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Direção
Gladys Corcione Amaro Langermans
Nathasha Amaro Langermans
Editor
Karel Langermans
Capa
K Langer
Revisão Técnica
Marcelo Calegare e Michel Justamand
Revisão de língua
Marisa De Lucca
Editoração Eletrônica
Alexa Cultural
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)
CDD- 150
Introdução
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No caso das sociedades ameríndias brasileiras, até início dos
anos 2000 as Psicologias pouco ou nada se esforçaram em se aproxi-
mar dos contextos indígenas, tendendo a ser instrumentos de repro-
dução, manutenção e atualização de relações de dominação colonial
(Guimarães, 2016a). Isso gerou invisibilização das noções que as so-
ciedades indígenas têm de si e do mundo, preconceito e discrimina-
ção, normatização da vida cotidiana e patologização de modos de
existência que não se enquadram nos moldes normativos das socie-
dades ocidentais (Fernandes, 2017).
Por outro lado, Berni (2017) argumentou que sempre houve
trabalhos da Psicologia com povos indígenas, porém estes se davam
dentro do contexto acadêmico e muito pontuais. A produção aca-
dêmica brasileira articulando temáticas da Psicologia e povos indí-
genas, mesmo crescente nas últimas duas décadas, ainda carece de
mais referenciais que fundamentem as práticas dos profissionais da
Psicologia (Ferraz & Domingues, 2016; Vitale & Grubits, 2009). Para
além do contexto de produção acadêmica, outros espaços de aproxi-
mação da Psicologia com as realidades indígenas se dão no contexto
das políticas públicas de atenção à saúde mental indígena. É nesses
espaços que se vê a necessidade de se repensar a Psicologia não só na
sua prática, mas também nos seus alicerces epistemológicos.
Feitas essas considerações iniciais, nesse capítulo propomos
uma reflexão a respeito da noção de pessoa e bem estar integral dos
Yepamahsã do alto rio Negro, Amazonas/Brasil, e de suas práticas
de Heriporã Bahsese – muito grosseiramente traduzível como benzi-
mentos. Estas nos permitem uma compreensão e diálogo com con-
ceitos variados dos modos de existência da sociedade Yepamahsã,
incluindo as concepções de saúde e doença. Nessa perspectiva, da-
remos ênfase à relação da noção de pessoa Yepamahsã com algumas
compreensões de sofrimento em uma esfera “mental”, palavra usada
por nós indígenas para traduzir ao português e para as pessoas da
sociedade envolvente certas classes de fenômenos. Esse empreendi-
mento foi possível graças ao diálogo e busca de entendimento mútuo
estabelecido entre psicólogos não indígenas e antropólogos indíge-
nas Yepamahsã para construção de um saber psicológico feito com/
para os indígenas.
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Nesse exercício de negociação de sentidos, os pressupostos
epistemológicos das Psicologias adjetivadas de Indígenas (PI) foram
importantes, por pautar a postura dos psicólogos não indígenas com
os antropólogos Yepamahsã. Como explicou Fernandes (2017), a PI
propõe a construção de conhecimentos psicológicos sem adotar e/ou
impor os referenciais ocidentais eurocêntricos que subjazem a Psico-
logia convencional. A partir de uma postura epistemologicamente
plural e horizontal na construção de conhecimento, a PI compreen-
de que os processos psicológicos que ocorrem no seio de contextos
indígenas só podem ser explicados por aqueles que vivenciam deter-
minado modo de existência. Ou seja, certos fenômenos só podem ser
vivenciados pelos próprios indígenas, por serem eles portadores das
epistemologias que podem explicar seus fenômenos. A PI traz uma
abordagem que abarca de forma plural as diversas visões de mundo
em uma lógica inclusiva, partindo de uma postura descolonizadora
que crítica os pressupostos ocidentais hegemônicos e neocoloniais
(Nogueira & Guzzo, 2016; Ratner, 2012; Vianna, Cedaro & Ott,
2012).
