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Tragédia à Brasileira

Dividindo o povo de maneira dicotômica, o contexto político atual apresenta uma trama cheia de acusações, traições e um futuro incerto

Aline Oliveira Publicado em 14/06/2016, às 17h22 - Atualizado às 19h58

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Ilustração Lézio Júnior - Ilustração Lézio Júnior
Ilustração Lézio Júnior - Ilustração Lézio Júnior

Daria um roteiro tão primissor quanto o da premiada série House of Cards, conforme foi alardeado pela internet. Situada em Brasília, a trama a seguir apresenta como protagonista uma economista que tem no currículo o carimbo de primeira presidente mulher de seu país. Apesar de exercer majoritariamente cargos técnicos em sua vida pública, a personagem consegue ser alçada à posição de primeira-mandatária com a ajuda de seu antecessor, este sim um político nato e habilidoso no trato com os aliados. Ambos fazem parte de um partido gestado nas classes populares.

O drama da personagem principal inicia-se logo após a vitória eleitoral para exercício de seu segundo mandato. O maior adversário dela nas urnas questiona o resultado das acirradas eleições e se coloca como um dos líderes da oposição à candidata reeleita. Esta, por sua vez, coleciona desafetos no Legislativo. O mais perigoso deles é o presidente da Câmara dos Deputados, cujo entretenimento predileto é persuadir, provocar e perseguir políticos para obter benefícios próprios. Ao longo da trama, ele assume o papel de anagonista da presidente e trava uma batalha para derrubá-la. O cabeça da Câmara é do mesmo partido do vice-presidente da República, um homem ressentido por acreditar que exerce função decorativa. Está aí um dos pontos-chave da história.

A guerra entre a protagonista e seus opositores ganha status midiático. Escândalos de corrupção envolvendo o partido e políticos próximos à presidente são revelados. A economia do país vai mal. A presidente comete erros na gestão, afasta e lateraliza membros do governo, inclusive seu vice. Duvidosas manobras econômicas e fiscais tornam-se motivo para um pedido de impeachment. O povo vai às ruas, bate panela, grita palavras de ódio. O vice escreve uma carta expondo suas mágoas. O Congresso acelera o processo de impedimento. O ex-presidente popular volta aos palanques, a Brasília, e tenta, sem sucesso, retornar ao governo no papel de ministro. A presidente esbraveja, diz que não renuncia. Os deputados votam a favor de sua saída. Os senadores ratificam a decisão. A presidente cai.

Nem o mais experiente roteirista seria capaz de criar uma história tão surpreendente, intrincada e cheia de reviravoltas como a assistida pelos brasileiros nos últimos meses. Ainda que deprimente, é uma boa trama, e assim cativa os espectadores de um modo no qual quase todos perdem a razão, deixando-se levar pela paixão ou pelo ódio que sentem pela personagem principal, enxergando-a simplesmente como vítima ou como culpada. Os atores envolvidos, por sua vez, apropriam-se dessa passionalidade, dando um tom dicotômico aos fatos, taxando-os de dois modos, em opostos extremos: ou como um processo democrático natural ou como um golpe.

“Uma maioria parlamentar deu um golpe em um governo eleito democraticamente pela vontade popular, além de ser uma violência política contra uma mulher que não cometeu crime algum”, opina Paulo Rocha (PT-PA), líder do partido no Senado. “Dilma Rousse é uma mulher honesta, que pode ter cometido erros na política e na economia, mas isso não justifica a violência política estabelecida contra ela.”

O outro lado é igualmente veemente. “Na Constituição – não apenas a nossa, mas na Constituição em qualquer país democrático do mundo – os senhores encontrarão lá a previsão do eventual afastamento da presidente da República ou do presidente da República em caso de crimes cometidos”, declarou o senador Aécio Neves (PSDB-MG) durante seu discurso na sessão que votou a admissibilidade do processo de impeachment da presidente Dilma Rousse , realizada nos dias 11 e 12 de maio, cujo placar foi de 55 votos a favor do afastamento e 22 contra.

