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Gladys Corcione Amaro Langermans
Nathasha Amaro Langermans
Editor
Karel Langermans
Capa
K Langer
Revisão Técnica
Marcelo Calegare e Michel Justamand
Revisão de língua
Marisa De Lucca
Editoração Eletrônica
Alexa Cultural
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)

C148m - CALEGARE, Marecelo G654p - GIL Paola Andrea Pérez


P416r - PRIETO, Rosa Suarez R235l - ROMERO, Luis Eduardo León

Por los caminos de las psicologías ancestrales nativoamericanas v.2: inves-


tigaciones y experiencias sobre y desde los pueblos originarios. Marcelo
Calegare, Rosa Suárez Prieto, Paola Andrea Pérez Gil e Luis Eduardo León
Romero Alexa Cultural: São Paulo, 2022

14x21cm -286 páginas


ISBN - 978-85-5467-176-1

1. Psicologia- 2. Teoria - 3. Epístemologia - I. América Latina - I. Título


- II Bibliografia

CDD- 150

Índices para catálogo sistemático:


Psicologia
América Latina
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Brasil

NOÇÃO DE PESSOA E BEM-ESTAR INTEGRAL


YEPAMAHSÃ

Felippe Otaviano Portela Fernandes


Dagoberto Lima Azevedo
João Paulo L. Barreto
Marcelo Calegare

Introdução

A história da Psicologia brasileira, assim como das Psicolo-


gias dos demais países latino-americanos, é marcada pela sua forte
influência e dominação da Psicologia euro-norte-americana impos-
ta como saber psicológico universal. Esta última é predominante-
mente pautada nas tradições positivistas e mecanicistas, havendo
se desenvolvido atrelada à expansão do sistema capitalista que re-
produzia e reproduz mecanismos de regulação e domesticação, tais
como noções de subjetividades de viés utilitarista baseadas no indi-
vidualismo (Hwang, 2015; Carvalhães & Lima, 2020).
Até os anos 1970, podemos afirmar que houve imposição
da epistemologia ocidental sobre as epistemologias locais, pela qual
os únicos referenciais aceitos e considerados dignos da categoria
de “Psicologia” eram aqueles produzidos no seio das nações euro-
-norte-americanas. Os conhecimentos produzidos por países con-
siderados periféricos – como os da América Latina – eram delibe-
radamente ignorados. Desse modo, a Psicologia, enquanto campo
de conhecimento ocidental, visava uma normatização das huma-
nidades a partir de uma ideia de sociedade ocidentalmente educa-
da, industrializada, rica e democrática, o que não condizia com as
diversidades socioculturais global. O resultado dessa imposição foi
a notável falha de interpretação dos fenômenos e a falta de relevân-
cia das Psicologias ocidentais para lidar com as necessidades locais
(Dazinger, 2006; Hwang, 2015; Sinha, 1997; Yang, 2012).

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No caso das sociedades ameríndias brasileiras, até início dos
anos 2000 as Psicologias pouco ou nada se esforçaram em se aproxi-
mar dos contextos indígenas, tendendo a ser instrumentos de repro-
dução, manutenção e atualização de relações de dominação colonial
(Guimarães, 2016a). Isso gerou invisibilização das noções que as so-
ciedades indígenas têm de si e do mundo, preconceito e discrimina-
ção, normatização da vida cotidiana e patologização de modos de
existência que não se enquadram nos moldes normativos das socie-
dades ocidentais (Fernandes, 2017).
Por outro lado, Berni (2017) argumentou que sempre houve
trabalhos da Psicologia com povos indígenas, porém estes se davam
dentro do contexto acadêmico e muito pontuais. A produção aca-
dêmica brasileira articulando temáticas da Psicologia e povos indí-
genas, mesmo crescente nas últimas duas décadas, ainda carece de
mais referenciais que fundamentem as práticas dos profissionais da
Psicologia (Ferraz & Domingues, 2016; Vitale & Grubits, 2009). Para
além do contexto de produção acadêmica, outros espaços de aproxi-
mação da Psicologia com as realidades indígenas se dão no contexto
das políticas públicas de atenção à saúde mental indígena. É nesses
espaços que se vê a necessidade de se repensar a Psicologia não só na
sua prática, mas também nos seus alicerces epistemológicos.
Feitas essas considerações iniciais, nesse capítulo propomos
uma reflexão a respeito da noção de pessoa e bem estar integral dos
Yepamahsã do alto rio Negro, Amazonas/Brasil, e de suas práticas
de Heriporã Bahsese – muito grosseiramente traduzível como benzi-
mentos. Estas nos permitem uma compreensão e diálogo com con-
ceitos variados dos modos de existência da sociedade Yepamahsã,
incluindo as concepções de saúde e doença. Nessa perspectiva, da-
remos ênfase à relação da noção de pessoa Yepamahsã com algumas
compreensões de sofrimento em uma esfera “mental”, palavra usada
por nós indígenas para traduzir ao português e para as pessoas da
sociedade envolvente certas classes de fenômenos. Esse empreendi-
mento foi possível graças ao diálogo e busca de entendimento mútuo
estabelecido entre psicólogos não indígenas e antropólogos indíge-
nas Yepamahsã para construção de um saber psicológico feito com/
para os indígenas.

