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COLEÇÕES DE ARTE

EM PORTUGAL E BRASIL
NOS SÉCULOS XIX E XX
COLEÇÕES REAIS E COLEÇÕES OFICIAIS

Maria João Neto ∙ Marize Malta


(eds.)
COLEÇÕES DE ARTE
EM PORTUGAL E BRASIL
NOS SÉCULOS XIX E XX
COLEÇÕES REAIS E COLEÇÕES OFICIAIS
COLEÇÕES DE ARTE
EM PORTUGAL E BRASIL
NOS SÉCULOS XIX E XX
COLEÇÕES REAIS E COLEÇÕES OFICIAIS

Maria João Neto ∙ Marize Malta


(eds.)
TÍTULO
Coleções de Arte em Portugal e Brasil nos séculos XIX e XX
Coleções Reais e Coleções Oficiais
COORDENAÇÃO
Maria João Neto
Marize Malta
IMAGEM DA CAPA
Enrique Casanova, ‘Sala da Música do Palácio da Ajuda’,
c. 1889-1895, Aguarela, Inv. 55450/8, PNA-DGPC.
DESIGN E PAGINAÇÃO
Nuno Pacheco Silva
Nuno Ribeiro
DOI
http://doi.org/10.30618/9789896586836
ISBN
978-989-658-683-6
DEPÓSITO LEGAL
476571/20
DATA DE EDIÇÃO
Novembro de 2020
EDIÇÃO
CALEIDOSCÓPIO – EDIÇÃO E ARTES GRÁFICAS, SA
Rua Cidade de Nova Lisboa, Quinta Fonte do Anjo, 1-A.
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LIVRO NO ÂMBITO DO VII COLÓQUIO INTERNACIONAL


“COLEÇÕES DE ARTE EM PORTUGAL E BRASIL NOS
SÉCULOS XIX E XX: COLEÇÕES REAIS E COLEÇÕES OFICIAIS”
PALÁCIO NACIONAL DA AJUDA, 21 A 24 DE OUTUBRO DE 2020

A grafia dos textos é da responsabilidade dos respetivos autores.


APRESENTAÇÃO

Muitos artistas aspiravam em ter como encomendadores ou mece-


nas os membros das Casas Reais. Exemplos de um gosto refinado, as
suas escolhas e opções serviam de referência a nobres e burgueses en-
dinheirados, incrementado o negócio da produção artística. À medida
que as oficinas artesanais se transformam em modernas firmas comer-
ciais de uma variedade requintada de artes visuais e decorativas, ter o
privilégio de servir uma Casa Real e alcançar o estatuto de ‘fornecedor
oficial’ tornou-se uma posição desejada. Segundo os preceitos do mer-
cado, são elaborados atrativos catálogos, com cuidadas descrições e in-
tegrado gradualmente o poder sugestivo da imagem. Diversos agentes
são envolvidos no processo de aquisição, em particular quando este se
desenrola no estrangeiro, tendo as Casas Reais e Oficiais, nos respetivos
diplomatas, intermediários diligentes e eficazes. Quando as aquisições
se processam no mercado das antiguidades, os mecanismos são seme-
lhantes e as escolhas feitas constituem tendências a seguir.
A prática das coleções reais acaba por servir de modelo para cole-
ções governamentais (presidenciais, regionais e municipais), as quais,
diante de outras temporalidades, adotam perfis particulares. Do mesmo
modo, os presentes entre chefes de Estado também geram coleções ofi-
ciais, permitindo a continuidade de oportunidades para outras gerações
de artistas, designers, marchands, galerias e oficinas.
A memória dos perfis das coleções reais é garantida nos museus na-
cionais e em alguns palácios que foram musealizados, servindo de refe-
rência a muitos outros colecionadores e desencadeando um comparti-
lhamento com o público de determinados gostos e tipologias artísticas,
questão que permanece semelhante nas coleções oficiais de Estado.
Muitas obras e objetos pertencentes a essas coleções estão hoje disponí-
veis em museus sem, contudo, serem identificadas, dificultando perce-
ber suas particularidades e estratégias de aquisição e incorporação.

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A partir dessas questões, os estudos da presente publicação trazem
importantes contribuições sobre o elaborado processo de mercado, os
fenómenos de gosto, tendência e influência criados a partir de diversas
coleções reais e oficiais em Portugal e Brasil.

Maria João Neto


Marize Malta

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A COMPRA DA COLECÇÃO DE PINTURA
DE CHARLES-JOSEPH, PRÍNCIPE DE
LIGNE (1735–1814), PELO PRÍNCIPE
REGENTE D. JOÃO (1767–1826)
E O SEU IMPACTO NAS COLECÇÕES
DO MUSEU NACIONAL DE BELAS
ARTES DO RIO DE JANEIRO

ANA MAFALDA TÁVORA DE MAGALHÃES BARROS


Doutoranda/Universidade Autónoma de Lisboa. Técnica Superior PNA/Biblioteca da Ajuda.

Resumo Palavras-chave
É nosso propósito apresentar um “caso de Príncipe de Ligne; Príncipe Regente D. João;
estudo”, relativo à compra de um conjunto Coleção de Pintura; Museu de Belas Artes do Rio
de pinturas da colecção do Príncipe Charles- de Janeiro.
Joseph de Ligne, em 1795, pelo então Príncipe
Regente D. João, cuja negociação terá envolvido
destacados elementos da elite nobiliárquica
portuguesa. Este trabalho insere-se no âmbito
mais amplo do estudo sobre os legados materiais
do Antigo Regime e da sua importância na
formação das actuais colecções públicas de arte.
Procuramos, através de documentação inédita
dos Arquivos Nacionais da Torre do Tombo,
bem como de catálogos e documentação
relativos ao acervo do Museu de Belas Artes
do Rio de Janeiro, aprofundar o conhecimento
sobre as colecções régias de arte de D. João VI,
identificar pinturas que adquiriu no período
em que exerceu a regência do Reino (a partir
de 1792), bem como a trajectória daquelas, das
colecções régias, até à sua posterior incorporação
nas colecções públicas de arte, no século XIX,
como consequência da criação das instituição
museológicas no novo Reino.

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COLEÇÕES DE ARTE EM PORTUGAL E BRASIL NOS SÉCULOS XIX E XX

A História do coleccionismo em Portugal, no Final do Antigo


Regime, é um campo no qual, à falta de levantamentos e estudos siste-
matizados, persistem desconhecimento e dúvidas. Talvez por essa ra-
zão investigadores que se têm consagrado ao estudo das colecções de
arte em Portugal ignorem o papel de D. João VI (1767–1826), naque-
le domínio. Paulo Varela Gomes (1952–2016), na recensão à obra de
Ângela Delaforce, dedicada ao estudo da arte e seus patronos no século
XVIII, em Portugal, referindo-se à falta de ilustrações da mesma, dá
uma resposta possível – “Its real cause is the fact that many works either
no longer exist or their whereabouts are unknown, which also explains
why Portugal´s art collections and patrons have not attracted more inter-
national attention”, levantando, em consequência, a importante ques-
tão – “What happened to most of the objects acquired by the Portuguese
court and nobility from the sixteenth to the eighteenth century?”1.
A dispersão dos conjuntos, por força de vicissitudes várias, de en-
tre as quais se salienta a decadência e o endividamento das principais
Casas da nobreza de corte, com a consequente venda de espólios, para
pagamento de dívidas; a ida da corte para o Brasil, em 1807, nesse movi-
mento deslocando bens e acervos documentais; “a dificuldade de deter-
minar, na maioria dos casos, uma segura concordância entre os docu-
mentos escritos”, no caso de estes estarem acessíveis, o que nem sempre
se verifica, “e os quadros existentes”2, restauros pouco criteriosos que
alteraram a configuração das obras, entre outras dificuldades, tornaram
este um exercício de nem sempre assegurado êxito.
É, assim, nossa intenção, através de um “caso de estudo”, isto é, a
compra da colecção de pintura do Príncipe Charles-Joseph de Ligne,
em 1795, pelo então Príncipe Regente D. João, contribuir para o melhor
conhecimento das colecções régias de arte, identificar modos de aquisi-
ção e personalidades intervenientes, esclarecer possíveis trajectórias das
obras das colecções régias, até à sua posterior incorporação nas colec-
ções museológicas públicas, no século XIX.

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COLEÇÕES REAIS E COLEÇÕES OFICIAIS

PODER E APARATO SIMBÓLICO

O nosso trabalho segue a tese de Paulo Varela Gomes, segundo a


qual, “os anos decorridos entre 1780 e a 1ª invasão napoleónica cons-
tituíram um dos períodos mais ricos e activos da história artística de
Portugal – correspondendo aliás a um ciclo de grande prosperidade eco-
nómica”, justificando que “o que sucedeu então em Portugal, especial-
mente do ponto de vista da encomenda de estado (mas também da priva-
da) de quadros e painéis de pintura de história, sustenta favoravelmente
a comparação com o ocorrido na própria Grã-Bretanha – onde, (…) o
estado e os particulares não manifestavam interesse senão pelo retrato ou
pela pintura dos “Grandes Mestres”3. Perspectiva inovadora que impor-
ta salientar, por contrariar a tese de uma quase total ausência de vida
cultural na corte dos Braganças, muito explorada pela historiografia
oitocentista e novecentista.
É com este pano de fundo que há uns anos, dando início ao es-
tudo e levantamento documental relativos às colecções de arte que a
Rainha D. Carlota Joaquina (1775–1830) reunira no Paço-Quinta do
Ramalhão, perseguia então a hipótese de a sua origem radicar, em
parte, na inúmeras vezes mencionada compra de pinturas da colecção
do Príncipe de Ligne, efectuada pelo então Príncipe Regente D. João,
por intermédio de D. Lourenço de Lima (1767–1839), embaixador em
Viena de Áustria, de 1794 a 1801. Tal suposição fora apresentada pela
historiadora-museóloga Paula Mesquita Santos4, no seu artigo pionei-
ro sobre aquelas colecções e tinha como fundamento uma carta que
Vieira Portuense (1765–1805) dirigira a D. Rodrigo de Souza Coutinho
(1745–1812), 1º Conde de Linhares, na qual o pintor tentara vender
à Coroa as pinturas que reunira no seu périplo por Itália. Escrevera
Vieira, de Londres, em 17 de Julho 1798, que “Nos quadros igualmente
faria a mesma coiza, querendo algum tempo como sei fex o Principe de
Line dos Paizes Baixos que tendo em Vienna a sua colleção de Pinturas
por via do Excellentissimo Senhor Dom Lourenço de Lima cedeu a Vossa
Magestade Alteza a dicta colleção por 50 mil cruzados recebendo por spa-
ço de 10 annos a soma de 5000 cruzados muito mais achando-se a dicta

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COLEÇÕES DE ARTE EM PORTUGAL E BRASIL NOS SÉCULOS XIX E XX

colleção rica dos flamengos e necessaria de ser guarnecida dos grandes


mestres Itallianos como justamente são os meos (…)”5. Não sendo certo
que a negociação dos quadros de Vieira tivesse tido sucesso, contraria-
mente à relativa à sua coleção Bodoniana, que se encontra na Biblioteca
Nacional de Lisboa, deixou, no entanto, um lastro, por vezes utilizado,
sempre que se tratava de questionar a origem dos acervos pictóricos
régios, nomeadamente quando esta era incerta. Já no séc. XIX, o Conde
Athanasius Raczinsky (1788–1874) no seu périplo pelas Casas nobres
e palácios de Lisboa, na procura de colecções de arte, referira que no
Palácio Real da Ajuda, as obras de pintura antiga seriam provenientes
da colecção do Príncipe de Ligne – “Hors les anciens tableaux d´Ajuda
que je crois proviennent en grande partie d´une collection du prince de
Ligne (…) et parmis lesquels il y en a de bons, la cour ne possède guè-
re d´obets d´art qui méritent d´être cités”6. Juízo crítico, quase sempre
aplicado pelos estrangeiros, nem sempre inteirados das especificidades
lusitanas. E nem sempre acolhidos nos interiores das casas nobres, salvo
raras excepções, de que foram notórios os casos de William Beckford
(1760–1844) e do próprio Raczinsky.
Quis a fortuna que quando realizávamos a pesquisa documental nos
Arquivos da Torre do Tombo, para o estudo das colecções de arte de
D. Carlota Joaquina, localizássemos a tantas vezes citada e nunca es-
clarecida lista das pinturas que o Príncipe de Ligne vendera ao então
Príncipe Regente de Portugal.
No entanto, se aquele conjunto documental permitia comprovar
agentes e processos de aquisição de obras de arte pela corte mariana e
joanina, nele não se encontrava relação com o processo de formação da
colecção da futura Imperatriz Rainha, cujo esclarecimento estava, em
parte, em documentação guardada na Biblioteca da Ajuda7. Mas per-
mitiu esclarecer um capítulo do estudo das colecções régias de pintura,
no final do Antigo Regime.

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COLEÇÕES REAIS E COLEÇÕES OFICIAIS

LIBERALIDADE E “RÉGIA MUNIFICENCIA”

A 2 de julho 1795, D. Lourenço de Lima, então embaixador em


Viena de Áustria, participa a Luís Pinto de Sousa Coutinho, Secretário
de Estado dos Negócios do Reino, da Guerra e dos Estrangeiros, que
“O Príncipe de Ligne, chefe de huma das mais respeitáveis casas dos Países
Baixos (…) tendo perdido os imensos bens que aly possuía, hé obrigado,
para subsistir a vender o pouco que poude salvar” [pedindo] “com irre-
sistível instancia quizesse propor à nossa corte a acquisição de parte da
sua galleria de preciosos quadros”, de que lhe enviara nota. Escreve o
Embaixador ter então prometido fazer chegar à corte carta particular
sobre aquela matéria, insistindo que se tratava “de huma aquisição pre-
ciosa ao módico preço de 50 mil florins, pagos ou com huma renda per-
pétua de 2500 florins ao ano, ou de 5 mil em dez anos” e que, em caso de
anuência por parte do soberano, tal gesto representaria “hum beneficio
digno da grandeza de Sua Magestade”. Era, nas palavras do Embaixador,
dupla a vantagem, pois não só “augmentar[ia] a sua regia colecção com
quadros dignos della”, como empregaria “a sua régia Munificencia a fa-
vor de hum homem tão respeitável pelo seu nascimento e pela justiça do
motivo que o faz infeliz”. Comprometia-se, de igual modo, a remeter a
“Nota ou lista dos quadros e das raridades pela primeira ocasião e pela via
de Génova por não carregar tanto a Posta”, pedindo uma “resposta par-
ticular” sobre aquele assunto8. Datada do mesmo dia 2 de julho, seguia,
em correio diferenciado, a lista das obras objecto do negócio, não sendo
certa a data em que teria chegado às mãos do ministro português.

QUEM ERA CHARLES-JOSEPH, PRÍNCIPE DE LIGNE


(1735–1814) QUE PROPUNHA A VENDA DE PARTE DA SUA
COLECÇÃO DE PINTURA AO PRÍNCIPE REGENTE DE PORTUGAL

Charles-Joseph de Ligne, oriundo dos Países Baixos, pertencia a


uma das mais antigas e ilustres casas da velha nobreza católica europeia.
Com uma vasta cultura e relacionando-se com a mais alta aristocracia e

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COLEÇÕES DE ARTE EM PORTUGAL E BRASIL NOS SÉCULOS XIX E XX

os mais destacados intelectuais do seu tempo, fora, de acordo com o seu


biografo, Philip Mansel, “un courtisan professionnel”, numa época em
que as cortes reais detinham poder e reinavam sobre a cultura9.
Viajante incansável, espírito culto e livre, deixou nas suas Mémoires e
em muitos outros escritos, as suas impressões sobre monarcas, políticos,
militares, filósofos, homens de letras, intelectuais, com os quais se rela-
cionou, expressando um pensamento próprio sobre os ambientes das
cortes de Versailles, de Sans-Souci, de São Petersburgo, de Viena, que
frequentou enquanto príncipe do Sacro Império Romano Germânico.
Assistiu à queda da monarquia francesa, e à utilização das ideias de
Voltaire (1694–1778), que admirava, e com o qual se correspondeu, para
a destruição de um modo de vida que prezava. É o próprio a afirmar que
“on profanerait le nom de Voltaire et de Rousseau pour renverser les trônes
et les autels, les palais, les châteaux et les lois. Qu´on ne dise point que
c´est la philosophie qui a produit les monstres (...)”, mas sim, considerava,
a ambição de uns quantos, lamentando os crimes cometidos a cobro de
ideias que ambicionando o progresso, tinham levado ao que apelidava
de “barbárie”10.
Os altos cargos desempenhados e os serviços militares prestados,
ao longo de gerações, ao serviço dos Habsbourg, tinham cumulado os
Príncipes de Ligne de prestígio e património, sendo detentores, à volta
do Palácio de Beloeil, a casa de família, de vastos domínios que se esten-
diam de Bruxelas à fronteira com a França. Porém, com a ocupação dos
Países Baixos Austríacos, na sequência da derrota infligida pelos exérci-
tos napoleónicos, aos das forças da coligação do Sacro Império Romano
Germânico, na batalha de Fleurus, em 25 de Junho de 1794, a região de
Hainaut, onde a família detinha bens, ficara sob administração francesa.
Com o seu património sob sequestro, o então Príncipe de Ligne,
Charles-Joseph, procura, refúgio em Viena, capital do Império, onde se
instala. No entanto, e, como era comum no estrato social ao qual perten-
cia, os meios de que dispunha, para acudir às inúmeras despesas que o seu
estilo de vida comportava, eram sempre insuficientes. Nas suas Mémoires,
Charles Joseph desabafa “La vie est un rondeau; elle finit à peu près comme
elle a commencé; les deux enfances en sont une preuve (...). Des créanciers,

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COLEÇÕES REAIS E COLEÇÕES OFICIAIS

des usuriers dans mon antichambre, comme au temps où j´étais reduit à


la maigre pension paternelle; des emprunts que je fais sous un pretexte fas-
tueux et qui servent à satisfaire des besoins réels, à peu prés comme je faisais
à vingt ans aux banques de pharaon (...)”11.
Na sua antecâmara precipitavam-se os credores, visitas pouco dese-
jáveis, pois, como confessa, “me voilà donc pauvre gentilhomme aux ex-
pedients ainsi que j´ai commencé”12. Tais contrariedades não o inibiam,
contudo, de viver “entouré d´une large maisonnée”, comparando a sua
actual residência, às suas próprias ideias, considerando-a “la seule ou-
verte dans Vienne. J´ai six plats à dinner, cinq à souper. Arrive qui veut,
s´asseoit qui peut. Quelques fois lorsque les soixantes personnes qui la fré-
quentent arrivent et s´y rencontrent en même temps, mes chaises de paille
n´y suffisent pas (...)”13.
Apesar de continuar a debater-se, como escreve o seu biógrafo, en-
tre “une nuée de dettes et des plans pour s´en sortir”14, Ligne afirmava-
-se como um grande senhor na corte dos Habsbourg, mesmo que para
tal continuasse a contrair dívidas. É o próprio a admitir – “J´aime assez
à faire le beau dans les rues de Vienne, à cheval derrière la voiture de
l´empereur, aux grands cérémonies où je remplace le grand chambellan
...”15. Numa sociedade profundamente hierarquizada, na qual as des-
pesas de representação e os consumos sumptuários, eram instrumen-
to indispensável de auto afirmação, Charles Joseph não escapava a um
padrão de comportamento comum na alta aristocracia, das sociedades
pré-industriais, para a qual, segundo estudou Elias, “ses dépenses lui sont
dictées – indépendamment de ses ressources – par son rang et les obliga-
tions de représentation imposées par la société”16. Ligne actuava, pois, de
acordo com normas e valores compatíveis com o estatuto da Casa e li-
nhagem secular que representava17.
A venda de património, isto é, de parte das colecções de arte que,
com a ajuda do seu secretário, conseguira deslocar para Viena, tornara-
-se uma forma de minorar as faltas de liquidez que enfrentava. O pró-
prio confessa, em 1796, aos seus leitores, “(…) un temps où les revolu-
tions privent de tout secours. J´ai vendue pour vivre mes tableaux, ma
vaisselle, et je vends le peu d´esprit qui me reste”18.

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COLEÇÕES DE ARTE EM PORTUGAL E BRASIL NOS SÉCULOS XIX E XX

A RESPOSTA DA CORTE PORTUGUESA À PROPOSTA


APRESENTADA PELO PRÍNCIPE DE LIGNE

Não tardou a réplica à proposta que D. Lourenço de Lima apresen-


tara à corte portuguesa pois, apesar das dificuldades nas comunicações,
com data de 12 de Novembro desse mesmo ano, já o Embaixador in-
formava para Lisboa que – “Sexta feira 6 do corrente tive[ra] a honra de
receber o despacho” com “data de 24 de Outubro e com elle as felizes no-
ticias da saúde de Suas Alt.as Reais Os Príncipes Nossos Senhores (…)”,
bem como, no mesmo, “tive[ra] também o gosto de receber as certezas
(?) de que Sua Mag.de que D. G.de consentia na compra dos quadros do
Príncipe de Ligne pelo preço de 50000 florins pagos no discurso de dez
annos, a 5000 florins ao anno”, dando nota do regozijo e das “demons-
traçoens de reconhecimento, de alegria e de sincera gratidão”, não só por
parte do Príncipe, como do “numeroso partido de parentes e amigos”
daquele “omem tão digno e tão benemérito pelo seu nascimento, pelas
suas qualidades, pelo seu actual infortúnio, e pella honrosa causa delle”,
manifestando, de novo, quanto era de “louvar com respeitoso reconheci-
mento o Nome e actitude do Príncipe Nosso S.r que fazendo huma aqui-
sição a preço equitativo, mas em circunstâncias que fizerão hesitar outros
soberanos a quem elle os tinha offerecido, dá mais huma prova da sua
generosa e illuminada virtude e fixa para sempre o sincero agradecimento
deste ilustre infeliz”. Informava, igualmente, ter feito “passar ao Príncipe
o primeiro pagamento dos 5000 florins de que elle tanto necessita[va]”,
e que iria, “em poucos dias”, na “companhia do mais hábil pintor (…) a
examina[r]” os quadros, deixando para a posta próxima a informação
sobre o “melhor methodo de [os] fazer transportar directamente a Lisboa
e com a possível brevidade”19.
Depreendemos das palavras do Embaixador que a compra fora
efectuada sem a observação das pinturas, tendo sido valorizada, es-
sencialmente, a intenção de fazer um gesto magnânimo, em nome do
Príncipe Regente de Portugal, na corte de Viena, isto é, a aquisição de
uma colecção onde constavam nomes sonantes da pintura europeia, o
que permitia à Coroa aumentar as suas colecções próprias de pintura,

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COLEÇÕES REAIS E COLEÇÕES OFICIAIS

demonstrando a “generosa e illuminada virtude” do Regente, como afir-


mara D. Lourenço de Lima, bem como a “regia munificência” do sobera-
no, isto é, a “largueza” e “liberalidade”20 do mesmo senhor. O empenho
do Embaixador em levar a bom termo aquela aquisição, é reconheci-
do pelo Príncipe de Ligne, que, nas suas Mémoires, a propósito de uma
“Descida da Cruz”, de Van Dyck, lhe retribui a amabilidade – “Il me
nourrit ce tableau, à present que j´ai tout perdu, par les cinq mil florins
que me fait la cour de Portugal, grâce à l´obligeance du meilleur des hom-
mes, son ministre Lima”21.
As razões que poderiam justificar o facto de “outros soberanos” te-
rem hesitado no negócio, segundo confessava o Embaixador, leva-nos
a equacionar algumas hipóteses: seriam todas as pinturas originais dos
artistas mencionados, ou, em parte, cópias de atelier e, como tal, mais
acessíveis, num momento em que no mercado havia uma grande dis-
ponibilidade de obras de arte, motivada pela desamortização de ordens
religiosas, e o empobrecimento das elites de Antigo Regime? Seria ex-
cessivo o valor pedido, para as obras que eram apresentadas? Teriam
eventuais interessados na corte de Viena padecido da mesma escassez
de meios financeiros, em consequência dos sobressaltos causados pelas
invasões napoleónicas? Dúvidas para as quais não temos respostas segu-
ras. Mas sabemos que nem todas as pinturas seriam originais dos auto-
res mencionados no manuscrito, pois algumas das obras adquiridas que
julgamos ter localizado, correspondem a cópias ou réplicas de atelier, de
outras que se encontram, actualmente, em museus europeus.

O PARTIDO VIENENSE NA CORTE LISBOA

O interesse naquele negócio por parte de D. Lourenço de Lima é mais


fácil de equacionar, pois significava não só agradar a uma personalidade
que gozava de um grande prestígio na Corte Católica dos Habsburgo,
bem como ao seu “partido” na corte de Lisboa, já que Charles-Joseph
de Ligne era parente do 2º Duque de Lafões, D. João Carlos de Bragança
e Ligne de Sousa Tavares Mascarenhas da Silva (1719–1806), sendo os

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COLEÇÕES DE ARTE EM PORTUGAL E BRASIL NOS SÉCULOS XIX E XX

avôs de ambos irmãos. O Duque, que vivera igualmente emigrado na


corte vienense, poderia, agora em Lisboa, intervir a favor do seu paren-
te, junto do Príncipe Regente D. João. A prová-lo está a carta, datada de
14 de Janeiro de 1795, que D. Lourenço de Lima remetera “para o Duque
de Alafoens”, da parte de Ligne, “por entender não podia com decência
deixar de ceder às instâncias do Príncipe de Lignes, que me pediu lha re-
metesse; o qual com toda a Principal Nobreza deste Pays, não cessão de
fazer o Elogio das qualidades Pessoaes do mesmo Duque”, como alguém,
“(Duque de Allafoens) que aqui com tanta razão se adqueriu a mais alta
reputação; e que ainda hoje hé geral e superiormente estimado (…)”22.
A interferência, neste “negócio”, do Duque de Lafões, parente de Ligne e
da família Real de Portugal, é pois plausível, confirmando os laços que
ligavam a corte de Lisboa à de Viena.

O ENVIO DA COLECÇÃO

Sendo a situação política na Europa de uma enorme instabilidade,


como consequência do avanço do exército francês pelos territórios
europeus, a colecção de pinturas foi ficando em Viena. Na corres-
pondência daquela Legação, em carta datada de 16 de Julho de 1796,
D. Lourenço de Lima, após minuciosa descrição da situação militar nos
territórios circunvizinhos, refere “a situação da Itália e os perigos e incer-
tezas da navegação entre Génova e Lisboa”, esperando a aprovação para
a resolução que tomara “de não remeter por ora a Lisboa a colecção de
quadros que Sua Mag.de q D.s Gde foi servida comprar ao Príncipe de
Ligne e que aqui se achão seguros e bem guardados”, afirmando que,
“logo que das circunstancias gerais possa resultar a segurança da remessa”,
a enviaria, “com preferência pela via de Génova”, que lhe parecia a mais
própria, assim cessassem “as inquietaçoens da Itália”23.
Tais condições de segurança só se apresentariam no ano de 1800,
sendo a corte informada pelo Ofício de 9 de Abril, que finalmente, par-
tia, rumo a Lisboa, “a colecção dos quadros” adquirida ao “(...) Príncipe
de Ligne, a quem se paga todos os annos a consignação da decima parte do

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COLEÇÕES REAIS E COLEÇÕES OFICIAIS

preço total por que S. Mag.de foi servida comprarlhe” aquela, “que agora
se remete a Lisboa, como segura no comboio, que vai partir de Trieste
(...)”24, não sendo provável que tardasse muito a sua chegada, uma vez
que os barcos carregavam, de igual modo, cereais necessários ao abaste-
cimento de Lisboa.

A COLECÇÃO DE PINTURA DO PRÍNCIPE DE LIGNE

A colecção adquirida ao Príncipe de Ligne, descrita no manuscrito


Catalogue des tableaux appatenans à Son Altesse le Prince de Ligne, era
constituída por 65 pinturas de dimensões variadas, que iam do retrato
de aparato, às obras de pequenas dimensões dignas de um gabinete de
amador ou, como aquele refere, “propre à figurer dans un Cabinet choisi”.
Integravam-na 24 retratos (36%), 15 pinturas de tema mitológico (23%),
8 pinturas de paisagens (12%), 7 pinturas de temática religiosa (10,7%),
2 pinturas de história (3%), 2 de batalhas, 1 natureza morta, e 6 pintu-
ras de género. A “grande pintura” representada pelos retratos, história da
Roma clássica, a história sagrada e a mitologia; os “géneros menores”, pe-
las naturezas mortas, e a pintura dita de género.
A menor presença de obras de temática religiosa no acervo de Ligne,
bem como o significativo conjunto de pinturas dedicadas aos temas da
mitologia clássica, é compatível com a laicização de gosto, nas socieda-
des do Norte, por influência da cultura das Luzes, nas elites de Antigo
Regime. O significativo número de retratos, e nesta categoria salien-
tando-se os de aparato, relacionamo-lo com uma mundivisão aristo-
crática, pois se a linhagem genealógica era determinante para atestar
a antiguidade e importância de uma Casa, aí estavam os antepassados
ilustres a dar corpo à narrativa. No caso dos Príncipes de Ligne, pe-
los feitos que os haviam evidenciado, no campo militar, ao serviço dos
Habsbourg, pois o ethos militar era central na afirmação de uma Casa
do Antigo Regime.

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COLEÇÕES DE ARTE EM PORTUGAL E BRASIL NOS SÉCULOS XIX E XX

DAS COLECÇÕES REAIS PARA AS ACTUAIS


COLECÇÕES MUSEOLÓGICAS

À falta de referências documentais precisas, apenas podemos presumir


que, após a chegada a Lisboa, as diferentes pinturas tivessem sido acomo-
dadas nos Palácio Reais de Queluz e de Belém, e com menos probabilida-
de no da Ajuda, em consequência do incêndio que ali deflagrara em 1794,
tendo, em parte, partido, nas caixas contendo preciosidades que deixaram
o cais de Belém, rumo ao Brasil, em 1807.
Observando aturadamente a lista das pinturas adquiridas em Viena,
ensaiámos a sua localização nas actuais colecções museológicas nacionais
e nas do Brasil, valorizando uma aproximação de títulos, ou temáticas
compatíveis, semelhança de dimensões e suportes, relativamente aos do
manuscrito, e por último, no caso brasileiro, serem provenientes do le-
gado de D. João VI. O facto de a colecção do Museu de Belas Artes, do
Rio de Janeiro, dispor de vários retratos de Príncipes de Ligne, logo de
imediato dois retratos de aparato, um deles atribuído a Van Dyck, e que
os mesmos faziam parte das colecções reais deixadas no Rio, na sequên-
cia do regresso da Família Real a Lisboa, em 1821, tornava aquela via de
investigação plausível. Isto é, justificava a tese de que parte da colecção
adquirida ao Príncipe de Ligne teria acompanhado a corte, e estaria pre-
sentemente nas colecções museológicas do Brasil.
Por dispormos, neste estudo, de espaço limitado, apenas apresenta-
remos algumas propostas, relativas a pinturas do acervo do Museu de
Belas Artes do Rio de Janeiro que nos parecem corresponder às do ma-
nuscrito de Ligne, deixando para outro exercício a sinalização de alguns
outros títulos, quer nos acervos do Museu Nacional de Arte Antiga, em
Lisboa, quer no Palácio Nacional da Ajuda, que podem confirmar as pa-
lavras de Raczynski, quanto à eventual presença de obras provenientes
da colecção de Ligne, nas colecções reais portuguesas.

18
COLEÇÕES REAIS E COLEÇÕES OFICIAIS

OBRAS DA COLECÇÃO DO PRÍNCIPE DE LIGNE NO


ACERVO DO MUSEU DE BELAS ARTES DO RIO DE JANEIRO

A entrada nº 9 do manuscrito corresponde a uma pintura intitulada


«Portrait en Pied d´un Conte de Nassau», atribuída a “Wan Dyck”, com
as dimensões de “1,7½ pieds” de altura por “1 pied 3 pouces” de largura,
equivalentes a 50 cm por 38 cm, aproximadamente. Tal especificação co-
locava-nos, de imediato, perante a questão de existir, no Museu de Belas
Artes do Rio Janeiro, um retrato com designação semelhante – “Retrato
do Conde João de Nassau-Siegen”, como réplica do atelier de Anton Van
Dyck, óleo sobre tela, registo nº 2378, afecta à colecção que D. João VI
deixara no Brasil, tendo esta, no entanto, dimensões muito superiores,
isto é, 209 cm de altura, por 118 cm de largura25. Após aturada obser-
vação, pois, para um retrato de corpo inteiro, as dimensões apresenta-
das no manuscrito pareciam diminutas, concluímos que a razão para
tal disparidade residiria, provavelmente, no facto de, na elaboração das
cópias do inventário, o copista ter replicado as dimensões do quadro an-
terior, pois, tanto o n.º 8, como o nº 9, apresentam medidas exactamente
iguais, isto é, “1,7 ½” pés de altura, por “1 pied 3 pouces” de largura, isto
é, 50 cm, por 38 cm, aproximadamente. A hipótese de o manuscrito nos
induzir em erro, no que respeita as dimensões, parece plausível.
Diz Zuzana Paternostro ser a pintura do Museu “uma cópia, execu-
tada no século XVII, da obra de Anton van Dyck (1599–1641), cujo ori-
ginal, (colecção do príncipe de Lichtenstein)”, se encontra actualmente na
“Gemalde Galerie, de Viena”26. A ser a mesma que consta no manuscri-
to, não se trata, porém, do retrato de João Maurício de Nassau-Siegen
(1604–1679), que foi governador de Pernambuco, a partir de 1637, con-
forme escreve aquela autora, e repete Yara Moura27, mas sim de Johan,
Conde de Nassau-Siegen (1583–1638), seu meio-irmão, casado com
Ernestine Yolande de Ligne, trisavô do Príncipe Charles Joseph, assim
se justificando a sua presença na Galeria de Ligne.
No que respeita a esta obra do acervo do Museu de Belas Artes do
Rio de Janeiro, que consideramos corresponder à referida no manus-
crito, com título semelhante, trata-se, inegavelmente, de um retrato de

19
COLEÇÕES DE ARTE EM PORTUGAL E BRASIL NOS SÉCULOS XIX E XX

grande qualidade de execução, atribuível ao círculo de Van Dyck e não


ao próprio, significando, como era usual neste tipo de inventários, uma
sobrevalorização das autorias, não sendo feita a distinção entre as obras
originais e as réplicas de atelier.
Com o nº 10, o manuscrito faz referência a um outro retrato,
“Portrait en pied d´un Prince de Ligne. C´est celui qui fut Viceroi de Sicile
et Gouverneur de Milan. La figure est d´un dessein corret et d´un cou-
leur vraie. Les habillemens sont fort bien traités”, com as dimensões de
6 pés, por 3 pés e 7 polegadas, equivalentes a 1,83 m, por 1,10 m, que
consideramos tratar-se da obra descrita no catálogo do Museu de Belas
Artes do Rio de Janeiro, de 200828, como “retrato de Claudio Lamoral”,
ostentando a “Ordem do Tosão de Ouro” e identificado como “Grande de
Espanha”, óleo sobre tela, (192 cm x 113,5 cm), registo nº 2364. A pró-
pria pintura exibe a identidade do retratado, “Claude Lamoral né Prince
de Ligne et du S. Empire Grand DEspagne Chevallier De Lorde De La
Toison Dor VisceRoi De Sicile Gouverneur De Milan (…)”, assim confir-
mando a nossa tese.
Claude Lamoral (1618–1679), 3º Príncipe de Ligne, fora casado
com Klara Marie, condessa de Nassau-Siegen, filha do Conde João de
Nassau-Siegen, correspondente à entrada anterior, pelo que era bisavô
de Charles-Joseph de Ligne, assim se justificando a presença do seu re-
trato na colecção dos Príncipes de Ligne. Distinguira-se militarmente
ao serviço de Filipe IV e Carlos II de Espanha, que o nomearam entre
outros cargos, como Vice-Rei da Sicília e Governador de Milão. Feito
Grande de Espanha, morreu em Madrid, no ano de 167929.
Este género de retratos era essencial numa galeria de pintura de um
aristocrata, pois testemunhavam a ancestralidade da família, bem como a
sua importância em momentos históricos capitais, como teria sido a defe-
sa do Mediterrâneo, pelas forças católicas, face à ameaça turca.
A pintura com o nº 11 no manuscrito é descrita como “Minerve en-
chainant Pegaze. Composition allégorique où le grand talent de Rubens et
son génie se font aisément reconnaître”, com as dimensões de “4 pieds, 6
pouces” de altura e “6 pieds,1 pouce” de comprimento, isto é, 138,162 cm
por 185,587 cm, que deve corresponder à pintura Pégaso, registo nº 2351,

20
COLEÇÕES REAIS E COLEÇÕES OFICIAIS

Fig. 1 – Retrato do Conde João de Nassau-Siegen, Fig. 2 – Retrato de Claudio La Moral, autor
autor desconhecido; óleo sobre tela; 209 x 118 cm; desconhecido; óleo sobre tela; 192 x 113,5 cm;
Museu de Belas Artes do Rio de Janeiro. Museu de Belas Artes do Rio de Janeiro.

Fig. 3 – Pégaso, Jan Boeckhorst (1604–1668); óleo sobre tela;


133 x 168 cm; Museu Belas Artes do Rio Janeiro30.

21
COLEÇÕES DE ARTE EM PORTUGAL E BRASIL NOS SÉCULOS XIX E XX

do acervo do Museu de Belas Artes do Rio de Janeiro, atribuída a Jan


Boeckhorst (1604–1668), discípulo de Rubens e que terá acabado muitas
das suas obras, sendo as dimensões desta, semelhantes às do manuscrito.
No catálogo Colecção de D. João VI, é referida como a representa-
ção do “cavalo alado Pégaso, símbolo da imortalidade, no momento em
que Minerva e Mercúrio lhe põem as rédeas de ouro”31, descrição que se
aproxima do título do manuscrito. O facto de ter pertencido à antiga
colecção do monarca, deixada no Brasil em 1821, reforça a nossa con-
vicção de ter integrado o lote adquirido ao Príncipe de Ligne. Trata-se
de uma das principais obras de pintura europeia, da colecção daquele
Museu, pela qualidade do desenho, tratamento da cor e dinamismo da
representação.
O legado de D. João VI. Em síntese, este foi um exercício ensaiado
a partir do estudo de um manuscrito inédito, do acervo dos Arquivos
Nacionais da Torre do Tombo, no qual ficam patentes as dificuldades e in-
certezas de um trabalho desta natureza. Nele se evidencia, porém, o papel
de D. João VI no campo do enriquecimento das régias colecções de arte,
acção pautada por uma “liberalidade” e “munificência” conformes aos
ideais de um mecenas de Antigo Regime. É, de igual modo, evidente o pa-
pel dos Embaixadores nas cortes europeias, pois, para lá das informações
de carácter político que veiculavam, eram importantes instrumentos, não
só na afirmação da imagem do monarca nas cortes estrangeiras, como em
simultâneo, desempenhavam o papel de mediadores na aquisição de bens
essenciais para o aparato régio, ou para a actualização estética e cultural
da corte lusitana. No Brasil, a acção do Regente e depois Rei, destacou-
-se não só na instalação da máquina administrativa do Estado, como,
no campo cultural, assumiu contornos estruturais, pois que incidiu na
criação de instituições fundadoras de um Estado moderno e autónomo.
Tributamos ao então Regente a ida da Missão Artística Francesa, chefiada
por Joaquim Lebreton, que trouxe, artistas e obras de arte, uma colecção
de pinturas, para a futura Academia Imperial de Belas Artes, que sucedera
à escola Real das Ciências, Artes e Ofícios e que em muito contribuiu para
a renovação do ensino das belas artes, e qualificação arquitectónica e cul-
tural da capital carioca. D. João, ao abandonar o Rio, rumo à Europa, ali

22
COLEÇÕES REAIS E COLEÇÕES OFICIAIS

deixou não só a sua própria colecção de pintura, incorporada, em parte,


na Pinacoteca da Academia, núcleo fundador do Museu de Belas Artes
do Rio de Janeiro, bem como a Biblioteca Régia, com cerca de 60 mil vo-
lumes, contendo obras raras e preciosidades, núcleo fundador da actual
Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro. Talvez por essa razão foram bem
mais generosos os historiadores brasileiros, do que os portugueses, na
apreciação do legado daquele monarca no campo cultural, justificando
a afirmação de Zuzana Paternostro ter sido D. João “grande incentivador
das artes no Brasil”32.

NOTAS
1 GOMES, Paulo Varela, Reviewed Work(s): “Art and Patronage in the Eighteenth-Century Portugal by Angela
Delaforce”, The Journal of the Society of Architectural Historians, vol. 62, n.º 1, Mar. 2003, pp. 159–161.
2 MALKIEL-JIRMOUNSKY, Myron, Pintura à Sombra dos Mosteiros, Atica, Lisboa 1957, pp. 28–29.
3 GOMES, Paulo Varela, “Correntes do Neoclassicismo europeu na pintura portuguesa do século XVIII”, Portugal e
Espanha entre a Europa e Além Mar, IV Simpósio Luso-Espanhol de História da Arte, Instituto de História da Arte,
Universidade de Coimbra, Coimbra, 1988, pág. 480.
4 SANTOS, Paula Mesquita, “A Colecção de D. Carlota de Bourbon, oriunda do Ramalhão, em Sintra […]”, in Vária
Escrita, n.º 2, Sintra, 1995, pp. 261–312.
5 BLANCO, Francisco Cordeiro, “Uma Carta Inédita de Vieira Portuense”, in Boletim do Museu Nacional de Arte
Antiga, Vol. I, n.º 3, Lisboa, 1948, pp. 147–151.
6 RACZYNSKI, Le Comte A., Les Arts en Portugal. Lettres Adressées à la Societé Artistique et Scientifique de Berlin,
Paris, Jules Renouard, 1846, pp. 404–405.
7 As colecções de arte da Rainha D. Carlota Joaquina de Bourbon (1775–1830): da colecção privada aos Museus Públicos.
O manuscrito da Biblioteca da Ajuda: Memórias e Silêncios. Repositório Institucional Camões. Universidade
Autónoma de Lisboa. https://repositorio.ual.pt/handle/11144/4459.
8 Arquivo Nacional da Torre do Tombo (A.N.T.T.), Arquivo do Ministério dos Negócios Estrangeiros, Livro 749, carta
nº 30 de 2 de Julho de 1795.
9 MANSEL, Philip, Le Prince de Ligne le charmeur de l´Europe, Perrin, 2002, pág. 9.
10 LIGNE, Charles Joseph, Memoires du Prince de Ligne, Bruxelles et Leipzig, 1860, pág. 170.
11 LIGNE, Charles Joseph, Idem, 1860, pág. 155.
12 LIGNE, Charles Joseph, Idem, 1860, pág. 155; MANSEL, 2002, pág. 162.
13 LIGNE, Charles Joseph, Idem, 1860, pág. 151.
14 MANSEL, 2002, pág. 75.
15 LIGNE, Charles Joseph, Memoires du Prince de Ligne, Bruxelles et Leipzig, 1860, pág. 151.
16 ELIAS, Norbert, La Société de Cour, Flammarion, 1997, pp. 43–44.
17 ELIAS define esta condição como Status-consumption ethos. Elias, 1997, pág. 48.
18 LIGNE, Charles Joseph, prince de, 1735–1814, Fragments de l´histoire de ma vie, Plon, Paris, 1927, pág. 166. Consulta
online https://archive.org/details/fragmentsdelhist01lign/page/n43/mode/2up. Dia 15.05.20.
19 A.N.T.T., Arquivo do Ministério dos Negócios Estrangeiros, Livro 749, carta nº 51, de 12 de Novembro de 1795.
20 BLUTEAU, Rafael, Diccionario da Língua Portugueza, Officina Simão Thadeo Ferreira, Lisboa, 1789, pág. 104.
21 LIGNE, Prince de, Fragments de l´histoire de ma vie, Paris, Libraire Plon, Paris, 1927, t. I pág.166, cit. por Xavier,
Hugo, “Os Tempos Monárquicos: dos faustos joaninos ao ateliê de D. Carlos”, in Pintura e Mobiliário do Palácio de
Belém, Museu da Presidência, 2005, pág. 28.
22 A.N.T.T., Arquivo do Ministério dos Negócios Estrangeiros, Livro 749, n.º4, 14 de Janeiro de 1795.
23 A.N.T.T., Arquivo do Ministério dos Negócios Estrangeiros, Livro 750, nº 30 de 16 de Julho de 1796.
24 A.N.T.T., Arquivo do Ministério dos Negócios Estrangeiros, Caixa 526.
25 MOURA, Yara, A Coleção de D. João VI, Museu Nacional de Belas Artes, RJ, 2008, pág. 80.
26 PATERNOSTRO, “Pinturas holandesas e flamengas no acervo do Museu Nacional de Belas Arte”, in catálogo A
Presença Holandesa no Brasil, Museu nacional de Belas Artes, RJ, 2003, pág. 10.
27 MOURA, Yara, A Coleção de D. João VI, Museu Nacional de Belas Artes, RJ, 2008, pág. 80.

23
COLEÇÕES DE ARTE EM PORTUGAL E BRASIL NOS SÉCULOS XIX E XX

28 MOURA, Yara, A Coleção de D. João VI, Museu Nacional de Belas Artes, RJ, 2008, pp. 78–80–92.
29 http://dbe.rah.es/biografias/22126/claudio-lamoral-de-ligne-y-lorena, consulta no dia 30.03.2020.
30 https://g.co/arts/gYcxLQnEygaYwqv28, consulado a 30.03.2020.
31 MOURA, Yara, A Coleção de D. João VI, Museu Nacional de Belas Artes, RJ, 2008, pp. 54–55.
32 PATERNOSTRO, Zuzana, Pintura Italiana Anterior ao Século XIX no Museu Nacional de Belas Artes, Catálogo
Raisonné, Tomo I, coord. Luiz Marques, Instituto Brasileiro do Património, 1992, pág. 12.

24
ARTE E DIPLOMACIA NO FINAL
DO ANTIGO REGIME: AS COLEÇÕES DO
CONDE DA BARCA E DO MARQUÊS DE
MARIALVA NA SUA AÇÃO DIPLOMÁTICA
AO SERVIÇO DE PORTUGAL

PATRICIA D. TELLES
Investigadora bolseira de Pós-Doutoramento, Universidade de Coimbra, Coimbra, Portugal.
pat2telles@gmail.com

PAULO SIMÕES RODRIGUES


Professor Auxiliar, Universidade de Évora, Évora, Portugal.
psr@uevora.pt

Resumo Palavras-chave
No Antigo Regime, devido à fluidez das Arte; Diplomacia; Coleções de Arte;
fronteiras entre a vida privada e a oficial e o Marquês de Marialva; Conde da Barca.
incipiente processo da sua profissionalização,
os agentes diplomáticos colocavam os seus
próprios recursos ao serviço da representação
de seus reis. Neste contexto, a partir de obras e
documentos, veremos como as coleções de arte
dois diplomatas portugueses, António de Araújo
de Azevedo (1754–1817), Conde da Barca, e
D. Pedro Joaquim José Vito de Meneses
Coutinho (c. 1775–1823), 6º Marquês de
Marialva, não apenas expressavam os seus gostos
pessoais, mas serviam como instrumentos de
relações exteriores, facilitando a sua inserção
em diferentes cortes.

25
COLEÇÕES DE ARTE EM PORTUGAL E BRASIL NOS SÉCULOS XIX E XX

Na Europa das décadas de transição entre os séculos XVIII e XIX,


dos decénios finais do Antigo Regime, a fronteira entre a vida privada
e a ação oficial ainda era pouco definida; o próprio estatuto diplomáti-
co dos representantes de governos em países estrangeiros era ambíguo,
ainda em processo de profissionalização. A fluidez desta condição fica
demonstrada pela frequência com que estes agentes das cortes euro-
peias tinham de colocar os seus recursos pessoais, inclusive financeiros,
ao serviço da salvaguarda dos interesses dos monarcas que represen-
tavam, de maneira a poderem fazê-lo condignamente. É neste contex-
to que pretendemos examinar alguns elementos das coleções de arte
reunidas por dois diplomatas portugueses, durante o exercício das suas
funções de representação política no estrangeiro, e demonstrar que es-
sas coleções não foram apenas a manifestação de seus perfis intelectuais
e gostos pessoais, mas um instrumento político de relações exteriores.
Facilitavam a sua interação social e política nos territórios por onde
passaram, e serviam como meio de afirmação do seu prestígio cultural
e dos seus soberanos. A partir de um grupo de documentação coeva
que integra correspondência, inventários, fontes literárias e as próprias
obras dessas coleções, hoje em museus portugueses, brasileiros e de ou-
tros países, centrar-nos-emos em dois estudos de caso: o de António
de Araújo de Azevedo (1754–1817), primeiro Conde da Barca, e o de
seu contemporâneo e amigo D. Pedro Joaquim José Vito de Meneses
Coutinho (c.1775–1823), 6º Marquês de Marialva.
António de Araújo de Azevedo nasceu em Ponte de Lima (na região
do Minho, no Norte de Portugal), na freguesia de Santa Maria de Sá,
numa família fidalga de província: era o filho primogénito de António
Pereira Pinto de Araújo de Azevedo Fagundes, senhor da Casa de Sá,
e da Marquesa Maria Francisca de Araújo de Azevedo, senhora da
Quinta da Prova (Ponte da Barca). Estudou Filosofia na Universidade
de Coimbra e embora não tenha concluído o curso, manteve o inte-
resse pela ciência e pelo conhecimento dedicando-se à Matemática e
aos Estudos Históricos. Em 1779, fundou a Sociedade Económica dos
Amigos do Bem Público, cujas atividades lhe proporcionaram o contac-
to com personalidades da mais elevada elite social portuguesa, como o

26
COLEÇÕES REAIS E COLEÇÕES OFICIAIS

Duque de Lafões, D. João Carlos de Bragança e Ligne de Sousa Tavares


Mascarenhas da Silva, primo da rainha D. Maria I. Foi o Duque de
Lafões, com quem estabeleceu uma relação de amizade, que lhe deu aces-
so a uma carreira diplomática e política que atravessou os reinados de
D. Maria I e D. João VI. Enquanto diplomata, foi embaixador extraor-
dinário em Haia (1787–1802), assim como ministro plenipotenciário
em Paris (1795–1798) e São Petersburgo (1802–1803). Em relação aos
cargos políticos que exerceu, foi Secretário de Estado dos Negócios
Estrangeiros e da Guerra (1804–1808 e 1815–1817), Ministro do Reino
(1807–1808 e 1817), Ministro e Secretário de Estado da Marinha e
dos Domínios Ultramarinos (1814–1817), Conselheiro de Estado
(1807–1817) e Presidente da Real Junta do Comércio (1807 e 1817). Em
1808, acompanhou a família real portuguesa na sua fuga da invasão do
exército napoleónico para o Brasil, onde recebeu o título de Conde da
Barca e acabou por falecer [11].
D. Pedro José Joaquim Vito de Meneses Coutinho pertencia ao topo
da hierarquia da aristocracia portuguesa, era 6º Marquês de Marialva e 8º
Conde de Catanhede – os seus pais eram D. Diogo José Vito de Meneses
Noronha Coutinho (5º Marquês de Marialva e 7º Conde Catanhede) e
Margarida Caetana de Lorena. Seguindo a tradição da família paterna,
ingressou muito jovem no exército, em 1786, tendo uma relevante car-
reira militar, à qual não foi estranha a influência do Duque de Lafões,
que era seu cunhado e chegou a comandar o exército português. Em
1803, com a morte de seu pai, herdou o cargo honorífico de Estribeiro-
Mor da Casa Real, representativo da sua elevada condição social. Com
uma educação marcada pelo apreço pela música e pelos livros, a de-
dicação à cultura e à ciência foi, ao longo da sua vida, paralela à sua
carreira militar, tendo sido sócio fundador da Academia das Ciências
e diretor do Arquivo Militar para a Conservação das Cartas Militares,
Geográficas e Marítimas (nomeado em 1802). A sua atividade como em-
baixador iniciou-se em 1807, com uma missão em Paris, para negociar
o casamento de D. Pedro, filho do ainda príncipe regente D. João com
uma familiar de Napoleão Bonaparte. Voltará a Paris como embaixa-
dor extraordinário em 1814, após a derrota de Napoleão e o regresso de

27
COLEÇÕES DE ARTE EM PORTUGAL E BRASIL NOS SÉCULOS XIX E XX

Luís XVIII ao trono francês, a pretexto de apresentar os cumprimentos


de D. João VI ao novo monarca. Nos anos de 1815 e 1816, faz duas in-
cursões a Viena. A primeira ainda durante o Congresso de Viena para
negociar o casamento do príncipe D. Pedro com uma das irmãs do
Imperador da Rússia, Alexandre I. A segunda, mais bem-sucedida, re-
sultou no enlace do mesmo príncipe com D. Leopoldina, Arquiduquesa
da Áustria. De regresso a Paris em 1818, manteve-se mais quatro anos
como embaixador naquela cidade. Voltou a ser nomeado para o posto
parisiense em 1823, mas não chegou a estar cinco meses no cargo, pois,
naquele mesmo ano, faleceu na capital francesa [7, 15].
As respetivas notas biográficas demonstram que as redes familiares
e sociais do Conde da Barca e do Marquês de Marialva foram deter-
minantes no acesso de ambos à carreira diplomática, destacando-se o
Duque de Lafões – parente da Casa Real, era um dos mais influentes no-
bres do reino [15] e fazia parte dos círculos de relações pessoais dos dois
aristocratas (era amigo de António de Araújo de Azevedo e cunhado
de D. Pedro Meneses Coutinho)–, como o protetor que terá propor-
cionado esse acesso. Efetivamente, no início do século XIX, os cargos
diplomáticos eram um domínio em que ainda se fazia sentir o predo-
mínio aristocrático. A necessidade de saber comportar-se e adaptar-se
às cortes estrangeiras e de representar condignamente o seu monarca,
numa época em que não existia uma formação especializada no treino
de futuros embaixadores, levou a que a educação recebida numa casa
nobre fosse considerada a melhor preparação que um diplomata pode-
ria ter. Por outro lado, para os membros da aristocracia, à semelhança
do serviço militar, o serviço diplomático era considerado dignificante e
honorífico, assim como uma importante fonte de benefícios materiais,
concedidos pelos monarcas como recompensa pelos bons serviços pres-
tados à Coroa. Por este motivo, a relação do rei com os seus diplomatas
era fortemente personalizada, baseando-se na confiança pessoal, nos la-
ços de serviço e nos vínculos de fidelidade [1]. Daí ser prática comum os
diplomatas disporem dos seus recursos materiais para melhor servirem
o seu rei. A posse de coleções de arte não ficou de fora deste costume.
As coleções de arte e os acervos bibliográficos eram a expressão

28
COLEÇÕES REAIS E COLEÇÕES OFICIAIS

material do estatuto social e económico, dos interesses culturais e da


sensibilidade estética dos seus proprietários. Por isso, quando os seus
proprietários eram diplomatas, foram frequentemente utilizados para
estabelecer, no estrangeiro, interações sociais e ligações culturais que
conduzissem a relações de confiança úteis às suas missões diplomáticas.
A historiografia mais recente tem mostrado como, no Antigo Regime,
em contexto diplomático, político ou comercial, os rituais sociais, como
as refeições, contribuíam para a consolidação de relações sociais de con-
fiança [6]. Era usual que esses rituais sociais implicassem o acesso e a
partilha de coleções e bibliotecas dos anfitriões diplomatas como meio
de salientar os interesses partilhados, promover as afinidades sócio-
-culturais e assim reforçar cumplicidades pessoais com indivíduos que
pudessem ser úteis às suas atividades nos territórios em que estavam
colocados. Nos seus diários, John Quincy Adams (1767–1848), ministro
dos Estados Unidos da América em Haia e futuro presidente daquele
país (de 1825 a 1829), descreve um jantar em casa do embaixador por-
tuguês António de Araújo Azevedo, ocorrido a 6 de Junho de 1796, em
que também estiveram presentes, entre outros convidados, os ministros
da Prússia e da Dinamarca, durante o qual se discutiu literatura, tendo o
anfitrião mostrado, após a refeição, alguns exemplares da sua biblioteca,
nomeadamente uma edição de Orlando Furioso de Ariosto (1474–1533),
impressa por John Baskerville (1706–1775) e ilustrada com gravuras do
italiano Francesco Bartolozzi (1725–1815), artista que foi o autor do ex-
-libris do Conde da Barca [8, 13, 15]. Na sua narrativa do jantar, John
Adams refere a literatura como a subject in which M. d’Araújo delights
[15], entendendo-a como uma manifestação da civilidade e cultura cos-
mopolita do embaixador português e mostrando como servia de dispo-
sitivo de identificação e aproximação entre os representantes de cortes
e países tão distintos como a Prússia ou os Estados Unidos da América.
A relevância da cultura e, em particular, da arte para as relações di-
plomáticas entre Estados na Europa das Luzes está patente numa carta
enviada pelo Marquês de Marialva, de Paris, a 27 de Setembro de 1815,
a António de Araújo de Azevedo. Nessa missiva, o Marquês de Marialva
informava como a França pós-napoleónica propiciava a oportunidade

29
COLEÇÕES DE ARTE EM PORTUGAL E BRASIL NOS SÉCULOS XIX E XX

de adquirir obras de arte a preços baixos. Aludia, em particular, a uma


venda próxima de um acervo de arte (pinturas e estátuas), antiguida-
des (vaso antigos) e livros (livraria) que havia pertencido à imperatriz
Josefina, primeira mulher de Napoleão Bonaparte. Salientava a exce-
lência de alguns dos espécimes da coleção (dava o exemplo de duas
esculturas do escultor italiano neoclássico Canova) e considerava ser
aquela uma boa oportunidade para adquirir algumas daquelas peças
em representação do governo português, de modo a começar a formar
huma boa galeria. Justificava a sua proposta com o argumento de que
Os estabelecimentos desta natureza, isto é as galerias de arte ou mu-
seus, eram hum dos meios para que a nação que os promove adquira a
consideração das outras. E quanto esta concideração influa depois nos
negocios os mais serios, VExª o conhece igualmente [15]. Ou seja, dava
a entender que o seu interlocutor, o também diplomata António de
Araújo de Azevedo, estava ciente da importância das coleções de arte
para o prestígio dos estados europeus e dos seus representantes no es-
trangeiro, logo para a sua ação política e diplomática.
A consciência da capacidade das coleções de arte de representarem
cultural e socialmente os seus proprietários dotou as pertencentes a di-
plomatas de uma dimensão operativa que permite compreender a sua
mobilidade, por vezes efemeridade, e alguns dos critérios de aquisi-
ção das obras que as constituíam, como atesta a do próprio Marquês
de Marialva. Essa dimensão operativa está patente, em primeiro lugar,
na circunstância dos embaixadores se fazerem acompanhar pelas suas
coleções de arte, ou pelo menos por uma parcela dessas coleções, nas
suas missões diplomáticas. É por esta razão que a coleção de pintura
do Marquês de Marialva será leiloada em Paris, em Novembro de 1824,
após o falecimento do embaixador português naquela cidade. No catá-
logo do seu leilão, era explicado que a formação da dita coleção de pin-
tura respondia ao gosto pessoal do marquês e, simultaneamente, a uma
sua pretensão de fazer renascer o gosto pelas belas-artes no seu país:
M. le marquis de Marialva (...) se sentit si vivement touché du charme
des beaux arts, dès les premiers jours de sa résidence à Paris, qu’il conçut
presqu’aussitôt le dessein de former un cabinet de peintures, qui fut tout

30
COLEÇÕES REAIS E COLEÇÕES OFICIAIS

à la fois digne de l’attention de ses compatriotes, et propre à faire germer


dans d’autres coerus la noble passion dont le sien était pris : ainsi, M. de
Marialva ne songeait pas seulement à se créer un moyen de jouissante per-
sonnelle, il désirait encore faire renaitre le gout des arts dans un pays où
de longs malheurs publics ont dû l’éteindre presqu’entièrement, désir bien
digne du grand caractère dont son Souverain l’avait revêtu [3].
Embora a escala da intenção do Marquês possa ter sido algo exage-
rada pelo autor do catálogo, não deixava de expressar a função política
que poderia ser atribuída a uma coleção de arte. Esta função política
explicaria a “timidez” inicial do Marquês de Marialva enquanto colecio-
nador, mais própria de um amador, de acordo com os padrões artísticos
franceses e com a avaliação que dele faz o catálogo do leilão: (…) le de-
but de M. de Marialva, relativement à la composition de son cabinet, fut
comme celui de tous les amateurs: la timidité maîtrisa d’abord son goût, et,
dans ses premières acquisitions, il se borna à des choses d’un moyen prix. /
Un peu plus tard, il céda aux impressions que firent sur son esprit les déli-
cieux ouvrages de nos peintres modernes (…) [3]. Também permite com-
preender o interesse do Marquês de Marialva na aquisição de pinturas
modernas, escolhendo sobretudo telas de artistas que pareciam estar na
moda entre o público parisiense e romano, logo mais susceptível de se
tornar tema de uma conversa mundana. Ainda não nos é possível saber
em que datas comprou estas pinturas, mas foram possivelmente adqui-
ridas durante as suas estadias em Paris, provavelmente aproveitando a
conjuntura favorável à aquisição de obras de arte que refere na missiva
dirigida ao futuro Conde da Barca em 1815, atrás citada.
Em relação às obras modernas, a coleção do Marquês Marialva
era constituída por pinturas dos franceses Jean-Baptiste Gleuze
(1725–1805) – possuia o quadro Le jeune aux bleuets, descrito como
Trois quarts, tête nue, levant les yeux aux ciel; tient de la main gauche un
bouquet de bleuets qu’elle attache à son sein [9] –, Jean Louis Demarne
ou de Marne (1752/4–1829) – três paisagens –, Claude-Joseph Vernet
(1714–1789) – o esboço de um porto –, Thomas(?) Dufrenne
(c.1793- ?) – o interior de uma capela gótica – e Marguerite Gérard
(1761–1837) – uma cena de género; dos holandeses Hendrik Voogd

31
COLEÇÕES DE ARTE EM PORTUGAL E BRASIL NOS SÉCULOS XIX E XX

(1766–1839) – duas paisagens – e Jan Frans van Dael (1764–1840) – uma


natureza morte –; dos alemães Franz Ludwig Catel (1778–1856) e Johan
Adam Klein (1792–1875) – datado de 1816 e representando duas vacas;
e do italiano M. Storelli (1778–1854) – uma vista de Florença e duas có-
pias a gouache de obras de Vandevelde e Claude Lorrain [3]. O catálogo
do leilão regista ainda a presença na coleção do Marquês de Marialva de
uma Sagrada Família da autoria de um não identificado M. Madras; de
dois interiores de igrejas, um com uma procissão e outro com um ca-
samento, pintados por um pintor de apelido Garnerey, que tanto pode
ser Hippolyte Jean Baptiste Garnerey (1787–1858), como Jean François
Garnerey (1755–1837), Louis Ambroise ou Ambroise Louis Garnerey
(1783–1857), ou ainda Auguste Simon Garnerey (1785–1824); e uma tela
figurando um grupo de monges em procissão, assinada por Bouton, não
sabemos se Guillaume Gabriel (1730–1782), Joseph Marie (1768–1823)
ou Charles Marie (1781–1853) [3]. Embora não possamos ter certeza,
pode ser de autoria lusa uma paisagem a gouache do desconhecido E. P. de
Castro, ativo em Viena. A coleção incluía ainda um conjunto de dezenas
de desenhos atribuídos a um M. David, provavelmente Pierre Jean David
(1788–1856), com representações das regiões de Chambéry e Nápoles,
costumes napolitanos, uma vista da Alemanha, medalhões, etc. [3].
No que respeita à pintura antiga, o Marquês de Marialva terá sido
proprietário de uma Virgem das Ruínas, atribuída a Rafael Sanzio
(1483–1520), uma cabeça da autoria de Rembrandt (1606–1669), três
paisagens de Jacob van Ruysdael (1628/29–1682), um Ecce Homo de
Sebastiano del Piombo (c. 1485–1547), duas Sagradas Famílias italianas,
uma do renascentista Pierino del Vaga (1501–1547) e outra do pintor
barroco Carlo Maratta (1625–1713), dois pequenos quadros (um com
suporte de cobre e outro de madeira) atribuídos a Jean Brueghel – não
sabemos se ao Velho (1568–1625), se ao Jovem (1601–1678) –, um in-
terior de uma igreja protestante pintado pelo holandês Emmanuel de
Witte (1617–1692), um comboio militar de Philips Wouwerman (1611–
1668), um Baco e Ariadne de Sébastien Bourdon (1616–1671) e um mo-
saico representando um busto de mulher, figurada com um dedo sobre
a boca, em sinal de pedido de silêncio [4, 6, 10].

32
COLEÇÕES REAIS E COLEÇÕES OFICIAIS

O catálogo do leilão apresenta poucas peças referentes a Portugal ou


de autores portugueses: apenas um retrato de uma rainha atribuído a
François Clouet (c.1510–1572) [3]. Mas tal não significa que o embai-
xador não as possuísse – o mais provável é as peças de maior interesse
para Portugal terem sido remetidas para Lisboa, com outros objetos da
coleção de maior importância, como a pintura atribuída a Rembrandt.
Há que ser cauteloso, no entanto, com algumas das autorias acima
mencionadas, em particular com as atribuições aos mestres mais co-
nhecidos, como Rafael ou Rembrandt. No período em causa, a primeira
metade do século XIX, eram frequentes os equívocos com atribuições a
artistas referenciais da história da arte de obras cuja autoria pertencia a
discípulos das suas escolas [3], ou mesmo as fraudes, como pode ter su-
cedido com o quadro de Rafael. Após visitar a exposição do gabinete do
marquês de Marialva no Hotel Bullion, realizada no contexto da venda
da sua coleção, o poeta e naturalista René Richard Louis Castel (1758–
1832) achava que o embaixador tinha sido bien dupe des marchands,
s’il a acheté plusieurs de ses tableaux sur le nom qu’ils portent, celui de
Raphael, par exemple, donné à un tableau qui n’est pas supérieur à la belle
et ancienne copie dont tu as fait présent à ta sœur. Mais il y a une jolie
bacchanale de Bourdon que j’aurais eu du plaisir à posséder si j’avais plus
d’argent et moins d’âge. Je la voudrais dans ton cabinet de Villers. J’irai,
demain soir, voir comment ces tableaux se vendront (…) [2].
As gravuras da coleção merecem uma atenção particular por serem,
por natureza, de tiragem múltipla – de grande impacte no estabeleci-
mento ou reforço do que hoje chamamos a imagem ou a marca de um
país. A diplomacia portuguesa em Paris interessou-se pela sua tiragem
e distribuição. Marialva possuía diversos exemplares patrocinados pelo
governo ou por ele mesmo, tendo mandado fazer gravuras das obras que
considerava serem as mais importantes da sua coleção, prática comum
entre colecionadores à época. Procedeu deste modo com a Virgem das
ruínas atribuída a Rafael, gravada por Charles Simon Pradier (1786–
1848), o talentoso artista suíço que seu secretario e amigo cavaleiro
Francisco José Maria de Brito (1760–1825) ajudara a partir para o Brasil
em princípios de 1816, com uma heterogénea “caravana de artistas”, na

33
COLEÇÕES DE ARTE EM PORTUGAL E BRASIL NOS SÉCULOS XIX E XX

esperança que fossem apoiados pelo Conde da Barca. Pradier retornara


a França poucos anos depois, sob o pretexto de obter melhores condi-
ções para gravar os quadros do seu colega Jean Baptiste Debret (1768–
1848), com uma pensão do governo de D. João VI. Se algumas dessas
gravuras podem ter sido remetidas para Portugal, outras foram vendi-
das no leilão que sucedeu após o falecimento do marquês, designada-
mente os dois portrait[s] en pied du roi du Portugal, épreuve terminée et
eau fortes, seguramente de Pradier, a partir do quadro de Jean Baptiste
Debret (1768–1848) que mostra D. João VI de corpo inteiro, uma das
peças usadas pelo gravador para justificar a sua volta precoce a Paris
e a pensão régia que recebia na capital francesa. Figuraram igualmen-
te no leilão dois exemplares gravados da Virgem das Ruínas de Rafael,
também por Pradier, e ainda duas gravuras tiradas do famoso quadro
Amor e Psyche de François Gérard (1770–1837), hoje no Louvre, que
pertencera brevemente a Joaquim Lebreton (uma da autoria de Pradier,
a outra de L. G. Potrelle). Possuía ainda outro retrato em pé por Pradier,
d’après Gérard, cujo modelo infelizmente o catálogo não especifica. Tal
abundância de obras do gravador suíço indica uma certa proximidade
entre o embaixador e o artista, que se pode justificar pela pensão do
governo português que o segundo auferia [3].
Os casos do Conde da Barca e especialmente do Marquês de Marialva
mostram como as coleções de arte privadas, na fase final do Antigo
Regime, no primeiro quartel do século XIX, quando a diplomacia era
uma atividade ainda não profissionalizada, eram passíveis de ser coloca-
das ao serviço das relações de um Estado com uma potencia estrangeira.
Esta função diplomática das coleções obrigava ao seu transporte até aos
territórios de destino dos diplomatas seus proprietários e ao seu enri-
quecimento com obras adquiridas nesses locais. Por vezes, as coleções
não eram transportadas, mas constituídas com aquisições feitas nas ci-
dades onde os diplomatas estavam colocados ou por onde passavam,
como se verificou com o Marquês de Marialva. Quando assim sucedia,
era frequente que a vida dessas coleções fosse efémera, acabando por
serem parcial ou totalmente vendidas, novamente como aconteceu com
a coleção do Marquês de Marialva, após a sua morte.

34
COLEÇÕES REAIS E COLEÇÕES OFICIAIS

A dimensão funcional destas coleções também poderia determinar


as suas características. Poderia, por exemplo, favorecer a aquisição de
obras de artistas contemporâneos, daqueles que estavam na moda. Mais
uma vez, a coleção do Marquês de Marialva é exemplificativa, tendo em
consideração as datas da maioria das obras que o diplomata português
terá adquirido durante as suas missões na Europa, principalmente em
Paris. Este gosto pela aquisição de arte contemporânea era considera-
do um sinal de cosmopolitismo, além de que era financeiramente mais
acessível que a arte antiga e menos vulnerável que esta às fraudes por
cópias ou falsificações.
Finalmente, a relação entre arte e diplomacia permite ainda perce-
ber como a pintura era, na Europa das Luzes, um meio de identifica-
ção cultural e de classe, servindo para promover e facilitar relações de
cumplicidade cultural e social, fundamentais ao exercício da atividade
diplomática.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
[1] CARDIM, Pedro – A prática diplomática na Europa do Antigo Regime. in RODRIGUES, Luís Nuno
e MARTINS, Fernando, História e Relações Diplomáticas, CIDEHUS, Edições Colibri, Évora, 2004,
p. 11–53.
[2] [CASTEL, R.R. L.] – Lettres de René-Richard Louis Castel auteur du poème des plantes au comte
Louis de Chevigné, son élève et son ami., 1821, 1822, 1823, 1824, Imprimerie Delaunois, Rheims,
[s/d].
[3] Catalogue de tableaux, gouaches, estampes et médailles composant le Cabinet de feu M. le Mis de
Marialva, Ambassadeur de Portugal près de la Cour de France, Imprimerie de Hocquet, Paris, 1824.
[4] FRANÇA, José-Augusto – A Arte em Portugal no Século XIX, 3ª edição, Bertrand Editora, Venda-
Nova, 1990, volume 1.
[5] GRAHAM, Aaron – Connoisseurship, consumption, company, and James Brydges, First Duke of
Chandos, 1705–13, Huntington Library Quarterly, vol. 80. n.º 4, 1990, pp. 539–557.
[6] GROOT, C. Hofstede de – A catalogue raisonné of the works of the most eminent Dutch painters of
the seventeenth century based on the work of John Smith, Macmillan and Co., London, 1912.
[7] LUÍS, Nuno Castro – O último Marquês de Marialva – um embaixador na Europa de Viena,
História. Revista da FLUP, Porto, 2015, vol. 5, pp. 37–52.
[8] MALTA, Marise e TELLES, Patricia – Inventário, invenção e individuação: um estudo sobre os
móveis e apetrechos do Conde da Barca a partir de documentos descritores, SANTOS, A. B; AIRES, A.
P e SANTOS, C. A. A (org.), Anais do IV Colóquio Internacional A Casa Senhorial: Anatomia dos
Interiores, CLAEC, 2917.
[9] MARTIN, Jean – Oeuvre de J. B. Greuze: catalogue raisonné, suivi de la liste des gravures exécutées
d’après ses ouvrages, 1908.