Para além do jogo político, o contexto atual e as narrativas precisam, antes de tudo, ser analisadas em sua complexidade. Na visão de Milton Lahuerta, cientista político, professor e coordenador do Laboratório de Política e Governo da Universidade Estadual Paulista – Unesp, o momento que vivemos “é uma grande confusão do ponto de vista político. Todo esse processo está sendo pautado pela judicialização, mas no fundo mostra que o sistema político do jeito que está chegou ao seu limite”.

Ele prossegue: “O tal presidencialismo de coalizão mostrou-se um mecanismo razoável de funcionamento enquanto houve crescimento econômico e recursos para serem distribuídos. No momento em que isso se revelou difícil de reproduzir, o modelo mostrou toda a sua debilidade. Um segundo ponto diz respeito à operação política. Os atores principais – PT, Lula – construíram uma lógica com grande impacto na cultura política do país: uma lógica que apostou excessivamente na polarização com o PSDB, criando uma perspectiva de grande embate entre direita e esquerda. Isso fez com que o sistema político vivesse uma radicalização, com alto grau de intolerância”.

O processo de abertura do impeachment ocorreu na primeira quinzena de maio, mas o debate sobre ter sido ou não um processo legítimo segue dividindo a opinião pública – e até muitos analistas. “É um golpe politicamente construído. Começou com um boicote a todas as propostas de governo na Câmara dos Deputados, liderado por Eduardo Cunha, que sabotou os projetos do governo e apoiou pautas-bomba”, defende Aldo Fornazieri, professor da Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo (FESPSP).

Para Rogerio Baptistini, cientista político e professor da Universidade Presbiteriana Mackenzie, a ideia da existência de um golpe é completamente infundada. “O impeachment é um remédio previsto na Constituição para evitar os excessos do presidencialismo. É uma ferramenta que se usa para impedir o presidente de agir como um déspota. E esse processo está seguindo um rito definido pelo Supremo Tribunal Federal, a mais alta corte. Quem está votando o processo são os parlamentares eleitos livremente pela sociedade. E a presidente tem amplo direito de defesa tanto na Câmara como no Senado e, sobretudo, com direito de recorrer ao Supremo para discutir o mérito. Então, não se trata de golpe. É a institucionalidade em funcionamento.”

Angela Moreira, historiadora e professora da Escola de Ciências Sociais da FGV/ CPDOC, refuta o ponto de vista do colega educador. “Vejo como golpe porque foi um processo conduzido a partir de um desrespeito à institucionalidade e à democracia brasileira. As justficativas apresentadas no pedido de impeachment não se configuraram como crime de responsabilidade. Portanto, esse ato foi um desrespeito aos pouco mais de 54 milhões de votos que a Dilma teve em 2014.”

O número de votos arrebatado na última eleição é também constantemente trazido à tona por Dilma, algo que intriga o advogado criminalista José Nabuco, mestre em direito penal e professor da Universidade São Judas Tadeu. “Esse é um argumento curioso, porque é evidente que o impeachment está previsto na Constituição de 1988 para o presidente eleito e que, obviamente, contou com a maioria dos votos.” Nabuco também detalha a delicada questão do conceito de crime de responsabilidade. “É preciso esclarecer que crime de responsabilidade não é propriamente dito um crime. Não está definido no código penal, não tem pena privativa de liberdade.

É uma infração político-administrativa. Se nós lermos a lei 1.079/50 fica muito evidente que não é necessário que a presidente tenha tido alguma vantagem individualmente – a obtenção de vantagem pessoal não é imprescindível [para constituir crime de responsabilidade].

Fala-se muito isso, que ela é uma presidente honesta. Pode ser que seja do ponto de vista pessoal; nada evidencia que ela tenha pessoalmente obtido alguma vantagem. Mas a rigor de diversos enunciados lá na lei ela incorreu [em crime de responsabilidade].”

