilidade podemos pensar no gesto de autoafirmação ou de
autodefinição composto, segundo Mombaça (2018), por todas as marcas ou
singularidades que um sujeito carrega e que fazem dele um sujeito passível
de ser excluído ou apagado. De forma contraditória − ou complementar − a
autora adverte do perigo da hiperdefinição, que acabaria limitando as áreas de
atuação, assim como os desejos e formas de habitar o mundo do sujeito autode-
finido. É nesse movimento contraditório proposto por Mombaça − e de alguma
forma também mencionado por Lauretis (1994) − que vejo a emergência dos
sujeitos-“chave” dos diversos movimentos feministas de política decolonial,
antirracista, queer, lésbica, bicha, monstra, indígena, racializada. É nesse
movimento contraditório que vejo o sujeito que a artista traz com Viril.

Acho que é um duplo movimento de autodefinir para reclamar o lugar


historicamente apagado, tendencialmente subsumido pelas narrativas
hegemônicas, e ao mesmo tempo lutar contra a hiperdefinição […].
Opero um pouco nessa contradição (Mombaça, 2018).

A autodefinição funciona aqui como estratégia de reapropriação, de


resistência ao apagamento sistemático que a sociedade cis-heteronormativa
branca representa.
E é aqui que encontro um diálogo ou uma sintonia com parte do olhar
feminista decolonial. Lauretis (1994, p. 238) propõe um sujeito do feminismo

1
Em relação ao sujeito do feminismo que de Lauretis vislumbra, estar, ao mesmo tempo, dentro e
fora da ideologia de gênero é pertencer e não pertencer, estar dentro e fora de uma representação.
A ideologia de gênero situa o sujeito do feminismo nesse lugar fixo, em que gênero e sexo (biologia)
se correspondem e não há espaço para outras ficções… Se o sujeito do feminismo estivesse APENAS
dentro da ideologia de gênero, então se estaria falando apenas das mulheres e se estaria afirmando que
as lutas feministas são DE e PARA “as mulheres”, mulheres subordinadas aos homens que lutam, como
no passado, contra a desigualdade de gênero. Isso, sem dúvida implicaria uma volta aos binarismos,
implicaria que o sujeito do feminismo seria constituído apenas de mulheres brancas heterossexuais.
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também presente em outros espaços, tanto sociais quanto do discurso, um lugar


contra-hegemônico, mais marginal, contrainstitucional, “nas contrapráticas e
novas formas de comunidade”. Um sujeito atravessado não apenas pelo gênero
e pela sexualidade, mas também por fatores de classe, raça, etnia, religião etc.
Por outro lado, Espinosa Miñoso (2016, p. 162) afirma, ao abordar a crise
das políticas de identidade, que tanto a virada decolonial quanto o feminismo
antirracista têm contribuído para uma visão crítica do sujeito universal “mulheres”,
“deslindado de seus lugares de referência e origem de classe e raça”,2 pelo que
resultaria praticamente impossível mantermos uma política de identidade antiga,
ou seja, baseada unicamente no gênero. A autora pergunta: Quem constrói a
agência feminista decolonial? (Miñoso, 2016) ou então, quais são os “novos”
sujeitos que permeiam as lutas e os movimentos feministas não hegemônicos?

Como feministas autônomas, desde os anos 90, sabíamos que nossos


interesses não eram comuns às feministas institucionais; e desde o início
deste novo século fomos forçadas a nos perguntar sobre a “naturalidade”
do sujeito “mulheres” do feminismo e os debates entre aqueles que
atribuíam a uma posição de diferença sexual e aqueles que atribuíam a
uma posição que rejeita essa diferença como ontológica, dando lugar
a novas possibilidades de ser mulher ou homem contra a ideia de
dismorfismo sexual (Miñoso, 2016, p. 162.)

Retomando Butler e a ansiedade causada pela configuração ou exclusão


do grupo “mulheres” como sujeito do feminismo, a autora argumenta que “se
alguém ‘é’ uma mulher, isso certamente não é tudo o que esse alguém é” (Butler,
2010, p. 20), porque o gênero não pode mais ser pensado como separado e
sim, na intersecção com as categorias de raça, classe, etnia, sexo, religião etc.
Da mesma forma como Espinosa Miñoso critica as políticas de identidade, para
Butler (p. 22-23) é necessário “repensar radicalmente as construções ontológicas
de identidade na prática política feminista, de modo a formular uma política
representacional capaz de renovar o feminismo em outros termos”. Poderiam
ser esses “outros” termos aquele “outro lugar” em que os sujeitos do feminismo

2
Nessa e nas demais citações em idioma estrangeiro, a tradução é minha.
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são “engendrados” segundo Teresa de Lauretis? E seria esse “outro lugar”, em


parte, um espaço de luta contra o regime heterossexual, um “outro lugar” não
binário e formado por uma multiplicidade de sujeitos trabalhando coletivamente
por um feminismo antirracista e decolonial, como sugere Espinosa Miñoso (2016)?
Em relação aos pensamentos pós-estruturalista e decolonial, Rita Segato
une os pontos de convergência entre ambos em um caminho em que a contramão
e os desvios seriam possíveis e necessários.

O caminho desenhado pelo pensamento pós-estruturalista é também


o caminho de uma política em relação às mulheres, bem como uma
política de descolonização, porque, de fato, o pensamento descolonial
e o pós-estruturalismo têm grandes afinidades, especialmente no que
diz respeito ao modo da insurgência. É o caminho do desmantelamento,
da erosão, do movimento de chão, com pequenos tremores e evitando
o distanciamento das vanguardas (Segato, 2018, p. 51)

A figura que Ana Luisa Santos apresenta em Viril transita pelo desman-
telamento, a erosão e os pequenos tremores citados por Segato. Situada sob o
mesmo “guarda-chuva de identidades genéricas e sexuais” (Segato, 2018,
p. 51), ela rompe com tais categorias de sexo-genêro, ocasionando uma ressigni-
ficação subversiva (Butler, 2010). Um sujeito masculino subalterno performado
por uma artista lésbica de gênero não binário, como ela mesma se autodeno-
mina hoje. Não se trata de uma personagem, mas da performer se mostrando
e se abrindo para a plateia no momento de transição em que se encontra, sem
a necessidade de se tornar algo fixo, naturalizado e imobilizado pelas estruturas
jurídicas (Butler, 2010). O nascimento de Viril e de toda a série de trabalhos
sobre as masculinidades tem como ponto de partida, como escreve Santos em
seu manifesto, poéticas de desconstrução das masculinidades como estratégia
de desarticulação do capitalismo patriarcal ocidental. Eles surgem num período
muito difícil e duro, de crise política e pessoal − e à qual hoje precisamos
adicionar a crise sanitária, a pandemia causada pelo novo coronavírus, que no
Brasil relaciona-se diretamente ao descaso e à necropolítica adotada pelo atual
governo −, de censura às artes, aos artistas e à cultura, de tempos sombrios e
autoritários no Brasil. Conversar sobre o momento atual com a artista foi e
continua sendo especial e relevante. “É um momento, uma sensação de impo-
tência muito forte, de frustração, medo, desespero, de uma tristeza muito grande,
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uma sensação de luto” (Santos, 2018). As palavras de Santos poderiam ter sido
ditas ontem, com a diferença de que, hoje, essa sensação de luto tem se transfor-
mado numa (im)possibilidade. Hoje, no Brasil, viver o luto também não é mais
permitido, não há tempo nem espaço para honrarmos a vida; hoje vivemos um
estado permanente de morte(s) que nos leva a pensar nas vidas e nos corpos
passíveis de ser exterminados pelo sistema. Quem deve morrer? E quem tem
direito à vida? Essas perguntas me fazem sentir que enquanto houver luto, haverá
luta, uma luta conjunta cujas frentes devem ser formadas pelos movimentos
sociais, os feminismos plurais, as artes e a academia.

Vive-se a morte. Não somente a física, do corpo individual, mas a morte


social, coletiva. Colapso do sistema funerário, sepultamento de corpos
em massa e esgotamento da estrutura de saúde pública expuseram a
hierarquização da vida e a subjetivação da morte como forma de
controle dos corpos (Teles, 2021).

As palavras de Santos medo, frustração, desespero, tristeza, a sensação


de impotência e de luto e, adiciono aqui, a enorme falta de perspectiva, misturam-se
com as minhas. Compartilhamos incertezas, dores, perdas e feridas, comparti-
lhamos o privilégio de estar vivas nessa vida hierarquizada e controlada com a
morte, como coloca Edson Teles. Estamos aqui e daqui, do escombro, da ruína,
surgimos e ressurgimos vulneráveis. É daqui que vislumbro apenas um caminho
a seguir: o coletivo, afetivo, afiado e cuidadoso; o horizontal, transversal, da resis-
tência, dos desvios e da re-existência (Segato, 2021), o caminho da dignidade
e da vida, uma vida-virilha.
Dialogar com Viril é, entre outras coisas, enunciar um sujeito masculino
subalterno vulnerável como alternativa para repensarmos o vínculo entre
masculino-macho-violento-viril em nossa sociedade e, ao contrário dessa
configuração tóxica imperante, trazer, fruto de um − ou vários − processos de
desconstrução, a “vulnerável-virilha” como nova figura, como uma das caracterís-
ticas, senão a principal, do que poderia conformar essa nova − outra – masculini-
dade não patriarcal, ficção não violenta, descolonizada. Gosto de imaginar que a
“vulnerável-virilha” poderia ser o movimento que Anzaldúa sugere como urgente
para o novo homem, um movimento lugar vibrante, como Santos propõe. “Preci-
samos de uma nova masculinidade, e o novo homem precisa de um movimento”
(Anzaldúa, 1987, p. 142).
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Mas as vulnerabilidades das masculinidades parecem compa-


recer como um lugar vibrante, um espaço de diálogo, uma
contraimagem, um anticrime. Enfim, as vulnerabilidades como
materiais potentes para a arte da performance.

A figura da “vulnerável-virilha” nasce do jogo de palavras trocadas na


entrevista com a artista para fins deste trabalho, da vontade de encontrar outras
estruturas, ficções, territórios, não territórios, espaços de resistência e potência,
mas potência no sentido de força criadora, inventiva e não de uma brutalidade
(Despentes, 2016) própria do (falso) poder que as masculinidades tóxicas se
atribuem. Finalmente, também nasce da vontade de encontrar outros significados
na linguagem e na ação. Virilha poderia ser o feminino de viril, mas não é. Não
existe a intenção, de forma alguma, de encaixá-la nos códigos binários, pois são
justamente as noções de masculinidade e feminilidade que Santos questiona e
tenta desestabilizar em sua proposta. Esta ficção necessária, a vulnerável-virilha,
nasce no processo de mostrar a vulnerabilidade e de compartilhá-la com outras
pessoas por meio de dois discursos: o da voz e o do corpo, corpo-palavra da
performer no momento da leitura do manifesto.

Para falar das vulnerabilidades das masculinidades ou para


tocar nesse assunto, decidi, para esta ação, compartilhar
algumas fragilidades da experiência de masculinidades que
atravessam o corpo, o desejo e a sexualidade que experimento
agora.

Quando Santos fala de vulnerabilidade e apresenta-se nua, sentada no


vaso sanitário com o computador sobre as pernas, gesto muito masculino e
“gesto do cu” segundo a artista − uma vez que homens sentam no vaso sanitário
apenas para evacuar, raramente para fazer xixi −, percebemos, de um lado,
a inseparabilidade da fala e do corpo que fala exatamente naquele lugar. As
palavras atravessam as pessoas que testemunham a performance e, ao mesmo
tempo, atravessam o próprio corpo, a própria subjetividade em trânsito de Santos,
no momento da ação. Ela é interpelada pela performance, tanto quanto a
performance interpela o outro.
Do outro lado irrompe a potência do próprio discurso com os questio-
namentos e as críticas que ele traz no momento atual que estamos vivendo.
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A tentativa e o desejo de derrubar a masculinidade tóxica com sua virilidade,


próprios do inconsciente colonial-capitalístico (Rolnik, 2018), para ressignificar
a noção de vulnerabilidade como virtude de uma nova masculinidade, em que
frágil e falido tornam-se atributos necessários e urgentes a ser performados. É o
processo de descolonização e despatriarcalização desse corpo, junto ao convite
que a artista faz ao público, de ter a coragem para criar e habitar tais ficções não
violentas, como a “vulnerável-virilha”.
Para Paul B. Preciado (fevereiro, 2014), as categorias identitárias como a
masculinidade, feminilidade, homossexualidade, transexualidade, heterosse-
xualidade etc. são ficções políticas vivas, incorporadas. Todxs nós somos! Somos
o produto de técnicas políticas de normalização do corpo e da subjetividade ao
longo da história. O que Preciado (fevereiro, 2014) propõe, então, é uma
provocação, um movimento de desidentificação e de rebelião coletiva contra
tais ficções políticas, para, logo depois, imaginarmos juntxs outras formas livres
de violência, opressão e exclusão.

A palavra desnuda um corpo nu

Figura 1
Viril, Ana Luisa Santos, 2018
foto: tratasedejose
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Os vestígios de virilidade que habitam a artista são percebidos a partir de


uma ruptura amorosa, afetivo-sexual-lésbica e são expostos ou entregues, pela
fala, num ato de vulnerabilidade e nudez para a plateia. É essa vulnerabilidade,
justamente, que vai funcionar como arma letal doce, capaz de derrubar as bases
sobre as quais se constrói a estrutura violenta do patriarcado que maximiza a
vida e gera em nós a necessidade de estar-sempre-prontos-para… a masculinidade
clássica dominante que Virginie Despentes (2016) considera tão aniquiladora
quanto a feminilidade.

Acredito que essa ideia de funcionamento contínuo remete a


uma das referências da masculinidade no sentido de uma
virilidade perpétua, um Viagra way of life, um modo de excitação
programada e infinita.

Para Santos, tanto a masculinidade e a virilidade quanto a feminilidade


são categorias vulneráveis, e o gênero, ao invés de fortalecê-las, as enfraquece,
“as debilita”, ao colocá-las num lugar fixo, estático. Tecnológica e artificialmente
iluminada, terrorista dos afetos, moradora do entre, a artista desfaz a virilidade
honrando a virilha. Ela reconhece seu lado viril e o vê morrer em um momento
de fragilidade corajosa, desejosa, porque no patriarcado o viril não pode morrer,
mas aqui ela o mata, aqui é possível e é o que ela faz por meio da palavra, da voz,
da fala, da fala criando ruído, interferência sobre o falo.

Como você acessa sua masculinidade? Quando você acessa


sua masculinidade?
Por quê?
Quanto? Para quê?
Por quem?
Compartilho uma experiência subjetiva como um experimento
artístico de articulação de um material pessoal singular.

Aqui a potência da performance está no texto fluindo do corpo da artista −


palavras extensão do corpo, corpo-palavra − na situação em que ela se encontra,
na corporeidade queer ou cuir que traz. É essa imagem da performer e o que ela
afirma ser (ou não ser) no mundo, em diálogo direto com o conteúdo do manifesto,
o que mais me interessa na performance Viril. Não apenas o texto e não apenas a
presença de Ana Luisa, embora esta seja muito potente. São ambos, o corpo e as
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palavras, “palestras-performance, falas-falos, ex-falos, antifalos” (Santos, 2018)


produzidos e vomitados por esse corpo como ação performática. Da mesma
maneira como virilha não é o feminino de viril, a fala não é o feminino do falo,
aqui a fala é um lugar de (re)territorialização, lugar de onde o exercício de
escuta é jogado como um míssil ao público, a fala é aqui lugar de transgressão
que abre caminho para a “vulnerável-virilha” nascer. A fala no lugar do falo?
Não. Não existe aqui usurpação, é conquista de direitos mesmo ou “inverter o
polo (fala-falo) como estratégia queer” (Santos, 2018) ou ainda, nas palavras de
Heloisa Buarque de Hollanda (2018, p. 246), “contestar a divisão autoritária e
excludente do espaço político”.
Paul B. Preciado (2014, p. 21), em seu Manifesto contrassexual, quando
define a contrassexualidade por meio da inversão ou “substituição” do contrato
social por um contrato contrassexual, alega que os corpos passam a reconhecer
a si mesmos como corpos falantes e da mesma forma reconhecem os outros
corpos não como homens e mulheres, mas como corpos que renunciam a
uma identidade sexual fixa e adotam a fluidez. Os corpos falantes flutuam,
o corpo-palavra em Viril flutua. Tive o privilégio de conversar ao vivo com a artista
− não diria que entrevistei formalmente Ana Luisa Santos. Prefiro chamar nosso
encontro de acontecimento performático para o nascimento de uma Vida-virilha,
uma experiência compartilhada, efêmera e marcante. Ali, falamos tanto dos fatos
cênicos − a estrutura da performance, a existência de um texto como parte
essencial da ação − quanto das questões temáticas que permeiam seu trabalho.
A artista refere-se ao seu manifesto como uma “dramaturgia para perfor-
mance”. Como assim? O que seria dramaturgia para performance no caso de
Viril? Santos fala de movimentos ou impulsos que surgem do desejo artístico
de perfurar as linguagens, de torná-las híbridas, um desejo artístico de articular
suas atuações como performer e como escritora. A performance, geralmente,
não é pensada como texto, mas ela trabalha a palavra, o texto como material de
performance, no sentido de pensar a voz como corpo. Para Santos, voz é corpo
na ação performática. Então existe, em Viril, a intenção de fazer a palavra agir,
mas isso não tem a ver com criar um personagem nem com a representação no
teatro. As palavras não são decoradas, apenas lidas com a intenção de afetar
simultaneamente o público e a própria performer. “São as palavras que fazem
performar o corpo, fazem performar a voz” (Santos, 2018). O texto é essencial
na performance de Santos; é devido a seu caráter autobiográfico e confessional
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que a artista aproxima as esferas do público e do privado, a partir de seu


discurso permeado por marcadores de gênero, sexualidade, raça e classe. Aquilo
que histórica e socialmente é considerado íntimo ou pessoal ganha dimensão
política em Viril quando, por exemplo, a artista confessa para a plateia a ruptura de
seu relacionamento lésbico, a sensação de rejeição e de ter sido trocada como
objeto, e os vestígios de virilidade tóxica que a habitam enquanto sapatão.
Nesse sentido, o manifesto da artista, seguindo Bernstein (2001, p. 95) em
seu ensaio A performance solo e sujeito autobiográfico, não é “uma voz isolada
e voltada para si mesma […] funciona como um instrumento público na criação
de um senso de comunidade”, que visibiliza “as diferenças, as dissimilaridades,
as descontinuidades” (p. 102) próprias do sujeito universal − masculino, branco
e europeu − que ela não é. Santos, como “mulher”, lésbica e artista cria uma
identidade coletiva a partir da diferença. O manifesto autobiográfico da artista é
essencial, pois

revela como construção o que é assumido como “natural” ou “biológico”


e neste processo, revela o próprio sistema de representação, o discurso
ideológico por meio do qual alguns sujeitos chegam a adquirir represen-
tação e outros não. É, portanto, somente como identidades-em-diferença
que qualquer identificação é possível e que um sentido de identidade
comunal pode ser alcançado (Bernstein, 2001, p. 103).

E embora o texto seja essencial, não há verticalidade em relação aos


outros elementos presentes na performance, como o corpo nu da artista, o laptop
aberto e apoiado em suas pernas que funciona como iluminação e contém o
manifesto autobiográfico que Santos lê para a plateia. Nesse sentido, e como
coloca Bernstein (2001, p. 93), “são todos elementos da mesma linguagem”.
Para a artista, as palavras modificam quem está testemunhando, então
ela ouve a si mesma e é afetada por suas próprias palavras, interpelada por sua
própria voz, por sua autobiografia.

Recentemente terminei um relacionamento afetivo sexual


lésbico de quatro anos e muitas intensidades. Os motivos da
separação são ético-políticos […]. Essa situação foi muito difícil
para mim porque me remeteu a dimensões de rejeição. A ideia de
que fui trocada é uma armadilha capitalista do afeto em uma de
suas versões mais viris.
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É nesse sentido que Santos propõe a escuta como ação performativa, não
linear, íntima, exposta e entregue. A partir das ideias e reflexões de Santos sobre
a dramaturgia para performance, é possível conectar a ação de potencializar a
voz e a escuta com a dimensão política tão forte que ambas têm hoje. Penso
na voz dos corpos contrassexuais (Preciado, 2014), contra-hegemônicos, não
binários, não machos, racializados, não normativos, penso na voz-corpo das
“minorias” e na dimensão que a voz-corpo da artista ganha em Viril, assim,
queerizada (Jones, Silver, 2017), enquanto tenta descolonizar sua existência por
meio da performance. Viril não é exatamente um discurso, é uma ação aberta
que responde à pergunta sobre quem tem voz, quem pode falar, quem importa.
O manifesto não descreve, nem localiza, ao contrário, ele desloca, ele promove
acontecimentos. “É uma estratégia queer inverter o polo de uma situação. Quem
sempre fala? A coisa do falo, falos-falas […] Neste caso, a fala, a voz não constrói
poder, justamente desconstrói poder, porque parte do fato de testemunhar a
minha vulnerabilidade” (Santos, 2018). Como se observa nas imagens, a artista
entra nua no espaço e sai nua, mas o que acontece a partir do momento em que o
relato ganha mais intimidade e se torna mais pessoal (e também político), é uma
“gradação de nudez”: ela ficou “mais nua”, apesar de já estar completamente
nua. A palavra trouxe a nudez para a artista, a palavra performou a nudez nela,
como se esta tivesse camadas, como se a pele fosse um figurino que pudesse
ser esticado, furado, perfurado graças à potência das palavras e da performance.
Paul B. Preciado (2014, p. 26) fala do sexo e do gênero como um sistema de
escritura e do corpo como um “texto socialmente construído”, repleto de códigos
que são naturalizados. A performance de Santos traz de volta códigos rejeitados
pelo sistema heteronormativo e patriarcal e os recoloca em primeiro plano… e
que ecoam nos espectadorxs. Sua performance-manifesto é repleta de desvios
e rotas alternativas necessárias para a construção de novas subjetividades que
desafiam o regime heterossexual e a colonialidade do gênero. O corpo é a
principal plataforma em que feminismos plurais − queer − são gestados e paridos.

O sistema sexo/gênero é um sistema de escritura. O corpo é um texto


socialmente construído, um arquivo orgânico da história da humanidade
como história da produção-reprodução sexual, na qual certos códigos
se naturalizam, outros ficam elípticos e outros são sistematicamente
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eliminados ou riscados. A (hetero)sexualidade, longe de surgir espon-


taneamente de cada corpo recém-nascido, deve se reinscrever ou se
reinstruir através de operações constantes de repetição e de recitação
de códigos (masculino e feminino) socialmente investidos como naturais.
A contrassexualidade tem como tarefa identificar os espaços errôneos,
as falhas da estrutura do texto (corpos intersetais, hermafroditas, loucas,
caminhoneiras, bichas, sapas, bibas, fanchas, butchs, histéricas, saídas
ou frígidas, hermafrodykes…) e reforçar o poder dos desvios e derivações
com relação ao sistema heterocentrado (Preciado, 2014, p. 26-27).

Figura 2
Viril, Ana Luisa Santos, 2018
foto: tratasedejose
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Vida-virilha ou desvios para uma travessia decolonial-despatriarcalizadora

María Galindo, artista, ativista, escritora e cofundadora do coletivo boliviano


Mujeres creando, assegura que não é possível pensar numa descolonização sem
o importante processo de despatriarcalização uma vez que ambos fazem parte
da mesma matriz violenta e opressora, cuja base se sustenta na opressão das
mulheres e no corpo das mulheres. Para Galindo (2013, p. 97), a relação entre
colonialismo e patriarcado permite-nos compreender essa relação direta
entre o colonialismo e a opressão das mulheres, assim como “os códigos que o
colonialismo introduz no olhar sobre o corpo das mulheres como parte funda-
mental da pilhagem colonial”.
A autora convida-nos a pensar o patriarcado como aquele emaranhado
urgente de ser desmantelado e a despatriarcalização como a ousadia de conce-
bermos a estrutura patriarcal como passível de ser desmontada (Galindo, 2013).
Vida-virilha surge aqui a partir do trabalho e das (des)estruturas saudáveis
que Santos realiza na performance. É o espaço, território ficcional, transfronteiriço
e possível de habitar sob um novo paradigma, uma ordem outra, inversa.
Vida-virilha é a possibilidade após a imaginação e a reimaginação desse outro
mundo que cabe no sonho, que tem lugar nas utopias (Preciado, 2020). A
vida-virilha irrompe fazendo tremer as estruturas patriarcais e implica, a meu
ver, aquele processo de desmantelamento, desmontagem, de desfazer-o-emara-
nhado que Maria Galindo sugere e que cabe a nós como sociedade continuar
(des)tecendo.
Judith Butler (2010, p. 59), em Gender trouble, define o gênero como a
estilização repetida do corpo, “um conjunto de atos repetidos no interior de uma
estrutura reguladora altamente rígida, a qual se cristaliza no tempo para produzir
a aparência de uma substância, de uma classe natural de ser”.
Santos (2018) fala de clichês, do clichê da virilidade, do clichê da masculini-
dade: “o clichê da bota, do coturno, do cigarro, do charuto” e da metáfora contradi-
tória de “fumar os clichês”.3 Digo contraditória porque, nesse caso, a artista diz

3
A frase/imagem “fumar os clichês” pertence à performance solo Espécie, do artista Igor Leal, cuja
dramaturgia tem a assinatura de Ana Luisa Santos.
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ter começado a fumar esses clichês, tanto da masculinidade quanto da virilidade


ao, por exemplo, se afirmar como lésbica, como sapatão, como não mulher.

Era uma autocobrança, um tipo de pressão que eu sentia por


uma interpretação equivocada da sexualidade, do afeto como
um mercado, uma moeda de troca em que eu não poderia ficar
deficitária. Ninguém estava me cobrando isso, mas parecia que
eu tinha uma dívida para com parte da minha sexualidade, talvez
para com a parte da experiência de sexualidade que experimento
e que possui aderência com a masculinidade ou com a parte da
sexualidade que muitas vezes está ligada à masculinidade no
sentido do controle, no sentido do poder, no sentido do preen-
chimento, no sentido da não demonstração da vulnerabilidade
como antivirilidade.

Como lésbica e não mulher? Sim. Quando a escritora Monique Wittig


finalizou sua conferência “O pensamento heterossexual”, em 1978, com a frase
“as lésbicas não são mulheres”, a afirmação gerou confusão, silêncio e contradição,
mas, sobretudo, questionou e criticou o que até então o feminismo não tinha
feito: a heterossexualidade como regime político e as categorias de “homem”
e “mulher” como a ele subordinadas, naturalizadas. Wittig (2006) descreve
a heterossexualidade como um regime político cuja base está na submissão
e apropriação das mulheres. Seguindo-a, portanto, se ser mulher implica, por
exemplo, a subordinação natural a um homem por meio de um contrato matrimonial,
para a preservação da espécie − pensamento heterossexual − as lésbicas não são
mulheres. “Assim, uma lésbica deve ser qualquer outra coisa, uma não mulher,
um não homem, um produto da sociedade e não da ‘natureza’, porque não há
‘natureza’ na sociedade” (Wittig, 2006, p. 35). Para Yuderkys Espinosa Miñoso,
a partir da afirmação de Wittig, uma lésbica é e não é uma mulher, porque é
exatamente ali, nessa matriz, que o desejo abjeto nasce. Se as lésbicas não são
mulheres, são a vontade de criar uma nova ficção, qualquer outra!
Como diria Espinosa Miñoso (2007, p. 8), “um ponto de fuga, uma intuição,
uma borderlands, uma estratégia…?”. Sim, uma estratégia queer. Vida-virilha
é uma estratégia queer.
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Hoje, a partir de Viril e sua proposta de habitar a vulnerável-virilha, talvez


a fumaça esteja no processo de ser exalada num gesto performativo subversivo
de arte-vida.

É uma estratégia queer, também, fumar esses clichês. Como é que eu


performo esse processo queer de transição em que me encontro e que
você também testemunhou? Então é uma performance queer do luto
dessa masculinidade tóxica, desse tipo de virilidade, mas eu também
não sou uma mulher (Santos, 2018).

Talvez a criação da vida-virilha, na qual fragilidade e vulnerabilidade se


posicionam como potências transformadoras, em oposição ao típico masculino viril,
possa ser o lugar para uma das possíveis respostas à pergunta que Butler (2010,
p. 198) formula: “Que tipo de performance de gênero representará e revelará o
caráter performativo do próprio gênero de modo a desestabilizar as categorias
de identidade e desejo?”. Poderíamos relacionar a performance construída pela
artista com a figura do viril falido e da queda com a teoria da performatividade
do gênero de Butler, que afirma que não existem atos de gênero verdadeiros ou
falsos, reais ou distorcidos, para o qual uma identidade de gênero “verdadeira”
seria uma ficção imposta, “reguladora”. E parte dessa estratégia de controle
contemplaria as noções de masculinidade e feminilidade como “verdadeiras ou
permanentes” e ocultaria seu caráter performativo, com todas as possibilidades
de configuração de gênero que emergem nas margens, fora da heterossexualidade
compulsória e da violência machista (Butler, 2010).
A meu ver, a performance-manifesto Viril habita um espaço contraditório
que nos convida a contemplar a existência de possibilidades, de trânsitos e
estratos múltiplos (Segato, 2018, p. 22) que contrastam fortemente “com a maneira
engessada em que nossa ordem de gênero colonial-moderno-ocidentalizado se
encontra”. Viril revela, seguindo as pistas de Teresa de Lauretis (1994, p. 237)
e sua tecnologia do gênero, um “espaço não visível no quadro”, o space off4 que
é iluminado no momento da performance e, também, na vida. Um lugar de ficção
proposto pela artista e compartilhado com xs espectadores.

4
Teresa de Lauretis (1994) tomou a expressão space off emprestada do cinema em seu texto A
tecnologia do gênero.
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Apresento aqui, portanto, os vestígios de masculinidade que me


habitam ou já habitaram. Mas também os vestígios com que
convivi durante toda minha experiência de vida na família, na
cidade, no trabalho, nas artes e em outras formas de relações
sociais.
Como convivemos com as masculinidades?
Em quais aspectos elas se manifestam em nossas vidas? Com
quais imagens das masculinidades precisamos lidar?

A performance de Santos comunica urgências que precisam ser ouvidas


hoje, a necessidade de criação de novos paradigmas, outros saberes, formas de
cuidado e conexão. Viril, poderia se encaixar no Space off das masculinidades,
é o lado vulnerável da virilidade que existe fora do quadro e da norma, que não
pode ser visto (mas é), porque acabaria, de forma letal/doce como mencionei no
início deste artigo, com o monumento patriarcal que ainda permanece enraizado
no nosso inconsciente, simplesmente o contaminaria com sua bela abjeção. Ao
acabar com o monumento patriarcal acabaria, também, com o sujeito Mulher do
feminismo hegemônico? Sim. Porque o sujeito Mulher do feminismo hegemônico
ou civilizatório (Vergès, 2020) obedece a uma lógica patriarcal, colonialista,
racista e heteronormativa de conceber a ordem do mundo, uma ordem que
certamente deve ser removida… como tantas estátuas.

O que define o macho?

“O DNA do Estado é masculino” (Segato, 2018, p. 54) e a história masculina


vem carregada de violências, como nos mostra Rita Segato em seu livro Contra-pe-
dagogías de la crueldad. Nele, a autora elabora uma ampla definição das práticas
violentas que conformam as pedagogias da crueldade, a partir da invasão europeia
e suas múltiplas formas de colonialidade (do poder, do saber e do ser) em nosso
continente, e da instauração do patriarcado, até o presente. Dentro dessas
definições, encontramos a masculinidade clássica − tóxica −, também chamada
de mandato de masculinidade (Segato, 2018), como um dos pontos principais
da “crueldade”, junto com as opressões de gênero, sexualidade, classe e raça
sofridas pelos povos colonizados e, ainda hoje, pelas mulheres, pela população
indígena, negra e LGBTQIA+ na sociedade moderno-colonial latino-americana.
Uma pedagogia da crueldade se dá por meio da normalização produzida pela
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repetição da violência diante de paisagens ou episódios de crueldade, e as


relações de gênero e o patriarcado têm aqui um papel importante. Em relação
às noções de masculinidade e feminilidade e seu caráter fluido ou em trânsito,
Segato (2018, p. 36) sustenta que é a colônia quem cancela essa liberdade e
engessa os gêneros a partir do dimorfismo biológico e que nos povos ameríndios,
“a admissão do trânsito e caracterização de um corpo dotado de genitália
masculina para uma posição social, sexual, e para os papéis e trabalhos femininos
foi e é possível”. Considero essas afirmações muito relevantes e preciosas para
entendermos os alcances da colonialidade do gênero na atualidade e, em conse-
quência, a necessidade de desmantelar o edifício hétero-patriarcal dominante.
As afirmações da autora dizem muito da relação direta ou fio condutor existente
entre as relações de opressão instauradas há pouco mais de cinco séculos no
nosso continente e as violências próprias da estrutura colonial-moderna que
vivemos, o que inclui a colonialidade e a recolonização incessante do pensamento
no Ocidente. E é por isso, principalmente, que ao pensar em descolonização neste
trabalho não posso imaginá-la a não ser como um processo contínuo e longo,
quiçá infinito.
Rita Segato (2018), por sua vez e em concordância com Galindo, alega
que antes da colonização existia patriarcado, mas a ele se refere como um
patriarcado de baixa intensidade dentro das comunidades e povos originários.
Já as sociedades moderno-coloniais se caracterizam por um patriarcado de alta
intensidade. Em oposição ao argumento de Segato e de Galindo, a feminista
decolonial María Lugones (2014) afirma − a partir dos estudos da autora nigeriana
Oyeronke Oyewumi − que não havia um sistema de gênero instaurado antes da
colonização. O patriarcado e, portanto, a noção de gênero no nosso continente são
produtos da colonização. Finalmente, Galindo considera fundamental pensarmos
no patriarcado latino-americano como uma estrutura colonial que estabelece
hierarquias raciais não pelo fato de ele ter vindo com a colonização e sim pela
complexidade de seus mandatos. “Os mandatos patriarcais têm uma raiz tanto
colonial quanto pré-colonial” (Galindo, 2015, p. 40), cuja cristalização na
sociedade são as hierarquias sexuais e raciais.
Continuando com as contribuições de Rita Segato sobre a violência e
toxicidade da masculinidade, como parte essencial das pedagogias da crueldade,
vemos que o mandato de masculinidade associa-se à formação militar, em que é
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necessário demonstrar uma e outra vez que não existem vestígios de vulnerabilidade
alguma, que se tem “a pele grossa e calejada” (Segato, 2018, p. 39), que não
existe compaixão, tornando a capacidade de cometer atos cruéis com pouca ou
nenhuma sensibilidade predominante. Para Segato, a história da masculinidade
é a história da vida do soldado. Nada mais distante da proposta de Santos, uma
reflexão sobre a falência do viril, sobre o fracasso como potência, sobre as
caraterísticas viris falidas nas possibilidades feministas de articulação política
atual. Na vida-virilha uma contrapedagogia da crueldade é fundamental.

Para o macho qualquer perda implica a perda do falo, seja com


dinheiro, com amor, profissão ou influência social. Tudo isso
repercute no homem como perda de autoridade e uma provável
perda de identidade masculina.

Em contraposição às definições sobre o mandato de masculinidade,


Segato projeta caminhos alternativos nos quais a desobediência é não apenas
possível, mas necessária, mediante suas Contrapedagogias da crueldade que
se conectam com as ideias e a figura que Ana Luisa Santos apresenta em Viril.
A contrapedagogia da crueldade é também a contrapedagogia do poder e,
portanto, do patriarcado. Opõe-se ao mandato de masculinidade, cujos principais
atributos são: não sentir, ser distante, desconectar das raízes, universalizar,
burocratizar, coisificar, hierarquizar etc. Uma contrapedagogia da crueldade,
pelo contrário, trabalha em comunidade para fortalecer os vínculos, o cuidado
diante da objetivação da vida. Caminhos alinhados à perspectiva decolonial do
gênero e ao pensamento de estratégias “outras”, não eurocentradas, “indisci-
plinadas”, queer, que apontam para o “desmantelamento da naturalização e o
essencialismo próprios do regime sexual moderno”, como sugere o historiador
Víctor Manuel Rodríguez-Sarmiento (2015, p. 118).
A performance queer da masculinidade que Ana Luisa Santos constrói é
possível graças ao gesto performativo de deixar o viril falido acontecer e ser.
Viril falido, sujeito desarmado que assume a perda e que só naquele estado de
desprovido-de-tudo é capaz de se reinventar e transitar a estação experimental,
ficção não violenta e vulnerável, a vida-virilha. É importante relembrar que quem
propõe, por meio de seu corpo em performance e também na vida, essa masculi-
nidade falida, possui genitália feminina. Não é mulher, nem homem, nem trans,
faz parte da fluidez e das sexualidades mutáveis que Jones aponta em relação
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aos atributos do queer, mas honra seus ovários e seu útero, e é a partir daí, dessa
matriz que ressurge sua força “virilha”.
Para Santos (2018), Viril “é essa queda livre, é falência de todas as
dramaturgias prontas, de todas as expectativas e ilusões, é assumir a perda,
é compartilhar a perda, é imaginar a perda, é acreditar que a perda é mais
interessante como espaço para se (re)começar”. A imagem da artista mostra-nos
o gênero ambíguo, uma constante contradição, ela é a transição, ela é o processo
de sua representação (nunca fixa), ela é o processo de sua experiência de (auto)
descolonização, a partir do estado de vulnerabilidade e de desconstrução dessa
virilidade tóxica. Esse estado de vulnerabilidade, como afirma, não é apenas
dela, “é de todxs” (Santos, 2018). Santos convida-nos a performar juntxs esse
momento, pela construção de estratégias micropolíticas de ação e não tanto de
reação, que é um impulso quando o medo, a frustração, a impotência, a tristeza
e o desespero se juntam, quando a nossa “força vital” (Rolnik, 2018, p. 31) é
capturada. Nesse sentido a artista pensa na importância das atitudes micropolíticas,
por meio da criação artística, fazendo uma inversão e transformando tudo isso
em potência.
A partir do pensamento da perda como espaço de empoderamento e de
criação de “outras”, novas masculinidades, é que podemos pensar em devires,
devir masculinidade ou masculinidades em devir, e o devir não seria outra coisa
mais do que uma versão “outra” de si mesmo, mas real (Deleuze, Guattari, 1997).
Segundo as definições de Deleuze, um devir não é uma cópia nem uma seme-
lhança, nem uma identificação, pode ser um processo de transformação em
plena liberdade, sem fronteiras fixas, sem necessidade de classificação, pode
ser ação, mas não no sentido de produção, de produto, no sentido mais capitalista
do termo. De acordo com isso, me arrisco a afirmar que o devir masculinidade
que a artista propõe com Viril habita a vida-virilha. Vida-virilha é um devir.
Arrisco-me também a afirmar que o devir masculinidade de Ana Luisa Santos
pode ser entendido como a masculinidade “não cafetinada” descrita por Suely
Rolnik (2018), em que a perda, a falência e a vulnerabilidade funcionam como
dispositivos de resistência queer ao “inconsciente colonial-capitalístico” (p. 36),
que hoje está tão violentamente presente. A cafetinagem, segundo a autora, é
o abuso da vida, a apropriação da vida e da força da criação pelo capital. Nessa
nova fase − feroz − do capitalismo, a subjetividade e as novas formas de existência
e de representação são o alvo da exploração e do controle.
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O que pode a performance? E a vida-virilha?

Figura 3
Viril, Ana Luisa Santos, 2018
foto: tratasedejose

A forma de ser e estar no mundo que a performer ocupa, o ser travessia,


em transição, leva-me a pensar na relação entre a arte da performance e
a capacidade de re-existência e de reinvenção da nossa subjetividade. Nesse
caso, a necessidade de apagar signos pesados da imposição colonial e de resistir
ao atual regime de controle e opressão por meio das expressões artísticas é a
proposta de Santos. Desafiar as estruturas de poder e violência durante a ação
e depois da ação. Imagino, então, a performance como ponte descolonizadora
do corpo, em um período de tempo indeterminado. Nesse caso, o corpo da
artista inicia esse processo pela leitura do manifesto ou, mesmo antes, durante o
processo de escrita do manifesto, mas tanto a escrita quanto a leitura diante dxs
espectadores se configuram como práticas políticas de resistência.
Ao tratar da capacidade de exploração e de reinvenção da nossa existência
pelo processo criativo em performance, Guillermo Gomez-Peña (2005, p. 205)
afirma que o corpo deve ser “marcado, passível de intervenções culturais,
repolitizado”.
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Nossos corpos também são territórios ocupados. Talvez o objetivo final


da performance, especialmente se você é mulher, gay ou pessoa “de
cor” (não anglo-saxão), é descolonizar nossxs corpos; e evidenciar
esses mecanismos descolonizadores diante do público, com a esperança
de que eles sejam inspirados e façam o mesmo por conta própria
(Gomez-Peña, 2005, p. 205).

A imagem do corpo como um território ocupado, apresentada por


Gomez-Peña, remete às feridas coloniais e sua atualização contínua, à imposição,
à normatividade, ao mandato de masculinidade. Viril é a possibilidade de
desocupação e, ao mesmo tempo, de reocupação (repolitização) por meio
da ação, da imagem e do texto de Santos; são esses seus mecanismos
descoloniza(dores). A performance permite-lhe masculinidades “improváveis”
(Santos, 2018), uma experiência de e na vida-virilha.
Ao longo da performance, a relação da artista com xs espectadorxs é dada por
meio da leitura desse manifesto cru e afiado, no qual ela não apenas se desprende de
signos viris que a marcaram, e que só foi perceber após o rompimento de seu relacio-
namento afetivo-sexual-lésbico, mas também nos mostra de forma amplificada
o resultado ou as heranças patriarcais. Essas feridas ainda ensanguentadas pelas
quais, como pessoa não binária e fora da norma heterossexual, foi atingida e que
atingem muitxs de nós.
Viril, o manifesto, finaliza com um convite ativo, mobilizador que faz parte
dos trânsitos e “andares eróticos decoloniais” (Ferrera-Blanquet, 2015) e da
revolução feminista atual, necessariamente despatriarcalizadora, inclusiva, plural
e transfeminista. Ana Luisa Santos (2018) convida-nos a abrir mão do controle,
sair do armário com as intimidades e as questões das masculinidades, imaginar
“masculinidades improváveis” e deixa-nos com uma pergunta que estendo aqui
axs leitorxs e que faço a mim mesma, quantas vezes forem necessárias: Qual
contradição você quer habitar?
Qual contradição vocês querem habitar?
Habitar uma vida-virilha coloca-nos diante do desafio de nos pensar como
sujeitos constitutivamente vulneráveis, porque o projeto de vida-virilha só pode
existir enquanto projeto de cuidado, não de poder. Eu e Santos imaginamos,
sentipensamos e vislumbramos que a vida-virilha, ainda que nascendo nas ruínas,
é outra revolução.
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A performer se despede dando as boas-vindas para habitarmos a vida


como travessia, uma vida-virilha. Quem sabe ali, naquela nova ficção, novas
afetividades e formas de cuidado possam surgir entre nós (eu + xs outrxs que
também sou eu).

Sandra Bonomini é artista cênica, performer, escritora e tradutora. Doutoranda


no programa de artes cênicas da Unirio, mestre em performance pela Unirio e
em comunicação social pela UFMG, bacharel em artes cênicas pela PUC-Peru
e pós-graduada em arte da performance pela Faculdade Angel Vianna. Atua
também como curadora em artes da presença na realização de exposições,
residências artísticas, núcleos de pesquisa e criação, e atividades de formação
crítica. Desenvolve trabalhos para teatro e dança, com destaque para dramaturgia
e figurino. É idealizadora do Perfura / ateliê de performance e codiretora
da plataforma O que você queer. Artista indicada ao prêmio Pipa 2017. Vive e
trabalha em Belo Horizonte.

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WITTIG, Monique. El pensamiento heterosexual y otros ensayos. Madrid: Egales, 2006.

Artigo submetido em março de 2021 e aprovado em junho de 2021.

Como citar:
BONOMINI, Sandra. Acontecimento performático para o nascimento de uma
vida-virilha: uma experiência compartilhada. Arte & Ensaios, Rio de Janeiro,
PPGAV-UFRJ, v. 27, n. 41, p. 141-166, jan.-jun. 2021. ISSN-2448-3338. DOI:
https://doi.org/10.37235/ae.n41.9. Disponível em: http://revistas.ufrj.br/index.
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A alma encantadora do Beco ou as crônicas de um


vagabundo: arte drag, performance e urbanidades
Alley’s lovely soul or the chronicles of a tramp:
art of drag, performance and urbanities
Fábio de Sousa Fernandes
0000-0003-1696-4616
fabio.fernandes@ufob.edu.br

Resumo
Este texto é uma escrita-performance, inspirada metodologicamente na escrita rizomática
de Deleuze e Guattari e na proposta de escrita performativa de Peggy Phellan, uma
pesquisa-narrativa que se debruça sobre um espetáculo artístico-cultural de rua, em Salvador
(Beco da OFF, Barra), protagonizado por uma artista drag queen da cidade de Salvador, Valerie
O’rarah: performance propositadamente artificial e encenada, em que se lança um olhar
sobre a noite soteropolitana e aqueles que circulam por ruas, becos e vielas, uma urbe cheia
de contradições, encantos e conflitos. A persona encarnada como narrador é a do flâneur,
vagabundo e errante urbano relido pela poética baudelairiana e experimentada por João do
Rio, Walter Benjamin, entre outros. Esse errante urbano se perde pela metrópole, entre os
fluxos e devires dos encontros e possibilidades de uma noite imprevisível: por um instante e
um descuido, ele se depara e se encanta com o espetáculo e o contempla. O encontro do flâneur
com Valerie O’rarah e essa noite quente e arriscada é uma experiência de choque e de alteridade
radical, identidades que se fragmentam e se complementam na multidão misteriosa e soturna
da cidade de Salvador.
Palavras-chave
Performance; Escrita; Urbanidades; Gênero; Arte drag.
Abstract
This text is a performance writing, methodologically inspired by the rhizomatic writing of Deleuze
and Guattari and Peggy Phellan’s performative writing proposal, a narrative research that focuses
on a street artistic-cultural spectacle in Salvador (Beco da OFF, Barra), starring a drag queen artist
from the city of Salvador, Valerie O’rarah: performance, therefore, purposely artificial and contrived,
it takes a look at the soteropolitan night and those who wander through its streets and alleys,
a metropolis full of contradiction, enchantment and conflicts. The persona being incarnated as
the narrator is the flâneur, a wandering tramp reread from Baudelairian poetry as experienced by
João do Rio, Walter Benjamin, among others. This urban wanderer loses himself in the metropolis
amongst flows and becomings of an exciting and unpredictable night: in a moment of carelessness,
he stumbles upon the spectacle and becomes mesmerized. The flâneur’s encounter with Valerie
O’rarah and that hot and risky night is an experience of shock and radical otherness, identities that
PPGAV/EBA/UFRJ fragment and complement each other in the mysterious and gloomy crowd of the city of Salvador.
Rio de Janeiro, Brasil
ISSN: 2448-3338 Keywords
DOI: 10.37235/ae.n41.10 Performance; Writing; Urbanities; Gender; Art of drag.
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Prólogo – A escritura da Noite: os bastidores de uma escrita-performance

Este texto assume-se como uma performance, propositadamente artificial


e encenado, e o seu título é uma referência à obra de João do Rio, A alma
encantadora das ruas. Esta pesquisa-narrativa e a sua escrita-performance
representam meu olhar sobre um espetáculo cultural de rua, protagonizado por
uma artista da cidade de Salvador; também reflito sobre a noite soteropolitana
e os seres que circulam nesse espaço urbano, urbe repleta de contradições,
encantos e riscos, e sobre a arte drag/transformista.1 A protagonista desse
espetáculo é Valerie O’rarah, personagem que provoca fascínio, mas também
estranheza, impacta com seu corpo e performance, subvertendo noções de
estética e destoando de outras drag queens que buscam incessantemente um
modelo de mulher, segundo padrões cis-heteronormativos de gênero. Seu espe-
táculo impacta espacial, política e subjetivamente: ocorrendo na rua, mais
especificamente no espaço do Beco da OFF, no bairro da Barra, o público se torna
integrante fundamental de uma performance que mistura o humor stand-up e
shows de dublagem.
A persona que encarno como narrador desta escrita é o flâneur, uma
amálgama entre o errante, o vadio, o observador e o caminhante urbano, que se
destaca na poética de Charles Baudelaire (1995), na obra de João do Rio, nos
escritos de Walter Benjamin, mas aqui é tingido de outros tons, ritmos e cores,
tentando se afastar da arrogância e aburguesamento de uma face dândi. Sem
perder o olhar poético de um marginal, experimento intensamente as quentes,
perigosas e sedutoras artérias de Salvador e os seus corpos, perdendo-me pela
metrópole, entre ruas, esquinas, becos e os fluxos e devires dos encontros e
possibilidades de uma noite qualquer. Por um instante, me encanto, contemplo
e reflito sobre o espetáculo de Valerie O’rarah, apaixono-me pelo Beco da OFF,
embriagado pelo impacto da performance, daquela artéria da cidade e do choque
de corpos ali realizado.

1
A dicotomia entre transformista e drag queen, no contexto brasileiro, historicamente se estabeleceu
na distinção entre a primeira ser realizada pelo ator que se metamorfosearia no ideal de mulher estabelecido
pelos códigos do gênero social. A ilusão seria o efeito buscado. A drag queen, no entanto, subverteria essa
intenção de “parecer mulher” apresentando o exagero e a explícita artificialidade. Com o uso cada vez mais
recorrente do termo drag queen, ambas as propostas têm sido situadas nesse termo. Portanto, a partir daqui,
utilizarei os termos drag/drag queen como referência. Para mais informações, consultar Benedetti (2005).
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Aqui eu me monto, sou uma drag: de um narrador, a experimentar a escrita


literária em consonância com uma análise, e de um flâneur que experimenta a
cidade em vez de etnografá-la, participando do espetáculo e da cidade que narro.
A ideia de escrita-performance se inspira em meus diálogos com outros muitos
pensadores que romperam os grilhões de uma escritura-padrão e possibilitaram
outros caminhos epistemológicos e metodológicos, a destacar: Gilles Deleuze e
Félix Guattari com sua escrita rizomática e Peggy Phelan com suas perspectivas
de escrita performativa e irreprodutibilidade da performance artística.
A tinta metodológica desta escrita-performance tece interlocuções com a
noção de escrita rizomática de Deleuze e Guattari (1995), que não intenta produzir
significação, mas cartografar, produzir pela/na linguagem mapas de regiões
que ainda não existem. Diferente de uma raiz, o rizoma se espalha conectando
diferentes modos de codificação, sejam eles nas esferas biológicas, políticas e
econômicas, pois

um rizoma não cessaria de conectar cadeias semióticas, organizações


de poder, ocorrências que remetem às artes, às ciências, às lutas sociais.
Uma cadeia semiótica é como um tubérculo que aglomera atos muito
diversos, linguísticos, mas também perceptivos, mímicos, gestuais, cogi-
tativos: não existe língua em si, nem universalidade da linguagem, mas
um concurso de dialetos, de patoás, de gírias, de línguas especiais. Não
existe locutor-auditor ideal, como também não existe comunidade
linguística homogênea (Deleuze, Guattari, 1995, p. 14).

Uma escrita rizomática pressupõe o deslocamento do signo linguístico, a


abertura para múltiplas conexões com fluxos semióticos, materiais e sociais e
a possibilidade de desmontar, reverter e modificar os caminhos metodológicos
traçados: seu movimento é marcado pelo desejo.
Assumir as rasuras, inconstâncias e multiplicidades das rotas traçadas
é compreender que o narrado aqui é filtrado, mastigado e cuspido por lentes
que não almejam a fidelidade da reprodução. Deparo-me com um espetáculo,
e a escrita sobre essa performance não pretende reproduzi-la, pois o registro,
a documentação e o arquivamento são tentativas reducionistas de emular por
mimetismo a experiência artística. Dito isso, a

performance honra a ideia de que um número limitado de pessoas,


num determinado e específico contexto espácio-temporal, podem ter
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arte drag, performance e urbanidades
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uma experiência de valor que não deixa posteriormente nenhum traço


visível da sua ocorrência. Escrever sobre tal experiência anularia essa
ausência do traço, inaugurada pela promessa performativa. A indepen-
dência da performance em relação à reprodução em massa, em termos
quer tecnológicos, quer econômicos, quer linguísticos, é a sua maior
força (Phelan, 1997, p. 175-176).

A performance provoca a escrita a encontrar um modo de transformar


palavras e imagens supostamente fidedignas em falas performativas, ao dizer
e construir algo diferente dela, em vez de falas constatativas, que tencionam
reproduzir e descrever o mundo.2 Esta escrita-performance é performativa, pois
assume que dizer é fazer, e se arroga um exercício de experimentação artística
contaminando a pesquisa. Pesquisa que se afirma performance: uma escrita que
exercita repensar os modelos de diálogos interdiscursivos e a sua própria criação,
fazimento e composição.
Proponho um mergulho metodológico nos verbos fantasiar e imaginar: no
ambiente da ciência moderna, na universidade-fábrica, eles são vistos com
ressalvas. Nessa universidade do conhecimento técnico, a imaginação, talvez,
seja enaltecida como própria da ciência moderna, mas a fantasia será comparada
ao devaneio, à loucura ou ao delírio improdutivo. Afinal, sem constrangimentos,
quem dirá que não é imaginativo ou criativo? Entretanto, quem poderá assumir
que fantasia? Quem assumirá essa loucura? (Hissa, 2013).
Vislumbro uma análise que é uma narrativa em processo, o tecido de
tramas e personagens filtradas, mas também, vividas e praticadas sob o olhar,
os ouvidos e a pele de um cronista, um pesquisador-narrador, mas também um
performer. Assumir um estilo limítrofe com a narrativa literária faz do meu texto
um projeto político de contestação. É o testemunho do olhar e da experiência
que sobreviveu e ganhou corpo pela palavra escrita nesta sociedade pós-industrial.
A pandemia do coronavírus impediu que ocorressem a cultura e a arte, promo-
toras por excelência do contato, da aglomeração e da interação. Este trabalho é,
portanto, uma fotografia quase envelhecida de outro tempo, cuja experimentação
urbana ocorria com menos sanções.

2
Peggy Phelan (1997) refere-se aqui à teoria dos atos de fala, de John Langshaw Austin (1990).
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Meu mergulho na cidade, meu encontro com a Valerie O’rarah e com o


Beco da OFF foi dividido em dois atos e suas cenas, parodiando o roteiro de uma
peça de teatro ou cinema. Durante a narrativa, emergem flashes (marcados pelo
uso de colchetes) que performam o espetáculo da Dama do Beco. No primeiro
ato, minhas errâncias seguem o fluxo da Noite e da cidade de Salvador. No
segundo, ocorre meu encontro com o Beco e sua protagonista. Qualquer noção
rígida e unidimensional de tempo é descartada aqui: as narrativas de origem
são questionadas, e toda a trajetória se torna uma epifania não somente nos
denominados flashes.

Ato I – As errâncias de um vagabundo: desliando por ruas, becos e vielas


da experiência flâneur

Cena 1 – Entre déjà-vu, encontros e o percurso de uma Noite

Por que eu paro dentro, sob e entre esse viaduto na cidade de Salvador
para observar luzes amarelas, inconstantes e fugidias produzindo efeitos visuais
nos grafismos de seus muros? Meu olhar capta a frase “Enquanto eu tô no
tráfico, o filho do boi tá surfano” e, embaixo dela, uma sereia, ser mitológico
que representa para alguns a angústia de uma não humanidade, o desejo de ter
pernas, traduzido em um corpo possível, uma ânsia por ser/existir. Tão linda, tão
tola... e eu aqui sorrindo para ti, fazendo coisas com palavras, pensando tolices,
retina hipnotizada por faíscas fugazes. Vejo apenas luzes, grafites, tráfico e
sereias em um túnel no Centro da cidade. (Re)vejo naquela sereia outra dama,
me transporto a um beco da cidade, ele mesmo um palco, em cenas que escapam
de minha memória, mas se espalham em déjà vus fluidos e inconstantes:

[Brilhos de pedrarias douradas e vermelhas, dentes de felinos e pequenos


cocares, miçangas, penas e palhas misturadas ao longo cabelo cacheado
compõem a extravagância, o exagero e o drama que vazam daquele corpo.
Vestido longo, vermelho, joias grandes, muitas pulseiras, olhos felinos, lábios
sinuosos, pintura de padrões africanos: deusa, guerreira, rainha de ébano?
Quem era aquela mulher? Naqueles olhos enormes, uma expressão de dor, um
lamento fortalecido pela dublagem da música “A loba” (2001), famosa na inter-
pretação da cantora Alcione. Em uma das mãos o microfone; da outra, os dedos
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Figura 1
Montando-se, frame do
filme Âncora do marujo
Disponível em: https://www.
facebook.com/filmeancorado-
marujo/photos /a.246625542
157835/253988738088182
Acesso em 14 mar. 2021
Fonte: página do Facebook
do filme Âncora do marujo

rasgando o ar com gestos fortes que se unem àquela melodia, interpretação


visceral... as luzes, a brisa da orla, o público absorvido. Ela se move de um lado a
outro, mas de qualquer ponto daquele beco se enxerga a força e a dramaticidade
de sua face, mãos, um corpo entregue à canção... “Sou doce, dengosa, polida/
Fiel como um cão/Sou capaz de te dar minha vida/Mas olha, não pise na bola/Se
pular a cerca eu detono, comigo não rola/Sou de me entregar de corpo e alma na
paixão”. Paixão, talvez essa seja a palavra que possa nesse momento, com todas
as limitações da linguagem e de seus signos, expressar algo. Eis porque cínica e
sedutoramente ela enuncia: “Debaixo da pele de gata/Eu escondo uma loba”. É
impossível encerrar determinadas experiências em palavras. Saio daquele túnel,
sigo meu percurso lembrando-me de seu sorriso a ecoar no final da perfor-
mance e os aplausos apenas enunciam o silêncio em que me encontro. Aqui.
Pelas ruas da cidade.]

Faço leituras-emendas, apenas as bestagens de um sujeito embriagado.


Esse estado etílico faz vibrar no meu corpo tantas ideias contraditórias, desejos
e impulsos: não entendo um mundo sem o efeito entorpecente-libertador de
vinhos, cervejas, canções, licores, elixires, lisérgicos, poesias e outras substâncias.
Em uma linha que vai da mentira à confissão, cruzando o desejo narcisista de
falar de si ao reconhecimento da impossibilidade de exprimir uma “verdade” na
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escrita (Klinger, 2008), não pretendo esboçar alguma espécie de biografia ou


memória, descrição que finge autenticidade. O meu relato talvez seja a versão
de outra versão, uma tradução sem original, propositadamente encenada e
artificial, performática.
Não existe por trás desta narrativa sujeito ontológico algum, mas a cópia
de alguma cópia perdida nos confins de experiências que se entrecruzaram em
algum momento. Este é o conto de um vagabundo, desocupado, desviado, hedo-
nista, perverso, um incompreendido. Sou boêmio, errante, contador de histórias,
bêbado. Bicho solto. Sou flâneur. Lembro-me precariamente de ter vivido o caos
de um mundo pós-industrial: as grandes cidades e a sua apatia, a homogeneidade,
a privatização dos desejos e a “despersonalização” de uma sociedade em que as
novas vivências coletivas borravam individualidades, singularidades.
Sair de casa, sair de si: eu faço a travessia para o espaço público e incorro
no risco do confronto com o inesperado, pois a articulação urbana das metrópoles
funciona com uma cadência e uma sedução corporal atraente e imprevisível.
O céu envenenado pela lua incide com um tom amarelado e intenso sobre a
cidade, contrastando com a iluminação irregular de postes e carros que passam
esporadicamente. Um grupo de jovens rompe o pequeno silêncio da grande via,
passa por mim rindo alto, ao ritmo de álcool, música e abraços, comemorando
como se recentemente livre de grades e paredes. Uma moça me entrega um
sorriso e passa a mão por meu rosto. Penso imediatamente no clichê dessas
cenas. Também sorrio. Amo ir para a rua, experimentar a passagem do público
ao privado, o deslizar dinâmico que ocorre com um teor erótico – essa experiência
urbana é um contínuo entre ser e estar solitário na multidão, saber preencher de
seres e vivências “tangíveis” a experiência da solidão, pois

a experiência corporal do flâneur dentro da multidão surge como um


novo e enorme campo de experiências, prazeres e possibilidades:
gozar ou se embebedar do anonimato, tomar um “banho de multidão”,
se perder ou se encontrar no meio de desconhecidos, sentir-se só no
meio de tantos outros diferentes, se desorientar no meio de tantas
pernas, diminuir o próprio passo, sair do ritmo uníssono da turba, ir
mais devagar para forçar desvios, esquivas, deslocamento de ombros,
olhares passantes, toques errantes, encontros de mãos, arrepios de
pele, fricções de braços, empurrões, cotoveladas, trombadas, diversos
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tipos de contato carnais fugazes, dos mais violentos aos mais afetuosos,
com tantos e variados corpos incógnitos. A experiência errática, a relação
do errante com a alteridade se dá aqui de forma anônima, mas corpori-
ficada. A experiência errática seria então um exercício de afastamento
voluntário do lugar mais familiar e cotidiano, em busca de estranhamento,
em busca de uma alteridade radical (Jacques, 2012, p. 72-73).

Cena 2 – Devir-flâneur: cidade-corpo, espaço finito, experiências infinitas

Experimentar Salvador é percebê-la, tocar seu corpo repleto de membros


espalhados e fragmentos diversos em busca de forma. A cidade é um corpo
alterado pelo constante, intenso e às vezes doloroso contato com uma miríade de
outros corpos realizando trajetórias infinitas, sua configuração é marcada pela
descontinuidade e ruptura de ritmos inerentes ao percurso dos que se aventuram
nela; afinal

a cidade não se abre para o infinito, ela não desemboca numa linha de
horizonte, numa paisagem desdobrando-se ao infinito, ela é um espaço
finito que torna possível uma experiência infinita, a começar por aquela
da caminhada que gera a imaginação e a invenção (Mongin, 2009, p. 77).

Os territórios que ocupamos são (re)elaborados por existências heterogêneas


e marcadas pela diversidade de estilos de vida e representação. As identidades
consideradas marginais, os vagabundos, as putas, as bichas, as sapatonas, as
travestis, os sem-teto, rompem explicitamente muitas normas, dilacerando
algumas coreografias repetitivas das normatividades e desviando certos meca-
nismos dos dispositivos de poder, pois seus corpos e existências questionam,
rasuram os modelos predeterminados de humanidade. Mesmo fragmentados e
dispersos, esses sujeitos participam de redes de sociabilidade em movimentos
de desterritorialização em relação aos códigos performativos, criando outras
normas – que podem ser tão perversas e redutoras quanto as hegemônicas.
A Noite e todos os seus signos sempre provocaram nos sujeitos combinações
de fascínio e medo, paixões ardentes e terrores misteriosos. Uma amálgama de
sensações conflitantes, mas dependentes de si como um vício. É nas ruas, becos
e vielas que surgem as experiências marginais a povoar o imaginário dos que
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temem e evitam a experiência do choque urbano e invadem as entranhas daqueles


que ousam praticar a cidade (Certeau, 2013). Benjamin (2000) contou-me que
ao vivenciar o choque com a cidade, seus perigos, brilhos, imagens, sons e cheiros
não se deve deixar dominar-se pelo excesso de estímulos – ou o trauma, sob
uma perspectiva freudiana –, mas sim exercitar outras formas de perceptibilidade,
ao ampliar e plurificar os sentidos e a consciência. Desse modo, escapa-se do
risco que incide em um estado anestésico e alienante.

Figura 2
Valerie
Fonte: Oliveira, 2012

[Começa agora a batucar um samba, o público reage instantaneamente. A


Dama do Beco abre um sorriso enorme — ela parece querer engolir a plateia.
A música: “O neguinho e a senhorita”, composição de Noel Rosa de Oliveira e
Abelardo da Silva, na voz da gloriosa Elza Soares (1965). Dançando e interpretando
intensamente a canção, sua energia parece contaminar o Beco, passando por
entre mesas, cadeiras, pessoas em pé. Uma bicha mais que fechativa levanta e
começa a sambar intensamente, sozinha ao fundo... não demora muito para a
performance ecoar por todo o Beco, a ponto de ela ser chamada ao palco, sob
os gritos do público. Ela brilha ao lado da Dama, sambando entre melodia e
versos contagiantes: “Senhorita foi morar lá na Colina/Com o Neguinho que
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é compositor/Senhorita ficou com nome na história/Agora é a rainha da escola/


Gostou do samba e vive muito bem/ela devia nascer pobre também”. O espe-
táculo se expande a todos naquele momento em especial, em uma potência
integradora e catártica. Os aplausos e sorrisos são ainda mais intensos quando
um show se abre para o inusitado, é rasgado em seu próprio processo. Essa e
outras muitas lembranças continuam a ecoar magneticamente em mim, mas a
noite segue, palpita com mais intensidade à medida que me aproximo do Beco,
da Dama e me esbarro naquela multidão que flerta intensamente comigo. Não
há por que resistir; mas por que me sinto tão angustiado, inquieto e inseguro?]

Flanar é como se perder, sentir masoquistamente medo da desorientação,


coração acelerado com o risco de dobrar cada esquina, ao sinal de um vulto,
nas frágeis luzes de postes ou de algum veículo bêbado. Desterritorializar-se de
si mesmo, essa é a dinâmica da flânerie, expandindo-se espacial, temporal e
subjetivamente, experimentando outras formas de sentir, viver, ser, devir:

ocioso, caminho com uma personalidade assim contra a divisão de


trabalho que transforma as pessoas em especialistas. A flânerie se
baseia, entre outras coisas, no pressuposto de que o fruto do ócio é mais
precioso que o do trabalho. Como se sabe, o flâneur realiza “estudos”
(Benjamin, 1989, p. 50).

Meu olhar atento, de detetive, busca no ordinário aquilo que escapa, coisas
diferentes do que veriam as multidões a circular pelo mesmo espaço. Palavras
lançadas ao acaso, fisionomias, borrões de gente, ruídos aparentemente insigni-
ficantes compondo em mim uma harmonia dissonante e atraente.
Sinto o percurso desta Noite se aproximando daquela dolorosa linha, em
que o sujeito se vê acuado, tenso, como no prazer de tocar a si, masturb(ação)
com dentes e unhas, the point of no return. Caminhando pela orla, chego ao Beco
da OFF, e o meu confronto com esse espaço e com a Dama me convida a (re)
examinar o meu próprio corpo, suas bordas, as muitas possibilidades de reconhe-
cimento, identificação. Meu olhar sobre a Dama do Beco estaria coadunado ao
projeto moderno de “glamourização das margens”, à etnografia urbana realizada
por uma elite dândi que, a distância, fotografa, fetichiza e coloniza essas mesmas
margens que frequenta? O discurso sanitarista de espetaculização das cidades
na modernidade impõe uma estética, expulsa os mais pobres dos centros, mas
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também cria o espetáculo da pobreza, sempre pronto a ser apreciado por lentes
privilegiadas. Realizar esses deslocamentos é um contínuo processo de devir
que estimula reflexões sobre si, sobre o outro, sobre o mundo. É como ser um
flâneur dentro de si mesmo, um “colecionador de sensações da cidade grande,
um sonhador de imagens, de desejos e fantasmagorias” (Bolle, 2000, p. 71), um
errante urbano em sua fuga para a Noite e suas inúmeras possibilidades. João
do Rio, meu companheiro de vagabundagem, refletiu poética e intensamente
sobre o espaço da rua e da cidade, seus personagens e mistérios. Porque

flanar é ser vagabundo e refletir, é ser basbaque e comentar, ter o vírus


da observação ligado ao da vadiagem. Flanar é ir por aí, de manhã, de
dia, à noite, meter-se nas rodas da populaça, é estar sem fazer nada
e achar absolutamente necessário ir até um sítio lôbrego, para deixar
de lá ir, levado pela primeira impressão, por um dito que faz sorrir, um
perfil que interessa, um par jovem cujo riso de amor causa inveja. É
vagabundagem? Talvez. Flanar é a distinção de perambular com inteli-
gência. Nada como o inútil para ser artístico. Daí o desocupado flâneur
ter sempre na mente dez mil coisas necessárias, imprescindíveis, que
podem ficar eternamente adiadas (Rio, 2008, p. 31).

Flanar é ser livre o suficiente para seguir caminhos e rotas não determi-
nados por regras rígidas, mas sim pelo prazer da liberdade e da descoberta: não
somente de espaços novos, mas principalmente de sensações, prazeres e
vivências. O flâneur personifica forças transformadoras, questiona paradigmas
e cria novas ordens (Bernd, 2007). Pensar em uma positiv(ação) da experiência
da vagabundagem beira a impossibilidade, sobretudo em um mundo cujos
mecanismos de produção e consumo são naturalizados e constituem os sujeitos.
No entanto, insistir nesse projeto, mesmo diante de processos de marginalização,
pode desestabilizar as pretensas verdades sobre a existência. Flanar é se distinguir
vagando, errando criativa e artisticamente.
A cidade de Salvador, o Beco da OFF e sua Dama me desestabilizam, me
excitam a ressignificar a experiência flâneuse, performar outras experiências e
ao mesmo tempo refletir sobre a “montagem” que me constitui e seu modo de
vazar por meus poros, despedaçando o sujeito estabilizado, encerrado em
fórmulas.
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[As luzes se acendem sobre Valerie O’rarah, e ela deseja boa noite a
todos os presentes. Quinta-feira. Nesta noite quente de verão, seguinte ao dia
de Iansã, a Dama do Beco exibe em seus braços pulseiras douradas, assim como
imensa quantidade de joias adorna seu busto, pedrarias de ouro na testa,
cabelos negros cacheados e flores vermelhas indo até o pescoço: vermelhas
como a cor de sangue de seu vestido rodado, de cigana misteriosa, oblíqua, com
seus olhos intensos, marcantes. Não há como não se impactar com aquela
imagem tão grandiosa, a escapar por todos os lados, como o vermelho que ruge
de seu corpo. Com microfone em mãos, ela conversa com muitos ali presentes;
com uns, brinca de seduzir; zomba de outros; faz sua gargalhada irradiar: seu
cinismo impiedoso, seu humor provocativo... o show está apenas começando.]

Figura 3
Pombagira
Disponível em: https://www.
facebook.com/photo.php?fbi-
d=492391924220617&se-
t=t.100001724516724&-
type=3
Acesso em 14 mar. 2021
Fonte: arquivo pessoal de
Valerie O’rarah
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Ato II – A Dama e o Beco: trânsitos, máscaras e performances

Cena 1 – Desmontando a Dama: transcendência, corporific(ação)


e performatividade

A música cresce, o show se inicia, o leque se abre, a Noite se despe mais


uma vez diante de mim. Eu, errante, desafiado e seduzido por essa cidade tão
caótica e fascinante, violenta e ao mesmo tempo terna, deparo-me com esse
espetáculo que desponta na noite soteropolitana. O Beco da OFF (bairro da Barra),
local bastante conhecido pelo público LGBTQI, teve suas noites de quinta-feira
transformadas pelos shows da artista drag queen Valerie O’rarah. Com a estreia do
seu espetáculo no bar Creperia La Bouche, o Beco passou a ser vivenciado como
um cruzamento de experiências intensas que convergiam no átimo de uma noite.
Há uma multidão que se reúne em torno de uma protagonista, seria ela a
Noite ou a Valerie? As duas se unem em uma combinação de sofisticação, exa-
gero, humor, magia. Ambas provocam abjeção, estranheza e, por conseguinte,
fascínio. Quem é essa multidão? Quem é Valerie O’rarah? Esse palco operaria no
sentido debordiano de espetáculo, isto é, um simulacro que ilude, ao mesmo
tempo em que esconde as misérias de uma sociedade desigual? O que esse
show comunica à própria Noite, à cidade e aos seres que nela se chocam?
São muitas as histórias convergindo naquele espaço, uma narrativa em pleno
desenvolvimento, um pano de fundo de contos que se misturam no tecido de
um evento e seus protagonistas: Valerie O’rarah, seu público e a Noite. O Beco
não é fechado, vaza em suas múltiplas entradas e saídas, imiscuindo-se com a
orla, o mar e os seres que transitam pelas ruas da cidade, no ritmo difuso entre
o acender e o apagar de suas luzes.
O espaço da rua em Salvador é um lugar de contradições: ameaçador e
encantador ao mesmo tempo, de vida dura e de fortes emoções, de sentidos que
se complementam, se misturam e se confundem. O que acontece nas ruas faz
sentido principalmente para quem a vislumbra e vivencia, pois

a cidade é o lugar da multidão. De um lado, ostentação, de outro a transpa-


rência da miséria. Nas ruas, os abastados se defrontam e se confrontam
com os miseráveis vindos de bairros distantes, despejados nas portas
das fábricas ou das casas comerciais. Esse encontro entre cordialidade
e agressão, se transforma em espetáculo (Couto, 2008, p. 70).
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Assim é o Beco da OFF, assim é o bairro da Barra também nas noites de


quinta, nas noites da artista Valerie O’rarah, nas noites dos que se entregam
a ela: uma mistura que inclui bichas fechativas, passantes, clientes dos bares,
flanelinhas, ambulantes vendendo chicletes e cigarros, os michês e as putas.
É ali nessa multidão que a miséria encontra a ostentação, que a ostentação
flerta com a miséria, ambas fascinadas uma pela outra, como se buscassem
uma completude, uma simbiose impossível. O Beco é plural em vivências, um
original ponto de intersecção de sujeitos, de percepções, de tendências, enfim
de ritmos.
Em Valerie O’rarah há uma predileção pelo inatural, exagerado e artifício
que transbordam em sua superfície de drag queen e performance camp.3 A
montagem baseada em uma estratégia de excessos apontaria os recursos de
funcionamento da performatividade de gênero, sub-repticiamente apagados e
naturalizados. Assim, a drag expõe e questiona a “verdade” interna da femini-
lidade, considerada pela psicanálise uma disposição psíquica ou um núcleo do
“eu”, e sua “verdade” externa, a aparência e/ou a representação. Os gêneros
seriam performativos, haja vista que eles são o efeito da cis-heteronormatividade,
regime que regula, divide e hierarquiza de forma coercitiva gênero e sexualidade.
A representação drag buscaria então um “eu” perdido, suprimido e impedido
pelas normas? Sua performance seria a metáfora da tentativa de negociação
com outros gêneros (textuais e sociais)?

O que se põe em cena com a drag é, sem dúvida, um signo que não
é idêntico ao corpo que representa, mas que não pode interpretar-se
sem esse corpo. O signo, entendido como um imperativo de gênero –
“É menina!” – não é interpretado tanto como uma atribuição, mas sim
como uma ordem que, como tal, produz suas próprias insubordinações
(Butler, 2002, p. 13).

Questionar, desnaturalizar, romper. Vejo o que vejo? Sinto o que sinto? Sou
o que sou? Esse sistema sexo/gênero tenciona produzir “homens” e “mulheres”

3
O camp é um estilo de humor com base no escracho, com um tom vulgar, ultrajante e artificial.
Sontag (1987) amplia esse conceito e o relaciona à formação de identidades, estéticas e vivências.
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inacessíveis, ou seja, hiperbólicos. Não escolhemos essas representações, mas


as rasuras e falhas do próprio sistema oferecem a possibilidade de negociação,
posto que o seu conjunto de normas não é automaticamente eficaz, deixa
lacunas, vaza incoerências e, por isso, tais representações precisariam sempre
ser reforçadas:

A performatividade de gênero/sexualidade não consiste em escolher


de qual gênero seremos hoje. Performatividade é reiterar ou repetir as
normas mediante as quais nos constituímos: não se trata de uma
fabricação radical de um sujeito sexuado genericamente. É uma repe-
tição obrigatória de normas anteriores que constituem o sujeito, normas
que não podem ser descartadas por vontade própria. São normas que
configuram, animam e delimitam o sujeito do gênero e que são também
os recursos a partir dos quais se forja a resistência, a subversão e o
deslocamento (Butler, 2002, p. 7).

A drag seria a promessa crítica que se relaciona com a proliferação de


gêneros e a exposição do fracasso na regulamentação e contenção dos corpos e
subjetividades por meio de uma produção forçada, um procedimento obriga-
tório, mas o gênero é “uma atribuição que não se realiza plenamente de acordo
com as expectativas, cujo destinatário nunca habita plenamente aquele ideal
que é obrigado a se aproximar” (Butler, 2002, p. 7). Valerie O’rarah seria dema-
siadamente exagerada, hiperbólica? Então, ela seria uma paródia das próprias
normas desmesuradas que são impostas e naturalizadas pela cis-heteronormati-
vidades. Portanto, a drag queen, em vez de ser somente um paradigma de repre-
sentação do gênero, desmantelaria pelo excesso noções unívocas de identidade
e a presunção de universalidade (cis)heterossexual. Há na montagem drag, uma
exacerbação do figurino, cabelo, maquiagem e da performance, com a presença
de signos relativos a características surreais:

o corpo montado de uma drag pode ter asas como as de um dragão,


possuir seios, ter chifres, cabelos com as cores e os formatos mais
diversos ou até mesmo ser careca; utilizar figurinos e adereços extrava-
gantes, saltos gigantescos; seus olhos podem ser marrons, vermelhos,
violetas ou de qualquer outra cor (Coelho, 2012, p. 55).
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Vestidos, perucas, unhas “postiças”, cola, adesivos, hormônios, pedrarias,


brincos, colares, pulseiras, silicones, lentes de contato, seios de enchimento,
saltos e implantes de cabelo nos impelem a questionar o caráter de artificiali-
dade que há nos corpos e identidades sexuais e de gênero de todas as pessoas.
Valerie O’rarah é ora uma tigresa, uma iabá, uma pombagira, uma diva, uma
rainha africana e muito provavelmente será tantas outras amanhã: camaleônica,
ela transita, rasura e costura categorias identitárias.

