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A Autocensura nos Gibis da Marvel Pela Editora Abril

Que as revistas sofriam censura pela ditadura militar, você já deve saber, correto? Mas mesmo quando acabou o período militar no Brasil, a Editora Abril continuava a autocensurar suas revistas em quadrinhos. Isso acontecia principalmente aquelas que vinham com conteúdo mais adulto, vindo na pegada de publicações como o Monstro do Pântano de Alan Moore na DC Comics. Mas nem a Marvel permanecia incólume à necessidade de pregar a “moral e os bons costumes” nas publicações da editora paulista da família Civita. Algumas publicações foram picotadas ou imagens foram simplesmente limadas dos fotolitos para satisfazer essa necessidade de passar uma boa imagem com suas publicações. É sobre algumas delas que vamos falar agora.

Nos anos 1970, a censura por parte do governo sobre as publicações midiáticas estava em alta. Não era de se estranhar que jornais e revistas viessem com receitas de bolo publicadas em cima da hora para substituir alguma matéria que desagradasse os militares. Um caso que ocorreu na Editora Abril, na revista da Pantera Cor de Rosa, é relatado por Gonçalo Junior em seu livro Maria Erótica e o Clamor do Sexo:

pantera“A Censura continuava a se preocupar com os quadrinhos. Waldemar de Souza, um dos editores de gibis da Abril, escreveu um memorando interno aos diretores Angelo Rossi e Edgard de Sylvio Faria sobre o ‘problema’ criado por um cacófato estampado na edição 13 da revistinha da Pantera Cor de Rosa [de maio de 1976]. Um dos personagens da história era chinês e se chamava “Fu”. Num dos balões, o inspetor lhe perguntava: “O que é Fu… deu pra rebolar agora?” O fato passou despercebido da revisão da editora, mas não dos censores, que pediram explicações à Abril. Afinal, acreditavam eles, havia ali uma clara tentativa subversiva de fazer trocadilho com um palavrão” (JUNIOR, Gonçalo, 2010, p. 296).

Não vamos entrar nos meandros de discussão sobre as alterações feitas na minissérie Guerras Secretas, porque esse foi um caso específico de pressão por causa da comercialização mundial dos brinquedos relacionados com a série. Mas vamos prestar bem atenção no que o editor Leandro Luigi Del Manto, editor da Marvel na Abril nos anos 1980 conta a Alexandre Morgado sobre a publicação de A Queda de Murdock, arco de histórias do Demolidor, criado por Frank Miller e David Mazzucchelli. A entrevista foi concedida para o livro Marvel Comics: A Trajetória da Casa das Ideias no Brasil.

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“Quando entrei na Abril, comecei a ouvir muitas histórias de que a editora teve muitos problemas com tramas sobre drogas. O tema drogas e drogados era uma coisa proibida. A gente tinha que evitar as histórias com esses temas. E era um problema, porque, na época, estava saindo na Marvel ‘Manto e Adaga’, que eram vítimas do uso de drogas. E como você vai mascarar isso aqui? Não tem como. Tinha um senhor chamado Silvio Fukumoto, que era das antigas e trabalhou por muito anos na Abril, e todas as histórias passavam por ele. Sua função era ler tudo e se certificar que não tinha nada que fosse causar algum problema jurídico para a empresa. Qualquer menção às drogas, a gente tinha que mudar e tirar fora. Com a ‘Queda de Murdock’ foi terrível. Fui eu que editei essa história e foi dramático”, revela Leandro Luigi.

Em um determinado trecho da história, (SAM nº 66) Karen Page procura ajuda de Foggy Nelson, após ter sido agredida pelo seu atual namorado, chamado Paulo. Após um tiroteio entre a polícia e Paulo, Karen decide terminar com a sua vida, tentando injetar uma alta dosagem de droga. A imagem com a seringa na mão é muito clara. No decorrer da cena, Matt chega e salva Karen, impedindo que concluísse seu plano. Mas a direção da Abril queria vetar essa parte. O veto foi tão grande que se cogitou que a história inteira não fosse publicada. A solução encontrada foi alterar a arte. Não tinha como não publicar ou omitir a cena e explicar no editorial. Depois de uma longa conversa, Sílvio sugeriu para o editor Leandro Luigi que alterasse a arte.

