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cinema japonês filmes, histórias, diretores João Lanari Bo Julho 2016 1 Apresentação pag 3 Inventando o cinema e reinventando o Japão: século 19 e Hiroshima pag 4 Cinema na ocupação: 1945-52 pag 24 Anos 50 e além: os Clássicos pag 53 Anos 60 e antes: Rebeldia e Nouvelle Vague pag 91 Anos 70 e 80: “Pinku Eiga” e Política pag 130 Anos 90 e 2000: Bolha econômica e século 2I pag 170 Pósfacio pag 205 Livros consultados pag. 207 Glossário pag. 210 Índice de filmes e diretores pag. 212 2 Apresentação O panorama dessa história cinematográfica é naturalmente amplo, o que obriga sem escapatória a uma seletividade. Não se pretende aqui, por óbvio, o esgotamento do tema, muito menos a formulação de um conceito totalizante que supostamente explique o que é o “cinema japonês”. O projeto do presente texto é o de propor uma navegação, no sentido digital do termo, nesse imenso patrimônio audiovisual, uma navegação sujeita a lacunas mas sempre disposta a conectividades. E que se beneficia, por um lado, da acessibilidade proporcionada na era da internet, onde tal patrimônio está (cada vez mais) ao alcance de um clique; e, por outro, da rica e estimulante bibliografia disponível sobre o assunto, sobretudo em língua inglesa. O objetivo é encorajar novas audiências a mergulhar nessa virtualidade sedutora que emana do território cinematográfico japonês. Ao final do texto, consta um índice específico de todos os filmes e diretores citados, assim como dos livros sugeridos para deleite posterior. Consta igualmente um pequeno glossário de termos e acrônimos japoneses. Quando não houver título do filme em português, utiliza-se versão em inglês. E os nomes próprios foram arrolados na ordem empregada no Japão, com o sobrenome na frente (Kurosawa Akira, em vez de Akira Kurosawa). Alguns poucos parágrafos aqui publicados, sobre Naruse Mikio e Ozu Yasujiro, apareceram anteriormente em artigos do autor na revista Devires e no jornal Correio Braziliense. Foram reciclados para a presente publicação. 3 Capítulo 1 Inventando o cinema e reinventando o Japão: século 19 e Hiroshima Sakamoto Ryoma era um samurai de categoria inferior, que circulava no Japão convulsionado pela abrupta transição do feudalismo para a monarquia constitucional. Enquanto completava sua formação de espadachim em Tóquio, em 1854, o Comodoro Mathew Perry dos Estados Unidos apontava os canhões de sua frota para a capital forçando a abertura dos portos japoneses. A política de isolamento nacional, que durou dois séculos e meio, começava a desmoronar. Durante esse período, ninguém, estrangeiro ou japonês, poderia entrar ou sair do Japão sem autorização. A punição era a pena capital. Sakamoto Tinha 18 anos. Todos os testemunhos dão conta da sua estupenda habilidade marcial. Além disso, era dotado de uma impressionante visão estratégica, que se revelou fundamental para o futuro de seu país. Nos filmes de época japoneses, os “jidaigeki”, Sakamoto aparece em geral com cabelos longos, estilo “hippie” e meio parecido com Jesus Cristo, um samurai contemplativo e não-violento. Seu lance de gênio foi ter percebido, diante da potência bélica dos americanos e do atraso tecnológico da defesa japonesa, que a “melhor maneira de combater os bárbaros era aprender seus truques”. Em tempos de extremismos, esta era uma posição perigosa. Aliou-se a outras personalidades e passou a viver sob alto risco, na atmosfera contaminada pela fragmentação do xogunato Tokugawa. Fanáticos pró-Imperador manobravam para tomar o poder e repelir os “bárbaros”, por um lado, e milícias pró-xogum se articulavam para manter o poder, por outro. Sakamoto estudou também as Constituições democráticas ocidentais, e rascunhou em 1867 um “Programa de oito pontos para um novo governo”. 4 O samurai participou também das complexas negociações que levaram à renúncia do Xogum em 1867. Nesse mesmo ano, foi assassinado em uma pousada em Quioto. Ele e um amigo foram surpreendidos por uma das milícias que perambulava pelo país (até hoje pairam dúvidas sobre a autoria do crime). Mas seu prestígio permaneceu e frutificou. Suas ideias tiveram notável influência na reinvenção política do Japão, a partir do início da era Meiji, em 1868. Cinema e modernidade O Japão é um caso único de evolução histórica e política no final do século 19. A inspiração veio sobretudo de modelos alemães, mas também de ingleses, americanos e franceses. O Imperador durante o Xogunato Tokugawa (1603-1868) era uma mera figura decorativa. Em seguida, passou a exercer o poder moderador. O escritor e cientista político Ian Buruma escreveu um curto e extraordinário livro sobre essa transição, “Inventing Japan”, publicado em 2003. Sua visão é crítica: boa parte dessa “modernidade” importada do Ocidente seguiu padrões autoritários europeus, devidamente adaptados aos hábitos asiáticos de pensamento. A invenção do cinema coincide com esse período, um dos mais turbulentos e criativos da vida japonesa. Na virada do século, em plena era Meiji, o Japão assimilava rápida e brutalmente não apenas novas tecnologias, mas também uma nova cultura política que rompia com práticas arcaicas. Depois de um período de acomodação permeado de violência, em 1889 o país adota uma constituição inspirada em exemplos ocidentais. “Civilização e Esclarecimento” (“bunmei kaika”, em japonês) foi o mote criado pelo Estado ao final do século 19 para representar (e apressar) essa mudança. A exaltação do xintoísmo como religião de Estado foi uma decisão tomada na nova era, assim como a assimilação de novas técnicas e equipamentos de guerra dos europeus com objetivos não somente defensivos. Uma onda conservadora acabou prevalecendo após a ruptura com o passado feudal. Intelectuais independentes como Sakamoto, se não foram assassinados, acabaram eclipsando-se nesse cenário, apesar do papel que tiveram na fundação do novo Estado. Esse cerceamento, junto com o crescente nacionalismo da elite militar, durou até 1945. 5 Em 1896 o cinema chega ao Japão através dos agentes mais eficientes da época – Edison primeiro, depois Lumière – e logo torna-se um polo de atração, não apenas como diversão popular, como nos demais países, mas como janela do mundo, esse mundo que os japoneses avidamente queriam conhecer. Idades de ouro O principal nome da “nouvelle vague’ japonesa, Oshima Nagisa, polêmico e iconoclasta, identificou no cinema japonês três grandes “idades de ouro”: o período de formação, com destaque para a produção dos anos 20 e 30, sobretudo após o terremoto de Kanto, em 1923, que devastou Tóquio; o grande cinema clássico dos anos 50, simultâneo ao crescimento econômico pós-guerra e à implementação da Constituição “democrática” imposta pelos americanos, em 1947; e o cinema independente, onde se inclui o próprio Oshima e a chamada “nouvelle vague” japonesa, que explodiu nos anos 60, em paralelo a outras agitações. Oshima utilizou essa periodização no documentário que fez em 1995 para celebrar os 100 anos da existência do cinema. Mesmo com todas as instabilidades do século 20, o cinema como setor da indústria de entretenimento no Japão rapidamente fortaleceu-se e exibe hoje um dos mercados mais diversificados e consolidados do planeta. Como disse Jean-Luc Godard, em 1995 tratava-se de celebrar o centenário da primeira sessão paga de cinema, ou seja, do cinema como mercadoria. Realizadores como Kurosawa Akira, Ozu Yasujiro e Mizoguchi Kenji são igualmente “inventores” do Japão moderno. Suas carreiras atravessaram tragédias e renascimentos, do militarismo ascendente a Hiroshima, dos escombros da guerra à prosperidade das décadas do final do século. Cinema e história. Linha do tempo imperial Em 1894 o Japão entra em guerra e ganha da China Imperial da dinastia Qing, no que seria o primeiro passo da expansão nipônica na Ásia. Obtém “em perpetuidade” 6 parte da Manchúria, Taiwan e outros territórios. A Coreia sai da órbita chinesa e tornase um protetorado japonês (será anexada em 1910). A era Meiji refere-se ao Imperador Mutsuhito, nome pouco utilizado, mesmo no Japão: os japoneses preferiam chama-lo simplesmente de “Imperador”, já que ele não tinha sobrenome e permanecia em uma esfera absolutamente reclusa, celestial. Seguindo a tradição, passou a ser conhecido após a sua morte como Imperador Meiji. Oshima estava longe de ser um fiel adepto da reverência imperial, mas a datação histórica que empregou no seu filme recorre, além dos acidentes da natureza, à figura do “soberano dos céus” (significado da palavra Imperador em japonês) para pontuar as fases da produção de seu país. A era Taisho (1912-1926), tida como mais liberal politicamente, marcou a expansão da produção e recepção do cinema japonês. Foi sucedida pela era Showa (1926-1989), do Imperador Hiroíto, este sim, muito conhecido no Ocidente, sobretudo após a Segunda Grande Guerra. O primeiro período de Hiroíto foi militarista e expansionista, culminando na derrota estrondosa de 1945. Em seguida, veio a paz, a desmilitarização e o impressionante crescimento econômico. As sessões de cinema multiplicavam-se com velocidade no país-arquipélago, o público se afeiçoou. Em 1899 Tsunekichi Shibata, fotógrafo experimentado de gueixas e cenas de rua, roda o primeiro filme dramático do cinema japonês, “Maple viewing”. Restam hoje dois minutos e meio desse momento histórico, registro da peça kabuki do mesmo nome estrelada pelo ator Ichikawa Danjuro IX, uma “lenda viva” do teatro. Consta que Ichikawa só aceitou ser filmado pela garantia da sobrevida eterna que sua imagem ganharia na película. E exigiu: o filme só poderia ser exibido após a sua morte. Convencido, permitiu apenas uma tomada, feita em um palco no parque Ueno, em Tóquio. No meio do plano o vento levou o leque de Danjuro, que não se abalou. Onnogata O salto internacional do Japão confirmou-se com a vitória sobre a Rússia, em 1905, a primeira de um país fora do eixo eurocêntrico contra uma potência estabelecida. 7 O conflito foi registrado pelos cinegrafistas japoneses, que viajaram à Manchúria e Coreia para filmar o drama dos combates. Logo estourou a Primeira Guerra Mundial, e ao final as posses japonesas aumentaram, graças à participação na aliança contra a Alemanha. Além de algumas ilhas, a cidade de Qingdao, no litoral norte da China, passou para o Império nipônico. Por volta de 1914, informa Donald Richie, o cinema já era um “big business” no arquipélago. A guerra na Europa terminou também favorecendo a indústria cinematográfica, ao estimular produção local para substituir produtos europeus. Nos primeiros anos do cinema, na década que começa em 1900, foi inevitável a assimilação de técnicas teatrais de representação, em todos os quadrantes do globo. No Japão, o rico repertório do teatro kabuki se impôs de início, com suas convenções e estilo próprio, cheio de ênfases dramáticas artificiais e estilizadas. Papéis femininos no kabuki pertencem aos homens, devidamente maquiados, conhecidos como “onnogatas”. A progressiva hibridização cultural, resultado da abertura para o Ocidente, levou pouco a pouco à adoção de um maior “realismo” nos enredos e nas técnicas de representação. A acomodação ocorreu com velocidades peculiares - no cinema, mulheres só começaram a receber crédito de papéis principais em 1919 - e estilos intermediários, como o “shimpa”, mescla de kabuki e situações contemporâneas, típica solução de compromisso da era Meiji. Muito da farta produção de Mizoguchi na década de 20 era “shimpa”, como “A Marcha de Tóquio”, de 1929, incrível e melodramático triângulo amoroso entre uma gueixa e dois pretendentes. Nem tudo, entretanto, era “shimpa” ou “jidaigeki”. “Souls on the road”, de 1921, dirigido por Murata Minoru, é um belo exemplo de assimilação e arrojo. Inspirado no realismo poético de Máximo Gorki (“Ralé”) e influenciado por D.W. Griffith, com closes e montagem alternada, é um clássico, usualmente citado como um marco de renovação dramática no cinema japonês. Realismo e realidade 8 Donaldo Richie, o decano dos especialistas ocidentais na cultura audiovisual japonesa, lembra a novidade que foi a ideia de “realismo” introduzida com a abertura na segunda metade do século 19. Dramas, no Japão, sempre necessitaram de estruturas criadas através de mediações, de artificialismos que viabilizassem a recepção do “natural”. O mecanismo é semelhante em várias instâncias: jardins e flores, por exemplo, devem ser rearranjados para permitir a fruição de plantas e florestas “naturais”. No Ocidente, o público assume a realidade do que está sendo mostrado, enquanto que no Japão a tendência é a presença de uma voz legitimadora que garanta o “realismo” de cada particularidade. O “shimpa” inclui-se entre as mediações estilísticas utilizadas no teatro e no cinema. Outra mediação é o “benshi”, narrador e intérprete de filmes mudos, figura bastante popular, seja narrando cinejornais, interpretando papéis masculinos ou femininos, crianças e velhos, ou simplesmente contando histórias. O “benshi”, junto com acompanhamento musical, agregava uma dimensão sonora que em si mesma era uma atração. Em 1930 existiam em todo o país, aproximadamente, sete mil “benshi” ativos, para cerca de 1.300 salas de cinema. A narração da obra-prima do expressionismo alemão “O gabinete do Dr. Caligari”, de 1919, exibido com grande sucesso no Japão, virou um bem sucedido disco de 78 rpm. A passagem para o cinema sonoro foi lenta e traumática. Piquetes de “benshi” foram organizados na porta das salas que aderiram à nova tecnologia (mais “realista”, sem dúvida). Ozu só foi dirigir uma cena com diálogos falados em 1936, no magnífico “Filho único” (a primeira produção sonora japonesa, “The Neighbor's Wife and Mine”, de Gosho Heinosuke, é de 1931). A partir de 1936, os principais estúdios não produziram mais filmes sem pista sonora. Pequenos produtores, não obstante, continuaram a fazêlo: em 1937 foram registrados 137 filmes mudos, feitos para um setor específico (e recalcitrante) do público. Uma página de loucura Em todo o mundo, a maior parte da produção das primeiras décadas do cinema se perdeu. Desinteresse comercial, arquivos precários e alta combustão da película são 9 associados a essa perda, mas no Japão é pior: terremotos e bombardeios norteamericanos também deixaram sua marca. Especialistas mais céticos sugerem que apenas um por cento dos filmes feitos nos 20 ou 30 anos iniciais tenha resistido. “Uma página de loucura”, de 1926, é uma eminente exceção. Dado como perdido, foi encontrada em 1971 uma cópia enterrada no jardim do realizador, Kinugasa Teinosuke. Feita a restauração e edição com acompanhamento de Kinugasa, veio à tona um verdadeiro diamante. “Uma página de loucura” revelou-se um surpreendente filme, cheio de contrastes, imagens distorcidas, sobreimpressão, fusões, montagem rápida e outras técnicas da melhor vanguarda europeia. Um filme que transcende polarizações entre estilo “shimpa” e “realismo”, pela ousadia formal e sintonia universal, visceralmente distinto da produção serializada que se caracterizava, já nessa época, o cinema no Japão. Kinugasa começou como ator e fez mais de cem filmes como “onnogata” até começar a dirigir, em 1923. Assistiu cinco vezes “A última gargalhada”, de F. W. Murnau, e (re)descobriu as possibilidades da linguagem. “Uma página de loucura” foi uma produção independente, rodada no estúdio da Sochiko, tendo como colaboradores, entre outros, o grande escritor Kawabata Yasunuri. A narrativa segue um marinheiro aposentado que se emprega como porteiro no hospício onde está internada sua mulher, depois de tentar afogar o filho. As imagens oscilam entre realidade e o tríptico da invisibilidade - sonho, imaginação e memória. Dois anos mais tarde, em 1928, Kinugasa realiza “Encruzilhada”. Um jovem apaixonado e temporariamente cego atravessa desventuras em Yoshiwara, o distrito do prazer em Tóquio na era Tokugawa. Socorre-o a irmã, que se prostitui para pagar o tratamento. O diretor viajou a Moscou e exibiu o filme para uma plateia seleta, incluindo Eisenstein e Pudovkin. “Encruzilhada” foi distribuído a seguir em capitais europeias e Nova York. Ao final da vida, Kinugasa tinha dirigido um total de 116 filmes. Democracia e Terremoto 10 O Imperador Taisho (seu nome era Yoshihito) tinha uma saúde frágil, física e mental. Teria sofrido meningite logo após o nascimento, ou sido vítima de envenenamento pela ama-de-leite. O próprio pai duvidava da sua capacidade. Reinou até 1921, quando um incidente na abertura anual dos trabalhos parlamentares convenceu a classe política que não dava mais. O Imperador, que normalmente sentavase em um local elevado, acima do plenário, levantou-se no meio da sessão, enrolou uma folha de papel e passou a mirar os presentes, como se fosse uma luneta. Em 1921 cedeu a regência a seu filho, Hiroíto. Faleceu em 1926. Os pouco mais de dez anos que permaneceu como Imperador ficaram conhecidos, depois da Segunda Guerra Mundial, como “Democracia Taisho”. Ou seja, um hiato histórico entre a era Meiji, contaminada pelos resquícios do feudalismo, e a era Showa, dominada, até 1945, pelo militarismo expansionista. Sindicatos mais atuantes, novos procedimentos parlamentares, liberdade nos negócios e até algum debate sobre o posicionamento da mulher na sociedade caracterizaram o período. Em 1918, pela primeira vez um cidadão comum não-aristocrata, Hara Takashi, tornou-se Primeiro-Ministro. Mas o governo acabou naufragando na alta inflação e incapacidade de superar entraves políticos. Hara foi assassinado em 1921 por um ferroviário desiludido. O novo ambiente político influenciou o cinema, facilitando a ampliação de temas e a absorção de técnicas dos filmes importados. Griffith e Ernst Lubitsch, entre outros, faziam sucesso (“Intolerância”, de 1916, foi um acontecimento). O terrível terremoto de Kanto, em 1923, entretanto, deixou marcas ainda mais profundas. Ao arrasar estúdios e salas de exibição em Tóquio, obrigou a indústria a uma retomada radical, com a adoção de novas estratégias de administração e planejamento. A capital especializou-se nos “gendaigeki”, dramas contemporâneos do mundo moderno. A produção de “jidaigeki”, filmes de época, ficou em Quioto. Os historiadores estimam que a partir de 1928 o Japão tenha se tornado um dos maiores produtores de filmes por ano do mundo, equiparável aos Estados Unidos. Ozu Yasujiro 11 Kido Shiro assumiu a direção de produção dos estúdios Shochiku, no início dos anos 20, logo depois do terremoto. Para ele, o “shimpa” era limitado a um código moral pré-estabelecido, incapaz de descrever “pessoas reais”. Sob sua orientação um punhado de brilhantes diretores encontrou espaço para experimentar temas mais próximos do cotidiano do público, de preferência contando histórias “alegres e esperançosas”. Um deles, Ozu Yasujiro, entrou para a empresa na mesma época, para trabalhar como assistente de câmera e direção. Em 1927 dirigiu seu primeiro longa, hoje perdido, “Sword of Penitence”, um “jidaigeki” (22 dos 34 filmes que realizou até 1936 também não existem mais). A partir de 1930, encontra seu filão artístico no estilo “vida moderna”, conforme definido por Kido (o produtor achava Ozu um “tipo engraçado”, de acordo com o diretor). E em 1932 ganha pela primeira vez o prestigiado prêmio de melhor filme do ano da revista “Kinema Jumpo”, com “Meninos de Tóquio”. Repetiria a façanha em 1933 e 34, com “Passing fancy” e “Uma História de Ervas Flutuantes”, o único diretor a ganhar três anos seguidos. Embora não tenham feito uma excepcional bilheteria, a crítica gostou, e Kido também. A insistência do produtor no enfoque “positivo” do conteúdo das histórias esbarrou na crise econômica que varreu o globo nos anos 30, desencadeada pela quebra da Bolsa de Wall Street, em 1929. Ozu, que tinha atuado como assistente de Okubo Tadamoto, especialista em comédias “nansensu” (estilo farsesco exagerado) na Shochiku, encontrou no gênero comédia com tintas sociais a fórmula perfeita. Histórias de desempregados classe média, como “Coral de Tóquio”, de 1931, podiam ser contadas com humor, além, é claro, de uma ágil e arejada direção de fotografia Shigehara Hideo, colaborador fiel de Ozu - e um roteirista sutil como Noda Kogo, parceiro da maioria dos trabalhos do diretor. I was born, but... A formula encontrada permitiu mesclar rigor com galhofa e diversão. O rigor exprime-se pela imagem limpa e transparente, em uma palavra, moderna. Rigor que coincide, também, com o gosto estético japonês de linhas puras. A diversão fica por 12 conta das situações, do humor leve. Organizar tudo isso em composições visuais requintadas, com poucos movimentos de câmera, era uma habilidade que Ozu rapidamente aperfeiçoou. E sempre aberto a inspirações, de Okubo Tadamoto às comédias de Lubitsch. Okubo, aliás, considerava-se um diretor de “filmes vulgares”: Ozu incorporou esse espírito despojado e bem humorado à sua verve autoral. “Meninos de Tóquio” é uma comovente fábula sobre desigualdades hierárquicas e transmissão de valores familiares, contrapondo um mundo infantil galhofeiro com a subordinação humilhante do pai assalariado. O ponto de vista é das crianças, mas o mundo é adulto. “Passing fancy” desenvolve o personagem Kihachi Kimura, representado pelo grande ator Sakamoto Takeshi, um tipo “teimoso mas de bom coração”. Kihachi iria comandar mais dois filmes, “Uma História de Ervas Flutuantes” e “Uma Estalagem em Tóquio”, de 1935. O personagem é tirado de um conhecido real de Ozu. Seja operário, como em “Passing fancy”, diretor de trupe kabuki, em “Uma História de Ervas Flutuantes”, ou desempregado, em “Uma Estalagem em Tóquio”, de 1935, Kihachi capta a audiência com seu comportamento ligeiramente contraditório e emotivo, sempre sincero. Cortes rápidos e secos, elipses eficientes na narrativa, ausência total de fades-in e fades-out (Ozu abominava) e a descoberta que se tornaria sua marca registrada – câmera em posição baixa, útil para filmar nas casas japonesas – consolidaram sua posição na indústria. “Filho único”, de 1936, anuncia a maturidade do diretor no seu grande tema, a família e as forças diluidoras que a afetam. Os famosos planos de transição, os “planostravesseiros”, suturam a narrativa melancólica. Em uma cena, o filho, já adulto e residindo em Tóquio, leva a mãe para assistir “Lover divine”, produção alemã de 1933 – “este é o cinema falado”, sussurra. Na sua casa, uma foto de Joan Crawford ilumina a parede. Ele, no entanto, fracassou, é apenas um professor secundário, contrariando os desígnios da mãe, que sacrificou tudo pelo seu futuro de “grande homem”. Ao final, prevalecem o caráter e a generosidade. 13 A guerra privada A década de 30 foi turbulenta no Japão. A tentativa de golpe em 26 de fevereiro de 1936 por militares extremistas, em nome de uma hiperbólica lealdade ao Imperador, gerou assassinatos de autoridades e posterior execução de 19 pessoas, mais três que cometeram suicídio. Muitos dos golpistas foram para a Manchúria. Embora frustrado, o golpe acarretou o enfraquecimento dos partidos políticos e o consequente domínio os militares na política, sob o olhar benevolente do Imperador. Os japoneses já haviam se estabelecido na Manchúria, norte da China, desde 1931. De forma teatral, abandonaram a Liga das Nações em 1933, recusando-se ao julgamento de sua política expansionista pela entidade. Em julho de 1937, no pífio episódio que ficou conhecido como o “incidente da ponte Marco Polo”, sentiram-se autorizados a invadir o resto do imenso território chinês. Pouco tempo depois, ocorreu o massacre de Nanjing, que durou seis semanas a partir de dezembro daquele ano, e aniquilou entre 200 e 300 mil pessoas. Vários dos principais perpetradores foram julgados e executados após a guerra. Ozu Yasujiro foi convocado em setembro de 1937 e partiu para a China. Tinha 34 anos. Começou como cabo e foi promovido a sargento, tendo participado de batalhas na região de Wuhan, capital da província de Hebei. Sua unidade era especializada em armamentos químicos. Foi nesse cenário que aprofundou a amizade com outro excepcional realizador, Yamanaka Sadao, que veio a falecer em 1938 no front, vítima de pneumonia. “Jidaigeki” e sociedade Peter High, historiador norte-americano que escreveu um denso e informativo livro, “The Imperial screen: japanese film culture in the fifteen year’s war, 1931-1945”, não hesita: para ele, o “jidaigeki” produzido no Japão no fim do período mudo supera em qualidade o “western” que se fazia em Hollywood. Um diretor como Ito Daisuke, que conjugava uma inovadora mobilidade de câmera com montagem acelerada, foi pioneiro. Seu filme “A Diary of Chuji's Travels”, de 1927, dado como perdido mas parcialmente recuperado em 1991, descreve as decepções e agruras de um samurai 14 traído pelos pares. Seus heróis são solitários e niilistas, seguindo a onda dos “filmes de tendência” - inclinados à crítica social e sintonizados com os receios da época. Apenas três longas-metragens completos restam da obra de Yamanaka Sadao, entre eles o esplêndido “Humanidade e Balões de Papel”, de 1937. Uma direção minimalista e socialmente consciente fez com que esse “jidaigeki” se aproximasse dos anseios da audiência moderna. Um dos personagens é um samurai desempregado, que insiste em obter novo posto com um alto burocrata, sendo rechaçado e humilhado. A “favela” em que reside é descrita nos detalhes de cada particularidade, um neorrealismo “avant la lettre”. O resultado é incrivelmente eficaz, visto com olhos contemporâneos. Uma obra-prima. Em “The Million Ryo Pot”, de 1935, o tom é de comédia, mas sutilmente pervasivo. Sua morte prematura foi uma perda para o cinema japonês. Mizoguchi Kenji A suposta cessão da irmã pelo pai para uma casa de gueixas – possível origem do seu desprezo pelos personagens paternos – é o traço biográfico marcante de Mizoguchi. A irmã tornou-se amante de um Visconde, provendo sustento para o resto da família, na penúria depois do fracasso do pai em vender capas para o Exército na guerra com os russos. Mulheres que se sacrificam pelos homens é um drama “shimpa” por excelência. Começando a trabalhar depois dos vinte anos, um pouco tarde, Mizoguchi conciliou uma portentosa vida boêmia com uma invejável capacidade de trabalho. Foram mais de 40 produções nos anos 20, a quase totalidade perdida. A segurança de mise-en-scène que acumulou é evidente em a “Feiticeira das águas”, de 1933, e “A Perdição de Osen”, de 1935, melodramas que exploram sem medo os limites plausíveis e não plausíveis da emoção, puro “shimpa”. Osen, a heroína, sacrificou tudo pela educação do estudante de medicina que encontrou à beira do suicídio, mas terminou sifilítica e incapaz de reconhecer o próprio protegido, anos mais tarde. No transe da loucura a representação torna-se, inesperadamente, realista. 15 Em 1936, um par de filmes raros e singulares: “Elegia de Osaka” e “As Irmãs de Gion”, ambos com Yamada Isuzu no principal papel feminino (mesma atriz de “A Perdição de Osen”). A despeito da força interior, as mulheres sofrem, a sociedade é injusta. No primeiro, é repudiada pelo irmão mesmo tendo sustentado seus estudos. No segundo faz uma gueixa com diploma universitário, que acaba pagando caro pelas artimanhas. Cenografia e iluminação brilhantes, além da alternância de longos planos estáticos com os famosos travellings, permitem ao diretor manobrar em um espaço intermediário entre o “shimpa” e o “realismo”, entre o interior e o exterior dos personagens. Um acerto de calibragem dramática. “Crisântemos Tardios”, de 1939, é um dos melhores trabalhos de Mizoguchi. Teatro e cinema compartilhando o espaço dramático, um palco para experimentações de linguagem que o diretor iria aperfeiçoar nos anos 50. Um “onnogata”, herdeiro de linhagem kabuki, sente-se inseguro pelas performances teatrais: abandona a proteção do pai adotivo, e vai para Osaka, em seguida parte em tournée. O ano é 1888. Acompanha-o a fiel companheira, de status social inferior, a única que havia ousado critica-lo. Dedicação e sacrifício total, qualidades que agradavam as autoridades em tempos de guerra. Ao fim, ele (Hanayagi Shotaro, belíssima atuação) retorna triunfal a Tóquio e ela morre de tuberculose. Imperdível. Sr. Obrigado De Shimizu Hiroshi, seu amigo Ozu dizia que simplesmente não conseguia filmar como ele. Mizoguchi, por seu turno, falava que ele e Ozu conseguiam produzir filmes depois de trabalhar duro, mas Shimizu produzia com facilidade pois era um “gênio”. Autor de pouco mais de 160 filmes, dos quais a maioria perdidos, sobretudo do período mudo, é conhecido pelas suas realizações com crianças na década de 30, habilidade que manteve no pós-guerra (embora sua temática não se esgote nesse tópico e seja variada, incluindo filmes sobre a minoria coreana no Japão). Shimizu gostava de locações externas. Suas fábulas fluem suavemente, parecem soltas – o diretor com frequência esquecia roteiros rígidos e deixava-se levar pelas circunstâncias. Hipocrisias e desigualdades sociais não o intimidavam. Por vezes, os 16 eventos narrados possuem pouco ou nenhum “plot”, isto é, poucas reações de causa e efeito entre as sequências de eventos. Os episódios se ligam por uma reciprocidade ou por uma troca. Como diz Donald Richie, o conteúdo, à maneira japonesa, é moldado pela forma. “Sr. Obrigado”, de 1936, acompanha um motorista que agradece compulsivamente a todos que cedem passagem, em um “road movie” afetivo e amargo (a história original é de Kawabata). Estradas e planos gerais em movimento seduzem o olhar, enquanto os passageiros narram suas peripécias particulares. “Japanese Girls at the Harbor”, de 1933, é um retrato da juventude ocidentalizada no Japão, um triângulo amoroso passado em Yokohama que termina com um dos lados descambando para a prostituição. A modernidade dos comportamentos projeta-se na modernidade das imagens. Um belo filme. Durante a guerra dirigiu cinco produções, entre elas “Ornamental Hairpin”, de 1941, sobre adultos e crianças em um resort turístico. Estrelado por Tanaka Kinuye, atriz de Mizoguchi, Ozu e Naruse, além de ex-esposa de Shimizu, foi definido por um crítico contemporâneo como “frívolo e escapista”. Hoje é tido como um dos melhores filmes de Shimizu. Conta a atração amorosa de um soldado ferido no front com a bela proprietária (Tanaka), afinal frustrada. Não se sabe como Shimizu conseguiu convencer o governo imperial a produzi-lo, naquele momento tão peculiar. Film Law Em 1939 foi aprovada a “Lei do cinema”, que teve como objetivo “racionalizar” a indústria e refletir o óbvio interesse do governo em direcionar ideologicamente a produção cinematográfica. Depois de muita discussão, foram criados três conglomerados de estúdios e feitas as necessárias fusões. No que tange aos conteúdos, a orientação era realçar valores como lealdade incondicional ao Imperador, disposição permanente para sacrifícios pessoais, absoluta devoção à cultura genuinamente japonesa e a exaltação da frugalidade inerente ao ethos nacional. A ação restritiva da lei dar-se-ia na pré-produção, através do exame dos roteiros propostos, de modo a evitar desperdícios de tempo e recursos. Cinema na economia de guerra. 17 Malgrado a tensão do período, aguçada a partir de 1937 com a campanha na China, a legislação era razoavelmente pragmática. Convivia, naturalmente, com um forte aparato repressor estatal, herdeiro de um viés censório antiocidental e conservador que vinha desde a era Meiji. Mas permitia alguma margem para os realizadores que não estivessem alinhados de forma integral com a política nacional e o esforço de guerra. Contribui para esse cenário a descoordenação que afetava as agências do governo, no momento em que se decidia a aprovação dos projetos. Os Ministérios da Educação, Segurança Interior, Marinha e Exército, além do poderoso gabinete especial da informação, ligado ao Primeiro-Ministro, eventualmente se desentendiam. Mesmo um filme como “China nights”, de 1940, realizado por Fushimizu Osamu em território ocupado e produzido pela “Manchuria Film Production”, podia ser objeto de debate interno. A trama se passa em Xangai, em nome da “harmonia étnica”: uma órfã local é recolhida por um empresário nipônico da Marinha Mercante, vindo a apaixonar-se por ele e selando a concórdia entre ocupante e ocupado. O papel principal é interpretado por Ri Koran, japonesa nascida na Manchúria e bilíngue em japonês e chinês. Algumas agências do governo julgaram a história excessivamente sentimental, inadequada para transmissão dos verdadeiros valores japoneses. Ri Koran conquistou uma legião de fãs, e tornou-se mais tarde apresentadora de televisão no Japão, sob o nome de Shirley Yamaguchi. Também era cantora de sucesso, tendo circulado em Hollywood e na Broadway. Reconciliou-se denunciando o drama das “comfort women”, escravas sexuais recrutadas à força pelo Exército imperial na China e na Coreia. National policy film A classificação de “filme de política nacional”, que supostamente incluiria os parâmetros imaginados pelos ideólogos do Estado, era uma tarefa difícil, senão impossível. Naruse Mikio, contemporâneo de Ozu e um diretor que iria se destacar sobremaneira nos anos 50, foi obrigado a longas negociações e algumas concessões para concluir “Toda a Família Trabalha”, em 1939. Um pai desempregado e nove filhos lutam 18 pela sobrevivência, com inevitáveis dissensões internas, tema que não interessava ao “esforço nacional”. Naruse, que havia ganho o cobiçado prêmio da “Kinema Jumpo” em 1935 com o drama familiar “Wife! Be Like a Rose!”, foi obrigado a alterar a conclusão de “Toda a Família Trabalha” para acomodar a exigência de “auto-sacrifício”, com o menor impacto possível no realismo social da história. Pragmatismo responsável. Ozu Yasujiro chegou a anunciar a produção de um filme de guerra, afinal não realizado. Na volta da China, suas declarações eram consistentes com o engajamento nacional no conflito. Em 1941 dirige “Os Irmãos e Irmãs Toda”, centrado em torno da morte do patriarca e as mazelas subsequentes. Sucesso de público e crítica, agradou ao governo pela ênfase nos signos ritualísticos próprios do acontecimento, do altar às reverências. Em 1942 roda “Era uma Vez um Pai”, sutil e contundente narrativa de separação entre pai e filho, movida pela culpa paterna em relação a um aluno afogado (Ryu Chishu, um de seus atores preferidos, em atuação perfeita). O discurso que faz ao filho para convencê-lo da necessidade da separação – sentindo-se incapacitado de continuar como professor no vilarejo onde residia, foi para Tóquio – é um libelo em prol da abnegação pessoal, qualidade que se esperava dos patriotas em tempos de guerra. Em 1943 Ozu recebe nova convocação, partindo para Cingapura. Ligado ao setor de informação do governo, foi escalado para rodar um documentário sobre a ocupação em Birmânia, hoje Myanmar. Outro projeto seria sobre uma projetada conquista da Índia, que se chamaria “Delhi!, Delhi!”. Em pouco mais de um ano entrevistou líderes colaboracionistas locais, assistiu a vários filmes interditados no Japão (como “E o vento levou” e “Cidadão Kane”, que apreciou), jogou tênis, recebeu amigos no seu apartamento no “Cathay Building” e não concluiu o filme. No fim da guerra destruiu o material produzido e foi preso pelos ingleses. A “Lei do cinema” ratificou também o controle sobre os filmes importados. Com a ampliação do conflito, somente produtos da Alemanha e Itália eram exibidos nas salas japonesas. Uma das raras execeções eram melodramas argentinos, graças ao alinhamento de Peron com o Eixo – “Puertas cerradas” e “Noches andaluzas”, por exemplo, foram distribuídos pela UFA alemã. 19 Pearl Harbor Em 7 de dezembro de 1941 o Japão joga a carta mais arriscada de sua história, atacando de surpresa a base norte-americana de Pearl Harbor, no Havaí. Conseguiu destruir ou danificar 21 embarcações e 347 aviões, mas deixou escapar três portaaviões. A guerra atravessou o Pacífico e arrastou os Estados Unidos. Se no curto prazo a ação cumpriu o objetivo, no médio e longo revelou-se um erro brutal, de consequências catastróficas para a nação nipônica. Um ano depois do ataque, estreia em Tóquio “The War at Sea from Hawaii to Malaya”, superprodução cheia de efeitos especiais, dirigida por Yamamoto Kajiro. A base de Pearl Harbor foi reconstruída em seis mil metros quadrados, cada navio tinha aproximadamente dois metros de comprimento. O roteiro foi cuidadosamente construído como peça “espiritual” de propaganda: conta o treinamento e posterior engajamento na ação de um jovem cadete, integrante da aviação da Marinha. Nessa trilha, foram produzidos, em 1943: “Toward the decisive battle in the sky”, de Watanabe Kunio; “Navy”, de Tasaka Tomotaka; “Army”, de Kinoshita Keisuke; e “Kato’s falcon fighters”, também de Yamamoto Kajiro. Em todos eles, pontificava a consagração da “alma” e do “espírito”, qualidades transcendentais do combatente imperial. O foco destes e outros filmes com menos destaque era a audiência jovem, futuros pilotos e soldados. Já na guerra da China dois filmes tinham funcionado como paradigmas: “Five scouts”, dirigido em 1938 por Tasaka Tomotaka, que ganhou o “Kinema Jumpo” de 1939 e o Festival de Veneza em 1938; e “Mud and Soldiers”, de 1939, do mesmo Tasaka. A ênfase, entretanto, era na camaradagem e espírito coletivo entre soldados. As sequências de batalha de “Mud and Soldiers” foram utilizadas mais tarde pelos norteamericanos, pelo valor documental, para treinamento de soldados. Depois de Pearl Harbor, a guerra (ou a representação da guerra) assumiu um caráter místico. Kinoshita Keisuke era um caso especial. Começou em 1943 com “Port of Flowers”, uma discreta sátira aos esforços bélicos. No ano seguinte lança “Army”, com Tanaka Kinouyo no papel de mãe de um soldado doente, que faz de tudo para ter condições de ir para o front. O resultado final termina reproduzindo as ambiguidades da 20 atmosfera familiar, entre o obsessivo desejo do rapaz de servir o país (e o Imperador), e a incertezas da mãe quanto ao destino do filho. Kinoshita queria realizar em seguida um filme sobre kamikazes, cujo projeto, à luz do trabalho anterior, foi vetado pelas autoridades. A Vingança dos 47 Ronins Por volta de 1701 um desentendimento entre senhores feudais levou um deles, Asano, a atacar seu oponente, Kira, no palácio do Xogum, no ápice da era Tokugawa. Tentou mata-lo com a espada mas provocou apenas ferimentos superficiais, suficientes para ser levado a julgamento, com toda a severidade - acabou condenado a cometer “seppuku”, suicídio por esventramento (“hara-kiri”, na acepção mais conhecida). Suas propriedades foram confiscadas e seus samurais perderam o status, tornando-se “ronins”. Revoltados, os 47 leais servidores de Asano esperaram dois anos na surdina, sem despertar nenhuma suspeita, para liquidar Akira em um ataque surpresa. Foram também condenados a morrer honradamente, cometendo “seppuku”. Se fossem executados, seriam criminosos. O fato tornou-se um dos mitos recorrentes sobre a lealdade incondicional dos samurais, reproduzido e fantasiado à exaustão pelo teatro, literatura, artes plásticas e por fim pelo cinema. Mizoguchi havia realizado em 1938 “The camp song”, em que procurou adaptar seu tema predileto – mulheres que se sacrificam pelos homens – ao novo cenário político do país. O sofrimento feminino começa pela rejeição do sogro e cristaliza-se pela partida do marido para lutar na China. Socialmente inferior, a heroína estaria impedida, desde o princípio, de casar com o descendente de samurais. No melhor estilo “shimpa”, o enredo se resolve - depois de idas e vindas trágicas - pela súbita e inesperada transformação do pai, que pede perdão à nora. Com um tal artificialismo, a reação da crítica foi negativa, a despeito do apelo emocional ao gosto do público. Hoje o filme é dado como perdido. O diretor encontrou no gênero “geidomono”, que supõe a utilização de temas relacionados à tradição artística estritamente japonesa, a solução de compromisso com 21 os censores para continuar trabalhando. Baseado em uma das peças escritas sobre o trágico destino de Asano e seus samurais, realizou um extraordinário filme, “A Vingança dos 47 Ronins”, um verdadeiro laboratório para suas concepções de mise-en-scène. Anticlímax Rodado em duas partes, a primeira em 1941, o filme beneficiou-se de orçamento relativamente alto, em meio à precariedade da época. Cenários caros reproduziram castelos e interiores, construídos para facilitar o uso de travellings e lente aberta. A direção de atores primou pela “autenticidade”, evitando situações polêmicas, que poderiam gerar interpretações duvidosas. Planos lentos, diálogos impostados e, sobretudo, a parcimônia das cenas de combate – o assalto final ao castelo de Kira foi elidido – levaram a uma decepção do público, sobretudo entre os mais entusiasmados no governo. A primeira parte de “A Vingança dos 47 Ronins” estreou uma semana antes do ataque a Pearl Harbor. Convencer os burocratas para filmar a segunda parte não deve ter sido tarefa fácil, mas Mizoguchi conseguiu. “A Espada Bijomaru”, lançado em fevereiro de 1945, narra as aventuras de um forjador de espadas e tem Yamada Isuzu no principal papel feminino, em mais um exercício de produções “geidomono”. Além de Mizoguchi, Naruse Mikio também enveredou por essa seara, em “A Tale of Archery at the Sanjusangendo”, rodado no templo zen da escola Tendai de arco e flecha e exibido em junho de 1945, poucas semanas antes do fim do conflito. Até o dia da vitória Ainda em 1945, Naruse rodou “Until Victory Day”, comissionado pela Marinha, cujo “plot” é, no mínimo, bizarro. Apesar do título sugerir fervor patriótico diante da derrota que se anunciava, o gancho da história é a invenção de uma “bomba do entretenimento”. Uma vez detonada, a bomba libera “explosões” de comédia e música 22 (o cenário é uma ilhota isolada no Pacífico sul). Não foi bem de público, e também não restaram cópias. Kurosawa Akira trabalhou dura e intensamente, desde 1936, como assistente de direção, roteirista, e finalmente realizador. Em 1943 dirige o primeiro longa-metragem, “A saga do judô”, seguido de “A mais bela”, em 1944, “A saga do judô II”, em 1945, e “Os Homens que pisaram na cauda do tigre”, também em 1945. Este último começou a ser filmado antes da rendição, e terminou após a chegada do General MacArthur ao Japão. Kurosawa se recorda de soldados americanos assistindo as últimas filmagens. Consta que uma espada sumiu da cenografia. Em 6 de agosto de 1945 é lançada a bomba atômica em Hiroshima. No dia 14 o Imperador falou no rádio pela primeira vez a seus cidadãos e conclamou a população a “suportar o insuportável”. A rendição foi assinada em 2 de setembro, no encouraçado Mississipi. 23 Capítulo 2 Cinema na ocupação: 1945-52 No imediato da rendição o cenário mudou de forma vertiginosa. O país foi ocupado pelos Estados Unidos entre 1945 e 1952, uma situação “sui generis” e impactante – que acabou estimulando o Japão a reinventar-se e a tornar-se a potência econômica e tecnológica que é hoje. Em 1947 foi promulgada a Constituição, redigida sob orientação do General Douglas MacArthur, o “Supremo Comandante das Forças Aliadas” (SCAP, na abreviação em inglês). O SCAP era de fato o governante do país, ao lado do Imperador, mantido para garantir a estabilidade, e o governo civil constituído por japoneses (Primeiro-Ministro, Ministérios, Parlamento) exercia a rotina da administração. O objetivo norte-americano era “des-feudalizar” o Japão, tendo em vista que os “valores feudais” subjacentes à estrutura do Estado teriam sido a origem dos excessos militaristas e, em última análise, da aventura beligerante. Na lógica da ocupação entrariam, entre muitas outras iniciativas, o financiamento à antropóloga Ruth Benedict, que resultou no famoso livro “O crisântemo e a espada”, e a censura prévia à produção cinematográfica japonesa. Filmes de época, os “jidaigeki”, que de alguma maneira veiculassem códigos de honra de samurais ou lealdades cegas a senhores feudais, estavam vetados. Por outro lado, hábitos anteriormente banidos das telas, como beijar em público, passaram a ser estimulados. O primeiro beijo na boca nas telas japonesas, dispositivo fundamental para a narrativa clássica do cinema, só foi acontecer entre nacionais do Japão em 1946, por “pressão” dos censores. Beijo na boca 24 Donald Richie arrolou os tópicos proibidos pelo SCAP, poucos meses depois da rendição, anunciada pelo Imperador, em 15 de agosto de 1945. Referências a militarismo, vingança, xenofobia ou nacionalismo; distorção da história; discriminação racial ou religiosa; enaltecimento dos códigos de lealdade feudal; tratamento excessivamente leve da vida humana; aprovação direta ou indireta do suicídio; degradação e opressão de mulheres; exaltação da crueldade; exploração de crianças; e, naturalmente, oposição à declaração de Postdam, de julho de 1945, que definiu as condições da rendição. Subentendidas nessa relação estavam alusões aos dramáticos eventos da guerra, como Hiroshima e Nagasaki e, sobretudo, a qualquer menção negativa a respeito das forças de ocupação. Em contrapartida, o SCAP listou igualmente os assuntos a serem estimulados nos filmes japoneses: democratização; direitos civis (sobretudo o das mulheres), sindicalismo pacífico e reforma agrária; reincorporação de combatentes; e liberdade de opinião. Um detalhe curioso da lista era o empenho dos censores com a retomada do basebol, esporte que chegou ao Japão nos anos 20 e tornou-se bastante popular (apesar de ser boicotado durante a guerra). Expressões amorosas, como o citado beijo, também eram vistas com bons olhos – no período anterior, militar-nacionalista e austero, eram vistas como símbolos da decadência inglesa e norte-americana. A administração desses eixos temáticos não foi uma tarefa simples. Richie, que chegou ao Japão em 1947 para trabalhar como datilógrafo na administração da potência ocupante, iniciou nesse contexto sua longa e produtiva jornada de observador arguto da cena local. Escreveu e publicou muito sobre cinema, mas também sobre inúmeros outros aspectos da vida e da cultura japonesa, além de relatos pessoais que revelam, de forma original, surpresas e espantos de um expatriado em um país cioso da sua especificidade como é o Japão. A ocupação norte-americana Não faltaram contradições nos “colonizadores” da nação conquistada. Afinal, tinham sido os norte-americanos que impuseram uma escala inédita de destruição aos vencidos, exacerbada pela agressão nuclear. O livro de Benedict, por exemplo, a 25 despeito do enorme sucesso de vendas – sobretudo no Japão, onde vendeu mais de dois milhões de exemplares – é objeto de inúmeras e persuasivas críticas, metodológicas e factuais. Benedict, que nunca foi ao Japão, pesquisou e escreveu engajada em um esforço de guerra que previa vitória e posterior ocupação do território inimigo. Utilizouse de premissas por vezes insólitas. O objetivo era explicar o que era ser “japonês” para o mundo ocidental. Seu colega no “Office of War Information” em Washington, o cientista social inglês Geoffrey Gorer, foi um dos que a auxiliou a consolidar o conceito de que a continuidade do Imperador no pós-guerra seria fundamental para a estabilidade do país. A ideia foi adotada por MacArthur e os estrategistas do Pentágono, eximindo implicitamente o soberano de quaisquer responsabilidades históricas. Mas Gorer também achava, não se sabe como, que a “brutalidade” e o “sadismo” da máquina de guerra nipônica estavam enraizadas na severidade com que são transmitidas às crianças, na cultura japonesa, as práticas higiênicas em relação a necessidades fisiológicas. Gorer, autor de um livro sobre a vida e as ideias do Marques de Sade, era um estudioso sofisticado, e Benedict mais ainda. “O crisântemo e espada”, a despeito de seus méritos e deméritos, sobrevive em reedições e tornou-se ele mesmo um curioso caso antropológico. MacArthur, quem sabe influenciado pela sua leitura, declarou em 1951 no Senado americano que a nação japonesa seria comparável a uma “criança de 12 anos de idade”. O colonizador amado A ambiguidade do “colonizador” é inevitável, pode-se concluir. O General, que acabara de ser demitido pelo Presidente Truman do cargo que ocupava em Tóquio quando foi ao Senado – ele estava disposto a liquidar a guerra da Coréia de qualquer maneira, “mesmo que tivesse de jogar a bomba atômica na China” – se transformara em um verdadeiro mito no Japão, de estatura próxima, senão análoga, ao Imperador. Até mesmo na invisibilidade assemelhava-se ao Hiroíto do pré-guerra, já que sua circulação na capital, para não dizer no país, era absurdamente restrita, do tipo casaescritório. O Imperador, por sua vez, renunciou em setembro de 1945 ao status divino 26 (obrigado pelos americanos) e ganhou novo alento junto à população, percorrendo o país no penoso esforço de reconstrução. Os japoneses acabaram se acostumando a essa duplicidade de papéis. A despedida de MacArthur de Tóquio, como informa o magnífico livro de John Dower - “Embracing defeat: Japan in the Wake of World War” – foi apoteótica, com milhares de pessoas nas ruas. Segundo Dower, seus comentários no Senado, à primeira vista racistas e preconceituosos, não devem ser lidos inteiramente sob a ótica contemporânea. MacArthur teria a intenção de sinalizar, meio atabalhoadamente, que os japoneses seriam mais “confiáveis” que os alemães. Talvez a mesma recomendação valha para situar a censura cinematográfica exercida pelo SCAP, ou seja: a censura da ocupação, a despeito das restrições que impunha, que podiam muitas vezes soar ridículas, acabou por exercer um papel catalizador na temática e mesmo na construção narrativa dos (bons e maus) filmes japoneses. Mr. Smith goes to Tokyo O impacto, é claro, não foi apenas no cinema. A ocupação norte-americana teve como uma de seus desígnios injetar a fórceps na sociedade japonesa um conjunto de normas e valores aperentemente civilizatórios, que extirpariam anseios bélicos da alma e do Estado nipônico. A expansão militar e a “guerra dos 15 anos”, como muitos no Japão se referem aos acontecimentos depois da invasão da Manchúria, em 1931, estavam fundadas, de acordo com essa visão, sobre uma base psicossocial irremediavelmente condenada ao autoritarismo xenófobo. A vontade civilizatória, entretanto, já nasceu bifurcada: o SCAP refletia, na sua organização, as divisões da cena política em Washington - democratas e republicanos, com todos os tons e semitons que tal bifurcação costuma exibir. Reacionários e progressistas conviviam nesse espaço exíguo, dialogando e digladiando entre si. Um excelente mapeamento das mazelas da produção cinematográfica no Japão nessa época é o trabalho da pesquisadora Kyoko Hirano, “Mr. Smith Goes to Tokyo: 27 Japanese Cinema Under the American Occupation, 1945-1952”, publicado em 1992. Poucos dias após tomarem o país, os norte-americanos estabeleceram dois órgãos de censura: o primeiro voltado à “orientação educacional” (CIE, abreviação do inglês), chefiado por militares mas com staff civil; e o segundo dedicado especificamente à censura, controlado pelos militares (CCD). Na prática atuavam de forma complementar, da aprovação de roteiros à pós-produção. Foram banidos de saída 236 filmes realizados entre 1931 e 45, e confiscada uma enorme quantidade de material audiovisual, devolvidos mais tarde, em 1967. Pelo menos um longa-metragem, “The Japanese Tragedy” (1946), de Kamei Fumio, foi vetado integralmente no período de MacArthur, ao que tudo indica por interferência do Primeiro-Ministro Yoshida – o filme é implacável com o militarismo e o Imperador. Seu produtor, Iwasaki Akira, foi esfaqueado por extremistas ainda leais à ordem militar-xintoísta que imperava no Japão até 1945 (e que até hoje encontra adeptos). De resto, cada produção teve que negociar com os ocupantes, em todas as fases: roteiro, produção e finalização. Muitos projetos não saíram do papel. Outros tiveram de adaptar-se, como por exemplo o roteiro da obra-prima de Ozu Yasujiro, “Pai e Filha” (1949), que sofreu pelo menos duas alterações, de uma sutileza condizente com o estilo do diretor. A frase descrevendo a fragilidade da saúde da filha “em razão do trabalho duro na marinha durante a guerra” foi modificada para “em razão do trabalho duro durante a guerra”; e uma fala do pai, que dizia que Tóquio “estava infestada de sítios bombardeados”, foi mudada para “Tóquio está tão empoeirada”. Kurosawa Akira Kurosawa, que começou a dirigir durante a guerra e ampliou consideravelmente suas habilidades no período da ocupação, reconheceu que os censores norteamericanos eram mais fáceis de lidar do que a censura do Estado japonês, antes e durante o conflito. Sem dúvida o diretor japonês mais conhecido no Ocidente, dono de uma energia criativa incomum e de um temperamento exigente, deixou um testemunho autobiográfico de uma franqueza notável – “Something like an autobiography”, de 28 1982, coletado pela pesquisadora Audie Bock. A descrição que faz da sua vida começa na profundidade das recordações infantis e vai até a produção de “Rashmon”, de 1950, um de seus principais filmes, que ganhou o Leão de Ouro de Veneza no ano seguinte e sedimentou o Japão como país amigo e integrante do conjunto das nações civilizadas. Logo depois, no dia 28 de abril de 1952, entrou em vigor o Acordo de São Francisco, assinado no ano anterior pelo Japão e mais 48 países, encerrando a ocupação americana. A afirmação relativa a “Rashmon” pode parecer hiperbólica, mas é corriqueira quando se fala de cinema japonês. Trata-se da emergência artística de um país anteriormente afundado em hostilidades e rancores, que havia bombasticamente se retirado da Liga das Nações, em 1933, e planejado a conquista da Ásia pela força. Encruzilhada Censores, entretanto, são imprevisíveis. “Os Homens que pisaram na cauda do tigre”, de 1945, o quarto longa-metragem de Kurosawa, é um caso singular. Baseado em uma peça do repertório kabuki, “Kanjinchô”, a história acompanha a fuga de um lorde feudal através de linhas fortemente armadas, disfarçado de sacerdote. O diretor agregou ao enredo um personagem vivido pelo popular ator cômico Enoken (nome artístico de Enomoto Kenichi), com quem tinha trabalhado em diversos filmes de Yamamoto Kajiro, seu mentor. Rodado em meados de 1945, justamente no final da guerra, o filme, com linguagem respeitosa das convenções kabuki mas com ligeiras discrepâncias introduzidas pelas falas de Enoken, terminou em uma encruzilhada. A censura japonesa tinha aprovado o roteiro, embora sugerindo que o tratamento estava muito “democrático”; a seguir, a recém instalada autoridade americana julgou a obra “feudal” e mesmo “aborrecida”. Kurosawa exasperou-se com o novo censor e o filme foi engavetado, literalmente – só pôde ser exibido em 1953. A produção funcionou para o jovem diretor como um interessante exercício de pausas e movimentos de corpo, estilizados de acordo com referências do kabuki – ou seja, da tradição clássica do teatro japonês. A gramática visual é estática, o roteiro de 29 certa forma limitado pelas convenções teatrais, mas a direção dos atores e, sobretudo, o “casting” de Enoken, foram suficientes para provocar os nacionalistas ferrenhos e intrigar os ocupantes desavisados. Juventude Sua próxima produção foi um verdadeiro salto estilístico e conceitual: “Não lamento minha juventude”, de 1946, carregado de proposições políticas contra o fascismo e os militares, era exatamente o que os americanos queriam ver na tela – um dos censores da SCAP chegou a oferecer uma festa em homenagem a Kurosawa, imediatamente após assinar a liberação da fita. A circunstância da história é centrada na personagem encarnada por Hara Setsuko, que mais tarde se tornaria a atriz predileta de Ozu. Seu pai, um professor universitário liberal, é perseguido nos anos 30 pelos militares, e um de seus estudantes termina sendo preso e morto. Hara, em papel bastante diferente da imagem suave que viria a projetar, termina revoltando-se com a opressão e vai para o campo, isolando-se de forma dura e incondicional. Donald Richie sugere que Kurosawa realizou neste filme algo raro em sua carreira, um excepcional estudo da mulher no Japão. Kyoko Hirano dedica um capítulo do seu livro a “Não lamento minha juventude”, reconhecendo sua importância na formação pró-democracia da audiência no Japão nos anos que sucederam a guerra, mas chamando a atenção, balizada por repertório crítico cuidadosamente levantado, sobre a alegada vacuidade política da proposta e da (suposta) revolta da personagem de Hara. Um dos mais ferozes comentários é de Oshima, que acusou Kurosawa de ignorar a realidade da resistência à guerra na sociedade japonesa, idealizando um modelo sob medida para os americanos ocupantes e, em última análise, produzindo uma obra “subjetivamente irresponsável”. Adeus à juventude O filme, não obstante, resiste com galhardia à passagem do tempo. Linguagem ágil e moderna, composição de imagem sempre bem calculada com o movimento da 30 câmera e a montagem, fazendo a narrativa fluir com emoções calibradas – em suma, características que viriam a ser lugar comum nas resenhas críticas dos filmes do diretor. Kurosawa alega em sua defesa que não teve de lutar pelos valores associados à liberdade, como de resto a maioria quase absoluta do povo japonês: ela lhe foi trazida pelo ocupante norte-americano, à sua revelia. A expressão “não lamento minha juventude” veio a tornar-se clichê jornalístico largamente utilizado, orgulha-se Kurosawa. O que talvez tenha incomodado à crítica ideológica mais ferrenha foi o modelo “top-down” da pretendida educação política, um modelo que privilegiava a liderança intelectual das elites como agente transformador, que confere uma certa artificialidade ao projeto. “Não lamento minha juventude” foi rodado entre greves no estúdio Toho, a primeira em fevereiro de 1946 e a segunda em outubro. Kurosawa se queixou da interferência no roteiro, sobretudo nos vinte minutos finais, feita por uma comissão de artistas e técnicos encarregados de “supervisionar” as produções. A politização do período aguçava-se: em fevereiro de 1947 o General MacArthur proibiu uma greve geral que paralisaria 2,4 milhões de trabalhadores. A Guerra Fria se aproximava e o SCAP preocupava-se com “infiltrações de comunistas”. O álcool e o anjo Outro destaque da safra de Kurosawa no período é “O anjo embriagado”, de 1948. A ideia do filme, conta o diretor em sua autobiografia, surgiu quando visitou o cenário feito para um filme de Yamamoto Kajiro, que reproduzia uma paisagem urbana caótica na Tóquio castigada pelos bombardeios. Seu objetivo era explorar personagens em um território circunscrito socialmente, começando pelos yakuzas que controlavam o mercado negro e pelos cabarés, mas incluindo também agentes sociais, no caso, um médico. Os espaços cinematográficos escolhidos por ele, onde flui a ação da narrativa, opõem um pequeno açude urbano totalmente poluído e anti-higiênico, onde ficava a modesta clínica médica, aos ambientes de entretenimento lascivo, nightclubs e bares. 