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Figura: Studi sull’Immagine nella Tradizione Classica • 3 • 2015 GIANFRANCESCO ROMANELLI, A IDADE DE OURO BARBERINI E A PINTURA BARROCA EM ROMA NO SEISCENTOS Elisa Byington Figura 1 Giovanni Francesco Romanelli Putti che pescano / Meninos que pescam, 1637 Encáustica sobre cartão colado sobre madeira, 159 x 310 cm. Rio de Janeiro, coleção da Fundação Eva Klabin O propósito do nosso texto é situar historicamente e contextualizar, no âmbito do mecenato artístico que o originou, o belo cartão preparatório em encáustica com Giochi di putti – “Jogos de putos”, seria em português castiço. Na língua inglesa são chamados de Putti’s games ou Games of putti. Nós os chamaremos de “Jogos Infantis”. Putti são figuras infantis, geniozinhos que se originam no repertório da arte clássica grega ou romana, encontrados na arte Renascentista e Barroca tanto com o papel de espíritos angélicos quanto de arqueiros do amor profano, dotados ou não de asas. 39 Elisa Byington Gianfrancesco Romanelli O cartão dos Meninos que pescam [Fig. 1] que pertence à coleção da Fundação Eva Klabin, situada no Rio de Janeiro. é parte de uma série de sete, destinados a análogo número de tapeçarias com “Jogos Infantis” realizadas para o cardeal Francesco Barberini, Cardeal Nipote do papa Urbano VIII, em Roma, 1637. É obra bem documentada, apesar de não contar com estudos específicos e da apresentação lacunosa do catálogo da Fundação. Os cartões foram inspirados no conjunto de 20 tapeçarias desenhadas por Rafael e seu atelier, sob encomenda do papa Leão X Medici mais de um século antes, para decoração da faixa inferior das paredes da Sala de Constantino na ocasião dos banquetes, amenizando com estas imagens leves e jocosas a gravidade da temática tratada nos afrescos de tema histórico na parte superior das paredes1. O projeto tinha sido concebido como celebração alegórica da “Idade de Ouro sob os Medici” e encomendado ao atelier de Peter van Aelst em Bruxelas2. A família Medici havia gerado três papas e, além disso, os Medici eram os grão-duques da Toscana, referências importantes para a imagem e legitimidade social dos Barberini, família de origem florentina sem muitos lustros. Foram inspiração constante para a atuação cultural dos Barberini. Do ponto de vista artístico, Rafael era referência absoluta, o modelo de classicismo mais desejado, eleito como o mais perfeito pelas doutrinas estéticas daquele momento. 1 A Sala de Constantino, decorada com a batalha com a Batalha da Ponte Milvia (852x376cm), é a última das célebre quatro Stanze realizadas por Raphael de Urbino e seu atelier, entre 1508-1524, no Palazzo Apostolico Vaticano. Raphael morre precocemente em 1520 e a decoração deste ambiente é terminada por seus assistentes. 2 Vasari atribui a paternidade dos cartões das tapeçarias a Giovanni da Udine, hipótese corroborada pelos frisos de sua autoria na Villa Madama em Roma, muito semelhantes. Mas há os desenhos de Tommaso Vincidor e uma carta deste ao papa Leão X de Bruxelas, datada 20/07/1521, referindo sobre a conclusão das tapeçarias. A. Gnann argumenta que a paternidade das invenções seria do próprio Raphael. Cf. Roma e lo stile classico di Raffaello (1515-1527), catálogo de exposição em Mântua e Viena (Org. K. Oberhuber e A. Gnann). Milão: Elekta, 1999, p. 238-239. (Há na coleção da Biblioteca Nacional uma xilogravura do Mestre do dado baseada nos desenhos de Tommaso Vincidor para uma das tapeçarias de Raphael perdidas. Cf. BYINGTON, Elisa. Giorgio Vasari, invenção do artista moderno, catálogo da exposição. Rio de Janeiro: Fundação Biblioteca Nacional, 2011, fig.76, p. 115. 