A Arte da Assemblage, William C. Seitz (1961)

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Em Maio de 1912, Picasso finalizou uma pequena natureza-morta oval na qual foi colado um fragmento de linóleo que simula o acento de palha de uma cadeira cujo entorno, no lugar de uma moldura, ele finalizou com um pedaço de corda de sisal. A composição cubista parecia abstrata a princípio, mas depois de um breve estudo das linhas que se cruzam e dos planos translúcidos, alguns de seus elementos podem ser identificados. As letras J O U, que flutuam de maneira ambígua de seu lugar no espaço para a superfície do plano, são claramente remanescentes da palavra “Journal”, e tornam-se uma representação abreviada de um jornal. É possível reconhecer o retrato de um limão fatiado e de um copo de vidro,  e no canto superior esquerdo, sobre as letras, a haste do cachimbo projeta-se para fora, para o espaço real em frente da pintura. Um pouco menos evidente, uma faca e o que poderia ser uma concha, também podem ser identificados. Objetos comuns da mesa de café, em escala humana, são aqueles que os dedos manipulam à toa, de maneira inconsciente.

Pablo Picasso
Natureza Morta com Cadeira de Palha, 1912

Tal assunto, característico da pintura cubista, lembra os arranjos de objetos ordinários, desde a antiguidade até os pintores holandeses de natureza-morta, Chardin, Manet, Fantin-Latour, Harnett, Cézanne e Picasso, são os antecedentes da arte da assemblagem. Além disso, o posicionamento, a justaposição, a remoção dos objetos imediatamente acessíveis à exploração pelos olhos e pelas mãos são atividades presentes nas vidas das pessoas, do nascimento até a morte.

Violando as limitações da representação, Natureza-Morta com Cadeira de Palha, na qual “Picasso manipula realidade e abstração em duas mídias diferentes e em quatro diferentes níveis ou razões,”[1] inicia a absorção da atividade da assemblagem de objetos na técnicas, assim como no assunto, da pintura. Qualquer pessoa familiarizada com arte moderna, sabe que a área representando a superfície de palha, aparentemente pintada na técnica trompe-l’oeil, é de fato um fragmento de impressão em linóleo comercial. Por causa da segunda inovação, a moldura de corda, toda a composição é empurrada para o mundo dos objetos, como uma placa náutica ou uma mesa arrematada em sua borda por um ornamento em espiral. Pode-se até dizer que este “negligentemente adulterado”[2] trabalho, o qual (ao menos no que concerne a corrente principal da arte moderna) iniciou o desenvolvimento da colagem[3], também iniciou a assamblagem tridimensional; a colagem Violão com papéis coloridos de Picasso foi construída durante o mesmo ano, 1912, e o Mandolim, descrito por Alfred Barr em 1935 como “nem escultura, nem pintura, nem arquitetura”[4], foi composta dois anos depois com retalhos de madeira descartada.

Pablo Picasso
Violão, 1912

Toda obra de arte é uma incarnação: um investimento de matéria com espírito. O termo “assemblagem”[5] foi destacado, com sua dualidade em mente, para denotar não só uma forma e um procedimento técnico específico usado na literatura e na música, assim como nas artes plásticas, mas também como um complexo de atitudes e ideias. Da mesma maneira que a introdução da pintura óleo em Flandres e na Itália no século XV aconteceu em paralelo com o novo desejo de representar a aparência do mundo visível, a colagem e seus modos correlatos de construção manifestam uma predisposição que é caracteristicamente moderna.

A sensibilidade responsável pela, e ao mesmo tempo, formada pela arte moderna – entre seus criadores estavam Baudelaire, Guys, Manet e Rimbaud – é sempre irônica, perversa, anti-racional e até destrutiva. Mesmo com seu lado negativo plenamente reconhecido, este temperamento é uma das belezas que floresceram no solo escuro da vida no século XX. Vale a pena seguir o mesmo caminho e considerar os modos de desenvolvimento da personalidade sensível e irritável do artista moderno, pois os métodos e as metafísicas da colagem têm origens e padrões de crescimento semelhantes. Juntos, arte moderna e personalidade moderna formam um desenvolvimento que não é um conjunto de compartimentos isolados, nem uma pura sequência temporal. Melhor dizendo, estas expandem em fluxos, em reservatórios interconectados e redemoinhos, como um complexo sistema de rios.

Ao olhar para trás, para as primeiras obras primas do cubismo, somos atingidos em cheio tanto por sua conexão com o passado como por seu modernismo. A julgar, não só pelas recentes inovações e pelo ritmo de outros eventos que ocorreram enquanto estavam sendo pintadas, mas também pelo substrato do relativismo do século XIX que as precedeu, hoje parecem mais conservadoras do que radicais. A compressão da forma e do espaço em duas dimensões já estava implícito na Odalisca de Ingres, e a ênfase na justaposição já estava claramente aparente em 1865 nas pinturas de Whistler e Manet. As composições iniciais, quase acadêmicas, de Manet – de Bebedor de Absinto de 1859 a Almoço no Ateliê, dez anos depois – escondido atrás de suas superfícies dissimuladas, está um ecletismo e um esteticismo, um relativismo irônico e anti-racional que não se torna abertamente aparente até o tempo de Apollinaire, Satie e Duchamp[6].

Em espírito, senão em técnica, Manet também pode ser visto como um precursor da colagem. Seu famoso retrato de Emile Zola inclui um quadro com tachinhas como os que encontramos hoje em quase todo ateliê de artista. Fixados nele, uma fotografia da Olympia de Manet, um impresso de Utamaro, e uma gravura de Goya com referência em Os Bêbados de Velázquez formam uma colagem de imagens sobrepostas de elementos disparatados que a arte de Manet incorporou[7]. Abaixo, na mesa, um tinteiro decorado e sua pena emplumada, amarelo suave, rosa, e livros de papel azul, e outros objetos foram arranjados com muito mais atenção para as cores e os padrões do que pelo seu significado acessório. A assinatura impressa MANET – que lembra o uso da tipografia nos papéis colados de Picasso e Braque – pode ser lida como o título do livro à direita. Na verdade, se a primeira linha de desenvolvimento de Manet não foi deflagrada pela nova tendência sintetizada por Monet, ele deve ter evoluído a arte bidimensional que seria precursora de Matisse na forma, com uma ironia dadá (que corre como um corante pela arte de Manet) como conteúdo. 

Édouard Manet
Retrato de Émile Zola, 1868

O advento do impressionismo adiou a realização dessas potencialidades para, embora as pinturas da “série” de Monet da década de 1890 fossem compostas por uma infinidade de partículas concorrentes de cor, as névoas rosadas nas quais esses toques quase se fundem, aproximou-se da homogeneidade. Monet desejava traduzir uma resposta perceptiva momentânea e coesa em pigmento. Mas Cézanne, que usou o impressionismo para seu deslocamento profundo da solidez poussinista, minou irreversivelmente os modos de representação aceitos e coerentes. Se foi Manet quem colocou as espadas no corpo da tradição renascentista, foi Cézanne quem (com uma intenção muito menos subversiva) empunhou a lâmina em direção aos seus órgãos vitais. As colinas, montanhas e rochas em suas paisagens mudam como em um terremoto; a superfície da terra se curva e se separa de sua tentativa heróica de reconciliar a arte clássica com dados conflitantes de sentimento, percepção, e intuição estrutural.

A escala e a profundidade desta perturbação impressionante da geologia estabelecida da arte ocidental é mais acessível em suas naturezas-mortas. Nada mais do que frutas, garrafas e pratos, perceptivelmente desmontadas e deformadas, que se atraem e se repelem dentro de uma constelação pictórica que a arte nunca tinha visto: cada elemento é alterado pelo que Roger Fry chamou de “uma estranha cumplicidade entre esses objetos”[8], como que por reconhecimento mútuo – o que Whitehead denominou “preensão” – de um pelo outro. Em composições figurativas braços, pernas, torsos e até mesmo cabeças encurtam, esticam ou torcem sob as pressões dos reajustes ponderados de Cézanne. Preso entre um amor ao passado e um compromisso com o futuro, ele lutou com o problema de relacionar as partes e seus aspectos com o todo que eles compõem – articulando uma mudança abrangente na percepção que encontrou sua explicação mais esclarecedora na psicologia da Gestalt[9].

Ainda dentro dessa ambiência, Seurat concebeu a arte como uma harmonia do “contrário e dos elementos semelhantes.”[10] Ele foi pioneiro em estabelecer uma estética abstrata de múltiplas confrontações – do horizontal ao vertical, da luz ao escuro, de movimentos de ascensão à queda e do “contraste simultâneo” de cores quentes e frias. As regras que ele aplicou foram posteriormente retrabalhadas por Delaunay e pelos futuristas, e formam a base dos princípios filosóficos e formais desenvolvidos empiricamente por Mondrian. A sistematização pontilhista da técnica impressionista de Seurat, que resultou em uma superfície de facetas chanfradas, iniciou a redivisão da unidade perceptiva de Monet. De acordo com uma série de outras influências relacionadas, o relativismo evidenciado por Cézanne e Seurat ofereceu aos artistas o que Apollinaire chamou de “o novo espírito”, a sintaxe para uma ruptura acentuada com os modos anteriores de coerência estética.

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[1]  Alfred H. Barr, Jr., Picasso: Fifty Years of His Art, New York, The Museum of Modern Art, 1946, p. 79.

[2] Op. cit. Notre avenir est dans l’air de Picasso (Zervos vol. 2, pt. 2, p. 321) é muito próximo em sua forma à Natureza-Morta com Cadeira de Palha.

[3] A palavra francesa collage, depois do verbo coller, significa “aplicando, grudando ou colando”, como na aplicação de papel de parede. Como método de pintura usada por artistas modernos, sua “invenção” é creditada a Picasso, e a do papier colle, ou papel colado, a Braque em seu Compotier et verre, setembro de 1912. (Veja Douglas Cooper, G. Braque (catálogo da exposição), Arts Council of Great Britain, 1956, p. 35.) John Golding, Cubism: A History and an Analysis, 1907-1914, New York, Wittenborn, 1959, pp. 102, faz um relato detalhado do início da colagem moderna e a adição de tais materiais estranhos como linóleos, espelhos, selos postais, etc., à  pinturas e desenhos. Golding observa (p. 104) que a colagem foi discutida pela primeira vez na imprensa por Maurice Raynal no Sectiond’Or, um periódico que apareceu (em uma edição) em conexão com a exposição cubista de 1912.

Pouco pode ser dito para distinguir os termos “colagem” e “papel colado”, exceto que o último é mais restrito, tanto em termos de técnica quanto historicamente, referindo-se apenas ao papel e (no uso que eu prefiro, pelo menos) às colagens de papel do movimento cubista. (Ver entradas na Encyclopaedia of the Arts, Nova York, Philosophical Library, 1946, e o Dictionary of Modern Painting, Nova York, Tudor, 1955).

Claramente, é um erro dizer que os cubistas inventaram a colagem como um método de criação de imagens. A data de sua origem pode ser empurrada para trás infinitamente. Alfred Barr chamou minha atenção para um desenho de Picasso de 1908 (Zervos, Picasso, vol. 2, pt. 1, p. 34) que inclui um fragmento de papel colado, provavelmente para fazer uma correção. Penrose observa que o pai de Picasso usava recortes em suas telas (como de Kooning fez na série “Mulheres”) para experimentar novas idéias (Picasso: His Life and Work, Londres, Victor Gollancz, e Nova York, Harper, 1958, p. 171). Cartões de dia dos namorados, cartões postais e arte folclórica de vários tipos incorporando elementos colados, bem como imagens e objetos feitos de asas de borboleta, penas, conchas, etc., já eram comuns muito antes. De fato, várias cartas carimbadas, passaportes e documentos oficiais podem ser vistos como uma forma de colagem não intencional. Hertha Wescher {Art Aujourd’hui, vol. 5, não. I, fevereiro de 1954, p. 3) ilustra com um papier colle japonês, usado como fundo para caligrafia, do século X.

Como Jean Dubuffet percebeu em 1953, o termo colagem não é amplo o suficiente para cobrir a diversidade de arte compositiva moderna. “Pareceu-me,” ele me escreveu em uma carta de 21 de abril de 1961, “que a palavra ‘colagem’ não deve ser considerada um termo genérico designando qualquer obra ou intervenção da cola, mas como um termo histórico reservado para colagens feitas no período 1910/1920 pelos Dadaístas, Picasso e Braque, etc. Essas obras participam de um certo ‘clima’ que me parece ligado à palavra, assim como a palavra ‘simbolista’ é ligada a um certo clima de época e causaria mal-entendidos se reutilizada para poemas feitos em outros tempos, embora estes fizessem uso de símbolos.”

O termo “assemblage”, usado por Dubuffet (ver página 93), foi adotado para este livro e exposição por necessidade, como um conceito genérico que incluiria todas as formas de arte composta e modos de justaposição. Em francês e inglês, “assemblage” denota “o encaixe de partes e peças”, e pode ser aplicado tanto a planos quanto a formas tridimensionais. Tanto como verbo quanto como substantivo, além disso, esta palavra aparece repetidamente na literatura da arte moderna. Alguns dos modos bidimensionais e métodos que denota seguem:

Décollage é o oposto de colagem: “descolar”, “desgrudar” ou “arrancando.” Refere-se a trabalhos feitos pela remoção de materiais já colados, como nas decolagens de Austin Cooper ou Gwyther Irwin, e nos affiches lacerées, ou cartazes rasgados, dos “novos realistas” parisienses.

Découpage (literalmente “corte”) é um modo de decorar móveis pintados com recortes de flores, frutas, etc., mas o termo também é usado para denotar cortes de formas simples a partir de papéis novos (não considerado neste livro) como as de Matisse, Taeuber-Arp, Sonia Delaunay, e outros.

“Fotomontagem” (montagens de fotografias feitas por transferência ou outros meios) tem sido praticada, tanto por razões práticas como por “truque fotográfico” desde pelo menos meados do século XIX. O termo ganhou seu significado atual através de seu uso pelos Dadas alemães pelas colagens de fotografias e outros materiais ilustrativos, iniciadas antes de 1920. Com uma intenção irônica, eles se apropriaram do verbo alemão montieren, sinônimo do nosso verbo “montar”, e aplicou, como em um de nossos usos, para a montagem e assemblagem de máquinas. A expansão desse significado feita pelos dadas sobrevive não apenas no termo comum “fotomontagem”, mas também na aplicação do termo “montagem” ao filme. (Para uma discussão lúcida sobre montagem, ver Sergei Eisenstein, The Film Sense, Nova York, Harcourt, Brace, 1942. Para o uso dada de fotomontagem, John Heartfield, Photomontagen zur Zeitgeschichte, Zurich, Kultur und Vol, 1945.)

[4] Barr, op. cit., p. 87.

[5] Veja a nota n. 3.

[6] Veja Alan Bowness, “A note on ‘Manet’s Compositional Difficulties,’” The Burlington Magazine, vol. 103, no. 699, Jan. 1961, pp. 276-277.

[7] Veja George Heard Hamilton, Manet and his Critics, New Haven, YaleUniversity Press, 1954, p. 115.

[8] Roger Fry, Cezanne: A Study of his Development, London, Leonard and Virginia Woolf, Hogarth Press, 1927, p. 47.

[9] O termo Gestalt (literalmente “forma”, “formato” ou “figura”), usado na Alemanha por Charles von Ehrenfels ca. 1890, foi a base para uma escola de psicologia, da qual Koffka e Kohler se tornaram os principais porta-vozes, que afirma que o todo é maior que a soma de suas partes, e que cada elemento em um determinado padrão é alterado por sua participação em uma unidade relacional.

[10] Robert Goldwater e Marco Treves, Artists on Art, New York, Pantheon, 1945, p. 375.

as dissecações de prédios de gordon matta-clark

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Uma entrevista de Donald Wall

(Primeira publicação: Arts Magazine, Maio de 1976)

Donald Wall: As destruições de prédios de Gordon Matta-Clark anatomizam o espaço e a forma, exigindo uma análise de arquitetura comportamental.

Um paradoxo irônico cerca a arte de Gordon Matta-Clark: por um lado, suas remoções e dissecações de prédios representam o que há de mais avançado na arquitetura comportamental americana. Por outro lado, a maioria das pessoas, incluindo muitos críticos renomados de arte e arquitetura, não sabem que um novo tipo de arquitetura tem existido entre nós na última década – uma arquitetura que acaba de se tornar culturalmente obsoleta na Europa – destituíram a arquitetura moderna de forma tão efetiva quanto esta arquitetura uma vez tornou obsoleta a antiga tradição das Belas-Artes. É tempo de alcançar; tempo de colocar a nova arquitetura em sua estrutura genealógica, como Le Corbusier fez uma vez com o Purismo. Uma boa maneira de começar pode ser pelos comentários feitos por Clement Greenberg em 1948. Greenberg, escrevendo sobre David Smith, fez a seguinte observação: “Pintura continua sendo a principal e mais aventureira, assim como a mais expressiva arte visual. No que diz respeito às últimas realizações, a arquitetura é comparável à isto.” Os comentários foram bem aceitos. A arquitetura americana, sob direta inseminação pela presença de figuras importantes como Mies Van Der Rohe, Gropius, Moholy-Nagy, Breuer, Neutra, Chermayeff, e outros, exibiram muito da excelência progressista característica das origens além-mar, assim como a pintura. Mas a pintura americana nas mãos de Motherwell, Still, Pollock, Newman, de Kooning, logo quebraram com o modelo europeu. E a arquitetura nunca o fez. Gradualmente, a arquitetura fracassou em chamar a atenção: na década de 1960, a arquitetura desapareceu das páginas das revistas de arte. Sua ausência foi facilmente negligenciada em uma década onde, como Peter Schjeldahl tão pertinentemente observou, “ideias vanguardistas radicais proliferam como moscas”. As palavras de Schjeldahl sugerem que nenhuma imaginação arquitetônica é comparável à lista de peso que qualquer leitor casualmente informado poderia compilar para pintura, escultura, arte conceitual, linguística, e outras formas de arte. Em nenhum momento a arquitetura incitou um debate crítico intenso. E tal lacuna não pode ser atribuída à falta de vocabulário por parte dos críticos: Weiner, Kosuth, Acconci, indivíduos como Lippard, Perreault, Burnham logo criaram um léxico responsivo próprio. A arquitetura não era integrada à este léxico. Em contraste com seus protótipos das décadas de 1910-20, a arquitetura dos anos 1960 não participou pessoalmente no crescimento das várias controvérsias e disputas ideológicas. Qualquer que seja a controvérsia que tenha existido na arquitetura – e estou pensando especificamente no episódio do “super-gráfico” e do Pop – pareciam versões amenizadas de atitudes radicais já estabelecidas por pensamentos mais vigorosos. E o pouco que surgiu permaneceu virtualmente inexplorado. Uma exceção pode ser o uso inovador de emblemas estruturais/construtivos de Louis Kahn (um tipo de arte heráldica com forte afinidade com o trabalho de Stella e Held). Mas nem mesmo Kahn podia conseguir lograr o êxito de uma disciplina estagnada. Na verdade, a arquitetura era raramente qualificada como uma arte séria, não conseguia e nem podia participar no processo interdisciplinar de autocrítica que Greenberg e outros acreditavam ser essencial para um crescimento regenerativo. Para todas as intenções e finalidades, a arquitetura tradicional tornou-se irrelevante para toda uma geração de pensadores criativos. Divertido, de certa forma; enquanto os rapazes da arte e da linguagem estavam correndo tentando versar sobre a morte da pintura e da escultura, a arquitetura funcionalista assumiu a morte cultural sem patrocínio, e sem fanfarra. Mas não a arquitetura em si. Em meados da década de 1960, novas percepções radicais da arquitetura estavam em processo de formação na América, quase todos sem uma derivação europeia. A maioria das atividades aconteceu entre artistas, não entre profissionais praticantes de arquitetura. E por um bom motivo: arte ambiciosa só existe na quebra de noções fixas e no que concerne ao que é possível e ao que é convencional no pensamento arquitetônico (funcionalista e servil) rapidamente foi rejeitado. Ao invés de depender de um uso especificado por outros, o artista se colocou como o lugar do desenvolvimento e tudo que isto implica em termos de uma autocrítica enriquecida por anos de reflexão. A seguinte entrevista com Gordon Matta-Clark vai ilustrar as novas origens. Matta-Clark traça sua genealogia não na Bauhaus, nem em Le Corbusier, mas na organização do espaço da Greene Street. Predominantemente, existem influências de sua infância, especialmente as de voyeurismo, casas de boneca, e comédia muda. É notadamente aparente uma irreverência em relação à arquitetura. E uma preocupação constante com o que constitui os limites admitidos. Os trabalhos de Mata-Clark não devem, no entanto, serem entendidos como a produção de um outsider. De maneira semelhante a outros que começaram a redefinir nossa postura diante da arquitetura (Insley e Soret), Matta-Clark recebeu uma educação formal em arquitetura. Tipicamente, ele também abandonou as noções arquitetônicas costumeiras em favor do estritamente ideal. Assim, seja ao se referir às suas primeiras investigações no espaço da 112 Greene Street, ou suas pilhas de compostagem embaixo de escadas, ou o uso de containers para depósito de lixo como uma arquitetura “pronta”, o trabalho de Matta-Clark aceita a arquitetura primeiro como informação e antes de qualquer coisa: para ser mais específico, informação que já esteja passando por um processo de realimentação (metamórfico) de outros meios, sejam ecológicos (seus trabalhos de lixo) ou pela interferência humana (as remoções e dissecações). Devido a predileção por uma base de processo e de performance, a arquitetura de Matta-Clark é a absoluta antítese da orientação para o objeto característica das influências europeias. Se fossemos classificar o trabalho de Matta-Clark, não pertenceria aos convencionalistas como Moore, Venturi, Roche, Meier. Ao contrário, seu trabalho pertence a um corpo de trabalho em crescimento contínuo derivando de pessoas como Acconci, Morris, Nauman, Smithson, Levine, Asher, Bochner, e outros que exploraram os aspectos comportamentais e os problemas de definição do lugar. Estes indivíduos originaram de uma mistura de influências – arte como ideia, psicologia de desenvolvimento, happenings, etc. – ou quaisquer fatores que se queira citar para a emergência do conceito de “constância da performance” distinto da “constância do objeto”.

O impacto disto tudo foi a pulverização da arquitetura em discretas peças que tratam do sujeito, com cada artista usualmente usando a si mesmo em circunstâncias específicas. Para Vito Acconci, isto significou a topologia espacial-comportamental derivada, talvez, da psicologia de Lewis. Para Matta-Clark, isto significou um corte metamórfico em uma semiologia específica do edifício. Tal pulverização foi garantida, dentro de uma atitude autocrítica (a qual, a maioria dos artistas, mesmo agora, inconscientemente carrega) por trás de uma mentalidade reducionista. “A crescente especialização da arte é uma consequência”, escreveu em regozijo Greenberg novamente em 1948, “da nossa crescente fé e gosto pelo imediato, pelo concreto, pelo irredutível (e) principalmente, por evitar qualquer ordem de experiência que não seja originária essencialmente na natureza do meio”. O impacto do reducionismo não pode ser suficientemente computado quando se trata de uma arte híbrida. Toda arte híbrida, da qual a arquitetura certamente pertence, encara uma desintegração instantânea a partir do momento que seus componentes são diferenciados como autônomos. Em sua geometria abstrata, por exemplo, a cerâmica decorativa grega foi substituída pela arquitetura; na sua representação da imagem, a cerâmica sucumbiu à invenção da pintura de cavalete. Um caso similar pode ser visto na arquitetura. Antes de 1900 a arquitetura dominava a abstração geométrica nas belas-artes. Se a geometria existia na pintura, ela existia oculta no delineado composicional da estrutura, ou oculta na interpretação dos interiores e exteriores dos prédios, nas estampas dos tecidos, nas mangas das vestes, etc., onde predominantemente servia como um contraponto para as formas biomórficas humanas. Com o surgimento das pinturas e esculturas não objetivas, a arquitetura perdeu lentamente a dominação sobre o geometricamente abstrato não só em termos de flexibilidade de empreendimento, mas também na pureza dos resultados. O espectador não precisa mais depender da catedral gótica para experienciar o equilíbrio entre horizontal/vertical: agora existiam Modrians. (Evidentemente que a comparação é excessivamente simplista.) Comentários similares podem ser feitos sobre outras assim chamadas “prerrogativas” da arquitetura. Escala, geofisicalidade, pontos de vista projetivos, localização, etc., eventualmente tornaram-se assuntos em si mesmos. Isto parece sugerir que a irrelevância da arquitetura moderna não pode ser atribuída a arquitetura enquanto arquitetura, mas aos meios tradicionalmente empregados para sustentar o pensamento arquitetônico. No entanto, é muito cedo para contabilizar quais são precisamente estes novos meios. Hoje, a arquitetura comportamental continua num estágio efervescente de crescimento, e deve ser deixado assim.

