UNIVERSIDADE FEDERAL DO ESPÍRITO SANTO
CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS E NATURAIS
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM GEOGRAFIA
CLERISTON BOECHAT DE OLIVEIRA
Sobre o anonimato:
política espacial das imagens e experiência citadina
(narrativas poéticas a partir da fotografia de rua de Walker Evans)
VITÓRIA
2022
CLERISTON BOECHAT DE OLIVEIRA
Sobre o anonimato:
política espacial das imagens e experiência citadina
(narrativas poéticas a partir da fotografia de rua de Walker Evans)
Tese apresentada ao Programa de Pós-Graduação em
Geografia do Centro de Ciências Humanas e Naturais
da Universidade Federal do Espírito Santo, como
requisito parcial para obtenção do título de Doutor
em Geografia, na área de concentração Natureza,
Produção do espaço e Território.
Orientador: Prof. Dr. Antonio Carlos Queiroz Filho.
VITÓRIA
2022
Cleriston Boechat de Oliveira
“Sobre o anonimato: política espacial das imagens e
experiência citadina (narrativas poéticas a partir da
fotografia de rua de Walker Evans)”
Tese apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Geografia do Centro de
Ciências Humanas e Naturais, da Universidade Federal do Espírito Santo,
como requisito parcial para obtenção do Grau de Doutor em Geografia.
Aprovada em 22 de fevereiro de 2022.
Comissão Examinadora:
Prof. Dr. Antônio Carlos Queiroz do Ó Filho (UFES)
Orientador e Presidente da Sessão
Profa. Dra. Gisele Girardi (UFES)
Examinadora Interna
Prof. Dr. Alexandre Emerick Neves (UFES)
Examinador Externo
Prof. Dr. Rafael de Castro Catão (UFES)
Por: Prof. Dr. Wenceslao Machado de Oliveira Júnior (Unicamp)
Examinador Externo
Prof. Dr. Rafael de Castro Catão (UFES)
Dr. Rafael Henrique Meneghelli Fafá Borges (Rasuras)
Examinador Externo
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ALEXANDRE
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DE
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CASTRO
EMERICK
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Coordenador do Programa de Pós-Graduação em Geografia
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DEDICATÓRIA
À Simone, companheira de vida.
A João, fruto de uma escolha pelo amor e pela vida.
AGRADECIMENTOS
À Simone Neiva, pelo apoio constante, antes, durante e depois de tudo.
A Antonio Carlos Queiroz Filho pelo acolhimento e pela generosidade
na orientação dessa tese.
Ao corpo docente do Departamento de Artes Visuais pela confiança.
A Rafael Borges e Lorena Aranha pelo apoio constante e pelas sugestões e considerações sempre precisas, desde antes do começo.
À Ludmila Martins, Janaina Martini, Gustavo Pimenta e Dara Nogueira por compartilharem suas pesquisas no Grupo de Pesquisa Rasuras e pela escuta atenta e honesta.
A Herbert Farias pela revisão minuciosa.
A Fabio Birous pela diagramação da tese e do livro.
A Saulo Dias pela encadernação e montagem do livro.
A Victor De Pra e toda a equipe do Studio BASE 40 pela produção e edição do vídeo.
Aos amigos Bruno Zorzal, Humberto Capai e Tony Queiroga pelas conversas.
Eu sei que agora é a hora dos livros de fotografias. Uma cidade
americana é o melhor [...]. Eu gostaria de visitar várias [...] antes de decidir. [...] Não tenho certeza se um livro de fotos deve
ser identificado localmente. A cidade americana é o que eu estou
procurando. Então, pode ser que use várias, mantendo as coisas
típicas. As coisas certas podem ser encontradas em Pittsburgh,
Toledo, Detroit (muito em Detroit, eu quero entrar em alguns buracos sujos, Detroit é cheia de chances). Coisas de negócios de
Chicago, provavelmente nada de Nova Iorque, mas os subúrbios
da Filadélfia são presunçosos e intermináveis: pessoas, de todas
as classes, cercadas por um monte dos novos fracassados.
Automóveis e a paisagem do automóvel.
Arquitetura, o gosto urbano americano, comércio, pequena escala, grande escala, a atmosfera das ruas da cidade, o cheiro das
ruas, as coisas odiosas, clubes de mulheres, a cultura do falso,
má educação, religião em decadência.
Os cinemas.
Mostras do que as pessoas da cidade leem, comem, veem por
diversão, fazem para relaxar e não conseguem.
Sexo.
Propaganda.
Muito mais, você entende o que quero dizer.
(Walker Evans)
RESUMO
Como a fotografia de rua, em particular aquela legitimada como arte, participa na construção de um certo entendimento acerca da cidade moderna? A partir
desse questionamento tratamos do papel político das imagens sobre a ideia de espaço –política espacial das imagens – e ainda da imaginação espacial produzida
pela fotografia de rua por meio de um diálogo com as proposições de Doreen Massey acerca da espacialidade e com o aspecto estético político da arte proposto por
Jacques Rancière. Abordamos distintos aspectos na construção da cidade moderna
e, em particular, o anonimato citadino ao investigarmos dois livros e um artigo assinados pelo fotógrafo estadunidense Walker Evans, a saber: American Photographs,
de 1938; Many Are Called, de 1966; Labor Anonymous, de 1946. O autor apresenta
como parte integrante da tese o livro de fotografia intitulado Sobre o anonimato, o
qual dialoga com a obra de Evans investigada na tese. A construção do aspecto
ficcional da cidade presente na imagem fotográfica é tratada na apresentação do
processo de criação da publicação, a qual é entendida como desdobramento artístico
que atualiza para contemporaneidade as questões aqui investigadas, dentre elas a
política espacial das imagens, a experiência citadina e o anonimato citadino.
Palavras-chave: política espacial das imagens; imaginação espacial; anonimato; fotografia de rua; Walker Evans.
ABSTRACT
How does street photography, particularly when legitimated as modern art,
participate in the construction of a certain understanding of the modern city? From
this question, this thesis deals with the political role of images on the idea of space, the spatial politics of images. It approaches the concept of spatial imagination,
as presented on Doreen Massey’s propositions about spatiality, in a dialogue with
Jac- ques Rancière, as he touches on the subject of the aesthetic political aspect of
art. The work approachs different aspects in the building of the idea of the modern
city and, in particular, the city’s anonymity as we investigate two books and an article by American photographer Walker Evans. These are: American Photographs,
from 1938; Many Are Called, from 1966; Labor Anonymous, from 1946. The author
presents as an integral part of the thesis the photography book entitled Sobre o anonimato [On Anonymity], which dialogues with Evans’ work investigated in the thesis.
The construction of the fictional aspect of the city present in the photographic image is
dealt when presenting the creative process of the publication, which is understood as
an artistic unfolding that updates issues investigated here: spatial politics of images,
city experience and urban anonymity.
Keywords: spatial politics of images; spatial imagination; anonymity; street
photography; Walker Evans.
LISTA DE FIGURAS
Iorque. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .51
Figura 16. RUSCHA, Edward. Every Building on the Sunset Strip. 1966 (Detalhe). Livro de fotografia (detalhe). 18.0 x 14.2 cm (fechado); 18.0 x 750 cm (aberto). Museu de Arte Moderna de
Figura 1. Mosaico com três fotografias da série Underground Cats, produzida por Tom Boechat,
Nova Iorque. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .51
em 1995, em Nova Iorque, EUA. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .23
Figura 17. RUSCHA, Edward. Every Building on the Sunset Strip. 1966 (Detalhe). Livro de foto-
Figura 2. Mosaico com quatro fotografias da série Toquiotas, produzida por Tom Boechat,
grafia (detalhe). 18.0 x 14.2 cm (fechado); 18.0 x 750 cm (aberto). Museu de Arte Moderna de
2005-2006, em Tóquio, Japão. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .23
Nova Iorque. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .5152
Figura 3. Quadro com três proposições de Doreen Massey encontradas em seu livro Pelo es-
Figura 18. Captura de tela do Google Street View para 8150, Sunset Boulevard. . . . . . . . . .52
paço: uma nova política da espacialidade, publicado pela Bertrand Brasil, em 2008. . . . . . .28
Figura 19. Diagramação das fotografias em American Photographs, de Walker Evans. . . . . .61
Figura 4. RIIS, Jacob. Fotografia intitulada Inquilinos num cortiço da Bayard Street, cinco cen-
Figura 20. EVANS, Walker. License Photo Studio, New York, 1934. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .63
tavos a vaga. 1889. 1 fotografia preto e branco. The Museum of Modern Art. . . . . . . . . . . . .35
Figura 21. EVANS, Walker. Penny Picture Display, Savannah, 1936. . . . . . . . . . . . . . . . . . . .63
Figura 5. WEEGEE. Fotografia intitulada Pessoas em torno do corpo de um homem morto na
Figura 22. EVANS, Walker. Faces, Pennsylvania Town, 1936. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 64
Mulberry Street em Nova Iorque, 21 de setembro de 1939. Fotografia preto e branco (AP Ima-
Figura 23. EVANS, Walker. Political Poster, Massachusetts Village, 1929. . . . . . . . . . . . . . . 64
ges). . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 36
Figura 24. Capa do livro American Photographs, de Walker Evans, 1938. . . . . . . . . . . . . . . .65
Figura 6. AUSTEN, Alice. Tipos de rua de Nova Iorque: 2 trapeiros. c. 1896. Biblioteca do Con-
Figura 25. EVANS, Walker. Joe’s Auto Graveyard, Pennsylvania, 1936. . . . . . . . . . . . . . . . . 69
gresso (EUA). . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .37
Figura 26. EVANS, Walker. Roadside Gas Sign, 1929. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 69
Figura 7. BRASSAÏ. Páginas 9 e 10 do livro Paris de nuit [Paris à noite]. 1933. . . . . . . . . . . 38
Figura 27. EVANS, Walker. Lunch wagon Detail, New York, 1931. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .70
Figura 8. KRULL, Germaine. Da série Métal. 1933. 1 fotografia preto e branco. . . . . . . . . . .39
Figura 28. EVANS, Walker. Parked car, Small Town Main Street, 1932. . . . . . . . . . . . . . . . . .70
Figura 9. KRULL, Germaine. Sem título.1926–28. 1 fotografia preto e branco. The Museum of
Figura 29. EVANS, Walker. Sidewalk in Vicksburg, Mississippi, 1936. . . . . . . . . . . . . . . . . . .71
Modern Art. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .39
Figura 30. EVANS, Walker. Garage in Southern City Outskirts, 1936. . . . . . . . . . . . . . . . . . .71
Figura 10. ATGET, Eugene. Pátio, 41, Rue Broca, 1912. 1 fotografia preto e branco. The Mu-
Figura 31. EVANS, Walker. Main Street of County Seat, Alabama, 1936. . . . . . . . . . . . . . . . .72
seum of Modern Art. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .40
Figura 32. EVANS, Walker. Main Street, Saratoga Springs, New York, 1931. . . . . . . . . . . . . .72
Figura 11. STRAND, Paul. Blind. 1916. 1 fotografia preto e branco. The Museum of Modern
Figura 33. EVANS, Walker. Birmingham Boarding House, 1936. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 80
Art. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .42
Figura 34. EVANS, Walker. Houses and Billboards in Atlanta, 1936. . . . . . . . . . . . . . . . . . . 80
Figura 12. ROSLER, Martha. The Bowery in two inadequate descriptive systems [O Bowery em
Figura 35. EVANS, Walker. South Street, New York, 1932. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .81
dois inadequados sistemas descritivos]. 1974-75. 45 impressões em papel fotográfico preto e
Figura 36. EVANS, Walker. South Street, New York, 1932. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .81
branco de texto e imagem em 24 molduras. The Whitney Museum of American Ar . . . . . . . .47
Figura 37. EVANS, Walker. Louisiana Plantation House, 1935. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .82
Figura 13. RUSCHA, Edward. Every Building on the Sunset Strip. 1966. Livro de fotografia. 18.0
Figura 38. EVANS, Walker. View of Easton, Pennsylvania, 1936. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .87
x 14.2 cm (fechado); 18.0 x 750 cm (aberto). Museu de Arte Moderna de Nova Iorque. . . . . .50
Figura 39. EVANS, Walker. Part of Phillipsburg, New Jersey, 1936. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .87
Figura 14. RUSCHA, Edward. Every Building on the Sunset Strip. 1966. Livro de fotografia. 18.0
Figura 40. EVANS, Walker. View of Ossining, New York, 1930. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 88
x 14.2 cm (fechado); 18.0 x 750 cm (aberto). Museu de Arte Moderna de Nova Iorque. . . . . .50
Figura 41. EVANS, Walker. Street and Graveyard in Bethlehem, Pennsylvania, 1936. . . . . . 88
Figura 15. RUSCHA, Edward. Every Building on the Sunset Strip. 1966 (Detalhe). Livro de
Figura 42. EVANS, Walker. Two-family Houses in Bethlehem, Pennsylvania, 1936. . . . . . . .89
fotografia. 18.0 x 14.2 cm (fechado); 18.0 x 750 cm (aberto). Museu de Arte Moderna de Nova
Figura 43. EVANS, Walker. Roadside View, Alabama Coal Area Company Town, 1936. . . . .89
Figura 44. EVANS, Walker. Louisiana Factory and Houses, 1935. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 90
Figura 77. EVANS, Walker. Main Street Faces, 1935. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 111
Figura 45. EVANS, Walker. Birmingham Steel Mill and Workers’ Houses, 1936. . . . . . . . . . 90
Figura 78. EVANS, Walker. Posed Portraits, New York, 1931. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 112
Figura 46. EVANS, Walker. Factory Street in Amsterdam, New York, 1930. . . . . . . . . . . . . . .91
Figura 79. EVANS, Walker. Couple at Coney Island, New York, 1928. . . . . . . . . . . . . . . . . . 112
Figura 47. EVANS, Walker. Company Houses, Scott’s Run, West Virginia, 1935. . . . . . . . . . .91
Figura 80. EVANS, Walker. People in Summer, New York State Town. . . . . . . . . . . . . . . . . . 113
Figura 48. EVANS, Walker. Country Store and Gas Station, Alabama, 1935. . . . . . . . . . . . . .92
Figura 81. Mosaico com as 89 fotografias do livro Many Are Called, publicado por Walker Evans
Figura 49. EVANS, Walker. Mississippi Sternwheeler at Vicksburg, Mississippi, 1936. . . . . .92
em 1966. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .120
Figura 50. EVANS, Walker. Church of The Nazarene, Tennessee, 1936. . . . . . . . . . . . . . . . .93
Figura 82. EVANS, Walker. Fotografia nº 16 do livro Many Are Called, de Walker Evans, de
Figura 51. EVANS, Walker. Wooden Church, South Carolina, 1936. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .93
1966. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .122
Figura 52. EVANS, Walker. Greek Temple Building, Natchez, Mississippi, 1936. . . . . . . . . . 94
Figura 83. EVANS, Walker. Fotografia nº 89 do livro Many Are Called, de Walker Evans, de
Figura 53. EVANS, Walker. Negro Church, South Carolina, 1936. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 94
1966. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .123
Figura 54. EVANS, Walker. Connecticut Frame House, 1933. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 95
Figura 84. Reprodução do artigo Labor Anonymous [Mão de obra Anônima], originalmente pu-
Figura 55. EVANS, Walker. Millworkers’ Houses in Willimantic, Connecticut, 1931. . . . . . . . 95
blicado na Revista Fortune, em novembro de 1946. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .129
Figura 56. EVANS, Walker. Frame Houses in Virginia, 1936. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 96
Figura 85. Texto escrito por Walker Evans para acompanhar o artigo Labor Anonymous [Mão de
Figura 57. EVANS, Walker. Frame Houses in Virginia, 1936. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 96
obra Anônima] e rejeitado pela revista Fortune. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .131
Figura 58. EVANS, Walker. New Orleans Houses, 1935. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .97
Figura 86. Mosaico composto pelo autor a partir das 150 fotografias feitas por Walker Evans
Figura 59. EVANS, Walker. Greek Revival Doorway, New York City, 1934. . . . . . . . . . . . . . .97
para o artigo Labor Anonymous [Mão de obra anônima], originalmente publicado na Revista
Figura 60. EVANS, Walker. Wooden Gothic House, Massachusetts, 1930. . . . . . . . . . . . . . 98
Fortune, em novembro de 1946. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .136
Figura 61. EVANS, Walker. Wooden Houses, Boston, 1930. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 98
Figura 87. Capa do livro Sobre o Anonimato, produzido por Tom Boechat e parte integrante
Figura 62. EVANS, Walker. Gothic Gate Cottage Near Poughkeepsie, New York, 1931. . . . 99
dessa tese. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .139
Figura 63. EVANS, Walker. Detail of a Frame House in Ossining, New York, 1931. . . . . . . . 99
Figura 64. EVANS, Walker. Main Street Block, Selma, Alabama, 1936. . . . . . . . . . . . . . . . .100
Figura 65. EVANS, Walker. Maine Pump, 1933. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .100
Figura 66. EVANS, Walker. Jigsaw House at Ocean City, New Jersey, 1931. . . . . . . . . . . . .101
Figura 67. EVANS, Walker. Hotel Porch, Saratoga Springs, New York, 1930. . . . . . . . . . . . .101
Figura 68. EVANS, Walker. Wooden Gothic House Near Nyack, New York, 1931. . . . . . . . .102
Figura 69. EVANS, Walker. French Quarter House in New Orleans, 1933. . . . . . . . . . . . . . .102
Figura 70. Mosaico com as 37 fotografias da Parte Dois de American Photographs. . . . . . .104
Figura 71. EVANS, Walker. Sidewalk and Shopfront, New Orleans, 1935. . . . . . . . . . . . . . .108
Figura 72. EVANS, Walker. Coney Island Boardwalk, 1929. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .109
Figura 73. EVANS, Walker. A Bench in the Bronx on Sunday, 1933. . . . . . . . . . . . . . . . . . . .109
Figura 74. EVANS, Walker. Girl in Fulton Street, New York, 1929. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .110
Figura 75. EVANS, Walker. 42nd Street, 1929. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .110
Figura 76. EVANS, Walker. Citizen in Downtown Havana, 1932. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 111
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 22
1. POLÍTICA ESPACIAL DAS IMAGENS NUMA FOTOGRAFIA DE RUA . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 26
1.1. Imaginação espacial e a política espacial das imagens . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 26
1.2. Ficções: narrativas hegemônicas e narrativas de resistência . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 30
1.3. A fotografia de rua como narrativa urbana da modernidade . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 32
2. GRAFIAS DE MUNDO NAS NARRATIVAS DA FOTOGRAFIA DE RUA COMO ARTE MODERNA . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 41
2.1. A inserção da fotografia de rua na narrativa da arte moderna . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 41
2.2. Fotografia de rua como narrativa crítica à arte moderna . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 45
2.3. A fotografia de Walker Evans como grafia de mundo no Museu de Arte Moderna de Nova Iorque. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 54
3. AMERICAN PHOTOGRAPHS: UMA FOTOGRAFIA DE RUA COMO FICÇÃO DE UMA CIDADE MODERNA . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 57
3.1. Uma cidade feita de imagens . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 63
3.2. O automóvel, essa máquina de deslocamento pela cidade . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 69
3.3. Imagens de decadência no cotidiano citadino . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 80
3.4. Imagens de edificações como tipologia de um cotidiano proletário . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 87
3.5. O anonimato citadino. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 108
4. MANY ARE CALLED E LABOR ANONYMOUS: A FOTOGRAFIA COMO COMPOSIÇÃO DO ANONIMATO NA CIDADE MODERNA . . . . . . . . . . . . . 120
4.1. Many Are Called: o anonimato no metrô de Nova Iorque . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 120
4.2. Labor Anonymous: fotografias de anônimos numa calçada em Detroit . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 128
5. SÉRIE FOTOGRÁFICA SOBRE O ANONIMATO: UMA EXPERIÊNCIA CITADINA . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 137
5.1. O ato fotográfico como experiência citadina . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 137
5.2. A série Sobre o anonimato . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 139
5.3. Apontamentos sobre uma experiência citadina . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 139
CONCLUSÃO . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 145
REFERÊNCIAS . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 147
INTRODUÇÃO
Como a maioria das teses, esta é o desdobramento de um percurso
acadêmico. Mas também é fruto de inquietações vindas da produção fotográfica de seu autor, acumulada nos últimos trinta e cinco anos. Tal imbricamento
entre academia e produção autoral de fotografia num período de mais de três
décadas me leva a crer que alguns parágrafos com traços autobiográficos se
justificam aqui, e quiçá ajudem na leitura deste trabalho.
No que diz respeito à minha produção fotográfica, ela confunde-se
com a trajetória de toda a minha vida adulta e apresenta-se ora como trabalho de cunho comercial – o que me permitiu a sobrevivência por cerca de
dezesseis anos – ora como produção de cunho artístico que, por sua vez,
atende a uma necessidade pessoal de produzir trabalhos autorais no campo
da Fotografia, já que minha produção autoral nunca foi pensada como produto para o mercado de arte, ainda que nele circule minimamente.
É principalmente tal produção autoral que explicita minha relação
com temáticas relacionadas à cidade e melhor contextualiza minha caminhada até o doutorado num programa de pós-graduação em Geografia, considerando minha formação anterior em Artes Visuais. Chamo atenção para dois
momentos específicos na minha relação com a fotografia autoral e a cidade.
Morei em Nova Iorque entre setembro de 1993 e abril de 1997, com o intuito
de estudar Fotografia. Nesse período, trabalhei em dois empregos: nos três
primeiros meses, fui entregador de comida, cafés e afins de uma delicatessen1 localizada na 5a Avenida, esquina com a Rua 19. A grande maioria das
entregas era feita a pé, num raio de até seis quadras de distância, num vaivém constante pelas ruas da cidade. O segundo emprego, no qual trabalhei
pelo restante dos quase quatro anos em que vivi na cidade, foi num café, na
mesma avenida, numa área então conhecida como Photo District, dada a
quantidade de agências de modelos e estúdios de fotografia ali localizados.
Assim, passava cerca de oito horas por dia fazendo sanduíches e saladas,
1 Tipo de loja que vende produtos alimentícios como massas, embutidos, enlatados, cafés, chás e vinhos,
assim como comidas prontas, cafés, itens de padaria e de confeitaria para consumo fora da loja.
22
circulando constantemente entre a cozinha e o salão do café, cercado por
fotografias, todas alheias, espalhadas nas mesas dos clientes.
Nesse período iniciei meus estudos de Fotografia no ICP, International Center of Photography. Num dos cursos que fiz com o fotógrafo e professor David H. Wells, intitulado The Photo Essay [O Ensaio Fotográfico],
produzi a série Underground Cats [Gatos do Subterrâneo] (Figura 1), na qual
retratei performances de músicos de rua nas estações de metrô da cidade.
Para além do aspecto estético da performance no espaço público, me chamava atenção o fato de aqueles músicos driblarem a lei a fim de sobreviver
por meio da arte – a ilegalidade que acompanha também certos imigrantes
e seus sonhos, como o de tornar-se fotógrafo. Ainda que fosse ilegal a apresentação musical nas estações, os músicos reivindicavam o direito de livre
expressão e justificavam o fato de o dinheiro recebido ser doado, não se configurando assim atividade comercial. Os músicos do metrô – gatos do subterrâneo – propõem e promovem outras relações no e com o espaço público
subterrâneo das grandes cidades: um espaço inóspito em sua arquitetura,
sonoramente ruidoso, com temperaturas extremas no inverno e no verão, no
qual as pessoas estão, na grande maioria, em trânsito.
Nesse mesmo período estudei fotografia de rua com o fotógrafo Richard Sandler, que me apresentou diversos nomes consagrados da fotografia
de rua produzida na cidade de Nova Iorque no século XX, entre eles Walker
Evans. Sandler propunha o ato fotográfico nas ruas como enfrentamento do
desconhecido, do anônimo, em prol da construção de uma imagem que rearranja e ressignifica a cidade a partir da experiência do fotógrafo com as ruas e
seus transeuntes. Para ele, os transeuntes e a arquitetura da cidade são partes a serem reordenadas na construção da imagem fotográfica em si mesma.
Não há a intenção de retratar a cidade, mas de construir imagens ficcionais a
partir da urbe e, a partir das imagens, questionar nossa própria relação com
ela. Numa de suas aulas, ao alegarmos certa preocupação com a permissão
de desconhecidos ao serem fotografados, Sandler nos provocou com sua
ironia e humor ácido: “Vocês estão na rua para fazer fotos, e não amigos!”
Com Wells aprendi a necessidade da disciplina – o esforço, a constância, a regularidade do ato fotográfico – e da estruturação de um pré-proje-
Figura 1. Mosaico com três fotografias da série Underground Cats, produzida por Tom Boechat,
em 1995, em Nova Iorque, EUA.
Fonte: Acervo do autor.
Figura 2. Mosaico com quatro fotografias da série Toquiotas, produzida por Tom Boechat, 20052006, em Tóquio, Japão.
Fonte: Acervo do autor.
to para a construção de uma narrativa visual coerente e forte. Com Sandler,
descobri o que é andar por uma grande cidade desconhecida em busca de
imagens construídas na interação direta do fotógrafo com as ruas, os transeuntes, a arquitetura, consigo mesmo, nesses encontros, desencontros,
presenças e ausências. A construção de uma ficção na interação com a cidade no instante do ato fotográfico.
No retorno ao Brasil, a fotografia autoral foi substituída compulsoriamente pela fotografia comercial – a da sobrevivência – até que, em 2005, tive
a oportunidade de morar um ano em Tóquio, custeado por uma bolsa de pesquisa oferecida a Simone Neiva, com quem sou casado – daí eu sempre afirmar que fui para Tóquio com visto de marido. Nesse período pude fotografar
sem quaisquer amarras comerciais ou editoriais. Novamente a interação com
uma grande cidade desconhecida por meio da fotografia de rua. Dali nasceu a série Toquiotas, composta por fotografias feitas exclusivamente à noite,
sempre nas ruas da área metropolitana de Tóquio e seguindo um procedimento padrão, certo protocolo: escolher aleatoriamente uma das estações
de metrô da linha circular Yamanote; andar a partir da estação; e perder-se e
fotografar a arquitetura da cidade sob a luz artificial da noite. Ao lado, vemos
quatro fotografias da série (Figura 2).
De volta ao Brasil, com as tais Toquiotas no portifólio, não sabia
como categorizá-las a fim de dar andamento à divulgação do trabalho. Fotografia documental? Fotografia de viagem? Fotografia de cunho autobiográfico? Jornalismo? Arte? Suspeitando que tais categorizações já não se
sustentavam como estanques, decidi retornar à universidade em busca de
respostas e de um diploma, este para a tal sobrevivência. Resolvi então
que buscaria as respostas a partir da graduação em Artes Visuais: encontrei outras tantas perguntas.
Na academia, meu percurso até aqui aconteceu em etapas contínuas:
graduação (2008-2011), mestrado (2012-2013), ingresso e período probatório
na docência universitária (2013-2017) e, agora, doutorado (2018-2022). Tais
etapas foram cumpridas numa sequência ininterrupta de aproximadamente
14 anos. Para além de alguns artigos, a pesquisa nos anos anteriores ao doutorado materializou-se principalmente na monografia de conclusão de curso
23
de Licenciatura em Artes Visuais, apresentada em 2011, e na dissertação
de mestrado no Programa de Pós-Graduação em Artes, defendida em 2013,
ambas sob orientação do professor Dr. Alexandre Emerick Neves, na Universidade Federal do Espírito Santo.
Na monografia intitulada O estilo documental e as Polaroids de
Walker Evans, busquei identificar as influências fotográficas e literárias na
construção do estilo documental de Walker Evans, termo cunhado pelo fotógrafo para se referir à sua obra2. A partir daí, tratei de temas recorrentes na
extensa obra de Evans, em particular um conjunto de fotografias polaroides3,
último corpo de trabalho produzido pelo fotógrafo entre 1973 e 1974. Os temas são: retratos; arquitetura popular; placas e sinalizações; e lixo e sucatas.
Na dissertação de mestrado busquei aprofundar a investigação das
influências do realismo literário de Gustave Flaubert, da modernidade de
Charles Baudelaire e das fotografias de Mathew Brady, Eugene Atget e Paul
Strand em Evans. Especificamente tratei da relação do fotógrafo com o Museu de Arte Moderna de Nova Iorque, o MoMA, em sua primeira exposição
individual naquela instituição, intitulada American Photographs, a qual propiciou a publicação de seu primeiro livro, de mesmo título, ambos em 1938.
Tais pesquisas tiveram como questão central a relação da fotografia
com a arte moderna, ou ainda, a inserção da fotografia na chamada arte
moderna. Para tal, propus tratar especificamente a obra de Evans por sua
abrangência e presença no discurso hegemônico da história da fotografia
mundial, e em particular sua importância na história da fotografia inserida no
campo da arte moderna e eventualmente na arte contemporânea.
Por meio dessas investigações, pude constatar a relevância da temática da cidade em sua obra. Ainda que um de seus trabalhos mais conhecidos
2 O termo original em inglês é documentary style. Como em português usa-se regularmente o termo fotografia documental para referir-se ao tipo de fotografia produzido por Evans, optei à época por traduzir o
termo como estilo documental. No entanto, já durante a escrita da dissertação de mestrado, percebi que o
termo estilo documentário seria mais apropriado.
3 As chamadas fotografias polaroides – assim nomeadas pelo fabricante – são produzidas por câmeras
que, com o uso de filme específico, fazem a revelação imediata da imagem logo após o clique do disparador.
No caso das fotografias produzidas por Evans, o fotógrafo usou exclusivamente uma câmera de modelo
SX-70, equipamento que produzia imagens num formato de aproximadamente 8x8cm, expelidas automaticamente da câmera. Optei por manter a escrita original Polaroids no título da monografia e sua versão em
português no corpo do texto.
24
seja Let Us Now Praise Famous Men4, livro no qual apresenta fotografias de
três famílias de meeiros no ambiente rural do Alabama de 1936, tanto sua
temática quanto seu modo de produzir fotografias estão intimamente associados à cidade moderna, como veremos nos capítulos 2, 3 e 4 desta tese.
Foi a partir da relação da fotografia documental com a arte moderna
e contemporânea, e delas com a temática da cidade, que cheguei até o Programa de Pós-Graduação em Geografia, e em particular até o trabalho de
pesquisa e orientação do professor Dr. Antonio Carlos Queiroz Filho. Ao ler
seus artigos, cogitei desenvolver uma pesquisa de doutorado em Geografia
junto ao Grupo de Pesquisa Rasuras, na intenção de “esticar os horizontes”
de minha produção fotográfica – numa citação a Manoel de Barros que me
foi apresentada pelo professor Queiroz Filho, ele próprio um esticador de
geografias. Vislumbrei a possibilidade de investigar outras relações entre a
cidade e a fotografia produzidas no campo autoral e artístico e pensar questões, presentes nas imagens e nas cidades, que extrapolam os campos da
Fotografia e da Arte e que dialogam com a Geografia.
Certamente são muitas as possibilidades de diálogos entre Geografia, Fotografia e Arte. Aqui propomos um diálogo a partir da obra de Walker
Evans, especificamente os livros American Photographs, de 1938, Many Are
Called, de 1966, e a série Labor Anonymous, publicada na Revista Fortune
em 1946. Particularmente em American Photographs, fotografias de paisagens são recorrentes e explícitas. No entanto, aqui, ao abordarmos a obra
de Evans desde o campo da Geografia, optamos por tratar outras questões,
a saber, a política espacial das imagens e a imaginação espacial presentes
nessas fotografias. Os dois termos são tratados com mais vagar no capítulo
1 da tese. Por isso não enveredamos nos estudos geográficos da paisagem e
sua relação com a fotografia, o que certamente poderá ser tratado num outro
momento e noutras pesquisas.
A tese está estruturada em cinco capítulos. No capítulo um, investiga4 O livro é composto pelo ensaio fotográfico, assinado por Walker Evans, e pelo texto de James Agee.
As fotografias são apresentadas em sequência antes do texto. Ambos os autores acompanharam durante
quatro semanas a vida de três famílias de trabalhadores rurais pobres no Alabama em 1936. Originalmente
publicado em 1941, o livro só foi traduzido para o português em 2009 e lançado pela Companhia das Letras
com o título Elogiemos os Homens Ilustres.
mos o modo como as imagens atuam politicamente em nossa relação com o
espaço. Tratamos, em particular, da fotografia e de seu papel estético-político, especificamente no que diz respeito às versões de mundo que essas imagens produzem. Abordamos o aspecto ficcional das narrativas que utilizam
a fotografia para, em seguida, discutirmos a construção de uma imaginação
espacial urbana na Modernidade a partir da obra dos fotógrafos Jacob Riis,
Weegee, Alice Austen, Brassaï, Germaine Krull e Eugene Atget.
No capítulo dois, examinamos a fotografia de rua como grafia de
mundo e a construção do discurso que a insere no campo da Arte Moderna.
Abordamos tanto obras que legitimam certo discurso modernista – desde a
primeira metade do século XX, defensor de uma pureza dos meios artísticos
também na fotografia – quanto obras que atuam como narrativa de resistência
ao purismo modernista. Chegamos então à obra de Evans, em sua relação
com o Museu de Arte Moderna de Nova Iorque, o MoMA, um dos precursores
e mais influentes museus de arte a tratar a fotografia como Arte Moderna e
o primeiro a criar um departamento especificamente dedicado à fotografia.
Nos capítulos três e quatro, nos debruçamos sobre determinados trabalhos de Evans a fim de investigarmos a imaginação espacial que tais imagens
constroem da cidade moderna. Tratamos dos livros American Photographs
[Fotografias americanas], de 1938, Many Are Called [Muitos são chamados],
de 1966, e da série Labor Anonymous [Mão de obra anônima], de 1946.
Em American Photographs abordamos questões distintas da construção ficcional da cidade americana, dentre elas: o automóvel como máquina
de deslocamento na cidade moderna; a decadência no cotidiano citadino; a
tipologia das edificações como retrato da cidade e dos cidadãos; o anonimato citadino. Já em Many Are Called [Muitos são chamados] e em Labor
Anonymous [Mão de obra anônima] tratamos especificamente da construção do anonimato na cidade moderna, seja por meio de retratos produzidos
em vagões de metrô na cidade de Nova Iorque ou numa calçada na cidade
de Detroit no pós-guerra.
No capítulo cinco, tratamos o ato fotográfico como experiência citadina. A partir da obra de Evans, produzimos uma série fotográfica que culmina
no livro de fotografia intitulado Sobre o anonimato, componente da tese e aqui
apresentado. Concluímos o capítulo com apontamentos acerca de nossas intencionalidades na produção da série e ainda sobre a relação dessas imagens
e do objeto livro com a questão do anonimato citadino na contemporaneidade.
25
1. POLÍTICA ESPACIAL DAS IMAGENS NUMA FOTOGRAFIA DE
RUA
1.1. Imaginação espacial e a política espacial das imagens
Em agosto de 2008 o jornal O Estado de São Paulo publicou o segundo número de sua revista Grandes Reportagens, cujo tema foram as
megacidades mundiais. Em artigo publicado no sítio online da Associação
Brasileira de Imprensa, Mariângela Hamu, editora-executiva do projeto, afirma que a publicação pretendia “[...] mostrar como as cidades mais populosas estão resolvendo seus problemas e planejando o futuro” (2008). Fotografias de Londres, Lagos, Xangai, Moscou, Tóquio, Nova Iorque, Mumbai,
Cidade do México e São Paulo compuseram as reportagens que abordaram cada uma dessas cidades.
Em artigo publicado em 2014, Wenceslao Machado de Oliveira Junior
investiga o modo como essas fotografias participam “[...] na produção e manutenção da ideia de que o espaço geográfico atual é plenamente globalizado [...]” (OLIVEIRA JUNIOR, 2014, p. 257). A partir de Doreen Massey (2008),
o autor afirma que tal “[...] imaginação espacial é obra da cultura na qual estamos inseridos, construída e ratificada pelos discursos e imagens que circulam por nossa sociedade” (OLIVEIRA JUNIOR, 2014, p. 257). Numa análise
das imagens introdutórias de cada cidade na publicação, o autor argumenta
“[...] que as fotos apresentadas das cidades ratificam esta imaginação deliberadamente, utilizando-se de elementos da própria linguagem fotográfica”
(OLIVEIRA JUNIOR, 2014, p. 258).
Para o autor, essas imagens, aliadas aos títulos e legendas que as
acompanham, reforçam o discurso de que “[...] temos sim lugares adiantados e lugares atrasados no fluxo dessa (única) história” (OLIVEIRA JUNIOR,
2014, p. 257). Assim, cada cidade é introduzida a partir de determinada imagem fotográfica, cujos elementos – ângulos, enquadramentos, iluminação –
direcionam a leitura de modo a categorizar a cidade entre atrasada ou adiantada num parâmetro único para todo o planeta.
Aqui, sobretudo, interessa-nos o pensamento de Oliveira Junior acer-
26
ca da relevância da fotografia e sua participação na construção de uma dada
imaginação espacial, e ainda o uso de elementos da linguagem fotográfica
para tal. O autor constrói sua argumentação sobre a fotografia amparado nos
escritos de Susan Sontag, que afirma:
A força das imagens fotográficas provém de serem elas
realidades materiais por si mesmas, depósitos fartamente
informativos deixados no rastro do que quer que as tenha
emitido, meios poderosos de tomar o lugar da realidade
– ao transformar a realidade numa sombra (SONTAG,
2004, p.196 apud OLIVEIRA JUNIOR, 2014, p. 260).
A característica indicial da fotografia é relacionada a certa continuidade entre “[...] a coisa e a imagem dela [...]” (OLIVEIRA JUNIOR, 2014, p.
259). Ou seja, o fato de a imagem fotográfica analógica ser necessariamente
constituída da sensibilização físico-química de um suporte a partir da presença da coisa fotografada confere a essa imagem um estatuto de verdade.
Mais ainda, o processo intermediado pela câmera, ao combinar a perspectiva
renascentista a tecnologias modernas, insere-se num contexto de modernidade que “[...] adere à crença na visualidade (verdade) dos instrumentos [os
quais] nos revelam a realidade [...]” (OLIVEIRA JUNIOR, 2014, p. 259). Assim,
o ato fotográfico, para além da imagem e do objeto que produz, para além de
um modo de ver o mundo, impõe-se como modo de conhecer o mundo, logo,
de pensarmos o mundo, afirma o autor.
Alinhado com Oliveira Junior, Queiroz Filho argumenta que imagens,
entendidas como obras da cultura, produzem narrativas, versões de mundo,
carregadas de intencionalidades, tanto pela carga autoral quanto pelo modo
característico de apontar para o mundo. Tais narrativas visuais, ao se imporem entre nós e o mundo, produzem certa grafia de mundo e determinado
modo de nos relacionarmos com o espaço e nele agirmos a partir das imagens ou por meio delas (QUEIROZ FILHO, 2010).
Referindo-se especificamente à imagem fotográfica, Queiroz Filho
dialoga com Sontag, que argumenta:
[...] as fotos modificam e ampliam nossas ideias sobre o
que vale a pena olhar e sobre o que temos o direito de
observar. Constituem [...] uma ética de ver. Por fim, [nos
dão] a sensação de que podemos reter o mundo inteiro [...]
Massey com o de Jacque Rancière, como veremos abaixo.
Em texto de 2013, ao abordar o termo imaginação espacial, Queiroz
Filho explicita uma estreita relação entre política e imaginação ao balizar seus
estudos da seguinte forma:
como uma antologia de imagens (SONTAG, 2004, p. 13).
[...] busco analisar, compreender e problematizar o pa-
Os autores reconhecem a força da imagem fotográfica – e de seus
desdobramentos tecnológicos – nas sociedades moderna e contemporânea
e atentam para a maneira como a fotografia intervém diretamente no modo de
imaginar o mundo. Eles alertam do risco de vermos fotografias como se víssemos o próprio mundo. A constatação de Sontag se coaduna à de Oliveira
Junior de que a fotografia acaba por produzir uma educação do olhar, a qual
“[leva] mesmo a acreditar que ver é conhecer o real” (OLIVEIRA JUNIOR,
2009, p. 19). Todavia, o autor adverte:
as fotografias [devem ser] tomadas como obras humanas, portanto, mais do que mostrando, produzindo alguma realidade, alguma verdade visual, mas nunca a realidade ou a verdade (OLIVEIRA JUNIOR, [s.d.], p. 5).
O que as imagens apresentam como narrativas, grafias de histórias,
são mais que visões, são em si versões de mundo. Por estarem presentes
como objetos da cultura, elas mostram-se também como elementos do e no
mundo, e participam das relações travadas com os demais atores e o próprio
mundo. As imagens, e a fotográfica em particular, alimentam as imaginações
e os entendimentos do mundo, e eis aí um dos aspectos do caráter político das
imagens na relação com o espaço, como proposto por Doreen Massey (2008).
