cinema
japonês
filmes, histórias, diretores
João Lanari Bo
Julho 2016
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Apresentação
pag 3
Inventando o cinema e reinventando
o Japão: século 19 e Hiroshima
pag 4
Cinema na ocupação: 1945-52
pag 24
Anos 50 e além: os Clássicos
pag 53
Anos 60 e antes: Rebeldia
e Nouvelle Vague
pag 91
Anos 70 e 80: “Pinku Eiga” e Política
pag 130
Anos 90 e 2000: Bolha econômica
e século 2I
pag 170
Pósfacio
pag 205
Livros consultados
pag. 207
Glossário
pag. 210
Índice de filmes e diretores
pag. 212
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Apresentação
O panorama dessa história cinematográfica é naturalmente amplo, o que obriga
sem escapatória a uma seletividade. Não se pretende aqui, por óbvio, o esgotamento
do tema, muito menos a formulação de um conceito totalizante que supostamente
explique o que é o “cinema japonês”. O projeto do presente texto é o de propor uma
navegação, no sentido digital do termo, nesse imenso patrimônio audiovisual, uma
navegação sujeita a lacunas mas sempre disposta a conectividades. E que se beneficia,
por um lado, da acessibilidade proporcionada na era da internet, onde tal patrimônio
está (cada vez mais) ao alcance de um clique; e, por outro, da rica e estimulante
bibliografia disponível sobre o assunto, sobretudo em língua inglesa. O objetivo é
encorajar novas audiências a mergulhar nessa virtualidade sedutora que emana do
território cinematográfico japonês.
Ao final do texto, consta um índice específico de todos os filmes e diretores
citados, assim como dos livros sugeridos para deleite posterior. Consta igualmente um
pequeno glossário de termos e acrônimos japoneses.
Quando não houver título do filme em português, utiliza-se versão em inglês. E
os nomes próprios foram arrolados na ordem empregada no Japão, com o sobrenome
na frente (Kurosawa Akira, em vez de Akira Kurosawa).
Alguns poucos parágrafos aqui publicados, sobre Naruse Mikio e Ozu Yasujiro,
apareceram anteriormente em artigos do autor na revista Devires e no jornal Correio
Braziliense. Foram reciclados para a presente publicação.
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Capítulo 1
Inventando o cinema e reinventando o Japão: século 19 e
Hiroshima
Sakamoto Ryoma era um samurai de categoria inferior, que circulava no Japão
convulsionado pela abrupta transição do feudalismo para a monarquia constitucional.
Enquanto completava sua formação de espadachim em Tóquio, em 1854, o Comodoro
Mathew Perry dos Estados Unidos apontava os canhões de sua frota para a capital
forçando a abertura dos portos japoneses. A política de isolamento nacional, que durou
dois séculos e meio, começava a desmoronar. Durante esse período, ninguém,
estrangeiro ou japonês, poderia entrar ou sair do Japão sem autorização. A punição era
a pena capital.
Sakamoto Tinha 18 anos. Todos os testemunhos dão conta da sua estupenda
habilidade marcial. Além disso, era dotado de uma impressionante visão estratégica,
que se revelou fundamental para o futuro de seu país.
Nos filmes de época japoneses, os “jidaigeki”, Sakamoto aparece em geral com
cabelos longos, estilo “hippie” e meio parecido com Jesus Cristo, um samurai
contemplativo e não-violento. Seu lance de gênio foi ter percebido, diante da potência
bélica dos americanos e do atraso tecnológico da defesa japonesa, que a “melhor
maneira de combater os bárbaros era aprender seus truques”.
Em tempos de extremismos, esta era uma posição perigosa. Aliou-se a outras
personalidades e passou a viver sob alto risco, na atmosfera contaminada pela
fragmentação do xogunato Tokugawa. Fanáticos pró-Imperador manobravam para
tomar o poder e repelir os “bárbaros”, por um lado, e milícias pró-xogum se articulavam
para manter o poder, por outro. Sakamoto estudou também as Constituições
democráticas ocidentais, e rascunhou em 1867 um “Programa de oito pontos para um
novo governo”.
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O samurai participou também das complexas negociações que levaram à
renúncia do Xogum em 1867. Nesse mesmo ano, foi assassinado em uma pousada em
Quioto. Ele e um amigo foram surpreendidos por uma das milícias que perambulava
pelo país (até hoje pairam dúvidas sobre a autoria do crime). Mas seu prestígio
permaneceu e frutificou. Suas ideias tiveram notável influência na reinvenção política
do Japão, a partir do início da era Meiji, em 1868.
Cinema e modernidade
O Japão é um caso único de evolução histórica e política no final do século 19. A
inspiração veio sobretudo de modelos alemães, mas também de ingleses, americanos e
franceses. O Imperador durante o Xogunato Tokugawa (1603-1868) era uma mera figura
decorativa. Em seguida, passou a exercer o poder moderador. O escritor e cientista
político Ian Buruma escreveu um curto e extraordinário livro sobre essa transição,
“Inventing Japan”, publicado em 2003. Sua visão é crítica: boa parte dessa
“modernidade” importada do Ocidente seguiu padrões autoritários europeus,
devidamente adaptados aos hábitos asiáticos de pensamento.
A invenção do cinema coincide com esse período, um dos mais turbulentos e
criativos da vida japonesa. Na virada do século, em plena era Meiji, o Japão assimilava
rápida e brutalmente não apenas novas tecnologias, mas também uma nova cultura
política que rompia com práticas arcaicas. Depois de um período de acomodação
permeado de violência, em 1889 o país adota uma constituição inspirada em exemplos
ocidentais. “Civilização e Esclarecimento” (“bunmei kaika”, em japonês) foi o mote
criado pelo Estado ao final do século 19 para representar (e apressar) essa mudança.
A exaltação do xintoísmo como religião de Estado foi uma decisão tomada na
nova era, assim como a assimilação de novas técnicas e equipamentos de guerra dos
europeus com objetivos não somente defensivos. Uma onda conservadora acabou
prevalecendo após a ruptura com o passado feudal. Intelectuais independentes como
Sakamoto, se não foram assassinados, acabaram eclipsando-se nesse cenário, apesar do
papel que tiveram na fundação do novo Estado. Esse cerceamento, junto com o
crescente nacionalismo da elite militar, durou até 1945.
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Em 1896 o cinema chega ao Japão através dos agentes mais eficientes da época
– Edison primeiro, depois Lumière – e logo torna-se um polo de atração, não apenas
como diversão popular, como nos demais países, mas como janela do mundo, esse
mundo que os japoneses avidamente queriam conhecer.
Idades de ouro
O principal nome da “nouvelle vague’ japonesa, Oshima Nagisa, polêmico e
iconoclasta, identificou no cinema japonês três grandes “idades de ouro”: o período de
formação, com destaque para a produção dos anos 20 e 30, sobretudo após o terremoto
de Kanto, em 1923, que devastou Tóquio; o grande cinema clássico dos anos 50,
simultâneo ao crescimento econômico pós-guerra e à implementação da Constituição
“democrática” imposta pelos americanos, em 1947; e o cinema independente, onde se
inclui o próprio Oshima e a chamada “nouvelle vague” japonesa, que explodiu nos anos
60, em paralelo a outras agitações.
Oshima utilizou essa periodização no documentário que fez em 1995 para
celebrar os 100 anos da existência do cinema. Mesmo com todas as instabilidades do
século 20, o cinema como setor da indústria de entretenimento no Japão rapidamente
fortaleceu-se e exibe hoje um dos mercados mais diversificados e consolidados do
planeta. Como disse Jean-Luc Godard, em 1995 tratava-se de celebrar o centenário da
primeira sessão paga de cinema, ou seja, do cinema como mercadoria.
Realizadores como Kurosawa Akira, Ozu Yasujiro e Mizoguchi Kenji são
igualmente “inventores” do Japão moderno. Suas carreiras atravessaram tragédias e
renascimentos, do militarismo ascendente a Hiroshima, dos escombros da guerra à
prosperidade das décadas do final do século. Cinema e história.
Linha do tempo imperial
Em 1894 o Japão entra em guerra e ganha da China Imperial da dinastia Qing, no
que seria o primeiro passo da expansão nipônica na Ásia. Obtém “em perpetuidade”
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parte da Manchúria, Taiwan e outros territórios. A Coreia sai da órbita chinesa e tornase um protetorado japonês (será anexada em 1910).
A era Meiji refere-se ao Imperador Mutsuhito, nome pouco utilizado, mesmo no
Japão: os japoneses preferiam chama-lo simplesmente de “Imperador”, já que ele não
tinha sobrenome e permanecia em uma esfera absolutamente reclusa, celestial.
Seguindo a tradição, passou a ser conhecido após a sua morte como Imperador Meiji.
Oshima estava longe de ser um fiel adepto da reverência imperial, mas a datação
histórica que empregou no seu filme recorre, além dos acidentes da natureza, à figura
do “soberano dos céus” (significado da palavra Imperador em japonês) para pontuar as
fases da produção de seu país.
A era Taisho (1912-1926), tida como mais liberal politicamente, marcou a
expansão da produção e recepção do cinema japonês. Foi sucedida pela era Showa
(1926-1989), do Imperador Hiroíto, este sim, muito conhecido no Ocidente, sobretudo
após a Segunda Grande Guerra. O primeiro período de Hiroíto foi militarista e
expansionista, culminando na derrota estrondosa de 1945. Em seguida, veio a paz, a
desmilitarização e o impressionante crescimento econômico.
As sessões de cinema multiplicavam-se com velocidade no país-arquipélago, o
público se afeiçoou. Em 1899 Tsunekichi Shibata, fotógrafo experimentado de gueixas e
cenas de rua, roda o primeiro filme dramático do cinema japonês, “Maple viewing”.
Restam hoje dois minutos e meio desse momento histórico, registro da peça kabuki do
mesmo nome estrelada pelo ator Ichikawa Danjuro IX, uma “lenda viva” do teatro.
Consta que Ichikawa só aceitou ser filmado pela garantia da sobrevida eterna
que sua imagem ganharia na película. E exigiu: o filme só poderia ser exibido após a sua
morte. Convencido, permitiu apenas uma tomada, feita em um palco no parque Ueno,
em Tóquio. No meio do plano o vento levou o leque de Danjuro, que não se abalou.
Onnogata
O salto internacional do Japão confirmou-se com a vitória sobre a Rússia, em
1905, a primeira de um país fora do eixo eurocêntrico contra uma potência estabelecida.
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O conflito foi registrado pelos cinegrafistas japoneses, que viajaram à Manchúria e
Coreia para filmar o drama dos combates. Logo estourou a Primeira Guerra Mundial, e
ao final as posses japonesas aumentaram, graças à participação na aliança contra a
Alemanha. Além de algumas ilhas, a cidade de Qingdao, no litoral norte da China, passou
para o Império nipônico.
Por volta de 1914, informa Donald Richie, o cinema já era um “big business” no
arquipélago. A guerra na Europa terminou também favorecendo a indústria
cinematográfica, ao estimular produção local para substituir produtos europeus.
Nos primeiros anos do cinema, na década que começa em 1900, foi inevitável a
assimilação de técnicas teatrais de representação, em todos os quadrantes do globo. No
Japão, o rico repertório do teatro kabuki se impôs de início, com suas convenções e
estilo próprio, cheio de ênfases dramáticas artificiais e estilizadas. Papéis femininos no
kabuki pertencem aos homens, devidamente maquiados, conhecidos como
“onnogatas”. A progressiva hibridização cultural, resultado da abertura para o Ocidente,
levou pouco a pouco à adoção de um maior “realismo” nos enredos e nas técnicas de
representação. A acomodação ocorreu com velocidades peculiares - no cinema,
mulheres só começaram a receber crédito de papéis principais em 1919 - e estilos
intermediários, como o “shimpa”, mescla de kabuki e situações contemporâneas, típica
solução de compromisso da era Meiji.
Muito da farta produção de Mizoguchi na década de 20 era “shimpa”, como “A
Marcha de Tóquio”, de 1929, incrível e melodramático triângulo amoroso entre uma
gueixa e dois pretendentes.
Nem tudo, entretanto, era “shimpa” ou “jidaigeki”. “Souls on the road”, de 1921,
dirigido por Murata Minoru, é um belo exemplo de assimilação e arrojo. Inspirado no
realismo poético de Máximo Gorki (“Ralé”) e influenciado por D.W. Griffith, com closes
e montagem alternada, é um clássico, usualmente citado como um marco de renovação
dramática no cinema japonês.