Aos olhos do Congresso, Dilma de fato cometeu esse tipo de infração. O texto a favor de seu afastamento aponta como delitos da presidente a emissão de seis decretos de crédito suplementar em 2015 sem autorização do Congresso e a autorização, também no ano passado, de operação de crédito irregular (atraso de repasses a bancos públicos por parte do governo), ação conhecida como pedalada fiscal. O processo de impeachment segue em discussão. Acusação e defesa se manifestarão novamente e a ação defesa se manifestarão novamente e a ação tramita sob o comando do presidente do STF (Supremo Tribunal Federal), Ricardo Lewandowski. O final do ato será dado em nova votação nominal e aberta no plenário. Se dois terços do Senado (54 dos 81 senadores) decidirem que a presidente cometeu crime, ela será afastada definitivamente e o presidente interino, Michel Temer (PMDB), governará até dezembro de 2018.

Os defensores de Dilma Rousseff apontam o fato de que as tais pedaladas também teriam sido praticadas em governos anteriores. É um ponto complexo, mas, para Nabuco, esse é um argumento que não engrossa o caldo da defesa do ponto de vista jurídico. “O procedimento do impeachment tem uma natureza política – não vigora o princípio da obrigatoriedade. Se eventualmente existiu crime de responsabilidade em um governo anterior, se àquela época as condições políticas eram favoráveis, não significa que o Congresso – inicialmente, a Câmara dos Deputados – tenha obrigação de aprovar o procedimento do impeachment. E por que a Câmara precisa autorizar um processo criminal que vai ser julgado pelo Supremo Tribunal Federal? Porque é exatamente a Câmara que faz esse julgamento de conveniência política, ou seja, vê se é adequado politicamente para o país, se é oportuno para o momento.

Não é uma questão técnica, porque a Câmara não tem mais conhecimento técnico que o Supremo.” A maioria dos analistas entrevistados aponta como o maior erro de Dilma não as desastrosas manobras na economia mas justamente a inabilidade de fazer política com os parlamentares. A perda de apoio popular foi outro fator crucial na forma como as ruas se manifestaram. Ao final do primeiro mandato, Dilma tinha 59% de aprovação. O quadro mudou rapidamente, nos primeiros três meses do segundo mandato, quando uma pesquisa do CNI-Ibope apontou que somente 24% dos entrevistados diziam confiar na presidente. Ao final de 2015, o Datafolha apontou que 71% dos brasileiros consideravam o governo ruim ou péssimo. Em abril de 2016, esse índice era de 63%.

“Se ela tivesse apoio popular, esse processo não teria acontecido. Se ela tivesse sabido fazer política e não tivesse comprado inimizades no Legislativo, esse processo não teria acontecido”, sintetiza Rogério Baptistini. “Faltou tato da presidente, algo que não faltava ao Lula (2003-2011). Ele soube conduzir seus dois mandatos de forma magnífica, porque, além de construir popularidade, Lula sabia negociar com o Congresso. O mensalão era suficiente para ele sofrer um processo de impedimento, mas não havia força legislativa que pudesse dar andamento ao processo. Ele tinha ampla maioria, sabia negociar. Já a Dilma sempre teve aversão à política do dia a dia, não gosta de negociar. Moral da história: ela cavou a própria sepultura.”

“Chegamos aqui por uma grande incompetência da principal personagem, Dilma Rousseff”, complementa Milton Lahuerta. “Para além das ações de seus oponentes, há uma incapacidade abissal dela de fazer política.”

Já Plinio Soares de Arruda Sampaio Júnior, do Centro de Estudos do Desenvolvimento Econômico do Instituto de Economia Unicamp, enfatiza que a presidente afastada “caiu por ela mesma”. “Isso não quer dizer que não teve golpe – um golpe contra o povo brasileiro. A política brasileira é feita de golpe. Essa é a linguagem, a gramática. Há facções que lutam pelo poder, e os políticos estão acostumados a isso. Mas quem perde é o povo. O golpe é o ataque à democracia, porque embora o PT se jogue no chão, se faça de vítima, ele continua de mãos dadas com todos esses outros partidos – pode não estar em Brasília, mas está em outras cidades e estados.”