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Nesse exercício de negociação de sentidos, os pressupostos
epistemológicos das Psicologias adjetivadas de Indígenas (PI) foram
importantes, por pautar a postura dos psicólogos não indígenas com
os antropólogos Yepamahsã. Como explicou Fernandes (2017), a PI
propõe a construção de conhecimentos psicológicos sem adotar e/ou
impor os referenciais ocidentais eurocêntricos que subjazem a Psico-
logia convencional. A partir de uma postura epistemologicamente
plural e horizontal na construção de conhecimento, a PI compreen-
de que os processos psicológicos que ocorrem no seio de contextos
indígenas só podem ser explicados por aqueles que vivenciam deter-
minado modo de existência. Ou seja, certos fenômenos só podem ser
vivenciados pelos próprios indígenas, por serem eles portadores das
epistemologias que podem explicar seus fenômenos. A PI traz uma
abordagem que abarca de forma plural as diversas visões de mundo
em uma lógica inclusiva, partindo de uma postura descolonizadora
que crítica os pressupostos ocidentais hegemônicos e neocoloniais
(Nogueira & Guzzo, 2016; Ratner, 2012; Vianna, Cedaro & Ott,
2012).
Feitas essas considerações, primeiramente abordaremos os
aspectos metodológicos do diálogo e construção de conhecimen-
to entre psicólogos não indígenas e antropólogos indígenas. Na
sequência, apresentamos a discussão entre a noção de pessoa Ye-
pamahsã e, em seguida, sua relação com o bem-estar integral como
caminho importante para compreensão da ideia de “sofrimento
mental” na cultura Yepamahsã, segundo categorias trazidas por nós
indígenas.

Conversas Entre Psicólogos Não Indígenas E Antropólogos


Yepamahsã

As conversas que possibilitaram a construção desse trabalho


se deram através da parceria prévia de uma equipe que compreen-
deu antropólogos indígenas Yepamahsã e psicólogos não indígenas,
dentro do “Projeto Rios Redes” do Núcleo de Estudos da Amazônia
Indígena da Universidade Federal do Amazonas. Este projeto reu-
niu os sábios e especialistas Tukano para revitalização, valorização e

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sistematização antropológica da cultura dos Yepamahsã do alto rio
Negro por eles mesmos, por meio de encontros que foram gravados
e, após transcrições, geraram materiais textuais traduzidos ao por-
tuguês e organizados num livro (Barreto et al., 2018). Essa parce-
ria propiciou tanto a compreensão da noção de pessoa Yepamahsã
como a reflexão a respeito da inadequação do termo “psicossocial”
para entender tal noção, já que os Yepamahsã se relacionam tam-
bém com seres imateriais (Fernandes et. al, 2020).
Partindo da noção de pessoa Yepamahsã articulada e discutida
por nós em experiências anteriores (Fernandes, 2017; Fernandes et
al., 2020), neste capítulo propomos estabelecer relações entre a noção
de pessoa e os processos de bem-estar integral dos Yepamahsã, por
meio do que consideramos, traduzido, como saúde/doença no seu
sentido corporal e mental. Desse modo, o conhecimento expresso
neste texto foi gerado através das conversas entre nós autores a res-
peito de conceitos e termos na cultura Yepamahsã, cujos conteúdos
nos permitiram chegar à compreensão mútua, entre não indígenas
e indígenas, das concepções de saúde e adoecimento à luz da noção
de pessoa Yepamahsã. Revisitando conceitos apresentados por nós
(Barreto et al., 2018), trazemos aqui menção e explicação de alguns
fenômenos Yepamahsã: Ahpekase (provocação do mal), Betise (con-
junto de abstinências e restrições), Dohase (feitiçaria), Duhise (ações
voltadas à prevenção de consequências futuras), Matise (loucura),
Suhise (confusão mental), Witodã Uuhsé (destruição da memória),
Wihise (efeitos corporais). Comportamentos ou etiquetas que de-
vem ser adotados como práticas de cuidado do corpo para garantir a
qualidade de vida: o mais importante é cuidar do próprio corpo con-
tinuamente, com uma rigorosa dieta e práticas de limpeza corporal.
Os termos e conceitos recém-mencionados foram construí-
dos por diálogos pautados em um palco de pluralidade epistemoló-
gica, sempre buscando mitigar os impactos negativos da diferença
cultural. Assim como suas explicações e articulações possíveis, estes
foram acordados em consenso entre nós autores indígenas e não
indígenas. Desse modo, seguimos as recomendações propostas por
Guimarães (2016b) a respeito do diálogo interétnico e a necessidade
de manter o mínimo de controle sobre os possíveis equívocos na
compreensão dos conceitos.

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Uma vez chegado aos consensos verbais, dava-se o momento
da escrita em forma de texto, procedida primeiramente pelos psi-
cólogos não indígenas. Sempre ao final da explicação textual de tais
conceitos, eram realizadas consultas verbais e escritas a nós antro-
pólogos Yepamahsã para realizarmos as devidas adequações, permi-
tindo que todos tivéssemos um controle relativo de como a negocia-
ção de sentidos e construção de conhecimento estava acontecendo
no texto. Além disso, para complementar esse entendimento, utili-
zamos também as literaturas sobre os conceitos principais da cultu-
ra Yepamahsã descritas por nós em outra obra (Barreto et al., 2018),
que traz uma rica explanação a respeito da cultura Yepamahsã.
Nesse sentido o exercício que esse trabalho propôs foi de ar-
ticular os conceitos Yepamahsã para além de uma mera tradução
destes para um olhar “psicológico” ocidental. Tratamos de com-
preender a partir do sistema Yepamahsã a noção de pessoa e suas
vicissitudes de bem-estar integral vinculadas à uma ideia que, em
nossa sociedade ocidental, chamaríamos de “saúde mental”. Temos
clareza que não esgotamos essa discussão com este capítulo, haven-
do muito mais conhecimento a ser interpretado e revelado em fu-
turos trabalhos.