Figura 4
Dama
Fonte: Valverde, 2012

[“Não mexe comigo, que eu não ando só, eu não ando só, que eu não ando
só. Não mexe não! / Eu tenho Zumbi, Besouro, o chefe dos tupis, / Sou tupinambá,
tenho os erês, caboclo boiadeiro, / Mãos de cura, morubichabas, cocares, arco-íris,
/ Zarabatanas, curare, flechas e altares. / À velocidade da luz, no escuro da mata
escura, o breu, o silêncio, a espera. / Eu tenho Jesus, Maria e José, todos os
pajés em minha companhia, /O Menino Deus brinca e dorme nos meus sonhos, o
poeta me contou”. A “Carta de amor”, de Maria Bethânia (2012), música que narra
a saga épica, epifânica e mística de uma mulher forte e guerreira enfrentando
inúmeros desafios é aqui in(corpo)rada com toda a intensidade e força que
emanam de Valerie O’rarah. Cada palavra é enunciada com o impacto, a força e o
corte afiado de uma faca amolada. Seu corpo se move ora suave e delicado, nas
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partes em que a música é declamada, ora com a energia, o vigor e a fúria de uma
amazona, em seus refrãos intensos e agressivos. A interpretação e as expressões
dela são proferidas com o drama peculiar a um manifesto. A última frase desta
carta anuncia a belicosa, porém doce e tenra, resiliência daquela persona que
se espalha pelo palco, dominando, incendiando-o, como uma bruxa pagã: “Sou
como a haste fina, que qualquer brisa verga, mas nenhuma espada corta”.
Valerie O’rarah parece se agigantar no palco a cada performance. Corpo, dança,
expressão facial, execução precisa. Produção de produção.]

Cena 2 – Uma pílula de felicidade: a cidade, a arte e a Noite em deriva

Uma ventania dispersa minha atenção, olho para a orla e vislumbro o céu
iluminado por uma lua inchada a ponto de explodir. Saio do Beco, atravesso a rua,
desço até a praia, a pensar em ontologias, máquinas, próteses. A areia parece
infinita, o desejo é o de começar a contar grão por grão; meu corpo fragmentado,
eu-escrutinado, examinado, (des)montado. Minha montagem-flâneur refletindo
não em espelhos, mas em superfícies opacas, quebradas, assimétricas.
O modelo de cidade grande e metrópole pode ser o lócus ideal para aqueles
que são empurrados para as margens da existência, isto é, o “vale da abjeção”.
Os corpos dissonantes à cis-heteronormatividade sofrem desde muito cedo a
injúria, o insulto contra a inadequação às normas de identidade sexual e de
gênero, um repúdio fortalecido por relações de poder balizadas pela linguagem.
Na prática, ela possui o poder de ferir, causar vergonha profunda e produzir uma
consciência que será elemento constitutivo de corpos e subjetividades, pois é
também um enunciado performativo. As grandes metrópoles e capitais sempre
foram consideradas refúgios para quem é rotulado como um ser abjeto; nelas,
estão a possibilidade de acolhimento, a fuga da injúria e da violência vividas em
cidades menores ou mesmo em ambientes familiares. Esses lugares são o símbolo
maravilhoso de uma liberdade que fortalece o mito de uma “Terra Prometida Guei”:

a cidade é um mundo de estranhos. O que permite preservar o anonimato


e, portanto, a liberdade, no lugar das pressões sufocantes das redes de
entreconhecimento que caracterizam a vida nas cidades pequenas ou
nas aldeias, onde cada um é conhecido e, portanto, reconhecido por todos
e deve esconder o que é ainda mais porque se afasta da norma. Mas a
cidade é também um mundo social, um mundo de socialização possível,
e ela permite superar a solidão tanto quanto protege o anonimato
(Eribon, 2008, p. 34).
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A alma encantadora do Beco ou as crônicas de um vagabundo:
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Logo, a fuga para a cidade não é somente um percurso geográfico ou um


meio de obter acesso a parceiros em potencial. É também a possibilidade de
redefinir a própria subjetividade e de reinventar identidades, apesar de a urbe
também representar o perigo da violência, a solidão, a claustrofobia, o temor
com o risco da transmissão de doenças. A cidade é ao mesmo tempo o lugar
das solidariedades e o da abjeção; fugir para ela é ter que aprender a viver sob o
medo das agressões e dos muitos sistemas marcados pela hostilidade.
Risos, abraços, bebidas, cigarros, beijos. Peles se tocando, olhares se
encontrando. Um caos de sensações. Há no Beco da OFF uma micropolítica da
afetividade: em espaços como esse, eu pude conferir que os sujeitos não apenas
interagiam, mas produziam subjetividades, afetos e momentos para além da
noção de puro entretenimento. Os laços que atraem as pessoas não heterosse-
xuais e/ou de gênero inconforme a esses lugares se relacionam com a possibi-
lidade de existir para além de um mundo sufocante e que enseja te enquadrar
em modelos de existências, em padrões de normalidade. Mais do que isso: ao
aproximarem-se, essas pessoas se humanizam, se identificam e, principalmente,
resistem. Resistir não é fácil: esses lugares sempre foram e ainda são alvos do
asco social, do rótulo da lama, da sujeira, da repressão e das batidas policiais.
A apropriação que o Beco da OFF faz da cidade se relaciona com a ideia de
engolir o urbano e cuspir outra coisa. Política de invenção. Ele é um espaço que
produz outros vínculos de amizades, novas sociabilidades ou, expandindo essa
noção, novas parentalidades. Esse espaço é um corpo-flâneur, artéria que salta
de um organismo e atravessa outros, indefinidamente. Nas noites de quinta-feira,
essa potência pulsava no corpo-drag de Valerie O’rarah e em sua performance a
mover o Beco, ao passo que ela é também movida pelo Beco, amálgama tirânica,
afetuosa, errante.
O instante do show de Valerie O’rarah no Beco da OFF é uma pílula de
felicidade, pois acende despretensiosamente, mas com fulgor, inúmeras sensações.
É uma paródia subversiva de fármacos, lisérgicos, alucinógenos. Potência
ingênuo-explosiva, cínica. Efeito embriagante que não pretende substituir outras
substâncias e nem se opõe a elas. Se a ideia de felicidade foi apropriada pela noção
de compra e consumo, na micropolítica dos afetos a moeda de troca é outra. São
outras. O capital continua ali, a flertar e seduzir, a embotar essas ressignificações,
mas os corpos... eles evadem, vazam, resistem. Ressignificam os guetos.
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O instantâneo e o fugaz dessa pílula de felicidade abrem fendas nos


sujeitos. Nesses sulcos, o que estaria guardado em supostas caixas metafísicas
escapole de um corpo a outro, no intercâmbio e no atrito – em nada seguro ou
harmonioso – de afetos, desejos, sensações. Os mais inquietos se posicionam
diante da experiência da arte e questionam

a razão pela qual reagimos perante essa ‘irrealidade’, como se ela fosse
uma ‘realidade’ intensificada. Que estranho, que misterioso diverti-
mento é esse? E se alguém nos responde que pretendemos fugir de
uma existência medíocre para nos refugiarmos numa outra mais rica,
numa aventura sem riscos, surge-nos uma nova pergunta: por que não
nos chega a nossa existência? Por que desejamos completar nossa vida
incompleta através de outras figuras e outras formas? Por que motivo,
na escuridão de uma sala, fixamos o olhar deslumbrado num palco
iluminado, onde acontece algo de fictício e que absorve a nossa atenção
de forma tão completa? (Fischer, 1983, p. 10).

Cena 3: Drag-flâneur: performance e instrumento-corpo

Trans(mutações). Derivas corpóreas. A transgeneração na arte atravessou


muitos séculos, dos palcos do clássico teatro grego, passando pelos dramas
shakespearianos do palco elisabetano até o sensível e impactante kabuki,
modalidade de teatro japonês; para além dessas representações tradicionais
de teatro, em que a linha entre ator e personagem sempre foi marcada, as perfor-
mances de travestimento contemporâneas envolvem também uma produção de
identidade e exibição social: apesar de estar localizadas principalmente nas
denominadas subculturas gueis,

a performance drag moderna remete a um interesse na exploração da


identidade de gênero feita em diversas épocas, como no contexto do
teatro burlesco tradicional ou do vaudeville, ambos do século XIX.
Nesse período, a performance drag se tornou muito mais que um segredo
de propaganda (removendo a peruca depois de “enganar” a audiência)
ou um truque de caricaturas fora dos modelos referenciados como
“normais” na sociedade (como a “prostituta” cômica tradicional do
show de comediantes) (Carlson, 2010, p. 177).
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A alma encantadora do Beco ou as crônicas de um vagabundo:
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A prática artística da transgeneração percorreu diversos palcos, técnicas


e contextos sociais até chegar à contemporaneidade. O trânsito de gênero incitado
pela arte do transformismo e seus atores e atrizes transformistas, drag queens
e performers, invadiu a cultura de massa/popular do último século4 e ainda
provoca rupturas nas noções rígidas de arte e teatro, em vários aspectos. A
performance drag (1) utiliza a dublagem, possibilitada pelos recursos de
tecnologia, com a intérprete transmitindo toda a sua emoção e drama sem
utilizar a sua voz, performando com o corpo, o gestual, e principalmente, a
perfeita sincronia entre as palavras da canção e o mover dos lábios. Diferente
do projeto de cover de uma artista, a drag interpreta a canção concedendo seu
corpo de forma original e não apenas imitativo. Dança, gestual e mis-en-scène
estabelecem o contato entre a artista e seu público, pois em um simples mover
de mãos ela pode transmitir um infinito de emoções com sua dublagem; dos
grandes espetáculos do teatro de revista, musicais da Broadway, aos concursos
de beleza, a produção visual (2) das artistas, com toda a sua exuberância, o luxo
e o glamour também compõe fundamentalmente a cena; o humor em formato
stand-up (3) se faz muito presente na cena drag e é elemento nuclear aqui no
Beco. Construído a partir de observações do cotidiano, o roteiro é feito com
cenas mais próximas da noção de tópicos, quadros, utilizando com frequência o
improviso e a interação com o público, já que não há a noção de quarta parede,
que separaria o artista da plateia, como se o público não existisse.
A performance drag ocupa uma zona potencial/possível para a resistência
social e cultural, a partir da exploração de possibilidades alternativas ao status
quo, oportunidades raramente disponibilizadas pelas estruturas do teatro
convencional, alicerçadas em uma ideia classista de cultura e arte.
Movimentos de mãos, pernas, expressões faciais, jogos de interação com o
público. Valerie constrói seu corpo no labor da produção de personas. Personas de
personas, que misturam cores, experimentam texturas, formatos, rascunham-se,
ensaiam e podem jogar fora aquilo que não a agrade no processo, pois

seu corpo adquire um status outro que é o de material a ser experimentado


e sobretudo dominado, de objeto a ser possuído e transformado, segundo

4
Dzi Croquettes, Secos e Molhados, Culture Club, David Bowie, Pedro Almodóvar, RuPaul’s Drag Race
e muitas outras experimentaram o trânsito dos gêneros em suas obras de arte.
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as exigências artísticas de sua profissão. Esse duplo enfoque: corpo-reali-


dade do eu, corpo-ficção do ator fundem-se nessa mesma concretude, dois
modos de ser que são e não são a mesma coisa (Azevedo, 2012, p. 135).

A experimentação que é feita no corpo e em seus movimentos não se dá


de forma separada da construção de uma linguagem da personagem, o todo da
personalidade da figura que está sendo gestada. A entrega ao palco, à cena, ao
ritmo da performance se dá na descoberta do movimento estético-criativo dos
sujeitos como possibilidade de arte e criação.
Concentração. Pesquisa. Técnica. O instrumento-corpo do ator é um
processo, um constante experimento baseado na busca por uma organicidade e
uma coerência identitária da personagem, mas é também movimento e exercício
de memória e sentido estético-corporais (Azevedo, 2012). Seleção do repertório
musical, ensaios, mais ensaios, montagem das coreografias, estruturação dos
roteiros dos shows. Figurinos. Rascunhos de ideias, croquis, tecidos, botões,
zíperes, fitas, lantejoulas, pedrarias, cortes, texturas, agulhas, costuras,
acessórios, joias. Costura-construção. Calçados, muitos sapatos e saltos de todos
os formatos, tamanhos e cores. Depilação em frente ao espelho, às vezes com
a retirada de toda a sobrancelha e seu desenho com um lápis ou delineador.
Base e corretivo em todo o rosto, pescoço e orelhas; para dar mais cor e profundi-
dade aos olhos, aplicações de sombra, delineador preto ao redor deles, uma linha
cuidadosamente desenhada, cílios postiços. Lábios moldados com primer, batons
misturados até chegar à tonalidade desejada. Contornos do rosto suavizados em um
jogo de luz e sombra, realizados por pós-bronzeadores ou pós-iluminadores. Peruca:

O cenário colado ao corpo do ator se torna figurino, o figurino que se


inscreve em sua pele, e é muitas vezes uma cenografia ambulante, um
cenário trazido à escala humana e que se desloca com o ator, se torna
maquiagem: a maquiagem veste tanto o corpo como a alma daquele
que a usa, daí sua importância estratégica tanto para a sedutora, na
vida, como para o ator, no palco (Pavis, 2003, p. 165).

A personagem drag muito provavelmente não se encerrará ao final de uma


temporada de espetáculos. Do trabalho solitário e complexo de criação da perso-
nagem a sua estreia nos palcos, para as muitas e muitas noites de apresentações,
ela pode acompanhar o ator por toda uma vida. Ela amadurece em cena e fora
dela. Confunde-se com o ator para além dos palcos. Máscara sob máscara.
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[Um tom acima. Mais dramático, mais intenso, desesperado. A Noite se


ruboriza, como no temor do fim. Mas por que esse medo, se não há nem mesmo
começo? A canção que finda o espetáculo arrebata intensamente a Dama da
Noite. A entrega exigida por ela é como a de uma Medeia no ápice de sua tragédia.
Cada palavra dita é com a dor que a rasga e atravessa o público: “As coisas estão
passando mais depressa / O ponteiro marca 120 / O tempo diminui / As árvores
passam como vultos / A vida passa, o tempo passa / Estou a 130, as imagens se
confundem / Estou fugindo de mim mesma / Fugindo do passado, do meu mundo
assombrado / De tristeza, de incerteza / Estou a 140, fugindo de você”. Lenta-
mente, ela segue a 120... 150... 200km por hora, vibrando seu corpo ao lamento
da canção, à letra que narra a jornada por uma estrada indefinida, por um caminho
imperscrutável... “Eu vou sem saber pra onde nem quando vou parar / Não, não
deixo marcas no caminho pra não saber voltar / Às vezes sinto que o mundo se
esqueceu de mim / Não, não sei por quanto tempo ainda eu vou viver assim”
Figura 5
(Pera, 2019). Valerie O’rarah segue por entre as mesas, por pessoas, atravessa a
Multidão
Fonte: Araujo, 2014 rua, vai até a calçada da orla e desaparece.]
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A Dama da Noite volta ao Beco sob a chuva de aplausos e logo se acomoda


em uma das mesas. O espetáculo termina, mas a energia que conecta aquelas
pessoas permanece ainda por um tempo razoável, entre bebidas, paqueras,
beijos, risos, abraços. A multidão aos poucos vai se desfazendo, como se o sangue
hiperconcentrado naquela artéria se espalhasse pelo corpo, ou para outros muitos
corpos. Passo por Valerie, que imediatamente percebe o meu cigarro apagado
e o acende. Seu olhar mergulha no meu mais uma vez e logo se dispersa com
alguém a chamando – é a deixa para que minhas errâncias continuem o percurso
daquela madrugada. Quente, infinita, rizomática. Minha trajetória se estende
pela avenida, acalentada pela brisa que vem do oceano, pelo olhar desejante
daquele que se esbarra em mim, pela lua pesando sobre mim. O zunido daquela
experiência me atravessa. Que me importam a avenida, o oceano, aquele rapaz,
a imensa lua... como diria Manoel Bandeira, o que eu vejo é o Beco.

Epílogo – um corpo-cosmópolis

Contra os esquemas duros de orientação, a velocidade crescente e a


esterilização da experiência do corpo nas cidades contemporâneas, eu erro. Nas
minhas andanças, a ideia de desorientação capta outras sensações: o se perder (1)
é um estado passageiro de desorientação espacial, um mergulho no desconhecido,
no aguçamento de outros sentidos: a possibilidade de se perder na cidade é
também a possibilidade de se desterritorializar e se reterritorializar, errar no
sentido de errância, mas também de erro, mergulho proposital no desconhecido,
no disforme, no inusitado; a lentidão (2), forma de captação e percepção da urbe
que não se refere a uma temporalidade absoluta e objetiva e está além de uma
representação espetacular e meramente visual... nós-errantes somos volunta-
riamente lentos, conscientes de nossa vagareza, em uma crítica à aceleração
do mundo contemporâneo e da ideia moderna de “não perder tempo”; a corpo-
reidade (3) se refere à própria entrega do corpo errante ao da cidade, em uma
experiência que transgride a disciplina sedentária, fixa e métrica do urbanismo:
nômades e vagabundos que produzem a produção de uma relação afetuosa,
sensual, erótica, intensa e plurissensorial entre o seu corpo e o corpo da urbe,
no traçar dos mapas erráticos; há ainda o artifício da comunicação (4), pois sou
o mensageiro das cidades, realizo conexões, sou o movimento, o preceito
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dinâmico da interpretação e dos anúncios: ao mesmo tempo em que compilo as


infinitas narrativas que nela ocorrem, também as produzo performativa e
performaticamente, transgredindo regras e contestando a ordem estabelecida.
Viver-experimentar, poetizar a cidade, vadiar pela vida. Valerie O’rarah se imiscui
ao Beco da OFF, eu me incorporo a ambos, ramificando-me pela Noite, pela
cidade, entre tantos corpos, na experiência do trânsito, da sensibilidade ampliada,
nos microdesvios da lógica espetacular hegemônica.
Agora eu sigo, sigo apenas caminhando pelas sinuosas ruas da orla da
Soterópolis. Uma micronarrativa a absorver e a transformar os contornos
da cidade e de mim mesmo, corpo plurilinguístico a capturar outras narrativas
e espalhá-las como cinzas na ventania. Fios de sol despontam na pintura-céu,
um grupo de jovens passa por mim gargalhando, fruindo um do outro. Um vento
quase frio me atravessa, sons distantes de latidos. Sozinho, fecho os olhos e é
como se sentisse o roçar de inúmeras peles na minha. Apoteose de sentidos, a
convidar para outras errâncias, abraçando mundos. Narrativas, trajetos, derivas
sem um ponto final

Figura 6
Flâneur
Fonte: Valverde, 2012
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Fábio de Sousa Fernandes é mestre em cultura e sociedade pela Universidade


Federal da Bahia (Ufba), doutorando em linguística pela Universidade de
Brasília (UnB). Professor-assistente vinculado ao Centro das Humanidades da
Universidade Federal do Oeste da Bahia (Ufob).

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Artigo submetido em março de 2021 e aprovado em junho de 2021.

Como citar:
FERNANDES, Fábio de Sousa. A alma encantadora do Beco ou as crônicas de
um vagabundo: arte drag, performance e urbanidades. Arte & Ensaios, Rio de
Janeiro, PPGAV-UFRJ, v. 27, n. 41, p. 167-192, jan.-jun. 2021. ISSN-2448-
3338. DOI: https://doi.org/10.37235/ae.n41.10. Disponível em: http://revistas.
ufrj.br/index.php/ae
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Dando bandeira1
relatos para comunidades imaginadas
Dando bandeira
stories for imagined communities

Caio Riscado
0000-0001-9020-5189
caioriscado@gmail.com

Resumo
O artigo tem como objeto a análise da produção de bandeiras confeccionadas por artistas
brasileiros. A partir da ideia de que bandeiras são objetos performativos e propositivos, que
impulsionam a formalização de novos relatos e comunidades fora das lógicas de repre-
sentatividade e pertencimento das macropolíticas, as obras Bandeyra Nacional (2015),
de Frederico Costa, Amarelo, sei lá... desespero (2019), de Ítala Isis, e América é Marica
(2019), de Francisco Mallmann, são utilizadas para a reflexão sobre as noções de
inespecificidade na arte, desidentificação e grupalidade.
Palavras-chave
Brasil; Bandeira; Representatividade; Pertencimento; Inespecificidade.

Abstract
This article has as its object of analysis a set of flags made by Brazilian artists. Starting from the
idea that flags are performative and propositive objects able to propel the formalization
of new stories and communities outside the logics of representativity and belonging of
macropolitics, the pieces Bandeyra Nacional (2015), by Frederico Costa, Amarelo, sei lá...
desespero (2019), by Ítala Isis, and América é Marica (2019), by Francisco Mallmann, are
used to reflect about the notions of unspecificity in art, disidentification and groupality.

Keywords
Brazil; Flag; Representativity; Belonging; Unspecificity.

1
Apresentação de pesquisa de pós-doutorado sobre a produção de bandeiras confeccionadas por
artistas brasileiros. O título do artigo faz referência a uma expressão popular brasileira. Por essa
PPGAV/EBA/UFRJ razão, e por não encontrar na língua inglesa expressão semelhante que faça uso do símbolo/objeto
Rio de Janeiro, Brasil bandeira em sua construção frasal, optei por sua não tradução. Mais adiante, a escolha da expressão
ISSN: 2448-3338 brasileira será justificada não só pelo imaginário que ela anima, mas, e sobretudo, por sua utilização
DOI: 10.37235/ae.n40.11 como um dispositivo em linguagem que endereça a ação.
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As funções de uma bandeira, de modo geral, se encontram dentro do


espectro da representação. A bandeira de um país, por exemplo, além de repre-
sentar simbolicamente seu território e nação, pode funcionar como artefato para
a delimitação de suas fronteiras. Nesse sentido, marcar um território não deixa
de ser também um modo de o representar. As bandeiras dos estados-nações
funcionam como símbolos representativos no âmbito macropolítico e expressam
valores e posições políticas que oscilam de acordo com a ideologia que rege os
grupos que estão no poder e suas consequentes recepções.
As bandeiras podem ser consideradas elementos centrais para a difusão
de ideias e posicionamentos, sempre relacionadas ao impacto cultural e de
representatividade. A variação desse impacto pode ser explicada pelo fato de que
as bandeiras são objetos concretos, mas que manifestam ideias abstratas. Ou
seja, para que haja um símbolo representativo (a bandeira) é necessário que
se estabeleça uma relação entre significante (seus elementos sensíveis) e
significado (seu conteúdo).
Historicamente, as relações entre significantes e significados não se
mostram estáveis. De forma resumida, essa indeterminação se explica pelos
diferentes níveis de pertencimento e representatividade que, frequentemente,
se modificam até dentro de uma mesma cultura. Isto é, ideais, valores e
concepções políticas não são segmentos fixados. Mesmo que as características
formais de uma bandeira permaneçam iguais, seu conteúdo pode ser alterado
por uma série de razões políticas e culturais.
Dessa forma, a análise de uma bandeira precisa ser localizada, levando
em conta aspectos históricos, políticos e territoriais, bem como suas relações
diretas com a movência dos marcadores sociais (etnia, classe, religião, gênero,
sexualidade, entre outros). A bandeira, assim como muitos outros elementos ou
eventos representativos, precisa ser lida de maneira contextual: no aqui e agora
das relações de uma temporalidade não linear. Uma temporalidade que não
ignora a ideia do presente atravessado pelo passado e contaminado por apostas
do porvir. Assim como as bandeiras, as ideias e noções de passado, presente e
futuro são cambiantes. Seus significados mudam, estão em constante reconfi-
guração, como também são reorientados os símbolos que com eles interagem
direta ou indiretamente.
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A confecção de bandeiras por artistas não é atividade nova na história da


arte brasileira. Para rememorar apenas um evento histórico, cito a exposição a
céu aberto que ocorreu no bairro de Ipanema, na cidade do Rio de Janeiro, em
1968, e ficou conhecida como Happening Bandeiras na Praça General Osório.
Nessa ocasião, e ao lado de artistas como Carlos Vergara, Ana Maria Maiolino
e outros, Hélio Oiticica expôs pela primeira vez a bandeira com os versos “seja
marginal/seja herói” acompanhados de um fac-símile da fotografia de Alcir
Figueira da Silva, anti-herói anônimo,2 que se suicidou após roubar um banco.
Dias depois do evento, os artistas voltaram a ocupar a praça, colocando
à venda muitas bandeiras e gravuras exibidas na exposição. Alguns pesquisa-
dores consideram essa ocupação um marco para o início da feira que, até hoje,
aos domingos se instala na praça de Ipanema. A presença dos artistas na praça
evidenciou uma nova forma de movimento auto-organizado e de saída dos
espaços institucionais comuns na época. A arte encontrou as ruas e, num misto de
ocupação, festa e protesto, desencadeou o formato, tanto híbrido quanto ines-
pecífico, em que os limites da produção artística institucionalizada são borrados
e se aproximam das expressões populares. Para as pesquisadoras Tania Rivera
e Izabela Pucu (2015, p. 179), a diluição de fronteiras que marcou esse tipo de
acontecimento evidencia o “desejo de disseminação da arte na vida e na socie-
dade que a produção artística brasileira assumiu a partir da segunda metade dos
anos de 1960”.

2
Em seu texto para a exposição O Artista Brasileiro e Iconografia de Massa (1968), realizada no
MAM-Rio, com organização de Frederico Morais e a Escola Superior de Desenho Industrial, Hélio
Oiticica (2011) menciona Alcir Figueira da Silva como um anti-herói anônimo que “morre guardando
no anonimato o silêncio terrível dos seus problemas, a sua experiência, seus recalques, sua frustração”.
Oiticica diz ainda que queria por meio de imagens plásticas e verbais exprimir a tragédia do anonimato
“ou melhor da incomunicabilidade daquele que, no fundo, quer comunicar-se (o caso que me levou
à vivência foi o do marginal Alcir Figueira da Silva, que ao se sentir alcançado pela polícia depois de
assaltar um banco, ao meio-dia, jogou fora o roubo e suicidou-se). Por que o suicídio? Que diabólica
neurose (aliás tão shakespeariana) o teria levado a preferir a morte à prisão? Uma esperança perdida, o
desespero dessa perda, mas qual perda? Uma ideia, sei lá se certa ou não, me veio: seria isto a busca
da felicidade (aqui entendida como segurança, afeto, tudo o que envolveria a falta que ocasionou essa
neurose)” (Oiticica, 2011).
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A exposição na praça General Osório aconteceu pouco antes da Passeata


dos Cem Mil que ocupou o Centro da cidade do Rio de Janeiro com um grande
número de bandeiras e faixas com imagens e palavras de ordem contra o
terrorismo de Estado. Uma famosa foto de Evandro Teixeira, então fotógrafo do
Jornal do Brasil, registra uma das faixas utilizadas na manifestação, com os
seguintes dizeres: “Abaixo a ditadura. Povo no poder”. Em reação à passeata, o
general Costa e Silva decretou o Ato Institucional número 5, inserindo o país nos
anos que ficaram conhecidos como os anos de chumbo.
A exposição teve expressiva repercussão não só na história da arte
brasileira, e, recentemente, seu formato tem sido recuperado por diferentes
instituições. Como ilustração disso, cito a exposição Bandeiras na Praça Tiradentes,
realizada no Centro Municipal de Arte Hélio Oiticica (CMAHO), entre outubro e
novembro de 2014, com curadoria de Izabela Pucu, que buscou retomar a força
do evento de 1968 para traçar uma relação com os protestos de junho de 2013
e promover ligações entre arte, manifestações populares e políticas.
A partir de um amplo trabalho de pesquisa, alguns estandartes originais
do evento de 1968 foram recuperados e expostos. A mostra também contou com
a reprodução de obras a partir de registros da época, recuperação de documentos,
realização de entrevistas gravadas que revelaram diferentes testemunhos sobre
1968, seus paralelos com 2013, e a participação de novos artistas, com novas
obras, como, por exemplo, o Coletivo Norte Comum (com colaborações do
Coletivo Gráfico) e a releitura feita por Gustavo Speridião da icônica bandeira de
Oiticica, já citada.
Mais recentes ainda são as discussões acerca do nacionalismo, do senti-
mento de pertencimento à pátria e aos valores propagados pelos governos dos
estados-nações com o avanço das proposições políticas de células da extre-
ma-direita em caráter global. No Brasil, mais especificamente desde o impedi-
mento da presidenta democraticamente eleita Dilma Rousseff e a ascensão do
bolsonarismo, a bandeira do país e seus elementos sensíveis encontram-se em
ampla disputa, mundialmente observada pela massiva produção de imagens
em manifestações oficiais do governo e movimentos populares.
De certa forma, essa disputa é marcada pelo fato de o governo de Bolsonaro
ter se apropriado e se identificado com o país, passando a promover uma única,
logo excludente, noção de brasilidade. Não muito distante das políticas aplicadas
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pelo governo de Trump, nos Estados Unidos, as ações bolsonaristas promovem,


por meio da identificação pelo poder, a união forçada entre país e governo. A título
de exemplo, destaco as manifestações de oposição, tanto nos Estados Unidos
quanto no Brasil, em que bandeiras dos dois países são queimadas por agentes
sociais. Nesses eventos, geralmente, a recusa não está direcionada ao país em
sua totalidade, mas expressa a posição contrária dos manifestantes que desa-
provam as medidas adotadas por seus respectivos governos. Como já dito, os
elementos sensíveis das bandeiras não foram alterados, mas as relações entre
os seus significantes e significados sim.
No Brasil, ainda em razão das ações dos movimentos de extrema-direita,
as cores verde e amarelo também ficaram associadas aos grupos que apoiam
medidas e comportamentos antidemocráticos. Numa espécie de assalto ao
simbólico, as cores da bandeira nacional foram ressignificadas e passaram a
representar somente uma parcela da população. A imposição de assimilação
entre governo e pátria desencadeou a produção de outras bandeiras nacionais
como resposta. A apropriação e revisão da bandeira nacional por artistas também
não é prática recente. Mas, nesse momento, além de disputar o imaginário
nacional, os artistas parecem interessados em se posicionar de forma contrária
às políticas adotadas pelo governo atual, que restringe aos seus apoiadores um
ideal de brasilidade e o sentimento de pertencimento à pátria.
Um desses casos de resposta é a Bandeyra Nacional realizada pelo artista
e arquiteto Frederico Costa. Em sua criação, Costa substitui as cores verde e
amarelo da bandeira nacional por rosa e azul e a faixa “ordem e progresso” por
um arco-íris. Em matéria para o jornal Folha de S. Paulo, do dia 16 de maio de
2020, Costa comenta: “gosto de dizer que ela [a bandeira] é de um país imaginá-
rio, cujo território é o corpo de quem a escolhe”.3 Além de destacar a imaginação
como elemento fundamental para a invenção de outras comunidades e a ação
corporificada de escolha do próprio cidadão, o artista insere no projeto nacional
cores e símbolos amplamente associados aos movimentos LGBTQIA+.

3
Folha de S. Paulo, São Paulo, matéria de Clara Balbi, em 16 de maio de 2020. Disponível em:
https://www1.folha.uol.com.br/ilustrada/2020/05/entenda-como-a-bandeira-do-brasil-virou-sim-
bolo-dos-apoiadores-de-bolsonaro.shtml. Acesso em 14 jun. 2020.
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O rosa, o azul e o arco-íris4 são exemplos simbólicos dos gêneros e


sexualidades desviantes que, constantemente, precisam fazer o cruel exercício
de construir e administrar suas localidades de proteção e pertencimento. Por
gêneros e sexualidades desviantes, compreendo as identidades, sociabilidades
e práticas que não correspondem à heteronormatividade, ordem sexual do
presente, fundada no modelo heterossexual, familiar e reprodutivo. Como
ordem, a heteronormatividade “se impõe por meio de violências simbólicas e
físicas dirigidas principalmente a quem rompe normas de gênero” (Miskolci,
2012, p. 26).
Em diálogo com esse rompimento, o trabalho de Costa tem como lema “a
diferença no topo do mundo, acima de ninguém”. Uma clara alusão ao slogan
de campanha do governo de Jair Bolsonaro: “Brasil acima de tudo, Deus acima de
todos” que, além de fundir-se com a nação, promove como orientação central a
figura religiosa de Deus no ambiente em que as práticas deveriam, por consti-
tuição, ser laicas.

4
A bandeira do arco-íris foi criada, em 1978, pelo designer e ativista Gilbert Baker. Inicialmente com
oito cores (rosa, vermelho, laranja, amarelo, verde, turquesa, anil e violeta), ela foi feita para o Dia
de Liberdade Gay de San Francisco, na Califórnia, Estados Unidos, com o objetivo de unificar a luta
pela diversidade e pelos direitos dos homossexuais em um só símbolo. Atualmente, a versão mais
conhecida da bandeira tem seis cores. Independente do número de listras e cores, o símbolo criado
por Baker ganhou relevância mundial e passou a representar a comunidade LGBTQIA+ em diversas
manifestações. Em 2015, o Museu de Arte Moderna de Nova York, o MoMa, adquiriu a bandeira de
Baker para a sua coleção de obras, classificando a peça como um marco histórico do design. Nessa
ocasião, em entrevista ao Museu, Baker declarou: “Decidi que tínhamos de ter uma bandeira, que
uma bandeira nos encaixasse em um símbolo, o de que somos pessoas, uma tribo […] e as bandeiras
são sobre proclamar poder, então é muito apropriado”. No mesmo ano, a Suprema Corte dos Estados
Unidos aprovou o casamento entre pessoas do mesmo sexo e, em comemoração pela vitória da
comunidade, a Casa Branca foi iluminada pelas cores da bandeira de Baker. Em 2017, pouco antes de
falecer, Baker criou sua versão “final” da bandeira, com nove cores, em resposta à eleição de Donald
Trump. Por conta do protagonismo homossexual masculino, ou seja, gay, nas agendas de militância
pela diversidade de gênero e sexualidade, muitas outras bandeiras já foram criadas a partir da obra
de Baker com o objetivo de trazer mais visibilidade para corpos, gêneros e práticas marginali-
zados dentro da própria comunidade LGBTQIA+. Como exemplo, podemos citar as bandeiras que
representam: transgêneros, intersexos, gêneros neutros e outras. Para saber mais sobre a história
de Gilbert Baker e suas criações, ver https://www.hypeness.com.br/2019/07/como-e-porque-nas-
ceu-a-bandeira-arco-iris-do-movimento-lgbtq-e-o-que-harvey-milk-tem-a-ver-com-isso/ e https://
g1.globo.com/mundo/noticia/a-historia-por-tras-da-bandeira-arco-iris-simbolo-do-orgulho-lgbt.
ghtml. Acesso em 19 jun. 2020.
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Figura 1 A Bandeyra Nacional de Costa foi criada em 2015 e, a partir de 2016,


Frederico Costa,
Bandeyra Nacional,
começou a ser comercializada pelo artista em parceria com lojas e marcas
2015, divulgação independentes de bairros das grandes cidades do Brasil. Como já mencionado,
a repulsa aos valores que, atualmente, são associados às cores verde e amarelo
ampliou o impacto de identificação do público com a obra de Costa, transfor-
mando-a em um objeto de desejo relacional também para as pessoas que não
se identificam como LGBTQIA+. A circulação não guetizada da Bandeyra, além
de evidenciar o desgaste do símbolo nacional durante o governo de Bolsonaro,
expressa que as questões relacionadas às diferenças extrapolam o campo dos
gêneros e sexualidades dissidentes e constroem pontes de diálogo com outros
setores da sociedade que também se sentem ameaçados pelas declarações,
posturas e atitudes do atual presidente.
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Desde então, a Bandeyra Nacional já foi capa de uma publicação realizada


pela Cactus Edições5 e teve sua imagem apropriada, tanto por marcas quanto por
artistas autônomos, para a criação de camisetas. A criatividade do público na
exposição doméstica de seus exemplares da obra de Costa também merece
consideração. Nas redes sociais, é possível conferir diversos registros da
Bandeyra sendo exibida em diferentes espaços das casas e através de suportes
variados: molduras, alfinetes, fitas adesivas, imãs etc. Fotografias compostas
por pessoas enroladas, abraçadas ou hasteando a Bandeyra em manifestações de
rua ou em casa também são frequentes. A presença marcante dela em eventos
de caráter público/popular ou íntimo/privado sublinha a necessidade de fabri-
cação de outros símbolos e visualidades para grupalidades desobedientes e
em constante estado de formação.
Outro exemplo é o trabalho da artista pesquisadora, bordadeira e performer
Ítala Isis. Ao refazer a bandeira nacional brasileira, a artista borda a seguinte
frase: “verde é esperança, né? Amarelo, sei lá, desespero. Azul eu não sei”. A
sentença faz referência à resposta da senhora Benedita da Conceição, aposen-
tada de 69 anos, quando perguntada pelo jornal O Povo (Fortaleza, CE) sobre o
significado das cores que integram a bandeira do Brasil.6 A partir disso, a artista
cria a sua versão da bandeira toda em tons de amarelo, enfatizando o significado
atribuído à cor na resposta da senhora. Dessa maneira, o desespero ganha todas
as dimensões sensíveis e materiais da bandeira, formulando o relato de uma
comunidade que não se pode mais esperançosa e que se perdeu no azul de um
céu que, a todo momento, parece desabar sobre suas cabeças. O Brasil-desespero

5
Em 2017, na cidade de Porto Alegre, críticas de organizações religiosas, manifestantes e agentes
políticos ligados ao Movimento Brasil Livre (MBL) conseguiram censurar a exposição Queer Museu
– Cartografias da diferença na arte brasileira, cancelando sua temporada de exibição um mês antes
do programado. As manifestações acusaram a exposição de apologia à pedofilia e zoofilia. O caso
teve expressiva repercussão midiática e popular, motivando a realização de uma série de iniciativas
e atividades a favor da exposição. Uma delas foi a convocatória da Cactus Edições para o lançamento
de uma publicação em resposta à censura no meio artístico brasileiro. Dessa maneira, foi lançada a
publicação independente Margem, que conta com trabalhos de 35 artistas e a Bandeyra Nacional, de
Frederico Costa, como imagem de capa.
6
A resposta de Benedita da Conceição foi divulgada na coluna “O Povo Fala”, do jornal O Povo, de
Fortaleza, CE. De acordo com minha pesquisa, essa coluna não integra o conteúdo que o jornal
disponibiliza online em seu site oficial.
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de Benedita, representado por Isis, indica a presença de muitos países e dife-


rentes fronteiras da representatividade e do pertencimento dentro de um mesmo
projeto de nação.
A bandeira de Isis faz parte de uma série de ações criada pela performer,
em 2019, denominada Amarelo, sei lá...desespero. De acordo com as infor-
mações de seu site,7 as questões que tangenciam a série giram em torno do
desejo de subverter o sentido da bandeira nacional brasileira pela ativação de
relações entre imagem e palavra e o uso da artesania como camuflagem em
caminhadas pelo espaço público. Numa de suas saídas, Isis caminha pelas ruas
com uma máscara verde, amarela e azul bordada com os mesmos dizeres da
resposta de Benedita e que revela somente os seus olhos e nariz para os
passantes. Ela compõe imagens para registros fotográficos de seu encontro com
escritos diversos da paisagem urbana.

Figura 2
Ítala Isis,
Amarelo, sei lá...desespero,
2019, divulgação

7
Para acessar outras imagens e informações sobre ações da série comentada, ver https://italaisis.
wixsite.com/italaisis. Acesso em 5 dez. 2020.
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Esses registros exibem a presença mascarada de Isis ao lado de fachadas


de lojas, lambe-lambes, intervenções e pinturas urbanas. O desespero de
Benedita, “estampado” no rosto da artista, produz atrito quando enquadrado,
por exemplo, junto de um banner das Lojas Americanas. Ao inscrever a sentença
da aposentada na paisagem urbana, a performer tensiona a escrita do texto
político em vigor que exclui sujeitos como a senhora Benedita das principais
pautas de seu projeto para a nação. A caminhada de Ítala Isis carrega o desam-
paro do Brasil de Benedita no rosto porque “tá na cara” que o sonho do progresso,
mencionado na bandeira nacional, não é um direito de todas e todos.
Se o sonho do progresso está reservado somente para um segmento
privilegiado da população brasileira, da mesma maneira, mas acertando justa-
mente os que não têm privilégio algum, é que se estabelece a violência da
ordem. Enquanto políticos de todos os escalões, assessores e funcionários
fantasmas fazem a festa com o dinheiro público e são absolvidos de seus crimes,
a população periférica, pobre e preta segue sendo o principal alvo da tirania do
Estado, sofrendo com invasões, perseguições, assassinatos e encarceramento
em massa. Pela apropriação que Ítala Isis faz da interpretação da senhora
Benedita, pode-se localizar o abismo social instalado entre uma palavra e outra
do lema da bandeira brasileira: ordem – para criminalizar, marcar a margem e
impedir sua mobilidade; progresso – para os que já podem progredir.
A partir dos trabalhos de Costa e Isis, as duas comunidades, brevemente
localizadas, expressam a ineficácia de pautas identitárias totalizantes que visam
restringir vivências e subjetividades a determinadas características suas. A criação
de outras bandeiras nacionais revela uma fratura na propriedade de comunicação
desse elemento simbólico e promove um desvio, ou fuga, da perspectiva que
limita a expressão, por exemplo, da brasilidade. Além de expandir a propriedade
do elemento bandeira, essas obras passeiam por diversas áreas da produção
artística (visual, poética, performativa etc.) não cabendo defini-las como
pertencentes somente a um ou outro campo. Tanto a socialização das bandeiras
quanto os seus diferentes modos de fazer sinalizam a criação/imaginação de
comunidades a partir da inespecificidade.
Segundo Garramuño (2014), essa saída do que é próprio, do que seria
propriedade de cada elemento, área ou campo, aposta no inespecífico para
pensar a elaboração de uma linguagem do comum que proporcione modos
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diversos de pertencimento. Com base em Certeau (1994), é possível pensar o


sentido do comum como dado humano da invenção cotidiana, como dado que
promove e recria incessantemente as interações entre as diferenças que o
definem. Na esteira do pensamento do intelectual francês, a professora e
pesquisadora brasileira Maria Luiza Süssekind (2014) vai adiante e propõe o
comum como, necessariamente, uma comunidade de diferentes. Assim sendo,
o país dos muitos gêneros e sexualidades, da Bandeyra Nacional de Costa, e
a nação amarelada de tanto sofrimento, verbalizada por Benedita e exibida no
trabalho de Isis, também não seriam representações das interações que não
cessam de (re)criar um sentimento de pertencimento ao Brasil?
Na invenção do comum a provocação dessas artistas e obras por modos
diversos de pertencimento quer se afastar da especificidade de uma arte em
particular e, pontualmente, de uma ideia de arte como específica. À medida que
os símbolos se ampliam, também não se expandem as conexões sensíveis e
subjetividades que podem ser articuladas em relação de criação e imaginação
com eles? A coexistência entre materiais, modos de fazer, poéticas e sensações
de pertencimento revelam que o comum é uma possibilidade de composição
estruturada por combinações de elementos múltiplos. Portanto, se admitimos
a multiplicidade do comum, consequentemente, podemos admitir que não há
uma só maneira de pertencer e se referir a ele? Não seria por meio da inespecifi-
cidade que poderíamos potencializar “outros modos de organizar nossos relatos,
e, por que não?, também nossas comunidades” (Garramuño, 2014, p. 29)?
Um dado que merece destaque diz respeito ao fato de que as manifes-
tações inespecíficas, por diferentes meios, materiais e campos, não recusam
ou apagam a singularidade daquelas que, provisoriamente, representam
pela formalização de um relato/obra qualquer. A multiplicidade dos caminhos
e modos não ignora a necessidade de nomeação de determinadas vivências e
expressões. Mas essas marcações de singularidades agem por meio da desi-
dentificação, ou seja, por meio do mapeamento das ideologias dominantes para
traçar uma linha de ação por dentro delas. As singularidades são destacadas
como interfaces de identificações móveis que buscam desestabilizar os planos
de homogeneização social.
De acordo com Muñoz (1999), os processos de desidentificação seriam
práticas orientadas por outras frequências, uma espécie de terceira via, que
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localizam a norma, mas com ela não se identificam por completo. A consciência da
norma não implica aceitação direta, mas reconhecimento dos atores que estão em
jogo. Numa espécie de malandragem em operação na linguagem, se reconhece a
norma para poder gozar dela (e com ela). Se não há possibilidade de viver no fora
da linguagem, os processos de desidentificação tornam evidentes os movimentos
dentro das estruturas normativas (e suas ficções) que se pretendem inabaláveis.
São práticas que buscam inserir contradições nos modelos dominantes e, no
recorte temático desse artigo, por exemplo, expor a complexidade de temas como
representatividade e pertencimento, como veremos na bandeira a seguir.
O performer, dramaturgo e poeta Francisco Mallmann reconhece em seu
trabalho não só a existência, mas a imposição de uma noção fixa de América.
A América, “sujeito” feminino, é constantemente representada por sua minoria
dominante: branca, produtora de masculinidade tóxica e heterossexual. Sem
Figura 3 ignorar esse fato, Mallmann reconhece a América dos suspeitos “homens de
Francisco Mallmann,
bem” defensores da família, mas reorganiza seus símbolos para rever seu projeto
América é Marica, 2019
Foto: Luciano Faccini “ao pé da letra”. Se somos todas americanas, o relato formal de Mallmann expõe o
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fato de que dentro da América também estão as maricas. A bandeira, construída


a partir de um anagrama, desestabiliza a ficção dominante de América e amplia
o potencial imaginativo de sua comunidade. A desobediência de Mallmann
encontra eco nas palavas de Preciado (2020, p. 145):

Como o gênero, a nação não existe fora das práticas coletivas que a
imaginam e constroem. A batalha, portanto, começa com a desiden-
tificação, com a desobediência, e não com a identidade. Riscando o
mapa, apagando o nome para propor outros mapas, outros nomes que
evidenciem sua condição de ficção pactuada. Ficções que nos permitam
fabricar a liberdade.

A América que é também marica é fabricante da sensação de pertenci-


mento e a devolve para uma multidão (Preciado, 2011) de corpos. Essa sensação
está mais próxima da ideia de um devir-marica, ou seja, de um processo perma-
nentemente aberto e voltado para a experimentação, do que da demarcação de
uma identidade sólida, fechada e que não permite variações. Não há que verificar
o potencial marica da América imaginada por Mallmann, pois sua bandeira
vermelha desqualifica, aliás, os modos de legitimação dominante e suas convenções
normativas. A partir de um novo arranjo formal, a ação do artista corporifica, em
dimensão continental, as inúmeras movências de sujeitos apontados, marcados
e classificados como abjetos.

olha a bunda dela / olha o pau dela / olha ela olha ela / olha o buraco
dela / olha o buraco dela / olha pra ela / essa marica toda / torta índia
bruta / olha ela marica bruta / índia ela / olha ela mestiça / mística / olha
os olhos dela / a cor dela a pele dela (Mallmann, 2020, p. 48).

Embasado pela leitura de Judith Butler, entendo que a abjeção se relaciona


com todo tipo de corpo cuja vida não é considerada uma vida e cuja materiali-
dade é tida como não importante. Na relação com os marcadores de gênero e
sexualidade, por exemplo, a abjeção recai sobre corpos e identidades que fogem
da norma, desviam do (hetero)padrão e por isso, mas não só, são perseguidos e
têm suas vidas diminuídas e desqualificadas enquanto vidas possíveis de ser
vividas. São zonas de sujeitos constituídos a partir da rejeição, exclusão e, por
fim, abjeção. São identidades ameaçadas, expostas a todo tipo de violência moral,
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física e subjetiva. São corpos sem importância para as políticas dominantes, o


limbo da ininteligibilidade social. Nas palavras de Butler (2013, p. 155),

O abjeto designa aqui precisamente aquelas zonas ‘inóspitas’ e ‘ina-


bitáveis’ da vida social, que são, não obstante, densamente povoadas
por aqueles que não gozam do status de sujeito, mas cujo habitar sob
o signo do ‘inabitável’ é necessário para que o domínio do sujeito seja
circunscrito.

A bandeira de Mallmann dá corpo a uma multidão de corpos abjetos que


estão no mundo e seguem sem representação − mesmo que estratégica e provi-
sória. O artista escreve: “TU / TU ME DEVES / TU ME DEVES UMA HISTÓRIA / TU
ME DEVES UMA HISTÓRIA, AMÉRICA” (Mallmann, 2020, p. 52). Nesse sentido,
é que também proponho a leitura de bandeiras e faixas como objetos propo-
sitivos que criam campo e corpo ao resgatar performatividades ameaçadas.
Assim como em diversas performances, a imaginação e a formalização de novos
relatos e histórias destacam que “o tipo de conhecimento de que precisamos
no presente momento se faz nos corpos, com corpos, como criação de corpos”
(Fabião, 2009, p. 7).
Em consonância com o pensamento de Fabião, o projeto artístico de
Mallmann não se limita à confecção e exposição da bandeira. Logo, não se resume
à exploração de um único campo e suas materialidades tidas como próprias.
Outras textualidades compõem a obra em desenvolvimento e contribuem para
a criação continuada de conhecimentos corporificados e saberes encarnados.
Inicialmente explorado em forma de dramaturgia, com apresentações públicas
em que o performer, nu e de costas para a audiência, exibia a bandeira e fazia
a leitura de um texto, o projeto América já se desdobrou em uma publicação
no formato de poesia (Mallmann, 2020), fotografias e ações variadas entre os
campos da performance e das artes visuais.
Assim como mencionado por Garramuño, o projeto América segue em
busca da reorganização de relatos que acompanhem a multiplicidade das apostas
artísticas que não se querem específicas. Apropriando-se de meios e materiais
da dramaturgia, da performance, da poesia, da fotografia e das artes visuais, o
projeto de Mallmann explora esses campos, mas não faz parte, especificamente,
de nenhum deles. Como a própria concepção de América que não deveria ser
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tratada subjetiva e politicamente como algo estável, pois sua captura cairia no
erro de generalizar inúmeros modos de ser e estar, a produção artística de
Mallmann acessa a mobilidade formal e discursiva para ativar modos diversos
de pertencimento.
Assim como sugerido por Preciado na citação já compartilhada, o artista
risca o mapa, ou melhor, faz ver o sangue que continua a escorrer dessa batalha
que atravessa os tempos. Sua desobediência formalizada em vermelho localiza
essa mancha, desafiando discursos assépticos que, além de camuflar a sujeira
do passado, pretendem calar as vozes do presente. Acontece que as veias da
América não param de pulsar. Afinal, sua ferida aberta é um dado incontornável.
Suas mãos estão sujas, América. E não há como fugir de seu sangue indígena,
preto, travesti, trans, sapatão, bicha. Não há como fugir de seu sangue maldito.
Nas palavras de Mallmann (2020, p. 19, tradução minha),

no quiero y no seré lo que / ustedes quieren que yo seya / soy una mancha
/ una mancha sangrienta y enorme / una mancha que se esparce por tu
camino / esta sangre va a ser imposible de limpiar / esta sangre está en su
historia em su arte en sus manos / mi sangre es tuya / américa.8

O título deste artigo é embasado pela ação que, via a criação e sociabi-
lização de outros símbolos e relatos, objetiva multiplicar vivências por meio de
agendas interseccionais e inclusivas. A escolha de “dar bandeira” faz referência
a expressão popular brasileira que resulta na explanação do que deveria
permanecer não dito, oculto, para ativar, justamente, o seu contrário. Mediante
a revelação e exposição de outros relatos, relatos múltiplos e não dominantes,
pretendo com este estudo imaginar/dar comunidades para os sem comunidades.
Em outras palavras, a ampliação dos relatos, a multiplicação de símbolos e
sensibilidades, devolve para uma multidão o que dela continua sendo roubado:
a sensação de pertencimento, a escrita sobre o território e a inscrição do corpo
no território.

8
Não quero e não serei o que / vocês querem que eu seja / sou uma mancha / uma mancha sangrenta
e enorme / uma mancha que se espalha por seu caminho / esse sangue será impossível de limpar /
esse sangue está em sua história em sua arte em suas mãos / meu sangue é seu / américa.
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Em todas as territorialidades, os corpos e as bandeiras que deveriam ser


exaltados e hasteados são muitos. Infelizmente, essa pluralidade não pode
ser amplamente apreciada em solo brasileiro, pois os espaços de circulação e
mastros continuam reservados somente para uma pequena parcela da população
e seus respectivos símbolos e valores dominantes. Com a exposição e análise
desses trabalhos em arte, busco também criar/dar espaços conceituais, de prática
e troca artística, em que outros corpos, saberes, fazeres, símbolos e relatos
possam ser elevados. A pesquisa acadêmica se mostra como terreno propício
para o desenvolvimento de estudos como este: que não se restringem a determi-
nada área do conhecimento e que se estruturam a partir de reflexões formuladas
pelo intercâmbio entre diferentes meios, materiais e linguagens.
Como sinalizado no início, a criação de bandeiras por artistas de diferentes
áreas não é uma atividade recente na história da arte brasileira. A posterior exi-
bição dessas obras em feiras e eventos artísticos também não. Assim sendo, o
diferencial desta análise está relacionado à abordagem que faço das bandeiras
não apenas como elementos visuais voltados para um evento expositivo. Sem
desqualificar os impactos culturais e sociais da exposição de arte que, como
sabido, são muitos e imprevisíveis, quero destacar o potencial performativo
dessas bandeiras que também criam/fabricam corpo em suas ações, circulações
e ativações inespecíficas.
As bandeiras criadas por Costa, Isis e Mallmann não estão somente nos
museus, galerias ou outros espaços artísticos. Elas estão nas ruas e nas casas,
nos ambientes públicos e privados, nas manifestações populares e em reunião
de amigos, borrando fronteiras e, de certa forma, complicando as categorizações
tradicionais do trabalho de arte. Ainda sobre esse aspecto e para trazer mais
complexidade ao debate, faço a escolha de alguns trabalhos realizados por
artistas que também se autodenominam performers e costumam apresentar
suas bandeiras em ações nomeadas como performance.
Partindo do pressuposto de que definir o que viria a ser performance já
é, por si só, uma falsa questão, as bandeiras e ações apresentadas visam con-
tribuir com reflexões para esse campo em constante estado de transformação
e inventividade. Pela inespecificidade (Garramuño, 2014), pela captura do que
seria extrínseco a certo tipo de campo, busco traçar o cenário conceitual deste
estudo, radicalmente interessado pelos elementos e gestos impróprios do(a)
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outro(a) que não se limitam a medidas reguladoras do sensível. Pelos processos


de desidentificação (Muñoz, 1999), que reconhecem a existência da norma, mas
destacam suas fraturas por meio de operações de linguagem que evidenciam
a falácia de políticas identitárias globalizantes, os trabalhos comentados neste
artigo privilegiam a formalização de relatos e a criação de comunidades que se
dão a partir do impacto gerado pela incidência dos marcadores sociais. Assim, as
noções de representatividade e pertencimento são tomadas a partir da perspectiva
dos saberes subalternos, cruzando conceitos das teorias queers e vertentes dos
movimentos transfeministas.
O uso dessas referências objetiva deslocar a análise das identidades dos
sujeitos como instâncias fixas para focar seu interesse na investigação dos
discursos e manobras políticas que constituem algumas existências como menos
legítimas, patologizando comportamentos e criminalizando corpos, desejos e
práticas. As bandeiras apresentadas não criam novas categorias ou projetos de
gueto que possam cair no erro de reproduzir o sistema que quer manter “cada
um no seu quadrado”. Por oposição, essas obras agitam saídas múltiplas que são
operadas pela lógica da diferença numa multidão de corpos. Ou seja, são obras
que propõem o reconhecimento da multiplicidade do(a) outro(a) como ação
fundamental para a transformação social.
Abordo a imagem da multidão para distanciar o debate da ideia de massa. A
massa é um “compacto homogêneo, uma indiferenciação de seus componentes
numa direção única, submetidos a um líder” (Pelbart, 2008, p. 36). Já a multidão
se agencia pela heterogeneidade, uma inteligência coletiva de multiplicidades
subjetivas. Para retomar a ideia do comum como uma comunidade de diferentes,
já mencionada, identifico na multidão a possibilidade do encontro com essa
dinâmica de variação entre as desidentificações e as singularidades destacadas.
A formalização de relatos não dominantes que podem vir a criar campo
para o desenvolvimento de comunidades imaginadas aposta na visibilidade de
outras grupalidades como polos de manutenção de energia resistente. A imagi-
nação como ação política não se separa do corpo social que é conscientemente
cambiante, revisitado e recriado. As comunidades imaginadas também imaginam
corpos e, consequentemente, dão movência a corporeidades interessadas em
“viver o corpo como uma realidade só parcialmente conhecida, ainda não
estabilizada e mapeada” (Quilici, 2004, p.200).
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Além dos trabalhos de Frederico Costa, Ítala Isis e Francisco Mallmann,


outras criações de artistas brasileiros confirmam a atualidade do debate e a
criação/produção de bandeiras como uma operação recorrente no estado da
arte contemporânea, independentemente dos meios e materiais acessados em
suas formalizações e ativações. Para citar alguns nomes, escolho como critério
listar trabalhos realizados a partir dos anos 2000. Essa lista objetiva também
sinalizar que o exercício de criar e performar com bandeiras permeia diferentes
técnicas, escolas, formações e gerações de artistas.
Dito isso, destaco as seguintes obras: Bandeira negra (2007), de Emmanuel
Nassar; Ação carioca #2: bandeira (2008), de Eleonora Fabião; Como fracassar
em 10 metros (2015-2017), de Victor de La Rocque; Bandalha (2017), de André
Parente; Transição é sempre (2018), de Miro Spinelli e Francisco Mallmann;
Andar de cima (2018), de Renata Lucas; Profecias (2018-1019), de Randolpho
Lamounier; Bando recíproco (2019), de Elilson; “índios, negros e pobres”,
bandeira criada pelo carnavalesco Leandro Vieira para o desfile da Mangueira no
carnaval de 2019; liquidación hasta fin de existencias (2019), de Nathan Braga;
The new brazilian flag (2019), de Raul Mourão; Bandeira mulamba (2019),
de Mulambo; Bandeira nacional atualizada (2019), de Luana Vitra; Vai passar
(2019), de Marcos Chaves; Sem senhor (2019), de Ventura Profana; Bandeira
afro-brasileira (2020), de Bruno Bapstitelli; Brasil n.1 (2020), de Clébson
Francisco; A queda do céu (2020), de Susana Amaral; “respeita as travesti”
(2020), de Vulcanica Pokaropa; e Falsinha (2020), de Juan Casemiro.
Em seu livro mais recente, Aos outros só atiro o meu corpo, a poeta e artista
visual Maria Isabel Iorio (2019, p. 42) afirma: “não é sempre que o corpo quer
ser um corpo. E às vezes não é preguiça – mas uma coragem instantânea”. Iorio
menciona a coragem de desafiar a compreensão encaixotada de corpo, aquela
que o resume a partir de visões médicas, biologizantes e psis. Para ser corpo de
outras formas, que não as impostas pelo dominante, é necessário a imaginação
e a colaboração de outros corpos. Comunidades também podem significar o
compartilhamento da coragem.
Hastear bandeiras para alcançar o vento pela imaginação como ação política.
As comunidades imaginadas também merecem o céu.

Caio Riscado é doutor em artes cênicas pelo PPGAC da Unirio, pós doutorando
no PPGAC da UFRJ, professor substituto do curso de Direção Teatral, da Escola de
Comunicação (ECO) da UFRJ, diretor teatral, artista pesquisador e performer.
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Referências

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Lopes (org.). O corpo educado: pedagogias da sexualidade. Belo Horizonte: Autêntica, 2013.
CERTEAU, Michel de. A invenção do cotidiano. Artes de fazer. Rio de Janeiro: Vozes, 1994.
FABIÃO, Eleonora. Performance e teatro: poéticas e políticas da cena contemporânea.
Sala Preta, São Paulo, n. 8, 2009.
GARRAMUÑO, Florencia. Frutos estranhos: sobre a inespecificidade na estética contemporânea.
Rio de Janeiro: Rocco, 2014.
IORIO, Maria Isabel. Aos outros só atiro o meu corpo. Bragança Paulista: Editora Urutau, 2019.
MALLMANN, Francisco. América. Bragança Paulista: Editora Urutau, 2020.
MISKOLCI, Richard. Teoria queer: um aprendizado pelas diferenças. Belo Horizonte: Autêntica
Editora; Ufop, 2012. (Série Cadernos da Diversidade 6).
MUÑOZ, José Esteban. Disidentifications: queers of color and the performance of politics.
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OITICICA, Hélio. [1968]. O herói anti-herói e o anti-herói anônimo. Sopro, n. 45, 2011. Disponível
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PELBART, Peter Pál. Elementos para uma cartografia da grupalidade. In: SAADI, Fátima;
GARCIA, Silvana (org.). Próximo ato: questões da teatralidade contemporânea. São Paulo:
Itaú Cultural, 2008.
PRECIADO. Paul B. Um apartamento em Urano: crônicas da travessia. Rio de Janeiro: Zahar, 2020.
PRECIADO, Paul B. Multidões Queer: notas para uma política dos anormais. Revista de
Estudos Feministas, Florianópolis, v. 19, n. 1, 2011.
QUILICI, Cassiano. Atonin Artaud: teatro e ritual. São Paulo: Fapesp; Anna Blume, 2004.
RIVERA, Tania; PUCU, Izabela. Arte, memória, sujeito: bandeiras na Praça General Osório
1968 / bandeiras na Praça Tiradentes 2014. Lua Nova, São Paulo, 96, p. 177-190, 2015.
SÜSSEKIND, Maria Luiza. As (im)possibilidades de uma base comum nacional. e-Curriculum, São
Paulo, v.12, n. 3, p. 1512-1529, 2014.

Artigo submetido em março de 2021 e aprovado em junho de 2021.

Como citar:
RISCADO, Caio. Dando bandeira, relatos para comunidades imaginadas. Arte &
Ensaios, Rio de Janeiro, PPGAV-UFRJ, v. 27, n. 41, p. 193-211, jan.-jun. 2021.
ISSN-2448-3338. DOI: https://doi.org/10.37235/ae.n41.11. Disponível em:
http://revistas.ufrj.br/index.php/ae
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Do habitat natural ao sistema da arte: o corpo do animal


como evidência do complexo de mudanças do mundo1
From natural habitat to the art system: the animal’s body
as evidence of a changing world

Marco Túlio Lustosa de Alencar


0000-0002-4030-5584
marcotulioalencar@gmail.com

Resumo
Este artigo situa de que maneira o animal – reconfigurado na forma de objeto de arte
– pode ser tomado como evidência do continuum de mudanças que forjaram o mundo. A
reprodução “artística” das espécies acompanha o percurso da própria humanidade, e, nos
dias de hoje, sua presença estimula novas incumbências para a arte. Obras com essa
especificidade têm sido capazes de acionar uma série de problemas de múltiplas
conformações, sobretudo, quando os liames de humanos e animais se encontram no foco
de instâncias diversificadas. Acompanhando a trajetória desses seres do habitat natural
até sua recepção em espaços certificados, vê-se que, no mesmo rumo dos demais
artefatos apropriados pelos artistas, trabalhos contendo animais podem ser considerados
eminentes para o sistema da arte, a história da arte e a história do mundo.
Palavras-chave
Animal na arte; Objetos de arte; História da arte; Arte contemporânea.

Abstract
This article situates in what way the animal – reconfigured in the form of an art object –
can be taken as evidence of the continuum of changes that forged the world. The “artistic”
reproduction of species follows the path of humanity itself and, nowadays, its presence stimulates
new tasks for art. Works with this specificity have been able to trigger a series of problems with
multiple conformations, especially when the links between humans and animals are the focus
of diversified instances. Following the trajectory of these beings from their natural habitat to their
reception in certified spaces, one can see that, in the same course as other artifacts appropriated by
artists, works containing animals can be considered eminent for the art system, the art history and
the history of the world.
Keywords
Animal in art; Art objects; Art history; Contemporary art.
PPGAV/EBA/UFRJ
Rio de Janeiro, Brasil
ISSN: 2448-3338
1
O presente artigo origina-se de pesquisa de mestrado desenvolvida no Programa de Pós-graduação em
DOI: 10.37235/ae.n41.12 Artes Visuais da Universidade de Brasília.
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A transmudação do corpo do animal, resultante da passagem do estado


natural para o estado de arte, sua inserção no campo poético e a assiduidade como
parte dos códigos da visualidade ajudam a acompanhar (e a esclarecer) muitas
nuanças de um mundo em transformação. A presença do animal – seguindo
trajetória igual à de experimentos não ortodoxos realizados sob o impacto de
novos materiais, de inúmeras procedências – tem fomentado polêmicas notada-
mente em torno dos rumos das poéticas contemporâneas a partir da segunda
metade do século 20. É necessário, todavia, considerar que a determinação de
reproduzir “artisticamente” animais, atestada por diferentes campos do conhe-
cimento, caminha pari passu com a história. O relato visual desses exemplares
atravessou séculos, tendo se plasmado (se o relacionarmos a alguns conceitos
consagrados na história da arte) nos mais diferentes estilos, em uma pluralidade
de escolas, bem como em vários movimentos.
Devido à constância e à resistência dos artistas, intervenções nos corpos
dos espécimes (ou em seus segmentos, incluindo despojos e excrementos)
concorreram para redimensionar o horizonte artístico-estético e, ainda, para
colocar em relevo de maneira categórica a malha em que estão os liames de
seres humanos e animais. As motivações que os fizeram deixar o habitat natural
para se instalar, primeiramente, em lugares de âmbito privado, a seguir, em
locais abertos à visitação pública e, finalmente, tomando o rumo de instituições
reconhecidas pelo sistema da arte mostram que a sua admissão – como a obra
em si ou elemento articulador central em composições – tem sido responsável
por causar diversas modalidades de perturbações e tensionamentos, além de
impulsionar possibilidades do fazer artístico.
Na contemporaneidade, a presença do animal tem estimulado o surgi-
mento de novas incumbências para a arte, relacionadas, entre outras discussões,
principalmente ao debate em torno da sustentabilidade e do meio ambiente,
perpassadas por ideias contidas na doutrina que serve de base para o direito dos
animais, em constante atualização. Pressupondo as especificidades que envolvem
essa questão nos dias de hoje, alguns setores poderiam até mesmo esperar
dos artistas um desempenho exclusivamente na linha do artivismo,2 sendo

2
Consideradas as práticas artísticas que se querem políticas ou práticas políticas que buscam
sustentáculo na arte (Chaia, 2007, p. 9).
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que muitos deles atuaram – um dos mais conhecidos é o alemão Joseph Beuys
(1921-1986), que ajudou a fundar o Partido Verde de seu país – e outros ainda
se posicionam ativamente a favor de causas que envolvem a defesa das espécies.
Muitas vezes, porém, ainda que a militância se dê em outros contextos, trabalhos
de arte acabam por despertar para temas ambientais.3
Obras que empregam animais, contudo, não se restringem ao âmbito
da natureza e da ecologia, sem dúvida, temas cruciais para o atual estágio da
civilização. Trabalhos de cunho artístico com essa especificidade têm sido
capazes de acionar uma série de problemas de múltiplas conformações – polí-
ticos, ideológicos, morais, sexuais, de gênero e de muitas outras categorias –,
sobretudo quando as relações do humano com o animal se encontram no foco
de instâncias diversificadas, incluindo o Poder Judiciário. E, apesar da observância
das normas legais, o que, aparentemente, eliminaria as inquirições jurídicas, há
insistentes pressões de outras áreas.
A recepção dessas obras tem mudado de acordo com os períodos e as
circunstâncias. No caso dos animais já sem vida, submetidos a processos de
preservação por meio de técnicas que conservam suas características exteriores,
mantendo similaridade com a forma de quando ainda não haviam morrido – das
quais a taxidermia é a mais popular –, de um modo geral, sua incorporação vem
sendo mitigada, sem que seja reputada tão constrangedora quanto a presença
do animal vivo.
O engajamento de espécimes vivos, estejam ou não enclausurados, possui
maior aptidão de ferir suscetibilidades e, consequentemente, tem gerado condutas
contestatórias mais hostis. Em meio às crescentes preocupações com a proteção
da biodiversidade e do ecossistema natural, a regularidade de animais na forma de
objetos de arte tem ativado limites cujos reflexos alcançam a liberdade de criação:
há ocorrências de grande repercussão em que se apelou à censura, expressada
por autoridades de todos os níveis. Reportadas em numerosas localidades e em
diferentes escalas, manifestações de protesto – usualmente, sem ter em vista as

3
Caso de Fin de siècle (1990), instalação do grupo canadense General Idea, exposta na XXIV Bienal
de São Paulo (1998) e contendo três focas de pelúcia entre folhas de isopor que simulavam geleiras.
Definida como referente à pandemia da Aids, foi interpretada como um pedido de atenção àqueles
mamíferos que corriam sérios riscos em algumas partes do planeta.
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direções poéticas enunciadas pelos artistas – vêm sendo endereçadas às


proposições e resultam, até mesmo, na interrupção de exposições e outras inge-
rências, cuja medida é dada pelas obras excluídas e as mostras interrompidas ou
vandalizadas. Como ficou evidenciado no rumoroso evento em torno da instalação
Bandeira Branca (2010), apresentada por Nuno Ramos (1960) na 29a Bienal
Internacional de São Paulo, contendo três urubus vivos (figura 1) que, segundo o
planejamento inicial, seriam mantidos dentro de um enorme viveiro ao longo da
mostra com duração de dois meses e meio.

Figura 1
Nuno Ramos, Bandeira
Branca, 2010, urubus vivos,
rede de náilon, esculturas em
taipa de pilão em areia preta,
mármore, caixas de som,
29a Bienal Internacional de
São Paulo
Fonte: nunoramos.com.br

Fundamentada na obra de Oswaldo Goeldi (1895-1961), a instalação


reativou diversos problemas que habitualmente assomam quando da participação
de animais, particularmente, vivos em trabalhos de arte – sob a interferência de
fatores (incluídos extra-artísticos, englobando os de ordem ecológica e/ou
ecossistêmica) que cruzam o universo da arte contemporânea. A inclusão dos
urubus reacendeu a polêmica que tem acompanhado a exibição de espécimes
em espaços públicos e privados de arte: a obra foi motivo de reclamações de
cidadãos, autoridades públicas, políticos e entidades protetoras de animais.
Chegou a ser alvo de pichação e, menos de 15 dias após o início, as aves
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foram retiradas, definitivamente, por decisão judicial, que ignorou as apelações


e as justificativas de que eram urubus criados em cativeiro (os mesmos, aliás,
já haviam estado em exposição similar no Centro Cultural Banco do Brasil, em
Brasília, dois anos antes).
Para demonstrar essas reações, seria possível elencar trabalhos de artistas
dos quatro cantos do mundo. Entre eles, Huang Yong Ping (1954-2019), cujo
Theatre of the World (1993) – uma gaiola escultural em que dezenas de insetos,
répteis e anfíbios, coexistindo como em um ciclo natural, interagiam, lutavam e
chegavam a comer uns aos outros – foi exibido sem os animais no Guggenheim
Museum (Nova York), em 2017, após petições e uma série de atos encetados
por ativistas. A obra de Huang não foi a única banida4 da coletiva Art and China
After 1989: Theatre of the World. O museu tomou a decisão, antes da inaugu-
ração, em face das pressões, impelido por mais de 600 mil firmas colhidas em
um abaixo-assinado digital que clamava por exposições cruelty-free,5 sem inte-
ressar que esses mesmos trabalhos tivessem sido exibidos, isentos de objeções,
em países da Ásia, Europa e outras cidades dos Estados Unidos. Situações como
essas atestam que as desavenças da relação humano/animal se tornam mais
explícitas quando se trata de animais vivos em obras de arte.
Às vezes, entretanto, trabalhos figurativos nos quais animais aparecem
também acabam no centro de polêmicas, como foi o caso do cancelamento da
coletiva Queermuseu − cartografias da diferença na arte da brasileira – em meio
a demonstrações de intolerância de grupos atuantes nas redes sociais, menos
de um mês após a abertura (agosto de 2017) no Santander Cultural (atual Farol
Santander) de Porto Alegre. Foram várias as acusações à mostra, entre as quais,

4
Um vídeo e uma série fotográfica também foram removidos. Dogs that cannot touch each other (2003),
de Sun Yuan (1972) e Peng Yu (1974), registra ação de 2003, em Pequim, na qual cães da raça Pit Bull,
sob esteiras não motorizadas, frente a frente, presos por correntes de modo que não pudessem se
atracar, são provocados a correr em direção aos oponentes. Um sinal sonoro determina a colocação
de painéis entre eles, fazendo-os cessar os movimentos, pondo fim à operação. Enquanto a série A
Case Study of Transference (1993-1994), de Xu Bing (1955), retrata performance na qual um casal
de porcos é marcado com palavras sem sentido com o auxílio de carimbos – em caracteres chineses
(aplicados sobre a pele da fêmea) e no alfabeto ocidental (sobre o macho) – e copula diante do público.
5
A expressão foi cunhada por ativistas e usada, inicialmente, como um rótulo aplicado a produtos de
consumo para identificar quais não resultaram de testes feitos em animais.
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apologia à zoofilia. Denúncia que se reportou à pintura Cena de interior II (1994),


da artista Adriana Varejão (1964). Na tela, entre outras ilustrações de práticas
sexuais, aparecem duas figuras masculinas com uma cabra.
Outras situações corroboram as incontáveis associações semânticas do
uso do animal na arte. Quando o estadunidense Robert Rauschenberg (1925-2008)
expôs pela primeira vez o seu Monogram, em 1959, o trabalho experimentou a
rejeição da crítica e do público, e uma oferta de aquisição, por um colecionador,
para integrar o acervo do MoMA foi recusada. A obra – na qual um bode
empalhado com um pneu de automóvel em volta do corpo repousa sobre uma
base de madeira com rodízios, em meio a diversos elementos – consolidaria
as combines paintings, que marcariam definitivamente a carreira do artista,
e subsistiria como a mais notável entre elas. Hoje, referência obrigatória –
confirmada pela extensa fortuna em torno do trabalho –, Monogram recebeu,
entre outros, o apelido “the satyr in the sphincter” [“o sátiro no esfíncter”], de
Robert Hughes (1997, p. 518), que viu uma “image of anal sex” [“imagem do
sexo anal”], seguindo linha interpretativa que emergiu, nos EUA, mais de duas
décadas após sua exibição pública.
Cabe menção à mostra Sensation: Young British Artists from the Saatchi
Collection. Em 1999, a coletiva chegou a Nova York (Brooklyn Museum), dois
anos após sua estreia em Londres. Com cerca de 90 obras, foi alvo de mani-
festantes, e o prefeito da cidade na época ameaçou cortar a verba destinada
à instituição museal – acontecimento que repercutiu em escala mundial, sendo
fartamente documentado pela mídia. Os ataques dirigidos, na maioria, por grupos
religiosos centraram-se em The Holy Virgin Mary (1996), de Chris Ofili (1968). A
pintura, hoje no acervo do MoMA, reproduzindo a iconografia clássica, traz Maria
como uma mulher negra com um “seio” moldado a partir de esterco de elefante,
mesmo material das estruturas que apoiam a tela.
De episódios como esses, depreende-se que a capacidade de transgredir
e causar rupturas das obras com animais ou suas partes permanece resguardada
não importando o cenário: a presença dos espécimes na arte parece manter per
se a vocação altercadora. E, mesmo que convivam com contestações de origem
difusa, vê-se que os artistas têm resistido e encontrado maneiras de escapar às
restrições. Temos testemunhado, ao longo dos anos, uma profusão de ocasiões,
em eventos de natureza artística, nas quais os animais continuam sendo incluídos.
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Em arte contemporânea, tornou-se raro ver animais sendo retratados


de forma sentimental ou simbólica, mas o interesse por eles parece
nunca ter cessado, e continuou a ser expresso nas artes ao longo do
século XX, ganhando, em anos mais recentes, novas e diferentes
configurações em diversas manifestações envolvendo animais em
galerias e museus. Eles ainda são instrumentos de apelo visual. De
metáfora, e de numerosas justificativas que o artista proponha defender
(Hickmann, 2013, p. 138).

Transformações no estado dos espécimes

Quando o artista executa a passagem do animal da vida natural para “uma


nova forma de vida – a vida de arte” (Canton, 2002, p. 76) e o animal tem seu
estado alterado pela pluralidade de escolhas dos que elegem esses corpos
como matéria-prima, ou seja, é submetido a um deslocamento6 e assume a
nova disposição que lhe é atribuída, são afetados aspectos de um conjunto mais
extenso ligado à produção, recepção, divulgação e circulação de trabalhos de
arte. A utilização dos espécimes ultrapassa questões como autoria, geografia,
linguagem, técnica, forma, interdisciplinaridade, categorização, em meio a um
sortimento de preocupações conceituais e estéticas correlatas a muitos discursos
contemporâneos associados ao ato da criação artística.
Durante o século 20 e até o presente, tornou-se corriqueiro resgatar
um objeto trivial (ou um grupo de objetos) de sua condição ordinária e alçá-lo a um
estado de arte – ação perseverante entre as ideias problematizadas na arte
contemporânea, moldada, entre outras, por práticas destinadas “a deslocar
modos habituais de trabalhar” (Foster, 2014, p. 21). Os deslocamentos, no
entanto, vinham sendo mais discutidos a partir do âmbito geopolítico desenhado
pelo processo de globalização, que implica intenso movimento de pessoas, infor-
mações, capitais, mercadorias, imagens, e, em nosso caso, de artistas e obras
– um indício de como o tema pode ser tratado de maneira transversal em uma
multiplicidade de contextos.

