Na sequência da minha recente entrevista a um blog brasileiro, surgiu a iniciativa de trocarmos publicações de banda desenhada relativas aos autores dos nossos países. Apesar de partilhar-mos uma língua comum, nem sempre se consegue a proximidade desejável para se conhecer as respectivas produções, actuais ou históricas que se vão realizando em cada um dos lados do oceano que nos separa. Dessa iniciativa, permitida pelas comunicações via internet, volto a encontrar um autor brasileiro cujas histórias curtas, publicadas na extinta revista Animal, tinham para mim uma dinâmica com desenvoltura. Sobretudo naquilo que eu entendo como uma narrativa de interesse alargado e adulta. A par dos «Pesadelos Paraguaios», sequências de poucas páginas, intrigantes, sobre um conflito quase desconhecido no ocidente; lembro-me ainda mais, com grande nitidez, dessas outras sequências que abordavam a conduta de um piloto japonês, durante a segunda guerra mundial. Este, fugia de forma total aos cânones de comportamento de que são conhecidos os soldados nipónicos, durante este conflito. Almejando, este piloto, a sua sobrevivência pessoal em clara ruptura com a imagem estereotipada dos heróicos combatentes, ao serviço do imperador, do país do sol nascente. Sempre achei esta tónica muito particular que, para mim, revestia este autor com uma perspicácia muito sui generis na escolha dos seus temas. Indiscutivelmente acompanhados de um desenho desenvolto, aparentemente simples na estilização mas produzindo um forte efeito de sobriedade narrativa e um certo inconformismo formal.
O nome de André Toral ficara-me, assim, desses idos finais dos anos 80, até o reencontrar nestas trocas de livros com o Matheus Moura, com o acrescido interesse pessoal de que o livro Os Brasileiros (2009, Conrad Editora) se reporta a narrativas sobre os indígenas desse país. Este álbum de 88 páginas reúne sete histórias que Toral criou entre 1991 e 2008, desenvolvendo-se, grosso modo, as várias narrativas de forma cronológica; desde os primeiros contactos com os europeus no século XVI, até aos dias de hoje. Talvez que aqui importe informar que André Toral, nascido em São Paulo em 1958, é Historiador e antropólogo e de que além de banda desenhada, produz livros e artigos sobre temas relacionados à Antropologia e à História da Arte, como os três volumes de Arte e Sociedade no Brasil, em co-autoria com Aracy Amaral. Esta breve nota poderia induzir em erro de que Os Brasileiros se trata de um livro com uma visão histórica dos índios retratados, o que realmente não acontece e Toral deixa isso bem claro no breve texto explicativo que acompanha esta edição.
No entanto, poderá tornar mais esclarecedor o assumido pendor amoral de que se revestem as suas narrativas em banda desenhada, tanto neste caso como das suas outras produções. O contexto histórico ou a ética nunca são factores preponderantes nas decisões das suas personagens, estando as suas acções fortemente vinculadas a um instinto de sobrevivência cujas razões tendem a ser do foro individualista; independentemente das repercussões que possam a vir tomar. Dado tanto mais interessante, já que não impede uma abordagem rigorosa nos enquadramentos cénicos, nem tão pouco da verosimilhança que consegue incutir aos seus actores. Conferindo-lhes a um tempo um destacado perfil psicológico, dentro das suas características de força ou fraqueza.
Contudo, quanto a mim, a visão que André Toral nos dá dos indígenas é de um posicionamento algo periférico, já que estes se apresentam como contrapontos das outras personagens, os ocidentais. Como diz o autor, é verdade que em todas as histórias os índios se posicionam diante dos acontecimentos e tomam as suas decisões. No entanto, não posso concordar que estas não lhes sejam de certa forma impostas, já que advêm dos contextos criados pelos intervenientes ocidentais. Aliás, é curioso (e provavelmente prudente) como em nenhuma das histórias Toral nos apresente os índios dentro do seu quadro sociológico próprio e fora do contexto de ambivalências, com as suas personagens errantes e não nativas… Se, por um lado, a sua narrativa torna mais legível, para o leitor mediano, a individualidade dos indígenas, face a uma trama de enredos plurais, étnicos e continentais; por outro, não deixa de ser vagamente omisso, relativamente a dados fulcrais em relação à própria estrutura identitária da natureza dessas culturas, fora do âmbito das acções que se possam tornar reconhecíveis, no contexto do racionalismo kartziano.