35
COLEÇÕES DE ARTE EM PORTUGAL E BRASIL NOS SÉCULOS XIX E XX

[10] SMITH, John – A catalogue raisonné of the most eminent Dutch, Flemish and French Painters....
6th Part, Smith & Son, London, 1835,
[11] TELLES, Patricia – O cavaleiro Brito e o Conde da Barca: dois diplomatas portugueses e a “missão
francesa” de 1816 ao Brasil. Documenta, Sistema Solar, Lisboa, 2018.

36
O MANTO DITO DA ACLAMAÇÃO
DO REI D. JOÃO VI: CONFEÇÃO,
CONSERVAÇÃO E DOCUMENTAÇÃO

PAULA MARIA TOMAZ


Doutoranda em Arte, Património e Restauro na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa /
Técnica superior do Laboratório José de Figueiredo do Departamento de Museus, Conservação e
Credenciação da Direção-Geral do Património Cultural, Lisboa.
thomaz.paula06@gmail.com;

Resumo Palavras-chave
O manto dito da Aclamação do rei D. João Manto; Aclamação; PatrimónioTêxtil;
VI ocorrida no Brasil em 1818, pertencente Documentação Coeva;
ao acervo do Palácio Nacional da Ajuda, é
uma peça de vestuário que na sua elaboração
conjuga os preceitos da confeção, a utilização
dos materiais nobres e ecléticos e as técnicas
decorativas do bordado. Pretende-se relacionar
a caracterização técnica do manto com a
informação da documentação coeva, entretanto,
encontrada no Arquivo Nacional da Torre do
Tombo, contribuindo para o desenvolvimento
do conhecimento do património têxtil e, sua
consequente, divulgação e valorização.

37
COLEÇÕES DE ARTE EM PORTUGAL E BRASIL NOS SÉCULOS XIX E XX

Aos têxteis, e nomeadamente, ao vestuário estão-lhes associadas, a


função utilitária e a função social que estabelecem uma relação de inter-
dependência, porque distinguem ou aproximam os indivíduos no seio
do grupo a que pertencem, e, entre os diferentes grupos que constituem
a sociedade humana. Esta distinção ou aproximação é proporcionada
pelos materiais constituintes da indumentária cuja base são as fibras
têxteis, pelos corantes que lhe conferem a cor, pelas técnicas de tecela-
gem dos tecidos, pelas técnicas decorativas mais ou menos elaboradas
e complexas e, ainda, pelas particularidades da confeção. Estas verten-
tes e a sua ampla diversidade permitiu construir peças de indumentá-
ria muito ricas e sumptuosas, onde a escolha eclética de determinado
material, de técnicas, de composições decorativas e iconográficas, foi
determinante para lhes conferir grande valor artístico, estético, cultural,
económico e político, e, consequentemente afirmar a individualização,
a personalização e a distinção do seu portador e/ou possuidor.
Assim, neste texto, pretendemos dar a conhecer as caraterísticas téc-
nicas do manto dito da Aclamação do rei D. João VI1, pertencente à
coleção do Palácio Nacional da Ajuda, com o Número de Inventário
2420, identificadas no início do tratamento de conservação do man-
to, presentemente, a decorrer no Laboratório José de Figueiredo do
Departamento de Museus, Conservação e Credenciação da Direção
Geral do Património Cultural, e, relacioná-las com a documentação
coeva, entretanto, encontrada no conjunto documental da Casa Real no
Arquivo Nacional da Torre do Tombo. A caraterização técnica foi efe-
tuada com o auxílio de lupa binocular e registada através de fotografias,
radiografias e esquemas, acompanhada da recolha das amostras dos
materiais constituintes do manto.
A confeção do vestuário é um ofício que envolve conhecimentos es-
pecíficos das fibras têxteis (seda, lã, linho, cânhamo, rami), dos teci-
dos (veludo, lhama, damasco, cetim, tafetá), sobre os quais se cortam
os moldes da peça de vestuário previamente concebidos para se obter a
peça idealizada, que posteriormente são unidos, através dos diferentes
tipos de costura e dos diversos pontos de agulha. Este saber é crucial
para que na junção dos tecidos e sua compatibilidade na confeção

38
COLEÇÕES REAIS E COLEÇÕES OFICIAIS

do vestuário, este se adapte à forma tridimensional do corpo huma-


no. Refira-se a este propósito, que da obra monumental L’Encyclopédie
editada por Jean Le Rond d’Alembert e Denis Diderot2, fazem parte, as
Artes do Vestuário com a referência ao botoeiro, à costureira, ao alfaiate,
ao bordador, ao cabeleireiro, e, aos seus respetivos utensílios, só para
citar alguns dos ofícios correlacionados com o vestir.
O manto régio sobre o qual nos temos vindo a debruçar, tem cerca
de 3 metros de comprimento e 1,50 metros de largura, é confecionado
em veludo de seda carmesim, apresenta forro e gola de lhama prateada
decorados com bordado direto executado com fios laminados, lante-
joulas, canutilhos e pedrarias formando cercaduras de motivos florais,
Fig. 1. Duas das suas componentes, o veludo e a gola, são decorados,
ainda, com iconografia de bordado aplicado expressa na forma de glo-
bos de cetim azul, castelos de lhama dourada e escudos de lhama pra-
teada3, que estão distribuídos da seguinte forma:

Veludo Gola Total

Globos 36 3 39

Castelos 38 4 42

Escudos 37 3 40

Tabela 1 – Contabilização dos elementos iconográficos no manto.

O veludo e a lhama do forro são armados com pregas e macho


central e costurados à gola, cujo remate é confecionado com um peque-
no cós de tecido de lhama que aperta com um alamar prateado junto ao
pescoço, na frente do manto. Registe-se que no veludo vermelho, pró-
ximo da zona da fixação das pregas e situada por baixo da gola, e por
isso, não é visível para o observador, existe uma fiada de marcações
em forma de cruz executadas com uma substância branca, que não está
preenchida com os elementos iconográficos. Esta substância, também,
se encontra no traço do desenho subjacente do bordado metálico no

39
COLEÇÕES DE ARTE EM PORTUGAL E BRASIL NOS SÉCULOS XIX E XX

veludo carmesim. No caso dos tecidos de lhama, gola e forro do manto,


o traço da marcação dos bordados é executado com tinta acastanhada e
ténue. A gola de lhama é forrada com veludo vermelho.
Durante o trabalho de conservação do manto régio foi necessário pro-
ceder à separação das suas componentes constituintes, a gola do veludo e,
ambos, dos respetivos forros para se proceder ao tratamento de cada uma
delas, individualmente. Este procedimento permitiu observar o avesso
dos tecidos e dos bordados, analisar as costuras e as ourelas dos tecidos,
Figs. 2 e 3, e, ainda, diagnosticar com maior precisão as patologias de
cada uma das componentes da veste. De uma forma geral, o estado de
conservação do manto é razoável, no entanto, a gola, apresenta grande
fragilidade do tecido com pequenas lacunas, principalmente, debaixo
dos bordados, assim como, o fio de seda que os fixa está muito oxida-
do4 e, consequentemente, muito quebradiço contribuindo para o desta-
camento dos elementos metálicos dourados e da pedraria. Há a assinalar,
também, uma grande intervenção anterior executada com um fragmen-
to de damasco e fixado com fios grosseiros que ferem o tecido original
observando-se grande perda de bordado naquela área. Esta intervenção
situa-se, no lado direito da frente da gola, junto ao alamar que a fecha.
A confeção do manto é obtida pela costura de 4 panos de veludo
carmesim, os quais têm a largura de 47 cm, sendo de 45 cm de velu-
do e 1 cm para cada ourela, apresentando-se estas íntegras, ou seja,
as costuras da união dos tecidos foram executadas junto às ourelas. O
comprimento do manto de cerca de 3 metros, como já referido, neces-
sitou de 4 alturas de veludo, ou seja, cerca de 12 metros: 2 alturas de 3
metros unidas para formar os panos centrais, e, mais 2 alturas para os
panos laterais. Assim, e, admitindo que o côvado equivale a cerca de
0,50 metro (da ponta do dedo médio até ao cotovelo) foram necessários
24 côvados para executar a estrutura base da veste régia. O forro de lha-
ma prateada é constituído por 3 panos unidos por 2 costuras e o pano
central é o único que apresenta as 2 ourelas ao longo do tecido, com a
largura de 51 cm, e assim, foram necessários 9 metros de comprimento,
ou seja, cerca de 18 côvados de lhama, para acompanhar o veludo, na
sua dupla função de forro e de decoração, visto aquela, também, ser

40
COLEÇÕES REAIS E COLEÇÕES OFICIAIS

Fig. 1 – Manto Real dito do rei João VI, Palácio Nacional da Ajuda,
Nº de Inv. PNA 2420, 300 x 150 cm, Arquivo de Documentação Fotográfica/ DGPC;

Fig. 2 – Pormenor do veludo bordado Fig. 3 – Pormenor do avesso do veludo


do manto real PNA 2420, bordado do manto real PNA 2420,
Fotografia de Paula Tomaz; Fotografia de Paula Tomaz;

41
COLEÇÕES DE ARTE EM PORTUGAL E BRASIL NOS SÉCULOS XIX E XX

bordada conferindo maior carga de sumptuosidade e magnificência,


ao manto régio.
A gola com 1,08 m de largura, também, de tecido de lhama prateada
é confecionada com 2 panos cortados em viés cuja teia do tecido fica
perpendicular à costura (ficando esta centrada sobre o veludo carmesim
do manto) proporcionando maior largura para obter o corte circular e
formar a grande gola ou cabeção5, dispensando novas uniões de teci-
dos; salienta-se que estes panos não apresentam quaisquer vestígios de
ourelas e, na análise efetuada ao tecido, constatou-se que não é exata-
mente igual ao da lhama do forro6, apesar de serem muito semelhantes.
No entanto, o seu forro, também ele, de veludo vermelho apresenta uma
tonalidade de vermelho ligeiramente diferente do veludo do manto, e,
é igualmente, confecionado com 2 panos cortados em viés de corte cir-
cular acompanhando o tecido da lhama da gola, como é da sua função.
Neste caso, observa-se na largura máxima do veludo, as ourelas íntegras
e muito diferentes, das do veludo carmesim do manto, evidenciando
claramente que se trata de outro veludo.
A documentação coeva existente no Cartório da Casa Real do
Arquivo Nacional da Torre do Tombo que na sua maioria consiste nos
recibos dos pagamentos efetuados e, cujo conteúdo revela-nos os custos
dos bens e das mercadorias, nomeadamente, dos tecidos e dos atavios
que são inerentes à confeção do vestuário. Indicam, ainda, os nomes
de quem encomendou, vendeu, forneceu e executou esses serviços, as-
sim como, as datas de quando foram encomendados e liquidados. Deste
modo, destacamos dois recibos, cuja informação consideramos perti-
nente, pois pensamos que poderá estar relacionada com o manto dito
da Aclamação do rei D. João VI.
Um deles7, datado de 21 de outubro de 1822, dá-nos conta, que por
ordem do criado particular Thomas António Carneiro encarregado
da Real Guarda-Roupa, foram adquiridos, para S. Mag.e El Rei, no dia
2 daquele mês, vários tecidos, dos quais destacamos:

42
COLEÇÕES REAIS E COLEÇÕES OFICIAIS

“3 côvados de veludo escarlate”;


“2 côvados de cetim de França azul”;
“2 côvados de lhama de ouro”;
“2 côvados de lhama de prata”;

e, no dia 22, foram fornecidos outros:

“16 côvados de lhama de prata”

As quantidades de tecido adquiridas adequam-se às necessárias para


confecionar algumas das componentes do manto, a saber:

• Os 3 côvados de veludo escarlate (1,5 metro) poderão corres-


ponder ao poderá ser o forro da gola confecionada com 2 panos
em viés;

• Os 2 côvados de cetim azul poderão corresponder aos 39 globos,


os 2 côvados de lhama de ouro aos 42 castelos dourados e os 2
côvados de lhama de prata aos 40 escudos prateados. Estas quan-
tidades são as suficientes para confecionar os elementos icono-
gráficos, visto cada um deles medir cerca de 6,5 cm;

• Os restantes 16 côvados de lhama de prata poderão corresponder


aos 9 metros necessários para a lhama do forro bordada, se o
côvado for superior a 50 cm.

O outro recibo8, datado de 3 de Janeiro de 1823, dá-nos conta dos


bordados e respetivas quantias executados por Francisco Alves Pereira
bordador da Casa Real, que consistem no seguinte:

“pelo bordado num cabeção para o manto real com grande cercadura larga e rica”;
“por quarenta e três globos bordados e de os pregar no dito manto”;
“por 43 castelos bordados e de os pregar no manto”;
“por quarenta e duas quinas”;

43
COLEÇÕES DE ARTE EM PORTUGAL E BRASIL NOS SÉCULOS XIX E XX

A informação dos dois recibos coincide com a que o manto apre-


senta para o bordado da gola, o forro desta, os elementos iconográficos
existentes e eventualmente, o forro do manto, ficando a faltar a infor-
mação sobre os bordados do veludo carmesim e da lhama do forro que
dá corpo à veste, para os quais, ainda não encontrámos notícia. Assim,
várias questões se colocam:
Como explicar a disparidade entre a data da Aclamação do rei, em
1818 e os 2 recibos datados, respetivamente, de 1822 e 1823?
Será que o tecido de veludo foi encomendado/adquirido noutra
data e/ou noutro fornecedor, não constando do rol do recibo datado de
21 de outubro de 1822?
Os bordados do veludo e da lhama do forro executados noutra
data por este e/ou outro bordador?
Qual a explicação para que a gola apresente um estado de conserva-
ção muitíssimo mais degradado que a lhama do forro? Será que a gola
era removida do manto e usada noutras peças de vestuário para outras
festividades?
Será que existiram vicissitudes que levaram à modificação/substitui-
ção das componentes do manto real?
Qual foi o percurso desta veste majestática, icónica, e ricamente ela-
borada que faz parte das insígnias reais do soberano?
Esperamos que no futuro, o desenvolvimento dos estudos permitam
responder, senão a todas, pelo menos, a algumas das questões coloca-
das acerca do manto régio existente. Todavia, podemos traçar algumas
considerações sobre a sua estrutura e composição, na medida, em que
se trata de uma peça de vestuário complexa. A confeção do manto é
feita por 5 componentes de diferentes tecidos: veludo vermelho, lhama
do forro, gola de lhama, forro de veludo da gola e pelo conjunto dos
elementos iconográficos, respeitando as normas de união e disposição
dos tecidos. Os três tecidos principais, veludo carmesim, lhama do forro
e lhama da gola apresentam programas decorativos na forma de cerca-
duras de motivos florais bordadas com grande labor e mestria sobre as
costuras de união dos tecidos, e, simultaneamente, adaptadas às formas
circulares quer da gola, Fig. 4, quer da cauda da veste, Fig. 5 e 6.

44
COLEÇÕES REAIS E COLEÇÕES OFICIAIS

Fig. 4 – Pormenor da lhama da gola do manto


Real PNA 2420; Fotografia de Paula Tomaz;

Fig. 5 – Pormenor do veludo do manto real PNA Fig. 6 – Pormenor da lhama do forro do manto real
2420; Fotografia de Jorge Oliveira – DGPC; PNA 2420; Fotografia de Jorge Oliveira – DGPC;

O vestuário ao ter a dupla função de utilitária e de distinção social


proporcionadas pelos seus materiais constituintes nobres, ecléticos e,
consequentemente, onerosos, confere prestígio e dignidade a quem o
utiliza/possui. O seu uso pressupõe processos de desgaste e degrada-
ção dos materiais, assim como, as consequentes limpezas podem levar
à substituição de fragmentos de tecido, de elementos na peça de vestuá-
rio, e, inclusivamente, à modificação da própria veste.
A intradisciplinaridade, a interdisciplinaridade e a transdisciplinari-
dade entre as várias áreas do saber, desde a conservação e restauro até às
fontes documentais, possibilitam desenvolver e aprofundar o conheci-
mento do mundo dos têxteis, contribuindo para a valorização, divulga-
ção e proteção do património têxtil.

45
COLEÇÕES DE ARTE EM PORTUGAL E BRASIL NOS SÉCULOS XIX E XX

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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Descobrimentos Portugueses, 1999, p. 194.
www.matriznet.pt Ficha de Inventário – Manto Real, Palácio Nacional da Ajuda, 2420, (2011/07/31;15 h);
2 D’ ALEMBERT, Jean Le Rond; DIDEROT, Denis, L’ Encyclopédie, Recueil de Planches, sur Les Sciences, Les Arts
Libéraux, et Les Arts Méchaniques, avec leur explication, ARTS DE L’HABILLEMENT, a Paris 1751–1772, avec
approbation et Privilege du roy. Bibliothèque de l’Image, MAME Imprimeurs à Tours, 2002.
3 A este propósito ver: TOMAZ, Paula Maria, Os Mantos régios nas cerimónias da monarquia portuguesa do século
XIX: mero aparato ou dignificação e legitimidade?, in: Os Têxteis e a Casa de Bragança: Entre o deleite e a utilidade,
Séculos XV-XIX, Scribe – Produções Culturais, Lda., 2018, p. 147–154.
4 BERGHE, Ina Vanden, WOUTERS, Jan, Identification and condition evaluation of deteriored protein fibres at
tha sub-microgram level by calibrated amino acid analysis, in: Scientific Analysis of Ancient and Historic Textiles:
Informing Preservation, Display and Interpretation, Postprints, ed. Rob Janaway and Paula Wyeth, London,
Archetype Publications, 2005, p. 151–158.

46
COLEÇÕES REAIS E COLEÇÕES OFICIAIS

5 A nomenclatura do vestuário é muito complexa e difícil. A mesma veste pode mudar de designação, mantendo a
mesma forma ou variando muito pouco, consoante a alteração dos modelos e dos cortes associadas às modifica-
ções estilísticas e estéticas, às quais o vestuário não fica imune, incorporando-as e expressando-as.
6 A redução de um tecido é expressa pelo seu número de teias e de tramas existentes num centímetro que é cons-
tante ao longo da peça de tecido devido ao sistema ortogonal de cruzamento dos fios proporcionado pelo tear.
7 AATT, Casa Real, Cartório, Caixa 3334, documentação avulsa, Lisboa, 21.10.1822.
8 AATT, Casa Real, Cartório, Caixa 3334, documentação avulsa, Lisboa, 3.5.1823.

47
A CÉSAR O QUE É DE CÉSAR:
BENS/COLEÇÕES DO IMPERADOR
D. PEDRO I NO BRASIL QUANDO
DE SUA PARTIDA PARA PORTUGAL

MARIZE MALTA
Professora Associada / Escola de Belas Artes – Universidade Federal do Rio de Janeiro,
Rio de Janeiro, Brasil.
marizemalta@eba.ufrj.br

Resumo Palavras-chave
Quando D. Pedro I decidiu abdicar do trono Coleção Imperial; Bens de D. Pedro I;
brasileiro, uma série de inventários foi realizada Inventários; Brasil; Portugal.
nos paços de forma a identificar os bens
pertencentes ao ex-imperador. Nossa intenção
é começar a avaliar a lista desses bens e buscar
compreender as preferências que envolviam o
gosto vigente da família imperial no Brasil e
aquilo que, chegando a Portugal, pôde ter sido
incorporado em coleções oficiais.

49
COLEÇÕES DE ARTE EM PORTUGAL E BRASIL NOS SÉCULOS XIX E XX

COLEÇÕES REAIS ENTRE BRASIL E PORTUGAL

Compreendendo idas e vindas da corte portuguesa entre Brasil e


Portugal, muitos bens circularam, dispersaram-se e encontraram no-
vos paradeiros. Essa contingência ainda carece de muitos estudos que
permitam avaliar suas coleções e posses materiais, de modo a ponderar
seus gostos e quais peças se constituíram seus bens mais bem quistos e
dignos de serem levados consigo nesses trânsitos e ainda arregimenta-
rem potenciais coleções.
Partindo do pressuposto de que uma coleção não necessariamente é
conformada exclusivamente em relação à ação do colecionador, muitas
delas foram desenvolvidas por incorporação de certos bens de uma per-
sonagem a algum acervo, dando-lhe um caráter de conjunto que a priori
não prescrevia uma coerência anterior. Desse modo, possuir objetos,
por mais que não configure uma coleção per si, e ao estarem vinculados
a determinados proprietários, implica um conjunto personalizado que
celebra a convivência de coisas com pessoas, dotando essas mesmas coi-
sas de subjetivações que podem vir a ser uma coleção pessoal.
Quando d. Pedro I decidiu abdicar do trono brasileiro e rumar para
Lisboa de modo a garantir o trono à sua filha D. Maria da Glória, pas-
sando a ser d. Pedro IV de Portugal, uma série de inventários foi realiza-
da nos paços e outros sítios frequentados pela família imperial, de forma
a identificar os bens pertencentes ao ex-imperador para que fossem re-
metidos ao seu destino, deixados no Brasil ou repartidos entre os filhos,
conforme seu desígnio.
A partir dessas listagens, encontradas no fundo da Casa Real e
Imperial do Arquivo Nacional, no Brasil, é possível observar conjun-
tos que poderiam ser considerados potenciais coleções: móveis, pratas,
quadros, têxteis... Junto a elas, há também documentos em que o ex-
-imperador requereu determinadas peças ou expressou o desejo de que
permanecessem no Brasil. Ainda sem ter esgotado todo o material da
Casa Real e Imperial, cujas pesquisas foram procrastinadas em virtu-
de da pandemia, nossa intenção é introduzir alguns desses documentos
e avaliar os tipos de posses considerados importantes para o primeiro

50
COLEÇÕES REAIS E COLEÇÕES OFICIAIS

monarca brasileiro, o que cercavam, em parte, a família imperial brasi-


leira na primeira parte do século XIX em termos materiais e que susten-
tavam uma vida de corte ao sul do Equador.
Mesmo ciosa das coleções reais em si, desde D. João VI e Carlota
Joaquina à Leopoldina e Tereza Cristina, incluindo o Museu Real1 e o
chamado Museu do Imperador2 (D. Pedro II), com núcleos específicos
de peças (artísticas, arqueológicas, botânicas, etnográficas), o que nos
move é levantar os bens de D. Pedro I que foram remetidos a Portugal
e que puderam ter sido incorporados em museus europeus e se cons-
tituíram coleções de seus acervos, perseguindo uma parte da história
das proveniências (FEIGENBAUM; REIST, 2012) e trânsitos (NETO;
MALTA, 2014).
É importante ressaltar de que se trata de um trabalho de pesquisa
em curso e ainda há muita documentação a ser levantada e transcri-
ta. Entretanto, julgamos ser relevante o compartilhamento inicial para
que informações possam despertar perguntas que permitam avançar no
conhecimento sobre as coleções reais e seus pertences, pelo menos do
ponto de vista do Brasil3.

BENS DE D. PEDRO I

Para o presente artigo, escolhemos alguns documentos, pois, já


dito acima, é uma parcialidade da documentação e o espaço reservado
para o texto não permite maior abrangência. Esclarecemos que estare-
mos apreciando os seguintes documentos: “Paço da Cidade, Rellação
dos bens que pertencem ao Ex-Imperador Dom Pedro d’Alcantara”
(A.N., Doc. 6); “Rellação da Mobilia que se acha no Imperial Paço da
Boa-Vista, e que pertence ao Ex-Imperador, o Senhor Dom Pedro de
Alcantara” (A.N., Doc.10).
Como todo inventário preciso, nomeava-se o cômodo onde os ob-
jetos se encontravam antes de listá-los, permitindo perceber as deno-
minações correntes para os espaços existentes e que tipologias de peças
seriam comuns em cada ambiente, possibilitando vislumbrar, mesmo

51
COLEÇÕES DE ARTE EM PORTUGAL E BRASIL NOS SÉCULOS XIX E XX

que hipoteticamente, o recheio de seus interiores. Muito provavelmente,


a descrição dos móveis não deveria equivaler a todos os itens existentes
nos cômodos, mas aqueles que o ex-imperador julgava ser de sua posse
e desejava levar consigo.
Por mais que tais documentos sejam primordiais para remontar-
mos os interiores reais e imperiais, eles são sugestões do que realmente
configuravam esses ambientes. Além do Paço da Boa-Vista ou Paço de
São Cristóvão, a família imperial transitava por outras edificações: a
Casa de Banhos do Caju, à beira-mar; o Solar d’El Rei, em Paquetá; a
Real Fazenda, em Santa Cruz e o Solar de São Domingos, em Niterói.
A família também frequentava o Paço da Cidade e incorporou a casa
da marquesa de Santos, o palacete do Caminho Novo4, aos imóveis im-
periais quando de sua partida para São Paulo, cuja aquisição se deu em
13 de agosto de 18295.
Alguns móveis e objetos permaneceram no Brasil e compuseram uma
outra coleção, a qual também não está levantada nem sistematizada. Em
virtude da dissipação dos bens de D. Pedro II do Brasil (filho de d. Pedro
I), diante de sua expulsão pelo governo republicano, somada ao fato da
dispersão da documentação, há alguma dificuldade de se recompor o
que na realidade constituía os espaços de vivência da realeza brasileira.
Ainda mais, alguns móveis que foram preservados e que estavam ex-
postos no que foi a antiga sala do trono no Museu Nacional, do antigo
Paço de São Cristóvão, perderam-se pelo devastador incêndio ocorrido
em 2 de setembro de 2018 e que configurou enorme perda patrimonial.
Neste pequeno conjunto perdido, predominavam os estilos D. José I e
Império (havia também um contador no dito estilo Nacional Português)
e era composto de cadeiras, mocho, marquesa, cômoda-papeleira, cô-
moda, consolas, contador, oratório, alguns ditos pertencentes a d. João
VI (um trono), Carlota Joaquina (duas cadeiras, um mocho, uma con-
sola, um oratório), ao príncipe de Joinville (um tremó) e d. Pedro I (uma
consola)6, que aproveito a oportunidade de mostrar alguns deles, foto-
grafados quando de uma visita ao museu em 2016, um registro inicial
para posterior retorno com fins de pesquisa, infelizmente jamais con-
cretizado (Fig. 1).

52
COLEÇÕES REAIS E COLEÇÕES OFICIAIS

Fig. 1 – Alguns dos móveis que pertenceram à família real e imperial que ficavam expostos na
antiga sala do trono do Paço de São Cristóvão, no então Museu Nacional, no Rio de janeiro.
O primeiro assento é registrado como trono de d. João VI, os seguintes, como de d. Carlota
Joaquina, bem como o oratório e a consola, em estilo d. José I. O tremó do príncipe de Joinville
e a consola de d. Pedro I apresentam estilo Império. Fotografias da autora, maio de 2016.

Somado à dificuldade comentada acima, o pouco interesse durante


décadas pelo objetos e ambientes do período imperial no Brasil7 retar-
dou a busca às fontes e à sua preservação, estando muitos documentos
desorganizados e alguns de difícil leitura por suas precárias condições.
Dito isto, aquilo que foi possível levantar e transcrever até o mo-
mento, pode ser um primeiro passo para que possamos compreender as
coleções reais, observando que, como dito na introdução, nem sempre
poderiam ser consideradas como tais.
Voltemos aos documentos e ao que eles podem nos trazer de infor-
mações, pelo menos aqueles que consideramos para a este artigo.

53
COLEÇÕES DE ARTE EM PORTUGAL E BRASIL NOS SÉCULOS XIX E XX

Na relação do Paço da Cidade, destacavam-se quadros, vasos, relógios


e aparelhos de iluminação, sem que nenhum mobiliário fosse menciona-
do, provavelmente arrolados em outra listagem, bem como o conjunto
têxtil. Os cômodos listados foram os seguintes nesta sequência: sala dos
camaristas; sala das damas; gabinete do ex-imperador; sala onde atual-
mente a regência faz suas sessões; pequeno quarto do ex-imperador, cha-
mada de descanso; casa de jantar; sala do trono; sala da tocha; 1ª, 2ª, 3ª
salas; sala do corpo diplomático; 5ª sala; quarto que foi da ex-imperatriz.
Na sala do trono, o único item indicado foi um grande lustre rico. O cô-
modo com mais itens apontados foi a sala dos camaristas:

Rellação do que se acha na sala chamada dos Camaristas, e pertence ao Ex-Impera-


dor o Senhor Dom Pedro d’Alcantara
Hum Lustre de Bronze.
Hum Quadro com o Retrato do Senhor Dom João Sexto.
Hum dito... dito grande,
Dous.. ditos... pequenos que estão em cima dos Espelhos.
Hum par de vasos grandes com mangas, e pianhas de mogno.
Dous .. ditos .. com asas de Bronze doirado, com os Retratos do Imperador e Impe-
ratriz d’Alemanha.
Hum par de serpentinas de Bronze, para quatro luzes cada huma.
Hum vaso de cristal. (fl.1)
de cristal, com manga, e flores.
Hum par de vasos, com mangas, flores e pianha doirada.
Hum Quadro grande, de Paisagem. (A.N., Doc.6, fl.2)

Dos trinta e seis quadros arrolados, apenas três retratos receberam


identificação: dois de D. João VI (na sala dos camaristas e na sala das
sessões da regência); e um painel com retrato de D. Maria I (gabinete
do ex-imperador). Dos restantes, somente os tamanhos eram mencio-
nados (grandes e pequenos), um dito de paisagem e outro com relógio.
Para além dos quadros, foram apontados uma figura do rei da Prússia
a cavalo e duas figuras de Napoleão. Os vasos eram em número de
vinte e quatro, a maioria em par, em porcelana ou cristal, alguns com

54
COLEÇÕES REAIS E COLEÇÕES OFICIAIS

mangas e peanhas, outros ditos muito ricos, citando-se dois com pin-
turas de paisagens e dois com os retratos do imperador e da imperatriz
da Alemanha. Complementando os recheios, havia cinco relógios, um
com feitio de harpa, outro com música e ainda um grande com duas
figuras. Faz-se também alusão a uma escrivaninha de prata, um prato
de ferro (acompanhando um vaso), duas cestas com flores e vinte man-
gas de vidro. Quanto aos aparelhos de iluminação é feita a referência a
lustres (oito), serpentinas (quatro), arandelas (catorze), candeeiro (um)
e dezessete castiçais grandes de prata com mangas, estes últimos demar-
cados com N.B. no arrolamento, ressaltando pertencer ao ex-imperador
e que estariam distribuídos pelos vários cômodos (A.N., Doc.6, fl. 3).
No inventário de mobiliário do Paço da Boa Vista os seguintes cô-
modos foram registrados: torreão novo; segundo quarto, à entrada; casa
de vestir do ex-imperador; gabinete do ex-imperador; sala do despacho;
sala do jantar; sala do toucador; sala da cama; gabinete da ex-impera-
triz; sala da ex-imperatriz; quarto de s. majestade a rainha; varandas
e corredores; sala encarnada e quarto da baronesa. Sendo assim, nem
todos os espaços foram considerados e sim aqueles onde d. Pedro I e
d. Amélia possuíam peças de seu interesse. Contudo, na Relação do
Espólio do Imperial Tesouro, realizado em 28 de abri de 1825, apre-
sentam-se extensas listagens de têxteis e trastes cuja localização nem
sempre é demarcada8.
Dos objetos arrolados, em alguns deles havia inscrições à esquerda,
ressaltando que não se encontravam mais naquele cômodo, seja porque
já haviam sido entregues ao procurador do ex-imperador, seja porque se
achavam em outra localidade.
A maioria dos móveis mencionados era de mogno ou jacarandá, al-
guns ditos chapeados, sendo apenas um de piquiá, no caso uma urna, e
um piano forte (quarto da baronesa) e predominavam armários, cômo-
das, guarda-livros, mesas, escrivaninha, consolas, lavabos, camas, cai-
xas de cabeceira, cadeiras (apenas duas) e urnas. Foram aludidos qua-
renta e nove quadros, sendo nove de porcelana, vinte e um da família
da imperatriz, uma paisagem e outros ditos coloridos, a claro escuro, a
óleo. Em termos de escultura, havia quatro figuras de pedra (varandas

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COLEÇÕES DE ARTE EM PORTUGAL E BRASIL NOS SÉCULOS XIX E XX

e corredores), dois bustos do príncipe Eugênio e vinte e oito pequenos


bustos de bronze. Complementando, foram listados sete relógios de
mesa, cinco lustres e duas serpentinas.
Os cômodos com mais itens especificados foram os gabinetes de d.
Pedro I e d. Amélia, que abaixo transcrevemos:

Gabinete do Ex-Imperador.
Duas Conçolas pequenas, de Mogno com pedra
Dois Guarda-Livros, de dito, envidraçados
Hum dito, de dito, com porta de Espelhos
Huma Mêza, quadrilonga, de dito, chapeada
Huma dita, de dito, de hum Jogo
Huma Urna de Jacarandá
Huma Cadeira grande de encosto
Huma dita de Mogno, de rodizios
Hum Quadro, comparativo, das Montanhas
Dois ditos de Craneoscopia
Tres ditos a claro-escuro
Dois ditos pequenos ordinarios
Vinte e oito Bustos de bronze, pequenos
Hum Guarda Cartas (A.N., 1831, Doc.10, fl.31)

Gabinete da Ex-Imperatriz
Cinco Quadros da Familia da Imperatriz, a Oleo (escrito à esquerda: Forão entregues
ao Procor do Ex-Imperador por ordem do Tutor)
Dois ditos de Paisagem
Hum dito a claro escuro
Hum Busto do Príncipe Eugenio
Huma Commoda, de Mogno, chapeada, e Espelho em cima
Huma Secretaria, de dito dita
Huma Meza para escrever
Huma dita para costura
Huma dita, pequenina, redonda
Huma dita de puxar

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COLEÇÕES REAIS E COLEÇÕES OFICIAIS

Dois Guarda Livros pequenos, envidraçados


Hum dito ditos grande
Hum Relogio de Mêza
Duas Serpentinas de Metal
Huma Urna de Jacarandá
Huma Estante pequena (A.N., 1831, Doc.10, fl. 31 v.).

Enquanto no gabinete de d. Pedro I predominavam imagens mais de


caráter científico, no de d. Amélia eram mais afetivos, reunindo retratos
de seus familiares. E, apesar das semelhanças das tipologias de móveis
encontrados, a presença da mesa de costura indiscutivelmente associa o
cômodo ao uso feminino. Por outro lado, a quantidade de móveis acom-
panhava as demandas vigentes no período para gabinetes. Esses e outros
móveis de uso particular foram requeridos para serem transportados
para Portugal.
Em pedido de Paulo Barboza da Silva, de 11 de maio de 1837, ao
almoxarife do Paço, Manoel José Maria, foram certificados todos os
itens de prataria que haviam sido encaixotados e embarcados na fragata
Volage e remetidos para Europa a D. Pedro I, contendo 15 volumes.
Também há outro documento anterior que trata da relação da prata que
estaria pronta a embarcar a partir de pedido de D. Pedro I, justificado
por ele “porque he minha” (A.N., Doc.57, fl.43). Neste documento, há
transcrição do que pediu para si e deixou o ex-imperador aos filhos:

Toda a prata que serve no Lava-pes a qual deixou o Senhor D. Joao Sexto, e existe no
Thesouro.
Seja-me remetida toda a prata que pertence ao lava-pes pois he minha por dadiva
que meu Pay me fez quando foi embora para Portugal. Deixo para meus filhos todo
o serviço de casquinha que comprei ao Arcos, a prata que está nos quartos ordinaria-
mente, todos os moveis que estão no Palacios e que são necessários para os decorar
sem luxo, retirando relógios vasos e menos cadeiras, mesas e, consolas. Também serão
por minha conta vendidos todos os espelhos que não estiverem nos Paços da Cidade
e São Cristóvão. Não cedo contudo a mobília que estiver nas casas que são de finali-
dade minha particular, nem os quadros que tenho quer no Muzeu, quer nos Palacios,

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COLEÇÕES DE ARTE EM PORTUGAL E BRASIL NOS SÉCULOS XIX E XX

quer Nacionaes, quer meus. Tambem deixo para o Muzeu tudo o mais que no mesmo
muzeu existe como o meu nome exceptuando como disse os quadros e hum Navio
chinez. Dou á Minha Filha Jannuararia o Pianno que comprei ao Arcos, e cada hum-
ma das Meninas, hum dos Alemaens que estão no Palacio da Cidade, e para o Meu
Imperador o Pianno a que se dá corda – NB tudo quanto fôr prata me seja mandada
exceptuando-se somente o que nottei. Venha também toda a prata da Mantearia ha-
vendo as excepçoens acima, confio que assim se cumpra.
D. Pedro de Alcantara.
Alem disto deixo para S. M. I. Sr. D. Pedro 2º meu muito ammado filho, e Sobera-
no toda a louça que tiver seja aonde for e de que assenhorado for (A.N., Doc. 57,
fls.44–45).

Enquanto os filhos que permaneceram no Brasil ficaram com algu-


mas casquinhas, D. Pedro I tratou de recolher a prataria de valor, seus
móveis de uso pessoal e as obras de arte, ao mesmo tempo que consen-
tiu que o museu quase fosse intocado, excetuando os quadros, dando-
-nos a perceber seu apreço por pinturas, esculturas, vasos e peças de alto
valor decorativo.
Apesar dessa pequena amostragem, ainda há muito o que percorrer,
no sentido de reunir e transcrever a variada documentação a respeito dos
inventários relativos aos bens de D. Pedro I do Brasil, tanto do que ficou
no Rio de Janeiro, quanto do que foi embarcado para Lisboa, quando se
poderá obter um panorama mais concreto e amplo dos pertences e re-
cheios que habitavam as edificações da família imperial no Brasil.
Até chegar a esse momento, o que por ora chama a atenção é o gran-
de contingente de artefatos requeridos pelo ex-imperador, especialmen-
te de prata e objetos de arte que pretendeu levar consigo, considerados
seus e de grande preço e apreço, dando outro sentido à frase “Dai a
César o que é de César”. Pelo que tudo leva a crer, D. Pedro II teve que
conviver com muitas ausências venais, materiais e sentimentais após a
partida de seu pai.

58
COLEÇÕES REAIS E COLEÇÕES OFICIAIS

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se acha no Imperial Paço da Boa-Vista, e que pertence ao Ex-Imperador, o Senhor Dom Pedro de
Alcantara, 1831, Documento 10, Cx. 5, Pac. 1.
A.N., Fundo da Casa Real e Imperial. Rellação da prata que está prompta a embarcar para bordo da
Nau Inglesa, logo que seja inventariada pelo Ministro, Documento 57, cx.5, Pac. 1.
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NOTAS
1 O Museu Real foi criado por decreto de 6 de junho de 1818, por D. João VI, denominado de Museu Imperial após
a Independência e Museu Nacional após o advento da República.
2 A ideia de um Museu do Imperador, apesar de não existir oficialmente documentação que assim o designasse,
foi sendo criada a partir de relatos, escritos de D. Pedo II (“o meu museu”) e do Leilão do Paço (SCHWARCZ;
ABREU, 2008: 129). As doações de seu acervo foram endereçadas, por sua vontade, à Biblioteca Nacional, ao
Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro e ao Museu Nacional, apesar de que seu herbário ter tido como destino
o Jardim Botânico, todas instituições até hoje existente no Rio de Janeiro (MELO, 2013: 56-59).
3 Em Portugal, Clara Moura Soares levantou no Arquivo Nacional da Torre do Tombo uma série de documentos
referentes à herança e partilha dos bens de d. Pedro IV (SOARES, 2014: 394-398). O confronto entre as documen-

59
tações encontradas em arquivos brasileiros e portugueses poderá levar a novos caminhos de compreensão entre
os trânsitos de bens e coleções luso-brasileiras.
4 O inventário do palacete do Caminho Novo foi realizado em 1831 por José Maria Pinto (PINTO, 1975) e trans-
crito na publicação de autoria de Afonso Arinos de Melo Franco, editada em 1975.
5 A respeito da cronologia de ocupação do palacete do Caminho Novo e de outros imóveis que pertenceram à
família real e imperial no Brasil (Quinta da Boa Vista, antigo Paço de São Cristóvão, e Palácio Imperial, em
Petrópolis), vide o site do projeto A Casa Senhorial em Portugal, Brasil e Goa, in http://acasasenhorial.org/acs/
index.php/pt/ (15.03.2020).
6 Essas atribuições de pertencimento estavam designadas na legenda das peças no Museu Nacional quando da
nova museografia da antiga sala do trono.
7 Foi somente em 29 de março de 1940 que ocorreu a criação do Museu Imperial em Petrópolis, na antiga resi-
dência de veraneio de D. Pedro II. Contou com seu idealizador e primeiro diretor, Alcindo de Azevedo Sobdré,
e uma equipe para localizar objetos pertencentes à família imperial entre diferentes palácios e colecionadores. O
primeiro museu a se concentrar no período monárquico brasileiro foi inaugurado em 16 de março de 1943.
8 Nesse documento (A.N., 1825, Doc.1), há os seguintes títulos de itens arrolados (escritos como constam):
“Fardamento; Tapeçaria de raz; Sobreportas; Alcatifas; Alcatifas Inglesas medidas a covados; Pertencentes ao
Oratório de S.M.I.; Trastes; Madeiras do Altar do Oratório de S.M.I; Armações de Bambinellas; Fazendas de
Velludo Carmezin; Sanefas de Velludo; Velludo roxo com guarnição de ouro falso; Damasco roxo; Fazendas pre-
tas; Cortinas de Damasco Carmezin; Fazendas de Damasco Carmezin com guarnições de galão finos; Fazendas
Carmezins com galão de ouro falso; Fazendas de Damasco carmezin com galão de ouro fino; Cobertas; Roupa
pertencente a Casa da Opera; Roupa de Meza; Roupa nova que veio com S.M. a Imperatriz; Roupa branca Para
Camas do Thesouro; Roupa incapaz de servir; Expolio que existe na Capella. A sequência do documento trata da
“Rellação do Expolio que existe no Thesouro, cujo recebi, e pertence a Rellação que foi junta ao Inventario geral”,
com a enumeração das caixas, malas e seus conteúdos e a descrição do espólio empacotado. Nesta listagem ainda
consta: Expolio que não pertence ao inventario geral nem a relação junta ao dito; Trez volumes com o seguinte,
os quaes pertencem a Náo; Pertencente a Camara que foi de el Rei; Pertencentes ás Sallas de Docel do Paço da
Cidade; Vindo da Caza das Obras; Comprado em Fevereiro de 1823; Vindo da Caza das Obras; Vindo do Paço
da Cidade; Paço da Cidade; Madeiras pertencentes ao Altar; Armações pertencentes ás Sallas de Docel, Primeira
Armação; Segunda Armação da Primeira Salla; Segunda Salla de Docel Primeira Armção; Segunda Salla de
Docel Segunda Armação; Salla da Tocha”. Aqui vale uma observação, pois a relação do espólio se inicia com a
data de 28 de abril de1825, quando esta é entregue por Pedro Nolasco Heitor, e é finalizado em 22 de março de
1827, assinado por Manuel de Jesus Pestana.

Marize Malta, mestre em História da Arte (UFRJ) e doutora em História Social (UFF), com pós-
-doutorado em História da Arte (ARTIS-UL e bolsa Capes), é professora Associada da Escola de Belas
Artes da Universidade Federal do Rio de Janeiro, atuando na graduação e pós-graduação, além da
coordenação do Setor de Memória e Patrimônio (Museu D. João VI, Arquivo Histórico e Biblioteca de
Obras Raras). É líder dos grupos de pesquisa ENTRESSÉCULOS e MODOS e colaboradora do grupo
Casas Senhoriais em Portugal, Brasil e Goa, sendo editora assistente da revista MODOS. Desenvolve
pesquisas na área de história da arte, com estudos sobre artefatos e ambientes interiores oito-nove-
centistas, objetos malditos, a condição decorativa, utilitária e/ou artística e sua relação com imagem e
lugar, enfocando o problema das coleções e dos modos de exibição.
A BIBLIOTECA DA ACADEMIA
IMPERIAL DE BELAS ARTES DO RIO
DE JANEIRO E A HISTORIOGRAFIA
DA ARTE NO BRASIL

SONIA GOMES PEREIRA


Professora titular, Escola de Belas Artes, Universidade Federal do Rio de Janeiro

Resumo Palavras-chave
Dentre as coleções da antiga Academia de Belas Historiografia da arte; Passagem séculos XIX e
Artes do Rio de Janeiro, este artigo investiga a XX; Coleções da biblioteca; Academia de Belas
coleção de livros de sua biblioteca, destacando os Artes; Rio de Janeiro, Brasil.
editados até 1890 – quando a instituição sofreu
ampla reforma, transformando-se em Escola
Nacional de Belas Artes – e mantendo o foco nos
livros de História da Arte. Procura-se, assim,
investigar o modelo de História da Arte que
estaria à disposição dos leitores na Academia,
desde os seus autores mais antigos, como
Vasari, Lanzi e Winckelmann, até os autores do
século XIX, em que predominam os franceses
ou, quando não franceses, as suas traduções
francesas. Nesse ambiente decididamente
francófilo, discute-se a repercussão desses
modelos na historiografia da arte feita no Brasil
na época e mesmo posteriormente.

61
COLEÇÕES DE ARTE EM PORTUGAL E BRASIL NOS SÉCULOS XIX E XX

Criada por decreto em 1816 e aberta em 1826, a Academia Imperial


de Belas Artes do Rio de Janeiro conseguiu organizar uma coleção sig-
nificativa de obras de arte e de livros.
A escolha dessas peças, a sua musealização e a sua disponibilização a
professores, alunos e demais interessados representam indicadores im-
portantes da maneira como a Academia entendia então a História da
Arte – tanto o passado remoto quanto o passado recente, tanto a tradi-
ção europeia quanto a trajetória da arte brasileira.
Neste artigo, pretendemos focar na coleção de livros da velha
Academia, constituída desde o início da sua trajetória, em parte com
doações sobretudo de professores, em parte com aquisições, como cons-
ta em sua documentação.
A longa listagem da hoje Biblioteca de Obras Raras da Escola de
Belas Artes da Universidade Federal do Rio de Janeiro1 inclui obras de
várias categorias: belas artes, arquitetura, artes decorativas, história, li-
teratura, história natural, entre outras. Dentro de belas artes, há inú-
meros manuais técnicos, dicionários, biografias de artistas do passado
e do presente. Aqui, no entanto, vamos nos concentrar nos livros re-
ferentes à História da Arte. Além disso, recortamos as obras editadas
até 1890 – data em que houve a reforma da instituição, passando a se
chamar Escola Nacional de Belas Artes. Daí resulta um conjunto em
que predominam os autores franceses e, no caso dos não franceses, ge-
ralmente as suas traduções em língua francesa.
De autores anteriores ao século XIX, podemos destacar a presença
na Biblioteca de obras fundadoras da História da Arte europeia: Giorgio
Vasari (1511–1574)2, Luigi Lanzi (1732–1810)3 e Johann Joachim
Winckelmann (1717–1768)4. A leitura desses autores é perceptível nos
escritos de vários membros da Academia, inclusive em dois dos seus
principais diretores: Félix-Émile Taunay (1795–1881) e Manuel de
Araújo Porto Alegre (1806–1879). Neles, Vasari e Winckelmann são ci-
tados textualmente e certamente deviam conhecer a obra de Lanzi sobre
a pintura italiana, pois ambos discutem as escolas artísticas europeias e
a questão de uma possível escola brasileira.5
Entre a extensa relação de obras editadas no século XIX, há poucos

62
COLEÇÕES REAIS E COLEÇÕES OFICIAIS

autores não franceses.6 Entre eles, destaco três alemães em traduções


francesas: Gustav Friedrich Waagen (1794–1868)7, Jacob Burckhardt
(1818–1897)8 e Wilhelm von Bode (1845–1929)9.
É interessante observar que Waagen e Bode são historiadores ale-
mães que nos livros de historiografia europeia da arte aparecem geral-
mente nos capítulos dedicados a connoisseurship – isto é, um tipo de
História da Arte mais pragmática, baseada de um lado no trato direto
com as obras e de outro na procura da documentação, a fim de opinar
sobre autoria, definir características formais de artistas e posicioná-los
no universo maior da arte da sua mesma época e lugar.
Esse tipo de História da Arte não parece ter tido a menor resso-
nância no Brasil na época. Só será posta em prática mais adiante, nas
décadas de 1920 – quando é criado o Museu Histórico Nacional – e
de 1930 – com o surgimento do Serviço de Patrimônio Histórico e
Artístico Nacional (SPHAN) e de vários museus, inclusive o Museu
Nacional de Belas Artes. Então, o trato direto com as obras vai exigir
do conservador de museu – denominação na época do museólogo – as
habilidades de connoisseur.
Quanto a Burckhardt, sua obra sobre o Renascimento não é propria-
mente um livro de História da Arte, mas aplica o conceito de espírito
de época, que viria a ter enorme importância na História da Arte de
língua alemã.
No campo específico da arte brasileira, o conhecimento do pensa-
mento do Burckhardt será tardio, de maneira geral acoplado ao dos his-
toriadores da arte de língua alemã, introduzidos no Brasil por Hannah
Levy – historiadora alemã, emigrada em 1937, tendo permanecido no
Rio de Janeiro até 1947, ligada ao SPHAN. Escreveu inúmeros artigos,
entre eles, um sobre as teorias do Barroco de Heinrich Wölfflin, Max
Dvorak e Leo Balet10, que teve larga repercussão no SPHAN, certamen-
te por valorizar um estilo até pouco tempo atrás desprezado e no qual
grande parte da nossa arte colonial seria incluído. Mas é bem possível
que esses autores tenham ajudado, também, a cristalizar um pensamen-
to muito recorrente no nosso modernismo – não de espírito de época,
mas da existência das constantes estéticas.11 Por essa via, acreditava-se

63
COLEÇÕES DE ARTE EM PORTUGAL E BRASIL NOS SÉCULOS XIX E XX

que a cultura brasileira, sempre que se mantinha fiel às suas raízes ge-
nuínas, tendia ao barroquismo – desde as igrejas coloniais até ao cinema
novo, ao neoconcretismo e ao tropicalismo dos anos 1960 e 1970.
No entanto, no que diz respeito à prática específica da História da
Arte, acreditamos que a influência dos autores de língua alemã ainda
demoraria algumas décadas. A tirar pelas bibliografias da disciplina em
cursos de graduação, pelo menos no Rio de Janeiro, as referências eram
predominantemente francesas até pelo menos a década de 1960.
Retornemos à relação da Biblioteca da Academia. A lista de obras
franceses é extensa. Na impossibilidade de transcrevê-los na íntegra,
destacamos aqui autores que tiveram grande importância dentro e fora
da França: Quatremère de Quincy (1755–1849), Théophile Gautier
(1811–1972), Viollet-le-Duc (1814–1879), Eugène Fromentin (1820–
1876), Charles Baudelaire (1821–1867), Eugène Véron (1825–1889),
Hippolyte Taine (1828–1893), Jules-Antoine Castagnary (1830–1888),
Charles Blanc (1831–1882), Eugène Muntz (1845–1903), Émile Zola
(1840–1902), Joris-Karl Huysmans (1848–1907) entre outros.
Só nessa pequena amostragem, é possível verificar a variedade de
tendências que a biblioteca da Academia então oferecia. Doutrinadores
do clássico, como Quatremère de Quincy.12 Medievalistas, como Viollet-
le-Duc13. Alinhados aos românticos, como Théophile Gautier14, Charles
Baudelaire15 e Eugène Fromentin16. Defensores dos realistas, como
Jules-Antoine Castagnary17 e Émile Zola18. Identificados com o sim-
bolismo e o decadentismo, como Joris-Karl Huysmans19. Historiador,
crítico, teórico e o principal divulgador das teorias científicas moder-
nas para uso dos artistas, como Charles Blanc20. Um historiador da arte
mais próxima ao modelo dos connoisseurs, especialmente voltado para a
documentação, como Eugène Munz21. Filósofos ligados ao positivismo,
como Hipollyte Taine22 e Eugène Véron23.
Acredito que a diversidade das leituras acima seja um argumento im-
portante para que se possa entender melhor a historiografia da arte no
Brasil na passagem dos séculos XIX e XX.
A referência teórica mais ampla nesse período é o positivismo. Foi
o traço de união mais forte de uma elite intelectual entusiasmada com

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COLEÇÕES REAIS E COLEÇÕES OFICIAIS

a ciência e o progresso e que lutou pela abolição da escravatura e pela


república na mira da modernização do país.
No campo da arte, o positivismo costuma ser visto como muito redu-
tor: o papel do artista e mesmo da arte ficaria reduzido a simples con-
sequência do meio físico e social. No entanto, a leitura tanto de Taine
quanto de Véron mostra que a relação da arte com a natureza e com a
sociedade não se dá de forma tão simples. Taine reconhece na arte uma
forma de conhecimento do mundo tão importante quanto a ciência e
prestigia o artista desde que ele tenha a capacidade de perscrutar o cará-
ter das coisas e o faça de maneira pessoal e sincera (TAINE, 2000: 39–40).
No entanto, mesmo tomando Taine e Véron de uma maneira mais
fidedigna, é difícil considerá-los como únicos modelos dos autores no
Brasil na passagem dos séculos XIX e XX. Vamos tomar como exem-
plo o mais importante crítico brasileiro do período: Gonzaga Duque
(1863–1911). Luís Gonzaga Duque Estrada foi romancista e crítico de
arte. Escrevia regularmente em revistas da época. Escreveu alguns li-
vros, entre os quais Arte Brasileira, publicada em 1888, que é conside-
rado um dos primeiros livros de História da Arte no Brasil.
Na escrita de Gonzaga Duque está presente a análise da arte brasi-
leira em função do clima, do tipo de colonização, da mistura de raças.
Autores mais antigos já levavam esses fatores em consideração, como
é o caso de Théophile Gautier. Mas certamente, nesse ponto, as teorias
de Taine foram decisivas. Sobre esse assunto, Gonzaga Duque faz refe-
rência direta a Taine: Telle est en ce payz la plante humaine; il nos reste à
voir l´art qui est la fleur. (GONZAGA DUQUE, 1995:70). Ao descrever
a cidade do Rio de Janeiro, a sua opinião é a mais negativa possível:
monotonia, falta de limpeza, uma simples aldeia que foi crescendo em
extensão. A esse quadro desolador da paisagem construída, opõe a be-
leza da paisagem natural e as riquezas disponíveis, assim como lamenta
a qualidade do homem.

Nada nos falta. Temos muito perto de nós, inúmeras montanhas de granito de onde
poder-se-ia retirar pedras para formosas construções e lajes para as mais largas cal-
çadas; a terra tem viço, superabunda de vigor – delas surgem palmeiras gigantescas,

65
COLEÇÕES DE ARTE EM PORTUGAL E BRASIL NOS SÉCULOS XIX E XX

mais airosas que o garbo escultural das colunas coríntias; copam-se árvores como en-
genhosos docéis [sic], a vegetação brota rápida e feliz; cobre essa natureza exuberante
um céu quase sempre limpo, alto, deslumbrante, banhado pelos raios do sol tropical.
Somente nos falta o homem. (GONZAGA DUQUE, 1995: 67)

Mas há vários aspectos da escrita de Gonzaga Duque que se refe-


rem diretamente aos críticos franceses. Tal como Émile Zola, Gonzaga
Duque muitas vezes inicia o texto pela descrição do tipo físico e do tem-
peramento do artista.
Sobre o pintor paisagista João Batista Castagneto (1851–1900), o
nosso crítico inicia o texto, apresentando-o ainda jovem:

Era, então um rapaz de vinte e dois a vinte e cinco anos, estatura meã, menos múscu-
los que nervos nos membros secos, nariz em adunco de rapina, loura barba, que lhe
emoldurava o rosto, bipartida ao queixo; olhos grandes e azuis, um sombrero negro,
forçado um pouco à nuca, sobre a crespa cabeleira cor de tabaco turco. (GONZAGA
DUQUE, 1997: 53)

A respeito do pintor Belmiro de Almeida (1851–1900), Gonzaga


Duque descreve aspecto físico e temperamento, além de chamar a aten-
ção para a moda:

É um mineiro que possui a verve, a sagacidade de um parisiense bulevardeiro. Na


rua, de pé sobre a soleira de uma porta, no Café Inglês ou na Casa havanesa, o seu
tipo pequeno, forte, buliçoso, destaca-se na multidão ... Entre camaradas, na rua do
Ouvidor, com o narizinho arrebitado e atrevido farejando os pacatos burgueses para
lhes agarrar o ridículo ... Só depois de casado e viajado ... foi que ele abandonou a boe-
mia, de uma vez para sempre. A única coisa que ele jamais abandonará é a toilette. O
vestuário é para Belmiro o que foi para Honoré de Balzac e para Alphonse Karr, o que
é para Daudet e para Carolus Durand, o que é para Leon Bonnat e Rochegrosse; uma
feição artística, um sintoma do bom gosto e do asseio, ou como lhe chama o mestre,
o sr. Ramalho Ortigão, a expressão gráfica, pessoal, de uma filosofia (GONZAGA
DUQUE, 1995: 209–210)

66
COLEÇÕES REAIS E COLEÇÕES OFICIAIS

Fig. 1 – João Batista Castagneto, Embarcações na baía do Rio de Janeiro, 1898, o/m, Coleção L.C.Ritter.

Outro aspecto importante na metodologia de Gonzaga Duque é


dedicar-se sempre à análise de um só artista ou só uma obra de cada
vez, enfrentando-os sobretudo plasticamente. Tal procedimento estava
presente na escrita de vários dos críticos franceses acima citados, como
Gautier e Fromentin. É nesse caminho que Gonzaga Duque escreve as
suas melhores críticas. (Fig. 1)

Castagneto é original. Ele aprendeu consigo próprio... Não quis saber de leis nem de
regras. Precisava unicamente da natureza ... Quando lhe falta tempo para mudar
pincéis maneja um só, mergulhando-o em diversas tintas, ou pinta com os dedos, com
as unhas, com a espátula, com o primeiro objeto que tiver à mão; um seixo resistente,
um pedaço de pau, um pedaço de corda, um palito, o cano do cachimbo, a ponta do
cigarro. A sua caixa de tinta é um caos, a sua palheta na mão de outro artista seria
inútil, porque a aglomeração de cores, o espastelamento de tintas secas, fazem mal à
vista. Também não lhe peçam um quadro acabado, envernizado, escovado, esbatido.
Seus estudos são feitos d´après nature, à guisa de pochades, largamente independente-
mente. Mas quanta expressão nesses empastelamentos, quanta individualidade nesses
borrões despretensiosos e sinceros! (GONZAGA DUQUE, 1995:70)

Assim como vários autores franceses, Gonzaga Duque pratica ao


mesmo tempo Crítica e História da Arte. Analisa as obras do presente e
as do passado com os mesmos padrões artísticos. Procura informações
históricas para embasar suas análises, mas trabalha sobretudo a partir
de sua intuição e de suas próprias concepções estéticas. Pensa a arte

67
COLEÇÕES DE ARTE EM PORTUGAL E BRASIL NOS SÉCULOS XIX E XX

do seu tempo historicamente e tenta entender o processo da arte do


passado.
Portanto, podemos concluir que nos autores brasileiros da passa-
gem do século – especialmente Gonzaga Duque – fazia-se uma Crítica
da Arte, que era também uma História da Arte, depois pejorativamente
chamada de impressionista, que será combatida mais tarde como sendo
pouco científica e por demais literária.
Não era, portanto, uma História da Arte que pudesse ser chamada de
positivista – no sentido que essa palavra tem hoje nas discussões atuais
sobre historiografia da arte.
Acredito, assim, que essas observações podem ser úteis não apenas
para aprofundar o nosso conhecimento da historiografia da arte no
Brasil, mas também como reflexão nas discussões atuais sobre a crise da
disciplina e a crítica aos modelos historiográficos do passado.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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Terra, 2002.
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DUQUE, Luis. Arte Brasileira. Campinas: Mercado de Letras, 1995. p. 11–52.
FERREIRA, Félix. Belas Artes: estudos e apreciações. Porto Alegre: Zouk, 2012. Introdução e notas de
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GONZAGA DUQUE, Luiz. Arte Brasileira. Campinas: Mercado de Letras, 1995 (original de 1888).
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Sette Letras, 1997.
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HARRISON, Charles; WOOD, Paul; GAIGER, Jason, ed. Art in Theory 1815–1900: na anthology of
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LINS, Vera. Novos pierrôs, velhos saltimbancos: os escritos de Gonzaga Duque e o final do século XIX
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LEVY, Hanna. A propósito de três teorias sobre o barroco. Revista do Serviço do Patrimônio Histórico e
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NOCHLIN, Linda. Realism and Tradition in Art 1848–1900. New Jersey: Prentice-Hall, Inc., 1966
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68
COLEÇÕES REAIS E COLEÇÕES OFICIAIS

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PEREIRA, Sonia Gomes. Algumas discussões sobre a historiografia da arte no Brasil: os modelos
teóricos na passagem dos séculos XIX e XX. In: 26° Encontro Nacional da ANPAP: Memórias e
Inventações, 2017, Campinas. Anais do 26° Encontro Nacional da ANPAP: Memórias e Inventações.
Campinas: ANPAP/PUC-Campinas, 2017. v. 1. p. 286–300.
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do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Mauad / Faperj, 2016.
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de Belas Artes. In: IX Seminário do Museu D. João VI: Pesquisas sobre os acervos do MDJVI e do
MNBA, 2019, Rio de Janeiro. Anais do IX Seminário do Museu D. João VI: Pesquisas sobre os Acervos
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VÉRON, Eugène. A Estética. São Paulo: Editora Formar, s/d. 2 vols. Coleção História da Arte (original
de 1878).
SITE minerva.ufrj.br/escola de belas artes/biblioteca de obras raras.
SITE www.inha.fr/fr/ressources/publications-numeriques/dictionnarire-critique-des-historiens-de-l-
-art.html.

NOTAS
1 Base de Dados Minerva da Biblioteca de Obras Raras da Escola de Belas Artes da UFRJ.
2 VASARI, Giorgio. Vies des peintres, sculptures et architectes, 1840.
3 LANZI, Luigi. Histoire des principaux peintres des écoles d’Italie avec des notes et 80 gravures de tableaux peu
connus, des meilleurs maitres, choisis dans les collections particulaires de Paris et de Londres / [Traduit par Tim.
Francillon]. Paris : Rey et Gravier, 1823; LANZI, Luigi. Histoire de la peinture en Italie : depuis la Renaissance des
beaux-arts, jusque vers l´art du XVIII siècle, traduite d’italien sur la 3. edition par Mme Armande Dieudé. Paris :
Chez H. Seguin Chez Dufart, 1824.
4 WINCKELMANN, Johann Joachim. Histoire de l´art chez les anciens. Paris: H. Jansen, 1803.
5 PEREIRA, Sonia Gomes. Arte, ensino e academia: estudos e ensaios sobre a Academia de Belas Artes do Rio de
Janeiro. Rio de Janeiro: Mauad / Faperj, 2016. p. 71–112.
6 Há uma obra de John Ruskin (1819–1900), em tradução francesa: Le val d´Arno. Paris: Libr. Renouard, H.
Laurens, 1911. Sabemos que Gonzaga Duque cita Ruskin, mas a obra em questão é de 1911 e nós estamos nos
atendo nessa comunicação ao século XIX. É importante frisar também que o crítico de arte português Ramalho
Ortigão era muito lido no Brasil e inclusive publicava em revistas e jornais brasileiros. Mas seu nome não aparece
nessa listagem da biblioteca da Academia, que é só de livros.
7 WAGGEN, Gustav Friedrich. Manuel de l’histoire de la peinture : Écoles allemande, flamande et hollandaise. Paris
: Morel, 1863.
8 BURCKHARDT, Jacob. La Civilisation en Italie au temps de la Renaissance. Paris: Librairie Plon, 1885, 2 vols.
9 BODE, Wilhelm von. Donatello a Padoue : Gattamelata et les sculptures du Santo (orné de 23 planches phototypi-
ques inaltérables ; traduction revue et corrigée par Charles Yriarte. Paris : J. Rothschild, 1883.
10 LEVY, Hanna. A propósito de três teorias sobre o barroco. Revista do Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico
Nacional n. 5. Rio de Janeiro: Ministério da Educação e Saúde, 1941. p. 259-284.
11 São as constantes formais que foram vistas entre o nosso colonial e o movimento moderno então nascente.
Naturalmente esse pensamento não terá tido apenas uma origem. Haveria a ressonância entre nós do livro
Lo Barroco de Eugenio d´Ors de 1935, que indicava o estilo como uma cosmovisão matricial de um ethos
cultural. Além disso, esse tipo de pensamento também era defendido por alguns artistas modernos, como o
André Lotte, por exemplo. Essas ideias tiveram uma grande repercussão no Brasil no século XX, sobretudo
entre arquitetos, e acredito que também no pensamento do crítico Mário Pedrosa, que apontava como um
dos motivos para a preferência dos brasileiros pela abstração geométrica a memória, mesmo inconsciente, da
nossa arte indígena.

69
COLEÇÕES DE ARTE EM PORTUGAL E BRASIL NOS SÉCULOS XIX E XX

12 QUATREMÈRE DE QUINCY, Antoine-Chrysostome. Canova et ses ouvrages, ou Mémoires historiques sur la


vie et les travaux de ce célèbre artiste. Paris : Adrien Le Clère, 1834; QUATREMÈRE DE QUINCY, Antoine-
Chrysostome. Histoire de la vie et des ouvrages de Michel-Angel Bonarroti : Ornée d’un portrait. Paris : FIRMIN
DIDOT FRERES, 1835;QUATREMÈRE DE QUINCY, Antoine-Chrysostome. Histoire de la vie et des ouvrages de
Raphael : ornée d’un portrait. Paris : Firmin DidoT, 1835.
13 VIOLLET-LE-DUC, Eugène-Emmanuel. Lettres adressées d’Allemagne à M. Adolphe Lance. Paris : B. Bance, 1856;
VIOLLET-LE-DUC, Eugène-Emmanuel. De la décoration appliquée aux édifices. Paris : Libraire de L’Art, [18-?];
VIOLLET-LE-DUC, Eugène-Emmanuel. Peintures murales des chapelles Notre-Dame de Paris, 1870; VIOLLET-
LE-DUC, Eugène-Emmanuel. Dictionnaire Raisonné de l´architecture française du XI au XVI siècle. Paris: A.
Morel, 1861–1875. 10 vols.; VIOLLET-LE-DUC, Eugène-Emmanuel. Entretiens sur l´architeture. Paris: A. Morel,
1863–1872. 2 vols.
14 GAUTIER, Théophile. Les beaux-arts en Europe. Paris: Michel Lévy Frères, 1855.
15 BAUDELAIRE, Charles. Oeuvres complètes. Paris: Calmam-Lévy, 1880. 7 vols. Outras edições: 1885 e 1889.
16 FROMENTIN, Eugène. Dominique. Paris: Americ, 1862; FROMENTIN, Eugène. Les maîtres d´autrefois. Paris:
Nelson, [1875].
17 CASTAGNARY, Jules-Antoine. Salon de 1861: les artistes au XIXe. siècle. Paris, Librairie Nouvelle, 1861.
18 ZOLA, Émile. Le roman expérimental. Paris: G. Charpentier, 1881. 6ed.
19 HUYSMANS, Joris-Karl, L´art moderne. Paris: G. Charpentier, 1883.
20 BLANC, Charles. Grammaire des arts du dessin :architecture, sculpture, peinture.Paris: Henri Laurens,[18-];
BLANC, Charles. L’oeuvre complet de Rembrandt. Paris : Chez Gide,1859.2 v; BLANC, Charles. Histoire des pein-
tres de toutes les écoles : école hollandaise, francaise, flamande, ombrienne, romaine, anglaise, bolonaire, allemande,
venitienne e espagnole. Paris :Vve. Jules Renouard,1863–1877.15 v.; BLANC, Charles. Grammaire des arts du des-
sin, architecture, sculpture, peinture. 4 éd. Paris :Henri Laurens,1881.
21 MUNTZ, Eugène. Raphael : sa vie, son oeuvre et son temps. Paris : Hachette, 1881; MUNTZ, Eugène. La
Renaissance en Italie et en France a l’époque de Charles VIII. Paris : Firmin-Didot, 1885; MUNTZ, Eugène.
Léonard de Vinci : l’artiste, le penseur, le savant. Paris : Libraire Hachette, 1899.
22 TAINE, Hippolyte, Voyage em Italie. Paris; Hachette, 1866. 2 vols. ; TAINE, Hippolyte. De l´idéal dans l´art. Paris:
Germer Baillière & cie., 1879. 2ed.; TAINE, Hippolyte, Philosophie de l´art. Paris: Germer Baillière & cie., 1872,
2ed.
23 VÉRON, Eugène. L´Esthétique. Paris: C. Reinwald, 1883. 2ed.

70
PEÇAS DE MOBILIÁRIO DA RAINHA
D. MARIA II E DO REI D. FERNANDO II
DA SUA RESIDÊNCIA OFICIAL
NO PAÇO DAS NECESSIDADES EM
COLEÇÕES OFICIAIS PORTUGUESAS

TERESA SANDE LEMOS


Conservadora-Restauradora, Doutoranda no ARTIS – Instituto de História da Arte,
Faculdade de Letras, Universidade de Lisboa, Portugal,
gicaslemos@gmail.com

Resumo Palavras-chave
A rainha D. Maria II e o rei D. Fernando II vão Mobiliário; D. Maria II; D. Fernando II;
viver para o Paço das Necessidades a partir de coleções; Palácio das Necessidades.
Abril de 1836. A presente pesquisa pretende
determinar o percurso de algumas peças de
mobiliário que foram encomendadas por D.
Fernando II, para o seu gabinete de trabalho
no Paço das Necessidades e identificá-las em
coleções oficiais portuguesas.

