Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
Cânones em rotação
@2021 autores @2021 Programa de Pós-graduação em Artes Visuais
Imagem da capa: Jaider Esbell. Carta aberta ao velho mundo. Livro-objeto,
posca sobre impressão off-set, 37,5 x 27,7cm, 2019
Foto: Marcelo Camacho
Editoria
Livia Flores (Universidade Federal do Rio de Janeiro, Brasil)
Tadeu Capistrano (Universidade Federal do Rio de Janeiro, Brasil)
Conselho Editorial
Adele Nelson (University of Texas, Estados Unidos)
Jacques Leenhardt (École de Hautes Études en Sciences Sociales, França)
João Paulo Queiroz (Universidade de Lisboa, Portugal)
José Emilio Burucúa (Universidad Nacional de General San Martin, Argentina)
Maria Amélia Bulhões (Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Brasil)
Maria Luisa Luz Tavora, (Universidade Federal do Rio de Janeiro, Brasil)
Michael Asbury (University of the Arts London, Reino Unido)
Paulo Venancio Filho (Universidade Federal do Rio de Janeiro, Brasil)
Pedro Pablo Gómez Moreno (Universidad Distrital Francisco José Caldas, Colômbia)
Ricardo Basbaum (Universidade Federal Fluminense, Brasil)
Roberto Conduru (Methodist University, Estados Unidos)
Sonia Gomes Pereira (Universidade Federal do Rio de Janeiro, Brasil)
Sonia Salzstein (Universidade de São Paulo, Brasil)
Arte e Ensaios : Revista do Programa de Pós-graduação em Artes Visuais da Escola de Belas Artes da Universidade
Federal do Rio de Janeiro [recurso eletrônico]. Rio de Janeiro : PPGAV/EBA/UFRJ, vol. 27, n. 41, jan.-jun. 2021.
Semestral
Resumos em português e inglês
ISSN eletrônico: 2448-3338
Disponível tem: https://revistas.ufrj.br/index.php/ae/index
Anual: 1994-2006
ISSN impresso: 1516-1692 (até 2016)
CDU: 7.01(05)
Comissão de Políticas Editoriais Marta Strambi (Unicamp)
Ana Cavalcanti (UFRJ) Maurício Barros de Castro (Uerj)
Cezar Bartholomeu (UFRJ) Mayana Redin (UFRJ)
Elisa de Magalhães (UFRJ) Maykson Cardoso (UFRJ)
Felipe Scovino (UFRJ) Meriney Horta (UFRJ)
Ivair Reinaldim (UFRJ) Michelle Sommer (UFRJ)
Maria Luisa Luz Tavora (UFRJ) Milton Machado (UFRJ)
Paulo Venancio Filho (UFRJ) Mônica Zielinsky (UFRGS)
Rogéria de Ipanema (UFRJ) Natália Quinderé (UFRJ)
Ronald Duarte (UFRJ) Patricia Corrêa (UFRJ)
Tatiana da Costa Martins (UFRJ) Paulo Silveira (UFRGS)
Paulo Venancio Filho (UFRJ)
Avaliadores ad hoc (AE n.41)
Pedro Eboli Nogueira (UFRJ)
Alexandre Sá (Uerj)
Rafael Haddock Lobo (UFRJ)
Alice Monsell (Ufpel)
Raquel Versieux (UFRJ)
Aline Rayane de Oliveira (UFRJ)
Regina de Paula (Uerj)
Ana Cavalcanti (UFRJ)
Ricardo Basbaum (UFF)
Ana Mannarino (UFRJ)
Ricardo Maurício Gonzaga (Ufes)
Analu Cunha (Uerj)
Roberto Conduru (SMU-EUA)
André Leal (UFRJ)
Rodrigo Guéron (Uerj)
Angela Donini (Unirio)
Rosana de Freitas (UFRJ)
Carla da Costa Dias (UFRJ)
Samuel Abrantes (UFRJ)
Carlos Augusto Nóbrega (UFRJ)
Sergio Bruno Guimarães Martins (PUC-RIO)
Cayo Honorato (UNB)
Tatiana da Costa Martins (UFRJ)
Cecilia Cavalieri (UFRJ)
Thais Medeiros (UFRJ)
Claudio Oliveira (UFRJ)
Vera Lins (UFRJ)
Claudio Ribeiro (UFRJ)
Vinicios Ribeiro (UFRJ)
Cristina Salgado (UFRJ)
Yuri Firmeza (UFC)
Daniela Kern (UFRGS)
Daria Jaremtchuk (USP) Equipe de produção (PPGAV/EBA/UFRJ)
Dinah de Oliveira (UFRJ) Ana Soares
Doris Kosminsky (UFRJ) André Arçari
Elisa de Magalhães (UFRJ) Ignez Capovilla
Elisa de Souza Martinez (UNB) João Paulo Ovídio
Felipe Scovino (UFRJ) Luisa Marques
Fernanda Albertoni (UFRJ) Marcela Cavallini
Fernando Gerheim (UFRJ) Mario Cascardo
Francini Barros (Ufpe) Paulo Holanda
Frederico Benevides (UFRJ) Thiago Fernandes
Frederico Carvalho (UFRJ) Vanessa Magalhães Pinto
Hanna Claudia Rodrigues (UFRJ) Veronica Valle
Inês de Araújo (Uerj)
Coordenação
Izabela Pucu (pesquisadora independente)
Helena Eilers
Jorge Soledar (UFRJ)
Julia Machado (UFRJ) Editoração eletrônica
Lorraine Mendes (UFRJ) Fátima Alfredo
Luana Aguiar (UFRJ)
Lucas Sargentelli Icó (UFRGS) Projeto gráfico e diagramação
Lucia Gouvêa Pimentel (UFMG) Lu Martins
Luciano Vinhosa (UFF) Revisão
Luiz Cláudio da Costa (Uerj) Maria Helena Torres
Luiza Leite (pesquisadora independente)
Marcelo Campos (Uerj) Tradução
Maria Luiza Fragoso (UFRJ) Elvyn Marshall
EDITORIAL
7 Cânones em rotação
Canons turning
Tadeu Capistrano, Livia Flores
ENTREVISTA
ARTIGOS
110 Ballet Folclórico Mercedes Baptista: entre brasilidade e negritude no Rio de Janeiro
das décadas de 1950 e 1960
Mercedes Baptista Folk Ballet: between Brazilianess and Blackness in Rio de Janeiro
during the 1950’s and 1960’s
Erika Villeroy
127 Corpos femininos na performance: por uma subversão
Female bodies in performance: for a subversion
Beatriz Nascimento Triles
233 Ensaio para o acidental: a loucura e a queda em Rancière, Bas Jan Ader
e dom Quixote
Essay for the accidental: loucura and fall in Rancière, Bas Jan Ader
and Dom Quixote
Daniela Cunha Blanco
315 As “situações” gráficas de Anna Bella Geiger e o livre jogo das transfigurações
Anna Bella Geiger’s “situations”: the free play of transfiguration
Luiz Cláudio da Costa
331 “Aqui está a opção do Terceiro Mundo: um futuro aberto ou a miséria eterna”.
Reflexões sobre a obra tardia de Mário Pedrosa
“Here is the Third World option: an open future or eternal misery”: reflections on
Mário Pedrosa’s late work
Luiza Mader Paladino
350 Beyond Brazil: remembering Guy Brett through his own eyes
Além do Brasil: lembrando Guy Brett através de seus próprios olhos
Michael Asbury
Tradução: Felipe Scovino
DOSSIÊ AMÉRICA LATINA ARTE & COMBATE
&E
Arte
Cânones em rotação
Giunta, que nos parece especialmente produtiva para pensar impulsos funda-
mentais à criação e à crítica em meio ao intenso e urgente aqui e agora em que
nos encontramos.
Expressamos nossa absoluta solidariedade à dor e ao luto das pessoas
que sofreram a perda de entes queridos nesses tempos sombrios. Lembramos
os tantos e tantas artistas, pensadores e ativistas que fazem falta ao país e cujas
mortes por covid-19 lamentamos profundamente.
Agradecemos a todas as pessoas que colaboraram com sua energia e
profissionalismo para que o número 41 da Arte & Ensaios viesse a público:
autoras e autores, avaliadoras e avaliadores, integrantes da equipe de produção
composta por estudantes do PPGAV-UFRJ e profissionais responsáveis pela
revisão, tradução do editorial, design e editoração eletrônica. Por fim, registramos
especiais agradecimentos aos ex-editores Tatiana da Costa Martins, Felipe Scovino
e Rogéria de Ipanema, que nos confiaram um importante legado de atualizações
nas práticas e modos de funcionamento da revista Arte & Ensaios qualificando-a
para enfrentar os desafios de dar continuidade ao trabalho de formação e difusão
do conhecimento na área de artes. Que venham dias melhores para a saúde, a
cultura e a educação!
Livia Flores
Tadeu Capistrano
Editoria Arte & Ensaios
Como citar:
FLORES, Livia; CAPISTRANO, Tadeu. Cânones em rotação. Arte & Ensaios, Rio de
Janeiro, PPGAV-UFRJ, v. 27, n. 41, p. 7-9, jan.-jun. 2021. ISSN-2448-3338.
DOI: https://doi.org/10.37235/ae.n41.1. Disponível em: http://revistas.ufrj.br/
index.php/ae
ae &E
Arte
os
nsai
EDITORIAL 10
Canons turning
Arte & Ensaios presents number 41 corresponding to the public call for
Canons turning, published in December 2020. At the end of that first pandemic
year the possibility of a large-scale dissemination of the first vaccines worldwide
was announced, which in fact occurred in many countries – but not in Brazil. The
ethical, humanitarian and political – and why not also aesthetic crisis – which
we experience, is expressed brutally and tragically in the death of more than half
a million people. Alongside the generalized struggle, there is an increase in the
instability and threat of extermination of nonhegemonic ways of life. We know that
in the population indigenous groups and most people of African descent are being
especially affected by a longstanding historic process that is steadily intensifying.
The same process that from its patriarchal roots stretches its violent intolerance to
feminist issues and gender dissents, eliciting a wide variety of responses.
We consider that the canon, in its turn, is also a historic construction legitimized
by critical action (and tradition) of dominant social groups seeking to sediment their
choices in the social memory through transmission mechanisms such as education
and publication. So we open up this edition to multi-voices boosting vibrant or
subtle displacements to the field forever in dispute of reflection and the written
word about art.
An example of a spin put on the modernist canon, so central for Brazilian
cultural formation, is the twist proposed by Macuxi artist and writer Jaider Esbell
who opens this edition with one of the pages from his book Letter to the Old World
[Carta ao velho mundo] on the cover, followed by the interview In the indigenous
society, everyone is an artist given to the magazine. After claiming through his
grandfather Makunaima who sees in the opportunity to adhere to the cover of
Macunaíma, the book by Mário de Andrade (1928), a way in which to win the world
and flee from appropriation and victimization, upholding his energy of transformation,
Jaider Esbell invites the Macuxi people and other indigenous nations as well as our
own non-indigenous people, to review positions relating to myth, history and art.
Selected from a double blind review, the 15 subsequent articles address
PPGAV/EBA/UFRJ
questions that contribute to developments of the theme. This is a “spin” of texts that
Rio de Janeiro, Brasil includes dissenting voices and denounces colonial legacies that haunt the present
ISSN: 2448-3338
DOI: 10.37235/ae.n41.2
ae &E
Arte
os
nsai
11
We express our wholehearted solidarity for the pain and grief of those who
have suffered the loss of loved ones in these dark times. We remember so many
artists, thinkers and activists who are so sadly missed in the country and whose
deaths from Covid-19 we deeply mourn.
Thank you all who have collaborated with your energy and professionalism so
that number 41 of Arte & Ensaios is available: authors, appraisers, members of the
production team made up of students from the Post-graduate Program of Visual
Arts of the Federal University of Rio de Janeiro (PPGAV-UFRJ) and professionals
responsible for revision, editorial translation, design and desktop publishing.
Lastly, we give special thanks to the former editors Tatiana da Costa Martins,
Felipe Scovino and Rogéria de Ipanema, who entrusted us with a valuable legacy
of updates in working practices and methods of the Arte & Ensaios magazine,
enabling it to confront the challenges to continue the formation and dissemination
of knowledge in the field of Arts. Hoping for better days to come for health,
culture and education!
Livia Flores
Tadeu Capistrano
Editorial Arte & Ensaios
Como citar:
FLORES, Livia; CAPISTRANO, Tadeu. Canons turning. Trad. Elvyn Marshall. Arte &
Ensaios, Rio de Janeiro, PPGAV-UFRJ, v. 27, n. 41, p. 10-12, jan.-jun. 2021. ISSN-
2448-3338. DOI: https://doi.org/10.37235/ae.n41.2. Disponível em: http://revistas.
ufrj.br/index.php/ae
ae &E
Arte
os
nsai
13
PPGAV/EBA/UFRJ
Rio de Janeiro, Brasil
1
A esse respeito, ver Makunaima, O meu avô em mim!, texto de Jaider Esbell publicado na revista
ISSN: 2448-3338 Iluminuras, BIEV/LAS/PPGAS/IFCH/UFRGS, Porto Alegre, v.19, n.46, jan-jul 2018, disponível em
DOI: 10.37235/ae.n41.3 https://seer.ufrgs.br/iluminuras/article/view/85241/49065
ae &E
Arte
os
nsai
Entrevista de Jaider Esbell a Arte & Ensaios 15
restitui ao seu povo uma voz que foi confiscada e a restitui para contestar os
célebres mal-entendidos da preguiça e da falta de caráter. Então, minha pergunta,
para começar, é se é daí que vem a sua virada como artista, como pensador e
propositor de um “sistema de arte indígena contemporâneo”. Nessa formulação
me chama atenção a palavra “sistema”. Então uma segunda pergunta é: por que
o uso dessa palavra? Jaider congelou? Acho que ele caiu.
Jaider Esbell / … a ideia do sistema. Então, eu acredito que hoje, Livia
e amigos que estão aqui reunidos, eu começo a ter um pouco mais dessa
dimensão do que eu tenho tentado fazer, que une essas expoências, que é a
identidade, que é cultura, arte…
[Problema na conexão]
JE / Então, Livia, eu estava falando dessa consciência da pesquisa e da
trajetória. De entender como esses mundos se aproximam. Essa é uma forma
de pensar para sair da forma de mundo “engolindo o mundo” ou “acabando com
o outro mundo”. Acho que esse pensamento enquanto sistema busca alimentar
outra ideia de lógica, juntar elementos ainda tão dispersos. A forma como as
sociedades que estavam aqui desde sempre foram sendo apresentadas de
qualquer jeito, sob outros valores. Então, digamos, tudo é mesmo uma estratégia.
Pensar os fazeres indígenas enquanto práticas artísticas, enquanto estados da
arte. Botar isso tudo num sistema porque aí conseguimos sinalizar um princípio,
uma conexão de gênese e um sentido que não se dissocia da sua lógica, da sua
aplicabilidade. E isso coloca uma possibilidade de tentar ver o que o povo fala
dessa coisa do “tempo circular” — “o tempo dos indígenas é um tempo circular”.
Então vamos colocando essas palavras, essas proposições, como a própria AIC.
Buscar esse contraponto, de chamar de arte indígena contemporânea, até porque
precisamos nos sentir ali dentro, não é? Enquanto essa ideia da autoria também,
passando já para o campo do pensamento.
LF / Você entende como uma estratégia linguística, não é? De formação
de um conceito, de uma tomada de posição?
JE / Como eu falei, essa consciência de ser neto de Makunaima vem sendo
construída ao longo do tempo, com essa criticidade. No meu caso, mergulhando
para dentro da própria cultura, me encontrando mais nisso tudo. Então, o livro
Terreiro de Makunaima, lá de 2009, vem como um primeiro elemento, uma peça
ae &E
Arte
os
nsai
Na sociedade indígena, todos são artistas 16
gráfica, artística, uma publicação literária, conceitual, sei lá. Ela já vem sinalizando
para esta análise: entender o que é esse Macunaíma, e ao mesmo tempo,
ir engordando, alimentando mais o Makunaima desses contatos da matriz do
povo. E aí você vai para esse mundo artístico, você vai fazer o quê? Você não vai
procurar uma narrativa ou outra para explorar, tem muitos elementos já de
lógica de pensamento: o Makunaima está há mais de 100 anos aí, tem essa coisa
toda da cultura, do Modernismo, identidade e tudo. E tem também esse levante
dessa identidade que está sendo requisitada aqui no Brasil por pessoas de
várias gerações e realidades. Então a história do Macunaíma serve para motivar
essas pessoas a buscar suas raízes, suas histórias. É possível falar de outras pos-
sibilidades; são várias coisas que vêm com esse trabalho. Acho que o Makunaima
serve para muita gente, para muitos povos; ao mesmo tempo que é reflexo dessa
ideia de cultura e Brasil, ele chama para essa diversidade toda.
LF / É uma pluralidade articulada, não é? Porque me parece que é para
isso que a palavra “sistema” aponta. Uma articulação de diferentes elementos e
agentes. Passo a palavra para quem quiser continuar com uma pergunta.
JE / Só não me perguntem como é o meu processo criativo. [risos]
Ronald Duarte / Eu queria falar, mas não nessa direção de sistema nem
nada disso. Eu queria ir lá para a floresta. Porque Makunaima tem toda essa relação
com brasilidade, com Macunaíma, e eu pensei em falar de canaimé, Jaider. Fala
um pouco do canaimé para nós. Você pinta tanto ele, cara.
JE / O canaimé é uma das primeiras figuras que eu retrato dentro da
produção pictórica. Está tanto na publicação do primeiro livro quanto numa tela
de 2011, da primeira leva de produção. O canaimé é essa figura muito presente
nas culturas que se partilham aqui no chamado circum-Roraima, as etnias que
se comungam aqui, tanto os Karíb quanto os Arawak os Wai Wai e os Wapichana.
É um objeto de curiosidade, de pesquisa e de fascínio, muito associada à figura
do mal, do fantástico, e também à figura do sobrenatural, da metafísica, essas
paradas todas. Em resumo, o canaimé é um estado, um estado performático,
transitório, metamórfico mesmo, porque se trata de manipulação de poder, de
feitiços...
RD / Congelou, será? Foi falar em feitiço…
ae &E
Arte
os
nsai
Entrevista de Jaider Esbell a Arte & Ensaios 17
Figura 1
Jaider Esbell,
O Ataque do Kanaimé, 2011,
acrílica sobre tela,
168 x 129cm
Foto: Marcelo Camacho
ae &E
Arte
os
nsai
Na sociedade indígena, todos são artistas 18
Figura 2
Jaider Esbell,
Berçário de Kanaimé, 2021,
posca e acrílica sobre tela,
100 x 75cm.
Foto: Marcelo Camacho
ae &E
Arte
os
nsai
Entrevista de Jaider Esbell a Arte & Ensaios 21
nisso. Então o meu deslocamento desde a Raposa da Serra do Sol, a passar por
outros lugares da estrutura urbana e da teia do que sejam as cidades e tudo. E
é mais um pouco desse passeio para poder estar analisando esses sistemas,
como eles funcionam. O nosso trabalho é feito dentro do campo da autoria, do
posicionamento do indivíduo. E aí, chega um ponto em que começamos a emitir
os relatórios, fazer as prestações de contas, mostrar para as comunidades o que
estamos fazendo. Porque para as sociedades indígenas, quem sai da aldeia deve
voltar com alguma coisa, deve dar um retorno, alguma resposta, porque para nós
os mundos não se desintegram assim tão facilmente. Não existe essa de “cortei
relações com a aldeia, não sou mais isso”. Por mais longo que o bordejo do
parente possa parecer, ele nunca vai estar exatamente além dessa ligação que
não chega a ser um compromisso, mas é uma conexão. Ao mesmo tempo que esse
passeio no mundo até subverte alguma coisa, essas coisas da lógica, pensando
como os elementos da cultura são trabalhados pelos próprios indígenas. Enfim,
é muito complexa a pergunta do Pedro, a questão da ética. Mas, em princípio,
para mim, ela funciona exatamente dentro desse posicionamento, de entender
sua função enquanto uma estrutura social que está em deslocamento constante,
enquanto sociedade, falando da relação com o Estado, com a sociedade dominante.
Então, essa noção de ética que o Pedro fala muitas das vezes ela não funciona, não
faz o menor sentido. Por exemplo, quando colocamos a própria atuação do canaimé,
uma coisa que não tem lógica, e até a ideia de justiça não cabe, não é? Pensando
que a ideia de justiça, de valores que estamos tratando, é o valor de um elemento
colonial, não é? Então tem horas que não há conexão. E outras vezes tem, talvez
falte avançar mais nessa questão da tradução.
Clarissa Diniz / Queria pedir para Jaider, se possível, falar um pouco mais
sobre a ideia de transformação e a centralidade que a transformação tem na sua
vida, pensamento, obra. Mas também como tensiona e torna mais complexa uma
estrutura muito binária de mundo que ancora a própria experiência da arte numa
ideia de criação meio tabula rasa. E o modo como você experimenta, performa,
usa, reivindica a ideia de transformação traz uma riqueza de possibilidades. Então,
se você puder falar um pouquinho mais de transformação, seria legal.
JE / Então… Essa natureza inconstante da turma do Makunaima acaba
sendo motor para pensarmos as coisas como uma frequência de passagens, de
um estado para o outro, que acontece em várias velocidades e cada uma tenta
ae &E
Arte
os
nsai
Entrevista de Jaider Esbell a Arte & Ensaios 23
chamar atenção para si, e algumas conseguem estar mais presentes na nossa
lógica de mundo, visão, sensação, audição, percepção, e outras não conseguem
estar na tela principal das nossas sensibilidades, digamos assim. Então você vê
um pássaro que voa. É algo que acontece rápido, passou, voou. Você não
consegue, por exemplo, ver uma montanha que está crescendo, não é? Eu tive
a chance de ver. Quando eu estava nos Estados Unidos, fui caminhar nessas
montanhas novas que ainda estão em formação. Você vê aquelas pedrinhas
rolando, tipo uma avalanche de pedregulhos, a montanha está em movimento,
está crescendo. Então colocamos isso tudo dentro do que é a razão da nossa
vida. Acho que o tempo da nossa vida acaba sendo como um quadro mesmo,
um negócio expositivo, né? Porque as coisas só ganham essas estabilidades,
esse sentido, enquanto estamos vivos, não é? Enquanto estamos aqui, de
corpo e matéria, pesado no chão, não pode ter tanta fluidez. Depois que morreu,
que volta para o campo espiritual, então você volta a fazer parte dessa conexão
muito mais dinâmica, interativa e integrada. Eu estava pensando hoje de manhã
mesmo: eu tenho dificuldade em pensar, em criar nos formatos mais retan-
gulares, alinhados, diretos. Sou muito mais circular, muito mais linhas soltas
e essas energias que se entrecruzam. Dentro da minha capacidade, tento expe-
rimentar esse tempo da transformação contínua, que é esse em que Macunaíma
vem andando, passando, tocando nas coisas ou erguendo a mão, falando palavras
de comando, e as coisas vão se transformando. E aí no outro momento, ele vem
voltando e desfazendo aquilo, e já em outras coisas exemplificando como é
possível criar seu próprio ambiente ou não aprisionar forma, não eternizar nada,
não colocar nada como definitivo, duradouro demais. Isso tudo é muito fascinante.
E aí, acho que essa aproximação mais cuidadosa com as medicinas também
vem nos auxiliando nessa compreensão mínima de como a transformação ou o
movimento... nesse borbulhar das ideias que surgem, podem ser propostas
enquanto linhas de pensamento e de possibilidades de sair desse estado de
apatia. Como podemos encontrar recursos que passam pela própria anatomia,
não é? Como nosso corpo está preparado para estar na floresta, como ele sofre
quando esse distanciamento é provocado de forma súbita, não é? Como temos
que transformar, buscar elementos da sutileza da transformação para aplicar
onde estivermos e ir nos transformando. Porque nós tentamos dar outro sentido
ae &E
Arte
os
nsai
Na sociedade indígena, todos são artistas 24
Figura 3
Jaider Esbell,
A guerra dos Kanaimés 5,
2020, posca e acrílica
sobre tela, 145 x 110cm.
Foto: Marcelo Camacho
ae &E
Arte
os
nsai
Entrevista de Jaider Esbell a Arte & Ensaios 25
que temos de fato o tronco da grande árvore, e essa árvore foi cortada, jogada no
chão, e essas sementes se espalharam no mundo, no universo, pela velocidade
da queda da árvore, estão até hoje circulando por aí, brotando, se miscigenando,
né? Então acho que Makunaima, a história do povo macuxi, não tem essa
reivindicação de uma pureza, de uma raiz única. Ao redor do Monte Roraima tem
muitas outras árvores que já foram cortadas em outros tempos, em outros fins
de mundo, que já foram construídos e reconstruídos, mas até onde se entende,
a árvore que foi cortada por último é esse Monte Roraima, e a última floresta viva
é essa Floresta Amazônica, não é? Dentro dessa lógica, a Floresta Amazônica é a
copa dessa grande árvore, de todos os saberes, de todas as coisas que existem.
Esse tronco acaba graficamente, geograficamente, fisicamente, servindo como
uma potência de ilustração para esse questionamento de mundo, mas como é
que isso funciona? Está ali uma evidência. Se o que a ciência quer é a evidência,
tem a prova, que é o tronco da grande árvore. E que para dentro da grande árvore,
da raiz, tem o buraco onde os Macuxi têm o mundo reserva, não é? A história de
que a galera vai para outro lugar depois que aqui já acabou, que é o ovo, a rainha,
a ideia de como a natureza vai, a origem das coisas, a fonte. É um pouco assim
que funciona a cultura.
CD / Jaider, sobre essa coisa do cristianismo que o Ronald falou, lá num
trecho de O meu avô em mim, você diz que uma diferença entre Cristo, a narrativa
bíblica cristã, e a história do Makunaima, é que Makunaima não estaria na chave
vítima-mártir. Acho que quando você nos conta sobre a agência de Makunaima,
você também desmonta esse complexo da vitimização e da martirização. E aí você
fala uma coisa que eu acho muito massa, que é sobre a coragem, sobre os atos,
os gestos plenos de coragem, como o próprio corte da Wazaká que você narra,
que são cortadas nessa aposta do tempo, numa escala muito maior. E eu acho
muito bonito quando nessa hora você fez essa diferença, já que estamos falando
de religião, de cristianismo, e dessa chave, de coragem versus martirização, ou
vitimização. Acho que você usa talvez os dois termos, não lembro exatamente
qual. É algo que me veio na pergunta de Ronald.
JE / Então, um dos elementos bem marcantes, se é que precisa dessa coisa
de um diferenciador do makunaimismo para o cristianismo, essa coisa de ser
essencialmente do bem. Makunaima nunca tem essa reivindicação de ser um
elemento que represente o bem. Dentro da estrutura da língua, aliás, a termino-
logia Makunaimã, o “ã” significa o mal, o grande mal. Ele vem de uma natureza,
ae &E
Arte
os
nsai
Entrevista de Jaider Esbell a Arte & Ensaios 27
Figura 4
Jaider Esbell,
A guerra dos Kanaimés 6,
2020, posca e acrílica
sobre tela, 145 x 110cm.
Foto: Marcelo Camacho
ae &E
Arte
os
nsai
Na sociedade indígena, todos são artistas 28
não diria que seja uma natureza de paz e harmonia, ele vem de uma natureza
de constância. De uma frequência de convulsão, não é? Então o que é essencial
nessas passagens de Makunaima é essa coisa de desestabilizar. De tirar a situação
de um ponto de equilíbrio e a colocar para andar, para movimentar. Então mexe
com a zona de equilíbrio mesmo, é uma energia forte, propulsora, provocadora,
ela vem passando para fazer com que alguma coisa se movimente ali naquele
momento, naquela ocasião, um pouco isso.
LF / Jaider, pegando aqui um gancho na pergunta da Clarissa sobre a trans-
formação, você está sempre performando a própria transformação, me parece.
Vendo seus trabalhos mais recentes − um vídeo que está no site do Instituto
Moreira Salles ou a live que você fez na abertura da exposição na Galeria Milan, se
colocando em estado performático, eu percebo uma ampliação enorme de seus
recursos, dos materiais que você usa, das direções pelas quais o seu trabalho vai
se expandindo. Achei bem interessante no vídeo do Instituto Moreira Salles, que
você coloca uma paleta e um instrumento de medição. Eu não consegui identificar
muito bem o que era, mas deixa evidente a presença da tecnologia como um
instrumento de trabalho. Se você puder falar um pouco sobre isso…
JE / Então, o que acontece é que eu tento pensar que, artisticamente ou
enquanto um ser sobrevivente de tanto tempo, até mesmo privilegiado por fazer
parte disso tudo, que, de fato e consciência, podemos usufruir de qualquer coisa
que exista neste mundo. E tudo que há de recurso, tecnologia, conhecimento,
acaba sendo também nosso, de direito, direito de usufruto, de experimentação,
direito de aplicar isso no nosso corpo, na nossa voz, na nossa entrega. Artisti-
camente, para mim, tem funcionado muito essa evolução. Não vamos falar de
evolução... nesse caminhar, nessa entrega de entender a sutileza que há entre a
coisa da espiritualidade, da arte, da política. E como esses encontros podem ser
projetados por meio dessas tecnologias, mídias, espaços. É essa noção de que
estamos dentro de um sistema, que em princípio nos conhecemos e nos reconhe-
cemos, que é o sistema das nossas próprias artes, e aí conseguimos ir um pouco
nesse sistemão, em que temos é que fazer um recorte dentro de uma perfor-
mance maior, que é um estado constante de performance, de estar em vigilância,
em espreita, em estado político constante. E aí reforçamos ainda mais essa coisa
da performance do figurativo e da invocação dessas forças, dos elementos, por
meio de concentrações, de tentar integrar isso na poética, no conceito da obra que
ae &E
Arte
os
nsai
Entrevista de Jaider Esbell a Arte & Ensaios 29
Figura 5
Jaider Esbell,
A guerra dos Kanaimés 7,
2020, posca e acrílica
sobre tela, 145 x 110cm.
Foto: Marcelo Camacho
ae &E
Arte
os
nsai
Entrevista de Jaider Esbell a Arte & Ensaios 31
vermelho, feito por ela, e o Jaider vestiu um manto branco, todo desenhado
e juntos os dois fizeram uma defumação com canto passando pelas salas da
Pinacoteca. E num dado momento eles dois enfrentaram a pintura Antropofagia
(1929), de Tarsila do Amaral. No catálogo de Véxoa tem umas fotografias
belíssimas desses momentos de enfrentamento entre os cânones. Eu gostaria
muito que vocês comentassem a respeito desse momento específico de ativação
artística e historiográfica.
Daiara Tukano / Responde aí, macuxi [Silêncio]. Boa tarde, pessoal, estou
aqui ouvindo, não é? Eu queria até aproveitar para fazer uma pergunta para o
Jaider: Você não fica de saco cheio desse povo perguntando toda hora sobre
Makunaima, não? [Risos]. Desculpa. Mas assim, por favor, não me levem a mal.
É porque às vezes eu tenho a sensação que tem uma tara com essa parada da
Semana de Arte Moderna e da Antropofagia, do Mário e do Makunaima, e tudo mais.
RD / Concordo.
DT / É uma tara do exotismo, com um racismo muito mal velado, sabe,
dessa construção de pensamento brasileiro, de se refletir o Brasil por um viés
que é racista mesmo, não é? Um autorracismo. Um autoetnocídio, o que estamos
vendo hoje. E, desculpa, por favor, não é nada pessoal mesmo. Mas é porque eu
tenho acompanhado um pouco o Jaider nos últimos anos [risos] e eu admiro
profundamente essa paciência para ficar falando disso, porque eu fico sem
paciência [risos]. Desculpa, acho que eu estou um pouco de TPM. “Ai, puta merda,
tanta coisa para perguntar e fica falando de Macunaima toda hora, meu.” Sabe…
LF / Vocês também, não é, pessoal?
DT / Pois é, mas é uma dinâmica meio maluca. Desculpa a sinceridade. E
pode ser uma coisa muito pessoal minha, porque dentro do meu percurso
acadêmico… Eu sou formada em artes visuais pela UnB. Então eu tive alguns
anos para ficar ouvindo durante aulas e aulas essa galerinha e compreender o
quão canônicos, icônicos e poderosos se tornaram nesse coletivo imaginário
brasileiro a Semana de Arte Moderna, a Tarsilinha querida, o Oswald, o Mário,
essas obras e tal, poxa, que legal. Mas também foram anos e anos vendo a
ausência absoluta da menção respeitosa em relação aos povos indígenas na
história da arte, não é? E nós vamos e estudamos o livro daquela senhora lá,
como que é? Puta merda, esqueci o nome dela.
CD / Araci?
ae &E
Arte
os
nsai
Entrevista de Jaider Esbell a Arte & Ensaios 33
JE / Lux Vidal.
DT / Não, que Lux o quê! Quando vamos estudar história da arte… No
Brasil, temos que ler um livro da… Ai, pior que eu tenho esse livro aqui na prate-
leira, mas é um livro que cai no vestibular, sabe? [risos] Da história da arte. Não
vou lembrar do nome dela agora, estou bloqueando isso da minha cabeça, que
absurdo. Mas, enfim, a representação do indígena é praticamente inexistente,
o que tem é a representação do “índio”. Entre muitas aspas, não é? E é o índio
morto, o índio catequizado. É o índio que vai se misturando, mas é uma visão
extremamente superficial, manchada por esse fetichismo que só consegue ficar
nessa tara, na superficialidade. E é exatamente com isso que nos incomodamos
quando entramos num espaço museológico, desses muito reverenciados, seja
no Brasil ou no resto do mundo, pela maneira como os povos indígenas são
colocados nesse espaço do museu… Essa coisa da etnografia, como se apresenta,
como se contextualiza é de uma violência escrotíssima, não é? Eu sei que vocês
vão publicar, por favor corrijam minhas palavras, caso vocês queiram publicar
isso daí [risos]. Ou então bota que é escroto mesmo, aí se colocar ESCROTO,
bota em caps lock, em negrito. Porque não se vê em nenhum lugar, em nenhum
museu se discutir de uma maneira mínima o processo de genocídio e o processo
colonial, não é? Então, entrar na Pinacoteca, todo esse processo de construção da
Véxoa como uma primeira exposição com curadoria indígena, uma exposição de
AIC, inclusive se compreendendo que a arte tradicional também é contempo-
rânea, não é? Aquilo que foi muito tempo tachado como objeto, artefato, artesanato,
essas coisas. Também é arte, também é contemporânea, não é? Romper várias
dinâmicas de poder dentro dessa coisa de se debater arte, não é? E nós entrando
lá dentro, para visitar com liberdade. Que o manto tupinambá, por exemplo, não
tem no Brasil, não é? Os que estão em pé, estão lá na Europa, engaiolados
naqueles aquários, nem patrimônio brasileiro são. Os mantos tupinambás
são patrimônio da Noruega, da Bélgica e da França. No Brasil, o povo tupinambá
continua sendo massacrado, o cacique Babau é um dos caciques mais perseguidos
que tem. Já perdeu até a conta de quantos são os atentados que foram feitos
contra ele. Então, é um ato muito político se fazer essa ativação, justamente
dentro desse espaço da Pinacoteca que tem um acervo histórico da arte brasileira.
Tendo estudado história da arte − eu até iniciei o mestrado em história da arte,
mas tive que abandonar − eu fiquei tão emocionada vendo aquela escultura
ae &E
Arte
os
nsai
Na sociedade indígena, todos são artistas 34
Figura 6
Jaider Esbell,
A guerra dos Kanaimés 8,
2020, posca e acrílica
sobre tela, 145 x 110cm.
Foto: Marcelo Camacho
ae &E
Arte
os
nsai
Na sociedade indígena, todos são artistas 36
Figura 7
Jaider Esbell,
A guerra dos Kanaimés 9,
2020, posca e acrílica
sobre tela, 145 x 110cm.
Foto: Marcelo Camacho
ae &E
Arte
os
nsai
Entrevista de Jaider Esbell a Arte & Ensaios 37
mais elementos para que essas discussões se ampliem e para que acabem
conectando tempos distintos das trajetórias. E fazendo uma colocação com a
história de Makunaima, o povo não aguenta mais, como Daiara diz, não é? Em
relação à canoa de transformação, a escola do Feliciano Lana, do povo do Rio
Negro, que está cada vez mais popular, vamos usar essa palavra, assim como a
arte dos Maxakali, essa coisa toda, como a AIC vem de certa forma…
RD / Passou um avião!
JE / É de garimpeiro.
[Risos gerais]
JE / Então, Paula Berbert, a AIC é isso, talvez seja uma caça, um ato de
caçar. Você vai usando várias armadilhas, dependendo da ocasião que encontra.
E num outro movimento, é tentar fazer essa tradução de mundo. Ir lá, ver como
acontece, falar para os parentes como as coisas funcionam, como é que não é, os
riscos… Tem essa figura de dar a mão um ao outro, é uma forma de apresentar,
de tentar fazer com que role algum diálogo.
PB / Escutando você, vão se produzindo várias sinapses no meu pensa-
mento. Quando você coloca a questão da armadilha como dispositivo de tradução,
penso que uma armadilha, para ser eficiente, subverte o comportamento daquela
caça que se deseja capturar. Tem um tipo de armadilha específico para pegar
macaco ou peixe... A armadilha é esse ardil com que o caçador, conhecendo
muito bem o comportamento daquele bicho, consegue pegá-lo. E aí queria
trazer suas formulações sobre como a AIC serve compartilhar o modo de
funcionamento do mundo branco com os parentes, com as comunidades... E
ainda essa perspectiva de que os termos que você usa nas suas elaborações
sobre a arte indígena têm muito a ver com essa dinâmica de pesquisa... Como
quando você analisa o período em que trabalhou como eletricista de alta tensão
e define toda a sua trajetória até o momento atual, dedicando-se exclusivamente
à tarefa de artista, como uma grande trajetória de pesquisa, desde que começou
a se dar conta da história dos Macuxi, a entender a violência ... E retomando a
ideia de que a armadilha é em si um mecanismo de tradução daquilo que se
quer pegar, e pensando no que você vai apresentar como curador no MAM SP, no
título da exposição e no argumento curatorial que você está trabalhando, que é a
ideia do moquém... Queria que você falasse sobre isso, sobre a AIC como estra-
tégia de hackeamento do comportamento dos brancos, dos críticos de arte, dos
antropólogos, dessas expectativas. E como entendê-las na sua perspectiva de
ae &E
Arte
os
nsai
Na sociedade indígena, todos são artistas 40
Figura 8
Jaider Esbell,
Os Parixaras das serras,
2021, posca e acrílica
sobre tela, 100 x 75cm.
Foto: Marcelo Camacho
ae &E
Arte
os
nsai
Na sociedade indígena, todos são artistas 42
de que outros assuntos nós, brancos, podemos trazer para a conversa, no sen-
tido de uma ampliação de nosso repertório. E me parece interessante pensar na
sua capacidade de transitar entre diferentes culturas. Que não é uma experiência
apenas sua, mas também da Daiara, da Paula, do Anderson, enfim, de pessoas
que vêm de outras culturas ou que procuram esse contato... talvez todos nós
tenhamos aí nossos atravessamentos, enfim... a pureza é um mito.
JE / Então, pensar nesse conjunto de práticas e fazeres que a AIC vem
trazendo é realmente muito pedagógico, conseguindo estar hoje mais presente
na própria escola com essa coisa da virtualização. As escolas, que teriam muito
mais dificuldade de acessar alguma comunidade, algum artista indígena, enfim,
qualquer pessoa que tenha interesse pelo universo indígena está hoje podendo ter
mais contato, interação, não é? E esse trabalho todo e essa repercussão passam
pela necessidade, ou oportunidade, que nós temos dessa midiatização, fazendo
uso das redes sociais, dessa coisa do artivismo, que é se posicionar enquanto
artista, ativista e se utilizar dessas linguagens todas para fazer política e marcar
presença, demarcar territórios. Então a AIC está criando essas ambiências, que
nos atravessam de uma forma ou de outra. Você falou essa coisa da pureza, da
mestiçagem, essa reivindicação do povo que tem muita gente atrás de...quem é
a minha tribo. Enfim, como isso é interessante e também complexo, não é? Nesse
campo da utilização da própria cultura como forma de se posicionar socialmente,
passando pela ideia de promoção, apropriação, e todas essas questões. Então é
muito pedagógico nesse sentido porque faz esses assuntos se aproximarem, se
confrontarem. E isso é muito bom porque reflete de fato uma tensão mínima, dá
uma energizada na coisa.
LF / Colocando até questões sobre o sentido de fazer arte, não é? Porque
é a partir de outra concepção, com algo muito mais coletivo, muito mais ligado à
própria memória.
JE / Então, a arte contemporânea é isso, ela vai lá no palco, vai no cubo
branco, chega lá e diz que a arte não é necessariamente aquilo e, por ser um
reflexo dessa coletividade, reflete para essa base a ideia de que vivemos, de fato,
um estado pleno de arte, que cada um pode ser artista, não é? E não se prender
nessa limitação de que no mundo branco o artista é uma ou duas ou dez pessoas
na sociedade de 100 mil pessoas. Na sociedade indígena, todos são artistas. Em
resumo, um mundo com artistas, feito de artistas, é um mundo muito mais viável.
ae &E
Arte
os
nsai
Entrevista de Jaider Esbell a Arte & Ensaios 43
LF / Pode falar um pouquinho mais sobre essas noções de arte, que vêm
por intermédio dos povos indígenas? Como é isso? Essa compreensão de arte?
JE / Tenho falado sobre arte e memória, então, essa história de trabalhar
conceitualmente, politicamente a arte reflete essa coisa da comunidade. E o
estímulo à memória traz a necessidade de diálogo, de pesquisa própria, de
aproximação e de reconstituição memorial. E quando ela coloca a comunidade
nesse estágio de se rememorar e de se reencontrar, acaba não exatamente
virando as costas para a grande sociedade, mas tem a chance de imergir em si
mesma e esquecer momentaneamente que está rolando uma colonização e tal.
E ela pode, de fato, viver o seu tempo presente. Então, a AIC tem alcançado essa
condição de provocar um estado de consciência coletiva de que, com todo esse
aparato do mundo branco, é possível estar presente no nosso próprio tempo,
essa coisa de ser indígena e ser contemporâneo, um pouco por aí.
LF / Maravilha! Não sei se há ainda desejo de fazer mais alguma pergunta...
Podemos ir nos encaminhando para uma finalização.
JE / Esse é um assunto que estamos pesquisando muito, entramos nessa
canoa, da AIC e tal... Fizemos várias movimentações, temos usado muito rede
social para ir disseminando essas ideias, e a coisa tem repercutido aí, tem
movimentado muita coisa; estamos com uma passagem boa pelo cenário da
arte nacional, internacional, olhando com muito cuidado o que isso significa e o
que pode significar, quais as chances e os perigos que tem a aproximação com
esse sistemão. É um momento de muita atenção que estamos vivendo e é um
momento também que as universidades especialmente têm que estar alinhadas
conosco, como sempre estiveram, lembrando que nós temos na universidade
boa parte da nossa formação, não é? Então, enquanto parceiros, eu acho que
é fundamental que estejamos juntos, conectados, nessa costura de se apoiar
nesse entendimento de buscar se comunicar cada vez mais assertivamente
com a ideia de comunidade; institucionalmente o artista como uma referência,
influência, a universidade também; como isso deve ser tratado, constituído, repor-
tado e também deixado muito aberto, para que haja essa participação. Esse é
um assunto que não dá para ser tratado dentro da perspectiva de um artista sem
correr o risco de ser uma opinião muito pessoal, muito individual, pois sempre
perpassa por trabalhos de uma coletividade, não é? O nosso desafio é exata-
mente sair dessa pessoalização das coisas e tentar integrar o caráter coletivo,
corporativo, que o movimento tem.
ae &E
Arte
os
nsai
Na sociedade indígena, todos são artistas 44
Figura 9
Jaider Esbell,
Carta aberta ao Velho
Mundo, 2019,
livro-objeto, posca sobre
impressão off-set,
37,5 x 27,7cm.
Foto: Marcelo Camacho
ae &E
Arte
os
nsai
Na sociedade indígena, todos são artistas 48
Como citar:
ESBELL, Jaider. Na sociedade indígena, todos são artistas. Arte & Ensaios,
Rio de Janeiro, PPGAV-UFRJ, v. 27, n. 41, p. 14-48, jan.-jun. 2021.
ISSN-2448-3338. DOI: https://doi.org/10.37235/ae.n41.3. Disponível
em: http://revistas.ufrj.br/index.php/ae
ae &E
Arte
os
nsai
49
Daniel Dinato
0000-0002-9066-0939
daniel@dinato.com.br
Resumo
Neste artigo explicito algumas formas de atuação política do Movimento dos
Artistas Huni Kuin (MAHKU). Partindo de um evento ocorrido em 2014, a compra
por parte do MAHKU de dez hectares de terra no Acre com recursos obtidos com
a venda de uma pintura, reflito sobre os caminhos abertos, as conexões possi-
bilitadas e a agência causada pelas imagens-pontes produzidas pelo coletivo no
contato entre mundos.
Palavras-chave
Imagens-pontes; Movimento dos Artistas Huni Kuin;
arte indígena contemporânea.
Abstract
In this article I explain some forms of political action by the Huni Kuin Artists Movement
(MAHKU). Based on an event that took place in 2014, MAHKU bought ten hectares of
land in Acre with funds obtained from the sale of a painting, I will reflect on the open
paths, the connections made possible and the agency caused by the bridge-images
produced by the collective in the contact in-between-worlds.
PPGAV/EBA/UFRJ
Keywords
Rio de Janeiro, Brasil Bridge-images; Movement of Huni Kuin Artists;
ISSN: 2448-3338
DOI: 10.37235/ae.n41.4 contemporary indigenous art.
ae &E
Arte
os
nsai
Daniel Dinato 51
1
A etnia Huni Kuin/Kaxinawá é composta por mais de 12 mil pessoas, habitantes do Acre e leste
do Peru. No estado do Acre, os Huni Kuin vivem em 12 terras indígenas e são estimados em 7,9
mil indivíduos (Oliveira, 2016), constituindo cerca de metade da população indígena do estado.
Kaxinawá (também escrito como Kashinawa, Caxinauá, Cashinauá etc.) é o modo como a etnia Huni
Kuin foi chamada inicialmente pelos estrangeiros. Kaxi significa morcego e nawa significa gente.
Kaxinawá, portanto, designa a gente-morcego. Esse nome, entretanto, não é bem-visto pelos próprios,
que se autodesignam Huni Kuin.
2
A terra indígena do Baixo Rio Jordão é contígua à terra indígena do Rio Jordão. Juntas somam 96 mil
hectares, nos quais vivem cerca de 1.650 pessoas distribuídas por dezenas de aldeias.
ae &E
Arte
os
nsai
“Vende tela, compra terra” e outras formas de atuação política
do Movimento dos Artistas Huni Kuin (MAHKU)
52
Neste artigo, não refletirei sobre os casos específicos dos anos 1990,
já bem narrados e analisados por Iglesias (2003, 2008). Cito esses eventos
apenas para situar o movimento recente feito pelo MAHKU em um contexto mais
amplo. Acredito que existe na região do município de Jordão, uma memória de
que é possível que os indígenas Huni Kuin comprem terras e construam formas
particulares de autonomia. Para o MAHKU, esse evento específico da compra
é parte de um caminho mais amplo, um agenciamento, entre tantos outros, e
que começou muito antes. Visando a melhor compreensão dessa e de demais
formas de atuação política envolvidas nas práticas artísticas do MAHKU, ofereço
neste artigo uma possível análise. Venho trabalhando com o coletivo desde 2016,
especialmente com seu fundador, Ibã Huni Kuin, para quem é fundamental
olharmos agora.