Gordon Matta-Clark: Ao desfazer um prédio existem muitos aspectos da condição social contra os quais estou acenando: primeiro, abrir um estado de enclausuramento que foi pré-condicionado não só por uma necessidade física mas também pela indústria que degenera caixas urbanas e suburbanas como o contexto para assegurar um consumidor passivo e isolado – uma audiência virtualmente cativa. O fato de que alguns prédios com os quais lidei estarem em guetos negros reforça alguns destes pensamentos, embora não faria nenhuma distinção total entre o aprisionamento dos pobres e a notável sutil “auto-conteinerização” das vizinhanças de alta classe socioeconômica. A questão é uma reação à uma estado cada vez menos viável de privacidade, de propriedade privada, e isolamento.

Vejo que o aspecto formal nos prédios antigos trabalha com uma preocupação constante com o centro de cada estrutura. Mesmo antes dos projetos Spliting, Bin.go.ne [Bingo] e Pier 52 [Day’s End], que eram exercícios diretos com centralização e recentralização, ia para o que usualmente via como o coração da constante estrutural-espacial que poderia ser chamado de aspecto hermético do trabalho, pois se relaciona com um gesto pessoal interno, pelo qual o self microcósmico se relaciona com o todo. De fato, um dos meus trabalhos mais antigos dramatiza isto quando me pendurei de ponta-cabeça no centro de uma de minhas aberturas. Mais recentemente gostei de um termo usado em referência a Walter Benjamin “hermenêutica marxista”. Esta frase me ajuda a pensar sobre minhas atividades que combinam a esfera da hermenêutica removida interiormente e a interpretação com a dialética material do ambiente real. A atividade toma a forma de um gesto teatral que racha o espaço estrutural. A dialética envolve meu hábito dualístico de centrar e remover (cortando fora no âmago da estrutura); outro aspecto socialmente relevante então torna-se claro. Aqui estou direcionando minha atenção ao vazio do núcleo, ao intervalo o qual, entre outras coisas, pode estar entre o self e o sistema capitalista americano. O que estou dizendo é uma esquizofrenia em massa muito real, cuidadosamente sustentada, na qual a nossa percepção individual está sendo constantemente subvertida pela mídia controlada industrialmente, por interesses de mercados e de corporações. O indivíduo médio é exposto à esta represa de meias verdades e inverdades monstruosas as quais todas orbitam em torno de “quem conduz suas vidas” e como isto é consumado. Esta conspiração acontece todos os dias, em todos os lugares enquanto o cidadão comuta de sua casa caixa de sapato com seu ar de calma e paz, enquanto ele está precisamente sendo mantido em um estado de insanidade massiva.

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A seguinte descrição seria fiel à maneira como você procede? Primeiro, você encontra um edifício abandonado, um que tenha sobrevivido sua utilidade, entra com serras elétricas, lâminas de metal, e depois você secciona várias porções do edifício; quando está tudo terminado o edifício é re-abandonado. Para o leigo assim como para o que pratica arquitetura, isto não seria visto não apenas como inútil mas quase como um comportamento insano? E você não vê algo perverso nesta forma de comportamento?

Não, isto seria uma simplificação extrema. Uma das minhas definições favoritas da diferença entre arquitetura e escultura é se existe encanamento ou não. Então, embora seja uma definição incompleta, coloca o aspecto funcional do passado moralista da Idade da Máquina no lugar a que pertence – por água abaixo em um encanamento bem executado. Sem sair muito fora, o que quero dizer é que a natureza mesma do meu trabalho com prédios leva aos assuntos ligados à atitude funcional a uma extensão que este tipo de responsabilidade moralista vocacional falhou em questionar, ou reexaminar, a qualidade da vida que está sendo servida. Sei que isto pode parecer uma racionalização artística (e de certa forma é), mas é exatamente aqui que defendo a arte contra a arquitetura – ou ao menos aquele aspecto da arquitetura que é encarregado da civilização. Não quero depreciar o papel de zeladoria das pessoas, somente da política. A melhor reação de uma transeunte diante do trabalho de Paris veio de uma senhora de 70 anos que disse “Oh, vejo o propósito daquele buraco – é um experimento para trazer luz e ar aos espaços que nunca tiveram o suficiente de ambos.” Quanto a ser perverso, tenho certeza disto. Especialmente no aspecto de que qualquer um é, os que curtem quebrar as regras ao mesmo tempo em que estão convencidos de que estão certos na maioria das vezes.

Tendo isto em vista, de que maneira sua vida como artista profissional funciona no sistema de galeria? Especialmente porque seu trabalho lida com lugares/sítios específicos?

Toda a questão do espaço da galeria e as convenções ligadas às exposições é um profundo dilema para mim. Não gosto da forma como a maioria dos trabalhos de arte precisam ser vistos em galerias, da mesma forma que não gosto da maneira como halls vazios fazem as pessoas olharem ou como arranha-céus criam um entorno sem vida. E embora meu trabalho tenha sempre salientado um envolvimento com os espaços fora do contexto do estúdio/galeria, coloco objetos e documentações em exposição nas galerias. Sempre existe um preço a se pagar devido às condições de exposição; o tipo de trabalho que faço paga um preço mais alto que a maioria só porque os materiais usados nas instalações terminam criando uma confusão com as referências do que não estava lá. Mas para mim, o que estava fora da exposição tornou-se mais e mais a experiência essencial.

No entanto os resíduos da Humphrey House podem terminar na sala de esculturas do museu Hirshhorn.

Existe sempre este perigo. Estou mais interessado em fazer uma peça do Hirshhorn. Quero dizer, se alguém no museu estivesse realmente interessado no meu trabalho eles me deixariam abrir um buraco no prédio. Espero que o desejo por expor peças de sobras diminuirá com o passar do tempo. Isto pode ser útil para pessoas com uma mentalidade direcionada para a possessão. Incrível a maneira como as pessoas roubam pedras da Acrópole. Mesmo que sejam boas pedras elas não são a Acrópole.

Que critério você usa para selecionar seus prédios?

O melhor prédio que possa encontrar.

Melhor me que sentido: Pitoresco? Escultural? Composicional?

Procuro estruturas típicas que tenham um certo tipo de identidade histórica e cultural. Mas o tipo de identidade que procuro deve ter uma forma social reconhecível. Uma de minhas preocupações aqui é com o Non.u.mental, quer dizer, uma expressão do lugar comum que vai contra a grandiosidade e a pompa das estruturas arquitetônicas e de seus clientes que se auto glorificam. Em Paris, tive muita sorte de encontrar tal situação. O trabalho foi feito em dois sobrados do século XVII. Típicos, mas com identidades extraordinárias, quase ao ponto de possuírem qualidades antropomórficas. Este antigo casal, como os chamava, eram literalmente os últimos de uma vasta região de prédios destruídos para “melhorar” a área do Les Halles-Plateau Beaubourg. E eles estavam sobrevivendo na rede de uma imensa estrutura moderna a qual – no tradicional enfoque monumental francês – é para abrigar todas as Agências de Belas-Artes da cultura parisiense. O fator determinante é o grau com o qual a minha intervenção pode transformar a estrutura em um ato de comunicação. É indesejável ter uma situação onde o tecido do espaço esteja tão degradado a ponto de ser possível identificar mudanças já ocorridas, ou uma situação onde estaria competindo com mudanças factuais.

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Isto levanta questões sobre a colocação do seu trabalho historicamente. Ele relaciona-se mais com o Dadaísmo ou com a Land Art?

Responderei a última parte primeiro porque Land Art é mais recente e minha ruptura com ela é mais evidente. Primeiro, a escolha de lidar com o ambiente urbano em geral, e com as estruturas dos prédios em específico, altera todo meu universo de referências e desloca-o do grande tema da vasta natureza vazia a qual, para os artistas da Earth Art, era literalmente como desenhar em uma tela branca. Mas, mais importante, não escolhi o isolamento da condição social, mas em lidar diretamente com a condição social seja pela implicação física, como na maioria dos meus trabalhos com prédios, ou através de um envolvimento mais direto com a comunidade, que é como quero ver o trabalho desenvolvido no futuro. Acho que diferenças no contexto são minha preocupação primária – e uma grande separação dos trabalhos de Earth Art. De fato, é a atenção dada a áreas ocupadas específicas da comunidade.

Neste ponto devo mencionar meus sentimentos sobre o Dadá uma vez que suas influências têm sido uma grande fonte de energia. Seu desafio em relação à rigidez da linguagem tanto formal quanto popular, assim como nossa percepção das coisas, é agora uma parte fundamental da arte. A devoção do Dadá à quebra imaginativa das convenções é uma liberação essencial de força. Não posso imaginar como o Dadá relaciona-se estilisticamente com o meu trabalho, mas em espírito é fundamental.

Você está apenas interessado nas implicações sociais de seus “cortes”?

O ato de cortar através de um espaço para outro produz uma certa complexidade que envolve a visão da profundidade. Aspectos de estratificação provavelmente me interessam mais que as visões inesperadas que são geradas pela remoção – não da superfície, mas da fina borda, da superfície rompida que revela o processo autobiográfico de sua fatura. Existe um tipo de complexidade que vem de tomar uma situação à princípio completamente normal, convencional, ainda que anônima e redefini-la, retraduzi-la em leituras múltiplas e sobrepostas de condições do passado e do presente. Cada prédio gera sua própria situação única. O Datum Cuts, por exemplo, aconteceu em oficinas e escritórios de engenheiros. Não podia lidar com o exterior porque não havia uma área cercada suficiente para penetrar qualquer coisa. O que me fascinou foi o plano interior central. Os engenheiros pegaram uma casa pequena, quadrada, primitiva e dividiram-na ao meio para fazer uma grande sala de projetos. Dividiram a outra metade em um quarto que tornou-se o escritório, e dividiram o último quarto na metade novamente para o vestiário e o banheiro. E aí dividiram mais uma vez para fazer um chuveiro ou coisa parecida. Tudo foi progressivamente dividido de forma que o pedaço que sobrou era 1/32 da área total. Usei a ideia de divisão em torno do centro. Então, removi uma seção quadrada do vértice do telhado, daí projetei aquele corte do teto para baixo no prédio e o espalhei lateralmente para as paredes e portas. As paredes na Itália são fascinantes porque mantém uma fina linha da gravação do cinzel sem desmanchar.

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O Niagara Falls foi um tanto diferente. Envolvia um jogo de subtração. Cada uma das peças removidas é 1/9 da fachada total. A forma como foi produzido, o problema de apenas fazer acontecer fisicamente foi tão grande que não pode ser idealmente coreografado. Encaixotei todas as peças removidas e ponderei por um tempo se reconstruiria a fachada encaixotada imediatamente próximo da casa. Nas caixas as seções removidas tinham este incrível anonimato o que também era uma identidade – uma identidade mascarada. Se prestasse bastante atenção podia detectar diferenças. Por um tempo pensei em mostra-las nas suas caixas em Nova Iorque, na Galeria John Gibson. Ao invés disto, deixei seis das nove seções, ainda em suas caixas, fora no campo. Elas foram jogadas da parte de trás do meu caminhão e deixadas da maneira que caíram.

Elas ainda estão lá?

Não faço a menor ideia.

Você sente alguma apreensão em ocupar uma posição ideológica diametralmente oposta à prática da arquitetura, e por tudo que a profissão implica no que diz respeito à resolução dos problemas da humanidade?

Não acredito que qualquer praticante de arquitetura esteja resolvendo nada, exceto como ganhar seu próprio dinheiro. Arquitetura é um grande negócio. Envolve um enorme custo e, por isto, como o governo, vem equipada de toda uma pompa de propaganda. Devo esclarecer uma série de questões. Primeiro, acho que é um erro colocar o que fiz, com a especificidade e, especialmente, a ênfase local em um contexto histórico tão grandioso, como toda a questão da modernidade, que proliferou do estilo internacional, e que deve ser visto no desenvolvimento do imperialismo americano do pós-guerra. O estado daquela arquitetura reflete a iconografia das Corporações do Eixo Ocidental. É primeiro o abuso da Bauhaus e os ideias puristas anteriores que coloco em questão. Depois preciso esclarecer como a solução do Idealismo Monolítico não só falhou na resolução dos problemas mas criou uma condição desumana tanto no nível doméstico como no nível institucional. Portanto o que estou reagindo contra é a deformação dos valores (éticos) no disfarce da modernidade. Renovação, Planejamento Urbano, chame como quiser.

Existem outros artistas ou arquitetos que te interessam?

Sim, qualquer um que desafie as pré-concepções dos limites.

Os limites do que? Percepção? Ou apenas limites?

Limites artísticos, éticos e morais. Não conheço muitos artistas que estejam preocupados apenas com a percepção. É mais uma mistura. Existe a peça de transmissão de Sonnier que força nossas concepções sobre o espaço local a um extremo: é muito difícil perceber a localização na velocidade da luz, em movimento, de um lado do continente ao outro. Também temos Vito Acconci; ele lida com um contexto espacial completamente diferente, um tipo de espaço que nós, todos nós, temos guardado na memória: espaços que são detalhados e precisos, fragmentos em geral, em todos níveis de reminiscência, emergem um número infinito de associações. A memória parece criar um tipo de espaço único configurando um nível prestes-a-ser-desintegrado.

O quanto você é simpático à arte da performance?

Sinto que meu trabalho está intimamente ligado ao processo como uma forma de teatro no qual tanto a atividade do trabalho quanto as mudanças estruturais feitas ao e no prédio são performances. Também incluo uma interpretação livre do movimento como gesto, tanto metafórico, escultural e social no meu sentido de teatro, apenas com o espectador mais incidental – uma ação contínua para os passantes da mesma maneira que as construções proporcionam um palco para os ocupados pedestres em trânsito. Portanto, meu trabalho tem um efeito similar. As pessoas são fascinadas por uma atividade que abra-espaços. Tenho certeza que é uma fascinação pelo subterrâneo o que mais atrai a imaginação do público aleatório; as pessoas não conseguem resistir contemplar as fundações de uma nova construção. Portanto, de uma maneira inversa, as aberturas que fiz retêm o público com suas revelações cuidadosas.

Além do mais, vejo o trabalho como um palco especial em metamorfose perpétua, um modelo para as constantes ações das pessoas no espaço. Da mesma forma que no espaço ao seu redor. Prédios são entidades fixas na cabeça de muitos – a noção de espaço mutável é virtualmente um tabu – mesmo em suas próprias casas. As pessoas vivem em seus espaços com uma temeridade que é assustadora. Geralmente os donos das casas não fazem mais do que manter suas propriedades. É frustrante perceber o quão raro as pessoas se envolvem em mudar fundamentalmente suas casas simplesmente desconstruindo-as.

Uma pequena interjeição. Duchamp uma vez disse que um grande artista faz uma, talvez duas, grandes colocações em suas vidas, e o resto é preenchimento, algo a ser feito apenas para ocupar o tempo; de fato, lixo. O quão próximo você está destas afirmações?

Duchamp era um grande estrategista. Por ser humano perfeitamente educado na racionalidade, ele podia definir seus problemas em termos de poucos gestos bem elaborados. Vejo meu processo de trabalho como sendo muito mais difuso. Geralmente, não sei como será a próxima peça. Trabalho de maneira similar aos gourmets que vasculham por trufas, quero dizer, uma trufa é uma coisa fantástica enterrado em algum lugar. Muito carnuda, estimada como um prêmio. Portanto, o que procuro encontrar é a semente subterrânea. As vezes encontro. As vezes não.

De fato, a próxima área que me interessa é uma expedição ao subterrâneo: uma busca aos espaços esquecidos que foram deixados enterrados sob as cidade, seja como reserva histórica ou como lembrança que sobreviveu a projetos e fantasias perdidas, como a famosa Estrada de Ferro Fantasma. Esta atividade incluiria mapear e quebrar ou escavar em direção a estas fundações perdidas: um trabalho de volta à sociedade de baixo. Embora a ideia original possivelmente envolvesse artes subversivas, estou agora mais interessado no ato de busca e descoberta. Esta atividade deve trazer a arte para fora da galeria e para dentro dos bueiros.

Como foi o seu primeiro trabalho?

Acho que foi a peça de encanamento no Museu de Arte de Boston em 1971. Estendi um dos canos de gás de dentro de uma parede para fora, no espaço expositivo, e depois coloquei-o de volta na parede, acompanhado de uma documentação fotográfica do caminho do encanamento da rua até o prédio e dentro dele. O encanamento seguiu duas vidas: teve uma extensão física assim como fotográfica, e lidou com o prédio como um sistema mecânico mais do que uma série de espaços intercalados. Bem, não, acho que este não foi o primeiro. Um ano antes eu cavei um buraco profundo no porão da 112 Greene Street. O que eu queria fazer não consegui de maneira nenhuma, que era cavar fundo o suficiente para que uma pessoa pudesse ver as próprias fundações, o espaço “removido” abaixo da fundação, e liberar as enormes forças confinadas, comprimidas, pelo simples ato de fazer um buraco. Para tornar possível a livre passagem por baixo de uma área antes dominada por um confinamento gravitacional – isto teria sido incrível! Outra instalação que tinha para Greene Street, a qual estava um pouco relutante uma vez que podia comprometer as pessoas no prédio, era cortar cada coluna do prédio ao meio e inserir um pequeno cubo de aço. Enquanto cavar um buraco libera a compressão, este teria feito o contrário: concentrar toda a força do prédio nestes pequenos cubos. Os cubos teriam balanceado o prédio: uma transferência de identidade. A pura energia comprimida evocada teria feito, eu acho, a realidade física de confrontar aqueles cubos uma experiência um tanto assustadora.

Não é verdade que outros artistas se envolveram profundamente com o ambiente na década de 1970, seja usando o ambiente como um assunto explícito ou usando o ambiente tangencialmente no caminho para outros interesses? Onde você encaixa em tudo isto? Obviamente uma investigação do lugar, seja por interdições de informações ou mudanças perceptuais, estavam firmemente estabelecidas no final da década de 1960. Entretanto, sua confiança no infra-sistema existente da arquitetura aponta para uma fonte única, de alguma forma divergente.

Uma das tendências que prevaleciam – e acho que Greene Street foi típico na disseminação destas sensibilidades – era a ideia de trabalhar com um espaço específico, particular. O espaço genérico estava subestimado. Então a maioria dos trabalhos naquela época envolviam fazer arte em um espaço assim como para um espaço. Queria alterar todo o espaço para suas próprias raízes, o que significava o reconhecimento de todo o sistema (semiótico) do prédio, não de uma forma idealizada, mas usando os próprios ingredientes do lugar. Portanto penetrar fisicamente a superfície parecia o próximo passo lógico.

Deixe-me qualificar isto. Enquanto minha preocupação envolve criar profundas incisões metafóricas no espaço/lugar, não quero criar um campo de sustentação da visão, da cognição, totalmente novo. Quero reutilizar os antigos, os enquadramentos existentes de pensamento e visão. Então, por outro lado, estou alterando as unidades de percepção existentes, normalmente empregadas, para discernir o todo de uma coisa. Por outro lado, muitas das minhas energias de vida são apenas sobre ser negado. Existe tanta coisa em nossa sociedade que propositalmente visam a negação: negar a entrada, negar a passagem, negar a participação, etc. Estaríamos todos ainda vivendo em torres e castelos, se não tivéssemos quebrado algumas das barreiras sociais e econômicas, inibições, e restrições. Meu trabalho reflete diretamente isto. Gostaria de terminar com uma ideia da direção no qual vejo meu trabalho envolvendo-se. Uma das minhas grandes influências em termos de novas atitudes foi uma experiência recente em Milão. Quando procurava uma fábrica para “cortar” encontrei um enorme complexo fabril há tempos abandonado que estava sendo exuberantemente ocupado por um grande grupo de jovens comunistas radicais. Eles revezavam na manutenção de uma seção da planta por mais de um mês. Seu programa era resistir à intervenção do “laissez-faire” dos empreendedores imobiliários de explorar a propriedade. Seu propósito era que a área fosse usada para um centro de serviços comunitários, muito esperado pela comunidade. Meu contato com este confronto foi o primeiro despertar para fazer meu trabalho, não em um isolamento artístico, mas por meio de uma troca ativa com pessoas preocupadas com sua própria vizinhança. Meu objetivo é estender a experiência de Milão para os EUA, especialmente para áreas negligenciadas como o Sul do Bronx onde a cidade só está esperando que a condição física e social deteriore a tal ponto que o subúrbio possa transformar toda a área em um parque industrial, o que realmente querem. Um projeto específico pode ser trabalhar com um grupo de jovens já existente na vizinhança e envolve-los na conversão de prédios abandonados que abundam na região em espaços sociais. Desta forma, os jovens podem obter informações práticas de como os prédios são construídos e, mais essencialmente, uma experiência direta com um aspecto da verdadeira possibilidade de transformar seu espaço. Desta forma, poderia adaptar meu trabalho para ainda outro nível da situação dada. Não estaria mais envolvido com o tratamento pessoal e metafórico do lugar, mas finalmente interessado na vontade expressa de seus ocupantes.

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Grades, Rosalind Krauss, (1978)

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No inicio desde século começou a aparecer, primeiro na França e depois na Rússia e na Holanda, a estrutura que se tornou emblemática da ambição modernista dentro das artes visuais até então. Surgindo nas pinturas cubistas do pré-guerra e subsequentemente tornando-se mais rigorosa e manifesta, a grade anuncia, entre outras coisas, o desejo modernista pelo silêncio, sua hostilidade à literatura, à narrativa, ao discurso. Assim, a grade fez o seu trabalho com uma eficiência impressionante. A barreira que ela estabeleceu entre as artes visuais e as narrativas foi quase que totalmente bem-sucedida, no sentido de separar as artes visuais para um reino de visualidade exclusiva, defendendo-a contra a intrusão do discurso. É claro que as artes visuais pagaram caro por este sucesso porque a fortaleza que construíram com a fundação da grade tornou-se progressivamente um gueto. Cada vez menos vozes da critica geral do establishment foram levantadas em apoio, apreciação, ou análise das artes plásticas contemporâneas.

Ainda assim é seguro dizer que nenhuma forma dentro de toda a produção estética modernista se sustentou tão implacavelmente enquanto, ao mesmo tempo, mantendo-se tão impenetrável a mudanças. Não é apenas o número total de carreiras que foram devotadas a exploração da grade que é impressionante, mas o fato desta exploração ter escolhido um campo tão pouco fértil. Como as experiências de Mondrian amplamente mostram, desenvolvimento é precisamente o que a grade resiste. Mas ninguém parece ter se detido diante deste exemplo e a prática modernista continuou a gerar cada vez mais instâncias de grades.

Existem duas maneiras com as quais a grade funciona para declarar a modernidade da arte moderna. Uma é espacial; a outra temporal. No sentido espacial, a grade atesta para a autonomia do reino da arte. Achatada, geometrizada, ordenada, ela é antinatural, antimimética, antirreal. É assim que arte se parece quando ela dá as costas à natureza. No achatamento que resulta de suas coordenadas, a grade é a maneira de reduzir as dimensões do mundo real e substituí-las pelo espaçamento lateral de uma única superfície. A regularidade generalizada de sua organização, é resultado não de uma imitação mas de um decreto estético. Na medida em que sua ordem é puramente relacional, a grade é uma maneira de revogar as reivindicações dos objetos naturais de terem uma ordem particular a eles mesmos; as relações no campo estético são postas pela grade como sendo de um mundo aparte e, em relação aos objetos naturais, como sendo, ao mesmo tempo, precedentes e finais. A grade declara o espaço da arte como sendo, simultaneamente, autônomo e autorreferente.

Na dimensão temporal, a grade é um emblema da modernidade por ser apenas isso: a forma que é onipresente na arte de nosso século mas que jamais havia aparecido, jamais mesmo, na arte do século anterior. Naquela incrível corrente de reações da qual o modernismo nasceu, nos esforços do século XIX, uma mudança final resultou na quebra desta corrente. Ao “descobrir” a grade, o cubismo, de Stijl, Mondrian, Malevich…. aterrissaram em um lugar que estava fora do alcance de qualquer coisa que aparecera antes. O que significa que eles aterrissaram no presente e tudo mais se tornou passado.