40 Figura: Studi sull’Immagine nella Tradizione Classica • 3 • 2015 Infelizmente, a série de tapeçarias do século XVI não sobreviveu. Provavelmente pela quantidade de metal precioso empregado, que fez com que muitas fossem queimadas para extraí-los. Mas delas foram feitas muitas cópias. Até mesmo pela Arazzeria Barberini, instituída pelo papa em Roma, em 1627, onde trabalhavam tecelões vindos de Flandres, origem de uma cópia datada possivelmente de 16353. O cartão realizado em encáustica por Gianfrancesco Romanelli possui ainda hoje cores frescas e vivas. É obra muito bela e sedutora na graça dos movimentos, na variedade de posição das figuras, dos corpos bem torneados, na harmonia das cores claras – o azul claro, o rosado das vestes e da pele dos meninos, o amarelo dourado predominante na paisagem que ambienta a cena. A beleza dos rostos e dos cabelos cacheados são características diretamente devedoras do mestre Pietro da Cortona, o maior pintor do barroco italiano, grande estudioso de Rafael, o “Bernini da pintura”, de quem Gianfrancesco Romanelli, autor do cartão, era “discípulo e êmulo” – como definiu Giovan Battista Passeri, biógrafo de ambos os artistas e teórico da época4. As poses variadas dos meninos, entretidos com as armadilhas para os peixes, seguem uma linha ondulada segundo o movimento natural e harmonioso das figuras, postas em planos sutilmente distintos no espaço do quadro. No primeiro plano, temos a margem na qual estaria situado o espectador da cena, diante das águas, no ponto em que o riacho faz a curva. A paisagem natural – terra, rochas e árvores de folhagem variada – é muito bem descrita, gênero pictórico que tem grande revival no gosto do século XVII em Roma. A fieira com os peixes no canto direito mostra o resultado da pesca no mesmo ponto de onde parte o grito de dor do menino menor que tem seu dedo mordido por um caranguejo. A imagem 3 A tapeçaria do Metropolitan Museum, Nova York, Two putti trying to stop a monkey, pertence a uma série de 8 tecidas na Arazzeria Barberini, reproduzindo parte das 20 encomendadas pelo papa Leão X a Rafael de Urbino em 1520. 4 PASSERI, Giovan Battista, Vite de’pittori, scultori ed architteti che anno lavorato in Roma, morti dal 1641 al 1673, ed. Gregorio Settari. Roma, 1772. 41 Elisa Byington Gianfrancesco Romanelli bucólica, densa de significado alegórico, adverte sobre as insídias que se escondem sob a aparente calma e os prazeres da vida, mensagem moralizante presente em outros quadros da época, como, por exemplo, Ragazzo morso dal ramarro de Caravaggio, entre outros deste mesmo ambiente cultural. Figura 2 Meninos que pescam, 1637 Tapeçaria em lã, seda, ouro e prata Museu do Palácio Veneza, Roma O “cartão” de autoria de Gianfrancesco Romanelli (Viterbo 1612- Roma 1662) é obra preparatória para a tapeçaria que aqui vemos [Fig. 2], realizada em lã, seda, ouro e prata pela Arazzeria Barberini, em Roma, manufatureira destinada à tecelagem de obras preciosas para o papa Urbano VIII Barberini e sua corte, instituída por este em 1627. A iniciativa de fundar a Manufatura é possivelmente inspirada por um outro Medici, 42 Figura: Studi sull’Immagine nella Tradizione Classica • 3 • 2015 Cosimo I Medici, primeiro grão-duque de Toscana que, por volta de 1540, havia instituído uma tecelagem nos mesmo moldes em Florença, empregando mestres flamengos. Em 1637 Romanelli realizou sete cartões para a série de tapeçarias com os “Jogos Infantis”, além de cinco frisos, que retomavam o modelo das tapeçarias de Rafael, simplificando a temática e apenas reproduzindo o esquema compositivo. Nos desenhos rafaelescos, cupidos alados jogam com grandes guirlandas de frutas e flores, diferentemente da série seiscentista onde os jogos infantis são ambientados em belas paisagens, de acordo com o renovado prestígio que o gênero gozava em relação à época do modelo quinhentista. Os outros cartões em encáustica, análogos ao presente, encontram-se na Villa Lante em Bagnaia, célebre residência renascentista nos arredores de Viterbo, terra de Romanelli, na região do Lácio. Da série de sete tapeçarias, apenas cinco se conservaram e desde 1933 estão na coleção do Museu Nacional do Palácio Veneza, em Roma. Eram parte da coleção de três mil obras reunidas pelo diplomata americano George Washington Wurts e doadas pela viúva Henriette Tower 5 . Observem a posição invertida da cena na tapeçaria em relação ao cartão que lhe serve de modelo. À exemplo das gravuras, para as quais acontece o mesmo, a posição da cena resulta invertida em relação à matriz. O tema da série nos remete à Idade de Ouro da Civilização, Era da Inocência primordial, recurso metafórico muito