Artur Jorge abre-nos a porta do seu apartamento, nas Amoreiras, em Lisboa. “Boa tarde. Muito prazer. Entrem.” A voz profunda e calma não disfarça o caráter reservado, tímido. Palavras curtas, mãos nos bolsos, o olhar virado para baixo mas que, nas alturas certas, aponta ao interlocutor, para sublinhar convicções. Sentamo-nos num sofá da sala de estar e olhamos à volta. Paredes cobertas por quadros, estantes de prateleiras abauladas com o peso de centenas de livros, prateleiras repletas de pequenas estátuas africanas e um armário sobrelotado de CD de jazz e música clássica. Não há um troféu desportivo à vista.
Um curso superior em Filologia Germânica, amante de poesia, colecionador de arte. Dizer que o Artur Jorge não é o típico homem do futebol é ser preconceituoso em relação a esse mundo?
Umas pessoas fazem umas coisas, outras fazem outras.
Mas conheceu muita gente que partilhe os seus gostos?
Sim, sim. Na conversa com essas pessoas ficamos a saber coisas que não saberíamos se não as conhecêssemos. Há gente nova, que pensa de outra maneira.
A verdade é que continuamos a ouvir futebolistas e até treinadores com dificuldade de conjugar o sujeito com o verbo.
Já não é bem assim. Tudo vai mudando. As pessoas, hoje, estão interessadas em mais coisas. Foram por outros caminhos. Não vamos dizer já que a situação está fantástica, mas está muito melhor.
Foi acusado de ser distante, por jogadores.
Não sou distante. Nunca fui uma pessoa de falar muito, o que não diz nada sobre a pessoa que sou.
Mas tornou-o incompreendido, em alguns momentos da sua carreira.
Se calhar, sim. Houve uma altura em que as coisas se complicaram. Mas há muitas razões para isso.
. Nasceu a 13 de fevereiro de 1946, no Porto
. Jogou como avançado pelo FC Porto, Académica, Benfica e Belenenses
. Foi 16 vezes internacional pela seleção
. Como treinador, passou por 18 equipas, incluindo três seleções (Suíça, Portugal e Camarões), de que se destacam o Porto, o Paris Saint-Germain (PSG) e o Benfica
. O seu último clube foi o Créteil, da 2.ª liga francesa, na temporada de 2006/07
. Como jogador, venceu quatro campeonatos nacionais e duas Bolas de Prata (melhor marcador), sempre ao serviço do Benfica
. Como treinador, venceu quatro campeonatos nacionais (três com o Porto e um com o PSG) e uma Taça dos Campeões Europeus (pelo Porto)
O AMOR PELA ARTE
[Nascido no Porto a 13 de fevereiro de 1946, o menino de boas famílias Artur Jorge Braga Melo Teixeira percebeu cedo que tinha jeito para o futebol, ainda que o futebol fosse apenas uma paixão no meio de muitas, como o andebol ou o bilhar. Precavido, juntou o útil à segurança de um plano B e transferiu-se para a Académica de Coimbra, entrando na Universidade (e na república Ninho dos Matulões, antirregime, ligada à revolta dos estudantes de 1969).]
Imagina hoje ter tido outra vida? Ser professor, por exemplo?
Podia ter sido. Mas já quando tirei o curso não estava a pensar aproveitá-lo para trabalhar. Fiquei sempre perto do futebol. Mas a vida, como você sabe, vai para um lado e para o outro e a gente não a consegue dominar de todo. Nunca sabemos o que vai acontecer.
Era essa a vida que os seus pais tinham planeado para si?
A minha mãe morreu quando eu tinha 17 anos e o meu pai quando ia nos 20 e poucos. Mas não tive nenhum problema com eles a esse nível. A minha família sempre me apoiou no que fiz. Se calhar, até demais.
Foi a sua família que lhe despertou o gosto pela arte?