31 O propósito era educacional: enfatizar a necessidade de cuidados preventivos para evitar disseminação de doenças contagiosas, algo que deve ter agradado os censores. O que poderia ter sido um monótono drama de encomenda foi virado ao avesso pelas soluções de roteiro e composição dos personagens, delineados por Kurosawa e seu co-roteirista, Uekusa Keinosuke (amigo de infância e personalidade errática, esta seria sua última colaboração com o diretor). A primeira foi inculcar alcoolismo na figura do médico, afinal o responsável pelo controle e prevenção de doenças, função eminentemente social, sobretudo naquele momento (inicialmente seria vício em morfina, mas os censores não aceitaram). A segunda foi a partir de um encontro fortuito e feliz, que marcou o começo de uma longa parceria: Mifune Toshiro, o grande ator que viria a atuar em dezesseis dos seus filmes, o último deles “O Barba ruiva”, de 1965. Recomendado pela atriz Takamine Hideko, Kurosawa foi conferir os testes que Mifune fazia na Toho e ficou fascinado pela sua energia: a emoção que os demais atores demoravam dez pés de negativo para transmitir, disse mais tarde, Mifune fazia em três. O representante da yakuza ganhou corpo e alma. Greves A dramaturgia de “O anjo embriagado” equilibra-se na tensão entre esses dois personagens, ligados pela necessidade do gangster de tratar um ferimento e, posteriormente, uma tuberculose. A mensagem pedagógica que o SACAP tanto queria foi veiculada, o filme aclamado pela crítica e o prestígio do realizador consolidado. À época do lançamento, em abril de 1948, a Toho entrava em uma greve que durou 134 dias, e terminou afastando o diretor da casa produtora na qual se iniciou no cinema. Juntou-se a quatro companheiros – os diretores Naruse Mikio, Taniguchi Senkichi, e Yamamoto Kanjiro, acrescido do produtor Motoki Sojiro – e fundaram uma produtora independente, “Film Art Association”. Kurosawa dirige em seguida “Duelo Silencioso”, “Cão Danado” e “O Escândalo”, quando, em 1950, realiza “Rashmon”. A terceira greve da Toho foi encerrada em 19 de agosto de 1948 com ajuda de tanques, aviões e tropas das forças de ocupação norte-americanas - fato insólito, afinal 32 era uma greve em um estúdio de cinema – mas que dá ideia da importância do acontecimento na vida política do país. Aos poucos, os ânimos arrefeceram, pelo menos na indústria cinematográfica. A censura estava mais amena, ou pelo menos mais fácil de ser contornada, desde que não fossem projetos de clara tendência de esquerda. O Japão cada vez mais revelava-se parceiro confiável para os Estados Unidos, agora preocupados com o inimigo comunista. Kurosawa foi sondado no início de 1950 pela produtora Daiei para dirigir “Rashmon”, quando já se tornara um diretor de prestígio, e concluiu o filme no mesmo ano. O resultado final, a despeito da recepção favorável em seu país, não foi suficiente para convencer os produtores para investir em sua exportação. Ainda estavam um tanto perplexos em relação às ambições artísticas do produto, considerado um tanto hermético. Mifune Toshiro, Mori Masayuki e a fulgurante Kyo Machiko (os dois últimos também atuariam em “Contos da lua vaga”, de Mizoguchi) estrelaram a fita. Um ano depois de lançado no mercado japonês, em 1951, foi inscrito no Festival de Veneza, graças à insistência de uma distribuidora de filmes italianos em Tóquio, Giuliana Stramigioli. Ganhou o Leão de Ouro e tornou-se uma das obras mais influentes e conhecidas da história do cinema. Porta do castelo ou... “Rashmon” é um brilhante exercício de cinematografia aliado a uma engenhosa narração tridimensional. O mesmo evento, o assassinato de um samurai e o estupro de sua esposa por um bandido na estrada, é contado por três pontos de vista, com três diferentes mise-en-scène, inclusive no que se refere a enquadramentos e estilos de edição. No tribunal, um jardim de pedras zen, os personagens falam para o juiz invisível, derrubando a quarta parede e dirigindo-se aos espectadores. No final, a descoberta de uma criança recém-nascida no templo rompe a circularidade dos eventos e projeta uma expectativa de superação, clara referência aos novos tempos. Baseado nos contos de um escritor do início do século 20, Akutagawa Ryunosuke, por sua vez inspirado em narrativas anônimas do período Heian (794-1194), “Rashmon” teria uma inesperada ressonância com os tempos da ocupação. O personagem de 33 Mifune Toshiro, o bandido Tajomaru, uma espécie de ogro do folclore nipônico, é tradicionalmente associado à figura do “estrangeiro”. Além disso, o termo “rashmen” era muito utilizado à época para designar as japonesas que tinham amantes (e clientes) estrangeiros, a maioria norte-americanos. Tais hipóteses são levantadas por um curioso estudo, “Censorship of Japanese Films During the U.S. Occupation of Japan: The Cases of Yasujiro Ozu and Akira Kurosawa”, de Lars-Martin Sorensen. Os “rashmen films” eram um subgênero do cinema japonês, em voga nas décadas de 50 e 60. No filme, “Rashmon” é o nome do portal entre Quioto e Nara, semidestruído, debaixo do qual o lenhador e o sacerdote dialogam sobre as desgraças que afligem o país. Começa a chover e o lenhador revela como encontrou o corpo do samurai. Os ideogramas utilizados para “Rashmon” significam, literalmente, “a porta do castelo”. Mizoguchi Kenji Se para Kurosawa o pós-guerra foi a via para alcançar a maturidade como diretor, não apenas no que se refere ao domínio técnico mas também à sintonia fina com a audiência – a despeito das restrições da censura – no caso de Mizoguchi Kenji, de uma geração anterior, a história era diferente: tratava-se de manter o alto prestígio que desfrutava e assegurar o espaço de produção no novo cenário. Sato Tadao, excelente crítico e historiador do cinema japonês, dedicou um precioso volume ao diretor, onde sublinha o espírito competitivo que animava Mizoguchi, sempre antenado com o entorno cinematográfico e atento à atualização estilística de seus filmes. Mizoguchi procurou durante a guerra distanciar-se dos conflitos e da ideologia militarista, mas não podia ignorar que seus filmes serviram à causa nacionalista. O experiente e talentoso diretor adaptou-se rapidamente aos novos tempos da ocupação norte-americana e principalmente da nova Constituição, que sacramentou direitos inéditos para as mulheres. Realizou uma “trilogia da liberação feminina”, entre 1946 e 49, ao mesmo tempo em que dirigiu uma de suas obras-primas sobre prostituição, “Mulheres da Noite”, em 1948, e um filme de época, “Utamaro e suas cinco mulheres”, em 1946 (não se sabe até hoje como Mizoguchi logrou convencer os censores para 34 realizar este “jidaigeki”, já que em princípio os norte-americanos eram avessos a qualquer sinal que remetesse a um suposto Japão feudal). A exemplo de Kurosawa, o diretor foi emergir da ocupação, depois de 1952, com um vocabulário cinematográfico consolidado – seu famoso estilo de “uma cena-uma tomada”, que acarreta longos planos pontuados por movimentos de câmera, de preferência com a grua - foi aperfeiçoado para conquistar definitivamente o público, sobretudo o internacional. Antes da guerra, Mizoguchi vinha sendo fustigado por parte da crítica de seu país, que via nesse estilo um tratamento superficial de situações e personagens, demandando por conseguinte mais cortes e detalhes para suprir psicologicamente a trama e produzir um efeito mais realista. One shot-one take Nos filmes de Mizoguchi praticamente não há closes, há o distanciamento dos rostos e a continuidade lenta do tempo-espaço dos planos longos. Mas a mise-en-scène precisa e a riqueza do conteúdo da trama preenchem essa distância e comovem o espectador: na virada da década, sobretudo depois de ganhar o prêmio de melhor diretor em Veneza com “A vida de Oharu”, de 1952, o diretor se impôs e reafirmou seu status na indústria. Os melhores trabalhos de Mizoguchi da década final da sua produção recuperaram aspectos do “shimpa” que desenvolvera na época do cinema mudo e nos anos 30. Após 1945, entretanto, a exigência era outra: filmes políticos, que alavancassem não apenas expectativas de uma sociedade em ruínas, mas também que agradassem o “Imperador de olhos azuis”, como veio a ser conhecido o General MacArthur, sempre cuidadoso com sua reclusão e convivendo com selecionados cidadãos e cidadãs locais. Em 1946, um ano após a capitulação, sai o primeiro deles: “Victory of Women”, sobre uma advogada assertiva envolvida em um “affair” com um ex-prisioneiro de guerra e liberal, que termina morrendo em razão de doença contraída no cativeiro. O segundo, “The love of actress Sumako”, de 1947, traz a biografia da atriz Sumako Matsui, famosa por representar Ibsen (Casa de Bonecas) pela primeira vez no Japão, em 35 1911. E o terceiro, mais engajado de todos, “My love has been burning”, de 1949, retrata a vida da ativista de direitos civis e feminista Fukuda Eiko (1865-1927) – este último, segundo o co-roteirista Kaneto Shindo, produzido por determinação do SCAP. Mulheres de dia e mulheres de noite Os três filmes sofreram críticas, algumas contundentes. Mizoguchi, acusado de elitismo e incompreensão diante das profundas e céleres transformações em curso, teria produzido relatos simplistas. O menos visado foi o segundo, “The love of actress Sumako”: este é um filme que mescla com incrível habilidade a dimensão teatral da história - ou seja, sequencias de ensaios, repetição e mise-en-scène - com o desenrolar linear da trama. Tanaka Kinuyo, a protagonista de toda a trilogia e formidável atriz, alcançou um nível de interiorização da personagem como poucas vezes se vê no cinema. A assimilação do teatro moderno ocidental, no caso Ibsen, era uma questão sensível no Japão da era Meiji. Romper com a herança dos clássicos Nô e kabuki podia denotar transgressão política e social. Mizoguchi atualizou o conflito para o difícil período de transição que o país vivia. Um realizador como o francês Jacques Rivette, que costumava trabalhar com esse duplo de representação, cinematográfica e teatral, não poupou elogios ao filme. A distância histórica, naturalmente, nos permite ver a trilogia sob uma perspectiva mais favorável em relação aos críticos contemporâneos. Alguns temas que permeiam a obra do diretor, como a desconfiança feminina em relação aos desastrados homens que as rodeiam – tal como havia sido evidenciado no magnífico “Elegia de Osaka”, de 1936 – continuam presentes. Tanaka Kinuyo constrói a conscientização de suas personagens, da advogada e da ativista, passando pela atriz Sumako, de forma clara e irrefutável. Os protagonistas masculinos à sua volta costumam ser traiçoeiros e decepcionantes, como o político liberal de “My love has been burning”, ou o promotor reacionário de “Victory of Women”. Talvez haja uma ingenuidade de Mizoguchi na celebração do positivismo feminino. Seu colaborador em inúmeros roteiros, Yoda Yoshikata, insinua que o diretor estava “perdido” no fim da guerra, com a abrupta transição política em curso e a 36 extrema preocupação em adaptar-se aos novos tempos, a fim de fazer frente à concorrência dos novos talentos. Recreation and Amusement Association Angustiado ou não, Mizoguchi Kenji replicou, ao mesmo tempo em que se ocupava com a trilogia: em 1948 dirige “Mulheres da Noite”, um de seus melhores filmes. Tanaka Kinuyo, novamente no papel principal, perde o marido na guerra e o filho pela tuberculose, descambando na prostituição para sobreviver nos tempos difíceis do imediato pós-conflito. As “pan-pan”, como eram conhecidas as prostitutas de rua desse momento vertiginoso, são retratadas com um realismo pungente. Um “shimpa” moderno e social, solução dramática que talvez só Mizoguchi seria capaz. Consta que frequentou hospitais públicos de doenças venéreas antes de rodar o filme para se inteirar dos detalhes e dramas particulares. O assunto, àquela altura, era um dos favoritos na imprensa, em meio ao caos social que se instaurou. A única ausência na tela, por motivos óbvios, era justamente quem gerava a demanda, os soldados norte-americanos. Este era um ponto que o SCAP não transigia. A realidade, como se sabe, era outra: antes mesmo de assinar a rendição oficial no encouraçado Missouri, em 2 de setembro de 1945, o governo japonês, aterrorizado com a perspectiva de estupros em massa de jovens japonesas pelas tropas ocupantes, criou a “Recreation and Amusement Association”, conjunto de estabelecimentos que recrutou cerca de 55 mil mulheres para prover “conforto” aos soldados. A RAA, como era conhecida, encerrou as atividades em março de 1946. A presença física de norte-americanos nos filmes japoneses só veio a materializar-se em larga escala depois de 1952. Nos poucos anos de vida que lhe restaram (faleceu em 1956), Mizoguchi produziu dois ou três filmes universalmente acolhidos como obras-primas. Os anos de ocupação obrigaram-no a uma flexibilização estilística sem precedentes, ele que tinha uma larga bagagem como realizador. A resultante foi magnífica. 37 Ozu Yasujiro O grande intérprete da classe média japonesa foi outro diretor que depurou sua linguagem na ocupação – se é que é possível falar em depuração em alguém que já se destacava, com louvores, pela métrica precisa da direção. Seus filmes anteriores à guerra tinham talvez mais vivacidade, dizem os críticos, mas já traziam o tom melancólico que converge para a apreciação minimalista desse ofício diário que é a existência. Ozu, enfim, já era dos realizadores mais relevantes do Japão antes do conflito: “Pai e filha”, de 1949, é o primeiro marco do excepcional refinamento que exibiria nos anos 50 e começo dos 60. Como extrair o sublime da vida banal e ordinária ? A essa questão, Ozu respondeu com um método pessoal e obsessivo, que começava na elaboração do roteiro (em geral com o parceiro Kogo Noda), partindo dos diálogos para chegar aos personagens e à história, sempre avessa a sobressaltos artificiais. Ozu inovou em vários itens: deliberada rejeição ao registro das emoções convencionais e óbvias; seleção das locações, melhor dizendo, a decisão acerca da volumetria cinematográfica; direção meticulosa e por vezes irritante dos atores, obrigados a repetir os menores gestos até satisfazer o diretor; colocação inusitada da câmera no set de filmagem, a meia altura, do ponto de vista de um personagem sentado no tatame; os famosos “planostravesseiro” de transição, naturezas-mortas que marcam a passagem dos tempos cinematográfico e espiritual; e a rigorosa construção da matéria prima do cinema, a articulação espaço-tempo que determina a causalidade das ações, seja nas casas, bares, ruelas ou escritórios. O Vazio e o Pleno Para fazer isso tudo, é preciso uma negociação bem azeitada entre uma miríade de fragmentos e um fluxo permanente de sentimentos, da tela cinematográfica para fora, e do mundo para a tela, nos dois sentidos. Uma obra que espelhe o tempo todo as infinitas mediações da existência, sem misticismos ou transcendências. Aliás, como dizia Donald Richie, autor de um belo livro sobre o diretor, Ozu não ostentava nenhum tipo 38 especial de afetação zen-budista, nada além do que a média ordinária dos japoneses professa. O famoso “kanji” inscrito em seu túmulo - “mu” em chinês - sugeriria erroneamente um compromisso transcendental com o “vazio”. A lápide provavelmente foi feita a posteriori, à revelia do diretor. Ozu gostava do ideograma, quando viu um monge desenhá-lo durante sua estada na China, de 1937 a 39, convocado pelo exército, conforme revelou em seu diário, em publicação organizada por Masaaki Tsuzuki. Mas certamente não ficaria confortável, ainda segundo Richie, de ver sua sepultura transformada em polo de peregrinação. Em 1947, roda “Discurso de um proprietário”. Ryo Chishu interpreta um cartomante que encontra uma criança perdida em Kudan, região de Tóquio onde se situa o templo Yasukuni. A referência geográfica é breve e não aparece fisicamente no filme, porém é suficiente para sinalizar uma referência de fortes conotações simbólicas. Yasukuni é o principal espaço sagrado xintoísta do Japão – até hoje o local favorito de peregrinação dos nostálgicos do militarismo - onde localiza-se também um museu com leituras duvidosas da história militar do país. A citação de Ozu é sutil e afiada. Não é mera coincidência iniciar uma narrativa cinematográfica em 1947 aludindo a Yasukuni. Recentemente, o ex-Premiê Koizumi, que governou entre 2001 e 2006, ia ao templo prestar homenagens aos heróis da guerra e imediatamente provocava a ira dos vizinhos, especialmente chineses e coreanos. O Premiê Abe, apesar de declarar que não julgava adequado fazer a visita enquanto fosse mandatário da nação, cedeu e realizou a peregrinação, em 26 de dezembro de 2013. A China protestou no mesmo dia. Livro das Almas No “Livro das Almas” do Yasukuni estão entronizados, com fotos individuais, os pilotos kamikazes e pouco mais mil oficiais acusados de crimes de guerra no Tribunal Internacional que se reuniu em Tóquio, em abril de 1946. Não é um assunto fácil: estão lá 14 criminosos “classe A”, entre os quais o General Tojo, Primeiro-Ministro entre 1941 e 44, condenado à forca pelo Tribunal. O filme de Ozu, leve e cheio de pequenas tiradas de humor ingênuo ao gosto do diretor, acompanha as peripécias do garoto para ser 39 aceito na comunidade do cartomante. O final é feliz: pai e filho se reencontram (este sim, um assunto conhecido de Yasujiro). Uma mensagem positiva no momento em que o país começava a reerguer-se, literalmente, dos escombros. Na produção seguinte, “Uma Galinha no Vento”, lançado em 1948, o diretor tangencia o que viria a ser uma de suas principais temáticas, senão a principal: a sutil e lenta dissolução da família moderna japonesa. Aqui, ao contrário dos trabalhos subsequentes, a dissolução não se apresenta nas entrelinhas: está diretamente ligada aos efeitos da guerra. Para pagar despesas hospitalares do filho acidentado, a mãe prostitui-se uma única vez, pois o marido era prisioneiro de guerra no exterior e não fora ainda repatriado. Para muitos no Japão, era como se a guerra não terminasse. Em alguns casos, como o dos retidos na União Soviética, a repatriação só foi finalizada oficialmente no final da década de 40, e mesmo assim milhares de pessoas não voltaram ou desapareceram, prolongando a angústia da separação nos anos 50 (ingleses e americanos permitiram o retorno em 1946 e 47, respectivamente). A reintegração dos soldados era uma forte preocupação das autoridades e obviamente também das famílias. Está presente em diversos roteiros escritos na época. Estupro escada abaixo No filme de Ozu, a possibilidade de cisão é explícita e datada: a guerra prolongava seus efeitos e ameaçava a família. Um texto de Jonathan Rosenbaum sublinha alguns aspectos negligenciados de “Uma Galinha no Vento”: as raríssimas cenas, para um filme de Ozu, de agressão física por parte do marido, e estupro da própria esposa (Tanaka Kinuye), chegando a empurrá-la escada abaixo. A reação masoquista da mulher está igualmente exacerbada. Mesmo a inusitada tomada frontal da escada no claustrofóbico recinto onde vivia a família, um detalhe de composição visual, também inclui-se nesse conjunto de raridades estilísticas. Conforme o crítico Hasumi Shigehiko (que escreveu um excelente livro sobre o diretor, traduzido e publicado pela editora do Cahiers du Cinema), é intrigante que Ozu quase nunca tenha filmado escadas dessa forma, de frente, apesar de sempre frisar 40 implicitamente a importância simbólica das escadas nas casas japonesas. Hasumi vai mais longe e sugere que a cena teria sido inspirada em “E o vento levou”, quando Scarlett O’Hara cai da escada e sofre um aborto. Sabemos que Ozu valorava muito alguns filmes americanos, como “Cidadão Kane”. Rosenbaum ressalta os três cartazes de películas americanas que aparecem em um único cômodo desta produção de 1948. Mas seria irônico e perverso admitir que o clímax de “Uma Galinha no Vento”, que levou outros intérpretes a imaginar o filme como uma metáfora da derrota japonesa – a esposa representaria a pureza maculada do Japão – tenha tido como referência “E o vento levou”. Talvez uma outra leitura seria perceber o filme de Ozu como uma dupla sutura alegórica: a primeira, referente ao próprio drama da guerra e explicitada pelo soldado que se reintegra no lar “manchado”, é percebida conscientemente pela audiência; e a segunda, mais inconsciente, é ligada ao uso dos dispositivos da linguagem, e diz respeito ao reino indistinto dos gestos e pulsões que o diretor captava nessa mesma audiência, transformando-os em narrativas. A ameaça à desintegração familiar constituía-se como ansiedade latente no público do pós-guerra, traumatizado pela violência e inseguro diante do futuro. O excesso de ações descritas fisicamente não se repetiu na carreira do diretor. Segundo Richie, o próprio Ozu não apreciava “Uma Galinha no Vento”. Édipo no Japão “Pai e filha”, de 1949, é o produto de um refinamento. É como se o processo de dissolução, que no filme anterior era descrito carnalmente, assumisse agora um caráter abstrato, distanciado. Tudo concorreu para a realização dessa obra-prima: precisão cirúrgica na montagem e nas manipulações do tempo; ausência de pontuações artificiais na imagem (“fades”, fusões, “dissolves”); uso constante da câmera baixa (cerca de 3 pés, pouco menos de 1 metro do chão) e da lente 50 mm; sequências de transição nos trens, sempre um recurso valioso no cinema japonês; mise-en-scène contida e permeada de mesuras de cortesia próprias de um estrato social mais estabelecido; a estreia, nos filmes do diretor, da excepcional Hara Setsuko; e um drama edipiano, para usar uma 41 terminologia psicanalítica “ocidental”, narrado com tonalidades intensas e controladas. No geral, um acerto feliz. Como situar a produção de “Pai e filha” no seu momento histórico ? Ao reconciliar traços aparentemente conservadores da cultura japonesa (do casamento arranjado ao teatro Nô, passando pela famosa cena do vaso, no hotel em Quioto) com a atmosfera liberal estimulada pela ocupação (mulheres divorciadas, patriarcalismo ameaçado) teria Ozu elaborado o receituário para a sociedade japonesa operar a cicatrização do trauma da guerra ? Este é um filme que definitivamente desafia os exegetas, a um só tempo moderno, com cortes imprevistos e suspensão da continuidade ancorada nos pontos de vista da câmera, e melodramático, com pontos de virada emocionais, magnificamente interpretados pelos dois protagonistas. “Pai e filha” não desapontou os espectadores contemporâneos e arregimentou uma fiel e sofisticada camada de admiradores nos anos que se seguiram. Um vaso, apenas um vaso A cena do vaso, sobretudo, tornou-se uma verdadeira baliza para o debate em torno da obra do realizador. Inserido em um diálogo noturno entre pai e filha, na viagem a Quioto que marcou a distensão do relacionamento dos dois – a filha resigna-se e aceita o casamento – o vaso aparece em meio a sombras, filmado de um ângulo inesperado, sem relação com os personagens e seus respectivos olhares. Donald Richie via nele um “container” de emoções, um objeto que capta nossas expectativas em relação ao futuro de ambos. David Bordwell, outro crítico de renome que se debruçou sobre a obra do diretor, enxergou na cena uma sutil ruptura formal com as normas da continuidade e causalidade da narrativa cinematográfica. Não faltam hipóteses e especulações, dentro e fora do Japão. Talvez a mais elaborada seja a do filósofo Gilles Deleuze, no seu fabuloso estudo “Imagem-Tempo”. O vaso, lembra Deleuze, aparece interposto entre duas imagens em diagonal da filha, que dorme ao lado do pai, entre um meio-sorriso ao constatar o ronco do interlocutor, e o começo de um leve choro melancólico. O vaso é a cristalização da separação que virá em breve, em virtude do seu casamento, é algo que vai acontecer, mudança, passagem. 42 Mas a forma daquilo que muda, em si mesma não muda, é simplesmente um vaso: o vaso, enfim, é a representação do tempo, do tempo em estado puro. “Pai e filha” transita entre esses registros, abstrato e concreto, popular e erudito, satisfazendo diferentes demandas. Nas décadas seguintes, Ozu consolidou seu prestígio, mesmo com as mutações culturais experimentadas pelo Japão na segunda metade do século 20. Uma referência irônica, que homenageia e dessacraliza ao mesmo tempo o filme, é o longa-metragem de Suo Masayuki, “Abnormal Family: My brother’s wife”, de 1983. Típico produto do gênero “pink”, produções soft-core que vicejaram nos anos 70 e 80, trata-se de uma paródia direta de “Pai e filha”, até nas famosas elipses narrativas. O casamento de Hara Setsuko, por exemplo, não aparece no filme de Ozu: em “Abnormal Family” também não, mas somos remetidos diretamente ao leito conjugal. O bar favorito frequentado em 1949 por Ryu Chishu tem, em 1983, mulheres “dominatrix” como atendentes; e os personagens, a despeito da atitude corporal contida, não hesitam em interagir sexualmente. E assim por diante. “The Japanese Tragedy” Sergei Eisenstein julgava ser o cinema japonês dos anos 20 uma mera adaptação do naturalismo supostamente inerente da dramaturgia ocidental – e portanto ignorando o potencial cinematográfico que as artes tradicionais exibiam no Japão, do teatro kabuki aos poemas haicai. Seu brilhante texto de 1929, “O princípio cinematográfico e o ideograma”, terminava conclamando os diretores japoneses de cinema a aplicar em seus filmes as virtudes singulares da cultura nipônica: caso contrário, seriam os demais realizadores, os não-japoneses, a fazê-lo. O que Eisenstein não poderia supor é que a influência do cinema soviético, que foi pensado como instrumento estratégico de conscientização social, estava presente no arquipélago. Em 1929, a “Liga do Filme Proletário do Japão”, conhecida como Prokino, produzia documentários e cinejornais, projetava filmes em assembleias e demonstrações, enveredando com o tempo para filmes de ficção e mesmo animação. Nomes como Mizoguchi Kenji e Kogo Noda, o grande parceiro de Ozu nos roteiros, 43 colaboraram com o movimento. Um de seus membros proeminentes, Iwasaki Akira, preso em 1938 por ser “marxista”, veio a produzir em 1946 o documentário “The Japanese Tragedy”, proibido poucas semanas após o lançamento - o único filme integralmente vetado pelo SCAP. O diretor, Kamei Fumio, que se autodefinia como humanista de esquerda, também já tinha sido preso, em 1941 – a única personalidade de cinema a ser efetivamente encarcerada durante a guerra por supostas atividades contra o regime militar. A geologia do Monte Fuji De acordo com Hirano Kyoko, em seu trabalho sobre o cinema durante a ocupação, Kamei estudou cinema em Leningrado (hoje São Petersburgo) e inspirou-se na estética revolucionária soviética, que visava a “expressão ideológica através das imagens”. Seus filmes preferidos eram “Encouraçado Potemkin”, de Eisenstein, e “A Mãe”, de V. Pudovkin, respectivamente de 1925 e 26. Seu primeiro documentário, “Shanghai”, produzido pela marinha japonesa em pleno 1937, recebeu críticas dos militares por ser simpático aos chineses – a cidade foi ocupada neste mesmo ano pelo Japão, depois de três meses de batalha sangrenta. Em 1938, Kamei voltou à carga em “Soldiers at the front”, documento sobre a exaustão física e mental dos soldados japoneses, assim como das vítimas chinesas. O filme foi banido: os militares surpreenderam-se com a audácia solitária de Kamei Fumio de realizar um libelo anti-guerra em plena ebulição expansionista. Em 1941, antes da prisão, propõe ao governo o roteiro “The geology of Mount Fuji”, logo rejeitado – usar um discurso científico para falar da principal referência mística do Império era uma blasfêmia evidente. Um comunista no Japão Iwasaki Akira, o produtor de “The Japanese Tragedy”, foi solto em 1940, e ficou desempregado. Era uma situação provável para alguém marcado de pertencer ao partido comunista, durante um regime de extrema direita engajado em um esforço de 44 guerra. Acabou conseguindo um meio-expediente na “Mandchuria Film Corporation”, empresa criada pelo governo para produzir e exibir filmes no território ocupado. Segundo Hirano, a corporação conseguiu a proeza de abrigar extremistas de direita, insatisfeitos com a “corrupção e a má orientação fornecida ao Imperador”, e um grupo de esquerdistas que havia escapado para a Manchúria fugindo da repressão e incapaz de qualquer articulação política. Acabada a guerra, Iwasaki passou a produzir cinejornais, igualmente submetidos ao exame prévio pelas forças norte-americanas de ocupação. Logo em fevereiro de 1946 colidiu com a censura: programou para 11 de fevereiro de 1946, dia da fundação do império japonês, 2.600 anos atrás – data obviamente imaginária – uma reportagem desconstruindo o mito do Imperador celestial. O problema foi ter incluído uma fala editada do Ministro da Educação, insinuando a concordância deste com a desconstrução proposta. O Ministro enfureceu-se e pediu apoio do SCAP: o cinejornal foi exibido com a entrevista cortada. O episódio parece ter reforçado em Iwasaki a determinação de produzir um documentário de longa-metragem, crítico do militarismo e, em particular, do próprio Imperador, julgado o principal culpado pelo desastre da guerra. Uma visão que iria se chocar, como se viu, com a percepção dos ocupantes acerca da importância do soberano como fator estabilizador da sociedade japonesa. Dessacralização da imagem imperial Contratado, Kamei Fumio lançou-se com apetite na produção, reunindo material de arquivo de cinejornais, fotos, clippings da imprensa e trechos de filmes de ficção japoneses produzidos durante a guerra. Além disso, utilizou também imagens fornecidas pelo SCAP, até material capturado pelos japoneses durante a guerra. A montagem foi feita com planos de curta duração, em ritmo febril, mostrando o Imperador e acólitos, de políticos a intelectuais, justificando ações bélicas. Em contraponto a esse discurso, imagens de caos e pobreza, em função da violência da guerra e da penúria crescente após a rendição. Hirano Kyoko destaca a montagem de fotos do Imperador Hiroíto, fundindo a imagem pré-guerra, de traje militar e medalhas, com a veiculada após a 45 derrota, de terno civil e chapéu, denotando a definitiva destronização do sistema imperial (seu livro traz essa montagem na capa). Em suma, os quinze anos de agressão japonesa são passados a limpo, com destaque para a malfadada política pan-asiática. O resultado final, a despeito da narração um tanto rudimentar, convence o espectador, sobretudo pelo “entusiasmo” da realização. Naquele momento, a película certamente tinha um apelo forte para impressionar a audiência. Um dos admiradores do filme era David Conde, integrante do SCAP e conhecido por posições de esquerda. Inicialmente, o documentário foi aprovado pelo CIE – a instância censória integrada por civis – onde estava Conde. Em seguida, também o foi quase de forma automática pelo CCD, composto por militares e preocupado com aspectos de inteligência militar. O filme demorou para encontrar distribuidores e salas de cinema, tendo sido lançado em julho de 1946 em um pequeno circuito independente. Yakuza e a extrema direita Foi então que o Primeiro-Ministro Yoshida Shigeru, tendo ouvido falar do tom iconoclasta do documentário, organizou uma sessão em sua própria residência, na companhia de autoridades do governo e militares norte-americanos. Não tardou para que o CCD voltasse atrás e proibisse o filme, o único efetivamente vetado naquele período. Conde demitiu-se e foi trabalhar na agência Reuters. Iwasaki pouco depois sofreria ataque a facadas, creditado por ele a um chefe yakuza notoriamente de extrema direita, irritado com o tratamento dado à figura do Imperador. Algumas sessões ainda foram realizadas, inclusive na Universidade de Tóquio, mas cópias e negativos foram definitivamente confiscados em 16 de agosto de 1946. O documentário só foi ser exibido depois de encerrada a ocupação, em 1952, quando a dessacralização do Imperador podia ser, em princípio, explicitamente abordada. “The Japanese Tragedy” ultrapassou o limite que a ambiguidade da presença norte-americana podia permitir. A figura do Imperador, a despeito de não ostentar a 46 aura divina do pré-guerra, ainda permanecia (e permanece) em uma esfera extremamente reservada. Em “Japan´s longest day”, dirigido por Okamoto Kihachi em 1967, vigoroso filme que narra os (patéticos) bastidores da decisão imperial de fazer o famoso pronunciamento no rádio reconhecendo a derrota, o Imperador jamais aparece frontalmente. O recurso é análogo às produções bíblicas hollywoodianas, que até pouco tempo faziam o mesmo com Jesus Cristo. Em relação a presidentes e realeza, porém, os anglo-saxões nunca hesitaram em expor as mais variadas facetas e personalidades: na casa imperial japonesa, isto não ocorre. Recorde-se Roland Barthes, no seu belo ensaio “Império dos Signos”, ao constatar surpreso que o Palácio Imperial em Tóquio era um “ponto cego” na cidade, inacessível à visão dos súditos. Foi preciso um realizador russo, Alexander Sokurov, para Hiroíto finalmente encontrar seu espaço dramático, no prodigioso “The Sun”, de 2005. Naruse Mikio Perguntaram uma vez a Kurosawa Akira o que ele achava do cinema de Naruse, e a resposta, metafórica como recomenda a boa tradição japonesa, foi certeira: “um rio profundo com uma superfície plácida, dissimulando nas suas profundezas as correntes furiosas”. Na superfície do rio, os personagens caminham, falam e interagem, de modo fluido e natural, fazendo com que o tempo passe como se fosse um curso d’água, úmido e incessante, calmo e previsível. No fundo do rio, no seu leito, os desejos e as emoções se chocam, se completam ou se anulam, em movimentos frenéticos e imperceptíveis, mas intensos e por vezes violentos. Do contraponto dessas duas vertentes nasce a cinematografia narusiana. Produtividade Naruse Mikio demorou mais do que os seus celebrados conterrâneos – Kurosawa, Mizoguchi e Ozu - para tornar-se apreciado no Ocidente. Sua extensa obra é testemunha das vicissitudes experimentadas pelo Japão ao longo do século 20, sendo 47 por isso mesmo heterogênea. Sua vitalidade, uma verdadeira compulsão de filmar, é impressionante: foram 88 filmes em 37 anos de carreira. O talento e a rapidez com que realizava seus filmes garantiu a continuidade da produção, que atingiu o ápice, a exemplo dos companheiros de geração, na década de 50. A modernização da sociedade japonesa, com foco nos personagens femininos, foi seu tema predileto. Naruse refinou seu olhar a tal ponto que seus filmes assimilaram dois movimentos aparentemente contraditórios no Japão moderno: o ímpeto desenvolvimentista, por um lado, e o mal-estar do afastamento das tradições, por outro, produzindo uma síntese histórica especial. Durante a ocupação, em pouco menos de sete anos, Naruse dirigiu 13 longasmetragens. Catherine Russell, autora de um extenso e completo estudo sobre a obra do diretor - “The cinema of Naruse Mikio: women and Japanese modernity” -, identifica quatro conjuntos temáticos nessa produção. O primeiro deles, “assuntos políticos”, refere-se a dois filmes realizados em 1946, “The Descendants of Taro Urashima” e “Both You and I”, ambas comédias com pano de fundo dos novos tempos democráticos, tal como preconizavam as diretrizes do SCAP. Em seguida, duas produções sobre “educação sexual”, um longa, “Spring Awakens”, de 1947, e um curta (”Even Parting is enjoyable”), incluído em um filme de episódios no mesmo ano. O terceiro grupo consiste em quatro produções lançados em 1950, que Russell chama de “etnografias sentimentais” da sociedade japonesa, onde se destacam “The Angry Street” e “White Beast”. O quarto grupo, de 1951, relaciona quatro longas baseados em obras literárias, como “Ginza Cosmetics”, e a primeira de suas obrasprimas do pós-guerra, “Vida de casado” (restaria uma produção de 1949, “Delinquent Girl”, do qual não existem cópias disponíveis). O Grito Um ritmo de tirar o fôlego, sem dúvida. Assinada a rendição, Naruse não titubeou, realizando na sequência dois longas leves e superficiais, ingênuos e bem humorados, mas com recados políticos certeiros, como queriam os norte-americanos. “The Descendants of Taro Urashima” narra a ascensão política de um ex-combatente 48 que perdeu tudo na guerra e recusa-se a mergulhar no pessimismo. Enche os pulmões e grita pelas ruas e parques, atraindo hordas de simpatizantes por esse desabafo onomatopeico, inclusive uma jovem jornalista, vivida pela atriz favorita de Naruse, Takamine Hideko. Igualmente atraídos estão representantes do “zaibatsu”, os grandes conglomerados econômicos que lucraram com a guerra e agora procuravam a qualquer preço refazer a imagem. O objetivo é transformar Urashima em um garoto propaganda do seu partido político. O diretor seguiu à risca a recomendação do SCAP feita em 1945, que por essa época realmente planejava implodir esses grupos, influentes há séculos, consolidados na era Meiji e instrumentais na construção do poderio bélico japonês. Sugimura Haruko, outra formidável atriz, exerce a pedagogia democrática no seu papel de professora, e os lobistas do “zaibatsu” são desmascarados. Os conglomerados e a cosmética O projeto “antitruste” dos norte-americanos foi paulatinamente abandonado na medida em que os instintos conservadores do general MacArthur prevaleceram. A Guerra Fria se aprofundava e a necessidade de apoio logístico e financeiro japonês, sobretudo dos “zaibatsu”, era fundamental. Logo em seguida, ainda em 1946, Naruse dirige “Both you and I”, comédia com dupla de atores populares do estilo “manzai”. A tradição “manzai” no Japão contrapões sempre dois cômicos, um “certinho” e o outro “desajeitado”, às voltas com situações de duplo sentido, desentendimentos burlescos e gags verbais. No filme, a dupla é obrigada a divertir diariamente o patrão e seus convidados, integrantes dos “zaibatsu” favorecidos durante a guerra. Mais uma vez prevalece a orientação do SCAP e os princípios democráticos, consignados nos direitos individuais dos assalariados, são reafirmados. Na sequência final os funcionários se revoltam, liderados pela dupla “manzai”, e todas as verdades são ditas ao patrão. O enredo sugere analogias com a situação de alguns executivos dos estúdios de cinema, também beneficiados no período das hostilidades. Entre 1946 e 47 uma comissão de vários segmentos da indústria cinematográfica elaborou, a pedido das forças de ocupação, uma lista de 31 indivíduos acusados de “incitação à guerra” por 49 meio de atividades ligadas ao cinema. A partir da guerra da Coreia, em junho de 1950, a maioria foi reintegrada. Quanto aos “zaibatsu”, logo desapareceriam as críticas, por determinação do censor norte-americano. Mais tarde, foram criados os “keiretsu”, que na prática eram os “zaibatsu” renomeados e impregnados de técnicas de administração dos EUA. Naruse Mikio enveredou por outras searas igualmente caras às diretrizes do SCAP, educação sexual e emancipação da mulher. “Spring awakens”, de 1947, é um exercício quase didático sobre sexualidade entre adolescentes – e também o primeiro beijo filmado pelo diretor. Para romper com o patriarcalismo da era feudal, seria necessário emancipar as mulheres (objeto da nova Constituição, promulgada em maio de 1947) e introduzir novos parâmetros de comportamento que promovessem igualdade dos sexos. Nessa linha foi feito, em 1950, “Ginza cosmetics”, filme notável. Tanaka Kinuyo, a atriz de Mizoguchi, faz o papel de “hostess” de um pequeno bar em Ginza, centro do Tóquio, cheio de lojas de departamentos e boemia. Seu temperamento é generoso: a narrativa é um simples desdobrar do seu cotidiano, amargo, mas gratificante. Sua autoconfiança domina o entorno. Um “plot” semelhante seria desenvolvido pelo autor em “Quando a mulher sobe a escada”, de 1960. Melodrama refinado “Vida de casado”, também de 1950, revela um Naruse plenamente consciente dos recursos do melodrama, entendido como expressão histórica das negociações afetivo-emocionais da classe média, incluindo repressões à sexualidade e respectivas sublimações. A definição é sumária, mas útil para situar o enfoque do diretor, que naturalmente procurava corresponder aos anseios da plateia. De moto próprio e auxiliado pelas diretrizes do SCAP, elegeu o ponto de vista feminino como dominante em a “Vida de casado”. Opção mais do que feliz e acertada, pois contou com Hara Setsuko, a atriz de Ozu, no papel principal de esposa crescentemente insatisfeita com o casamento. 50 Junto com Uehara Ken, outro excelente ator, Hara constrói um mundo um torno de si, onde eventuais excessos – tempestades, risos histéricos ou breves sobressaltos na trilha musical – parecem prevenir e impedir a satisfação feminina. Essa descrição da economia libidinal da personagem, sugerida por Catherine Russell a partir de um comentário de Laura Mulvey sobre Douglas Sirk, ajusta-se como uma luva ao universo ficcional de “Vida de casado”: suave e áspera descrição das mazelas de um jovem casal em uma vizinhança mediana de Osaka. A temática feminina sempre esteve em evidência no cinema de Naruse. A exemplo de Ozu, Mizoguchi e outros realizadores experientes, a ocupação proporcionou novos estímulos ao diretor, que deslanchou definitivamente na década de 50. Shimizu Hiroshi, Kinoshita Keisuke Com uma pequna diferença de idade – Shimizu nasceu em 1903, Kinoshita em 1912 – esses dois diretores realizaram, no pós-guerra, dois filmes fabulosos, “Children of the Beehive”, de 1948, dirigido por Shimizu, e “Morning for the Osone Family”, de Kinoshita, em 1946. Malgrado os limites e restrições impostos pelos ocupantes, ambos lograram veicular, cada um à sua maneira, duas histórias reveladoras das fraturas dos desastres da guerra, uma espécie de retorno do trauma histórico recalcado dos anos recentes. Muitos creem que Shimizu ficou eclipsado pelo contemporâneo Ozu. Talvez a afirmação seja mais válida para a década de 50, quando Ozu chegou a um domínio impressionante da linguagem, e Shimizu não acompanhou. Nas décadas anteriores, porém, a produção de ambos se equiparava. “Children of the Beehive” traz a marca indelével do diretor. Um grupo de crianças órfãs vagueia pelo Japão detonado dos ataques aéreos da guerra, até encontrar um soldado que as guia por entre os escombros. Não se trata de moralismo ou pieguice: apenas crianças pragmáticas que lutam para sobreviver, sem vilões ou heróis. Um dos locais visitados nesse “road movie”, um dos estilos preferidos de Shimizu, é Hiroshima pós-bomba nuclear. Não há discussões ou alusões à tragédia. Um personagem feminino se junta à errância dos demais, compondo o painel. 51 As crianças, órfãs também na vida real, foram reunidas por Shimizu, que montou uma fundação de apoio de menores vítimas do conflito. Em 1952, realiza “Children of the great Buddah”, também com órfãos da guerra, desta feita atuando como guias dos belos templos de Nara, capital do Japão entre 710 e 794, época em que os japoneses absorveram muito da cultura chinesa, da escrita ao budismo. Silent night Kinoshita Keisuke foi outro prolífico diretor, com 51 filmes em 45 anos. O novo contexto político da ocupação favoreceu a esse autor inquieto, que escrevia seus próprios roteiros, em geral sem parceiros. Trazer à tona contradições e disparates de uma sociedade em transição, desde que ajustados ao programa civilizatório das forças ocupantes, era para ele um estímulo a mais. Em 1946 dirige “Morning for the Osone Family”, uma impiedosa revisão da ideologia militarista ambientada durante a guerra, vista através de uma família liberal e culturalmente aberta ao exterior. O filho mais velho é encarcerado por oposição ao nacionalismo; o segundo, obrigado a alistar-se. A filha é impedida de casar-se com o filho de um industrial, pois a família era considerada “subversiva”; e o caçula cai sob o domínio do tio, militar ultranacionalista que acreditava, até o fim do conflito, no triunfo nipônico. O contraponto é a mãe liberal e viúva, que não consegue opor-se ao cunhado. Encerrada a guerra em 1945 e confrontado com sua hipocrisia, o militar friamente alega ter apenas “seguido ordens”. “Morning for the Osone Family” abre na noite de Natal, com a família Osone cantando “Silent Night”, a tradicional canção do cristianismo ocidental. Encerrada a ocupação dos EUA, em 1952, a censura passaria definitivamente para a “Eiren”, acrônimo pelo qual é conhecida a entidade criada pela indústria cinematográfica local. Já em 1949 a “Eiren” havia copiado o modelo da “Motion Pictures Association of America” de autorregulação, que classificava os filmes de acordo com as faixas etárias. Uma nova era se iniciava: como disse Donald Richie, finalmente os japoneses poderiam falar de si mesmos. 52 Capítulo 3 Anos 50 e além: os Clássicos Os dados da “Eiren”, a associação da indústria cinematográfica no Japão, são retumbantes: entre 1955 e 60, foram vendidas anualmente cerca de 1 bilhão e trinta milhões de entradas de cinema. Na grande maioria das vezes, esse filme era japonês – 72 % do mercado a cada ano, em média, era ocupado pelo produto local. As estatísticas começaram a ser feitas de forma sistemática a partir de 1955, e são, como de hábito no país-arquipélago, meticulosamente precisas. Em 1958, recorde absoluto: foram vendidas 1 bilhão, 127 milhões e 452 mil entradas, em 7.067 salas de cinema. Foram lançados 673 filmes, dos quais 504 japoneses. Os números impressionam. O cinema dava muito dinheiro. Os grandes estúdios - Toho, Daiei, Shochiku, Nikkatsu, e Toei – beneficiavam-se ainda da verticalização no setor, em que controlavam produção, distribuição e exibição. Com isso era possível manter sob contrato diretores, atores e técnicos. Malgrado os sobressaltos experimentados no século 20, é desnecessário repetir, a indústria tinha resistido: nos tempos duros, como no caso da Segunda Guerra Mundial, as fusões de estúdios estimuladas pelo governo viabilizaram a sobrevivência. Mesmo no pós-guerra, enquanto a economia lutava para reerguer-se, o setor faturava initerruptamente – era talvez o entretenimento mais acessível à população, além de contar com estímulo das forças norte-americanas, que viam nele um instrumento eficaz de difusão dos novos valores. Só em 1953 foi feita a primeira transmissão de televisão, futuro concorrente das salas, pela NHK. O fim da ocupação abriu novos horizontes temáticos aos produtores. O mercado expandiu-se. “Godzilla”, lançado em 1954, vendeu 9,6 milhões de entradas, a terceira maior bilheteria daquele ano. O filme funcionou como uma espécie de somatização coletiva do flagelo nuclear de poucos anos antes, em Hiroshima e Nagasaki. O “monstro” 53 – despertado pelos testes da bomba de hidrogênio no Pacífico – materializou uma ansiedade latente na sociedade, ao mesmo tempo que confirmou a aliança do Japão com o Ocidente, sinalizando a capacidade do audiovisual japonês de entregar produtos de alcance global. A longevidade da marca “Godzilla”, 30 filmes em 60 anos, mais todos os subprodutos decorrentes, o comprovam. A franquia representa, para a cultura pop, o que “Rashmon” significa para o “cinema de arte” dos anos 50 (curiosamente Kurosawa e Honda Ishiro, diretor de “Godzilla”, eram amigos próximos). No século 21, com a fragmentação dos “outputs” audiovisuais, o cenário mudou. Em 2014 foram vendidos pouco mais de 161 milhões de ingressos, em 3.364 salas, com 58,3 % de ocupação dos filmes japoneses. Esses números representam uma média aproximada dos últimos quatorze anos. O número de filmes japoneses lançados era 282 no ano 2000; em 2014, alcançou 615. A maior parte dessa produção foi realizada em conjunto com a televisão. Hoje a audiência é majoritariamente eletrônica. As salas de cinema representam uma pequena fração do consumo audiovisual, uma espécie de vitrine na cronologia desse consumo, pulverizado entre vários “outlets” (do game ao celular, da “smart TV” ao tablet). Strip-tease Inocente Se algum consenso existe entre os (muitos) apreciadores do cinema japonês, é que a década de 50 representa o que há de melhor na produção do arquipélago. Uma série de razões embasam essa afirmação: em primeiro lugar, obviamente, é a vitalidade mesma da atividade cinematográfica no país, desde os anos 20. O “drive” competitivo da indústria e do pessoal envolvido – atores, técnicos, criação, produtores – é impressionante. Outro aspecto é que as experimentações, o “cinema de arte”, eram levadas a cabo dentro do próprio sistema - de natureza puramente comercial – e em permanente diálogo com a audiência. Uma indústria verticalizada como a japonesa, como era no período clássico, tende a inibir produções independentes. A depuração que Ozu e Mizoguchi chegaram em suas respectivas linguagens audiovisuais foi obtida nesse 54 contexto. Mesmo após a decadência das empresas produtoras, nos anos 60, e a fragmentação do público em função dos novos suportes de consumo, o diálogo continua: destacados diretores do século 21, como Kurosawa Kiyoshi e Aoyama Shinji, atuaram no “V-Cinema” dos anos 80 e 90 (filmes distribuídos diretamente em vídeo). No Japão, a relação intensa com o mercado molda a mão do diretor. Kinoshita Keisuke não foi exceção. Durante a década de 50, realizou filmes bem sucedidos na bilheteria, e não hesitou em expandir seu vocabulário cinematográfico quando era possível. Foi dele a primeira película colorida feita no Japão, “Carmen comes home”, filmado em 1951 e lançado em 1952. A comédia musical traz Takamine Hideko, um dos mais belos sorrisos do cinema, no papel de “stripper” em visita seu vilarejo natal. O choque e a repulsa inicial dos seus conterrâneos só foram superados quando Carmen – o próprio nome, ao evocar um mito feminino ocidental, já é uma ironia – resolve apoiar uma escola local. Sublinhe-se que a profissão de “stripper”, tal como se apresenta no imaginário masculino do século 20, foi incutida no cenário nipônico sobretudo durante a ocupação norte-americana. Não que os japoneses fossem ingênuos ou avessos a assuntos dessa ordem: simplesmente a fetichização do corpo feminino, da forma como era praticada na indústria de entretenimento ocidental, não era difundida no Japão. Puro Amor Diante do sucesso da fita, Kinoshita não pensa duas vezes e lança a sequência no mesmo ano, 1952: “Carmen’s innocent love”, também conhecido como “Carmen falls in love” ou “Carmen pure love”. De volta a Tóquio, circulando entre Asakusa e Ginza, distritos boêmios da capital, Carmen, a “stripper” ingênua – ela considera seu ofício uma “arte” - apaixona-se por um artista “moderno”, que por sua vez está comprometido com a filha de uma controversa mulher envolvida com política. Não sobra praticamente nada dessa sátira devastadora: a pureza das jovens japonesas, os tradicionalistas, os recémconvertidos à religião de consumo americana, e mesmo o flagelo nuclear. Higashiyama Chieko, a atriz que faz o papel da mãe idosa em “Era uma vez em Tóquio”, realizado em 1953 por Ozu, tem no filme de Kinoshita o papel de governanta obsessiva com a bomba atômica (até a janela que não abre é culpa da bomba). 55 No plano formal, o diretor optou pelo preto-e-branco e, na composição visual, pelos famosos “ângulos holandeses”, pequena inclinação da câmera que gerava uma imagem enviesada - recurso muito em voga à época pelo sucesso de “O Terceiro Homem”, de Carol Reed, com atuação inesquecível de Orson Welles. No final da nova aventura, Carmen se despede com a promessa de mais um episódio, afinal não realizado. Kinoshita trabalhou praticamente por toda a vida no estúdio Shochiku, a exemplo de Ozu. Ao contrário deste, que construiu sua trajetória no cinema como um constante aperfeiçoamento da mesma temática, Kinoshita foi mais flexível, alternando estilos. Mesmo variando na forma, sua obra tem um traço comum: personagens que perdem a inocência diante da dureza da vida, obrigados que são a encontrar saídas a partir das próprias capacidades. Durante a ocupação, seus filmes muitas vezes adotavam tom satírico. À medida em que ficava para trás esse período, contudo, sua produção voltou-se para o drama. Uma tragédia japonesa Logo em 1953 Kinoshita lança “Uma tragédia japonesa”, filme que mescla vidas amargas com trechos de cinejornais da época da guerra e do pós-guerra – uma homenagem, voluntária ou não, ao documentário homônimo de Kamei Fumio interditado pelos censores norte-americanos em 1946. A montagem é decididamente experimental: o material de arquivo de cinejornais, produzido para um consumo “de atualidades”, como se dizia, adquire uma dimensão especial, ultrapassando o status de mero registro jornalístico. Greves, passeatas, bombardeios, sofrimentos, euforias – todas essas imagens que supostamente carregam uma autenticidade, imagens que consideramos “reais”, passam a ter, pela insistência com que são intercaladas na narrativa ficcional, uma aura de inconsciente coletivo. Um inconsciente de dupla face – guerra e ocupação – que foi recalcado e que retorna no fluxo da ficção. Duas tramas familiares se alternam na história. A principal é centralizada por uma mãe viúva, obrigada a viver longe dos filhos para sustentá-los, e trabalhando como “hostess” de uma casa noturna. Algo como uma gueixa dos tempos modernos, sem os 56 rigores da tradição e a um passo da prostituição. Sua função era a de anfitriã de homens de negócio e “salarymen”, um ambiente comum no Japão. Os clientes pagam por uma companhia, alguém que os entretenha e os divirta, sem necessariamente levar ao sexo. Os filhos não aceitam e se envergonham, apesar da afeição exagerada da mãe. A filha, traumatizada por ter sido estuprada pelo primo, termina fugindo com seu professor de inglês, ele mesmo vivendo um fim de casamento conturbado (trama secundária). O filho torna-se médico e se casa com a filha do dono da clínica onde trabalha, afastando-se da mãe. Além dos cinejornais, as imagens traumáticas pessoais, da mãe e dos filhos, também insistem em retornar, repetidas na montagem de Kinoshita. O fim é uma não-saída. No end story A pesquisadora Catherine Russell dedicou-se a estudar as premissas do cinema clássico japonês dos anos 50. Para ela, uma das principais distinções entre a produção do arquipélago e a hollywoodiana é o fim em aberto da maioria dos filmes japoneses, assertiva válida também para o período clássico. Nas produções norte-americanas a necessidade de um fim fechado, seja implicando um juízo moralista, seja no “happy ending” tranquilizador, cristalizou-se como dispositivo de linguagem a partir dos fundamentos conservadores da sociedade norte-americana, assimiladas pela indústria cultural. Os japoneses, que prezam o “mono no aware” como ideal estético – a doce melancolia, a empatia para com as coisas efêmeras, a consciência da inevitabilidade da morte – tendem a deixar espaço para divagações do espectador. Claro, em ambas as cinematografias existem exceções à regra. Russell lembra que durante a ocupação os censores americanos insistiam no “final fechado”, influenciando alguns realizadores. Em geral, contudo, este foi um traço diferenciador do “classicismo modernista” desenvolvido pela cinematografia no arquipélago. 