apreciado para mitificar pontificados e reinos. Celebrava o momento em os homens viviam em harmonia com seus semelhantes e com os animais, alimentando-se simplesmente do que lhes era oferecido pela natureza, não só os peixes, mas também o mel das abelhas ao qual alude a colmeia pendurada em um galho de oliveira no canto esquerdo, o qual, por sua vez, é envolvido por 5 Por motivos de espaço, a série completa das tapeçarias atualmente não está exposta no Palácio Veneza. Apenas Meninos que jogam petanque e Meninos que brincam com a coruja estão expostos no corredor de comunicação entre o Museu e as Salas Monumentais – segundo fui informada pela diretora do Museu, Dra. Andreina Draghi. 43 Elisa Byington Gianfrancesco Romanelli um galho de parreira, ambas árvores eloquentes nesta espécie de gramática simbólica. Sob o aspecto alegórico, o mel era distintivo da Idade de Ouro. Mas era também símbolo da fala harmoniosa e da eloquência, enquanto as abelhas eram elemento heráldico do brasão dos Barberini – grupos de três sobre o campo azul – exibido repetidamente nas bordas das tapeçarias. A cena ambientada na luz dourada, consoante o tema, a beleza dos meninos entretidos na pescaria, comunicam imediata sensualidade, empatia, harmonia, felicidade, características que fizeram de Pietro da Cortona o mais importante pintor em Roma a partir dos anos 30. Nos mesmos anos em que realiza os cartões com os “Jogos Infantis”, Gianfrancesco Romanelli trabalhava como assistente de Cortona na abóbada do Palácio Barberini. A grande abóbada de 14,5 x 24m é um marco para a estética barroca e toda a pintura do período6. Uma pintura altamente ilusionista e de grande complexidade temática que demonstrava a extraordinária capacidade que possuía Pietro da Cortona de traduzir ideias em imagens: era a celebração sem precedentes do poder espiritual e temporal do papado romano e, ao mesmo tempo, a glorificação da família Barberini. A abóbada foi louvada pelo papa e comparada por ele à excelência das Stanze de Rafael no Vaticano. Não pela semelhança estilística, mas para promover a ideia de que, no seu pontificado, as artes haviam alcançado a qualidade da época áurea do Renascimento, correspondente ao papado de Leão X, quando vivia o chamado “trio de ouro”: Leonardo, Rafael, Michelangelo7. 6 C. Strinati aponta para a influência imediata de Pietro da Cortona sobre todo o ambiente. O “cortonismo” captura também Andrea Sacchi além de todos os pintores que trabalhavam em sua proximidade a partir do final da terceira década. STRINATI, Claudio. “L’Influenza di Pietro da Cortona nell’ambiente romano”. In: Pietro da Cortona (1597-1669), catálogo da exposição. Milão: Elekta, 1997, p.174-178. 7 O conceito é de Paolo Giovio, médico e historiador de grande erudição e influência, que elege e escreve pela primeira vez, entre 1525-27, as biografias dos três artistas. 44 Figura: Studi sull’Immagine nella Tradizione Classica • 3 • 2015 Gostaríamos de alargar o foco para uma visão do contexto, falando brevemente sobre as tendências artísticas contrastantes que convivem em Roma nas primeiras décadas do século XVII e sobre o mecenato Barberini que encomenda a obra em questão. A reação ao chamado Maneirismo, a seus excessos artificiosos, ocorre no que podemos imaginar como um campo de forças em tensão, na busca comum de renovação da linguagem artística: os artistas trabalhavam entre a admiração pelo repertório da arte clássica e o compromisso com a observação da natureza, o gosto pela erudição antiquaria e pela experimentação de novas formas, a ostentação espetacular e o realismo engajado de interpretação pauperista. Não, o barroco não possui uma raiz unívoca. Tendências opostas contavam com artistas excelentes, presentes em Roma naquele momento de grandes transformações, portadores de distintas visões de mundo. O início do século XVII viu surgir a arte revolucionária de Caravaggio, com sua dramaticidade e realismo que trazia os episódios sacros para as ruas do presente; as quadraturas vertiginosas de Agostino Tassi, que descortinavam um espaço além; as grandes cúpulas ilusionistas de Giovanni Lanfranco, influência para todas as cúpulas barrocas