71
COLEÇÕES DE ARTE EM PORTUGAL E BRASIL NOS SÉCULOS XIX E XX

A ENCOMENDA

Este artigo enquadra-se na temática da nossa tese de doutoramento,


que se encontra em desenvolvimento. Gostaríamos de agradecer à Dra.
Marta Páscoa, do arquivo do Paço de Vila Viçosa, por toda a ajuda e
disponibilidade na procura e pesquisa destes documentos.
A análise pretende dar a conhecer documentação inédita, relativa-
mente a uma encomenda celebrada entre o rei D. Fernando II e o mar-
ceneiro Pedro Bartolomeu Dejante, para o seu gabinete de trabalho no
palácio das Necessidades que consta de um contrato, desenhos e respe-
tivos recibos de pagamento no ano de 18511.
A 14 de Julho de 1851 Pedro Bartholomeu Dejante assume o com-
promisso de

“…prontificar até 15 de Novembro de corrente anno os seguintes moveis para a


sala de S. M. el Rey. Um sofá de gosto antigo estofado, Seis cadeiras estofadas, Duas
ditas de braços, Uma meza para diante do sofá, Uma secretaria, uma comoda, e
duas estantes, assim como, ricas cortinas de cambraia bordadas para três janelas de
sacadas, tudo conforme os riscos juntos, sendo os estofos de crina, e molas, e seda
da amostra junta, arranjando as duas cadeiras de braços que já tem S.M. na sua sala
com a mesma seda das outras cadeiras, tudo pelo preço de um conto e cem mil reis
em metal, pago depois dos objetos entregues, obrigando-me também dentro de um
anno a contar da data da entrega a fazer qualquer concerto nos mesmos moveis
sem recompensa alguma, e quando não esteja tudo pronto ate 15 de Novembro do
corrente anno pode S.Mel Rey deixar de aceitar.”2

Na documentação consultada no arquivo da biblioteca do Paço de


Vila Viçosa existem dois resumos manuscritos do contrato, sem data, na
primeira folha:

“1sofa antique
2 Fauteuils
6 chaises
1 table de sofa

72
COLEÇÕES REAIS E COLEÇÕES OFICIAIS

1 Bureau
2 étagères . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 600$000
1 Comodo . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 100$000
3 gardinas a 65$000 . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 195$000
35 covados de seda a 4$000 . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 140$000
54 Varas de galão a 140 centavos . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 7$560
30 Varas de franjas a 2$000 . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 60$000
1102$560”3,

na segunda folha:

“Tout l’ameublement composé des objets suivants:


1 sofa antique
2 fauteuils
6 chaises
1 table de sofa
1 bureau
2 étagères
Coutera garnis sans la soie à peu près . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 600$000
Tout sera en bois de palissandre esoulté? toutes les colonnes creusa e ouverte à jour
PBD”4

As cortinas encomendadas, segundo a fatura de 30 de Março de 1853,


para o gabinete do rei eram em cetim carmesim cor de oiro e prata:

“…108 covados de setim carmezim e cor de ouro e prata


para as 6 cortinas da sala de sua Majestade a 4$000 . . . . . . . . . . . . . . . . . 432$000
108 covados de seda amarela para forro das cortinas a 0$480 . . . . . . . . . 51$840
60 varas de cordão de linha a 0$050 . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 3$000
70 varas de crepe ou gerolino de seda carmezin cor de oiro
e prata a 0$600 . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 42$000
12 duzias de aneis a 0$200 . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 2$400
Ferragens de correr as cortinas . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 12$000
Fecho das cortinas e mais despesas . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 24$000

73
COLEÇÕES DE ARTE EM PORTUGAL E BRASIL NOS SÉCULOS XIX E XX

36 varas de setim cor de oiro e para os lambrequins a 2$000 . . . . . . . . . 72$000


5 covados de setim carmezim cor de oiro e prata para tapume
do fogão a 4$000 . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 20$000
frete e travailhe do estofador . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 2$400
Moldura tremido de pau-santo com florão ditto entalhado . . . . . . . . . . 9$600
671$240

E Falta da conta da mobília . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 100$000


771$240”5

Mais tarde, a 7 de Abril de 1853 Bartholomeu Dejante assina na sua


fatura de 30 de Março, que recebeu o valor em falta, do secretário parti-
cular do rei,: “…Recebido do Ilustre Senhor Joaquim Rodrigues Chaves
a quantia de setecentos e setenta e um mil duzentos e quarenta reis,
importância da conta a cima…”.
A descrição da fatura esclarece-nos relativamente às quantidades,
aos tons dos tecidos das cortinas, dos estofos das peças de mobiliário
e diz-nos ainda que faltava pagar 100$000. Este valor correspondia à
subtração do valor acordado entre o rei D. Fernando II e Bartolomeu
Dejante, a 14 de Julho de 1851, visto que, até à respetiva data não tinham
sido entregues as bambinelas.
A documentação diz-nos que em Março de 1853 foi pago a
Bartholomeu Dejante um conto pelo conjunto:

“…1 secretaria de pao santo forma antigo, 1 meza de sofá, 1 bufette para meter entre
as janelas, 2 cadeiras de braços cobertas e estofado de …, 1 canapé coberto e estofado
de setim …. Cor doiro e branco fundo incarnado, 2 cadeiras de brassos ditta, 6 ca-
deiras ditta, 2 etageres, 3 galerias recortado a antigo para as 3 janelas, 6 cortinas de
mosseline para as 3 janelas, lembrequins de damasco português bordes de seda ex
todos esta moveis pelo quarto particular de sua majestade El Rey Dom Fernando pelo
preço convencionado de um conto e 100$000.
Recebi por conta deste soldo, um conto de reis fica cem mil reis visto os lembrequins
de damasco das janelas não ser entregues sendo determinado que os ditos lembre-
quins serão de setim irmão do canapé das cadeiras, me pagando a diferenciada seda.”6

74
COLEÇÕES REAIS E COLEÇÕES OFICIAIS

A encomenda feita pelo rei D. Fernando II, através do seu secretário


particular, a Pedro Barthomomeu Dejante para o seu gabinete, resul-
tou num bel composto. Peças novas de mobiliário feitas em pau-santo,
nomeadamente com tremidos e torneados. Todo este conjunto refletia
um gosto, pela conjugação de móveis feitos com madeiras exóticas, com
gramáticas decorativas revivalistas, utilizando técnicas de construção e
decoração inovadoras originando peças ecléticas.
…Uma secretária… eclética com uma gramática decorativa muito
semelhante às produções de mobiliário português ocorridas duran-
te finais do séc. XVII, durante o chamado período de Estilo Nacional,
(Fig. 1 e Fig. 2).
Hoje em dia encontra-se na sala verde do palácio da Pena. Todavia,
pequenas alterações podem ser observadas, relativamente ao desenho,
pois não existem rodízios e bilros na base inferior do tampo e, relativa-
mente à fotografia de 1886, a grade superior do alçado já não tem bilros.
…Um sofá antigo…, (Fig. 3 e Fig. 4) 7 pensamos que se trata de uma
peça com a mesma linguagem decorativa que a secretária.
O sofá, as duas cadeiras de braços e as seis cadeiras, tinham assentos
de crina e molas com estofo em cetim carmesim cor de oiro e prata8.
As seis cadeiras seriam certamente idênticas às duas cadeiras de braços
conforme se pode verificar na Fig. 3 e Fig. 4. Segundo o contrato, outras
duas cadeiras já existentes foram restauradas e estofadas com o mesmo
método e tecido.
…Uma mesa de frente de sofá…, (Fig. 5 e Fig. 6) feita em pau-santo
com pernas e travessas torneadas em espiral. Os apoios estruturais des-
ta peça são idênticos aos apoios estruturais da secretária, contribuindo
mais uma vez para um equilíbrio e harmonia do conjunto.
…Um bufette para meter entre as janelas…, (Fig. 7)9 em pau-santo.
Sendo de um estilo e decoração muito semelhante à gramática decorati-
va presente na secretária, na mesa de frente de sofá e sofá.
…2 étagères…, (Fig. 8) 10 em pau-santo.
…3 galerias recortado a antigo para as 3 janelas e 6 cortinas de mos-
seline para as 3 janelas. As janelas estavam decoradas com galerias enta-
lhadas e com duas cortinas respetivamente. As cortinas eram de cetim

75
COLEÇÕES DE ARTE EM PORTUGAL E BRASIL NOS SÉCULOS XIX E XX

Figs. 1 e 2 – Desenho para secretária de formato antigo, feito por Pedro Bartolomeu Dejante, pau-santo,
(1,57 cm x 30 + ?cm x ?cm) (Fundo D. Fernando II, NNG 3637 – 4.2 fl.7) e fotografia de 1886 do gabinete do
rei na parte conventual do palácio das Necessidades. ©FCB, Cortesia da Fundação da Casa de Bragança.

Figs. 3 e 4 – Desenho para sofá antigo feito por Pedro Bartolomeu Dejante, pau-santo, (8 pieds e 3 …?)
(Fundo D. Fernando II, NNG 3637 – 4.2 fl.3) e fotografia de 1890 da sala das armas do rei D. Fernando II, na
parte conventual do palácio das Necessidades. ©FCB, Cortesia da Fundação da Casa de Bragança.

Figs. 5 e 6 – Desenho para 1 table de sofá feito por Pedro Bartolomeu Dejante em pau-santo, (Fundo D.
Fernando II, NNG 3637 – 4.2 fl.4) e fotografia de 1886 da sala da música do rei D. Fernando II, na parte
conventual do palácio das Necessidades. ©FCB, Cortesia da Fundação da Casa de Bragança.

76
COLEÇÕES REAIS E COLEÇÕES OFICIAIS

Fig. 7 – Desenho para 1 bufete feito por Pedro Bartolomeu Dejante


em pau-santo, (Fundo D. Fernando II, NNG 3637 – 4.2 fl.5).
©FCB, Cortesia da Fundação da Casa de Bragança.

Fig. 8 – Desenho para 2 étagères feito por Pedro Bartolomeu Dejante


em pau-santo, (Fundo D. Fernando II, NNG 3637 – 4.2 fl.6).
©FCB, Cortesia da Fundação da Casa de Bragança.

77
COLEÇÕES DE ARTE EM PORTUGAL E BRASIL NOS SÉCULOS XIX E XX

carmesim de oiro e prata e estavam forradas a seda amarela conforme


fatura de 30 de Março de 1853.
Através das fotografias realizadas, nos aposentos do rei D. Fernando
II, na parte conventual do palácio das Necessidades em 1886, é possível
identificar algumas das peças encomendadas. Até ao momento só foi
possível localizar a secretária, esta encontra-se na sala verde do palá-
cio da Pena. O paradeiro atual das restantes peças identificadas não é
conhecido.

O PAGAMENTO

Bartholomeu Dejante não consegue entregar a totalidade das peças a


15 de Novembro 1581, contudo, a 1 de Julho do ano seguinte, recebe um
conto como pagamento de parte da encomenda:

“…Recebi do Exmo Ilustre Joaquim Rodrigues Chaves s quantia de um conto de


reis em metal= por conta de um conto e cem mil reis, que é a importância dos
móveis que fiz para o gabinete de S. m. El Rei; conforme o contrato que assignei em
14 de Julho de 1851 em que se acham declarado todos os referidos moveis, que me
obriguei a entregar. E declaro que ainda falta para o comprimento do contrato fazer
as bambinelas, para o referido gabinete conforme o desejo de S Majestade, o que me
obrigo a prontificar o mais breve possível.
Lisboa 1 de Julho de 1852
Pedro Bartholomeu Dejante
São 1.000$000…”11

O pagamento total da encomenda das peças de mobiliário, dos têx-


teis e da passamanaria foi feito em Maio de 1853 conforme recibo supra
já transcrito.

78
COLEÇÕES REAIS E COLEÇÕES OFICIAIS

O MARCENEIRO

Pedro Bartolomeu Dejante12 estabeleceu-se em Lisboa em 1821, e


trabalhou para a Casa Real durante várias décadas. Segundo Conceição
Borges de Sousa, a secretária de batente, localizada no Palácio de Belém,
foi encomendada pela irmã de D. Pedro IV, D. Isabel Maria, regente do
reino, tendo sido executada pelo marceneiro: …Este móvel figura, sem
dúvida, como uma das melhores peças da produção de Pierre Bartholomé
Dejante13. Também Celina Bastos atribui a mesma secretária a Pedro
Bartolomeu Dejante. Segundo os recibos do marceneiro francês, ele pró-
prio se intitulava como marceneiro de sua majestade fidelíssima e de sua
majestade imperial a duquesa de bragança. Referindo-se à rainha D. Maria
II e à sua madrasta a duquesa de Bragança, D. Amélia de Leuchtenberg.
As encomendas realizadas para o casal real, D. Maria II e D. Fernando
II, foram executadas ao longo de vários anos e tinham como destino os
palácios de Belém, Sintra, Pena e Necessidades14.
Durante o reinado de D. Pedro V e D. Estefânia foram feitas novas
encomendas, visando preencher os interiores remodelados do palácio
das Necessidades15.
Celina Bastos refere-nos o estilo eclético conferido pelas peças man-
dadas fazer por D. Fernando II16, também assinalado por José Monterroso
Teixeira. Após a morte da rainha, o rei muda-se para o primeiro andar
da parte conventual do palácio e são feitas novas encomendas de peças
de mobiliário17. Manuel Corte Real faz referência à campanha de obras,
alterações, e reformulações ocorridas no palácio das Necessidades e das
várias encomendas e compras com a finalidade de rechear o palácio18 ao
marceneiro Pedro Bartolomeu Dejante.
A presente encomenda, representa um acréscimo aos trabalhos até
agora realizados, por outros historiadores. Resulta numa encomen-
da específica do rei D. Fernando II, ao marceneiro Pedro Bartolomeu
Dejante. Um contrato regido por regras muito bem definidas, com de-
senhos muito pormenorizados e faturas descritivas relativamente ao
método do estofo, da passamanaria e dos têxteis aplicados tantos nos
móveis como nas cortinas e respetivas armações.

79
COLEÇÕES DE ARTE EM PORTUGAL E BRASIL NOS SÉCULOS XIX E XX

CONSIDERAÇÕES GERAIS

As produções artísticas realizadas durante o reinado de D. Maria II


e de D. Fernando II foram inúmeras. Esperamos que, ao longo da nossa
pesquisa, novos dados possam surgir e contribuir para um maior escla-
recimento relativo às encomendas do casal real, durante as suas vidas.

CITAÇÕES E NOTAS
1. AHCB, NNG 3510, AHCB, NNG 3512 e AHCB, NNG 3637/4.2 Desenhos. No artigo por nós publicado em 2019,
relativo ao Colóquio Internacional sobre a rainha D. Maria II, descrevemos a data e os valores dos pagamentos
feitos pelo rei D. Fernando II a Pedro Bartolomeu Dejante. Cf LEMOS, Teresa Sande, “As coleções de mobiliário
da rainha D. Maria II e do rei D. Fernando II: gosto e tendências” in SOARES, Clara Moura e MALTA, Marize
(eds) D. Maria II, princesa do Brasil, rainha de Portugal. Arte, Património e Identidade, Lisboa, ARTIS – Instituto
de História da Arte da Faculdade de Letras de Lisboa, 2019.
2. AHCB, NNG 3511 contratos e documentos, fl 164.
3. AHCB, NNG 3637 – 4.2 fl 1. Tradução nossa: um sofá antigo, duas cadeiras de braços, seis cadeiras, uma mesa de
frente de sofá, uma secretaria, duas estantes perfazendo o valor de 600$000, segue-se um comodo? por 100$000;
a partir deste item a descrição aparece em português: três gardinas a 65$000, perfaz 195$000; 35 côvados de seda
a 4$000 perfaz 140$000; 54 varas de galão a 0$140 perfazendo 7$560 e 30 varas de franjas a 2$000 perfazendo
60$000, total 1102$560. A palavra côvados foi uma medida do comprimento usada por diversas civilizações
antigas. Era baseado no comprimento do antebraço, da ponta do dedo médio até ao cotovelo, Cf. Da Antiga
Determinação Comprimento de Arco Meridiano por Eratosthenes de Kyrene, Dieter Lelgemann, WS – “History of
Surveying and Measurement”, Atenas, Grécia, Maio 22–27, 2004.
4. AHCB, NNG 3637 – 4.2 f l2. Tradução nossa : A mobília será composta dos seguintes objetos: um sofá antigo, duas
cadeiras de braços, seis cadeiras, uma mesa de frente de sofá, uma secretária, o custo sem a seda será de 600$000.
Tudo será entalhado e esculpido em pau-santo com colunas vazadas e abertas de par em par. PBD
5. AHCB, NNG 3512, ano 1853 fl. 19.
6. AHCB, NNG 3512, ano 1853 fl. 162.
7. Até ao momento não conseguimos localizá-las, no entanto a sua gramática decorativa é muito semelhante à
encontrada nas peças pertencentes ao palácio da Pena com os números de inventário PNP704 e PNP 788/5.
8. Até ao momento não conseguimos localizá-las.
9. Até ao momento não conseguimos localizá-lo.
10. Desde já agradecemos a Hugo Xavier a informação cedida relativamente a estas peças. Foram vendidas no leilão
de D. Fernando II de 1892 e adquiridas pela rainha D. Amélia, atualmente encontram-se no palácio da Pena.
11. AHCB, NNG 3511, ano 1852 fl.163. É curioso verificar a existência de um rascunho manuscrito pelo conselheiro
José Rodrigues Chaves, secretário particular do rei, com o texto igual àquele assinado e manuscrito por Pedro
Bartolomeu Dejante. Possivelmente para ser copiado e assinado pelo próprio marceneiro Cf. AHCB, NNG 3511
ano 1852, fl 166. Um outro texto manuscrito pelo secretário particular do rei em forma de rascunho “…Eu
abaixo assinado tomei d’empreitada assoalhar uma sala e 2 contíguos nos quartos, o gabinete de S.M El rei, o Sr D.
Fernando com o solho embutido em xadrez, como a amostra que fica na secretaria do Ilustre Augusto Senhor pelo
preço de dezassete vinténs e trezentos e quarenta reis cada palmo quadrado, com a condição de prontificar esta obra
até 15 de Novembro do corrente ano de 1852 e de a colocar no seu lugar até ao fim de Maio, se o tempo o permitir isto
é se estiver secca a atmosfera. No caso de o tempo não o permita obrigo-me então a colocar na próxima primavera
próxima do ano de 1853 – devendo receber a importância depois de tudo estar concluído à vontade de Sua Majestade
e sem defeito algum.” Explica-nos qual a metodologia utilizada pelo carpinteiro, porque se tratava de soalho, para
colocar o chão do gabinete e quartos contíguos do rei. Cf AHCB, NNG Fundo de D. Fernando II, documentos e
contratos.
12. Veja-se o artigo publicado relativamente à família Dejante por Celina Bastos, “A família Dejante: a marcenaria
e a indústria dos mármores no Portugal de Oitocentos” in Revista de Artes Decorativas, Ano 3, Nº 3, Porto,
Universidade Católica Portuguesa/ CITAR, 2009, pp. 157–191.Vejam-se os artigos publicados por vários autores
relativamente a Pedro Bartolomeu Dejante: por Celina Bastos “O mobiliário português nas primeiras décadas de
oitocentos: as fábricas de móveis e os novos inventos” in Res Mobilis: revista internacional de investigación en mo-
biliário y objetos decorativos, Vol. 5, nº. 6 (I), 2016, pp. 183–201; por Conceição Borges de Sousa, “Mobiliário do

80
COLEÇÕES REAIS E COLEÇÕES OFICIAIS

Palácio de Belém”, in Pintura e Mobiliário do Palácio de Belém, Lisboa, Museu da Presidência da República, 2005,
pp. 89–90 e 142–144; por Francisco Queiroz, “Pedro Bartolomeu Déjante e o seu papel na indústria da pedra em
Portugal” in A Pedra, n.º 87, ano XXII, Outubro 2003, pp. 47–51; pelo embaixador Manuel Corte Real, “O Palácio
das Necessidades, Lisboa, Chaves Ferreira – Publicações, S.A., 2001; por José Monterroso Teixeira, Fernando II.
Rei-Artista. Artista-Rei, Lisboa, Fundação da Casa de Bragança, 1986, p. 310; e José António Saraiva, O Palácio
de Belém: com seus hóspedes, os seus segredos e a vida quotidiana, s.l., Inquérito, 1985, pp. 61–62.
13. Cf. SOUSA, Conceição Borges de “Mobiliário do Palácio de Belém”, in Pintura e Mobiliário do Palácio de Belém,
Lisboa, Museu da Presidência da República, 2005, pp. 89–90 e 142–144.
14. Cf. BASTOS, Celina, “A família Dejante: a marcenaria e a indústria dos mármores no Portugal de Oitocentos” in
Revista de Artes Decorativas, Ano 3, Nº 3, Porto, Universidade Católica Portuguesa/ CITAR, 2009, pp.171–180 e
LEMOS, Teresa Sande “As coleções de mobiliário da rainha D. Maria II e do rei D. Fernando II: gosto e tendên-
cias” in SOARES, Clara Moura e MALTA, Marize (eds) D. Maria II, princesa do Brasil, rainha de Portugal. Arte,
Património e Identidade, Lisboa, ARTIS – Instituto de História da Arte da Faculdade de Letras de Lisboa, 2019,
pp. 184–191.
15. Cf. CORTE-REAL, Manuel, “Palácio das Necessidades”, Lisboa, Chaves Ferreira – Publicações, S.A., 2001,
pp.123–126. e SOUSA, Conceição Borges de, op. cit.
16. Cf. FRANCO, Anísio e BASTOS, Celina “Desenhos e encomendas da Casa Real: móveis e projetos de decoração”
in Margens e Confluências 4 – Um olhar contemporâneo sobre as artes, pp. 45-59.
17. Cf. TEIXEIRA, José, “D. Fernando II: rei-artista, artista-rei”, Lisboa, Fundação da Casa de Bragança, 1986,
pp.183–221.
18. Cf. CORTE-REAL, Manuel H., op. cit., p.128.

81
PERTO DO CORAÇÃO:
A JOALHARIA ENQUANTO ELEMENTO
DE REPRESENTAÇÃO AO NÍVEL DAS
COLEÇÕES REAIS PORTUGUESAS

MARIA DA LUZ PINHEIRO


Licenciada em História de Arte pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa.

Resumo Palavras-chave
A partir do conjunto de pulseiras oferecidas à Joalharia; Mulheres; Retratos; Miniaturas;
Rainha D. Maria II de Portugal (1819–1853) Portugal.
durante o reinado de Louis-Philippe de França
(1773–1850), demonstramos uma certa unidade
que existe nas coleções reais um pouco por toda
a Europa, em que Portugal não é exceção. Esta
tipologia de objetos tem vindo a ser representada
ao longo dos anos, tendo expressão não só na
pintura, mas também na gravura tornando-
se um veículo de disseminação das relações
familiares entre as várias casas reais. Esta
reflexão deseja no entanto, explorar também as
perspetivas mais afetivas que a joalharia com
retrato adquire.

83
COLEÇÕES DE ARTE EM PORTUGAL E BRASIL NOS SÉCULOS XIX E XX

PARA COMPREENDER AS RELAÇÕES

A retratística tem sido uma ferramenta preciosa para os Historiadores


de Arte, reconhecemos que o modo como o retratado se faz represen-
tar, aquilo que veste, que exibe e do que se faz rodear, não se trata de
algo acessório, e oferece-nos um conjunto de informações que contri-
buem para o melhor entendimento da época, bem como dos modos
de viver das pessoas representadas. Neste sentido, também a retratísti-
ca possibilita-nos estabelecer relações e emitir conclusões, através das
jóias que sobretudo as mulheres1 exibem nos retratos delas efetuados.
Nesta reflexão focamos uma tipologia de peça utilizada e amplamente
representada – Peças de joalharia que exibem miniaturas. Encontramos
vários retratos nos quais as jóias são representadas, em diversos for-
matos: pendentes; alfinetes; pulseiras. E atualmente podemos inclusive
contactar com vários exemplares em museus e coleções privadas.

CONTEXTOS

O uso de jóias exibindo retratos já apresenta uma longa história.


Exemplos: o retrato de Joana de Áustria (1535–1573) , Filha de Carlos
I de Espanha (1500–1558) e da Rainha Isabel de Portugal (1503–
1539), datando este de c. de 1557. Pintura na qual ela exibe ao peito
um pequeno retrato. Um século depois, Edviges Leonor (1636–1715),
Rainha Consorte da Suécia, num quadro de c. de 1661–1675, exibe
uma pulseira com um retrato de uma figura masculina. E já no século
XVII serviam para ilustrar relações entre as várias casas reais, uma vez
que o retrato que inspirou a miniatura trata-se da representação pro-
duzida por Sébastien Bourdon (1616–1671) e que representa Carlos X
com quem Edviges Leonor se viria a casar.
Com o século XVIII o recurso a estes pequenos retratos monta-
dos em invólucros preciosos populariza-se largamente, começamos
a encontrá-los um pouco por todos os quadros representando os
elementos femininos das casas reais europeias, e Portugal não será

84
COLEÇÕES REAIS E COLEÇÕES OFICIAIS

exceção. Exemplo emblemático português, o quadro de D. Maria I


(1734–1816), no qual segura um pequeno retrato representando o seu
marido Pedro III. Através desta representação, o monarca consorte
não necessita de estar presente para que saibamos que este se casou
com D. Maria I. A dimensão desta miniatura demonstra uma outra
possibilidade de exibição desta tipologia de peça. Certas miniaturas
eram oferecidas em montagens apropriadas para serem expostas num
suporte parietal (POINTON [1]), podendo estas peças ser vistas por
quem visitava a casa. Note-se que também as peças que eram realiza-
das com a finalidade de serem encastoadas em montagens preciosas,
apresentavam a possibilidade de serem readaptadas, e posteriormente
recebiam outras molduras e podiam ser expostas no espaço habita-
cional (GOETHE [2]). Tornavam-se portanto uma das mais rentá-
veis tipologias, pois o seu pequeno formato possibilitava a facilidade
de enquadramento, fosse ao nível da jóia, ou no espaço doméstico.
O facto de serem objetos de tão pequena dimensão, eram mais pro-
pensos a serem conservados quando comparados com grandes supor-
tes. Demonstrando este facto, encontramos peças que circularam re-
centemente no mercado de arte, nomeadamente um pequeno alfinete
(Fig. 1) representando a Rainha Maria Pia (1847–1911), cuja monta-
gem é muito posterior ao retrato miniatural.

O SÉCULO XIX: MUDANÇAS E CONTINUIDADES

Se o século XVIII as popularizou, também o século XIX as utilizou


ad náusea, procurando reinventar esta tipologia de jóia, conferindo-lhe
novas temáticas, e suportes diferentes, introduzindo também as novida-
des que iam sendo desenvolvidas ao longo do tempo, sobretudo com a
revolução industrial. Com o romantismo privilegiou-se o sentimento,
e em especial o período vitoriano difundiu largamente na categoria de
sentimental jewellery, a produção de peças que incluíam retratos, com
compartimentos destinados a motivos decorativos criados com cabelo
dos entes queridos.

85
COLEÇÕES DE ARTE EM PORTUGAL E BRASIL NOS SÉCULOS XIX E XX

Fig. 1 – Alfinete com Medalhão, 1727–1729, Luigi Fig. 2 – Alfinete, séc. XIX, ouro esmaltado
Gandolfi (1810–1869); ouro relevado e cravejado e cravejado com rubi, meias pérolas e
com pérolas, turmalinas e diamantes; 4 x 3 cm miniatura, 5 x 4,2 cm, mercado leiloeiro.
(miniatura); mercado leiloeiro. ©Veritas ©Cabral Moncada Leilões

Por associação, neste tempo, também as monarcas colecionaram pe-


ças com miniaturas em suportes vários: marfim, metal, ou até mesmo
fotografia. É um fenómeno que permanece um pouco por toda a Europa,
pois estas peças circularam entre nações, e foram utilizadas como pre-
sentes, veja-se as pulseiras oferecidas a D. Maria II, (1819–1853) as
quais representam figuras da Casa de Orleães que governava a França
no período em questão. As propostas de encastoamento são várias e
ilustram o gosto da época e do local em que são produzidas. O conjunto
oferecido a D. Maria privilegia o ouro enquanto elemento decorativo,
assumindo-o e decorando-o através do cinzelado. Trata-se do gosto da
joalharia francesa desta época, que aliás podemos notar noutros exem-
plares coevos da mesma tipologia de objeto produzidos em França, e
que se diferenciam do trabalho português, no qual o ouro recebe tam-
bém gemas várias, é esmaltado, ou é em certos casos assumido seja em
molduras, ou então trabalhado em vários motivos decorativos (Fig. 2).
Estas propostas tornam-se de tal modo populares, que diversas rai-
nhas do continente europeu, empreendem encomendas envolvendo

86
COLEÇÕES REAIS E COLEÇÕES OFICIAIS

jóias que representam familiares, especialmente filhos, maridos, e pon-


tualmente outras pessoas. Em Paris, a Rainha Maria Amélia (1782–1866)
encomendou um conjunto de pulseiras em ouro fundido, representan-
do os seus vários filhos e o seu marido (MEYLAN [3]). Representam
também relações afetivas no seio das várias famílias, sejam estas reais ou
não, uma vez que verificamos um consumo alargado destes objetos ao
nível da retratística de figuras da nobreza e burguesia, que se faz notar
também em Portugal tanto no século XVIII como XIX, expressando-se
igualmente ao nível da documentação2.

PREVALÊNCIA DO GOSTO

Este período ditava que era de bom gosto possuir peças que represen-
tassem, não apenas os outros, mas também os próprios. A sua utilização
tornou-se de tal modo popular, que se colecionavam retratos não apenas
da família, mas igualmente dos próprios em diversas idades da sua vida.
Também as monarcas portuguesas possuíram nas suas jóias pessoais e
de aparato, um vasto núcleo desta tipologia de objetos. Notamos este
facto ao nível da retratística de várias figuras da família real portuguesa
(Fig. 3). presentes em coleções institucionais designadamente o Palácio
Nacional da Ajuda, mas também no Palácio Nacional de Queluz.
São diversos os retratos em que figuras femininas exibem ao pes-
coço ou nos braços, em pendentes mais ou menos ornamentados, mas
também em pulseiras com maior ou menor trabalho, retratos dos seus
futuros maridos. Trata-se de uma tendência comum com outras nações
designadamente Inglaterra, mas verifica-se também ao nível do Brasil,
Dinamarca, Rússia, entre outras. Todas as figuras femininas que conse-
guimos reunir até ao momento apresentam estes retratos com a mesma
função, trata-se de um ponto comum do gosto da época. O que difere
entre elas é o tratamento das peças, mas mesmo esse tratamento pode
ser também contaminado por influências exteriores, nomeadamente
pela joalharia francesa que no século XIX, se tornava fundamental no
mercado de arte europeu.

87
COLEÇÕES DE ARTE EM PORTUGAL E BRASIL NOS SÉCULOS XIX E XX

Fig. 3 – Infanta D. Maria Isabel de Bragança (1797–1818), 1816,


Nicolas-Antoine Taunay (1755–1830), Óleo sobre tela, 64 x 58 cm, Palácio
Nacional de Queluz, Sintra. Foto de Luisa Oliveira, ©DGPC/ADF

É certo que atualmente o que temos disponível para estudar é uma


parte do que efetivamente existiu no tempo em questão, lendo a docu-
mentação, temos a noção do gosto destas figuras, não só ao nível desta
tipologia de objeto, mas também das restantes peças de joalharia, nota-
mos uma clara continuidade com o que outras monarcas utilizam pela
Europa: interesse por motivos zoomórficos e nomeadamente serpen-
tes, elementos fitomórficos, e o consumo de pulseiras dominantemente
em ouro3.
Também em Portugal se consumiram jóias cuja decoração envolvia
motivos realizados com cabelo. As monarcas portuguesas não ignora-
ram esta tipologia de jóia, sendo estas incluídas nos inventários4, no-
meadamente o registo das jóias pertencentes à Rainha D. Maria II e o
correspondente às jóias devolvidas a D. Manuel II (1889–1932)5, deter-
minando o consumo e a posse de diversos exemplares.

88
COLEÇÕES REAIS E COLEÇÕES OFICIAIS

O consumo de jóias com compartimentos normalmente cobertos


por um retrato (WHITTOCK [4])6, começava a ser comum neste perío-
do, de tal modo que certas joalharias iniciavam a produção de catálogos
dedicados a essa determinada tipologia. Tornava-se uma memória mui-
to mais viva, quando comparada com a oferta de uma miniatura apenas
com um retrato. As joalharias começaram a perceber a popularidade,
e a capacidade de produzir valor económico com este tipo de objeto.
Assim, desenvolveram profundamente a capacidade de criar motivos
com o cabelo, e criaram inclusive catálogos específicos para este tipo de
peça [5]. Apesar de não sabermos através da documentação os motivos
formados pelo cabelo utilizado nas peças pertencentes às várias figuras
da casa real, estas peças permitem-nos perceber o que era utilizado e
consumido neste tempo.
As novidades tecnológicas vão sendo introduzidas na produção da
joalharia, mas também ao nível da técnica com que as miniaturas são
produzidas [6]. A fotografia não poderia ser ignorada, uma vez que fa-
cilmente servia a função de representar as pessoas que se pretendia ho-
menagear. Portanto, há medida que caminhamos para o final do século
XIX, notamos a introdução desta técnica também nas jóias. Criava-se
assim uma nova categoria – Photo jewelry. E aplicava-se agora nas várias
montagens em ouro, prata, ou outros materiais, retratos realizados atra-
vés da fotografia.
O recurso à fotografia, permitiu o fácil acesso a um maior número de
pessoas, bem como a continuidade deste género de peça. Agora já não
verificávamos o uso destes objetos exclusivamente por altas camadas da
sociedade, para além da família real que possuía esta tipologia de peça
nas suas coleções. Começamos a encontrar também, com a populari-
zação das idas ao fotógrafo, mulheres que exibem pequenas medalhas
(Fig. 4), entre outros tipos de jóias, peças que em lugar de retratos sobre
marfim ou metal, apresentam fotografias de alguém chegado.
Apesar de não acontecer com a monarquia portuguesa, verificamos
a existência atualmente de uma ordem, a Ordem da Família Real, con-
ferida pelos monarcas às mulheres que travam relações com eles(as).
Conseguimos encontrar exemplos desta ordem pelo menos até ao

89
COLEÇÕES DE ARTE EM PORTUGAL E BRASIL NOS SÉCULOS XIX E XX

Fig. 4 – Retrato feminino, séc. XIX/XX, Fig. 5 – Duquesa de Palmela, c. 1840, Pedro
Negativo de gelatina e prata em vidro, Augusto Gugliemi (1815–1852), litografia,
9 x 13 cm, Arquivo Municipal de Lisboa, 26,2 x 22 cm, Biblioteca Nacional de Portugal,
NEG004387, © CML/AML Lisboa, E. 93. A. © BNP

século XVIII, verificando a presença destas peças nos vários retratos de


aparato em que as monarcas se fazem representar com as várias insíg-
nias que compõem a regalia. Esta ordem é, no entanto, mais que uma
insígnia de estado, um presente que pode ser utilizado nas várias ceri-
mónias oficiais, sendo usado por várias figuras não só da casa real, mas
também da nobreza de vários países da Europa. Trata-se de uma ordem
que ainda que não tenha sido utilizada em Portugal7, segue a ideia que
era comumente assumida, em que estas peças serviam também como
um presente dos monarcas para os seus súbditos mais próximos, sendo
por isso símbolo da sua confiança. Ao utilizarem esta ordem, confir-
mam as relações com a casa real que governa a nação.
Replica-se assim, com funções distintas, uma prática comum um
pouco por toda a Europa, ao longo de tantos anos. Apresentando mon-
tagens diferentes, formatos vários e até mesmo médiuns desiguais, a re-
corrência a jóias com miniaturas tornou-se um ponto comum do gosto

90
COLEÇÕES REAIS E COLEÇÕES OFICIAIS

(POINTON [7])8, e utilidade para as várias monarquias europeias até


aos nossos dias. É certo que em Portugal não se verifica a utilização
desta tipologia de peça enquanto insígnia, no entanto, permanece o
seu uso como peça de joalharia, sendo esta passível de ser alterada,
reinventada e eventualmente podendo receber novas miniaturas ou até
mesmo camafeus.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Verificamos portanto que a utilização desta tipologia de objeto por


parte das famílias no poder, remonta a um passado já muito distante,
e atravessa diversas geografias. Serve praticamente em todos os casos
como valorização e afirmação, ora para quem as utiliza e, por isso se faz
retratar exibindo estas jóias, ou mesmo utilizando-as discretamente, ou
como souvenirs funcionando, neste último caso, como presentes troca-
dos entre duas partes, sejam estas de países diferentes ou não.
Graças a estas jóias, os que se encontram representados nos peque-
nos retratos, não necessitam de estar fisicamente presentes, para que
sejam reconhecidos e associados com as retratadas, por parte do obser-
vador. Tratam-se de peças cuja funcionalidade é ambígua, serve como
elemento de representação, vejam-se os vários quadros que atravessam
centenas de anos em que rainhas exibem os seus futuros maridos atra-
vés destes pequenos retratos estando estes na maior parte dos casos en-
quadrados em molduras não só realizadas em metais preciosos como
o ouro ou a prata nos casos que localizámos até ao momento na retra-
tística portuguesa, não só real, mas também nobre (Fig. 5). São ainda
de referenciar as montagens decoradas com gemas, nomeadamente dia-
mantes, sendo a solução decorativa escolhida para a Ordem da Família,
presente em várias casas reais, e ainda utilizada em algumas monarquias
atuais. Num plano mais pessoal, estas peças funcionam como memen-
tos, ficando maioritariamente fora dos retratos de aparato das últimas
rainhas de Portugal após D. Maria II. No entanto, elas não desaparecem
do gosto das monarcas portuguesas, uma vez que continuam referidas

91
COLEÇÕES DE ARTE EM PORTUGAL E BRASIL NOS SÉCULOS XIX E XX

nos diversos inventários dos bens tanto da Rainha D. Amélia (1865–


1951), das que foram entregues a D. Manuel II, e ainda algumas peças
que surgem pontualmente no mercado de arte como tendo pertencido
à Rainha D. Amélia.
Esta tipologia de jóia acompanha assim o tempo e o gosto, a partir
do momento em que o aparato se reduz significativamente, valorizando
determinadas peças e não se verificando um uso ostensivo.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

[1] POINTON, Marcia – Surrounded with Brilliants: Miniature Portraits in Eighteenth-century England,


The Art Bulletin,, Vol. 83, nº 1, College Art Association, Mar. 2001, p. 48–71
[2] GOETHE, J. W., “The Collector and his friends”, in, Essays on Art, James Miller, Nova Iorque, 1862
[3] MEYLAN, Vicent, Mellerio dits Meller: Joaillier des Reines, Éditions Télémaque, Paris, 2013
[4] WHITTOCK, N., Miniature Painters Manual, Siuerwood, Gilbert and piper, Londres, 1844
[5] The jewellers’ book of patterns in hair work, , William Halford & Charles Young, Londres 1864
[6] Miniature Painting: On Ivory and Enamel, The Crayon, Vol. 7, nº 8, Nova Iorque, W. J. Stillman J.
Durand Publishers, Aug. 1860, p. 226–229
[7] POINTON, Marcia – Intriguing Jewellery: Royal bodies and luxurious consumption, Textual
Practice, Vol. 11, Nº 3, Routledge, 1997, p. 493–516

FONTES DOCUMENTAIS

Arquivo Nacional Torre Do Tombo (A. N. T. T.), Arquivo da Casa dos Condes de Povolide, Relação de
pratas, jóias e mobiliário, Maço 61, Doc. 7
ANTT, Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa 1770/1999, Inventário orfanológico de D. Fernando II,
Caixa 9, Apenso Nº1
ANTT, Direção Geral da Fazenda Pública 1910–10–05, Jóias de D. Amélia
ANTT, Direção Geral da Fazenda Pública 1910–10–05, Jóias e Objectos de D. Manuel

NOTAS

1 É importante perceber que também os homens utilizaram este tipo de peça. Encontram-se diversos exemplos em
retratos datáveis de vários períodos, bem como de nações diversas. Normalmente colocados em colares, alfinetes,
ou meramente emoldurados, são mostrados pelas figuras retratadas, seja apontando para eles, ou segurando-os.
Acabam por deixar de ser um mero elemento decorativo, passam a apresentar uma relação ou de vassalagem, ou
familiar, dependendo da situação e de quem é retratado na miniatura.
2 Arquivo Nacional Torre Do Tombo (A. N. T. T.), Arquivo da Casa dos Condes de Povolide, Relação de pratas,
jóias e mobiliário, Maço 61, Doc. 7
3 ANTT, Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa 1770/1999, Inventário orfanológico de D. Fernando II, Caixa 9,
Apenso Nº1 fl. 42v “Nº 137 – Uma pulseira de ouro menos da lei, com a peça do centro rectan rectangular, e caixilho

92
COLEÇÕES REAIS E COLEÇÕES OFICIAIS

no meio de figura oval, com retrato debaixo de vidro, e liga formada de vinte e cinco peças em forma de escudos, e
gouzadas umas nas outras, tudo lavrado ao buril, peza ao todo esta pulseira uma onça cinco oitavas e meia e trinta
graõs avaliada em dezoito mil reis – 18$000; Nº 138 – Uma pulseira de ouro menos da lei, com a peça do centro
rectangular e o caixilho ao meio de figura oval, com retrato debaixo de vidro, e liga formada de vinte e cinco peças
em forma de escudos, gouzadas umas nas outras, tudo lavrado ao buril, peza ao todo esta pulseira uma onça e seis
oitavas avaliada em desoito mil reis – 18$000”
4 ANTT, Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa 1770/1999, Inventário orfanológico de D. Fernando II, Caixa 9,
Apenso Nº1: ANTT, Direção Geral da Fazenda Pública 1910–10–05, Jóias de D. Amélia “Nº 15338 – Uma pulseira
com cabelo e retrato em miniatura de ?”
5 ANTT, Direção Geral da Fazenda Pública 1910–10–05, Jóias e Objectos de D. Manuel, “Nº 192 – Um broche em
ouro com retrato a côres (e cabello)”
6 A popularidade deste tipo de peça foi tal, que se produziu inclusivamente documentação que era publicada quer
em periódicos, ou mesmo em livro, com a função de formar artistas não só no âmbito profissional, mas também
amador. Tivemos acesso a dois exemplares desta literatura, cf. WHITTOCK [4] e Miniature Painting, The Art
Amateur, Vol. 8, Nº 2, Boston, Jan. 1883, p. 31–32.
7 Existem retratos em que D. Maria Bárbara de Bragança (1711–1758) segura uma insígnia com o respetivo laço
em que é pendurado um pequeno retrato do seu marido Fernando VI (1713–1759) sendo o mesmo enquadrado
por uma moldura de diamantes. Sendo esta insígnia bastante semelhante às utilizadas por várias rainhas. Apesar
de obedecer à estrutura da Ordem da Família Real, não encontrámos até ao momento outro exemplar desta
insígnia na retratística portuguesa. Em Portugal o mais próximo que encontramos à insígnia conferida noutros
países, é a Ordem de Santa Isabel, cuja Grã-Mestre atualmente é a Senhora Dona Isabel de Bragança. Neste caso,
a insígnia é entregue a figuras femininas que se dedicaram ao apoio de causas de solidariedade.
8 É interessante notar como as mulheres exibem um maior número de jóias face ao sexo masculino. Elas traduzem
não só a riqueza da pessoa, mas também as relações que ela trava. Também esta tipologia de peça é reaprovei-
tada e todos os seus componentes, há semelhança das restantes jóias, podem transformar-se em novas jóias.
POINTON [7].

93
OS DIAMANTES SÃO PARA SEMPRE,
AS JOIAS NÃO: DESCRAVAÇÕES
E RECONVERSÕES DE JOIAS
DA FAMÍLIA REAL NO SÉC. XIX

JOÃO JÚLIO RUMSEY TEIXEIRA


Doutorando em História da Arte, ramo de Museologia e Património Artístico, FCSH-UNL
Lisboa, Portugal
jjrenteixeira@gmail.com

TERESA MARANHAS
Conservadora das Coleções de Ourivesaria e Joalharia do Palácio Nacional da Ajuda
Lisboa, Portugal
teresamaranhas@pnajuda.dgpc.pt

Resumo Palavras-chave
Parte da investigação em curso com vista à Joalharia; Casa Real; Coleções Reais;
abertura do novo museu do Tesouro Real do Descravações; Ourivesaria.
Palácio Nacional da Ajuda (PNA) apresentamos
conclusões inéditas sobre o estudo das
descravações das joias da coroa e, igualmente,
sobre o conjunto de peças descravadas da
coleção deste palácio, com especial enfoque
para um pequeno grupo de joias pessoais de D.
Maria Pia e uma soberba guarnição de corpete
executada, em 1781, para D. Maria I.

95
COLEÇÕES DE ARTE EM PORTUGAL E BRASIL NOS SÉCULOS XIX E XX

DESCRAVAÇÃO DE GEMAS EM JOALHARIA

Uma técnica ancestral tão natural como a mudança


No século V a.C. Heráclito sintetizou a perpétua mutação de todas as
coisas expressando que nada permanece, exceto a mudança. No século
XX, uma das campanhas de marketing de maior alcance mundial gravou
na sabedoria popular que um diamante é para sempre. Não sendo eter-
nas, a maioria das gemas são, por definição, materiais belos com carac-
terísticas de durabilidade apreciáveis, o que as torna muito procuradas.
Enquanto os tipos de gemas disponíveis são finitos – apesar de inúmeras
variantes – a imaginação humana é infinita. Temos, pois, uma equação
em que, na génese da joalharia, uma das variáveis é materialmente finita
e a outra, absolutamente infinita. São, por isso, excecionais os casos em
que gemas com mais de dois ou três séculos permanecem nas suas pri-
meiras joias. Estas exceções encontram-se, na sua esmagadora maioria,
nos acervos provenientes de casas reais, de outras importantes dinastias
ou instituições seculares. No caso de joias com diamantes esta realidade
de constante reaproveitamento vai-se manter praticamente inalterada
até ao século XIX. É apenas após a década de 1870 que a disponibilida-
de de material, na Europa, se torna mais abundante. Until [...] the first
appearance on the market of Cape diamonds in the 1870s, almost all pre-
cious jewellery sooner or later had to be remounted1.
A existência de armações de joias, total ou parcialmente descravadas,
é uma realidade em vários tesouros reais europeus e também em cole-
ções focadas no estudo e história da joalharia. Na Torre de Londres, por
exemplo, estão expostas quatro grandes coroas totalmente despidas das
gemas que originalmente as adornavam e a estrutura indiana original
onde era exibido o Koh-i-Noor; em França, faz parte do núcleo das joias
da coroa, expostas no Museu do Louvre, a armação da coroa de Luís
XV, única sobrevivente das muitas realizadas até à revolução de 1789 e
que está hoje cravejada com diversos vidros. Para além do testemunho
histórico e da importância para a história da arte, estas peças são para
o historiador de joalharia, para o especialista e para o conservador, um
manancial de informação. Nelas é possível observar, sem interferências

96
COLEÇÕES REAIS E COLEÇÕES OFICIAIS

Fig. 1 – Fotografia do adereço de esmeraldas e diamantes realizado por Estêvão de Sousa em 1863 para
a rainha D. Maria Pia a partir da descravação da grande laça de esmeraldas da rainha D. Maria Bárbara
de Bragança (1711–1758), s/d, Joshua Benoliel, prova fotográfica; ANTT, espólio de Joshua Benoliel.
Digitalização da ANTT, edição de imagem de João Júlio Rumsey Teixeira.

ou zonas escondidas, técnicas de construção, cravação, assemblagem e


até alguns truques que permitiam pequenas ilusões óticas. Estas singu-
laridades reforçam a importância destas joias sem brilho.

Para lá da cintilação das gemas


Por trás do brilho de uma joia estão as técnicas de ourivesaria e la-
pidação; sendo uma pequena escultura para deleite da visão, todos os
esforços técnicos são empregues em prol do efeito de deslumbre. A evo-
lução do estado da arte em joalharia está dependente, de forma deter-
minante, de uma série de outras disciplinas, uma vez que as técnicas de
ourivesaria são questões matemáticas, físicas e químicas ao serviço da
vontade e do génio artístico. O mesmo se passa na questão gemológica:
a forma como são exploradas as capacidades óticas das gemas, para de-
las se retirar o máximo efeito visual, resume-se à aplicação de princípios
da física que, de mãos dadas com evolução técnica, permitem obter bri-
lho, fogo e cintilação.

97
COLEÇÕES DE ARTE EM PORTUGAL E BRASIL NOS SÉCULOS XIX E XX

O efeito desejado em joalharia é sempre o de obter o efeito visual má-


ximo para a qualidade dos materiais disponíveis, assim, ourives e lapidá-
rios vão procurar conseguir uma aparência de perfeição, mesmo a partir
de materiais naturalmente imperfeitos. As matérias-primas não surgem
da Natureza puras ou imaculadas, além de que podem existir, para a mes-
ma matéria, pequenas diferenças que alteram o aspeto final e que defi-
nem as gradações de qualidade. A qualidade de uma joia é a qualidade
dos materiais nela aplicados mas, igualmente, da mestria técnica utilizada
para com eles criar coisa que pasme, não tanto pela sua riqueza, mas pela
incomparável perfeição, e que pareça que o não fizeram mãos humanas2.

JOIAS DESCRAVADAS NO TESOURO REAL


DO PALÁCIO NACIONAL DA AJUDA.

Um tesouro vivo em constante mutação


O tesouro real foi sempre um organismo vivo, em constante muta-
ção e onde a transformação e reconversão de joias fez parte natural da
história. Em primeiro lugar há que esclarecer do que falamos quando
nos referimos às joias do Tesouro Real do PNA. Este acervo foi primeiro
reunido no século XX com peças de três proveniências: em primeiro
lugar, parte das joias que faziam parte dos bens da coroa, ou seja, bens
do Estado que transitaram do Palácio das Necessidades; em segundo
lugar, uma pequena parte das joias pessoais da rainha D. Maria Pia,
que não foram alienadas no leilão de 19123 e permaneceram no Palácio
da Ajuda; em terceiro lugar, a resolução da questão da herança de D.
Miguel em 1943, com a compra, aos herdeiros, de grande parte das joias
pessoais do rei.

Joias da Coroa
No que toca às joias que faziam parte dos bens da coroa destacam-se,
porque mais conhecidas, as conversões feitas no 3º quartel do séc. XIX
pela rainha D. Maria Pia (1847–1911), sendo a mais célebre a transfor-
mação da guarnição de corpete (devant-corsage) em forma de laço com

98
COLEÇÕES REAIS E COLEÇÕES OFICIAIS

esmeraldas e diamantes (PNA, inv. 4779), originalmente pertencente à


rainha de Espanha, D. Maria Bárbara de Bragança (1711–1758)4, num
adereço (parure) romântico composto por colar, alfinete, pente, par de
brincos e pulseira. Apesar da soberana surgir retratada recorrentemente
com algumas destas joias não era, até agora, conhecida nenhuma ima-
gem do conjunto completo. A localização de uma fotografia5 inédita
deste adereço permite uma visão esclarecedora da importância e da ti-
pologia das peças executadas por Estêvão de Souza (Fig. 1).
Para a execução de outra importante parure – a das célebres estre-
las – D. Maria Pia descravou diamantes de outras joias pertencentes
à coroa6: 341 do castão de bengala de D. José (inv. 4781, furtado em
Haia em 2002), 84 da placa da condecoração da Torre Espada (inv.
4783) mas, sobretudo, 1660 de uma tiara executada em 1834 para D.
Maria II e na qual estavam cravejados 2206 diamantes pertencentes à
coroa, também eles descravados então de peças antigas. Esta impor-
tante tiara, que serviu de base para as primeiras peças do adereço de
estrelas – que foi sendo transformado ao longo dos anos – é, de todas
as joias descravadas para a sua execução, a mais importante mas, pa-
radoxalmente, a mais desconhecida. Como mencionado, para a sua
execução foi feito o reaproveitamento de diamantes presentes em joias
antigas, sendo o mais notável um que provinha da insígnia das Três
Ordens militares (inv. 4784). A gema, de excecional qualidade, acabou
por ser recravada no seu lugar original (no topo, à direita da cruz de
Cristo) por ordem de D. Luís, para que a insígnia pudesse servir na sua
aclamação, em 1861.
O adereço das estrelas passará a servir D. Amélia a partir do momen-
to em que se torna rainha e esta igualmente lhe fará transformações, so-
bretudo na tiara. Numa primeira fase é acrescentada altura à peça com
a colocação, na base, de uma fiada de 26 grandes diamantes talhe bri-
lhante, adaptação de um colar rivière. Numa segunda intervenção, datá-
vel de 1907/8, a joia sofreu um importante acrescento que, por acaso da
história, não terá chegado a brilhar na cabeça de uma soberana: dezas-
seis estrelas mais pequenas, retiradas de outros elementos do adereço,
foram acrescentadas entre as nove maiores pré-existentes. Tanto num

99
COLEÇÕES DE ARTE EM PORTUGAL E BRASIL NOS SÉCULOS XIX E XX

dos inventários dos bens da coroa, datável de 19087; como igualmente


no Arrolamento Judicial do Palácio das Necessidades8, realizado após da
implantação da república, a peça é descrita com esta composição: 26 dia-
mantes na base e 25 estrelas de diamantes. Não é conhecida iconografia
de D. Amélia a usar a joia nesta versão o que nos leva a crer que a adap-
tação foi feita pouco antes do inesperado regicídio, talvez para servir na
importante visita de estado ao Brasil9, agendada para meados de 1908.
Esta casualidade alimentou o mito de que o acrescento das dezasseis es-
trelas teria acontecido durante a campanha de restauros das décadas de
1940/50, o que não corresponde à verdade.
A campanha de restauros do séc. XX10 é o último capítulo desta cons-
tante dinâmica de descravações e recravações. Pelo exposto é evidente
que muitas das peças que compunham (e compõem) o núcleo das joias
da coroa se encontravam parcialmente despidas de diamantes. Assim,
dentro do espírito da época, foi decidido restaurar as peças mais antigas
em detrimento das mais recentes: a partir da estrutura original da laça
de esmeraldas, que se conservava, foi possível reconstituí-la, perdendo-
-se, no entanto, a parure romântica de Estêvão de Souza, cuja estrutura
não existe hoje na coleção do PNA. Do mesmo modo foram reintegra-
dos na caixa de tabaco e no castão de bengala de D. José várias dezenas
de diamantes, tal como aconteceu com o colar e insígnia da Torre e
Espada. Para estas reintegrações foram descravados, entre outros, os 26
diamantes da base da tiara das estrelas e desfeitas várias outras estrelas
que ainda compunham o adereço e de que, infelizmente, também não se
conservam as armações.

Uma joia pessoal de exceção


Se as joias pertença da Coroa eram constantemente alteradas é fácil
perceber que o mesmo acontecia com as que eram propriedade pes-
soal dos membros da família real. Tal aconteceu com a recentemente
identificada tiara de D. Estefânia11 (PNA, inv. 53497) que, depois de ter
servido no seu casamento em Lisboa em 1858 e, quatro anos mais tarde,
no de D. Maria Pia com o rei D. Luís em Turim12, rapidamente começou
a ser convertida.

100
COLEÇÕES REAIS E COLEÇÕES OFICIAIS

Fig. 2 – Fragmentos da estrutura de devant-corsage e estojo, 1780–1781, Adam Gottlieb Pollet; prata
parcialmente dourada, ouro, aço, diamantes talhe brilhante, madeira, veludo e galão dourado. Dimensão
aproximada do ramo como existe atualmente: 21 x 14 cm; Palácio Nacional da Ajuda, Lisboa, inv. 53503.
Fotografia de Teresa Maranhas.

Fig. 3 – Parte da túlipa pertencente ao devant-corsage de D. Maria I onde são visíveis várias cravações
fechadas com o interior oxidado artificialmente e outras com folhetas refletoras coloridas em tons de
encarnado. Esta flor foi entregue, já pronta, pela rainha D. Maria I a Adam Gottlieb Pollet em 1781
para integrar o devant-corsage, prata. 3,7 x 3,9 x 0,9 cm; Palácio Nacional da Ajuda, Lisboa.
Fotografia e edição de imagem de João Júlio Rumsey Teixeira.

101
COLEÇÕES DE ARTE EM PORTUGAL E BRASIL NOS SÉCULOS XIX E XX

Outra peça descravada de exceção conservada no Palácio da Ajuda e


que permanece inédita é a estrutura em prata, dourada no verso, de um
grande devant-corsage que representa um ramo com flores (PNA, inv.
53503) (Fig. 2), apesar de fragmentado e incompleto, apresenta várias
centenas de cravações, hoje sem gemas. De dimensão assinalável – cer-
ca de 21 cm de altura – a joia que, como veremos adiante, foi executada
entre 1780 e 1781 por Adam Gottlieb Pollet para a rainha D. Maria I é
um manancial de informação, além de conservar o seu estojo original
em madeira forrada a veludo e galões dourados. Esta tipologia de ramo
grande de ornato de peito de senhora13 foi muito popular na joalharia de
corte europeia no último quartel do séc. XVIII, apesar disso, pelas sua
grandes dimensões e grande carga gemológica – extremamente apete-
cível para reaproveitamento –, muito poucos chegaram aos nossos dias.
Em Portugal a produção terá sido vasta e de qualidade mas, dos pou-
quíssimos exemplares que chegaram as nossos dias, apenas o do PNA
era executado com as gemas mais caras (diamantes, rubis, esmeraldas
ou safiras) tendo, por isso, acabado descravado na segunda metade do
séc. XIX. Dois, de tipologia e dimensão em tudo semelhante a este mas
integralmente cravejados com crisoberilos, são pertença do tesouro da
igreja das Mercês em Lisboa e estarão em exposição na nova galeria de
joalharia do MNAA14. É conhecido um outro, um pouco mais pobre
e possivelmente alterado, com flores de porcelana, topázios e outras
“minas-novas”, pequenos rubis e esmeraldas, que surgiu no mercado
antiquário português em 200915 mas acabou depois vendido num leilão
em Genebra16. Por último, o expoente máximo da tipologia – apesar de
igualmente exibir gemas de pouco valor intrínseco – é a enorme guar-
nição de corpete hoje exposta no Museu Nacional de Soares dos Reis
(MNSR), cuja sofisticação do desenho e brilhante execução tornam ím-
par; a joia surge representada adornando a imagem de N.ª S.ª do Monte
do Carmo de Lisboa numa gravura de 1795/617, tendo posteriormente
integrado o tesouro da casa real, guardado no Palácio das Necessidades,
sendo finalmente transferida para o MNSR em 1945.
A cravação das gemas foi, até ao quarto quartel do séc. XVIII fei-
ta maioritariamente em “cravação fechada”, desta forma, entre a base

102
COLEÇÕES REAIS E COLEÇÕES OFICIAIS

da gema (pavilhão) e o alvéolo que a recebia, podiam ser colocadas as


conhecidas “folhetas refletoras” que melhoravam a aparência da gema
quando cravejada; tal era especialmente relevante em gemas de cor uma
vez que não só melhorava o aspeto da pedra isolada, mas era determi-
nante para o bom efeito do conjunto em que esta estava integrada. Os
diamantes incolores eram usualmente cravejados depois da oxidação
artificial do interior do alvéolo; com esta técnica obtinha-se contraste
entre a luz refletida pelo pavilhão através da coroa (reflexão branca) e a
que se extinguia nos ângulos “janela” normais (aparência preta), como
acontece notoriamente com a culatra, responsável pelo habitual “ponto
negro” no meio do diamante em talhe brilhante18. Até ao início do séc.
XX os diamantes foram, em regra, cravejados em prata, sublinhando a
sua característica incolor mas, igualmente, porque tal gerava uma ilu-
são ótica no brilho da prata da cravação polida que, vista de longe,
alargava a perceção do tamanho da pedra; pelo contrário, as gemas de
cor foram tradicionalmente cravejadas em ouro, ou prata dourada.
A estrutura do referido devant-corsage do PNA revela-se excecional
para a observação de todas estas técnicas: muitas das várias centenas de
cravações apresentam o interior negro, indicando o lugar onde estavam
cravejados de diamantes incolores, enquanto diversas outras conser-
vam as folhetas refletoras in situ, algumas delas ainda com evidente
coloração em tons de rosa, encarnado e verde (Fig. 3). Tal, a par de uma
cravação em ouro, revela que esta não era uma joia monocromática
mas que conjugava diamantes incolores, gemas verdes e encarnadas;
que, como veremos, eram esmeraldas e rubis.
Uma conta de Adam Gottlieb Pollet19, joalheiro de D. Maria I,
datada de Junho de 1781, revela que lhe foi pago um ramo de dia-
mantes, rubis e esmeraldas em tudo semelhante ao agora descoberto.
Anteriores referências a esta conta20 afirmam que pela peça foram pa-
gos 3.013$200rs21 e que para a mesma foram necessários 467 diaman-
tes talhe brilhante22 mas algumas dúvidas levantadas pela análise ma-
terial da joia levaram-nos a revisitar a documentação. A leitura atenta
da transcrição do original da Fazenda da Casa Real permite chegar
a outras conclusões: o documento transcrito é composto tanto pelas

103
COLEÇÕES DE ARTE EM PORTUGAL E BRASIL NOS SÉCULOS XIX E XX

adições do joalheiro polaco – com evidentes dificuldades na escrita do


português –, como pelas notas de pagamento de João António Pinto
da Silva, guarda-joias desde 177623. O citado valor de 3.013$200rs foi
efetivamente pago por Pinto da Silva a Pollet mas refere-se a um valor
parcial, apurado apenas para: a execução do ramo de brilhantes, rubins
e esmeraldas, o fornecimento de algumas pedras para o mesmo24, o pre-
ço de uma outra pequena joia com uma água-marinha (32$800rs), aos
estojos em veludo de ambas as peças e à cravação de todas as gemas.
A somar a este valor é mencionado que, apenas para o ramo, a rainha
entregou, entre Outubro de 1780 e Março de 1781, mais de 120 quilates
em 540 diamantes talhe brilhante e três flores de rubis e diamantes já
prontas: um Rainúnculo, um Cravo e uma Túlipa. Não é mencionado
o número de pedras cravejadas nestas três flores mas a soma de todas
as restantes gemas elencadas indica que continha, pelo menos, cerca
de 1700 diamantes talhe brilhante e 1000 esmeraldas. Apenas para o
ramo, a soma dos valores atribuídos aos materiais (tanto fornecidos
por Pollet, como pela rainha), adicionado ao já mencionado para o fei-
tio, cravação e estojo ascendeu a 9.484$800rs. As entregas de diaman-
tes por parte da rainha vêm corroboradas, ao quilate, na Relação das
obras em que se gastaram os Diamantes, que mando Lavrar25, elaborada
por João António Pinto da Silva.
A consulta de sucessivos inventários da casa real, parte da restante
investigação em curso, revelou que tanto D. Maria I26, como a sua bis-
neta, D. Maria II27, possuíam peças desta época e tipologia mas, mais
especificadamente, que em 1826 é descrito, entre as joias da falecida
rainha D. Maria I, Hum dito [grande ramo] de brilhantes, rubins, e es-
meraldas, cinco contos e quatro centos mil reis. e que, em 1854 surge, no
inventário de joias da rainha D. Maria II: Um ramo grande de ornato
de peito de senhora formado de fitas, troncos, folhas, e flores; imitando
tulipas, campainhas, cravos, e botões de rozas, [...] com 1698 diamantes
brilhantes [...] 1227 esmeraldas [...] e 727 rubis, tudo com diferença nos
tamanhos e cravados em prata dourada [...], quatro contos e oitocentos
mil reis. Pela coincidência das descrições e proximidade dos dois últi-
mos valores é absolutamente plausível concluir que lidamos – desde as

104
COLEÇÕES REAIS E COLEÇÕES OFICIAIS

Fig. 4 – Rainha D. Maria Pia vestida de Maria Tudor por ocasião do baile de máscaras
do Entrudo de 1865, prova fotográfica; Palácio Nacional da Ajuda, Lisboa, inv. 63023.
Fotografia de João Júlio Rumsey Teixeira.

Fig. 5 – Rainha D. Maria Pia em traje de grande gala, 1886, Augusto Bobone,
prova fotográfica; Palácio Nacional da Ajuda, Lisboa, inv. 62974.
Fotografia de João Júlio Rumsey Teixeira.

105
COLEÇÕES DE ARTE EM PORTUGAL E BRASIL NOS SÉCULOS XIX E XX

contas de Pollet –, com a mesma joia, cujos fragmentos descravados são


o que formam o devant-corsage guardado no PNA e a que faltam não só
as gemas, como também algumas partes.
Executado por Pollet em 1781, o grande ramo permaneceu entre
as joias de D. Maria I após a sua morte, constando de uma listagem de
joias da soberana, já falecida, feita em 182228 e onde surge descrito com
duas flores soltas. Sabemos que em 1826 se encontra a uso da Infanta-
Regente, D. Isabel Maria, mas acaba por ser herdado, em 1827, pela
sua irmã, a infanta D. Maria da Assunção (1805–1834)29. Permanece
por esclarecer como integrou as joias da rainha D. Maria II mas é cer-
to que, depois da morte desta, foi herdado pelo seu filho, o infante D.
João30 que em 1861, com 19 anos, morreu inesperadamente. Em 1865
a joia está já em posse do seu irmão, o rei D. Luís, surgindo a sua mu-
lher, a rainha D. Maria Pia, fotografada vestida de Maria Tudor (PNA,
inv.63023) por ocasião do baile de máscaras desse ano exibindo, na
frente da saia, várias das flores originalmente parte do devant-corsage
mas então dele separadas (Fig. 4). Não é ainda claro quando foram
separadas as flores nem quando, posteriormente, foram descravadas as
gemas, ou com que finalidade.
No final do século XVIII, a compreensão da importância da leve-
za das cravações, sobretudo que permitisse à luz atravessar as gemas,
populariza a “cravação aberta” que apenas cobria a gema na cintura,
deixando frente e verso acessíveis ao olhar e à passagem da luz. Esta al-
teração teve repercussões de monta na estrutura das joias oitocentistas:
sem os versos fechados as peças tornaram-se muito mais leves e esta
leveza material rapidamente se repercutiu numa delicadeza formal que
permitiu à joalharia do séc. XIX ir adquirindo uma linguagem fluída e
esbelta. Herdeiros destes devant-corsage algo pesados e rígidos do séc.
XVIII, os bouquets de diamantes românticos eram leves, delicados e
sensíveis ao mais pequeno toque, tal como flores verdadeiras. Apesar
disso, os sistemas de articulação e molas que permitiam estes efeitos
(os célebres tremblants) são o aperfeiçoamento de técnicas que já no
século anterior vinham a ser exploradas, disto são prova tanto uma das
cabeças de flor deste devant-corsage do PNA, que conserva parte de

106
COLEÇÕES REAIS E COLEÇÕES OFICIAIS

uma forte mola de aço que a ligava à estrutura principal, como uma lua
de pérolas e topázios (PNA, inv. 5200), datável da transição do século
XVIII para o séc. XIX, em que um elemento em forma de estrela é
seguro por uma lâmina de ouro de baixo teor, que lhe permite oscilar.

A AVALIAÇÃO DE 1873 E IDENTIFICAÇÃO


DE ALGUMAS JOIAS INÉDITAS

O relatório de avaliação de vinte e três lotes de joias, redigido por


Fernando Augusto de Assunção Ventura, contraste-avaliador em
Lisboa, datado de 27 de Dezembro de 1873 e localizado no âmbito da
investigação em curso revelou-se uma fonte crucial31. Permitiu não só
identificar algumas estruturas descravadas, em prata e ouro, que se con-
servam no acervo do PNA e das quais a tiara de D. Estefânia – avaliada
em 9.200$000 – é a mais relevante32, bem como reconhecer outras im-
portantes joias propriedade da rainha D. Maria Pia.
O elenco de joias é dominado pelo emprego massivo de diamantes de
diversas grandezas em cravação aberta, aqui dita à jour, ocasionalmente
conjugados com safiras, rubis e pérolas. Os maiores são recorrentemen-
te referidos pelo avaliador como brilhantes grossos.
À exceção da tiara de D. Estefânia, parcialmente desprovida de
diamantes, as demais joias da lista conservariam as suas gemas à data
da avaliação, porquanto o avaliador regista a sua contagem rigorosa.
Aquela circunstância terá dado origem a que a tiara fosse descrita em
duas verbas contíguas mas distintas. A nº 1, que reuniu os cinco princi-
pais elementos da sua estrutura, cravejados de brilhantes de diversos ta-
manhos e adaptados a alfinetes de peito dos quais, porventura, D. Maria
Pia faria uso e a nº 2, que agrupou as cinco secções curvas do aro e qua-
tro elementos com a mesma linguagem formal dos anteriores mas mais
simples e de menor tamanho, que os intercalavam. O avaliador assinala
que, neste caso, faltavam muitos brilhantes e diamantes rosas. Com efei-
to, Assunção Ventura far-se-á pagar pela certidão de 22 verbas de joias
com pedras preciosas no valor de 65.770$000 réis33, o valor apurado na

107
COLEÇÕES DE ARTE EM PORTUGAL E BRASIL NOS SÉCULOS XIX E XX

fatura é o mesmo da certidão, explicando-se a discrepância no número


de verbas mencionadas com o facto das entradas nº 1 e nº 2 se referirem
a elementos da mesma joia.
As restantes vinte e uma verbas são constituídas por vários alfinetes
de peito, colares, três adereços, uma pulseira, uma gargantilha e dois
importantes colares com cinco fiadas de pérolas. Atendendo à grada-
ção de valores atribuídos por Assunção Ventura constatamos que, ime-
diatamente a seguir à tiara, a segunda joia de maior valor é a nº 18:
uma gargantilha de cento e sessenta e cinco brilhantes agrupados em
sete secções de três segmentos cada, assente n’uma fita de seda côr de
rosa, no montante de 7.000$000rs. A sua descrição corresponde nitida-
mente a uma das gargantilhas com que D. Maria Pia se fez retratar, em
traje de grande gala, por Augusto Bobone, em 1886 (PNA, inv. 62974)
(Fig. 5). Para além desta gargantilha cingida ao pescoço, a rainha usa
uma rivière de brilhantes e, sobre o colo, o colar de diamantes e safiras
que lhe fora oferecido por D. Fernando II na ocasião do seu casamento,
aqui, ao invés do pendente original deste colar, destacável, exibe a safira
oval realizada em 1784 pelo joalheiro Adam Pollet, propriedade da coroa.
A terceira peça mais valiosa era a verba nº 12: um colar com tre-
zentas e vinte e duas pérolas em cinco fiadas e um fecho circular com
quarenta e três brilhantes, o central levemente cor-de-rosa, avaliado em
6.000$000rs. Este importante fecho é a peça central que decora o de-
cote do vestido que a soberana enverga disfarçada de Maria Tudor, por
ocasião do já mencionado baile de máscaras de 1865 (Fig. 4). Segue-
se, em valor, a verba nº 10: um grande alfinete de peito em forma de
ramo, em brilhantes e safiras, constituído por cinco peças suscetíveis
de serem usadas individualmente, avaliado em 5.300$000rs e que, mais
tarde, viria a ser vendido no leilão de 1912, lote 2534. Do mesmo lei-
lão, lote n.º 5035, constou a verba nº 11, aqui avaliada em 4.000$000 e
que corresponde ao referido colar de diamantes e safiras oferecido por
D. Fernando II.
Importa salientar a presença de três colares rivière de brilhantes gros-
sos em cravações de prata à jour separadas, cujos brilhantes centrais são
maiores, diminuindo os restantes para cada um dos lados. O primeiro

108
COLEÇÕES REAIS E COLEÇÕES OFICIAIS

Fig. 6 – Travessa de cabelo, ca. 1860; ouro, prata, tartaruga. 8,3 x 12,5 cm;
Palácio Nacional da Ajuda, Lisboa, inv. 53502. Fotografia de Teresa Maranhas.

Fig. 7 – Fecho de colar de 5 voltas com terminais destacáveis, Itália (?), ca. 1860; ouro, espinela,
diamantes talhe brilhante e talhe rosa. 3,5 x 2,2 x 0,9 cm; Palácio Nacional da Ajuda, Lisboa, inv.
53315. Fotografia de Teresa Maranhas.