Não. Foram mais os amigos, coisas que a gente via… A arte sempre me interessou e acompanhei, mesmo levando em conta a minha profissão.
Hoje em dia, um futebolista não compra Picassos, compra Ferraris. Pelo menos, é a imagem que passa.
Tudo depende do gosto das pessoas, para onde estão viradas, da sua ideia de vida.
É amigo de João Cutileiro. Foi ele que sugeriu algumas obras?
Não. Aliás, até tenho muitas coisas dele. Mas nunca me disse nada em relação às obras. São questões pessoais. Estou convencido de que quando se compra uma obra de arte é porque nos toca muito. Ou gostamos e temos possibilidade de a comprar ou então…
Lembra-se da primeira obra que comprou?
Não.
Ainda era jogador?
Sim. Comecei por comprar aquelas coisas que as pessoas compram quando são mais jovens. E quando somos mais jovens temos menos dinheiro. Portanto, compramos aquelas coisas que são bonitas mas, se calhar, são as que temos possibilidade de comprar. Litografias.
Coisas que não compraria hoje?
Os nossos gostos vão mudando. Há coisas que ainda hoje são bonitas. E outras que não.
Há alguma obra que nunca venderia?
Não. Quando nós compramos uma coisa, é porque gostamos, na altura. Mas hoje em dia isto não para.
Não é uma pessoa emocionalmente apegada a objetos, então?
Não. Mas sou capaz de me lembrar onde comprei determinada coisa e das dificuldades que tive para a comprar.
Já começou a escrever a sua biografia?
Não estou para aí virado.
Mas já pensou nisso.
Já me fizeram essa pergunta, mas não. As pessoas sabem a minha história, mais ou menos. Uma pessoa que foi jogador e treinador de futebol e não sei quê, e os golos.
Não sabem o que ia aí dentro.
Há coisas que são mais individuais, que não queremos dizer. Não porque faça mal, mas porque são pessoais.
Não sente necessidade de contar melhor alguns episódios?
Quando fui jogador de futebol, tentei fazer o melhor possível. Quando fui treinador, também. O resto, são coisas pessoais, para mim, para os meus filhos, para os meus netos, que, daqui a uns anos, já percebem estas coisas.
A POESIA
[Escrever não seria uma novidade para Artur Jorge. Em 1983, era já treinador (do Portimonense), editou o seu primeiro livro de poemas, chamado Vértice da Água, que foi editado pela Projornal. Primeiro e, pelos vistos, último.]
Ainda escreve poesia?
Não. Isso foi uma coisa que se passou na minha vida, mas depois. Gosto muito de poesia, leio muito, mas deixei de escrever. Há muitos anos.
Nunca mais escreveu nada?
Não. Não me pergunte porquê. Sei lá, porque me interessei por outras coisas. Lembro-me perfeitamente dessa altura, em que me dava um grande gozo escrever poesia. E mudei. Olhe, se calhar mudei-me para as pinturas.
E ler, ainda lê muito?
Sim, muito. E vou ao cinema, e vejo cinema em casa. Faço o possível por passar um bom bocado. E vejo muito desporto, na televisão.
Anda numa fase de aproveitar as coisas boas da vida, portanto…
Muito. Vou ao teatro, ao cinema, a concertos. Coisas que me dão gozo.
[É sobretudo acerca dessas coisas que Artur Jorge conversa com os amigos (muitos, velhos companheiros que vêm da infância e adolescência; poucos mantém dos que conheceu no futebol). Um livro que leu, um concerto a que assistiu, um compositor, da sua família. De futebol, fala pouco. Um palpite aqui, uma opinião ali, nada de esgotante. Mas foi o futebol que lhe deixou as memórias mais felizes e as cicatrizes mais profundas. Neste caso, mesmo que lhe custe admitir.]
Os momentos que mais o marcaram passaram-se no desporto ou fora dele?
Há grandes momentos em tudo. Acontecem coisas fantásticas em todo o lado.