6
Conceito empregado não apenas no sentido mais frequente do vocábulo, uma movimentação de
caráter espacial, mas visando às transformações que alteram o estado dos animais.
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Para situar de que maneira o animal – reconfigurado na forma de objeto


de arte – pode ser tomado como evidência do continuum de mudanças que
moldaram e moldam o mundo são demandados pontos de vista transdisciplinares.
E muitos aspectos da globalização vêm sendo postos em dúvida, nomeada-
mente, por especialistas que se dedicam às perspectivas econômicas da crise
gerada pela pandemia da covid-19, decretada pela Organização Mundial de
Saúde (OMS) em março de 2020. Embora haja quem duvide da profundidade
das transformações que deverão resultar dos atuais acontecimentos, a realidade
que se impôs a partir do espalhamento do novo coronavírus (SARS-CoV-2) por
todo o planeta é fato que não pode ser desconsiderado, pois tem mobilizado,
além da vida social, econômica e cultural, numerosos campos do conhecimento
e acrescenta novos enfoques à questão animal.
Estima-se que, aproximadamente, 60% das doenças infecciosas em
pessoas são zoonoses e tem-se especulado que o início dessa infecção possa ser
algum espécime, na China, país que viu emergir os primeiros casos da doença.7
Entre as causas apontadas está a destruição do meio ambiente, com a conse-
quente redução dos habitat de seres isolados. Apesar disso, há muito, os animais
encontram-se fora do lócus, pressupondo a saída do habitat natural (ecossistema
propício por excelência ao desenvolvimento das espécies em contraponto aos
habitat artificiais ou simulados) para recintos privados.
Os procedimentos que iriam permitir as manobras nos corpos de animais
estão conectados a modus operandi do século 16, no qual se registra a inserção
de seres naturais em lugares onde a permissão de entrada (a alguns espécimes,
pois nem todos eram autorizados a frequentá-los) era dada segundo as suas
singularidades ou excentricidades – os Wunderkammern, gabinetes de curiosi-
dades ou quartos das maravilhas, dos quais se originaram os museus de história
natural e os museus em geral. Ao adentrar as coleções particulares, os animais
iniciavam a transferência para um mundo novo; permaneciam, entretanto, longe

7
Mesmo que a hipótese venha a se confirmar e, apesar de o estamento intelectual vislumbrar
tendências para as relações pós-pandemia, não nos será possível conjecturar acerca de suas implicações
em problemas discutidos neste artigo, como as interações de humanos com animais, seus efeitos
sobre as questões poéticas que circunscrevem a produção coetânea de obras de arte marcada pela
participação de animais, bem como sobre o setor da cultura em geral, incluindo o sistema da arte,
suas instituições e eventos.
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dos olhares do grande público e serviam ao deleite dos residentes ou de seu


círculo próximo. Manter um animal selvagem – mesmo taxidermizado – em casa
acrescentava uma nota de exotismo, perigo ou de exclusividade ao local.
A popularização da taxidermia ocorre no século 19, quando a teoria
darwinista passou a ser difundida de maneira mais intensa concorrendo para
aproximar, significativamente, os homens dos animais. Naquela época também
se tornou corrente a criação de pássaros. Bem como se registra a intensificação,
entre a classe burguesa, da coabitação com outros espécimes no âmbito doméstico.8
Os novos hábitos expandiram o uso decorativo de animais taxidermizados, antes
acondicionados na esfera particular das câmaras de maravilhas mantidas pelas
casas reais, por nobres, humanistas, burgueses ricos ou artistas – notadamente
eruditos, interessados em alargar seus saberes científicos e culturais, marca da
aristocracia. No interior das residências desenvolveu-se ainda, graças à técnica,
o colecionismo de animais.
A segunda metade do século 19 marca o desenvolvimento dos museus
de história natural, vinculados a estudos científicos que visavam coletar,
pesquisar e classificar (uma tentativa de inventariar) a natureza. Tratando especi-
ficamente das coleções desses museus e suas reservas técnicas nas quais nos
deparamos com uma “quantidade colossal de arquivos de bichos empalhados e
dissecados, mantidos em vidros, gavetas, armários”, Marize Malta (2016, p. 2161)
percebe que “tais acervos são importantes para compreender as formas como
foram dados a ver [...], procurando dissimular o processo que levou a estarem
naquele lugar e daquela maneira”.
Um dos primeiros espaços públicos destinados à exibição de animais –
onde já não eram mais mostrados em arranjos taxidérmicos, e o visitante podia
assisti-los em ação, apesar das grades –, os zoológicos surgem nos domínios do
Palácio de Schönbrunn, em 1752, na capital austríaca, inicialmente, como
ménagerie9 imperial, de âmbito privado. John Berger (2009, p. 21) chama a
atenção para o fato de os zoológicos públicos endossarem o poder colonialista

8
Embora, como assinala Shippey (2019), já na época medieval as pessoas vivessem muito mais
próximas dos animais.
9
Vocábulo francês que designa coleção particular de animais vivos, geralmente selvagens e/ou
exóticos, mantidos em cativeiro, um privilégio da nobreza.
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europeu: “A captura de animais era uma representação simbólica da conquista de


terras distantes e exóticas”. Para o autor, os “exploradores provavam seu patrio-
tismo enviando um tigre ou um elefante”, de modo que “presentear um animal
exótico a um zoo da metrópole torna-se um símbolo da subserviência das relações
diplomáticas”.
A permanência dos animais nesses espaços – que provoca outros tipos de
deslocamento, de ordem estética, epistemológica, psicológica e ética – foi sendo
assimilada, e o impacto transgressor da operação, arrefecendo. Nessas novas
condições, as referências naturais originárias restaram diluídas, e as atitudes
dos espectadores diante dos espécimes nesses ambientes sofreram alterações,
reduzindo-se, entre outras, sensações de incômodo e de estranhamento. Um
novo problema seria verificado com a introdução (ou seria intromissão?) dos
corpos dos animais em dispositivos reconhecidos pelo sistema da arte: ao ser
removidos para um local certificado, em forma de obra, os animais passam a
usufruir de novo status. Por essa razão, é preciso ter em mente a rejeição – notada,
em numerosas ocasiões pelos mais diferentes motivos – a trabalhos alicerçados em
animais, que exigem uma mudança de posição daqueles confrontados com
as obras, que guardam a capacidade inerente de desorientar a realidade do
espectador. Pois, a partir da recusa e da resistência, iniciais, a trabalhos que
agregaram coisas em geral (itens industrializados produzidos em série ou resíduos
recolhidos na natureza) é que foram desarticuladas noções mais convencionais
relacionadas aos objetos de arte, expandindo o alcance da própria arte.
O dispositivo que ofereceu suporte para o ingresso dos corpos dos
animais foi o ready-made de Marcel Duchamp (1887-1968) – que avançava nos
mecanismos apropriativos dos cubistas, ao tomar objets trouvés como base para
a colagem. Ao longo do século 20, e chegando aos nossos dias, a realização
duchampiana teve vários desdobramentos, colaborando para que fossem
assentidos não apenas obras contendo artefatos de toda qualidade e proveniência,
mas, também, os trabalhos realizados a partir de corpos dos animais, garantindo
a sua introdução, bem como a permanência, em plataformas consagradas e
possibilitando sua “eternização” como arte.10

10
Ainda que pertençam à categoria de objetos artísticos mais frágeis, que incorporam efeitos da
passagem do tempo e exigem esforço contínuo de preservação para a sobrevivência como tal.
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O corpo do animal: de tema pictural a objeto

Para alcançar o ponto em que os próprios espécimes são transformados


em objeto de arte, é imperativo retroceder e discorrer sobre como se construiu
a iconografia constituída por motivos relacionados aos contornos formais de
animais. É vasta a representação pictural com essa temática e, desde o princípio,
reconhecemos formas esculturais, em osso ou pedra, retratando animais.
Nesse ínterim, é indispensável considerar que, apesar de a intenção propiciatória
primordial vir a ser posteriormente abandonada com a elevação de (certos)
espécimes à categoria de divindades, restaria preservado seu entendimento como
seres misteriosos e possuidores de poderes graças a muitas faculdades,
como a possibilidade de voar, a força, a velocidade ou a capacidade divinatória,
entre outras propriedades. Magia e religião foram fatores que favoreceram a
fixação da imagem dos animais (que, além disso, apareciam em padrões orna-
mentais). Nestas dimensões – sagrada e/ou mítica –, eles desempenharam
uma função central.
Durante o longo período em que a arte permaneceu sob a ascendência da
Bíblia (antes que a ciência se aproximasse da arte), as espécies que podiam ser
reproduzidas estiveram, quase sempre, subordinadas às tradições religiosas –
fossem passagens do livro sagrado dos cristãos ou episódios que ilustravam a
vida de homens e mulheres venerados. Ao longo da trajetória de desconstrução
da antiga representação divina (ou quase divina) predominante na Idade Média,
os animais assumiriam um papel alegórico – entre o teológico e o secular – que
prevaleceria daí em diante, descolando-se, por fim, do Velho e do Novo Testa-
mento. Em todo caso, continuariam, em sua maioria, como coadjuvantes no plano
pictórico.
A partir do século 17 quando se assistiu à laicização de parte da produção
pictórica – no contexto do progresso econômico do norte europeu, apoiado na
Reforma protestante –, a representação de animais iria sofrer profundas alterações
com a consequente transferência dos espécimes do fundo dos quadros para o
primeiro plano (figura 2). Naquele momento, o ideário romântico incentivava um
retorno à natureza – dando impulso à figuração de animais, com alguns artistas
tomando-os como principal motivo (concorrendo para a fixação de uma imagem
que sobreviveria até nossos dias). Serão, entretanto, as renovações promovidas pelo
desenvolvimento industrial – fomentadoras do interesse pelo progresso, marcado
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pelo domínio do homem sobre a natureza –, provocando grandes transformações


nas diretrizes temáticas e formais das técnicas artísticas, que, paradoxalmente,
teriam um papel fundamental e definitivo na valorização desse tópico. A ins-
tauração de novos procedimentos no setor da criação artística resultaria no
rompimento dos códigos hegemônicos até então vigentes, expresso pelo recuo
da mais prestigiosa instituição de arte da época, a Academia Francesa – que, no
final do século 18, ainda mantinha a pintura de animais como uma especiali-
dade menor.
Por muito tempo, os animais prosseguiram distantes de ocupar um lu-
gar central na arte. Esse giro – que só se completa no século 19, firmando-se
no seguinte – começa no século 17, concomitante ao estabelecimento da paisa-
gem como gênero pictórico independente que, livre das referências religiosas,
acrescentava ao quadro, além de aspectos do ambiente – reafirmando o seu
caráter secular –, espécimes variados. A relevância dada aos animais na pintura
coincide ainda com a intensificação das viagens exploratórias, empreendidas
desde a descoberta do Novo Mundo, quando pesquisadores passaram a manter

Figura 2
Frans Snyders, Dois leões
jovens pulando, 1620-1630,
óleo sobre tela, Wallraf-Ri-
chartz-Museum & Fondation
Corboud, Colônia, Alemanha
Fonte: https://commons.
wikimedia.org/wiki/File:-
Frans_Snyders_-_Two_you-
ng_jumping_lions.jpg
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contato com maior variedade de espécies, retratadas por artistas que acompa-
nhavam expedições a territórios então considerados remotos. Desenhos da fauna
e da flora – que atraíam cientistas e artistas –, realizados durante essas jornadas,
eram retrabalhados pelas mãos dos gravadores, e as reproduções – em forma
de ilustrações e estampas, divulgadas por toda a Europa – despertavam para o
que era visto como exótico. Àquela altura, entidades criadas com o objetivo
de incrementar a experimentação nas áreas científica e tecnológica também
foram determinantes para firmar o vínculo entre a arte e a ciência.
Foi um longo ciclo até o desaparecimento da divisão da pintura em
gêneros hierárquicos, resultando na consolidação dos animais como um modo
pictural emancipado, removidos da antiga situação de subserviência à qual
foram longamente submetidos e, já frequentando as telas como principais
objetos, passassem a servir de modelo para artistas de várias épocas. Entre eles,
nomes hoje incontornáveis, como o de Rembrandt Van Rijn (1606-1669), autor
de uma das mais conhecidas cenas de matadouro – Slaughtered Ox (1657) –,
tema pictórico que se desenvolveu na Holanda já a partir do século 16, comum a
artistas associados à pintura de gênero. A atenção à representação figurativa de
animais perduraria até a atualidade.
A contar da metade do século 20, novas formas e questões poéticas –
estéticas e conceituais – passaram a problematizar, na sequência das vanguardas
que caracterizaram a arte moderna, a concepção de arte legitimada até então.
Período marcado por experiências – às vezes radicais, buscando introduzir práticas
artísticas às relações sociais e ao dia a dia dos cidadãos – nas quais se imbricaram
os objetos, as imagens, as palavras e vários outros elementos, é também o
momento em que se verifica o recrudescimento da utilização do próprio corpo
(ou partes) de animais em trabalhos de arte.
Desde então, os deslocamentos provocados pela inserção desses corpos
em plataformas reconhecidas pelo sistema da arte seguiram ampliando os
transtornos causados à relação da arte com seus objetos. Ainda que não corres-
ponda a uma interrupção definitiva da figuração do animal (que nunca deixou
de ser retratado, de modo naturalista ou não, atendendo a diferentes funções),
sua presença “objetual” é intensificada dos anos 1960 em diante. Como nota
Malta (2016, p. 2169), animais foram usados pelos artistas “de modo a escla-
recer posturas de ultrapassagem de uma arte alicerçada fundamentalmente em
qualidades plásticas”.
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Daí em diante, experimentos com animais e seus fragmentos tornam-se


recorrentes também no Brasil, conforme assinalado por Frederico Morais (1995,
p. 33), que esteve à frente, em abril de 1970, em Belo Horizonte, da manifestação
Do Corpo à Terra, inserida no conjunto das exposições nacionais de referência
e que tem sido mais lembrada pelo trabalho de Artur Barrio (1945) – Situação
T/T: série de “trouxas ensanguentadas”, dividida em três partes, nas quais
ele misturou ossos, sangue de animais e carne crua embrulhados em tecidos
brancos, com adição de outros materiais orgânicos e inorgânicos. A obra – tida
como uma resposta incisiva a padrões implantados pelo Estado a partir do golpe
de 31 de março de 1964 – atraiu, além da polícia e da imprensa, “umas cinco
mil pessoas em torno do córrego que atravessa o principal parque da cidade”
(Morais, 1995, p. 31) e tornou-se simbólica, com seus registros fotográficos e
em vídeo sendo continuamente mostrados dentro e fora do país.
Em texto no qual trata do uso de “materiais precários”, “toscos e escatoló-
gicos”, além de “excrementos” na arte, Morais (1995, p. 29-33) realça a atuação
de Cildo Meireles (1948) e outros artistas que se apoderaram de animais para
embasar trabalhos nas mais inusitadas circunstâncias que compreendem, até
mesmo, quadros de maus-tratos e violência extrema, como ficou demonstrado
na emblemática ação intitulada Tiradentes: totem-monumento ao preso político
– na abertura da manifestação Do Corpo à Terra – quando Meireles queimou
galinhas vivas (figuras 3 e 4) em memória aos presos por motivos políticos e às
vítimas da ditadura, “em clara alusão à onda de repressão e tortura vigentes”
(Amaral, 2006, p. 326).
Morais também se referiu a Nelson Leirner (1932-2020) – além do icônico
Porco Empalhado,11 de 1966, que incitou leituras de teor político, ele utilizou
um rato no trabalho Acontecimento (1965), com o animal taxidermizado sobre

11
O porco, confinado em um engradado de madeira, possuía, originalmente, um presunto (que
não chegou a ser exibido) atado ao pescoço, chamando a atenção para o nexo do produto final ao
consumidor e sua origem – um dos ângulos do vínculo entre humanos e animais que inclui finalidades
nutricionais. Leirner voltaria ao tema no filme A rebelião dos animais (1975), no qual coloca o espectador
diante do sistema de produção da indústria alimentícia.
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Figuras 3 e 4 uma dúzia de ratoeiras organizadas no interior de uma moldura –, a Lygia Pape
Cildo Meireles, Tiradentes:
Totem-Monumento ao Preso
(1927-2004), com sua Caixa de Baratas (1967), e a estrangeiros como o
Político, abril de 1970 austríaco Hermann Nitsch (1938). O artista e seu grupo de ativistas faziam
(registro de ação), estaca de
happenings e rituais que eram encerrados com um grande derramamento de
aproximadamente 2,5m de
altura, pano branco, termô- sangue: jogavam as vísceras dos animais escorchados sobre o público. O sacri-
metro clínico, dez galinhas
fício de animais, ação recorrente no Teatro das Orgias e dos Mistérios – coletivo
vivas, gasolina, fósforo, Belo
Horizonte que contabilizou cerca de 100 performances entre 1960 e 1990, do qual Nitsch
Fonte: https://enciclopedia. era líder –, levaria o artista à prisão em seu país e no Reino Unido.
itaucultural.org.br/obra33694/
tiradentes-totem-monumen-
O uso de animais em obras – mesmo as de caráter efêmero – que acabam
to-ao-preso-politico. alcançando projeção por comportar um considerável grau de radicalidade
acarreta novos rumos à prática, transcendendo o atributo artístico das propostas
que possuem essa particularidade. E a resposta do público a trabalhos como
o que foi proposto por Meireles tem se revelado cambiante. Recorda o artista:
“A reação das pessoas foi muito diversa, alguns ficaram furiosos, outros estavam
indignados...” (Amaral, 2006, p. 326). Já Morais (2004, p. 120) traz à lembrança
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o fato de que o ritual “foi condenado por deputados, em discursos inflamados,


durante o almoço que precedeu a entrega de Medalhas da Inconfidência,12 em
Ouro Preto, durante o qual, aliás, se serviu frango ao molho pardo”. Na ocasião,
porém, houve também quem demonstrasse de modo surpreendente apoio à
ação, segundo recapitula o próprio artista:

Eu me lembro que, durante a inauguração, após a queima daquelas


galinhas, uma pessoa veio falar comigo, me felicitando pelo trabalho
e dizendo que tinha entendido perfeitamente o que eu estava dizendo,
que era solidário à ideia, e essa pessoa era o presidente da Sociedade
Protetora de Animais, de Minas Gerais (Lima, 2005, p. 123-124).

Animais e seus despojos continuaram sendo utilizados pelos artistas. Nos


anos 1990, a obra do inglês Damien Hirst (1965) repercutiu no sistema mundial da
arte apresentando exemplares de grande porte inteiros ou seccionados, imersos
em compostos químicos. O mais famoso deles foi o “tubarão de 12 milhões de
dólares”,13 como se tornou internacionalmente conhecido o trabalho, de 1991,
criativamente nomeado The physical impossibility of death in the mind of someone
living [A impossibilidade física da morte na mente de alguém que está vivo] – um
tubarão-tigre de cinco metros de comprimento pesando duas toneladas dentro
de uma caixa de vidro e aço contendo dezenas de litros de solução de formaldeído
(figura 5). O trabalho, embora tratado a partir do potencial de discutir oposições
binárias como vida/morte e permanência/impermanência, suscitou outras
polêmicas pelo uso de materiais não usuais, abrangendo a “curiosa economia
da arte contemporânea”.14

12
Aracy Amaral (2006, p. 326) comenta que a realização de Totem-monumento ao preso político
“se dá exatamente em período que os militares queriam resgatar a imagem de Joaquim José da
Silva Xavier – o Tiradentes – como um herói nacional”.
13
Em 2004, o proprietário, publicitário Charles Saatchi (1943) – também comerciante de arte –,
resolveu vender a obra, que foi adquirida (pelo colecionador estadunidense Steven Cohen, em
janeiro do ano seguinte, em um leilão) pela mesma cifra (posta em dúvida pela imprensa) que
terminou por apelidá-lo.
14
Subtítulo do livro publicado em 2012 pelo economista e colecionador Don Thompson que, a
partir da escultura taxidérmica, traça um painel do mercado internacional da arte nos anos 2000.
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Figura 5
Damien Hirst, The physical
impossibility of death in the
mind of someone living, 1991,
vidro, aço pintado, silicone,
tubarão e solução de formal-
deído, 2170 x 5420 x 1800cm
(Coleção Steven Cohen)
Fonte: http://www.damie-
nhirst.com/the-physical-im-
possibility-of

Eminentes para a história da arte e a história do mundo

Aqui focalizadas como legitimadoras de pesquisas artísticas com a utilização


de animais e indicativas dos posicionamentos dos seus autores concernentes
aos problemas de seu tempo, experiências dessa natureza têm estado no foco
do debate, sobretudo num momento em que a questão animal está em evidência e
tem alimentado o inter-relacionamento de matérias de várias áreas do conheci-
mento, como as ciências humanas e as ciências biológicas. A atração pelo tema
incentiva o surgimento de novos ramos de investigação acadêmico-científica
que, entre outros enfoques, põem em xeque o antropocentrismo. Caso dos
estudos animais, disciplina difundida com bastante interesse nos Estados Unidos
e em países da Europa. Pesquisadora do tema no Brasil, Maria Esther Maciel
(2011, p. 8) avalia que não apenas preocupações ecológicas movem a sociedade
contemporânea, mas, também, “uma tomada mais efetiva de consciência [...]
dos problemas ético-políticos que envolvem nossa relação com as demais
espécies viventes”.
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Assistimos a uma mudança comportamental – com consequências na


produção artística – em vários setores nos quais, tradicionalmente, parecia estar
assegurada a presença de animais, como circos, parques temáticos, zoológicos
e em museus que também funcionam como centros de pesquisa. Com exceção
de animais de estimação – obedecendo aos ditames da legislação –, a perma-
nência de espécimes fora do habitat não tem sido comumente tolerada, e seu
aprisionamento tem-se mostrado um costume execrado. A ideia, quando se
trata da manutenção de animais vivos em cativeiro, é tornar esses locais o mais
próximos do ambiente natural.15
Faz-se imprescindível observar que os animais alcançaram um novo status,
passando a ser considerados “membros da família”: um giro (contínuo e radical)
na condição (primitiva e marginal) de fontes de alimentação e vestuário e de
meros instrumentos de serviço e transporte, para o qual estavam sempre dispo-
níveis. Essa condição parental não é atribuída por seus proprietários, de maneira
consuetudinária, mas por sentenças judiciais, como a do Tribunal de Justiça de
São Paulo determinando, em 2018, que a guarda de animais de estimação, em
virtude de separação de casais, deverá ser definida pelas varas de família, com
a aplicação do Código Civil por analogia. A causa também tramita em instâncias
superiores e há, no Congresso Nacional, matérias sobre o tratamento que deve
ser dispensado aos animais, com equiparação da legislação brasileira à de
outros países.
No caso da arte, ao servir-se dos corpos dos animais como uma peça da
engrenagem visual, os artistas operam modificando os modos de emprego dos
objetos para atuar em camadas de produção de sentido. E, em direção oposta ao
que ocorreu a muitas ações de caráter artístico, vê-se que as estratégias visuais
por meio da utilização dos corpos de animais parecem não se esgotar. Ao contrário,
sobrevivem e atravessam condutas hodiernas, transmutando-se para adequar-se
às poéticas de inúmeros artistas contemporâneos que tratam os animais sob
novo prisma, restando mantida, em qualquer hipótese, a probabilidade de essa
presença produzir polêmicas.

15
Ainda assim, tem sido alvo de inúmeros questionamentos, pelos danos causados, o chamado
turismo animal, que prevê o contato direto com espécies selvagens.
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Desde os anos 1960, quando se registra a exacerbação dos movimentos


artísticos iniciados no século 19 e das novas possibilidades industriais inaugu-
radas no começo do século 20, assistimos à transposição das fronteiras que
circunscreviam aquilo que era conhecido como tradição artística moderna
ocidental e à proliferação das apropriações (da natureza, da indústria, ou de poéticas)
como possibilidades estéticas. Nesse processo de reificação, dilataram-se também
os procedimentos com animais vivos ou mortos, que passaram a ser aceitos na
condição de objeto (do mesmo modo que os demais elementos fabricados ou
não), situação que ampliou o debate sobre os limites da arte, cuja radicalização
tornou possível a toda sorte de artefatos vir a ser objeto de arte.
E, mesmo que tenham sido postos em dúvida em várias ocasiões –
mediante conceitos (ainda persistentes) que privilegiam aspectos imateriais,
além de muitas outras inquietudes, na busca por se afastar do conjunto das
práticas hegemônicas e de noções tornadas modelares, seus referenciais, métodos
e aparatos habituais –, os objetos seguiram resistindo em sua multiplicidade.
Sob essa chancela, os animais continuaram sendo apropriados via operações
que não pararam de se expandir e são vivenciadas por meio de diferentes canais
de circulação de obras de arte. A despeito dos questionamentos e ameaças de
agentes diversos, os espécimes e suas partes passaram a frequentar o reper-
tório da arte de forma irreversível, ingressando em um fluxo que nem conflitos,
controvérsias e confrontos de variadas ordens têm sido capazes de neutralizar.
Atentando para a extensão da temática – que poderia ensejar uma história
da arte paralela, caso fosse possível abranger, sem simplificações, toda a vitali-
dade e repercussão dessa produção que se desdobrou ao longo dos séculos e
que se confunde com o percurso da própria humanidade –, não presenciamos
até agora evento que ressaltasse de maneira peremptória a devida estatura de
obras possuidoras dessa peculiaridade. Iniciativas que proporcionassem uma
visão dilatada do uso que é feito na arte de animais de toda espécie – das
amostras figurativas primordiais até as manifestações contemporâneas mais
atuais (quando têm sido apresentados em diferentes situações de exposição,
nos mais inespecíficos meios e formatos) –, certamente, convergiriam para a
abertura de novas perspectivas, atualizar perceptos, reciclar mecanismos de
validação e desanuviar o olhar carregado de certa dimensão exótica que ainda
tem sido posto sobre esses trabalhos. Contribuiriam também para o reconhecimento
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do valor intrínseco das obras contendo animais, ao associá-las a caminhos já


trilhados por objetos e artefatos em geral, hoje, incorporados (quase por
completo) e tidos como eminentes para o sistema da arte, para a história da arte
e a história do mundo.

Marco Túlio Lustosa de Alencar é mestre na linha Teoria e História da Arte pelo
PPGAV/UnB (2020). Graduado em teoria, crítica e história da arte pela mesma
universidade e comunicação social − jornalismo pela Universidade Federal
do Ceará.

Referências

AMARAL, Aracy A. Arte num período difícil (1964-c.1980). In: AMARAL, Aracy A. Textos
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Acesso em dez. 2019.

Artigo submetido em março de 2021 e aprovado em junho de 2021.

Como citar:
ALENCAR, Marco Túlio Lustosa de. Do habitat natural ao sistema da arte: o corpo do
animal como evidência do complexo de mudanças do mundo. Arte & Ensaios, Rio de
Janeiro, PPGAV-UFRJ, v. 27, n. 41, p. 212-232, jan.-jun. 2021. ISSN-2448-3338.
DOI: https://doi.org/10.37235/ae.n41.12 Disponível em: http://revistas.ufrj.br/
index.php/ae
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Ensaio para o acidental: a loucura e a queda em Rancière,


Bas Jan Ader e dom Quixote1
Essay for the accidental: loucura and fall in Rancière,
Bas Jan Ader and Dom Quixote
Daniela Cunha Blanco
0000-0002-9425-6394
danielablanco27@gmail.com

Resumo
A partir de duas figuras que marcam a modernidade – René Descartes e dom Quixote – pensamos
como configuram modos de pensamento diversos e opostos. Entre o método que busca o enca-
deamento causal das coisas e a errância do corpo entregue às aventuras da imaginação, o filósofo
e o cavaleiro instauram um embate que não é aquele entre a razão e o sensível, mas sim, entre dois
modos da razão. Nosso intuito é pensar, especialmente a partir de Jacques Rancière, como o
cavaleiro errante teria aberto um novo campo da experiência sensível que denominamos acidental,
cujo gesto é a recusa da lógica do encadeamento causal cartesiano. Damos a ver, ainda, o modo
como o gesto inaugurado por dom Quixote será reverberado nos gestos do artista contemporâneo
Bas Jan Ader, com seu empenho em buscar a queda tal qual dom Quixote buscara a loucura. O
que surgiria com a recusa da causalidade no cavaleiro e no artista, em nossa hipótese, é uma
mudança de estatuto da própria noção de acidente ou acidental que, deixando de ser considerado
erro a ser evitado, passará a ser experienciado como a única possibilidade para um mundo pautado
na contingência da vida.
Palavras-chave
Heterogêneo sensível; Experiência acidental; Jacques Rancière;
Errância; Modos de pensamento.
Abstract
Based on two figures that marks the modernity − René Descartes and Don Quixote − we think about
how they configure different and opposite modes of thought. Between the method that seeks the causal
chain of things and the wandering of the body given over to the adventures of the imagination, the
philosopher and the knight establish a clash that is not that between reason and sensible, but between
two modes of reason. We think, especialy from Jacques Rancière, how the errant knight would have
opened up a new field of the sensible experience that we call accidental, whose gesture is the refusal of
the logic of the Cartesian causal chain. We also show how the gesture inaugurated by Don Quixote will
be reflected in the gestures of the contemporary artist Bas Jan Ader, with his efforts to seek the fall just
as Don Quixote sought madness. What would arise with the refusal of causality in the rider and in the
artist, in our hypothesis, is a change in the status of the very notion of accident or accidental that, no
longer being considered as an error to be avoided, will now be experienced as the only possibility for a
world based on the contingency of life.
PPGAV/EBA/UFRJ
Keywords
Rio de Janeiro, Brasil
ISSN: 2448-3338 Heterogeneous sensible; Accidental experience; Jacques Rancière;
DOI: 10.37235/ae.n41.13 Wandering; Forms of thinking.

1
Este trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior – Brasil
(Capes) – Código de Financiamento 001.
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Retratado como uma figura esguia e frágil, o cavaleiro errante dom Quixote
– personagem do livro O engenhoso fidalgo D. Quixote de La Mancha, escrito
por Miguel de Cervantes (2005) – é visto como um acontecimento inaugural da
literatura moderna. Que um cavaleiro errante, entregue a sua própria loucura,
seja alçado a herói de uma época pode causar espanto; afinal, a subida do
personagem ao rol dos heróis da modernidade expressaria a afirmação do erro
e da loucura como figuras da razão moderna. Razão essa que logo associamos a
outro personagem da modernidade: o filósofo René Descartes (2011) – imagem
oposta à de dom Quixote –, para quem justamente o erro e a loucura aparecem
como alvo contra o qual a razão deve lutar, em busca da verdade e do pensa-
mento “claro e distinto”. Nosso pensamento, ainda envolto pela aura do filósofo,
não sabe lidar muito bem com o erro. A experiência do pensamento, nos diz a
ciência moderna cartesiana, deve ser reta e direta, deve buscar a verdade, fugir
dos erros, deve ter método, e o método deve fazer partir de um ponto A para
chegar a um ponto B, deve construir as relações entre as causas e os efeitos. Nas
próprias palavras de Descartes (2009, p. 34), trata-se de “conduzir por ordem
meus pensamentos, começando pelos objetos mais simples e mais fáceis de
conhecer, para subir pouco a pouco, como por degraus, até o conhecimento dos
mais compostos”. O filósofo chega a concluir que tudo aquilo que é objeto de
conhecimento dos homens obedece a uma mesma cadeia de razões, bastando,
com isso, criar um método capaz de deduzir a verdade de uma coisa a partir de
outra, seguindo a ordem do mais simples ao mais complexo. Assim, a linha reta
diz mais sobre o pensamento cientificista moderno do que a linha curva da
errância, do que, ainda, o entrelaçamento confuso de linhas que formam, mais
do que um percurso de A a B, uma rede, uma teia de aranha, sempre a ser
reconstruída, a cada vez, de um ponto diverso.
Por esse motivo, nos causa tanto espanto que a errância de dom Quixote
tenha se configurado como representante da modernidade. Com estas duas
figuras – Descartes e dom Quixote – marcando o pensamento moderno, o campo
de nossas experiências fica, ao mesmo tempo, delimitado pela “clareza e distinção”
do pensamento cartesiano e atravessado pelo pensamento errante do herói
enlouquecido. Parece, afinal, que, imersos no método do filósofo, acabamos por
perder o rumo, que o campo da experiência não pode mais ser projetado,
pensado, controlado. De qualquer causa que partamos, os efeitos serão acidentais.
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A loucura de dom Quixote irá, assim, subverter o estatuto do acidente tal qual
pensado por Descartes (2009, p. 7), para quem interessava conhecer as “‘formas’
ou naturezas dos ‘indivíduos’ de uma mesma espécie”, e não seus “acidentes”,
que podem ser compreendidos como tudo aquilo que não faz parte da essência
do homem. Como afirma Descartes (2011, p. 71), “a extensão, a figura, a situação
e o movimento de lugar, é verdade que elas não estão formalmente em mim,
porquanto sou apenas uma coisa que pensa”. Sendo essa a única essência do
ser do homem, qualquer outra qualidade não o define como homem, antes, apenas
aparece como um acidente. O acidental, assim, configura-se no pensamento
cartesiano como uma névoa de aparências enganadoras, como o véu de ilusão
que devemos fazer desaparecer pelo método do filósofo.
Nosso intuito é pensar como dom Quixote inaugura, mais do que um
gênero ou estilo literário, um outro modo de pensamento. A partir de Jacques
Rancière, em breve diálogo com Gilles Deleuze, pretendemos pensar como o
cavaleiro errante teria aberto um novo campo da experiência sensível, que irá
reverberar nos gestos do artista contemporâneo Bas Jan Ader, com seu empenho
em buscar a queda tal qual dom Quixote buscara a loucura. A principal caracte-
rística dessa experiência inaugurada na narrativa do cavaleiro e perpetuada nos
gestos do artista é a recusa do modo de pensamento cartesiano, aquele pautado
no encadeamento causal das coisas em busca da essência ou verdade. O que
surgiria com a recusa da causalidade em nossa hipótese é uma mudança de
estatuto da própria noção de acidente ou acidental que, deixando de ser conside-
rado erro a ser evitado, passará a ser experienciado como a única possibilidade
para um mundo pautado na contingência da vida.
Cabe notar que tais relações se fazem a partir de um recorte estético tal
como compreendido por Rancière: não apenas algo referido ao sensível ou à
sensibilidade, mas, antes, a um regime de identificação das artes, o regime
estético. Trata-se de compreender que a arte não é uma figura fixa ao longo do
tempo ou, ainda, em diversos espaços e campos discursivos; ela é uma figura
sempre a se reconfigurar no interior de um regime que determina suas formas
de visibilidade e de pensabilidade. Nesse sentido, a partir de um determinado
regime − o estético −, é possível traçar um diálogo com a arte anterior ao próprio
surgimento da estética, compreendida como uma disciplina ou campo teórico no
interior da filosofia. Assim, percorrer o fio da errância entre dom Quixote e Bas
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Jan Ader é, também, acompanhar a configuração do regime estético das artes


e o modo com que rompe com os pressupostos do regime que o precedeu, qual
seja, o regime representativo.

O louco da letra e o embaralhamento entre realidade e ficção

Como nos é contado no livro de Cervantes (2005), o fidalgo que se


autoproclamará dom Quixote vende a maior parte de suas terras, pausa todas as
suas atividades e passa a investir todo o seu tempo e dinheiro nos livros de
cavalaria. O personagem se apaixona pelas palavras a tal ponto que, enlouquecido
pela “letra errante” dos livros que lhe tomam o corpo – como diz Jacques
Rancière (2010) –, resolve viver tais aventuras (ou desventuras) na vida real,
empreendendo uma longa viagem com o único intuito de encontrar-se com toda
e qualquer aventura, para retornar em glória e casar-se com sua amada Dulcineia
– personagem que vem reunir-se ao rol de fantasias e invenções de sua cabeça.
O corpo do cavaleiro errante, esguio e frágil, será entregue a viver a loucura que
confunde ficção e realidade a tal ponto, que a própria divisão, antes garantidora da
existência desses dois espaços separados, cai em ruínas. Vestindo uma arma-
dura e acompanhado de um camponês pobre e tolo que faz de seu escudeiro,
o cavaleiro errante reproduz, misturando fantasia e realidade, as aventuras dos
romances de cavalaria. Cria para si uma princesa – que, na verdade, é apenas uma
camponesa – em nome da qual irá lutar, com o intuito de retornar e lhe dedicar
seu amor. Enfrentando diversos inimigos imaginários, dom Quixote terminará
suas aventuras lutando contra um amigo, acreditando ser este um de seus piores
inimigos. Preocupado em tirá-lo da loucura a que se entregou, o referido amigo
se disfarça de cavaleiro e o derrota em uma luta diante uma multidão. O
cavaleiro, assim, é dissuadido de continuar em suas aventuras e, retornando a
casa, pede perdão a todos em seu leito de morte, tendo Sancho Pança ao lado
até seus últimos minutos de vida.
Sem objetivos a não ser aquele de dar vida às histórias que lia nos livros
de cavalaria, dom Quixote entrega seu corpo à “letra errante” da ficção. Não há
um destino certo; o cavaleiro se joga na estrada com seu cavalo e seu fiel compa-
nheiro Sancho como um errante. Em sua recusa por manter separado o espaço
da literatura, no qual as fantasias se diferenciam da realidade, dom Quixote vê
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moinhos de vento se transformarem em gigantes, fantoches, em pessoas reais,


uma procissão religiosa transfigurar-se em um grupo de sequestradores. Suas
ações são sempre atrapalhadas, seus efeitos são sempre desastrosos. Tudo se
passa como se O engenhoso fidalgo D. Quixote de La Mancha fosse um romance
sobre a “falência da ação” da qual fala Rancière (2017b, p. 108) no livro O fio
perdido:

a ação, como sabemos, não é simplesmente o fato de fazer algo. Ela é


um modo do pensamento, uma estrutura de racionalidade que define,
ao mesmo tempo, uma norma de comportamentos sociais legítimos e
uma norma de composições de ficções.

Sua falência significa, assim, não apenas a falha das ações do personagem,
mas também da ação como forma de pensamento que configura um mundo no
qual cada coisa ocupa seu lugar “certo”, no qual a cada indivíduo é destinado um
fim, no qual, ainda, cada espaço e cada tempo são partilhados a cada um segundo
aquilo que lhe cabe em uma série de hierarquias e regras. A ação configura um
modo de pensamento afeito às regras cartesianas, na qual se parte em linha reta
de um ponto a outro com o intuito de encontrar, para cada causa, um efeito
possível e, para cada efeito, uma causa. Que a ação falhe não significa somente
que os efeitos esperados de um gesto não se realizem, mas, também, que a
própria ideia de um encadeamento causal de fatos e acontecimentos não dá
conta de explicar ou de pensar o que é a experiência. É preciso abdicar da causali-
dade para tornar possível o pensamento da experiência. Essa mesma experiência
moderna que nasce no embate entre o corpo do cavaleiro errante entregue à
loucura e o corpo desaparecido no método do filósofo.
Para Rancière (2017b), a falência da ação marca a ruptura do regime
estético em relação ao regime representativo e deve ser compreendida como
um modo de pensamento que libera toda imagem, palavra e todo corpo da
obrigação de narrar um encadeamento de acontecimentos importantes. Não
é apenas a linearidade que é banida em prol da multiplicidade de linhas da teia,
mas também as hierarquias que definiam quais imagens, palavras e corpos
seriam dignos de visibilidade e de pensabilidade. É essa reconfiguração operada
pela falência da ação que cria espaço para que um louco seja herói, para que
um corpo frágil possa guerrear contra moinhos de vento e batalhões saídos de
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sua própria imaginação. Dom Quixote, porém, não faz uma simples passagem
que vai da razão (realidade) ao mundo da imaginação (ficção). Com o embara-
lhamento das fronteiras entre os livros e a vida do personagem, como afirma
Rancière (2010, p. 21), a própria divisão entre vida e arte é colocada em risco por

Dom Quixote, quebrando os títeres de mestre Pedro, recusando, assim,


reconhecer um espaço-tempo específico no qual faz-se de conta
acreditar em histórias nas quais não se crê. Assim, Dom Quixote não é
simplesmente o herói da cavalaria defunta e da imaginação enlouque-
cida. Ele é também herói da forma romanesca, aquela de um modo da
ficção que põe em perigo seu estatuto (tradução nossa).

Dom quixote faz ruir qualquer ideia de que aquilo que separa a ficção da
realidade é uma espécie de convenção social, um contrato firmado entre as
partes para garantir um espaço diverso no qual se pode mentir sem colocar a
verdade em perigo. O cavaleiro inaugura um novo modo da ficção no qual o erro
não só é aceito, mas, ainda, passa a qualificar um modo de pensar, um modo
de ser e um modo de aparecer. A errância é seu modo de entregar seu corpo
ao mundo, de experienciar a vida. Esse modo da ficção abre, assim, um campo
de experiência para o acidental, pois o erro já não é mais efeito de alguma
má decisão do pensamento. O erro é, antes, uma escolha cujas consequências
acidentais não são vistas como algo a ser consertado ou revisto, mas como o
próprio campo da experiência. Inverte-se, assim, o jogo: acidente e erro não são
mais efeitos do pensamento; antes, é o próprio pensamento que será construído
a partir da experiência do erro e do acidente. Aquela essência humana que
Descartes acreditava garantir a partir da razão é substituída pela ideia de
que aquilo que existe é o acidente contingencial.
A busca pela experiência acidental implica colocar o corpo em jogo. Esse
corpo, contudo, não está nem imbuído de uma consciência anterior a tudo (o
cogito cartesiano, com seu postulado “penso, logo existo”), nem completamente
abandonado pela razão; não responde a um plano, mas, tampouco, deixou de se
propor a algo. Figura frágil, evanescente, sempre a escapar ou a ser aprisionada,
mas figura possível de ser experienciada, o acidental, em dom Quixote, aparece
no jogo de seu corpo entre o ficcional e o real – que é um jogo entre dois modos
diversos de ocupar o sensível: um pautado na convenção que separa realidade e
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fantasia e outro capaz de fazer ruir tais separações. Esses dois modos de ocupar
o sensível determinam, ainda, como nos mostra Rancière (2017b), temporali-
dades ou maneiras diversas de compreender e vivenciar o tempo: uma exige o
encadeamento causal e linear do tempo, compreendendo que são responsáveis
por tornar a ficção verossímil; na outra coisas e acontecimentos se ligam de
maneira dispersa, em camadas temporais diversas que se sobrepõem em uma
série contingencial de intercâmbios. Passa-se, assim, do regime representativo
ao regime estético.
Deve-se notar, porém, que a interpretação estética de Rancière do embate
em dom Quixote não coloca, de um lado, a razão e a realidade (cartesianas) e,
de outro, o sensível e a fantasia. Sua loucura não é a ausência ou perda da
razão de alguém que se teria deixado levar pela ilusão do sensível (como o quer
Descartes). A loucura de dom Quixote não é ausência de pensamento, mas, sim,
outro modo de pensamento. É o que nos mostra o estranho evento, para o qual
Rancière nos chama a atenção, no qual dom Quixote deseja enviar uma carta
a Dulcineia, sua amada, por intermédio de seu fiel escudeiro Sancho Pança.
Aventurando-se pela Serra Morena, o cavaleiro, sem um papel que pudesse
utilizar, decide escrever a carta no livro de bolso encontrado em uma sacola
pertencente a um dos personagens que encontra pelo caminho. Sancho, que
não sabe escrever, é imbuído da missão de levar a carta à próxima aldeia e lá
solicitar a um mestre de escola que a transcreva em um devido papel de carta
que deverá ser remetido, então, a Dulcinéia. Sancho, no entanto, questiona o
cavaleiro sobre como reproduzir sua assinatura para que a carta pareça autêntica.
Ao que dom Quixote responde, nas palavras de Rancière (2017c, p. 213-214),

com uma série de argumentos irrespondíveis: primeiro, Dulcineia não


conhece a assinatura de Dom Quixote; segundo, Dulcineia não sabe ler;
terceiro, Dulcineia não sabe quem é Dom Quixote; quarto, a própria
Dulcineia, ou melhor a camponesa Aldonza Lorenço, não sabe que ela
é Dulcineia. Então Sancho pode partir completamente tranquilo.

Dom Quixote demonstrava, até então, ter a amada Dulcineia como uma
realidade para a qual retornaria após suas longas aventuras. Ao ser confrontado
por Sancho quanto ao envio da carta, entretanto, demonstra uma perspectiva
na qual a fantasia e a loucura, responsáveis por criar Dulcinéia, estão no mesmo
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plano que a “realidade” da aldeã Aldonza Lorenço. Não se sabe, após a resposta
de dom Quixote, se é a si próprio que o personagem engana ou se é a nós,
leitores. Não se sabe, na verdade, se é mesmo um engano. Com tal reposta dom
Quixote dá a ver que suas ações são impulsionadas por uma razão na qual a
“realidade” de Aldonza Lorenço se vê misturada com a “ficção” de Dulcineia. E
essa “confusão” entre os dois espaços e tempos não é uma ausência da razão,
é uma escolha deliberada de outra razão. O cavaleiro errante não é levado pelo
engano a fazer o que faz, antes, decide entregar seu corpo ao acidental, àquilo
que está fora de ordem, ao que é desvio, falha, queda. Sua loucura é premeditada
− mas apenas na medida em que se considera que o que advém ao corpo quando
ele é oferecido à loucura é a pura contingência da vida.

O louco da queda e a vida singular do anônimo

A errância, assim, surge como figura de uma experiência acidental que


iremos encontrar ainda em outro errante, de corpo frágil e esguio, mais próximo
de nosso tempo: o artista holandês Bas Jan Ader. Aos 33 anos de idade, em 9 de
julho de 1975, Jan Ader embarcava em um pequeno barco à vela, destinado,
usualmente, a pequenos deslocamentos pelo mar. Este barco, porém, o Ocean
Wave, teria um destino aparentemente mais grandioso: atravessar o oceano
Figura 1
Bas Jan Ader, In search of
Atlântico. A jornada solitária pela vastidão e o perigo dos mares faria parte de uma
the miraculous, 1975 tríade de ações nomeadas, em seu conjunto, In search of the miraculous [Em busca
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Figura 2
Bas Jan Ader, In search of
the miraculous, 1975

do miraculoso]. A primeira ação fora realizada em uma única noite na qual Bas Jan
Ader caminhava por Los Angeles e se deixava fotografar pela esposa. A série,
composta por 18 fotos, mostra uma silhueta evanescente lutando contra as
luzes da cidade pelo seu direito de desaparecer. Um corpo solitário, figurado como
uma sombra em meio à escuridão salpicada de pontos de luz.2 A segunda ação
– se assim a denominamos é apenas de maneira precária e provisória, pois que
se assemelha mais à falência da ação inaugurada por nosso cavaleiro errante, dom
Quixote – era a impossível jornada pelo Atlântico, no Ocean Wave, saindo de
Massachussets com destino a Falmouth, na Inglaterra. A travessia, que deveria
ter acontecido no período de dois a três meses, nunca foi completada. O milagre
não foi encontrado. Ao menos se o considerarmos a realização total de uma ação;
ao menos se o entendermos como a recusa da queda, como a negação da falha e
do erro; ao menos se postulamos o milagre como a conquista alcançada por um
herói. Os gestos de Bas Jan Ader, porém, ecoam a errância de dom Quixote mais
do que a assertividade das ações heroicas. Se dom Quixote entregou seu corpo
ao acidental perseguindo deliberadamente a loucura, Bas Jan Ader, por sua vez,
entregará seu corpo à queda na busca pela “mesma” experiência acidental.

2
(Imagens 1 e 2) As imagens referentes a In search of the miraculous podem ser encontradas no link:
https://aucourantarts.wordpress.com/2012/03/18/bas-jan-ader/.
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No primeiro vídeo realizado por Bas Jan Ader, Fall I [A queda I], o artista
senta-se, impassível, em uma cadeira em cima do telhado de sua casa. Como se
apenas deixasse a gravidade fazer efeito sobre um corpo que não resiste, vemos
sua fina silhueta começar a inclinar-se, e seu corpo, girando em torno de seu
próprio eixo, funcionar como uma roda que o leva do céu ao chão. Rolando telhado
abaixo, a cadeira que antes sustentava seu corpo em cima do telhado, caindo
também, passa por cima de sua cabeça. Já na beirada do telhado, quando seu
corpo alcança o ar, vemos o sapato escapar-lhe do pé e cair no chão, como uma
advertência do que nossos olhos verão a seguir: um corpo submetido à gravi-
dade, um corpo que se joga à experiência da queda. A entrega de seu corpo faz
estremecer nosso próprio corpo, assustado diante de sua impassividade. Em Fall II
[A queda II], será sobre uma bicicleta que veremos Bas Jan Ader avançar em
direção a um rio em Amsterdã, pedalando calmamente, e entregando-se nova-
mente à queda. Veremos, ainda, inumeráveis vezes, Bas Jan Ader entregar seu
corpo à queda e ao ato de falhar, levantando pedras que caem e apagam as
luzes ao redor de seu corpo, pendurado a uma árvore para deixar-se cair,
equilibrando-se ao lado de um cavalete para logo tombar ao chão em sua
direção ou, até mesmo, em uma queda metafórica, em um vídeo no qual vemos
o artista chorar desesperadamente, as lágrimas escorrendo sobre sua face, o
corpo chacoalhado pelos espasmos de tristeza.3
Encadeando uma queda à outra, interligando-as a um fio de causalidade,
seria fácil e imediato afirmar que In search of the miraculous [Em busca do
miraculoso] surge como o grande e último espetáculo de um artista. Porém,
buscaremos outro pensamento possível, recusando a causalidade cartesiana,
para traçar, em seu lugar, o entrelaçamento com o fio traçado pela experiência
acidental quixotesca. Afirmaremos que a derradeira obra de Bas Jan Ader é, não
o último ato que viria compor uma linha de acontecimentos anteriores, mas, sim,
a repetição incessante de um gesto: aquele de entregar-se à queda e ao
acidental, aquele, ainda, da confirmação incessante da falência da ação tal qual
compreendida por Rancière. A jornada pelo mar foi não apenas o fim de sua vida

3
(Imagens 3, 4 e 5) Alguns dos vídeos referidos no texto, como Fall I [A queda I], Fall II [A queda II] e Broken
Fall [Queda quebrada], podem ser vistos em sequência no link: https://www.youtube.com/watch?v=O_Vr1H_
PK_c&list=PLojAccB3EnFDqJfJxbLaWBAC5Gpi-xTml. Outro vídeo, ainda, I’m too sad to tell you [Eu estou
triste demais para dizer], pode ser encontrado no link: https://www.youtube.com/watch?v=KQ1U3XbEzR4
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Figura 3
Bas Jan Ader, Fall I, 1970

Figura 4
Bas Jan Ader, Fall II, 1970
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Figura 5
Bas Jan Ader, Broken Fall,
1971

artística, mas, também, seu suspiro de vida final. Desaparecido após a terceira
semana vagando pelo mar, o corpo do artista nunca foi encontrado. Seu pequeno
barco, destinado à grandes feitos, foi encontrado cerca de um ano depois próximo
à costa da Irlanda. Todas as criativas especulações em torno do desaparecimento
do artista – navegando entre o suicídio ou a possibilidade de que Bas Jan Ader
esteja ainda vivo, vivendo outra identidade – em nada nos interessam. Afinal,
tais especulações estariam preocupadas em perguntar sobre uma certa eficácia ou
não de sua ação, sobre ter ela sido ou não sua grande obra (um salto calculado pela
mente genial do artista que, tendo morrido ou assumido uma outra identi-
dade, teria alcançado o maior feito de sua vida: deixar à posteridade sua mais
importante obra de arte). Considerar uma linha causal entre suas obras e ações
seria inseri-lo naquela temporalidade já rompida por dom Quixote, na qual cada
gesto deve ser explicado, esmiuçado e encaixado em uma série causal que vai
de A a B; seria, assim, pensar os gestos de Bas Jan Ader a partir do método
cartesiano, ao regime representativo, reduzindo sua experiência a um projeto
cuja eficácia deveríamos medir.
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Considerar a própria ideia de um legado deixado pelo artista é, no mínimo,


desconsiderar sua imensa paixão pela queda, é esquecer a atração fusional que
o ato de falhar tinha sobre Bas Jan Ader. Se ele foi um louco, não o foi por ter
almejado um projeto grande demais, talvez irrealizável, mas, sim, por ter entre-
gado seu corpo à arte, por ter ultrapassado, com seu corpo, todas as bordas
que desenham o espaço da arte como algo separado da vida, e por tê-lo feito não
abdicando da diferença desse espaço, mas inserindo-a radicalmente no espaço
comum e banal da vida, como o fez dom Quixote ao recusar a convenção da litera-
tura compreendida como um campo no qual a ficção está separada da realidade.
Os gestos de Bas Jan Ader e sua insistência por entregar seu corpo à queda e ao
acidental nos levam a tentar interpretá-lo, e há diversas histórias sobre a vida
individual do artista que aparecem, aqui e ali, como “explicações” de suas
escolhas artísticas. Uma delas é o fuzilamento do pai quando o artista tinha apenas
dois anos de idade. Atuando como pastor da Igreja protestante holandesa, seu
pai foi condenado pelo nazismo por abrigar e ajudar judeus. Assim, poder-se-ia
dizer que Bas Jan Ader estaria destinado a repetir os atos heroicos do pai, entre-
gando o corpo à arte. Mas, há algo em seus gestos que extravasa qualquer cálculo
ou escolha, qualquer idiossincrasia de uma determinada biografia. Nos afastamos,
assim, do pensamento da vida individual do artista para pensar seus gestos a
partir de uma outra temporalidade: aquela concebida por Rancière como recusa
ao encadeamento causal, e pensada, também, por outro autor, Gilles Deleuze
(2016, p. 410), como vida impessoal, ou vida singular “vida de pura imanência,
neutra, para além do bem e do mal, pois o sujeito apenas, que a encarnava no
meio [milieu] das coisas, é que a tornava boa ou ruim” (Deleuze, 2016, p. 410).4

4
Rancière (2013) traça alguns diálogos com Deleuze, em especial em suas discussões em torno do
cinema, a partir de uma crítica, qual seja, aquela que afirma que o pensamento de Deleuze sobre dois
momentos diversos do cinema (o da imagem-movimento e o da imagem-tempo) teria perdido de vista
que ambos os modos de trabalhar a temporalidade já estariam contidos no regime estético, antes ainda
do surgimento do cinema, naquilo que Rancière denominou revolução literária. Rancière, assim, leva
para o pensamento do cinema a discussão da falência da ação, característica do regime estético, do
campo literário para o campo do cinema e da imagem. Apesar de tais divergências, acreditamos que
seja possível fazer a aproximação entre os autores a partir do recorte do pensamento do impessoal e
do singular, afinal, ambos os autores pensam tais categorias em momentos diversos de suas obras,
demonstrando bastante proximidade e diálogo.
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Uma vida que extravasa qualquer ideia de eficácia, qualquer noção de causalidade,
pois, uma vida não subsumida às decisões de uma consciência que lhe preceda,
que não está sob jugo de um eu ou sujeito que determina seu campo de experiência.
Deleuze, interessado em recusar o cogito cartesiano e todo o arcabouço
metodológico que traz consigo, concebe a ideia de uma vida impessoal, que
tomamos emprestada para pensar a experiência acidental. Com sua busca pelo
acidental, na queda, Bas Jan Ader foi apenas um corpo que se deu à vida, uma
vida impessoal desprovida de qualquer ideia de individualidade; descarnada,
assim, de qualquer idiossincrasia que lhe fizesse ser reconhecido como dono de
suas ações, como um sujeito anterior à experiência de seu corpo. Ainda seguindo
o pensamento de Deleuze (2016, p. 410), “a vida de tal individualidade se apaga
em proveito da vida singular imanente a um homem que não tem mais nome,
embora não se confunda com nenhum outro. Essência singular, uma vida...”.
A “individualidade” pertence a esse mundo da vida ordenada e da biografia:
um artista, holandês, leitor de Kant, Hegel e Camus, filho de um pai assassinado
pelo nazismo. A “singularidade”, por sua vez, diz respeito a esse “homem que
não tem mais nome”, do qual fala Deleuze (2016, p. 410). A individualidade é
construída como um quebra-cabeça no qual cada parte tem seu lugar em um
encadeamento causal. A vida singular, por sua vez, é acidental. É disto que se
trata: como viver o acidental – aquilo que advém inesperadamente – se não nos
permitimos sair de nossa vida ordenada e individual, de nossa vida em que cada
gesto tem lugar, explicação, causas e consequências? Ao mesmo tempo, como
afirmar que o acidental é algo que buscamos se, a partir do momento em que
projetamos algo, ele logo passa a deixar de ser acidental? Pensamos ser essa a
questão que reúne Bas Jan Ader e o cavaleiro errante dom Quixote: esse movi-
mento ou gesto que não está imbuído de um desejo de encontrar uma resposta,
mas simplesmente de viver uma tal experiência. Viver e experienciar a pergunta
sobre a possibilidade do acidental. O gesto de Bas Jan Ader, assim, foi entregar
seu corpo à queda na construção de uma experiência acidental, bem como o do
cavaleiro errante foi entregar o corpo à loucura em busca desse mesmo acidental.
O contraste entre uma vida singular e uma vida individual, concebido por
Deleuze, aparece, também, no pensamento de Rancière (2017a), sob outra
forma. Ao analisar a literatura romanesca Rancière aponta a “revolução
sensível” que teria se operado com a configuração de uma escrita preocupada
com os “momentos quaisquer” – momentos que a nada servem, desprovidos de
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funcionalidade, acontecimentos descarnados de um sentido lógico. “Momento


qualquer” no qual a vida do “qualquer um” ou dos “anônimos” irrompe em algo
inesperado, acidental. O anônimo, como diz Rancière (2005, p. 81), “não é uma
força originária. É o conceito de uma distância, ou, melhor, um conceito-distância.
Não há um ser-anônimo, mas, sim, devires-anônimos” (tradução nossa). Para
Rancière, o anônimo não é um indivíduo identificado, tampouco uma massa de
pessoas que se reúnem em torno de algo: grupos, coletivos ou mesmo a ideia
mais geral de povo não explicam o sentido do termo. Mais do que um conjunto
de corpos, o anônimo é esse “conceito-distância” que reúne “quase-corpos”.
Vidas que não são reconhecidas como sendo a de um determinado indivíduo.
Mas, antes, vidas partilhadas entre os “quaisquer” em sua imponderabilidade.
Os gestos de Jan Ader não nos dizem nada sobre como viver nossas vidas
do trabalho, da casa e das relações sociais, mas nos afetam e nos tocam como se a
entrega de seu corpo à queda partilhasse com nossos corpos o desejo de caminhar
por outros tempos, outros espaços. Como observa Deleuze (2016, p. 410),

uma vida está em toda parte, em todos os momentos que atravessa


este ou aquele sujeito vivo e aos quais certos objetos vividos dão a medida:
vida imanente levando consigo os acontecimentos ou singularidades que
nada fazem senão atualizar-se nos sujeitos e nos objetos.

Essa vida anônima que se manifesta nos gestos de Bas Jan Ader não é
efeito de sua consciência. Os gestos do artista não se resumem a uma explicação
causal cujos sintomas aparecem já de partida em sua personalidade ou história
de vida. Desviar, assim, da individualidade de Bas Jan Ader, de sua identidade e
das histórias que a compõem, não faz, simplesmente, com que ela desapareça,
mas torna possível que a experiência acidental não seja resumida a uma linha
causal de acontecimentos. Com tal desvio, dá-se espaço para o surgimento de
uma vida acidental – uma vida singular, com Deleuze, e anônima, com Rancière
–, na qual aquilo que advém não é o já esperado, não é mero desdobramento de
ações cujos efeitos já se sabiam de partida. Rancière opõe a uma vida ordenada
pelos espaços e papéis sociais – com seus ritmos e temporalidades determinadas
pelas necessidades “individuais” – uma vida cuja temporalidade não é a do
encadeamento causal, mas, antes, a da sobreposição de camadas espaçotemporais
em sua multiplicidade. Nessa temporalidade, os gestos de Bas Jan Ader expressam
uma vida anônima que escapa a todo esforço por explicá-la.
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Tecendo fios soltos: o heterogêneo sensível e a experiência acidental

E é nesse sentido que podemos aproximar a figura de dom Quixote à


silhueta esguia, sempre em queda, de Bas Jan Ader. Os dois errantes, ao entregar
seus corpos à experiência acidental, deslocam os gestos de seus espaços usuais,
desviam o sentido que lhes atribuímos e, com isso, dão a ver aquilo que Rancière
(2009, p. 59) aponta como sendo a capacidade da arte: de reconfigurar “o mapa
do sensível confundindo a funcionalidade dos gestos e dos ritmos adaptados
aos ciclos naturais da produção, reprodução e submissão”. A queda, em Bas Jan
Ader, bem como a loucura, em dom Quixote, não aparecem como aquilo que se
costuma evitar e do qual nos sentimos envergonhados. Antes, a queda e a loucura
são constitutivas de uma vida que procura viver uma temporalidade diferente
daquela imposta pela ordenação social. Há, apenas, o acidental: uma experiência
radical do sensível que pode ser pensada a partir do que Rancière (2011, p. 171)
aponta como

um modo de ser específico do sensível, de um ‘sensível heterogêneo’,


subtraído das conexões habituais do conhecimento e do desejo, e tornado
manifestação de uma identificação entre o pensamento e o não pensa-
mento, entre o querer e o não querer, entre a atividade e a passividade
(destaque nosso).

Entrelaçando – não em linha reta, mas em camadas sobrepostas – a


experiência da queda em Bas Jan Ader, a experiência da loucura de dom Quixote,
a “vida singular” de Deleuze e o “momento qualquer” dos “anônimos” de Rancière,
construímos a ideia de uma experiência sensível cujas características não podem
ser explicitadas em uma racionalidade passível de reprodução. O que não significa
dizer que não possa ser pensada, tampouco que não se possa vivê-la. Antes, é
apenas o pensamento em ato, bem como a vida em ato, que pode configurá-la
de fato. Navegamos, assim, entre a vida que nos é imposta pela ordenação da
produção incessante e uma vida cujo fio solto só pode ser construído no momento
mesmo em que nos perdemos: uma experiência acidental. O acidental, assim, é
um modo de experiência que se configura nesse espaço entre a vida individual
e a vida singular, entre as idiossincrasias de uma individualidade e o anonimato
do “qualquer um”. Bas Jan Ader e dom Quixote buscam a queda e a loucura,
aceitam-nas como se suas vidas só fossem possíveis singularizadas naquilo que
toda vida individual recusa.
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Resta, assim, quase nenhuma resposta, mas, sim, uma série de questões
que moveram este ensaio para o acidental. O que seria entregar-se ao acidental?
O acidente é aquilo que nos acomete sem que o esperemos, aquilo do qual
gostaríamos de fugir pois nos é estranho. Mas não seria justamente isso que
pensamos quando falamos daquilo que a arte é capaz de operar em nós? Não se
trata da possibilidade de experienciar algo que desloca nosso cotidiano? Às vezes,
aliás, é essa a sensação que temos quando nos deparamos com certa obra em
uma exposição, com certa imagem em um filme ou com certas palavras em um
livro: um algo acidental que nos acomete, que nos atravessa. Mas é preciso
olhar a imagem, é preciso entregar seu corpo à imagem para que ela o afete. É
necessário fazer com que as palavras entrem no corpo. É isso que dom Quixote
e Bas Jan Ader fazem ao entregar-se ao acidental: deixam-se abertos para uma
experiência sensível heterogênea, como a que descreve Rancière. Assim, se,
como espectadores ou como simplesmente corpos viventes, seguirmos a insis-
tência de Bas Jan Ader e de dom Quixote, nos entregando à experiência acidental,
possamos, talvez, sentir uma espécie de descentramento, uma dissolução de
nossa individualidade, possamos viver, talvez, por um segundo, aquela vida
singular e anônima.

Daniela Cunha Blanco é doutoranda em filosofia na Universidade


de São Paulo e bolsista Capes.

Referências

CERVANTES SAAVEDRA, Miguel de. O engenhoso fidalgo D. Quixote de La Mancha.


Primeiro livro. Trad. Sérgio Molina. 3 ed. 1 reimp. São Paulo: Editora 34, 2005.

DELEUZE, Gilles. Imanência: uma vida. In: Dois regimes de loucos. Trad. Guilherme Ivo.
São Paulo: Editora 34, 2016.

DESCARTES, René. Meditações metafísicas. Trad. Maria Ermantina de Almeida Prado


Galvão. 3 ed. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2011.

DESCARTES, René. Discurso do método. Trad. Maria Ermantina de Almeida Prado Galvão.
4 ed. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2009.
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RANCIÈRE, Jacques. Le bords de la fiction. Paris: Éditions du Seuil, 2017a.

RANCIÈRE, Jacques. O fio perdido: ensaios sobre a ficção moderna. Trad. Marcelo Mori.
São Paulo: Martins Fontes, 2017b.

RANCIÈRE, Jacques. Políticas da escrita. 2 ed. Trad. Raquel Ramalhete, Laís Eleonora
Vilanova, Ligia Vassalo e Eloisa Araújo Ribeiro. São Paulo: Editora 34, 2017c.

RANCIÈRE, Jacques. A fábula cinematográfica. Trad. Christian Pierre Kasper. Campinas:


Papirus, 2013.

RANCIÈRE, Jacques. A comunidade estética. Trad. André Gracindo e Ivana Grehs. Poiesis,
Niterói, n. 17, 2011.

RANCIÈRE, Jacques. La parole muette. Paris: Fayard/ Pluriel, 2010.

RANCIÈRE, Jacques. A partilha do sensível. Trad. Mônica Costa Netto. 2 ed. São Paulo:
Editora 34, 2009.

RANCIÈRE, Jacques. Sobre políticas estéticas. Trad. Manuel Arranz. Barcelona: Servei de
publicacions de la Universitat Autònoma de Barcelona, 2005.

Artigo submetido em março de 2021 e aprovado em junho de 2021.

Como citar:
BLANCO, Daniela Cunha. Ensaio para o acidental: a loucura e a queda em Rancière,
Bas Jan Ader e dom Quixote. Arte & Ensaios, Rio de Janeiro, PPGAV-UFRJ, v. 27,
n. 41, p. 233-250, jan.-jun. 2021. ISSN-2448-3338. DOI: https://doi.org/10.37235/
ae.n41.13. Disponível em: http://revistas.ufrj.br/index.php/ae
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Monumentos urbanos e arte pública: os obeliscos em rotação1


Urban monuments and public art: the obelisks in rotation

Edilson Pereira
0000-0001-8308-661X
edilson.pereira@eco.ufrj.br

Resumo
Este ensaio aborda uma forma monumental antiga e muito disseminada no mundo – o
obelisco e suas variações – para refletir sobre a importância desse artefato estético e
sociocultural até o último século, quando passa a interagir com questões oriundas dos
debates propostos pela “arte pública”. Considerando os usos históricos e contemporâ-
neos dos monumentos verticais não figurativos, abordo algumas intervenções e instalações
artísticas, focalizando monumentos públicos, para mapear as estratégias de subversão das
formas e sentidos a eles atribuídos. Demonstro que certos monumentos são objeto de várias
intervenções ao longo do tempo, enquanto algumas instalações artísticas se apresentam
como contramonumentos em sintonia com os princípios de participação e debate público que
animam os valores democráticos.
Palavras-chave
Obelisco; Monumento público; Arte pública;
Paisagem urbana; Contramonumento.
Abstract
This essay discusses an ancient monumental form and very widespread in the world – the
obelisk and its variations – to reflect on the importance of this aesthetic and sociocultural
artifact until the last century, when it started to interact with issues arising from the debates
proposed by the “public art”. Considering the historical and contemporary uses of vertical
non-figurative monuments, I address some interventions and artistic installations focusing on
public monuments to map the subversion of the forms and meanings canonically attributed to
such artifacts. There are cases in which a monument is the object of several interventions over
time, and others, complementary, in which the proposal is to constitute a counter-monument in line
with the principles of participation and public debate that animate democratic societies.
Keywords
Obelisk; Public monument; Public art; Urban landscape; Counter-monument.

PPGAV/EBA/UFRJ
1
Rio de Janeiro, Brasil Uma versão preliminar deste ensaio foi apresentada, no início de 2021, na disciplina “Antropologia da moderni-
ISSN: 2448-3338 dade. Materialidades e espaço público: monumentos”, ministrada por Emerson Giumbelli no PPGAS da UFRGS,
DOI: 10.37235/ae.n41.14 da qual participei como professor convidado. Agradeço à turma e ao colega a estimulante interlocução.
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O obelisco parece servir como a expressão perfeita


da união – uma grande massa coalescida em um
único gesto que desmente todo o dissenso.
Mas essa forma de ler o monumento
fala mais de desejo do que de realidade.
(Savage, 1987, p.226)2

A vida sociocultural dos monumentos é marcada por um interessante


dilema: eles seguem sendo fabricados e inseridos na paisagem urbana ao
mesmo tempo em que cresce a desconfiança em relação a eles. No campo
das artes, as vias de experimentação e reflexão sobre os monumentos oficiais
vêm sendo analisadas por vários autores que focalizam a arte contemporânea
(Young, 1992; Danziger, 2010; Seligmann-Silva, 2016; Cidade, 2017, entre
outros). Um ponto comum nesses estudos é a constatação do aumento do
número de artistas e coletivos que se engajam em pautas “públicas” envolvendo
os direitos urbanos e de minorias, cujas histórias frequentemente são oblite-
radas dentro e fora dos grandes centros de arte. Em conjunto, as ações dessa
natureza formam o que se convenciona chamar de arte pública, uma noção de
difícil definição (Felshin, 1995; Deutsche, 2018), pelo fato de englobar uma
miríade de iniciativas e processos artísticos que, em alguma medida, incluem a
ênfase nas formas de participação, mediação e reflexão compartilhadas entre
artistas e seus públicos interlocutores. Grosso modo, trata-se de projetos que
visam criar intervenções no território e na cena urbana, estimulando o “debate
público” em torno de símbolos e valores que integram a vida em democracia.
Neste ensaio, recupero a história de um tipo particular de artefato, o
obelisco, para pensar a consagração e a subversão de sua forma monumental
pela arte pública. Abordarei diferentes obeliscos e algumas de suas variações,
como colunas ou pilares que, em vez de integrar um conjunto arquitetônico,
sustentando-o, são exibidas isoladamente em espaços urbanos, destacados

2
No original: the obelisk seems to serve as the perfect expression of union – a great mass coalesced into a single
gesture that belies all dissension. But this way of reading the monument speaks more of longing than of reality;
nessa e nas demais citações em idiomas estrangeiros a tradução é nossa.
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do entorno. O interesse pelo monumento não figurativo decorre, em parte, da


constatação de que a ausência de eloquência e dramaticidade que marcam as
esculturas ou cenas de caráter realista faz com que, em sua geometria e
verticalidade característica, ele seja menos problematizado na cena pública.
O relativo silêncio pode ser um indicativo da eficácia alcançada pelo modelo de
marcadores urbanos, usados para orientar pensamentos coletivos em torno
de um passado a se cultuar – ou seja, uma forma estética secularizada, mas com
efeitos de consagração (Pereira et al., 2018).
Considero a antiguidade e perenidade da forma para analisar sua
reprodução e apropriação transcultural até a atualidade, quando são abordados
exemplos contemporâneos de relação com os obeliscos e seu simbolismo.
Baseando-me em casos de várias partes do mundo, sejam eles antigos ou
modernos, argumento que, seja por meio do reforço, desvio ou contraposição às
formas monumentais canônicas, o cruzamento analítico dos monumentos com
questões da arte pública pode gerar novos modos de pensar o tema. Em síntese,
proponho ir além da definição de uma tipologia de artefatos e arquiteturas, com
o intuito de enfatizar as vias criativas inauguradas por artistas e coletivos que
permitem pensar criticamente formas monumentais como os obeliscos.
Depois de breve caracterização histórica e cultural dos obeliscos, a
análise focaliza as ações site specific, de Marta Minujín e Leandro Erlich, que
duplicam, tombam e subvertem a geometria de poder expressa pelo monumento
central de Buenos Aires. Com o intuito de cartografar parte da complexa relação
entre estéticas, políticas da memória e espaço público, o artigo avança até a
ideia de “contramonumento” proposta por John Gerz e Esther Shalev-Gerz, em
Hamburgo, na Alemanha. Em conjunto, esses e os demais casos aqui acionados
são considerados alternativas plásticas e conceituais aos modelos de represen-
tação oficial da autoridade e do poder instituído.

Perenidade e apropriação da forma

Para apreender a singularidade das intervenções da arte contemporânea


em relação aos monumentos verticalizados, vale a pena recuperar parte da
história dessa forma canônica, considerando suas raízes culturais e sua trans-
formação ao longo do tempo. Mais do que uma extensa revisão do passado da
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forma obelisco, proponho explorar alguns casos históricos exemplares, que


permitam compreender certos procedimentos de apropriação e ressignificação
que antecedem e excedem os experimentos da arte contemporânea, mas que
encontram neles possíveis reverberações.
Pilares, colunas e obeliscos representam uma das fórmulas monumentais
mais antigas e repercutidas do mundo, configurando-se como artefatos elaborados
com a finalidade de marcar e qualificar certo espaço e tempo, singularizando-os.
Na forma de monolitos esculpidos ou como produtos de engenharia, eles são
estrategicamente dispostos em áreas abertas, dando-lhes destaque em relação
ao entorno edificado. As raízes históricas dos obeliscos, em particular, remontam
a 2500 a.C. aproximadamente, estando integradas ao universo religioso e
funerário egípcio, de devoção ao deus solar Rá (Salgueiro, 2008). O culto ao sol
justificaria a “forma de ‘agulha de pedra’” que representaria, desde o cume, os
“raios de sol petrificados” (Salgueiro, 2008, p. 33).
No continente europeu, o artefato religioso e sua forma prototípica
ganharam novos sentidos. Ainda na Antiguidade romana, os obeliscos foram
associados às arquiteturas celebrativas de conquistas e batalhas do império (Le
Goff, 1990, p. 536). O uso comemorativo se consolida nos séculos posteriores,
e as conquistas representadas pelos obeliscos, até como troféus expropriados
de seus locais de origem, compreendiam a vitória do cristianismo romano sobre
o paganismo. Obeliscos egípcios e cópias imperiais integravam a paisagem da
Roma antiga.
Séculos depois, no contexto da Contrarreforma, o centro geográfico do
catolicismo no Ocidente se valia dos obeliscos para narrar sua história monu-
mental. Data dessa época, no século 16, a construção da Basílica de São Pedro
e a instalação do obelisco que permanece na praça do Vaticano até hoje. O projeto
construtivo da basílica visava firmar aquele espaço como o centro geográfico do
catolicismo, sua capital. Para tanto, a própria cidade de Roma passaria por uma
reforma urbana, comandada pelo papa Sixto V (1521-1590). A sacralização da
cidade ocorreria mediante sua reconfiguração material e simbólica, alterando os
marcos de sua topografia e paisagem. Vários obeliscos antigos foram deslocados
e se intensificou o processo de “monumentalização dos locais de descanso dos
mártires cristãos” (Cymbalista, 2010, p. 56). Entre esses locais, estava justa-
mente o terreno escolhido para a edificação do Vaticano. No primeiro século,
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existia naquele sítio o Circo de Nero, em que inúmeros cristãos foram sacrificados.
A arena de espetáculos do imperador destacava em seu interior um obelisco
egípcio, troféu exibido pelo poder romano que se tornou um ponto de martírio
(Cymbalista, 2010).
Em 1586, o obelisco foi transportado ao centro da praça de São Pedro.
Sobre o monolito original, foram instaladas novas figuras, incluindo uma cruz em
seu topo. Em vez de apagar o passado do artefato, a apropriação cristã operou de
modo a acentuar algumas de suas facetas históricas, propositadamente. A forma
que antes expressava o culto a um deus solar, em Heliópolis, no Egito, tornou-se
uma metonímia da hierarquia eclesial: um centro verticalizado de poder, que
conecta Céu e Terra. Enquanto representante de Cristo na Terra, a Igreja enfatiza
a representação da divindade como “o sol da justiça” (Malaquias, 4:2) e “a luz do
mundo” (João, 8:12).
Esse caso-limite mostra que, além de a forma obelisco ser utilizada
historicamente para diferentes fins, a durabilidade de certos monumentos
permite que eles acumulem várias camadas de sentido, por vezes díspares ou
recombinadas entre si. À medida que foi se consagrando como um cânone, o
obelisco se estabeleceu em uma forma que ultrapassa fronteiras nacionais e
repertórios culturais. Em sua economia estética própria, ele se revela capaz de
articular sentidos potencialmente contraditórios ao longo de sua biografia cultural
(Kopytoff, 2008).
A ambiguidade dessa forma monumental pode ser notada no papel
desempenhado pelo obelisco que se localiza no umbigo da cidade de Paris, a
Place de la Concorde. O terreno destinado à instalação do obelisco proveniente da
cidade egípcia de Luxor, no século 19, foi a praça onde, no contexto da Revolução
Francesa, o neto do Rei-Sol, Luís XVI, foi decapitado com Maria Antonieta.
Considerando o passado sangrento do local, Taussig (2012, p. 15) pondera que
as sociedades constroem espaços que servem não só para reafirmar um sistema
de poder estabelecido, mas também para abrigar a sua transgressão. Seria esse
o caso da Concorde, espécie de centro ritual do Estado francês. Para o autor, a
história do monumento condensa uma ambiguidade irresoluta, uma opacidade
inerente que se replica em outros monumentos não figurativos. Em sua aná-
lise, Taussig recupera os escritos de Walter Benjamin sobre a Concorde e seu
marco central.
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Obelisco. Aquilo que há quatro mil anos foi sepultado e ali está hoje no
centro da maior de todas as praças. Se isso lhe fosse profetizado – que
triunfo para o faraó! O primeiro império cultural do Ocidente trará um
dia em seu centro o monumento comemorativo de seu reinado. Que
aspecto tem, na verdade, essa glória?
Nenhum dentre dez mil que passam por ali se detém; nenhum dentre
dez mil que se detêm pode ler a inscrição (Benjamin, 1987, p. 36).

Benjamin sublinha a ambivalência do artefato “histórico”, cultuado por


razões distintas em cada lado do Mediterrâneo. Ao atravessar fronteiras temporais
e territoriais, o obelisco com seu grafismo característico se torna uma espécie
de símbolo indecifrável, pela linguagem que apresenta em suas faces laterais.
Destacado no entroncamento de vias centrais do “império cultural” francês, ele
permanece como um objeto mudo, inoperamente em sua significação primeira.
Porém, sua posse e exibição pública tornam-no um tipo de troféu, reportando-nos
à história colonial e dos expedientes de expropriação, mantidos pelos países
europeus por meio de acordos diplomáticos assimétricos. A metrópole parisiense
assiste e se exibe por meio de um artefato exótico e, ao mesmo tempo, convertido
em um emblema da cidade e de seu passado.