Realismo e realidade
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Donaldo Richie, o decano dos especialistas ocidentais na cultura audiovisual
japonesa, lembra a novidade que foi a ideia de “realismo” introduzida com a abertura
na segunda metade do século 19. Dramas, no Japão, sempre necessitaram de estruturas
criadas através de mediações, de artificialismos que viabilizassem a recepção do
“natural”. O mecanismo é semelhante em várias instâncias: jardins e flores, por
exemplo, devem ser rearranjados para permitir a fruição de plantas e florestas
“naturais”. No Ocidente, o público assume a realidade do que está sendo mostrado,
enquanto que no Japão a tendência é a presença de uma voz legitimadora que garanta
o “realismo” de cada particularidade.
O “shimpa” inclui-se entre as mediações estilísticas utilizadas no teatro e no
cinema. Outra mediação é o “benshi”, narrador e intérprete de filmes mudos, figura
bastante popular, seja narrando cinejornais, interpretando papéis masculinos ou
femininos, crianças e velhos, ou simplesmente contando histórias. O “benshi”, junto
com acompanhamento musical, agregava uma dimensão sonora que em si mesma era
uma atração. Em 1930 existiam em todo o país, aproximadamente, sete mil “benshi”
ativos, para cerca de 1.300 salas de cinema. A narração da obra-prima do
expressionismo alemão “O gabinete do Dr. Caligari”, de 1919, exibido com grande
sucesso no Japão, virou um bem sucedido disco de 78 rpm.
A passagem para o cinema sonoro foi lenta e traumática. Piquetes de “benshi”
foram organizados na porta das salas que aderiram à nova tecnologia (mais “realista”,
sem dúvida). Ozu só foi dirigir uma cena com diálogos falados em 1936, no magnífico
“Filho único” (a primeira produção sonora japonesa, “The Neighbor's Wife and Mine”,
de Gosho Heinosuke, é de 1931). A partir de 1936, os principais estúdios não produziram
mais filmes sem pista sonora. Pequenos produtores, não obstante, continuaram a fazêlo: em 1937 foram registrados 137 filmes mudos, feitos para um setor específico (e
recalcitrante) do público.
Uma página de loucura
Em todo o mundo, a maior parte da produção das primeiras décadas do cinema
se perdeu. Desinteresse comercial, arquivos precários e alta combustão da película são
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associados a essa perda, mas no Japão é pior: terremotos e bombardeios norteamericanos também deixaram sua marca. Especialistas mais céticos sugerem que
apenas um por cento dos filmes feitos nos 20 ou 30 anos iniciais tenha resistido.
“Uma página de loucura”, de 1926, é uma eminente exceção. Dado como
perdido, foi encontrada em 1971 uma cópia enterrada no jardim do realizador, Kinugasa
Teinosuke. Feita a restauração e edição com acompanhamento de Kinugasa, veio à tona
um verdadeiro diamante. “Uma página de loucura” revelou-se um surpreendente filme,
cheio de contrastes, imagens distorcidas, sobreimpressão, fusões, montagem rápida e
outras técnicas da melhor vanguarda europeia. Um filme que transcende polarizações
entre estilo “shimpa” e “realismo”, pela ousadia formal e sintonia universal,
visceralmente distinto da produção serializada que se caracterizava, já nessa época, o
cinema no Japão.
Kinugasa começou como ator e fez mais de cem filmes como “onnogata” até
começar a dirigir, em 1923. Assistiu cinco vezes “A última gargalhada”, de F. W. Murnau,
e (re)descobriu as possibilidades da linguagem. “Uma página de loucura” foi uma
produção independente, rodada no estúdio da Sochiko, tendo como colaboradores,
entre outros, o grande escritor Kawabata Yasunuri. A narrativa segue um marinheiro
aposentado que se emprega como porteiro no hospício onde está internada sua mulher,
depois de tentar afogar o filho. As imagens oscilam entre realidade e o tríptico da
invisibilidade - sonho, imaginação e memória.
Dois anos mais tarde, em 1928, Kinugasa realiza “Encruzilhada”. Um jovem
apaixonado e temporariamente cego atravessa desventuras em Yoshiwara, o distrito do
prazer em Tóquio na era Tokugawa. Socorre-o a irmã, que se prostitui para pagar o
tratamento.
O diretor viajou a Moscou e exibiu o filme para uma plateia seleta, incluindo
Eisenstein e Pudovkin. “Encruzilhada” foi distribuído a seguir em capitais europeias e
Nova York. Ao final da vida, Kinugasa tinha dirigido um total de 116 filmes.
Democracia e Terremoto
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O Imperador Taisho (seu nome era Yoshihito) tinha uma saúde frágil, física e
mental. Teria sofrido meningite logo após o nascimento, ou sido vítima de
envenenamento pela ama-de-leite. O próprio pai duvidava da sua capacidade. Reinou
até 1921, quando um incidente na abertura anual dos trabalhos parlamentares
convenceu a classe política que não dava mais. O Imperador, que normalmente sentavase em um local elevado, acima do plenário, levantou-se no meio da sessão, enrolou uma
folha de papel e passou a mirar os presentes, como se fosse uma luneta.
Em 1921 cedeu a regência a seu filho, Hiroíto. Faleceu em 1926. Os pouco mais
de dez anos que permaneceu como Imperador ficaram conhecidos, depois da Segunda
Guerra Mundial, como “Democracia Taisho”. Ou seja, um hiato histórico entre a era
Meiji, contaminada pelos resquícios do feudalismo, e a era Showa, dominada, até 1945,
pelo militarismo expansionista. Sindicatos mais atuantes, novos procedimentos
parlamentares, liberdade nos negócios e até algum debate sobre o posicionamento da
mulher na sociedade caracterizaram o período. Em 1918, pela primeira vez um cidadão
comum não-aristocrata, Hara Takashi, tornou-se Primeiro-Ministro. Mas o governo
acabou naufragando na alta inflação e incapacidade de superar entraves políticos. Hara
foi assassinado em 1921 por um ferroviário desiludido.
O novo ambiente político influenciou o cinema, facilitando a ampliação de temas
e a absorção de técnicas dos filmes importados. Griffith e Ernst Lubitsch, entre outros,
faziam sucesso (“Intolerância”, de 1916, foi um acontecimento).
O terrível terremoto de Kanto, em 1923, entretanto, deixou marcas ainda mais
profundas. Ao arrasar estúdios e salas de exibição em Tóquio, obrigou a indústria a uma
retomada radical, com a adoção de novas estratégias de administração e planejamento.
A capital especializou-se nos “gendaigeki”, dramas contemporâneos do mundo
moderno. A produção de “jidaigeki”, filmes de época, ficou em Quioto. Os historiadores
estimam que a partir de 1928 o Japão tenha se tornado um dos maiores produtores de
filmes por ano do mundo, equiparável aos Estados Unidos.
Ozu Yasujiro
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Kido Shiro assumiu a direção de produção dos estúdios Shochiku, no início dos
anos 20, logo depois do terremoto. Para ele, o “shimpa” era limitado a um código moral
pré-estabelecido, incapaz de descrever “pessoas reais”. Sob sua orientação um punhado
de brilhantes diretores encontrou espaço para experimentar temas mais próximos do
cotidiano do público, de preferência contando histórias “alegres e esperançosas”. Um
deles, Ozu Yasujiro, entrou para a empresa na mesma época, para trabalhar como
assistente de câmera e direção. Em 1927 dirigiu seu primeiro longa, hoje perdido,
“Sword of Penitence”, um “jidaigeki” (22 dos 34 filmes que realizou até 1936 também
não existem mais).
A partir de 1930, encontra seu filão artístico no estilo “vida moderna”, conforme
definido por Kido (o produtor achava Ozu um “tipo engraçado”, de acordo com o
diretor). E em 1932 ganha pela primeira vez o prestigiado prêmio de melhor filme do
ano da revista “Kinema Jumpo”, com “Meninos de Tóquio”. Repetiria a façanha em 1933
e 34, com “Passing fancy” e “Uma História de Ervas Flutuantes”, o único diretor a
ganhar três anos seguidos. Embora não tenham feito uma excepcional bilheteria, a
crítica gostou, e Kido também.
A insistência do produtor no enfoque “positivo” do conteúdo das histórias
esbarrou na crise econômica que varreu o globo nos anos 30, desencadeada pela quebra
da Bolsa de Wall Street, em 1929. Ozu, que tinha atuado como assistente de Okubo
Tadamoto, especialista em comédias “nansensu” (estilo farsesco exagerado) na
Shochiku, encontrou no gênero comédia com tintas sociais a fórmula perfeita. Histórias
de desempregados classe média, como “Coral de Tóquio”, de 1931, podiam ser
contadas com humor, além, é claro, de uma ágil e arejada direção de fotografia Shigehara Hideo, colaborador fiel de Ozu - e um roteirista sutil como Noda Kogo,
parceiro da maioria dos trabalhos do diretor.
I was born, but...
A formula encontrada permitiu mesclar rigor com galhofa e diversão. O rigor
exprime-se pela imagem limpa e transparente, em uma palavra, moderna. Rigor que
coincide, também, com o gosto estético japonês de linhas puras. A diversão fica por
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conta das situações, do humor leve. Organizar tudo isso em composições visuais
requintadas, com poucos movimentos de câmera, era uma habilidade que Ozu
rapidamente aperfeiçoou. E sempre aberto a inspirações, de Okubo Tadamoto às
comédias de Lubitsch.
Okubo, aliás, considerava-se um diretor de “filmes vulgares”: Ozu incorporou
esse espírito despojado e bem humorado à sua verve autoral. “Meninos de Tóquio” é
uma comovente fábula sobre desigualdades hierárquicas e transmissão de valores
familiares, contrapondo um mundo infantil galhofeiro com a subordinação humilhante
do pai assalariado. O ponto de vista é das crianças, mas o mundo é adulto. “Passing
fancy” desenvolve o personagem Kihachi Kimura, representado pelo grande ator
Sakamoto Takeshi, um tipo “teimoso mas de bom coração”. Kihachi iria comandar mais
dois filmes, “Uma História de Ervas Flutuantes” e “Uma Estalagem em Tóquio”, de
1935.
O personagem é tirado de um conhecido real de Ozu. Seja operário, como em
“Passing fancy”, diretor de trupe kabuki, em “Uma História de Ervas Flutuantes”, ou
desempregado, em “Uma Estalagem em Tóquio”, de 1935, Kihachi capta a audiência
com seu comportamento ligeiramente contraditório e emotivo, sempre sincero. Cortes
rápidos e secos, elipses eficientes na narrativa, ausência total de fades-in e fades-out
(Ozu abominava) e a descoberta que se tornaria sua marca registrada – câmera em
posição baixa, útil para filmar nas casas japonesas – consolidaram sua posição na
indústria.
“Filho único”, de 1936, anuncia a maturidade do diretor no seu grande tema, a
família e as forças diluidoras que a afetam. Os famosos planos de transição, os “planostravesseiros”, suturam a narrativa melancólica. Em uma cena, o filho, já adulto e
residindo em Tóquio, leva a mãe para assistir “Lover divine”, produção alemã de 1933
– “este é o cinema falado”, sussurra. Na sua casa, uma foto de Joan Crawford ilumina a
parede. Ele, no entanto, fracassou, é apenas um professor secundário, contrariando os
desígnios da mãe, que sacrificou tudo pelo seu futuro de “grande homem”. Ao final,
prevalecem o caráter e a generosidade.
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A guerra privada
A década de 30 foi turbulenta no Japão. A tentativa de golpe em 26 de fevereiro
de 1936 por militares extremistas, em nome de uma hiperbólica lealdade ao Imperador,
gerou assassinatos de autoridades e posterior execução de 19 pessoas, mais três que
cometeram suicídio. Muitos dos golpistas foram para a Manchúria. Embora frustrado, o
golpe acarretou o enfraquecimento dos partidos políticos e o consequente domínio os
militares na política, sob o olhar benevolente do Imperador. Os japoneses já haviam se
estabelecido na Manchúria, norte da China, desde 1931. De forma teatral, abandonaram
a Liga das Nações em 1933, recusando-se ao julgamento de sua política expansionista
pela entidade.