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Deve-se viajar um longo percurso na história da arte para encontrar exemplos prévios da grade. Deve-se retornar aos séculos XV e XVI para tratados sobre a perspectiva e para estudos sofisticados de Uccello, Leonardo ou Dürer onde a grade da perspectiva é inserida no mundo, copiado como uma armadura de sua organização. Mas os estudos de perspectivas não são uma instância anterior das grades. As perspectivas eram, afinal de contas, a ciência do real, não uma maneira de se afastar dela. A perspectiva era uma demonstração da maneira como a realidade e sua representação podiam ser mapeadas uma na outra da mesma maneira que a pintura e seu referente no mundo real de fato se relacionavam – o primeiro sendo uma forma de conhecimento do segundo. Tudo na grade se opõe a esta relação, rompendo-a desde o início. Diferentemente da perspectiva, a grade não mapeia o espaço de uma sala ou de uma paisagem ou de um grupo de figuras sobre a superfície da pintura. Na verdade, se ela mapeia algo, ela mapeia a superfície da pintura em si. É uma transferência onde nada muda de lugar. As qualidades físicas da superfície, poderíamos dizer, são mapeadas nas dimensões estéticas da mesma superfície. E aqueles dois planos – o físico e o estético – são demonstrados como sendo o mesmo plano: coextensivos e, pelas abscissas e coordenadas da grade, coordenados. Considerados desta forma, a linha de fundo da grade é um materialismo determinado e nu.

Mas, se é sobre o materialismo que a grade vai nos fazer falar – e parece que não existe outro meio lógico de se discutir – esta não é a maneira como os artistas já a discutiram. Se abrirmos qualquer tratado – Plastic Art and Pure Plastic Art ou The Non Objective World, por exemplo – vamos encontrar que Mondrian e Malevich não estão discutindo a tela ou o pigmento ou o grafite ou qualquer outra forma de matéria. Eles estão falando sobre o Ser, a Mente ou o Espírito. Do ponto de vista deles, a grade é uma escada ao Universal e eles não estão interessados no que acontece no nível do Concreto. Ou, para falar de um exemplo mais atual, podemos pensar em Ad Reinhardt que, apesar de sua insistência na “arte pela arte”, acabou pintando uma série de nove pinturas quadradas negras nas quais o motivo que inescapavelmente aparece é a cruz grega. Não existe nenhum pintor no Ocidente que possa estar desavisado do poder simbólico da forma cruciforme e da caixa de Pandora espiritual que se abre cada vez que ela é usada.

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Agora, é esta ambivalência sobre a importação da grade, uma indecisão sobre sua conexão com a matéria de um lado ou com o espírito do outro, que seus usuários mais ancestrais podem ser vistos como participantes em um drama que se estende bem além da arte. Este drama, que tomou várias formas, foi encenado em muitos lugares. Um deles foi na sala do tribunal onde, no início desde século, a ciência entrou em conflito com Deus e, ao contrário de todos os momentos anteriores, ganhou. O resultado, nos disseram os representantes dos perdedores, teria as mais catastróficas consequências: certamente o resultado seria que teríamos “inherit the wind”*. Nietzsche já havia expressado isso antes, e de maneira mais cômica, quando escreveu “nós desejávamos despertar o sentimento de soberania dos homens ao mostrar seu nascimento divino: este caminho agora está proibido desde que um macaco se postou na porta de entrada”. Segundo o julgamento de Scopes, a divisão entre espírito e matéria que foi presidido ao longo da ciência do século XIX tornou-se a herança legítima do ensino infantil do século XX. Mas também foi, não menos, a herança da arte do século XX.

Dada a fenda absoluta que se abriu entre o sagrado e o secular, o artista moderno encarou, obviamente, a necessidade de escolher entre um modo de expressão e outro. A curiosa testemunha que a grade oferece é que, nesta conjuntura, o artista tentou optar por ambos. Na crescente dessacralização do espaço no século XIX, a arte tornou-se um refúgio para as emoções religiosas; tornou-se, e continua sendo, uma forma secular de crença. Embora esta condição pudesse ser discutida abertamente no final do século XIX, tornou-se algo inadmissível no século XX, pois agora achamos indescritivelmente embaraçoso mencionar arte e espírito em uma mesma sentença.

A força peculiar da grade, sua extraordinária vida longa no espaço especializado da arte moderna, vem de seu potencial de reinar sobre este constrangimento: de mascará-lo e de revelá-lo ao mesmo tempo. No espaço de culto da arte moderna, a grade serve não apenas como um emblema mas também como um mito. Como em todos os mitos, lida com o paradoxo ou a contradição, não por meio da dissolução do paradoxo ou da resolução da contradição, mas encobrindo-os de maneira que pareçam (apenas pareçam) terem desaparecido. O poder mítico da grade é o de nos possibilitar pensar que estamos lidando com o materialismo (ou às vezes ciência, ou lógica) enquanto que, ao mesmo tempo, ela possibilita nos libertar para a crença (ou ilusão, ou ficção). Os trabalhos de Reinhardt ou de Agnes Martin seriam exemplos deste poder. E uma das fontes importantes deste poder é a maneira como a grade é, como disse antes, tão estridentemente moderna de se olhar, parecendo não haver deixado lugar para refugiar, em nenhum espaço de sua face, os vestígios do século XIX.

Ao sugerir que o sucesso da grade está de alguma forma conectado a sua estrutura mítica, posso ser acusada de estar esgarçando um ponto para além dos limites do senso comum, uma vez que os mitos são histórias e, como toda narrativa, elas se desenrolam através do tempo, enquanto que as grades, para começar, não são apenas espaciais, mas são estruturas visuais que explicitamente rejeitam uma narrativa ou qualquer modo de sequência de leitura. Mas, a noção de mito que estou usando aqui depende de um modo estruturalista de análise, no qual as feições da história são rearranjadas para formar uma organização espacial.

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O motivo pelo qual os estruturalistas fazem isso é porque eles esperam entender o funcionamento dos mitos; e esta função eles vêem como uma tentativa cultural de lidar com a contradição. Ao espacializar a história – em colunas verticais, por exemplo – eles estão aptos a mostrar as feições das contradições e de mostrar como isso está subjacente nas tentativas, de uma história mítica específica, de encobrir a oposição com a narrativa. Portanto, ao analisar uma variedade de criações míticas, Lévi-Srauss encontra a existência de um conflito entre as noções antigas das origens do homem como um processo de autoctonia (o homem nasceu da terra, como plantas), e outros, depois, envolvendo as relações sexuais entre os pais. Pelo fato das primeiras formas de crença serem sacrossantas elas precisam ser mantidas mesmo que violem as visões comuns sobre sexualidade e nascimento. A função do mito é permitir que ambas visões aconteçam em algum tipo de suspensão para-lógica.

A justificativa para a violação da dimensão temporal do mito é proveniente, portanto, dos resultados das análises estruturais: ou seja, a progressão sequencial da história não atinge um resultado, ao contrário, é reprimida. O que significa que, para uma determinada cultura, a contradição é algo poderoso, algo de que não pode se livrar, mas que só irá, por assim dizer, para as profundezas. Portanto, as colunas verticais da análise estruturalista são, antes de tudo, uma maneira de desenterrar as oposições ingovernáveis que promoveram a criação do mito. Podemos criar uma analogia entre este procedimento e o da psicanálise, onde a “história” de uma vida é similarmente vista como uma tentativa de resolver contradições primárias que persistem em permanecer na estrutura do inconsciente. Pelo fato de estarem lá como elementos reprimidos, elas funcionam para promover infindáveis repetições do mesmo conflito. Portanto, outra racionalidade para as colunas verticais (a espacialização da “história”) emerge do fato de que é útil ver como cada característica da história (para a análise estruturalista estas são chamadas mitemas) enterra-se, independentemente, em um passado histórico: no caso da psicanálise este é o passado do indivíduo; para a análise do mito, este é o passado da cultura ou da tribo.

Portanto, embora a grade certamente não seja uma história, ela é uma estrutura que, além do mais, permite uma contradição entre os valores da ciência e aqueles do espiritualismo, mantendo-os dentro da consciência do modernismo, ou melhor, no seu inconsciente, como algo reprimido. Para continuar sua análise – para acessar a capacidade da grade à repressão – podemos seguir o caminho dos dois procedimentos analíticos que acabo de mencionar. Isso significa aprofundar em cada parte da contradição até as suas fundações históricas. Não importa o quanto a grade foi ausente na arte do século XIX, é precisamente nestes solos históricos que precisamos ir para encontrar suas origens.

Agora, embora a grade em si seja invisível na pintura do século XIX, ela não é totalmente ausente de um certo tipo de literatura acessória para qual a pintura concedeu uma crescente atenção. Trata-se da literatura sobre ótica fisiológica. Por volta do século XIX, o estudo sobre ótica dividiu-se em duas partes. Uma metade consistiu da análise da luz e suas propriedades físicas: seu movimento; suas características refratárias a mediada que passava pelas lentes, por exemplo; sua capacidade de ser quantificada ou mensurada. Ao conduzirem tais estudos, os cientistas pressupuseram que estas eram as características da luz em si, ou seja, como se a luz existisse independentemente da percepção humana (ou animal).

O segundo ramo da ótica se concentrava na fisiologia do mecanismo de percepção: estava preocupada com a luz e a cor como são vistos. Era o ramo da ótica que interessava diretamente aos artistas.

Qualquer que fosse a origem da informação – seja Chevreul, ou Charles Blanc, ou Rood, Helmholtz, ou mesmo Goethe – os pintores tiveram de se confrontar com um fato em particular: a membrana fisiológica através da qual a luz passa para o cérebro humano não ser transparente, como um vitrô de janela; é como um filtro, envolvido em um conjunto de distorções específicas. Para nossa percepção humana, existe um abismo intransponível entre a cor “real” e a cor “percebida”. Podemos medir a primeira; mas só podemos experienciar a segunda. E isso se dá porque, entre outras coisas, a cor está sempre envolvida na interação – uma cor afetando a visão da outra que está em seu entorno. Mesmo se olharmos para uma única cor, ainda existe interação, porque a excitação retiniana da imagem residual vai sobrepor no primeiro estímulo cromático o segundo, na sua cor complementar. Toda a questão das cores complementares, junto com todo o conjunto de harmonia das cores que os pintores construíram em sua base, foi portanto uma questão da ótica fisiológica.

Uma característica interessante dos tratados escritos sobre fisiologia ótica é o fato de serem ilustrados com grades. Por tratar-se de uma questão de demonstrar a interação de partículas específicas através de um campo contínuo, este campo era analisado dentro de estruturas modulares e repetitivas da grade. Portanto, para o artista que desejava aumentar seus conhecimentos sobre a visão no campo da ciência, a grade estava lá como a matriz do conhecimento. Pela sua própria abstração, a grade convinha para uma das leis básicas do conhecimento – a separação entre a tela perceptual daquela do mundo “real”. Isto posto, não é surpresa que a grade – como um emblema da estrutura da visão – viria cada vez mais a se tornar uma característica recorrente da pintura neo-impressionista, uma vez que Seurat, Signac, Cross, e Luce se empenharam nos estudos da ótica fisiológica. Da mesma forma que não é surpreendente que, a medida que aplicavam suas lições, mais “abstrata” tornava-se a arte deles, tanto que o critico Félix Fénéon, ao comentar sobre o trabalho de Seurat, afirma que a ciência passou a submeter-se ao seu oposto, o simbolismo.

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Os simbolistas em si permaneceram inflexivelmente opostos a qualquer transição entre arte e ciência ou, sob o mesmo prisma, entre arte e “realidade”. O objeto do simbolismo era a compreensão metafísica, não o mundano; o movimento apoiava-se naqueles aspectos da cultura que eram interpretações do real ao invés de imitações deste. Portanto, poderíamos pensar que a arte simbolista seria o último lugar onde se poderia buscar uma versão insipiente das grades. Mas mais uma vez estaríamos errados.

A grade aparece na arte simbolista na forma de janelas, a presença material de seus painéis era expressa pela intervenção geométrica dos batentes da janela. O interesse do simbolismo pela janela remonta claramente ao início do século XIX e ao romantismo. Mas nas mãos dos pintores e poetas simbolistas, a imagem toma uma direção explicitamente modernista. Pois a janela é experienciada simultaneamente como transparente e opaca.

Como um veículo transparente, a janela é aquela que admite luz – ou espírito – na escuridão inicial da sala. Mas se o vidro transmite, ele também reflete. Então a janela é experienciada pelos simbolistas também como um espelho – algo que congela e aprisiona o eu (self) no espaço de sua própria duplicação. Fluindo e congelando; glace em Francês significa vidro, espelho e gelo; transparência, opacidade e água. No sistema associativo do pensamento simbolista esta liquidez aponta para duas direções. Primeiro, no sentido do nascimento – o fluído amniótico, a “origem” – mas depois, em direção ao congelamento estático ou morte – a imobilidade infecunda do espelho. Para Mallarmé, particularmente, a janela funcionava como um signo complexo e polissêmico no qual ele podia também projetar “a cristalização da realidade na arte”. Lês Fenetres de Marllamé data de 1863; a mais evocativa janela de Redon, Le Jour, apareceu em 1891 no volume Songes.

Se a janela é a matriz da ambi ou multi-valência, e as barras das janelas – a grade – são o que nos ajudam a ver, a focar, nesta matriz, são elas mesmas o símbolo do trabalho de arte simbolista. Elas funcionam como a representação, em vários níveis, através da qual o trabalho de arte pode aludir, e até mesmo reconstituir, a forma do Ser.

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Não acho que seja exagero dizer que por trás de cada grade do século XX existe – como um trauma que deve ser reprimido – uma janela simbolista desfilando na forma de um tratado de ótica. Uma vez que percebemos isso, também podemos entender que na arte do século XX existem grades até mesmo onde não esperávamos encontrá-las: na arte de Matisse, por exemplo (suas Janelas), que apenas admitem abertamente a grade nos estágios finais dos papiers découpés.

Por causa de sua estrutura (e história) ambivalente a grade é completamente, até alegremente, esquizofrênica. Testemunhei e participei de arguições sobre se a grade prenuncia os aspectos centrífugos ou centrípetos do trabalho de arte. Falando logicamente, a grade se estende, em todas as direções, ao infinito. Qualquer fronteira imposta a ela por uma dada pintura ou escultura pode apenas ser vista – de acordo com esta lógica – como arbitrária. Pela força da grade, tal trabalho de arte é apresentado como um fragmento, um pequeno pedaço arbitrariamente cortado de um tecido infinitamente maior. Portanto, a grade opera da obra de arte para fora, nos levando ao conhecimento de mundo além da moldura. Esta é a leitura centrífuga. A leitura centrípeta trabalha, naturalmente, dos limites externos do objeto estético para dentro. A grade é, em relação a esta leitura, uma re-presentação de tudo que separa a obra de arte do mundo, do espaço ambiente aos outros objetos. A grade é uma introjeção das fronteiras do mundo para o interior do trabalho; é um mapeamento do espaço, dentro do chassi e em si mesmo. É um modo de repetição, sendo o seu conteúdo a natureza convencional da arte em si.

O trabalho de Mondrian, tomado em conjunto com suas várias e conflitantes leituras, é um exemplo perfeito para esta disputa. O que vemos em uma dada pintura é uma mera seção de uma continuidade implícita ou é a pintura estruturada como um todo autônomo e orgânico? Dada a consistência visual ou formal do estilo maduro de Mondrian e a paixão de seus pronunciamentos teóricos, poderíamos pensar que trabalhos deste tipo deveriam se manter em uma ou em outra posição; e porque a escolha de uma posição contém uma definição sobre a natureza e a finalidade da arte, pode-se pensar que um artista certamente não gostaria de confundir o assunto ao supostamente sugerir ambos. No entanto, é isso exatamente que Mondrian faz. Existem algumas pinturas que são irresistivelmente centrífugas, particularmente as grades verticais e horizontais vistas nas telas em forma de diamantes – o contraste entre o chassi e a grade reforça o sentido de fragmentação, como se estivéssemos olhando para uma paisagem através da janela, a moldura da janela truncando arbitrariamente nossa visão mas nunca abalando nossa certeza de que a paisagem continua além dos limites do que, pelo momento, podemos ver. Mas em outras obras, até do mesmo ano, são explicitamente centrípetas. Nestas, as linhas pretas que formam a grade nunca conseguem efetivamente atingir as margens do trabalho, e esta cesura entre os limites externos da grade e os limites externos da pintura nos força a ler o primeiro como inteiramente contido no segundo.

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Porque o argumento centrífugo postula a continuidade teórica do trabalho de arte com o mundo, ele pode sustentar muitos modos diferentes do uso da grade – que variam de afirmações puramente abstratas desta continuidade, até projetos que ordenam aspectos da “realidade”, sendo esta realidade em si concebida mais ou menos abstratamente. Assim, na ponta mais abstrata deste espectro encontramos explorações do campo perceptivo (um aspecto presente no uso da grade por Agnes Martin ou Larry Poons), ou nas interações fônicas (as grades de Patrick Ireland) e, a medida que avançamos para os menos abstratos, encontramos declarações sobre a expansão infinita dos sistemas de signos feitos pelo homem (os números e os alfabetos de Jasper Johns). Movendo mais em direção ao concreto, encontramos trabalhos que organizam a “realidade” por meio de fotografias integrais (Warhol e, de maneira diferente, Chuck Close) assim como obras que são, em parte, meditações sobre espaços arquitetônicos (Louise Nevelson, por exemplo). Neste ponto, a grade tridimensional (agora uma treliça) é entendida como um modelo teórico do espaço arquitetônico em geral, nos quais, alguns pedaços, podem adquirir forma material, e no polo oposto deste tipo de pensamento, encontramos os projetos decorativos de Frank Lloyd Wright e os trabalhos dos participantes do De Stijl, como Reitveld ou Vantongerloo. (Os módulos e treliças de Sol Le Witt são manifestações tardias desta posição.)

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E é claro que, para a prática centrípeta, o oposto é verdade. Concentrando na superfície do trabalho como algo completo e organizado internamente, o ramo centrípeto da prática tende não a desmaterializar a superfície, mas torná-la em si o objeto da visão. Aqui, mais uma vez, encontra-se um daqueles curiosos paradoxos que sempre marcam o uso da grade. A atitude para-além-da-moldura, ao adereçar o mundo e sua estrutura, parece traçar sua linhagem de volta para o século XIX, em relação às operações da ciência, e assim trazer as implicações positivistas e materialistas de sua herança. A atitude dentro-da-moldura, ao contrário, envolvida como está com a leitura puramente convencional e autotélica da obra de arte, pode parecer que emana puramente de origens simbolistas, carregando assim todas as leituras que se opõem à “ciência” ou ao “materialismo” – leituras que modulam o mundo como simbólico, cosmológico, espiritual, vitalista. Mesmo assim sabemos que, em geral, isso não é verdade. Por meio de um tipo de curto-circuito desta lógica, as grades dentro-da-moldura são muito mais materialistas em caráter (tome os diferentes exemplos como Alfred Jensen e Frank Stella); enquanto que exemplos para-além-da-moldura geralmente correspondem à desmaterialização da superfície, a dispersão da materialidade em centelhas perceptuais ou movimentos implícitos. E também sabemos que esta esquizofrenia permite aos artistas – desde Mondrian, até Albers, Kelly e LeWitt – a pensarem sobre a grade de ambas as formas ao mesmo tempo.

Ao discutir a operação e o caráter da grade dentro do campo geral da arte moderna tive que recorrer a termos como repressão ou esquizofrenia. Uma vez que estes termos estão sendo aplicados para fenômenos culturais e não para indivíduos, obviamente eles não se referem ao sentido literal, médico, mas apenas analogicamente: ao comparar a estrutura de uma coisa com a de outra. Os termos desta analogia ficaram claros, espero, na discussão das funções e estruturas paralelas, tanto das grades, como dos objetos estéticos, quanto dos mitos.

Mas, mais um aspecto desta analogia ainda precisa ser trazido à tona, e este é a maneira como as terminologias psicológicas funcionam a uma certa distância das terminologias da história. O que quero dizer é que falamos em uma etiologia de uma condição psicológica, não de sua história. História, como nós normalmente a usamos, implica um evento após o outro e o efeito acumulativo da mudança, o que em si é qualitativo, e implica na maneira desenvolvimentista com a qual tendemos a perceber a história. Etiologia não é desenvolvimentista. É mais uma investigação sobre em que condições uma mudança específica – a aquisição de uma doença – acontece. Neste sentido, etiologia é mais como olhar no fundo de uma experiência química, perguntando quando ou como um dado grupo de elementos se juntou para afetar um novo componente ou para precipitar algo em um meio liquido. Para a etiologia das neuroses, podemos tomar a “história” do indivíduo para explorar como se deu a formação da estrutura neurótica; mas, uma vez que a neurose é formada, somos claramente intimados a deixar de pensar em termos de “desenvolvimento” e, ao invés disso, pensarmos em repetição.

Em relação ao advento da grade na arte do século XX, existe a necessidade de se pensar em termos etiológicos ao invés de históricos. Algumas condições combinaram para levar a grade à posição de preeminência estética. Podemos falar de como estas coisas são e como elas se juntaram ao longo do século XIX para então apontar o momento da combinação química, que aconteceu, nas primeiras décadas do século XX. Mas, uma vez que a grade apareceu, tornou-se bastante resistente a mudanças. As carreiras maduras de Mondrian ou Albers são um exemplo disso. Ninguém caracterizaria o curso de décadas após décadas de seus trabalhos mais recentes, como desenvolvimentistas. Mas, ao privar seu mundo de desenvolvimento, certamente não se está privando de qualidade. Não existe uma conexão necessária entre boa arte e mudança, não importando quão condicionados estejamos a pensar que existe. Na verdade, a medida que mais e mais estendemos nossa experiência da grade, descobrimos que a coisa mais modernista a seu respeito é a capacidade de servir como um modelo anti-desenvolvimentista, anti-narrativo e anti-histórico.

Isto ocorreu nas artes visuais assim como nas artes temporais: na música, por exemplo, e na dança. Então, não seria surpresa nenhuma que, ao contemplarmos este assunto, poderíamos anunciar para a próxima temporada um projeto de performance baseado na combinação dos esforços de Phil Glass, Lucinda Childs, e Sol LeWitt: música, dança e escultura, projetados como um espaço mutuamente acessível da grade.

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(*) Inherit the Wind é uma ficção sobre o Scope Monkeys Trial, de 1925, que resultou da convicção de John T. Scopes em ensinar a Teoria da Evolução de Charles Darwin nas aulas de ciência de uma escola pública, contrariando a lei estadual do Tennessee que proibia o ensino do evolucionismo.

o que é um museu? um diálogo entre allan kaprow e robert smithson (1967)

tradução

Allan Kaprow: Existiu um tempo onde a arte era concebida para os museus, e o fato dos museus serem parecidos com um mausoléu pode nos revelar a atitude que tínhamos em relação à arte no passado. Era uma forma de reverenciar os mortos. Agora, não sei quantos trabalhos do passado existem mais disponíveis que devem ser dispostos e respeitados. Mas se falarmos dos trabalhos produzidos nos últimos anos,  e os que serão produzidos no futuro próximo,  então o conceito de museu é irrelevante. Gostaria de persistir na questão do ambiente do trabalho de arte; que tipo de trabalho está sendo feito agora; onde pode ser melhor exposto, afora o museu, ou a sua contraparte em miniatura, a galeria.

Robert Smithson: Bem, me parece que existe uma atitude que tende para o McLuhanrismo, e essa atitude tende a ver o museu como uma estrutura nula/neutra. Mas acredito que a nulidade/neutralidade implícita no museu é, na verdade, um de seus maiores recursos, e isso deveria ser percebido e acentuado. O museu tende a excluir qualquer tipo de posicionamento revigorante. Mas parece que agora existe uma tendência de revigorar as coisas no museu, e toda a ideia de museu parece tender mais para um tipo de entretenimento especializado. Está mais e mais adquirindo um aspecto de discoteca e cada vez menos um aspecto de arte. Então, acredito que a melhor coisa que podemos dizer sobre os museus é que estão realmente anulando o que diz respeito a ação, e acho que essa é uma de suas maiores virtudes. Parece que a sua posição é preocupar-se com o que está acontecendo. Estou interessado em grande parte no que não está acontecendo, aquela área entre os eventos que pode ser chamada de intervalo. Este intervalo existe nas regiões em branco, vazias ou em lugares para os quais nunca olhamos. Poderia se desenvolver um museu dedicado a diferentes tipos de vazio. O vazio poderia ser definido pela própria instalação de arte. As instalações deveriam esvaziar as salas, não preenche-las.

Kaprow: Os museus tendem a fazer cada vez mais concessões à ideia da relação entre arte e vida. O que está errado com a versão deles sobre isso é que eles fornecem uma vida enlatada, uma ilustração estetizada da vida. “Vida” no museu é como fazer amor no cemitério. Gosto da ideia de limpar os museus e seria melhor projetarem uns como o Guggenheim, que existem como uma escultura, como trabalhos em si, quase fechados para as pessoas. Seria um compromisso coerente com sua função de mausoléu. No entanto, tal ato levaria muitos artistas a encerrarem suas atividades… Me pergunto se não existe uma alternativa nos limites entre a vida e a arte, na zona marginal ou periférica da qual você falava com tanta eloquência, nos limites da cidade, ao longo das vastas rodovias onde afloram supermercados e shopping centers, inúmeras serrarias, atacadistas, se isto não é o mundo é ao menos para você. Quero dizer, você se imagina trabalhando neste tipo de ambiente?