É de Massey o entendimento de que “[...] pensar no espacial de um
modo específico pode perturbar a maneira em que certas questões políticas
são formuladas” (MASSEY, 2008, p. 30). Assim, Queiroz Filho propõe uma
investigação da política espacial das imagens “[...] para pensar quais modos
de imaginar o espaço são criados ou sustentados pela cultura visual” (SILVA;
QUEIROZ FILHO, 2015, p. 318). Para tal, o autor concilia o pensamento de
pel político que as imagens têm efetivado na relação
das pessoas com os lugares, com as coisas e com elas
mesmas, numa perspectiva que toma a Geografia como
uma Grafia, uma escrita, uma linguagem que dá a ver, dá
existência a algo, nesse caso, uma imaginação espacial.
Esse é o termo que nos interessa. O vi pela primeira vez
no livro “Pelo Espaço”, da geógrafa inglesa Doreen Massey (QUEIROZ FILHO, 2013, p. 199-200).
Ora, uma imaginação espacial nomeada a partir de Massey, e em
particular de sua obra Pelo espaço, incita – se é que não obriga – a analisar o
modo como nos relacionamos com o espaço. Portanto, para tratar do caráter
político das imagens, como dito por Queiroz Filho, será imprescindível ocupar-se da ideia de espaço em Massey.
A fim de pensar o espaço, a autora primeiro apresenta dois pontos
de vista distintos da queda do Império Asteca no Ano 1 Junco do calendário asteca, ou no ano de Nosso Senhor de 1519 se datada no calendário
gregoriano. Para os astecas, os “estrangeiros sentavam-se em corças da
altura de telhados [...] e chegavam da direção geográfica que, nesses tempo-espaços, era considerada como sendo aquela do poder” (MASSEY, 2008,
p. 19-20). Já o exército de Fernão Cortés vislumbrava, pela primeira vez, a
cidade de Tenochtitlán, “[...] cinco vezes o tamanho de Madri [...]” à época,
localizada entre dois vulcões, sendo que “[...] o Popocatepetl fumegava sem
cessar” (MASSEY, 2008, p. 22).
Massey argumenta que, frequentemente, o modo como se contam
tais “[...] relatos de ‘viagens de descoberta’ é em termos de cruzamento e
conquista do espaço. Cortés viajou através do espaço, encontrou Tenochti-
27
tlán e tomou-a” (MASSEY, 2008, p. 22). Isso pode levar a pensar “[...] o espaço como solo e mar, como a terra que se estende ao nosso redor. Implicitamente, [...] faz o espaço parecer uma superfície, contínuo e tido como algo
dado” (MASSEY, 2008, p. 23).
Aponta ainda que, ao acatar a ideia de superfície para pensar o espaço, corre-se o risco de “[...] conceber outros lugares, povos, culturas, simplesmente como um fenômeno ‘sobre’ essa superfície” (MASSEY, 2008, p.
23). Conclui seu raciocínio acerca do modo de imaginar o espaço com a
seguinte proposição: “O que poderia significar reorientar essa imaginação
[...]? Se [ao pensarmos o espaço] concebêssemos um encontro de histórias, o que aconteceria às nossas imaginações implícitas de tempo e espaço?” (MASSEY, 2008, p. 23).
Semelhantemente, a autora refere-se a uma narrativa mais recente:
A geógrafa propõe deixar de pensar o espaço como mera superfície
contínua e previamente dada, e considerá-lo ainda “[...] como a esfera na
qual distintas trajetórias coexistem” (MASSEY, 2008, p. 29). Resume suas
considerações acerca de uma abordagem alternativa do espaço em três proposições, sintetizadas no quadro abaixo (Figura 3).
[...] uma história da inevitabilidade da globalização [...] –
aquela dupla combinação da glorificação do (desigualmente) livre movimento do capital, por um lado, com o
firme controle do movimento do trabalho, por outro. E
se apontarmos para as diferenças ao redor do mundo,
para Moçambique, Mali, ou a Nicarágua, eles dirão que
tais países estão apenas “atrasados”; que, eventualmente, seguirão o caminho que o Ocidente capitalista
abriu (MASSEY, 2008, p. 23).
A ideia de que existam países atrasados do ponto de vista social,
econômico e mesmo cultural sugere certa linha evolutiva que situa a trajetória
dos países ricos como a única história (MASSEY, 2008; OLIVEIRA JUNIOR,
2014). São apagadas, assim, “[...] as multiplicidades, as heterogeneidades
contemporâneas do espaço” (MASSEY, 2008, p. 24). Tais narrativas participam de entendimentos do espaço produtores de posturas e efeitos políticos,
modos de estar e de participar da esfera comum, das relações com os outros
e o mundo. Massey reforça, assim, que o modo de tratar ou imaginar o espaço influencia diretamente a maneira de lidar com o mundo e o comum.
28
Figura 3. Quadro com três proposições de Doreen Massey encontradas em seu livro Pelo espaço: uma nova política da espacialidade, publicado pela Bertrand Brasil, em 2008.
Considerar o espaço como constituído pelas relações e interações
nele travadas – de consenso e/ou de dissenso – é aceitar que ele se modifica
continuamente e, assim, está em aberto. Implica admitir uma multiplicidade
de relações simultâneas – encontros, acordos e antagonismos – entre os
mais diversos atores, num fazer e desfazer constantes.
Assim, pensar o espaço como constituído por encontros (e desencontros) de histórias aponta para as inúmeras narrativas possíveis a partir de
cada uma dessas histórias e de seus atores. Nesse sentido, tais narrativas se
expressam como versões distintas e potencialmente complementares, ou semelhantes ou contraditórias entre si. De todo modo, as histórias ou narrativas
trazidas ou produzidas não dão conta de uma objetividade ou de totalidades,
dado seu caráter de multiplicidade e abertura. Já que resulta das tantas relações simultâneas, coetâneas e heterogêneas, o espaço acaba por engendrar
uma multiplicidade de pontos de vista, sendo eles distintos e precários.
Se o espaço é constituído na interação e na inter-relação de múltiplas
trajetórias simultâneas, a identidade desses atores também é afetada e (co)
constituída nas relações. Consequentemente, o próprio jogo político se constitui e se constrói na interação de identidades variáveis em si mesmas. Ou
seja, a identidade dos atores políticos se constrói nas interações mútuas e
com o próprio espaço no qual atuam.
A proposta de constituição do espaço por uma multiplicidade de
trajetórias, histórias e identidades não definitivas, mas sempre relacionais,
aponta ainda para uma política que reconhece “[...] a coexistência simultânea de outros” (MASSEY, 2008, p. 31). Portanto, cada identidade, em
constante construção, traz sua própria história, distinta em suas particularidades, em sua trajetória e com suas próprias narrativas. Logo, qualquer
narrativa que reforce a universalidade de uma identidade ou o determinismo
que tome uma única história como principal ou modelo a ser seguido ou reproduzido é problematizada.
O entendimento de constante construção do espaço aponta para um
futuro em aberto, uma política que acredita na abertura como possibilidade
de fazer a diferença. As proposições de Massey acerca de uma imaginação
espacial que reflete a política no modo de imaginar se aproximam, assim, do
entendimento de política de Jacques Rancière.
Rancière parte de Platão e Aristóteles para tratar da política: o cidadão toma parte no governo da cidade, enquanto o artesão, ocupado com o
trabalho, não participa das coisas comuns. Assim, “[as ocupações] definem
competências ou incompetências para o comum” (RANCIÈRE, 2009, p. 16)
e especificam quem é ou não visível no espaço comum, quem é ou não “[...]
dotado de uma palavra comum” (RANCIÈRE, 2009, p. 16). O que é tornado
visível no comum, o que é dito no comum é, assim, uma afirmação política.
Na acepção de Rancière, “a política ocupa-se do que se vê e do que se pode
dizer sobre o que é visto, de quem tem competência para ver e qualidade
para dizer” (RANCIÈRE, 2009, p. 16-17). Para o autor, tratar da política é
tratar do visível e do dizível na esfera comum.
No entanto, Rancière também associa à política uma partilha do
sensível, assim definida:
Uma partilha do sensível é [...] o modo como a relação
entre um conjunto comum partilhado e a divisão de partes exclusivas se determina no sensível. [...] uma ordem
política é uma certa divisão das ocupações, a qual se
inscreve [...] em uma configuração do sensível: em uma
relação entre os modos do fazer, os modos do ser e os
modos do dizer (RANCIÈRE, 2017, p. 8).
É também a partir de Platão que Rancière, por meio de uma
abordagem da escrita e da pintura, constrói seu pensamento acerca da
partilha do sensível e de certos aspectos da política. Para Platão, a escrita e
a pintura são entendidas como “[...] superfícies equivalentes de signos mudos
[...]” (RANCIÈRE, 2009, p. 21), em oposição à palavra falada, dita pelo locutor
ao destinatário adequado. Para o filósofo grego, a escrita e a pintura incorrem
numa mesma limitação: a ausência do sopro da palavra viva. Mudas, estão
indiscriminadamente disponíveis a qualquer interlocutor. Para Rancière,
aí se revela o caráter político da escrita e da pintura: “[...] seu regime de
indeterminação das identidades, de deslegitimação das posições da palavra,
de desregulação das partilhas do espaço e do tempo [...]” (RANCIÈRE, 2009,
p. 18), isto é, sua postura democrática.
O autor reconhece na literatura realista europeia do século XIX e na
fotografia essa mesma postura democrática, aqui em contraposição aos rígidos códigos da literatura e da pintura clássicas. “Não é por ser o instrumento
do poder [...] que a escrita é coisa política. Ela é coisa política porque seu
gesto pertence à constituição estética da comunidade” (RANCIÈRE, 2017, p.
7). A escrita, no gesto democrático de estar disponível a qualquer um, revela
no romance moderno outro aspecto democrático: sua temática inclui agora
o que Rancière chama de qualquer um, a vida do indivíduo anônimo (2009).
Se até então a literatura europeia atendia a um regime que impunha
29
uma hierarquia de gêneros, o romance moderno propõe “que uma época e
uma sociedade possam ser lidas nos traços, vestimentas ou gestos de um indivíduo qualquer, [...] que a filha do fazendeiro e a mulher do banqueiro sejam
capturadas pela mesma potência [...]” (RANCIÈRE, 2009, p. 47).
Para o autor, ao inserir em sua temática o anônimo, o qualquer um, a
literatura moderna abre a possibilidade de esse anônimo tornar-se tema artístico também para a fotografia. Assim, tanto a escrita como a imagem criam
narrativas que tratam do ordinário e o inserem no que é visível e dizível, numa
outra política, numa outra partilha da escrita e da imagem.
Essa democratização, efetuada pela escrita e pela imagem num regime artístico que abandona qualquer hierarquização de temas ou personagens,
como apontado por Rancière (2009), dialoga com a multiplicidade heterogênea e coetânea de narrativas que (co)constituem o espaço e sua imaginação
e se coaduna com a proposta de Massey (2008) de política não-essencialista
na qual a identidade dos atores está, ela própria, em constante construção.
Nesses termos, as imagens efetivam seu papel político ao atuarem como
versões de mundo, como aquilo que pode ser visto, e por quem, mas também
como o que pode ser mostrado, partilhado, por quem e para quem.
Quando entendidas como versões de mundo, as imagens contribuem
para explicitar a multiplicidade e a heterogeneidade de narrativas presentes no espaço e a respeito do espaço, como proposto por Massey (2008).
Atentar para tal multiplicidade permite problematizar narrativas que, em sua
hegemonia, pretendem o estatuto de únicas ou superiores numa suposta universalidade ou hierarquia, e refletir sobre a construção de qualquer discurso
projetado como detentor de verdade única ou objetividade imparcial.
Tratar de uma política espacial das imagens é tratar do papel político
de certa imaginação espacial de “[...] obras da cultura [...] as quais estão por
realizar [...] uma ‘grafia’ do espaço” (QUEIROZ FILHO, 2012, p. 107); é, sobretudo, investigar o que é permitido ver e mostrar, e o que pode ser dito sobre
o que vemos na esfera comum e quem tem esse poder. Tratar as imagens
como obras da cultura em sua multiplicidade e heterogeneidade significa conferir importância política aos diversos usos da imagem na sociedade, o que
também inclui as narrativas visuais e suas ficções.
30
1.2. Ficções: narrativas hegemônicas e narrativas de resistência
Abordamos aqui a ideia de ficção no aspecto ficcional de discursos
que se apresentam como narrativas hegemônicas e reclamam para si o estatuto de verdade sobre a realidade; e o caráter ficcional de criações artísticas
que problematizam tanto a noção de verdade como o próprio real e atuam
como narrativas de resistência a uma história única.
Gianni Vattimo aborda a relação entre ficção e realidade, ao tratar da
pós-modernidade, considerando o pós-moderno como o fim daquilo que seria um aspecto essencial da modernidade: “[...] quando já não parece possível
falar de história como qualquer coisa de unitário” (VATTIMO, 1992, p. 8). Argumenta que é a Filosofia, a partir do século XIX, que critica “[...] radicalmente
a ideia de história unitária revelando precisamente [seu] caráter ideológico
[...]” (VATTIMO, 1992, p. 8). O autor traz de Walter Benjamin, em Sobre o
conceito de história, o entendimento de que “[...] não há uma história única,
há imagens do passado propostas por pontos de vista diversos, e é ilusório
pensar que existe um ponto de vista supremo, global, capaz de unificar todos
os outros” (VATTIMO, 1992, p. 9).
Em Vattimo, a multiplicidade de histórias até aqui remete a múltiplas imagens que, por sua vez, produzem ou participam de distintas imaginações, distintas versões de mundo. Aqui, o suposto fim da crença numa
narrativa única está associado ao que o autor chama de “[...] advento da sociedade de comunicação” (VATTIMO, 1992, p. 10). Vattimo reivindica para os
meios de comunicação de massa a efetiva propagação das variadas visões
de mundo de minorias e de povos colonizados pela Europa, apesar da hegemonia do grande capital.
Segundo o autor, a vertiginosa disseminação de informação nessa sociedade dos meios de comunicação de massa não teria produzido a
emancipação política desses atores minoritários, mas contribuído para
instaurar uma sociedade caótica, na qual a ideia de realidade resulta “[...] da
contaminação das múltiplas imagens, interpretações, reconstruções que, em
concorrência entre si ou, seja como for, sem qualquer coordenação central,
os media distribuem” (VATTIMO, 1992, p. 13).
Esse caos possibilitaria o que Vattimo chama de desenraizamento, a
libertação das diferenças presentes nas tantas visões de mundo, como dialetos que agora [...] tomam a palavra [...] (VATTIMO, 1992, p. 15). O reconhecimento da multiplicidade de valores presentes nas narrativas em seus distintos
dialetos resultaria, enfim, numa tomada de consciência da “[...] historicidade,
contingência e limitação [...]” (VATTIMO, 1992, p. 15) das tantas versões daquilo que se apresenta como verdade.
Se Vattimo vê nas múltiplas narrativas pós-modernas se não o fim,
mas ao menos o enfraquecimento de discursos defensores de verdades únicas, Eduardo Pellejero, por sua vez, aponta, já na modernidade, uma crítica à
vontade de verdade. Identifica desde Platão a separação entre o verdadeiro e
a ficção, esta última tida pelo filósofo grego como falsa e enganosa. Pellejero
propõe uma genealogia dessa crítica e cita, entre outros pensadores, Friedrich Nietzsche, questionador da primazia da verdade sobre a vida; Michel
Foucault, que trata o próprio pensamento filosófico não como verdade dada,
mas como construção de um pensamento que pode vir a tornar-se verdade;
Jean-François Lyotard, que defende o fim da hegemonia dos grandes relatos
ou metanarrativas. Pellejero argumenta:
o caráter político de toda e qualquer ficção.
Nesse contexto, ficção deixa de ser sinônimo de mentira, como defendeu Platão, para tornar-se elemento constitutivo da própria ideia de verdade,
já reconhecida aqui como ficção hegemônica, dominante, consensual. Mas
para além da versão hegemônica, há outras, e por isso Pellejero traz à tona a
literatura, no âmbito da arte em geral, como ficção que “[...] opõe resistência
aos valores e aos projectos instituídos de facto como norma maioritária, [...]
às ideias herdadas e às verdades instituídas, fissurando a ordem estabelecida e abrindo [...] novos campos de possíveis” (PELLEJERO, 2009, p. 29).
Se o Estado necessita, para além da coerção, criar ficções consensuais a fim de governar, Pellejero argumenta que é também pela via da ficção
que a literatura apresenta uma pluralidade de novos possíveis, “[...] um universo antagônico ao das ficções estatais, procurando fragmentar o espaço
narrativo, para tornar patente que a história não existe, ou, melhor, [...] que
existem sempre várias histórias a circular na sociedade” (PELLEJERO, 2009,
p. 43). Ao discutir a questão poética na literatura, Pellejero opta por tratar a interferência da ficção literária nos discursos hegemônicos ou, se preferirmos,
no domínio do real. Para tal, dialoga com o pensamento de Juan José Saer,
escritor argentino contemporâneo, autor de El concepto de ficción:
Independentemente das problematizações, reavaliações
e reconstruções da própria ideia de verdade às quais há
[...] a ficção não pede para ser tida como verdade, mas
dado lugar, a crítica da vontade de verdade abre assim o
como ficção. Esse desejo não é um capricho do artista,
caminho a um novo paradigma de pensamento concep-
mas a primeira condição de sua existência, porque, ape-
tual, que alenta não a procura da verdade, mas a produ-
nas sendo aceita como tal, entender-se-á que a ficção
ção de ficções (regulativas, heurísticas, críticas, vincula-
não é a exibição novelada dessa ou daquela ideologia,
doras, etc.) (PELLEJERO, 2009, p. 11-12).
mas um tratamento específico do mundo, inseparável
daquilo que trata. [...] A ficção se mantém distante tanto
Para o autor, a ênfase não reside em negar esta ou aquela verdade,
ou ainda em buscar a versão mais fidedigna de verdade, mas em assumir que
os discursos instaurados como verdade são, de fato, a produção de uma “[...]
ficção hegemônica ou privilegiada” (PELLEJERO, 2009, p. 14). Reconhecer
os grandes relatos como ficções hegemônicas que se pretendem universais
e absolutas é evidenciar a construção de tais discursos, mas também admitir
dos profetas do verdadeiro como dos eufóricos do falso
(SAER, 2014, p. 12, tradução nossa).5
5 Do original: “Pero la ficción no solicita ser creída en tanto que verdad, sino en tanto que ficción. Ese deseo
no es un capricho de artista, sino la condición primera de su existencia, porque sólo siendo aceptada en
tanto que tal, se comprenderá que la ficción no es la exposición novelada de tal o cual ideología, sino un
tratamiento específico del mundo, inseparable de lo que trata. [...] La ficción se mantiene a distancia tanto de
los profetas de lo verdadero como de los eufóricos de lo falso” (PELLEJERO, 2014, p. 12).
31
Aqui é preciso esclarecer que Saer aborda a ficção literária não aliada à narrativa estatal e/ou hegemônica; trata aqui da ficção que não pretende se passar por verdade unívoca. O autor afirma que, exatamente por
não pretender o estatuto de verdade, a ficção é capaz de conferir tratamento
específico ao mundo. Para ele, tal especificidade seria dada pelo autor da
ficção na relação com o mundo.
Para Saer, a literatura existe não por ilustrar verdades ou propagar
ideologias – o que, diríamos nós, muitas versões de literatura certamente o
fazem –, mas como resultado do enfrentamento do autor com o mundo. É na
interação com o mundo e o espaço que a literatura existe. Ou seja, a literatura
pode ser ficção que resulta em narrativa, num entendimento de mundo que
não se quer único, absoluto, total. É ao não pretender se impor como verdade
que a ficção ganha a força das múltiplas histórias, de promover aberturas e
novas possibilidades daquilo que se pode ver, dizer e fazer na esfera comum.
Defendemos a validade de tais considerações acerca da literatura
para as práticas artísticas em geral, e em particular para a fotografia. Ou seja,
assim como a literatura, a fotografia tem sido utilizada para a produção de
ficções questionadoras dos discursos hegemônicos que reclamam o domínio
do real; ficções que atuam estética e politicamente no espaço comum de
modo a problematizar o visível, o dizível e o factível.
Para Rancière, o caráter político da arte não está em que esta reproduza, represente ou simbolize mensagens moralizantes ou ainda que seja
capaz de, ao denunciar ou explicitar determinada questão, provocar uma
reação específica no espectador. Rancière descarta a chance de a arte reproduzir ou mimetizar questões políticas. A aproximação entre política e arte
estaria exatamente na distância entre a intenção do artista e o espectador,
nesse estranhamento, no dissenso que a arte possa produzir, nessas “[...]
operações de reconfiguração da experiência comum do sensível” (RANCIÈRE, 2012a, p. 63). Isso porque, para o autor, a política é também uma produção de dissenso, quando
-se coparticipantes de um mundo comum, para mostrar
o que não se via, ou fazer ouvir como palavra a discutir
o comum aquilo que era ouvido apenas como ruído dos
corpos (RANCIÈRE, 2012a, p. 60).
Portanto, seja nas ficções dispostas como narrativas hegemônicas,
seja naquelas expostas como narrativas de resistência, as imagens participam do nosso entendimento de mundo. A fotografia em particular participa
desde seu advento na construção de narrativas visuais que tanto reforçam
discursos hegemônicos como os problematizam.
O amplo uso da imagem fotográfica em diferentes áreas do conhecimento e da cultura desde meados do século XIX explicita seu hibridismo e
adaptabilidade, reforçando a impossibilidade de uma história única também
na fotografia. Nesse sentido, participa das diversas narrativas ditas modernas.
Abordaremos a seguir a relação que a fotografia de rua trava especificamente
com a cidade ao se consolidar como imagem eminentemente moderna.
1.3. A fotografia de rua como narrativa urbana da modernidade
Ainda na segunda metade do século XIX, a relação da fotografia com
a cidade se intensifica com o advento de novas tecnologias, como a fotografia
aérea. Em Photography and Flight [Fotografia e voo], de 2010, Denis Cosgrove e William L. Fox atentam para o modo como o aspecto tecnológico da
fotografia participa em sua inserção na modernidade do século XIX:
O objetivo da fotografia [como a conhecemos, com sua
invenção e aperfeiçoamento tecnológico no século XIX]
é ao mesmo tempo protético e estético [...]: ampliar a capacidade do olho humano de perceber o mundo e capturar e congelar um momento no espaço e no tempo, documentando-o e arquivando-o, e tornando-o móvel por
[...] seres destinados a permanecer no espaço invisível
do trabalho [...] tomam o tempo que não têm para afirmar-
32
meio da imagem impressa ou transmitida (COSGROVE;
FOX, 2010, p. 8, tradução nossa) 6.
Como não classificar o uso do obturador no fenômeno
de generalização dos relógios? E não ver que a “pontua-
A máquina fotográfica gradativamente se consolida como prótese da
visão moderna, com o surgimento de equipamentos cada vez mais sofisticados, menores e de mais fácil manuseio técnico, permitindo maior disseminação do uso da fotografia por amadores ou profissionais das mais diversas
áreas da ciência e da cultura. André Rouillé ressalta que o aparato fotográfico
– dispositivo mecânico que fixa imagens bidimensionais ao combinar processos físico-químicos – “[...] aperfeiçoa, racionaliza e mecaniza a organização
imposta ao Ocidente a partir do século XV: a forma simbólica da perspectiva,
o hábito perceptivo que ela suscita, e o dispositivo da camera obscura” (ROUILLÉ, 2009, p. 63). A fotografia atualiza a perspectiva renascentista e incorpora a velocidade, a multiplicidade e a exatidão da máquina, presentes na lógica
industrial. Oliveira Júnior acrescenta que a fotografia torna-se “[…] herdeira
da modernidade do século XVI, a qual [...] adere à crença na visualidade
(verdade) dos instrumentos” (OLIVEIRA JUNIOR, 2011, p. 247). Ademais, a
difusão da imagem fotográfica em larga escala na imprensa contribui decisivamente no estabelecimento da fotografia como imagem técnica e científica,
mas também como retrato eminentemente urbano da modernidade.
Para Rouillé a fotografia nasce eminentemente urbana. O autor justifica a urbanidade da fotografia pela origem nas cidades modernas, conteúdos
citadinos e técnica voltada para a nitidez, a precisão e a velocidade, entendidas como elementos de uma lógica urbana presente nas grandes cidades
europeias do século XIX (ROUILLÉ, 2009). “Mas a fotografia é urbana sobretudo porque mecanismos análogos operam na grande cidade moderna e nos
documentos fotográficos” (ROUILLÉ, 2009, p. 44). A partir de Georg Simmel,
Rouillé aponta semelhanças entre a cidade moderna e a fotografia: “[...] a cultura moderna das grandes cidades [...] caracteriza-se pela [...] pontualidade
[...], a confiabilidade, a exatidão, a precisão, a extrema impessoalidade [...]”
(ROUILLÉ, 2009, p. 44). O autor argumenta:
6 Do original: “Photography’s purpose is at once prosthetic and aesthetic […]: to extend the capacity of the
human eye to perceive the world, and to capture and freeze a moment in space and time, documenting and
archiving it, and rendering it mobile through the printed or transmitted image” (COSGROVE; FOX, 2010, p. 8).
lidade” é intrínseca à fotografia, que é a primeira imagem
em que o processo é totalmente cronometrado? Quanto
à impessoalidade, essa é uma das principais críticas que
lhe é dirigida. E o que é a brevidade dos encontros senão
uma forma de instantaneidade? [...] a fotografia introduz,
nas imagens, valores análogos àqueles que [...] estão
transformando a vida e a sensibilidade dos habitantes das
grandes cidades industriais (ROUILLÉ, 2009, p. 44-45).
Rouillé vê no processo fotográfico a incorporação de valores caros
aos habitantes das grandes cidades do século XIX, e ainda mecanismos semelhantes aos da cidade moderna. No entanto, admite que até por volta de
1870 a fotografia ignorava a agitação das ruas e a “[...] emergência da multidão, tão emblemática da modernidade” (ROUILLÉ, 2009, p. 45). As limitações
dos longos tempos de exposição do aparato fotográfico explicam tecnicamente a ausência da multidão urbana como personagem principal nas fotografias
de rua, mas o autor afirma que, de fato, a fotografia estava a serviço do poder
ao focar principalmente “[...] os monumentos que o fixam no passado e as
grandes obras urbanas que o projetam no futuro” (ROUILLÉ, 2009, p. 45).
Colin Westerbeck e Joel Meyerowitz, autores de Bystander: a history
of street photography [Transeunte: uma história da fotografia de rua], buscam
em escritores como Victor Hugo e Charles Baudelaire uma genealogia do
fotógrafo de rua. Argumentam que, assim como o poeta moderno flana pela
grande cidade – a Paris de meados do século XIX –, o fotógrafo de rua se
mistura na multidão e é impactado por ela (WESTERBECK; MEYEROWITZ,
1994). Procuram desse modo confirmar a fotografia como imagem da experiência citadina moderna e apontam para a relação sugerida por Walter Benjamin entre a fotografia e o mover-se nas grandes cidades metropolitanas, em
suas análises dos temas abordados pelo poeta Charles Baudelaire:
[...] o “click” do fotógrafo trouxe consigo muitas conse-
33
quências. Uma pressão do dedo bastava para fixar um
acontecimento por tempo ilimitado. O aparelho como que
aplicava ao instante um choque póstumo. Paralelamente
às experiências ópticas desta espécie, surgiam outras
táteis, como as ocasionadas pela folha de anúncio dos
jornais, e mesmo pela circulação na cidade grande. [...]
Baudelaire fala do homem que mergulha na multidão
como em um tanque de energia elétrica. E, logo depois,
descrevendo a experiência do choque, ele chama esse
homem de “um caleidoscópio dotado de consciência”
(BENJAMIN, 1989, p. 124-125).
Trataremos do conceito de experiência no Capítulo 5. Aqui interessa
a associação entre a fotografia e a circulação nas grandes cidades modernas apresentada por esses autores. Westerbeck e Meyerowitz encontram
numa certa literatura francesa do século XIX, que tem a multidão como
tema, os precursores desse tipo específico de fotógrafo: o fotógrafo de rua.
Os autores apontam a proximidade entre a fotografia de rua e a literatura
a partir do modo como certos escritores e fotógrafos se relacionam com a
multidão e a grande cidade.
O escritor que mergulha na multidão é comparado ao fotógrafo de rua
que caminha pela multidão na busca por imagens. Porém, nem todos os fotógrafos de rua se lançam na multidão ou atuam da mesma maneira. Cada um
a seu modo, fotógrafos distintos produzem distintas relações com a cidade e,
consequentemente, distintas imaginações espaciais dessa cidade.
O trabalho de fotógrafos e fotógrafas apresentados por Westerbeck
e Meyerowitz (1994), por Rouillé (2009) e por Juliet Hacking (2012) atestam
algumas dessas relações citadinas entre a segunda metade do século XIX e
a primeira metade do século XX. Os trabalhos são muito distintos, produzidos
por Jacob Riis, Weegee, Alice Austen, Brassaï, Germaine Krull e Eugene
Atget, responsáveis por extensos empreendimentos fotográficos sobre Nova
Iorque e Paris nos séculos XIX e XX. Como veremos a seguir, esses autores
evidenciam o quanto a fotografia participa, desde muito, na construção de
34
certa imaginação espacial das cidades e como se relaciona diretamente com
a política, ao participar do visível e do dizível no comum, como já visto.
Os contemporâneos Riis e Austen fotografaram em Nova Iorque na
virada do século XIX, enquanto Weegee o fez já na primeira metade do século XX. Atget fotografou nas ruas de Paris desde o final do século XIX, antecedendo Brassaï e Krull, que o fizeram no período entre guerras da primeira
metade do século seguinte.
As fotografias noturnas de Riis, feitas de madrugada nas ruas e cortiços nova-iorquinos, assemelham-se às imagens produzidas décadas depois
por Weegee, fotojornalista especializado em cenas de crimes e acidentes
noturnos na Nova Iorque das décadas de 1930 e 1940.
As imagens de ambos os fotógrafos enfatizam e relacionam pobreza,
marginalidade e criminalidade como características da vida na grande cidade
moderna, tipificada aqui por Nova Iorque. O que Rouillé comenta acerca de
Weegee, de certo modo, caberia também para seu antecessor Riis: “A luz
crua de seu flash faz surgir da noite a porção maldita da sociedade, o avesso
tenebroso e sangrento das metrópoles modernas” (ROUILLÉ, 2009, p. 46-47).
Riis, ele mesmo imigrante em situação de rua em Nova Iorque no
final do século XIX, tornou-se repórter policial e em 1890 publicou How the
Other Half Lives [Como vive a outra metade]. A publicação, considerada pioneira no gênero do fotojornalismo, traz relatos e fotografias das condições de
vida em cortiços do Lower East Side, área empobrecida, insalubre e superpovoada – “[...] em 1890 meio milhão de pessoas viviam na área de 1,29 km2
[...]” (HACKING, 2012, p. 155) –, destino de imigrantes pobres na Nova Iorque
do final do século XIX (HACKING, 2012).
Westerbeck e Meyerowitz explicam que, com o advento do flash, Riis
viu na fotografia a ferramenta para sensibilizar a sociedade com suas propostas reformistas. Afirmam que Riis não possuía formação como fotógrafo
e reforçam “[...] o quão indiferente ele era à fotografia por ela mesma ou a
quaisquer regras de composição como eram então entendidas (1994, p. 241,
tradução nossa)7. Argumentam que, exatamente por não se ater a técnicas de
7 Do original: “[...] how indifferent he was to photography for its own sake or to any rules of composition as
they were then understood” (WESTERBECK, MEYEROWITZ, 1994, p. 241).
enquadramentos, suas fotografias ganhavam eficácia pela aparente autenticidade. Ao lado, uma de suas fotografias, Inquilinos num cortiço da Bayard
Street, cinco centavos a vaga, de 1889 (Figura 4).
Com o uso do flash, Riis pôde fotografar ocupantes de um quarto
de cortiço durante a noite. Ainda que um dos retratados encare a câmera,
o olhar e as expressões corporais de sonolência dos demais sugerem que
foram surpreendidos pelo fotógrafo.
O enquadramento direto e frontal dos retratados reforça o flagrante.
Baús e trouxas sobre uma pequena mesa, um par de botas e uma pequena
estante na parede, à esquerda da imagem, ocupam um terço da imagem e
aparecem destacados, em detrimento dos pequenos rostos espalhados pela
fotografia. A imagem de corpos amontoados em meio a objetos pessoais
e móveis velhos e sujos corrobora a infame insalubridade dos prédios do
bairro. A superlotação é enfatizada: além dos dois ocupantes num tipo de
beliche rústico e dos quatro homens deitados em colchões espalhados pelo
chão, as cobertas no canto direito inferior da imagem indicam a presença de,
ao menos, outro ocupante.
A proximidade dos fotografados é acentuada pela tomada com lente
grande angular, sugerindo ao espectador a mirada de testemunha ocular. A
luz direta do flash ilumina uniformemente a cena e cria uma imagem crua e
instantânea, características visuais associadas à suposta imparcialidade documental. Fotografia e legenda se justapõem para enfatizar certos aspectos
da vida nessa área da cidade: sujeira, insalubridade, pobreza, superlotação e
péssimas condições habitacionais.
Cerca de cinco décadas depois, entre os anos 1930 e 1940, as fotografias também noturnas de Weegee são recorrentes nas capas de jornais sensacionalistas nova-iorquinos. Com o avanço da tecnologia que permite o uso
do flash com tempos de exposição mais rápidos e negativos de 4 x 5 polegadas, o fotógrafo oferece imagens extremamente nítidas à imprensa da época.
Especializado em cobrir as atividades policiais durante a noite nas
ruas da cidade, Weegee inclui nas fotos cenas de crimes, acidentes automobilísticos, incêndios e suicídios. Essa fotografia com aspectos de flagrante
jornalístico diante do espectador, expõe imagens que funcionam como prova
Figura 4. RIIS, Jacob. Fotografia intitulada Inquilinos num cortiço da Bayard Street, cinco centavos a vaga. 1889. 1 fotografia preto e branco. The Museum of Modern Art.
Fonte: https://www.moma.org/collection/works/51194
35
Figura 5. WEEGEE. Fotografia intitulada Pessoas em torno do corpo de um homem morto na
Mulberry Street em Nova Iorque, 21 de setembro de 1939. Fotografia preto e branco (AP Images).
Fonte: https://www.americamagazine.org/arts-culture/2018/10/10/review-famous-weegee-close-and-personal
36
inquestionável de fatos presenciados pelo fotógrafo. A fotografia de Weegee,
veiculada diariamente nos jornais sensacionalistas, constrói assim certo entendimento da vida noturna da cidade. Tomemos a fotografia Pessoas em
torno do corpo de um homem morto na Mulberry Street em Nova Iorque, 21
de setembro de 1939 (Figura 5).
O flash ilumina a cena com luz frontal, produzindo uma imagem semelhante às fotografias de perícia policial cujo aspecto é associado à ideia
de flagrante e de documento jurídico. A tomada com lente grande angular
permite evidenciar o contexto citadino do local do crime. Assim, na fotografia
de diversos planos, certos elementos e personagens constroem a narrativa
do fotógrafo como testemunha ocular da cidade moderna violenta e insegura.
De costas para a câmera e afastado do corpo estirado na rua, um policial no primeiro plano da imagem, à esquerda, assiste à cena com as mãos
nos bolsos, numa postura que sugere a impotência da força policial frente aos
homicídios cometidos nas ruas da cidade.
Numa placa logo acima do policial as palavras “O Sole Mio, [Sc]ungilli” e “food” caracterizam o estabelecimento como restaurante de comida
italiana. Em escala local, o restaurante na fotografia – assim como o nome
da rua na legenda – situa o crime na região conhecida ainda hoje como Little Italy e reforça a ligação do bairro com a violência da máfia nova-iorquina de ascendência italiana.
As pequenas lâmpadas formando arcos se fundem com os prédios
em torno da cena do crime, contrastando com o corpo no chão. A decoração
festiva produz na imagem um comentário social, de certo modo irônico: a
grande cidade moderna não para pelo assassinato de um cidadão qualquer.
As imagens de Weegee, ao explicitarem corpos em calçadas e pessoas em situações limítrofes no espaço público, retratam uma cidade de ruas
povoadas ora por criminosos, ora por vítimas; uma fotografia de rua que confirma a violência como marca de um mundo cão instaurado, em particular,
na noite da cidade moderna.
De outro modo, Alice Austen fotografa tipos urbanos nas ruas da cidade de Nova Iorque, mais especificamente na ilha de Manhattan. Ainda que,
segundo Jackie Higgins, “nas imagens de Austen [...] os miseráveis e destituí-
dos finalmente reconquistam um orgulho discreto, cheio de dignidade” (HACKING, 2012, p. 151), questionamos que tipo de imagem da cidade moderna e
seus transeuntes essa fotografia produz. Vejamos o retrato feito por Austen
de dois trapeiros nova-iorquinos do final do século XIX (Figura 6).
Os dois homens são vistos a distância. Os corpos são tornados
pequenos na escala da imagem. As placas publicitárias ao fundo ocupam
mais da metade do enquadramento, encobrem o céu, planificam o horizonte
e competem por nossa atenção. Para além de sua função primeira, o texto publicitário, agora transformado em imagem junto com os retratados e o
entorno, permite outras leituras. O título de um espetáculo publicado repetidamente em três cartazes distintos adere ao retrato e torna-se um comentário sarcástico da atividade dos trapeiros. A frase se repete logo atrás dos
homens e de suas cargas, como se ecoasse na rua: “perdido, extraviado ou
roubado; perdido, extraviado [...]; perdido, extraviado [...]”.
Se as placas ao fundo permitem associações entre o texto nas ruas e
a atividade dos retratados, no primeiro plano a lente grande angular explicita
a rua que separa a fotógrafa dos modelos, mas não a impede de fotografá-los; uma distância que denuncia outras separações mais profundas de gênero e classe nas ruas da cidade.
O contexto de produção da fotografia traz à tona os tantos antagonismos nas múltiplas e coetâneas inter-relações da cidade moderna (MASSEY,
1994; 2008). Ao tratar da relação da mulher com a rua da cidade novecentista, Massey afirma que essa é, primordialmente, “[...] uma cidade para os
homens” (MASSEY, 1994, p. 233, tradução nossa). Para a autora, “[...] uma
das figuras-chave [na] experiência dessa [...] modernidade é o flâneur, o andarilho na multidão, que observa sem ser observado [...] irremediavelmente
masculino” (MASSEY, 1994, p. 234, tradução nossa).
Aqui, Austen, estadunidense abastada e pioneira na fotografia de rua,
subverte essa relação de gênero ao se posicionar como mulher e fotógrafa
que flana pela cidade. No entanto, sua produção de imagens no espaço público é ainda atrelada a uma elite detentora dos recursos financeiros que lhe
permitem acesso à tecnologia e disponibilidade de tempo e de deslocamento
para flanar e fotografar pela cidade. Seus retratos de rua tratam dessa tenta-
Figura 6. AUSTEN, Alice. Tipos de rua de Nova Iorque: 2 trapeiros. c. 1896. Biblioteca do Congresso (EUA).
Fonte: https://www.loc.gov/resource/cph.3b24128/
37
Figura 7. BRASSAÏ. Páginas 9 e 10 do livro Paris de nuit [Paris à noite]. 1933.
Fonte:https://drouotstatic.zonesecure.org/images/perso/zoomsrc/LOT/49/80623/125_2.jpg
tiva de empatia e da curiosidade frente ao transeunte citadino desconhecido;
retratam empaticamente pessoas de outras classes sociais e econômicas,
mas a distância, vistas do outro lado da rua.
Por sua vez, são bastante distintas entre si, mas de certo modo complementares, as versões de Brassaï e Krull de uma Paris do começo do século XX. Ambos tomam a arquitetura e a própria rua como protagonistas e
optam pela sequência fotográfica em formato de livro ou álbum.
Brassaï publica em 1933 Paris de nuit [Paris à noite] 8 (Figura 7). Das
62 fotografias da publicação, ao menos 53 retratam a noite de Paris a partir
das ruas, enquanto as demais apontam para cenas internas de espetáculos
e outras atividades noturnas. Primordialmente, o que vemos são ruas vazias, tomadas por uma neblina que remete a um surrealismo onírico, como
pontua Rouillé (2009). Enquadramentos abertos e na contraluz criam cenas
formadas por silhuetas, sombras projetadas e pontos de luz. Edificações e
penumbra se confundem; as construções se amalgamam às sombras e a
cidade torna-se sinônimo de escuridão, acentuada pelo preto e branco contrastante das fotografias.