109
COLEÇÕES DE ARTE EM PORTUGAL E BRASIL NOS SÉCULOS XIX E XX

continha quarenta e um brilhantes e três pingentes de sessenta e três


brilhantes cada, formando adereço com um broche de sessenta e um
brilhantes e um par de cabeças com um brilhante pequeno cada uma para
armar em brincos com os pingentes do colar, correspondente à verba nº
17 e avaliado em 5.200$000rs36. O segundo continha trinta e três dia-
mantes, sob a verba nº 13 e é avaliado em 3.200$000rs. O terceiro, com
vinte e seis diamantes, é avaliado sob o nº 14, em 2.800$000rs. Os dois
primeiros são seguramente aqueles que a rainha mandou concertar ao
ourives Bello & C.ª, Sucessores de Estêvão de Souza em Julho de 1882,
como constatamos da respetiva fatura: Concerto de um colar com 33 bri-
lhantes / Concerto de um dito com 41 ditos. A semelhança destes cola-
res com aquele de trinta e dois brilhantes que era pertença dos bens da
Coroa, bem como a facilidade com que esta tipologia era acrescentada
ou encurtada, conforme a conveniência, incitam a um novo olhar sobre
alguma iconografia da rainha D. Maria Pia.
Registado sob a verba nº 4, Um pente para ornato de cabeça com
dentes de tartaruga e as costas guarnecidas de oitenta e dois brilhantes
dispostos em quatro linhas curvas, é avaliado em 3.000$000rs (Fig. 6)
e a sua estrutura, sobrevivente no pequeno núcleo de joias descrava-
das (PNA, inv. 53502), justifica algumas considerações. A primeira das
quais para dar conta de que a inédita imagem do adereço de esmeraldas
e brilhantes, encomendado pela rainha ao joalheiro Estêvão de Souza
(Fig. 1) revela um pente de grande semelhança formal à referida estru-
tura, em segundo lugar porque, no âmbito desta comunicação, importa
explorar uma passagem do arrolamento judicial na qual são menciona-
dos parte dos brilhantes que terão sido descravados da referida estru-
tura, bem como de outros provenientes da tiara de D. Estefânia e que
foram, em dada altura, guardados pela rainha nos seus aposentos: Dez
brilhantes que pertenciam ao pente, e muitos pequeninos que o ourives
tirou da carcaça de prata da corôa, conservavam-se dentro de um enve-
lope lacrado com a inscrição Paço da Ajuda 12 de Dezembro de 1883 e a
nota É escripto à vista de S.M. A Rainha37. Estamos assim perante duas
peças distintas da mesma tipologia produzidas por volta da década de
1860. A pedido da rainha D. Maria Pia uma foi totalmente descravada,

110
COLEÇÕES REAIS E COLEÇÕES OFICIAIS

permanecendo a estrutura no PNA e a outra foi radicalmente conver-


tida, posto que a versão final do pente de esmeraldas que chegou ao
século XX e foi submetido à campanha de restauro da década de 1940
contava com uma guarnição de apenas treze brilhantes, sendo evidente,
pela iconografia da soberana, que as sete esmeraldas que o encimavam
originalmente foram adaptadas a pingentes de colar.
O segundo colar de cinco fiadas, com duzentas e setenta e oito pero-
las grossas, intercaladas por dois fechos quadrangulares com uma perola
grande rodeada de oito brilhantes grossos cada um38 e rematado por um
fecho central retangular com um rubi39 e sessenta diamantes, inscrito
na verba nº 19 foi avaliado em 2.400$000rs. O uso do colar, apenas com
o fecho de rubi, que sobreviveu (PNA, inv. 53315) (Fig. 7)40, está docu-
mentado numa sessão fotográfica realizada em Roma, por ocasião da
viagem da soberana a Itália, em 1893.
Um adereço constituído por uma pulseira, um broche e um par de
brincos, com rubis e diamantes é avaliado em 1.700$000rs, nº 15. A pul-
seira, de aro rígido, decorada por uma lista de esmalte preto e uma gran-
de roseta com brilhantes e rubis, cujas cravações se encontram parcial-
mente vazias, é o único elemento que dele se conserva (PNA, inv. 53337).
É descrito, na verba nº 20, um broche de temática floral e de ver-
sátil constituição, formado por três peças, duas das quais passíveis de
uso individual, e cravejado com duzentos e trinta e três brilhantes, en-
tre os quais vários ditos grossos e duas pérolas grossas, surge avaliado
em 2.550$000. No nº 21 surge um broche em forma de laço com dupla
laçada que continha um rubi elíptico grande e claro ao centro e todo
o resto com brilhantes e três pingentes: o central com uma pérola es-
férica e outra em feitio de pero, os laterais com uma pérola periforme
de menor dimensão cada um, é avaliado em 2.000$000rs. A descrição
da joia – cuja estrutura igualmente sobrevive no acervo do PNA (inv.
53498) –, remete-nos para o lote 3 do leilão de 1912: broche em forma de
laço, brilhantes, no centro um rubi claro, pampille, perola e brilhantes41,
que poderá corresponder à conversão de parte das gemas do original.
Para além do mencionado alfinete de peito floral que integrou o leilão
de 1912, a presente lista conta ainda com outros seis, de cariz naturalista

111
COLEÇÕES DE ARTE EM PORTUGAL E BRASIL NOS SÉCULOS XIX E XX

em forma de ramo com flores, cravejados com brilhantes, alguns ditos


grossos, correspondentes às verbas nºs 9, 8, 3, 6, 7, 16 e 5, de diferente
dimensão e avaliados entre 2.700$000 e 370$000rs. Entre uma pequena
quantidade de fragmentos de estruturas descravadas de joias naturalis-
tas, conservadas no PNA, identificamos uma (inv.53492) que terá feito
parte do alfinete nº 9 e outra (inv.53494) do alfinete nº 8. Cremos serem
alguns destes alfinetes aqueles que foram entregues aos sucessores de
Estêvão de Souza para concerto, como testemunha a fatura referente ao
primeiro semestre de 1882 que menciona o Concerto de 3 ramos brilhan-
tes e, um pouco adiante, o Concerto 5 ramos com brilhantes, ambos no
mês de Janeiro, ou ainda um terceiro, que igualmente refere o Concerto
ramo com brilhantes no decorrer do mês de Maio42.
Destas vinte e duas joias, propriedade da soberana, temos até
agora certeza do que aconteceu aos diamantes retirados da tiara de
D. Estefânia e aos dois lotes que integraram o leilão de 1912. Quanto às
demais verbas, as respetivas gemas terão, muito provavelmente, servido
para realizar novas peças ao gosto da rainha D. Maria Pia e dentro do
espírito das novas tendências fin de siècle, joias estas que, muito prova-
velmente, integraram também o leilão de 1912.

NOTAS
1 BENNETT, David & MASCETTI, Daniela – Understanding Jewellery, Antique Collector’s Club, Suffolk, 2003.
2 Carta de Pedro Vergolino, guarda-joias, a Francisco Mendes de Goes em 4 Julho de 1741, citada por MONTEIRO,
Inês Líbano – Uma Baixela para Servir a Quatro Cobertas. GODINHO, Isabel Silveira (coord.) – A Baixela de Sua
Majestade Fidelíssima, IPPAR/PNA, Lisboa, 2002, p. 39.
3 Catálogo das Joias e Pratas que pertenceram à fallecida rainha Sra. D. Maria Pia. Lisboa, Typ. do Annuario
Comercial, 1912.
4 SOUSA, Gonçalo de Vasconcelos e – A Joalharia em Portugal 1750–1825, Civilização, 1999, p.124.
5 Arquivo Nacional da Torre do Tombo (A.N.T.T.), espólio de Joshua Benoliel.
6 Arquivo do Palácio Nacional da Ajuda (A.P.N.A.), documentação até há poucos anos numa coleção privada,
atualmente em estudo.
7 A.N.T.T., Arquivo da Casa Real (A.C.R.), cx. 7401.
8 A.P.N.A., Direção Geral da Fazenda Pública (D.G.F.P.) – Arrolamento do Palácio Nacional das Necessidades, vol. 7,
fl. 2526v. (verba 16970).
9 A constatação de que a tiara das estrelas tinha já 25 estrelas em 1910 deve-se a Hugo Xavier, conservador do
Palácio Nacional da Pena, a quem agradecemos.
10 Este tema, atualmente em estudo, será alvo de posterior publicação/comunicação.
11 TEIXEIRA, João Júlio Rumsey – Uma Tiara com 4000 diamantes, Lisboa, 2020. Disponível em: www.palacioaju-
da.gov.pt
12 Gazzetta del Polpolo – L’Italliano, ano XV, 1862, nº 267, p.5.
13 A.N.T.T., Inventario Orfanológico de D. Fernando II.
14 Notícia do jornal PUBLICO consultada a 11 de Julho de 2020 em:

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COLEÇÕES REAIS E COLEÇÕES OFICIAIS

https://www.publico.pt/2020/07/09/culturaipsilon/noticia/dois-tesouros-doacao-vao-tornar-mnaa-brilhan-
te-1923237
15 TEIXEIRA, João Júlio Rumsey – De S. Bento para a Sotheby’s. L+arte, nº 72, Entusiasmo Media, Junho de 2010, p.
8.
16 Magnificent Jewels and Noble Jewels, Sotheby’s Geneva, 11 de Maio de 2010, lote 335.
17 PENALVA, Luísa – As Jóias da Virgem do Carmo. Revista de História de Arte, FCSH, Lisboa, 2000, p. 26 e 27.
18 CARVALHO, Rui Galopim de – Algumas Gemas do Portugal de Setecentos e suas proveniências. Oceanos, nº 43,
CNCDP, 2000, p.36.
19 Boletim da Academia Nacional de Belas-Artes – Documentos. Lisboa, ANBA, Vol. V, 1948, p.7 e 8, doc. XI.
20 SILVA, Nuno Vassallo e – Os Pollet, joalheiros de D. Maria I. Oceanos, nº 43, CNCDP, 2000, p.68 e SOUSA,
Gonçalo de Vasconcelos e, op. cit., p.117.
21 SOUSA, Gonçalo de Vasconcelos e, op. cit., p.117.
22 SILVA, Nuno Vassallo e, op. cit., p.68.
23 MONTEIRO, Inês Líbano, op. cit., p.84.
24 Boletim [...]. Op. cit., Vol. V, p.7 e 8, doc. XI.
25 A.N.T.T., A.C.R., cx. 3753.
26 A.N.T.T., Inventário e Partilha por Óbito de D. João VI.
27 A.N.T.T., Inventário Orfanológico [...].
28 Boletim [...]. Op. cit., Vol. VII, 1956, p.134, doc. CDXXII.
29 A.N.T.T., Inventário e Partilha [...].
30 A.N.T.T., A.C.R., cx. 4363.
31 A.P.N.A., cx. 10.2.2., doc. 183, transcrito em TEIXEIRA, João Júlio Rumsey, Op. cit., p. 41–49.
32 Sobre este tema veja-se TEIXEIRA, João Júlio Rumsey, Op. cit.
33 A.N.T.T., A.C.R., cx. 7118.
34 TEIXEIRA, João Júlio Rumsey, Op. cit., p. 39.
35 Idem, Ibidem, p. 39.
36 É possível supor que esta verba corresponda a um dos dois colares rivière vendidos no leilão de 1912 (lote 41 ou
44).
37 A.P.N.A., D.G.F.P. – Arrolamento do Palácio Nacional da Ajuda, vol. 2, fls. 482v. e 483.
38 Uma destas duas peças constituía o fecho do colar de pérolas vendido no leilão de 1912, lote 280, vd. TEIXEIRA,
João Júlio Rumsey, Op. cit.
39 Na realidade a gema presente é uma espinela vermelha, gema historicamente confundida com o rubi. Esta iden-
tificação foi recentemente confirmada pela análise realizada pelo gemólogo Rui Galopim de Carvalho, a quem
agradecemos.
40 Cf. Catálogo da exposição GODINHO, Isabel Silveira (Coord.) – Tesouros Reais, IPPC/PNA, Lisboa, 1992, cat. 44,
pág. 71.
41 Catálogo das Joias e Pratas que pertenceram [...]
42 A.N.T.T., A.C.R., cx. 7018.

113
DOS REVIVALISMOS AO MOVIMENTO
SECESSIONISTA VIENENSE: VIDROS
DA BOÉMIA DA RAINHA D. MARIA PIA

MARIA JOÃO BOTELHO MONIZ BURNAY


Conservadora da coleção de Vidros, Palácio Nacional da Ajuda, Lisboa.
mjoaoburnay@pnajuda.dgpc.pt

Resumo Palavras-chave
A região da Boémia, um dos principais centros Vidros; Maria Pia; Boémia; Lobmeyr; Moser;
produtores vidreiros da Europa, teve no século Meyr’s Neffe.
XIX importantes fabricantes como Ludwig
Moser & Söhne, fundado em 1857 por Ludwig
Moser em Karlovy Vary (antiga Karlsbad), e a
J & L Lobmeyr, em 1823 por Joseph Lobmeyr
em Viena. Os seus artigos excepcionais não
escaparam ao olhar da rainha D. Maria Pia, que,
durante as suas temporadas na estância termal
de Karlsbad e nas visitas a Viena, por ocasião
dos seus tours pela Europa, adquiriu naqueles
fabricantes muitos objetos. Desvenda-se nesta
apresentação o gosto seletivo e refinado, e um
olhar sempre atualizado da nossa soberana.

115
COLEÇÕES DE ARTE EM PORTUGAL E BRASIL NOS SÉCULOS XIX E XX

INTRODUÇÃO

A região da Boémia, um dos principais centros produtores vidreiros


da Europa, teve no século XIX importantes fabricantes como Ludwig
Moser & Söhne, fundado em 1857 por Ludwig Moser em Karlovy Vary
(antiga Karlsbad), e a J & L Lobmeyr, em 1823 por Joseph Lobmeyr em
Viena. Distinguindo-se pela enorme variedade de artigos de qualidade
superior, tornaram-se fornecedores da corte Imperial Austríaca e de vá-
rias outras cortes europeias. Os seus artigos excepcionais não escaparam
ao olhar da rainha D. Maria Pia, que, durante as suas temporadas na
estância termal de Karlsbad e nas visitas a Viena, por ocasião dos seus
tours pela Europa, adquiriu naqueles estabelecimentos serviços de mesa,
poncheiras, jarras, taças, serviços de toucador entre outros objetos.
A coleção de vidros da Boémia do Palácio Nacional da Ajuda, um
núcleo muito relevante e significativo desta coleção, contempla peças
de gosto Historicista com revivalismos Rococó e de outros movimentos
posteriores. Outras de gosto orientalizante, e ainda a produção do início
do movimento Modernista e a do Secessionismo Vienense, com vidros
de design de Kolo Moser, um dos fundadores deste movimento.
Desvenda-se nesta apresentação o gosto seletivo e refinado, e um
olhar sempre atualizado da nossa soberana.

PRODUÇÃO VIDREIRA E SUA EVOLUÇÃO

A região da Boémia, atualmente parte integrante da República Checa


sobressaiu pela sua importante produção vidreira de excelente qualida-
de e refinamento, principalmente a partir do período do Renascimento.
Esta região, dotada abundantes recursos naturais, situada na Europa
central e rodeada por uma paisagem montanhosa, para além de boa
matéria prima dispõe de condições excepcionais para o fabrico de vidro
de qualidade, também pela riqueza e qualidade das areias e madeiras,
essenciais para a laboração.
A Boémia esteve, ao longo da sua história, ligada à Morávia, quando

116
COLEÇÕES REAIS E COLEÇÕES OFICIAIS

era Estado independente, ou sob a dominação dos Habsburgos. Desde


do século XIV até 1742, a Silésia, atualmente parte da Polónia, estava
anexada à coroa da Boémia. Após a criação da República Checoslovaca
em 1918, a Boémia, a Morávia e a Eslováquia formaram um estado.
As origens da produção vidreira remontam ao período de transição
entre os séculos XIII e XIV. Talvez só a Serenissima cidade de Veneza
possa concorrer numa tradição tão antiga.
Antes da época barroca, transbordante de riqueza e qualidade ar-
tística, já se encontravam objetos de luxo como as “flutes” produzidas
ao tempo de Carlos IV, Rei da Boémia e Imperador do Sacro Império
Romano-Germânico (1316–1378), expressivas do poderio e riqueza do
país na época.1
A evolução deu-se naturalmente até à criação do cristal dito da
Boémia, cerca de 1620, um silicato de potassa e cal, tratado e fundido
de uma forma excelente.2 Esta composição, uma matéria resultante do
engenho do homem, matéria essa extremamente translúcida, cristalina
e com alguma dureza era quase evocativa do cristal de rocha; à seme-
lhança desse mineral, pela sua espessura, permitia delicados trabalhos
de gravação e lapidação (em contraste com o fino cristallo italiano).
Surge no período de Rudolfo II de Habsburgo (1552–1612), imperador
do Sacro Império Romano-Germânico.
O primeiro artista a realizar decorações com gravação à roda, sobre
quem pouco ou quase nada se sabe, foi Caspar Lehman (1563/65–1622),
formado em Munique, cidade com uma longa tradição de gravadores de
pedras duras, e onde se deu início desta técnica decorativa na matéria
vitrea, a partir de cerca de 1580. Lehman esteve vinculado à corte de
Rudolfo II em Praga, onde permaneceu até à sua morte, com uma breve
passagem por Dresden.3
Tal era o prestígio desta arte, que em 1685, o artista Friederich Winter
foi nomeado pelo conde Christof Leopold Schaffgotsch da Silésia como
gravador-vidreiro da sua casa; Winter criou escola na primeira metade
do séc. XVIII, período em que apareceram alguns dos objetos em vidro
gravado mais extraordinários do período Barroco. Peças de luxo, são
exemplo os copos com pé cobertos, objetos de souvenir virtuosamente

117
COLEÇÕES DE ARTE EM PORTUGAL E BRASIL NOS SÉCULOS XIX E XX

gravados com motivos heráldicos, vegetalistas e florais, paisagens de


jardins e fontes, cenas mitológicas, religiosas e também alegorias.4
Na transição entre os séculos XVIII e XIX a indústria vidreira da
Boémia sofreu gravemente com a situação política europeia, nomeada-
mente as guerras que provocaram bloqueios nas fronteiras; a exporta-
ção reduziu-se de forma exponencial. Por outro lado, a produção anglo-
-irlandesa começou a fazer forte concorrência nos mercados.
Frieddrich Egerman (1777–1864), será o artista em destaque nes-
te período. Depois de ter trabalhado na manufatura de Meissen5, foi o
criador de um vidro marmoreado reproduzindo pedras semipreciosas.
Por outro lado, a partir de cerca de 1830, com o desenvolvimento da
química do vidro, reapareceram cores como o vermelho rubi, vermelho
opaco, bem como a cor violeta, azul e verde transparentes ou opalinos.6
A gravação à roda, conheceu uma novo alento com Dominik Biemann
e Karl Pfohl; a produção atingiu o auge em qualidade tecnológica e ar-
tística entre 1835–1850, de tal modo que algumas técnicas ornamentais
como lapidações, pinturas decorativas e cores serão seguidas pelos vi-
dreiros franceses, ingleses e belgas.7
A partir de 1850, a arte vidreira na Boémia conhecerá um certo de-
clínio e a exportações abrandaram, sendo que a recuperação deu-se
a partir de 1856, com a criação da escola profissional de vidreiros de
Kamenický Šenov, dirigido pelo pintor Jan Dvorák. Em 1870, uma ou-
tra nasceu, em Bor. Kamenický Šenov criou uma escola de gravura que
integrava artistas de renome que articulados com as principais vidra-
rias daquela região tornaram a Boémia uma referencia na arte vidreira
europeia. Daquela escola saíram alunos – pintores, gravadores e agentes
comerciais – que trabalharão para todos os centros vidreiros do país,
muito deles referencias a nível mundial.8
Na última década do século XIX manifestou-se na Boémia uma
vontade de inovação artística e técnica, na senda das correntes vigen-
tes, nomeadamente o estilo Arte Nova, uma síntese do Naturalismo, do
Simbolismo e do que restava dos ideais do Romantismo, que em França
e Estados Unidos mostrava já grande renovação na conceção artística,
formas e materiais – nomeadamente a aplicação dos brilhos metálicos e

118
COLEÇÕES REAIS E COLEÇÕES OFICIAIS

irisados –, nas cores e decoração, cujos grande mestres foram, primei-


ro o inspirador Émile Gallé e Louis Confort Tiffany, respetivamente.
Ambos se destacaram nas Grandes Exposições Universais.
O vidro checo Arte Nova ou Modernista apresenta duas característi-
cas: inspira-se em modelos florais ou formas geométricas.

BOÉMIA: OS FABRICANTES PREDILETOS DA RAINHA

O século XIX é o século das grandes viagens. No trilho das grandes


Exposições Universais, que revelavam toda uma panóplia de criações
artísticas representativas das últimas tendências e avanços tecnológicos,
os reis de Portugal foram presenças frequentes e consumidores do me-
lhor que se mostrava, e de toda essa diversidade. Por outro lado, a rainha
D. Maria Pia por ocasião das treze viagens que realizou pela Europa,
durante a sua permanência em Portugal (entre 1862 e 1910), visitou as
capitais Europeias, e tomou contacto com a produção vidreira proemi-
nente deste período, nomeadamente em Roma, Veneza, Paris, Viena,
Karlsbad (Karlovi Vary), as principais cidades onde fez as grande aqui-
sições de vidros.
A coleção de vidros de produção Boémia do Palácio Nacional da
Ajuda, representa uma parte muito significativa desta coleção e as aqui-
sições eram feitas, como afirmámos, nas suas passagens por Viena, na
casa J & L Lobmeyr, e durante as suas estadias em Karlsbad (Karlovy
Vary), estância termal onde permanecia algumas temporadas para tra-
tamentos, onde visitava o fabricante Ludwig Moser & Söhne. A rainha
também comprou peças do fabricante Meyr’s Neffe, da Boémia do Sul.
A casa J.& L. Lobmeyr, sediada em Viena, foi fundada em 1823 por
Joseph Lobmeyr (1792–1855). Pouco tempo depois começou a desta-
car-se pelas peças decorativas de qualidade excepcional que exibia na
sua loja, ainda hoje existente no nº 26 da Kärtnerstrasse, e tornou-se
fornecedora da corte imperial austríaca.
Em 1851, foi criado um atelier de decoração em Bettendorff, perto
de Haida , na Boémia do Norte onde a filha de Joseph Lobmeyr, Luisa,

119
COLEÇÕES DE ARTE EM PORTUGAL E BRASIL NOS SÉCULOS XIX E XX

casa com Wilhem Kralik, proprietário da vidraria Meyr’s Neffe, em


Adolfshute, localizada na Boémia do Sul e que igualmente produzia um
cristal de excelência.
Quando em 1860, os filhos de Joseph – Joseph Jr e Ludwig – sucede-
ram ao pai, a firma tomou o nome de J&L Lobmeyr. Em 1864, Ludwig
tornou-se o único proprietário e foi ainda um dos responsáveis pela
fundação do Museu de Artes Aplicadas de Viena de Áustria (atual
Museu de Artes Decorativas – MAK Viena). Agora pioneiros na produ-
ção de cristal Austro-Boémio, apresentaram as suas peças nas primei-
ras Exposições Universais. Na Exposição Universal de Paris, em 1867,
distinguiram-se as peças decoradas “à grega” com lapidação e gravação
em cristal incolor, entre outros exemplares de beleza inexcedível. Em
1873, na Exposição Universal de Viena, exibiram peças profusa e rica-
mente decoradas com motivos indo-persas e islâmicos, modelos conce-
bidos por numerosos artistas do movimento Historicista austríaco, como
Joseph Stork e Joseph Salb, entre outros, que obtiveram grande sucesso
e tiveram grande procura no mercado oriental. Em 1878, na Exposição
Universal de Paris, mostraram mais criações de inspiração oriental, tam-
bém bastante apreciados pelo grande público na Europa Ocidental. Em
1902, Stephan Rath, sobrinho de Ludwig Lobmeyr, ingressou na firma.
Entre os anos 1910 e 1914, Joseph Hoffman mostrou os seus famo-
sos modelos geométricos e também tiveram intervenção artistas que, tal
como ele, pertenceram ao movimento Wienner Werkstätte, como Otto
Prutscher, Oswald Haerldt e sobretudo Michael Powolny.9
A firma ainda hoje pertence aos descendentes de Joseph Lobmeyr.10
Outra fábrica predileta da rainha D. Maria Pia, foi a firma Ludwig
Moser & Söhne, fundada por Ludwig Moser (1833–1916), homem co-
nhecedor desde sua tenra idade de todas as técnicas de decoração e pro-
dução do vidro. Abriu em 1857, o seu primeiro atelier de decoração em
Karlsbad, na Boémia do Norte, estância termal frequentada por várias
cabeças coroadas europeias. Quase sem exceção, todos encomendaram
à Moser serviços do melhor cristal da Boémia, quase sempre decorados
com motivos heráldicos gravados a ouro com grande perfeição; esses
atributos valeram a Moser o epíteto de “Vidreiro dos Reis”.

120
COLEÇÕES REAIS E COLEÇÕES OFICIAIS

Em 1870 fundou um grande atelier de decoração em Meirterdorf,


perto de Haida, e de Steinschonau, onde integrou a melhor seleção de
artistas e artesãos, provenientes daquelas duas localidades. Para além do
mais, Moser mostrava ter uma habilidade especial em marketing, sabia
promover como ninguém os seus artigos.
Em 1892, obteve licença para erguer a sua própria vidraria, per-
to de Karslbad, em Meiershoffen, e em 1895 inaugurou a Karlsbader
Glasindustrie-Gesellshaft Ludwig Moser & Söhne, uma Sociedade que,
ao contratar técnicos da Boémia do Sul, nomeadamente Richard Kralik,
responsável pela produção na fabrica Meyr’s Neffe em Adolfshutte, as-
sim alcançou o objetivo que mais pretendia: o fabrico do melhor cristal
da Boémia.
Do seu casamento com Julie Meyer, também vinda de uma família
de vidreiros, em 1875, nasceram quatro filhos, dois dos quais, nomeada-
mente Gustav e Leo, após formação intensiva nos vários departamentos
da firma, foram indicados para diretores comercial e artístico, respetiva-
mente. O extraordinário empenho e capacidade de Leo, como criador e
gestor levarão o prestígio da casa Moser a perpetuar–se a nível mundial.
Em 1922 a empresa foi incorporada à Meyr’s Neffe, no seguimento
de uma reestruturação imposta pelo novo espaço geopolítico daquela
região, após a guerra de 1914–1918.11
Outra vidraria escolhida pela rainha, e por último, foi a Meyr’s
Neffe, fundada em 1816 por Josef Meyr (1739–1829) em Adolfshutte,
na Boémia do sul. Meyr possuia já uma outra em Kaltembach e seu
filho, Johan Meyr, criou em 1829, mais uma, em Eleonorenhain. Em
1841, este último morreu sem descendência; sucedem-no Josef Taschek
e Wilhelm Kralik que agregaram quatro outras vidrarias: Ernstbrunn,
Frazenthal, Idathal e Luisenhutte. Em 1851, Kralik casou com Louise
Lobmeyr, filha do grande vidreiro vienense e dessa união nasceram por-
tanto, os estreitos laços entre as duas firmas. Com a morte de Taschek
em 1862, Wilhem Kralik viu-se a braços com sete vidrarias e 730 fun-
cionários que produziram “o mais belo e mais puro cristal da Boémia”
segundo os testemunhos da época. Após a morte de Kralik em 1877, em
1881, os seus quatro filhos terminam a sociedade, sendo que as vidrarias

121
COLEÇÕES DE ARTE EM PORTUGAL E BRASIL NOS SÉCULOS XIX E XX

de Adolfshutte, Luisenhutte e Idathal ficam nas mãos de Karl e Hugo


Kralik com o nome de Meyr’s Neffe. Hugo morrerá em 1883, ficando
Karl à frente do negocio. Em 1891, os sucessores de Karl dispunham de
quatro fornos de dez lugares cada, quatro lapidarias com cento e dez la-
pidários, três ateliers de decoração que incluíam gravação e esmaltagem;
ao todo eram 380 funcionários ativos.
Em 1900, o editor vienense Bakalowits encomendou a execução de
serviços de mesa, com design de Koloman Moser e Josef Maria Olbrich.
Em 1906, Otto Pruscher criou a extraordinária série de cálices com
pé alto com decoração geométrica gravada. Outros artistas do movi-
mento Wiener Werkstätte, criaram outros modelos de design encomen-
dados para Bakalowitz até ao ano de 1915.

A COLEÇÃO À VOL D’OISEAU

Não há dúvida que após num olhar de relance sobre a coleção de


vidros do Palácio Nacional da Ajuda do século XIX, concluímos, pelo
volume de peças, que o acervo de fabrico Boémio é considerável e va-
lioso, a par da produção francesa, nomeadamente a fábrica Baccarat e
das peças que a rainha comprava no Grand Dépôt e Escalier de Cristal.
Pretende-se neste texto caracterizar o grande núcleo, com aquisições
realizadas desde muito provavelmente o ano de 1888 até 1905; através
de uma seleção ilustrativa dos estilos vigentes neste período cronoló-
gico, como já afirmámos, observamos peças criadas desde o período
Historicista até ao Modernismo austro-boémio. Não há dúvida que
Maria Pia foi evoluindo em gosto, e com o seu olhar refinado, certei-
ro e moderno escolheu sempre quase o melhor e o mais atual; grandes
serviços de mesa, representativos do fausto e do luxo vividos, tanto na
intimidade como nas ocasiões protocolares, serviços de toucador, para
bebidas como os verres d’eau,12 licoreiros, serviços para refresco e para o
quarto, serviços de chá e as poncheiras, as jarras, taças, jarrinhas, solitá-
rios pequenos e de grandes dimensões, um candeeiro já eletrificado e o
enorme e sumptuoso lustre central na sala dos Grandes Jantares.

122
COLEÇÕES REAIS E COLEÇÕES OFICIAIS

As peças da Ajuda com caráter Historicista, movimento europeu cuja


última fase foi vivida em território checo em finais da década de oitenta
até muito tardiamente, culminando em 1891, com a Grande Exposição
Territorial Comemorativa de Praga13, apresentam um leque variado de
revivalismos, desde o Renascimento ao Barroco; são em geral ricamente
decoradas, com gravações com roda e ponta de diamante, lapidações,
douragens, pintura com esmaltes e expõem predominantemente as de-
corações evocativas do período Barroco. Algumas têm marca de fabri-
cante e representações heráldicas, como as armas da casa real portugue-
sa, ou os monogramas coroados, principalmente o ML (Maria e Luis),
MP (Maria Pia).
As primeiras compras de vidros da Boémia poderão ter sido rea-
lizadas no ano de 1888, por ocasião da viagem realizada no decurso
desse ano, a última de D. Luís I. Os soberanos portugueses foram con-
vidados de honra para o casamento do irmão da rainha, o príncipe
Amadeu de Sabóia, Duque de Aosta, com a sua sobrinha, a princesa
Letícia Bonaparte. Terá sido um périplo de quatro meses, no fim do
qual o rei D. Luís se encontrava já muito afetado pela enfermidade que
o assolava. As últimas aquisições de vidros documentadas foram reali-
zadas durante a viagem da rainha de 1905. Mas foi sobretudo na longa
viagem de cerca de 6 meses em 1901, que a rainha fez aquisições de
vulto, muitas bem documentadas.
As peças do acervo produzidas no período Modernista, período que
sucede ao Historicismo em finais do século XIX, revelam as singulari-
dades estéticas desta corrente, como a estilização da natureza viva, nas
formas e decoração, as gradações de cores, e os irisados, elementos re-
sultantes já de uma evolução técnica apuradíssima, que, dentro do pe-
ríodo cronológico das aquisições da rainha, culminou no movimento
Secessionista vienense, promovido por artistas como Koloman Moser
(1868–1918).

123
COLEÇÕES DE ARTE EM PORTUGAL E BRASIL NOS SÉCULOS XIX E XX

Fig. 1 – Serviço de toucador (15 peças), Johann F. Hoffman (1840–1900)-gravação (atrib.);


Moser, Karlsbad, Boémia , 1862–1888; Vidro transparente incolor e amarelo-ocre. Palácio
Nacional da Ajuda, Lisboa. PNA inv. 41756 a 41770. Fotografia de Luisa Oliveira ADF |DGPC

Fig. 2 – Serviço de chá para 12 pessoas (24 peças), Moser, Karlsbad, Boémia , 1880–1902;
cristal transparente incolor, rosa, branco e lilás. Palácio Nacional da Ajuda, Lisboa.
PNA inv. 22891. Fotografia de Luisa Oliveira ADF |DGPC

124
COLEÇÕES REAIS E COLEÇÕES OFICIAIS

EM TODO O TEMPO, O LUXO

Presumimos que os dois serviços de toucador em exposição nos


quartos dos soberanos, no piso térreo, foram adquiridos em 1888.
Tratam-se dos conjuntos PNA inv. 41756 a 4177014, e PNA inv. 2403 a
241915, dos quais ilustramos o primeiro (Fig. 1). Por ocasião da execu-
ção do Arrolamento do Palácio da Ajuda, estavam na Arrecadação do
Tesouro no Andar Nobre. A rainha adquiriu no entanto outros mais, de
feição Modernista.
Os serviços para lavatório na época, têm 15 e 19 peças, em cristal
transparente incolor, dobrado a amarelo ocre e a vermelho rubi, respe-
tivamente, e contemplam variadas tipologias, desde o jarro e respetiva
bacia, caixas para pentes, escovas, escovas de dentes, e escovas de unhas,
caixas para pó de dentes e pó de arroz, castiçais, taças para esponja e
alfinetes, garrafinhas para perfume ou outro líquidos, garrafa de água,
copo e prato. As peças são decoradas com motivos vegetalistas como
parras e gavinhas, animais de corrida (veados, coelhos e cão) e aves
em voo e pequenas cancelas, num enquadramento natural de árvores
e arbustos, dentro de um espírito Romântico, e mostram as armas de
Portugal encimadas pela coroa real. Poderão ser datados de entre 1862–
1889. Por este período estava ativo em Karlsbad, Johann F. Hoffman
(1840–1900), um dos mais virtuosos gravadores de vidro da segunda
metade do século XIX, colaborador frequentemente de Ludwig Moser,
que mostrou os seus belos trabalhos na Exposição Universal de Viena
em 1873.16 Pela qualidade das peças da Ajuda, julgamos ser deste artista
a sua ornamentação.
Destaca-se outro conjunto, o serviço para chá em estilo Modernista,
para 12 pessoas PNA inv. 22891, (Fig. 2) fabricado na Moser,17 compra-
do na viagem de 1901,18 que deu entrada no paço da Ajuda a 2 de Março
de 1902.19 Podemos data-lo de entre 1880–1901.
Em cristal grosso, transparente incolor, rosa, branco e lilás, as cháve-
nas bastante modernas de linhas direitas e asa rectilínea, foram decora-
das com uma técnica muito em voga na fábrica Moser, a partir de 1880:
gravação com profundidade na parede do vidro, de motivos florais.

125
COLEÇÕES DE ARTE EM PORTUGAL E BRASIL NOS SÉCULOS XIX E XX

Fig. 3 – Serviço de mesa (292 peças); J. & L Lobmeyr, Viena, 1888; Cristal transparente incolor e
verde. Palácio Nacional da Ajuda, Lisboa. PNA inv. 22906. Fotografia de Luisa Oliveira ADF |DGPC

Fig. 4 – Serviço de Licor (15 peças), Kolo Moser (design) Meyr’s Neffe? para Ludwig Moser & Sohne,
Karlsbad, Boémia, c.1900. Cristal transparente incolor e rosa, lilás, amarelo, verde e azul turquesa.
Palácio Nacional da Ajuda, Lisboa. PNA inv.22943. Fotografia de Luisa Oliveira ADF |DGPC

126
COLEÇÕES REAIS E COLEÇÕES OFICIAIS

Por ocasião da elaboração do Arrolamento Judicial, estava guardado


na denominada Casa da Arrecadação das Pratas de D. Maria Pia20, pelo
que deduzimos ter sido uso recorrente da soberana.
Do núcleo que constitui os serviços de mesa adquiridos nas casas
Moser e Lobmeyr destacamos o conjunto PNA inv. 22906. (Fig. 3)
Denominado na época de serviço nº5 servia treze pessoas e tem atual-
mente 292 peças. Encontrava-se guardado na Arrecadação das Pratas e
Loiças de D. Maria Pia21 na época da elaboração do Arrolamento, e era
de sua pertença. Foi comprado na Lobmeyr em Viena, no ano de 1888,
ano em que a soberana fez avultadas aquisições na mesma loja.22 O ser-
viço nº54, segundo a fatura, estava descrito :“en crystal fin de Bohême,
gravure ancienne”.23 Compreende garrafas de água, decantadores de vi-
nho e de Bordéus, jarros de cerveja, garrafas de licor, copos de água,
taças e flutes de champagne, copos de Bordéus, Madeira, Jerez, Licor,
Vinho do Reno, canecas para ponche, taças e respetivos pratos, tudo o
que pertence ao um service à la russe,24 sendo a gravação do monogra-
ma, e como era habitual, cobrada num item à parte, na fatura.25
Em cristal transparente incolor e de carácter Historicista, o soberbo
conjunto está decorado com padrão de estilo renascentista, de temas
naturais representando aves e ramagens e flores, gravados a ácido. Todas
as peças têm o monograma gravado “LM” encimado por coroa real, re-
lativo ao rei D. Luís e D. Maria Pia.26
Sendo o licor uma das bebidas mais apreciadas na casa Real
Portuguesa, vários serviços foram comprados ao longo da permanência
desta corte. Destacamos do núcleo em tema o licoreiro PNA inv.22943
(Fig. 4). Datado de cerca de 1900, revelador do gosto vanguardista de
Maria Pia, é composto por quinze peças em fino cristal transparente in-
color e de outras cores diferentes, com design de Koloman Moser, dentro
da estética do movimento Secessionista vienense: 1 lindo tabuleiro em
cristal com montagem em metal dourado de forma rectangular, 2 gar-
rafas e 12 cálices de pé alto de diferentes formas e cores. Todas as peças
são uma estilização de formas da natureza, sendo os cálices, pequenas e
delicadas flores de variadas configurações. Foi adquirido na viagem de
1901, na casa Moser em Karlsbad.27 Estes serviços de Kolo Moser foram

127
COLEÇÕES DE ARTE EM PORTUGAL E BRASIL NOS SÉCULOS XIX E XX

Fig. 5 – Lavabos (11), Moser, Karlsbad, Fig. 6 – Jarrinha, Loetz ou J. & L Lobmeyr,
Boémia, c.1900; Cristal transparente Boémia, 1895–1905; Vidro iridescente de
incolor e cor-de-rosa. Palácio Nacional tonalidade verde e amarela. Prata. Palácio
da Ajuda, Lisboa. PNA inv. 22928. Nacional da Ajuda, Lisboa. PNA inv. 50471.
Fotografia de Luisa Oliveira ADF |DGPC Fotografia de Luisa Oliveira ADF |DGPC

Fig. 7 – Serviço para bebidas, Moser, Karlsbad, Boémia, 1898–1902; Cristal transparente
incolor e verde. Palácio Nacional da Ajuda, Lisboa. PNA inv. 22891.

128
COLEÇÕES REAIS E COLEÇÕES OFICIAIS

fabricados pela Meyr’s Neffe. Dada a relação daquele fabricante com a


Moser neste período, é bem possível que seja essa a proveniência.
Quando foi efetuado o Arrolamento Judicial do palácio encontrava-
-se arrumado na denominada Casa da Arrecadação das Pratas.28
Outras peças de uso recorrente na mesa eram os lavabos, usados
geralmente para molhar os dedos ou pequenas peças de fruta, no final
da refeição. A rainha adquiriu lavabos incluídos nos grandes serviços,
mas também comprou conjuntos à parte, nomeadamente italianos e
boémios.
Os onze lavabos em cristal PNA inv. 22928, em estilo Arte Nova
apresentam uma lindíssima decoração de vidro dobrado a cor-de-rosa
no elemento decorativo composto por uma flor com início no reverso
da base, ao centro, e de onde saem cinco grandes pétalas estilizadas que
se estendem até meio da parede (Fig. 5). Datados de cerca de 1900, to-
dos têm o monograma “MP” coroado, relativo à rainha D. Maria Pia de
Sabóia (1847–1911).
Segundo o Arrolamento do palácio da Ajuda, também se encontra-
vam guardados na Casa da Arrecadação das Pratas de D. Maria29 e foram
adquiridos na fábrica Moser, durante a sua viagem à Europa em 1901.30
O periodo “Jugendstil” despertou principalmente na Alemanha e
Áustria entre 1895 e 1910. Equivalente ao período Arte Nova francês,
foram principalmente as fábricas Loetz e Lobmeyr as precursoras do vi-
dro iridescente, resultado de um grande avanço tecnológico. É exemplo
dessa estética, a linda jarrinha PNA inv. 50471, uma peça decorativa
que deverá ter essa origem (Fig. 6).
Em vidro iridescente de tonalidade verde e amarela, a peça está in-
corporada numa montagem, num padrão em prata recortada com mo-
tivos de teor vegetalista dentro do espírito Arte Nova, de flores estiliza-
das de caule fino e corolas abertas e fechadas. Todos estes motivos são
levemente incisos e puncionados.
Encontrava-se guardada na denominada arrecadação da princesa de
acordo com o Arrolamento Judicial.31
Por último, mais um serviço para o quarto para bebidas, PNA inv.
22946 (Fig. 7).

129
COLEÇÕES DE ARTE EM PORTUGAL E BRASIL NOS SÉCULOS XIX E XX

É um conjunto em estilo modernista composto por tabuleiro em for-


ma de paralelogramo, jarro ovalado e dois copos cilíndricos. As peças
em cristal transparente incolor, progredindo para um tom verde gra-
dualmente mais escuro são decoradas com motivos florais (gravados
em profundidade, o mesmo tipo de decoração que observamos nas chá-
venas PNA inv. 22891. Terá dado entrada no palácio a 2 de Março de
190233, pelo que terá sido comprado em Karlsbad no ano anterior, con-
forme um inventário de 1907.34

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A paixão da rainha pela arte vidreira levou-a a reunir uma coleção


com quase 13.000 peças, de todas as proveniências, incorporados quase
até ao final da sua permanência em Portugal. Os vidros faziam parte do
quotidiano, das suas rotinas, estavam a uso nos aposentos privados em
todos os rituais, e também nas ocasiões formais.
Tentou sempre engrandecer a sua Casa e por essa razão, o seu legado,
reflexo da sociabilidade da corte portuguesa, merece continuar a ter um
estudo mais aprofundado. É o caso do núcleo de vidros da Boémia.

NOTAS

1 PETROVÁ, Sylvia; OLIVIÉ, Jean Luc; Verres de Boheme.1400–1989. Chefs d’Oeuvre des Musées de Tchecoslovaquie,
Musée des Arts Décoratifs, Flammarion, Paris, 1989, pp.10, 11.
2 CUSTÓDIO, Jorge; A Real Fábrica de Vidros de Coina (1719–1747) e o Vidro em Portugal nos Séculos XVII e
XVIII, Instituto Português do Património Arquitectónico, Lisboa, Janeiro de 2002, p.31.
3 LIEFKES, Reino; Glass, V&A Publications, London, 1997. Pp.68, 69.
4 Idem, p70.
5 Ter-se-á feito passar por surdo-mudo para descobrir naquela manufatura o segredo das formulas de algumas
cores.
6 PETROVÁ, Sylvia; OLIVIÉ, Jean Luc; Verres de Boheme.1400–1989. Chefs d’Oeuvre des Musées de Tchecoslovaquie,
Musée des Arts Décoratifs, Flammarion, Paris, 1989, pp.69.
7 Idem, pp 53 e 54.
8 Idem , p.74.
9 CAPPA, Giuseppe; Le Génie Verrier de l’Europe. Témoignages de l’Historicisme à la Modernité (1840–1998) , Pierre
Mardaga éditeur, Hayen, Belgique, 1998, p.32.
10 Nomeadamente ao Sr. Peter Rath, também membro fundador da Light & Glass. European Society for Light and
Glass, de que o PNA é membro, e que tem prestado colaboração com a instituição.
11 CAPPA, Giuseppe; Le Génie Verrier de l’Europe. Témoignages de l’Historicisme à la Modernité (1840–1998) , Pierre
Mardaga éditeur, Hayen, Belgique, 1998, p.3110

130
COLEÇÕES REAIS E COLEÇÕES OFICIAIS

12 Denominados serviços para o quarto, são geralmente compostos de: Garrafa, garrafinha, açucareiro, copo e tabu-
leiro. Serviam infusão de flor de laranjeira, bebida que permitia um sono reparador
13 VONDRUSKA,Vladimir, LANGHAMMER, Antonin, Cristal da Boémia, Tradição e Actualidade, Crystalex Novy
Bor, Ediclube, Alfragide, 1997, pp.82, 83.
14 Arquivo do Palácio Nacional da Ajuda (A.P.N.A.) Direcção Geral da Fazenda Pública, Arrolamento do Palácio
Nacional da Ajuda, vol. 9, 1912
15 Idem.
16 MERGL, Jan; PÁNKOVÁ, Lenka-Moser: Joya del Cristal de Bohemia. Catálogo de Exposición. Madrid: Emersa,
2000, p.26.
17 Ficha de inventário anterior refere a existência de etiqueta da fábrica Moser (Boémia), que já não existe.
18 Arquivo do Palácio Nacional da Ajuda (A.P.N.A.), 5-II-5 (164), Relação dos Serviços de Vidro; 1907; folha
72: “Serviços diftes. para chá e café – nº24/ (...)/ 12 chávenas 3 de cada côr para chá/ 12 pires das ditas, idem”.
Observação a lápis: “viagem 1901/ Glasfabrik Meierhöfen Karlsbad”.
Arquivo do Palácio Nacional da Ajuda (A.P.N.A.) 4.2.2. (1927), “Relações diversas de encomendas feitas em
Karlsbad em 1901 – loiças, vidros, carteiras, etc.”
19 Arquivo do Palácio Nacional da Ajuda (A.P.N.A.), II-1(b), Inventário pratas, louças, etc., fl. 112.
20 Arquivo do Palácio Nacional da Ajuda (A.P.N.A.), Direcção Geral da Fazenda Pública, Arrolamento do Palácio
Nacional da Ajuda, vol. 5, 1911,fl.1431.
21 Arquivo do Palácio Nacional da Ajuda (A.P.N.A.), Direcção Geral da Fazenda Pública, Arrolamento do Palácio
Nacional da Ajuda, vol. 4, 1911,fl. 1405.
22 A lista está descrita na fatura, onde constam, entre oupeças soltas, conjuntos ainda no acervo do PNA: Arquivo
Nacional da Torre do Tombo (A.N.T.T.),C.R, Cx.7004, factura da casa Lobmeyr , Viena, de 3 de Maio de 1889
23 Arquivo Nacional da Torre do Tombo (A.N.T.T.),C.R, Cx.7329, factura da casa Lobmeyr , Viena, de 25 de
Outubro de 1888.
24 Sobre o “serviço à russa” veja-se BURNAY, Maria João B.M.,Os melhores vidros para as grandes ocasiões. Serviços
da rainha D. Maria Pia. “A Royal Lunch. A Visita da Rainha Alexandra do Reino Unido.24 de Março de 1905.”,
Coleções em foco. Palácios Nacionais de Sintra, Queluz, Pena. Nº2, 2019. Pp.250 e 251.
25 “306 gravures: Chiffres ML, Couronne Royale”.
26 A fatura de 3 de Maio de 1888 é acompanhada de uma carta a informar que foram expedidas as 13 caixas com
os diversos cristais adquiridos pela rainha por ocasião da sua visita a Viena. O atraso no envio da encomenda é
justificado pela demora da casa Lobmeyr em receber o desenho das armas reais a gravar nas peças.
27 Arquivo do Palácio Nacional da Ajuda (A.P.N.A.) 5-II-1(b), Inventário pratas, louças, etc., folha 113: “Serviços de
vidros da fábrica de Glasfabrik Meierhöfen Karlsbad pertencente a S. M. a Rainha D. Maria Pia – Armário nº19/
Viagem de 1901(...)”.Registo “em arrecadação” datado de 2 de Março de 1902.
28 Arquivo do Palácio Nacional da Ajuda (A.P.N.A.). Direção Geral da Fazenda Pública, Arrolamento do Palácio
Nacional da Ajuda, vol. 5, 1911, fls. 1427e 1428.
29 Arquivo do Palácio Nacional da Ajuda (A.P.N.A.) Direcção Geral da Fazenda Pública, Arrolamento do Palácio
Nacional da Ajuda, vol. 5, 1911, fl.. 1432.
30 Arquivo do Palácio Nacional da Ajuda (A.P.N.A.), “Relação de vidros”, s.d. 10.2.2., conjunto nº2.
31 Arquivo do Palácio Nacional da Ajuda (A.P.N.A.) Direcção Geral da Fazenda Pública, Arrolamento do Palácio
Nacional da Ajuda, vol. 8, 1912, fl. 2535.
32 Arquivo do Palácio Nacional da Ajuda (A.P.N.A.), Direcção Geral da Fazenda Pública, Arrolamento do Palácio
Nacional da Ajuda, vol. 5, 1911, fls. 1429 e 1430.
33 Arquivo do Palácio Nacional da Ajuda (A.P.N.A.). 5-II-1(b), Inventário pratas, louças, etc., fl. 112.
34 Arquivo do Palácio Nacional da Ajuda (A.P.N.A.)5-II-5 (164), Relação dos Serviços de Vidro, 1907, fl. 69.

131
A MAGIA DO ABANICO: UM OLHAR
SOBRE A COLEÇÃO DE LEQUES
D. MARIA PIA PRESENTE NO PALÁCIO
NACIONAL DA AJUDA, ATRAVÉS DA
ANÁLISE E ORIGENS DO OBJETO

LAURA CARVALHO TORRES


Mestranda em História da Arte e Património, Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa,
Lisboa, Portugal
laura-maria@campus.ul.pt

Resumo Palavras-chave
Este texto pretende, não só, olhar para os Leques; Maria Pia; Saboia; Palácio Nacional da
leques, enquanto objetos, mas, analisar a sua Ajuda; Orientalismo.
história e vivência dentro de uma coleção muito
específica; compreender a origem dos mesmos
na Europa – usando este chavo como introdução
à temática –, qual a simbologia associada aos
objetos, e, subsequentemente, o estatuto que
estes auferem, tendo que, automaticamente,
perspetivar as suas origens nipónicas. Enquanto
figura influenciadora que era, Maria Pia tornou
estes objetos, tão utilitários, como belos, numa
verdadeira imagem de marca, fazendo com que
damas por todo o reino adotassem o uso do
“abanico”.

133
COLEÇÕES DE ARTE EM PORTUGAL E BRASIL NOS SÉCULOS XIX E XX

ABANO LÉQUIO: ORIGENS,


SIMBOLOGIA E LINGUAGEM

A palavra portuguesa leque surge de uma expressão abreviada, aba-


no léquio, referente às ilhas Léquias, situadas a sul do Japão1. De um
ponto de vista simbólico, os leques representam o elemento Ar, e deter-
minados autores2 defendem o seu aparecimento por volta dos séculos
VI e VIII, no Japão, com a utilização e formato que hoje lhe reconhece-
mos. Todavia, outros3, datam o surgimento no período pré-clássico. As
civilizações egípcia, persa, indiana, chinesa e greco-romana utilizavam
o leque, não como o conhecemos, mas sim no formato de ventarolas,
introduzidas na Europa, no período das cruzadas4. Só no século XVI,
os portugueses trouxeram os primeiros exemplares de leques para a
Europa5, vindos das suas colónias a oriente, tornando o seu uso uma
moda indispensável, originando um enorme fluxo de produção asiática
de leques de exportação para a Europa.
O seu fabrico tem como base diferentes materiais e técnicas de pro-
dução, como por exemplo, o marfim, a seda, a madrepérola, tartaruga,
madeiras perfumadas, plumas e tecidos vários. A iconografia presente
nos leques é personalizada e diferenciada, com motivos históricos, pai-
sagísticos, animais, ou mesmo relacionados com o encomendante.
A sua armação é composta por duas partes: varetas mestras e a prin-
cipal, sendo que as primeiras, são, por norma, mais ornamentadas, e
normalmente continham as iniciais do proprietário. A folha de leque,
tal como supracitado, podia ser decorada de diferentes formas, e ainda,
poderia ostentar bordados a fio de ouro e prata. Estes objetos magníficos
podem linguajar sem palavras, uma técnica infalível, adotada pelas da-
mas da corte. A linguagem secreta é-nos descodificada pela Duvelleroy,
famosa fabricante de leques, parisiense, originária do século XIX6.
«Whilst it seems reasonable that a Victorian lady could have used
her fan not only as an accessory, but also as a tool to attract additio-
nal attention through affectionate gestures, it is perhaps doubtful that
her male counterpart could have mastered this secret language, said
to have consisted of about two dozen different moves or gestures.7».

134
COLEÇÕES REAIS E COLEÇÕES OFICIAIS

Rapidamente, a partir de meados do século XVIII, França tornou-


-se o principal fabricante de leques e adereços de luxo. No entanto, a
Revolução Francesa criou um ponto de desgaste na produção, dando
espaço às importações inglesas de leques orientais. O século XIX, re-
tomou esta produção, principalmente com a presença de Napoleão
Bonaparte, a partir da qual o consumo de bens de luxo retoma o seu
fluxo, e o neoclassicismo ganhava terreno, tal como os modelos napo-
leónicos. Os leques, acompanham estas evoluções, e com a vigência da
Casa de Bourbon, há um aumento exponencial do tamanho do leque,
que continua a aumentar durante o reinado de Luís Filipe I.
No Brasil, a difusão dos leques é feita aquando da chegada da Família
Real Portuguesa, e D. João VI, introduziu, ainda, a tradição dos leques
comemorativos, personalizados para e a propósito de determinada data.
Estes podiam ser leques de luto, compostos por materiais tais como pe-
nas de avestruz, renda e seda pretas, e adornos no mesmo tom. Mas,
encontramos também leques de casamento, cujos tons eram brancos ou
beges, ornados com pedras e pérolas, e bordados a fios de ouro e prata.
Pouco se sabe sobre a manufatura de leques em Portugal, que, es-
sencialmente, foram sendo importados da China, ou então realizando
um projeto autoral português, mas com fabrico nas casas francesas, por
exemplo.

O leque articulado: a sua precedência e introdução


na Europa – uma visão transcontemporânea
O leque articulado (Ogi), em contraste com o formato fixo (Uchiwa),
é, por norma, associado à origem japonesa, c. 670 a.C., feito em tiras
de madeira, ou bambu, seguras por um prego, formato perfeitamente
reconhecível nos dias de hoje8. Originalmente, estes objetos eram usa-
dos pela aristocracia e classes Samurais, e, progressivamente, foram-se
tornando objetos de escrita, comunicação, símbolos de estatuto social,
e belíssimos exemplares de artes decorativas. O Japão, rapidamente se
tornou famoso pela qualidade dos seus leques, os quais acabaram por
ser exportados para a China no século XV. No entanto, estes já lá haviam

135
COLEÇÕES DE ARTE EM PORTUGAL E BRASIL NOS SÉCULOS XIX E XX

sido introduzidos, no século X, através do leque de folha desdobrável,


que só se tornou corrente durante a dinastia Ming (1368–1644).
Na Europa, os primeiros mestres lequeiros surgem em França, onde,
até meados do século XVII, o ofício de mestre lequeiro estava limitado
à composição e pintura de folhas de leques9. Em Inglaterra, pelo con-
trário, a produção não foi tão profícua, tendo em conta a quantidade
e qualidade dos leques que lhes chegavam, vindos de Chusan, Amoy e
Cantão. O leque de exportação Chinês, formatou-se e alterou-se segun-
do as exigências dos seus encomendantes, mantendo-se fiel à sua tradi-
ção de produção, apesar de haver alguma abertura a fusões: armações
chinesas com folhas europeias.
No caso português, a prematura relação e entrada dos leques em
mercado, nomeadamente vindos de Macau, fez com que as encomen-
das fossem personalizadas – tal como um sem número de outros objetos
artísticos. A datação dos primeiros leques chineses europeizados não é
linear, apesar de a «falsa oficialização» mediar 1680 em diante. Maria
Pedroso, discute esta questão apontando a relação desta data com as
importações dos mercadores ingleses da «East India Company»10.
No século XVIII, os leques tornavam-se cada vez mais populares e
in style. Em 1711, Joseph Addison redigiu um artigo algo satírico «The
Spectator»11, onde tentava instruir as damas a usar os leques de forma
correta, para que pudessem usá-los como autênticas armas: «with many
voluntary falling asunder in the fan itself, that are seldom learned un-
der a month’s practice. This part of the exercise pleases the spectators
more than any other (…) When the fans are thus discharged, the word
of command in course is to ground their fans (…) gracefully when she
throws it aside.12». John Winstanley, e a propósito da linguagem codi-
ficada por detrás dos leques, havia dito, em 1742: «In Love’s soft Reign,
the Sceptre is the Fan, Woman is the Sovereign, and the Subject Man,
Her frowns and smiles its different motions show, His hopes and fears
from its impressions flow.13»
Mas, este acessório, de que tanta simbologia aufere, tem sido, de uma
forma bastante estável e coerente, popular, onde pode ser traçada uma
leitura mais contemporânea, que estilisticamente, se tem vindo a usar

136
COLEÇÕES REAIS E COLEÇÕES OFICIAIS

com alguma frequência. Desde os grandes designers às Drag Queens,


a presença de um leque é também uma atitude, o assumir de uma per-
sonalidade e de um estilo vincados, e não deixou de ser veículo de co-
municação entre pares, onde a verbalização é deixada ao entendimen-
to de um flash do abanico. D. Maria Pia, rainha de gostos modernos
e arrojados, que revolucionou a corte e lhe trouxe uma lufada de arte,
moda e cultura, compreendeu, rapidamente, que a representação verbal,
poderia ser transposta num leque, que, ao abrir, contava uma história.
Assim, é claro que ao olhar para os exemplares a si atribuídos – detenção
e autoria – houve uma vontade expressa e deliberada em comunicar com
e através do abanico.

OS LEQUES D. MARIA PIA PRESENTES NO PNA:


UMA LEITURA DE 5 EXEMPLARES E UM FOLHA DE
LEQUE. UM GOSTO, UMA MODA OU PERSONALIDADE?

Maria Pia de Saboia, (n. 16 de Outubro de 1847, Turim), foi Rainha


Consorte de Portugal (r. 1862–1889), e ficou celebremente recordada
pela sua faceta filantrópica e caridosa. Trazia consigo, os hábitos luxuo-
sos da corte de Turim, e uma sofisticação bem apurada. Organizou vá-
rias festas, e encheu o Palácio Nacional da Ajuda de luxo, relembrando
o marcante Baile de Máscaras de 1865. Artista, colecionadora e influen-
ciadora: três palavras que caracterizam D. Maria Pia, princesa italiana
e rainha de Portugal. Esta fusão, traduziu-se na adaptação do Palácio a
um novo estilo, à criação de salas, espaços, e de uma coleção de arte, in-
comparável. Fazer de um palácio a sua casa, no sentido mais acolhedor
do termo, ainda que fosse um espaço de receção e convívio foi um claro
desafio para uma jovem de 14 anos, recém casada.
Esta, já possuía uma gosto inconfundível, com um enorme requinte,
marcando a sociedade portuguesa de oitocentos, e o entendimento de
«residência régia». Várias alterações tomaram lugar no interior do edifí-
cio: salas renovadas e redimensionadas, casas de banho com banheira, e
espaços como as Salas de Música, do Retrato ou a Capela privada, onde

137
COLEÇÕES DE ARTE EM PORTUGAL E BRASIL NOS SÉCULOS XIX E XX

encontramos a única obra de El Greco, em Portugal. As peças de de-


coração são igualmente marcantes, com excelente mobiliário, escultura
e tapeçaria, sendo, indiscutivelmente, das melhores coleções decorati-
vas no país. Maria Pia ganha o estatuto de colecionadora, e influencia
outros a decorar os seus espaços, nunca de uma forma tão grandiosa
nem particular. A rainha via o palácio como um espaço desdobrável
em vários espaços, e modos de estar: desde a sua casa, ao local de festas,
jantares, convívios… Apesar dos últimos 15 anos da sua vida terem sido,
do ponto de vista financeiro, absolutamente trágicos, e de muito do seu
património ter sido vendido, para fazer dinheiro nos primeiros anos
da república, estamos perante uma maravilhosa coleção de leques, dos
quais decidi analisar cinco e uma folha de leque, pelas suas caracterís-
ticas mais originais, logo representativas de cada grupo de leques: casa-
mento, produção chinesa, infância, luto e pintura da autoria da rainha.
Projeto de Rafael Bordalo Pinheiro, e execução parisiense, a Fig. 1 é
um exemplar de um leque comemorativo, a propósito do matrimónio
de D. Carlos e da princesa D. Amélia. Encontramos as armas de Portugal
e Orleães, com o dragão de Bragança a encimar. Uma das guardas de-
tém o monograma de Maria Pia ‘M P’ em prata cravejada a diamantes.
Curiosamente, a 29 de Maio de 1998, o «Diário de Notícias» noticia a
chegada de 12 mil leques em seda e papel, a Portugal14. Uma vez que
detém o seu monograma, é extremamente provável ter sido produzido
para D. Maria Pia, diretamente.
A Fig. 2 é um belíssimo exemplar de produção chinesa para expor-
tação, com armação em marfim, foi encontrado no quarto de dormir
da rainha em 1911. As cores e a estrutura transparecem o tão apreciado
orientalismo, e o exotismo bem vincado através das caras e das figuras
chinesas presentes na iconografia.
Esta tipologia de leques era apreciadíssima, também como forma de
exacerbar o poder económico do detentor, visto que se trata de varetas
em marfim, e não em bambu ou madeira, como era comum. Casos mais
excecionais poderiam ter a presença de tartaruga.
Uma iconografia representativa das duas crianças do Palácio da
Ajuda, que cresceram, brincaram, e fazem-se representar na caçada ao

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COLEÇÕES REAIS E COLEÇÕES OFICIAIS

Fig. 1 – Leque, nº de inventário 42436, PNA, Rafael Bordalo Pinheiro, executado em Paris.
Seda, tartaruga, prata, diamantes. Litografia sobre cetim de seda, alt. 26,8 cm x lg. 50 cm.

Fig. 2 – Leque, nº de inventário 52087, PNA, fabricado em Macau para exportação, c.


séculos XVIII e XIX. Papel, marfim e seda. Pintura sobre papel, alt. 32 cm x lg. 57cm.

Fig. 3 – Leque, nº de inventário 54551, PNA, Artur Mélida, executado em Madrid. Seda preta,
madeira, madrepérola, ouro e metal dourado. Pintura sobre seda, alt. 31 cm x lg. 55 cm.

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COLEÇÕES DE ARTE EM PORTUGAL E BRASIL NOS SÉCULOS XIX E XX

javali, que apesar da sua tenra idade, já estão a ser elevados à nobreza
que lhe és devida. É algo bucólico, a representação na Fig. 3, encon-
trando-se vestidos com trajes históricos fantasiados, erguendo armas de
guerra. São visíveis as armas de seus pais: Portugal e Saboia.
D. Maria Pia e D. Luís I contraem matrimónio em 1862, e nesse mes-
mo ano, inicia-se a produção do leque presente na Fig. 4. Nele, pode-
mos encontrar as armas de Maria Pia, de Portugal e de Saboia, a divisa
da Casa de Bragança – com o dragão – e a seguinte frase: «Depois de vós
nós». A face oposta representa duas figuras femininas, com as rédeas do
amor, cupidos e pombas.
Também encontrado no quarto de dormir da rainha, em 1911, este
é um leque de luto. D. Luís falece precocemente, em 1889, com apenas
50 anos. São produzidos vários leques de luto para Maria Pia, sendo que
gostaria de destacar a Fig. 5, pela simplicidade e despojamento do leque,
e da beleza dos bordados.
A mestria de Maria Pia estendesse à pintura, como é exemplo a folha
de leque a si atribuída na Fig. 6. Mãe, esposa, colecionadora, artista, in-
fluenciadora, estes 6 exemplares da sua coleção de leques são descritivos
da sua personalidade vincada, gosto e bondade. Citando José Alberto
Ribeiro «D. Maria Pia, gastava tanto quando doava»15. Cada exemplar
representa-a enquanto mulher, o seu bom gosto, e a visão de um palácio
num lar de família. Os leques têm a sua linguagem própria, escondida
e codificada. E falam por si. E falam por Maria Pia, em todos os seus
«eu», e por todas as décadas que dedicou à construção de uma das mais
maravilhosas coleções, eclética, mas marcada pela sua personalidade, o
Palácio da Ajuda é a materialização da pessoa de D. Maria Pia. O leque
é dos objetos mais transversais de sempre e tem uma capacidade incrí-
vel de comunicar com, para e pelo seu detentor. Cada um, conta uma
história, seja pelas suas origens, propósitos de produção ou decoração e
iconografia. Uma pequena migalha do oriente que agora também é tão
nossa, e que continua a mexer o mercado de arte.

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COLEÇÕES REAIS E COLEÇÕES OFICIAIS

Fig. 4 – Leque, nº de inventário 56569, PNA, Duvelleroy e Chennevière, executado em Paris,


1862–1910. Papel tartaruga loira, aguarela sob papel, comp. 34,5 cm x lg. 63,5 cm.

Fig. 5 – Leque, nº de inventário 53718, PNA, finais do século


XIX. Seda, algodão, madeira e metal. lg. 24 cm.

Fig. 6 – Folha de leque, nº de inventário 55236, PNA, século XIX.


Pigmentos para aguarela, velino e cartão. alt. 43 x lg. 70 cm.

141
COLEÇÕES DE ARTE EM PORTUGAL E BRASIL NOS SÉCULOS XIX E XX

BIBLIOGRAFIA
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MELO, Maria Assunção, “Abanico Léquio”. Refresco, Acessório, Linguagem e Arma, Núcleo de História
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https://www.sothebys.com/en/articles/the-secret-language-of-fans. Visitado a 5 de Março de 2020.

NOTAS
1 Cf. MELO, Maria Assunção, “Abanico Léquio”. Refresco, Acessório, Linguagem e Arma, Núcleo de História Militar
Manuel Coelho Baptista de Lima, 19 de Julho, 2017.
2 Cf. HART, Avril, TAYLOR, Emma, Fans, V&A Publications, Londres, 1998. Cf. LIPINSKI, Edward R., The New
York Times home repair almanac: a season-by-season guide for maintaining your home, Lebhar-Friedman Books,
Nova Iorque, 1999.
3 Cf. DREYFUS, Jenny, Artes Menores, Editora Anhambi, São Paulo, 1959.
4 Cf. MELO, Maria Assunção, op. cit., p. 2.
5 Cf. PEDROSO, Maria Luísa Infante, Portugal, Braganças e Leques, Parte I, s/d. Vide: https://www.academia.
edu/37369128/PORTUGAL_BRAGANÇAS_E_LEQUES.
6 STARP, Alexandra, «The Secret Language of Fans» in Objects of Vertu, Sotheby’s, 24 de Abril de 2018. Vide https://
www.sothebys.com/en/articles/the-secret-language-of-fans.
7 Idem.
8 Estudo realizado pela SOAS (School of Oriental and African Studies), a propósito das coleções na Galeria Brunei.
Vide ainda, o texto sintetizado do estudo em: https://www.soas.ac.uk/gallery/traditionsrevised/origin-of-the-
-folding-fan.html.
9 Cf. PEDROSO, Maria Luísa Infante, op. cit., p. 3.
10 Cf. PEDROSO, Maria Luísa Infante, Portugal, Braganças e Leques, Parte II, s/d. Vide: https://www.academia.
edu/38938919/PORTUGAL_BRAGANÇAS_E_LEQUES_PARTE_II.
11 Cf. ADDISON, Joseph, The Spectator, Wentworth Press, 28 de Agosto de 2016, vol. VII.
12 Idem
13 Cf. WINSTANLEY, John, Poems Written Occasionally, Kisseinger Publishing CO, 2008.
14 Cf. PINTO, Paulo Miguel Campos, O leque de folha dobrada do século XVI ao século XX. Leques Comemorativos
portugueses, Universidade Lusíada, Lisboa, 2002, vol. I.
15 José Alberto Ribeiro in «Visita Guida», RTP, 2014.

142
DO PALÁCIO FOZ PARA OS
PAÇOS REAIS, AS AQUISIÇÕES
DA FAMÍLIA REAL PORTUGUESA
NO LEILÃO DE 1901

ANTÓNIO COTA FEVEREIRO


Arquiteto, ARTIS – Instituto de História da Arte, Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa,
Lisboa, Portugal
antoniofranciscocotafevereiro@gmail.com

Resumo Palavras-chave
No ano de 1889 o conde da Foz, com o objectivo Renascimento; Mosteiro dos Jerónimos;
de albergar a sua coleção de arte, ordenou uma Porcelana Chinesa; França; Lisboa.
campanha de obras no Palácio Castelo Melhor,
conferindo assim um ambiente cosmopolita
e culto. No ano de 1901 leiloou o seu recheio
e determinados lotes foram adquiridos pela
Família Real Portuguesa. Esta consecução reflete
o gosto vigente e também o valor intrínseco de
alguns objetos. Com o propósito de traçar o seu
atual paradeiro apoiamo-nos em documentação
coeva e em reflexões sobre este património.

143
COLEÇÕES DE ARTE EM PORTUGAL E BRASIL NOS SÉCULOS XIX E XX

INTRODUÇÃO

No ano de 1889 Tristão Guedes Correia de Queirós, 2º conde da Foz


(1849–1917), adquiriu o Palácio Castelo Melhor. Deliberadamente o
mandou remodelar para albergar a sua coleção de arte e integrou-a no
quotidiano doméstico. Seguindo a mesma façon de vivre que os gran-
des colecionadores europeus. No ano de 1901 leiloou o seu recheio e a
Família Real Portuguesa adquiriu certos lotes, os quais importam aqui
dar a conhecer e refletir sobre o seu valor. No mesmo ano o rei D. Carlos
I (1863–1908) elevou-o a marquês da Foz, tendo ficado assim conheci-
do na historiografia e o palácio que habitou em Lisboa pelo seu título1.
No presente texto usou-se a sigla PNA referente às peças que fazem
parte do acervo do Palácio Nacional da Ajuda.