Em julho de 1937, no pífio episódio que ficou conhecido como o “incidente da
ponte Marco Polo”, sentiram-se autorizados a invadir o resto do imenso território
chinês. Pouco tempo depois, ocorreu o massacre de Nanjing, que durou seis semanas a
partir de dezembro daquele ano, e aniquilou entre 200 e 300 mil pessoas. Vários dos
principais perpetradores foram julgados e executados após a guerra.
Ozu Yasujiro foi convocado em setembro de 1937 e partiu para a China. Tinha 34
anos. Começou como cabo e foi promovido a sargento, tendo participado de batalhas
na região de Wuhan, capital da província de Hebei. Sua unidade era especializada em
armamentos químicos. Foi nesse cenário que aprofundou a amizade com outro
excepcional realizador, Yamanaka Sadao, que veio a falecer em 1938 no front, vítima de
pneumonia.
“Jidaigeki” e sociedade
Peter High, historiador norte-americano que escreveu um denso e informativo
livro, “The Imperial screen: japanese film culture in the fifteen year’s war, 1931-1945”,
não hesita: para ele, o “jidaigeki” produzido no Japão no fim do período mudo supera
em qualidade o “western” que se fazia em Hollywood. Um diretor como Ito Daisuke, que
conjugava uma inovadora mobilidade de câmera com montagem acelerada, foi
pioneiro. Seu filme “A Diary of Chuji's Travels”, de 1927, dado como perdido mas
parcialmente recuperado em 1991, descreve as decepções e agruras de um samurai
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traído pelos pares. Seus heróis são solitários e niilistas, seguindo a onda dos “filmes de
tendência” - inclinados à crítica social e sintonizados com os receios da época.
Apenas três longas-metragens completos restam da obra de Yamanaka Sadao,
entre eles o esplêndido “Humanidade e Balões de Papel”, de 1937. Uma direção
minimalista e socialmente consciente fez com que esse “jidaigeki” se aproximasse dos
anseios da audiência moderna. Um dos personagens é um samurai desempregado, que
insiste em obter novo posto com um alto burocrata, sendo rechaçado e humilhado. A
“favela” em que reside é descrita nos detalhes de cada particularidade, um neorrealismo
“avant la lettre”. O resultado é incrivelmente eficaz, visto com olhos contemporâneos.
Uma obra-prima.
Em “The Million Ryo Pot”, de 1935, o tom é de comédia, mas sutilmente
pervasivo. Sua morte prematura foi uma perda para o cinema japonês.
Mizoguchi Kenji
A suposta cessão da irmã pelo pai para uma casa de gueixas – possível origem do
seu desprezo pelos personagens paternos – é o traço biográfico marcante de Mizoguchi.
A irmã tornou-se amante de um Visconde, provendo sustento para o resto da família,
na penúria depois do fracasso do pai em vender capas para o Exército na guerra com os
russos. Mulheres que se sacrificam pelos homens é um drama “shimpa” por excelência.
Começando a trabalhar depois dos vinte anos, um pouco tarde, Mizoguchi
conciliou uma portentosa vida boêmia com uma invejável capacidade de trabalho.
Foram mais de 40 produções nos anos 20, a quase totalidade perdida. A segurança de
mise-en-scène que acumulou é evidente em a “Feiticeira das águas”, de 1933, e “A
Perdição de Osen”, de 1935, melodramas que exploram sem medo os limites plausíveis
e não plausíveis da emoção, puro “shimpa”. Osen, a heroína, sacrificou tudo pela
educação do estudante de medicina que encontrou à beira do suicídio, mas terminou
sifilítica e incapaz de reconhecer o próprio protegido, anos mais tarde. No transe da
loucura a representação torna-se, inesperadamente, realista.
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Em 1936, um par de filmes raros e singulares: “Elegia de Osaka” e “As Irmãs de
Gion”, ambos com Yamada Isuzu no principal papel feminino (mesma atriz de “A
Perdição de Osen”). A despeito da força interior, as mulheres sofrem, a sociedade é
injusta. No primeiro, é repudiada pelo irmão mesmo tendo sustentado seus estudos. No
segundo faz uma gueixa com diploma universitário, que acaba pagando caro pelas
artimanhas. Cenografia e iluminação brilhantes, além da alternância de longos planos
estáticos com os famosos travellings, permitem ao diretor manobrar em um espaço
intermediário entre o “shimpa” e o “realismo”, entre o interior e o exterior dos
personagens. Um acerto de calibragem dramática.
“Crisântemos Tardios”, de 1939, é um dos melhores trabalhos de Mizoguchi.
Teatro e cinema compartilhando o espaço dramático, um palco para experimentações
de linguagem que o diretor iria aperfeiçoar nos anos 50. Um “onnogata”, herdeiro de
linhagem kabuki, sente-se inseguro pelas performances teatrais: abandona a proteção
do pai adotivo, e vai para Osaka, em seguida parte em tournée. O ano é 1888.
Acompanha-o a fiel companheira, de status social inferior, a única que havia ousado
critica-lo. Dedicação e sacrifício total, qualidades que agradavam as autoridades em
tempos de guerra. Ao fim, ele (Hanayagi Shotaro, belíssima atuação) retorna triunfal a
Tóquio e ela morre de tuberculose. Imperdível.
Sr. Obrigado
De Shimizu Hiroshi, seu amigo Ozu dizia que simplesmente não conseguia filmar
como ele. Mizoguchi, por seu turno, falava que ele e Ozu conseguiam produzir filmes
depois de trabalhar duro, mas Shimizu produzia com facilidade pois era um “gênio”.
Autor de pouco mais de 160 filmes, dos quais a maioria perdidos, sobretudo do período
mudo, é conhecido pelas suas realizações com crianças na década de 30, habilidade que
manteve no pós-guerra (embora sua temática não se esgote nesse tópico e seja variada,
incluindo filmes sobre a minoria coreana no Japão).
Shimizu gostava de locações externas. Suas fábulas fluem suavemente, parecem
soltas – o diretor com frequência esquecia roteiros rígidos e deixava-se levar pelas
circunstâncias. Hipocrisias e desigualdades sociais não o intimidavam. Por vezes, os
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eventos narrados possuem pouco ou nenhum “plot”, isto é, poucas reações de causa e
efeito entre as sequências de eventos. Os episódios se ligam por uma reciprocidade ou
por uma troca. Como diz Donald Richie, o conteúdo, à maneira japonesa, é moldado
pela forma.
“Sr. Obrigado”, de 1936, acompanha um motorista que agradece
compulsivamente a todos que cedem passagem, em um “road movie” afetivo e amargo
(a história original é de Kawabata). Estradas e planos gerais em movimento seduzem o
olhar, enquanto os passageiros narram suas peripécias particulares. “Japanese Girls at
the Harbor”, de 1933, é um retrato da juventude ocidentalizada no Japão, um triângulo
amoroso passado em Yokohama que termina com um dos lados descambando para a
prostituição. A modernidade dos comportamentos projeta-se na modernidade das
imagens. Um belo filme.
Durante a guerra dirigiu cinco produções, entre elas “Ornamental Hairpin”, de
1941, sobre adultos e crianças em um resort turístico. Estrelado por Tanaka Kinuye, atriz
de Mizoguchi, Ozu e Naruse, além de ex-esposa de Shimizu, foi definido por um crítico
contemporâneo como “frívolo e escapista”. Hoje é tido como um dos melhores filmes
de Shimizu. Conta a atração amorosa de um soldado ferido no front com a bela
proprietária (Tanaka), afinal frustrada. Não se sabe como Shimizu conseguiu convencer
o governo imperial a produzi-lo, naquele momento tão peculiar.
Film Law
Em 1939 foi aprovada a “Lei do cinema”, que teve como objetivo “racionalizar”
a indústria e refletir o óbvio interesse do governo em direcionar ideologicamente a
produção cinematográfica. Depois de muita discussão, foram criados três
conglomerados de estúdios e feitas as necessárias fusões. No que tange aos conteúdos,
a orientação era realçar valores como lealdade incondicional ao Imperador, disposição
permanente para sacrifícios pessoais, absoluta devoção à cultura genuinamente
japonesa e a exaltação da frugalidade inerente ao ethos nacional. A ação restritiva da lei
dar-se-ia na pré-produção, através do exame dos roteiros propostos, de modo a evitar
desperdícios de tempo e recursos. Cinema na economia de guerra.
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Malgrado a tensão do período, aguçada a partir de 1937 com a campanha na
China, a legislação era razoavelmente pragmática. Convivia, naturalmente, com um
forte aparato repressor estatal, herdeiro de um viés censório antiocidental e
conservador que vinha desde a era Meiji. Mas permitia alguma margem para os
realizadores que não estivessem alinhados de forma integral com a política nacional e o
esforço de guerra.
Contribui para esse cenário a descoordenação que afetava as agências do
governo, no momento em que se decidia a aprovação dos projetos. Os Ministérios da
Educação, Segurança Interior, Marinha e Exército, além do poderoso gabinete especial
da informação, ligado ao Primeiro-Ministro, eventualmente se desentendiam. Mesmo
um filme como “China nights”, de 1940, realizado por Fushimizu Osamu em território
ocupado e produzido pela “Manchuria Film Production”, podia ser objeto de debate
interno. A trama se passa em Xangai, em nome da “harmonia étnica”: uma órfã local é
recolhida por um empresário nipônico da Marinha Mercante, vindo a apaixonar-se por
ele e selando a concórdia entre ocupante e ocupado. O papel principal é interpretado
por Ri Koran, japonesa nascida na Manchúria e bilíngue em japonês e chinês. Algumas
agências do governo julgaram a história excessivamente sentimental, inadequada para
transmissão dos verdadeiros valores japoneses.
Ri Koran conquistou uma legião de fãs, e tornou-se mais tarde apresentadora de
televisão no Japão, sob o nome de Shirley Yamaguchi. Também era cantora de sucesso,
tendo circulado em Hollywood e na Broadway. Reconciliou-se denunciando o drama das
“comfort women”, escravas sexuais recrutadas à força pelo Exército imperial na China e
na Coreia.
National policy film
A classificação de “filme de política nacional”, que supostamente incluiria os
parâmetros imaginados pelos ideólogos do Estado, era uma tarefa difícil, senão
impossível. Naruse Mikio, contemporâneo de Ozu e um diretor que iria se destacar
sobremaneira nos anos 50, foi obrigado a longas negociações e algumas concessões para
concluir “Toda a Família Trabalha”, em 1939. Um pai desempregado e nove filhos lutam
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pela sobrevivência, com inevitáveis dissensões internas, tema que não interessava ao
“esforço nacional”. Naruse, que havia ganho o cobiçado prêmio da “Kinema Jumpo” em
1935 com o drama familiar “Wife! Be Like a Rose!”, foi obrigado a alterar a conclusão
de “Toda a Família Trabalha” para acomodar a exigência de “auto-sacrifício”, com o
menor impacto possível no realismo social da história. Pragmatismo responsável.
Ozu Yasujiro chegou a anunciar a produção de um filme de guerra, afinal não
realizado. Na volta da China, suas declarações eram consistentes com o engajamento
nacional no conflito. Em 1941 dirige “Os Irmãos e Irmãs Toda”, centrado em torno da
morte do patriarca e as mazelas subsequentes. Sucesso de público e crítica, agradou ao
governo pela ênfase nos signos ritualísticos próprios do acontecimento, do altar às
reverências. Em 1942 roda “Era uma Vez um Pai”, sutil e contundente narrativa de
separação entre pai e filho, movida pela culpa paterna em relação a um aluno afogado
(Ryu Chishu, um de seus atores preferidos, em atuação perfeita). O discurso que faz ao
filho para convencê-lo da necessidade da separação – sentindo-se incapacitado de
continuar como professor no vilarejo onde residia, foi para Tóquio – é um libelo em prol
da abnegação pessoal, qualidade que se esperava dos patriotas em tempos de guerra.
Em 1943 Ozu recebe nova convocação, partindo para Cingapura. Ligado ao setor
de informação do governo, foi escalado para rodar um documentário sobre a ocupação
em Birmânia, hoje Myanmar. Outro projeto seria sobre uma projetada conquista da
Índia, que se chamaria “Delhi!, Delhi!”. Em pouco mais de um ano entrevistou líderes
colaboracionistas locais, assistiu a vários filmes interditados no Japão (como “E o vento
levou” e “Cidadão Kane”, que apreciou), jogou tênis, recebeu amigos no seu
apartamento no “Cathay Building” e não concluiu o filme. No fim da guerra destruiu o
material produzido e foi preso pelos ingleses.