Personagens solitários vagam pelas ruas escuras, e apesar do suspense nas imagens, a violência não é explícita, como em Weegee. Muitas
vezes as poucas pessoas fotografadas resultam em silhuetas fantasmagóricas, mas inserem uma noção de escala humana nas protagonistas dessas
imagens externas: as ruas de Paris e a noite urbana.
Krull publica o álbum Métal em 19289. De modo distinto, opta por
fotografar especificamente “a Torre Eiffel, os guindastes e as pontes de Amsterdam, Rotterdam, Marseille e Saint-Malo [...]” (KRULL, 2003, s.p., tradução
nossa)10. As 64 fotografias ora tendem à abstração, ora ressaltam aspectos
escultóricos e monumentais dos elementos fotografados. A diagramação do
álbum, com fotografias sempre isoladas entre páginas em branco, alterna
8 Um vídeo disponível em https://vimeo.com/68394699 apresenta o conteúdo integral da publicação original.
9 O álbum pode ser visualizado integralmente em formato pdf na página <https://monoskop.org/images/5/59/Krull_Germaine_Metal_1928_2003.pdf>. Acesso em: 19 mar. 2020.
10 Do original: “La Tour Eiffel, les grues et ponts transbordeurs d’Amsterdam, Rotterdam, Marseille et Saint-Malo […]” (KRULL, 2003, s.p.).
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detalhes, cenas abertas e recortes abstratos que sugerem um cenário urbano tomado por máquinas. Composições de enquadramentos fechados, com
tomadas de baixo para cima de grandes construções como a Torre Eiffel em
Paris ou guindastes em Amsterdam assemelham-se ao elogio às estruturas
metálicas que parecem sustentar a própria modernidade (Figura 8).
Numa outra imagem a cidade é vista de cima (Figura 9). Uma estrutura metálica abriga um letreiro ligado por fios a baterias elétricas e preenche
todo o primeiro plano da imagem. Somos obrigados a olhar por entre ferros,
letras invertidas e fios para enfim identificarmos a cidade e seus transeuntes
abaixo. As ruas, as calçadas, as pessoas, os carros e até mesmo os prédios
estão abaixo da estrutura metálica através da qual vemos a cidade. Oscilamos
entre o elogio às novas tecnologias e uma visão distópica da cidade moderna.
Eugene Atget é conhecido por fotografar, a partir dos últimos anos
de 1900, uma Paris que desaparecia sob a renovação urbanística de Hausmann desde a década de 1850. Com o intuito de produzir referências visuais
para pintores e escultores, Atget tratava suas fotografias como “documentos para artistas”, conforme dizia a placa na porta de seu ateliê (HACKING,
2012). Desse modo, fotografou temas específicos em Paris, dentre eles,
“[…] os veículos de rodas, os comércios de rua e as ruínas da alta ambição” (SZARKOWSKI, 2000, p. 16, tradução nossa)11, como em Pátio, 41,
Rue Broca, 1912 (Figura 10).
A Paris de Atget contrasta com a do poeta Baudelaire, que se perde
na multidão e se apaixona por uma passante entre bulevares e cafés. As imagens do fotógrafo exibem uma cidade semideserta, em ruínas. Na imagem
da página seguinte, Atget fotografa a fachada de um pequeno prédio a partir
de um pátio interno. Aberturas retangulares no térreo da edificação cumprem
a função de portas e o estado dilapidado da arquitetura é explícito. Enquadradas hermeticamente na imagem, as muitas portas e janelas causam uma
sensação labiríntica e, de certo modo, claustrofóbica.
Tapetes repousam em algumas janelas e denunciam a presença
Figura 8. KRULL, Germaine. Da série Métal. 1933. 1 fotografia preto e branco.
Fonte: https://artblart.files.wordpress.com/2018/11/krull-metal-26-web.jpg
Figura 9. KRULL, Germaine. Sem título.1926–28. 1 fotografia preto e branco. The Museum of
Modern Art.
Fonte: https://www.moma.org/collection/works/83820
11 Do original: “[…] the wheeled vehicles, the street trades, and the ruins of high ambition”
(SZARKOWSKI, 2000, p. 16).
39
de moradores. Aos poucos, nossos olhos dão conta dos pequenos rostos
infantis enquadrados isoladamente nas janelas à esquerda. Um grupo de
adultos e crianças é visto no parapeito improvisado à direita. Olham para
a câmera como se pudessem permanecer tão anônimos quanto o fotógrafo. Graças à variação de nitidez e iluminação dos corpos, a fotografia lhes
confere um aspecto fantasmagórico, como se, num conto de Ítalo Calvino,
também eles desaparecessem com a destruição dessa cidade que dará lugar a outra de mesmo nome.
Assim, seja nas empreitadas por mudanças sociais e urbanísticas, no
fotojornalismo ou como trabalho autoral, a fotografia participa da construção
da imagem da cidade moderna desde seu advento, no século XIX. É como
imagem tecnológica, popular, secular e múltipla na capacidade de reprodução e nos diversos usos que a fotografia inicia sua admissão na arte moderna
na primeira metade do século XX (ROUILLÉ, 2009; BENJAMIN, 2017).
Figura 10. ATGET, Eugene. Pátio, 41, Rue Broca, 1912. 1 fotografia preto e branco. The Museum of Modern Art.
Fonte: https://www.moma.org/collection/works/40207
40
2. GRAFIAS DE MUNDO NAS NARRATIVAS DA FOTOGRAFIA DE
RUA COMO ARTE MODERNA
2.1. A inserção da fotografia de rua na narrativa da arte moderna
O diálogo entre fotografia e arte entabula-se simultaneamente em vários centros de produção artística desde o século XIX, como confirmam obras
de fotógrafos como o húngaro Andre Kertesz ou o mexicano Manuel Álvares
Bravo (WESTERBECK, MEYEROWITZ, 1994). No Brasil, nas últimas duas
décadas, autores como Tadeu Chiarelli (2002), Helouise Costa e Renato Rodrigues (2004) resgataram a obra de fotógrafos como o novecentista Valério
Vieira, nascido em 1862, e a produção moderna do Foto Cine Clube Bandeirante, já de meados da década de 1940.
No entanto, no que diz respeito ao diálogo entre arte e especificamente à fotografia de rua, a historiografia da arte e da fotografia aponta para
a produção, ainda na virada do século XIX para o XX, em países da Europa,
nos Estados Unidos e na Rússia. Na Europa e na Rússia, essa aproximação
é mais explícita entre artistas associados a distintos movimentos artísticos,
dentre eles o Surrealismo, o Construtivismo Russo e a chamada Nova Visão
Alemã (ROUILLÉ, 2004; FOSTER et al., 2016).
Ainda que não tratemos aqui desses movimentos artísticos, parece
importante mencioná-los a fim de ressaltar que o Modernismo no campo das
artes visuais no início do século XX apresenta-se múltiplo e heterogêneo.
Apesar de suas diferenças programáticas, ideológicas e estéticas, artistas
vinculados a diferentes movimentos mantêm em comum o entendimento da
fotografia como imagem que preconiza a modernidade e exalta ora seu caráter mundano e ordinário, ora sua natureza mecânica e reprodutibilidade.
Nos Estados Unidos, a partir dos primeiros anos do século XX, constrói-se uma narrativa que legitima a fotografia como arte moderna. Destaca-se então certa produção fotográfica conhecida como straight photography,
termo traduzido para o português como fotografia direta (HACKING, 2012).
Paul Strand, um de seus maiores expoentes, argumenta, em texto de
1917 publicado na aclamada revista Camera Work [Trabalho de câmera], que
“a força potencial de todo meio depende da pureza de seu uso” (ROBERTS;
STIEGLITZ, 1997, p. 780, tradução nossa).12 Para ele, a pureza do meio fotográfico, aquilo que lhe é específico, estaria conceitualmente associada a uma
ideia de objetividade e, esteticamente, à variação dos tons de cinza da fotografia em preto e branco – essas seriam características próprias da fotografia
–, e “sua realização mais completa é alcançada sem truques de processo ou
manipulação pelo uso de métodos fotográficos diretos” (ROBERTS; STIEGLITZ, 1997, p. 780, tradução nossa) 13.
A defesa de Strand de especificidades na fotografia insere-se num
certo discurso modernista, segundo o qual cada meio artístico abriga especificidades e cada artista deveria alcançar essa pureza em seu meio. Ao associarem a fotografia a uma suposta objetividade, os adeptos da fotografia direta
trazem ao campo da arte um atributo até então considerado demasiadamente
mundano para legitimar a fotografia como arte: o aspecto documental.
Mais adiante a questão documental da fotografia receberá maior
aprofundamento. Por ora, interessa apontar que o estatuto documental da
fotografia, para Rouillé, é “[sua] capacidade [...] para inspirar confiança no
valor documental das imagens, não se apoia somente em seu dispositivo
técnico, mas em sua coerência com o percurso geral da sociedade [moderna]
(ROUILLÉ, 2008, p. 51), [que compreende uma] racionalidade instrumental, a
mecanização [e] a urbanização” (ROUILLÉ, 2008, p. 51).
Retratos anônimos feitos por Strand em 1916 nas ruas de Nova
Iorque, como Blind (Figura 11), explicitam o discurso da objetividade documental defendida pela fotografia direta. No entanto, ao nos debruçarmos
sobre a imagem, concluímos que tal objetividade participa de uma construção ficcional da fotografia.
O enquadramento frontal da imagem assemelha-se ao da fotografia
de cunho documental, como as que compõem fichas criminais em delegacias
e prisões, ainda que feita nas ruas da ilha de Manhattan. “Não será cada um
12 Do original: “The full potential power of every medium is dependent upon the purity of its use” (ROBERTS; STIEGLITZ, 1997, p. 780).
13 Do original: “The fullest realization of this is accomplished without tricks of process or manipulation,
through the use of straight photographic methods” (ROBERTS; STIEGLITZ, 1997, p. 780).
41
Figura 11. STRAND, Paul. Blind. 1916. 1 fotografia preto e branco. The Museum of Modern Art.
Fonte: https://www.moma.org/collection/works/54299
42
de seus transeuntes um criminoso?” (BENJAMIN, 2017, p. 70) – pergunta
Benjamin vinte anos mais tarde, ao tratar da fotografia de rua de Atget. O
broche com a numeração de licença para mendicância, emitido pela municipalidade no controle dos corpos na cidade, e a placa que repousa sobre
o colo da mulher parecem legendá-la. Antes de ser convertida numa imagem fotográfica, ela mesma já fazia parte dessa grande exposição de corpos e tipos citadinos na rua, identificada como a pedinte cega, devidamente registrada e autorizada.
Ao retratar pessoas anônimas como se produzisse fotografias para
documentos – ainda que o fizesse com um tipo de equipamento que escamoteia o ato fotográfico –, Strand revisita uma fotografia taxonômica e policialesca, já consolidada desde meados do século XIX. Assim, desloca essa construção imagética – o retrato frontal, de meio-corpo – da função estritamente
documental para atribuir-lhe caráter autoral.
Chama atenção ainda o modo como a imagem problematiza sua
própria legenda, a palavra Blind, cega em português, presente na própria
fotografia. Por um lado, a insistência redundante do texto busca limitar e
definir uma única possível identidade à retratada. O texto, disposto ali para
confirmar a deficiência visual da mulher, acaba por torná-la suspeita, como
se ela própria não acreditasse que seu olho direito não vê. Por outro lado,
o olho vidente que se movimenta, como se quisesse escapar do enquadramento fotográfico, nega a condição imposta ao resto do corpo inerte e
cego, assim autolegendado.
De todo modo, essa fotografia direta, entendida como moderna por
advogar a pureza fotográfica que privilegia aspectos técnicos e, como já dito,
uma suposta objetividade documental no detalhe e na nitidez da imagem fotográfica, encontra nos Estados Unidos dos anos 1920 e 1930 o contexto
propício para a ascensão.
Destacamos aqui o surgimento e a difusão do documentário – gênero presente tanto na fotografia como no cinema, no teatro, na literatura, na
dança e no jornalismo escrito e falado da época (STOTT, 1986) – e a então
recente criação de museus de arte moderna que buscam consolidar uma arte
dita americana, capaz de fortalecer a identidade nacional. Um dos exemplos
mais emblemáticos dessa empreitada é o Museu de Arte Moderna de Nova
Iorque, o MoMA, criado em 1929, o primeiro museu de arte no mundo a estabelecer, em 1940, um departamento dedicado exclusivamente à fotografia.
Essa fotografia direta, no âmbito estadunidense, é produzida prioritariamente nas ruas das pequenas e grandes cidades americanas e, por isso,
está fortemente associada tanto ao documentário como à fotografia de rua.
Caberia aqui definir o termo fotografia de rua. Optamos pela definição proposta por Westerbeck e Meyerowitz:
A rua aqui definida pode ser uma avenida lotada de pessoas [...], um parque na cidade ou um calçadão na praia,
um café cheio de vida ou um corredor deserto num cortiço, ou mesmo um vagão de metrô ou o átrio de um teatro.
É qualquer lugar público onde um fotógrafo poderia fotografar pessoas que lhe fossem desconhecidas e, sempre
que possível, inconscientes de sua presença (WESTERBECK, MEYEROWITZ, 1994, p. 35, tradução nossa).14
Tal definição dialoga diretamente com o argumento de Rancière
apresentado no capítulo anterior de que a fotografia moderna herda sua temática da literatura realista do século XIX. Ou seja, Westerbeck e Meyerowitz
explicitam a relação que a fotografia de rua tem com a figura do anônimo, do
qualquer um, como diria Rancière (2009). Essa fotografia de rua, entendida
como documento, mas também como expressão artística pela alegada pureza modernista, introduz-se no museu como arte moderna e, nos Estados
Unidos, é propagandeada como arte autenticamente americana.
Kristina Wilson, autora de The Modern Eye [O olho moderno], relata que Alfred Barr, primeiro diretor do MoMA, estava bastante vinculado ao
realismo americano da década de 1930, movimento artístico estadunidense
que, em linhas gerais, no campo das artes visuais, privilegiava uma pintura
14 Do original: “The street as is defined here might be a crowded boulevard [...], a park in the city or a
boardwalk at the beach, a lively cafe or a desert hallway in a tenement, or even a subway car or the lobby of
a theater. It is any public place where a photographer could take pictures of subjects who were unknown to
him and, whenever possible, unconscious of his presence” (WESTERBECK, MEYEROWITZ, 1994, p. 35).
figurativa com temática voltada ao cotidiano americano.
Wilson esclarece que em 1930 Barr propôs ao Conselho de Curadores do museu uma exposição de pinturas da Cena Americana com a justificativa de que “[...] uma exposição dedicada ao tema descobrindo a América, ao buscar uma forma visual para expressar uma identidade nacional,
[...] contribuiria grandemente para o diálogo artístico nacional” (BARR, 1930,
apud WILSON, 2011, tradução nossa).15 A autora entende que Barr “[...] queria mostrar uma arte que transmitisse um conteúdo social, assim como uma
arte que tivesse penetrado, para além dos muros institucionais, em direção à
esfera da práxis diária” (WILSON, 2011, tradução nossa).16
A postura do MoMA, personificada em seu diretor, parece ser ainda o desdobramento do que Cosgrove identificou como um intenso nacionalismo entre as sociedades coloniais no período que antecedeu a Primeira
Guerra Mundial e em cuja dimensão cultural diagnosticou um “[...] fascínio
pelas origens autóctones. As nações já não afirmavam ter sido fundadas
por heróis ancestrais mediterrâneos, mas acreditavam ser a expressão autêntica de um ‘povo’ enraizado no solo de uma pátria” (COSGROVE, 2008,
p. 111, tradução nossa).17
É a imagem de um povo que constrói a própria pátria que parece estar
presente nessa visualidade promovida como identidade nacional pelo MoMA,
como apontado por Wilson. Nesse contexto, a fotografia, e em particular a de
rua, atende à agenda modernista e nacionalista, assumida por Barr, como suporte ideal para propagar a união entre máquina, arte moderna e o cotidiano
americano na construção da identidade nacional. Não nos interessa tratar especificamente da construção da identidade americana, mas destacar como a
fotografia de rua é usada pelo museu na construção de narrativas modernas.
O histórico de exposições disponibilizado no sítio online do Museu
15 “[...] an exhibition devoted to the theme of [...] discovering America, finding visual form to express a national identity [...] would contribute greatly to the national artistic dialogue” (WILSON, Kristina, 2011, s. p.).
16 Do original: “[...] wanted to show art that conveyed social content as well as art that had penetrated
beyond the institutional walls to enter into the realm of daily praxis”. Ibid.
17 Do original: “[…] fascination with autochthonous origins. No longer did nations claim to have been founded by ancient Mediterranean heroes such as Aeneas or Brutus, but were believed to be the authentic
expression [of] a ‘folk’ rooted in the soil of a fatherland” (COSGROVE, 2008, p. 111).
43
de Arte Moderna de Nova Iorque,18 que lista até o presente momento, todas
as exposições do museu entre 1929 e 2016, ajuda a dimensionar a estreita
relação entre o MoMA e a fotografia de rua na construção de uma narrativa
que insere a fotografia como arte moderna no museu. Ao identificar as exposições individuais de fotógrafos no MoMA a partir da definição de fotografia
de rua de Westerbeck e Meyerowitz apresentada acima, concluímos que das
148 exposições individuais de fotografia em toda a história do museu, 92
podem ser consideradas de fotografias de rua. Ou seja, mais de 60% das exposições individuais mostram exclusivamente trabalhos de fotógrafos de rua.
Além disso, os cincos fotógrafos que mais expuseram individualmente no museu, os únicos com quatro ou mais exposições individuais, são todos
fotógrafos de rua, como mostra a Tabela 1. É certo que outros gêneros participaram na construção da fotografia como arte moderna. No entanto, o que
ressaltamos é a hegemonia da fotografia de rua no contexto americano, e em
particular, no Museu de Arte Moderna de Nova Iorque.
18 Página disponível em: <https://www.moma.org/research-and-learning/archives/archives-exhibition-history-list>. Acesso em: 15 dez. 2019.
O termo cunhado pelo autor explicita “[...] ao mesmo tempo, a existência de
um comum e dos recortes que nele definem lugares e partes respectivas”
(RANCIÈRE, 2009, p. 15). Uma partilha que é, ao mesmo tempo, o compartilhamento de algo e a divisão de partes, daquilo que cabe a um e não a
outro, e que nos faz retornar à política, ou seja, à questão “[...] de quem tem
competência para ver e qualidade para dizer [...]” (RANCIÈRE, 2009, p. 17).
O museu de arte, instituição detentora, na sociedade moderna, do
poder de dizer o que deve ser visto como arte, faz uso da fotografia de rua
para promover um discurso estético-político: a fotografia como arte moderna, mas também como imagem partícipe da construção de certa identidade
americana. A fotografia de rua acaba por trazer ao interior institucionalizado
do museu uma imagem até então considerada mundana, cotidiana e ordinária da rua e de um suposto homem comum. Em contrapartida, no museu ou
no livro de fotografia de artista, a fotografia de rua – essa mesma imagem
mundana, cotidiana e ordinária – recebe o estatuto artístico e participa, como
grafia de mundo chancelada pela autoridade do museu, da visão coletiva que
determinada sociedade tem de si mesma.
Como vemos na fotografia de Strand, concomitantemente à narrativa modernista que ressalta aspectos estéticos da fotografia, podem-se encontrar nessa mesma fotografia de rua imaginações espaciais que atuam
politicamente, extrapolando questões estritamente formalistas, como enquadramento, nitidez, contraste, sombras, texturas ou ainda noções modernistas
como autoria, estilo, subjetividade e obra artística.
Richard Bolton (1989) adverte que instituições que tratam da fotografia no campo da arte buscaram, desde a década de 1950, construir uma
história universal da fotografia limitada a realçar seus aspectos tecnológicos
e visuais. Para o autor, foi conferida a essas instituições a função de “[...] fornecer uma articulação imaculada das características comuns da fotografia”
(BOLTON, 1989, p. 10, tradução nossa)20, de modo que “[...] a ubiquidade da
19 Lista elaborada a partir do histórico de exposições disponibilizado online pelo Museu de Arte Moderna
de Nova Iorque. Disponível em: <https://www.moma.org/research-and-learning/archives/archives-exhibition-history-list>. Acesso em: 3 dez. 2019.
20 Do original: “[…] to provide an unsullied articulation of photography’s common characteristics” (BOLTON, 1989, p. 11).
Tabela 1. Lista dos cinco fotógrafos com maior número de exposições no MoMA.
Fonte: Elaborado pelo autor19.
Ao tratarmos a relação do museu com os fotógrafos expositores e
44
com a fotografia de rua em particular, podemos pensar novamente na partilha do sensível, como proposta por Rancière e já abordada no Capítulo 1.
fotografia, a multiplicidade de seus usos e os contraditórios objetivos da prática fotográfica são questões raramente levantadas na história da fotografia
modernista” (BOLTON, 1989, p. 11, tradução nossa)21.
A partir do final da década de 1970, autoras e autores inseridos numa
produção acadêmica de leituras pós-estruturalistas do modernismo estadunidense problematizam a narrativa modernista do MoMA. Produzem tanto uma
releitura crítica da fotografia moderna como também divulgam determinada
produção artística contemporânea entendida então como pós-moderna, caracterizada por usos e entendimentos distintos da fotografia no campo da
arte. Pode-se dizer que surge então outra narrativa acerca da fotografia e de
sua relação com a arte moderna.
Essa narrativa, fortalecida na academia com a criação de periódicos
como a revista estadunidense October, em 1976, aponta para as relações
estético-políticas das então recentes produções artísticas da segunda metade do século, entendidas como pós-modernas. Esses teóricos e críticos
detectam nessa produção artística mais recente uma relação distinta com
a fotografia. Os próprios artistas problematizam a inserção da fotografia na
arte moderna e seus desdobramentos, propondo outras relações com a imagem fotográfica. Nesse contexto, a fotografia é enaltecida em seu aspecto mundano, como elemento que desestabiliza e contamina a autonomia e
a pureza dos canais modernistas, por sua relação híbrida, heterogênea e
múltipla com os meios de comunicação de massa e a sociedade de consumo, dentre outros aspectos.
2.2. Fotografia de rua como narrativa crítica à arte moderna
Autores como Rosalind Krauss, Douglas Crimp, Abigail Solomon-Godeau e Christopher Phillips, dentre outros, têm produzido desde meados da
década de 1970 textos críticos que chamam a atenção para as opções estético-políticas de certo modernismo americano, como feitas por curadores de
fotografia, historiadores da arte e museógrafos ligados ao MoMA.
Krauss atenta para as estratégias discursivas utilizadas pelo museu
para construir determinada tradição, uma possível genealogia, como que
para legitimar a fotografia em seu estatuto de arte moderna. Para a autora,
noções de autoria, carreira, estilo e obra são impostas a fotografias do século
XIX que, a seu ver, não suportam e nem reivindicavam tais estatutos.
Desse modo, problematiza, a partir da obra de Atget, o que chama
de desmantelamento do “[...] arquivo fotográfico, quer dizer, o conjunto das
práticas, instituições, relações de onde surgiu inicialmente a fotografia do século XIX, para reconstruí-lo no quadro das categorias já constituídas pela
arte e sua história” (KRAUSS, 2012, p. 56). Krauss afirma que as fotografias
de Atget deveriam ser vistas em seu estatuto de arquivo – documentos para
artistas 22 – e examinadas de forma arqueológica.
Crimp também chama a atenção para a narrativa construída pelo
MoMA na figura de John Szarkowski, curador diretor do Departamento de Fotografia do museu por quase três décadas, entre 1962 e 1991. Em The Photographer’s Eye [O olho do fotógrafo], Szarkowski (2007) apresenta o que, a
seu ver, são questões intrínsecas à prática fotográfica, as quais resume em:
a coisa em si; o detalhe; o quadro; tempo; ponto de vista23. Cada um desses
tópicos é abordado por Szarkowski a partir ora do aspecto tecnológico da
fotografia, ora de sua visualidade. Assim, o curador busca unificar em torno
dessas questões toda prática fotográfica produzida até então.
O autor utiliza um trecho da introdução de The Photographer’s
Eye [O olho do fotógrafo] para enfatizar o reconhecimento, pelo próprio
Szarkwoski, da multiplicidade e da heterogenia de usos e tratamentos dados à fotografia ao afirmar:
As imagens reproduzidas neste livro [...] foram feitas há
mais de 125 anos [...] por diversos motivos, por homens
22 Como já mencionado no tópico 2.2, esta era a frase escrita na porta do ateliê de Atget: Documentos para
artistas (HACKING, 2012); (BALDWIN, 2000).
21 Do original: “[…] the ubiquity of the photograph, the multiplicity of its uses, and the contradictory goals of
photographic practices are seldom raised as issues in modernist photography history” (BOLTON, 1989, p. 11).
23 As questões são apresentadas separadamente na publicação, como títulos de cada tópico do texto de
Szarkowski. Do original: the thing itself, the detail; the frame; time; vantage point (SZARKOWSKI, 2007).
45
com preocupações diversas e talento desigual. Não têm
muito em comum, na verdade, exceto o sucesso e a linguagem compartilhada: não há a menor dúvida de que são
fotografias (SZARKOWSKI, apud CRIMP, 2005, p. 68).
No entanto, Szarkowski continua interessado em encontrar especificidades fotográficas a fim de construir uma narrativa que insira a fotografia
no campo da arte como um dos meios modernistas “[...] no sentido dado por
Clement Greenberg ao termo – uma forma de arte que, por suas características essenciais, consegue diferenciar-se de todas as outras formas de arte”
(CRIMP, 2005, p. 68). Tal empreitada trata de maneira homogeneizante os
diversos usos da fotografia e desconsidera os tantos outros discursos possíveis a partir da imagem fotográfica.
O discurso greenberguiano, adotado por Szarkowski, defende ainda
a autonomia da obra de arte, que na fotografia acarreta certo menosprezo
dos contextos de produção e recepção da imagem fotográfica, tão presente
nos meios de comunicação de massa. Crimp conclui seu raciocínio apontando exatamente para os diversos modos de se relacionar com as fotografias
de um renomado fotógrafo modernista:
Enquanto podemos ter olhado para as fotografias de
Cartier-Bresson pela informação que traziam sobre a Revolução Chinesa ou a Guerra Civil Espanhola, olhamos
agora para elas por aquilo que dizem sobre o estilo de
expressão do artista (CRIMP, 2005, p. 69).
Solomon-Godeau (1984) amplia a argumentação de Krauss e Crimp
ao problematizar como certos aspectos estéticos e tecnológicos da fotografia
são utilizados pela museografia a fim de consolidar um discurso que prioriza
noções de estilo, subjetividade e originalidade da cópia fotográfica. A seu ver,
a assimilação da fotografia pelo sistema da arte – o que inclui o mercado de
arte – resulta na necessidade de impor à fotografia a noção de originalidade.
Tanto o autor é imbuído de uma genialidade pessoal como as cópias fotográ-
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ficas são valorizadas como originais, contrariando suas características de
reprodutibilidade e multiplicidade.
Para Phillips, a entrada da fotografia no museu de arte – e consequentemente no mercado da arte – carrega em sua narrativa uma contradição ontológica. A partir de Jean Baudrillard, o autor evidencia que ao investir
o suporte fotográfico exposto no museu de noções de “[...] singularidade, raridade e autenticidade [...]” (PHILLIPS, 1989, p. 15), a instituição se recusa
a lidar com a prática fotográfica em sua “duplicabilidade, serialidade, [como]
‘cópias’ que remetem a nenhum original” (PHILLIPS, 1989, p. 15).
A teoria pós-moderna da fotografia moderna, para além da crítica
ao aspecto representacional, produz uma crítica institucional ao modo como
o museu constrói narrativas e privilegia certos pontos de vista. Essa crítica
atinge a fotografia de rua, que se destaca no discurso do MoMA, e com ela,
a relação documental com a imagem fotográfica.
Ainda que não pretendamos aqui nos aprofundar numa análise da
fotografia no pós-modernismo, entendemos ser importante uma abordagem
do tema para apontar como a fotografia no campo da arte moderna permite
outras leituras. Ou seja, como outras narrativas são efetivamente construídas
sobre a fotografia moderna para além do discurso oficial do museu de arte
moderna. Assim, nos ateremos a duas obras consideradas pós-modernas,
que mantêm relações com a fotografia moderna mas efetivam políticas espaciais distintas daquelas perpetuadas pelo discurso hegemônico modernista.
Vejamos a série The Bowery in two inadequate descriptive systems [O Bowery em dois sistemas descritivos inadequados], produzida em
1974-1975 pela artista estadunidense Martha Rosler. Tomaremos como
referência seu formato expositivo apresentado pelo The Whitney Museum
of American Art (Figura 12), já que a obra sofreu pequenas variações em
suas muitas apresentações durante os anos, assim como distintas diagramações, quando impressa24.
A obra trata explicitamente de uma área da cidade de Nova Iorque
conhecida como Bowery. Localizado na parte sudeste – Lower East Side –
24 Para maior aprofundamento em tais questões, ver o trabalho de Steve Edwards, intitulado Martha Rosler: The Bowery in two inadequate descriptive systems, publicado pela Afterall Books em 2012.
Figura 12. ROSLER, Martha. The Bowery in two inadequate descriptive systems [O Bowery em dois inadequados sistemas descritivos]. 1974-75. 45 impressões em papel fotográfico preto e branco
de texto e imagem em 24 molduras. The Whitney Museum of American Art.
Fonte: https://whitneymedia.org/assets/artwork/8304/166401.jpeg
47
da ilha de Manhattan, o Bowery foi, durante décadas, endereço de bordéis,
cortiços, pensões baratas e pequenos comércios. Até a década de 1970,
ainda tinha má fama pela população em situação de rua, associada ao uso
de drogas e ao alcoolismo.
O trabalho de Rosler é composto por 24 molduras idênticas, contendo 45 impressões em papel fotográfico – 21 fotografias e 24 folhas com textos
– que combinam texto e imagem. As fotografias mostram vistas frontais de
fachadas comerciais, de um terreno baldio e detalhes de detritos nas sarjetas
e calçadas do Bowery. Com exceção da última folha de texto, que encerra o
trabalho com o título da obra, todos os demais textos apresentam palavras
soltas num formato que lembra poemas. São gírias, expressões e termos aludindo a alguém em estado de embriaguez. Segundo Rosler, uma “[...] poética
da embriaguez [...], uma poesia-saída-da-prisão. Adjetivos e substantivos incorporados a um sistema metafórico [...] aplicado a um estado de ser, um tipo
de subcultura [...]” (ROSLER, 1989, p. 325, tradução nossa)25. Se a diagramação dos textos nas páginas aponta para uma linguagem poética, as imagens,
por sua vez, remetem a fotografias documentais.
As molduras idênticas configuram unidades constitutivas de um todo
e são diagramadas em grade, como vemos acima. Diferentemente das demais molduras, que mostram duplas de texto e imagem, ou vice-versa, cada
uma das três primeiras molduras superiores, da esquerda para a direita, exibe apenas uma folha com textos, sempre na metade direita de cada moldura,
com áreas vazias à esquerda. Cria-se assim um subgrupo introdutório que
sugere uma leitura horizontal do conjunto, da esquerda para a direita, de cima
para baixo, como se lêssemos linhas horizontais de um livro ocidental.
Como o título indica, o trabalho conjuga dois sistemas descritivos
– escrita e fotografia – apresentados como inadequados a uma descrição
do Bowery. Nem a fotografia supostamente direta, comprobatória e objetiva,
nem a escrita supostamente poética e subjetiva são consideradas adequadas
para descrever a cidade; tampouco a combinação de ambas. Assim, o trabalho critica de modo irônico tanto a noção de representação como o regime de
25 Do original: “There is a poetics of drunkenness… a poetry-out-of-prison. Adjectives and nouns built into
metaphoric systems […] applied to a particular state of being, a subculture of sorts […]” (ROSLER, 1989, p. 325).
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verdade que engloba a fotografia documental e a escrita poética.
A autora constrói, a partir de um discurso hegemônico sobre o Bowery e sua população, uma relação entre imagem e texto para, então, negá-la, desautorizá-la. O texto acumula gírias e demais termos e propõe outras
tantas palavras para estabelecer a embriaguez como identidade. Nas fotografias, Rosler opta por não personalizar a embriaguez. Das 21 fotografias,
nenhuma mostra uma figura humana sequer.
Como aponta Oliveira Junior, a produção ou ratificação de uma imaginação espacial pela fotografia se dá por meio “[...] de elementos da própria
linguagem fotográfica” (OLIVEIRA JÚNIOR, 2011, p. 246). E é essa imaginação espacial, produzida tanto por elementos de uma fotografia chamada
documental quanto pela escrita, que é simultaneamente explicitada e posta
em xeque pela mesma obra.
Vemos aqui uma série, uma repetição, tanto formal como de conteúdo. A grande maioria das imagens são tomadas frontais, paralelas ao plano
fotografado, que mantêm uma mesma distância, uma mesma escala. Daí a
aparente imparcialidade. As fotografias insinuam um mero registro, herança
da fotografia direta de Strand. Também o conteúdo das imagens é recorrente.
Todas as fotografias apontam para as ruas do Bowery: vitrines, fachadas ou
entradas laterais de pequenos comércios, de um banco, de um hotel. A cerca
de um terreno baldio, detalhes da calçada e da sarjeta, assim como os três
primeiros textos, formam um subgrupo que conclui o trabalho.
Citando Heidegger, Alexandre Emerick Neves argumenta que “a
fotografia é capaz de ressaltar como ‘o sentido próprio de construir, a saber, habitar’ pode ser dado pelos sinais mais sutis, sejam de presença ou
de ausência” (NEVES, 2016, p. 251). Quando nos detemos um pouco mais
nessas fotografias, detectamos vestígios dessa presença-ausência. Ou seja,
somos provocados a questionar quem habita essas ruas. Numa imagem,
pedaços de papelão que parecem ter servido de assento e uma embalagem de marmita descartada; noutra, um par de botas usadas devidamente alinhado junto à parede.
Um elemento se destaca pela recorrência: garrafas vazias em variados formatos e tamanhos, algumas explicitamente de bebidas alcóolicas.
Aparecem nitidamente em pelo menos 14 das 21 fotografias, mas não se sobressaem nas cenas, com exceção das duas últimas imagens do conjunto. A
embriaguez toma conta do trabalho aos poucos – aliás, como lhe é de costume. As fotografias associam à própria cidade a embriaguez que invade o texto.
O que vemos nas imagens não é a embriaguez tida como requintada,
sofisticada, luxuosa e ociosa da elite. Tampouco a embriaguez considerada
merecimento, conquista, com certo ar de dignidade, da classe trabalhadora.
Nem mesmo é velada, negada, avergonhada, desmoralizada, que pode atingir
ambas as classes. Aqui, a embriaguez, ainda que presente, não se explicita.
Aparece como componente indissociável da cidade, ao menos de
parte dela, e dos seus habitantes sem nada a perder. Seus vestígios, seus
traços se confundem com os elementos urbanos. Uma ebriedade dos cantos
da cidade, não publicada, mas pública. As fotografias, em sequência e vistas
frontalmente, constroem através dessa cidade embriagada um percurso que
termina numa sarjeta qualquer. As últimas fotografias da série mostram garrafas vazias, numa associação às últimas palavras do texto-poema: “soldados mortos, marines 26 mortos” (ROSLER, 1974-1975, s.p., tradução nossa)27.
Tudo isso para dizer: esses dois sistemas descritivos são inadequados – insuficientes – para descrever o Bowery. De todo modo, a obra produz
certa imaginação espacial do Bowery, como visto acima. É nessa contradição que o trabalho atua. A fotografia documental e a poesia podem construir
narrativas da embriaguez e da decadência presentes nessas ruas da cidade.
Rosler faz uso dessa mesma linguagem fotográfica para explicitar e questionar o aspecto ficcional dessas narrativas que se impõem como verdadeiras,
senão únicas, ao menos hegemônicas.
A escritora Chimamanda Ngozi Adichie afirma:
[...] insistir somente nessas histórias negativas é superficializar [a] experiência e negligenciar as muitas outras
26 Optamos por manter o termo original em inglês. O termo marine refere-se ao Corpo de Fuzileiros Navais
estadunidense, considerado uma tropa de elite das Forças Armadas daquele país.
27 Do original: “dead soldiers/ dead marines” (ROSLER, 1974-1975, s.p.).
histórias [...]. A história única cria estereótipos. E o problema com estereótipos não é que eles sejam mentira,
mas que eles sejam incompletos. Eles fazem uma história tornar-se a única história (ADICHIE, 2019, p. 26).
Ao apresentar fotografias do Bowery que remetem à fotografia documental, Rosler busca denunciar a história única, repetida tantas vezes por
inúmeros fotógrafos. Steve Edwards chama a atenção para o diagnóstico de
Rosler do Bowery como “[...] um arquetípico bairro pobre [...]”28 (EDWARDS,
2012, p. 13, tradução nossa), exposto inúmeras vezes em sua pobreza e decadência, considerando que “Walker Evans, Ben Shahn, Lisette Model, Weegee,
Erica Stone, Robert Frank, Nan Goldin e vários outros fotógrafos documentários e de rua fotografaram ali”29 (EDWARDS, 2012, p. 14, tradução nossa).
Rosler traz à tona as condições de produção, exibição e veiculação
da fotografia documental como fatores que explicitam sua construção autoral.
Ao optar pelo uso distinto de elementos de uma fotografia associada ao discurso modernista, Rosler problematiza uma imaginação espacial recorrente
de áreas pobres da cidade e suas populações. Assim, procura esvaziar certa
política espacial, que reafirma o fotógrafo documentário – e consequentemente o sistema que o sustenta – como aquele com poder para decidir o que é visível e dizível na esfera comum, tanto da cidade como da prática fotográfica.
Outra obra que faz da fotografia uma proposta de grafia de mundo, refletindo uma relação distinta com a cidade e com a própria fotografia moderna, é o livro de fotografia Every Building on the Sunset Strip [Todos os prédios da Sunset Strip], do artista estadunidense Edward Ruscha,
de 1966 (Figuras 13 a 17).
O trabalho é composto por tomadas frontais de cada edificação de
ambos os lados da chamada Sunset Strip, trecho de aproximadamente 2,4
quilômetros da Sunset Boulevard, renomada avenida localizada na região
28 Do original: “[…] an archetypical skid row […]” (EDWARDS, 2012, p. 13).
29 Do original: “Walker Evans, Ben Shahn, Lisette Model, Weegee, Erica Stone, Robert Frank, Nan
Goldin and a whole host of other documentary and street photographers have made pictures there
[…]” (EDWARDS, 2012, p. 14).
49
Figura 13. RUSCHA, Edward. Every Building on the Sunset Strip. 1966. Livro de fotografia. 18.0
x 14.2 cm (fechado); 18.0 x 750 cm (aberto). Museu de Arte Moderna de Nova Iorque.
Fonte: https://i.pinimg.com/originals/f1/07/fb/f107fb23b775b9a23f6be78f44b475d6.png
Figura 14. RUSCHA, Edward. Every Building on the Sunset Strip. 1966. Livro de fotografia. 18.0
x 14.2 cm (fechado); 18.0 x 750 cm (aberto). Museu de Arte Moderna de Nova Iorque.
Fonte: https://media.mutualart.com/Images//2019_04/17/20/205214432/91511325-a74d-484c-8ded-29f98436a1b3.jpeg
50
metropolitana de Los Angeles, Califórnia. Ruscha fotografa com filme 35 mm,
capaz de produzir negativos com proporções de 2 x 3 para altura e comprimento da imagem. Assim, utiliza diversas fotografias para construir, por meio
de montagem, duas longas imagens finais de aproximadamente 7,5 metros,
cada uma delas referente a um lado da rua.
As duas tiras de imagens são impressas em paralelo e em formato
sanfona, de modo que as páginas, quando dobradas, apresentam individualmente recortes parciais das duas imagens contínuas que correm por toda
a extensão do livro. A imagem do lado sul da rua é apresentada na parte
superior da página; a do lado norte, na parte inferior, rotacionada num giro
de 180º em relação à imagem superior. Grosso modo, a imagem inferior é
exposta de cabeça para baixo ao espectador. A numeração das edificações
e o nome das ruas transversais aparecem impressos como se legendassem
toda a extensão de ambas as imagens.
Vários elementos do trabalho remetem à construção de uma aparente imparcialidade, de ausência do gesto autoral afinal presente nas inúmeras
escolhas do artista. Assim, a obra admite antagonismos internos encontráveis mediante uma análise mais atenta.