que vieram depois; a perspectiva aérea e luminosa de Pietro da Cortona, sobre quem falamos, a ousadia compositiva de Francesco Borromini, que parecia desafiar as leis da estática em suas arquiteturas, combinando côncavo e convexo no lugar do clássico percurso retilíneo (imagem da impermanência, diríamos hoje) e as realizações de incomparável inventiva plástica de Gianlorenzo Bernini (1598-1680), o mais longevo de todos, arquiteto, escultor, pintor, teatrólogo, cuja atuação atravessa o século quase inteiro. Uma brilhante geração de artistas cuja singular energia e força criativa os impeliu a lutar contra os limites da matéria até conseguir dobrá-la, segundo a própria imaginação. Os materiais pareciam transfigurar-se no seu oposto, de modo que o mármore parecia macio como a cera, as fachadas dos edifícios pareciam estar em movimento, a pintura persuadia o espectador 45 Elisa Byington Gianfrancesco Romanelli de sua realidade e oferecia um espaço imaginário verossímil, fundia espaço real e espaço pictórico em uma nova unidade espetacular, suntuosa. O pontificado Barberini (1623-1644) – mecenas do cartão que motivou este texto – durou 21 anos, marcando de maneira indelével o panorama artístico italiano e europeu. Urbano VIII era poeta e intelectual refinado, quando cardeal, foi amigo de Galileu Galilei, frequentador do ambiente do cardeal Borghese, colecionador ávido, artífice da incomparável coleção de arte que admiramos ainda hoje na Galleria Borghese, em Roma, ambiente superlativo de convívio entre intelectuais e artistas, considerado o berço da arte barroca8. Gian Lorenzo Bernini cresceu ali. Antes de ser eleito papa, o Cardeal Barberini participou ativamente da idealização do grupo escultórico Apolo e Dafne de Bernini (1598-1680) quando o escultor tinha pouco mais de 20 anos. Sugeriu o tema e escreveu os versos que comentavam a metamorfose da ninfa Dafne, transformada em árvore de louro para fugir ao amor de Apolo. A escultura eterniza o instante da metamorfose, o momento em que os dedos dos pés se transformam em raízes, as mãos em galhos e folhas de louro, enquanto Apolo, ao abraçar a ninfa, toca a casca da árvore, não mais o seu corpo. Nos versos de Ovídio que descrevem a metamorfose, Apolo ainda sente as batidas do seu coração sob a superfície inumana. “Quem no amor persegue as alegrias da beleza fugaz, enche as mãos de galhos e colhe frutos amargos” – diziam os versos de Maffeo Barberini postos no pedestal que registrava a leitura alegórica moralizante daquelas imagens de nudez que, de outro modo, poderiam parecer estranhas na casa de um cardeal em plena Contrarreforma. Dada a presença constante da coroa de louros nas obras do mecenato Barberini – distintivo de Apolo e dos poetas, símbolo de virtude –, presente inclusive em algumas das 8 46 STRINATI, Claudio. “Presentazione”. In: Bernini Scultore. La nascita del Barocco in Casa Borghese, catálogo de exposição, Roma, 15 de maio a 20 de setembro 1998 (Org. Schutze Sebastian e Coliva Anna). Roma: De Luca, 1998, p.12 e 13. Figura: Studi sull’Immagine nella Tradizione Classica • 3 • 2015 tapeçarias que tratamos, este grupo escultórico deve ter tido lugar relevante no seu pensamento. A escultura de Bernini é de 1622. No ano seguinte, Urbano VIII foi eleito para um dos pontificados mais longos da história. Marcado por realizações artísticas grandiosas, por uma cenografia urbana assinada por grandes gênios como Bernini, Borromini e Pietro da Cortona, o pontificado de Urbano VIII consegue projetar internacionalmente a imagem da Igreja Triunfante na batalha da Contrarreforma. Tal imagem é fruto de intenso mecenato promovido pelo Pontífice e seus três nipoti, os sobrinhos Francesco, Taddeo e Antonio, nomeados cardeais pelo tio papa após sua eleição. Sobre a duração deste grupo no poder e seus inevitáveis abusos, um cronista da época comentou irônico sobre a saúde do papa: “tivesse morrido da primeira vez que adoeceu, teria deixado saudade”9! Inegavelmente, é um período de luz e trevas. Quando cardeal, Urbano VIII havia defendido seu amigo Galileu Galilei, conseguindo que suas teses não fossem condenadas como heresia. Como papa, era o chefe da