24 eyes 57 O filme mais popular de Kinoshita, no Japão e no mercado internacional, é certamente “Sublime dedicação”, de 1955 – também conhecido pelo título em inglês “24 eyes”. Como definiu Donald Richie, é uma mistura de “crítica e compaixão”. Takamine Hideko (a Carmen “stripper”) desta feita é uma professora na ilha de Shodoshima, a segunda maior no Mar Interior japonês, um corredor marítimo na parte ocidental do país, abrigando cerca de três mil ilhas. A história começa em 1928 com a chegada da professora à escola, em um vilarejo rural, e acompanha a escalada do militarismo em meio às vivências de seus doze alunos, meninos e meninas. As turbulências do período interagem com a pequena comunidade, mediadas pela visão pacifista da personagem de Takamine. Em choque com a ideologia prevalecente no Estado japonês nos anos 30, ela abandona a escola. Chega a guerra e a professora perde o marido, além de alguns alunos: ultrapassado o conflito e combalida como o restante da população, retoma o cargo de professora. Um filme anti-guerra que se aproxima do estilo “shimpa”, carregado de tonalidades dramáticas que encontram, de alguma maneira, a virtude na adversidade. Uma exorcização dolorosa da aventura guerreira, que termina em aberto, deixando no espectador uma sensação de transitoriedade fugaz e melancólica. De Kinoshita Keisuke, a talentosa Takamine Hideko também atuaria em “O Inesquecível”, de 1961, história que igualmente atravessa gerações: violentada pelo filho do dono das terras onde sua família trabalhava, é obrigada a casar-se com ele e a viver um inferno conjugal, superando ao final a crueldade do marido e tornando-se ela mesma fria e implacável. Em “O Murmúrio do Rio Fuefuki”, de 1960, testemunhamos a trajetória de cinco gerações de uma família de agricultores pobres. E no último filme relevante do diretor, “Flor e Incenso”, de 1964, assistimos à tumultuada relação entre mãe e filha, ambas prostitutas, do começo do século (guerra russo-japonesa) até os anos 60. Kinoshita cada vez mais ampliava o escopo do tempo em suas narrativas, preocupação que Imamura Shoei, diretor da “nouvelle vague” japonesa, também perseguiria. Kinoshita e Imamura têm em comum, embora com leituras distintas, a adaptação para as telas de um mesmo livro, “A Balada de Narayama”, publicado em 58 1956. O primeiro, de Kinoshita, estilizado como uma peça “kabuki”, realizado em 1958: e o segundo, de Imamura, filmado com um olhar mais realista, em 1983. A Rua da Vergonha Em 1950, respondendo a uma entrevista radiofônica sobre a razão de serem a maioria de seus filmes sobre mulheres, Mizoguchi Kenji, lacônico (e irônico), respondeu: foi uma decisão puramente comercial. No início de sua carreira, Mizoguchi tinha como “irmão mais velho” Murata Minoru, um dos grandes diretores do cinema japonês. Raciocinaram os produtores: Murata fazia filmes sobre homens, logo ele faria filmes sobre mulheres. “Não era essa a minha intenção”, concluiu o diretor: simplesmente seguiu ordens. A citação (curta) está logo no começo do documentário de 1975 que Shindo Kaneto, outro grande diretor e assistente de Mizoguchi, fez sobre seu mentor. Nos 150 minutos de filme, é o único momento em que se ouve a voz de Mizoguchi. “A Rua da Vergonha”, de 1956, foi a última realização de Mizoguchi. A história, baseado na obra de Shibaki Yoshiko, se passa no bordel “Dreamland”, situado próximo a Yoshiwara, a área urbana segregada de prostituição desde o tempo dos xoguns Tokugawa. Os altos e baixos de seis prostitutas convivem, no tempo diegético do filme, com a expectativa da aprovação de legislação banindo a prostituição (a lei foi sancionada pouco depois da conclusão das filmagens). “A Rua da Vergonha” é um painel de vitimização das mulheres, que se sacrificam por homens incapazes e fracos, maridos, pais ou filhos. Prostradas no chão (imagem favorita de Mizoguchi, de acordo com comentário um tanto perverso de Ian Buruma), elas assimilam o golpe, extraindo forças não se sabe de onde para encarar o fardo da vida (e dos homens). Pouco depois de finalizar o filme, Mizoguchi é diagnosticado com leucemia, vindo a morrer com 58 anos, em 1956. Sua viúva, internada com distúrbios mentais desde 1941, faleceu em 1975. Rumores sugerem que Mizoguchi sentia-se culpado por ter transmitido sífilis à esposa, causando-lhe a loucura. Culpa e desejo 59 Dizer que Mizoguchi era dono de uma personalidade complexa é simplista e redutor. Kurosawa, mesmo elogiando o colega como o “verdadeiro criador” do cinema japonês, assinala sua “obsessão com a própria imagem”. Ian Buruma, autor do brilhante ensaio “A Japanese mirror: heroes and villains of Japanese culture”, afirma que o diretor tinha uma “veia religiosa profunda”, carregando sempre uma imagem do monge budista Nichiren nos festivais internacionais que comparecia. Suas personagens, como em “A Rua da Vergonha”, possuem uma sensibilidade trágica inspirada na resignação budista diante do sofrimento inevitável da vida, gerador de um alento melancólico compatível com a idealização exaltada da beleza. Não obstante, a atitude pessoal de Mizoguchi em relação às mulheres teria sido ambivalente e arbitrária, oscilando entre culpa e desejo de humilhá-las. Outro dos rumores que circulam sobre ele dão conta sobre sua irrupção repentina em uma clínica de doenças venéreas, suplicando perdão às prostitutas e repetindo que “tudo aquilo” era sua culpa. O evento teria sido pouco tempo antes de rodar “Mulheres da noite”, em 1948. Sato Tadao, sublinhe-se, menciona a visita à clínica como parte de pesquisa de campo para a realização do filme. Álcool e prostitutas sem dúvida tiveram uma presença importante na vida do realizador. Obviamente isso não explica seu extraordinário talento para organizar a fluidez da linguagem cinematográfica. Mas é útil para a compreensão desse universo, à primeira vista decadente e irrecuperável, mas carregado de uma visão purista e absoluta de justiça. Oharu O belíssimo “A Vida de Oharu”, de 1952, rodado em condições difíceis, em um galpão sem isolamento acústico, sedimentou a confiança do diretor em lidar com uma tal contradição: ser capaz de produzir uma narrativa que transcendesse o plano imediato da prostituição como danação. Com este filme ganhou seu primeiro prêmio importante na cena internacional, melhor diretor no Festival de Veneza de 1952. A fonte inspiradora de “A Vida de Oharu” não poderia ter sido melhor: o inacreditável escritor do século 16, Ihara Saikaku, conhecido pelo primeiro nome, Saikaku, cujos personagens, homens e mulheres, atravessam situações improváveis, 60 sofrimentos incontáveis, e provações fulminantes – mas retornam com toda a energia para a vida erótica, para o “mundo flutuante”. O fiel roteirista de Mizoguchi, Yoda Yoshikata, condensou trechos de “A vida de uma mulher amorosa”, de Saikaku, composta de 24 histórias curtas, narradas em primeira pessoa, onde a heroína (no texto, anônima) experimenta diferentes profissões e retorna sempre à prostituição. Yoda, que penava refazendo inúmeras vezes os roteiros a pedido do diretor, mudou o tratamento leve e brejeiro do original, agregando uma tonalidade sombria que traz maior realismo ao “mundo flutuante”. Mifune Toshiro faz o primeiro amor proibido, um jovem samurai que ousa desejar uma ajudante da cozinha imperial e é executado. Tanaka Kinuyo vive magistralmente as aventuras de Oharu, capaz de expressar com um “sorriso malicioso a dignidade de uma prostituta desprezada”, nas palavras de Sato Tadao. Amor Platônico Tanaka havia se tornado nessa altura um obscuro objeto de desejo de Mizoguchi. Depois de estrelar quinze de seus filmes, era público e notório o amor platônico a ela dedicado pelo diretor. Ao que parece, jamais declarado, segundo depoimento da atriz, que admitiu apenas um “casamento cinematográfico” entre os dois. Em 1954, ano de intensa produtividade de Mizoguchi – “Intendente Sansho”, “A mulher infame” e “Os amantes crucificados” – só não atuou no último. Também é público e notório que Mizoguchi negou uma recomendação ao “Directors Guild of Japan” para que a Nikkatsu contratasse Tanaka como diretora – ela conseguiu por outros caminhos, vindo a ser a segunda diretora japonesa a realizar longas-metragens, seis ao todo, com roteiros de Ozu e Kinoshita, entre outros. O perspicaz crítico inglês Tony Rayns insinua que a recusa da recomendação deixou Tanaka magoada e Mizoguchi amargo e indiferente, estado que deixou transparecer enquanto dirigia “Os amantes crucificados”, conforme relato de Yoda Yoshikata. Em função dessa circunstância (e outras menos relevantes), criou-se uma aura algo depreciativa em torno desse filme, em particular no Ocidente. Seja o que for, não resiste a um exame mais atento: trata-se, sem dúvida, de um dos produtos mais sutis e 61 bem realizados de Mizoguchi, cujo ponto focal, aliás, parte de um amor platônico. Inspirado nos textos para teatro de bonecos de Chikamatsu Monzaemon, ao qual foram adicionados temperos picantes de seu contemporâneo Saikaku, “Os amantes crucificados” – admiravelmente fotografado e cenografado – relata as desventuras do talentoso e desafortunado Mohei, apaixonado platonicamente pela esposa do patrão, um avaro e melífluo editor de calendários dos senhores feudais. Dupla execução Chikamatsu é conhecido pelos duplos suicídios que suas histórias, doces e trágicas, podem acarretar. Mohei, por sua vez, é personificado pelo extraordinário ator Hasegawa Kazuo, proveniente do teatro kabuki e bastante popular à época junto ao público adolescente do cinema “matiné”. As tensões entre ator e diretor no set de filmagens afloraram, contribuindo paradoxalmente para a qualidade da representação. Na virada da história, após a confissão amorosa de Mohei à patroa, em uma canoa, Hasegawa, por imposição do diretor, transforma seu personagem: de condescendente e submisso, torna-se um corajoso e destemido herói. Um perfil que não era o seu habitual de ator “matiné”. A cena, também por exigência de Mizoguchi, reproduz o visual etéreo das pinturas chinesas da dinastia Song, séculos XII e XII. Na sequência, uma impressionante aceleração em direção ao fim trágico, como sugere o título em português. Talvez o estilo de interpretação de Hasegawa Kazuo, despido de contornos viris mais pronunciados, tenha intrigado espectadores ocidentais. As reviravoltas e surpresas da narrativa, típicas da literatura setecentista japonesa, também têm sua parte. A genialidade de Mizoguchi em atualizar tais enredos para o cinema, contudo, é assombrosa. O auge dessa vertente é “Contos da lua vaga”, realizado em 1953, um dos mais admirados filmes da história do cinema. Assalariados e fantasmas Nô 62 O aspecto “exótico” da cultura japonesa teve, naturalmente, um impacto nada desprezível na adesão da audiência ocidental ao cinema japonês, sobretudo em relação a Mizoguchi e Kurosawa, os grandes vencedores de Festivais. Os estúdios sabiam disso: o mercado internacional nos anos 50 tinha se tornado estratégico. Não teria sido possível a Mizoguchi rodar três produções caras e complexas em 1954 sem uma estrutura sólida de estúdio por trás, incluindo capacidade financeira e atores e técnicos sob contrato. Para os dramas classe média, a história era diferente. Donald Richie conta como foi difícil convencer a Shochiku liberar os filmes de Ozu Yasujiro para o Festival de Berlim, em 1963 – a primeira retrospectiva significativa do autor fora do Japão – justamente porque os responsáveis pela exportação daquele estúdio achavam que “os ocidentais só se interessam por samurais e gueixas”. Os personagens de Ozu são, em sua grande maioria, donas de casa, maridos assalariados de terno e gravata e filhas à espera do casamento. Nada a ver com o gênero “jidaigeki”. Além da dupla Mizoguchi-Kurosawa, Kinugasa Teinosuke (o “onnagata” que tornou-se diretor e realizou “Uma página de loucura”) ganhou a Palma de Ouro do Festival de Cannes em 1954, com “Portal do Inferno”, ápice do “jidaigeki”. Não obstante, ele mesmo reconheceria, em entrevista a Ian Buruma, que o prêmio em Cannes “era ridículo”, fruto do “apelo exótico” do cinema japonês. Representado em estilo kabuki adaptado ao cinema de grande produção, com um colorido vibrante e ostensivo, “Portal do Inferno” tem Hasegawa Kezuo como samurai no papel principal (Kinugasa e Hasegawa eram amigos próximos). A despeito de seus méritos, o longa de Kinugasa estava muito aquém da densidade dramática de “Contos da lua vaga”, também conhecido pelo nome original “Ugetsu” – e mais ainda da incrível perícia de Mizoguchi e seu roteirista Yoda em reciclar clássicos da literatura, desta feita de Ueda Akinari, um erudito do século 16 que agregou fantasmas em suas histórias. E mais: as tramas de Ueda foram entrelaçadas com elementos de um conto do arguto escritor francês Guy de Maupassant, “Décoré !”. Uma verdadeira “antropofagia cultural” de fontes literárias. 63 O “rolo” (emaki) cinematográfico O interesse de Mizoguchi em relação ao passado não visava, de nenhuma maneira, encontrar um “modelo perdido de serenidade”, como assinala o crítico Philip Lopate. Seria exatamente o oposto: em uma nota ao roteirista de “Contos da lua vaga”, insiste que “o sentimento dos tempos de guerra deve estar aparente nas atitudes de todos os personagens”, sobretudo o “sofrimento físico e moral” das pessoas comuns. Dois casais conduzem a história, passada no século 16, em meio à guerra entre clãs, a “guerra civil” dos tempos feudais: um oleiro (magnificamente interpretado por Mori Masayuki) e sua esposa (Tanaka Kinuyo, sempre excelente), e seu vizinho candidato a samurai, com perfil psicológico inspirado em Maupassant, e sua mulher. Os incidentes mirabolantes incluem uma fantástica sequência de fantasmas no estilo do teatro Nô, saques e estupros cruéis, seguidos de um arremedo igualmente fantasmagórico. Mizoguchi, revelou seu fotógrafo, pediu um tratamento visual análogo a um “emaki” cinematográfico, ou seja, um “rolo” pictórico com indicações textuais, desenrolando situações para leitura horizontal. Não haveria melhor descrição. Segundo o fotógrafo, Miyagawa Kazuo, cerca de 70 % de “Contos da lua vaga” foi filmado com grua, vertical e horizontal: um constante deslizar do registro fotográfico, às vezes imperceptível, mas sempre em movimento, entre o mundo fantasmático e o mundo real, entre a vida e a morte. É o melhor Mizoguchi. Sua técnica narrativa, a famosa “uma cena-uma tomada”, atinge aqui o apogeu. Closes não são necessários, o espectador tenderá a fixar sua atenção levado pela flutuação da imagem, cuja composição privilegia a movimentação dos atores no centro do plano, a tensão entre eles e o restante do cenário. A célebre sequência final do retorno do oleiro à sua casa, à procura da esposa, perfaz uma volta de 360 graus da choupana, um verdadeiro “emaki” cinematográfico. Momento celebratório do cinema. O coração das coisas Mesmo ancorado no passado, o filme de Mizoguchi sintonizava com a ansiedade recente experimentada pela população de seu país – a longa e penosa guerra. O trauma violento do conflito passou a ser objeto, em muitos dos filmes japoneses pós-liberação, 64 de uma verdadeira obsessão. Os realizadores promoviam o retorno do recalcado, explícita ou implicitamente, cicatrizando a ferida psíquica da população. Ichikawa Kon, autor de uma extensa e eclética obra, é tido por Donald Richie como o “melhor exemplo de diretor socialmente consciente disposto a expor problemas”. Seu “Fogo na planície”, de 1959, revelou sem rodeios o desespero dos soldados japoneses no final da guerra nas Filipinas, premidos pela fome e levados a situações-limite, como canibalismo. Dirigindo longas-metragens a partir de 1946, Ichikawa transitou por vários estilos, de comédias satíricas a rebeldia juvenil. Com “Kokoro”, de 1955 – “Heart of things”, na tradução sugerida por Tony Rayns – dá um salto qualitativo: baseado na prestigiada obra homônima de Soseki Natsume, publicada em 1914, o filme exibe um retrato pessimista da condição humana condizente com o clima existencialista no pósguerra dos anos 40 e 50. Uma tragédia da era Meiji que remete, por uma intermitente linha do tempo, à voracidade abissal da história japonesa do tumultuado século 20, na era Showa. A novela de Soseki ocupa um lugar quase ritualístico na literatura japonesa (a efígie do escritor estava na série de notas de mil ienes impressa em 1984). Utilizada em manuais escolares, é uma referência para o período de transição em que valores ocidentais e modernizantes foram introduzidos, abrupta e irremediavelmente, na sociedade nipônica. Uma referência de conotação identitária para os japoneses, com todas as imprecisões que a noção de identidade possa ter. A história descreve a relação entre um devotado aluno e seu mestre, um sensei atormentado que termina se suicidando. Entre as razões, duas se sobressaem: uma culpa pelo suicídio, durante a juventude, de seu melhor amigo; e a aderência leal (e patológica) ao suicídio do General Nogi, destacado comandante militar da era Meiji, que se matou um dia após a morte do Imperador Meiji, em 1912. Às duas mortes de cunho “paterno” – o Imperador, “pai da nação”, e o General, que era o tutor do futuro Imperador Hiroíto – adicione-se, no livro e no filme, a morte (de causa natural) do pai do estudante-pupilo. Ichikawa Kon criou uma atmosfera cinematográfica à altura da intensidade do enredo. Trata-se de um filme onde as performances dos atores preenchem a mise-en65 scèn. Closes, muitas vezes diretamente para a câmera, sustentam a inquietação subjacente dos personagens, amplificando a expressão psicológica de medos e anseios. Ademais dos papéis masculinos, releve-se também a esposa agoniada do intelectual, vivida pela incrível Aratama Michiyo. General Nogi No filme desenvolve-se uma atração homossexual entre o sensei e o estudante, ausente no livro. A tragédia pessoal do professor era contemporânea à sociedade patriarcal moldada na era Meiji, infundida de preceitos morais confucionistas e códigos religiosos xintoístas. O General Nogi já havia anunciado seu suicídio pelos menos duas vezes: por ter perdido a bandeira do Imperador durante uma rebelião de samurais descontentes, em 1877; e por conta das inúmeras baixas, inclusive de um filho, pelas quais se atribuía a culpa, na tomada de Port Arthur, durante a guerra russo-japonesa em 1904, quando exercia cargo de comando. Nas duas ocasiões, solicitou ao Imperador permissão para se matar, ambas negadas. Com a morte do líder-pai, concluiu o “seppuku”, o ritual do suicídio, junto com a mulher, que também se suicidou. Sua casa, uma frugal moradia de campanha militar estilo francês, tornou-se ponto de peregrinação em Tóquio. No local, instalou-se um templo xintoísta. Uma vez por ano é possível entrar e constatar manchas de sangue intactas nas roupas do casal, expostas como se nunca tivessem sido tocadas. No filme de Ichikawa, o sensei caminha pelas ruas como um sonâmbulo determinado, segurando o jornal que anuncia a morte de Nogi. Exibe-o à esposa, que se angustia. Pouco depois, na ausência da mulher, suicida-se – o filme, entretanto, não mostra a cena. “Kokoro”, à época, não obteve maiores repercussões, talvez em função da notoriedade do livro e a ousadia de um diretor jovem (tinha 30 anos) em transpô-lo para as telas. Hoje é um clássico. A harpa da reconciliação 66 Na próxima produção, “Não Deixarei os Mortos (A Harpa Birmana)”, de 1956, logrou obter o reconhecimento de público e crítica, além de distribuição internacional. Tornou-se um diretor “sério”. O mergulho místico nas planícies quentes e pedregosas da Birmânia - hoje Myanmar - de um soldado que aprendeu a tocar harpa em plena guerra era uma receita infalível para redimir os pecados do Japão. A guerra chega ao final e o soldado-monge isola-se em uma itinerância redentora, ao melhor estilo do imaginário budista. Os companheiros são repatriados, e ele, monge solitário, fica zelando pelos “cadáveres japoneses”. Com o tempo, surgiram críticas sobre o artificialismo das situações: um destacamento militar onde o capitão é um dedicado maestro do coro vocal formado por comportados soldados é algo, no mínimo, insólito. A principal ressalva é a invisibilidade das vítimas locais da violenta repressão do exército japonês. Na década de 50, não obstante, é indiscutível que o filme cumpriu a função reconciliadora com o passado a que se propunha, sobretudo para os próprios japoneses. O passado podia ser também fonte de conflitos. “Enjo – O templo do pavilhão dourado”, dirigido por Ichikawa em 1958, foi inspirado em “O Pavilhão Dourado”, texto do polêmico Mishima Yukio. A história narra a saga de um (iconoclasta) candidato a sacerdote budista, gago e de pé chato. O Pavilhão Dourado e o Pavilhão Prateado Por alguma razão a cidade de Quioto, berço de inúmeros tesouros nacionais japoneses, foi poupada de bombardeios mais severos durante a Segunda Grande Guerra. A ideia de preservar um patrimônio cultural de alto valor simbólico sensibilizou os norte-americanos. Os templos zen, entre eles os fulgurantes Pavilhão Dourado e Pavilhão Prateado – construídos durante o xogunato Ashikaga, no século 16 – atravessaram o conflito sob uma inevitável pressão, como era de se esperar, mas saíram incólumes. Logo se tornariam polos de atração turística, começando por soldados e oficiais do exército ocupante, tal como aparece em ‘Enjo – O templo do pavilhão dourado”. 67 Ichikawa, seguindo a trilha de Mishima, revela como as turbulências que chegavam a Quioto internalizaram-se na mente perturbada do noviço budista, transtornando a relação com o mundo à sua volta, em si restrita a poucos contatos e cheia de vieses. Delírios persecutórios e um obtuso comportamento convivem entre a rotina do templo e fragmentos da vida urbana da cidade histórica. Incendiar o sublime pavilhão é mais que um parricídio, é matar a alma da nação. A novela de Mishima foi inspirada em fatos reais, ocorridos em 1950, que obviamente chocaram o Japão: o templo foi incendiado por um suposto “desequilibrado”. Mishima, por sua vez, alcançou notoriedade mundial depois do seu espetacular “seppuku”, cometido em 1970 em pleno QG do Exército, em Tóquio. Seu livro é brilhante e inconclusivo, mas lido à luz de sua história pessoal, pode sugerir uma sublimação literária de um gesto fanático, um gesto pela pureza perdida da tradição japonesa, materializada no belíssimo templo. Mas esta pode ser uma leitura precipitada. Ichikawa, de sua parte, disse não acreditar em uma tal excepcionalidade do Pavilhão Dourado, pois “uma grande e bela estrutura não é suficiente para assegurar a felicidade e o bem estar dos que estão à sua volta”. Seu filme sintoniza com o grau zero da metafísica oriental, alheia aos bens materiais (o templo, aliás, foi restaurado à perfeição, e voltou a receber visitantes em 1955). ‘Enjo – O templo do pavilhão dourado” é um trabalho excepcional. Ichikawa Kon teria ainda uma longa carreira pela frente: dirigiu seu último filme em 2006, com 90 anos (faleceu em 2008). Em 1965 fez o documentário sobre as Olimpíadas de Tóquio, até hoje referência do tema. E, em 1963, uma das melhores adaptações kabuki já feitas para o cinema, “A vingança do ator”, com Hasegawa Kazuo perfeito como órfão vingativo e “onnogata” - papel que ele mesmo tinha representado, na versão de 1935 do mesmo texto, dirigida por Kinugasa Teinosuke. Salto econômico Em retrospecto, o ano de 1955 trouxe momentos de virada importantes na história econômica e política do país. O PLD, partido liberal democrático, resultado da fusão de dois partidos conservadores, alcançou o poder onde se manteve com breves 68 interrupções desde então. No plano econômico, beneficiando-se dos aportes norteamericanos durante a guerra do Coreia e com o pacto selado entre os conglomerados de negócios e o novo governo, o Japão completou sua reintegração à comunidade internacional com o acesso ao GATT (precursor da atual OMC, Organização Mundial do Comércio). Com um aditivo extra: os Estados Unidos, por razões geopolíticas motivadas pela Guerra Fria, abriu seu mercado aos produtos japoneses, sem contrapartida imediata, garantindo crescimento rápido e sustentável à economia do país. Em pouco tempo o arquipélago se tornaria uma das potências do planeta. Uchida Tomu Uchida, realizador de primeira grandeza, retornou ao Japão em 1954, depois de nove anos na China, inicialmente preso e em seguida prestando assistência técnica a produções locais. Em 1943 tinha se lançado em uma produção na Manchúria, afinal não finalizada. Começou a dirigir filmes nos anos 20 depois de atuar como ator, influenciado pelo expressionismo alemão e filmes de gangster americanos. Na década de 30, evoluiu, a exemplo de diversos colegas, para o comentário social de esquerda, os chamados “filmes de tendência”. Isso não o impediu de realizar filmes na linha do militarismo ascendente, inclusive uma premonitória e futurista fantasia de um ataque aéreo ao Japão, em 1929, ano do “crash” econômico que abalou o mundo. Muito pouco dessa produção sobreviveu. Um deles, “Police”, de 1933, é considerado pelo crítico inglês Noel Burch, em seu instigante livro “To the Distant Observer: Form and Meaning in the Japanese Cinema”, como um “pastiche perfeito” e precursor dos filmes policiais hollywoodianos do pós-guerra. Em 1955, ano que seu país engatava a ascensão econômica, Uchida realiza três filmes, o primeiro deles um “jidaigeki” de peso, “A Lança ensanguentada”. Um retorno triunfal. Apoiado por velhos amigos dos tempos do cinema antes da guerra – Ito Daisuke, fecundo realizador de filmes de samurai, e Ozu Yasujiro – o diretor realizou uma suave e inteligente incursão no gênero. Quem está no foco da história não é o samurai, chegado à bebida e meio sonso: é o seu lanceiro leal e honesto, portador de uma 69 crescente consciência de classe. Sua carreira cinematográfica foi relançada, com sucesso. A cidade que não dorme: Yoshiwara Um dos melhores estudos antropológicos feitos em língua inglesa sobre o Japão é o minucioso “The Nightless City: Or the History of the Yoshiwara Yukwaku”, escrito por um inglês, J. E. De Becker, que chegou ao país em plena era Meiji e lá ficou. Graças a Becker, que veio a ser um advogado de renome (tradutor do Código Civil japonês), dispomos de um inventário completo de nomes, funções, cores, hierarquias, cheiros, corpos, rostos, arquitetura e tudo mais que fosse possível registrar sobre o perímetro licenciado para prostituição em Tóquio – o famoso Yoshiwara. Criado em 1617, no começo da era Tokugawa, o “cordão sanitário” atravessou guerras e sublevações, inspirou poetas e artistas, e serviu de espaço dramático para inúmeras peças kabuki e buraku, além do cinema. Fechada em 1957, a área abriga hoje comércio e residências, e também casas de massagem conhecidas como “soap land”, ou simplesmente “sopu” (no estilo “japanglish”), aparentemente operadas pela yakusa. Em 1960, Uchida realiza “Tragédia em Yoshiwara”, adaptado, é claro, do kabuki. Em a cores exuberantes, “Tragédia em Yoshiwara” segue as desventuras de um bem sucedido mercador de tecidos, louco para casar mas recusado por todas as donzelas, a despeito de sua fortuna e de seu caráter exemplar. A razão é uma mancha de nascença em seu rosto, pequena mas suficiente para destacar-se na esfuziante paleta de cores do filme, provocando repulsas convulsivas até mesmo nas cortesãs de Yoshiwara. Roteirizado pelo colaborador de Mizoguchi, Yoda Yoshikata, a fita é um primor de continuidade e leveza, encantando a audiência ao mesmo tempo em que o herói se encanta por uma prostituta sem polimento, recém chegada do campo. Leitores de J. E. Becker reconhecerão a textura dos quimonos e maquiagens como signos idealizados de sedução, graças à excelência de cenografia e figurinos. Um prazer visual, como preconiza a estética kabuki, que termina repentinamente em traição e tragédia (também como no kabuki). 70 Consciência culpada “Soap land” foi um nome adotado em 1984, após um concurso nacional. Anteriormente, de acordo com o prolífico escritor e jornalista Boyé Lafayette De Mente, autor de dezenas de livros sobre o Japão, as casas de massagem eram conhecidas como “turkish bath”, ou “toruko-buro” (em “japanglish”). O cônsul turco à época teria protestado, e um historiador, Nusret Sancakl, liderou uma campanha pela mudança do nome, finalmente adotado depois da consulta popular. Uchida Tomu – o nome Tomu é uma corruptela do inglês “Tom”, escrita com “kanjis” que significam “cuspir sonhos” – é normalmente associado ao “cinema de gêneros”, característica dos diretores cuja habilidade de mise-en-scène permite circular entre gêneros diferentes, como Anthony Mann ou John Ford. Malgrado as óbvias incongruências, um filme como “The outsiders”, realizado por Uchida em 1958 sobre a minoria Ainu, remete a esse tipo de comparação. Os personagens de “Condenado pela consciência”, de 1965, transitam inabaláveis entre a boa índole e a depravação moral. É talvez seu melhor filme. Alternando entre o policial e psicológico, a história começa em Hokkaido, a grande ilha ao norte do Japão, e anos mais tarde aterrissa em Tóquio, provocando uma reviravolta inesperada. Descrito por Donald Richie como “realização do carma”, “Condenado pela consciência” circula em um “loop” temporal entre a culpa do personagem e seu acerto de contas (que pode ser o do próprio Japão) com o passado. Uchida também acertou suas contas: completado o “carma”, expurgou o trauma. Um realizador incontornável. Epifanias do cotidiano “Shomingeki” é um tipo de cinema que lida com a classe média assalariada no Japão, termo utilizado por críticos ocidentais (os japoneses preferem “shoshimin-eiga”). Naruse Mikio e Ozu Yasujiro são os dois destaques maiores do gênero. Adicione-se, em ambos, a filiação ao “gendaigeki”, o drama moderno (em contraste com o “jidaigeki”). 71 O cinema de Naruse, a despeito de ser incluído nessas categorias, é, acima de tudo, um cinema materialista. A vida é uma sucessão de choques e desapontamentos, estamos imersos em um mundo de desilusões, não existe espaço para ilusões. O dinheiro e sua circulação são presença constante e definidora nesse universo, não há transcendência possível, seja religiosa, estética ou mesmo através do suicídio, uma fuga radical. O que predomina é uma existência corpórea sujeita a coações sociais e econômicas. Seja por infelicidade conjugal, solidão ou frustração, as mulheres, em sua maioria infelizes – Naruse, sobretudo nos anos 50, elegeu os papéis femininos como protagonistas de seus filmes – atravessam as histórias lutando para realização de desejos, quase sempre inconclusos e insatisfeitos. Perturbações da natureza - trovões, chuvas, calor, mudança de estação – agem como prolongamento da instabilidade emocional de seus personagens, estejam eles no espaço público ou na intimidade dos recintos privados. Tudo se passa como se discretas epifanias, tão caras aos japoneses, interviessem no fluxo diário dos hábitos e convivências, relançando a narrativa em torno dos acontecimentos capitais, como mortes, separações, retornos, traições, alianças e rupturas. E reorganizando o ritmo da vida, sobretudo dos sofrimentos que atravessam as existências individuais. A torrente e o lago A partir de 1949, Kawabata Yasunari publicou em capítulos a novela “O som da montanha”, concluída em 1954. Seu ilustre tradutor para o inglês, Edward Seidensticker, dizia que sua prosa era tão concisa que se aproximava do haicai – uma bela definição desse formidável escritor, vencedor do Prêmio Nobel de literatura em 1968. Vários de seus livros foram adaptados para as telas, ele mesmo circulou pelo meio de cinema, ainda nos anos 20 (a exemplo de outro grande escritor, Tanizaki Junichiro). Um de seus melhores textos, “O país das neves”, foi levado às telas de forma luminar por Toyoda Shiro, em 1957. No ano que Kawabata finalizava seu livro, em 1954, Naruse dirige a adaptação, que levou o mesmo nome, “O som da montanha”. A dupla de atores - Hara Setsuko e Uehara Ken – é a mesma que havia trabalhado no seu “Vida de casado”, de 1950. 72 Mesmo “casting” principal, mesmo enredo – a “malaise” da família moderna – desta feita, em 1954, concluindo com a ruptura do casal. O marido arranja uma amante (no filme anterior hesita) e a compara à esposa. A amante é uma torrente, a esposa um lago. A sequência final, um encontro entre a esposa decidida pela separação e o sogro desgostoso, sobretudo pela estima que tem por ela, foi rodada no Parque de Shinjuku, em Tóquio – um jardim inglês com amplos gramados e pouca densidade de árvores, cenário pouco usual nas cidades japonesas. É um dos grandes momentos do cinema japonês. Como disse o crítico francês Jean Narboni, que escreveu um livro sobre Naruse, nessas imagens tudo se mistura: “a fadiga, a tristeza das separações, o frio da noite que chega, o estremecimento dos rostos, as lágrimas mal contidas de Kikuko (Hara Setsuko), os olhares perdidos...tudo isso faz vibrar a cena de mil impressões fugidias”. “O som da montanha” é um dos melhores Naruse. Seu estilo estava cada vez mais fluido, deslizante. Mesmo com a sua conhecida parcimônia – vários dos seus atores regulares se queixavam de que Naruse dava pouca ou nenhuma instrução sobre o que queria – os personagens parecem entranhados na história, ou melhor, parecem entranhados nesse mundo imaginário e circular engendrado pelas narrativas naruseanas. Tudo era uma questão de tempo, de manipulação do tempo: Kurosawa Akira, que trabalhou brevemente como assistente de Naruse nos anos 30, nota como o diretor costumava “empilhar” tomadas curtas para dar a impressão de um “long take”. Tamai Masao, o fotógrafo, chama a atenção para cenas exteriores, quando um personagem caminha e olha para trás, por cima do ombro, para outro personagem, que se move, por sua vez. Esses planos, apesar de filmados com câmara fixa, criam a sensação de fluidez e movimento entre as cenas. E são muitas vezes complementados pelos famosos “travellings”, que acompanham, com tomada em diagonal, os diálogos das figuras humanas que dão vida às narrativas. O passado condena A década de 50 e as mutações experimentadas pelo país foram altamente produtivas para Naruse. O país enriqueceu, a classe média estabilizou-se, e novas contradições apareceram. Segundo Catherine Russell, o cinema de Naruse é o “cinema 73 das oportunidades perdidas, dos olhares desviados, dos casamentos e famílias frustrados, mas também é, como bom melodrama, um cinema sobre ‘pessoas ordinárias’ com problemas ordinários”. Suas personagens femininas não inspiram nem piedade nem desprezo, nunca reclamam da sua condição, combinando cinismo realista com tenacidade. Takamine Hideko personifica muitas dessas heroínas, representando para Naruse o que Hara Setsuko era para Ozu. Seus trabalhos desse período, enfim, oferecem um excelente painel sobre a formação da subjetividade feminina do Japão moderno. Em 1955 realiza mais um extraordinário filme, “Nuvens flutuantes”, que contemplou, ao seu modo, o acerto de contas com o passado recente. Takamine é uma jovem datilógrafa que vai trabalhar no Vietnam ocupado pelos japoneses, em 1943, onde conhece um engenheiro florestal, casado, com a mulher morando em Tóquio. Vivem um caso tórrido. A narrativa transcorre no Japão precário depois de 1945, alternando flashbacks, penúrias econômicas e penosas indecisões amorosas. Mori Masayuki encarna o marido, que finalmente aceita a antiga amante como sua mulher (a esposa faleceu). Tarde demais, em pouco tempo ela adoece e morre. Impotência afetiva (dele) e submissão tenaz (dela) sinalizam a falência das relações amorosas nos moldes patriarcais, pré-guerra. Um ciclo se fecha, mas o futuro é vago. Quando a mulher sobe a escada Naruse Mikio foi um típico diretor dos grandes estúdios, tal como seus contemporâneos. Os produtores gostavam dele, sempre produtivo e disciplinado com orçamentos. Na década de 60 esse sistema iria implodir, como ocorreu nos Estados Unidos, afetando diretores como Naruse. Exatamente em 1960 realiza um de seus melhores filmes, “Quando a mulher sobe a escada”, com a luzente Takamine Hideko, que tinha 36 anos à época da produção, no papel de uma viúva e experiente “hostess” de bar noturno em Ginza – a “mama-san”, como é chamada pelas mais jovens. Subir a escada e entrar no bar é aceder ao mundo masculinizado, dos códigos que opõem o homem (ativo) à mulher (passiva). Uma transição diária e árdua, que a personagem percorre pela necessidade básica de sobreviver, mas que cobra um custo: 74 recusando-se a casar com o pretendente rico, que lhe possibilitaria recursos para investir em um bar próprio, cede ao cliente casado (Mori Masayuki, em outra grande atuação) e termina decepcionando-se. Talvez seja este filme o melhor exemplo do “rio profundo com uma superfície plácida, dissimulando nas suas profundezas as correntes furiosas” de que falava Kurosawa sobre Naruse: montagem “invisível” e “rítmica”, fluidez absoluta de movimentos na superfície, desejos e emoções se chocando no fundo. Ao final, resta subir novamente a escada. Naruse faleceu em 1969. Seu último filme, “Nuvens dispersas”, foi completado em 1967. No final da vida, já doente, disse a sua atriz preferida, Takamine Hideko, que gostaria de filmar um drama em estado puro, apenas com personagens e um fundo branco. Muito já se especulou sobre esse último desejo do diretor, um minimalismo tardio, ele que sempre preencheu sobejamente todos os espaços e brechas que o espaço e tempo cinematográfico proporcionaram. Talvez seja essa a compulsão que o animou em todo seu percurso, filmar o drama, pura e simplesmente. Guerra congelada Kobayashi Masaki estudou filosofia e estética oriental, em pleno Japão militarista. Como muitos intelectuais humanistas de esquerda, procurou no cinema um refúgio diante do ambiente opressivo daqueles tempos. Em 1941, entrou para a Shochiku, o estúdio que produzia Ozu, Kinoshita e Naruse, famosos pelos dramas de classe média. Pouco depois, no entanto, foi convocado para o exército, na Manchúria, logo ele, pacifista convicto. Estacionado perto de Harbin, ao norte da China, especializou-se em metralhadoras pesadas, treinando arduamente “a fim de disciplinar o corpo, como Kaji foi obrigado a fazer, para sobreviver”. Não vivenciou combates: os japoneses esperaram anos pelo temido ataque soviético, que acabou acontecendo só nos últimos dias da guerra, quando Kobayashi já tinha sido transferido para Okinawa. Stalin receava uma ofensiva japonesa, e demorou um longo tempo para convencer-se dos preciosos informes que o espião Richard Sorge mandava de Tóquio, de que não haveria tal ofensiva. 75 Aquela região fronteiriça viveu uma guerra “congelada”. Mas que acarretou, não obstante, uma pervasiva suspensão do tempo nas zonas ocupadas, onde a população civil chinesa sofria enquanto o conflito era decidido em outras latitudes. “A condição humana”, o poderoso tríptico que Kobayashi dirigiu entre 1959 e 61, com três episódios e quase dez horas de duração, está repleto dessas paisagens de ocupação, em geral extensas pradarias no interior da China. Kaji é o personagem principal desse épico sobre a consciência humana, vivido por Nakadai Tatsuya. Entre paredes espessas A guerra terminou e o soldado Kobayashi ficou preso em Okinawa. Em 1946 voltou para a Shochiku, como assistente de Kinoshita. Começa a dirigir no início da década, e em 1953 finaliza seu terceiro longa-metragem, um explosivo acerto de contas com o conflituado passado recente do país, “The Thick-Walled Room”. Concebido e realizado com raro espírito aberto, sobretudo para uma cultura como a japonesa, descreve situações extremas de prisioneiros de guerra classe “B” e “C”, detidos pelos norte-americanos. O roteiro foi baseado em diários reais de soldados: todos os crimes de que eram acusados eram procedentes de ordens superiores dos criminosos classe “A”. Embora não apresente a segurança da mise-en-scène que exibiria em seus filmes posteriores, Kobayashi aplicou em sua direção, neste ambiente claustrofóbico, um realismo bruto e ríspido, focado na dilapidação da consciência dos reclusos. O resultado foi uma devassa na responsabilidade dos crimes de guerra, feita a partir do microcosmo da cela do presídio. O estúdio hesitou em lançar o filme, temendo que os norte-americanos, que aparecem como carcereiros, pudessem reagir mal, mesmo com a ocupação encerrada. A fita só foi para as salas de cinema em 1956. Acuado pelos produtores, Kobayashi não se fez de rogado e realizou, a seguir, um filme atrás do outro, mais preocupados com o entretenimento: a virulenta crítica política que ensaiou em “The Thick-Walled Room” ficou de fora. Em 1957, sintonizado com a produção do estúdio rival Nikkatsu, orientada para a juventude urbana, dirige “Black river”, crônica do entorno fora-da-lei de uma base norte-americana no Japão recém-conquistado. Prostitutas, mercado negro, yakuza e desocupados em geral 76 circulam nesse espaço. Fotografia estilo “noir”, um “free jazz” arrebatador logo na abertura e uma intriga mesclando crime e melodrama compõem o cenário, assegurando o prestígio de Kobayashi como realizador versátil. “Black river” influenciou diretores da “nouvelle vague”, como Imamura Shohei em “Todos porcos”, de 1961. Gansos voadores As premissas estavam dadas para o voo mais ambicioso de “A condição humana”. Uma ambição, a propósito, comparável à ambição da economia japonesa em ascensão na virada da década de 50 para 60. De fato, costuma-se associar o chamado “milagre” econômico japonês a esse período, quando ocorreu a rápida expansão da manufatura pesada, como carros, aço, estaleiros, químicos e eletrônicos, aliado a uma crescente sofisticação do setor de serviços, sobretudo telecomunicações e informática, em especial computadores avançados. Tóquio passou a abrigar um centro financeiro vital para a economia mundial: o país tornou-se o quarto PIB do planeta no final da década de 60. Nessa época consolida-se o famoso “modelo dos gansos voadores”, que supõe uma divisão internacional do trabalho para o Leste Asiático baseado na teoria das vantagens comparativas. Muito em voga nos anos 60, estava baseado no paradigma de que a produção de “commodities” transferir-se-ia dos países mais avançados para os menos avançados. O “ganso líder” era o Japão, seguido do grupo formado pela Coreia, Taiwan, Hong Kong e Cingapura, em seguida Filipinas, Indonésia, Tailândia e Malásia e, finalmente, China. O “ganso líder” estaria sempre na vanguarda no que toca a tecnologia e interação com o Ocidente, inclusive no campo cultural, além de ser o polo financeiro da região. Naturalmente, a proteção conferida pelos Estados Unidos ao Japão entrava nessa conta, facilitando a acumulação de capital no arquipélago. O modelo era uma evolução do “pan-asiatismo” dos anos 30 e 40, onde a expansão dos interesses nipônicos vinha lastreada pela agressão militar. A diferença, agora, era o pacifismo do Japão, inscrito na Constituição. Esta era a nova conjuntura em que Kobayashi Masaki produziu seu 77 ambicioso projeto, cujo fim último era a exposição da consciência liberal oprimida pelo militarismo e a guerra. A condição humana Em 1931 o Japão invadiu a Manchúria, sob um pretexto espúrio. Em um incrível exercício de pantomima política, chegou a instalar um governante real, o “último imperador”, Pu Yi, imortalizado no filme de Bernardo Bertolucci. Milhares de japoneses foram residir na “colônia”, entre soldados, burocratas, agricultores e oportunistas. O livro no qual Kobayashi se baseou, relato autobiográfico em seis partes de Gomikawa Junpei, narra o drama de um pacifista (com tendências de esquerda, inevitavelmente) que foi para a Manchúria para trabalhar como inspetor de trabalhadores chineses em uma mina. Choques com a temível Kempeitai, a polícia militar japonesa, terminaram forçando sua convocação para o exército. A integração nesse novo regime foi obviamente difícil, mas disciplina física e cálculo frio permitiram sua sobrevivência, em meio a hostilidades e estupidez. Permitiram também a ele permanecer vivo após a eclosão dos combates, na invasão russa em 8 de agosto de 1945, dias antes da rendição japonesa. Preso pelos soviéticos, decepciona-se com o tratamento dos “vermelhos”, é enganado pela corja de prisioneiros conterrâneos e termina fugindo em pleno inverno, sem deixar traços. Sua única referência nessa longa trajetória de lenta anulação da humanidade era a esposa (Aratama Michiyo, ótima), que esteve com ele até a convocação – mas que ressoa sem parar em sua consciência. Trata-se de um trabalho excepcional, poderoso e completo mergulho no passado. A princípio, a Shochiku não queria produzir o épico: Kobayashi ameaçou demitir-se, os produtores voltaram atrás. Rodado em Panavision com “frame” 2.35:1, para reforçar a horizontalidade das imagens, o filme – se é que é possível resumir densas 9 horas e 47 minutos - é uma projeção mental de Kaji, o burocrata pacifista. A escala, que reproduz a imensidão dos cenários chineses, intensifica a interrogação políticoexistencial do personagem, e termina permeando a percepção do espectador. Tudo é descomunal nessa trama: os territórios conquistados e perdidos, os impasses 78 ideológicos, as angústias de separação e a sensação de ruína e fracasso civilizatório que as guerras provocam. A violência e os equívocos desumanos, em suma. Repatriação e sofrimento John Dower, em seu “Embracing defeat”, informa que estimados 1,6 e 1,7 milhão de soldados e civis japoneses caíram nas mãos dos soviéticos após a guerra. A repatriação foi retardada inúmeras vezes, com os soviéticos tratando de aproveitar a mão de obra dos prisioneiros para reconstruir a infraestrutura do leste do país. A desinformação, que agoniava as famílias no arquipélago, entrou pela década de 50 aguçada pela Guerra Fria. O número de vítimas fatais japoneses em campos de concentração no pós-guerra oscila entre 55 e 113 mil. Não se sabe quantos, mas inúmeros criminosos de guerra foram executados pelos chineses. Muitos civis ficaram na China, vários inclusive para juntar-se às forças comunistas de Mao Tse-Tung. A guerra acabara com a emissão radiofônica do Imperador no dia 15 de agosto de 1945, conclamando seus súditos a “suportar o insuportável”. Mas muitos sequer voltaram: milhões de pessoas pereceram, lares foram destruídos, famílias desintegradas. A morte, como dizia o filósofo grego Epicuro, não é infortúnio para quem morre, mas para quem fica. O Japão continuou a pagar caro por todas as tragédias provocadas por sua agressão militar. Kobayashi realizou ainda dois notáveis filmes de samurai, “Harakiri”, em 1962, e “Rebelião”, em 1967, este último com Mifune Toshiro – que estava “desconcentrado” durante as filmagens, em razão de problemas financeiros de sua produtora, conforme o diretor revelou (com bom humor) a Shinoda Masahiro. Concentrado ou não, estava soberbo. Kobayashi cita ainda as espadas “verdadeiras e pesadas” usadas no filme, que anulam o espetáculo coreográfico habitual do gênero, mas agregam realismo aos combates. Em 1964 adaptou os deliciosos contos fantasmagóricos coligidos por Lafcadio Hearn, “As quatro faces do medo”. Um de seus últimos projetos foi o documentário “Tokyo trial”, de 1983, sobre o julgamento dos criminosos de guerra no Japão. 79 Positivo e negativo Kurosawa Akira deve muito de sua formação, conforme revelou em sua autobiografia, ao irmão Heigo, quatro anos mais velho. Sugestões de livros e filmes, além de uma visita aos escombros da capital japonesa após o terrível terremoto de Kanto, em 1923, fazem parte dessa memória. Kurosawa tinha treze anos quando foi (quase) obrigado pelo irmão a testemunhar a tragédia, episódio que o marcou profundamente. Através de Heigo fez contato com a “Liga de Artistas Proletários”, não apenas para circular suas pinturas, mas também para atividades clandestinas (acabou decepcionando-se). Heigo tinha se tornado um “benshi”, narrador de filmes mudos. Em 1933, comete suicídio. Os filmes sonoros esvaziaram a função de narrador, certamente isso teve influência, mas não era tudo. Testemunhos dão conta de suas tendências depressivas. Anos mais tarde, já trabalhando como assistente no estúdio que se tornaria o poderoso Toho, um antigo colega comenta com Kurosawa: você e seu irmão são parecidos, mas ele era o negativo, você é o positivo. Energia Uma energia formidável, sem dúvida. Masumura Yasuzo, o brilhante diretor que faria seu primeiro longa em 1957, escreveu um importante artigo sobre Kurosawa na “Kinema Jumpo”. Sua principal qualidade, sublinhou, era a capacidade de produzir composições visuais compactas, utilizando-se da montagem, evitando assim cair em narrativas que exaltassem conformismo e comiseração. Na construção dos personagens, também se destacava a não-resignação: a despeito da opressão e do sofrimento, eles sempre lutavam, ao contrário da tradição de paciência e submissão – a doce melancolia do “mono no aware”. “Kinema Jumpo” é a mais antiga e respeitada revista de cinema no Japão, a mesma que em 1999 elegeu “Os sete samurais”, de 1954, como o melhor filme japonês de todos os tempos. Descontados os excessos, a afirmativa tem raízes inegáveis: “Os 80 sete samurais” resgatou e atualizou o estilo “jidaigeki” para uma dimensão mundial. Da mesma forma como os norte-americanos impuseram ao mundo a mitologia épica do “far west”, os japoneses lograram difundir suas próprias narrativas míticas às audiências estrangeiras, cinematografadas à perfeição. Dos diretores modernos, Kuro-san, como era conhecido entre seus amigos, foi o mais contundente nessa tarefa. Viver Depois do premiado “Rashmon”, Kurosawa realizou em 1951 “O idiota”, baseado na obra de Dostoievski, de quem era um leitor fiel. A Shichiku julgou a metragem prevista, 265 minutos em duas partes, demasiadamente longa. O filme foi exibido com 166 minutos. Segundo Donald Richie, não restam cópias da versão original, mesmo sendo um filme de Kurosawa com três atores de primeira linha – Mifune Toshiro, Hara Setsuko e Mori Masayuki. Em seguida, dirige o pungente “Viver”, de 1952, sobre um funcionário público com câncer terminal, uma das mais devastadoras críticas à burocracia já feita no cinema. Burocracia, ressalte-se, entendida como sistema organizacional cuja única verdade é reproduzir-se – um labirinto infinito de inércia e respostas evasivas. A história gira em torno de uma petição popular pela construção de um parque urbano, no local onde se encontra um pântano. Perdida nos escaninhos, por desleixo ou má vontade, a petição é resgatada pelo burocrata Watanabe, encarnado por um dos atores mais identificados com Kurosawa, Shimura Takashi. Sua decisão de levar adiante a construção do parque – tomada após receber a notícia do câncer - gera ondas de perplexidade entre seus colegas de escritório e acelera o ritmo do filme. A montagem muda do meio para o final, a fim de sinalizar a não-resignação do personagem. Estilo e moral se mesclam, marca registrada do diretor. Template Fazer um template cinematográfico não é fácil, ainda mais vindo de um canto “exótico” do mundo. “Os sete samurais” demorou um ano para ser produzido, e 81 resultou em um dos mais bem sucedidos filmes da história. A numerologia do título que estrutura a narrativa foi copiada inúmeras vezes. A câmera lenta, que exacerba a violência da cena, foi importada pelo cinema norte-americano, assim como o uso das teleobjetivas para cobrir o espaço, inclusive com a famosa edição “no eixo da câmera”, como aponta David Bordwell. Os planos com “long lens”, editados em uma montagem rápida com sutis dissonâncias, calibram a expectativa de choque na mente do espectador, construindo implícitamente a tensão no ato de olhar. Kurosawa apreciava muito os filmes “jidaigeki” de Mizoguchi, mas dizia que se ele tivesse dirigido as cenas de combate, seriam melhores ainda. Bordwell destaca, na sequência da batalha final de “Os sete samurais”, as flechadas do samurai-líder e o lapso de tempo entre o alvo atingido e a queda da vítima. O quadro vazio que aparece por átimos de segundo aguça a expectativa do espectador por mais um bandido abatido, ao mesmo tempo que redobra a potência que se atribui ao arqueiro. Uma montagem digna da arte cavalheiresca de um arqueiro zen. Outro estratagema genial foi a composição do personagem de Mifune Toshiro. Na economia de gestos e expressões corporais, Mifune ocupou um lugar reservado ao excesso, com um corpo que não se submete aos ditames da hierarquia social e que reage de modo compulsivo e histriônico. Destoando dos demais, o personagem estilo rufião é um candidato a samurai que se integra, aos trancos e barrancos, à coesão espiritual do grupo. Corajoso e destemido, termina alçado ao panteão dos heróis mortos em combate. Sua performance tem algo do humor das pinturas dos monges zen, assim como da errância dos personagens desgarrados, ao gosto dos japoneses. Morre ao final com um tiro de escopeta – objeto raro naquela época no Japão, trazida pelos portugueses ao mesmo tempo que São Francisco Xavier percorreu o país, em meados do século 16. “Os sete samurais” é um desses filmes eternos. Nos próximos anos, a simbiose entre diretor e ator iria estreitar-se de uma forma poucas vezes vista no cinema. Destaque para os “jidaigeki”: “Trono manchado de sangue”, de 1957, inspirado em “Macbeth” de Shakespeare; “Ralé”, do mesmo ano, tirado de Gorky; “A fortaleza escondida”, de 1958, que influenciou George Lucas; “Yojimbo – o guarda-costas”, de 1961; e “Sanjuro”, 1962, que podem ser apreciados como formidáveis paródias do gênero; e o extraordinário “Barba ruiva”, de 1965, último 82 filme da dupla. E também nos “gendaigeki”, os dramas contemporâneos: “Céu e inferno”, de 1963, traz um clima de suspense construído em cima das fraturas sociais do Japão moderno. Samurai espaguete e Medicina social Uma série impressionante. Apoiado por um modelo de produção mais flexível – a partir de “Rashmon”, criou sua própria produtora, com o estúdio Toho como maior acionista – Kuro-san pôde dispor de uma autonomia compatível com seu talento e sua personalidade. “Yojimbo – o guarda-costas”, de 1961, funciona como uma versão pósmoderna dos filmes de samurai, um filme que traz embutida uma metalinguagem crítica e irônica. Em cenário de “bang bang”, um vilarejo em pé de guerra fratricida entre dois clãs corruptos, Mifune, samurai desempregado (um “ronin”), aparece como justiceiro desinteressado e esperto. Habilmente engana um e outro, até a implosão definitiva de ambos os contendores e a pacificação da aldeia. “Yojimbo” é mais um template: Sergio Leone utilizou suas linhas básicas para realizar o “western spaghetti” inaugural, o clássico “Por um punhado de dólares”, com Clint Eastwood, de 1964. Em 1966, Sergio Corbucci, sorvendo da mesma tradição, filma “Django”. Miike Takashi, certamente o mais antropofágico diretor em atividade no Japão, realiza em 2007 “Sukiyaki Western Django”, uma reverência irreverente à série que começa com “Yojimbo”. Neste caldeirão de referências que é o filme de Takashi, onde homenagens e caricaturas se misturam, entra em cena Quentin Tarantino, em um papel descrito pelo “press-release” da produção da seguinte forma: “um sujeito misterioso chamado Ringo que duela com um oponente desconhecido japonês, que por sua vez é amante da assassina disfarçada de habitante do vilarejo”. De Kurosawa a Miike Takashi, para ficarmos na genealogia japonesa, ou de Kurosawa a Tarantino, para extrapolarmos uma cadeia de transmissão global, “Yojimbo” pode ser visto como uma metáfora do modo de produção globalizado que o Japão ingressava, com todos seus recursos industriais e tecnológicos. Recorde-se a proposição de Eric Cazdin, em “The flash of capital: film and geopolitics in Japan”: a globalização seria o terceiro estágio expressivo do cinema 83 japonês, depois de colonialismo (até 1945, Japão militarista) e Guerra Fria (de 1945 até o final dos anos 50). Os gigantes se separam Os grandes Mifune e Kurosawa acabaram se desentendendo, por razões nunca totalmente esclarecidas. Donald Richie insinua que o aperto financeiro que o ator teve de enfrentar em seus negócios provocou choques irrecuperáveis, pois não podia ficar disponível eternamente à espera da próxima produção de seu mentor. Kuro-san, por sua vez, revelou a Richie sua decepção com o papel que Mifune aceitou fazer na série televisiva americana “Xogum”, de 1980. Fizeram 16 filmes juntos. O último, “Barba ruiva”, de 1965, é uma obra-prima: é também um filme que encerra um ciclo de Kurosawa, que, aos 56 anos, decidiu explorar novos métodos de produção. Mifune faz o papel de um diretor de hospital público no século 19, ainda na era Tokugawa. Médico experiente, domina a cena com seu olhar penetrante e quase hipnótico, apesar de manter distância respeitosa com os pacientes. O olhar da câmera reproduz a ambivalência do olhar do personagem. Justiça social e sensibilidade guiam a ação, com direito a pancadaria em uma zona de prostituição, estilo Yoshiwara, mas despida do glamour. Um filme áspero e emotivo, um dos melhores. O “imbróglio” confuso e desgastante de “Tora! Tora! Tora!” (1970), superprodução nipo-americana gestada no final dos anos 60 sobre o ataque a Pearl Harbor, contribuiu para a interrupção por cinco anos de seu trabalho como diretor. Kurosawa esteve envolvido inicialmente no projeto, mas acabou abandonando, aborrecido. Três amigos e diretores de prestígio - Kinoshita Keisuke, Kobayashi Masaki e Ichikawa Kon – criaram com ele, em 1969, uma produtora de nome bombástico, “Clube dos Quatro Cavaleiros”. Apenas um projeto veio à luz, o deslumbrante “Dodeskaden - O Caminho da Vida”, em 1970. O fazedor de tofu 84 Os filmes de Ozu Yasujiro são diametralmente opostos ao de Kurosawa. Durante muito tempo essa discussão animou críticos e admiradores: qual deles seria mais “japonês”, mais representativo de uma suposta essência “japonesa” ? O (falso) debate tendia a qualificar Kuro-san como o mais “ocidental” dos realizadores japoneses, em função das fontes literárias que eventualmente utilizava - insinuação que o diretor repudiava e que descartou em sua autobiografia. Por outro lado, Ian Buruma lembra a influência de Hollywood sobre Ozu, sobretudo no início, nas comédias (Ernst Lubitsch era seu diretor favorito). Muitos no Japão talvez ainda considerem Ozu como de difícil compreensão para espectadores ocidentais, justamente por ser muito “japonês”. Seria sua simplicidade “minimalista”, enfim, um traço de identidade cultural ? A famosa auto-definição de Ozu – “sou um fazedor de tofu, assado, cozido ou frito, outros fazem coisas mais caprichadas” – foi mais um golpe de mestre nessa direção, a um só tempo signo de modéstia e (auto) promocional. No mundo de hoje, globalizado e transnacional, posições rígidas e preconcebidas sobre identidades culturais parecem cada vez mais ameaçadas de diluição. Ambos os diretores obviamente estão imersos na cultura de seu país, mas tiveram o enorme mérito de transcendê-la e produzir um discurso universal. Ambos eram, como bons japoneses, pragmáticos. Kurosawa conta como Ozu foi importantíssimo na aprovação de seu primeiro filme, em plena guerra, ao apoiá-lo na comissão que julgava se os roteiros estavam afinados com a política militarista e a “essência da cultura japonesa” (pelo menos do que era considerado “essência” naquele tempo conturbado). Perguntado pelos censores se o roteiro de Kurosawa estava adequado, Ozu não titubeou: estava 120 % adequado! Prestígio O prestígio internacional de Ozu cresceu muito nas últimas décadas. Em 2012, seu “Era uma vez em Tóquio”, de 1953, classificou-se em terceiro lugar entre os melhores filmes de todos os tempos, na renomada lista da revista inglesa “Sight and Sound”. A enquete é realizada de 10 em 10 anos desde 1962 —em 2002, o filme de Ozu 85 estava em quinto lugar, e em 1962 em 32º. A lista é resultado de ampla consulta a críticos, profissionais e estudiosos de cinema, 846 pessoas de 73 países. Ainda em 2012, “Pai e filha” ficou em 15º; “Os sete samurais” e “Rashmon”, em 17º e 24º, respectivamente. Nesta última edição da lista, a fita de Ozu perdeu para “Um corpo que cai”, de Alfred Hitchcock, e “Cidadão Kane”, de Orson Welles. Note-se ainda que, em 1962, “Contos da lua vaga”, de Mizoguchi, estava em quinto lugar; em 2012, em 50º. Descontada a tradicional margem de erro, dadas as premissas com que foi elaborada a relação – por exemplo, apenas um latino-americano entre 250 filmes arrolados, “Memórias do subdesenvolvimento”, do cubano Tomas Gutierrez Alea, em 174º lugar - não resta dúvida de que é um indicativo claro da sintonia entre mise-en-scène de Ozu e a sensibilidade contemporânea. A mencionada revista publica também, desde 1992, listagem dos melhores filmes escolhidos exclusivamente por diretores de cinema. Em 2012, “Era uma vez em Tóquio” foi o primeiro colocado. Gramática cinematográfica Mark Schilling, outro crítico norte-americano que vive no Japão, salienta a diligência e o entusiasmo de Ozu em discutir cinema com seus pares, desde o começo de sua vida profissional. A coleção de seus diários, onde estão registrados seus pensamentos sobre o ofício, alcança 800 páginas. Um fazedor de tofu sofisticado. Sobre gramática cinematográfica, por exemplo: para ele, todo filme que se destaca cria sua própria gramática, não existem regras a priori. Situações óbvias de transbordamento emocional, como casamentos e funerais, são melhores quando evitadas: as emoções, lembra Ozu, estão nos pequenos detalhes, nos diálogos (e monólogos) íntimos. “Fade in” e “fade out”, pontuações clássicas, são como páginas em branco inseridas em um livro, desnecessárias, portanto. Cinemascope, nem pensar: para Ozu, lembra um rolo de papel higiênico. 