Feitas essas considerações, primeiramente abordaremos os
aspectos metodológicos do diálogo e construção de conhecimen-
to entre psicólogos não indígenas e antropólogos indígenas. Na
sequência, apresentamos a discussão entre a noção de pessoa Ye-
pamahsã e, em seguida, sua relação com o bem-estar integral como
caminho importante para compreensão da ideia de “sofrimento
mental” na cultura Yepamahsã, segundo categorias trazidas por nós
indígenas.
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sistematização antropológica da cultura dos Yepamahsã do alto rio
Negro por eles mesmos, por meio de encontros que foram gravados
e, após transcrições, geraram materiais textuais traduzidos ao por-
tuguês e organizados num livro (Barreto et al., 2018). Essa parce-
ria propiciou tanto a compreensão da noção de pessoa Yepamahsã
como a reflexão a respeito da inadequação do termo “psicossocial”
para entender tal noção, já que os Yepamahsã se relacionam tam-
bém com seres imateriais (Fernandes et. al, 2020).
Partindo da noção de pessoa Yepamahsã articulada e discutida
por nós em experiências anteriores (Fernandes, 2017; Fernandes et
al., 2020), neste capítulo propomos estabelecer relações entre a noção
de pessoa e os processos de bem-estar integral dos Yepamahsã, por
meio do que consideramos, traduzido, como saúde/doença no seu
sentido corporal e mental. Desse modo, o conhecimento expresso
neste texto foi gerado através das conversas entre nós autores a res-
peito de conceitos e termos na cultura Yepamahsã, cujos conteúdos
nos permitiram chegar à compreensão mútua, entre não indígenas
e indígenas, das concepções de saúde e adoecimento à luz da noção
de pessoa Yepamahsã. Revisitando conceitos apresentados por nós
(Barreto et al., 2018), trazemos aqui menção e explicação de alguns
fenômenos Yepamahsã: Ahpekase (provocação do mal), Betise (con-
junto de abstinências e restrições), Dohase (feitiçaria), Duhise (ações
voltadas à prevenção de consequências futuras), Matise (loucura),
Suhise (confusão mental), Witodã Uuhsé (destruição da memória),
Wihise (efeitos corporais). Comportamentos ou etiquetas que de-
vem ser adotados como práticas de cuidado do corpo para garantir a
qualidade de vida: o mais importante é cuidar do próprio corpo con-
tinuamente, com uma rigorosa dieta e práticas de limpeza corporal.
Os termos e conceitos recém-mencionados foram construí-
dos por diálogos pautados em um palco de pluralidade epistemoló-
gica, sempre buscando mitigar os impactos negativos da diferença
cultural. Assim como suas explicações e articulações possíveis, estes
foram acordados em consenso entre nós autores indígenas e não
indígenas. Desse modo, seguimos as recomendações propostas por
Guimarães (2016b) a respeito do diálogo interétnico e a necessidade
de manter o mínimo de controle sobre os possíveis equívocos na
compreensão dos conceitos.
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Uma vez chegado aos consensos verbais, dava-se o momento
da escrita em forma de texto, procedida primeiramente pelos psi-
cólogos não indígenas. Sempre ao final da explicação textual de tais
conceitos, eram realizadas consultas verbais e escritas a nós antro-
pólogos Yepamahsã para realizarmos as devidas adequações, permi-
tindo que todos tivéssemos um controle relativo de como a negocia-
ção de sentidos e construção de conhecimento estava acontecendo
no texto. Além disso, para complementar esse entendimento, utili-
zamos também as literaturas sobre os conceitos principais da cultu-
ra Yepamahsã descritas por nós em outra obra (Barreto et al., 2018),
que traz uma rica explanação a respeito da cultura Yepamahsã.
Nesse sentido o exercício que esse trabalho propôs foi de ar-
ticular os conceitos Yepamahsã para além de uma mera tradução
destes para um olhar “psicológico” ocidental. Tratamos de com-
preender a partir do sistema Yepamahsã a noção de pessoa e suas
vicissitudes de bem-estar integral vinculadas à uma ideia que, em
nossa sociedade ocidental, chamaríamos de “saúde mental”. Temos
clareza que não esgotamos essa discussão com este capítulo, haven-
do muito mais conhecimento a ser interpretado e revelado em fu-
turos trabalhos.