AS COLEÇÕES DE ARTE NO FINAL DO SÉCULO XIX

O ato de constituir uma determinada coleção despoletou a criação de


determinados espaços para a expor ou integrada numa pré-existência.
Reunindo as condições necessárias para a sua preservação e providen-
ciando o seu usufruto através de mobiliário adequado. Este evoluiu para
armários envidraçados e outros suportes para colocar convenientemen-
te as peças de arte num determinado programa decorativo.
Na primeira metade do século XIX as peças de arte passaram a estar
cada vez mais integradas no interior doméstico. Contudo, tal tendência
coincidiu com o desenvolvimento de plantas com espaços de acordo
com uma função e de dimensão razoável visando o conforto, comple-
mentando-os com outros e com as áreas de serviço2. Por conseguinte,
aprimorou-se o mobiliário de assento, como sofás, cadeiras com braços
e fauteuils estofados. Para o complementar foram usadas mesas, propor-
cionando o máximo conforto possível e a sociabilidade. Um interior que
sintetiza esta tendência é um Salon num edifício na Rue Pakrovka n.º
180 em Moscovo. Foi pintado em aguarela pelo pintor russo Dominique
Hagen, em 1851, e podemos observar o mobiliário de assento, as mesas,

144
COLEÇÕES REAIS E COLEÇÕES OFICIAIS

Fig. 1 – Uma das salas no apartamento do Conde Lanckoroński em Viena, 1869,


Rudolf von Alt (1812–1905); grafite e aguarela em papel; 26.5 x 39.1 cm; Cooper
Hewitt Smithsonian Design Museum, Thaw Collection; 18708235, Nova Iorque.

as secretárias, os armários envidraçados e os tocheiros com velas e can-


deeiros de fabrico moderno ao gosto rocaille. Conjuntamente com qua-
dros, uma estátua e um busto3. Este ambiente mundano, requintado e
luxuoso, alia a arte ao quotidiano doméstico. Afirmando assim o poder
financeiro e o gosto do seu proprietário. A família polaca dos condes
de Lanckoroński também seguiram o mesmo exemplo, como numa das
salas do seu apartamento de Viena no n.º 8 da Riemergasse, como po-
demos observar numa aguarela (Fig. 1). Do teto pende um lustre com
queimadores quinquet, inventados em 1784. O mobiliário é composto
por estantes com livros, por um armário, por credências com esculturas,
por mesas e por de assento moderno forrado com um tecido estampado,
dito perse, criado por volta de 1859 pela francesa Schwartz & Huguenin4.
Este interior não descura o conforto e está o mais atualizado possível
com as últimas novidades, como o tecido de fabrico industrial e recente.
Nas paredes estão telas a óleo de paisagens e de retratos. Efetivamente,

145
COLEÇÕES DE ARTE EM PORTUGAL E BRASIL NOS SÉCULOS XIX E XX

a família Lanckoroński reuniu uma das mais importantes coleções de


arte europeia5.
O mesmo intuito de acondicionar uma coleção e habitação levou
à construção de edifícios para esse fim, sobretudo os inspirados nos
châteaux renascentistas franceses. De facto, a aristocracia e a alta bur-
guesia europeia coevas encontraram no arquiteto francês Hippolyte
Destailleur (1822–1893) o criador ideal. Neste gosto projetou entre 1872
a 1875 o Palais Pleß em Berlim, na Wilhelmplatz, para Hans Heinrich XI
von Hochberg, príncipe de Pleß (1833–1907)6. A famosa família judia
de banqueiros Rothschild (de origem alemã) não ficou indiferente e o
banqueiro Albert von Rothschild (1844–1911), do ramo austríaco, enco-
mendou ao arquiteto o projeto para a sua residência em Viena. O Palais
Albert Rothschild foi erigido entre 1876 a 1884 no n.º 26 Heugassem7.
A escadaria principal foi inspirada na célebre Escalier des Ambassadeurs
do Château de Versailles ao tempo do rei Louis XIV de França (1638–
1715), também conhecido pelo Rei-Sol, e igualmente reinterpretada,
entre 1878 a 1886, para o rei Ludwig II da Baviera (1845–1886) no seu
Schloss Herrenchiemsee. Indubitavelmente, constata-se uma forte ape-
tência pela cultura francesa, sobretudo a dos séculos passados, como
fonte iconográfica de prestígio. Além, de ser considerada sinónimo de
requinte, de sofisticação e de bon goût pela então sociedade dita civili-
zada. Esta propensão viria a ter o seu expoente máximo no banqueiro e
colecionador Ferdinand von Rothschild (1839–1898), irmão do anterior.
Também recorreu ao arquiteto Destailleur para lhe projetar uma coun-
try house neorrenascentista e inspirada no Château de Chambord em
Loir-et-Cher. O edifício foi construído de 1874 a 1889 e ficou conhecido
como Waddesdon Manor na aldeia homónima em Inglaterra. No seu
interior mandou adaptar boiseries setecentistas francesas, onde dispôs a
sua coleção de mobiliário, de tapeçaria e de porcelana de Sèvres (funda-
da em 1740), entre outras peças francesas, para recriar ambientes desse
período histórico que tanto o fascinava. Não descurando o conforto e a
forma de habitar coeva que se reflete na disposição em planta. A partir
de 1890 encetou o colecionismo de peças renascentistas e dispô-las em
vitrines desenhadas para esse fim, colocadas na sua Smoking Room (Sala

146
COLEÇÕES REAIS E COLEÇÕES OFICIAIS

de Fumo) e projetada no mesmo gosto. Sendo esta coleção uma das mais
importantes no seu género a nível mundial8. Magistralmente neste edifí-
cio conjugou-se um ambiente familiar rodeado pelas peças de arte, mas
harmoniosamente dispostas para serem devidamente usufruídas.
São todas estas tendências que foram seguidas pelo marquês da Foz
ao remodelar o Palácio Castelo Melhor em Lisboa. No presente texto
focaremos as relações espaciais e a forma como foram colocadas as cole-
ções no seu interior, entre outras particularidades ainda não abordadas.
Os intervenientes na obra e reflexões sobre as artes decorativas interio-
res já foram anteriormente alvo de estudo9.

O PALÁCIO FOZ ENTRE 1889 E 1891

A eliminação do Passeio Público e dos seus gradeamentos, a partir


de 1886, originou a Praça dos Restauradores. Esta intervenção urbanís-
tica permitiu que o Palácio Castelo Melhor, construído no lado poen-
te, ficasse com mais visibilidade. Efetivamente devido à sua dimensão
e escala na nova praça, passou a ter um lugar de destaque na cidade
de Lisboa. O palácio encontrava-se inacabado e o marquês da Foz po-
derá ter compreendido o seu enorme potencial. Alugou-o e passado
pouco tempo adquiriu-o a D. Helena Maria de Vasconcelos e Sousa,
6ª marquesa de Castelo Melhor (1836–1900). Contratou o arquiteto
José António Gaspar (1842–1909) e mandou empreender uma série
de obras10. A fachada principal de desenho neoclássico foi aproveitada,
abriram-se óculos nos vãos do andar nobre e terminou-se o frontão em
falta no pavilhão sul. A cobertura foi totalmente renovada (Fig. 2) e tem
semelhanças com a do Palais Pleß e do Palais Albert Rothschild, nomea-
damente os planos inclinados, o desenho dos vãos, das águas furtadas e
dos ornatos em metal.
O interior foi profundamente alterado e, muito provavelmente, deve-
rão ter sido mantidas parte das paredes-mestras. Esta condicionante de-
liberou a disposição em planta de determinados espaços de acordo com a
sociabilidade e a estratificação social coeva. Igualmente implementando

147
COLEÇÕES DE ARTE EM PORTUGAL E BRASIL NOS SÉCULOS XIX E XX

Fig. 2 – Vista exterior do Palacio, 1891, M. Caetano de Portugal (atribuído); prova


fotográfica em papel direto de colódio mate; 18 x 24 cm; Fundação Calouste Gulbenkian,
Biblioteca de Arte CFT172.004, Lisboa.

Fig. 3 – Galeria da Escada Principal, Epocha Luiz XIV, 1891, M. Caetano de Portugal
(atribuído); prova fotográfica em papel direto de colódio mate; 18 x 24 cm; Fundação
Calouste Gulbenkian, Biblioteca de Arte CFT172.008, Lisboa.

148
COLEÇÕES REAIS E COLEÇÕES OFICIAIS

a divisão gradual entre o público e o privado. Este complexo jogo espa-


cial tinha início no Vestibulo, decorado à Epocha Luiz XIII, e comunica-
va, através de uma escada, com candelabro para gás, com a entrada da
Capela de Nossa Senhora da Pureza do Amor de Deus. O candelabro e
as guardas foram depois colocadas na Quinta da Torre de Santo António
das Gateiras em Torres Novas, propriedade do marquês. Tinha uma
sege setecentista, mesa e cadeiras de braços seiscentistas portuguesas
e quadros a óleo. Nas paredes foram colocados azulejos setecentistas e
conferindo assim, conjuntamente com o mobiliário referido, um carác-
ter português ao conjunto. Do Vestibulo passa-se para a Escada Principal
e que foi erigida virada para a fachada principal, como nos hôtel particu-
lier em Paris, à Epocha Luiz XIV. Este espaço funcional e emblemático,
conjuntamente com o anterior são «…instrumentos essenciais do apara-
to inerente a um determinado padrão de vivência»11. Culmina na Galeria
da Escada Principal e este é o ponto de onde se parte para as diferentes
zonas no interior da habitação. Era iluminado por oito braços com to-
chas para gás, iguais aos da La Galerie des Cerfs no Château de Chantilly,
nas quatro superfícies parietais ladeando as portas. Do teto pende uma
cópia, em escala superior, da lanterna do vestíbulo da capela do Château
de Versailles ao tempo do rei Louis XIV. Tinha três queimadores ditos
Quatre-Septembre12 para gás (Fig. 3). As guardas da escada e da galeria
foram realizadas pela parisiense F. Moreau.
Na Galeria a porta situada a norte comunicava para a Bibliotheca
decorada à Epocha da Renascença. A localização deste espaço parece
ter sido deliberada, visto comunicar para o corredor que conduzia aos
aposentos privados no sentido poente. Tornando-se um lugar de estar
e de trabalho para o marquês. Nele mandou aplicar o teto da Sala dos
Reis, demolida em 1878, do Mosteiro dos Jerónimos. Conjugou-as com
o fogão, os lambris, dois móveis e duas portas provenientes de uma casa
senhorial na Flandres francesa. Todas estas peças foram adaptadas pelo
famoso entalhador Leandro de Sousa Braga (1839–1897). Esta conjuga-
ção exímia foi conseguida devido à volumetria do espaço e à colocação
de uma porta falsa, com o fogão no eixo de simetria, na parede para a
Galeria. O fogão tinha azulejos ditos Bacalhoa do artista Rafael Bordalo

149
COLEÇÕES DE ARTE EM PORTUGAL E BRASIL NOS SÉCULOS XIX E XX

Pinheiro (1846–1905). O mobiliário era composto por uma mesa da pa-


risiense Péchard, cadeiras neorrenascentistas, cadeira senhorial neogó-
tica e fauteuils revestidos a couro. Do teto pendia um lustre quinhentista
para velas com a escultura de São Miguel. Nas paredes estavam quatro
placas em ferro forjado para velas. Na mesa estiveram dois modéra-
teurs13 da parisiense Gagneau em porcelana azul e montagens de bronze
dourado, que tinham estado no fogão Fourdinois do Hall. Nas paredes
foram penduradas telas a óleo de artistas afamados14 (Fig. 4).
Na Galeria há uma porta na parede poente que comunica para uma
antecâmara, que também faz a ligação para a Sala d’Espera. Da antecâ-
mara passa-se para uma varanda que era coberta e tinha alçado envi-
draçado. Onde estava mobiliário de assento a simular bambu e plantas
ornamentais em vasos. Desta passava-se para o Vestibulo dos quartos
da Snr.a Marquesa, que se desenvolviam na fachada sul com vista para
o jardim. A varanda referida comunica com uma galeria com bustos e
esta com outra varanda simétrica, que também era envidraçada. Estes
três espaços eram designados como Galeria Epocha Luiz XVI e eram o
eixo de ligação entre a Galeria da Escada Principal, dos aposentos priva-
dos, de uma antecâmara para a Sala de Visitas e para o Hall. Na segun-
da varanda estava a escadaria de serviço, tapada por um biombo, que
comunicava com a zona da cozinha nos pisos inferiores e com a copa
da Sala de Jantar. Foi também neste espaço que deliberadamente o mar-
quês colocou em vitrines parte da sua coleção de porcelana setecentista
europeia e chinesa. Permitindo serem vistas e apreciadas de passagem
pela família e pelos seus convidados. Como iluminação havia lanternas
e placas de parede, a simularem velas, para gás.
Voltando de novo à Galeria temos a porta para a Sala d’Espera e o
começo da enfilade na fachada principal. A Sala d’Espera, inspirada na
Epocha Luiz XIII, era onde se permanecia antes de se ser recebido ou
encaminhado, pelo mordomo, a um determinado espaço no interior da
habitação. Comportava mobiliário de assento, contadores do séc. XVI e
telas a óleo. Era alumiado por um lustre inspirado nos de latão holan-
deses e com velas falsas para gás. No seguimento da enfilade entra-se na
Sala de Baile realizada de acordo com a Epocha da Regencia de Luiz XV.

150
COLEÇÕES REAIS E COLEÇÕES OFICIAIS

Fig. 4 – Bibliotheca, Epocha da Renascença, 1891, M. Caetano de Portugal (atribuído);


prova fotográfica em papel direto de colódio mate; 18 x 24 cm; Fundação Calouste
Gulbenkian, Biblioteca de Arte CFT172.009, Lisboa.

151
COLEÇÕES DE ARTE EM PORTUGAL E BRASIL NOS SÉCULOS XIX E XX

Fig. 5 – Hall, 1891, M. Caetano de Portugal (atribuído); prova fotográfica em papel direto de
colódio mate; 18 x 24 cm; Fundação Calouste Gulbenkian, Biblioteca de Arte CFT172.017, Lisboa.

A disposição em planta corresponde ao centro do edifício e é o espaço


com maior expressão e sumptuosidade no seu interior. Devido à função
inerente e pela escolha da decoração, a qual se coaduna com um am-
biente festivo. Tinha mobiliário de assento composto por sofás e bancos
ao gosto Louis XV de fabrico moderno. Num registo oposto a este espa-
ço está a Sala de Visitas projetada na Epocha Luiz XVI. Efetivamente, o
desenho neoclássico impõe uma certa austeridade e sofisticação apro-
priada à função. Tinha mobiliário de assento da autoria do ébéniste
francês Jean Avisse (1723–1796), composto por dois sofás e seis fauteu-
ils. Conjuntamente com dois tocheiros em bronze setecentistas, uma có-
moda do ébéniste Alfred Emmanuel Louis Beurdeley (1847–1919), que
obteve para o seu autor a Légion d’Honneur na Exposição Universal
de 1889 em Paris, e mobiliário de assento de fabrico moderno15. Nas
paredes estavam telas a óleo setecentistas que assim contribuíam para
enfatizar a época histórica. Era iluminada por velas e por modérateurs.
Da Sala de Visitas passa-se para o Hall e esta designação é muito
curiosa por causa da função. Este era o espaço de convívio por excelência

152
COLEÇÕES REAIS E COLEÇÕES OFICIAIS

no interior e a designação remete-nos para o conceito de central living


hall. Este espaço nas habitações inglesas é tradicionalmente o centro do
lar e onde se convive. Tem em torno de si espaços com uma função
específica e a escadaria. O conceito esteve em voga no final do século
XIX e início do XX, tendo sido adotado por muitos projetistas euro-
peus16 e norte-americanos. O Hall do Palácio Foz está estrategicamente
colocado para dar acesso direto aos gabinetes na fachada sul, à Sala de
Jantar e à escadaria de serviço. O seu desenho arquitetónico remetia-
-nos para esses espaços centrais através de uma superfície envidraça-
da que recebia luz solar de uma claraboia de esteira. As cambotas e o
teto são decorados ao gosto Louis XIV. No eixo de simetria longitudinal
esteve o fogão neorrenascentista da autoria do ébéniste francês Henri-
Auguste Fourdinois (1830–1907)17. Teve em frente uma mesa Império,
que pertenceu à rainha D. Carlota Joaquina (1775–1830), com uma
poncheira em porcelana chinesa e ladeada por dois modérateurs Louis
XV prateados da Gagneau18. O restante mobiliário era composto por um
bilhar neorrenascentista, candeeiro para gás, cadeiras Louis XIV e XVI
e fauteuils, revestidos a couro em torno de mesas e do sofá, propiciando
o convívio. Todo este conjunto estava rodeado por esculturas e por qua-
dros a óleo. Tinha também uma vitrine onde o marquês dispôs parte da
sua coleção de porcelana europeia setecentista. Sendo este móvel o que
reunia as mesmas características expositivas dos congéneres que se en-
contravam nas instituições museológicas coevas. O Hall devido à deco-
ração e ao mobiliário era o mais eclético no interior do palácio (Fig. 5).
A enfilade termina no Gabinete à Epocha Luiz XV e tinha boiseries
setecentistas provenientes de um palácio parisiense. A autenticidade era
reforçada por um sofá e oito poltronas francesas dessa época, em madei-
ra de pereira, que vieram para Portugal e fizeram parte da sala do Paço
de Vilar de Perdizes19 (Fig. 6). Este gabinete comunica com o Gabinete
de trabalho Epocha Luiz XVI. A sobriedade e o desenho neoclassicista
coadunam-se com um ambiente mais masculino, expresso na secretária
de época, no mobiliário de assento e na mesa inspirados nesse período.
A função deste gabinete era de trabalho, mas também de reunião para
tratar de negócios ou de assuntos particulares após uma refeição. Deste

153
COLEÇÕES DE ARTE EM PORTUGAL E BRASIL NOS SÉCULOS XIX E XX

gabinete passa-se para a Sala de Jantar construída na fachada tardoz.


Tem também portas interiores para o Hall e para a copa, que comunica
diretamente para a escadaria de serviço. A decoração é Epocha Luiz XIV
onde tudo foi decorado, escolhido e disposto para tornar as refeições em
algo requintado. O fogão foi depois aplicado na quinta de Torres Novas.
Estes três espaços eram alumiados por velas e por modérateurs.
O Palácio Foz tornou-se efetivamente numa residência citadina onde
as coleções de arte foram estrategicamente colocadas para serem de-
vidamente apreciadas20. O que suscitou a admiração de muitas indivi-
dualidades, como a da rainha D. Amélia (1865–1951), casada com o rei
D. Carlos, que visitou o palácio antes do seu recheio ser leiloado21.

O LEILÃO DE 1901 E AS AQUISIÇÕES DA FAMÍLIA REAL

No ano de 1901 o marquês da Foz decidiu leiloar o recheio do seu


palácio22. Suscitando a oportunidade de outros colecionadores e o pú-
blico em geral de adquirir determinados lotes. A Família Real não ficou
indiferente e o rei D. Carlos veio a ter os lotes 133 a 135 e o 188 da Sala
C/Bibliotheca. Correspondem ao teto, aos móveis, aos lambris, ao fogão
e às quatro portas23. Todos foram aplicados nos aposentos do monarca,
exceto as duas portas de maior dimensão, no Paço das Necessidades. Esta
consecução é significativa porque entrou para a posse do rei de Portugal
o teto da Sala dos Reis do Mosteiro dos Jerónimos. A carga simbólica
deste edifício está eternamente associada aos Descobrimentos, cujos fei-
tos engrandeceram o país e alteraram o mundo. Foi uma oportunidade
única de adquirir este teto com as restantes peças. Tudo foi readaptado
ao novo espaço, mas perdeu-se a harmonia e o impacto visual que este
conjunto tinha no Palácio Foz. Curiosamente esta reaplicação coinci-
diu com uma remodelação levada a cabo pelo entalhador Frederico
Augusto Ribeiro (1853–?)24, por volta de 1902, e que foi o autor dos
lambris, das portas, do teto e das estantes do Gabinete de S. M. El-Rei
ao gosto da Renascença. Efetivamente esta época continuava em voga e
o rei D. Carlos conseguiu assim ter parte dos seus aposentos no mesmo

154
COLEÇÕES REAIS E COLEÇÕES OFICIAIS

Fig. 6 – Gabinete, Epocha Luiz XV, 1891, M. Caetano de Portugal


(atribuído); prova fotográfica em papel direto de colódio mate; 18 x 24 cm;
Fundação Calouste Gulbenkian, Biblioteca de Arte CFT172.018, Lisboa.

155
COLEÇÕES DE ARTE EM PORTUGAL E BRASIL NOS SÉCULOS XIX E XX

período histórico, onde mesclou peças autênticas com outras de fabrico


moderno.
O segundo membro da Família Real a se ter interessado pelo leilão
Foz foi a rainha D. Maria Pia (1847–1911), mãe de D. Carlos, e que con-
seguiu o lote 800 correspondente à lanterna da Escada Principal. Esta
peça de grande qualidade e encimada pela coroa real tem também uma
grande carga simbólica. Está relacionada com o rei Louis XIV, o Rei-Sol,
e antepassado da rainha. A lanterna com o tubo do gás permaneceu en-
caixotada na Arrecadação do tesouro do Paço da Ajuda e não veio a ser
aplicada25. No mesmo leilão a monarca arrematou o lote 576 do Sala J/
Gabinete e que corresponde ao sofá e às oito poltronas setecentistas. Esta
consecução veio a enriquecer o espólio de mobiliário do século XVIII
que a família real possuía. Não só, é um conjunto de grande qualidade,
como pertenceu a uma família ilustre portuguesa e a um dos paços mais
antigos de Portugal. Este mobiliário foi depois arrolado na Arrecadação
do tesouro (PNA, inv. 2734 a 2739)26. O último lote a ter sido licitado
foi o 229 na Sala E/Sala de Baile, correspondente a um serviço com cer-
cadura dourada e ramos soltos pintados a matiz compósito constituído
por 74 pratos rasos, 30 pratos de sopa, 18 travessas, 8 pratos para fruta,
2 saleiros e 4 molheiras. Conjuntamente foram licitadas duas terrinas
que fazem parte de um dos serviços e que podem ser os lotes 170 e 172,
sendo tudo do período Qianlong (1736–1795). Posteriormente numa
listagem manuscrita no Paço da Ajuda descriminaram 71 pratos rasos,
32 para sopa, 18 travessas, 9 pratos para fruta, 2 saleiros, 5 molheiras
e duas terrinas, estando algumas peças em mau estado. Actualmente é
composto por um serviço que compreende 30 pratos rasos (falta um), 6
pratos de sopa e 10 travessas (falta uma); um dito com 17 pratos rasos,
26 pratos de sopa, 15 travessas, 3 molheiras, 2 saleiros e 2 terrinas27; um
terceiro compreendido por 13 pratos rasos, o quarto por 1 molheira e
2 pratos redondos e por fim uma molheira desirmanada28. Este serviço
veio colmatar a falta de um completo para mesa em porcelana chinesa
setecentista de exportação. Esta propensão também se verifica com o
serviço denominado Sousa Arronches, que ostenta o brasão de armas
dessa família, e adquirido em data incerta. O facto de o primeiro ser

156
COLEÇÕES REAIS E COLEÇÕES OFICIAIS

compósito é curioso, visto a rainha D. Maria Pia ter encomendado no


final do século XIX um serviço de mesa, café, chá e pequeno-almoço
da francesa Haviland em conjunto com um de sobremesa da inglesa
Minton. O mesmo foi seguido no serviço para o Chalet do Estoril: o de
mesa é da Haviland e o segundo de sobremesa da francesa Laviolette,
pintado pelo afamado artista Muville.
A última peça que abordaremos é a poncheira que esteve na mesa
Império do Hall e era o lote 344 Sala G/Hall29. Esta peça não foi des-
crita nos inventários judiciais republicanos e pertence hoje ao Palácio
Nacional da Ajuda (PNA, inv. 4171).

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A remodelação do Palácio Castelo Melhor pelo marquês da Foz


constituiu um caso muito singular na cidade de Lisboa. O seu interior
foi readaptado à nova vivência e sociabilidade coeva, expresso nos espa-
ços com uma função específica. Estes foram decorados de acordo com
uma determinada época histórica e onde o marquês mandou adaptar,
em alguns, boiseries antigas, contribuindo assim para uma maior au-
tenticidade histórica. Nestes espaços dispôs criteriosamente a sua co-
leção de pintura, escultura, porcelana, metalística e mobiliário. Com
estas peças mesclou outras de fabrico moderno e inspiradas em épocas
passadas, mas de artistas afamados e dos melhores fabricantes. Todo
este conjunto foi colocado harmoniosamente no espaço e em mobiliário
próprio, integrando a arte no quotidiano doméstico. O Palácio Foz é um
dos melhores exemplos deste tipo de confluência e equiparável aos dos
grandes colecionadores europeus. A reunião deste espólio de excelên-
cia foi a leilão e despertou a atenção da Família Real Portuguesa, tendo
vindo a arrematar parte do seu recheio. Como o teto da Bibliotheca pelo
rei D. Carlos, relacionado com os Descobrimentos e um dos grandes
períodos da História Universal, conjuntamente com peças de exceção.
Os lotes da rainha D. Maria Pia focaram-se no século XVIII, como o
mobiliário de assento e o serviço de mesa. Não descurando igualmente

157
COLEÇÕES DE ARTE EM PORTUGAL E BRASIL NOS SÉCULOS XIX E XX

a oportunidade de ter uma lanterna baseada numa peça histórica e re-


cente. Estas consecuções vieram enriquecer o património da Casa de
Bragança e estão hoje à guarda do Estado Português. Esperamos que
com este trabalho sejam dadas a conhecer, mas sobretudo a serem va-
lorizadas pelas suas qualidades artísticas e pelo seu percurso histórico.

NOTAS
1 Queremos agradecer ao Francisco Queiroz e à Maria de Fátima Nina Moura por nos terem ajudado no acesso de
parte da bibliografia, necessária para a realização deste artigo, durante a pandemia.
2 RAMOS, Rui Jorge Garcia – A Casa – Arquitectura e projecto domestico na primeira metade do século XX portu-
guês. Porto, Faculdade de Arquitectura da Universidade do Porto, 2010, p. 2–72 e 194–195.
3 A aguarela pertence à coleção Thaw, Cooper Hewitt Smithsonian Design Museum, ID 18708193.
4 DUBOIS-BRINKMANN, Isabelle – L’industrie du textile imprimé In DUBOIS-BRINKMANN, Isabelle /
STARCKY, Emmanuel comissários – Folie textile – Mode et décoration sous le Second Empire. Paris, Réunion des
musées nationaux, 2013, p. 42–44.
5 Cf. PASZKIEWICZ, Mieczyslaw – Jacek Malczewski in Asia Minor and Rozdol: The Lanckoroński Foundation.
Londres, Polish Library, 1972.
6 Destruído durante a Segunda Grande Guerra (1939–1945). KARGE, Henrik – Genese und Kanonisierung der
Neorenaissance in der deutschen Architektur des 19. Jahrhunderts In KAMECKE, Gernot e RIDER, Jacques Le,
ed. – La codification. Perspectives transdisciplinaires (Études et rencontres du Collège doctoral européen EPHE-TU
Dresden, 3, Paris, Collège doctoral européen, 2007, p. 214–218.
7 Ficou danificado durante a Segunda Grande Guerra e acabou por ser demolido em 1954.
8 Cf. CARR, Norman e GURNEY, Ivor – Waddesdon’s Golden Years: 1874–1925. Waddesdon, The Alice Trust, 1996.
9 Cf. VALE, Teresa Leonor M. – Da sumptuosidade e da ostentação: os interiores do palácio dos marqueses da
Foz nos últimos anos de Oitocentos – Monumentos, N.º 11, Lisboa, Direcção-Geral dos Edifícios e Monumentos
Nacionais, 1999, p. 31–35.
10 MOREIRA, Anabela Mendes e SERRANO, Inês Domingues – Análise dos projetos e das obras no Palácio Foz, em
Lisboa, entre 1887 e 1904: contributo para a sua reconstituição arquitetónica e construtiva dos elementos na sua
envolvente – Revista CPC, V. 14 N.º 27, São Paulo, Universidade de São Paulo, 2019, p. 72–78.
11 VALE, Op. cit., p. 33.
12 Trata-se de um queimador com invólucro em vidro de onde emergem, pelo menos, 6 bicos de gás ditos papillon.
Foram pela primeira vez empregues em candeeiros de rua, em 1878, na rue Quatre-Septembre em Paris e daí a
sua designação. DEITZ, Philippe – Histoire des luminaires. Liège, Editions du Perron, 2009, p. 264.
13 Candeeiro inventado em 1836 para óleo vegetal, pelo engenheiro francês Franchot (1809–1881).
14 Entre eles dois quadros do pintor flamengo Frans Snyders (1579–1657), “O vendedor de peixe” e a “A vendedora
da fruta”, que estão hoje na Sala dos Painéis. Catalogo do leilão dos objectos d’arte e mobiliario antigo, Palacio Foz
na Praça dos Restauradores, nos. 28 a 32. Lisboa, Companhia Nacional Editora, 1901, p. 11.
15 Parte do mobiliário de assento era composto por 1 sofá e 6 cadeiras com braços, lote 272 a 275, e foram adqui-
ridos por José Gonçalves Guimarães Serôdio, 1.º conde de Sabrosa (1855–1937). Cf. Catalogo do leilão, Op. cit.,
p. 22 e TAVARES, Santos – Habitações Artisticas, Digressões e visitas, Casa do sr. Conde de Sabrosa. Illustração
Portugueza, N.º 12, Empreza do jornal O Seculo, 25 de Janeiro de 1904, p. 182–183.
16 Como por exemplo o arquiteto Miguel Ventura Terra (1866–1919) em muitos dos seus projetos.
17 The Art Journal Illustrated Catalogue of the International Exhibition 1862. Londres, James S. Virtue, 1862, p. 10.
18 A Família Real também tinha este modelo de candeeiro da Gagneau. Cf. FEVEREIRO, António Cota – Iluminação
da Casa Real Portuguesa. Os Candeeiros do Palácio Nacional da Ajuda. Oeiras, Mazu Press, 2018, p. 48–49.
19 Serviu de inspiração ao guarda-fogo. Foi adquirido no leilão e colocado num quarto de dormir, como podemos
observar numa fotografia pertencente ao Arquivo Municipal de Lisboa, com a cota NEG001085.
20 A informação sobre o recheio do Palácio Foz partiu do cotejamento do catálogo do leilão de 1901 com um artigo
de Abel Botelho publicado nesse ano. Cf. BOTELHO, Abel – O Leilao do Palacio Foz. Brasil-Portugal, N.º 56,
Companhia Nacional Editora, 16 de maio de 1901, p. 114–117.
21 RIBEIRO, José Alberto – Rainha D. Amélia. Uma Biografia. Lisboa, A Esfera dos Livros, 2013, p. 87.
22 No Arquivo Municipal de Lisboa há fotografias que foram utilizadas no catálogo e em publicações periódicas,
como a Brasil-Portugal e a Occidente, as quais têm as seguintes cotas: NEG000561, NEG001074, NEG001076,
NEG001080, NEG001082 e NEG001145. Do leilão há fotografias das peças marcadas e têm as cotas: NEG000186,

158
COLEÇÕES REAIS E COLEÇÕES OFICIAIS

NEG000187 e NEG000710.
23 Catalogo do leilão, Op. cit., p. 11 e 14.
24 Cf. FEVEREIRO, António Cota – Genealogia, dados biográficos e obra de arquitetos, artistas e construtores civis
portugueses do século XIX e XX – Raízes e Memórias, N.º 29, Lisboa, Associação Portuguesa de Genealogia, 2012,
p. 256–258.
25 Catalogo do leilão, Op. cit., p. 59 e Arquivo Palácio Nacional da Ajuda (APNA), Inventário Judicial do Paço da
Ajuda, 1912, fl. 3624 a 3625. Foi recolocado na Escada Principal do Palácio Foz.
26 Catalogo do leilão, Op. cit., p. 44 e APNA, Inventário Paço da Ajuda, 1912, fl. 3554v. a 3556. As seis poltronas
estão depositadas no Palácio Nacional de Mafra. O sofá e duas poltronas estão no Palácio Nacional de Queluz e
queremos agradecer à Dr.ª Conceição Coelho esta confirmação.
27 Este serviço serviu de inspiração a outro denominado Palácio e produzido pela Fábrica da Vista Alegre de 1992 a
2017.
28 Cf. Catalogo do leilão, Op. cit., p. 17–18, APNA, Cx. 10.2.2., doc. 30, N.º 19 e depois 18, Inventário Paço da Ajuda,
1912, fl. 1478 a 1479v. De acordo com o cotejamento efetuado, baseado na listagem sem data, nas verbas alfa
numéricas do inventário judicial e nos números de inventário atuais, o resultado é o seguinte: N’1802 correspon-
de ao n.º de inv. 22542 a 22547; N’1803 ao 22551 a 22579 e 22579/A; N’1804 ao 22548 a 22550 e 22583 a 22588
(falta 1 prato); N’1805 ao 22480 a 22505; N’1806 ao 22506 a 22527 (faltam 5 pratos); N’1807 ao 22528 a 22538
e 22538/A; N’1808 ao 22539 a 22541; N’1809 ao 22581 a 22582; N’1810 ao 403 e 408; N’1811 ao 22589 a 22601
(contabilizaram 12, mas há no total 13 pratos); N’1812 ao 25250/A/B; N’1813 ao 25250/C e N’1814 ao 22580.
29 Catalogo do leilão, Op. cit., p. 28. Foi identificada por nós no ano de 2015.

159
OBJECTOS DE VALOR ARTÍSTICO
DE D. CARLOS I NO PALÁCIO
NACIONAL DAS NECESSIDADES
E SUA DISPERSÃO NA PRIMEIRA
METADE DO SÉCULO XX (1913–15)

SOFIA BRAGA
Doutorando no Artis – Instituto de História da Arte, Faculdade de Letras, Universidade de Lisboa.
helenabraga@campus.ulisboa.pt

Resumo Palavras-chave
El-Rei D. Carlos I teve uma educação D. Carlos I; Palácio; Necessidades; artista;
excepcional: as suas capacidades artísticas foram coleccionismo.
estimuladas pelo seu mestre Enrique Casanova;
herdou a veia de coleccionador através de D.
Fernando de Saxe-Coburgo Gotha, seu avô; e
de seu pai, o rei D. Luís, adquiriu o gosto pela
aguarela. Neste âmbito, e sabendo de antemão
que D. Carlos I era coleccionador e aficcionado
pela pintura a aguarela e pastel, pretende-se
reconstituir, através dos inventários judiciais,
uma parcela do espólio pessoal que “habitava”
nos aposentos de D. Carlos I no Palácio
Nacional das Necessidades, tendo sido uma
parte adquirida por si no mercado nacional e
internacional.

161
COLEÇÕES DE ARTE EM PORTUGAL E BRASIL NOS SÉCULOS XIX E XX

INTRODUÇÃO

O rei D. Carlos I foi o primeiro rei português a expôr as suas obras


em exposições nacionais e internacionais, nomeadamente no Grémio
Artístico, na Sociedade Nacional de Belas-Artes e na Academia de Belas-
Artes de Lisboa. Foi aliás o único rei de Portugal a integrar exposições
internacionais: participou na Exposição Universal de Paris (1900); na
Exposição de Bellas Artes de Barcelona; na Exposição de São Luís em
1904 (EUA); e na Société Artistique des Amateurs (Paris). Alguns auto-
res são unânimes na caracterização deste rei-diplomata, cientista e artis-
ta: «[representou] brilhantemente as tradições artisticas da dynastia de
Bragança, alliadas ás dos Coburgos»1.
Neste sentido, o presente texto pretende averiguar a sua presença em
eventos artísticos que lhe permitiram contactar com vários artistas seus
contemporâneos, tendo certamente adquirido algumas das obras que se
encontram descritas no inventário judicial, realizado entre os anos 1913–
15. Tal permite ainda reconstituir uma parte do espólio pessoal deste rei-
-artista, que foi dividido e integrado nas colecções estatais e privadas.

O ESPÓLIO ARTÍSTICO DO REI D. CARLOS I


NO PALÁCIO NACIONAL DAS NECESSIDADES

A Comissão de Arrolamento dos Paços Reais foi instituída por José


Relvas, designado Ministro das Finanças do governo provisório que se
formou em Outubro de 1910, cuja tarefa consistia na averiguação da
propriedade dos bens existentes nos extintos Paços Reais2. O Decreto
de 24 de Junho de 1912 estabeleceu que a guarda, conservação e ad-
ministração dos móveis e imóveis dos extintos Paços Reais ficava sob
a tutela da Direcção-Geral da Fazenda Pública, extinguindo-se assim a
Superintendência dos Paços, que até à data administrava os Palácios da
Ajuda, Necessidades, Belém, Queluz, Sintra, Pena e Mafra3.
Assim, entre 1913 e 1915 foi realizado o inventário dos bens que
constavam do Palácio Nacional das Necessidades, nomeadamente no

162
COLEÇÕES REAIS E COLEÇÕES OFICIAIS

Fig. 1 – Fotografia do Atelier de D. Carlos em 1899; Alfredo Guimarães, Salões,


Ateliers, Interiores. Os aposentos de S. M. El-Rei. Brasil-Portugal, Nº 3, 1899, pp. 4–5.

Atelier de D. Carlos I, o qual tinha sido de seu avô, D. Fernando de


Saxe-Coburgo, nos seus Aposentos privados, no Quarto do Particular,
no Corredor, e na Biblioteca. A maioria dos objectos “sem valor artís-
tico”, mencionados no inventário, foram entregues a Fernando Serpa
Pimentel – último administrador geral do Ministério da Fazenda da Casa
Real e oficial às ordens do rei de Portugal –, e aqueles considerados de
“valor artístico” destinaram-se, na sua maioria, à Casa Forte, ao Museu
Nacional de Arte Antiga, ao Ministério da Marinha, ao Museu Nacional
dos Coches, e ao Inspector das Bibliotecas Eruditas e Arquivos4.
O Atelier de pintura do rei D. Carlos I localizava-se no 1º andar do an-
tigo edifício do convento dos oratorianos, anexo ao Palácio Nacional das
Necessidades5. Este era composto por trabalhos de artistas portugueses,
designadamente uma estátua em gesso com a representação da Morte de
São João, do escultor Costa Motta sobrinho, um busto em bronze com
a cabeça de um velho, do escultor portuense António Teixeira Lopes e
uma pintura a óleo sobre madeira, onde se expunha o tema Camponesa,
do pintor Carlos Reis. Os artistas estrangeiros tinham igualmente o seu
espaço de representação, tais como uma estatueta em bronze dourado,

163
COLEÇÕES DE ARTE EM PORTUGAL E BRASIL NOS SÉCULOS XIX E XX

do escultor e pintor académico francês Jean-Léon Gérôme; um relógio


em bronze dourado para ser pendurado, com duas figuras de mulher,
de Eugène Léon L`Hoest; e uma aguarela com a representação de uma
cabeça de mulher, do pintor italiano Enrico Gamba, obras que foram
destinadas a Fernando Pimentel.
Constava igualmente do Atelier o famoso tríptico As tentações de
Santo Antão, de Hieronymus Bosch que, segundo o inventário, era de
propriedade duvidosa, tendo sido remetido em 1913 ao Museu Nacional
de Arte Antiga. A este museu foi igualmente entregue uma pintura a
óleo sobre cobre, versando sobre o tema Jantar ao ar livre, da Escola
Flamenga.
No espaço consagrado à criação artística não poderiam estar ausen-
tes os desenhos de D. Carlos, tendo F. Pimentel “herdado” diversos de-
senhos deste rei: o iate “Amelia”, trabalho executado à pena e assinado
Carlos, 1898, uma pequena aguarela em pano, exibindo uma vista do
Ribatejo, e o barco à vela “Altair” (datado de 1899). No inventário é atri-
buído a D. Carlos I um desenho a pastel onde se expunha um busto de
mulher; todavia, a visita realizada por Alfredo Guimarães aos aposentos
privados do rei D. Carlos I, em 1899, expôs peremptoriamente que «so-
bre um cavalete, o último trabalho de D. Carlos I, uma cabeça de mulher
admiravelmente tratada, lindíssimo pastel»6. A F. Pimentel foram igual-
mente entregues uma série de vários desenhos a lápis, a pastel e agua-
relas, assim como o material auxiliar utilizado por D. Carlos I nas suas
produções artísticas, especificamente buris para gravura, vaporizadores
para fixar o desenho a pastel, um estojo com um compasso articulado e
ainda pincéis, lápis, canetas, réguas de vários tamanhos e uma pequena
prancha de casquinha.
O universo dos têxteis nobres também se encontrava exposto no
Atelier, especialmente nas paredes que, segundo Alfredo Guimarães,
eram profusamente decoradas por «colchas portuguesas tão delicada-
mente bordadas a oiro (...)»7. De facto, o inventário judicial dá conta
de uma colcha de seda azul bordada a ouro, tendo como motivo de-
corativo principal um vaso com flores, tendo sido transferida da Casa
Forte para o Palácio Nacional da Ajuda em 1938–39. O Museu Nacional

164
COLEÇÕES REAIS E COLEÇÕES OFICIAIS

dos Coches recebeu, em 1913, uma cobertura de almofada do coche “D.


Francisco”, executado em seda antiga, e decorado com franja e bordados
dourados. No Atelier constava ainda um rol diversificado de faianças de
Delft (Holanda), de Savona (Itália), de Talavera (Espanha), e de Majólica
(Itália). Constava igualmente porcelana de Inglaterra (prato com deco-
ração polícroma em estilo oriental), e um precioso prato de faiança his-
pano-árabe com uma inscrição gótica na parte interna do bordo, ambas
destinadas à Casa Forte. No contexto da faiança portuguesa existiam
peças do século XVIII, e das Caldas da Rainha (um escarrador em for-
ma de sapo). No espaço privado de D. Carlos I residia igualmente uma
colecção de porcelana da China, e singulares objectos egípcios: um frag-
mento de estatueta de basalto e uma pedra rectangular com inscrições,
destinadas à Casa Forte. Em 1915 o Ministério da Marinha acolheu um
candeeiro de bronze com a representação de um grifo (de valor artístico
e considerado pertença do Estado).
No inventário descrevem-se igualmente os bens artísticos nos apo-
sentos de D. Carlos I. Porém, e apesar de não se encontrar explíci-
to se este espaço era formado pelos Gabinete de Trabalho e Quarto
de Dormir, o relato de Alfredo Guimarães distingue dois ambientes
distintos. Assim, e com base no depoimento deste jornalista, descre-
vem-se as peças que compunham o Quarto de Dormir. Nas paredes
destacavam-se uma pintura a óleo, de costumes, com duas crianças a
jogar à bisca a castanhas piladas, do Morgado de Setúbal, assim como o
medalhão a duas cores de Lucca della Robia. A minúcia do inventário
complementa a informação relativa ao famoso medalhão, como sen-
do de faiança esmaltada, onde se observava um pelicano circundado
por uma moldura de folhagem e frutos. Na sua visita privada, Alfredo
Guimarães destacou ainda um biombo japonês, sofrendo a ausência
de uma descrição pormenorizada. Contudo, no inventário e na parte
concernente à Biblioteca, é mencionado a existência de dois biombos
de quatro fachas, um de charão vermelho constituído por dois retratos
de figuras europeias (trabalho do século XVII), e outro composto por
oito telas pintadas a óleo, tendo de um lado cenas cosmopolitas e do
outro paisagens, frutos e animais.

165
COLEÇÕES DE ARTE EM PORTUGAL E BRASIL NOS SÉCULOS XIX E XX

No Gabinete de Trabalho destacar-se-iam ainda um triptíco gótico


atribuído a Rogier Van der Weyden, e um prato autêntico do século
XVI, de Bernardo de Palissy. De facto, no inventário alude-se à exis-
tência de uma placa de faiança italiana polícroma, representando em
relevo a Virgem e o Menino, com a data de 1589, tendo sido remetida
para a Casa Forte. Ainda segundo Alfredo Guimarães, no Gabinete de
Trabalho existia um esboço da Sagrada Família, de Antonio da Corregio.
Recorrendo novamente ao inventário judicial, averiguou-se que os
aposentos privados eram adornados com pinturas a óleo e aguarelas de
diversos artistas: uma aguarela de Edoardo de Martino, artista italiano
residente em Inglaterra que se especializou em temáticas relacionadas
com cenas navais, e cujo tema da colecção de D. Carlos encaminha-
-nos para o naufrágio do “Vasco da Gama” (provavelmente refere-se ao
navio couraçado Vasco da Gama), um quadro a óleo do mesmo autor,
com uma temática de marinha, uma aguarela com a representação de
uma tourada, de Jacques Brissaud, e dois desenhos a pastel onde se ex-
punham um busto de mulher e uma cabeça de mulher, realizados por
D. Carlos e datados de 1905. A pintora Emília Santos Braga – discípula
de José Malhoa –, marcava presença através de um quadro a óleo sobre
tela com a representação de uma criança orando (todas as obras men-
cionadas foram entregues a F. Pimentel). Além de Emília Santos Braga,
reporta-se um quadro a óleo (estudo) com a representação de D. Carlos
I a cavalo e ostentando o uniforme de generalíssimo, de José Veloso
Salgado. O rei D. Carlos I dedicou-se igualmente à fotografia, tendo-
-se localizado uma máquina fotográfica com seis chassis, comprovando
que foi uma actividade à qual D. Carlos I se dedicou. De facto, constava
dos seus aposentos uma medalha de prata dourada obtida na Exposição
Nacional de Fotografia, que ocorreu em Lisboa no ano de 1899.
São igualmente declarados os objectos artísticos que constavam do
Quarto do Particular, destacando-se um quadro de azulejos de temá-
tica religiosa, Mater Dolorosa, assinado Silva, presumindo-se que seja
Luis António Ferreira da Silva; um busto em bronze de uma negra, as-
sinado Maria Palmela, certamente D. Maria Luísa, duquesa de Palmela;
um grupo de veados, em bronze, do escultor francês Cristopher Fratin;

166
COLEÇÕES REAIS E COLEÇÕES OFICIAIS

e um grande quadro a pastel representando um sobreiro de cortiça, de


D. Carlos I, obras estas entregues a F. Pimentel. Também se expunham
pinturas a óleo sobre tela da escola francesa do século XVII (Agar e
Ismael no deserto) e pintura alemã do século XVI (Cristo a caminho do
Calvário). Não podiam faltar os artistas contemporâneos de D. Carlos I,
nomeadamente uma pintura a óleo sobre tela D. Quixote, do consagrado
pintor espanhol José Moreno Carbonero, com quem D. Carlos se rela-
cionava, como se atesta: «Mantem mesmo as melhores relações pessoaes
com os grandes vultos da pintura franceza contemporânea e com os mes-
tres da hespanhola: d`esta ultima Zorola e Moreno Carbonero são seus
amigos pessoaes (...)»8. De assinalar um conjunto de noventa e nove gra-
vuras de Giovanni Battista Piranesi, relativas às “antigualhas” de Roma.
Este quarto tinha sido ornamentado com porcelanas de cariz nacio-
nal, mais precisamente dois bustos de um velho e uma velha reprodu-
zidos em barro cozido pintado a óleo, executados na fábrica de faiança
das Caldas da Rainha, a partir de desenhos de Columbano Bordalo
Pinheiro; da Real Fábrica da Bica do Sapato; da Fábrica do Rato, e de
Wenceslau Cifka (terrina de faiança em forma de tartaruga e de lagar-
to). De referir que D. Carlos I tinha uma predilecção pelas faianças de
Rafael Bordalo Pinheiro, pois em Março de 1907 deslocou-se à exposi-
ção retrospectiva da obra deste artista (que morreu em 1905) no salão
da Illustração Portuguesa9.
A faiança de outros cantos do mundo: da marca Wedgood (uma urna
preta decorada com máscaras, um medalhão e festões (destinada à Casa
Forte), de Marselha e porcelanas da China (Família Verde, com meda-
lhões de cenas da vida chinesa), que foram consideradas de valor artís-
tico. No âmbito da arqueologia, era possível deparar-se com uma estela
egipcía composta por figuras em baixo-relevo; vinte e uma figuras egíp-
cias em bronze; e vinte e sete figuras em barro, destinadas à Casa Forte.
O inventário menciona ainda as obras que se localizavam nas pare-
des de um dos corredores utilizados por D. Carlos I no Palácio Nacional
das Necessidades. O Corredor teria sido profusamente preenchido por
cartões pintados a óleo por Amadeu de Sousa Cardozo, executados du-
rante a sua estadia em França, assim como pinturas a óleo sobre tela

167
COLEÇÕES DE ARTE EM PORTUGAL E BRASIL NOS SÉCULOS XIX E XX

onde se expunham diversos temas de paisagens: um regato, mulheres


a lavarem roupa, as margens de um rio e um pôr-do-sol. Persistiam os
artistas nacionais no revestimento das paredes, tais como S. João pre-
gando, de Domingos Sequeira, um Ermitão, de Luis Pereira de Menezes
(Visconde de Menezes), e ainda uma pintura a óleo sobre madeira de
uma fonte sob árvores, do pintor Carlos Reis, entregues a F. Pimentel.
A par dos artistas nacionais encontravam-se igualmente obras de
artistas estrangeiros. Do paisagista francês Adrien Dauzats, uma pin-
tura a óleo sobre tela com a representação de uma passagem de tropas
francesas por entre rochedos, um tema naturalista do pintor espanhol
Adelardo Covarsi, envolvendo rochedos, uma pintura a óleo sobre tela,
onde se encontrava representado um casal de leões, de Louis Prat, de
Alexandre Calame (paisagem), e de Miguel Tedesco (Procissão); todas
as pinturas mencionadas foram distribuídas a Fernando Pimentel. No
âmbito dos desenhos foi possível localizar um desenho à pena de uma
sala, preenchida com diversos objectos, encontrando-se sentado a uma
mesa de trabalho o rei D. Fernando, de Pierre Henri van Elv, um dese-
nho à pena com uma Luta de Galos (1749), de Jean Baptiste Oudry, e
um desenho a sépia de duas cabras, de Tomás da Anunciação (provavel-
mente uma herança de seu avô).
Os desenhos a seguir mencionados foram destinados ao Museu de
Arte Antiga: um desenho à pena e au lavis, assinado Zuccaro, e um de-
senho au lavis (1778), de Pierre Alexandre Wille. As aguarelas, a forma
de expressão artística mais admirada por D. Carlos I, constavam igual-
mente das paredes: Uma família pobre a receber esmola (Viena, 1838), do
austríaco Wihel August Rieder, uma mulher e um homem de braço dado
(1864), de Miguel Ângelo Lupi. As paredes do Corredor mostravam
também os artistas estrangeiros, tais como o francês Pierre Quillard (um
esboço, cuja temática não é referida) e Luca Giordano (esboço, tema mi-
tológico), ambos destinados ao Museu Nacional de Arte Antiga. Por úl-
timo, do artista João Glama Strobelle constavam três desenhos, um deles
executado a lápis, encontrando-se exposta a Sagrada Família e estudos
para retratos, enviados igualmente ao Museu Nacional de Arte Antiga.
De acordo com a “memória descritiva”, a Biblioteca pessoal do rei D.

168
COLEÇÕES REAIS E COLEÇÕES OFICIAIS

Carlos I era um esmero em obras de arte. Encontrava-se lá uma pintura


a óleo sobre tela de um pátio de casa rural, do artista portuense J. F.
Bastos, uma aguarela com um bosque do paisagista francês da escola
de Barbizon, Henri Harpignies, ambas destinadas a Fernando Pimentel,
dois vasos funerários egipcíos de mármore (com inscrições), e uma ân-
fora romana, também entregues a Fernando Pimentel. O inventário re-
porta uma grande esfera celeste, executada em metal, com gravuras e
datada de 1575 (destinada à Casa Forte), e um mapa em pergaminho co-
lorido, do século XVI, referente à Europa e a parte de África, considera-
do de valor histórico, tendo sido destinado ao inspector das Bibliotecas
Heruditas e Arquivos, em 1916. Neste espaço de leitura e contempla-
ção artística existia um número considerável de álbuns com desenhos
e poesias de D. Carlos I, destacando-se quarenta e quatro álbuns com
desenhos de croquis a lápis, a pena e aguarelas, uma pasta contendo ses-
senta e um desenhos, cinquenta e nove aguarelas, oito desenhos a pastel
e uma pintura a óleo, e outra pasta com vinte e seis desenhos, cinquenta
e três aguarelas e sete desenhos a pastel. Além destes, foram igualmente
destinados a Fernando Pimentel um desenho à pena de Nicolas Poussin
(Massacre dos Inocentes), um desenho à pena (Veado Morto), de Tony de
Bergue, um álbum contendo trinta e quatro desenhos de Artur Loureiro
(enquanto estudante), dois albúns contendo fotografias circundadas de
aguarelas, de Casanova, e um desenho de Pietro da Cortona.
Um conjunto de desenhos de artistas portugueses foram igualmente
destinados a Fernando Pimentel, nomeadamente, trinta e quatro dese-
nhos a lápis – dois à pena e dois a pincel, de Arcângelo Fosquini, três
desenhos a pincel e um desenho a lápis de Nicolau Preto, dois desenhos
a sanguínea de António Pereira, um desenho a lápis de Máximo Paulino
dos Reis, um desenho referente à árvore genealógica do conde da Feira,
por Pedro Alexandrino, desenhos a sanguínea de Joaquim Manuel
da Rocha, três desenhos de Vieira Portuense, de Inácio de Oliveira
Bernardes, de Cyrillo Volkmar Machado, e José da Cunha Taborda.
Já ao Museu de Arte Antiga foram entregues alguns desenhos dos
melhores Mestres europeus, mais especificamente um desenho a lápis
de François Boucher (datado de 1709 e assinado), uma aguarela a cores

169
COLEÇÕES DE ARTE EM PORTUGAL E BRASIL NOS SÉCULOS XIX E XX

de Jean Honoré Fragonard, um álbum com sessenta e uma folhas de


Domingos Sequeira, dois desenhos a lápis de paisagem, realçados a tin-
ta, de Jean Pillement, um desenho a sanguínea de Sebastiano Conca, e
desenhos de Carlo Marati e Nicolas Delerive. A série de desenhos a lápis
e guache do professor de arquitectura da Academia de Belas-Artes, José
da Costa Sequeira, representando a Torre de Bélem, a Sé de Braga, o
Claustro dos Jerónimos e a fachada sul dos Jerónimos, foram destinados
à Casa Forte.
Como anteriormente referido, D. Carlos I foi o primeiro rei de
Portugal a frequentar e a concorrer a várias exposições artísticas, tan-
to de foro nacional como internacional, tendo contactado com as van-
guardas artísticas do seu tempo. Segundo o Elogio Académico... (1909)
de Alberto Girard, sócio efectivo da Academia das Ciências de Lisboa, D.
Carlos I «(...) despia a sua realeza á porta da Academia, para revestir duas
outras, não menos nobres, com que se ufanava: a da arte e da sciencia:
na arte era Carlos, e na sciencia D. Carlos de Bragança»10. É igualmente
Alberto Girard que expõem algumas das exposições nas quais participou:
«(...) os Seus triumphos nas exposições do Gremio Artistico, na ultima
Exposição universal de Paris, na Sociedade Nacional de Bellas Artes, na
Exposição universal de S. Luiz, na de Bellas Artes de Barcelona, e ainda,
ha bem pouco, na Sociétè Artistique des Amateurs»11.
De facto, e de acordo com o inventário que temos vindo a citar, encon-
traram-se menções a medalhas de carácter celebrativo e vitorioso, mas
não se conseguiram localizar quais as obras apresentadas por D. Carlos
na Sociedade Promotora das Belas Artes de Portugal (obteve uma me-
dalha de cobre com as efígies dos artistas Afonso Domingues, Joaquim
Machado de Castro e Domingos António de Sequeira), na exposição
de Viena de Áustria (obteve medalhas de prata e cobre), na Exposição
Universal de Paris de 1889, na qual grangeou duas medalhas de cobre,
e na Exposição Internacional de Barcelona, que poderá ter ocorrido em
1896. Ainda com base no inventário, D. Carlos possuía uma medalha
(metal dourado) comemorativa da exposição de Louisiana, em 1904, e
uma medalha de ouro oferecida por ocasião da Exposição Internacional
de Milão, em 1906.

170
COLEÇÕES REAIS E COLEÇÕES OFICIAIS

A partir de 1894 surgem citações à participação de D. Carlos em


eventos nacionais, podendo-se considerar a IVª Exposição do Grémio
Artístico o primeiro acontecimento artístico no qual D. Carlos se en-
volveu – ainda na qualidade de príncipe –, com um “vigoroso” desenho
a pastel A resposta do Inquisidor12. Em 1896 foi igualmente noticiada a
presença de D. Carlos I na Vª Exposição do Grémio Artístico, tendo
apresentado um desenho a pastel de uma cena rústica, Gado à bebida13.
Ao que tudo indica, na viragem do século iniciaram-se as participa-
ções de D. Carlos I nas exposições organizadas pela Sociedade Nacional
de Belas Artes e nas exposições universais, nomeadamente na de Paris
(1900), na qual viu a sua pintura a pastel A pesca do atum no Algarve
(1899) ser premiada. Logo após o sucesso alcançado em Paris, D. Carlos
I envolveu-se na 1ª exposição da Sociedade Nacional de Belas-Artes
(1901), concorrendo com o desenho a pastel Antes da Caçada14. Nesta
exposição patenteou-se um busto de uma preta, em bronze, da duquesa
de Palmela, certamente adquirido por D. Carlos nesta amostra e que
vem mencionado no inventário. Na 2ª Exposição da Sociedade Nacional
de Belas-Artes (1902), D. Carlos I mostrou um “primoroso” pastel com
a representação de uma paisagem do rio Tejo, Ao cair da tarde15. A 3ª
exposição da Sociedade Nacional de Belas-Artes (1903), inaugurada
por “Suas Magestades”, contou com a presença de artistas eméritos, tais
como Carlos Reis, António Teixeira Lopes e Emília Santos Braga16, cujas
obras constavam do espólio pessoal de D. Carlos I. Esta questão remete
para a importância que estas exposições assumiam no seio da socie-
dade artística de então, pois através destas os artistas davam a conhe-
cer as suas obras, sendo igualmente aqui que os mecenas as adquiriam
para complementarem as suas colecções de arte pessoais. A título de
exemplo, em 1902 D. Carlos obteve a pintura Na Lareira, de Manuel
Henrique Pinto17, um artista bem conotado no mercado artístico da al-
tura, tendo mesmo obtido uma menção honrosa na exposição de Paris
(1900). Se na 3ª amostra de arte da Sociedade Nacional de Belas-Artes
não se localizaram obras de D. Carlos, já na 4ª exposição (1904) o mo-
narca patenteou uma das suas obras mais famosas: um retrato a pastel
de um marroquino trazido de Tânger pelo famoso artista Jorge Colaço18.

171
COLEÇÕES DE ARTE EM PORTUGAL E BRASIL NOS SÉCULOS XIX E XX

Também em 1904, e de acordo com Albert Girard, D. Carlos I partici-


pou na Exposição Internacional de São Luis. A «exposição de S. Luiz, à
qual é delegado do governo o sr. Conselheiro Alfredo Lecoq, é o novo
mercado do mundo e a elle concorrem todas as nações (...). Os artistas
mais celebres da Europa enviaram para ali as suas esculpuras e as suas
pinturas. De Portugal foram enviados numerosos quadros que honram
sobremaneira a arte portuguesa»19. Não se encontraram referências às
obras de D. Carlos I enviadas para este acontecimento mundial.
Em 1905 D. Carlos I participou na exposição da Real Academia
de Belas Artes de Lisboa, com um desenho a pastel de uma paisagem
alentejana (um sobreiro)20, e no ano de 1906 ofereceu à Sociedade dos
Aguarelistas de Paris uma aguarela com a representação de um porteiro
da Guarda Real21. Por último, não se pode deixar de relatar aquela que
talvez tenha sido a sua última participação num acontecimento inter-
nacional, desta vez de foro oceonográfico, a Exposição de Milão, a qual
muito honrou o Amor Pátrio por se tratar do trabalho do primeiro ci-
dadão do país22.

NOTAS
1 AÇA, Zacharias de – A Exposição do Gremio Artistico. Arte Portuguesa, Nº 2, Gabriel Pereira e E. Casanova, 1895,
p. 28.
2 Arquivo Nacional da Torre do Tombo – Direcção Geral da Fazenda Pública; código de referência: PT/PNA/
DGFP.
3 Ibidem.
4 A.N.T.T. – Inventário Judicial do Palácio Nacional das Necessidades, Vol. 3; código de referência: PT/PNA/
DGFP/0001–001/0003/0001.
5 Ibidem.
6 GUIMARÃES, Alfredo – Salões, Ateliers, Interiores. Os aposentos de S.M. El-Rei. Brasil-Portugal, Nº 3, 1899, p. 4
7 Ibidem.
8 El Rei Pintor. Illustração Portugueza, Nº 48, Carlos Malheiro Dias e José Joubert Chaves, 1907, p. 74.
9 Sua Magestade El-Rei no Salão da Illustração Portugueza. Illustração Portugueza, Nº 55, Carlos Malheiro Dias,
1907, p. 290.
10 GIRARD, Alberto Arhur – Elogio Académico de Sua Magestade El-Rei o Senhor D. Carlos I. Lisboa: Typ. da
Academia, 1909.
11 Ibidem.
12 AÇA, Zacharias d` – A Arte Portuguesa em 1894. A exposição do Grémio Artístico. Arte Portuguesa, Nº 2, Gabriel
Pereira e E. Casanova, 1895, p. 28.
13 AÇA, Zacharias d` – A Exposição do Gremio Artistico. O Occidente, Nº 625, Caetano Alberto da Silva, 1896, p.
102.
14 VASCONCELLOS, Henrique de – Exposição de Belas Artes. Brazil-Portugal, Nº 58, 1901, p. 156.
15 X. – Segunda Exposição da Sociedade Nacional de Bellas Artes. O Occidente, Nº 841, Caetano Alberto da Silva,
1902, p. 98.
16 O Occidente, Nº 876, Caetano Alberto da Silva, 1903, pp. 91–94.

172
COLEÇÕES REAIS E COLEÇÕES OFICIAIS

17 X. – Segunda Exposição da Sociedade Nacional de Bellas Artes. O Occidente, Nº 841, Caetano Alberto da Silva
1902, p. 98.
18 A Exposição de Belas-Artes. Quadro de S. M. el-Rei. Illustração Portugueza, Nº 28, 1904, p. 135.
19 A Arte Portugueza na Exposição de S. Luiz. O Occidente, Nº 20, José Joubert Chaves, 1904, p. 312.
20 A. P. – El Rei Pintor. Illustração Portugueza, Nº 48, Carlos Malheiro Dias, 1907, p. 74.
21 Aguarella D`El-Rei. Illustração Portugueza, Nº 3, 1906.
22 J.C. – A Exposição de Milão. O Occidente, Nº 999, Caetano Alberto da Silva, 1906, p. 209.

173
GALERIE PEDRE DAUPIAS:
UM PONTO TURÍSTICO
EM ALCÂNTARA

RAMIRO A. GONÇALVES
Assistente da Coleção de Pintura, Museu Nacional de Arte Antiga, Lisboa, Portugal.
ramirogoncalves@mnaa.dgpc.pt

Resumo Palavras-chave
O empresário industrial conde Daupias foi um Galerie Pedre Daupias; colecionismo;
dos mais importantes colecionadores lisboetas museografia; século XIX.
de arte do último quartel do século XIX.
Na galeria que construiu na sua residência
em Alcântara, aberta ao público, era possível
admirar um conjunto excecional de pinturas
de velhos mestres ou pintores contemporâneos,
que evocaremos no presente artigo, através
de diversos relatos escritos: reportagem do
jornalista Rangel de Lima; a crónica de uma
jornalista americana, ou inglesa, que assina
R. M. mas que até hoje não foi possível
identificar; e as memórias de Thomaz de Mello
Breyner, 4.º conde de Mafra. Através destas
três contribuições poderemos ter um melhor
entendimento do espaço, as características da
visita pública e a vivência do lugar. Os visitantes
e frequentadores famosos da galeria serão
lembrados através das memórias do 4.º conde de
Mafra e de notícias de periódicos.

175
COLEÇÕES DE ARTE EM PORTUGAL E BRASIL NOS SÉCULOS XIX E XX

UMA VISITA IMPERIAL À


GALERIE PEDRE DAUPIAS

Antes de iniciar a travessia transatlântica que os levaria de regresso


ao Brasil, na segunda viagem que D. Pedro II (1825–1891) e D. Teresa
Cristina (1822–1889), empreendeu pelos Estados Unidos da América,
Europa e Médio Oriente entre 1876–1877, o casal imperial brasileiro fez
uma paragem em Lisboa. A comitiva ficou instalada no Hotel Bragança,
estabelecimento hoteleiro de referência da capital portuguesa. Dentro
da apertada agenda, o imperador escolheu a manhã do dia 8 de setem-
bro de 1877 para fazer uma visita à «fabrica do Sr. Visconde de Daupias,
em Alcantara, e a opulenta galeria de quadros daquele ilustrado indus-
trial, onde se demoraram perto de duas horas»1. A comitiva brasileira
partiu no dia seguinte, tendo chegado a terras brasileiras no dia 22 de
setembro de 1877.
Iniciada em 1874, a coleção Daupias integrou, desde o começo, os
pontos turísticos a visitar na capital portuguesa, pelo menos até 1910,
tendo o monarca brasileiro sido um dos primeiros visitantes ilustres que
passou pela Galerie Pedre Daupias. Iniciativa privada de Pedro Daupias
(1818–1900), feito visconde em 1876 e conde em 1886, o franco-portu-
guês descendia do importante industrial francês Jacome Ratton (1736-
c.1821), um dos estrangeiros que chegou a Portugal no reinado de D.
José I. Daupias viria a casar em 1845 com Joana Pereira de Almeida
(1822–1891), e após a morte desta, com Léa Roseyro Schwartz (1866–
1945), em 1895. Todavia, a riqueza do conde Daupias não era herdada:
a fonte principal dos rendimentos era a fábrica têxtil, assim como outros
investimentos financeiros que propiciavam um importante incremento
no rendimento mensal, que rondava cerca de 20 contos mensais2.
A galeria foi constituída para albergar a extensa coleção de obje-
tos artísticos que Pedro Daupias reunira como meio de superação da
dor pela morte sucessiva das suas duas jovens filhas (Rattazzi, 1882:
61). A pinacoteca era constituída por pinturas de artistas consagrados
como François Boucher (1703–1770), Jean-Honoré Fragonard (1732–
1806), Jean-Baptiste Greuze (1725–1805), Giovanni Battista Tiepolo

176
COLEÇÕES REAIS E COLEÇÕES OFICIAIS

(1692–1770) ou Thomas Lawrence (1769–1830), entre outros, assim


como por obras de artistas contemporâneos, caso de Jean-Baptiste-
Camille Corot (1796–1875), Ferdinand Victor Eugène Delacroix
(1798–1863), Giovanni Boldini (1842–1931) ou Jean-François Millet
(1814–1875). Podiam ainda ali admirar-se coleções de escultura antiga
e contemporânea e uma interessante seleção de artes decorativas.

UMA GALERIA DE ARTE NO MEIO


DE UM COMPLEXO FABRIL

«O palácio Daupias situado á beira do Tejo está contiguo das impor-


tantes installações de uma fabrica de fiação e tecidos, fundada e explo-
rada por este distincto industrial e que dá que fazer a centenares de ope-
rarios de ambos os sexos. Palacio, jardins, oficinas, machinas como que
todo aquelle complexo de actividade forma um pequeno mas grandioso
bairro hecterogeneo e originalissimo», in: Sexta-feira, 25 de fevereiro de
1887, Diario de Pernambuco.
O complexo Daupias situava-se na zona do Calvário, em Alcântara.
Era dominado pela Fábrica de Lanifícios, fundada em 1839 pelo pai do
conde, Bernardo Daupias (1781–1862), na zona do Calvário. Em 1844
dispunha de uma máquina a vapor de 6 cavalos vapor3,tendo passado
em fase posterior para 100 cavalos vapor4. A fábrica produzia tapetes,
moquetas, cobertores de lã, colchas de seda, gravatas, bonés, camisas e
xailes5. A produção fabril tinha no mercado brasileiro uma das princi-
pais fontes de escoamento da sua produção.
Na companhia do 4.º conde de Mafra, através das suas memórias,
façamos o percurso desde a entrada do complexo industrial até às galerias.
No final da antiga Travessa de Santo António, atual Rua Rodrigues
de Faria, encontrava-se o portão de ferro pelo qual se acedia à «Fabrica
Daupias», conhecida na altura como «Fabrica do Ratão, corrupção
do nome do seu fundador […] Jacome Ratton]» (Breyner, 1930: 128).
Ao atravessar o portão percorria-se uma rua com oficinas de ambos
os lados. A cerca de 100 metros «deparava-se ao lado esquerdo com

177
COLEÇÕES DE ARTE EM PORTUGAL E BRASIL NOS SÉCULOS XIX E XX

Fig. 1 – O Comercio e Industria. Vol. I. Ano 1 nº7. “Visconde Daupias” 1º Visconde e 1º Conde
Daupias. Pedro Eugénio Daupias (1818–1900), Fidalgo da Casa Real, grande industrial.
Empresa Almeida Pinto & Cº. Lisboa. Imagem: 10 x 14 ; Montagem: 26,5 x 37,5 cm
Lisboa, Biblioteca da Ajuda (233-X, reg. 736) ©DGPC/ADF/José Paulo Ruas, 2013

uma casa pequena de dois andares, de paredes bem pintadas» e com


«janellas persianas»: era a residência dos condes Daupias. Localizada
no epicentro do complexo industrial, a entrada para a casa realizava-
se através de uma «porta envernisada, com vidros de bôa qualidade».
Símbolo de modernidade, o palácio já tinha campainha elétrica. À porta
atendia um «creado elegante e sorridente – o senhor José». Entrando na
«casa d’entrada», o visitante deparava-se, à esquerda, com um aquário
em faiança da fábrica do Rato contendo «peixes exoticos». Passando por
uma «porta d’um só vidro» encontrava com a «escada de quatro lances,
com degraus de bôa madeira polida e atapetados». Das paredes da
escadaria pendiam aguarelas de artistas franceses, italianos e espanhóis.
No primeiro patamar, após a subida de dois lances de escadas, estavam

178
COLEÇÕES REAIS E COLEÇÕES OFICIAIS

«dois grandes armarios hollandezes» que impressionaram o conde


de Mafra. «D’esse andar» tinha-se acesso a uma «pequena saleta com
mobilia de […] estylo Luiz XV», a que se seguia a sala do bilhar. Os
dois compartimentos estavam separados por uma «porta feita d’um só
vidro»;como a sala do bilhar funcionava como sala de fumo, as senhoras
podiam assitir às partidas sem ficarem incomodadas pelo fumo. Era aí
que se encontrava também a sala de jantar, d quadrangular e «bastante
grande» mas «sobriamente adornada». A mesa de jantar era redonda
e podia receber 14 lugares sentados, pois «a comida cosinhada para
muitos não póde ser perfeita. E’ um rancho». Numa sala contínua,
«especie de cópa», havia um «aparelho de fazer gêlo», segundo Thomaz
de Mello Breyner, «o primeiro que funcionou em casa particular de
Lisbôa» (Breyner, 1934: 45–47).
Retornando à escadaria, subia-se novamente «dois lances d’escada
eguais aos primeiros» para chegar à elegante «sallinha particular da
Madame Daupias», divisão profusamente decorada com «preciosos
objectos d’arte e retratos», assim como recheada de «lembranças intimas
dos entes queridos e desapparecidos». Foi na parede do fundo deste
compartimento «que se abriu uma porta communicando com as novas
edificações», o espaço destinado «ás gallerias, onde Daupias junctou
quadros, esculpturas, tapeçarias, objectos d’arte» (Breyner, 1934: 49).

