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Graffitti

GRAFFITI. E eu fui lá e fiz


Nesta edição, a coluna LadoBeagá – coisas boas que existiram na cidade – traz depoimentos dos quadrinistas Fabiano Azevedo e Valf sobre a Graffiti, revista de quadrinhos que circulou de 1995 a 2012. Nesses anos, publicou mais de 100 autores e 300 histórias em 1.868 páginas. Uma aventura criativa que merece ser lembrada e registrada.

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Do alto dos meus 18 anos, eu me sentia um quadrinista. Nunca havia publicado nada – era um leitor faminto de quadrinhos e tentava, em vão, emular o clima e os desenhos das HQs do Sandman, que tanto me fascinavam àquela altura. 

Não é que existissem muitas alternativas profissionais na metade da década de 90: um restrito e limitante mercado mainstream, com seus gibis da Mônica e do Pato Donald, uma portinha aberta para a Marvel e para a DC (àquela altura, Roger Cruz e Mike Deodato já andavam desenhando músculos, bundas e peitos pro mercado norte-americano), e os fanzines.

Os fanzines

Todo dia, nascia um fanzine em algum ponto do Brasil, criação de um, ou dois, ou três autores empolgadíssimos, sonhando com a perspectiva intangível de romper a barreira entre o amadorismo apaixonado e um glamoroso e idealizado profissionalismo. Os fanzineiros, como se chamavam os produtores desta singular publicação artesanal, mantinham uma intrincada rede de comunicação por correio. Fanzines eram comprados, vendidos e trocados nesta rede. Podia-se, claro, publicar uma HQ num fanzine alheio, do outro lado do país. Era possível até se tornar um nome conhecido nacionalmente por meio da “fanzinagem” – Peter Baierstof, Lourenço Mutarelli e Fábio Zimbres eram alguns “famosos” dessa network mambembe.

Alternativa viável para tirar a produção de quadrinhos da gaveta, os fanzines eram, a seu modo, um mercado movimentado e ativo. Não rendia dinheiro pra quase ninguém, mas era um mercado, inegavelmente.

Eis que assim, repentinamente, e no esteio dessa onda fanzinesca, a edição Zero da Graffiti foi lançada, em dezembro daquele ano. E já na partida, nós, que amávamos os quadrinhos e éramos atentos às novidades, percebemos naquilo um movimento alternativo tanto aos próprios fanzines quanto aos gibis tradicionais de banca. A Graffiti não era nem um nem outro. Seu formato grande, suas quase 100 páginas e sua qualidade de impressão apontavam para algo diferente. 

A capa em fundo branco, com o Graffiti em azul, amarelo e vermelho e, logo abaixo, o subtítulo – 76% quadrinhos – era marcante, uma explosão de cor e expressividade, complementado com o detalhe ampliado de um estêncil que pareciam olhos observando, atentos, o leitor. E, lá dentro, muitos quadrinhos, de diversos autores das mais variadas vertentes, mas tudo com excelência gráfica e narrativa que certamente colocavam a revista na mesma prateleira de publicações já extintas e que privilegiavam o quadrinho mais autoral e experimental, como a Animal e a Circo.

Pessoas como eu, que se consideravam quadrinistas, mas que não tinham onde publicar, ficaram em polvorosa com essa novidade. A expectativa pela próxima edição tornou-se enorme.

Coincidentemente, eu morava em frente à casa de dois dos mentores da Graffiti, o Piero (Bagnariol) e o Daniel (Lacerda). Antes do número 1 sair, eu já havia pulado lá para dentro da casa deles, participando das reuniões e me tornando parte do conselho editorial da revista, de onde não saí mais.

Em maio de 1996, foi lançado o número 1. A capa, desta vez preta, conseguiu ser mais forte ainda do que a anterior. Desenhado por um colaborador assíduo da primeira fase da Graffiti (Valfredo Macedo, o Valf, cujo depoimento se lê abaixo), o palhaço impresso em tinta especial prata fez desta capa a mais emblemática da trajetória da revista. Aquela edição foi, também, a consolidação da vocação experimental da Graffiti – do papel de seda ao encarte em papel craft, das HQs feitas com computação gráfica – como as do próprio Valf – ao mais puro devaneio narrativo, como os quadrinhos feitos com estêncil e spray de Marcos Malafaia (outro dos fundadores da revista).