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buscamos estabelecer referências para compreensão dos fundamen-
tos dos modos de existência dos Yepamahsã segundo uma lingua-
gem acessível aos psicólogos, de modo que eles possam repensar
sua prática e seus aportes teóricos, principalmente na compreensão
sobre a noção de ser humano e seus processos interiores chamados
de mentais. Dessa feita, o uso dos termos “mente” e/ou “mental”,
que aparecem ao longo do texto, foram acordados entre nós auto-
res para designar os fenômenos de sofrimento ou adoecimento re-
ferentes a aquilo que usualmente são identificados nas sociedades
ocidentais euramericanas. Entretanto, mesmo que os termos desig-
nem fenômenos análogos ao que se compreende como fenômenos
psicológicos ou mentais, a etiologia destes será através dos conceitos
Yepamahsã.
Dito isso, quando nos referimos nesse trabalho, sobre a
constituição da pessoa Yepamahsã, explicitamos também a uma
noção de pessoa completamente diferente daquela proposta pelas
Psicologias, cuja matriz é greco-romana e judaico-cristã. Como
explicamos em outro trabalho (Fernandes et al., 2020), a noção de
pessoa Yepamahsã pode ser compreendida através de três conceitos
principais da cultura Yepamahsã: Kihti Ukuse (narrativas místicas),
Bahsese (superficialmente traduzido como benzimentos) e Bahsa-
mori (conjunto de expressões rituais).
Kihti Ukuse
É compreendido como o conjunto de narrativas que contam
as tramas de um passado mítico, cujos conteúdos trazem procedi-
mentos formativos e transformativos que compõe o pensamento
Tukano. Esses conhecimentos são disponíveis a todos os Yepamah-
sã, porém o acúmulo e domínio é exclusivo dos Yaí, Kumu e Bayá,
nomes dados aos especialistas em Kihti Ukuse, Bahsese e Bahsamo-
ri. Os conhecimentos são passados oralmente de geração em gera-
ção, dos mais velhos aos mais novos (Barreto et. al, 2018).
Os conteúdos contidos nos Kihti dizem respeito a: (a) enten-
dimentos acerca dos Waimahsã; (b) origem de espécies animais e
alimentos; (c) origem de atributos humanos; (d) origem de aspec-
tos ambientais; (e) origem de regras sociais; (f) origem de doenças;
(g) origem de técnicas de pesca, caça e armadilhas; (h) origem de
rituais; (i) e origem de alguns Bahsese. Os Kihti Ukuse trazem os
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referenciais que fundamentam os modos de vida dos Waimahsã, as-
sim como as suas interações com o entorno, as explicações para os
fenômenos à sua volta e estabelece e fundamenta emoções, percep-
ções e sentimentos próprios da sua figuração social (Barreto, 2018).
Os Kihti Ukuse permitem o vislumbre de um dos aspectos
centrais para a noção de pessoa dos Yepamahsã, que diz respeito
à existência de outros tipos de humanos e a constante relação com
estes. Estes outros tipos de humanos são os Waimahsã (seres hu-
manos invisíveis, mas visíveis para alguns), que em tempos míticos
não completaram o processo de construção e transformação que os
Yepamahsã passaram para se tornarem os humanos que são, como
narra o mito da “Canoa da Transformação”. Esses seres habitam (são
os donos) nos diferentes ambientes presentes nos espaços aéreos,
terrestres/florestais e aquáticos, sendo nomeados segundo tais am-
bientes ou como seus seres (animais ou plantas), mas sem sê-los
(Barreto et al., 2018).
A relação que se estabelecem entre os Yepamahsã e os Wai-
mahsã podem ser ora harmoniosas ora conflituosas, pois trata-se de
uma relação que traz várias regras e normas sociais que, se quebra-
das, podem trazer doenças, prejuízos para o coletivo ou até a morte.