Fez mais amigos ou mais inimigos, no futebol?
Tive um problema no futebol: marquei golos a todos. Ao Sporting, ao Benfica, ao Porto. E se calhar não é só por isso. Tenho alguma dificuldade em dizer exatamente o que penso disso. Não sei como lhe hei de responder.
[Sente-se, nas suas pausas e hesitações, as dificuldades em falar de coisas más, como se avivar as memórias lhe doesse. Talvez lhe passe pela cabeça a amizade estragada com Toni, que o acompanhou desde a Académica, nas lutas pelos direitos dos futebolistas e com quem andou a espalhar panfletos da CGTP, em nome do sindicato dos jogadores. Amigo que nunca lhe conseguiu perdoar completamente o silêncio, quando Artur Jorge soube que o ia substituir como treinador do Benfica, em 1994. “Ele tem uma personalidade muito complexa”, comenta o próprio Toni, com mais mágoa que rancor. “Reservado, introvertido, metido na sua concha. Mas atenção! o que eu quero dizer dele é que era um bom colega e um nome incontornável do futebol português, com uma grande carreira.”]
AS SAUDADES
Quem admira no futebol de hoje?
Os grandes jogadores. Quando vejo alguns jogos de futebol… Pertencem a outro mundo, jogadores como… Sei lá. Nem vou dizer quais, senão as pessoas ficam zangadas comigo.
Diga lá um.
O Messi é um jogador único. Mas quando digo Messi ficam zangadas comigo porque não digo Cristiano Ronaldo. Sim, é assim, sabe. Não podemos dizer o que pensamos. A vida é assim. E como não temos 25 anos, vou fazer 65 daqui a uns meses, sabemos que há coisas que não devemos dizer.
Está desempregado ou reformado?
Não sei bem o que dizer. Estou a fazer coisas que não fazia: ler os jornais todos os dias, ir ao teatro, ver cinema. Durante tanto tempo não fazia nada disso! Era só futebol. Havia outras coisas que me faltavam. Bem, hoje vejo mais futebol na televisão. De facto, há algo que me falta agora. Se me perguntar exatamente o que se passa comigo, nesta altura… Acho que sei, mas não lhe vou responder. [Risos.]
Se tiver uma proposta..
Boa. Só se tiver uma proposta boa.
Então, quer voltar a treinar.
Se houver algo interessante. As coisas, hoje, são diferentes do que eram. O futebol mudou muito. Não sei se é melhor ou pior. É diferente. Os treinadores… não são eles que aparecem. São outras pessoas que os metem nos sítios. Não estou contra isso, mas nunca trabalhei assim.
Está a falar dos agentes desportivos.
Sim, um bocado. São situações novas…
Sente-se um estranho nesse novo mundo?
Não sei. Nunca tive um secretário técnico. E, hoje, são os secretários técnicos que vão falar com os clubes. Mas não estou nada contra isso. É uma nova maneira que os treinadores têm de se promover. Aliás, houve uma altura em que fui para um clube e me perguntaram se queria trabalhar com alguém. Eu disse que não. Não levei ninguém e depois foi… foi uma chatice.
… Benfica?
[Risos.] Não estou a falar de coisa nenhuma. Estou a falar de um caso que se passou na minha vida.
Já lá voltamos.
A IDADE DA INOCÊNCIA
[Em 1969, numa das fases mais quentes das lutas estudantis em Coimbra, a Académica de Artur Jorge enfrentava o Benfica (clube para onde o futebolista iria nesse ano), na final da Taça de Portugal. O protesto dos jogadores da Briosa contra o regime fez-se de braçadeira branca ao braço, mas Artur, já sob olhos atentos, não teve dispensa do serviço militar, em Mafra, para jogar.]
Hoje ainda é um homem de esquerda?
Sou. Sempre fui. Mas uma pessoa com a minha idade não pensa como pensava há 40 anos.