Ibã
Ibã Huni Kuin (Isaias Sales, seu nome registrado pelo Estado brasileiro)
nasceu em 28 de março de 1964 e, junto com ele, nasceu também a possibili-
dade de existência do Movimento dos Artistas Huni Kuin (MAHKU). Ibã é a figura
central do coletivo, pois foi a partir de suas pesquisas com seu pai e tios sobre
os cantos huni meka (cantos que conduzem os rituais nos quais os participantes
tomam ayahuasca3) que o grupo surgiu. Como mostro em minha dissertação de
mestrado (Dinato, 2018), a partir da qual desenvolvo este artigo, Ibã é um
pesquisador da própria cultura e a figura principal do coletivo.
Ibã trabalhou a maior parte da sua infância e juventude como seringueiro.
O duro processo de extrair látex da seringa (Hevea brasiliensis), armazená-lo,
secá-lo e depois vendê-lo às casas aviadoras foi sua realidade durante boa parte
da vida. Aos 19 anos, em 1983, ele teve sua primeira experiência na capital do
estado do Acre, quando viaja a Rio Branco para participar do “I Curso de Formação
de Mentores Indígenas”, realizado na Comissão Pró-Índio do Acre (CPI-Acre).
3
A ayahuasca é uma bebida composta a partir da cocção do cipó Banisteriopsis caapi com diversas
plantas, em especial a Psychotria viridis. De caráter psicoativo, é utilizada em contextos rituais também
por outras etnias indígenas da Amazônia.
ae &E
Arte
os
nsai
Daniel Dinato 53
Foi durante esse curso que Ibã aperfeiçoaria o aprendizado da língua portuguesa.
Pesquisar já estava dentro dele, segundo afirma. Pesquisar era aprender com os
mais velhos, olhar como se faz, perguntar como se canta, quais palavras devem
ser ditas, quais folhas usar para curar. Seu pai, Romão Sales, foi um grande conhe-
cedor das cantorias da ayahuasca (os cantos huni meka) e das ervas medicinais,
pesquisas a que Ibã irá dar sequência, tornando-se ele próprio um txana (cantor).
Além de estudar com seu pai, Ibã formou-se também com seus tios Miguel
Macário e Agostinho Manduca. Aprendeu os cantos que conduzem os rituais de
nixi pae (ayahuasca) e os três conjuntos de músicas cantadas no processo ritual:
os do grupo pae txanima (cantados no início do ritual para chamar a força da
bebida), os hawe dautibuya (entoados assim que as visões começam a surgir) e,
por fim, os kayatibu (cantados até que as visões terminem e a força da bebida
diminua seu efeito sobre o corpo dos participantes).
Um dos desdobramentos dessa longa pesquisa foi a publicação, em 2006,
do livro Nixi Pae – o espírito da floresta (Ibã, 2006),4 com os registros dos
cantos do nixi pae coletados de três txanas (cantores) huni kuin das terras indí-
genas do Rio Jordão. O livro tornou-se fundamental para a retomada dos cantos
(que vinham sendo substituídos por hinários do Santo Daime5) e para o forta-
lecimento da língua hantxa kuin, a língua dos Huni Kuin. Ao registrar e publicar
os cantos, Ibã possibilitou que os demais Huni Kuin também os aprendessem.
É a partir desse livro que Bane, filho mais velho de Ibã, começará a desenhar os
cantos huni mekas, dando origem ao que viria ser o MAHKU.
Desenhar os cantos consiste em uma forma específica de tradução de
palavras e sons em imagens. Os artistas do coletivo partem das “letras” dos
cantos registrados no livro publicado por Ibã e transformam alguns elementos
do canto em imagens. O livro e os cantos nele compilados são, portanto, a base
de onde os artistas partem para compor as imagens. Essa prática se espalhou na
4
Além desse livro, também contou com a pesquisa de Ibã (2007) o livro-cd Huni Meka – Cantos do
Nixi Pae, organizado por Dedé Maia e publicado pela CPI-Acre em 2007, incluindo dois cds com os
registros de 24 huni mekas.
5
O Santo Daime é um movimento religioso que congrega influências católicas, espíritas, esotéricas,
caboclas e indígenas em torno do uso da ayahuasca, o daime. Surgiu no interior da floresta amazônica,
conduzido inicialmente por Raimundo Irineu Serra (1890-1971), o Mestre Irineu.
ae &E
Arte
os
nsai
“Vende tela, compra terra” e outras formas de atuação política
do Movimento dos Artistas Huni Kuin (MAHKU)
54
6
Miração é como são chamadas as imagens que, costumeiramente, se dão a ver após a ingestão da ayahuaska.
7
Bruce Albert nasceu em 1952 no Marrocos. É antropólogo e coautor, com Davi Kopenawa, do livro A queda do
céu – palavras de um xamã yanomami.
8
Shapiro e Heinich (2013, p. 18) definem a artificação como “um processo de processos”. Segundo as autoras,
o processo total de artificação envolve dez processos “menores”. São eles: “deslocamento, renomeação, reca-
tegorização, mudança institucional e organizacional, patrocínio, consolidação jurídica, redefinição do tempo,
individualização do trabalho, disseminacão e intelectualização” (p. 18). Acredito ser evidente que os processos
de deslocamento, recategorização e mudança institucional dos desenhos, realizados primeiramente em
contexto de pesquisa e que se transformam em obras de arte, são centrais para o MAHKU.
ae &E
Arte
os
nsai
“Vende tela, compra terra” e outras formas de atuação política
do Movimento dos Artistas Huni Kuin (MAHKU)
56
Figura 1
Um dos primeiros desenhos
realizados por Bane Huni Kuin,
do canto Dua Meke Newane
Disponível em: https://
br.pinterest.com/
ae &E
Arte
os
nsai
Daniel Dinato 57
9
Sobre a relação dos Huni Kuin com a política partidária ver Zoppi (2019).
ae &E
Arte
os
nsai
“Vende tela, compra terra” e outras formas de atuação política
do Movimento dos Artistas Huni Kuin (MAHKU)
58
distante: o político. O MAHKU cria sua própria mediação, as pinturas e, com elas,
age. Como Ibã costuma dizer: “Eu não sou político, minha política é o MAHKU”
(Vieira, 2018). Uma “política dos artistas”, afirma. Uma política, poderíamos
arriscar dizer, da ação direta. Não seriam as obras do coletivo MAHKU formas de
(pintur)ações diretas?
Em 2014, após participar da exposição Made by... feito por brasileiros
(ocorrida de 9 de setembro a 12 de outubro de 2014 nas ruínas do antigo hospital
Matarazzo, em São Paulo, com curadoria de Marc Pottier), quando realizou um
trabalho junto da artista belga Naziha Mestaoui (1975-2020),10 o MAHKU
vendeu uma obra e, com o recurso obtido, comprou a terra mencionada no início
deste artigo. Tal como as compras feitas nos anos 1990, o MAHKU retoma uma
área pela compra, em uma região que, há séculos, é habitada pelos Huni Kuin.
Esse lugar, ressalto, ainda está em elaboração, é um sonho sendo construído aos
poucos e, até o momento, preserva-se intacta a área. O MAHKU pretende
que lá exista um espaço de trabalho para o coletivo e que seja, ao mesmo
tempo, um local para a realização de intercâmbios com outros artistas, indígenas
e não indígenas, concretizando dois dos objetivos citados em sua ata de fundação.
Alianças que geram novas alianças. Telas, pinturas, obras de arte que são pontes
entre mundos. Imagens que são caminhos. Construir alianças é uma das
maneiras de atuação política do coletivo. A terra comprada, parte de uma cadeia
de eventos que envolve nixi pae, cantos huni mekas, metrópoles como Paris e
São Paulo, além de inúmeras pessoas, é um exemplo claro da potência dessa
forma de fazer política.
Os objetivos 1 e 9, também dialogam, ainda que indiretamente, com o
tempo da seringa e do cativeiro, quando os Huni Kuin, em geral, viviam sob o mando
de patrões que cerceavam, entre outros impedimentos, violências e censuras,
a liberdade financeira e de costumes do grupo. Se, naquele tempo, a cultura e a
própria língua hantxa kuin estavam se perdendo e não havia nenhuma possibi-
lidade de autonomia financeira, hoje, com a venda de obras, criam-se alternativas
que retomam e consolidam saberes e, ao mesmo tempo, viabilizam economica-
mente seus projetos.
Naziha Mestaoui foi uma artista franco-belga cujos trabalhos se situam na interface entre arte,
10
11
Jordão, o município mais próximo da aldeia Chico Curumim, onde Ibã vive, tem um índice de
desenvolvimento humano (IDH) de 0,469 (2010), sétimo pior do país, e mortalidade infantil de 22,56
óbitos por mil nascimentos. Além disso, segundo os dados do IBGE, 48% da população vivia em
2010 com até meio salário mínimo. Um estudo realizado com 836 crianças das áreas urbanas e
rurais do município apontou que 49,2% sofrem com a desnutrição infantil. Entre as crianças indígenas,
entretanto, a situação é pior, chegando a “apresentar prevalências de desnutrição superiores a 80%”
(Araújo, 2017, p. 46).
ae &E
Arte
os
nsai
“Vende tela, compra terra” e outras formas de atuação política
do Movimento dos Artistas Huni Kuin (MAHKU)
60
Figura 2
Caneca do MAHKU
Foto do autor
ae &E
Arte
os
nsai
Daniel Dinato 61
lhe oferecerem nenhum outro jacaré como alimento, pois ele não era canibal. Os
humanos caçaram anta, veado, macacos e outros animais, dando-os ao jacaré
que, em retribuição, permitia a passagem por suas costas até a outra margem.
Em determinado momento, por um descuido, alguém deu a Kapetawã um
pequeno jacaré como alimento. O jacaré-ponte então revoltou-se e não permitiu
que ninguém mais passasse por cima dele. Aqueles que não passaram, a história
conta, tornaram-se os huni kuin,12 todos os indígenas que vivem na floresta. Nós,
os brancos13 (nawa), passamos. Assim, do ponto de vista mítico Huni Kuin, foi
feita a separação inicial entre povos distintos. O mito também está registrado
por Lagrou (2007), narrado por seu interlocutor Augusto. A autora conta que as
pessoas caminhavam em busca de um barro melhor e mais consistente, pois as
panelas quebravam-se facilmente devido à má qualidade do barro disponível.
Augusto, ao terminar de lhe contar o mito, disse: “os estrangeiros são nossa
metade partida há muito tempo” (Lagrou, 2007, p. 451). É preciso ter em mente
que o MAHKU funciona como um meio de atravessar e colocar em relação dife-
rentes realidades e mundos. Vai além, ao fazer das suas obras instrumento de
acesso e relativo controle de um mundo potencialmente perigoso (o mundo dos
brancos e o “mundo” da arte14).
12
Utilizo nesse caso letras minúsculas pois não se trata do etnônimo Huni Kuin. Lembro que huni kuin
é, ao mesmo tempo, um etnônimo e um “pronome cosmológico” (Viveiros de Castro, 1996) passível
de ser utilizado por todo grupo que fale línguas Pano. Nesse caso, huni pode ser entendido como “ser
humano” ou “pessoa”, enquanto kuin pode ser pensando como “verdadeiro” ou “de verdade”, no sentido
de estar mais próximo ao núcleo interno do coletivo. Nós, pessoas de verdade. Esse pronome, portanto,
pode ser utilizado por todos os outros grupos falantes de línguas Pano. Existe uma dinâmica relacional
e posicional específica nessa classificação da alteridade, bem analisada por Keifenheim (1990, p. 80).
13
“Branco” é a forma utilizada pelos próprios Huni Kuin (e por diversas outras etnias indígenas do Brasil)
para fazer referência aos não indígenas de forma geral. Nawa é o termo empregado pelos Huni Kuin para
se referir aos não indígenas, também chamados de maneira generalizante de “brancos”. Nesse caso
em específico, o termo está sendo utilizado dessa maneira. Nawa, entretanto, pode funcionar também
como um sufixo formador de etnônimo dentro da etnia linguística Pano. Para mais informações, ver
Keifenhein (1990) e Saez (2002).
14
Há, evidentemente, uma possível contradição nisso. Ao participar de distintas exposições de arte, os
integrantes do MAHKU, assim como todos os artistas indígenas contemporâneos, acessam um universo
culturalmente valorizado por certos não indígenas e, com isso, passam a ser também valorizados. Assim,
pode ser que eles estejam sendo valorizados apenas por produzir algo culturalmente relevante para um
determinado grupo, arte, e não, simplesmente, por ser humanos, como, por obvio, deveria ser. Essa
questão é extremamente complexa e não será o tema deste artigo. Penso que será preciso acompanhar
os desdobramentos históricos do ingresso de artistas indígenas contemporâneos no cenário artístico
nacional para elaborar uma análise mais densa sobre o assunto.
ae &E
Arte
os
nsai
“Vende tela, compra terra” e outras formas de atuação política
do Movimento dos Artistas Huni Kuin (MAHKU)
62
Imagens-pontes
15
Nessa e nas demais citações de originais em idiomas estrangeiros, a tradução é nossa. Aqui,
o original é: To see properly, one has to listen. Song lines and the lines of vision are intrinsically
interwoven (Lagrou, 2018b, p. 149).
ae &E
Arte
os
nsai
Daniel Dinato 63
Aquele que canta, o txana, seria uma espécie de maestro das visões
alheias. Cantar e ver estão intimamente conectados no ritual. O txana auxilia,
com seus cantos, a viagem e o encontro da “alma-olho” (bedu yuxin) com
duplos espíritos de animais. Segundo a autora, durante o ritual, ocorre uma
espécie de “batalha estética” (Lagrou, 2018a, 2018b) e existe um risco constante
de a bedu yuxin daquele que participa ser capturada e envelopada em um novo
corpo, por algum espírito-animal (yuxin), que se vinga. São os cantos, portanto,
que colocam o participante, em especial a alma-olho, em diálogo minimamente
controlado com esse universo poderoso e potencialmente perigoso, e o ajudam
a encontrar seu caminho com segurança.
Lagrou (2018a, 2018b) afirma também que o ritual de nixi pae envolve
uma complexa dinâmica relacional, durante a qual as posições de predador e
presa se invertem e estão em disputa. “Nixi pae é um universo mimético, agonís-
tico e altamente estético em constante processo de devir-Outro: devir-animal,
devir-mulher, devir-criança, devir-planta e videira e até devir-molecular”17
16
The song, in other words, traces paths to be followed by the lost eye-soul of the person suffering. The
eye-soul has to follow the design of the song as it unfolds before his eyes in order to be able to come back,
to come close to the body of the one who sings, and hence to return to his own body. This is the reason
why the master of song will lean against the shivering body of the one lost in the world of images, and
sing in the plural voice of Yube, anaconda spirit, that we, I, you miss your body (Lagrou, 2018b, p. 151).
17
Nixi pae is a mimetic, agonistic and highly aesthetic world in constant process of other-becoming:
animal-becoming, women-becoming, child-becoming, plant and vine-becoming and even becoming-mo-
lecular (Lagrou, 2018a, p. 41).
ae &E
Arte
os
nsai
“Vende tela, compra terra” e outras formas de atuação política
do Movimento dos Artistas Huni Kuin (MAHKU)
64
Yube é a jiboia mítica ancestral dona de todos os yuxin e de todos os padrões de grafismos. Ver
18
Ibã, por sua vez, costuma dizer que as músicas são como conversas com o
nixi pae e é por isso que, nos cantos, há o pedido para se entrar e sair da “força”
que a bebida traz. Ibã também afirma que os cantos são a própria fala do nixi
pae. Essas falas trazem uma importante questão, já que para estar em posição
de se relacionar (conversar) com os yuxin (espíritos) e com Yube, é preciso ser,
antes, visto por eles. Ser visto por eles, por sua vez, requer que você veja como
eles. Conforme mostra Lagrou (2018b, p. 149),
21
To see and to be seen depends on an eminently relational quality that is never given. What the Yanomami
shaman Davi Kopenawa has said of the xapiri spirit-helpers also holds true for Yube, the anaconda
spirit of the Huni Kuin, and his revelation of his world of image-beings: to see these image-beings it is
necessary to first be seen by them. They look at you and thus become visible for you (Kopenawa & Albert,
2010). To see xapiri one needs to become one of them and see with their eyes. In the same way, to see
Yube and his transformational world, you need to see through his eyes. It is therefore not enough to ingest
his soul-substance, the visionary vine, index of his agency inside your body. Yube, the anaconda spirit,
can decide not to look at you, not to show himself to you; to show only ‘lies’ or simply show you nothing
at all. The process of anaconda-becoming, a condition for obtaining visionary capacities, is not evident at
all – besides being a very risky enterprise (Lagrou, 2018b, p. 149).
ae &E
Arte
os
nsai
“Vende tela, compra terra” e outras formas de atuação política
do Movimento dos Artistas Huni Kuin (MAHKU)
66
Ibã conta que não é possível explicar os cantos huni mekas e suas mirações.
Idealmente, ensina, é apenas “na força” (sob efeito da ayahuasca) que se
compreende o que os cantos dizem e mostram. É preciso tornar-se outro para
ver. Frente a demandas contínuas de não indígenas querendo saber o que dizem
os cantos e como são as mirações, o MAHKU resolveu pintar. É o que Ibã chama
de “colocar os cantos no sentido”. Com paciência e na posição de professores,
eles nos ensinam a ver através das suas próprias formas de tradução dos cantos
em imagens. Trata-se, guardadas as devidas proporções, de algo semelhante ao
ocorrido com Castañeda e Don Juan, a saber: a “venganza del ‘objeto’ antro-
pológico (un brujo) sobre el antropólogo hasta convertirlo en un hechicero.
Antiantropología” (Paz, 2013, p. 19). O MAHKU, podemos arriscar, pratica sua
Figura 4 própria “antiantropologia” ao produzir imagens que nos ensinam e capturam. As
Pedro Maná Huni Kuin
(MAHKU), Mito de origem da obras de arte do MAHKU, ao ser objetos de um olhar, agem. Há, portanto, uma
ayahuasca, 2018, acrílica inversão do que seria esperado, e, nessa inversão, há um esforço de compor
sobre tela e lápis de cor
sobre papel, 165 x 240cm
conjuntamente, de construir alianças e de criar uma relação de forças mais
Foto: Rochelle Costi simétrica com os não indígenas.
ae &E
Arte
os
nsai
Daniel Dinato 67
Figura 5 Conclusão
Bane, Isaka e Ibã (MAHKU),
detalhe de Nai Mapu Yubekã,
abril 2019 A operação artística do MAHKU envolve, portanto, um processo de conexão
Foto do autor
e composição com dois mundos distintos, ambos potencialmente perigosos e
fascinantes: o mundo de Yube e dos yuxin (espíritos) e o mundo dos nawa (os
não indigenas, “brancos”). É um processo simultaneamente político e xamânico,
no qual as pinturas-cantos são meio de acesso e relação com outros universos.
Os cantos são imagens, e ambos são caminhos entre mundos. Cantos, imagens,
caminhos. Arrisco dizer que as obras do coletivo estariam, dessa forma, não
apenas representando os cantos huni mekas, mas transformando-se neles e na
sua forma de operar. Se lembrarmos do jacaré Kapetawã, símbolo do MAHKU, é
ae &E
Arte
os
nsai
“Vende tela, compra terra” e outras formas de atuação política
do Movimento dos Artistas Huni Kuin (MAHKU)
68
22
Gell fala do encantamento pela técnica necessária para a produção de determinados objetos. O
argumento aqui é semelhante, mas possui diferenças, tendo em vista que as imagens produzidas
pelo MAHKU, acredito, encantam mais pelo “mistério” do seu conteúdo. O foco, portanto, não é
sobre a técnica necessária para produzi-las.
23
Sovereignty is the border that shifts indigenous experience from a victimized stance to a strategic one.
[…] As part of an ongoing strategy for survival, the work of indigenous artists needs to be understood
through the clarifying lens of sovereignty and self-determination, not just in terms of assimilation, colonization,
and identity politics (Rickard, 1995, p. 51).
ae &E
Arte
os
nsai
Daniel Dinato 69
Eu acredito que vai ser a arte que dará condição de que o povo Maxakali,
essas famílias todas, tenha o direito de ter de volta seu território, mesmo
que seja preciso comprar a terra. Aí entra na política do artista e pajé
Ibã, que já cantou essa pedra lá atrás. Vendo tela e compro terra. Essa
é a realidade não romântica do nosso país.
24
Isael Maxakali e sua esposa Sueli Maxakali são artistas. Isael foi o vencedor do Prêmio Pipa
Online de 2020.
25
Os Maxakali são um povo indígena de cerca de 2.000 pessoas habitantes do norte de Minas Gerais. Mais
informações em: https://pib.socioambiental.org/pt/Povo:Maxakali.
ae &E
Arte
os
nsai
“Vende tela, compra terra” e outras formas de atuação política
do Movimento dos Artistas Huni Kuin (MAHKU)
70
Nessa “realidade não romântica”, que se estende por cinco séculos, os artistas
indígenas vão inventando mundos, novos imaginários, e negociando suas autono-
mias por meio da arte. Nesse sentido, o gesto do MAHKU de comprar terras com
a venda de telas abriu uma nova possibilidade de autonomia entre os (artistas)
indígenas.26 Em um país onde os direitos indígenas são constantemente violados,
a compra de terra torna-se uma alternativa plausível. Frente a uma realidade não
romântica, uma escolha não romântica. Além de tudo, desmonta a ideia roman-
tizada do indígena.
Evidentemente, isso não quer dizer que a resolução dos conflitos e disputas
territoriais indígenas irá ocorrer por meio da compra de terras. As demarcações
realizadas pelo governo federal precisam continuar. A prática de comprar terra
não está em oposição às demarcações, mas ao lado. Há muito para fazer,
urgentemente, e todo esforço se complementa. Talvez, devamos olhar para esse
ato de Ibã e do MAHKU como um gesto performático, como mais uma das obras
do coletivo. De uma só vez, acenderam uma luz, uma possibilidade de futuro
e romperam com uma ideia do passado: aquela de que os indígenas não são
realmente contemporâneos, de que estão em algum tempo distante e podem
viver apenas com recursos naturais. Alguns, felizmente, ainda podem, mas são
minoria. O MAHKU e os artistas indígenas contemporâneos vivem, cada um a sua
maneira, imersos nas contradições desse campo e deste tempo.
Outra contradição reside em ser eu a estar escrevendo este artigo. Eu, que
não falo hantxa kuin, a língua Huni Kuin, jamais compreenderei completamente o
que são as obras do MAHKU. Apenas as margeio. Assim, lembro-me da antropóloga
Townsend-Gault (1992) quando diz que “nós podemos saber muitas coisas, seja
quem for o “nós”. Mas nunca podemos saber de tudo”.27 Conto, aqui, portanto, o
que senti, o que vivenciei nestes últimos quatro anos em diálogo com alguns inte-
grantes do coletivo. Busquei tecer uma análise possível cruzando perspectivas dos
26
Futuramente, será importante comparar os movimentos de autonomia territorial pela arte ocorrendo no
Brasil com as práticas artísticas em torno do movimento Land Back, ocorrendo em território norte-
americano. A recente obra Never forget, de Nicholas Galanin, artista Tlingit e Unangax, acompanhada
de um financiamento coletivo, insere-se nessa “tradição”. Para ver mais: https://desertx.org/dx/
desert-x-21/nicholas-galanin e https://www.gofundme.com/f/landback.
27
We can know many things, whoever ‘we’ may be. But we can never know everything (Towsend-Gault, 1992).
ae &E
Arte
os
nsai
Daniel Dinato 71
Referências
ARAÚJO, Thiago Santos de. Desnutrição infantil no município de maior risco nutricional do
Brasil: Jordão, Acre, Amazônia Ocidental (2005-2012). Tese (Doutorado em Epidemiologia) −
Universidade de São Paulo, São Paulo, 2017. doi:10.11606/T.6.2017.tde-26072017-112844.
Acesso em: 13 jul. 2020.
ARAMBURU, Mikel. Aviamento, modernidade e pós-modernidade no interior amazônico.
Revista Brasileira de Ciências Sociais, v. 9, n. 25, p. 82-99, 1994.
ae &E
Arte
os
nsai
“Vende tela, compra terra” e outras formas de atuação política
do Movimento dos Artistas Huni Kuin (MAHKU)
72
Como citar:
DINATO, Daniel. “Vende tela, compra terra” e outras formas de atuação política
do Movimento dos Artistas Huni Kuin (MAHKU). Arte & Ensaios, Rio de Janeiro,
PPGAV-UFRJ, v. 27, n. 41, p. 50-73, jan.-jun. 2021. ISSN-2448-3338. DOI:
https://doi.org/10.37235/ae.n41.4. Disponível em: http://revistas.ufrj.br/index.php/ae
ae &E
Arte
os
nsai
ARTIGO 74
Maria Altberg
0000-0002-4678-3587
maria.altberg@gmail.com
Resumo
No filme Vaga carne (2019), dirigido (em parceria com Ricardo Alves Jr.) e
protagonizado por Grace Passô, acompanhamos a jornada de uma voz que tem
o poder de transitar por diferentes matérias. Novos e inesperados afetos são
conhecidos quando a voz se vê presa a determinado corpo feminino e passa a
ser submetida às implicações sociais de encarnar essa identidade. A partir da
narrativa do filme, e em diálogo com teóricas como Ursula K. Le Guin, Anne Carson
e Adriana Cavarero, o trabalho propõe pensar a afirmação de vozes plurais como
enfrentamento poético a silenciamentos históricos.
Palavras-chave
Voz; Grace Passô; Vaga carne; Palavra; Corpo.
Abstract
In the film Dazed Flesh (2019), directed by Grace Passô and Ricardo Alves Jr., and
starring Passô, we follow the journey of a voice that has the power to transit through
different substances. Unexpected new affections appear when this voice finds itself
attached to a certain female body and becomes subjected to the social implications of
embodying this identity. Based on the narrative of the film, and in dialogue with theorists
such as Ursula K. Le Guin, Anne Carson and Adriana Cavarero, we propose to think about
the affirmation of plural voices as a poetic confrontation with historical silences.
Keywords
Voice; Grace Passô; Dazed Flesh; Word; Body.
PPGAV/EBA/UFRJ
Rio de Janeiro, Brasil
ISSN: 2448-3338
1
Trabalho realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior
DOI: 10.37235/ae.n41.5 (Capes). Código de Financiamento 001.
ae &E
Arte
os
nsai
Maria Altberg 75
Ingeborg Bachman
(tradução Adelaide Ivánova)
2
A literatura de Ursula Le Guin (1929-2018) caracteriza-se por abordar, na ficção científica, temas
como política, religião, sexualidade e questões de gênero.
3
Tradução minha do original: We’ve heard it, we’ve all heard all about all the sticks, spears and swords,
the things to bash and poke and hit with, the long, hard things, but we have not heard about the thing to
put things in, the container for the thing contained. That is a new story. That is news.
4
O programa Janelas Abertas foi criado pelo Núcleo Experimental de Performance (NEP), coordenado
pelas professoras Adriana Schneider e Eleonora Fabião, do Programa de Pós-graduação em Artes da
Cena, da Escola de Comunicação da UFRJ. O projeto promoveu 17 encontros virtuais entre pensa-
dores e artistas. Com transmissões ao vivo pelo YouTube, a série teve como objetivo principal estimular
doações financeiras para as unidades de saúde do Complexo Hospitalar da UFRJ no combate à
pandemia da covid-19.
ae &E
Arte
os
nsai
Maria Altberg 77
5
Vaga carne tem duração de 45 minutos. Como estratégia de lançamento em salas de cinema (que
exibem apenas sessões de longa-metragem, com duração a partir de 70 minutos), a distribuidora
Embaúba Filmes havia programado sessões combinadas de Vaga carne com outro média-metragem,
Sete anos em maio, de Affonso Uchôa. Os filmes estavam prestes a ser lançados quando os cinemas
fecharam devido à pandemia da covid-19. Desde então, os títulos podem ser vistos separadamente
no site da distribuidora.
6
Ricardo Alves Jr. dirigiu alguns curtas-metragens e o longa Elon não acredita na morte (2016). Fez
parte da equipe de criação do espetáculo Vaga carne desde sua origem.
ae &E
Arte
os
nsai
Matula cheia de voz: a voracidade vocal de Grace Passô em Vaga carne 78
Antes da realização do filme, o livro com o texto da peça havia sido publi-
cado pela editora Javali em 2018. O texto com as rubricas é disposto em uma
diagramação que provoca interação com a voz-personagem que tudo é capaz de
invadir – algumas páginas em branco (representando o silêncio) e outras com
apenas poucas palavras intercalam páginas completamente preenchidas.
Na tradução intersemiótica da peça e do texto para o cinema, o filme
começa sem imagens; vê-se somente o breu e ouve-se a voz que entoa: “Vozes
existem. Vorazes. Pelas matérias” (Passô, 2018, p. 15-16). A narração sugere
olharmos para situações que são perturbadas sem uma causa aparente, como
um vidro que trinca, uma rã que salta de uma altura atípica ou uma torneira que
goteja sem parar: essas matérias podem ter sido invadidas por vozes. E então a
personagem voz se apresenta narrando sua aventura de invadir corpos de seres
vivos e também inanimados, atribuindo características a cada um: os cães seriam
superiores; os cremes são deslizantes; o café, um rock − “te movimenta” (p. 16);
a mostarda é estranha e respeitosa; estátuas, indiferentes; as estalactites possi-
bilitam que se medite dentro delas. A voz enfatiza que escolheu se comunicar
com as palavras do bicho-homem, “porque vocês são tão egoístas, tão egoístas,
que só entendem as próprias línguas” (p. 17). A fala se estende sobre a tela
preta durante os cinco minutos iniciais do filme, até o momento em que surgem
flashes de detalhes de um cão. Ouvimos um ruído de água seguido do que
parece ser o som de fogo estalando ao fundo do elemento sonoro principal da
voz, que lista imagens em que penetrou: “imagem cadeira, imagem sofá, imagem
azeite, imagem âmbar, imagem pato, imagem cavalo, imagem cachorro, imagem
mulher” (p. 17). Nesse momento, aparece pela primeira vez a figura de um corpo
humano feminino – que ainda não é o de Passô (e sim da atriz Tássia d’Paula).
Em seguida vemos as cadeiras da plateia de uma sala de teatro vazia – que a voz
sugere que também pode invadir – luzes desfocadas e, finalmente, a imagem de
Grace Passô, de perfil e estática. A voz, ainda em off, vai descrevendo o interior
do corpo invadido dessa mulher: “Nada é oco por aqui. [...] Se virássemos este
corpo ao avesso, vocês entenderiam: aqui é um lugar escuro, escuro” (p. 18).
Em transição sutil, a voice over que pairava passa a sair da boca da mulher
em quadro. A atuação precisa de Passô e a edição sonora dão conta de tornar
concreta a sensação um tanto esquizofrênica de ver um corpo inerte emitir uma
ae &E
Arte
os
nsai
Maria Altberg 79
Figura 1
Um corpo invadido por
uma voz
frame de Vaga carne
Laura Erber chama a atenção para o fato de que o cinema, desde que se
tornou sonoro, carrega um elemento de tensão no efeito de sincronia entre
imagem e som. Devido à pouca mobilidade dos microfones antigos para acom-
panhar todos os movimentos dos atores que falavam em cena, recorria-se à
posterior dublagem. Além de deixar as vozes distorcidas e artificiais por causa
da deficiência técnica, “por conta das técnicas dramatúrgicas da época, a voz
com a qual o espectador se deparava nos filmes estava a muitos quilômetros
de distância da língua falada na realidade cotidiana. Havia uma obrigação de
eloquência que pouco refletia a fala ordinária” (Erber, 2012, p. 225). Erber
problematiza assim a divisão colocada por Deleuze entre os conceitos de ima-
gem-movimento e imagem-tempo − atribuídos pelo autor aos cinemas clássico
e moderno, respectivamente. Para Deleuze, alguns cineastas que despontaram
ae &E
Arte
os
nsai
Matula cheia de voz: a voracidade vocal de Grace Passô em Vaga carne 80
Seja por defeito técnico ou por opção estética, o jogo entre dissimular e
escancarar uma descostura entre corpo e voz faz parte da história do cinema. Em
Vaga carne, a operação apresenta-se ainda mais complexa: o filme não apenas
usa alguns recursos disruptivos próprios da montagem e da pós-produção de
som (como voice over, distorções na voz, ruídos), mas uma proposital colagem
imperfeita entre a voz que é protagonista e o corpo da mulher que é ocupado, no
próprio ato da encenação – procedimento que estava no cerne da performance
de Grace desde a peça. Há a constante hesitação entre som, imagem e sentido
do que é dito.
Em seu percurso veloz, a voz segue reconhecendo o corpo da mulher.
Experimenta movimentos no corpo dominado enquanto descreve impressões:
ergue um braço: “É como uma embarcação, estou erguendo uma vela gigantesca”
(Passô, 2018, p. 19); balança a cabeça, “espécie de sino, espécie de grande
capela” (p. 19) e então há um corte do plano médio para um close up nos olhos
de Grace. A voz continua em sua descoberta: “Olhos são faróis. Ou são facas? Ou
moluscos. É um susto. É o diabo. É tudo junto” (p. 19). A partir daí, a voz se dá
conta de que é olhada e inicia de fato um apelo por diálogo com outros corpos
que são mostrados na plateia – não por acaso, todos de pessoas negras. São
ae &E
Arte
os
nsai
Maria Altberg 81
personalidades da cena cultural mineira: Aline Vila Real, André Novais,7 dona
Jandira, Hélio Ricardo, Pacotinho, Ronaldo Coisa Nossa, Sabrina Hauta, Tássia
d’Paula, Valeria Aissatu Sane, Zora Santos. Afirma Bárbara Bergamaschi (2019,
s.p.) que “Não são corpos quaisquer, são ‘Cor-corpo’, como diz Grace em certa
altura da narrativa. O fato de essas corporeidades específicas ocuparem o
espaço historicamente reservado à branquitude já é em si um gesto de potência
disruptiva e política”.
Figura 2
Cor-corpos
frame de Vaga carne
7
Vale destacar que o cineasta mineiro André Novais é um dos sócios fundadores da produtora Filmes de
Plástico, responsável por dois longas-metragens que têm presença decisiva de Grace Passô no elenco:
Temporada (2019), dirigido pelo próprio Novais, e No coração do mundo (2019), com direção de Gabriel
Martins e Maurilio Martins. Surgida na periferia de Contagem (região da Grande Belo Horizonte), a produ-
tora cresceu com o projeto de democratização da distribuição de recursos financeiros à cadeia produtiva
audiovisual mediante editais públicos durante os governos do Partido dos Trabalhadores (PT). Seus
filmes têm como marca a ambientação em paisagens que fazem parte do cotidiano de seus realizadores.
ae &E
Arte
os
nsai
Matula cheia de voz: a voracidade vocal de Grace Passô em Vaga carne 82
8
Cavarero cita Samuel Beckett como exemplo de escrita de experimentação da linguagem pela
repetição. O monólogo Not I guarda alguma semelhança com a encenação de Vaga carne no aspecto
de fluxo e relativa autonomia de uma voz. A peça de Beckett apresenta uma boca falante como único
personagem.
ae &E
Arte
os
nsai
Maria Altberg 83
Em Vaga carne, a voz suplica: “Vamos invadir o corpo desta mulher com
palavras! Vamos transbordar o corpo desta mulher com palavras! Gritem palavras,
eu boto aqui dentro – eu, não ela. Esta mulher aqui é só um microfone, coitada,
ela não tem nada a dizer!” (Passô, 2018, p. 22). No filme, chegam da plateia no
extracampo as palavras “corpo”, “política” e “amor”, que Passô repete alternada
e ritmicamente. Na performance de entoar as palavras repetidamente, seus
sentidos acabam por se dissolver em um jogo de respiração, voz e corporeidade.
Ainda segundo Cavarero (2011, p. 198),
Figura 3
Movimentos do corpo
frame de Vaga carne
possível entre interior e exterior, a voz não consegue mais dominar esse corpo e
com ele passa a ser submetida a julgamentos dos olhares dos outros. Se, como
lembra Djamila Ribeiro (2017) ao introduzir a questão do lugar de fala, a mulher
para Simone de Beauvoir é o Outro, a mulher negra seria, para Grada Kilomba
(apud Ribeiro, 2017, p. 23), o Outro do Outro:
Não sou uma mulher andando entre corpos humanos. Eu só estou presa
aqui. Eu me recuso a entrar nesse sistema, nessa ilusão. Há outras
formas de vida e isso precisa ser dito. Tem uma palavra na sua língua
que eu adoro gritar, uma palavra que explica muito bem toda essa
situação. Eu vou gritá-la pra você, sua carne pequena insuportável,
escuta essa palavra com todos os sons (Passô, 2018, p. 23).
“Que nada absoluto, que vagação sem rumo, esquecer é gostoso demais,
esquecer é meditante” (p. 37).
O tremor produzido pelo encontro de voz e corpo vivos acentua-se quando a
protagonista se percebe grávida. A mulher acende um cigarro e, conduzida pela
voz, move-se do centro dos holofotes para uma espécie de coxia. A urgência em
sair do corpo da mulher vai dando lugar à euforia, a um apego da voz a esse
corpo e mesmo à necessidade de proteger a vida que descobre gerar. Zora Santos
se aproxima, fala algo, cujo som não nos chega, ao pé do ouvido de Grace e
sai. Contrariada, a voz/mulher resiste: “Não vou deixar meu repolhinho viver
de qualquer jeito nesse mundo do capeta, com esses bichos ferozes...” (Passô,
2018, p. 48). A partir desse momento, um alarme atordoante soa, luzes piscam
rapidamente, enquanto o nervosismo da mulher/voz se intensifica: “Tenho que
ensinar essa carninha a viver. [...] O que vamos dizer a ela sobre o mundo? Eu
quero ensinar a ela [...] afinal de contas, eu tenho responsabilidade” (p. 48). E,
pela primeira vez: “afinal de contas... eu sou uma mulher” (p. 48). A fala, mani-
pulada na edição de som com efeito ecoante, coincide com o corte para a tela
preta. No escuro ficamos por alguns segundos e, depois de fade lento, a câmera
passeia pelo corpo de dona Jandira, que canta “Juízo final”, célebre samba de
Nelson Cavaquinho. Tal momento de suspensão na narrativa é próprio do trânsito
da peça para o filme (já que no espetáculo teatral não havia o número musical).
Finda a performance da cantora, a protagonista volta à cena e continua
expressando preocupação com o destino de sua cria: “Precisamos ensinar a ela.
[...] que isto são cadeiras, que um dia chegaram aqui carregadas nas costas de
alguém. E depois vieram os parafusos. E, um por um, foram colocados para que
fosse possível suportar o peso dos corpos. [...] Ensinar que isto é um homem?”
(Passô, 2018, p. 48) − nesse momento a montagem revela a imagem de uma
mulher. Grace prossegue: “Que isto é uma mulher?” (p. 48), e vemos o rosto de
um homem da plateia. Tal jogada dá a ver poeticamente a crítica a estereótipos
estanques de gênero, assim como problematiza o pensamento antropocêntrico,
condutas já presentes na essência do texto original da peça. Mais adiante no
filme, outro comentário incisivo, imbricado na fluência da narrativa: “Que se eu
levanto a mão, eu sou responsável. Se nada falo, eu sou responsável, que nada
tem o direito de invadir seu corpo e que se alguma coisa invadir seu corpo, que
lhe peça licença, que lhe peça licença” (p. 49). E repete, aos berros: “que lhe
ae &E
Arte
os
nsai
Maria Altberg 87
peça licença!” (p. 49). A reflexão política contida no filme (e que se arrisque a
dizer: em toda a obra dramatúrgica de Grace Passô) é sutilmente desenvolvida
por meio de uma série procedimentos poéticos, que faz o trabalho prescindir
de um discurso didático sobre as ideias que percorre. Como afirmou Deleuze
(1999, p. 13),
9
Tradução de Helena Martins do original: Chthulucene is a simple word. It is a compound of two Greek
roots (khthôn and kainos) that together name a kind of timeplace for learning to stay with the trouble of
living and dying in response-ability on a damaged earth.”
ae &E
Arte
os
nsai
Matula cheia de voz: a voracidade vocal de Grace Passô em Vaga carne 88
último apelo à câmera, mas as palavras saem sem o respectivo som, não há mais
voz. O forte ruído do ambiente maquínico toma conta.
Figura 4
Corpo e voz saindo de cena
frame de Vaga carne
Corta para a tela preta. Enquanto os créditos finais sobem, uma música
com batidas de tambor se mistura a conhecidas vozes femininas, como as de
Dilma Roussef e Marielle Franco.
Na já mencionada conversa da série Janelas Abertas, Ricardo Aleixo
comenta com Grace que o controle rigoroso da cadência da fala que ela mostra
em seus trabalhos o faz lembrar de certas brincadeiras de infância. Grace conta
que tinha muita ansiedade em fazer “parcerias com as palavras” (Passô, Aleixo,
2020, s.p) na fase de aprender a ler e escrever, e que essa sensação a acompanha
até hoje enquanto potência de criação. A tentativa de entendimento do que pode
uma palavra (que ela mesma afirma não poder tudo) gera nela um estranhamento,
um arrebatamento com a não naturalidade do lidar com linguagem na fala e na
escrita. Em Vaga carne, é nítido o trabalho de alteração e modulação da voz,
buscando relações com o aparato cinematográfico que fogem ao naturalismo
ae &E
Arte
os
nsai
Matula cheia de voz: a voracidade vocal de Grace Passô em Vaga carne 90
A protagonista de Vaga carne conta que certa vez invadiu uma caixa de
som que dizia que o país era justo – “Ela concorda?”, indaga a voz à plateia a
respeito da mulher que ela incorpora. A própria Grace parece responder à
pergunta com um de seus mais recentes trabalhos audiovisuais, o curta-metragem
República. Dirigido e protagonizado por ela dentro do programa Convida do
Instituto Moreira Salles, a ficção distópica mostra uma personagem constatando
que o Brasil é na verdade um sonho, uma bad trip vivida por alguém que pode
acordar a qualquer momento e dar fim a tal realidade. O mote do curta faz
lembrar o enunciado de Ailton Krenak de que os seres humanos investem na
ilusão de produzir mecanismos de defesa e contra-ataque entre si para evitar
cair no abismo, sem perceber que já caem há tempos. Para ele, “talvez o que a
10
A experimentação com a voz é o centro do trabalho de Grace apresentado na décima edição do
Festival Novas Frequências (realizado virtualmente em dezembro de 2020 por conta da pandemia da
covid-19). Coprodução da artista com a Fundação Bienal de São Paulo, a obra Ficções Sônicas é, segundo
catálogo do evento, “uma imaginação sonora da peça radiofônica Pra dar um fim no juízo de Deus, de
Antonin Artaud, mergulhada na noção de não lugar de experiências diaspóricas”.
11
Tradução de Helena Martins do original: The trouble is, we’ve all let ourselves become part of the killer
story, and so we may get finished along with it. Hence it is with a certain feeling of urgency that I seek the
nature, subject, words of the other story, the untold one, the life story.
ae &E
Arte
os
nsai
Maria Altberg 91
gente tenha que fazer é descobrir um paraquedas. Não eliminar a queda, mas
inventar e fabricar milhares de paraquedas coloridos, divertidos, inclusive
prazerosos” (Krenak, 2019, p. 63).
A resistência à narrativa heroica tem se dado no fortalecimento de vozes
que contam suas próprias histórias, “o frenético dinamismo mitológico dos
fodidos, sugados e pisados deste mundo” (Leminski, 2011, p. 100). Pela língua
da arte, vozes como a de Grace Passô nos fornecem alimento para preencher
matulas, bolsas, mochilas e cestas a carregarmos durante a árdua travessia neste
sonho ruim em que fomos colocados – sem perder de vista o despertar em
novas histórias que revelem tramas mais humanas e plurais.
Referências
BERGAMASCHI, Bárbara. Vasta Carne. Beira, 24 de janeiro de 2019. Disponível em: https://
medium.com/revista-beira/vasta-carne-ceca0dc32fe9. Acesso em 5 dez. 2020.
CARSON, Anne. O gênero do som. Serrote. Rio de Janeiro, n. 34, p. 114-136, 2020.
CARSON, Anne. Variations on the right to remain silent. A Public Space, n. 7, 2008.
CAVARERO, Adriana. Vozes plurais: filosofia da expressão vocal. Belo Horizonte: Editora
UFMG, 2011.
DELEUZE, Gilles. O ato de criação. Palestra proferida em Paris em 1987, transcrita e publicada
em Folha de S. Paulo, 27 jun. 1999, Caderno Mais!, p. 4-5.
DINIZ, Cristiano (org.). Fico besta quando me entendem: entrevistas com Hilda Hilst. São
Paulo: Globo, 2013.
ERBER, Laura Rabelo. A captura dos corpos falantes no cinema de Carl Th. Dreyer. Tese
(Doutorado em Letras) – Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, 2012.
GOMES, Juliano. A fartura da fratura. Cinética, 21 maio 2020. Disponível em: http://revistaci-
netica.com.br/nova/vaga-carne-juliano/. Acesso em 8 dez. 2020.
HARAWAY, Donna. Staying with the trouble: making kin in the Cthulhucene. Durham; London:
Duke University Press, 2016.
KRENAK, Ailton. A humanidade que pensamos ser. In: KRENAK, Ailton. Ideias para adiar
o fim do mundo. São Paulo: Companhia das Letras, 2019.
ae &E
Arte
os
nsai
Matula cheia de voz: a voracidade vocal de Grace Passô em Vaga carne 92
LE GUIN, Ursula. The carrier bag theory of fiction. Introduced by Donna Haraway. London:
Ignota Books, 2019.
LEMINSKI, Paulo. Forma é poder. In: LEMINSKI, Paulo. Ensaios e anseios crípticos. São Paulo:
Unicamp, 2011.
MARTINS, Helena. Língua comum indecifrada: Grace Passô, Adília Lopes. Gragoatá, v. 25,
n. 53, p. 972-992, set-dez. 2020.
PASSÔ, Grace. Vaga carne. Belo Horizonte: Javali, 2018.
PASSÔ, Grace; ALEIXO, Ricardo. Janelas abertas #9. Curadoria e organização de ALCURE,
Adriana S. e FABIÃO, Elenora B. Série de encontros no canal do YouTube do Núcleo Experimental
de Performance. Disponível em: https://youtu.be/rcFDfSpX6Ks. Acesso em 24 jun. 2020.
RIBEIRO, Djamila. O que é lugar de fala?. Belo Horizonte: Letramento, 2017.
Filmografia
KUBRIK, Stanley. 2001: uma odisseia no espaço. Estados Unidos/Reino Unido, 1968, 164 min.
PASSÔ, Grace. República, Brasil, 2020, 15 min.
PASSÔ, Grace; ALVES JR., Ricardo. Vaga carne. Brasil, 2019, 45 min.
VICENTE, Juliana. Afronta!. Brasil, 2017, 15 min.
Como citar:
ALTBERG, Maria. Matula cheia de voz: a voracidade vocal de Grace Passô em Vaga
carne. Arte & Ensaios, Rio de Janeiro, PPGAV-UFRJ, v. 27, n. 41, p. 74-92, jan.-jun.
2021. ISSN-2448-3338. DOI: https://doi.org/10.37235/ae.n41.5. Disponível em:
http://revistas.ufrj.br/index.php/ae
ae
os
nsai
ARTIGO 93
&E
Arte
Resumo
Neste ensaio parto de uma compreensão da modernidade como um momento na história
do pensamento que, entre outras coisas, em sua prática de dominação e subjugação dos
corpos africanos e afrodiaspóricos – e por que não citar os corpos ameríndios? –, acabou
por sobrevalorizar somente o conhecimento escrito e letrado, descartando a oralidade e
a identificando como algo menor. Defendo a hipótese de que, ao negar a esses corpos a
Palavra, negou-lhes também o Ser, movimento que denomino ontocídio. Defendo também
a compreensão das festas afro-brasileiras como filosofias – compreendidas como
filosofias de arkhé – e as demonstro como locais de enfretamento das práticas coloniais
e de reontologização. Considero que esta discussão, desenvolvida mediante uma revisão
bibliográfica, possa promover novas reflexões para um conhecimento menos colonizado.