Podemos começar pelo título do livro, alusão à catalogação, que de
fato acontece. Lemos “Todos os prédios...”, e não “Fotografias de todos os
prédios...”. Certamente o livro não poderia trazer os prédios em si, contudo o
título reforça a noção de verossimilhança inquestionável. A mesma estratégia
discursiva – de imparcialidade catalográfica – se mantém no miolo do livro.
Não há texto introdutório, nem de curador, nem do próprio artista;
não há sumário, índice ou legendas. Como já mencionado, a numeração dos
prédios e os nomes de ruas transversais são os elementos mais próximos da
ideia de legenda. Nenhum texto localiza o trabalho no campo da arte. A única
frase em todo o livro está na página inicial e traz informações de cunho editorial, como qualquer outra publicação comercial: “Copyright © 1966 by Edward
Ruscha Los Angeles, California” (RUSCHA, 1966, s.p.).
Assim como Rosler, Ruscha faz uso do enquadramento frontal. No
entanto, enquanto as imagens de Rosler ainda remetem à fotografia documental de cunho humanista, as fotografias de Ruscha parecem precursoras
Figura 17. RUSCHA, Edward. Every Building on the Sunset Strip. 1966 (Detalhe). Livro de fotografia (detalhe). 18.0 x 14.2 cm (fechado); 18.0 x 750 cm (aberto). Museu de Arte Moderna de
Nova Iorque.
Fonte: https://cdn.shopify.com/s/files/1/1219/9750/products/IMG_3901.JPG?v=1501261424
Figura 15. RUSCHA, Edward. Every Building on the Sunset Strip. 1966 (Detalhe). Livro de fotografia. 18.0 x 14.2 cm (fechado); 18.0 x 750 cm (aberto). Museu de Arte Moderna de Nova
Iorque.
Fonte:https://cdn.shopify.com/s/files/1/1219/9750/products/ IMG_3901.JPG?v=1501261424
Figura 16. RUSCHA, Edward. Every Building on the Sunset Strip. 1966 (Detalhe). Livro de fotografia (detalhe). 18.0 x 14.2 cm (fechado); 18.0 x 750 cm (aberto). Museu de Arte Moderna de Nova
Iorque.
Fonte: https://clarenugentdesignblog.files.wordpress.com/2013/02/rusha-2.jpg
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Figura 17. RUSCHA, Edward. Every Building on the Sunset Strip. 1966 (Detalhe). Livro de fotografia (detalhe). 18.0 x 14.2 cm (fechado); 18.0 x 750 cm (aberto). Museu de Arte Moderna de
Nova Iorque.
Fonte: https://cdn.shopify.com/s/files/1/1219/9750/products/IMG_3901.JPG?v=1501261424
Figura 18. Captura de tela do Google Street View para 8150, Sunset Boulevard.
Fonte: https://goo.gl/maps/T5WAvnFHattRZdgT9
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das imagens produzidas atualmente pelo Google Street View (Figura 18). A
imagem panorâmica que, a princípio, dissimula o corte do enquadramento
fotográfico, comporta-se diferentemente na obra. Ainda que o livro apresente
uma imagem de 7,5 metros que engloba os 2,4 quilômetros de cada lado da
Sunset Strip, as linhas verticais produzidas no encaixe das margens de cada
fotografia individual explicitam a construção da imagem final em sua materialidade. A ilusão da perspectiva, tão cara à linguagem fotográfica, é denunciada pelas próprias fotografias que a constroem. Vejamos dois detalhes da obra
nas figuras ao lado (Figuras 17 e 18).
Em ambos os detalhes, vemos nitidamente o corte das fotografias
individuais que acabam por compor a montagem da imagem final. Tais cortes inserem na montagem partes de fotografias feitas em tempos de captura diversos. Ou seja, as fotografias, ao serem feitas individualmente, mas
apresentadas em conjunto, se mostram instantâneos de uma mesma vista,
porém feitos em momentos distintos. Ao serem agrupados lado a lado numa
única imagem, tais instantâneos acabam por se sobrepor, criando ruídos,
lapsos temporais na imagem. Estes são explicitados nos veículos que, ao
serem fotografados numa tomada e não na seguinte, surgem mutilados,
recortados na imagem final.
A cidade de Ruscha parece tão impessoal quanto o modo como ela
nos é apresentada. Ainda que Sunset Strip seja uma área da cidade conhecida desde a década de 1920 pela boemia, as imagens não abordam tal questão. A obra até mesmo parece desconsiderar essa característica da área fotografada. O título deixa claro o principal interesse da obra: apresentar todos os
prédios da arquitetura local, sem distinção, de modo frio, distanciado, indiferente, aproximando a obra de arte ao objeto cotidiano, banal, industrializado.
Fredrick Jameson identifica na arte moderna uma tentativa de separação entre a alta cultura e a chamada cultura de massa. Para o autor, “é
essa diferenciação constitutiva que [...] parece estar a ponto de desaparecer”
(JAMESON, 2006, p. 61) na produção artística considerada pós-moderna.
Ele identifica ainda “[...] a renovação da fotografia [como] sintoma crucial do
mesmo processo” (JAMESON, 2006, p. 61).
Ao fotografar todas as edificações num trecho de aproximadamente
2,4 quilômetros, o artista abre mão de selecionar, eleger, separar, recortar
na cidade elementos que mereçam ser alçados ao estatuto de arte por meio
da imagem singular. Ao contrário, na heterogenia da tipologia arquitetônica
fotografada, Ruscha celebra o hibridismo da cidade, sua cacofonia. Trata a
fotografia e a própria cidade como matéria-prima (ROUILLÉ, 2008) para produzir uma arte que rejeita o purismo moderno, a legitimação intermediada
pelo museu e seu hermetismo. Uma arte que quer se relacionar diretamente
com o mundo para além das paredes do sistema da arte; que pretende confundir-se com a vida nas ruas.
Ruscha trata a fotografia não como meio artístico legitimado pelo sistema da arte, puro em suas especificidades modernas. Afasta-se tanto dos
modos de produção como dos modos de apresentação da fotografia moderna de então, plenamente aceitos no museu. Busca com a fotografia um diálogo com a imagem produzida pela indústria, por uma cultura popular marcada
pela produção em massa, ambas presentes nas grandes cidades.
Essa discussão aponta para a relação entre arte e mundo, para como
a produção artística produz grafias de mundo distintas. Ronaldo Brito, crítico
de arte e acadêmico brasileiro, afirma: “[...] a arte não nos aliena do mundo.
Ao contrário, nos faz reencontrá-lo, pleno e diferente. Mais ainda, repõe em
aberto as possibilidades de mundos” (BRITO, 2005, p. 115).
Apresentamos até aqui narrativas distintas de tais possibilidades de
mundo a partir da fotografia de rua no campo da arte moderna. Se para certos artistas e teóricos, como Strand e Szarkowski, a fotografia de rua traz aspectos técnicos e visuais específicos e característicos da pureza modernista,
para outros, como os teóricos pós-modernos apresentados, é em seu uso
híbrido e heterogêneo que a fotografia contribui para contaminar e problematizar o discurso moderno.
A distinção entre modernismo e pós-modernismo é em si problemática. No campo da arte, muitos teóricos se debruçaram sobre a questão, como
Antoine Compagnon (1996), Ronaldo Brito (2005), Fredrick Jameson (2006)
e Hal Foster (2014). De qualquer modo, tanto o discurso moderno quanto o
pós-moderno se apresentam como narrativas hegemônicas, haja vista a assimilação de ambos os discursos pelo sistema da arte. Sustentamos que em
ambos os discursos, como exemplificado acima, é possível identificar a produção de imaginações espaciais que engendram políticas espaciais distintas.
Nesse sentindo, escolhemos a fotografia de rua do estadunidense
Walker Evans, cuja obra é considerada um dos marcos da fotografia mundial
e está estreitamente relacionada ao MoMA, bem como à inserção da fotografia de rua no sistema da arte. Evans foi o primeiro fotógrafo a expor individualmente no MoMA, em 1933, como fotógrafo comercial comissionado, na exposição Photographs of Nineteenth Century American Houses by Walker Evans
[Fotografias de casas americanas do século dezenove de Walker Evans], e
em 1938, como fotógrafo artista convidado, com American Photographs [Fotografias Americanas]. Cabe aqui ressaltar que American Photographs ainda é a única exposição individual de fotografias apresentada ao público por
quatro vezes vezes na história da instituição, entre 1938 e 2014. Seu autor
é também, em toda a história do museu, o fotógrafo com o maior número de
exposições individuais (vide Tabela 1).
Tabela 1. Lista dos cinco fotógrafos com maior número de exposições no MoMA.
Duas dessas exposições se destacam ainda por terem sido pensadas como trabalhos autorais e igualmente como livros de fotografia, publicados à época das exposições. São elas: American Photographs, de 1938, cujo
livro manteve o mesmo título, e Walker Evans’ Subway, 1938–1941 [O metrô
de Walker Evans, 1938-1941], de 1966, cujo livro recebeu o título Many are
Called [Muitos são chamados].
A extensa obra de Evans, quase toda voltada para a fotografia de
rua, produzida entre 1928 e 1975, foi veiculada pelo autor em exposições,
53
publicações autorais e revistas. Evans publicou pessoalmente um livro em
parceria com o escritor James Agee e outros três livros de fotografia, entre 1938 e 1966; assinou dezenas de artigos na revista Fortune, renomada
publicação estadunidense na qual o autor foi fotógrafo especial contratado
entre 1945 e 1965, com autonomia na escolha dos temas, na edição e na
diagramação do trabalho. Sua fotografia transitou – e ainda transita – entre o
museu, o livro de fotografia e os meios impressos de comunicação de massa,
reforçando sua característica de imagem construída e inserida no seio da
modernidade do século XX.
No entanto, como apontamos acima, também a obra de Evans
é geralmente tratada pelos museus a partir de suas características formais e tecnológicas. Nosso interesse aqui é investigar de que modo essa
obra produz imaginação espacial, quais são seus desdobramentos políticos e que questões suscita acerca da experiência citadina, quando analisada como grafia de mundo.
2.3. A fotografia de Walker Evans como grafia de mundo no Museu de
Arte Moderna de Nova Iorque
Propomos aqui analisar duas obras específicas de Walker Evans: os
livros American Photographs e Many Are Called. Nossa escolha por Evans
justifica-se tanto pelo que já foi apresentado até aqui acerca de sua relação
com o Museu de Arte Moderna de Nova Iorque como pela envergadura de
sua obra na totalidade; já a escolha dessas obras em particular se dá por serem obras de referência do autor, mas também por tratarem especificidades
que abordaremos a seguir. O conjunto da obra de Evans é indissociável da
relação do fotógrafo com a cidade e particularmente com as ruas. As muitas
séries que produziu em mais de quatro décadas de carreira cobrem um extenso repertório que aborda variados aspectos da vida citadina no século XX.
Evans inicia sua produção fotográfica em 1928 e produz continuadamente até 1974, menos de um ano antes de sua morte em 1975. Nesses 46
anos, publicou um total de quatro livros autorais, sendo que dois deles tratam especificamente da cidade americana: American Photographs, de 1938
54
e Many Are Called, publicado em 1966. Entre 1945 e 1965, Evans trabalhou
como fotógrafo especial para a revista Fortune e produziu inúmeros ensaios
fotográficos publicados pelo periódico. Em setembro de 1948 Evans foi nomeado Editor Especial de Fotografia, o que lhe permitia liberdade excepcional
para escolher o tema, a edição e a diagramação de seus ensaios fotográficos
(MORA; HILL, 1993; CAMPANY, 2014) .
Listamos abaixo alguns temas fotografados por Evans, apresentados em exposições, livros de fotografia, publicações da Revista Fortune e de
outros periódicos ou como projeto autoral inacabado, como as milhares de
fotografias polaroides produzidas entre julho de 1973 e novembro de 1974,
meses antes de sua morte, em 1975 (THOMPSON, 1997); (ROSENHEIM;
EVANS, 2002). A intenção é apresentar ao leitor a robustez do conjunto da
obra e sua intensa e extensa relação com a temática da cidade.
Os temas são aqui listados numa sequência semelhante à das antologias Walker Evans: the hungry eye [Walker Evans: o olho faminto] (1993) e
Walker Evans: the magazine work [Walker Evans: o trabalho de revista] (2014),
a saber: arquitetura vernacular; transeuntes anônimos nas ruas de Nova Iorque, Chicago, Detroit e Havana; o impacto visual de placas publicitárias e sinalizações em pequenas e grandes cidades; a cidade vista de dentro do trem;
passageiros em vagões de metrô; a renovação urbanística de Nova Iorque na
década de 1950; lixo e detritos nas ruas das grandes cidades; as pequenas
estações de trem espalhadas pelo interior dos Estados Unidos; remanescentes da arquitetura industrial americana do século XIX em meados da década
de 1950; armazéns portuários na cidade de Nova Iorque na década de 1960;
sucatas de automóveis em ferros-velhos; a arquitetura monumental de prédios públicos em Nova Iorque e em Washington D.C.; a tipografia artesanal
e industrial em placas e sinalizações recortadas em fotografias polaroides.
No que diz respeito à imaginação espacial produzida pela fotografia
de rua como arte moderna, American Photographs e Many Are Called se apresentam como exemplos relevantes de ficções construídas a partir de imagens
provenientes da experiência citadina do autor. Atentemos para suas temáticas.
American Photographs contém 87 fotografias feitas entre 1928 e 1937
em diversas cidades nos Estados Unidos e em Havana, Cuba. O livro é divi-
dido em duas partes: na primeira as fotografias tratam, na maioria, da figura
humana – em retratos, cenas de rua, interiores, detalhes de placas publicitárias; a segunda pretende tratar de uma “[...] expressão americana autóctone
[...]” (EVANS, 1938, s.p., tradução nossa), com ênfase na fotografia de casas
e outras edificações menores, mas também de fábricas e de indústrias.
O segundo livro, Many Are Called, é composto por uma sequência de
88 retratos frontais de passageiros e a vista panorâmica do interior de um vagão de metrô. Todas as imagens foram produzidas anonimamente em vagões
de metrô na cidade de Nova Iorque entre 1938 e 1941.
Em American Photographs Evans reúne imagens de mais de 40 localidades, produzidas entre 1928 e 1937 – período que cobre praticamente
toda a sua carreira até então –, para construir um discurso ficcional sobre a
identidade americana. Em Many Are Called, o fotógrafo parece buscar uma
síntese e reduz ao extremo a área de atuação, assim como o método de trabalho e o tipo de imagem resultante. Decide fotografar exclusivamente dentro
de vagões de metrô na cidade de Nova Iorque.
Com uma pequena câmera escondida entre os botões do casaco,
conectada a um cabo disparador que mantém à mão, fotografa veladamente
desconhecidos sentados à frente, sem controle prévio do enquadramento fotográfico ou das poses e expressões dos modelos casuais. A questão do anonimato público, da chance e da aleatoriedade na experiência citadina pode
ser entendida como central na série.
Em texto crítico publicado como posfácio em American Photographs,
Lincoln Kirstein sentencia:
A força da obra de Evans reside no fato de que ele detalha de tal modo os efeitos das circunstâncias em espécimes familiares que o único rosto, a única casa, a única
Mais de três décadas depois, no catálogo que acompanhou a exposição Walker Evans, de 1971, John Szarkowski, curador do MoMA, revisita o
trabalho de Evans produzido na década de 1930 e pontua:
É difícil saber agora, com certeza, se Evans registrou a
América de sua juventude ou a inventou. Sem dúvida, o
mito aceito de nosso passado recente é, de certa forma,
a criação desse fotógrafo, cujo trabalho nos convenceu
da validade de um novo conjunto de pistas e símbolos
que sustentam a questão de quem somos. Se esse trabalho e seu julgamento eram fato ou artifício, ou metade
cada, faz parte agora de nossa história (SZARKOWSKI;
EVANS, 1971, p. 20, tradução nossa).31
Tanto Kirstein quanto Szarkowski atrelam a eficácia da obra de Evans
à capacidade de produzir imagens tão rigorosas nos detalhes e na familiaridade com que elas se apresentam como imagens exemplares de determinada coletividade. Novamente se valoriza a ideia de especificidade da fotografia, o que seria a capacidade fotográfica de expôr detalhes que atestariam
com precisão as características formais dos objetos fotografados; a fotografia
como documento comprobatório da existência do mundo.
Szarkowski, no entanto, acentua o aspecto ficcional da obra de Evans
e sua contribuição na construção, também ficcional, dos fatos e da história
americana. Associa essas mesmas imagens a uma mitologia aceita – uma
ficção consensual, diria Rancière – e se contenta em admitir a ficção como
dada. Supervaloriza a noção de autoria e de originalidade na obra de um
autor a ponto de propor que ele poderia definir a visão de toda uma sociedade de si mesma, responsabilizando-se ele próprio pela criação de toda
rua, golpeia com a força de números avassaladores a
terrível força cumulativa de milhares de rostos, casas e
ming numbers, the terrible cumulative force of thousands of faces, houses and streets” (EVANS, 1938, p. 199).
ruas (KIRSTEIN, [1938] 2012, p. 199, tradução nossa).
31 Do original: “It is difficult to know now with certainty whether Evans recorded the America of his youth,
or invented it. Beyond doubt, the accepted myth of our recent past is in some measure the creation of this
photographer, whose work has persuaded us of the validity of a new set of clues and symbols bearing on the
question of who we are. Whether that work and its judgment was fact or artifice, or half of each, it is now part
of our history” (SZARKOWSKI; EVANS, 1971, p. 20).
30
30 Do original: “The power of Evans’ work lies in the fact that he so details the effects of circumstances on familiar specimens that the single face, the single house, the single street, strikes with the strength of overwhel-
55
uma mitologia. Desconsidera, assim, o autor como sujeito coletivo, inserido
num contexto histórico, condicionado a fatores sociais, ideológicos, econômicos e culturais da época.
Tais discursos, ambos legitimados pelo MoMA e construídos em torno da fotografia de Evans, explicitam uma imaginação espacial produzida a
partir da fotografia de rua como arte moderna e de seus desdobramentos
políticos. Reafirmam, a seu modo, o que Oliveira Junior aponta sobre as imagens, que “[...] não só nos dizem de nosso mundo, mas também nos educam
a ler este mundo a partir delas. Legitimam, acima de tudo, a si mesmas como
obras que dizem do real” (OLIVEIRA JÚNIOR, 2009, p. 20).
A partir da fotografia de rua de Evans, inserida no museu como arte
moderna, os curadores propõem leituras que explicam o mundo sob dadas
perspectivas. O que temos acima são discursos construídos sobre a obra de
Evans coerentes entre si, validados por importantes instituições de arte, mas
ainda assim versões, visões específicas da obra de Evans, e não a obra em si.
Brito (2005) traz à tona a distinção – e a contradição – entre obra e
história da arte, ou se preferirmos, entre trabalho e sistema da arte: a evidência de que a arte detém certa materialidade social, um valor “[...] construído, fabricado [...]” (BRITO, 2006, p. 76). “Dessa diferença a arte moderna
tirou sua força de emergência” (BRITO, 2005, p. 76), afirma. Para o autor, a
principal contribuição das vanguardas artísticas do início do século XX reside nessa “[...] distância polêmica entre sua inteligência e as figuras do museu, as determinações do mercado, a autoridade da chamada história da
arte” (BRITO, 2006, p. 77).
Entendemos que é nessa distância – entre a obra e o que é dito
sobre ela – que se encontram outras possibilidades de entendimento da própria obra e do mundo. É Rancière quem afirma que a “[ficção] é o trabalho
que realiza dissensos, [...] construindo relações novas entre a aparência e a
realidade, o singular e o comum, o visível e sua significação” (RANCIÈRE,
2012a, p. 64). Ao tratar especificamente da inserção da fotografia no campo
da arte, o autor argumenta:
A fotografia tornou-se uma arte pondo seus recursos téc-
56
nicos a serviço dessa poética dupla, fazendo falar duas
vezes o rosto dos anônimos: como testemunhas mudas
de uma condição inscrita diretamente em seus traços,
suas roupas, seu modo de vida; e como detentores de
um segredo que nunca iremos saber, um segredo roubado pela imagem (RANCIÈRE, 2012b, p. 23, 24).
Assim, a fotografia – e aqui a obra de Evans em particular – se apresenta como grafia de mundo por vezes assumida como se fosse a própria
visão de uma época, lida e legitimada por um discurso oficial – do museu ou
dos órgãos governamentais para os quais as fotografias foram produzidas.
No entanto, a fotografia de Evans traz consigo o dissenso e a dessemelhança
que Rancière atribui à arte.
E assim como disse Pellejero sobre a literatura, essa fotografia, também como ficção, apresenta-se aberta e questionadora de seu próprio tempo,
“[...] fissurando a ordem estabelecida e abrindo [...] novos campos de possíveis
(sociais, políticos, culturais, epistemológicos)” (PELLEJERO, 2009, p. 29). É a
partir dessa fissura que pretendemos analisar os livros mencionados acima,
no intuito de encontrar neles indícios de uma política espacial das imagens.
3. AMERICAN PHOTOGRAPHS: UMA FOTOGRAFIA DE RUA COMO
FICÇÃO DE UMA CIDADE MODERNA
Arquitetura, o gosto urbano americano, comércio, pequena escala, grande escala, a atmosfera das ruas da cidade,
o cheiro das ruas, as coisas odiosas, clubes de mulheres,
American Photographs, a primeira publicação autoral de Evans de
maior fôlego, pode ser lida como ficção produzida a partir de fotografias de
rua portadora de um pensamento estético político acerca da própria fotografia em sua relação com a cultura moderna, mas especificamente acerca da
cidade moderna. É nesse sentido que propomos, nos subcapítulos seguintes,
uma análise de temas da obra que tocam a cidade moderna. Antes, porém, é
relevante contextualizar a construção desse livro como narrativa ficcional que
tira proveito da ideia da fotografia de rua como documento.
Numa carta inacabada, escrita em fevereiro de 1934 à amiga e editora Ernestine Evans – cujo sobrenome em comum é mera coincidência –,
Walker Evans relata a intenção de produzir livros de fotografia e detalha
o que pretende fotografar:
Eu sei que agora é a hora dos livros de fotografias. Uma
cidade americana é o melhor, Pittsburgh melhor que
Washington. Eu sei mais sobre tal lugar. Eu gostaria de
a cultura do falso, má educação, religião em decadência.
Os cinemas.
Mostras do que as pessoas da cidade leem, comem,
veem por diversão, fazem para relaxar e não conseguem.
Sexo.
Propaganda.
Muito mais, você entende o que quero dizer (EVANS,
[1934] 1994, p. 98, tradução nossa)32.
Em setembro de 1935, sob a indicação da mesma amiga Ernestine,
agora consultora do governo federal, Evans é contratado pela agência governamental estadunidense Resettlement Admnistration [Administração de
Reassentamento] – em 1937 a agência será renomeada Farm Security Administration [Administração de Segurança Agrária], a FSA. Em menos de um
mês, Evans é promovido a Especialista de informação Sênior (EVANS, 1994;
EVANS, 2000). O memorando da promoção descreve assim suas atribuições:
visitar várias, além de Pittsburgh, antes de decidir. Algo
quiçá menor. Toledo, Ohio, talvez. Não tenho certeza
“[...] com ampla latitude para o exercício de julgamento e
se um livro de fotos deve ser identificado localmente.
decisão independentes, [...] realizar tarefas especiais em
A cidade americana é o que eu estou procurando. En-
campo; coletar, compilar e criar material fotográfico para
tão, pode ser que use várias, mantendo as coisas típi-
ilustrar comunicados à imprensa factuais e interpretati-
cas. As coisas certas podem ser encontradas em Pittsburgh, Toledo, Detroit (muito em Detroit, eu quero entrar
em alguns buracos sujos, Detroit é cheia de chances).
Coisas de negócios de Chicago, provavelmente nada
de Nova Iorque, mas os subúrbios da Filadélfia são
presunçosos e intermináveis:
Pessoas, de todas as classes, cercadas por um
monte dos novos fracassados.
Automóveis e a paisagem do automóvel.
32 Do original: I know now is the time for Picture books. An American city is the best, Pittsburgh better than
Washington. I know more about such a place. I would want to visit several besides Pittsburgh before deciding.
Something perhaps smaller. Toledo, Ohio, maybe. Then I am not sure a book of photos should be identified
locally. American city is what I am after. So might use several, keeping things typical. The right things can be
found in Pittsburgh, Toledo, Detroit (a lot in Detroit, I want to get in some dirty cracks, Detroit’s full of chances). Chicago business stuff, probably nothing of New York, but Philadelphia suburbs are smug and endless:
People, all classes, surrounded by bunches of the new down-and-out.
Automobiles and the automobile landscape.
Architecture, American urban taste, commerce, small scale, large scale, the city street atmosphere, the
street smell, the hateful stuff, women’s clubs, fake culture, bad education, religion in decay.
The movies.
Evidence of what the people of the city read, eat, see for amusement, do for relaxation and not get it.
Sex.
Advertising.
A lot else, you see what I mean (EVANS, [1934] 1994, p. 98).
57
vos e outros materiais informativos sobre todos os problemas, progresso e atividades da Resettlement Administration [Administração de Reassentamento] (EVANS,
[1935] 1994, p. 113, tradução nossa)33.
Assim, entre 1935 e 1937, Evans fotografa regularmente o sul e o
sudeste dos Estados Unidos; produz, com liberdade editorial, imagens que
serão utilizadas na documentação e na propaganda de programas federais
de apoio a trabalhadores rurais (MORA; HILL, 1993; EVANS, 2000).
Pouco mais de um ano após sua dispensa da FSA, Evans inaugura,
em setembro de 1938, a primeira exposição individual de um fotógrafo no
Museu de Arte Moderna de Nova Iorque, o MoMA. Em vez do catálogo da
mostra, Evans aproveita a oportunidade para publicar seu primeiro livro, com
título homônimo ao da exposição: American Photographs.
Apesar de vinculado à exposição e ao Museu de Arte Moderna de
Nova Iorque, o livro é tratado como trabalho autoral. Não há menção no livro
de que ele esteja associado à exposição. Nem a quantidade, nem o conjunto,
tampouco a sequência das imagens apresentadas na publicação reproduzem
integralmente a exposição. Segundo Mora e Hill:
Das cem fotografias da exposição, quarenta e sete não
aparecem no livro. E das oitenta e sete fotografias incluídas neste, trinta e três não aparecem na exposição.
Entre as fotografias comuns a ambos, exposição e livro, há numerosas diferenças de corte de imagem e o
uso de variações de negativos (MORA; HILL, 1993,
p. 160, tradução nossa)34.
33 Do original: “[...] with wide latitude, e for the exercise of independent judgment and decision [...] to carry
out special assignments in the field; collect, compile and create photographic material to illustrate factual and
interpretative news releases and other informational material upon all problems, progress and activities of the
Resettlement Administration” (EVANS, [1935] 1994, p. 113).
34 Do original: “Of the one hundred photographs in the exhibition, forty-seven do not appear in the book.
And of the eight-seven shots included in the latter, thirty-three [...] do not appear in the exhibition. Among the
photographs common to both exhibition and book are numerous differences of cropping or the use of variant
negatives” (MORA; HILL, 1993, p. 160).
58
Ao compararmos as fotografias expostas no MoMA e as publicadas
no livro , chamam atenção dois conjuntos de imagens ausentes no livro e
presentes apenas na exposição. No museu, Evans expôs 13 fotografias de
meeiros do Alabama em sequência e um trio de fotografias feitas em Cuba.
Esses dois conjuntos não estão no livro. As demais diferenças de conteúdo
imagético entre exposição e livro abrangem variações de fotografias que tratam de temas semelhantes, sejam cenas urbanas, rurais ou retratos.
Das 87 fotografias do livro, 47 foram feitas entre 1935 e 1937, período
em que Evans fotografou para a FSA. Assim, mais da metade das fotografias,
além de circunscritas ao sul e ao sudeste americano, foram produzidas nos
dois últimos anos anteriores à publicação. As demais 40 fotografias foram
produzidas entre 1928 e 1934, cobrindo a primeira década da carreira de
Evans. Praticamente todas as legendas apontam para localidades em solo
estadunidense, com exceção de, ao menos, três fotografias feitas em Havana, Cuba. Todos esses dados corroboram o entendimento de que Evans
teria visto no convite do MoMA a oportunidade de publicar seu primeiro livro de fotografias e assim adaptou sua lista de cidades e temas, escrita em
1934, ao seu contexto em 1938.
Apesar de Evans fotografar cidades distintas das que pretendia em
1934 – não há fotografias de Pittsburgh, nem de Toledo, nem de Detroit –,
identificam-se em American Photographs alguns temas de sua lista, dentre
eles: pessoas de diversas camadas sociais, “[...] cercadas por um monte dos
novos fracassados [...]” (EVANS, [1934] 1994, p. 98, tradução nossa); a arquitetura e o urbanismo estadunidenses; a cultura do automóvel; a propaganda; a atmosfera das ruas; pequenos comércios; religião; e de modo mais
sutil, questões de gênero atravessadas nos demais temas. Esses e outros
temas presentes no livro delimitam o principal objeto de toda a carreira de
Evans: a cidade americana.
Ainda que os temas e a produção de Evans até então estivessem
associados à produção de fotografias consideradas documentais, o livro
propõe o deslocamento dessas mesmas fotografias para o campo da arte,
35
35 O livro Walker Evans: The Hungry Eye (1993), de Giles Mora e John T. Hill, apresenta as 100 fotografias
expostas no MoMA na ordem em que foram expostas nas paredes do museu, o que possibilita tal comparação.
problematizando tanto a função documental da imagem fotográfica como o
estatuto artístico da fotografia.
A publicação, de cunho autoral, mas com conteúdo considerado até
então documental, não apenas desestabiliza um regime de verdade associado à imagem fotográfica como também aponta para a cidade moderna como
protagonista dessa narrativa. A obra acaba por ressaltar o quanto nossa relação com a cidade e o que entendemos de cidade por meio de fotografias está
atravessado pelo aspecto ficcional das imagens.
A relação múltipla, e por vezes contraditória, que Evans propõe para
sua fotografia de rua, ora como documento governamental, ora como jornalismo, ora como ficção, remete ao caráter de multiplicidade, heterogeneidade
e coetaneidade das ruas e espaços públicos da cidade moderna onde ele
produz suas narrativas. Nesse sentido, o próprio formato do objeto livro também aponta para a abertura e para a multiplicidade de relações com a obra,
mas também com a própria cidade, já que cada leitor-espectador deve decidir
como folhear o livro (NEVES, 2016). Assim, a obra de Evans promove uma
imaginação espacial dessa ideia de cidade, diretamente relacionada ao modo
como constrói seu discurso por meio da sequência fotográfica e do objeto livro.
Em entrevista a Paul Cummings, em 1971, Evans, ao tratar da relevância de American Photographs, afirmou que o trabalho “[...] estabeleceu o
estilo documentário como arte na fotografia” (EVANS, 1971, n.p., tradução
nossa)36. É preciso observar que ao definir seu processo de criação, o fotógrafo utiliza o termo documentário como adjetivo para cunhar outro termo: o
estilo documentário. Evans argumenta:
Eu uso a palavra “estilo” especialmente porque ao se
falar sobre isso muitas pessoas dizem “fotografia documental”. Bem, literalmente, uma fotografia documental é
go e registro é outra questão. Isso aplicado ao mundo que
nos rodeia é o que eu faço com a câmera, o que eu quero
ver feito com a câmera (EVANS, 1971, tradução nossa)37.
Foi ainda durante a década de 1930 que o documentário, mais que
um gênero, constituiu-se como movimento na produção cultural nos Estados
Unidos (STOTT, 1986). Diversas produções teatrais, literárias, fotográficas e
cinematográficas produzidas a partir de 1931 são entendidas como documentários, dentre elas: Can You Hear Their Voices?, peça de Hallie Flanagan; You
Have Seen Their Faces, livro com textos de Erskine Caldwell e fotografias de
Margaret Bourke-White; os filmes The Plow that Broke the Plains, The River
e The Fight for Life, de Pare Lorentz.
Evans, no entanto, problematiza a própria noção de documentário ao
cunhar o termo estilo documentário. Se o termo estilo aponta para a noção
de autoria, produção que carrega em si um traço, um gesto, um aspecto autoral, enquanto documentário remete a uma suposta isenção ao relatar fatos
em documentos fidedignos dispostos de modo lógico e convincente, os dois
termos juntos criariam, a princípio, um paradoxo.
O que Evans propõe como estilo documentário é uma produção autoral composta de imagens que remetem ao documentário, pelo tema ou pela
abordagem direta. É como se Evans propusesse uma fotografia produzida
com a aparência ou aspecto de documentário, mas de fato uma visão autoral
daquilo que se apresenta como realidade. Por fim, o termo revela implicitamente a discordância do autor da noção de imparcialidade, geralmente associada ao documento ou ao documentário.
Alan Trachtenberg vê o estilo documentário de Evans como um método cuja “[...] aparência de objetividade, de franqueza, simplicidade e autenticidade vernacular [...] dá às suas fotos sua autoridade persuasiva” (2006,
um relatório de polícia de um corpo morto ou um acidente
automobilístico ou algo parecido. Mas o estilo de desape36 Do original: “[...] it established the documentary style as art in photography”. EVANS, Walker. Oral history
interview with Walker Evans, 1971 Oct. 13-Dec. 23, Archives of American Art, Smithsonian Institution. Disponível em: <http://www.aaa.si.edu/collections/interviews/oral-history-interview-walker-evans-11721#transcript>. Acesso em: 26 maio 2020.
37 Do original: “I use the word ‘style’ particularly because in talking about it many people say ‘documentary
photograph’. Well, literally a documentary photograph is a police report of a dead body or an automobile
accident or something like that. But the style of detachment and record is another matter. That applied to the
world around us is what I do with the camera, what I want to see done with the camera”. Ibid.
59
p. 229, tradução nossa)38. O autor entende que “[...] essa aparência, obviamente, é um outro tipo de pose que disfarça fins mais complexos para além
de simplesmente registrar a aparência superficial das coisas” (2006, p. 229,
tradução nossa)39. Já Leo Rubinfien (2000) nota no estilo documentário de
Evans as possibilidades poéticas do que chama de plain seeing, termo que
traduziríamos como visão ordinária, crua, sem ornamentação.
Essas características de fotografia direta, com enquadramentos frontais, sem grandes angulações nos movimentos de câmera, sem cenas de
flagrantes dramáticos, estão presentes em toda a obra de Evans. Seja nas fotografias feitas para o governo americano, seja nas fotografias publicadas em
periódicos como a revista Fortune, seja nas produções autorais expostas em
museus ou publicadas como livros de artista. Tal constância, tanto de método
como de conteúdo, é vista pela primeira vez com tamanha envergadura, no
que concerne à obra de Evans, na exposição e publicação de 1938.
Na orelha do livro o autor sugere que as fotografias “[...] sejam vistas
na sequência que lhes foi dada” (EVANS [1938], 2012, s.p., tradução nossa]40.
Informa que o livro é composto por duas partes; que possui índices, ao final
de cada parte, listando onde – cidade ou estado – e em que ano as fotografias foram feitas. Ainda segundo o texto, a Parte Um, com 50 fotografias,
nomeia-se “Pessoas pela Fotografia” (EVANS [1938], 2012, s.p., tradução
nossa) 41; a Parte Dois, com as demais 37 imagens, “[...] refere-se ao fato contínuo de uma expressão americana autóctone [...] seja em escultura, pintura
ou arquitetura [...]” (EVANS [1938], 2012, s.p., tradução nossa) 42.
Todas as fotografias são apresentadas individualmente, contornadas
por margens brancas, sempre nas páginas à direita (Figura 19). Cada ima38 Do original: “[...] look of objectivity, of directness, simplicity, and vernacular authenticity [...] gives his pictures their persuasive authority. TRACHTENBERG, Alan. Contrapuntal Design. In: HILL, John. Walker Evans:
Lyric Documentary. Göttingen: Steidl, 2006, p. 229.
39 Do original: “[…] that look, of course, is another kind of pose that disguises more complex purposes
beyond merely to record the surface appearance of things”. Ibid.
40 Do original: “[…] to be looked at in their given sequence” (EVANS, [1938], 2012).
41 “People by Photography” (EVANS, [1938], 2012).
42 Do original: “[…] refer to the continuous fact of an indigenous American expression […] whether in sculpture, paint or architecture” (EVANS, [1938], 2012).
60
gem ocupa uma página inteira, com a página anterior em branco. Evans faz
uso da sequência das fotografias para estruturar seu discurso e propor associações entre as imagens, como veremos mais detalhadamente nos tópicos
seguintes. Ainda que a única divisão formal e explícita do livro seja a separação entre Parte Um e Parte Dois, identificam-se grupos temáticos dentro das
duas seções do livro, nos quais os principais temas de Evans se atravessam.
Lincoln Kirstein, ao posfaciar American Photographs com um ensaio,
assim trata da sequência das imagens no livro:
Fisicamente, as imagens neste livro existem como fotografias separadas. Falta-lhes a superfície, a continuidade óbvia da imagem em movimento, que por sua natureza física obriga o observador a perceber uma série de
imagens como partes de um todo. Mas essas fotografias,
necessariamente vistas individualmente, não são concebidas como imagens isoladas feitas pela câmera apontada indiscriminadamente aqui ou ali. Na intenção e na
prática, elas existem como uma coleção de declarações
que apresentam uma atitude consistente, e dela derivam
(KIRSTEIN, [1938] 2012, p. 194, tradução nossa) 43.
Ao chamar a atenção para o trabalho de sequência e montagem da
cinematografia, Kirstein aponta que as fotografias do livro, ordenadas e apresentadas em dada sequência, formam um conjunto que extrapola a individualidade das partes. Cabe aqui uma aproximação de Oliveira Junior, em seu
trato do pensamento espacial no cinema.
O autor chama de locais narrativos aqueles por onde passam as personagens centrais. Tais locais, “[...] descolados da contiguidade espacial e
geográfica da superfície planetária [...]” (OLIVEIRA JUNIOR, 2005, p. 29),
43 Do original: “Physically the pictures in this book exist as separate prints. They lack the surface, obvious
continuity of the moving picture, which by its physical nature compels the observer to perceive a series of
images as parts of a whole. But these photographs, of necessity seen singly, are not conceived as isolated
pictures made by the camera turned indiscriminately here or there. In intention and in effect they exist as a
collection of statements deriving from and presenting a consistent attitude” (KIRSTEIN, [1938] 2012, p. 194).
Figura 19. Diagramação das fotografias em American Photographs, de Walker Evans.
Fonte: acervo do autor.
e apresentados numa sequência temporal, constituem uma geografia “[...]
alinhavada não mais por contiguidade [espacial], mas por continuidade na
narrativa [...]” (OLIVEIRA JUNIOR, 2005, p. 29). Desse modo, os lugares geográficos dão credibilidade às narrativas ali presentes, e elas, por sua vez,
contaminam os lugares com suas versões, suas histórias.
Semelhantemente, o ordenamento das fotografias no livro produz nas
imagens um encadeamento que participa na sua construção ficcional. Em
American Photographs a ordem das imagens sequencia fotografias feitas em
localidades e datas distintas, de modo que a coerência entre as imagens não
se constrói em linearidade espaço-temporal. Desse modo, a sequência das
páginas, na ordem pensada e organizada pelo autor, cria outra geografia a
partir de imagens agora constituídas como locais narrativos, numa relação
com as fotografias que se desprende da interferência direta das legendas.
Uma lista ao final de cada parte traz informações como localidade e ano de
produção de cada imagem, o que adiciona ao conjunto o aspecto documental. Todavia, tal separação entre fotografias e legendas evidencia o tratamento ficcional da construção no processo de encadeamento dessas imagens.
Como veremos nos próximos subcapítulos, nos quais abordaremos
temas específicos tratados na publicação, a narrativa em American Photographs é construída não apenas nas fotografias em si mesmas, mas também
nas possíveis associações, nas relações que o leitor é capaz de identificar
e traçar, tendo em vista a sequência, os conteúdos ou os aspectos formais
das imagens. Fotografias feitas em cidades distintas, ao serem combinadas, trazem à tona questões desse modo partilhadas. É no encadeamento
das imagens que o discurso de Evans se completa. E assim, a versão de
cidade que cria não trata de uma única cidade, mas de um entendimento
autoral da experiência citadina, naquela cultura, naquele momento. Nesse
sentido, tanto os retratos como as cenas urbanas ou detalhes arquitetônicos
e urbanísticos fotografados por Evans participam na construção de uma tipologia da cidade americana.