Noção de Pessoa Yepamahsã

A constituição da pessoa Yepamahsã tem em seu núcleo as


relações que ocorrem com seres humanos diferentes, sejam os Ye-
pamahsã ou os Waimahsã – seres humanos invisíveis, mas visíveis
para alguns – que habitam nos diferentes patamares de existências
(Barreto, 2018; Barreto et al., 2018; Fernandes et al., 2020). É justa-
mente através dessas constantes relações diretas e indiretas que con-
seguimos compreender muitos aspectos dos modos de existências
dos Yepamahsã, principalmente no tocante às noções de saúde e
adoecimento, seja através de efeitos corpóreos, seja através de sofri-
mentos “psíquicos” e/ou “mentais”.
Nós indígenas não utilizamos essas palavras para designar
nossos fenômenos existenciais, mas para entendimento e tradução
para os psicólogos não indígenas fazemos uso delas. Neste texto

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buscamos estabelecer referências para compreensão dos fundamen-
tos dos modos de existência dos Yepamahsã segundo uma lingua-
gem acessível aos psicólogos, de modo que eles possam repensar
sua prática e seus aportes teóricos, principalmente na compreensão
sobre a noção de ser humano e seus processos interiores chamados
de mentais. Dessa feita, o uso dos termos “mente” e/ou “mental”,
que aparecem ao longo do texto, foram acordados entre nós auto-
res para designar os fenômenos de sofrimento ou adoecimento re-
ferentes a aquilo que usualmente são identificados nas sociedades
ocidentais euramericanas. Entretanto, mesmo que os termos desig-
nem fenômenos análogos ao que se compreende como fenômenos
psicológicos ou mentais, a etiologia destes será através dos conceitos
Yepamahsã.
Dito isso, quando nos referimos nesse trabalho, sobre a
constituição da pessoa Yepamahsã, explicitamos também a uma
noção de pessoa completamente diferente daquela proposta pelas
Psicologias, cuja matriz é greco-romana e judaico-cristã. Como
explicamos em outro trabalho (Fernandes et al., 2020), a noção de
pessoa Yepamahsã pode ser compreendida através de três conceitos
principais da cultura Yepamahsã: Kihti Ukuse (narrativas místicas),
Bahsese (superficialmente traduzido como benzimentos) e Bahsa-
mori (conjunto de expressões rituais).

Kihti Ukuse
É compreendido como o conjunto de narrativas que contam
as tramas de um passado mítico, cujos conteúdos trazem procedi-
mentos formativos e transformativos que compõe o pensamento
Tukano. Esses conhecimentos são disponíveis a todos os Yepamah-
sã, porém o acúmulo e domínio é exclusivo dos Yaí, Kumu e Bayá,
nomes dados aos especialistas em Kihti Ukuse, Bahsese e Bahsamo-
ri. Os conhecimentos são passados oralmente de geração em gera-
ção, dos mais velhos aos mais novos (Barreto et. al, 2018).
Os conteúdos contidos nos Kihti dizem respeito a: (a) enten-
dimentos acerca dos Waimahsã; (b) origem de espécies animais e
alimentos; (c) origem de atributos humanos; (d) origem de aspec-
tos ambientais; (e) origem de regras sociais; (f) origem de doenças;
(g) origem de técnicas de pesca, caça e armadilhas; (h) origem de
rituais; (i) e origem de alguns Bahsese. Os Kihti Ukuse trazem os

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referenciais que fundamentam os modos de vida dos Waimahsã, as-
sim como as suas interações com o entorno, as explicações para os
fenômenos à sua volta e estabelece e fundamenta emoções, percep-
ções e sentimentos próprios da sua figuração social (Barreto, 2018).
Os Kihti Ukuse permitem o vislumbre de um dos aspectos
centrais para a noção de pessoa dos Yepamahsã, que diz respeito
à existência de outros tipos de humanos e a constante relação com
estes. Estes outros tipos de humanos são os Waimahsã (seres hu-
manos invisíveis, mas visíveis para alguns), que em tempos míticos
não completaram o processo de construção e transformação que os
Yepamahsã passaram para se tornarem os humanos que são, como
narra o mito da “Canoa da Transformação”. Esses seres habitam (são
os donos) nos diferentes ambientes presentes nos espaços aéreos,
terrestres/florestais e aquáticos, sendo nomeados segundo tais am-
bientes ou como seus seres (animais ou plantas), mas sem sê-los
(Barreto et al., 2018).
A relação que se estabelecem entre os Yepamahsã e os Wai-
mahsã podem ser ora harmoniosas ora conflituosas, pois trata-se de
uma relação que traz várias regras e normas sociais que, se quebra-
das, podem trazer doenças, prejuízos para o coletivo ou até a morte.
Essa relação não se configura só a partir do receio de sofrer com as
consequências na quebra dessas regras, mas se configura também a
partir do respeito que os Yepamahsã têm aos Waimahsã. Isso por-
que não só os consideram como os protetores dos diferentes espaços
e dos seres que neles habitam, mas também como portadores de
ensinamentos importantes para a sua sobrevivência (Barreto, 2018).