Palavras-chave
Manifestações culturais; Modernidade; Filosofias africanas
e da diáspora; Ontocídio.
Abstract
This essay presupposes a meaning of modernity as a moment in the history and as practice
of domination and subjugation of African and Afro-diasporic bodies – and why not mention
Amerindian bodies –, ended up overvaluing knowledge as something written and literate,
discarding oral knowledge and identifying it as something less. The hypothesis to be defended
is that by denying these beings the Word, they also denied the Being, a movement that I am
calling here ontocide. It is also a hypothesis that Afro-Brazilian manifestations are understood
as philosophies, called here arkhé philosophies, I intend to show them precisely as a form to
confront colonial practices and as a site for reontologization. I believe that the discussion marked
through a bibliographic review can promote new reflections for a less colonized knowledge.
PPGAV/EBA/UFRJ
Keywords
Rio de Janeiro, Brasil
ISSN: 2448-3338 Cultural manifestations; Modernity; African and
DOI: 10.37235/ae.n41.6 Diaspora philosophies; Ontocide.
ae &E
Arte
os
nsai
Filosofias de arkhé como enfrentamento ao ontocídio:
oralidade e cultura afro-brasileira
94
1
Para uma reflexão ampliada sobre o assunto, ver Castiano (2013).
ae &E
Arte
os
nsai
Mateus Raynner Andre de Souza 95
A universalidade do pensamento
Por isso, para nós não se sustenta de que a academia produz ciência e
nós produzimos saber popular. Essa nomeação é por demais colonialista,
feita para nos esvaziar. Que popular é esse? Popular de quem? Produzimos
saber quilombola, saber indígena, saber do povo de terreiro. Esses
saberes têm nomes. Popular é uma palavra vazia.
Epistemicídio
Em sua tese, A construção do outro como não ser, Sueli Carneiro (2005),
parte dos conceitos de dispositivo e biopoder, como definidos por Foucault, para
investigar um longo processo ocorrido no Brasil desde o período colonial. Não
me cabe aqui historiar as genealogias e as raízes do pensamento foucaultiano,
tarefa bem desempenhada na tese de Carneiro. Não obstante, é importante
salientar que esses conceitos são trazidos ao debate para desvelar as estruturas
de poder existentes na sociedade capitalista, as quais decidem quem e como
deve morrer e viver.
Nesse processo, uma elite, que se autointitulou branca, adquiriu poder
ao categorizar o Outro como raça inferior, o negro. É um cenário que demarcou
papéis muito bem definidos a cada um dos grupos: o grupo branco, entre outros
aspectos, se categoriza como o detentor do saber e do conhecimento. Já o outro
grupo, o negro, ao ser delegado ao trabalho braçal e à força física, assumiu-se
não possuir conhecimentos e formas de saber próprias, mas, poderia, caso
necessário, ser educado e ensinado nos moldes de seu antagonista.
ae &E
Arte
os
nsai
Mateus Raynner Andre de Souza 99
2
Pesquisador português ligado ao movimento pós-colonial, seus escritos transitam entre a sociologia, o
direito, as ciências políticas e os direitos humanos. No Brasil, é especialmente conhecido pela concei-
tualização das Epistemologias do Sul, cunhada como estratégia para expandir o escopo epistemológico
das ciências sociais. Sousa Santos demarca uma diferença entre o conhecimento do norte e do sul
globais, estando no norte os grandes polos do mundo capitalista/imperialista. A partir dessa relação de
poder econômico no sistema capitalista, Boaventura mostra como nele se operam relações hierárquicas
de conhecimento. Ao norte, fora delegada a imagem de detentor supremo do conhecimento em que
pouco existe ou inexiste a presença do conhecimento produzido no sul global (Epistemologia do Sul).
Essa divisão é demarcada em razão de vislumbrar um momento de superação da colonialidade
(pós-colonialismo) em que esses saberes do sul adentrariam os saberes produzidos no norte.
ae &E
Arte
os
nsai
Filosofias de arkhé como enfrentamento ao ontocídio:
oralidade e cultura afro-brasileira
100
como válida e é ela a que será ensinada e perpetuada pelas instituições. Dessa
maneira, não apenas se nega o saber do outro, mas também o apaga por uma
série de mecanismos educacionais/doutrinários em que irá se ensinar a gnose
universal. “Por isso o epistemicídio fere de morte a racionalidade do subjugado
ou a sequestra, mutila a capacidade de aprender etc.” (Carneiro, 2005, p. 97).
Elejo a desqualificação da oralidade como um desses múltiplos processos
de apagamento das matrizes não europeias de conhecimento; afinal, é pela
oralidade que o pensamento é construído e perpassado, e que a memória e o
próprio Ser se constituem.
Evoco Sueli Carneiro, pois é com ela que a ideia de epistemicídio adquire
um caráter para além da lógica de dominação territorial. Carneiro é responsável
por conectar o racismo como agente da lógica de genocídio epistêmico e as
desigualdades raciais como imperativos categóricos dos diversos campos do
saber. Evidencio que as práticas de desqualificação das filosofias africanas e
suas derivações são históricas e se encontram conectadas com dispositivos de
poder, como raça e colonialismo.
Todo esse cenário causa um prejuízo também para o dominador, que deixa
de ter a sua disposição uma pluralidade verdadeiramente rica de ferramentas
e instrumentos com os quais possa produzir conhecimento. Sua matriz “mono”
não apenas o impede de ver outras formas de pensar, mas deseja dominar e
eliminar o Outro a todo custo, o que causa um prejuízo universal que aflige a
todos, isto é, um verdadeiro empobrecimento ontológico (Mbembe, 2014), que
elege um único modo de ser como válido. É justamente, com base nos pressu-
postos trabalhados, que nomeio esse movimento como ontocídio.
3
Nas palavras de Nascimento (2020b, p.46) Ubuntu “seria a expressão do princípio fundamental de
toda a existência de modo inexoravelmente interconectado e interdependente, para o qual nada teria
sentido ontológico, epistemológico, ético ou estético se existisse isoladamente”. Isto é, ainda que não
haja consenso entre os pesquisadores que se dedicam à questão, é possível compreender Ubuntu
enquanto princípio que torna a existência articulada e coletiva, em que o indivíduo não se encontra
separado da coletividade. Essa comunidade verdadeiramente coletiva não se restringe aos humanos,
mas a todo o entorno interligado de forma permanente.
ae &E
Arte
os
nsai
Filosofias de arkhé como enfrentamento ao ontocídio:
oralidade e cultura afro-brasileira
102
4
“Vai para além do culto aos nossos antepassados, e a manutenção da história clânica e das nossas
linhagens biológicas, envolvendo formas de cultivar também linhagens simbólicas que fortalecem nossos
laços comunitários. Um exemplo é a capoeira, onde nos ligamos a mestres e mestras que transmitiram
conhecimentos numa linhagem de família não sanguínea (como na expressão “meu avô de capoeira”). O
senso de ancestralidade é fundamental na arkhé africana que só se sustenta através de práticas, rituais e
vivências que atualizam constantemente nossos laços” (Machado, Petit, 2020, p. 26).
ae &E
Arte
os
nsai
Filosofias de arkhé como enfrentamento ao ontocídio:
oralidade e cultura afro-brasileira
104
Mesmo que esse conhecimento esteja vivo nas festas e elas sejam
compreendidas como filosofias, não devemos entender que esse saber é menos
crítico do que o universitário. Os indivíduos que compõem essas manifestações
também convergem, divergem, debatem e reatualizam os conhecimentos,
tornando esse ambiente um lugar de inovação constante, sem que se perca de
vista a tradição.
Tanto em Gonzalez (1989) quanto em Hampaté Bâ (2010) há uma forte
defesa de que, nas tradições orais africanas e da diáspora, os indivíduos apreendem
o mundo de forma crítica se valendo de todos os sentidos; Hampaté Bâ chega a
citar exemplos em que o homem pode sentir a água ou ouvir sons a milhares de
quilômetros. Esses saberes corporais, pelos quais os indivíduos interagem entre
si e com o meio a sua volta são – assim como a forma crítica que o conhecimento
universitário pretende ser – uma possibilidade de conhecer, de reconhecer e de
interagir com o ambiente. Nas festas, para citar a pesquisa de Gonzalez (1989)
como parâmetro, o conhecimento é preservado e perpassado em cantos, ritmos,
danças, adivinhas, jogos e brincadeiras.
Esses conhecimentos filosóficos das comunidades, que constituem as
expressões culturais afro-brasileiras, não se resumem à cosmovisão ou à visão
de mundo em que sua espiritualidade está circunscrita, ainda que muito prova-
velmente as orientações diversas sobre as diferentes áreas do conhecimento
estarão imbricadas com essa forma de ver o mundo. É necessário, todavia, defender
uma multiorientação que dialogue tanto com as heranças africanas como com as
europeias. Mediante esse processo, compreendo, com Sodré (2017), a existência
de um pensar nagô circunscrito nas comunidades das festas, onde está viva a
arkhé negra, ou seja, onde operam as filosofias de arkhé.
Sodré (2017) define como pensar nagô um conhecimento que não nega
as influências e a tradição ocidental, mas se volta constantemente para a matriz
ancestral. O pensar nagô é uma maneira de refletir e fazer pensamento calcada
em referências negroancestrais que ora divergem do cânone, ora a ele convergem.
Dessa forma, encontram-se multipossibilidades transculturais, sempre atentas
às marcas, aos vícios e aos perigos advindos de uma colonialidade epistemológica.
Sodré produz um pensamento extremante relacional, transitando ora pela
filosofia nagô produzida nos terreiros de candomblé, ora pela história da filosofia
ocidental.
ae &E
Arte
os
nsai
Mateus Raynner Andre de Souza 105
Considerações finais
Tendo em vista que “os discursos não têm apenas origens sócio-históricas,
mas também contextos epistemológicos” (Mudimbe, 2013, p. 10), compreendo
que as possibilidades de uma filosofia de arkhé não são as de negação do cânone
europeu, mas representam a abertura do cânone para se compor conjuntamente.
Ao estar atento para as origens dos discursos e para seus limites frente às
estratégias de dominação, de universalização e de ontocídio, é possível final-
mente tecer críticas ao pensamento que se quer universal e que nega o Outro. A
recusa não é ao pensamento que compõe o cânone, mas à subalternização histórica
que institui um cânone em detrimento das demais formas de conhecer o mundo.
Propor estratégias de compor, juntos, o pensamento oral, o letrado e o
canonizado não concerne somente a uma simples inclusão de filosofias de arkhé
como um capítulo à parte da história; é antes reivindicar as possibilidades múltiplas
de se fazer emergir algo novo, que relacione as contribuições do pensamento
europeu e os diversos valores das sociedades não europeias.
O oposto de um pensamento universal é o pensamento local e endógeno.
Como visto, uma verdadeira possibilidade de se construir coletivamente é por
meio das multiplicidades transculturais em que as vozes não se sobrepõem, mas
são coautoras de reflexões críticas sobre o Ser. É necessário entender não
somente o conhecimento não europeu como localizável, mas buscar a certeza
de que toda forma de conhecimento deve ser compreendida a partir de seu local de
nascimento, em seu próprio contexto.
Esse é um chamado de atenção que, já há algum tempo, autores como
Castiano (2013), Nascimento (2020a), Oyěwùmí (2014, 2016), Sarr (2017),
Diagne (2017) – para citar alguns poucos exemplos no debate recente e não
ae &E
Arte
os
nsai
Mateus Raynner Andre de Souza 107
Referências
Como citar:
SOUZA, Mateus Raynner Andre de. Filosofias de arkhé como enfrentamento ao
ontocídio: oralidade e cultura afro-brasileira. Arte & Ensaios, Rio de Janeiro, PPGAV-
UFRJ, v. 27, n. 41, p. 93-109, jan.-jun. 2021. ISSN-2448-3338. DOI: https://doi.
org/10.37235/ae.n41.6. Disponível em: http://revistas.ufrj.br/index.php/ae>
ae &E
Arte
os
nsai
ARTIGO 110
Erika Villeroy
0000-0003-2222-1448
evilleroy@gmail.com
Resumo
Abstract
This text takes a historical and critical approach to the emergence of Black concert dance in
Rio de Janeiro between the 1950s and 1960s. This movement found its consolidation through
the ballet dancer and choreographer Mercedes Baptista’s articulations between classical
ballet, modern dances, as well as her consistent research regarding secular and religious
Afro-Brazilian dances. By considering the possibilities of openings and transformations
within the codes of Danças Afro that allow for the creation of new poetics and methodologies,
the text also seeks to base the existence of a Black aesthetics in the performance arts within the
context of the black diaspora.
PPGAV/EBA/UFRJ
Rio de Janeiro, Brasil Keywords
ISSN: 2448-3338
DOI: 10.37235/ae.n41.7 Mercedes Baptista; Dance history; Black dance.
ae &E
Arte
os
nsai
Erika Villeroy 111
1
Conhecido na imprensa da época como o rei do candomblé, João da Goméia (1914-1971) emigrou
para o Rio de Janeiro em 1944 como dançarino para se apresentar nos cassinos com as danças de
terreiro que já haviam começado a entrar para a cena de Salvador.
2
Assim como Raul Soares foi o primeiro bailarino negro aprovado nesse concurso.
ae &E
Arte
os
nsai
Ballet Folclórico Mercedes Baptista: entre brasilidade e
negritude no Rio de Janeiro das décadas de 1950 e 1960
112
Figura 1 Dona Mercedes teve parte também na série de transformações que fizeram
Mercedes Baptista
Fonte: Bibliothèque
das escolas de samba cariocas o que são hoje – da verticalização e espetacula-
Nationale de France rização dos desfiles à exploração de temas negros nos sambas-enredo, antes
fortemente influenciados pela política nacionalista do Estado Novo de Getúlio
Figura 2
Ballet Folclórico Mercedes Vargas. Entre elogios e críticas, ao coreografar a Ala dos Importantes do G.R.E.S.
Baptista Acadêmicos do Salgueiro com um minueto, ela ficou conhecida como a intro-
Fonte: Bibliothèque
Nationale de France dutora do passo marcado no carnaval do Rio de Janeiro. Seu nome é marcado
na história da agremiação em 1963, ano em que, passando à frente das gigantes
G.R.E.S. Portela e G.R.E.S. Estação Primeira de Mangueira, a Acadêmicos do
Salgueiro levou o primeiro lugar com o enredo “Xica da Silva”, de Arlindo Rodrigues.
A atuação de Mercedes Baptista no campo das políticas públicas para a
arte foi fundamental também para o reconhecimento e profissionalização dos
bailarinos e coreógrafos das danças afro3 – como aponta o professor e pesqui-
sador da Escola de Danças Maria Olenewa (antiga Escola de Danças do Theatro
Municipal do Rio de Janeiro) Paulo Melgaço. Em 1979, ela participa da criação
do Conselho Brasileiro da Dança como secretária adjunta e em seguida da Asso-
ciação Profissional dos Profissionais da Dança, que veio a ser o atual Sindicato
dos Profissionais da Dança do Município do Rio de Janeiro (SPDDMRJ). Assim,
Mercedes Baptista ficou responsável pelos critérios de avaliação dos candidatos
ao título de bailarino profissional de dança afro-brasileira (Melgaço, 2007).
3
A expressão se refere aqui a uma vertente singular que trabalha a partir de danças e expressões
afro-brasileiras em contexto cênico, sendo frequente, mas não necessária, a articulação transversal
com técnicas das danças modernas e da dança clássica europeia.
ae &E
Arte
os
nsai
Erika Villeroy 113
4
Fundada por João Cândido Ferreira (1887-1956), o Monsieur du Chocolat, e integrada por Grande
Otelo (1915-1993) e Pixinguinha (1897-1973), a Companhia Negra de Revistas marcou o que o
pesquisador Jeferson Bacelar (2007) descreve como o início do teatro negro no Brasil com a estreia
em 1929 da peça Tudo preto.
ae &E
Arte
os
nsai
Ballet Folclórico Mercedes Baptista: entre brasilidade e
negritude no Rio de Janeiro das décadas de 1950 e 1960
114
de dança com Eros Volúsia. Com o apoio de sua mãe, que se mudara com ela de
Campos para a capital, dona Mercedes teve a oportunidade de considerar uma
carreira que para a maioria das meninas negras da época era um sonho distante.
Enquanto trabalhava na bilheteria de um cinema na Tijuca, tomou conhecimento
do curso de Volúsia, que frequentou por pouco mais de um ano antes de entrar
para a Escola de Danças do Theatro Municipal do Rio de Janeiro.
Eros Volúsia é frequentemente citada como a precursora de Mercedes
Baptista. Ex-bailarina da Escola de Danças do Theatro Municipal do Rio de
Janeiro, ela deixou o balé clássico europeu para se dedicar a uma pesquisa autoral
e interpretação livre de danças afro-brasileiras como o frevo, o maracatu e as
danças de terreiro. Volúsia era uma enfant terrible – entre as décadas de 1930 e
1960, ela, Luz del Fuego5 e Felicitas Barreto6 foram algumas das mulheres que
fizeram nome no Rio de Janeiro levando para a cena performances atravessadas
pelo exotismo que marcou tanto o modernismo nas artes em seu contexto mais
amplo quanto a narrativa da brasilidade em sua demanda pelo embranqueci-
mento da imagem do país.
A partir das ideias de transgressão, liberdade e de um interesse genérico
pelas danças negras e indígenas, cada uma dessas artistas teve suas contribuições
no sentido da ruptura, até certo ponto, de determinados padrões estéticos e do
conservadorismo que recaía sobre os corpos das mulheres brancas. Esse movi-
mento, no entanto, é feito a partir da reiteração de noções de hipersexualização
do corpo das mulheres racializadas e da falta de entendimento das dinâmicas,
lógicas e estéticas próprias de expressões culturais que eram diversas e complexas.
No contexto das danças modernas, Eros Volúsia estava alinhada a artistas
como Isadora Duncan (1877-1927) e Ruth St. Denis (1879-1968) no que se
referia a um ideal de liberdade de movimento – liberdade que no seu trabalho
se traduz em falta de rigor técnico respondendo a seu modo às limitações e à rigidez
dos códigos formais do balé clássico europeu. A referência às danças afro-bra-
sileiras relaciona-se a um imaginário que as projeta, em suas palavras, como
5
Nome artístico de Dora Vivacqua (1917-1967), atriz, naturista e bailarina nascida no Espírito Santo.
6
Bailarina, escritora, pintora e naturista nascida na Alemanha, cujo trabalho artístico e teórico
pode ser descrito como um estudo livre e lúdico sobre elementos das culturas negras e sobretudo
indígenas, a partir de suas viagens por Brasil, Panamá, México, Colômbia, Equador e Venezuela
(Ferraz, 2017).
ae &E
Arte
os
nsai
Erika Villeroy 115
Figura 3
Eros Volúsia em ensaio
para a Life Magazine
Fonte: Life Picture Collection
desordenadas e exóticas (Volúsia, 1983). Como argumenta Bell Hooks (1992, p. 24)
em Black looks: race and representation, a fascinação pelo Outro aparece na
modernidade como resposta a uma crise de identidade própria da branquitude
que, mesmo quando se interessa por outras formas de estar no mundo, persiste
em demarcar a distância entre sujeito e objeto.
No sentido de melhor compreender o contexto sociopolítico e as bases
técnicas, poéticas e metodológicas da Escola de Dança Afro-Brasileira, é funda-
mental repensá-la em suas afluências, afastar o trabalho de Mercedes Baptista
da referência de Eros Volúsia e aproximá-lo da emergência de um campo
coreográfico no contexto dos trânsitos, intersecções e tensões da diáspora negra
que vão tecer estéticas próprias e tratar de questões diversas das que atravessavam
a produção artística eurocêntrica. Ao relacionar Volúsia com a lógica de represen-
tação da mestiçagem, é possível desfazer parte dos nós que desconsideram a
agência do sujeito negro na história das danças no Brasil.
ae &E
Arte
os
nsai
Ballet Folclórico Mercedes Baptista: entre brasilidade e
negritude no Rio de Janeiro das décadas de 1950 e 1960
116
Figura 4
Mercedes Baptista
Fonte: Acervo Cedoc –
Fundação Theatro Municipal
do Rio de Janeiro
ae &E
Arte
os
nsai
Erika Villeroy 117
A encruzilhada
Figura 5
Léa Garcia em O imperador
Jones, de Eugene O’Neill
Fonte: Acervo Itaú Cultural
7
Emérante de Pradines (1919-2018), bailarina, coreógrafa, cantora e folclorista haitiana que desenvolveu
seu trabalho a partir da articulação entre técnicas de dança moderna, a técnica Dunham e danças seculares
e religiosas do Haiti.
8
No culto vodum dos povos Ewe-Fon, Dangbala Wedo é a serpente que participa da criação do universo e
tem seu reflexo nas cores do arco-íris.
ae &E
Arte
os
nsai
Erika Villeroy 121
Figura 6
Katherine Dunham em
L’Agya (1934)
Fonte: Library of Congress –
Katherine Dunham Collection
ae &E
Arte
os
nsai
Ballet Folclórico Mercedes Baptista: entre brasilidade e
negritude no Rio de Janeiro das décadas de 1950 e 1960
122
Figura 7
Ballet Folclórico Mercedes
Baptista
Fonte: Bibliothèque Nationale
de France
Considerações finais
Referências
BACELAR, Jefferson. A história da Companhia Negra de Revistas (1926-1927). Revista de
Antropologia, São Paulo, v. 50, n. 1, jan.-jun. 2007. Disponível em: https://doi.org/10.1590/
S0034-77012007000100012. Acesso em 13 mar. 2020.
DEE DAS, Joanna. Katherine Dunham – dance in the African diaspora. New York: Oxford
University Press, 2017.
DIÁRIO CARIOCA. Ex-maquis leva folclore a Paris. Rio de Janeiro, 22 maio 1965.
FERRAZ, Fernando. O fazer saber das danças afro: investigando matrizes negras em movimento.
Tese (Doutorado em Artes Cênicas) – Universidade Estadual Paulista, São Paulo, 2017.
HOOKS, Bell. Black looks: race and representation. Boston: South End Press, 1992.
LARKIN, Elisa. Cultura em movimento: matrizes africanas e ativismo negro no Brasil. São
Paulo: Selo Negro, 2008.
LAUNAY, Isabelle. Desafios para uma história transcultural das danças contemporâneas. In:
NEVES, Cássia; LAUNAY, Isabelle; ROCHELLE, Henrique. Dança, história, ensino e pesquisa.
Fortaleza: Indústria da Dança do Ceará, 2017.
MARTINS, Leda Maria. A cena em sombras. São Paulo: Editora Perspectiva, 1995.
MELGAÇO, Paulo. Mercedes Baptista – a criação da identidade negra na dança. Rio de
Janeiro: Fundação Cultural Palmares, 2007.
PEREIRA, Roberto. A formação do balé brasileiro. Rio de Janeiro: Fundação Getulio Vargas, 2003.
SCHWARCZ, Lilia Moritz. Nem preto, nem branco, muito pelo contrário. Cor e raça na
sociabilidade brasileira. São Paulo: Claro Enigma, 2012.
SILVA, Luciane da. Corpo em diáspora: colonialidade, pedagogia de dança e técnica Germaine
Acogny. Tese (Doutorado em Artes) – Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 2017.
VOLÚSIA, Eros. Eu e a dança. Rio de Janeiro: Revista Continente, 1983.
XAVIER, Giovana. Maria de Lurdes Vale Nascimento: uma intelectual negra do pós-abolicão.
Biblioteca Virtual Consuelo Pondé, 2016. Disponível em: http://www.bvconsueloponde.ba.gov.
br/modules/conteudo/conteudo.php?conteudo=196. Acesso em 24 ago. 2020.
Como citar:
VILLEROY, Erika. Ballet Folclórico Mercedes Baptista: entre brasilidade e negritude no
Rio de Janeiro das décadas de 1950 e 1960. Arte & Ensaios, Rio de Janeiro,
PPGAV-UFRJ, v. 27, n. 41, p. 110-126, jan.-jun. 2021. ISSN-2448-3338. DOI: https://
doi.org/10.37235/ae.n41.7. Disponível em: http://revistas.ufrj.br/index.php/ae
ae
os
nsai
ARTIGO 127
&E
Arte
Resumo
O presente texto aborda os corpos femininos inseridos na performance artística,
levando em consideração uma estética feminista que preza uma subversão da
perspectiva de fetichização dos corpos femininos, das violências de gênero e das
potências daquelas que se identificam com esses femininos. Os corpos femininos,
enquanto corpos marcados social e culturalmente por imposições, marginali-
zações, estigmatizações etc., ao se tornar ferramentas artísticas da performance,
passam a ser, também, um gesto crítico-político criador, uma vez que, por meio
de sua estética subversiva, atuam como instrumentos e suportes de criação de
novas possibilidades de discurso. Dessarte, é pela análise crítica de alguns
trabalhos performáticos das artistas Regina José Galindo e Celeida Tostes que
se torna possível trazer essas temáticas à tona neste artigo.
Palavras-chave
Corpos femininos; Performance; Subversão.
Abstract
The present text discusses about the female bodies inserted in artistic performance,
taking into account a feminist aesthetic which values a subversion of the perspective
of fetishization of the female bodies, gender violence and of the powers of those who
identify with these females. The female bodies, as bodies socially and culturally marked
by impositions, marginalizations, stigmatizations etc., by becoming artistic tools of
performance, they also become a creative critical-political gesture, to the extent that,
through its subversive aesthetics, act as supporting instruments for the creation of new
possibilities of discourse. Thus, it is through of critical analysis of some performative
works by artists Regina José Galindo and Celeida Tostes that it will become possible to
PPGAV/EBA/UFRJ
bring these themes to the fore in this article.
Rio de Janeiro, Brasil
Keywords
ISSN: 2448-3338
DOI: 10.37235/ae.n40.8 Female bodies; Performance; Subversion.
ae &E
Arte
os
nsai
Corpos femininos na performance: por uma subversão 128
1
Expressão da filósofa Judith Butler e que tomo aqui por empréstimo para conceituar, justamente,
esses corpos desvalorizados social e culturalmente, ou seja, aqueles corpos excluídos ou que possuem
pouca importância no que tange a suas vivências. Para mais informações, conferir Butler, Meijer,
Prins, 2002 e Butler, 2008.
ae &E
Arte
os
nsai
Beatriz Nascimento Triles 131
2
Conceituo poder aqui enquanto instância altamente ramificada e porosa, que majoritariamente
permeia as relações interpessoais na sociedade capitalista. Assim, estabelece as maneiras como os
indivíduos ocupam os espaços e de que modo são afetados pela disciplinarização dos corpos. Para
mais informações, conferir Foucault, 1988.
ae &E
Arte
os
nsai
Corpos femininos na performance: por uma subversão 134
Figura 2 Em uma sala da Galeria de Arte Black Balance, em Madrid, sete homens
Regina José Galindo,
La Manada, 2018, se masturbam ao redor da artista, cujo corpo imóvel eles usam como lugar para
performance fotografada depositar seus fluidos. O desenrolar da performance remete fortemente a
por José Luis Isquierdo
Disponível em: https://www.
assédios sexuais que ocorrem quotidianamente, nos mais diversos ambientes,
reginajosegalindo.com/ incluindo espaços públicos, e têm como alvo majoritário os corpos femininos.
Esse corpo-objeto da artista em estado de vulnerabilidade convoca à
reflexão sobre a coletividade, na qual estamos todas inseridas também enquanto
corpos suscetíveis às violências físicas, discursivas e simbólicas. Isso porque,
são os corpos femininos, sobretudo aqueles subalternizados pelos marcadores
raciais e de classe, os primeiros a ser violentados nessa lógica, que opera em
um sistema patriarcal branco hétero-falocêntrico. Dessarte, a performer explicita
uma realidade indelicada e incômoda, que, porém, não deveria ser banalizada e
normalizada como uma trivialidade quotidiana.
ae &E
Arte
os
nsai
Beatriz Nascimento Triles 135
Figura 3
Regina José Galindo,
El dolor en un pañuelo, 1999,
performance fotografada
por Marvin Olivares
Disponível em: https://www.
reginajosegalindo.com/
de vista, o corpo enquanto campo de batalha, que afeta o meio em que vive e é
por ele afetado, se torna ferramenta crucial para criar novas formas de existências
possíveis.
Quando se trata do corpo na arte pode-se perceber ainda mais as poten-
cializações daquilo de que ele é capaz. As linguagens utilizadas nas performances,
“como verdadeiras emergências estéticas, são transgressões dentro de uma
cultura em que o corpo, a partir das convenções vigentes, é alienado de si próprio”
(Glusberg, 2005, p. 100). Dessarte, os corpos femininos na performance suscitam,
então, diversos simbolismos que se manifestam como meio de intensificar gestos,
resgatar histórias e propor uma construção de corpos femininos que não cessam
as suas capacidades inventivas de subjetividades, construções políticas e outras
formas de devir.3
A performance de Celeida Tostes é um exemplo de como isso se constrói.
Nascida no Rio de Janeiro, a artista e professora, que trabalhava, sobretudo, com
escultura e cerâmica, fez do barro matéria-prima concreta e simbólica majori-
tária de suas obras. Dessarte, ao propor uma performance, ela utiliza seu corpo
como peça fundamental da obra e, mesclando a carne viva e pulsante ao barro,
dá contorno a gestos e formas que se constroem, desconstroem e reconstroem
à medida que a performance vai sendo executada.
Em Rito de passagem – realizada em 1979, no apartamento da artista,
em Botafogo –, Celeida, com a ajuda de duas assistentes, se despe e envolve-se
inteiramente em argila, de maneira a transformar-se numa espécie de ânfora.
Essa forma tem uma forte ligação com a imagem uterina – lugar em que o
corpo é vivenciado de maneira cíclica, não linear; que constrói memórias, sen-
sações e afetos; e se desfaz em determinado momento, dando lugar a outras
experimentações.
3
Utilizo aqui o termo deleuziano para expressar, justamente, essas possibilidades do vir a ser de
um corpo, ou seja, possibilidades que não buscam uma teleologia daquilo que um corpo é capaz
de ser ou fazer, mas, sim, a plasticidade e a porosidade daquilo que ele porventura possa expressar em
diferentes momentos. Para mais informações, conferir Deleuze, Guattari, 2010.
ae &E
Arte
os
nsai
Corpos femininos na performance: por uma subversão 138
Figura 4
Celeida Tostes,
Rito de passagem, 1979,
performance fotografada
por Henry Stahl
Disponível em: http://bibliote-
cadigital.fgv.br/dspace/bitstre-
am/handle/10438/2146/CP-
DOC2006RaquelMartinsSilva.
pdf?sequence=1&isAllowed=y
ae &E
Arte
os
nsai
Beatriz Nascimento Triles 139
Uma estética como a da artista potencializa o corpo feminino uma vez que
lida com simbolismos como o efêmero, os ciclos da vida – aquilo que está em
devir constante de nascimento e morte – e a permanente construção de corpos
e identidades femininas também em devir. Rito de passagem é, portanto, uma
performance que não só utiliza o corpo como metáfora poética, mas também
incorpora a produção de narrativas do corpo feminino por meio do barro e seus
elementos.
Com essa performance − que contém em si numerosos simbolismos que
atravessam os corpos femininos −, os ritmos do corpo, as questões identitárias
que se constituem a partir dos afetos, as pulsões etc. ganham acolhimento e
ressignificações. Dessarte, uma performance como a de Celeida traz à tona
desdobramentos que despertam possibilidades de tecer novos caminhos por
meio do corpo enquanto potência.
São formas que criam estruturas expressivas no campo das artes e são
capazes de criar, também, uma mescla entre arte e vida, impulsionando as
potências vitais e micropolíticas do corpo a agir como protagonistas na cena
político-social contemporânea. Portanto, “chegamos ao ponto de procurar [...]
a plenitude de nosso corpo naquilo que, durante muito tempo, foi um estigma e
como que a ferida neste corpo; nossa identidade, naquilo que se percebia como
obscuro impulso sem nome... (Foucault, 1988, p. 146).
Considerações finais
Referências
ALMEIDA, Tânia Mara Campos. Corpo feminino e violência de gênero: fenômeno persistente e
atualizado em escala mundial. Dossiê: Gêneros e Feminismo(s): Novas Perspectivas Teóricas e
Caminhos Sociais. Sociedade e Estado, Brasília, v. 29, n. 2, maio-ago. 2014.
ALÓS, Anselmo Peres. Gênero, epistemologia e performatividade: estratégias pedagógicas
de subversão. Estudos Feministas, Florianópolis, v. 19, n. 2, p. 421-449, jan. 2011.
BUTLER, Judith. Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade. Rio de
Janeiro: Civilização Brasileira, 2008.
BUTLER, Judith; MEIJER, Irene; PRINS, Baukj. Como os corpos se tornam matéria: entre-
vista com Judith Butler. Estudos Feministas, Florianópolis, v. 10, n. 1, p. 155-167, 2002.
DELEUZE, Gilles; GUATARRI, Félix. O anti-Édipo: capitalismo e esquizofrenia. São Paulo:
Editora 34, 2010.
FOUCAULT, Michel. História da sexualidade I: A vontade de saber. Rio de Janeiro:
Edições Graal, 1988.
GLUSBERG, Jorge. A arte da performance. São Paulo: Perspectiva, 2005.
JORDÃO, Paulo Veiga. Corpos subversivos na performance contemporânea. Tese (Doutorado
em Artes Visuais) – Universidade Federal do Rio de Janeiro. Departamento de Belas Artes, 2017.
LESSA, Patricia; STUBS, Roberta; TEIXEIRA-FILHO, Fernando Silva. Artivismo, estética feminista
e produção de subjetividade. Estudos Feministas, Florianópolis, v. 26, n. 2, p. 1-19, ago. 2018.
NOCHLIN, Linda. Por que não houve grandes mulheres artistas? São Paulo: Edições Aurora, 2016.
Como citar:
TRILES, Beatriz Nascimento. Corpos femininos na performance: por uma subversão.
Arte & Ensaios, Rio de Janeiro, PPGAV-UFRJ, v. 27, n. 41, p. 127-140, jan.-jun.
2021. ISSN-2448-3338. DOI: https://doi.org/10.37235/ae.n41.8. Disponível
em: http://revistas.ufrj.br/index.php/ae
ae
os
nsai
ARTIGO 141
&E
Arte
Sandra Bonomini
0000-0001-7032-165X
sandra.bonomini@edu.unirio.br
Resumo
O presente artigo é um diálogo com a performance Viril, da performer e escritora brasileira Ana Luisa
Santos. Viril faz parte da série de trabalhos da artista sobre masculinidades, sobre a experiência
das sexualidades fora do quadro dos binarismos e da heteronormatividade, sistema que governa a
estrutura patriarcal. A performance de Santos tem como ação principal a leitura de um manifesto
de sua autoria, Viril ou por uma performance queer da masculinidade. Mediante falas-falos, a artista
interpela o público, mas também a si mesma, ao expor e tentar desconstruir a ficção violenta de
masculinidade tóxica e seu atributo principal: a virilidade. A relação entre o texto da performer e a
imagem de si que ela mostra é essencial. É a partir do compartilhamento de uma experiência íntima
(autobiográfica), que as palavras adquirem dimensão política, sendo a linguagem da performance o
que permite o intercâmbio e o estabelecimento de interconexões. A análise de Viril está inserida na
necessidade de questionar quem conforma o(s) novo(s) sujeito(s) dos movimentos feministas hoje,
para o que me apoio em pensadoras feministas não hegemônicas e no pensamento decolonial.
Palavras-chave
Performance; corpo; feminismos; descolonização; vida-virilha.
Abstract
This article is an analysis and a dialogue with the performance Viril by Brazilian performance
artist and writer Ana Luisa Santos. Viril is part of the artist’s series of works on masculinities,
on the experience of sexualities outside the framework of binarisms and heteronormativity,
a system that governs the patriarchal structure. Santo’s performance has as main action the
reading of a manifesto, Viril or by a Queer performance of masculinity. Through falas-falos,
the artist challenges the audience, but also herself, by exposing and trying to deconstruct the violent
fiction of toxic masculinity and its main attribute: virility. The relationship between the performer’s
text and the image of herself is essential. It is from the sharing of an intimate (autobiographical)
experience, that words acquire a political dimension, with the language of performance allowing an
exchange between performer and audience, as well as the establishment of interconnections. Viril’s
analysis is inserted in the need to question who shapes the new subjects of feminist movements
PPGAV/EBA/UFRJ
today, for which I rely on non-hegemonic feminist thinkers, as well as on decolonial thinking.
Rio de Janeiro, Brasil
ISSN: 2448-3338
Keywords
DOI: 10.37235/ae.n41.9 Performance; body; feminisms; decolonization; virilha-life.
ae &E
Arte
os
nsai
Acontecimento performático para o nascimento de uma vida-virilha:
uma experiência compartilhada
142
1
Em relação ao sujeito do feminismo que de Lauretis vislumbra, estar, ao mesmo tempo, dentro e
fora da ideologia de gênero é pertencer e não pertencer, estar dentro e fora de uma representação.
A ideologia de gênero situa o sujeito do feminismo nesse lugar fixo, em que gênero e sexo (biologia)
se correspondem e não há espaço para outras ficções… Se o sujeito do feminismo estivesse APENAS
dentro da ideologia de gênero, então se estaria falando apenas das mulheres e se estaria afirmando que
as lutas feministas são DE e PARA “as mulheres”, mulheres subordinadas aos homens que lutam, como
no passado, contra a desigualdade de gênero. Isso, sem dúvida implicaria uma volta aos binarismos,
implicaria que o sujeito do feminismo seria constituído apenas de mulheres brancas heterossexuais.
ae &E
Arte
os
nsai
Sandra Bonomini 145
2
Nessa e nas demais citações em idioma estrangeiro, a tradução é minha.
ae &E
Arte
os
nsai
Acontecimento performático para o nascimento de uma vida-virilha:
uma experiência compartilhada
146
A figura que Ana Luisa Santos apresenta em Viril transita pelo desman-
telamento, a erosão e os pequenos tremores citados por Segato. Situada sob o
mesmo “guarda-chuva de identidades genéricas e sexuais” (Segato, 2018,
p. 51), ela rompe com tais categorias de sexo-genêro, ocasionando uma ressigni-
ficação subversiva (Butler, 2010). Um sujeito masculino subalterno performado
por uma artista lésbica de gênero não binário, como ela mesma se autodeno-
mina hoje. Não se trata de uma personagem, mas da performer se mostrando
e se abrindo para a plateia no momento de transição em que se encontra, sem
a necessidade de se tornar algo fixo, naturalizado e imobilizado pelas estruturas
jurídicas (Butler, 2010). O nascimento de Viril e de toda a série de trabalhos
sobre as masculinidades tem como ponto de partida, como escreve Santos em
seu manifesto, poéticas de desconstrução das masculinidades como estratégia
de desarticulação do capitalismo patriarcal ocidental. Eles surgem num período
muito difícil e duro, de crise política e pessoal − e à qual hoje precisamos
adicionar a crise sanitária, a pandemia causada pelo novo coronavírus, que no
Brasil relaciona-se diretamente ao descaso e à necropolítica adotada pelo atual
governo −, de censura às artes, aos artistas e à cultura, de tempos sombrios e
autoritários no Brasil. Conversar sobre o momento atual com a artista foi e
continua sendo especial e relevante. “É um momento, uma sensação de impo-
tência muito forte, de frustração, medo, desespero, de uma tristeza muito grande,
ae &E
Arte
os
nsai
Sandra Bonomini 147
uma sensação de luto” (Santos, 2018). As palavras de Santos poderiam ter sido
ditas ontem, com a diferença de que, hoje, essa sensação de luto tem se transfor-
mado numa (im)possibilidade. Hoje, no Brasil, viver o luto também não é mais
permitido, não há tempo nem espaço para honrarmos a vida; hoje vivemos um
estado permanente de morte(s) que nos leva a pensar nas vidas e nos corpos
passíveis de ser exterminados pelo sistema. Quem deve morrer? E quem tem
direito à vida? Essas perguntas me fazem sentir que enquanto houver luto, haverá
luta, uma luta conjunta cujas frentes devem ser formadas pelos movimentos
sociais, os feminismos plurais, as artes e a academia.
Figura 1
Viril, Ana Luisa Santos, 2018
foto: tratasedejose
ae &E
Arte
os
nsai
Acontecimento performático para o nascimento de uma vida-virilha:
uma experiência compartilhada
150
É nesse sentido que Santos propõe a escuta como ação performativa, não
linear, íntima, exposta e entregue. A partir das ideias e reflexões de Santos sobre
a dramaturgia para performance, é possível conectar a ação de potencializar a
voz e a escuta com a dimensão política tão forte que ambas têm hoje. Penso
na voz dos corpos contrassexuais (Preciado, 2014), contra-hegemônicos, não
binários, não machos, racializados, não normativos, penso na voz-corpo das
“minorias” e na dimensão que a voz-corpo da artista ganha em Viril, assim,
queerizada (Jones, Silver, 2017), enquanto tenta descolonizar sua existência por
meio da performance. Viril não é exatamente um discurso, é uma ação aberta
que responde à pergunta sobre quem tem voz, quem pode falar, quem importa.
O manifesto não descreve, nem localiza, ao contrário, ele desloca, ele promove
acontecimentos. “É uma estratégia queer inverter o polo de uma situação. Quem
sempre fala? A coisa do falo, falos-falas […] Neste caso, a fala, a voz não constrói
poder, justamente desconstrói poder, porque parte do fato de testemunhar a
minha vulnerabilidade” (Santos, 2018). Como se observa nas imagens, a artista
entra nua no espaço e sai nua, mas o que acontece a partir do momento em que o
relato ganha mais intimidade e se torna mais pessoal (e também político), é uma
“gradação de nudez”: ela ficou “mais nua”, apesar de já estar completamente
nua. A palavra trouxe a nudez para a artista, a palavra performou a nudez nela,
como se esta tivesse camadas, como se a pele fosse um figurino que pudesse
ser esticado, furado, perfurado graças à potência das palavras e da performance.
Paul B. Preciado (2014, p. 26) fala do sexo e do gênero como um sistema de
escritura e do corpo como um “texto socialmente construído”, repleto de códigos
que são naturalizados. A performance de Santos traz de volta códigos rejeitados
pelo sistema heteronormativo e patriarcal e os recoloca em primeiro plano… e
que ecoam nos espectadorxs. Sua performance-manifesto é repleta de desvios
e rotas alternativas necessárias para a construção de novas subjetividades que
desafiam o regime heterossexual e a colonialidade do gênero. O corpo é a
principal plataforma em que feminismos plurais − queer − são gestados e paridos.
Figura 2
Viril, Ana Luisa Santos, 2018
foto: tratasedejose
ae &E
Arte
os
nsai
Sandra Bonomini 155
3
A frase/imagem “fumar os clichês” pertence à performance solo Espécie, do artista Igor Leal, cuja
dramaturgia tem a assinatura de Ana Luisa Santos.
ae &E
Arte
os
nsai
Acontecimento performático para o nascimento de uma vida-virilha:
uma experiência compartilhada
156
4
Teresa de Lauretis (1994) tomou a expressão space off emprestada do cinema em seu texto A
tecnologia do gênero.
ae &E
Arte
os
nsai
Acontecimento performático para o nascimento de uma vida-virilha:
uma experiência compartilhada
158
necessário demonstrar uma e outra vez que não existem vestígios de vulnerabilidade
alguma, que se tem “a pele grossa e calejada” (Segato, 2018, p. 39), que não
existe compaixão, tornando a capacidade de cometer atos cruéis com pouca ou
nenhuma sensibilidade predominante. Para Segato, a história da masculinidade
é a história da vida do soldado. Nada mais distante da proposta de Santos, uma
reflexão sobre a falência do viril, sobre o fracasso como potência, sobre as
caraterísticas viris falidas nas possibilidades feministas de articulação política
atual. Na vida-virilha uma contrapedagogia da crueldade é fundamental.
aos atributos do queer, mas honra seus ovários e seu útero, e é a partir daí, dessa
matriz que ressurge sua força “virilha”.
Para Santos (2018), Viril “é essa queda livre, é falência de todas as
dramaturgias prontas, de todas as expectativas e ilusões, é assumir a perda,
é compartilhar a perda, é imaginar a perda, é acreditar que a perda é mais
interessante como espaço para se (re)começar”. A imagem da artista mostra-nos
o gênero ambíguo, uma constante contradição, ela é a transição, ela é o processo
de sua representação (nunca fixa), ela é o processo de sua experiência de (auto)
descolonização, a partir do estado de vulnerabilidade e de desconstrução dessa
virilidade tóxica. Esse estado de vulnerabilidade, como afirma, não é apenas
dela, “é de todxs” (Santos, 2018). Santos convida-nos a performar juntxs esse
momento, pela construção de estratégias micropolíticas de ação e não tanto de
reação, que é um impulso quando o medo, a frustração, a impotência, a tristeza
e o desespero se juntam, quando a nossa “força vital” (Rolnik, 2018, p. 31) é
capturada. Nesse sentido a artista pensa na importância das atitudes micropolíticas,
por meio da criação artística, fazendo uma inversão e transformando tudo isso
em potência.
A partir do pensamento da perda como espaço de empoderamento e de
criação de “outras”, novas masculinidades, é que podemos pensar em devires,
devir masculinidade ou masculinidades em devir, e o devir não seria outra coisa
mais do que uma versão “outra” de si mesmo, mas real (Deleuze, Guattari, 1997).
Segundo as definições de Deleuze, um devir não é uma cópia nem uma seme-
lhança, nem uma identificação, pode ser um processo de transformação em
plena liberdade, sem fronteiras fixas, sem necessidade de classificação, pode
ser ação, mas não no sentido de produção, de produto, no sentido mais capitalista
do termo. De acordo com isso, me arrisco a afirmar que o devir masculinidade
que a artista propõe com Viril habita a vida-virilha. Vida-virilha é um devir.
Arrisco-me também a afirmar que o devir masculinidade de Ana Luisa Santos
pode ser entendido como a masculinidade “não cafetinada” descrita por Suely
Rolnik (2018), em que a perda, a falência e a vulnerabilidade funcionam como
dispositivos de resistência queer ao “inconsciente colonial-capitalístico” (p. 36),
que hoje está tão violentamente presente. A cafetinagem, segundo a autora, é
o abuso da vida, a apropriação da vida e da força da criação pelo capital. Nessa
nova fase − feroz − do capitalismo, a subjetividade e as novas formas de existência
e de representação são o alvo da exploração e do controle.
ae &E
Arte
os
nsai
Acontecimento performático para o nascimento de uma vida-virilha:
uma experiência compartilhada
162
Figura 3
Viril, Ana Luisa Santos, 2018
foto: tratasedejose
Referências
ANZALDÚA, Gloria. Borderlands: the new mestiza = la frontera. San Francisco: Aunt Lute
Books, 1987.
DELEUZE, Gilles; GUATTARI Félix. Mil Platôs: capitalismo e esquizofrenia, v.4. São Paulo:
Editora 54, 1997 (Coleção Trans).
ae &E
Arte
os
nsai
Sandra Bonomini 165
DESPENTES, Virginie. Teoria King Kong. São Paulo: n-1 edições, 2016.
JONES, Amelia; SILVER, Erin. História da arte feminista queer, uma genealogia imperfeita.
In: MESQUITA, André; PEDROSA, Adriano (ed.). História da sexualidade: antologia. São
Paulo: Masp, p. 240-271, 2017.
MIÑOSO, Yuderkys Espinosa. Escritos de una lesbiana oscura: reflexiones críticas sobre
feminismo y política de identidad en América Latina. Buenos Aires/Lima: En La Frontera, 2007.