O papel da imprensa foi evidenciado ao longo destes últimos meses. Os que defendem a tese do golpe apontam parte da imprensa como parcial ao noticiar com mais intensidade um lado do debate. “Se analisarmos a história do Brasil, vamos perceber que muitas das tentativas de golpe pré-1964 têm um modus operandi: cria-se um clima de comoção pública dizendo que se trata de um combate à corrupção. Aliás [o filósofo político italiano] Norberto Bobbio dizia que o discurso da limpeza moral e da limpeza ética é o discurso do fascismo. Nesse sentido, a imprensa desempenha sempre um papel muito importante, porque é a fomentadora desse clima de linchamento moral e da ideia de que se trata de um salvacionismo”, declara Aldo Fornazieri, da FESPSP.

Você induz a população a achar que há um grande problema e apresenta uma solução fácil. Isso é muito comum nessas manipulações. Os Estados Unidos ?zeram isso com o terrorismo, colocando-o como o maior problema da nação e dando como solução a revisão dos direitos civis individuais em prol da segurança. Esse tipo de jogo é muito comum na mídia”, afirma Dennis de Oliveira, professor e chefe do Departamento de Jornalismo e Editoração (CJE) da Universidade de São Paulo – USP.

Seguindo essa lógica, o problema, no contexto brasileiro, seria a crise econômica; a solução seria tirar a presidente. “Muita gente acredita que a crise brasileira foi provocada da pela pedalada fiscal, que o desequilíbrio financeiro foi o que provocou a crise. Mas é o contrário: é a crise que propicia um desequilíbrio financeiro. O déficit público não aprofunda a recessão. Então, é um discurso ideológico para justificar um ajuste duríssimo na economia”, opina Plinio Soares. Milton Lahuerta, por sua vez, questiona. “Atribuir à mídia o papel de formatar sozinha a opinião pública é muito simplismo em uma sociedade que é hoje totalmente coordenada pela internet. Só de blogueiros que eram pagos pelo governo federal havia 3 mil, fazendo um trabalho diário de enfrentamento nas redes sociais. Então, como hoje a gente pode atribuir tudo à chamada ‘mídia golpista’ em um país em que há 100 milhões de usuários do Facebook?”

O ajuste fiscal foi anunciado na segunda quinzena de maio pelo presidente interino, Michel Temer, cujo pacote de medidas tem como objetivo aliviar a pressão dos gastos sobre o déficit no orçamento, calculado após revisão em R$ 170,5 bilhões. “O programa de governo de Michel Temer [Ponte para o Futuro] baseia-se em medidas de austeridade que sobrecarregam os mais pobres e a classe média. Essas políticas, de inspiração neoliberal, tendem a aumentar as desigualdades e a provocar instabilidade social”, diz Leandro Gavião, doutorando em história política na Universidade do Estado do Rio de Janeiro – Uerj.

Não é nisso que acredita Marco Aurélio Nogueira, professor do Instituto de Políticas Públicas e Relações Internacionais da Universidade Estadual Paulista – Unesp. “Qual a diferença entre Joaquim Levy [ex-ministro da Fazenda de Dilma] e Henrique Meirelles [atual ministro da Fazenda no governo interino de Temer]? Nenhuma. Portanto, a ideia do ajuste já estava apresentada em janeiro do ano passado. Quem começou a falar de ajuste nessa perspectiva foi a própria Dilma. Não faz sentido dizer que houve golpe para fazer o ajuste. Acho que talvez tenha sido dado um golpe porque, por falta de apoio político, o governo não conseguiu fazer o ajuste que o me cado queria. E não me refiro a golpe de Estado, antidemocrático, nada disso: me re?ro a golpe no sentido de uma parte do Congresso ter se revoltado contra o Poder Executivo.”