Igreja que processou e condenou Galileu à prisão domiciliar e à proibição de publicar seus “Diálogos sobre os máximos sistemas”. Fatos que iluminam com luz sombria a imagem de nova Idade de Ouro para as artes e ciências que seu papado queria projetar. A partir da terceira década do século XVII, principalmente, a arte em Roma segue o princípio do docere, delectare e muovere. Ou seja, desenvolve os elementos da retórica visual tanto nos temas profanos quanto nos religiosos e devocionais, segundo o objetivo comum de envolver o espectador através do deleite e da maravilha. Ensinar, deleitar, mover, con-muovere, mover junto. Nas ruas ou nas capelas, a arte passa a ser um espetáculo carregado de ressonância emocional. Romanelli foi o mais talentoso dos pintores cortonescos de primeira geração. Assimilou a linguagem do mestre muito rapidamente e passou a 9 GIGLI, G. Diario di Roma (1604-1670), II volume. Roma: Colombo, 1984, p. 625 47 Elisa Byington Gianfrancesco Romanelli desempenhar papel importante nos canteiros dirigidos por Pietro da Cortona 10 . Teve a sorte da proteção do Cardeal Francesco Barberini, homem culto e influente junto à nata da intelectualidade da época, que, tendo sido um dos sobrinhos mais ativos na cena artística, chamou-o para todo e qualquer retábulo ou teto que houvesse para ser pintado nas igrejas que dele dependiam11. Por intermédio do cardeal Francesco, Romanelli obteve a encomenda da série de tapeçarias à qual pertence o cartão que discutimos. Mas foi também encarregado da Arazzeria Barberini como um todo, para a qual realizou outras duas séries de tapeçarias: Vida de Cristo e Eneias e Dido. Em 1637, data deste cartão, Gianfrancesco Romanelli, ainda trabalhava na pintura da abóbada Barberini como assistente de Pietro da Cortona, mas já procurava afirmar a própria autonomia aproveitando, para tanto, a ausência do mestre em viagem por Veneza e Florença12. Na ocasião, ele assume compromissos por conta própria até mesmo no Vaticano, devido a favores do Bernini, supõe-se, que ocupou lugar central nas artes do pontificado, sendo considerado uma espécie de ministro da propaganda. O aspecto mais clássico e pacato no andamento horizontal da composição das tapeçarias foi considerado algumas vezes como sinal deste distanciamento em Cortona. Na verdade, as características previstas na encomenda – derivada do modelo rafaelesco de “giocchi di putti” de cem anos antes – requeriam este tipo de equilíbrio, buscado agora novamente pelas correntes classicistas muito atuantes, que se antepunham à cena mais dinâmica e movimentada que distingue a arte de Pietro da Cortona. 10 Anna lo Bianco analisa dois desenhos de Romanelli conservados na Biblioteca Vaticana referiveis à pequena Galleria do Palacio Barberini, dado que leva a hipotizar que tivesse papel relevante no atelier de Pietro da Cortona já em 1634. Cf. “Pietro da Cortona e gli allievi: l’uso del disegno tra progetto e esecuzione”. In: BERNARDINI, M.G., SQUARZINA, S.D. e STRINATI, C. (org.). Studi di storia dell’arte in onore di Denis Mahon. Milão: Elekta, 2000, p. 276. 11 HASKELL, F. Patrons and Painters, Art and society in Baroque Italy. New Haven e Londres: Yale University, 1980, ed.cons.1998, pgs. 53ss. 12 Schleier Erich observa que a ausência de Cortona de Roma entre 1639 e 1647 beneficiou Sacchi e Poussin. Cf. “La pittura del seicento a Roma”. In: SCHELEIER, Erich e GREGORI, Mina (org.) La Pittura Italiana. Il Seicento, II vol. Milão: Elekta, p. 448-453. 48 Figura: Studi sull’Immagine nella Tradizione Classica • 3 • 2015 Digamos que são obras que colhem a inspiração classicista do ambiente e a liberdade de execução da pintura barroca. Figura 3 Meninos que jogam pétanque, 1637 Tapeçaria em lã, seda, ouro e prata Museu Nacional do Palácio Veneza, Roma Entre as cinco tapeçarias ainda existentes, quatro conservam as temáticas da série rafaelesca como a dos “meninos que pescam”, sobre a qual já falamos. Os Putti che gioccano a bocce / meninos que jogam pétanque [Fig. 3], se curvam às regras e medidas na cena central do quadro enquanto um deles, de pé, faz o sinal de três com os dedos, símbolo trinitário. Na cena dos Putti che