Smithson: Sou tão distante deste mundo que pareço um estranho quando vou lá; portanto, não estar diretamente envolvido na vida lá, me fascina, pois tenho certeza da distância em relação a este lugar, e estou empenhado em fabricar a maior distância possível. Parece que gosto de olhar e pensar sobre estes subúrbios e estas franjas, mas, ao mesmo tempo, não estou interessado em viver lá. É mais um aspecto do tempo. É o futuro – a paisagem marciana. Dar uma distância, quero dizer uma ausência consciente de auto-projeção.

Acho que alguns dos sintomas do que está acontecendo na área da construção do museu estão refletidos de alguma maneira no museu subterrâneo de Philip Johnson, que num certo sentido enterrou os tipos de arte abstrata em outro tipo de abstração, de maneira que se torna a negação da negação. Sou totalmente a favor deste tipo de distanciamento e remoção, e acho que o projeto de Johnson  para Ilha Ellis é interessante no sentido de que ele vai esvaziar este edifício do século XIX e transformá-lo em uma ruína, e ele diz que vai estabilizar as ruínas, e ele também está construindo este edifício circular  que não é nada além de um vazio estabilizado. E parece que encontramos esta tendência por todos os lados,  mas todos estão ainda relutantes em abandonar a tendência a atitudes revigorantes. Eles gostariam de balancear ambos. Mas, acho que o interessante é a falta de balanço/equilíbrio. Quando tem-se um Happening não se pode ter a falta de acontecimento. Deve existir este dualismo que, acredito, deve perturbar muitas ideias do humanismo e da unidade. Acho que as duas visões, unidade e dualismo, nunca serão conciliadas e que ambas são válidas, mas ao mesmo tempo, prefiro a última em multiplicidade.

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Kaprow: Existe outra alternativa. Você mencionou construir seu próprio monumento, no Alasca ou talvez no Canadá. Quanto mais remoto, quanto mais inacessível, talvez mais satisfatório. É verdade isto?

Smithson: Bem, acho que, em última instância, seria decepcionante para todo mundo inclusive para mim. No entanto, a própria decepção parece oferecer possibilidades.

Kaprow: O que me perturba é a falta de extremos em ambas possibilidades. Por exemplo, preciso sempre assumir compromissos sociais em meus Happenings, enquanto que, de maneira similar, você e outros que têm objeções em relação aos museus, no entanto, continuam expondo neles.

Smithson: O extremo pode existir em um contexto vago também, e acho que o que é vago é mais aceitável do que o que é puro. Me parece que qualquer tendência para o purismo também supõe que existe algo a ser atingido, e isto significa que a arte possui algum ponto. Acho que concordo com a ideia de Flaubert de que a arte é a busca do inútil e, quanto mais vagas são as coisas, mais gosto delas,  pois não estou oprimido pela pureza.

Na verdade, valorizo a indiferença. Acho que é algo que possui possibilidades estéticas. Mas, a maioria dos artistas são qualquer coisa menos indiferentes; eles estão tentando dar conta de tudo, se ligar, se conectar.

Kaprow: Você gosta de trabalhos de cera?

Smithson: Não, não gosto de trabalhos de cera. Eles são, na verdade, muito vivos. Um trabalho de cera remete à vida, então realmente existe muita vida nele e, ao mesmo tempo, também sugere morte, você sabe. Acho que as novas tumbas terão que evitar qualquer referência com vida ou morte.

Kaprow: Como o Forest Lawn (um cemitério em Los Angeles)?

Smithson: Sim, é uma tradição americana.

Kaprow: Na realidade, você nunca vai conseguir que alguém invista em um mausoléu – um mausoléu ao vazio, ao nada – embora esta possa ser a afirmação mais poética de sua argumentação. Você nunca vai conseguir que alguém pague para manter o Guggenheim vazio durante o ano todo, embora me pareça uma ideia maravilhosa.

Smithson: Acho que é verdade. Trata-se basicamente de uma proposta vazia. Mas… eventualmente existirá um renascimento na arte do funeral.

Realmente, nossos antigos museus são repletos de fragmentos, pedaços de peças de arte europeia. Foram arrancados de suas estruturas artísticas, foram completamente reclassificados e depois categorizados. A categorização da arte em pintura, arquitetura e escultura parece ser uma das coisas mais infelizes que aconteceram. Agora, todas estas categorias estão estilhaçando em mais e mais categorias, e parece uma avalanche interminável de categorias. Existem, aproximadamente, quarenta tipos diferentes de formalismo e cerca de cem tipos diferentes de expressionismo. Os museus estão sendo direcionados para um tipo de uma posição paralisada, e não acredito que eles queiram aceita-la, então eles transformaram uma ação em mito; eles construíram um mito da excitação; inclusive, existe uma série de conversas interessantes sobre espaços. Estão criando espaços excitantes e coisas do gênero. Nunca vi um espaço excitante. Não sei o que é um espaço. Ainda assim, gosto do museu inútil.

Kaprow: Mas por um lado você vê as coisas movendo-se do inútil para o utilitário.

Smithson: Utilidade e arte não se misturam.

Kaprow: Em direção à educação, por exemplo. Para o outro lado, paradoxalmente. Vejo as coisas movendo-se da plenitude real para a plenitude burlesca. Uma vez que seu sentido de vida é sempre estético (cosmético), seu sentido de plenitude é aristocrático: tenta reunir todos objetos e ideias “boas” sob o mesmo teto,  sob a condição de degenerar e dissipar o que está lá fora, na rua. Isto implica um enriquecimento da mente. Agora, a alta classe (e a alta classe, francamente) está implícita no conceito de museu, não importando se os administradores desejem ou não isso, e isto, simplesmente, não está relacionado com as questões correntes. Escrevi uma vez que este é um país de mestiços sofisticados. Não existe status na minha plenitude e na sua nulidade.

Smithson: Acho que você tocou numa área interessante. Parece que toda arte é, de alguma maneira, um questionamento do que é o valor, e parece que existe uma grande necessidade das pessoas atribuírem valor, de encontrarem o significado do valor. Mas, isto leva a muitas categorias de valor e não valor. Acho que isto mostra todos os tipos de desordens e fraturas e irracionalidades. Mas, não me importo em colocar as coisas de maneira correta ou colocar as coisas de modo ideal. Acho que tudo está lá – independente que qualquer tipo de coisa boa ou ruim. A categoria de “boa arte” e “má arte” pertence a um sistema de valor de mercadoria.

Kaprow: Como disse antes, você encara uma pressão social que é difícil de conciliar com as suas ideias. No momento, as galerias e os museus continuam sendo as agências primárias ou o “mercado” para o quê os artistas fazem. Assim como as universidades e os programas federais de educação financiam a cultura ao construírem cada vez mais museus, você vê como se desenvolve a imagem do sistema de patronagem contemporânea. Por isso, seu envolvimento com “figuras do sistema de exposição”, por mais bem intencionadas que sejam, tendem a frustrar qualquer posicionamento seu em relação ao não-valor da sua atividade. Se dizemos que isto não é bom nem ruim, os galeristas e curadores que se apropriam disto, que o apoiam pessoalmente, vão dizer ou sugerir o contrário pelo o que fazem com isto.

Smithson: Bem, acho que o humor é uma área interessante. As variações do humor são muito estranhas ao temperamento americano. Parece que o temperamento americano não associa arte com humor. Humor não é considerado seriamente. Muitos trabalhos estruturais são realmente hilários. Você sabe, o idiota, os mais estúpidos, estão realmente beirando um tipo de humor concreto, e realmente acho toda a ideia de mausoléu muito bem humorada.

Kaprow: Nossa comparação do Guggenheim,  com uma metáfora intestinal, para o que você chamou de “sistema de desperdício” parece ser quase o ponto. Mas isso é, obviamente, nada mais que outra justificativa para a pessoa do museu, para o assessor de imprensa do museu, para o crítico do museu. Ao invés de seriedade elevada, é o humor elevado.

Smithson: Seriedade elevada e humor elevado são a mesma coisa.

Kaprow: Mesmo assim, no momento em que você passa a operar dentro de um contexto cultural, seja o contexto de um grupo de artistas e críticos, seja o contexto físico do museu ou galeria, você automaticamente associa esta identidade incerta com algo certo. Alguém atribui à isto um novo nome categórico,  geralmente uma variação de algum nome antigo, e portanto ele continua sua linhagem de sistemas familiares que lhe fornece credibilidade. O destino padrão da novidade é ser justificado pela história. Sua posição é, portanto, irônica.

Smithson: Eu diria que possui uma visão contraditória das coisas. É basicamente uma posição sem sentido. Mas penso que, de cara, tentar fazer algum tipo de sentido interrompe qualquer tipo de possibilidade. Acredito que, quanto mais sentidos, melhor, você sabe, apenas uma infinita quantidade de pontos de vista.

Kaprow: Bem, este artigo, em si, é irônico, uma vez que funciona no contexto cultural, no contexto das publicações das belas artes, por exemplo, e faz sentido apenas neste contexto. Ultimamente, minha opinião tem sido de que existem apenas duas saídas: uma que implica o máximo de inércia, o que chamo de arte no nível das “ideais”, arte que é ultimamente discutida aqui e ali e que nunca é executada; e as outras que existem em máxima atividade contínua, atividade que possui um valor estético incerto e que se coloca aparte das instituições culturais. No momento em que operamos entre estes dois extremos acabamos presos (em um museu).

holly terror – daniel birbaum

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Com John Waters no júri, não havia a menor chance do pavilhão de Christoph Schlingensief não ser o ganhador do Leão de Ouro. E isso eu acho que é uma coisa excelente. A abertura da Bienal desse ano estava repleta de alemães reclamando do terrível e escandaloso pavilhão, mas, como Waters declarou em entrevista recente, arte contemporânea e mau gosto têm mais em comum do que muito seriam capazes de admitir. Schlingensief – criador de obras-primas como 100 Years of Adolf Hitler: The Last Hour in the Führer’s Bunker (1989) e The German Chainsaw Massacre (1990) – é certamente um caso nesse ponto. Mas o frenético e produtivo artista, cineasta e diretor de teatro, que morreu tragicamente de câncer no pulmão antes que pudesse terminar seu trabalho para o pavilhão, não era apenas sobre mau gosto – ele era um artista total, se é que tal coisa seja ainda possível. Em seu obituário frequentemente citado, a novelista e escritora de teatro Elfriede Jelinek foi mais longe. “Schlingensief era um dos grandes artistas que já viveu”, ela escreveu no Süddeutsche Zeitung. “Sempre pensei que alguém como ele não poderia morrer. É como se a vida em si morresse. Ele não era realmente um diretor de palco (apesar de Parsifal em Bayreuth), ele era tudo: ele era o artista em si.”

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Era intenção de Schlingensief tornar o monumental pavilhão alemão no que ele se referia como um centro de bem-estar africano e, quando faleceu em agosto de 2010, deixou muitas notas e rascunhos. Mas seria ingênuo pensar que um artista provocador que sempre foi tão rápido em suas reações em relação às mudanças constantes na paisagem política não teria retrabalhado seus planos inúmeras vezes antes de finalizar seu projeto. A decisão da curadora Susanne Gaensheimer de apresentar trabalhos completos que já existiam, invés da proposta inacabada de Veneza parece, portanto, apropriada. A escolha também tornou possível apresentar algo como uma retrospectiva compacta, um mostruário de trabalhos chaves feitos por um artista quase desconhecido fora do mundo da língua alemã. Uma das galerias laterais do pavilhão serve como uma sala de projeção para seis dos longas-metragens clássicos cult de Schlingensief – George Romero – digno de extravagâncias, de sátiras políticas e sangrentas, de valores de baixa produção, repletos de alemães do oeste “cheiradores” de cocaína nazi hábeis na serra elétrica e que não tratam cordialmente seus irmãos orientais. Outra galeria recebe uma apresentação do último grande projeto de Schlingensief, que estava intimamente ligado com a ideia para um centro de bem-estar: Remdoogo, sua “ópera-vila” em Burkina Faso. Apelidado de “escultura social” pelo artista, Remdoogo é na verdade toda uma comunidade centrada na produção de óperas para outros projetos de arte. É representada aqui pelas renderizações arquitetônicas e por fotografias panorâmicas, assim como por legendas de Via Intolleranza II (2010) de Schlingensief, uma das últimas produções teatrais, que lida explicitamente com a dimensão ética de seu experimento africano.

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Na galeria central, encontramos uma igreja solene, repleta de vitrais e com um altar. Suspensos no ar estão grandes telas de projeção mostrando filmes 16 mm nos quais Schlingensief e sua turma homenageiam performances de Joseph Beuys, Valie Export, Nam June Paik, Charlotte Moorman, e outros. Isto é A Church of Fear VS. The Alien Within: Fluxus Oratório, 2008, uma réplica de uma igreja na pequena cidade alemã de Oberhausen onde o jovem Schlingensief foi coroinha por mais de uma década. No centro da ação, onde se poderia esperar uma imagem de Cristo, está à projeção do próprio artista no estágio final de sua doença. Raios-X de seus pulmões mostram que ele era mesmo de carne e osso, caso alguém estivesse elaborando a impressão dele ser divino. O pavilhão alemão já viu muitas soluções artísticas bombásticas ao longo dos anos, mas nada supera esta extravagância ondulante messiânica. Em alguns de seus últimos trabalhos, como Réquiem for an Undead Person (2008), o pálido e magro artista, com seu característico cabelo selvagem, tenta nos convencer de que ele vai de algum modo sobreviver à doença e viver para sempre. Dessa vez sua presença é de ordem diversa. A eternidade começou, mas não se parece muito com aquilo que os padres de Oberhausen diziam parecer.

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Representar uma nação é uma tarefa embaraçosa para maioria dos artistas, mas representar a Alemanha em um pomposo edifício construído pelos nazistas é um tipo de desafio especial, para colocar de forma leve. Quando se trata de expectativas sobre clichês internacionais, apenas dois tipos de artistas parecem existir: engenheiros frios como gelo (Kraftwerk, os fotógrafos de Düsseldorf) e egos maníacos apocalípticos (Fassbinder, Beuys). Não existe dúvida em que time Schlingensief jogava. Todos sabem quem era o ego maníaco apocalíptico original, e não foi por acaso que Schlingensief aceitou o convite para dirigir Parsifal de Wagner, a mãe da Gesamtkunstwerk, um opus que prometia nada menos que a redenção final. Anos antes, em 9 de Novembro de 1999, Schlingensief embarcou no Ferryboat de State Island carregando uma urna que continha o que ele chamou de lixo da política e metafísica alemã. Numa tentativa de “afundar a Alemanha”, ele lançou a urna no Rio Hudson para o choque de Wagner. O pavilhão alemão desse ano parece tentar algo parecido. Mas a estratégia não é de simples negação, ou de uma redenção wagneriana por meio da síntese. Nietzsche chamou a forma do excesso de Schlingensief de intensificação anti-dialética, Steigerung. Vamos apenas chamar de overkill. Quão alemão é isso? Totalmente.

Artforum, setembro de 2011

primal siblings, george baker conversa com kaja silverman

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GB: Onde teve início Flesh of my Flesh?

KS: Acho que a resposta para esta pergunta seria “em meu subconsciente”. Embora ainda não tivesse vislumbrado o livro nos olhos da minha consciência, comecei a escrevê-lo em 1999, quando fiz um ensaio sobre o filme Thin Red Line de Terrence Malick [1998]. Fui capturada pelo filme porque o achei tão emocionalmente arrebatador e porque os efeitos que precipitaram em mim foram sentidos tanto ontologicamente quanto historicamente verdadeiros, embora não pudesse conectá-los à nada naquele momento. Isso foi muito misterioso, e tornou-se mais ainda depois, pois, um a um, os eventos que eram específicos a cada um destes afetos ocorreram. Alguns eram políticos, como o 11 de Setembro; as invasões do Iraque e do Afeganistão. Outros eram pessoais – perda de um amor, câncer de mama. Mais tarde, depois de ter escrito os capítulos sobre Gerhard Richter, Leonardo e James Coleman, percebi que todas as lições que aprendi com estes eventos, e que estava trazendo para ao escrever o livro, já estavam implícitos na minha primeira experiência do filme de Malick.

GB: Em seu livro, você cita a Marguerite Duras: “Esquecimento começa com os olhos”. World Spectators expande esta teorização ao confrontar alguns  artistas específicos e projetos cinematográficos. Por que a visão tornou-se sua preocupação mais pujante? O que é a visão para você?

KS: Grande parte de nosso pensamento sobre a visão é guiado por três axiomas que foram introduzidos nos anos 1960 e 1970 e consolidados nos anos 1980. Eles são que o olhar é violento; que as imagens são ideologicamente mistificadoras; e que artistas e teóricos politicamente engajados precisam expor esta violência e desfazer esta mistificação. Nunca estive confortável com esta definição da visão ou da arte. Minha primeira tentativa de fazer isso foi em Threshold of the Visible World, no qual faço a distinção entre olhar e contemplar, argumentado sobre a “produtividade” do olhar, e relacionando esta produtividade com o “dom ativo do amor”. Meu pensamento deu uma guinada fenomenológica depois que escrevi Threshold, e isso me levou a pensar sobre o campo da visão em termos ontológicos – assim como psicológicos e sociais. Em World Spectators, argumentei que só podemos ser completamente nós mesmos se somos vistos de uma maneira que nos permita aparecer, e que nós e que tudo mais no mundo está constantemente buscando este olhar, cujo modo fundamental é a afirmação. Em meu novo livro, construí sobre o motivo de ver e ser visto, mas desta vez estou mais preocupada com o reconhecimento do parentesco do que com a afirmação do mundo visual. Também falo sobre o motivo pelo qual falhamos tão frequetemente em proporcionar isso.

GB: Em seu trabalho, você sempre tenta encenar confrontos “impossíveis”, geralmente de maneira redentora. Em World Spectators, por exemplo, você permite que duas maneira de pensar colidam e se engajem uma na outra: psicanálise e fenomenologia. Você parece querer imaginar o que ocorreria se estes modos filosóficos – que têm sido considerados incompatíveis – entrassem em contato. O objeto de  pensamento impossível em Flesh of my Flesh é o que você chama de analogia, assim como sua existência contínua dentro da modernidade. O que você chama de analogia?

KS: A analogia é uma relação de maior ou menor similaridade entre dois ou mais termos ontologicamente iguais – um correspondente com, ao invés de um correspondente a. Tudo se relaciona a tudo mais desta forma, porque analogia é a estrutura do Ser. Estas analogias são também intransponíveis, e elas abrigam um poder de salvação. No entanto, pelo fato de estarmos constantemente nos recusando a reconhecer as semelhanças que nos conectam com certas pessoas ou grupo de pessoas, nós estamos quase sempre fisicamente alienados da totalidade a qual pertencemos. Esta recusa tem conseqüências desastrosas tanto para eles quanto para nós.

GB: Como você diz no início de Flesh of my Flesh, a analogia é um modelo que pertence ao modo de ver o mundo na Renascença. Também foi descrito como uma maneira de pensar sobre o mundo similar a maneira como os mitos operam: Semelhante deve ser conectado com semelhante; similitude tem prioridade sobre diferença. Mas na modernidade nós escolhemos posicionar a racionalidade contra o pensamento mítico.

KS: O que chamamos de “razão” é essencialmente negação: a definição do que as coisas são pela especificação daquilo que elas não são. É portanto algo extremamente divisível. Precisamos reaprender a arte do pensamento analógico e a praticá-lo de maneira que não seja eviscerado pela metafísica. As analogias Platônicas e Cristãs ligavam nosso mundo à um mundo “superior”. Eles também são estáticos, hierárquicos, unilaterais, e autores divinos. Tudo se parece com Deus, porque ele criou o homem em sua imagem, e seres inferiores na imagem dos homens, e seres ainda inferiores na imagem destes seres, sendo assim Deus não se parece com nada; ele é puramente auto-referencial.

No entanto, esta não é a única maneira em que a semelhança foi sempre pensada ou vivida. Existe uma contramodernidade que pode ser traçada desde Leonardo, uma que é enfaticamente mundana e comprometida com um tipo de analogia não hierárquica, não autoritária, dinâmica e reversível que é o tópico do meu livro. Esta contramodernidade também olha para trás – para Ovídio, que tinha um entendimento parecido da semelhança, e para a figura da mãe, quem Leonardo e um número de outros praticantes, como Marcel Proust, Roland Barthes e W.G. Sebald, nunca abandonaram.

GB: Você retorna ao mito para elaborar uma nova noção de analogia, e seu livro traça um engajamento de todo o período moderno com a estória de Orfeu e Eurídice em particular. Como você ficou interessada por este mito?

KS: Fui convidada pelos curadores da exposição, no Louvre, dos desenhos e manuscritos de Leonardo  para conversar em uma conferência sobre as imagens que James Coleman incorporou à exposição. Um par destas imagens eram uma releitura digital de desenhos da “máquina de Orfeu” de Leonardo, e Coleman sugeriu que eu lesse Orfeu [1471] de Ângelo Poliziano, que foi de onde Leonardo partiu para fazer esta máquina. Quando li, fiquei atônita pela misoginia da ópera e fascinada pela tentativa de Leonardo de neutralizá-la. Depois da conferência, passei bastante tempo na exposição e descobri que a máquina de Orfeu não era a única referencia ao mito: Leonardo também aludiu a ela em Potrait of a Musician [1490], uma releitura digital dela que Coleman colocou na mesma sala, e ambas imagens pareciam conectadas à The Virgin and Child with Saint Anne [1508], que foi incluída na exposição, e na qual Freud baseou sua afirmação de que Leonardo nunca se afastou da mãe. Decidi ler as versões do mito de Virgílio e Ovídio e achei tão rico que continuei minha pesquisa. Esta me levou para Rainer Maria Rilke, Lou Andreas-Salomé, Paula Modersohn-Becker e Wilhelm Jensen. Descobri que o mito estava por toda a parte na cultura Ocidental até que Freud a desbancou pelo mito de Édipo.

GB: Posso ver que este mito é importante para você porque é sobre a confrontação com a mortalidade e sua encenação pelo olhar.

KS: Na realidade ele contem diversos olhares – ao menos em sua forma em Ovídio. Esta versão da estória começa com a casamento de Orfeu e Eurídice, que é cheio de maus presságios. Logo após seu casamento, Eurídice é mordida por uma cobra e morre. Depois de um breve Período de luto, Orfeu desce para o Inferno, esperando persuadir Plutão e Prosérpina a deixá-lo levar Eurídice de volta para a terra. Eles concedem seu pedido, mas somente sob a condição de que ele não olhasse para ela durante a viagem de volta. Orfeu caminha à frente de Eurídice, para evitar violar a proibição dos deuses, mas no momento climático da viagem deles, ele se vira para olhar para ela, e ela morre uma segunda vez. Ele fica horrorizado com este encontro com a mortalidade e tenta afastar-se dela ao redefinir a morte como algo que acontece às mulheres. A partir de então, provoca nas mulheres repulsa, ao dar suas costas a elas. Orfeu também tenta se proteger da morte ao se tornar recluso em um lugar distante, usando sua música para superar a natureza.

Existe muita ironia na narração de Ovídio, colocando em questão o comportamento de Orfeu e provocando simpatia por Eurídice. Esta ironia não está presente na maioria das interpretações desta estória. Ao invés disto, os comentaristas de Ovídio idealizaram Orfeu, e um número deles argumentou que Orfeu renunciou ao diabo, à carne, e/ou ao mundo quando olha para trás para ver Eurídice. Isso colocou uma nova moratória ao ato de olhar para trás, tornando o subsequente ato de dar às costas às mulheres emblemático do que o sujeito homem deve fazer quando quer atingir a perfeição.

GB: Você parece propor em seu livro que o mito de Édipo deve ser destronado pelo mito de Orfeu como uma estória da subjetividade. Você vem escrevendo contra o mito de Édipo desde seus primeiros trabalhos, mas aqui nos é dado uma estória completamente diferente. Você a chama de “Orfeu Rex”.

KS: O mito de Orfeu e Eurídice provê um relato muito mais convincente sobre gênero do que o mito de Édipo – um baseado na mortalidade ao invés de na castração. A estória é também crucial porque nos ajuda a ver a natureza fundacional do gênero: Dar as costas às mulheres significa dar as costas a toda relacionalidade.

Ovídio também fornece ao mito um fechamento redentor. No Livro XI de Metamorphoses, Orfeu é atacado por um bando de mulheres que dizem: “Veja, lá está o homem que nos odeia.” Elas o destituem de poder para compelir a natureza, e elas desmembram seu corpo. Orfeu é transformado pela morte. Quando ele chega no Inferno, ele busca por sua querida Eurídice e, quando a encontra, a abraça amorosamente. Eles passam seu tempo andando lado a lado através do Inferno recordando o que aconteceu na subida que leva o Inferno à terra de maneira a desfazer sua violência – tornando-o uma analogia equalizadora ontologicamente reversível. Algumas vezes Eurídice anda na frente e Orfeu a segue, e outras vezes ele anda na frente e ela o segue; e, quando é a sua vez de olhar para trás, seu olhar não mata mais. Em sua primeira versão do mito, Ovídio nos conta o que é heterosexualidade. Na segunda, ele nos mostra como a heterorelacionalidade se pareceria – se algum dia a alcançarmos.