Marcos “públicos” da modernidade

Os exemplos monumentais apresentados até aqui mostram que a pereni-


dade material dos obeliscos permite, em certos casos, que eles tenham longa
biografia, atravessando épocas e usos culturais. Trata-se de uma forma monu-
mental antiga, apropriada e reproduzida, mas que por conta de sua geometria
singular – enquanto objeto destituído da eloquência característica dos monumentos
que dramatizam pessoas ou cenas – pode servir como um símbolo adequado a
fins muito afastados de sua função ritual primeira.
No contexto da modernidade, os obeliscos se mantiveram integrados a
novos usos políticos e culturais. Numa época marcada pela ideologia do progresso,
que tendeu a universalizar a compreensão do tempo como uma flecha irrever-
sível, afastando o presente sempre mais do passado, erigir monumentos para
fazer lembrar algum personagem, evento ou história associada à identidade
coletiva se tornou uma prática compartilhada por muitas nações europeias e
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além. Complementarmente, diferentes objetos e construções passaram a ser


incluídos no rol dos artefatos monumentalizados, isto é, que adquiriram a
qualidade de marcação territorial e histórica, seja regional ou nacional.
Ao estudar o tema, o historiador da arte e conservador vienense Alois Riegl
(2014) constatou não apenas a continuidade do uso dos monumentos, mas a
renovação de seu valor e a proliferação de suas formas. Escrevendo na aurora
do século 20, ele considerava a modernidade o cenário de desenvolvimento do
“culto moderno dos monumentos”, que consiste em uma atenção devotada e
consciente a esse tipo de artefato urbano. Tal culto resultava da atribuição de valor
de antiguidade e historicidade aos monumentos, como substratos materiais de
civilizações antigas ou documentos vivos de um passado distante, mas também
memorialístico. De sua parte, os novos monumentos adquiriam tanto o valor de
novidade quanto o artístico, como criações estéticas de um tipo específico que
reportam narrativas do presente ou do passado a ser relembrado pelas gerações
futuras. São, muitas vezes, monumentos produzidos com fins de exprimir, no seio
das cidades, os marcos que sustentam a história “pública” projetada pelo Estado.
Em seus usos modernos, os obeliscos exprimem novamente uma contradição
inerente a sua forma e seu uso: embora remetam a um modelo monumental que
remonta à antiguidade euro-africana, eles passaram a ser integrados a discursos
que acionam a ideia de modernização urbana e progresso social, isto é, que
enfatizam uma marcação temporal a partir do presente para o conhecimento
das gerações futuras. Podemos verificar isso em inúmeras cidades brasileiras,
nas quais se edificaram obeliscos “com o fim de registro de memória de obras
públicas relevantes” (Salgueiro, 2008, p. 33). O primeiro monumento erigido em
São Paulo, por exemplo, ainda em 1814, foi o Obelisco da Memória, no antigo
largo da Memória (atual praça da Bandeira). A forma canônica foi reproduzida
para memorializar a inauguração de um chafariz na região de entroncamento de
importantes rotas da cidade na época.3

3
Mais informações sobre o obelisco do século 19 estão disponíveis no site da prefeitura paulistana
(cf. Cidade de São Paulo, 2010).
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Monumentos urbanos e arte pública: os obeliscos em rotação 258

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Outro caso interessante a ser considerado é o obelisco inaugurado no Rio


de Janeiro, em 1906, para celebrar a inauguração da avenida Rio Branco, no
Centro da antiga capital federal. A construção da via central fazia parte da
política de transformação da fisionomia da cidade, iniciada na gestão do prefeito
Pereira Passos. O projeto se inspirava no modelo haussmaniano do urbanismo
parisiense, incluindo a perspectiva higienista em relação às moradias populares
no tecido urbano. A escolha de uma forma monumental clássica para comemorar
um marco da engenharia moderna é, por si só, instigante. Mas é preciso lembrar
que a abertura da Rio Branco ocorreu de modo condicionado ao início do arrasa-
mento do morro do Castelo, realizado a partir de 1904. Ou seja, a avenida que
simboliza a modernização do Distrito Federal e o obelisco que gravou sua
memória para o futuro foram criados à custa da destruição de um potencial local
de memória (Nora, 1993). Naquele morro, hoje inexistente, encontravam-se
diversos marcos urbanos e de arquitetura que compunham parte importante da
história de fundação da cidade.4 Anos mais tarde, já em 1930, o obelisco carioca
participaria dos novos rumos políticos no país. O fim da República Velha, ocasio-
nado por meio de um golpe de Estado que encaminhou Getúlio Vargas ao poder,
teve por símbolo a chegada dos militares gaúchos, com seus cavalos, ao marco
no Centro da capital.
As políticas de remoção urbana da belle époque carioca e o autoritarismo da
ditadura varguista fornecem exemplos das estratégias políticas que se valem
da ideia de “bem público” para realizar intervenções urbanas, ainda que visando
atender a interesses particulares e do próprio Estado. Seja pela construção de
novos monumentos ou pela reconfiguração de antigos, os dispositivos modernos
de memorialização “pública” operam, em muitos casos, obliterando certas
histórias para elevar outras. Por isso, de acordo com Benjamin (1994, p. 255),
“nunca houve um monumento de cultura que não fosse também um monu-
mento de barbárie”. A modernidade avança como uma máquina de produção
incessante de ruínas.

4
“Foi onde se estabeleceram seus primeiros habitantes e governadores. Era onde estava a sede de
sua primeira catedral, São Sebastião e a sepultura de Estácio de Sá” (Fundação..., 2020).
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Figura 1
Disponível em: http://me-
morialdademocracia.com.
br/card/a-revolucao-de-30
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Monumentos urbanos e arte pública: os obeliscos em rotação 260

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A perspectiva crítica encontrada em Benjamin, entre outros autores, coloca


em xeque os empreendimentos que erigem e reproduzem uma história única,
monumentalizada. Para o autor, toda história contada deve ser compreendida
como o reverso de outra, que foi esquecida (Benjamin, 1987, p. 230). Logo,
enquanto os Estados modernos – incluindo os do nazifascismo – difundiram o
culto de seus líderes exemplares, reverenciando-os mediante a reprodução de
narrativas e criação de marcos mnemônicos, a tarefa dos historiadores seria
fazer jus à “memória dos sem nome”, daqueles que se situam à margem da
história oficial.
Nesse aspecto, a crítica benjaminiana abre caminho a debates importantes
no campo das artes, especialmente da chamada arte pública. Ao abordar o tema,
Rosalyn Deutsche (1992, 2018) colabora com a desconstrução do romantismo
mantido em relação à arte, tacitamente positivada e vista como algo essencialmente
benéfico em suas inserções urbanas, como obras que se tornam “públicas” porque
se situam em áreas abertas da cidade. Rompendo com tal ideário, a autora
argumenta que a inclusão de uma nova escultura ou monumento urbano
classificado como arte pública pode estar, em verdade, associada a mecanismos
de exclusão social e gentrificação sob a chancela da “revitalização urbana”. A
arte, nesses casos, justifica a apropriação de zonas da cidade, a princípio de uso
comum, por agentes privados e pelo Estado.
Deutsche observa que a noção de arte pública pode ser usada de maneira
conservadora tanto quanto a de democracia – as mesmas palavras sendo utilizadas
por setores políticos de esquerda ou da direita, ora para incluir novos atores nos
planos de gestão da cidade, ora para restringir as vias de expressão política e
cidadania de grupos vulnerabilizados. A análise de Deutsche ajuda a compreender
os usos socioculturais e políticos da arte dos monumentos para além de seu
julgamento estético. A questão, segundo a autora, não é decidir se uma obra de
arte pública é bela ou visualmente impactante, mas a quais perspectivas políticas,
urbanísticas e da memória coletiva ela visa atender ou aludir. E, ainda, se ela
é eficaz nessa intenção. Como no caso dos monumentos verticalizados, cabe
indagar como a arte pública viabiliza a inserção de novos atores e memórias na
composição do espaço público por meio desses artefatos urbanos.
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Ao analisar a trama que interliga artistas, críticos de arte, arquitetos e


urbanistas na composição da arte pública, Deutsche (1992) ressalta que o
“público”, do “espaço público”, não se configura como um lugar físico em oposição
ao privado e ao doméstico. Mais do que isso, trata-se de uma modalidade de inte-
ração social e política que produz um debate sobre o que deve ser tomado como
público, isto é, como questão levada ao público, àqueles que integram uma
democracia (e não só a seus representantes). Para existir de fato, o debate
proposto pela arte pública precisa criar condições para que outros atores
possam ser ouvidos e, assim, protagonizar processos decisórios em relação à
vida nas cidades, seus marcos arquitetônicos e memórias a difundir.
Com base nessa maneira de pensar o público, a autora traça uma diferen-
ciação entre a “velha arte pública”, que repercute uma autoridade específica, ainda
que justificada como difusa (em nome “da sociedade” ou do “bem comum”, como
os monumentos estatais), e a “nova arte pública”. Nesta última categoria estariam
incluídas ações como as do feminismo, que estimularam debates e formas de
participação política redefinindo o que é de interesse público. Igualmente o fizeram
os artistas e ativistas que, desde os anos 1970, realizam processos comparti-
lhados com o público (moradores, turistas, membros de uma comunidade etc.),
os quais tendem a deslocar os locais e formatos canônicos da representação
política. São ações que ajudam a repensar as formas do fazer político e artístico,
pela intensificação da ideia de que o contexto econômico, geográfico, histórico
dos agentes envolvidos faz parte do processo/obra (Felshin, 1995) – sendo essa
uma dimensão-chave nas intervenções artísticas com monumentos urbanos.

Arte pública: um obelisco, de cima abaixo

Para abordar a expansão da arte pública em relação aos artefatos urbanos


monumentais, gostaria de avançar na análise dos usos e apropriações da forma
obelisco, desta vez, para abordar um conjunto de ações produzidas ao longo de
décadas por diferentes artistas e ativistas em torno de um mesmo monumento:
o Obelisco de Buenos Aires. Inaugurado em 1936, ele é classificado como “o
maior emblema da cidade e de seus habitantes”, afirma o site oficial da Secretaria
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Monumentos urbanos e arte pública: os obeliscos em rotação 262

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de Turismo do município.5 Originalmente, o obelisco foi projetado para ser um


marco (temporal) da comemoração do quarto centenário da primeira fundação
de Buenos Aires e (espacial) do lugar onde foi hasteada, pela primeira vez, a ban-
deira nacional na cidade. Sua localização privilegiada em um entroncamento da
grandiosa avenida 9 de Julio – data que remete à Declaração da Independência
da Argentina – evidencia sua projeção como um emblema urbano, criado para
reforçar uma narrativa nacionalista sobre o passado argentino e de sua capital.
A magnitude material e simbólica alcançada pelo obelisco, de 67 metros
de altura, contrasta, no entanto, com as primeiras impressões dirigidas a ele
logo após sua edificação. De acordo com o mesmo site oficial mencionado,
“três anos depois da inauguração, o Concejo Deliberante (Câmara de vereadores)
sancionou a demolição, decisão que foi vetada pelo intendente [de Buenos Aires]
da época”. O novo monumento, embora projetado para repercutir valores políticos
e identitários de grande ressonância, não parecia significativo ou mesmo dese-
jável para todo o seu “público”. Entre os críticos, o argumento compartilhado era
de que a forma plástica do obelisco, semelhante a tantos outros pelo mundo, o
mantinha desconectado com a particularidade daquele território. O monumento,
apesar de suas grandes dimensões e visibilidade, chegou a ser definido como
uma “obra pura y simple que nada simboliza” (Ferrer, 2015, p. 11).
Décadas mais tarde, quando o simbolismo projetado originalmente havia
se estabilizado no país, a artista Marta Minujín projetou uma série de trabalhos
focalizando o obelisco. Minujín participava de movimentos locais de contracultura,
nos anos 1960 e 1970, tendo se tornado uma referência na arte performática e
na pop-art latinoamericana. A primeira de suas intervenções artísticas relacio-
nadas ao obelisco consistia numa alteração de sua base material, revestindo-a
por até três metros de altura com “helados Laponia”, uma marca argentina de
picolés. A ideia era que os moradores e passantes estabelecessem uma nova
conexão com o monumento. Um contato não só visual, mas gustativo, alterando
os quadros de relação preestabelecidos – e previstos – com o obelisco (Más que
Noticias, 2009).

5
Buenos Aires Ciudad. Obelisco. Disponível em: https://turismo.buenosaires.gob.ar/br/otros-esta-
blecimientos/obelisco/. Acesso em 10 mar. 2021.
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Na década seguinte, a artista participou da I Bienal Latino-Americana


realizada em São Paulo, em 1978 – cujo tema geral era “Mitos e Magia”. No
catálogo do evento, os organizadores afirmam que a escolha do mote nasceu
“da necessidade de redescobrimentos [de] nossas origens, [de] discutirmos as
possíveis deformações inseridas em nossas culturas por outras dominadoras
e dominantes” (Bienal..., 1978, p. 20). A atenção voltada para as dinâmicas
históricas de expropriação material e apropriação cultural seria modulada com
base nos sentidos associados às expressões que davam nome à mostra coletiva.
Com a ajuda de “especialistas da sociologia, antropologia, psicologia, música, teatro,
dança, críticos de arte, entre outros”, os organizadores descreviam “Mito” como uma

Narrativa de tempos fabulosos ou heróicos [...] de significação simbólica,


geralmente ligada à cosmogonia, e referente a deuses encarnadores das
forças da natureza e/ou de aspectos da condição humana [...] Monstro
sagrado [...] Ideia falsa (Bienal..., 1978, p. 20).

Por sua vez, o termo “Magia” era definido como “arte ou ciência oculta
com que se pretende produzir, por meio de certos atos ou palavras [...] efeitos
e fenômenos extraordinários, contrários às leis naturais” etc. (Bienal, 1978, p.
20-21). Dentro da proposta curatorial que tomava por parâmetro a conexão dos
trabalhos aos termos descritos, Minujín apresentou uma réplica do principal
obelisco portenho. A maneira como a cópia era apresentada produzia, contudo,
um significativo desvio em relação ao protótipo monumental. El obelisco acostado,
sua obra, inseria o obelisco no pavilhão da Bienal e o tombava, fazendo com
que sua base permanecesse aberta ao público, como uma porta que convida a
entrar no objeto-símbolo originalmente inacessível. A descrição da obra era feita
nos seguintes termos:

O obelisco tombado, originariamente símbolo do raio solar, assume um


significado (em Buenos Aires) que retoma a sua origem euro-asiática,
relacionada com os mitos de ascensão solar e da luz como espírito
penetrante, um duplo mito contemporâneo baseado na ideia de meta
ou destino para as pessoas que vêm do interior e desejam chegar ao
centro da Argentina. Dessa maneira, os visitantes tomam consciência
de estar num espaço oblíquo de verticalidade alterada, com a lei de
gravidade também alterada, percebendo o ponto de vista fixado pelo
artista, assinalando uma posição metafísica (Bienal, 1978, p. 44).
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Figura 2
Disponível em: https://
www.artsy.net/artwork/
marta-minujin-the-obelisk-
-lying-down

Figura 3
Disponível em: https://
en.pensartododenuevo.
com/capitulo5
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Na descrição da Bienal, o longínquo passado do artefato solar egípcio é


atualizado para dar lugar à mitologia contemporânea em torno da nação argentina e
seu centro simbólico. Nota-se como é realizada uma operação metonímica na qual
o monumento não é percebido apenas como um veículo neutro que simboliza,
abstratamente, outra coisa que não ele mesmo. O obelisco integra a metrópole
portenha e conforma sua feição idealizada. Reproduzi-lo sob outra forma, fazê-lo
cair, incluindo em seu interior (na ponta) um televisor e uma projeção com cenas
do entorno do monumento portenho e ficções de sua derrubada, equivalia a pôr
em xeque a ideologia que mantém a capital e seus marcos políticos em posição
hierarquicamente superior ao resto do país.
A conexão parte/todo é complementada por uma série de inversões que
delineiam o sentido mais geral da obra: do Centro de Buenos Aires ao pavilhão
da Bienal, de um espaço urbano aberto para uma espaço museal fechado, da
posição de emblema político e nacional verticalizado a um experimento participativo
que se coloca aos pés das pessoas, próximo da escala humana. Ao replicar e
inverter o monumento, a artista se vale de um dos procedimentos mais antigos
associados à prática da magia: a produção de cópias visando atingir seus originais.
Isto é, a reprodução plástica e visual como meio para se afetar o protótipo, o
semelhante afetando o semelhante.
Para compreender os efeitos dessa estratégia artística, podemos recuperar a
análise de Taussig (1993, 1998), que atualizou os estudos clássicos da antropologia
sobre o princípio da afetação mágica, considerando sua prática nas sociedades
ditas tradicionais e nas modernas, do Ocidente. Sua abordagem da magia – um
saber tradicional e não científico, que estabelece conexões materiais entre coisas
e pessoas dispersas no espaço e no tempo – enfatiza seus usos transgressores
ou blasfêmicos. Enquanto a noção clássica de “sagrado”, administrada pelas
religiões, tende a enfatizar aquilo que é classificado como separado de todo o
resto, profano, a ação mágica cria alternativas para o acesso e manipulação do
que se define socialmente como sacro. Fortemente inspirado em Bataille e
Benjamin, Taussig considera as imagens, ações artísticas e símbolos públicos
contemporâneos para argumentar que a experiência de sagrado na modernidade,
com suas formas de mobilização coletiva, se realiza sobretudo via a transgressão e
o sacrilégio. Tais ações, porém, não correspondem a uma aniquilação do sagrado,
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mas sim a um artifício capaz de liberar uma enorme descarga de energia social,
que se multiplica atraindo e provocando envolvimento coletivo. Enquanto força
social, e não como essência fixa, o que é sacralizado pelas sociedades pode ser
subvertido pela magia, que não destrói o (monumento) original, mas o altera
significativamente. No caso do obelisco de Minujín, tornando-o horizontal, aberto
e desterritorializado.
No ano seguinte, em 1979, a artista produziu outra réplica do monumento
– dessa vez em solo portenho. Diferentemente do primeiro exemplar, que mime-
tizava a forma externa do monumento original, a nova instalação produzia uma
alteração na superfície da cópia. O Obelisco de Pan Dulce continha uma estrutura
de metal de 30 metros de altura, no formato já conhecido, e suas faces laterais
eram cobertas por um vasto número de sacos de pão. Em época próxima ao
Natal, o duplo do obelisco foi novamente tombado. Mas, diferentemente do que
ocorreu na Bienal, a obra deveria ser desfeita pelo público, ou melhor, consumida
pela população local, que podia retirar os pães e levá-los consigo. A performance
coletiva proposta por Minujín reiterava a derrubada do símbolo vertical. Dessa
vez, para tornar o monumento comestível – talvez como uma alusão à possibi-
lidade de devorar os cânones e jogar luz sobre questões silenciadas na época
da ditadura argentina, como o empobrecimento da população. Subvertendo a
forma e o sentido originais daquele obelisco, a artista colocou-o à disposição
das pessoas.
As intervenções de Minujín baseadas no Obelisco abriram caminho para
outros projetos de sua autoria que mantinham caráter público – quero dizer, que
remetem a marcos da paisagem urbana (material e idealizada), que promovem a
participação de moradores e passantes, excedendo tanto os limites dos espaços
museais quanto a semântica oficial, consagrada, dos monumentos. Posteriormente,
a artista enfocou outros grandes símbolos nacionais, incluindo monumentos
figurativos como a Estátua da Liberdade estadunidense (também projetada para
estar tombada junto ao solo) e a imagem de Carlos Gardel, que ardeu em chamas.
Em seu conjunto, os projetos de Minujín se tornaram um marco em seu país e
além, inspirando outros artistas e ativistas contemporâneos.
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Figura 4 Anos depois, em 1o de dezembro de 2005, no dia internacional de luta


Disponível em: https://www.
buenosairesfreewalks.com/
contra a Aids, o Obelisco foi encoberto por uma camisinha gigante que cobria
spanish/wp-content/uplo- toda sua extensão – uma intervenção feita por atores engajados nas campanhas
ads/2016/09/condom.jpg
de visibilização pública sobre a questão do HIV no país, incluindo lideranças
LGBT. Tratava-se de uma estratégia política com efeitos midiáticos para ressaltar
a utilidade e importância de campanhas informativas sobre o uso de preservativos.
Naquele momento, estimava-se que houvesse cerca de 130 mil pessoas com
HIV vivendo na Argentina, muitas das quais sem conhecimento de sua própria
sorologia. Ao contrário da intervenção de Minujín, que se contrapunha ao
aspecto fálico do monumento, dessa vez, sua magnitude e ereção condicionou
a ação site-specific. De símbolo associado à história, que enfatiza homens héteros
reconhecidos como exemplares, o Obelisco serviu como uma plataforma para
tornar visível um dado da realidade que seguia silenciada, como um tabu
cultural. Ao criar uma intervenção que poderia, até mesmo, gerar controvérsia,
os ativistas produziram uma maneira de tornar “público”, debatível, um tema da
saúde coletiva.
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Figuras 5 e 6 Em 2015, foi a vez de o artista argentino Leandro Erlich produzir uma nova
Disponível em: https://www.
malba.org.ar/evento/la-de-
intervenção sobre o Obelisco. Com o apoio do Museo del Arte Latinoamericano
mocracia-del-simbolo/ de Buenos Aires, o Malba, Erlich criou A Democracia do Símbolo. A obra consistia
na alteração do topo do monumento, na avenida 9 de Julio, para dar a impressão
de que a sua ponta havia sido retirada ou cortada, configurando um novo tipo de
iconoclasmo (Taussig, 2012). A ponta – ou a cabeça – do monumento foi repli-
cada, na proporção original, e instalada na frente do Malba, podendo ser vista
mesmo por aqueles que não adentrassem o museu. Dividido em duas partes
assimétricas, a parte mais alta e até então inalcançável do obelisco passou a ficar
acessível ao toque humano. O emblema urbano e nacional foi reposicionado para
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junto de uma instituição de arte, permanecendo num espaço aberto da cidade.


Novamente, como nas operações da magia, a cópia se contagia com o poder
associado a seu protótipo e, de alguma forma, afeta-o de volta (Taussig, 1993).
Quem adentrava a cabeça piramidal junto ao Malba contemplava, de seu
interior, a vista aérea que se tem do cume do obelisco original. Isso ocorria com
a ajuda de telas de vídeo que, substituindo as janelas nas laterais, reproduziam
os quatro pontos de vista panorâmicos que correspondem a cada uma das faces
do obelisco, na 9 de Julio, onde foram instaladas câmeras provisórias. Novamente,
a verticalidade do poder que o obelisco simboliza foi subvertida por um jogo
de imagens e reproduções para produzir novas possibilidades de apreensão e
relação com o monumento. Nesse projeto, a noção de democracia aparece para
guiar as novas possibilidades de relação a ser estabelecidas com um símbolo
potente da identidade coletiva e da urbe, uma democracia que se constrói a partir
de olhares desviantes e potencialmente profanadores do cânone monumental.
Embora a intervenção artístico-urbana de Erlich se realizasse em um
contexto democrático e não mais durante a ditadura militar, quando se intensificou
o culto “público” de símbolos nacionalistas e seus mitos autoritários, fato é que
sua ação demonstrou como o obelisco segue emanando sua força e ambigui-
dade. Embora tão alto e notável na vida portenha, ele se naturaliza e deixa de
ser visível, debatível. Em chave próxima ao que propõe Deutsche (1992, 2018)
a respeito das formas de articulação entre política e arte no contexto urbano, A
Democracia do Símbolo operou como uma via de experimentação do público
não só com o Obelisco, mas com o atual estado da democracia argentina – que
mantém destacados símbolos nacionalistas de outras épocas.
Menos do que um estado de coisas dado em si mesmo, o terreno demo-
crático se revela como o necessário produto de intervenções que o mantenham
vivo. Intervenções artísticas como as descritas até aqui nos mostram que os
grandes monumentos participam da contínua redefinição do que se compreende
como interesse “público”, seja em relação à demarcação política do território
urbano, seja dos registros oficiais que reiteram certa memória coletiva, ocultando
outras. Por isso, os obeliscos se configuram como artefatos estéticos interessantes
para análise, porque servem a uma multiplicidade de usos e exprimem alternativas
criativas aos cânones – formais, memorialísticos e políticos.
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O contramonumento

Experimentos de arte pública se realizam por inúmeros processos de


mediação, envolvendo seus públicos e os elementos demarcadores do espaço
urbano. Em muitos casos, as ações têm o propósito de levantar reflexões de
cunho político e da memória coletiva que, sem esses trabalhos, permaneceriam
silenciadas pela história oficial e por seus representantes. Entre os temas sensíveis
que se tornaram objeto para ação de artistas contemporâneos e parceiros,
a traumática memória do nazifascismo europeu e da Shoa se apresentam
como um tema reiterado em várias cidades do mundo. No Rio de Janeiro,
por exemplo, foi inaugurado o Memorial às Vítimas do Holocausto, no Morro do
Pasmado, em 2020 (Pereira, 2021). A forma monumental eleita para o projeto
inclui uma coluna de 20 metros de altura, contendo na base o mandamento
bíblico “Não matarás!”. Embora recente e abordando um tema sensível, que
possui grande apoio público à sua memorialização, a construção do novo memo-
rial com seu obelisco peculiar reproduziu procedimentos característicos da
“velha arte pública” (Deutsche, 1992). A proposta defendida pela prefeitura
municipal repercutiu pautas de políticos conservadores e sionistas, sem dar
espaço à participação de outros setores da sociedade, ainda que sob a chancela
do “bem público” e dos “direitos humanos”.6
Para marcar um contraponto a iniciativas como essa, que reforçam a
verticalidade simbólica e material dos monumentos, proponho analisar um
último caso, também voltado para a memorialização dos efeitos nefastos do
fascismo na Segunda Guerra Mundial. Para tanto, recorro à análise de James
Young (1992) ao abordar o contexto alemão do pós-guerra e seus monumentos
públicos. Segundo o autor, os jovens alemães dos anos 1990 trabalhavam na
construção de memoriais, para fazer lembrar dos horrores do nazismo, com uma

6
A proposta de criação do Memorial às Vítimas do Holocausto do Rio ocorreu ainda nos anos
1990, por influência de representantes da comunidade judaica carioca. A execução do projeto,
porém, foi levada adiante somente na gestão municipal de Marcelo Crivella, bispo licenciado da
Igreja Universal do Reino de Deus (Iurd). Em seu mandato, Crivella manteve-se alinhado às posturas
da Igreja, replicando as ações de valorização cultural de símbolos do Antigo Testamento e de políticas
do Estado de Israel. A Iurd integra um setor neopentecostal sionista frequentemente alinhado às
pautas bolsonaristas (conf. Pereira, 2021).
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intensidade semelhante à da geração de seus pais, que trabalharam na reconstrução


do país após a guerra. Young ressalta o grande esforço cultural da Alemanha
na produção de marcos públicos sobre as histórias sinistras vivenciadas pelos
judeus e outras minorias.
Tal esforço, contudo, manteve-se de maneira a coexistir com o descon-
tentamento de muitos artistas em relação à rigidez demagógica, característica
dos monumentos nacionais, produzidos pelo Estado. Em primeiro lugar, porque
a memória em questão não se reportava mais às glórias passadas ou a vitórias
bélicas, mas por um passado eminentemente negativo e difícil. Com o fim da
Segunda Guerra Mundial, os processos de memorialização das violências
mantidas em campos de concentração, por exemplo, foram acompanhados
pelo desenvolvimento de uma estética que retoma parte de uma antiga tradição
(ocidental) de culto aos mortos, atualizando-a para reinterpretar o trágico destino
dos que foram vitimados pelo fascismo (Seligmann-Silva, 2016, p. 50).
O descontentamento se mantinha, em segundo lugar, porque muitos
artistas dos anos 1980 e 1990 se sentiam “esteticamente céticos sobre
os pressupostos assumidos pelas formas tradicionais dos memoriais” (Young,
1992, p. 271).7 Embora se mantivessem eticamente comprometidos com o dever
de fazer lembrar os horrores da guerra, eles questionavam a participação do
Estado alemão na rememoração de traumas e crimes que ele mesmo perpetrara. O
comprometimento dos governantes mais recentes parecia uma estratégia para
produzir uma “distância oficial” entre eles e o autoritarismo daqueles que os
antecederam em algumas décadas nos mesmos postos de poder. Em resposta,
artistas contemporâneos experimentavam formas alternativas de tematizar a
memorialização dos silêncios e dores do nazifascismo. Nesse contexto, muitos
passaram a testar “os limites dos seus meios artísticos e da própria noção de
memorial” (Young, 1992, p. 271),8 propondo ações inspiradas nos modelos
de arte participativa, que focalizam menos a obra/objeto e sua exposição, e
mais o processo, seus efeitos nos participantes e seu registro.

7
No original: aesthetically skeptical of the assumptions underpinning traditional memorial forms.
8
No original: the limits of both their artistic media and the very notion of a memorial.
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Uma das experiências que então se destacaram no contexto alemão foi


o projeto de Jochen Gerz e Esther Shalev-Gerz (alemão e israelense, respectiva-
mente), o Monumento contra o Facismo, Guerra, Violência – e pela Paz e Direitos
Humanos. O monumento seria construído na cidade de Hamburgo. De acordo
com Esther, a ideia do projeto surgiu, primeiramente, como uma demanda
de reação ao crescimento do neofascismo na região nos anos 1970 e 1980
(Shalev-Gerz, 1986). Iniciou-se na cidade um debate público sobre a viabilidade
de construção de um novo monumento que atuasse como uma declaração de
repúdio à ideologia que sustentava o trauma vivido pela sociedade alemã. Em
1986, a prefeitura realizou um concurso internacional de projetos para o memorial,
e a proposta do casal Gerz foi a selecionada.
Desde a escolha do local para instalar o monumento revelou-se o
caráter singular da proposta. Ao contrário de monumentos que visam reconfi-
gurar espaços urbanos e a percepção do seu entorno, ritualizando-o em alguma
medida, o Memorial contra o Facismo foi instalado em uma área periférica da
cidade de Hamburgo, no distrito Harburg, numa região marcada pela presença
de imigrantes e famílias de trabalhadores. O espaço definido para abrigar o
monumento era uma zona comercial de grande movimento, próxima a uma
estação de metrô e sem apelos econômicos ou estéticos para estar ali. Na
verdade, a simplicidade e mesmo a potencial desordem do local atuavam de forma
positiva para a decisão dos artistas. Eles buscavam produzir uma disrupção
apenas temporária com relação à paisagem já constituída, ainda que adicionando
novas camadas de sentido ao local.
Materialmente, a obra se compunha por uma coluna de aço recoberta de
chumbo, quadrada na base, com 12 metros de altura e 1 metro de largura em
cada lado. Nas laterais da coluna, foram dispostos dois cinzéis de metal para
que os moradores locais pudessem intervir sobre a obra, inscrevendo nela
os seus próprios nomes ou aquilo que desejassem. O convite para interação
e manipulação era oficializado por uma placa junto ao monumento, com a
seguinte mensagem em sete idiomas:

Convidamos os cidadãos de Harburg e os visitantes da cidade a acrescentar


seus nomes aqui aos nossos. Ao fazê-lo, comprometemo-nos a perma-
necer vigilantes. À medida que mais e mais nomes cobrirem esta coluna
de chumbo de 12 metros de altura, ela será gradualmente rebaixada
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para dentro do solo. Um dia ela terá desaparecido completamente e


o local do monumento contra o fascismo de Harburg estará vazio. No
longo prazo, só nós mesmos podemos nos levantar contra a injustiça
(Shalev-Gerz, 1986).9

Figuras 7
Disponível em: https://jochen-
gerz.eu/works/monument-a-
gainst-fascism

9
No original: We invite the citizens of Harburg, and visitors to the town, to add their names here to ours.
In doing so we commit ourselves to remain vigilant. As more and more names cover this 12 metre-high
lead column, it will gradually be lowered into the ground. One day it will have disappeared completely
and the site of the Harburg monument against fascism will be empty. In the long run, it is only we
ourselves who can stand up against injustice.
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Apesar de a prefeitura de Hamburgo ter financiado o projeto, as primeiras


reações dos moradores locais foram negativas. Diziam que não havia razão para
ele estar naquele local, porque ali não haveria fascismo, posto que a guerra
havia acabado “há muito”. Somente depois da queda do muro de Berlin, e com a
repercussão alcançada primeiramente na mídia internacional, é que o trabalho
obteve visibilidade positiva em Harburg (Shalev-Gerz, 1999). Entre 1986 e 1993,
a coluna de chumbo foi rebaixada gradualmente ao solo, dois metros por vez,
fazendo com que uma nova área livre para intervenções pudesse ser acessada
pelas pessoas. Nesse intervalo de tempo, até a coluna ser toda rebaixada e ape-
nas o seu topo ser visível junto ao chão, o princípio que guiava o monumento era
mantê-lo em relação de analogia com a memória humana, ela mesma dotada de
uma dimensão subterrânea, profunda.
Ao analisar a instalação urbana, autores como Young (1992, p. 274) classifi-
cam-na como um “contramonumento” por três razões principais. Primeiro, porque
o projeto se opunha à função didática habitualmente projetada aos monumentos
públicos, pautados por formas fixas e externas a seus interlocutores, usando a
própria perenidade dos materiais construtivos como um dispositivo de legitimação
do “memorável” que se projeta. Nesse aspecto, chama a atenção o fato de que os
artistas não denominaram sua obra contra o fascismo de Denkmal (monumento),
mas Mahnmal (termo que remete a uma advertência, uma admoestação). Não
se tratava de um artefato voltado para a rememoração do passado, apenas, mas
de uma advertência que se vale de meios estéticos e participativos para comunicar
algo. A luta contra o fascismo só se manteria viva com o engajamento das
pessoas e suas memórias, pois não haveria fórmula monumental que, por si
mesma, pudesse contê-lo.
Complementarmente, Young (1992) sublinha que o monumento desloca
a relação temporal convencionada nos memoriais que se valem das formas
já consagradas de memorialização. Em vez de dramatizar uma narrativa para o
tempo presente, o monumento de Harburg é dotado de evidente autorreferen-
cialidade estética. A forma se expressa como conteúdo e, simetricamente, os
conteúdos adicionados pelo público sobre a superfície de chumbo – assinaturas,
desenhos, pixos, grafites e mesmo suásticas – adensam os sentidos daquela
coluna. Ela não pretendia ser um memorial aos mortos, mas uma espécie de
folha em branco, convidando moradores e turistas a participar, para que eles se
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engajassem na proposta conceitualmente traduzida pela obra. Assim como


em outros projetos de arte pública baseados na participação, a instalação
urbana repercute a passagem do cânone da representação para o da experiência.
O tema coletivo, histórico, é compreendido e atualizado a partir de uma conexão
intersubjetiva com trajetórias e percepções pessoais.
A terceira razão pela qual aquele monumento seria, em verdade, um
contramonumento advém de suas formas plásticas e de engajamento. Ele
questiona a hierarquia estabelecida dentro do sistema de arte tradicional, que
separa objetos e artistas do público, hierarquizando-os como agentes e sujeitos
(Young, 1992). Sobre esse aspecto, Danziger (2010) sugere que a ocultação literal
do monumento contra o fascismo pode ser tomada como um reflexo do declínio
da aura do objeto de arte. Um declínio teorizado desde Benjamin e, no campo da
escultura, posto em prática pelos movimentos artísticos dos EUA nos anos 1960
e 1970, que fizeram as esculturas sair dos museus e “vir para o espaço do mundo”
(Danziger, 2010, p. 104). Analogamente, a instalação em Hamburgo contesta o
regime tradicional dos monumentos que são “erguidos” e “edificados” para se
manter acima das pessoas.
Compartilhando tal perspectiva, Seligmann-Silva (2016, p. 52) analisa
a materialidade da obra enfatizando que a superfície em chumbo é interessante
“porque encena a própria memória como tablete de cera. Gerz ficou fascinado com
o fato de que não podemos apagar completamente as inscrições no chumbo”. Assim
como Dazinger (2010), o autor considera que a coluna de chumbo se reverte
em um palimpsesto moderno, um pergaminho que contém rasuras e inscrições
sobrepostas em sua superfície. Como um documento exposto a céu aberto,
disponível para quem quiser participar da constituição do próprio monumento
que desaparecerá.
Os nomes, desenhos, riscos e formas ilegíveis da coluna, atualmente
ocultada da cena urbana, integram um todo que inverte a lógica tradicional dos
monumentos que expressam a voz oficial de uma autoridade (o Estado, a
religião ou o artista) em posição de superioridade para declarar algo para os
demais (público-espectadores). A exortação monumental de Hamburgo se realiza
pela aglutinação de uma multiplicidade de vozes grafadas e impossíveis de
ser decodificadas ou traduzidas em uma mensagem única – como na ordem
imperativa da tradição judaico-cristã “Não matarás!”. O caráter indizível e
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complexo da própria experiência do fascismo, de como foi possível que ele tenha
existido da maneira como existiu, traduz-se na expressiva soma de quase 60 mil
inscrições (Gerz, Shalev-Gerz, s/d) que deram corpo ao contramonumento. Um
marco para a produção de memória coletiva que não existiria sem as pessoas e
suas marcas no artefato.
Assim como o conjunto de ações artísticas revisitadas neste ensaio, a
instalação contramonumental alarga o terreno político e conceitual em relação
aos marcos urbanos de caráter público, subvertendo a verticalidade de suas
aparências e ideologias centralizadoras. O conhecimento dessas intervenções
colabora, enfim, na expansão das possibilidades de endereçamento coletivo aos
monumentos e às histórias que eles exibem ou escondem. Essa é uma transfor-
mação do horizonte que pode ser alcançada com base em experiências que
valorizam contranarrativas e estéticas insubmissas, como as ações de arte
pública e artivismo que colocam os obeliscos em rotação, como formas simbólicas
em contínuo movimento.

Figuras 8
Disponível em: https://
journals.openedition.org/
imagesrevues/docannexe/
image/3466/img-19.jpg

Edilson Pereira é professor adjunto da Escola de Comunicação da UFRJ.


Doutor em antropologia social pelo Museu Nacional, UFRJ, com estágio
na EHESS, em Paris, e pós-doutorado pela Universitat de Barcelona.
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Artigo submetido em março de 2021 e aprovado em junho de 2021.

Como citar:
PEREIRA, Edilson. Monumentos urbanos e arte pública: os obeliscos em rotação. Arte
& Ensaios, Rio de Janeiro, PPGAV-UFRJ, v. 27, n. 41, p. 251-278, jan.-jun. 2021.
ISSN-2448-3338. DOI: https://doi.org/10.37235/ae.n41.14. Disponível em: http://
revistas.ufrj.br/index.php/ae
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Performance – empreendimentos [i]mobiliários


Performance – real [e]state developments

Bárbara Silva da Veiga Cabral


0000-0002-7172-8969
barbara.svcabral@gmail.com

Resumo

O presente texto é um projeto que transita entre os campos da arquitetura, do


urbanismo, da fotografia e da performance. Consiste no processo de composição
do programa (foto)performativo da obra PERFORMANCE – EMPREENDIMENTOS [I]
MOBILIÁRIOS, que conclui o artigo e é pensado, ao longo destas linhas, a partir
da experiência e imagens de corpo da arquitetura (2019), em relação com
situações urbanas e questões contemporâneas de cidade, como a precarização
do trabalho na construção civil e processos de especulação imobiliária.

Palavras-chave
Performance; Cidade; Fotoperformance;
Arquitetura e Urbanismo; Programa performativo.

Abstract
The present text is a project that transits between the fields of architecture, urbanism,
photography and performance. It consists of the composition of the (photo) performative
program of the work PERFORMANCE – EMPREENDIMENTOS [I]MOBILIÁRIOS,
which concludes the article and is thought, through these lines, from the experience
and images of corpo da arquitetura (2019), in relation to urban situations and
contemporary city issues, such as the precariousness of work in civil construction
and real estate speculation processes.

PPGAV/EBA/UFRJ Keywords
Rio de Janeiro, Brasil
Performance; City; Photoperformance;
ISSN: 2448-3338
DOI: 10.37235/ae.n41.15 Architecture and Urbanism; Performative program.
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Figura 1
Bárbara Cabral, corpo da
arquitetura, 2019
Foto: Sofia Mussolin

Começar um texto pela imagem. Por sua materialidade e forças. Dar-lhe


tempo. Sugiro a demora no olhar. Sua sustentação. Atenção à forma do corpo,
sua cor, posição. Às linhas vermelhas que vez ou outra se destacam do branco –
feito veias saltadas, estranhamente posicionadas. Ao contraste corpo-breu. Aos
poucos cacos espalhados sobre o chão. À cabeça atada, olhos e boca cerrados.
Abril de 2019. Uma sala de paredes pretas da Universidade Federal do
Estado do Rio de Janeiro. Luzes emprestadas. Fotógrafa voluntária. Uma bacia
plástica. Gesso e fio de malha sobre pele. Esta primeira imagem, de uma sequência
registrada por Sofia Mussolin,1 expõe meu corpo, nu, amarrado com um longo
fio de malha vermelho e coberto de gesso – no momento do click, já seco. Tive,
momentos antes da ação, o auxílio das mãos e verbo de Mariah Miguel, colega de
mestrado que me cobriu de hidratante, para proteger a pele, me atou com o fio e,
por último, usando uma bacia para misturar pó de gesso à água, me imobilizou.
O conjunto de imagens de que falo consiste no registro sequencial da
minha tentativa de desvencilhamento dos materiais que me aprisionavam. A

1
Fotógrafa que cursava comigo a disciplina Práticas Performativas Contemporâneas, do PPGAC-UNIRIO
(2019), ministrada por Tania Alice, Marcos Bulhões e Marcelo Denny.
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necessidade de que o trabalho se apresentasse como grupo de imagens (e não


como registro único) relaciona-se à importância dada à captura dessa ação de
mobilidade – projetada e realizada por mim – e à desestruturação-reestruturação
do corpo ao longo do processo.
Esse projeto de ação partiu da elaboração de um enunciado claro e
conciso que guiou a fotoperformance – um “programa performativo”.2 Eleonora
Fabião, teórica-performer, define programa como um “ativador de experiência”
que “desprograma organismo e meio” (Fabião, 2008, p. 237). Aqui, o meu: Com
ajuda, amarrar o próprio corpo com um fio de malha vermelho. Cobri-lo de gesso
úmido. Esperar que seque. Mover-se, tentando se liberar dos materiais.
A performance, enquanto conjunto de ações programado por estas frases,
compreendia, portanto, todas elas: da imobilização ao esforço de liberação do
corpo. Já a fotoperformance (imagens apresentadas ao longo do texto) tem
como foco os movimentos de ruptura daquilo que o constringe e constrange.
No momento da ação, invisível na imagem, está a aceleração do meu pulso
e o calor do gesso endurecendo na pele – reações físicas e químicas da perfor-
mance. “O nome disso é experimentação”, ouvi. Visível, no entanto, é a tensão
do corpo em se manter imóvel; e a respiração que parece presa, suspensa. De
fato, estava. Esta obra, disparada pela pergunta “qual o espinho atravessado na
sua garganta?” de Marcelo Denny3, foi intitulada corpo da arquitetura – minha
disciplina de formação. O léxico utilizado nestas linhas, informo, não é gratuito.
Tampouco são os materiais de ação.

Projeto Performance

O presente texto é também um projeto. A partir da realização desta


fotoperformance, de suas imagens e de encontros recentes com situações urbanas,
busco pensar uma outra (foto)performance, urbana, intitulada PERFORMANCE –
EMPREENDIMENTOS [I]MOBILIÁRIOS. Estruturá-la conceitual e materialmente.
Enunciá-la. O encadeamento de palavras aqui apresentado compõe o processo de
construção de um programa (foto)performativo, cujo enunciado conclui o artigo.

2
“Conjunto de ações previamente estipuladas, claramente articuladas e conceitualmente polidas”, de
preferência com verbos no infinitivo (Fabião, 2013, p. 4).
3
In memoriam.
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Nesse sentido, a escolha da palavra “projeto” tem algumas razões. Funda-


mental no vocabulário arquitetônico e urbanístico, projeto, nesse contexto,
refere-se tanto ao processo de pesquisa e concepção de uma obra quanto à sua
representação. Conforme define o historiador da arte Giulio Carlo Argan (1993,
p. 156), além de um “método para a produção arquitetônica”, esse modo de fazer,
isso que convencionamos chamar de projeto em arquitetura e urbanismo, é “já
uma imagem realizada”, “uma imagem feita visando uma execução técnica”.
Nomeadamente: um desenho planificado (ou alguns), realizado segundo uma
série de procedimentos convencionados no campo desde o século 15, espe-
cialmente por meio de duas figuras: Filippo Brunelleschi e Leon Battista Alberti.
Enquanto Brunelleschi (arquiteto e escultor renascentista) sistematiza a
perspectiva (Argan, 1984) de maneira a orientar um modo de fazer que até hoje
vigora em arquitetura – isto é, a planificação de um espaço a se construir, que
pode ser desenvolvida à distância do canteiro de obras e que, com isso, traz para
a arquitetura e o urbanismo a possibilidade de previsão, antecipação e controle
do processo de construção –, Alberti (arquiteto e teórico da arte), em seus escritos,
desvincula o desenho da matéria construída, concebendo o ato projetual como
uma atividade intelectual (Argan, 1993) de criação, independente e descolada
da construção porque situada nos planos desenvolvidos por quem projeta – e
não no sítio de obras, campo de quem executa. Emerge, então, um pensamento
que segue separando o trabalho intelectual de projetar daquele manual, de
execução e construção, e que, consequentemente, afasta os corpos de arquitetas,
arquitetos e urbanistas dos sítios de obras e da lida com os materiais.4
A partir do trabalho de Brunelleschi com a perspectiva, Argan (1993)
delimita, ainda, o nascimento de uma “civilização do projeto”, evidente também
na arquitetura, quando surge o entendimento convencional – ainda atual – de
projeto arquitetônico: um método apoiado em uma série de etapas,5 dispositivos
e procedimentos gráfico-geométricos, que resulta em uma imagem planar e
representacional daquilo que se deseja construir. Ou, poderíamos dizer: um
processo ou modo de fazer normativo que visa criar espaços.

4
Sérgio Ferro (1979, 2006) realiza um trabalho crítico importante nesse sentido, sugerindo uma revisão
da relação entre projeto e canteiro de obras, por melhores condições trabalhistas e práticas colaborativas.
5
Conforme define Argan (1993) em uma palestra, as camadas ou estágios do projeto seriam: conheci-
mento histórico, análise, críticas, hipótese e imaginação.
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O projeto é, assim, uma atividade de criação. O termo, que me acompanha


já há oito anos entre teorias e práticas de arquitetura e urbanismo, é utilizado
também no âmbito da fotografia – campo em que tenho experimentado. Um
projeto fotográfico usualmente engloba narrativa e conceitos trabalhados pela
fotógrafa, seus modos de enquadrar o espaço e seus componentes e as técnicas
utilizadas. Pode, ainda, fazer referência a um conjunto de fotografias já realizadas.
Deslizando entre os dois campos e incidindo sobre um terceiro, o da
performance, o projeto aqui desenvolvido se estabelece como corpo-escrita:
desenho-imagem ativo de pesquisa e criação que opera de maneiras singulares.
No lugar de um “modo de fazer” apoiado em dispositivos e métodos normativos e
convencionados em arquitetura e urbanismo, busco um “modo de agir”6 tensionado
pelo performativo e por uma escrita processual. Implicada e em conversa com as
matérias e fluxos experimentados na fotoperformance corpo da arquitetura
e em práticas cotidianas de cidade, a composição processual do programa
performativo (aqui realizada de maneira textual) figura como outra possibi-
lidade de projeto urbano, por um urbanismo performativo. Assim, se o texto
é compreendido como projeto uma vez que elabora, em sua feitura, o programa
de uma (foto)performance, também o próprio programa é pensado como projeto
urbano, ao disparar outras possibilidades de construção de cidade.
Compreender a elaboração de programas performativos como prática de
projeto urbano7 tensiona, ainda, algumas das características fundantes do projeto
convencional em arquitetura e urbanismo, tais como: a resolução de problemas;
a antecipação de um objeto construído; o desenho/projeto como método corpo-
ralmente afastado do canteiro de obras; a separação radical entre intelecto (e
projeto) e materialidade ou corporeidade (e construção); funcionalidade; eficiência;
e a temporalidade das obras.

6
Fazer e agir, aqui, referem-se à diferenciação proposta por Hannah Arendt (2007) entre atividades de
produção ou fabricação (que, ligadas ao verbo fazer, almejam um fim preestabelecido e constituem obras
ou objetos) e práticas políticas (que, ligadas à esfera da ação, partem de iniciativas e têm por fim o próprio
processo, como nas artes efêmeras, como a dança e a performance).
7
Proposta que venho desenvolvendo em minha pesquisa de mestrado no âmbito do Programa de
Pós-graduação em Artes da Cena da UFRJ, com orientação de Elizabeth Jacob, coorientação de Caio
Riscado e previsão de conclusão em setembro de 2021.
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Um programa performativo, à diferença de um projeto convencional em


arquitetura e urbanismo, não intenciona definir a totalidade do processo de
construção, antecipá-lo e controlar suas relações para alcançar um (pre)determi-
nado fim formal/espacial. O que faz é enunciar uma série de ações que, operando
em vibração paradoxal, dispara outras imagens, relações, situações, encontros e
afetos, inexistentes sem a prática do programa.
Sendo assim, neste projeto, não há busca por solução, mas o desenvolvi-
mento gradual de um programa politicamente engajado, francamente atento e
implicado no aqui e agora, com as matérias que compõem corpo-cidade e com
as imagens e experiência da fotoperformance de 2019. Um programa que
desprograme esse corpo e as próprias noções de projeto e construção em
arquitetura e urbanismo, fazendo passar por ele outros fluxos, que rompam com
o hábito e conformismo a realidades urbanas que nos tiram potência de vida.
Para tanto, este processo projetual busca refletir sobre narrativas de
imagens e cidades, propondo uma ação (performance) e seus enquadramentos
(fotoperformance) como agenciadores de questões em: arquitetura, urbanismo,
indústria da construção civil, experiência contemporânea de cidade e processos
de especulação imobiliária.

Transformação

Figura 2
Bárbara Cabral, corpo da
arquitetura, 2019
Foto: Sofia Mussolin
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Em conversa com a especulação supracitada e com a tentativa de mobi-


lização e respiro presente nesta imagem, latente na anterior, sete versos de uma
canção do BaianaSystem8 ressoam, aqui e agora: “tire as construções da minha
praia/ não consigo respirar/ as meninas de minissaia/ não conseguem respirar/
especulação imobiliária/ e o petróleo em alto mar/ subiu o prédio eu ouço vaia”.
A canção de nome “Lucro (Descomprimindo)” (2016) faz referência à
construção de empreendimentos imobiliários à beira-mar na cidade de Salvador
que, aumentando o preço do metro quadrado pela localização “privilegiada”,
comprimem e sombreiam a faixa de areia no mesmo movimento em que expulsam
dali a população de baixa renda e abrem portas para que investidores privados
iniciem negócios na região. A praia, nesse cenário, como espaço público potente
que tem resistido9 ao longo dos anos diante da lógica neoliberal e das especu-
lações que ela possibilita, vem sofrendo, junto aos corpos que a habitam, um
processo de sufoco pelas construções circundantes.
O imperativo do verso que abre a estrofe (tire as construções) se anuncia,
assim, como grito para retomar o ar. Brado que busca derrubar, ou remover,
construções para restituir o espaço público, que pertence ao povo, do qual o grupo
reafirma fazer parte (da minha praia). Livrar-se delas. Tire, aqui, deseja ser ato
de fala: aquele que se realiza ao ser dito, promovendo transformações para além
da linguagem. Como se enunciar que se tirem construções pudesse demoli-las,
fazê-las ruir. Como em Austin (1990), para quem enunciados performativos
modificam, de fato, realidades – já que, quando proferidos, realizam ações.
Ainda que a fotoperformance não tenha sido pensada em relação a esses
versos, é esse o modo que operam as ações em corpo da arquitetura: ações
do corpo que desfazem uma estrutura, essa espécie de exoesqueleto-escultura
que aprisiona. O movimento irrompe em pequenas demolições. Rompe gesso,
abre fissuras, libera espaços. O agir do corpo o livra, enfim, daquilo que imobiliza,
sufoca. Fragmentos do material branco que engessa se acumulam no chão que,
sem marca de horizonte, se confunde com o fundo.

8
Grupo soteropolitano que compõe mesclando reggae e rock.
9
No cenário desses versos e por meio deles a praia resiste. Sabemos, no entanto, que, ainda que
sejam espaços públicos, conceber praias como lugares democráticos e de comum acesso e uso não
está dado. São muitas as tensões urbanas e construções socioeconômicas que orientam diferentes
modos de apropriação de quem a pratica cotidianamente e que incluem até mesmo privatizações não
oficiais por meio da ocupação do espaço.
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Resta, porém, o corpo: outra estrutura. Paradoxo da performação:


organismo desprogramado pela experimentação, ainda que se mantenha de
pé, funcionando. Os afetos que o atravessam durante e pós-performance, no
entanto, são outros. Trata-se da experiência que, ativada pelo programa, como
afirma Fabião (2008, p. 237), é “necessariamente transformadora, ou seja, um
momento de trânsito da forma, literalmente, uma trans-forma”.

Imóveis móveis

Figura 3
Bárbara Cabral, corpo da
arquitetura, 2019
Fotografia: Sofia Mussolin

corpo da arquitetura, título do trabalho, endereça o paradoxo mobilidade/


imobilidade presente nas relações corpo/cidade ou corpo/espaço. Refere-se
ainda à dureza e fixidez de construções e materiais usuais no campo da arqui-
tetura em contraste com a circulação, fluidez e permeabilidade de corpos que
habitam espaço. E em contraste com a corporeidade mesma dos espaços, cujo
entendimento vem da ideia de que espaço é também corpo:10 sistema aberto
definido por seus encontros e afetos.

10
Desenvolvo a ideia de que espaço é corpo com base na noção espinoziana de corpo, a partir da qual
Deleuze (2002, p. 132) afirma que “um corpo pode ser qualquer coisa”.
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O ponto de convergência entre imobilidade (polo do paradoxo) e imobiliária


(palavra já trazida ao texto, associada à indústria de negociação de arquiteturas)
localiza-se justamente na origem dos termos: o imóvel. Aquilo que não se move
ou o bem fixo, como edificações. A dualidade móvel-imóvel, neste contexto,
aponta sentidos (significados e direções) interessantes para o trabalho.
Em Coreopolítica e coreopolícia, o teórico da dança André Lepecki (2012),
ao comentar uma citação de Hannah Arendt (apud Lepecki, 2012, p. 49)
– afirmando que “antes de os homens começarem a agir, um espaço definido
teve que ser assegurado [o domínio público da pólis e sua lei] [...] dentro do qual
todas as ações subsequentes poderiam então tomar lugar” –, destaca relações
ação/política/movimento e construção/arquitetura/imobilidade. Lepecki (2012,
p. 48) coloca que o espaço urbano é construído por tangíveis imóveis: materia-
lidade que contém “a efemeridade, a precariedade, o deslimite e a imprevisi-
bilidade ontológica [...] do agir que tem como produto apenas o agir [política,
dança]”. Arquitetura, imóvel, que recebe e suporta ações.
Se o imóvel é, segundo Arendt e Lepecki, espaço material que contém
ações, seus deslimites e mobilidades, penso a fiação que amarra o corpo (termo
que alude ao que passa por dentro de paredes para fazer passar energia) e o
gesso que o recobre (material de revestimento e construção civil) enquanto
imóveis habitados – também mobilizados e, portanto, desestruturados pela
política do corpo que decide deslocar-se. Ação que desfaz arquiteturas, inaugu-
rando outras possibilidades e construções de espaçocorpo.

Narrativas de cidade: situações

Voltando à questão imobiliária, a situação de Salvador descrita nos versos


do BaianaSystem se assemelha a muitas outras em cidades-metrópole. Recife é
grande exemplo com o movimento de resistência Ocupe Estelita. O filme Aquarius,
de Kleber Mendonça Filho, também.
Enquanto o longa-metragem de 2016 nos apresenta a comovente ficção
sobre a resistência solitária da aposentada Clara (que defende o apartamento
onde viveu a vida toda do assédio de uma construtora que pretende demolir o
edifício Aquarius para dar lugar a uma nova obra na praia de Boa Viagem, Recife),
o movimento Ocupe Estelita é reação real e em grande escala, organizada pela
população da mesma cidade contra o empreendimento Novo Recife, no Centro
da capital pernambucana.
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Esse empreendimento (descrito no minidocumentário Recife, cidade


roubada como “nem novo, nem bom”) começa com a venda em 2008, em leilão
irregular, de um terreno da União no Cais José Estelita (valiosa área da cidade
em termos histórico-culturais) para construtoras envolvidas no financiamento
de campanhas eleitorais de Recife e do estado de Pernambuco. Aprovado de
maneira ilegal, o projeto de grande impacto (que previa a demolição de galpões
e a construção à beira-mar de 12 torres de luxo) recebe forte resistência da
sociedade civil “que decidiu fazer o trabalho que competia ao poder público,
exigindo que a lei seja cumprida” (Carvalho et al., 2014). O projeto ignora ainda,
segundo o curta, o deficit habitacional gritante da cidade (que em 2014 chegava
a 65 mil pessoas) voltando-se para a construção e venda de flats e comércios
de luxo.11
Ocupando território, subindo em máquinas e lutando pelo espaço público
que o Novo Recife nega, esse movimento contra12 a privatização e a especulação
imobiliária, que segue ativo diante de processos judiciais complexos,13 tem como
lema as frases: “A cidade é nossa. Ocupe-a.” Ações de habitação, mobilizações
e falas que, no lugar de demolir, impediram durante oito anos a construção de
arquiteturas sufocantes; recém-retomada com a força do capital.
Nessa mesma discussão, é emblemática uma terceira situação não ficcional,
carioca, trabalhada no livro 8 reações para o depois, do coletivo de arquitetura
ENTRE. Tanto em termos de especulação quanto com relação a sérias questões
trabalhistas da construção civil. Trata-se do empreendimento Ilha Pura, na Zona
Oeste da cidade.

11
Informações do minidocumentário Recife, cidade roubada (2014). Ver em: https://bit.ly/2U1hFte.
12
Esse movimento “contra” luta por um projeto que atenda aos interesses da população local. E,
como diria Argan (2000, p. 53): “Não se projeta nunca para, mas sempre contra alguém ou alguma
coisa: contra a especulação imobiliária e as leis ou as autoridades que a protegem, contra a explo-
ração do homem pelo homem, contra a mecanização da existência, contra a inércia do hábito e do
costume, contra tabus e a superstição, contra a agressão dos violentos, contra a adversidade das
forças naturais [...]. Projeta-se contra a pressão de um passado imodificável, para que sua força seja
impulso e não peso, senso de responsabilidade e não complexo de culpa. Projeta-se para algo que é,
para que mude [...] portanto, contra todo tipo de conservadorismo”.
13
O Globo. Linha do tempo de disputas do Novo Recife (mar./12-mar./19). Disponível em: https://
glo.bo/3b1y4Vz.Acesso em 7. jul. 2021.
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Nos anos anteriores aos grandes eventos esportivos no Rio de Janeiro


(Copa do mundo, 2014 e Jogos Olímpicos, 2016), “a especulação imobiliária
avançava em ritmo otimista e acelerado na Zona Oeste da cidade. Túneis foram
abertos, legislações ambientais foram flexibilizadas, potenciais construtivos
foram aumentados” (Entre, 2019, p. 247). É nesse contexto que, em 2012, o
empresário Carlos Carvalho Hosken em parceria com a construtora Odebrecht
(envolvida em uma série de esquemas de corrupção hoje investigados pela
Operação Lava Jato14) “apostou na construção de 31 torres residenciais que
serviriam como Vila dos Atletas nos Jogos Olímpicos [...] e futuramente seriam
comercializadas em um condomínio de alto padrão: o Ilha Pura” (p. 247).
O empreendimento, além de ter sido objeto de críticas de delegações
olímpicas por falta de segurança, problemas em instalações elétricas, de gás e
hidráulicas, demonstrou-se megalômano: “a maior parte de suas 3.064 unidades
permanece vazia, tendo uma taxa de ocupação inferior a 10% dos apartamentos”
(Entre, 2019, p. 247). Segundo a publicação, só o Ilha Pura representa “mais de
metade das unidades imobiliárias de alto padrão encalhadas na cidade inteira,
aprofundando o desequilíbrio do mercado pelo excesso de oferta” (p. 247);
ofertas de alto custo, inacessíveis à maior parte da população.
Outra questão importante é rapidamente suscitada em 8 reações para o
depois pela fala de um operário do empreendimento: a trabalhista. J.S. comenta
a superlotação dos dormitórios, atrasos recorrentes no pagamento do salário
e ameaças veladas que recebia – “se você está achando ruim, pede a conta”
(Entre, 2019, p. 254). Situações de precarização do trabalho muito comuns na
indústria da construção civil.15 Em nota, o livro aponta ainda que o Ministério
Público do Trabalho do Estado do Rio descobriu 11 trabalhadores em condições
análogas à escravidão nas obras desse “legado” olímpico.
Diante desses cenários me pergunto: de que maneiras, enquanto urba-
nista-performer e cidadã, dar visibilidade e corpo a tais situações? Que alter-
nativas e agenciamentos estético-políticos obrar por cidades feitas por e para
corpos desejantes? Como construir espaços públicos, entendendo que a ação do
corpo e a prática da cidade são, em si e já, construção?

14
Ver mais em: https://bit.ly/3aWhdTT. Acesso em 7 jul. 2021.
15
O livro Contracondutas (Escola da Cidade, 2017) apresenta sérios casos de condição análoga à
escravidão em obras do Aeroporto de Guarulhos e elabora condutas político-pedagógicas alternativas.
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Performance – Empreendimentos [I]Mobiliários

Outras perguntas surgem, referindo-se especificamente à fotoperformance


realizada e ao projeto urbano que estas linhas constroem. Em que medida corpo
da arquitetura pode endereçar tais questões (especulação de imóveis e preca-
rização do trabalho de corpos) enquanto forças presentes (ainda que não
literalmente expostas) nas imagens? Que potências guardam o título e as
materialidades da cena? E se a força da performance é “turbinar a relação do
cidadão com a pólis” e sua potência, “desautomarizadora”, como afirma Fabião
(2008, p. 237): por que meios fazer o trabalho circular no espaço urbano, ao
qual, de algum modo, se refere? Que desdobramento urbano o trabalho pode ter
e em relação a que situações se compõe enquanto projeto de ação? Ou ainda:
que outro trabalho poderia agenciar imagens de corpo da arquitetura em relação
a situações urbanas?
Considerando tais questões, identificando na especulação imobiliária um
processo que constrange corpo e afetos (ao bloquear relações, sufocar territórios
e impedir habitações) e pensando nos corpos que majoritária e precariamente
ocupam os canteiros de obra da cidade (pretos, nordestinos, pobres, masculinos),
o encontro recente com um nome e uma situação me apontou os caminhos para o
projeto urbano que componho agora: Performance Empreendimentos Imobiliários.
Trata-se do nome de uma incorporadora.
Fundada em 2002, a Performance tem como foco principal, segundo o
site da empresa, a incorporação de projetos residenciais, comerciais e hoteleiros
no Rio de Janeiro. Um de seus empreendimentos está sendo erguido enquanto
escrevo estas linhas em Botafogo, bairro da Zona Sul, área “nobre” carioca.
Próximo ao Shopping Rio Sul e ao túnel que leva à praia de Copacabana, o edifício
residencial (de dois e três quartos, com apartamentos de até 180m²) em cons-
trução tem, nos tapumes que cercam o terreno, duas enormes placas com a
palavra “PERFORMANCE” e o subtítulo “empreendimentos imobiliários”.
O desejo de fazer um trabalho com esse título surgiu na primeira vez que
vi a placa. A ironia de realizar uma performance intitulada com o nome de uma
grande empresa (incorporadora) que administra imóveis de alto padrão na
cidade em que me formei arquiteta e urbanista e na qual desenvolvo pesquisas
e práticas performativas (pensando relações corpo-cidade e possibilidades de
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construir e viver o urbano de maneira desejante, coletiva, política) me tomou mente e


corpo; pareceu irresistível. Esta obra precisava (precisa) acontecer. Por isso escrevo.16
Desse nome colhi algumas importantíssimas lições: compreender perfor-
mance enquanto empreendimento; considerar o pensamento de uma performance
(e a elaboração de seu programa) enquanto projeto; entender que projeto já
é trabalho, obra; assumir, enfim, a prática da performance como construção –
construção efetiva de espaçocorpo, corpo-cidade. A palavra imobiliários, por sua
vez, abriu portas para a relação com corpo da arquitetura e deflagrou pesquisas
sobre (i)mobilidade, especulação imobiliária e trabalho na construção civil; que
já são parte do projeto.
Antes de seguir para o programa das ações, sua elaboração escrita e
material, apresento as últimas fotos de corpo da arquitetura, de modo a refletir
sobre certas questões físicas e conceituais da fotografia, da performance e das
(foto)performances trabalhadas.

Fotografia e performance

Figura 4
Bárbara Cabral, corpo da
arquitetura, 2019
Foto: Sofia Mussolin

16
A realização deste projeto é obra inviabilizada pela pandemia da covid-19. Estas linhas são, assim,
um acontecimento possível da performance. Falar de sua impossibilidade presencial e de sua
composição é, de algum modo, fazê-la presente nos corpos que se encontram com a escrita que
arrisco aqui. Performá-la.
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Neste trabalho a fotografia é de estúdio. Marcas do fundo-chão foram


removidas em pós-produção para dar destaque ao corpo e aos materiais em
movimento. A cor do fundo, contrastando com as matérias da ação, dá centra-
lidade ao gesto que está, também na composição fotográfica de Sofia, no meio
do quadro. Apesar da centralidade, há uma assimetria acentuada nesta foto. A
assimetria vem da ação.
Trata-se da imagem na qual o esforço de liberação do corpo é mais
evidente. A força da mão que puxa o fio, buscando desamarrá-lo do tronco, tem
como efeito colateral a constrição das pernas. Da boca, um emaranhado vermelho
se dependura, impedindo a fala e dificultando a respiração já ofegante. O gesso
cobre menos partes do meu corpo e agora o acúmulo de restos no chão é maior. É
uma cena performativa. E experimentar esse trabalho foi compreender fotoper-
formance, para além de construção, enquanto encen-ação, que inclui imagem
e presença. Não no sentido teatral ou de uma atuação que difere da realidade
do corpo que age – afinal, aqui, peso, textura e o aperto do gesso sobre o corpo
eram fatuais. A tentativa de desvencilhamento, também. Trata-se, então, de agir
corpo-imagens por meio do enunciado de uma performação.
Enquanto entendo fotoperformance como encen-ação, Renato Cohen
(2013, p. 56) afirma que a performance é, antes de tudo, uma “expressão
cênica”. Destaca, porém, que há uma potência antiteatral nessa linguagem, que
costuma escapar do texto dramático e da ideia de interpretação. Se descolo a
ação do encenar é justamente para referenciar o caráter fugidio da performance
com relação ao teatro, a acentuação performativa do instante presente e “real”
que, ainda assim, se estabelece e retorna como cena e visualidade ao compor
imagens, aproximando-se da fotografia.
Ainda entre fotografia e performance, outra dualidade ganha espaço com
corpo da arquitetura e na programação da (foto)performance que intitula este
texto: programar e agir fotoperformances é ser, ao mesmo tempo, sujeito e objeto.
Para além do paradoxo apontado por Cohen (2013, p. 39) como característica
da performance (na qual o artista já é sujeito e objeto da obra), nestes trabalhos
sou também objeto da fotógrafa que, pelos enquadramentos que realiza, busca
capturar forças de minha interação corpo/espaço. E são suas fotografias as
responsáveis pelo desdobramento da performance em novas experiências e
imagens: obras autônomas.
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Figura 5
Bárbara Cabral, corpo da
arquitetura, 2019
Foto: Sofia Mussolin

Tais enquadramentos consistem em um processo ativo, dinâmico. Como


define Josette Féral (2015, p. 94): “uma produção que expressa o sujeito em
ato”.17 Nesse jogo, o enquadramento da fotógrafa, que não é moldura fixa, mas
mobilidade, tem a propriedade, assim como a ação do corpo (e junto dela), de
criar espaços. A fotografia da performance (o ato que gera fotoperformances) é,
assim, também entendida enquanto performance neste projeto: sai da esfera do
registro automático ou totalizante e torna-se processo de produção. O corpo da
fotógrafa performa junto ao de quem realiza a ação.
Nesse sentido é que escolho admitir a câmera enquanto matéria da
performance urbana. Incluir a fotografia como ação do programa, parte de sua
composição – atentando, sempre, ao que está em jogo: como não espetacularizar
a ação por meio da fotografia? Como compor imagens com uma câmera, em
espaços urbanos, de maneira ética? Refraseando: como preservar a experiência
de interação corpos/cidade, sem a transformar em atuação para a câmera e,

17
“Se a moldura é um resultado que é possível impor, o enquadramento, ao contrário, é um processo,
uma produção que expressa o sujeito em ato [...], uma iluminação das relações perceptivas entre um
sujeito e um objeto” (Féral, 2015, p. 94).
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ainda, respeitando direitos de imagem? Que relações de subalternidade podem


ser agenciadas nessa “cena-não-cena” (Fabião, 2013, p. 3) – como evitá-las ou
cuidar delas? Que corpos ocupam majoritariamente canteiros de obra e galerias
de arte; e de que modos?18
Perguntas cujas respostas talvez só venham em experimentação, que são
parte da composição do programa e cuja exposição, por isso, é fundamental.

Figura 6
Bárbara Cabral, corpo da
arquitetura, 2019
Foto: Sofia Mussolin

Considerando ainda a seminudez, diante do risco de ser acusada por


atentado ao pudor, decido vestir o mínimo para estar dentro da lei, exercendo o
mínimo direito à escolha de expor este corpo. Veremos como a cidade reage a
uma mulher branca de tapa-sexo, semicoberta em gesso, na rua e fora do contexto
do carnaval, no país da hipersexualização de sambistas negras expostas nas TVs
das casas todas.

18
É precisamente com essa atenção que são definidos os corpos humanos de PERFORMANCE –
EMPREENDIMENTOS [I]MOBILIÁRIOS – quem imobiliza quem, quem está em situação mais vulnerável
e quem, por meio de um dispositivo, enquadra quem – em termos de gênero, racialização e afetos.
Convidar pessoas não brancas para esse programa seria colocá-las, uma vez mais, em posição de subal-
ternidade, servindo ao trabalho de uma mulher branca que deseja performar, além de reafirmar situações
trabalhistas usuais na indústria de construção civil – a mão de obra de homens não brancos.
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A partir da relação ruas/casas, identifico uma série de vibrações para-


doxais que o projeto parece agenciar: público-privado; mobilidade-imobilidade;
experimentação-projeção ou performance-projeto; vulnerabilidade-força;
seco-úmido; dentro-fora; carne-pedra; arte-vida. Sem intenção de esgotá-las,
mas de maneira a pensar o programa, apresento esta lista; que provavelmente
será reformulada com a experimentação.

Imagem e programa

Entendendo o espaço urbano como corpo-matéria a ser trabalhado no


programa e em PERFORMANCE, inexistente no contexto de corpo da arquitetura,
trago esta fotografia (fruto de meu encontro com a cidade) como última camada
do projeto de experimentação construído nestas linhas.

Figura 7
PERFORMANCE – Rua
General Góis Monteiro,
125-195, 2020
Foto: Bárbara Cabral

A fotografia acima é fruto de uma interação corpo/cidade cotidiana: todos


os dias ao sair da Universidade Federal do Rio de Janeiro em busca do ônibus que
me levaria para casa, na Zona Oeste da cidade, estacionava o corpo à direita da
placa que proíbe o estacionamento de carros, no ponto de ônibus, me deparando
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com um nome e situação que apontaram caminhos para o projeto urbano que
compartilho agora. PERFORMANCE EMPREENDIMENTOS IMOBILIÁRIOS; a obra
em andamento.
Com a fotografia do sítio de projeto em mãos – e tudo que ela diz para
além das palavras destas linhas (sugiro, mais uma vez, a demora no olhar) – e
buscando expor processos e estruturas da cidade, concluo com a formalização,
enfim, deste programa (foto)performativo – destacando que imobilização
e fotografia foram incorporadas ao enunciado ao ser compreendidas também
como construção de corpo-cidade:

Em uma manhã de sábado,19 vestindo tapa-sexo e protetor


de aréola, posicionar-me em frente ao tapume verde (cor de
chroma key20) do terreno em obras do edifício residencial
Highlight Jardim Botafogo, ao lado da placa que anuncia o
nome da incorporadora responsável: Performance Empreen-
dimentos Imobiliários. Ter o corpo imobilizado por um homem
branco, que veste macacão cinza: primeiro por uma fiação de
cobre vermelha e, em seguida, por uma camada de gesso úmido.
Esperar que o gesso seque. Mover-me, tentando me liberar dos
materiais. Ter todo o processo fotografado por uma mulher
branca, vestida de preto.

PERFORMANCE – EMPREENDIMENTOS [I]MOBILIÁRIOS


Pedimos desculpas pelo transtorno.

Bárbara Silva da Veiga Cabral é urbanista-performer. Mestranda pelo Programa


de Pós-graduação em Artes da Cena da UFRJ, graduada em arquitetura e
urbanismo pela PUC-Rio, com graduação sanduíche na Universidad Politécnica
de Madrid, Espanha.

No Quadro de Horário fixado nos tapumes, fins de semana são dias de descanso, garantindo
19

maior liberdade para a (foto)performance.


20
O Chroma Key, também conhecido como “fundo verde” é uma técnica utilizada em fotografias e
vídeos para substituir um fundo de cor sólida por outra imagem.
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Artigo submetido em março de 2021 e aprovado em junho de 2021.

Como citar:
CABRAL, Bárbara Silva da Veiga. Performance – empreendimentos [i]mobiliários.
Arte & Ensaios, Rio de Janeiro, PPGAV-UFRJ, v. 27, n. 41, p. 279-297. jan.-jun. 2021.
ISSN-2448-3338. DOI: https://doi.org/10.37235/ae.n41.15. Disponível em: http://
revistas.ufrj.br/index.php/ae
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ARTIGO 298

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Nem teatro nem cinema: a performance


no espaço de exclusão
Nor theatre nor cinema: performance in the exclusion area

Luciano Vinhosa
0000-0001-8593-1223
lucianovinhosa@id.uff.br

Resumo

Neste ensaio, a partir do curta-metragem experimental Duelo, de Daniel Santiago,


em primeiro lugar nos perguntamos o que aproxima a performance ao mesmo
tempo em que a diferencia quando apresentada em circuitos de artes visuais
ou de teatro. Em segundo lugar, especulamos sobre as diferenças e aproxi-
mações entre a atuação de um ator no cinema e a de um performer. Nesse
percurso foi necessário investigar o que seria uma performance. Ao fim e ao
cabo, concluímos que, não sendo nem teatro, nem cinema, Duelo é performance
filmada que participa das duas instâncias quando surpreendida em suas regiões
de contato.
Palavras-chave
Duelo; Teatro; Cinema; Performance.

Abstract

In this essay, starting from the experimental short film Duelo, by Daniel Santiago, we
first ask ourselves what approximates and what differentiates performance when it
is presented in visual arts and theater circuits. Second, we speculate about the
differences and similarities between the performance of an actor in cinema and
that of a performer. After all, we conclude that, being neither theater nor cinema,
Duelo is filmed performance that participates in both instances.
PPGAV/EBA/UFRJ
Rio de Janeiro, Brasil Keywords
ISSN: 2448-3338
DOI: 10.37235/ae.n41.16 Duelo; Theater; Cinema; Performance.
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Duelo

O cenário mostra ao fundo uma paisagem fechada por uma encosta em


aclive, a película já envelhecida deixa em tudo um tom vermelho-violáceo.1 O
som ambiente evoca os de uma floresta, gritos estridentes de animais rasgam a
continuidade aveludada da superfície sonora lembrando-nos a sonoplastia dos
filmes de Tarzan. Depois de poucos segundos de apresentação dos créditos, o
plano aberto, uma personagem adentra a cena pela diagonal esquerda, e outra,
mais ou menos ao meio do quadro, pela direita. Caminham até o fundo, uma ao
encontro da outra. Ao se aproximar, entreolham-se e trocam palavras inaudíveis
apontando para as câmeras que, agora podemos ver, carregam em suas mãos.
Um pouco descentradas em relação ao eixo vertical imaginário que divide a
imagem ao meio, mais à direita do quadro, as personagens viram-se, dando-se as
costas, apoiando-as uma contra a outra. Fazem então uma pausa para respirar,
aprumam seus corpos, erguem as cabeças e, aos poucos, se separam enquanto
caminham a passos contados e em sentidos opostos, mas alinhados com o
horizonte. Uma câmera fora do quadro, aparentemente apoiada em tripé, em
posição central e a meia altura, filma toda a sequência. Primeiro em ângulo aberto
mostrando o contexto, em seguida em movimento de zoom acompanhando as
personagens, nelas se fecha, e, enquanto elas se afastam, o ângulo vai-se abrindo
novamente até o limite em que tudo fica enquadrado, paisagem e personagens,
ali no espaço e tempo da imagem em que tudo irá acontecer – a produção, no
entanto, é nitidamente amadora, a ponto de uma das figuras, a que se encontra à
direita do quadro, vazar a imagem e depois ser recuperada à medida que o plano
se abre para abranger novamente todo o conjunto.
Ao atingir, cada uma, as bordas opostas do quadro, as duas personagens
param e, em viravolta, voltam-se uma para a outra. Em seguida, a câmera que
as segue fecha-se, primeiro sobre uma, em seguida sobre a outra... podemos
Figuras 1-6
ver agora nitidamente, mirando-as em nossa direção, que uma delas empunha
Daniel Santiago
Duelo, 1975
uma câmera de vídeo e a outra, uma de cinema. O plano abre-se novamente
Original em 16mm. 3’’17” e mostra as duas figuras distanciadas, cada uma em um extremo do quadro.