Desde que Michel Temer assumiu o posto de presidente interino, manifestações e ocupações pelo país o acusam de traição. Apesar do amplo apoio popular à saída de Dilma, houve, logo após o anúncio do novo Ministério de Temer, muitas críticas diante das escolhas do peemedebista, já que entre os ministros selecionados por ele há políticos citados nas investigações da Operação Lava Jato. Até o fechamento desta edição, dois ministros já haviam deixado seus postos. Em 30 de maio, Fabiano Silveira pediu demissão do cargo de ministro da Transparência, Fiscalização e Controle, após ser divulgada conversa entre ele, o presidente do Senado, Renan Calheiros (PMDB-AL), e Sérgio Machado, ex-presidente da Transpetro. Nela, Silveira aconselhava Calheiros e Machado sobre “providências e ações” contra a Lava Jato. Machado fez diversas gravações com o objetivo de conseguir um acordo de delação premiada.

O primeiro a deixar o governo interino foi o senador Romero Jucá (PMDB-RR), apontado como principal articulador da saída de Dilma. Jucá foi empossado ministro do Planejamento em 12 de maio e exonerado no dia 23. A saída dele do Ministério foi motivada por reportagem publicada no jornal Folha de S.Paulo, na qual foram divulgados diálogos do senador com Sérgio Machado. Nas transcrições reveladas pelo jornal, Jucá sugere um “pacto” para barrar a Lava Jato (ele também fez parte da gestão de Luiz Inácio Lula da Silva como ministro da Previdência Social, e foi exonerado à época após denúncias de corrupção). O senador, que antes do escândalo das gravações havia sinalizado via assessoria de imprensa atender à reportagem da Rolling Stone Brasil, não respondeu às ligações após o ocorrido.

“É gravíssimo o que veio à luz. Qualquer tentativa de conduzir um acordão para impedir as investigações da Lava Jato é muito grave. É mais uma mácula na República”, diz Rogério Baptistini.

Plinio Soares, da Unicamp, acrescenta que “a fala do Jucá é autoexplicativa. Todo mundo já entendeu qual é o acordão costurado. E é uma desmoralização completa do governo Temer”. No entanto, para Marco Aurélio Nogueira, existe aí um paradoxo: “Aparentemente, a queda do Jucá fortalece o PT, mas por outro lado enfraquece a narrativa do golpe. Como você pode continuar falando de golpe se os golpistas estão se cortando com a mesma faca com a qual cortavam o PT?”

Segundo Juca Ferreira, ex-ministro de Dilma, Jucá e Machado “botaram as tripas para fora” na conversa. Ferreira exerceu o cargo de ministro da Cultura do governo Dilma de 2015 a 12 de maio de 2016. Ele já havia ocupado o mesmo cargo no segundo mandato de Lula. A polêmica em torno da extinção e, depois, da recriação da pasta foi outro desgaste do governo interino de Temer. “A recriação do Ministério foi fruto da pressão dos artistas, trabalhadores e gestores da cultura. Temer viu que não dava para ignorar o setor, que fazer isso seria uma irresponsabilidade. Só que eu não acredito que o novo Ministério [da Cultura] vá conseguir manter as políticas desenvolvidas nestes 13 anos. Isso porque o governo interino é neoliberal, reduz tudo à questão financeira, à moeda, à produção de mercadoria.

Eles não entendem a complexidade da sociedade brasileira, a cultura, as políticas sociais, os direitos dos povos indígenas, o direito das mulheres, dos negros, da comunidade LGBT”, diz Ferreira. Além da ideia da extinção do Ministério da Cultura, a não representativade da pluralidade da sociedade brasileira na escolha de seus ministros, todos homens brancos, foi outro alvo de crítica. “Reflete muito o espírito de Casa Grande, por mais que muitos digam que a escolha foi meramente técnica. A gente sabe que é possível encontrar bons técnicos negros e mulheres.