Bahsese
Através de uma tradução influenciada pelos referenciais cris-
tãos, é comumente e vulgarmente traduzido como benzimentos,
porém sua compreensão vai além de simples oração. Os Bahsese
consistem em uma linguagem ou repertório de palavras e frases
veiculados através do cigarro de tabaco ou do sopro, tendo seus ali-
cerces nos Kihti Ukuse. Estes são utilizados em prol da comunida-
de, sendo realizados pelos Yaí, Kumu e Bayá que passaram por uma
preparação específica desde a infância pautada não só na apreensão
dos conhecimentos de Kihti Ukuse, como também por uma série

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de comportamentos e interdições. Os Bahsese têm funções varia-
das: (a) interação, comunicação e troca com Waimahsã dos espaços
(Waimahsã Turi Wetidarese); (b) interação, comunicação e troca
entre pessoas (Mahsãya Turikãsé Bahsese Wetidarese); (c) assepsia
de alimentos (Ba’ase Bahse Ekase); (d) tratamento de doenças (Doa-
tisé Bahsese) (Barreto et. al, 2018).
Desse modo, os conjuntos de Bahsese não são só práticas cura-
tivas e de limpeza de alimentos, mas têm também atributo harmoniza-
dor e apaziguador nas relações entre as pessoas e o Waimahsã, sendo
importante em âmbito pessoal e coletivo. No âmbito pessoal permite
proteção dos ataques feitos pelos Waimahsã (doenças ou morte) e sa-
nar sofrimentos, tanto a nível psíquico quanto físico. No âmbito cole-
tivo é fundamental para trazer harmonia nas relações entre si, outros
clãs, outras sociedades e também com os Waimahsã (Fernandes et. al,
2020).
Dentre as funções das práticas de Bahsese, pode-se apontar
também a sua importância para inserção dos Yepamahsã não só na sua
cultura, mas também na sua estrutura cosmológica e cosmogônica.
A partir do Heriporã Bahsese, conhecido também como “Bahsese no
coração da criança”, o recém-nascido recebe o seu nome, a partir de
um repertório pré-estabelecido de nomes. Esse nome é dado a partir
da comunicação mediada pelo Bahsese entre o especialista e seu cria-
dor. Dessa forma, o recém-nascido é ligado com o seu criador, com
os Waimahsã, com o território, com as histórias cosmológicas, com a
organização social do grupo, com o seu clã e com os Yepamahsã como
um todo, pronto para viver a partir dos mesmos conhecimentos.
Essa ligação acontece por meio do Omerõ, que se trata de
uma potência e/ou força de pensamento, cuja fonte é o seu próprio
criador, inerente a todos os Yepamahsã e que os mantém interli-
gados entre si, com os Waimahsã e com o próprio criador. Nesse
sentido, a injeção de nome à pessoa pela força do Omerõ, conhecido
como Heriporã Bahsese, será o processo que propiciará a comuni-
cação necessária para a conexão da criança com o seu criador via
Omerõ. Esta força se encontra em três canais de energia específicas:
língua, ouvidos e topo da cabeça. É a partir da ligação por meio do
nome injetado com força do Omerõ que os Yepamahsã vivem atra-

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vés das práticas de Bahsese. O Omerõ é de grande importância para
todos os Yepamahsã, em especial os especialistas que passam desde
pequenos por uma série de comportamentos e interdições (Betisé),
para cultivar e manter forte esse Omerõ para utilização dos Bahsese.
No Bahsese essa energia, que se concentra na “Porta da Boca”, po-
tencializará a linguagem do Bahsese (Barreto et. al, 2018).
Desse modo, os Bahsese dão à linguagem Yepamahsã o atri-
buto de comunicação, interação e agenciamento do entorno que es-
trutura a conduta e a forma de pensar dos Tukano. Fornecem tam-
bém sentimento de segurança frente às adversidades, seja por conta
dos Waimahsã ou de acontecimentos de relações entre si, entre ou-
tros clãs ou outras sociedades (Fernandes et. al, 2020).

Bahsamori
Contempla tanto a percepção dos Yepamahsã acerca da pas-
sagem de tempo a partir de um calendário de constelações, como o
conjunto dos Poose – festividades e rituais que ocorrem em momen-
tos específicos desse calendário de constelações e são organizados
pelo Baya. Este é considerado “mestre das músicas”, ou seja, o perito
dos conhecimentos a respeito das músicas, danças e instrumentos
musicais. Desse modo, é a partir desse entendimento que eles sa-
berão os momentos certos para trabalhar no roçado, pescar e caçar,
colher frutas (Maia, 2018). Assim, o Bahsamori é um dos conceitos
que abarcam diversas facetas da dinâmica relacional do Yepamahsã
com o ambiente à sua volta, referindo-se ao:

Conjunto de práticas sociais associadas aos marcadores naturais, as


doenças, as atividades agrícolas, de coleta, os bahsese, a interação
com os waimahsã, os instrumentos musicais, os contos e as danças,
as coreografias, as pinturas corporais, as etiquetas, peeru (caxiri),
Kahpi, a formação de especialistas etc. (Barreto et. al, 2018, p. 116).