MOMBAÇA, Jota. Entrevista com Jota Mombaça (parte 1) Autodefinição, Salvador, 2018.
Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=vztLJfJYPYs. Acesso em maio 2021.
PRECIADO, Paul B. Beatriz Preciado en conversación con Marianne Ponsford. Hay Festival
Colombia, fev. 2014. Disponível em: https://youtu.be/4o13sesqsJo. Acesso em 5 ago. 2017.
ROLNIK, Suely. Esferas da insurreição: notas para uma vida não cafetinada. São Paulo:
n1- edições, 2018.
SANTOS, Ana Luisa. Entrevista a Sandra Bonomini. Rio de Janeiro/Belo Horizonte: 2018.
Manuscrito inédito.
SEGATO, Rita. Conversatório Rita Segato y Francisco Carballo. Arte, política y contracultura: El
mundo hoy / Antropología, feminismo y descolonialidad. Museo Universitario del Chopo UNAM.
Disponível em: https://www.facebook.com/MuseodelChopo/videos/1137503373438512.
2021. Acesso em maio 2021.
TELES, Edson. A pandemia e o governo dos corpos. Revista Cult, São Paulo, 265. Dossiê
Digital 2020. Uma revisão. 2021. Disponível em: https://revistacult.uol.com.br/ home/
pandemia-e-o-governo-dos-corpos/. Acesso em fev. 2021.
Como citar:
BONOMINI, Sandra. Acontecimento performático para o nascimento de uma
vida-virilha: uma experiência compartilhada. Arte & Ensaios, Rio de Janeiro,
PPGAV-UFRJ, v. 27, n. 41, p. 141-166, jan.-jun. 2021. ISSN-2448-3338. DOI:
https://doi.org/10.37235/ae.n41.9. Disponível em: http://revistas.ufrj.br/index.
php/ae
ae
os
nsai
ARTIGO 167
&E
Arte
Resumo
Este texto é uma escrita-performance, inspirada metodologicamente na escrita rizomática
de Deleuze e Guattari e na proposta de escrita performativa de Peggy Phellan, uma
pesquisa-narrativa que se debruça sobre um espetáculo artístico-cultural de rua, em Salvador
(Beco da OFF, Barra), protagonizado por uma artista drag queen da cidade de Salvador, Valerie
O’rarah: performance propositadamente artificial e encenada, em que se lança um olhar
sobre a noite soteropolitana e aqueles que circulam por ruas, becos e vielas, uma urbe cheia
de contradições, encantos e conflitos. A persona encarnada como narrador é a do flâneur,
vagabundo e errante urbano relido pela poética baudelairiana e experimentada por João do
Rio, Walter Benjamin, entre outros. Esse errante urbano se perde pela metrópole, entre os
fluxos e devires dos encontros e possibilidades de uma noite imprevisível: por um instante e
um descuido, ele se depara e se encanta com o espetáculo e o contempla. O encontro do flâneur
com Valerie O’rarah e essa noite quente e arriscada é uma experiência de choque e de alteridade
radical, identidades que se fragmentam e se complementam na multidão misteriosa e soturna
da cidade de Salvador.
Palavras-chave
Performance; Escrita; Urbanidades; Gênero; Arte drag.
Abstract
This text is a performance writing, methodologically inspired by the rhizomatic writing of Deleuze
and Guattari and Peggy Phellan’s performative writing proposal, a narrative research that focuses
on a street artistic-cultural spectacle in Salvador (Beco da OFF, Barra), starring a drag queen artist
from the city of Salvador, Valerie O’rarah: performance, therefore, purposely artificial and contrived,
it takes a look at the soteropolitan night and those who wander through its streets and alleys,
a metropolis full of contradiction, enchantment and conflicts. The persona being incarnated as
the narrator is the flâneur, a wandering tramp reread from Baudelairian poetry as experienced by
João do Rio, Walter Benjamin, among others. This urban wanderer loses himself in the metropolis
amongst flows and becomings of an exciting and unpredictable night: in a moment of carelessness,
he stumbles upon the spectacle and becomes mesmerized. The flâneur’s encounter with Valerie
O’rarah and that hot and risky night is an experience of shock and radical otherness, identities that
PPGAV/EBA/UFRJ fragment and complement each other in the mysterious and gloomy crowd of the city of Salvador.
Rio de Janeiro, Brasil
ISSN: 2448-3338 Keywords
DOI: 10.37235/ae.n41.10 Performance; Writing; Urbanities; Gender; Art of drag.
ae &E
Arte
os
nsai
A alma encantadora do Beco ou as crônicas de um vagabundo:
arte drag, performance e urbanidades
168
1
A dicotomia entre transformista e drag queen, no contexto brasileiro, historicamente se estabeleceu
na distinção entre a primeira ser realizada pelo ator que se metamorfosearia no ideal de mulher estabelecido
pelos códigos do gênero social. A ilusão seria o efeito buscado. A drag queen, no entanto, subverteria essa
intenção de “parecer mulher” apresentando o exagero e a explícita artificialidade. Com o uso cada vez mais
recorrente do termo drag queen, ambas as propostas têm sido situadas nesse termo. Portanto, a partir daqui,
utilizarei os termos drag/drag queen como referência. Para mais informações, consultar Benedetti (2005).
ae &E
Arte
os
nsai
Fábio de Sousa Fernandes 169
2
Peggy Phelan (1997) refere-se aqui à teoria dos atos de fala, de John Langshaw Austin (1990).
ae &E
Arte
os
nsai
Fábio de Sousa Fernandes 171
Por que eu paro dentro, sob e entre esse viaduto na cidade de Salvador
para observar luzes amarelas, inconstantes e fugidias produzindo efeitos visuais
nos grafismos de seus muros? Meu olhar capta a frase “Enquanto eu tô no
tráfico, o filho do boi tá surfano” e, embaixo dela, uma sereia, ser mitológico
que representa para alguns a angústia de uma não humanidade, o desejo de ter
pernas, traduzido em um corpo possível, uma ânsia por ser/existir. Tão linda, tão
tola... e eu aqui sorrindo para ti, fazendo coisas com palavras, pensando tolices,
retina hipnotizada por faíscas fugazes. Vejo apenas luzes, grafites, tráfico e
sereias em um túnel no Centro da cidade. (Re)vejo naquela sereia outra dama,
me transporto a um beco da cidade, ele mesmo um palco, em cenas que escapam
de minha memória, mas se espalham em déjà vus fluidos e inconstantes:
Figura 1
Montando-se, frame do
filme Âncora do marujo
Disponível em: https://www.
facebook.com/filmeancorado-
marujo/photos /a.246625542
157835/253988738088182
Acesso em 14 mar. 2021
Fonte: página do Facebook
do filme Âncora do marujo
tipos de contato carnais fugazes, dos mais violentos aos mais afetuosos,
com tantos e variados corpos incógnitos. A experiência errática, a relação
do errante com a alteridade se dá aqui de forma anônima, mas corpori-
ficada. A experiência errática seria então um exercício de afastamento
voluntário do lugar mais familiar e cotidiano, em busca de estranhamento,
em busca de uma alteridade radical (Jacques, 2012, p. 72-73).
a cidade não se abre para o infinito, ela não desemboca numa linha de
horizonte, numa paisagem desdobrando-se ao infinito, ela é um espaço
finito que torna possível uma experiência infinita, a começar por aquela
da caminhada que gera a imaginação e a invenção (Mongin, 2009, p. 77).
Figura 2
Valerie
Fonte: Oliveira, 2012
Meu olhar atento, de detetive, busca no ordinário aquilo que escapa, coisas
diferentes do que veriam as multidões a circular pelo mesmo espaço. Palavras
lançadas ao acaso, fisionomias, borrões de gente, ruídos aparentemente insigni-
ficantes compondo em mim uma harmonia dissonante e atraente.
Sinto o percurso desta Noite se aproximando daquela dolorosa linha, em
que o sujeito se vê acuado, tenso, como no prazer de tocar a si, masturb(ação)
com dentes e unhas, the point of no return. Caminhando pela orla, chego ao Beco
da OFF, e o meu confronto com esse espaço e com a Dama me convida a (re)
examinar o meu próprio corpo, suas bordas, as muitas possibilidades de reconhe-
cimento, identificação. Meu olhar sobre a Dama do Beco estaria coadunado ao
projeto moderno de “glamourização das margens”, à etnografia urbana realizada
por uma elite dândi que, a distância, fotografa, fetichiza e coloniza essas mesmas
margens que frequenta? O discurso sanitarista de espetaculização das cidades
na modernidade impõe uma estética, expulsa os mais pobres dos centros, mas
ae &E
Arte
os
nsai
Fábio de Sousa Fernandes 177
também cria o espetáculo da pobreza, sempre pronto a ser apreciado por lentes
privilegiadas. Realizar esses deslocamentos é um contínuo processo de devir
que estimula reflexões sobre si, sobre o outro, sobre o mundo. É como ser um
flâneur dentro de si mesmo, um “colecionador de sensações da cidade grande,
um sonhador de imagens, de desejos e fantasmagorias” (Bolle, 2000, p. 71), um
errante urbano em sua fuga para a Noite e suas inúmeras possibilidades. João
do Rio, meu companheiro de vagabundagem, refletiu poética e intensamente
sobre o espaço da rua e da cidade, seus personagens e mistérios. Porque
Flanar é ser livre o suficiente para seguir caminhos e rotas não determi-
nados por regras rígidas, mas sim pelo prazer da liberdade e da descoberta: não
somente de espaços novos, mas principalmente de sensações, prazeres e
vivências. O flâneur personifica forças transformadoras, questiona paradigmas
e cria novas ordens (Bernd, 2007). Pensar em uma positiv(ação) da experiência
da vagabundagem beira a impossibilidade, sobretudo em um mundo cujos
mecanismos de produção e consumo são naturalizados e constituem os sujeitos.
No entanto, insistir nesse projeto, mesmo diante de processos de marginalização,
pode desestabilizar as pretensas verdades sobre a existência. Flanar é se distinguir
vagando, errando criativa e artisticamente.
A cidade de Salvador, o Beco da OFF e sua Dama me desestabilizam, me
excitam a ressignificar a experiência flâneuse, performar outras experiências e
ao mesmo tempo refletir sobre a “montagem” que me constitui e seu modo de
vazar por meus poros, despedaçando o sujeito estabilizado, encerrado em
fórmulas.
ae &E
Arte
os
nsai
A alma encantadora do Beco ou as crônicas de um vagabundo:
arte drag, performance e urbanidades
178
[As luzes se acendem sobre Valerie O’rarah, e ela deseja boa noite a
todos os presentes. Quinta-feira. Nesta noite quente de verão, seguinte ao dia
de Iansã, a Dama do Beco exibe em seus braços pulseiras douradas, assim como
imensa quantidade de joias adorna seu busto, pedrarias de ouro na testa,
cabelos negros cacheados e flores vermelhas indo até o pescoço: vermelhas
como a cor de sangue de seu vestido rodado, de cigana misteriosa, oblíqua, com
seus olhos intensos, marcantes. Não há como não se impactar com aquela
imagem tão grandiosa, a escapar por todos os lados, como o vermelho que ruge
de seu corpo. Com microfone em mãos, ela conversa com muitos ali presentes;
com uns, brinca de seduzir; zomba de outros; faz sua gargalhada irradiar: seu
cinismo impiedoso, seu humor provocativo... o show está apenas começando.]
Figura 3
Pombagira
Disponível em: https://www.
facebook.com/photo.php?fbi-
d=492391924220617&se-
t=t.100001724516724&-
type=3
Acesso em 14 mar. 2021
Fonte: arquivo pessoal de
Valerie O’rarah
ae &E
Arte
os
nsai
Fábio de Sousa Fernandes 179
O que se põe em cena com a drag é, sem dúvida, um signo que não
é idêntico ao corpo que representa, mas que não pode interpretar-se
sem esse corpo. O signo, entendido como um imperativo de gênero –
“É menina!” – não é interpretado tanto como uma atribuição, mas sim
como uma ordem que, como tal, produz suas próprias insubordinações
(Butler, 2002, p. 13).
Questionar, desnaturalizar, romper. Vejo o que vejo? Sinto o que sinto? Sou
o que sou? Esse sistema sexo/gênero tenciona produzir “homens” e “mulheres”
3
O camp é um estilo de humor com base no escracho, com um tom vulgar, ultrajante e artificial.
Sontag (1987) amplia esse conceito e o relaciona à formação de identidades, estéticas e vivências.
ae &E
Arte
os
nsai
Fábio de Sousa Fernandes 181
Figura 4
Dama
Fonte: Valverde, 2012
[“Não mexe comigo, que eu não ando só, eu não ando só, que eu não ando
só. Não mexe não! / Eu tenho Zumbi, Besouro, o chefe dos tupis, / Sou tupinambá,
tenho os erês, caboclo boiadeiro, / Mãos de cura, morubichabas, cocares, arco-íris,
/ Zarabatanas, curare, flechas e altares. / À velocidade da luz, no escuro da mata
escura, o breu, o silêncio, a espera. / Eu tenho Jesus, Maria e José, todos os
pajés em minha companhia, /O Menino Deus brinca e dorme nos meus sonhos, o
poeta me contou”. A “Carta de amor”, de Maria Bethânia (2012), música que narra
a saga épica, epifânica e mística de uma mulher forte e guerreira enfrentando
inúmeros desafios é aqui in(corpo)rada com toda a intensidade e força que
emanam de Valerie O’rarah. Cada palavra é enunciada com o impacto, a força e o
corte afiado de uma faca amolada. Seu corpo se move ora suave e delicado, nas
ae &E
Arte
os
nsai
Fábio de Sousa Fernandes 183
partes em que a música é declamada, ora com a energia, o vigor e a fúria de uma
amazona, em seus refrãos intensos e agressivos. A interpretação e as expressões
dela são proferidas com o drama peculiar a um manifesto. A última frase desta
carta anuncia a belicosa, porém doce e tenra, resiliência daquela persona que
se espalha pelo palco, dominando, incendiando-o, como uma bruxa pagã: “Sou
como a haste fina, que qualquer brisa verga, mas nenhuma espada corta”.
Valerie O’rarah parece se agigantar no palco a cada performance. Corpo, dança,
expressão facial, execução precisa. Produção de produção.]
Uma ventania dispersa minha atenção, olho para a orla e vislumbro o céu
iluminado por uma lua inchada a ponto de explodir. Saio do Beco, atravesso a rua,
desço até a praia, a pensar em ontologias, máquinas, próteses. A areia parece
infinita, o desejo é o de começar a contar grão por grão; meu corpo fragmentado,
eu-escrutinado, examinado, (des)montado. Minha montagem-flâneur refletindo
não em espelhos, mas em superfícies opacas, quebradas, assimétricas.
O modelo de cidade grande e metrópole pode ser o lócus ideal para aqueles
que são empurrados para as margens da existência, isto é, o “vale da abjeção”.
Os corpos dissonantes à cis-heteronormatividade sofrem desde muito cedo a
injúria, o insulto contra a inadequação às normas de identidade sexual e de
gênero, um repúdio fortalecido por relações de poder balizadas pela linguagem.
Na prática, ela possui o poder de ferir, causar vergonha profunda e produzir uma
consciência que será elemento constitutivo de corpos e subjetividades, pois é
também um enunciado performativo. As grandes metrópoles e capitais sempre
foram consideradas refúgios para quem é rotulado como um ser abjeto; nelas,
estão a possibilidade de acolhimento, a fuga da injúria e da violência vividas em
cidades menores ou mesmo em ambientes familiares. Esses lugares são o símbolo
maravilhoso de uma liberdade que fortalece o mito de uma “Terra Prometida Guei”:
a razão pela qual reagimos perante essa ‘irrealidade’, como se ela fosse
uma ‘realidade’ intensificada. Que estranho, que misterioso diverti-
mento é esse? E se alguém nos responde que pretendemos fugir de
uma existência medíocre para nos refugiarmos numa outra mais rica,
numa aventura sem riscos, surge-nos uma nova pergunta: por que não
nos chega a nossa existência? Por que desejamos completar nossa vida
incompleta através de outras figuras e outras formas? Por que motivo,
na escuridão de uma sala, fixamos o olhar deslumbrado num palco
iluminado, onde acontece algo de fictício e que absorve a nossa atenção
de forma tão completa? (Fischer, 1983, p. 10).
4
Dzi Croquettes, Secos e Molhados, Culture Club, David Bowie, Pedro Almodóvar, RuPaul’s Drag Race
e muitas outras experimentaram o trânsito dos gêneros em suas obras de arte.
ae &E
Arte
os
nsai
Fábio de Sousa Fernandes 187
Epílogo – um corpo-cosmópolis
Figura 6
Flâneur
Fonte: Valverde, 2012
ae &E
Arte
os
nsai
Fábio de Sousa Fernandes 191
Referências
AUSTIN, John Langshaw. Quando dizer é fazer. Palavras e ação. Porto Alegre: Artes
Médicas, 1990.
AZEVEDO, Sônia Machado de. O papel do corpo no corpo do ator. São Paulo: Perspectiva, 2012.
BAUDELAIRE, Charles. Poesia e prosa: volume único. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1995.
BENEDETTI, Marcos Renato. Toda feita: o corpo e o gênero das travestis. Rio de Janeiro:
Garamond Universitária, 2005.
BERND, Zilá (org.). Dicionário de figuras e mitos literários das Américas. Porto Alegre: Tomo
Editorial/Ed. da UFRGS, 2007.
CARLSON, Marvin. Performance: uma introdução crítica. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2010.
CERTEAU, Michel de. A invenção do cotidiano. Artes de fazer. Petrópolis: Vozes, 2013.
COELHO, Juliana Frota da Justa. Ela é o show – performances trans na capital cearense.
Rio de Janeiro: Editora Multifoco, 2012.
COUTO, Edvaldo. Walter Benjamim: ruas, objetos e passantes. In: COUTO, Edvaldo;
DAMIÃO, Carla (org.). Walter Benjamin: formas de percepção estética na modernidade. Sal-
vador: Quarteto Editora, 2008.
ae &E
Arte
os
nsai
A alma encantadora do Beco ou as crônicas de um vagabundo:
arte drag, performance e urbanidades
192
DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. Mil platôs: capitalismo e esquizofrenia, vol.1. São
Paulo: Ed. 34, 1995.
ERIBON, Didier. Reflexões sobre a questão gay. Rio de Janeiro: Companhia de Freud, 2008.
FISCHER, Ernst. A necessidade da arte. Rio de Janeiro: Zahar, 1983.
HISSA, Cássio E. Viana. Entrenotas: compreensões de pesquisa. Belo Horizonte: UFMG, 2013.
RIO, João do. A alma encantadora das ruas: crônicas. São Paulo: Companhia das Letras, 2008.
SONTAG, Susan. Notas sobre o Camp. In: Contra a interpretação. Porto Alegre: LPM, 1987.
Como citar:
FERNANDES, Fábio de Sousa. A alma encantadora do Beco ou as crônicas de
um vagabundo: arte drag, performance e urbanidades. Arte & Ensaios, Rio de
Janeiro, PPGAV-UFRJ, v. 27, n. 41, p. 167-192, jan.-jun. 2021. ISSN-2448-
3338. DOI: https://doi.org/10.37235/ae.n41.10. Disponível em: http://revistas.
ufrj.br/index.php/ae
ae
os
nsai
ARTIGO 193
&E
Arte
Dando bandeira1
relatos para comunidades imaginadas
Dando bandeira
stories for imagined communities
Caio Riscado
0000-0001-9020-5189
caioriscado@gmail.com
Resumo
O artigo tem como objeto a análise da produção de bandeiras confeccionadas por artistas
brasileiros. A partir da ideia de que bandeiras são objetos performativos e propositivos, que
impulsionam a formalização de novos relatos e comunidades fora das lógicas de repre-
sentatividade e pertencimento das macropolíticas, as obras Bandeyra Nacional (2015),
de Frederico Costa, Amarelo, sei lá... desespero (2019), de Ítala Isis, e América é Marica
(2019), de Francisco Mallmann, são utilizadas para a reflexão sobre as noções de
inespecificidade na arte, desidentificação e grupalidade.
Palavras-chave
Brasil; Bandeira; Representatividade; Pertencimento; Inespecificidade.
Abstract
This article has as its object of analysis a set of flags made by Brazilian artists. Starting from the
idea that flags are performative and propositive objects able to propel the formalization
of new stories and communities outside the logics of representativity and belonging of
macropolitics, the pieces Bandeyra Nacional (2015), by Frederico Costa, Amarelo, sei lá...
desespero (2019), by Ítala Isis, and América é Marica (2019), by Francisco Mallmann, are
used to reflect about the notions of unspecificity in art, disidentification and groupality.
Keywords
Brazil; Flag; Representativity; Belonging; Unspecificity.
1
Apresentação de pesquisa de pós-doutorado sobre a produção de bandeiras confeccionadas por
artistas brasileiros. O título do artigo faz referência a uma expressão popular brasileira. Por essa
PPGAV/EBA/UFRJ razão, e por não encontrar na língua inglesa expressão semelhante que faça uso do símbolo/objeto
Rio de Janeiro, Brasil bandeira em sua construção frasal, optei por sua não tradução. Mais adiante, a escolha da expressão
ISSN: 2448-3338 brasileira será justificada não só pelo imaginário que ela anima, mas, e sobretudo, por sua utilização
DOI: 10.37235/ae.n40.11 como um dispositivo em linguagem que endereça a ação.
ae &E
Arte
os
nsai
Dando bandeira
relatos para comunidades imaginadas
194
2
Em seu texto para a exposição O Artista Brasileiro e Iconografia de Massa (1968), realizada no
MAM-Rio, com organização de Frederico Morais e a Escola Superior de Desenho Industrial, Hélio
Oiticica (2011) menciona Alcir Figueira da Silva como um anti-herói anônimo que “morre guardando
no anonimato o silêncio terrível dos seus problemas, a sua experiência, seus recalques, sua frustração”.
Oiticica diz ainda que queria por meio de imagens plásticas e verbais exprimir a tragédia do anonimato
“ou melhor da incomunicabilidade daquele que, no fundo, quer comunicar-se (o caso que me levou
à vivência foi o do marginal Alcir Figueira da Silva, que ao se sentir alcançado pela polícia depois de
assaltar um banco, ao meio-dia, jogou fora o roubo e suicidou-se). Por que o suicídio? Que diabólica
neurose (aliás tão shakespeariana) o teria levado a preferir a morte à prisão? Uma esperança perdida, o
desespero dessa perda, mas qual perda? Uma ideia, sei lá se certa ou não, me veio: seria isto a busca
da felicidade (aqui entendida como segurança, afeto, tudo o que envolveria a falta que ocasionou essa
neurose)” (Oiticica, 2011).
ae &E
Arte
os
nsai
Dando bandeira
relatos para comunidades imaginadas
196
3
Folha de S. Paulo, São Paulo, matéria de Clara Balbi, em 16 de maio de 2020. Disponível em:
https://www1.folha.uol.com.br/ilustrada/2020/05/entenda-como-a-bandeira-do-brasil-virou-sim-
bolo-dos-apoiadores-de-bolsonaro.shtml. Acesso em 14 jun. 2020.
ae &E
Arte
os
nsai
Dando bandeira
relatos para comunidades imaginadas
198
4
A bandeira do arco-íris foi criada, em 1978, pelo designer e ativista Gilbert Baker. Inicialmente com
oito cores (rosa, vermelho, laranja, amarelo, verde, turquesa, anil e violeta), ela foi feita para o Dia
de Liberdade Gay de San Francisco, na Califórnia, Estados Unidos, com o objetivo de unificar a luta
pela diversidade e pelos direitos dos homossexuais em um só símbolo. Atualmente, a versão mais
conhecida da bandeira tem seis cores. Independente do número de listras e cores, o símbolo criado
por Baker ganhou relevância mundial e passou a representar a comunidade LGBTQIA+ em diversas
manifestações. Em 2015, o Museu de Arte Moderna de Nova York, o MoMa, adquiriu a bandeira de
Baker para a sua coleção de obras, classificando a peça como um marco histórico do design. Nessa
ocasião, em entrevista ao Museu, Baker declarou: “Decidi que tínhamos de ter uma bandeira, que
uma bandeira nos encaixasse em um símbolo, o de que somos pessoas, uma tribo […] e as bandeiras
são sobre proclamar poder, então é muito apropriado”. No mesmo ano, a Suprema Corte dos Estados
Unidos aprovou o casamento entre pessoas do mesmo sexo e, em comemoração pela vitória da
comunidade, a Casa Branca foi iluminada pelas cores da bandeira de Baker. Em 2017, pouco antes de
falecer, Baker criou sua versão “final” da bandeira, com nove cores, em resposta à eleição de Donald
Trump. Por conta do protagonismo homossexual masculino, ou seja, gay, nas agendas de militância
pela diversidade de gênero e sexualidade, muitas outras bandeiras já foram criadas a partir da obra
de Baker com o objetivo de trazer mais visibilidade para corpos, gêneros e práticas marginali-
zados dentro da própria comunidade LGBTQIA+. Como exemplo, podemos citar as bandeiras que
representam: transgêneros, intersexos, gêneros neutros e outras. Para saber mais sobre a história
de Gilbert Baker e suas criações, ver https://www.hypeness.com.br/2019/07/como-e-porque-nas-
ceu-a-bandeira-arco-iris-do-movimento-lgbtq-e-o-que-harvey-milk-tem-a-ver-com-isso/ e https://
g1.globo.com/mundo/noticia/a-historia-por-tras-da-bandeira-arco-iris-simbolo-do-orgulho-lgbt.
ghtml. Acesso em 19 jun. 2020.
ae &E
Arte
os
nsai
Caio Riscado 199
5
Em 2017, na cidade de Porto Alegre, críticas de organizações religiosas, manifestantes e agentes
políticos ligados ao Movimento Brasil Livre (MBL) conseguiram censurar a exposição Queer Museu
– Cartografias da diferença na arte brasileira, cancelando sua temporada de exibição um mês antes
do programado. As manifestações acusaram a exposição de apologia à pedofilia e zoofilia. O caso
teve expressiva repercussão midiática e popular, motivando a realização de uma série de iniciativas
e atividades a favor da exposição. Uma delas foi a convocatória da Cactus Edições para o lançamento
de uma publicação em resposta à censura no meio artístico brasileiro. Dessa maneira, foi lançada a
publicação independente Margem, que conta com trabalhos de 35 artistas e a Bandeyra Nacional, de
Frederico Costa, como imagem de capa.
6
A resposta de Benedita da Conceição foi divulgada na coluna “O Povo Fala”, do jornal O Povo, de
Fortaleza, CE. De acordo com minha pesquisa, essa coluna não integra o conteúdo que o jornal
disponibiliza online em seu site oficial.
ae &E
Arte
os
nsai
Caio Riscado 201
Figura 2
Ítala Isis,
Amarelo, sei lá...desespero,
2019, divulgação
7
Para acessar outras imagens e informações sobre ações da série comentada, ver https://italaisis.
wixsite.com/italaisis. Acesso em 5 dez. 2020.
ae &E
Arte
os
nsai
Dando bandeira
relatos para comunidades imaginadas
202
localizam a norma, mas com ela não se identificam por completo. A consciência da
norma não implica aceitação direta, mas reconhecimento dos atores que estão em
jogo. Numa espécie de malandragem em operação na linguagem, se reconhece a
norma para poder gozar dela (e com ela). Se não há possibilidade de viver no fora
da linguagem, os processos de desidentificação tornam evidentes os movimentos
dentro das estruturas normativas (e suas ficções) que se pretendem inabaláveis.
São práticas que buscam inserir contradições nos modelos dominantes e, no
recorte temático desse artigo, por exemplo, expor a complexidade de temas como
representatividade e pertencimento, como veremos na bandeira a seguir.
O performer, dramaturgo e poeta Francisco Mallmann reconhece em seu
trabalho não só a existência, mas a imposição de uma noção fixa de América.
A América, “sujeito” feminino, é constantemente representada por sua minoria
dominante: branca, produtora de masculinidade tóxica e heterossexual. Sem
Figura 3 ignorar esse fato, Mallmann reconhece a América dos suspeitos “homens de
Francisco Mallmann,
bem” defensores da família, mas reorganiza seus símbolos para rever seu projeto
América é Marica, 2019
Foto: Luciano Faccini “ao pé da letra”. Se somos todas americanas, o relato formal de Mallmann expõe o
ae &E
Arte
os
nsai
Caio Riscado 205
Como o gênero, a nação não existe fora das práticas coletivas que a
imaginam e constroem. A batalha, portanto, começa com a desiden-
tificação, com a desobediência, e não com a identidade. Riscando o
mapa, apagando o nome para propor outros mapas, outros nomes que
evidenciem sua condição de ficção pactuada. Ficções que nos permitam
fabricar a liberdade.
olha a bunda dela / olha o pau dela / olha ela olha ela / olha o buraco
dela / olha o buraco dela / olha pra ela / essa marica toda / torta índia
bruta / olha ela marica bruta / índia ela / olha ela mestiça / mística / olha
os olhos dela / a cor dela a pele dela (Mallmann, 2020, p. 48).
tratada subjetiva e politicamente como algo estável, pois sua captura cairia no
erro de generalizar inúmeros modos de ser e estar, a produção artística de
Mallmann acessa a mobilidade formal e discursiva para ativar modos diversos
de pertencimento.
Assim como sugerido por Preciado na citação já compartilhada, o artista
risca o mapa, ou melhor, faz ver o sangue que continua a escorrer dessa batalha
que atravessa os tempos. Sua desobediência formalizada em vermelho localiza
essa mancha, desafiando discursos assépticos que, além de camuflar a sujeira
do passado, pretendem calar as vozes do presente. Acontece que as veias da
América não param de pulsar. Afinal, sua ferida aberta é um dado incontornável.
Suas mãos estão sujas, América. E não há como fugir de seu sangue indígena,
preto, travesti, trans, sapatão, bicha. Não há como fugir de seu sangue maldito.
Nas palavras de Mallmann (2020, p. 19, tradução minha),
no quiero y no seré lo que / ustedes quieren que yo seya / soy una mancha
/ una mancha sangrienta y enorme / una mancha que se esparce por tu
camino / esta sangre va a ser imposible de limpiar / esta sangre está en su
historia em su arte en sus manos / mi sangre es tuya / américa.8
O título deste artigo é embasado pela ação que, via a criação e sociabi-
lização de outros símbolos e relatos, objetiva multiplicar vivências por meio de
agendas interseccionais e inclusivas. A escolha de “dar bandeira” faz referência
a expressão popular brasileira que resulta na explanação do que deveria
permanecer não dito, oculto, para ativar, justamente, o seu contrário. Mediante
a revelação e exposição de outros relatos, relatos múltiplos e não dominantes,
pretendo com este estudo imaginar/dar comunidades para os sem comunidades.
Em outras palavras, a ampliação dos relatos, a multiplicação de símbolos e
sensibilidades, devolve para uma multidão o que dela continua sendo roubado:
a sensação de pertencimento, a escrita sobre o território e a inscrição do corpo
no território.
8
Não quero e não serei o que / vocês querem que eu seja / sou uma mancha / uma mancha sangrenta
e enorme / uma mancha que se espalha por seu caminho / esse sangue será impossível de limpar /
esse sangue está em sua história em sua arte em suas mãos / meu sangue é seu / américa.
ae &E
Arte
os
nsai
Dando bandeira
relatos para comunidades imaginadas
208
Caio Riscado é doutor em artes cênicas pelo PPGAC da Unirio, pós doutorando
no PPGAC da UFRJ, professor substituto do curso de Direção Teatral, da Escola de
Comunicação (ECO) da UFRJ, diretor teatral, artista pesquisador e performer.
ae &E
Arte
os
nsai
Caio Riscado 211
Referências
BUTLER, Judith. Corpos que pesam: sobre os limites discursivos do sexo. In: LOURO, Guacira
Lopes (org.). O corpo educado: pedagogias da sexualidade. Belo Horizonte: Autêntica, 2013.
CERTEAU, Michel de. A invenção do cotidiano. Artes de fazer. Rio de Janeiro: Vozes, 1994.
FABIÃO, Eleonora. Performance e teatro: poéticas e políticas da cena contemporânea.
Sala Preta, São Paulo, n. 8, 2009.
GARRAMUÑO, Florencia. Frutos estranhos: sobre a inespecificidade na estética contemporânea.
Rio de Janeiro: Rocco, 2014.
IORIO, Maria Isabel. Aos outros só atiro o meu corpo. Bragança Paulista: Editora Urutau, 2019.
MALLMANN, Francisco. América. Bragança Paulista: Editora Urutau, 2020.
MISKOLCI, Richard. Teoria queer: um aprendizado pelas diferenças. Belo Horizonte: Autêntica
Editora; Ufop, 2012. (Série Cadernos da Diversidade 6).
MUÑOZ, José Esteban. Disidentifications: queers of color and the performance of politics.
Minneapolis: University of Minnesota Press, 1999.
OITICICA, Hélio. [1968]. O herói anti-herói e o anti-herói anônimo. Sopro, n. 45, 2011. Disponível
em: culturaebarbarie.org/sopro/arquivo/heroioiticica.html. Acesso em 10 maio 2020.
PELBART, Peter Pál. Elementos para uma cartografia da grupalidade. In: SAADI, Fátima;
GARCIA, Silvana (org.). Próximo ato: questões da teatralidade contemporânea. São Paulo:
Itaú Cultural, 2008.
PRECIADO. Paul B. Um apartamento em Urano: crônicas da travessia. Rio de Janeiro: Zahar, 2020.
PRECIADO, Paul B. Multidões Queer: notas para uma política dos anormais. Revista de
Estudos Feministas, Florianópolis, v. 19, n. 1, 2011.
QUILICI, Cassiano. Atonin Artaud: teatro e ritual. São Paulo: Fapesp; Anna Blume, 2004.
RIVERA, Tania; PUCU, Izabela. Arte, memória, sujeito: bandeiras na Praça General Osório
1968 / bandeiras na Praça Tiradentes 2014. Lua Nova, São Paulo, 96, p. 177-190, 2015.
SÜSSEKIND, Maria Luiza. As (im)possibilidades de uma base comum nacional. e-Curriculum, São
Paulo, v.12, n. 3, p. 1512-1529, 2014.
Como citar:
RISCADO, Caio. Dando bandeira, relatos para comunidades imaginadas. Arte &
Ensaios, Rio de Janeiro, PPGAV-UFRJ, v. 27, n. 41, p. 193-211, jan.-jun. 2021.
ISSN-2448-3338. DOI: https://doi.org/10.37235/ae.n41.11. Disponível em:
http://revistas.ufrj.br/index.php/ae
ae &E
Arte
os
nsai
ARTIGO 212
Resumo
Este artigo situa de que maneira o animal – reconfigurado na forma de objeto de arte
– pode ser tomado como evidência do continuum de mudanças que forjaram o mundo. A
reprodução “artística” das espécies acompanha o percurso da própria humanidade, e, nos
dias de hoje, sua presença estimula novas incumbências para a arte. Obras com essa
especificidade têm sido capazes de acionar uma série de problemas de múltiplas
conformações, sobretudo, quando os liames de humanos e animais se encontram no foco
de instâncias diversificadas. Acompanhando a trajetória desses seres do habitat natural
até sua recepção em espaços certificados, vê-se que, no mesmo rumo dos demais
artefatos apropriados pelos artistas, trabalhos contendo animais podem ser considerados
eminentes para o sistema da arte, a história da arte e a história do mundo.
Palavras-chave
Animal na arte; Objetos de arte; História da arte; Arte contemporânea.
Abstract
This article situates in what way the animal – reconfigured in the form of an art object –
can be taken as evidence of the continuum of changes that forged the world. The “artistic”
reproduction of species follows the path of humanity itself and, nowadays, its presence stimulates
new tasks for art. Works with this specificity have been able to trigger a series of problems with
multiple conformations, especially when the links between humans and animals are the focus
of diversified instances. Following the trajectory of these beings from their natural habitat to their
reception in certified spaces, one can see that, in the same course as other artifacts appropriated by
artists, works containing animals can be considered eminent for the art system, the art history and
the history of the world.
Keywords
Animal in art; Art objects; Art history; Contemporary art.
PPGAV/EBA/UFRJ
Rio de Janeiro, Brasil
ISSN: 2448-3338
1
O presente artigo origina-se de pesquisa de mestrado desenvolvida no Programa de Pós-graduação em
DOI: 10.37235/ae.n41.12 Artes Visuais da Universidade de Brasília.
ae &E
Arte
os
nsai
Marco Túlio Lustosa de Alencar 213
2
Consideradas as práticas artísticas que se querem políticas ou práticas políticas que buscam
sustentáculo na arte (Chaia, 2007, p. 9).
ae &E
Arte
os
nsai
Do habitat natural ao sistema da arte: o corpo do animal
como evidência do complexo de mudanças do mundo
214
que muitos deles atuaram – um dos mais conhecidos é o alemão Joseph Beuys
(1921-1986), que ajudou a fundar o Partido Verde de seu país – e outros ainda
se posicionam ativamente a favor de causas que envolvem a defesa das espécies.
Muitas vezes, porém, ainda que a militância se dê em outros contextos, trabalhos
de arte acabam por despertar para temas ambientais.3
Obras que empregam animais, contudo, não se restringem ao âmbito
da natureza e da ecologia, sem dúvida, temas cruciais para o atual estágio da
civilização. Trabalhos de cunho artístico com essa especificidade têm sido
capazes de acionar uma série de problemas de múltiplas conformações – polí-
ticos, ideológicos, morais, sexuais, de gênero e de muitas outras categorias –,
sobretudo quando as relações do humano com o animal se encontram no foco
de instâncias diversificadas, incluindo o Poder Judiciário. E, apesar da observância
das normas legais, o que, aparentemente, eliminaria as inquirições jurídicas, há
insistentes pressões de outras áreas.
A recepção dessas obras tem mudado de acordo com os períodos e as
circunstâncias. No caso dos animais já sem vida, submetidos a processos de
preservação por meio de técnicas que conservam suas características exteriores,
mantendo similaridade com a forma de quando ainda não haviam morrido – das
quais a taxidermia é a mais popular –, de um modo geral, sua incorporação vem
sendo mitigada, sem que seja reputada tão constrangedora quanto a presença
do animal vivo.
O engajamento de espécimes vivos, estejam ou não enclausurados, possui
maior aptidão de ferir suscetibilidades e, consequentemente, tem gerado condutas
contestatórias mais hostis. Em meio às crescentes preocupações com a proteção
da biodiversidade e do ecossistema natural, a regularidade de animais na forma de
objetos de arte tem ativado limites cujos reflexos alcançam a liberdade de criação:
há ocorrências de grande repercussão em que se apelou à censura, expressada
por autoridades de todos os níveis. Reportadas em numerosas localidades e em
diferentes escalas, manifestações de protesto – usualmente, sem ter em vista as
3
Caso de Fin de siècle (1990), instalação do grupo canadense General Idea, exposta na XXIV Bienal
de São Paulo (1998) e contendo três focas de pelúcia entre folhas de isopor que simulavam geleiras.
Definida como referente à pandemia da Aids, foi interpretada como um pedido de atenção àqueles
mamíferos que corriam sérios riscos em algumas partes do planeta.
ae &E
Arte
os
nsai
Marco Túlio Lustosa de Alencar 215
Figura 1
Nuno Ramos, Bandeira
Branca, 2010, urubus vivos,
rede de náilon, esculturas em
taipa de pilão em areia preta,
mármore, caixas de som,
29a Bienal Internacional de
São Paulo
Fonte: nunoramos.com.br
4
Um vídeo e uma série fotográfica também foram removidos. Dogs that cannot touch each other (2003),
de Sun Yuan (1972) e Peng Yu (1974), registra ação de 2003, em Pequim, na qual cães da raça Pit Bull,
sob esteiras não motorizadas, frente a frente, presos por correntes de modo que não pudessem se
atracar, são provocados a correr em direção aos oponentes. Um sinal sonoro determina a colocação
de painéis entre eles, fazendo-os cessar os movimentos, pondo fim à operação. Enquanto a série A
Case Study of Transference (1993-1994), de Xu Bing (1955), retrata performance na qual um casal
de porcos é marcado com palavras sem sentido com o auxílio de carimbos – em caracteres chineses
(aplicados sobre a pele da fêmea) e no alfabeto ocidental (sobre o macho) – e copula diante do público.
5
A expressão foi cunhada por ativistas e usada, inicialmente, como um rótulo aplicado a produtos de
consumo para identificar quais não resultaram de testes feitos em animais.
ae &E
Arte
os
nsai
Marco Túlio Lustosa de Alencar 217
6
Conceito empregado não apenas no sentido mais frequente do vocábulo, uma movimentação de
caráter espacial, mas visando às transformações que alteram o estado dos animais.
ae &E
Arte
os
nsai
Marco Túlio Lustosa de Alencar 219
7
Mesmo que a hipótese venha a se confirmar e, apesar de o estamento intelectual vislumbrar
tendências para as relações pós-pandemia, não nos será possível conjecturar acerca de suas implicações
em problemas discutidos neste artigo, como as interações de humanos com animais, seus efeitos
sobre as questões poéticas que circunscrevem a produção coetânea de obras de arte marcada pela
participação de animais, bem como sobre o setor da cultura em geral, incluindo o sistema da arte,
suas instituições e eventos.
ae &E
Arte
os
nsai
Do habitat natural ao sistema da arte: o corpo do animal
como evidência do complexo de mudanças do mundo
220
8
Embora, como assinala Shippey (2019), já na época medieval as pessoas vivessem muito mais
próximas dos animais.
9
Vocábulo francês que designa coleção particular de animais vivos, geralmente selvagens e/ou
exóticos, mantidos em cativeiro, um privilégio da nobreza.
ae &E
Arte
os
nsai
Marco Túlio Lustosa de Alencar 221
10
Ainda que pertençam à categoria de objetos artísticos mais frágeis, que incorporam efeitos da
passagem do tempo e exigem esforço contínuo de preservação para a sobrevivência como tal.
ae &E
Arte
os
nsai
Do habitat natural ao sistema da arte: o corpo do animal
como evidência do complexo de mudanças do mundo
222
Figura 2
Frans Snyders, Dois leões
jovens pulando, 1620-1630,
óleo sobre tela, Wallraf-Ri-
chartz-Museum & Fondation
Corboud, Colônia, Alemanha
Fonte: https://commons.
wikimedia.org/wiki/File:-
Frans_Snyders_-_Two_you-
ng_jumping_lions.jpg
ae &E
Arte
os
nsai
Do habitat natural ao sistema da arte: o corpo do animal
como evidência do complexo de mudanças do mundo
224
contato com maior variedade de espécies, retratadas por artistas que acompa-
nhavam expedições a territórios então considerados remotos. Desenhos da fauna
e da flora – que atraíam cientistas e artistas –, realizados durante essas jornadas,
eram retrabalhados pelas mãos dos gravadores, e as reproduções – em forma
de ilustrações e estampas, divulgadas por toda a Europa – despertavam para o
que era visto como exótico. Àquela altura, entidades criadas com o objetivo
de incrementar a experimentação nas áreas científica e tecnológica também
foram determinantes para firmar o vínculo entre a arte e a ciência.
Foi um longo ciclo até o desaparecimento da divisão da pintura em
gêneros hierárquicos, resultando na consolidação dos animais como um modo
pictural emancipado, removidos da antiga situação de subserviência à qual
foram longamente submetidos e, já frequentando as telas como principais
objetos, passassem a servir de modelo para artistas de várias épocas. Entre eles,
nomes hoje incontornáveis, como o de Rembrandt Van Rijn (1606-1669), autor
de uma das mais conhecidas cenas de matadouro – Slaughtered Ox (1657) –,
tema pictórico que se desenvolveu na Holanda já a partir do século 16, comum a
artistas associados à pintura de gênero. A atenção à representação figurativa de
animais perduraria até a atualidade.
A contar da metade do século 20, novas formas e questões poéticas –
estéticas e conceituais – passaram a problematizar, na sequência das vanguardas
que caracterizaram a arte moderna, a concepção de arte legitimada até então.
Período marcado por experiências – às vezes radicais, buscando introduzir práticas
artísticas às relações sociais e ao dia a dia dos cidadãos – nas quais se imbricaram
os objetos, as imagens, as palavras e vários outros elementos, é também o
momento em que se verifica o recrudescimento da utilização do próprio corpo
(ou partes) de animais em trabalhos de arte.
Desde então, os deslocamentos provocados pela inserção desses corpos
em plataformas reconhecidas pelo sistema da arte seguiram ampliando os
transtornos causados à relação da arte com seus objetos. Ainda que não corres-
ponda a uma interrupção definitiva da figuração do animal (que nunca deixou
de ser retratado, de modo naturalista ou não, atendendo a diferentes funções),
sua presença “objetual” é intensificada dos anos 1960 em diante. Como nota
Malta (2016, p. 2169), animais foram usados pelos artistas “de modo a escla-
recer posturas de ultrapassagem de uma arte alicerçada fundamentalmente em
qualidades plásticas”.
ae &E
Arte
os
nsai
Marco Túlio Lustosa de Alencar 225
11
O porco, confinado em um engradado de madeira, possuía, originalmente, um presunto (que
não chegou a ser exibido) atado ao pescoço, chamando a atenção para o nexo do produto final ao
consumidor e sua origem – um dos ângulos do vínculo entre humanos e animais que inclui finalidades
nutricionais. Leirner voltaria ao tema no filme A rebelião dos animais (1975), no qual coloca o espectador
diante do sistema de produção da indústria alimentícia.
ae &E
Arte
os
nsai
Do habitat natural ao sistema da arte: o corpo do animal
como evidência do complexo de mudanças do mundo
226
Figuras 3 e 4 uma dúzia de ratoeiras organizadas no interior de uma moldura –, a Lygia Pape
Cildo Meireles, Tiradentes:
Totem-Monumento ao Preso
(1927-2004), com sua Caixa de Baratas (1967), e a estrangeiros como o
Político, abril de 1970 austríaco Hermann Nitsch (1938). O artista e seu grupo de ativistas faziam
(registro de ação), estaca de
happenings e rituais que eram encerrados com um grande derramamento de
aproximadamente 2,5m de
altura, pano branco, termô- sangue: jogavam as vísceras dos animais escorchados sobre o público. O sacri-
metro clínico, dez galinhas
fício de animais, ação recorrente no Teatro das Orgias e dos Mistérios – coletivo
vivas, gasolina, fósforo, Belo
Horizonte que contabilizou cerca de 100 performances entre 1960 e 1990, do qual Nitsch
Fonte: https://enciclopedia. era líder –, levaria o artista à prisão em seu país e no Reino Unido.
itaucultural.org.br/obra33694/
tiradentes-totem-monumen-
O uso de animais em obras – mesmo as de caráter efêmero – que acabam
to-ao-preso-politico. alcançando projeção por comportar um considerável grau de radicalidade
acarreta novos rumos à prática, transcendendo o atributo artístico das propostas
que possuem essa particularidade. E a resposta do público a trabalhos como
o que foi proposto por Meireles tem se revelado cambiante. Recorda o artista:
“A reação das pessoas foi muito diversa, alguns ficaram furiosos, outros estavam
indignados...” (Amaral, 2006, p. 326). Já Morais (2004, p. 120) traz à lembrança
ae &E
Arte
os
nsai
Marco Túlio Lustosa de Alencar 227
12
Aracy Amaral (2006, p. 326) comenta que a realização de Totem-monumento ao preso político
“se dá exatamente em período que os militares queriam resgatar a imagem de Joaquim José da
Silva Xavier – o Tiradentes – como um herói nacional”.
13
Em 2004, o proprietário, publicitário Charles Saatchi (1943) – também comerciante de arte –,
resolveu vender a obra, que foi adquirida (pelo colecionador estadunidense Steven Cohen, em
janeiro do ano seguinte, em um leilão) pela mesma cifra (posta em dúvida pela imprensa) que
terminou por apelidá-lo.