Essa relação não se configura só a partir do receio de sofrer com as
consequências na quebra dessas regras, mas se configura também a
partir do respeito que os Yepamahsã têm aos Waimahsã. Isso por-
que não só os consideram como os protetores dos diferentes espaços
e dos seres que neles habitam, mas também como portadores de
ensinamentos importantes para a sua sobrevivência (Barreto, 2018).
Bahsese
Através de uma tradução influenciada pelos referenciais cris-
tãos, é comumente e vulgarmente traduzido como benzimentos,
porém sua compreensão vai além de simples oração. Os Bahsese
consistem em uma linguagem ou repertório de palavras e frases
veiculados através do cigarro de tabaco ou do sopro, tendo seus ali-
cerces nos Kihti Ukuse. Estes são utilizados em prol da comunida-
de, sendo realizados pelos Yaí, Kumu e Bayá que passaram por uma
preparação específica desde a infância pautada não só na apreensão
dos conhecimentos de Kihti Ukuse, como também por uma série
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de comportamentos e interdições. Os Bahsese têm funções varia-
das: (a) interação, comunicação e troca com Waimahsã dos espaços
(Waimahsã Turi Wetidarese); (b) interação, comunicação e troca
entre pessoas (Mahsãya Turikãsé Bahsese Wetidarese); (c) assepsia
de alimentos (Ba’ase Bahse Ekase); (d) tratamento de doenças (Doa-
tisé Bahsese) (Barreto et. al, 2018).
Desse modo, os conjuntos de Bahsese não são só práticas cura-
tivas e de limpeza de alimentos, mas têm também atributo harmoniza-
dor e apaziguador nas relações entre as pessoas e o Waimahsã, sendo
importante em âmbito pessoal e coletivo. No âmbito pessoal permite
proteção dos ataques feitos pelos Waimahsã (doenças ou morte) e sa-
nar sofrimentos, tanto a nível psíquico quanto físico. No âmbito cole-
tivo é fundamental para trazer harmonia nas relações entre si, outros
clãs, outras sociedades e também com os Waimahsã (Fernandes et. al,
2020).
Dentre as funções das práticas de Bahsese, pode-se apontar
também a sua importância para inserção dos Yepamahsã não só na sua
cultura, mas também na sua estrutura cosmológica e cosmogônica.
A partir do Heriporã Bahsese, conhecido também como “Bahsese no
coração da criança”, o recém-nascido recebe o seu nome, a partir de
um repertório pré-estabelecido de nomes. Esse nome é dado a partir
da comunicação mediada pelo Bahsese entre o especialista e seu cria-
dor. Dessa forma, o recém-nascido é ligado com o seu criador, com
os Waimahsã, com o território, com as histórias cosmológicas, com a
organização social do grupo, com o seu clã e com os Yepamahsã como
um todo, pronto para viver a partir dos mesmos conhecimentos.
Essa ligação acontece por meio do Omerõ, que se trata de
uma potência e/ou força de pensamento, cuja fonte é o seu próprio
criador, inerente a todos os Yepamahsã e que os mantém interli-
gados entre si, com os Waimahsã e com o próprio criador. Nesse
sentido, a injeção de nome à pessoa pela força do Omerõ, conhecido
como Heriporã Bahsese, será o processo que propiciará a comuni-
cação necessária para a conexão da criança com o seu criador via
Omerõ. Esta força se encontra em três canais de energia específicas:
língua, ouvidos e topo da cabeça. É a partir da ligação por meio do
nome injetado com força do Omerõ que os Yepamahsã vivem atra-
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vés das práticas de Bahsese. O Omerõ é de grande importância para
todos os Yepamahsã, em especial os especialistas que passam desde
pequenos por uma série de comportamentos e interdições (Betisé),
para cultivar e manter forte esse Omerõ para utilização dos Bahsese.
No Bahsese essa energia, que se concentra na “Porta da Boca”, po-
tencializará a linguagem do Bahsese (Barreto et. al, 2018).