Desse modo, os Bahsamori trazem significados importantes


significados para os Yepamahsã, a saber: (a) vida e sobrevivência,
por meio da passagem dos ciclos naturais que marcam o reforço e
manutenção das relações harmoniosas entre Yepamahsã e Waimah-

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sã (mantendo o equilíbrio dos ciclos e fenômenos naturais, assim
como proteção às comunidades das ameaças do Waimahsã); (b)
confraternização e partilha de recursos entre comunidades e clãs
Yepamahsã; (c) momentos de transição, como os ritos de passagens
de jovens para vida adulta; (d) reforço de laços hierárquicos entre
os clãs de irmãos maiores e menores, pelo qual os primeiros mos-
tram os sinais de respeito com aqueles que fazem parte de clãs acima
do seu na hierarquia, no momento das festividades; (e) momentos
de passagem e trocas de conhecimento entre os conhecedores da
cultura Yepamahsã, demarcando um momento de confraterniza-
ção, harmonia e conflito, no sentido de que se coloca a prova os
conhecimento dos conhecedores, e a partir de tal domínio trazendo
prestigio aos clãs; (f) autoafirmação enquanto conhecedores e en-
tendedores dos conhecimentos antigos (Fernandes et al. 2020).
Em suma, entendemos que os três conceitos Kihti Ukuse,
Bahsese e Bahsamori permitem a compreensão de três aspectos
principais da noção de pessoa que os Yepamahsã têm de si mesmos:

• Ser uma extensão de seu criador Yepa Oãku (Oake). Isso


indica que os Tukano são ligados ao seu criador desde o
nascimento, fazendo-se tal ligação pelo Bahsese. A par-
tir disso viver e interagir com o entorno pelos conhe-
cimentos de Bahsese, que só podem ser vividos pelos
Tukano por estarem ligados diretamente ao seu criador
(Fulop, 2009; Barreto, 2018). A importância dessa liga-
ção torna-se evidente até na sua autoidentificação: Yepa
designa ao seu criador; Mahsã significa gente. Assim,
numa tradução superficial, temos algo como “gente de
Yepa”.
• Ser fruto de um processo de construção e transforma-
ção advindo de tempos míticos. Isso diferencia o Ye-
pamahsã dos seres Waimahsã, que não completaram
essa “transformação”. Esses seres invisíveis – visíveis
para apenas algumas pessoas – são os donos e protetores
dos diferentes tipos de ambientes existentes: florestas,
dos animais, rios, pedras, terra, estrelas, do controle da
temperatura, do controle da chuva, etc. A partir da di-
ferenciação nesse processo de construção e transforma-

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ção, estabeleceu-se entre Yepamahsã e Waimahsã rela-
ções que podem ser ora harmoniosas ora conflituosas,
que pressupõem várias regras e normas sociais que, se
quebradas, podem trazer mazelas em âmbito pessoal ou
para o coletivo. Entretanto, essa relação não se configura
apenas no receio de quebrar dessas regras, mas também
a partir do respeito, pois os Yepamahsã consideram os
Waimahsã como protetores dos diferentes espaços, dos
seres e portadores de ensinamentos importantes para a
sua sobrevivência.
• Estarem conectados a uma estrutura cosmológica e
cosmopolítica. Tal estrutura os interliga com os cria-
dores, os Waimahsã e entre si. Além disso, interliga os
Yepamahsã hierarquicamente entre si a partir da divisão
de irmãos maiores e menores, advinda também de tem-
pos míticos. Essa hierarquia fora estabelecida a partir da
sequência de saída de seus respectivos representantes da
“Canoa da Transformação” (Azevedo & Azevedo, 2003;
Barreto, 2018; Fulop, 2009). Essa hierarquia estabelece,
portanto, a pessoalidade do Tukano enquanto integran-
te de determinado clã, e não a de um indivíduo isolado
em relação com os outros. Assim, temos a configuração
de uma pessoa não individual, mas sim coletiva.

Portanto, essa inserção dá ao Yepamahsã os referenciais ne-


cessários que fundamentam não só os processos psicológicos pes-
soais, mas também os coletivos de todos aqueles que vivem no seio
daquele contexto cultural. Assim, compreendemos que a consti-
tuição do psiquismo Tukano não é um fenômeno meramente uni-
tário, mas integrado num coletivo de seres visíveis e invisíveis, no
espaço e tempo. Exemplo disso é o entendimento de que muitas
das mazelas que acometem os próprios Yepamahsã, assim como
outros povos, são vistas muitas vezes como fruto de conflitos nas
relações entre as pessoas desse patamar de existência com os Wai-
mahsã em outro.
Por fim, a cultura dos Yepamahsã, a partir da relação com
outros tipos de humanos invisíveis (os Waimahsã) e consideran-
do outros patamares de existência que coexistem e se influenciam,

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permite que os Tukano enxerguem os variados ambientes à sua
volta não apenas como objeto inerte, mas como natureza viva e
relacional. Isso nos remete à reflexão de uma construção psicosso-
cial que se dá não só na relação entre os Yepamahsã, mas também
com seres de outros patamares de existência. Tais relações se dão
de forma autêntica e constituem a pessoa Yepamahsã, fundamen-
tando os seus modos de agir, sentir e existir no mundo. Assim, tor-
na-se necessário ampliarmos a compreensão de psicossocial para
uma construção que não se dá somente através de um ser humano
com os demais num ambiente material, mas sim relações estabele-
cidas no coletivo dos clãs, num ambiente relacional e vivo, e com
seres ora invisíveis ora visíveis – o que nas sociedades ocidentais
usualmente chamaríamos de “dimensão espiritual”.