14
Subtítulo do livro publicado em 2012 pelo economista e colecionador Don Thompson que, a
partir da escultura taxidérmica, traça um painel do mercado internacional da arte nos anos 2000.
ae &E
Arte
os
nsai
Do habitat natural ao sistema da arte: o corpo do animal
como evidência do complexo de mudanças do mundo
228
Figura 5
Damien Hirst, The physical
impossibility of death in the
mind of someone living, 1991,
vidro, aço pintado, silicone,
tubarão e solução de formal-
deído, 2170 x 5420 x 1800cm
(Coleção Steven Cohen)
Fonte: http://www.damie-
nhirst.com/the-physical-im-
possibility-of
15
Ainda assim, tem sido alvo de inúmeros questionamentos, pelos danos causados, o chamado
turismo animal, que prevê o contato direto com espécies selvagens.
ae &E
Arte
os
nsai
Do habitat natural ao sistema da arte: o corpo do animal
como evidência do complexo de mudanças do mundo
230
Marco Túlio Lustosa de Alencar é mestre na linha Teoria e História da Arte pelo
PPGAV/UnB (2020). Graduado em teoria, crítica e história da arte pela mesma
universidade e comunicação social − jornalismo pela Universidade Federal
do Ceará.
Referências
AMARAL, Aracy A. Arte num período difícil (1964-c.1980). In: AMARAL, Aracy A. Textos
do Trópico de Capricórnio: artigos e ensaios (1980-2005). Vol. 1: Modernismo, arte moderna e
o compromisso com o lugar. São Paulo: Ed. 34, 2006.
BERGER, John. Why look at animals? In: BERGER, John. About looking. London: Bloomsbury,
2009.
CANTON, Katia. Alex Flemming, uma poética... São Paulo: Metalivros, 2002.
CHAIA, Miguel. Artivismo – política e arte hoje. Aurora, São Paulo, v. 1, p. 9-11, 2007.
FOSTER, Hal. O retorno do real: a vanguarda no final do século XX. São Paulo: Cosac
Naify, 2014.
HUGHES, Robert. American visions: the epic history of art in America. New York: Alfred A.
Knopf,1997.
LIMA, Joana D’Arc de Sousa. A arte e seu entrecruzamento com a política: arte-guerrilha,
1969-1971. Idéias, Campinas, ano 12 (1), 2005.
MACIEL, Maria Esther. Prólogo. In: MACIEL, Maria Esther (org.). Pensar/escrever o animal:
ensaios de zoopoética e biopolítica. Florianópolis: Editora UFSC, 2011.
ae &E
Arte
os
nsai
Do habitat natural ao sistema da arte: o corpo do animal
como evidência do complexo de mudanças do mundo
232
MALTA, Marize. Imortal enquanto dure… animais, taxidermia e objetos do mal na arte. 25o
Encontro Nacional da Anpap – Associação Nacional de Pesquisadores em Artes Plásticas,
Anais... Porto Alegre, 2016, p. 2159-2174. Disponível em: http://anpap.org.br/anais/2016/
simposios/s1/marize_malta.pdf. Acesso em dez. 2018.
MORAIS, Frederico. Frederico Morais. Org. Silvana Seffrin. Rio de Janeiro: Funarte, 2004.
SHIPPEY, Tom. Throw your testicles. London Review of Books, v. 41, n. 24, 19 dez. 2019.
Disponível em: https://www.lrb.co.uk/the-paper/v41/n24/tom-shippey/throw-your-testicles.
Acesso em dez. 2019.
Como citar:
ALENCAR, Marco Túlio Lustosa de. Do habitat natural ao sistema da arte: o corpo do
animal como evidência do complexo de mudanças do mundo. Arte & Ensaios, Rio de
Janeiro, PPGAV-UFRJ, v. 27, n. 41, p. 212-232, jan.-jun. 2021. ISSN-2448-3338.
DOI: https://doi.org/10.37235/ae.n41.12 Disponível em: http://revistas.ufrj.br/
index.php/ae
ae
os
nsai
ARTIGO 233
&E
Arte
Resumo
A partir de duas figuras que marcam a modernidade – René Descartes e dom Quixote – pensamos
como configuram modos de pensamento diversos e opostos. Entre o método que busca o enca-
deamento causal das coisas e a errância do corpo entregue às aventuras da imaginação, o filósofo
e o cavaleiro instauram um embate que não é aquele entre a razão e o sensível, mas sim, entre dois
modos da razão. Nosso intuito é pensar, especialmente a partir de Jacques Rancière, como o
cavaleiro errante teria aberto um novo campo da experiência sensível que denominamos acidental,
cujo gesto é a recusa da lógica do encadeamento causal cartesiano. Damos a ver, ainda, o modo
como o gesto inaugurado por dom Quixote será reverberado nos gestos do artista contemporâneo
Bas Jan Ader, com seu empenho em buscar a queda tal qual dom Quixote buscara a loucura. O
que surgiria com a recusa da causalidade no cavaleiro e no artista, em nossa hipótese, é uma
mudança de estatuto da própria noção de acidente ou acidental que, deixando de ser considerado
erro a ser evitado, passará a ser experienciado como a única possibilidade para um mundo pautado
na contingência da vida.
Palavras-chave
Heterogêneo sensível; Experiência acidental; Jacques Rancière;
Errância; Modos de pensamento.
Abstract
Based on two figures that marks the modernity − René Descartes and Don Quixote − we think about
how they configure different and opposite modes of thought. Between the method that seeks the causal
chain of things and the wandering of the body given over to the adventures of the imagination, the
philosopher and the knight establish a clash that is not that between reason and sensible, but between
two modes of reason. We think, especialy from Jacques Rancière, how the errant knight would have
opened up a new field of the sensible experience that we call accidental, whose gesture is the refusal of
the logic of the Cartesian causal chain. We also show how the gesture inaugurated by Don Quixote will
be reflected in the gestures of the contemporary artist Bas Jan Ader, with his efforts to seek the fall just
as Don Quixote sought madness. What would arise with the refusal of causality in the rider and in the
artist, in our hypothesis, is a change in the status of the very notion of accident or accidental that, no
longer being considered as an error to be avoided, will now be experienced as the only possibility for a
world based on the contingency of life.
PPGAV/EBA/UFRJ
Keywords
Rio de Janeiro, Brasil
ISSN: 2448-3338 Heterogeneous sensible; Accidental experience; Jacques Rancière;
DOI: 10.37235/ae.n41.13 Wandering; Forms of thinking.
1
Este trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior – Brasil
(Capes) – Código de Financiamento 001.
ae &E
Arte
os
nsai
Ensaio para o acidental: a loucura e a queda em Rancière,
Bas Jan Ader e dom Quixote
234
Retratado como uma figura esguia e frágil, o cavaleiro errante dom Quixote
– personagem do livro O engenhoso fidalgo D. Quixote de La Mancha, escrito
por Miguel de Cervantes (2005) – é visto como um acontecimento inaugural da
literatura moderna. Que um cavaleiro errante, entregue a sua própria loucura,
seja alçado a herói de uma época pode causar espanto; afinal, a subida do
personagem ao rol dos heróis da modernidade expressaria a afirmação do erro
e da loucura como figuras da razão moderna. Razão essa que logo associamos a
outro personagem da modernidade: o filósofo René Descartes (2011) – imagem
oposta à de dom Quixote –, para quem justamente o erro e a loucura aparecem
como alvo contra o qual a razão deve lutar, em busca da verdade e do pensa-
mento “claro e distinto”. Nosso pensamento, ainda envolto pela aura do filósofo,
não sabe lidar muito bem com o erro. A experiência do pensamento, nos diz a
ciência moderna cartesiana, deve ser reta e direta, deve buscar a verdade, fugir
dos erros, deve ter método, e o método deve fazer partir de um ponto A para
chegar a um ponto B, deve construir as relações entre as causas e os efeitos. Nas
próprias palavras de Descartes (2009, p. 34), trata-se de “conduzir por ordem
meus pensamentos, começando pelos objetos mais simples e mais fáceis de
conhecer, para subir pouco a pouco, como por degraus, até o conhecimento dos
mais compostos”. O filósofo chega a concluir que tudo aquilo que é objeto de
conhecimento dos homens obedece a uma mesma cadeia de razões, bastando,
com isso, criar um método capaz de deduzir a verdade de uma coisa a partir de
outra, seguindo a ordem do mais simples ao mais complexo. Assim, a linha reta
diz mais sobre o pensamento cientificista moderno do que a linha curva da
errância, do que, ainda, o entrelaçamento confuso de linhas que formam, mais
do que um percurso de A a B, uma rede, uma teia de aranha, sempre a ser
reconstruída, a cada vez, de um ponto diverso.
Por esse motivo, nos causa tanto espanto que a errância de dom Quixote
tenha se configurado como representante da modernidade. Com estas duas
figuras – Descartes e dom Quixote – marcando o pensamento moderno, o campo
de nossas experiências fica, ao mesmo tempo, delimitado pela “clareza e distinção”
do pensamento cartesiano e atravessado pelo pensamento errante do herói
enlouquecido. Parece, afinal, que, imersos no método do filósofo, acabamos por
perder o rumo, que o campo da experiência não pode mais ser projetado,
pensado, controlado. De qualquer causa que partamos, os efeitos serão acidentais.
ae &E
Arte
os
nsai
Daniela Cunha Blanco 235
A loucura de dom Quixote irá, assim, subverter o estatuto do acidente tal qual
pensado por Descartes (2009, p. 7), para quem interessava conhecer as “‘formas’
ou naturezas dos ‘indivíduos’ de uma mesma espécie”, e não seus “acidentes”,
que podem ser compreendidos como tudo aquilo que não faz parte da essência
do homem. Como afirma Descartes (2011, p. 71), “a extensão, a figura, a situação
e o movimento de lugar, é verdade que elas não estão formalmente em mim,
porquanto sou apenas uma coisa que pensa”. Sendo essa a única essência do
ser do homem, qualquer outra qualidade não o define como homem, antes, apenas
aparece como um acidente. O acidental, assim, configura-se no pensamento
cartesiano como uma névoa de aparências enganadoras, como o véu de ilusão
que devemos fazer desaparecer pelo método do filósofo.
Nosso intuito é pensar como dom Quixote inaugura, mais do que um
gênero ou estilo literário, um outro modo de pensamento. A partir de Jacques
Rancière, em breve diálogo com Gilles Deleuze, pretendemos pensar como o
cavaleiro errante teria aberto um novo campo da experiência sensível, que irá
reverberar nos gestos do artista contemporâneo Bas Jan Ader, com seu empenho
em buscar a queda tal qual dom Quixote buscara a loucura. A principal caracte-
rística dessa experiência inaugurada na narrativa do cavaleiro e perpetuada nos
gestos do artista é a recusa do modo de pensamento cartesiano, aquele pautado
no encadeamento causal das coisas em busca da essência ou verdade. O que
surgiria com a recusa da causalidade em nossa hipótese é uma mudança de
estatuto da própria noção de acidente ou acidental que, deixando de ser conside-
rado erro a ser evitado, passará a ser experienciado como a única possibilidade
para um mundo pautado na contingência da vida.
Cabe notar que tais relações se fazem a partir de um recorte estético tal
como compreendido por Rancière: não apenas algo referido ao sensível ou à
sensibilidade, mas, antes, a um regime de identificação das artes, o regime
estético. Trata-se de compreender que a arte não é uma figura fixa ao longo do
tempo ou, ainda, em diversos espaços e campos discursivos; ela é uma figura
sempre a se reconfigurar no interior de um regime que determina suas formas
de visibilidade e de pensabilidade. Nesse sentido, a partir de um determinado
regime − o estético −, é possível traçar um diálogo com a arte anterior ao próprio
surgimento da estética, compreendida como uma disciplina ou campo teórico no
interior da filosofia. Assim, percorrer o fio da errância entre dom Quixote e Bas
ae &E
Arte
os
nsai
Ensaio para o acidental: a loucura e a queda em Rancière,
Bas Jan Ader e dom Quixote
236
Sua falência significa, assim, não apenas a falha das ações do personagem,
mas também da ação como forma de pensamento que configura um mundo no
qual cada coisa ocupa seu lugar “certo”, no qual a cada indivíduo é destinado um
fim, no qual, ainda, cada espaço e cada tempo são partilhados a cada um segundo
aquilo que lhe cabe em uma série de hierarquias e regras. A ação configura um
modo de pensamento afeito às regras cartesianas, na qual se parte em linha reta
de um ponto a outro com o intuito de encontrar, para cada causa, um efeito
possível e, para cada efeito, uma causa. Que a ação falhe não significa somente
que os efeitos esperados de um gesto não se realizem, mas, também, que a
própria ideia de um encadeamento causal de fatos e acontecimentos não dá
conta de explicar ou de pensar o que é a experiência. É preciso abdicar da causali-
dade para tornar possível o pensamento da experiência. Essa mesma experiência
moderna que nasce no embate entre o corpo do cavaleiro errante entregue à
loucura e o corpo desaparecido no método do filósofo.
Para Rancière (2017b), a falência da ação marca a ruptura do regime
estético em relação ao regime representativo e deve ser compreendida como
um modo de pensamento que libera toda imagem, palavra e todo corpo da
obrigação de narrar um encadeamento de acontecimentos importantes. Não
é apenas a linearidade que é banida em prol da multiplicidade de linhas da teia,
mas também as hierarquias que definiam quais imagens, palavras e corpos
seriam dignos de visibilidade e de pensabilidade. É essa reconfiguração operada
pela falência da ação que cria espaço para que um louco seja herói, para que
um corpo frágil possa guerrear contra moinhos de vento e batalhões saídos de
ae &E
Arte
os
nsai
Ensaio para o acidental: a loucura e a queda em Rancière,
Bas Jan Ader e dom Quixote
238
sua própria imaginação. Dom Quixote, porém, não faz uma simples passagem
que vai da razão (realidade) ao mundo da imaginação (ficção). Com o embara-
lhamento das fronteiras entre os livros e a vida do personagem, como afirma
Rancière (2010, p. 21), a própria divisão entre vida e arte é colocada em risco por
Dom quixote faz ruir qualquer ideia de que aquilo que separa a ficção da
realidade é uma espécie de convenção social, um contrato firmado entre as
partes para garantir um espaço diverso no qual se pode mentir sem colocar a
verdade em perigo. O cavaleiro inaugura um novo modo da ficção no qual o erro
não só é aceito, mas, ainda, passa a qualificar um modo de pensar, um modo
de ser e um modo de aparecer. A errância é seu modo de entregar seu corpo
ao mundo, de experienciar a vida. Esse modo da ficção abre, assim, um campo
de experiência para o acidental, pois o erro já não é mais efeito de alguma
má decisão do pensamento. O erro é, antes, uma escolha cujas consequências
acidentais não são vistas como algo a ser consertado ou revisto, mas como o
próprio campo da experiência. Inverte-se, assim, o jogo: acidente e erro não são
mais efeitos do pensamento; antes, é o próprio pensamento que será construído
a partir da experiência do erro e do acidente. Aquela essência humana que
Descartes acreditava garantir a partir da razão é substituída pela ideia de
que aquilo que existe é o acidente contingencial.
A busca pela experiência acidental implica colocar o corpo em jogo. Esse
corpo, contudo, não está nem imbuído de uma consciência anterior a tudo (o
cogito cartesiano, com seu postulado “penso, logo existo”), nem completamente
abandonado pela razão; não responde a um plano, mas, tampouco, deixou de se
propor a algo. Figura frágil, evanescente, sempre a escapar ou a ser aprisionada,
mas figura possível de ser experienciada, o acidental, em dom Quixote, aparece
no jogo de seu corpo entre o ficcional e o real – que é um jogo entre dois modos
diversos de ocupar o sensível: um pautado na convenção que separa realidade e
ae &E
Arte
os
nsai
Daniela Cunha Blanco 239
fantasia e outro capaz de fazer ruir tais separações. Esses dois modos de ocupar
o sensível determinam, ainda, como nos mostra Rancière (2017b), temporali-
dades ou maneiras diversas de compreender e vivenciar o tempo: uma exige o
encadeamento causal e linear do tempo, compreendendo que são responsáveis
por tornar a ficção verossímil; na outra coisas e acontecimentos se ligam de
maneira dispersa, em camadas temporais diversas que se sobrepõem em uma
série contingencial de intercâmbios. Passa-se, assim, do regime representativo
ao regime estético.
Deve-se notar, porém, que a interpretação estética de Rancière do embate
em dom Quixote não coloca, de um lado, a razão e a realidade (cartesianas) e,
de outro, o sensível e a fantasia. Sua loucura não é a ausência ou perda da
razão de alguém que se teria deixado levar pela ilusão do sensível (como o quer
Descartes). A loucura de dom Quixote não é ausência de pensamento, mas, sim,
outro modo de pensamento. É o que nos mostra o estranho evento, para o qual
Rancière nos chama a atenção, no qual dom Quixote deseja enviar uma carta
a Dulcineia, sua amada, por intermédio de seu fiel escudeiro Sancho Pança.
Aventurando-se pela Serra Morena, o cavaleiro, sem um papel que pudesse
utilizar, decide escrever a carta no livro de bolso encontrado em uma sacola
pertencente a um dos personagens que encontra pelo caminho. Sancho, que
não sabe escrever, é imbuído da missão de levar a carta à próxima aldeia e lá
solicitar a um mestre de escola que a transcreva em um devido papel de carta
que deverá ser remetido, então, a Dulcinéia. Sancho, no entanto, questiona o
cavaleiro sobre como reproduzir sua assinatura para que a carta pareça autêntica.
Ao que dom Quixote responde, nas palavras de Rancière (2017c, p. 213-214),
Dom Quixote demonstrava, até então, ter a amada Dulcineia como uma
realidade para a qual retornaria após suas longas aventuras. Ao ser confrontado
por Sancho quanto ao envio da carta, entretanto, demonstra uma perspectiva
na qual a fantasia e a loucura, responsáveis por criar Dulcinéia, estão no mesmo
ae &E
Arte
os
nsai
Ensaio para o acidental: a loucura e a queda em Rancière,
Bas Jan Ader e dom Quixote
240
plano que a “realidade” da aldeã Aldonza Lorenço. Não se sabe, após a resposta
de dom Quixote, se é a si próprio que o personagem engana ou se é a nós,
leitores. Não se sabe, na verdade, se é mesmo um engano. Com tal reposta dom
Quixote dá a ver que suas ações são impulsionadas por uma razão na qual a
“realidade” de Aldonza Lorenço se vê misturada com a “ficção” de Dulcineia. E
essa “confusão” entre os dois espaços e tempos não é uma ausência da razão,
é uma escolha deliberada de outra razão. O cavaleiro errante não é levado pelo
engano a fazer o que faz, antes, decide entregar seu corpo ao acidental, àquilo
que está fora de ordem, ao que é desvio, falha, queda. Sua loucura é premeditada
− mas apenas na medida em que se considera que o que advém ao corpo quando
ele é oferecido à loucura é a pura contingência da vida.
Figura 2
Bas Jan Ader, In search of
the miraculous, 1975
do miraculoso]. A primeira ação fora realizada em uma única noite na qual Bas Jan
Ader caminhava por Los Angeles e se deixava fotografar pela esposa. A série,
composta por 18 fotos, mostra uma silhueta evanescente lutando contra as
luzes da cidade pelo seu direito de desaparecer. Um corpo solitário, figurado como
uma sombra em meio à escuridão salpicada de pontos de luz.2 A segunda ação
– se assim a denominamos é apenas de maneira precária e provisória, pois que
se assemelha mais à falência da ação inaugurada por nosso cavaleiro errante, dom
Quixote – era a impossível jornada pelo Atlântico, no Ocean Wave, saindo de
Massachussets com destino a Falmouth, na Inglaterra. A travessia, que deveria
ter acontecido no período de dois a três meses, nunca foi completada. O milagre
não foi encontrado. Ao menos se o considerarmos a realização total de uma ação;
ao menos se o entendermos como a recusa da queda, como a negação da falha e
do erro; ao menos se postulamos o milagre como a conquista alcançada por um
herói. Os gestos de Bas Jan Ader, porém, ecoam a errância de dom Quixote mais
do que a assertividade das ações heroicas. Se dom Quixote entregou seu corpo
ao acidental perseguindo deliberadamente a loucura, Bas Jan Ader, por sua vez,
entregará seu corpo à queda na busca pela “mesma” experiência acidental.
2
(Imagens 1 e 2) As imagens referentes a In search of the miraculous podem ser encontradas no link:
https://aucourantarts.wordpress.com/2012/03/18/bas-jan-ader/.
ae &E
Arte
os
nsai
Ensaio para o acidental: a loucura e a queda em Rancière,
Bas Jan Ader e dom Quixote
242
No primeiro vídeo realizado por Bas Jan Ader, Fall I [A queda I], o artista
senta-se, impassível, em uma cadeira em cima do telhado de sua casa. Como se
apenas deixasse a gravidade fazer efeito sobre um corpo que não resiste, vemos
sua fina silhueta começar a inclinar-se, e seu corpo, girando em torno de seu
próprio eixo, funcionar como uma roda que o leva do céu ao chão. Rolando telhado
abaixo, a cadeira que antes sustentava seu corpo em cima do telhado, caindo
também, passa por cima de sua cabeça. Já na beirada do telhado, quando seu
corpo alcança o ar, vemos o sapato escapar-lhe do pé e cair no chão, como uma
advertência do que nossos olhos verão a seguir: um corpo submetido à gravi-
dade, um corpo que se joga à experiência da queda. A entrega de seu corpo faz
estremecer nosso próprio corpo, assustado diante de sua impassividade. Em Fall II
[A queda II], será sobre uma bicicleta que veremos Bas Jan Ader avançar em
direção a um rio em Amsterdã, pedalando calmamente, e entregando-se nova-
mente à queda. Veremos, ainda, inumeráveis vezes, Bas Jan Ader entregar seu
corpo à queda e ao ato de falhar, levantando pedras que caem e apagam as
luzes ao redor de seu corpo, pendurado a uma árvore para deixar-se cair,
equilibrando-se ao lado de um cavalete para logo tombar ao chão em sua
direção ou, até mesmo, em uma queda metafórica, em um vídeo no qual vemos
o artista chorar desesperadamente, as lágrimas escorrendo sobre sua face, o
corpo chacoalhado pelos espasmos de tristeza.3
Encadeando uma queda à outra, interligando-as a um fio de causalidade,
seria fácil e imediato afirmar que In search of the miraculous [Em busca do
miraculoso] surge como o grande e último espetáculo de um artista. Porém,
buscaremos outro pensamento possível, recusando a causalidade cartesiana,
para traçar, em seu lugar, o entrelaçamento com o fio traçado pela experiência
acidental quixotesca. Afirmaremos que a derradeira obra de Bas Jan Ader é, não
o último ato que viria compor uma linha de acontecimentos anteriores, mas, sim,
a repetição incessante de um gesto: aquele de entregar-se à queda e ao
acidental, aquele, ainda, da confirmação incessante da falência da ação tal qual
compreendida por Rancière. A jornada pelo mar foi não apenas o fim de sua vida
3
(Imagens 3, 4 e 5) Alguns dos vídeos referidos no texto, como Fall I [A queda I], Fall II [A queda II] e Broken
Fall [Queda quebrada], podem ser vistos em sequência no link: https://www.youtube.com/watch?v=O_Vr1H_
PK_c&list=PLojAccB3EnFDqJfJxbLaWBAC5Gpi-xTml. Outro vídeo, ainda, I’m too sad to tell you [Eu estou
triste demais para dizer], pode ser encontrado no link: https://www.youtube.com/watch?v=KQ1U3XbEzR4
ae &E
Arte
os
nsai
Daniela Cunha Blanco 243
Figura 3
Bas Jan Ader, Fall I, 1970
Figura 4
Bas Jan Ader, Fall II, 1970
ae &E
Arte
os
nsai
Ensaio para o acidental: a loucura e a queda em Rancière,
Bas Jan Ader e dom Quixote
244
Figura 5
Bas Jan Ader, Broken Fall,
1971
artística, mas, também, seu suspiro de vida final. Desaparecido após a terceira
semana vagando pelo mar, o corpo do artista nunca foi encontrado. Seu pequeno
barco, destinado à grandes feitos, foi encontrado cerca de um ano depois próximo
à costa da Irlanda. Todas as criativas especulações em torno do desaparecimento
do artista – navegando entre o suicídio ou a possibilidade de que Bas Jan Ader
esteja ainda vivo, vivendo outra identidade – em nada nos interessam. Afinal,
tais especulações estariam preocupadas em perguntar sobre uma certa eficácia ou
não de sua ação, sobre ter ela sido ou não sua grande obra (um salto calculado pela
mente genial do artista que, tendo morrido ou assumido uma outra identi-
dade, teria alcançado o maior feito de sua vida: deixar à posteridade sua mais
importante obra de arte). Considerar uma linha causal entre suas obras e ações
seria inseri-lo naquela temporalidade já rompida por dom Quixote, na qual cada
gesto deve ser explicado, esmiuçado e encaixado em uma série causal que vai
de A a B; seria, assim, pensar os gestos de Bas Jan Ader a partir do método
cartesiano, ao regime representativo, reduzindo sua experiência a um projeto
cuja eficácia deveríamos medir.
ae &E
Arte
os
nsai
Daniela Cunha Blanco 245
4
Rancière (2013) traça alguns diálogos com Deleuze, em especial em suas discussões em torno do
cinema, a partir de uma crítica, qual seja, aquela que afirma que o pensamento de Deleuze sobre dois
momentos diversos do cinema (o da imagem-movimento e o da imagem-tempo) teria perdido de vista
que ambos os modos de trabalhar a temporalidade já estariam contidos no regime estético, antes ainda
do surgimento do cinema, naquilo que Rancière denominou revolução literária. Rancière, assim, leva
para o pensamento do cinema a discussão da falência da ação, característica do regime estético, do
campo literário para o campo do cinema e da imagem. Apesar de tais divergências, acreditamos que
seja possível fazer a aproximação entre os autores a partir do recorte do pensamento do impessoal e
do singular, afinal, ambos os autores pensam tais categorias em momentos diversos de suas obras,
demonstrando bastante proximidade e diálogo.
ae &E
Arte
os
nsai
Ensaio para o acidental: a loucura e a queda em Rancière,
Bas Jan Ader e dom Quixote
246
Uma vida que extravasa qualquer ideia de eficácia, qualquer noção de causalidade,
pois, uma vida não subsumida às decisões de uma consciência que lhe preceda,
que não está sob jugo de um eu ou sujeito que determina seu campo de experiência.
Deleuze, interessado em recusar o cogito cartesiano e todo o arcabouço
metodológico que traz consigo, concebe a ideia de uma vida impessoal, que
tomamos emprestada para pensar a experiência acidental. Com sua busca pelo
acidental, na queda, Bas Jan Ader foi apenas um corpo que se deu à vida, uma
vida impessoal desprovida de qualquer ideia de individualidade; descarnada,
assim, de qualquer idiossincrasia que lhe fizesse ser reconhecido como dono de
suas ações, como um sujeito anterior à experiência de seu corpo. Ainda seguindo
o pensamento de Deleuze (2016, p. 410), “a vida de tal individualidade se apaga
em proveito da vida singular imanente a um homem que não tem mais nome,
embora não se confunda com nenhum outro. Essência singular, uma vida...”.
A “individualidade” pertence a esse mundo da vida ordenada e da biografia:
um artista, holandês, leitor de Kant, Hegel e Camus, filho de um pai assassinado
pelo nazismo. A “singularidade”, por sua vez, diz respeito a esse “homem que
não tem mais nome”, do qual fala Deleuze (2016, p. 410). A individualidade é
construída como um quebra-cabeça no qual cada parte tem seu lugar em um
encadeamento causal. A vida singular, por sua vez, é acidental. É disto que se
trata: como viver o acidental – aquilo que advém inesperadamente – se não nos
permitimos sair de nossa vida ordenada e individual, de nossa vida em que cada
gesto tem lugar, explicação, causas e consequências? Ao mesmo tempo, como
afirmar que o acidental é algo que buscamos se, a partir do momento em que
projetamos algo, ele logo passa a deixar de ser acidental? Pensamos ser essa a
questão que reúne Bas Jan Ader e o cavaleiro errante dom Quixote: esse movi-
mento ou gesto que não está imbuído de um desejo de encontrar uma resposta,
mas simplesmente de viver uma tal experiência. Viver e experienciar a pergunta
sobre a possibilidade do acidental. O gesto de Bas Jan Ader, assim, foi entregar
seu corpo à queda na construção de uma experiência acidental, bem como o do
cavaleiro errante foi entregar o corpo à loucura em busca desse mesmo acidental.
O contraste entre uma vida singular e uma vida individual, concebido por
Deleuze, aparece, também, no pensamento de Rancière (2017a), sob outra
forma. Ao analisar a literatura romanesca Rancière aponta a “revolução
sensível” que teria se operado com a configuração de uma escrita preocupada
com os “momentos quaisquer” – momentos que a nada servem, desprovidos de
ae &E
Arte
os
nsai
Daniela Cunha Blanco 247
Essa vida anônima que se manifesta nos gestos de Bas Jan Ader não é
efeito de sua consciência. Os gestos do artista não se resumem a uma explicação
causal cujos sintomas aparecem já de partida em sua personalidade ou história
de vida. Desviar, assim, da individualidade de Bas Jan Ader, de sua identidade e
das histórias que a compõem, não faz, simplesmente, com que ela desapareça,
mas torna possível que a experiência acidental não seja resumida a uma linha
causal de acontecimentos. Com tal desvio, dá-se espaço para o surgimento de
uma vida acidental – uma vida singular, com Deleuze, e anônima, com Rancière
–, na qual aquilo que advém não é o já esperado, não é mero desdobramento de
ações cujos efeitos já se sabiam de partida. Rancière opõe a uma vida ordenada
pelos espaços e papéis sociais – com seus ritmos e temporalidades determinadas
pelas necessidades “individuais” – uma vida cuja temporalidade não é a do
encadeamento causal, mas, antes, a da sobreposição de camadas espaçotemporais
em sua multiplicidade. Nessa temporalidade, os gestos de Bas Jan Ader expressam
uma vida anônima que escapa a todo esforço por explicá-la.
ae &E
Arte
os
nsai
Ensaio para o acidental: a loucura e a queda em Rancière,
Bas Jan Ader e dom Quixote
248
Resta, assim, quase nenhuma resposta, mas, sim, uma série de questões
que moveram este ensaio para o acidental. O que seria entregar-se ao acidental?
O acidente é aquilo que nos acomete sem que o esperemos, aquilo do qual
gostaríamos de fugir pois nos é estranho. Mas não seria justamente isso que
pensamos quando falamos daquilo que a arte é capaz de operar em nós? Não se
trata da possibilidade de experienciar algo que desloca nosso cotidiano? Às vezes,
aliás, é essa a sensação que temos quando nos deparamos com certa obra em
uma exposição, com certa imagem em um filme ou com certas palavras em um
livro: um algo acidental que nos acomete, que nos atravessa. Mas é preciso
olhar a imagem, é preciso entregar seu corpo à imagem para que ela o afete. É
necessário fazer com que as palavras entrem no corpo. É isso que dom Quixote
e Bas Jan Ader fazem ao entregar-se ao acidental: deixam-se abertos para uma
experiência sensível heterogênea, como a que descreve Rancière. Assim, se,
como espectadores ou como simplesmente corpos viventes, seguirmos a insis-
tência de Bas Jan Ader e de dom Quixote, nos entregando à experiência acidental,
possamos, talvez, sentir uma espécie de descentramento, uma dissolução de
nossa individualidade, possamos viver, talvez, por um segundo, aquela vida
singular e anônima.
Referências
DELEUZE, Gilles. Imanência: uma vida. In: Dois regimes de loucos. Trad. Guilherme Ivo.
São Paulo: Editora 34, 2016.
DESCARTES, René. Discurso do método. Trad. Maria Ermantina de Almeida Prado Galvão.
4 ed. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2009.
ae &E
Arte
os
nsai
Ensaio para o acidental: a loucura e a queda em Rancière,
Bas Jan Ader e dom Quixote
250
RANCIÈRE, Jacques. O fio perdido: ensaios sobre a ficção moderna. Trad. Marcelo Mori.
São Paulo: Martins Fontes, 2017b.
RANCIÈRE, Jacques. Políticas da escrita. 2 ed. Trad. Raquel Ramalhete, Laís Eleonora
Vilanova, Ligia Vassalo e Eloisa Araújo Ribeiro. São Paulo: Editora 34, 2017c.
RANCIÈRE, Jacques. A comunidade estética. Trad. André Gracindo e Ivana Grehs. Poiesis,
Niterói, n. 17, 2011.
RANCIÈRE, Jacques. A partilha do sensível. Trad. Mônica Costa Netto. 2 ed. São Paulo:
Editora 34, 2009.
RANCIÈRE, Jacques. Sobre políticas estéticas. Trad. Manuel Arranz. Barcelona: Servei de
publicacions de la Universitat Autònoma de Barcelona, 2005.
Como citar:
BLANCO, Daniela Cunha. Ensaio para o acidental: a loucura e a queda em Rancière,
Bas Jan Ader e dom Quixote. Arte & Ensaios, Rio de Janeiro, PPGAV-UFRJ, v. 27,
n. 41, p. 233-250, jan.-jun. 2021. ISSN-2448-3338. DOI: https://doi.org/10.37235/
ae.n41.13. Disponível em: http://revistas.ufrj.br/index.php/ae
ae
os
nsai
ARTIGO 251
&E
Arte
Edilson Pereira
0000-0001-8308-661X
edilson.pereira@eco.ufrj.br
Resumo
Este ensaio aborda uma forma monumental antiga e muito disseminada no mundo – o
obelisco e suas variações – para refletir sobre a importância desse artefato estético e
sociocultural até o último século, quando passa a interagir com questões oriundas dos
debates propostos pela “arte pública”. Considerando os usos históricos e contemporâ-
neos dos monumentos verticais não figurativos, abordo algumas intervenções e instalações
artísticas, focalizando monumentos públicos, para mapear as estratégias de subversão das
formas e sentidos a eles atribuídos. Demonstro que certos monumentos são objeto de várias
intervenções ao longo do tempo, enquanto algumas instalações artísticas se apresentam
como contramonumentos em sintonia com os princípios de participação e debate público que
animam os valores democráticos.
Palavras-chave
Obelisco; Monumento público; Arte pública;
Paisagem urbana; Contramonumento.
Abstract
This essay discusses an ancient monumental form and very widespread in the world – the
obelisk and its variations – to reflect on the importance of this aesthetic and sociocultural
artifact until the last century, when it started to interact with issues arising from the debates
proposed by the “public art”. Considering the historical and contemporary uses of vertical
non-figurative monuments, I address some interventions and artistic installations focusing on
public monuments to map the subversion of the forms and meanings canonically attributed to
such artifacts. There are cases in which a monument is the object of several interventions over
time, and others, complementary, in which the proposal is to constitute a counter-monument in line
with the principles of participation and public debate that animate democratic societies.
Keywords
Obelisk; Public monument; Public art; Urban landscape; Counter-monument.
PPGAV/EBA/UFRJ
1
Rio de Janeiro, Brasil Uma versão preliminar deste ensaio foi apresentada, no início de 2021, na disciplina “Antropologia da moderni-
ISSN: 2448-3338 dade. Materialidades e espaço público: monumentos”, ministrada por Emerson Giumbelli no PPGAS da UFRGS,
DOI: 10.37235/ae.n41.14 da qual participei como professor convidado. Agradeço à turma e ao colega a estimulante interlocução.
ae &E
Arte
os
nsai
Monumentos urbanos e arte pública: os obeliscos em rotação 252
2
No original: the obelisk seems to serve as the perfect expression of union – a great mass coalesced into a single
gesture that belies all dissension. But this way of reading the monument speaks more of longing than of reality;
nessa e nas demais citações em idiomas estrangeiros a tradução é nossa.
ae &E
Arte
os
nsai
Edilson Pereira 253
existia naquele sítio o Circo de Nero, em que inúmeros cristãos foram sacrificados.
A arena de espetáculos do imperador destacava em seu interior um obelisco
egípcio, troféu exibido pelo poder romano que se tornou um ponto de martírio
(Cymbalista, 2010).
Em 1586, o obelisco foi transportado ao centro da praça de São Pedro.
Sobre o monolito original, foram instaladas novas figuras, incluindo uma cruz em
seu topo. Em vez de apagar o passado do artefato, a apropriação cristã operou de
modo a acentuar algumas de suas facetas históricas, propositadamente. A forma
que antes expressava o culto a um deus solar, em Heliópolis, no Egito, tornou-se
uma metonímia da hierarquia eclesial: um centro verticalizado de poder, que
conecta Céu e Terra. Enquanto representante de Cristo na Terra, a Igreja enfatiza
a representação da divindade como “o sol da justiça” (Malaquias, 4:2) e “a luz do
mundo” (João, 8:12).
Esse caso-limite mostra que, além de a forma obelisco ser utilizada
historicamente para diferentes fins, a durabilidade de certos monumentos
permite que eles acumulem várias camadas de sentido, por vezes díspares ou
recombinadas entre si. À medida que foi se consagrando como um cânone, o
obelisco se estabeleceu em uma forma que ultrapassa fronteiras nacionais e
repertórios culturais. Em sua economia estética própria, ele se revela capaz de
articular sentidos potencialmente contraditórios ao longo de sua biografia cultural
(Kopytoff, 2008).
A ambiguidade dessa forma monumental pode ser notada no papel
desempenhado pelo obelisco que se localiza no umbigo da cidade de Paris, a
Place de la Concorde. O terreno destinado à instalação do obelisco proveniente da
cidade egípcia de Luxor, no século 19, foi a praça onde, no contexto da Revolução
Francesa, o neto do Rei-Sol, Luís XVI, foi decapitado com Maria Antonieta.
Considerando o passado sangrento do local, Taussig (2012, p. 15) pondera que
as sociedades constroem espaços que servem não só para reafirmar um sistema
de poder estabelecido, mas também para abrigar a sua transgressão. Seria esse
o caso da Concorde, espécie de centro ritual do Estado francês. Para o autor, a
história do monumento condensa uma ambiguidade irresoluta, uma opacidade
inerente que se replica em outros monumentos não figurativos. Em sua aná-
lise, Taussig recupera os escritos de Walter Benjamin sobre a Concorde e seu
marco central.
ae &E
Arte
os
nsai
Monumentos urbanos e arte pública: os obeliscos em rotação 256
Obelisco. Aquilo que há quatro mil anos foi sepultado e ali está hoje no
centro da maior de todas as praças. Se isso lhe fosse profetizado – que
triunfo para o faraó! O primeiro império cultural do Ocidente trará um
dia em seu centro o monumento comemorativo de seu reinado. Que
aspecto tem, na verdade, essa glória?
Nenhum dentre dez mil que passam por ali se detém; nenhum dentre
dez mil que se detêm pode ler a inscrição (Benjamin, 1987, p. 36).
3
Mais informações sobre o obelisco do século 19 estão disponíveis no site da prefeitura paulistana
(cf. Cidade de São Paulo, 2010).
ae &E
Arte
os
nsai
Monumentos urbanos e arte pública: os obeliscos em rotação 258
4
“Foi onde se estabeleceram seus primeiros habitantes e governadores. Era onde estava a sede de
sua primeira catedral, São Sebastião e a sepultura de Estácio de Sá” (Fundação..., 2020).
ae &E
Arte
os
nsai
Edilson Pereira 259
Figura 1
Disponível em: http://me-
morialdademocracia.com.
br/card/a-revolucao-de-30
ae &E
Arte
os
nsai
Monumentos urbanos e arte pública: os obeliscos em rotação 260
5
Buenos Aires Ciudad. Obelisco. Disponível em: https://turismo.buenosaires.gob.ar/br/otros-esta-
blecimientos/obelisco/. Acesso em 10 mar. 2021.
ae &E
Arte
os
nsai
Edilson Pereira 263
Por sua vez, o termo “Magia” era definido como “arte ou ciência oculta
com que se pretende produzir, por meio de certos atos ou palavras [...] efeitos
e fenômenos extraordinários, contrários às leis naturais” etc. (Bienal, 1978, p.
20-21). Dentro da proposta curatorial que tomava por parâmetro a conexão dos
trabalhos aos termos descritos, Minujín apresentou uma réplica do principal
obelisco portenho. A maneira como a cópia era apresentada produzia, contudo,
um significativo desvio em relação ao protótipo monumental. El obelisco acostado,
sua obra, inseria o obelisco no pavilhão da Bienal e o tombava, fazendo com
que sua base permanecesse aberta ao público, como uma porta que convida a
entrar no objeto-símbolo originalmente inacessível. A descrição da obra era feita
nos seguintes termos:
Figura 2
Disponível em: https://
www.artsy.net/artwork/
marta-minujin-the-obelisk-
-lying-down
Figura 3
Disponível em: https://
en.pensartododenuevo.
com/capitulo5
ae &E
Arte
os
nsai
Edilson Pereira 265
mas sim a um artifício capaz de liberar uma enorme descarga de energia social,
que se multiplica atraindo e provocando envolvimento coletivo. Enquanto força
social, e não como essência fixa, o que é sacralizado pelas sociedades pode ser
subvertido pela magia, que não destrói o (monumento) original, mas o altera
significativamente. No caso do obelisco de Minujín, tornando-o horizontal, aberto
e desterritorializado.
No ano seguinte, em 1979, a artista produziu outra réplica do monumento
– dessa vez em solo portenho. Diferentemente do primeiro exemplar, que mime-
tizava a forma externa do monumento original, a nova instalação produzia uma
alteração na superfície da cópia. O Obelisco de Pan Dulce continha uma estrutura
de metal de 30 metros de altura, no formato já conhecido, e suas faces laterais
eram cobertas por um vasto número de sacos de pão. Em época próxima ao
Natal, o duplo do obelisco foi novamente tombado. Mas, diferentemente do que
ocorreu na Bienal, a obra deveria ser desfeita pelo público, ou melhor, consumida
pela população local, que podia retirar os pães e levá-los consigo. A performance
coletiva proposta por Minujín reiterava a derrubada do símbolo vertical. Dessa
vez, para tornar o monumento comestível – talvez como uma alusão à possibi-
lidade de devorar os cânones e jogar luz sobre questões silenciadas na época
da ditadura argentina, como o empobrecimento da população. Subvertendo a
forma e o sentido originais daquele obelisco, a artista colocou-o à disposição
das pessoas.
As intervenções de Minujín baseadas no Obelisco abriram caminho para
outros projetos de sua autoria que mantinham caráter público – quero dizer, que
remetem a marcos da paisagem urbana (material e idealizada), que promovem a
participação de moradores e passantes, excedendo tanto os limites dos espaços
museais quanto a semântica oficial, consagrada, dos monumentos. Posteriormente,
a artista enfocou outros grandes símbolos nacionais, incluindo monumentos
figurativos como a Estátua da Liberdade estadunidense (também projetada para
estar tombada junto ao solo) e a imagem de Carlos Gardel, que ardeu em chamas.
Em seu conjunto, os projetos de Minujín se tornaram um marco em seu país e
além, inspirando outros artistas e ativistas contemporâneos.
ae &E
Arte
os
nsai
Edilson Pereira 267
Figuras 5 e 6 Em 2015, foi a vez de o artista argentino Leandro Erlich produzir uma nova
Disponível em: https://www.
malba.org.ar/evento/la-de-
intervenção sobre o Obelisco. Com o apoio do Museo del Arte Latinoamericano
mocracia-del-simbolo/ de Buenos Aires, o Malba, Erlich criou A Democracia do Símbolo. A obra consistia
na alteração do topo do monumento, na avenida 9 de Julio, para dar a impressão
de que a sua ponta havia sido retirada ou cortada, configurando um novo tipo de
iconoclasmo (Taussig, 2012). A ponta – ou a cabeça – do monumento foi repli-
cada, na proporção original, e instalada na frente do Malba, podendo ser vista
mesmo por aqueles que não adentrassem o museu. Dividido em duas partes
assimétricas, a parte mais alta e até então inalcançável do obelisco passou a ficar
acessível ao toque humano. O emblema urbano e nacional foi reposicionado para
ae &E
Arte
os
nsai
Edilson Pereira 269
O contramonumento
6
A proposta de criação do Memorial às Vítimas do Holocausto do Rio ocorreu ainda nos anos
1990, por influência de representantes da comunidade judaica carioca. A execução do projeto,
porém, foi levada adiante somente na gestão municipal de Marcelo Crivella, bispo licenciado da
Igreja Universal do Reino de Deus (Iurd). Em seu mandato, Crivella manteve-se alinhado às posturas
da Igreja, replicando as ações de valorização cultural de símbolos do Antigo Testamento e de políticas
do Estado de Israel. A Iurd integra um setor neopentecostal sionista frequentemente alinhado às
pautas bolsonaristas (conf. Pereira, 2021).
ae &E
Arte
os
nsai
Edilson Pereira 271
7
No original: aesthetically skeptical of the assumptions underpinning traditional memorial forms.
8
No original: the limits of both their artistic media and the very notion of a memorial.
ae &E
Arte
os
nsai
Monumentos urbanos e arte pública: os obeliscos em rotação 272
Figuras 7
Disponível em: https://jochen-
gerz.eu/works/monument-a-
gainst-fascism
9
No original: We invite the citizens of Harburg, and visitors to the town, to add their names here to ours.
In doing so we commit ourselves to remain vigilant. As more and more names cover this 12 metre-high
lead column, it will gradually be lowered into the ground. One day it will have disappeared completely
and the site of the Harburg monument against fascism will be empty. In the long run, it is only we
ourselves who can stand up against injustice.
ae &E
Arte
os
nsai
Monumentos urbanos e arte pública: os obeliscos em rotação 274
complexo da própria experiência do fascismo, de como foi possível que ele tenha
existido da maneira como existiu, traduz-se na expressiva soma de quase 60 mil
inscrições (Gerz, Shalev-Gerz, s/d) que deram corpo ao contramonumento. Um
marco para a produção de memória coletiva que não existiria sem as pessoas e
suas marcas no artefato.
Assim como o conjunto de ações artísticas revisitadas neste ensaio, a
instalação contramonumental alarga o terreno político e conceitual em relação
aos marcos urbanos de caráter público, subvertendo a verticalidade de suas
aparências e ideologias centralizadoras. O conhecimento dessas intervenções
colabora, enfim, na expansão das possibilidades de endereçamento coletivo aos
monumentos e às histórias que eles exibem ou escondem. Essa é uma transfor-
mação do horizonte que pode ser alcançada com base em experiências que
valorizam contranarrativas e estéticas insubmissas, como as ações de arte
pública e artivismo que colocam os obeliscos em rotação, como formas simbólicas
em contínuo movimento.
Figuras 8
Disponível em: https://
journals.openedition.org/
imagesrevues/docannexe/
image/3466/img-19.jpg
Referências
BENJAMIN, Walter. Obras escolhidas (v. I): Magia e técnica, arte e política. São Paulo:
Brasiliense, 1994.
BENJAMIN, Walter. Obras escolhidas (v. II): Rua de mão única. São Paulo: Brasiliense, 1987.
BIENAL LATINO-AMERICANA DE SÃO PAULO, 1. Catálogo da exposição. São Paulo: Imprensa
Oficial, 1978. Versão digitalizada disponível em: http://www.bienal.org.br/publicacoes/7093.
Acesso em 19 maio 2021.
CIDADE, Daniela. 3Nós 3: arte e crítica política no quotidiano urbano. Gama, Lisboa, v. 5, n. 10,
p. 112-119, jul.-dez. 2017.
CIDADE DE SÃO PAULO. Largo da Memória, porta de entrada da São Paulo antiga, Coluna
Ladeira da Memória, São Paulo, 21 set. 2010. Disponível em: https://www.prefeitura.sp.gov.
br/cidade/secretarias/cultura/patrimonio_historico/ladeira_memoria/index.php?p=8289.
Acesso em 15 maio 2021.