Inicialmente, fiquei encarregado de distribuir a Graffiti. De mochila nas costas, rodava Belo Horizonte, pacientemente, de banca em banca, de livraria em livraria. Rodei tanto que fui parar em São Paulo e no Rio de Janeiro, em diversas ocasiões. Às vezes me empolgava – vendeu tudo, agora vai! Noutras, era frustrante entender que distribuir quadrinhos era o principal gargalo desse mercado editorial tão incipiente no Brasil. Ao longo de seus 17 anos, apesar de tudo, de toda a notoriedade, de todo o reconhecimento no meio, de todos os prêmios, a Graffiti mais encalhou do que vendeu.

Depois, me tornei o interlocutor da Graffiti com os quadrinistas que colaboravam com a revista. Se, nos primórdios, a produção quadrinística que chegava às nossas mãos era uma mixórdia disforme, aos poucos, fomos moldando nossa linha editorial, oportunamente tornando-nos mais seletos e criteriosos e tendo o privilégio de convidar artistas que mais nos apraziam, do Brasil e de outras partes do mundo – o que não impediu de publicarmos novos artistas até a última edição da revista.

Editar a revista e suas publicações paralelas, ao longo dos anos, foi uma experiência sem igual. É sempre muito gratificante lembrar que, de uma forma ou de outra, ajudamos a firmar um mercado editorial de quadrinhos nacionais, que servimos de parâmetro para outros editores e artistas, que melhoraram a qualidade de suas próprias publicações por causa da Graffiti, e que inúmeros quadrinistas, hoje, com suas carreiras consolidadas, começaram a publicar nas páginas da nossa revista. 

A Graffiti surgiu com um escopo talvez um tanto pretensioso, almejando adentrar uma cena editorial que, perceberíamos logo, não era o dela. Jamais venderia milhares de exemplares. Jamais estamparia uma publicidade de refrigerante em sua contracapa. Não era, nunca foi, uma revista afeita a um plano de negócios, a uma adequação editorial que lhe proporcionasse competitividade. Acredite, essas ideias foram aventadas em reuniões e mais reuniões, mas a Graffiti adquiriu personalidade própria e não permitiu que nada disso fosse, de fato, tentado. Ela resistiu anos e anos com o mesmo sangue nos olhos daquele número Zero, daquela capa desafiadora.

 


Depoimento

Valf  – Quadrinista colaborador essencial na história da Graffiti.

Graffitti

Em meados dos anos 1990, a nona arte vivia uma revolução em Belo Horizonte. Um crescente mercado consumidor via surgir uma série de ações que transformariam a capital mineira em um expoente dos quadrinhos independentes nacionais. A produção autoral ganhava força com a criação de diferentes coletivos voltados para a discussão, produção e exibições de temas ligados às HQs. Fanzines surgiram, exposições foram realizadas e novos autores começaram a despontar. Foi na esteira desse movimento que publicações de destaque, como as revistas Legenda e Graffiti, foram lançadas. 

Completando este ano uma década do lançamento da edição final da publicação, a revista Graffiti, na verdade, tinha nome e sobrenome: Graffiti 76% quadrinhos. Esse meticuloso cálculo publicou em suas páginas uma série de novos artistas dividindo espaço com outros já consagrados, enquanto nos outros 24% fazia do jornalismo, poética. 

Com pluralidade temática e técnica, apostou na inovação. Seu design, premiado diversas vezes, fez do experimentalismo parte integral de seu projeto. Papel de seda, impressão em silkscreen, carimbos, dobraduras, de tudo um pouco. Em suas 24 edições regulares (e cinco especiais da série 100% quadrinhos) os realizadores puderam ousar com diversos tipos de linguagem e empurraram as barreiras da criação para um novo patamar. A Graffiti, com distinção, marcou uma época.

 


 

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Fabiano Azevedo

Fabiano Azevedo é quadrinista e pesquisador de quadrinhos. Foi colaborador e editor da Graffiti 76% quadrinhos entre 1996 e 2012. Em parceria com Piero Bagnariol, publicou, em 2006, a graphic novel "Um dia uma morte", além do fanzine "Skazki", em 2015. Também publicou o fanzine "A Memória", em 2013. Além disso, é autor de livros e ensaios sobre o gênero, e foi um dos curadores, em 2018, do FIQ, o Festival Internacional de Quadrinhos, em Belo Horizonte.

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