A “Lei do cinema” ratificou também o controle sobre os filmes importados. Com
a ampliação do conflito, somente produtos da Alemanha e Itália eram exibidos nas salas
japonesas. Uma das raras execeções eram melodramas argentinos, graças ao
alinhamento de Peron com o Eixo – “Puertas cerradas” e “Noches andaluzas”, por
exemplo, foram distribuídos pela UFA alemã.
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Pearl Harbor
Em 7 de dezembro de 1941 o Japão joga a carta mais arriscada de sua história,
atacando de surpresa a base norte-americana de Pearl Harbor, no Havaí. Conseguiu
destruir ou danificar 21 embarcações e 347 aviões, mas deixou escapar três portaaviões. A guerra atravessou o Pacífico e arrastou os Estados Unidos. Se no curto prazo a
ação cumpriu o objetivo, no médio e longo revelou-se um erro brutal, de consequências
catastróficas para a nação nipônica.
Um ano depois do ataque, estreia em Tóquio “The War at Sea from Hawaii to
Malaya”, superprodução cheia de efeitos especiais, dirigida por Yamamoto Kajiro. A
base de Pearl Harbor foi reconstruída em seis mil metros quadrados, cada navio tinha
aproximadamente dois metros de comprimento. O roteiro foi cuidadosamente
construído como peça “espiritual” de propaganda: conta o treinamento e posterior
engajamento na ação de um jovem cadete, integrante da aviação da Marinha. Nessa
trilha, foram produzidos, em 1943: “Toward the decisive battle in the sky”, de
Watanabe Kunio; “Navy”, de Tasaka Tomotaka; “Army”, de Kinoshita Keisuke; e “Kato’s
falcon fighters”, também de Yamamoto Kajiro.
Em todos eles, pontificava a consagração da “alma” e do “espírito”, qualidades
transcendentais do combatente imperial. O foco destes e outros filmes com menos
destaque era a audiência jovem, futuros pilotos e soldados.
Já na guerra da China dois filmes tinham funcionado como paradigmas: “Five
scouts”, dirigido em 1938 por Tasaka Tomotaka, que ganhou o “Kinema Jumpo” de 1939
e o Festival de Veneza em 1938; e “Mud and Soldiers”, de 1939, do mesmo Tasaka. A
ênfase, entretanto, era na camaradagem e espírito coletivo entre soldados. As
sequências de batalha de “Mud and Soldiers” foram utilizadas mais tarde pelos norteamericanos, pelo valor documental, para treinamento de soldados. Depois de Pearl
Harbor, a guerra (ou a representação da guerra) assumiu um caráter místico.
Kinoshita Keisuke era um caso especial. Começou em 1943 com “Port of
Flowers”, uma discreta sátira aos esforços bélicos. No ano seguinte lança “Army”, com
Tanaka Kinouyo no papel de mãe de um soldado doente, que faz de tudo para ter
condições de ir para o front. O resultado final termina reproduzindo as ambiguidades da
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atmosfera familiar, entre o obsessivo desejo do rapaz de servir o país (e o Imperador), e
a incertezas da mãe quanto ao destino do filho. Kinoshita queria realizar em seguida um
filme sobre kamikazes, cujo projeto, à luz do trabalho anterior, foi vetado pelas
autoridades.
A Vingança dos 47 Ronins
Por volta de 1701 um desentendimento entre senhores feudais levou um deles,
Asano, a atacar seu oponente, Kira, no palácio do Xogum, no ápice da era Tokugawa.
Tentou mata-lo com a espada mas provocou apenas ferimentos superficiais, suficientes
para ser levado a julgamento, com toda a severidade - acabou condenado a cometer
“seppuku”, suicídio por esventramento (“hara-kiri”, na acepção mais conhecida). Suas
propriedades foram confiscadas e seus samurais perderam o status, tornando-se
“ronins”. Revoltados, os 47 leais servidores de Asano esperaram dois anos na surdina,
sem despertar nenhuma suspeita, para liquidar Akira em um ataque surpresa. Foram
também condenados a morrer honradamente, cometendo “seppuku”. Se fossem
executados, seriam criminosos.
O fato tornou-se um dos mitos recorrentes sobre a lealdade incondicional dos
samurais, reproduzido e fantasiado à exaustão pelo teatro, literatura, artes plásticas e
por fim pelo cinema.
Mizoguchi havia realizado em 1938 “The camp song”, em que procurou adaptar
seu tema predileto – mulheres que se sacrificam pelos homens – ao novo cenário
político do país. O sofrimento feminino começa pela rejeição do sogro e cristaliza-se pela
partida do marido para lutar na China. Socialmente inferior, a heroína estaria impedida,
desde o princípio, de casar com o descendente de samurais. No melhor estilo “shimpa”,
o enredo se resolve - depois de idas e vindas trágicas - pela súbita e inesperada
transformação do pai, que pede perdão à nora. Com um tal artificialismo, a reação da
crítica foi negativa, a despeito do apelo emocional ao gosto do público. Hoje o filme é
dado como perdido.
O diretor encontrou no gênero “geidomono”, que supõe a utilização de temas
relacionados à tradição artística estritamente japonesa, a solução de compromisso com
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os censores para continuar trabalhando. Baseado em uma das peças escritas sobre o
trágico destino de Asano e seus samurais, realizou um extraordinário filme, “A Vingança
dos 47 Ronins”, um verdadeiro laboratório para suas concepções de mise-en-scène.
Anticlímax
Rodado em duas partes, a primeira em 1941, o filme beneficiou-se de orçamento
relativamente alto, em meio à precariedade da época. Cenários caros reproduziram
castelos e interiores, construídos para facilitar o uso de travellings e lente aberta. A
direção de atores primou pela “autenticidade”, evitando situações polêmicas, que
poderiam gerar interpretações duvidosas. Planos lentos, diálogos impostados e,
sobretudo, a parcimônia das cenas de combate – o assalto final ao castelo de Kira foi
elidido – levaram a uma decepção do público, sobretudo entre os mais entusiasmados
no governo.
A primeira parte de “A Vingança dos 47 Ronins” estreou uma semana antes do
ataque a Pearl Harbor. Convencer os burocratas para filmar a segunda parte não deve
ter sido tarefa fácil, mas Mizoguchi conseguiu.
“A Espada Bijomaru”, lançado em fevereiro de 1945, narra as aventuras de um
forjador de espadas e tem Yamada Isuzu no principal papel feminino, em mais um
exercício de produções “geidomono”. Além de Mizoguchi, Naruse Mikio também
enveredou por essa seara, em “A Tale of Archery at the Sanjusangendo”, rodado no
templo zen da escola Tendai de arco e flecha e exibido em junho de 1945, poucas
semanas antes do fim do conflito.
Até o dia da vitória
Ainda em 1945, Naruse rodou “Until Victory Day”, comissionado pela Marinha,
cujo “plot” é, no mínimo, bizarro. Apesar do título sugerir fervor patriótico diante da
derrota que se anunciava, o gancho da história é a invenção de uma “bomba do
entretenimento”. Uma vez detonada, a bomba libera “explosões” de comédia e música
22
(o cenário é uma ilhota isolada no Pacífico sul). Não foi bem de público, e também não
restaram cópias.
Kurosawa Akira trabalhou dura e intensamente, desde 1936, como assistente de
direção, roteirista, e finalmente realizador. Em 1943 dirige o primeiro longa-metragem,
“A saga do judô”, seguido de “A mais bela”, em 1944, “A saga do judô II”, em 1945, e
“Os Homens que pisaram na cauda do tigre”, também em 1945. Este último começou
a ser filmado antes da rendição, e terminou após a chegada do General MacArthur ao
Japão. Kurosawa se recorda de soldados americanos assistindo as últimas filmagens.
Consta que uma espada sumiu da cenografia.
Em 6 de agosto de 1945 é lançada a bomba atômica em Hiroshima. No dia 14 o
Imperador falou no rádio pela primeira vez a seus cidadãos e conclamou a população a
“suportar o insuportável”. A rendição foi assinada em 2 de setembro, no encouraçado
Mississipi.
23
Capítulo 2
Cinema na ocupação: 1945-52
No imediato da rendição o cenário mudou de forma vertiginosa. O país foi
ocupado pelos Estados Unidos entre 1945 e 1952, uma situação “sui generis” e
impactante – que acabou estimulando o Japão a reinventar-se e a tornar-se a potência
econômica e tecnológica que é hoje. Em 1947 foi promulgada a Constituição, redigida
sob orientação do General Douglas MacArthur, o “Supremo Comandante das Forças
Aliadas” (SCAP, na abreviação em inglês). O SCAP era de fato o governante do país, ao
lado do Imperador, mantido para garantir a estabilidade, e o governo civil constituído
por japoneses (Primeiro-Ministro, Ministérios, Parlamento) exercia a rotina da
administração. O objetivo norte-americano era “des-feudalizar” o Japão, tendo em vista
que os “valores feudais” subjacentes à estrutura do Estado teriam sido a origem dos
excessos militaristas e, em última análise, da aventura beligerante.
Na lógica da ocupação entrariam, entre muitas outras iniciativas, o
financiamento à antropóloga Ruth Benedict, que resultou no famoso livro “O
crisântemo e a espada”, e a censura prévia à produção cinematográfica japonesa.
Filmes de época, os “jidaigeki”, que de alguma maneira veiculassem códigos de honra
de samurais ou lealdades cegas a senhores feudais, estavam vetados. Por outro lado,
hábitos anteriormente banidos das telas, como beijar em público, passaram a ser
estimulados.
O primeiro beijo na boca nas telas japonesas, dispositivo fundamental para a
narrativa clássica do cinema, só foi acontecer entre nacionais do Japão em 1946, por
“pressão” dos censores.
Beijo na boca
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Donald Richie arrolou os tópicos proibidos pelo SCAP, poucos meses depois da
rendição, anunciada pelo Imperador, em 15 de agosto de 1945. Referências a
militarismo, vingança, xenofobia ou nacionalismo; distorção da história; discriminação
racial ou religiosa; enaltecimento dos códigos de lealdade feudal; tratamento
excessivamente leve da vida humana; aprovação direta ou indireta do suicídio;
degradação e opressão de mulheres; exaltação da crueldade; exploração de crianças; e,
naturalmente, oposição à declaração de Postdam, de julho de 1945, que definiu as
condições da rendição. Subentendidas nessa relação estavam alusões aos dramáticos
eventos da guerra, como Hiroshima e Nagasaki e, sobretudo, a qualquer menção
negativa a respeito das forças de ocupação.
Em contrapartida, o SCAP listou igualmente os assuntos a serem estimulados nos
filmes japoneses: democratização; direitos civis (sobretudo o das mulheres),
sindicalismo pacífico e reforma agrária; reincorporação de combatentes; e liberdade de
opinião. Um detalhe curioso da lista era o empenho dos censores com a retomada do
basebol, esporte que chegou ao Japão nos anos 20 e tornou-se bastante popular (apesar
de ser boicotado durante a guerra). Expressões amorosas, como o citado beijo, também
eram vistas com bons olhos – no período anterior, militar-nacionalista e austero, eram
vistas como símbolos da decadência inglesa e norte-americana.
A administração desses eixos temáticos não foi uma tarefa simples. Richie, que
chegou ao Japão em 1947 para trabalhar como datilógrafo na administração da potência
ocupante, iniciou nesse contexto sua longa e produtiva jornada de observador arguto
da cena local. Escreveu e publicou muito sobre cinema, mas também sobre inúmeros
outros aspectos da vida e da cultura japonesa, além de relatos pessoais que revelam, de
forma original, surpresas e espantos de um expatriado em um país cioso da sua
especificidade como é o Japão.
A ocupação norte-americana
Não faltaram contradições nos “colonizadores” da nação conquistada. Afinal,
tinham sido os norte-americanos que impuseram uma escala inédita de destruição aos
vencidos, exacerbada pela agressão nuclear. O livro de Benedict, por exemplo, a
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despeito do enorme sucesso de vendas – sobretudo no Japão, onde vendeu mais de dois
milhões de exemplares – é objeto de inúmeras e persuasivas críticas, metodológicas e
factuais. Benedict, que nunca foi ao Japão, pesquisou e escreveu engajada em um
esforço de guerra que previa vitória e posterior ocupação do território inimigo. Utilizouse de premissas por vezes insólitas. O objetivo era explicar o que era ser “japonês” para
o mundo ocidental.