CYMBALISTA, Renato. Os mártires e a cristianização do território na América portuguesa,
séculos XVI e XVII. Anais do Museu Paulista: História e Cultura Material, v. 18, n. 1,
p. 43-82, jun. 2010. Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttex-
t&pid=S0101-47142010000100003&lng=pt&nrm=iso. Acesso em 19 maio 2021.
DANZIGER, Leila. Jochen Gerz: o monumento como processo e mediação. Arte & Ensaios,
Rio de Janeiro, n. 21, p. 100-107, dez. 2010.
DEUTSCHE, Rosalyn. Agorafobia. Arte & Ensaios, Rio de Janeiro, n. 36, p. 116-73, 2018.
DEUTSCHE, Rosalyn. Public art and its uses. In: SENIE, Harriet; WEBSTER, Sally. Critical issues
in public art: content, context and controversy. New York: HapperCollins, 1992. p. 158-170.
FELSHIN, Nina. But is it art? The spirit of art as activism. Seatle: Bay Press, 1995.
FERRER, Christian. La democracia del símbolo por Leandro Erlich. Buenos Aires: Fundación
Eduardo F. Constantini, 2015.
FUNDAÇÃO BIBLIOTECA NACIONAL. O desmonte do Morro do Castelo, 27 maio 2020.
Disponível em: https://www.bn.gov.br/acontece/noticias/2020/05/desmonte-morro-castelo/.
Acesso em 10 mar. 2021
GERZ, Jochen; SHALEV-GERZ, Esther. Monument against fascism, s/d. Disponível em:
https://jochengerz.eu/works/monument-against-fascism/. Acesso em 10 abr. 2021.
KOPYTOFF, Igor. A biografia cultural das coisas: a mercantilização como processo. In:
APPADURAI, A. (org.). A vida social das coisas. Rio de Janeiro: Eduff, 2008. p. 89-121.
NORA, Pierre. Entre memória e história: a problemática dos lugares. Trad. Yara Aun
Khoury. Projeto História, São Paulo, v. 10, p. 7-28, 1993.
PEREIRA, Edilson. Do Holocausto à terra prometida: a criação de um memorial na paisagem
carioca. In: GIUMBELLI, Emerson; PEIXOTO, Fernanda Arêas. (org.). Arte e religião:
passagens, cruzamentos, embates. Brasília: ABA Publicações, 2021. p. 121-158.
PEREIRA, Edilson et al. Editorial: Religião, arte e cultura. Religião & Sociedade, v. 38,
n. 3, p 9-15, 2018. Disponível em: https://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttex-
t&pid=S0100-85872018000300009&tlng=pt. Acesso em 20 maio 2021.
RIEGL, Alois. O culto moderno dos monumentos: a sua essência e a sua origem. São Paulo:
Perspectiva, 2014.
SALGUEIRO, Valéria. De pedra e bronze: um estudo sobre monumentos: o monumento a
Benjamin Constant. Niterói: Eduff, 2008.
SAVAGE, Kirk. The Self-made monument: George Washington and the fight to erect a
national monument. Winterthur Portfolio, V. 22, N. 4, p. 225-242, 1987.
SELIGMANN-SILVA, Márcio. Antimonumentos: trabalho de memória e de resistência.
Psicologia USP, v. 27, n. 1, p. 49-60, 2016. Disponível em: https://www.scielo.br/pdf/
pusp/v27n1/1678-5177-pusp-27-01-00049.pdf. Acesso em 19 maio 2021.
SHALEV-GERZ, Esther. The perpetual movement of memory. Palestra proferida em 29
jan. 1999. Publicada pelo canal AA School of Architecture. Disponível em: https://www.
youtube.com/watch?v=YAZYnHeJGpI. Acesso em 10 mar. 2021.
SHALEV-GERZ, Esther. The monument against fascism, 1986. Disponível em: https://
www.shalev-gerz.net/portfolio/monument-against-fascism/. Acesso em 10 mar. 2021.
TAUSSIG, Michael. Iconoclasm dictionary. TDR: The Drama Review, New York, v. 56, n. 1,
p. 10-17, 2012.
TAUSSIG, Michael. Transgression. In: TAYLOR, M. (org.). Critical terms for religious studies.
Chicago: The University of Chicago Press, 1998.
TAUSSIG, Michael. Mimesis and alterity: a particular history of the senses. London/New
York: Routledge, 1993.
YOUNG, James E. The counter-monument: memory against itself in Germany today. Critical
Inquiry, v. 18, n. 2, p. 267-296, 1992.
Como citar:
PEREIRA, Edilson. Monumentos urbanos e arte pública: os obeliscos em rotação. Arte
& Ensaios, Rio de Janeiro, PPGAV-UFRJ, v. 27, n. 41, p. 251-278, jan.-jun. 2021.
ISSN-2448-3338. DOI: https://doi.org/10.37235/ae.n41.14. Disponível em: http://
revistas.ufrj.br/index.php/ae
ae
os
nsai
ARTIGO 279
&E
Arte
Resumo
Palavras-chave
Performance; Cidade; Fotoperformance;
Arquitetura e Urbanismo; Programa performativo.
Abstract
The present text is a project that transits between the fields of architecture, urbanism,
photography and performance. It consists of the composition of the (photo) performative
program of the work PERFORMANCE – EMPREENDIMENTOS [I]MOBILIÁRIOS,
which concludes the article and is thought, through these lines, from the experience
and images of corpo da arquitetura (2019), in relation to urban situations and
contemporary city issues, such as the precariousness of work in civil construction
and real estate speculation processes.
PPGAV/EBA/UFRJ Keywords
Rio de Janeiro, Brasil
Performance; City; Photoperformance;
ISSN: 2448-3338
DOI: 10.37235/ae.n41.15 Architecture and Urbanism; Performative program.
ae &E
Arte
os
nsai
Performance – empreendimentos [i]mobiliários 280
Figura 1
Bárbara Cabral, corpo da
arquitetura, 2019
Foto: Sofia Mussolin
1
Fotógrafa que cursava comigo a disciplina Práticas Performativas Contemporâneas, do PPGAC-UNIRIO
(2019), ministrada por Tania Alice, Marcos Bulhões e Marcelo Denny.
ae &E
Arte
os
nsai
Bárbara Silva da Veiga Cabral 281
Projeto Performance
2
“Conjunto de ações previamente estipuladas, claramente articuladas e conceitualmente polidas”, de
preferência com verbos no infinitivo (Fabião, 2013, p. 4).
3
In memoriam.
ae &E
Arte
os
nsai
Performance – empreendimentos [i]mobiliários 282
4
Sérgio Ferro (1979, 2006) realiza um trabalho crítico importante nesse sentido, sugerindo uma revisão
da relação entre projeto e canteiro de obras, por melhores condições trabalhistas e práticas colaborativas.
5
Conforme define Argan (1993) em uma palestra, as camadas ou estágios do projeto seriam: conheci-
mento histórico, análise, críticas, hipótese e imaginação.
ae &E
Arte
os
nsai
Bárbara Silva da Veiga Cabral 283
6
Fazer e agir, aqui, referem-se à diferenciação proposta por Hannah Arendt (2007) entre atividades de
produção ou fabricação (que, ligadas ao verbo fazer, almejam um fim preestabelecido e constituem obras
ou objetos) e práticas políticas (que, ligadas à esfera da ação, partem de iniciativas e têm por fim o próprio
processo, como nas artes efêmeras, como a dança e a performance).
7
Proposta que venho desenvolvendo em minha pesquisa de mestrado no âmbito do Programa de
Pós-graduação em Artes da Cena da UFRJ, com orientação de Elizabeth Jacob, coorientação de Caio
Riscado e previsão de conclusão em setembro de 2021.
ae &E
Arte
os
nsai
Performance – empreendimentos [i]mobiliários 284
Transformação
Figura 2
Bárbara Cabral, corpo da
arquitetura, 2019
Foto: Sofia Mussolin
ae &E
Arte
os
nsai
Bárbara Silva da Veiga Cabral 285
8
Grupo soteropolitano que compõe mesclando reggae e rock.
9
No cenário desses versos e por meio deles a praia resiste. Sabemos, no entanto, que, ainda que
sejam espaços públicos, conceber praias como lugares democráticos e de comum acesso e uso não
está dado. São muitas as tensões urbanas e construções socioeconômicas que orientam diferentes
modos de apropriação de quem a pratica cotidianamente e que incluem até mesmo privatizações não
oficiais por meio da ocupação do espaço.
ae &E
Arte
os
nsai
Performance – empreendimentos [i]mobiliários 286
Imóveis móveis
Figura 3
Bárbara Cabral, corpo da
arquitetura, 2019
Fotografia: Sofia Mussolin
10
Desenvolvo a ideia de que espaço é corpo com base na noção espinoziana de corpo, a partir da qual
Deleuze (2002, p. 132) afirma que “um corpo pode ser qualquer coisa”.
ae &E
Arte
os
nsai
Bárbara Silva da Veiga Cabral 287
11
Informações do minidocumentário Recife, cidade roubada (2014). Ver em: https://bit.ly/2U1hFte.
12
Esse movimento “contra” luta por um projeto que atenda aos interesses da população local. E,
como diria Argan (2000, p. 53): “Não se projeta nunca para, mas sempre contra alguém ou alguma
coisa: contra a especulação imobiliária e as leis ou as autoridades que a protegem, contra a explo-
ração do homem pelo homem, contra a mecanização da existência, contra a inércia do hábito e do
costume, contra tabus e a superstição, contra a agressão dos violentos, contra a adversidade das
forças naturais [...]. Projeta-se contra a pressão de um passado imodificável, para que sua força seja
impulso e não peso, senso de responsabilidade e não complexo de culpa. Projeta-se para algo que é,
para que mude [...] portanto, contra todo tipo de conservadorismo”.
13
O Globo. Linha do tempo de disputas do Novo Recife (mar./12-mar./19). Disponível em: https://
glo.bo/3b1y4Vz.Acesso em 7. jul. 2021.
ae &E
Arte
os
nsai
Bárbara Silva da Veiga Cabral 289
14
Ver mais em: https://bit.ly/3aWhdTT. Acesso em 7 jul. 2021.
15
O livro Contracondutas (Escola da Cidade, 2017) apresenta sérios casos de condição análoga à
escravidão em obras do Aeroporto de Guarulhos e elabora condutas político-pedagógicas alternativas.
ae &E
Arte
os
nsai
Performance – empreendimentos [i]mobiliários 290
Fotografia e performance
Figura 4
Bárbara Cabral, corpo da
arquitetura, 2019
Foto: Sofia Mussolin
16
A realização deste projeto é obra inviabilizada pela pandemia da covid-19. Estas linhas são, assim,
um acontecimento possível da performance. Falar de sua impossibilidade presencial e de sua
composição é, de algum modo, fazê-la presente nos corpos que se encontram com a escrita que
arrisco aqui. Performá-la.
ae &E
Arte
os
nsai
Performance – empreendimentos [i]mobiliários 292
Figura 5
Bárbara Cabral, corpo da
arquitetura, 2019
Foto: Sofia Mussolin
17
“Se a moldura é um resultado que é possível impor, o enquadramento, ao contrário, é um processo,
uma produção que expressa o sujeito em ato [...], uma iluminação das relações perceptivas entre um
sujeito e um objeto” (Féral, 2015, p. 94).
ae &E
Arte
os
nsai
Performance – empreendimentos [i]mobiliários 294
Figura 6
Bárbara Cabral, corpo da
arquitetura, 2019
Foto: Sofia Mussolin
18
É precisamente com essa atenção que são definidos os corpos humanos de PERFORMANCE –
EMPREENDIMENTOS [I]MOBILIÁRIOS – quem imobiliza quem, quem está em situação mais vulnerável
e quem, por meio de um dispositivo, enquadra quem – em termos de gênero, racialização e afetos.
Convidar pessoas não brancas para esse programa seria colocá-las, uma vez mais, em posição de subal-
ternidade, servindo ao trabalho de uma mulher branca que deseja performar, além de reafirmar situações
trabalhistas usuais na indústria de construção civil – a mão de obra de homens não brancos.
ae &E
Arte
os
nsai
Bárbara Silva da Veiga Cabral 295
Imagem e programa
Figura 7
PERFORMANCE – Rua
General Góis Monteiro,
125-195, 2020
Foto: Bárbara Cabral
com um nome e situação que apontaram caminhos para o projeto urbano que
compartilho agora. PERFORMANCE EMPREENDIMENTOS IMOBILIÁRIOS; a obra
em andamento.
Com a fotografia do sítio de projeto em mãos – e tudo que ela diz para
além das palavras destas linhas (sugiro, mais uma vez, a demora no olhar) – e
buscando expor processos e estruturas da cidade, concluo com a formalização,
enfim, deste programa (foto)performativo – destacando que imobilização
e fotografia foram incorporadas ao enunciado ao ser compreendidas também
como construção de corpo-cidade:
No Quadro de Horário fixado nos tapumes, fins de semana são dias de descanso, garantindo
19
Referências
ARENDT, Hannah. A condição humana. 10 ed. Rio de Janeiro: Editora Forense Universitária,
2007.
ARGAN, Giulio Carlo. Projeto e destino. São Paulo: Ática, 2000.
ARGAN, Giulio Carlo. A história da metodologia do projeto. Trad. José Eduardo Areias.
Caramelo, São Paulo, n. 6, p. 156-170, 1993. Disponível em: https://bit.ly/3xBzEJv.
ARGAN, Giulio Carlo. Brunelleschi. In: Clássico anticlássico: o Renascimento de Brunelleschi a
Bruegel. Rio de Janeiro: Companhia das Letras, 1984. p. 81-141.
AUSTIN, John Langshaw. Quando dizer é fazer: palavras e ação. Porto Alegre: Artes Médicas,
1990.
CARVALHO, Ernesto de et al. Recife, cidade roubada. 2014. Disponível em: https://www.
youtube.com/watch?v=dJY1XE2S9Pk.
COHEN, Renato. Performance como linguagem. São Paulo: Perspectiva, 2013.
DELEUZE, Gilles. Espinosa: filosofia prática. Trad. Daniel Lins e Fabien Pascal Lins. São Paulo:
Editora Escuta, 2002.
ENTRE (coordenação: Ana Altberg, Mariana Meneguetti, Gabriel Kozlowski). 8 reações para
o depois. Rio de Janeiro: Rio Books, 2019.
FABIÃO, Eleonora. Performance e teatro: poéticas e políticas da cena contemporânea. Sala
Preta, São Paulo, v. 8, p. 235-246, 2008.
FABIÃO, Eleonora. Programa performativo: o corpo-em-experiência. Ilinx − Revista do
LUME, v. 1, n. 4, p. 1-11, 2013.
FÉRAL, Josette. Além dos limites: teoria e prática do teatro. São Paulo: Perspectiva, 2015.
FERRO, Sérgio. Arquitetura e trabalho livre. São Paulo: Cosac & Naify, 2006.
Como citar:
CABRAL, Bárbara Silva da Veiga. Performance – empreendimentos [i]mobiliários.
Arte & Ensaios, Rio de Janeiro, PPGAV-UFRJ, v. 27, n. 41, p. 279-297. jan.-jun. 2021.
ISSN-2448-3338. DOI: https://doi.org/10.37235/ae.n41.15. Disponível em: http://
revistas.ufrj.br/index.php/ae
ae &E
Arte
os
nsai
ARTIGO 298
Luciano Vinhosa
0000-0001-8593-1223
lucianovinhosa@id.uff.br
Resumo
Abstract
In this essay, starting from the experimental short film Duelo, by Daniel Santiago, we
first ask ourselves what approximates and what differentiates performance when it
is presented in visual arts and theater circuits. Second, we speculate about the
differences and similarities between the performance of an actor in cinema and
that of a performer. After all, we conclude that, being neither theater nor cinema,
Duelo is filmed performance that participates in both instances.
PPGAV/EBA/UFRJ
Rio de Janeiro, Brasil Keywords
ISSN: 2448-3338
DOI: 10.37235/ae.n41.16 Duelo; Theater; Cinema; Performance.
ae &E
Arte
os
nsai
Luciano Vinhosa 299
Duelo
1
Embora o original seja em película, o filme foi digitalizado e disponibilizado no youtube: https://
www.youtube.com/watch?v=YY_2rnyQN9g.
ae &E
Arte
os
nsai
Luciano Vinhosa 301
2
Tomei conhecimento de Duelo na exposição Pernambuco Experimental, com curadoria de Paulo
Herkenhoff e Clarissa Diniz, apresentada no Museu de Arte do Rio (MAR) de 10 dezembro de 2013 a
30 março de 2014. Disponível em: http://museudeartedorio.org.br/programacao/pernambuco-experi-
mental/. Acesso em 19 mar. 2021.
ae &E
Arte
os
nsai
Nem teatro nem cinema: a performance no espaço de exclusão 302
3
O ensaio que apresenta o termo/conceito foi escrito por Donald Judd em 1963 e só publicado em
1965 em Arts Yearbook, 8 (Judd, 2006).
4
“Os neoconcretos, retomando a questão da forma significativa, que os concretistas abandonaram
voltados para puros problemas de estrutura e tensões cromáticas, rompem com o conceito tradi-
cional de quadro e de escultura e propõem uma linguagem efetivamente não figurativa, isto é, cuja
expressão dispensa um espaço metafórico para se realizar. A obra neoconcreta realiza-se diretamente
no espaço, sem apoios semânticos convencionados na moldura (para o quadro) e na base (para escultura)”
(Gullar, 1985, p. 250).
5
De fato, é atribuída a Cage a primeira apresentação, ocorrida em 1952 no Black Mountain College,
daquilo que Kaprow chamou mais tarde de happening, que teve a colaboração de Charles Olson, Robert
Rauchenberg, Merce Cunningham, David Tudor entre outros (Huyssen, 1997, p. 133).
ae &E
Arte
os
nsai
Nem teatro nem cinema: a performance no espaço de exclusão 304
6
Entendo que o projeto moderno, diante da assertiva da autonomia da arte, tem como pressuposto a
transformação do sujeito – e deste para a sociedade – desde a reformulação de suas representações de
mundo, o que um autor como Rancière (2009) destaca como potência emancipadora do regime estético.
ae &E
Arte
os
nsai
Nem teatro nem cinema: a performance no espaço de exclusão 306
7
No caso, o termo se opõe conceitualmente a multimídia, que indicaria uma soma de mídias (Huyssen,
1997, p. 140).
ae &E
Arte
os
nsai
Luciano Vinhosa 307
artes, ela não é, no entanto, nem uma coisa, nem outra. Se hoje a performance é
termo e prática difundidos, caracterizando-se pela transversalidade, a diluição das
fronteiras que separavam as diferentes artes apontou para uma entropia final.8
A própria ideia de uma arte performática, contudo, guarda em si uma contradição
que a preservou de sua derradeira dispersão, o que de fato veio a se confirmar
quando hoje reconhecemos a performance como uma categoria expressiva que
frequenta tanto o circuito das artes visuais como o da música, o da poesia e o
do teatro. Na oportunidade, no entanto, gostaria de aqui retraçar brevemente os
caminhos de seu entendimento e sua prática nas artes visuais e no teatro, e de
como, não sendo nem uma coisa, nem outra, a performance vai incorporar
problemas estéticos diferentes segundo o circuito em que é apresentada e levada
a contento. Com certeza, o fato de, desde suas primeiras manifestações, ela se
caracterizar por ação coordenada no tempo e no espaço e, em alguns casos,
incorporar mesmo algum tipo de narrativa, ainda que gestual, a religa ao teatro e
à mise-en-scène do cinema, problema sobre o qual inicialmente nos propusemos
a refletir e ponto ao qual pretendemos chegar ao cabo deste ensaio.
Josette Féral (2008, p. 197), ao definir o que chama de teatro performativo,
parte das distinções conceituais de dois termos, performance e performatividade,
cujas noções o acarretariam. A autora nos ensina que, em sua origem, o emprego
da expressão nas teorias e práticas do teatro está ligado tanto, em sentido amplo,
a sua acepção antropológica quanto, em uso restrito, a sua inscrição no âmbito
exclusivo das expressões artísticas. Antes mesmo de as teorias especificamente
artísticas se adensarem nos anos 1980, sociólogos americanos, como Erwin
Goffman (1973), anteciparam o argumento de que a performatividade está
difundida, de alguma forma, no campo social, abrangendo um vasto número de
atividades do domínio da cultura e do trabalho, e, a princípio, em toda situação
que nos exige desempenho e interação social. O sujeito performante não
seria diferente daquele que o autor chama de ator social, o qual na vida cotidiana
enfatiza seus atos, encenando-os em gestos culturalmente codificados, frequen-
temente enquadrados em certos cenários em que eles surtem efeitos para um
8
Ao alertar para a desordem que o apagamento das fronteiras introduz nas estruturas tradicionais das
artes, Adorno se serve da expressão Verfransung Künste justamente para se referir a um certo estado de
entropia (Huyssen, 1997, p. 141).
ae &E
Arte
os
nsai
Nem teatro nem cinema: a performance no espaço de exclusão 308
público interlocutor. Féral (2008) nos chama a atenção para essa compreensão
antropológica que estará no cerne dos estudos e prática da performance teatral
desenvolvidos nos Estados Unidos, sobretudo aqueles de Richard Schechner, o
autor que, ao defini-la, inclui um vasto número de práticas, desde rituais
religiosos, passando por festas populares até o desempenho de um atleta.
Performance nesse sentido é igual a performatividade, uma certa desenvoltura
que operamos em nossas práticas cotidianas, mas que envolvem um repertório
de gestos passível de ser observado e reencenado como prática teatral. Segundo
esse autor, a performance, sendo uma ação em curso, implica três operações
fundamentais expressas nos verbos ser/estar; fazer; mostrar ou dar-se em
espetáculo. Por este último aspecto, quando a ação é apresentada para uma
audiência – formalizada ou não, subentendida ou de fato –, a performance, em
seu sentido amplo, encontra-se com os parâmetros da arte. Por esse viés ela é
compreendida em sua instância estrita, a qual envolve um certo reencenar em
situação extraordinária e pontual para um público, de modo que aqueles mesmos
gestos banais possam surtir um certo efeito de separação e descontinuidade,
ainda que inscritos no curso da vida. Em outras palavras, possam ter eficácia
artística ao funcionar como um evento excepcional. Seria essa a compreensão
de performance em Andreas Huyssen que, em sua acepção exclusiva, iria preva-
lecer em alguns países da Europa, notadamente na França, e no Canadá (Féral,
2008, p. 200).
Se, para as concepções rigorosas de arte moderna que prevaleceram nos
anos 1950 nos Estados Unidos, a degenerescência estava naquilo que Michael
Fried (1990) identificou como teatralidade nas artes visuais,9 o teatro, em
contrapartida, pôde beneficiar-se da performance ao privilegiar o ator performer,
que executa uma ação em lugar de dramatizá-la, a descrição cênica em detri-
mento da representação de personagens, a predileção da imagem ao texto, ao
exercer o repúdio a qualquer tipo de ilusão e fazer apelo efetivo à interação direta
com o público. Todos esses aspectos reunidos, integrando hoje praticamente
toda encenação contemporânea, inscrevem-se no que Josette Féral qualifica de
9
O autor a observa a partir de uma certa presença do objeto no espaço do espectador, a qual promove um
estado de contingência que reconhece a priori uma plateia genérica para quem se encena (Fried, 1990).
ae &E
Arte
os
nsai
Luciano Vinhosa 309
em circuitos diferentes dos de origem. Dos anos 1990 aos dias de hoje, assistimos
também à migração do cinema, originalmente produzido para ser exibido em salas
escuras e que agora apresenta-se com frequência em espaços museológicos ou
em galerias de arte, assumindo formas, em geral, instalativas e/ou videográficas.
Na passagem e troca de lugares, essas expressões acabam por conformar-se à
produção discursiva e crítica do circuito que as acolhe. De algum modo, porém,
esse deslocamento, em contrapartida, força uma inflexão nos objetos e nas
teorias que permeiam ambos os discursos – na ocorrência de nosso debate,
cinema e artes visuais.
10
Nos referimos mais acima às teorias críticas de Michael Fried, discípulo de Clement Greenberg, crítico
norte-americano influente no meio artístico dos anos 1950, muito conhecido por suas teorias que
afirmavam as singularidades de cada meio artístico. Sabemos também que Adorno via a dispersão
das artes com um certo mal-estar.
ae &E
Arte
os
nsai
Luciano Vinhosa 311
Concluindo
mesmo interesse comum nas regiões de suas interseções. De fato, os atores não
atuam propriamente, antes executam uma ação sem a dramatizar. Podemos dizer
mesmo que as imagens a descrevem. Diante do filme estamos realmente diante
de um certo jogo de câmera que se constrói em uma mise-en-scène que parodia
os westerns americanos. Por outro lado, porém, a ação não está de modo algum
absorvida por qualquer núcleo narrativo fechado e circunspecto. Ao contrário,
ela se abre e se constrói com o público ao mesmo tempo em que este se
reconhece como partícipe. As imagens, como foram pensadas, fazem com que
o espectador integre diretamente a ação e entre no jogo da representação,
aquilo que se entende, no teatro e na performance, por presença. A forte
sensação de que estamos participando do jogo está no triângulo interativo que
estabelece, em Duelo, a troca incessante de lugares entre o público e os atores.
Dessa forma, assistir a Duelo, é também, a cada vez que o fazemos, performar
com ele. Nem teatro, nem cinema, Duelo pode ser pensado como performance
filmada porque, ao se colocar entre um e outro, participa simultaneamente das
duas instâncias quando surpreendida em suas regiões de contato. Prática parti-
lhada com o teatro, o cinema e as artes visuais, e mesmo com outras artes, a
performance, dependendo do circuito em que se apresenta, pode ser assimilada
aos debates dessa tradição de forma a agregar aí contribuições críticas em
alargamento dos horizontes teóricos.
Referências
CLARK, Lygia. Lygia Clark. Rio de Janeiro: Funarte, 1980 (Arte Brasileira Contemporânea).
JUDD, Donald. Objetos específicos. In: FERREIRA, Glória; COTRIM, Cecilia (org.). Escritos
de artistas anos 60/70. Rio de Janeiro: Zahar, 2006
KAPROW, Allan [1959]. O legado de Jackson Pollock. In: FERREIRA, Glória; COTRIM, Cecilia
(org.). Escritos de artistas anos 60/70. Rio de Janeiro: Zahar, 2006, p. 37-45.
KRAUSS, Rosalind. Caminhos da escultura moderna. São Paulo: Martins Fontes, 1998.
OLIVEIRA JR., Luiz Carlos. A mise en scène no cinema: do clássico ao cinema de fluxo.
Campinas: Papirus, 2013.
Como citar:
VINHOSA, Luciano. Nem teatro nem cinema: a performance no espaço de exclusão.
Arte & Ensaios, Rio de Janeiro, PPGAV-UFRJ, v. 27, n. 41, p. 298-314, jan.-jun.
2021. ISSN-2448-3338. DOI: https://doi.org/10.37235/ae.n41.16. Disponível em:
http://revistas.ufrj.br/index.php/ae
ae
os
nsai
ARTIGO 315
&E
Arte
Resumo
O corpo, o lugar, o imaginário constituem três núcleos de interrogações na
prática artística de Anna Bella Geiger cujo gesto crítico consiste em salientar
as passagens e imperfeições nos sistemas de representação, desestabilizando
esquemas simbólicos em prol das imagens e suas transformações. Os três
núcleos não formam polos estanques ou fases. Interpenetram-se, comunicam-se,
contaminam-se por força das passagens, da circulação, da transmissão que
corrói as formas e as aparências, quer camuflando, esquecendo ou substituindo
representações, quer cruzando as fronteiras dos enquadramentos, das convenções,
dos esquemas normativos. As “situações” de Anna Bella Geiger ajudam a
compreender outra modalidade da participação do espectador.
Palavras-chave
O corpo na arte; Cartografias artísticas; Arte contemporânea.
Abstract
The body, the place, the imaginary constitute three cores of interrogations in the artistic
practice of Anna Bella Geiger whose critical gesture consists of highlighting passages and
imperfections in the systems of representation, destabilizing symbolic schemes in favor
of images and their transformations. The three cores do not form watertight poles
or phases. They interpenetrate, communicate, become contaminated by means of
passages, circulation, transmission that erodes shapes and appearances, whether
by camouflaging, forgetting or replacing representations, or by crossing boundaries of
framings, conventions or normative schemes. Anna Bella Geiger’s “situations” helps
PPGAV/EBA/UFRJ us understand another modality of the spectator’s participation.
Rio de Janeiro, Brasil
Keywords
ISSN: 2448-3338
DOI: 10.37235/ae.n41.17 The body in art; Artistic cartography; Contemporary art.
ae &E
Arte
os
nsai
As “situações” gráficas de Anna Bella Geiger e o livre jogo das transfigurações 316
Em 1972, no filme Abertura I, Barrio registra sua ação de abrir uma garrafa
de Coca-Cola como se estoura um espumante, imagem irônica da comemoração
que enfrentava o contexto de violência do governo militar. No ano seguinte, o
artista, realizou a fotografia Des Compressão ...... CompressõesDes. Não mais
ironia, mas elaboração dos limites do corpo e de sua relação com o mundo
exterior. E dois anos depois, Letícia Parente fez o vídeo Marca registrada (1975)
com o qual questionava o lugar da arte, sua relação com o baixo, o rasteiro, o vulgar
da esfera do comércio. Esses trabalhos são representativos de um momento em
que o corpo é desdobrado por imagens técnicas (Matesco, 2016, p. 129-181).1
Segundo certas avaliações dessa prática conhecida no contexto interna-
cional como fotografia (ou vídeo) conceitual, a informação e o documento das
situações e ações do corpo oscilavam entre o analógico e o tautológico (Verhagen,
2008). No contexto brasileiro, a experiência do corpo desdobrado na imagem
nunca foi considerada por sua dimensão tautológica. A tautologia teve status de
proposição artística no desdobramento que Joseph Kosuth efetuou das ideias
provenientes do minimalismo e sintetizadas na expressão de Frank Stella, “você
vê o que você vê” (Stella, Judd, 2006, p. 237). Não houve essa negação dos
sentidos semânticos, formais e estéticos nas práticas conceituais dos artistas
brasileiros como Anna Bella, Artur Barrio, Antonio Manuel e Cildo Meirelles. Em
relação ao primeiro nome dessa lista, Jaremtchuk (2007, p. 19) afirma: “A rejeição
de Kosuth à subjetividade, à história e ao simbólico não se efetiva na produção de
Anna Bella Geiger”. O corpo cotidiano desdobrado serviu a Geiger, como a outros
artistas dos anos 1970, para elaborar a materialidade vulnerável e incerta de
toda forma, semelhança precária cuja força consiste em sua própria imperfeição,
pobreza, deficiência.
A fotografia (ou o vídeo) que desdobra ações do corpo foi procedimento
utilizado por Anna Bella ao longo de sua trajetória até os anos 2000. Em Arte e
decoração (2003), Geiger aparece sentada em salas diferenciadas pela deco-
ração para questionar as semelhanças e diferenças de dois sistemas estéticos
1
O termo corpo desdobrado é usado por Viviane Matesco ao tratar da série de desenhos Ethers, de
Tunga.]
ae &E
Arte
os
nsai
As “situações” gráficas de Anna Bella Geiger e o livre jogo das transfigurações 320
distintos. No mesmo ano, a artista realiza a fotomontagem Mona Lisa para a qual
posa na postura da personagem de Leonardo da Vinci contra a paisagem de uma
favela do Rio de Janeiro segurando um folheto com seu próprio nome. O trabalho
interroga sobre o lugar da arte.
Após as experiências de desdobramento do próprio corpo individual em
Passagens, a artista realiza a fotomontagem Brasil nativo/Brasil alienígena, de
1977. Aqui não há mais um corpo, mas corpos. Com efeito, dois grupos de corpos
espelhados, duas perspectivas. A artista e suas filhas replicam ações cotidianas
de indígenas representados em cartões-postais. O trabalho questiona o exotismo
da alteridade, o modo de marcar a diferença do outro para construir uma corpo-
ralidade hegemônica, particularmente efetuada pelos sistemas de represen-
tação turísticas no Brasil da ditadura militar. Os cartões-postais dissimulavam,
por meio do exotismo, a violência e o genocídio que permitiram a construção da
Transamazônica. O corpo na imagem não prolonga a experiência tautológica tal
como pretendiam certos artistas conceituais no Norte. A imagem desdobra o
corpo, mas despistando, dissimulando e até danificando sua forma, sua figura.
Camouflage (fotos, 1980) desfaz a figura humana, a forma evidente do corpo,
para a substituir pela incerteza das manchas e dos borrões.
Figura 1 O vídeo e a fotomontagem Passagens pertencem ao ciclo de trabalhos
Anna Bella Geiger Situações-limite que inclui, ainda, um conjunto homônimo de quatro outras
Camouflage, 1980,
fotografia
montagens. O termo “situações” era frequente nos anos 1970 para referir-se
Foto: Noni Geiger a trabalhos envolvendo ações do corpo do artista em presença no ambiente
ae &E
Arte
os
nsai
Luiz Cláudio da Costa 321
2
Viviane Matesco (2016, p. 50) esclarece que as situações de Barrio diferenciavam do que entenderíamos
mais tarde como performance, pois envolviam o corpo do artista, mas “os espectadores ou transeuntes
não veem jamais a figura do artista trabalhando”.
ae &E
Arte
os
nsai
As “situações” gráficas de Anna Bella Geiger e o livre jogo das transfigurações 322
Figura 4
Anna Bella Geiger
Entre dois hemisférios, 1993
série Arte y Naturaleza,
fotosserigrafia e colagem
de folha de ouro
ae &E
Arte
os
nsai
As “situações” gráficas de Anna Bella Geiger e o livre jogo das transfigurações 328
Últimas considerações
Referências
DOCTORS, Márcio. A emergência da imagem. In: NAVAS, Adolfo Motejo (org.). Anna
Bella Geiger: territórios, passagens, situações. Rio de Janeiro: Casa da Palavra/Anima
Produções Culturais, 2007. p. 174-175.
GEIGER, Anna Bella. Poéticas da artista. In: NAVAS, Adolfo Motejo (org.). Anna Bella
Geiger: territórios, passagens, situações. Rio de Janeiro: Casa da Palavra/Anima Produções
Culturais, 2007b. p. 135.
JAREMTCHUK, Dária. Anna Bella Geiger: passagens conceituais. São Paulo/ Belo Horizonte:
Editora da Universidade de São Paulo/C/Arte, 2007.
ae &E
Arte
os
nsai
As “situações” gráficas de Anna Bella Geiger e o livre jogo das transfigurações 330
MORAIS, Frederico. Artes plásticas: a crise da hora atual. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1975.
NAVAS, Adolfo Motejo. Uma poética em arquipélago (aproximações). In: NAVAS, Adolfo
Motejo (org.). Anna Bella Geiger: territórios, passagens, situações. Rio de Janeiro: Casa
da Palavra/Anima Produções Culturais, 2007. p. 16-42.
OITICICA, Hélio et al. Hélio Oiticica. Rotterdam/Rio de Janeiro: Witte de With, 1992 (Catálogo).
PEDROSA. Mário. Anna Bella Geiger. In: NAVAS, Adolfo Motejo (org.). Anna Bella Geiger:
territórios, passagens, situações. Rio de Janeiro: Casa da Palavra/Anima Produções
Culturais, 2007. p. 155.
STELLA, Frank. JUDD, Donald. Questões para Stella e Judd. In: FERREIRA, Glória;
COTRIM, Cecilia (org.). Escritos de artistas: anos 60/70. Rio de Janeiro: Jorge Zahar,
2006. p. 122-138.
Como citar:
COSTA, Luiz Cláudio da. As “situações” gráficas de Anna Bella Geiger e o livre
jogo das transfigurações. Arte & Ensaios, Rio de Janeiro, PPGAV-UFRJ, v. 27, n. 41,
p. 315-330, jan.-jun. 2021. ISSN-2448-3338. DOI: https://doi.org/10.37235/
ae.n41.17. Disponível em: http://revistas.ufrj.br/index.php/ae
ae
os
nsai
ARTIGO 331
&E
Arte
Resumo
A filósofa Otília Arantes nomeou O ponto de vista latino-americano o corpus crítico de
Mário Pedrosa produzido após o desterro chileno, durante o governo de Salvador Allende
(1970-1973). Nesse conjunto de textos, observa-se a recuperação de tradições que não
haviam sido capturadas pela historiografia oficial, como as práticas e os saberes oriundos
da cultura popular e indígena. Essa interpretação pode ser identificada em obras como
Discurso aos Tupiniquins ou Nambás e Teses para o Terceiro Mundo, nas quais o crítico se
amparou em um repertório terceiro-mundista partilhado no exílio. O autor exaltou uma
leitura ancorada na inversão geopolítica, a qual localizou nos países situados ao sul
uma fagulha revolucionária capaz de deflagrar a almejada transformação social e econô-
mica. Essas obras-manifesto sintetizaram praticamente todo o discurso crítico, político e
museológico que Pedrosa sustentou ao voltar para o Brasil, em 1977.
Palavras-chave
Exílio; Terceiro Mundo; Arte latino-americana; Mário Pedrosa; Arte popular.
Abstract
The philosopher Otília Arantes named The critical corpus of Mário Pedrosa produced after the
Chilean exile during the Salvador Allende government (1970-1973) from The Latin American
Spot. In this set of texts, there is a recovery of traditions that had not been captured by official
historiography, such as the practices and knowledge derived from popular and indigenous culture.
This interpretation can be identified in works such as Speech to the Tupiniquins or Nambás and
Theses for the Third World, in which the critic relied on a shared Third World repertoire in exile.
The critic praised a reading anchored in the geopolitical inversion, which located in the countries
located to the south a revolutionary spark capable of triggering the desired social and economic
transformation. These manifesto works synthesized practically all the critical, political and
PPGAV/EBA/UFRJ
museological discourse that the author sustained when he returned to Brazil in 1977.
Rio de Janeiro, Brasil
ISSN: 2448-3338
Keywords
DOI: 10.37235/ae.n41.18 Exile; Third world; Latin American art; Mário Pedrosa; Popular art.
ae &E
Arte
os
nsai
“Aqui está a opção do Terceiro Mundo: um futuro aberto ou a miséria eterna”.
Reflexões sobre a obra tardia de Mário Pedrosa
332
1
Artigo apresentado no I Colóquio Internacional de Historia del Arte, que discutiu o tema Dicotomía entre
Arte Culto y Arte Popular, na cidade de Zacatecas, em 1975. Posteriormente, as apresentações foram
publicadas no livro Dicotomía entre arte culto y arte popular: Colóquio Internacional de Zacatecas. México,
DF: Universidad Autónoma de México, 1979.
2
Expressão criada por Alfred Sauvy, em 1952.
ae &E
Arte
os
nsai
“Aqui está a opção do Terceiro Mundo: um futuro aberto ou a miséria eterna”.
Reflexões sobre a obra tardia de Mário Pedrosa
334
3
Faz-se necessário diferenciar os termos descolonização, utilizado neste artigo para se referir aos processos
de independência dos países asiáticos e africanos das metrópoles colonizadoras, a partir da década de 1950,
do pensamento pós-colonial, um programa teórico oriundo dos estudos culturais e literários elaborados em
universidades norte-americanas e europeias, após os anos 1980. Por sua vez, as interpretações decoloniais
podem ser compreendidas como uma importante contribuição teórica realizada por um grupo de intelectuais
latino-americanos que conduziram “um movimento epistemológico fundamental para a renovação crítica e
utópica das ciências sociais na América Latina no século 21: a radicalização do argumento pós-colonial no
continente por meio da noção de ‘giro decolonial’” (Ballestrin, 2013, p. 89). O grupo Modernidade/
Colonialidade, formado no final da década de 1990, é central para o aprofundamento e divulgação
dessa nova interpretação crítica que defendeu, segundo a socióloga Luciana Ballestrin (2013, p. 89),
a “‘opção decolonial’ – epistêmica, teórica e política – para compreender e atuar no mundo, marcado pela
permanência da colonialidade global nos diferentes níveis da vida pessoal e coletiva”.
ae &E
Arte
os
nsai
Luiza Mader Paladino 335
distribuição política, impondo fim aos antigos impérios coloniais. Esse conjunto
de nações passou a ser denominado Terceiro Mundo, e a pauta reivindicatória
tinha por foco a superação do subdesenvolvimento econômico, resultante da
condição periférica e da exploração colonialista e imperialista. Sem dúvidas
os movimentos de descolonização africana, a Revolução Cubana e a resistência
vietnamita foram marcos essenciais para o fortalecimento das ideologias
terceiro-mundistas (Gilman, 2003, p. 45).
Esses princípios se aproximavam da via socialista chilena proposta por
Allende, que defendeu uma política autônoma de não alinhamento e a imposição
da soberania das nações periféricas frente ao imperialismo norte-americano
(Ferrero, 2008, p. 217). A teórica argentina Claudia Gilman (2003, p. 41)
apontou que as expectativas sobre o poder de alcance revolucionário do Terceiro
Mundo se renovaram, alterando a perspectiva eurocêntrica ou ocidentalista
por um viés policêntrico.
Durante o exílio, nota-se se uma radicalização na leitura crítica sobre
o modelo eurocêntrico de arte e sociedade, que Pedrosa procurou expandir,
inserindo relatos de culturas periféricas, com foco no repertório terceiro-mundista.
Embora tenha ocorrido uma inflexão em seu pensamento, é possível observar um
conjunto de ideias coesas defendidas ao longo de seu itinerário crítico, desde a
década de 1940, quando vislumbrou a necessidade vital da arte, ao acolher
a produção artística dos pacientes do Engenho de Dentro.
Nesse contexto anterior, o autor interpretou as imagens do inconsciente
dos pacientes psiquiátricos fora da chave ocidental, localizando-as a partir
da perspectiva da alteridade. Kaira Cabañas (2017, p. 76) demonstrou que
esse interesse pela arte virgem foi “um gesto que lhe permitiu sair dos espaços
artísticos da elite e acessar um manicômio nos arredores do Rio”. Esse gesto é
análogo à noção de solidariedade e, nesse sentido, é também um ato polí-
tico. A dimensão política aqui não tem qualquer pretensão partidária, mas
assemelha-se a uma postura “ética, humanista e libertária” (Pedrosa, Trelles,
1972, p. 8), tal como foi apresentado o Museu da Solidariedade, sob a direção
do autor.
ae &E
Arte
os
nsai
“Aqui está a opção do Terceiro Mundo: um futuro aberto ou a miséria eterna”.
Reflexões sobre a obra tardia de Mário Pedrosa
336
4
Mário Pedrosa morre aos 81 anos. Folha de S. Paulo, São Paulo, 6 nov. 1981. Arquivo do Centro de
Documentação e Memória (Cedem) da Unesp. Fundo Mário Pedrosa.
5
Pedrosa conheceu Dore Ashton no congresso da Aica, em Varsóvia, em 1960. Posteriormente, o crítico
convidou a norte-americana para integrar o Comitê Internacional de Solidariedade ao Chile (Cisac), do
Museu da Solidariedade, entidade dirigida pelo brasileiro. Dore Ashton foi uma das integrantes mais ativas
do Comitê, angariando obras importantes para o Museu.
6
Carta de Mário Pedrosa a Dore Ashton. Sem data (Provavelmente redigida em 1975). Arquivo Museu da
Solidariedade Salvador Allende.
ae &E
Arte
os
nsai
Luiza Mader Paladino 337
Figura 1
Carta de Mário Pedrosa
a Dore Ashton, sem data
(provavelmente redigida
em 1975)
Fonte: Arquivo Museu da
Solidariedade Salvador
Allende
ae &E
Arte
os
nsai
“Aqui está a opção do Terceiro Mundo: um futuro aberto ou a miséria eterna”.
Reflexões sobre a obra tardia de Mário Pedrosa
338
7
Samir Amin, então diretor do Instituto Africano de Desenvolvimento Econômico e Planejamento,
ligado às Nações Unidas, respondeu à carta de dezembro de 1975, enviada por Pedrosa junto a um
manuscrito das Teses para o Terceiro Mundo (cf. Carta de Mário Pedrosa a Samir Amin. 5 de dezembro
de 1975. Arquivo do Centro de Documentação e Memória (Cedem) da Unesp. Fundo Mário Pedrosa). O
economista egípcio escrevera: “Estou segurando sua carta de 5 de dezembro de 1975 há um ano! Eu
sempre propus vê-lo em Paris, mas fiz visitas muito breves à capital. [...]. Enquanto espero para vê-lo,
ainda gostaria de compartilhar brevemente minhas reações ao trabalho que você me enviou. Em geral,
concordo totalmente com a visão da importância da revolta no Terceiro Mundo” (Carta de Samir Amin
a Mário Pedrosa. 17 de janeiro de 1977. Arquivo do Centro de Documentação e Memória (Cedem) da
Unesp. Fundo Mário Pedrosa).
ae &E
Arte
os
nsai
“Aqui está a opção do Terceiro Mundo: um futuro aberto ou a miséria eterna”.
Reflexões sobre a obra tardia de Mário Pedrosa
340
8
Carta de Hélio Pellegrino a Mário Pedrosa. 18 de maio de 1972. Arquivo do Centro de Documentação
e Memória (Cedem) da Unesp. Fundo Mário Pedrosa.
ae &E
Arte
os
nsai
“Aqui está a opção do Terceiro Mundo: um futuro aberto ou a miséria eterna”.
Reflexões sobre a obra tardia de Mário Pedrosa
342
9
O autor se referiu especificamente às obras Discurso aos Tupiniquins ou Nambás (1976) e Variações
sem tema ou a arte de retaguarda (1978).
ae &E
Arte
os
nsai
Luiza Mader Paladino 343
10
Essa edição foi organizada com base na publicação de textos originais seguidos de comentários de
outros autores. Aracy Amaral escreveu sobre o Grupo Etsedron, e o crítico peruano Juan Acha, em
seguida, respondeu ao texto da brasileira com o comentário “Etsedron: resposta a Aracy Amaral. Por
Juan Acha”. Outro exemplo foi o artigo “Resposta a uma pergunta: quando se torna latino-americana
a arte na América Latina?”, de Damián Bayón, com ponderações de Jorge Romero Brest e Rita Eder.
ae &E
Arte
os
nsai
“Aqui está a opção do Terceiro Mundo: um futuro aberto ou a miséria eterna”.
Reflexões sobre a obra tardia de Mário Pedrosa
344
Discurso, uma breve avaliação sobre o artigo, elaborada pelo crítico e historiador
de arte mexicano Jorge Alberto Manrique.
Manrique interpretou a obra de Pedrosa apoiando-se em um conjunto de
reflexões sobre a natureza e as particularidades da arte latino-americana
perante a conjuntura internacional. As características da arte continental partiam
de duas premissas distintas: a primeira se embasou no argumento de que a
arte latino-americana era atrasada em relação aos grandes centros e, portanto,
deveria se recuperar em compasso com as estéticas exportadas pelos países
metropolitanos. Já o segundo eixo defendeu a autonomia da arte latino-ameri-
cana, cujos valores deveriam ser expressos de acordo com a realidade regional.
Segundo Manrique, somente a insubordinação ao sistema artístico hegemônico
propiciaria, aos níveis artístico e conceitual, um lugar de emancipação. O crítico
mexicano localizou o Discurso na tese sustentada pelo segundo eixo:
11
O texto citado encontra-se datilografado no Arquivo Multimeios/CCSP, sem qualquer referência ao
número da página.
ae &E
Arte
os
nsai
Luiza Mader Paladino 345
Esse trecho de Ángel Rama é central para trazer à tona o ambiente favorável
de trocas e, especialmente, para demonstrar o interesse pelo continente
latino-americano como um campo relevante de estudo. Ademais, reforça a
proposição do exílio chileno como local privilegiado de contatos com uma vertente
plural de formulações teóricas. É pertinente localizar a produção textual de Mário
Pedrosa nesse contexto, pois examiná-la isoladamente impede a observação
dos microrrelatos por detrás dos discursos defendidos nas obras e propostas
museológicas no final da década de 1970, período que coincidiu com a volta de
muitos exilados para o Brasil.