Existe te uma questão simbólica, pois vivemos num país muito plural. E Temer não teve tato para criar um ministério que correspondesse à cara do Brasil”, acrescenta Leandro Gavião, da Uerj. Como em todos os pontos na conjuntura atual, ambos os lados têm argumentos plausíveis. “Faça o que o Michel fizer, ele será objeto de crítica desses setores. Mas a despeito disso, qual foi o cálculo do Temer? Foi conseguir, pelo menos neste momento inicial, uma maioria parlamentar expressiva”, analisa Milton Lahuerta. “Isso para focar essencialmente na política externa e na economia, para fazer a arrumação que Temer está se propondo a fazer e que o bloco que o está apoiando pensa que tem de ser feita. A grande questão é essa: se ele conseguir uma arrumação básica até o momento da votação final do impeachment de Dilma, e se ela for retirada do poder em definitivo, penso que aí é que o ministério do Temer será efetivamente construído.”

Os cidadãos que os elegeram, além da certeza da formação de mais uma cicatriz na sociedade brasileira.

“A esquerda já está se mobilizando e vai se mobilizar cada vez mais. Os movimentos sociais vão brigar pela democracia e pelos direitos já conquistados com as políticas de inclusão”, opina o senador Paulo Rocha. Porém, o professor Aldo Fornazieri ressalva que a esquerda tem se mostrado frágil. “Acho que a esquerda tem que se reinventar totalmente, porque a esquerda que está aí também faliu nesse processo. Para mim, tem de surgir uma nova visão da esquerda e da política, uma visão completamente diferente dessa antiga.”

Esquerda, direita, centro: essas definições parecem não importar tanto diante da constatação de que a máquina do sistema político brasileiro tem funcionado à base do combustível da corrupção. Tiradas as irracionalidades inerentes a qualquer debate que se deixa tomar pela paixão, o sentimento maior é o de que a sujeira não pode mais ser varrida para debaixo do tapete. O trauma dos acontecimentos dos últimos meses deve figurar nos livros de história do futuro – pensando sob um ponto de vista otimista, como marco de um reinício

mais limpo para esta democracia.

CAMINHOPARAARECONSTRUÇÃO

Diálogo entre opositores é uma das saídas para a crise política

Por mais traumática que a experiência do impeachment seja para o Brasil, é preciso que a sociedade trate as feridas e encontre um caminho de crescimento social e econômico. Para Milton Lahuerta, cientista político, professor e coordenador do Laboratório de Política e Governo da Universidade Estadual Paulista – Unesp, é necessário “sair dessa lógica da polarização”.

“Precisamos de grande política. E os atores políticos vigentes têm uma obrigação muito grande no sentido de construir algum caminho”, afirma. O estudioso vê em declarações de Edinho Silva, ex-ministro-chefe da Secretaria de Comunicação Social (Secom) do governo Dilma, o entendimento por parte do PT de que é preciso abrir um canal de conversa com os oponentes. Em entrevista ao jornal O Estado de S. Paulo, publicada em 23 de maio, Silva declarou: “Temos de dialogar com forças políticas que são, muitas vezes, antagônicas a nós. Em alguns momentos, vamos ter afinidade com o PSDB, muito mais do que com o PMDB, com quem há tempos atrás nós chegamos a discutir o assunto. Em outros pontos, podemos ter afinidades com o PSOL, com a Rede”. Lahuerta acredita que “essa será a atitude que paulatinamente vai se impor ao próprio petismo. Tenho convicção de que o Edinho não teria dado uma entrevista com essas características se não houvesse uma conversa anterior entre ele e o Lula. Penso que a fala dele sinaliza isso, que precisamos superar a raiva, os ódios e os ressentimentos. Precisamos pensar a política”.