GALERIE PEDRE DAUPIAS

Segundo as memórias de Thomaz de Mello Breyner, a «sallinha par-


ticular da Madame Daupias», passando a porta da primeira sala, era
«quadrada e de grande pé direito» e dotada de claraboia. Era habitual-
mente conhecida como sala amarela devido ao damasco que cobria o
mobiliário de assento e, numa das paredes exibia uma «grande chaminé
em mármore preto». Desta sala, por uma porta à esquerda, passava-se à
sala azul, assim denominda por causa do «damasco azul celeste» do mo-
biliário: neste compartimento, igualmente dotado de claraboia, e para
além de pinturas de Nattier, estava pendurada uma grande tapeçaria

179
COLEÇÕES DE ARTE EM PORTUGAL E BRASIL NOS SÉCULOS XIX E XX

Gobelin representando o Triunfo de Baco. Na parede esquerda desta


sala abriam-se janelas com vista para os jardins, desenhados por Jean
Baptiste Désiré Bonnard (1797–1861). Para o escritor Ramalho Ortigão
(1836–1915), «As extensas galerias, de parquets polidos, circumdadas
de divans, ornadas de flores vivas, recebendo a lus dos tectos de vidro
fosco, desembocam n’um terraço suspenso sobre o Tejo e defrontando
com um dos mais bellos panoramas de Lisboa» (Ortigão, 1882).
O acesso à galeria grande era feito através da sala amarela e na pare-
de da direita havia uma porta de acesso ao recinto expositivo (Breyner,
1934: 49–51).
As galerias de exposição eram denominadas Galerie Pedre Daupias,
conforme informação contida na etiqueta de coleção que encontrámos
no verso de algumas pinturas. Da etiqueta constava igualmente o mote
do colecionador: «trahit sua quemque volutas» (cada qual tem o seu
gosto que o arrasta), apropriado das Bucólicas, também conhecidas
como Éclogas, de Virgílio.
Rangel de Lima (1839–1909)6 foi um dos primeiros jornalistas a vi-
sitar da galeria do conde Daupias. A reportagem que fez publicar em
janeiro de 1875 na revista Artes e Letras, e logo repescada pelo Diário
Illustrado, permite traçar o primitivo retrato do espaço. A galeria prin-
cipal, «levantada na sua casa ao Calvário», tinha as seguintes medidas:
16m de comprimento por 5,75m de largura. O espaço era dotado de
iluminação zenital proveniente de uma claraboia; as paredes, «cautelo-
samente dispostas para não deteriorarem as télas», estavam «pintadas
de uma cor que não prejudica o effeito dos quadros»; a cimalha estava
decorada com «um simples ornato fingindo como que uma cimalha de
pedra», pintado a fresco pelo «distincto artista decorador o sr. Bordes
[Pierre Bordes Joanni (1825–1884)].» (Lima, 1875). O repórter men-
ciona, igualmente, as ampliações que o colecionador já estava então a
empreender: «N’um dos extremos da galeria está a concluir-se um sa-
lon carrê», destinado a albergar «quadros modernos». Contudo, o plano
era para mais obras, pois «Terminado elle, seguir-se-lhe-ha outra ga-
leria egual á primeira, e no enfiamento d’esta, destinada aos quadros
[…] dispersos pelas suas salas», frisando «que são muitos», para além

180
COLEÇÕES REAIS E COLEÇÕES OFICIAIS

de se contemplar já espaço para a exposição das obras «que este intelli-


gente amador for daqui em diante comprando» (Lima, 1875). Em 1880,
as obras já estariam concluídas. Por altura da visita de Maria Rattazzi
(1813–1883), a galeria seria composta por «quatro grandes galerias e
dois pequenos salões, illuminados por claraboias» (Rattazzi, 1882: 63).
Em 1889, o espaço das galerias foi intervencionado pelo arquiteto
belga Jules-Arthur-Ernest Brunfaut (1852–1942)7. Terá perdido nesta
altura o aspeto heterogéneo criticado pela cronista Maria Rattazzi que,
durante a sua visita a em 1880, o descreveu com as seguintes palavras:
«Infelizmente, as galerias foram construidas uma apoz outra, amplian-
do-se á medida que o numero dos quadros augmentava, o que as pre-
judica sob o ponto de vista da ordem e unidade», acrescentando sobre
a exposição das obras que «Os quadros estão ali collocados uns sobre
os outros n’uma confusão de escolas e de datas que faz mal aos nervos»
(Rattazzi, 1882: 63).
Para a repórter R. M. do The Americn Register (London American
Register), que visitou o complexo Daupias em novembro de 1886, a par-
ticularidade da localização das galerias do conde construídas «upon a
piece of ground fifty metres square, between his dwelling house and his
factory, which now all are connected», constituía uma originalidade. A
insusitada implantação da galeria no meio do complexo industrial fazia
com que fosse afetada pela potência da máquina a vapor que fazia a
fábrica laborar. A vibração causada na estrutura do edifício, conjugada
com o som ritmado provocado pelo maquinismo, afloraram em alguns
comentários dos visitantes.
A jornalista R. M. deixou um relato vívido da sua experiência: «I take
pleasure in dwelling upon the fact that I enjoyed the beauties of a “Reine
du Ciel” by Rubens, listening the while to the nineteenth century music
of the factory in motion! The very floor on which I stood and which is
of beautiful wood mosaic, trembled a little in unison with my emotion.
That is a combination of the Past and the Present, the Beautiful and the
Useful, not met everyday, I take it. I spent three delightful hours among
these glories speculating the while on the future. What marvels will co-
ming generations produce?».

181
COLEÇÕES DE ARTE EM PORTUGAL E BRASIL NOS SÉCULOS XIX E XX

Contudo, nem todos os visitantes partilhavam da mesma opinião.


A uma senhora que perguntou ao conde «se era preciso tanto barulho
para fabricar sapatos de tranças e chales para as creadas», Daupias res-
pondeu que «graças áquelle barulho tinha elle podido reunir ali tantas
preciosidades». No final da visita à galeria, a dama encontrou um em-
brulho na carruagem contendo «um par de chinelos verdes enrolados
n’um chale de côr berrante e pregado com um alfinete o bilhete de visita
do titular-fabricante» (Breyner, 1934: 67).

VISITAS À GALERIE PEDRE DAUPIAS

Havia duas formas de visitar a Galerie Pedre Daupias. Uma, era


mediante marcação ao domingo8. A outra, era através de convite para
jantar, sarau, concerto, soirée ou outro acontecimento, mas nunca para
baile, pois em casa do casal Daupias «era prohibida a dança» (Breyner,
1934: 66).
Para os almoços e jantares, os critérios que orientavam os convites
«não eram os brazões, mas sim os predicados pessoaes», ou seja, «fidal-
gos de quatro costados uma vez que tivessem valor pessoal e não fossem
secantes». O conde preferia «gente interessante pelo talento, pelo saber,
pela graça ou até – e talvez principalmente – pela formosura, das damas
bem entendido» (Breyner, 1930: 129–130).
O dia de Ano Novo, segundo as memórias de Thomaz de Mello
Breyner, era o dia em que, após o cerimonial do beija-mão real no Real
Paço da Ajuda, entre as 15 e as 16h começavam a chegar os convida-
dos que pouco a pouco «enchiam […] as sallas de pessoas de todas
as classes, das mais variadas proveniencias e camadas da sociedade»,
«desde os politicos graudos e diplomatas até aos actores e mais artis-
tas de generos diversos», considerando a «mistura devéras interessante
e original» (Breyner, 1934: 51). O memorabilista enumera alguns dos
frequentadores e os visitantes mais célebres da galería do conde, desde
políticos como Fontes Pereira de Melo (1819–1887), Thomaz Ribeiro
(1831–1901), António Cardoso Avelino (1822–1889), Henrique de

182
COLEÇÕES REAIS E COLEÇÕES OFICIAIS

Fig. 2 – Caricatura da escritora portuguesa Maria Rattazzi (1813–1883), conhecida


como “Princesa Rattazzi”, da autoria de Raphael Bordallo Pinheiro (1846–1905).
Publicado no Álbum das Glórias, n.º 4, Abril 1880. ©Hemeroteca Digital

Fig. 3 – (Pormenor) Abertura dos congressos (Reunião do congresso em uma das


galerias Daupias, onde floresce em obras primas a arte, que o governo cultiva em
portarias), 1880. Raphael Bordallo Pinheiro (1846–1905). Publicado n’O Antonio
Maria, n.º 69, Lisboa: 23 de setembro de 1880, p. 309. ©Hemeroteca Digital

183
COLEÇÕES DE ARTE EM PORTUGAL E BRASIL NOS SÉCULOS XIX E XX

Barro Gomes (1839–1898), Júlio de Vilhena (1845–1928) ou António de


Serpa Pimentel (1825–1900), aos membros do corpo diplomático como
o Núncio Apostólico em Portugal, Monsenhor Caetano Mazella (1826–
1902, nunciatura em Lisboa: 1879–1883); o francês Paul de Laboulaye;
o Ministro da Bélgica Jules Xavier Charles Greindl (1835–1917), conde
Greindl; o ministro plenipotenciário do Governo Imperial Brasileiro,
Francisco Xavier da Costa de Andrada (c.1822–1892), barão de Aguiar
de Andrada e o seu secretário Luiz Guimarães Júnior (1845–1898); o
espanhol Juan Valera (1824–1905); representando o Império Austro-
Hungaro, o barão Dumreicher e o seu secretário o principe de Wrede;
o enviado do Império Russo, Dmitry Glinka (1808–1883, embaixador
em Lisboa: 1871–1883) com o seu secretário Koudriawsky; o ministro
italino, o marquês Filippo Oldoini (1817–1890, embaixador em Lisboa:
1848–?); e ainda o representante do Reino Unido, Sir Robert Morier
(1826–1893, embaixador em Lisboa: 1876–1881) (Breyner, 1934: 51–56).
Figuras excêntricas passaram pelas galerias, como o prestidigi-
tador francês Faure Nicolay (1830–1904) ou a sua conterrânea Sarah
Bernhardt (1844–1923). «De l’art plein les yeux, de la reconnaissance
plein le cœur!»9 escreveu a celebrada atriz francesa no livro de visitantes
da Galerie Pedre Daupias após uma visita (segundo outro jornalista terá
escrito: «La reconnaissance plein le coeur, l’admiration plein les yeux,
je quitte ce petit Louvre»10). Por estes anos as galerias do conde eram já
apelidadas de «Musée Daupias» pelo jornalista da revista L’Art Moderne-
Revue critique des arts et de la littérature11.
Algumas figuras da elite portuguesa, como Henri Burnay (1838–
1909), Eça de Queiroz (1845–1900) ou Jerónimo Colaço de Magalhães
(1844–1884) eram frequentadoras da casa dos condes Daupias, assim
como a intelectualidade espanhola, tendo a escritora galega Emilia Pardo
Bazán (1851–1921), por exemplo, visitado a Galerie Pedre Daupias no
seu périplo por Portugal. Em carta para Francisco Giner de los Ríos
(1839–1915), chegou a escrever: «He visto su firma de V. en el museo
Daupiás – Bien retórico estaba aquello y el pensamiento tenía de todo
(un peu d´humanitairerie)»12. Ao escrever estas palavras, talvez Pardo
Bazán se lembrasse da visita falhada de Giner de los Ríos à coleção do

184
COLEÇÕES REAIS E COLEÇÕES OFICIAIS

Fig. 4 – Os notaveis concertistas Gregorowitch, Fig. 5 – Retrato de Jean Burnay, 1884, Lisboa.
Rubio e Vallejos, 1886. Raphael Bordallo Anders Zorn (1860–1920). Aguarela sobre
Pinheiro (1846–1905). Publicado no Pontos nos papel, 70 × 52 cm. Proveniência: compra,
ii, n.º 49. Lisboa: 8 de Abril de 1886, p. 385. 1977. Nationalmuseum, Suécia. NMB 2104
©Hemeroteca Digital ©Nationalmuseum

«vizconde de Daupias», que «no la pudimos visitar, por hallarse ausente


su dueño»13.
Outra maneira de visitar as galerias era através de convite para con-
certos. O conde era melómano e o seu amor pela música levava fre-
quentemente à contratação de concertistas como por exemplo a do vio-
loncelista murciano Agustín Rubio (?), do violinista madrileno Enrique
Fernández Arbós (1863–1939) ou do pianista Rey Colaço (1854–1928),
que recebeu um apoio do conde para ir estudar fora de Portugal. Maria
Rattazzi menciona um «faustoso concerto» dado por Daupias, por volta
de 1878, em «honra do rei-artista [D. Fernando II de Portugal], da con-
dessa d’Edla e do infante D. Augusto» (Rattazzi, 1882: 65).
A galeria de Daupias estava aberta aos artistas nacionais ou interna-
cionais como Rafael Bordalo Pinheiro (1846–1905) ou o sueco Anders
Zorn (1860–1920). Zorn visitou a galeria na sua passagem por Lisboa,

185
COLEÇÕES DE ARTE EM PORTUGAL E BRASIL NOS SÉCULOS XIX E XX

em 1883–4. Após a frequência da Real Academia Sueca de Belas Artes,


o jovem Zorn, recém-chegado a Londres, conseguiu algumas encomen-
das de retratos. Na sua chegada à Lisboa, cedo se deparou com alguns
problemas financeiros, e munido de uma carta de recomendação de
um dos seus clientes ingleses, Julius Beerbohm (1854–1906), retra-
tado pelo artista em Londres, conseguiu de Daupias a encomenda de
pelo menos dois retratos: Joana Pereira de Almeida, esposa do con-
de (Zornmuseet, Suécia), e João Burnay (1843–1903), genro do casal
Daupias (Nationalmuseum, Suécia, NMB 2104). Segundo as palavras do
artista, a realização das obras decorreu nos salões da galeria ao som de
música interpretada ao vivo por intérpretes espanhóis (Engström, 1928:
105–106).

CONCLUSÃO

De portas abertas ao Calvário, em Alcântara, as galerias do conde


Daupias tornaram-se cedo num ponto turístico para nacionais e es-
trangeiros. Como vimos, desde 1875 era possível visitar a Galerie Pedre
Daupias. A qualidade das peças expostas levou Ramalho Ortigão a afir-
mar, em 1882, «A sua galeria de quadros e de objectos d’arte é uma das
primeiras do mundo» (Ortigão, 1882). Não só os periódicos nacionais
exortavam os interessados a visitar o espaço, mas a advertência apare-
cia igualmente de meios noticiosos internacionais: «Bien avisés sont le
touristes qui, ayant parcouru l’Espagne, complètent leur voyage par une
excursione en Portugal», aviso feito na edição da L’Art moderne-Revue
critique des arts et de la littérature de 18 de maio de 1890 onde é clara a
importância do espaço e das obras expostas: «la colletion de M. le comte
Daupias, à Lisbonne, doit venir en première ligne, et il nous a paru inte-
ressant de noter, pour les lecteurs de l’Art moderne, quelques-unes des
richesses qu’elle renferme»14.
Lamentavelmente este polo de atração quase turístico não terá grande
futuro, devido a vários problemas que se prendem com a morte suces-
siva da primeira condessa, problemas familiares inerentes as partilhas,

186
COLEÇÕES REAIS E COLEÇÕES OFICIAIS

problemas financeiros e, finalmente a sua morte trágica colocaram um


fim dramático a esta aclamada coleção. A dispersão da celebrada cole-
ção Daupias em sucessivos leilões organizados em Paris e Lisboa entre
1892 e 1910 veio pôr termo a um dos celebrados pontos turísticos lis-
boetas do final do século XIX/princípio do século XX. A demolição do
complexo Daupias já nos anos 20 do século XX fez desaparecer o que
restava da sua memória.

AGRADECIMENTOS
Ana Daupias d’Alcochete e Nuno Daupias d’Alcochete; Hugo Xavier (PNP/PS-ML); Anísio Franco,
Celina Bastos e Miguel Soromenho (MNAA)

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BREYNER, Thomaz de Mello. Memórias do Professor Thomaz de Mello Breyner, 4º Conde de Mafra,
1869–1880. Lisboa: Parceria António Maria Pereira. 1930.
BREYNER, Thomaz de Mello. Memórias do Professor Thomaz de Mello Breyner, 4º Conde de Mafra,
1880–1883. Lisboa: Oficina Grafica, L.DA. 1934.
ENGSTRÖM, Albert. Anders Zorn. Estocolmo: Albert Bonniers Forlag. 1928.
GONÇALVES, Ramiro A.. «DAUPIAS, Pedro Eugénio (Paris, 1818-Lisboa, 1900), 1.º visconde e 1.º
conde Daupias», in Dicionário Quem é Quem na Museologia Portuguesa. Instituto de História de Arte
da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa (IHA-FCSH/NOVA)
(no prelo).
M., R. 1886. «A woman’s letter from Portugal», in The Americn Register: London American Register.
[Nova Iorque]: 4 de dezembro de 1886.
ORTIGÃO, Ramalho, 1882. “Visconde Daupias”. Diario Illustrado. 1882. Lisboa: 27 de fevereiro,
n.º 3161, Lisboa.
RATTAZZI, Maria. Portugal de Relance. Lisboa: Livraria Zeferino-Editora. 1882.

NOTAS
1 Collaboração – Correspondencia do Jornal do Recife – lisboa, 13 de setembro de 1877. Jornal do Recife, quinta-
-feira, 27 de setembro de 1877, p. 2. col. 4.
2 RAMOS, Rui, D. Carlos, Rio de Mouro, Círculo de Leitores e Centro de Estudos dos Povos e Culturas de
Expressão Portuguesa, 2006, p. 113.
3 MATOS, Ana Cardoso de, A utopia do conhecimento químico e da engenharia urbana para a solução dos pro-
blemas das cidades do século XIX: o caso de Lisboa. XIV Coloquio Internacional de Geocrítica Las utopías y la
construcción de la sociedad del futuro. Barcelona, 2016, p. 6.
4 SEIXAS, Maria Augusta, As operárias de Alcântara e as suas lutas antes e durante a I República. Alcântara: UMAR/
Centro de Documentação e Arquivo Feminista Elina Guimarães. 2012, p. 8.

187
COLEÇÕES DE ARTE EM PORTUGAL E BRASIL NOS SÉCULOS XIX E XX

5 Idem.
6 Francisco Rangel de Lima (1839–1909) foi funcionário público, tendo-se destacado em atividades literárias liga-
das ao jornalismo e à crítica de arte especialmente através da revista Artes e Letras. Cheg ou a pintar e a expor na
Sociedade Promotora de Bellas Artes.
7 Em 1889, o arquiteto belga, durante a estadia lisboeta, intervencionou nas obras dos palacetes Burnay e Ribeiro
(modelo no Musée de Ixelles), a remodelação da Quinta da Trindade no Seixal (propriedade de João Burnay,
genro do conde Daupias) e o layout da Galeria de Arte do Conde Daupias, seu período criativo cobre cin-
quenta anos. Ver: POIRIER, Pierre, «BRUNFAUT», in Biographie Nationale publiée par l’Académie Royale des
Sciences, des Lettres et des Beaux-arts de Belgique. Tome trente-quatrième – supplément tome vi (fascicule 1er).
Adriaensen – Gubbels. Bruxelas: Établissements Emile Bruylant. 1967, p. 144–147.
8 KEIL, Alfredo. Collecções e museus de arte em Lisboa. Lisboa: Livraria Ferreira & Oliveira. 1905, p. 13.
9 L’ART MODERNE – Paraissant le dimanche – Revue critique des arts et de la littérature. Domingo, 18 de Maio de
1890, Ano 10 – N.º20, Bruxelas, p. 155–157.
10 Léon Roger-Milès «Au Jour le Jour UN COLLECTIONNEUR/ LE COMTE DAUPIAS» in Le Figaro, Quinta-
feira, 12 de Maio de 1892, número 133, Paris, p. 1.
11 L’ART MODERNE – Paraissant le dimanche – Revue critique des arts et de la littérature. Domingo, 18 de Maio de
1890, Ano 10 – N.º20, Bruxelas, p. 155–157.
12 GAMALLO, Antonio Deaño. «Las cartas de Emilia Pardo Bazán a Antonio Machado y Álvarez» in La Tribuna:
cadernos de estudos da Casa Museo Emilia Pardo Bazan, Nº. 6. Págs. 173–234. 2008, p. 192.
13 GINER DE LOS RÍOS, Francisco, GINER DE LOS RÍOS, Hermenegildo. 1888.Portugal. Impresiones para servir
de guía al viajero. Madrid: Imprenta Popular, p. 125.
14 L’ART MODERNE – Paraissant le dimanche – Revue critique des arts et de la littérature. Domingo, 18 de Maio de
1890, Ano 10 – N.º20, Bruxelas, p. 155–157.

188
A PORCELANA CHINESA DE
EXPORTAÇÃO NO SÉCULO XIX
E O MERCADO BRASILEIRO

MARIA FERNANDA LOCHSCHMIDT


Mestrado em História da Arte, Universidade de Viena. Pesquisadora independente. Tóquio, Japão
fernanda@gmx.net

Resumo Palavras-chave
O objetivo deste trabalho é oferecer um Porcelana Chinesa de Exportação; Jingdezhen;
panorama histórico sobre a produção e China; D. João VI; Guerra do Ópio
comercialização de porcelanas chinesas no
século XIX, trazendo à luz as tendências e estilos
deste período disruptivo. Internamente a China
vive uma era dramática, com guerras e distúrbios
sociais que afetaram a produção em Jingdezhen.
Externamente, a comercialização de porcelanas
adota outros rumos devido à concurrência
de manufaturas europeias, à extinção das
Companhias das Índias inglesa e à ascensão dos
Estados Unidos como potência marítima. Nesse
período o Brasil ascende a Reino e Império,
tornando-se um importante mercado para as
porcelanas chinesas.

189
COLEÇÕES DE ARTE EM PORTUGAL E BRASIL NOS SÉCULOS XIX E XX

INTRODUÇÃO

O século XVIII fora o período áureo da porcelana chinesa para o


mercado europeu, época em que centenas de milhares de peças de qua-
lidade foram exportadas, hoje fazendo parte de importantes coleções,
seja em museus ou privadas. O século XIX, no entanto, trouxe significa-
tivas mudanças tanto na produção quanto na comercialização de peças.
Do ponto de vista histórico, a China vive uma era dramática, com graves
problemas sociais e étnico-religiosos, aumento desmedido da popula-
ção sem a infraestrutura correspondente, e a incapacidade de lidar com
os desafios da pressão externa, principalmente da Inglaterra.
No Velho Continente, os estragos causados pelas Guerras
Napoleônicas (1803–1815) fazem com que praticamente não se importe
a porcelana chinesa. Este fato coincidiu com o surgimento das manufa-
turas locais, que começam a produzir peças de qualidade a preço acessí-
vel, inclusive ao estilo chinês. A Inglaterra, maior compradora de porce-
lana chinesa no século XVIII, passa a taxar em 1800 em 100% o produto
chinês a fim de favorecer a própria indústria,1 e a estatal Honorable East
India Company, que mantinha o monopólio do comércio inglês com o
Oriente, cessa oficialmente de importar porcelanas chinesas em 1791.
O lucrativo comércio com a China passa a ser feito por mercadores pri-
vados britânicos.
A lacuna deixada pelos europeus seria preenchida no século XIX pe-
los norte-americanos, que ao não ter uma indústria cerâmica capaz de
suprir o mercado interno, tornaram-se grandes importadores principal-
mente durante a primeira metade do século XIX. O início do intenso
comércio marítimo entre os Estados Unidos e a China ocorre em 1784,
um ano após a independência da Inglaterra, com a partida do navio
Empress of China de Nova Iorque rumo a Cantão.
Além dos Estados Unidos e da Inglaterra, também o Brasil torna-se
um importante mercado para a porcelana chinesa principalmente após
o traslado da corte de D. João VI para o Rio de Janeiro e a abertura
dos portos às nações amigas, iniciando um novo ciclo econômico na
ex-colônia.

190
COLEÇÕES REAIS E COLEÇÕES OFICIAIS

OS PRINCIPAIS EVENTOS HISTÓRICOS E A


PRODUÇÃO DE PORCELANAS PARA EXPORTAÇÃO
NO SÉCULO XIX

No século XVIII Jingdezhen fora talvez o maior centro industrial do


mundo, contabilizando mais de 3000 fornos e um milhão de trabalhado-
res ocupados no segmento, acionados sob a rígida tutela da casa impe-
rial de Pequim.2 Na virada do século a situação começa a mudar.devido
à instabilidade social. Rebeliões lideradas por seitas budistas acontecem
em várias províncias chinesas, provocando confrontos com as tropas
imperiais. Em 1820 graves inundações na bacia do Rio Amarelo termi-
nam por tornar o Grande Canal inoperável, obrigando que o transporte
de grãos da região sul para o norte se realizasse por via marítima. Tais
problemas mantiveram o imperador Jiaqing (r.1796–1820) afastado do
controle da produção em Jingdezhen. Consequentemente, a manufatu-
ra de peças para exportação começraam a proceder de maneira cada
vez mais independente da direção imperial, tanto na fase produtiva nos
fornos de Jingdezhen, como na aplicação de esmaltes em Cantão, resul-
tando na perda de qualidade. Após enormes pressões comerciais por
parte da Inglaterra, acontece a primeira Guerra do Ópio (1839–1842)
durante o reinado Daoguang (r.1821–1850). Aceita-se como causa que
a China tinha se tornado exclusivamente vendedora de produtos manu-
faturados, não oferecendo alternativas de compras. Sem querer aban-
donar o rentável negócio de comprar as manufaturas chinesas e reven-
der mundo afóra, a opção foi vender ópio aos chineses. Assim foi que a
venda de ópio passou de 200 caixas em 1729 a mais de 40.000 caixas em
1838.3 Do ponto de vista militar, a Guerra do Ópio não foi tão impor-
tante quanto da ótica diplomática e de comércio exterior. Após assinar
o Tratado de Nanquim em 1842, a China foi obrigada a entregar a ilha
de Hong Kong aos ingleses e a abrir quatro outros portos ao comércio
exterior: Amoy, Shanghai, Ningbo e Foochow, além de otorgar o direito
judicial aos ingleses caso um cidadão daquele país fosse envolvido em
um ato criminal na China4. Apesar da gravidade, a Guerra do Ópio não
conseguiu deter a produção em Jingdezhen. Nota-se no entanto que a

191
COLEÇÕES DE ARTE EM PORTUGAL E BRASIL NOS SÉCULOS XIX E XX

proporção de peças de alta qualidade diminui sensivelmente, sobretudo


entre as destinadas à exportação, que começam a apresentar um aspecto
puramente comercial.
O reinado do imperador Xianfeng (r.1851–1861) foi talvez o mais
tumultuoso da história imperial chinesa. Ao ascender ao trono aos vin-
te anos de idade, o jovem manchu perde a Segunda Guerra do Ópio
(1856–1860) e o Palácio Yuanmingyuan é pilhado e incendiado pelas
tropas britânicas e francesas, e Kowloon é cedido aos ingleses.
Em 1850 acontece a Rebelião Taiping, dirigida por Hong Xiuquan
(1814–1864) quem se dizia filho de Deus. Estima-se que neste evento
de caráter político-religioso mais de 20 milhões de pessoas perderam
suas vidas. Ao todo 17 províncias chinesas foram devastadas, sendo
Jingdezhen destruída em 1853 e seus artesãos massacrados.
Em 1864, após as tropas imperiais libertarem Jingdezhen dos rebel-
des, Cai Jinqing é convocado por Pequim para administrar a produ-
ção de porcelanas, tanto para a casa imperial quanto para exportação.
Nota-se a partir de então uma expressiva melhora da qualidade das pe-
ças devido ao renovado interesse de Pequim em vistoriar a produção5.
Outras fontes literárias, no entanto, citam relatos de uma testemunha
que descreve a situação dos fornos após a Rebelião dos Taipings da se-
guinte maneira: “O comércio voltou ao normal paulatinamente, sendo
que em 1869 existiam somente 110 fornos em funcionamento empre-
gando 150.000 pessoas, comparados com os 300 durante o período do
imperador Daoguang (r.1821–1850). Os fornos especiais que se encar-
regavam de produzir peças imperiais nunca foram reconstruídos, tanto
é que a partir da Rebelião Taiping (1850–1864) até a República (1912), o
Palácio Imperial era obrigado a encomendar as porcelanas aos melhores
fornos privados.”6
As últimas décadas do século XIX foram marcadas pelas tentativas
do círculo governamental de realizar reformas econômicas e políticas,
e pelo embate entre continuar com as tradições confucianistas ou mo-
dernizar o estado. Nesse período surge a figura da imperatriz viúva Cixi
(1835–1908), uma das consortes do imperador Xianfeng (r.1851–1961),
quem através de hábeis manobras e intrigas conseguiu, não oficialmente

192
COLEÇÕES REAIS E COLEÇÕES OFICIAIS

porém efetivamente, governar a China até sua morte. Cixi era aman-
te de porcelanas e envolveu-se diretamente na produção, ordenando a
execução de suas próprias peças, conhecidas como “Dayazhai”, datadas
de 1862–74, e cuja particularidade é o uso da flor de glicínia. A constan-
te ligação de Cixi na produção em Jingdezhen trouxe não só melhoria
na qualidade das peças, senão que também novas e coloridas estampas,
muitas em simbiose com padrões vistos em sedas e têxteis.

O TRANSPORTE DE PORCELANAS
DE JINGDEZHEN ATÉ CANTÃO

As porcelanas para exportação eram embaladas em Jingdezhen em


pacotes cilíndricos com cordas que as mantinham firmemente juntas, a
fim de poder percorrer os cerca de 650 km até Cantão, onde se encontra-
vam as feitorias europeias e americana. Os pacotes cilíndricos primei-
ramente seguiam por barco pelo rio Chang até o Lago Poyang, de onde
eram transferidas a embarcações maiores que pudessem atravessá-los.
Logo eram transferidos a embarcações menores para atravessar o Rio
Gan. De lá a travessia pelo desfiladeiro de Meiling era feita a pé e durava
cerca de 9 horas. Após isso, eram transportadas por barco até Cantão8.

O SISTEMA DE CANTÃO

O Sistema de Cantão foi criado pelo imperador Qianlong (r.1736–


1795) em 1760 para regulamentar o rentável comércio com a Europa
através do porto de Cantão, o único aberto aos mercadores estrangei-
ros. O Sistema vigorou até 1842, data em que a China perde a Guerra
do Ópio. O regulamento estipulava que os navios podiam permanecer
atracados no porto somente durante o período das negociações. As tri-
pulações estrangeiras por sua vez, deviam ficar confinadas nas feitorias,
ou factories, de seus países.

193
COLEÇÕES DE ARTE EM PORTUGAL E BRASIL NOS SÉCULOS XIX E XX

Fig. 1

As negociações comerciais só podiam ser efetuadas através dos


Hongs, que eram comerciantes influentes diretamentes ligados ao go-
verno central de Pequim. Nenhuma mercadoria podia sair da China
sem sua autorização e o pagamento das devidas taxas. Hong em chinês
significa administrar, controlar. De fato, o Sistema de Cantão era um
sistema de controle do mercado exterior. A meados do século XVIII
existiam treze Hongs e treze feitorias europeias. Além da Inglaterra, que
era a principal atuante, a Holanda, França, Dinamarca, Suécia e Áustria
mantiveram sua representação em Cantão enquanto o comércio lhes foi
favorável, isto é, até começos do século XIX. Os espanhóis realizavam o
comércio através de Manila e os portugueses desde Macau. Os Estados
Unidos se lançam ao comércio com o Império do Meio em 1783. Em
1818 seus navios já eram os mais numerosos em Cantão, afirmando sua
crescente participação no comércio com a China.

194
COLEÇÕES REAIS E COLEÇÕES OFICIAIS

MACAU NO SÉCULO XIX

Diferentemente dos navios mercantes com bandeiras europeias e


do continente americano, que negociavam através de Cantão, os navios
portugueses realizavam suas operações comerciais com a China direta-
mente de Macau.9
A princípios do século XIX, a Cidade do Nome de Deus vive um
período de prosperidade em parte devido ao levantamento de 1793 efe-
tuado pelo governo português das restrições à residência de chineses
na cidade. Esta medida veio a estimular a transferência de mercadores
ricos de Cantão e da província de Guangdong para Macau, que a tornou
um entreposto para o comércio marítimo não só regional de cabota-
gem, mas também intercontinental. Os novos residentes, mercadores
chineses de influência, agiam individualmente ou associados aos Hongs
de Cantão, e eram capazes de oferecer as mesmas cargas que as compa-
nhias estrangeiras iam buscar em Cantão em condições mais vantajosas,
melhorando assim o ambiente de negócios.
Além disso, a carta régia de 1810 que autorizava o comércio direto
entre o Brasil e Macau veio a estimular a economia e o movimento do
porto. Embora se desconheça com exatidão a composição das cargas
de exportação, sabe-se que fundamentalmente compreendiam produtos
chineses como porcelanas, lacas e chá.
Macau também se viu beneficiada pelo fato de grandes companhias
comerciais europeias e americanas, como a inglesa Honorable East
India Company, terem escolhido Macau como entreposto para seu co-
mércio com a China. Este fato se explica porque segundo as regras de
confinamento do Sistema de Cantão, os mercadores podiam ali atracar
os navios sem porém estar permitidos de residir nas feitorias durante o
ano todo nem de levar suas mulheres. Por essa razão escolhiam o clima
ameno e o ambiente europeu de Macau para instalar seus escritórios e
armazéns e ali permanecer durante os meses de espera e de inatividade
econômica junto às suas famílias.10
A americana Carolyn Hyde Butler, em seu diário de viagem a bordo
do navio Roman em 1836–7, relatara:

195
COLEÇÕES DE ARTE EM PORTUGAL E BRASIL NOS SÉCULOS XIX E XX

“Entre os cerca de 50.000 habitantes de Macau, 3.700 eram europeus,


incluindo 2700 mulheres esperando por seus maridos ou pais, que se
encontravam no mar ou em Cantão, uns 600 eram escravos e o resto,
uns 45.000, eram chineses”...
“Durante a maior parte do ano, a população ocidental de Macau era
portuguesa. O círculo de britânicos e americanos somava uns trinta, a
maioria mulheres, que pouco tinham a ver com a comunidade luso-fa-
lante, exceto através de cerimônias entre as senhoras. O tédio terminava
em abril, quando os mercadores terminavam com as negociações em
Cantão e vinham passar o verão em Macau”.11
A partir dos anos 30, Macau experimenta um período de estagnação
econômica com o término de uma realidade mercantil dominada exclu-
sivamente pela comunidade portuguesa ou cristã e pelo avanço de aven-
tureiros chineses. Este fato se agravou com a fundação de Hong Kong
em 1842 e a transferência de escritórios comerciais para a ilha. A partir
de então, Macau perde importância e tem dificuldades em sustentar as
rotas de comércio inter-asiáticas.
A resposta governamental de Lisboa para esta nova situação foi tor-
nar Macau um porto franco em 1845 e apostar na complementaridade
com Hong Kong, em vez da competitividade.
Mais tarde, a Rebelião dos Taiping (1850–1864) provoca uma nova
leva de imigração de chineses ricos para Macau, ativando o comércio
intercontinental.12
Segundo os relatos de Henrique Carlos Ribeiro Lisboa (1847–1920),
integrante da primeira missão do governo imperial do Brasil à China
que durou de 1880 a 1882, a situação de Macau nesse período era de
deterioração econômica, pois constata-se que o número de navios que
saiam do porto passa de 1000 em 1860 a 200 duas décadas depois, sendo
a maioria destinados a trajetos de cabotagem.13

196
COLEÇÕES REAIS E COLEÇÕES OFICIAIS

A PORCELANA DE EXPORTAÇÃO NO SÉCULO XIX


E SEUS PRINCIPAIS ESTILOS DECORATIVOS

A partir de 1740–45 a região de Cantão torna-se o principal centro


para decorar a porcelana para exportação vinda de Jingdezhen. A proxi-
midade com o comprador que se encontrava no porto de Cantão torna-
va mais fácil para o esmaltador atender aos requerimentos específicos.
Esta vantagem faz que no século XIX os ateliers decoradores de Cantão
virtualmente adquiram o monopólio do processo de esmaltagem.14
A porcelana do período Jiaqing (r.1796–1820) dá continuação aos
padrões dos últimos anos de Qianlong, sem trazer maior originalidade
e mostrando comparativamente menor qualidade. O aspecto geral das
peças é sóbrio, tanto na forma como na decoração.
O padrão FitzHugh, que surge nas últimas décadas do século XVIII,
se prolonga até meados do XIX em variantes de azul sob vidrado e es-
maltes de diferentes cores sobre o vidrado.
As louças “Canton” (“Macau” no Brasil) e “Nanquim” eram feitas e
decoradas em Jingdezhen, em azul de cobalto sob vidrado com o clássi-
co motivo do pagode e salgueiro. As primeiras eram as mais populares e
econômicas, e podiam ser adquiridas massivamente nas lojas de Cantão.
Já as “Nanquim” apresentam melhor qualidade, tanto no corpo
como na decoração, e podiam trazer detalhes em ouro e a borda estilo
FitzHugh.
O padrão “Folha de Tabaco” renasce no século XIX com duas ver-
sões: uma com predominância de tons de verde de 1800–1810 e outra
que inclui mais azul de cobalto e turquesa, de 1820–1850.
Ao final do primeiro quarto do século XIX ocorre uma importante
mudança na decoração das porcelanas para exportação com a incorpo-
ração de figuras, flores e motivos zoológicos que passam a cobrir toda a
superfície das peças. Observa-se um decidido retorno à cor, utilizando
toda a paleta de esmaltes da Família Rosa e ainda ouro, em um estilo de-
corativo puramente oriental. Pelo fato de as porcelanas serem decoradas
em Cantão, deu-se-lhes o nome de Canton Famille Rose. Existem dois
grandes tipos: o Mandarin Enamels, com figuras chinesas, aparecendo

197
COLEÇÕES DE ARTE EM PORTUGAL E BRASIL NOS SÉCULOS XIX E XX

Fig. 2

entre 1805–1870 e o Rose Medallions, com flores e borboletas, de ca.


1850–1910.15
No segundo e terceiro quarto do século as formas, sobretudo em va-
sos, jarras e bules tornam-se menos sóbrias e mais “barrocas”.
Durante o período Daoguang (r.1821–1850), quando ocorre a Guerra
do Ópio, observa-se uma deterioração geral da qualidade das porcela-
nas. As do período Xianfeng (r.1851–1861) embora se assemelham às
do período anterior dando continuidade a certos padrões decorativos e
formas, apresentam melhor qualidade.
Após a reorganização dos fornos de Jingdezhen em 1864 sob a tutela
de Cai Jinqing a qualidade da porcelana melhora visivelmente tanto
no corpo quando na decoração das peças. Típicas do reinado Tongzhi
(r.1861–1875) são as peças decoradas com figuras chinesas de poetas e
poesias da era Tang (618–907), dispostos em quatro setores e um cen-
tral, com muito espaço em branco, o que ajuda a ressaltar a qualidade
da porcelana.
Por volta de 1870 surgem novos padrões decorativos: “Dragão
vermelho, dragão verde” típico de 1870–90; “Mil Borboletas”, “Mil

198
COLEÇÕES REAIS E COLEÇÕES OFICIAIS

insetos”, e “Folha de Couve”, que perduram quase até o fim do século.


A fins do século XIX, durante o reinado do imperador Guangxu
(r.1875–1908), nota-se uma melhoria na qualidade de grande parte das
peças para exportação. As porcelanas são extremamente finas, brancas
e translúcidas, contendo provavelmente maior quantidade de caulim
do que em períodos imediatamente prévios. As cores dos esmaltes são
transparentes e a pintura é feita de forma meticulosa.7 Nota-se também
um retorno a períodos clássicos, como o de Kangxi (r.1662–1722), tan-
to nas formas como na organização da decoração. Nessa época surge o
padrão “Mil Flores” nos esmaltes da Família Rosa.

O COMÉRCIO COM A INGLATERRA

A porcelana era talvez o único produto que se importava da China


e que estava sendo manufaturado na Inglaterra e no resto da Europa
no século XVIII, e por essa razão foi altamente taxado. Em 1791 The
Honorable East India Company cessa oficialmente de importar porcela-
nas e em 1834 a estatal perde o monopólio do comércio britânico com
a China, deixando de operar definitivamente em 1858. No entanto a
Inglaterra continuou a importar porcelanas chinesas durante todo o sé-
culo XIX através de mercadores privados que já vinham atuando desde
1770, apesar do monopólio da H.E.I.C. Vale ressaltar que as peças enco-
mendadas pelos comerciantes privados eram de alta qualidade.

O MERCADO NORTE-AMERICANO

Os americanos tornaram-se os maiores compradores de porcelana


chinesa no século XIX, maiormente porque até 1844 não tiveram uma
indústria cerâmica que fosse capaz de abasteccer o mercado doméstico e
também porque a porcelana da Inglaterra, após a guerra da independên-
cia, não despertava interesse. Diferindo de outros países, os americanos
não tiveram uma companhia estatal que controlasse o comércio com a

199
COLEÇÕES DE ARTE EM PORTUGAL E BRASIL NOS SÉCULOS XIX E XX

China, sendo qualquer cidadão livre para negociar com quem quisesse.
Calcula-se que tenham sido transportadas umas quarenta milhões
de peças em aproximadamente cinco mil viagens. A grande maioria das
peças eram utilitárias e de baixo preço, do tipo azul e branco, compondo
serviços de mesa, chá e café. As encomendas personalizadas e de qua-
lidade superior seguiram a tendência geral do século XIX de dar prefe-
rência a peças pseudo-armoriadas, com monogramas ou simplesmente
portadoras de iniciais de organizações ou pessoas proeminentes16. Esta
tendência se deu também porque após a guerra da independência, evi-
tara-se utilizar a heráldica britânica.17
O mercado americano destacou-se pela originalidade de alguns mo-
tivos característicos que decoraram as suas encomends, como os Hong
Bowls, com pinturas das feitorias estrangeiras em Cantão, de fins do sé-
culo XVIII, início XIX; pratos com “retratos” de seus navios, e com a
águia e a bandeira dos Estados Unidos. Enquanto à forma, seguiram-se
utilizando as do mercado inglês, com a diferença que os norte-america-
nos deram mais liberdade ao ceramista chinês.
O período áureo da importação de louça chinesa para os Estados
Unidos durou de 1790 até 1840, quando começa-se a produzir domesti-
camente.18 A partir da costa leste, duas rotas marítimas eram utilizadas
até Cantão: uma pelo atlântico passando pelo Cabo da Boa Esperança
e Sumatra, e a outra bordeando o continente sul-americano, passando
pela costa brasileira, o estreito de Magalhães e Lima. Da Califórnia tam-
bém partiram navios pelo Pacífico passando pelo Havaí.
A partir de 1840, o comércio com a China experimenta grandes
mudanças:a navegação começa a ser feita em “Clippers”, um tipo de na-
vio mais rápido, e também mais caro, cuja viagem poderia durar uns
80 dias. As viagens comerciais, que antes eram feitas a partir de vários
portos, passa a concentrar-se ao porto de Nova Iorque. Ocorre também
uma concentração de mercadores, com apenas seis grandes companhias
controlando o comércio. Ademais, passa-se a transportar menos tipos
de commodities em cada viagem, preferindo-se transportar maior quan-
tidade de um produto por viagem.19

200
COLEÇÕES REAIS E COLEÇÕES OFICIAIS

O MERCADO BRASILEIRO

O traslado da corte de D. João VI ao Rio de Janeiro em 1808, acom-


panhado de uma comitiva de cerca de 15.000 pessoas e a elevação a rei-
no em 1815, trouxe enormes mudanças à ex-colônia, tanto no aspecto
econômico quanto no estilo de vida. A abertura dos portos brasileiros às
nações amigas em 1810 foi a mais importante medida para a moderni-
zação do Brasil, permitindo o livre comércio e a entrada de mercadores
estrangeiros. O cronista carioca Padre Luís Gonçalves dos Santos (1767–
1844) reportara na época: “...pelo qual se dignou isentar dos direitos de
entrada nas Alfândegas do Brasil as mercadorias da China, de proprie-
dade, e em navios portugueses, exportados diretamente de Macau para
este Estado do Brasil.”20 A abertura dos portos brasileiros, no entanto,
veio a beneficiar mormente a Inglaterra, que mantinha a hegemonia do
comércio marítimo mundial e era uma antiga aliada de Portugal, tendo
sua esquadra naval garantido a segurança do traslado da corte lusitana
ao Brasil. Os britânicos negociaram reduzir seus impostos alfandegá-
rios a 15%, enquanto que os portugueses pagavam 24%. A começos do
século XIX, durante o bloqueio promovido por Napoleão, muitas das
mercadorias que os ingleses não tinham podido vender na Europa vie-
ram parar no Brasil,21 incuindo as trazidas da China.
A abertura dos portos trouxe de fato às prateleiras das lojas cariocas
e provincianas a porcelana chinesa e outros luxos, fosse em peças indi-
viduais ou em serviços sem marca. Já os aparelhos com iniciais podiam
ser encomendados a Macau através de comerciantes da praça, que eram
mormente portugueses, ingleses ou americanos.
Com a declaração da independência em 1822 e a criação do império,
o Brasil passou a ter sua corte e titulares próprios que encomendaram
louça da China. Tratava-se de uma nobreza de decoro, essencialmente
nominal. Os títulos não eram dados a critério de investigação ancestral
nem de maneira feudal, mas apenas uma mercê honorífica. Durante o
Império, e graças aos convênios joaninos, a jovem nobreza brasileira
pode encontrar no comércio local todos os artigos que lhe outorgassem
um prestígio cosmopolita.22

201
COLEÇÕES DE ARTE EM PORTUGAL E BRASIL NOS SÉCULOS XIX E XX

Fig. 3

Acerca da porcelana chinesa de encomenda no Brasil do século XIX,


segundo José Roberto Teixeira Leite, foram encomendados seis servi-
ços brasonados durante o período Jiaqing (r. 1796–1820); durante a era
Daoguang (r. 1821–1850), três; e no período Xianfeng (r. 1851–1861),
um; somando ao todo dez, quase a metade do século XVIII, quando se
contabilizaram dezenove. Os serviços monogramados no entanto, so-
mam vinte. Serviços simples do período Jiaqing (r. 1796–1820) somam
três; Daoguang (r. 1821–1850) nove, e Xianfeng (r. 1851–1861) quatro.23
Estas cifras confirmam a preferência da época por serviços monogra-
mados, pseudo-armoriados ou simples, em vez de peças armoriadas
como no século XVIII.
Além desses serviços, centenas de peças avulsas foram adquiridas
pela sociedade brasileira, hoje difícil de contabilizar. Deve-se conside-
rar também as porcelanas de titulares lusos que ao regressar em 1821 a
Portugal com D. João VI, levaram consigo seus pertences.
De uma maneira geral, o mercado brasileiro não prezou pela origi-
nalidade de suas encomendas, senão que foi mais uma extensão do gos-
to português em porcelana chinesa de exportação. Comparativamente,

202
COLEÇÕES REAIS E COLEÇÕES OFICIAIS

padrões decorativos que aparecem em serviços brasileiros são também


encontrados em aparelhos para outros mercados da época. De fato, o
único em estilo genuinamente brasileiro é o Serviço da Independência,
datado 1823–25. Este serviço de chá de formas sóbrias e colorido pro-
fuso ostenta o brasão imperial, a legenda “Viva a Independência do
Brasil”, com os motivos interligados por panejamentos e circunfluído
por ramos de fumo e café.
Durante a segunda metade do século XIX, além louça popular, o
Brasil continuou a encomendar porcelana chinesa de qualidade, porém
em quantidades bem menores. O gosto voltara-se então para a louça
europeia, principalmente a francesa. Sabe-se por exemplo que D. Pedro
II não encomendou serviços da China.

REFERENCIAS BIBLIOGRÁFICAS
1 MADSEN, Andrew D. e WHITE, Carolyn L. – Chinese Export Porcelain. California, 2011, pág. 121.
2 GARNER, Sir Harry – Oriental Blue and White. Nova Iorque, 1970, pág. 76.
3 GERNET, Jacques – A History of Chinese Civilization. Cambridge University Press, 1999, pág. 535.
4 WRIGHT, Conrad Edick – New York and the China Trade. Nova Iorque, 1984, pág. 46.
5 BEURDELEY, Michel, RAINDRE, Guy – Qing Porcelain, Famille Verte, Famille Rose. Nova Iorque, 1986, pág. 182.
6 KERR, Rose – Chinese Ceramics, Porcelain of the Qing Dynasty 1644–1911. Londres, 1986, pág. 124.
7 KERR, Rose – Chinese Ceramics, Porcelain of the Qing Dynasty 1644–1911. Londres, 1986, pág.127.
8 MADSEN, Andrew D. e WHITE, Carolyn L. – Chinese Export Porcelains. California, 2011, pág. 37.
9 NADLER, Daniel – “China to Order, Focusing on the XIX c. and Surveying Polychrome Export Porcelain Produced
During the Qing Dynasty (1644–1911). Nova Iorque, 2001, pág. 99.
10 SERRÃO, José Vicente – Macau no século XIX: um território, dois impérios. Academia Edu. pág. 21
11 WRIGHT, Conrad Edick – New York and the China Trade. The New York Historical Society, 1984, pág. 36.
12 SERRÃO, José Vicente – Macau no século XIX: um território, dois impérios. Academia Edu, pág. 23–5
13 RIBEIRO LISBOA, Henrique Carlos – A China e os Chins, Recordações de Viagem. Rio de Janeiro, 2016, pág. 101.
14 BEURDELEY, Michel, RAINDRE, Guy – Qing Porcelain, Famille Verte, Famille Rose. Nova Iorque, 1986,pág
15 MADSEN, Andrew D. e WHITE, Carolyn L. – Chinese Export Porcelains. California, 2011, pág.119.
16 NADLER, Daniel – China to Order, Focusing on the XIX c. and Surveying Polychrome Export Porcelain Produced
During the Qing Dynasty (1644–1911). Nova Iorque, 2001, pag. 136.
17 NADLER, Daniel – China to Order, Focusing on the XIX c. and Surveying Polychrome Export Porcelain Produced
During the Qing Dynasty (1644–1911). Nova Iorque, 2001, pag. 103
18 MADSEN, Andrew D. e WHITE, Carolyn L. – Chinese Export Porcelains. California, 2011, pág. 121.
19 WRIGHT, Conrad Edick – New York and the China Trade. The New York Historical Society, 1984, pág. 48–49.
20 SANTOS, Luís Gonçalves dos – Memórias para servir à história do reino do Brasil. 1825, Vol’, pág. 350
21 CALDEIRA, Jorge – História do Brasil. Companhia das Letras, 1999, pág. 125 e 129.
22 BRANCANTE, Eldino da Fonseca – O Brasil e a Louça da Índia. São Paulo, 1950, pág. 184–5.
23 TEIXEIRA LEITE, José Roberto – As Companhias das Índias e a porcelana chinesa de encomenda. São Paulo, 1986,
pág. 166–186.

203
AS REFERÊNCIAS DO
COLECIONISMO OITOCENTISTA
NA COLEÇÃO DE EVA KLABIN:
UMA RELEITURA DA HISTÓRIA
DA ARTE?

MARIA TERESA DA SILVEIRA


Graduada em Artes Plásticas ECA USP;Especialista em História da Arte e Arquitetura no Brasil
PUC-Rio;Mestre em Museologia e Patrimônio, PPGMUS, UNIRIO/MAST; Doutoranda Artes
Visuais PPGAV EBA UFRJ, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Brasil.

Resumo Palavras-chave
Na Casa Museu Eva Klabin a coleção de obras e História da Arte; coleção; Casa Museu Eva
objetos de artes decorativas dividem o mesmo Klabin; museu-casa
espaço, criando uma narrativa alegórica onde
impera a heterocronia, abrangendo um arco
temporal que parte da antiguidade clássica até a
retratística inglesa do século XVIII. O modelo
indicado para a coleção é o colecionismo do
século XIX. Mas o que explicaria o interesse de
Eva Klabin em incorporar as artes decorativas
à narrativa expográfica da história da arte? As
referências de sua biblioteca sugerem indícios
que nos induzem a questionar o modelo de
historiografia que a tradição da História da Arte
elegeu, apontando para artérias pouco visitadas
que desarticulam os paradigmas conhecidos.

205
COLEÇÕES DE ARTE EM PORTUGAL E BRASIL NOS SÉCULOS XIX E XX

A COLEÇÃO DE EVA KLABIN

O colecionador desloca o objeto de sua função cotidiana e de seu


tempo para inseri-lo em uma narrativa, reconstruindo a história da
arte a partir de suas escolhas. As passagens que o levam a estas escolhas
podem parecer fragmentárias, mas nelas subsiste um ofício que é o de
alinhavar e tecer, por meio de uma linha que costura objetos e coisas,
dando-lhes sentido e envergadura. O exercício da imaginação que guia
de forma oculta as tomadas de decisão, presenciando as trilhas alterna-
tivas e caminhos seguros e construindo aos poucos uma corporeidade,
traduz-se afinal em uma narrativa que guarda a marca da identidade do
colecionador. Retirados de seu círculo de vida funcional, para agregar-se
e relacionar-se a seu semelhante, o objeto será integrado em um sistema
histórico novo. Na coleção é onde a história será reescrita e reinterpre-
tada em uma nova ordem do mundo1. Para Benjamin, “O maior fascínio
do colecionador é encerrar cada peça em um círculo mágico onde ela
se fixa2”. Os objetos, uma vez agregados sob o princípio da escolha e do
desejo do colecionador, que os retira de uma condição de invisibilidade,
distinguindo-os em um ambiente preparado para a sua contemplação.
Essa foi também a maneira de tecer e articular escolhas, encontrada
por Eva Klabin (1903–1991), colecionadora que reuniu um conjunto
expressivo de obras e procurou elaborar uma narrativa expográfica para
a sua coleção. Na década de 1950, após adquirir residência próxima à
Lagoa Rodrigo de Freitas na cidade do Rio de Janeiro, Eva empreen-
deu uma extensa reforma que se prolongou por sete anos, com o intuito
de abrigar e expor o conjunto de sua coleção. Assim, os espaços foram
projetados pela colecionadora de modo a acolher obras de arte, peças
decorativas e alguns elementos arquitetônicos que foram integrados à
residência. É importante salientar que Eva Klabin nomeou os ambientes
da casa3, o que comprova a sua intencionalidade em compor um trajeto
para o observador. A disposição das peças da coleção nos ambientes
da Casa Museu Eva Klabin não obedece a uma narrativa cronológica
estrita, no entanto, há uma preocupação em destacar certo conjunto de
obras de certas escolas e períodos conforme o ambiente. Na entrada da

206
COLEÇÕES REAIS E COLEÇÕES OFICIAIS

Fig. 1 – Sala Renascença. Casa Museu Eva Klabin. Rio de Janeiro. Fotografia de Mário Grisolli.

residência, o Hall Principal acolhe obras e peças decorativas do góti-


co tardio; na Sala Renascença (Fig. 1), encontram-se as obras italianas,
onde se destacam as madonas, o retábulo florentino e o par de anjos em
terracota do ateliê de Luca della Robia; na Sala Inglesa, a presença da re-
tratística do século XVIII de mestres da Royal Academy de Londres; na
Sala de Jantar, obras da pintura holandesa e na Sala Chinesa, a coleção
de arte oriental. As demais peças que incluem a Antiguidade Clássica,
em especial as Tanagras4, as peças do Antigo Egito e outros objetos
da coleção se acomodam às ambiências traduzidas pela heterocronia.
Desse modo, a coleção circunscreve um amplo panorama histórico, que
parte da Antiguidade até o século XIX.
O museu casa constitui-se de ambiências onde o mobiliário e objetos,
tanto as peças da coleção como aqueles destinados ao uso cotidiano, in-
tegram-se formando um conjunto, um todo indissolúvel. Mas a singula-
ridade da expografia, criada pela colecionadora reside em construir um
percurso onde as peças de artes decorativas dialogam com as obras de
arte clássicas constituindo assim arranjos compositivos na ambientação.

207
COLEÇÕES DE ARTE EM PORTUGAL E BRASIL NOS SÉCULOS XIX E XX

OS COLECIONADORES NA BIBLIOTECA
DE EVA KLABIN

Eva Klabin observava o modelo das coleções do século XIX, que


procurava “criar uma panorama da arte clássica, associando os princi-
pais momentos da história da arte a determinados ambientes da casa”5.
Quais seriam as referências de colecionadores que instigaram o desejo
da colecionadora? Conhecer a biblioteca de Eva Klabin, nos auxilia a
responder a esta indagação, pois os livros identificam e documentam
as escolhas de vários colecionadores e o modelo de coleção com o qual
a colecionadora teve contato. Na biblioteca de Eva encontram-se catá-
logos que registram as coleções de Richard Wallace6, do alemão Oscar
Huldchinsky, do austríaco Fréderic Spitzer, de M. John W.Wilson7,
além de outros colecionadores como Albert Figdor8 e Robert Lehman.
Também encontram-se ali catálogos que atestam a existência de cole-
ções que vieram a leilão no início do século XX como a de Rodolphe
Kann, a marquesa Landolfo Carcano9 e Émile Gaillard, um apaixonado
pela Idade Média e Renascença, além de outras publicações como um
catálogo de exposição de retratos de pintores holandeses sob a curado-
ria de Cornelius Hofstede de Groot.
É de se notar que a maioria dos colecionadores é de origem germâ-
nica, o que indica uma esfera de influência para Eva Klabin, a partir
do contato que estabeleceu durante a sua infância e adolescência. Seu
pai, Hessel Klabin, foi designado dentro da empresa a intermediar os
contatos internacionais, desse modo, empreendeu constantes viagens à
Europa, principalmente à Alemanha, sendo acompanhado da família.
Em uma dessas viagens de trabalho, a família refugia-se na Suíça em ra-
zão da Primeira Guerra Mundial, período em que Eva matricula-se em
um colégio de Neuchâtel, dando continuidade aos estudos10. Além dessa
temporada, Eva Klabin viajaria em 1922 com destino à Alemanha, per-
manecendo até o ano seguinte, tendo estudado em Berlim, ao mesmo
tempo em que sua mãe Fanny se submeteria a um tratamento de saúde.
O modelo adotado por esses colecionadores de meados do Oitocentos
procurava compor em alguns casos, uma narrativa da história da arte

208
COLEÇÕES REAIS E COLEÇÕES OFICIAIS

Fig. 2 – Mansão Spitzer. Sala Renascença. 1890, Paris. Fotografia Bonnaffé. Collection Spitzer.

que compreendesse as escolas italiana, holandesa, inglesa e francesa, po-


rém esta narrativa não se restringia às referidas escolas, não constituin-
do, portanto, uma regra. É o caso da coleção de Frèderic Spitzer11 que
está documentada em nove grandes volumes encadernados em couro
e gravações douradas. O colecionador reuniu um conjunto12 bastante
eclético e abrangente que inclui as artes decorativas: tapeçaria, ourive-
saria e prataria da Renascença e período medieval, cutelaria, objetos em
vidro, faianças italianas, esculturas em mármore, manuscritos, relógios,
armas e armaduras, além de desenhos e pinturas, seguindo tendência no
colecionismo do século XIX, em compasso com o desenvolvimento dos
estudos históricos, que sugeriam a tolerância com toda forma de arte13.
Spitzer, um observador atento da mis en scène das exposições interna-
cionais, reuniu em seu hôtel particulier14 uma série de galerias onde os
objetos da coleção eram dispostos como uma enciclopédia completa da
produção artística. A coleção estava integrada à mansão do proprietá-
rio, que havia organizado os ambientes com a imagem de seu gosto e
personalidade (Fig. 2).

209
COLEÇÕES DE ARTE EM PORTUGAL E BRASIL NOS SÉCULOS XIX E XX

Podemos dizer que Spitzer projetou a mansão para oferecer mais que
um simples acesso a uma galeria de arte. Dessa forma, o colecionador
também planejava oferecer uma progressiva experiência sensorial, um
itinerário indispensável para a compreensão dos espaços de um museu,
dispondo as peças como nas exposições de artes decorativas do perío-
do, através de uma sequência organizada por tipo, depois, por ordem
cronológica ou por escola artística15. As imagens no catálogo ilustram
muito bem as formas como as peças da coleção deveriam estar dispostas
nas galerias, onde impera as simetrias habilmente calculadas, como é o
caso da Sala Renascença.
Como acabamos de observar, havia um interesse entre os coleciona-
dores em afirmar um gosto pela arte do passado e reunir coleções que
criassem “uma enciclopédia resumida de todas as artes, em todos os
tempos e entre todos os povos”16. Émille Gaillard17 por sua vez, formou
uma coleção que também acolhia peças de artes decorativas, de acordo
com o catálogo18, que exibe peças colocadas a venda em sua mansão na
Praça de Malesherbes em Paris. Os ambientes da Mansão Gaillard abri-
gavam sua coleção de mobiliário da Idade Média e Renascença: lareiras,
tapeçarias, objetos decorativos e pinturas que se distribuíam entre os
salões e sala de jantar. Algumas peças como lareiras renascentistas da
região do vêneto (Fig. 3) e uma grande porta francesa do medievo estão
integradas à decoração dos ambientes. Também na coleção de Gaillard,
duas esculturas em terracota policromada da Renascença italiana do
século XV: “A Virgem e o menino Jesus” de Andrea della Robbia e um
medalhão exibindo as armas da Família Conti.
A marquesa Landolfo Carcano também residia em um palacete onde
se distribuiam as peças de sua coleção. Desse modo, uma característi-
ca comum ao colecionismo oitocentista consiste em morar com a cole-
ção. Um dos empreendedores mais conhecidos da passagem do século
XIX para o XX, Oscar Huldschinsky19 apresenta em catálogo20 de 1928
uma coleção que reune obras das escolas de pintura italiana, holandesa,
alemã e francesa, além de prataria alemã, mobiliário italiano, cerâmica
e tapeçaria. Destacamos a escultura Santa Madalena de Andrea della
Robia e quatro esculturas em bronze21 de Giovanni da Bologna, artistas

210
COLEÇÕES REAIS E COLEÇÕES OFICIAIS

Fig. 3 – Salão no Hotel Gaillard. 1904, Paris. Fotografia Chauvet. Collection Èmille Gaillard.

que se encontram representados na coleção de Eva Klabin.


A coleção de Rodolphe Kann22, publicada em quatro tomos23, com
lâminas reproduzidas em fotogravura, processo até então recente, uti-
lizava a imagem fotográfica como matriz. Dois dos volumes reúnem
peças de arte decorativas da Idade Média e Renascença, onde se des-
tacam dois medalhões de Andrea della Robia, três imagens esculpidas
em marfim figurando a Virgem e o Menino Jesus do período gótico
francês, lareiras da Renascença italiana, manuscritos com iluminuras
da escola flamenga e italiana, além de faianças, esculturas, mobiliário,
tapeçaria e relógios e conjunto de peças de artes decorativas do século
XVIII. Os demais volumes apresentam a coleção de pinturas das esco-
las flamenga, holandesa, italiana, inglesa e espanhola24. Na coleção de
Rodolphe Kann, a paisagem que emoldura o Saint Jérome, tríptico do
artista flamengo Adriaen Isenbrant (1490–1551), lembra o cenário que
serve como pano de fundo à Madona com menino e paisagem, do mes-
mo artista, na coleção de Eva Klabin.

211
COLEÇÕES DE ARTE EM PORTUGAL E BRASIL NOS SÉCULOS XIX E XX

Cornelis Hofstede de Groot25, historiador de arte especialista em


pintura holandesa, apresenta, catálogo da exposição Meisterwerke der
Portratmalerei26, da qual foi o curador, no período em que residia em
Haia atuando como crítico independente. A exposição reunia uma série
de retratos de Govaert de Flink e Gerard Ter Borch, artistas que fazem
parte da coleção de Eva Klabin, e, entre outros, Rembrandt e Frans Hals.
Notamos algumas semelhanças entre as coleções de Spitzer, Gaillard
e Rodolphe Kann e a coleção de Eva: o interesse pelas artes decorati-
vas assim como a integração de elementos arquitetônicos à residência.
Como podemos observar, muitos desses colecionadores, fizeram cons-
truir palacetes para abrigar e expor sua coleção. As obras de arte, peças
de artes decorativas e mobiliário faziam parte de suas residências, por-
tanto integradas à moradia, onde a coleção se mesclava aos objetos de
uso cotidiano. O acúmulo de objetos e peças ligadas ao passado como
tapeçarias, mobiliário, pinturas, antigas lareiras e lustres, também se re-
lacionava a modos de morar do período oitocentista, caracterizando o
gosto eclético na decoração.

SOB OS INFLUXOS DA ESCOLA DE VIENA

Podemos ainda acrescentar que uma parcela significativa destes


colecionadores são alemães ou austríacos, portanto influenciados por
um contexto cultural que se beneficia dos influxos criados pela Escola
de Viena27, instituição que se preocupou em sistematizar o estudo da
História da Arte em bases científicas. No início do século XIX, Joseph
Daniel Böhm desempenhou um papel importante no ambiente cultural
da capital do Império Austro-Húngaro. Neste contexto, sua contribuição
como colecionador de arte e professor, desenvolvendo palestras a par-
tir de peças de sua coleção, veio a criar um ambiente favorável em sua
residência onde se reuniam artistas, historiadores e negociantes de arte.
Contrastando com as práticas desse período em que o gosto pessoal era
considerado o critério mais importante, Böhm procurou constituir uma
coleção que comportasse um amplo panorama histórico. O catálogo de

212
COLEÇÕES REAIS E COLEÇÕES OFICIAIS

sua coleção incluía arte egípcia, grega e romana, bronzes da China e


Japão, pinturas e desenhos dos grandes mestres e um conjunto de obras
de Rembrandt, na época um artista esquecido. Para Böhm, e este vai ser
um aspecto central na Escola de Viena, a compreensão histórica da arte
tinha como base o contato direto com as obras de arte, empirismo que
estava ligado à necessidade de entender o papel do material na forma e
expressão artística28.
Também é importante salientar em relação a Escola de Viena, a aten-
ção dedicada à compreensão das artes decorativas, caso do historiador
de arte Alois Riegl29, que irá contribuir com uma série de estudos como
Stilfragen, obra fundamental na qual aponta para o desenvolvimen-
to contínuo da história do ornamento: desde o antigo Egito, passando
pela antiguidade greco-romana até a arte islâmica. Em Stilfragen, Riegl
parte de um ponto inicial – que muito deve ao historiador Gottfried
Semper30, para expandir e incorporar as chamadas artes menores ao
discurso da história da arte. Riegl não estava sozinho em seguir este
caminho. Historiadores como Wilhelm Von Bode, Aby Warburg, Julius
Von Schlosser e outros dividiam o mesmo interesse pelas artes aplicadas
e começaram suas carreiras trabalhando com as artes decorativas, em-
bora atualmente, esse aparente modesto começo venha a ser omitido31.
Dessa forma, durante o percurso da pesquisa, vieram à tona tais apro-
ximações, que apontam o colecionismo oitocentista que se nutre da in-
fluência da Escola de Viena, como um influxo significativo que serviria
de inspiração para Eva Klabin. Assim, objetos do cotidiano que um dia
detiveram função de uso no ambiente doméstico – caso da lareira do me-
dievo integrada ao Hall Principal, ou obras que serviram como estudo
para a execução de peças decorativas como o cartão de tapeçaria Meninos
Pescando de Giovanni F. Romanelli disposta no Quarto de Dormir, des-
tacam-se na ambientação da casa museu. Ao criar uma expografia, onde
as artes decorativas e as escolas de arte encenam uma narrativa, a cole-
cionadora propõe uma releitura da história da arte. No espaço da casa
museu onde a coleção e os ambientes compõem uma trama discursiva
única, o gesto de Eva Klabin reinventa o exercício do olhar para os obje-
tos do cotidiano que nos cercam e que assim adquirem visibilidade.

213
COLEÇÕES DE ARTE EM PORTUGAL E BRASIL NOS SÉCULOS XIX E XX

NOTAS
1 BENJAMIN, Walter – O colecionador. In: Passagens. Editora da UFMG, Belo Horizonte, 2006. p.239.
2 BENJAMIN, Walter – Desempacotando minha biblioteca. In: Rua de mão única. Obras Escolhidas. volume 2.
Editora Brasiliense, São Paulo, 1987.p.228.
3 LÉVY, Ruth. Trazendo o mundo para dentro de casa: a Casa Museu Eva Klabin no Rio de Janeiro. In: VI Colóquio
Internacional – A Casa Senhorial: anatomia dos interiores. Belém, junho, 2019.p.10.
4 MIGLIACCIO, Luciano ¬ A Coleção Eva Klabin. Kapa Editorial: Fundação Eva Klabin, Rio de Janeiro, 2007.
p.38. As tanagras são estatuetas de terracota que receberam essa denominação por terem sido encontradas pela
primeira vez em 1870, na cidade grega de Tanagra, famosa pela produção de terracotas em série, elaboradas a
partir de moldes.
5 DOCTORS, Márcio – O espelho e o relógio. In: Universos Sensíveis: as Coleções de Eva e Ema Klabin. Pinacoteca
do Estado, São Paulo – Museu Nacional de Belas Artes, Rio de Janeiro, 2004.p.31.
6 A coleção de Richard Wallace (1818–1890) foi legada por sua viúva em 1897, concorrendo para a fundação do
museu em Hertford House em Londres que leva seu nome, a Wallace Collection. Parte de sua coleção de pinturas,
documentada em catálogo, reune a escola italiana de pintura: Lorenzo di Credi, Francesco Guardi e Canaletto
e a escola holandesa: Ruysdael, Rembrandt, Hobbema, Frans Hals e Pieter de Hooch.In: TEMPEL, A.G. – The
Wallace Collection. Goupil & Co.: London, 1902.
7 John W.Wilson (1815–1883), industrial do ramo têxtil e colecionador belga, legou parte de sua coleção e recursos
financeiros, permitindo a fundação do Museu da Cidade de Bruxelas.
8 Albert Figdor (1843–1927) banqueiro e colecionador de arte austríaco, citado por Walter Benjamin em O
Colecionador, recebeu apoio de Alois Riegl. Robert Lehman (1891–1969), banqueiro de ascendência judia, her-
dou a coleção de seu pai, Philip Lehman.
9 Adéle Cassin (1831–1921) tornou-se marquesa ao desposar Landolfo Carcano. Herdou uma rica coleção de pin-
turas da escola flamenga, holandesa (Rembrandt), italiana (Veronese), além dos pintores franceses do século XIX
como Delacroix, Courbet, Gustave Doré, Meissonier e esculturas de Rodin. Com seu falecimento a coleção foi
dispersa em leilão em 1912. In: DURAND-RUEL; PETIT, Georges – Collection de Madame la Marquise Landolfo
Carcano. Paris, 1912.
10 DOCTORS, Márcio – A Casa Museu de Eva Klabin como metáfora de sua existência. In: MIGLIACCIO, Luciano.
A Coleção Eva Klabin. Kapa Editorial: Fundação Eva Klabin, Rio de Janeiro, 2007.p.9.
11 Frèderic Spitzer (1815–1890) nasceu em Viena, estabelecendo-se em 1852 em Paris como marchand e colecio-
nador. Construiu uma mansão onde exibia suas peças em caixas de vidro, criando uma narrativa da história da
arte da Idade Média e Renascença. Estabeleceu uma rede de antiquários em cidades européias, sendo acusado de
fabricar e forjar artesanalmente peças do Renascimento. Disponível em:<https://www.doaks.org/resources/online-
-exhibits/before-the-blisses/collectors/the-spitzer-collection> (2020.02.20).
12 Bonnaffé, Edmond; Molinier Émile – La Collection Spitzer. Imprimerie de l’Art: Paris, 1893, 1–9.
13 GEORGEL, Chantal – O Colecionador e o Museu, ou como mudar a História da Arte? In: Museologia &
Interdisciplinaridade. Revista do programa de Pós-Graduação em Ciência da Informação da Universidade de
Brasília. vol.III, nº6, março/abril 2015, pp.277–286. p.282.
14 Hôtel particulier é uma residência privada urbana situada nas grandes cidades.
15 CORDERA, Paola – Forging the Renaissance: on the uses of glass pieces in Spitzer’s (in) famous collection. In:
Collecting through connections: Glass and stained-glass collectors and their networks in the 19th century. Revista
de História da Arte. Instituto de História da Arte, 2015, pp. 94–105.p.95. Disponível em:< https://www.academia.
edu/14925746/La_fabbrica_del_Rinascimento._Fr%C3%A9d%C3%A9ric_Spitzer_mercante_d_arte_e_collezio-
nista_nell_Europa_delle_nuove_Nazioni > (2020.01.13).
16 PELLETAN, 1870 apud GEORGEL, 2015, p.282. op.cit.
17 Émile Gaillard (1821–1902), banqueiro, fez construir um hôtel particulier onde exibia sua coleção formada prin-
cipalmente por obras do século XV e XVI: mobiliário, artes decorativas, tapeçarias e pinturas. Após sua morte,
grande parte da coleção foi dispersa em leilão em 1904. Disponível em:<https://www.citeco.fr/%C3%A9mile-gai-
llard-collectionneur> (2020.01.13).
18 MOLINIER, Émile – Collection Émile Gaillard Paris, 1904
19 Oscar Huldschinsky (1846–1931), industrial alemão, constituiu fortuna com a exploração de minas de carvão,
compondo uma grande coleção de arte com artistas como Botticelli, Tiepolo, Rembrandt. Destacando-se como
um dos grandes empreendedores da virada do século XIX para o XX, chegou a fazer doações de obras de Rodin
e Degas para a Nationalgalerie em Berlim.
20 CASSIRER, Paul; HELBING, Hugo – Die Sammlung Oscar Huldschinsky, Berlin, 1928.
21 As esculturas: O caçador, Mercúrio, Hércules e Nessus, Nessus e Dejanira.
22 Rodolphe Kann (1845–1905), alemão naturalizado francês, herdou parte da coleção do primo e apaixonou-se
por objetos decorativos do século XVIII. Reuniu uma das coleções mais prestigiadas do final do século XIX,
abrigando-as em seu palacete. Adquiriu fortuna com a extração de diamantes na África do Sul, realizando uma
série de doações de obras de sua coleção ao Museu de Artes Decorativas e Museu do Louvre. Sua coleção foi posta
a leilão em 1907.