Por fim, é fundamental esclarecer que a mudança de rota ou a guinada
demonstrada em relatos e textos após o retorno ao Brasil não se apresentou
como uma completa ruptura teórica e intelectual. Ao contrário, há um fluxo
coerente que transitou em toda a obra de Pedrosa, assim como nas batalhas
estéticas e políticas tuteladas ao longo de sua vida. Esse entendimento abrangeu,
desde o final dos anos 1940, noções estéticas frequentemente apartadas da
sociedade, como a arte dos pacientes do hospital psiquiátrico do Engenho de
Dentro e as experiências artísticas realizadas por crianças, distantes dos
modelos acadêmicos. Posteriormente, Pedrosa incluiu em seu itinerário crítico
a valorização da cultura popular, após acompanhar de perto as cooperativas
autogestionáveis de artesanato no Chile, durante o governo Allende. Igualmente
essenciais foram as contribuições das artes indígenas, africanas12 e demais
produções realizadas pelos povos “danados da terra” do Terceiro Mundo, nas
quais vislumbrou uma forma latente de potencial revolucionário e esforço de
inventividade autêntica.
12
Mário Pedrosa participou do 28o Congresso da Aica, em 1976, em Portugal, cujo tema foi Arte
moderna e arte negro-africana: relações recíprocas. A reunião organizada pela delegação portuguesa
da Aica foi simbólica, pois ocorreu dois anos após o término do regime autoritário salazarista, repre-
sentando, portanto, o triunfo da democracia no país. Essa nova condição política certamente impactou
a escolha da temática do congresso, destinado a debater as influências mútuas entre a arte moderna
de raiz ocidental e a arte realizada em países africanos. Indubitavelmente, o ponto central do evento,
o elo entre a arte africana e a arte ocidental, encaminhado do ponto de vista antropológico, bem como
a inserção no debate de autores fora da órbita canônica de produção de conhecimento, catalisou as
reflexões que Pedrosa vinha delineando desde a sua passagem pelo Chile.
ae &E
Arte
os
nsai
Luiza Mader Paladino 347
Referências
ALLENDE, Salvador. América Latina, voz de un pueblo continente: discursos del presidente
Allende en sus giras por Argentina, Ecuador, Colombia y Perú. Santiago: Consejería de
Difusíon de la Presidencia de la República, 1971.
ARANTES, Otília. Mário Pedrosa e a tradição crítica. In: MARQUES NETO, José Castilho.
Mário Pedrosa e o Brasil. São Paulo: Editora Perseu Abramo, 2001.
BALLESTRIN, Luciana. América Latina e o giro decolonial. Revista Brasileira de Ciência
Política, Brasília, n. 11, p. 89-117, maio-ago. 2013.
CABAÑAS, Kaira. Una voluntad de configuración: el arte virgen. In: PÉREZ-BARREIRO,
Gabriel; SOMMER, Michelle (org.) Mário Pedrosa: de la naturaleza afectiva de la forma.
Madrid: Museo Nacional Centro de Arte Reina Sofía, 2017.
FERRERO, Mariano. Salvador Allende: su mundo, su época – la política internacional
del siglo XX y sus encrucijadas en la Guerra Fría. In: AMAR, Mauricio; VÁSQUEZ, David;
RIVERA, Felipe (org.). Salvador Allende: vida política y parlamentaria – 1908-1973.
Santiago: Ediciones Biblioteca del Congreso Nacional de Chile, 2008.
FREIRE, Paulo. Pedagogia da esperança: um reencontro com a pedagogia do oprimido.
Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1992.
GILMAN, Claudia. Entre la pluma y el fusil: debates y dilemas del escritor revolucionario
en América Latina. Buenos Aires: Siglo XXI Editores, 2003.
GUIMARÃES, Antonio Sérgio Alfredo. A recepção de Fanon no Brasil e a identidade negra.
Novos Estudos Cebrap, n. 81, p. 99-104, jul. 2008.
IANNI, Octavio. Imperialismo na América Latina. Rio de Janeiro: Editora Civilização
Brasileira, 1974.
KAREPOVS, Dainis. Pas de politique, Mariô!: Mário Pedrosa e a política. São Paulo: Fundação
Perseu Abramo, 2017.
MAMMÌ, Lorenzo (org.). Arte e ensaios: Mário Pedrosa. São Paulo: Cosac Naify, 2015.
MARTINS, Luciano. A utopia como modo de vida. In: MARQUES NETO, José Castilho.
Mário Pedrosa e o Brasil. São Paulo: Editora Perseu Abramo, 2001.
PEDROSA, Mário. Política das artes: Mário Pedrosa. Textos escolhidos I. Organização e
prefácio de Otília Arantes. São Paulo: Edusp, 1995.
PEDROSA, Mário. A arte não é fundamental. A profissão do intelectual é ser revolucionário.
Pasquim, Rio de Janeiro, ano XIII, n. 646, 12-18 nov. 1981. Arquivo do Centro de
Documentação e Memória (Cedem) da Unesp. Fundo Mário Pedrosa.
PEDROSA, Mário. Teses para o Terceiro Mundo. In: SILVEIRA, Ênio et al. (org.). Encontros
com a Civilização Brasileira. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1978.
ae &E
Arte
os
nsai
“Aqui está a opção do Terceiro Mundo: um futuro aberto ou a miséria eterna”.
Reflexões sobre a obra tardia de Mário Pedrosa
348
PEDROSA, Mário; TRELLES, Danilo. Declaración. In: Museo de la Solidaridad: donación de los
artistas del mundo al gobierno de Chile. Santiago: Comité Internacional de Solidaridad Artistica
con Chile, Instituto de Arte Latinoamericano, Universidad de Chile, 1972. (Catálogo de exposição.)
RAMA, Angel. La riesgosa navegación del escritor exiliado. Nueva Sociedad, n. 35, mar.-abr. 1978.
ROLLEMBERG, Denise. Exílio entre raízes e radares. Rio de Janeiro: Editora Record, 1999.
STELLWEG, Carla. Juan Acha, artes visuales y la I Bienal Latinoamericana de São Paulo.
In: BARRIENDOS, Joaquín (org.). Juan Acha: despertar revolucionario. Ciudad de México:
RM/MUAC/Zamboni, 2017.
WASSERMAN, Claudia. Transição ao socialismo e transição democrática: exilados
brasileiros no Chile. História Unisinos, v. 16, n. 1, jan.-abr. 2012.
Fontes primárias
Como citar:
PALADINO, Luiza Mader. “Aqui está a opção do Terceiro Mundo: um futuro aberto
ou a miséria eterna”. Reflexões sobre a obra tardia de Mário Pedrosa. Arte &
Ensaios, Rio de Janeiro, PPGAV-UFRJ, v. 27, n. 41, p. 331-348, jan.-jun. 2021.
ISSN-2448-3338. DOI: https://doi.org/10.37235/ae.n41.18. Disponível em:
http://revistas.ufrj.br/index.php/ae
ae &E
Arte
os
nsai
349
&E
Arte
Michael Asbury
0000-0002-2205-0063
The British art critic Guy Brett has become a standard reference in Brazil
through his writing on and friendship with artists such as Sergio Camargo, Lygia
Clark, Hélio Oiticica, Mira Schendel during the 1960s and later with Cildo Meireles,
Antonio Manuel, Lygia Pape, Jac Leirner, Waltercio Caldas and so many others.
While these artists have come, to a large extent, to define how contemporary art
is understood nationally, Guy’s contribution helped weave their creative outputs
within a larger art historical narrative, helping inscribe them, even if still only
partially, within the hegemonic and institutional canons. Yet, it would be limiting
to consider Guy’s relevance through this single, albeit important, perspective.
This article, not so much an essay but a series of annotated quotes, seeks to shed
light on Guy’s own intellectual trajectory, focusing on the particular way he came to
articulate, through his writing and curation, the art that he was interested in. What
actually interested him ranged from the singular subjective experience with the
art object to its wider relation with the world. When referring to that which bridged
such diverse approaches to art, Guy often invoked the idea of cosmic energies,
field forces, sometimes in a literal sense such as in the case of electromagnetic
force in the work of the Greek artist Takis, at other times more metaphorically.
Such invocations whether referring to ancient cosmologies, millennial knowledges
or scientific thought, never attempted to determine or impose his own perspective
upon others or imply any sense of superiority of one type of art over another. In
Guy’s own understanding, the universal seemed antithetical to the way it is usually
prescribed within the history of modernism. Indeed, Guy never had a problem
with modernism itself but with the narrow constraints with which it has been
considered. His criticism was directed primarily towards how modernism has
been historicised and instrumentalised within the institutional structures of art.
PPGAV/EBA/UFRJ
Rio de Janeiro, Brasil Keywords
ISSN: 2448-3338
DOI: 10.37235/ae.n41.19 Guy Brett; Kinetic Art; Signals Gallery; Art Criticism; Decolonising.
ae &E
Arte
os
nsai
Beyond Brazil: remembering Guy Brett through his own eyes 352
Guy Brett’s approach as an art critic turned curator was perhaps made
most powerfully in his exhibition Field Forces: phases of the kinetic, which
he described as “a device for sensitisation” in which the “phenomenon of the
visual is immersed in the phenomenon of energy” (Brett, 2000, p. 9). Possibly
his most art historical project, Field Forces exemplified with curatorial brilliance
how limited standard accounts of modern art really are. For Guy such accounts
remain suspicious both in terms of their narrow aesthetic/formal apprehensions
of avant-garde practices and their Euro-American bias. As such, and in so many
other ways, his writing remains not only relevant to contemporary debates but
fundamental as a stepping-stone towards a greater depth and sensibility in
considering the relation between art and the wider social-political sphere. In
short, and as Guy himself claimed, his was a form of writing that both reacted
and responded to the relationship between art and life, irrespective of national,
cultural, ethnic, gender and sexuality boundaries.
The task at hand, of course, far exceeds the limitations afforded by these
few pages and should not be seen as a replacement to the full texts themselves.
Instead, I prefer to think of this as a preview, one that encourages the reader
to seek further reading.1 There is little here in terms of his writing about the
artists themselves, which, shameful as that may be, would imply a selection,
and thus a reduction, of Guy’s scope as an art critic. An exception perhaps is
Guy’s writing on David Medalla, which acts here as a form of projection to Guy’s
own trajectory, given the close friendship and general outlook both held and to
a large extent shared.
To my knowledge three anthologies of Guy’s writing were compiled during
his lifetime. The first, Carnival of perception was published in London by inIVA
in 2004, the following year Katia Maciel edited a selection of Guy’s writing on
Brazilian artists entitled Brasil experimental, published in Rio de Janeiro by
N-Imagem and Contracapa. Most recently, a further collection of essays entitled
The crossing of innumerable paths’ by Ridinghouse in London, came out in 2019.
Even when combined these still represent only a fraction of his overall body of work.
1
For a biographical overview of Guy’s life, see: Brett (2007: 206-237).
ae &E
Arte
os
nsai
Michael Asbury 353
Kinetic art, the book, was of course informed by what had possibly been
Guy’s most significant formative experience, his collaboration with Signals
Gallery in London, which operated from 1964 until its abrupt closure in 1966.
While Metzger and Salvatori, together with Guy and photographer Clay
Perry had collaborated with Keller and Medalla from the start, it is also striking
how attached to the group many of the invited exhibiting artists became. Sergio
Camargo for instance was responsible of guiding Guy’s and Keller’s attention to
several other Brazilian artists such as Oiticica and Mira Schendel while Li Yuan-chia,
after coming from Italy to exhibit at Signals, never returned, deciding to stay in
London and later moving to Cumbria in the north of England.
Because what happened in the 1960s was that London did become
a magnet for people from all over the world, and people arrived here
with different sorts of notions of freedom − well, let’s say different kinds
of behaviour − which could be very liberating in one sense and very
hidebound in another area… so I thought all these different degrees and
types of freedom and types of conditioning are all mixing up together
and complementing one another. You always have this conflict of
opposites, and I tend to interpret people’s work often in terms of this
conflict of opposites.2
2
British Library, Hester R. Westley interviewed Guy Brett for the National Life Stories Project Artists’ Lives
in 2007-2008. https://blogs.bl.uk/sound-and-vision/2021/04/guy-brett-ideas-in-motion.html (accessed
on 22/04/2021)
ae &E
Arte
os
nsai
Beyond Brazil: remembering Guy Brett through his own eyes 356
My reaction to Takis work was immediate and deep, and has remained
so until today. His art represents for me the human, and humane,
possibilities that exist within energy. As Carl Jung once expressed it:
‘The psyche is made up of processes whose energy springs from
the equilibrium of all kinds of opposites.’ He might have added that this
equilibrium includes a fusion between the fields of science and art. Both
are driven by a sense of wonder (Brett, 2019, p. 17).
When Signals opened, Guy had recently been appointed art critic to The
Times and so his frequent contributions to Signals Newsbulletin were often signed
under pseudonyms. Sometimes this fact would reveal the bluffs of journalists
and fellow art critics, such as the case in which Jaime Mauricio – an otherwise
serious Brazilian art critic – reviewing the press reception of Camargo’s Signals
exhibition, described Gerald Turner (one of Guy’s pseudonyms) as the ‘renowned
art critic’ while adding that even the ‘usually stern’ Times newspaper had positive
things to say about the show.3
It was through kineticism and Signals, that Guy became aware of the
inherent bias within the institutional framing of art, particularly that constructed
around the notion of the ‘national’:
3
I mention the incident in an article on Sergio Camargo, see: Asbury, 2020.
ae &E
Arte
os
nsai
Michael Asbury 357
It is of course to Guy’s credit that, already at a very young age he did not
equate Medalla’s knowledge of the Western literary canon with any sense of its
inherent superiority. Over the course of his lifetime Guy would find in so many
ae &E
Arte
os
nsai
Beyond Brazil: remembering Guy Brett through his own eyes 358
artists’ works from across the world a similar sense of wonder and sophistication.
A sense of wonder and openness towards other cultures has been a constant
characteristic of Guy’s writing from early on.
Medalla’s role, during the Signals years, in establishing connections across
the avant-gardes in Europe and beyond cannot be underestimated. Medalla’s
own personality and the particular circumstances to which he was submitted to
as a Filipino national, were crucial in this respect:
I soon realised [David] was dividing his time between England and
France. As soon as the stay allowed on his English visa expired, he
would go to France and when his French visa expired, return to England.
Expiring and renewed visas have been a permanent feature of David’s
life. […] The apparently incongruous circumstances of our meeting were
a foretaste of the way Medalla has, throughout his life, made his own
connections and artistic manifestations, often far from routine channels
of the art world, and how, with all his intimate knowledge of English
culture, he has fostered an internationalism in England which has gone
far beyond the narrow, nationalist priorities of the official British art
establishment (Brett, 1995, p.13).
Adding that:
I’m not talking about a diversity of set forms of cultural difference (on
the model of ‘ethnic arts’), but a creative process whereby the new
appears out of a meeting, in particular conditions, of the local with the
global, the way in which London, in this instance, became the crucible
of a possible new culture (Brett, 1993, p. 123).
sense, Guy continued to take care – the original meaning of the verb ‘curate’
– of the legacies of so many artists throughout his lifetime. Reflecting on this
relationship between the artists and the critic, Guy stated in the introduction to
Carnival of perception:
4
Babilonests were bed-like constructions that Oiticica had first conceptualised in Rio de Janeiro
with the Bed-Bólide and the concept of Barracão. Oiticica later elaborated these ideas during his
residency at the University of Sussex in 1969, and exhibited them as an interactive installation as
in his contribution to Kynaston McShine’s Information exhibition at MoMA in 1970.
ae &E
Arte
os
nsai
Beyond Brazil: remembering Guy Brett through his own eyes 360
In 1966 Signals’ backer (Paul Keller’s father, Charles Keller) withdrew his
support and the gallery went into liquidation. Mr Keller charged financial
incompetence; Medalla, that Paul Keller’s father, a businessman, had
strongly disapproved of his, Medalla’s, publication in Signals Newsbulletin
of Lewis Mumford’s 1965 address to the American Academy of Arts and
Letters. Mumford had used this prestigious occasion to criticise publicly
the American involvement in Vietnam, and Signals also published
American poet Robert Lowell’s letter declining an invitation to the
Whitehouse for the same reason. […] Like that of later groups Medalla
formed, the ending was a painful shock to all concerned. There were
several exhibitions in preparation and Medalla had a mass of material
for future issues of the magazine. But at this distance it is impossible not
to be struck by the logic of the metamorphosis of Signals, 1964-66, into
The Exploding Galaxy, 1967-69, Artists’ Liberation Front, 1970-74, and
Artists for Democracy, 1974-77. Each group corresponded precisely to its
period and to those great underlying cultural and historical changes which
touched in some way almost everyone on the planet (Brett, 1995, p. 67).
catalogue essays such as that for Soto at the Marlborough Gallery in 1969, and
that same year, his role in securing Oiticica’s Whitechapel exhibition and his
contribution to its catalogue.
Oiticica’s Whitechapel exhibition received varied press coverage. One
particular review invoked Shakespeare’s Richard the II, transforming the passage
“this other Eden, demi-paradise” which referred to England into “This Other
and Unnecessary Eden”. The headline thus manages in a single line to assert
a classical nationalist trope and dismiss the “exotic other”. This outstanding
example of British snobbery within art criticism only highlights how detached
Guy was from a journalistic theme that unfortunately survives to this day (Mullins,
4 March, 1969).
A sense of the broadening range of interests is revealed in Guy’s themes in
his articles for The Times over that transitory and turbulent period:
“Naum Gabo: Space is Not Outside Us”, (15 March 1966); “The Gadfly
of Modern Art − Marcel Duchamp”, (14 June 1966); “Photomontages of
John Heartfield”, (16 Sept 1967); “Van Gogh in the Fields”, (15 Oct 1967);
“Cool State of the Word”, (30 Dec 1967); “The Invisible Works of
Modern Art”, (2 April 1968); “Tuba on Fire”, (15 Feb 1969); “Ways of
Pointing a Camera”, (22 April 1969); “When Attitudes Become Form”,
(30 Aug 1969); “Gentle Man of Iron” (Julio Gonzalez), (10 Nov 1970);
“Waste of the World”, (25 March 1971); “500 Years after Durer”, (17
May 1971); “Moholy-Nagy and the Whole Man”, (3 July 1971); “At
the Feet of Gaudi”, (17 Aug 1971); “Tantra: New Vistas of Meditation
and Self-knowledge”, (23 Oct 1971); “Francis Bacon in Paris”, (27
Oct 1971); “Calderara’s World of Stillness”, (2 Nov 1971); “Hogarth’s
Progress”, (2 Dec 1971); “Blake, Blake, Burning Bright”, (8 Dec 1971);
“Eugene Atget, Parisian and Photographer”, (21 Dec 1971); “Centenary
Exhibition of Mondrian”, (22 June 1972); “Takis Sows the Magnetic
Fields”, (3 Oct 1972); “Islamic Carpets as Ideograms of Plenty”, (25
Oct 1972); “The Needle’s Eye”, (23 Jan 1973); “Videotape as an Art
Medium”, (6 March 1973).
While the subjects on the list above show a continued interest in kineticism
and its art historical sources – European constructivism, de Stijl, Marcel Duchamp,
which much later would form the basis of exhibitions such as Force Fields – they
ae &E
Arte
os
nsai
Beyond Brazil: remembering Guy Brett through his own eyes 362
also demonstrate an increasing focus on the art of other parts of the world
together with a burgeoning interest in popular forms of expression. After being
somewhat disassociated from the hippy commune-like activities of Medalla and
The Exploding Galaxy group, a new approximation took place between the two
as the 1970s dawned, while the relation between art and science was slowly
replaced or, perhaps more precisely, overlayed by one between art and politics:
Guy’s father, Lionel Brett, had been a modernist town planner and
architect. Having been involved in the post-war reconstruction of Britain, he later
travelled lecturing around the world including a tour of Latin America. Following
his visit to Chile, the Allende government had commissioned him to work on
a planning project in Santiago – a project that of course never took place due
to the military coup of 1973. It is not surprising therefore that upon assuming
as rector of the Royal College of Art, he allowed the premises to be used for
an AFD exhibition and auction of works donated by artists around the world in
support of those suffering under the authoritarian regime.5 An AFD “cultural
centre” was later opened in a squat at 143 Whitfield Street, and remained active
until 1977. Parallels, in strategy at least, with the Museum of Solidarity, which
Mario Pedrosa organised in Santiago, while being himself in exile from Brazil’s
military regime, might not be only coincidental. Pedrosa had been in London for
Oiticica’s Whitechapel show in 1969. Guy’s personal archive also contains letters
5
Lord Esher, Lionel Brett, interview, oral histories, architects lives, British Library, tape n.8.
https://sounds.bl.uk/Oral-history/Architects-Lives/021M-C0467X0014XX-1000V0 (accessed 22/04/2021).
ae &E
Arte
os
nsai
Michael Asbury 363
This new political impetus had been very much reflected in Medalla’s
and Dugger’s “Maoist” pavilion at the 1972 Documenta 5, curated by Harald
Szeemann. Recalling that period two decades later, Guy would state that:
The mid-1990s may not be the best moment to look again dispassionately
at a movement in the 1970s in which many people were caught up
(myself included). The photos of Medalla and Dugger in their Mao
Jackets, and the rhetoric of Medalla’s polemics, which imitated
Marxist-Leninist state discourse down to the smallest mannerisms and
turns of phrase (although his analysis was usually sane and intelligent),
give a dated air to an incontestable conviction: that the legacy of
colonialism in the Third World could only be effectively challenged by
the national liberation movements (Brett, 1995, p. 85).
6
His latest collection of essays The Crossing of Innumerable Paths begins with an epigraph by Pedrosa:
“So life is greater than the rules”.
ae &E
Arte
os
nsai
Beyond Brazil: remembering Guy Brett through his own eyes 364
forget the state after a good harvest (by Liu Jui-chao). The project had taken Guy
to China for the original research, a rare feat for a Western art critic during the
1970s. Guy’s overt “‘political phase” continued throughout the 1970s, when
he published between 1975 and 1976, several articles for China Now along
similar themes, such as “Spare-time Artworkers”, “Lu Hsun and the Woodcut
Movement”, and “A Challenge to Artists”, (on Mao Tse-tung’s philosophy of art).
According to his wife, Alejandra Altamirano (herself a Chilean political exile, and
the daughter of Carlos Altamirano, a senator and general secretary of the Chilean
Socialist Party during Allende’s presidency) such radicalisation had cost Guy his
job at The Times in 1974.7
7
Alejandra Altamirano Brett, telephone conversation with Michael Asbury, March 2021.
8
Alejandra Altamirano Brett, telephone conversation with Michael Asbury, March 2021.
ae &E
Arte
os
nsai
Michael Asbury 365
insights drawn from the research on Shaba and popular painting, also published
in Through our own eyes, retain a stronger contemporary relevance:
The term ‘African art’ is intimately connected with the history of Europe’s
colonial relationship with Africa. […] Therefore, an acute awareness of
conditions and changes of social reality, and an African view of history,
are necessary part of the whole process of decolonization (Brett, 1986,
p. 83-84).
His involvement with the Artist for Democracy group had brought to his
attention the work of the Arpilleras, groups of poor women in the outskirts of
Santiago, claiming that: “In conditions of great insecurity and hardship, groups
of Chilean women have sewn thousands of patchwork pictures showing the
realities of life under the military dictatorship which seized power in the coup of
1973” (Brett, 1986, p. 29).
Trauma re-emerges as the subject in another essay in Through our own
eyes, where Guy discusses the visual representations created by witnesses to the
horrendous bombing of Hiroshima: “In a way, the crux of this whole experience is
a very finely balance between remembering and forgetting. What the individual
would rather forget […] the species must remember” (Brett, 1986, p. 120).
The book’s final essay, on the “protest art” of the Greenham Common
Women’s Peace Camp for nuclear disarmament, follows through the argument,
concluding that: “After looking at the Hiroshima pictures it is hardly necessary
to ask why the nuclear bomb should be the focus of fears reaching down to the
depths of the psyche” (Brett, 1986, p. 131).
Other than the subject itself, what seems interesting here, in terms of
this overview of Guy’s writing trajectory, is the associations he establishes
between “popular” visual expressions of protest and avant-garde art. It is as if
he is attempting to salvage the radicality of the latter as opposed to claiming
the aesthetic value of the former. This seems crucial to me as a way in which to
understand Guy’s own view of the human creative potential:
The scientific discoveries which led up to the splitting of the atom and
the making of Bomb were the same ones which changed our whole
view of matter and energy, discoveries echoed throughout modern
culture. In the visual arts, for example, artists went through a parallel
ae &E
Arte
os
nsai
Beyond Brazil: remembering Guy Brett through his own eyes 366
that eventually drove him away from the narrow constraints of the “orthodox left”
ideological discourse, moving into a more critical “decolonial” stance towards
British chauvinism in the arts. I see his contributions towards emerging feminist
and post-colonial publications such as in “Patchwork Pictures from Chile”, Spare
Rib, in September 1977, and “Cultural Colonialism: a Discussion”, in Black
Phoenix, in the Spring of 1979, as evidence of this stance. The latter is particularly
significant, as it suggests that he was already in touch with the journal’s editor,
Rasheed Araeen.
Araeen had proposed that same year an exhibition to the Hayward
Gallery on under-represented work by black and Asian artists living in Britain.
Although the proposal was initially rejected (as “being not the right time for
such a show”), the exhibition did take place ten years later when a wave of
surveys of non-EuroAmerican art seemed to hit the scene all at once – one is
somehow reminded of Guy’s notes on fads. From 1987 Black Phoenix became
the journal Third Text and Guy a regular contributor from its first issue, writing
on that occasion on the work of Lygia Clark (Brett, 1987).
The year 1989 has become understood historically as a turning point in
world politics as well as in the arts. In the wider political sphere it marked by the
collapse of the Soviet Block, its most powerful symbolic representation, being
perhaps the televised images of the fall of the Berlin Wall. This event, endlessly
repeated as an image of the changing times, encouraged some to speculate
on the possibility that Western liberal democracies had achieved their rightful
destiny, an idea epitomised by Francis Fukuyama’s 1992 notion of the end of
history. With the benefit of hindsight, it seems clear to us, today, that rather than
an end, 1989, brought a new, rather terrifying beginning, one that has very much
defined the way in which the 21st century has progressed so far. The invention
of the World Wide Web by Tim Berners-Lee in 1989, the release of Nelson
Mandela only a few months later in February 1990, the collapse of the Soviet
Union signalling the return of Russian troops from their ten year occupation of
Afghanistan, these are just a few examples of events that still very much affect
our present condition.
Within the field of contemporary art, 1989 has also become understood
as being pivotal, and we find Guy engaged in some of its most significant events.
With his contribution to Dawn Ades’ exhibition Art in Latin America, Guy had
ae &E
Arte
os
nsai
Beyond Brazil: remembering Guy Brett through his own eyes 368
remained somewhat frustrated with the fact that the art showcased from across
that continent did not follow through into the contemporary.
People have begun to talk of a ‘boom’ in Latin American art such as has
existed for some time for Latin American Literature, at least for certain
writers. A number of ‘Latin American’ exhibitions have taken place in
museums in Europe and the United States in the past two or three years,
including a major survey at the Hayward Gallery, London in 1989. The
role which international power politics, money and fashion play in these
changes, and how durable they are, could be the subject of a thoughtful
analysis (Latin Americans are familiar with booms and busts). Up to now,
the interest has been mainly in historical art and important contemporary
artists are still largely underrepresented in European and North American
museums. To make these artists more visible and known must be good,
but cultural booms and fashion do not change the fundamental divisions
and inequalities in the world. These are expressed, among other things,
in difference of cultural infrastructure and therefore in the possibility of
producing art (Brett, 1990, p. 5).
relation to the hegemonic history of Pop art. It is undeniable that he saw not only
a parallel with how the activities of Signals were remembered but also the need
to revendicate both aesthetic and theoretical concepts arising from its inherent
internationalism:
His target, one that stubbornly remained throughout his life as a writer,
was the establishment, its nationalist bias, its lack of curiosity and its propensity
to follow trends, in short, to submit itself to fads. Still in his essay in The Other
Story, he makes this clear by stating that:
9
I never had the chance to ask Guy what he thought about having his essay in The Other Story, reprinted
in the lavish catalogue published by Sotheby’s on the occasion of their exhibition remembering Signals.
ae &E
Arte
os
nsai
Beyond Brazil: remembering Guy Brett through his own eyes 370
begins his essay by bluntly stating that: “What strikes one about the connection
Brazilian artists, and Brazilians working in art, have with Britain since the 1950s
is its almost completely unofficial character” (Brett, 1991, p. 47).
Perhaps Guy’s most outspoken criticism over the course of 1989, came
in the form of the questioning of the concepts behind Jean-Hubert Martin’s
exhibition Magiciens de la Terre, in the form of an article entitled “Earth and
Museum – Local and Global?” which I will quote here extensively:
The title of the proposed Paris exhibition, as one of the few pieces of
information available in advance, inevitably made one ask oneself: who
is speaking, and to whom?
Magiciens. To describe any Western artist today as a magician (Picasso,
say) would probably be found only in advertising copy. In current art
discourse it would be considered trite, paradoxically a dis-empowering
word that would weaken the relationship between the aesthetic and the
social dimensions in an artist’s practice. ‘Magician’ appears in the title
as a way of cementing links which the exhibition apparently intends to
make between metropolitan artists and those working in the religious
contexts in certain African, Asian, and Latin American societies. But
in doing so the term rebounds, and inexorably reveals its nature as a
‘primitivist projection’.
De la Terre. In its close association with Magician as a message/massage
of evocative words, the word ‘land’ (terre) has obviously been used here
with a double meaning: terre as the physical substance, signifying the
elemental, the basic; and terre as the world, the planet. But as these
two meanings begin to diverge, the one standing for the concrete, the
particular, the local (or in art-language the ‘site specific’), the other for
a general concept of totality, of overview – a gulf appears between two
different kinds of experience. The first associates terre with a desperate
struggle, a ‘land-rights’ struggle, either to regain appropriated land or
simply for a place to live, a place from which to speak, and the second is
detatched: the terre of priviledge, of power, which with every passing day
seems to become more abstract, mobile, and in fact harder to ‘localise’.
The terms move quickly to a polarized antithesis. At one end of the scale
is the experiences of peoples who traditionally have ‘a concept of self
as an integral part of the social body whose history and knowledge
ae &E
Arte
os
nsai
Michael Asbury 371
10
Note from original text: Jean Fisher, Jimmy Durham, ‘The ground has been covered’, Artforum, Summer,
(1988:102).
11
Note from original text: Jean Baudrillard, ‘The Ecstasy of Communication’. In: Hal Foster (ed.). Postmodern
Culture. London: Pluto Press, 1985: 128-129.
ae &E
Arte
os
nsai
Beyond Brazil: remembering Guy Brett through his own eyes 372
‘Our culture is being glorified by the same people who are doing the
damage to the Native people in our area.’12 The oil companies are deeply
implicated in the local, but their appeal is to the general, universal space
of ‘culture’ which corresponds to their own abstract and global power.
The Native Americans on the other hand have to move from the universal
to the local: from our celebration of the artefacts as masterpieces of
‘world art’ to what is actually happening in their territory. Naturally the
big corporations show their ‘dependency’ – on an artistic vitality and
beauty they could not produce themselves and to which their logo is
quite superfluous and marginal. But they have clearly realized that they
can make use of the way our culture creates an aesthetic centred on
the object and its contemplation, isolated from the rest of reality.13 Their
real power lies in the narrow specialization they count on in their public:
our refusal to take responsibility for the whole. We begin to read the
verbal message of the Calgary’s exhibition’s title, not as uplifting, but as
almost sinister: a sign that they are being duped.
In this process the colonized group, and the metropolitan exhibition
goer, are in fact both duped by the same corporate power which, as
it grows, integrates the production plant, the museum, the state and
the media in a single hegemony (the underlying meaning of ‘corporate
sponsorship of the arts’). The treat of this power at a local level, as well
as its ever-widening circles, can be vividly felt in an illuminating short
book by Eric Michaels about the efforts of an aboriginal group in central
Australia – the Warlpiri – to set up a local TV station.14 The Warlpiri were
implicated not only in a power struggle – to transmit autonomously
their own programmes in the face of the official national media – but
also a cultural struggle, to articulate ‘aboriginalities’ to the standardized
12
Note from original text: Quoted in last issue Alberta, Autumn, 1987.
13
Note from original text: It is revealing to see that CANAL+, one of the sponsors of Magiciens de la
Terre, despite the rhetoric of the ‘abolition of all frontiers’, can still, in its promotion material, remain
webbed to a distinctly Western bourgeois concept of art: ‘A tous ses abonnés, CANAL+ a choisi de dédier
ce plasir unique qui s’attache à la possession des objects d’art et leur offrir cette jouissance extreme
que naît de leur contemplation’.
14
Note from original text: Eric Michaels, For a Cultural Future – Francis Jupurrurla Kelly makes TV
at Yuendumu, Art and Criticism Monograph Series, Vol. 3, Melbourne: Artspace, 1987.
ae &E
Arte
os
nsai
Michael Asbury 373
15
Note from original text: Ibid. p.49.
16
Note from original text: Ibid. p.71.
ae &E
Arte
os
nsai
Beyond Brazil: remembering Guy Brett through his own eyes 374
This fact, I think, has not been lost on a number of artists of the avant-garde
in the last 20 years. Their explorations of the ‘relationship between cultures’
(one of the stated themes of the Paris exhibit) has been inseparable from
an attack on the inherited bourgeois concept of art (which is so entwined
with the modern forms of colonialism and oppressive power). Whether
the Paris exhibit will bring such work to light, or will treat the whole subject
as an ‘instant’ phenomenon, remains to be seen. It is important to grasp
the historical moment and social context of its first appearance, and the
problematics in which it intervened. Not that we are merely talking here
about points in a debate, or about single issues. The characteristic of art
is to search for complexity and depth of metaphor (Brett, 1989, p.89-91).
This search for ‘complexity and depth of metaphor’, guided Guy’s writing
through the following decades. As can be noted in the excerpt above, his
approach served to untangled terminology that, more often than not, would be
employed as given, as an unquestionable fact. In the essay on Maria Theresa
Alves installation Nowhere, a reference to the original Greek term ‘Utopia’, made
famous by Thomas More’s 1516 book, Guy responds to the following statement
made by the artist: ‘Utopias perhaps cannot serve as models since they are very
specifically drawn up. They are not enough to allow for the possible potentialities
that humans require in a model.’ Guy concludes that:
From the 1990s Guy would consolidate his writing, within the British
context, on artists such as Mona Hatoum, Susan Hiller, Rose Finn-Kelcey and
Cornelia Parker, while collaborating with a number of institutions on curating large
retrospective exhibitions of artists he had long been engaged with. Many of these
larger projects took place in continental Europe rather than London, fuelling his
critique of British institutional snobbery. These included curating work on major
exhibitions such as: Hélio Oiticica, an itinerant retrospective that travelled from the
ae &E
Arte
os
nsai
Michael Asbury 375
Witte de With, in Rotterdam, to the Jeu de Paume, in Paris, the Fundacion Antoni
Tapies, in Barcelona, and the Calouste Gulbenkian Foundation, in Lisbon, between
1992 and 1993; and Out of Actions: Between Performance and the Object, where
he advised curator: Paul Schimmel at MOCA, in Los Angeles, in 1998.
Concurrently several essays were commissioned for exhibition catalogues
across Europe and the United States, including: “Propos sur Takis”, in Takis, at
the Jeu de Paume, in Paris, 1993; Sergio Camargo, at the Calouste Gulbenkian
Foundation, in Lisbon, 1994; “Equilibrium and Polarity”, Victor Grippo, at the
Ikon Gallery Birmingham and Palais des Beaux-Arts, Brussels, 1995; “The
Amorphous Us”, Derek Boshier, at The Contemporary Arts Museum, in Houston,
1995; “The Proposal of Lygia Clark” Inside the Visible, an elliptical traverse of
20th century art: in, of, and from the feminine, for MIT Press and ICA, Boston, in
1996; “The Museum of Space-Time” (‘El Museo de Espacio-Tiempo’), Remota
− Eugenio Dittborn, at the Museo de Bellas Artes, Santiago de Chile, and The
New Museum, in New York, 1996; “Brevity and Toil” (‘Brevedad y Faena’), Rainer
Krause: Paisajes Marginales/ Las Listas, at the Museum de Bellas Artes, Santiago
de Chile, 1996; “David Medalla”, Life/Live, ARC – at Musée d’Art Moderne de la
Ville de Paris, 1996; “Everything Simultaneously Present”, Tunga: 1977-1997,
at Bard College, New York, 1997 and; “Lygia Clark: Six Cells”, Lygia Clark, at
Fundació Antoni Tapies, Barcelona, 1997, amongst many others.
If the lists above demonstrate Guy’s significant international standing
as an art critic, to a great extent, it was only from the year 2000, perhaps due
to the opening of Tate Modern and its international emphasis on modern and
contemporary art, that Guy, while still remaining independent, began to be more
frequently invited to contribute and curate exhibitions at a major UK institution.
His collaboration with inIVA, founded in 1994, under the chairmanship of Stuart
Hall and direction of Gilane Tawadros is too extensive to be included here, but
also constitutes another aspect of his support towards opening the British
cultural establishment to a more diverse and international set of art practitioners,
whether they were based in the UK or not.17 Today with the so-called decolonial
17
Amongst Guy’s work with inIVA are his books on Medalla, Li Yuan-chia and his own collection of
essays in ‘Carnival of Perception’.
ae &E
Arte
os
nsai
Beyond Brazil: remembering Guy Brett through his own eyes 376
turn, Guy’s life’s work and his many struggles seem all the more pertinent. In
compiling this, admittedly limited, outline of Guy’s much wider and complex body
of work, I wish to shed light on what has been a pioneering, poetic and insightful
approach to what today is broadly described as “decoloniality” in the hope that
the recent wave of interest in the subject may build upon it while proving itself to
be more than just another art world fad.
Dr Michael Asbury is reader in the History and Theory of Art and deputy director of
the research centre for Transnational Art, Identity and Nation (TrAIN). An
internationally recognised specialist in modern and contemporary art from Brazil,
he has published extensively and has curated numerous exhibitions in the
UK, Europe and Latin America.
References
ASBURY, Michael. E agora José? Sergio Camargo e os circuitos internacionais de arte nos
anos 60. In: Encontros fundamentais: IAC 20 anos. São Paulo: UBU editora, 2020.
BRETT, Guy. A magnet and a Sscrap of metal. In: BRETT, Guy; WELLEN, Michael (eds.).
Takis, exhibition catalogue, Tate Modern, London, 2019.
BRETT, Guy. Interview with Linda Sandino. Arte & Ensaios, 14, special issue Transnational
Correspondence, Rio de Janeiro, Sep. 2007, p. 206-237.
BRETT, Guy. Introduction. In: Carnival of perception: selected writings on art. London:
inIVA 2004.
BRETT, Guy. The century of kinesthesia. In: BRETT, Guy (ed.). Field Forces: phases of the
kinetic. Barcelona: MACBA; London: Hayward Gallery, 2000.
BRETT, Guy. Exploding galaxies: the art of David Medalla. London: inIVA and Kala
Press, 1995.
BRETT, Guy. Nowhere. In: Maria-Thereza Alves. London: The Central Space, 1993.
BRETT, Guy. The Sixties art scene in London. Third Text, v. 7, n. 23, p. 121-123, 1993.
BRETT, Guy. Brazilian artists in Britain. In: Britain and the São Paulo Biennial: 1951-1991.
London: The British Council, 1991.
ae &E
Arte
os
nsai
Michael Asbury 377
BRETT, Guy. Preface. In: Transcontinental: nine Latin American Artists. London: Verso, 1990.
BRETT, Guy. Internationalism among artists in the 60s and 70s. In: The Other Story
exhibition catalogue. The Hayward Gallery, 1989.
BRETT, Guy. Terre et musée − local et global. Les Cahiers du Musée d’Art Moderne, 1989.
(Reprinted in English as Earth and Museum − Local and Global. Third Text, n. 6, Spring 1989.)
BRETT, Guy. Lygia Clark − the borderline of life and art. Third Text, n. 1, Autumn 1987.
BRETT, Guy. Through our own eyes. London: GMP Publishers and New York: New Society
publishers, 1986.
BRETT, Guy. ‘The Fad’ in Lives: an exhibition of artists whose work is based on other
peoples’ lives, selected by Derek Boshier, exhibition catalogue of works selected for the
Arts Council of Great Britain Collection, Serpentine Gallery, 1979. Unpaginated.
BRETT, Guy. Chinese peasant painting from the Hu County, Shensi Province, China. London:
Arts Council of Great Britain, 1976-1977.
BRETT, Guy. Kinetic Art: the language of movement. London: Studio Vista, 1968.
BRETT, Guy. Delacroix. The Masters Series, 15, Knowledge Publications, Fratelli Fabbri
Editori, 1963
GUY BRETT Obituary. The Guardian, 30 March, 2021. Available at: https://www.
theguardian.com/artanddesign/2021/mar/30/guy-brett-obituary. Accessed April, 22, 2021.
MULLINS, Edwin. This Other – and unnecessary Eden. Sunday Telegraph, London, 4
March, 1969.
Como citar:
ASBURY, Michael. Beyond Brazil: remembering Guy Brett through his own eyes. Arte
& Ensaios, Rio de Janeiro, PPGAV-UFRJ, v. 27, n. 41, p. 350-377, jan.-jun.
2021. ISSN-2448-3338. DOI: https://doi.org/10.37235/ae.n41.19. Disponível
em: http://revistas.ufrj.br/index.php/ae
ae &E
Arte
os
nsai
DOSSIÊ GUY BRETT 378
Michael Asbury
0000-0002-2205-0063
O crítico de arte britânico Guy Brett se tornou referência única no Brasil por
meio de sua escrita e amizade com artistas como Sergio Camargo, Lygia Clark,
Hélio Oiticica, Mira Schendel durante a década de 1960, e mais tarde com Cildo
Meireles, Antonio Manuel, Lygia Pape, Jac Leirner, Waltercio Caldas, assim como
tantos outros. Embora esses artistas tenham, em grande parte, definido o modo
como a arte contemporânea é entendida em âmbito nacional, a contribuição de
Guy ajudou a tecer suas produções dentro de uma narrativa histórica da arte
mais ampla, colaborando para os inscrever, ainda que parcialmente, nos cânones
hegemônicos e institucionais. Seria, no entanto, limitado considerar a relevância
de Guy mediante essa única, embora importante, perspectiva. Este artigo,
não é tanto um ensaio, mas uma série de citações em busca de lançar luz sobre
a trajetória intelectual de Guy, focalizando a maneira particular como ele veio a
articular, por meio de sua escrita e práticas curatoriais, a produção de arte pela
qual estava interessado. O que realmente o interessou variou desde a experiência
subjetiva singular com o objeto de arte até sua relação mais ampla com o mundo.
Ao se referir ao seu interesse por assuntos tão diversificados no campo da arte,
Guy frequentemente invocava a ideia de energias cósmicas, forças de campo, às
vezes em um sentido literal, como no caso da força eletromagnética existente na
obra do artista grego Takis, outras vezes de forma mais metafórica. Tais invocações,
sejam cosmologias arcaicas, conhecimentos milenares ou pensamentos científicos,
nunca tentaram determinar ou impor suas próprias perspectivas sobre os outros
ou implicaram qualquer senso de superioridade de um tipo de arte sobre outro.
Na própria compreensão de Guy, o universal parecia antitético à maneira como
é normalmente prescrito dentro da história do modernismo. Na verdade, Guy
nunca teve problema com o modernismo, mas com a forma limitada pela qual
tem sido considerado. Sua crítica era dirigida principalmente ao modo como o
modernismo tem sido historicizado e instrumentalizado dentro das estruturas
PPGAV/EBA/UFRJ
institucionais da arte.
Rio de Janeiro, Brasil
Palavras-chave
ISSN: 2448-3338
DOI: 10.37235/ae.n41.20 Guy Brett; arte cinética; Signals Gallery; Magiciens de la Terre; decolonial.
ae &E
Arte
os
nsai
Michael Asbury 379
1
Os títulos de exposições, ensaios, grupos, instituições e livros permaneceram no idioma original, a
não ser em casos em que haviam sido traduzidos anteriormente ou para uma compreensão mais
segura da retórica do autor, o título no idioma original é sucedido pela sua tradução. (N.T.)
2
Para uma visão geral biográfica da vida de Guy, veja Brett (2007, p. 206-237).
ae &E
Arte
os
nsai
Além do Brasil: lembrando Guy Brett através de seus próprios olhos 380
Kinetic Art, o livro, foi produzido pelo que possivelmente tenha sido a expe-
riência de formação cultural mais significativa que Guy teve: sua colaboração com
a Signals Gallery, em Londres, entre 1964 até o seu fechamento abrupto em 1966.
3
British Library, Hester R. Westley interviewed Guy Brett for the National Life Stories Project Artists’
Lives in 2007-2008. Disponível em: https://blogs.bl.uk/sound-and-vision/2021/04/guy-brett-ideas-
in-motion.html. Acesso em 22 abr. 2021.
ae &E
Arte
os
nsai
Além do Brasil: lembrando Guy Brett através de seus próprios olhos 384
4
Jaime Mauricio, Correio da Manhã, jan. 1965. Menciono o incidente em um artigo sobre Sergio
Camargo: Asbury, 2020.
ae &E
Arte
os
nsai
Michael Asbury 385
É preciso dar crédito aqui ao fato de que Guy, ainda muito jovem, não
equacionou o conhecimento de Medalla da cultura ocidental com a suposta
superioridade de tal cânone literário. Ao longo do curso de sua vida, Guy encon-
traria em várias obras de artistas de todo o mundo um sentido semelhante de
admiração e sofisticação. Diria que um sentido de admiração e abertura para
outras culturas foi uma característica constante da escrita de Guy desde o início.
O papel de Medalla, durante os anos da Signals, no estabelecimento
de conexões entre as vanguardas europeias e de outros países não pode ser
ae &E
Arte
os
nsai
Além do Brasil: lembrando Guy Brett através de seus próprios olhos 386
Logo percebi que [David] estava dividindo seu tempo entre Inglaterra
e França. Assim que o período do seu visto britânico expirava, ele
seguia para a França e, quando seu visto francês expirava, ele retornava
à Inglaterra. A expiração e os vistos renovados têm sido características
permanentes na vida de David. [...] As circunstâncias aparentemente
incongruentes dos nossos encontros foram um prenúncio da forma
como Medalla, ao longo de sua vida, fez suas próprias conexões e
manifestações artísticas, muitas vezes longe dos mecanismos e locais
rotineiros do mundo da arte, e como, com todo o seu conhecimento
íntimo da cultura inglesa, ele promoveu um sentido de internacionalismo
na Inglaterra que foi muito além das estreitas e nacionalistas prioridades
da consagração oficial da arte britânica (Brett, 1995, p. 13).
artistas, ação que faria ao longo de sua vida. Refletindo sobre essa relação entre
os artistas e o crítico, Guy afirmou na introdução de Carnival of perception:
5
Babilonests eram construções semelhantes a camas que Oiticica havia conceituado pela primeira
vez no Rio de Janeiro com a Cama-Bólide e o conceito de Barracão. Oiticica mais tarde elaborou essas
ideias durante sua residência na Universidade de Sussex em 1969, e exibiu-os como uma instalação
interativa em sua participação na exposição Information, organizada por Kynaston McShine, no MoMA
em 1970.
ae &E
Arte
os
nsai
Além do Brasil: lembrando Guy Brett através de seus próprios olhos 388
“Naum Gabo: Space is not Outside Us” (15 de março de 1966); “The
Gadfly of Modern Art − Marcel Duchamp” (14 de junho de 1966);
“Photomontages of John Heartfield” (16 de setembro de 1967);
“Van Gogh in the Fields” (15 de outubro de 1967); “Cool State of the
Word” (30 de dezembro de 1967); “The Invisible Works of Modern Art”
(2 de abril de 1968); “Tuba on Fire” (15 de fevereiro de 1969); “Ways
of Pointing a Camera” (22 de abril de 1969); “When Attitudes Become
Form” [“Quando as atitudes tomam formam”] (30 de agosto de 1969);
“Gentle Man of Iron (Julio González)” (10 de novembro de 1970); “Waste
of the World” (25 de março de 1971); “500 Years after Dürer” (17
de maio de 1971); “Moholy-Nagy and the Whole Man” (3 de julho de
1971); “At the Feet of Gaudi” (17 de agosto de 1971); “Tantra: New
Vistas of Meditation and Self-knowledge” (23 de outubro de 1971);
“Francis Bacon in Paris” (27 de outubro de 1971); “Calderara’s World
of Stillness” (2 de novembro de 1971); “Hogarth’s Progress” (2
dezembro de 1971); “Blake, Blake, Burning Bright” (8 de dezembro de
1971); “Eugene Atget, Parisian and Photographer” (21 de dezembro
ae &E
Arte
os
nsai
Além do Brasil: lembrando Guy Brett através de seus próprios olhos 390
Meados da década de 1990 pode não ser o melhor momento para olhar
novamente de forma desapaixonada para um movimento na década de
1970 no qual muitas pessoas estiveram envolvidas (eu incluído). As fotos
de Medalla e Dugger vestindo suas jaquetas maoistas, e a retórica
polêmica de Medalla, que imitava o discurso marxista-leninista do Estado
incluindo até os menores maneirismos e linguajares (embora sua análise
fosse geralmente sã e inteligente), dão um ar datado a uma convicção
incontestável: que o legado do colonialismo no Terceiro Mundo só poderia
ser efetivamente desafiado pelos movimentos de libertação nacional
(Brett, 1995, p. 85).