A inocência perdeu-se pelo caminho?
Sim, que é o que se passa com a maior parte das pessoas, no mundo inteiro. [Risos.]
Os tempos de ilusão pós-25 de Abril deram lugar a tempos de desilusão?
Todos pensávamos que as coisas iam evoluir de maneira diferente. Quer dizer, não vamos comparar o que esta terra era com o que é hoje. Há diferenças enormíssimas. Isto era um país completamente atrasado. Mas, mesmo assim, estamos um bocadinho desapontados. Espero que as coisas melhorem, mas esperamos isso todos os dias e as coisas estão é a piorar.
Vive em Lisboa há muitos anos. Nunca lhe passou pela cabeça voltar a viver no Porto?
Não. Estive a jogar no Benfica cinco anos, depois fui para fora. Sempre pensei nessa possibilidade de voltar. Ao mesmo tempo, muitos amigos meus ficaram por cá.
Já não regressa, nesse caso?
Não sei. Na nossa vida nunca podemos dizer grande coisa, porque não sabemos. Tem a ver com o futebol, com o que nos apetece. Não sei.
A CICATRIZ
[É hora de regressar ao tema que, avisam os amigos, mais lhe custa: o Benfica. “Ele tinha o sonho de construir uma grande equipa. Foi por isso que recusou convites do Inter de Milão e do Real Madrid”, lembra Eugénio Alves. “É essa a grande frustração da sua vida.”]
A sua ida para o Benfica foi um ponto de inflexão na sua carreira. Ainda se ressente disso?
Não. Quando a gente vai para um sítio, pensa que as coisas vão correr bem. Mas nem sempre tudo corre bem. Neste caso, correu pior do que eu estava à espera. E do que o Benfica estava à espera.
E sente-se injustiçado pela amargura que alguns benfiquistas ainda lhe guardam?
Não vou por aí. Acho que o facto de ter ganho a Taça dos Campeões pelo Porto… As pessoas daqui ficaram zangadas comigo. Mas o que é que quer que lhe faça? Eu fiquei supercontente. É a vida.
O futebol é um espetáculo único, mas também desperta o pior que há dentro de cada um: o ódio irracional, que depois se traduz em intolerância, raiva, racismo, violência…
O futebol cresceu, os pontos valem cada vez mais, ganhar e perder tem um significado diferente de há 30 anos. Todos gostávamos que não fosse assim. Infelizmente, é. Em Portugal e no mundo. Há coisas que a gente não entende. Gostávamos (e foi para isso que o futebol se fez) que o futebol fosse assim: se os meus ganham, fico contente; se perdem, menos contente. Mas importante é que a gente veja o jogo. Hoje em dia, as pessoas são mais difíceis. Cada vez estão mais umas contra as outras.
Mas porque é que isso acontece?
Não sei. As pessoas não encaram isto de maneira razoável, desportiva. Estão sem paciência nenhuma. Tem a ver com o que se passa à nossa volta, não no futebol. Está tudo mais nervoso, mais aborrecido.
[Impaciente é coisa que Artur Jorge nunca se mostra, em mais de uma hora de conversa. Mas os dez minutos seguintes são, nota-se, desconfortáveis: é hora da fotografia. “Mais? Vá lá, já chega. Agora quer que me sente nesta cadeira? Está bem, está bem, pronto.”
Tentamos distraí-lo dos flashes com conversa sobre a arte que lhe cobre a casa, sobre a família e os amigos, de quem fala com carinho e entusiasmo.]
Um amigo seu diz que até estava a vê-lo ser jornalista. Que teria jeito…
Ahn? Jornalista? Hum. Não me parece.
[O treinador torce o nariz e olha para o chão, a pensar. Não, não está a ver-se a ser outra coisa. Artur Jorge pode parecer um estranho, no mundo do futebol, mas o futebol não lhe é estranho. É o que o define.]