O sequenciamento das fotografias tampouco constrói uma narrativa
encadeada causal ou cronologicamente. A sequência proposta por Evans
opera na construção de ritmos, no acúmulo das imagens, seja pela repetição
61
ou pela oposição, por analogias ou por contrastes temáticos e formais. Compreendemos que distintas leituras são possíveis e diferentes temas são tratados numa mesma imagem ou sequência de imagens por todo o livro; entendemos que as questões abordadas se acumulam e se sobrepõem conforme
são apresentadas; e ainda, algumas dessas mesmas questões e temáticas
se repetem em diferentes momentos. Assim, uma imagem anterior contamina
e influencia a seguinte, e vice-versa.
Da Parte Um de American Photographs destacamos os seguintes
temas: a fotografia como imagem da cidade; a cultura do automóvel; decadência social e econômica; e o anonimato na cidade moderna. Na Parte Dois
destacamos a construção de uma cidade proletária.
Ao tratarmos esses temas, não nos interessa identificar um porquê,
tampouco afirmar determinada lógica na escolha dos temas. Nossa intenção
é investigar como a obra, em seu caráter ficcional e em sua narratividade,
produz uma imaginação espacial da cidade moderna, em particular na cidade
americana, pela fotografia.
62
3.1. Uma cidade feita de imagens
Figura 20. EVANS, Walker. License Photo Studio, New York, 1934.
Fonte: EVANS, Walker. American Photographs. New York: Museum of Modern Art, 2012, s.p.
Figura 21. EVANS, Walker. Penny Picture Display, Savannah, 1936.
Fonte: EVANS, Walker. American Photographs. New York: Museum of Modern Art, 2012, s.p..
63
Figura 22. EVANS, Walker. Faces, Pennsylvania Town, 1936.
Fonte: EVANS, Walker. American Photographs. New York: Museum of Modern Art, 2012, s.p.
Figura 23. EVANS, Walker. Political Poster, Massachusetts Village, 1929.
Fonte: EVANS, Walker. American Photographs. New York: Museum of Modern Art, 2012, s.p.
64
A primeira fotografia de American Photographs mostra uma pequena
edificação de dois pavimentos. O enquadramento fechado e frontal em relação a uma de suas fachadas apresenta, em quatro pontos distintos da composição, explicitamente e em variados tamanhos, a palavra “Photos”. Numa
visada mais atenta, outras duas placas perpendiculares à câmera repetem
a palavra. Não nos esqueçamos: é a imagem de abertura de um livro intitulado American Photographs.
O autor, Walker Evans, tinha uma relação íntima com a palavra escrita. Biógrafos e pesquisadores mencionam a intenção primeira de Evans de
tornar-se escritor e apontam a influência de autores como Gustave Flaubert
e Charles Baudelaire em sua fotografia (MORA; HILL, 1993; RATHBONE,
2000). Ao nos depararmos com essa primeira fotografia – na qual as palavras
tomam conta da composição – não devemos desprezar as outras poucas palavras que antecedem as fotografias do livro, a começar pela capa (Figura 24).
Não há imagens fotográficas na capa, somente palavras. Lemos, em
tamanhos diferentes e numa mesma tipografia, o nome do autor, no topo; o título do livro, na parte central; o nome do museu que patrocinou a publicação,
na parte inferior. A palavra Photographs, uma das duas palavras que compõem o título da obra, chama atenção por ser a única palavra fragmentada,
separada por um hífen, grafada de modo que o que lemos, de fato, é a palavra “Photo”. Ora, essa é a mesma palavra da primeira fotografia do livro, então no plural, repetida e espalhada em diversos pontos da imagem: “Photos”.
No pequeno texto de cunho introdutório, impresso na orelha do livro, na primeira linha, em letras maiúsculas, a frase anuncia: “AS REPRODUÇÕES APRESENTADAS NESTE LIVRO DEVEM SER VISTAS EM SUA
SEQUÊNCIA” (EVANS, [1938] 2012, s.p., tradução nossa).44 Logo, entendemos certa intencionalidade do autor ao abrir o livro com essas específicas
primeiras imagens. Vemos tal escolha como declaração de que as fotografias
devem ser vistas, sobretudo, como imagens. A fachada de um estúdio de
fotografias para documentos é, então, convertida em imagem introdutória de
Figura 24. Capa do livro American Photographs, de Walker Evans, 1938.
Fonte: The Manhattan Rare Book Company. Disponível em: <https://www.manhattanrarebooks.
com/pictures/1474.jpg?v=1423707544>. Acesso em: 06.ago.2020.
44 Do original: “THE REPRODUCTIONS PRESENTED IN THIS BOOK ARE INTENDED TO BE
LOOKED AT IN THEIR GIVEN SEQUENCE” (EVANS, [1938] 2012, s.p., tradução nossa, grafado
em maiúsculas no original).
65
Figura 20. EVANS, Walker. License Photo Studio, New York, 1934.
Fonte: EVANS, Walker. American Photographs. New York: Museum of Modern Art, 2012, s.p.
Figura 21. EVANS, Walker. Penny Picture Display, Savannah, 1936.
Fonte: EVANS, Walker. American Photographs. New York: Museum of Modern Art, 2012, s.p.
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um livro composto integralmente por fotografias. É a partir delas, majoritariamente feitas nas ruas, que Evans cria uma versão de cidade: uma cidade
feita sobretudo por imagens, uma cidade que produz imagens de si mesma.
Voltemos à primeira fotografia do livro, License Photo Studio, New
York, 1934 (Figura 20). A pequena edificação comercial abriga um estúdio
de fotografias para documentos. Daí sua fachada ser tomada por placas e
pinturas que repetem a palavra “Photos”. Abaixo de duas dessas repetições,
figuras de mãos com o indicador em riste apontam para uma entrada que
dá acesso a uma escada. Na fotografia, todos esses objetos, elementos arquitetônicos e gráficos – placas, palavras, pinturas artesanais, porta, escada – adquirem outra e mesma natureza, a da imagem fotográfica impressa,
plana, em preto e branco.
Não vemos um prédio, vemos a fotografia de um prédio. Fotografia que mostra um prédio no qual se produzem fotografias. Fotografia que
carrega consigo, subentendida, uma legenda tautológica. A palavra “Photos”
aqui funciona numa metalinguagem. A imagem fotográfica mostra a mesma
palavra diversas vezes, um texto que repete uma das possíveis definições da
própria imagem que o apresenta: foto(grafia). Os dedos apontam para a porta
que metaforicamente se abre ao leitor; as palavras na imagem o advertem:
você está prestes a adentrar um mundo de fotografias.
A imagem seguinte, Penny Picture Display, Savannah, 1936 (Figura
21), reforça o mesmo entendimento, mas agora apresenta uma fotografia de
fotografias. Novamente, Evans joga com a linguagem fotográfica e com as
imagens presentes na cidade. O enquadramento fechado retira o objeto fotografado de seu contexto: uma fotografia frontal, direta, de um mostruário de
estúdio especializado em retratos de meio-corpo, semelhantes a fotografias
de documentos. Tudo que vemos são inúmeros rostos e a palavra “STUDIO”,
em letras maiúsculas, ocupando toda a largura da fotografia. Aqui a tautologia
e a metalinguagem se apresentam numa fotografia de fotografias. Evans fotografa um conjunto de fotografias de autoria alheia e, ao fazê-lo, as converte
numa nova fotografia, agora entendida como sua.
Décadas depois, procedimentos como esse serão lidos na arte contemporânea, não como plágio, mas como apropriação. E essa apropriação,
em particular, evidencia a ressignificação que o processo fotográfico promove ao recortar algo do mundo e transformá-lo em imagem. Nesse caso,
esse algo é nada menos que a própria fotografia como objeto presente na
cidade. Um conjunto de retratos que, reunidos, constroem uma imagem coletiva de certa comunidade. Ao fotografar fotografias, Evans recorta objetos
do mundo que já são, em si mesmos, recortes imagéticos de mundo. Todavia, ao promover tal recorte de recortes, modifica tais imagens e sua relação com esse mesmo mundo.
Se inicialmente esses retratos foram tratados como imagens bem
sucedidas em sua verossimilhança – daí estarem num mostruário –, ao fotografar o conjunto, Evans usa o texto inserido na imagem para subverter
o discurso original. Sobre as inúmeras e pequenas fotografias, ergue-se a
palavra “STUDIO” em letras garrafais. A palavra que anuncia os serviços de
fotografia de retratos também evidencia que esses mesmos retratos, como
produtos de estúdio, são principalmente ficção. Os retratos exibem, ainda,
que tipo de imagem hegemônica essa ficção produz, ou reproduz, de seus
atores: ali vemos apenas retratos de cidadãos brancos, muitos sorridentes,
aparentemente de certa classe média.
Essa ficção, que se inicia com a coleção de retratos fotográficos de
uma classe média branca, será ainda reforçada pela fotografia de dois jovens
brancos, mostrados também em meio-corpo, destacados da multidão ao fundo – um efeito visual explicitamente fotográfico (Figura 22). Ademais, os retratos apresentados nessas páginas introdutórias apontam para o modo como
os retratados são tornados tipos onipresentes na cidade americana; isto é,
o recorte fotográfico que lhes é dado os retira de qualquer contexto mais
específico ou local para alçá-los à categoria de americanos. Ou seja, Evans
aos poucos constrói o retrato de certa América apresentada em fotografias:
Fotografias Americanas, diz o título.
É a fotografia seguinte, Political Poster, Massachusetts Village, 1929
(Figura 23), que completa esse primeiro subgrupo temático: uma versão fotográfica de um retrato de meio-corpo pintado manualmente, que, por sua
vez, lembra, na verossimilhança e na composição, as demais fotografias de
meio-corpo das páginas anteriores. Vale lembrar que o retrato, durante sé-
Figura 22. EVANS, Walker. Faces, Pennsylvania Town, 1936.
Fonte: EVANS, Walker. American Photographs. New York: Museum of Modern Art, 2012, s.p.
Figura 23. EVANS, Walker. Political Poster, Massachusetts Village, 1929.
Fonte: EVANS, Walker. American Photographs. New York: Museum of Modern Art, 2012, s.p.
67
culos atrelado à pintura, passa a ser sinônimo de fotografia apenas a partir
de meados do século XIX. Aqui a pintura indica que a verossimilhança não é
exclusividade do processo fotográfico, tampouco elemento comprobatório de
determinada realidade. Evans parece problematizar a legitimação da fotografia como imagem fidedigna do mundo moderno, o que ajuda a problematizar
o modo como a cidade é retratada por meio da fotografia, mas também por
outras imagens, como a pintura, o grafite, a publicidade.
Assim, as quatro primeiras imagens do livro, vistas em sequência,
questionam a própria função documental da fotografia, explicitando seu aspecto ficcional. A primeira imagem aponta para o uso documental da fotografia, para a maneira como a sociedade moderna associa a imagem fotográfica
a certo regime de verdade. Determinado tipo de fotografia é aceito como prova de identidade, como a da licença para motoristas, de que trata a primeira
fotografia do livro. As imagens seguintes atuam como contraponto à primeira,
evidenciando todo o aparato necessário à construção da imagem fotográfica
em particular, tanto no aspecto material como na formação histórica e social.
É com essa primeira sequência que Evans introduz fotografias
que, tidas como documentos comprobatórios da realidade, são usadas no
livro para a ficcionalização. Assim, American Photographs é um livro de
fotografias que trata, dentre outros temas, da própria fotografia encontrada na
cidade já como imagem. Não qualquer fotografia, mas um gênero específico:
uma fotografia que se apresenta como documento, como prova ou, se
preferirmos, como registro imagético.
Não que seu autor acredite na veracidade da fotografia. Ao contrário,
Evans joga com esse estatuto para construir sua versão autoral de mundo.
Sabemos disso na primeira página do livro:
tado (EVANS, [1938] 2012, s.p., tradução nossa).45
Ora, se essas imagens, aqui apresentadas, diferem da política e da
estética de quem as encomendou e devem ser assumidas como opinião individual do autor, então tais fotografias – e a própria fotografia como linguagem
– terão mais de uma possibilidade semântica, política e estética.
Tais imagens tampouco são fotografias aleatórias, desconexas entre
si, ou, no extremo oposto, ensimesmadas, defensoras da autonomia da imagem singular. Apesar de apresentadas em sequência definida e defendida
pelo autor, de modo a criar uma versão ficcional, essas fotografias tratam
de determinada cultura, a cultura estadunidense, em determinado período, a
década de 1930, vista, sobretudo, a partir da rua.
O que se constata nessa primeira sequência é que American Photographs constrói, a partir de imagens que remetem a certo regime de
verdade – a fotografia como documento –, uma obra voltada a ressaltar
tanto o aspecto ordinário da vida citadina como o aspecto ficcional das imagens produzidas na cidade.
Essas quatro primeiras fotografias apontam que não somente produzimos imagens da cidade, mas a própria urbe está repleta de imagens que a
constituem e nos afetam. Tanto a cidade é transformada em imagens quanto
é ela própria formada pelas imagens que nela circulam. Imagens produzidas
por vias institucionais e comerciais, veiculadas nos meios de comunicação
de massa, mas também pelo sistema da arte e por seus habitantes no cotidiano. As imagens participam, assim, da nossa experiência urbana, daquilo que pode ser visto e dito acerca da cidade; consequentemente, a cidade
é também feita de imagens.
A responsabilidade das imagens usadas neste livro repousa no autor, e a escolha foi determinada por sua
opinião: sendo assim, são apresentadas sem patrocínio
ou conexão com as diretrizes, estéticas ou políticas de
quaisquer das instituições, publicações ou agências governamentais para as quais parte do trabalho foi execu-
68
45 Do original: “The responsability for the selection of the pictures used in this book has rested with the
author, and the choice has been determined by his opinion: therefore they are presented without sponsorship
or connection with the policies, aesthetic or political, of any of the institutions, publications or government
agencies for which some of the work has been done” (EVANS, [1938], 2012, s.p.).
3.2. O automóvel, essa máquina de deslocamento pela cidade
Figura 25. EVANS, Walker. Joe’s Auto Graveyard, Pennsylvania, 1936.
Fonte: EVANS, Walker. American Photographs. New York: Museum of Modern Art, 2012, s.p.
Figura 26. EVANS, Walker. Roadside Gas Sign, 1929.
Fonte: EVANS, Walker. American Photographs. New York: Museum of Modern Art, 2012, s.p.
69
Figura 28. EVANS, Walker. Parked car, Small Town Main Street, 1932.
Fonte: EVANS, Walker. American Photographs. New York: Museum of Modern Art, 2012, s.p.
Figura 27. EVANS, Walker. Lunch wagon Detail, New York, 1931.
Fonte: EVANS, Walker. American Photographs. New York: Museum of Modern Art, 2012, s.p.
70
Figura 30. EVANS, Walker. Garage in Southern City Outskirts, 1936.
Fonte: EVANS, Walker. American Photographs. New York: Museum of Modern Art, 2012, s.p.
Figura 29. EVANS, Walker. Sidewalk in Vicksburg, Mississippi, 1936.
Fonte: EVANS, Walker. American Photographs. New York: Museum of Modern Art, 2012, s.p.
71
Figura 31. EVANS, Walker. Main Street of County Seat, Alabama, 1936.
Fonte: EVANS, Walker. American Photographs. New York: Museum of Modern Art, 2012, s.p.
Figura 32. EVANS, Walker. Main Street, Saratoga Springs, New York, 1931.
Fonte: EVANS, Walker. American Photographs. New York: Museum of Modern Art, 2012, s.p.
72
A temática do automóvel aparece em dois momentos distintos na
primeira parte de American Photographs. São dois grupos com quatro fotografias cada, que retratam o automóvel, ora como personagem principal,
ora como elemento que contracena com as demais personagens da cidade
norte-americana de Evans.
No primeiro conjunto, iniciado logo na sétima fotografia do livro, o
que vemos são imagens exibidas como fragmentos que abordam diferentes aspectos do mesmo tema.
A primeira imagem dá um tom escatológico à sequência (Figura 25).
O ferro-velho no primeiro plano invade o campo que se estende para além
do horizonte. Árvores desfolhadas se repetem no horizonte e indicam a continuidade do relevo, mas também remetem aos ciclos da natureza. Um engarrafamento de carcaças atravessa a imagem em toda a sua horizontalidade e
extrapola as margens laterais. Sem começo nem fim, as sucatas parecem se
multiplicar indefinidamente.
Diante de nossos olhos contemporâneos, é flagrante o contraste
entre a natureza bucólica, renovada ciclicamente, e a civilização predatória,
cuja tecnologia consome e polui essa mesma natureza com detritos deixados
pelo caminho, numa escala inédita. O alinhamento das sucatas cria uma versão fantasmagórica e obsoleta da linha de produção em massa fordista. Um
cemitério de tecnologia a céu aberto.
A segunda fotografia reforça a associação da cultura do automóvel à
imagem de decadência, de resíduos abandonados (Figura 26). A palavra gas,
abreviatura em inglês para gasolina, aparece pintada à mão, sobreposta a camadas de restos de cartazes e de outras letras também pintadas manualmente. As únicas três palavras legíveis – “any old gas” – formam uma frase solta:
qualquer gasolina velha. A imagem remete ainda ao combustível fóssil utilizado nos automóveis. Assim, as duas imagens em sequência explicitam questões ecológicas e de sustentabilidade que viriam à tona décadas mais tarde.
A primeira metade da sequência aponta para o acúmulo de detritos da produção e do consumo em massa da indústria automobilística; uma
crítica, senão ao sistema econômico e ao modo de produção que o sustenta, ao menos ao pensamento que atrela a evolução tecnológica a uma ideia
Figura 25. EVANS, Walker. Joe’s Auto Graveyard, Pennsylvania, 1936.
Fonte: EVANS, Walker. American Photographs. New York: Museum of Modern Art, 2012, s.p.
Figura 26. EVANS, Walker. Roadside Gas Sign, 1929.
Fonte: EVANS, Walker. American Photographs. New York: Museum of Modern Art, 2012, s.p.
73
de progresso humano que seria inerente à modernidade. Evans afirmou, em
1962, ao revisitar a temática do ferro-velho: “Cenas como essas são ricas
em sugestões tragicômicas da queda do homem de seu elevado percurso”
(EVANS, 1962, p. 133, tradução nossa).46
Figura 27. EVANS, Walker. Lunch wagon Detail, New York, 1931.
Fonte: EVANS, Walker. American Photographs. New York: Museum of Modern Art, 2012, s.p.
Figura 28. EVANS, Walker. Parked car, Small Town Main Street, 1932.
Fonte: EVANS, Walker. American Photographs. New York: Museum of Modern Art, 2012, s.p.
74
As duas fotografias seguintes introduzem pessoas à narrativa (Figuras 27 e 28). Mostram jovens casais em carros. A primeira é a fotografia de
uma ilustração publicitária feita à mão, enquanto a segunda retrata um casal num conversível, na rua.
A imagem publicitária, pintada sobre a própria estrutura de um trailer
de lanches, está cercada de outros elementos textuais e visuais: “hamburger”
“steak and onions 35”, “Good food”, parte da palavra “sandwich”, a logomarca da Bell System Telephone Company. Ao recortar a pintura de modo a
enquadrar seu entorno, a fotografia reafirma a função comercial da ilustração
e a insere na cidade. Aqui a pintura é utilitária, está na rua, cercada por outros estímulos visuais igualmente mundanos e exerce uma função específica:
vender sanduíches. Para tal, a imagem sugere uma idealização da relação
amorosa associada à comida, ao automóvel e à natureza.
A imagem é a de um jovem casal que degusta sanduíches num automóvel conversível, com um cenário bucólico ao fundo. O automóvel qualifica
o casal, atribui-lhe certa estatura social. A composição da cena relaciona
os sanduíches e o próprio automóvel ao consumo e à mobilidade propagadas como estilo de vida.
Essa idealização é tensionada pela fotografia seguinte, que também
retrata um casal, também num automóvel, mas em condições diversas. Também aqui o automóvel está estacionado. Um pequeno caminhão em movimento, ao fundo, traz para a cena a velocidade e o ruído da rua. A vida na
cidade é distinta daquela que a imagem publicitária idealiza.
Esse casal não está numa cena romântica. É confrontado pela câmera, pelo encontro compulsório com o outro, com o diferente. Suas expressões
falam da curiosidade, do desconforto, da desconfiança e do desconhecido
que a rua impõe. O conversível, que na cena anterior remetia à liberdade, a
46 “Scenes like these are rich in tragicomic suggestions of the fall of man from his high ride” (EVANS,
[1962], apud CAMPANY, 2014, p. 193).
uma harmonia com o ambiente exterior, aqui expõe seus ocupantes ao inesperado, ao que lhes escapa ao controle, distinto do sentido aventureiro que a
publicidade geralmente acentua.
Do ponto de vista do fotógrafo, a cena não carrega consigo nenhum
flagrante. São os fotografados que flagram o gesto da câmera, o que lhes
dá uma expressão de surpresa. Há uma dramaticidade no movimento congelado dos automóveis ao fundo, acentuado pelo enquadramento que secciona ambos os veículos. É o próprio cotidiano que se mostra fragmentado,
tensionado pelo encontro – ou seria melhor dizer desencontro? – imprevisível do anonimato das ruas.
A sequência é em si um conjunto de fragmentos, de instantâneos colecionados pela cidade. De um ferro-velho nas margens da cidade ao trânsito
da área central. De outro modo, a segunda sequência que aborda o mesmo
tema constrói um ritmo e um movimento de continuidade que lembram o movimento de câmera da montagem cinematográfica.
O ordenamento da sequência e o enquadramento de cada uma das
fotografias elaboram uma segunda sequência, que remete ao deslocamento
contínuo pela cidade. Tal movimento deve-se à escolha do autor de começar
a sequência com uma fotografia de enquadramento mais fechado e, conforme avançamos, apresentar cenas cada vez mais abertas. Ademais, saímos
de dois enquadramentos frontais para duas vistas superiores, em perspectiva, nas quais um automóvel sempre se movimenta em direção à tomada da
câmera. Acentua-se assim a sensação de deslocamento de uma imagem a
outra, de um canto a outro da cidade. Saímos das margens da cidade para
suas ruas principais. Mundos opostos numa mesma e outra cidade.
Novamente, quatro fotografias e um elemento recorrente. Um olhar
mais atento e o automóvel, mais que mera repetição, é a personagem que
transita nessas imagens, deslocando-se entre situações distintas. É com ele
que vamos de uma imagem a outra, de um ponto a outro da cidade. Uma
sequência de quatro fotografias e a imagem do automóvel participa de uma
narrativa de deslocamento pela cidade.
Em Sidewalk in Vicksburg, Mississippi, 1936 (Figura 29), o automóvel
e seu ocupante contrastam com a arquitetura local e os transeuntes. O auto-
Figura 29. EVANS, Walker. Sidewalk in Vicksburg, Mississippi, 1936.
Fonte: EVANS, Walker. American Photographs. New York: Museum of Modern Art, 2012, s.p.
75
móvel aqui se situa como parte integrante do discurso moderno associado à
ideia de progresso. Modernidade que produz uma evolução tecnológica, e um
dos resultados é o advento do automóvel. Dentro do carro estacionado, um
homem branco ocupa o assento do carona.
O que vemos na rua é uma edificação popular em condições decadentes, caindo aos pedaços, longe da arquitetura modernista em voga no
período – o Museu Solomon R. Guggenheim, obra-prima do modernismo
americano, seria inaugurado um ano depois, em Nova Iorque. A fachada do
estabelecimento comercial dá nítidos sinais de falência. Sobre a porta de entrada, o espaço destinado a algum tipo de placa está tomado por um plástico
ou tecido preto, com furos e rasgos. Ripas de madeira atravessam as janelas
superiores e laterais. Trapos se misturam a anúncios de cigarro sobrepostos
e igualmente carcomidos na porta. A imagem de uma mulher loira sorridente
nos encara com a promessa não muito convincente de que “[...] andaria uma
milha por um Camel”, famosa marca de cigarros.
Numa fotografia, dois mundos que se opõem. O automóvel – essa
máquina moderna de deslocamento – abriga o homem branco, o esconde
nas sombras, o separa do mundo a sua volta. Sua postura corporal e sua
fisionomia sugerem que ele não está à vontade. Vemos, na penumbra do
interior do carro, suas sobrancelhas arqueadas, sua expressão sisuda. Com
o corpo levemente virado para sua esquerda e o rosto olhando para a frente,
evita contato com os dois homens mais próximos, do lado de fora do automóvel. Parece esperar o motorista que, em algum momento, retornará e o
levará dali, para a modernidade que lhes pertence – ao homem branco e ao
automóvel. Do lado de fora, outro mundo, outra cidade, o Outro.
Na calçada, quatro homens jovens, todos negros, num bairro pobre e
também negro – a fotografia vem dos Estados Unidos segregacionista da década de 1930. Dois desses homens estão sentados num banco de madeira.
Ambos olham para sua esquerda, para além do que a fotografia permite ver.
Um deles se distingue pelo traje completo: terno, colete e gravata. Assim como o homem branco, também ele destoa do entorno. No entanto, para
além da segregação racial, algo mais os diferencia. Sentado com as mãos
sobrepostas, as pernas cruzadas, a postura ereta – parece inusitadamente
76
chupar um pirulito –, esse homem negro aparenta estar confortável consigo
mesmo, apesar do entorno, apesar da câmera que lhe apontam.
Outros dois homens estão em pé, com os braços apoiados na estrutura de madeira da fachada em ruínas. Um deles olha direto para a câmera.
Os braços na altura da cintura, a cabeça levemente inclinada para o lado,
o chapéu que lhe cobre parcialmente um dos olhos. Também sua postura
corporal e fisionomia sugerem desconforto, certa desconfiança da câmera.
E a câmera, hoje, somos nós, os que olham com o olho da câmera, do ponto
de vista da câmera, do lado de cá da câmera. Se assumimos nossa parcialidade junto à câmera, o desconforto desse homem é, também, com a nossa
presença, com nossa atitude de observá-lo a distância, de transformá-lo em
imagem, em verossimilhança, em tipo, eventualmente em estereótipo – seja
desde o outro lado da rua ou daqui do século XXI.
Na imagem, o automóvel é essa máquina que, assim como a câmera,
está associada à modernidade, mas também a uma relação de poder. Na
cena, ambas as máquinas pertencem a homens brancos; ambas provocam
tensão no entorno e o atravessam sem diálogos, como cápsulas. Essa tensão
se dissipa na fotografia seguinte, Garage in Southern City Outskirts, 1936
(Figura 30). Também ali o automóvel instala personagens de mundos distintos numa mesma cena cotidiana. Duas mulheres aguardam o reparo de seu
automóvel numa oficina mecânica à margem da cidade.
Da imagem anterior, além do enquadramento frontal e do automóvel
no primeiro plano, se mantém o aspecto popular e sucateado da arquitetura e
de seu entorno. Diferem as personagens. Surgem outros contrastes, conforme nos deslocamos pela cidade. Ainda que a cena se estruture em torno do
conserto do carro, são as personagens ao redor que se destacam. Aqui, é um
menino quem detecta – e denuncia com o olhar – a presença da câmera. Sua
postura, porém, aparenta timidez, como se estivesse intrigado pela situação;
parece curioso para compreender o que se passa.
As duas mulheres numa oficina mecânica na periferia da cidade chamam atenção ainda por estarem sozinhas. Não parecem se intimidar pela
situação. Uma das mulheres, com um casaco de pele destacado do fundo
escuro, acompanha de perto o trabalho do mecânico. Sua companheira, um
pouco afastada dos demais, em pé na calçada, é a única pessoa de corpo inteiro e a mais visível do grupo. Sua figura esguia, postura e figurino elegantes
remetem a uma fotografia de moda e contrastam com a fachada da oficina.
Aqui, em outra cena cotidiana, o automóvel promove o cruzamento
de mundos opostos. As duas mulheres, aparentemente levadas ali por um
imprevisto, personificam o universo feminino de outra classe social, tão distante do mundo masculino e rudimentar, materializado numa oficina mecânica na periferia da cidade.
De cenas com personagens individuais e identificáveis, somos levados a duas vistas panorâmicas de ruas principais de pequenas cidades,
repletas de automóveis estacionados. Saímos dos enquadramentos frontais
e próximos das primeiras cenas para tomadas abertas e em perspectiva, o
que implica uma mudança gradativa, mas explícita, de escala e, consequentemente, de relação com a cidade.
Em Main Street of County Seat, Alabama, 1936 (Figura 31), a primeira
vista em perspectiva da sequência, um único automóvel em movimento vem
em direção à câmera numa linha diagonal. Como numa montagem cinematográfica, o carro dá continuidade à sequência e insere certo movimento à cena.
A vista superior nos retira da rua, mas ainda podemos identificar os
transeuntes. As tensões raciais, os contrastes de gênero e de classe nas
imagens anteriores dão lugar à monotonia de um dia qualquer, aos encontros casuais na rua principal de uma pequena cidade; ali estão os pequenos comércios: a loja de roupas, a mercearia, o café, a drogaria, a barbearia, o posto de gasolina.
Não há nessa fotografia evento, drama ou tensão que a justifique. A
imagem contribui com a sequência exatamente por seu caráter ordinário, por
sua cotidianidade. Esse é um retrato da rua principal de uma pequena cidade
do Alabama de 1936: o urbanismo, a arquitetura, os pequenos comércios e
a clientela. Por fim, a fotografia funciona como elemento de transição dos
enquadramentos anteriores, frontais e individualizados, para a cena seguinte,
com perspectiva marcante e maior dramaticidade.
A quarta e última cena da sequência revela uma visada ainda mais
afastada, a partir de um ponto situado ainda mais acima (Figura 32). A câ-
Figura 30. EVANS, Walker. Garage in Southern City Outskirts, 1936.
Fonte: EVANS, Walker. American Photographs. New York: Museum of Modern Art, 2012, s.p.
Figura 31. EVANS, Walker. Main Street of County Seat, Alabama, 1936.
Fonte: EVANS, Walker. American Photographs. New York: Museum of Modern Art, 2012, s.p.
77
mera agora nos retira do nível da rua por completo. Não estamos mais à
vista dos transeuntes, não somos mais um deles. Aliás, não é possível ver
uma só pessoa na imagem. As calçadas estão vazias, a rua está deserta, exceto pelos automóveis.
Novamente a continuidade da sequência e o movimento da cena são
sugeridos pelo automóvel vindo ao encontro da câmera, do espectador. Um
dos veículos em movimento é emoldurado, evidenciado, pelos galhos de árvore no primeiro plano. Saímos de uma cidade para outra. Da fotografia anterior, com sua rua de pequenos comércios, edificações de dois pavimentos,
calçadas e vias estreitas, sem paisagismos, chegamos a outra rua principal,
com árvores que ultrapassam os prédios de cinco pavimentos que as cercam, calçadas largas e bem cuidadas, diversos mobiliários urbanos e áreas
permeáveis. Ausentam-se as tensões do bairro negro, as contradições de
encontros isolados na periferia ou mesmo os encontros fortuitos da cidade
menor. Não que tenham deixado de existir, mas a própria escala e o enquadramento da fotografia não assume o papel de evidenciá-los. A fotografia
mostra uma única vista superior, quase aérea, como se dissesse: a cidade
cresceu, vejam como está bonita.
A repetição das formas dos automóveis estacionados junto às árvores desfolhadas, numa linha que se estende imagem adentro; o brilho e os
reflexos causados pela chuva sobre a rua, carros e calçadas, numa contraluz
em tons variados de cinza; os poucos carros em movimento emoldurados pelos galhos das árvores; as linhas verticais das fachadas nas margens laterais
da imagem. Todos esses elementos guiam o olhar desde o primeiro plano,
no canto esquerdo inferior da imagem, até o outro extremo da rua, na parte
superior direita, o que nos conduz numa travessia de toda a fotografia em diagonal. Chegamos a um horizonte cinzento que, ao se fundir ao céu, perpetua
a estrada e expande a própria cidade para além da imagem.
Num primeiro momento, a cidade chega de forma fragmentada, como
colagem de instantâneos que ganham coerência na inter-relação entre as
partes. Na segunda sequência, verifica-se a continuidade entre as imagens,
uma apresentação mais uniforme, mais progressiva. No entanto, ainda percorremos uma cidade segmentada: saímos de um bairro negro pobre para
78
Figura 32. EVANS, Walker. Main Street, Saratoga Springs, New York, 1931.
Fonte: EVANS, Walker. American Photographs. New York: Museum of Modern Art, 2012, s.p.
uma elegante avenida principal.
Com exceção das duas últimas fotografias, as imagens de ambas as
sequências trazem para a cidade um quê de colagem, de sobreposição de
partes que não se encaixam. O ferro-velho se sobrepõe a um descampado;
o homem branco no automóvel estacionado nas ruas de um bairro negro;
um homem de traje completo sentado à frente de uma fachada aos pedaços; mulheres elegantes que contrastam com a oficina da periferia. Assim,
o automóvel é essa personagem recorrente que funciona como fio condutor da narrativa, como elemento que conecta os fragmentos, as camadas
díspares da própria cidade.
Para além de sinônimo de progresso e de tecnologia, como já visto, o automóvel é mostrado nessas sequências de imagens como elemento
onipresente na cidade americana. E é por meio dessa personagem que as
imagens remetem às tensões, antagonismos, encontros e desencontros, às
relações e interações presentes na vida citadina moderna.
79
3.3. Imagens de decadência no cotidiano citadino
Figura 33. EVANS, Walker. Birmingham Boarding House, 1936.
Fonte: EVANS, Walker. American Photographs. New York: Museum of Modern Art, 2012, s.p.
80
Figura 34. EVANS, Walker. Houses and Billboards in Atlanta, 1936.
Fonte: EVANS, Walker. American Photographs. New York: Museum of Modern Art, 2012, s.p.
Figura 35. EVANS, Walker. South Street, New York, 1932.
Fonte: EVANS, Walker. American Photographs. New York: Museum of Modern Art, 2012, s.p.
Figura 36. EVANS, Walker. South Street, New York, 1932.
Fonte: EVANS, Walker. American Photographs. New York: Museum of Modern Art, 2012, s.p.
81
Figura 37. EVANS, Walker. Louisiana Plantation House, 1935.
Fonte: EVANS, Walker. American Photographs. New York: Museum of Modern Art, 2012, s.p.
82
A sequência final da Parte Um de American Photographs é formada
por cinco fotografias. O conjunto retrata, majoritariamente, fachadas
arquitetônicas, com exceção da penúltima imagem, centrada em um
homem que dorme na soleira de uma dessas fachadas e funciona como
detalhe da imagem anterior.
A primeira imagem da sequência enquadra frontalmente a fachada
de uma pensão (Figura 33). Uma pequena placa ao lado da porta principal
informa: “Quartos Mobiliados”. A rebuscada arquitetura de estilo gótico norte-americano da edificação está desgastada e sem manutenção, vemos as
calhas do telhado quebradas e as colunas da varanda mostram-se envelhecidas. Outros elementos na edificação indicam pequenos reparos paliativos e
destoantes da arquitetura original: tijolos alinhados de modo a criar aberturas
no porão; ripas e telas sobrepostas na abertura de janela no segundo andar.
Vemos dois homens sentados e, no canto superior direito da imagem,
no segundo andar da casa, uma mulher costura sob a luz natural que entra
pela janela. Tanto as condições da arquitetura remetem a certa decadência
como a postura das personagens e os objetos espalhados na varanda e nas
janelas – caixas, baldes, cadeiras, potes com flores, roupas penduradas –
aludem a uma dignidade do cotidiano.
E assim, associamos a casa a seus moradores, de modo que a decadência da arquitetura impregna o cotidiano dos habitantes. No entanto, a
imagem diz de pessoas que, mesmo num contexto de decadência material,
mantêm alguma estrutura. Os homens na varanda com postura altiva; a mulher em afazeres domésticos.
As fotografias seguintes atuam sob a mesma lógica. Ou seja, somos
levados a relacionar as edificações e os elementos ao redor aos habitantes.
Em Houses and Billboards in Atlanta, 1936 (Figura 34), Evans enquadra as
fachadas de duas casas semelhantes e duas placas de publicidade de filmes.
As imagens e textos publicitários são deslocados do contexto original e passam a ter relação com as casas dispostas exatamente atrás de cada uma das
placas. Na fotografia, as placas encobrem parcialmente o primeiro piso de
cada residência e assim se fundem à arquitetura.
Ao nos determos sobre o conteúdo das placas, notamos que os fil-
Figura 33. EVANS, Walker. Birmingham Boarding House, 1936.
Fonte: EVANS, Walker. American Photographs. New York: Museum of Modern Art, 2012, s.p.
Figura 34. EVANS, Walker. Houses and Billboards in Atlanta, 1936.
Fonte: EVANS, Walker. American Photographs. New York: Museum of Modern Art, 2012, s.p.
83
Figura 35. EVANS, Walker. South Street, New York, 1932.
Fonte: EVANS, Walker. American Photographs. New York: Museum of Modern Art, 2012, s.p.
84
mes ali anunciados apresentam mulheres como protagonistas, e que os títulos reforçam discursos misóginos. As imagens nas placas, por sua vez,
permitem ainda associá-las a contextos domésticos.
Na primeira placa a ilustração de uma mulher, sentada num amplo
sofá, encara o espectador. Lê-se como título do filme: A tagarela. Na placa ao lado, o título Amor antes do café da manhã contrasta com a imagem
de uma mulher com um dos olhos machucados, como se houvesse sofrido uma agressão física.
Também aqui aspectos da arquitetura da cidade são transferidos
para os habitantes. As imagens ficcionais do cinema, inseridas no contexto
urbano, são usadas pelo fotógrafo para promover um comentário social. Ao
isolarem e sobreporem placas e casas numa única imagem, os títulos assumem o papel de legendas e as ilustrações femininas parecem fazer parte da
próprias construções, sugerindo que tais imagens seriam o retrato do interior
de cada uma daquelas casas.
Essa imagem, em particular, aponta para as diversas camadas presentes no urbanismo da cidade. As entradas das duas casas populares estão
interditadas por painéis publicitários que divulgam filmes de Hollywood. A via
no primeiro plano confirma que tais imagens miram os veículos. Os moradores perdem o acesso à rua, à cidade, a fim de que essa mesma cidade tenha
acesso à publicidade, à indústria do entretenimento, à ficção, que, por sua
vez, retorna ao cotidiano e o invade.
Uma terceira publicidade, próxima à margem direita da fotografia, mostra um homem que, vestido com terno e gravata, cumprimenta o interlocutor
com o aceno do chapéu. As figuras femininas, mesmo dotadas de protagonismo na fotografia por sua escala maior, permanecem associadas ao doméstico; já a figura masculina, ainda que em menor tamanho na imagem, pertence
ao mundo exterior e dialoga com a fálica chaminé por detrás de sua imagem.
Na fotografia seguinte, South Street, New York, 1932 (Figura 35),
Evans fotografa três homens à frente de um estabelecimento comercial com
as portas fechadas. No canto esquerdo superior da imagem, colado sobre
uma das portas, um cartaz anuncia a piscina do Hotel St. George. Na ilustração, uma mulher de maiô, sentada em um trampolim, promete dias enso-
larados na piscina de água natural salgada e espumante de um dos hotéis
mais requintados da cidade de Nova Iorque na década de 1930 (DWORIN,
2009, s.p.). O anúncio contrasta com o resto da fotografia e o duro cotidiano
da cidade no período conhecido como A Grande Depressão.
Numa das colunas da fachada, lemos “Produtos de cobre, latão e
bronze”. Novamente, a sugestão é de que o texto, retirado do contexto original, seja associado às três figuras humanas que, transformadas em imagem,
se apresentam inertes, como estátuas, mas também como mercadorias.
Os homens parecem desafortunados, afetados pela Grande Depressão estadunidense da década de 1930. Cada um aparenta lidar com a situação
a seu modo. O homem à esquerda, com a cabeça apoiada em um das mãos,
parece resignado: lê o jornal e mantém algum tipo de conexão com o mundo.
No centro da imagem, outro dorme ao léu; uma garrafa lhe faz companhia.
Um terceiro encara a câmera com expressão de desconfiança e desconforto.
A fotografia seguinte recorta ainda mais a cena num enquadramento fechado no homem que dorme, agora em outra postura (Figura 36). A
sequência das duas imagens produz um efeito cinematográfico, numa mudança tanto temporal como de aproximação entre o espectador e o retratado. Os detalhes são visíveis: a barba por fazer, a roupa puída no punho e
na gola, a braguilha aberta. Evans opta por enfatizar o infortúnio, o estado
de desabrigo do indivíduo.
A última fotografia da sequência apresenta uma tradicional mansão
de plantation, típica fazenda de monoculturas do sul estadunidense escravagista (Figura 37). Numa das poucas imagens do livro com tomada em perspectiva, vemos simultaneamente duas fachadas da residência. A fotografia
é enquadrada de modo que, no primeiro plano, há uma árvore caída, com
raízes desenterradas. A vegetação em torno da casa parece se rebelar, como
se quisesse retomar a área construída. O que vemos é a imagem da ruína de
uma época, de uma cultura.