GB: Me ocorreu que este livro é tanto sobre masculinidade e subjetividade masculina como foi seu livro Male Subjectivity at the Margins. A primeira metade do livro revisa nossa estórias do modernismo ao focar nos elos e diálogos entre figuras tão variadas que vão desde Freud até Rolland, de Nietzsche até Andreas-Salomé, e de Rilke até Modersohn-Becker. E esta parte de sua estória lida não apenas com o ato de dar as costas à mortalidade mas também o abandono da mulher e a inabilidade de lidar com a diferença sexual.

KS: É mais precisamente a recusa de lidar com as semelhanças sexuais: a tentativa de evitar que a morte seja algo que aconteça com o homem assim como com a mulher ao promover que as mulheres são radicalmente diferentes, tanto física quanto psicologicamente. Embora Freud famosamente declarasse que o objetivo da vida é a morte, ele estava apavorado de morrer. Em 1923, foi diagnosticado com câncer na mandíbula, doença que por fim o mataria, e entre este ano e 1939, ele fez 33 operações, sendo que cada uma delas retirou um pedaço de sua face. Foi durante este período de decomposição física que ele escreveu os ensaios associando a genitália feminina com mutilação: “Some Psychical Consequences of the Anatomical Distinction Between the Sexes” [1925], “Female Sexuality” [1931], e “Femininity” [1933].

GB: Então o mesmo projeto de definir as diferenças sexuais foi uma maneira de Freud dar as costas para a morte?

KS: Exatamente. Isso é também verdade para três outras figuras que discuti na primeira metade do meu livro: Nietzsche, Rilke e Proust.

GB: Homens que se isolam – “grandes solitários”, podemos assim chamar. São uma versão viva do projeto do modernismo como autônomo: ao separar a arte do mundo ocasionou para estes escritores e pensadores uma retirada literal do mundo. A contraestória da modernidade que a primeira metade de seu livro parece traçar, é a trágica estória de como, o que você acaba de chamar de heterorelacionalidade, não existe. A estória de Orfeu é mobilizada nos escritos de Rilke e em outras considerações que você nos traçou, e está implícito em certos textos de Freud. Mas de alguma forma estes escritores masculinos nunca reconheceram o extremo potencial de cerne do mito.

KS: Não diria que eles nunca reconheceram este potencial. Rilke entendeu que seu desejo pela solidão era uma doença, e ele sabia que muitos de seus contemporâneos sofriam da mesma doença. Também percebia a doença coletiva como o último capítulo da história da masculinidade, uma história na qual não existe lugar para as mulheres. Não mais querendo lutar por um inimigo externo, o sujeito masculino interiorizou agora as categorias de mestre e escravo e é absorvido pelo drama claustral de se autosuperar. Uma vez que trata-se de um objetivo não alcançado, Rilke escreve em uma carta para Annette Kolh, o “homem do ‘novo grão’” está “se despedaçando”, e quando sua “saudável decomposição” estiver completa, começará sua lenta jornada em direção à mulher. O poeta concluí sua carta com a esperança de que a mulher “esperará para… receber este amor tardio.” Então fica claro que Rilke entendeu o valor diagnóstico da primeira parte da estória de Ovídio e o potencial redentor da segunda parte, e ele retornou ao mito diversas vezes, em uma tentativa de perceber este potencial. Dois dos outros autores que discuti foram mais longe. Andreas-Salomé baseou sua prática analítica no movimento da estória de Orfeu e Eurídice, e Wilheim Jensen não apenas reprisou a analogia com a qual Ovídio termina a estória mas também restituiu Eurídice para o mundo.

GB: No capítulo clímax do seu livro, você lida com um exemplo muito claro e simples do conceito de analogia nas pinturas de Gehard Richter, que é o seu projeto de interrelacionar pintura e fotografia. Ou talvez, mais especificamente, alinhar os projetos da abstração e da fotografia: Aqui Richter cria uma analogia que é definida nos níveis da forma. Mas isso vai contra ao que sempre nos disseram sobre a maneira como artistas da geração de Richter usaram a fotografia para erodir a plenitude da pintura como meio. Voltar-se para a fotografia é um modo de distância e ironia, e artistas como Richter também evisceraram os modos de autoria que a pintura um dia suportou, anulando a subjetividade como maneira de expressão e profundidade. Como seus pensamentos sobre analogia podem ser aplicados à estes artistas?

KS: Ministrei um seminário sobre Richter para um curso de graduação em 2002, quando sua retrospectiva estava no Museu de Arte Moderna de São Francisco. Meus estudantes e eu passamos muito tempo em frente das pinturas e muitas horas discutindo as passagens em The Daily Practice of Painting [1995] onde ele fala sobre fotografia. Alguns membros do seminário perguntaram porque estávamos focando nestas passagens ao invés de nos apoiar nos textos canônicos sobre a fotografia, mas eu os achei conceitualmente deslumbrantes e filosoficamente transformativos.  Pelo meu engajamento com os trabalhos e os escritos de Richter, percebi eventualmente que entendemos completamente errado o significado da fotografia.

GB: Como? Você chama este capítulo de “Photography by Other Means”.

KS: A fotografia não é uma representação ou mesmo um índice. É, na verdade, um tipo de analogia – do tipo que nossa cultura mais precisa. A fotografia e seu “referente” têm tantas afinidades que somos incapazes de separá-los um do outro, mas também diferenças suficientes para nos impedir de fundi-las. Este “casal” – e uso propositalmente a palavra casal, porque as duas partes da analogia fotográfica têm o mesmo direito de serem chamadas assim, como Orfeu e Eurídice – nos ajuda a perceber que similaridade não é igualdade e que diferença não é levada automaticamente para oposição. Também mostram que existe realmente um mundo e que nem todas as imagens são construções humanas. O mantra, repetido frequentemente, de que uma fotografia é “apenas uma representação” é uma manobra defensiva – um atentado para se abandonar esta revelação.

GB: Se isso é o significado da fotografia, então a pergunta que importa em Richter não é mais como a fotografia desalojou a pintura ou se opôs à abstração. Ao invés disso é: O que é dado à abstração pela fotografia? O que a fotografia recebe da abstração? Como cada forma se relaciona e se conecta com a outra?

KS: A abstração é frequentemente celebrada como um veículo através do qual a arte estabelece sua autonomia. A arte teve de livrar-se de sua similitude, pois, apenas ao ser diferente de tudo ela poderia se livrar do fardo da representação e se tornar algo em si mesmo. Mas a noção de autonomia da arte está intimamente ligada àquela do sujeito masculino solitário e é suscetível da mesma critica. Não apenas um número de artistas tentou provar que era autosuficiente ao criar obras de arte autônomas, mas seu repúdio à referencialidade estética foi ainda uma outra forma de rejeitar a analogia. Na verdade, não existe um domínio separado no qual a arte habita, da mesma forma que não existe um mundo superior presidido por um deus ou um demiurgo. Pinturas, poemas, edifícios e sinfonias pertencem à mesma totalidade a que pertencemos e estão integrados nesta totalidade da mesma maneira que nós: pelas similaridades ontologicamente equalizadoras. Richter tem nos dito isso deste dos anos 1960, primeiro por meio de suas fotopinturas, depois por suas pinturas abstratas, e mais recentemente por suas fotografias estouradas e pintadas por cima.

GB: Sua última artimanha é de que Richter coloca a história da Alemanha em algum tipo de analogia com suas própria série de relações familiares, com sua própria biografia. Como você se move das analogias formais que encontra em seu trabalho – ao ver suas pinturas como uma espécie de “fotografias por outros meios” – para uma leitura de seu projeto como uma ampla busca por conexões entre eventos históricos e experiências vividas?

KS: Por um bom período após 11 de Setembro, estava muito preocupada com a questão da mortalidade, tanto pessoalmente quanto politicamente. Eventualmente percebi que a finitude é a mais plausível e a mais capacitada de todas as analogias que nos conecta aos outros. Infelizmente, no entanto, é também a que estamos menos prontos para perceber e da qual estamos mais prontos para punir os outros. Richter chegou à uma conclusão semelhante da mortalidade nos anos 1980 por meio de uma intersecção da história e de sua vida. Nos anos 1960 ele conta em uma entrevista que, um grupo de fotografias dos campos de concentração o fez refletir e o colocou duas demandas difíceis: elas solicitaram que ele visse sua própria mortalidade nos corpos emaciados dos campos de concentração e de reconhecer sua própria capacidade para violência no comportamento daqueles que os colocaram ali. Ao invés de internalizar a verdade destas analogias, ele feminizou a morte e colocou a arma do crime nas mãos de outro. Apenas bem mais tarde, ao traçar as analogias que conectavam este período da história com outro memorizado em October 18, 1977 [1988], e sua filha Betty a Ulrike Meinhof e Gudrun Ensslin, estava Richter apto a assumir sua mortalidade e seu potencial para a violência. Estas analogias estão intimamente ligadas com as formais que você acaba de perguntar. Em ambas as situações, Richter buscou analogias entre um grupo de fotografias ao pintar fotopinturas. Ele foi incapaz de fazer isso com o primeiro grupo  porque se recusou a reconhecer os reclusos dos campos de concentração e seus vitimizadores como seus pares. No entanto, ele foi capaz de se corresponder com o segundo grupo de fotografias, não apenas como pintor mas também como fotógrafo, porque respondeu a demandas similares feitas à ele.

GB: Por que chamou o livro de Flesh of my Flesh?

KS: Porque foi o que Adão disse para Eva quando é apresentada à ele por Deus pela primeira vez.

GB: O titulo também evoca a noção de carne do mundo de Merleau-Ponty.

KS: Sim, é claro. Também evoca algumas relações próximas com Metamorphoses e os cadernos de Leonardo que devem ter sido a origem deste conceito. Mas diferentemente de Merlau-Ponty, carne do mundo, cujo princípio estruturante é o quiasma, e que é “anônimo”, o princípio estruturante da totalidade que invoco pelo conceito de “carne” é uma analogia – e a analogia é muito mais particularizante que o quiasma. Uma tentativa de demonstrar em meu livro que é apenas pelos aspectos mais privados e únicos de nossas vidas que nos correspondemos com outros seres. Cada um de nós tem um “estilo” antológico distinto e, embora sejamos todos seres finitos, tanto temporalmente quanto espacialmente, cada um de nós deve encontrar seu próprio caminho para a morte.

Meu projeto diverge do projeto de Merleau-Ponty em diversos outros aspectos também. “Flesh of my Flesh” é uma referência à mãe, tanto porque cada um de nós surgiu de um corpo materno e porque dar as costas às mulheres quase sempre começa com ela. Finalmente, estou tão interessada com reconhecimento como estou com analogia, pois até que reconheçamos as semelhanças que nos conectam aos outros, eles não tem eficácia psíquica, social ou histórica. Quando reconhecermos alguns aspectos de nós em outros seres, é quase sempre por um prenome pessoal. Dizemos “eu”, ‘meu’. Foi constantemente muito importante para mim ter esta última palavra no titulo do meu livro.

GB: Todo este projeto chamou um outro tipo de contrahistória para você, ou seja, a necessidade de escrever diferentemente a história da fotografia.

KS: Sim, estou trabalhando agora em um livro sobre fotografia, me aproximando do meio pelo discurso que o circundava durante as duas primeiras décadas de sua existência, ao invés de ir pelo discurso no qual ele se encontra embebido. Começo com a afirmação, que faço no último capítulo de Flesh of my Flesh, de que a fotografia é uma analogia.

GB: Pode-se ver a conexão entre analogia e análogo. De alguma maneira existe um alinhamento verbal desta idéia com o que era, ao menos até recentemente, a condição física da imagem fotográfica.

KS: Sim, é uma coincidência impressionante. Também defino fotografia usando três outros conceitos, sendo o primeiro deles o “pincel da natureza”, o titulo que Henry Fox Talbot deu para seu livro de 1844/46 com placas fotográficas, e uma sentença que aparece em descrições antigas do meio. Como também nos ajuda a notar que a fotografia era inicialmente percebida como uma prática gráfica e não escópica, e saída do mundo, ao invés de um recurso humano. O segundo conceito que uso vem do termo “placa receptiva”, como os fotógrafos chamavam as superfícies sensíveis que eles expunham à luz. Pensamos na recepção como um ato passivo mas naquela época não era assim tão fácil receber o que a natureza “dava”; a busca de uma placa receptora adequada consumiu uma enorme quantidade de tempo e de energia; isto encorajou os fotógrafos a pensarem em si mesmos como receptores e, embora este desafio tenha sido superado no domínio da fotografia, continuou a reverberar em outros lugares. Freud, Rilke e Proust pensavam a psique humana como uma placa fotográfica que é exposta ao mundo externo, e Rilke e Proust, assim como Cézanne, também descreviam sua maneira de trabalho nestes termos.

GB: Você já descreveu criações artísticas em termos receptivos em Flesh of my Flesh.

KS: Sim, muitos dos artistas e escritores que discuto lá, pensam em sim mesmos como receptores – Rilke e Proust, como sugeri anteriormente, mas também Andreas-Salomé, Leonardo, Coleman e Richter. De fato, cerca de dez anos atrás escrevi um ensaio intitulado “O autor como Receptor” [ 2001], no qual falo sobre outros três autores receptores: Jean-Luc Godard, Mallarmé e John Keats. Richter e Godard fazem um link direto entre fotografia e este tipo de autoria e está implicitamente lá em Mallarmé. Mas olhando para frente novamente, a terceira concepção por meio da qual estou repensando a fotografia é o “interminável desenvolvimento/revelação”. Estamos acostumados a perceber a fotografia como imóvel, mas não existia nada de imobilidade sobre este tipo de imagem nas primeiras décadas de sua existência. No começo da fotografia, geralmente demorava um longo período de tempo para que a imagem traçada pelo lápis da natureza se desenvolvesse/revelasse. Era também difícil evitar que esta imagem desvanecesse e que o entorno pretejasse. O sistema de Daguerre produzia apenas uma “imagem latente” que devia ser revelada antes que pudesse ser  vista, e quando Henry Fox Talbot percebeu que seus negativos fotográficos podiam ser usados para ser fazer impressões positivas, ele introduziu uma nova maneira de se revelar em fotografia. E como percebi enquanto trabalhava com a obra INITIALS [1993/94] de Coleman, a fotografia ainda é um meio dinâmico. As fotografias estão constantemente se desenvolvendo/revelando em outras coisas: pinturas, novelas, imagens de computador.

GB: Toda a sua noção de autor como receptor está implícita na fotografia. Mas reciprocamente, você parece estar afirmando que a fotografia em si é um modelo de subjetividade, que é um modo de ser. Estas duas coisas são indistinguíveis.

KS: Em suas duas primeiras décadas de existência a fotografia foi um cartão de visitas ontológico: mostrava a seus espectadores que o Ser é uma dádiva de algum lugar e que a semelhança é a viabilidade de sua condição. Talvez, a obsolescência da fotografia como um meio industrial vá permitir que funcione desta maneira novamente. Aí vamos escutar algumas das rimas que compõem o grande poema do Ser – e talvez possamos adicionar algo de nós mesmos.

ArtForum, fevereiro de 2010

um tour pelos monumentos de passaic, new jersey (1967) – robert smithson

tradução

Em 30 de setembro de 1967, fui ao Prédio do Port Aythority, na Rua 4º com a Avenida 8º, comprei uma cópia do New York Times e um livro de bolso chamado Earthworks de Brian W. Aldiss. Depois fui à bilheteria 21 e comprei uma passagem de ida para Passaic. Em seguida subi para o nível dos ônibus (plataforma 73) e embarquei no ônibus 30 da empresa Transportes Intermunicipais.

Sentei-me e abri o Times. Passei os olhos sobre a seção de artes: a exposição “As Escolhas dos ‘Colecionadores’, ‘Críticos’, ‘Curadores’” na Galeria A. M. Sachs (um cartão que recebi pelo correio naquela manhã me convidava à “jogar o jogo antes que a exposição acabe em 4 de outubro”), Walter Schatzki estava vendendo “Gravuras, Desenhos, Aquarelas” com “33,33% de desconto”, Elinor Jenkins, o “Realista Romântico”, estava expondo na Galeria Barzansky, Mobílias inglesas do século XVIII-XIX em liquidação na Parke-Bernet, “Novas Direções na Gráfica Alemã” na Centro Goethe, e na página 29 estava a coluna de John Canaday. Ele escrevia sobre “Os Temas e as Usuais Variações”. Olhei uma reprodução desfocada da obra “Paisagem Alegórica” de Samuel E. B. Morse no topo da coluna de Canaday; o céu era um cinza sutil de impressão de jornal, e as nuvens pareciam manchas sensíveis transpirando reminiscências de um famoso aquarelista iugoslavo cujo nome me esqueci. Uma pequena estátua com o braço direito levantado acima da cabeça encarava o lago (ou seria o mar?). A alegoria de edifícios “Góticos” tinham um aspecto desbotado, enquanto que uma árvore desnecessária (ou seria uma nuvem de fumaça?), parecia se expandir no lado esquerdo da paisagem. Canaday referiu-se à foto como “situando-se confiantemente entre outros representativos da arte alegórica, ciência, e os altos ideais que as universidades buscavam.” Meus olhos percorreram o jornal, passando por manchetes como “Altas da Estação”, “Serviço de Transporte”, e “Mover uma Escultura de 450kg Também Pode Ser um Trabalho de Arte”. Outras preciosidades de Casaday desnorteavam minha mente enquanto passava por Secaucus. “Trabalhos realistas de carne crua em cera atacados por vermes”, “Sr. Bush e seus colegas estão perdendo tempo” (Jack Bush), “um livro, uma maça no prato, uma roupa amarrotada” (Thyra Davison). Fora da janela do ônibus um Motor Lodge do Howard Johnson sobrevoava – uma sinfonia em laranja e azul. Na página 31 em letras grandes: A POLÍCIA ESTADUAL EMERGENTE NA AMÉRICA ESPIONA O GOVERNO. “neste livro você aprenderá… do que se trata um Transmissor Infinito.”

O ônibus saiu para a Rodovia 3, pelo Caminho do Oriente em Rutherford.

Li a sinopse e dei uma passada de olho pelo Earthworks. A primeira sentença que li. “O homem morto rumava com a brisa.” Parecia que o livro era sobre escassez de solo, e os Earthworks referiam-se à manufatura de solos artificiais. O céu sobre Rutherford era azul-claro cobalto, um perfeito dia de verão indiano, mas o céu em Earthworks era “um intenso escudo preto e marrom no qual a umidade brilhava.”

O ônibus passou pelo primeiro monumento. Puxei a corda da campainha e saltei na esquina da Avenida União com a Estrada do Rio. O monumento era uma ponte sobre o Rio Passaic que conectava o Condado de Bergen com o Condado de Passaic. O sol do meio-dia cinematografava o lugar, transformando a ponte e o rio em uma foto super-exposta. Fotografando-o com minha Instamatic 400 era como fotografar uma fotografia. O sol tornou-se uma imensa bola de luz  que projetava uma destacada série de “stills” através da minha Instamatic até meus olhos. Quando caminhei sobre a ponte, era como se estivesse caminhando sobre uma enorme fotografia feita de madeira e aço, e abaixo o rio existia como um enorme filme que não mostrava nada a não ser um vazio contínuo.

A estrada de aço que passava sobre a água era em parte uma grelha aberta ladeada por uma calçada de madeira, sustentada por um pesado grupo de vigas, enquanto que acima, pendurada no ar, estava uma rede precária. Uma placa enferrujada brilhava na atmosfera precisa, tornando difícil a leitura. Uma data lampejou nos raios solares… 1899… Não… 1896… talvez (abaixo da ferrugem e do brilho estava o nome Empreiteira Dean & Westbrook, NY). Estava completamente controlado pela Instamatic (ou pelo que os racionalistas chamam de câmera). O ar espelhado de Nova Jersey definia as partes estruturais do monumento enquanto tirava um instantâneo atrás do outro. Uma balsa parecia fixada sobre a superfície do rio quando aproximou-se da ponte, o que fez com que o guarda da ponte fechasse os portões. Das margens do Passaic vi a ponte rodar em um eixo central de maneira a permitir que uma forma retangular inerte passasse com sua carga desconhecida. O lado oeste da ponte de Passaic girou para o sul, enquanto o lado de Rutherford (leste) girou para o norte; tais rotações sugeriram os movimentos limitados de um mundo fora de moda. “Norte” e “Sul” estavam pendurados sobre o rio estático de maneira bi-polar. Podemos referir à esta ponte como “Monumento das Direções Deslocadas”.

Ao longo das margens do Rio Passaic estavam monumentos menores como pilares de concreto que sustentavam as banquetas de uma nova rodovia em processo de construção. A Estrada do Rio estava em parte revirada e em parte intacta; era difícil distinguir a nova rodovia da velha; ambas estavam embaralhadas em um caos unitário. Uma vez que era sábado, as máquinas não estavam trabalhando, e isso fazia com que se parecessem com criaturas pré-históricas presas na lama, ou, melhor, máquinas extintas – dinossauros mecânicos despelados. No limite desta Era da Máquina estavam as casas de subúrbio pré- e pós- Segunda Guerra. As casas espelhavam-se em sua palidez. Um grupo de crianças estava atirando pedras umas nas outras perto de um dique. “De agora em diante vocês não virão mais em nosso esconderijo. E tenho dito!” disse uma pequena menina loura atingida por uma pedra.

Enquanto caminhava ao norte ao longo do que sobrou da Estrada do Rio, vi um monumento no meio do rio – era uma bomba guindaste com um longo cano preso à ela. O cano estava sustentado em parte por uma série de pontões , enquanto o resto estendia-se em três blocos ao longo das margens do rio até desaparecer na terra. Podia-se ouvir o estrondo dos entulhos que passavam pelos grandes canos ao cair na água. Próximo, na margem do rio, estava uma cratera artificial que continha uma água de rio límpida, e dos lados da cratera protuberavam seis canos largos que jorravam a água do lago no rio. Isso constituía uma fonte monumental que sugeria seis chaminés que pareciam inundar o rio de fumaça liquida. O grande cano estava de maneira enigmática conectado com a fonte infernal. Era como se o cano estivesse sodomizando algum orifício tecnológico escondido, e causando um monstruoso órgão (a fonte) a ter um orgasmo. Um psicanalista poderia dizer que a paisagem mostrava “tendências homossexuais”, mas não vou delinear tal grosseira conclusão antropomórfica. Direi simplesmente, “Isso estava lá”.

Do outro lado do rio em Rutherford podia-se ouvir uma voz distante de um sistema P.A. e a comemoração distante de uma multidão em um jogo de futebol. Na verdade, a paisagem não era uma paisagem, mas “um tipo particular de heliotipia” (Nabokov), um tipo de mundo em cartão postal auto-destrutivo de uma imortalidade fracassada e de uma grandeza opressiva. Ando pensando em quadros em movimento que eu não possa enquadrar, mas assim que fiquei perplexo, vi uma placa verde que explicava tudo:

SEUS IMPOSTOS DA RODOVIA 21

EM OBRAS

Estrada Federal Departamento Comercial dos EUA

Fundos do Tesouro                                                            Escritório de Vias Públicas

2.867.000                                                          Fundos Governamentais Rodoviários

2.867.000

Departamento de Estradas do Estado de Nova Jersey

O panorama zero parecia conter ruínas no avesso, ou seja – todas as novas construções que pudessem eventualmente ser construídas. Isto é o oposto da “ruína romântica” porque as edificações não deterioram depois de terem sido construídas mas pelo contrário crescem como ruínas antes de serem construídas. Esta cena anti-romântica sugere o descrédito da idéia de tempo e muitas outras coisas fora de moda. Mas os subúrbios existem sem um passado racional e sem os “grandes eventos” da história. Oh, talvez existam algumas estátuas, uma lenda e um par de curiosidades, mas não passado – só as coisas que passam para o futuro. Uma utopia menos um botão, um lugar onde as máquinas são preguiçosas, e o sol se transformou em vidro, e um lugar onde a Planta de Concreto de Passaic (253 Estrada do Rio) faz bons negócios em PEDRA, BETUME, AREIA e CIMENTO. Passaic parece repleta de “buracos” comparado com a cidade de Nova York, que parece solidamente empacotada e sólida, e aqueles buracos são de alguma forma as vagas monumentais que definem, sem tentar, os traços de memória dos conjuntos abandonados dos futuros.  Tais futuros são encontrados em filmes Utópicos tipo B, e depois imitados pelos subúrbios. As vitrines de liquidação de automóveis da City Motors proclamam a existência da Utopia através de PONTIACS WIDE TRACK, 1968 – Executivo, Bonneville, Tormenta, Grande Prêmio, Firebirds, GTO, Catalina, e LeMans – aquele encantamento visual marcava o final da construção da rodovia.