Bem-Estar Integral Yepamahsã

A partir dos aspectos inerentes à noção de pessoa Yepamah-


sã, principalmente no modo de vida pautado nos Kihti Ukuse, a
constante relação com os Waimahsã e o agenciamento da vida co-
tidiana através do Bahsese, podemos também compreender como
os Yepamahsã lidam com os processos relacionados à qualidade de
vida e ao bem-estar integral. Isso engloba as ideias de saúde e doen-
ça, bem-estar e sofrimento, tendo na figura dos especialistas (Yaí,
Kumu e Bayá) os peritos para lidar com essas questões.
Os especialistas, a partir dos Kihti Ukusé e das práticas de
Bahsese, irão propiciar promoção, prevenção, explicação e trata-
mento para os diversos adoecimentos que possam vir afligir deter-
minada pessoa. Nesse sentido, os processos de saúde e adoecimento
na cultura Yepamahsã podem ter origens em relações animosas com
os Waimahsã por diversos motivos diferentes, como por exemplo:
(a) a não limpeza dos alimentos por meio dos Bahsese; (b) as práti-
cas de Dohase (feitiçaria) e Ahpekase (invocação do mal); (c) quebra
de regras comportamentais – Duhise (ações preventivas); (d) Betise
(abstinências e restrições) (Barreto, et. al, 2018). Estes dois últimos
conceitos são de grande importância, pois consistem de modo ge-
ral nas práticas, comportamentos e/ou condutas cotidianas ou em

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momentos específicos que os Yepamahsã especialistas e não espe-
cialistas tomam para que não tenham sua qualidade de vida afetada.

Duhise (evitação de quebra de regras e condutas) e Batise/


Betise (prescrições e práticas de abstinência)

De acordo com Barreto et. al (2018), ambos os conceitos


Duhise e Betise podem ser facilmente confundidos, mas trazem di-
ferenciações importantes para compreensão de bem-estar e sofri-
mento na cultura Yepamahsã. O Duhise diz respeito a um complexo
conjunto de regras de condutas e comportamentos culturais, que
se quebrados podem trazer algumas consequências negativas futu-
ras, principalmente relacionadas às futuras gerações. Essas regras
têm suas origens nos Kihti Ukuse e são orientadas pelos velhos co-
nhecedores da cultura Yepamahsã. Tais regras normatizam a vida
Yepamahsã em diferentes esferas: regras de dietas alimentares e re-
gras de convívio cotidiano nos âmbitos comunitários, familiares e
sexuais.
Estas abarcam, por exemplo, as condutas necessárias que de-
vem ser tomadas pelo homem e a mulher gestante, durante a gesta-
ção, e após a gestação, para o bem da criança e da família como um
todo. Tais condutas podem estar vinculadas: (a) aos tipos de alimen-
tos que podem comer e os procedimentos a se fazer antes de comê-
-los; (b) restrição à circulação em determinados espaços para evitar
possíveis ataques de Waimahsã; (c) ou também rituais de Bahsese
para homem, mulher e criança (Barreto, et. al, 2018).
Os Betise estão inseridos dentro dessas condutas de Duhise,
porém esse tem um sentido mais específico, pois enquanto o Duhi-
se traz uma ideia de evitação de quebras de regras no decorrer de
toda a vida, o Betise trata de um conjunto de prescrições e práticas
de abstinência que devem ser seguidas com cuidado em períodos
específicos. Dentre esses momentos específicos, as três primeiras a
seguir são mais importantes: (a) abstinência de relação sexual; (b)
proibição de consumo de carne e peixe assado; (c) isolamento da
vida social; (d) construções de armadilha de caça e pesca; (e) me-
narca (primeira menstruação); (f) situação do casal no nascimento
de uma criança; (g) formação dos especialistas (Barreto, et. al, 2018).

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A partir disso, os modos como os Yepamahsã compreendem
os processos relacionados à saúde e adoecimento se diferenciam
bastante do modelo biomédico ocidental, tanto em seus aspectos
etiológicos, como de tratamento e cura relacionados à saúde física
e/ou mental.
Os fenômenos relacionados à agravos à saúde de um modo
geral têm suas origens, explicações e possíveis tratamentos funda-
mentadas nas narrativas míticas de Kihti Ukuse, uso dos Bahsese e
dos Bahsamori. Por sua vez, podemos constatar que não há a dico-
tomia corpo-mente na cultura Yepamahsã, pois um desequilíbrio
físico ou mental pode ter ocorrido em função dos muitos motivos
descritos acima.