86 E a ruptura do código campo-contracampo ? Ao ignorar a regra da “linha do olhar” entre dois personagens que se falam, o procedimento cria uma ansiedade latente no espectador, de não reencontrar o interlocutor na sequência do filme e perder o fio da conversa, conforme sugeriu François Truffaut. Sutil sabotagem das convenções da narrativa clássica. Quando lançou seu primeiro longa-metragem falado, “Filho único”, de 1936, Ozu foi criticado pelos colegas da Shochiku, entre outros por Inagaki Hiroshi (diretor do fabuloso “O Homem do riquixá”, de 1958, com Mifune Toshiro e Takamine Hideko), pela técnica inusitada de filmar diálogos. “Foi apenas no começo da projeção, depois ele não se importou mais”, escreveu em seu diário. Admitiu, entretanto, que “provavelmente era a única pessoa no mundo a filmar desse jeito”. O objetivo desses dispositivos é captar, nos mínimos detalhes, banais e corriqueiros, a respiração e o fluxo vital das histórias privadas, aquelas que contam para a maioria da espécie humana e que permanecem perdidas na poeira do tempo. Para Ozu, as histórias de vida e morte, rancores e decepções, as transições e emoções que interferem na vida de todos nós, não são banais. São decisivas e marcantes, mas estão condenadas a habitar o círculo íntimo e indevassável das existências individuais. Trazer à tona essas minúsculas expressões e vivências é uma tarefa que somente poucos artistas iluminados logram realizar. Ozu é um deles, e o uso que fez dos recursos da linguagem cinematográfica é exemplar do seu rigor. Tokyo story Em 1953, Ozu fazia os seguintes comentários sobre o filme “Era uma vez em Tóquio” (transcritos por Donald Richie): “esta é uma das minhas mais melodramáticas realizações”, pois “através do envelhecimento de pais e filhos descrevi como o sistema familiar japonês começou a desfazer-se”. Tais palavras foram ditas ao receber o prêmio de segundo melhor filme do ano da revista “Kinema Jumpo” (o vencedor naquele ano, 1953, foi “Nigorie - An Inlet of Muddy Water”, do competente diretor Imai Tadashi, conhecido por sua inclinação de esquerda: também disputava o prêmio “Contos da lua vaga”, de Mizoguchi). 87 “Era uma vez em Tóquio” narra a viagem de um casal de idosos do interior para a capital, a fim de visitar filhos e filhas, deparando-se com pequenas inércias e desajustes, que terminam por precipitar um retorno ao interior e o desfecho da história. A dissolução da família tradicional japonesa — lenta, quase imperceptível, no contexto traumático pós-guerra — é revelada muito mais pelos efeitos que as pequenas turbulências provocam, como diz Richie, do que pela exacerbada exposição de suas causas. Pequenos incidentes e confrontos sutis entre pais e filhos, seguidos ou não de conciliações, denunciam a natureza dos personagens, mostrando como eles agem e reagem. Nesse ponto, a palavra, isto é, o roteiro, tem um valor insubstituível: resultado do rigor depuratório da construção dos diálogos, as falas são absolutamente sintéticas e objetivas, integrando-se de forma indelével na fluidez da linguagem, na respiração do filme. As palavras estão imantadas no espaço-tempo audiovisual, sentimos seu significado aflorar como se fossem imediatas, sem mediações. Em uma atmosfera de austera simetria formal, com uso dominante de planos médios, a imersão da audiência nos diálogos e na trama é (quase) integral, sem pausa ou tempo morto. Não há momentos de distensão, a narrativa é ocupada somente por acontecimentos e reações dos personagens. Um filme magnífico. Flor do Equinócio A esposa de Noda Kogu, velho amigo e co-roteirista de inúmeros filmes de Ozu, revelou a rotina de trabalho da dupla, nas montanhas de Nagano, em Tateshina. Escrever até tarde da noite, com saquê à vontade; acordar e, no café da manhã, tomar um ou dois copos de saquê; voltar a dormir por uma ou duas horas; depois, almoço tardio e, no fim da tarde, escrever o roteiro. O progresso dos trabalhos media-se pelo número de garrafas de saquê, cuidadosamente guardadas após o consumo. O resultado é impressionante: antes de “Era uma vez em Tóquio” (1953), a dupla produziu os roteiros de “Pai e filha” (1949), “As irmãs Munekata” (1950), “Também fomos felizes” (1951) e “O sabor do chá verde sobre o arroz” (1952). E depois: “Começo de Primavera” (1956), “Crepúsculo em Tóquio” (1957), “Flor do Equinócio” (1958), 88 “Bom dia” e “Ervas flutuantes” (1959), remake do seu premiado filme homônimo de 1934. E ainda: “Dia de outono” (1960), “Fim de verão” (1961) e “A rotina tem seu encanto” (1962). Muitos dos títulos remetem a estações do ano, a intervalos particulares das estações. Combinado ao uso regular dos mesmos atores (Hara Setsuko e Ryū Chishū, os mais frequentes) Ozu terminou por configurar uma espécie de microcosmo onde personagens e ambientes se comunicavam, interpenetravam e complementavam. Nomes se repetem, os bares são os mesmos, o “charme” dos neons ocidentais também, mas tudo muda. Os filmes começavam a ser gestados através das falas dos personagens, posteriormente se encaixava o “plot” – a causalidade tênue que comandava as ações – e os ambientes. Donald Richie compara Ozu ao genial Morandi, autor de uma obra pictórica com uma brevíssima variação de temas – garrafas, tigelas – mas dotada de uma incrível riqueza de percepções. Naquele tempo circulava uma anedota nos estúdios da Shochiku sobre o título do novo filme de Ozu: seria “A próxima primavera”, onde todos finalmente se encontrariam. O próprio diretor se encarregou de divulgar a piada. Não é para menos. Vistos em conjunto, os filmes passam a sensação de que tudo acontece, mas não saímos da mesma fase, da mesma onda. O filme acaba mas parece continuar, em outro lugar que já estivemos. A ideia fixa em balizar a interação entre os personagens com as estações fornece um marco temporal que subsidia superficialmente comportamentos e humores: é a senha que permite deflagrar o diálogo entre pais e filhos, chefe e funcionário(a), “bar tender” e fregueses, amigos e amigas. Nesses cruzamentos o drama (conflito) se revela, por camadas. Em “A Flor do equinócio”, de 1958, primeiro filme colorido de Ozu, o pai se aborrece com o desejo de independência da filha. Ela quer escolher seu marido, sem consulta-lo: para os amigos, entretanto, mantem postura aberta e progressista, a favor dos casamentos livremente acertados. Um conflito geracional que o chefe de família internaliza sem se dar conta. A esposa (Tanaka Kinuye) administra a transição entre as duas polaridades, ela que se casou mediante arranjo acertado por seus pais. Sua temperança mitiga as arestas. 89 Uma tarde de outono Ozu Yasujiro nunca se casou, morava com a mãe. Em fevereiro de 1962, enquanto trabalhava no roteiro de “A rotina tem seu encanto”, com Noda, recebeu a notícia: a neuralgia que a atingiu tinha piorado. Preferiu não voltar a Kamakura, convicto que ela iria falecer com 88 anos, que seriam completados em maio. A mãe morreu logo depois, em fevereiro mesmo. O diretor escreveu em seu diário: “as flores estão melancólicas, e o gosto do saquê, amargo”. “A rotina tem seu encanto”, lançado em novembro de 1962, foi seu último filme. Hara Setsuko não atuou, mas Ryū Chishū estava ótimo, ao lado de velhos conhecidos. Seu personagem é um oficial da Marinha, que provavelmente perdeu a mulher nos bombardeios de 1944 e 45 na capital japonesa. Encontra-se com os amigos de colégio para beber, declamar poesia tradicional e falar do casamento da filha. Acaba aceitando que ela se case, depois de convencido pelos confrades. Mais tarde, no bar, depara-se com um antigo subordinado, e juntos cantam “A marcha do encouraçado”, canção patriótica que louva os feitos da Marinha Imperial. Ao final, vai para casa, bêbado e só. Sem rancores, o espírito leve. O outono estava no final, o inverno se aproximava, podia começar no dia seguinte. A simetria das imagens ficou mais austera com as cores vistosas e contidas. Um filme com ar de maturidade jovial, quase embriagada: tudo em seu lugar, mas o tempo passa. O saquê encarrega-se de fazer os ajustes. Em março de 1963 apareceram os primeiros sinais, e, em abril, o diagnóstico do câncer na garganta. Depois o entra e sai do hospital: Ozu veio a falecer no dia 12 de dezembro, data do seu aniversário, com 60 anos. Shiro Kido, seu produtor na Shochiku, ouviu dele nos últimos dias: “bem, parece que tudo isso é mesmo um drama familiar”. 90 Capítulo 4 Anos 60 e antes: Rebeldia e Nouvelle Vague Em 1950 o Japão produziu pouco mais de 31 mil carros. Em 1970, 5,3 milhões; e em 1990, 13,5 milhões, primeiro lugar mundial naquele ano. Em 1953, um engenheiro da Toyota criou um sistema revolucionário, focado na redução de desperdícios no processo produtivo. Três anos depois, beneficiando-se das condições comerciais especialmente favoráveis em função da Guerra Fria, o primeiro carro japonês é vendido no mercado norte-americano. Foram 942 unidades exportadas em 1960. Em 1980, quase dois milhões. Em 1952, o governo japonês financiou a aquisição dos direitos da tecnologia do transistor, gestada no laboratório Bell, em Nova Jersey. Em 1955, a recém-criada Sony lançou receptores de rádio “do tamanho do seu bolso”, que logo em seguida seriam exportados, com sucesso, para os EUA. O valor agregado japonês, neste caso, foi a miniaturização do aparelho, que ampliou espetacularmente a base de consumo do produto. As histórias de sucesso do “milagre econômico japonês” são incontáveis. Em poucos anos, o Japão tornou-se um dos países mais ricos do planeta. Os “milagres, entretanto, têm raízes culturais: uma das inspirações dos japoneses para a inovação do “rádio de bolso” teria sua origem, de acordo com pesquisas feitas com empresários, no popular clássico da literatura chinesa “Jornada para o oeste”, escrito no século 16. O relato segue as aventuras mirabolantes de um monge budista que vai da China para a Índia em busca de escrituras sagradas, acompanhado de três discípulos, entre eles o fantástico (e infantil) “Rei Macaco”, dotado de poderes sobrenaturais oriundos de fontes taoístas. Miniaturizar seres e objetos era um desses poderes, utilizado para ludibriar oponentes e ganhar posições. Lido por leitores de todas as idades, “Jornada para o oeste” está inscrito no imaginário oriental de matriz budista, e ganhou sobrevida, no mundo digital contemporâneo, através do videogame. 91 Cinema político e cinema de entediados Os personagens de Ozu, sobretudo nos últimos filmes na virada da década de 50 para 60, pareciam mover-se em um ambiente estável, imune a desequilíbrios financeiros e crises sociais. Não era bem o caso, pelo menos na arena política: os anos 50 foram carregados de turbulências e manifestações de rua, como era de se esperar. A guerra recém terminada, na escala que foi, seguida da derrocada do regime imperial autoritário, obviamente impactaram. A Constituição de 1947 liberou forças políticas estancadas. Sindicatos e estudantes se politizaram: as tratativas em torno do “Tratado de Cooperação Mútua e Segurança entre o Japão e os Estados Unidos”, conhecido no Japão como ANPO – que deu aos americanos direito de manter bases no arquipélago em nome da manutenção da paz – galvanizaram boa parte da população. O temor de ser arrastado para um novo conflito global e nuclear, eventualmente alavancado pela guerra da Coreia e, mais tarde, do Vietnam, inquietava os japoneses. No dia 1º de maio de 1952 ocorreram fortes manifestações, com mortos e feridos. No final da década, a revisão do ANPO gerou uma onda de protestos que começou em novembro de 1959 e terminou em junho de 1960. Estima-se que 16 milhões de pessoas foram às ruas no centro de Tóquio ao longo desse período, debaixo de vigorosa repressão policial. Nos meses de maio e junho os protestos eram diários. O Presidente Eisenhower cancelou visita ao país, e o Primeiro-Ministro Kishi Nobosuke, político bastante ativo antes e durante a guerra, renunciou, no dia 23 de junho de 1960 – mas o ANPO revisto já havia sido ratificado pelo Parlamento dois dias antes. Os americanos mantém até hoje oito bases no Japão, com cerca de 50 mil militares. Apenas na ilha de Okinawa ainda ocorrem manifestações (a maior parte do contingente está lá). Pesquisas de opinião, porém, indicam que em torno de 70 % da população apoia a presença norte-americana. Os gastos com segurança do Japão continuam pequenos, menos de 1 % do PIB, muito abaixo da média dos países industrializados. Do ponto de vista econômico, a aliança continua vantajosa: os recursos que iriam para a defesa podem ser alocados em outras áreas, como ciência & tecnologia. Em 2014, o Presidente Obama evocou o Tratado para declarar que as ilhas Senkaku, no 92 mar da China, estavam na jurisdição do acordo. Japão e China disputam o território. O anúncio reassegurou os japoneses da proteção dos EUA. A tribo do Sol As turbulências das décadas de 50 e 60 praticamente inexistem hoje em dia. Na época, a onda de protestos em relação ao ANPO, por um lado, e a pujança econômica materializada na reurbanização e introdução de novos hábitos de consumo, por outro, influenciaram fortemente o cinema japonês. A televisão, inclemente, dispersava rapidamente o monopólio audiovisual do cinema. O brilhante (e polêmico) Oshima Nagisa e a “nouvelle vague” surgiram nessa virada histórica, que propiciou um novo ativismo político e contestador. Um ambiente, em suma, que contribuiu para propostas disruptivas de mise-en-scène e do próprio modo de produção cinematográfico, com o esvaziamento dos grandes estúdios. Antes, porém, um novo estilo de filmar destacou-se no mercado, sintonizado com a juventude moderna e (até certo ponto) americanizada. Produzidos e distribuídos por uma das companhias mais antigas no Japão, Nikkatsu, tais filmes proporcionaram uma “atualização simbólica”, como dizem os antropólogos, a uma seção significativa da audiência das salas de cinema. Os jovens puderam reconhecer-se nas telas. O historiador Igarashi Yoshikuni escreveu um belo livro cujo título é intrigante: “Corpos da memória - narrativas do pós-guerra na cultura japonesa (1945-1970)”. Sugere ele que o sentimento nacional japonês sobreviveu à destruição da guerra muito mais pelas representações populares do corpo como memória de perda e devastação, do que pelo discurso político e nacionalista. O escopo é amplo: monstros como “Godzilla”, luta livre, sequelas da bomba atômica, políticas higienistas durante a ocupação norte-americana, Olimpíadas de Tóquio em 1964 e o espetacular suicídio de Mishima Yukio, em 1970, entram na relação. O corpo e suas representações funcionam como um depositário de experiências históricas: o cinema, naturalmente, é o registro dessas mutações. Os filmes da Nikkatsu atualizaram a expressão corporal dos personagens, extrapolando o universo de samurais e gueixas para uma nova vivência urbana. 93 O projeto era explorar um novo nicho de mercado em um cenário altamente competitivo como o mercado de cinema no Japão. Os estúdios tradicionais estavam entrincheirados com seus circuitos de distribuição e exibição. Novos entrantes, como o Toei, apelaram para programas duplos, os famosos filmes “A” e filmes “B, dificultando mais ainda a briga - para competir, os outros estúdios tinham de produzir mais filmes (a média do país na década era 500 por ano). Logo em seguida vieram os programas triplos. Para fazer frente a essa ofensiva, a Nikkatsu apostou em um escritor bem sucedido, Ishihara Shintaro, especialista em personagens desiludidos e entediados, à procura de diversão (sexo e lazer), com ou sem dinheiro, adeptos de sol e mar. Tudo isso resultava em ondas de choque na conservadora sociedade japonesa. Juventude e Paixão O sucesso de Ishihara sinalizou uma nova demanda de entretenimento no pósguerra. Na mesma tacada, dois resíduos históricos ficaram sob ataque: os valores tradicionais, como o código “bushido” dos samurais, e a submissão da velha elite à influência dos americanos. Em paralelo, um entorno de reprodução midiática, sobretudo revistas semanais, multiplicou a circulação desses novos comportamentos. Paradoxalmente, Ishihara, esnobado pelos literatos - um dos poucos que falava com ele era Mishima – evoluiu para se tornar um político dado a declarações controversas e xenófobas, sobretudo na época que foi governador de Tóquio, de 1999 a 2012. Além de escritor, era roteirista e ator. Dois de seus livros publicados na primeira metade dos anos 50, “Juventude rebelde” e “Paixão juvenil”, roteirizados por ele, viraram filmes bastante populares da Nikkatsu, ambos em 1956. Em ambos, seu irmão mais jovem, Ishihara Yujiro, teve um papel coadjuvante, mas suficiente para se fazer notar pela audiência, inclusive como cantor e compositor. Nos anos que se seguiram, transformou-se na personalidade mais celebrada da cultura pop japonesa. Os espectadores ocidentais admiravam a intensidade nipônica de Mifune Toshiro, mas os jovens no Japão preferiam o visual ocidentalizado e “cool” de Ishihara Yujiro (mais tarde, os dois produziram e estrelaram filmes juntos, entre eles um 94 “jidaigeki” de Inagaki Hiroshi, “Emboscada”, de 1970, com samurais para todos os gostos). Ishihara era o epítome do individualismo – em um país que primava pelo coletivismo. Crazed Fruit “Paixão juvenil”, exibido em 1956, é um marco. Sobre ele, disse Oshima: “no som da saia da moça sendo rasgada, as pessoas sensíveis poderão ouvir as lamurias da gaivota anunciando a nova era do cinema japonês”. Dirigido por Nakahira Ko – dono de uma carreira de 34 realizações – o filme ecoa ao máximo o clima “taiyozoku” (literalmente, tribo do sol) explorado pelo livro. O estilo de montagem privilegia movimentos que se combinam graficamente em detrimento da (esperada) causalidade lógica espaço-temporal. As cenas de esqui aquático, um dos ápices do ócio preconizado pelos personagens, caíram como uma luva nesse estilo. Desse modo, a narrativa clássica baseada nos dispositivos tradicionais de montagem, como plano e contra-plano, perde a proeminência. Os desdobramentos da história, sobretudo quando relacionados à sexualidade, adquirem uma relevância inusitada. Os corpos se soltam, algo quase inimaginável, se pensarmos que o primeiro beijo na boca do cinema japonês ocorreu dez anos antes, em 1946. François Truffaut louvou o “instinto primitivo” que moldou a direção do filme, em crítica publicada no “Cahiers du Cinema”, em maio de 1958. Sem fronteiras, sem limites Mark Schilling escreveu um sápido texto sobre a Nikkatsu, intitulado “No border, no limits”. Segundo ele, os filmes da produtora evocam um “mundo cinemático que não é nem estrangeiro, nem japonês, mas um mix dos dois”. Os “durões” que povoam esses filmes têm a afetação, os movimentos e as longas pernas dos heróis de Hollywood, mas são japoneses. Já os cenários em que os personagens se movem eram poucos: ruas de Tóquio e docas de Yokohama, praias de Kamakura e planícies de Hokkaido, todos 95 imbuídos de uma “aura exótica”. E sem fronteiras: a história poderia acontecer em qualquer lugar. “Nikkatsu Action”, como se vendia o estúdio, está longe do cinema de Ozu e Mizoguchi, ou mesmo, embora com algumas afinidades, da “nouvelle vague” de Oshima, Shinoda e Imamura. A “action” tem como premissa um estado de insatisfação da juventude, que trilha seu caminho pelas dificuldades da vida com uma (aparente) facilidade e um certo desprezo pelo que acontece em volta. Um dos diretores mais identificados com esse estilo de realização cinematográfica foi o exímio Kurahara Koreyoshi. Logo em 1957, estreia com um petardo: “Desertores da vida”, com roteiro de Ishihara Shintaro e o irmão Yujiro no papel principal. O astro faz um boxeador frustrado que encontra uma cantora de cabaré a beira do suicídio (vivida por Kitahara Mie, ótima atriz, presente também em “Paixão juvenil”). Gângsters cercam os protagonistas cobrando compromissos, contribuindo para uma aproximação amorosa, naturalmente. Ele sonha em partir para o Brasil e juntar-se ao irmão: esperança infundada, pois o irmão foi assassinado antes de partir. Emulando enquadramentos e iluminação do cinema “noir” americano, a exemplo do que Godard e seus amigos fariam na França, o filme esmera-se pelas cenas rodadas em ambiente portuário, com neblinas, alto contraste na fotografia e ceticismo sobre a vida. Mesclado com o romantismo das duas estrelas, acertou em cheio, foi um sucesso de bilheteria. Kitahara Mie e Ishihara Yujiro se casariam em 1960, ficando juntos até a morte prematura do ator, em 1987, vítima de câncer no fígado. O fato gerou uma verdadeira comoção nacional: Ishihara atuou em cerca de 90 filmes, e trabalhou bastante na televisão. A referência ao Brasil no filme não é casual, liga-se à história da migração japonesa (um pouco antes, em 1955, o personagem de “Anatomia do Medo”, de Kurosawa Akira, já especulava sobre uma possível evasão para o Brasil). Mise-en-scène bebop A câmera de Kurahara Koreyoshi tinha a vocação da ousadia. Apresentado por Honda Ishiro (de “Godzilla”), tornou-se assistente de Yamamoto Kajiro, o mentor de 96 Kurosawa, na Shochiku, no começo dos 50. Passou para a Nikkatsu em 1954, quando o velho estúdio procurava se reerguer e encontrar um nicho de mercado. A opção de assimilar a estética do filme “noir”, incluindo a construção psicológica dos personagens, tinha também um viés comercial. Tratava-se de atingir o público do cinema importado, jovens urbanos impacientes e ansiosos. “Juventude transviada”, de Nicholas Ray, passou no Japão em 1955 e foi um êxito. James Dean com seu perfil nauseado e insolente tornou-se referência. A sintonia com os europeus, como Julien Duvivier e Federico Fellini, também estava presente. Em 1960, Kurahara realiza seu melhor projeto: “The warped ones”, narrativa jazzística ao ritmo do “bebop”. Correndo por fora das convenções de estúdio vigentes no Japão, o filme associa de maneira frenética a aceleração da trilha jazzística com o compasso da montagem, os ângulos da tomada e a composição das imagens. E com a câmera na mão, claro, sem receio de tremer, reproduzindo compulsivamente os olhares dos personagens na selva urbana. O resultado é surpreendente e poderoso: a narrativa flui acoplada às escalas harmônicas do “bebop”, que por sua vez parecem impregnar-se no personagem principal. Enquanto marca o tempo da bateria e emite juízos sobre jazz, ele pensa como matar o tédio: sexo, comida, praia, roubo, carro e vingança. O motivo que se baseia sua errância é vingar-se de um jornalista que o denunciou em um bar. Estupra a noiva deste e, em uma inversão inusitada, deixa-se perseguir pela própria vítima. Um herói sociopata, um rebelde sem causa, um corpo animado de uma pulsão permanente de transgressão. O sol negro A veia jazzística continuaria em “Black sun”, de 1964, que contrapõe o mesmo personagem de “The warped ones” a um GI negro em fuga, ferido na perna depois de ter matado alguém a rajadas de metralhadora. A trilha sonora foi executada pelo quarteto do imbatível Max Roach, o baterista do “bebop”. Tudo é alegoria nesse filme: a exaltação do jazz como base de reconciliação entre vencedores e vencidos; o espaço da Igreja cristã semidestruída pelos bombardeios, onde vive o rebelde sem causa 97 japonês; a caracterização de palhaço a que se submete o GI, em sua rota de fuga; e o crucifixo que carrega, suposto símbolo de uma civilização. Kurahara dirigiu vários sucessos para a Nikkatsu, até “Thirst for love”, de 1967, baseado no livro homônimo de Mishima. Realização impecável, com a intensidade que o texto pedia, narra o desejo reprimido de uma viúva pelo jardineiro da mansão em que vivia, com o sogro e família. Os produtores acharam o projeto muito “artístico” e atrasaram a distribuição, além de demitir o diretor. Transformado em “free-lancer”, tal como ocorreu com a maioria dos diretores contratados por estúdios, consolidou-se como campeão de bilheteria com “Antártica”, de 1983. Inspirado em eventos reais - cachorros deixados no inverno do polo sul por uma expedição japonesa - conta a história do posterior resgate por uma dupla de cientistas. Sua última assinatura foi a codireção do drama para TV, “Hiroshima”, com três horas de duração, que alterna documentário e ficção. Deu a volta ao mundo e retornou ao país natal: a guerra. Masoquismo e silicone A joia da coroa da Nikkatsu no frenesi da produção dos 50 e 60 foi sem dúvida Suzuki Seijun. Realizou 40 filmes ente 1956 e 67, a maioria filmes “B” para compor o programa duplo do estúdio – orçamentos baixos, roteiros sofríveis, produção rápida, era difícil diferenciar-se do resto dos diretores. Em 1963, Suzuki consegue finalmente sair do “template” e emplacar: seu “Youth of the beast” traz uma série de inovações formais que realçam seu estilo dentro do gênero policial, no Japão associado aos yakuzas. A partir daí sentiu-se confiante para experimentar e refinar a linguagem, introduzindo pausas, cortes, ângulos e, sobretudo, mise-en-scènes inesperadas e contundentes. O formato comercial foi esticado e subvertido ao máximo em “A marca do assassino”, de 1967. A corda roeu e Suzuki foi demitido, ficando quase dez anos sem filmar. À época, a classe se mobilizou em protestos, com repercussão. Entre outros, Oshima e Shinoda participaram dos atos públicos. O estúdio estava mesmo em péssima situação financeira, e o sistema que vinha dos anos 50, implodindo – em 1971, a Nikkatsu partiria para a produção de eróticos “soft-core”, batizados de “roman porno”. 98 Sato Tadao, o crítico perspicaz, sugere uma leitura penetrante de Suzuki: o humor estilizado do diretor tem um parentesco com a literatura cômica do período Edo (1603-1867), a era dos xoguns Tokugawa. Por essa via, ele foi capaz de incorporar a tradição pictórica popular, como a fantástica série dos “retratos do mundo flutuante”, “ukiyo-e”, um dos ancestrais do mangá, e ultrapassar a dimensão literária estrita. Bemvindo ao mundo do cinema. E mais: a experiência da guerra – convocado em 1943, mal saído da escola, naufragou duas vezes e passou pelas Filipinas e Taiwan – fixou nele uma “doutrina de mutabilidade”, única forma de conviver com a erosão de realidade à sua volta. Na tradição dos cartunistas do Edo, Suzuki distanciou-se de si mesmo e passou a ver o mundo patética e ironicamente, extraindo um humor masoquista das experiências “anormais”. Nada melhor do que o cinema para dar vazão a esse desejo. Para arrematar, Suzuki encontrou um parceiro ideal: Jô Shishido, o ator que não hesitou em agregar 23 gramas de “organogen” em suas bochechas, a fim de adquirir um ar de “tough guy” dos filmes americanos. “Organogen”, explicou Shishido a Mark Schilling, “não é silicone, é feita de gasolina, coisa desagradável”. A prótese funciona também como memória inscrita no corpo, uma narrativa que se agrega à representação popular da perda e devastação, como sugeriu Igarashi Yoshikuni. Portal da carne A guerra já tinha acabado há quase vinte anos mas as arestas resistiam. Os tumultos de 1960 atualizaram o sentimento hostil contra os EUA, à direita e à esquerda do espectro político. Em 1964, a Nikkatsu pede a Suzuki para adaptar o best-seller de Tamuta Taijiro, publicado em 1947, sobre as prostitutas no caótico centro de Tóquio do pós-guerra, as “pan-pan”. “Gate of flesh”, filmado em cores fortes, tem no epicentro desse espaço exíguo ruínas onde vivem cinco mulheres, ciosas do seu território, que vendem seu corpo para sobreviver. Na vizinhança, uma base americana provê um fluxo regular de clientes, aos quais se juntam os locais. Na paisagem social que circula nas ruelas e aleias sempre cheias, de prostitutas ao mercado negro, sobressaem as forças ocupantes. Os GIs são 99 figurantes que se destacam na multidão: são também cúmplices do mafioso da área, e eventualmente saco de pancadas para um soldado japonês que retornou do front, encarnado por Jô Shishido. Uma pequena vingança. A “feminização” do Japão é um dos fetiches que a ocupação norte-americana resgatou, e que perdura até hoje. O imaginário ocidental em boa medida associa a mulher japonesa ao comportamento da gueixa, um estereótipo que traz embutida a submissão dos vencidos. Ora, no filme de Suzuki as coisas se passam de outra maneira: as prostitutas são assertivas, lutam pela sobrevivência. Tem um humor cáustico, e são conscientes que o país tornou-se mais “democrático” com a derrota. Cultivam um código cruel: aquela que não cobra pelos serviços, que cedeu a uma paixão amorosa, é impiedosamente torturada e excluída. Mas se prestam a submeter-se ao “retornado”, o atlético soldado que se refugia naquele abrigo. A masculinidade nipônica é restaurada. Nesse filme – assim como em “Story of a prostitute”, de 1965, passada na Manchúria ocupada pelo japoneses – o que parece estar em jogo para o diretor são as relações entre sexo e história, entre as relações que se estabelecem através da sexualidade em tempos de aflição e infortúnio. Morte e sadismo compõem esse universo, prenúncio de um cinema erótico moderno (a nudez de “Gate of flesh” é pioneira pela ousadia entre as produções feitas pelos estúdios). A jovem e bela Nogawa Yumiko é a estrela de ambos os filmes, ambientados em diferentes tempo e espaço. Em a “Story of a prostitute” é uma “comfort woman” do exército japonês – situação que o diretor conheceu de perto durante a guerra – que se apaixona por um suboficial. A história também parte de um livro de Tamuta Taijiro. A guerra foi uma experiência brutal, disse Suzuki, mas extremamente cômica e absurda. O solitário de Tóquio O viés político e antimilitarista de Suzuki iria ficar ainda mais explícito com “Fighting elegy”, de 1966. A ação cobre a educação ideológica (e sentimental) de Kiroku nos anos 30, estudante de uma escola média, celeiro de fanáticos nacionalistas. Com roteiro de Shindo Kaneto, a história articula repressão sexual com atos de agressão. Na galeria de personagens proto-fascistas aparece o escritor e militante Kita Ikki, que mais 100 tarde seria executado por conta do golpe de 26 de fevereiro de 1936, quando 1.400 rebeldes assassinaram o Ministro das Finanças e o Inspetor de Educação Militar, e exigiram, face à corrupção do governo, a restauração da obediência cega ao Imperador (o tiro saiu pela culatra: a ordem de reprimir o levante partiu do próprio Hiroíto). O Primeiro-Ministro Okada, que tinha fama de moderado, só escapou porque os rebeldes o tomaram pelo cunhado, este sim, assassinado. “Fighting elegy” foi lançado em um momento onde o culto ao “patriotismo” de Kita experimentava um recrudescimento, liderado por escritores como Mishima Yukio e Ishihara Shintaro. O humor amargo que permeia o filme torna as situações abstrusas, incômodas. No mesmo ano, 1966, o diretor realiza “Tóquio violenta”, um primoroso exercício do cinema de gênero “yakuzas”. Mark Schilling assinala, em “The Yakuza Movie Book: A Guide to Japanese Gangster Films”, que o longa de 1948 de Kurosawa Akira, “O Anjo embriagado”, foi o pioneiro no tratamento moderno sobre yakuzas, mas foi Suzuki um dos principais diretores a consolidar o estilo nos anos 60. A explosão de narrativas sobre o crime organizado, para além da importação dos clichês do cinema americano, reflete o novo momento histórico no Japão, onde o dinheiro trocava de mãos rapidamente: a era do “milagre econômico”. Os clãs yakuza resgatam códigos de honra enterrados no passado e os reciclam para o panorama urbano da modernidade, configurando uma paródia inevitável do comportamento cerimonioso dos filmes históricos, os “jidaigeki”. Kitano Takeshi é hoje o realizador/ator mais representativo do gênero. “Tóquio violenta” é um ilustre antecessor do “yakuza existencialista” de Kitano. Mas Suzuki queria mais. A demissão Queria, enfim, a desconstrução do gênero. Sua aposta em “A marca do assassino”, concluído em 1967, pode ser vista hoje como um projeto de ruptura com o sistema de produção da Nikkatsu. Uma ruptura dolorosamente calculada para o nível do simbólico, na essência do produto audiovisual. As inovações de linguagem introduzidas por Suzuki desnudaram por completo as normas do gênero, até revelarem sua 101 “constituição atômica”, como sugeriram Tom Mes e Jasper Sharp em “The midnight eye guide to the new Japanese cinema”. Ao fim e ao cabo, proporcionaram a reconstrução de algo que pode ser descrito como “puro cinema”. Jô Shishido é um matador em busca do status de “number one” no mundo do crime. Alterna assassinatos com sexo, excitando-se com o aroma de arroz recémcozinhado, até que cruza com a misteriosa Misako, vivida pela atriz japonesa de origem hindu, Annu Mari. Um deslocamento que desequilibra o herói, em uma narrativa onde a lógica desinforma. Sair dos clichês e lugares comuns não era fácil. Suzuki testou em diálogo constante com o mercado, durante anos, diferentes técnicas de realização. O nível de abstração que atinge em “A marca do assassino” traz um verdadeiro salto epistemológico de soluções cinematográficas. Cada posição que os personagens ocupam no plano, cada junção de tempo e espaço que desorienta a certeza sensível do espectador - tudo parece confluir para uma estetização das imagens e da enunciação das falas, que passam a valer mais pelo efeito estético do que pelo conteúdo que emanam. O presidente da Nikkatsu, Hori Kyusaku, não entendeu nada e ficou perplexo. Por telefone, Suzuki foi informado de sua demissão. Para se virar, realizou séries de TV, converteu-se em ator, e foi até crítico de cinema. Em 1971, ganhou a causa trabalhista contra o estúdio. Mas só voltaria a filmar em 1977. Entre outros, em 1991 rodou “Yumeji”, sobre um pintor e poeta da era Taisho, e, em 2001, “Pistol Opera”, remake de “A marca do assassino”, com uma mulher no papel de matadora. Continuou de bom humor. Jô Shishido, por sua vez, removeu o “organogen” das suas bochechas após a onda dos filmes “action”, e foi trabalhar na televisão. Eficiência O diretor mais eficiente na Nikkatsu, do ponto de vista da produção, foi Masuda Toshio. Entre 1958 e 68 dirigiu a assombrosa cifra de 52 filmes, 25 dos quais com o astro 102 Ishihara Yujiro no papel principal (o primeiro foi “O Punhal da Vingança”, de 1958). Embora sem o brilho de Kurahara e Suzuki, foi um dos que melhor assimilou a linguagem dos filmes “noir”. Antes de ir para a Nikkatsu, foi assistente de Naruse Mikio e do também fecundo Inoue Umetsugu. Com Naruse, compartilhou a assistência com Ishii Teruo, mais tarde um original (e maldito) diretor de bizarros filmes “pink”. A genealogia entre diretores e assistentes permitia a transmissão do conhecimento do ofício de “metteur-en-scène” nos próprios estúdio. Com a implosão do sistema, na década de 60, essa cadeia de transmissão foi descontinuada (Kurosawa e vários outros sempre se queixaram amargamente desse fato). Quando a produtora lançou-se no gênero “roman porno”, em 1968, Masuda saiu da Nikkatsu. Independente, continuou colecionando sucessos e filmes com grande orçamento. Foi ele o principal diretor pelo lado japonês da caríssima produção “Tora! Tora! Tora!”, em 1970. Paixão e excesso Trabalhando por longos anos para o estúdio Daiei, mas também rompendo estilisticamente com o classicismo vigente do cinema japonês, um nome se destaca: o extraordinário Masumura Yasuzo, o realizador da “paixão e do excesso”, como nota o crítico Tom Mês, retomando uma definição de cinema do próprio Masumura. De 1957 a 1982 dirigiu 58 filmes, quase todos para o Daiei, onde trabalhou inicialmente como assistente de grandes diretores, como Mizoguchi e Ichikawa. Culto, Masumura era aberto aos influxos culturais do Ocidente: estudou filosofia, conhecia os liberais ingleses (Hume e Locke) e Kierkegaard, sobre quem escreveu a tese de graduação. Passou dois anos em Roma, no “Centro Spirimentale Cinematografico”, onde conheceu Fellini, Visconti e Antonioni. Deste último, foi mais próximo: Antonioni ajudou a organizar uma retrospectiva de seus filmes na Itália, após a morte de Masumura, em 1986. A vivência na capital italiana foi fundamental para consolidar sua concepção mais ampla de um cinema “cultural”, uma atividade que não é somente uma forma de entretenimento e evasão, mas conectada à história e aos temas contemporâneos demandados pela sociedade. 103 Além de fazer filmes, Masumura escreveu muito sobre cinema. Em geral, é situado nas cronologias do cinema japonês como uma ponte entre os clássicos dos anos 50 e a “nouvelle vague” dos 60. Seu primeiro filme, “Kisses”, de 1957, entusiasmou a nova geração de diretores, começando pela sequência da motocicleta, quando os protagonistas vão à praia. Segundo Oshima, com esse filme “uma poderosa e irresistível força chegou no cinema japonês”. Vitalidade contra resignação Em 1958, Masumura produziu um longo artigo para rebater críticas conservadoras que acusavam seu longa “Giants and Toys” de artificial, exageradamente cômico e desprovido de sentimento. Para ele, “sentimento”, tal como expressado nos filmes japoneses clássicos, significava contenção, harmonia, resignação, derrota e escape: seus filmes, ao contrário, buscavam vitalidade, conflito, luta, prazer e obstinação. O que interessava a ele era o “conflito entre expressões de desejos explícitos que não podem ser mitigados pelo ambiente que os cerca”. Em resumo, paixão e excesso. Uma crítica aguda, que toca no âmago da tradicional atitude de contenção confucionista assimilada pelo Japão. Sua linguagem cinematográfica foi concebida nesses parâmetros, de forma brilhante. Provocou resistências, à direita e à esquerda: mesmo Oshima mudou sua posição e passou, depois de “Giants and Toys”, a criticar os personagens de Masumura como “desprovidos de subjetividade política”, taxando-o de realizador que filma “com um olho aberto e outro fechado” - ou seja, faz a crítica social mas é incapaz de dotar os personagens de “consciência histórica” (típico comentário datado). Vistos hoje, os filmes de Masumura continuam fortes e expressivos, cada vez mais. O falso estudante Oshima Nagisa – que escrevia compulsivamente, desde o início da carreira reforçou sua crítica depois de “O falso estudante”, de 1960, filme de Masumura que 104 narra as desventuras de um jovem reprovado no vestibular e resolve frequentar de qualquer jeito a universidade. Tragado pelo movimento estudantil que se avolumava, termina passando por delator para os colegas e ativista político para a polícia. Embora não faça alusão direta, é evidente que o filme se reporta aos protestos contra o ANPO – foi lançado poucas semanas depois dos tumultos que levaram à queda do PrimeiroMinistro Kishi. Na crítica que escreveu, Oshima disse que a proposta era dialeticamente insuficiente, pois não sinalizava com clareza o lugar do personagem na história e na sociedade. Tinha provavelmente duas razões para fazer essa (severa) observação: a primeira é que o tema da revolta estudantil iria ser explorado também em seu longa “Noite e neblina no Japão”, do mesmo ano, 1960; e a segunda é pelo seu passado de ativista estudantil em Quioto, razão pela qual se atribuía autoridade para falar sobre o assunto. Corte no pico dramático O que talvez tenha escapado ao diretor da “nouvelle vague” é que a revolução de Masumura acontecia em outro lugar: na linguagem cinematográfica. Donald Richie salienta a dívida do realizador com Yoshimura Kozaburo, outro relevante diretor da Daiei, praticante da montagem telescópica. Na contramão do estilo habitual de edição dos anos 50, Yoshimura passou a fazer o corte no exato instante do pico dramático da cena, ao invés de deixar a ação arrefecer para cortar. Na próxima imagem, a ação também está no pico, produzindo assim o chamado efeito telescópico, isto é, um clímax dramático empilhado sobre o antecedente. Masumura, que reconheceu em Yoshimura sua fonte inspiradora, radicalizou o método e o transformou em uma espécie de trincheira autoral. Enquanto o cinema clássico, lento e privilegiando atmosferas, suprimia a personalidade individual, submetendo-a ao coletivo – conforme a tradição literária japonesa – seus filmes, através do corte rápido e quase ofegante, sufocavam a atmosfera da narrativa e achatavam o perfil psicológico dos personagens. Com isso crescia o interesse do espectador pela 105 história, agora mais energética e vigorosa. A ação frenética compensava o risco da superficialidade em função da velocidade dos cortes das imagens. O melhor exemplo dessa estratégia é “Giants and Toys”, de 1958: um filme em alta voltagem, diálogos disparados como tiros de metralhadora e uma mise-en-scène vertiginosa. O enredo trata da competição selvagem entre empresas produtoras de doces caramelos e os respectivos departamentos de marketing. Um retrato da acumulação e reprodução do capital, em um momento onde a economia japonesa expandia-se com velocidade espantosa – sociedade de consumo a todo vapor. O frenesi da linguagem reproduz o frisson dos personagens de uma maneira exagerada, quase caricatural, que acabou levando à diferentes apreciações. Enquanto era incluído na prestigiada lista dos “Top ten” da revista “Kinema Jumpo”, “Giants and Toys” não emplacou na bilheteria e foi rechaçado pelos críticos mais conservadores. Exibido no Festival de Veneza de 1958, foi igualmente repudiado pelos analistas italianos, que descartaram a fita como “cinema Coca-Cola”. Com a distância histórica, entretanto, a técnica de montagem proposta por Masumura exibe uma incrível aderência à época em que foi produzido, marcada pelo “boom” econômico do paísarquipélago. Com esse filme Masumura firmou-se com um dos principais diretores da Daiei. Para o bem e para o mal, logrou impor seu estilo. Ficou na Daiei até 1971, ano em que o estúdio faliu. Durante a década de 60 realizou trabalhos excepcionais, destacando-se a presença da belíssima Wakao Ayako como sua atriz principal. O anjo vermelho Além do mérito intrínseco – é difícil singularizar um destaque nessa filmografia tão diversa – o conjunto da obra do diretor denota uma visão precisa das mazelas da sociedade japonesa. No magnífico “Red Angel”, de 1966, a guerra contra os chineses retorna com crueldade explícita. Ambientada em hospitais militares na linha de frente, a história segue as peripécias afetivo-sexuais de uma enfermeira, a um só tempo imbuída de sua missão e vulnerável emocionalmente. Começa suas aventuras com um mutilado, onde adquire a consciência do drama da guerra, para em seguida tornar-se 106 amante do médico (viciado em morfina) de campanha. A crueza do encontro é patética: ela se apieda de um soldado ferido, cuja única e remota chance de sobreviver era a amputação de uma perna. Implora ao médico para fazê-lo: este, com uma frieza inesperada, retruca; farei, se você for ao meu quarto à noite. Com essa senha, inicia-se a relação. Uma filme com uma mise-en-scène radical, disse Hasumi Shigehiko a Jonathan Rosenbaum. E o crítico japonês complementa: à época, no Japão, “Red Angel” foi considerado um filme (quase) pornográfico. A introdução de um ato sexual da ordem do estupro em uma situação limite de carnificina gráfica, com a sala cheia de soldados gravemente feridos, pegou a audiência desprevenida. Sexo e violência não era uma associação desconhecida, mas ambientado em um local onde supostamente prevalecia a ética médica, era inusitado. A guerra, afinal, ainda latejava em boa parte da população. “Red Angel” partiu de um romance de Yoriyoshi Arima, roteirista de Masumura em mais dois filmes: “The hoodlum soldier”, de 1965, sobre um ex-yakuza que se tornou soldado no front chinês, e “Hoodlum soldier: rebel in the army”, de 1972, uma das sequências em cima do mesmo personagem (foram nove no total, o restante realizado por diretores diversos). 1964, ano produtivo O fato de romper com a visão “literária” prevalecente no cinema clássico japonês não implicou no abandono das fontes literárias. Masumura foi um fecundo adaptador de grandes obras, de Kawabata a Tanizaki. Inspirados em três provocativas obras deste último, realizou alguns de seus filmes mais representativos. “Tatoo”, de 1964, narra a cruzada vingativa de uma mulher raptada e forçada a prostituir-se. Em suas costas, uma tatuagem de aranha com face humana comanda a virulência, tomando espiritualmente a personagem e dotando-a de uma energia (feminina) inesgotável. Em “Manji”, também de 1964, Wakao Ayako faz uma demiurga erótica que invade um lar burguês, seduz a esposa e o marido, e arrasta ambos ao (triplo) suicídio. A mera descrição sinóptica já é de tirar o fôlego; com a montagem excitada de Masumura, mais ainda, pois o ritmo mantem-se no pico durante toda a ação. E o 107 surpreendente “Love for an idiot”, de 1967, talvez o retrato mais próximo da realidade que já se fez no cinema sobre a submissão (consciente) masculina a uma mulher. O termo “masoquismo”, considerado do ponto de vista psicanalítico, é insatisfatório para explicar a motivação do personagem. Uma sátira genial. Foi em um filme de Masumura que o seu ex-colega na faculdade de direito, o escritor Mishima Yukio, protagonizou seu primeiro papel: “Afraid to die”, de 1960. Outro colaborador destacado de Masumura foi Shindo Kaneto, roteirista de “Tatoo” e “The Wife of Seishu Hanaoka”, de 1967. Kaneto, que morreu com 100 anos em 2012, escreveu cerca de 150 roteiros e dirigiu mais de 60 filmes, entre eles o fantástico “Onibaba, o sexo diabólico”, de 1964 – uma história ambientada em um cenário claustrofóbico durante as guerras intestinas do século 16, carregada de forte erotismo, sexo e nudez. Natural de Hiroshima, realizou “Filhos de Hiroshima”, em 1952, logo após o fim da ocupação norte-americana. Ainda em 1964, a produção japonesa que alcançou maior exposição internacional foi o impressionante “A mulher de areia”, de Teshigahara Hiroshi, igualmente claustrofóbica e sensual. Dedicado às artes florais (“ikebana”), Teshigahara foi um diretor bissexto, com poucos filmes: dois documentários sobre um boxeador porto-riquenho, Jose Torres, e “O rosto da maldade”, de 1967, se destacam. Política e desejo no cinema Ian Buruma sugere que é digno de nota como os japoneses radicais tendem à pornografia. E como a pornografia no Japão tende à crueldade e à violência. A conexão entre política e violência sexual é algo a explorar, conclui. E prossegue: os escritos de Oshima Nagisa - ex-ativista estudantil, “bad boy” da “nouvelle vague” japonesa, diretor de “O império dos sentidos”, dandy e personalidade da TV – fornecem um bom começo. É público e notório que os anos 60 trouxeram um germe revolucionário que varreu o mundo, pelo menos o ocidental ou aqueles sob influência do Ocidente. Sexo e política foram componentes indispensáveis dessa varredura. O Japão pós-ocupação norte-americana era um cenário receptivo a esses ventos. Por um lado, um discurso de esquerda fervilhava nas universidades e meio artístico; por outro, os assuntos ligados à 108 sexualidade, a despeito do moralismo conservador, definitivamente não carregavam o fardo judaico-cristão que obscurece mentes e corações nos países ocidentais. O cinema “pink” desvelou o transbordamento da sexualidade nas telas, captando uma audiência crescente. Faltava alguém para vocalizar esse novo momento, que explicitasse o conflito e os limites impostos pela sociedade. Afinal o Japão, país-insular tão orgulhoso da sua esplêndida herança cultural - e tão suscetível de aderir sem rodeios aos desígnios mais extremos - tinha encarado uma guerra contra meio mundo poucos anos antes. Essa personalidade foi Oshima Nagisa. Rebelde com causa Claro, não era somente ele a rebelar-se. Mas sua capacidade de amplificar as intervenções, sua raiva contra convenções, moralismos e estigmas sociais, eram, para usar um adjetivo exagerado (mas pertinente), vulcânicas. Um dos objetos dessa verdadeira ira era o cinema japonês dos anos 50, feito para aplacar os conflitos, para neutralizar as contradições; o Japão, dizia, não era nada daquilo. A rebelião de Oshima tinha como alvo não apenas os filmes de Ozu, Naruse e Mizoguchi, mas as tradições que eles representavam. Na forma e no conteúdo: os planos fixos, as expressões não-ditas; a composição meticulosa das imagens; e os olhares femininos baixando a vista com submissão e resignação. Retratos de uma geração frustrada e impotente, enfim. Oshima queria dar um sentido político à energia deflagrada pela juventude urbana do pósguerra, que não se sentia culpada pelas atrocidades do conflito. O pai de Nagisa morreu quando ele tinha seis anos, deixando a família empobrecida. Funcionário público descendente de samurais, deixou também uma biblioteca atilada, com Marx e Freud, entre outros. Estudante de direito na prestigiada universidade de Quioto, Oshima entrou para o cinema como assistente de direção na Shochiku (a produtora de Ozu), onde trabalhou com Kobayashi Masaki. Destacou-se por um curta promocional de sete minutos (espertamente oportuno) que realizou sobre jovens atores e atrizes em ascensão. Ao mesmo tempo, exalava críticas ferinas na revista 109 de cinema “Eiga hihyo” (“Crítica de filmes”), onde escreviam Yoshida Kiju, Hani Susumu (nomes associados à “nouvelle vague”) e o crítico Sato Tadao. Em 1959, com apenas 27 anos – cedo para os padrões dos estúdios – dirige seu primeiro longa, “A town of love and hope”, sobre um adolescente pobre que vende um pombo para sustentar a mãe doente (o pombo, treinado, sempre retornava). Em 1960, realiza três filmes, todos marcantes: um prodígio. Negação de si “Juventude desenfreada”, o primeiro deles, a cores, foi bem na bilheteria. Uma jovem disposta a aventuras encontra um parceiro às vezes cínico, às vezes áspero, que a seduz em um depósito aquático de madeiras, na orla do mar. A sequência é carregada de um erotismo contundente. Momentos antes, o par testemunhou demonstrações de rua contra o ANPO (o rapaz cumprimentou de passagem um conhecido que protestava). Uma versão politizada do cinema “tribo do sol”, com a turbulência de afetos e desafetos característica, e o final trágico. A velocidade dos cortes e a câmera na mão garantiram a adrenalina da história. A motocicleta, elogiada por Oshima no filme de Masumura (“Kisses”), aparece e sobressai. Um plano rápido da parelha (ela já grávida) sentada na beira do cais remete à icônica imagem do casal idoso no filme de Ozu, “Era uma vez em Tóquio”. Uma citação consciente, que marca a proposta antitética do diretor em relação aos seus antecessores no cinema japonês. A compulsão pelo negativo que distinguia a agressividade crítica de Oshima – não somente em relação ao cinema, mas ao capitalismo injusto, ao dogmatismo político, à xenofobia e ao humanismo hipócrita – se voltava também para seu próprio trabalho. Lucia Nagib, em seu estudo “Nascido das cinzas: autor e sujeito nos filmes de Oshima”, ressalta o método do diretor, chamado por ele de “negação de si”. Cada novo filme é uma espécie de antítese do anterior: repisar um modelo significa tornar o método da direção rígido e impessoal, diluindo irremediavelmente a perspectiva autoral do trabalho. Em o “O túmulo do sol”, ainda em 1960, dá um salto e localiza a ação na agitada periferia de Osaka, onde prevalece uma economia baseada na compra e venda de 110 sangue. Além da representação brutal de um estado primitivo de sobrevivência, há o sexo, os jovens, e a delinquência. Oshima mais tarde lembraria a excitação sexual exibida no set de filmagem pela principal estrela, Honoo Kayoko (pouco antes, conta o diretor, a atriz envolveu-se em uma tentativa frustrada de duplo suicídio, com um parceiro um ano mais jovem). Noite e neblina no Japão O detalhe sobre Honoo foi descrito por Oshima anos mais tarde, em 1976, durante a controvérsia sobre a cena de sexo explícito de “O império dos sentidos”, censurado no Japão. No mesmo texto – incluído na coletânea “Cinema, Censorship and the State: Oshima“ - o diretor narra encontro com Glauber Rocha na porta de um hotel no Quartier Latin, em Paris. Glauber contou-lhe sobre as dificuldades na censura brasileira para liberação de “O túmulo do sol”, afinal exibido e apreciado, “sem subtítulos”, pelos jovens fãs de Oshima no Brasil. No próximo, “Noite e neblina no Japão”, também em 1960, a colisão com a Shochiku era inevitável. Quatro dias depois do lançamento, o estúdio tirou o filme de cartaz, e, poucos meses depois, Oshima se demitiu e tornou-se um pioneiro produtor independente. Antes de começar a rodar, amigos aconselharam-no a postergar a produção, mas ele recusou. Uma das razões alegadas para tirar o filme dos cinemas foi o temor por agitações devido ao assassinato, dias antes, de um líder socialista por um extremista nacionalista, durante debate transmitido ao vivo pela TV. “Noite e neblina no Japão”, acerto de contas entre a velha e a nova esquerda (conflito que o diretor conhecia com detalhes dos seus tempos de ativista estudantil), se passa em uma festa de casamento interrompida: brigas, ciúmes, expurgos stalinistas, protestos contra o ANPO, ressentimentos e até um suicídio são dramatizados, em cores e cinemascope. Tudo isso em planos longos, com poucos cortes. O crítico inglês Tony Rayns, observador arguto, sugere que nem Godard tinha pensado em uma linguagem como essa, que iria utilizar no seu “A gaia ciência”, de 1969. No Japão, o filme de Oshima abre e fecha no nevoeiro. 