1
Embora o original seja em película, o filme foi digitalizado e disponibilizado no youtube: https://
www.youtube.com/watch?v=YY_2rnyQN9g.
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Caminhando em sentido convergente, vão se aproximando até o ponto central


enquanto apontam, uma para o outra como se fossem armas, as câmeras que
agora ocupam o lugar de seus rostos. O duelo entre o vídeo e o cinema é ence-
nado em torno de um eixo vertical produzido pelo efeito gravitacional de seus
corpos em órbita sincronizada a partir de um ponto central imaginário. O teatro
prossegue na relação triangular entre as duas personagens e a terceira câmera
que registra a ação, mas que se encontra fora do quadro. Essa, agora liberada
do tripé, assume o corpo e os movimentos do observador, enquanto este ocupa
alternadamente os corpos e os lugares das personagens quando uma olha para
a outra, mas dirigindo-se ao público. Em seus mútuos revezamentos, em suas
trocas incessantes de lugares, o olho mecânico, ora tomando o lugar de quem
as observa, ora incorporando as personagens que nos encaram, filma ao mesmo
tempo que nos implica na ação. No triângulo em vai e vem, em que cada sujeito
é uma câmera que nos olha e é por nós olhada, o jogo dinâmico da mise en scène
estabelece o Duelo.
Originalmente produzido para a cadeira de cinema do curso de jornalismo
da Universidade Católica de Pernambuco, esse curta-metragem foi dirigido por
Daniel Santiago, que também o encenou junto com Paulo Bruscky. Essa ação
cinematográfica é hoje exibida nos circuitos de arte e/ou de cinema como arte
experimental dos anos 1970.2 Em seus termos embaralham-se conceitualmente
a representação, a narrativa, o teatro, o cinema e a própria performance.
Se desta última o curta traz a presença sumária da ação diante de um
público ou, simultaneamente, com um público, do cinema podemos identificar
não só a narrativa e a representação, ainda que mínimas, mas também aquilo
que os críticos dos Cahiers du cinéma identificavam, nos anos 1950, como a
essência da linguagem cinematográfica:

A mise en scène aí defendida é um pensamento em ação, a encenação de


uma ideia, a organização e disposição de um mundo para o espectador.
Acima de tudo, trata-se de uma arte de colocar os corpos em relação no

2
Tomei conhecimento de Duelo na exposição Pernambuco Experimental, com curadoria de Paulo
Herkenhoff e Clarissa Diniz, apresentada no Museu de Arte do Rio (MAR) de 10 dezembro de 2013 a
30 março de 2014. Disponível em: http://museudeartedorio.org.br/programacao/pernambuco-experi-
mental/. Acesso em 19 mar. 2021.
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espaço e de evidenciar a presença do homem no mundo ao registrá-lo


em meio a ações, cenários e objetos que dão consistência e sensação de
realidade à sua vida. Expressão cunhada em sua origem para designar
uma prática teatral, a mise en scène adquire no cinema essa dimensão
fenomenológica: mostrar os dramas humanos esculpindo-os na matéria
sensível do mundo (Oliveira Jr., 2013, p. 8).

Duelo nos interessa justamente porque, além de seu pioneirismo, nos dá


a oportunidade de discutir dois problemas teóricos: 1) as aproximações e os
distanciamentos da performance nas artes visuais e no teatro, em primeiro lugar;
2) em segundo lugar, as aproximações e os distanciamentos entre atuação no
cinema e na performance.

Ínfimas porosidades: entre o real e sua representação

Se o anos 1950 pontuam simultaneamente o apogeu e a agonia da pintura


no mundo ocidental, o que se seguiu à efervescência das ideias no meio das
artes [ainda] plásticas daqueles anos foi que grande parte da nova vanguarda
artística pôde investir contra os limites impostos pelo espaço tradicional de sua
representação, o quadro. Recusando-se a acomodar-se em seu interior, a moldura
que o encerra, desde sempre convencionada como limiar entre mundos, separava
dois lugares administrados por eventos distintos: do lado de dentro, o regime
da representação e da metáfora impondo seu próprio tempo e espessura; do
lado de fora, o mundo dos acontecimentos sincrônicos, das horas, dos dias e
dos fatos brutos, aquele no qual um copo de vidro, por algum acidente ou ação
deliberada, pode precipitar-se ao chão e estilhaçar-se, promovendo uma espécie
de maravilhamento diante do real.
Depois de romper a moldura, negar a profundidade e aplainar-se até o
limite ínfimo e sem profundidade das paredes ou mesmo em movimento inverso
ao da perspectiva, ao precipitar-se como um vômito para fora de seu quadro, a
pintura ou, melhor dizendo, o conceito de pintura – pois é bem disto que se trata:
pensá-la conceitualmente – não será mais que o indicativo de sua dupla impossi-
bilidade: a de acontecer ainda dentro de um espaço de representação determi-
nado e, ao mesmo tempo, ser simplesmente um corpo, entre outros do mundo
real, que nos afrontaria como o de uma cadeira, por exemplo. As incertezas
quanto à eficácia dessa categoria histórica abalaram também as certezas
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de outras, já bem assentadas, como a da escultura, e pôs em xeque todo um


sistema tradicional das representações visuais. Não foram raras as soluções
que apontassem para uma pintura tridimensional, uma quase escultura, ou, ao
inverso, uma escultura que se achatasse a ponto de abrigar-se nas paredes e
compor com a superfície da arquitetura. Da transversalidade dos meios, sucede-
ram-se derradeiras e definitivas experimentações – nem pintura, nem escultura,
como vemos, nos anos 1960, nos “objetos específicos” de Judd3 ou, ainda nos
anos 1950, e portanto bem antes dos minimalistas, nos “não-objetos” do
neoconcretismo brasileiro.4
Mais do que se evadir da pintura ou da escultura, e por iniciativa deliberada
de alguns artistas, romperam-se as grandes linhas essenciais que delimitavam
teoricamente os meios de expressão, fazendo-os melar em suas inconsistências
formais. Se nem teatro nem artes visuais, nem música nem arquitetura, nem
dança nem poesia, aquilo que está entre as artes não seria nada mais do que
arte em geral. Já mencionamos em outro texto que Kaprow constatou que a
pintura de Pollock roçava a superfície do mundo, esse mundo mesmo em que
o curso da vida se amesquinha em gestos tão enfadonhos quanto naturalizados
(Vinhosa, 2016; Kaprow, 2006). Esses gestos miméticos e repetitivos que
remetem aos processos de aprendizagem – e que ora perdem totalmente o sentido
– merecem ser redramatizados em nosso corpo para que recuperem a exuberância
original, porquanto, no estranhamento, se reinvestem de sua potência inau-
gural e vibram como uma experiência – tal foi a expectativa de Kaprow quando
propôs o happening como uma possibilidade expressiva operada diretamente no
mundo. Foi esse artista, aluno de John Cage no New Scholl for Social Research
em Nova York,5 que nos anos 1950 e 1960 resgatou a ação banal, como comer,

3
O ensaio que apresenta o termo/conceito foi escrito por Donald Judd em 1963 e só publicado em
1965 em Arts Yearbook, 8 (Judd, 2006).
4
“Os neoconcretos, retomando a questão da forma significativa, que os concretistas abandonaram
voltados para puros problemas de estrutura e tensões cromáticas, rompem com o conceito tradi-
cional de quadro e de escultura e propõem uma linguagem efetivamente não figurativa, isto é, cuja
expressão dispensa um espaço metafórico para se realizar. A obra neoconcreta realiza-se diretamente
no espaço, sem apoios semânticos convencionados na moldura (para o quadro) e na base (para escultura)”
(Gullar, 1985, p. 250).
5
De fato, é atribuída a Cage a primeira apresentação, ocorrida em 1952 no Black Mountain College,
daquilo que Kaprow chamou mais tarde de happening, que teve a colaboração de Charles Olson, Robert
Rauchenberg, Merce Cunningham, David Tudor entre outros (Huyssen, 1997, p. 133).
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conversar, cantar desafinadamente, enquanto potência de um acontecimento


primeiro, arte tout court capaz de nos arrancar do processo cotidiano de embru-
tecimento. Sugestão que, mais tarde, se reelaborou naquilo que viemos a conhecer,
nos anos 1970, como arte da performance. No horizonte das neovanguardas dos
anos 1950 residiu a utopia de a vida ser, enfim, estado permanente de arte.
A vida como arte ou a arte como vida, tanto faz, se confundirá com a
obsessão pelo real que marcou toda uma geração de artistas. Esse enlace,
que caracterizou inicialmente a performance, também deixou fortes marcas
em outras diferentes experimentações artísticas, a ponto de elas pretenderem
despojar-se de toda instância metafórica e de ilusão que até então acarretara
a noção de representação nas artes e que colocava o espectador a distância.
O fascínio que inicialmente o videoteipe despertou na ocasião em que foram
disponibilizadas as primeiras câmeras caseiras, por exemplo, deve-se muito
à captura e à transmissão diretas que essa ferramenta era capaz de realizar.
Mesmo as experimentações mais ousadas e independentes, que puderam ser
levadas a cabo em câmeras super-8 ou de 16mm, justificam-se, não necessa-
riamente por uma predileção pelo precário ou pela falta de recursos, mas talvez
pela conexão mais ágil que essas câmeras, graças a sua maior maneabilidade e
à crueza material das imagens, mantinham com o pensamento, como se fosse
uma escrita direta do real sobre a película. E também na época clássica do
cinema, nos anos 1950, quando esse meio atinge sua maturidade expressiva,
os intensos debates que irão figurar nos Cahiers du Cinéma estarão mobilizados
em torno da relação estreita que o cinema era capaz de manter com o mundo. Ao
comentar a sensibilidade de Rossellini, Jacques Aumont (apud Oliveira Jr., 2013,
p. 39) chama a atenção para a forma ensaísticas de seus filmes: “[Rosellini] não
procura nenhum estilo pessoal, ele é inimitável; ele se permite o esboço, ele se
permite até mesmo continuar sendo um amador, pois seu objetivo não é a obra,
e sim o ensaio”.
Arte e vida são os termos de uma dialética que reenvia igualmente a
oposição entre o real e a sua representação, um problema que a performance,
em seus primeiros esboços, irá enfrentar sem jamais resolver ou, na melhor
hipótese, transformar em solução. Na constatação de que a própria realidade é
em si um modo de representar o mundo e de que viver em sociedade é já seguir
um script, a questão é como transformar a vida enquanto reformulamos uma
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reviravolta em nossas representações, a priori herdadas da ordem hegemô-


nica. Tendo sido esse o projeto de toda uma arte moderna, ele perdurou nas
novas vanguardas dos anos 1950 e 1960 e ainda hoje se faz urgente nas práticas
artísticas contemporâneas.6 Reviver ou reencenar os gestos corriqueiros como
ação inaugural é dar ao sujeito mais uma chance de ele fundar uma forma de
vida a partir de um ponto de vista crítico e emancipado, em cujo ato se opera
a própria expressão de um mundo renovado. Lygia Clark (1980) em seu texto
fundamental, “A propósito da magia do objeto”, de 1965, ao especular sobre as
possibilidades do Caminhando, proposição em que ela instrui ao mesmo tempo
em que solicita ao sujeito que corte um caminho ao longo de uma fita de
Möebius, afirma:

Mesmo se esta proposição não é considerada como uma obra de arte


e fica-se cético o que ela implica, é preciso fazê-la, apesar de tudo.
Através dela o homem se transforma e se aprofunda, mesmo que não
queira nem saiba. Assim, o artista abdica um pouco de sua personali-
dade, mas ao menos ajuda o participante a criar a sua própria imagem
e a atingir, através dessa imagem, um novo conceito de mundo (Clark,
1980, p. 28).

Entre presença e representação: a performance no interstício da vida

Como expressão que tem no corpo o seu suporte, a origem da performance


é difusa, podendo-se mesmo remontá-la aos rituais mais arcaicos da humanidade.
Mas, é consenso entre os teóricos, ela vai se configurar como manifestação
artística, porém ainda sem o nome que a substantivou, em certas ações das
vanguardas modernas, notadamente nos eventos conduzidos pelos dadaístas e
surrealistas, nas primeiras décadas do século 20. Se pudéssemos retraçar uma
genealogia mais recente, em meados do século passado, mais precisamente em
1952, Harold Rosenberg (1974), ao chamar a atenção mais para a ação do que
para o resultado, observa que Pollock, ao pintar suas telas em grandes formatos,

6
Entendo que o projeto moderno, diante da assertiva da autonomia da arte, tem como pressuposto a
transformação do sujeito – e deste para a sociedade – desde a reformulação de suas representações de
mundo, o que um autor como Rancière (2009) destaca como potência emancipadora do regime estético.
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as estendia no chão de seu ateliê e se lançava em uma espécie de ritual em que


os movimentos de seu corpo se inscreviam na pintura. Quando o autor destaca
que as pinturas do artista não podiam ser apreciadas sem esse aspecto do
desempenho corporal, ele dá ênfase ao processo. Também é de conhecimento
público a ação Erased de Kooning Drawing realizada por Robert Rauschenberg
em 1953, em que o artista apaga um desenho de Willien de Kooning. Todo
interesse desse trabalho está concentrado na atitude iconoclasta, no fato de que
esse gesto do artista é capaz de presentificar um acontecimento cujas conse-
quências atingem diretamente a tradição artística. Apesar de toda a heteroge-
neidade, a presença que subentende uma ação operada no mundo, sem a moldura
forte da arte, é o que vai qualificar e aglutinar todas essas manifestações de
desempenho. Sem dúvida, esse clima de renovação contou com a participação
fundamental de John Cage, ainda no Black Mountain College, quando esteve na
liderança de um grupo que, além de Rauschenberg, incluía o poeta Charles Olson,
o coreógrafo Merce Cunningham, o músico David Tudor entre outros (Huyssen,
1997, p. 133). O próprio Cage compõe, em 1952, a peça “4’33’” em cuja
apresentação o concertista fica em silêncio enquanto o som do ambiente faz a
música. Essa proposta é emblemática porque, em uma quase fusão de arte e
vida, a noção de fundo e figura – no caso, músico e audiência –, que caracteriza
uma apresentação musical tradicional, quase desaparece. O certo é que as
atitudes protoperformáticas, na época identificadas como neodadás, emergiram
do mal-estar generalizado a partir da percepção de que a arte havia, de algum
modo, se distanciado da vida. Diante de tal constatação, foi inevitável que toda
uma geração, desde artistas visuais, passando pelos profissionais da música e da
dança, até os encenadores, se mobilizasse em torno dessa problemática. Com
efeito, a forma recorrente de reaproximação foi a ação pontual, mas inesperada, que
introduz uma descontinuidade no curso da vida: um acontecimento.
Segundo o artista fluxus Dick Higgins, entendida como um tipo de evento
intermídia,7 a performance se faz por redução e subtração, mas não por adição
e justaposição. Exatamente por ocupar o espaço vazio, intermediário, entre as

7
No caso, o termo se opõe conceitualmente a multimídia, que indicaria uma soma de mídias (Huyssen,
1997, p. 140).
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artes, ela não é, no entanto, nem uma coisa, nem outra. Se hoje a performance é
termo e prática difundidos, caracterizando-se pela transversalidade, a diluição das
fronteiras que separavam as diferentes artes apontou para uma entropia final.8
A própria ideia de uma arte performática, contudo, guarda em si uma contradição
que a preservou de sua derradeira dispersão, o que de fato veio a se confirmar
quando hoje reconhecemos a performance como uma categoria expressiva que
frequenta tanto o circuito das artes visuais como o da música, o da poesia e o
do teatro. Na oportunidade, no entanto, gostaria de aqui retraçar brevemente os
caminhos de seu entendimento e sua prática nas artes visuais e no teatro, e de
como, não sendo nem uma coisa, nem outra, a performance vai incorporar
problemas estéticos diferentes segundo o circuito em que é apresentada e levada
a contento. Com certeza, o fato de, desde suas primeiras manifestações, ela se
caracterizar por ação coordenada no tempo e no espaço e, em alguns casos,
incorporar mesmo algum tipo de narrativa, ainda que gestual, a religa ao teatro e
à mise-en-scène do cinema, problema sobre o qual inicialmente nos propusemos
a refletir e ponto ao qual pretendemos chegar ao cabo deste ensaio.
Josette Féral (2008, p. 197), ao definir o que chama de teatro performativo,
parte das distinções conceituais de dois termos, performance e performatividade,
cujas noções o acarretariam. A autora nos ensina que, em sua origem, o emprego
da expressão nas teorias e práticas do teatro está ligado tanto, em sentido amplo,
a sua acepção antropológica quanto, em uso restrito, a sua inscrição no âmbito
exclusivo das expressões artísticas. Antes mesmo de as teorias especificamente
artísticas se adensarem nos anos 1980, sociólogos americanos, como Erwin
Goffman (1973), anteciparam o argumento de que a performatividade está
difundida, de alguma forma, no campo social, abrangendo um vasto número de
atividades do domínio da cultura e do trabalho, e, a princípio, em toda situação
que nos exige desempenho e interação social. O sujeito performante não
seria diferente daquele que o autor chama de ator social, o qual na vida cotidiana
enfatiza seus atos, encenando-os em gestos culturalmente codificados, frequen-
temente enquadrados em certos cenários em que eles surtem efeitos para um

8
Ao alertar para a desordem que o apagamento das fronteiras introduz nas estruturas tradicionais das
artes, Adorno se serve da expressão Verfransung Künste justamente para se referir a um certo estado de
entropia (Huyssen, 1997, p. 141).
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público interlocutor. Féral (2008) nos chama a atenção para essa compreensão
antropológica que estará no cerne dos estudos e prática da performance teatral
desenvolvidos nos Estados Unidos, sobretudo aqueles de Richard Schechner, o
autor que, ao defini-la, inclui um vasto número de práticas, desde rituais
religiosos, passando por festas populares até o desempenho de um atleta.
Performance nesse sentido é igual a performatividade, uma certa desenvoltura
que operamos em nossas práticas cotidianas, mas que envolvem um repertório
de gestos passível de ser observado e reencenado como prática teatral. Segundo
esse autor, a performance, sendo uma ação em curso, implica três operações
fundamentais expressas nos verbos ser/estar; fazer; mostrar ou dar-se em
espetáculo. Por este último aspecto, quando a ação é apresentada para uma
audiência – formalizada ou não, subentendida ou de fato –, a performance, em
seu sentido amplo, encontra-se com os parâmetros da arte. Por esse viés ela é
compreendida em sua instância estrita, a qual envolve um certo reencenar em
situação extraordinária e pontual para um público, de modo que aqueles mesmos
gestos banais possam surtir um certo efeito de separação e descontinuidade,
ainda que inscritos no curso da vida. Em outras palavras, possam ter eficácia
artística ao funcionar como um evento excepcional. Seria essa a compreensão
de performance em Andreas Huyssen que, em sua acepção exclusiva, iria preva-
lecer em alguns países da Europa, notadamente na França, e no Canadá (Féral,
2008, p. 200).
Se, para as concepções rigorosas de arte moderna que prevaleceram nos
anos 1950 nos Estados Unidos, a degenerescência estava naquilo que Michael
Fried (1990) identificou como teatralidade nas artes visuais,9 o teatro, em
contrapartida, pôde beneficiar-se da performance ao privilegiar o ator performer,
que executa uma ação em lugar de dramatizá-la, a descrição cênica em detri-
mento da representação de personagens, a predileção da imagem ao texto, ao
exercer o repúdio a qualquer tipo de ilusão e fazer apelo efetivo à interação direta
com o público. Todos esses aspectos reunidos, integrando hoje praticamente
toda encenação contemporânea, inscrevem-se no que Josette Féral qualifica de

9
O autor a observa a partir de uma certa presença do objeto no espaço do espectador, a qual promove um
estado de contingência que reconhece a priori uma plateia genérica para quem se encena (Fried, 1990).
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teatro performativo. No entanto, adverte a autora, se essas inovações puseram


em xeque a forma dramática, alguma coisa permanece, já que inexoravelmente o
teatro é sempre uma representação que se pauta em uma narrativa, uma ficção,
que se desdobra no tempo e no espaço enquanto se faz apelo a algum sentido
(Féral, 2008, p. 198 e p. 201). Se o teatro performativo incorpora a performance,
ele resta, no entanto, teatro. Por outro lado, se a arte da performance, aquela
que se aloja nos interstícios das artes, divide com o teatro contemporâneo a
recusa da ilusão, a inscrição da ação artística diretamente na vida, mas que se
encena para um público, imaginado ou de fato, ela se pautaria, ao menos em
seus primórdios, no gesto sumário e pontual que prescinde da narrativa ou de
sentido. Rosalind Krauss (1998) rememora uma dessas performances ao nos
descrever uma apresentação, em 1961, de Robert Morris:

Abrem-se as cortinas. No centro do palco vê-se uma coluna erguendo-se


verticalmente a 2,40m de altura, com 60cm de lado, feita de compensado
pintado de cinza. Não há nada mais no palco. Durante três minutos e
meio, nada acontece; ninguém entra ou sai.

Súbito, a coluna desaba. Passam-se outros três minutos e meio. Fecham-se


as cortinas (Krauss, 1988, p. 241).

Em Caminhos da escultura moderna, livro do qual a citação foi retirada, a


autora vincula a performance ao percurso desse desdobrar consequente, quando
em sucessivas revoluções, desde Rodin, a escultura incorpora o tempo vivido em
lugar de o representar.
Com efeito, nos interstícios entre as artes em que a performance se
elaborou, foi possível observar um deslizamento, um verdadeiro trânsito entre
os locais de sua apresentação porquanto os artistas provinham também de
diferentes tradições. A título de exemplo, como mencionado, Morris apresentou
sua performance em um teatro para uma plateia. Sabemos que a carreira de
Nam June Paik, artista fluxus de formação musical, se desenvolveu, em grande
parte, em contribuição aos debates envolvendo a introdução das novas tecnologias
da imagem nas artes visuais. Seus trabalhos, neles incluídas as performances,
foram frequentemente apresentados em galerias de arte. Esse trânsito foi intenso,
e não raro vimos peças de teatro e de dança, por exemplo, ser encenadas em
museus e, mais do que isso, o desenvolvimento de carreiras artísticas inteiras
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em circuitos diferentes dos de origem. Dos anos 1990 aos dias de hoje, assistimos
também à migração do cinema, originalmente produzido para ser exibido em salas
escuras e que agora apresenta-se com frequência em espaços museológicos ou
em galerias de arte, assumindo formas, em geral, instalativas e/ou videográficas.
Na passagem e troca de lugares, essas expressões acabam por conformar-se à
produção discursiva e crítica do circuito que as acolhe. De algum modo, porém,
esse deslocamento, em contrapartida, força uma inflexão nos objetos e nas
teorias que permeiam ambos os discursos – na ocorrência de nosso debate,
cinema e artes visuais.

Mise en scène: entre o teatro e o cinema

Na ocasião em que os artistas começaram a se interessar pelas imagens


em movimento para registrar suas performances, fosse em câmeras super-8
ou em 16mm, o cinema já tinha agregado para si uma história que vinha desde
as primeiras experimentações com o cinematógrafo, no final do século 19, até
os anos 1960. A essa altura, as produções já se encontravam bastante desen-
volvidas tanto técnica como artisticamente, podendo mesmo ser pontuadas por
diferentes estilos de realizadores, mesmo em países periféricos, como o Brasil.
Com efeito, a massa crítica e teórica se adensou, e foi possível estabelecer
escolas e retraçar um percurso pontuado no reconhecimento de estilos, técnicas
de direção e de montagem que demarcam modos autorais de se fazer cinema.
Se os anos 1950, como argumentamos, foram os de demolição dos cânones
que separavam as diferentes artes, essa atitude foi em grande parte em reação
ao recrudescimento dos discursos teóricos que defendiam as singularidades de
cada linguagem artística em particular.10 Esse impasse atinge também os teóricos
do cinema. Em seu ápice, as teses que irão figurar nos Cahiers du Cinéma, principal
veículo de debate crítico na França dos anos 1950-1960, se debruçam sobre o
que individualizaria o cinema como linguagem. Será consenso entre os críticos

10
Nos referimos mais acima às teorias críticas de Michael Fried, discípulo de Clement Greenberg, crítico
norte-americano influente no meio artístico dos anos 1950, muito conhecido por suas teorias que
afirmavam as singularidades de cada meio artístico. Sabemos também que Adorno via a dispersão
das artes com um certo mal-estar.
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que a mise-en-scène, técnica herdada do teatro, mas que aplicada ao cinema


ganha outros contornos conceituais, será o que o qualifica e o separa das demais
artes, como atesta Luiz Carlos Oliveira Jr. (2013, p. 7):

Nos anos 1950, a mise en scène reina absoluta no repertório conceitual


da crítica: é o momento em que os jovens redatores dos Cahiers du
Cinéma atribuem a quintessência da linguagem cinematográfica ao
apogeu clássico em Alfred Hitchcock, Kenji Mizoguchi, Fritz Lang, Otto
Preminger e alguns outros “autores”. Assinados por Jacques Rivette,
Alexandre Astruc, Fereydoum Hoveyda, Eric Rohmer ou Michel Mourlet,
são publicados autênticos manifestos estéticos que tratam da mise en
scène como a parte mais nobre do cinema, quiçá a única que conta.

No intenso debate em que se tenta descrever e conceituar, os críticos não


chegam exatamente a consenso sobre o que seria a mise en scène, mas de
algum modo ela é aplicada ao cinema com um valor um pouco diferente do que
até então vinha sendo no teatro. Neste último, ela está associada à figura emer-
gente, em finais do século 19, do metteur en scène, cuja função é estabelecer “o
jogo cênico que enfatize a ação física da representação (o gesto, a fisionomia) e
não mais a palavra e o texto” (Oliveira Jr., 2013, p. 19). Considerando os aparatos
de cena, desde o figurino e a iluminação, passando pela concepção cenográfica
e as maquinarias de efeito ilusionista até a direção de atores, o metteur en scène
cuidava de todos os detalhes de palco de modo que o público pudesse entrar na
representação sem a confundir, no entanto, com o espaço social ao qual o drama
se reporta. Nesse caso, “a cena deve se impor por sua qualidade de presença,
colocando o mundo imaginário da peça ao alcance dos sentidos” (Oliveira Jr.,
2013, p. 19).
No cinema a mise-en-scène, embora englobe todos os aparatos de cena
como no teatro – neles incluída a direção de atores –, se refere mais à construção
de uma certa dinâmica interna da narrativa implicando a criação da imagem em
consonância com os movimentos de câmera. Transposta para o retângulo
luminoso da projeção, a mise-en-scène está subordinada ao enquadramento
com suas possibilidades de variação de pontos de vista e de focos de expressões
abrindo um renovado acesso ao universo sensível das imagens. De fato, a
mise-en-scène no cinema será mediada pela câmera e seus recursos tecnológicos;
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é por seu intermédio que o realizador pensa a narrativa enquanto instância da


imagem. Em seu cerne, ela instaura um modo de fazer cinema que esculpe na
superfície do mundo encenado “o universo de um diretor (seus temas recorrentes,
suas obsessões, sua visão de mundo)”, o qual implica a construção de um certo
olhar “(enquadramentos, movimento de câmera, iluminação, montagem, etc.)”
(Oliveira Jr., 2013, p. 8). No mais, toda ação e movimento de câmera, incluída a
atuação dos atores, pivotam ao redor do núcleo que constitui a narrativa. Absor-
vidos por este, os atores, salvo em raros momentos intencionais de dispersão,
não interagem diretamente nem reconhecem a presença do público. Se, no
teatro, o ator emprega mais o corpo, gestual e voz exagerados, no cinema, com
a possibilidade de aproximação óptica, toda atuação do ator estará concentrada
na expressão facial. Esse aspecto marca, entre outros, um diferencial importante
entre a atuação no teatro e no cinema, mas também nos ajuda a estabelecer a
diferença do ator de cinema em relação ao performer.
Se retornarmos ao teatro performativo como descrito por Josette Féral,
em que a dramatização é reduzida em proveito da presença e da interação
direta do ator com o público, veremos que a performance está mais próxima do
teatro do que do cinema. O teatro contemporâneo, no entanto, guarda, como
sustentado pela autora, estreitas relações, se não mais com o drama e seu
espaço de ilusão, com algum tipo de narrativa que se desdobra no tempo e no
espaço de sua apresentação, mesmo que privilegie as imagens em detrimento
do texto. Em suas atuações, conquanto não encarnem personagens fechados
e coerentes, os atores entram e saem dos personagens alternando momentos
de interpretação e de performance. Nos momentos em que a performance
prevalece, justamente quando se interrompe a ilusão, é que se fazem sentir com
mais vigor a interação e a presença do ator com/no espaço do espectador. Essa
qualidade, sendo uma representação, mas não uma encarnação de papel, o ator
de teatro divide com o performer.

Concluindo

De retorno à nossa motivação inicial, o curta-metragem experimental


Duelo, fazendo o trânsito entre as diferentes instâncias das práticas artísticas,
não sendo nem teatro, nem cinema, partilha, ainda que de forma instável, do
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mesmo interesse comum nas regiões de suas interseções. De fato, os atores não
atuam propriamente, antes executam uma ação sem a dramatizar. Podemos dizer
mesmo que as imagens a descrevem. Diante do filme estamos realmente diante
de um certo jogo de câmera que se constrói em uma mise-en-scène que parodia
os westerns americanos. Por outro lado, porém, a ação não está de modo algum
absorvida por qualquer núcleo narrativo fechado e circunspecto. Ao contrário,
ela se abre e se constrói com o público ao mesmo tempo em que este se
reconhece como partícipe. As imagens, como foram pensadas, fazem com que
o espectador integre diretamente a ação e entre no jogo da representação,
aquilo que se entende, no teatro e na performance, por presença. A forte
sensação de que estamos participando do jogo está no triângulo interativo que
estabelece, em Duelo, a troca incessante de lugares entre o público e os atores.
Dessa forma, assistir a Duelo, é também, a cada vez que o fazemos, performar
com ele. Nem teatro, nem cinema, Duelo pode ser pensado como performance
filmada porque, ao se colocar entre um e outro, participa simultaneamente das
duas instâncias quando surpreendida em suas regiões de contato. Prática parti-
lhada com o teatro, o cinema e as artes visuais, e mesmo com outras artes, a
performance, dependendo do circuito em que se apresenta, pode ser assimilada
aos debates dessa tradição de forma a agregar aí contribuições críticas em
alargamento dos horizontes teóricos.

Luciano Vinhosa é professor-associado do Departamento de Arte e do Programa


de Pós-graduação em Estudos Contemporâneos das Artes da Universidade Federal
Fluminense. Pesquisador do CNPq, a quem o autor agradece.

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Niterói: PPGCA-UFF, 2016, p. 61-78.

Artigo submetido em março de 2021 e aprovado em junho de 2021.

Como citar:
VINHOSA, Luciano. Nem teatro nem cinema: a performance no espaço de exclusão.
Arte & Ensaios, Rio de Janeiro, PPGAV-UFRJ, v. 27, n. 41, p. 298-314, jan.-jun.
2021. ISSN-2448-3338. DOI: https://doi.org/10.37235/ae.n41.16. Disponível em:
http://revistas.ufrj.br/index.php/ae
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As “situações” gráficas de Anna Bella Geiger


e o livre jogo das transfigurações
Anna Bella Geiger’s “situations”: the free play of transfiguration

Luiz Cláudio da Costa


0000-0003-0013-3623
l.claudiodacosta@gmail.com

Resumo
O corpo, o lugar, o imaginário constituem três núcleos de interrogações na
prática artística de Anna Bella Geiger cujo gesto crítico consiste em salientar
as passagens e imperfeições nos sistemas de representação, desestabilizando
esquemas simbólicos em prol das imagens e suas transformações. Os três
núcleos não formam polos estanques ou fases. Interpenetram-se, comunicam-se,
contaminam-se por força das passagens, da circulação, da transmissão que
corrói as formas e as aparências, quer camuflando, esquecendo ou substituindo
representações, quer cruzando as fronteiras dos enquadramentos, das convenções,
dos esquemas normativos. As “situações” de Anna Bella Geiger ajudam a
compreender outra modalidade da participação do espectador.
Palavras-chave
O corpo na arte; Cartografias artísticas; Arte contemporânea.

Abstract
The body, the place, the imaginary constitute three cores of interrogations in the artistic
practice of Anna Bella Geiger whose critical gesture consists of highlighting passages and
imperfections in the systems of representation, destabilizing symbolic schemes in favor
of images and their transformations. The three cores do not form watertight poles
or phases. They interpenetrate, communicate, become contaminated by means of
passages, circulation, transmission that erodes shapes and appearances, whether
by camouflaging, forgetting or replacing representations, or by crossing boundaries of
framings, conventions or normative schemes. Anna Bella Geiger’s “situations” helps
PPGAV/EBA/UFRJ us understand another modality of the spectator’s participation.
Rio de Janeiro, Brasil
Keywords
ISSN: 2448-3338
DOI: 10.37235/ae.n41.17 The body in art; Artistic cartography; Contemporary art.
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Márcio Doctors tratou da “emergência da imagem” na obra de Geiger


após o abandono da abstração. Para o crítico e curador carioca, a imagem é um
“entre”; nem representação, nem abstração (Doctors, 2007, p. 174). A imagem
emerge no trabalho da artista como um ambiente fronteiriço, espaço de transição.
No vídeo Passagens (1974), ela sobe escadas em ritmo normal, por vezes lento.
Na fotomontagem homônima, está sentada num carro do metrô de Nova York.
Nesses trabalhos, o corpo individual e cotidiano da artista apenas desdobra-se
em imagens, mas o título cria uma fissura na evidência da materialidade corpórea.
O termo passagem sugere a condição do limite, do trespasse, da morte, mas a
involuntária abertura do corpo, superfície e ambiente de mediações e contatos,
determina a emergência das imagens, o jogo livre das transfigurações. Apesar de
suas fronteiras bem delimitadas, o corpo é na obra de Anna Bella Geiger acesso
de entrada das representações da cultura que estruturam práticas e ações. Mas
as representações são, no corpo, transitórias, subordinadas que estão à contínua
situação de formação e deformação, resistência que permite o corpo camuflar,
esquecer, substituir, transformar toda forma. As “situações” de Anna Bella Geiger,
aberturas para o livre jogo das transfigurações, ajudam a compreender outra
modalidade da participação do espectador na obra de arte. Por volta da mesma
época em que sugiram as imagens, o corpo e o lugar emergiam nos vídeos, nos
gráficos e na cartografia da artista como ambientes entrelaçados.

O corpo, o lugar, o imaginário

O corpo, o lugar, o imaginário constituem três núcleos de interrogações


na prática artística de Anna Bella Geiger cujo gesto crítico consiste em salientar as
passagens e imperfeições nos sistemas de representação, desestabilizando
esquemas simbólicos em prol das imagens e suas transformações. Adolfo
Montejo Navas (2007, p. 24) expressou o liame de dois desses núcleos, o lugar
geográfico e o imaginário, nos seguintes termos:

Nas séries de Local da ação e Fronteiriços, preferencialmente, podemos


encontrar-nos com um antiespaço, no sentido de criação de outro
espaço, de outra localização do lugar que junta a realidade geográfica e
uma antropologia do imaginário.
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Na prática artística de Geiger não há um lugar sem os deslocamentos, os


gestos ou as ações de um corpo que transformam a geografia e movimentam o
imaginário. O título da série Local da Ação é sugestivo da interação entre lugar e
corpo, mas a forma privilegiada pela série, o perfil do esquema cartográfico do
Brasil e da América Latina no interior do globo terrestre, mobiliza a força involun-
tária das construções mentais. No vídeo Mapas elementares, uma das primeiras
experiências com cartografia da artista, Geiger desenha ao som da canção de
Chico Buarque “Meu caro amigo”, exemplar célebre do gesto crítico contra a
ditadura no campo do imaginário. Em Correntes culturais (1976), o mar em torno
dos continentes aparece formado pelas palavras do título datilografadas no
papel. Aqui o ritmo das letras na massa oceânica movimenta as correntes, insinua
cruzamentos, travessias, traduções. Um imaginário local produz-se em meio aos
movimentos, aos contatos, às trocas dos corpos que abastecem e transfiguram
a experiência. O lugar geográfico, o corpo (ou corpos) e o imaginário operam
juntos, constituindo uma força, a sensibilidade comum, essa atividade em
contínuo movimento. Um espaço geográfico implica um imaginário que faz vibrar
os corpos, motiva realizações e fomenta ações.
O corpo – suas representações, vivências, práticas e condições – é crucial
na trajetória da artista. Ainda em seu ciclo modernista, após a fase abstrata, Geiger
dá início às experiências em gravura a partir das vísceras. A fase dos trabalhos
da artista conhecidos como viscerais, realizados entre 1965 e 1969, aborda
traços e cores sugerindo formas orgânicas. A artista teria sido “contagiada pela
Nova Figuração que pairava sobre o mundo artístico”, avaliou Dária Jaremtchuk
(2007, p. 71). Mas o fundamental nesse contágio foi percebido em 1967 por
Mário Pedrosa (2007, p. 155), por ocasião de uma exposição na galeria Relevo:
“Anna Bella fez por conta própria uma descoberta: a de que a realidade maior é a
do corpo”, experiência que jamais abandonou mesmo quando as vísceras já não
estavam mais no escopo de suas formas aparentes. Monteiro Navas (2007, p. 22)
reconheceu essa realidade orgânica valorizada nos esquemas cartográficos da
artista: “Seus mapas são sempre formas mais ‘presentacionais’ que ‘discursivas’,
imagens presenças / apresentações no lugar de representações”.
Não apenas os mapas, como também os gráficos de Geiger constituem
essas imagens-presença de que fala Navas. Os mapas só representam os lugares
enquanto efeito dos gestos e das práticas dos corpos. Eles são imagens que
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elaboram as experiências da localização geográfica do corpo sempre permeadas


por sistemas simbólico-culturais. Os três núcleos – o corpo, o lugar, o imaginário
– não formam polos estanques ou fases. Ao contrário, interpenetram-se, comu-
nicam-se, contaminam-se. Podem-se agrupar os trabalhos da fase visceral e as
ações corporais conceituais no núcleo do corpo; os gráficos e mapas no eixo do
lugar e da geografia. Os mitos, as imagens, os símbolos, os emblemas, as noções
e as representações de que a artista se apropria poderiam pertencer ao núcleo
do imaginário. Mas essa estrutura de fronteiras impermeáveis não se susten-
taria diante de um olhar minucioso da obra de Geiger. A força das passagens,
da circulação, da transmissão corrói as formas, as aparências, as configurações,
a linguagem, quer camuflando, esquecendo, substituindo representações ou
cruzando as fronteiras dos enquadramentos, das convenções, dos esquemas
normativos.
Um simples gráfico de Geiger como Certo e errado (1973) questiona de
modo quase evidente a relação entre o lugar geopolítico, o Brasil da ditadura
militar, e o ambiente ideológico das representações e dos símbolos moralizantes
das propagandas do governo da época. Mas a gravura vai além disso. Ela ostenta
uma atitude que assimila as imagens do solo da lua – fotografias produzidas e
rejeitadas pela Nasa, a agência espacial do governo norte-americano – disfar-
çando o gesto violento do corpo, sua negação da separação polarizada entre o
verdadeiro e o falso, o bem e o mal, o certo e o errado. A figura do enorme “X”
não apenas recusa a polaridade sem ambiguidades, mas frustra em estabelecer
uma significação mais explícita. A figura do “X” ultrapassa o espaço retangular e
abre o quadro convencional da representação artística para esse “outro espaço”
de que fala Navas, esse ambiente de imagens que provoca o transtorno de todo
quadro, de toda forma, toda linguagem, no caso as possíveis emoções e os afetos
convocados pelas imagens enigmáticas do solo da lua inseridas no gráfico concei-
tual. Elas ativam as forças negativas que avariam os parâmetros normativos dos
sistemas de representação do mundo objetivo.
As imagens-presença de Anna Bella Geiger fracassam em transmitir um
saber evidente. Elas entram num fluxo de combinação e substituição descen-
trando os sistemas de representação ou camuflando as formas circunscritas
para conceder lugar às manchas, às passagens, isto é, ao indefinido, ao impreciso,
ao precário, ao outro.
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As situações gráficas e o jogo das transfigurações

Em 1972, no filme Abertura I, Barrio registra sua ação de abrir uma garrafa
de Coca-Cola como se estoura um espumante, imagem irônica da comemoração
que enfrentava o contexto de violência do governo militar. No ano seguinte, o
artista, realizou a fotografia Des Compressão ...... CompressõesDes. Não mais
ironia, mas elaboração dos limites do corpo e de sua relação com o mundo
exterior. E dois anos depois, Letícia Parente fez o vídeo Marca registrada (1975)
com o qual questionava o lugar da arte, sua relação com o baixo, o rasteiro, o vulgar
da esfera do comércio. Esses trabalhos são representativos de um momento em
que o corpo é desdobrado por imagens técnicas (Matesco, 2016, p. 129-181).1
Segundo certas avaliações dessa prática conhecida no contexto interna-
cional como fotografia (ou vídeo) conceitual, a informação e o documento das
situações e ações do corpo oscilavam entre o analógico e o tautológico (Verhagen,
2008). No contexto brasileiro, a experiência do corpo desdobrado na imagem
nunca foi considerada por sua dimensão tautológica. A tautologia teve status de
proposição artística no desdobramento que Joseph Kosuth efetuou das ideias
provenientes do minimalismo e sintetizadas na expressão de Frank Stella, “você
vê o que você vê” (Stella, Judd, 2006, p. 237). Não houve essa negação dos
sentidos semânticos, formais e estéticos nas práticas conceituais dos artistas
brasileiros como Anna Bella, Artur Barrio, Antonio Manuel e Cildo Meirelles. Em
relação ao primeiro nome dessa lista, Jaremtchuk (2007, p. 19) afirma: “A rejeição
de Kosuth à subjetividade, à história e ao simbólico não se efetiva na produção de
Anna Bella Geiger”. O corpo cotidiano desdobrado serviu a Geiger, como a outros
artistas dos anos 1970, para elaborar a materialidade vulnerável e incerta de
toda forma, semelhança precária cuja força consiste em sua própria imperfeição,
pobreza, deficiência.
A fotografia (ou o vídeo) que desdobra ações do corpo foi procedimento
utilizado por Anna Bella ao longo de sua trajetória até os anos 2000. Em Arte e
decoração (2003), Geiger aparece sentada em salas diferenciadas pela deco-
ração para questionar as semelhanças e diferenças de dois sistemas estéticos

1
O termo corpo desdobrado é usado por Viviane Matesco ao tratar da série de desenhos Ethers, de
Tunga.]
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distintos. No mesmo ano, a artista realiza a fotomontagem Mona Lisa para a qual
posa na postura da personagem de Leonardo da Vinci contra a paisagem de uma
favela do Rio de Janeiro segurando um folheto com seu próprio nome. O trabalho
interroga sobre o lugar da arte.
Após as experiências de desdobramento do próprio corpo individual em
Passagens, a artista realiza a fotomontagem Brasil nativo/Brasil alienígena, de
1977. Aqui não há mais um corpo, mas corpos. Com efeito, dois grupos de corpos
espelhados, duas perspectivas. A artista e suas filhas replicam ações cotidianas
de indígenas representados em cartões-postais. O trabalho questiona o exotismo
da alteridade, o modo de marcar a diferença do outro para construir uma corpo-
ralidade hegemônica, particularmente efetuada pelos sistemas de represen-
tação turísticas no Brasil da ditadura militar. Os cartões-postais dissimulavam,
por meio do exotismo, a violência e o genocídio que permitiram a construção da
Transamazônica. O corpo na imagem não prolonga a experiência tautológica tal
como pretendiam certos artistas conceituais no Norte. A imagem desdobra o
corpo, mas despistando, dissimulando e até danificando sua forma, sua figura.
Camouflage (fotos, 1980) desfaz a figura humana, a forma evidente do corpo,
para a substituir pela incerteza das manchas e dos borrões.
Figura 1 O vídeo e a fotomontagem Passagens pertencem ao ciclo de trabalhos
Anna Bella Geiger Situações-limite que inclui, ainda, um conjunto homônimo de quatro outras
Camouflage, 1980,
fotografia
montagens. O termo “situações” era frequente nos anos 1970 para referir-se
Foto: Noni Geiger a trabalhos envolvendo ações do corpo do artista em presença no ambiente
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urbano. Artur Barrio utilizou reiteradamente o vocábulo em suas práticas, intitu-


lando várias de suas ações com essa expressão.2 As “situações” tinham certa
afinidade com as “proposições” da geração imediatamente anterior, com algumas
diferenças. A proposição envolvia a participação do corpo do outro, o espectador.
Segundo Hélio Oiticica, os Parangolés, o Bólide Cama, o Crelazer pressupunham
as experiências sensoriais do “corpo individual de cada participador”:

Faço questão de afirmar que não há a procura aqui, de um “novo


condicionamento” para o participador, mas sim a “derrubada de
todo condicionamento” para procura da liberdade individual, através
de proposições mais abertas, visando fazer com que cada um encontre
em si mesmo, pela disponibilidade, pelo improviso, sua liberdade
interior, a pita para o estado criador (Oiticica, 1992, p. 127.)

Frederico de Morais (1975, p. 10) definiu a ideia de proposição convocando


a noção de vontade: “Ou seja, o artista é autor de uma estrutura inicial – mas
cuja plena realização vai depender da vontade de participação do espectador,
agora um cocriador”. Com efeito, estava sendo gestada, naquele momento,
outra compreensão do sujeito no campo da arte: o artista e o espectador como
sujeitos interdependentes e relacionados em uma coatividade, corpos permeáveis
em formação. Para as “situações”, não se esperava a participação física, mas
elas pressupunham a coatividade das imagens da obra.
Na série das quatro gravuras de Geiger, Situações-limite (quatro partes)
realizada em 1974, uma boca desmesuradamente aberta aparece em uma das
gravuras abaixo de um imenso portal de um edifício grandioso. As frases dati-
lografadas sugerem uma leitura: “passagens como (situações-limites)”, “abolir
polaridades”, “iminência de passar”. A boca que fala é passagem, semelhante à
porta de um edifício, ligação do interior e do exterior. Passar e passagem sugerem
transitoriedade, mas também abertura. A boca que fala, já foi antes atravessada
pela fala de um outro. As polaridades – as fronteiras entre o “eu” e o “outro”,

2
Viviane Matesco (2016, p. 50) esclarece que as situações de Barrio diferenciavam do que entenderíamos
mais tarde como performance, pois envolviam o corpo do artista, mas “os espectadores ou transeuntes
não veem jamais a figura do artista trabalhando”.
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entre o interior e o exterior – são sempre ameaçadas de atravessamento. A


possibilidade de passar, de se consumar o trespasse, mas também de ser atra-
vessado pelo outro constitui as condições-limite do humano.

Figura 2 A figura humana aparece em uma das gravuras de Situações-limite (quatro


Anna Bella Geiger
Situações-limite (4 partes)
partes): uma fileira de corpos distanciando-se e sumindo no horizonte de uma
1974, fotografia paisagem litorânea. O corpo está desaparecendo. O corpo desaparece como
materialidade visível desdobrada na imagem, mas a experiência mental-corpórea
permanece na situação de uma visão corpórea: distância, intervalo, entre o
receber o mundo, ser atravessado pela linguagem e pela cultura e expressar
o visto. O duplo afastamento entre o ver e o falar, entre a escrita datilografada e a
cursiva, entre o ver e o ser visto promove espessura ao ato da imagem. As quatro
gravuras utilizam a palavra e a imagem, mas a última apresenta dois conjuntos
de duas fotografias, cada uma espelhada ao lado da outra no papel, como dois
olhares um refletido no outro, duas perspectivas intercaladas.
As duas perspectivas podem figurar o ato de ver, a estereoscopia da visão
binocular constituinte da percepção do espaço tridimensional. Mas se conside-
rarmos a distinção e, consequentemente, o afastamento entre a palavra datilogra-
fada e a manuscrita, poderíamos supor outros problemas relativos à atividade da
imagem. Na primeira dupla, na parte superior do papel, vê-se o mar em primeiro
plano e uma ilha no horizonte ao fundo. O segundo conjunto de fotos, embora
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menos claro visualmente, exibe o morro do Pão de Açúcar ao fundo. No topo


da gravura, as inscrições feitas à máquina datilográfica mostram os problemas
discursivos dessa e de outras séries: O “lugar no universo / É um modo de ser”;
o “abolir polaridades”, a “iminência de passar”. Na parte inferior, a epígrafe
manuscrita, comum às quatro gravuras: “A imaginação é um ato de liberdade”.
A liberdade que há no gesto, no ato da imagem, difere da vontade livre do
sujeito que age segundo representações claras. A artista aborda as contradições
da imaginação em texto escrito por ocasião de sua exposição na galeria Bonino:

É a imaginação que me ajuda colocar meus sentimentos, a sentir


o ser-sozinho, a dimensão da angústia da condição humana, a sentir o
mistério do universo, do tempo, a procurar os centros, as semelhanças
mais que as diferenças, as passagens mais que os contrários, a perceber
tudo enfim que povoa um momento (Geiger, 2007b, p. 135).

Por um lado, Geiger fala dos “meus sentimentos” e do “ser-sozinho”, mas


também aponta para a procura de “centros”, uma pluralidade que ela acaba por
definir como “passagens”. Se o termo passagem indica a ideia de fim e de morte
que condiz com as angústias da “condição humana”, também sugere atravessa-
mento, abertura, acesso, intercomunicação, bem como distância temporal entre
o receber e o agir. As situações gráficas (e cartográficas) de Anna Bella Geiger
abordam a iminência do atravessamento dos limites do corpo e do lugar que
transformam os atos da imaginação. Não há corpo nem lugar que não possam ser
atravessados; limite que não possa ser transposto, forma que não se transforme.
O ato da imaginação não é ação da vontade livre do sujeito, mas atividade que,
abolindo os limites e as polaridades, se relaciona com o outro. A liberdade
da imagem consiste em conectar sujeitos, relacionar visões distanciadas,
transformar perspectivas.
O esquema gráfico Situações-limite (no 4), realizado com fotografias e
palavras, propõe situações visuais e verbais esquemáticas, um esboço gráfico
sem determinação clara, sem orientação definida, sem representação ou signi-
ficação evidente para que ocorra a atividade da imagem, o ato que constrói os
sentidos semânticos-sensíveis da “situação” apresentada. O ato da imagem é
efeito do contato do corpo com o mundo (a obra, a proposição, a situação), ambos
localizados geograficamente. O duplo distanciamento produz a atividade que
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forma, deforma e transforma as representações transmitidas. Os esquemas


gráficos, como as cartografias de Anna Bella Geiger, são formas da semelhança
precária e assumem a dependência em relação ao outro, o contato, as passagens.
O esquema gráfico América Latina – A mulata, Amuleto, A muleta (1977)
traça em desenho essa atividade não voluntária da imagem. Composto por quatro
figuras seguidas de legendas, cada desenho esboçado assemelha-se com o
contorno da forma seguinte já, entretanto, transformada. Cada desenho possui
uma legenda de identificação. A operação no trabalho é de condensação
e variação. Não apenas os desenhos rudimentares variam, mas os sons das
palavras nas legendas alteram-se por pequenas mudanças fonéticas. A mulata
transmuda-se em amuleto que, por sua vez, se torna muleta e essa converte-se
no mapa da América Latina. Um movimento duplo de vaivém reverte tudo: no
título, o nome do continente aparece antes das outras palavras; entre os desenhos,
o mapa encerra a sequência. Toda imagem tem um avesso, seu revés; um
contratempo que contraria seu curso.
América Latina – A mulata, Amuleto, A muleta sintetiza com humor a figura
da mulher mestiça e o mapa do continente, levantando o problema da mestiçagem
étnica e cultural no Brasil, identidade caduca se pensarmos na muleta. A mesti-
çagem como um processo harmônico camuflou as violências da história. No jogo
das variações das formas, o ato acolhe as reviravoltas da imaginação.

Esquemas cartográficos e a imagem da memória

As “situações” gráficas de Anna Bella Geiger desdobram-se em esquemas


cartográficos. Na segunda metade dos anos 1970, o mapa apareceria entre os
interesses mais profícuos de Anna Bella Geiger. A primeira gravura da série Local
da ação (1979) abarcava a situação geopolítica do Brasil e da América Latina,
particularmente, o lugar da arte periférica no mundo globalizado. Em Local da
ação nos 8 e 9, ambos de 1980, um triângulo desponta para indicar a América
Latina como o lugar definido para uma ação não descrita nem determinada,
antes campo de possibilidades a incluir a arte e também a política. Em Local da
ação no 10/11 (1979), o mapa da região tem volume corpóreo, mas o continente
e os oceanos tornam-se indiferenciados pelas manchas que os cobrem. O efeito
de manchas surge na trajetória da artista em sua fase informal. Nas palavras de
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Mário Pedrosa (2007, p. 155), “O tachismo a seduziu e ela se entregou, aliás,


legítima, à busca de efeitos de mancha, de textura, que a chapa em metal, os
ácidos e os pós e os acasos tão generosamente produzem, provocam ou insinuam”.
Após esse momento, as manchas não desaparecem mais de sua prática. Elas irão
efetivar as imprecisões nas formas, vazar os esquemas gráficos e cartográficos. É o
caso de Entre dois hemisférios (1992), Local com Rio Amazonas (1995), Brasil
1500-1996 (1996).

Figura 3 Qual a relação entre o esquema cartográfico e as manchas nesses trabalhos?


Anna Bella Geiger
Local da ação no 10/11
A mancha, segundo Sartre (1948) em seu livro O imaginário, não representa
1979, fotosserigrafia e nada, mas pode sempre figurar algo em função do livre jogo do movimento dos
gravura em metal
olhos. O esquema, por sua vez, inscreve-se entre a imagem e o signo. Para
Gilles Tiberghien (2007, p. 30), o esquema cartográfico, “esquemático, seletivo,
convencional, condensado e uniforme”, mantém afinidades com a imagem e
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a imaginação. Ele supõe o tempo, a distância. É o que o teórico francês chama


de imaginário cartográfico. Os mapas são representações inadequadas, caracte-
rística que atrai os artistas (p. 30). A distância, o duplo afastamento entre o que
vemos e o que nos olha, é a condição para que o esquema cartográfico possa
constituir imagens. Nos mapas de Anna Bella dos anos 1990, o espaço estruturado
se desestrutura com as manchas ou falhas, mas também com as contradições
entre história e memória.
O problema do centro apareceu em Circumambulatio (1972), instalação
com fotos, textos, entrevistas, favorecendo as relações e as contaminações
entre representações heterogêneas. As experiências corporais com os alunos
do MAM-Rio realizadas em área urbana ainda despovoada da cidade do Rio de
Janeiro gerou igualmente algumas das imagens para o trabalho. É conhecido o
fato de que, na época, Geiger dedicava-se à leitura de C. G. Jung e Mircea Eliade,
mas o centro como experiência sensível do corpo e do lugar parecia abarcar a
dispersão, o descentramento, o aparecimento do outro, a separação e a divisão
do mundo numa rede de formas substituindo-se, diferenciando-se.
Na década de 1990, os mapas desenhariam também lugares para a
memória. A memória surgia na série Rolos Scrolls sob a perspectiva da origem
imemorial do conhecimento, fazendo referência ao pergaminho em rolo da Torah
e à ideia de se “ler o conhecimento que é sempre o desconhecido” (Navas, 2007,
p. 28). Os trabalhos cartográficos dessa época retomariam o perfil do mapa da
América Latina/Brasil no mapa-múndi e, ainda, as manchas. Mas esses problemas
seriam somados ao da divisão do espaço da gravura em dois campos, o da
esquerda e o da direita, leste e oeste, em se tratando de cartografia como Entre
dois hemisférios. Essa mesma linha divisória reaparece em Brasil 1500-1996, mas
de acordo com o título, trata-se de interrogar a história como representação
ou, ainda, de questionar a separação entre história e memória, entre o conhe-
cimento científico e o saber inexato da experiência. Nessa época, Geiger havia
retomado a pintura, operando igualmente uma divisão do espaço pictórico. Em
Pier & Ocean com Dilúvio (1987) e Pier & ocean com amarelo, azuis e roxo (1989)
a linha divisória e as manchas convivem, a fronteira e a diluição, o retângulo e o
desmoronamento da linguagem. Todos esses trabalhos dos anos 1990 abordam
o limite e o transbordar, processo duplo de oscilação que estabelece a forma
como algo instável. O espaço retangular das pinturas e gravuras dos anos 1980
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e 1990 aparece referido a duas “situações-limite”, dois “hemisférios”, dois


campos separados e conectados por atravessamentos – o direito e o esquerdo,
o dentro e o fora, o presente e o passado, o leste e o oeste.

Figura 4
Anna Bella Geiger
Entre dois hemisférios, 1993
série Arte y Naturaleza,
fotosserigrafia e colagem
de folha de ouro
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A série Fronteiriços realizada nessa mesma época com gavetas de arquivo


e a técnica da encáustica, recoloca o problema da borda, o limite que regula a
forma, mas também proporciona o transbordamento. A gaveta retangular da série
recebe a cera e as folhas de metal que desenham os mapas sobre a encáustica. O
fio de cobre encarrega-se da divisão da gaveta de ponta a ponta, constituindo uma
linha concreta. A separação havia aparecido como problema conceitual na série
Polaridades, nos anos 1970, envolvendo o certo e o errado, a parte e o todo, o
negativo e o positivo, mas também abrangendo a força do sensível por meio do
espelhamento das perspectivas, a relação entre o ver e o ser olhado, a palavra
e a imagem, campos do saber em oscilação, antes contíguos que opostos,
esburacados por passagens e acessos invisíveis. Os elementos constituintes da
série Fronteiriços, o ferro e a encáustica, contrapõem-se em termos de estabili-
dade material, um robusto, o outro frágil. A Linha imaginária de Tordesilhas (1995)
pertencente a essa série apresenta dois mapas da América Latina espelhados, não
lado a lado como as duas visões na gravura da série Situações-limite. Eles se
situam um acima do outro, sugerindo talvez valores e condições diferenciadas
geográfica, material e culturalmente. Num dos lados da gaveta retangular
(lateral superior? Polo Norte?), o primeiro mapa está vigorosamente visível pela
folha de metal que desenha o contorno de sua forma elevada a partir da cera; o
outro esquema cartográfico, de ponta-cabeça e na outra extremidade da gaveta
(lado inferior? Polo Sul?), afunda na encáustica quase apagado, perdido, esque-
cido. Como estão invertidos e cortados pelo fio de metal, os mapas mostram
uma incongruência ou alternância: a parte Leste em um é o Oeste no outro. Em
Fronteiriços, as oscilações revezam não apenas os hemisférios, mas também a
estabilidade e a instabilidade, a solidez e a precariedade, a lembrança e o
esquecimento, o sucesso e a derrota, o mesmo e o outro.

Últimas considerações

Nos anos 70, a precariedade do material era evidente nos caderninhos


Sobre arte, A cor na arte, Admissão, História do Brasil, entre outros – trabalhos,
em sua maioria, realizados com fotocópias da companhia Xerox. A fotografia,
o vídeo, o cartão-postal, a cópia xerox foram suportes considerados na época
não artísticos e, por essa razão, privilegiados pela artista. Nos anos 1990, após
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a retomada da pintura, surgem suportes mais resistentes como as gavetas e as


folhas de ferro de Fronteiriços, interagindo com um material de estabilidade
incerta como a cera. Essas mudanças materiais, temáticas e formais não deixaram
de recolocar continuamente o problema das relações entre corpo, lugar e imagi-
nário. Na trajetória de Anna Bella Geiger a forma, o gesto de um corpo localizado
geograficamente no mundo, consiste em uma experiência atravessada por centros
geográficos, históricos e imaginários que se cruzam, alternam-se, contrariam-se,
transformam-se. Os problemas diversos de sua obra conectam-se por essa
“antropologia do imaginário” de que falou Nava, a fronteira sendo o ponto de
articulação com a alteridade, o Outro, como alicerce da construção da vida, dos
sentidos, das imagens. O outro figurado pelo índio, negro ou judeu é a variante
antropológica mais óbvia da diferença ou da distância constituinte do imaginário
na obra de Geiger. A forma assemelha-se ao corpo não como plenitude primeira,
mas como lacuna inerente que permite o vínculo com o outro. Ela se altera e
multiplica suas diferenciações no jogo livre das transfigurações.

Luiz Cláudio da Costa é professor-associado do Departamento de Teoria e História


da Arte do Instituto de Artes da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj),
atuando nos cursos de graduação e no Programa de Pós-graduação em Artes
(PPGartes/Uerj). Bolsista Produtividade do CNPq, Procientista da Uerj/Faperj e
Cientistas do Nosso Estado (Faperj).

Referências

DOCTORS, Márcio. A emergência da imagem. In: NAVAS, Adolfo Motejo (org.). Anna
Bella Geiger: territórios, passagens, situações. Rio de Janeiro: Casa da Palavra/Anima
Produções Culturais, 2007. p. 174-175.

GEIGER, Anna Bella. Poéticas da artista. In: NAVAS, Adolfo Motejo (org.). Anna Bella
Geiger: territórios, passagens, situações. Rio de Janeiro: Casa da Palavra/Anima Produções
Culturais, 2007b. p. 135.

JAREMTCHUK, Dária. Anna Bella Geiger: passagens conceituais. São Paulo/ Belo Horizonte:
Editora da Universidade de São Paulo/C/Arte, 2007.
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MATESCO, Viviane. Em torno do corpo. Niterói: PPGCA, 2016.

MORAIS, Frederico. Artes plásticas: a crise da hora atual. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1975.

NAVAS, Adolfo Motejo. Uma poética em arquipélago (aproximações). In: NAVAS, Adolfo
Motejo (org.). Anna Bella Geiger: territórios, passagens, situações. Rio de Janeiro: Casa
da Palavra/Anima Produções Culturais, 2007. p. 16-42.

OITICICA, Hélio et al. Hélio Oiticica. Rotterdam/Rio de Janeiro: Witte de With, 1992 (Catálogo).

PEDROSA. Mário. Anna Bella Geiger. In: NAVAS, Adolfo Motejo (org.). Anna Bella Geiger:
territórios, passagens, situações. Rio de Janeiro: Casa da Palavra/Anima Produções
Culturais, 2007. p. 155.

SARTRE, Jean-Paul. L’imaginaire: psychologie phénoménologique de l’imagination. Paris:


Gallimard, 1948.

STELLA, Frank. JUDD, Donald. Questões para Stella e Judd. In: FERREIRA, Glória;
COTRIM, Cecilia (org.). Escritos de artistas: anos 60/70. Rio de Janeiro: Jorge Zahar,
2006. p. 122-138.

TIBERGHIEN, Gilles A. Finis Terrae: imaginaries et imaginations cartographiques. Paris:


Bayard, 2007.

VERHAGEN, Erik. La phtographie conceptuelle: paradoxe, contradictions et imporssibilité.


Études photographiques (en ligne), n. 22, septembre 2008. Disponível em: https://journals.
openedition.org/etudesphotographiques/1008. Acesso em 25 fev. 2021.

Artigo submetido em março de 2021 e aprovado em junho de 2021.

Como citar:
COSTA, Luiz Cláudio da. As “situações” gráficas de Anna Bella Geiger e o livre
jogo das transfigurações. Arte & Ensaios, Rio de Janeiro, PPGAV-UFRJ, v. 27, n. 41,
p. 315-330, jan.-jun. 2021. ISSN-2448-3338. DOI: https://doi.org/10.37235/
ae.n41.17. Disponível em: http://revistas.ufrj.br/index.php/ae
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“Aqui está a opção do Terceiro Mundo: um futuro aberto ou a


miséria eterna”. Reflexões sobre a obra tardia de Mário Pedrosa
“Here is the Third World option: an open future or eternal misery”.
Reflections on Mário Pedrosa’s late work

Luiza Mader Paladino


0000-0003-2348-2033
luizamaderpaladino@gmail.com

Resumo
A filósofa Otília Arantes nomeou O ponto de vista latino-americano o corpus crítico de
Mário Pedrosa produzido após o desterro chileno, durante o governo de Salvador Allende
(1970-1973). Nesse conjunto de textos, observa-se a recuperação de tradições que não
haviam sido capturadas pela historiografia oficial, como as práticas e os saberes oriundos
da cultura popular e indígena. Essa interpretação pode ser identificada em obras como
Discurso aos Tupiniquins ou Nambás e Teses para o Terceiro Mundo, nas quais o crítico se
amparou em um repertório terceiro-mundista partilhado no exílio. O autor exaltou uma
leitura ancorada na inversão geopolítica, a qual localizou nos países situados ao sul
uma fagulha revolucionária capaz de deflagrar a almejada transformação social e econô-
mica. Essas obras-manifesto sintetizaram praticamente todo o discurso crítico, político e
museológico que Pedrosa sustentou ao voltar para o Brasil, em 1977.
Palavras-chave
Exílio; Terceiro Mundo; Arte latino-americana; Mário Pedrosa; Arte popular.

Abstract
The philosopher Otília Arantes named The critical corpus of Mário Pedrosa produced after the
Chilean exile during the Salvador Allende government (1970-1973) from The Latin American
Spot. In this set of texts, there is a recovery of traditions that had not been captured by official
historiography, such as the practices and knowledge derived from popular and indigenous culture.
This interpretation can be identified in works such as Speech to the Tupiniquins or Nambás and
Theses for the Third World, in which the critic relied on a shared Third World repertoire in exile.
The critic praised a reading anchored in the geopolitical inversion, which located in the countries
located to the south a revolutionary spark capable of triggering the desired social and economic
transformation. These manifesto works synthesized practically all the critical, political and
PPGAV/EBA/UFRJ
museological discourse that the author sustained when he returned to Brazil in 1977.
Rio de Janeiro, Brasil
ISSN: 2448-3338
Keywords
DOI: 10.37235/ae.n41.18 Exile; Third world; Latin American art; Mário Pedrosa; Popular art.
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Reflexões sobre a obra tardia de Mário Pedrosa
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Em outubro de 1977, diversos jornais anunciaram a volta de Mário Pedrosa


ao Brasil. Após sete anos fora, o crítico retornou ao país quando o pedido de sua
prisão preventiva foi suspenso pela Auditoria da Marinha do Rio de Janeiro. No
período do exílio, o crítico recebeu abrigo do Chile até o golpe de Augusto Pinochet,
em setembro de 1973, quando teve o seu nome inserido entre os primeiros da
lista de procurados pelos militares chilenos (Martins, 2001, p. 40). Na ocasião,
conseguiu asilo na Embaixada do México, onde aguardou um salvo-conduto
mediado pelo escritor mexicano Carlos Fuentes. No país que quatro décadas
antes recebera León Trotsky, Pedrosa ficou por apenas poucos meses, até, final-
mente, partir para o seu último desterro, em Paris.
A chegada no Chile coincidiu com a vitória de Salvador Allende, presidente
responsável pela implantação da via chilena ao socialismo. Esse experimento
pacífico e democrático capitaneado pela Unidade Popular, uma coligação de
partidos de esquerda, favoreceu um amplo programa de iniciativas e instituições
culturais. A passagem de Pedrosa pelo país pode ser avaliada a partir da noção de
radar, conceito cunhado por Denise Rollemberg (1999) para situar a experiência
de expatriação e compreender as mudanças impulsionadas pelo encontro entre
diferentes gerações de movimentos de esquerda. Segundo a historiadora, “o
exílio também foi vivido como ampliação de horizontes. Impulsionou a descoberta
de países, continentes, sistemas e regimes políticos, culturas, povos, pessoas”
(Rollemberg, 1999, p. 299).
A descoberta da conjuntura latino-americana como eixo de interesses,
vivências e articulações teóricas, que impactou parte dos intelectuais brasileiros
e estrangeiros, igualmente integrou a noção de radar. A Revolução Cubana e a
“latino-americanização da Guerra Fria” provocaram um clima profícuo de
“redescobrimento da América Latina nas universidades e nos centros de pesquisa
do mundo inteiro” (Wasserman, 2012, p. 84), e, sem dúvidas, a via chilena ao
socialismo contribuiu para ampliar o interesse pela história e pelos processos
políticos do continente.
O país andino se tornou um centro de acolhimento de exilados oriundos
de vários países devastados pela ditadura, regime de exceção que se alastrou
pela América Latina a partir da década de 1960. Apesar do trauma do desterro
forçado e do sufocamento de projetos de esquerda deflagrados pelos militares,
sob a égide da lei de segurança nacional, o exílio privilegiou a inserção da
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pauta latino-americana no centro das discussões e promoveu uma ampliação


de horizontes teóricos e culturais. Vale lembrar que o Chile abrigou figuras
fundamentais da vida política e cultural brasileira, como Ferreira Gullar, Celso
Furtado, Theotônio dos Santos e Paulo Freire. Chamada de “cidade-dormitório”
pelo pedagogo pernambucano, Santiago virou “um centro de ensino e de conhe-
cimento de América Latina” (Freire, 1992, p. 23) para intelectuais e políticos de
diferentes vertentes partidárias democráticas.
Pedrosa fez parte de um contingente de intelectuais latino-americanos
exilados que colaborou ativamente na área acadêmica e, de forma ainda mais
direta, na política cultural chilena, ao ser chamado para dirigir o Museu da
Solidariedade, entidade inaugurada em maio de 1972. Além de gerir o Museu, o
autor também foi convidado para integrar o corpo docente do Instituto de Arte
Latino-americana (IAL), entidade crucial para o aprofundamento do debate e
fomento da arte regional, por meio de exposições, publicações e congressos que
fortaleceram uma rede de intelectuais alinhados com a pauta latino-americanista.
A experiência no Chile, lugar onde atuou com intelectuais e artistas
impactados por teorias terceiro-mundistas, assim como a aproximação com as
cooperativas de artesanato, as quais exaltou no texto Arte culta e arte popular,1
criou condições para a guinada crítica observada nos últimos textos e nos
diversos depoimentos que concedeu após a volta do exílio, em 1977. Em uma
das ocasiões, o semanário Pasquim indagou se Pedrosa se considerava um
terceiro-mundista, ao que o crítico respondeu categoricamente: “sou a favor de
que fiquemos no Terceiro Mundo” (Pedrosa, 1981, s/p). Certamente, essa mudança
de posição teve impacto após a vivência no país vizinho, sob a experiência socia-
lista de Allende.
Cabe destacar, todavia, que a sensibilidade terceiro-mundista, catalisada
pela experiência no Chile, foi objeto de análise do crítico desde a década de
1950, quando os países do chamado Terceiro Mundo2 despontaram como novas

1
Artigo apresentado no I Colóquio Internacional de Historia del Arte, que discutiu o tema Dicotomía entre
Arte Culto y Arte Popular, na cidade de Zacatecas, em 1975. Posteriormente, as apresentações foram
publicadas no livro Dicotomía entre arte culto y arte popular: Colóquio Internacional de Zacatecas. México,
DF: Universidad Autónoma de México, 1979.
2
Expressão criada por Alfred Sauvy, em 1952.
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Reflexões sobre a obra tardia de Mário Pedrosa
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forças políticas, alterando a lógica bipolar do pós-guerra. O historiador Dainis


Karepovs (2017, p. 138-139) apontou que Mário Pedrosa observou com entusiasmo
o processo de aprofundamento do que mais tarde se intitularia terceiro-mundismo,
em reflexões realizadas em artigos sobre a Conferência de Bandung, de 1955.
Essa conferência, que reuniu países asiáticos e africanos, foi relevante em
termos geopolíticos ao estruturar uma dinâmica política inédita e promover a
cooperação econômica e cultural entre os países não alinhados. Muitas nações
participantes eram recém-independentes, então havia um projeto de fortalecer
redes autônomas, sem a interferência das duas superpotências. A análise de
Pedrosa sobre o evento ratificava a importância do estabelecimento de um eixo
político independente de Washington e Moscou, conclamando que finalmente
as vozes da Ásia e da África seriam ouvidas, e terminava aproximando a pauta
emergencial dos países não alinhados à realidade latino-americana:

O êxito da Conferência Afro-Asiática nos toca de muito perto. Nós, da


periferia política do mundo estimamos que a iniciativa asiática proceda.
Os povos latino-americanos, em sua imensa maioria, pertencem
também à família dos bilhões de deserdados da terra. Na luta pela
melhoria do nível de viver de nossos povos, obstáculos internacionais,
economicamente removíveis, no entanto. Eis por que nossa maneira de
ver os negócios do mundo não difere muito da dos povos da Birmânia,
Indonésia ou Índia (Pedrosa, 1955, s/p).

Os movimentos de liberação nacional, frutos dos processos de descoloni-


zação nas décadas de 1950 e 1960, emergiram como uma nova possibilidade de
3

3
Faz-se necessário diferenciar os termos descolonização, utilizado neste artigo para se referir aos processos
de independência dos países asiáticos e africanos das metrópoles colonizadoras, a partir da década de 1950,
do pensamento pós-colonial, um programa teórico oriundo dos estudos culturais e literários elaborados em
universidades norte-americanas e europeias, após os anos 1980. Por sua vez, as interpretações decoloniais
podem ser compreendidas como uma importante contribuição teórica realizada por um grupo de intelectuais
latino-americanos que conduziram “um movimento epistemológico fundamental para a renovação crítica e
utópica das ciências sociais na América Latina no século 21: a radicalização do argumento pós-colonial no
continente por meio da noção de ‘giro decolonial’” (Ballestrin, 2013, p. 89). O grupo Modernidade/
Colonialidade, formado no final da década de 1990, é central para o aprofundamento e divulgação
dessa nova interpretação crítica que defendeu, segundo a socióloga Luciana Ballestrin (2013, p. 89),
a “‘opção decolonial’ – epistêmica, teórica e política – para compreender e atuar no mundo, marcado pela
permanência da colonialidade global nos diferentes níveis da vida pessoal e coletiva”.
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distribuição política, impondo fim aos antigos impérios coloniais. Esse conjunto
de nações passou a ser denominado Terceiro Mundo, e a pauta reivindicatória
tinha por foco a superação do subdesenvolvimento econômico, resultante da
condição periférica e da exploração colonialista e imperialista. Sem dúvidas
os movimentos de descolonização africana, a Revolução Cubana e a resistência
vietnamita foram marcos essenciais para o fortalecimento das ideologias
terceiro-mundistas (Gilman, 2003, p. 45).
Esses princípios se aproximavam da via socialista chilena proposta por
Allende, que defendeu uma política autônoma de não alinhamento e a imposição
da soberania das nações periféricas frente ao imperialismo norte-americano
(Ferrero, 2008, p. 217). A teórica argentina Claudia Gilman (2003, p. 41)
apontou que as expectativas sobre o poder de alcance revolucionário do Terceiro
Mundo se renovaram, alterando a perspectiva eurocêntrica ou ocidentalista
por um viés policêntrico.
Durante o exílio, nota-se se uma radicalização na leitura crítica sobre
o modelo eurocêntrico de arte e sociedade, que Pedrosa procurou expandir,
inserindo relatos de culturas periféricas, com foco no repertório terceiro-mundista.
Embora tenha ocorrido uma inflexão em seu pensamento, é possível observar um
conjunto de ideias coesas defendidas ao longo de seu itinerário crítico, desde a
década de 1940, quando vislumbrou a necessidade vital da arte, ao acolher
a produção artística dos pacientes do Engenho de Dentro.
Nesse contexto anterior, o autor interpretou as imagens do inconsciente
dos pacientes psiquiátricos fora da chave ocidental, localizando-as a partir
da perspectiva da alteridade. Kaira Cabañas (2017, p. 76) demonstrou que
esse interesse pela arte virgem foi “um gesto que lhe permitiu sair dos espaços
artísticos da elite e acessar um manicômio nos arredores do Rio”. Esse gesto é
análogo à noção de solidariedade e, nesse sentido, é também um ato polí-
tico. A dimensão política aqui não tem qualquer pretensão partidária, mas
assemelha-se a uma postura “ética, humanista e libertária” (Pedrosa, Trelles,
1972, p. 8), tal como foi apresentado o Museu da Solidariedade, sob a direção
do autor.
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“Aqui está a opção do Terceiro Mundo: um futuro aberto ou a miséria eterna”.
Reflexões sobre a obra tardia de Mário Pedrosa
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Discurso aos Tupiniquins ou Nambás e Teses para o Terceiro Mundo

Conforme apontara o sociólogo Florestan Fernandes, após itinerário


chileno, o crítico “trouxe uma visão mais rica dos problemas mundiais e da situação
dos países do 3o Mundo”.4 Ao fomentar o diálogo solidário com os povos que
partilharam os mesmos problemas, a ideologia vinda do Terceiro Mundo preva-
leceu como um diagnóstico apoiado na tese de que a revolução mundial estava
em marcha e de que seus ecos mais concretos viriam dos povos “condenados da
terra”, seguindo a expressão empregada por Frantz Fanon (Gilman, 2003, p. 45).
O marco textual dessa concepção crítica de Pedrosa foi elaborado em
Paris, em 1975. Discurso aos Tupiniquins ou Nambás, texto-manifesto redigido
em seu último desterro, sintetizou praticamente todo o pensamento crítico,
político e museológico sustentado até 1981, ano de seu falecimento. Apesar
do tom pessimista que caracterizou sua análise do transcurso da arte ocidental,
esse texto deve ser interpretado como um tributo à cultura e à arte realizadas
nos países de Terceiro Mundo, um último sopro de esperança e resistência frente
ao avanço do capitalismo internacional.
Ainda residente na capital francesa, Pedrosa escreveu a Dore Ashton,5
compartilhando suas novas e “polêmicas” ideias sobre arte:

Sinto-me bem sentado à minha mesa, escrevendo sobre arte, cultura


popular, política, etc. [...]. Outra peça foi o Discurso aos Tupiniquins ou
Nambás, uma peça muito polêmica contra o hemisfério norte, as pessoas
ricas, brancas e progressistas [...] e a favor das pessoas amarelas do
hemisfério sul, contra o vanguardismo e a arte dos banqueiros. E para
completar a minha subversão, estou escrevendo uma grande peça
sobre a Revolução no Terceiro Mundo.6

4
Mário Pedrosa morre aos 81 anos. Folha de S. Paulo, São Paulo, 6 nov. 1981. Arquivo do Centro de
Documentação e Memória (Cedem) da Unesp. Fundo Mário Pedrosa.
5
Pedrosa conheceu Dore Ashton no congresso da Aica, em Varsóvia, em 1960. Posteriormente, o crítico
convidou a norte-americana para integrar o Comitê Internacional de Solidariedade ao Chile (Cisac), do
Museu da Solidariedade, entidade dirigida pelo brasileiro. Dore Ashton foi uma das integrantes mais ativas
do Comitê, angariando obras importantes para o Museu.
6
Carta de Mário Pedrosa a Dore Ashton. Sem data (Provavelmente redigida em 1975). Arquivo Museu da
Solidariedade Salvador Allende.
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A obra sobre a revolução no Terceiro Mundo mencionada na carta à crítica


norte-americana era Teses para o Terceiro Mundo, redigida em 1975 e publicada
três anos depois. Ambos os textos foram articulados no mesmo período, de
modo que é elementar examinar o Discurso aos Tupiniquins ou Nambás à luz
das Teses e situá-los com base em certos parâmetros de análise, levando em
consideração a experiência herdada nos últimos exílios e as formulações teóricas
atravessadas pelo discurso terceiro-mundista.
De modo geral, o primeiro texto avalia o panorama das artes e do sistema
artístico diante de um cenário de crise generalizada e, em contrapartida, a

Figura 1
Carta de Mário Pedrosa
a Dore Ashton, sem data
(provavelmente redigida
em 1975)
Fonte: Arquivo Museu da
Solidariedade Salvador
Allende
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“Aqui está a opção do Terceiro Mundo: um futuro aberto ou a miséria eterna”.
Reflexões sobre a obra tardia de Mário Pedrosa
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viabilidade de uma inversão de lugares, localizando o sul como alternativa e


fonte de potencialidade criativa em resposta ao declínio ocidental. Já no segundo
texto, o autor desenvolve um exame político dos marcos históricos do século
20 e avalia a crescente atuação dos países subdesenvolvidos na geopolítica da
Guerra Fria, especialmente após os processos de descolonização que desen-
cadearam a afirmação da soberania das nações recém-libertas e o poder de auto-
determinação dos povos.
Nos dois estudos, o ponto de partida foi a conjuntura da crise mundial
provocada pelos países hiperdesenvolvidos, cujos dispositivos políticos, éticos,
econômicos e, sobretudo, imperialistas levaram a uma situação-limite de miséria
e fome extremas em um mundo cada vez mais globalizado. Logo, a saída viável
poderia vir unicamente dos povos pobres do sul. “Aqui está a opção do Terceiro
Mundo: um futuro aberto ou a miséria eterna” (Pedrosa, 1995, p. 336). Nas
Teses, Mário Pedrosa seguiu o mesmo diagnóstico:

Os países ricos e poderosos podem resignar-se a prolongar a ilusão


do seu status quo até a catástrofe final. Os países pobres do terceiro
(e do quarto) mundo, sendo mais ou menos desprovidos dessa ilusão
perniciosa, não podem resignar-se, eis porque é preciso ver neles os
portadores da Revolução (Pedrosa, 1978, p. 12).