Surise (confusão mental), Wihise (efeitos corporais), Ma-


tise (loucura, alucinações) e Witodã Uuhse (destruição da me-
mória)

O que em uma ótica ocidental seria compreendido como


transtorno mental, enquadrado em diferentes critérios de diagnós-
tico do DSM V (Manual de Diagnóstico e Estatístico de Transtor-
nos Mentais), na ótica Yepamahsã os critérios para compreender a
etiologia de determinado fenômeno de adoecimento ou sofrimento
também estão fundamentados nas narrativas míticas, bem como
os possíveis tratamentos através de práticas de Bahsese e/ou Betise.
Nessa linha, podemos apontar alguns conceitos Yepamahsã, cujos
sentidos aludem à concepção de fenômenos de sofrimento psíquico
nos referenciais de saúde mental ocidentais, porém com etiologias
e efeitos na pessoa completamente diferente. Estes conceitos con-
sistem em Surise, que podemos traduzir como “confusão mental”, e
Matise, traduzível como “loucura” e/ou alucinações.
O Surise (confusão mental) acomete majoritariamente os Ye-
pamahsã que se encontram no processo de formação para se torna-
rem especialistas. Esse processo pressupõe seguir na integra e com
disciplina os Betise próprios para esse momento, que consistem em
cuidar do corpo com limpeza estomacal, inalação de sumo de pi-
menta, dieta de determinados alimentos, evitando especialmente os

- 170 -
alimentos muito quentes. Quebrando essas regras, o corpo entra em
desequilíbrio podendo manifestar tanto o Wihise (efeitos corporais)
como o Surise. Esse desequilíbrio está intimamente relacionado ao
impacto dos alimentos quentes nos canais de energia do Omerõ que
ficam na língua, ouvido e topo da cabeça, que os queimam e pode
enfraquecê-lo no seu processo de potencialização. Desse modo, os
especialistas que estão acompanhando esses aspirantes a especialis-
tas começarão os processos de tratamento através dos Bahsese, e
estes em tratamento terão que seguir novos Betise.
O Surise é caracterizado através de condutas e comportamen-
tos desorganizados do ponto de vista dos Yepamahsã, sendo expres-
sos sem motivos contextuais e de forma errática, como se o sujeito
estivesse em transe e sem noção do que está fazendo. Dentre esses
comportamentos e condutas são relatados: (a) episódios de imitação
a animais e pessoas; (b) distração exacerbada; (c) acredita que as
pessoas à sua volta estão a todo momento falando dela; (d) compor-
tamentos bruscos de correr floresta adentro, correr para o rio e ficar
nadando sem motivo aparente; (e) apresentação de comportamen-
tos violentos.
Esses comportamentos erráticos, como se estivessem em uma
espécie de transe, podem ser perigosos porque podem levar esses
sujeitos a adentrar por exemplo nos espaços dos Waimahsã sem as
devidas permissões e sofrer com seus ataques. O Surise pode aco-
meter não apenas os especialistas e aspirantes que não cumprem
os Betise, mas pode também ser causado pelos Dohase (feitiços),
porém não afetando o Omerõ.
O Matise, traduzido como “loucura” ou também como aluci-
nações, também é compreendido na ótica Yepamahsã. Trata-se de um
conjunto de condutas desorganizadas causadas em função da quebra
de Betise relacionada à alimentos, a feitiços lançados sobre a pessoa
e/ou utilização de plantas alucinógenas, pós-parto dos conjugues, du-
rante o tratamento e período de recuperação da picada de cobra vene-
nosa. O Matise é caracterizado pelos Yepamahsã através dos seguintes
sinais: (a) ouvir vozes e/ou sons; (b) sentimento de inquietude; (c) fa-
lar sozinho; (d) andar erraticamente pela noite sem motivo aparente;
(e) descontrole durante o consumo de bebida fermentada.

- 171 -
Além disso, a quebra das regras de Betise também pode estar
trazendo uma outra problemática concebida como Witodã Uuhse, que
traduzido literalmente é destruição da memória, comprometendo a ca-
pacidade de armazenar e relembrar os conhecimentos ensinados pelos
velhos conhecedores. Essa parte de armazenamento de memória é cha-
mado de wiõtõdá (singular) ou wiõtõdare (plural). Se for “queimado”
pelo consumo de alimentos quentes durante os períodos de vulnera-
bilidade da vida, pode comprometer a capacidade psicossomática da
pessoa. Portanto, essas regras devem ser seguidas com muito cuidado.
Essas consequências acometem especialmente, porém não exclusiva-
mente, aqueles que estão na formação de especialistas, sendo impor-
tante que os Yepamahsã de modo geral tomem as mesmas precauções
alimentares cotidianamente (Barreto, et. al, 2018).

Ahpekase (provocação do mal) e Dohase (feitiçaria)

Torna-se importante trazer que as relações conflitantes entre


os Yepamahsã, e também entre os Waimahsã e Yepamahsã, também
apresentam exemplos de sofrimento pessoal e coletivo. Nesse sen-
tido, os ataques de Waimahsã podem causar sofrimentos psíquicos
e/ou emocionais tais como medo e angústia, provocados pela expe-
riência de encontro com a figura do Waimahsã. No sentido coletivo,
as práticas de Ahpekase ou “provocação do mal”, juntamente com
o Dohase (feitiçaria), são englobados nas práticas de Bahsese con-
trários à cura e/ou a vida (Usero pehtise), que consistem no uso de
palavras agressivas e são feitos por um especialista nessas práticas
(Dohasepihagu) sobre uma pessoa ou sobre uma comunidade (Bar-
reto et al, 2018).
O Ahpekase pode vir a atingir um grupo ou comunidade,
através de surtos de doenças e descontrole social, compreendido
através de brigas na comunidade, intrigas e suicídio (Barreto, et al.
2018). Desse modo, os especialistas têm um papel fundamental de
proteção da comunidade e das pessoas, utilizando Bahsese de pro-
teção contra esses ataques de Ahpekase e Dohase, como também
contra o ataque do Yepamahsã, garantindo também que os Duhise
e Betise sejam respeitados e seguidos. A partir disso, as pré-disposi-