Como em outras sequências do livro, vemos determinada imagem
já impactados por imagens anteriores que constroem certo contexto. Nesse conjunto é possível notar a intensificação da ideia de decadência. Se na
primeira imagem, tanto a arquitetura como as pessoas preservam certa es-
Figura 36. EVANS, Walker. South Street, New York, 1932.
Fonte: EVANS, Walker. American Photographs. New York: Museum of Modern Art, 2012, s.p.
Figura 37. EVANS, Walker. Louisiana Plantation House, 1935.
Fonte: EVANS, Walker. American Photographs. New York: Museum of Modern Art, 2012, s.p.
85
trutura, nas imagens seguintes assiste-se a uma gradual e constante deterioração, seja da arquitetura, do indivíduo ou das relações. Passamos pela
violência doméstica e por pessoas em penúria para finalmente chegarmos à
completa ruína de uma cultura escravagista.
Os variados estilos arquitetônicos testificam uma decadência que
abrange classes sociais distintas. Desde a ampla residência urbana com expressivo detalhamento artesanal, característico do já mencionado gótico norte-americano, a austeras casas populares padronizadas e ainda a mansões
do período Antebellum americano.
Tanto o chamado gótico americano como a arquitetura Antebellum
fazem um uso anacrônico – e poderíamos argumentar que, em si mesmo, decadente – de elementos arquitetônicos góticos e neoclássicos que explicitam
uma vontade de pertencimento a uma ancestralidade europeia. Assim, ao
apresentarem exemplares dessas arquiteturas em variados estados de deterioração, e ainda relacioná-los ao cotidiano da cidade e à cultura de massa,
essas imagens constroem um discurso de aparente crítica a uma cultura cuja
modernidade se baseia numa falsa genealogia.
Assim, as últimas imagens da primeira parte do livro perfazem um
retrato decadente dessa cidade moderna, no que diz respeito aos aspectos socioeconômico e cultural. No entanto, na segunda parte do livro, Evans
oferece outra versão de cidade, embasada exclusivamente em imagens que
remetem às edificações da cidade, como veremos a seguir.
86
3.4. Imagens de edificações como tipologia de um cotidiano proletário
Figura 38. EVANS, Walker. View of Easton, Pennsylvania, 1936.
Fonte: EVANS, Walker. American Photographs. New York: Museum of Modern Art, 2012, s.p.
Figura 39. EVANS, Walker. Part of Phillipsburg, New Jersey, 1936.
Fonte: EVANS, Walker. American Photographs. New York: Museum of Modern Art, 2012, s.p.
87
Figura 40. EVANS, Walker. View of Ossining, New York, 1930.
Fonte: EVANS, Walker. American Photographs. New York: Museum of Modern Art, 2012, s.p.
Figura 41. EVANS, Walker. Street and Graveyard in Bethlehem, Pennsylvania, 1936.
Fonte: EVANS, Walker. American Photographs. New York: Museum of Modern Art, 2012, s.p.
88
Figura 42. EVANS, Walker. Two-family Houses in Bethlehem, Pennsylvania, 1936.
Fonte: EVANS, Walker. American Photographs. New York: Museum of Modern Art, 2012, s.p.
Figura 43. EVANS, Walker. Roadside View, Alabama Coal Area Company Town, 1936.
Fonte: EVANS, Walker. American Photographs. New York: Museum of Modern Art, 2012, s.p.
89
Figura 44. EVANS, Walker. Louisiana Factory and Houses, 1935.
Fonte: EVANS, Walker. American Photographs. New York: Museum of Modern Art, 2012, s.p.
Figura 45. EVANS, Walker. Birmingham Steel Mill and Workers’ Houses, 1936.
Fonte: EVANS, Walker. American Photographs. New York: Museum of Modern Art, 2012, s.p.
90
Figura 46. EVANS, Walker. Factory Street in Amsterdam, New York, 1930.
Fonte: EVANS, Walker. American Photographs. New York: Museum of Modern Art, 2012, s.p.
Figura 47. EVANS, Walker. Company Houses, Scott’s Run, West Virginia, 1935.
Fonte: EVANS, Walker. American Photographs. New York: Museum of Modern Art, 2012, s.p.
91
Figura 48. EVANS, Walker. Country Store and Gas Station, Alabama, 1935.
Fonte: EVANS, Walker. American Photographs. New York: Museum of Modern Art, 2012, s.p.
92
Figura 49. EVANS, Walker. Mississippi Sternwheeler at Vicksburg, Mississippi, 1936.
Fonte: EVANS, Walker. American Photographs. New York: Museum of Modern Art, 2012, s.p.
Figura 50. EVANS, Walker. Church of The Nazarene, Tennessee, 1936.
Fonte: EVANS, Walker. American Photographs. New York: Museum of Modern Art, 2012, s.p.
Figura 51. EVANS, Walker. Wooden Church, South Carolina, 1936.
Fonte: EVANS, Walker. American Photographs. New York: Museum of Modern Art, 2012, s.p.
93
Figura 52. EVANS, Walker. Greek Temple Building, Natchez, Mississippi, 1936.
Fonte: EVANS, Walker. American Photographs. New York: Museum of Modern Art, 2012, s.p.
Figura 53. EVANS, Walker. Negro Church, South Carolina, 1936.
Fonte: EVANS, Walker. American Photographs. New York: Museum of Modern Art, 2012, s.p.
94
Figura 54. EVANS, Walker. Connecticut Frame House, 1933.
Fonte: EVANS, Walker. American Photographs. New York: Museum of Modern Art, 2012, s.p.
Figura 55. EVANS, Walker. Millworkers’ Houses in Willimantic, Connecticut, 1931.
Fonte: EVANS, Walker. American Photographs. New York: Museum of Modern Art, 2012, s.p.
95
Figura 57. EVANS, Walker. Frame Houses in Virginia, 1936.
Fonte: EVANS, Walker. American Photographs. New York: Museum of Modern Art, 2012, s.p.
Figura 56. EVANS, Walker. Frame Houses in Virginia, 1936.
Fonte: EVANS, Walker. American Photographs. New York: Museum of Modern Art, 2012, s.p.
96
Figura 58. EVANS, Walker. New Orleans Houses, 1935.
Fonte: EVANS, Walker. American Photographs. New York: Museum of Modern Art, 2012, s.p.
Figura 59. EVANS, Walker. Greek Revival Doorway, New York City, 1934.
Fonte: EVANS, Walker. American Photographs. New York: Museum of Modern Art, 2012, s.p.
97
Figura 61. EVANS, Walker. Wooden Houses, Boston, 1930.
Fonte: EVANS, Walker. American Photographs. New York: Museum of Modern Art, 2012, s.p.
Figura 60. EVANS, Walker. Wooden Gothic House, Massachusetts, 1930.
Fonte: EVANS, Walker. American Photographs. New York: Museum of Modern Art, 2012, s.p.
98
Figura 62. EVANS, Walker. Gothic Gate Cottage Near Poughkeepsie, New York, 1931.
Fonte: EVANS, Walker. American Photographs. New York: Museum of Modern Art, 2012, s.p.
Figura 63. EVANS, Walker. Detail of a Frame House in Ossining, New York, 1931.
Fonte: EVANS, Walker. American Photographs. New York: Museum of Modern Art, 2012, s.p.
99
Figura 64. EVANS, Walker. Main Street Block, Selma, Alabama, 1936.
Fonte: EVANS, Walker. American Photographs. New York: Museum of Modern Art, 2012, s.p.
Figura 65. EVANS, Walker. Maine Pump, 1933.
Fonte: EVANS, Walker. American Photographs. New York: Museum of Modern Art, 2012, s.p.
100
Figura 66. EVANS, Walker. Jigsaw House at Ocean City, New Jersey, 1931.
Fonte: EVANS, Walker. American Photographs. New York: Museum of Modern Art, 2012, s.p.
Figura 67. EVANS, Walker. Hotel Porch, Saratoga Springs, New York, 1930.
Fonte: EVANS, Walker. American Photographs. New York: Museum of Modern Art, 2012, s.p.
101
Figura 68. EVANS, Walker. Wooden Gothic House Near Nyack, New York, 1931.
Fonte: EVANS, Walker. American Photographs. New York: Museum of Modern Art, 2012, s.p.
102
Figura 69. EVANS, Walker. French Quarter House in New Orleans, 1933.
Fonte: EVANS, Walker. American Photographs. New York: Museum of Modern Art, 2012, s.p.
O conjunto das imagens que compõem a Parte Dois de American Photographs trata, em sua maioria, de fotografias de edificações, mostradas na
sua disposição com seu entorno (rua, rio, plantação) ou apenas suas fachadas
e detalhes das formas e texturas das construções. A exceção reside em uma
única fotografia, a vista de uma típica embarcação fluvial com mecanismo de
propulsão em forma de pás. No primeiro plano, à margem do rio, três homens
estão próximos a pequenos barcos semelhantes a canoas (Figura 49).
Ao observarmos simultaneamente todas as fotografias do conjunto,
na sequência em que são apresentadas no livro, notamos que a imagem da
embarcação funciona como elemento de transição na narrativa (Figura 70).
Todas as dez vistas da Parte Dois, panorâmicas ou com enquadramentos
mais abertos, estão ordenadas antes da fotografia da embarcação; todas as
21 sequenciadas após a embarcação enquadram estritamente edificações em
fachadas individuais, tomadas de pequenos conjuntos de casas ou detalhes
arquitetônicos. Ou seja, saímos de vistas de contextos urbanos para enquadramentos que destacam edificações arquitetônicas como unidade, como exemplar de determinado estilo, mesmo quando mostrada em pequenos grupos.
Aqui a embarcação traz a ideia de deslocamento – como se nos deslocássemos entre diferentes localidades –, mas também explicita no conjunto
a mudança no enquadramento das imagens: saímos de planos mais abertos
para planos mais fechados no desenvolvimento da narrativa visual do livro.
Ou seja, a fotografia da embarcação configura uma divisão na Parte
Dois do livro. O primeiro momento aborda a cidade no conjunto, e o segundo
identifica e ressalta casos específicos de uma cidade que se pretende expressão da cultura local, seja o gótico norte-americano de residências ou os
aspectos de pequenos templos religiosos. Uma única imagem, exatamente
antes da fotografia da embarcação, apresenta uma fachada isoladamente,
num enquadramento frontal. Tal imagem parece preparar o espectador para
essa segunda parte final do livro.
Abordaremos primeiro as dez vistas que tratam de cenas urbanas, para então tratarmos do que consideramos uma segunda parte dentro da Parte Dois do livro.
De início, perguntamos: que imaginação espacial essa fotografia de
Figura 49. EVANS, Walker. Mississippi Sternwheeler at Vicksburg, Mississippi, 1936.
Fonte: EVANS, Walker. American Photographs. New York: Museum of Modern Art, 2012, s.p.
103
Figura 70. Mosaico com as 37 fotografias da Parte Dois de American Photographs.
Fonte: EVANS, Walker. American Photographs. New York: Museum of Modern Art, 2012, s.p.
104
rua produz ou reafirma, especificamente na relação com a cidade? Ou seja:
o que esse conjunto de imagens diz da cidade? Que imagem da cidade esse
conjunto de fotografias constitui?
A sequência de cenas urbanas abre com a vista panorâmica de uma
cidade, com galpões e chaminés, às margens de um rio (Figura 38). A imagem seguinte sugere o deslocamento sobre o rio através de uma ponte que,
por sua vez, nos leva a vagões numa estrada de ferro (Figura 39). Conforme
avançamos, a cidade torna-se árida, austera. As poucas ruas e estradas perceptíveis levam a pontos isolados dessa cidade que se resumem a pequenos
conjuntos de casas proletárias em torno da fábrica, da siderúrgica e da empresa de transporte de carvão.
Ao listarmos os elementos mais evidentes nas dez imagens, temos
como resultado: casas populares, chaminés de fábricas, um rio, uma ponte,
vagões de trens, ruas, lápides de cemitério, fornos de uma siderúrgica, pequenas fábricas. As legendas reforçam esses mesmos elementos ao trazerem os seguintes termos: vista, rua, cemitério, empresa de carvão, fábrica,
siderúrgica e casas de trabalhadores.
Uma associação recorrente no conjunto das imagens é a relação entre certo tipo de indústria – caracterizada pelas chaminés, pelo sistema ferroviário e pela siderurgia – e as habitações destinadas a uma classe de trabalhadores. A constante presença e relevância desses elementos nas imagens
criam uma cidade industrial e proletária. Os demais elementos – as ruas, o
automóvel e até mesmo um braço de rio que, na narrativa, é atravessado pela
ponte da imagem seguinte – parecem existir em função dessa relação entre
casa e fábrica, ou vice-versa.
A ideia do cotidiano enclausurado, sem saída ou com trajetos limitados, apresenta-se no enquadramento da maioria das fotografias do conjunto. As tomadas superiores, ainda que panorâmicas, ora eliminam o céu de
algumas imagens, ora preenchem o horizonte sem deixar saída ou escape.
Também as ruas são fotografadas de modo que o ponto de fuga dirige o olhar
do espectador por vias que se estreitam cidade e imagem adentro. Casarios
populares, ao tomar conta das margens, reforçam a ideia de que essa mesma tipologia se repetirá indefinidamente. O conjunto de fotografias instaura
Figura 38. EVANS, Walker. View of Easton, Pennsylvania, 1936.
Fonte: EVANS, Walker. American Photographs. New York: Museum of Modern Art, 2012, s.p.
Figura 39. EVANS, Walker. Part of Phillipsburg, New Jersey, 1936.
Fonte: EVANS, Walker. American Photographs. New York: Museum of Modern Art, 2012, s.p.
105
Figura 41. EVANS, Walker. Street and Graveyard in Bethlehem, Pennsylvania, 1936.
Fonte: EVANS, Walker. American Photographs. New York: Museum of Modern Art, 2012, s.p.
Figuras 50 a 53
Fonte: EVANS, Walker. American Photographs. New York: Museum of Modern Art, 2012, s.p.
106
uma cidade formada apenas por fábricas, estruturas industriais, casas de
trabalhadores e um cemitério.
Esse último elemento chama a atenção numa das fotografias: a lápide de uma sepultura (Figura 41). Na imagem, vemos, no primeiro plano, uma
pequena cruz que ornamenta o túmulo. Ao fundo, uma rua em leve declive,
ladeada por casas geminadas e postes de iluminação. E assim, a morte é
inserida no cotidiano da cidade.
Se no final da Parte Um as fotografias ressaltam a decadência da
cidade moderna, nesse primeiro conjunto da Parte Dois as fotografias destacam habitações populares em função do trabalho proletário industrial e fabril.
E assim, a vida se resume a um cotidiano imbricado entre a casa, a fábrica,
a indústria e o cemitério.
O conjunto de fotografias que sucede a fotografia da embarcação na
Parte Dois do livro concentra-se em construir determinada tipologia dessa cidade americana, desde edificações religiosas populares até rebuscados elementos do chamado neogótico americano, ou ainda a tradicional rua principal
das pequenas cidades do país. Aqui a frontalidade e o recorte que individualiza, utilizados em retratos de pessoas na primeira parte do livro, se repetem
na fotografia das edificações. De modo que, assim como nos retratos, somos
levados a entender a arquitetura ali retratada sendo documentada como tipo,
elemento exemplar e constitutivo da cidade americana construída por Evans.
Logo após a cena da embarcação, Evans sequencia quatro fotografias de fachadas de edificações que, a princípio, identificamos como igrejas
ou templos religiosos (Figuras 50, 51, 52 e 53). Três delas são pequenas
construções de madeira, cujas legendas confirmam serem igrejas localizadas
no Tennessee e na Carolina do Sul. Na primeira, uma placa informa ser ali a
Igreja do Nazareno. A única edificação de alvenaria, e que imita a arquitetura
de um templo grego, é originalmente de uso comercial, destinada a abrigar
um banco, e eventualmente utilizada como igreja na década de 1970, conforme dados do Inventário do Registro Nacional de Locais Históricos do Departamento do Interior do Governo dos Estados Unidos (Figura 52).
O enquadramento frontal e rigoroso das fachadas explicita ao mesmo tempo semelhanças e contrastes entre os dois tipos: as colunas das pe-
quenas igrejas são meros troncos de madeira, enquanto a construção que
remete a templos gregos ostenta volumosas colunas que imitam o estilo jônico. A edificação alinha-se com as grandes residências das fazendas de
monoculturas do sul, as chamadas plantations – o mesmo tipo de edificação que, na Parte Um do livro, aparece decadente (Figura 37) –, enquanto
as pequenas igrejas de madeira estão associadas às comunidades negras
e pobres. Elementos como frontão e colunas ainda presentes nas edificações de madeira apresentam-se como herança da Antiguidade grega, logo
pagã, presente na arquitetura cristã, mesmo que de modo tão singelo e rudimentar como nesses exemplos.
Apresentando-as numa única sequência, Evans dá maior visibilidade
às igrejas pobres, considerando que são comuns a três das quatro fotografias e que a arquitetura de alvenaria figura como a terceira imagem dessa
sequência, fora de qualquer lugar de destaque; ou seja, não está na abertura,
nem no fechamento da sequência em questão. Desse modo, sua imponência
cria certo estranhamento no conjunto e assume um tom caricato, pomposo e
exagerado, enquanto as pequenas construções de madeira ganham força em
sua simplicidade e austeridade.
O conjunto seguinte traz cinco fotografias com tipos de residências populares (Figuras 54 a 58), também destinadas a famílias da classe
operária americana, incluindo as chamadas frame houses, casas de baixo
custo e construção rápida. A legenda da segunda fotografia da sequência,
Millworkers’ Houses in Willimantic, Connecticut, 1931 [Casas de trabalhadores fabris em Willimantic, Connecticut, 1931], explicita a relação da moradia com o trabalho, já que essas casas pertenciam às fábricas nas quais
seus moradores trabalhavam47.
Se na primeira parte do livro Evans povoa a cidade americana com
retratados tornados tipos, na segunda parte ele apresenta recortes bastante
específicos das casas onde tais tipos moram, das fábricas onde trabalham
47 No sítio online do Departamento de Transporte do Estado de Connecticut lemos: “Textile mills had to
provide houses for their workers because when the first mills were built, places like Willimantic were just beginning to develop”. Disponível em: <https://portal.ct.gov/DOT/Cultural-Resources-Willimantic-Frog-Bridge/
workerhouses>. Acesso em: 15.abril.2021.
Figura 52. EVANS, Walker. Greek Temple Building, Natchez, Mississippi, 1936.
Fonte: EVANS, Walker. American Photographs. New York: Museum of Modern Art, 2012, s.p.
Figura 37. EVANS, Walker. Louisiana Plantation House, 1935.
Fonte: EVANS, Walker. American Photographs. New York: Museum of Modern Art, 2012, s.p.
Figuras 54 a 58
Fonte: EVANS, Walker. American Photographs. New York: Museum of Modern Art, 2012, s.p.
107
e por onde andam as personagens da cidade americana que o autor constrói. Retratos feitos em cidades tão distintas como Nova Iorque, Vicksburg ou
Havana são apresentados em conjunto com fotografias de fachadas numa
avenida central em Selma, Alabama, ou de igrejas na Carolina do Sul, ou
ainda de casas de madeira em Massachussetts. O resultado é a concatenação de um conjunto de imagens, de modo a compor uma obra ficcional,
cuja coerência emerge como o fato comum de essas fotografias mostrarem
o que é constitutivo da cidade americana moderna, sua cultura expressa
na tipologia e fisionomia.
3.5. O anonimato citadino
Figura 71. EVANS, Walker. Sidewalk and Shopfront, New Orleans, 1935.
Fonte: EVANS, Walker. American Photographs. New York: Museum of Modern Art, 2012, s.p.
108
Figura 73. EVANS, Walker. A Bench in the Bronx on Sunday, 1933.
Fonte: EVANS, Walker. American Photographs. New York: Museum of Modern Art, 2012, s.p.
Figura 72. EVANS, Walker. Coney Island Boardwalk, 1929.
Fonte: EVANS, Walker. American Photographs. New York: Museum of Modern Art, 2012, s.p.
109
Figura 75. EVANS, Walker. 42nd Street, 1929.
Fonte: EVANS, Walker. American Photographs. New York: Museum of Modern Art, 2012, s.p.
Figura 74. EVANS, Walker. Girl in Fulton Street, New York, 1929.
Fonte: EVANS, Walker. American Photographs. New York: Museum of Modern Art, 2012, s.p.
110
Figura 77. EVANS, Walker. Main Street Faces, 1935.
Fonte: EVANS, Walker. American Photographs. New York: Museum of Modern Art, 2012, s.p.
Figura 76. EVANS, Walker. Citizen in Downtown Havana, 1932.
Fonte: EVANS, Walker. American Photographs. New York: Museum of Modern Art, 2012, s.p.
111
Figura 78. EVANS, Walker. Posed Portraits, New York, 1931.
Fonte: EVANS, Walker. American Photographs. New York: Museum of Modern Art, 2012, s.p.
112
Figura 79. EVANS, Walker. Couple at Coney Island, New York, 1928.
Fonte: EVANS, Walker. American Photographs. New York: Museum of Modern Art, 2012, s.p.
Figura 80. EVANS, Walker. People in Summer, New York State Town.
Fonte: EVANS, Walker. American Photographs. New York: Museum of Modern Art, 2012, s.p.
113
Das 87 fotografias de American Photographs, ao menos 25 retratam
explicitamente pessoas, e várias dessas fotografias já foram abordadas nos
subcapítulos anteriores. Porém, outras dez imagens mostram pessoas inseridas num contexto urbano, apesar de não estarem em sequência no livro.
Essas imagens estão distribuídas na Parte Um do livro, sem constituírem um grupo em si mesmas, ainda que algumas formem duplas ou trios
na sequência da publicação. É certo que essas fotografias também são
atravessadas pelas demais, que as antecedem ou sucedem. Se nos subcapítulos anteriores abordamos as fotografias em sequência, como Evans
planejou e solicitou aos leitores, aqui tomamos a liberdade de não as tratar
exatamente em sucessão, mas como instantâneos de transeuntes que povoam – e (co)constituem – essa cidade moderna construída ficcionalmente em American Photographs.
Uma primeira diferenciação entre as fotografias que gostaríamos de
apontar é a relação dos fotografados com a câmera. Em cinco delas, as pessoas encaram a câmera. Noutras três, vemos os rostos, e os olhares estão direcionados para algum outro ponto da cidade. E em outras duas, as pessoas
estão de costas, de corpo inteiro, e não vemos os rostos.
Em qualquer uma dessas imagens as pessoas poderiam estar conscientemente posando para a câmera. Mas o que primordialmente interessa
aqui é que tipo de imaginação tais imagens suscitam, que tipo de relação
ressaltam no que diz respeito à cidade e a seus transeuntes.
Ora, uma imagem na qual pessoas encaram a câmera evidencia relação mútua no momento do ato fotográfico: ambas as partes se veem, e
ambas o sabem. Nessas imagens, em particular, devemos considerar ainda
que tal relação se dá entre desconhecidos.
Assim, essas imagens remetem aos encontros fortuitos cotidianos ao
andarmos pela cidade. Vemos e somos vistos. Todavia, aqui, um dos transeuntes carrega consigo uma câmera fotográfica e tal aparato, quando notado, pode modificar consideravelmente a postura do seu interlocutor.
Esse é o caso da fotografia intitulada Posed Portraits, New York, 1931
(Figura 78). Cientes do fotógrafo, dois homens posam para a fotografia. Ao
fundo lemos um cardápio que lista sanduíches e respectivos preços. Um dos
114
Figura 78. EVANS, Walker. Posed Portraits, New York, 1931.
Fonte: EVANS, Walker. American Photographs. New York: Museum of Modern Art, 2012, s.p.
homens veste um avental e um pequeno chapéu; ambos seguram cigarros.
O contexto da fotografia insere os fotografados num intervalo de trabalho: a
pausa para um cigarro torna-se imagem. Ambos os fotografados demonstram
aceitar ser fotografados, como também participam na construção da imagem,
no ato fotográfico. A linguagem corporal dos retratados denota amizade, intimidade entre si, mas também indica que ambos interagem empaticamente
com o desconhecido que lhes aponta a câmera.
Em Main Street Faces, 1935 (Figura 77), outros dois homens encaram a câmera. Novamente aqui a postura dos corpos sugere cumplicidade
entre os dois homens, que, no entanto, demonstram desconfiança na interação com o fotógrafo. Ambos giram a cabeça levemente para o lado e para
baixo e olham com sobrancelhas arqueadas para ele, num gesto, ao mesmo
tempo, defensivo e inóspito.
Vista isoladamente, a imagem de dois homens mal-encarados tendo
ao fundo a placa de um banco pode remeter ao imaginário hollywoodiano
de filmes de assalto a bancos. No entanto, Evans prefere não criminalizar a
cidade e seus transeuntes, ainda que comente o tema ao editar a rua a seu
modo, por meio da fotografia. Ao chamá-los de “Rostos de Rua Principal” na
legenda da foto, Evans demonstra a intenção de categorizá-los como certo
tipo de transeunte citadino. Ou seja, esses são os típicos rostos masculinos
encontrados nas ruas principais da cidade: homens que expressam sua masculinidade ao se apresentam para a câmera e para os demais como desconfiados, mal-encarados, antipáticos.
Também em Sidewalk and Shopfront, New Orleans, 1935 (Figura 71),
Evans apresenta outras personagens. O enquadramento frontal da fotografia
tem como principal elemento a fachada de uma barbearia. As listras que, via
de regra, se limitariam ao típico poste na calçada para indicar tal atividade,
espalham-se pela fachada, cobrem o lustre e invadem, de modo orgânico,
a roupa da própria cabeleireira. A mulher esboça um leve sorriso para a câmera que lhe capta a imagem desde o outro lado da rua. Inusitadamente, o
equipamento que segura em uma das mãos assemelha-se a uma arma, o
que dá à imagem – e à própria personagem – um caráter insólito.
A fotografia inclui também parte da fachada de uma drogaria, ao lado
Figura 77. EVANS, Walker. Main Street Faces, 1935.
Fonte: EVANS, Walker. American Photographs. New York: Museum of Modern Art, 2012, s.p.
Figura 71. EVANS, Walker. Sidewalk and Shopfront, New Orleans, 1935.
Fonte: EVANS, Walker. American Photographs. New York: Museum of Modern Art, 2012, s.p.
115
Figura 74. EVANS, Walker. Girl in Fulton Street, New York, 1929.
Fonte: EVANS, Walker. American Photographs. New York: Museum of Modern Art, 2012, s.p.
Figura 75. EVANS, Walker. 42nd Street, 1929.
Fonte: EVANS, Walker. American Photographs. New York: Museum of Modern Art, 2012, s.p.
116
da barbearia, o suficiente para inserir na imagem um segundo rosto feminino:
a imagem da modelo no centro de um cartaz, também encarando a câmera e
anunciando um creme de limpeza que, de acordo com a propaganda, quando
“usado diariamente traz a beleza”. Entre as duas mulheres, outro texto na
parede informa que o “corte feminino no pescoço” custa 15 centavos e “rolos
no cabelo feminino” valem 25 centavos.
Evans constrói mais uma vez uma relação entre suas personagens
e as imagens e textos já constituintes da cidade. Aqui, ele a recorta de modo
a salientar elementos da publicidade e da cultura direcionados ao universo
feminino. Evidencia assim as tantas associações possíveis na nossa própria
relação com a cidade e o fato de sermos, como transeuntes, simultaneamente vistos e videntes (NEVES, 2016). Outras três imagens nesse conjunto
apontam exclusivamente para personagens femininas. Numa delas, a mulher
retratada encara a câmera: mais uma personagem vê e é vista pela cidade.
Duas dessas imagens se assemelham: Girl in Fulton Street, New
York, 1929 (Figura 74) e 42nd St., 1929 (Figura 75). Ambas retratam mulheres
sozinhas em ruas da cidade de Nova Iorque. Na primeira fotografia, todos os
elementos da cena situam a personagem numa grande cidade: os prédios
ao fundo, os letreiros dos estabelecimentos comerciais, a vitrine, as pessoas
que a cercam, na maioria homens. Vestida com um casaco de peles e ostentando um adereço que lhe cobre a cabeça, a mulher olha para sua esquerda,
para fora do enquadramento da câmera.
Também a segunda fotografia situa uma mulher sozinha num contexto urbano. Ao fundo identificamos os carros que passam e os letreiros
nos prédios a distância. Próximo à mulher, parte de uma estrutura metálica e
de uma escadaria, anunciando em um dos degraus: “Uptown Tra[…]”. Ainda
que não se leia toda a expressão, certamente ela indica a entrada para os
elevados característicos do transporte público da cidade, trens que seguem
uptown, isto é, em direção ao norte da cidade. A mulher também veste um
casaco com peles e chapéu. No entanto, encara a câmera – e nesse caso é
como dizermos: encara um homem branco. Para além de diferenças formais,
como o enquadramento ou o conteúdo no segundo plano, consideramos relevantes algumas distinções nas duas imagens.
Na primeira fotografia, uma mulher branca é vista pelo fotógrafo; na
segunda, ele enquadra uma mulher negra, e o olhar é recíproco. Também as
legendas tratam cada uma das imagens – consequentemente, cada uma das
mulheres – de modo distinto. Na primeira legenda, Evans reconhece a presença da mulher, ainda que a chame de menina, mesmo tendo ele, à época da
publicação do livro, 35 anos. No entanto, na segunda legenda, a presença da
mulher é omitida por completo. O texto menciona apenas a rua, 42nd Street,
logradouro famoso já na década de 1930 por abrigar bordéis e prostíbulos.
Assim, a mulher branca retratada em postura passiva diante da câmera recebe a legenda de menina na Fulton Street. Já a mulher negra que
encara o fotógrafo é totalmente omitida na legenda ao ser fotografada na área
de meretrício. Essas legendas em particular evidenciam determinada leitura
das imagens, da cidade e dos transeuntes. Se na primeira o termo “menina”
infantiliza a mulher fotografada, na segunda, simples menção a uma rua em
área de meretrício da cidade, a leitura poderá levar à suspeita de que a personagem fotografada está associada à prostituição.
Outras duas fotografias têm mulheres como protagonistas e também
retratam cenas semelhanças entre si. Em Coney Island Boardwalk, 1929 (Figura 72), uma mulher de costas em pé num calçadão e apoiada num parapeito
observa banhistas na praia de Coney Island. Os demais elementos da composição estão cortados ou desfocados. Ainda que se identifiquem pessoas
ao fundo, um poste à esquerda e o braço de um homem à direita, o corpo da
mulher – com sua indumentária e pose – é o principal elemento da fotografia.
Isolada no primeiro plano, a personagem preenche o enquadramento da fotografia e destaca-se pelo figurino: um conjunto estampado, acompanhado de chapéu, meia-calça e sapatos de salto alto. A indumentária da
mulher destaca-a pelo contraste com o entorno. Sua linguagem corporal – o
tronco levemente inclinado para frente no parapeito e um dos pés ligeiramente inclinado – sugere que esteja relaxada, entretida com a multidão ou
absorta em seus pensamentos. Essa imagem também se associa com outra, localizada mais à frente na sequência do livro, Couple at Coney Island,
New York, 1928 (Figura 79).
Nessa outra fotografia vemos um casal enquadrado de costas, tam-
Figura 72. EVANS, Walker. Coney Island Boardwalk, 1929.
Fonte: EVANS, Walker. American Photographs. New York: Museum of Modern Art, 2012, s.p.
Figura 79. EVANS, Walker. Couple at Coney Island, New York, 1928.
Fonte: EVANS, Walker. American Photographs. New York: Museum of Modern Art, 2012, s.p.
117
Figura 76. EVANS, Walker. Citizen in Downtown Havana, 1932.
Fonte: EVANS, Walker. American Photographs. New York: Museum of Modern Art, 2012, s.p.
Figura 73. EVANS, Walker. A Bench in the Bronx on Sunday, 1933.
Fonte: EVANS, Walker. American Photographs. New York: Museum of Modern Art, 2012, s.p.
118
bém em pé, também próximo a um parapeito junto ao mar e também em
Coney Island. Ainda que sejam mulheres distintas nas duas fotografias, ambas vestem roupas e acessórios muito semelhantes: o vestido estampado, a
boina, a meia-calça e os sapatos de salto alto. Nesse sentido, Evans reforça
a ideia de tipos citadinos. Assim como optou por incluir duas fotografias distintas de mulheres vestidas com casacos com peles nas ruas de Nova Iorque,
aqui também é notória a semelhança entre as imagens, tanto nos enquadramentos como nas mulheres fotografadas.
Outra fotografia, feita na área central de Havana, Cuba, retrata um
homem que, assim como as mulheres nova-iorquinas, chama atenção pelo
traje: terno branco, gravata, lenço no bolso, sapato e chapéu de palha (Figura 76). Instala-se a dúvida se ele posa propositalmente para a câmera; mas
tanto a expressão corporal como o contexto urbano lhe conferem ares de
galanteador cosmopolita, um tipo citadino moderno.
Por fim, duas fotografias mostram pequenos grupos de pessoas,
um no espaço público e outro no contexto doméstico. A bench in the Bronx
on Sunday, 1933 (Figura 73) retrata dois casais extremamente próximos
um do outro, sentados num banco no Bronx num domingo. As mulheres,
nas extremidades, olham em diagonal, uma delas para trás, a outra lateralmente. Os homens, no centro da fotografia, olham para frente com os
olhos franzidos pelo sol.
A postura dos corpos, que se tocam, indica intimidade, mas também
desconexão entre os casais e seus pares, aparentemente ensimesmados ou
contemplativos. A mulher à esquerda tem a expressão de curiosidade por
algo no entorno, enquanto seu par fecha os olhos, o que na imagem assemelha-se a uma tentativa de distanciamento. O segundo homem, mais jovem,
tem a expressão taciturna. A imagem do grupo retrata o isolamento partilhado, uma solidão vivenciada em grupo, no espaço público. Concomitantemente, a cidade e os transeuntes ao redor conclamam a atenção dos retratados.
Num contexto doméstico, People in Summer, New York State Town,
1930 (Figura 80), retrata três pessoas que conversam relaxadamente à frente
de uma residência, ainda que aparentemente constrangidas pela fotografia.
Cada personagem olha para um ponto distinto e, apesar de ninguém encarar
a câmera, fica implícito que todos têm consciência da presença do fotógrafo.
A cena remete aos encontros cotidianos entre vizinhos ou familiares em bairros residenciais. As roupas dos homens, gastas e manchadas, os rabiscos
na janela e as marcas de uso e desgaste na fachada da casa sugerem uma
vizinhança proletária e empobrecida.
Assim, as personagens que ocupam as páginas de American Photographs remetem ao anonimato do transeunte urbano moderno, um anonimato reforçado nas fotografias apresentadas sem legendas próximas; e
mesmo quando apresentadas, ao final de cada parte, as legendas não trazem os nomes dos retratados.
Ainda outra característica atravessa o transeunte anônimo de Evans:
na grande maioria, essas personagens fazem parte do que poderíamos chamar de classe popular, no sentido de que nenhuma delas aparenta pertencer
à elite econômica ou social. As imagens tentam nos convencer de que esses
são rostos e corpos típicos, figuras comuns da cidade americana moderna,
num determinado momento histórico, mais precisamente, a década de 1930.
Em Evans o anonimato está fortemente ligado à experiência urbana.
O tema será tratado ainda pelo fotógrafo em outras oportunidades durante
sua carreira. Duas de suas séries em particular: Many are Called e Labor
Anonymous tratam o anonimato citadino de modo a relacioná-lo diretamente
com o retrato, como veremos no próximo capítulo.
Figura 80. EVANS, Walker. People in Summer, New York State Town.
Fonte: EVANS, Walker. American Photographs. New York: Museum of Modern Art, 2012, s.p.
119
4. MANY ARE CALLED E LABOR ANONYMOUS: A FOTOGRAFIA
COMO COMPOSIÇÃO DO ANONIMATO NA CIDADE MODERNA
4.1. Many Are Called: o anonimato no metrô de Nova Iorque
Figura 81. Mosaico com as 89 fotografias do livro Many Are Called, publicado por Walker Evans em 1966.
120
Em 1938, mesmo ano em que expôs e publicou American Photographs, Evans iniciou uma série fotográfica que concluiria em 1941. No período
de três anos produziu cerca de 600 retratos de desconhecidos no interior de
vagões de metrô na cidade de Nova Iorque (EVANS, 2004). Com a câmera
escondida entre os botões do casaco e um cabo disparador que corria por
dentro do casaco até sua mão, Evans fotografava desconhecidos que se sentavam à frente. Eram fotografados sem anuência, interação ou direção, e sem
que o fotógrafo olhasse pelo visor da câmera – o enquadramento era refeito
no momento da ampliação das imagens, já no laboratório fotográfico.
Num texto escrito por Evans também em 1938, o autor manifesta seu
entendimento da fotografia e da temática das ruas, do anonimato citadino:
E então se pensa no funcionamento geral da engrenagem social: esses anônimos que vão e vêm nas cidades
[...]; é em como eles se parecem, agora; no que está em
seus rostos e nas janelas e nas ruas ao lado e ao redor
deles; no que estão vestindo e no que estão usando, e
em como estão gesticulando que precisamos nos concentrar conscientemente com a câmera (EVANS, [1938]
1994, p. 151, tradução nossa) 48.
É sob tal concepção que as imagens no metrô são produzidas.
Fotografias que buscam construir um retrato a partir da rua, de uma sociedade e seus indivíduos, aparência, costumes, cultura. Vinte e cinco anos depois, em 1966, 41 dessas imagens foram apresentadas no MoMA, na exposição Walker Evans’ Subway [O metrô de Walker Evans] (THE MUSEUM OF
MODERN ART, 1966). Oitenta e nove fotografias compõem o livro publicado
no mesmo ano, intitulado Many are Called [Muitos são chamados] (EVANS,
[1966] 2004) e publicado novamente em 2004 pela Universidade de Yale, em
parceria com o Museu Metropolitano de Arte de Nova Iorque, The Metropo48 Do original: “And then one thinks of the general run of the social mill: these anonymous people who come
and go in the cities [...]; it is what they look like, now; what is in their faces and in the windows and the streets
beside and around them; what they are wearing and what they are riding in, and how they are gesturing, that
we need to concentrate, consciously, with the camera” (EVANS, [1938] 1994, p. 151) .
litan Museum of Art, para celebrar o centenário do metrô de Nova Iorque49.
Novamente Evans faz uso da sequência na montagem do livro para
construir sua imagem da cidade moderna a partir de seus retratados. Como
ao tratarmos de American Photographs, também aqui cabe o argumento, a
partir de Oliveira Júnior, de que Evans cria uma narrativa ficcional sobre a
cidade ao organizar as imagens numa dada sequência. Se em American Photographs ele o faz ordenando fotografias feitas em localidades e datas distintas, unindo de uma página a outra Mississipi a Nova Iorque, num período que
se estende por décadas, em Many Are Called o recorte é outro. A montagem
faz uso de uma repetição rigorosa e regular, na forma e no conteúdo: fotografias de meio-corpo de passageiros num mesmo modal de transporte coletivo,
o metrô, na mesma cidade, Nova Iorque, entre 1938 e 1941.
Como resultado, a recorrência dessas imagens, quase sempre frontais, convida o espectador a perceber-se como mais um passageiro, como se tais retratados fossem todos companheiros de viagem
pelo subterrâneo da cidade.
Segundo Mora e Hill (1993), numa entrevista não publicada concedida a Jeff W. Limerick em 1973, Evans afirmou que a série teve como referência pinturas intituladas Vagão de terceira classe, produzidas por Honoré
Daumier na segunda metade do século XIX. A partir desse dado, Waldir de
Mello Barreto Filho propõe que “a relação de Evans com Daumier certamente ultrapassa o Vagão de terceira classe e, mais certo ainda, ultrapassa o próprio Daumier. [Para Barreto Filho] a dívida de Evans é com o realismo” (informação verbal)50.
Ronaldo Entler ajuda a entender a relação da fotografia moderna
com o realismo ao afirmar:
49 Em nossa pesquisa utilizamos um exemplar da segunda edição, a qual reproduz a mesma sequência e
basicamente a mesma diagramação da primeira edição, com as fotografias sempre nas páginas à direita e
numeração nas páginas em branco à esquerda (ROSENHEIM, 2004). Foram adicionados um prefácio escrito por Luc Sante e um posfácio assinado por Jeff L. Rosenheim, então curador associado ao Departamento
de Fotografia do Museu Metropolitano de Arte, instituição que abriga o arquivo Walker Evans.