Depois entrei em uma série de estacionamentos de carros. Devo dizer que a situação parecia a de uma mudança. Estaria eu em outro território? (Um artista inglês, Michael Baldwin, diz, “poderia se perguntar se  o pais muda de fato – ele não muda no mesmo sentido em que um sinal de tráfico o faz.”) Talvez eu tivesse escorregado para um estágio abaixo em futurologia – teria eu deixado o verdadeiro futuro para trás para entrar em um futuro falso? Sim, eu tinha. A realidade estava atrás de mim a estas alturas em minha Odisséia suburbana.

O centro de Passaic apreciava agora um adjetivo estúpido. Cada “loja” era um adjetivo atrás do outro, uma corrente de adjetivos disfarçados de lojas. Comecei a ficar sem filme, e estava ficando com fome. Na verdade, o centro de Passic era um não centro – era na verdade um típico abismo ou um vazio ordinário. Que lugar incrível para uma galeria! Ou talvez uma “exposição de esculturas externas” pudesse animar aquele lugar.

No restaurante Golden Coach (Avenida Central, 11) fiz minha refeição, e abasteci minha Instamatic. Olhei para a caixa laranja-amarela da Kodak Verichrome Pan, e li o aviso que dizia:

LEIA ESTE AVISO

Este filme será trocado se houver defeito na manufatura, etiquetagem, ou embalagem, ou mesmo os causados por nossa negligência ou outra falha. Com exceção destas trocas, a venda ou qualquer subseqüente manipulação deste filme não tem nenhuma garantia ou obrigação. A COMPANHIA EASTMAN KODAK  NÃO ABRA ESTE CARTUCHO OU SUAS FOTOS PODEM ESTRAGAR – 12 POSES – FILME SEGURO – ASA 125 22 DIN.

Depois disso retornei a Passaic, ou seria no futuro – tudo que sei é que este subúrbio inimaginável poderia ter sido uma eternidade deselegante, uma copia barata da Cidade dos Imortais. Mas quem sou eu para entreter tal pensamento? Passei por dentro de um estacionamento que cobria uma antiga estrada de ferro que passava pelo meio de Passaic. O estacionamento monumental dividia a cidade no meio, tornando-a um espelho ou um reflexo – mas o espelho ficou mudando de lugar com o reflexo. Não se sabia em que lado do espelho estava. Não havia nada interessante ou mesmo estranho a respeito daquele monumento plano, mesmo assim ele ecoava um tipo de idéia clichê sobre o infinito; talvez “os segredos do universo” sejam assim tão pedestres – para não dizer enfadonhos. Tudo sobre o lugar permanecia embrulhado em brandura e entulhado de carros brilhantes – um após o outro estendiam-se em uma ensolarada nebulosidade. As traseiras indiferentes dos carros piscavam e refletiam o sol seco da tarde. Tirei algumas fotos entrópicas apáticas daquele monumento lustroso. Se o futuro está “ultrapassado” e “fora de moda”, então eu estava no futuro. Estive em um planeta que tinha um mapa de Passaic desenhado sobre ele, e um mapa um tanto imperfeito dele. Um mapa sideral marcado com “linhas” do tamanho de ruas, e “quadrados” e “blocos” do tamanho dos edifícios. A qualquer momento meus pés estavam prontos para aterrissar  no chão de papelão. Estou convencido de que o futuro está perdido em algum lugar nos terrenos baldios do passado não-histórico; está no jornal de ontem, nas publicidades insípidas dos filmes de ficção científica, no espelho falso de nossos sonhos rejeitados. O tempo transforma as metáforas em coisas, e as estoca em salas frias, ou as coloca nos parques de diversão celestiais dos subúrbios.

Teria Passaic substituído Roma como A Cidade Eterna? Se certas cidades do mundo fossem colocadas lado a lado em uma linha reta de acordo com o tamanho, começando por Roma onde estaria Passaic nesta progressão impossível? Cada cidade seria um espelho tridimensional que refletiria a próxima cidade em existência. Os limites da eternidade parecem conter tais idéias nefárias.

O último monumento era um tanque de areia ou um modelo de deserto. Sob a luz morta da tarde de Passaic o deserto se tornou um mapa de infinita desintegração e esquecimento. Este monumento de partículas minutas resplandecia sob o sol árido e brilhante, e sugeria a sombria dissolução de continentes inteiros, a estiagem dos oceanos –  não existiam mais florestas verdes e montanhas altas – tudo o que existia eram milhares de grãos de areia, um vasto depósito de ossos e pedras pulverizadas em poeira. Cada grão de areia era uma metáfora morta que se exauriu na eternidade, e para se decifrar tais metáforas se seria levado para o espelho da eternidade. O tanque de areia se duplicava como uma cova aberta – uma cova em que as crianças brincam alegres.

…todo o sentido de realidade tinha desaparecido. Em seu lugar vieram as ilusões mais profundas, falta de reação das pupilas à luz, falta de reflexo nos joelhos – todos sinais de progressiva meningite cerebral: o apagamento do cérebro…

Louis Sullivan, “um dos maiores arquitetos”,

Citado em Mobile Michel Butor

Deveria agora provar a irreversibilidade da eternidade usando uma experimento insípido para provar a entropia. Figure nos seus olhos da mente um tanque de areia dividido ao meio com areia preta de um lado e areia branca do outro. Pede-se a uma criança que corra centenas de vezes no sentido horário no tanque até que a areia se misture e fique cinza; depois disso pede-se que ela corra no sentido anti-horário, mas o resultado não será a restauração da divisão original mas um cinza mais intenso e um aumento na entropia.

É claro que, se filmássemos tal experimento poderíamos prova a reversibilidade da eternidade mostrando o filme em reverso, mas cedo ou tarde o filme se desintegraria ou se perderia e entraria em estado de irreversibilidade. De alguma forma isso sugere que o cinema oferece uma fuga elusiva e temporária da dissolução física. A falsa imortalidade do filme dá ao espectador uma ilusão de controle sobre o eterno – mas as “super estrelas” estão desbotando.

étant donnés

tradução

My Funny Valentine: Étant donnés

Quando se caminha em direção à obra Étant donnés de Marcel Duchamp no Museu da Filadélfia, caminha-se ao longo de uma grande sala onde a obra de Paul Cézanne Le Grandes Baigneuses, 1906, encontra-se diretamente à frente. Apesar de todo seu status de ícone, trata-se de uma tela bizarra. Sua escala é monstruosa, não muito adequada ao seu assunto ostensivo: nus brincando em uma paisagem pastoral. Os nus (ou podemos chamá-los de mulheres?) proliferam sentados e em pé; eles inclinam-se uns sobre os outros como as árvores que dobram-se ao vento, formando como um parênteses ao redor das bordas da pintura, que permanecem estranhamente, mas decididamente, vazias. O vazio sugere que algo sobre a idéia desta pintura afetou Cézanne como sendo algo potencialmente ridículo. É como se ele soubesse que tudo estava perdido: mulheres nuas na paisagem? Será? Em 1906?

Ao virar à direita depois de Cézanne, caminha-se ao longo da sala abobadada, e o modernismo se abre à sua frente. Vamos encarar a verdade, o Museu da Filadélfia tem uma das maiores coleções de arte moderna dos EUA: Arthur Dove, Man Ray, Constantin Brancusi. Esta mostra de obras de vanguarda que chegaram a um impasse, termina na galeria 183, a sala que contém a última e mais trabalhosa obra de Duchamp.

Étant donnés está instalada sozinha em uma sala sem iluminação e forrada com um carpete de sisal. Você se aproxima de um par de portas de madeira pesadas, desgastadas pelo tempo, portas levemente inclinadas para dentro, deixando espaço para os pés enquanto abaixa-se um pouco a cabeça para espiar pelos dois buracos situados levemente abaixo do nível dos olhos. Ao olhar através destes, vê-se uma mulher nua em uma paisagem banhada por uma luz quente e brilhante.

Mas eu avancei um pouco mais. Do outro lado das portas existe um muro de tijolos com um buraco irregular que atravessa a parede. E é através desta segunda abertura que se percebe a mise-en-scène: um manequim de mulher sem cabeça, colocada sobre uma pilha de galhos e folhas mortas, pernas estranhamente abertas, a vagina curiosamente deslocada em direção à coxa esquerda, o braço esquerdo aberto e elevando em relação ao corpo, a mão esquerda segurando um lampião. O fundo é um exercício de kitsch pastoral, obrigatoriamente contendo, árvores no horizonte, nuvens, céu azul, um lago e uma cachoeira. A queda d’água é simulada por uma luz piscando que parece feita com brilho adquirido em lojas populares. Este é o único movimento no quadro, ele brilha imitando o brilho do lampião. Embora tanto a cachoeira quanto o lampião estejam incluídos no título completo da obra Étant donnés: 1º la chute d’eau, 2º le gaz d’éclairage…, nenhum deles é a fonte de luz que ilumina a paisagem, o corpo esparramado e a parede de tijolos.

Os principiantes sempre afastam-se chocados. Aqueles que já estiveram lá antes ficam relutantes, intrigados. Do que se trata esta imagem? Pode-se sequer chamar isto de uma imagem? O que significa? Como foi feita? É possível que Duchamp tenha produzido, ao final de tudo, um diorama? Por que o grande defensor da obra anti-retiniana, o inventor do ready-made, o progenitor da arte conceitual e da crítica às instituições, fez isto?

Étant donnés tem sido um grande mistério durante anos. Instalada em 1969 no Museu da Filadélfia, foi imediatamente submetida à uma moratória fotográfica: depois de numerosas tentativas de captar ou filmar a obra, os curadores da época decidiram não autorizar fotos da obra, pois concluíram que nenhum registro era capaz de dar conta da complexidade visual e física da obra. Um dos efeitos desta decisão foi que a recepção da obra, tanto por artistas quanto por curadores, tenha sido lenta, sujeita aos rumores de quem viu o que e quando. Finalmente, esta iconoclastia contemporânea deixou que a obra ficasse suspensa como o ar: crucial mas não percebida. Mesmo quando a proibição foi suspensa e imagens do trabalho passaram a circular, as pessoas permaneceram quietas – citando Benjamin H. D. Buchloh, na introdução de uma edição especial da revista October de 1994, dedicada à Duchamp, ao dizer, lamentando-se: “o quase silêncio absoluto que rodeia o enigma escondido na Filadélfia.”

Este silêncio pode agora ser quebrado graças ao empreendimento da recente e extraordinária exposição “Marcel Duchamp: Étant donnés”. Organizada pelo curador do Museu da Filadélfia, Michael R. Taylor, a exposição – que marcou os quarenta anos de instalação da obra no museu – veio ao mesmo tempo atrasada e a calhar, trazendo-nos mais perto do que nunca da mais reticente obra de arte. Foram agrupados todos os documentos disponíveis, desenhos, objetos relacionados ao trabalho, muitos dos quais desconhecidos pelo público, resgatados da coleção de museus ou das mãos da família do artista, onde estavam por décadas. O catálogo, indispensável e lindamente escrito, enquanto coloca luz em interpretações críticas, delineia a produção e recepção do Étant donnés em exaustivos e fascinantes detalhes, assim como reproduz uma passagem crucial nas correspondências pessoais de Duchamp. O efeito combinado da exposição e do catálogo não apenas coloca os registros em ordem; torna possível uma nova conversa.

Quando o assunto é o Étant donnés, eu também fiz parte da multidão calada, embora o trabalho tenha me perseguido por anos. A primeira vez que o vi foi na adolescência em uma viagem à Filadélfia com minha mãe e minha melhor amiga do colegial. Retornei lá com frequência durante minha dissertação sobre os ready-mades de Duchamp (embora na versão final não tenha mencionado a obra!) e mais tarde fiquei obcecada por ele enquanto trabalhava em uma exposição de escultura contemporânea do pós-guerra, feitas na tradição dos famosos objetos eróticos de Duchamp dos anos 50. No catálogo da exposição “Part Object, Part Sculpture” (2005), os moldes do Étant donnés lançam uma sombra difusa em todo o projeto; no entanto, eu ainda não conseguia encará-lo de frente. A exposição e o catálogo de Taylor me permitiram encarar o que andava me desencaminhando e me perturbando ao longo dos últimos anos.

O que mais me perturbou foi o fato de que, evidentemente, eu não estava suficientemente perturbada. Em outras palavras, nunca achei Étant donnés “ofensivo” ou “chocante”. Como feminista, listei muitas críticas violentas e irascíveis contra este (para muito espectadores, trata-se de uma cena após um estupro ou um assassinato), mas nunca fui realmente capaz de articular porque não o achava anti-feminista ou misógino. Certamente, eu era capaz de reproduzir os argumentos de Jean-François Lyotard sobre a conexão do voyeurismo patriarcal com o desenvolvimento da perspectiva, resultando no aforismo imortal “Conta quem vê”. Também estava familiarizada com leituras sobre o trabalho que levavam em conta a matriz do desejo lacaniano; aqui a figura central é vista como castrada, e o espectador está envolvido neste abismo da falta. Então estava moderadamente convencida da natureza duplamente transgressiva do trabalho, seu posicionamento simultâneo do espectador como “essencialmente carnal”, como Rosalind Krauss enfatizou, e na insistência da representação em si. (Não é uma mulher, mas a escultura de uma mulher!) Mas, para ser sincera, secretamente sempre achei tais argumentos, com sua insistência na equação primária “desejo + olhar = voyeurismo” , um pouco acadêmicos demais. O radicalismo intenso de Étant donnés, na verdade seu mistério consumado, pareciam aludir a tais formulações. Tendo dito isso, eu compartilhava o sentimento de que a radicalidade do trabalho provinha da evocação do desejo – desejo pela arte, pelos corpos, pelas imagens, pelo sexo. Ainda assim, para além deste truísmo artístico-histórico, meus pensamentos e sentimentos permaneciam insipientes, principalmente quando me colocava diante dele.

“Is your mouth a little weak? When you open it to speak, are you smart?…”

ALGUNS FATOS: Entre alguns materiais antes desconhecidos e revelados pela exposição está uma série de fotografias em preto-e-branco do Étant donnés instalado no atelier de Duchamp da rua 11, em Manhattan, não muito antes de sua morte em 1968. Elas foram tiradas por Denise Hare, a artista fotógrafa e retratista, a pedido da viúva de Duchamp, Teeny, antecipando a trabalhosa desmontagem do trabalho, peça por peça, para a transferência e instalação no Museu da Filadélfia. (Foi a segunda vez que o trabalho foi desmontado em menos de cinco anos. Duchamp havia transportado-o de seu antigo atelier de longa data na rua 14 em 1965, vítima da alta nos alugueis.) As fotos são limpas e de caráter modernista, mantendo uma distância respeitosa mesmo sabendo que estava abrindo um grande segredo de Duchamp. Elas mostram o atelier de Duchamp, o colecionador de dejetos, de fragmentos das lojas de materiais de construção, de cadeiras velhas, e nos mostram o Étant donnés como um aparato improvisado: vemos a plaina, os panos, o emaranhado de fios elétricos, as luzes, os motores, os ventiladores. Vemos também a peruca da figura sem cabeça, a assinatura de Duchamp no braço direito do corpo (até hoje, escondida de vista), e o atelier “vazio” com sua porta secreta. Isto mesmo, uma porta secreta. Duchamp recebia visitas e estas saíam sem saber nada de seu projeto de vinte anos, pois todo trabalho ficava escondido atrás deste porta.

Alguns fatos mais:  Duchamp – que em 1921 declarou ter largado as artes para dedicar-se ao jogo de xadrez e que, em 1961 disse pensar que o artista do futuro teria de “ir aos subterrâneos” – trabalhou no Étant donnés entre 1946 e 1966. Durante estes anos, ele deixou que apenas duas pessoas soubessem de sua existência: sua amante, a artista brasileira Maria Martins e, depois que esta relação terminou, sua esposa, Teeny. Alguns trabalhos relacionados ao Étant donnés foram de encontro ao público nos anos 50, mas sem nenhuma indicação de que estivessem relacionados ao projeto clandestino. Destes, os mais conhecidos eram os objetos eróticos: Feuille de vigne femelle, 1950; Object-dard, 1951; e Coin de chasteté, 1954, os quais foram todos copiados em pequenas edições de bronze e reproduzidos em catálogos assim como exibidos nos anos 50’s e 60’s. Coin de chasteté, uma base rosa chiclete com uma cunha cor de cobre inserida sobre ela, foi dada a Teeny como presente de casamento. Quando a cunha é levantada, um interior rosa choque, semelhante à cor da vagina, é revelado. De acordo com Duchamp, Teeny costumava carregá-lo quando eles viajavam, levando-o a sugerir que era como um “anel de noivado”.  Feuille de vigne femelle parece o molde de uma vagina feminina e foi originalmente dada de presente à Man Ray  para que este pudesse reproduzir múltiplos com o intuito de ganhar o tão necessário dinheiro. Object-dard é talvez a mais curioso dos três, ao mesmo tempo fálico e escatológico, estranhamente vulgar e inanimado.


Uma vez que Étant donnés estava finalizado em 1966, um grupo seleto de altos curadores e patronos do Museu da Filadélfia foram autorizados a vê-lo com o intuito de assegurar de que seria aceito na coleção permanente e ainda garantir que o trabalho estaria sempre exposta ao público no museu, o qual possui a maior coleção de trabalhos do Duchamp, incluindo a obra anterior e crucial O Grande Vidro, 1915-23. O trabalho foi instalado, os quinze anos de moratória fotográfica foi instituído, e a galeria 183 foi aberta. Uma vez revelado ao público, tornou-se claro que Feuille de vigne femelle e Object-dard eram subprodutos da modelagem da figura principal. Coin de chasteté – que tecnicamente não é um subproduto de Étant donnés mas, dada a maneira como ele transita ludicamente entre o erotismo e o segredo, trata-se de um trabalho satélite – por outro lado, permaneceu um mistério restrito. (A primeira foto dele aberto está no catálogo da exposição “Part Objet, Part Sculpture”).

“Your looks are laughable, unphotographable…”

ASSIM COMO AS FOTOS DE HARE expuseram algumas das propriedades físicas do trabalho no atelier – uma série menos evocativa feita por Duchamp para seu meticuloso manual de instrução e assemblage de 1965 também o fizeram – a presença na exposição de objetos até então desconhecidos quase que literalmente completou as peças do quebra-cabeça. Entre eles estão moldes de uma mão segurando o lampião, fragmentos de corpos trabalhados, uma variedade de desenhos preparatórios, e um maravilhoso modelo do trabalho em papel cartão visando a sua instalação no Museu da Filadélfia. O catálogo continua o processo de revelação não só pelas reproduções das fotos de Hare e Duchamp mas também pelas cartas para M. Martins, datadas de 1946 a 1952, precisamente o período em que ele estava trabalhando no grande manequim. As cartas são do tipo amante desamparado (por favor me escreva) e de um artista consumido, rememorando seu trabalho no atelier. De vez em quando, são apimentadas com revelações do temperamento levemente melancólico de Duchamp: “O outono é silencioso e bonito aqui mas ao mesmo tempo tem um ar funesto, como todos os outonos bonitos – algo como um funeral relaxante das coisas”.

Uma das características que persistem sobre o que se conhece de Duchamp é que ele era um exemplo de indiferença tanto nas relações estéticas quanto nas pessoais. Mas este discurso também contradiz uma outra característica central de seu caráter. Ele teve três grandes relações românticas em sua vida: um caso que durou algumas décadas com a encadernadora e expatriada da América, Mary Reynolds (ela ajudou a Resistência Francesa durante a guerra), um caso breve com Martins e, mais à frente em sua vida, o casamento, que pelo o que se sabe foi extremamente feliz, com Teeny. Estes relacionamentos não se sobrepuseram, embora Duchamp tenha mantido uma troca de correspondências e amizade com Reynolds e Martins mesmo depois do fim das relações. Na verdade, ele viajou para Paris para estar ao lado de Reynolds quanto ela estava morrendo de câncer. Duchamp era tudo menos desleal.

Pela maneira com Taylor mostra a fabricação do trabalho, aprendemos pela primeira vez que, depois da morte de Reynolds seu irmão providenciou um testamento para Duchamp que deu-lhe dinheiro suficiente para viver modestamente sem precisar trabalhar; além do mais, Taylor conjectura que o uso do pergaminho por Duchamp para moldar a figura feminina foi graças à influência do trabalho de Reynolds como encadernadora. Também descobrimos que a figura foi moldada à partir do corpo de Martins e que o cabelo original na manequim era castanho (como os de Martins) e que foi trocado por louro depois do casamento com Teeny (cujo cabelos eram louros). Finalmente, aprendemos que em um verão muito quente em Nova York a mão que segurava o lampião derreteu e caiu. O estrago não podia ser arrumado, então foi decidido que seria substituído por um molde feito à partir do braço de Teeny. No entanto, o braço de Teeny era maior do que o de Martins, uma discrepância que contribui para a estranheza da figura, uma desconjuntura semelhante à Ingres. Cada novo pedaço de informação, é claro, aprofunda nosso conhecimento sobre o Étant donnés, mas são estes mesmos detalhes, acima de tudo, que me parecem, finalmente, desvendar os mistérios do grande segredo de Duchamp.

“Don’t change a hair for me, not if you care for me…”

CERTAMENTE, minhas convicções antigas sobre o Étant donnés como sendo, de alguma forma, “sobre” o desejo colocando-o em um continuum com o Grande Vidro e com um conhecimento comum na história da arte de toda a obra de Duchamp como sendo “sobre” o desejo; nada de novo a acrescentar. Com esta exposição eu senti que finalmente podia delinear, de uma maneira significativa, a estatura ou a qualidade deste desejo. Na verdade, a exposição me fez dar conta de que esta penúria esfarrapada dos estudos sobre Duchamp (os meus inclusive), nos quais a conversa sobre o desejo é sempre genérica (seja este capitalista ou lacaniano) e nunca aproxima o problema da especificidade do desejo. É somente agora que podemos ver que, “a mulher com a vagina exposta” (de uma carta de Duchamp à Martins) é de fato um complicado composto de três pessoas: Reynolds (o pergaminho e o dinheiro para poder trabalhar), Martins (o molde original e a intervenção) e Teeny (o braço esquerdo, o cabelo e a cor da pele). A figura é literalmente uma fusão de dois corpos, um trabalho como um todo é um palimpsesto e um testemunho dos três relacionamentos profundos.

Uma interpretação: Eu acho que Étant donnés seja sobre o amor e o desejo, o tipo de amor que se tem por uma pessoa com a qual você está em uma relação de desejo. A natureza da composição do trabalho me sugere que a nossa capacidade para o amor é infinita; não é uma emoção da qual nos livramos ou nos enfastiamos. Certamente ela pode desbotar, e muitas vezes ela o faz. Mas sua possibilidade de re-emergir é contínua e sempre presente. Étant donnés nos apresenta com uma perplexidade, mas não aquela que é comumente percebida. Sua pergunta não é, Como fazemos uma imagem do nosso infinito e insaciável desejo? mas, Como expressamos o nosso desejo quando este está intimamente ligado com a qualidade infinita do amor? Como articulamos a tensão entre a essencialmente carnal e a natureza claramente existencial do nexo entre amor e desejo? Por que nossa relação não é o desejo em si mas o outro como ele é? A imobilidade de Étant donnés, sua insistência de que seja visto sob seus próprios termos, é o começo da resposta. Propõe que o amor e o desejo não são portáteis, disponíveis para serem carregados por aí segundo a nossa ou a minha vontade. Pelo contrário, o trabalho torna espacial o fato de que quando se está envolvido no amor e no desejo é preciso acessar o outro em seus próprios termos. O termo de Duchamp é literalmente nos colocar no lugar; o trabalho me segura à uma distância, e estou permanentemente inclinando meu pescoço para ver atrás da parede de tijolos, apenas para me encontrar, estranhamente olhando para os meus próprios sapatos. E não é desta maneira mesmo que as coisas acontecem? Por mais que tentamos “entender” o outro (nosso amor), acabamos caindo em um looping narcísico, falando sobre nós mesmos quando deveríamos estar escutando.