111 Um samurai entre lavradores Imamura Shohei, o formidável realizador contemporâneo de Oshima, dizia: “Eu sou um lavrador, Oshima é um samurai”. Orgulhoso e lutador, certamente Oshima era. Sua conversão em produtor independente causou-lhe muita angústia, confessou em seus escritos, mas contribuiu para deslanchar uma impetuosidade impressionante. Em 1961 dirige “The catch”, sobre a detenção e execução de um soldado americano negro no final da guerra, em um vilarejo rural; em 1962, “The rebel”, sobre a revolta de camponeses contra o xogunato, no século 16, liderada pelo cristão Amakusa Shiro. Neste mesmo ano engata uma carreira de documentarista para televisão – até 1977 participaria de 22 produções, como roteirista, narrador e montador. Sua metralhadora inquisitiva girou em todas as direções: “The Pacific war”, de 1968; “Mao and the cultural revolution”, de 1969; “The forgotten imperial army”, de 1963, sobre os coreanos que lutaram pelo Japão na guerra, continuaram residindo no arquipélago e não obtiveram nenhum reconhecimento, nem mesmo pensão; e “Diary of Yunbogi”, de 1965, em que juntou trechos do diário de um garoto coreano de seis anos abandonado pela mãe com fotos, tiradas por ele mesmo, de menores de rua em Seul. As viagens que fez à Coreia, em 1964 – país que foi ocupado e colonizado pelos japoneses, de 1910 até o fim da guerra em 1945 – e ao Vietnam (1965, em pleno conflito) tiveram forte impacto no diretor. O primeiro atravessava uma grave crise política; e o segundo, uma longa guerra anticolonial. Em ambos, opressão e revolta, situações limite e dramas. A prática da linguagem televisiva, necessária para sobrevivência profissional, também influenciou o diretor. A exemplo de Jean-Luc Godard, não é possível pensar as transformações de sua carreira desvinculadas desse enorme e fragmentado fluxo de imagens que é a televisão, consolidada no Japão e no mundo ao mesmo tempo em que ambos, Godard e Oshima, progrediam como realizadores. Produzir uma imagem passou a significar muito mais do que reproduzir ou criticar fórmulas convencionais da tradição cinematográfica. A imagem, agora, era estruturada e veiculada ininterruptamente, de fontes e interesses diversos. Inserir-se criticamente nesse circuito era entrar em um território absolutamente desconhecido. 112 Produtividade A volta à ficção foi um rolo compressor. Começando em 1965, com “The pleasures of the flesh” – uma fábula sobre a fantasia sexual de um tutor levada ao paroxismo – até “Dear summer sister”, de 1972, ambientada na abstrusa situação de Okinawa, uma colônia “contemporânea” do Japão, foram uma dúzia de produções. O período mais produtivo do diretor. Os coreanos foram convocados. O magistral “O enforcamento”, de 1968, foca na execução seguidamente frustrada e adiada de um coreano, acusado de assassinar uma estudante japonesa (episódio real, ocorrido em 1958). O desenrolar do filme é a descosedura do sistema legal que impera no país e provê legitimidade à pena de morte. “O garoto Toshio”, de 1969, também inspirado em um “fait divers”, acompanha uma família disfuncional que sobrevive forjando acidentes de carro. “Diary of a Shinjuku thief”, ainda em 1969, assemelha-se aos filmes de Godard – livros e citações, grupos discutindo sexualidade – mas com cenas de sexo mais ousadas e explícitas do que as do diretor franco-suíço. “Man who left his will on film”, de 1970, é um inapelável exercício de metalinguagem, um filme sobre uma câmera roubada e o ladrão suicida. E o devastador e elegante “The cerimony”, de 1971, traça 25 anos na vida de um clã incestuoso, filmando apenas casamentos e funerais, os ritos de passagem. Em meados dos 70, Oshima mudou. Exaurido das condições de produção do cinema japonês – mas não da temática e contradições japonesas – partiu para o financiamento internacional, beneficiando-se da acolhida que seus filmes obtiveram em vários mercados, sobretudo na França. Produz menos títulos, mas torna-se um realizador global. “Império dos sentidos”, de 1976, é a primeira e escandalosa parada dessa jornada. A mulher inseto A afirmação de Imamura sobre Oshima sugere uma autoimagem prosaica como realizador. Na verdade, Imamura é absolutamente fundamental na construção do 113 cinema moderno japonês. Aos dezoito anos ouviu a voz do Imperador Hiroíto no rádio – precisamente às 12 horas do dia 15 de agosto de 1945 - reconhecendo a derrota na guerra e conclamando os súditos a “superar o insuperável”. Imamura sentiu-se imediatamente liberado do sistema imperial opressor. “Foi fantástico, de repente tudo estava liberado, até sexo”, declarou. Filho de médico e estudante na respeitada universidade de Waseda, o futuro diretor passou alguns anos vivendo do mercado negro – comprava produtos com os GIs americanos e os revendia à população. Ganhava bem, dizia, mas gastava tudo em bebida. Frequentou o chamado submundo e conheceu a galeria de personagens que iria povoar seus filmes, os representantes do Japão “real”, como dizia. É conhecida sua assertiva sobre as heroínas de Naruse e Mizoguchi, pródigas em auto-sacrifício: “essas mulheres simplesmente não existem”, vociferou. Preferiu apostar, em seus projetos, nas mulheres que lutam pela sobrevivência, sejam camponesas, prostitutas, esposas, mães ou filhas. Sempre filmando com um olhar observador, sem apelar para nenhum tipo de consciência histórica ou outro atributo político. Seus filmes parecem um exercício de entomologia, ou antropologia, como ressaltam os críticos. Um olhar que disseca. Os extraordinários “A Mulher Inseto ou Tratado Entomológico do Japão”, de 1963, e “Introdução à antropologia”, de 1966 – também conhecido como “Os pornógrafos” – comprovam a vocação científica do diretor. A estética que resulta dessa opção estilística passa por um registro documental, certamente, sem prejuízo da elaboração de uma dramaturgia densa que sustenta o interesse na história. E, em geral, cobrindo grandes extensões de tempo: com a ressalva de que a montagem, nos filmes de Imamura, raramente força manipulações a fim de estimular sobressaltos emocionais no espectador. Situações violentas, por exemplo, são registradas na continuidade da observação “científica” dos personagens, sem artificialismos dramáticos. O produto final é uma narrativa que convida à imersão ao mesmo tempo que mantém o distanciamento crítico. Solução extremamente original. Formação 114 Imamura Shohei, a despeito de sua reação feroz aos realizadores do período clássico, foi um privilegiado. Trabalhou como assistente em três filmes de Ozu, entre eles “Era uma vez em Tóquio”. Assim como Oshima, via nessas produções a expressão de um viés oficialista da cultura japonesa, sempre afeita à reconciliação e abafando os conflitos, portanto falsa. Com o passar dos anos, naturalmente, reconciliou-se com a experiência de assistente e acedeu a uma leitura mais elaborada do grande diretor. Conta, por exemplo, como foi penoso voltar do funeral de sua mãe e encontrar Ozu no estúdio, dublando a cena onde a personagem idosa de “Era uma vez em Tóquio” morre de hemorragia cerebral – exatamente como sua mãe tinha morrido. As sucessivas repetições da cena, obsessão de Ozu, exasperaram Imamura: afastou-se e foi ao banheiro urinar. Lá, pouco depois, aparece Ozu, que pergunta: ”Senhor Imamura, é assim que acontece uma hemorragia cerebral ? será que consegui o tom certo ?” A princípio, achou a pergunta cruel. Posteriormente, reconheceu que aquele comportamento era o correto, a despeito da frieza. Foi o mesmo em relação ao método de direção. Malgrado as resistências, paulatinamente passou a admitir a importância de Ozu em seu próprio trabalho, sobretudo nos elementos mais básicos da direção. A distância entre as linguagens cinematográficas de Ozu e Imamura é incomensurável. Mas a transmissão do saber, indispensável, foi consumada. Imamura iria mais tarde fundar uma escola de cinema, em 1975, que funciona até hoje. Porcos e encouraçados A passagem pela Shochiku durou até 1954, quando Imamura transferiu-se para a Nikkatsu. Junto com ele estava um dos espíritos mais originais do cinema japonês, Kawashima Yuzo, de quem Imamura foi assistente e co-roteirista – em 1969, seis anos após a morte de Kawashima, escreveria uma biografia sobre o amigo. E, em 1981, faria o remake do seu maior sucesso, “Sun in the last days of the shogunate”, de 1957, do qual foi um dos roteiristas. 115 Os dois compartilhavam o desejo de incluir, no universo cinematográfico japonês, as chamadas classes periféricas, vulgares, despidas do polimento da tradição estética e cultural do arquipélago. “Suzaki Paradise: Akashingo”, de 1956, talvez o melhor filme de Kawashima, tem o clima que Imamura iria refinar em suas produções: crítica social com sexualidade bruta, desejo e violência. Esse compartilhamento e companheirismo implicava em um inevitável hedonismo, sobretudo bebidas. A saúde mais frágil do amigo iria cobrar seu preço. Kawashima morreu com quarenta e poucos anos. Embora contratado pela Nikkatsu, Imamura pouco a pouco fugiu da cartilha comercial estilo “tribo do sol” do estúdio. Sua quarta realização, “My second brother”, de 1959, foi baseado no diário de uma menina nipo-coreana de dez anos. A temática étnica era praticamente inexistente nas telas japonesas, desnecessário ressaltar. A quinta, “Todos porcos”, de 1961, foi a consagração: o filme passou em Nova York e Paris, ganhou prêmios no Japão e sedimentou a confiança no realizador para explorar seu estilo - crítica social com sexualidade bruta. Ambientado durante a ocupação em Yokozuka, sede da maior base naval norte-americana no Japão, perto de Tóquio, a produção mesclou habilmente filmagens em estúdio e tomadas externas para veicular uma sátira arrasadora dos vícios e malefícios da cidade. Rodado em preto e branco contrastado, tem a gramática narrativa estruturada por gruas, teleobjetivas, travellings e enquadramentos, ousados e originais. O diferencial de Imamura - seu zelo sociológico em realizar pesquisa de campo com yakuzas e a cadeia de prestadores de serviços para marinheiros americanos – agrega um inesperado valor à trama. Movimentado, frenético, do filme emana a percepção do tecido social esgarçado do pós-guerra. A sequência clímax – quatrocentos porcos adentrando a passarela dos cabarés de Yokozuka – é apoteótica. Animais e humanos Animais juntos com humanos tornou-se outra das marcas recorrentes dos filmes de Imamura. Definindo-se como “antropólogo cultural”, proferiu sua conhecida sentença: “estou interessado na relação entre a parte de baixo do corpo humano e a 116 parte de baixo da estrutura social, sobre a qual a realidade da vida diária no Japão se sustenta”. Qual a diferença, prosseguiu, entre humanos e animais ? Fazer filmes era procurar por essa resposta. “A Mulher Inseto ou Tratado Entomológico do Japão”, de 1963, responde, com todos os méritos, a essa questão. Trata-se de um épico formidável sobre a trajetória de uma mulher totalmente comum, com ou sem caráter, da parte de baixo da estrutura social e dotada de uma incrível capacidade de superação. Atravessa guerras e dá à luz, migra do campo para a cidade, prostitui-se e deixa-se seduzir, tornase “mama-san” e completa o círculo, retornando ao vilarejo natal. As pontuações históricas estão presentes. A conquista de Cingapura pelo exército imperial em 1942; o pronunciamento no rádio do Imperador em 1945; o anúncio da reforma agrária pelo general MacArthur durante a ocupação; e até o casamento do príncipe herdeiro em 1959. Um tempo que se desdobra vertiginosamente, mas que se mantem ancorado no instinto de sobrevivência da heroína, magnificamente interpretada por Hidari Sachiko. Imamura conta que percebeu a motivação da personagem olhando para um inseto esforçando-se para superar obstáculos: apesar dos pequenos contratempos, não desiste nunca, prossegue. Ficção e documentário Donald Richie, que escreveu um livro sobre Imamura – “Notes for a study on Shohei Imamura” – faz uma curiosa ilação sobre a “natureza primitiva” detectável em certos personagens do diretor e o tom documental que seus filmes podem assumir. Em “Introdução à antropologia”, de 1966, o protagonista sente-se compelido a distribuir pornografia para suprir algo que a civilização tinha suprimido: o desejo. Para descrever o pornógrafo em seu trabalho “artesanal”, Imamura usa um estilo documental. Em 1968, esse dispositivo atinge o ápice. “The profound desire of the Gods” é um mergulho no Japão profundo, onde superstição e sexualidade desprovida de constrangimentos são a tônica. Rodado na ilha de Ishigakijima, perto de Okinawa, no extremo sul do Japão – dezoito meses de uma difícil locação – foi o primeiro filme a cores do diretor, luxuriantes como o cenário tropical. Fauna e flora transbordantes, 117 pulsões primitivas, incestos, sal e cana de açúcar: são quase três horas de filme, boa parte delas dedicada a captar a natureza, incluindo a pequena comunidade local e sua “naturalidade”. O choque vem de Tóquio e materializa-se no engenheiro e seu projeto de construir um aeroporto. A modernidade e o turismo chegam para ficar: a camada primitiva, entretanto, subjaz. Este é o Japão, segundo Imamura. Para o diretor, de fato, superstição e uma espécie de panteísmo – a natureza, em suas variadas manifestações – dominam o ethos nacional. Os animais, como sempre, comparecem: logo no início um enorme porco pula do bote em que viajava com alguns dos personagens do filme e é imediatamente devorado por um tubarão. Um signo e um presságio, dois eixos estruturantes da narrativa. Certa vez Imamura disse a Audie Bock: os japoneses são os mesmos há mil anos, a distância entre o país feudal e o moderno é menor do que gostariam de admitir. Ficção e documentário Um ano antes, em 1967, Imamura havia realizado um notável experimento, “A man vanishes”. O estatuto da verdade do discurso cinematográfico, a opacidade e a transparência da imagem, são os temas da fita, que oscila entre verdade e mentira sem o menor pudor. Partindo de uma situação real, um homem de 30 anos que simplesmente desaparece, o filme fornece pistas e despista ao mesmo tempo, entrevistando o entorno e “construindo” o personagem. A esposa do trânsfuga, dedicada (e paga) por um ano para acompanhar a investigação, é filmada por todos os lados, inclusive por câmaras ocultas – procedimento no limite da ética, que levou o diretor a reconhecer exageros. Ao final, o próprio Imamura admitiu: é tudo ficção. O esforço de produção para completar “The profound desire of the Gods”, não obstante, foi demasiado. Os próximos nove anos seriam devotados ao documentário, com equipes pequenas e produção facilitada. Os documentários para Imamura, vale frisar, estão sempre nesse limiar da verdade: podem ser lidos como uma metalinguagem de si mesmos. 118 Nouvelle vague É comum associar-se a “nouvelle vague” japonesa a três realizadores: Oshima Nagasi, Shinoda Masahiro e Yoshida Yoshishige (ou Yoshida Kiju, como utilizado frequentemente). Com a distância histórica (e geográfica), criou-se uma mitologia em torno do grupo, como se os três diretores comungassem dos mesmos pressupostos políticos e estéticos, e, ato contínuo, partissem para uma ruptura contra o sistema anterior de produção. A referência era a “nouvelle vague” francesa, de Godard, Truffaut, Rivette, Chabrol e companhia, e outros movimentos, como o cinema novo brasileiro. Nada mais longe da verdade. Trata-se de um slogan inventado pelo estúdio Shochiku, onde os três atuavam, para aproximar-se do novo e jovem público. Segundo revelou mais tarde Yoshida, com Oshima tinha proximidade, afinal escreveram na mesma revista de cinema: mas à medida em que começaram a dirigir filmes, se afastaram. Yoshida alega que recusou todos os convites posteriores para encontros públicos em torno da “nouvelle vague”. Sobre Shinoda, a quem encontrou poucas vezes em situações formais, mal conhecia. As declarações de Oshima, cujo mau humor sobre o assunto era notório, são inconclusivas. Shinoda, por sua vez, parece indiferente. Claro, o que eles tinham em comum eram as inquietações da época, das rápidas transformações socioeconômicas às turbulências políticas. O sistema de produção verticalizado dos estúdios estava no limite, os custos cresciam, o público tinha outras opções (televisão) e a demanda por dramas e emoções ficava cada vez mais complexa. O típico produto dos estúdios, o cinema de gênero – que permitia organizar a produção em série – parecia esgotar-se e agradava cada vez menos. Projetos concebidos com maior autonomia e inovação teriam mais chances, embora com maior risco. Essa nova geração de realizadores efetuou a transição e mudou o modo de produção do cinema japonês. O Imperador não é Deus Se Imamura sentiu-se livre após o pronunciamento no rádio do Imperador, em agosto de 1945, Shinoda, por sua vez, tentou se matar, em setembro do mesmo ano. O 119 motivo foi a publicação, naquele mês, do decreto que obrigou Hiroíto a abdicar do status divino, exigência dos americanos. Tinha 15 anos de idade. A derrota na guerra provocou nele uma brutal decepção com o sistema imperial e suas ramificações na cultura e educação, a exemplo de muitos outros compatriotas. Nos anos que se seguiram completou sua formação com um inevitável espírito crítico. Mais tarde diria que a “característica do Japão é a imposição sobre o povo de um poder e autoridade absolutos, sem direito de questionar e debater”. Shinoda Masahiro entrou para Shochiku em 1953, e foi assistente Ozu em “Crepúsculo em Tóquio”, de 1957. Certamente, não era radical como Oshima, tampouco satírico como Imamura; mas era um diretor talentoso e versátil. Dirigiu um filme atrás do outro, dos temas mais variados, a partir de 1960. O primeiro, “One way ticket”, tem como personagens um saxofonista, uma jovem com ânsias de suicídio e um cantor classificado de “Elvis Presley do Japão”. “Dry lake”, também de 1960, conta as aventuras de um infeliz revolucionário dos anos 60, contra o ANPO. “Killers on Parade”, de 1961, narra uma absurda farsa policial em cores saturadas. Esses dois últimos tiveram roteiro de Terayama Shuji, que mais tarde viria a ser um famoso diretor teatral de vanguarda no Japão, também com incursões no cinema (“Emperor Tomato Ketchup”, curta mais tarde editado em longa, e “Throw Away Your Books, Rally in the Streets”, ambos de 1971, além de “Fruits of passion”, de 1981, entre outros). Flor Seca Antes de Shinoda realizar “Flor seca”, de 1964, belíssimo e original filme sobre yakuzas, foram nove longas-metragens. Enquadrado em um cinema de gênero, “Flor seca” conseguiu a proeza de ultrapassar os clichés e explorar zonas desconhecidas – o expressionismo das imagens e a trilha sonora, de autoria de Takemitsu Toru, ajudaram. Mas o ponto fulcral foi o casting, que opôs um yakuza de meia idade e entediado – vivido por Ikebe Ryu, figura frequente no gênero – à resplandecente Kaga Mariko, à época com apenas 19 anos e sobrando na tela. 120 A surpresa, habilmente insinuada pelo argumento de Ishihara Shintaro, o popular escritor e roteirista da Nikkatsu, é o vazio existencial da personagem feminina, mais radical e limítrofe do que seu parceiro masculino. Enquanto o yakuza se escora no seu saber empírico de jogador e “gang member”, ela aposta tudo, movida por um insaciável desejo de risco, verdadeira pulsão de morte. O jogo de cartas, aliás, é a matriz visual do filme: é o local onde os personagens apresentam-se hipnotizados. Shinoda disse que o poema de Baudelaire, “Fleurs du mal”, atravessa a narrativa do filme. No mesmo ano, 1964, outra obra-prima: “Assassination”, passado nos agitados tempos de transição do xogunato para a era Meiji, em torno de 1860. Um “jidaigeki” de samurais, mas samurais complexos e contraditórios. Gun diplomacy Kiyokawa Hachiro é o (real) personagem desse filme de ação, espadas e sangue, e também de escaramuças, traições e ambições políticas. Intelectual confuciano e exímio espadachim, Kiyokawa encarnou, por suas qualidades e hesitações, o paroxismo das abruptas mudanças experimentadas pelo Japão em 1854, na segunda visita do Comodoro Mathew Perry e seus “barcos negros”. A “gun diplomacy” norte-americana abriu o mercado japonês, e desestabilizou definitivamente o xogunato Tokugawa. No caos que se seguiu, Kiyokawa liderou ronins contra o xogum; pregou lealdade absoluta ao Imperador e ódio aos bárbaros estrangeiros; mudou de opinião no meio do caminho, surpreendendo seguidores; e terminou assassinado por milícias do xogunato, em 1864. Uma das razões desse “imbróglio” era a atitude ambivalente do Imperador, depois de séculos reduzido a mera decoração pelo xogunato Tokugawa. Enfrentar o poderio norte-americano e europeu era impossível, a abertura era inadiável. Mas igualmente difícil, senão impossível, era extrair uma posição intermediaria dessa confusão. Um dos poucos foi Sakamoto Ryoma, o “ronin” que também lutou contra o xogunato, tinha uma incrível visão estratégica para o futuro do país e foi morto em uma emboscada, em 1867. Em “Assassination”, Sakamoto entra em cena pescando, tranquilamente, a beira-mar. Este é um daqueles filmes em que uma informação 121 histórica extra pode ajudar o espectador. A força da linguagem, porém, é marcante. Como dizia Shinoda, suas produções falavam do passado para retratar o presente. Um filme eminentemente político. O duplo suicídio “Japan unmasked: the character & culture of the Japanese”, de Boyé Lafayette De Mente, é um livro singular: escrito para “desmascarar” a cultura japonesa, mirando leitores estrangeiros interessados em fazer negócios no Japão, termina se revelando um pequeno dicionário da cultura e das idiossincrasias de um povo. Algumas delas: a obsessão com a forma e a harmonia, presente nas interações sociais e na própria escrita; a construção rigorosa dos objetos estéticos, mediadores da realidade, como no teatro (kabuki, Nô e bunraku/bonecos); e os excessos recalcitrantes, para o bem e para o mal, que caracterizam a especificidade cultural que é o Japão. Shinoda Masahiro operou de forma admirável a atualização dessa especificidade para o cinema dos anos 60. Politicamente mais conservador que Oshima, seus filmes trazem um desencanto niilista que os torna universais e abertos a novas leituras. “With beauty and sorrow”, de 1965, é uma adaptação imaculável de uma daquelas histórias passionais e estranhas de Kawabata Yasunuri, filmada em tons pastéis fortes e com Kaga Mariko em mais um papel abismal. Para vingar sua amante, seduzida e abandonada quando jovem por um homem casado, conquista o sedutor original e seu filho. Não há limites para sua sexualidade. O estilo minimalista da direção dos atores abafa a escalada da tensão, culminando na extraordinária sequência do lago Biwa, perto de Quioto. No mesmo ano, 1965, Shinoda roda “Samurai Spy”. Alain Silver, autor do insubstituível estudo “The samurai film”, exalta a câmera estática do diretor, capaz de registrar com sutileza os momentos que antecedem à erupção de violência, sem prejuízo da estilização marcial tão cara à audiência. A narrativa segue um samurai à deriva, infiltrado na tumultuada época que resultou na vitória do clã Tokugawa, no início do século 16, como se fora um observador distanciado e cético diante da incerteza moral dos conflitos. Elaborado em cima da linha tênue entre verdade e falsidade, o personagem luta e atua, mas não deixa traços, deixando o espectador sem referências. 122 Posteriormente, Shinoda descreveu o filme como uma alegoria sobre a posição japonesa na Guerra Fria. Duplo suicídio Seu trabalho mais celebrado é “Duplo suicídio”, baseado na peça “The Love Suicides at Amijima”, escrita em 1721 pelo insuperável Monzaemon Chikamatsu, o “Shakeaspeare” japonês. Nesse filme, de 1969, o que está em cena é uma geologia da tradição teatral no Japão: são camadas de estilos de representação, do Nô ao kabuki, passando pelo distanciamento crítico moderno. O filme abre com uma figura de retórica brechtiana, uma discussão por telefone sobre locações de filmagem e seus possíveis efeitos em termos de realismo dramático. Discussão, a propósito, que remete às origens do próprio cinema japonês, oscilante entre a representação estilizada do kabuki e o realismo de estética ocidental. A visualização explícita dos “kurokos” (ou “koken”), contrarregras em princípio “invisíveis” que organizam os objetos em cena despercebidos pelos atores, é uma ênfase sobre a tradição e sua “geologia”. “Duplo Suicídio”, realizado em pleno anos 60, logrou atualizar o patrimônio do teatro japonês clássico no bojo de uma década fervilhante de experimentação no audiovisual. Uma obra-prima. Shinoda manteve uma produção estável ao longo da carreira, mesmo depois de sair da Shochiku em 1965. Falar do presente filmando o passado foi uma preocupação constante. “As escandalosas aventuras de Buraikan”, de 1970, é uma farsa sobre as (puritanas) reformas de costumes no final do período Edo, na segunda metade do século 19; “Silence”, de 1971, baseado no livro de Endo Shusaku, fala das perseguições e martírios sofridos por cristão japoneses e jesuítas europeus no início da era Tokugawa, no século 16; “MacArthur Children”, de 1984, explora a ocupação americana; e “Spy Sorge”, seu último filme, de 2003, foca no enigmático espião Richard Sorge. Eros Massacre 123 A década de 60, indubitavelmente, marcou a irrupção da sexualidade no cinema japonês. O (hoje) obscuro Takechi Tetsuji foi um de seus pioneiros, talvez o principal. Crítico e diretor de teatro, Takechi ficou inicialmente conhecido por ideias inovadoras, sobretudo em relação ao kabuki, mas também Nô e teatro moderno. Na televisão, dirigiu teledramas e contribuiu para a popularização da cultura teatral. Por alguma razão, resolveu dedicar-se, a partir de 1960, à produção de filmes eróticos. “Daydream”, de 1964, o primeiro filme “pink” distribuído por um dos grandes estúdios - Shochiku, aquele de Ozu, Kinoshita, Naruse, Shinoda e outros – inovou com cenas de nu frontal e breve exposição de pelos pubianos. Para permitir a exibição do filme, foi necessário ao comitê de ética da associação de produtores japoneses (“Eirin”) inventar o método “fogging” de censura: obscurecimento dos pontos na tela julgados obscenos, até hoje em vigor em relação às produções pornográficas, geralmente com a técnica do “mosaico”. O filme descreve delírios sexuais em um consultório de dentista (a “Japan Dental Association” protestou). “Daydream” deu boa bilheteria e foi exportado para os EUA, onde lhe foram agregadas cenas adicionais dirigidas por Joseph Green, produtor do “cult” de 1962, “The Brain That Wouldn't Die”. Definindo-se um “nacionalista étnico”, Takechi adotou linha mais explícita ainda em seu segundo filme, “Black snow”, de 1965. A história se passa perto da base aérea norte-americana de Yokota, onde a mãe do protagonista atua como prostituta: impotente e ressentido, assiste secretamente cenas de sexo entre ela e um GI negro, só conseguindo ter ereção ao acariciar uma arma carregada. Termina assassinando o GI e é morto em seguida pelos americanos. A proximidade com os protestos contra o ANPO permitiu a Takechi incorporar uma dimensão política (e racista) ao filme. David Desser, autor do abrangente “Eros Plus Massacre: An Introduction to the Japanese New Wave Cinema”, considera “Black snow” como a primeira produção “pink” que fala de política. Takechi Tetsuji terminou sendo preso por indecência, cópias de seus filmes foram confiscadas da produtora Nikkatsu e de sua própria casa. Um arco de intelectuais mobilizou-se a seu favor, de Oshima a Suzuki, no cinema, e Mishima a Kobo Abe, na literatura. Foi a primeira vez, no pós-guerra, que o governo interveio na indústria do entretenimento. Dois censores da “Eirin”, que tinham aprovado a exibição 124 do filme, também foram processados. No final, Takechi ganhou a ação e o cinema “pink” explodiu. Nesse filão surgiu Wakamatsu Koji, transgressor e prolífico realizador, exemplo privilegiado de conexão entre o “eroduction” (produções eróticas) e o cinema enquanto instrumento de revolução política. Estima-se que, no final dos anos 70, metade da produção cinematográfica no Japão era “pink eiga”. Foi uma guinada radical. Eros sublimado Os filmes de Yoshida Kiju talvez sejam, dentre os diretores associados à “nouvelle vague” japonesa, os menos difundidos no Ocidente. A exceção é a França, onde tem muitos admiradores. Yoshida é o mais francófono dos realizadores nascidos no Japão: estudou língua e literatura francesas na Universidade de Tóquio, e sua tese de graduação foi sobre Jean-Paul Sartre. Na época, o existencialismo como corrente filosófica tinha um alto poder de atração entre os intelectuais, ainda mais para os nativos de um dos principais países instigadores do conflito. A francofonia de Yoshida estendese à cinefilia, não apenas em relação ao cinema francês, mas a autores caros à “nouvelle vague” original, a francesa, como o sueco Bergman e o italiano Antonioni, além de Renoir e Rossellini. Muito bem equipado culturalmente, Yoshida escreveu sobre cinema - livros sobre Antonioni, de quem foi amigo pessoal, e Ozu, com o qual ganhou prêmio na França. Suas produções, em especial durante a década de 60, refletem esses engajamentos. Para ele, o que importava não era a “história” que o filme contava, mas a “imagem real” do ser humano, ou a “existência”, no sentido sartreano. Yoshida entrou para a Shochiku em 1955, para trabalhar como assistente de direção. A exemplo de Oshima e Shinoda, começou a dirigir em 1960, com filmes produzidos para o público juvenil urbano, de acordo com a estratégia do estúdio de conquistar novas audiências. Realismo abstrato 125 “Volúpia perigosa”, de 1960, foi o primeiro: rapazes entediados importunando a secretária do pai de um deles. Rapidamente, desviou-se do padrão. “Escape from Japan”, de 1964, um filme de ação “inerentemente triste”, como disse o diretor, não agradou os produtores, que esperavam mais adrenalina. Yoshida casou (com sua atrizfetiche, Okada Mariko), foi para a lua de mel, e acabou rompendo com a Shochiku no dia em que voltou, no próprio aeroporto de Haneda. Independente, pôde dar vazão a preocupações formais – crescente abstração da imagem através do descentramento da composição do plano – e dramáticas, com ênfase nas personagens femininos carregadas de uma “intensidade emocional destrutiva”, em especial ao (produtivo) período da década de 60. Dotado de um olhar sofisticado, Yoshida construiu um percurso original, eventualmente chamado de “realismo abstrato”. Inspirado em Kawabata, “Woman of the lake”, de 1966, narra as peripécias de uma mulher casada (e infeliz), que se deixa fotografar nua pelo amante: a chantagem subsequente é inevitável. Ângulos e profundidades de campo reforçam a tensão interior dos personagens. Em “Flame and women”, de 1967, o marido estéril aprova inseminação artificial na mulher. Ela se apaixona pelo provedor, a trama se complica, mas a frieza da câmera não esmorece. “The affair”, também de 1967, faz a sensualidade da protagonista feminina, interpretada por Okada Mariko, revelar-se e transbordar na tela. Reproduzindo antecedentes maternos, ela tem um “affair” com um operário, paralelo à vida de casada e à proximidade com um escultor, ex-amante da mãe. Talvez o melhor filme do realizador. Eros e política “Eros + Massacre”, de 1969, é o seu projeto mais ambicioso. Duas histórias se alternam em mais de três horas de duração (seriam mais de quatro na primeira versão). A primeira, inspirada em fatos reais, se passa logo após o grande terremoto de Kanto, em 1923, quando o anarquista Osugi Sakae, que considerava Bakunin como seu antepassado, foi assassinado – temia-se que ele se aproveitasse do caos para fazer a revolução. A segunda história é contemporânea (anos 60): um casal de estudantes 126 pesquisando sobre Osugi. Ambas narrativas são não-lineares, característica do diretor. Personagens na beirada dos enquadramentos, transições entre passado e presente propositalmente embaraçadas e borradas. Em 1973, novamente um tema político. “Coup d’état” conta os últimos momentos de Kita Ikki, influente filósofo e ativista junto à extrema direita japonesa, que terminou executado por cumplicidade no golpe dos jovens oficiais em 1936, o conhecido “incidente de 26 de fevereiro”. Yoshida Kiju só voltou a dirigir em 1986. Sua última realização, em 2003, integrou o coletivo organizado por Leon Cakoff sobre São Paulo: um curta de pouco mais de onze minutos, que registra a entrevista de uma garçonete nissei da Liberdade, concedida a Okada Mariko. Do mundo yakuza ao cinema Wakamatsu Koji tinha dezessete anos quando chegou em Tóquio, início da década de 50, depois de desentender-se com seu pai, modesto criador de cavalos na província de Miyagi, norte da capital. Impaciente, largou a escola, e encarou os mais variados empregos até que foi recrutado pela yakuza, para ajudar em “pequenos serviços”. Acabou pegando seis meses de cadeia. Na volta, trabalhou como olheiro de produções que usavam territórios da yakuza para locação. Gostou e foi trabalhar na televisão. Em seguida, migrou para uma pequena produtora, fora do sistema dos estúdios. Estreou em 1963, com três filmes, todos perdidos. Em 1965, o oitavo, “Chronicle of an Affair”, foi um sucesso, embora restrito a um circuito limitado. A história começa com uma brutal agressão de uma jovem recém chegada do campo, em um cenário estufado de neve. No fim ela amadurece e torna-se, na sequência: operária, prostituta, amante do chefão e suspeita de assassinato. O background de Wakamatsu teria impedido voos mais altos (os diretores das grandes produtoras em geral tinham diploma universitário). Mas o acaso favoreceu-o: “Secret behind the wall”, também de 1965, foi comprado por um alemão que 127 perambulava pelo Japão e inscrito no prestigiado Festival de Berlim, à revelia da comissão da “Eiren” que selecionava os filmes para competições internacionais. Rodado em cenários claustrofóbicos, como sugere o título, a trama se desenrola nos conjuntos habitacionais construídos no pós-guerra. Logo na abertura, um casal se acaricia e dialoga em tom “político-existencial”, com planos de detalhe dos corpos no estilo de “Hiroshima, meu amor”, de Alain Resnais. Nas costas do protagonista, uma espaçosa e horrenda cicatriz, fruto da exposição à bomba em Hiroshima; e na parede, ao fundo, um retrato de Stalin. A exibição em Berlim, contra tudo e contra todos – poucos elogiaram a fita, entre eles Oshima, para quem Wakamatsu era a novidade que o cinema japonês precisava – deu um impulso em sua carreira e permitiu abrir sua própria produtora, a “Wakamatsu Pro”. O embrião caça em segredo Um novo mercado externo abria-se para filmes feitos no arquipélago, eivados de um olhar estranho e incomum. Koji foi um dos primeiros a explorá-lo. Não tinha nada a ver com samurais e gueixas de Mizoguchi e Kurosawa, nem tampouco com os dramas classe média de Ozu e Naruse: os temas eram histeria sexual, assassinatos, tortura física e servidão psicológica, com pano de fundo de alegoria política. “The Embryo Hunts in Secret”, de 1966, radicaliza as experiências claustrofóbica e sádica, temperada pelo roteiro de Adachi Masao, parceiro e conselheiro de Wakamatsu nos próximos empreendimentos, todos com orçamentos mínimos. Toda a ação se passa no apartamento do próprio Wakamatsu, especialmente pintado de branco. Durante uma semana, tempo das filmagens, ninguém saiu de casa (somente uma rápida cena de chuva). “Violated Angels”, também de 1966, mostra um serial killer invadindo um quarto de enfermeiras e liquidando uma a uma. “Season of terror”, de 1969, segue dois policiais “voyeurs” que monitoram, através de microfones ocultos, um ex-ativista estudantil bígamo; e “Go, Go, Second Time Virgin”, de 1969, se passa no topo de um prédio, começa com um estupro e termina em uma rotatória de assassinatos. Entre 1965 e 69 128 foram espantosas 35 produções. Nesses filmes o crime, assim como o sexo, foi praticado em série, e não tinha “nome jurídico”: era pura expressão do desejo. Adachi Masao, roteirista e colaborador próximo de Wakamatsu, estudou cinema na universidade Nihon, e combinava projetos experimentais com ativismo político. Integrava um coletivo que registrou os protestos contra o ANPO, em 1960. Em 1963 dirige “Closed vagina”, uma metáfora do impasse político à luz do fracasso dos protestos, com cenas de sexo solenes e ritualizadas. Em 1969, a comédia erótica “Female student guerrilla”, sobre cinco estudantes que resolvem fazer a revolução nas montanhas após as manifestações de rua contra o ANPO. Escreveu muitos roteiros, inclusive para Oshima Nagisa (“Diary of a Shinjuku thief”), foi ator (“O enforcado”, do mesmo Oshima) e, nas horas vagas, teorizava sobre cinema. 129 Capítulo 5 Anos 70 e 80: “Pinku Eiga” e Política Tanaka Kakuei foi um dos mais vibrantes e impetuosos Premiês que o Japão já teve. Exerceu o cargo entre 1972 e 74, tendo imprimido ritmo febril de obras públicas, muitas de custo elevado. A imprensa rapidamente apelidou-o de “escavadeira humana” e “shadow shogun”. Antes de chegar ao topo, ocupou vários pastas ministeriais importantes, relacionadas a infraestrutura, economia e comércio. Líder de uma das principais facções do Partido Liberal Democrata, o poderoso PLD, Tanaka foi ousado também na política externa – visitou a China em 1972 e encontrou-se com Mao TseTung e Zhou En-Lai, na mesma época que Richard Nixon e Henry Kissinger faziam a histórica aproximação com Pequim. Em 1973, teve que administrar o choque do petróleo provocado pela OPEP, que provocou alta inflacionária e evidenciou a vulnerabilidade de seu país, forte dependente da importação de combustível. Mas também resistiu às pressões norte-americanas para restringir voluntariamente exportações japonesas: o crescente déficit na balança comercial entre os dois países assustava Washington. Ao mesmo tempo, o Japão seguia debaixo da proteção dos EUA no teatro asiático, economizando gastos com defesa. Em 1974, entretanto, Tanaka foi obrigado a renunciar, em função de propinas recebidas por seu grupo político provenientes da Lockheed, fabricante de aviões americana. Foi condenado dois anos mais tarde por duas cortes inferiores. Ficou preso por cerca de um mês, em 1976. Tanaka foi um político representativo da emergência do Japão como potência econômica mundial: arrojo e capacidade de realização impressionantes, combinado a uma estrutura de poder fundada em práticas antiquadas. O ex-Premiê é creditado pela criação do sistema “triângulo de ferro”, que articulava o PLD, burocracia estatal e grandes empresas (sobretudo empreiteiras) em uma unidade de corrupção quase inviolável, calçada em um clientelismo regional capilarizado. A economia nipônica, não obstante, seguia firme. Um dos marcos da ascensão japonesa foi a Exposição Universal 130 de Osaka em 1970, prodigioso exercício de marketing global de um país fora do eixo América do Norte/Europa, a exemplo do que haviam sido as Olimpíadas de 1964, em Tóquio. Seppuku midiático Foi também em 1970 que o escritor Mishima Yukio entrou no QG do Exército no centro de Tóquio, vestido como militar e acompanhado de companheiros milicianos, para cometer um “seppuku” público. Mishima iniciou o suicídio por esventramento, na presença do General tomado como refém, cortando o ventre da esquerda para a direita: com o ritual inconcluso, como ocorre na maioria das vezes, foi decapitado pelo auxiliar (e amante). Estava acompanhado de membros da milícia que fundou em 1968, a “Sociedade do Escudo”. Antes, falou para uma plateia de soldados, no balcão do quartel. A TV filmou tudo. O discurso apelava para um aliança com os militares em prol da revolução purificadora. O “seppuku” foi no gabinete, sem câmeras e na presença do comandante. Tinha 45 anos. Patriotismo Mishima Yukio, para muitos no arquipélago o melhor escritor de sua geração, deu uma guinada para a extrema direita a partir da onda de protestos contra o ANPO, em 1960. Tornou-se um nacionalista peculiar, radical e arraigado. De formação intelectual extremamente sofisticada, cultivava também o físico – Donald Richie, que era seu amigo, conta como Mishima apreciava ser reconhecido como “bodybuilder”. Escreveu peças de teatro, romances, ensaios. Casado, com filha e filho, alternava entre vida familiar e relações homossexuais. Paradoxalmente, sua casa era decorada no estilo ocidental, com mobília francesa século 16 e uma estátua clássica do deus Apolo. Em 1960 escreveu um conto sobre um tenente que comete “seppuku” junto com a esposa, na margem da revolta frustrada dos oficiais (excessivamente) leais ao Imperador, em fevereiro de 1936. O conto virou um média-metragem de 27 minutos, em 1965, intitulado “Rito de amor e morte”, com o próprio Mishima dirigindo e fazendo 131 o protagonista. Rodado em dois dias, não tem diálogos. A trilha resume-se a trechos de “Tristão e Isolda”, de Richard Wagner (sugerida por Richie). O cenário combina palco Nô e jardim zen. Exibido inicialmente na França, circulou nas salas no Japão em 1966 e atraiu bom público. Cenas com “hara-kiri” (termo mais comum que designa suicídio ritualizado) são frequentes no cinema japonês. Para Mishima foi diferente: a estetização da morte violenta, sua relação com o (homo) erotismo, a descrição gráfica do ato – todos os detalhes sugerem que seu filme foi um ensaio do próprio “seppuku”, poucos anos mais tarde. Antes do ato espetacular, atuou em “Hitokiri - o Castigo”, de Hideo Gosha, de 1969, onde protagonizou mais um ensaio suicida. Também posava para fotos artísticas, com temática sadomasoquista e exibicionismo do corpo. Em 1965, deu uma entrevista à BBC, em inglês fluente, quando disse que o “hara-kiri” é um modo “positivo e imponente” de morrer: não tem nada a ver com o conceito ocidental de suicídio, ligado a derrota e ao fracasso. O “hara-kiri”, completou, “pode fazer com que você vença”. Depois de sua morte, a viúva, controladora do espólio artístico, vetou a difusão de “Rito de amor e morte”. Somente em 2006, quando ela faleceu, o filme voltou a circular. O retorno Kurosawa Akira, a despeito da incrível capacidade de realização, ficou cinco anos sem filmar, entre 1965 e 70. O frustrado projeto de “Tora! Tora! Tora!” abateu-o. Sua fama de irritadiço no set de filmagem, acrescido dos gastos excessivos de produção e a lentidão em entregar o produto final fizeram com que os americanos perdessem a paciência. A saída, com a ajuda do “Clube dos Quatro Cavaleiros”, a cooperativa entre amigos para produzir filmes, foi “Dodeskaden – o caminho da vida”, de 1970. Foi seu primeiro trabalho a cores. O instigador dessa experiência foi o incansável diretor da Cinemateca Francesa, Henri Langlois, que convenceu o amigo projetando o magnífico “Ivan o terrível”, último filme de Sergei Eisenstein. Kurosawa ficou fascinado com a diversidade de estados mentais que as sutis combinações de temperaturas das cores poderiam proporcionar. 132 Em “Dodeskaden” os motivos cromáticos orientam personagens, definem contornos dramáticos, preenchem o drama. O filme, entretanto, não conseguiu boa recepção na crítica e foi relativamente mal de público. Novamente abalado, com problemas de saúde, Kurosawa tentou o suicídio, em dezembro de 1971. O prestígio internacional de Kuro-san, ainda hoje insuperável entre os realizadores de seu país, despertava ciúmes, daí a cobrança. “Dodeskaden” não tem heróis, alinha histórias cruzadas de personagens esdrúxulos em uma favela, espaço dramático pouco habitual para os japoneses. Em pleno milagre econômico, era um anátema. Filmado em apenas um mês, rapidíssimo para os padrões do diretor, não tem apelos épicos - até no formato do quadro cinematográfico o diretor optou por retornar ao standard 1.33:1 dos anos 40 e começo do 50, em vez das telas largas estilo cinemascope. O resultado final, não obstante, é esplêndido: um “expressionismo social”, uma reinvenção de estilo que o diretor operou valendo-se de toda sua habilidade de conjugar humor e tragédia, agora reforçados com o olho treinado de pintor que cultivou desde a juventude. Artista proletário Desenhar croquis dos planos que iria rodar sempre foi uma das atividades que Kurosawa mais prezava no cinema. Quando começou a filmar em cores, o prazer redobrou: foi um regresso aos seus tempos de “pintor proletário”, na liga em que circulava na juventude, influenciado pelo irmão. Depois de “Dodeskaden”, seus filmes passaram a incorporar uma dimensão onírica calçada na manipulação especulativa das cores, das texturas e das vibrações óticas. Além de ocupar o tempo vago entre suas produções, cada vez mais longos, o ato de pintar tornou-se para ele (e seus filmes) uma reserva tática para expressar-se no conturbado mundo do audiovisual. A produção seguinte, “Dersu Uzala”, de 1975, foi um êxito. Depois de cinco anos sem filmar um longa-metragem, Kurosawa consegue produzir, com apoio da Mosfilm da antiga URSS, mais um grande sucesso global. A história é inspirada no relato de um militar russo inspecionando a fronteira com a Manchúria. Kuro-san conhecia o livro há décadas, tinha ficado impressionado com Dersu, um caçador mongol que sobrevivia nas 133 estepes, autônomo e isolado. A luz siberiana inunda o espaço cinematográfico e convida o espectador a uma irresistível imersão na natureza, mediada pelos sentidos afiados de Dersu, sempre consciente de seus limites e sem gestos grandiloquentes. O personagem foi construído sem os atributos fantasiosos que a civilização urbana contemporânea costuma projetar nos povos ditos “primitivos”. “Dersu Uzala” acertou em cheio: em plena Guerra Fria, ganhou o Festival de Cinema de Moscou e o Oscar de melhor filme estrangeiro. Só mesmo Kuro-san para fazer uma ponte dessas. O sósia “A fortaleza escondida”, de 1958, pertence à época mais produtiva do realizador, e traz Mifune Toshiro em mais uma atuação exuberante. Dentre os aficionados, George Lucas se destacou: confessadamente, seu “Star Wars”, de 1977, absorveu influências do filme, sobretudo nas doses de humor entre personagens secundários, que funcionam como narradores dentro da história (no caso de Lucas, os robôs). O agradecimento veio rápido. Surpreso pela dificuldade do diretor japonês em alavancar recursos para novos projetos, em função dos altos custos e do “tempo” próprio de produção de Kurosawa, o poderoso realizador norte-americano foi à MGM e convenceu o estúdio a associar-se ao projeto “Kagemusha”. Nessa altura, Francis Ford Coppola juntou-se a Lucas. O martelo foi batido em um encontro em São Francisco, em julho de 1978. O filme ficou pronto no começo de 1980, com Nakadai Tatsuya no duplo papel de “daimiô” (senhor feudal) e seu sósia, um ladrão errante no Japão medieval. A paleta de Kuro-san atingiu neste filme um verdadeiro ápice. A longa espera pelas condições ideais de produção permitiu ao diretor exercitar-se com afinco na produção de desenhos e pinturas, utilizados para composição das imagens em “Kagemusha”. Cada plano é um exercício pleno de cores, movimentos, volumes, atmosferas, ventos, intempéries – quase extrapolando os limites bidimensionais da tela. Não faltam cenas de ação: o “timing” da montagem, entretanto, obedeceu a um ritmo mais lento e contemplativo, 134 uma necessidade que Kurosawa identificou e implementou. O esforço foi reconhecido, com a Palma de Ouro no Festival de Cannes, em 1980. Sonhos Em “Ran”, seu próximo longa, de 1985, a inclinação reflexiva (e pessimista) foi ainda mais aguçada. Filmado em topografias íngremes, transmite a vertigem histórica da sucessão tumultuada de mais um “daimiô”, idoso e sanguinário (de novo Nakadai Tatsuya, em atuação marcante). O desdobramento dos acontecimentos começa com um piquenique ritualizado pós-caça de javalis, com o senhor feudal, filhos e dois exinimigos transformados em vassalos. A aparente harmonia começa a ser rompida pela decisão do líder de atribuir ao filho mais velho a condução do clã. Com a participação de Serge Silberman, o produtor francês de Luis Buñuel, o filme teve uma carreira internacional digna de um épico dirigido por Kurosawa. Uma obra-prima. Seria sua última realização com grande orçamento. Dirigiu ainda mais três preciosidades, com produções mais simples e menos onerosas. “Sonhos”, de 1990, coletânea de oito narrativas oníricas registradas pelo realizador, puro e prazeroso exercício cromático. “Rapsódias de agosto”, de 1991, que revisita o tema da bomba atômica, em Nagasaki; e “Madadyo”, de 1993, sobre um professor aposentado de literatura alemã. Dentre os vários roteiros que deixou e foram filmados por outros diretores destaca-se “Sob o Olhar do Mar”, de 2002, realizado pelo notável Kumai Kei. Faleceu em 1998. Pancadaria em Narita Ogawa Shinsuke dedicou sua vida ao documentário, ao cinema como instrumento de registro e mobilização de movimento sociais. Nos anos 60 criou um coletivo que passou anos filmando a revolta dos pequenos proprietários de terras adjacentes ao futuro aeroporto internacional de Narita, perto de Tóquio. Foram sete documentários, que captaram a resistência dos moradores aos avanços da 135 modernização capitalista, auxiliados por estudantes, ativistas anti-EUA, radicais de esquerda e o próprio grupo liderado por Ogawa, todos contra a polícia. Em um dos filmes, “Narita: peasants of the second fortress”, de 1971, o cenário é uma zona de guerra: vinte mil rebeldes, armados de coquetéis molotov, pedaços de pau, pedras e o que estivesse à mão, contra trinta mil policiais. Os insatisfeitos locais cavaram túneis e erigiram pequenas fortalezas. A tensão começou a escalar quando o governo anunciou planos de construir o aeroporto em Narita, em 1966, sem haver prevenido os proprietários que suas terras seriam desapropriadas. A despeito da intensidade dos protestos, o aeroporto foi construído. Ficou pronto em 1972, mas os moradores do entorno conseguiram impedir sua inauguração por anos. Em 1978, quando finalmente ia começar a operar, um grupo invadiu a torre de controle e destruiu boa parte do equipamento. No dia mesmo em que abriu ao público, a polícia teve de bloquear energicamente manifestantes que tentavam invadir as novas instalações. Do outro lado da cidade, em um centro de controle aéreo a 30 quilômetros de Tóquio, ativistas conseguiram cortar o fornecimento de eletricidade que deixou o tráfego aéreo na região da capital parado. O movimento só foi regularizado algumas horas depois. Decidido a eliminar o distanciamento entre sujeito e objeto na realização de documentários, Ogawa e seu grupo mudaram-se para a província de Yamagata. O ano era 1974. Passaram os próximos treze anos filmando a vida rural e cultivando arroz para sobreviver. Em 1981, Oshima visitou o coletivo - na época envolvido com as filmagens de “A Japanese village - Furuyashikimura” – e entabulou longa conversação com Ogawa, deixando um inestimável registro dessa singular experiência. Abe Sada Oshima Nagasi encontrou o produtor Anatole Dauman em Paris no início dos anos 70 e a conversa foi produtiva. Dauman, habituado a trabalhar com Godard, Chris Marker e Resnais, propôs sem titubear, segundo conta Oshima: vamos fazer um filme pornô! (Dauman mais tarde negou a versão). 136 O diretor, excitado com a ideia e a possibilidade de dar um salto internacional na carreira, aceitou na hora. Voltou para casa e enviou duas propostas. Uma sobre a história de Abe Sada, protagonista de um caso célebre de mutilação genital, em 1936, e outra, inspirada em um conto do extraordinário Nagai Kafu, escritor das licenciosas aventuras de cortesãs no Japão do início do século 20. Dauman escolheu a primeira, entusiasmado, também segundo Oshima. Entre o acerto dos dois e o início das filmagens passaram-se exatos três anos. Foram anos de um impasse subjetivo, como definiu o realizador: nada a ver com condições externas de produção. À época, completou alguns trabalhos para televisão, mas seu foco estava em como encontrar o ponto certo da mise-en-scène do ato sexual, como dramatizar uma cena em que os protagonistas se entregam sexualmente e a narrativa não fique diluída na mera contemplação onanista. O exercício do sexo implica um nível básico de expressão emocional, onde o espectador percebe o filme com o corpo, uma leitura corporal, por assim dizer. O objetivo era captar essa leitura e dar um sentido político ao ato. Algo que ia além dos filmes “pink” ou das produções “roman porno” da Nikkatsu, que inundavam as telas japonesas com um estilo “soft-core” que atiçava as massas, mas esgotavam-se em si mesmas. Surpreendentemente modesto, Oshima conta que viajou a Kawasaki para ver as fitas “pink” de Murakawa Toru e Tatsumi Kumashiro. Eles são ótimos, concluiu, mas não “tinha sentido imita-los”. Teria que encontrar um método próprio de composição física. O método foi encontrado: a premissa era o sexo explícito, e a consequência era um estado que poderia ser descrito como sublimação crítica. “Império dos sentidos”, filmado em 1975 e lançado (fora do Japão) em 1976, é um dos produtos mais bem sucedidos do cinema japonês, em todos os tempos. Amor Louco A história de Abe Sada transformou-se em um mito contemporâneo de fortíssima repercussão na indústria cultural japonesa - livros, filmes, biografias, teatro, música, performance. Em todos esses meios sua peripécia foi reproduzida e encenada. 137 O filme de Oshima ocupa o topo da pirâmide, pela excelência artística, mas sem dúvida dialoga com todas essas narrativas, assim como dialoga com os contornos do mito, sua recepção e deglutição na cultura popular. Nascida em 1905, em plena era Meiji, Sada foi a caçula mimada de uma família de produtores de tatame. Dispersiva nos estudos, foi estuprada por colegas da escola aos 14 anos e posteriormente enviada pelo pai a uma casa de gueixas, em Yokohama. Sua incapacidade em atingir o status artístico das gueixas levou-a à prostituição intermitente e aos amantes erráticos, entre Osaka e Tóquio. Em 1934 cuidou do pai enfermo, nos seus últimos dias de vida. Chegou a ser presa logo depois em um bordel, mas conseguiu sair graças a um amante. Passou por Nagoya e voltou para a capital, onde arranjou emprego no restaurante de Ishida Kichizo. A atração mútua foi fulminante, o sexo praticado à exaustão e o fim revelou-se trágico. Em 18 de maio de 1936, depois de dias isolados em um pequeno cômodo, Ishida deixouse asfixiar na busca pelo prazer, falecendo no ato. Em seguida, Sada cortou seu membro fálico, embrulhou-o em uma capa de revista, e foi ao cinema. Ficou três dias perambulando com o pacote e terminou sendo presa. Uma foto publicada nos jornais do dia 20, tirada na delegacia de Takanawa, em Tóquio, mostra Abe Sada sorridente, ao lados de policiais igualmente sorridentes. A mídia explorou o caso ao máximo. Naquele ano os ânimos estavam acirrados. Em fevereiro, no dia 26, havia ocorrido o famoso incidente que inspirou Mishima Yukio em “Rito de amor e morte”. O movimento foi debelado no dia 29. Foram executados 19 conspiradores, entre eles o ideólogo Kita Ikki, personagem do filme de Yoshida Kiju, “Coup d’état”. A partir desse momento, consolidou-se o poder militar e esvaziou-se a política civil. A guerra foi um corolário. Corpo e excesso Dois corpos isolados em um recinto, unidos carnalmente até o último suspiro. A tentação primeira é pensar o filme de Oshima como uma alegoria da exclusão social, em uma época marcada pela escalada militarista que levou à guerra do Pacífico, o excesso dos excessos. Como dirigir dois corpos embalados nesse frenesi ? O casting dos atores, 138 conta Oshima, já era direção. Muitas candidatas para o papel feminino - a eleita, Matsuda Eika, de pele macia e olhar obsessivo, vinha da trupe de teatro de Terayama Shuji – e poucos para o masculino. O ator escolhido foi obra de Wakamatsu Koji, a devastadora personalidade que Oshima, em um lampejo de gênio, chamou para diretor de produção. Fuji Tatsuya, uma das estrelas da Nikkatsu, aceitou o papel depois de várias rodadas alcóolicas com Wakamatsu. Segundo Oshima, Fuji destacava-se por não ter ansiedades em relação à sua capacidade viril. A orientação básica que recebeu para compor seu personagem foi simples e objetiva: pense sempre, em relação à sua contraparte, que você “fará tudo por ela”. Isto é, entrega total do próprio corpo, para consumo hedonista da parceira. Ela, por seu turno, representaria o corpo no estado absoluto do desejo – pura pulsão de preenchimento da falta. As falas de Abe Sada vieram dos depoimentos recolhidos pela polícia e textos da própria, de quem Oshima teria obtido autorização. As de Ishida Kichizo, inventadas (a combinação resultou estupenda). A direção de atores, meticulosa e milimétrica, extrapolou os limites do realismo e inaugurou, no cinema “mainstream” e “artístico”, a prática do sexo explícito (ainda é referência, mesmo com o caudaloso consumo de sexo via internet). E a sacada mais brilhante de Oshima: as cenas de sexo são conduzidas pela protagonista feminina, que chega a instruir seu parceiro a ter relações com terceiras para seu prazer escopófilo. Ao contrário da maioria das narrativas cinematográficas, pornográficas ou não, onde o olhar masculino comanda o espetáculo, no filme de Oshima quem mandou foi a mulher. Pânico no bar Foram trinta dias de filmagens no estúdio da Daiei, em Quioto, com pósprodução e laboratório na França, não somente pela parceria com Dauman, mas pelo receio dos negativos serem confiscados pela polícia japonesa. A difusão da pornografia em território francês, obedecidos os parâmetros restritivos conhecidos, foi liberada em 1975. Oshima registrou o fato com alegria. 