Seu colega no “Office of War Information” em Washington, o cientista social
inglês Geoffrey Gorer, foi um dos que a auxiliou a consolidar o conceito de que a
continuidade do Imperador no pós-guerra seria fundamental para a estabilidade do país.
A ideia foi adotada por MacArthur e os estrategistas do Pentágono, eximindo
implicitamente o soberano de quaisquer responsabilidades históricas. Mas Gorer
também achava, não se sabe como, que a “brutalidade” e o “sadismo” da máquina de
guerra nipônica estavam enraizadas na severidade com que são transmitidas às crianças,
na cultura japonesa, as práticas higiênicas em relação a necessidades fisiológicas.
Gorer, autor de um livro sobre a vida e as ideias do Marques de Sade, era um
estudioso sofisticado, e Benedict mais ainda. “O crisântemo e espada”, a despeito de
seus méritos e deméritos, sobrevive em reedições e tornou-se ele mesmo um curioso
caso antropológico. MacArthur, quem sabe influenciado pela sua leitura, declarou em
1951 no Senado americano que a nação japonesa seria comparável a uma “criança de
12 anos de idade”.
O colonizador amado
A ambiguidade do “colonizador” é inevitável, pode-se concluir. O General, que
acabara de ser demitido pelo Presidente Truman do cargo que ocupava em Tóquio
quando foi ao Senado – ele estava disposto a liquidar a guerra da Coréia de qualquer
maneira, “mesmo que tivesse de jogar a bomba atômica na China” – se transformara
em um verdadeiro mito no Japão, de estatura próxima, senão análoga, ao Imperador.
Até mesmo na invisibilidade assemelhava-se ao Hiroíto do pré-guerra, já que sua
circulação na capital, para não dizer no país, era absurdamente restrita, do tipo casaescritório. O Imperador, por sua vez, renunciou em setembro de 1945 ao status divino
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(obrigado pelos americanos) e ganhou novo alento junto à população, percorrendo o
país no penoso esforço de reconstrução. Os japoneses acabaram se acostumando a essa
duplicidade de papéis.
A despedida de MacArthur de Tóquio, como informa o magnífico livro de John
Dower - “Embracing defeat: Japan in the Wake of World War” – foi apoteótica, com
milhares de pessoas nas ruas. Segundo Dower, seus comentários no Senado, à primeira
vista racistas e preconceituosos, não devem ser lidos inteiramente sob a ótica
contemporânea. MacArthur teria a intenção de sinalizar, meio atabalhoadamente, que
os japoneses seriam mais “confiáveis” que os alemães.
Talvez a mesma recomendação valha para situar a censura cinematográfica
exercida pelo SCAP, ou seja: a censura da ocupação, a despeito das restrições que
impunha, que podiam muitas vezes soar ridículas, acabou por exercer um papel
catalizador na temática e mesmo na construção narrativa dos (bons e maus) filmes
japoneses.
Mr. Smith goes to Tokyo
O impacto, é claro, não foi apenas no cinema. A ocupação norte-americana teve
como uma de seus desígnios injetar a fórceps na sociedade japonesa um conjunto de
normas e valores aperentemente civilizatórios, que extirpariam anseios bélicos da alma
e do Estado nipônico. A expansão militar e a “guerra dos 15 anos”, como muitos no
Japão se referem aos acontecimentos depois da invasão da Manchúria, em 1931,
estavam fundadas, de acordo com essa visão, sobre uma base psicossocial
irremediavelmente condenada ao autoritarismo xenófobo.
A vontade civilizatória, entretanto, já nasceu bifurcada: o SCAP refletia, na sua
organização, as divisões da cena política em Washington - democratas e republicanos,
com todos os tons e semitons que tal bifurcação costuma exibir. Reacionários e
progressistas conviviam nesse espaço exíguo, dialogando e digladiando entre si.
Um excelente mapeamento das mazelas da produção cinematográfica no Japão
nessa época é o trabalho da pesquisadora Kyoko Hirano, “Mr. Smith Goes to Tokyo:
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Japanese Cinema Under the American Occupation, 1945-1952”, publicado em 1992.
Poucos dias após tomarem o país, os norte-americanos estabeleceram dois órgãos de
censura: o primeiro voltado à “orientação educacional” (CIE, abreviação do inglês),
chefiado por militares mas com staff civil; e o segundo dedicado especificamente à
censura, controlado pelos militares (CCD). Na prática atuavam de forma complementar,
da aprovação de roteiros à pós-produção. Foram banidos de saída 236 filmes realizados
entre 1931 e 45, e confiscada uma enorme quantidade de material audiovisual,
devolvidos mais tarde, em 1967.
Pelo menos um longa-metragem, “The Japanese Tragedy” (1946), de Kamei
Fumio, foi vetado integralmente no período de MacArthur, ao que tudo indica por
interferência do Primeiro-Ministro Yoshida – o filme é implacável com o militarismo e o
Imperador. Seu produtor, Iwasaki Akira, foi esfaqueado por extremistas ainda leais à
ordem militar-xintoísta que imperava no Japão até 1945 (e que até hoje encontra
adeptos).
De resto, cada produção teve que negociar com os ocupantes, em todas as fases:
roteiro, produção e finalização. Muitos projetos não saíram do papel. Outros tiveram de
adaptar-se, como por exemplo o roteiro da obra-prima de Ozu Yasujiro, “Pai e Filha”
(1949), que sofreu pelo menos duas alterações, de uma sutileza condizente com o estilo
do diretor. A frase descrevendo a fragilidade da saúde da filha “em razão do trabalho
duro na marinha durante a guerra” foi modificada para “em razão do trabalho duro
durante a guerra”; e uma fala do pai, que dizia que Tóquio “estava infestada de sítios
bombardeados”, foi mudada para “Tóquio está tão empoeirada”.
Kurosawa Akira
Kurosawa, que começou a dirigir durante a guerra e ampliou consideravelmente
suas habilidades no período da ocupação, reconheceu que os censores norteamericanos eram mais fáceis de lidar do que a censura do Estado japonês, antes e
durante o conflito. Sem dúvida o diretor japonês mais conhecido no Ocidente, dono de
uma energia criativa incomum e de um temperamento exigente, deixou um testemunho
autobiográfico de uma franqueza notável – “Something like an autobiography”, de
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1982, coletado pela pesquisadora Audie Bock. A descrição que faz da sua vida começa
na profundidade das recordações infantis e vai até a produção de “Rashmon”, de 1950,
um de seus principais filmes, que ganhou o Leão de Ouro de Veneza no ano seguinte e
sedimentou o Japão como país amigo e integrante do conjunto das nações civilizadas.
Logo depois, no dia 28 de abril de 1952, entrou em vigor o Acordo de São Francisco,
assinado no ano anterior pelo Japão e mais 48 países, encerrando a ocupação
americana.
A afirmação relativa a “Rashmon” pode parecer hiperbólica, mas é corriqueira
quando se fala de cinema japonês. Trata-se da emergência artística de um país
anteriormente afundado em hostilidades e rancores, que havia bombasticamente se
retirado da Liga das Nações, em 1933, e planejado a conquista da Ásia pela força.
Encruzilhada
Censores, entretanto, são imprevisíveis. “Os Homens que pisaram na cauda do
tigre”, de 1945, o quarto longa-metragem de Kurosawa, é um caso singular. Baseado
em uma peça do repertório kabuki, “Kanjinchô”, a história acompanha a fuga de um
lorde feudal através de linhas fortemente armadas, disfarçado de sacerdote. O diretor
agregou ao enredo um personagem vivido pelo popular ator cômico Enoken (nome
artístico de Enomoto Kenichi), com quem tinha trabalhado em diversos filmes de
Yamamoto Kajiro, seu mentor.
Rodado em meados de 1945, justamente no final da guerra, o filme, com
linguagem respeitosa das convenções kabuki mas com ligeiras discrepâncias
introduzidas pelas falas de Enoken, terminou em uma encruzilhada. A censura japonesa
tinha aprovado o roteiro, embora sugerindo que o tratamento estava muito
“democrático”; a seguir, a recém instalada autoridade americana julgou a obra “feudal”
e mesmo “aborrecida”. Kurosawa exasperou-se com o novo censor e o filme foi
engavetado, literalmente – só pôde ser exibido em 1953.
A produção funcionou para o jovem diretor como um interessante exercício de
pausas e movimentos de corpo, estilizados de acordo com referências do kabuki – ou
seja, da tradição clássica do teatro japonês. A gramática visual é estática, o roteiro de
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certa forma limitado pelas convenções teatrais, mas a direção dos atores e, sobretudo,
o “casting” de Enoken, foram suficientes para provocar os nacionalistas ferrenhos e
intrigar os ocupantes desavisados.
Juventude
Sua próxima produção foi um verdadeiro salto estilístico e conceitual: “Não
lamento minha juventude”, de 1946, carregado de proposições políticas contra o
fascismo e os militares, era exatamente o que os americanos queriam ver na tela – um
dos censores da SCAP chegou a oferecer uma festa em homenagem a Kurosawa,
imediatamente após assinar a liberação da fita.
A circunstância da história é centrada na personagem encarnada por Hara
Setsuko, que mais tarde se tornaria a atriz predileta de Ozu. Seu pai, um professor
universitário liberal, é perseguido nos anos 30 pelos militares, e um de seus estudantes
termina sendo preso e morto. Hara, em papel bastante diferente da imagem suave que
viria a projetar, termina revoltando-se com a opressão e vai para o campo, isolando-se
de forma dura e incondicional. Donald Richie sugere que Kurosawa realizou neste filme
algo raro em sua carreira, um excepcional estudo da mulher no Japão.
Kyoko Hirano dedica um capítulo do seu livro a “Não lamento minha juventude”,
reconhecendo sua importância na formação pró-democracia da audiência no Japão nos
anos que sucederam a guerra, mas chamando a atenção, balizada por repertório crítico
cuidadosamente levantado, sobre a alegada vacuidade política da proposta e da
(suposta) revolta da personagem de Hara. Um dos mais ferozes comentários é de
Oshima, que acusou Kurosawa de ignorar a realidade da resistência à guerra na
sociedade japonesa, idealizando um modelo sob medida para os americanos ocupantes
e, em última análise, produzindo uma obra “subjetivamente irresponsável”.
Adeus à juventude
O filme, não obstante, resiste com galhardia à passagem do tempo. Linguagem
ágil e moderna, composição de imagem sempre bem calculada com o movimento da
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câmera e a montagem, fazendo a narrativa fluir com emoções calibradas – em suma,
características que viriam a ser lugar comum nas resenhas críticas dos filmes do diretor.
Kurosawa alega em sua defesa que não teve de lutar pelos valores associados à
liberdade, como de resto a maioria quase absoluta do povo japonês: ela lhe foi trazida
pelo ocupante norte-americano, à sua revelia. A expressão “não lamento minha
juventude” veio a tornar-se clichê jornalístico largamente utilizado, orgulha-se
Kurosawa.
O que talvez tenha incomodado à crítica ideológica mais ferrenha foi o modelo
“top-down” da pretendida educação política, um modelo que privilegiava a liderança
intelectual das elites como agente transformador, que confere uma certa artificialidade
ao projeto.
“Não lamento minha juventude” foi rodado entre greves no estúdio Toho, a
primeira em fevereiro de 1946 e a segunda em outubro. Kurosawa se queixou da
interferência no roteiro, sobretudo nos vinte minutos finais, feita por uma comissão de
artistas e técnicos encarregados de “supervisionar” as produções. A politização do
período aguçava-se: em fevereiro de 1947 o General MacArthur proibiu uma greve geral
que paralisaria 2,4 milhões de trabalhadores. A Guerra Fria se aproximava e o SCAP
preocupava-se com “infiltrações de comunistas”.