Desse modo, os Bahsese dão à linguagem Yepamahsã o atri-
buto de comunicação, interação e agenciamento do entorno que es-
trutura a conduta e a forma de pensar dos Tukano. Fornecem tam-
bém sentimento de segurança frente às adversidades, seja por conta
dos Waimahsã ou de acontecimentos de relações entre si, entre ou-
tros clãs ou outras sociedades (Fernandes et. al, 2020).
Bahsamori
Contempla tanto a percepção dos Yepamahsã acerca da pas-
sagem de tempo a partir de um calendário de constelações, como o
conjunto dos Poose – festividades e rituais que ocorrem em momen-
tos específicos desse calendário de constelações e são organizados
pelo Baya. Este é considerado “mestre das músicas”, ou seja, o perito
dos conhecimentos a respeito das músicas, danças e instrumentos
musicais. Desse modo, é a partir desse entendimento que eles sa-
berão os momentos certos para trabalhar no roçado, pescar e caçar,
colher frutas (Maia, 2018). Assim, o Bahsamori é um dos conceitos
que abarcam diversas facetas da dinâmica relacional do Yepamahsã
com o ambiente à sua volta, referindo-se ao:
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sã (mantendo o equilíbrio dos ciclos e fenômenos naturais, assim
como proteção às comunidades das ameaças do Waimahsã); (b)
confraternização e partilha de recursos entre comunidades e clãs
Yepamahsã; (c) momentos de transição, como os ritos de passagens
de jovens para vida adulta; (d) reforço de laços hierárquicos entre
os clãs de irmãos maiores e menores, pelo qual os primeiros mos-
tram os sinais de respeito com aqueles que fazem parte de clãs acima
do seu na hierarquia, no momento das festividades; (e) momentos
de passagem e trocas de conhecimento entre os conhecedores da
cultura Yepamahsã, demarcando um momento de confraterniza-
ção, harmonia e conflito, no sentido de que se coloca a prova os
conhecimento dos conhecedores, e a partir de tal domínio trazendo
prestigio aos clãs; (f) autoafirmação enquanto conhecedores e en-
tendedores dos conhecimentos antigos (Fernandes et al. 2020).
Em suma, entendemos que os três conceitos Kihti Ukuse,
Bahsese e Bahsamori permitem a compreensão de três aspectos
principais da noção de pessoa que os Yepamahsã têm de si mesmos:
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ção, estabeleceu-se entre Yepamahsã e Waimahsã rela-
ções que podem ser ora harmoniosas ora conflituosas,
que pressupõem várias regras e normas sociais que, se
quebradas, podem trazer mazelas em âmbito pessoal ou
para o coletivo. Entretanto, essa relação não se configura
apenas no receio de quebrar dessas regras, mas também
a partir do respeito, pois os Yepamahsã consideram os
Waimahsã como protetores dos diferentes espaços, dos
seres e portadores de ensinamentos importantes para a
sua sobrevivência.
• Estarem conectados a uma estrutura cosmológica e
cosmopolítica. Tal estrutura os interliga com os cria-
dores, os Waimahsã e entre si. Além disso, interliga os
Yepamahsã hierarquicamente entre si a partir da divisão
de irmãos maiores e menores, advinda também de tem-
pos míticos. Essa hierarquia fora estabelecida a partir da
sequência de saída de seus respectivos representantes da
“Canoa da Transformação” (Azevedo & Azevedo, 2003;
Barreto, 2018; Fulop, 2009). Essa hierarquia estabelece,
portanto, a pessoalidade do Tukano enquanto integran-
te de determinado clã, e não a de um indivíduo isolado
em relação com os outros. Assim, temos a configuração
de uma pessoa não individual, mas sim coletiva.