139 Na sequência, realizou “O império da paixão”, em 1978, ambientado no Japão rural de fins do século 19, também produzido por Anatole Dauman e com o obstinado Fuji Tatsuya no papel principal (mais tarde ele se tornaria uma personalidade da TV). Neste filme, em vez de sexo explícito, o diretor optou por traição, morte e fantasmas. Em seu país, Oshima era processado por obscenidade pelo livro que organizou para divulgação de “Império dos sentidos”, com fotos e roteiro. Foi absolvido em 1982, depois de demandar ao tribunal qual seria a definição de “obsceno”. Ninguém soube responder. Já o filme demorou para ser aprovado no Japão: mesmo hoje, só pode ser exibido com “fogging” ou mosaico nos órgãos genitais. Matsuda Eika fez mais alguns “pink” - um deles de Wakamatsu, “Eros eterna”, de 1977 - mas logo mudou-se para a Europa, com a carreira eclipsada. Abe Sada, por seu turno, ficou cinco anos na prisão, atravessou a guerra e terminou fazendo shows em um pequeno estabelecimento no centro de Tóquio. Donald Richie conta que Sada despontava no alto da escada espiral do bar para, faca nos dentes, aterrorizar a clientela masculina: em seguida circulava com desenvoltura, distribuindo bebidas. Em 1969 deu um depoimento para Ishii Teruo, incluído no visceral “Love and crime”. Desapareceu da cena pública em 1970. Merry Christmas, Mr. Lawrence Em 1983, Oshima dirige “Furyo, em nome da honra”, com um “casting” ambicioso. David Bowie, pop star global, que viu atuar na Broadway em “Elephant man”; Ryuichi Sakamoto, compositor e tecladista, ídolo no Japão; e Kitano “Beat” Takeshi (listado apenas Takeshi no letreiro), que viria a ser nos anos 90 o nome mais conhecido do cinema japonês. Passada em um campo de concentração das forças japonesas na ilha de Java, a história, baseada em relato autobiográfico de prisioneiro sul-africano, lida com as ambiguidades e sentimentos cruzados de quatro personagens, dois japoneses e dois ocidentais – um microcosmo do conflito maior, a Segunda Grande Guerra. O ano de 1942, a propósito, é quando o Japão promove com mais empenho (e crueldade) a expansão militar no sudeste asiático. 140 Os personagens de Bowie (Celliers, líder carismático dos presos) e Sakamoto (Yonoi, comandante do campo) desenvolvem uma atração física (quase) patológica, pautada por uma gestualidade militar. Uma alegoria imprevista de uma improvável reconciliação pós-guerra, carregada de contradições – afinal, este é um filme de Oshima – mas contundente em si mesma. Perto do fim, Celliers é enterrado no chão apenas com a cabeça à mostra, condenado a morrer pelo novo comandante que substituiu o “sentimental” Yonoi. Cai por terra o código samurai de Yonoi, depois do famoso beijo de Celliers: no ápice do sadomasoquismo, resta apenas o roubo de uma mecha dos cabelos de oficial inglês. Duas grandes atuações, Bowie e Sakamoto, ilustram o filme, assim como a estreia de Takeshi Kitano, porta-voz do refrão “Merry Christmas, Mr. Lawrence”. Oshima Nagisa ainda faria mais dois filmes antes de falecer, em 2013, depois de mais de uma década sem sair de casa, abatido por derrames: “Max, mon amour”, de 1986, com Charlotte Rampling, e o belo “Tabu”, de 1999, sobre um samurai homossexual em uma milícia no final da era Meiji. Em 1993, compartilhou com Kurosawa Akira duas horas de diálogo para a TV. Nesse encontro de insignes, um ciclo se fecha no cinema japonês. Lábios úmidos A perspectiva eurocêntrica do Ocidente tende a enfatizar no resto do mundo alguns excessos comportamentais, sobretudo aqueles ligados à sexualidade. O Japão não escapou dessa pecha: o arquipélago seria a terra do sexo livre, vigente sobretudo nos tempos anteriores à abertura da era Meiji, sem culpas ou castrações. Ninguém se importava com o que o outro fazia em termos de sexo, uma atitude que de alguma maneira perduraria até hoje. No final do século 19, as coisas mudaram. Em 1868, no início da era Meiji, o país abriu os portos para o mundo, reforçou os códigos confucianos e importou um certo moralismo vitoriano, associado à modernidade (tudo o que vinha das potências europeias nas primeiras décadas do novo momento histórico era tido como “moderno”). O objetivo era tornar-se uma nação “civilizada”. A escalada militarista consolidou essa tendência. Posteriormente, depois da guerra do Pacífico, em 1947, a 141 ocupação norte-americana impingiu uma constituição liberal, cheia de preceitos morais, ao mesmo tempo que trouxe hábitos, fantasias e interdições relacionadas à vida sexual – todos de matriz judaico-cristã, ou seja, sem relação direta com a cultura japonesa. Como sempre, a incrível capacidade de adaptação japonesa aplainou o terreno. Até hoje vigora no país o Artigo 175 do Código Criminal, de 1905, que proíbe a distribuição de “objetos obscenos”. Na interpretação contemporânea do artigo, utilizada para os produtos audiovisuais, isso significa a necessidade de inserir um “mosaico” ou qualquer outro truque ótico na imagem para bloquear a visão da genitália. O questionamento de Oshima sobre a noção de “obsceno” tocou em uma complicada discussão jurídica, pontuada, entre outros, pela decisão de 1962 do Tribunal Distrital de Tóquio sobre a tradução do lascivo livro do Marques de Sade, “L'Histoire de Juliette; ou Les Prosperités du Vice”. Embora pelo menos quatorze passagens do texto fossem consideradas ofensivas e violadoras do decoro público, o editor e tradutor – réus da ação – foram inocentados, com base em que tais passagens eram “brutais e irreais, não apelando efetivamente à paixão sexual e portanto não poderiam ser consideradas obscenas”. A arte mitigaria o conteúdo perturbador das descrições gráficas da pornografia. Baseados nessa premissa, pouquíssimos filmes sofreram cortes, inclusive os “pink”, desde que estivessem conformados ao “mosaico”. Kumashiro Tatsumi, contratado pela Nikkatsu, era considerado o “rei do roman porno” – uma espécie de subseção do cinema “pink”, com produções mais cuidadas e associado ao poderoso estúdio, que também atuava na distribuição e exibição. Somente entre 1972 e 75 realizou dezesseis filmes, entre eles “Wet lips”, de 1972, elogiado por Oshima, e “Woods are Wet: Woman Hell”, de 1973, inspirado em “Justine ou les malheurs de la vertu”, do infalível Marques de Sade, com sexo, sodomia, violência, sadismo e masoquismo. A fita foi exibida sem problemas, mas com tarjas pretas cobrindo órgãos sexuais e pelos púbicos. Os infortúnios da virtude Sade tinha leitores e admiradores no Japão. Mishima escreveu em 1965 uma curiosa peça sobre o Marques, a partir do ponto de vista da esposa, “A Senhora de 142 Sade”. Kumashiro Tatsumi não tinha o refinamento de Mishima, mas era dotado de uma enérgica compulsão de filmar, que se ajustava à perfeição aos ditames de produção dos “roman porno”: tempos curtos e limitados para filmagens; flexibilidade de estilo, cenários fechados, ou exteriores abertos; rua e cidades pequenas, sem conexões visíveis entre interno e externo; poucos closes, muita câmera na mão; iluminação simplificada; problemas de sincronia de falas resolvidos na dublagem; músicas como comentários, e intertítulos como organizadores da narrativa; o máximo possível de sequencias filmadas na beira do mar ou rio; e cenas de sexo, muitas, de dez em dez minutos, integradas, naturalmente, a uma variedade de situações - cômicas, patéticas, satíricas e até literárias (seu “The world of geisha”, de 1973, um dos melhores da safra, apoiou-se em texto do escritor Nagai Kafu). A lista acima ilustra também os princípios gerais do cinema “pink”. Kumashiro entrou na Nikkatsu em 1955, mas só conseguiu dirigir um longa em 1968, quando já tinha 41 anos. A partir de 1971, quando o estúdio resolveu dedicar-se exclusivamente ao “roman porno”, Kumashiro explodiu. Sua técnica de direção flagra os personagens em curtos períodos de tempo, suficiente para cruzar seus olhares com algum objeto de desejo ou simplesmente deixá-los possuídos por uma subjetividade desejante. Invade a cena, quase sempre, uma indisfarçável onda de libido, que parece contagiar mesmo os mais renitentes. O clima é de luxúria e paródia. Logo em 1972, com “Sayuri Ichijō: Wet Lust”, Kumashiro agradou público e crítica. Sayuri Ichijō era uma famosa “stripper” e representa a si mesma, em sua rotina atribulada. Em 1999, a fita foi incluída entre os 100 melhores filmes japoneses de todos os tempos pela revista “Kinema Jumpo”. Logo depois, “Lovers are wet”, de 1973, segue um empregado de um cinema “pink” carregando latas de filmes na bicicleta. Munido de uma insolência preguiçosa, ele circula pela narrativa como quem pula carniça (literalmente mostrada na sequência final do “ménage à trois”). Em “The woman of red hair”, de 1979, a heroína pega carona de um motorista de caminhão e acaba entrando em uma rotina intensa de sexo, até que o marido reaparece. Atores com gestos rudes e uma chuva torrencial abafando o ambiente construíram um realismo sensual e embrutecido. 143 Em 1982 Wakamatsu Koji articulou uma produção alemã para Kumashiro, “The woman with red hat”. A história, com pretensões artísticas à altura de “Império dos sentidos”, segue um japonês na Alemanha e seu obsessivo relacionamento sexual com uma alemã, na época da ascensão de Hitler. Não funcionou. Sua saúde foi sempre oscilante, dirigiu seus últimos filmes com um tubo de oxigênio. Shirakawa Kasuko, grande atriz do “pink” (e também do cinema dito “sério’, em filmes de Imamura Shohei e Koreeda Hirokazu) disse que graças a essa condição física Kumashiro foi capaz de retratar a “fragilidade da existência humana”. O “rei do roman porno” faleceu em 1995. Extreme Private Pink Em 1971 foram vendidas apenas 216 milhões de entradas de cinema no Japão, menos de 20 % do que foi vendido em 1958, ano do pico (mais de 1 bilhão e 127 milhões de tickets). A penetração da TV mudou os hábitos (e demandas) da audiência, os estúdios se esfacelaram, o circuito cinematográfico nunca mais seria o mesmo. O modo “pink” de fazer cinema foi uma alternativa eficiente para conter essa erosão. Ocupou um nicho cada vez maior da exibição, sobretudo pela maior abertura para cenas de sexo, eventualmente associadas à violência, à política, à história, ou a qualquer recurso dramático julgado oportuno. Provavelmente foi o “pink”, em seus variados estilos, que segurou a decrescente frequência das salas de cinema ao longo das décadas de 70 e 80 – em 1980, venderam-se cerca de 164 milhões de entradas; em 1990, 146 milhões. Os especialistas opinam que entre 40 e 50 % do total de produções japonesas nesse período, anos 70 sobretudo, era do gênero “pink” (entre 1970 e 79 foram produzidos em média no Japão 367 filmes por ano). Note-se também que, durante os mesmos anos 70, o produto estrangeiro (quase sempre americano) tinha em geral percentual inferior em relação ao nacional no mercado cinematográfico. A partir de 80, entretanto, caiu o número de filmes produzidos no Japão, e os importados prevaleceram. Uma das razões foi a redução da produção “pink” diante da devastadora concorrência do “adult video” nos anos 80. O sexo explícito passou a ser gravado em série, em vídeo e a custos baixíssimos, para consumo privado. 144 Eros jidaigeki Como equacionar custos de produção em 35 milímetros, com toda a parafernália de laboratórios e equipamentos, com a simplicidade da gravação no VHS ? Gravar cenas de sexo em vídeo tornou-se uma opção atrativa para produtores e consumidores. A qualidade técnica, naturalmente, não era a prioridade. Não obstante, enquanto essa questão não se colocou de forma cabal de 1980 em diante, afetando duramente a indústria cinematográfica, os realizadores extrapolaram e o “pink” reinou. Fitas como “Sex and fury”, de Suzuki Noribumi, lançada em 1973, e “Lady snowblood – Vingança na neve”, de Fujita Toshio, no mesmo ano, atualizaram o “pink” erótico com os “jidaigeki” de ação, inovando com a ênfase nos personagens femininos vigorosos. Ambos são apreciados por Quentin Tarantino, como se pode conferir em “Kill Bill”, povoado de mulheres com sede de vingança. “Sex and fury”, produzido pela Toei, tem uma sequência impagável da heroína combatendo uma corja de inimigos, inteiramente nua e no meio de uma (doce) tempestade de neve. Já o filme de Fujita, “Lady snowblood”, produção independente distribuído pela Toho, tem seu roteiro baseado em um mangá do fecundo Koike Kazuo. Os dois alcançaram excelente público. Mangá e violent pink Já em 1972, três produções dirigidas por Misumi Kenji e inspiradas no popularíssimo “Lone Wolf and Cub”, também de Koike, haviam sido lançadas. O herói é um carrasco proscrito do xogunato, convertido em assassino. A franquia “Lone Wolf and Cub” rendeu seis filmes, recurso que iria se tornar recorrente no cinema japonês. O exemplo mais espetacular é a série baseada no andarilho simpático e familiar Tora-san, eterno caixeiro-viajante, que se desdobrou em inacreditáveis 48 longasmetragens. Dirigidos por Yamada Yoji, alcançaram impressionantes 80 milhões de espectadores durante 25 anos, a partir de 1969 (Yamada ganhou prêmios pelos dois primeiros, “It's Tough Being a Man” e “Tora-san's Cherished Mother”). O “pink”, por seu turno, adentrou pouco a pouco em territórios novos e desconhecidos: a violência sexual, praticada privadamente e alegorizada em 145 instrumento de prazer. O “violent pink” surgiu para dar vazão às expectativas mais extremadas da plateia. Diretores como Nishimura Shogoro e o prolífico Yamamoto Shinya são representativos de produções temperadas de sexo, sadismo, mutilações genitais e tortura. Do primeiro sobressai “Rope cosmetology”, de 1978, com a insuperável Tani Naomi: do segundo, obsessivo e incansável realizador de 57 filmes somente na década de 70, destaca-se o infame “Cruel History of Prisoners”, de 1976, inspirado na antologia de contos de terror organizada por Lafcadio Hearn, “Kwaidan”, a mesma utilizada por Kobayashi alguns anos antes. Em uma linha mais focada na violência do estupro aparece Hasebe Yasuharu, exassistente da Suzuki Seijun. Entrou na Nikkatsu em 1958, e em 1966 dirigiu seu primeiro longa, “Black Tight Tigers”, influenciado pelo estilo do mentor. Entre 1970 e 71 lança cinco filmes da série “Stray cat rock”, estrelados por Kaji Meiko, um dos ícones dos anos 70 no Japão. Entre 1976 e 78 foram quatro “violent pink” em torno de estupros, salientando-se “Rape! 13 hour”, com derivações homossexuais e grande sucesso de bilheteria. Excelente diretor de atores, Hasebe tornou-se em 1980 “free lancer”, trabalhando para TV e, mais tarde, no “V-Cinema” (produções realizadas diretamente para o mercado de vídeo). A rainha do S&M Uma ampla e excelente introdução à produção “pink” em língua inglesa é o compêndio “Behind the Pink Curtain: The Complete History of Japanese Sex Cinema”, de Jasper Sharp, publicado em 2008. Na capa, a bela Tani Naomi, a rainha do sado & masoquismo, em sua posição habitual: nua, cuidadosamente amarrada por cordas, um belo quimono caindo pelo ombro esquerdo, e um delicado par de meias brancas curtas nos pés. Seu ligeiro peso extra garante que a força das cordas realce a pressão sobre a pele, fornecendo uma sutil impressão de contenção forçada, de repressão nivelada com a superfície do corpo. Completam o quadro generosas medidas do tórax, indispensáveis para o tipo de papel que a atriz iria se identificar. 146 A beleza e o sorriso de Tani encantaram a audiência. Começou no início dos anos 60 nos “pink” de orçamento barato, adotando o nome em homenagem ao escritor Junichiro Tanizaki, um dos grandes da literatura japonesa. Entre muitíssimos outros, foi dirigida pelo pertinaz Yamamoto Shinya, em “A degenerate”, de 1967, “Memoirs of Modern Love: Curious Age”, também de 67, e “Season For Rapists”, de 1968. Seu primeiro papel explicitamente sado & masoquista foi com Sakao Masanao, em “Cruel Map of Women's Bodies”, em 1967. Foi então que estabeleceu uma legendária parceria com um dos mais curiosos literatos japoneses, Dan Oniroku, pioneiro autor de uma obra infindável e monotemática em torno do S&M. Após alguns anos de assédio por parte da Nikkatsu, que iniciava em 1971 a produção de “roman porno”, Tani Naomi finalmente aceitou a oferta, estreando em “Flower and Snake”, de 1974, também dirigido por Sakao Masanao e roteirizado pelo amigo escritor. Em 1972, a própria Tani já havia dirigido dois longas inspirados em textos de Dan, “Sex Killer” e “Starved Sex Beast”, oportunidade em que acentuou, conforme revelou, as “cenas de tortura e servidão”. O sacrifício da esposa Atuar na Nikkatsu aumentou consideravelmente a fama da atriz, dado que a produtora dispunha de rede de exibição no país inteiro. A próxima produção, “Wife to be sacrificed”, lançada em outubro de 1974, também de Sakao Masanao, é um dos maiores sucessos de bilheteria de todos os tempos da Nikkatsu. O enredo é de uma simplicidade digna do Marques de Sade. Tani, abandonada pelo marido, começa o filme vestida com um belo quimono tradicional, gesticulando de maneira contida e respeitosa, e dando aulas de “ikebana”, a conhecida arte japonesa de arranjos florais. Uma sucessão de acasos faz com que o casal reencontre-se durante visita ao túmulo de sua mãe, recém-falecida. Levada contra a vontade para o refúgio do ímpio ex-cônjuge, no meio de uma floresta, Tani é submetida a um calvário de humilhações e proezas sexuais, sem conseguir esconder, entretanto, um crescente prazer na provação. A conversão é inevitável: logo, torna-se ela mesma uma sacerdotisa de rituais sádicos, habilidade que exercita em um casal resgatado da vizinhança depois de tentativa de 147 duplo suicídio. A estreante (e estonteante) Azuma Terumi fazia a “suicida”, iniciando neste filme uma carreira exitosa no “pink”. Com variações, aqui e ali, esta foi a coluna vertebral do perfil artístico de Tani Naomi e dos filmes em que atuava. Sempre, é bom salientar, dentro dos cânones do “soft-core”. Simulação é a palavra de ordem: uma espécie de pacto entre artistas e público garante que tudo não passa de pantomima, uma situação ficcional e portanto artificial. Talvez em função disso é que não se registraram no Japão, em paralelo aos filmes “pink”, surtos extraordinários de crimes envolvendo tortura sexual e correlatos. O que interessa, afinal, é o puro artifício. Sequestros no ar Os primeiros anos da década de 70 foram marcados por uma radicalização de facções vindas do movimento estudantil. Em 31 de março de 1970, um avião da “Japan Airlines”, que ia de Tóquio a Fukuoka com 122 passageiros, foi desviado para Seul e, ato contínuo, para Pionguiangue, na Coreia do Norte. Os nove sequestradores, integrantes de um grupo precursor do “Japanese Red Army”, obtiveram asilo do governo nortecoreano. O projeto era utilizar o país como base de operações para futuras atividades revolucionárias. Em 1973, foi sequestrado um Boeing 747, da “Japan Airlines”, que ia de Amsterdam para Tóquio. Em 1977, um DC-8 da mesma empresa, que ia de Paris para Tóquio, foi parar em Dhacca, Bangladesh. Sem dúvida o episódio mais sangrento, no entanto, foi o incidente do aeroporto de Lod, em Tel Aviv, que chocou a opinião pública e projetou o “Japanese Red Army” na imprensa global. Em 30 de maio de 1972, três cidadãos japoneses desembarcaram no aeroporto, retiraram metralhadoras e granadas de suas bagagens, antes de passar pela imigração, e fuzilaram quem estivesse pela frente. Morreram 26 pessoas, 17 dos quais turistas cristãos de Porto Rico, que vinham conhecer a Terra Santa, e foram feridas outras 80. Dois dos agressores caíram em ação: o primeiro explodiu uma granada, o 148 outro foi alvejado na cabeça. Apenas um, Okamoto Kozo, sobreviveu, aparentemente por falha do dispositivo de sua granada. Em 2007, Adachi Masao realizou “The prisioner”, inspirado na vida de Okamoto. Condenado à prisão perpétua em Israel, Okamoto acabou beneficiando-se, depois de 13 anos em prisão solitária, de troca entre palestinos e israelenses, em 1985. Foi para a Líbia, depois Síria e finalmente Líbano, onde conseguiu asilo político. O governo japonês vem solicitando seguidamente sua extradição, sem sucesso. A operação no aeroporto de Lod foi planejada pela “Frente popular de libertação da Palestina”. Utilizar cidadãos japoneses foi o recurso encontrado para surpreender a segurança israelense. Sobrevivência Fukasaku Kinji tinha quinze anos quando foi convocado para trabalhar em uma fábrica de munições, no final de Segunda Guerra Mundial, em 1945. Obviamente, o local era alvo prioritário de bombardeios, quase que diários. Fukasaku conseguiu sobreviver esgueirando-se por debaixo dos cadáveres dos companheiros, todos jovens como ele. O que importava era a sobrevivência individual: o ideal coletivo preconizado pela política oficial como substrato da alma japonesa simplesmente evaporou-se. A experiência, claro, foi marcante. Anos mais tarde, depois de dirigir as cenas de combate aéreo em “Tora! Tora! Tora!”, diria: se os que comandavam a guerra fossem tão cavalheiros como mostram os filmes americanos, não teria havido guerra, seria impossível. Estudante de cinema na Universidade Nihon, a mesma de Adachi Masao, Fukasaku entrou para a Toei na década de 50, começando a dirigir a partir de 1961. Dentre as produções iniciais, a maioria no formato característico do estúdio – filmes de gangues e detetives – pelo menos duas se destacaram, ambas de 1968. A primeira é “Black Lizard”, em cima de uma peça de Mishima Yukio, por sua vez adaptação de um livro escrito por Edogawa Rampo (estimado escritor de mistérios e crimes, cujo pseudônimo foi tirado da pronunciação japonesa de Edgar Allan Poe). O papel principal, tal como no teatro, coube ao cantor e ator travesti Maruyama Akihiro, próximo de Mishima. 149 O segundo é “The Green Slime”, bizarra ficção científica filmada no Japão com roteiro e atores norte-americanos – uma alegoria involuntária da parceria nipoamericana em segurança formalizada no tratado bilateral ANPO, que provocou ondas seguidas de protestos, também quando da renovação do acordo, em 1970. Batalhas sem honra e humanidade A afirmação do diretor viria na década de 70. Lançado em 1973, “Battles Without Honor and Humanity” foi um sucesso de público e crítica que rendeu mais sete sequências. Baseado em relato jornalístico extraído de texto de um membro da yakuza, o filme combinou precisão documental com uma admirável estética de ação, com planos rápidos e câmera (nervosa) na mão. Com direito à assinatura de Fukasaku: imagens congeladas no pico da ação, para situar o espectador na trama e dar uma guinada na narrativa. Cobrindo um tempo diegético de dez anos, a história acompanha a guerra entre “famílias” rivais em Hiroshima, tendo no pano de fundo a ascensão do país nas ruínas do pós-1945 até o surto de aceleração econômica, em meados dos anos 50. Ficção na forma, realidade no conteúdo. Ao longo do filme, depreende-se a sensação iminente de algo está por ser revelado, em meio às convenções narrativas próprias do gênero yakuza (palavra derivada da junção de Ya-Ku-Za, ou seja, 8-9-3, a pior mão no Blackjack japonês). A sintonia com a atmosfera psicossocial no Japão da década de 70, de prosperidade e corrupção política, bateu em cheio. Debaixo da bandeira do sol nascente Fukasaku, é inevitável, ficou conhecido sobretudo pelos filmes sobre yakuza. Foram inúmeros, dos mais variados ângulos e enfoques, até que em 1976 realizou o soberbo “Yakuza graveyard”, com o contumaz Watari Tetsuya no papel de um policial ambíguo, solitário e atormentado. Culpado de ter matado um yakuza no leito da amante-prostituta, torna-se por sua vez protetor e amante da “viúva”. Isso não impede a atração pela esposa de outro yakuza, que cumpre pena por 15 anos – no papel desta, 150 a bela Kaji Meiko, estrela da série “Stray cat rock”, de “Lady snowblood”, e do torpe “Female Convict 701: Scorpion”, de 1972, dirigido por Ito Shunya (Kaji foi a cantora das músicas-temas dos dois últimos, incluídas por Tarantino em “Kill Bill”). Já Watari Tetsuya era contratado da Nikkatsu, onde atuou em “Tóquio violenta”, de Suzuki Seijun, mas largou o emprego quando o estúdio partiu para o “roman porno” em 1971. Com Fukasaku teve talvez seu melhor papel, de policial que se afasta do sistema corrupto e firma pacto de irmandade com um dos chefões yakuza, de sangue coreano. Exprimir essa contradição em linguagem corporal é tarefa dificílima para qualquer ator. Watari saiu-se muito bem. Mas não eram só filmes de yakuza: a versatilidade de Fukasaku ficou manifesta em “Under the Flag of the Rising Sun”, eminente produção de 1972 que revisita o trauma da guerra com acurácia cirúrgica, rodado com produção independente. Uma viúva (a excepcional Hidari Sachiki, atriz de Imamura em “A Mulher Inseto ou Tratado Entomológico do Japão”) procura desesperadamente conhecer as circunstâncias da morte de seu marido, sargento do exército imperial em Nova Guiné, em agosto de 1945. A reconstituição dos acontecimentos, marcada pelo silêncio oficial e depoimentos cruzados de oficiais superiores e subordinados, é agoniante. Um triste retrato, enfim, das condições subumanas a que estavam submetidos os soldados naqueles que seriam os últimos suspiros de um dos maiores delírios bélicos da história. O filme é um dos mais contundentes sobre o trauma da guerra já feitos no Japão. Batalha Real Em 1978, o primeiro “jidageki” de Fukasaku. Com produção da Toei, que celebrava o primeiro aniversário do seu parque temático em Quioto, “A Conspiração do Clã Yagyu” é um épico passado no século 16, quando o clã Tokugawa consolidava sua esfera de poder. Mesmo sob forte pressão comercial do estúdio, que apostava na fita como instrumento de promoção do parque, Fukasaku consegue ultrapassar os limites habituais do gênero – lutas e mais lutas, espadas e sangue jorrando – para introduzir traições e opressão social na história. O personagem do popular ator Shinichi "Sonny" Chiba é o agente desse clamor. 151 Fukasaku manteve ritmo acelerado ao longo dos anos 80, diminuindo na década seguinte. Apoiado pela nova produtora do Japão, Kadokawa – braço cinematográfico do poderoso grupo editorial homônimo, hoje presente em todos os setores da mídia e entretenimento – o realizador aventurou-se nas produções de alto custo, algumas bem sucedidas, outras nem tanto. Os destaques: a futurologia do horror em “Vírus”, de 1980; as histórias fantásticas dos samurais cristãos reencarnados, em “Portal do inferno”, de 1981, transformado posteriormente em videogame; o “jidaigeki” fantasioso e cheio de imagens sintéticas, em “A lenda dos oito samurais”, de 1983; e o feminismo pioneiro das mulheres poetas, em “A Chaos of flowers”, de 1988. Seu último trabalho, “Batalha real”, feito na virada do milênio (ano 2000), antecipa a espetacularização da crueldade que os “reality shows” materializaram no novo século. Colegiais são levados para uma ilha e só um (ou uma) poderá sobreviver: coordena o jogo o professor do grupo (Kitano Takeshi, excelente). O filme teve forte repercussão no seu país e projetou o nome de Fukasaku no circuito global. O diretor faleceu pouco depois, no começo de 2003. A história do pós-guerra no Japão contada por uma dona de bar Imamura Shohei não escondia sua irritação com atores e atrizes, depois da produção longa e complicada de “The profound desires of the Gods”, concluído em 1968. Decidiu dedicar-se ao documentário, não apenas por questões financeiras, mas também para escapar da relação conflituosa com egos de artistas. A guinada deu vazão a uma série de brilhantes filmes, em que a noção mesma de documentário – algo que pressupõe, como nas ciências sociais, a existência de um sólido sujeito do conhecimento, voltado à busca da verdade objetiva - é colocada em cheque e relativizada. Como já experimentado em “A man vanishes”, de 1967, a verdade é oscilante, sujeito e objeto se misturam e se contaminam. Em 1970, vem à tona o estupendo “History of postwar Japan as told by a bar hostess”. Onboro-san, valente dona de um pequeno bar em Yokosuka (onde estacionava a Sétima Frota norte-americana), senta-se em uma cabine de projeção com o diretor e assiste a uma sequência de cinejornais, começando com a bomba atômica 152 em Hiroshima e terminando com a diversidade de protestos de rua no Japão dos anos 60. Baixa, aguerrida, com penteado coque e a blusa ligeiramente aberta, Onboro-san discorre sobre sua atribuladíssima vida – pobreza na infância, inserção no mundo masculino do trabalho, luta pela sobrevivência, amantes e entretenimentos travessos – ao tempo em que emite comentários sobre os acontecimentos que testemunhou. Uma verdadeira “mulher-inseto”, incansável na batalha diária, bem humorada e assertiva. Neste filme, o que interessa não são os artifícios de montagem, o uso virtuoso da câmera ou o roteiro inspirado: é o tema, ou ainda, a narrativa do tema, em toda sua materialidade. A história do país narrada de forma absolutamente improvável. O profundo desejo de Imamura foi desvelar, com uma só tacada, o fosso entre a verdade oficial e o discurso dos marginais. Profunda ironia. Soldados e prostitutas que não voltam À procura de narrativas: munido da câmera e do gravador, Imamura sai em busca dos remanescentes da política pan-asiática japonesa, delírio expansionista que deixou cicatrizes indeléveis. Em 1970 e 71 realizou “In search of the unreturned soldiers in Malaysia” e “In search of the unreturned soldiers in Thailand”, ambos feitos para televisão. No primeiro encontra um soldado que se converteu ao Islã. A conversa acabou chegando ao massacre de Sook Ching, ocorrido entre fevereiro e março de 1942 em Cingapura, quando tropas japonesas massacraram milhares de chineses, indianos e malásios. A expressão Sook Ching vem do chinês e significa "purificação através da limpeza". O soldado, denominado “A-Kim”, não acredita mais no Imperador: “muçulmanos seguem apenas um Deus. Se for um rei ou imperador, muçulmanos não seguirão. Todo ser humano tem dois lados no coração: justiça e ganância. Os japoneses foram tentados pela ganância. Por isso a guerra começou”. Na Tailândia, foram três soldados, que discutem entre si. Imamura, a exemplo dos outros filmes, mantém uma presença editorial. Um deles, Fujita, resolve voltar para o Japão em 1973, com 55 anos. Imamura realiza outro documentário, “Outlaw-Matsu returns Home”, mais seco ainda. Fujita tinha desertado, e quando volta não é bem 153 recebido pela família (o irmão aparentemente tinha se beneficiado de uma pensão pela suposta morte de Fujita). Sujeito (Imamura) e objeto (Fujita) interagem nos mínimos detalhes. As contradições do personagem conturbado vêm à superfície. Posteriormente, o diretor revelou que Fujita havia pedido a ele para comprar um cutelo de açougueiro, pois queria matar o irmão. Conseguiu dissuadi-lo, mas ficou com a impressão, enquanto realizador, de ter tocado em delicados limites éticos. “Karayuki-San, the making of a prostitute”, de 1975, resgata a trajetória de uma “comfort woman” japonesa, que foi levada à Malásia no início do século 20 para “prestar serviços” ao Japão e acabou em um bordel. Kikuyo (seu nome) não voltou à terra natal e construiu família, a despeito das provações por que passou. Um comovente drama com história análoga é “Sandokan n. 8”, feito em 1974 por Kumai Kei, com Tanaka Kinuyo (excelente, seu último grande papel) como a idosa “comfort woman” que rememora sua experiência para uma escritora. O assunto é controverso e polarizado no Japão: em setores mais conservadores, paira certa tendência a minimizar ou até mesmo ignorar esses fatos. A vingança é minha À procura de personagens: o “break” documental permitiu a Imamura Shohei reinventar sua concepção dos filmes de ficção. “Minha vingança”, de 1978, foi o resultado desse esforço. Durante anos, o diretor dedicou-se a pesquisar as circunstâncias que levaram um destemido “serial killer” a assassinar cinco pessoas em um périplo de norte a sul no Japão, durante 78 dias. Os fatos reais ocorreram na década de 60. Um livro foi lançado depois da execução do criminoso, em 1970, que serviu de base para a elaboração do roteiro. A longa e detalhada pesquisa, entretanto, foi além: confluiu para a construção de um patológico personagem, oriundo de família católica, sujeito portanto a um imaginário religioso estranho e pouco habitual na sociedade japonesa. O estranhamento é relevante porque sua infância coincide com o militarismo pré-guerra, que impunha a religião xintoísta e excluía tudo o que fosse “ocidental”. Vigarista e impulsivo, Enokizu Iwao (magnificamente interpretado por Ogata Ken, ator 154 do círculo íntimo de Imamura) trafega de golpe em golpe acumulando assassinatos. Logo sua foto aparece em toda parte, inclusive no cinejornal que assiste com a amante, no cinema. Pouco depois é ela quem é sacrificada. Herança cristã O cristianismo foi proscrito durante séculos no Japão, depois da Rebelião de Shimabara, entre 1637 e 1638, durante o xogunato de Tokugawa Iemitsu. Desde a chegada de São Francisco Xavier ao Japão, em 1549, a epopeia dos católicos alternou momentos de grande brutalidade com tolerância e até estímulo ao batismo, por parte de alguns senhores feudais, que se converteram ao catolicismo. Depois da rebelião, foi varrido do mapa. Inúmeros japoneses martirizados, das maneiras mais cruéis, foram canonizados pelo Vaticano. Estima-se que o contingente de católicos tenha chegado, no seu ápice, a 300 mil pessoas. Em 1865, quando a era Tokugawa aproximava-se do fim, um padre francês calculou em 60 mil o número de praticantes clandestinos. Herdeiros de famílias que durante quase 250 anos mantiveram o culto em cavernas e qualquer outro local recôndito, esses descendentes arriscaram a vida pela fé. O pai de Enozuki era um deles. No filme de Imamura, memórias e iconografia cristã acompanham (e atormentam) o personagem, de crucifixos a canções que seu pai cantarolava. Em estado psicótico, abandona a esposa (que passa a desejar o pai, quase-viúvo e culpado) e inicia o surto matador. A manipulação do tempo, as elipses da narrativa e a alternância entre cidades e ambientes em que circula Enozuki são magníficas. Todos os espaços cinematográficos aparecem impregnados de vivência e carregados de tensão. Uma tensão que não é a habitual dos “thrillers” de ação, que constroem um suspense artificial na mente do espectador. No filme de Imamura, a tensão é subjacente, inscrita no olhar do personagem que conduz a narrativa, mas nunca submissa a efeitos mirabolantes: ela simplesmente está lá, entranhada nos ambientes e nas roupas, infiltrada na alma das vítimas de Enozuki. 155 Carnaval e Chuva Atômica O retorno ao cinema de ficção consolidou-se ao longo dos anos 80. Logo em 1981, Imamura realiza “Eejanaika – Aconteceu no fim da era Tokugawa”, pantagruélica descrição do fim do período Edo, em 1868. Retornando ao Japão depois de uma temporada acidental de seis anos nos Estados Unidos, um pequeno agricultor reencontra a esposa transfigurada em bem sucedida “entertainer” no distrito de Ryogoku, palco de libertinagem e bizarrices na capital. É quando ocorre a explosão popular e espontânea que dá nome ao filme, “eejanaika”, cuja tradução seria algo como “por que não ?” ou “que diabos é isso ?”. Hordas de desfavorecidos invadiram a capital gritando “eejanaika” e jogando notas de dinheiro para o alto, atônitas com o surto inflacionário e o caos no país. O ano era 1867, poucos meses antes da queda do feudalismo e a restauração Meiji. Logo depois, em 1983, Imamura realiza, “A Balada de Narayama”, remake do filme com o mesmo título de Kinoshita Keisuke, de 1958. Ambos foram baseados no livro de Fukazawa Shichiro, mas utilizam tratamentos distintos. A opção de Imamura foi mais realista, mas dentro das coordenadas que lhe são caras: contrapor ao Japão moderno à brutalidade dos “primitivos”, suas superstições e a força da natureza. Ganhou a Palma de Ouro no Festival de Cannes, em 1983. “Zegen”, de 1987, é o grotesco elevado aos píncaros da história. Baseado em uma autobiografia, a narrativa segue as aventuras de um patriota convulsivo que decide expandir seu negócio de prostituição pelo sudeste asiático, no início do século 20. A expectativa era angariar clientela não apenas entre caixeiros-viajantes, mas também de futuras tropas invasoras nipônicas, além, naturalmente, de locais afortunados. Com o tempo, decide ele mesmo tornar-se um reprodutor privilegiado junto ao seu harém, a fim de assegurar a disseminação da raça japonesa. Com Ogata Ken no papel principal, a o filme flui pelas décadas, sempre irônico e carregado de histeria. Em 1941, instalado em Kuala Lumpur, a decepção: o verdadeiro exército imperial invasor simplesmente ignora o nacionalista precursor. Inacreditável, mas verdadeiro. A última produção dessa proveitosa década foi o comovedor “Black Rain – a coragem de uma raça”, de 1989, rodado em preto & branco com uma linguagem que 156 remete ao período “clássico” do cinema japonês, a década de 50. Combinando cenas extremamente fortes do dia da bomba em Hiroshima e um drama familiar ocorrido cinco anos depois, a história acompanha uma sobrevivente que hesita em se casar, ao estilo de Ozu – só que dessa vez a hesitação baseia-se nas possíveis sequelas em virtude da exposição à radiação atômica. O doloroso trauma da guerra emerge na superfície plácida da narrativa clássica. Imamura, finalmente, apaziguou a herança de seu antigo mentor da Shochiku, o grande Ozu. Extreme Private Life Em 1989 termina a era Showa, com a morte do Imperador Hiroíto. A era havia começado em 1926: ele foi o 124º imperador do Japão, tendo liderado seu país, desnecessário ressaltar, em um conturbadíssimo período – embora “showa” signifique, literalmente, "período iluminado de paz & harmonia”. Na história (e mitologia) imperial, foi Hiroíto quem abriu mão do status divino, em setembro de 1945, por imposição dos norte-americanos. Sucedeu-o o filho primogênito Akihito, cuja era chama-se Heisei. Sua visão de mundo é conciliadora e pacífica, mas também algo cética. Enquanto era príncipe, Akihito chegou a comparar o papel da realeza japonesa aos robôs e expressou sua vontade e esperança de trazer a família imperial mais perto do povo japonês. Hara Kazuo é um dos documentaristas mais viscerais que o cinema já produziu. Para ele, a câmera pode ameaçar o objeto do documentário revelando suas vulnerabilidades. Mas pode também expor suas (do realizador) próprias fraquezas, na mise-en-scène ou na montagem, na forma mesma como capta o objeto. A câmera, resume, é um dispositivo por onde transitam as vulnerabilidades de sujeito e objeto: uma maneira melhor de compreende-los, um instrumento de descoberta (e autodescoberta). Assistente de câmera do Imamura Shohei, Hara alçou voo próprio e completou, em 1974, o documentário em longa-metragem “Extreme private eros: love song 1974”. Abandonado pela mulher Miyuki, que partiu para Okinawa com o filho, o enciumado Hara Kazuo resolve ir atrás e filmar tudo – primeiro é um caso dela com a “room mate”, Sugako. Em seguida, uma atração por Paul, um soldado afrodescendente estacionado 157 na ilha. Miyuki volta a Tóquio a fim de dar à luz ao filho do soldado, parto devidamente filmado por Hara e sua nova namorada. Ao cabo, Miyuki larga tudo e junta-se a uma comunidade de mulheres, para criar os filhos fora dos cânones da família tradicional. Visto em perspectiva, o documentário de Hara Kazuo é um negativo da onda “pink” que grassava no cinema de seu país. Uma pequena obra-prima. O exército desnudado do Imperador Os anos se passam e um dia Hara recebe um telefonema de Imamura Shohei, sugerindo que ele entre em contato com um ex-soldado que serviu no Pacífico sul durante a guerra, Okuzaki Kenzo. Foi no início dos anos 80. Em 1987, é lançado “The Emperor’s Naked Army Marches On”, considerado por muitos o melhor documentário já feito no Japão. Okuzaki, lá pelo fim dos anos 50, tomou a si a tarefa de culpabilizar o Imperador pela tragédia da aventura bélica, e passou à ação. Primeiro arremessou um punhado de bolinhas de “pachinko” no supremo líder, diante do palácio imperial: pegou 18 meses de cadeia (já tinha passado dez anos preso pelo assassinato de um corretor de imóveis). Depois, fabricou bilhetes de dinheiro com imagens pornográficas do Imperador (14 meses de reclusão). Também foi flagrado planejando o assassinato de um ex-Premiê. Em 1982 começaram as filmagens, encerradas em 1985. O irascível Okuzaki, imbuído ao máximo de sua função justiceira por ter se tornado, enfim, objeto de um filme, arrasta a equipe em uma busca compulsiva para encontrar ex-companheiros. Sua obsessão era comprovar as atrocidades da guerra que denunciava, das execuções ao canibalismo no exército imperial. Nessa sofreguidão, não hesita em agredir um deles, doente e fragilizado, que se recusava aderir à sua cruzada. O processo psicótico do personagem contaminou a linguagem documental, confessou Hara. Segundo ele, Okuzaki chegou a pedir seu auxílio para matar um dos ex-soldados – naquele instante percebeu um olhar diabólico no seu entrevistado, que seria, pensou, a essência mesma do filme que rodava. No final, o inevitável: Okuzaki se irrita com Hara, sujeito e objeto se separam. 158 Nansensu Passear em Asakusa, na região baixa de Tóquio, na beira do rio Sumida, era o passatempo predileto de Edogawa Rampo. Sede do templo budista Sensoji, construído no ano de 628 depois que pescadores acharam uma imagem do Buda no local, Asakusa era o local de peregrinação oficial do clã Tokugawa até que a restauração Meiji, no final do século 19, transformou parte da área em local de lazer – circo de marionetes de cera, sumô feminino, acrobacia feminina sobre bolas, homem-aranha, “peep shows”, aquários e também cinemas. Rampo não residia em Tóquio na época do terrível terremoto de Kanto, em 1923. O estrago em Asakusa foi enorme, derrubando inclusive a famosa Torre Ryounkaku, o pioneiro arranha-céu do Japão. Adepto do estilo “ero guru nansensu” – corruptela do inglês “erotic, grotesque, non-sense” – o escritor chegou na capital em 1926 e ambientou nesse labirinto pós-tragédia várias de suas narrativas de crime e horror. Ishii Teruo utilizou pelo menos quatro histórias de Edogawa Rampo para escrever o roteiro do seu longa de 1969, “O Horror dos homens deformados”. Leitor ávido das aventuras “assustadoras mas excitantes” do autor, serializadas na revista “Shonen Club”, Ishii não titubeou: quando obteve o sinal verde da Toei para a adaptação, agarrou-se à oportunidade e resolveu incluir na produção o “máximo possível de histórias”, pois a ocasião poderia não se repetir. Além da novela que dá nome ao filme, entraram “The Human Chair”, “The Stroller in the Attic” e “The Twins”. Todas foram amalgamadas em torno de um personagem-guia, um amnésico médico em busca do pai, por sua vez insularmente isolado há décadas. Popular e erudito A razão do isolamento: obcecado com a desfiguração da esposa, o pai-cientistalouco constrói um mundo “ideal” onde híbridos de bestas e humanos circulam como experimentos ambulantes, contracenando com irmãs siamesas e mulheres pintadas, dançando de forma grotesca. Nascia um filme “cult”. 159 A escolha da âncora narrativa desse frenesi gótico foi uma tacada de gênio: ninguém outro que Hijikata Tatsumi, o extraordinário inventor do butô, a radical performance corporal do Japão pós-guerra. Hijikata, que encarna o misterioso pai, atravessa o filme deslizando pelas pedras à beira-mar como um caranguejo arquejante, com olhar insano e entonação gutural nas falas. O corpo, para ele, não é fixável em categorias ou figuras definidas, está sempre sujeito à deterioração, à transitoriedade e à metamorfose. Um excelente mergulho nessa demência produtiva é o livro de Christine Greiner, “Leituras do corpo no Japão e suas diásporas cognitivas”. A genealogia (ou pornologia) do butô passa também por uma sofisticada interface com a poesia francesa (Genet e Artaud). A convergência de Hijikata com o popular Ishii Teruo é um desses fenômenos que só a plasticidade da cultura nipônica, onde a alta e baixa cultura se misturam despudoradamente, pode explicar. A maldição da mulher cega Ishii Teruo nasceu em Asakusa, o movimentado bairro de Tóquio. Durante a Guerra do Pacífico esteve na Manchúria, no serviço de reconhecimento aéreo. Voltou e foi trabalhar no cinema, na Shintoho, onde foi assistente de Naruse – a despeito da radical diferença de estilos, Teruo sempre referiu-se com extremo respeito ao mentor. Começa a dirigir em 1957. Em 1961 passa para a Toei, e quatro anos depois, em 65, já tinha completado a espantosa cifra de 35 filmes, dos mais diversos gêneros: yakuza com estilo “noir” e câmera semidocumental; rainhas-abelha com insinuações eróticas; e até um super-herói poliglota, capaz de voar e detectar radiações. Com o sucesso de “Abashiri Prison”, em 1965, consolidou o estrelato de Takakura Ken e dirigiu dez das dezoito sequências da série. Em 1968, inicia mais duas franquias, cujos títulos são autoexplicativos: “Hot springs geisha”, da qual dirigiu apenas o primeiro; e “Shogun’s joys of torture”, pensada como um “catálogo da história da tortura no Japão”, que fez questão de assinar os oito episódios da série. Uma verdadeira prodigalidade. Ishii não perdia tempo, engatava um filme no outro, uma mise-en-scène na outra e, sobretudo, uma narrativa na outra. É como se 160 personagens, situações e objetos circulassem em torno da obra, quase toda produzida a custos baixos e destinada a alimentar uma audiência voraz por situações extremas. Em “Love and crime”, de 1969, são quatro episódios de mulheres assassinas e um “serial killer”. A organização assimétrica da duração e do estilo para cada um dos episódios sugere a remissão a um núcleo dramático onde sexo e tortura animam indefinidamente os personagens. Alguns são reais, como Abe Sada, uma das homenageadas, e Takahashi Oden, a última mulher a ser punida com decapitação no arquipélago, em 1879 (o algoz é o obsedante Hijikata). Um prodígio O performer butô também atua em “Blind woman’s curse”, de 1970, que traz a bela Kaji Meiko. A história alinha um desvario nômade de mulheres esfoladas vivas pelas tatuagens e a vingança da cega (Kaji leu o roteiro e só aceitou o papel depois que suas falas grosseiras foram suprimidas). “Female Yakuza Tale: Inquisition and Torture”, de 1973, acompanha uma brutal guerra de gangues de mulheres-yakuza, em geral despidas. Uma obra insaciável. Em “Boachi Bushido: Code of the Forgotten Eight”, também de 1973, Ishii apoiou-se em mais um “mangá” de Koike Kazuo. Um ronin tenta o suicídio, mas é salvo no último instante por duas lúbricas agentes da malta “Boachi”. Ali reina um código inteiramente avesso ao bushido dos samurais, ou seja, reina a perfídia: honra, lealdade e outros atributos foram descartados. O protagonista é o fabuloso Tamba Tetsuro, raro ator que consegue exprimir um tédio interior totalmente estranho à ação desenfreada ao seu redor. Um “jidaigeki” virado ao avesso, povoado de mulheres-voadoras. A partir de 1979 Ishii Teruo cansou-se desse ritmo frenético, e dedicou-se a produções para televisão. Na década de 90, entretanto, não resistiu: voltou a Toei para dirigir “V-Cinema”. Em 1999 realizou “Japanese hell”, inspirado no julgamento da famosa seita “Aum Shinrikyo”, que em 1995 perpetrou um ataque terrorista com gás sarin, no metrô de Tóquio. Seu último filme foi “Blind Beast vs. Dwarf”, em 2001, adaptação de dois textos do indefectível Edogawa Rampo. Lançado em 2004, o filme deu ótima bilheteria: uma das atrizes (que aparece seminua) veio a eleger-se, entre a 161 produção e o lançamento, deputada pelo PLD. Foi a última tacada de Teruo, que faleceu em 2005. Ao todo, 83 filmes, um prodígio. Guerra industrial A década de 70 testemunhou o início de um evento decisivo para a indústria cinematográfica: a guerra dos formatos de fitas cassete, entre o Betamax da Sony e o VHS da Matsushita (a partir de 2008 conhecida como Panasonic). O consumo audiovisual mudou para sempre, não apenas no Japão, berço da tecnologia, mas no mundo todo. A possibilidade de gravar, comprar e colecionar filmes para fruição caseira acrescentou uma nova esfera à rentabilidade das produções, presentes e passadas. Em 1974 a Sony tentou emplacar o formato Betamax como standard junto aos demais fabricantes de produtos eletrônicos. Dentre os concorrentes, a Matsushita estava desenvolvendo o “vídeo home system”, o VHS, que se revelaria mais barato e com maior tempo para gravação, 120 e logo 240 minutos. O mercado norte-americano tornou-se um ávido comprador, seguido da Europa e resto do mundo. Embora o produto da Sony tivesse melhor qualidade de imagem, tal fator era praticamente irrelevante para os consumidores: o que importava era custo e tempo de fita para gravar. A luta, porém, foi dura. Depois de inúmeros aperfeiçoamentos e redução de preço, a Sony jogou a toalha e passou ela mesma a produzir aparelhos VHS, em 1998. A venda de Betamax sobreviveu em mercados isolados até 2002. Por trinta anos, até a consolidação do DVD, a JVC (Panasonic) dominou a cena com o VHS e os formatos semiprofissionais, o SUPER VHS e o VHS-Compact, arrecadando uma fortuna em royalties. Além do alargamento do mercado, a ruptura da introdução do VHS no consumo gerou uma acessibilidade ao patrimônio cinematográfico absolutamente inédita. O consumidor (e cinéfilo) passou a ter uma nova relação com o produto audiovisual. A rápida evolução da tecnologia digital vem, naturalmente, ampliando cada vez mais esse acesso. 162 Guerra de libertação na Palestina Os anos 70 foram igualmente produtivos para Wakamatsu Koji. Dirigiu 35 filmes, sempre pela seara “pink”, mas também experimentando rotas políticas, sobretudo no início da década. Entre 1980 e 89 o ritmo foi outro, apenas seis filmes. O esgotamento da fórmula e o desejo de ingressar no “mainstream” explicam, em boa parte, a guinada. O caso de Wakamatsu ilustra também a transição do cinema japonês, reflexo da chegada do vídeo na produção, sobretudo para filmes eróticos, mas também a “comoditização” que a cultura do país como um todo passou a ostentar. Na sociedade de consumo, o cinema passou a ser uma “commodity” a mais. Essa leitura é frequente entre os críticos mais exigentes, céticos em relação ao futuro criativo da arte cinematográfica no arquipélago. A prosperidade econômica do Japão diluiu anseios libertários e propostas mais agudas. Alguns diretores que haviam se destacado pela militância no fértil período da década de 60 (e, em menor grau, de 70), como Oshima e Wakamatsu, lograram posicionar-se na nova (e concentrada) estrutura de produção. Para outros as opções de trabalho restringiram-se à televisão, com possibilidades cerceadas pelo comercialismo das redes, ou ao nascente “VCinema”, cujo circuito de consumo era incerto e limitado. Adachi Masao, por sua vez, radicalizou. Em 1974 partiu para o Líbano, para juntar-se ao “Japanese United Army” e à “Frente popular de Libertação da Palestina”, onde ficou por longos 28 anos. Os registros da epopeia de Adachi são ralos e duvidosos: envolveu-se na produção de filmes para propaganda da causa, e teve (supostas) relações com atividades terroristas. Teria tido alguma ligação com a Stasi, a polícia secreta da Alemanha Oriental, a exemplo de Shigenobu Fusako, a famosa guerrilheira japonesa dos anos 70, acusada de participar em várias ações espetaculares, inclusive do incidente do aeroporto de Lod, em Israel. O material audiovisual que produziu foi destruído por bombardeios, sobretudo durante a invasão israelense no Líbano, em 1982. Adachi sintetizou essa experiência em uma conhecida sentença: “em vez de trocar a câmera pela espingarda, por que não segurar uma em cada mão ?” Teoria da paisagem 163 Antes desse “tour de force” existencial, o realizador foi o autor de uma também radical reflexão de inspiração marxista sobre a prática cinematográfica, chamada de “teoria da paisagem”. Para ele, a paisagem à nossa volta, nos seus aspectos mais banais e simplórios, é a expressão do poder político dominante e autoritário. Em 1969 realiza “A.K.A. Serial Killer” como ilustração do projeto teórico. O ponto de partida foi Nagayama Norio, de 19 anos, que assassinou quatro pessoas sem motivos aparentes, em 1968. Adachi mesclou sequências despojadas dos trajetos urbanos que Nagayama costumava frequentar com uma sóbria “voice-over”, narrada por ele mesmo, pontuada por uma abrasiva trilha free jazz. Em 1971, chega no limite do “pink” com o longa “Gushing prayer”, vertiginosa meditação sobre sexo, existência e prostituição, feita por adolescentes saindo da puberdade. Foi também em 1971 que Adachi e o parceiro Wakamatsu integraram a delegação liderada por Oshima no Festival de Cannes, onde exibiram “Sex jack” na “Quinzena dos realizadores” (evento paralelo no festival proposto por Jean-Luc Godard dois anos antes). Finalizado em 1970, dirigido por Wakamatsu e roteirizado por Adachi, “Sex jack” narra o começo do fim do idealismo no ativismo político. Um grupo de estudantes, uma mulher e cinco homens, se refugia em um pequeno cômodo na periferia, faz sexo por revezamento, e planeja ações: traições e mortes encerram o ciclo. Acabado o festival, ambos decidem passar pelo Líbano a fim de filmar a resistência palestina. Os contatos em Beirute foram feitos por Shigenobu Fusako, e o resultado foi o documentário-manifesto “Red Army/PFLP: Declaration of World War”, com cenas de campos de refugiados, treinamento de “freedom-fighters” e muita retórica revolucionária. O filme foi finalizado em 1971, no Japão. Três anos mais tarde, Adachi voltaria para o Líbano. Declaração de Guerra Mundial Na mesma época, em 1971, Godard e o Grupo Dziga Vertov também foram ao Oriente Médio filmar a causa revolucionária palestina. O franco-suíço fechou o projeto cinco anos depois, com “Aqui e em qualquer lugar”, em que cenas de famílias palestina 164 e francesa foram montadas alternadamente. Na produção japonesa, Adachi articulou suas proposições da “teoria da paisagem” com mensagens revolucionárias. Não há autorias definidas. Além da dupla, participou também o crítico (e anarquista político) Matsuda Masao. De acordo com o próprio Wakamatsu, partiu de Adachi a orientação essencial que moldou o filme. Além do impacto em seus realizadores, bastante impressionados pelo choque de realidade da luta palestina, virtualmente desconhecida em seu país – e fortemente contrastada com a sociedade japonesa do milagre econômico – o documentáriopanfletário teve desdobramentos inesperados. A produtora de Wakamatsu adquiriu um pequeno veículo, conhecido como “ônibus vermelho”, para viajar pelo país e exibir o filme em universidades e sindicatos. Na ilha de Kyushu, no sul do arquipélago, o contato era Okamoto Kozo, estudante de agronomia e irmão de um dos sequestradores do avião da “Japan Airlines” que foi para a Coreia do Norte em 1970 (onde acabou ficando). Foi a partir da sessão do cineclube universitário que Okamoto aproximou-se da causa palestina, envolvendo-se com o grupo de Shigenobu Fusako e participando da violenta ação no aeroporto de Lod, em Tel Aviv, em 30 de maio de 1972. Êxtase dos anjos Wakamatsu Koji preparava-se para lançar “Ecstasy of the angels”, em 1972, quando acontece o evento mais dramático e impactante, do ponto de vista midiático, da luta armada propugnada pelo ativismo estudantil: o incidente Asama-Sanso, ocorrido nos chalés do monte Asama, na província de Nagano. Cinco membros do “United Red Army” tomaram como refém a esposa de um funcionário do condomínio por cerca de dez horas. A televisão cobriu boa parte ao vivo, batendo todos os recordes de audiência (50 % em média, 90 % no pico). Ao final, os policiais entraram à força (dois morreram no ataque) e os perpetradores presos. Tudo isso entre 19 e 28 de fevereiro de 1972. “Ecstasy of the angels” é uma áspera e hermética descrição das contradições que se entranharam no movimento estudantil e no ímpeto revolucionário que o animava (o roteiro, escrito em 1969, é de Adachi). Grupos e subgrupos têm codinomes associados a dias de semana e estações do ano. O sexo entra como manifesto 165 antiautoritário, mas também como signo de ruptura do equilíbrio tênue entre as facções. O filme reiterou a tendência do diretor em afastar-se dos temas mais engajados politicamente. A produtora de Wakamatsu, depois da distribuição de “Red Army/PFLP: Declaration of World War”, passou a ser vigiada pela polícia. “Ecstasy of the angels” também teve problemas para ser exibido, a despeito do apoio da ATG (“Art Theatre Guild”), coprodutora do filme e prestigiada entidade cultural em Tóquio. Ao fim e ao cabo, Adachi Masao foi para o Líbano e Wakamatsu Koji voltou às origens. United Red Army Dentre as dezenas de produções que realizou a seguir, algumas – “Black Beast of Lust”, de 1972, “Contemporary History of Rape in Japan”, também de 1972, “100 Years of Torture: The History”, de 1975, “Contemporary sexual tortures”, de 1976, “100 Years of Banned Torture”, de 1977, e “Serial Rapist”, de 1978 – dão ideia da linha sadosexista novamente privilegiada pelo diretor, com a breve interrupção para atuar como produtor-executivo de “O Império dos sentidos”, de Oshima, em 1976. Em 1982 dirige “A pool without water”, produção mais caprichada e bem recebida pela crítica no Japão. A história segue um anônimo no metrô, que interrompe um estupro: na sequência, ligase à vítima e preenche suas fantasias invadindo apartamentos de mulheres solteiras, anestesiando-as com clorofórmio e fazendo sexo com elas. Um personagem paradoxal, (quase) uma desconstrução da virilidade masculina. “Erotic liaisons”, de 1992, rodado em Paris, foi um passo (não tão bem sucedido) de aproximar-se do “mainstream” e alargar seu público, apostando no “casting” estelar, com Takeshi Kitano e Rie Miyazawa (modelo desde os 11 anos, filha da atriz Miyazawa Mitsuko, de “A mulher de areia”, e de pai holandês, era a sensação midiática do arquipélago no início dos anos 90). O grande filme-testamento de Wakamatsu, porém, viria em 2007, com “United Red Army”, implacável reconstituição do incidente Asama-Sanso. Além do evento em si, o filme relata o sangrento episódio que antecedeu o ataque, a purgação interna que atingiu 12 membros do grupo “incapazes de fazer a autocrítica”, submetidos a tortura e 166 finalmente assassinados. Na introdução, uma montagem ágil de material de arquivo, contendo as principais referências às atividades do movimento estudantil entre 1960 e 72, contextualiza o episódio. Um filme incontornável. Wakamatsu Koji morreu em 2012, pelas sequelas após ter sido atingido por um táxi à noite, em Shinjuku, Tóquio. Tinha 76 anos. Completou três filmes em 2011, entre eles “11.25 The Day He Chose His Own Fate”, sobre os últimos quatro dias da vida de Mishima Yukio. The Family game Os anos 80 foram extremamente prósperos no Japão, que, em 1990, tornou-se o país com a maior renda per capita do mundo. Malgrado um moderado suspiro no meio da década, entre 1985 e 89 o crescimento do PIB bateu em 5 %, com recordes de salários e emprego. O “boom” foi em grande medida sustentado pela demanda interna, sobretudo das indústrias de construção e siderúrgica, ao contrários dos anos anteriores, baseados na exportação. O mercado de bens de alta tecnologia, aquecido pelos novos padrões de consumo, lazer, saúde e habitação, acompanhou a velocidade do crescimento. O superaquecimento da economia, não obstante, despontava no horizonte: o Japão vivia a euforia da “bolha” e não sabia. O ano de 1985 é um marco na animação. Foi criado o famoso “Studio Ghibli”, reunindo Miyazaki Hayao, Takahata Isao e Suzuki Toshio, a partir do sucesso de “Nausicaä do Vale do Vento”, dirigido por Miyazaki em 1984. Em 1988, “Túmulo dos Vagalumes” e “Meu Amigo Totoro”, respectivamente de Takahata e Miyazaki, foram exibidos em programa duplo. A indústria dos “anime” estourou no período, impulsionada pela tradição do “mangá” e pelos novos mercados de “home video”. A Nintendo, empresa que logrou articular produção de conteúdo com tecnologia de ponta, inundou o mercado mundial de “games” com “Donkey Kong” e “Super Mario Bros.”