O álcool e o anjo
Outro destaque da safra de Kurosawa no período é “O anjo embriagado”, de
1948. A ideia do filme, conta o diretor em sua autobiografia, surgiu quando visitou o
cenário feito para um filme de Yamamoto Kajiro, que reproduzia uma paisagem urbana
caótica na Tóquio castigada pelos bombardeios. Seu objetivo era explorar personagens
em um território circunscrito socialmente, começando pelos yakuzas que controlavam
o mercado negro e pelos cabarés, mas incluindo também agentes sociais, no caso, um
médico. Os espaços cinematográficos escolhidos por ele, onde flui a ação da narrativa,
opõem um pequeno açude urbano totalmente poluído e anti-higiênico, onde ficava a
modesta clínica médica, aos ambientes de entretenimento lascivo, nightclubs e bares.
31
O propósito era educacional: enfatizar a necessidade de cuidados preventivos para
evitar disseminação de doenças contagiosas, algo que deve ter agradado os censores.
O que poderia ter sido um monótono drama de encomenda foi virado ao avesso
pelas soluções de roteiro e composição dos personagens, delineados por Kurosawa e
seu co-roteirista, Uekusa Keinosuke (amigo de infância e personalidade errática, esta
seria sua última colaboração com o diretor). A primeira foi inculcar alcoolismo na figura
do médico, afinal o responsável pelo controle e prevenção de doenças, função
eminentemente social, sobretudo naquele momento (inicialmente seria vício em
morfina, mas os censores não aceitaram).
A segunda foi a partir de um encontro fortuito e feliz, que marcou o começo de
uma longa parceria: Mifune Toshiro, o grande ator que viria a atuar em dezesseis dos
seus filmes, o último deles “O Barba ruiva”, de 1965. Recomendado pela atriz Takamine
Hideko, Kurosawa foi conferir os testes que Mifune fazia na Toho e ficou fascinado pela
sua energia: a emoção que os demais atores demoravam dez pés de negativo para
transmitir, disse mais tarde, Mifune fazia em três. O representante da yakuza ganhou
corpo e alma.
Greves
A dramaturgia de “O anjo embriagado” equilibra-se na tensão entre esses dois
personagens, ligados pela necessidade do gangster de tratar um ferimento e,
posteriormente, uma tuberculose. A mensagem pedagógica que o SACAP tanto queria
foi veiculada, o filme aclamado pela crítica e o prestígio do realizador consolidado. À
época do lançamento, em abril de 1948, a Toho entrava em uma greve que durou 134
dias, e terminou afastando o diretor da casa produtora na qual se iniciou no cinema.
Juntou-se a quatro companheiros – os diretores Naruse Mikio, Taniguchi Senkichi, e
Yamamoto Kanjiro, acrescido do produtor Motoki Sojiro – e fundaram uma produtora
independente, “Film Art Association”. Kurosawa dirige em seguida “Duelo Silencioso”,
“Cão Danado” e “O Escândalo”, quando, em 1950, realiza “Rashmon”.
A terceira greve da Toho foi encerrada em 19 de agosto de 1948 com ajuda de
tanques, aviões e tropas das forças de ocupação norte-americanas - fato insólito, afinal
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era uma greve em um estúdio de cinema – mas que dá ideia da importância do
acontecimento na vida política do país. Aos poucos, os ânimos arrefeceram, pelo menos
na indústria cinematográfica. A censura estava mais amena, ou pelo menos mais fácil de
ser contornada, desde que não fossem projetos de clara tendência de esquerda. O Japão
cada vez mais revelava-se parceiro confiável para os Estados Unidos, agora preocupados
com o inimigo comunista. Kurosawa foi sondado no início de 1950 pela produtora Daiei
para dirigir “Rashmon”, quando já se tornara um diretor de prestígio, e concluiu o filme
no mesmo ano.
O resultado final, a despeito da recepção favorável em seu país, não foi suficiente
para convencer os produtores para investir em sua exportação. Ainda estavam um tanto
perplexos em relação às ambições artísticas do produto, considerado um tanto
hermético. Mifune Toshiro, Mori Masayuki e a fulgurante Kyo Machiko (os dois últimos
também atuariam em “Contos da lua vaga”, de Mizoguchi) estrelaram a fita.
Um ano depois de lançado no mercado japonês, em 1951, foi inscrito no Festival
de Veneza, graças à insistência de uma distribuidora de filmes italianos em Tóquio,
Giuliana Stramigioli. Ganhou o Leão de Ouro e tornou-se uma das obras mais influentes
e conhecidas da história do cinema.
Porta do castelo ou...
“Rashmon” é um brilhante exercício de cinematografia aliado a uma engenhosa
narração tridimensional. O mesmo evento, o assassinato de um samurai e o estupro de
sua esposa por um bandido na estrada, é contado por três pontos de vista, com três
diferentes mise-en-scène, inclusive no que se refere a enquadramentos e estilos de
edição. No tribunal, um jardim de pedras zen, os personagens falam para o juiz invisível,
derrubando a quarta parede e dirigindo-se aos espectadores. No final, a descoberta de
uma criança recém-nascida no templo rompe a circularidade dos eventos e projeta uma
expectativa de superação, clara referência aos novos tempos.
Baseado nos contos de um escritor do início do século 20, Akutagawa Ryunosuke,
por sua vez inspirado em narrativas anônimas do período Heian (794-1194), “Rashmon”
teria uma inesperada ressonância com os tempos da ocupação. O personagem de
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Mifune Toshiro, o bandido Tajomaru, uma espécie de ogro do folclore nipônico, é
tradicionalmente associado à figura do “estrangeiro”. Além disso, o termo “rashmen”
era muito utilizado à época para designar as japonesas que tinham amantes (e clientes)
estrangeiros, a maioria norte-americanos. Tais hipóteses são levantadas por um curioso
estudo, “Censorship of Japanese Films During the U.S. Occupation of Japan: The Cases
of Yasujiro Ozu and Akira Kurosawa”, de Lars-Martin Sorensen. Os “rashmen films”
eram um subgênero do cinema japonês, em voga nas décadas de 50 e 60. No filme,
“Rashmon” é o nome do portal entre Quioto e Nara, semidestruído, debaixo do qual o
lenhador e o sacerdote dialogam sobre as desgraças que afligem o país. Começa a
chover e o lenhador revela como encontrou o corpo do samurai. Os ideogramas
utilizados para “Rashmon” significam, literalmente, “a porta do castelo”.
Mizoguchi Kenji
Se para Kurosawa o pós-guerra foi a via para alcançar a maturidade como diretor,
não apenas no que se refere ao domínio técnico mas também à sintonia fina com a
audiência – a despeito das restrições da censura – no caso de Mizoguchi Kenji, de uma
geração anterior, a história era diferente: tratava-se de manter o alto prestígio que
desfrutava e assegurar o espaço de produção no novo cenário. Sato Tadao, excelente
crítico e historiador do cinema japonês, dedicou um precioso volume ao diretor, onde
sublinha o espírito competitivo que animava Mizoguchi, sempre antenado com o
entorno cinematográfico e atento à atualização estilística de seus filmes.
Mizoguchi procurou durante a guerra distanciar-se dos conflitos e da ideologia
militarista, mas não podia ignorar que seus filmes serviram à causa nacionalista. O
experiente e talentoso diretor adaptou-se rapidamente aos novos tempos da ocupação
norte-americana e principalmente da nova Constituição, que sacramentou direitos
inéditos para as mulheres. Realizou uma “trilogia da liberação feminina”, entre 1946 e
49, ao mesmo tempo em que dirigiu uma de suas obras-primas sobre prostituição,
“Mulheres da Noite”, em 1948, e um filme de época, “Utamaro e suas cinco mulheres”,
em 1946 (não se sabe até hoje como Mizoguchi logrou convencer os censores para
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realizar este “jidaigeki”, já que em princípio os norte-americanos eram avessos a
qualquer sinal que remetesse a um suposto Japão feudal).
A exemplo de Kurosawa, o diretor foi emergir da ocupação, depois de 1952, com
um vocabulário cinematográfico consolidado – seu famoso estilo de “uma cena-uma
tomada”, que acarreta longos planos pontuados por movimentos de câmera, de
preferência com a grua - foi aperfeiçoado para conquistar definitivamente o público,
sobretudo o internacional. Antes da guerra, Mizoguchi vinha sendo fustigado por parte
da crítica de seu país, que via nesse estilo um tratamento superficial de situações e
personagens, demandando por conseguinte mais cortes e detalhes para suprir
psicologicamente a trama e produzir um efeito mais realista.
One shot-one take
Nos filmes de Mizoguchi praticamente não há closes, há o distanciamento dos
rostos e a continuidade lenta do tempo-espaço dos planos longos. Mas a mise-en-scène
precisa e a riqueza do conteúdo da trama preenchem essa distância e comovem o
espectador: na virada da década, sobretudo depois de ganhar o prêmio de melhor
diretor em Veneza com “A vida de Oharu”, de 1952, o diretor se impôs e reafirmou seu
status na indústria.
Os melhores trabalhos de Mizoguchi da década final da sua produção
recuperaram aspectos do “shimpa” que desenvolvera na época do cinema mudo e nos
anos 30. Após 1945, entretanto, a exigência era outra: filmes políticos, que
alavancassem não apenas expectativas de uma sociedade em ruínas, mas também que
agradassem o “Imperador de olhos azuis”, como veio a ser conhecido o General
MacArthur, sempre cuidadoso com sua reclusão e convivendo com selecionados
cidadãos e cidadãs locais.
Em 1946, um ano após a capitulação, sai o primeiro deles: “Victory of Women”,
sobre uma advogada assertiva envolvida em um “affair” com um ex-prisioneiro de
guerra e liberal, que termina morrendo em razão de doença contraída no cativeiro. O
segundo, “The love of actress Sumako”, de 1947, traz a biografia da atriz Sumako
Matsui, famosa por representar Ibsen (Casa de Bonecas) pela primeira vez no Japão, em
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1911. E o terceiro, mais engajado de todos, “My love has been burning”, de 1949,
retrata a vida da ativista de direitos civis e feminista Fukuda Eiko (1865-1927) – este
último, segundo o co-roteirista Kaneto Shindo, produzido por determinação do SCAP.
Mulheres de dia e mulheres de noite
Os três filmes sofreram críticas, algumas contundentes. Mizoguchi, acusado de
elitismo e incompreensão diante das profundas e céleres transformações em curso,
teria produzido relatos simplistas. O menos visado foi o segundo, “The love of actress
Sumako”: este é um filme que mescla com incrível habilidade a dimensão teatral da
história - ou seja, sequencias de ensaios, repetição e mise-en-scène - com o desenrolar
linear da trama. Tanaka Kinuyo, a protagonista de toda a trilogia e formidável atriz,
alcançou um nível de interiorização da personagem como poucas vezes se vê no cinema.
A assimilação do teatro moderno ocidental, no caso Ibsen, era uma questão
sensível no Japão da era Meiji. Romper com a herança dos clássicos Nô e kabuki podia
denotar transgressão política e social. Mizoguchi atualizou o conflito para o difícil
período de transição que o país vivia. Um realizador como o francês Jacques Rivette, que
costumava trabalhar com esse duplo de representação, cinematográfica e teatral, não
poupou elogios ao filme.
A distância histórica, naturalmente, nos permite ver a trilogia sob uma
perspectiva mais favorável em relação aos críticos contemporâneos. Alguns temas que
permeiam a obra do diretor, como a desconfiança feminina em relação aos desastrados
homens que as rodeiam – tal como havia sido evidenciado no magnífico “Elegia de
Osaka”, de 1936 – continuam presentes. Tanaka Kinuyo constrói a conscientização de
suas personagens, da advogada e da ativista, passando pela atriz Sumako, de forma clara
e irrefutável. Os protagonistas masculinos à sua volta costumam ser traiçoeiros e
decepcionantes, como o político liberal de “My love has been burning”, ou o promotor
reacionário de “Victory of Women”.
Talvez haja uma ingenuidade de Mizoguchi na celebração do positivismo
feminino. Seu colaborador em inúmeros roteiros, Yoda Yoshikata, insinua que o diretor
estava “perdido” no fim da guerra, com a abrupta transição política em curso e a
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extrema preocupação em adaptar-se aos novos tempos, a fim de fazer frente à
concorrência dos novos talentos.