Nos idos da década de 1970, os Estados Unidos evidenciaram uma fratura


exposta após a derrota militar no Vietnã e, em face desse fracasso, sua civilização
deixou de ser um modelo, provocando “uma repulsa aos olhos do mundo”
(Pedrosa, 1995, p. 13). Nesse contexto, ou o imperialismo destruiria de vez o
mundo ou, ao contrário, cederia espaço a um ideal de comunidade que pressu-
punha a substituição das relações de dominação pela implantação da paz mundial.
O abismo cada vez mais intransponível entre os ricos do norte e os pobres do
sul, catalisado pelo modus operandi imperialista, deveria dar lugar a relações de
cooperação e solidariedade.
A tese central de Pedrosa amparava-se na importância da ocupação cada
vez mais irreversível dos países de Terceiro Mundo na Assembleia Geral da ONU,
entidade que sintetizou a nova ordem econômica internacional baseada no
direito soberano de cada país adotar o sistema econômico e social que julgasse
apropriado. O autor assinalou as disputas internas na ONU e o avanço político
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dos países subdesenvolvidos em choque “com os interesses das empresas


imperialistas e multinacionais que não saem jamais do círculo do direito privado”
(Pedrosa, 1995, p. 27-28), tornando-se um obstáculo ao avanço da história. Os
ecos da revolução socialista conduzida por Allende permearam a análise do
crítico, que nomeou o chileno “Presidente-Mártir” morto “sob as bombas do corpo
de guarda do imperialismo” (p. 28).
A epígrafe escolhida para abrir o texto, um trecho do economista egípcio
Samir Amin, marcou o posicionamento defendido pelo autor não apenas nas
Teses, mas, ainda, no Discurso, ambos redigidos sob o mesmo efeito de contes-
tação: “na crise atual, há duas perspectivas. Eu me situo voluntariamente ao nível
mundial, e não ao nível do ocidente separado dos países atrasados da periferia
(Samir Amin)” (Pedrosa, 1995, p.11). Não por acaso, Pedrosa se correspondeu
com o economista, a quem enviou um manuscrito das Teses, fato que confirma
seu olhar atento aos acontecimentos políticos e à produção teórica elaborada
por autores oriundos de países fora do circuito hegemônico.7
O economista também fora citado no Discurso como uma referência
metodológica crucial para avaliar os povos do Terceiro Mundo sob a perspectiva
da integralidade. Pedrosa compartilhava com o egípcio a noção de totalidade em
oposição ao sistema de separação, modus operandi representativo do mundo
ocidental. Segundo o crítico, por meio da abordagem integral seria possível
assimilar a “problemática apocalíptica da divisão dos povos do planeta entre
imperialismo [...] e a imensa maioria dos outros, de preferência de raças não
brancas” (Pedrosa, 1995, p. 338). Diante do estado de decadência geral da arte
produzida nos países superdesenvolvidos, a tomada de consciência geopolítica

7
Samir Amin, então diretor do Instituto Africano de Desenvolvimento Econômico e Planejamento,
ligado às Nações Unidas, respondeu à carta de dezembro de 1975, enviada por Pedrosa junto a um
manuscrito das Teses para o Terceiro Mundo (cf. Carta de Mário Pedrosa a Samir Amin. 5 de dezembro
de 1975. Arquivo do Centro de Documentação e Memória (Cedem) da Unesp. Fundo Mário Pedrosa). O
economista egípcio escrevera: “Estou segurando sua carta de 5 de dezembro de 1975 há um ano! Eu
sempre propus vê-lo em Paris, mas fiz visitas muito breves à capital. [...]. Enquanto espero para vê-lo,
ainda gostaria de compartilhar brevemente minhas reações ao trabalho que você me enviou. Em geral,
concordo totalmente com a visão da importância da revolta no Terceiro Mundo” (Carta de Samir Amin
a Mário Pedrosa. 17 de janeiro de 1977. Arquivo do Centro de Documentação e Memória (Cedem) da
Unesp. Fundo Mário Pedrosa).
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baseada na totalidade era sustentada como premissa primordial das transfor-


mações reivindicadas. Caso contrário, estaria mobilizada pela lógica do “lado
de cima, [...] na outra perspectiva de que nos fala Samir Amin” (p. 338), ou seja,
apartada dos países atrasados da periferia.
No Discurso, Pedrosa recorreu ao termo “danados da terra”, uma citação
direta ao livro Condenados da Terra, de 1961, de Frantz Fanon. Em linhas gerais,
o autor discorreu sobre os efeitos psíquicos da violência colonial e sobre o
processo histórico da luta pela independência da Argélia, nas décadas de 1950
e 1960. Fanon, teórico de ascendência martinicana, foi uma das figuras mais
importantes do pensamento terceiro-mundista, além de liderar os movimentos
antirracista e de descolonização dos países da África. Sua obra foi traduzida e
publicada no Brasil pela primeira vez em 1968, porém “rapidamente retirada de
circulação pelos órgãos de repressão política, mas não antes de cair nas mãos
de dezenas de militantes” (Guimarães, 2008, p. 105). Contudo, a recepção do
autor nos círculos da intelectualidade de esquerda no Brasil foi ínfima ao longo
dos anos 1960. Muitos pensadores que tiveram contato com o livro de Fanon se
exilaram, e os militantes que acolheram a saída pela violência revolucionária,
defendida por Fanon, ficaram na clandestinidade, “tornando tênues os seus elos
com o mundo cultural” (p. 104), segundo o sociólogo Antônio Sérgio Guimarães.
A admissão às ideias do martinicano ocorreu nas décadas seguintes, entretanto;
é válido pontuar a menção ao intelectual no texto de Pedrosa, mesmo que breve,
demonstrando a consonância de ideias sobre a revolução dos povos oprimidos
do Terceiro Mundo como saída única:

Somente dentro deste contexto universal será possível pensar no


engendramento de uma nova arte. Será esta uma das faces mais
vitais deste prisma revolucionário em gestação nas entranhas con-
vulsas dos povos que Fanon chamou os “danados da terra” (Pedrosa,
1995, p. 338).

Pedrosa também sustentou que o poder destrutivo do capitalismo sobre


a dimensão criativa e a cooptação do mercado e dos marchands contribuíram
para o estado geral de decadência da arte. O crítico sempre defendera a liber-
dade como atributo fundamental da criação artística e, especialmente, como
vetor basal para a revolução e para a determinação de uma comunidade livre. Ao
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descrever o projeto utópico de Mário Pedrosa como uma “combinação erótica


de todas as liberdades”, Hélio Pellegrino seguiu um argumento semelhante: “O
capitalismo, como forma social, é antiestético, isto é: contra a liberdade, contra
a arte da vida, contra a possibilidade das grandes formas consentidas, através
da liberdade e da fraternidade de todos”.8 Por esse ângulo, os antídotos para a
decadência e para o aniquilamento da arte produzidos nos cinturões de riqueza
do globo foram, precisamente, a liberdade criativa e a alegria popular, chaves
essenciais para o florescimento da arte popular no Chile, sobre as quais Pedrosa
depositou as suas últimas esperanças.
As entidades chilenas pelas quais Mário Pedrosa passou, como o Museu
da Solidariedade e, especialmente, o Instituto de Arte Latino-Americana, estru-
turaram-se a partir de uma agenda anti-imperialista, além de se voltar para a
responsabilidade social do artista em benefício do processo revolucionário. O
IAL se alinhou às políticas da Unidade Popular, e seu programa conceitual se
ancorou na ideia de “povo continente”, de Salvador Allende (1971, p. 32),
recurso utilizado para defender a integração latino-americana. Na prática, essa
agenda formalizou uma ampla rede de contatos entre artistas e intelectuais
de diversas áreas do continente, tendo Cuba como satélite revolucionário.
Publicações, congressos e exposições resultantes dessa rede se basearam em
temas como atraso, dependência e imperialismo, temáticas que também
moveram pensadores vinculados à Comissão Econômica para a América Latina
e o Caribe (Cepal), sediada em Santiago desde 1948, e intelectuais que defen-
deram a teoria da dependência. Ambas as frentes, a econômica e a cultural,
desenvolveram outro tipo de suporte metodológico, levando em consideração
a própria realidade latino-americana e seus respectivos fenômenos, que em
tempo algum integraram o quadro teórico de pensadores europeus.
Esses estudos demonstraram que os obstáculos ao crescimento econômico
dos países latino-americanos não foram removidos, retardando exponencial-
mente o desenvolvimento do continente. O sociólogo brasileiro Octavio Ianni
(1974, p. 115) assinalou que, por esse motivo, não foi “por mero acaso que a

8
Carta de Hélio Pellegrino a Mário Pedrosa. 18 de maio de 1972. Arquivo do Centro de Documentação
e Memória (Cedem) da Unesp. Fundo Mário Pedrosa.
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“Aqui está a opção do Terceiro Mundo: um futuro aberto ou a miséria eterna”.
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problemática da dependência ultimamente foi recolocada de modo insistente


nas discussões e nos estudos sobre os dilemas econômicos e políticos da América
Latina”. No ensaio Imperialismo na América Latina, de 1974, Ianni examinou as
raízes da dependência estrutural dos países subdesenvolvidos, contribuindo para
uma interpretação do imperialismo baseada na perspectiva dos países subor-
dinados. No caso da América Latina, a dependência estrutural em relação aos
países metropolitanos fora catalisada pela interferência constante dos Estados
Unidos na região. Além disso, a conjuntura de servidão foi fortalecida pela
pluralidade dos mecanismos de submissão que abarcaram os aspectos não
apenas econômicos, mas também políticos, militares, culturais e tecnológicos,
demonstrando a complexidade dos elementos que condicionaram a dinâmica
de atraso da região (p. 140).
Essas novas abordagens teóricas auxiliaram no avanço de pesquisas
e estudos sobre a realidade do continente, além de questionar a importação
acrítica de conceitos e teorias elaborados para avaliar contextos distintos da
prática vivenciada nos países de Terceiro Mundo. Essa premissa foi elaborada
por Pedrosa em Discurso aos Tupiniquins ou Nambás, e seus ecos estariam
presentes no bojo do projeto expositivo de Alegria de Viver, Alegria de Criar, sobre
arte indígena, e no Museu das Origens, após voltar ao Brasil. No texto escrito em
1975, o autor sinalizou:

As populações destituídas da América Latina carregam consigo um


passado que nunca lhes foi possível sobrepujar ou sequer exprimir,
quer dizer, fazê-lo teoricamente: porque tal expressão nos chega em
livros na maior parte deformados ou disfarçados nas más historiografias
de origem metropolitana. As vivências e experiências desses povos não
são as mesmas dos povos do norte (Pedrosa, 1995, p. 336).

O filósofo Lorenzo Mammì (2015, p. 19-20) indicou que as últimas inter-


venções feitas por Mário Pedrosa9 foram “rarefeitas e ocasionais”, observando
no elogio “às expressões artísticas dos povos oprimidos pelo imperialismo”

9
O autor se referiu especificamente às obras Discurso aos Tupiniquins ou Nambás (1976) e Variações
sem tema ou a arte de retaguarda (1978).
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a permanência de uma “petição de princípios” que não acrescentaria muito ao


legado do crítico. Certamente, essa leitura enviesada parece dispensar análises
mais complexas sobre a conjuntura do exílio e os resíduos teóricos da experiência
forçada no estrangeiro. Examinar essas obras isoladamente evidencia a dificuldade
de parte da crítica e da historiografia da arte brasileiras em desenvolver uma
reflexão mais minuciosa sobre as escrituras de Pedrosa dentro da perspectiva
do desterro e, especialmente, do ambiente de trocas culturais favorecido pelo
fluxo de intelectuais latino-americanos. Portanto, é imprescindível conjecturar
não apenas o Discurso, mas outras obras e entrevistas do autor, levando em conta
o estreitamento com a agenda anti-imperialista e anticolonial capitaneada por
instituições e pelas redes de pensadores de que o autor se aproximou.
Como intelectual responsável pela condução de um debate integrado à
dimensão pública, Pedrosa contribuiu para a reflexão sobre as mudanças em
curso na ordem mundial e o crescente protagonismo das nações terceiro-mun-
distas. Um exame pautado apenas no viés formalista dessas últimas obras é
uma interpretação caduca e limitada, que não admite a inserção de um novo
repertório situado na América Latina. Desta maneira, é essencial avaliar esses
textos tendo em vista a noção de radar latino-americano decorrente da experiência
no exílio chileno.
Discurso aos Tupiniquins ou Nambás, originalmente publicado na revista
Versus n. 4, em 1976, também circulou na revista mexicana Artes Visuales, ligada
ao Museu de Arte Moderna do México. Essa revista foi um espaço essencial para
a difusão, discussão e reflexão sobre arte contemporânea, tendo sido, segundo
sua editora, Carla Stellweg (2017, p. 106), uma publicação de “cultura visual”
fundamental para “ativar a dinâmica artística e o diálogo”. A dinâmica editorial
baseou-se na publicação de textos escritos por intelectuais do continente seguidos
de comentários de especialistas.10 A edição que publicou o texto de Pedrosa foi
dedicada ao debate sobre arte latino-americana e continha, na sequência do

10
Essa edição foi organizada com base na publicação de textos originais seguidos de comentários de
outros autores. Aracy Amaral escreveu sobre o Grupo Etsedron, e o crítico peruano Juan Acha, em
seguida, respondeu ao texto da brasileira com o comentário “Etsedron: resposta a Aracy Amaral. Por
Juan Acha”. Outro exemplo foi o artigo “Resposta a uma pergunta: quando se torna latino-americana
a arte na América Latina?”, de Damián Bayón, com ponderações de Jorge Romero Brest e Rita Eder.
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Discurso, uma breve avaliação sobre o artigo, elaborada pelo crítico e historiador
de arte mexicano Jorge Alberto Manrique.
Manrique interpretou a obra de Pedrosa apoiando-se em um conjunto de
reflexões sobre a natureza e as particularidades da arte latino-americana
perante a conjuntura internacional. As características da arte continental partiam
de duas premissas distintas: a primeira se embasou no argumento de que a
arte latino-americana era atrasada em relação aos grandes centros e, portanto,
deveria se recuperar em compasso com as estéticas exportadas pelos países
metropolitanos. Já o segundo eixo defendeu a autonomia da arte latino-ameri-
cana, cujos valores deveriam ser expressos de acordo com a realidade regional.
Segundo Manrique, somente a insubordinação ao sistema artístico hegemônico
propiciaria, aos níveis artístico e conceitual, um lugar de emancipação. O crítico
mexicano localizou o Discurso na tese sustentada pelo segundo eixo:

A ideia apoiada por Mario Pedrosa nesta revista é indiscutivelmente


filiada à posição número 2: a América Latina deve produzir sua própria
arte, diferente da arte dos principais centros de produção. No caso de
Pedrosa, sua atitude é enriquecida por uma crítica lúcida à arte atual
em geral, que também inclui uma referência crítica interessante à ideia
de arte em si. Assim, verifica-se que a própria arte, como é entendida
desde o Renascimento, já é inoperante; um pouco antes, um pouco
depois, desaparecerá do mapa da verdadeira cultura, como entreteni-
mento idiota dos burgueses desempregados (Manrique, 1976, s/p).11

Além de emancipar-se dos valores artísticos hegemônicos, a abordagem


de Pedrosa reconhecia a centralidade da cultura da América Latina como uma
resposta eficiente à crise generalizada da arte ocidental. Não por acaso, Manrique
aproximou as ideias discutidas no texto do brasileiro à noção de resistência
desenvolvida por Marta Traba na obra Dos décadas vulnerables en las artes
plásticas latinoamericanas (1950-1970), publicada em 1973. A crítica argen-
tino-colombiana advogou pela evolução da arte em consonância com a problemática
dos países da região, por meio do apoio incondicional à linguagem pictórica.

11
O texto citado encontra-se datilografado no Arquivo Multimeios/CCSP, sem qualquer referência ao
número da página.
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Embora tenha indicado os pontos de contato entre os legados de Traba e


Pedrosa, o mexicano não destacou as divergências, que se sobressaíam às
confluências. Traba desenvolveu uma interpretação limitada e muitas vezes
conservadora, que privilegiou a pintura figurativa em detrimento das experiências
artísticas mais contemporâneas, baseando-se no repúdio ao internacionalismo
da arte latino-americana por considerá-lo um modismo. Por sua vez, Pedrosa
promoveu um programa estético ancorado na liberdade experimental, além de
fundamentar um método original, que abrangeu uma relação dialética entre as
tendências internacionais e a realidade local (Arantes, 2001, p. 45).
Em sua leitura, Manrique apontou a afinidade entre o pensamento do
brasileiro e outras teses concebidas por estudiosos de temáticas latino-ame-
ricanas, como Darcy Ribeiro. A afluência de ideias trabalhadas por ambos se
sustentava no argumento de que a “cultura latino-americana é uma cultura
colonial imposta, alheia e, portanto, espúria. [...] Enquanto a revolução não ocorrer,
não haverá verdadeira cultura latino-americana, nem verdadeira cultura”, nos
dizeres do mexicano (Manrique, 1976, s/p). A referência a Darcy Ribeiro não era
desacertada. O antropólogo experimentou a condição do exílio, tendo vivido, ao
longo de 12 anos, em países vizinhos, como o Uruguai, a Venezuela, o Chile, o
Peru e o México, integrando, assim, a fértil rede de pensadores latino-americanos
desterrados que escolheram a região como lugar de acolhimento.
O crítico literário Ángel Rama (1978) nomeou como “drenagem de cérebros”
o horizonte de trocas culturais permitido pelo fluxo de exilados na região. Nesse
panorama, Rama chamou a atenção para a particularidade do caso brasileiro,
que, a partir de 1964, após a queda de João Goulart, gerou um deslocamento
sem precedentes de exilados políticos que buscaram acolhida nos países vizinhos.
Esse trânsito de desterrados impulsionou a descoberta da América Latina,
segundo o uruguaio, não apenas por suas singularidades políticas, mas também
por suas formas culturais:

Mário Pedrosa, no Chile, Ferreira Gullar, em Buenos Aires, Darcy Ribeiro,


em Montevidéu [...]. Eu acho que um livro imaginativo e maravilhoso como
Las Américas y la Civilización, de Darcy Ribeiro, teria sido impossível
sem esses longos anos de exílio que lhe permitiram viajar e viver por
anos em vários países do continente. Da mesma forma, a experiência
das artes plásticas de Pedrosa, na poesia de Ferreira Gullar (Rama,
1978, p. 99).
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Reflexões sobre a obra tardia de Mário Pedrosa
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Esse trecho de Ángel Rama é central para trazer à tona o ambiente favorável
de trocas e, especialmente, para demonstrar o interesse pelo continente
latino-americano como um campo relevante de estudo. Ademais, reforça a
proposição do exílio chileno como local privilegiado de contatos com uma vertente
plural de formulações teóricas. É pertinente localizar a produção textual de Mário
Pedrosa nesse contexto, pois examiná-la isoladamente impede a observação
dos microrrelatos por detrás dos discursos defendidos nas obras e propostas
museológicas no final da década de 1970, período que coincidiu com a volta de
muitos exilados para o Brasil.
Por fim, é fundamental esclarecer que a mudança de rota ou a guinada
demonstrada em relatos e textos após o retorno ao Brasil não se apresentou
como uma completa ruptura teórica e intelectual. Ao contrário, há um fluxo
coerente que transitou em toda a obra de Pedrosa, assim como nas batalhas
estéticas e políticas tuteladas ao longo de sua vida. Esse entendimento abrangeu,
desde o final dos anos 1940, noções estéticas frequentemente apartadas da
sociedade, como a arte dos pacientes do hospital psiquiátrico do Engenho de
Dentro e as experiências artísticas realizadas por crianças, distantes dos
modelos acadêmicos. Posteriormente, Pedrosa incluiu em seu itinerário crítico
a valorização da cultura popular, após acompanhar de perto as cooperativas
autogestionáveis de artesanato no Chile, durante o governo Allende. Igualmente
essenciais foram as contribuições das artes indígenas, africanas12 e demais
produções realizadas pelos povos “danados da terra” do Terceiro Mundo, nas
quais vislumbrou uma forma latente de potencial revolucionário e esforço de
inventividade autêntica.

Luiza Mader Paladino é doutora em estética e história da arte pela Universidade de


São Paulo. Integrante do Grupo de Estudos em Arte Conceitual e Conceitualismos
no Museu, ligado ao MAC USP. Professora efetiva do Instituto Federal de Brasília.

12
Mário Pedrosa participou do 28o Congresso da Aica, em 1976, em Portugal, cujo tema foi Arte
moderna e arte negro-africana: relações recíprocas. A reunião organizada pela delegação portuguesa
da Aica foi simbólica, pois ocorreu dois anos após o término do regime autoritário salazarista, repre-
sentando, portanto, o triunfo da democracia no país. Essa nova condição política certamente impactou
a escolha da temática do congresso, destinado a debater as influências mútuas entre a arte moderna
de raiz ocidental e a arte realizada em países africanos. Indubitavelmente, o ponto central do evento,
o elo entre a arte africana e a arte ocidental, encaminhado do ponto de vista antropológico, bem como
a inserção no debate de autores fora da órbita canônica de produção de conhecimento, catalisou as
reflexões que Pedrosa vinha delineando desde a sua passagem pelo Chile.
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“Aqui está a opção do Terceiro Mundo: um futuro aberto ou a miséria eterna”.
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Manhã, 16 abr. 1955. Arquivo Biblioteca Nacional.

Artigo submetido em março de 2021 e aprovado em junho de 2021.

Como citar:
PALADINO, Luiza Mader. “Aqui está a opção do Terceiro Mundo: um futuro aberto
ou a miséria eterna”. Reflexões sobre a obra tardia de Mário Pedrosa. Arte &
Ensaios, Rio de Janeiro, PPGAV-UFRJ, v. 27, n. 41, p. 331-348, jan.-jun. 2021.
ISSN-2448-3338. DOI: https://doi.org/10.37235/ae.n41.18. Disponível em:
http://revistas.ufrj.br/index.php/ae
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Guy Brett in front of part of
Lea Lublin’s Question on Art,
Serpentine Gallery,
London, 1975
Photograph: Teodoro Maler
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Beyond Brazil: remembering Guy Brett


through his own eyes

Michael Asbury
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The British art critic Guy Brett has become a standard reference in Brazil
through his writing on and friendship with artists such as Sergio Camargo, Lygia
Clark, Hélio Oiticica, Mira Schendel during the 1960s and later with Cildo Meireles,
Antonio Manuel, Lygia Pape, Jac Leirner, Waltercio Caldas and so many others.
While these artists have come, to a large extent, to define how contemporary art
is understood nationally, Guy’s contribution helped weave their creative outputs
within a larger art historical narrative, helping inscribe them, even if still only
partially, within the hegemonic and institutional canons. Yet, it would be limiting
to consider Guy’s relevance through this single, albeit important, perspective.
This article, not so much an essay but a series of annotated quotes, seeks to shed
light on Guy’s own intellectual trajectory, focusing on the particular way he came to
articulate, through his writing and curation, the art that he was interested in. What
actually interested him ranged from the singular subjective experience with the
art object to its wider relation with the world. When referring to that which bridged
such diverse approaches to art, Guy often invoked the idea of cosmic energies,
field forces, sometimes in a literal sense such as in the case of electromagnetic
force in the work of the Greek artist Takis, at other times more metaphorically.
Such invocations whether referring to ancient cosmologies, millennial knowledges
or scientific thought, never attempted to determine or impose his own perspective
upon others or imply any sense of superiority of one type of art over another. In
Guy’s own understanding, the universal seemed antithetical to the way it is usually
prescribed within the history of modernism. Indeed, Guy never had a problem
with modernism itself but with the narrow constraints with which it has been
considered. His criticism was directed primarily towards how modernism has
been historicised and instrumentalised within the institutional structures of art.
PPGAV/EBA/UFRJ
Rio de Janeiro, Brasil Keywords
ISSN: 2448-3338
DOI: 10.37235/ae.n41.19 Guy Brett; Kinetic Art; Signals Gallery; Art Criticism; Decolonising.
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Guy Brett’s approach as an art critic turned curator was perhaps made
most powerfully in his exhibition Field Forces: phases of the kinetic, which
he described as “a device for sensitisation” in which the “phenomenon of the
visual is immersed in the phenomenon of energy” (Brett, 2000, p. 9). Possibly
his most art historical project, Field Forces exemplified with curatorial brilliance
how limited standard accounts of modern art really are. For Guy such accounts
remain suspicious both in terms of their narrow aesthetic/formal apprehensions
of avant-garde practices and their Euro-American bias. As such, and in so many
other ways, his writing remains not only relevant to contemporary debates but
fundamental as a stepping-stone towards a greater depth and sensibility in
considering the relation between art and the wider social-political sphere. In
short, and as Guy himself claimed, his was a form of writing that both reacted
and responded to the relationship between art and life, irrespective of national,
cultural, ethnic, gender and sexuality boundaries.
The task at hand, of course, far exceeds the limitations afforded by these
few pages and should not be seen as a replacement to the full texts themselves.
Instead, I prefer to think of this as a preview, one that encourages the reader
to seek further reading.1 There is little here in terms of his writing about the
artists themselves, which, shameful as that may be, would imply a selection,
and thus a reduction, of Guy’s scope as an art critic. An exception perhaps is
Guy’s writing on David Medalla, which acts here as a form of projection to Guy’s
own trajectory, given the close friendship and general outlook both held and to
a large extent shared.
To my knowledge three anthologies of Guy’s writing were compiled during
his lifetime. The first, Carnival of perception was published in London by inIVA
in 2004, the following year Katia Maciel edited a selection of Guy’s writing on
Brazilian artists entitled Brasil experimental, published in Rio de Janeiro by
N-Imagem and Contracapa. Most recently, a further collection of essays entitled
The crossing of innumerable paths’ by Ridinghouse in London, came out in 2019.
Even when combined these still represent only a fraction of his overall body of work.

1
For a biographical overview of Guy’s life, see: Brett (2007: 206-237).
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With the benefit of hindsight, it is easy to trace projections, to establish a


teleology. That is to say, to make the assumption that the particular path taken
was inevitable. At the risk of doing just that, and against the suggestion in the
title of his latest compilation of essays, I see in his early writing already the signs
of the themes and concepts that would obsess him throughout his entire live. In
Eugene Delacroix, a very early monograph published in 1963, the 21 year-old Guy
Brett enthused the confidence afforded by his Eton education. Yet already here,
one can sense a propensity towards certain themes and attitudes that would
gain consistency and depth as his writing matured: “After his African journey,
[Delacroix] returned to literary and imaginative subjects as starting points but
they were now unmistakeably marked by experience both of life and painting”
(Brett, 1963, p. 6).
While a burgeoning attention to the relation between life and art was
already perceptible in that early text, an incipient fascination with movement
may also be observed: “This study has a spontaneous grasp of movement and
animation which is lost in the final work. Delacroix trained himself throughout his
life to capture movement with the minimum labour and time” (Brett, 1963, p. 7).
Six years later the question of movement in art had become central and
specific, enough for Guy, in 1968 while introducing the subject of his book on
Kinetic art, to want to differentiate the type of art that interested him, from the
more ‘technical’ description that the term implied:

This book is about movement in art. But it is not movement in itself


which is important. Movement in a literal sense is no guide to a work’s
quality or even its modernity. It so happens, though, that the word
“Kinetic” has got itself used to describe a large number of artists and
their work. And the word “kinetic” has already gathered around it a lot
of stylistic connotations, most of them purely technical: to do with the
use of mechanical systems, electrical motors, light, vibratory patterns
and so on. These technical properties have often been used as criteria
with which to define the work, to group it with others, even to justify
it. This approach can only have the effect of creating an Academy of
Movement, a body which can define itself clearly only by isolating itself.
The tendency has certainly been to treat kinetic art as a separate pocket
of modern art with its own inventions and rules (Brett, 1968, p. 9).
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Kinetic art, the book, was of course informed by what had possibly been
Guy’s most significant formative experience, his collaboration with Signals
Gallery in London, which operated from 1964 until its abrupt closure in 1966.

A group of likeminded artists began to coalesce. [Paul] Keller and


[David] Medalla moved to a spacious flat in Cornwall Gardens, South
Kensington, and the Centre for Advanced Creative Study was founded
there in 1964 by Keller, Medalla, artists Gustav Metzger and Marcelo
Salvatori, Christopher Walker and myself. Signals Newsbulletin (its title
inspired by a series of tensile sculptures by Takis) was started, edited
and designed by Medalla, and Signals London became the name of the
group, and of the ‘showroom’, when it was moved, in late 1964, to a
large four-story building at the corner of Wigmore Street and Welbeck
Street in central London. The building was made available by Keller’s
father, an optical instruments manufacturer.
By the time they joined Signals, Salvatori’s and Metzger’s interests
were clearly defined. Salvatori, who was born in Florence and came to
England in 1955, was looking for a close collaboration between artists
and scientists based on the model of a research institute (the original
name of the group was his). He thought of his own works using plastics
and foam rubber as maquettes for a transformation of the environment.
Metzger was the apostle of ‘auto-destructive art’. He combined a
pioneering interest in self-generated and random forms in art with a
wide-ranging critique of contemporary society. These interests mainly
took the form of written manifestos, since, in his view, the theory of
‘auto-destruction’ was ten years ahead of practice.
Medalla’s approach was broader. As an artist he was completely
committed to the ideas he had adopted, plumbing them to the depths
so to speak. At the same time he always maintained a certain attitude
of free-floating, uncommitted openness. As an organiser and publicist
he pursued a non-dogmatic and non-exclusive policy. His statement
defining the aims of Signals, in its newspaper-format periodical, said
only that it was “dedicated to the adventures of the modern spirit”, and
encouraged experiment in art. Signals Newsbulletin printed poems,
political discussions, a digest of scientific discoveries and personal
news as well as extensive documentation of the artists exhibiting in
the gallery (the quality of information on each artist was outstanding
in a period before large catalogues). He always gave poems as much
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prominence as critical essays in the interpretation of an artist’s work.


Both Keller and Medalla commissioned artists to produce a new
large-scale environmental work for Signals shows. In a curious way,
Medalla combined an eminently pragmatic sense, as an organiser, of what
could actually be created out of a meeting of specific people, with the
wildest flights of fantasy in his kinetic projects and ‘propulsions’, whose
playfulness and poetic license showed up a sometimes pedestrian strain
in the more earnest attempts by other artists to link art and science.
From 1964-66 Signals London was a major showroom of the international
avant-garde. Its premises were bigger that the old Institute of Contemporary
Arts in Dover Street and its Newsbulletin was far more lavish that the ICA’s
small publication. Artists like Takis, Camargo, Soto, Otero, Kenneth and
Mary Martin, Li Yuan-chia, Gerhard von Graevenitz and Lygia Clark had
opportunities to exhibit on a large scale, and to experiment, which they did
not yet have in London or in Paris (Brett, 1995, p. 47-49).

While Metzger and Salvatori, together with Guy and photographer Clay
Perry had collaborated with Keller and Medalla from the start, it is also striking
how attached to the group many of the invited exhibiting artists became. Sergio
Camargo for instance was responsible of guiding Guy’s and Keller’s attention to
several other Brazilian artists such as Oiticica and Mira Schendel while Li Yuan-chia,
after coming from Italy to exhibit at Signals, never returned, deciding to stay in
London and later moving to Cumbria in the north of England.

Because what happened in the 1960s was that London did become
a magnet for people from all over the world, and people arrived here
with different sorts of notions of freedom − well, let’s say different kinds
of behaviour − which could be very liberating in one sense and very
hidebound in another area… so I thought all these different degrees and
types of freedom and types of conditioning are all mixing up together
and complementing one another. You always have this conflict of
opposites, and I tend to interpret people’s work often in terms of this
conflict of opposites.2

2
British Library, Hester R. Westley interviewed Guy Brett for the National Life Stories Project Artists’ Lives
in 2007-2008. https://blogs.bl.uk/sound-and-vision/2021/04/guy-brett-ideas-in-motion.html (accessed
on 22/04/2021)
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The idea of opposites, as magnetic poles within an equilibrium, would


return time and again. Takis himself remained a close friend throughout his life
and it was his work that Guy gathered at Tate Modern in 2019 for an exhibition
that sadly would be the last project for both artist and critic:

My reaction to Takis work was immediate and deep, and has remained
so until today. His art represents for me the human, and humane,
possibilities that exist within energy. As Carl Jung once expressed it:
‘The psyche is made up of processes whose energy springs from
the equilibrium of all kinds of opposites.’ He might have added that this
equilibrium includes a fusion between the fields of science and art. Both
are driven by a sense of wonder (Brett, 2019, p. 17).

When Signals opened, Guy had recently been appointed art critic to The
Times and so his frequent contributions to Signals Newsbulletin were often signed
under pseudonyms. Sometimes this fact would reveal the bluffs of journalists
and fellow art critics, such as the case in which Jaime Mauricio – an otherwise
serious Brazilian art critic – reviewing the press reception of Camargo’s Signals
exhibition, described Gerald Turner (one of Guy’s pseudonyms) as the ‘renowned
art critic’ while adding that even the ‘usually stern’ Times newspaper had positive
things to say about the show.3
It was through kineticism and Signals, that Guy became aware of the
inherent bias within the institutional framing of art, particularly that constructed
around the notion of the ‘national’:

In fact, Signals encapsulated the character of the London-based


avant-garde for the period. Like the ICA [...] and venues of the early
1960s such as Victor Mulgrave’s Gallery One and Denis Bowen’s and
Kenneth Coutts-Smith’s New Vision Centre, the character of Signals
was cosmopolitan, experimental and interdisciplinary. These qualities
have never been recognised by British art history. In fact, the entire
mainstream historical writing and exhibition-making has been concerned
with constructing a national image of British art, wedded to a traditionalist,
beaux-arts view of practice, ignoring or excluding the work of those

3
I mention the incident in an article on Sergio Camargo, see: Asbury, 2020.
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foreigners which cannot be assimilated within the national canon. By cruel


logic of chauvinism, official aspirations to make London an international
centre have only resulted in obliterating London’s cosmopolitan reality
and the actual ferment of its cultural life (Brett, 1995, p. 50).

Signals had been fundamental as a sort of whirlpool of interests between


avant-garde practice and a wider scientific, philosophical and political sensibilities,
exemplified by the interests of collaborators such as Salvatori and Metzger.
Metzger’s radical political position, for example, must have had a strong impact
upon the young aristocratic art critic, a fact that would become evident in Guy’s
writing over the following decades. Yet, Guy’s live-long friendship with Medalla had
even more profound and long-lasting consequences.
“It is a very particular pleasure when someone from the other side of the
world talks warmly and insightfully about your own culture” (Brett, 1995, p. 13).
The above statement, written by Guy while recollecting his first encounter
with Medalla, circa 1959, could have been enunciated by so many artists from
around the world referring to Guy’s own warmth and insightfulness towards their
respective cultures. Guy described that first meeting with David at ‘a dance at
the village hall in Rotherfield Greys, near Henley-on Thames, Oxfordshire’ as
‘incongruous and prophetic’ (Brett, 1995, p. 13). It would not be, I imagine, too
much of a speculative leap to suggest that Guy’s use of the term ‘incongruous’
referred to the location and social milieu of an event in celebration of the local
rowing team, and ‘prophetic’ because it was one of those chance encounters that
would mark the future trajectory of his life.

[W]hat I remember best about the evening was [David’s] scintillating


conversation about English poetry. I was attempting to produce poems
at the time. His knowledge of all my favourites – Blake, Keats, Shelley,
Crabbe, Hopkins, Eliot – astonished me. […] Only later I discovered he
knew as much about French culture and many others, as he did about
English, and as much about art, music, dance and theatre as he did
about literature (Brett, 1995, p. 13).

It is of course to Guy’s credit that, already at a very young age he did not
equate Medalla’s knowledge of the Western literary canon with any sense of its
inherent superiority. Over the course of his lifetime Guy would find in so many
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artists’ works from across the world a similar sense of wonder and sophistication.
A sense of wonder and openness towards other cultures has been a constant
characteristic of Guy’s writing from early on.
Medalla’s role, during the Signals years, in establishing connections across
the avant-gardes in Europe and beyond cannot be underestimated. Medalla’s
own personality and the particular circumstances to which he was submitted to
as a Filipino national, were crucial in this respect:

I soon realised [David] was dividing his time between England and
France. As soon as the stay allowed on his English visa expired, he
would go to France and when his French visa expired, return to England.
Expiring and renewed visas have been a permanent feature of David’s
life. […] The apparently incongruous circumstances of our meeting were
a foretaste of the way Medalla has, throughout his life, made his own
connections and artistic manifestations, often far from routine channels
of the art world, and how, with all his intimate knowledge of English
culture, he has fostered an internationalism in England which has gone
far beyond the narrow, nationalist priorities of the official British art
establishment (Brett, 1995, p.13).

Adding that:

I’m not talking about a diversity of set forms of cultural difference (on
the model of ‘ethnic arts’), but a creative process whereby the new
appears out of a meeting, in particular conditions, of the local with the
global, the way in which London, in this instance, became the crucible
of a possible new culture (Brett, 1993, p. 123).

Guy’s shy and reserved demeanour certainly contrasted with Medalla’s


extrovert character, but their friendship was one of mutual exchange.
Medalla’s sociability broadened the circle of collaborators with extraordinary
rapidity, while Guy would slowly but concretely bring, through his writing and
sensibility, those diverse creative outputs within an art critical and later art
historical rationale. With the demise of Signals, it was also Guy who, to a large
extent, was left to deal with the many bureaucratic consequences of the closure,
safeguarding works of artists from incoming creditors while also arranging for
planned exhibitions, such as Oiticica’s, to be held at alternative venues. In a
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sense, Guy continued to take care – the original meaning of the verb ‘curate’
– of the legacies of so many artists throughout his lifetime. Reflecting on this
relationship between the artists and the critic, Guy stated in the introduction to
Carnival of perception:

I have often wondered about the transaction involved in the relationship


between artist and critic (or the more neutral ‘writer on art’). It seems
there will always be a tension between the writer’s desire to unlock
through words the unique qualities of the material phenomenon offered
to the eyes, and the existence of a vision (of life, reality, love, value, the
universe) – the writer’s particular vision – which announces itself at a
certain point and remains throughout life. How often have we embarked
on a project only to realize at the end that it says the same as we have
always been saying (ironically, perhaps, since it is only the firm belief
that we have something new to say that gives us the impetus to embark
on a new project in the first place). I have no idea where this vision
comes from but it has been important to many human groups through
history. For example, among the Native Americans of the plains the
individual’s dream or vision was cryptically inscribed on their shield.
The design was normally hidden by a cloth and only uncovered for the
owner to gaze at just before battle to gather the maximum of a uniquely
personal power (Brett, 2004, p. 12).

The invocation of the shield, its mystical powers, is perhaps an unconscious


allusion to Guy’s own ability to transcend the personal by invoking the other.
The last time Guy saw Hélio Oiticica, was in New York during the 1970s, where
he stayed “housed” in one of the artist’s Babilonests – “cabin structures” that
integrated within his living space in New York.4 From that experience of spending
that time with Guy, Oiticica devised a project for a penetrable in homage to the
British art critic, entitled Shelter Shield.

4
Babilonests were bed-like constructions that Oiticica had first conceptualised in Rio de Janeiro
with the Bed-Bólide and the concept of Barracão. Oiticica later elaborated these ideas during his
residency at the University of Sussex in 1969, and exhibited them as an interactive installation as
in his contribution to Kynaston McShine’s Information exhibition at MoMA in 1970.
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Shelter Shield refers no doubt to “Give me shelter” by the Rolling Stones, a


band Oiticica had been particularly obsessed with during the 1970s. It also made
a clear allusion to Guy’s own character, his modesty, shyness, which sometimes
has been more broadly, described as his English gentleman persona. Oiticica’s
title suggests, to me at least, some more fluid, transitory state from shelter to
shield, from the comfort of a sheltered life to that of a risk taker in need of a shield.
In his 1989 catalogue essay for Dawn Ade’s Hayward Gallery exhibition survey
Art in Latin America, Guy described Oiticica, Lygia Clark as having taken a radical
leap, one that transcended the formalism of abstraction by throwing themselves
into the world. We may say the same about Guy’s own idiosyncratic trajectory,
particularly the more overt political turn that he took following the closure of Signals.
In Guy’s monograph on David Medalla, several possible reasons for the
end of Signals are posited if not elaborated on:

In 1966 Signals’ backer (Paul Keller’s father, Charles Keller) withdrew his
support and the gallery went into liquidation. Mr Keller charged financial
incompetence; Medalla, that Paul Keller’s father, a businessman, had
strongly disapproved of his, Medalla’s, publication in Signals Newsbulletin
of Lewis Mumford’s 1965 address to the American Academy of Arts and
Letters. Mumford had used this prestigious occasion to criticise publicly
the American involvement in Vietnam, and Signals also published
American poet Robert Lowell’s letter declining an invitation to the
Whitehouse for the same reason. […] Like that of later groups Medalla
formed, the ending was a painful shock to all concerned. There were
several exhibitions in preparation and Medalla had a mass of material
for future issues of the magazine. But at this distance it is impossible not
to be struck by the logic of the metamorphosis of Signals, 1964-66, into
The Exploding Galaxy, 1967-69, Artists’ Liberation Front, 1970-74, and
Artists for Democracy, 1974-77. Each group corresponded precisely to its
period and to those great underlying cultural and historical changes which
touched in some way almost everyone on the planet (Brett, 1995, p. 67).

The impression we get from accounts on Signals, is that everything


suddenly stopped after its closure. This was not, in Guy’s case at least, exactly
true. Guy remained art critic to The Times until 1974. His writing on Kinetic art
continued, as exemplified by his book on the subject in 1968, his exhibition
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catalogue essays such as that for Soto at the Marlborough Gallery in 1969, and
that same year, his role in securing Oiticica’s Whitechapel exhibition and his
contribution to its catalogue.
Oiticica’s Whitechapel exhibition received varied press coverage. One
particular review invoked Shakespeare’s Richard the II, transforming the passage
“this other Eden, demi-paradise” which referred to England into “This Other
and Unnecessary Eden”. The headline thus manages in a single line to assert
a classical nationalist trope and dismiss the “exotic other”. This outstanding
example of British snobbery within art criticism only highlights how detached
Guy was from a journalistic theme that unfortunately survives to this day (Mullins,
4 March, 1969).
A sense of the broadening range of interests is revealed in Guy’s themes in
his articles for The Times over that transitory and turbulent period:

“Naum Gabo: Space is Not Outside Us”, (15 March 1966); “The Gadfly
of Modern Art − Marcel Duchamp”, (14 June 1966); “Photomontages of
John Heartfield”, (16 Sept 1967); “Van Gogh in the Fields”, (15 Oct 1967);
“Cool State of the Word”, (30 Dec 1967); “The Invisible Works of
Modern Art”, (2 April 1968); “Tuba on Fire”, (15 Feb 1969); “Ways of
Pointing a Camera”, (22 April 1969); “When Attitudes Become Form”,
(30 Aug 1969); “Gentle Man of Iron” (Julio Gonzalez), (10 Nov 1970);
“Waste of the World”, (25 March 1971); “500 Years after Durer”, (17
May 1971); “Moholy-Nagy and the Whole Man”, (3 July 1971); “At
the Feet of Gaudi”, (17 Aug 1971); “Tantra: New Vistas of Meditation
and Self-knowledge”, (23 Oct 1971); “Francis Bacon in Paris”, (27
Oct 1971); “Calderara’s World of Stillness”, (2 Nov 1971); “Hogarth’s
Progress”, (2 Dec 1971); “Blake, Blake, Burning Bright”, (8 Dec 1971);
“Eugene Atget, Parisian and Photographer”, (21 Dec 1971); “Centenary
Exhibition of Mondrian”, (22 June 1972); “Takis Sows the Magnetic
Fields”, (3 Oct 1972); “Islamic Carpets as Ideograms of Plenty”, (25
Oct 1972); “The Needle’s Eye”, (23 Jan 1973); “Videotape as an Art
Medium”, (6 March 1973).

While the subjects on the list above show a continued interest in kineticism
and its art historical sources – European constructivism, de Stijl, Marcel Duchamp,
which much later would form the basis of exhibitions such as Force Fields – they
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also demonstrate an increasing focus on the art of other parts of the world
together with a burgeoning interest in popular forms of expression. After being
somewhat disassociated from the hippy commune-like activities of Medalla and
The Exploding Galaxy group, a new approximation took place between the two
as the 1970s dawned, while the relation between art and science was slowly
replaced or, perhaps more precisely, overlayed by one between art and politics:

The closed cell of Artists’ Liberation Front expanded to become a broad


organisation with the formation of Artists for Democracy. AFD was
born during a conversation early in 1974 between Medalla, Dugger,
the Chilean artist Cecilia Vicuña and myself in Medalla’s and [John]
Dugger’s small room at Newport Place, Soho. The immediate pretext
was the Chilean military coup of September 1973 against the socialist
government of Salvador Allende, and the desire to mobilise artists in
support of the resistance (Brett, 1995, p. 86).

Guy’s father, Lionel Brett, had been a modernist town planner and
architect. Having been involved in the post-war reconstruction of Britain, he later
travelled lecturing around the world including a tour of Latin America. Following
his visit to Chile, the Allende government had commissioned him to work on
a planning project in Santiago – a project that of course never took place due
to the military coup of 1973. It is not surprising therefore that upon assuming
as rector of the Royal College of Art, he allowed the premises to be used for
an AFD exhibition and auction of works donated by artists around the world in
support of those suffering under the authoritarian regime.5 An AFD “cultural
centre” was later opened in a squat at 143 Whitfield Street, and remained active
until 1977. Parallels, in strategy at least, with the Museum of Solidarity, which
Mario Pedrosa organised in Santiago, while being himself in exile from Brazil’s
military regime, might not be only coincidental. Pedrosa had been in London for
Oiticica’s Whitechapel show in 1969. Guy’s personal archive also contains letters

5
Lord Esher, Lionel Brett, interview, oral histories, architects lives, British Library, tape n.8.
https://sounds.bl.uk/Oral-history/Architects-Lives/021M-C0467X0014XX-1000V0 (accessed 22/04/2021).
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of correspondence concerning Pedrosa’s campaign for that year’s boycott of the


São Paulo Biennial.6 Keeping these connections in mind, a broader post-68
political turn must also be taken into account:

In Europe, the Galaxy had been rather contemptuous of the young


militants of ‘May 68’, finding them “unresolved” expressively. But
Medalla returned from Asia [he had been in India during Oiticica’s 1969
show] a political radical and began devouring Marxist texts as avidly as
he had Buddhist scriptures (Brett, 1995, p. 83).

This new political impetus had been very much reflected in Medalla’s
and Dugger’s “Maoist” pavilion at the 1972 Documenta 5, curated by Harald
Szeemann. Recalling that period two decades later, Guy would state that:

The mid-1990s may not be the best moment to look again dispassionately
at a movement in the 1970s in which many people were caught up
(myself included). The photos of Medalla and Dugger in their Mao
Jackets, and the rhetoric of Medalla’s polemics, which imitated
Marxist-Leninist state discourse down to the smallest mannerisms and
turns of phrase (although his analysis was usually sane and intelligent),
give a dated air to an incontestable conviction: that the legacy of
colonialism in the Third World could only be effectively challenged by
the national liberation movements (Brett, 1995, p. 85).

Guy’s mea culpa probably referred, amongst other activities, to his


research which would culminate in an Arts Council of Great Britain funded book
published in 1976 entitled Chinese peasant painting from the Hu County, Shensi
Province, China (Brett, 1976-1977). It may be, at first, hard to reconcile Guy’s
writing on kinetic and participatory art with the themes and content of a book
that begins by quoting Mao Tse-tung and discusses paintings along the socialist
realism style with titles such as A barren hill is transformed into an orchard (by
Hang Chin-pu), How bright and brave they look (by Chang Chin-feng), or Never

6
His latest collection of essays The Crossing of Innumerable Paths begins with an epigraph by Pedrosa:
“So life is greater than the rules”.
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forget the state after a good harvest (by Liu Jui-chao). The project had taken Guy
to China for the original research, a rare feat for a Western art critic during the
1970s. Guy’s overt “‘political phase” continued throughout the 1970s, when
he published between 1975 and 1976, several articles for China Now along
similar themes, such as “Spare-time Artworkers”, “Lu Hsun and the Woodcut
Movement”, and “A Challenge to Artists”, (on Mao Tse-tung’s philosophy of art).
According to his wife, Alejandra Altamirano (herself a Chilean political exile, and
the daughter of Carlos Altamirano, a senator and general secretary of the Chilean
Socialist Party during Allende’s presidency) such radicalisation had cost Guy his
job at The Times in 1974.7

Looking beyond the somewhat rose-tinted view of life in communist


China, we may also see this as a period of consolidation of Guy’s
emerging views on art and its relation to world and local politics. Indeed,
when he later revisited the theme for his collection of essays on popular
arts, Through our own eyes, Guy’s statement is more cautious: “We,
as foreigners, only know about Huxian painting because the Chinese
authorities decided to take it as a model, to publicise it. We can know
little or nothing about the art of workers and peasants which has not
been highlighted” (Brett, 1986, p. 63).

Free from the constraints of a conservative newspaper, and following the


work on the Chinese peasant paintings, Guy would embark on several projects
that broke away from the “refined” avant-garde milieu that had characterised
his former Signals years. This included a curatorial project on painting from
the Shaba region in Zaire (now The Democratic Republic of Congo), with some
references to Nigerian and Ghanaian popular artists. A particularly powerful
focus in the essay is the expression of trauma in paintings referring to Belgium’s
brutal colonial rule. Initially supported by the Arts Council the project was later
aborted by the funder.8 If Guy’s original perceptions on Chinese peasant painting
seemed to himself, by the mid-1990s, dated and in need of recontextualising, his

7
Alejandra Altamirano Brett, telephone conversation with Michael Asbury, March 2021.
8
Alejandra Altamirano Brett, telephone conversation with Michael Asbury, March 2021.
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insights drawn from the research on Shaba and popular painting, also published
in Through our own eyes, retain a stronger contemporary relevance:

The term ‘African art’ is intimately connected with the history of Europe’s
colonial relationship with Africa. […] Therefore, an acute awareness of
conditions and changes of social reality, and an African view of history,
are necessary part of the whole process of decolonization (Brett, 1986,
p. 83-84).

His involvement with the Artist for Democracy group had brought to his
attention the work of the Arpilleras, groups of poor women in the outskirts of
Santiago, claiming that: “In conditions of great insecurity and hardship, groups
of Chilean women have sewn thousands of patchwork pictures showing the
realities of life under the military dictatorship which seized power in the coup of
1973” (Brett, 1986, p. 29).
Trauma re-emerges as the subject in another essay in Through our own
eyes, where Guy discusses the visual representations created by witnesses to the
horrendous bombing of Hiroshima: “In a way, the crux of this whole experience is
a very finely balance between remembering and forgetting. What the individual
would rather forget […] the species must remember” (Brett, 1986, p. 120).
The book’s final essay, on the “protest art” of the Greenham Common
Women’s Peace Camp for nuclear disarmament, follows through the argument,
concluding that: “After looking at the Hiroshima pictures it is hardly necessary
to ask why the nuclear bomb should be the focus of fears reaching down to the
depths of the psyche” (Brett, 1986, p. 131).
Other than the subject itself, what seems interesting here, in terms of
this overview of Guy’s writing trajectory, is the associations he establishes
between “popular” visual expressions of protest and avant-garde art. It is as if
he is attempting to salvage the radicality of the latter as opposed to claiming
the aesthetic value of the former. This seems crucial to me as a way in which to
understand Guy’s own view of the human creative potential:

The scientific discoveries which led up to the splitting of the atom and
the making of Bomb were the same ones which changed our whole
view of matter and energy, discoveries echoed throughout modern
culture. In the visual arts, for example, artists went through a parallel
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process by breaking down the homogeneous surface of classical art


into what might be called the ‘elementary particles’ of colour and form,
and created what is broadly known as abstract art (Brett, 1986, p. 132).

A similar sense of wonder at the spontaneous expressiveness of people


emerges elsewhere in Guy’s writing. Not always so overtly political, an underlying
emphasis on non-hierarchical and participatory events seem again to draw
his attention. In an amusing short text, written for an exhibition organised by his
friend the former Pop artist Derek Boshier, Guy pondered on the advent of the
“Fad” in Western societies:

The fad is by definition something invented anonymously, which involves


only the young, which spreads like wildfire and which doesn’t last long.
It usually, but not always, implies a close relationship between the
person and a piece of equipment, which is the source of enormous and
quick profits for entrepreneurs and manufacturers. By putting many of
these fads together, in a certain sequence, I want to suggest this thing
as a form of human creativity. A fad may seem quite pointless, but I
believe many of them are spontaneous expressions of the desire for
freedom, to know oneself, to express oneself, to know the air, the land,
the sea, to do the impossible. A fad object has the same relation to the
world of normal commodities as a nonsense word to normal words (fads
are quite often named with nonsense words); it releases expressivity,
exuberance, it creates a community out of nothing. In another society
these expressions might be incorporated into an expanding body
of popular art, but in our society, they are partly a ludicrous exhibition of
the commercial cycle: an idea is taken up, exploited, over-produced,
dropped and replaced with another. Others end in arrest. The fad dies,
and the world returns to work (Brett, 1979).

There is something revealing here of Guy’s reluctance to participate in the


art world’s own fads. Even during the Signals period, the overwhelming art world
focus in Britain and Europe at the time had been on informal abstraction and the
emergence of American Pop art. Never one to adhere to trends and groups based
upon nationalisms or other such allegiances, Guy remained very much faithful to
his vision of art (Guy Brett, March 30, 2021). Perhaps it was this general attitude
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that eventually drove him away from the narrow constraints of the “orthodox left”
ideological discourse, moving into a more critical “decolonial” stance towards
British chauvinism in the arts. I see his contributions towards emerging feminist
and post-colonial publications such as in “Patchwork Pictures from Chile”, Spare
Rib, in September 1977, and “Cultural Colonialism: a Discussion”, in Black
Phoenix, in the Spring of 1979, as evidence of this stance. The latter is particularly
significant, as it suggests that he was already in touch with the journal’s editor,
Rasheed Araeen.
Araeen had proposed that same year an exhibition to the Hayward
Gallery on under-represented work by black and Asian artists living in Britain.
Although the proposal was initially rejected (as “being not the right time for
such a show”), the exhibition did take place ten years later when a wave of
surveys of non-EuroAmerican art seemed to hit the scene all at once – one is
somehow reminded of Guy’s notes on fads. From 1987 Black Phoenix became
the journal Third Text and Guy a regular contributor from its first issue, writing
on that occasion on the work of Lygia Clark (Brett, 1987).
The year 1989 has become understood historically as a turning point in
world politics as well as in the arts. In the wider political sphere it marked by the
collapse of the Soviet Block, its most powerful symbolic representation, being
perhaps the televised images of the fall of the Berlin Wall. This event, endlessly
repeated as an image of the changing times, encouraged some to speculate
on the possibility that Western liberal democracies had achieved their rightful
destiny, an idea epitomised by Francis Fukuyama’s 1992 notion of the end of
history. With the benefit of hindsight, it seems clear to us, today, that rather than
an end, 1989, brought a new, rather terrifying beginning, one that has very much
defined the way in which the 21st century has progressed so far. The invention
of the World Wide Web by Tim Berners-Lee in 1989, the release of Nelson
Mandela only a few months later in February 1990, the collapse of the Soviet
Union signalling the return of Russian troops from their ten year occupation of
Afghanistan, these are just a few examples of events that still very much affect
our present condition.
Within the field of contemporary art, 1989 has also become understood
as being pivotal, and we find Guy engaged in some of its most significant events.
With his contribution to Dawn Ades’ exhibition Art in Latin America, Guy had
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remained somewhat frustrated with the fact that the art showcased from across
that continent did not follow through into the contemporary.

People have begun to talk of a ‘boom’ in Latin American art such as has
existed for some time for Latin American Literature, at least for certain
writers. A number of ‘Latin American’ exhibitions have taken place in
museums in Europe and the United States in the past two or three years,
including a major survey at the Hayward Gallery, London in 1989. The
role which international power politics, money and fashion play in these
changes, and how durable they are, could be the subject of a thoughtful
analysis (Latin Americans are familiar with booms and busts). Up to now,
the interest has been mainly in historical art and important contemporary
artists are still largely underrepresented in European and North American
museums. To make these artists more visible and known must be good,
but cultural booms and fashion do not change the fundamental divisions
and inequalities in the world. These are expressed, among other things,
in difference of cultural infrastructure and therefore in the possibility of
producing art (Brett, 1990, p. 5).

To address this lack, Guy proposed a parallel exhibition entitled Transconti-


nental: Nine Latin American Artists (Waltercio Caldas, Juan Davila, Eugenio
Dittborn, Roberto Evangelista, Victor Grippo, Jac Leirner, Cildo Meireles, Tunga,
Regina Vater), all of which were alive and working in different locations across
the continent. The accompanying book begins with the words of Edward Said,
an epigraph quoted fresh from an article in The Guardian, dated December 16-17,
1989. Looking back at that quote it seems to still haunt our current reality: “We
are mixed with each other in ways that most national systems of education have not
dreamed of. How to match knowledge in both the arts and science with these
integrative realities is, I believe, the issue of the moment as the decade closes.” For
Guy, Said’s words seem to encapsulate his own dissatisfaction with the separation
of disciplines (art, science, politics), the categorisation of art along national
divisions and the increasing “integrative realities” characteristic of the contem-
porary condition.
The previous year, writing in the exhibition catalogue for Rasheed Araeen’s
The Other Story, Guy had expressed this dissatisfaction in relation to the way
the 1950s activities of the Independent Group had come to be mythologised in
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relation to the hegemonic history of Pop art. It is undeniable that he saw not only
a parallel with how the activities of Signals were remembered but also the need
to revendicate both aesthetic and theoretical concepts arising from its inherent
internationalism:

While certain artists and architects are now well-known as individuals


in the British Pantheon – Hamilton, Paolozzi, the Smithsons – what is
completely forgotten is the intellectual and imaginary energy of their
collaboration then, when the boundaries between art and architecture,
and science, art and design, high and popular culture, art and non-art
media, were all questioned. Even art historical notions of tracing the
‘origins of British Pop art’ disguise the fact that those artists were as
interested in, say, scientific photography as they were in comic strips
(Brett, 1989, p. 111).9

His target, one that stubbornly remained throughout his life as a writer,
was the establishment, its nationalist bias, its lack of curiosity and its propensity
to follow trends, in short, to submit itself to fads. Still in his essay in The Other
Story, he makes this clear by stating that:

It seems to me mistaken to refer to avant-garde activity in the 60s and


70s in Britain as a ‘thing in itself’ – to construct a little history for it –
because it must be understood in opposition to, and in contestation
with, the establishment, the mainstream, the institutions. This is the
same as saying that the mainstream itself, the widely accepted history
of art in Britain in this period, was not constructed without denying,
neutralising or rendering invisible the challenge of the avant-garde.
Everything has been done to soften a conflict of values which is real and
still continues (Brett, 1989, p. 111).

Such a position would re-emerge when in 1991 he was invited to contribute


to a publication by the British Council celebrating 50th anniversary of the São
Paulo Biennial and the Council’s own role within that international event. Guy

9
I never had the chance to ask Guy what he thought about having his essay in The Other Story, reprinted
in the lavish catalogue published by Sotheby’s on the occasion of their exhibition remembering Signals.
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begins his essay by bluntly stating that: “What strikes one about the connection
Brazilian artists, and Brazilians working in art, have with Britain since the 1950s
is its almost completely unofficial character” (Brett, 1991, p. 47).
Perhaps Guy’s most outspoken criticism over the course of 1989, came
in the form of the questioning of the concepts behind Jean-Hubert Martin’s
exhibition Magiciens de la Terre, in the form of an article entitled “Earth and
Museum – Local and Global?” which I will quote here extensively:

The title of the proposed Paris exhibition, as one of the few pieces of
information available in advance, inevitably made one ask oneself: who
is speaking, and to whom?
Magiciens. To describe any Western artist today as a magician (Picasso,
say) would probably be found only in advertising copy. In current art
discourse it would be considered trite, paradoxically a dis-empowering
word that would weaken the relationship between the aesthetic and the
social dimensions in an artist’s practice. ‘Magician’ appears in the title
as a way of cementing links which the exhibition apparently intends to
make between metropolitan artists and those working in the religious
contexts in certain African, Asian, and Latin American societies. But
in doing so the term rebounds, and inexorably reveals its nature as a
‘primitivist projection’.
De la Terre. In its close association with Magician as a message/massage
of evocative words, the word ‘land’ (terre) has obviously been used here
with a double meaning: terre as the physical substance, signifying the
elemental, the basic; and terre as the world, the planet. But as these
two meanings begin to diverge, the one standing for the concrete, the
particular, the local (or in art-language the ‘site specific’), the other for
a general concept of totality, of overview – a gulf appears between two
different kinds of experience. The first associates terre with a desperate
struggle, a ‘land-rights’ struggle, either to regain appropriated land or
simply for a place to live, a place from which to speak, and the second is
detatched: the terre of priviledge, of power, which with every passing day
seems to become more abstract, mobile, and in fact harder to ‘localise’.
The terms move quickly to a polarized antithesis. At one end of the scale
is the experiences of peoples who traditionally have ‘a concept of self
as an integral part of the social body whose history and knowledge
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are inscribed across a particular body of land’, as Jean Fisher has


described for Native Americans. In this view ‘territory is a living entity
to be nurtured and respected as the literal body of the self’.10 The other
end of the scale is at an extreme of technological overdevelopment,
revealingly expressed by Jean Baudrillard in terms of the pilot’s or driver’s
perception, radically alienated from the earth as also from the body.11
These antagonisms, in their extreme form, seem to enter into the very
definition of art. In the world today indigenous peoples – aboriginal
groups in Australia, Maori in New Zeeland, Native Americans in North
and South America – are engaged in a continuous effort to maintain
the association of their cultural legacy with their present predicament,
especially their struggle for land rights. At the same time certain
institutions – museums and more recently the giant corporations which
sponsor museum exhibitions – are trying equally hard to disassociate
these two realities. Canada has recently been the scene of some clear
examples. At the 1986 World Fair, the authorities decided they could not
allow the native peoples themselves to control a space in the projected
‘Indians of Canada’ pavilion because they would use it to draw attention
to the present-day struggles, especially land struggles. And last year,
an exhibition of historical Native American artefacts at the Glenbow
Museum, Calgary, associated with the Winter Olympics, was boycotted
by the Lubicon Cree Indians. Oil companies involved in sponsoring the
show operate in the area of Northern Alberta where the Lubicon Cree
live, and where they have been fighting a bitter land claim dispute with
the federal and provincial government for 50 years.
The Calvary exhibition’s title, The Spirit Sings, contrasted strangely with
the words of Bernard Omniak, the Lubicon Cree Chief: ‘what’s happening
now is that our people would be far better off if someone came up to
them and got rid of them instantly. Anything so we wouldn’t be dying
a slow death.’ And he himself pointed out that glaring contradiction:

10
Note from original text: Jean Fisher, Jimmy Durham, ‘The ground has been covered’, Artforum, Summer,
(1988:102).
11
Note from original text: Jean Baudrillard, ‘The Ecstasy of Communication’. In: Hal Foster (ed.). Postmodern
Culture. London: Pluto Press, 1985: 128-129.
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‘Our culture is being glorified by the same people who are doing the
damage to the Native people in our area.’12 The oil companies are deeply
implicated in the local, but their appeal is to the general, universal space
of ‘culture’ which corresponds to their own abstract and global power.
The Native Americans on the other hand have to move from the universal
to the local: from our celebration of the artefacts as masterpieces of
‘world art’ to what is actually happening in their territory. Naturally the
big corporations show their ‘dependency’ – on an artistic vitality and
beauty they could not produce themselves and to which their logo is
quite superfluous and marginal. But they have clearly realized that they
can make use of the way our culture creates an aesthetic centred on
the object and its contemplation, isolated from the rest of reality.13 Their
real power lies in the narrow specialization they count on in their public:
our refusal to take responsibility for the whole. We begin to read the
verbal message of the Calgary’s exhibition’s title, not as uplifting, but as
almost sinister: a sign that they are being duped.
In this process the colonized group, and the metropolitan exhibition
goer, are in fact both duped by the same corporate power which, as
it grows, integrates the production plant, the museum, the state and
the media in a single hegemony (the underlying meaning of ‘corporate
sponsorship of the arts’). The treat of this power at a local level, as well
as its ever-widening circles, can be vividly felt in an illuminating short
book by Eric Michaels about the efforts of an aboriginal group in central
Australia – the Warlpiri – to set up a local TV station.14 The Warlpiri were
implicated not only in a power struggle – to transmit autonomously
their own programmes in the face of the official national media – but
also a cultural struggle, to articulate ‘aboriginalities’ to the standardized

12
Note from original text: Quoted in last issue Alberta, Autumn, 1987.
13
Note from original text: It is revealing to see that CANAL+, one of the sponsors of Magiciens de la
Terre, despite the rhetoric of the ‘abolition of all frontiers’, can still, in its promotion material, remain
webbed to a distinctly Western bourgeois concept of art: ‘A tous ses abonnés, CANAL+ a choisi de dédier
ce plasir unique qui s’attache à la possession des objects d’art et leur offrir cette jouissance extreme
que naît de leur contemplation’.
14
Note from original text: Eric Michaels, For a Cultural Future – Francis Jupurrurla Kelly makes TV
at Yuendumu, Art and Criticism Monograph Series, Vol. 3, Melbourne: Artspace, 1987.
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and ethnicised images of themselves issuing from the same centralized


sources. Michaels describes how, in assisting the Warlpiri videomaker
Francis Jupurrurla Kelly to make tapes, he realised that aboriginal
history is intimately related to land and space: ‘Any story comes from
a particular place, and travels from there to here, forging links which
define the tracks over which people and ceremonies travel.’15
Contradictions immediately arise, and indeed Michaels reports that
Francis Jupurrurla Kelly and the Warlpiri themselves see TV as a two
edged sword, both a blessing and a curse. They wish to ‘identify their
art and describe it to the rest of the world’, but at the same time to avoid
losing control of it in the process of reproductions and circulation which
video makes possible. Will it remain a cultural experience based in
material culture or be swallowed up ‘in a particular named future whose
characteristics are implied by that remarkable word “lifestyle”? […] This
term now substitutes everywhere for the term culture to indicate the
latter’s demise in a period of ultra-merchandise […] Warlpiri people,
when projected into this lifestyle future, cease to be Warlpiri: they
are subsumed as ‘Aboriginies’, in an effort to invent them as a sort
of special ethnic group able to be inserted into the fragile fantasies of
contemporary Australian multiculturalism.’16
It is not difficult to recognize in this ‘lifestyle future’, the same process,
mediated perhaps by the same transnational corporations, at work in
‘our own’ culture. For have not the subversive and emancipatory projects
of the 20th century avant-garde – from the surrealists at one pole, with
their proposals to ‘liberate desire’, to the constructivists at the other,
with their plans to transform the environment – been reduced, first by
the art market and then by the wider market of lifestyle, to the same
bland range of designer-commodities? And has this not necessitated
new strategies by artists which resist, or at least reflect on, exactly this
process in order to regain the social value and efficacy of art which
the earlier generations had search for? The ‘ethnic’ package and the
‘modernist’ package are side by side on the shelf.

15
Note from original text: Ibid. p.49.
16
Note from original text: Ibid. p.71.
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This fact, I think, has not been lost on a number of artists of the avant-garde
in the last 20 years. Their explorations of the ‘relationship between cultures’
(one of the stated themes of the Paris exhibit) has been inseparable from
an attack on the inherited bourgeois concept of art (which is so entwined
with the modern forms of colonialism and oppressive power). Whether
the Paris exhibit will bring such work to light, or will treat the whole subject
as an ‘instant’ phenomenon, remains to be seen. It is important to grasp
the historical moment and social context of its first appearance, and the
problematics in which it intervened. Not that we are merely talking here
about points in a debate, or about single issues. The characteristic of art
is to search for complexity and depth of metaphor (Brett, 1989, p.89-91).

This search for ‘complexity and depth of metaphor’, guided Guy’s writing
through the following decades. As can be noted in the excerpt above, his
approach served to untangled terminology that, more often than not, would be
employed as given, as an unquestionable fact. In the essay on Maria Theresa
Alves installation Nowhere, a reference to the original Greek term ‘Utopia’, made
famous by Thomas More’s 1516 book, Guy responds to the following statement
made by the artist: ‘Utopias perhaps cannot serve as models since they are very
specifically drawn up. They are not enough to allow for the possible potentialities
that humans require in a model.’ Guy concludes that:

In this necessary dialogue, and complex questioning of our histories,


if a Brazilian has to counter those aspects of Western utopian thinking
which were inseparable from invasion, colonisation and enslavement;
an English person, for example, has to see that our imperial attitude was
not innate but also a construct, and that even some of our prominent
symbols of national cultural identity opposed it, at root, in terms which
still carry force today (Brett, 1993, p. 4).

From the 1990s Guy would consolidate his writing, within the British
context, on artists such as Mona Hatoum, Susan Hiller, Rose Finn-Kelcey and
Cornelia Parker, while collaborating with a number of institutions on curating large
retrospective exhibitions of artists he had long been engaged with. Many of these
larger projects took place in continental Europe rather than London, fuelling his
critique of British institutional snobbery. These included curating work on major
exhibitions such as: Hélio Oiticica, an itinerant retrospective that travelled from the
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Witte de With, in Rotterdam, to the Jeu de Paume, in Paris, the Fundacion Antoni
Tapies, in Barcelona, and the Calouste Gulbenkian Foundation, in Lisbon, between
1992 and 1993; and Out of Actions: Between Performance and the Object, where
he advised curator: Paul Schimmel at MOCA, in Los Angeles, in 1998.
Concurrently several essays were commissioned for exhibition catalogues
across Europe and the United States, including: “Propos sur Takis”, in Takis, at
the Jeu de Paume, in Paris, 1993; Sergio Camargo, at the Calouste Gulbenkian
Foundation, in Lisbon, 1994; “Equilibrium and Polarity”, Victor Grippo, at the
Ikon Gallery Birmingham and Palais des Beaux-Arts, Brussels, 1995; “The
Amorphous Us”, Derek Boshier, at The Contemporary Arts Museum, in Houston,
1995; “The Proposal of Lygia Clark” Inside the Visible, an elliptical traverse of
20th century art: in, of, and from the feminine, for MIT Press and ICA, Boston, in
1996; “The Museum of Space-Time” (‘El Museo de Espacio-Tiempo’), Remota
− Eugenio Dittborn, at the Museo de Bellas Artes, Santiago de Chile, and The
New Museum, in New York, 1996; “Brevity and Toil” (‘Brevedad y Faena’), Rainer
Krause: Paisajes Marginales/ Las Listas, at the Museum de Bellas Artes, Santiago
de Chile, 1996; “David Medalla”, Life/Live, ARC – at Musée d’Art Moderne de la
Ville de Paris, 1996; “Everything Simultaneously Present”, Tunga: 1977-1997,
at Bard College, New York, 1997 and; “Lygia Clark: Six Cells”, Lygia Clark, at
Fundació Antoni Tapies, Barcelona, 1997, amongst many others.
If the lists above demonstrate Guy’s significant international standing
as an art critic, to a great extent, it was only from the year 2000, perhaps due
to the opening of Tate Modern and its international emphasis on modern and
contemporary art, that Guy, while still remaining independent, began to be more
frequently invited to contribute and curate exhibitions at a major UK institution.
His collaboration with inIVA, founded in 1994, under the chairmanship of Stuart
Hall and direction of Gilane Tawadros is too extensive to be included here, but
also constitutes another aspect of his support towards opening the British
cultural establishment to a more diverse and international set of art practitioners,
whether they were based in the UK or not.17 Today with the so-called decolonial

17
Amongst Guy’s work with inIVA are his books on Medalla, Li Yuan-chia and his own collection of
essays in ‘Carnival of Perception’.
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turn, Guy’s life’s work and his many struggles seem all the more pertinent. In
compiling this, admittedly limited, outline of Guy’s much wider and complex body
of work, I wish to shed light on what has been a pioneering, poetic and insightful
approach to what today is broadly described as “decoloniality” in the hope that
the recent wave of interest in the subject may build upon it while proving itself to
be more than just another art world fad.

London, April 2021

Dr Michael Asbury is reader in the History and Theory of Art and deputy director of
the research centre for Transnational Art, Identity and Nation (TrAIN). An
internationally recognised specialist in modern and contemporary art from Brazil,
he has published extensively and has curated numerous exhibitions in the
UK, Europe and Latin America.

References
ASBURY, Michael. E agora José? Sergio Camargo e os circuitos internacionais de arte nos
anos 60. In: Encontros fundamentais: IAC 20 anos. São Paulo: UBU editora, 2020.

BRETT, Guy. A magnet and a Sscrap of metal. In: BRETT, Guy; WELLEN, Michael (eds.).
Takis, exhibition catalogue, Tate Modern, London, 2019.

BRETT, Guy. Interview with Linda Sandino. Arte & Ensaios, 14, special issue Transnational
Correspondence, Rio de Janeiro, Sep. 2007, p. 206-237.

BRETT, Guy. Introduction. In: Carnival of perception: selected writings on art. London:
inIVA 2004.
BRETT, Guy. The century of kinesthesia. In: BRETT, Guy (ed.). Field Forces: phases of the
kinetic. Barcelona: MACBA; London: Hayward Gallery, 2000.

BRETT, Guy. Exploding galaxies: the art of David Medalla. London: inIVA and Kala
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BRETT, Guy. Nowhere. In: Maria-Thereza Alves. London: The Central Space, 1993.

BRETT, Guy. The Sixties art scene in London. Third Text, v. 7, n. 23, p. 121-123, 1993.

BRETT, Guy. Brazilian artists in Britain. In: Britain and the São Paulo Biennial: 1951-1991.
London: The British Council, 1991.
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BRETT, Guy. Preface. In: Transcontinental: nine Latin American Artists. London: Verso, 1990.

BRETT, Guy. Internationalism among artists in the 60s and 70s. In: The Other Story
exhibition catalogue. The Hayward Gallery, 1989.

BRETT, Guy. Terre et musée − local et global. Les Cahiers du Musée d’Art Moderne, 1989.
(Reprinted in English as Earth and Museum − Local and Global. Third Text, n. 6, Spring 1989.)

BRETT, Guy. Lygia Clark − the borderline of life and art. Third Text, n. 1, Autumn 1987.

BRETT, Guy. Through our own eyes. London: GMP Publishers and New York: New Society
publishers, 1986.

BRETT, Guy. ‘The Fad’ in Lives: an exhibition of artists whose work is based on other
peoples’ lives, selected by Derek Boshier, exhibition catalogue of works selected for the
Arts Council of Great Britain Collection, Serpentine Gallery, 1979. Unpaginated.

BRETT, Guy. Chinese peasant painting from the Hu County, Shensi Province, China. London:
Arts Council of Great Britain, 1976-1977.

BRETT, Guy. Kinetic Art: the language of movement. London: Studio Vista, 1968.

BRETT, Guy. Delacroix. The Masters Series, 15, Knowledge Publications, Fratelli Fabbri
Editori, 1963

GUY BRETT Obituary. The Guardian, 30 March, 2021. Available at: https://www.
theguardian.com/artanddesign/2021/mar/30/guy-brett-obituary. Accessed April, 22, 2021.

MAURICIO, Jaime. Sergio Camargo em Londres, Correio da Manhã, January 1965.

MULLINS, Edwin. This Other – and unnecessary Eden. Sunday Telegraph, London, 4
March, 1969.

Artigo submetido em março de 2021 e aprovado em junho de 2021.