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permite que os Tukano enxerguem os variados ambientes à sua
volta não apenas como objeto inerte, mas como natureza viva e
relacional. Isso nos remete à reflexão de uma construção psicosso-
cial que se dá não só na relação entre os Yepamahsã, mas também
com seres de outros patamares de existência. Tais relações se dão
de forma autêntica e constituem a pessoa Yepamahsã, fundamen-
tando os seus modos de agir, sentir e existir no mundo. Assim, tor-
na-se necessário ampliarmos a compreensão de psicossocial para
uma construção que não se dá somente através de um ser humano
com os demais num ambiente material, mas sim relações estabele-
cidas no coletivo dos clãs, num ambiente relacional e vivo, e com
seres ora invisíveis ora visíveis – o que nas sociedades ocidentais
usualmente chamaríamos de “dimensão espiritual”.
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momentos específicos que os Yepamahsã especialistas e não espe-
cialistas tomam para que não tenham sua qualidade de vida afetada.
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A partir disso, os modos como os Yepamahsã compreendem
os processos relacionados à saúde e adoecimento se diferenciam
bastante do modelo biomédico ocidental, tanto em seus aspectos
etiológicos, como de tratamento e cura relacionados à saúde física
e/ou mental.
Os fenômenos relacionados à agravos à saúde de um modo
geral têm suas origens, explicações e possíveis tratamentos funda-
mentadas nas narrativas míticas de Kihti Ukuse, uso dos Bahsese e
dos Bahsamori. Por sua vez, podemos constatar que não há a dico-
tomia corpo-mente na cultura Yepamahsã, pois um desequilíbrio
físico ou mental pode ter ocorrido em função dos muitos motivos
descritos acima.
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alimentos muito quentes. Quebrando essas regras, o corpo entra em
desequilíbrio podendo manifestar tanto o Wihise (efeitos corporais)
como o Surise. Esse desequilíbrio está intimamente relacionado ao
impacto dos alimentos quentes nos canais de energia do Omerõ que
ficam na língua, ouvido e topo da cabeça, que os queimam e pode
enfraquecê-lo no seu processo de potencialização. Desse modo, os
especialistas que estão acompanhando esses aspirantes a especialis-
tas começarão os processos de tratamento através dos Bahsese, e
estes em tratamento terão que seguir novos Betise.
O Surise é caracterizado através de condutas e comportamen-
tos desorganizados do ponto de vista dos Yepamahsã, sendo expres-
sos sem motivos contextuais e de forma errática, como se o sujeito
estivesse em transe e sem noção do que está fazendo. Dentre esses
comportamentos e condutas são relatados: (a) episódios de imitação
a animais e pessoas; (b) distração exacerbada; (c) acredita que as
pessoas à sua volta estão a todo momento falando dela; (d) compor-
tamentos bruscos de correr floresta adentro, correr para o rio e ficar
nadando sem motivo aparente; (e) apresentação de comportamen-
tos violentos.
Esses comportamentos erráticos, como se estivessem em uma
espécie de transe, podem ser perigosos porque podem levar esses
sujeitos a adentrar por exemplo nos espaços dos Waimahsã sem as
devidas permissões e sofrer com seus ataques. O Surise pode aco-
meter não apenas os especialistas e aspirantes que não cumprem
os Betise, mas pode também ser causado pelos Dohase (feitiços),
porém não afetando o Omerõ.
O Matise, traduzido como “loucura” ou também como aluci-
nações, também é compreendido na ótica Yepamahsã. Trata-se de um
conjunto de condutas desorganizadas causadas em função da quebra
de Betise relacionada à alimentos, a feitiços lançados sobre a pessoa
e/ou utilização de plantas alucinógenas, pós-parto dos conjugues, du-
rante o tratamento e período de recuperação da picada de cobra vene-
nosa. O Matise é caracterizado pelos Yepamahsã através dos seguintes
sinais: (a) ouvir vozes e/ou sons; (b) sentimento de inquietude; (c) fa-
lar sozinho; (d) andar erraticamente pela noite sem motivo aparente;
(e) descontrole durante o consumo de bebida fermentada.