6
Lord Esher, Lionel Brett, entrevista, história oral, Architects’ Lives Collection, British Library, fita
n.8. Disponível em: https://sounds.bl.uk/Oral-history/Architects-Lives/021M-C0467X0014XX-1000V0.
Acesso em 22 abr. 2021.
7
Sua última coleção de ensaios The Crossing of innumerable paths começa com a seguinte epígrafe de
Pedrosa: “Então a vida é maior que as regras”.
ae &E
Arte
os
nsai
Além do Brasil: lembrando Guy Brett através de seus próprios olhos 392
8
Alejandra Altamirano Brett, conversa telefônica com Michael Asbury, mar. 2021.
ae &E
Arte
os
nsai
Michael Asbury 393
Seu envolvimento com o grupo Artist for Democracy já havia levado sua
atenção para o trabalho das Arpilleras, grupos de mulheres pobres que viviam
nos arredores de Santiago, alegando que: “Em condições de grande insegurança
e dificuldades, grupos de mulheres chilenas costuraram milhares de bordados
com retalhos [patchwork] mostrando a realidade durante a ditadura militar que
tomou o poder com o golpe de 1973” (Brett, 1986, p. 29).
A ideia de trauma ressurge como tema em outro capítulo de Through our
own eyes, quando Guy discute as representações visuais criadas por testemunhas
do terrível bombardeio de Hiroshima: “De certa forma, o cerne de toda essa
9
Alejandra Altamirano Brett, conversa telefônica com Michael Asbury, mar. 2021.
ae &E
Arte
os
nsai
Além do Brasil: lembrando Guy Brett através de seus próprios olhos 394
10
Veja: Guy Brett Obituary, The Guardian, 30 mar. 2021. Disponível em: https://www.theguardian.
com/artanddesign/2021/mar/30/guy-brett-obituary. Acesso em 22 abr. 2021.
ae &E
Arte
os
nsai
Além do Brasil: lembrando Guy Brett através de seus próprios olhos 396
Estamos misturados uns aos outros de tal forma que a maioria dos
sistemas nacionais de educação nunca poderia prever. Como combinar
o conhecimento tanto nas artes quanto na ciência com essas realidades
integradoras é, acredito, a questão do momento à medida que a década
[de 1990] se aproxima.
ser mitificadas em relação à história hegemônica da arte pop. É inegável que ele
viu não apenas um paralelo à maneira como as atividades da Signals foram lem-
bradas, mas também à necessidade de reivindicar conceitos estéticos e teóricos
decorrentes de seu inerente internacionalismo:
Seu alvo, que teimosamente permaneceu ao longo de sua vida como crítico,
era aquilo que foi tachado como convencional, seu viés nacionalista, sua falta de
curiosidade e sua propensão a seguir tendências, em suma, de se submeter a
modismos. Ainda em seu ensaio no catálogo The other story, ele deixa isso claro
afirmando que:
11
Eu nunca tive a chance de perguntar a Guy sobre o que ele pensava a respeito de ter seu ensaio
publicado em The other story, reeditado no luxuoso catálogo publicado pela Sotheby’s por ocasião da
exposição, organizada por essa casa de leilão, tendo a Signals Gallery como tema.
ae &E
Arte
os
nsai
Michael Asbury 399
Tal posição ressurgiria quando em 1991 ele foi convidado a contribuir para
uma publicação do British Council celebrando os 40 anos da Bienal de São Paulo
assim como o próprio papel do Council nessa mostra internacional. Guy começa
seu ensaio afirmando sem rodeios que “um fato que me impressiona na relação
que artistas brasileiros e brasileiros que trabalham com arte vêm mantendo com
a Grã-Bretanha desde a década de 1950 é sua natureza quase que totalmente
extraoficial” (Brett, 1991, p. 47).
Talvez a crítica mais franca de Guy ao longo de 1989, veio na forma do
questionamento dos conceitos por trás da exposição Magiciens de la Terre, de
Jean-Hubert Martin, na forma de um artigo intitulado “Earth and museum – local
and global?” que vou citar aqui de forma mais extensa:
12
Nota do texto original: Jean Fisher, Jimmy Durham, “The ground has been covered”, Artforum,
verão, 1988, p. 102.
13
Nota do texto original: Jean Baudrillard, “The Ecstasy of Communication”. In: Hal Foster (ed.).
Postmodern Culture. London: Pluto Press, 1985, p. 128-129.
ae &E
Arte
os
nsai
Michael Asbury 401
14
Nota do texto original: Citado em Last Issue, Alberta, outono, 1987.
15
Nota do texto original: É revelador ver que o CANAL+, um dos patrocinadores de Magiciens de la
Terre, apesar da retórica da “abolição de todas as fronteiras”, ainda pode, em seu material de
promoção, permanecer conectado a um claro conceito de arte burguês e ocidental: “A todos os assi-
nantes, CANAL+ optou por se dedicar a esse prazer único que é estar conectado à posse de obras de
arte e oferecer esse deleite extremo que surge de sua contemplação”.
ae &E
Arte
os
nsai
Além do Brasil: lembrando Guy Brett através de seus próprios olhos 402
16
Nota do texto original: Eric Michaels, For a Cultural Future – Francis Jupurrurla Kelly makes TV at
Yuendumu, Art and Criticism Monograph Series, vol. 3, Melbourne: Artspace, 1987.
17
Nota do texto original: Ibid. p. 49.
ae &E
Arte
os
nsai
Michael Asbury 403
18
Nota do texto original: Ibid. p. 71.
ae &E
Arte
os
nsai
Além do Brasil: lembrando Guy Brett através de seus próprios olhos 404
A partir dos anos 1990, Guy consolidaria sua escrita, dentro do contexto
britânico, se voltando para a produção de artistas como Mona Hatoum, Susan Hil-
ler, Rose Finn-Kelcey e Cornelia Parker. Também colaborava com várias institui-
ções na organização de curadorias de grandes exposições retrospectivas de ar-
tistas dos quais por muito tempo esteve próximo. Muitos desses projetos maiores
ocorreram na Europa e menos em Londres, solidificando sua crítica ao esnobismo
institucional britânico. Essas curadorias foram de grandes exposições como: Hélio
Oiticica, uma retrospectiva itinerante que começou no Witte de With, em Roterdã,
e depois seguiu, entre 1992 e 1993, para Jeu de Paume, em Paris; Fundação An-
toni Tapies, em Barcelona; e, Fundação Calouste Gulbenkian, em Lisboa; e, Out of
Actions: Between Performance and the Object, realizada no Moca de Los Angeles
em 1998, quando assessorou o curador Paul Schimmel.
Simultaneamente, vários ensaios foram comissionados para catálogos
de exposições na Europa e nos Estados Unidos, incluindo: “Propos sur Takis”,
em Takis, no Jeu de Paume, em Paris, 1993; “Sergio Camargo: esculturas”, na
Fundação Calouste Gulbenkian, em Lisboa, 1994; “Equilibrium and polarity”, em
ae &E
Arte
os
nsai
Michael Asbury 405
19
Entre os trabalhos publicados de Guy pelo inIVA estão seus livros sobre Medalla, Li Yuan-chia e a
sua própria coleção de ensaios Carnival of perception.
ae &E
Arte
os
nsai
Além do Brasil: lembrando Guy Brett através de seus próprios olhos 406
Referências
ASBURY, Michael. E agora José? Sergio Camargo e os circuitos internacionais de arte nos
anos 60. In: Encontros fundamentais: IAC 20 anos. São Paulo: UBU editora, 2020.
BRETT, Guy. A magnet and a scrap of metal. In: BRETT, Guy; WELLEN, Michael (eds.).
Takis. London: Tate Modern, 2019. (Catálogo de exposição).
BRETT, Guy. Interview with Linda Sandino. Arte & Ensaios, 14, edição especial
Transnational Correspondence, Rio de Janeiro, UAL/UFRJ, set. 2007, p. 206-237.
BRETT, Guy. Introduction. In: Carnival of perception: selected writings on art. London:
inIVA 2004.
BRETT, Guy. The century of kinesthesia. In: BRETT, Guy (ed.). Field Forces: phases of the
kinetic. Barcelona: MACBA; London: Hayward Gallery, 2000.
BRETT, Guy. Exploding galaxies: the art of David Medalla. London: inIVA and Kala
Press, 1995.
BRETT, Guy. Nowhere. In: Maria-Thereza Alves. London: The Central Space, 1993.
BRETT, Guy. The Sixties art scene in London. Third Text, v. 7, n. 23, p. 121-123, 1993.
BRETT, Guy. Brazilian artists in Britain. In: Britain and the São Paulo Biennial: 1951-1991.
London: The British Council, 1991.
BRETT, Guy. Preface. In: Transcontinental: nine Latin American Artists. London: Verso, 1990.
BRETT, Guy. Internationalism among artists in the 60s and 70s. In: The Other Story.
London: The Hayward Gallery, 1989. (Catálogo de exposição).
BRETT, Guy. Terre et musée − local et global. Les Cahiers du Musée d’Art Moderne, 1989.
(Reeditado em inglês como “Earth and Museum − Local and Global”, Third Text, London, n. 6,
primavera 1989.)
ae &E
Arte
os
nsai
Michael Asbury 407
BRETT, Guy. Lygia Clark − the borderline of life and art. Third Text, n. 1, outono 1987.
BRETT, Guy. Through our own eyes. London: GMP Publishers and New York: New Society
publishers, 1986.
BRETT, Guy. The Fad. In: Lives: an exhibition of artists whose work is based on other peoples’
lives. London: Serpentine Gallery, 1979. s/p. Organizado por Derek Boshier, catálogo de
exposição das obras selecionadas pelo Arts Council of Great Britain Collection.
BRETT, Guy. Chinese peasant painting from the Hu County, Shensi Province, China. London:
Arts Council of Great Britain, 1976-1977.
BRETT, Guy. Kinetic Art: the language of movement. London: Studio Vista, 1968.
BRETT, Guy. Delacroix. The Masters Series, 15, Knowledge Publications, Fratelli Fabbri
Editori, 1963
GUY BRETT Obituary. The Guardian, 30 March, 2021. Available at: https://www.
theguardian.com/artanddesign/2021/mar/30/guy-brett-obituary. Acessado em 22 abr. 2021.
MULLINS, Edwin. This Other – and unnecessary Eden. Sunday Telegraph, London, 4 mar.
1969.
Como citar:
ASBURY, Michael. Além do Brasil: lembrando Guy Brett através de seus próprios
olhos. Trad. Felipe Scovino. Arte & Ensaios, Rio de Janeiro, PPGAV-UFRJ, v. 27, n. 41,
p. 378-407, jan.-jun. 2021. ISSN-2448-3338. DOI: https://doi.org/10.37235/
ae.n41.20. Disponível em: http://revistas.ufrj.br/index.php/ae
ae &E
Arte
os
nsai
Além do Brasil: lembrando Guy Brett através de seus próprios olhos 408
1
Millet, Catherine; Milos, Diego; Sommer, Michelle Farias. Artpress hors-séries Amérique Latine
Arts et Combats, 2020. Paris. 130pp. ISSN 0245-5676. Disponível em: https://www.artpress.com/
PPGAV/EBA/UFRJ
Rio de Janeiro, Brasil
wp-content/uploads/woocommerce_uploads/2020/03/Art-press-HS-N53-.pdf. Agradeço a Andrea
ISSN: 2448-3338 Giunta, Amanda de la Garza Mata, Clarrisa Diniz, Rodolfo Andaur e Igor Moraes Simões a cedência dos
DOI: 10.37235/ae.n41.21 textos para a composição deste dossiê (além da interlocução de sempre).
ae &E
Arte
os
nsai
Michelle Farias Sommer 411
2
A exposição, curada por Andrea Giunta em conjunto com Cecilia Fajardo-Hill, foi montada em Los
Angeles (Hammer Museum) em 2017, Nova York (Brooklyn Museum) e em São Paulo (Pinacoteca),
ambas em 2018.
ae &E
Arte
os
nsai
Dossiê América Latina | Arte & Combate 412
3
O texto foi publicado posteriormente em: https://letargo.cl/Nuevas-Latitudes-del-Arte-Con-
temporaneo.
ae &E
Arte
os
nsai
Michelle Farias Sommer 413
assinala: “As artes visuais no Brasil sempre foram lugar marcado pela presença
de mãos negras”.
Entre a produção de ensaios críticos para a Artpress ao longo de 2019, a
publicação da revista em março de 2020 e a elaboração do dossiê América Latina|
Arte & Combate, no início de 2021, o mundo mudou. Naquele agora − antes de
um fim de (um) mundo imposto pela disseminação da Covid-19 − os ensaios
escritos apresentados aqui já apontavam para condições dramáticas de trabalho
e possibilidades institucionais muitas vezes inexistentes. E, apesar de, registravam
também, em paralelo, a ocorrência da experimentação de novas epistemologias
na arte que − oxalá! − lancem algum oxigênio em direção a outras formas de
existência-resistência em construção em uma América Latina tão diversa e plural.
Como citar:
SOMMER, Michelle Farias. Dossiê América Latina | Arte & Combate. Arte & Ensaios,
Rio de Janeiro, PPGAV-UFRJ, v. 27, n. 41, p. 409-413, jan.-jun. 2021. ISSN-
2448-3338. DOI: https://doi.org/10.37235/ae.n41.21. Disponível em: http://
revistas.ufrj.br/index.php/ae
ae &E
Arte
os
nsai
DOSSIÊ AMÉRICA LATINA | ARTE & COMBATE 414
Poéticas Situadas
Situated Poetics
Entrevista com Andrea Giunta
por Michelle Farias Sommer
Andrea Giunta’s interview
by Michelle F. Sommer
Mi punto de partida es nunca decirle al arte qué debe ser. Me interesa lo que
sucede sin exaltar ni demonizar. Porque de lo contrario estaríamos ubicándonos
nuevamente en las largas y extenuantes polémicas respecto de la relación entre
el arte y la política. Fueron esas polémicas, características de los años 1960, post
revolución cubana, pre-68, las que llenaron páginas que iban de Galvano della
Volpe a Brecht, por citar tan solo algunos de los referentes que se citaban, las
que me llevaron a interesarme por los procedimientos que habían permitido a
una obra erigirse con el poder de las imágenes desde 1937 en adelante. Me
refiero a Guernica. Lo que para mí fue extraordinario fue encontrarme con que en
esos largos artículos, escritos en una tipografía apretada, textos que no te dejaban
respirar, el ejemplo que se enarbolaba, una y otra vez, como unión perfecta del
arte con la política, era el Guernica de Picasso. Lo curioso – y absurdo – para
mi era que en esos años 1960, cuando el arte se desmaterializaba, cuando el
cuerpo femenino y masculino irrumpían como territorios a explorar, cuando
la autonomía del lenguaje artístico estallaba en el lenguaje de los desechos, la
basura, las substancias del cuerpo, la acción, la intelectualidad de izquierda
encontraba que el ejemplo perfecto a sus búsquedas era un cuadro realizado 30
años antes (!) Entonces, me interesa pensar que el arte es lo que tiene que ser en
cada coyuntura, sin prescripciones ni proscripciones. Me interesa luego interrogar
el pasado y el presente y ahí si, hago mis propias selecciones.
Probablemente la pregunta central que recorre todas mis investigaciones
tiene que ver con el poder de las imágenes y del arte. Qué es lo que en ellas se
condensa, qué es lo que ellas detonan. Una imagen, una obra, es un objeto, una
superficie, animada simultáneamente por una fuerza centrípeta y centrífuga. En
ella se funden mundos, conocimientos, deseos, proyectos, y ellas se depositan,
actualizadas (su condición anacrónica hace esto posible, se trata de imágenes
que actúan en distintos tiempos, más allá de aquél en el que fueron concebidas)
en distintos presentes, activan a distintos públicos. No me interesa la mirada
curatorial que dictamina, muchas veces sin mirar con cuidado, qué es bueno
qué no, qué es acertado qué no. En tal sentido, soy más una historiadora frente
al paisaje de lo que fue, que se interroga sobre las razones por las que una obra
impacta en sus públicos, es celebrada o censurada, es objeto de debates, de
deseos de poseerla o de controlarla. Así sucede, evidentemente, con Guernica,
una obra tan poderosa, que es la fuerza central de un museo como el Reina Sofía,
ae &E
Arte
os
nsai
Poéticas Situadas 420
a su pesar: invito a permanecer diez minutos en la puerta del museo y oir cuantas
veces el público pregunta “dónde está el Guernica”. A mi me interesa saber por
qué sucede eso.
Ahora bien, volviendo al activismo, creo que es sumamente interesante
analizar el activismo artístico en sus propias claves. Actualmente soy una acti-
vista en un grupo artístico feminista. Y me interesa sobremanera constatar hasta
qué punto las prácticas generan teoría. Para mi es una experiencia de extremo
conocimiento nuevo participar de las acciones. El activismo ha acumulado una
historia específica de sus prácticas. Es profundamente variado, trabaja con
estrategias diversa, poéticamente conmovedoras. Cito un ejemplo: en marzo de
2018 quisimos visibilizar hasta qué punto el montaje de la colección del Museo
Nacional de Bellas Artes de Argentina era patriarcal. Sobre 250 obras solo 22
eran de artistas mujeres. Entonces propusimos al director que el 8M se apagasen
las luces de las salas y se encendiesen solo las de las obras de las artistas
mujeres. El museo quedó casi a oscuras. Los focos generaron imágenes pode-
rosas, bellas, poéticas, políticas. También hemos proyectado en los edificios de
la ciudad frases en favor de la legalización del aborto en la Argentina, y ver esas
constelaciones de palabras en los edificios de la ciudad, más allá de su contenido
político, es bello. El activismo es más eficaz cuando se articula desde imágenes
poderosas. Esta es una conclusión a la que arribo, no una premisa, no una receta,
menos un mandato.
MS / Retorno al tema sobre el poder de las imágenes y del arte. Pensando
a partir de Guernica − una de las imágenes más representativas de la historia del
arte del siglo 20 − es posible apuntar el pictórico como lenguaje artístico principal
dominante en la construcción de narrativas imagéticas de aquel período que
tiene el museo como espacio guardián de su exhibición. En el siglo XXI, platafor-
mas como el Facebook e Instagram han sido utilizadas como herramientas para
producción y circulación de prácticas artísticas, entre otras. ¿Cuáles serían las
imágenes representativas de la historia del arte de las primeras dos décadas de
ese siglo considerando la sociedad en red? Y ¿especulando sobre futuros (tal
vez apocalípticos), cuáles serían los espacios guardianes de esas imágenes en
20 años?
AG / Es una pregunta interesante que no sé si puedo responder. Pienso
que lo pictórico tiene un carácter condensador de la imagen que le confiere un
ae &E
Arte
os
nsai
Entrevista com Andrea Giunta / por Michelle Farias Sommer 421
aura adicional al poder de la fotografía. Trabajé hace unos años sobre los
retratos de Eva Perón. Me interesó el hecho de que la imagen “oficial” de Evita
no proviene de una fotografía sino de una pintura – que a su vez se inspiró en un
conjunto de fotografías. No pude explicar las razones, solo pude especular que
en la pintura se producía una condensación de los rasgos de Eva y que, además,
por tratarse de una pintura, poseía un aura de arte que la elevaba por sobre la
copia analógica de su propio rostro. Pero no pude demostrar mi hipótesis, solo
dejarla en suspenso. Analizado históricamente, puedo decir que el poder de las
imágenes se basa en el efecto que han producido en distintos públicos, efecto
que no es independiente de la configuración específica de las imágenes. Guernica
por su tamaño, su composición, su paleta, es una obra impactante, más allá de
las circunstancias a las que se vincula. Pensando en obras que han producido
debates intensos agregaría Diner party, de Judy Chicago, o La civilización
occidental y cristiana, de León Ferrari. En las últimas dos décadas puedo decir,
por ejemplo, que obras que produjeron intensos debates, como el tiburón de
Damien Hirst, probablemente perduren como síntoma de una época, más allá
de su existencia futura real. En cuanto a la sociedad en red, no imagino las formas
de perdurar. He expuesto obras creadas a partir de los imaginarios que crea
Facebook, basadas en la creación de comunidades en red articuladas a partir
de los deseos, e investigo artistas que construyen identidades para sitios de
citas o para Instagram, identidades queer que se espejan en las redes para crear
dispositivos de auto representación. Me interesa, es un síntoma de época, aun
cuando encuentro sus procedimientos y, sobre todo, sus imágenes, extraordina-
riamente repetitivos. Pero no puedo decir nada acerca de su capacidad de
perdurar. Sabemos que el universo digital nació con dificultades. La conversión
de las imágenes en la medida en que los software se reemplazan no fue en un
principio óptima. Lo que nos queda de las experiencias tempranas – pienso en los
años 1990 – son las imágenes impresas. En tal sentido, creo que por el momento
el poder de las imágenes en red se verifica más en relación a su capacidad de
dirigir el humor social – instrumentada en relación con la política – que en sus
efectos estéticos, museográficos, patrimoniales. El mundo del arte sigue toda-
vía regulado por el mercado que compra y vende, o por el coleccionismo de las
obras. Se coleccionan videos que muchas veces se exhiben en sala, al lado de
las pinturas, objetos, archivos. Pero encuentro que el arte que se realiza en red para
ae &E
Arte
os
nsai
Poéticas Situadas 422
Como citar:
SOMMER, Michelle Farias. Poéticas Situadas — Entrevista com Andrea Giunta.
Arte & Ensaios, Rio de Janeiro, PPGAV-UFRJ, v. 27, n. 41, p. 414-422, jan.-jun.
2021. ISSN-2448-3338. DOI: https://doi.org/10.37235/ae.n41.22. Disponível
em: http://revistas.ufrj.br/index.php/ae
ae
os
nsai
DOSSIÊ AMÉRICA LATINA | ARTE & COMBATE 423
&E
Arte
1
Para una revisión a fondo de estos procesos se puede consultar: Emmelhainz, junio 2016:
281-305 (traducido al inglés). De igual manera, Medina, 2017 y Debroise, 2017.
2
En el 2015, la artista visual Tamara Ibarra, junto con otros artistas, realizó un mapeo de los
espacios e iniciativas independientes en México y algunos países de América Latina, que se
depositó en la plataforma Yei. Dicha investigación también derivó en una serie de encuentros
de espacios independientes bajo el título de Boomerang.
ae &E
Arte
os
nsai
Amanda de la Garza Mata 425
y luego de manera individual. Propuso una mirada aguda y material sobre los
efectos de la violencia en el espacio público, los cuerpos, el territorio, producto
de la necropolítica del poder.
El norte del país ha sido y es hoy un semillero de artistas que han propuesto
un cambio en términos de las preguntas y formulaciones artísticas. Es el caso
de la artista Fritzia Irizar (Culiacán, 1977), quien ha buscado reflexionar sobre
la condición material del valor en la economía capitalista y sus transmutaciones.
Tal es el caso de la pieza Since Cleopatra (2016), en la que una perla es disuelta
en vinagre, y luego injerida por una persona, en un acto de transformación certi-
ficado por un notario público.
La iniciativa curatorial In Site (1992-2012, cinco ediciones) tuvo una
repercusión importante en la escena artística en México. Su objetivo era intervenir
artística y curatorialmente en la frontera como territorio simbólico y político, pero
también conectar dos ciudades espejo: Tijuana y San Diego, California. Tijuana
vive hoy un renacimiento de espacios independientes y un circuito que está
buscando alternativas por fuera de las instituciones. Algunos ejemplos son los
espacios: Deslave, Relaciones Inesperadas y Periférica. El primero es una inicia-
tiva en la cual participa el artista Andrew Roberts (Tijuana, 1995), quien desde
una estética queer plantea preguntas sobre el mundo digital y sus traducciones
en el mundo real. En este miso panorama norteño, destaca el trabajo de la artista
Chantal Peñalosa (Tecate, 1987), quien aborda la experiencia cotidiana, subjetiva
y gestual del habitar la frontera.
El empeño por deconstruir la ideología nacionalista ha producido un
cuerpo de trabajo muy amplio que ha investigado, a través de medios muy diversos,
la función ideológica de los vestigios arqueológicos prehispánicos. Ello en la
medida en que la arqueología y la antropología fueron piedras angulares en
la construcción del Estado-Nación en México. Un conjunto muy importante
de artistas ha elaborado de diferentes maneras esta temática a lo largo de
su trayectoria: Mariana Castillo Deball, Melanie Smith, Silvia Gruner, Eduardo
Abaroa, Jorge Satorre, entre otros. Esta aproximación deconstructiva empata
también con propuestas que operan desde la crítica institucional. El proyecto del
artista Eduardo Abaroa (Ciudad de México, 1968), Destrucción total del Museo
de Antropología (2012), describe cabalmente estas vertientes. Abaroa diseña un
detallado plan para demoler e implosionar el Museo Nacional de Antropología e
Historia, el epítome de la ideología del régimen y el máximo repositorio de piezas
ae &E
Arte
os
nsai
Algunas preguntas sobre el arte contemporáneo en México.
Tableros, posiciones y cambios de juego
428
prehispánicas. Sin embargo, hacer una crítica al Estado hoy en día también implica
penetrar otras instituciones igualmente importantes. El trabajo de Daniel Aguilar
(León, 1988), desde una estética estrictamente conceptual y un humor sardónico,
centra la mirada en las estructuras de poder económico y sus formas de circula-
ción, así como el vínculo procaz que sostienen con el arte. En la obra Why I was
not your friend? (2016), utiliza el apoyo recibido por la Fundación BBVA para
pagar la deuda de una persona con el nombre homónimo de su padre, quien
años atrás había perdido la casa familiar por una deuda con este mismo banco.
Por otro lado, históricamente las comunidades indígenas contemporáneas
fueron excluidas de la narración histórica, y del pacto social, discriminadas y
marginadas socialmente. La guerrilla indígena y una serie de movimientos indí-
genas a nivel local e internacional han transformado la política en México. En el
arte contemporáneo esta transformación ha sido muy lenta. Sin embargo, hay un
cambio de pregunta. Un ejemplo de ello es la obra del artista Fernando Palma
(Ciudad de México, 1957), quien aborda la cosmogonía del pueblo nahua a partir
de la producción de obras cinéticas hechas de materiales orgánicos y circuitos
mecánicos básicos. En esta misma línea de trabajo está la obra de los artistas
Noé Martínez (Morelia, 1985) y Guadalupe Sosa (Morelia, 1986). En el caso de
Martínez en la obra Un acto antes de un concepto (2016) investiga, a través
de una coexistencia temporal, los relatos de los colonizadores, las reivindicaciones
indígenas de los años 1970, y los movimientos recientes por la autonomía y
autodeterminación de los pueblos originarios, tales como el del pueblo purépecha
de Cherán en el estado de Michoacán. Su práctica vincula mapas, dibujos, videos
y obra en cerámica como una forma de reelaborar la pregunta sobre lo indígena
por medio de una transversalidad histórica. En el caso de la obra de María
Guadalupe Sosa, su obra adquiere una connotación intimista, en la medida en
que la representación pictórica y gráfica de su cuerpo es el lugar donde ocurren
estas relaciones.
El estado de la escena actual es complejo y los detournements son múlti-
ples. Nuevas generaciones empiezan a cambiar la línea de juego. Algunas otras
preguntas relevantes tienen que ver con la revisitación de la pintura como un
lugar de enunciación que lanza preguntas sobre el medio al mismo tiempo que
de orden político, las investigaciones sobre la cultura popular y la herencia del
muralismo. Al mismo tiempo, hay algunas temáticas aún obliteradas, tales como
el racismo histórico y presente.
ae &E
Arte
os
nsai
Amanda de la Garza Mata 429
Referências
DEBROISE, Oliver. De cómo exhibir el arte mexicano. Ciudad de México: Cubo Blanco, 2017.
EMMELHAINZ, Irmgard. Algunas consideraciones sobre el arte en México en las décadas de
1990 y 2000. Kamchatlka. Revista de análisis cultural, 7, junio 2016: 281-305 (traducido al
inglés).
MEDINA, Cuauhtémoc. Abuso mutuo: ensayos e intervenciones sobre arte postmexicano (1992-
2013). Ed. Edgar Alejandro Hernández y Daniel Montero. Ciudad de México: Cubo Blanco, 2017.
Como citar:
MATA, Amanda de la Garza. Algunas preguntas sobre el arte contemporáneo en
México. Tableros, posiciones y cambios de juego. Arte & Ensaios, Rio de Janeiro,
PPGAV-UFRJ, v. 27, n. 41, p. 423-429, jan.-jun. 2021. ISSN-2448-3338. DOI: https://
doi.org/10.37235/ae.n41.23. Disponível em: http://revistas.ufrj.br/index.php/ae
ae &E
Arte
os
nsai
DOSSIÊ AMÉRICA LATINA | ARTE & COMBATE 430
Clarissa Diniz
0000-0002-2661-8402
Figura 1
Escultura de Amilcar de Castro
Foto: Clarissa Diniz
ae &E
Arte
os
nsai
Em torno da ordem: arte e instituições no Brasil de agora 432
têm pautado uma agenda social de absoluta relevância para a cultura brasileira.
Em especial, o Masp – renascido do ostracismo em que se encontrava –
tem perpetrado um projeto de museu que se faz publicamente por meio de
seminários, publicações, exposições e aquisições de acervo que contemplam
mergulhos monográficos ao passo que também se dão na articulação de hipóteses
histórico-curatoriais operando em ambiciosas exposições coletivas de caráter
transversal, adensando, por sua vez, o debate crítico e advertindo seus públicos
da importância de revisar as construções coloniais das histórias.
Diante dessas instabilidades há, ainda, um movimento que é estética,
social, moral e politicamente bastante claro: uma espécie de “retorno à ordem”
capitaneado por diversas instituições, do que é emblemática a Fundação Bienal
de São Paulo, cuja escapista 33a edição deliberadamente virou as costas para
o país (e o mundo) em chamas em prol de um elogio às dimensões formal e
socialmente conservadoras da arte.2 Por sua vez, o ainda lacônico projeto da 34a
Bienal, sob a curadoria geral de Jacopo Crivelli Visconti, já afirma que irá “oferecer
alternativas ao antagonismo exacerbado que tem caracterizado a arena política
e social dos últimos anos” por meio de ideias como “resiliência, reinvenção,
repetição, tradução e opacidade”,3 e gestos como uma grande articulação que
engajará dezenas de outras instituições paulistas com a edição de 2020 da
Bienal de São Paulo. Como a estratégica ênfase nas instituições em detrimento
da prática artística irá operar nesse movimento de retorno à ordem é aspecto a
ser observado.
Diante desse contexto de ordenamento, engessamento e/ou acovarda-
mento de parte significativa das instituições do país, saltam aos olhos aquelas
exceções que, talvez porque gozem e/ou inventem formas de constituir uma
relativa (quase sempre instável, quando não precária) “autonomia” perante as
formas tradicionais de financiamento da cultura no Brasil, têm conseguido
sustentar políticas curatoriais e educacionais produtoras de resistência ao
achatamento e ao obscurantismo que se querem reinantes no país, como
o complexo do Sesc São Paulo. Contradizendo parte da agenda política da
2
Para leitura mais aprofundada sobre a 33a Bienal de São Paulo, ver https://www.publionline.iar.
unicamp.br/index.php/mod/article/download/4088/3947.
3
Disponível em http://bienal.org.br/post/6994.
ae &E
Arte
os
nsai
Em torno da ordem: arte e instituições no Brasil de agora 434
Paulo e Silvio Frota, Usina de Arte, Fundação Marcos Amaro, Instituto InclusArtiz,
Instituto Casa Roberto Marinho, Instituto PIPA, Instituto Vassouras Cultural. Ao
passo que o mercado de arte e as políticas de formação de acervo das insti-
tuições públicas do país continuam umbilicalmente atrelados ao colecionismo
privado, a emergência desses projetos parece refundar a dimensão pública
desse capital, sublinhando a força histórica do patrimonialismo e as disputas
simbólicas entre velhas e novas elites do país, nas quais a arte e suas alianças
canônicas ocupam, há muito, lugar cativo.
Demonstram-se aliadas à arte brasileira também instâncias de diplomacia
cultural de outros países – em especial, o alemão Instituto Goethe e a suíça
Fundação Pro Helvetia –, que têm investido em projetos experimentais de artistas
interessados em diálogos interculturais. Enquanto instituições como o Centro
Cultural do Banco do Brasil ou produtoras como a Magnetoscópio concentram-se
na produção de exposições blockbusters de artistas estrangeiros no Brasil,
essas instâncias diplomáticas têm atuado de modo significativamente distinto,
viabilizando obras, eventos, residências e publicações em parceria com insti-
tuições de países diversos: políticas que fomentam a circulação internacional de
parte da produção artística brasileira, fomentando, em contrapartida, relações
bilaterais entre artistas, curadores e instituições dos países envolvidos nesses
intercâmbios. O debate em torno da atualização do colonialismo e dos riscos
de extrativismo cultural dessas práticas (como, igualmente, poder-se-ia pensar
sobre as duas décadas de atuação do CAPACETE, que viabilizou a centenas de
artistas estrangeiros produzir, consumir e traficar imaginários sobre o Brasil)
parece ‘pormenorizado’ diante do trágico contexto de perseguição, censura e
extinção de políticas públicas de fomento à produção artística nacional, do que
é uma evidência a tendente ao zero atuação da Funarte, uma outrora histórica
agência de fomento do já extinto Ministério da Cultura.
A legitimidade do que deve ser considerado questões maiores ou menores
nesse processo de disputas e de alianças em torno da arte no Brasil está, todavia,
em franco debate. Se os conflitos políticos (e estéticos) recentemente experi-
mentados parecem contraproducentes para alguns – e, por isso, demandariam
alianças urgentes capazes de contornar, resolver ou os abafar –, para outros,
esse momento movediço parece oportuno por sua capacidade de precipitar
rupturas com a histórica preservação dos privilégios de uns em detrimento dos
ae &E
Arte
os
nsai
Em torno da ordem: arte e instituições no Brasil de agora 436
Como citar:
DINIZ, Clarissa. Em torno da ordem: arte e instituições no Brasil de agora. Arte &
Ensaios, Rio de Janeiro, PPGAV-UFRJ, v. 27, n. 41, p. 430-436, jan.-jun. 2021.
ISSN-2448-3338. DOI: https://doi.org/10.37235/ae.n41.24. Disponível em:
http://revistas.ufrj.br/index.php/ae
ae
os
nsai
DOSSIÊ AMÉRICA LATINA | ARTE & COMBATE 437
&E
Arte
Rodolfo Andaur
rodolfoandaur@gmail.com
1
Cabe recordar que Chile posee más de cinco mil kilómetros de territorio continental y está
PPGAV/EBA/UFRJ
Rio de Janeiro, Brasil
dividido en tres grandes zonas geográficas: norte, centro y sur. Frente a esta diversidad paisajística
ISSN: 2448-3338 y ecológica, mi labor como curador e investigador ha circunscrito la desertificación de las historias
DOI: 10.37235/ae.n41.25 locales que combaten a la mencionada centralización.
ae &E
Arte
os
nsai
Nuevas latitudes del arte contemporáneo 438
que han creado una introspección sobre cuatro ejes de investigación que se
entrecruzan: las transfronteras, la memoria histórica, la realidad indígena y la
sustentabilidad ecológica. Todos estos temas han diversificado la relación
interregional e internacional de más de una treintena de artistas que hoy
tensionan con sus voces aquella incertidumbre provocada por los vaivenes
políticos que se avecinan.
En este sentido las experiencias para “curar el arte”,2 las cuales están
implícitas en la curaduría, también promueven la reinstalación del concepto de
“editor de campo”,3 que desde su creación ha puesto en tensión a los espacios
de exhibición y a los mismos gestores de la escena nacional del arte contemporáneo.
La edición de campo pretende ampliar el trabajo curatorial más allá de
una exposición. De este modo la edición de campo revisa la territorialidad y las
geografías con el objetivo de insertar nuevas lecturas en torno a la práctica de
las artes visuales. Esta situación es ampliamente percibida en las ciudades que
he mencionado anteriormente. Por lo que los editores de campo incorporan en
su gestión un pensamiento curatorial que explora desde y hacia la masa crítica
local para fracturar ese pensamiento hegemónico dentro del espacio creativo.
Es más, mi rol político es interrogar sobre la base de ese carácter disfuncional
que vivenciamos día a día producto de una visión social, cultural y económica
enclaustrada en el capital neoliberal.
Con estos antecedentes, destrabaremos aquellas propuestas que marcan
la reciente gestión del arte contemporáneo nacional a través de renovadas
estéticas e imaginarios políticos que reivindican el trabajo desde algunas regiones
alejadas de la supremacia cultural y que ciertamente movilizan singulares
cosmovisones.
2
Frase utilizada por el curador e investigador Félix Suazo en la ponencia “Curar el arte, curar
el país” dentro del contexto de XIV Feria Iberoamericana de Arte, FIA, Venezuela, julio 2005.
3
Justo Pastor Mellado creó el concepto de editor de campo para denominar a los curadores invitados
para la primera Trienal de Arte Contemporáneo de Chile que se llevó a cabo en octubre del
2009. Esta denominación recoge las potencialidades que significan trabajar como curador en
lugares carentes de instituciones tales como escuelas de arte, museos y galerías comerciales. Más
información en http://escenaslocales.blogspot.com/.
ae &E
Arte
os
nsai
Rodolfo Andaur 439
Figura 1 Tríptico para una frontera (bordado sobre razo, medidas variables, 2018)
Leslie Fernández, Tríptico
para una frontera, embroidery
nos conduce por aquellos desplazamientos que son visibles sobre esas fronteras
satin, 2018 nortinas y que explican las similitudes étnicas que poseemos con los países en
Photo: Oscar Concha
conflicto (Perú y Bolivia) y con quienes además compartimos un extenso altiplano.
Por lo que al utilizar la estructura de la bandera chilena e integrar a la misma los
colores de los emblemas de Bolivia y Perú, la artista busca dar cuenta simbóli-
camente de la innegable identidad común que yace sobre estos parajes. Para
ella la soberanía no es un conflicto físico o intangible que esté en cuestión. Es
aquí donde aparece la cita a la poeta y cantante Violeta Parra que en la afamada
canción “Arriba quemando el sol” nos traslada hacia una poética cargada de la
compleja multiculturalidad que vivenciaban los trabajadores del salitre en estos
territorios.
Los proyectos que retocan en esa frágil memoria han revitalizado los
discursos regionalistas que exhiben un par de artistas más ligados a una gene-
ración posdictatorial.4 Es en este contexto que aparecen en la región de Tarapacá
las propuestas de Juana Guerrero y Camilo Ortega.
4
La generación posdictatorial es la que se siente cercana a las problemáticas que aparecen
a principios de la década de los 1990 ante el pacto entre Pinochet y los partidos pro-democracia.
ae &E
Arte
os
nsai
Rodolfo Andaur 441
Figura 2
Juana Guerrero, A-40,
video HD, 2’ 57’’, 2018
5
https://vimeo.com/306692947.
ae &E
Arte
os
nsai
Nuevas latitudes del arte contemporáneo 442
Figura 3
Camilo Ortega, Recabarren,
oil on canvas, 150 x 120cm,
2018
Figura 4
Mauricio Toro-Goya, Águila,
ambrotype photography,
8 x 10 inches, 2013-2018
ae &E
Arte
os
nsai
Nuevas latitudes del arte contemporáneo 444
Figura 5
Gonzalo Castro-Colimil,
project “Kelluwün”
(collaboration), 2018
ae &E
Arte
os
nsai
Rodolfo Andaur 445
Figuras 6 e 7 han sido el hilo conductor para que Castro-Colimil, junto a un grupo de gestores
Colectivo ultimaesperanza,
project el arco vive dentro
y artistas, produzca encuentros que expongan la realidad de la nación Mapuche
de mí, 2018-2019 dentro de este escenario ‘democrático’ que promueve un documentado maltrato.
Ante estos dramáticos sucesos, la acción de este artista es de encuentro
con el idioma dentro del acto del trawün (traducido al español como encuentro de
personas), que pretenden catalizar, desde una perspectiva mapuche, una serie
de prácticas ancestrales como el mismo trawün, así como también el kelluwün
(colaboración) para finalmente entablar un nvtram (diálogo) con algunas comuni-
dades indígenas que residen, específicamente, en la zona costera de esta región.
Frente al marco austral y extremo de la región más sureña del continente
americano, aparece en escena el colectivo ultimaesperanza (conformado por
Sandra Ulloa y Nataniel Álvarez) que desde hace más de una década recorrre
esta ensimismada geografía para evocar los vestigios de las cruentas matanzas
que los colonos europeos organizaron en contra de los indígenas.
Una de sus últimas propuestas, el arco vive dentro de mí (video, instalación
y sonido, 2018-2019), nos invita a percibir esa relación dialógica entre arte y
memoria, donde la memoria como construcción simbólica de sentidos transforma
las imágenes para reinventar el fatigoso pasado y presente colonial.
El colectivo ultimaesperanza encontró una fotografía del rumano Julio
Popper (1857-1893) quién fue catalogado como un aventurero y cazador
de indios. Este personaje confeccionó un álbum fotográfico que describe su
ae &E
Arte
os
nsai
Nuevas latitudes del arte contemporáneo 446
Rodolfo Andaur es curador y gestor cultural quién ha sido uno de los principales
articuladores de diversos proyectos de arte contemporáneo, así como también
colaborador de incontables políticas de fomento para el área de las artes visuales
desde el norte de Chile. Además ha formado parte de equipos curatoriales que han
reflexionado sobre el antropoceno, el cambio climático y las eco-geopolíticas en
América Latina, una situación que ha justificado su participación en residencias
curatoriales en países tales como Alemania, Brasil, Corea del Sur, Escocia, España,
Estados Unidos, México, Polonia y Singapur. Por otro lado, su trabajo como curador
ha sido destacado en el campo de la escritura a través de la cual ha difundido
exposiciones, metodologías y proyectos de varios artistas visuales en revistas,
diarios y blogs. Actualmente trabaja en las dinámicas que desprenden los viajes
de exploración territorial en Chile, Colombia y México.
6
Varios pensadores, ligados a la curaduría en América Latina, como Amanda de la Garza Mata (México),
Mónica Hoff (Brasil), Michelle Sommer (Brasil) y Renata Cervetto (Argentina) han estado generando
escritos, en los últimos años, en torno al quehacer del curador más allá de la práctica expositiva.
ae &E
Arte
os
nsai
Rodolfo Andaur 447
Referências
Como citar:
ANDAUR, Rodolfo. Nuevas latitudes del arte contemporáneo. Arte & Ensaios, Rio
de Janeiro, PPGAV-UFRJ, v. 27, n. 41, p. 437-447, jan.-jun. 2021. ISSN-2448-
3338. DOI: https://doi.org/10.37235/ae.n41.25. Disponível em: http://revistas.
ufrj.br/index.php/ae
ae &E
Arte
os
nsai
DOSSIÊ AMÉRICA LATINA | ARTE & COMBATE 448
Figura 1
Rosana Paulino, Bastidores,
imagem transferida sobre
tecido, bastidor e linha de
costura, 30cm de diâmetro,
1997, gentilmente cedida
pela artista
Figura 2
Flavio Cerqueira, Amnesia,
látex sobre bronze,
129 x 42 x 41cm, 2015,
gentilmente cedida
pelo artista
Foto: Romulo Fialdini
ae &E
Arte
os
nsai
Vozes negras e suas amplificações nas artes visuais brasileiras 452
intersecções entre raça, teorias cuir e pós-colonialismo, sendo hoje uma das
figuras mais interessantes da arte contemporânea brasileira − todos exigem
continuamente a assunção de ferramentas que sejam capazes de se mover
entre os tempos dos tumbeiros, as diferentes ficções de modernidade, as
permanências e estratégias de resistências de agentes negros na vida e nas
artes visuais brasileiras e seu entrelaçamento com as experiências afrodiaspóricas.
Esses dados não podem mais ser adendo nas pesquisas empreendidas no
campo da história da arte brasileira, bem como da sua crítica e de empreendi-
mentos curatoriais, sob o risco de incorrermos em abordagens superficiais ou
completamente esvaziadas dos sentidos que evocam. As proposições poéticas
de artistas negros brasileiros reúnem diferentes temporalidades e provocam
outras histórias para a arte. Histórias que não podem continuar a fazer ouvidos
moucos diante das vozes que as assombram, assaltam suas certezas e exigem
ocupar o centro dos debates em um tempo turvo da sociedade e da vida
democrática brasileira.
Igor Moraes Simões é doutor em artes visuais − história, teoria e crítica da arte
(PPGAV-UFRGS) e professor adjunto de história, teoria e crítica da arte, bem como
de metodologia e prática do ensino da arte (UERGS). Foi curador educativo da
Bienal 12 (Bienal do Mercosul) e membro do comitê de curadoria da Associação
Nacional de Pesquisadores em Artes Plásticas (Anpap), do Núcleo Educativo
UERGS-MARGS e do comitê de acervo do Museu de Arte do RS-MARGS. Trabalha
com as articulações entre exposição, montagem fílmica, histórias da arte e
racialização na arte brasileira e visibilidade de sujeitos negros nas artes visuais.
Autor da tese Montagem fílmica e exposição: vozes negras no cubo branco da arte
brasileira. Faz parte do Flume-Grupo de Pesquisa em Educação e Artes Visuais.
Contribui com publicações brasileiras e estrangeiras, bem como eventos nacionais
e internacionais.
ae &E
Arte
os
nsai
Igor Moraes Simões 453
Referências
BARROS, Janaína. A invisível luz que projeta a sombra do agora: gênero, artefato
e epistemologia na arte contemporânea brasileira de autoria negra. Tese de
Doutorado. Universidade de São Paulo, USP, 2018.
Como citar:
SIMÕES, Igor Moraes. Vozes negras e suas amplificações nas artes visuais brasileiras.
Arte & Ensaios, Rio de Janeiro, PPGAV-UFRJ, v. 27, n. 41, p. 448-453, jan.-jun.
2021. ISSN-2448-3338. DOI: https://doi.org/10.37235/ae.n41.26. Disponível
em: http://revistas.ufrj.br/index.php/ae