Étant donnés nos oferece um encontro com o outro mas deixando claro que não podemos conhecê-lo. Permaneceremos eternamente separados. Seu silêncio é composto da nossa inabilidade de recordá-lo acuradamente, que é como leio o problema da vagina deslocada – uma materialização das distorções da memória. Não só o trabalho é impossível de ser fotografado, também não pode ser reproduzido nos olhos da mente. Tendemos a lembrar o primeiro encontro de uma maneira genérica e não com detalhes típicos de quem olhou de maneira prolongada. Verdade seja dita, olhar por um longo tempo é difícil, pois estamos sempre preocupados de estarmos sendo vistos por outros na galeria. Esta é sempre uma ironia notável do trabalho – ao invés de olharmos para ela somos conscientes de que estamos sendo olhados. No contexto desta exposição, eu estava mais consciente do que nunca de que estava sendo muito egoísta “tomando tanto tempo”. Estava plenamente consciente de que enquanto estava olhando pelo buraco, alguém mais não poderia estar, e esta condição de um de cada vez é análoga à estrutura monogâmica do casal, no qual apenas uma pessoa pode ocupar seu coração de cada vez. E ser um casal está na raiz da questão, pois não importa o quão chocante ou radical seja o Étant donnés, este também sugere que nunca estamos realmente livres das convenções sociais de tais arranjos amorosos, sejam as convenções da relação de amantes (Martins era casada quando ela e Duchamp tornaram-se amantes) ou do casamento – da mesma forma que não podemos nos libertar de certos arranjos pictóricos, seja a perspectiva ou a paisagem kitsch de pano de fundo.

Em Étant donnés não existe completude apenas encontros. Neste sentido, não é tanto que o trabalho seja chocante (por exemplo de uma forma pornográfica), mas um desmanche, nos termos de Leo Bersani. Como Bersani diz em O Corpo Freudiano: “A sexualidade humana é constituída por uma psique desmanchada, como uma ameaça à estabilidade e integridade do self – uma ameaça que apenas o aspecto masoquista do prazer sexual nos permite sobreviver.” Mais interpretação: Penso que Étant donnés é uma tentativa de criar uma experiência estética de desmanche que é semelhante à alienação do self que encontramos quando caímos no espaço-tempo continuum do amor e do desejo. Étant donnés tenta articular como nos arranjamos em relação ao desejo pelo outro. Aqui entra a parte do amor. Quando falamos de desejo, facilmente falamos de objetos, pois o desejo é altamente materializável. Quando falamos de amor estamos discutindo a radical interface de, pelo menos, dois sujeitos. Penso que com Étant donnés estamos bem distantes do trocadilho bem humorado do trabalho mais juvenil e mais antigo de Duchamp. Estamos profundamente inseridos no mundo adulto – no momento em que amor e desejo estão interligados, num momento em que nosso objeto de desejo complica-se na ética do amor.

A sensibilidade do trabalho é obscura. O corpo está sobre galhos e folhas mortas, e por mais parecida que a manequim seja, ela também está morta. O espectador é colocado vendo através de um buraco na porta. Embora ache que Étant donnés seja sobre amor e desejo (e sua existência enquanto um casal), também acho que produza um tipo de tensão e ambivalência análoga a regra do casamento da esperança do amor eterno e a verdade irrefutável da morte. Afinal Coin de chasteté coloca isso plenamente à vista, estabelecendo tanto o laço do casamento quanto a mentira da omissão. O segredo estava estabelecido: Os casais sabem aquilo que outros de fora não sabem, mas entre um casal também devem haver segredos que não devem ser revelados. O título do trabalho começa com Dados, como uma prova matemática – ele começa com algo irrefutável, o aspecto do problema que não pode ser resolvido e sim deve ser aceito, como se aceita um fundamento. Amor e desejo são dados; o arranjo que fazemos dele é o desafio. As implicações feministas do trabalho podem estar presentes quando acreditamos que amor e a relação de desejo com o outro constituem um encontro radical com o self – e não, como freqüentemente pensamos, uma complemento do self – e assim estamos assumindo a falta de controle e autoridade. A suposta violência do trabalho é para lembrar que quando perdemos o controle e a autoridade corremos um maior risco de sermos marcados ou machucados – se voltamos para a mise-en-scène, seremos marcados por ela, da mesma forma que deixaremos nossas marcas nela, como deixamos nossas marcas sobre a madeira da porta, um registro indelével, um palimpsesto que registra nossa presença ali.

Ao caminhar para trás, ao tomar distancia do Étant donnés, nada mais parece o mesmo. Vê-se as esculturas de Jasper Johns em vitrines, maravilhosas caixas de Cornell, e a cortina de flores de Jim Hodges, e todos estes trabalhos carregam o peso deste encontro com o Étant donnés, com o dado de nossa solidão e a qualidade funesta do nosso amor e desejo. A única piada em Étant donnés pode estar no gênero do nu e da paisagem, enquanto uma ruptura do arranjo convencional patriarcal da mulher como subserviente ao homem, alegoria, estética (apenas assinale isso), abertamente destruída por Cézanne, e completada por Duchamp. Se em Cézanne vemos uma crise na fé do artista de maneira tão sistemática, em Étant donnés, um trabalho nascido do amor e do desejo, completado lentamente, em segredo, e com comprometimento, vemos o grande dilema e o prazer do desmanche presentes naquele que é sujeito do amor e do desejo. O espectador pode ver que o segredo foi desvendado e que a tarefa em mãos é não mais produzir imagens do amor e do desejo, mas tornar nossa capacidade para estes sentimentos cada vez mais complicadas e infinitas.

“Each day is Valentine’s Day…”

Helen Molesworth para Artforum.

para descoberta de uma zona de imagens – piero manzoni

tradução

Um hábito comum entre artistas – ou pelo menos entre os maus artistas – é um certo tipo de covardia mental na qual eles recusam tomar qualquer tipo de partido, evocando uma noção mal entendida da liberdade nas artes plásticas, ou outro lugar comum do mesmo gênero.

Uma vez que eles têm uma vaga ideia do que é arte o resultado é que eles geralmente acabam confundindo arte com indeterminação.

É necessário então esclarecer o máximo possível o que significa arte, para que possamos traçar uma linha mestra para nos guiar em nosso trabalho e em nossos julgamentos.

O trabalho artístico tem sua origem num impulso inconsciente que aflora de um substrato coletivo de valores universais comuns a todos os homens e de onde tiram suas forças expressivas, e de onde o artista deriva a essência da existência orgânica.

Naturalmente, todo homem extrai o elemento humano desta base, sem perceber, de maneira elementar e imediata. A preocupação do artista está em imergir conscientemente em si mesmo e, uma vez ultrapassados os níveis do individual e do contingente, que ele possa mergulhar profundamente e atingir o germe comum de toda a humanidade. Tudo o que é humanamente comunicável deriva dessa essência e é através do descobrimento do substrato psíquico, comum a todo homem, que a relação artista-obra-espectador é possível. Desta maneira uma obra de arte tem o valor totêmico de um mito vivo, sem dispersões simbólicas ou descritivas: ela é uma expressão primária direta.

As fundações dos valores universais da arte são dados à nós pela psicologia. Ela é a base comum que permite a arte fincar suas raízes na origem pré-humana e de descobrir os primeiros mitos da humanidade.

O artista precisa confrontar esses mitos e reduzi-los, através do uso de materiais amorfos e ambíguos, à imagens claras.

Uma vez que essas forças reaparecem com origem no subconsciente, a obra de arte assume um significado mágico.

Por outro lado, a arte sempre teve um valor religioso, desde o primeiro artista-feiticeiro até os mitos pagãos, cristãos, etc.

O ponto chave está em estabelecer a validade universal da mitologia individual.

O momento artístico é portanto aquele do encontro com o mito universal do inconsciente e de reduzi-lo na forma de imagens.

Fica claro então que o artista pode trazer à luz zonas do mito que são autênticas e virgens e ele deve ter tanto um extremo grau de conhecimento próprio, quanto um apurado senso de precisão lógica.

Para chegar a tal descobrimento, fruto de uma longa e precisa formação, é necessário entrar num campo de tecnologia precisa. O artista tem que imergir em sua própria ansiedade, trazendo à tona tudo o que for alienígena, aspectos desviantes impostos pelo meio e por si mesmo, para poder chegar ao germe da nossa totalidade, onde se está mais perto do germe da totalidade presente em todo homem.

Nós podemos então dizer que a invenção subjetiva é a única maneira de descobrir a realidade objetiva, a única maneira possível de comunicação entre os homens.

Aí chegamos no ponto onde a mitologia individual e universal são idênticas.

Neste contexto fica claro que não se deve preocupar com o simbolismo e a descrição, memória, impressões nebulosas, infância, sentimentalismo: tudo isso deve ser absolutamente excluído. O mesmo deve acontecer com qualquer repetição hedonista de argumentos que já foram esgotados, uma vez que o homem que persiste na exploração dos mitos já descobertos não passa de um esteta ou coisa pior.

Abstrações e referências devem ser totalmente evitadas. Em nossa liberdade inventiva precisamos conseguir construir um mundo que deve ser mensurado dentro de seus próprios termos.

Não podemos absolutamente considerar uma pintura o espaço onde projetamos nossa cenografia mental. É uma área de liberdade onde procuramos descobrir as nossas primeiras imagens.

Imagens que são mais absolutas possíveis, que não podem ser avaliadas pelo que retratam, explicam ou expressam mas unicamente por aquilo que elas realmente são.

 

 

a arte de uma dimensão de andy warhol: 1956-1966 por benjamin buchloh

fichamento, tradução

01

PARADOXO DA ARTE MODERNA

–       Ficar suspenso entre a transcendência, o  isolamento do mundo da arte e a negatividade crítica.

–       Entrar nos escombros difusos da cultura de massa permeada pela dominação corporativa.

–       Ou como colocou Theodor Adorno: “Ter uma história ainda que sob os encantamentos da eterna repetição da produção em massa”.

CONSUMIDORES DA ELITE: UM NOVO TIPO DE ARISTOCRACIA

–       Uma aristocracia não de nascimento mas de espírito.

–       Indivíduos superiores que forjam um modo pessoal de consumo muito acima das banalidades.

RECONCILIAÇÃO

–       Ainda é um mistério se Warhol tentou reconciliar estas contradições em sua própria vida ao mudar de identidade profissional de artista comercial para um artista de fine arts.

–       Entre 1954-55 mostrou sua ambição em relação ao mundo das artes: em um folder promocional fraudou seu sucesso no mundo das artes ao declarar que suas pinturas eram exibidas nos principais museus e galerias de arte contemporânea.

MUSEU COMO SISTEMA DE VALIDAÇÃO

–       A referência ao museu como instrumento de validação da arte é usado por Warhol 30 anos depois, mas em circunstâncias diferentes.

–       Warhol integrou com sucesso os dois pólos da dialética modernista: a loja de departamento e o museu.

–       No catálogo de Natal de uma loja de departamentos em1986, era oferecido por $35,000 uma sessão de fotos com Andy Warhol.

INVERSÃO

–       Warhol invertia os blefes: o mundo comercial com legitimidade de fine arts, e o mundo das artes com inocência bruta.

–       Uma leitura mais do que perspicaz  da disposição dos artistas comerciais de estarem entre os grandes museus;

–       E dos grandes conhecedores de arte de chocarem-se com qualquer um que declare ter quebrado as regras tão controladas da alta cultura.

MUDANÇAS NAS RELAÇÕES

–       Esta prática já utilizada no passado e trazida de volta na 2º metade do século XX por Warhol, indica sua consciência da rápida mudança nas relações entre as duas esferas da representação visual e as mudanças drásticas no papel do artista e nas expectativas da audiência/público.

–       Ele logo percebeu que seria papel da nova geração de artistas de reconhecer e mostrar publicamente a extensão das condições que permitiram a formação da estética expressionista abstrata, com suas raízes românticas e noções da critica transcendental, e sua superação pela reorganização da sociedade no pós-guerra.

CONSOLIDAÇÃO DA SOCIEDADE CAPITALISTA

–       Ao mesmo tempo o “fordismo” chegou em peso; a produção em massa e o consumo em massa transformaram a economia da Europa, segundo as linhas norte-americanas.

–       Esta nova civilização criaria condições para que a cultura de massa e a alta cultura estarem forçadas a uma constante aproximação, o que eventualmente levaria à integração da esfera do mundo da arte na cultura industrial.

FETICHIZAÇÃO DA ARTE

–       Esta fusão não só provoca uma mudança no papel do artista e nas práticas culturais, na recepção das imagens e dos objetos e de suas funções na sociedade.

–       O grande triunfo da cultura de massa sobre o mundo das artes acontece com a fetichização da arte e graças ao aparato da ideologia do século XX.

ALLAN KAPROW

–       Um dos grandes articuladores desta nova geração de artistas, captou esta transformações no papel do artista, alguns anos depois: “Dizem que se um homem atinge o fundo do poço existe apenas uma direção para se tomar e esta é para cima. De alguma forma isto aconteceu pois o artista estava no inferno em 1946 e agora está no mundo dos negócios.”

MUDANÇA DO ARTISTA VISIONÁRIO PARA O ARTISTA CONFORMISTA

–       Warhol estava qualificado para promover a mudança do visionário para o conformista e participar desta transição do “inferno” para os negócios.

CREDO MODERNISTA QUE MOTIVOU WARHOL

–       Questões de produção e recepção parecem ter preocupado-o no começo – Factory.

ESTÉTICA DO COMMODITY

–       Os instrumentos perceptivos e cognitivos do modernismo seriam usados agora no desenvolvimento de uma nova estética do commodity: design de produto, embalagem, propaganda, se tornaria uma industria poderosa no pós-guerra europeu e americano.

–       A era da máquina entrava em conflito com o trabalho e a filosofia do produtor individual e do artista.

–       No entanto o artista e o homem de negócios têm tanto em comum, tanto hoje quanto antes, e podem contribuir mais para a sociedade quando estes talentos se complementam – cada um tem, dentro de si, uma grande vontade de criar, de contribuir com algo para o mundo, de deixar sua marca na sociedade.

VISÃO EMPREENDEDORA

–       Warhol trocou os últimos remanescentes da estética da transcendência por uma estética da afirmação implacável: “Negócios em arte é o passo seguinte da arte. Comecei como artista comercial, e quero terminar como um artista do mundo dos negócios. Depois que fiz uma coisa chamada ‘arte’ ou como quer se seja chamado, entrei para o mundo dos negócios da arte. Queria ser um Homem dos negócios da arte ou um Artista do mundo dos negócios. Se dar bem nos negócios é a arte mais fascinante.”

NOVOS TIPOS DE PERSONALIDADES CULTURAIS

–       O triunfo da cultura de massa sobre o conceito de estética tradicional produziu dois novos tipos.

–       Primeiro tipo: os publicitários, que tornaram-se colecionadores apaixonados de arte de vanguarda – para que pudessem abraçar a criatividade que perpetuamente os escapava e para possuirem, privadamente, aquilo que eles, sistematicamente, destroem, em seu próprio trabalho na esfera pública.

–       Segundo tipo: representados por artistas como James Harvey que, de acordo com a Times Magazine, retira sua inspiração da religião e da paisagem pois, à noite trabalha em pinturas abstratas e de dia ganha a vida como artista comercial.

–       Quando Harvey, que desenho a embalagem do sabão Brillo nos anos 60, encontrou seu desenho em 120 simulacros de madeira em uma galeria em Nova York, ele só podia direcionar sua crise de parâmetros artísticos processando Andy Warhol.

LIBERTAR-SE DO CONCEITO DE ORIGINALIDADE

–       Warhol estava preparado para reconciliar as contradições que emergiam do colapso da alta cultura na cultura industrial e de participar com a capacidade e a técnica do artista comercial.

–       Ele havia libertado-se do conceito ultrapassado de originalidade e autoria, desenvolveu uma necessidade de colaboração e um entendimento brechtiniano da idéia de commodity.

TRANSIÇÃO FÁCIL ENTRE UM PAPEL E OUTRO

–       A carreira de Warhol exemplifica o paradoxo da alta-cultura/cultura de massa, de sua divisão, até sua eventual fusão, em sua tranquila transição de um papel para outro.

–       Em sua carreira de publicitário ele apresentava todas as qualidades do tradicional conceito de “artístico” que diretores de arte adoram.

–       Seu sucesso como designer comercial dependia em parte de sua performance “artística”, no uso de uma certa noção de criatividade que era cada vez mais rara, em um meio onde cada impulso é dado no sentido de aumentar a comodificação.

–       Warhol introduziu justamente os elementos não comerciais no mais avançado e mais sofisticado meio de alienação profissional: o design publicitário.

–       Warhol era plenamente consciente deste paradoxo e afirmava: “É duro ser criativo…”

APAGAR DE SUAS PINTURAS OS TRAÇOS MANUAIS

–       Por outro lado, sua entrada para o mundo das artes dependia precisamente na sua capacidade de apagar de suas pinturas e desenhos qualquer traço manual, qualquer traço artístico e de criatividade, de expressão e de invenção – mais do que qualquer um de seus contemporâneos: Jasper Johns e Robert Rauchenberg em particular.

–       O quê, no começo dos anos 60, pareciam ser cínicas copias de arte comercial, escandalizaram o mundo das artes, cujas expectativas, no clímax do Expressionismo Abstrato, foram sacudidas mais uma vez, ainda mais depois de terem esquecido dos trabalhos de Francis Picabia e as implicações do Ready-Made de Duchamp.

RUPTURA COM AS CONVENÇÕES DA PINTURA

–       Uma anedota notória sobre Warhol, na qual ele teria mostrado duas versões de uma pintura da garrafa da Coca-Cola: uma gestualmente dramática, carregando o legado do expressionismo abstrato, e outra fria e diagramática, fazendo referência ao ready-made, agora no domínio da pintura; mostra a extraordinária capacidade de Warhol de produzir de acordo com as necessidades do momento.

–       Quão longe ele poderia ir com a ruptura das convenções da pintura e no uso dos instrumentos da arte comercial para poder entrar no mundo da arte?

EXPOSIÇÃO CONCELADA

–       Dada contemporâneo.

–       No início de sua carreira artística (entre 1960 e 1962), seu trabalho era considerado como deficiente na resolução da pintura: pintava de maneira solta e gestualmente expressiva, mas as imagens eram derivadas de close-ups de tiras cômicas e propagandas.

–       Mas estava claro que a experiência de Warhol como artista comercial qualificou-o para a natureza diagramática na nova pintura, da mesma forma que suas inclinações nas tradições artísticas um dia o qualificaram para o sucesso no mundo do design comercial.

SERIALIDADE: NATUREZA DO COMMODITY

–       A capacidade de compor objetos iguais e de arranjar as superfícies de exposição em séries de grades estruturadas surge, afinal de contas, da natureza do commodity: seu status de objeto, seu desenho, seu display.

–       Tal seriação tornou-se a maior formação estrutural da percepção do objeto no século XX.

–       Já nos meados dos anos 50, a composição em séries de grades ganhou proeminência: os arranjos de Ellsworth Kelly e de Jasper Johns prefiguravam a estratégia central de composição de Warhol.

FAMILIARIDADE COM A PRÁTICA DE VANGUARDA

– E o oposto também era verdade: a não usual afinidade de Warhol com as práticas de vanguarda nos meados dos anos 50, o inspiraram no design publicitário, com uma suposta falta de estilo que a média dos artistas comerciais não tinha capacidade de conceber.

02

TRANSFORMAÇÃO

–       Por ser comercialmente competente e artisticamente habilidoso, Warhol estava preparado como ninguém para efetuar a transformação no papel do artista americano do pós-guerra: de uma prática estética da negação transcendental para uma da afirmação tautológica.

–       Uma frase de John Cage de 1961 diz: Agora, nossa poesia é a realização de que nada possuímos. Qualquer coisa, portanto, é um deleite (uma vez que não o possuímos…).

DESMANTELA O FORMATO TRADICIONAL DA PINTURA DE CAVALETE

–       Allan Kaprow em seu texto “The Legacy of Jackson Pollock”, que funcionou como um manifesto para a nova geração de artistas americanos, depois do Expressionismo Abstrato, diz assim: “Pollock…

–       Apesar de sua perspicácia, o ensaio de Kaprow peca em dois aspectos:

–       Primeiro, a ideia de que hegemonia do expressionismo abstrato havia terminado porque Pollock “destruiu a pintura” e pela vulgarização do estilo por parte de uma 2º geração de expressionistas abstratos.

–       Isso sugere – como muitos críticos argumentavam, então – que o advento do Pop se deu por mera rebelião contra a Escola de Nova York e sua “academização” da pintura.

FATOS HISTÓRICOS

–       Este argumento estilístico pode ser facilmente refutado diante de dois fatos históricos:

–       Primeiro, que pintores como Barnett Newman e Ad Reinhardt, só foram reconhecidos em meados dos anos 60 e que Willem de Kooning e Mark Rothko continuavam a trabalhar com crescente visibilidade e sucesso; o trabalho destes artistas (e de Pollock) atingiram quase que um status mítico, representando standards éticos e estéticos já perdidos e impossíveis de persistirem no futuro.

–       Segundo, que a nova geração de artistas da Escola de Nova York, de Jasper Johns à Rauschenberg, de Claes Oldenburg à Warhol, continuamente enfatizavam, tanto em seus trabalhos quanto em suas declarações, sua afiliação e veneração pelo legado do expressionismo abstrato. Naturalmente, também enfatizavam a impossibilidade de atingir as aspirações transcendentais daquela geração.

A INOCÊNCIA DE KAPROW

–       O segundo e maior erro de diagnóstico no texto de Kaprow torna-se claro em seus contraditórios depoimentos sobre a revitalização do ritual artístico e o simultâneo desaparecimento da pintura de cavalete.

–       A concepção de Kaprow sobre a dimensão ritualística da experiência estética é colocada como algo transhistórico, como uma condição passível de ser acessada universalmente, apenas ao se alterar modos de estilos obsoletos e certos procedimentos artísticos.

–       Kaprow, fala com espantosa inocência sobre a possibilidade de uma nova estética participatória que estaria emergindo do trabalho de Pollock: “ Mas o que acredito é…

POP: O OPOSTO DA PROFECIA DE KAPROW

–       O que ocorreu, de fato, foi o oposto da profecia de Kaprow: o descarte da pintura de cavalete, iniciado por Pollock, foi acelerado e estendido para abarcar, também, os últimos vestígios do ritual na experiência artística.

–       Warhol foi quem chegou mais perto, desde de Duchamp, de desistir da pintura completamente.

–       As pinturas de Warhol eventualmente opunham-se às aspirações da nova estética da participação (como era pregada e praticada por Cage, Rauschenberg e Kaprow) ao degenerarem, precisamente, estas noções ao absoluto nível da farsa.

RENOVANDO A ESTÉTICA DA PARTICIPAÇÃO

–       Jasper Johns afirmava, categoricamente, que o conceito de participação motivava-o em seu trabalho” “Queria sugerir…

–       Sete anos depois da obra “Tango” e quatro anos depois do texto profético de Kaprow, Warhol produziu dois grupos de pinturas diagramáticas (“Dance Diagram” e “Do it Yourself”). Estes trabalhos pareciam terem sido concebidos em resposta à ideia de renovação da estética da participação; senão, uma resposta direta às pinturas de Jasper Johns e Rauschenberg, ou mesmo ao manifesto de Kaprow.

–       Ambas as obras trazem o espectador, quase que literalmente, para o plano da representação visual, como numa esquematização do corpo.

–       Uma prática de vanguarda do século XX, intencionada a instigar uma identificação ativa do espectador com a representação, trocando o modo contemplativo da experiência estética, por um outro ativo.

–       No entanto, neste meio tempo, esta tradição tinha tornado-se a chave estratégica do desenho publicitário, solicitando a participação ativa do espectador como consumidor.

MUDANÇA NOS JOGOS ESTRATÉGICOS

–       Os diagramas, que sugerem a participação nas obras citadas, transferem-se frivolamente para o plano pictórico vindos do domínio do entretenimento popular.

–       E parecem sugerir que, se a estética participativa estava em um nível tão infantil, ao convidar o participante a dar cordas em uma caixa de música, que pode-se, também, mudar a estratégia da grande arte para aqueles verdadeiros rituais de participação da cultura de massa, os mesmos que eram usados para “contê-la” e controlá-la.

INSTALAÇÃO NO CHÃO

–       A relação dialógica com o ensaio de Kaprow ficou ainda, mais evidente, depois que Warhol decidiu expor a pintura “Dance Diagram” no chão, tornando a “exposição” do trabalho um elemento essencial da leitura da pintura.

–       Simulando verdadeiros diagramas para aulas de dança, a instalação no piso não só enfatizava o convite à participação do público em um ritual trivial da cultura de massa, mas também parodiando literalmente a posição das pinturas de Pollock no chão de seu estúdio.

DESTRUIÇÃO DO LEGADO DE POLLOCK

–       A destruição do legado estético de Pollock e a critica à experiência estética como ritual participativo reapareceu na obra de Warhol 20 anos depois.

–       Precisamente no momento de crescimento do expressionismo abstrato, Warhol deu mais um golpe na crescente indústria da alta cultura, que buscava desesperadamente revitalizar o paradigma expressionista: a série de pinturas “Oxidation”, de 1978.

READY-MADES E MONOCROMIA

–       “Dance Diagram” contém dois outros aspectos importantes da obra de Warhol que, junto com a composição serial em grade, tornaram-se a estratégia central de sua produção em pintura: imagem “ready-made”, mecanicamente reproduzida e esquema monocromático de cor.