Recreation and Amusement Association
Angustiado ou não, Mizoguchi Kenji replicou, ao mesmo tempo em que se
ocupava com a trilogia: em 1948 dirige “Mulheres da Noite”, um de seus melhores
filmes. Tanaka Kinuyo, novamente no papel principal, perde o marido na guerra e o filho
pela tuberculose, descambando na prostituição para sobreviver nos tempos difíceis do
imediato pós-conflito. As “pan-pan”, como eram conhecidas as prostitutas de rua desse
momento vertiginoso, são retratadas com um realismo pungente. Um “shimpa”
moderno e social, solução dramática que talvez só Mizoguchi seria capaz. Consta que
frequentou hospitais públicos de doenças venéreas antes de rodar o filme para se
inteirar dos detalhes e dramas particulares.
O assunto, àquela altura, era um dos favoritos na imprensa, em meio ao caos
social que se instaurou. A única ausência na tela, por motivos óbvios, era justamente
quem gerava a demanda, os soldados norte-americanos. Este era um ponto que o SCAP
não transigia.
A realidade, como se sabe, era outra: antes mesmo de assinar a rendição oficial
no encouraçado Missouri, em 2 de setembro de 1945, o governo japonês, aterrorizado
com a perspectiva de estupros em massa de jovens japonesas pelas tropas ocupantes,
criou a “Recreation and Amusement Association”, conjunto de estabelecimentos que
recrutou cerca de 55 mil mulheres para prover “conforto” aos soldados. A RAA, como
era conhecida, encerrou as atividades em março de 1946.
A presença física de norte-americanos nos filmes japoneses só veio a
materializar-se em larga escala depois de 1952. Nos poucos anos de vida que lhe
restaram (faleceu em 1956), Mizoguchi produziu dois ou três filmes universalmente
acolhidos como obras-primas. Os anos de ocupação obrigaram-no a uma flexibilização
estilística sem precedentes, ele que tinha uma larga bagagem como realizador. A
resultante foi magnífica.
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Ozu Yasujiro
O grande intérprete da classe média japonesa foi outro diretor que depurou sua
linguagem na ocupação – se é que é possível falar em depuração em alguém que já se
destacava, com louvores, pela métrica precisa da direção. Seus filmes anteriores à
guerra tinham talvez mais vivacidade, dizem os críticos, mas já traziam o tom
melancólico que converge para a apreciação minimalista desse ofício diário que é a
existência. Ozu, enfim, já era dos realizadores mais relevantes do Japão antes do
conflito: “Pai e filha”, de 1949, é o primeiro marco do excepcional refinamento que
exibiria nos anos 50 e começo dos 60.
Como extrair o sublime da vida banal e ordinária ? A essa questão, Ozu
respondeu com um método pessoal e obsessivo, que começava na elaboração do roteiro
(em geral com o parceiro Kogo Noda), partindo dos diálogos para chegar aos
personagens e à história, sempre avessa a sobressaltos artificiais. Ozu inovou em vários
itens: deliberada rejeição ao registro das emoções convencionais e óbvias; seleção das
locações, melhor dizendo, a decisão acerca da volumetria cinematográfica; direção
meticulosa e por vezes irritante dos atores, obrigados a repetir os menores gestos até
satisfazer o diretor; colocação inusitada da câmera no set de filmagem, a meia altura,
do ponto de vista de um personagem sentado no tatame; os famosos “planostravesseiro” de transição, naturezas-mortas que marcam a passagem dos tempos
cinematográfico e espiritual; e a rigorosa construção da matéria prima do cinema, a
articulação espaço-tempo que determina a causalidade das ações, seja nas casas, bares,
ruelas ou escritórios.
O Vazio e o Pleno
Para fazer isso tudo, é preciso uma negociação bem azeitada entre uma miríade
de fragmentos e um fluxo permanente de sentimentos, da tela cinematográfica para
fora, e do mundo para a tela, nos dois sentidos. Uma obra que espelhe o tempo todo as
infinitas mediações da existência, sem misticismos ou transcendências. Aliás, como dizia
Donald Richie, autor de um belo livro sobre o diretor, Ozu não ostentava nenhum tipo
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especial de afetação zen-budista, nada além do que a média ordinária dos japoneses
professa.
O famoso “kanji” inscrito em seu túmulo - “mu” em chinês - sugeriria
erroneamente um compromisso transcendental com o “vazio”. A lápide provavelmente
foi feita a posteriori, à revelia do diretor. Ozu gostava do ideograma, quando viu um
monge desenhá-lo durante sua estada na China, de 1937 a 39, convocado pelo exército,
conforme revelou em seu diário, em publicação organizada por Masaaki Tsuzuki. Mas
certamente não ficaria confortável, ainda segundo Richie, de ver sua sepultura
transformada em polo de peregrinação.
Em 1947, roda “Discurso de um proprietário”. Ryo Chishu interpreta um
cartomante que encontra uma criança perdida em Kudan, região de Tóquio onde se
situa o templo Yasukuni. A referência geográfica é breve e não aparece fisicamente no
filme, porém é suficiente para sinalizar uma referência de fortes conotações simbólicas.
Yasukuni é o principal espaço sagrado xintoísta do Japão – até hoje o local favorito de
peregrinação dos nostálgicos do militarismo - onde localiza-se também um museu com
leituras duvidosas da história militar do país. A citação de Ozu é sutil e afiada.
Não é mera coincidência iniciar uma narrativa cinematográfica em 1947 aludindo
a Yasukuni. Recentemente, o ex-Premiê Koizumi, que governou entre 2001 e 2006, ia ao
templo prestar homenagens aos heróis da guerra e imediatamente provocava a ira dos
vizinhos, especialmente chineses e coreanos. O Premiê Abe, apesar de declarar que não
julgava adequado fazer a visita enquanto fosse mandatário da nação, cedeu e realizou a
peregrinação, em 26 de dezembro de 2013. A China protestou no mesmo dia.
Livro das Almas
No “Livro das Almas” do Yasukuni estão entronizados, com fotos individuais, os
pilotos kamikazes e pouco mais mil oficiais acusados de crimes de guerra no Tribunal
Internacional que se reuniu em Tóquio, em abril de 1946. Não é um assunto fácil: estão
lá 14 criminosos “classe A”, entre os quais o General Tojo, Primeiro-Ministro entre 1941
e 44, condenado à forca pelo Tribunal. O filme de Ozu, leve e cheio de pequenas tiradas
de humor ingênuo ao gosto do diretor, acompanha as peripécias do garoto para ser
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aceito na comunidade do cartomante. O final é feliz: pai e filho se reencontram (este
sim, um assunto conhecido de Yasujiro). Uma mensagem positiva no momento em que
o país começava a reerguer-se, literalmente, dos escombros.
Na produção seguinte, “Uma Galinha no Vento”, lançado em 1948, o diretor
tangencia o que viria a ser uma de suas principais temáticas, senão a principal: a sutil e
lenta dissolução da família moderna japonesa. Aqui, ao contrário dos trabalhos
subsequentes, a dissolução não se apresenta nas entrelinhas: está diretamente ligada
aos efeitos da guerra. Para pagar despesas hospitalares do filho acidentado, a mãe
prostitui-se uma única vez, pois o marido era prisioneiro de guerra no exterior e não fora
ainda repatriado.
Para muitos no Japão, era como se a guerra não terminasse. Em alguns casos,
como o dos retidos na União Soviética, a repatriação só foi finalizada oficialmente no
final da década de 40, e mesmo assim milhares de pessoas não voltaram ou
desapareceram, prolongando a angústia da separação nos anos 50 (ingleses e
americanos permitiram o retorno em 1946 e 47, respectivamente). A reintegração dos
soldados era uma forte preocupação das autoridades e obviamente também das
famílias. Está presente em diversos roteiros escritos na época.
Estupro escada abaixo
No filme de Ozu, a possibilidade de cisão é explícita e datada: a guerra
prolongava seus efeitos e ameaçava a família. Um texto de Jonathan Rosenbaum
sublinha alguns aspectos negligenciados de “Uma Galinha no Vento”: as raríssimas
cenas, para um filme de Ozu, de agressão física por parte do marido, e estupro da
própria esposa (Tanaka Kinuye), chegando a empurrá-la escada abaixo. A reação
masoquista da mulher está igualmente exacerbada. Mesmo a inusitada tomada frontal
da escada no claustrofóbico recinto onde vivia a família, um detalhe de composição
visual, também inclui-se nesse conjunto de raridades estilísticas.
Conforme o crítico Hasumi Shigehiko (que escreveu um excelente livro sobre o
diretor, traduzido e publicado pela editora do Cahiers du Cinema), é intrigante que Ozu
quase nunca tenha filmado escadas dessa forma, de frente, apesar de sempre frisar
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implicitamente a importância simbólica das escadas nas casas japonesas. Hasumi vai
mais longe e sugere que a cena teria sido inspirada em “E o vento levou”, quando
Scarlett O’Hara cai da escada e sofre um aborto.
Sabemos que Ozu valorava muito alguns filmes americanos, como “Cidadão
Kane”. Rosenbaum ressalta os três cartazes de películas americanas que aparecem em
um único cômodo desta produção de 1948. Mas seria irônico e perverso admitir que o
clímax de “Uma Galinha no Vento”, que levou outros intérpretes a imaginar o filme
como uma metáfora da derrota japonesa – a esposa representaria a pureza maculada
do Japão – tenha tido como referência “E o vento levou”. Talvez uma outra leitura seria
perceber o filme de Ozu como uma dupla sutura alegórica: a primeira, referente ao
próprio drama da guerra e explicitada pelo soldado que se reintegra no lar “manchado”,
é percebida conscientemente pela audiência; e a segunda, mais inconsciente, é ligada
ao uso dos dispositivos da linguagem, e diz respeito ao reino indistinto dos gestos e
pulsões que o diretor captava nessa mesma audiência, transformando-os em narrativas.
A ameaça à desintegração familiar constituía-se como ansiedade latente no
público do pós-guerra, traumatizado pela violência e inseguro diante do futuro. O
excesso de ações descritas fisicamente não se repetiu na carreira do diretor. Segundo
Richie, o próprio Ozu não apreciava “Uma Galinha no Vento”.
Édipo no Japão
“Pai e filha”, de 1949, é o produto de um refinamento. É como se o processo de
dissolução, que no filme anterior era descrito carnalmente, assumisse agora um caráter
abstrato, distanciado. Tudo concorreu para a realização dessa obra-prima: precisão
cirúrgica na montagem e nas manipulações do tempo; ausência de pontuações artificiais
na imagem (“fades”, fusões, “dissolves”); uso constante da câmera baixa (cerca de 3 pés,
pouco menos de 1 metro do chão) e da lente 50 mm; sequências de transição nos trens,
sempre um recurso valioso no cinema japonês; mise-en-scène contida e permeada de
mesuras de cortesia próprias de um estrato social mais estabelecido; a estreia, nos
filmes do diretor, da excepcional Hara Setsuko; e um drama edipiano, para usar uma
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terminologia psicanalítica “ocidental”, narrado com tonalidades intensas e controladas.
No geral, um acerto feliz.
Como situar a produção de “Pai e filha” no seu momento histórico ? Ao
reconciliar traços aparentemente conservadores da cultura japonesa (do casamento
arranjado ao teatro Nô, passando pela famosa cena do vaso, no hotel em Quioto) com
a atmosfera liberal estimulada pela ocupação (mulheres divorciadas, patriarcalismo
ameaçado) teria Ozu elaborado o receituário para a sociedade japonesa operar a
cicatrização do trauma da guerra ? Este é um filme que definitivamente desafia os
exegetas, a um só tempo moderno, com cortes imprevistos e suspensão da continuidade
ancorada nos pontos de vista da câmera, e melodramático, com pontos de virada
emocionais, magnificamente interpretados pelos dois protagonistas. “Pai e filha” não
desapontou os espectadores contemporâneos e arregimentou uma fiel e sofisticada
camada de admiradores nos anos que se seguiram.
Um vaso, apenas um vaso
A cena do vaso, sobretudo, tornou-se uma verdadeira baliza para o debate em
torno da obra do realizador. Inserido em um diálogo noturno entre pai e filha, na viagem
a Quioto que marcou a distensão do relacionamento dos dois – a filha resigna-se e aceita
o casamento – o vaso aparece em meio a sombras, filmado de um ângulo inesperado,
sem relação com os personagens e seus respectivos olhares. Donald Richie via nele um
“container” de emoções, um objeto que capta nossas expectativas em relação ao futuro
de ambos. David Bordwell, outro crítico de renome que se debruçou sobre a obra do
diretor, enxergou na cena uma sutil ruptura formal com as normas da continuidade e
causalidade da narrativa cinematográfica.