50 Fala do Professor Doutor Waldir de Mello Barreto Filho durante exame de defesa de monografia do
autor em Licenciatura em Artes Visuais, em dezembro de 2011 na Universidade Federal do Espírito Santo.
121
[...] o realismo é um certo modo de se portar da ficção,
da imagem ilusionista. [...] cabe à ficção ser realista, não
à realidade. [Assim] uma fotografia é realista porque localizamos certas expectativas da imagem perante a realidade (ENTLER, 2010, s.p.).
A fotografia, e em particular a fotografia de rua de Evans, faz uso de
seu estatuto documental para construir uma ficção realista que atualiza uma
visualidade herdada do realismo novecentista. Esses retratos são legitimados
em sua verossimilhança por estarem inseridos num realismo moderno; isto
é, são imagens que fazem uso de alguma credibilidade em sua relação com
o real para tratar de temas e questões da modernidade. Atendem a certas
expectativas modernas no que diz respeito tanto à imagem fotográfica – seja
em sua função documental, associada à ideia de veracidade e imparcialidade, ou no seu estatuto artístico, atrelado à noção de autoria e originalidade
– como à construção de um entendimento do anonimato citadino.
Assim, a fotografia surge como tecnologia que, em seu processo mecânico-químico, combinado à perspectiva monocular e à sua reprodutibilidade, produzirá imagens realistas para a sociedade moderna e urbana, principalmente a partir do século XX. No caso de Evans, uma tecnologia e uma
linguagem a serviço de temáticas recorrentes: a cidade moderna americana
e o anonimato citadino. Retornamos a Rancière e seu argumento de que
qualquer um – incluindo aqui a figura do citadino anônimo – é tratado como
protagonista pela literatura moderna do século XIX para então se tornar tema
possível para a pintura e, enfim, para a fotografia no campo da arte.
Se em American Photographs Evans buscou tipificar a cidade americana a partir de retratos de transeuntes e cenas majoritariamente urbanas,
aqui o fotógrafo concentra-se em pessoas desconhecidas fotografadas num
único espaço público: vagões de metrô na cidade de Nova Iorque. Ainda que
seu interesse mantenha-se voltado para a fotografia de rua e a cidade, a série
aponta especificamente para o retrato fotográfico como imagem que participa
na construção do anonimato citadino.
Em American Photographs não há imagens de transporte coletivo
122
Figura 82. EVANS, Walker. Fotografia nº 16 do livro Many Are Called, de Walker Evans, de
1966.
Fonte: EVANS, Walker. Many Are Called. New Haven: Yale University Press/The Metropolitan
Museum of Art, 2004.
urbano – uma barca vazia no Rio Mississipi é a única imagem que mostra especificamente algum tipo de transporte público. Já em Many are Called todas
as imagens são produzidas especificamente no interior de vagões de metrô.
Suas fotografias não mais localizam os retratados numa área específica da
cidade. O metrô torna-se um estúdio itinerante e pessoas de diversos cantos
da cidade entram e saem. Já não é possível associar, por meio da fotografia,
o retratado a esse ou aquele ponto da cidade.
Tampouco há legendas para as fotografias. Para além de uma epígrafe e de agradecimentos a pessoas e instituições, o único texto na edição
original de 1966 que situa o contexto de produção das fotografias é a introdução escrita por James Agee:
Essas fotografias foram feitas no metrô da cidade de
Nova York durante o final dos anos trinta e início dos
anos quarenta do século XX. O esforço sempre foi manter quem estava sendo fotografado o mais alheio possível
à câmera (EVANS, [1966] 2004, p. 15, tradução nossa)51.
Os retratados estão todos contidos num único contexto e esse
procedimento homogeneíza e unifica o conjunto de retratos e contribui
na construção do anonimato.
Não sabemos seus nomes, tampouco endereços. Na grande maioria, nada que nos indique sua profissão, personalidade, religião ou ideologia
política. Há, no entanto, duas exceções: a freira católica, com hábito e crucifixo no peito (Figura 82), e o músico cego que toca o acordeão em troca de
doações (Figura 83). São tipos recorrentes na cultura citadina ocidental. A
figura da freira encarna o indivíduo numa constante negação do eu, no constante atravessamento de uma coletividade que se impõe. Já o músico cego
no vagão de metrô assemelha-se à cega de Paul Strand (Figura 11), ambos
encarnações modernas da mendicância na cidade.
51 Do original: “These photographs were made in the subway of New York City, during the late thirties and
early forties of the twentieth century. The effort, always, has been to keep those who were being photographed as unaware of the câmera as possible” (EVANS, [1966] 2004, p. 15).
Figura 83. EVANS, Walker. Fotografia nº 89 do livro Many Are Called, de Walker Evans, de
1966.
Fonte: EVANS, Walker. Many Are Called. New Haven: Yale University Press/The Metropolitan
Museum of Art, 2004.
Figura 11. STRAND, Paul. Blind. 1916. 1 fotografia preto e branco. The Museum of Modern Art.
Fonte: https://www.moma.org/collection/works/54299
123
Ao não localizar esses retratos numa área específica da cidade, a
obra suscita uma relação entre os retratados e a cidade que não permite
associação ou identificação direta entre o espaço construído e o habitante.
Janice Caiafa defende “[…] o transporte coletivo [como sendo] a respiração
da cidade, crucial para sua sobrevivência e para que ela realize sua aventura própria de misturar estranhos num mesmo espaço partilhado” (CAIAFA,
2001, p. 201). É certo que o metrô retratado por Evans é exemplo dessa partilha feita por estranhos. No entanto, o que vemos nas fotografias não remete a
uma partilha no sentido daquilo que é comungado, mas à partilha como parte
que cabe a cada um. Evans enfatiza o indivíduo, tanto na postura distanciada
como fotógrafo camuflado como no enquadramento dos retratados.
É ainda Caiafa que, ao dialogar com Benjamin, salienta o aspecto de
colisão presente nos encontros citadinos e afirma:
É que não nos basta atribuir a esse ritmo da colisão a
marca da desorganização ou da destruição. Seria preciso
ressaltar também o papel produtivo ou construtivo
do confronto. A fricção pode trazer diferenciação,
desafiando o reconhecimento, tendo um efeito não
necessariamente deletério mas transformador dos processos subjetivos. Ao descrever os fenômenos do choque, Benjamin não faz um discurso apenas de denúncia.
Várias vezes ele distingue o “flâneur” do “transeunte”
(CAIAFA, 2002-2003, p. 95).
Se Evans encarna o flâneur benjaminiano, os demais passageiros
são por ele retratados como transeuntes tornados tipos citadinos, de modo
que, ainda que o anonimato seja tratado como condição citadina, esse ser
citadino não se apresenta como bloco homogêneo, como veremos mais à
frente ao tratarmos especificamente dos retratos. Evans age como observador distanciado para criar sua versão de cidade a partir desses retratados: tipos que, em sua individualidade, compõem e são compostos pela
coletividade, pela cidade.
124
Ainda que fotógrafo e fotografados tenham se sentado frente a frente, a uma distância de aproximadamente um metro, as imagens remetem ao
isolamento, mesmo que no espaço público. Com exceção da última imagem,
que oferece um enquadramento mais panorâmico do interior de um vagão,
as demais fotografias são recortadas de modo que se aproximam do formato utilizado em documentos de identificação ou fichas criminais: rostos
enquadrados frontalmente em fundos neutros. A fotografia direta e o estilo
documentário de Evans impõem aos retratados uma aparente imparcialidade
do fotógrafo, aspecto que se consolida na repetição que constitui o conjunto.
Sobre os retratos do metrô, o próprio Evans argumenta: “Você não
vê o rosto de um(a) juiz(a) ou um(a) senador(a) ou um(a) presidente de banco. O que você de fato vê é ao mesmo tempo sóbrio, surpreendente e óbvio: estas são as senhoras e os senhores do júri” (EVANS, [1962] 2016,
p. 151, tradução nossa)52.
Ao compilar retratos de pessoas anônimas, produzidos num transporte público urbano, Evans tenta convencer-nos de que é possível identificar nesse conjunto de rostos uma imagem coletiva do cidadão e da cidadã
comum – o qualquer um de Rancière. O anônimo aqui não é apresentado
como o exótico, o excluído, o diferente. O anonimato em Evans está estreitamente associado à coletividade, ao pertencimento a certa sociedade.
Many Are Called retrata indivíduos elevados à categoria de tipos urbanos
por meio da imagem fotográfica, a qual, em sua linguagem, verossimilhança
e repetição, reforça seu próprio estatuto de documento, ao mesmo tempo
em que constrói uma ficção.
Assim, como já mencionado ao tratarmos de American Photographs, também aqui cabe relembrar o argumento de Kirstein acerca da obra de
Evans: “[...] ele detalha de tal modo os efeitos das circunstâncias em espécimes familiares que o único rosto [...] golpeia com a força de números avassaladores a terrível força cumulativa de milhares [...]” (KIRSTEIN, [1938] 2012,
52 Do original: “[...] you don’t see [...] the face of a judge or a senator or a bank president. What you
do see is at once sobering, startling and obvious: these are the ladies and gentlemen of the jury”
(EVANS, [1962] 2016, p. 151).
p. 199, tradução nossa).53 Tal argumento exprime a narrativa alimentada tanto
pelo museu como pelo autor, a qual associa suas fotografias à capacidade de
identificação de tipos urbanos modernos.
Tal tipologia expõe suas limitações. Se, como argumenta Evans, não
encontramos entre os retratados no metrô banqueiros, juízes ou senadores,
mas os senhores e as senhoras do júri, tampouco encontramos miseráveis
ou personagens explicitamente marginalizadas. Os retratados de Evans aqui
pertencem a determinada classe média. Anônimos que, em suas diferenças, serão reconhecidos como indivíduos da mesma sociedade, ainda que
não sejam pares entre si.
Em quase dois terços do livro, as pessoas são retratadas separadamente, em sua individualidade (56 das 88 fotografias frontais). Pouco mais
de um terço das imagens (as demais 32 fotografias) retrata majoritariamente
duplas ou trios, casais, mães ou pais com filhos. Assim, na grande maioria, os
anônimos retratados são isolados pelo enquadramento da imagem, individualizados, singularizados do contexto público e coletivo (Figura 81).
Não que as imagens expressem solidão ou isolamento. A padronização da escala dos corpos retratados e sua frontalidade, assim como a
repetição de alguns elementos, página após página, dão ao conjunto certa
continuidade. Os recortes de partes dos corpos dos passageiros ao lado das
personagens retratadas – ombros, braços e mãos, partes de rostos – os letreiros e cartazes nas paredes do vagão, as janelas e estruturas metálicas
no fundo dos retratos, tudo isso impõe não apenas certo caráter de série às
imagens, mas também a noção de que apontam para a coletividade.
Somos solicitados, com o acúmulo dos retratos a cada página, a
perceber na individualidade das personagens tornadas tipos a constituição dessa coletividade. Assim como somos provocados a apreender que,
mesmo nos traços mais personalizados e pessoais, tal individualidade está
compreendida, inserida no coletivo, na cidade. É nesse atravessamento do indivíduo pela coletividade, e vice-versa, que o anonimato citadino
Figura 81. Mosaico com as 89 fotografias do livro Many Are Called, publicado por Walker Evans
em 1966.
53 Do original: “he so details the effects of circumstances on familiar specimens that the single face
[…] strikes with the strength of overwhelming numbers, the terrible cumulative force of thousands […]”
(EVANS, [1938] 2012, p. 199).
125
se constrói nessas imagens.
A partir de Caiafa chegamos a Guattari e Rolnik para pensarmos a
construção da subjetividade na coletividade. Caiafa diz:
Guattari escreve que as cidades se caracterizam em
grande parte pelos processos subjetivos que deflagram
[...] o sujeito é um episódio dessa subjetividade processual, que não é nunca resultado, mas constante processo. São os componentes mais diversos que entram na
produção da subjetividade [tais como] os processos sociais e materiais da cidade – a relação com o espaço
construído [...] (CAIAFA, 2002-2003, p. 92).
Em Guattari e Rolnik lemos:
Seria conveniente dissociar radicalmente os conceitos
de indivíduo e de subjetividade. Para mim, os indivíduos
são o resultado de uma produção de massa. O indivíduo
é serializado, registrado, modelado. Freud foi o primeiro
a mostrar até que ponto é precária essa noção da totalidade de um ego. A subjetividade não é passível de
totalização ou de centralização no indivíduo. Uma coisa
é a individuação do corpo. Outra é a multiplicidade dos
agenciamentos da subjetivação: a subjetividade é essencialmente fabricada e modelada no registro do social
(GUATTARI; ROLNIK, 1996, p. 31).
Não apenas os retratados nessas fotografias são fruto dessa construção coletiva, mas também essas imagens participam da construção de nosso
entendimento, hoje, de quem foram os indivíduos de então. As fotografias
trazem em si informações objetivas da época, como, por exemplo a moda,
as publicidades e o desenho dos vagões, que em sua verossimilhança nos
persuadem a admitir as expressões como também legítimas em sua aparên-
126
cia, e não o recorte temporal da imagem de um rosto, intrínseco ao processo fotográfico do retrato.
A ficção construída por meio dessas fotografias se consolida também pelo fato de as imagens trazerem à tona expressões faciais ou corporais que nos são comuns, nas quais nos reconhecemos coletivamente,
explicitadas nos rostos e corpos de indivíduos anônimos. E mais, nos vemos
conectados a essas pessoas apenas por meio de imagens fotografadas há
mais de oitenta anos, ainda que os retratados continuem anônimos e que
nunca saibamos seus nomes.
Não propomos que expressões sejam universais, atemporais, mas
que essas são expressões que reconhecemos no dia a dia contemporâneo,
urbano, herdeiros que somos da modernidade. A tipificação da cidade moderna, característica na obra de Evans, é produzida aqui nos rostos e corpos
de transeuntes, nessa subjetividade atravessada, (co)constituída tanto pelos
encontros anônimos da cidade como por suas imagens, aqui, fotográficas.
É certo que retratos fotográficos são instantâneos, frutos de um aparato que transforma o mundo à frente em imagem estática, de determinado
modo, bidimensional, monocular, e nesse caso, preto e branco. Ou seja, há
na fotografia um elevado grau de descontextualização, ou ainda de recontextualização, que também participa na construção de uma realidade própria, a
qual podemos chamar de ficção realista.
De todo modo, numa já mencionada referência a Oliveira Junior, as fotografias “[...] não só nos dizem de nosso mundo, mas também
nos educam a ler este mundo a partir delas. Legitimam, acima de tudo, a
si mesmas como obras que dizem do real” (OLIVEIRA JÚNIOR, 2009, p.
20). São essas imagens que nos educam os olhos e consequentemente
nosso entendimento de mundo.
Para além de imagens criadas a partir do real, essas se impõem
como retratos do real. Quando olhamos para essas fotografias, somos impelidos a crer que assim eram homens e mulheres, ilustres anônimos – ainda
que vistos como cidadãos comuns –, que viveram antes nós numa grande
cidade moderna. A imagem fotográfica, que em sua ficção educa acerca
do real, apresenta-se assim como pensamento, entendimento político do
mundo – o que pode e deve ser visto e dito na esfera comum –, partilha do
sensível que atua politicamente nas interações e multiplicidades que constituem a experiência citadina.
Outro aspecto que chama atenção é a postura de parte dos retratados, em torno de 16 personagens que, diferentemente da maioria, encaram a
câmera. Alguns têm a cabeça levemente virada para o lado e um pouco inclinada, as sobrancelhas arqueadas, a testa franzida. São expressões de curiosidade que se misturam e se confundem com o desconforto, o incômodo e a
desconfiança provocados pela presença do outro no espaço público. Sabemos que uma das possíveis origens desse estranhamento é o fato desse outro apontar uma câmera, ainda que dissimuladamente, sem o consentimento
do retratado. O resultado é que, voltados para a lente da câmera, conscientes
ou não da presença do aparato, os olhares nesses retratos parecem encarar
o fotógrafo, ou o espectador.
Ainda como parte desse conjunto de pessoas que encaram a câmera
estão as personagens cujas expressões transitam entre reprovação e desagravo: o olhar direto, a boca cerrada, a feição sisuda. E olhares que parecem
identificar a câmera do fotógrafo, mas reagem quase com indiferença, como
se lhes bastasse se mostrarem cientes de sua estratégia.
Enfim, o ato fotográfico de Evans, mesmo em sua tentativa nem sempre bem sucedida de se manter secreto, provoca alguns dos modelos de
modo que, em diversas dessas fotografias, o que vemos é o olhar oblíquo
de um desconhecido que nos encara. São olhares de anônimos que não
incitam interação, troca, diálogo, mas uma postura defensiva, resguardada,
quando muito, indiferente.
Tanto fotografar como encarar as pessoas no metrô configuram a
quebra dupla de um tabu moderno, diz Luc Sante em seu prefácio à segunda
edição de Many Are Called, publicada em 2004, “já que [Evans] estava não
apenas encarando mas também comunicando a mirada para outros através
do tempo e do espaço” (SANTE, 2004, p. 12, tradução nossa)54. Nessas circunstâncias, fotografar e olhar são ações que rompem certo acordo social,
54 Do original: “since he was not only staring but also communicating the stare to others across time and
space” (SANTE, p. 12, 2004).
que desconsideram uma dada regra de privacidade vigente em certos espaços públicos da cidade, como os transportes coletivos, conclui Sante.
Em ao menos outras 10 fotografias, passageiros leem ou seguram
jornais. Esse conjunto não é formado por recorrência ou semelhança entre os
retratados em si. O elemento em comum é a leitura ou a presença do jornal.
É a única atividade, para além da conversação entre casais ou duplas em
algumas das fotografias, que vemos retratada com alguma recorrência nos
enquadramentos frontais. O texto jornalístico em algumas dessas imagens
é o que mais se aproxima de uma ideia de legenda. Desde assuntos triviais
como o início da temporada de aulas de esqui a manchetes sensacionalistas que prometem informações sobre o modus operandi de uma assassina,
passando por assuntos diplomáticos entre os EUA e a Inglaterra relativos à
Segunda Guerra Mundial. Para além dos letreiros e dos cartazes fixados nas
paredes dos vagões, as manchetes nos jornais são as poucas palavras que
conectam esse conjunto de personagens a algum contexto externo ao momento da captura da imagem, dentro do transporte público.
Como argumenta Benjamin:
[...] o impulso irresistível de procurar numa fotografia
dessas a ínfima centelha de acaso, o aqui e agora com
que a realidade como que consumiu a imagem, de encontrar o ponto aparentemente anódino em que, no ser-assim daquele minuto há muito decorrido, se aninha
ainda hoje, falando-nos, o futuro, e o faz de tal modo
que podemos descobri-lo com um olhar para trás (BENJAMIN, [1936] 2017, p. 55).
Se na maioria, os retratos convidam a refletir especificamente a partir
das expressões do rosto e do corpo das personagens, nessas fotografias, em
particular, o jornal torna-se o elemento mundano que, em sua secularidade
moderna, aponta para trivialidades, mas também para a violência, para a política, aspectos da vida diária dessas pessoas, cujos retratos operam em nós
o fascínio próprio à fotografia de anônimos. Se o olhar e a expressão facial
127
são os pontos focais de retratos, aqui os pontos aparentemente insignificantes ou inofensivos a serem observados são as pequenas coisas que cercam
tais protagonistas, e o jornal é um dos mais recorrentes objetos encontrados.
Mas nem todos os retratados encaram a câmera/fotógrafo ou leem.
Dois terços das fotografias, ao menos 59 imagens, retratam pessoas que
olham para além do enquadramento fotográfico e seus olhares estão direcionados para o entorno ou aparentam um estado de introspecção. Certas
personagens claramente observam o entorno, enquanto outras expressam
recolhimento. Tal distinção nem sempre é tão explícita, é preciso dizer. As expressões de muitas dessas imagens deixam em suspenso se o retratado olha
para o mundo ao redor ou se, a partir dele, repensa o próprio mundo interior.
É novamente Sante quem nos provoca a pensar a privacidade dos
passageiros no espaço público que é o metrô:
“[O metrô] é uma zona neutra em que as pessoas estão livres para se considerarem invisíveis; o tempo gasto no trajeto é um hiato da interação social. Já que os
protocolos de andar de metrô aconselham voltar seu
olhar para dentro, você pode tirar o rosto que usa para
personagem moderna, o transeunte anônimo.
Quiçá uma das características mais desconcertantes dos retratos fotográficos apresentados em Many Are Called seja o fato de essas imagens
resultarem de um recorte tão sucinto, tão metodológica e espacialmente delimitado – passageiros fotografados inadvertidamente em vagões de metrô
por um fotógrafo que não sabe exatamente o que enquadra –, mas capaz de
proporcionar uma obra com tal abertura que explicita a polissemia própria
da imagem fotográfica. Sim, essas são fotografias nas quais podemos identificar rostos, roupas, posturas de pessoas diante da câmera, naquele vagão
específico, num determinado dia e ano. Mas, e se considerarmos o aspecto
ficcional dessas fotografias a partir do argumento do escritor e crítico argentino Ricardo Piglia de que “a ficção trabalha [...] para construir um discurso que
não é verdadeiro nem falso. Que não tem a pretensão de ser verdadeiro ou
falso. E na nuance indecidível entre verdade e falsidade é que se joga todo
o efeito da ficção (PIGLIA, 2017, p. 13, tradução nossa)56? Então podemos
presumir que o conjunto de retratos ganha força e remete tanto à abertura
e polissemia próprias da arte como à multiplicidade e abertura das relações
humanas travadas no espaço público, seja por nós, na contemporaneidade,
ou pelos anônimos que possibilitaram a existência dessas imagens.
o benefício de outras pessoas, deixar sua postura afrouxar, permitir que sua idade, dúvidas e fadiga retomem
as posições que ocupam na privacidade de sua casa.
4.2. Labor Anonymous: fotografias de anônimos numa calçada em
Detroit
O passageiro do metrô, então, está nu (SANTE, 2004,
p. 11-12, tradução nossa)55.
Em Many Are Called Evans tira proveito desse momento de certo relaxamento de desconhecidos para criar flagrantes sutis de instantes de privacidade no espaço público da cidade. Mas para além do aspecto voyeurístico
das imagens, as fotografias, em seu conjunto, constroem um retrato dessa
55 Do original: “[The subway] is a neutral zone in which people are free to consider themselves invisible;
time spent commuting is a hiatus from social interaction. Since the protocols of subway-riding advise turning
your gaze inward, you can take off the face you wear for the benefit of others, let your posture go slack, allow
your age and self-doubt and fatigue resume the positions they occupy in the privacy of your home. The subway rider, then, is naked” (SANTE, p. 12, 2004).
128
Em 1946, Evans retoma a temática do anonimato citadino num ensaio que se assemelha às fotografias produzidas nos vagões de metrô de
Nova Iorque. Nesta ocasião, opta por fotografar explicitamente – sem subterfúgios que omitam a câmera – pessoas desconhecidas, passantes numa
única calçada no centro da cidade de Detroit, então a quarta cidade mais
populosa dos E.U.A. As imagens resumem-se a retratos de meio-corpo de
pessoas que passaram na frente da câmera de Evans, sem nenhum tipo de
56 Do original: “La ficción trabaja [...] para construir un discurso que no es ni verdadero ni falso. Que no
pretende ser ni verdadero ni falso. Y en el matiz indecidible entre la verdad y la falsedad se juega todo el
efecto de la ficción” (PIGLIA, 2017, p. 13, tradução nossa).
Figura 84. Reprodução do artigo Labor Anonymous [Mão de obra Anônima], originalmente publicado na Revista Fortune, em novembro de 1946.
Fonte: CAMPANY, David. Walker Evans: the magazine work. Göttingen: Steidl, 2014, s.p.
129
abordagem do fotógrafo ou consentimento explícito dos fotografados. De um
total de 150 fotografias, 11 imagens compõem um artigo que ocupou duas
páginas da revista Fortune, em novembro do mesmo ano, sob o título Labor
Anonymous [Mão de obra Anônima] (ZANDER, 2016; CAMPANY, 2014), reproduzido acima (Figura 84).
Semelhantemente ao que fizera em Many Are Called, todas as fotografias publicadas na revista foram reenquadradas no mesmo tamanho e
formato vertical; a diagramação configura-se num rigoroso mosaico organizado em grade ortogonal. Um pequeno texto ocupa a área equivalente a de
uma das fotografias. Ao final, o que vemos são duas fileiras de imagens,
numa sequência em página dupla, com a inserção de uma pequena caixa de texto, na qual lemos:
NUMA TARDE DE SÁBADO
NO CENTRO DE DETROIT
O trabalhador americano, ao passar por aqui, geralmente
inconsciente da câmera de Walker Evans, é um sujeito
decididamente diverso. Seu sangue flui de muitas fontes.
maioria dos homens nestas páginas parece ter um grau
sólido de autodomínio. Pela graça da providência e pelo
esforço de milhões, incluindo eles próprios, esses são
cidadãos de uma nação vitoriosa e poderosa, e parecem
ter preservado um senso de si mesmos como indivíduos. Quando os editorialistas os consideram “mão de
obra”, esses trabalhadores sem dúvida podem rir disso
(EVANS, [1946], 2016, p. 95, tradução nossa).
Ainda que as fotografias e a diagramação das páginas tenham sido
executadas conforme a proposta do autor, o texto acima difere completamente da versão escrita pelo próprio Evans. Em Walker Evans: Labor Anonymous,
livro dedicado ao tema do anonimato na obra do fotógrafo estadunidense, e
em particular ao trabalho que lhe dá nome, temos acesso a manuscritos e ao
texto datilografado enviado pelo fotógrafo para acompanhar as fotografias, o
qual foi recusado pela revista (Figura 85).
Num tom mais literário, Evans trata o trabalho como atividade característica de todos os retratados e como um dos aspectos próprios
da vida na cidade moderna:
Suas feições tendem ora para o camponês, ora para o
130
patrício. Seu chapéu às vezes é um chapéu e às vezes
“Mais cedo ou mais tarde”, dizia a frase um tanto boba,
ele o moldou em uma espécie de assinatura desafiadora.
“todo mundo vai passar pelas mesas dos cafés na Rue
É essa variedade, talvez, que o torna, na massa, o cor-
de La Paix”. A cena decididamente mudou. Se for em
po de trabalho mais engenhoso e versátil do mundo. Se
algum lugar, o cruzamento urbano central agora pode ser
a guerra provou alguma coisa, demonstrou que a mão
em Detroit ou em algum lugar perto das oficinas mecâni-
de obra americana pode aprender novas operações com
cas de KOMING (principal cidade industrial da URSS?).
extraordinária rapidez e levá-las rapidamente ao mais
As fotografias nessas páginas foram feitas no centro de
alto grau de eficiência produtiva. Muitas vezes pode ha-
Detroit numa tarde de sábado. Sem posar nem pausar,
ver uma falta de tradições artesanais do Velho Mundo,
uma seleção razoável de pessoas passa pela câmera
mas o amplo espectro de temperamentos aumenta para
aqui. Todos são – num palpite seguro – produtores anô-
enfrentar quase todos os desafios; no trabalho, como nas
nimos. Eles são lubrificadores de máquinas, cozinheiros
carteiras de investimento, a diversificação compensa.
de pratos rápidos ou executivos de vendas; fabricantes
Outra coisa pode ser notada nesses retratos de rua. A
de moldes, vigias, projetistas, galvanoplastas e fisiote-
rapeutas; os soldadores, montadores, selecionadores,
classificadores, polidores, encaixotadores, carregadores
de produtos usinados; servidores desses bens, servidores, por sua vez, de fabricantes de bens.
À sua maneira, uma rua da cidade lhe dirá tanto quanto
o seu jornal matinal. Um fato não só vai lhe dizer, mas
esfregar em você com força: todo mundo trabalha
(ZANDER, 2016, p. 25, tradução nossa).
Além do artigo publicado na revista Fortune em novembro de 1946,
hoje temos acesso tanto ao texto autoral reprovado pelos editores como à
totalidade das fotografias produzidas para o artigo, atualmente disponíveis no
sítio on-line do Museu Metropolitano de Arte de Nova Iorque. Ao compilar o
artigo publicado, as 150 fotografias e o texto do autor, rejeitado pela revista,
temos um material no qual é possível identificar um caráter midiático, definido
pelos interesses editoriais da revista Fortune, e um caráter autoral, centrado
na fotografia de rua de Walker Evans.
O aspecto autoral do artigo é mantido na concepção, produção,
seleção e diagramação das imagens, etapas definidas ou executadas pelo
próprio Evans; já seu aspecto midiático evidencia-se no texto sem assinatura, redigido e aprovado por redatores e editores da revista Fortune, o qual
constitui uma explícita propaganda de guerra estadunidense por um meio
de comunicação de massa de veiculação nacional. Seja como ensaio autoral ou como discurso editorial, a fotografia assume papel central na publicação. Para além da função comprobatória e testemunhal, as imagens
produzidas para o artigo se impõem como fragmentos de realidade em sua
aparente crueza e austeridade.
Oliveira Júnior afirma, a partir do pensamento da filósofa Susan Sontag, que “[...] fotografias participam da construção de nossa imaginação sobre
a realidade, sobre o mundo [...], educando-nos em nossas maneiras de pensar sobre ele e sobre nós mesmos [...]” (OLIVEIRA JUNIOR, 2014, p. 257). O
autor argumenta que o “[...] caráter instrumental [e] a credibilidade informacional [...]” (OLIVEIRA JUNIOR, 2014, p. 260-261) atribuídos à fotografia apre-
Figura 85. Texto escrito por Walker Evans para acompanhar o artigo Labor Anonymous [Mão de
obra Anônima] e rejeitado pela revista Fortune.
Fonte: ZANDER, Thomas. Walker Evans: Labor Anonymous. New York: D.A.P., 2016, p. 25.
131
sentam-na como se fora a própria realidade, para além da mera aparência.
Em Labor Anonymous [Mão de obra anônima] as fotografias de Evans
são validadas por um meio de comunicação de massa que detém o poder de
veicular imagens e textos assim configurados como ato político, isto é, como
aquilo que é possível ser dito e visto na esfera comum. É Jacques Rancière
quem aponta tal atravessamento entre estética e política, o que chamará de
partilha do sensível (RANCIÈRE, 2009).
Nesse sentido Queiroz Filho propõe a investigação de uma política espacial das imagens, ou seja, do “[...] papel político que as imagens
têm efetivado na relação das pessoas com os lugares, com as coisas e
com elas mesmas [...]” (QUEIROZ FILHO, 2013, p. 199). O autor argumenta ainda que as fotografias, como produtos culturais, devem ser entendidas como versões de mundo.
Interessa aqui pensar como a fotografia de rua produzida por Evans
em Labor Anonymous [Mão de obra anônima] participa na construção de certa imaginação acerca da cidade e de seus transeuntes; ou seja, questionar
que entendimentos essas imagens suscitam acerca da cidade que abriga esses transeuntes, ou ainda, que versões de cidades essas imagens produzem
a partir dos transeuntes.
É ainda Massey quem afirma que “[...] identidades/entidades, as
relações entre elas e a espacialidade que delas faz parte são todas coconstitutivas” (MASSEY, 2008, p. 30). Desse modo, o artigo, ao intitular-se
Labor Anonymous [Mão de obra anônima], estabelece uma identidade específica para os retratados, e consequentemente constrói uma versão da cidade a partir das imagens.
Das 150 fotografias feitas por Evans nas ruas de Detroit, apenas 11
foram publicadas na edição do artigo em questão. Ou seja, o que vemos é
um pequeno recorte dentro de um conjunto de imagens que, por si mesmas,
já configuram edição, versão de mundo.
Os transeuntes fotografados por Evans são apresentados em série
na revista, no seguinte padrão: retratos de meio-corpo de pessoas caminhando contra o mesmo fundo neutro, com o mesmo tamanho e espaçamento
repetidos numa diagramação de página dupla. No entanto, o rigor na cons-
132
trução desse padrão acaba por evidenciar variações que ora apontam semelhanças, ora diferenças, de modo que os retratados tornam-se tipos, ou
ainda, estereótipos de certo proletariado.
Ainda que os retratos tenham sido feitos na rua, nenhum dos elementos da arquitetura da cidade aparece. São imagens isoladas dos transeuntes, fotografias que se apresentam como instantâneos de corpos citadinos anônimos, retirados do contexto urbano. Caminham pela cidade no
momento em que são flagrados e têm sua imagem capturada pela câmera.
No entanto, esses corpos continuam a dizer da cidade, ainda que tudo que
tenhamos seja um conjunto de fotografias que retratam sua linguagem corporal, expressões faciais e indumentárias. O que, de fato, não é pouco. A
repetição de certos elementos nas imagens e o modo como são apresentados podem indicar que a cidade está sendo construída por trás, ou ainda, a
partir desses corpos anônimos.
O que primeiro chama a atenção, no âmbito desta análise, é a presença quase exclusiva de retratos masculinos, na maioria homens brancos.
Um único homem negro é retratado, não carregando em si nenhum traço
marcante, o que reforça a excepcionalidade da imagem pelo tom da pele.
Semelhantemente, somente a última imagem retrata uma única mulher, e ainda assim acompanhada de um homem. A figura masculina mais
alta, em primeiro plano e com a mão que repousa na cintura da mulher, exerce ascendência sobre a figura feminina. Ela é assim apresentada como coadjuvante num contexto masculino. No conjunto, o que vemos são onze homens
e uma mulher. Todos eles maiores que ela, a única pessoa conduzida por um
homem. Poderíamos dizer, metaforicamente, que essa é mais uma rua com
nome de homem. Mas que homens são esses, os fotografados?
Tanto o título como ambos os textos – seja a versão publicada pela
revista ou a rejeitada, escrita pelo fotógrafo – afirmam que esses são trabalhadores: “[...] lubrificadores de máquinas, cozinheiros de pratos rápidos ou
executivos de vendas [...]”, cogita Evans (ZANDER, 2016, p. 25). A especulação do autor talvez se apresente demasiadamente precisa e, nesse sentido,
mais literária que literal, contudo não menos relevante.
De fato, cerca de metade das vestimentas dos homens nessas ima-
gens remete a atividades braçais: macacões, uma camiseta de mangas curtas, camisas amassadas pelo uso e outras com mangas arregaçadas. Roupas de uso cotidiano, associadas à classe proletária. Além da indumentária, a
postura dos corpos também participa na construção do retrato e consequentemente na recepção dessas imagens.
Das 12 pessoas fotografadas, apenas uma olha para a câmera. No
entanto, é exatamente essa a imagem que abre o conjunto das fotografias, a
primeira no canto esquerdo superior da página. O homem veste um macacão
com sinais de uso e carrega pacotes, o que associa sua imagem à de um
trabalhador braçal. Olha desconfiado para a lente da câmera, de modo que
seu olhar chega até nós, videntes de sua imagem, 70 anos depois. Também
nós somos questionados por sua mirada, considerando que estamos, assim
como o fotógrafo, do lado de trás da câmera.
Seu olhar, que denuncia a consciência do ato fotográfico que lhe rouba a imagem, põe em xeque ainda a invisibilidade da câmera em relação aos
demais fotografados, mesmo que não a encarem. Já não se sabe quem ilude
quem, quem vê e quem é visto. Não é mais possível afirmar quem posa para a
câmera ou quem é flagrado por ela. Por fim, o que temos são imagens de corpos anônimos e a narrativa que elas trazem acerca dos transeuntes da cidade.
Retratos construídos pela postura, pelo olhar e pela indumentária dos
retratados, as fotografias desses corpos em trânsito são apresentadas como
fragmentos imagéticos de uma coreografia citadina própria do trabalhador
urbano no deslocamento pela cidade. E mesmo nesse pequeno conjunto é
possível destacar alguns tipos distintos.
Dois homens se distinguem pelas feições circunspectas e graves.
Um homem de tronco robusto carrega seu paletó num dos braços, rente ao
corpo. O olhar franzido pelo sol, as rugas no rosto bem barbeado, o cabelo
curto, as entradas da calvície e um volumoso cachimbo lhe conferem uma
sobriedade ostensiva de aspecto severo. Outro senhor, talvez o mais velho
dos retratados, é posicionado no canto superior direito do conjunto, o último
numa sequência horizontal de seis fotografias. Anda com o olhar cabisbaixo
e o corpo levemente curvado. A camisa e o paletó abotoados conferem-lhe
um ar austero. O rosto ostenta uma expressão resignada, como se levasse
no corpo seriedade perante a vida ou o peso dos dias.
Além da indumentária, o fumo é outro elemento presente em quase
metade das fotografias, e associa-se, no conjunto, ao próprio caminhar pela
cidade e ao intervalo da jornada de trabalho. Na maioria, os fumantes nessas imagens caminham relaxadamente e parecem saborear cachimbos ou
cigarros. Dois deles são mostrados lado a lado. O homem com cachimbo na
mão tem os ombros relaxados e não aparenta movimento, como os demais.
Parece expirar a fumaça no exato momento em que é fotografado, o que lhe
confere a expressão tranquila, apesar do olhar franzido pelo sol. Esse homem apresentado como exemplo de trabalhador, exibe um broche na altura
do peito, remetendo a campanhas políticas ou sindicais. Ao lado, um homem
com camiseta de mangas curtas e cigarro na boca, embora igualmente retratado como trabalhador, contrasta no andar com peito aberto e sugere uma
postura jovial e aventureira.
O terceiro aspecto das imagens que gostaríamos de ressaltar é o
recorte individual dedicado aos transeuntes. A imagem do casal acaba por
corroborar tal argumento. Ou seja, ainda que o artigo apresente um conjunto
de retratos, os retratados são mostrados, na grande maioria, individualmente.
Não há interação entre eles. Ao retratar transeuntes fora do contexto urbano
e apresentá-los um a um, as imagens reforçam a ideia de uma potencial cidade povoada por indivíduos autossuficientes, para os quais o trabalho bastaria.
Assim, o artigo reforça a relação, apontada pelo antropólogo David
Le Breton, do retrato fotográfico com a noção moderna e urbana de individualidade. Para o autor, o sentimento de individualidade na modernidade
está associado à urbanização no período da Revolução Industrial, momento
no qual a fotografia estabelece-se como imagem moderna. De modo que o
retrato fotográfico torna-se, para o cidadão moderno, a prova de sua existência singular, “[...] a posse de um rosto, único, o seu bem mais humilde e mais
precioso no qual se encarna o seu nome” (LE BRETON, 2019, p. 47).
No entanto, aqui o retrato é subtraído ao retratado. Na rua, sua imagem individual, em suposta função social do periódico jornalístico, é tornada
pública. Esses corpos e rostos são convertidos em imagens que exaltam “a
dignidade do rosto em uma sociedade em que o indivíduo acaba precedendo
133
a coletividade [...]” (LE BRETON, 2019, p. 47).
Por fim, a diagramação numa página dupla possibilita a visão do conjunto, e podemos ver todas as fotografias como se num mesmo instante. Contudo, também é possível tratá-las como fotogramas de uma sequência cinematográfica, de modo a inserir as ideias de tempo, intervalo e movimento no
conjunto de fotografias. Ou seja, tanto o conteúdo e a forma das fotografias
como o modo de apresentação participam na construção da imagem dessa
cidade, e mais especificamente, dos transeuntes anônimos.
Vinculadas as fotografias feitas na rua desses anônimos a certa mão
de obra, todo e qualquer transeunte torna-se potencialmente força de trabalho. De modo que a cidade é convertida numa extensão da fábrica, da
indústria, em suma, no prolongamento do local de trabalho dos citadinos.
E o trabalho, por sua vez, é associado às características ressaltadas nos
corpos dos transeuntes, convertidos em trabalhadores. Seriedade, sobriedade, resignação, masculinidade. Até mesmo o relaxamento, o descanso e o
lazer acabam associados ao trabalho, como merecimento daquele que trabalha, como fruto do trabalho.
E então, novamente, as perguntas: que imaginação espacial essas
imagens suscitam? Que cidade(s) abriga(m) esses transeuntes, ou ainda, que
cidade(s) esses transeuntes (co)constituem? As imagens publicadas no artigo dão uma versão de cidade austera, masculina, cuja coletividade é formada
por indivíduos autônomos, cujos valores estão orientados para o trabalho.
No entanto, se nos debruçarmos sobre as outras 139 fotografias não
publicadas, fica ainda mais explícito o aspecto ficcional do artigo publicado
como peça jornalística. Isto é, a escolha de determinadas imagens, em detrimento de outras, e ainda o modo como são dispostas são em si elementos na
construção de certa narrativa sobre a cidade e seus transeuntes.
Na página 136 são apresentadas, num único mosaico, as 150 fotografias feitas por Evans para o artigo (Figura 86). Todas as imagens foram retiradas do sítio on-line do Museu Metropolitano de Arte de Nova
Iorque, instituição que abriga o Walker Evans Archive. A partir dessas tantas imagens não publicadas, que outras versões da cidade e de seus transeuntes podemos construir?