. O desenvolvimento da plataforma “Family computer”, também conhecida como “Famicom”, foi fundamental – o produto foi lançado em 1983 no Japão e, dois anos depois, nos Estados Unidos. 167 Para alguns observadores mais céticos, entretanto, a década de 80 sinalizou o início da “era da repetição”. Se nos 60 e 70 imperou a “era da mudança”, agora o sentimento era que nada era realmente diferente, a despeito de todas variações possíveis. Esse novo ambiente de certa forma autorizou um novo discurso artístico, que se compraz em manipular variações sob o signo da repetição. Pós-modernismo O ambiente agora era pós-moderno, a exemplo do que se convencionou afirmar em relação a outros países desenvolvidos. Um dos filmes que melhor representa esse momento é “Jogos familiares”, realizado em 1983 por Morita Yoshimitsu. O cenário é uma família e sua engrenagem mimética de inserção na realidade: emprego, cuidado do lar e escola. As ações se sucedem como se fossem um loop, sempre reinvestidas dos mesmos significados, até que o filho caçula começa a destoar e ratear nos estudos. Um tutor, um demiurgo, adentra o universo familiar com poderes desestabilizadores (vivido pelo então popular Matsuda Yusaku, perito em filmes de ação). A estrutura que anima os jogos familiares balança. Em tom de sátira, a sequência final – a família e o tutor jantando em casa, todos de frente para a câmera – é a apoteose. O desregramento implica transformar tédio em diversão. Sucesso de público e crítica. Ainda no registro pós-moderno, “Fire festival”, de 1985, mostra, em uma narrativa desdramatizada, conflitos entre tradições milenares e o projeto contemporâneo de um parque marinho. Dirigido por Yanagimachi Mitsuo, traz uma opaca e perturbadora neutralidade de mise-en-scène, ausência de momentos catárticos, mescla de transgressão e retribuição. Pouco visto à época, é uma referência para a estética “cool” dos anos 2000. Tampopo Um dos atores de “Jogos familiares” é o excelente Itami Juzo, filho de um diretor de “jidaigekis” cômicos no pré-guerra, Itami Mansaku. Depois de inúmeros trabalhos 168 como ator, inclusive em produções internacionais (“55 dias em Pequim”, de Nicholas Ray, em 1963), realiza o primeiro longa-metragem com 50 anos de idade: “The funeral”, de 1984, inteligente e irônica crônica das práticas funerárias no Japão. Um vídeo serve de orientação para a família do falecido, dividida em “gaps” geracionais. No ano seguinte, lança o hilário “Tampopo - Os Brutos Também Comem Spaghetti”, talvez o filme japonês de maior circulação global na década, paródia do bangue-bangue “Os Brutos Também amam”, de George Stevens, de 1953. Em vez do velho oeste, o “Shane” japonês é um caminhoneiro que resolve, depois de algumas entreveros, ajudar a dona de um pequeno restaurante a levantar o business. Em segundo grau, uma paródia também dos “western spaguetti”. Sutil toque pós-moderno. Em 1992, Itami realiza “Yakuza - A Arte da Extorsão”, ação e farsa combinadas, que teriam gerado desgosto nos yakuzas reais. Logo depois da estreia, na vida real, foi atacado a facadas, mas sobreviveu. A temporada no hospital rendeu nova sátira, desta feita sobre o sistema de saúde japonês: "The last dance”, de 1993. Em fins de 1997 o diretor/ator foi encontrado quase morto em frente ao seu apartamento, onde deixara uma nota de suicídio, atribuindo a decisão a um caso extramarital (noticiado pouco antes por um tabloide). Faleceu pouco depois. Em 2005, veio à tona revelação de um (anônimo) yakuza, suposto assassino que teria invadido a casa do diretor e perguntado: “você prefere se jogar ou que eu estoure seus miolos” ? Por enquanto, permanece a versão do suicídio. 169 Capítulo 6 Anos 90 e 2000: “Bolha econômica” e século 21 Entre 1986 e 91 ocorreu no Japão a formação de uma “bolha econômica”, caracterizada pela rápida aceleração dos preços de ativos econômicos e das ações negociadas em bolsa. Com a economia superaquecida, em função do excesso de confiança dos agentes econômicos e da especulação desenfreada, o governo - através do banco central, o “Banco do Japão” - acabou perdendo o controle da política monetária e permitiu uma rápida expansão do crédito. Os preços de ativos e ações triplicaram ao longo dos anos 80. Logo veio a inadimplência e seus impactos danosos no sistema financeiro. Uma verdadeira encruzilhada. Quando o Banco do Japão se deu conta do risco da inflação, passou a aumentar as taxas de empréstimo interbancário, a partir de 1989. A ideia era esfriar a economia. Diversas empresas endividadas tinham dificuldades de honrar seus compromissos, os bancos ficaram expostos a elevado risco. Em 1991, pouco depois desse aperto, a “bolha” estourou: os preços caíram abruptamente e a economia estagnou, com crescimento praticamente zerado durante a década – logo nomeada de “a década perdida” (alguns consideram que a “década” prolongou-se no século 21). Os economistas sugerem que o Japão acabou caindo em uma “armadilha de liquidez”, situação em que a política monetária fica virtualmente imobilizada, pois os juros estão próximos ou iguais a zero. Com a estagnação, não havia margem para o governo diminuir a taxa de juros e estimular a economia. Fatores como a concorrência acirrada por mercados internacionais de países asiáticos (China e Coreia do Sul), a redução precoce da população economicamente ativa, e a maior dívida pública do mundo – mais do dobro do PIB – agravaram ainda mais o quadro. A despeito disso tudo, o Japão continua sendo uma poderosa economia – passado um quarto de século, é a terceira do planeta, depois de EUA e China. Como 170 explicar esse aparente paradoxo ? Taxas baixas de inflação e desemprego, além de empresas globalizadas e competitivas, garantiram os fundamentos econômicos. Uma população socialmente homogênea e altamente educada forneceu os alicerces para a manutenção do status quo. Em termos tecnológicos, o país talvez tenha perdido algumas posições, mas certamente continua um “player” central. Cinema na encruzilhada Coincidência ou não, 1991 foi o ano mais fraco no que toca ao número de filmes japoneses produzidos, o pior resultado desde que começaram a ser feitas as estatísticas, em 1955: apenas 230. O pessimismo na indústria grassava. Dois entre os seis principais estúdios, Daiei e Shintoho, haviam fechado as portas, os demais pelejavam para manterse de pé. A trajetória já era de queda. Em 1960, foram 547 filmes: em 70, 423; e, em 80, apenas 320. Menos filmes produzidos significava menor geração de emprego e renda. O número de salas de exibição também caiu. Eram quase 7.500 em 1960, pouco mais de 3.200 em 70 e 2.600 em 80, para chegar a somente 1.734 em 1993, o menor da série histórica. Não era apenas o contágio com o ambiente negativo puxado pelo estouro da ‘bolha”. O setor audiovisual como um todo experimentou, nesse período, drásticas mudanças. As salas de cinema, em particular, tiveram perdas crescentes de receita. A televisão à cabo começou nos anos 80 nas regiões montanhosas e remotas, para no final da década entrar de vez nos grandes mercados urbanos, a começar por Tóquio. A transmissão de TV por satélite em alta definição foi inaugurada pela emissora pública NHK em 1989, e dois anos mais tarde por grupo privado. Ao mesmo tempo, foram lançados os famosos conjuntos integrados “home theater”, com gravadores de videocassete, monitores de TV cada vez maiores e sistemas acústicos de qualidade. Sair de casa para ir ao cinema era cada dia mais improvável. A concorrência com a (competitiva) cadeia de produção dos eletrônicos era muito agressiva, sobretudo no caso da indústria japonesa, pioneira no lançamento de inúmeros produtos do setor. 171 Os grandes estúdios, acostumados ao controle vertical da indústria – produção, distribuição e exibição – perderam espaço. Foi necessário uma paulatina reorganização do sistema – filmes independentes, parceria com televisões – para o número de produções locais voltar a crescer. Após uma média inferior a 300 filmes por ano entre 1990 e 2003, a cifra chegou a 417 filmes em 2006, mantendo-se em patamar igual ou superior nos anos que se seguiram. Em outubro de 2014, Kitano Takeshi declarou no Festival Internacional de Tóquio que o “cinema japonês estava caminhando para a ruína”. Naquele mesmo ano, o total de produções japonesas bateu o recorde da década: 615 filmes. As palavras de Kitano, contudo, revelam insatisfação com a qualidade dos produtos contemporâneos, diante da excelência da tradição do cinema no Japão. O “anime” e a retomada Os investimentos em novas salas de cinema só foram retomados no final da década de 90, com as novas tecnologias de exibição. Nessa época também cresceu a quantidade de salas de cinema de arte, bem menores, mas com público fiel. No ano 2000 os dados da “Eirin” já indicavam 2.524 salas; em 2015, 3.437. O número de filmes produzidos no Japão acompanhou esse crescimento. No ano 2000, foram 282; em 2015, 581. A despeito do aspecto inflado da cifra – muitos dos filmes são produções de baixo custo, boa parte no gênero “erótico” e feitas para o mercado de vídeo, ou então coproduções com a TV comercial, de valor artístico relativo – não há dúvida que o audiovisual reagiu. O destaque absoluto dessa reação são os “anime”, em especial as realizações do Studio Ghibli, primeiro lugar nas bilheterias no Japão com “O Serviço de Entregas da Kiki”, em 1989. O feito se repetiria em 1991, com “Only Yesterday”; em 92, com “Porco Rosso: O Último Herói Romântico”; em 94, com “PomPoko: A Grande Batalha dos Guaxinins”; e em 97, com o fenômeno “Princesa Mononoke”, o maior público de todos os tempos nas salas de cinema japonesas, até perder para “Titanic”. Em 2001, o espetacular “A Viagem de Chihiro” bateu a todos, inclusive “Titanic”. A despeito de eventuais discrepâncias de cálculo na aferição das bilheterias, as 172 animações de Myazaki e companhia tiveram uma performance impressionante no mercado japonês, assim como no internacional. Na declaração durante o Festival de Tóquio, Kitano confessou que não gostava de “anime” e dos filmes de Miyazaki. Admitiu, no entanto, que eles “dão dinheiro”. Kitano Takeshi Em 1997, o cinema japonês voltou à ribalta internacional. “A enguia”, de Imamura Shohei, ganhou a Palma de Ouro no Festival de Cannes (dividido com “Gosto de cereja”, de Abbas Kiarostami). “Suzaku”, da estreante Kawase Naomi, obteve o “Caméra d’or” da prestigiada mostra paralela do mesmo Festival, a “Quinzena dos realizadores”. Também em 1997 Kitano Takeshi foi laureado com o principal prêmio do Festival de Veneza, o Leão de Ouro, com seu “Hana-Bi - Fogos de Artifício”. Foi a consagração. Kitano, enfim, passou a ser considerado um diretor “sério”, sobretudo em seu próprio país. Alguns consideram que ele se tornou um “salvador” do prestígio internacional do cinema japonês, à luz da aceitação que seus filmes tiveram em vários países, em especial no circuito dos filmes de arte. Nascido em 1947, Kitano Takeshi começou a estudar engenharia na universidade Meiji e largou o curso, indo trabalhar de ascensorista na casa de strip-tease “France-za”, em Asakusa. Queria ser comediante. Conseguiu um padrinho e logo engrenou um “manzai”, dueto de humor em que um “bonzinho” e um “perverso” (Kitano era o mau, com queda para o politicamente incorreto) dialogam a toda velocidade. Ficaram conhecidos como “Two Beat” e a fama ultrapassou Asakusa. Acabou dissolvendo a dupla, partindo em seguida para carreira solo no rádio e TV, onde estrelou como âncora de um show de jogos, desafios variados e humor kitsch, o popular “Takeshi´s castle” (mais tarde o show virou videogame). Nascia o “Beat Kitano”, ou “Bito Kitano”, em “japanglish”. Violent Cop 173 Kitano tem presença constante na TV japonesa, várias vezes por semana, nos mais variados formatos. Entre eles: talk-shows com políticos; debates sobre arte e faitdivers; a versão japonesa de “Acredite, se quiser”; e o bizarro “The world exposed”, onde é o host do programa vestindo roupas inusitadas e apresentando vídeos excêntricos. Tornou-se uma das principais personalidades televisivas de seu país, uma peça importante na engrenagem do “business”. Foi Oshima Nagisa quem revelou Kitano para o público ocidental, ao escalar o ator para um papel coadjuvante em “Furyo, em nome da honra”, de 1983. Torturador e violento, mas enigmático e emocional, seu personagem se destacou na galeria de japoneses sádicos. Em 1989, veio a oportunidade para dirigir. Arrolado para o papel principal em “Policial violento”, que seria realizado por Fukasaku Kinji, na última hora conflitos da agenda com Kitano levaram o experiente diretor a sair do filme. O produtor escalou Kitano para a direção. Reescreveu o roteiro, introduziu as famosas pausas contemplativas nas cenas de pancadaria e tiros, e aproximou-se do que seria posteriormente identificado como sua marca autoral - estetização crítica da violência. Mais tarde, no ano 2000, já mundialmente famoso, trabalharia com Fukasaku em “Batalha real” – uma retribuição amigável. Sem ele, o filme não teria tido a repercussão que teve, como reconheceu o próprio Fukasaku. Ponto de fervura Nada poderia ser mais antagônico do que a “persona” construída por Kitano em seus filmes – nos quais, além de protagonista, é roteirista, diretor e montador – e a figura pública a qual os telespectadores japoneses acostumaram-se a assistir na televisão. Uma verdadeira esquizofrenia artística: no cinema, uma combinação de niilismo com humor negro, gerando um clima de melancolia, de dissabor pela vida; na televisão, cortadas lancinantes e sarcásticas em cima dos políticos, ou um humor de bufão histriônico, na linha do grupo inglês “Monty Python”. Para o público internacional, naturalmente, sobressai o lado exposto nos filmes. 174 “Boiling point”, de 1990, foi o primeiro longa que dirigiu e escreveu o roteiro. Basebol e yakuzas compõem o enredo, com controle (quase) absoluto de Kitano. Prevalecem diálogos mínimos, violência súbita, poucos movimentos de câmera e longos planos, onde nada parece acontecer. Seu personagem, um psicótico yakuza em busca de vingança, organiza a narrativa. Se não emplacou um sucesso, aperfeiçoou a técnica da “inexpressividade” da representação. No próximo, “O mar mais silencioso daquele verão”, lançado em 1991, avança no registro romântico, sem abrir mão das eventuais suspensões da narrativa. Um surfista mudo e uma jovem igualmente muda se enamoram. Foi o primeiro filme que o competente compositor Joe Hisaishi, conhecido pelas trilhas que compôs para Miyazaki, colaborou com Kitano (a parceria seria desfeita em 2002). Acidente de lambreta “Adrenalina Máxima”, de 1993, estourou no mercado internacional - no Japão a audiência seguia fria, incomodada com yakuzas evasivos e angustiados. Kitano fez de tudo, do papel principal à edição. Encarregado de interromper uma guerra de gangues em Okinawa, alterna banho de sol e rajadas de metralhadoras. Gângsters divertem-se infantilmente na praia, até serem aniquilados. E o personagem de Kitano suicida-se com um tiro na cabeça, dentro do carro, perto do mar. Em 1995, uma exceção. “Getting Any?” é uma comédia pastelão-escatológica que remete ao Kitano da TV, satirista nonsense e sempre disponível para uma “gag”. Paródias para todos os gostos, farpadas em todas direções, nada escapa à ironia devastadora do realizador, inclusive ele mesmo. A recepção em seu país, porém, foi morna. Em agosto de 1994, com “Getting Any?” pronto mas ainda não lançado, sofreu um sério acidente de lambreta. Foram meses de cirurgia e fisioterapia. Ficou com o lado direito do rosto semiparalisado, e começou a pintar quadros por essa época. Segundo ele, o acidente foi uma tentativa inconsciente de suicídio. Um ano depois atuou no incisivo “Gonin”, de Ishii Takashi, usando uma venda no olho direito, em função dos ferimentos. Incorporou a sequela em sua persona bipartida 175 e produziu “De Volta às Aulas”, em 1996: e, em 1997, seu filme mais celebrado, “HanaBi - Fogos de Artifício”. Aspereza e objetividade “Você não vai entender meus filmes, salvo se você é familiar com o trabalho de Godard”, escreveu certa vez na revista “Weekly Post”. A aspereza das situações godardianas e o corte “faux raccord”, utilizados em filmes como “Viver a vida”, de 1962, e “Alphaville”, de 1965, são referências para o realizador japonês. Em especial, no primeiro, a cena final em que a personagem de Anna Karina é morta impiedosamente; e no segundo, o uso de armas e tiroteios filmados, digamos, de forma insólita. Durante as filmagens, “Adrenalina Máxima” teve como título provisório “Pierrot Okinawa” homenagem ao longa de Godard, “Pierrot le fou” (no título original). Claro, a conexão entre os dois diretores não funciona para o discurso explicitamente político que os filmes de Godard assumiram após os eventos turbulentos de maio de 68. Mas vale para outras propostas, como a ideia de construir a linguagem como um jogo, ou um agregado de jogos que, em última análise, desconstrói o próprio filme. “Hana-Bi - Fogos de Artifício” segue um policial que sai do sistema, endivida-se com um agiota da yakuza, viaja pelo país com a esposa doente terminal e termina praticando um duplo suicídio. Uma narrativa pontuada por “jump cuts” e “staccatos”, com súbitas mudanças de tonalidades cromática e ambientes sonoros, contribui para sugerir um personagem angustiado à flor da pele, confinado nas suspensões de tempo que brotam ao longo da história. Relaxar e relacionar-se com o mundo à volta é jogar, qualquer jogo, trapaças incluídas: jogos de cartas, espelhos; jogos entre tempos, memórias e fantasias dos personagens; jogos, enfim, entre “flashes back” e imagens subjetivas, que as pinturas de seu ex-companheiro ferido e paraplégico exprimem (o autor de fato é Kitano). Ao final, o vazio, e a morte. Los Angeles 176 “Brother - a máfia japonesa Yakuza em Los Angeles”, lançado no ano 2000, foi uma tentativa que não agradou Kitano. Jurou nunca mais filmar fora do arquipélago. Dois anos depois dirige o sombrio “Dolls”, três histórias inspiradas no teatro bunraku de Chikamatsu Monzaemon. Seu maior sucesso de público no Japão, “Zatoichi”, de 2003, é a retomada de um “jidaigeki” cujo personagem central é um invencível espadachim cego e massagista nas horas vagas. Entre 1962 e 89, foram 26 filmes e episódios para TV, todos com o popular ator Katsu Shintaro. Para Kitano, foi um filme de “encomenda”, que dirigiu a pedido de Chieko Saito, conhecida proprietária de clubes de “strip-tease” e “hostess bar”, além de protetora de Katsu. O resultado foi muita ação, sangue jorrando (graças aos efeitos de computador) e decupagem tradicional, sem as pausas e introspecções que caracterizam o diretor. Ganhou o Leão de Prata em Veneza. Entre 2005 e 2008 realizou uma trilogia pessoal, uma autoanálise fílmica sem precedentes: o primeiro foi “Takeshis'”, bifurcação de sua própria personalidade, “Beat Takeshi”, pobre coitado aspirante a ator, e “Kitano Takeshi”, poderoso homem de TV. Em seguida, “Glória ao Cineasta!”, de 2007, que acabou virando nome de prêmio especial do Festival de Veneza (ele foi o primeiro a ganhar). Por último “Achilles and the Tortoise”, de 2008, definido por Mark Schilling como “um destroço esquizoide à procura de uma identidade”. Em 2015, roda “Ryuzo and the Seven Henchmen”, sobre yakuzas aposentados que gostam de corrida de cavalos. Puro humor. A enguia e o doutor O ator Yakusho Koji atingiu o pico de popularidade na década de 90. Entre outros, atuou no campeão de bilheteria “Dança Comigo?”, em 1996, de Suo Masayuki, que vendeu bem no mercado norte-americano e gerou um remake hollywoodiano. No Japão, brilhou no drama “Lost paradise”, de 1997, dirigido por Morita Yoshimitsu, onde protagonizou com a bela Kuroki Hitomi um duplo suicídio a um só tempo doce e contundente. 177 Nesse mesmo ano fez o papel principal em “A enguia”, de Imamura Shohei, uma tortuosa comédia que começa com um brutal assassinato por ciúmes. Passados oito anos, egresso da prisão, o “salaryman” criminoso retoma a vida tutelado pelo sacerdote dono de templo, e torna-se barbeiro em uma comunidade isolada a beira de igarapés. Pescar é sua atividade compulsiva: e o interlocutor predileto, uma enguia, igualmente egressa da prisão, onde fazia companhia ao condenado. Nesse pequeno mundo de personagens “ratés”, a esposa volta encarnada em uma (fisicamente parecidíssima) suicida cheia de problemas com o ex-amante. Afeiçoase ao barbeiro e vira sua ajudante. Um ex-companheiro de penitenciária também reaparece, incômodo e invejoso, apenas para lembra-lo do crime cometido. Depois de anos sem filmar (a última produção foi em 1989), Imamura acertou a mão, ganhou em Cannes e entrou novamente no jogo. Mais contido na montagem e movimentos de câmara, conduz a convergência desses improváveis destinos, observados pela atenta enguia, e chega ao final feliz. O animal é devolvido ao habitat natural, com o dever cumprido, e substituído pelo filho que se avizinha na barriga da amorosa ajudante. Acelerado Imamura não perdeu tempo. Aos 72 anos, dirige o formidável “Dr. Akagi”, em 1998, sobre um acelerado médico em uma pequena ilha do mar interior japonês, nos momentos finais da Guerra do Pacífico, em 1945. Sempre às pressas para atender seus pacientes, insiste em um único diagnóstico: hepatite. Os militares não gostam dele, é ostracisado. Abriga meio por acaso um prisioneiro de guerra que o auxilia a montar um microscópio. Em seu entorno próximo, nessa vertigem histórica, convivem um monge que gosta de saquê, um cirurgião viciado em morfina e uma jovem ninfomaníaca. Não deu para curar o mundo. Na cena final, em um barco com a jovem, assiste à explosão da bomba atômica de Hiroshima, na linha do horizonte de um dia ensolarado. A fumaça espessa lembra um fígado atormentado. Em 2001, realiza “Água quente sob uma ponte vermelha”, com uma heroína propensa a ejaculações caudalosas. Competiu em Cannes, mas desta feita não levou o prêmio. Em 2002 participa do longa “11 de Setembro” com mais dez diretores, cada um 178 com pouco mais de 11 minutos para dar seu depoimento sobre a ataque às Torres Gêmeas em Nova York. Sua história segue o retorno de um soldado para casa, em estado de choque pós-bombardeios. Sucessivas ausências psíquicas acabam metamorfoseando o personagem em serpente, que mergulha na água e some. Foi seu último trabalho. Faleceu em 2006. Fora de foco O DVD, abreviatura de “Digital Versatile Disc”, criado em 1995, foi uma revolução: maior capacidade de armazenamento de dados e padrões melhorados de compressão de imagem relançaram o mercado de “home video”. Mais uma vez, empresas japonesas lideraram o processo - Toshiba, Panasonic, Hitachi, Mitsubishi, Pioneer, Sony e JVC – juntos com a francesa Thomson, a holandesa Philips e as americanas IBM e Time-Warner. Em 1997 foi iniciada a comercialização de DVDs no Japão (nos EUA em 1998, na Europa em 1999). Foi uma década de vendas exponenciais e lucros elevados. A rápida transformação das tecnologias digitais, porém, apressou a queda do mercado de DVDs. A passagem do analógico para o digital na captação de imagens e fabricação de câmeras também foi capitaneada por companhias japonesas, praticamente as mesmas que lucraram com os royalties do DVD (mais a Canon). Hoje o mundo inteiro consome esses produtos, sejam cinegrafistas amadores, profissionais ou redes de TV. Em plena estagnação econômica provocada pelo fim da “bolha”, é incrível a competitividade tecnológica por parte desses grupos empresariais e seus engenheiros. Do outro lado da cidade, porém, uma produção japonesa independente de baixo orçamento lançada em 1996 – “Focus”, de Isaka Satoshi – nada contra a maré e produz uma desconfortável devassa dos pressupostos que orientam uma pequena equipe de reportagem para TV. Rodado como se fora gravação em formato “TV News”, o filme acompanha o insistente repórter atrás de seu entrevistado – um tímido “nerd” que passa o tempo interceptando conversas entre rádios e telefones celulares. Uma delas, entre presumíveis criminosos, sugere algo estranho, uma arma escondida. A partir daí tudo 179 vira ao avesso, do “nerd”, que passa do patético ao trágico, ao repórter, que perde de vez qualquer escrúpulo profissional. Logo irrompem eflúvios assustadores, que vem de dentro dos personagens, e não de situações externas. Sexo e violência irrompem como se estivessem submersos. Resta, ao final do filme, um mal estar difuso, uma náusea voyeurística. Cyberpunk cinema Em 1989 a Toei iniciou formalmente as produções “V-Cinema”, filmadas em película, geralmente em 16mm ou Super 16mm, e comercializadas diretamente no mercado de vídeo. Logo inúmeras pequenas produtoras aderiram ao novo mercado: o termo “V-Cinema” tornou-se genérico. Em alguns anos o 16mm ficou caro e o vídeo digital passou a ser técnica e economicamente viável para alavancar as produções. Diretores entre os mais destacados no cenário contemporâneo do Japão, como Kurosawa Kiyoshi, Aoyama Shinji e Miike Takashi, exercitaram sua técnica de mise-enscène nas produções de “V-Cinema”. Yakuzas, horror e erótico eram os gêneros mais frequentes, além de nichos de mercado, como filmes ambientados nas casas de “pachinko”, populares máquinas de azar espalhadas por todo o país. A transição do VHS para o DVD ampliou ainda mais a base de consumo dessas produções. Foi nessa época que despontou Tsukamoto Shinya e o cinema-metaleiro. Nascido em 1960, no bairro pop de Tóquio, Shibuya, o futuro diretor deglutiu na infância a onda de filmes “kaiju” (literalmente “bestas estranhas”) que vicejou no Japão pós-guerra. Na virada digital do audiovisual, com a introdução das novas tecnologias de captação, edição e difusão, Tsukamoto optou pelos “monstros” analógicos. Introjetou esses dispositivos de representação no próprio corpo e produziu um dos marcos que inaugurou a estética “cyborg” no cinema, em “Tetsuo: o homem de ferro”, de 1989. O diretor rodou experimentos em Super-8 antes de comprar uma câmera 16mm de segunda mão. A seguir, ficou dois anos filmando com seu grupo de teatro de rua e produzindo efeitos especiais artesanais na base do “stop motion”, de olho no longametragem. Filmou em 16mm p/b, em alto contraste e granulado, com o personagem 180 principal exibindo um corpo perfurado e devassado por metais de toda ordem, restos metalúrgicos e lineares (não-digital). Um casal atropela o “metaleiro fetichista”. A vingança deste é a progressiva metamorfose da dupla em rebotalhos metálicos. Um instrumento pontiagudo e giratório substitui o sexo masculino, a mulher é britada até a morte, e os remanescentes, homem e metaleiro, fundem-se em um acumulado de metal, com duas cabeças e uma gigantesca broca fálica. “Full metal Japan”. Game over Metamorfosear nesse mundo é uma “no end story”. O clássico letreiro final do cinema, “the end”, foi substituído na fita de Tsukamoto pelo “game over” dos jogos. O parentesco com a “cultura gamificada” é explícito. E também com os “mangás”, claro: a compulsão erótica embutida nos personagens parece escorrer por um ralo alquímico, desenhado no canto do quadro, onde a mutação carne-metal ocorre. Tsukamoto arriscou mais duas empreitadas nesse veio, “Tetsuo II: Body Hammer”, de 1992, e “Tetsuo: O Homem Bala”, de 2009, ambos com atmosferas pesadas, mas sem o clima de nostalgia esquizoide que emana do primeiro produto da série. Abstraindo dos metais, o diretor não abdica, entretanto, de um estilo “punk” de filmar, áspero, abrupto e enclausurado. “Tokyo Porrada”, de 1995, circula em uma trama triangular e emburacada, ciúmes e boxe. O irmão de Tsukamoto faz o “boxeur” semiprofissional, ele mesmo ex-praticante do esporte, que abandonou na primeira luta profissional após sofrer sérios ferimentos. “A Snake of June”, de 2002, é um singular exercício voyeurístico de um chantagista em cima de uma atendente de central de ajuda para suicidas, cujo marido, obcecado pela assepsia caseira, revela-se também um pervertido. Cortes rápidos e ângulos insuspeitos da selva urbana fornecem o pano de fundo de onde se destacam os personagens. Narrador de comerciais para a TV japonesa, de onde tira seu sustento, Tsukamoto é também um versátil ator, não apenas nas suas produções, mas também nos filmes dos amigos. Dentre eles, “Ichi - O Assassino”, em 2001, e “Dead or Alive 2: Tôbôsha”, no ano 2000, ambos do impressionante e devastador Miike Takashi. 181 Agitator “Excesso” é a palavra comumente utilizada para definir o cinema de Miike Takashi. Excesso que pode ocorrer nos mais diferentes domínios: na sexualidade; no terror; na escatologia; na diversidade étnica; na violência; na incrível capacidade de produção; enfim, na facilidade de usar o dispositivo cinematográfico para narrar as histórias, uma após a outra, boas ou más. Nos primeiros onze anos de carreira, de 1991 a 2002, foram 50 filmes, três séries de TV, dois vídeos musicais, um documentário e um comercial. Sua produtividade, assim como o pendor para pôr em cheque padrões estabelecidos de bom gosto, tornaram-se um mito. Alguns dos seus trabalhos sofreram cortes, em diferentes mercados, em função de cenas potencialmente ofensivas. Samurais, imigrantes, yakuzas, marginais, prostitutas, crianças, família, assalariados, estrangeiros, sádicos e masoquistas participam desse festim diabólico com desenvoltura. “Mangás” e a tradição pictórica japonesa são invocados, ao lado de um visual corroído e apocalíptico, cheio de cores fortes, neons, claros e escuros. Um excesso que configura, nos altos e baixos da obra, uma inevitável sensação de contemporaneidade. Nascido também em 1960, Miike queria ser corredor de motocicleta, mas acabou entrando na escola de cinema de Imamura Shohei, em Yokohama. Logo abandonou as aulas para colocar a mão na massa, indo trabalhar na TV. Foi assistente entre outros do próprio Imamura, até receber proposta para dirigir no roldão do “VCinema”, em 1991. O primeiro foi “Lady killer”, sobre uma ex-militar imbatível e ligeiramente atormentada, no melhor estilo Chuck Norris, seguido de “Eyecatch junction”, aventuras de quatro policiais que se sentem relegadas pelos colegas masculinos. Realizou 12 filmes para o mercado de vídeo, de gêneros variados, alguns claramente inspirados em fontes externas, sem preocupações senão a de manter o pique da produção. Puro pragmatismo. O samba mandou me chamar 182 Em 2006 Tom Mes escreveu o primeiro livro em língua inglesa sobre o diretor, “Agitator, the cinema of Takashi Miike”, com um descritivo pormenorizado da filmografia. Em 2013 coligiu o impetuoso “Re-Agitator – A Decade of Writing on Takashi Miike“, apanhado de fotos, textos e ensaios de diversos autores, veiculados pela internet ou não, um verdadeiro mergulho no mundo cinematográfico japonês. Foi em 1995 que Miike dirigiu seu primeiro longa produzido para salas de cinema, “Shinjuku Triad Society”. Policiais corruptos e violentos interagem com grupos rivais de chineses e homossexuais, ambientado em Kabukicho, enclave situado no bairro de Shinjuku devotado ao prazer, jogos, bordéis, pequenos restaurantes, bares de todos os tipos e motéis. Ser japonês nesse universo é transitar em fragmentos de identidade – um dos policiais é filho de mãe chinesa e pai japonês, um “órfão da guerra”, resquício do colonialismo nipônico do século 20. Fluxo permanente de transeuntes e explosão cromática de neons, filmados nervosamente, fazem o contraponto. Junto com “Rainy dog”, de 1997, e “Ley lines”, de 1999, o filme forma a “Black triad trilogy”, primeiro recorte temático-temporal da obra do diretor. “Ley lines” é especial: a trama desenrola-se no espaço cultural de chineses e seus descendentes, encravados na sociedade japonesa supostamente homogênea. Aspirantes a yakuzas, três jovens e uma prostituta de Xangai encaram uma gangue comandada por um nostálgico e cruel agiota também oriundo do continente. Esplêndidos contrastes de cores estouradas, sobretudo verde e vermelho, iluminam esse percurso delirante. Depois de um roubo quixotesco do caixa do agiota, o próximo passo é a evasão, para um não-lugar o mais longe possível: o país do samba, o Brasil. Uma breve pausa nesse tornado cinematográfico é “The Bird People in China”, de 1998, rodado na China, parábola relativamente calma entre modernidade e tradição. Não faltam yakuzas, mas contidos. O diretor ganhou pontos com os produtores pela rapidez em filmar no estrangeiro. Almas perdidas Personagens desenraizados povoam os filmes de Miike, nesse final de milênio e começo do século 21. A estagnação econômica pós-bolha gerou situações inéditas no 183 Japão, entre elas a necessidade de imigrantes para recompor a força de trabalho nos empregos de baixa escolaridade. Umas das origens dessa mão de obra foram descendentes de emigrantes japoneses na América do Sul, do Brasil (em maior escala) e do Peru. O herói de “The City of Lost Souls”, produção do ano 2000, é um brasileiro chamado Mario, mais um ser híbrido (o ator é peruano) que enfrenta poderosos yakuzas e anseia em fugir com a namorada, desta vez para a Austrália. Futuro e passado atravessam o fluxo da narrativa em “jump cuts”, incluindo um vilarejo brasileiro (terra natal de Mario) que parece cenário de western spaguetti, no comentário de Tom Mes. A comunidade de imigrantes do Brasil e Peru circula na periferia de Tóquio e tem até um canal de televisão, TV Piranha. Condensar a narrativa, apelar para um sincretismo linguístico e acertar a mão em todos os filmes não é fácil. Entre 1999 e 2001 foram 20 produções, com diferentes colaboradores, produtores e gêneros: da quantidade vem a qualidade. “Morrer ou viver”, de 1999, deu certo, com direção firme e acurada. Um policial japonês e um mafioso chinês combatem o mesmo grupo de yakuzas e acabam convergindo para um duelo. No meio da pancadaria, o irmão do chinês assiste aula sobre marxismo na universidade. Miike dirigiu duas sequências com “plots” e personagens diferentes, conectados pela dupla de atores principais, Aikawa Shô e Takeuchi Riki, e pela estrutura bifurcada que estrutura os três filmes. No último, “Dead or Alive: Final”, de 2002, o cenário é de ficção científica. Yokohama torna-se uma cidade-estado totalitária, no ano de 2346. Filmado em Hong Kong e falado em cantonês, japonês e inglês, opõe polícia e androides, chamados de replicantes em homenagem a “Blade runner”, de Riddley Scot. Em 2002 Miike faz um remake em cima de “Graveyard of honor”, o fabuloso thriller que Fukasaku Kinji realizou em 1975, cujo título em português é “Alugados Pelo Inferno”. Ambos são baseados na ascensão e queda de um yakuza da vida real, após a Segunda Guerra. No filme de Miike Takashi, entretanto, a ação é atualizada para antes e depois do estouro da “bolha econômica”. A sofreguidão do protagonista é nivelada pelo excesso de consumo dos anos 80 e retração da década seguinte. Sempre com os nervos à flor da pele. 184 J-horror O grego Lafcadio Hearn foi um notável cronista e observador das idiossincrasias japonesas. Chegou em 1891 como correspondente de jornal e acabou ficando até sua morte, em 1904. Coletou várias peças do folclore sobre fantasmas e assombrações, popularíssimas no Japão. Kobayashi Masaki adaptou algumas em “As quatro faces do medo”, de 1964. No refluxo da “bolha econômica” do fim do século, a audiência queria algo que liberasse a ansiedade latente dos tempos de crise, tal como Lafcadio fizera no incício do século 20. “O Chamado”, de 1998, mais conhecido pelo seu onomatopeico título japonês “Ringu”, de Nakata Hideo, preencheu a demanda e acertou no milhar. Adotando roteiro e decupagem triviais de personagens e situações urbanas, o filme de Nakata recupera a tradicional inclinação vingativa dos fantasmas japoneses através de um singelo vídeo. Quem o assiste, cai na ira da criança brutalmente assassinada há trinta anos. O que seria um argumento pouco original – a tela de vídeo como plataforma de acesso sobrenatural – ganha uma inesperada espessura com a minimalista edição de som orquestrada por Nakata. Cada grunhido hertziano da pobre criança por meio do tubo catódico provoca uma sensação quase tátil no espectador. Bem-vindo ao “J-horror cinema”, franquia que gerou produtos e subprodutos à exaustão, inclusive remakes hollywoodianos. Outros filmes adensaram o gênero à época, como “Shikoku”, de Nagasaki Shunichi, de 1999, e “Tomie”, de Oikawa Ataru, do mesmo ano, este último assistente de um dos melhores diretores que também comutou no “J-horror”, Kurosawa Kiyoshi. Para Miike Takashi, que já tinha 35 títulos no currículo quando dirigiu “Audição”, igualmente em 1999, seu filme não tinha nada a ver com o cinema de horror. Solidão e desengano Murakami Ryu é um fecundo escritor, jornalista, editor, músico e diretor de cinema. Em 1992 realizou “Tokyo em Decadência”, parábola nua e crua sobre uma garota de programa que se submete a humilhantes sessões de sado & masoquismo. Em 1997 publicou “Audition”, novela sobre um viúvo que resolve, a partir de sugestão do filho, casar-se novamente. Para escolher a noiva, opina um amigo, nada melhor do que 185 uma audição para atrizes, como se fora um projeto de longa-metragem (afinal de contas, Aoyama, o solitário, trabalha no ramo da produção de vídeo). Asami, a eleita, é pueril, esguia e contida, mesmo para os padrões japoneses. Paixão à primeira vista. A primeira hora de “Audição”, no filme de Miike, é construída para assegurar ao espectador de que não haverá pulsão fora do lugar. A estratégia, detalhada no roteiro do talentoso Tengan Daisuke (filho de Imamura), coloca o protagonista masculino no comando das ações, tentando refazer sua estrutura afetiva abalada com a perda da esposa. Do seu comportamento esvai uma sutil misoginia. Em dez anos de viuvez teve apenas um breve encontro com a secretária, após uma noite de bebedeira. Prevalece a sinceridade do desejo de casar, confirmado pela harmonia do ambiente caseiro, entre ele, o filho, a doméstica e o cachorro. “Você já viu algum filme do Tarkovski ?”, pergunta o amigo a uma das candidatas, durante a audição. Dramaturgia, velocidade dos cortes e fotografia estão refreadas e calmas nessa primeira hora, irreconhecíveis em se tratando de Miike Takashi. Entra em cena a disruptiva Asami. Pequenos truques começam a desestabilizar a audiência. Com intervalo de quinze minutos, dois jantares no mesmo restaurante entre os dois personagens são filmados com ângulos e iluminação distintos, deslocando a percepção do espaço. Nos 45 minutos finais, a aflição evolui em espiral e muita gente sai da sala. Seringas, agulhas e um arrasador fio de aço são os instrumentos que Asami utiliza no corpo de Aoyama, vivido na tela pelo ex-cantor de rock Ishibashi Ryo. Em entrevista posterior, a “vítima” revelou que Miike “divertiu-se dirigindo a cena”. Nessa altura, a edição é em tempo real. O último corte é do casal trocando olhares ternos. Desenraizados “Audição” lançou Miike no circuito internacional, rendeu mais em Nova York do que no Japão. Zeze Takahisa, outro bom diretor da mesma geração de Miike - mais afeito ao gênero “pink” atualizado para o século 21, como o penetrante “Tokyo x Erotica”, de 2001 – nota que o trabalho do colega é definido pela “ausência de centro, pela errância e pelo sangue mestiço”. Um desenraizamento, que vai da construção dos personagens à composição dos planos, configurando no limite uma mise-en-scène desenraizada. Os 186 traços reveladores: histórias envolvendo sentimentos nostálgicos pela família e origem, que nunca se completam e terminam em tragédia; existências agoniadas e fugas frustradas, dissolvidas em banho de sangue; sociopatas e psicopatas puxando a ação; ritmos frenéticos de câmera e edição, mas também longos “takes”, onde personagens perambulam ou simplesmente cruzam distâncias. Em uma palavra, inclassificável. Em 2001, Miike lançou sete longas, entre eles “The Happiness of the Katakuris”, “family movie” mesclado de musical e horror; “Visitor Q”, crônica de uma família disfuncional feito em vídeo para integrar pacote especialmente produzido por um pequeno cinema em Tóquio; e o assolador “Ichi, o assassino”, tirado do “mangá” de Yamamoto Hideo, sobre a saga de um yakuza sadomasoquista contra um matador inimaginavelmente cruel e infantilmente solitário. Ambientado em Kabukicho, este é um filme em que a “representação”, entendida como suporte da narrativa ficcional, é esgarçada ao extremo, metafórica e fisicamente. Corpos são perfurados e pendurados, mas também retalhados e despejados. A voltagem é tão alta que alguns críticos enxergam no filme uma metáfora da fragmentação do “corpo nacional” mítico do Japão, aquele que pressupõe uma homogeneidade racial e cultural. O fluxo abundante de produção, apesar das eventuais oscilações, continua. “Izo”, de 2004, faz uma tábula rasa desse universo fragmentado. Tomando como guia um samurai matador do século 19, Miike montou uma absurda narrativa de confrontos e decepamentos, saltando a esmo no tempo e espaço, em um filme experimental de grande orçamento (entre outros no “cast”, Kitano Takeshi). O sangue nesse mundo que desafia a lógica é puro excesso cromático. Em um dos saltos temporais, o samurai aparece no meio de uma sala de aula moderna, com figurino de época rasgado e ensanguentado. As crianças declamam, a pedido da professora, definições de “amor” (algo com “palavra carregada de sentido artificial”) e “nação” (“conceito ilusório daqueles que querem o poder”). Radical extremo. Nos anos de 2010 e 11 o diretor realizou dois excelentes “jidaigeki”, homenageando Kurosawa Akira e Kobayashi Masaki. O primeiro foi “13 Assassinos”, remake do filme homônimo de Kudo Eiichi, de 1963, com adaptações que remetem a “Os sete samurais” de Kuro-san. O segundo, “Hara-Kiri: death of a samurai”, um 187 elegante remake do original de Kobayashi. Em ambos, pontifica a presença de Yakusho Koji. O Premiê que gostava de Elvis Presley Koizumi Junichiro foi um dos mais longevos Primeiro-Ministro do Japão moderno, governando entre 2001 a 2006. Político independente do PLD, desafiou os caciques do partido e promoveu difíceis reformas em uma economia ainda relativamente estagnada. Arriscou algumas políticas ambientais, investiu em um populismo midiático e alcançou significativos índices de popularidade junto ao eleitorado jovem urbano. Sua cabeleira grisalha foi comparada à exibida pelo ator Richard Gere. Quando deputado, patrocinou junto com o irmão a instalação de uma escultura de Elvis Presley, em Harajuko, na área pop de Tóquio. Em seguida, fez a curadoria de um cd com canções melosas do ídolo, que aparece na capa a seu lado em fotos psicografadas. Também editou uma coletânea de Ennio Moricone. Em 2006 fez peregrinação a Graceland, território sagrado do pioneiro do rock, acompanhado de George Bush, que o convencera a mandar tropas ao Iraque. A questão era controversa: depois do desastre da Guerra do Pacífico, o Japão renunciou ao militarismo, reduzindo drasticamente investimentos na área militar e mantendo apenas forças defensivas. Os norte-americanos garantem a proteção, com a base fortemente equipada em Okinawa, mas resolveram dividir a conta na (desastrada) aventura no Oriente Médio. Os soldados japoneses no Iraque não eram supostos entrar em combate, apenas prestar suporte logístico. Koizumi afeiçoou-se à agenda conservadora e visitou seis vezes durante seu mandato o templo xintoísta de Yasukuni, onde estão entronizados os criminosos de guerra, deflagrando reações iradas nos vizinhos China e Coreia do Sul. As tensões com a península coreana são renitentes. Entre o final da década de 70 e o começo da seguinte, dezessete japoneses e japonesas foram sequestrados e levados para a Coreia do Norte, aparentemente para ensinar a língua materna a futuros espiões. Em 2002, Koizumi realizou uma espetacular visita surpresa a Pionguiangue, onde encontrou-se com o então líder Kim Jong-Il. Conseguiu extrair pedido de desculpas 188 e reconhecimento de treze sequestros. Depois de longa negociação, alguns retornaram ao arquipélago e foram devolvidas as cinzas dos que já tinham morrido. Testes controversos de DNA feitos na Universidade Teikyo, em Tóquio, sugeriram que o material enviado era uma mistura indiscernível, impossibilitando qualquer identificação. A opinião pública mobilizou-se em função dos sequestros, tidos como exemplos flagrantes de violação de direitos humanos. Entre 1910 e 1945, a Coreia (de norte a sul) foi anexada pelo Japão. A dureza da ocupação aumentou em proporções diretamente relacionadas à escalada dos conflitos na região, que levaram à guerra com os Estados Unidos a partir de dezembro de 1941. Enormes contingentes da população coreana foram obrigados a trabalhos forçados, a pegar em armas e a servir de “confort women” às tropas imperiais. Memória e esquecimento. Além da vida A formação de Koreeda Hirokazu no cinema seguiu caminho peculiar - nascido em 1962, estudou literatura na Universidade Waseda e trabalhou em uma produtora independente de documentários, “TV Man Union”. Depois de quatro anos como assistente, conseguiu gravar às escondidas material para seu primeiro filme, “Lessons from a calf”, em 1991, sobre estudantes de nível básico criando uma vaca leiteira. O produtor gostou da espontaneidade das crianças, e promoveu-o a diretor. No mesmo ano realizou “However...”, sobre o “desastre de Minamata”, envenenamento de centenas de pessoas por mercúrio provocados por dejetos industriais, no sul do país. A “doença de Minamata” é uma síndrome neurológica cujos sintomas incluem distúrbios sensoriais nas mãos e pés, danos à visão e audição, fraqueza e, em casos extremos, paralisia e morte. Para abordar um assunto de tamanha sensibilidade, Koreeda pinçou dois personagens que tomaram parte nos acontecimentos. Ambos cometeram suicídio: um funcionário da agência ambiental do governo, frustrado diante da dificuldade burocrática para agilizar pagamentos de compensação; e uma vítima, que teve a indenização suspensa. Tal como o anterior, o trabalho foi exibido na TV Fuji. 189 Em 1994, dirigiu “August without him”, sobre o primeiro homossexual japonês a assumir publicamente ter contraído aids por meio do contato sexual. Koreeda acompanhou durante meses seu entrevistado, sua rotina e seu estoicismo. Narrado pelo diretor, o documentário desconstrói com sutileza e emoção o estatuto de objetividade da linguagem documental. “Depois da vida”, seu segundo longa-metragem de ficção, lançado em 1998, é um magnífico exercício que articula estilo jornalístico a uma fantasiosa narrativa, vida após a morte. Recém-falecidos são entrevistados para elegerem os momentos mais gratificantes de suas vidas, aqueles em que realizaram seus desejos. Em seguida, o precioso instante é recriado em estúdio, devidamente cenografado, iluminado e interpretado. Memória e deleite. Apocalipse e afeto Em uma quitinete em Shibuya, o acupunturista Asahara Shoko funda, em 1984, a seita “Aum Shinrikyo”. Cinco anos mais tarde recebeu status legal de organização religiosa, concedido pelo governo. Um improvável sincretismo – budismo, hinduísmo, escatologia cristã e Nostradamus – não impediu o fundador de autoproclamar-se “Cristo”, em 1992. Atraiu admiradores, escreveu livros e deu palestras em universidades, além de ganhou fama de extorquir pupilos hesitantes. Em 1995, membros da seita perpetraram ataque com gás sarin em cinco estações de metrô da capital do país, matando 13 pessoas e atingindo centenas de passageiros. Asahara foi preso em maio, acusado de pelo menos 23 mortes, inclusive assassinatos de ex-seguidores, e condenado à pena capital (ainda aguarda a execução). No mesmo dia de sua prisão, uma carta-bomba chegou no gabinete do governador de Tóquio, explodindo e extirpando os dedos da secretária. Em 2011, a polícia estimava em cerca de 1.500 os seguidores do culto, dos quais um terço viveria em comunidades. Um tal evento não poderia deixar de impactar o audiovisual, sobretudo pelo apelo “apocalíptico” tão ao gosto das grandes produções. Na contramão do espetáculo escatológico, Koreeda Hirokazu construiu em “Distance”, de 2001, um microcosmo que reverbera a patologia social que assustou o Japão. Três homens e uma mulher, ligados 190 afetivamente a membros de um culto similar ao “Aum Shinrikyo”, encontram-se para um memorial “in loco” onde pereceram seus entes queridos. Um pequeno incidente obriga o grupo a passar a noite naquele local isolado. Poucas pistas são fornecidas, além do sobrevivente evasivo que aparece e dialoga. O projeto era inserir um vírus letal no abastecimento de água de Tóquio O filme revolve em torno das memórias e perplexidades dos personagens, sem saídas ou ilusões: o absoluto é um vazio. Ao fim, novo encontro foi marcado para o próximo ano. Ninguém pode saber Em 1988, a sociedade japonesa chocou-se com a revelação do abandono de cinco filhos pela própria mãe, na capital do país. Largadas em um pequeno apartamento, as crianças tiveram que se virar sozinhas. Durante quinze anos, Koreeda pensou e escreveu sobre o drama, até emplacar com “Ninguém pode saber”, em 2004, um dos filmes mais contundentes sobre a implosão da família nuclear no Japão. A família, o grande filão do cinema clássico japonês, de Ozu Yasujiro e Naruse Mikio: Donald Richie é um dos críticos que escreveu belas páginas nesse diapasão (e não é coincidência seu apreço pela obra de Koreeda). Inspirado nos fatos, o roteiro de “Ninguém pode saber” derivou para situações ficcionais, mantendo a estrutura básica dos personagens, mãe e quatro filhos de pais diferentes. O principal mérito é a miseen-scène. Centrada nas crianças, alinha falas e gestos improvisados dentro do ambiente claustrofóbico do lar, sugerindo uma estranha familiaridade com o que se passa em seu interior. No “casting”, outro achado: a cantora pop You, escolha inesperada para o difícil papel da mãe. E o filho mais velho, intérprete não-profissional como as demais crianças, ganhou o prêmio de melhor ator no Festival de Cannes de 2004. “Andando”, de 2008, é quase um remake de “Era uma vez em Tóquio”, atualizado para o século 21. Filhos e netos visitam os pais idosos em Yokohama, para lembrar a data da morte por afogamento do primogênito. Não há “pillow shots” e tomadas com baixa altura da câmera como nos filmes de Ozu, mas a densidade dramática é comparável. A rede de tensões que subjaz na estrutura familiar, amortecida nas entrelinhas no clássico de 1953, aparece no filme de 2008 com um tom mais alto, 191 como se os personagens tivessem esquecido o código de mesuras que balizava o comportamento interfamiliar no Japão. Um dos melhores do realizador. Koreeda Hirokazu é dos poucos diretores contemporâneos japoneses que logrou obter um segmento cativo no mercado internacional. A célula familiar japonesa - e as forças centrífugas que a ameaçam - consolidou-se como seu assunto favorito. Em 2011 é lançado “O que eu mais desejo”, comédia que investe na bifurcação da família. Na separação, são dois meninos, um que fica com a mãe, e outro com o pai. “Pais e filhos”, de 2013, lida com a inesperada decisão a que se vê confrontado um homem de negócios bem sucedido, ao constatar que seu filho biológico fora encaminhado por engano a outra família (menos abastada e mais “informal”) na maternidade. “Nossa irmã mais nova”, de 2015, narra a chegada de uma meia-irmã ao convívio de três irmãs mais velhas, a partir da morte do pai comum. Cahiers du Cinema Japan A despeito de ser um dos países mais beneficiados com a globalização acelerada dos últimos decênios, restam paradoxos no Japão atual que o cinema se encarrega de captar. Personagens à procura de alguma identidade, que parecem não pertencer a lugar nenhum; histórias que, voluntariamente ou não, mostram o país fisicamente fechado, difícil de sair ou entrar; e entraves na interação entre diferentes grupos sociais e étnicos. Nos anos 60 e 70, de transformação e mudanças, um diretor ativo como Oshima Nagisa praticava um humanismo de esquerda eivado de projetos políticos. Na virada do milênio, a certeza de que um tal posicionamento permitiria a comunicação com o "outro" - étnico, social ou cultural – esmaeceu. Um dos diretores mais vocais nessa recusa foi Aoyama Shinji, sobretudo nos artigos que escreveu nos anos 90 para a revista “Cahiers du Cinema Japan”. Para Aoyama, a “verdadeira nouvelle vague” do cinema japonês dever ser aquela que reconheça a incomunicabilidade do “outro”. As primeiras realizações de Kitano Takeshi, que lidam com personagens esvaziados, ou de Kurosawa Kiyoshi, que não disfarçam ambiguidades de comportamento em suas narrativas, estariam sintonizadas com essa premissa. “All Under the Moon”, feito em 1993 por Yoichi Sai, 192 mostra a rotina e os anseios amorosos de um imigrante norte-coreano que dirige um táxi de propriedade de outro imigrante coreano cujo sonho é construir um campo de golfe: discriminado, apaixona-se por uma filipina que fala japonês. A descrição de um microcosmo como esse é conduzida de modo a sugerir a aceitação da opacidade do “outro”, sem complacências ou consciência culpada. Estudante da Universidade Rikkyo, Aoyama Shinji frequentou aulas do crítico Hasumi Shigehiko, influência marcante nos diretores da geração que começou a filmar nos anos 80 e 90. Kurosawa Kiyoshi, talvez o mais próximo de Hasumi, visitou certa vez o cineclube que o futuro realizador programava com amigos, deu uma palestra e ligouse ao grupo. Versatilidade De acordo com Aoyama, o estalo que confirmou sua conexão com cinema foi o sentimento de que suas experimentações em Super-8 lembravam o pique de improvisação dos filmes de Godard. Trabalhou como assistente de Kurosawa Kiyoshi e Zeze Takahisa até estrear com no “V-Cinema” em 1995, com uma pornochanchada colegial, “It’s not in the textbook!”, desautorizada por ele alegando interferências na pós-produção. Um ano depois, em “Helpless”, brutal e críptica incursão no mundo yakuza na ilha de Kyushu, sua terra natal no sul do país, acertou a mão. Contribuiu para isso sua lucidez em convocar Tamura Masaki para a fotografia (antigo colaborador do documentarista Ogawa Shinsuke) e o ator Asano Tadanobu, futuro “star” internacional, em seu primeiro papel como protagonista. Ambos repetiram a colaboração em produções ulteriores. “Cinema de gênero” nunca intimidou o diretor, sejam filmes sobre “jovens desorientados”, como em “Two punks”, de 1996; sobre “yakuzas”, com “Wild life”, de 1997, incursão godardiana sobre “ex-boxeurs”, bandidos e chantagistas; “romance”, com “Shady grove”, de 1999; e “terror”, em “EM Embalming”, também de 1999, sutil paródia do “J-horror” pontuada por atores afetados, autópsias e um cenário exótico. Versatilidade em alta voltagem. 