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Além disso, a quebra das regras de Betise também pode estar
trazendo uma outra problemática concebida como Witodã Uuhse, que
traduzido literalmente é destruição da memória, comprometendo a ca-
pacidade de armazenar e relembrar os conhecimentos ensinados pelos
velhos conhecedores. Essa parte de armazenamento de memória é cha-
mado de wiõtõdá (singular) ou wiõtõdare (plural). Se for “queimado”
pelo consumo de alimentos quentes durante os períodos de vulnera-
bilidade da vida, pode comprometer a capacidade psicossomática da
pessoa. Portanto, essas regras devem ser seguidas com muito cuidado.
Essas consequências acometem especialmente, porém não exclusiva-
mente, aqueles que estão na formação de especialistas, sendo impor-
tante que os Yepamahsã de modo geral tomem as mesmas precauções
alimentares cotidianamente (Barreto, et. al, 2018).
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ções a determinados sofrimentos psíquicos ou mentais dependerão
dos modos como os Duhise e Betise foram seguidos ou não pelos
pais antes e depois do nascimento, e como foram seguidos ou não
pela pessoa durante a sua vida.
Estes sofrimentos são compreendidos como consequências
de quebras de regras culturais de modo geral, estando relacionados
não só a uma mera normativa cultural de condutas e comportamen-
tos, mas sim em modos de relação harmônicos ou não. Estas rela-
ções se dão entre os Yepamahsã com seus pares ou entre eles com os
Waimahsã, presentes em diferentes espaços, objetos e alimentos. De
modo geral, todos estão ligados e vivendo a partir do Omerõ e dos
conhecimentos do seu criador.
Considerações finais
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Por outro lado, muitos dos males que os Yepamahsã atual-
mente têm sofrido são decorrentes do não seguimento dos preceitos
e conhecimentos dessa cultura indígena, como nos têm alertado os
especialistas mais velhos de nossas aldeias. Ao adotar costumes e
saberes da sociedade envolvente, deixando de lado nossos modos de
ser originários, estamos dando abertura para desequilíbrios oriun-
dos dessa outra cultura. No entanto, isso não significa que os Ye-
pamahsã estejam fechados na produção e reprodução de seus pró-
prios conhecimentos, não havendo possibilidade de diálogo com os
conhecimentos produzidos pelo saber ocidental. Pelo contrário, é
considerado de fundamental importância o diálogo entre os conhe-
cimentos não indígenas com os conhecimentos indígenas, porém
em uma relação de horizontalidade. Como sempre há convergên-
cias e divergências nos grupos e sociedades humanas, esse diálogo
entre os saberes é bem-visto por uma parte dos Yepamahsã, enquan-
to para outros é tido como infrutífero.
Por fim, esse contato com os Yepamahsã nos mostra o grande
desafio colocado à Psicologia: (a) configurarmos nossa ciência de
modo culturalmente sensível e que parta de uma postura ético-polí-
tica dialógica, para diminuir o máximo possível os impactos do et-
nocentrismo que está subjacente aos modos de interpretar o mundo
a nossa volta (Guimarães, 2016b); (b) para essa tarefa, é necessário
termos encontros epistemológico horizontalizados, em que se res-
peitem e levem a sério as concepções indígenas de viver e bem-estar,
dando poder e lugar de fala aos indígenas (Moreira, 2017); (c) os
conhecimentos construídos sobre o modo de ser Yepamahsã devem
ser contextualizados a essa cultura e demostrarem relevância social;
(d) a partir desse arcabouço construído em comum, se pode abrir a
possibilidade de trabalhos conjuntos.
Não se trata de descartar os conceitos tradicionais das
Psicologias, como de saúde mental, psicossocial, psiquê, mente,
entre outros. Talvez seja mais interessante alargar esses conceitos,
e ressignificá-los através dos diálogos com as culturas indígenas.
Através dos consensos entre os pensadores indígenas e não indíge-
nas, como fizemos neste capítulo, negociando novos sentidos dados
à essas ideias abarcando os referenciais necessários a partir de am-
bas as epistemologias. Assim evitamos cair na armadilha de comba-
ter etnocentrismo com etnocentrismo.
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Referências
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