–       A adoção que Warhol fez da tradição monocromática moderna, alinha sua pintura do início dos anos 60, de uma nova forma, com algumas das questões emergentes da Escola de Nova York.

TINTA INDUSTRIAL

–       Pollock incluiu tinta industrial na cor alumínio em obras chaves; o uso de materiais industriais gerou um escândalo, enquanto a refletividade da luz concretizava uma relação óptica do espectador com a pintura, de maneira quase mecânica.

–       Warhol usava a mesma tinta industrial, e seu uso de tinta alumínio foi apenas o começo de um grande envolvimento com a “imaterialidade”, tanto com a reflexão da luz, quando com a superfície “vazia” da monocromia.

SUPERFÍCIE VAZIA

–       Na tradição modernista, o “espaço vazio” era uma estratégia de negação de imposições estéticas, funcionando como uma sutura espacial, permitindo ao espectador uma relação de mútua interdependência com a construção artística aberta.

–       O espaço vazio funcionava tanto como uma espaço hermético de resistência, rejeitando significados ideológicos atribuídos à pintura, como o falso conforto de leituras convenientes.

–       Foi certamente com estas aspirações que a estratégia da monocromia foi usada por Newman e Reinhardt, durante os anos 50 e início do anos 60.

–       Suas pinturas monocromáticas estavam imbuídas pela noção de transcendência.

–       Mas, como outras estratégias reducionistas do modernismo, a monocromia tornou-se trivial, seja pela incompetência no uso de um recurso aparentemente simples, seja pelo uso exaustivo de uma mesma estratégia, ou ainda por efeito de crescentes dúvidas dos artistas e dos espectadores com relação a uma estratégia, cuja a promessa parecia, cada vez mais, incompatível com os objetos materiais e suas funções.

REAVALIAÇÃO CRÍTICA

–       O processo de reavaliação crítica da tradição monocromática começou no contexto americano com as pinturas brancas de Rauschenberg e atingiria o clímax com as “Silver Clouds”, identificadas por Warhol como pinturas.

–       Assim, o campo monocromático e a superfície refletiva, aparentemente esvaziadas de todo incidente visual manufaturado, tornaram-se uma das principais preocupações dos artistas de vanguarda do início dos anos 50.

–       Warhol declarou que as pinturas monocromáticas deste período influenciaram sua própria decisão de pintar painéis monocromáticos no início dos anos 60.

CONSCIÊNCIA DA DIFERENÇA CONCEITUAL

–       Warhol tinha consciência da distância que separava sua concepção do monocromo e a de Kelly, por exemplo.

–       Reconhecendo que nenhuma estratégia modernista de redução, ou de negação radical e recusa, poderia escapar à fatalidade do status da pintura como objeto e commodity, a destruição de qualquer resíduo metafísico parece ter sido a tarefa de Warhol ao usar a monocromia no início dos anos 60.

CONDIÇÃO EXTERIOR

–       O que faz a inflexível negação de Warhol daquele legado funcionar, é a engenhosa realização de uma condição exterior: a contaminação da monocromia pela vulgaridade trivial do lugar-comum, o que faz seu trabalho executar a tarefa da destruição, de maneira tão convincente.

–       Warhol sabia que este processo poderia desmantelar mais do que a estratégia monocromática em si; ele percebeu que qualquer implementação da pintura monocromatica poderia neste ponto levar a um novo significado espacial – para não dizer dissipação – da pintura em geral, removendo-a da tradicional concepção de objeto plano, substancial, integrado e unificado, cuja autenticidade está, tanto no seu status de objeto único manufaturado, quanto em seus modos de exposição e interpretação.

03

MECANISMOS PÓS-CUBISTAS

–       As reproduções “apropriadas” por Warhol e sua natureza diagramática partiam do paradoxo de que, quanto mais se tornava espontânea a marca pictórica no trabalho de Pollock, mais este adquiria o traço despersonalizado da mecanização.

–       A execução da pintura, desde Pollock, parecia então ter mudado da performance ritualística da pintura – a qual a leitura de Kaprow aspirava – para o reconhecimento de que suas pinturas tinham progredido em um profundo impulso de “anti-pintura”.

–       A promessa do anonimato mecânico no processo de confecção da pintura, no entanto, não só parecia indicar a “destruição” da própria pintura – como Kaprow também havia antecipado – mas trouxe-a também para uma aproximação histórica com os mecanismos pós-cubistas de estratégias anti-pictóricas e imagens “ready-mades”.

–       Se a promessa anti-artística e anti-autoral não havia até então sido cumprida pelo próprio trabalho de Pollock, ela havia se tornando uma questão urgente nas pinturas de Rauschenberg e de John.

DESAFIANDO O CONCEITO DE AUTORIA E EXPRESSIVIDADE

–       Na obra “Famale Figure”, Rauschenberg redescobriu uma das convenções da imagem “ready-made”: a impressão imediata e indicial do fotograma e do raiograma.

–       Além disso ele desafiou os conceitos tradicionais de autenticidade e expressividade sublime, em sua parceria com John Cage, na obra “Automobile Tire Print”, em 1951, e em seu ousado “Erased de Kooning Drawing” em 1953.

–       Jasper Johns, talvez ainda mais programático, restabeleceu estes parâmetros não só em seu trabalho de moldes diretos, o qual ele derivou de Duchamp, mas também pelo uso do stencil, como também da pintura encáustica desde 1954.

–       Então, deve-se perceber que o aparente ato escandaloso de Warhol de radicalização no fazer mecânico da pintura, advinha de fato, de uma tradição que já estava desenvolvendo-se.

–       Esta tradição abrange desde as figuras chaves do Dada de Nova York – as raiografias de Man Ray e os desenhos de engenharia de Picabia, até os trabalhos de Rauschenberg e Johns dos meados dos anos 50, onde a imagem “ready-made” e a marca indicial foi redescoberta.

MECANIZAÇÃO DE WARHOL

–       A mecanização de Warhol, de início tímida e mal resolvida nas primeiras pinturas, que ainda estavam aderidas ao gesto manual, desenvolveram-se de 1960 à 1962, partindo dos diagramas feitos à mão, passando pelos carimbos e pinturas stencils, até as primeiras pinturas em silk-screen.

–       A questão que Warhol teve que considerar em 1962, era se, como seus pares, ele deveria manter algum grau de semelhança com o formato pictórico para evitar ser incompreendido – como acontecera com alguns trabalhos não-pictóricos mais radicais de Rauschenberg – ou se ele poderia ir tão longe quanto foram os trabalhos mais conseqüentes de Kaprow e Robert Watts, ou o novo realismo europeu, como o de Arman.

–       Depois de 1958-59, todos estes artistas abandonaram, totalmente, o compromisso com a pintura da Escola de Nova York, para reconsiderarem as estratégias radicais do “ready-made”.

–       E como seus colegas do Fluxus, eles causaram interesse no público de arte, ávidos pelo próximo produto de arte que pudesse ser colocado em coleções e exposições.

EROSÃO DO LEGADO DA PINTURA

–       Warhol parecia, à princípio, relutante em comprometer-se com uma representação mecânica das imagens e com os objetos “ready-made” e, em 1966, ele a inda considerava importante defender sua técnica de silk-screen contra a suspeita de serem anti-artísticos e fraudulentos: “Em meu trabalho de arte,…”

–       A solução que Warhol encontrou em 1962 foi isolar, singularizar, centralizar a representação na maneira dos “ready-mades” de Duchamp – e na maneira das bandeiras e alvos de Johns.

–       Simultaneamente à esta estratégia, com sua crescente ênfase na imagem meramente fotográfica e sua crua e infinita reprodutibilidade, avança a erosão da pintura da Escola de Nova York e elimina todo o traço do compromisso que Rauschenberg tinha com este legado.

–       As imagens fotográficas em silk-screen, assim como a repetição serial de uma mesma imagem, eliminaram a ambiguidade entre o gesto expressivo e a reprodução mecânica, da qual o trabalho de Rauschenberg tirava sua tensão.

–       Ao mesmo tempo, estas estratégias permitiram que Warhol se mantivesse nos limites da pintura, um compromisso no qual ele sempre insistiu.

EXTINÇÃO DOS RECURSOS POÉTICOS

–       As imagens de Warhol extinguiam com todos os recursos poéticos e proibiam ao público livres associações de elementos pictóricos, substituindo o último pela experiência de um confronto restrito.

–       As imagens singulares de Warhol tornaram-se herméticas: retiradas de outras imagens ou interrompidas pela sua repetição, elas não podem mais gerar “significado” e “narrativa”.

–       Paradoxalmente, as características herméticas e restritas das imagens isoladas, eram geralmente vistas como um mero efeito da banalidade ou da indiferença, ou pior ainda, como uma afirmação da cultura do consumo.

–       De fato elas operavam, antes de tudo, como uma rejeição das demandas convencionais sobre o objeto artístico para promover a plenitude da representação icônica.

–       Warhol negava a demanda por uma narrativa pictórica, com o mesmo grau de ceticismo que Duchamp negou-os em seus “ready-mades”.

–       Nas pinturas, as imagens fotográficas pintadas com silk-screen restam como os únicos traços de manufatura no processo pictórico, e este método assalta mais uma vez uma das questões centrais do legado modernista – forçando aqueles que anseiam por redescobrir as especificidades, individualidades, e a marca única da pintura, a detectá-la nos acidentes decorrentes do processo de silk-screen.

–       Quando a pintura é, de fato, adicionada manualmente, é aplicada de maneira tão mecânica, descolada de qualquer gesto expressivo ou contorno descritivo que aumenta, no lugar de diminuir, a natureza lacônica da empreita.

NATUREZA FACTUAL DA IMAGEM

–       Ao extrair da imagem fotográfica sua ambiquidade pictórica, não só trouxe a natureza mecânica da reprodução à frente, como enfatizou também a natureza factual (no lugar de artística ou poética) da imagem, uma qualidade que pareceu muito mais surpreendente e escandalosa aos espectadores no início dos anos 60 do que parece ser hoje.

ICONOGRAFIA COMUM

–       O dialogo de Warhol com a obra de Rauschenberg encontra seu paralelo em sua revisão crítica do legado de Jasper Johns.

–       A centralidade emblemática e a seriação de uma única imagem eram recursos chaves que Warhol derivou das bandeiras, alvos, alfabetos e números de Johns.

–       Depois, ele certamente insistiu em contra-atacar o caráter neutro e universal dos ícones de Johns com imagens explícitas da cultura de massa, instantaneamente reconhecíveis como os verdadeiros denominadores comuns da experiência perceptiva coletiva.

–       Depois de Warhol, as bandeiras, alvos, alfabetos e números de Johns pareciam distantes da experiência cotidiana.

–       Warhol fez a obra de Johns parecer, seguramente, localizada na zona da hegemonia da alta cultura.

–       Em contrapartida, suas nova iconografia de consumo da cultura de massa parecia, de repente, mais especificamente, mais concretamente americana que a própria bandeira dos EUA.

–       A drástica diferença na execução das pinturas de Warhol levou a obra bem executada de Johns para uma desconfortável proximidade com o glamour da cultura de massa e a crueza da vulgaridade, onde seu status de alta cultura parecia desintegrar-se.

IMAGEM FOTOGRÁFICA

–       Restam muitas questões concernentes ao status e as funções das imagens fotográficas que Warhol colocava em suas pinturas por meio do silk-screen.

–       A primeira destas questões diz respeito ao grau em que a sexualização do commodity e a comodificação da sexualidade atraíram os artistas em meados dos 50.

–       É, também, na obra de Rauschenberg, nesta mesma época, que podemos encontrar o germe desta iconografia e seus métodos de exposição.

–       O uso de Warhol fez desta iconografia prefigurou-se, não apenas em numerosas referências ao consumo da cultura de massa do trabalho de Rauschenberg dos anos 50, mas também no uso freqüente de imagens de pin-ups, ou de posters tipo “wanted”.

–       Ao invés de buscar a fonte da iconografia de Warhol, é antes necessário perceber que a cultura de consumo do pós-guerra estava cada vez mais presente.

–       Pareceu, aos artistas dos anos 50, que tais objetos e imagens tinham, irreversivelmente, tomado o controle completo da representação visual e da experiência pública.

–       O quanto era comum a preocupação com este tipo de imagem no final dos anos 50 e o quanto eram plausíveis e necessárias as escolhas dos tipos iconográficos de Warhol, fica ainda mais claro olhando mais uma vez o ensaio de Kaprow, onde ele prevê quase literalmente os tipos iconográficos de Warhol: “Não só…”

–       Em 1963, Warhol justapôs as mais famosas e comuns imagens fotográficas de estrelas glamurosas com as mais anônimas e cruéis imagens de fotojornalismo, de acidentes de carros e suicídios (selecionadas do arquivo de fotografias rejeitadas até pelos jornais diários pelo horror de detalhes).

OLHANDO PARA O OUTRO

–       Warhol agrupou as convenções fotográficas que regulam as práticas sociais de olhar o outro – a inveja da fama e da fortuna, e o sadismo pela catástrofe – e o conseqüente desaparecimento do self – em substitutos fúteis.

–       E ele articulou a dialética da imagem fotográfica como representação social com espantosa clareza programática: “Minha série…”

–       No início de 1964, Warhol usou um auto-retrato de cabine como um pôster para anunciar sua segunda exposição individual em Nova York.

–       Parece que sua atração, tanto pelas fotos dos arquivos policiais, quanto pelas fotos de cabine, tem origem na destruição dos últimos remanescentes da visão de especialização artística, presentes nas fotos automáticas.

–       Paradoxalmente, enquanto condenava a validade da capacidade manual e da especialidade técnica, a foto de cabine concretizava a necessidade crescente de representação coletiva e tornou aquela representação instantânea universalmente acessível – com a cabine o autor, finalmente, tornou-se uma máquina.

–       A sistemática desvalorização das hierarquias técnicas representacionais correspondem à abolição da hierarquia dos assuntos que valiam a pena serem representados. “No futuro todos serão famosos por 15 minutos”.

–       Enquanto Warhol construiu imagens de Marlyn Monroe, Elizabeth Taylor, Elvis Presley, que fazem referência à sua condição de existência tragicômica no glamour, sua duradoura fascinação não tem origem nestas figuras míticas, mas no fato de que Warhol construía suas imagens da perspectiva da condição trágica daqueles que consomem a imagem das estrelas. “Eu fiz…”

EXPERIÊNCIA EM TEMPO REAL

–       A dialética da cultura do espetáculo e da compulsão coletiva, revelada em cada imagem em que o glamour é apenas o reflexo estonteante de uma fixação visual, permeia toda a obra de Warhol.

–       Culminam em seus filmes, que operam nas salas de cinema como experiências em tempo real, durante um largo tempo de exibição, como uma destruição da participação do público nesta compulsão.

–       Ao mesmo tempo, eles operam na tela como instantes das habilidades coletivas, grotescas e perturbadoras, como agentes destas habilidades que, pelas performances desestruturadas e sem censura, descentralizadas e desiguais, parecem feitas por pessoas que não foram treinadas profissionalmente para a sedução visual.

–       Warhol declarou suas intenções em relação aos filmes, com sua usual clareza: “Bem, desta forma…”

04

SERIAÇÃO E EXPOSIÇÃO

–       A discussão sem fim em torno do uso da iconografia Pop na obra de Warhol acaba negligenciando um aspecto importante: seu esforço de incorporar o contexto e exercer uma estratégia de exposição de seus trabalhos.

–       Em uma exposição em Los Angeles, em 1962, a instalação de 33 pinturas na galeria foi determinada pelo numero de variedades de sopa Campbell’s disponíveis no mercado, naquele momento – Warhol efetivamente usou uma lista dos produtos Campbell’s para marcar os sabores que já havia pintado.

–       Portanto, o numero de obras expostas em uma exposição da “grande arte” era determinada por fatores externos, uma linha de produtos.

–       E podemos então nos perguntar: qual sistema determina o numero de pinturas presentes em uma exposição?

–       Por outro lado, o modo de exposição das pinturas era tão crucial quanto o princípio de repetição e sua iconografia comercial e “ready-made”.

–       O que foi sub-interpretado como pura banalidade é, na verdade, a concreta realização da existência reificada da pintura, o que condena a tradicional expectativa de uma leitura estética do objeto.

–       O trabalho de Warhol abole a busca pela leitura estética com experiência corporal, em direção ao paradoxo da cultura de massa: não um consumo físico/corporal, mas um consumo de produtos que forma a base material da experiência.

–       Inevitavelmente, as Latas de Sopa Campbell’s de 1962 e sua instalação recordam um momento crucial na história da nova vanguarda quando a seriação, a monocromia, e o modo de exposição quebraram o reino da pintura de cavalete.

–       A instalação de Yves Klein, com 11 pinturas monocromáticas azuis idênticas, em 1957 em Milão. Klein disse: “Todas…”

–       A declaração de Klein sobre sua instalação e a instalação em si revelam o grau de similaridade entre sua atitude e a quebra da seriação da pintura modernista de Warhol, e a radical diferença entre as duas proposições, separadas por 5 anos.

–       Enquanto o conservadorismo “alta-cultura” de Klein intencionava, claramente, criar um paradoxo, ao colocar em paralelo a existência da pintura como commodity e uma renovada aspiração metafísica.

–       A infindável afirmação de Warhol cancelava qualquer aspiração semelhante e liquidava a dimensão metafísica do legado modernista ao submeter, rigorosamente, cada pintura à mesma imagem do objeto e ao mesmo preço.

–       A quebra do objeto pintado em série e sua repetição na maneira de expor foram estratégias estéticas cruciais na obra de Warhol, como pode ser confirmado, alguns anos depois, em 1968, quando sugeriu que a instalação da série de 32 Latas de Sopa Cambell’s ao redor de todo o espaço, fosse o assunto exclusivo de sua retrospectiva em Londres.

–        Sua proposta foi recusada, da mesma maneira que um curador do Whitney Museum de NY recusou uma proposta de 1970 de Warhol de instalar apenas pinturas de flores ou Papel de Parede de Vaca, grudados diretamente nas paredes do museu, como o único conteúdo de sua retrospectiva naquela instituição.

–       Em uma 2º exposição, na mesma galeria de Los Angeles, em 1963 – a primeira parece ter sido, no máximo, um “sucesso escandaloso”, julgando pelo fato de que apenas umas poucas pinturas foram vendidas, oferecidas por apenas US$300.00 cada – Warhol sugeriu, mais uma vez, uma exposição monocromática, a recente série de imagens do Elvis produzida com silk-screen sobre superfícies monocromáticas prateadas.

–       Ele sugeriu que as pinturas deviam ser instaladas como “um circundar contínuo” e ele enviou um único rolo contínuo de tela com as imagens em silk-screen.

–       Como em sua primeira proposta de instalação na galeria, esta proposta ameaçava os limites da pintura como uma unidade pictórica completa e individual.

–       Agora, ele não só subverteu o que restava deste status via repetição serial, mas destruiu completamente ao expandir no espaço esta repetição.

–       O que se tornara uma grande dificuldade para Pollock, a decisão estética final de como e onde determinar o tamanho das ações pictóricas, tornava-se agora uma promessa cumprida pela deliberada transgressão dos limites sagrados de Warhol.

–       Parece, então, lógico que Warhol tenha pensado em uma instalação com papel de parede para a Galeria Leo Castelli em 1966.

–       O papel de parede era impresso com a imagem de uma vaca, um animal cuja reputação é ter um olhar particularmente desinteressado e parado.

–       Justaposto ao papel de parede, estavam os travesseiros prateados do “Silver Clouds”, flutuando e movendo-se ao longo da galeria, animados pelos corpos dos visitantes.

–       Todas as promessas mais radicais do modernismo – de evoluir do plano pictórico, através do objeto escultural, até o espaço arquitetônico e mudar o espectador de uma representação icônica, para uma participação auto-reflexiva, indicial e tátil – estão destruídas neste “ensacamento” absurdo do legado do modernismo, o final utópico dos primeiros 10 anos de carreira de Warhol.

–       A obra de Warhol até 1966 – com exceção dos filmes – oscilam, constantemente, entre um desafio extremo no status e na credibilidade da pintura e o uso contínuo de meios estritamente pictóricos, operando na estreita definição das convenções da pintura.

OBJETO

–       A pergunta que fica é, porquê Warhol nunca entrou na concepção do objeto ready-made. Warhol, nunca usou o objeto ready-made tridimensional em sua inalterada existência industrial, como um objeto cru de consumo.

–       No entanto, ele foi mais longe que seus colegas do movimento Fluxus, ao desafiar as tradicionais convenções de unicidade, autenticidade e autoria do objeto pictórico.

–       Warhol excitava colecionadores, curadores e galeristas, ao gerar dúvidas sobre a autenticidade de seu próprio trabalho e efetivamente conseguia desestabilizar seu próprio mercado: “Fiz…”

–       Duas explicações contraditórias parecem necessárias aqui.

–       A primeira, é que Warhol emergiu de uma tradição local de artistas que se distinguiram ao tornar pictórico o legado do dadaísmo, em seu engajamento com a heróica tradição da Escola de Nova York.

–       No início dos anos 60, Warhol aspirava o poder e o sucesso de Johns e Rauschenberg e não a crescente marginalização das práticas que abandonaram a pintura, como os Happenings e o Fluxus, por exemplo.

–       A distância critica que Warhol queria inserir em relação aos seus antecessores deveria ocorrer via pintura.

–       Warhol, então, teve que trabalhar através das últimas fases pictóricas iniciadas por Johns e Rauschenberg e ir em direção à abolição da pintura, uma conseqüência que logo apareceria, mediada em um considerável grau pelo trabalho de Warhol, no contexto da arte minimalista e conceitual.

–       A segunda explicação é mais especulativa e assume que Warhol estava tão envolvido no meio pictórico – a estabilidade da categoria artística inerente à este meio – que ele teria aprendido a aceitar a relativa convencionalidade de seu público e do controle institucional de validação deste meio.

–       Talvez, o ceticismo e oportunismo positivista de Warhol – que antecipavam que todos os gestos radicais dentro dos limites da produção da “grande-arte” terminariam como meras pinturas em uma galeria – permitiram que ele evitasse os erros inerentes às propostas radicais de “ready-mades” de Duchamp.

RECEPÇÃO

–       O escandaloso assalto de Warhol ao status e à substância da representação pictórica foi motivado pelo rápido desaparecimento de opções de produções artísticas credenciadas e, ainda mais, pela crescente pressão exercida pela industria cultural, no tradicional espaço isento da marginalidade artística.

–       Iconografia e blefe, procedimentos de produção e modos de exposição no trabalho de Warhol internalizavam a violência das mudanças nas condições de produção artística.

–       Como foi o caso com Duchamp e o Dada, estas práticas celebravam veementemente a destruição da autoria e da áurea, do talento artístico, ao mesmo tempo em que reconheciam neste destruição uma perda irrecuperável.

–       E, ainda, neste momento de perda total, Warhol descobriu a oportunidade histórica de redefinir a experiência estética.

–       Entender a radicalidade do gesto de Warhol, tanto em relação ao legado de Duchamp e do Dada, quanto em relação ao ambiente artístico contemporâneo no legado de John Cage, não minimiza, em absoluto, suas conquistas.

–       Já em 1963, Henry Geldzahler descreveu as razões da universalidade da obra de Warhol, com uma franqueza de tirar o fôlego, ao declarar a vitória do imperialismo: “Após…”

–       Nos países europeus de capitalismo avançado, como a Alemanha, a França e a Itália, o trabalho de Warhol foi abraçado como uma versão da alta-cultura dos cultos da baixa-cultura americana.

–       Parecia que esta forma de culto celebrava, de forma masoquista, a sujeição da destruição massiva que a produção de commodity do capitalismo tardio colocaria nas lojas dos países europeus do pós-guerra.

–       O trabalho de Warhol sugeria uma visão profética.

–       Não seria de se surpreender, então, que encontramos empresários, industriais, publicitários entre os principais colecionadores do trabalho de Warhol na Europa.

–       Parece que eles reconhecem sua identidade no trabalho de Warhol e percebem sua legitimidade cultural, mas enganam-se ao ler sua postura e seus artefatos como uma celebração afirmativa de suas próprias posturas.

–       Warhol unificou em suas construções, tanto a visão mundial empreendedora do final do século XX, quanto o olhar indiferente das vítimas desta visão de mundo, os consumidores.

–       A cruel indiferença e o estrategicamente calculado ar distante do primeiro, permitiu que continuasse, sem nunca ser questionado em termos de sua responsabilidade, combina com a de seu opositor, o consumidor, que pode celebrar, na obra de Warhol, seu próprio status de ter sido apagado enquanto sujeito/assunto.

–       Regulados, como estão, pelo eterno gesto alienante e repetitivo de produção e consumo, estão barrados de acessar uma dimensão critica de resistência.