193 Nessa época, Aoyama alternava filmes para salas de exibição e o “V-Cinema”. Seu “A cop, a bitch and a killer”, feito para o mercado de vídeo em 1996, entrega o que o título insinua: pura ação. Eureka ! “Eureka”, lançado no ano 2000, é o melhor trabalho do diretor. Filmado em cinemascope e tom sépia por Tamura Masaki no desolado visual de Kyushu, narra a deriva existencial e geográfica de um pequeno e improvável grupo: “road movie” com doses de mistério psicológico. Em três horas e quarenta de duração, Aoyama deixa correr os planos longos e consegue enaltecer seres que não se comunicam entre si, dois irmãos adolescentes e um atônito motorista (Yakusho Koji, magistral). Os três abrem o filme testemunhando um violento sequestro do ônibus pilotado por Koji, que termina em matança. Logo depois, para piorar a vida das crianças, a mãe abandona a família e o pai morre em um acidente de carro, em provável suicídio. Largada, a parelha recebe a solidariedade do motorista, que se muda para a casa dos órfãos, sem ter sido convidado. Pegar a estrada é a solução. O longa “Sad vacation”, exibido em 2007, é um intrigante exercício de encontros e desencontros familiares, liderados por um circunspecto personagem (Asano Tadanobu, mais tarimbado) junto com um entorno de “loosers”, mãe ausente/presente e máfia chinesa dedicada ao tráfico de imigrantes ilegais. “The Backwater”, de 2013, é um drama que vira thriller no momento preciso, roteirizado por um remanescente do “roman porno” da Nikkatsu. A diferença com o popular estilo “soft-core” da produtora, segundo revelação do diretor a Mark Schilling, é o final: “no meu filme, vencem as mulheres”. Aoyama produz igualmente para a TV e é um escritor contumaz. Escreve livros de ficção e ensaios sobre cinema. Suas histórias transitam entre a palavra e a imagem. “Helpless” virou livro em 2002; “Eureka” em 2000, logo depois da produção; e “Sad vacation”, publicado em 2006, foi levado às telas posteriormente. Sobre cinema escreveu, entre outros, um volume sobre Wim Wenders e uma coletânea de ensaios, “Cinema 21”. Literatura e cinefilia. 194 Cinema e pragmatismo Em 2013, durante o Festival de Locarno, Kurosawa Kiyoshi e Aoyama Shinji se juntaram para falar sobre produção de cinema no Japão. A fronteira entre o filme dito “comercial” e aquele catalogado de “independente” parece não ter muita relevância. “Faço o filme que posso fazer, não entendo a diferença entre comercial e independente”, asseverou Aoyama. Para Kurosawa, não há separação, trabalha em ambos, estúdio e “indie”. Claro, tais afirmações não pretendem dar conta da complexidade do imenso mercado audiovisual japonês. Sinalizam, entretanto, um pragmatismo autoral distinto do que pensa o senso comum ocidental sobre a noção de “autor”. David Bordwell chama a atenção para o (aparente) contraste entre “A Partida”, produção japonesa dirigida por Takita Yojiro que ganhou o Oscar de melhor filme estrangeiro em 2008, e as realizações pregressas do mesmo diretor. “A Partida” inscreve-se na linhagem do cinema de “lágrimas e humor leve”, como os produzidos pela Shochiku, onde labutavam Ozu e Naruse. A sensibilidade dos personagens é modulada por uma visão de mundo resignada e recheada de suavidades. Pois o mesmo realizador aprendeu seu ofício, nota o crítico, dirigindo uma infame série sobre homens assediando mulheres nos trens e metrôs: entre 1981 e 86 foram vinte filmes, de títulos autoexplicativos como “Molester and the Female Teacher”, o primeiro da série; “Molester's Train: Hunting In A Full Crowd“, de 1982; “Serial rape”, de 1983; e “Molester's Train: One Shot Per Train”, de 1985. Todos no melhor estilo “pink” e produzidos para o mercado de “V-Cinema”. O trânsito entre gêneros e estilos flui sem problemas no audiovisual do arquipélago. As audiências podem mudar, mas o que importa é entregar o produto. Pragmatismo e produtividade. Suicide club 195 Estações e trens são um notório espaço dramático na vida japonesa, como sabiam muito bem Ozu e Naruse. Já Sono Sion, que além de diretor é poeta e “perfomer”, radicalizou: seu “Suicide club”, de 2001, abre com uma sequência filmada na estação mais movimentada do mundo, Shinjuku, mostrando nada mais nada menos do que um suicídio coletivo de 54 estudantes femininas ainda adolescentes. Sono acumula uma inusitada carteira de atividades, da poesia experimental a vídeos pornográficos gay, passando por uma extensa lista de produções cinematográficas, com circulação também em festivais internacionais. “Cold fish”, de 2010, narra as desventuras de um simplório comerciante de peixes tropicais e sua família, arrastados para um frenesi de sangue e tortura por um colega de profissão (e “serial killer” alucinado nas horas vagas). Na metade do filme um preciso ponto de virada desvela a violência, como se uma nova trama começasse, na mais absoluta normalidade. Tokyo trash baby Igualmente pragmático e produtivo, Hiroki Ryuichi excedeu-se no “V-cinema” e no “pink” (soft e hard-core). Em 1983 dirige três filmes do gênero homoerótico, “Our Season”, “Our Generation” e “Our Moment”, em torno de atribulações de casais gays. Em 1984, “Teacher, Don't Turn Me On!”, sobre um tutor e suas alunas. Usando um pseudônimo, explora a seguir personagens e situações sado & masoquistas, descambando para o “adult video”, com doses de humor e escatologia. Na década de 90 montou uma produtora com amigos e lançou em 1993, na onda do “J-horror”, o experimento psicossexual “Sadistic city”: Tóquio metamorfoseada em perversidade e paranoia, uma ante-sala dos filmes de Takashi Miike. Em 1994, Hiroki finalmente começa a ampliar a audiência e a aventurar-se fora do “pink”, com “800 Two Lap Runners”, drama romântico em torno de atletas corredores. No ano 2000, realiza uma delicada e áspera incursão na sensibilidade feminina urbana: “Tokyo trash baby”, crônica dos infortúnios de uma garçonete apaixonada pelo vizinho do andar superior, guitarrista de uma (obscura) banda de rock. O objeto do desejo é construído através dos dejetos do eleito obsessivamente coletados em assaltos diários à lixeira. Cigarros, restos de comida, shampoo e preservativos são 196 catalogados, à espera do encontro redentor. A mise-en-scène é (quase) um afago na personagem. Vibrador Hiroki Ryuichi nasceu em 1954, e frequentou aulas de cinema no “Athenée Français”, em Tóquio, entre outros de Terayama Shinji, o conhecido diretor vanguardista de teatro e cinema. “Sleep”, o experimento de Andy Warhol, era um dos temas dos debates. Logo entrou como assistente no universo “pink” de produção. Para ele, não interessam os rótulos, cinema “mainstream” ou “pink”: o problema deste último é somente o circuito limitado e segregado de exibição. O que importa “é fazer o filme que quero fazer”, e atingir o maior público possível. No mesmo ano 2000, produz um híbrido revelador, “I am a S&M writer”, sobre um escritor de peripécias sadomasoquistas que contrata modelos para inspirar-se científica e objetivamente. Baseado em livro (autobiográfico) do celebrado Dan Oniroku, o amigo de Tani Naomi, o filme acaba derivando para uma crise conjugal anunciada, em clima que lembra John Cassavetes, conforme insinuou o diretor. Foi lançado na mesma semana de “Tokyo trash baby”. Em 2003, obtém o reconhecimento internacional com “Vibrator”, um “road movie” rodado em vídeo digital nas estradas do Japão. Luz e som como se fossem naturais (e expressivos) embalam a viagem existencial a partir do encontro fortuito entre uma escritora, solitária e frágil, e um caminhoneiro. O tempo do filme, sempre na estrada, é a suspensão do tempo dela, quebra imprevista da rotina. O ponto de vista feminino vai prevalecer também no extraordinário “It’s only talk”, de 2005, com a mesma atriz de “Vibrator”, a excelente Terajima Shinobu. Seu papel é o de uma mulher de 35 anos com transtornos maníaco-depressivos, que negocia a vida afetiva entre sujeitos pervertidos e sujeitos idôneos. Uma pequena obra-prima. “Kabukicho Love Hotel”, de 2014, é uma história de amor entre uma aspirante a cantora e um gerente de “love hotel” (cognome dos motéis de encontros amorosos no Japão). Tudo isso em pleno Kabukicho, o perímetro da transgressão em Tóquio. Ela 197 acaba cedendo às investidas de um produtor musical e torna-se cliente do hotel. “Pink” e afeto. Cinema de gênero Os personagens de Kurosawa Kiyoshi, sobretudo a partir do estupendo “Cure”, de 1997, parecem pertencer a um mundo de solitários em busca de alteridades. Inseridos nas estações de trabalho ou no ambiente caseiro, esbarram com fantasmas e duplos, tangíveis e intangíveis. Entram em contato com os “outros” e se transformam. Em termos de economia narrativa, os filmes passam de arranjos mais ou menos convencionais de tempo e espaço para um embaralhamento de ações e situações. O espectador despede-se transtornado e recarregado. Kurosawa – sem parentesco com o ilustre antecessor homônimo – é um dos realizadores mais inteligentes de seu país e dos mais atilados da cena internacional. Nascido em 1955 em Kobe, foi estudar sociologia na capital e acabou fisgado pelas aulas de Hasumi Shigehiko, crítico erudito, um dos pioneiros na divulgação de Foucault e Deleuze no Japão. Familiarizou-se, entre outros, com a geometria dos enquadramentos de Hitchcock e as soluções de Ozu para descrever os ambientes internos das casas japonesas. Em seguida passaria ele mesmo a dar aulas, atividade que mantém até hoje. “Barren illusions”, de 1999, é um filme de baixo orçamento com estudantes no elenco e na produção (apenas um ator profissional). Para ele, em primeiro lugar vem o “gênero”. No seu caso, o “gênero” mais invocado é o “horror”, sem prejuízo de outras opções (“Sonata de Tóquio”, de 2008, é um “family movie”). Não se trata de escolher um tópico filosófico ou humanista e depois escrever o roteiro: o “cinema de gênero” é mais fácil para a audiência entender, e a partir dele os temas aparecem e se desdobram. O elemento ficcional é sempre necessário para contar a história, mas o cinema é também o meio de captar a realidade circundante, no ato mesmo de filmar. “Você começa com o gênero, que é ficção, e gradualmente se move em direção à realidade”, assinalou. No meio do caminho, em algum lugar, descobre o filme. 198 Depuração da linguagem Não faltou exercício prático em paralelo à elaboração da base teórica. A carreira de Kurosawa, produtiva como a média dos seus colegas no Japão, beneficiou-se dessa reflexão refinada. Em 2013, em entrevista a Tom Mes - focada nos anos em que atuava no mercado de vídeo - revelou que aprendeu o que era um “filme de ação” dirigindo initerruptamente, sobretudo nos anos 90. Depois desse “tour de force”, encontrou sua linguagem. Kurosawa começou pelo Super-8, ainda na universidade, e profissionalizou-se no “pink”. “Kandagawa pervert wars”, de 1983, gira em torno de duas “voyeuses” sexualmente energizadas bisbilhotando vidas alheias (e incestuosas) em um conjunto habitacional. O próximo, “The excitement of the do-re-mi-fa girl”, lembra os primeiros trabalhos de Godard e foi considerado “insuficientemente erótico” pela Nikkatsu, que se recusou a distribuir o filme. A versão final, lançada em 1985, teve cenas refilmadas e foi reeditado. Em 1989 foi contratado por Juzo Itami e realizou sua primeira incursão no “horror”, com a superprodução “Sweet home”. Uma equipe de TV visita a mansão vazia de um famoso artista e é perseguido pelo fantasma de sua esposa. Efeitos especiais de técnico hollywoodiano e game lançado ao mesmo tempo completaram o pacote. Não obstante, Kurosawa discordou da edição feita para TV e processou o produtor. “Sweet home” não tem nada a ver com suas produções posteriores. Não ficou bem visto pelo “establishment” cinematográfico, acabou indo trabalhar na televisão (também no segmento “horror”) e logo no “V-Cinema”. Foi na série “Suit yourself or shoot yourself” – seis filmes realizados em dois anos, 1995 e 96 – que acertou seu pique de mise-en-scène. O título é a tradução japonesa de “À bout de souffle”, o disruptivo longa que Jean-Luc Godard fez em 1960 (“Acossado”, em português). As histórias circulam em torno de dois yakuzas desajeitados e de ranking inferior. Emocionado, Kurosawa disse a um entrevistador francês que aqueles eram os verdadeiros filmes da sua carreira. As premissas eram irredutíveis: baixo orçamento, rapidez de produção, liberdade para experimentar e entrega de resultados. Ainda no “V-Cinema”, “The revenge” rendeu apenas dois filmes, 199 em 1996. “Serpent's path” e “Eyes of the spider”, vendidos como “back-to-back”, dois por um, foram completados em 1997, no mesmo ano de “Cure”. Fim do ciclo. Alteridades “Cure” é a depuração da linguagem, não somente dos procedimentos de filmagem, mas também em relação ao posicionamento do diretor no mercado, inclusive o internacional. Um investigador policial (Yakusho Koji, ator recorrente de Kurosawa) fica intrigado com uma sequência de crimes violentos e aparentemente desmotivados. O possível culpado é um amnésico estudante de psicologia adepto do mesmerismo, a técnica hipnótica desenvolvida por Mesmer no século 16, entre Viena e Paris. Os assassinos cometem os crimes e se esquecem, como se tomados por um “outro” malévolo. Ao fim, o próprio detetive sucumbe à alteridade. O tempo-espaço estável organizado pelo protagonista desorganiza-se a olhos vistos. O “eu” se divide, e o filme termina em suspenso. Mesmo uma comédia como “License to live”, de 1998, conecta-se com alguma externalidade: no caso, os dez anos que o personagem passou em coma, uma morte temporária. “Seance”, de 2000, introduz o “outro” personalizado no fantasma infantil. E “Pulse”, de maior orçamento e lançado um ano depois, atualiza o mundo espectral para o ambiente virtual da internet. Os fantasmas japoneses definitivamente não são agressivos, como são os de Hollywood. Estão mais para atormentados e sofredores, o que não exclui a vingança. Os que habitam a esfera de “Pulse” são até “inativos”, como definiu Kurosawa. Em “Doppelganger”, de 2003, o fantasma não é um morto que retorna, mas o próprio duplo do personagem, que atazana sem parar o corpo-matriz. “Loft” e “Vítima de uma alucinação”, de 2005 e 2006, privilegiam o espectro feminino, conforme a tradição literária fantasmática do período Edo (1600-1868). Mulheres oprimidas em vida empoderam-se após a morte e reaparecem no mundo dos vivos para assombrar os faltosos. Retorno do recalcado. 200 Clair de lune A chegada do fantasma em “Vítima de uma alucinação” é sempre anunciada por um tremor de terra, desses que ocorrem com frequência no arquipélago, desestabilizando o espaço cênico por frações de segundos. Kobe, a cidade onde nasceu Kurosawa, sofreu em 1995 um terremoto devastador. O esplêndido “Sonata de Tóquio”, de 2008, foge do gênero horror e incorpora o “drama familiar” no repertório do diretor, na melhor escola de Naruse. A crise financeira que afetou os países ricos à época bateu no Japão e ameaçou o emprego de assalariados antes estáveis. O personagem de Kurosawa perde o seu e não conta à esposa, andando em círculos até que a crise instalase no recinto do lar. Ao final de “Sonata de Tóquio”, a sonata é “Clair de lune”, de Debussy, inspirada no poema de Verlaine – e executada primorosamente pelo piano do caçula da família, cujo pai tornou-se faxineiro de shopping center. “Para o Outro Lado”, de 2015, combina gêneros e traz o fantasma-marido (Asano Tadanobu) de volta ao lar: ato contínuo, viaja com a esposa para cicatrizar traumas, restaurar alegrias e decifrar decepções. Luto e melancolia, mas também superação. Family movies Debussy também modula o enredo de “Tudo Sobre Lily”, de 2001, drama e violência entre adolescentes dirigido pelo talentoso Iwai Shunji – no roteiro, apoiou-se em “inputs” de redes sociais para construir os personagens. Uma delas, a virtuose pianista, é cruelmente perseguida pelas colegas. No mesmo universo de adolescentes às voltas com assédios na escola, mas com enfoque distinto, aparece “The machine girl”, realizado em 2008 por Iguchi Noboru. A simpática heroína, que teve o braço amputado pelo yakuza cujo filho matou seu irmão, instala como prótese corretiva uma metralhadora, e torna-se um “demônio”. O clima é “action shock/gore cinema”, segmento lucrativo para os exportadores japoneses de audiovisual. A tela funciona como suporte para uma “action painting” de pigmentos sanguíneos. 201 Kawase Naomi, exímia diretora, sempre trabalhou com adolescentes, protagonistas frequentes em seus filmes. O tom, entretanto é outro: sua mise-en-scène faz nascer uma imediaticidade com o fluxo de emoções dos personagens e os detalhes do entorno. A audiência parece integrar-se na história, como se o mundo diegético lhe fosse familiar. Não se trata de um olhar documental. Ao contrário, é um olhar interior, registro internalizado dos acontecimentos, impregnados da subjetividade de quem organiza o olhar. O belíssimo “Suzaku”, seu longa de estreia em 1997, capitalizou essa atmosfera e ganhou o “Caméra d’or”, o cobiçado prêmio de estreantes no Festival de Cannes. Uma proeza. Em um país de pouquíssimas diretoras, dada a forte competição entre talentos e a notória tradição masculinizante na sociedade, Kawase Naomi é um desafogo. Tanaka Kinuyo, a formidável atriz, é uma rara e ilustre antecessora, com seis longas a seu crédito. Naomi começou a filmar intensamente em Super-8 a partir de 1988: filmes de família filmados de dentro. Separação e abandono Nascida em 1969, em Nara, a antiga capital do Japão, a realizadora encontrou no Super-8 um veículo para expressar seu entorno íntimo. O cinema como ferramenta de comunicação e abertura para o “outro”. Foram vários curtas, até o pungente “Em seus braços”, de 1992, auto-retrato sem rodeios, um retorno à infância abandonada pelos pais divorciados e acolhida pela avó. Com 40 minutos de duração, foi ampliado para 16mm e exibido em salas de cinema. Cortes secos, planos de detalhe de interior, nuvens formando-se no céu, som natural – de um material bruto como esse resulta a cicatrização da memória infantil. No final, Naomi finalmente telefona para seu pai. Dois anos mais tarde observa a avó em “Caracol”, construindo um espaço cinematográfico com câmera na mão, olhar afetuoso e o total esvaziamento da suposta objetividade documental. O trabalho de Kawase começou a atrair a atenção no Festival de documentários de Yamagata. Em 1995 corresponde-se em Super-8 com Koreeda Hirozaku, a essa altura um nome conhecido pelos seus trabalhos para televisão. “This world (winter)”, de 1996, 202 é o registro dessa troca. No mesmo festival encontra um produtor e um fotógrafo, o brilhante Tamura Masaki, colaborador de Aoyama Shinji e Ogawa Shinsuke. Juntos rodam em 35mm “Suzaku”, áspera incursão sobre desintegração familiar nas montanhas perto de Nara. A não-construção de um túnel prometido, no plano econômico, e o súbito desaparecimento do pai protetor, no psicológico, desestruturam o lar. O único ator profissional é o chefe da família. O ponto de vista narrativo é da caçula adolescente. Céu, Vento, Fogo, Água, Terra Alternando estilos, mas atrelada às raízes, Naomi dirige “Firefly”, de 2000 desventuras de uma “stripper” cuja mãe suicidou-se quando era criança. Logo em seguida, “Céu, Vento, Fogo, Água, Terra”, de 2001, financiado pelo canal Arte francoalemão, auto-investigação audiovisual na linha dos filmes Super-8. Desta feita o foco é o luto pela morte do pai - o ausente que nunca sequer telefonou. Deixa-se tatuar (superficialmente), à semelhança das costas paternas, e corre nua pelo campo. Em 2003, o magnífico “Shara”, narração desdramatizada sobre uma família abalada pelo sumiço inexplicável de um dos filhos gêmeos. O tom vitalista é realçado pelas sequências finais: desfile comunitário de expurgação, com direito à chuva que lava a tela, e o parto restaurador do novo irmão. A construção do espaço de intimidade prossegue no perturbador “Nascimento e maternidade”, de 2006. De início, uma inquirição surpreendente sobre sua infância leva a avó de 90 anos às lágrimas: reconciliam-se, mas logo somos informados do falecimento da anciã. Segue-se o registro filmado da própria diretora dando à luz. Morte e vida em loop. A morte, afinal, é liberação da alma. Kawase Naomi parece ter se recongraçado consigo mesma, sem perder a coerência de sua linguagem. “Floresta dos Lamentos”, de 2007, acompanha uma enfermeira em luto pela perda do filho, perdida na floresta com seu paciente. Com este filme, Naomi ganhou o “Grand Prix” do Júri do Festival de Cannes. “Hanezu”, de 2011, foi rodado em 16mm e precedido de longa imersão dos atores na locação em Nara. Não houve ensaios e as filmagens foram curtas e objetivas, 203 no estilo “uma cena-uma tomada”, um Mizoguchi atualizado para produção independente no século 21. E o belo “O segredo das águas”, de 2014, encontro de adolescentes à beira-mar pontuado de morte e mistério. “Sabor da vida”, lançado em 2015, faz a crônica delicada de uma amizade improvável. Uma realizadora fundamental. 204 Pósfacio Em um famoso texto de 1929, típico da inquietude intelectual de uma das mais importantes personalidades do cinema, Sergei Eisenstein especula sobre a montagem cinematográfica a partir da composição visual dos ideogramas da escrita japonesa. Choques de volumes e formas geram sínteses visuais no espectador/leitor, produzindo um resultado linguístico comparável à “montagem intelectual”. A formação do ideograma traz um agenciamento visual que de certa forma guarda um paralelo construtivo com essa noção tão cara ao diretor russo. Até mesmo no lacônico haicai Eisenstein identifica “frases de montagem, registros de tomadas”, algo que combina “dois ou três detalhes pertencentes a um determinado gênero de dados que produz uma representação perfeitamente consumada de outro gênero - psicológico”. A fertilidade desse encontro – de um lado, um dos mais instigantes protagonistas da arte nascente que era o cinema, embalado em um cenário revolucionário na forma e no sentido, o realizador Sergei Eisenstein, e do outro, uma cultura pujante e imagética, a japonesa – vai além da mera notação histórica. Certo, a erudição de Eisenstein excele em derivações provocativas, mas o que interessa aqui é enfatizar a confluência histórica entre a aparição do cinema (da máquina-cinema, diria Deleuze) e a emergência do “outro” japonês, esse país-arquipélago que tanto seduziu os ocidentais antenados. Explorar a sincronia histórica entre a invenção do cinema e a reinvenção do Japão moderno, utilizando a produção cinematográfica como eixo e espelho, essa a ambição do presente texto. A janela cinematográfica, não obstante, tem duas vias: o dentro e o fora perdem a distinção, tornam-se indiscerníveis. O mito da exclusão histórica que o Japão se impôs, nos 265 anos da era Tokugawa, funciona também como polo de desejo para o olhar ocidental. Nesse período, instalou-se no Japão um feudalismo dotado de narrativa épica singular, moldada pelo território, pelo oceano, montanhas, lagos, tudo o que conforma uma farta matéria cinematográfica, que os grandes autores souberam explorar e consagrar no mundo inteiro, a exemplo que os norte-americanos fizeram com o “velho oeste”. Tais traços são tão fortes que não é raro associar-se situações contemporâneas 205 de comportamento a características presentes nos heróis e vilões do passado, nos samurais e nas gueixas, como se a tradição sobrevivesse na interioridade psicológica dos personagens e se projetasse de alguma forma na exterioridade das imagens. Sergei Eisenstein, que criticava o cinema japonês de seu tempo, talvez por desconhecimento, atirou no que viu e acertou no que não viu. O cinema desliza no país do ideograma. No Japão, o cinema estourou, tornou-se uma referência mundial. Os japoneses têm uma extrema facilidade de transitar pelas imagens – o país é uma verdadeira “image factory”, como dizia Donald Richie. A escrita nipônica e sua matriz chinesa, imagética ou icônica, são dotadas de um senso visual acurado e azeitado, enquanto as escritas fundamentadas nos símbolos convencionais sem relação imagética com o referente, as fonéticas, partem da abstração para chegar à imagem. Os japoneses teriam a partir daí uma aderência especial à imagem, às cesuras e suturas que operamos rotineiramente em nossos hábitos visuais, transplantando-as para a composição e a montagem, para o cinema, enfim. Não importa o suporte – película, vídeo, digital - os realizadores seguem vorazmente deglutindo e reconfigurando a tradição visual, do mangá ao kabuki, sempre sintonizados com a vertigem tecnológica. Mas falar do Japão é adentrar numa seara mitológica. Outra crença que rondou a leitura ocidental do Japão é a da capacidade de copiar os segredos industriais do Ocidente, que teria começado com a escopeta dos portugueses, com a chegada dos missionários cristãos no século 16 - até o famoso caça Zero da Segunda Guerra, que seria cópia de aeronave inglesa. O salto industrializante japonês, nessa linha, teria sido feito em cima da contrafação (hoje a acusação é deslocada para a China). Se pensarmos com um pouco mais de cuidado, entretanto, não será difícil concluir que os japoneses são na verdade dotados de uma notável capacidade de assimilação, da qual a inovação é um dos produtos, essa inovação que tanto se fala nos dias de hoje como diferencial de desenvolvimento econômico. Saber assimilar é inovar. No caso do cinema, da assimilação da linguagem cinematográfica, essa qualidade é claríssima, desde o testemunho do Ozu sobre o êxtase que experimentou assistindo um filme americano em 1910 (“Civilization” de Thomas Ince) até a incorporação, na linguagem cinematográfica, das tradições culturais do teatro (kabuki e nô), da imagem (ukiyo-ê), da poesia (haikai). Tudo é assimilação e inovação nesse fluxo de imagens. 206 Livros consultados BURCH, Noel - To the Distant Observer: Form and Meaning in the Japanese Cinema, University of California Press, 1979 BURUMA, Ian - A Japanese mirror, heroes and villains of Japanese culture, Penguim Books, 1985 - Inventing Japan, The Modern Library, 2004 CAZDIN, Eric - The flash of capital: film and geopolitics in Japan, Duke University, 2002 De BECKER, J.E. - The Nightless City: Or the History of the Yoshiwara Yukwaku, ICG Muse, Inc, 2000 DE MENTE, Boyé Lafayette - Japan unmasked, Tutle Publishing, 2005 DESSER David - Eros plus Massacre: An Introduction to the Japanese New Wave Cinema, Indiana University Press, 1988 DOWER, John - Embracing defeat: Japan in the aftermath of World War II, Penguim Books, 1999 GREINER, Christine - Leituras do corpo no Japão — e suas diásporas cognitivas, n-1, 2015 HEARN, Lafcadio - Kwaidan: stories and Studies of Strange Things, Stone Books, 2006 HIGH, Peter - The Imperial screen: Japanese film culture in the Fifteen Years’ war, 1931-1945, The University of Wisconsin Press, 2003 HIRANO, Kyoko - Mr. Smith Goes to Tokyo: Japanese Cinema under the American Occupation, 19451952, Smithsonian Institution Press, 1992 KUROSAWA, Akira 207 - Something like an autobiograph, Vintage books, 1983 MES, Tom, and SHARP, Jasper - The Midnight Eye guide to New Japanese film, Stone Bridge Press, 2005 MES, Tom and POSSE, Paul - Agitator: the cinema of Takashi Miike, FAB Press, 2006 MES, Tom, and STORMS, Christian - Re-Agitator: A Decade of Writing on Takashi Miike, FAB Press, 2013 MISHIMA, Yukio - Patriotism, New Directions Books, 1995 NAGIB, Lucia - Nascido das Cinzas: Autor e Sujeito nos Filmes de Oshima, Edusp, 1995 OSHIMA, Nagisa - Cinema, Censorship and the State, The MIT Press, 1992 PHILLIPS, Alastair, and STRINGER, Julian (org) - Japanese Cinema: texts and contexts, Routledge, 2007 RICHIE, Donald - A hundred years of Japanese Cinema, Kodansha International, 2005 - Ozu, University of California press, 1974 - Japanese Portraits, Tutle Publishing, 2005 RUSSELL, Catherine - The cinema of Naruse Mikio, Duke University Press, 2008 SATO, Tadao - Kenji Mizoguchi and the art of Japanese Cinema, BERG, 2008 SCHILLING, Mark - No Borders, No Limits: Nikkatsu Action Cinema, FAB Press, 2007 - The Yakuza Movie Book: A Guide to Japanese Gangster Films, Stone Bridge Press, 2004 SHARP, Jasper - Historical Dictionary of Japanese cinema, The Scarecrow Press, 2011 208 - Behind the Pink Curtain: The Complete History of Japanese Sex Cinema, FAB Press, 2008 SILVER, Alain - The samurai film, Overlook Press, 1983 YOSHIKUNI, Igarashi - Bodies of memory in postwar Japanese culture, 1945-1970, Princeton University Press 209 Glossário Anime, animê filmes de animação de gêneros e conteúdos variados ANPO sigla referente ao “Tratado de Cooperação Mútua e Segurança entre o Japão e os Estados Unidos”, assinado em 1952 e reciclado em 1960 Benshi artistas-narradores de filmes do cinema silencioso, japoneses ou estrangeiros Bunraku teatro de bonecos japonês, muito popular no século 18 Bushido o “caminho do guerreiro”, código de ética dos samurais Eirin associação japonesa de produtores cinematográficos e-maki pintura ou desenho em rolo e pergaminho Geidomono artes tradicionais Gendaigeki gênero cinematográfico para dramas sobre a vida contemporânea Gueixa japonesa treinada desde jovem nas artes da dança, do canto e da conversação Hara-kiri forma pela qual é mais conhecido, no Ocidente, o ritual suicida reservado à classe guerreira Jidaigeki gênero cinematográfico para dramas históricos, de época Kabuki um das formas clássicas do teatro japonês, muito estilizado e popular no século 18, apreciado até hoje Mangá história em quadrinhos, um hábito nacional Meiji era do Imperador Meiji (1967-1912) mono no aware doce melancolia, a empatia para com as coisas efêmeras Nô a principal forma teatral clássica do Japão, surgida no século 14, adotada pela aristocracia e encenada até hoje Onnogata, onnagata atores masculinos em papéis femininos no kabuki Pinku eiga “cinema pink”, erótico soft-core, muito em voga nos anos 60 e 70 Ronin samurai sem mestre, desempregado, errante SCAP abreviação de “Supreme Commander of the Allied Powers”, a autoridade norteamericana que exerceu o poder no Japão do pós-guerra, de 1945 a 52 Sensei mestre, “aquele que nasceu antes” Seppuku ritual suicida reservado à classe guerreira, principalmente samurai 210 Shimpa forma teatral moderna, mesclando kabuki com teatro ocidental, assimilada pelo cinema Shomingeki filmes que lidam com a classe média assalariada Showa era do Imperador Hiroíto (1926-1989) Taisho era do Imperador Taisho (1912-1926) ukiyo-ye “retratos do mundo flutuante”, gravuras do período Edo Xogum título e distinção militar usado no Japão antes da era Meiji Yakuza termo genérico para mafiosos japoneses Yoshiwara área em Tóquio segregada para prostituição pelo xogunato Tokugawa Zaibatsu poderosos conglomerados industriais e financeiros, consolidados na era Meiji 211 FILMES E DIRETORES JAPONESES CITADOS Adachi Masao “Closed vagina” (1963, “Vagina fechada”) – pag. 129 “Female student guerrilla” (1969, “Estudantes fêmeas guerrilheiras”) – pag. 129 “The prisioner” (2007, “O prisioneiro”) – pag. 149 “A.K.A. Serial Killer” (1969) – pag. 164 “Gushing prayer” (1973, “Jorrando oração”) – pag. 164 “Red Army/PFLP: Declaration of World War” (1971, “Red Army/PFLP: Declaração de guerra mundial”) – pags. 164, 166 Aoyama Shinji “It’s not in the textbook!” (1995, “Não está no livro didático!”) – pag. 193 “Helpless” (1996, “Desamparado”) – pag. 193, 194 “Two punks” (1996, “Dois punks”); “Wild life” (1997, “Vida selvagem”); “Shady grove” (1999, “Arvoredo na sombra”; “EM Embalming” (1999, “EM Embalsamando”) – pag. 193 “A cop, a bitch and a killer” (1996, “Um tira, uma cadela e um matador”) – pag. 193 “Eureka!” (2004) – pag. 194 “Sad vacation” (2007, “Férias melancólicas”) – pag. 194 “The Backwater” (2013, “A ressaca”) – pag. 194 Fujita Toshio “Lady snowblood – Vingança na neve” (1973) – pag. 145 Fukasaku Kinji “Black Lizard” (1968, “Lagarto negro) – pag. 149 “The Green Slime” (1968, “O lodo verde”) – pag. 150 “Battles without Honor and Humanity” (1973, “Batalhas sem honra e humanidade) – pag. 150 “Yakuza graveyard” (1976, “Cemitério de yakuza”) – pags. 150, 151 212 “Under the Flag of the Rising Sun” (1972, “Sob a bandeira do Sol Nascente”) – pag. 151 “A Conspiração do Clã Yagyu” (1978) – pag. 151 “Vírus” (1980); “Portal do inferno” (1981); “A lenda dos oito samurais”1(983); “A Chaos of flowers” (1988, “Um caos de flores”) – pag. 152 “Batalha real” (2000) – pag. 152, 174 “Alugados Pelo Inferno” (1975) – pag. 184 Furukawa Takumi “Juventude Rebelde” (1956) – pag. 94 Fushimizu Osamu “China nights” (1940, ”Noites da China”) – pag. 18 Gosho Heinosuke “The Neighbor's Wife and Mine” (1931, “A esposa do vizinho e a minha”) – pag. 9 Hara Kazuo “Extreme private eros: love song 1974” (1974, “Eros privado extremo: canção de amor 1974) – pag. 157, 158 “The Emperor’s Naked Army Marches On” (1987, “O exército desnudado do Imperador segue em frente”) – pag. 158 Hasebe Yasuharu “Black Tight Tigers” (1966, “Tigres negros apertados”) – pag. 146 “Stray cat rock” (1970, “Gata desgarrada do rock”) – pag. 146 “Rape! 13 hour” (1977, “Estupro! 13ª hora”) – pag. 146 Hideo Gosha “Hitokiri - o Castigo” (1969) – pag. 132 213 Hiroki Ryuichi “Our Season”, (1983, “Nossa temporada”); “Our Generation” (1983, “Nossa geração”); “Our Moment” (1983, “Nosso momento”); “Teacher, Don't Turn Me On!” (1984, “Professor, não me provoque!”) – pag. 196 “Sadistic city” (1993, “Cidade sádica”) – pag. 196 “800 Two Lap Runners” (1994, “Dois Corredores de 800) – pag. 196 “Tokyo trash baby” (2000, “Gata do lixo de Tóquio) – pag. 196, 197 “I am a S&M writer” (2000, “Eu sou um escritor S&M) – pag. 197 “Vibrator” (2003, “Vibrador”) – pag. 197 “It’s only talk” (2005, “É só conversa”) – pag. 197 “Kabukicho Love Hotel” (2014, “Motel em Kabukicho”) – pag. 197 Honda Ishiro “Godzilla” (1954) – pags. 53, 54, 93 Ichikawa Kon “Fogo na planície” (1959) – pag. 64, 65 “Kokoro” (1955, “Kokoro – o coração das coisas”) – pags. 65, 66 “Não Deixarei os Mortos (A Harpa Birmana)” (1956) – pag. 66, 67 “Enjo – O templo do pavilhão dourado” (1958) – pags. 67, 68 “A vingança do ator” (1963) – pag. 68 Iguchi Noboru “The machine girl” (2008, “A garota-máquina”) – pag. 201 Imai Tadashi “Nigorie - An Inlet of Muddy Water” (1953, “Nigorie - Uma entrada de água lamaçenta”) – pag. 87 Imamura Shohei 214 “A Mulher Inseto ou Tratado Entomológico do Japão”, de (1963) – pag. 114, 116, 151 “Introdução à antropologia” (1966) – pag. 114, 117 “My second brother” (1959, “Meu segundo irmão”) – pags 116 “Todos porcos” (1961) – pag. 116 “The profound desire of the Gods” (1968, “O profundo desejo dos deuses”) – pags. 117, 118, 152 “A man vanishes” (1967, “Um homem desaparece”) – pag. 118 “History of postwar Japan as told by a bar hostess” (1970, “A história do pós-guerra do Japão contada por uma dona de bar”) – pags. 152, 153 “In search of the unreturned soldiers in Malaysia” (1970, “À procura dos soldados que não retornaram da Malásia”); “In search of the unreturned soldiers in Thailand” (1971, À procura dos soldados que não retornaram da Tailândia”) – pag. 153 “Outlaw-Matsu returns Home” (1973, “O fora-da-lei Matsu volta para casa”) – pags. 153, 154 “Karayuki-San, the making of a prostitute” (1975, “Karayuki-San, a criação de uma prostituta”) – pag. 154 “Minha vingança” (1978) – pag. 154, 155 “Eejanaika – Aconteceu no fim da era Tokugawa” (1981) – pag. 156 “A Balada de Narayama” (1983) – pag. 156 “Zegen” (1987) – pag. 156 “Black Rain – a coragem de uma raça” (1989) – pag. 156, 157 “A enguia” (1997) – pags. 173, 177, 178 “Dr. Akagi” (1998) – pag. 178 “Água quente sob uma ponte vermelha” (2001) – pag. 178 Inagaki Hiroshi “O Homem do riquixá” (1958) – pag. 86 “Emboscada” (1970) – pag. 95 Isaka Satoshi “Focus” (1996) – pags. 179, 180 215 Ishii Takashi “Gonin” (1995) – pag. 175 Ishii Teruo “Love and crime” (1969, “Amor e crime”) – pags. 140, 161 “O Horror dos homens deformados” (1969) – pags. 159, 160 “Abashiri Prison” (1965, “Prisão de Abashiri”) - pag. 160 “Hot springs geisha” (1968, “A nascente quente das gueixas”) – pag. 160 “Shogun’s joys of torture” (1968, “Alegrias de tortura do xogum”) – pag. 160 “Blind woman’s curse” (1970, “A maldição da mulher cega”) – pag. 161 Boachi Bushido: Code of the Forgotten Eight” (1973, “Boachi Bushido: Código dos Oito Esquecidos”) – pag. 161 “Japanese hell” (1999, “Inferno japonês”) – pag. 161 “Blind Beast vs. Dwarf” (2001, “Fera cega vs. anão) – pags. 161, 162 Itami Juzo The funeral” (1984, “O funeral”) – pag. 169 “Tampopo - Os Brutos Também Comem Spaghetti” (1985) – pag. 169 “Yakuza - A Arte da Extorsão” (1992) – pag. 169 "The last dance” (1993, “A última dança”) – pag. 169 Ito Daisuke “A Diary of Chuji's Travels” (1927, “Diário das viagens de Chuji”) – pag. 14 Ito Shunya “Female Convict 701: Scorpion” (1972, “Fêmea cativa 701: Escorpião”), pag. 151 Iwai Shunji “Tudo Sobre Lily” (2001) – pag. 201 216 Kamei Fumio “The Japanese Tragedy” (1946, “A tragédia japonesa”) – pags. 28, 44-46 “Shanghai” (1937) – pag. 44 “Soldiers at the front” (1938, “Soldados no fronte”) – pag. 44 Kawase Naomi “Suzaku” (1997) – pags. 173, 201, 202 “Em seus braços” (1992) – pag. 202 “Caracol” (2004) – pag. 202 “This world (winter)” (1996, “Este mundo (inverno)”) – pag. 202 “Firefly” (2000, “Vaga-lume”) – pag. 203 “Céu, Vento, Fogo, Água, Terra” (2001) – pag. 203 “Nascimento e maternidade” (2006) – pag. 203 “Floresta dos Lamentos” (2007) – pag. 203 “Hanezu” (2011) – pag. 203 “O segredo das águas” (2014) – pag. 203 “Sabor da vida” (2015) – pag. 213 Kawashima Yuzo “Sun in the last days of the shogunate” (1957, “Sol nos últimos dias do xogunato”) – pag. 115 “Suzaki Paradise: Akashingo” (1956, “Paraíso Suzaki: Akashingo”) – pag. 114, 115 Kinoshita Keisuke “Army” (1943, “Exército”) – pag. 20 “Port of Flowers” (1943, “Porto das Flores”) – pag. 20 “Morning for the Osone Family” (1946, “Luto pela família Osone”) – pag. 51 “Carmen comes home” (1951, “Carmen volta para casa”) – pag.55 “Carmen’s innocent love” (1952, “O amor inocente de Carmen”) – pag. 55, 56 217 “Uma tragédia japonesa” (1953) – pags. 56, 57 “Sublime dedicação” (1955) – pags. 57, 58 “O Inesquecível” (1961) – pag 58 “O Murmúrio do Rio Fuefuki” (1960) – pag. 58 “Flor e Incenso” (1964) – pag. 58 A Balada de Narayama” (1958) – pag. 58 Kinugasa Teinosuke “Uma página de loucura” (1926) – pag. 10 “Encruzilhada” (1928) – pag. 10 “Portal do Inferno” (1954) – pag. 62 Kitano Takeshi “Hana-Bi - Fogos de Artifício” (1997) – pags. 173, 175, 176 “Policial violento” (1989) – pag. 174 “Boiling point” (1990, “Ponto de fervura”) pags. 174, 175 “O mar mais silencioso daquele verão” (1991) – pag. 175 “Adrenalina Máxima” (1993) – pag. 175, 176 “Getting Any?” (1995, “Conseguindo algo?”) – pag. 175 “De Volta às Aulas” (1996) – pag. 175 “Brother - a máfia japonesa Yakuza em Los Angeles” (2000) – pag. 176 “Dolls” (2002) – pag. 176 “Zatoichi” (2003) – pag. 177 “Takeshis'” (2005) – pag. 177 “Glória ao Cineasta!” (2007) – pag. 177 “Achilles and the Tortoise” (2008, “Aquiles e a tartaruga”) – pag. 177 “Ryuzo and the Seven Henchmen” (2015, “Ryuzo e os sete capangas”) – pag. 177 Kobayashi Masaki 218 “A condição humana” (1959-61) – pags. 75, 76-78 “The Thick-Walled Room” (1953, “A cela de paredes espessas”) – pag. 76 “Black river” (1957, “Rio negro”) – pag. 76 “Harakiri” (1962) – pag. 79, 187 “Rebelião” (1967) – pag. 79 “As quatro faces do medo” (1964) – pag. 79, 184 “Tokyo trial” (1983, “O julgamento de Tóquio”) – pag. 79 Koreeda Hirokazu “Lessons from a calf” (1991, “Lições de uma vitela”) – pag. 189 “However...” (1991, “Entretanto...”) – pag. 189 “August without him” (1994, “Agosto sem ele”) – pag. 189, 190 “Depois da vida” (1998) – pag. 190 “Distance” (2001, “Distância) – pag. 190, 191 “Ninguém pode saber” (2004) – pag. 191 “Andando” (2008) – pag. 191 “O que eu mais desejo” (2011) – pag. 192 “Pais e filhos” (2013) – pag. 192 “Nossa irmã mais nova” (2015) – pag. 192 Kumai Kei “Sob o Olhar do Mar” (2002) – pag. 135 “Sandokan n. 8” (1974) – pag. 154 Kumashiro Tatsumi Wet lips” (1972, “Lábios úmidos”) – pag. 142 “Woods are Wet: Woman Hell” (1973, “Os paus estão úmidos: Inferno da mulher”) – pag. 142 “The world of geisha” (1973, “O mundo da gueixa”) – pag. 143 “Sayuri Ichijō: Wet Lust” (1972, “Sayuri Ichijō: luxúria úmida”) – pag. 143 219 “Lovers are wet” (1973, “Amantes estão úmidos”) – pag. 143 “The woman of red hair” (1979, “A mulher do cabelo vermelho”) – pag. 143 “The woman with red hat” (1982, “A mulher com chapéu vermelho”) – pag. 144 Kurahara Koreyoshi “Desertores da vida” (1957) – pag. 96 “The warped ones” (1960, “Os deformados”) – pag. 97 “Black sun” (1964, “Sol negro”) – pag. 97 “Thirst for love” (1967, “Sede de amor”) – pag. 98 “Antártica” (1983) – pag. 98 “Hiroshima” (1995) – pag. 98 Kurosawa Akira “A saga do judô” (1943); “A mais bela” (1944); “A saga do judô II” (1945) – pag. 23 “Os Homens que pisaram na cauda do tigre” (1945) – pags. 23, 29 “Rashmon” (1950) – pags. 29, 32-34, 83, 85 “Não lamento minha juventude” (1946) – pags. 30, 31 “O anjo embriagado” (1948) – pags. 31, 32, 101 “O Barba ruiva” (1965) – pags. 32, 82, 84 “Duelo Silencioso” (1949); “Cão Danado” (1949); “O Escândalo” (1950) – pag. 32 “Os sete samurais” (1954) – pags. 80-82, 85, 187 “O idiota” (1951) – pag. 81 “Viver” (1952) – pag. 81 “Trono manchado de sangue” (1957); “Ralé” (1957); “Céu e inferno” (1963) – pag. 82 “A fortaleza escondida” (1958) – pags. 82, 134 “Yojimbo – o guarda-costas”, de (1961) – pags. 82, 83 “Dodeskaden” (1970) – pags. 84, 132, 133 “Anatomia do Medo” (1955) – pag. 96 “Dersu Uzala” (1975) – pags. 133, 134 220 “Kagemusha” (1980) – pags. 134, 135 “Ran” (1985) – pag. 135 “Sonhos” (1990) – pag. 135 “Rapsódias de agosto” (1991) – pag. 135 “Madadyo” (1993) – pag. 135 Kurosawa Kiyoshi “Cure” (1997) – pags. 198, 200 “Barren illusions” (1999, “Ilusões estéreis”) – pag. 198 “Sonata de Tóquio” (2008) – pags 198, 200, 201 “Kandagawa pervert wars” (1983, “Guerras perversas de Kandagawa) – pag. 199 “The excitement of the do-re-mi-fa girl” (1985, “A excitação da garota dó-ré-mi-fá) – pag. 199 “Sweet home” (1989) – pag. 199 “Suit yourself or shoot yourself” (1995-96, “Ajeite-se ou se mate”) – pag. 199 “The revenge” (1996) – pag. 199 “Serpent's path” (1997, “Caminho da serpent”); “Eyes of the spider” (1997, “Olhos da aranha”) – pag. 199 “License to live” (1998, “Licença para viver”) – pag. 200 “Seance” (2000, “Sessão”) – pag. 200 “Pulse” (2001, “Pulso”) – pag. 200 “Doppelganger” (2003) – pag. 200 “Loft” (2005, “Sótão”); “Vítima de uma alucinação” (2006) – pag. 200 “Para o Outro Lado” (2015) – pag. 201 Masuda Toshio “Tora! Tora! Tora!” (1970, co-dirigido por Richard Fleischer e Fukasaku Kinji) – pags. 84, 132, 149 “O Punhal da Vingança” (1958) – pag. 102 221 Masumura Yasuzo “Kisses” (1957, “Beijos”) – pag. 104, 110 “Giants and Toys” (1958, “Gigantes e brinquedos”) – pag. 104, 106 “O falso estudante” (1960) – pag. 104, 105 “Red Angel” (1966, “Anjo vermelho”) – pag. 106, 107 “The hoodlum soldier” (1965, “O soldado vadio”) – pag. 107 “Hoodlum soldier: rebel in the army” (1972, “O soldado vadio: rebelde no exército) – pag. 107 “Tatoo” (1964) – pag. 107 “Manji” (1964) – pag. 107 “Love for an idiot” (1967, “Amor para um idiota”) – pag. 107, 108 “Afraid to die”, de (1960, “Medo da morte”) – pag. 108 “The Wife of Seishu Hanaoka” (1967, “A esposa de Seishu Hanaoka”) – pag. 108 Miyazaki Hayao “Nausicaä do Vale do Vento” (1984); “Meu Amigo Totoro” (1988) – pag. 167 O Serviço de Entregas da Kiki” (1989); Porco Rosso: O Último Herói Romântico (1992); PomPoko: A Grande Batalha dos Guaxinins” (1994); “Princesa Mononoke” (1997); “A Viagem de Chihiro” (2001) – pag. 172 Miike Takashi “Sukiyaki Western Django” (2007) – pag. 83 “Ichi - O Assassino” (2001) – pag. 181, 187 “Dead or Alive 2: Tôbôsha” (2000, “Morrer ou viver 2: Tôbôsha) – pag. 181 “Lady killer” (1991, “Mulher matadora”); “Eyecatch junction” (1991, “Cruzamento que chama a atenção”) – pag. 182 “Shinjuku Triad Society” (1995, “Sociedade Tríade Shinjuku”) – pag. 183 “Rainy dog” (1997, “Cachorro chuvoso”) – pag. 183 “Ley lines” (1999, ‘Linhas da lei”) – pag. 183 “The Bird People in China” (1998, “O povo pássaro da China”) – pag. 183 “The City of Lost Souls” (2000, “A cidade das almas perdidas”) – pags. 183, 184 222 “Morrer ou viver” (1999) – pag. 184 “Dead or Alive: Final” (2002, “Morrer ou viver: final”) – pag. 184 “Graveyard of honor” (2002, “Cemitério de honra”) – pag. 184 “Audição” (1999) – pags 185, 186 “The Happiness of the Katakuris” (2001, “A felicidade dos Katakuris”); “Visitor Q” (2001) – pag. 187 “Izo” (2004) – pag. 187 “13 Assassinos” (2010) – pag. 187 “Hara-Kiri: death of a samurai” (2011, “Haea-kiri: morte de um samurai”) – pag. 187 Mishima Yukio “Rito de amor e morte” (1965) – pag. 131, 132, 138 Misumi Kenji “Lone Wolf and Cub’ (1972, “Lobo solitário e o filho”) – pag. 145 Mizoguchi Kenji “Marcha de Tóquio” (1929) – pag. 8 “Feiticeira das águas” (1933) – pag. 15 “A Perdição de Osen”, (1935) – pag. 15, 16 “Elegia de Osaka” (1936) – pag. 16, 36 “As Irmãs de Gion” (1936) – pag. 16 “Crisântemos Tardios” (1939) – pag. 16 “The camp song” (1938, “A canção do acampamento”) – pag. 21 “A Vingança dos 47 Ronins” (1941) – pag. 21, 22 “A Espada Bijomaru” (1945) – pag. 22 “Mulheres da Noite” (1948) – pag. 34, 37, 60 “Utamaro e suas cinco mulheres” (1946) – pag. 34 “A vida de Oharu” (1952) – pags. 35, 60, 61 223 “Victory of Women” (1946, “Vitória das mulheres”) – pag. 35, 36 “The love of actress Sumako” (1947, “O amor da atriz Sumako”) – pags. 35, 36 “My love has been burning” (1949, “Meu amor estava em chamas”) – pag. 36 “A Rua da Vergonha” (1956) – pag. 59, 60 “Intendente Sansho” (1954) – pag. 61 “A mulher infame” (1954) – pag. 61 “Os amantes crucificados” (1954) – pag. 61, 62 “Contos da lua vaga” (1953) – pag. 62-64, 86, 87 Morita Yoshimitsu “Jogos familiares” (1983) – pag. 168, 169 Lost paradise” (1997, “Paraíso perdido) – pag. 177 Murakami Ryu “Tokyo em Decadência” (1992) – pag. 185 Murata Minoru “Souls on the road”, (1921, “Almas na Estrada”) – pag. 8 Nagasaki Shunichi “Shikoku” (1999) – pag. 185 Nakahira Ko “Paixão juvenil” (1956) – pags. 94, 95 Nakata Hideo “O Chamado” (1998) – pag. 185 Naruse Mikio 224 “Toda a família trabalha”(1939) – pag. 18, 19 “Wife! Be Like a Rose!” (1935, “Mulher ! Seja como uma rosa !”) – pag. 19 “A Tale of Archery at the Sanjusangendo” (1945, “Uma história de arco e flecha em Sanjusangendo”) – pag. 22 “Until Victory Day” (1945, “Até o dia da vitória”) – pag. 22 “The Descendants of Taro Urashima” (1946, “Os descendentes de Taro Urashima”) – pag. 48, 49 “Both You and I” (1946, “Ambos você e eu”) – pag. 48, 49 “Spring Awakens” (1947, “Despertar da fonte”) – pag. 48, 50 “The Angry Street” (1950, “A rua raivosa”) – pag. 48 “White Beast” (1950, “Fera branca”) – pag. 48 “Ginza Cosmetics” (1951, “Cosméticos de Ginza”) – pag. 48, 50 “Vida de casado” (1951) – pag. 48, 50, 51, 72 “Delinquent Girl” (1951, “Garota delinquente”) – pag. 48 “Quando a mulher sobe a escada” (1960) – pag. 50, 51, 74, 75 “O som da montanha” (1954) – pag. 72, 73 “Nuvens flutuantes” (1955) – pag. 74 “Nuvens dispersas” (1967) – pag. 75 Nishimura Shogoro “Rope cosmetology” (1978, “Cosmetologia da corda”) – pag. 146 Ogawa Shinsuke “Narita: peasants of the second fortress” (1971, “Narita: camponeses do segundo forte”) – pag. 136 “A Japanese village - Furuyashikimura” Furuyashikimura”), pag. 136 Oikawa Ataru “Tomie” (1999) – pag. 185 225 (1981, “Um vilarejo japonês – Okamoto Kihachi “Japan´s longest day” (1967, “O dia mais longo do Japão”) – pag. 47 Oshima Nagisa “Noite e neblina no Japão” (1960) – pag. 105, 111 “O império dos sentidos” (1976) – pag. 108, 113, 137-140 “A town of love and hope” (1959, “Uma cidade de amor e esperança”) – pag. 110 “Juventude desenfreada” (1960) – pag. 110 “O túmulo do sol” (1960) – pags 110, 111 “The catch” (1961, “A captura”) – pag. 111 “The rebel” (1962, ‘O rebelde”) “The Pacific war” (1968, “A Guerra do Pacífico); “Mao and the cultural revolution” (1969, “Mao e a revolução cultural”); “The forgotten imperial army” (1963, “O exército imperial esquecido); “Diary of Yunbogi” (1965, “O diário de Yunogi”) – pag. 112 “The pleasures of the flesh” (1965, “Os prazeres da carne”) – pag. 113 “Dear summer sister” (1972, “Querida irmã de verão”) – pag. 113 “O enforcamento” (1968) – pag. 113, 129 “O garoto Toshio” (1969) –pag. 113 Diary of a Shinjuku thief” (1969, “Diário de um ladrão de Shinjuku”) – pag. 113, 129 “Man who left his will on film” (1970, “O homem que deixou sua vontade no filme”) – pag. 113 “The cerimony” (1971, “A cerimônia”) – pag. 113 “O império da paixão” (1978) – pag. 140 “Furyo, em nome da honra” (1983) – pags. 140, 141, 174 “Max, mon amour” (1986) – pag. 141 “Tabu” (1999) – pag. 141 Ozu Yasujiro “Filho único” (1936) – pag. 9, 13, 86 “Sword of Penitence” (1927, ‘Espada da penitência”) – pag. 12 226 “Meninos de Tóquio” (1932) – pag. 12, 13 “Passing fancy” (1933, “Moda passageira”) – pag. 12, 13 “Uma História de Ervas Flutuantes” (1934) – pag. 12, 13 “Uma Estalagem em Tóquio” (1935) – pag. 13 “Os Irmãos e Irmãs Toda” (1941) – pag. 19 “Era uma Vez um Pai” (1942) – pag. 19 “Pai e Filha” (1949) – pags. 28, 38, 41-43, 85 “Discurso de um proprietário” (1947) – pag. 39 “Uma Galinha no Vento” (1948) – pag. 40, 41 “Era uma vez em Tóquio” (1953) – pag. 85-88, 110, 115, 191 “As irmãs Munekata” (1950); “Também fomos felizes” (1951); “O sabor do chá verde sobre o arroz” (1952); “Começo de Primavera” (1956); “Crepúsculo em Tóquio” (1957); “Bom dia” (1959); “Ervas flutuantes” (1959); “Dia de outono” (1960); “Fim de verão” (1961) – pag. 88 “A Flor do equinócio” (1958) – pag. 89 “A rotina tem seu encanto” (1962) – pags 89, 90 Sakao Masanao “Cruel Map of Women's Bodies” (1967, “Mapa cruel dos corpos de mulheres”) – pag. 147 “Flower and Snake” (1974, “Flor e serpente) – pag. 147 “Wife to be sacrificed” (1974, “Esposa a ser sacrificada”) – pag. 147, 148 Shimizu Hiroshi “Sr. Obrigado” (1936) – pag. 17 “Japanese Girls at the Harbor” (1933, “Garotas japonesas no porto”) – pag. 17 “Ornamental Hairpin” (1941, “Grampo de cabelo ornamental”) – pag. 17 “Children of the Beehive” (1948, “Crianças da colméia) – pag. 51 “Children of the great Buddah” (1952, ‘Crianças do grande Buda”) – pag. 52 Shindo Kaneto 227 “Onibaba, o sexo diabólico” (1964) – pag. 108 “Filhos de Hiroshima” (1952) – pag. 108 Shinoda Masahiro “One way ticket” (1960, “Passagem de ida”) – pag. 120 “Dry lake” (1960, “Lago seco”) – pag. 120 Killers on Parade” (1961, “Matadores na parada”) – pag. 120 “Flor seca” (1964) – pags. 120, 121 “Assassination” (1964, “Assassinato”) – pag. 121 “With beauty and sorrow” (1965, “Com beleza e tristeza”) – pag. 122 “Samurai Spy” (1965, “Espião samurai”) – pag. 122 “Duplo suicídio” (1969) – pag. 123 “As escandalosas aventuras de Buraikan” (1970) – pag. 123 “Silence” (1971, “Silêncio) – pag. 123 “MacArthur Children” (1984, “Filhos de MacArthur) – pag. 123 “Spy Sorge” (2003, “Espião Sorge”) – pag. 123 Sono Sion “Suicide club” (2001, “Clube do suicídio) – pag. 195, 196 “Cold fish” (2010, “Peixe frio”) – pag. 196 Suzuki Noribumi “Sex and fury” (1973, “Sexo e fúria”) – pag. 145 Suzuki Seijun “Youth of the beast” (1963, “Juventude da fera”) – pag. 98 “A marca do assassino” (1967) – pag. 98, 101, 102 “Gate of flesh” (1964, “Portal da carne”) – pags. 99, 100 “Story of a prostitute” (1965, “História de uma prostituta”) – pag. 100 228 “Fighting elegy” (1966, “Elegia da luta”) – pag. 100, 101 “Tóquio violenta” (1965) – pag. 101, 151 “Yumeji” (1991) – pag. 102 “Pistol Opera” (2001, “Pistola de ópera”) – pag. 102 Suo Masayuki “Abnormal Family: My brother’s wife” (1983, “Família anormal: a esposa do meu irmão”) – pag. 43 “Dança Comigo?” (1996) – pag. 177 Tani Naomi “Sex Killer” (1972, “Matador sexual”) – pag. 147 “Starved Sex Beast” (1972, “Fera sexual esfomeada”) – pag. 147 Takahata Isao “Túmulo dos Vagalumes” (1988) – pag. 167 “Only Yesterday” (1991, “Somente ontem”) – pag. 172 Takechi Tetsuji “Daydream” (1964, “Sonho diurno”) – pag. 124 “Black snow” (1965, “Neve negra”) – pag. 124 Takita Yojiro “A Partida” (2008) – pag. 195 “Molester and the Female Teacher” (1981, “Molestador e a professor fêmea”); “Molester's Train: Hunting In a Full Crowd“ (1982, “Molestador do trem: caçando em plena multidão”); “Serial rape”(1983, “Estupro em série”; “Molester's Train: One Shot Per Train” (1985, “Molestador do trem: uma tacada por trem”) – pag. 195 Tasaka Tomotaka “Navy” (1943, “Marinha”) – pag. 20 229 “Five scouts” (1938, “Cinco batedores”) – pag. 20 “Mud and Soldiers”, de (1939, “Lama e soldados”) – pag. 20 Terayama Shuji “Emperor Tomato Ketchup” (1981, “Ketchup de tomate Imperador”); “Throw Away Your Books, Rally in the Streets” (1971, “Jogue fora seus livros, proteste nas ruas”); “Fruits of passion” (1981, “Frutos da paixão”) – pag. 120 Teshigahara Hiroshi “A mulher de areia” (1964) – pag. 108, 166 “O rosto da maldade” (1967) – pag. 108 Tsukamoto Shinya “Tetsuo: o homem de ferro” (1989) – pags. 180, 181 “Tetsuo II: Body Hammer” (1992, “Tetsuo II: Martelo corporal”) – pag. 181 “Tetsuo: O Homem Bala” (2009) – pag. 181 “Tokyo Porrada” (1995) – pag. 181 “A Snake of June” (2002, “Uma cobra de junho”) – pag. 181 Tsunekichi Shibata “Maple viewing” (1899, “Vista do bordo”) – pag. 7 Uchida Tomu “Police” (1933, “Polícia”) – pag. 69 “A Lança ensanguentada” (1955) – pag. 69 “Tragédia em Yoshiwara” (1960) – pag. 70 “The outsiders” (1958, “Os ) – pag. 71 “Condenado pela consciência” (1965) – pag. 71 Wakamatsu Koji 230 “Chronicle of an Affair” (1965, “Crônica de um affair”) – pag. 163 “Secret behind the wall” (1965, “Segredo atrás da parede”) – pag. 163, 164 “The Embryo Hunts in Secret” (1966, “O embrião caça em segredo”) – pag. 128 “Violated Angels” (1966, “Anjos violados”) – pag. 128 Season of terror” (1969, “Temporada de terror”) – pag. 128 “Go, Go, Second Time Virgin” (1969, “Vai, vai, virgem duas vezes”) – pag. 128 “Eros eterna” 1977) – pag. 140 “Sex jack” (1970, “Sexo operário”) – pag. 164 “Ecstasy of the angels” (1972, “Êxtase dos anjos”) – pag. 165, 166 Black Beast of Lust” (1972 “Fera negra da luxúria”); “Contemporary History of Rape in Japan” (1972, “História contemporânea do estupro no Japão”); “100 Years of Torture: The History” (1975, “Cem anos de tortura: a História); “Contemporary sexual tortures” (1976, “Torturas sexuais contemporâneas”); “100 Years of Banned Torture” (1977, “100 anos de torturas banidas”); “Serial Rapist” (1978, “Estuprador em série”) “A pool without water” (1982, “Piscina sem água”) – pag. 166 “Erotic liaisons” (1992, “Ligações eróticas”) – pag. 166 “United Red Army” (2007) – pag. 167 “11.25 The Day He Chose His Own Fate” (2011, “11.25 O dia em que ele escolheu seu próprio destino) – pag. 167 Watanabe Kunio “Toward the decisive battle in the sky” (1943, “Em direção à decisiva batalha nos céus”) – pag. 20 Yamada Yoji “It's Tough Being a Man” (1969, “É duro ser um homem) – pag. 145 “Tora-san's Cherished Mother” (1969, “A querida mãe de Tora-san”) – pag.145 Yamamoto Kajiro “The War at Sea from Hawaii to Malaya” (1942, “A Guerra no mar, do Havaí à Malásia”) – pag. 20 Kato’s falcon fighters” (1943, “Falcões guerreiros de Kato”) – pag. 20 231 Yamamoto Shinya “Cruel History of Prisoners” (1976, “Cruel história de prisioneiros”) – pag. 146 A degenerate” (1967, “Uma degenerada”); “Memoirs of Modern Love: Curious Age” (1967, “Memórias do amor modern: idade curiosa”); “Season For Rapists” (1968, “Temporada de estupradores”) – pag. 147 Yamanaka Sadao “Humanidade e Balões de Papel” (1937) – pag. 15 “The Million Ryo Pot” (1935, “O pote de um milhão de ryos”) – pag. 15 Yanagimachi Mitsuo “Fire festival” (1985, “Festival de fogos”) – pag. 168 Yoichi Sai “All Under the Moon” (1993, “Tudo sob a lua”) – pag. 192, 193 Yoshida Kiju Volúpia perigosa” (1960) – pag. 125 “Escape from Japan” (1964, “Fuga do Japão”) – pag. 124 “Woman of the lake” (1966, “Mulher do lago”) – pag. 126 “Flame and women” (1967, “Chama e mulher”) – pag. 126 “The affair” (1967, ‘O caso”) – pag. 126 “Eros + Massacre” (1969) – pag. 126 “Coup d’état” (1973, “golpe de Estado”) – pags. 127, 138 Zeze Takahisa Tokyo x Erotica” (2001) – pag. 186 232