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ções a determinados sofrimentos psíquicos ou mentais dependerão
dos modos como os Duhise e Betise foram seguidos ou não pelos
pais antes e depois do nascimento, e como foram seguidos ou não
pela pessoa durante a sua vida.
Estes sofrimentos são compreendidos como consequências
de quebras de regras culturais de modo geral, estando relacionados
não só a uma mera normativa cultural de condutas e comportamen-
tos, mas sim em modos de relação harmônicos ou não. Estas rela-
ções se dão entre os Yepamahsã com seus pares ou entre eles com os
Waimahsã, presentes em diferentes espaços, objetos e alimentos. De
modo geral, todos estão ligados e vivendo a partir do Omerõ e dos
conhecimentos do seu criador.

Considerações finais

A noção de pessoa Yepamahsã nos permite compreender


uma ideia de bem-estar que vai além do modelo de saúde e doen-
ça do saber biomédico ocidental. Frente a isso torna-se importante
ressaltar que a própria divisão entre saúde física e saúde mental não
existe na cultura Yepamahsã, pois o que é entendido como “sofri-
mentos psíquicos” ou mazelas na “mente”, seja através das categorias
de Surise, Wihise, Matise e Witodã Uuhse, são efeitos das quebras de
regras que se mostram de maneira integrada aos efeitos corporais.
Desse modo, essas desarmonias (“doenças”, na linguagem ocidental)
não estão calcadas na mesma ideia de corpo/mente cindido que as
sociedades ocidentais convencionaram a partir das filosofias menta-
listas, cuja Psicologia tem como um dos seus alicerces.
O bem-estar Yepamahsã não se mostra como segmentado
entre partes do ser (mente/corpo, sentimento/pensamento, etc.),
pois os Kihti Ukuse e as práticas de Bahsese e Bahsamori apresen-
tam todos os conhecimentos que essas pessoas precisam para o seu
bem-viver e bem-estar de modo integrado. Ou seja, os conhecimen-
tos ancestrais, as regras de condutas pessoais e coletivas, as práticas
cotidianas, as relações com os outros seres e a inserção de si (pelo
corpo) nesses contextos é entendido como acontecendo de uma for-
ma integrada, e não separadamente, fragmentada ou setorizada.

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Por outro lado, muitos dos males que os Yepamahsã atual-
mente têm sofrido são decorrentes do não seguimento dos preceitos
e conhecimentos dessa cultura indígena, como nos têm alertado os
especialistas mais velhos de nossas aldeias. Ao adotar costumes e
saberes da sociedade envolvente, deixando de lado nossos modos de
ser originários, estamos dando abertura para desequilíbrios oriun-
dos dessa outra cultura. No entanto, isso não significa que os Ye-
pamahsã estejam fechados na produção e reprodução de seus pró-
prios conhecimentos, não havendo possibilidade de diálogo com os
conhecimentos produzidos pelo saber ocidental. Pelo contrário, é
considerado de fundamental importância o diálogo entre os conhe-
cimentos não indígenas com os conhecimentos indígenas, porém
em uma relação de horizontalidade. Como sempre há convergên-
cias e divergências nos grupos e sociedades humanas, esse diálogo
entre os saberes é bem-visto por uma parte dos Yepamahsã, enquan-
to para outros é tido como infrutífero.
Por fim, esse contato com os Yepamahsã nos mostra o grande
desafio colocado à Psicologia: (a) configurarmos nossa ciência de
modo culturalmente sensível e que parta de uma postura ético-polí-
tica dialógica, para diminuir o máximo possível os impactos do et-
nocentrismo que está subjacente aos modos de interpretar o mundo
a nossa volta (Guimarães, 2016b); (b) para essa tarefa, é necessário
termos encontros epistemológico horizontalizados, em que se res-
peitem e levem a sério as concepções indígenas de viver e bem-estar,
dando poder e lugar de fala aos indígenas (Moreira, 2017); (c) os
conhecimentos construídos sobre o modo de ser Yepamahsã devem
ser contextualizados a essa cultura e demostrarem relevância social;
(d) a partir desse arcabouço construído em comum, se pode abrir a
possibilidade de trabalhos conjuntos.
Não se trata de descartar os conceitos tradicionais das
Psicologias, como de saúde mental, psicossocial, psiquê, mente,
entre outros. Talvez seja mais interessante alargar esses conceitos,
e ressignificá-los através dos diálogos com as culturas indígenas.
Através dos consensos entre os pensadores indígenas e não indíge-
nas, como fizemos neste capítulo, negociando novos sentidos dados
à essas ideias abarcando os referenciais necessários a partir de am-
bas as epistemologias. Assim evitamos cair na armadilha de comba-
ter etnocentrismo com etnocentrismo.

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