Não pula muto alto, senão será a Queda de Murdock!

Não pula muto alto, senão será a Queda de Murdock!

O problema não era ver a personagem morrer ou se suicidar. Era a droga, em si. Depois de muita conversa, foi acordado trocar a seringa por uma arma branca. E o desenho foi alterado por uma navalha. Segundo Leandro, a única maneira para liberar a história para que viesse a ser publicada.

“Tinha essa coisa muito rígida lá dentro, e aos poucos isso foi mudando. Com a chegada dos quadrinhos adultos, não tinha como mascarar mais esse tipo de assunto. O tema de drogas, dentro dos temas adultos, é o mais suave. Existem outros temas mais pesados. E como a gente vai fazer? Se fosse desse jeito não sairia Watchmen, não saía mais nada”, atesta Leandro. (MORGADO, 2018)

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Outra publicação que sofreu de autocensura direto da redação da Abril, foi a graphic novel X-Men: God Loves, Man Kills, escrita por Chris Claremont e desenhada por Brent Anderson. Mais uma vez foi apelado pela moral e o bons costumes. Para não “associar o nome de Deus em vão” em uma tradução que ficaria “Deus ama, o homem mata”, optou-se por mudar  a tradução. O nome da primeira Graphic Marvel ficou conhecido por anos aqui no Brasil como “O Conflito de Uma Raça”. Del Manto comenta essa mudança:

“Foi uma censura própria, na direção da redação. Na época, o diretor de redação era o Cláudio Marra. Ele, além de diretor, também era pastor. E achava que não era de bom tom usar em um título de uma revista popular as palavras “Deus e Mata”. A gente não tinha essa pegada religiosa que ele teve. É difícil dizer se ele estava certo ou errado! Mas o título “Conflito de uma Raça” é um título tão bom quanto. Que fala muito sobre a história em si. Na época, ele conversou comigo e eu até entendi o porquê da coisa. O título não foi proibido, foi apenas uma opção do diretor de redação”, revela. (MORGADO, 2018)

X-Men: Deus Ama, o Homem Mata

Portanto, como pudemos ver, nem sempre a censura vem apenas do governo. Muitas vezes as empresas por alguma orientação de sua missão ou visão como  empresa também decide não publicar determinadas histórias. Hoje em dia vemos isso com as decisões da Panini de “apagar” e “silenciar” publicações com personagens femininas, negros ou gays nas suas revistas da Marvel e da DC Comics, por exemplo. Não se fazem cortes e nem se raspam artes, mas se deixa de publicar títulos inteiros por alguma determinação vinda de cima.


Referências:

JUNIOR, Gonçalo. Maria Erótica e o clamor do sexo: imprensa, pornografia, comunismo e censura na ditadura militar. 1964-1985. Guerra dos Gibis 2. São Paulo: Peixe Grande/Editoractiva, 2010.

MORGADO, Alexandre. A Marvel no Brasil. São Paulo: Laços, 2018.

8 comentários

    • Guilherme Smee diz

      Oi Gonçalo! Sim! As da DC eu não coloquei porque a fonte era o livro da Marvel, do Alexandre. Por isso o título fala da Marvel. Mas quem sabe a mutilação de Camelot 3000 não renda um post mais detalhado sobre a parte queer da história e esse detalhe? Abraços! =)

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  1. Desculpe o leigo aqui, mas quais foram os casos de títulos representativos de minorias que a Panini barrou ? Não que eu esteja duvidando ou contestando , até porque se tratando da Panini já espero de tudo, somente desconheço essa situação mesmo.

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  2. Aliás, excelente texto. Possuo tal edição de “O Conflito de Uma Raça” e sempre me questionei a razão dessa tradução e adaptação. Não esperava uma motivação do tipo para isso, mas já deveria imaginar.

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    • Guilherme Smee diz

      Valeu! Pois é, eu também sempre quis saber! Descobri graças ao Alexandre Morgado e seu livro da Marvel no Brasil! Abraços! =)

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