Como citar:
ASBURY, Michael. Beyond Brazil: remembering Guy Brett through his own eyes. Arte
& Ensaios, Rio de Janeiro, PPGAV-UFRJ, v. 27, n. 41, p. 350-377, jan.-jun.
2021. ISSN-2448-3338. DOI: https://doi.org/10.37235/ae.n41.19. Disponível
em: http://revistas.ufrj.br/index.php/ae
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Além do Brasil: lembrando Guy Brett


através de seus próprios olhos

Michael Asbury
0000-0002-2205-0063

O crítico de arte britânico Guy Brett se tornou referência única no Brasil por
meio de sua escrita e amizade com artistas como Sergio Camargo, Lygia Clark,
Hélio Oiticica, Mira Schendel durante a década de 1960, e mais tarde com Cildo
Meireles, Antonio Manuel, Lygia Pape, Jac Leirner, Waltercio Caldas, assim como
tantos outros. Embora esses artistas tenham, em grande parte, definido o modo
como a arte contemporânea é entendida em âmbito nacional, a contribuição de
Guy ajudou a tecer suas produções dentro de uma narrativa histórica da arte
mais ampla, colaborando para os inscrever, ainda que parcialmente, nos cânones
hegemônicos e institucionais. Seria, no entanto, limitado considerar a relevância
de Guy mediante essa única, embora importante, perspectiva. Este artigo,
não é tanto um ensaio, mas uma série de citações em busca de lançar luz sobre
a trajetória intelectual de Guy, focalizando a maneira particular como ele veio a
articular, por meio de sua escrita e práticas curatoriais, a produção de arte pela
qual estava interessado. O que realmente o interessou variou desde a experiência
subjetiva singular com o objeto de arte até sua relação mais ampla com o mundo.
Ao se referir ao seu interesse por assuntos tão diversificados no campo da arte,
Guy frequentemente invocava a ideia de energias cósmicas, forças de campo, às
vezes em um sentido literal, como no caso da força eletromagnética existente na
obra do artista grego Takis, outras vezes de forma mais metafórica. Tais invocações,
sejam cosmologias arcaicas, conhecimentos milenares ou pensamentos científicos,
nunca tentaram determinar ou impor suas próprias perspectivas sobre os outros
ou implicaram qualquer senso de superioridade de um tipo de arte sobre outro.
Na própria compreensão de Guy, o universal parecia antitético à maneira como
é normalmente prescrito dentro da história do modernismo. Na verdade, Guy
nunca teve problema com o modernismo, mas com a forma limitada pela qual
tem sido considerado. Sua crítica era dirigida principalmente ao modo como o
modernismo tem sido historicizado e instrumentalizado dentro das estruturas
PPGAV/EBA/UFRJ
institucionais da arte.
Rio de Janeiro, Brasil
Palavras-chave
ISSN: 2448-3338
DOI: 10.37235/ae.n41.20 Guy Brett; arte cinética; Signals Gallery; Magiciens de la Terre; decolonial.
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A abordagem de um Guy Brett crítico de arte que se volta para a curadoria


foi feita talvez de forma mais influente em sua exposição Fields Forces: phases
of the kinetic,1 que ele descreveu como “um dispositivo de sensibilização” em
que o “fenômeno da visualidade está imerso no fenômeno da energia” (Brett,
2000, p. 9). Possivelmente seu projeto artístico mais alinhado com uma pesquisa
histórica, Field Forces exemplificou com brilho curatorial o quão limitados são
os relatos frequentemente produzidos acerca da arte moderna. Para Guy, tais
relatos permanecem suspeitos tanto em termos de suas estreitas apreensões
estéticas/formais de práticas de vanguarda quanto pelo seu viés euro-americano.
Como tal, e de tantas outras formas, sua escrita permanece não só relevante,
mas fundamental para os debates contemporâneos. Diria que é como uma
plataforma de onde se pode saltar para uma maior profundidade e sensibilidade,
sempre levando em consideração, da forma mais ampla possível, a relação entre
arte e sua esfera sociopolítica. E, como o próprio Guy alegou, sua forma de escrita
simultaneamente reagiu e respondeu à relação entre arte e vida, independente-
mente das fronteiras nacionais, culturais, étnicas, de gênero e sexualidade.
A tarefa em questão, é claro, excede em muito as limitações oferecidas por
essas poucas páginas e não deve ser vista como uma substituição aos próprios
textos completos. Em vez disso, prefiro pensar nisso como uma prévia, que incen-
tiva o leitor a pesquisar mais sobre os escritos de Guy.2 Há pouco espaço neste
artigo para as linhas de Guy sobre aspectos mais detalhados de sua compreensão
dos artistas, o que implicaria uma seleção, e, portanto, uma lastimável redução
do escopo de Guy como crítico de arte. Uma exceção talvez seja sua escrita
sobre David Medalla, que atua aqui como uma forma de projeção sobre a própria
trajetória de Guy, dada a amizade próxima e os projetos realizados paralelamente
ou entre eles compartilhados.
Pelo que sei, três antologias da escrita de Guy foram compiladas durante
sua vida. O primeiro, Carnival of perception foi publicado em Londres pelo InIVA
em 2004; no ano seguinte, Katia Maciel organizou uma seleção dos escritos

1
Os títulos de exposições, ensaios, grupos, instituições e livros permaneceram no idioma original, a
não ser em casos em que haviam sido traduzidos anteriormente ou para uma compreensão mais
segura da retórica do autor, o título no idioma original é sucedido pela sua tradução. (N.T.)
2
Para uma visão geral biográfica da vida de Guy, veja Brett (2007, p. 206-237).
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sobre artistas brasileiros intitulada Brasil experimental: arte/vida, proposições e


paradoxos, publicado no Rio de Janeiro pelas editoras N-Imagem e Contracapa.
Mais recentemente, uma nova coleção de ensaios com o título The crossing
of innumerable paths foi publicada em 2019 pela editora Ridinghouse. Mesmo
quando reunidos esses livros ainda representam apenas uma fração do seu
substancial corpo de trabalho.
Com o benefício da retrospectiva, é fácil traçar projeções e estabelecer
uma teleologia. Ou seja, fazer com que um determinado caminho tomado pareça
inevitável. Com o risco de fazer exatamente isso e, portanto, tomando o caminho
inverso do que sugere o título de sua última compilação de ensaios, vejo em sua
escrita inicial já os sinais dos temas e conceitos que o obcecariam durante toda
a sua vida. Em Eugene Delacroix, um livro monográfico publicado em 1963, um
Guy Brett de 21 anos de idade emana a confiança adquirida na sua formação no
Eton College, uma das mais tradicionais escolas do Reino Unido. No entanto, já
aqui, pode-se sentir uma propensão para certos temas e atitudes que ganhariam
consistência e profundidade à medida que sua escrita amadurecia: “Após sua
jornada africana, [Delacroix] retornou aos temas literários e imaginativos como
pontos de partida, mas agora eram inequivocamente marcados pela experiência
tanto da vida quanto da pintura” (Brett, 1963, p. 6).
Embora uma crescente atenção à relação entre a vida e a arte já fosse
perceptível naquele texto do início da sua carreira, também pode ser observada
uma fascinação incipiente pela ideia de movimento: “Este estudo em desenho
possui uma compreensão espontânea de movimento e animação que se perdem
no trabalho final. Delacroix treinou ao longo de sua vida para capturar o movi-
mento com o mínimo de esforço e tempo” (Brett, 1963, p. 7).
Seis anos depois, a questão do movimento na arte tornou-se central e es-
pecífica, o suficiente para Guy, em 1968, ao introduzir o tema de seu livro sobre
arte cinética, querer diferenciar o tipo de arte que o interessava da descrição
mais “técnica” que o termo implicava:

Este livro é sobre movimento na arte. Mas não é o movimento em si que


é importante. O movimento em um sentido literal não é um guia para a
qualidade de uma obra de arte ou mesmo sua modernidade. Acontece,
porém, que a palavra “cinético” tem servido frequentemente para
descrever muitos artistas e suas respectivas obras. E a palavra “cinético”
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já viu reunida em torno dela várias conotações estilísticas, a maioria


delas puramente técnica, tais como: o uso de sistemas mecânicos,
motores elétricos, luz, padrões vibratórios e assim por diante. Essas
propriedades técnicas têm sido muitas vezes utilizadas como critérios
para definir a obra, para agrupá-la com outras, até mesmo para justificá-la.
Essa abordagem só pode ter o efeito de criar uma Academia do Movi-
mento, um corpo que pode se definir claramente apenas se isolando.
A tendência tem sido certamente tratar a arte cinética como um caso
à parte da arte moderna e com suas próprias invenções e regras
(Brett, 1968, p. 9).

Kinetic Art, o livro, foi produzido pelo que possivelmente tenha sido a expe-
riência de formação cultural mais significativa que Guy teve: sua colaboração com
a Signals Gallery, em Londres, entre 1964 até o seu fechamento abrupto em 1966.

Um grupo de artistas com ideias semelhantes e brilhantes começou


a se reunir. [Paul] Keller e [David] Medalla mudaram-se para um aparta-
mento espaçoso em Cornwall Gardens, no bairro londrino de South
Kensington, e o Centre for Advanced Creative Study foi fundado lá em
1964 por Keller, Medalla, os artistas Gustav Metzger e Marcelo Salvatori,
Christopher Walker e eu. Signals Newsbulletin [os periódicos editados
pela galeria] (com seu título inspirado em uma série de esculturas de
tração de Takis) foram iniciados, editados e graficamente desenhados
por Medalla. Signals London tornou-se o nome do grupo e da galeria,
quando essa foi transferida, no final de 1964, para um grande edifício
de quatro andares na esquina das ruas Wigmore com Welbeck, no
Centro de Londres. O prédio foi disponibilizado pelo pai de Keller, um
fabricante de instrumentos ópticos.
No momento em que ingressaram no grupo, os interesses de Salvatori
e Metzger estavam claramente definidos. Salvatori, que nasceu em
Florença e veio para a Inglaterra em 1955, estava procurando uma
estreita colaboração entre artistas e cientistas com base no modelo de
um instituto de pesquisa (o nome original do grupo era seu). Ele
articulava suas próprias obras, usando plásticos e espuma de borracha,
como maquetes para uma possível transformação do ambiente. Metzger
era o apóstolo da “arte autodestrutiva”. Ele combinou um interesse pio-
neiro no campo da arte baseado em formas autogeradas e randômicas
com uma crítica densa sobre a sociedade contemporânea. Esses
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interesses assumiram principalmente a forma de manifestos, uma vez


que, em sua opinião, a teoria da “autodestruição” estava dez anos à
frente da prática.
A abordagem de Medalla era mais ampla. Como artista, ele estava
completamente comprometido com as ideias que tinha adotado,
“levando-as para as profundezas”, por assim dizer. Ao mesmo tempo,
ele sempre manteve certa atitude de livre transição, de uma abertura não
comprometida. Como organizador e aquele que estava à frente agre-
gando e produzindo, ele defendia uma política não dogmática e não
exclusiva. Sua declaração definindo os objetivos da Signals, publicada
no periódico em formato de jornal pensado por ele, dizia apenas que
se tratava “das aventuras do espírito moderno”, e incentivava a expe-
rimentação na arte. Signals Newsbulletin reunia poemas, discussões
políticas, uma seleção de descobertas científicas e notas biográficas,
bem como uma extensa documentação dos artistas que expunham na
galeria (a qualidade da informação sobre cada artista se destacou em
um período anterior à existência dos catálogos com informações mais
substanciais e bem compilados). Medalla sempre deu aos poemas tanto
destaque quanto aos ensaios críticos sobre a obra de um artista.
Tanto Keller quanto Medalla encomendavam aos artistas a produção de
um novo trabalho de arte ambiental [environmental work] em larga
escala para as exposições da Signals. De forma curiosa, Medalla com-
binou um sentido eminentemente pragmático como organizador dos
projetos da galeria, e do que poderia realmente ser criado a partir de
um encontro de pessoas muito específicas, com a sua prática artística
libertária e fantasiosa, por meio de seus projetos cinéticos e “propulsões”,
cuja brincadeira e licença poética mostravam uma tensão junto ao
modo, às vezes simplista, que as tentativas mais sérias de outros
artistas tinham em associar arte e ciência.
De 1964 a 1966, a Signals London foi uma grande vitrina da vanguarda
internacional. Seu local expositivo era maior que a do antigo Institute of
Contemporary Arts [ICA] na rua Dover e seu Newsbulletin era muito mais
pródigo que a pequena publicação do ICA. Artistas como Takis, [Sergio]
Camargo, Soto, Otero, Kenneth e Mary Martin, Li Yuan-chia, Gerhard von
Graevenitz e Lygia Clark tiveram oportunidades de experimentar e expor
em uma escala maior, o que eles ainda não tinham feito fosse em Paris
ou Londres, cidades em que moravam (Brett, 1995, p. 47-49).
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Se por um lado Metzger e Salvatori, juntamente com Guy e o fotógrafo Clay


Perry, colaboraram com Keller e Medalla desde o início, também é impressionante o
fato de quão apegados ao grupo, muitos dos artistas convidados que lá expuseram
se tornaram. Sergio Camargo, por exemplo, foi responsável por direcionar o olhar
de Guy e Keller para vários artistas brasileiros, como Oiticica e Mira Schendel.
Por outro lado, Li Yuan-chia, depois de vir da Itália para expor na Signals, nunca
retornou, decidindo ficar em Londres e depois se mudar para Cumbria, no norte
da Inglaterra.

Por conta do que aconteceu na década de 1960, Londres se tornou um


ímã para pessoas de todo o mundo, e elas chegaram aqui com dife-
rentes ideias sobre a noção de liberdade — bem, digamos, que eram
diferentes atitudes — o que poderia ser muito libertador em um sentido
e muito limitado em outro... Então eu pensei que todos esses diferentes
graus e tipos de liberdade além de novos tipos de condicionamento
estavam se misturando e complementando uns aos outros. Você sempre
teve esse conflito de opostos, e eu costumo interpretar o trabalho das
pessoas muitas vezes exatamente em termos desse conflito.3

A ideia de opostos, como polos magnéticos encontrando um sentido de


equilíbrio, retornaria várias vezes. O próprio Takis permaneceu um amigo próximo
ao longo de sua vida. E, em 2019, seu trabalho foi exposto de forma retrospectiva
na Tate Modern, com curadoria de Guy. Infelizmente, seria o último projeto tanto
para o artista quanto para o crítico:

Minha reação ao trabalho de Takis foi imediata e profunda, e permaneceu


assim até hoje. Sua arte representa para mim as possibilidades e
compaixão humanas que existem dentro da energia. Como Carl Jung
disse uma vez: “A psique é composta de processos cuja energia nasce
do equilíbrio de todos os tipos de opostos”. Ele poderia ter acrescentado
que esse equilíbrio inclui uma fusão entre os campos da ciência e da arte.
Ambos são guiados por um senso de admiração (Brett, 2019, p. 17).

3
British Library, Hester R. Westley interviewed Guy Brett for the National Life Stories Project Artists’
Lives in 2007-2008. Disponível em: https://blogs.bl.uk/sound-and-vision/2021/04/guy-brett-ideas-
in-motion.html. Acesso em 22 abr. 2021.
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Quando a Signals abriu, Guy tinha sido recentemente nomeado crítico


de arte do The Times e por isso suas frequentes contribuições para o Signals
Newsbulletin foram assinadas sob a forma de pseudônimos. Às vezes, esse fato
revelaria os blefes que jornalistas e colegas críticos de arte sofreram, como o
caso em que Jaime Mauricio – um respeitado crítico de arte brasileiro – pesqui-
sando a recepção pela imprensa da exposição de Sergio Camargo na Signals,
descreveu Gerald Turner (um dos pseudônimos de Guy) como um “renomado
crítico de arte” ao mesmo tempo em que acrescentava que até mesmo o jornal
Times “geralmente conservador em relação às artes” tinha coisas positivas a dizer
sobre a exposição.4
Foi por meio do cinetismo e da Signals que Guy se deu conta do precon-
ceito inerente no enquadramento institucional da arte, particularmente aquele
construído em torno da noção de “nacional”:

Na verdade, a Signals sintetizava o caráter da vanguarda londrina no


período. Assim com o ICA [...] e outros espaços do início dos anos 1960,
tais como a Gallery One, de Victor Mulgrave, e o New Vision Centre,
de Denis Bowen e Kenneth Coutts-Smith, a Signals tinha um caráter
cosmopolita, experimental e interdisciplinar. Essas qualidades nunca
foram reconhecidas pela história da arte britânica. Na verdade, a tota-
lidade dos textos históricos e da produção de exposições em voga
sempre se preocupou em construir uma imagem nacional da arte
britânica, vinculada a uma visão tradicionalista, com uma perspectiva
das “belas artes”, da prática, ignorando ou excluindo as obras daqueles
estrangeiros que não podiam ser assimilados pelo cânone nacional. Por
meio da lógica cruel do chauvinismo, as aspirações oficiais de fazer de
Londres um centro internacional apenas resultaram na obliteração da
realidade cosmopolita da cidade, e o verdadeiro fermento de sua vida
cultural (Brett, 1995, p. 50).

A Signals foi fundamental como uma espécie de turbilhão de interesses


entre a prática de vanguarda e uma sensibilidade científica, filosófica e política

4
Jaime Mauricio, Correio da Manhã, jan. 1965. Menciono o incidente em um artigo sobre Sergio
Camargo: Asbury, 2020.
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mais ampla, exemplificada pelos interesses de colaboradores como Salvatori e


Metzger. A posição política radical de Metzger, por exemplo, deve ter tido um
forte impacto sobre o jovem crítico de arte aristocrático, um fato que se tornaria
evidente na escrita de Guy nas décadas seguintes. No entanto, a amizade ao
longo da vida de Guy com Medalla teve consequências ainda mais profundas
e duradouras.
“É um prazer muito particular quando alguém do outro lado do mundo fala
de forma entusiasmada e perspicaz sobre sua própria cultura” (Brett, 1995: 13).
Essa declaração, escrita por Guy enquanto se lembrava de seu primeiro encontro
com Medalla, por volta de 1959, poderia ser dita por tantos artistas ao redor do
mundo referindo-se ao próprio entusiasmo e perspicácia de Guy em relação às
suas respectivas culturas. Guy descreveu o primeiro encontro com David “em
um baile no salão do vilarejo de Rotherfield Greys, perto de Henley-on Thames,
Oxfordshire” como “incongruente e profético” (Brett, 1995, p. 13). Não seria,
imagino, um grande salto especulativo sugerir que o uso do termo “incongruente”
de Guy se referia à localização e ao público que frequentava aquele tipo de evento
em comemoração à equipe local de remo, e “profético” porque era um daqueles
encontros motivados pelo acaso que marcaria a trajetória de sua vida.

[O que] Eu me lembro melhor sobre aquela noite foi a conversa fulgu-


rante [de David] sobre poesia inglesa. Eu estava tentando escrever
poemas na época. Seu conhecimento de todos os meus [poetas] favo-
ritos − Blake, Keats, Shelley, Crabbe, Hopkins, Eliot − me surpreendeu.
[...] Só mais tarde descobri que ele sabia tanto sobre cultura francesa e
muitas outras, como ele sabia sobre a inglesa. E tanto sobre arte, música,
dança e teatro quanto sobre literatura (Brett, 1995, p. 13).

É preciso dar crédito aqui ao fato de que Guy, ainda muito jovem, não
equacionou o conhecimento de Medalla da cultura ocidental com a suposta
superioridade de tal cânone literário. Ao longo do curso de sua vida, Guy encon-
traria em várias obras de artistas de todo o mundo um sentido semelhante de
admiração e sofisticação. Diria que um sentido de admiração e abertura para
outras culturas foi uma característica constante da escrita de Guy desde o início.
O papel de Medalla, durante os anos da Signals, no estabelecimento
de conexões entre as vanguardas europeias e de outros países não pode ser
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subestimado. A personalidade de Medalla e as circunstâncias particulares a que


ele foi submetido como cidadão filipino foram cruciais nesse sentido:

Logo percebi que [David] estava dividindo seu tempo entre Inglaterra
e França. Assim que o período do seu visto britânico expirava, ele
seguia para a França e, quando seu visto francês expirava, ele retornava
à Inglaterra. A expiração e os vistos renovados têm sido características
permanentes na vida de David. [...] As circunstâncias aparentemente
incongruentes dos nossos encontros foram um prenúncio da forma
como Medalla, ao longo de sua vida, fez suas próprias conexões e
manifestações artísticas, muitas vezes longe dos mecanismos e locais
rotineiros do mundo da arte, e como, com todo o seu conhecimento
íntimo da cultura inglesa, ele promoveu um sentido de internacionalismo
na Inglaterra que foi muito além das estreitas e nacionalistas prioridades
da consagração oficial da arte britânica (Brett, 1995, p. 13).

Somando ao fato de que

Não estou falando sobre uma diversidade de formas definidas sob a


ideia de diferença cultural (sobre o modelo de “artes étnicas”), mas
de um processo criativo pelo qual o novo aparece de um encontro, em
particular, do local com o global; a forma como Londres, nesse caso, se
tornou a prova de uma possível nova cultura (Brett, 1993, p. 123).

O comportamento tímido e reservado de Guy certamente contrastava com


o caráter extrovertido de Medalla, mas a amizade deles era de troca mútua. A
sociabilidade de Medalla ampliou o círculo de colaboradores da Signals com
extraordinária rapidez, enquanto Guy traria lentamente, mas de maneira concreta,
por meio de sua escrita e sensibilidade, essas diversas produções criativas com
as quais travou contato, desenvolvendo uma lógica crítica ou mesmo ampliando
o sentido histórico da arte. Com o fim da Signals, foi também Guy que, em grande
parte, ficou incumbido de lidar com as várias questões burocráticas que logo
surgiram. Ele salvaguardava obras de arte pertencentes aos artistas das mãos
dos credores da galeria, ao mesmo tempo em que procurava espaços alternativos
para exposições já planejadas, como a de Hélio Oiticica. De certa forma, Guy
continuou a cuidar – o significado original do verbo “curar” – do legado de vários
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artistas, ação que faria ao longo de sua vida. Refletindo sobre essa relação entre
os artistas e o crítico, Guy afirmou na introdução de Carnival of perception:

Sempre me perguntei sobre a transação envolvida na relação entre


artista e crítico (ou na denominação mais neutra, o “escritor sobre arte”
[writer on art]. Parece que sempre haverá uma tensão entre o desejo
do escritor de desvendar pelas palavras as qualidades únicas de um
fenômeno material oferecido aos seus olhos, e a existência de uma
visão (da vida, da realidade, do amor, do valor, do universo) – a visão
particular do escritor – que se anuncia em um determinado ponto e
permanece ao longo da vida. Quantas vezes embarcamos em um
projeto apenas para perceber que, ao final, o que ele diz é o mesmo que
sempre dissemos (ironicamente, talvez, isso aconteça já que é apenas
a firme crença de que temos algo novo a dizer que nos dá o impulso de
iniciar um novo projeto). Não faço ideia de onde vem essa visão, mas
tem sido importante para muitos indivíduos ao longo da história. Por
exemplo, entre os povos originários da América da Norte que habitam
as planícies, o sonho ou a visão de um indivíduo era criptografada em
seu escudo. Esse símbolo era normalmente escondido por um pano e
só descoberto pouco antes da batalha para que aquele que possuísse o
escudo, pudesse olhar e reunir ao máximo um poder que era exclusiva-
mente pessoal (Brett, 2004, p. 12).

A referência ao escudo e seus poderes místicos é, talvez, alusão inconsciente


à própria habilidade de Guy de transcender o pessoal invocando o outro. A última
vez que Guy viu Hélio Oiticica foi em Nova York durante a década de 1970, onde
ficou “alojado” em um dos Babilonests do artista – “estruturas de cabine” que se
integravam dentro de seu loft. A partir dessa experiência, de passar esse tempo
com Guy, Oiticica criou um projeto para um Penetrável, em homenagem ao crítico
de arte britânico, intitulado Shelter Shield.5

5
Babilonests eram construções semelhantes a camas que Oiticica havia conceituado pela primeira
vez no Rio de Janeiro com a Cama-Bólide e o conceito de Barracão. Oiticica mais tarde elaborou essas
ideias durante sua residência na Universidade de Sussex em 1969, e exibiu-os como uma instalação
interativa em sua participação na exposição Information, organizada por Kynaston McShine, no MoMA
em 1970.
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Shelter Shield se refere, sem dúvida, à canção “Give me Shelter” dos


Rolling Stones, uma banda pela qual Oiticica tinha sido particularmente obcecado
durante a década de 1970. Também faz uma clara alusão a própria personalidade
de Guy refletida em sua modéstia, timidez e que às vezes é descrita como
característica de um verdadeiro gentleman. O título de Oiticica sugere, pelo menos
para mim, algum estado mais fluido e transitório indo da ideia de abrigo para a
de escudo, do conforto de uma vida protegida à de uma pessoa que gosta de
se arriscar e necessita de um escudo. Em seu ensaio de 1989 para o catálogo
da exposição Arte na América Latina, organizada por Dawn Ades na Hayward
Gallery, Guy descreveu Oiticica e Lygia Clark como aqueles que teriam dado um
salto radical, algo como um movimento que transcendeu o aspecto formalista da
abstração e os jogou no mundo. Nós podemos dizer que o mesmo ocorreu com
a própria trajetória idiossincrática de Guy, particularmente com a virada mais
abertamente política que ele tomou após o encerramento da Signals.
Na monografia de Guy sobre David Medalla, várias razões possíveis para o
fim da Signals são postuladas, senão elaboradas:

Em 1966, o patrocinador da Signals (Charles Keller, o pai de Paul


Keller) retirou seu apoio e a galeria entrou em processo de fecha-
mento. Segundo o Sr. Keller o fechamento foi devido à incompetência
financeira. Segundo Medalla, o Sr. Keller, um empresário, havia
desaprovado fortemente a publicação no Signals Newsbulletin da
transcrição da carta de Lewis Mumford escrita em 1965 para a Academia
Americana de Artes e Letras. Mumford havia utilizado a prestigiosa
ocasião para criticar publicamente o envolvimento americano no
Vietnã. Signals também publicou a carta do poeta americano Robert
Lowell recusando um convite para ir à Casa Branca pela mesma razão.
[...] Assim como em grupos posteriores que Medalla criou, o fim dessas
parcerias foi um choque doloroso para todos os envolvidos. Naquele
momento, várias exposições estavam em preparação e Medalla possuía
uma imensa quantidade de material para futuras edições da revista.
Mas a essa distância é impossível não perceber a lógica da metamor-
fose de Signals em 1964-1966; The Exploding Galaxy, em 1967-1969;
Artists’ Liberation Front, 1970-1974; e, Artists for Democracy, 1974-1977.
Cada grupo correspondia precisamente ao seu período e às grandes
mudanças culturais e históricas subjacentes que tocavam de alguma
forma quase todas as pessoas no mundo (Brett, 1995, p. 67).
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A impressão que temos a respeito da Signals é que tudo de repente parou


após o seu encerramento. Isso não era, pelo menos no caso de Guy, exatamente
verdade. Ele permaneceu como crítico de arte do The Times até 1974. Sua escrita
sobre arte cinética continuou, como exemplificados por seu livro sobre esse tema
em 1968, seus ensaios para catálogos de exposição, como o de Soto na Marlborough
Gallery em 1969, e, nesse mesmo ano, seu papel na garantia da exposição de
Oiticica transferida, após o fechamento da Signals, para a Whitechapel Gallery,
além de sua contribuição para o catálogo dessa mostra.
A exposição de Oiticica na Whitechapel recebeu grande cobertura da
imprensa. Uma crítica sobre a mostra, em particular, citou Ricardo II, de
Shakespeare, transformando a passagem “este outro Éden, semiparaíso” que
se referia à Inglaterra em “este outro e desnecessário Éden”. Tal referência,
portanto, conseguiu em uma única linha afirmar uma clássica alegoria nacionalista
e descartar o “outro exótico”. Esse excelente exemplo de esnobismo britânico
dentro da crítica de arte só destaca o quão desapegado Guy foi de uma abordagem
jornalística que infelizmente sobrevive até hoje (Mullins, 4 mar. 1969).
A ampla gama de interesses de Guy é revelada nos temas de seus artigos
para o The Times durante esse período transitório e turbulento:

“Naum Gabo: Space is not Outside Us” (15 de março de 1966); “The
Gadfly of Modern Art − Marcel Duchamp” (14 de junho de 1966);
“Photomontages of John Heartfield” (16 de setembro de 1967);
“Van Gogh in the Fields” (15 de outubro de 1967); “Cool State of the
Word” (30 de dezembro de 1967); “The Invisible Works of Modern Art”
(2 de abril de 1968); “Tuba on Fire” (15 de fevereiro de 1969); “Ways
of Pointing a Camera” (22 de abril de 1969); “When Attitudes Become
Form” [“Quando as atitudes tomam formam”] (30 de agosto de 1969);
“Gentle Man of Iron (Julio González)” (10 de novembro de 1970); “Waste
of the World” (25 de março de 1971); “500 Years after Dürer” (17
de maio de 1971); “Moholy-Nagy and the Whole Man” (3 de julho de
1971); “At the Feet of Gaudi” (17 de agosto de 1971); “Tantra: New
Vistas of Meditation and Self-knowledge” (23 de outubro de 1971);
“Francis Bacon in Paris” (27 de outubro de 1971); “Calderara’s World
of Stillness” (2 de novembro de 1971); “Hogarth’s Progress” (2
dezembro de 1971); “Blake, Blake, Burning Bright” (8 de dezembro de
1971); “Eugene Atget, Parisian and Photographer” (21 de dezembro
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de 1971); “Centenary Exhibition of Mondrian” (22 de junho de 1972);


“Takis Sows the Magnetic Fields” (3 de outubro de 1972); “Islamic
Carpets as Ideograms of Plenty” (25 de outubro de 1972); “The
Needle’s Eye” (23 de janeiro de 1973); “Videotape as an Art Medium”
(6 de março de 1973).

Embora os assuntos dessa lista mostrem um interesse contínuo no cine-


tismo e em suas fontes no percurso da história da arte – construtivismo europeu,
de Stijl e Marcel Duchamp, que muito mais tarde formariam a base de exposições
tais como Force Fields – eles também demonstram um foco crescente na arte
de outras partes do mundo, juntamente com um interesse cada vez maior por
formas populares de expressão. Depois de se mostrar um pouco dissociado das
propostas hippie-comunitárias de Medalla e do grupo The Exploding Galaxy,
uma nova aproximação ocorreu entre os dois no início da década de 1970.
Enquanto isso a relação entre arte e ciência foi lentamente substituída ou, talvez
mais precisamente, sobreposta por uma conexão entre arte e política:

O formato mais fechado ou circunscrito da Artists’ Liberation Front


expandiu-se para se tornar uma organização mais ampla, o que
aconteceu com a formação do Artists for Democracy. A AFD nasceu
durante uma conversa no início de 1974 entre Medalla, [John] Dugger,
a artista chilena Cecilia Vicuña e eu na pequena sala de Medalla e
Dugger em Newport Place, no Soho. O pretexto imediato foi o golpe
militar chileno de setembro de 1973 contra o governo socialista de
Salvador Allende, e o desejo de mobilizar artistas em apoio a resistência
(Brett, 1995, p. 86).

O pai de Guy, Lionel Brett, tinha sido um arquiteto e urbanista modernista.


Tendo se envolvido na reconstrução do pós-guerra da Grã-Bretanha, ele mais
tarde percorreu o mundo dando palestras, incluindo uma viagem pela América
Latina. Após sua visita ao Chile, o governo Allende o convidou para trabalhar em
um programa comissionado de planejamento em Santiago – um projeto que,
naturalmente, nunca ocorreu devido ao golpe militar de 1973. Não é de surpreender,
portanto, que, ao assumir como reitor do Royal College of Art, Lionel Brett tenha
permitido o uso de suas instalações para uma exposição da AFD associada a
um leilão de obras, doadas por artistas de todo o mundo em apoio àqueles que
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sofriam sob as agruras do regime autoritário chileno.6 Um “centro cultural” da AFD


foi mais tarde inaugurado em uma ocupação na rua Whitfield, número 143, e
permaneceu ativo até 1977. Paralelos, pelo menos em estratégia, com o Museu
da Solidariedade, que Mário Pedrosa ajudou a fundar em Santiago, enquanto
estava exilado do regime militar brasileiro, podem não ser apenas coincidência.
Pedrosa esteve em Londres para a exposição de Oiticica na Whitechapel, em
1969. O arquivo pessoal de Guy também contém cartas sobre a campanha de
Pedrosa para o boicote daquele ano à Bienal de São Paulo.7 Tendo essas
conexões em mente, uma virada política pós-68 mais ampla também deve ser
levada em conta:

Na Europa, a Exploding Galaxy tinha sido bastante desdenhosa com


relação aos jovens militantes de “Maio de 68”, achando-os expressiva-
mente “irresolvidos”. Mas Medalla retornou da Ásia [ele esteve na Índia
durante a exposição de Oiticica em 1969] mais politicamente radical e
começou a devorar textos marxistas tão avidamente quanto ele fazia
com as escrituras budistas (Brett, 1995, p. 83).

Esse novo ímpeto político repercutiu no pavilhão “maoísta” de Medalla


e Dugger na Documenta 5, em 1972, com curadoria de Harald Szeemann.
Lembrando desse período duas décadas depois, Guy afirmaria que:

Meados da década de 1990 pode não ser o melhor momento para olhar
novamente de forma desapaixonada para um movimento na década de
1970 no qual muitas pessoas estiveram envolvidas (eu incluído). As fotos
de Medalla e Dugger vestindo suas jaquetas maoistas, e a retórica
polêmica de Medalla, que imitava o discurso marxista-leninista do Estado
incluindo até os menores maneirismos e linguajares (embora sua análise
fosse geralmente sã e inteligente), dão um ar datado a uma convicção
incontestável: que o legado do colonialismo no Terceiro Mundo só poderia
ser efetivamente desafiado pelos movimentos de libertação nacional
(Brett, 1995, p. 85).

6
Lord Esher, Lionel Brett, entrevista, história oral, Architects’ Lives Collection, British Library, fita
n.8. Disponível em: https://sounds.bl.uk/Oral-history/Architects-Lives/021M-C0467X0014XX-1000V0.
Acesso em 22 abr. 2021.
7
Sua última coleção de ensaios The Crossing of innumerable paths começa com a seguinte epígrafe de
Pedrosa: “Então a vida é maior que as regras”.
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O mea culpa de Guy provavelmente se referia, entre outras atividades,


a sua pesquisa que culminaria no livro Chinese peasant painting from the Hu
county, Shensi province, China [“Pintura dos camponeses chineses do condado
de Hu, província de Shensi, China”] (Brett, 1976-1977) financiado pelo Arts
Council of Great Britain [Conselho de Artes da Grã-Bretanha] e publicado em
1976. Pode ser, no início, difícil conciliar a escrita de Guy sobre arte cinética e
participativa com os temas e o conteúdo de um livro que começa citando Mao
Tse-tung e discute pinturas ao estilo realismo socialista com títulos como A
barren hill is transformed into an orchard (by Hang Chin-pu) [“Uma colina sem
vegetação é transformada em um pomar (por Hang Chin-pu)]”, How bright and
brave they look (by Chang Chin-feng) [“Como eles parecem brilhantes e cora-
josos (por Chang Chin-feng)]”, ou Never forget the state after a good harvest
(by Liu Jui-chao) [“Nunca esqueça o Estado depois de uma boa colheita (por
Liu Jui-chao)”]. O projeto levou Guy à China para a realização da pesquisa, um
feito raro para um crítico de arte ocidental durante a década de 1970. A “fase
política” de Guy continuou ao longo dessa década, quando publicou entre 1975
e 1976, vários artigos para China Now com temas semelhantes, tais como
“Spare-time artworkers” [“Artistas em tempo livre”], “Lu Hsun and the woodcut
movement” [“Lu Hsun e o movimento da xilogravura”], e “A challenge to artists
(on Mao Tse-tung’s philosophy of art)” [“Um desafio aos artistas” (sobre a
filosofia da arte de Mao Tse-tung)]. De acordo com sua esposa, Alejandra
Altamirano (exilada política chilena e filha de Carlos Altamirano, senador e
secretário-geral do Partido Socialista Chileno durante a presidência de Allende),
tal radicalização custou a Guy seu emprego no The Times em 1974.8
Olhando além da visão um pouco rosada da vida na China comunista,
também podemos ver isso como um período de consolidação das visões emer-
gentes de Guy sobre arte e sua relação com a política mundial e local. De fato,
quando mais tarde ele revisitou o tema em sua coleção de ensaios sobre artes
populares, Through our own eyes [“Através de nossos próprios olhos”], o discurso
de Guy era mais cauteloso: “Nós, como estrangeiros, só sabemos sobre a pintura
huxiana porque as autoridades chinesas decidiram tomá-la como modelo, para

8
Alejandra Altamirano Brett, conversa telefônica com Michael Asbury, mar. 2021.
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divulgá-la. Sabemos pouco ou nada sobre a arte dos trabalhadores e camponeses


que não foi trazida à tona” (Brett, 1986, p. 63).
Livre das restrições de um jornal conservador, e seguindo o trabalho sobre
as pinturas camponesas chinesas, Guy embarcaria em diversos projetos que se
mantinham distantes do meio de vanguarda “refinado” que havia caracterizado
seu período na Signals. Isso incluiu um projeto curatorial sobre pintura da
região de Shaba no Zaire (agora República Democrática do Congo), com algumas
referências a artistas populares nigerianos e ganeses. Um foco particularmente
poderoso no ensaio, que mais tarde seria incluído no livro Through our own eyes,
é seu modo de lidar com a expressão do trauma em pinturas que se referem ao
brutal domínio colonial belga. Inicialmente apoiado pelo Arts Council, o projeto de
uma exposição foi posteriormente abortado pelo patrocinador.9 Se as percepções
originais de Guy sobre a pintura camponesa chinesa lhe pareciam, em meados
da década de 1990, datadas e precisando de recontextualização, suas percepções
extraídas da pesquisa sobre Shaba e pintura popular em Through our own eyes,
mantêm uma relevância contemporânea mais forte:

A expressão “arte africana” está intimamente ligada à história da relação


colonial da Europa com a África. [...] Portanto, uma aguda consciência
das condições e mudanças da realidade social, e uma visão africana da
história são partes necessárias de todo o processo decolonial (Brett,
1986, p. 83-84).

Seu envolvimento com o grupo Artist for Democracy já havia levado sua
atenção para o trabalho das Arpilleras, grupos de mulheres pobres que viviam
nos arredores de Santiago, alegando que: “Em condições de grande insegurança
e dificuldades, grupos de mulheres chilenas costuraram milhares de bordados
com retalhos [patchwork] mostrando a realidade durante a ditadura militar que
tomou o poder com o golpe de 1973” (Brett, 1986, p. 29).
A ideia de trauma ressurge como tema em outro capítulo de Through our
own eyes, quando Guy discute as representações visuais criadas por testemunhas
do terrível bombardeio de Hiroshima: “De certa forma, o cerne de toda essa

9
Alejandra Altamirano Brett, conversa telefônica com Michael Asbury, mar. 2021.
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experiência é um equilíbrio muito frágil entre lembrar e esquecer. O que o indi-


víduo prefere esquecer [...] a sociedade deve se lembrar” (Brett, 1986, p. 120).
O ensaio final do livro, sobre a “arte de protesto” do Greenham Common
Women’s Peace Camp pelo desarmamento nuclear, segue argumento seme-
lhante, concluindo que “depois de olhar para as imagens de Hiroshima, dificil-
mente é necessário perguntar por que a bomba nuclear provoca um medo que
alcança as profundezas da psique” (Brett, 1986: 131).
Além do assunto em si, o que parece interessante aqui, em termos dessa
visão geral da trajetória dos escritos de Guy, são as associações que ele estabelece
entre expressões visuais “populares” de protesto e arte de vanguarda. É como se
ele estivesse tentando salvar a radicalidade desta última em vez de reivindicar o
valor estético da primeira. Isso parece crucial para mim como maneira de
entender a própria visão de Guy sobre o potencial da criatividade humana:

As descobertas científicas que levaram à divisão do átomo e à fabricação


da bomba [nuclear] foram as mesmas que mudaram toda a nossa visão
de matéria e energia, descobertas que ecoaram por toda a cultura
moderna. Nas artes visuais, por exemplo, os artistas passaram por um
processo paralelo ao quebrar a aparência [surface] homogênea da arte
tradicional no que poderia ser chamado de “partículas elementares”
de cor e forma, e criaram o que é amplamente conhecido como arte
abstrata (Brett, 1986, p. 132).

Um sentimento semelhante de admiração pela expressividade espontânea


do povo surge em outros lugares na escrita de Guy. Nem sempre tão excessiva-
mente político, há uma ênfase subjacente em eventos não hierárquicos e
participativos que parecem novamente chamar sua atenção. Em um texto curto
e divertido, escrito para uma exposição organizada por seu amigo, o artista
Derek Boshier, Guy ponderou sobre o advento dos “modismos” nas sociedades
ocidentais:

O que está na moda é, por definição, algo inventado anonimamente,


que envolve apenas os jovens, que se espalha como fogo e que não
dura muito tempo. Geralmente, mas nem sempre, implica uma relação
estreita entre a pessoa e um produto, que é por sua vez a fonte de lucros
enormes e rápidos para empreendedores e fabricantes. Ao juntar um
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grande número dessas novidades, em um intervalo de tempo, quero


sugerir que isso pode ser considerado uma forma de criatividade
humana. O que está na moda pode parecer bastante inútil, mas acredito
que muitos desses modismos são expressões espontâneas do desejo
de liberdade, de conhecer a si mesmo, de se expressar, de conhecer
o ar, a terra, o mar, de fazer o impossível. Um objeto da moda tem a
mesma relação com o mundo das commodities como uma palavra sem
sentido tem para com as palavras comuns (modismos são muitas
vezes nomeados com palavras sem sentido); libera expressividade,
exuberância e cria uma comunidade do nada. Em outra sociedade, essas
expressões podem ser incorporadas a um corpo em expansão da arte
popular, mas em nossa sociedade, são em parte uma exposição ridícula
do ciclo comercial: uma ideia é retomada, explorada, superproduzida,
abandonada e substituída por outra. Outras modas [como a de invadir
jogos desportivos nu] terminam em prisão. A moda morre, e o mundo
volta ao trabalho (Brett, 1979).

Há aqui algo revelador da relutância de Guy em participar dos próprios


modismos do mundo da arte. Mesmo durante o período da Signals, o foco indiscutível
do mundo da arte na Grã-Bretanha e na Europa tinha sido a abstração informal e o
surgimento da arte pop norte-americana. Nunca aderindo às tendências e grupos
baseados em nacionalismos ou outras alianças, Guy permaneceu muito fiel à
sua visão da arte.10 Talvez tenha sido essa atitude que eventualmente o afastou
das restrições do discurso ideológico da “esquerda ortodoxa”, deslocando-se
para uma postura “decolonial” mais crítica em relação ao chauvinismo britâni-
co nas artes. Vejo suas contribuições para publicações feministas emergentes e
pós-coloniais, tais como “Patchwork Pictures from Chile”, no periódico Spare Rib,
em setembro de 1977, e “Cultural colonialism: a discussion”, em Black Phoenix,
na primavera de 1979, como provas dessa postura. Este último artigo é particular-
mente significativo, pois sugere que ele já estava em contato com o editor da
revista, Rasheed Araeen.

10
Veja: Guy Brett Obituary, The Guardian, 30 mar. 2021. Disponível em: https://www.theguardian.
com/artanddesign/2021/mar/30/guy-brett-obituary. Acesso em 22 abr. 2021.
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No mesmo ano, Araeen propôs à Galeria Hayward uma exposição sobre


obras sub-representadas produzidas por artistas negros e asiáticos que viviam
na Grã-Bretanha. Embora a proposta tenha sido inicialmente rejeitada (como
“não sendo o momento certo para tal exposição”), a mostra ocorreu dez anos
depois, quando uma onda de pesquisas de arte não euro-americana parecia
chegar à cena de uma só vez – de certa forma um fenômeno que lembra as
notas de Guy sobre os modismos. A partir de 1987, Black Phoenix se tornou o
periódico Third Text, e Guy um colaborador regular desde sua primeira edição,
escrevendo naquela ocasião sobre o trabalho de Lygia Clark (Brett, 1987).
O ano de 1989 tornou-se historicamente entendido como um novo para-
digma na política mundial, bem como nas artes. Na esfera política mais ampla, foi
marcado pelo colapso do bloco soviético, com sua representação simbólica mais
poderosa sendo, talvez, as imagens televisionadas da queda do Muro de Berlim.
Esse evento, repetido sem parar como uma imagem dos tempos de mudança,
encorajou alguns a especular sobre a possibilidade de que as democracias
liberais ocidentais tivessem alcançado seu destino legítimo, uma ideia proposta
por Francis Fukuyama em 1992, em sua tese sobre o fim da história. Com o
benefício de se olhar retrospectivamente, parece-nos claro, hoje, que, em vez
de um fim, 1989 trouxe um começo tão assustador, que definiu a forma como
o século 21 progrediu até agora. A invenção da internet por Tim Berners-Lee em
1989; a libertação de Nelson Mandela apenas alguns meses depois, em fevereiro
de 1990; o colapso da União Soviética sinalizando o retorno das tropas russas
depois de uma ocupação durante dez anos no Afeganistão são apenas alguns
exemplos de eventos que ainda afetam severamente nosso cotidiano.
No campo da arte contemporânea, 1989 também é compreendido como
um ponto de mudança fundamental, e encontramos Guy naquele momento
envolvido em alguns de seus episódios mais significativos. Com sua contribuição
para a exposição Art in Latin America [“Arte na América Latina”], organizada por
Dawn Ades, Guy percebe-se um pouco frustrado com o fato de que a mostra não
exibia a produção latina até o contemporâneo.

As pessoas começaram a falar de um boom da arte latino-americana


tal como existe há algum tempo com a literatura latino-americana, pelo
menos para alguns escritores. Várias exposições “latino-americanas”
ocorreram em museus da Europa e dos Estados Unidos nos últimos
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dois ou três anos, incluindo uma grande mostra na Hayward Gallery,


em Londres, em 1989. O papel que a política internacional, o dinheiro
e a moda desempenham nessas mudanças e o quão duráveis elas são
poderiam ser objeto de uma análise crítica (os latino-americanos estão
familiarizados com momentos de pico e colapso). Até agora, o interesse
tem sido principalmente pela arte histórica, e importantes artistas
contemporâneos ainda estão em grande parte sub-representados
em museus europeus e norte-americanos. Tornar esses artistas mais
visíveis e conhecidos é algo que precisa ser feito, mas os picos culturais
e a moda não mudam as divisões e desigualdades fundamentais no
mundo. Elas se expressam, entre outras coisas, na diferença da infraes-
trutura cultural e, portanto, na possibilidade de produzir arte (Brett,
1990, p. 5).

Como resposta a esse vazio ou falta de conhecimento, Guy propôs uma


exposição paralela intitulada Transcontinental: nine Latin American artists
(Waltercio Caldas, Juan Davila, Eugenio Dittborn, Roberto Evangelista, Victor
Grippo, Jac Leirner, Cildo Meireles, Tunga, Regina Vater) [Transcontinental: nove
artistas latino-americanos]. Eram todos artistas vivos e trabalhando em diferentes
locais do continente. O livro que acompanha a exposição começa com as palavras
de Edward Said, na verdade, uma epígrafe que tinha sido recentemente publicada
em um artigo no The Guardian, em 16-17 de dezembro de 1989. Olhando para
trás, a citação parece ainda assombrar nossa realidade atual:

Estamos misturados uns aos outros de tal forma que a maioria dos
sistemas nacionais de educação nunca poderia prever. Como combinar
o conhecimento tanto nas artes quanto na ciência com essas realidades
integradoras é, acredito, a questão do momento à medida que a década
[de 1990] se aproxima.

Para Guy, as palavras de Said vão ao encontro de sua própria insatisfação


com a separação de disciplinas (arte, ciência, política), a categorização da arte
em torno de nacionalismos e as crescentes “realidades integradoras”, caracterís-
ticas da condição contemporânea.
No ano anterior, escrevendo para o catálogo da exposição The Other Story,
organizada por Rasheed Araeen, Guy expressava essa insatisfação em relação
à forma como as atividades nos anos 1950 do Independent Group passaram a
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ser mitificadas em relação à história hegemônica da arte pop. É inegável que ele
viu não apenas um paralelo à maneira como as atividades da Signals foram lem-
bradas, mas também à necessidade de reivindicar conceitos estéticos e teóricos
decorrentes de seu inerente internacionalismo:

Enquanto certos artistas e arquitetos são agora celebrados no Panteão


Britânico – Hamilton, Paolozzi, os Smithsons – o que é completamente
esquecido é a energia intelectual e imaginária de suas colaborações;
quanto às fronteiras entre arte e arquitetura; ciência, arte e design; cultura
erudita e cultura popular; arte e mídia não artística [non-art media], foram
todas questionadas. Mesmo as práticas mais tradicionais da história da
arte ao traçar as “origens da arte pop britânica” encobrem o fato de
que esses artistas estavam tão interessados em, digamos, fotografia
científica quanto em histórias em quadrinhos11 (Brett, 1989, p. 111).

Seu alvo, que teimosamente permaneceu ao longo de sua vida como crítico,
era aquilo que foi tachado como convencional, seu viés nacionalista, sua falta de
curiosidade e sua propensão a seguir tendências, em suma, de se submeter a
modismos. Ainda em seu ensaio no catálogo The other story, ele deixa isso claro
afirmando que:

Parece-me equivocado se referir à atividade de vanguarda nos anos


1960 e 1970 na Grã-Bretanha como uma “coisa em si” – como forma
de construir uma pequena história para ela – porque ela deve ser
entendida em oposição e contestação à tradição, ao convencional, às
instituições. Isto é o mesmo que dizer que é consensual em si, isto é,
a história da arte amplamente aceita na Grã-Bretanha nesse período
não foi construída sem negar, neutralizar ou tornar invisível o desafio
da vanguarda. Tudo foi feito para amenizar um conflito de valores que é
real e ainda permanece (Brett, 1989, p. 111).

11
Eu nunca tive a chance de perguntar a Guy sobre o que ele pensava a respeito de ter seu ensaio
publicado em The other story, reeditado no luxuoso catálogo publicado pela Sotheby’s por ocasião da
exposição, organizada por essa casa de leilão, tendo a Signals Gallery como tema.
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Tal posição ressurgiria quando em 1991 ele foi convidado a contribuir para
uma publicação do British Council celebrando os 40 anos da Bienal de São Paulo
assim como o próprio papel do Council nessa mostra internacional. Guy começa
seu ensaio afirmando sem rodeios que “um fato que me impressiona na relação
que artistas brasileiros e brasileiros que trabalham com arte vêm mantendo com
a Grã-Bretanha desde a década de 1950 é sua natureza quase que totalmente
extraoficial” (Brett, 1991, p. 47).
Talvez a crítica mais franca de Guy ao longo de 1989, veio na forma do
questionamento dos conceitos por trás da exposição Magiciens de la Terre, de
Jean-Hubert Martin, na forma de um artigo intitulado “Earth and museum – local
and global?” que vou citar aqui de forma mais extensa:

O título da exposição proposta em Paris, uma das poucas informações


antecipadas, inevitavelmente nos faz perguntar: quem está falando? E
para quem?
Magiciens. Descrever qualquer artista ocidental hoje como um mágico
(Picasso, digamos) provavelmente seria algo encontrado apenas em
anúncios publicitários. No discurso artístico atual isso seria conside-
rado banal. Paradoxalmente é uma palavra que descapacita, que
enfraquece a relação entre a estética e as dimensões sociais na prática
de um artista. “Mágico” aparece no título como forma de fixar posições
que a mostra aparentemente pretende fazer entre artistas instituciona-
lizados e legitimados e aqueles que trabalham envolvidos com contextos
religiosos em certas sociedades africanas, asiáticas e latino-americanas.
Mas ao fazer essas associações, o termo inexoravelmente revela sua
natureza como “projeção primitivista”.
De la Terre. Em sua estreita associação com Mágico como uma
mensagem/massagem de palavras evocativas, a palavra “terra” (terre)
tem sido obviamente usada aqui com um duplo significado: terre como
a substância física, significando o elemental, o básico; e terre como o
mundo, o planeta. Mas à medida que esses dois significados começam
a divergir, um passa a representar o concreto, o particular, o local (ou na
linguagem da arte, o site specific), e o outro caminha em direção a um
conceito geral de totalidade, de visão geral – um abismo aparece entre
dois tipos diferentes de experiência. O primeiro grupo associado à terre
tem um conflito desesperador, uma luta pelos “direitos da terra”, seja
para recuperar terras apropriadas ou simplesmente para ter um lugar
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para viver, um espaço a partir do qual possa falar. Já o segundo grupo


não possui perdas: é a terre de privilégios, do poder, que a cada dia que
passa parece se tornar mais abstrata, movediça e, de fato, mais difícil
de precisar sua “localização”.
Os termos se movem rapidamente para uma antítese polarizada. Em
um extremo da escala estão as experiências de povos que tradicio-
nalmente têm “um conceito de si como parte integrante do corpo social
cuja história e conhecimento estão inscritos em um determinado terri-
tório”, como Jean Fisher descreveu os povos originários da América do
Norte. Na sua visão, “o território é uma entidade viva para ser nutrido e
respeitado como se fosse literalmente o seu próprio corpo”.12 Na outra
ponta da escala está localizado o extremo de um superdesenvolvimento
tecnológico, expresso por Jean Baudrillard em termos da percepção do
piloto ou do motorista, que quando dirige está radicalmente alienado
da Terra assim como também do próprio corpo.13
Esses antagonismos, em suas formas extremas, parecem aderidos
à própria definição de arte. No mundo de hoje, os povos indígenas –
grupos aborígenes na Austrália, os Maori na Nova Zelândia, os povos
originários das Américas do Norte e do Sul – estão engajados em um
esforço contínuo para manter o diálogo de seus legados culturais com
as questões do presente, especialmente a luta pelos direitos da terra.
Ao mesmo tempo, certas instituições – museus e, mais recentemente,
as megacorporações que patrocinam exposições em museus – estão
se esforçando igualmente para desassociar essas duas realidades. O
Canadá tem sido recentemente palco de alguns desses exemplos. Na
Feira Mundial de 1986, as autoridades decidiram que não podiam
permitir que os próprios povos nativos controlassem um espaço no
pavilhão intitulado “Índios do Canadá”, porque o usariam para chamar
a atenção para as suas preocupações atuais, especialmente as lutas
pela terra. E no ano passado, uma exposição de artefatos de povos
originários da América do Norte no Museu Glenbow, em Calgary, que

12
Nota do texto original: Jean Fisher, Jimmy Durham, “The ground has been covered”, Artforum,
verão, 1988, p. 102.
13
Nota do texto original: Jean Baudrillard, “The Ecstasy of Communication”. In: Hal Foster (ed.).
Postmodern Culture. London: Pluto Press, 1985, p. 128-129.
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estava associada aos Jogos Olímpicos de Inverno, foi boicotada pelos


índios Lubicon Cree. As companhias petrolíferas envolvidas no patrocínio
da exposição operavam na área de Alberta do Norte [North Alberta],
onde vivem os Lubicon Cree que, por sua vez, há 50 anos, disputam com
os governos federal e daquela província uma reivindicação de terras.
O título da exposição de Calgary, The Spirit Sings [O espírito canta],
contrastou estranhamente com as palavras de Bernard Omniak, o chefe
dos Lubicon Cree: “o que está acontecendo agora é que nosso povo estaria
muito melhor se alguém viesse até o nosso encontro e se livrasse de nós
da forma mais rápida possível. Qualquer coisa para não ter uma morte
lenta”. E ele mesmo apontou essa contradição gritante: “Nossa cultura
está sendo glorificada pelas mesmas pessoas que estão causando danos
aos povos nativos da nossa área”.14 As companhias petrolíferas baseadas
naquela região são agentes desses danos, mas seu apelo é em direção
ao espaço geral e universal da “cultura” que corresponde ao seu próprio
poder abstrato e global. Os povos originários da América do Norte, por
outro lado, têm que passar do universal para o local: da celebração
dos artefatos como obras-primas da “arte mundial” que nós fazemos
para o que realmente está acontecendo no território dos Lubicon Cree.
Naturalmente, as megacorporações mostram sua “dependência” –
uma vitalidade artística e beleza que não poderiam produzir por si
mesmas e para as quais seus logotipos são completamente supérfluos
e marginais. Mas elas perceberam claramente que podem fazer uso do
mecanismo pelo qual nossa cultura cria uma estética centrada no objeto
e sua contemplação, isolando essa experiência do resto da realidade.15
Seu verdadeiro poder reside na estreita comunicação que estabelecem
com o seu público, isto é, nossa recusa em assumir a responsabilidade
pelo todo. Passamos a ler a mensagem que existe por detrás do título
da exposição de Calgary, já não de maneira tão edificante, mas diria de
forma sinistra: um sinal de que estão sendo enganados.

14
Nota do texto original: Citado em Last Issue, Alberta, outono, 1987.
15
Nota do texto original: É revelador ver que o CANAL+, um dos patrocinadores de Magiciens de la
Terre, apesar da retórica da “abolição de todas as fronteiras”, ainda pode, em seu material de
promoção, permanecer conectado a um claro conceito de arte burguês e ocidental: “A todos os assi-
nantes, CANAL+ optou por se dedicar a esse prazer único que é estar conectado à posse de obras de
arte e oferecer esse deleite extremo que surge de sua contemplação”.
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Nesse processo, o grupo colonizado e o frequentador da exposição, são,


de fato, enganados pelo mesmo poder corporativo que, à medida que
cresce, acaba absorvendo e integrando a fábrica, o museu, o Estado e
a mídia em uma única hegemonia (o significado subjacente do “patro-
cínio corporativo das artes”). A ação desse poder em circunstâncias
locais, bem como sua ação em círculos cada vez maiores, pode ser
intensamente percebida em um curto mas esclarecedor livro de Eric
Michaels sobre os esforços de um grupo aborígene localizado no centro
da Austrália – os Warlpiri – para criar uma estação de TV local.16 Os
Warlpiri foram envolvidos não apenas em uma luta pelo poder – para
transmitir de forma autônoma seus próprios programas no lugar da mídia
oficial – mas também numa disputa cultural, para articular a “iden-
tidade aborígene” em meio às imagens padronizadas e etnicizantes
desse grupo transmitidas pelos canais de televisão. Michaels descreve
como, ao ajudar o videomaker warlpiri Francis Jupurrurla Kelly a realizar
seus próprios filmes, ele percebeu que a história aborígine está intima-
mente relacionada à terra e ao espaço: “Qualquer história vem de um
lugar específico, e viaja de lá para cá, forjando associações que definem
os caminhos pelos quais pessoas e cerimônias são interpretadas”.17
Contradições imediatamente surgem, e de fato Michaels relata que
Francis Jupurrurla Kelly e os próprios Warlpiri assistem à televisão
como se fosse uma espada de dois gumes: ela é tanto uma bênção
quanto uma maldição. Eles desejam “descobrir mais sobre sua arte
e divulgá-la para o resto do mundo”, mas ao mesmo tempo querem
evitar perder o controle sobre ela nesse processo de reprodução e
circulação que a própria natureza do vídeo torna possível. Permanecerá
uma experiência cultural baseada na cultura material ou será engolida
“em um futuro cujas características estão implícitas nessa singular
expressão chamada de ‘estilo de vida’ [lifestyle]? [...] Essa expressão
agora substitui, em todos os lugares, a definição de cultura para indicar

16
Nota do texto original: Eric Michaels, For a Cultural Future – Francis Jupurrurla Kelly makes TV at
Yuendumu, Art and Criticism Monograph Series, vol. 3, Melbourne: Artspace, 1987.
17
Nota do texto original: Ibid. p. 49.
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a morte desta última em um período de avanço acelerado do capitalismo


[...] O povo warlpiri, quando projetado nesse futuro ‘estilo de vida’
[lifestyle], deixa de ser warlpiri: eles são subsumidos como ‘aborígines’,
em um esforço para inventá-los como uma espécie de grupo étnico
especial capaz de ser inserido nas frágeis fantasias do multiculturalismo
australiano contemporâneo”.18
Não é difícil reconhecer nesse “futuro estilo de vida” [lifestyle future],
o mesmo processo, mediado talvez pelas mesmas corporações
transnacionais, que trabalham pela “nossa própria” cultura. Pergunto
se os projetos subversivos e emancipatórios da vanguarda do século XX
– desde os surrealistas em uma ponta, com suas propostas de “libertar
o desejo”, até os construtivistas na ponta oposta, com seus planos de
transformar o meio ambiente – foram reduzidos, primeiro pelo mercado
de arte e depois pelo mercado mais amplo de estilo de vida [lifestyle],
à mesma gama insípida de produtos de grife? E isso não exigiu novas
estratégias dos artistas que resistem, ou ao menos refletem a respeito,
nesse processo de recuperar o valor social e a eficácia da arte que as
gerações anteriores buscaram? O pacote “étnico” e o pacote “modernista”
estão lado a lado na prateleira.
Esse fato, creio, não passou despercebido por vários artistas ligados
à vanguarda nos últimos 20 anos. Suas explorações da “relação entre
culturas” (um dos temas declarados da exposição parisiense) têm sido
inseparáveis de um ataque ao conceito burguês tradicional de arte
(que está tão entrelaçado com as formas modernas de colonialismo e
opressão). Resta saber se a exposição de Paris trará tal reflexão à luz ou
tratará todo o assunto como um fenômeno “instantâneo”. É importante
compreender o momento histórico e o contexto social de sua primeira
aparição, e os problemas em que interveio. Não que estejamos apenas
falando aqui sobre pontos para um debate, ou sobre questões isoladas.
A característica da arte é a busca pela complexidade e profundidade de
uma metáfora (Brett, 1989, p. 89-91).

18
Nota do texto original: Ibid. p. 71.
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Essa busca pela “complexidade e profundidade da metáfora” guiou a


escrita de Guy ao longo das décadas seguintes. Como pode ser observado no
trecho acima, sua abordagem serviu para desembaraçar uma terminologia que,
na maioria das vezes, seria empregada como um fato inquestionável. No ensaio
sobre a instalação de Maria Theresa Alves, Nowhere [Em lugar nenhum], a partir
de uma referência ao termo original grego “utopia”, tornado famoso pelo livro de
Thomas More publicado em 1516, Guy responde à seguinte declaração feita pela
artista: “Utopias talvez não possam servir como modelos, uma vez que são elabo-
radas de forma muito específica. Elas não são suficientes para permitir as possíveis
potencialidades que o ser humano requer de um modelo”. Guy conclui que:

Nesse diálogo necessário, e no complexo questionamento de nossas


histórias, se uma brasileira tem que se opor aos aspectos do pensa-
mento utópico ocidental que eram inseparáveis das ideias de invasão,
colonização e escravidão; um cidadão inglês, por exemplo, tem que
elaborar que nossa atitude imperial não era inata, mas reflexo de uma
construção, e que até mesmo alguns de nossos símbolos proeminentes
de uma identidade cultural nacional se opuseram a ela, na sua essência,
em termos que hoje ainda persistem (Brett, 1993, p. 4).

A partir dos anos 1990, Guy consolidaria sua escrita, dentro do contexto
britânico, se voltando para a produção de artistas como Mona Hatoum, Susan Hil-
ler, Rose Finn-Kelcey e Cornelia Parker. Também colaborava com várias institui-
ções na organização de curadorias de grandes exposições retrospectivas de ar-
tistas dos quais por muito tempo esteve próximo. Muitos desses projetos maiores
ocorreram na Europa e menos em Londres, solidificando sua crítica ao esnobismo
institucional britânico. Essas curadorias foram de grandes exposições como: Hélio
Oiticica, uma retrospectiva itinerante que começou no Witte de With, em Roterdã,
e depois seguiu, entre 1992 e 1993, para Jeu de Paume, em Paris; Fundação An-
toni Tapies, em Barcelona; e, Fundação Calouste Gulbenkian, em Lisboa; e, Out of
Actions: Between Performance and the Object, realizada no Moca de Los Angeles
em 1998, quando assessorou o curador Paul Schimmel.
Simultaneamente, vários ensaios foram comissionados para catálogos
de exposições na Europa e nos Estados Unidos, incluindo: “Propos sur Takis”,
em Takis, no Jeu de Paume, em Paris, 1993; “Sergio Camargo: esculturas”, na
Fundação Calouste Gulbenkian, em Lisboa, 1994; “Equilibrium and polarity”, em
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Victor Grippo, na Ikon Gallery, Birmingham, e Palais des Beaux-Arts, Bruxelas,


1995; “The amorphous us”, em Derek Boshier, no The Contemporary Arts
Museum, em Houston, 1995; “The proposal of Lygia Clark”, em Inside the visible,
an elliptical traverse of 20th century art: in, of, and from the feminine, para o
MIT Press e ICA, Boston, em 1996; “The Museum of Space-Time” (‘El Museo
de Espacio-Tiempo’), Remota — Eugenio Dittborn, no Museu de Bellas Artes,
Santiago do Chile, e The New Museum, em Nova York, 1996; “Brevity and toil”
(‘Brevedad y faena’), Rainer Krause: paisajes marginales/Las Listas, no Museu de
Bellas Artes, Santiago do Chile, 1996; “David Medalla”, Life/Live, ARC – no Museu
d’Art Moderne de la Ville de Paris, 1996; “Everything simultaneously present”,
Tunga: 1977-1997, no Bard College, Nova York, 1997; e, “Lygia Clark: seis células”,
Lygia Clark, na Fundació Antoni Tapies, Barcelona, 1997, entre muitos outros.
Se essas listas demonstram a significativa posição internacional de Guy
como crítico de arte, em grande parte, foi apenas a partir de 2000, talvez devido
à abertura da Tate Modern e sua ênfase na arte moderna e contemporânea inter-
nacional, que Guy, embora ainda permanecendo independente, começou a ser
mais frequentemente solicitado a contribuir com ensaios e a realizar curadoria
de exposições em uma grande instituição do Reino Unido. Sua colaboração com
o InIVA, fundado em 1994, sob a presidência de Stuart Hall e direção de Gilane
Tawadros, é muito extensa para ser incluída aqui, mas também constitui outro
aspecto de seu apoio à abertura do pensamento cultural britânico a um conjunto
mais diverso e internacional de pensadores da arte, quer eles estivessem vivendo
no Reino Unido ou não.19 Hoje, com a chamada virada decolonial, o trabalho de
Guy e suas muitas lutas parecem ainda mais pertinentes. Ao compilar este,
reconhecidamente limitado, esboço do corpo de trabalho de Guy que é muito
mais amplo e complexo do que foi aqui apresentado, desejo lançar luz sobre o
que tem sido uma abordagem pioneira, poética e perspicaz para o que hoje é
amplamente descrito como “decolonialidade” na esperança de que a recente
onda de interesse por esse assunto possa construir algo maior também a partir
dele, e que a própria decolonialidade prove que não é apenas outra moda
passageira do mundo da arte.
Londres, abril de 2021

19
Entre os trabalhos publicados de Guy pelo inIVA estão seus livros sobre Medalla, Li Yuan-chia e a
sua própria coleção de ensaios Carnival of perception.
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Michael Asbury é professor associado de história e teoria da arte e diretor adjunto


do Research Centre for Transnational Art, Identity and Nation (TrAIN) na University of
the Arts London. Reconhecido internacionalmente como especialista em arte moderna e
contemporânea do Brasil, publicou extensivamente e foi curador de inúmeras exposições no
Reino Unido, Europa e América Latina.

Tradução de Felipe Scovino


Revisão técnica de Michael Asbury

Referências

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anos 60. In: Encontros fundamentais: IAC 20 anos. São Paulo: UBU editora, 2020.

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Takis. London: Tate Modern, 2019. (Catálogo de exposição).

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BRETT, Guy. Introduction. In: Carnival of perception: selected writings on art. London:
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BRETT, Guy. The century of kinesthesia. In: BRETT, Guy (ed.). Field Forces: phases of the
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BRETT, Guy. Brazilian artists in Britain. In: Britain and the São Paulo Biennial: 1951-1991.
London: The British Council, 1991.

BRETT, Guy. Preface. In: Transcontinental: nine Latin American Artists. London: Verso, 1990.

BRETT, Guy. Internationalism among artists in the 60s and 70s. In: The Other Story.
London: The Hayward Gallery, 1989. (Catálogo de exposição).

BRETT, Guy. Terre et musée − local et global. Les Cahiers du Musée d’Art Moderne, 1989.
(Reeditado em inglês como “Earth and Museum − Local and Global”, Third Text, London, n. 6,
primavera 1989.)
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BRETT, Guy. The Fad. In: Lives: an exhibition of artists whose work is based on other peoples’
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BRETT, Guy. Chinese peasant painting from the Hu County, Shensi Province, China. London:
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BRETT, Guy. Kinetic Art: the language of movement. London: Studio Vista, 1968.

BRETT, Guy. Delacroix. The Masters Series, 15, Knowledge Publications, Fratelli Fabbri
Editori, 1963

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theguardian.com/artanddesign/2021/mar/30/guy-brett-obituary. Acessado em 22 abr. 2021.

MAURICIO, Jaime. Sergio Camargo em Londres, Correio da Manhã, 20 jan. 1965.

MULLINS, Edwin. This Other – and unnecessary Eden. Sunday Telegraph, London, 4 mar.
1969.

Como citar:
ASBURY, Michael. Além do Brasil: lembrando Guy Brett através de seus próprios
olhos. Trad. Felipe Scovino. Arte & Ensaios, Rio de Janeiro, PPGAV-UFRJ, v. 27, n. 41,
p. 378-407, jan.-jun. 2021. ISSN-2448-3338. DOI: https://doi.org/10.37235/
ae.n41.20. Disponível em: http://revistas.ufrj.br/index.php/ae
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Arte & Ensaios


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América Latina | Arte & Combate


Latin America | Art & Combat

Michelle Farias Sommer


0000-0002-8689-2622
mihsommer@gmail.com

A convite da crítica de arte francesa Catherine Millet, o antropólogo


chileno Diego Milos e eu assumimos a coedição de uma edição especial da
revista Artpress − revista de artes mensal francesa publicada desde 1972 −
para nos concentrar em discussões da prática artística latino-americana da
atualidade.1 A publicação, ocorrida em março de 2020, reuniu 27 textos de 17
autores entre pesquisadores latino-americanos de distintos países selecionados
pelos coeditores para a produção de ensaios críticos inéditos. Praticamente a
totalidade dos textos, independentemente da nacionalidade de seus autores,
é marcada por discussões sobre os combates políticos, éticos e ambientais
enfrentados pela América Latina contemporânea e o modo como a arte responde
− e se responde − aos desafios do presente.
Para a edição n. 41 da Arte & Ensaios − Cânones em Rotação −, o dossiê
América Latina | Arte & Combate apresenta-se como uma compilação de textos
produzidos a partir de práticas artísticas, curatoriais e/ou institucionais em
ocorrência na Argentina, no Brasil, Chile e México, que são agora publicados
em suas línguas originais. O conjunto de textos selecionados − uma entrevista
Figura 1 e quatro textos críticos produzidos por Andrea Giunta (Argentina), Amanda de
Cholita Chic, La emancipación la Garza Mata (México), Clarissa Diniz (Brasil), Rodolfo Andaur (Chile), Igor Moraes
de Las Ñustas, photography
print on canvas 150 x 180cm,
Simões (Brasil), bem como pela autora deste dossiê − anuncia a emergência de
2018 narrativas de esgotamento e resistência baseadas em histórias à margem. Nesse

1
Millet, Catherine; Milos, Diego; Sommer, Michelle Farias. Artpress hors-séries Amérique Latine
Arts et Combats, 2020. Paris. 130pp. ISSN 0245-5676. Disponível em: https://www.artpress.com/
PPGAV/EBA/UFRJ
Rio de Janeiro, Brasil
wp-content/uploads/woocommerce_uploads/2020/03/Art-press-HS-N53-.pdf. Agradeço a Andrea
ISSN: 2448-3338 Giunta, Amanda de la Garza Mata, Clarrisa Diniz, Rodolfo Andaur e Igor Moraes Simões a cedência dos
DOI: 10.37235/ae.n41.21 textos para a composição deste dossiê (além da interlocução de sempre).
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agora, considerando cânones em rotação, situar outros pontos de vista a partir da


América Latina e seus contextos, é dar continuidade a giros a la América Invertida,
de Joaquim Torres-Garcia (1943): ampliando-se perspectivas, no compromisso
com a afirmação e visibilidade de conhecimentos e práticas procedentes da
América Latina, impulsiona-se também a inscrição igualitária das historiografias
em construção no século 21.
Na entrevista “Poéticas situadas”, realizada por mim no primeiro semes-
tre de 2019, a historiadora da arte, pesquisadora e curadora argentina Andrea
Giunta dá seguimento a seu discurso e prática militante, feminista e decolonial,
crítica e curatorial, já implantada na exposição itinerante Mulheres radicais: arte
latino-americana 1960-1980,2 cocurada por Cecilia Fajardo-Hill e Giunta, que
afirma: “La curadoria, junto a las perspectivas críticas de la historia del arte,
son instrumentos de transformación”. Entre insurreições lexicais, reversões
epistêmicas e novas inscrições vocabulares no debate sobre a desestabilização
da linguagem dominante, tomam-se as expressões “ativismo”, “arte útil” e “usos
da arte” para pensar a função social da arte em práticas curatoriais e artísticas
politicamente comprometidas com as questões sociais. Pergunta-se: quais são
os limites entre as possibilidades de a arte ser um instrumento para transfor-
mações e ser instrumentalizada por ideologias políticas?
A curadora, historiadora da arte e poeta mexicana Amanda de la Garza
Mata é atualmente diretora do Museo Universitario Arte Contemporáneo (MUAC)
vinculado à Universidade Autônoma do México (UNAM). É a partir desse contexto que
la Garza pensa sobre o(s) lugar(es) da arte e escreve o texto “Algunas preguntas
sobre el arte contemporáneo en México. Tableros, posiciones y cambios de juego”.
Tendo como norte as perguntas ¿Cómo describir una escena compleja, proble-
mática, compuesta de corrientes, placas tectónicas y puntos ciegos? ¿Dónde
ocurre el arte?/¿Quiénes están narrando el arte?/¿Institución o independencia?,
as posições discursivas da autora partem da observação de práticas em realização
em instituições públicas e privadas, bem como da importância de espaços
independentes e agentes específicos que influenciam jogos em um campo da
arte em constante disputa no contexto mexicano.

2
A exposição, curada por Andrea Giunta em conjunto com Cecilia Fajardo-Hill, foi montada em Los
Angeles (Hammer Museum) em 2017, Nova York (Brooklyn Museum) e em São Paulo (Pinacoteca),
ambas em 2018.
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No ensaio “Em torno da ordem: arte e instituições no Brasil de agora”,


a curadora e professora brasileira Clarissa Diniz − reunindo em seu currículo
experiências institucionais diversas que lhe conferem, também, um olhar agudo
sobre o tema − realiza um exercício de síntese contundente ao analisar as
respostas institucionais (ou a ausência delas) à sequência recente de boicotes
e censuras a exposições e ações artísticas que marcaram o campo institucional
da arte no país em 2017 e 2018. E aponta que a agenda de valores que conduziu
o debate político nas últimas eleições presidenciais (2018) orientou igualmente
as instituições: “enquanto algumas parecem ter fincado o pé na contramão do
conservadorismo do país, outras sucumbiram a ele”.
Rodolfo Andaur é curador e gestor cultural nascido em Tarapacá, norte do
Chile. Suas práticas de escrita, realização de exposições, metodologias e seus
projetos são impulsionados por um compromisso curatorial e político: dar
visibilidade à produção artística chilena que está além das que ocorrem na
capital, Santiago. No texto “Nuevas latitudes del arte contemporâneo” Andaur
debate a irrupção de novos formatos expositivos e a política de financiamento
público de projetos de artes visuais no Chile após 2018.3 O despertar criativo que
dinamizou o trabalho coletivo e colaborativo no sul e norte do Chile é apontado
a partir de práticas artísticas autogestionadas em cidades como Arica, Iquique,
Coquimbo, Valparaíso, Concepción, Temuco e Punta Arenas. Em comum, essas
práticas apresentam debates que estão além das próprias fronteiras, a construção
de memória histórica, a exposição da realidade indígena e a sustentabilidade
ecológica.
O professor e doutor em história, teoria e crítica da arte Igor Moraes
Simões trabalha na interface entre exposição, montagem fílmica, histórias da
arte e racialização, e sua voz é importante contribuição às lutas pela visibilidade
de sujeitos negros nas artes visuais brasileiras. Em “Vozes negras e suas amplifi-
cações nas artes visuais brasileiras”, Simões aponta para a urgência de repensar
a historiografia da arte a partir da inserção de questões de negritude como item
absolutamente fundamental para os empreendimentos teóricos de hoje. Concen-
trando-se na análise de contribuições de teóricos e artistas negros, o autor

3
O texto foi publicado posteriormente em: https://letargo.cl/Nuevas-Latitudes-del-Arte-Con-
temporaneo.
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assinala: “As artes visuais no Brasil sempre foram lugar marcado pela presença
de mãos negras”.
Entre a produção de ensaios críticos para a Artpress ao longo de 2019, a
publicação da revista em março de 2020 e a elaboração do dossiê América Latina|
Arte & Combate, no início de 2021, o mundo mudou. Naquele agora − antes de
um fim de (um) mundo imposto pela disseminação da Covid-19 − os ensaios
escritos apresentados aqui já apontavam para condições dramáticas de trabalho
e possibilidades institucionais muitas vezes inexistentes. E, apesar de, registravam
também, em paralelo, a ocorrência da experimentação de novas epistemologias
na arte que − oxalá! − lancem algum oxigênio em direção a outras formas de
existência-resistência em construção em uma América Latina tão diversa e plural.

Michelle Farias Sommer é escritora, pesquisadora e pós-doutoranda


em Linguagens Visuais na EBA/PPGAV/UFRJ (desde 2017)
com bolsa Capes/PNPD.

Dossiê submetido em março de 2021 e aprovado em junho de 2021.