Mesmo assim, nem essa constatação tira o valor substancial de que está revestido este trabalho, sobretudo em histórias como «O Negócio do Sertão» ou «O Caso dos Xis», narrativas de apurado nível onde toda a grande capacidade de André Toral é revelada, como um autor completo que expressa de forma quase perfeita o seu talento gráfico, com uma indiscutível capacidade como argumentista. Existe qualquer coisa neste livro, para além da óbvia presença dos índios, que me remete para o trabalho daquele que para mim é o mais importante autor de banda desenhada brasileiro, Flávio Colin que com o argumento de André Diniz realizaram a história «Fawcett»; sobre o caso verídico do estranho coronel Inglês desaparecido durante uma expedição, na procura de uma civilização maior nas selvas amazónicas. O curioso desta narrativa está em se desenvolver precisamente no ponto em que se perde a informação sobre o coronel e os seus parcos acompanhantes. Assim como na narrativa de Toral, tudo é verdade excepto toda a trama da acção que foi inventada. Por vezes, o efeito entre ambos é muito similar, existindo necessariamente uma tonalidade diferenciada.
A presença dos índios não deixa de estar ligada a uma conflitualidade latente, daí que eu ache que poderá ser muito discutível o retirar simplesmente o papel das “vítimas da história”, como afirma Toral, se bem que entenda que é mais objectivo descartar um papel paternalista nesta questão. Ainda há poucos anos, perguntei a uma imigrante brasileira o que pensava sobre os índios, ao que me respondeu, sem rodeios, que se tratavam de selvagens violadores! Quanto a mim, não tenho qualquer orgulho de pertencer a uma nação que os ajudou a exterminar ou escravizar; em movimentos e processos históricos como os bandeirantes (a que se refere a história «O Negócio do Sertão»), com a intenção de caçar literalmente vidas humanas ou a redefinir territórios alheios, em competição com outras potências europeias. Uma nota menos positiva neste livro, relaciona-se com as sequências em que André Toral trabalhou a cor, com aguarela. A mesma impressão, de colorido sem pendor narrativo, tivera igualmente quando folheei o seu livro «Adeus, Chamingo Brasileiro – Uma História da Guerra do Paraguai». Nitidamente que esta não é uma boa solução para o seu trabalho, retirando até alguma densidade que a sua narrativa possui em troco de uma ambiência algo pardacenta. Assim como a opção, inestética graficamente, em tornar a direcção das falas dos balões, demasiado bojudas e irregulares. Por fim, deixo um link onde este livro poderá ser adquirido na internet. Os Brasileiros não é só um excelente trabalho de um nome maior da banda desenhada brasileira, como é também um convite acessível para melhor conhecer o rosto de uma cultura que ainda se encontra viva e, da qual, também nós portugueses podemos ter acesso à sua expressão, através da visita às Galerias da Amazónia; no Museu Nacional de Etnologia em Lisboa.
Muito bom!!
Parabéns pelo texto! Fico feliz em ter participado da concretização de tremenda análise!
Abraço!
Matheus
prezado Diniz,
é tão raro encontrar comentários inteligentes (não necessáriamente elogiosos) que li com raro prazer suas opiniões. Só tenho a agradecer a leitura atenta e o interesse. Para breve novas histórias numa coletânea a ser publicada provavelmente no 2o. semestre desse ano, um forte abraço, André Toral