gioccano con la civetta / Meninos que brincam com a coruja [Fig. 4] todos estão ocupados na construção de elaboradas armadilhas para os pássaros, mas a coruja, símbolo de 49 Elisa Byington Gianfrancesco Romanelli sabedoria ancestral, permanece livre sobre um pedestal. Entre os Putti che giocano a moscacieca / Meninos que brincam de cabra-cega há um cupido em repouso com o arco apoiado no chão e as flechas guardadas no coldre. Do lado oposto da cena, o cão, símbolo de fidelidade, parece confirmar a mensagem e afastar as ameaças representadas por cupidos mais inquietos. Figura 4 Meninos que brincam com a coruja, 1637 Tapeçaria em lã, seda, ouro e prata, 530 cm. Museu Nacional do Palácio Veneza, Roma A maior tapeçaria de todas é a dos Putti che giocano con un’arnia e il leone vinto dalle api/ Meninos que jogam com a caixa de abelhas e o Leão vencido pelas abelhas [Fig. 5]. Nesta, a celebração da família Barberini de Urbano VIII é evidenciada pela presença das abelhas e do sol do brasão Barberini, além das coroas de louros pontuando os quatro cantos. 50 Figura: Studi sull’Immagine nella Tradizione Classica • 3 • 2015 Figura 5 Meninos que jogam com a caixa de abelhas, 1637 Tapeçaria em lã, seda, ouro e prata, 530 cm. Museu Nacional do Palácio Veneza, Roma O título, provavelmente posterior, não parece congruente. O papa foi eleito no dia 6 de agosto, sob o signo de Leão, domicílio astrológico do sol, empresa Barberini, logo acima. A imagem parece transmitir a ideia de convivência harmoniosa entre os opostos, onde a força se une à mansidão. A finalidade encomiástica desta tapeçaria é aumentada por sua dimensão superior em relação às outras – mede mais de cinco metros – característica que aponta para o papel proeminente dentro da série e da arrumação original. Entre as tapeçarias que se conservaram, somente nesta os putti estão caracterizados com asas e a vegetação se limita às exuberantes guirlandas de frutas e flores que atravessam o quadro, segundo o esquema rafaeliano. É preciso não desperdiçar nada nesta arte que ensina, deleita e comove. Há dois animais colocados nos dois lados da cena, um cervo e uma galinha d’angola – faraona, em italiano, feminino de faraó. Os animais 51 Elisa Byington Gianfrancesco Romanelli estiveram presentes em todas as tapeçarias, personificando virtudes e qualificando as cenas de acordo com os ensinamentos já explicitados por Plinio, o velho, na sua História Natural, livro de grande influência para o pensamento sobre a arte no Renascimento 13 . O cervo, devido às características de seus chifres que crescem depois de cortados, tem sua imagem ligada à capacidade de regeneração e à árvore da vida. Enquanto a faraona, com seu corpo feito de incontáveis pequenas pintas brancas, pode ser lida em algumas circunstâncias como imagem da fraternidade. Em 1638, após o importante feito das tapeçarias, é também graças à influência do cardeal Francesco que Romanelli, aos 26 anos, torna-se Príncipe da Academia de São Lucas, instituição que reunia os maiores pintores, escultores e arquitetos em Roma. Segundo o biógrafo G.B. Passeri, Romanelli era veloz no trabalho e fazia poucos retoques no final. Era um artista útil na corte e, além das obras que citamos, o cardeal Francesco, assim como o papa Urbano VIII, serviram-se dele também para a realização de presentes diplomáticos. Mais tarde, quando nos primeiros anos do pontificado Pamphilj a familia Barberini cai em desgraça, o cardeal Francesco leva-o consigo para a corte francesa e consegue para ele os favores do cardeal Mazzarin, primeiro ministro e regente durante a menoridade de Luís XIV, para quem Romanelli decorou os aposentos em 1646. Retorna a Roma após a reabilitação dos Barberini mas volta a Paris dez anos depois para pintar os aposentos da Rainha Anne no Palácio do Louvre14. Conquista assim a apreciação de um público refinado e exerce notável influência sobre a pintura francesa, além de papel importante na difusão da linguagem barroca. 13 HALL, James. Dictionary of subjects and symbols in art, 2ª edição. Nova York: Westview, 2008. 14 Cf. “La pittura del seicento a Roma”. In: La Pittura Italiana. Il Seicento, Opus cit. 52