214
COLEÇÕES REAIS E COLEÇÕES OFICIAIS

23 MANNHEIM, Jules; RAHIR, Édouard – Catalogue de La Collection Rodolphe Kann, Charles Seldmayer editèur:
Paris,1907, 1–4.
24 Escola flamenga e holandesa: século XV e XVI, Adriaen Isenbrant, Hans Memling, Roger Van der Weyden;
Pieter Bruegel, Antoine van Dick; Frans Hals, Pieter de Hooch e Rembrandt (desenhos e pinturas); Escola
Italiana: Giotto, Giovani Bellini, Domenico Ghirlandaio, Canaletto, Tiepolo; Escola espanhola: Goya, El Greco e
Velasquez; Escola francesa: Fragonard, Hubert Robert e Antoine Watteau; Escola inglesa: Gainsborough.
25 Cornelius Hofstede de Groot (1863–1930), colecionador alemão e historiador de arte especialista em arte holan-
desa, elaborou a reatualização do catalogue raissoné de Rembrandt, elaborado por John Smith (incompleto com
seu falecimento).
26 DE GROOT, Cornelius Hofstede – Meisterwerke der Portratmalerei. Verlagsanstalt F. Bruckmann: Munchen,
1903. Obras Primas da Pintura de Retrato
27 RAMPLEY, Matthew – The Vienna School of Art History: Empire and the politics of scholarship, 1847–1918.
The Pennsylvania State University Press, Pennsylvania, 2013. p.17. Fundada em 1852, inicialmente sediada no
Institute for Austrian Historical Research na Universidade de Viena, que formou a base institucional para a intro-
dução do ensino da História da Arte. Em 1874 foi estabelecido o Instituto de História da Arte, tendo Rudolf von
Eitelberger (1817–1885), que havia feito parte do círculo de Joseph Daniel Böhm, como seu primeiro professor.
28 RAMPLEY, 2013, p.11–12. op.cit.
29 Alois Riegl (1858–1905) um dos historiadores de arte mais prolíficos da Escola de Viena no último quartel do
século XIX e início do XX. Estudos em torno das artes decorativas: Stilfragen (Questões de estilo: Fundamentos
para uma história do ornamento) de 1893 e Die spätrömische Kunstindustrie nach den Funden in Österreich, (A
indústria artística do Império Romano tardio segundo as descobertas no Império Austro-húngaro) de 1901/1923.
RAMPLEY, 2013, p.2.op.cit.
30 VIANA, Alice de Oliveira – Gottfried Semper e o estilo em arquitetura no Século XIX. In: Revista Interdisciplinar
Internacional de Artes Visuais. Vol.5, nº1, junho, 2018, pp.220–233.p.224. Disponível em:<http://periodicos.unes-
par.edu.br/index.php/sensorium/article/view/2172/1523>(2020.04.10). Gottfried Semper (1803–1879), arquiteto
e teórico alemão, em seu tratado Der Stil (1860–63) propõe investigar o Estilo, no singular, em contraposição
aos estilos, no plural, e ainda reconhece que a problematização deste conceito deveria abranger também as artes
decorativas, também chamadas artes aplicadas ou artes “menores”.
31 PAYNE, Alina – Beyond Kuntswollen: Alois Riegl and the Baroque. In: RIEGL, Alois. The Origins of Baroque Art
in Rome. Los Angeles – California: Getty Research Institute, 2010.p.4. Disponível em:< https://teses.usp.br/teses/
disponiveis/16/16133/tde-29062017–114151/es.php> (2020.04.06).

215
PINTURAS DE HISTÓRIA COMO
DISCURSO DIPLOMÁTICO:
UMA NARRATIVA VISUAL DA
HISTÓRIA DO BRASIL NO ITAMARATY

GUILHERME FRAZÃO CONDURU


Doutor em História e Crítica da Arte (PPGAV)
gfconduru@gmail.com

Resumo
A comunicação pretende analisar um caso de Cabral (1467/8–1520), a narrativa pictórica da
uso político de uma coleção de arte pertencente história do Brasil passava pela independência
ao Ministério das Relações Exteriores do política, com a heroicização do herdeiro
Brasil. As chancelarias, como sede de órgãos bragantino, instituidor da soberania nacional – e,
especificamente dedicados às relações ao mesmo tempo, dinástica –, e chegava à era
diplomáticas, constituem espaços de poder republicana, com a celebração da amizade com
privilegiados para ostentar as características a Argentina e a alegoria do reconhecimento
que se desejam expressar de uma identidade internacional do regime republicano e de seu
nacional. Durante sua gestão como ministro no ingresso na civilização. Como decoração da
Itamaraty – que, de 1902 a 1912, atravessou o chancelaria, a coleção de pinturas integrava
mandato de quatro presidentes da República –, o o discurso diplomático ao projetar valores
barão do Rio Branco (1845–1912) concebeu uma como antiguidade, continuidade institucional,
curadoria artística com as pinturas históricas civilidade, apego ao direito e pacifismo, que
Os descobridores (1899), de Belmiro de Almeida distinguiriam tanto a história como a política
(1858–1935), Grito do Ipiranga (1886) e Paz e externa brasileiras.
Concórdia (1902), de Pedro Américo (1843–
1905), e Visita do presidente Roca ao presidente
Campos Sales (1900), de Beniamino Parlagreco Palavras-chave
(1856–1902). Começando no “descobrimento” Arte no Brasil (séculos XIX e XX); Pintura de
com a representação anti-heroica dos dois história; História do Brasil; Palácio Itamaraty
degradados deixados em terra por Pedro Álvares (Rio de Janeiro); Coleções oficiais.

217
COLEÇÕES DE ARTE EM PORTUGAL E BRASIL NOS SÉCULOS XIX E XX

REPRESENTAÇÃO DO PODER:
A CHANCELARIA E O BARÃO

Igrejas e catedrais, palácios reais, presidenciais e legislativos, sede


de cortes judiciais e de corporações empresariais são tipologias arqui-
tetônicas que expressam poder e seu exercício. Para manifestar a posi-
ção que ocupam, os detentores do poder político, religioso e econômi-
co convocam artistas para projetar, construir e decorar esses espaços
de poder.
Entre os órgãos de governo, as chancelarias desempenham um pa-
pel fundamental como espaços de representação do estado, uma vez
que são agências especializadas dedicadas às relações internacionais.
Pode-se afirmar que as sedes de chancelarias cumprem três funções
complementares: uma função burocrática, como edificação que abriga
as unidades administrativas desse órgão; uma função cerimonial, como
edificação onde se realizam eventos oficiais que dizem respeito às rela-
ções diplomáticas; e uma função simbólica, como repositório de uma
identidade nacional que se deseja exprimir.
Espaços grandiosos, às vezes monumentais, com decoração sóbria
ou suntuosa, são desenhados e ambientados com coleções de arte, que
buscam expressar não somente riqueza, bom gosto e estilo, mas tam-
bém valores, que estarão necessariamente comprometidos com alguma
ideia de identidade nacional. Neste sentido, as coleções de arte de uma
chancelaria buscam representar uma ideia de identidade nacional que
se deseja reconhecida, externa e internamente.
Neste texto, realiza-se uma aproximação a quatro pinturas que, no
início do século XX, foram reunidas na chancelaria brasileira para ex-
pressar uma ideia de identidade nacional a partir da história. Expostas
na chancelaria, essas obras construíram uma narrativa histórica que foi
incorporada ao discurso diplomático. Mesmo que não tenha sido pos-
sível reconstituir integralmente a expografia da época, as pinturas pre-
tenderam compor uma narrativa cujo significado remete a valores que
norteariam a política externa brasileira. As quatro pinturas são: O grito
do Ipiranga (1886), de Pedro Américo (1843–1905); Os descobridores

218
COLEÇÕES REAIS E COLEÇÕES OFICIAIS

(1899), de Belmiro de Almeida (1858–1935); Visita do presidente Roca


ao presidente Campos Salles (1900), de Beniamino Parlagreco (1856–
1902); e Paz e Concórdia (1902), de Pedro Américo.
No início da República, a definição das fronteiras constituía uma
prioridade para a política externa brasileira. José Maria da Silva
Paranhos, o barão do Rio Branco (1845–1912), ministro das relações
exteriores entre 1902 e 1912, deixou como um dos seus legados a solu-
ção pacífica e definitiva das pendências lindeiras com os vizinhos. Rio
Branco serviu a quatro presidentes e conduziu a política externa com
alto grau de autonomia; sua opinião era amplamente reconhecida no
que dizia respeito a assuntos diplomáticos e política internacional. Rio
Branco operou um novo paradigma da atuação diplomática do Brasil,
por meio do qual articulou as relações com os vizinhos sul-americanos
e as relações com as grandes potências da época (RICUPERO, 2000 [1]).
De forma pragmática, buscou a aproximação com os EUA, sem subser-
viência. Procurou elevar a projeção internacional do Brasil, ciente de
que uma diplomacia de prestígio implica, entre outras medidas, o apa-
relhamento físico, administrativo e protocolar da chancelaria. Durante
sua gestão, o Palácio Itamaraty foi valorizado como espaço cerimonial
e recebeu investimentos que incluíram encomenda e compra de obras
de arte, alfaias e objetos de decoração, além de ter sido reformado e am-
pliado com a construção de edificações anexas (CONDURU, 2013 [2]).
Em 1906, quando realizou-se a III Conferência Internacional
Americana, no Palácio Monroe, Rio Branco encomendou a Rodolfo
Amoedo (1857–1941) a pintura da galeria que dá acesso às salas do an-
dar nobre do Palácio Itamaraty. Embora com perdas, ainda se podem
observar os grotescos monocromáticos encimados pelas cartelas com
as datas pintadas por Amoedo. A cronologia concebida por Rio Branco
estabelece um nexo entre a chegada da frota cabralina, em 1500, e a pro-
clamação da República, em 1889, e, assim, valoriza a continuidade ins-
titucional, com ênfase nas dimensões política e militar, visando atribuir
estabilidade e credibilidade ao estado brasileiro (CONDURU, 2010 [3]).
No Arquivo Histórico do Itamaraty (AHI), entre a documentação
privada de Rio Branco, encontra-se uma folha avulsa com a relação das

219
COLEÇÕES DE ARTE EM PORTUGAL E BRASIL NOS SÉCULOS XIX E XX

quatro pinturas de história referidas acima (AHI, lata 880/ maço 2/ pas-
ta 7). Podem-se ler nesse documento manuscrito os títulos das obras,
seus autores e as respectivas datas de confecção. O conteúdo de cada
legenda aparece inserido em modelos de plaquetas de identificação.
A partir desse documento pode-se inferir um exercício de curadoria
por parte de Rio Branco, que visava transmitir uma determinada ideia
da história do Brasil, da mesma forma que no caso da cronologia ins-
crita na pintura decorativa encomendada a Rodolfo Amoedo. A seguir,
desenvolve-se uma análise das quatro pinturas que integravam a narra-
tiva da história do Brasil concebida por Rio Branco.

A NARRATIVA VISUAL DE RIO BRANCO

Sobre uma elevação do terreno, com paisagem litorânea ao fundo,


dois homens protagonizam a cena, junto a uma árvore. Uma das figuras
está em estado de prostração, sentada no chão e recostada à árvore; a
postura e o olhar perdido revelam exaustão, perplexidade e desalen-
to. A outra figura está de pé, a fitar o oceano. A cena está cercada por
moldura pintada sobre a tela com arabescos que formam volutas, entre-
meadas de folhas, influência possivelmente de origem pré-rafaelita. Na
parte inferior da borda, em cartela pintada, aparecem o título do quadro
e os seguintes versos da Eneida, de Virgílio (70–19 a.C.): “Multus que
per anos errabant acti fatis maria omnia circum” (“e, impelidos pelos
fados, andavam errantes, há longos anos, ao redor de todos os mares”,
VIRGÍLIO [4], 1983, p. 19–20).
Em Os descobridores não há exaltação da ação heroica: os protago-
nistas parecem derrotados e perdidos. O título da obra, porém, os eleva
a condição de “descobridores”. Para representar o mito de origem da
nação, ao invés de retratar comandantes militares e chefes religiosos,
Belmiro preferiu retratar degredados. Se há monumentalidade, é aquela
derivada da grandiosidade da natureza tropical, não idílica, mas inóspi-
ta. No lugar da glorificação, há diluição e esvaziamento do heroísmo, ex-
plicitado pela inversão do papel do herói. Os versos de Virgílio pintados

220
COLEÇÕES REAIS E COLEÇÕES OFICIAIS

Fig. 1 – Belmiro de Almeida, Os descobridores, 1899, óleo sobre tela, 230 x 200 cm,
Museu Histórico e Diplomático (MHD), Rio de Janeiro.

Fig. 2 – Pedro Américo, O grito do Ypiranga, 1886, óleo


sobre tela, 146 x 237 cm, Palácio Itamaraty, Brasília.

221
COLEÇÕES DE ARTE EM PORTUGAL E BRASIL NOS SÉCULOS XIX E XX

Fig. 3 – Pedro Américo, Paz e Concórdia, 1902, óleo sobre tela,


300 x 431 cm, MHD, Rio de Janeiro.

Fig. 4 – Beniamino Parlagreco, Visita do presidente Roca ao presidente


Campos Salles, 1900, óleo sobre tela, 115 x 200 cm, MHD, Rio de Janeiro.

222
COLEÇÕES REAIS E COLEÇÕES OFICIAIS

na borda da tela, no entanto, ao remeterem às desventuras de Eneias e


à fundação de Roma, sugerem que, a partir dessa situação desoladora,
seria construída uma saga civilizatória que resultaria no surgimento de
um grande país.
Mas, quem seriam aquelas duas figuras em andrajos? O título da tela
bem como as referências que se podem ler na Carta de Caminha (c.
1450–1500) e na chamada Relação do português anônimo favorecem a
interpretação de que os descobridores de Belmiro seriam os dois de-
gredados que foram deixados na terra que acabava de ser “descoberta”.
Indicação adicional que fortalece essa hipótese consiste no fato de que,
na mesma época, Belmiro esboçou um retrato de Afonso Ribeiro, um
dos degredados referidos por Caminha.
Ao identificar os degredados como descobridores, qual seria o sen-
tido da história contada? Uma primeira hipótese remete a uma postura
pessimista quanto à natureza e ao futuro do Brasil e dos brasileiros, que
poderia ser sintetizada na fórmula: “um país colonizado por crimino-
sos não poderia dar certo”. A ironia da pintura – expressa na aparente
contradição entre o título e a cena representada – poderia ir ao encontro
dessa interpretação.
Outra hipótese seria a de que os degredados teriam sido os verdadei-
ros colonizadores da América portuguesa – e não as séries de coman-
dantes, capitães-generais, governadores e vice-reis inscritas na história
da administração colonial. A inversão iconográfica operada pela figura-
ção de dois seres desalentados a cumprir a pena do degredo, elevados
à condição de heróis colonizadores, exprimiria também uma inversão
historiográfica ao negar protagonismo aos heróis tradicionais da his-
toriografia factual. Sendo os degredados, em geral, homens do povo,
haveria em Os descobridores a valorização da multidão de anônimos que
cruzou o oceano em busca de aventuras, riquezas e glórias ou simples-
mente em busca de uma vida melhor. Essa interpretação aponta para o
seguinte questionamento: como poderia dar certo um país colonizado
por degredados, ou seja, por criminosos?
Os versos de Virgílio trazem elementos que ajudam a explorar essa
linha interpretativa. Além de converter degredados em descobridores,

223
COLEÇÕES DE ARTE EM PORTUGAL E BRASIL NOS SÉCULOS XIX E XX

a chave irônica da solução de Belmiro residiria, ainda, em associar uma


representação do mito de origem do Brasil ao mito de origem de Roma,
aludido pela citação em latim. A analogia do Brasil com Roma e seu
Império pode parecer destituída de sentido. Ao elaborar sua versão
crítica da história em tom de ironia, articulando pares aparentemente
contraditórios (degredados-colonizadores e Brasil-Roma), o pintor ex-
pressaria uma visão otimista sobre o Brasil. A analogia com o mito de
Roma, portanto, pode ser interpretada como uma visão otimista quanto
ao futuro da República, um futuro de realizações e grandeza, como teria
sido a trajetória histórica de Roma.
Assim, a narrativa visual da história do Brasil proposta no manus-
crito de Rio Branco se inicia com uma visão ao mesmo tempo crítica
e otimista sobre a origem e o futuro da nação, cujos primórdios foram
marcados pelo drama de anti-heróis exauridos pelo destino, porém co-
lonizadores e, nesta condição, portadores de civilização. A inclusão da
tela de Belmiro na narrativa serve também para assinalar a antiguidade
do estado brasileiro.
Na sequência da narrativa o acontecimento seguinte seria o nas-
cimento do estado independente. Uma versão reduzida d’O Grito do
Ipiranga, cuja versão em grandes dimensões pertence ao Museu Paulista,
foi produzida por Pedro Américo em 1886. Na representação do epi-
sódio do Ipiranga não há dúvida quanto ao sentido afirmativo do he-
rói bragantino instituidor da soberania nacional (CHRISTO [5], 2005,
p. 167). Em posição retórica, espada elevada, montaria rija, a figura
equestre de Pedro (1798–1834) condiciona toda a composição. De um
lado, a elipse traçada pelo caminho de terra até o séquito civil, com o
caipira do primeiro plano e seu carro-de-boi em paralelo; de outro, a
elipse formada pela Guarda de Honra. Há um contraste entre a imobili-
dade solene de Pedro I e a agitação dos militares em veemente expressão
de fidelidade ao príncipe.
No Grito do Ipiranga o povo aparece representado pelo caipira que
conduz o carro-de-boi e olha para o futuro imperador sem alcançar o
significado do que estava acontecendo. A representação visual do acon-
tecimento, protagonizado por uma individualidade notável, expressaria

224
COLEÇÕES REAIS E COLEÇÕES OFICIAIS

a adesão do pintor a uma visão segundo a qual os agentes da história


seriam os heróis nacionais, aqueles que realizam os “fatos históricos”
merecedores de registro pela historiografia e pela arte. Essa valorização
do fato e da ação individual para a explicação da história caracterizou
um tipo de historiografia, que teve um cultor no barão do Rio Branco.
Por um lado, a contradição entre estado dinástico e estado-nação – di-
lema que o Império não superou – parece referida pelo artista por meio
do caboclo caipira, como uma prefiguração do “povo bestializado”. Por
outro lado, a figura heroica de Pedro I pretenderia preencher o imaginá-
rio do Império em crise terminal de legitimidade.
Em esplanada escalonada em frente à imponente arquitetura clássica
de um templo, a personificação feminina da República brasileira é rece-
bida por um cortejo de personificações das principais nações do mundo.
Sobre a cena principal flutuam dois cortejos celestes: acima da alegoria
da República brasileira, um grupo alegórico cercado de anjos representa
a fé cristã e traz vários símbolos do cristianismo, como a cruz, a lâmpa-
da, o cálice, a harpa e uma guirlanda de folhas de carvalho; acima das
alegorias das nações, outro grupo alegórico representa a Civilização, as
Ciências e as Artes, que portam emblemas como um livro, tochas ace-
sas, uma lira, um raio, coroa de folhas de carvalho e a miniatura de uma
locomotiva. Atrás da cena principal, um coro de vestais entoa cântico.
No primeiro plano, um friso de alegorias: a História, a Poesia, a Pintura,
a Arquitetura e, abatido por flecha nas costas, o demônio da Discórdia
com sua espada quebrada. À direita da escalinata, ladeada por quime-
ras, três homens representam o povo, que saúda a alegoria da República;
entre eles, distingue-se o barão do Rio Branco, com toga de magistrado
e o livro da lei junto ao coração. Em frente ao pórtico que dá acesso
ao templo, duas estátuas representam Cabral (1467–1520) e Colombo
(1451–1506). No interior do pórtico, reprodução d’O grito do Ypiranga.
O significado da alegoria poderia ser assim resumido: a república
brasileira, ingressa na civilização, sob a égide do cristianismo, e assimi-
la tanto a herança portuguesa, como a herança da Antiguidade clássi-
ca como referências civilizacionais. A alegoria da República brasileira
apresenta-se com atributos híbridos, pois, apesar de envergar o barrete

225
COLEÇÕES DE ARTE EM PORTUGAL E BRASIL NOS SÉCULOS XIX E XX

frígio, veste um manto. Além dessa referência explícita ao Império, o


passado monárquico é reverenciado pela reprodução da cena idealizada
do Ypiranga. Paz e Concórdia representaria, enfim, a continuidade insti-
tucional de um Brasil civilizado, amante do direito e pacifista.
Uma versão da obra – apresentada como uma alegoria da República
Francesa – foi submetida, sem sucesso, ao salão de Belas Artes de Paris
de 1900. Com adaptações – que incluíram a figuração de Rio Branco, a
inclusão da bandeira nacional e a reprodução do quadro do Ypiranga,
entre outras – a obra foi vendida para o MRE, em 1903 (AHI, 812/4/14).
Fotografia reproduzida no livro da jornalista estadunidense Marie-
Robinson Wright [6], The new Brazil, mostra que Paz e Concórdia foi
exposta no salão de honra do Palácio Itamaraty.
A apropriação de Paz e Concórdia como elemento constitutivo do
discurso diplomático conheceu, em 1909, um exemplo eloquente,
quando sua imagem foi veiculada por ocasião da assinatura do Tratado
Retificador da fronteira com o Uruguai. Na fotografia, a tela serve de
fundo para retrato coletivo, no gabinete do ministro, onde aparecem Rio
Branco, assessores, jornalistas e uma delegação uruguaia. Rio Branco
tivera a iniciativa de propor o acordo como forma de corrigir uma in-
justiça cometida por ocasião das negociações de limites de 1851. Pelo
tratado de 1909 ficava estabelecido o condomínio da Lagoa Mirim e do
Rio Jaguarão. Era uma demonstração concreta do caráter não expansio-
nista da política externa de Rio Branco. O tratado inseria-se na política
territorial de Rio Branco de definir os limites do Brasil por meio de ne-
gociações. Com o tratado de 1909, o Brasil afirmava sua índole pacífica.
A narrativa visual da história do Brasil proposta por Rio Branco ini-
ciava-se com a representação anti-heroica do “descobrimento”; seguia
com a representação heroica da “conquista” da soberania e com o acolhi-
mento alegórico do Brasil pelas nações civilizadas. Para encerrar a série,
uma pintura de história que reconstitui um fato contemporâneo: a tela
de Beniamino Parlagreco, Visita do presidente Roca ao presidente Campos
Salles, conforme o título que o barão lhe atribuiu. A pintura registra o
momento em que o presidente argentino [Julio Roca (1843–1914)] é
recebido a bordo do Riachuelo pelo presidente brasileiro [Campos Salles

226
COLEÇÕES REAIS E COLEÇÕES OFICIAIS

(1841–1913)], por ocasião de sua vista ao Rio de Janeiro, em agosto de


1899. Entre outras embarcações, estão representados, a galeota D. João
VI, que conduziu o presidente argentino à nau capitânia da frota brasi-
leira, o encouraçado San Martin e outra belonave argentina, e o próprio
encouraçado Riachuelo, que ocupa o lado direito da tela.
O siciliano Parlagreco, estudou pintura na academia de Nápoles;
radicou-se no Rio de Janeiro em 1895. A obra registra a primeira visita
de um chefe de estado estrangeiro ao Brasil, acontecimento que sim-
bolizava a aproximação entre Brasil e Argentina, que parecia encerrar
antigas prevenções mútuas. Neste sentido, a tela servia como um con-
traponto à Paz e Concórdia, onde não aparece nenhuma nação sul ou la-
tino-americana entre as nações que homenageiam a república do Brasil
(PREUSS [7], 2011, p. 200). A obra pode ter sido ou um presente do
governo argentino ou uma encomenda do governo brasileiro. Acredita-
se que já estava na chancelaria quando Rio Branco assumiu o ministério.
Fotografia publicada no citado livro de Marie Wright exibe a tela deco-
rando uma sala de uso protocolar do Itamaraty.
O arrolamento das quatro pinturas numa mesma folha de papel cons-
titui testemunho documental de que Rio Branco concebeu uma narra-
tiva sobre a história do Brasil com as obras então disponíveis no MRE.
A ordem cronológica dos eventos representados indica uma trajetória
que vai do “descobrimento”, passa pela independência política e chega
aos tempos de Rio Branco, com a exaltação alegórica da República e a
representação da amizade entre o Brasil e a Argentina, superando uma
rivalidade histórica. A narrativa visual de Rio Branco constitui exemplo
de uma apropriação da pintura de história para uso político por meio
da sua integração ao discurso diplomático, pontuando valores que ca-
racterizariam tanto a história do Brasil como sua política externa, tais
como antiguidade, estabilidade institucional, civilidade, apego ao direi-
to e pacifismo.

227
COLEÇÕES DE ARTE EM PORTUGAL E BRASIL NOS SÉCULOS XIX E XX

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
[1] RICUPERO, Rubens. Rio Branco: o Brasil no mundo. Rio de Janeiro: Contraponto/Petrobrás, 2000.
[2] CONDURU, Guilherme Frazão. O Museu Histórico e Diplomático do Itamaraty: história e revitali-
zação. Brasília: FUNAG, 2013.
[3] CONDURU, Guilherme Frazão. Cronologia e história oficial: a galeria Amoedo do Itamaraty, em:
Estudos Históricos, v. 23, n. 46, jul.-dez. de 2010, p. 281–300.
[4] VIRGÍLIO, Eneida, São Paulo: Abril Cultural, 1983, tradução, textos introdutórios e notas de
Tassilo Orpheu Spalding.
[5] CHRISTO, Maraliz de C. V. Pintura, história e heróis no século XIX: Pedro Américo e Tiradentes
esquartejado. Tese de Doutoramento apresentada no Departamento de História do Instituto de
Filosofia e Ciências Humanas da UNICAMP sob a orientação do prof. dr. Jorge Coli, 2005.
[6] WRIGHT, Marie R. The new Brazil: its resources and attractions – historical, descriptive, and
industrial. 2ª edição, Filadélfia: George Barrie & sons, 1907.
[7] PREUSS, Ori. Bridging the island: Brazilian´s views of Spanish America and themselves (1865–
1912). Madri: Iberoamericana, 2011.

228
A COLEÇÃO DE PINTURAS
DO PALÁCIO PIRATINI NO
COLECIONISMO ESTATAL
DO RIO GRANDE DO SUL

PAULO CÉSAR RIBEIRO GOMES


Doutor em Artes Visuais, Professor, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, Brasil
oluapgomes@gmail.com

Resumo Palavras-chave
Este texto é dedicado ao relato e análise da Palácio Piratini; coleções estatais; encomendas
formação de uma coleção de obras de arte, públicas; arte no Rio Grande do Sul.
encomendadas pelo governo do estado do Rio
Grande do Sul, entre 1912 e 1926. Procuraremos
evidenciar o processo de encomendas e sua
administração, suas razões, sua dispersão,
principalmente nos anos 1950 e a situação
e localização atual das obras. O texto está
organizado em cinco partes, a saber: um
preâmbulo no qual apresentaremos o contexto
histórico; três partes, nas quais trataremos o
contexto histórico do período, as encomendas e
seus artistas e um breve histórico da dispersão
da coleção; finalizaremos com algumas
considerações de como essas obras repercutiram
e, possivelmente, ajudaram a constituir um
campo artístico local investindo na construção
de uma autoimagem para o Estado.

229
COLEÇÕES DE ARTE EM PORTUGAL E BRASIL NOS SÉCULOS XIX E XX

PREÂMBULO

Dentro do tema “Formação e desenvolvimento de coleções de


Estado – perfis e incorporações públicas”,1 apresentaremos alguns dados
sobre a formação e o posterior desenvolvimento da coleção de pinturas
do Palácio Piratini, sede do governo da Província do Rio Grande do Sul
(Brasil). As perguntas que procuraremos responder são: quais as razões
que levaram o governo do estado a encomendar obras de arte? Quais os
critérios utilizados, visto que contrataram principalmente artistas na-
cionais, declinando os nomes locais? Como isso repercutiu na época,
principalmente na imprensa? Qual a situação atual dessas obras? Como
essa coleção atuou na construção de uma autoimagem e no sistema das
artes local?

O CONTEXTO

No Brasil o mecenato oficial foi o principal motor da grande produ-


ção de pinturas de história no decorrer do século XIX e XX. Resultado
da necessidade de instituir uma representação visual da nação, de seus
heróis e de seus feitos, o Império manteve um fluxo contínuo de aqui-
sições e encomendas, que hoje povoam nossos museus. Não se confi-
gurando em uma política declarada e sistematizada, esse movimento
prolongou-se com o advento da república, em 1899. O fluxo deslocou-
-se então do Rio de Janeiro, sede da Corte, para os estados. Tratou-se de
um movimento complexo, resultado de expectativas e anseios em diver-
sas direções: a necessidade de inserir-se no contexto da nova federação
ressaltando as contribuições regionais para a construção da República, o
anseio por forjar uma identidade individual depois de décadas submissa
àquela do Império e, não menos importante, fortalecer as forças polí-
ticas locais, dando visibilidade ao seu poder e pujança. Naturalmente
que os anseios acima listados precisam de um meio de realização. O
meio escolhido pelos governantes das unidades da federação foi o apelo
às imagens, fossem pintadas ou forjadas em bronze. O período que se

230
COLEÇÕES REAIS E COLEÇÕES OFICIAIS

seguiu à Proclamação da República foi de intensa produção artística,


povoando as praças com monumentos e os prédios públicos com ima-
gens dos heróis do novo país. José Murilo de Carvalho (2007, p. 14)
nos esclarece que “todo regime político busca criar seu panteão cívico e
salientar figuras que sirvam de imagem e modelo para os membros da
comunidade. Embora heróis possam ser figuras totalmente mitológicas,
nos tempos modernos são pessoas reais”. Consolidar um projeto ideoló-
gico necessita, então, de um aporte imagético. Valéria Salgueiro (2002,
p. 5) escreve que

O uso de imagens ligadas ao exercício do poder indica haver razões para se fazer
uso delas sempre que a doutrinação está em questão. Imagens causam profunda
e duradoura impressão [...]. Em prédios públicos, amplas paredes vieram abrigar
uma ação didática sobre a consciência coletiva no plano simbólico, visando a des-
pertar o sentimento patriótico. Paredes e tetos de palácios de governo, assembleias,
tribunais, bibliotecas e teatros forneceram, nesse sentido, suportes privilegiados
para a projeção do discurso oficial numa linguagem visual captada imediatamente
pelos sentidos, acessível mesmo aos não alfabetizados.

Não fugindo à regra em vigência na nova república, o governo do


estado do Rio Grande do Sul, entre os anos de 1912 e 1926, encomendou
a diversos artistas uma expressiva quantidade de pinturas com temas
históricos e pinturas decorativas, para alocação no Palácio Piratini, a
nova sede do poder executivo, projetada pelo arquiteto francês Maurice
Gras (1873–1954).
Nas primeiras décadas do século XX, como efeito da reestruturação
política e econômica do Rio Grande do Sul, alinhado com o projeto re-
publicano nacional em curso, o governo da província promoveu uma
sequência de aquisições de obras de arte: pintores de renome foram con-
tratados para produzir pinturas que promovessem a escritura visual da
história local, resgatando heróis e acontecimentos, com vistas à inserção
da Província no panorama nacional. Conforme Maraliz Christo (2009,
p. 1160)

231
COLEÇÕES DE ARTE EM PORTUGAL E BRASIL NOS SÉCULOS XIX E XX

O federalismo suscita a produção de iconografias locais, principalmente atendendo


a decoração dos palácios dos presidentes dos estados. O que permitirá aflorar algo
silenciado no Império: a memória das revoltas, tanto do período colonial, quanto
da regência, ocorridas entre os governos de D. Pedro I e D. Pedro II. Foram muitas
e, por vezes, reprimidas violentamente.

Acreditamos tratar-se da ocorrência local do mesmo fenômeno


nacional de mecenato estatal. O axioma, ou seja, a verdade irrefutável
da formulação de questões de fundo – a construção de uma identida-
de nacional –, e da conjuntura – a consolidação da imagem da Primeira
República –, são idênticas em todo o país, mantendo, entretanto, uma
escala adequada à realidade: um estado em crescimento e no início do
processo de mudanças econômicas – do agropastoril para a industria-
lizado –, urbanas e ainda a condição cultural local. Associa-se a isso o
aspecto político do momento, pois as encomendas se deram no período
em que o estado foi governado pelo Partido Republicano Rio-Grandense
(PRR), que se estendeu de 1892 a 1920, tendo como titulares do car-
go de Presidentes da Província o médico Carlos Barbosa Gonçalves
(1851–1933) e o advogado Borges de Medeiros (1863–1961). Buscando
uma explicação para o mecenato intenso do PRR no período, Marlene
Ourique do Nascimento, em sua tese (2019, p. 53), nos informa que

[...] houve uma tentativa de apropriação da temática farroupilha para fins políticos
por parte do PRR, no tocante ao caráter republicano atribuído à Revolta. Esta hipó-
tese coloca-se, portanto, em três elementos de análise, a saber, o PRR, a construção
do Palácio Piratini – local para onde as imagens iriam e o Museu Júlio de Castilhos,
como um dos agentes para divulgação de ideias vinculadas a este grupo político

A isso, a mesma autora (2019, p. 62) acrescenta que “Pode-se dizer


que com relação às encomendas de pinturas históricas, os principais
agentes estavam inseridos na administração de Borges de Medeiros e
da SOP (Secretaria de Obras Públicas do Estado do Rio Grande do Sul)
durante suas gestões mais aproximadas do pensamento positivista”.

232
COLEÇÕES REAIS E COLEÇÕES OFICIAIS

AS ENCOMENDAS: ARTISTAS E OBRAS2

Do conjunto expressivo de obras arroladas, por Fernando Corona,


em o Palácio do Governo do Rio Grande do Sul (1973), estão as encomen-
das feitas a importantes pintores contemporâneos brasileiros do final
do século XIX e primeiras duas décadas do século XX, como Antônio
Parreiras (1860–1937), Dakir Parreiras (1893–1967), Décio Villares
(1851–1931), Helios Seelinger (1878–1965), Lucílio de Albuquerque
(1877–1939) e Augusto Luis de Freitas (1868–1962). A primeira per-
gunta a ser feita sobre essas encomendas é sobre quais critérios foram
utilizados pelos comanditários, visto que elegeram majoritariamente
artistas nacionais, declinando de nomes locais, com a honrosa exceção
de Augusto Luis de Freitas. A primeira possibilidade é a de que queriam
artistas de nomeada, referências nacionais na área de pintura de história
e que os indicados fossem os mais celebrados no momento. A segunda
possibilidade seria a ausência de artistas plenamente habilitados no Rio
Grande do Sul para a empreitada, pois os maiores nomes eram Pedro
Weingärtner (1853–1929), pintor de gênero e paisagista3 e Libindo
Ferrás (1877–1951), hábil paisagista de renome local. Sobrava Freitas,
com renome nacional, que receberá encomendas em 1918.
Antônio Parreiras, pintor oficial da Primeira República, é personali-
dade dominante, atuando em todo o território nacional, do Amazonas
ao Rio Grande do Sul. Não entrando aqui nos méritos de sua atuação,
objeto de críticas ácidas na época e restrições duras a posteriori, ele ad-
ministrou de modo exemplar sua carreira de pintor oficial da Primeira
República. Lima Barreto considerava-o “o maior cabotino da pintura
no Brasil” (SALGUEIRO, 2002, p. 17) e acrescenta, não lhe poupando
sequer o filho, que sendo um

Paisagista de algum valor, mas mascate como o diabo, o Sr. Parreiras deu um dia
para pintar quadros históricos, nus e outras coisas por fotografias. Nunca se viu
uma coisa assim, tão errada, tão estúpida e tão sem senso. As pernas se encaixam....
Oh! Meu Deus! Os quadros do Sr. Dair [Dakir] são os maiores contos do vigário
que se possam imaginar. Que perspectiva! Que grupamento!

233
COLEÇÕES DE ARTE EM PORTUGAL E BRASIL NOS SÉCULOS XIX E XX

Fig. 1 – Antônio Parreiras (1860–1937); Proclamação da República de Piratini, 1914; Óleo sobre tela,
600 x 400cm; Regimento Bento Gonçalves da Brigada Militar (Porto Alegre). Fotografia não creditada,
disponível em: http://bombasfama.com.br/historia-farroupilha-proclamacao-da-republica-rio-grandense/

O mal humor e a evidente má vontade de Lima Barreto foi contesta-


do por Ronald de Carvalho (1924, p. 152), que escreveu que “mau grado
não ser Parreiras desenhista de alto quilate, o que lhe tem valido a crítica
maliciosa de quantos lhe apoucam os painéis históricos e as academias,
é, sem dúvida, um colorista admirável, de rara plasticidade”. Objeto de
inúmeros estudos,4 a obra de Parreiras teve inegável legitimidade e cele-
bração no período, principalmente suas pinturas de história. A lista de
encomendas do artista é caudalosa e cobre o país do Norte até o Sul,5
um projeto no qual, conforme Levy (1981, p. 42) “[...] aparece sua forte
determinação de construí-la como um veículo independente para sua
visão de mundo nacionalista e revoltada contra a dominação colonial”.
As encomendas locais foram efetuadas dentro do grande projeto do
artista, hábil articulador e administrador de carreira (não desconside-
rando aqui suas reiteradas reclamações de dificuldades financeiras), ele
chegou a Porto Alegre em dezembro de 1911, trazendo consigo uma vo-
lumosa exposição, que abriu no dia 19 do mesmo mês. O jornal Correio
do Povo registrava no dia seguinte que

234
COLEÇÕES REAIS E COLEÇÕES OFICIAIS

A concurrencia de hontem à exposição do pintor Parreiras foi simplesmente ex-


traordinária. Até as 7 horas da tarde, o número de visitantes foi superior a mil e
das 8 às 10 horas da noite, a concurrencia foi tão grande que a entrada teve que
ser vedada, pois não cabia mais ninguém no salão da exposição. Sendo verificado
hontem, que depois das 6 horas, o salão escurece, não permittindo que os quadros
sejam vistos satisfatoriamente, foi resolvido que a exposição ficaria aberta de 1 ás 6
horas e das 8 ás 10 da noite.

A exposição, que apresentou um estudo sobre a Proclamação da


República de Piratini, sinal de que já havia um entendimento anterior,
foi não só um sucesso de público, mas também de vendas e, conforme
anunciado pelo mesmo Correio do Povo, em 05 de janeiro de 1912:

O governo do estado resolveu encommendar, ao grande pintor nacional Antonio


Parreiras, a confecção de dois quadros historicos para o palácio presidencial ac-
tualmente em construção. Um será uma tela de 6 metros de comprimento por 3
de largura – A Proclamação da República de Piratini – cujo croquis tanto sucesso
fez na exposição realizada pelo artista no salão nobre do Club Caixeral. O outro
será o retrato do general Bento Gonçalves, tamanho natural, vendo-se ao fundo do
quadro uma alegoria aos seus feitos na revolução de 1835.

A assinatura do contrato se deu em 11 de janeiro do mesmo ano,


constando no documento reproduzido por Fernando Corona (1974, p.
17) uma listagem de sete peças a serem executadas e entregues em dois
anos e meio,6 pelo valor de 25 contos de réis. A lista não discrimina títu-
los, mas nela constam a Proclamação da República de Piratini e o Retrato
de Bento Gonçalves, além de outras obras não identificadas – certamente
as peças de pintura decorativa para o palácio, que serão encontradas
enroladas, em 1954, no depósito debaixo da escadaria.
A outra obra que sobreviveu ao tempo é A Prisão de Tiradentes,7 que
não está no rol das encomendas para o palácio, mas que ocorreu na
mesma época. O jornal Correio do Povo, em 11 de junho de 1912 in-
forma, com o título de Offertas á Bibliotheca Pública, que “o nosso col-
lega Eduardo Guimaraes, da redacção do Diario, ofereceu, hontem, á

235
COLEÇÕES DE ARTE EM PORTUGAL E BRASIL NOS SÉCULOS XIX E XX

Bibliotheca Pública do Estado, um bello quadro a óleo, executado pelo


notável pintor brasileiro Antonio Parreiras, que, há poucos mezes, esteve
nesta capital”. Parreiras retornou à cidade em março de 1915, trazendo
na bagagem a Proclamação da Republica Rio-Grandense e o retrato do
general Bento Gonçalves, que lhe haviam sido encomendados. A notícia
publicada no Correio do Povo (18/03/1915) informa ainda que, “alem
desses quadros, Antonio Parreiras trouxe outra tela histórica, ‘A Prisão
de Tiradentes’”.
A entrega das pinturas se deu em uma grande exposição no saguão
do palácio, este ainda em obras. Como de hábito, a divulgação foi inten-
sa e os resultados os mais vistosos possíveis. Em 23 de março, o mesmo
Correio do Povo informa que “apesar da chuva torrencial que caiu hon-
tem, a exposição dos quadros historicos do pintor Antonio Parreiras foi
visitada por cerca de 3 mil pessoas. A vista da grande concurrencia de
hontem, o pintor Parreiras resolveu conservar aberta a exposição até
amanhã, sábado, mas só das 11 ás 18 horas”.
A encomenda feita para Lucílio de Albuquerque, noticiada pelo
Correio do Povo em 11 de março de 1914, foi feita no mesmo momento
de sua exposição individual na cidade, o que parece ter sido uma estra-
tégia vitoriosa. Apesar dessas encomendas parecerem arbitrárias, isto é,
sem critérios ou controle artístico e/ou político, temos na mesma notí-
cia do dia 11 de março do Correio do Povo a informação de que as enco-
mendas foram objeto de um processo de avaliação. O jornal registra que

O professor José Gaudenzi já entregou seu parecer sobre a proposta apresentada ao


governo do Estado pelo pintor Lucílio de Albuquerque para a execução de um quadro
histórico, evocando um dos mais notáveis feitos da revolução de 35, o transporte por
terra, feito sob o commando de Garibaldi, da lagôa dos Patos para o Oceano. Outros
membros da comissão nomeada para este fim, srs. Victor Silva e dr. Affonso Hebert, já
haviam dado há dias, segundo noticiamos, seus respectivos pareceres.8

Em 24 de março de 1917 foram feitas as encomendas a Décio Villares,


que já trabalhara para o estado na execução do Monumento a Júlio de
Castilhos, inaugurado em 1913. Villares foi contratado para realizar as

236
COLEÇÕES REAIS E COLEÇÕES OFICIAIS

Fig. 2 – Antônio Parreiras (1860–1937); Prisão de Tiradentes, 1914; Óleo sobre tela, 180 x
280cm; Museu Julio de Castilhos, Porto Alegre. Fotografia não creditada, disponivel em:
http://museujuliodecastilhos.blogspot.com/2012/03/conhecendo-o-acervo-prisao-de.html

pinturas decorativas destinadas a alguns salões do Palácio e, para a ta-


refa de pintar 12 telas, de tamanhos diversos, recebeu a quantia de 60
contos de réis.9 São pinturas que, assim como as de Parreiras para o mes-
mo fim (entregues em março de 1919, conforme notícia do Correio do
Povo), permanecem desconhecidas e sem registro fotográfico. Podemos
imaginar o aspecto dessas obras considerando que consta, na obra de
ambos os artistas, uma parceria para a execução de uma decoração para
o interior do Palácio do Catete, documentada por Carlos Maciel Levy.10
Do mesmo ano de 1917 é a encomenda a Dakir Parreiras para a Fuga de
Anita Garibaldi, pela qual o artista recebeu uma quantia pouco superior
a 10 contos de réis.
As encomendas a Augusto Luis de Freitas foram feitas em 1918 e en-
tregues em 1926, segundo informa o boletim do Instituto do Patrimônio
Histórico e Artístico do Estado (IPHAE, 2020). Nele constam as duas
telas históricas, hoje no Instituto de Educação General Flores da Cunha,
a Chegada dos primeiros açorianos e o Combate da Ponte da Azenha e
uma terceira, intitulada Poema ‘Uraguai’ de Basílio da Gama, dedicada

237
COLEÇÕES DE ARTE EM PORTUGAL E BRASIL NOS SÉCULOS XIX E XX

Fig. 3 – Augusto Luis de Freitas (1868–1962); Combate da Ponte da Azenha, c. 1926;


Óleo sobre tela, 395 x 620cm; Instituto de Educação General Flores da Cunha, Porto Alegre.
Fotografia não creditada, arquivo do autor.

ao episódio de Lindoya, aparentemente, não foi executada.11 Freitas


é, conforme já registramos, o único artista local a receber uma enco-
menda pública de vulto, pois outros artistas, como os citados Pedro
Weingärtner e Libindo Ferrás, tiveram obras compradas pelo governo
do estado, pela Intendência Municipal e pelo Instituto de Belas Artes,
mas não foram contemplados com tarefas desse vulto. As razões não são
claras, visto que, em termos de prestígio, Weingärtner era um nome na-
cional, enquanto Freitas era conhecido e celebrado, mas não no mesmo
nível. Certamente, devemos atribuir os contratos também ao “capital
cultural” dos artistas, mais precisamente, neste caso, àquele “capital cul-
tural” que Sergio Micelli (2012, p. 14) associa à posição dos artistas e de
suas famílias no espaço social. Se no caso de Freitas isso demanda uma
investigação, inviável no momento, isso explicaria ao menos a contrata-
ção de Dakir Parreiras, artista nitidamente inferior em termos de inven-
ção e qualidade, a todos os outros contratados, mas filho do prestigiado
e influente Antônio Parreiras.
A última encomenda de peso foi feita a Helios Seelinger, por volta de
1925. Não dispomos de dados consistentes sobre os seus termos, mas

238
COLEÇÕES REAIS E COLEÇÕES OFICIAIS

sabemos que Seelinger vivia em Porto Alegre no período, tendo grande


importância na concepção e realização do famoso “Salão de Outono”,
ocorrido naquele ano. Em seu diário, o artista Fernando Corona
(CORONA, 1924, fl. 220, apud ROBE, 2011, p. 24) registrou que “em
princípios de 1924, o famoso pintor simbolista e carioca dos quatro cos-
tados Hélios Seelinger se encontrava entre nós. Aqui ficou uma longa
temporada esperando o contrato com o Governo para a execução de
um quadro histórico”. Ao contrário das pinturas anteriormente citadas,
todas voltadas para o passado, essa é, curiosamente, uma pintura de his-
tória “atual”, pois suas personagens estão vestidas na moda contempo-
rânea e é, ao mesmo tempo, antecipatória, prefigurando a Revolução de
1930, que ocorreria poucos anos depois.

A DISPERSÃO

A obras do Palácio Piratini tem uma história cheia de lacunas e a


dispersão das pinturas dos dois Parreiras, de Freitas, de Seelinger, de
Albuquerque e de Villares começa antes mesmo da efetiva colocação de
algumas delas nos devidos lugares. Formalmente essa dispersão tem seu
início, parcialmente documentado, através da Portaria nº 5 da Secretaria
do Governo, com data de 5 de maio de 1955, na qual fica estabelecido
que seus membros têm por objetivo “estudarem a destinação a ser dada
a quadros e retratos existentes no Palácio do Governo, tendo em vista
a preservação do patrimônio artístico do Estado”, (CORONA, 1974, p.
18), determinação que não esclarece as razões da sua proposição.
Saindo do campo dos documentos e entrando no das especulações,
podemos inferir algumas razões para a iniciativa, partindo da retomada
de alguns tópicos sobre a política cultural do governo gaúcho daque-
le período.12 A primeira foi a criação, em 1954, da Divisão de Cultura
da Secretaria da Educação e Cultura, uma estrutura complexa e abran-
gente, que ambicionava a reordenação do campo cultural local, a defi-
nição das missões das unidades existentes e a criação de novas unida-
des, como o Museu de Arte do Rio Grande do Sul (MARGS). Ainda

239
COLEÇÕES DE ARTE EM PORTUGAL E BRASIL NOS SÉCULOS XIX E XX

devemos considerar que, em 1951, o governo havia contratado o pin-


tor Aldo Locatelli (1915–1962) para produzir as novas pinturas para o
Palácio Piratini,13 obra que se estendeu até 1955. As numerosas peças
para os diversos ambientes do palácio, exigiriam a retirada das obras re-
manescentes para dar lugar às recém-chegadas. Uma terceira especula-
ção seria a efetiva mudança de pensamento das elites governantes locais,
ao substituir as pinturas históricas de Antônio Parreiras, Augusto Luis
de Freitas, Dakir Parreiras e Helios Seelinger pelas pinturas mitológicas
e alegóricas de Locatelli, com a ênfase dada aos aspectos regionais da
construção da identidade local. Conforme Gomes (2005, p. 26),

Assim é que se articula a criação de uma mitologia gauchesca, em tudo assemelha-


da ao mito do bandeirante em São Paulo. Esse projeto de formação de uma iden-
tidade nacional tem no movimento tradicionalista do RS sua maior expressão. [...]
os temas encomendados [a Locatelli] são o enaltecimento das forças produtivas do
Estado (agricultura e pecuária), as artes plásticas e temas como a fundação da cida-
de de Rio Grande e a formação histórico-etnográfica do povo rio-grandense, além
de 18 painéis ilustrativos da lenda do Negrinho do Pastoreio para o Salão de Festas.

Retomando os encaminhamentos da referida Portaria nº 5, a comis-


são deu por encerrada a tarefa em 22 de agosto de 1954 e, em 23 de
setembro do mesmo ano, o Engenheiro Ildo Meneghetti, governador
do Estado, acatava o parecer da comissão. Nesse parecer, fica definido
o destino tanto das obras expostas quanto daquelas localizadas em um
“compartimento situado embaixo da escadaria que conduz ao andar su-
perior do Palácio” (CORONA, 1974, p. 16), dentre as quais encontrava-
-se enrolada a Proclamação da República de Piratini, os projetos de de-
coração dos tetos e outros painéis não assinados, atribuídos a Antônio
Parreiras. No mesmo documento, estão listadas as obras “encostadas às
paredes, ao lado da escadaria central”, como a tela de Helios Seelinger,
o retrato de Anita Garibaldi, por Dakir Parreiras, o retrato de Bento
Gonçalves, de Antônio Parreiras, esse com autoria não identificada.
Na continuidade do parecer, são explicitados os critérios de avalia-
ção: “não somente por seu valor artístico, mas também, e sobretudo, pela

240
COLEÇÕES REAIS E COLEÇÕES OFICIAIS

Fig. 4 – Helios Seelinger (1878–1965); Alegoria, Sentido e Espírito da Revolução


Farroupilha, c. 1925. Óleo sobre tela, 380 x 570 cm; Museu Histórico Farroupilha, Piratini.
Fotografia do Museu Histórico Farroupilha / Divulgação.

sua significação histórica” (CORONA, 1974, p. 17). A seguir, são apre-


sentadas as justificativas para a exclusão do acervo do Palácio: “quanto
às telas, força é confessar que, excetuada ‘Proclamação da República de
Piratini’ e, com muitas restrições as que nos apresentam Anita Garibaldi
e Bento Gonçalves, as demais, além de estarem bastante danificadas,
por motivos fáceis de compreender, carecem de qualidades plásticas ou
artísticas” (CORONA, 1974, p. 17). O documento se estende com orien-
tações de encaminhamento das peças ao “Museu Piratini”, inclusive a
obra de Helios Seelinger, e para o restauro, emolduração e relocação da
Proclamação... de Parreiras, associando a permanência à oportuna for-
malização do nome do imóvel como Palácio Piratini. O documento se
estende ainda sobre outras obras, nos dando, inclusive, uma pista sobre
as pinturas decorativas, encomendadas a Parreiras em 1915 (e também
a Villares, em 1917), informando que as mesmas, por se “apresentarem
destituídas de valor artístico” (CORONA, 1974, p. 18) deveriam ser
doadas ao Museu Antônio Parreiras.

241
COLEÇÕES DE ARTE EM PORTUGAL E BRASIL NOS SÉCULOS XIX E XX

Os caminhos traçados pela comissão não foram seguidos à risca, vis-


to que a Proclamação da República de Piratini terminou por ir para o
Posto de Comando do Regimento Bento Gonçalves da Brigada Militar
(em Porto Alegre), onde se encontra até hoje. As obras destinadas ao
Museu Histórico Farroupilha (Piratini) tiveram trajetórias curiosas, fi-
cando inacessíveis por muitos anos, como foi o caso do suposto desa-
parecimento da tela de Helios Seelinger, que foi localizada, depois de
muitas buscas, enrolada no sótão da instituição.
O percurso das duas telas de Augusto Luis de Freitas e de Lucílio de
Albuquerque que, até onde sabemos, não foram colocadas no Palácio,
é menos tortuoso. As de Freitas, segundo Círio Simon (2020) eram por
demais prosaicas e não condiziam com o mito que o PRR queria, o que
explicaria nunca ter sido colocada no palácio, abrindo espaço para jus-
tificar a encomenda a Helios Seelinger. Saindo de local ignorado, foram
expostas em 1935, no prédio do atual Instituto de Educação General
Flores da Cunha, integrando a seção cultural da Exposição do Centenário
Farroupilha, onde permanecem até hoje. Outra obra com trajetória
errante foi A Prisão de Tiradentes. Retirada da Biblioteca Pública do
Estado em 1953, para onde foi comprada, foi para o acervo do MARGS.
Nos anos 1970, com a mudança do museu para sua sede na Praça da
Alfândega, a obra foi transferida para o Museu Júlio de Castilhos, ações
que carecem de coerência, documentação e de justificativas.

EPÍLOGO

Tentamos, ao longo deste artigo, responder às perguntas que nos co-


locamos frente ao tema do mecenato estatal no Rio Grande do Sul nas
primeiras décadas do século XX. Trata-se de tema complexo e vasto, que
já foi objeto de inúmeros estudos (registramos aqui alguns deles) mas
ainda está longe de ser respondido na totalidade. Vimos que as razões
das encomendas estatais de obras de arte estão vinculadas à necessidade
de fortalecimento da imagem do Estado e do PRR, partido que dominou
toda a Primeira República. Observamos que os critérios de escolha dos

242
COLEÇÕES REAIS E COLEÇÕES OFICIAIS

temas e contratos não estão explicitados nos documentos legais, o que


não impediu sua consecução. Quanto aos artistas contratados, a respos-
ta natural é a do prestígio nacional, antes de valores locais, visto que a
visibilidade era a ambição maior dos que encomendavam. Sobre a reper-
cussão na época, ela foi estrondosa, pelos registros da imprensa diária
(considerando o reduzido corpus que consultamos), além de não termos
registro de oposições ou rejeições. Sobre a situação atual das obras, pelo
menos aquelas localizadas, é estável em instituições legais e estão sob
cuidados técnicos. Quanto à última indagação, de como essa coleção
atuou na construção de uma autoimagem, aparentemente não causou
maiores alterações, até pela dificuldade de acesso ao Palácio Piratini14.
Entretanto, de algum modo, elas ficaram gravadas na memória coletiva
local e, direta ou indiretamente, ajudaram a construir uma visualidade
para a história local mas, principalmente, elas colocaram o Rio Grande
do Sul no contexto histórico nacional. Do ponto de vista de sua contri-
buição para o sistema das artes local, esse primeiro colecionismo estatal
consolida a ideia de arte para o grande público e, do ponto de vista ins-
titucional, ela fortalece e legitima o recém-criado (1908) Instituto Livre
de Belas Artes, ação que dará frutos quando, por ocasião da grande re-
forma administrativa do Estado (anos 1950) e período de um segundo
fluxo de encomendas, culminará com a criação do MARGS.

REFERÊNCIAS
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Companhia das Letras, 2007.
CARVALHO, Ronald de. Estudos Brasileiros, 1ª Série. Rio de Janeiro: Edição do Annuario do Brasil,
1924. Disponível em: https://digital.bbm.usp.br/bitstream/bbm/4370/1/003912_COMPLETO.pdf
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blogspot.com/2019/09/289-rs-de-pe-pelo-brasil.html. Acesso em 14/06/2020.

NOTAS
1 Este artigo está vinculado à pesquisa nº 38643 (UFRGS) – Artistas, Historiadores da Arte e Críticos: uma pers-
pectiva da arte no Brasil a partir dos acervos artísticos e documentais (públicos e privados) (UFRGS), atualmente
em desenvolvimento, que integra o grupo de pesquisa de mesmo nome: CAPES nº 548038 (dgp.cnpq.br/dgp/
espelhogrupo/3547353698576447).
2 O histórico dessas encomendas foi objeto de estudo de Marlene Ourique do Nascimento em dois trabalhos aca-
dêmicos: na dissertação Na pista das imagens: produção e circulação de pinturas históricas no Rio Grande do Sul
de 1914 a 1935 (Porto Alegre, 2015) e na tese Nas tintas da história: a produção de pinturas históricas de temática
farroupilha na república velha gaúcha (Porto Alegre, 2019).
3 Não há, rigorosamente falando, pinturas de história na trajetória de Pedro Weingärtner. Exemplos próximos
disso foram as obras produzidos sob o efeito e testemunho pessoal da Revolução Federalista (1893). Um fator que
deve ser considerado, na hipótese de uma possível encomenda, foi o caso do Rodeio (1908), encomendado pelo
governo do Estado, que foi recebida com duras críticas.
4 Alguns exemplos: Carlos Roberto Maciel Levy (1981), Liandra Motta (2006), Valéria Salgueiro (2002), Lucia
Klück Stumpf (2012 e 2014) e Maria de Lourdes Eleutério (2013).
5 Carlos Roberto Maciel Levy (1981) lista, na página 145, as seguintes encomendas: Manaus – Palácio Rio
Negro; Belém – Palácio Lauro Sodré; São Luís – Palácio dos Leões; Natal – Palácio do Governo Estadual;
João Pessoa – Palácio da Redenção; Recife – Palácio do Campo das Princesas; Salvador – Palácio Rio Branco;
Cachoeiras (BA) – Prefeitura Municipal; Belo Horizonte – Palácio da Liberdade; Vitória – Palácio Anchieta;
Niterói – Prefeitura Municipal; Rio de Janeiro  – 
Palácio Guanabara, Tribunal Regional Eleitoral; São
Paulo – Prefeitura Municipal, Palácio Bandeirantes; Curitiba – Palácio Iguaçu; Porto Alegre – Palácio Piratini,
Museu Júlio de Castilhos.
6 Constam na lista: 1 friso de 2 x 26,50m; 1 quadro de 5,20 x 3,80m; 4 quadros alegóricos pequenos; 1 quadro de
6,30 x 3,20m.
7 Sobre essa obra, e sua trajetória, ver: SILVA, Ana Celina Figueira da; MINUZZO, David Kura; MURATORE,

244
COLEÇÕES REAIS E COLEÇÕES OFICIAIS

Eliane. A Prisão de Tiradentes. Disponível em: https://www.anpuh-rs.org.br/conteudo/view?ID_


CONTEUDO=1337&impressao
8 Os avaliadores citados, o escultor Giuseppe Gaudenzi (1875–1966), o poeta Victor Silva (1865–1922) – que diri-
gia a Biblioteca Pública – e o arquiteto Affonso Hébert (1852–?) foram personalidades influentes e de destaque na
vida artística e cultural da cidade.
9 Constam na lista: 1 tela de 5,40 x 3,10m; 10 telas de 2,60 x 2,25m para as paredes do grande salão; 1 tela de 4,10 x
2,50m para o teto de um pequeno salão.
10 Decoração para o interior do Palácio do Catete (realizada conjuntamente com Décio Villares), 1897. Óleo sobre
argamassa, 295 x 350 cm. Assinado e datado no canto inferior direito. Reproduzida na página 51, do livro de
Carlos Roberto Maciel Levy (1981).
11 As três telas seriam colocadas nos tetos de três salas do palácio, de acordo com relatório do período. Ver:
NASCIMENTO, 2015.
12 Sobre o assunto, ver, de GOMES, 2005.
13 Para mais informações, ver, de Paulo Gomes, “A vida, a obra e o tempo de Aldo Locatelli”. In O Mago das Cores:
Aldo Locatelli. Porto Alegre: Marprom/CEEE, 1998.
14 O que não é o caso da Biblioteca Pública do Estado, um espaço aberto ao público que, além do Tiradentes, de
Parreiras, que entre 1912 e 1925 (dados pesquisados até o momento) teve muitas obras de arte adquiridas, tema
no qual trabalhamos no momento.

245
AS PINTURAS DE RETRATOS
DA IRMANDADE DO SANTÍSSIMO
SACRAMENTO DA CANDELÁRIA:
DE ACERVO A COLEÇÃO

MÁRCIA VALÉRIA TEIXEIRA ROSA


Doutorado em História e Crítica de Arte pelo Programa de Pós Graduação em Artes Visuais/
PPGAV. Escola de Belas Artes. Universidade Federal do Rio de Janeiro/UFRJ / Professora Adjunta
do Departamento de Estudos e Processos Museológicos/DEPM. Universidade Federal do Estado do
Rio de Janeiro/ UNIRIO. / Coordenadora do Projeto de Extensão e Cultura “Igrejas Históricas no
Rio de Janeiro: descobrindo e revelando seus acervos”. Pró-Reitoria de Extensão e Cultura/PROExC/
UNIRIO.
marciavaleria.rosa@gmail.com

Resumo Palavras-chave
A partir do estudo dos acervos de pinturas de Pinturas de retratos; Irmandade do Santíssimo
retratos nas Ordens Terceiras e Irmandades Sacramento da Candelária; Museu da Igreja da
religiosas no Rio de Janeiro sobretudo o da Candelária; Vicente Mallio.
Irmandade do Santíssimo Sacramento da
Candelária, propomos apresentar as primeiras
iniciativas de instalação do Museu Sacro da
Candelária elaboradas na década de 70 pelos
museólogos Teresinha de Moraes Sarmento que
inventariou e organizou o acervo do Museu e por
Arnaldo Machado que auxiliou na manutenção
da instituição, cujo funcionamento vigorou de
1973 até 2006. Considerando a documentação do
Arquivo F. B. Marques Pinheiro da Irmandade,
nossa proposta consiste em apresentar uma
das pinturas de retratos do acervo da ISSSC
selecionada para constituir o acervo do Museu
da Candelária.

247
COLEÇÕES DE ARTE EM PORTUGAL E BRASIL NOS SÉCULOS XIX E XX

O acervo de pinturas de retratos da Irmandade do Santíssimo


Sacramento da Candelária1 é constituído por cerca de 100 telas exe-
cutadas por diversos pintores atuantes no cenário artístico do Rio de
Janeiro entre 1870 e 1980. Entre os agraciados, foram representados os
membros da Irmandade que ocuparam cargos administrativos na insti-
tuição como Procuradores, Tesoureiros e Secretários, mas sobretudo os
Provedores. Também foram homenageados alguns membros eclesiásti-
cos, Conselheiros do Império e Irmãos Benfeitores e Beneméritos que
contribuíram financeiramente para obras na Igreja da Candelária e suas
Repartições – da Caridade, do Coro e do Hospital dos Lázaros.
A partir do levantamento quantitativo do acervo de pinturas de re-
tratos da ISSSC e sobretudo dos artistas que se encarregaram destas en-
comendas entre 1870 e 1980, destacamos para o presente artigo a tela do
pintor português Vicente de Moraes Pereira Mallio (1832–1892) execu-
tado em 1877 [Fig. 1] único retrato do pintor no acervo.
A tela em formato oval representa uma jovem mulher em três quar-
tos, datado e assinado no canto inferior esquerdo. Em termos compo-
sitivos apresenta semelhanças estilísticas com os demais retratos do
acervo, tais como o rosto em diagonal ao observador, detalhamento na
indumentária e elaborado penteado, cujo trançado parte do alto da ca-
beça e cai sobre os ombros, destacando o rosto alvo da jovem. A modelo
usa um conjunto de broche e brinco com motivo floral, que de certa
maneira impediu-nos de seguir alguns indícios da indumentária femi-
nina oitocentista, cuja adereço era decorado com a miniatura do retrato
do marido.2
Apesar de termos poucas informações da identidade da retratada entre
1876, data provável da encomenda e 1878, data provável de sua inaugu-
ração, nenhum dos documentos do Arquivo da Irmandade – Relatórios
dos Provedores e os Relatórios de Tesoureiros e Secretários possibilitou-
nos encontrar qualquer indício de referido retrato.
Nossa hipótese é que a retratada tenha sido homenageada por seus
serviços prestados em uma das três Repartições da Irmandade, como
Provedora ou Vice-Provedora, Esmoler, tendo como requisito ter sido
admitida como Irmã, tal qual as outras mulheres representadas no

248
COLEÇÕES REAIS E COLEÇÕES OFICIAIS

Fig. 1 – Vicente Mallio. s.título. o.s.t. 73 x 60 cm. Acervo da ISSSC.


Localização restrita. Fonte: Catálogo do IPHAN.

acervo. Para estas funções eram designadas as esposas dos Provedores,


Vice-Provedores, Procuradores, Tesoureiros e Secretários. Mas tam-
bém não descartamos a hipótese que a retratada tenha sido uma Irmã
Benfeitora ou Benemérita, certamente homenageada em gratidão aos
donativos legados à Irmandade ou especificamente à uma das institui-
ções, porém não identificamos nenhuma solenidade desta natureza nos
documentos supra citados entre 1876 e 1878.
No entanto observamos que no Álbum de Fotografias de eventos da
ISSSC – solenidades da Irmandade realizadas na Igreja, no Hospital dos
Lázaros e no Asilo das Crianças Desvalidas, consta uma foto de uma
das salas do Asilo decorada para a exposição dos trabalhos escolares das
alunas de bordado em 1919, onde podemos observar o referido quadro
de Vicente Mallio pendurado em uma das paredes, com a mesma mol-
dura até o presente momento. [Figs. 2 e 3]3

249
COLEÇÕES DE ARTE EM PORTUGAL E BRASIL NOS SÉCULOS XIX E XX

Fig. 2 – ISSSC. Arquivo F. B. Marques Pinheiro. Iconografia Álbum de fotografias de eventos da ISSSC
[1915–1931]. Armário 43. Prateleira C. Pacote 2829. Folha 39. Foto 2. Fonte: Foto da autora.

O processo de encomenda de uma pintura de retrato era iniciado


com uma Proposta apresentada por algum Irmão em reunião da Mesa
Administrativa e em seguida era organizada uma Comissão encarregada
de acompanhar o processo da homenagem. A Proposta era registrada no
Livro de Atas e constava de dados que nos permitiram algumas identifi-
cações: as razões do preito, as dimensões dos quadros – seja em tamanho
natural ou “três quartos” e a escolha dos locais a serem dispostos no ato
da inauguração. Quanto à identificação do nome do artista encontramos
algumas variáveis: indicação dos nomes dos pintores e dos retratados
em mesma Ata; proposta(s) e/ou esboço(s) e pagamentos ao(s) artista(s)
em diferentes documentos – Livros de Atas, Relatórios de Provedores
e Livros de Receitas e Despesas, localizados no Arquivo F. B. Marques
Pinheiro da ISSSC. Além destes, as Pastas de Correspondências Emitidas
e Recebidas pela Irmandade indica-nos a existência de uma disputa de
Propostas entre os pintores para execução das encomendas, porém a
maior parte da documentação referente às Comissões formadas para este
propósito, mencionavam apenas um nome de artista. Passado este pro-
cesso inicial, a Comissão encarregava-se da cerimônia de inauguração

250
COLEÇÕES REAIS E COLEÇÕES OFICIAIS

Fig. 3 – Detalhe.

do retrato. Quando realizadas na Igreja da Candelária sobretudo no


Consistório tratava-se de eventos mais concorridos, uma vez que este
espaço é considerado o mais privilegiado por ser o local de reunião dos
membros das Mesas Administrativas. No entanto, outros espaços inter-
nos – os acessos à Sala dos Cumprimentos, escadas e corredores no 2º
andar também foram utilizados para estas solenidades denominados nos
Relatórios dos Provedores como “Galerias dos Retratos” ou “Galerias dos
Benfeitores”. De todo modo eram inaccessíveis ao público em geral e aos
fiéis devotos que apenas participavam das cerimônias religiosas, mas não
tinham permissão aos espaços internos da Igreja.
Portanto, as pinturas de retratos tinham visibilidade somente para
aqueles que ocupavam cargos administrativos e as pessoas que recor-
riam à Irmandade para acolher suas dificuldades financeiras. Deste
modo, o acervo da ISSSC permanecia como um espaço decorado com
pinturas, porém restritas aos olhos de seus encomendantes, o que nos
leva a pensar numa hierarquia de espaços – o litúrgico, que foi e ainda
permanece com um espaço público, e as dependências internas da Igreja
que eram privadas exceto no período de funcionamento do Museu.