Como citar:
SOMMER, Michelle Farias. Dossiê América Latina | Arte & Combate. Arte & Ensaios,
Rio de Janeiro, PPGAV-UFRJ, v. 27, n. 41, p. 409-413, jan.-jun. 2021. ISSN-
2448-3338. DOI: https://doi.org/10.37235/ae.n41.21. Disponível em: http://
revistas.ufrj.br/index.php/ae
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Poéticas Situadas
Situated Poetics
Entrevista com Andrea Giunta
por Michelle Farias Sommer
Andrea Giunta’s interview
by Michelle F. Sommer

Em sua prática crítica e curatorial ativista, Andrea Giunta tem proble-


matizado, a partir de perspectivas feministas e decoloniais, as insistentes
invisibilidades e lacunas de representação na história da arte do passado e
do presente, em simultâneo. Nesta entrevista, estão em debate a construção de
léxicos que desestabiliza a linguagem dominante, ativismo e função social
da arte hoje, pensando também sobre o poder das imagens em circulação
na sociedade em rede. Mediante sua prática, Andrea Giunta é peça funda-
mental na transformação da historiografia da arte latino-americana do aqui
e agora em direção a um depois.
Michelle Sommer

MS / Recientemente una serie de exposiciones se han propuesto revisar


la historiografía del arte latinoamericano a fin de atentar contra las lagunas de la
historia del arte del siglo XX. La exposición Mujeres radicales: arte latinoameri-
cano 1960-1985 es un ejemplo en esa dirección. En su práctica curatorial hoy,
pensando en el desafío de realización de una bienal en el siglo XXI en un
contexto represor, cuáles son las estrategias y metodologías empleadas para
evitar nuevas invisibilidades y enfrentar los riesgos de la construcción de la
historiografía del arte del presente?
AG / Radical Women es un proyecto muy diferente que el que involucra
una bienal. Radical Women fue una exposición histórica, cuyo propósito fue
revisar los años 60-80, y, por supuesto, dar nueva visibilidad a artistas que
fueron muy destacadas en esos años y que luego quedaron fuera de los relatos
PPGAV/EBA/UFRJ
nacionales del arte latinoamericano y también del relato regional. En tal sentido,
Rio de Janeiro, Brasil una exhibición histórica requiere investigación sistemática, a fin de revisar todo
ISSN: 2448-3338
DOI: 10.37235/ae.n41.22 el período. Una bienal no trabaja desde tales puntos de partida, se centra más
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en abordar un problema y plantear interrogantes, que se investigan desde la


selección de obras. Cuando me invitaron a curar la bienal, a partir de la selección
de proyectos, las elecciones presidenciales aún no habían sucedido. Querían
hacer una bienal sobre lo femenino, sobre las mujeres, sobre la sexualidad y su
problematización. La propuesta resultaba una continuación lógica del proyecto
que estaba finalizando, Radical Women. La bienal me permitía investigar otros
contextos, más allá de América Latina, y también ir más allá de la categoría
mujeres. En tal sentido, estoy trabajando con conceptos y geografías más
amplios. Pienso que en un contexto de censura y vigilancia sostener un proyecto
de creatividad que expande nociones establecidas en el mundo del arte es una
forma de establecer una apertura, un espacio de intercambios y de comunicación.
Es una forma de resistencia, de mantener valores humanos que hemos conquis-
tado y de celebrarlos, y también de señalar zonas de borramientos.
Si bien no puedo adelantar mucho sobre la bienal, ya que las incógnitas
son parte de sus estrategias, si puedo decir que la selección de artistas en la que
estamos trabajando moverá de una manera clara las establecidas restricciones
del mundo del arte, que van más allá de quien esté en el gobierno. Tenemos
que interrogar el mundo del arte en su propia estructura para preguntarnos si
no existe una forma de censura sistémica, inherente a su funcionamiento, que
excluye demasiadas voces. Se trata de un mundo predominantemente blanco,
patriarcal y socialmente selectivo. Quienes pertenecen a clases medias y altas,
quienes pueden hablar inglés, quienes pueden viajar, tienen más posibilidades
de pertenecer a ese mundo. Si las mujeres son más de la mitad de la población
del mundo, si ellas representan más del 60 % de la población estudiantil en las
escuelas de arte, ¿no resulta paradójico, contradictorio, que, en el mejor de los
casos, las artistas mujeres representen el 30% del mundo del arte? Si en Brasil
más de la mitad de la población del país es negra, ¿no resulta paradójico que
artistas mujeres y varones negros representen el 1% del mundo del arte?
También se está señalando la no representación de la población y la cultura indí-
gena en el mundo del arte. Entonces la exclusión, la censura, opera de una forma
sistémica, no enunciada, en el propio mundo del arte. Y no se trata de trabajar con
estadísticas, estas son solo estrategias para volcar en número exclusiones que
afectan el mundo de lo sensible y del conocimiento estético. Por el contrario, no
presentaremos la bienal desde las estadísticas, ya que uno de nuestros objetivos
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es abordar la diferencia sin diferenciación. No vamos a decir cuántas mujeres,


cuantos varones, cuantos artistas negrxs o indígenas estamos incluyendo. Pero
estarán, y con sus obras subvertirán el universo de lo que conocemos del mundo
del arte tal como hasta ahora se ha planteado, muy especialmente en Brasil. La
pregunta importante es, entonces, qué es lo que nos estamos perdiendo, qué es
lo que no estamos pudiendo ver. La bienal quiere destacar esto y abordarlo desde
la selección que se está planeando. No he respondido en detalle, pero estoy
proporcionando varias claves para anticipar los propósitos de la bienal.
MS / Se percibe la emergencia de un ‘furor del margen’ en prácticas cura-
toriales como parte constituyente del ‘estado del arte’ hoy. Estas prácticas arrojan
luz a las narraciones hasta entonces ausentes y son, en su mayoría, impulsadas
por estudios postcoloniales y cuestionamientos sobre identidad de género. En
paralelo, ocurre también una nueva construcción de léxicos que desestabilizan
el lenguaje dominante. ¿Está en curso un giro lexical en las artes? ¿Es posible
pensar en especificidades de lenguaje en el contexto latinoamericano hoy,
considerando complejidades culturales y políticas?
AG / Sin duda estamos inmersos en un giro lexical. Aunque no se trata,
exactamente, de inventar términos, sino de reponer y dar prioridad a aquellos
que señalaron los propios artistas – por ejemplo, los artistas latinoamericanos
– cuando denominaron a sus poéticas con nombres específicos (antropofagia,
muralismo, madi, Martin Fierro, Perceptismo, Signo, entre miles de nombres
acuñados para denominar lo que proponían) en lugar de los coloniales gestados
en el eje euronorteamericano (surrealismo, conceptualismo, minimalismo, para
mencionar tan solo algunos). El arte latinoamericano ha sido predominantemente
analizado como periférico o derivativo, cuando en verdad los programas de los
artistas latinoamericanos, al menos desde la Segunda Gran Guerra, fueron
concebidos desde un espíritu de innovación y originalidad. En el libro que estoy
publicando a fin de año con la editorial Siglo XXI, planteo que después de la
Segunda Gran Guerra las vanguardias (o las neovanguardias) se volvieron simul-
táneas, sucedían en dinámicas que ya no estaban en la relación derivativa o de
dependencia que antes se suponía (aunque yo considero que esta valoración
también es errónea), cuando los artistas iban a Paris a estudiar, a aprender los
principios de la modernidad artística. Entiendo que la modernidad latinoameri-
cana también fue simultánea, no derivativa: las relaciones estilísticas no bastan
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para sostener que el arte latinoamericano es derivativo respecto del europeo,


porque entonces habría que decir que el arte moderno europeo, por ejemplo el
cubismo, es derivativo respecto del arte africano, la gran matriz del arte moderno.
Desde mi perspectiva la noción de margen también es colonial, tanto como
la de descentramiento. Ya que ¿se es margen respecto de qué? ¿de un centro
que sigue regulando una relación de identidad?, el arte latinoamericano seria el
margen de... o descentrado respecto de... Yo prefiero referirme a simultaneidades,
tiempos específicos, poéticas situadas, no a márgenes o descentramientos.
A esta complejidad hay que añadir que las historias del arte del siglo 20
y aun 21 borran el arte que sucede fuera del eje euronorteamericano. En tal
sentido podrían considerarse incompletas, parciales. Son historias provinciales,
porque relatan la historia del arte de una parte del mundo, y a la vez coloniales
o imperiales, porque entienden que el arte que se hizo en estas provincias del
mundo es el arte del mundo. Una triste ceguera que impide apreciar aquello que
el arte hace: contribuir a conocer culturas, afectos, sensibilidades diversos. Los
relatos reductivos dominantes impiden aproximarse al arte en toda su comple-
jidad y riqueza. Creo que esto quedó claramente expuesto cuando, como signo
de protesta contra los países ‘censurados’ por las políticas migratorias de Trump,
el MoMA saco de sus reservas obras de artistas de los países penalizados y las
coloco entre los Picasso y los Matisse. Se recortaba en esas obras un fulgor ines-
perado, sorprendente, bello, complejo, que quebraba lo que conocemos sobre la
colección del museo. Cuando decimos que el arte del mundo es el que se realiza
en Europa o en los Estados Unidos, nos estamos perdiendo el arte del mundo.
Me parece importante resaltar, entonces, que el giro lexical no radica en
inventar nombres, en idear un léxico, sino en dar visibilidad a nombres que
remiten a poéticas borradas.
Cuando co-curé con Agustín Perez Rubio la exposición Verboamérica,
partiendo de la colección del Museo de Arte Latinoamericano de Buenos Aires,
incluimos en el catálogo un glosario de los términos que se vinculaban a las
poéticas de los artistas de la exposición. Y fuimos más allá de los movimientos
artísticos. El glosario comienza con el término activismo, porque el activismo
es central en la articulación de muchas vanguardias latinoamericanas, ya desde
los años 1920. Anarquismo, peronismo, comunismo, guerrilla, se vincularon a
las poéticas latinoamericanas. Estos términos estaban fuera de una historia que
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se narraba desde los términos estilísticos cubismo, futurismo, surrealismo,


conceptualismo (colonialmente reinscripto como ‘conceptualimo político’).
Entiendo que la curaduría, junto a las perspectivas críticas de la historia
del arte, son instrumentos de transformación. Revisan, investigan, reconceptua-
lizan, transforman los relatos establecidos y proponen nuevas interpretaciones.
Las estrategias curatoriales están modificando normas de lectura, desde una
perspectiva feminista y desde una perspectiva decolonial.
MS / Retomo el vocablo activismo para pensar acerca de prácticas
curatoriales y artísticas políticamente comprometidas con cuestiones sociales
hoy. En 1980, la crítica de arte Aracy Amaral publica el libro Arte para qué? La
preocupación social en el arte brasileño 1930-1970, debate sobre la participación
del artista en la sociedad, ampliando la investigación para el contexto latinoame-
ricano. En ese mismo año, el crítico de arte Mário Pedrosa (1900-1981) firma
la ficha número 1 del Partido de los Trabajadores, al lado de Luiz Inacio Lula da
Silva: un gesto que simboliza fuertemente el debate sobre la función social del
arte, tema sobre el cual se concentró a lo largo de toda su trayectoria crítica.
Desde finales del siglo 20 hasta ahora, términos como arte útil, usos del arte,
entre otros, parecen haber ganado fuerza. En ese contexto – la función social
del arte hoy – cuáles son los límites entre el arte ‘ser un instrumento para’ y ‘ser
instrumentalizado por’?
AG / Me complace que menciones ese libro de Aracy Amaral, ya que es un
libro singular, sobre todo en el contexto de la historiografía del arte brasileño
que por muchos años fue predominantemente formalista – algo que está
modificándose en los últimos tiempos: pienso, por ejemplo, en el estudio de
Claudia Calirman sobre artistas extraordinariamente políticos que actuaron
durante la dictadura brasileña. La historia del arte en Brasil se articula desde un
modelo evolutivo de las formas que culmina en la abstracción. Y este modelo
se ha exportado. La abstracción es la alfombra mágica para globalizar el arte
latinoamericano. Pero por supuesto, a pesar de sus texturas, una alfombra es
plana, y el arte está llego de rocas y orografías que lo hacen fascinante. El libro
de Aracy representó una interrupción interesante. Es deslumbrante que señales
la simultaneidad entre ese libro y la fundación del PT, no recuerdo haberla
percibido. Es sumamente interesante.
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Mi punto de partida es nunca decirle al arte qué debe ser. Me interesa lo que
sucede sin exaltar ni demonizar. Porque de lo contrario estaríamos ubicándonos
nuevamente en las largas y extenuantes polémicas respecto de la relación entre
el arte y la política. Fueron esas polémicas, características de los años 1960, post
revolución cubana, pre-68, las que llenaron páginas que iban de Galvano della
Volpe a Brecht, por citar tan solo algunos de los referentes que se citaban, las
que me llevaron a interesarme por los procedimientos que habían permitido a
una obra erigirse con el poder de las imágenes desde 1937 en adelante. Me
refiero a Guernica. Lo que para mí fue extraordinario fue encontrarme con que en
esos largos artículos, escritos en una tipografía apretada, textos que no te dejaban
respirar, el ejemplo que se enarbolaba, una y otra vez, como unión perfecta del
arte con la política, era el Guernica de Picasso. Lo curioso – y absurdo – para
mi era que en esos años 1960, cuando el arte se desmaterializaba, cuando el
cuerpo femenino y masculino irrumpían como territorios a explorar, cuando
la autonomía del lenguaje artístico estallaba en el lenguaje de los desechos, la
basura, las substancias del cuerpo, la acción, la intelectualidad de izquierda
encontraba que el ejemplo perfecto a sus búsquedas era un cuadro realizado 30
años antes (!) Entonces, me interesa pensar que el arte es lo que tiene que ser en
cada coyuntura, sin prescripciones ni proscripciones. Me interesa luego interrogar
el pasado y el presente y ahí si, hago mis propias selecciones.
Probablemente la pregunta central que recorre todas mis investigaciones
tiene que ver con el poder de las imágenes y del arte. Qué es lo que en ellas se
condensa, qué es lo que ellas detonan. Una imagen, una obra, es un objeto, una
superficie, animada simultáneamente por una fuerza centrípeta y centrífuga. En
ella se funden mundos, conocimientos, deseos, proyectos, y ellas se depositan,
actualizadas (su condición anacrónica hace esto posible, se trata de imágenes
que actúan en distintos tiempos, más allá de aquél en el que fueron concebidas)
en distintos presentes, activan a distintos públicos. No me interesa la mirada
curatorial que dictamina, muchas veces sin mirar con cuidado, qué es bueno
qué no, qué es acertado qué no. En tal sentido, soy más una historiadora frente
al paisaje de lo que fue, que se interroga sobre las razones por las que una obra
impacta en sus públicos, es celebrada o censurada, es objeto de debates, de
deseos de poseerla o de controlarla. Así sucede, evidentemente, con Guernica,
una obra tan poderosa, que es la fuerza central de un museo como el Reina Sofía,
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a su pesar: invito a permanecer diez minutos en la puerta del museo y oir cuantas
veces el público pregunta “dónde está el Guernica”. A mi me interesa saber por
qué sucede eso.
Ahora bien, volviendo al activismo, creo que es sumamente interesante
analizar el activismo artístico en sus propias claves. Actualmente soy una acti-
vista en un grupo artístico feminista. Y me interesa sobremanera constatar hasta
qué punto las prácticas generan teoría. Para mi es una experiencia de extremo
conocimiento nuevo participar de las acciones. El activismo ha acumulado una
historia específica de sus prácticas. Es profundamente variado, trabaja con
estrategias diversa, poéticamente conmovedoras. Cito un ejemplo: en marzo de
2018 quisimos visibilizar hasta qué punto el montaje de la colección del Museo
Nacional de Bellas Artes de Argentina era patriarcal. Sobre 250 obras solo 22
eran de artistas mujeres. Entonces propusimos al director que el 8M se apagasen
las luces de las salas y se encendiesen solo las de las obras de las artistas
mujeres. El museo quedó casi a oscuras. Los focos generaron imágenes pode-
rosas, bellas, poéticas, políticas. También hemos proyectado en los edificios de
la ciudad frases en favor de la legalización del aborto en la Argentina, y ver esas
constelaciones de palabras en los edificios de la ciudad, más allá de su contenido
político, es bello. El activismo es más eficaz cuando se articula desde imágenes
poderosas. Esta es una conclusión a la que arribo, no una premisa, no una receta,
menos un mandato.
MS / Retorno al tema sobre el poder de las imágenes y del arte. Pensando
a partir de Guernica − una de las imágenes más representativas de la historia del
arte del siglo 20 − es posible apuntar el pictórico como lenguaje artístico principal
dominante en la construcción de narrativas imagéticas de aquel período que
tiene el museo como espacio guardián de su exhibición. En el siglo XXI, platafor-
mas como el Facebook e Instagram han sido utilizadas como herramientas para
producción y circulación de prácticas artísticas, entre otras. ¿Cuáles serían las
imágenes representativas de la historia del arte de las primeras dos décadas de
ese siglo considerando la sociedad en red? Y ¿especulando sobre futuros (tal
vez apocalípticos), cuáles serían los espacios guardianes de esas imágenes en
20 años?
AG / Es una pregunta interesante que no sé si puedo responder. Pienso
que lo pictórico tiene un carácter condensador de la imagen que le confiere un
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aura adicional al poder de la fotografía. Trabajé hace unos años sobre los
retratos de Eva Perón. Me interesó el hecho de que la imagen “oficial” de Evita
no proviene de una fotografía sino de una pintura – que a su vez se inspiró en un
conjunto de fotografías. No pude explicar las razones, solo pude especular que
en la pintura se producía una condensación de los rasgos de Eva y que, además,
por tratarse de una pintura, poseía un aura de arte que la elevaba por sobre la
copia analógica de su propio rostro. Pero no pude demostrar mi hipótesis, solo
dejarla en suspenso. Analizado históricamente, puedo decir que el poder de las
imágenes se basa en el efecto que han producido en distintos públicos, efecto
que no es independiente de la configuración específica de las imágenes. Guernica
por su tamaño, su composición, su paleta, es una obra impactante, más allá de
las circunstancias a las que se vincula. Pensando en obras que han producido
debates intensos agregaría Diner party, de Judy Chicago, o La civilización
occidental y cristiana, de León Ferrari. En las últimas dos décadas puedo decir,
por ejemplo, que obras que produjeron intensos debates, como el tiburón de
Damien Hirst, probablemente perduren como síntoma de una época, más allá
de su existencia futura real. En cuanto a la sociedad en red, no imagino las formas
de perdurar. He expuesto obras creadas a partir de los imaginarios que crea
Facebook, basadas en la creación de comunidades en red articuladas a partir
de los deseos, e investigo artistas que construyen identidades para sitios de
citas o para Instagram, identidades queer que se espejan en las redes para crear
dispositivos de auto representación. Me interesa, es un síntoma de época, aun
cuando encuentro sus procedimientos y, sobre todo, sus imágenes, extraordina-
riamente repetitivos. Pero no puedo decir nada acerca de su capacidad de
perdurar. Sabemos que el universo digital nació con dificultades. La conversión
de las imágenes en la medida en que los software se reemplazan no fue en un
principio óptima. Lo que nos queda de las experiencias tempranas – pienso en los
años 1990 – son las imágenes impresas. En tal sentido, creo que por el momento
el poder de las imágenes en red se verifica más en relación a su capacidad de
dirigir el humor social – instrumentada en relación con la política – que en sus
efectos estéticos, museográficos, patrimoniales. El mundo del arte sigue toda-
vía regulado por el mercado que compra y vende, o por el coleccionismo de las
obras. Se coleccionan videos que muchas veces se exhiben en sala, al lado de
las pinturas, objetos, archivos. Pero encuentro que el arte que se realiza en red para
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ingresar en la museografía generalmente lo hace impreso. Existen instituciones


que conservan los videos, como Videobrasil, en São Paulo, y los museos están
trabajando en la formación de departamentos digitales, pero es un proceso lento
que no acompaña la actividad artística que se desarrolla en las redes. ¿Quienes
guardaran esas obras en 20 años? Realmente, no lo sé.

Andrea Giunta is a curator, reseacher and professor at Buenos Aires University,


Argentina, and visiting scholar at the University of Texas, Austin. She is the
author of several books that include Avant-garde, Internationalism and Politics.
Argentine Art in the Sixties (Durham, Duke University Press, 2007), Poscrisis.
Arte argentino después del 2001 (Buenos Aires, Siglo XXI, 2009), Escribir las
imágenes. Ensayos sobre arte argentino y latinoamericano (Buenos Aires, Siglo
XXI, 2011). In 2018 it was published her book Feminismo y arte latinoamericano.
Historias de artistas que emanciparon el cuerpo (Siglo XXI). Co-curator of the
exhibitions Radical Women. Latin American Art, 1960-1985 (Hammer Museum,
Brooklyn Museum and Pinacoteca de São Paulo, 2017-2018); Verboamérica
(MALBA, 2016-2018), Extranjerías (MUAC, México, 2012), she is now the curator
of the Bienal 12. Porto Alegre, opened in April, 2020.

Como citar:
SOMMER, Michelle Farias. Poéticas Situadas — Entrevista com Andrea Giunta.
Arte & Ensaios, Rio de Janeiro, PPGAV-UFRJ, v. 27, n. 41, p. 414-422, jan.-jun.
2021. ISSN-2448-3338. DOI: https://doi.org/10.37235/ae.n41.22. Disponível
em: http://revistas.ufrj.br/index.php/ae
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Algunas preguntas sobre el arte contemporáneo en México.


Tableros, posiciones y cambios de juego
Some questions about contemporary art in Mexico.
Boards, positions and game changes

Amanda de la Garza Mata


amanda.delagarza@muac.unam.mx

¿Cómo describir una escena compleja, problemática, compuesta de


corrientes, placas tectónicas y puntos ciegos? ¿Dónde ocurre el arte?/¿Quiénes
están narrando el arte?/¿Institución o independencia?
Las preguntas que he formulado parten de un contexto, por un lado, un
interés internacional por lo que sucede en el país, tanto a nivel de la producción
artística como institucional, y por el otro, un contexto político y social convulso.
Esta escena artística no podría ser ajena al tiempo social de donde surge. Mi
descripción parte de los posicionamientos discursivos que surgen en las insti-
tuciones públicas y privadas, así como de la importancia que tienen hoy los
espacios independientes, pero también a partir de agentes específicos, en tanto
tienen un grado de influencia en un campo en disputa. Los forcejeos son discur-
sivos, económicos, atienden a lógicas de dominación y poder dentro y fuera del
campo artístico. Por su parte, la escena global del arte está plagada de asimetrías,
el lenguaje internacional y sus rutas de circulación están sustentadas a la vez
que ocultan una política de fuerzas y de relaciones todavía coloniales.
La ecología cultural en México es actualmente diversa y diferenciada. El
arte ocurre en un entorno institucional consolidado al mismo tiempo que en una
escena independiente con una actividad febril. Sin embargo, esta burbujeante
y delirante realidad no solo parte de la enorme energía artística sino de la
precariedad económica del sistema, así como de la ausencia o la incapacidad
de espacios institucionales para contener el flujo de la discusión que ocurre en
estos espacios, a la par que a las enormes carencias que las universidades
PPGAV/EBA/UFRJ tienen en materia de formación artística.
Rio de Janeiro, Brasil México ha tenido en los museos y en el arte una política de Estado,
ISSN: 2448-3338
DOI: 10.37235/ae.n41.23 herencia del siglo 20. Es uno de los países de la región con mayor consolidación
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institucional en el ámbito público. Tan solo en la Ciudad de México, la UNAM


(la Universidad Nacional) cuenta con cinco museos de diferentes escalas. A
los museos de la UNAM se suman los directamente vinculados al Ministerio de
Cultura. El sistema de museos en México se ha sustentado bajo la idea de la
cultura pública, deudor del modelo francés. Sin embargo, el cambio de juego en
las últimas décadas puede remitirse institucionalmente a dos momentos: el
surgimiento de nuevos agentes institucionales provenientes del mundo privado
(museos, fundaciones, ferias y galerías) y la reactivación de las lógicas de
producción independiente. Este fenómeno forma parte del ingreso de México a
una economía neoliberal, y del cambio de paradigma en términos de la producción
cultural a nivel global.1 Así mismo, el arte contemporáneo en México ha logrado
su inscripción dentro del marco institucional − no solo en la programación de
museo sino de la producción historiográfica a partir de archivos − atraer a
sedientos nuevos públicos, al mismo tiempo que ha logrado inscribirse en el
gusto de ciertas capas sociales.
Los modos de participación de los espacios independientes en la escena
del arte en México ha mutado en las últimas décadas y su relación con el sector
institucional también.2 Los años 1980 y 1990 del siglo pasado estuvieron
marcados por una proliferación de espacios independientes, como resultado, en
ese entonces, de la incapacidad y negativa de las instituciones para inscribir
el arte contemporáneo en la narrativa del arte local. Los artistas que fundaron y
activaron esta escena son quienes por diversos motivos lograron inicialmente
insertarse en el circuito global del arte, en un momento en que las relaciones
Sur-Norte en el circuito artístico eran mucho más desiguales y acendradas.
Artistas como Gabriel Orozco, Yoshua Okon, Abraham Cruzvillegas, Carlos Amorales,
y Francis Alÿs, entre otros, lograron construir una visibilidad fuera de México. Una
vez que la escena institucional cambió, un impasse se apoderó de los espacios
independientes.

1
Para una revisión a fondo de estos procesos se puede consultar: Emmelhainz, junio 2016:
281-305 (traducido al inglés). De igual manera, Medina, 2017 y Debroise, 2017.
2
En el 2015, la artista visual Tamara Ibarra, junto con otros artistas, realizó un mapeo de los
espacios e iniciativas independientes en México y algunos países de América Latina, que se
depositó en la plataforma Yei. Dicha investigación también derivó en una serie de encuentros
de espacios independientes bajo el título de Boomerang.
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El panorama actual de los espacios independientes es vivificante a la vez


que confuso y caótico, en constante reconfiguración por a la mutabilidad y corta
vida de estos espacios. Está marcado por una intensa actividad no solamente en
la Ciudad de México sino en otras capitales del país como Guadalajara, Tijuana,
Monterrey, Oaxaca, entre otras ciudades. Espacios como Cráter Invertido o
Biquini Wax EPS, veteranos en su juventud, han resistido la transformación de
la escena en los últimos diez años. Cráter Invertido no solamente partió de una
abierta convicción política, ligada al ideario zapatista, sino a una agenda autonó-
mica que, no obstante, mantenía una relación tensa con las instituciones y sus
personajes. Esta agenda se ha nutrido a lo largo de los años por la obra individual
de sus participantes y por uno de los brazos más vivos de su producción: la
imprenta risográfica Cráter Invertido.
En consonancia histórica con los artistas y los movimientos estudiantiles
y políticos de los 1960 y 1970, del siglo pasado, muchos colectivos y proyectos
independientes han reivindicado y rectivado la producción editorial autónoma y
de bajo costo. Algunos de los proyectos que han formado parte de este impulso
son: Ediciones Económicas, bajo la batuta de Nicolás Pradilla, el proyecto RBD
de Bruno Díaz, Fiebre Ediciones y muchas otras iniciativas, como la revista
experimental Caniche, de la artista Elsa-Louise Manceaux. Bajo esta misma línea
de trabajo, destaca el espacio Aeromoto: una pequeña colección internacional de
fanzines y libros de artista (ediciones limitadas o tirajes cortos) abierta al público,
tanto de literatura como de arte contemporáneo. Ahí ocurren talleres, presenta-
ciones de libros y un flujo continuo de donaciones de libros peregrinos de todo
el mundo. Este espacio es heredero de las prácticas de archivo emprendidas
por el arte correo y el archivo de libros de artistas impulsado por Ulises Carrión,
Other Books and So, en el Ámsterdam de los años 1970.
Uno de los ejes que ha dirigido la actividad de estos espacios indepen-
dientes ha sido la construcción y discusión en torno a la noción de los colectivos
y lo común; la solidaridad no solo como una forma connatural a la producción
artística sino también como una respuesta a la precariedad económica, a la
competencia feroz y a la escasa circulación en los espacios institucionales y
galerísticos. En este complejo panorama de miradas cruzadas y de respuestas
ante los debates y las agendas sociales destaca también la iniciativa feminista
PRRAS! Ésta busca visibilizar, a través de iniciativas diversas, el trabajo de las
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mujeres en el mundo de la cultura y construir una comunidad feminista a partir


de nociones como las de sororidad.
A diferencia de la radicalidad con la que en otros momentos operaron
globalmente los espacios independientes (por fuera del sistema), su relación
con el ámbito institucional es hoy de cercanía y distancia. Al mismo tiempo, la
consolidación de una escena global del arte ha hecho que su capacidad de
movilidad y contacto con otros espacios similares en muchas otras partes del
mundo sea parte integral de su perfil y actividad. Los espacios independientes
en México gozan hoy en día de un nivel de agencia insospechada, lo cual es un
indicador para pensar que en cierta medida la discusión crítica de las artes se ha
desplazada hacia este ámbito.
¿Cómo se han transformado las preguntas y las prácticas artísticas?
En ese esta cuenta larga de tres décadas, las preguntas y los discursos
han cambiado. Si la narrativa del arte en México ha estado dirigida de manera
predominante desde el centro del país − siempre centralista −, hoy en día hay
otras escenas en diferentes regiones que operan con cierta autonomía frente a
la Ciudad de México.
Desde mi punto de vista, hay tres vertientes prominentes en las prácticas
locales. En las últimas décadas, una de las operaciones artísticas más relevantes
ha sido la deconstrucción de la ideología nacionalista producida por el partido
de Estado, al mismo tiempo que una persistente investigación sobre el recurrente
estado de crisis, la desigualdad y devastación social. El arte en México ha intentado
por varias décadas perforar la gruesa piel de la narración del Estado posrevolu-
cionario, la noción de progreso moderno, así como la herencia pedagógica y
estética del muralismo mexicano. La ciudad y la frontera fueron en los 1990 y 2000
temas privilegiados en la producción artística. La ciudad de México como distopía
y, por otro lado, la frontera entre México y Estados Unidos como parte de este
mismo malestar social. La insurrección indígena zapatista en 1994 tuvo un impacto
importante en este camino. Al mismo tiempo, la guerra contra el narcotráfico y la
violencia de los carteles, agudizada a partir de los 2000, se apoderaron del terri-
torio nacional, en especial de las provincias mexicanas. Ello produjo no solamente
un cambio de juego, sino la aparición de estéticas que abordaron la violencia
generalizada en México. Un ejemplo sumamente destacado es el trabajo de la
artista Teresa Margolles (Culiacán, 1963), primero a través del colectivo SEMEFO
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y luego de manera individual. Propuso una mirada aguda y material sobre los
efectos de la violencia en el espacio público, los cuerpos, el territorio, producto
de la necropolítica del poder.
El norte del país ha sido y es hoy un semillero de artistas que han propuesto
un cambio en términos de las preguntas y formulaciones artísticas. Es el caso
de la artista Fritzia Irizar (Culiacán, 1977), quien ha buscado reflexionar sobre
la condición material del valor en la economía capitalista y sus transmutaciones.
Tal es el caso de la pieza Since Cleopatra (2016), en la que una perla es disuelta
en vinagre, y luego injerida por una persona, en un acto de transformación certi-
ficado por un notario público.
La iniciativa curatorial In Site (1992-2012, cinco ediciones) tuvo una
repercusión importante en la escena artística en México. Su objetivo era intervenir
artística y curatorialmente en la frontera como territorio simbólico y político, pero
también conectar dos ciudades espejo: Tijuana y San Diego, California. Tijuana
vive hoy un renacimiento de espacios independientes y un circuito que está
buscando alternativas por fuera de las instituciones. Algunos ejemplos son los
espacios: Deslave, Relaciones Inesperadas y Periférica. El primero es una inicia-
tiva en la cual participa el artista Andrew Roberts (Tijuana, 1995), quien desde
una estética queer plantea preguntas sobre el mundo digital y sus traducciones
en el mundo real. En este miso panorama norteño, destaca el trabajo de la artista
Chantal Peñalosa (Tecate, 1987), quien aborda la experiencia cotidiana, subjetiva
y gestual del habitar la frontera.
El empeño por deconstruir la ideología nacionalista ha producido un
cuerpo de trabajo muy amplio que ha investigado, a través de medios muy diversos,
la función ideológica de los vestigios arqueológicos prehispánicos. Ello en la
medida en que la arqueología y la antropología fueron piedras angulares en
la construcción del Estado-Nación en México. Un conjunto muy importante
de artistas ha elaborado de diferentes maneras esta temática a lo largo de
su trayectoria: Mariana Castillo Deball, Melanie Smith, Silvia Gruner, Eduardo
Abaroa, Jorge Satorre, entre otros. Esta aproximación deconstructiva empata
también con propuestas que operan desde la crítica institucional. El proyecto del
artista Eduardo Abaroa (Ciudad de México, 1968), Destrucción total del Museo
de Antropología (2012), describe cabalmente estas vertientes. Abaroa diseña un
detallado plan para demoler e implosionar el Museo Nacional de Antropología e
Historia, el epítome de la ideología del régimen y el máximo repositorio de piezas
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prehispánicas. Sin embargo, hacer una crítica al Estado hoy en día también implica
penetrar otras instituciones igualmente importantes. El trabajo de Daniel Aguilar
(León, 1988), desde una estética estrictamente conceptual y un humor sardónico,
centra la mirada en las estructuras de poder económico y sus formas de circula-
ción, así como el vínculo procaz que sostienen con el arte. En la obra Why I was
not your friend? (2016), utiliza el apoyo recibido por la Fundación BBVA para
pagar la deuda de una persona con el nombre homónimo de su padre, quien
años atrás había perdido la casa familiar por una deuda con este mismo banco.
Por otro lado, históricamente las comunidades indígenas contemporáneas
fueron excluidas de la narración histórica, y del pacto social, discriminadas y
marginadas socialmente. La guerrilla indígena y una serie de movimientos indí-
genas a nivel local e internacional han transformado la política en México. En el
arte contemporáneo esta transformación ha sido muy lenta. Sin embargo, hay un
cambio de pregunta. Un ejemplo de ello es la obra del artista Fernando Palma
(Ciudad de México, 1957), quien aborda la cosmogonía del pueblo nahua a partir
de la producción de obras cinéticas hechas de materiales orgánicos y circuitos
mecánicos básicos. En esta misma línea de trabajo está la obra de los artistas
Noé Martínez (Morelia, 1985) y Guadalupe Sosa (Morelia, 1986). En el caso de
Martínez en la obra Un acto antes de un concepto (2016) investiga, a través
de una coexistencia temporal, los relatos de los colonizadores, las reivindicaciones
indígenas de los años 1970, y los movimientos recientes por la autonomía y
autodeterminación de los pueblos originarios, tales como el del pueblo purépecha
de Cherán en el estado de Michoacán. Su práctica vincula mapas, dibujos, videos
y obra en cerámica como una forma de reelaborar la pregunta sobre lo indígena
por medio de una transversalidad histórica. En el caso de la obra de María
Guadalupe Sosa, su obra adquiere una connotación intimista, en la medida en
que la representación pictórica y gráfica de su cuerpo es el lugar donde ocurren
estas relaciones.
El estado de la escena actual es complejo y los detournements son múlti-
ples. Nuevas generaciones empiezan a cambiar la línea de juego. Algunas otras
preguntas relevantes tienen que ver con la revisitación de la pintura como un
lugar de enunciación que lanza preguntas sobre el medio al mismo tiempo que
de orden político, las investigaciones sobre la cultura popular y la herencia del
muralismo. Al mismo tiempo, hay algunas temáticas aún obliteradas, tales como
el racismo histórico y presente.
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Sobre el futuro de las prácticas, podemos alcanzar a describir y enunciar


aquello que está aconteciendo con la esperanza de que nos permita entender, al
menos momentáneamente, aquello que los artistas enuncian sobre el presente.
Muchos artistas jóvenes tienen como punto de referencia la obra de los colectivos
de arte conceptual de los años 1970 y 1980, en donde lo marginal produce la
potencia poética y política del arte, ante un panorama de una alta organización
institucional y un mercado aparentemente pujante y un circuito artístico hiperco-
nectado. Paradójicamente, la energía que acontece en los espacios independientes
y el nuevo arte nutre al hambre caníbal y productivista del circuito global del arte.
Sin embargo, el arte contemporáneo, en México y en muchas otras partes, opera
desde la paradoja, un avance de la escena independiente al mismo tiempo que
del mundo de lo privado y de las corporaciones. Es un tablero de juego cambiante,
con agentes inesperados y conexiones imposibles de prever en la medida en
que las mutaciones y reconversiones de las escenas artísticas son un campo de
mutuas afectaciones y vistas parciales.

Amanda de la Garza Mata es desde febrero de 2020, directora general de Artes


Visuales de la Universidad Autónoma de México (UNAM) y directora del Museo
Universitario Arte Contemporáneo (MUAC-UNAM). Es licenciada en sociología
por la Universidad Nacional Autónoma de México (UNAM), con una especialidad
en antropología de la cultura por la Universidad Autónoma Metropolitana (UAM
Iztapalapa) y es pasante de la maestría en historia del arte − estudios curatoriales
en la UNAM.

Referências
DEBROISE, Oliver. De cómo exhibir el arte mexicano. Ciudad de México: Cubo Blanco, 2017.
EMMELHAINZ, Irmgard. Algunas consideraciones sobre el arte en México en las décadas de
1990 y 2000. Kamchatlka. Revista de análisis cultural, 7, junio 2016: 281-305 (traducido al
inglés).
MEDINA, Cuauhtémoc. Abuso mutuo: ensayos e intervenciones sobre arte postmexicano (1992-
2013). Ed. Edgar Alejandro Hernández y Daniel Montero. Ciudad de México: Cubo Blanco, 2017.

Como citar:
MATA, Amanda de la Garza. Algunas preguntas sobre el arte contemporáneo en
México. Tableros, posiciones y cambios de juego. Arte & Ensaios, Rio de Janeiro,
PPGAV-UFRJ, v. 27, n. 41, p. 423-429, jan.-jun. 2021. ISSN-2448-3338. DOI: https://
doi.org/10.37235/ae.n41.23. Disponível em: http://revistas.ufrj.br/index.php/ae
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Em torno da ordem: arte e instituições no Brasil de agora


About order: art and institutions in Brazil, today

Clarissa Diniz
0000-0002-2661-8402

Em 2017 e 2018, uma sequência de boicotes e censuras a exposições


e ações artísticas marcou o campo institucional da arte no Brasil. Culminando
com o fechamento da mostra Queermuseu – cartografias da diferença na arte
brasileira (Santander Cultural, Porto Alegre, 2017) pela própria instituição que
a realizara; esse conjunto de ataques à liberdade de expressão incluiu perse-
guições a artistas, manifestações, fakenews e processo jurídicos que, em alguns
casos, ainda hoje se arrastam. Sem coincidência, a esse período de escancarada
censura seguiram-se as eleições presidenciais e o encaminhamento da macro-
política brasileira na direção de uma extrema-direita de caráter populista, cujas
ações perversamente têm se lançado sobre a educação e a cultura; entre muitos
outros cortes e desmontes, o Ministério da Cultura foi extinto.
Diante desses movimentos ardilosos, algumas das mais tradicionais
instituições de arte brasileiras se sentiram numa corda bamba quando, diante
de uma pequena – mas barulhenta e persecutória – parcela de seus públicos e
da mídia indignada com suas programações, viram seus patrocinadores reticentes
enquanto eram vitimadas, por outro lado, pelo desmonte dos financiamentos
públicos para a cultura. A agenda de valores que conduziu o debate político das
últimas eleições igualmente orientou as instituições de arte do Brasil: enquanto
algumas parecem ter fincado o pé na contramão do conservadorismo do país,
outras a ele sucumbiram.
Quando, por exemplo, o então prefeito do Rio de Janeiro, Marcelo Crivella,
veio a público para “vetar” (por meio de um vídeo1 repleto de cinismo postado
em suas redes sociais) a iniciativa do Museu de Arte do Rio (MAR) de reabrir o
Queermuseu... na capital carioca, esse museu, um equipamento do município,
PPGAV/EBA/UFRJ
Rio de Janeiro, Brasil
ISSN: 2448-3338
DOI: 10.37235/ae.n41.24 1
Vídeo disponível em https://www.facebook.com/marcelocrivella/videos/1606673966022514/.
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acatou a proibição, obedecendo à ordem do prefeito. Por outro lado, mediante


uma mobilização via crowdfunding, outra instituição carioca, a Escola de Artes
Visuais do Parque Lage (EAV), reabriu a mostra. Já carente de aporte do governo
do Estado diante de uma crise político-econômica que o levou à falência, a
estadual Escola experimentou, do ponto de vista de suas formas de financia-
mento – que forçosamente não poderiam depender dos inexistentes recursos
públicos –, o que poderia significar ser uma “escola livre”. Capitalizando o debate
público que então se formou em torno de Queermuseu..., a EAV tem buscado
reestruturar sua gestão para diversificar suas fontes de recursos e, assim,
pretensamente autonomizar-se em termos políticos.

Figura 1
Escultura de Amilcar de Castro
Foto: Clarissa Diniz
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Assim é que, a despeito do aprofundamento, da ampliação e do fortale-


cimento que as políticas públicas para a cultura encontraram nas duas últimas
décadas, o campo da arte do país se vê amputado nos direitos que conquistara,
os quais passaram a ser apontados como privilégios por representantes políticos
racistas, sexistas e classistas. Se a crítica ao modo como essas políticas vinham
se dando está estruturada numa estreita visão economicista da cultura – do que
é sintoma o fato de que tanto o extinto Ministério da Cultura quanto Secretarias
de Cultura espalhadas pelo país estejam se orientando para ideias de “econo-
mia criativa” –, ela também vem gerando uma clara precarização do campo da
cultura, como demonstram os cortes de equipes, o desmanche das condições
trabalhistas na cultura, os radicais cortes orçamentários das instituições, a
descontinuação de projetos de pesquisa ou os 7% de museus do país atualmente
fechados − alguns deles por motivos assombrosamente criminosos, como foi
o caso do incêndio que destruiu o Museu Nacional do Rio de Janeiro, um dos
maiores acervos do mundo.
Nesse cenário de rarefação do financiamento público, mesmo algumas
das mais estáveis instituições do país já encaram, diariamente, o risco de ter que
fechar suas portas, por exemplo o Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro, o
Museu AfroBrasil, a Bienal do Mercosul, o Museu de Arte Moderna da Bahia,
o Museu de Arte da Pampulha, a Fundação Iberê Camargo, o Instituto Inhotim.
Muitas tornaram suas atuações menos ambiciosas, como é o caso do Museu de
Arte Moderna de São Paulo, da Pinacoteca de São Paulo e do Centro Dragão do
Mar de Arte e Cultura (deste último deve-se ressaltar, contudo, a criação
da Escola Porto Iracema das Artes, cujos programas de formação de artistas
e outros profissionais das artes é absolutamente singular). Outras – como a
Fundação Joaquim Nabuco, o Instituto Tomie Ohtake, o Museu de Arte do Rio, o
Museu de Arte Contemporânea de Niterói e o Museu de Arte de São Paulo (Masp)
–, a despeito de encarar questões desafiadoras como a democracia ou o racismo,
o têm feito com cautela ao equilibrar-se na difícil negociação entre governos
autoritários, o patrimonialismo brasileiro (expresso por meio do monopólio, em
coleções privadas, de grande parte de nossa história da arte, bem como pela
dependência de nossas instituições públicas desses mesmos mecenas: tanto
para a formação de suas coleções quanto, por meio de leis de renúncia e isenção
fiscal, para sua manutenção) e as políticas identitárias que, para lá de urgentes,
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têm pautado uma agenda social de absoluta relevância para a cultura brasileira.
Em especial, o Masp – renascido do ostracismo em que se encontrava –
tem perpetrado um projeto de museu que se faz publicamente por meio de
seminários, publicações, exposições e aquisições de acervo que contemplam
mergulhos monográficos ao passo que também se dão na articulação de hipóteses
histórico-curatoriais operando em ambiciosas exposições coletivas de caráter
transversal, adensando, por sua vez, o debate crítico e advertindo seus públicos
da importância de revisar as construções coloniais das histórias.
Diante dessas instabilidades há, ainda, um movimento que é estética,
social, moral e politicamente bastante claro: uma espécie de “retorno à ordem”
capitaneado por diversas instituições, do que é emblemática a Fundação Bienal
de São Paulo, cuja escapista 33a edição deliberadamente virou as costas para
o país (e o mundo) em chamas em prol de um elogio às dimensões formal e
socialmente conservadoras da arte.2 Por sua vez, o ainda lacônico projeto da 34a
Bienal, sob a curadoria geral de Jacopo Crivelli Visconti, já afirma que irá “oferecer
alternativas ao antagonismo exacerbado que tem caracterizado a arena política
e social dos últimos anos” por meio de ideias como “resiliência, reinvenção,
repetição, tradução e opacidade”,3 e gestos como uma grande articulação que
engajará dezenas de outras instituições paulistas com a edição de 2020 da
Bienal de São Paulo. Como a estratégica ênfase nas instituições em detrimento
da prática artística irá operar nesse movimento de retorno à ordem é aspecto a
ser observado.
Diante desse contexto de ordenamento, engessamento e/ou acovarda-
mento de parte significativa das instituições do país, saltam aos olhos aquelas
exceções que, talvez porque gozem e/ou inventem formas de constituir uma
relativa (quase sempre instável, quando não precária) “autonomia” perante as
formas tradicionais de financiamento da cultura no Brasil, têm conseguido
sustentar políticas curatoriais e educacionais produtoras de resistência ao
achatamento e ao obscurantismo que se querem reinantes no país, como
o complexo do Sesc São Paulo. Contradizendo parte da agenda política da

2
Para leitura mais aprofundada sobre a 33a Bienal de São Paulo, ver https://www.publionline.iar.
unicamp.br/index.php/mod/article/download/4088/3947.
3
Disponível em http://bienal.org.br/post/6994.
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indústria e do comércio da qual é devedor – o que tem implicado perseguições


por parte do governo federal –, o Sesc São Paulo, além da programação que
propõe, tem enfatizado processos educacionais e abraçado iniciativas radicais,
coletivas e até contra-hegemônicas, emprestando-lhes estrutura e visibilidade.
Índice desse movimento é a próxima Frestas − Trienal de Artes, cuja curadoria
de Diane Lima, Beatriz Lemos e Thiago de Paula Souza, todos negros, intenciona
problematizar, a partir de uma relação com as memórias, as comunidades e os
interesses da cidade de Sorocaba (onde acontece a Trienal), a tradição colonialista
de eventos de arte dessa natureza.
Outra notável exceção é a Casa do Povo, uma associação fundada por
judias e judeus progressistas na capital paulista nos últimos anos da década de
1940, mesmo período em que estavam se formando o Museu de Arte Moderna
e o Museu de Arte de São Paulo. Fazendo jus à sua história antifascista, a iniciativa
tem tido presença cada vez mais forte no bairro do Bom Retiro, na cidade e no
país. Experimentando modos diversos de trabalho e de programação, na últi-
ma década a Casa do Povo vem articulando inúmeras coletividades – o assim
chamado povo da casa – que fazem, do lugar, um espaço de memória e luta,
cotidianamente inventando e negociando formas de coexistência e colaboração.
Desafio que tem sido também o território de ação de outros espaços indepen-
dentes do país – como o Solar dos Abacaxis, a Despina, o CAPACETE, A Pilastra,
a MauMau, o Memorial Meyer Filho, o CAMPO, o Salão das Ilusões – e de iniciativas
que entrecruzam lutas e grupos sociais distintos, experimentando formas de
colaboração entre diferenças, como o Acervo da Laje, o Museu das Remoções, o
Museu da Maré, a Ocupação 9 de Julho ou a Lanchonete<>Lanchonete.
Assim como a força e o alcance dessas coletividades contradizem a
sensação de impotência que se faz presente no atual contexto político do Brasil,
outro fenômeno aponta para a complexidade das contradições em curso. Trata-se
da expansão do território do patronato, até o momento protagonizado por inicia-
tivas como o Instituto Itaú Cultural (o maior captador, via leis de renúncia fiscal,
do campo das artes visuais do Brasil), o Instituto Moreira Salles e o Instituto
Inhotim. Enquanto museus e outras instituições culturais mantidas pelo poder
público encaram enormes dificuldades financeiras, é evidente o crescimento
e o surgimento de instituições privadas fundadas por colecionadores, numa
clara renovação da força do patronato cultural: Fundação Edson Queiroz, Instituto
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Paulo e Silvio Frota, Usina de Arte, Fundação Marcos Amaro, Instituto InclusArtiz,
Instituto Casa Roberto Marinho, Instituto PIPA, Instituto Vassouras Cultural. Ao
passo que o mercado de arte e as políticas de formação de acervo das insti-
tuições públicas do país continuam umbilicalmente atrelados ao colecionismo
privado, a emergência desses projetos parece refundar a dimensão pública
desse capital, sublinhando a força histórica do patrimonialismo e as disputas
simbólicas entre velhas e novas elites do país, nas quais a arte e suas alianças
canônicas ocupam, há muito, lugar cativo.
Demonstram-se aliadas à arte brasileira também instâncias de diplomacia
cultural de outros países – em especial, o alemão Instituto Goethe e a suíça
Fundação Pro Helvetia –, que têm investido em projetos experimentais de artistas
interessados em diálogos interculturais. Enquanto instituições como o Centro
Cultural do Banco do Brasil ou produtoras como a Magnetoscópio concentram-se
na produção de exposições blockbusters de artistas estrangeiros no Brasil,
essas instâncias diplomáticas têm atuado de modo significativamente distinto,
viabilizando obras, eventos, residências e publicações em parceria com insti-
tuições de países diversos: políticas que fomentam a circulação internacional de
parte da produção artística brasileira, fomentando, em contrapartida, relações
bilaterais entre artistas, curadores e instituições dos países envolvidos nesses
intercâmbios. O debate em torno da atualização do colonialismo e dos riscos
de extrativismo cultural dessas práticas (como, igualmente, poder-se-ia pensar
sobre as duas décadas de atuação do CAPACETE, que viabilizou a centenas de
artistas estrangeiros produzir, consumir e traficar imaginários sobre o Brasil)
parece ‘pormenorizado’ diante do trágico contexto de perseguição, censura e
extinção de políticas públicas de fomento à produção artística nacional, do que
é uma evidência a tendente ao zero atuação da Funarte, uma outrora histórica
agência de fomento do já extinto Ministério da Cultura.
A legitimidade do que deve ser considerado questões maiores ou menores
nesse processo de disputas e de alianças em torno da arte no Brasil está, todavia,
em franco debate. Se os conflitos políticos (e estéticos) recentemente experi-
mentados parecem contraproducentes para alguns – e, por isso, demandariam
alianças urgentes capazes de contornar, resolver ou os abafar –, para outros,
esse momento movediço parece oportuno por sua capacidade de precipitar
rupturas com a histórica preservação dos privilégios de uns em detrimento dos
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direitos de todos; nesse sentido, os conflitos deveriam ser sustentados e mesmo


acentuados. Entre desejos de manutenção ou de retorno à ordem, muitos querem
salvar a arte e suas instituições do reacionarismo em voga no país. Por sua vez,
interessados na desordem que antecede a criação de novas ordens, outros têm
encarado esse contexto de vulnerabilidade política como uma possibilidade de
implodir a arte e suas instituições naquilo que possuem de mais conservador,
elitista, sexista e classista – ainda que, nesse processo, estejamos todos arris-
cando até os direitos que supúnhamos já adquiridos, quando não garantidos.
Ou, em outra perspectiva, justamente porque, para muitos, esses direitos nem
sequer um dia existiram.

Clarissa Diniz é doutoranda em antropologia pelo Programa de Pós-graduação em


Sociologia e Antropologia (PPGSA/IFCS/UFRJ), curadora e professora da Escola de
Artes Visuais do Parque Lage, foi editora da Tatuí, revista de crítica de arte, e,
entre 2013 e 2018, gerente de conteúdo do Museu de Arte do Rio (MAR). Entre
seus ensaios recentes estão “Street fight, vingança e guerra: artistas indígenas
contra o ‘produzir ou morrer’” (2020), “Destriunfar” (2019) e “Tudo − ainda −
está em seu lugar” (2018).

Como citar:
DINIZ, Clarissa. Em torno da ordem: arte e instituições no Brasil de agora. Arte &
Ensaios, Rio de Janeiro, PPGAV-UFRJ, v. 27, n. 41, p. 430-436, jan.-jun. 2021.
ISSN-2448-3338. DOI: https://doi.org/10.37235/ae.n41.24. Disponível em:
http://revistas.ufrj.br/index.php/ae
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Nuevas latitudes del arte contemporáneo


New Contemporary Art Latitudes

Rodolfo Andaur
rodolfoandaur@gmail.com

Las diferentes acciones realizadas por los curadores de arte contempo-


ráneo, a la hora de publicar y promover sus proyectos en Suramerica, revelan una
particular forma en la cual se lleva a cabo este oficio, específicamente, desde
diferentes rincones del continente que actualmente visibilizan de manera
constante su precariedad institucional.
Ahora, en el caso particular de Chile, la irrupción de novedosos formatos
de exhibición y financiamiento han posicionado heterogéneas perspectivas
curatoriales como parte de las piezas fundamentales que articulan una serie de
análisis críticos amparada bajo la actual contingencia política.
Sumamos a esto que desde comienzos del 2018 existe un incremento
sustantivo de programas para difundir el arte contemporáneo fuera de la ciudad
de Santiago y que al mismo tiempo hace frente a la impetuosa centralización.
No existe duda alguna que dicha centralización, emprendida tanto en el finan-
ciamiento como en la infraestructura cultural, ha entorpecido los diálogos que
interconectan el trabajo de campo de los artistas visuales que residen fuera de
la capital política y administrativa de este país.1 No obstante, esta coyuntura, que
no solo es propia de la escena chilena, ha impulsado un despertar creativo
que indudablemente ha dinamizado el trabajo colectivo y colaborativo.
Esta información nos invita a evaluar lo que ocurre en ciudades tales como
Arica, Iquique, Coquimbo, Valparaíso, Concepción, Temuco y Punta Arenas,
donde un grupo de artistas visuales ha impulsado iniciativas autogestionadas

1
Cabe recordar que Chile posee más de cinco mil kilómetros de territorio continental y está
PPGAV/EBA/UFRJ
Rio de Janeiro, Brasil
dividido en tres grandes zonas geográficas: norte, centro y sur. Frente a esta diversidad paisajística
ISSN: 2448-3338 y ecológica, mi labor como curador e investigador ha circunscrito la desertificación de las historias
DOI: 10.37235/ae.n41.25 locales que combaten a la mencionada centralización.
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que han creado una introspección sobre cuatro ejes de investigación que se
entrecruzan: las transfronteras, la memoria histórica, la realidad indígena y la
sustentabilidad ecológica. Todos estos temas han diversificado la relación
interregional e internacional de más de una treintena de artistas que hoy
tensionan con sus voces aquella incertidumbre provocada por los vaivenes
políticos que se avecinan.
En este sentido las experiencias para “curar el arte”,2 las cuales están
implícitas en la curaduría, también promueven la reinstalación del concepto de
“editor de campo”,3 que desde su creación ha puesto en tensión a los espacios
de exhibición y a los mismos gestores de la escena nacional del arte contemporáneo.
La edición de campo pretende ampliar el trabajo curatorial más allá de
una exposición. De este modo la edición de campo revisa la territorialidad y las
geografías con el objetivo de insertar nuevas lecturas en torno a la práctica de
las artes visuales. Esta situación es ampliamente percibida en las ciudades que
he mencionado anteriormente. Por lo que los editores de campo incorporan en
su gestión un pensamiento curatorial que explora desde y hacia la masa crítica
local para fracturar ese pensamiento hegemónico dentro del espacio creativo.
Es más, mi rol político es interrogar sobre la base de ese carácter disfuncional
que vivenciamos día a día producto de una visión social, cultural y económica
enclaustrada en el capital neoliberal.
Con estos antecedentes, destrabaremos aquellas propuestas que marcan
la reciente gestión del arte contemporáneo nacional a través de renovadas
estéticas e imaginarios políticos que reivindican el trabajo desde algunas regiones
alejadas de la supremacia cultural y que ciertamente movilizan singulares
cosmovisones.

2
Frase utilizada por el curador e investigador Félix Suazo en la ponencia “Curar el arte, curar
el país” dentro del contexto de XIV Feria Iberoamericana de Arte, FIA, Venezuela, julio 2005.
3
Justo Pastor Mellado creó el concepto de editor de campo para denominar a los curadores invitados
para la primera Trienal de Arte Contemporáneo de Chile que se llevó a cabo en octubre del
2009. Esta denominación recoge las potencialidades que significan trabajar como curador en
lugares carentes de instituciones tales como escuelas de arte, museos y galerías comerciales. Más
información en http://escenaslocales.blogspot.com/.
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Comenzaremos desde Arica para estudiar lo que ocurre con el colectivo


Cholita Chic (proyecto dirigido por Yaroslavl Riquelme) que ha transfronterizado
algunos emblemas de la mujer indígena. Cuando me refiero a transfrontera
pongo en relación a esa conflictiva frontera del norte de Chile con la mítica cita
del historiador Sergio González (2006: 15):

Aquí se prefiera hablar de transfrontera que de frontera, de sociedades


transfronterizadas más que de sociedades de fronteras. Creemos que
existe un sujeto de transfrontera, hombres y mujeres que tienen una
mentalidad que ha sido capaz de incorporar al otro, que ha logrado
una identidad que, sin ser contradictoria con la identidad nacional, la
supera al integrar otras identidades.

La emancipación de Las Ñustas (fotografía, impresión canvas, 150 x


180cm, 2018) aparece en la escena para retratar a esas mujeres indígenas que
son capaces de incorporar a las otras en su diario vivir a través de los frondosos
valles que rodean a la histórica ciudad de Arica. Esta ciudad límite y desborde
de la chilenidad ha mantenido, con el transcurso de los años, una significativa
industria agrícola en medio del desierto; y que tiene entre sus principales
protagonistas a las mujeres. Muchas de ellas, provenientes de distintos puntos
de Suramérica, trabajan la tierra y también deben ocuparse a diario de las
labores domésticas. Bajo estas circunstancias son muy pocos los espacios que
ellas poseen para reflexionar sobre los actuales movimientos feministas que han
aparecido a nivel global. Sin embargo, desde hace muchos siglos el simple acto
del trenzado colectivo de sus cabellaras ha creado un espacio anti-patriarcal que
reivindica la feminidad y el asueto por sus cuerpos.
Como hemos podido leer, esa frontera que limita con Bolivia y Perú ha
estado en conflicto desde hace décadas. Para ser exactos más de 140 años.
Este incidente ha ocultado las crónicas ligadas a la violencia que ha construido el
Estado para validar su expansión territorial, sin embargo sus emblemas han sido
utilizados como herramientas que aculturizan la territorialidad de esta extensa
zona geográfica que posee un talante en constante posguerra. Es ahí sobre esos
paisajes del desierto de Atacama donde la artista visual Leslie Fernández impone
sus banderas que nos hablan de aquellos no lugares que se entrelazan en
conjunto a testimonios, mitos y leyendas.
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Figura 1 Tríptico para una frontera (bordado sobre razo, medidas variables, 2018)
Leslie Fernández, Tríptico
para una frontera, embroidery
nos conduce por aquellos desplazamientos que son visibles sobre esas fronteras
satin, 2018 nortinas y que explican las similitudes étnicas que poseemos con los países en
Photo: Oscar Concha
conflicto (Perú y Bolivia) y con quienes además compartimos un extenso altiplano.
Por lo que al utilizar la estructura de la bandera chilena e integrar a la misma los
colores de los emblemas de Bolivia y Perú, la artista busca dar cuenta simbóli-
camente de la innegable identidad común que yace sobre estos parajes. Para
ella la soberanía no es un conflicto físico o intangible que esté en cuestión. Es
aquí donde aparece la cita a la poeta y cantante Violeta Parra que en la afamada
canción “Arriba quemando el sol” nos traslada hacia una poética cargada de la
compleja multiculturalidad que vivenciaban los trabajadores del salitre en estos
territorios.
Los proyectos que retocan en esa frágil memoria han revitalizado los
discursos regionalistas que exhiben un par de artistas más ligados a una gene-
ración posdictatorial.4 Es en este contexto que aparecen en la región de Tarapacá
las propuestas de Juana Guerrero y Camilo Ortega.

4
La generación posdictatorial es la que se siente cercana a las problemáticas que aparecen
a principios de la década de los 1990 ante el pacto entre Pinochet y los partidos pro-democracia.
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Juana Guerrero narra desde su video-performance A-405 (video HD,


duración 2’ 57’’, 2018) diversos episodios lesa humanidad ocurridos durante
la dictadura cívico-militar que comandó el militar Augusto Pinochet. Uno de
éstos tiene que ver con la habilitación de distintos campos de concentración, en
diferentes puntos del país, para prisioneros que se oponían al régimen. El más
emblemático de todos fue Pisagua. Este pueblo que yace abandonado sobre las
planicies de los cerros que se hunden en el océano, fue el lugar predilecto para
que las políticas represivas de la dictadura surtieran efecto. Con un embrollado
acceso, este pueblo se convierte en una cárcel natural y epitafio de cientos
asesinados y desaparecidos. Frente a este sombrío panorama esta artífice
aparece sobre la memorable carretera A-40. Ella corre sin perder el aliento y
declama para crear, desde su ilógico recorrido, un espacio de reflexión que
salpica en la memoria social de la historia reciente de Chile.

Figura 2
Juana Guerrero, A-40,
video HD, 2’ 57’’, 2018

5
https://vimeo.com/306692947.
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Figura 3
Camilo Ortega, Recabarren,
oil on canvas, 150 x 120cm,
2018

Mientras tanto Camilo Ortega desde una pintura inspirada en la semiótica


urbana, denominada Recabarren (óleo sobre tela 150 x 120cm, 2018) instala a
diversos personajes que proyectaron un ideario anticapitalista en una zona
altamente afectada por el extractivismo minero: la región de Tarapacá. Dentro
de esta lógica y frente a una rápida revisión a la historia del retrato, este artista
visual sincretiza la imagen de uno de los grandes íconos del movimiento obrero
en Chile: Luis Emilio Recabarren (1876-1924).
Recabarren fue un activista y político quién creó una serie de actividades
que mantuvieron en vilo a la sociedad acomodada de la época integrada
principalmente por europeos. Bajo estas circunstancias su imagen fue negada
por décadas de la cultura visual con el objetivo de no provocar una sublevación
entre aquellos obreros que residían, específicamente, en el desierto de Atacama.
Por estos motivos diseñar este retrato, bajo la tónica de nuestra época mercan-
tilizada y explotada por el capital, subraya en las contraposiciones de un paisaje
cada vez más inspirado en el antropoceno.
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Desde la región de Coquimbo Mauricio Toro-Goya ha estado trabajando la


fotografía autoral enfocada en las mujeres en resistencia en distintos lugares de
Latinoamérica. Aquí el proyecto Soy una mujer, a través de las propuestas Águila
y Muerte (ambas imágenes son ambrotipos 8 x 10 pulgadas, serie 2013-2018),
que deben su existencia a una profunda conexión con lo espiritual, vernáculo
y ancestral, procura un diálogo con la no-historia. Mujeres que representan la
memoria íntima de otras que ya no están (abuelas, madres, amigas) pero que
habitan inagotablemente en los códigos de resistencia.

Figura 4
Mauricio Toro-Goya, Águila,
ambrotype photography,
8 x 10 inches, 2013-2018
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Sobre el eje central de Chile, cerca del puerto de Valparaíso, se inscriben


actualmente una serie de luchas sociales que exigen una solución a la visible
contaminación que presentan las aguas, los bosques y el aire. Frente a este
conflictivo escenario, aparece el artista visual Carlos Silva, quién con su obra La
Ventana (video HD 4’ 34’’, 2019) presenta una panorámica a la famosa playa
de Ventana para ironizar, desde una perspectiva crítica, sobre una de las crisis
ecológicas más severas de los últimos años. En la voz en off y también protago-
nista del video, el escritor Marcelo Mellado sentencia: “Chile no debiera existir
geológicamente, es un deterioro en si mismo…”
La imagen postal que posee el paisaje chileno impide que nos detengamos
en las sendas huellas que han dejado los procesos industriales sobre la geografía.
Más aún cuando algunos hitos geográficos, ya dañados por la excesiva explotación
de los recursos naturales, son ‘maquillados’ para promover a otra industria: el
turismo.
Dentro de la zona más militarizada del país, la región de la Araucanía, el
artista visual Gonzalo Castro-Colimil quién está instalado en la ciudad de Temuco,
diseña y construye narrativas inspirado en el espacio socio-lingüístico que brinda
la ‘nación’ Mapuche. Es incuestionable que la cuestión que define, en parte, la
defensa indígena también es promovida por la cultura intangible que propaga un
sentimiento de reciprocidad colectiva y de armonía con la tierra. Estos tópicos

Figura 5
Gonzalo Castro-Colimil,
project “Kelluwün”
(collaboration), 2018
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Figuras 6 e 7 han sido el hilo conductor para que Castro-Colimil, junto a un grupo de gestores
Colectivo ultimaesperanza,
project el arco vive dentro
y artistas, produzca encuentros que expongan la realidad de la nación Mapuche
de mí, 2018-2019 dentro de este escenario ‘democrático’ que promueve un documentado maltrato.
Ante estos dramáticos sucesos, la acción de este artista es de encuentro
con el idioma dentro del acto del trawün (traducido al español como encuentro de
personas), que pretenden catalizar, desde una perspectiva mapuche, una serie
de prácticas ancestrales como el mismo trawün, así como también el kelluwün
(colaboración) para finalmente entablar un nvtram (diálogo) con algunas comuni-
dades indígenas que residen, específicamente, en la zona costera de esta región.
Frente al marco austral y extremo de la región más sureña del continente
americano, aparece en escena el colectivo ultimaesperanza (conformado por
Sandra Ulloa y Nataniel Álvarez) que desde hace más de una década recorrre
esta ensimismada geografía para evocar los vestigios de las cruentas matanzas
que los colonos europeos organizaron en contra de los indígenas.
Una de sus últimas propuestas, el arco vive dentro de mí (video, instalación
y sonido, 2018-2019), nos invita a percibir esa relación dialógica entre arte y
memoria, donde la memoria como construcción simbólica de sentidos transforma
las imágenes para reinventar el fatigoso pasado y presente colonial.
El colectivo ultimaesperanza encontró una fotografía del rumano Julio
Popper (1857-1893) quién fue catalogado como un aventurero y cazador
de indios. Este personaje confeccionó un álbum fotográfico que describe su
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expedición a Tierra del Fuego. Es ahí donde aparece la siniestra imagen de


Popper – junto a otros expedicionarios – frente al cadáver de un indígena de la
comunidad Selknam. Esta fotografía ampliamente difundida para ilustrar los
genocidios cometidos por los colonos europeos, sirvió como punto de partida
para que este colectivo iniciara una serie de expediciones a través de la Patagonia
que con su majestuosidad les ha permitido intervenirlo con efímeras proyecciones
y sonidos.
A partir de estas propuestas retomo una forma de analizar la performance
del curador que en mi caso investiga las cartografías alusivas a ciertos hechos
que se han instalado en tanto referentes ineludibles de la práctica contextual y,
por ende, de la edición de campo. Es así como el quehacer del curador y sus
implicancias en el contexto de estas regiones de Chile retoman los dichos
de varios investigadores6 que reconocen en primera instancia, que la curaduría
debe anclarse no solo desde una sola ancla, sino más bien de varias con el objetivo
de expandir de manare constante sus reflexiones.

Rodolfo Andaur es curador y gestor cultural quién ha sido uno de los principales
articuladores de diversos proyectos de arte contemporáneo, así como también
colaborador de incontables políticas de fomento para el área de las artes visuales
desde el norte de Chile. Además ha formado parte de equipos curatoriales que han
reflexionado sobre el antropoceno, el cambio climático y las eco-geopolíticas en
América Latina, una situación que ha justificado su participación en residencias
curatoriales en países tales como Alemania, Brasil, Corea del Sur, Escocia, España,
Estados Unidos, México, Polonia y Singapur. Por otro lado, su trabajo como curador
ha sido destacado en el campo de la escritura a través de la cual ha difundido
exposiciones, metodologías y proyectos de varios artistas visuales en revistas,
diarios y blogs. Actualmente trabaja en las dinámicas que desprenden los viajes
de exploración territorial en Chile, Colombia y México.

6
Varios pensadores, ligados a la curaduría en América Latina, como Amanda de la Garza Mata (México),
Mónica Hoff (Brasil), Michelle Sommer (Brasil) y Renata Cervetto (Argentina) han estado generando
escritos, en los últimos años, en torno al quehacer del curador más allá de la práctica expositiva.
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Referências

GONZÁLEZ, Sergio. Arica y la triple frontera: integración y conflicto entre Bolivia,


Perú y Chile. Iquique: Fondo FNDR, 2006.

Como citar:
ANDAUR, Rodolfo. Nuevas latitudes del arte contemporáneo. Arte & Ensaios, Rio
de Janeiro, PPGAV-UFRJ, v. 27, n. 41, p. 437-447, jan.-jun. 2021. ISSN-2448-
3338. DOI: https://doi.org/10.37235/ae.n41.25. Disponível em: http://revistas.
ufrj.br/index.php/ae
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Vozes negras e suas amplificações nas artes visuais brasileiras


Black Voices and their amplifications in Brazilian Visual Arts

Igor Moraes Simões


0000-0001-7107-7951
professigor@gmail.com

Um grupo de sujeitos negros adentra os espaços expositivos das principais


galerias e museus de São Paulo. Estamos diante de uma performance. A estra-
nheza se estabelece e surge da presença de corpos não recorrentes naqueles
espaços. O Coletivo Presença Negra, encabeçado pelo artista negro brasileiro
Moisés Patrício, dá as cartas e as caras do cenário das artes visuais brasileiras.
Um lugar forjado pelas mesmas tentativas de apagamento e branqueamento
que tomam os diferentes períodos da história do país. As artes visuais no Brasil
sempre foram lugar marcado pela presença de mãos negras. Desde o período
colonial é possível encontrar essas vozes que ergueram marcos como a arte
nomeada barroca, passando por uma permanência marcada no contexto da
arte acadêmica e se estendendo pelos modernismos e por aquilo que temos
chamado de arte contemporânea. Vozes negras são presença indelével na arte local.
No país que conta com 54% de homens e mulheres que se declaram
negros, a raça e a racialização são categorias incontornáveis em qualquer
abordagem sobre formas de vida e pensamento. Sendo assim, de que maneira
poderíamos aventar a possibilidade de uma história da arte brasileira que não
passasse por essa dimensão? Inacreditavelmente, temos de afirmar que foi
exatamente essa a operação produzida na história e na historiografia da arte
em terras brasileiras. Exemplo sintomático aparece no pouco espaço que
nomes como Manuel Raymundo Querino (1851-1923), artista negro, militante
social e responsável por inventariar a participação de homens negros nas artes
baianas do final do século 19 e início do 20, ainda ocupam na historiografia
brasileira da arte.
PPGAV/EBA/UFRJ
A história da arte, disciplina de matriz europeia, (re)nasce naquele continente
Rio de Janeiro, Brasil como contemporânea dos cruéis processos de escravização que se apoiaram no
ISSN: 2448-3338
DOI: 10.37235/ae.n41.26 deslocamento de corpos negros coisificados para produzir riquezas entre os
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séculos 16 e 19. A disciplina em terras brasileiras se esculpe no exato tempo


em que são erguidas as fundações das figuras do artista, dos princípios de
modernidade europeia e dos agentes que ocupam a centralidade nos sistemas da
arte. Sendo assim seus estatutos, formas de construção, narrativas, categorias
e marcos temporais exigem contínua revisão em territórios coloniais. Embora a
compreensão dessa necessidade seja presente nas aparições da disciplina em
terra Brasil, a intersecção com os elementos de um passado de escravização
e as formas de existência de indivíduos negros em sociedades pós-coloniais
ainda não é tão frequente, como exige o caso brasileiro. A racialização e seus
artifícios exigem o posto de marca indispensável das nossas narrativas, estejamos
falando da arte nomeada afro-brasileira ou de toda a outra parcela que se
permite não nomear.
A vida de homens e mulheres negros (e brancos) no Brasil continua
estruturada a partir do racismo que encontrou maneiras muito sofisticadas de
se metamorfosear para continuar existindo. Ainda é negra a maioria dos corpos
exterminados pelas polícias, ainda são maioria os corpos negros encarcerados,
ainda são os corpos negros que constituem a enorme população dos homens e
mulheres que vivem situações precárias. Urge também afirmar com veemência
que o propalado mito da democracia racial, baseado em uma construção de
nação em que diferentes povos teriam constituído formas amistosas de trocas
e contatos é uma miragem que nunca espelhou a realidade brasileira.
Assim urge pensar nossa historiografia da arte diante desses dados. Boa
parte dos nossos historiadores e críticos ainda tem as questões de negritude
como elemento de menor peso em seus empreendimentos teóricos. Mesmo
diante disso é necessário afirmar a importância de ações governamentais que
vinham entre 2003 e 2016 permitindo mediante políticas públicas a garantia
de bancos acadêmicos para jovens negros nas universidades, o que influenciou
o aparecimento de uma nova geração de pesquisadores que tomaram as
questões de raça como ponto fundante de suas análises. Trabalhos de fôlego
como aqueles que vêm sendo empreendidos por teóricos negros como Hélio
Menezes (2018), Renata Felinto Santos (2016) e Janaina Barros (2018) também
marcam a presença dessas vozes no campo teórico das visualidades brasileiras,
implodindo com uma construída noção de escassez de sujeitos negros em
condições intelectuais capazes de pensar a arte brasileira. Nenhuma ação
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Vozes negras e suas amplificações nas artes visuais brasileiras 450

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contemporânea que pretenda inventariar escritas das histórias da arte locais


pode ser pensada sem a contribuição de nomes anteriores como Kabengele
Munanga (1940), Abdias do Nascimento (1914-2011) e Emanoel Araújo
(1940), que, atualmente dirige o Museu Afro-Brasil, situado em São Paulo e
que até hoje é uma das únicas instituições brasileiras com foco na contribuição
de homens e mulheres negros no campo da arte, da cultura e do pensamento.
Araújo foi diretor da Pinacoteca do Estado de São Paulo sendo direta-
mente responsável por incluir no acervo da instituição número relevante de
trabalhos de artistas negros e negras de diferentes épocas e procedências. Em
2016, a Pinacoteca, reuniu à homenagem ao antigo diretor a mostra intitulada
Territórios: artistas afrodescendentes no acervo da Pinacoteca. A Pinacoteca
era na época dirigida por Tadeu Chiarelli, que tomou a raça como um dos eixos
de leitura da coleção da instituição e como norteador para aquisições de artistas
indispensáveis como Rosana Paulino (1967), Sidney Amaral (1973-2017),
Jaime Lauriano (1985), Rommulo Conceição (1968). A exposição também
marcou uma onda baseada em mostras que cada vez mais tomam como
marcadores as questões relativas à raça. Entre elas é urgente trazer exemplos
de outras exposições, também ocorridas em São Paulo, como Agora Somx Todx
Negrx?(2017), com curadoria de Daniel Lima; Diálogos ausentes (2016/2017),
com curadoria de Rosana Paulino e Diane Lima; e Histórias afroatlânticas
(2018), em que o time fixo de curadores brancos do Museu de Arte de São
Paulo (Masp) contou com a presença do já citado Menezes, além do artista
negro Ayrson Heráclito. As exposições têm sido as responsáveis por inscrever
nossos corpos, mentes e construções de conhecimento artísticos no horizonte
das artes no país, permitindo a constituição de potentes ilhas de edição de
narrativas complexas que ensaiam novas tomadas epistemológicas para escritas
da arte quando crivadas pela produção contemporânea de homens e mulheres
negros brasileiros.
A produção de nossos artistas negros constitui seção indispensável para
novas miradas sobre os negros do país e as estratégias tomadas pelo campo da
arte. As mulheres negras com as bocas suturadas na série Bastidores (1997)
de Rosana Paulino, o menino de feições negras que se cobre de tinta branca na
escultura Amnésia (2015), de Flavio Cerqueira (1983), a série Lojas Africanas, de
Leandro Machado (1970), as ações de Jota Mombaça (1991), que tem atuado nas
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Figura 1
Rosana Paulino, Bastidores,
imagem transferida sobre
tecido, bastidor e linha de
costura, 30cm de diâmetro,
1997, gentilmente cedida
pela artista

Figura 2
Flavio Cerqueira, Amnesia,
látex sobre bronze,
129 x 42 x 41cm, 2015,
gentilmente cedida
pelo artista
Foto: Romulo Fialdini
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Vozes negras e suas amplificações nas artes visuais brasileiras 452

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intersecções entre raça, teorias cuir e pós-colonialismo, sendo hoje uma das
figuras mais interessantes da arte contemporânea brasileira − todos exigem
continuamente a assunção de ferramentas que sejam capazes de se mover
entre os tempos dos tumbeiros, as diferentes ficções de modernidade, as
permanências e estratégias de resistências de agentes negros na vida e nas
artes visuais brasileiras e seu entrelaçamento com as experiências afrodiaspóricas.
Esses dados não podem mais ser adendo nas pesquisas empreendidas no
campo da história da arte brasileira, bem como da sua crítica e de empreendi-
mentos curatoriais, sob o risco de incorrermos em abordagens superficiais ou
completamente esvaziadas dos sentidos que evocam. As proposições poéticas
de artistas negros brasileiros reúnem diferentes temporalidades e provocam
outras histórias para a arte. Histórias que não podem continuar a fazer ouvidos
moucos diante das vozes que as assombram, assaltam suas certezas e exigem
ocupar o centro dos debates em um tempo turvo da sociedade e da vida
democrática brasileira.

Igor Moraes Simões é doutor em artes visuais − história, teoria e crítica da arte
(PPGAV-UFRGS) e professor adjunto de história, teoria e crítica da arte, bem como
de metodologia e prática do ensino da arte (UERGS). Foi curador educativo da
Bienal 12 (Bienal do Mercosul) e membro do comitê de curadoria da Associação
Nacional de Pesquisadores em Artes Plásticas (Anpap), do Núcleo Educativo
UERGS-MARGS e do comitê de acervo do Museu de Arte do RS-MARGS. Trabalha
com as articulações entre exposição, montagem fílmica, histórias da arte e
racialização na arte brasileira e visibilidade de sujeitos negros nas artes visuais.
Autor da tese Montagem fílmica e exposição: vozes negras no cubo branco da arte
brasileira. Faz parte do Flume-Grupo de Pesquisa em Educação e Artes Visuais.
Contribui com publicações brasileiras e estrangeiras, bem como eventos nacionais
e internacionais.
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Referências

BARROS, Janaína. A invisível luz que projeta a sombra do agora: gênero, artefato
e epistemologia na arte contemporânea brasileira de autoria negra. Tese de
Doutorado. Universidade de São Paulo, USP, 2018.

MENEZES, Hélio. Entre o visível e o oculto: a construção do conceito de arte


afro-brasileira. Dissertação de Mestrado. Catálogo USP, São Paulo, 2018.

SANTOS, Renata Aparecida Felinto. A construção da identidade afrodescendente


por meio das artes visuais contemporâneas: estudos de produções e de poéticas.
Tese de Doutorado. Universidade Estadual de São Paulo. Instituto de Arte, 2016.

Como citar:
SIMÕES, Igor Moraes. Vozes negras e suas amplificações nas artes visuais brasileiras.
Arte & Ensaios, Rio de Janeiro, PPGAV-UFRJ, v. 27, n. 41, p. 448-453, jan.-jun.
2021. ISSN-2448-3338. DOI: https://doi.org/10.37235/ae.n41.26. Disponível
em: http://revistas.ufrj.br/index.php/ae

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