134
No mosaico percebemos uma pluralidade de corpos, os quais evidenciam as tantas possibilidades de edições, recortes, abordagens e questionamentos acerca da cidade e de seus transeuntes, mesmo a partir desse
pequeno conjunto de retratos.
Aqui gostaria de propor um recorte, dentre tantos outros possíveis. O
conjunto de imagens ao lado mostra 51 mulheres e 118 homens. O que significa dizer que pouco mais de 30% das pessoas fotografadas são mulheres, e
outros quase 70% são homens. Ou seja, assim como os homens retratados
no artigo – 11 das 12 pessoas ali retratadas –, inúmeras mulheres passaram
na mesma rua naquela tarde de 1946, sozinhas, acompanhadas de homens,
com outras mulheres ou com crianças. No entanto, reitero que apenas uma
mulher é retratada no artigo, e mesmo assim, não está sozinha. Apesar de todas as demais imagens do artigo mostrarem homens sozinhos, nós a vemos
acompanhada por um homem.
Massey argumenta que as imagens produzidas desde as origens do
Modernismo em meados do século XIX já se caracterizam por celebrar os
espaços públicos da cidade, “[...] uma cidade para os homens” (MASSEY,
1994, p. 233, tradução nossa). Para a autora, “[...] uma das figuras-chave
[na] experiência dessa [...] modernidade é o flâneur, o andarilho na multidão,
que observa sem ser observado [...] irremediavelmente masculino” (MASSEY,
1994, p. 234, tradução nossa).
Descendente da modernidade novecentista, a fotografia de rua de
Evans confirma uma versão de cidade semelhante, cujas ruas configuram-se
como espaço público majoritariamente masculino. O que problematizamos é
a participação da fotografia moderna na construção de uma narrativa única
acerca da cidade moderna e da própria modernidade. Defendemos que a
seleção das fotografias publicadas no artigo participa de uma narrativa hegemônica, a qual reforça deliberadamente uma versão masculina da rua e
do trabalho. O texto que acompanha as fotografias reforça tal entendimento
ao dizer literalmente: “A maioria dos homens nestas páginas parece ter um
sólido grau de autodomínio” (ZANDER, 2016, p. 95, tradução nossa).
Argumentamos ainda que seriam possíveis outras tantas seleções
do conjunto total de fotografias feitas por Evans naquele dia e cada um des-
ses recortes proporcionaria versões distintas. Uma versão que contemplasse
apenas retratos de mulheres problematizaria o entendimento de que a rua
e o mercado de trabalho pertencem exclusivamente aos homens. E ainda,
distintas seleções de retratos femininos trariam à tona distintas questões,
desde a vulnerabilidade do corpo feminino nas ruas da cidade, passando
pelo olhar masculino para o corpo da mulher no espaço público até as lutas
feministas por empoderamento.
Ora, não é o caso de uma versão ser mais legítima que as demais.
Parafraseando Massey em suas proposições acerca da espacialidade (MASSEY, 2008), o que se apresenta aqui é a capacidade das imagens – em particular as fotográficas – de apontar para a possibilidade e a existência de
outras versões de mundo; para a diversidade de atores e a multiplicidade de
relações que (co)constituem cidades; e para a coetaneidade e o antagonismo
das inter-relações nas muitas trajetórias traçadas nas ruas da cidade.
Nesse sentido, o próximo capítulo trará uma série fotográfica produzida pelo autor da tese, que toma como referência a obra de Evans para tratar
de questões levantadas na pesquisa até aqui, a saber, a imaginação espacial
produzida pela fotografia de rua e seu aspecto estético-político. O ato fotográfico será proposto como experiência citadina que, nesse caso específico,
aborda o anonimato citadino e as múltiplas versões de cidade possíveis a
partir da imagem produzida pela fotografia de rua.
135
Figura 86. Mosaico composto pelo autor a partir das 150 fotografias feitas por Walker Evans para o artigo Labor Anonymous [Mão de obra anônima],
originalmente publicado na Revista Fortune, em novembro de 1946.
Fonte: Sítio on-line do Museu Metropolitano de Arte de Nova Iorque. Disponível em: <https://www.metmuseum.org/art/collection/search/281889>.
Acesso em: 15. set. 2020.
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5. SÉRIE FOTOGRÁFICA SOBRE O ANONIMATO:
UMA EXPERIÊNCIA CITADINA
5.1. O ato fotográfico como experiência citadina
Em seu artigo Ainda é possível falar em experiência urbana? Habitar
como situação Corpo-mundo, de 2020, Eduardo Marandola Junior se propõe
pensar, “[...] sendo possível ou não falar de experiência urbana, como esta
(im)possibilidade é ou pode ser geográfica?” (MARANDOLA JR., 2020, p.
14). Para tal, traz definições e abordagens da temática da experiência em
pensadores da modernidade e da contemporaneidade, tais como Walter Benjamin, Martin Heidegger, Giorgio Agamben e Jorge Larrosa, dentre outros.
Desses autores destacamos aqui algumas considerações, por entendermos
que elas dizem respeito explicitamente à urbanidade e ajudarão a pensar o
ato fotográfico como experiência citadina.
Marandola Junior chama atenção para como Benjamin identifica, no
excesso de informações e na massificação da vida citadina moderna, “[...] a
impossibilidade de narrar, de transformar em narrativa o vivido, pela ausência
de palavras para formular e comunicar a experiência nova na qual a modernidade nos havia lançado” (MARANDOLA JR., 2020, p. 15). O autor aponta então uma herança benjaminiana em Agamben, já que este atualiza o excesso
apontado por Benjamin ainda na primeira metade do século XX ao comentar
o fim da experiência em nossos dias nos seguintes termos:
Vale apontar que Agamben chega a associar a fotografia à incapacidade contemporânea da experiência ao afirmar: “Posta diante das maiores
maravilhas da terra [...], a esmagadora maioria da humanidade recusa-se hoje
a experimentá-las: prefere que seja a máquina fotográfica a ter experiência
delas” (AGAMBEN, 2005, p. 23). Agamben exemplifica a impossibilidade da
experiência apontando para os mesmos vagões de metrô a partir dos quais
Evans produziu Many Are Called e ainda para o anonimato do transporte
público, tema que inspirou a série Transeuntes. Dessa divergência tratamos
mais à frente neste capítulo.
Ainda a partir de Marandola Junior, outro autor que aborda o pensamento benjaminiano acerca da experiência é Larrosa, com a argumentação de que certas condições tornam a experiência uma raridade, a saber: o
excesso de informação, de opinião, de trabalho e a falta de tempo. Apesar
de identificar tais empecilhos à experiência, numa associação direta aos argumentos de Benjamin, Larrosa se permite pensar a possibilidade da experiência a partir do seu sujeito. Propõe que este tenha uma postura deliberadamente passiva, no sentido de estar aberto para receber e ser atravessado
pela experiência (LARROSA, 2017).
Larrosa dialoga com Heidegger:
Quando falamos em “fazer” uma experiência, isso não
significa precisamente que nós a façamos acontecer,
“fazer” significa aqui: sofrer, padecer, tomar o que nos
alcança receptivamente, aceitar, à medida que nos sub-
[...] nós hoje sabemos que, para a destruição da
metemos a algo. Fazer uma experiência quer dizer, por-
experiência, [...] a pacífica existência cotidiana em
tanto, deixar-nos abordar em nós próprios pelo que nos
uma grande cidade é, para esse fim, perfeitamente
interpela, entrando e submetendo-nos a isso. Podemos
suficiente. Pois o dia a dia do homem contemporâneo
ser assim transformados por tais experiências, de um dia
não contém quase nada que seja ainda traduzível em
para o outro ou no transcurso do tempo (HEIDEGGER,
experiência: [...] não a viagem às regiões ínferas nos
1987, p. 143 apud LARROSA, 2017, p. 27).
vagões de metrô [...] nem os eternos momentos de muda
promiscuidade com desconhecidos no elevador ou no
ônibus (AGAMBEN, 2005, p. 21-22).
Larrosa parece propor uma alternativa às tantas impossibilidades da
experiência impostas pelos excessos da modernidade. Sua proposta não é
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apresentada como reação ou enfrentamento à negação da experiência defendida por Benjamin e Agamben. De outro modo, ao constatar tais impeditivos à experiência, Larrosa propõe que o sujeito da experiência assuma
uma postura passiva e abra-se ao mundo no qual habita, já que, para esse
autor, “[...] a experiência seria o modo de habitar o mundo de um ser que
existe, de um ser que não tem outro ser, outra essência, além de sua própria existência corporal, finita, encarnada, no tempo e no espaço, com outros” (LARROSA, 2014, p. 43).
Marandola Junior argumenta, fazendo dialogarem Larrosa e Jason
Wasiak, que se a experiência é habitar o mundo, então o habitar a cidade,
como experiência, pode ser “[...] incompletude, imanência, ir ao encontro, ser
atropelado. Habitar a precariedade da existência, mas também o ordinário,
no qual o encontro e o ser invadido pelo Outro, em sua abertura e multiplicidade, é possibilidade [...]” (MARANDOLA JUNIOR, 2020, p. 38).
Ao tratarmos aqui o ato fotográfico como experiência citadina, não
nos opomos a Benjamin e Agamben ou os negamos. Vamos ao encontro das
proposições de Larrosa e Marandola Junior. Ou seja, ao considerarmos as
afirmações de Benjamin e Agamben dos tantos impeditivos para a experiência no contexto urbano, e ainda que em muitos momentos a fotografia, em
particular, associe-se diretamente à alienação do sujeito na relação com a cidade e com o mundo, aqui buscamos a fresta, a possibilidade da experiência
presente na contingência, na abertura para o mundo, na vulnerabilidade do
corpo frente ao cotidiano citadino (MARANDOLA JR., 2020).
O ato fotográfico é proposto então não como ação que distancie o
sujeito da experiência em si, mas como ato que o impele a uma experiência
individual com o mundo. A máquina fotográfica não é tratada como prótese
mediadora entre o sujeito e o mundo que o cerca, mas como ferramenta de
produção de imagem exposta a título de desdobramento da experiência do
sujeito com o mundo. Nesse sentido, a imagem não substitui a experiência,
mas é, no que diz respeito à sua produção, seu fruto. Fotografar torna-se
ato carregado de presença, do sujeito naquele instante, naquele espaço, em
sua relação com o mundo que o cerca. Assim, estabelecemos uma distinção entre o ato fotográfico, como ação de um corpo no mundo, e a imagem
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fotográfica, como desdobramento, fruto, resultante do ato de fotografar.
É Marandola Junior quem diz:
Para [Larrosa], o ordinário deste habitar o mundo existencialmente também apresenta possibilidade de sermos
acometidos, atropelados ou afetados. A chave parece
estar na existência de condições de apropriação da vida,
ou seja, em uma tensão contínua entre sistemas de reprodução de uma lógica urbana que nega a experiência,
e o tornar corpóreo e situado que singulariza a experiência (MARANDOLA JR., 2020, p. 34).
E ainda que o ato fotográfico seja necessariamente ação, ou seja,
postura ativa para com o mundo, esse mesmo ato pode ser pensado a partir
do aspecto passivo do executor, o fotógrafo, assim como Larrosa propõe ser
o sujeito da experiência. O fotógrafo de rua, em particular, muitas vezes fotografa como reação ao que lhe passa, acontece, atravessa na trajetória nas
ruas da cidade. O fotógrafo como sujeito da experiência coloca-se na cidade
de modo atento e, ao mesmo tempo, aberto a ser acometido e afetado. Assim, o ato fotográfico como experiência citadina não o aliena; ao contrário,
provoca novas relações e interações com a cidade.
5.2. A série Sobre o anonimato
O livro intitulado Sobre o anonimato está encartado na contracapa
da versão impressa dessa tese. Para ver o vídeo com o conteúdo integral
da publicação, clique na imagem da capa (Figura 87) ou acesse o link https://youtu.be/H17tuLr_B3g
Figura 87. Capa do livro Sobre o Anonimato, produzido por Tom Boechat e parte integrante
dessa tese.
Fonte: Arquivo do autor.
5.3. Apontamentos sobre uma experiência citadina
Neste tópico buscamos compartilhar intencionalidades presentes na
concepção, no desenvolvimento e na conclusão do livro de fotografia Sobre o
anonimato, entendido aqui como o desdobramento de uma experiência citadi-
na numa narrativa poética, parte integrante da tese e que trata do anonimato
citadino. Um exemplar físico do livro acompanha a tese impressa, enquanto,
na versão digital, a apresentação em vídeo de um exemplar impresso compõe o tópico 5.2. A opção por apresentar um vídeo do livro se dá por entendermos que, diferentemente de imagens fixas num arquivo PDF, a imagem
em vídeo permite melhor compreensão de certos aspectos do livro impresso,
como seu tamanho, textura da capa e das páginas, e certas características
da imagem impressa, como tonalidades e texturas.
A série Sobre o anonimato teve início a partir de uma atividade provocada pelo professor Queiroz Filho na disciplina Habitar a cidade: narrativas
do corpo na sobremodernidade, ministrada no Programa de Pós-Graduação
em Geografia no primeiro semestre de 2018. O professor delimitou alguns
protocolos para que cada discente produzisse, mediante alguma linguagem
artística, uma narrativa da cidade. Os alunos poderiam escolher a linguagem,
mas o trabalho necessariamente deveria ser executado em algum terminal
rodoviário de transporte coletivo interestadual ou intermunicipal.
Entre as opções apresentadas pelo professor Queiroz Filho, decidi
trabalhar em terminais rodoviários intermunicipais do sistema Transcol, localizados na Grande Vitória. O sistema é a única opção de transporte coletivo
intermunicipal em toda a região metropolitana. Minha escolha já tencionava
dialogar com a obra de Evans, especificamente com seus retratos de passageiros do metrô e suas fotografias de transeuntes em Detroit. Numa aproximação com a temática e os ambientes fotografados por Evans, delimitei
outros protocolos de experiência – o que, como , onde e quando fazer – que
me serviriam de guias de entrada e saída, ainda que bastante abertos.
Cabe aqui tratar do termo protocolo de experiência. Partimos da proposição de Queiroz Filho, em seu diálogo com a obra de Deleuze e Guattari, os quais, ao abordarem a literatura de Kafka, afirmam não buscarem
arquétipos, estruturas ou mesmo interpretações, por acreditarem “[...] apenas
em uma experimentação de Kafka, sem interpretação nem significância, mas
somente protocolos de experiência [...]” (DELEUZE; GUATARRI, 2017, p. 16).
Queiroz Filho, então, propõe: “Como entrar e sair de um lugar? Deleuze responde: por meio de protocolos de experiência, por meio da experi-
139
mentação” (QUEIROZ FILHO, 2012, p. 107). Assim, sugere, ao entrarmos ou
sairmos de um lugar, “[...] a produção de passagens, travessias, experimentações corporais, poéticas e sensitivas [...] (QUEIROZ FILHO, 2012, p. 107).
Dito isso, o protocolo não deve ser entendido como fórmula a ser replicada,
tampouco percebido como regra coletiva de conduta, mas como “[...] artifício
de como se entra nos lugares e de como esse lugar ‘muda’ dependendo exatamente dessa ‘entrada’” (QUEIROZ FILHO, 2018, p. 249).
Portanto, o horário, o modo e o procedimento ao fotografar nos terminais são escolhas entendidas aqui como artifícios que potencializam o
ato fotográfico, protocolos de experiência pensados para permitir aberturas na experiência citadina.
Optei por fotografar em dias úteis, no horário de pico, por volta das
18 horas, quando é possível conciliar a maior circulação de pessoas com
uma iluminação artificial que uniformiza as imagens cromaticamente, criando
uma mesma paleta de cores que reforça a coerência no conjunto, ao mesmo
tempo em que as situa na noite da cidade. Percebia então a possibilidade de
fotografar o cansaço dos corpos ao final do dia de trabalho. Também pretendia capturar imagens sob as luzes artificiais da cidade, por possibilitarem uma
iluminação com cores e sombras distintas da luz natural diurna.
Outro protocolo que me impus foi fotografar com o celular ao ouvido,
simulando uma conversa telefônica. Assim, ao mesmo tempo em que não
chamava a atenção dos transeuntes para a captura fotográfica, tampouco
tinha controle do enquadramento da imagem. Oliveira Junior e Gisele Girardi,
ao abordarem a obra de Marcelo Moscheta, exploram a ideia do acaso manipulado a partir de Deleuze, no trato que esse autor dedica à obra do pintor
anglo-irlandês Francis Bacon. O conceito é assim definido e exemplificado:
A estratégia de “acaso manipulado” de Francis Bacon é
considerada por Deleuze como meio de limpar a tela em
branco, como meio de escapar dos clichês já postos antes mesmo de o pintor começar a pintar. Tais clichês podem ser entendidos como a força do representacional ou
do decalque, ideias sedimentadas, que criam limitações
140
para a emergência do novo. Para fugir das imagens já
presentes antes de pintar, por exemplo, um rosto, Francis Bacon chicoteava a tela em branco com uma toalha
embebida em tinta. Esse “acaso” (as marcas da tinta) é
que definia onde, por exemplo, estariam os olhos, obrigando-o a reinventar modos de pintar rostos (OLIVEIRA
JUNIOR; GIRARDI, 2018, p. 20).
Oliveira Junior e Girardi propõem que “[...] o encontro com o lugar
se dá justamente quando o artista perde o controle, quando o lugar se impõe como algo que surpreende”, e é nessa exposição “[...] aos lugares [que
o artista extrai] singularidades que passam a existir justo no encontro entre artista e lugar” (2018, p. 22). Nesse sentido, abdicamos do controle do
enquadramento fotográfico, do direcionamento da pose do retratado e até
mesmo da escolha do próprio fotografado, de modo que nem fotógrafo, nem
fotografado deteve total controle do ato fotográfico. Um ignorava que era fotografado; o outro não sabia exatamente quem surgiria no retrato, tampouco como ele era enquadrado.
Aqui o ato fotográfico como experiência citadina provoca ainda um
uso distinto do espaço público em questão. Afinal, a grande maioria dos usuários está em trânsito, com exceção, é certo, das pessoas que trabalham nos
próprios terminais. Minha presença nos terminais não tinha como objetivo
específico o uso do transporte coletivo, mas inicialmente presenciar o deslocamento dessa população de desconhecidos, pessoas anônimas que se deslocam pela cidade. No entanto, não bastava presenciar essa movimentação,
era necessário produzir imagens como objetos estéticos que suscitem pensamento geográfico. Especificamente nos interessa pensar que questões da
cidade contemporânea tal experiência e imagens dela resultantes suscitam.
Na prática, o ato fotográfico proposto consistiu em caminhar pelos
terminais no contrafluxo dos usuários, ao encontro das pessoas, acionando o
disparador da câmera do celular continuamente ao cruzar pelos transeuntes,
sem saber quem seria fotografado, nem como sua imagem seria capturada.
Percorri o terminal inúmeras vezes. Noutros momentos escolhia uma pilastra
ou poste próximo a um ponto de desembarque e permanecia parado, como
se estivesse numa conversa telefônica, de modo que os passageiros que desembarcavam no terminal passassem por mim e pela câmera do celular, num
fluxo contínuo que durava alguns minutos. Foram sete saídas de campo entre
maio de 2018 e abril de 2019, nas quais foram feitas mais de 2000 fotografias.
A série Sobre o anonimato é apresentada aqui como desdobramento, uma das tantas versões possíveis a partir das imagens produzidas.
Como aponta Oliveira Junior:
Um lugar não nos chega pronto, não tem existência por
si mesmo, mas vamos construindo nossas imagens e
nossas ideias acerca deste lugar e é com elas que nós o
pensamos e nele agimos. É, em grande medida, a partir das ideias e imagens que temos dos diversos lugares
que construímos o conceito de lugar.
[...]
A construção da ideia e da imagem de um lugar é resultante das inúmeras práticas sociais e discursivas que
nele se desenvolvem ou a ele se referem. Cada indivíduo
e cada grupo social cria uma versão de um lugar. Particularmente o lugar onde vivemos é permeado de versões as
mais distintas ou semelhantes, normalmente sintonizadas às distinções e semelhanças das práticas sociais ali
vivenciadas ou sofridas (OLIVEIRA JUNIOR, s.d., p. 2).
Assim, o processo de edição das imagens foi conduzido sob o entendimento de que o trabalho participa de uma ideia e a imagem tanto retrata a
cidade, como narrativa, quanto integra as muitas histórias que a constituem.
A fim de definir as imagens a serem utilizadas, selecionamos as fotografias
por eliminação. Num primeiro momento, rejeitamos aquelas destituídas de
algum registro de figuras humanas, como as demasiadamente abstratas,
compostas por manchas coloridas ou muito claras. Em seguida, excluímos
retratos fechados, que mostrassem unicamente um rosto, optando por ima-
gens nas quais as personagens estão inseridas em algum contexto urbano.
Por outro lado, também evitamos imagens que explicitassem sua localização
num terminal de ônibus, por nos interessar mais a relação dos corpos na cidade do que o transporte coletivo em si. Assim, decidimos manter as imagens
que indicam o corpo a corpo dos transeuntes e ainda tiramos proveito da luz
artificial, de modo a inserir no trabalho a atmosfera noturna da cidade.
Queiroz Filho afirma que a edição de imagens de um lugar resulta
por “[...] dar visibilidade para um conjunto de determinadas práticas sociais
e discursivas, em detrimento de outras [...] (QUEIROZ FILHO, 2010, p. 43).
Como detalhamos a seguir, fizemos escolhas que, a nosso ver, apontam para
uma narrativa aberta, oposta e resistente à noção de que uma história seja a
única a ser contada. Optamos por uma narrativa que se entende e se apresenta como versão de um lugar, o qual entendemos ser constituído por um
“[...] ‘conjunto de estórias’, [...] resultado da constante negociação entre as
articulações do poder, mas também ‘dos não-encontros, das desconexões,
das relações não estabelecidas’”, como afirma Queiroz Filho (2010, p. 43) em
diálogo com Massey (2008, p. 191).
Desse modo, entendemos que também os protocolos e procedimentos relativos ao ato fotográfico já mencionados contribuem na construção e
no resultado das imagens. E estas, por sua vez, tanto participam na definição
de certos aspectos gráficos e estéticos do livro quanto colaboram na construção de uma narrativa da cidade.
Nesse sentido, tratamos a seguir de seis pontos da diagramação e do
projeto gráfico da obra em sua relação com a narrativa construída acerca do
anonimato citadino, a saber:
- o reenquadramento das fotografias;
- o tamanho do livro impresso;
- a diagramação das fotografias em páginas duplas;
- a opção por apresentar todas as imagens sem molduras, ocupando toda a página;
- o uso de picote nas páginas como elemento gráfico;
- a repetição e a serialidade na sequência das imagens.
A primeira decisão que tomamos em relação às imagens originais foi
141
impossibilitar ou, ao menos, dificultar o reconhecimento dos rostos fotografados por meio do reenquadramento e do corte das imagens. Tal procedimento
faz com que a grande maioria dos rostos apareça cortada, mutilada pela
margem da imagem, como se escapasse do enquadramento, o que resulta
numa constante tensão nas imagens. Além disso, a captura fotográfica de
corpos em movimento num ambiente com baixa luminosidade produz imagens distorcidas e borradas, também contribuindo para a elaboração de retratos de difícil identificação.
A opção por eliminar ou recortar parcialmente os rostos retratados
resolve ao mesmo tempo questões legais, estéticas e conceituais. Não se
pode negligenciar o aspecto legal do direito de imagem dos retratados, tornado nulo pela incapacidade de sua identificação explícita. No entanto, é exatamente ao vedar a identificação dos retratados que o trabalho se fortalece.
Diferentemente dos retratos de Evans, as imagens ganham o estatuto de tipologia na repetição dos corpos, ao identificarmos não mais indivíduos, mas
corpos comuns: homens, mulheres, crianças no deslocamento pela cidade.
Não há flagrantes, cenas dramáticas, nem mesmo a fisionomia do retrato, tão
comumente associada à identidade do indivíduo desde a Modernidade.
Tais imagens tensionam a ideia da individualidade moderna nessa
coletividade citadina. Sem dúvida os retratados são indivíduos, mas na relação efêmera entre transeuntes que se cruzam por segundos nos terminais,
seus corpos e individualidades são tomados pela coletividade. É na repetição
de imagens de corpos individuais, vistos um após o outro, que o livro constrói
uma imagem coletiva da cidade.
O livro no formato impresso tem o tamanho de 12 x 10 cm, quando fechado, e 24 x 10 cm, quando aberto. São imagens pequenas, se comparadas
com as que vemos cotidianamente, espalhadas pela cidade. Mesmo em comparação com outros livros de fotografia, o livro seria considerado pequeno,
aproximando-se mais do formato de um pequeno caderno de anotações ou,
se preferirmos, de esboços. Ainda que seu tamanho se aproxime das telas
de telefones celulares de última geração, é um livro impresso. As páginas têm
textura, precisam ser manuseadas, exigem uma relação analógica por parte
de quem as acessa. Desse modo, o trabalho propõe certa intimidade entre o
142
leitor e o conteúdo. Ao invés de trabalhar com imagens luminosas e grandes,
que explicitam o conteúdo, optamos por manter as imagens pequenas e com
tonalidades mais escuras.
O pouco que resta da identidade desses retratos anônimos é tratado
com certa reserva, como se o livro buscasse antagonicamente devolver a
possibilidade de privacidade aos retratados. Afinal, essas são imagens feitas
no espaço público, apresentadas em livro, sem a anuência dos retratados,
ainda que, caso os encontrássemos, muito provavelmente continuaríamos
sem reconhecê-los. Todavia, esses pequenos retratos permitem uma relação
de proximidade com seus corpos anônimos, tornados tipos humanos. Uma
proximidade distinta da aproximação física entre corpos no momento do ato
fotográfico, que se dá em frações de segundo, tão rápido quanto a exposição
para a captura da imagem.
Diferentemente da temporalidade e da espacialidade próprias do
ato fotográfico em si – a presença física do fotógrafo e dos transeuntes nos
terminais superlotados com seus cheiros, sons, temperaturas, a velocidade
dos transeuntes e a captura de imagens em frações de segundo –, o livro
como suporte fotográfico permite diferentes entradas e tempos para a leitura.
Certamente tal consideração vale para qualquer livro, independentemente do
tamanho. Mas essas imagens em particular tendem a requisitar alguma atenção a fim de serem minimamente compreendidas em forma e conteúdo. São
fotografias que por vezes resultam em manchas coloridas, sem formas muito
reconhecíveis; imagens que retratam corpos fragmentados, em movimento,
que mesmo quando mostrados no primeiro plano, se misturam com o entorno.
Assim, o livro permite outra experiência com a cidade e seus transeuntes, em escalas e tempos distintos de aproximação, conforme quem o folheia. Corpos que sequer, de fato, foram vistos durante a captura da imagem
agora podem ter suas fotografias vistas com vagar, ainda que estas sejam
fragmentos, recortes. As imagens nos dão a ver algo, mas o que grita nessas
fotografias é a incompletude, o que falta, o anônimo dentro e fora da imagem.
Outro aspecto relevante é a diagramação das fotografias em página
dupla, a qual secciona cada imagem em duas partes. Se a fotografia já traz
em si a ideia de fragmento e recorte, sua diagramação no formato livro pode
acentuar tal aspecto. Aqui o que temos são imagens que, além de preencherem todo o espaço da página, são seccionadas pelo próprio suporte ao
serem impressas em páginas duplas. Assim, cada página, elemento que poderíamos chamar de unidade mínima que compõe o livro, apresenta sempre
o fragmento de uma imagem que só se completa na página ao lado. Desse
modo, cada unidade mínima do livro traz um fragmento de imagem que pode
ser visto isoladamente, possibilitando outros reenquadramentos, relações
com a imagem e suas partes.
A decisão de dispor as imagens de modo a ocuparem toda a página,
sem nenhum tipo de emolduramento que graficamente as contenha no papel,
tem a intenção de explicitar ainda mais o recorte produzido pelo enquadramento da fotografia. Com isso, chamamos a atenção para o fato de que a
imagem que vemos na página é sempre uma seleção, um fragmento, fruto de
uma escolha do que mostrar e não mostrar. Ou seja, sempre há o que não
foi fotografado, o que está para além do campo de visão, do enquadramento
fotográfico, o chamado extracampo.
Em Sobre o anonimato vemos recorrentemente, no primeiro plano
das imagens, corpos fragmentados, seccionados pelas margens do próprio
enquadramento, num recorte materializado nas páginas impressas. A fragmentação dos corpos no primeiro plano das fotografias, tão próximos que não
cabem na mirada, nem na página do livro, remete a esse corpo a corpo da
multidão na cidade, a essa proximidade quase despudorada entre corpos que
se desconhecem, mas se atravessam entre um ônibus e outro. Assim, o livro
impresso – ou a experiência de folheá-lo –, ao mesmo tempo em que explicita
a bidimensionalidade das fotografias, materializa essas imagens fragmentadas, seccionadas, e de certo modo, continuamente incompletas.
Há também o uso não convencional do picote, tipo de acabamento
comum em materiais gráficos, pensado aqui como elemento estético e conceitual. A inserção de linhas picotadas nas páginas do livro cria mais uma camada de fragmentação das imagens e dos corpos retratados. Esteticamente
o posicionamento das linhas picotadas cria nas páginas uma grade ortogonal,
semelhante às linhas perpendiculares das telas dos dispositivos fotográficos
atuais, que pretendem auxiliar no enquadramento e na composição das foto-
grafias. Esse mesmo elemento gráfico remete ainda a ferramentas de traço
e enquadramento cartográficos, disponíveis nos diversos aparatos e tecnologias de mapeamento. Além de segmentar as imagens, as linhas picotadas
permitem que partes distintas das páginas sejam destacadas ou dobradas,
o que potencializa inúmeras variações de corte e dobradura, de modo que
quem folheia o livro pode interferir fisicamente no processo.
As páginas picotadas permitem dobraduras e recortes que segmentam imagens panorâmicas, o que reforça o quanto a temporalidade e a espacialidade da cidade são de fato temporalidades e espacialidades, no plural,
multifacetadas, constituídas de inúmeras camadas, atravessamentos, imbricações, encontros, desencontros, acasos, imprevistos e improvisos. Desse
modo, o picotado, ao interferir na experiência de folhear o livro de fotografia,
aponta para certos aspectos potencialmente presentes em nossa experiência
citadina nos terminais: a fragmentação, a incompletude, a incapacidade de
capturar sensorialmente, em qualquer nível de integridade, corpos que nos
passaram, atravessaram, que ordinariamente vemos, ouvimos, cheiramos,
até mesmo tocamos por frações de segundos e são esquecidos para darem
lugar a outros tantos, também fadados ao esquecimento. É esse mesmo objeto, o livro de fotografia, que na materialização de, ao menos, algum tipo de
imagem, produto visual dessa experiência, ganha certa autonomia e passa
a existir como objeto cultural, estético e político no mundo, potencialmente
capaz de promover ou provocar outras tantas experiências citadinas.
O livro traz, numa sequência de 60 páginas, fotografias dispostas em
páginas duplas, sempre preenchendo toda a extensão da página. As únicas
páginas com texto aparecem ao final e se resumem a listar informações de
cunho técnico como ficha catalográfica, ficha técnica e dados sobre fonte e
papel usados na publicação. Todas as imagens no livro são fotografias de
recortes de rostos e corpos de transeuntes nos terminais rodoviários intermunicipais, capturadas em enquadramentos semelhantes entre si.
A estrutura narrativa do livro não se baseia num modelo de narrativa
clássica, que em linhas gerais seguiria a seguinte ordem: “[...] introdução das
personagens, os temas e a situação; [desenvolvimento] finalmente atingindo
o clímax. No final, tudo é resolvido e amarrado” (FREEMAN, 2014, p. 12).
143
Nossa intenção é que o trabalho ganhe corpo pelo acúmulo, pela serialidade
das imagens, até mesmo por certa monotonia, sem que uma ou outra fotografia sobressaia. Fotografias feitas em terminais distintos, em datas distintas,
são oferecidas sem legendas, de modo que o conjunto das imagens assume
uma coerência própria. Semelhantemente à montagem cinematográfica, as
imagens sugerem uma continuidade estabelecida pela própria estrutura do
livro, ou seja, a sequência página por página. O conjunto constrói um vaivém
de transeuntes anônimos, que se cruzam numa velocidade sugerida pelo
desfocado das imagens e pelo movimento congelado dos corpos nas fotografias. No entanto, optamos por inserir alguns ruídos, certa interferência na
cadência e na sequência inicialmente pensadas.
Tais intercorrências estão postas no começo e no fim do livro, além
de se inserirem em pontos aleatórios do conjunto. A saber: as três primeiras
imagens (1, 2 e 3 de 30) reaparecem na ordem inversa e com enquadramentos distintos, como sendo as três últimas do livro (28, 29 e 30 de 30); a
imagem 2 de 30 é ainda, com outro enquadramento, a imagem 19 de 30; as
imagens 7, 15 e 23 de 30 são enquadramentos distintos da mesma fotografia.
Assim, algumas personagens surgem mais de uma vez nas páginas
do livro, como transeuntes que vêm e vão e reaparecem por entre a multidão.
Permanece a possibilidade de que repetição passe desapercebida, exatamente pela própria recorrência temática e formal do conjunto e pelo fato de
as imagens serem reapresentadas sempre com alguma variação de enquadramento – são as mesmas personagens e os mesmos arquivos fotográficos,
mas não exatamente o mesmo recorte. Por refletirem os mesmos instantes
de captura da imagem, essas imagens repetidas destoam da cronologia linear, inserem incertezas – seria o reaparecimento das personagens flashback ou déjà vu? Repetições e variações que se tensionam e se problematizam
mutuamente, como as tantas pequenas variações que permitem entradas e
experiências distintas e singulares tanto no livro como na cidade.
Como aponta Alexandre Emerick Neves, em texto crítico no qual
aborda o livro Toquiotas 57: “[...] na forma-livro reside certa similaridade com
57 Toquiotas, publicado em 2015 pela Editora Usina de Imagem, é um livro composto por fotografias noturnas feitas nas ruas da cidade de Tóquio por Tom Boechat, autor desta tese, e por contos de Elton Pinheiro,
144
a cidade em sua potencialidade de solicitar uma infinidade de percursos que
possibilitam experiências singulares” (NEVES, 2016, p. 249).
Entendemos, portanto, que essa narrativa não linear de deslocamento adotada no livro – um fim que retorna ao começo, assim como a repetição
de certas personagens em outros pontos da sequência –, subverte a noção
de que as personagens necessariamente saiam de um ponto a outro no mesmo tempo e espaço, o que aponta para múltiplos entendimentos da cronologia e da espacialidade das personagens.
Herbert Farias e Marcia Lahtermayer, escritos a partir das imagens. O livro conta ainda com prefácio de Luiz
Guilherme Santos Neves e posfácio de Alexandre Emerick Neves.
CONCLUSÃO
Trago aqui um texto com traços autobiográficos a fim de destacar
algumas das compreensões que me chegaram graças à pesquisa de doutorado tratada nesta tese. Em inúmeras conversas sobre o processo de pesquisa com Simone Neiva – minha companheira de vida há mais de duas décadas –, amigos de longa data, como Bruno Zorzal, Humberto Capai e Tony
Queiroga, e meu querido amigo e colega de doutorado Rafael Fafá Borges,
sempre identifiquei um denominador comum: o doutoramento, para além de
aprofundar questões específicas de determinada pesquisa, possibilita que o
pesquisador alicerce certa prática de pesquisa, consolidando uma “ética de
trabalho”, como diz Zorzal.
Concomitantemente ao aprofundamento das questões desenvolvidas
na tese, este foi um dos aprendizados construídos na pesquisa: a capacidade
de se debruçar sobre um tema – num limitado campo de estudo, é certo – e
produzir um texto capaz de concatenar ideias e entendimentos do mundo,
que até então me eram desconhecidos. Claro que com a devida disciplina,
nas devidas condições e sob uma atenta orientação. A pesquisa não é unicamente fruto do esforço imprescindível do pesquisador. Assim como as obras
de arte, também ela pode ser entendida como objeto da cultura na qual está
inserida; assim como o artista, o pesquisador é uma individualidade construída e atravessada pela coletividade. Em particular, devo imensamente ao
Grupo de Pesquisa Rasuras pelas trocas, sugestões de bibliografia e aprendizado com a pesquisa de cada membro.
Mas para além da academia, a escrita desta tese disseminou-se,
fundindo-se a praticamente todas as facetas da vida do autor. A pesquisa
afetou e foi afetada pela vida: o cotidiano, as relações familiares, o convívio
com os amigos e amigas, desde os afazeres mais mundanos e seculares às
questões mais íntimas e complexas. Daí eu abordar, nesta conclusão, uma
questão que ultrapassa os temas trabalhados na tese, mas atravessa a pesquisa. Deparei-me com essa questão mais explicitamente por meio de Massey, para quem “[...] a teoria surge da vida” (MASSEY, 2008, p. 16). Passei
então a notar essa associação direta entre vida cotidiana e pesquisa também
a partir de outras perspectivas.
No diálogo com a Geografia encontrei textos que apontam para o aspecto ficcional das narrativas hegemônicas. Além de explicitar a construção
por trás desses discursos, tal argumentação propõe que nosso entendimento de mundo é composto igualmente por narrativas notadamente ficcionais,
presentes na literatura, no cinema e nas artes visuais, entre outras tantas linguagens artísticas. Nesse sentido, as narrativas históricas, as factuais, as declaradamente pertencentes ao campo das ciências, são dispostas em pé de
igualdade com narrativas entendidas como subsumidas ao campo das artes.
É a partir desse raciocínio que leio o diálogo de Queiroz Filho com
Manuel de Barros, ao se permitir “esticar horizontes” geográficos e igualmente poéticos. Ambos, cada um a seu modo, extraem da vida suas pesquisas,
em suas escritas, poesias, éticas e ficções. Esse modo de se relacionar com
o mundo, mais especificamente com a pesquisa, impactou-me como um curto-circuito no que eu pensava serem as regras acadêmicas. “– E pode isso?”,
lembro-me de ter perguntado retoricamente nas primeiras leituras. Eventualmente, em algum momento de minha própria escrita, desabafei em tom de
quase pavor numa conversa com o orientador e Rafael Fafá Borges: “– Mas
eu não consigo escrever assim, como vocês. É tudo tão poético!”
De volta a Massey, surpreendi-me com o modo como ela consegue
tecer uma trama tão densa e ao mesmo tempo atraente, ao discorrer sobre
espacialidades e globalização a partir de uma relação pessoal com as ruas
de seu bairro. Assim como Cosgrove58 o faz ao relatar uma ida ao mercado
local para argumentar que a Geografia está em toda parte; ou Massimo Canevacci59, ao tratar da cidade polifônica a partir de sua estada em São Paulo,
no episódio tão ordinário quanto assustador de ficar sem dinheiro logo na
chegada a uma grande cidade, num país estrangeiro.
58 O texto específico não foi citado na tese, embora faça parte do levantamento bibliográfico feito durante a
pesquisa. COSGROVE, Denis. A Geografia está em toda parte: cultura e simbolismo nas paisagens humanas.
In: CORRÊA, R. L. e ROSENDAHL, Z. (orgs.) Paisagem, tempo e cultura. Rio de Janeiro: Editora Uerj, 1998.
59 O autor não é citado na tese, ainda que a leitura de seu livro A cidade polifônica faça parte do levantamento bibliográfico feito durante a pesquisa. CANEVACCI, Massimo. A cidade polifônica: ensaio sobre a
antropologia da comunicação urbana. São Paulo: Studio Nobel, 2004.
145
Foi por meio dessas histórias, em seus ordinarismos, que percebi o
quanto minha própria pesquisa surgiu da vida. Que a relevância desta pesquisa não se deve apenas à grandiosidade da obra de um dos maiores nomes da fotografia mundial do século XX, em sua construção de imaginação
espacial e participação numa certa política espacial das imagens. Sobretudo,
compreendo hoje que a pesquisa ganha relevância também porque surge
da vida do pesquisador, de meus questionamentos pessoais sobre como a
fotografia se relaciona com o mundo que nos cerca e no qual vivemos, ao
mesmo tempo em que o constrói; e ainda porque surge da vida das pessoas
fotografadas por este autor e daquelas fotografadas por Evans. Pessoas que,
como Rancière aponta, finalmente alcançam a possibilidade de serem tratadas pelo campo da arte, aqui num diálogo com a Geografia, não por serem
grandes nomes da história oficial, mas por terem o estatuto do qualquer um;
ou como Evans diria, não por serem juízes, senadores ou banqueiros, mas
exatamente as senhoras e senhores do júri.
146
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