251
COLEÇÕES DE ARTE EM PORTUGAL E BRASIL NOS SÉCULOS XIX E XX

As “Galerias de Retratos” foram mencionadas nas reuniões das


Mesas Administrativas muito mais como um discurso laudatório ao
homenageado do que por seu valor artístico. No entanto, os membros
das Mesas Administrativas demonstraram preocupação em conservar
as telas, conforme identificamos nos Livros de Receitas e Despesas pa-
gamentos referentes à restauração e limpezas de retratos.4 No entanto e
apesar destes cuidados com o acervo, nenhum membro da Irmandade
antes da década de 1970 manifestou a intenção de inventariar as obras.
O que nos leva a indagar como os Irmãos consideravam este conjunto
de quadros após a constituição do Museu?
Somente na edição do Jornal do Brasil em 1972 foi publicada a notí-
cia da reforma da parte interna da Igreja da Candelária para a instalação
do Museu de Arte Sacra da Igreja de Nossa Senhora da Candelária :

“As obras consistem na pintura geral do templo, lavagem dos mármores de sua
nave, reforma dos lambris, envernizamento dos móveis e partes de madeira, res-
tauração de quadros históricos de antigos provedores e benfeitores da Irmandade.
(…) A secretaria que foi retirada do interior da Igreja, servirá para a organização,
no próximo ano, do Museu da Candelária.” Cf. http://memoria.bn.br/DocReader/
DocReader.aspx?bib=030015_09&pesq=”Museu da Candelária”&pagfis=68860

Além da indicação da transferência da Secretaria para abrigar o


Museu, observamos que a Igreja passou por uma limpeza para a prepa-
ração da festa de aniversário de sua sagração, conforme mencionada na
Ata da reunião da Mesa Administrativa em dezembro de 1973, ocasião
que o Provedor Silvio Antonio da Silva declarou que

Em nossa Igreja da Candelaria, realizamos as festividades comemorativas do 75º


aniversário de sua sagração, houve missa solene, assistida por sua Em.[Eminência]
o Cardeal D. Eugenio Salles, e a seguir foi inaugurado o Museu de nossa Igreja, na
antiga Sala da Secretaria e salão da Galeria de entrada, tendo sido descerradas 2
placas alusivas à data e inauguração do Museu. A benção foi dada pelo Snr. Cardeal
e após discertou sobre o acontecimento, enaltecendo a obra da nossa Irmandade
com o que acabava de presenciar. Resaltou (sic) que o que verificava representava

252
COLEÇÕES REAIS E COLEÇÕES OFICIAIS

Fig. 4 – ISSSC. Arquivo F. B. Marques Pinheiro. Armário 043.


Prateleira B. Caixa 0636. Documento 02859. Fonte: Foto da autora.

a obra da fé cristã, no apreço às peças sagradas (grifo nosso) ali expostas. (…).
ISSSC. Arquivo F. B. Marques Pinheiro. Livro de Ata nº 25 da Mesa Administrativa.
Armário 101. Prateleira A. Documento 6. p.12.

No dia da inauguração foi lavrado um Têrmo, cujo cabeçalho consta


de “Ato de Inauguração do Museu de Artes, Quadros e Esculturas”, que
nos chama a atenção ao conjuntos de obras expostas e não ao nome
oficial que o Museu recebeu. O Têrmo conta com 5 assinaturas dos
membros da Mesa Administrativa seguidas de 36 assinaturas, entre au-
toridades políticas, membros de “Associações Portuguesa, de Ordens
e Irmandades Religiosas”.5 No registro fotográfico da solenidade, além
do Cardeal D. Eugenio Salles e do Provedor Silvio Antonio da Silva,
foram identificados as presenças das seguintes autoridades Monsenhor
Fernando Ribeiro, Lourenço Monteiro de Queirós, Deputado Francisco
da Gama Lima, Lígia Fernandes da Cunha, Álvaro Dias, ministro do
Tribunal de Contas, entre outros”.[Fig. 4]
O discurso do Cardeal destacou principalmente seu apreço pelos
objetos litúrgicos expostos em vitrines, tais como relicários, palmas

253
COLEÇÕES DE ARTE EM PORTUGAL E BRASIL NOS SÉCULOS XIX E XX

em prata, crucifixos com incrustações de pedra, conforme as fotogra-


fias localizadas no referido Arquivo. Na continuidade da mesma Ata,
o Provedor destacou a organização do Museu e fez um agradecimento
pela dedicação

“de nossa Irmã a Prof. Snra D. Terezinha de Morais Sarmento, museóloga de renome,
que ali soube provar com a sua competência e seu amor à Irmandade, apresentando
uma obra que ressalta aos nossos visitantes o respeito aos nossos antepassados ali
representados nos quadros expostos, pelo muito que fizeram pela Instituição, além
do carinho da Irmandade pela obra que lhe foi confiada.” Id. Id, p.12–13.

Neste trecho observamos o deferimento da Irmã Benemérita


Terezinha de Moraes Sarmento6 e os esforços do Irmão Definidor
Antonio Feliciano Leão no auxílio à museóloga para viabilizar este em-
preendimento da Irmandade.
O espaço do Museu Sacro abrangia os corredores de acesso à escada,
a Sala de Cumprimentos, o hall de entrada para Secretaria no segundo
andar, o corredor de acesso ao Consistório e principalmente a antiga
Secretaria da Irmandade, conforme mencionamos. Após a cerimônia os
convidados foram encaminhados para o Consistório da Igreja onde fo-
ram proferidos os discursos do Provedor e do Cardeal D. Eugênio Salles,
que receberam medalhas de ouro e os demais convidados uma medalha
de prata.7
A descrição de algumas peças presentes no Museu só foram registra-
das na Ata da Reunião realizada em outubro de 1974, em que o Provedor
Silvio Antonio da Silva comunicou

“que se achava em andamento a instalação do nosso Museu, onde a nossa irmandade


apresentará em continuação ao nosso Consistório, a sua galeria de Obras de Arte
constituida por quadros e objetos de prata de uso em nosso Templo, medalhas e con-
decorações recebidas, vasos etc. É nosso desejo inaugura-lo (sic) no dia 9 de Dezem-
bro p.f.. comemorando o 75º Aniversário da inauguração de nossa Igreja, desejamos
fazer cunhar uma medalha alusiva à data”. ISSSC. Arquivo F. B. Marques Pinheiro.
Livro de Ata Mesa Administrativa. nº 25. Armário 101. Prateleira A. Documento 6.

254
COLEÇÕES REAIS E COLEÇÕES OFICIAIS

Neste relato identificamos a intenção do Provedor em adequar um


espaço para as “Obras de Arte” demonstrando, portanto, uma preocu-
pação de musealização de parte do acervo das pinturas de retratos e dos
objetos litúrgicos.
Os princípios norteadores dos Museus de Arte Sacra, em geral, pas-
sam pelo processo de ressignificação simbólica no que diz respeito à
funcionalidade e à finalidade do objeto litúrgico e da escultura devo-
cional. Ou seja, são retirados de seu espaço original e adquirem o status
de obra de arte expostas em vitrines e pedestais. Ganham, portanto,
uma potência narrativa que permite o diálogo interdisciplinar entre
arte sacra, museologia e história.8 Em especial no Museu da Candelária
haviam vitrines contendo diversas peças provenientes da Igreja, do
Hospital e do Asilo, conforme observado nas fotografias do Arquivo F.
B. Marques Pinheiro.
Em relação à disposição das pinturas de retratos encomendadas pelas
Irmandades religiosas, o percurso de um quadro seguia a indicação da
Proposta da Comissão, conforme mencionamos. Posteriormente, a tela
poderia ser trocada de parede pelos Irmãos das Mesas Administrativas
sucessivas. Deste modo, as pinturas de retratos eram entendidas como
parte do acervo da instituição, pois eram descritas pelos Secretários e
Tesoureiros nos Relatórios dos Provedores e nos Livros de Receitas e
Despesas no item “Patrimônio”.
No entanto, ao serem selecionadas para ocuparem as paredes de um
Museu, tais quadros eram dispostos segundo uma lógica de expografia.
No caso do acervo da Candelária, somente a partir de 1973, as pinturas
de retratos foram exibidas como uma coleção (grifo nosso) ao lado de
jarras, medalhas em bronze e pratarias.
A museóloga Teresinha Sarmento iniciou o levantamento documen-
tal no Arquivo da Irmandade, tomando anotações em cadernos, blocos
ou papéis de diversos tamanhos e guardando recortes de jornais sobre
a Igreja da Candelária e sobre as pinturas de retratos.9 Em seguida ela-
borou o Inventário e organizou a coleção para o Museu, conforme re-
gistrado no livro “Museu da ISSSC”10 com os seguintes dados: número e
descrição dos objetos tombados e a procedência de cada peça – da Igreja

255
COLEÇÕES DE ARTE EM PORTUGAL E BRASIL NOS SÉCULOS XIX E XX

Fig. 5 – ISSSC. Arquivo F. B. Marques Pinheiro. Armário 043.


Prateleira B. Caixa 0636. Documento 02859. Fonte: Foto da autora.

ou da Secretaria, do Hospital dos Lázaros e do Educandário Gonçalves


de Araújo, instituições já mencionadas.
Neste processo de musealização das pinturas de retratos para o
Museu da Candelária observamos que desde a inauguração, a tela re-
presentando a mulher não identificada da lavra do pintor Vicente
Pereira Mallio ocupava uma parede ao lado das telas representando o
Conselheiro Ferreira Vianna e do casal Felipe Nery Pinheiro e Laura
Amanda Pinheiro. [Fig. 5]
Como não identificamos quais foram os critérios escolhidos pela
museóloga na seleção das obras para o Museu Sacro, permanecemos
cercados por muitas perguntas, motivando-nos ainda mais esta
investigação. Por que selecionar uma tela justamente sem identificação
da retratada? Estimulados por Jacques Le Goff, seguimos os rastros da
trajetória artística de Vicente Mallio no Rio de Janeiro.

256
COLEÇÕES REAIS E COLEÇÕES OFICIAIS

O pintor seguiu o ofício do pai e desenvolveu sua carreira no Rio


de Janeiro, executando sobretudo retratos para diversas instituições na
capital e em outras cidades brasileiras. Investigamos principalmente
sua produção anunciada no Jornal do Comércio entre 1870 – década
de execução do retrato do Museu da Candelária e 1890 – década de
falecimento do pintor.11
Considerando o cenário artístico deste período, o local de maior
visibilidade para os artistas era a participação nos certames da
Exposição Geral de Belas Artes, organizadas pela Academia Imperial
de Belas Artes, com grande apelo de críticos e público. Vicente Mallio
participou somente de uma edição em 1870, apresentando o retrato do
Imperador.12 No entanto, observamos que o pintor publicou anúncios
no Jornal do Comércio, sobre suas qualidades como “retratista a oleo
e photographo, garante a perfeição de seus trabalhos e modicidade de
preços; na rua Sete de Setembro n.25”13, mesmo endereço de seu atelier
mencionado no Catálogo da EGBA.
Outras produções de Mallio foram expostas principalmente nas
Galerias Moncada e Glace Élégante, ambas localizadas na rua do
Ouvidor, logradouro de destacada efervescência cultural na capital
carioca no período entresséculos e anunciadas nas edições do Jornal
do Comércio. Devemos considerar que tais anúncios poderiam ser
pagos pelos proprietários dos referidos estabelecimentos para atrair
novos clientes ou pagos pelos artistas para favorecer a publicidade de
seus trabalhos, tendo em vista que muitos retratos expostos já tinham
destinos definidos.
De fato, observamos uma notícia na primeira página da edição de
maio de 1878, da exposição dos retratos do “Dr. José Lopes Ferreira e de
sua senhora” (grifo nosso) na Galeria Moncada.14 Mediante este anúncio,
surge-nos ainda mais perguntas: quem indicou o artista para a ISSSC? Sem
evidências de pagamento da pintura, nossa hipótese é que o pintor tenha
oferecido à Irmandade o quadro representando uma possível Benfeitora.
Mas por que D. Teresinha Sarmento escolheu expor em uma coleção
permanente do Museu uma tela, cuja identificação é apenas a assinatura
do pintor e a data de execução? Qual seria a importância desta obra?

257
COLEÇÕES DE ARTE EM PORTUGAL E BRASIL NOS SÉCULOS XIX E XX

As obras do pintor continuarão ganhando espaço nos anúncios do


Jornal do Comércio, mesmo após seu falecimento em 189215 e o Museu
seguirá seu funcionamento, sendo inclusive referenciado no Inventário
do IPHAN/RJ elaborado em 200116 e encerrará suas atividades em 2006.
Muitas dúvidas apresentadas neste artigo permanecem sem respostas.
Talvez tenha sido esta a intenção da museóloga: expor a única tela de
Vicente Moraes Pereira Mallio representando uma jovem e misteriosa
mulher de olhos esverdeados e nos proporcionar seguir os vestígios
desta coleção.

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Pinheiro. Iconografia. Álbum de fotografias de eventos da ISSSC [1915–1931].
______. Relatório apresentado à Irmandade do Santíssimo Sacramento da Candelária pelo Irmão
Provedor Antonio José Gomes Brandão em outubro de 1876 por occasião da posse da nova
Administração. Rio de Janeiro: Typ. De Pinheiro & C., 1876.
______. Relatório apresentado à Irmandade do Santíssimo Sacramento da Candelária pelo Irmão
Provedor o Conselheiro Visconde de S. Salvador de Mattosinhos em 28 de outubro de 1877 por occa-
sião da posse da nova Administração. Rio de Janeiro: Typ.Vera-Cruz, 1877.
______. Relatório apresentado à Irmandade do Santíssimo Sacramento da Candelária pelo Irmão
Provedor Antonio Joaquim de Carvalho Lima em 28 de julho de 1878 por occasião da posse da nova
Administração. Rio de Janeiro: Typ. De Pereira Braga & C., 1878.
______. Referente ao 2º Exercício 1882–1983. Apresentado pelo Provedor Lourenço Monteiro de
Queiroz. Rio de Janeiro, 1983.
LEVY, Carlos Roberto Maciel. Exposições Gerais da Academia Imperial e da Escola Nacional de Belas
Artes. Período Monárquico – Catálogos de Artistas e Obras entre 1840 e 1884. Rio de Janeiro: Edições
Pinakotheke, 1990.
MACHADO, Arnaldo. Candelária: aspectos históricos, arquitetônicos e artísticos. Rio de Janeiro:
Irmandade do Santíssimo Sacramento da Candelária, 2017.

NOTAS
1 Este artigo é um desdobramento da pesquisa para tese de doutoramento, a partir da documentação relacio-
nada à formação do Museu da Candelária. Cf. ROSA, Márcia Valéria Teixeira. O acervo de pinturas de retra-
tos da Irmandade de Santíssimo Sacramento da Candelária: relações e reações entre pintores e encomendante.
Programa de Pós Graduação em Artes Visuais/PPGAV/EBA/UFRJ.
2 No acervo da ISSSC, encontra-se o retrato da Esmoler Miguela Moreira de Avellar, cujo broche representa seu
esposo, Visconde de Avellar. Cf. ROSA, Márcia Valéria Teixeira. op.cit.
3 Atualmente a instituição é conhecida como Educandário Gonçalves de Araújo. Cf. ISSSC. Arquivo F. B. Marques

258
COLEÇÕES REAIS E COLEÇÕES OFICIAIS

Pinheiro. Álbum de Fotografias de eventos da ISSSC [1915–1931]. Armário 043. Prateleira C. Pacote 2889. Folha
39, foto 2.
4 Em documentos da Secretaria encontram-se relatórios referentes à “Restauração de quadros do Museu da ISSSC
e das pinturas da Igreja da Candelária. 1972–1983”. Cf. Id. op.cit. Caixa 0016. Pacote 00111.
5 Id. id. Livro de Registro de Inaugurações, com assinaturas das pessoas presentes. 1935–1982. Armário 102.
Prateleira C. Caixa 411. p.4–5.
6 Teresinha Maria Lamego de Morais Sarmento foi admitida como Irmã em novembro de 1932, conforme Livro de
Termos de Admissão de Irmãos da ISSSC. Arquivo F. B. Marques Pinheiro. Armário 045. Prateleira A. Referência
03222, p.383.
7 Entre os presentes estava Ferreira Mendes, autor dos desenhos das medalhas que foram distribuídas às autorida-
des. Id. id. Desenho da Medalha Comemorativa dos 75º aniversário de inauguração da Igreja da Candelária, de
Joaquim José Ferreira Mendes. 1973. Mapoteca 001. Gaveta E. nº 00151. O artista recebeu o Diploma de Irmão
Benemérito em outubro de 1980. Cf. Id. id. Mapoteca 001. Gaveta A. nº 00010.
8 Cf. POMIAN, Krzysztof. Colecções. Enciclopédia Einaudi. Memória – História. Rio de Janeiro: Imprensa
Nacional – Casa da Moeda, 1984, vol.1 Agradeço a generosidade do professor Cicero de Almeida e minha bolsis-
ta Julia Maria dos Santos pelas trocas de informações e diálogos sobre o campo da museologia e o da história da
arte.
9 Este material foi doado pela museóloga (1929–2012) para o Núcleo de Memória da Museologia no Brasil/
NUMMUS, da Escola de Museologia da UNIRIO, sob orientação do professor Dr. Ivan Coelho de Sá.
10 id. id. Museu da ISSSC: relação de tombamento dos objetos. Armário 102. Prateleira D. Documento 438.
11 Entre vários anúncios, destacamos a exposição de um retrato na Galeria Glace Élégante, na edição de junho
de 1877, p.4, mesmo ano da jovem mulher do acervo da ISSSC. Cf. memoria.bn.br/DocReader/DocReader.
aspx?bib=364568_06&pesq=Glace%20Elegante
12 LEVY, Carlos, 1990.
13 Cf. memoria.bn.br/DocReader/DocReader.aspx?bib=364568_05&Pesq=”Vicente%20Mallio”&pagfis=15541
14 Cf. memoria.bn.br/DocReader/DocReader.aspx?bib=364568_06&Pesq=”Vicente%20Mallio”&pagfis=18331.
Até o presente momento, a única referência deste senhor é o fato de ter sido Benfeitor na Venerável Ordem
Terceira do Senhor Bom Jesus do Calvário e Via-Sacra.
15 Em julho de 1892, o Jornal anunciou a exposição na Galeria Moncada do retrato do Senador Bias Fortes, seguido
de comentário elogioso: “(…) trabalho artístico feito pelo fallecido pintor Vicente Mallio, é magnífico”. Cf. me-
moria.bn.br/DocReader/DocReader.aspx?bib=178691_02&pesq=”Vicente%20Mallio”&pagfis=5691
16 Inventário Nacional de Bens Móveis e Integrados/INBMI da Igreja de Nossa Senhora da Candelária, elaborado
pela 6ª Superintendência Regional do Rio de Janeiro. Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional/
IPHAN. Rio de Janeiro: 2001, volume 2 e 3.

259
A COLEÇÃO DE RETRATOS DOS
BENEMÉRITOS DA IRMANDADE
DA SANTA CASA DE MISERICÓRDIA
DO RIO DE JANEIRO/BRASIL:
UM ESTUDO DO ACERVO

MARIA BEATRIZ BIANCHINI BILAC


Pesquisadora de Pós Doutorado, Departamento de História do Instituto de Filosofia e Ciências
Humanas da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), Campinas, Brasil,
biabiabilac@gmail.com

Resumo Palavras-chave
O objetivo deste trabalho é investigar o conjunto Retratos de Beneméritos; Santa Casa de
de retratos dos Beneméritos abrigados na Santa Misericórdia do Rio de Janeiro; Elites; Brasil
Casa de Misericórdia do Rio de Janeiro/Brasil.
Entendemos os retratos como documentos
que carregam valor histórico e que auxiliam
a identificar a composição da elite local. A
escolha dos retratados deve-se à importância
deste grupo no modelo de organização da
Irmandade desde sua fundação em Lisboa
no ano de 1498, posteriormente adotado em
todas as Misericórdias do Império. Os retratos
ficam geralmente em galerias especiais ou em
algumas de suas Repartições. Essas coleções
representam aspectos significativos da história
destas instituições e dos indivíduos que delas
fizeram parte.

261
COLEÇÕES DE ARTE EM PORTUGAL E BRASIL NOS SÉCULOS XIX E XX

Investigamos neste trabalho o conjunto de retratos dos Beneméritos


abrigados na Santa Casa de Misericórdia do Rio de Janeiro/Brasil.
A escolha dos retratados deve-se à importância deste grupo no mo-
delo de organização da Irmandade desde sua fundação em Lisboa no
ano de 1498, posteriormente adotado em todas as Misericórdias do
Império. Essas coleções representam aspectos significativos da histó-
ria destas instituições e dos indivíduos que delas fizeram parte. As
Misericórdias brasileiras obedeceram a um modelo de organização
legado pela matriz portuguesa. Em Portugal, produzir estátuas e re-
tratos de Benfeitores das Ordens Religiosas e das Irmandades foi uma
tradição que se reproduziu em território brasileiro. O acervo acessível
no momento desta pesquisa conta com cerca de 100 obras. Este, certa-
mente, não é o número definitivo a ser considerado. A série de retratos
da Instituição ainda é um conjunto pouco estudado e merece estudos
mais detalhados. A obra mais antiga, de 1620, de artista não identifi-
cado, retratando Gonçalo Gonçalvez, o Moço, e Maria Gonçalvez, sua
esposa, é digno de nota segundo Levy [1] por ser o único na pintura
colonial fluminense onde aparecem duas figuras retratadas em corpo
inteiro.
Cadorin [2] registra a existência de 1 retrato do século 17, 2 do sécu-
lo 18 e 44 do século 19. Hanna Levy [3] revela também a existência de
retrato de Inácio da Silva Medela (grande Benemérito), datado de 1795.
No total encontrado para o século XIX há 45 telas e para o século
XX, 40. Há também um retrato sem qualquer identificação da época.
Na coleção há somente 8 mulheres representadas. Há que se reforçar o
fato de que é possível a existência de outras obras não acessíveis para
consulta atualmente no acervo.
Os artistas com assinatura na obra são: Auguste Petit, Marius Verán,
Vítor Meirelles, Simplício de Sá, Eduardo de Sá, Rocha Fragozo, Gustavo
Dall’Ara, Almeida Jr., Dimitri Ismailovitch, E. Medeiros, H. Köhler,
Oliveira, Antônio Valle de Sousa Pinto. José Leandro de Carvalho e
Antônio Araújo Sousa Lobo puderam ser conhecidos através de docu-
mentação de encomenda e ordem de pagamento. Há três retratos pelo
primeiro e um pelo segundo.

262
COLEÇÕES REAIS E COLEÇÕES OFICIAIS

O acervo aqui analisado apresenta-se como um importante referen-


cial para a história da retratistica na cidade do Rio de Janeiro, abrigando
um conjunto de obras produzidas desde o século XVII até o princípio do
século XX.
Seguindo a tradição das Misericórdias brasileiras, no Rio de Janeiro
obedeceu-se a um modelo de organização legado pela matriz portu-
guesa. Em Portugal, fazer estátuas e retratos de benfeitores das Ordens
Religiosas e das Irmandades foi uma tradição a ser reproduzida no ter-
ritório brasileiro.
O indivíduo destinado a revelar sua imagem é quase sempre um doa-
dor ou alguém que prestava caridade relevante e que viria a ser alvo de
respeito da diretoria e da comunidade local. Também um membro da
irmandade, quando passava a ocupar um cargo diretivo, teria a honra
de ser retratado.
Os retratos via de regra são expostos em galerias especiais e distintas
repartições das Santas Casas, como no caso da Misericórdia do Porto/
Portugal, na qual, segundo catálogo datado de sua inauguração em
1890, existiam 262 quadros listados, como informa Moraes [4].
Essa prática se revela verdadeira para outros tipos de confrarias ou ins-
tituições religiosas ou laicas, como as Associações Comerciais, Câmaras
Municipais e Sociedades de Beneficência Portuguesa. Nestas últimas
perduram elementos que as situam sob o modelo das Misericórdias
Portuguesas e que lhes permitem assegurar o favorecimento de grupos
e poderes elitistas [5].
A literatura sobre este gênero da pintura, a exemplo de West [6],
Schneider [7] e Castelnuovo [8] aponta para o fato de que os retratos
constituem-se como uma das formas de garantia de visibilidade social.
Os retratos são, neste caso, documentos privilegiados para demonstrar,
entre outros diversos elementos, espaços de emergência e consolidação
de grupos sociais em determinados momentos de uma sociedade Agem,
assim, como indicativo do status dos indivíduos que eles representam.
No final do século XVIII e início do XIX afirma-se no Brasil um
tipo de imagem que enfatiza mais fortemente o caráter dos interes-
ses nacionais que os da esfera familiar. Este é o caso dos retratos das

263
COLEÇÕES DE ARTE EM PORTUGAL E BRASIL NOS SÉCULOS XIX E XX

Misericórdias, irmandades que se constituíram em espaços críticos para


as lutas pelo poder local, favorecendo as chances de status, prestígio,
distinção e afirmação social aos seus integrantes.
Na irmandade do Rio de Janeiro foram retratados majoritariamen-
te comendadores, doutores, padres, oficiais, militares e nobres, com o
predomínio dos retratos masculinos. Mulheres são somente oito, todas
retratadas no século XX. Os provedores em sua maioria eram nobres e
políticos, quase sempre ocupando altos cargos a nível local, regional e
nacional. Os beneméritos em sua maioria são homens ligados à política
e cargos públicos, com diplomas universitários, ao lado de militares, ca-
pitalistas, comerciantes e agraciados com títulos de nobreza.
Como ilustração veja-se o caso de Jeronymo José Teixeira Jr, Visconde
do Cruzeiro. Filho de comerciante português, firmou-se como comer-
ciante e capitalista e foi protagonista de ininterrupta carreira legislativa
iniciada em 1854, data de sua eleição para a Assembleia Provincial do
Rio de Janeiro até sua escolha para o Senado (1873–1889). Formado
na Faculdade de Direito de São Paulo, foi diretor do Banco do Brasil,
Ministro da Agricultura e dos Transportes.
Este tipo de carreira e ascensão pode ser verificado na totalidade da
composição de Provedores e Benfeitores da Irmandade, situação que
demonstra a homogeneidade do grupo aqui em tela. Isso se constata
pela formação superior desse grupo nos cursos tradicionais de Direito,
Medicina e Engenharia e por semelhantes padrões de carreira, elemen-
tos cruciais para a formação e reiteração das relações sociais e laços de
sociabilidade de grupo.
Dos 13 Provedores ao longo de 1828 a 1938 conseguimos identificar
sete retratados, sendo três com autoria identificada.
No que diz respeito à retratistica, vale lembrar que este estilo de
pintura no Brasil esteve, durante todo o período colonial, quase intei-
ramente vinculado às instituições religiosas. Não era prática corrente
à época a encomenda de retratos para decorar as casas, nem o gênero
constituía um símbolo de status social. No caso das instituições, os re-
tratos coloniais eram estreitamente ligados à tradição religiosa das or-
dens, irmandades e confrarias portuguesas e representavam, como já

264
COLEÇÕES REAIS E COLEÇÕES OFICIAIS

visto, os benfeitores dessas instituições, homenageados em vida e após a


sua morte com a produção de seus retratos.
Debret [9] menciona essa tradição e afirma sua importância na so-
ciedade colonial. Como ele registra, o retrato do doador só era colocado
no hospital depois de sua morte, pintado de corpo inteiro, geralmente
com a representação da Santa Casa ao fundo.
As obras, em sua maioria, seguiam um modelo de composição iden-
tificado pela posição estática do retratado na cena construída no pri-
meiro plano, um cenário com a presença de algum móvel e, ao fundo,
a paisagem da instituição a que o homenageado pertencesse. Os trajes
e o papel institucional desempenhado pelos homenageados eram os
atributos essenciais do retrato, cuja função era estritamente pública e
honorífica.
Já no século XIX o retrato alcança um lugar de importância signifi-
cativa no cenário das artes no Brasil, quando se verifica uma presença
maior da pintura erudita ou acadêmica no país e pintores, nem sempre
retratistas por excelência, e passam a se dedicar mais intensamente a
esse gênero.

A SANTA CASA DE MISERICÓRDIA DO RIO


DE JANEIRO E SUA COLEÇÃO DE RETRATOS

A primeira Santa Casa fundada em Portugal é a de Lisboa, datada de


1498 e a Misericórdia como instituição alcança um lugar extraordinário
no cenário político do país.
No Brasil podemos destacar algumas fundações das Misericórdias:
A Santa Casa do Espírito Santo já existia em 1551, quando de sua trans-
ferência para Vitória. Na década de 1560 já havia irmandades em Olinda
e Ilhéus; a Misericórdia do Rio de Janeiro funcionava desde1582, época
em que a frota de Diogo Flores Valdés chegou à Baía de Guanabara.
A Misericórdia de São Salvador da Bahia data de cerca de1542. Em
São Paulo, há a criação da Confraria da Misericórdia de São Paulo dos
Campos de Piratininga no ano de 1560. Há também a fundação de

265
COLEÇÕES DE ARTE EM PORTUGAL E BRASIL NOS SÉCULOS XIX E XX

Misericórdias no século XVII em território brasileiro: Sergipe, Paraíba


(1604), Itamaracá (1611), Belém (1619) e Igarassu (1629). Padre Antonio
Vieira aponta em um carta de 1653 a existência da Misericórdia de São
Luís do Maranhão. A Misericórdia do Rio de Janeiro foi fundada
em meados do século XVI, em data incerta. A sua criação costuma ser
atribuída por vários estudiosos ao padre José Anchieta em 1582.
Como outros exemplos podemos citar a do Espírito Santo que já
existia em 1551, quando de sua transferência para Vitória. Na década
de 1560 já havia irmandades em Olinda e Ilhéus; a Misericórdia do Rio
de Janeiro já funcionava em 1582, época em que a frota de Diogo Flores
Valdés chegou à Baía de Guanabara.
A Misericórdia de São Salvador da Bahia data de cerca de 1542. Em
São Paulo, ha a criação da Confraria da Misericórdia de São Paulo dos
Campos de Piratininga no ano de 1560. Para o século XVII destacamos
os casos de Sergipe, Paraíba (1604), Itamaracá (1611), Belém (1619) e
Igarassu (1629). Padre Antonio Vieira aponta em um carta de 1653 a
existência da Misericórdia de São Luís do Maranhão.
Seguindo os moldes da Misericórdia de Lisboa, o cargo de provedor
exigia inúmeros requisitos. Fazenda [11] aponta que no caso da irman-
dade fluminense, os provedores deveriam ser “homens de autoridade,
prudência, virtude, reputação e idade de maneira que os outros irmãos
os pudessem reconhecer como cabeça e lhes obedecessem com mais fa-
cilidade; e ainda que por todas as sobreditas partes o merecesse, não po-
deriam ser eleitos de menos idade de quarenta anos”. Além disso, entre
outras qualidades, o provedor deveria ser possuidor de bens, letrado, de
cor branca e cristão velho. Além disso, entre outras qualidades, o pro-
vedor deveria ser possuidor de bens, fundamentalmente proprietário
de terras (situação que garantiria sua ajuda para socorrer as finanças da
irmandade), letrado, de cor branca e cristão velho.
Estas regras afunilavam o ingresso de vários grupos principalmen-
te à mesa administrativa, gerando uma concentração da participação
de indivíduos com situação econômica privilegiada e reconhecido
prestígio social e claramente explicitavam preconceitos de classe, cre-
do e cor.

266
COLEÇÕES REAIS E COLEÇÕES OFICIAIS

Fig. 1 – Galeria dos Provedores da Misericórdia do Rio de Janeiro.


historiaemonumentos.blogspot.com2014internet

O conjunto de retratados nesta irmandade a esta época é composto


por um número expressivo de políticos de projeção nacional e regional.
Dos Provedores entre 1828 e 1889 foram identificados sete quadros.
Entre a Independência do Brasil até o final do Império (1822 a 1889)
constata-se a presença de provedores com títulos de nobreza e mui-
tos outros que circulavam na esfera política, como Ministro, Senador,
Deputado, Presidente de Província, Governador, Conselheiro de Estado
ao lado de ricos comerciantes. Em 1889, com o advento da República os
traços principais do período anterior ainda sobrevivem sem mudanças
notáveis na composição de seus quadros dirigentes.
O hospital da Santa Casa de Misericórdia passou por um grande
impulso, entre 1838 e 1854, durante a administração de José Clemente
Pereira, com a construção de um grandioso edifício, inaugurado em ju-
nho de 1852. O edifício em estilo neoclássico conta com dois pavimen-
tos e três corpos ligados por uma galeria central.

267
COLEÇÕES DE ARTE EM PORTUGAL E BRASIL NOS SÉCULOS XIX E XX

A fachada principal possui colunas de granito que delimitam portas


e janelas. Ao centro, existe uma escadaria e um frontão com esculturas
em baixo-relevo tendo a imagem da Misericórdia e símbolos da medici-
na e religião católica. As esculturas do frontão foram feitas em pedra lioz.
Na sede estão exibidas as estátuas de Frei Contreras, Anchieta, D. Pedro
II e José Clemente Pereira.
Para o século XVIII, há informação da existência de dois retratos: José
Francisco de Mesquita (1722) e Manoel de Pontes Câmara (1762), ambos
de autoria desconhecida. Entretanto, Hanna Levy [10] revela também a
existência de retrato de Inácio da Silva Medela (grande Benemérito),
datado de 1795, obra esta não catalogada pela Misericórdia em questão.
Do século XIX há 45 telas e 40 do século XX, a mais recente posterior a
1974 e um retrato sem qualquer identificação de época.
De todo o acervo por nós inventariado, somente dois retratos são
de meio corpo, dispostos no segundo andar. Os de corpo inteiro apre-
sentam-se tanto de pé como de frente. As telas em geral apresentam o
retratado sobreposto a um fundo, muitas vezes com representação de
ambientes exteriores e interiores, a exemplo de mesas, livros, tapetes,
cortinas, bem como outros símbolos que possam caracterizá-lo. Os sím-
bolos neles mostrados dão indícios das características dos representa-
dos e ratificam a identidade grupal das elites locais.
A partir do exposto na análise aqui apresentada, constata-se a im-
portância dos acervos de retratos nas Misericórdias portuguesas e bra-
sileiras, os quais se constituem, portanto, em um espaço de reconheci-
mento e valorização dos indivíduos que delas participaram, ajudando a
construir uma memória visual das elites, como parte de um conjunto de
elementos simbólicos que representam a história de uma nação.
O material apresentado neste artigo nos autoriza, portanto – no que
tange à história do retrato e à dinâmica da composição das elites – reco-
nhecer as Santas Casas de Misericórdia como uma espécie de galeria de
homens ilustres e verificar de que forma os retratos são uma manifesta-
ção dos indivíduos que eles representam e do desejo de distinção social.

268
COLEÇÕES REAIS E COLEÇÕES OFICIAIS

BIBLIOGRAFIA
[1] LEVY, Hanna. A pintura colonial no Rio de Janeiro. Revista do SPHAN, 1:6, Instituto do
Patrimônio Histórico e Artístico Nacional. 1942. 251–269.
[2] CADORIN, Mônica de Almeida. O acervo do Hospital Geral da Santa Casa de Misericórdia do Rio
de Janeiro: uma contribuição ao estudo do retrato. 2007. Disponível em http://www.arte.unb.br/anpap/
cadorin.htm. Acesso em 20 jan.2011.
[3] LEVY, Hanna. Retratos Coloniais. Revista do SPHAN, 9 Instituto do Patrimônio Histórico e
Artístico Nacional. 1945.251–290.
[4] MORAES, Maria Antonieta Lopes Vilão Vaes de. Pintura nos séculos XVIII e XIX na galeria de re-
tratos dos benfeitores da Santa Casa de Misericórdia do Porto. 2001 (Mestrado diss). Porto. Disponível
em https://www.rcaap.pt/detail.jsp?id=oai:repositorio-aberto.up.pt:10216/18490. Acesso em 15 de
novembro de 2012.
[5] CHAVES, Larissa Patron. 2008. Honremos a Pátria Senhores! As Sociedades Portuguesas de
Beneficência: caridade, poder e formação de elites na Província de São Pedro do Rio Grande do Sul
(1854–1910). (PHD diss. Unisinos, Rio Grande do Sul). Disponível em http://www.repositorio.jesuita.
org.br/handle/UNISINOS/2174. Acesso em 15 de novembro de 2012.
[6] WEST, Shearer. Portraiture. UK: Oxford University Press, (Oxford History of Art) 2004.
[7] SCHNEIDER, Norbert. Il ritratto nell’arte. Italia: Taschen, 2002.
[8] CASTELNUOVO, Enrico. Retrato e sociedade na arte italiana. São Paulo: Companhia das Letras, 2006.
[9] DEBRET, Jean Baptiste.Viagem pitoresca e histórica ao Brasil. Belo Horizonte, Itatiaia, São Paulo.
Edusp, 1989.
[10] LEVY, Hanna. LEVY, Hanna. Retratos Coloniais. Revista do SPHAN, 9 Instituto do Patrimônio
Histórico e Artístico Nacional. 1945.
[11] FRANÇA, J. A. 1980. Perspectiva artística da história do século XIX português.Instituto de
Ciências Sociais da Universidade de Lisboa. Disponível em http://analisesocial.ics.ul.pt/. Acesso em
dezembro de 2015 de web site de Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa.

269
COLEÇÃO GUITA E JOSÉ MINDLIN:
PAIXÃO E INTERESSE PELA
CULTURA DO PAPEL

MARIA LUISA LUZ TAVORA


Profa. Dra. Escola de Belas Artes /UFRJ, Rio de Janeiro, Brasil

Resumo Palavras-chave
A Coleção Guita e José Mindlin resulta de Gravura Moderna; Acervo Histórico;
um intercâmbio entre o artístico e o literário. Colecionsmo; Arte Brasileira.
Ambos fascinados por obras raras constituiram
um dos acervos de maior valor histórico da
America Latina. Doada sua parte brasileira à
USP, em 2005, transformou-se na Biblioteca
Brasiliana Guita e José Mindlin.O interesse do
casal pela cultura do papel desdobrou-se na
maior coleção de gravuras artísticas, no Brasil.
Livros ilustrados, álbuns de artistas e gravuras
participaram de inúmeras exposições, a partir
dos anos 1980. Quatro mostras comentadas
fizeram circular o olhar dos colecionadores,
voltado para a valorização histórica da produção
gráfica brasileira dos anos 1950 a 1970.

271
COLEÇÕES DE ARTE EM PORTUGAL E BRASIL NOS SÉCULOS XIX E XX

NÃO FAÇO NADA SEM ALEGRIA (Mindlin, 2009)

O casal Guita (1916–2006) e José Mindlin (1914–2010) ocupa lugar


especial na vida artístico-cultural brasileira. José Mindlin, paulista e filho
de imigrantes russos, cultivou o hábito de leitura na infância. Aos treze
anos, fascinado por obras raras, adquiriu uma edição de 1740, o Discurso
sobre a História Universal, de Jacques-Benigne Bossuet. Àquela altura
dava-se a gênese de um acervo que o celebrizou como um dos maiores
colecionadores brasileiros. A Biblioteca Mindlin é considerada a mais
importante coleção do gênero formada por um particular, em terras bra-
sileiras (32 mil títulos correspondendo a aproximadamente 60 mil volu-
mes), um dos acervos de maior valor histórico da América Latina.
Guita, sua esposa, – amor dos bancos universitários no Curso de
Direito da Universidade de São Paulo/USP, possuía igualmente paixão
pelos livros. Acompanhava o marido em suas garimpagens por sebos
e antiquários brasileiros e no exterior. Zelosa pelo acervo, interessou-
se por conservação, tendo estudado o assunto no Brasil, na França, na
Espanha e na Alemanha. Montou um laboratório em seu domicílio, de-
dicando-se aos cuidados técnicos que a biblioteca do casal demandava.
A biblioteca foi construída, em 1965, aos fundos da residência do co-
lecionador, em pequeno prédio destinado à guarda do vultoso acer-
vo. Guita profundou sua atuação na área, com a criação, em 1988, da
Associação Brasileira de Encadernação e Restauração1.
Mindlin interessava-se por diversos campos do conhecimento, o
artístico e cultural, o científico, pelas questões do mundo empresa-
rial, pela política e pela economia. Atuou nessas diferentes áreas como
membro de inúmeros conselhos e entidades nacionais e internacionais.2
Formado em Direito, advogou por alguns anos, trabalhando também
como jornalista do Estado de São Paulo, atividade iniciada com apenas
quinze anos. Tentou ser livreiro, em 1946, montando com um amigo e
também colecionador, Claude Blum, uma livraria de obras raras (cerca
de três mil volumes), chamada Parthenon. Preferia fechar compras em
livrarias, não frequentava leiloeiros. Afastou-se da advocacia, fundando
em 1950 a empresa Metal Leve, com mais de cinco mil empregados,

272
COLEÇÕES REAIS E COLEÇÕES OFICIAIS

que se tornou hegemônica no setor de peças para automóveis – pistões


automotivos. Um exemplo de empresa nacional moderna, entendida
como instrumento do desenvolvimento político, social e econômico do
país. Para além desta hegemonia, a partir de 1970, a Metal Leve, tendo
Mindlin como seu presidente, apoiou de forma intensa a literatura na-
cional, patrocinando reedições de revistas e de livros de arte também,
antiga paixão do empresário. Para ele, a “leitura era uma fruição”, algo
muito além do acesso à informação, constituindo um dos grandes pra-
zeres que o ser humano dispõe.3 Mindlin esteve atento à publicação e
reedição de significativa produção da literatura brasileira.
Empresário bem sucedido por quatro décadas afastou-se do mun-
do empresarial em 1993, tendo vendido sua parte da companhia Metal
Leve em 1996, passando a dedicar-se integralmente à sua coleção.
Com a aposentadoria em 1993, Mindlin criou condições para inten-
sificar e centrar-se na atividade de bibliófilo, campo no qual celebri-
zou-se nacional e internacionalmente. Passou a presidir a Associação de
Bibliófilos do Brasil. Sua coleção reúne livros científicos e didáticos, pe-
riódicos, relatórios de viajantes, literatura brasileira e portuguesa, ma-
nuscritos históricos e literários (originais e provas tipográficas), estam-
pas, álbuns ilustrados, livros de artistas, gravuras artísticas e matrizes.
Embora fosse generoso com a frequentação de pesquisadores e inte-
ressados em seu acervo, tornou parte de sua coleção pública em 2005.
O casal e seus quatro filhos doaram a parte brasileira da biblioteca
para a Universidade de São Paulo/USP, transformando-a na Biblioteca
Brasiliana Guita e José Mindlin. Parte desta doação pertencera ao bi-
bliófilo Rubens Borba de Moraes (1889–1986)4 cuja guarda fora dada
aos Mindlin, após sua morte. Uma nova sede foi construída no Campus
Universitário desenvolvida pelos escritórios Eduardo de Almeida e
Rodrigo Mindlin Loeb, empreendimento assessorado pela Faculdade
de Arquitetura e Urbanismo da USP.
O interesse do casal pela cultura do papel desdobrou-se na maior
coleção de gravuras artísticas no Brasil. Parte da coleção de livros
ilustrados, álbuns, gravuras e matrizes ocupou espaços nobres de ex-
posições nacionais e internacionais, a partir do final dos anos 1980.

273
COLEÇÕES DE ARTE EM PORTUGAL E BRASIL NOS SÉCULOS XIX E XX

A circulação de seu acervo em espaços expositivos insere-se no “prin-


cípio da eficácia dos atos de consagração” como advoga o pensador
francês Pierre Bourdieu, em relação ao papel dos diferentes agentes do
campo artístico.5
Dentre as inúmeras exposições realizadas com o acervo dessa co-
leção, pode-se destacar quatro mostras que conferem sentidos ao rico
acervo de gravuras de Mindlin, espelhando a produção dos artistas pio-
neiros modernos e os da segunda e terceira gerações de artistas grava-
dores, incluídas obras da gravura popular e para ilustração. Obras que se
situam no período da ativação da gravura, no eixo Rio-São Paulo, dois
grandes centros de eventos relativos ao que fora produzido nos anos
1950–1970 e que se produzia na década contemporânea à mostra.
Entre as muitas exposições que fizeram circular estas criações,
tem-se: Pioneiros e Discípulos, em 1988 e MATRIZES e GRAVURAS
BRASILEIRAS: Coleção Guita e José Mindlin, em 1993, realizadas na
Fundação Calouste Gulbenkian / Centro de Arte Moderna José de
Azevedo Perdigão / Lisboa. E duas mostras no Brasil, uma intitulada
COLECIONADORES Guita e José Mindlin: Matrizes e Gravuras, em
1998, no Centro Cultural FIESP / Galeria de Arte do SESI, São Paulo e
Coleção Guita e José Mindlin, em 1999, na Mostra Rio Gravura, espaço
Cultural dos Correios, no Rio de Janeiro.
A coleção Guita e José Mindlin cumpre um papel que bem destaca
Pierre Bourdieu voltado para o cenário que envolve cada produção cria-
tiva. Para o estudioso, a atribuição de valor a uma produção artística
supõe, para além da criação do artista, a atuação de um vasto campo
artístico, plural em seus domínios. Este campo constitui uma rede (ou
circuito de arte), cujos agentes favorecem um certo tipo de relação entre
a obra de arte e seus intérpretes,”6. Este entendimento pode ser aplicado
à Coleção Guita e José Mindlin, para pensá-la enquanto instância de
celebração que, em cada tematização das mostras, torna-se uma agente
eficaz da legitimação da gravura moderna e contemporânea brasileiras.

274
COLEÇÕES REAIS E COLEÇÕES OFICIAIS

PIONEIROS E DISCÍPULOS

Título da exposição realizada em 1988, no Centro de Arte Moderna


José de Azevedo Perdigão / Lisboa que se estruturou na perspectiva his-
tórica do processo de condução das técnicas gráficas no Brasil para o
campo da expressão individual do artista moderno. Compõem o con-
junto exposto obras de Axl Leskoschek (1889–1975), Lívio Abramo
(1903–1992), Oswaldo Goeldi (1895–1961), Darel Valença (1924–
2017), Fayga Ostrower (1920–2001), Maria Bonomi (1935) e Renina
Katz (1925).Os três primeiros artistas são mestres pioneiros da gravura
moderna, e os demais representantes da segunda geração de gravadores,
com formação a partir da década de 1940.
Fayga Ostrower e Renina Katz iniciaram-se na xilogravura com Axl
Leskoschek, em 1946, na Fundação Getúlio Vargas, no Rio de Janeiro.7
Renina Katz, mudou-se do Rio de Janeiro para São Paulo em 1951, pas-
sando a ensinar gravura de 1952 a 1955, na Escola Livre de Artes Plásticas
no MASP/SP.8 Maria Bonomi9, italiana naturalizada brasileira, foi im-
pactada por uma exposição de Lívio Abramo em 1953, em São Paulo,
buscando no ano seguinte a orientação do mestre, em seu pequeno ateliê
paulista da Rua Timbiras. Posteriormente juntou-se a Lívio na criação
do Estúdio Gravura, onde ensinou gravura, integrando-se à proposta do
orientador de abordá-la como meio moderno de expressão.
Darel Valença, pernambucano, passou a residir no Rio de Janeiro em
1946, tendo estudado gravura em metal com Henrique Oswald (1918–
1965), no Liceu de Artes e Ofícios, em 1948. Dois anos depois, aproxi-
mou-se de Oswaldo Goeldi, orientador que o levou a dedicar-se intei-
ramente à arte. Em 1951, foi para São Paulo onde ensinou gravura em
metal, também na Escola Livre de Artes Plásticas no MASP/SP. Voltou
para o Rio, tornou-se professor na Escolinha de Arte do Brasil. Por um
ano, de 1956 a 1957, a convite do Diretório Acadêmico da EBA, Darel
montou um curso de litografia aprendida com profissionais de gráficas
antigas no Rio de Janeiro. Realizou a apropriação artística da técnica.
A presença de Oswaldo Goeldi dava-se como referência visual das
mais significativas, como pioneiro da abordagem poética da gravura na

275
COLEÇÕES DE ARTE EM PORTUGAL E BRASIL NOS SÉCULOS XIX E XX

tendência expressionista, no Brasil. A atuação do grande mestre deu-


-se no Curso de Especialização10, oferecido nas dependências da Escola
Nacional de Belas Artes/EBA, de 1955 até sua morte em 1961.
Os três pioneiros, constantes da mostra em Lisboa, estiveram à frente
dos núcleos de ensino cariocas ou paulistas, que se ocuparam da prática
da gravura pensada como instrumental para a criação moderna. Os dis-
cípulos, presentes nesta exposição assim como outros que dela não parti-
ciparam, desenvolveram atividades em torno da gravura, intensificando
sua prática no eixo Rio/São Paulo. Um momento especial de produção
de uma nova geração de artistas gravadores. A mostra requer esta chave
de compreensão.
O acervo dos Mindlin, organizado para a exposição Mestres e
Discípulos, revelou a relação estreita entre ensino e prática artística. As
genealogias resultam da mobilidade dos mestres e dos discípulos entre
as duas cidades, um trânsito saudável de gravadores ligados pelo inte-
resse comum na arte moderna. Uma rede cujas práticas materializam
o entendimento de que “todo ensino deve produzir em grande parte, a
necessidade de seu próprio produto e, assim constituir enquanto valor
ou como valor dos valores, a própria cultura cuja transmissão lhe cabe.
[...]”11 Discípulos que se tornariam mestres de novas gerações de artista-
-gravadores, participando do processo de atualização e sistematização
do ensino da gravura.
A coleção dos Mindlin, apresentada nesta articulação geracional,
emerge como instância afirmadora da história que acompanha o mo-
mento especial vivido pela gravura, atualizado na exposição Mestres e
Discípulos. A circulação de seu acervo oferece oportunidade de recolo-
car em discussão os problemas artísticos solucionados pelos artistas com
suas propostas estéticas em seu cenário histórico.

276
COLEÇÕES REAIS E COLEÇÕES OFICIAIS

MATRIZES À VISTA!

O interesse dos Mindlin pela cultura do papel fundamentou a cole-


ção de gravuras, estampas, albuns ilustrados, livros de artistas e muito
especialmente de matrizes. Em sua coleção de matrizes, inclui o acervo
do editor de álbuns de artistas Julio Pacello doado por sua viúva Lia
Pacello ao casal, após sua morte. Mindlin tinha interesse em mergulhos
profundos no processo de criação revelado pelas matrizes.
A exposição realizada em 1993, também no Centro de Arte Moderna
José de Azevedo Perdigão / na Fundação Gulbenkian, em Lisboa, inti-
tulava-se Matrizes e Gravuras Brasileiras: Coleção Guita e José Mindlin.
A presença de matrizes à vista constitui dado significativo para o
entendimento da produção da gravura moderna e contemporânea, no
Brasil.Neste cenário, revela a singularidade da gravura moderna, na
qual todo o trabalho de execução está sob a responsabilidade do artista.
Desde a criação da imagem, passando por sua transposição para a matriz
e sua impressão, todas etapas revelam-se atos criativos. Resgatada para
o campo artístico, a gravura em qualquer técnica tivera historicamente
funções e resultados integrados a uma funcionalidade, perdida na mo-
dernidade – a multiplicação da mesma imagem. O processo de criação
singulariza-se ressignificando, em muitos casos, o entendimento mes-
mo da multiplicação. A particularização das tiragens e o dispositivo da
assinatura manuscrita se integram ao jogo das matrizes que funcionam
muito além de espaço limite dos gestos do artista na execução de suas
imagens. Elas podem se tornar formas a comporem a imagem gravada
segundo processos de superposição, justaposição, com jogo livre de va-
riações, gerando resultados diferentes. Um caráter experimental mobili-
za o artista gravador na intimidade de sua criação, na privacidade de seu
ateliê, em proficuo diálogo com a materialidade de sua matriz.
O primeiro conjunto de matrizes a fazer parte da coleção dos
Mindlin foi comprado de Axl Leskoschek, artista austríaco que esco-
lheu o Rio de Janeiro como refúgio dos horrores da guerra, permane-
cendo no Brasil de 1941 a 1948. Professor de muitos artistas brasilei-
ros, Leskoschek introduziu com a xilogravura, a ilustração moderna,

277
COLEÇÕES DE ARTE EM PORTUGAL E BRASIL NOS SÉCULOS XIX E XX

no Brasil. Destacou-se com a ilutração para os clássicos de Dostoiévski


editados pela José Olympio. Exímio miniaturista criava imagens numa
espacialidade em profundidade, em matrizes de três ou quatro centíme-
tros de altura.12
O conjunto dos artistas13 que constava na exposição era numeroso e
representativo das experimentações das questões gráficas. Pode-se des-
tacar a presença da segunda e terceira gerações. Lá estavam os gravado-
res essenciais, aqueles que elegeram a gravura como seu meio preferen-
cial de expressão, como Edith Behring, Evandro Carlos Jardim, Fayga
Ostrower, Rubem Grilo, Teresa Miranda e Vera Chaves Barcellos, entre
outros. Participavam ainda, artistas com passagem experimental pelas
diferentes técnicas gráficas, como Fávio de Carvalho, Wesley Duke Lee,
José Roberto Aguilar, cujas obras enriqueciam as indagações de ordem
técnica e estética formuladas em relação à tradição do meio.Neste con-
texto, a emergência de um novo olhar demandou um mergulho radical
dos artistas nas questões de ordem técnica e rediscussão da abordagem
de gravura para fins expressivos, uma nova estética, imprimindo aos
procedimentos usuais uma liberdade frente à tradição. O acervo de José
Mindlin, colocado em circulação nesta mostra, incorporava a gravu-
ra feita por pintores, uma vez considerada instrumental de expressão.
Visão ampla que acolhe a gravura original como obra única a ser repro-
duzida e variada segundo as necessidades expressivas de seus criadores.
Não limita seu interesse ao virtuose, ao homem do métier, a seus aspec-
tos técnicos, mas compreende a multiplicidade e a pluralidade como
modalidades de existência da gravura artística.

CELEBRAÇÃO DO ACERVO

Outra exposição da Coleção Guita e José Mindlin, que requer atenção


dos estudos de história da arte é a que foi realizada no Centro Cultural
FIESP, Galeria de Arte do SESI, situada no coração da cidade de São
Paulo – a Avenida Paulista. Intitulava-se Os Colecionadores Guita e José
Mindlin:matrizes e gravuras. Aberta em novembro de 1998, estendeu-se

278
COLEÇÕES REAIS E COLEÇÕES OFICIAIS

até fevereiro de 1999. Exposição que, segundo seus organizadores “re-


velava aspectos importantes da modernidade brasileira que precisavam
ser vistos, revistos e analisados.” Apoiada pela Agência de Propaganda
Leo Burnett, habitualmente patrocinadora de mostras de obras exclu-
sivas de serigrafias de artistas brasileiros, a exposição era a primeira da
série “Colecionadores”, tendo seu presidente afirmado, em apresentação
do respectivo catálogo, que estariam “patrocinando uma outra forma
de arte. A arte de colecionar.”14 A Série colocava em discussão uma das
peças fundamentais do circuito das artes visuais: as coleções e os cole-
cionadores de obras de arte.
Resultado da garimpagem na coleção, celebrava-se uma seleção de
artistas e respectivas obras ‘que marcaram a nossa história visual e con-
ceitual.” Uma homenagem aos Mindlin, amantes dedicados ao mundo
da arte sobre papel, possuidores da maior coleção de matrizes de gravu-
ra em metal e em madeira da arte brasileira. Cerca de 750 peças de 70
artistas.15 No total, estiveram expostas 156 matrizes das mais diferentes
técnicas de gravura. Das 255 xilogravuras, 118 foram apresentadas com
suas respectivas matrizes. No caso das 148 gravuras em metal, 29 esta-
vam ao lado de suas matrizes.
Em seu texto de apresentação, Inteligência e Sentimento, o crítico de
arte e curador da mostra, Jacob Klintowitz escreve sobre a importância
das coleções de arte, como produtos de sua época. Podem revelar para
um arqueólogo do futuro a ótica de nossa época, uma vez que a arte
expressa o saber e o sentimento de seu tempo.
Norteada por dois conceitos, a exposição apresentava obras de ar-
tistas de grande relevância nacional, destacando os que gozavam de im-
portância no exterior, e contemplava a relação arte e seu tempo: “deste
ponto de vista, o da qualidade das ideias e dos sentimentos, a necessida-
de do conhecimento do ofício nos dá uma informação subjacente que
é o elogio do trabalho humano, entendido aqui como reunião de vários
conhecimentos, que vão desde o trato artesanal da matéria até a infor-
mação precisa da história da arte e da visualidade atual”16
A coleção de gravuras e matrizes dos Mindlin, a cada evento exposi-
tivo, fortalece sua inscrição na história da gravura no Brasil. Inúmeros

279
COLEÇÕES DE ARTE EM PORTUGAL E BRASIL NOS SÉCULOS XIX E XX

nexos visuais reúnem os artistas presentes em grupos distintos. Nesta


mostra foi marcante a presença da xilogravura com uma proporção
invejável de matrizes. Deste conjunto, o artista Gilvan Samico (1928–
2013) ocupou um espaço simbólico de valorização da cultura popular,
questão própria do nacionalismo dos anos 1960, alimentada pela busca
de uma identidade brasileira nas artes plásticas. Sua gravura potenciali-
zou-se no romanceiro popular, com personagens legendários e resíduos
arcaicos da fé cristã, incisão cerebral no espaço mitomágico. Duas pri-
vilegiadas referências artísticas em sua formação foram as aulas com
Lívio Abramo, em São Paulo em 1957, e no ano posterior, a orientação
de Oswaldo Goeldi, no Rio de Janeiro.
José Mindlin, nesta mostra, expôs 36 obras deste artista que cobriam
seu percurso criativo do ano de 1958 a 1992. Ofereceu oportunidade
ímpar ao público de se envolver com este artista pernambucano, pela
representatividade de seu conjunto, pela arte de colecionar!

MOSTRA RIO GRAVURA

A Mostra Rio Gravura foi um projeto da Prefeitura Municipal do


Rio de Janeiro e da RioArte que transformou a cidade em uma gran-
de palco para a gravura nacional e internacional, com a realização de
mais de 50 exposições, em todas as instituições artísticas e culturais da
Cidade Maravilhosa, de setembro a outubro de 1999. Quarenta e cinco
instituições participaram. Projeto “criado para promover a integração
entre a cidade, seus habitantes e seus visitantes.”17 Um momento espe-
cial, inédito mesmo, de um balanço nos acervos de coleções privadas
e institucionais públicas, de galerias, conjugado a múltiplas atividades
complementares como palestras e conferências, depoimentos de grava-
dores e críticos, lançamentos de livros, apresentação de vídeos, tendas
culturais e montagem de oficinas móveis de xilogravura. José Mindlin
foi um dos conferencistas, em 22/08.
O Espaço Cultural dos Correios foi destinado a 12 exposições18,
com destaque para duas grandes coleções, a de Guita /José Mindlin

280
COLEÇÕES REAIS E COLEÇÕES OFICIAIS

e a de Mônica / George Kornis. A exposição do acervo dos Mindlin


ocupou três espaços diferentes; um conjunto de 74 artistas oferecia um
grande panorama desta linguagem, dos anos 40 aos anos 90, no Brasil;
uma sala especial trazia 108 obras de Axl Leskoschek, a grande refe-
rência da ilustração moderna; e uma saleta com “dez preciosas matri-
zes[...] Uma forma de auxiliar as experiências dos processos técnicos,
testemunho do envolvimento do artista no ato de produzir sua obra.”19
A Coleção dos Mindlin é uma escola de lições visuais históricas do
processo de afirmação da gravura artística em território brasileiro,
registros da memória. A Coleção, privilegiando obras imprescindí-
veis à recondução desta memória, dá às gravuras expostas um longo
ciclo de presença e vida, conferindo a cada exposição um permanente
valor, atualizado em pontos de vista diferenciados, com novas articu-
lações temáticas.
José Mindlin, figura que buscou a alegria em sua longa vida, afirma-
va que o conjunto da coleção o emocionava e dava grande prazer para
toda a sua família. Ao oferecer seu acervo para as inúmeras exposições
nacionais e internacionais, dizia com muita simplicidade que esperava
que o público pudesse, como ele, encontrar prazer e emoção. É possível
aplicar o comentário que se segue para Mindlin: “Todo colecionista sabe
bem, no íntimo de si mesmo, que coleciona para os outros: não conheço
coleção digna de nome que não seja objeto de interesse social. Que não
seja desejada pelas coletividades, que não seja desejada por seu efêmero
possuidor como futuro bem comum, que será tanto mais dele quanto
maior o for de todos.”20

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BOURDIEU, Pierre. Mercado dos bens simbólicos. São Paulo: Perspectiva. 1982, pp.99–178.
________. O mercado dos bens simbólicos In: As regras da arte: gênese e estrutura do campo literário.
São Paulo: Companhia das Letras, 1996, pp. 162–1999.
CHATEAUBRIAND, Carlos Alberto. Coleção Gilberto Chateaubriand 1920 a 1950. Catálogo. Vol.1,
Rio de Janeiro:Francisco Alves, sd
GREENE, Jaime. Leo Burnett & Colecionadores. In: OS COLECIONADORES Guita e José Mindlin:
Matrizes e Gravuras. Leo Burnett e Centro Cultural FIESP/ Galeria do SESI. Catálogo, 1998, sp.

281
COLEÇÕES DE ARTE EM PORTUGAL E BRASIL NOS SÉCULOS XIX E XX

GRILO, Rubem. Os múltiplos caminhos da Gravura. Catálogo Mostra Rio Gravura. Espaço Cultural
dos Correios, 2 de setembro a 3 de outubro de 1999.
IMPRESSÕES – panorama da xilogravura brasileira. Catálogo. Porto Alegre: Santander Cultural, 23/01
a 25/04 de 2004.
KLINTOWITS, Jacob. Inteligência e Sentimento In: OS COLECIONADORES Guita e José Mindlin:
Matrizes e Gravuras. Leo Burnett e Centro Cultural FIESP/ Galeria do SESI. Catálogo, 1998, sp.
MARTINS, Carlos. A gravura brasileira dos anos 1920 aos anos 1960 no acervo da Pinacoteca de São
Paulo. In: Gravura e Modernidade. Exposição no Gabinete de Gravura Guita e José Mindlin, novem-
bro de 2014/março de 2016. Estação Pinacoteca.
MATRIZES e Gravuras Brasileiras: Coleção Guita e José Mindlin (1993 : Lisboa, Portugal). In:
ENCICLOPÉDIA Itaú Cultural de Arte e Cultura Brasileira. São Paulo: Itaú Cultural, 2020. In http://
enciclopedia.itaucultural.org.br/evento225787/matrizes-e-gravuras-brasileiras-colecao-guita-e-jose-
-mindlin-1993-lisboa-portugal. (2020,16.03; 16h)
MINDLIN, José. A evolução do livros do Século XV ao Século XX In:A Cultura do Papel. Marcio
Doctors(org), Rio de Janeiro: Casa da Palavra: Fundação Eva Klabin Rapaport, 1999, pp.43–56.

NOTAS
1 Do grupo de fundadores da Associação, participavam também Luís Otávio Louro Gomes, Márcia Toledo, Marisa
Garcia de Souza e Thereza Brandão Teixeira, profissionais das duas áreas de atuação.
2 Presidente da Federação das Indústrias do Estado de São Paulo – FIESP (1960) e da Associação de Bibliófilos do
Brasil; Doutor Honoris Causa da Brown University; Secretário de Cultura, Ciência e Tecnologia do Estado de São
Paulo (1975); Doutor Honoris Causa da Brown University.
3 MINDLIN, 1999:48
4 Bibliotecário, bibliógrafo, bibliófilo, historiador e pesquisador brasileiro. Professor, pioneiro da biblioteconomia
no país tendo ocupado o cargo de diretor da biblioteca da Organização das Nações Unidas (ONU), em Nova
Iorque. Desde 1987, o Conselho Regional de Biblioteconomia da 1ª Região, confere a Medalha Rubens Borba a
profissionais de destaque.https://pt.wikipedia.org/wiki/Rubens_Borba_de_Moraes, (2020.04.07;22h)
5 BOURDIEU, 1996:192–199.
6 BOURDIEU,1982: 99–178.
7 Curso de Desenho de Propaganda e de Artes Gráficas, duração de 6 meses, tempo integral.
8 Cursara pintura de 1947 a 1950 na Escola Nacional de Belas Artes, no Rio de Janeiro. Neste último ano, buscou
orientação de Carlos Oswald, no aprendizado da gravura em metal, no Liceu de Artes e Oficios carioca.
9 Bonomi foi para a Europa, retornando ao Brasil em 1959, ano em que frequentou no MAM/Rio de Janeiro o
curso inaugural do artista franco-alemão Johnny Friedlaender.
10 Curso livre de Especialização em Gravura de talho-doce, Água-forte e Xilografia criado em 1951, funcionando no
edifício da Escola Nacional de Belas Artes. Teve programa elaborado por Raimundo Cela, primeiro professor con-
tratado. Com sua morte em 1954, Oswaldo Goeldi assumiu a orientação do ateliê até 1961, ano de seu falecimento.
11 BOURDIEU, 1982, p. 211–218.
12 Na Editora José Olympio, em 1943, começou a ilustrar as edições de Dostoiévski “O adolescente”, “O eterno
marido”, “Os irmãos Karamazov”, “O jogador” e “Os demônios”. Ilustrou ainda “Dois dedos” de Graciliano
Ramos, em 1945, e “Uma luz pequenina”, de Carlos Lacerda, em1948.https://oglobo.globo.com/cultura/artes-vi-
suais/austriaco-que-ilustrou-edicoes-brasileiras-de-dostoievski-ganha-mostra-em-sp-18955948(2018.30.05;13h)
13 Antonio Babinski, Carlos Scliar, Darel Valença, Janira da Motta e Silva, Edith Behring, Evandro Carlos
Jardim, Farnese de Andrade, Fayga Ostrower, Flávio de Carvalho, Guerda Drentani, Iberê Camargo, José
Roberto Aguilar, Lívio Abramo, Marcelo Grassmann, Márcio Périgo, Maria Bonomi, Mário Gruber, Mestre
Nosa, Milton Dacosta, Oswaldo Goeldi, Otávio Araújo, Raimundo de Oliveira, Regina Silveira, Renina Katz,
Rubem Grilo, Sergio Teles, Teresa Miranda, Trindade Leal, Vera Bocayuva Mindlin, Vera Chaves Barcellos,
Wesley Duke Lee.ZoraviaBettiol.http://enciclopedia.itaucultural.org.br/evento225787/matrizes-e-gravuras-
-brasileiras-colecao-guita-e-jose-mindlin-1993-lisboa-portugal. (2020.16.03;14h). Verbete da Enciclopédia.
ISBN: 978–85–7979–060–7.
14 GREENE, Jaime A. Leo Burnet & Os Colecionadores, In: Catálogo Os COLECIONADORES Guita e José Mindlin:
Matrizes e Gravuras, 1998.
15 Matrizes, linóleos, gravuras em madeira, gravuras em metal em diferentes técnicas (ponta seca, água-forte, água-
-tinta, verniz mole), serigrafia, litografia usadas separadamente ou em conjunto na mesma obra, processos de
colagem, de relevo e de fotografia.
16 KLINTOWITZ, 1998, sp.

282
COLEÇÕES REAIS E COLEÇÕES OFICIAIS

17 Mostra RIO GRAVURA. Descobrindo o Rio com o melhor da gravura. In: Folder programação geral. Prefeitura do
Rio/ Secretaria Municipal de Cultura/RIOARTE, 1999.
18 Juntam-se às duas coleções, exposições especiais de Lasar Segall, Anna Letycia, Lívio Abramo, Oswaldo Goeldi,
Marcelo Grassmann, Roberto Magalhães, Carlos Martins, José Guadalupe Posada e Máscaras Mexicanas.
19 GRILO, 1999:sp
20 Chateaubriand. sd/sp.

283
ÍNDICE

APRESENTAÇÃO ............................................................................................................ 5

A compra da colecção de pintura de Charles-Joseph, Príncipe de


Ligne (1735–1814), pelo Príncipe Regente D. João (1767–1826) e o seu
possível impacto nas colecções do Museu de Belas Artes do Rio de Janeiro....... 7
Ana Mafalda Barros

Arte e Diplomacia no final do Antigo Regime:


as coleções do Conde da Barca e do Marquês de Marialva
na sua acção diplomática ao serviço de Portugal..................................................... 25
Patricia D. Telles, Paulo Simões Rodrigues

O manto dito da Aclamação do rei D. João VI:


Confeção, Conservação e Documentação................................................................ 37
Paula Tomás

A César o que é de César: bens/coleções do imperador D. Pedro I


no Brasil quando de sua partida para Portugal........................................................ 49
Marize Malta

A biblioteca da Academia Imperial de Belas Artes do Rio de Janeiro


e a historiografia da arte no Brasil ............................................................................. 61
Sonia Gomes Pereira

Peças de Mobiliário da rainha D. Maria II e do rei D. Fernando II


da sua residência oficial no Paço das Necessidades em coleções
oficiais portuguesas...................................................................................................... 71
Teresa Sande Lemos

Perto do coração: a joalharia enquanto elemento de representação


ao nível das coleções reais portuguesas..................................................................... 83
Maria da Luz Pinheiro

Os diamantes são para sempre, as jóias não.


Descravações e reconversões de jóias da família real no séc. XIX......................... 95
Teresa Maranhas, João Júlio Rumsey Teixeira

Dos Revivalismos ao movimento Secessionista Vienense:


vidros da Boémia da Rainha D. Maria Pia................................................................ 115
Maria João Burnay
A magia do abanico: um olhar sobre a coleção de leques
D. Maria Pia presente no Palácio Nacional da Ajuda,
através da análise e origens do objeto........................................................................ 133
Laura Torres

Do Palácio Foz para os Paços Reais, as aquisições


da Família Real Portuguesa no leilão de 1901.......................................................... 143
António Cota Fevereiro

Objectos de “valor artístico” de D. Carlos I no Palácio das Necessidades e


a sua dispersão na primeira metade do século XIX (1913–15).............................. 161
Sofia Braga

Galerie Pedre Daupias: um ponto turístico em Alcântara....................................... 175


Ramiro A. Gonçalves

A Porcelana Chinesa de Exportação


no Século XIX e o Mercado Brasileiro....................................................................... 189
Maria Fernanda Lochschmidt

As referências do colecionismo oitocentista na coleção de Eva Klabin:


uma releitura da História da Arte?............................................................................. 205
Maria Teresa Silveira

Pinturas de história como discurso diplomático:


uma narrativa visual da História do Brasil no Itamaraty........................................ 217
Guilherme Frazão Conduru

A coleção de pinturas do Palácio Piratini


no colecionismo estatal do Rio Grande do Sul......................................................... 229
Paulo César Ribeiro Gomes

As pinturas de retratos da Irmandade do Santíssimo Sacramento


da Candelária: de acervo à Coleção........................................................................... 247
Márcia Valéria Rosa

A Coleção de Retratos dos Beneméritos da Irmandade da Santa Casa


de Misericórdia do Rio de Janeiro/Brasil: um estudo do Acervo ......................... 261
Maria Beatriz Bianchini Bilac

Coleção Guita e José Mindlin:


paixão e interesse pela cultura do papel.................................................................... 271
Maria Luisa Luz Tavora
As Coleções Reais sempre foram exem-
plos de um gosto refinado, servindo de
referência a nobres e burgueses endinhei-
rados, incrementando o negócio da produ-
ção artística. À medida que as oficinas
artesanais se transformam em moder-
nas firmas comerciais de uma variedade
requintada de artes visuais e decorativas,
ter o privilégio de servir uma Casa Real e
alcançar o estatuto de 'fornecedor oficial’
tornou-se uma posição desejada. Diversos
agentes são envolvidos no processo de
aquisição, em particular quando este se
desenrola no estrangeiro, com os diplo-
matas a constituírem intermediários dili-
gentes e eficazes.
A prática das coleções reais acaba por
servir de modelo para outras coleções
oficiais (presidenciais, regionais e munici-
pais), as quais, mediante diferentes tempo-
ralidades, adotam perfis particulares.

LIVRO NO ÂMBITO DO VII COLÓQUIO INTERNACIONAL


“COLEÇÕES DE ARTE EM PORTUGAL E BRASIL
NOS SÉCULOS XIX E XX: COLEÇÕES REAIS
E COLEÇÕES OFICIAIS”
PALÁCIO NACIONAL DA AJUDA, 21 A 24 DE OUTUBRO DE 2020

organização

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