Não faltam hipóteses e especulações, dentro e fora do Japão. Talvez a mais
elaborada seja a do filósofo Gilles Deleuze, no seu fabuloso estudo “Imagem-Tempo”.
O vaso, lembra Deleuze, aparece interposto entre duas imagens em diagonal da filha,
que dorme ao lado do pai, entre um meio-sorriso ao constatar o ronco do interlocutor,
e o começo de um leve choro melancólico. O vaso é a cristalização da separação que virá
em breve, em virtude do seu casamento, é algo que vai acontecer, mudança, passagem.
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Mas a forma daquilo que muda, em si mesma não muda, é simplesmente um vaso: o
vaso, enfim, é a representação do tempo, do tempo em estado puro.
“Pai e filha” transita entre esses registros, abstrato e concreto, popular e erudito,
satisfazendo diferentes demandas. Nas décadas seguintes, Ozu consolidou seu prestígio,
mesmo com as mutações culturais experimentadas pelo Japão na segunda metade do
século 20.
Uma referência irônica, que homenageia e dessacraliza ao mesmo tempo o filme,
é o longa-metragem de Suo Masayuki, “Abnormal Family: My brother’s wife”, de 1983.
Típico produto do gênero “pink”, produções soft-core que vicejaram nos anos 70 e 80,
trata-se de uma paródia direta de “Pai e filha”, até nas famosas elipses narrativas. O
casamento de Hara Setsuko, por exemplo, não aparece no filme de Ozu: em “Abnormal
Family” também não, mas somos remetidos diretamente ao leito conjugal. O bar
favorito frequentado em 1949 por Ryu Chishu tem, em 1983, mulheres “dominatrix”
como atendentes; e os personagens, a despeito da atitude corporal contida, não
hesitam em interagir sexualmente. E assim por diante.
“The Japanese Tragedy”
Sergei Eisenstein julgava ser o cinema japonês dos anos 20 uma mera adaptação
do naturalismo supostamente inerente da dramaturgia ocidental – e portanto
ignorando o potencial cinematográfico que as artes tradicionais exibiam no Japão, do
teatro kabuki aos poemas haicai. Seu brilhante texto de 1929, “O princípio
cinematográfico e o ideograma”, terminava conclamando os diretores japoneses de
cinema a aplicar em seus filmes as virtudes singulares da cultura nipônica: caso
contrário, seriam os demais realizadores, os não-japoneses, a fazê-lo.
O que Eisenstein não poderia supor é que a influência do cinema soviético, que
foi pensado como instrumento estratégico de conscientização social, estava presente
no arquipélago. Em 1929, a “Liga do Filme Proletário do Japão”, conhecida como
Prokino, produzia documentários e cinejornais, projetava filmes em assembleias e
demonstrações, enveredando com o tempo para filmes de ficção e mesmo animação.
Nomes como Mizoguchi Kenji e Kogo Noda, o grande parceiro de Ozu nos roteiros,
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colaboraram com o movimento. Um de seus membros proeminentes, Iwasaki Akira,
preso em 1938 por ser “marxista”, veio a produzir em 1946 o documentário “The
Japanese Tragedy”, proibido poucas semanas após o lançamento - o único filme
integralmente vetado pelo SCAP. O diretor, Kamei Fumio, que se autodefinia como
humanista de esquerda, também já tinha sido preso, em 1941 – a única personalidade
de cinema a ser efetivamente encarcerada durante a guerra por supostas atividades
contra o regime militar.
A geologia do Monte Fuji
De acordo com Hirano Kyoko, em seu trabalho sobre o cinema durante a
ocupação, Kamei estudou cinema em Leningrado (hoje São Petersburgo) e inspirou-se
na estética revolucionária soviética, que visava a “expressão ideológica através das
imagens”. Seus filmes preferidos eram “Encouraçado Potemkin”, de Eisenstein, e “A
Mãe”, de V. Pudovkin, respectivamente de 1925 e 26. Seu primeiro documentário,
“Shanghai”, produzido pela marinha japonesa em pleno 1937, recebeu críticas dos
militares por ser simpático aos chineses – a cidade foi ocupada neste mesmo ano pelo
Japão, depois de três meses de batalha sangrenta.
Em 1938, Kamei voltou à carga em “Soldiers at the front”, documento sobre a
exaustão física e mental dos soldados japoneses, assim como das vítimas chinesas. O
filme foi banido: os militares surpreenderam-se com a audácia solitária de Kamei Fumio
de realizar um libelo anti-guerra em plena ebulição expansionista. Em 1941, antes da
prisão, propõe ao governo o roteiro “The geology of Mount Fuji”, logo rejeitado – usar
um discurso científico para falar da principal referência mística do Império era uma
blasfêmia evidente.
Um comunista no Japão
Iwasaki Akira, o produtor de “The Japanese Tragedy”, foi solto em 1940, e ficou
desempregado. Era uma situação provável para alguém marcado de pertencer ao
partido comunista, durante um regime de extrema direita engajado em um esforço de
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guerra. Acabou conseguindo um meio-expediente na “Mandchuria Film Corporation”,
empresa criada pelo governo para produzir e exibir filmes no território ocupado.
Segundo Hirano, a corporação conseguiu a proeza de abrigar extremistas de direita,
insatisfeitos com a “corrupção e a má orientação fornecida ao Imperador”, e um grupo
de esquerdistas que havia escapado para a Manchúria fugindo da repressão e incapaz
de qualquer articulação política.
Acabada a guerra, Iwasaki passou a produzir cinejornais, igualmente submetidos
ao exame prévio pelas forças norte-americanas de ocupação. Logo em fevereiro de 1946
colidiu com a censura: programou para 11 de fevereiro de 1946, dia da fundação do
império japonês, 2.600 anos atrás – data obviamente imaginária – uma reportagem
desconstruindo o mito do Imperador celestial. O problema foi ter incluído uma fala
editada do Ministro da Educação, insinuando a concordância deste com a desconstrução
proposta. O Ministro enfureceu-se e pediu apoio do SCAP: o cinejornal foi exibido com
a entrevista cortada. O episódio parece ter reforçado em Iwasaki a determinação de
produzir um documentário de longa-metragem, crítico do militarismo e, em particular,
do próprio Imperador, julgado o principal culpado pelo desastre da guerra. Uma visão
que iria se chocar, como se viu, com a percepção dos ocupantes acerca da importância
do soberano como fator estabilizador da sociedade japonesa.
Dessacralização da imagem imperial
Contratado, Kamei Fumio lançou-se com apetite na produção, reunindo material
de arquivo de cinejornais, fotos, clippings da imprensa e trechos de filmes de ficção
japoneses produzidos durante a guerra. Além disso, utilizou também imagens fornecidas
pelo SCAP, até material capturado pelos japoneses durante a guerra. A montagem foi
feita com planos de curta duração, em ritmo febril, mostrando o Imperador e acólitos,
de políticos a intelectuais, justificando ações bélicas. Em contraponto a esse discurso,
imagens de caos e pobreza, em função da violência da guerra e da penúria crescente
após a rendição. Hirano Kyoko destaca a montagem de fotos do Imperador Hiroíto,
fundindo a imagem pré-guerra, de traje militar e medalhas, com a veiculada após a
45
derrota, de terno civil e chapéu, denotando a definitiva destronização do sistema
imperial (seu livro traz essa montagem na capa).
Em suma, os quinze anos de agressão japonesa são passados a limpo, com
destaque para a malfadada política pan-asiática. O resultado final, a despeito da
narração um tanto rudimentar, convence o espectador, sobretudo pelo “entusiasmo”
da realização. Naquele momento, a película certamente tinha um apelo forte para
impressionar a audiência.
Um dos admiradores do filme era David Conde, integrante do SCAP e conhecido
por posições de esquerda. Inicialmente, o documentário foi aprovado pelo CIE – a
instância censória integrada por civis – onde estava Conde. Em seguida, também o foi
quase de forma automática pelo CCD, composto por militares e preocupado com
aspectos de inteligência militar. O filme demorou para encontrar distribuidores e salas
de cinema, tendo sido lançado em julho de 1946 em um pequeno circuito independente.
Yakuza e a extrema direita
Foi então que o Primeiro-Ministro Yoshida Shigeru, tendo ouvido falar do tom
iconoclasta do documentário, organizou uma sessão em sua própria residência, na
companhia de autoridades do governo e militares norte-americanos. Não tardou para
que o CCD voltasse atrás e proibisse o filme, o único efetivamente vetado naquele
período.
Conde demitiu-se e foi trabalhar na agência Reuters. Iwasaki pouco depois
sofreria ataque a facadas, creditado por ele a um chefe yakuza notoriamente de extrema
direita, irritado com o tratamento dado à figura do Imperador. Algumas sessões ainda
foram realizadas, inclusive na Universidade de Tóquio, mas cópias e negativos foram
definitivamente confiscados em 16 de agosto de 1946. O documentário só foi ser exibido
depois de encerrada a ocupação, em 1952, quando a dessacralização do Imperador
podia ser, em princípio, explicitamente abordada.
“The Japanese Tragedy” ultrapassou o limite que a ambiguidade da presença
norte-americana podia permitir. A figura do Imperador, a despeito de não ostentar a
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aura divina do pré-guerra, ainda permanecia (e permanece) em uma esfera
extremamente reservada.
Em “Japan´s longest day”, dirigido por Okamoto Kihachi em 1967, vigoroso filme
que narra os (patéticos) bastidores da decisão imperial de fazer o famoso
pronunciamento no rádio reconhecendo a derrota, o Imperador jamais aparece
frontalmente. O recurso é análogo às produções bíblicas hollywoodianas, que até pouco
tempo faziam o mesmo com Jesus Cristo. Em relação a presidentes e realeza, porém, os
anglo-saxões nunca hesitaram em expor as mais variadas facetas e personalidades: na
casa imperial japonesa, isto não ocorre.
Recorde-se Roland Barthes, no seu belo ensaio “Império dos Signos”, ao
constatar surpreso que o Palácio Imperial em Tóquio era um “ponto cego” na cidade,
inacessível à visão dos súditos. Foi preciso um realizador russo, Alexander Sokurov, para
Hiroíto finalmente encontrar seu espaço dramático, no prodigioso “The Sun”, de 2005.
Naruse Mikio
Perguntaram uma vez a Kurosawa Akira o que ele achava do cinema de Naruse,
e a resposta, metafórica como recomenda a boa tradição japonesa, foi certeira: “um rio
profundo com uma superfície plácida, dissimulando nas suas profundezas as correntes
furiosas”. Na superfície do rio, os personagens caminham, falam e interagem, de modo
fluido e natural, fazendo com que o tempo passe como se fosse um curso d’água, úmido
e incessante, calmo e previsível. No fundo do rio, no seu leito, os desejos e as emoções
se chocam, se completam ou se anulam, em movimentos frenéticos e imperceptíveis,
mas intensos e por vezes violentos. Do contraponto dessas duas vertentes nasce a
cinematografia narusiana.
Produtividade
Naruse Mikio demorou mais do que os seus celebrados conterrâneos –
Kurosawa, Mizoguchi e Ozu - para tornar-se apreciado no Ocidente. Sua extensa obra é
testemunha das vicissitudes experimentadas pelo Japão ao longo do século 20, sendo
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por isso mesmo heterogênea. Sua vitalidade, uma verdadeira compulsão de filmar, é
impressionante: foram 88 filmes em 37 anos de carreira. O talento e a rapidez com que
realizava seus filmes garantiu a continuidade da produção, que atingiu o ápice, a
exemplo dos companheiros de geração, na década de 50.
A modernização da sociedade japonesa, com foco nos personagens femininos,
foi seu tema predileto. Naruse refinou seu olhar a tal ponto que seus filmes assimilaram
dois movimentos aparentemente contraditórios no Japão moderno: o ímpeto
desenvolvimentista, por um lado, e o mal-estar do afastamento das tradições, por outro,
produzindo uma síntese histórica especial.
Durante a ocupação, em pouco menos de sete anos, Naruse dirigiu 13 longasmetragens. Catherine Russell, autora de um extenso e completo estudo sobre a obra do
diretor - “The cinema of Naruse Mikio: women and Japanese modernity” -, identifica
quatro conjuntos temáticos nessa produção. O primeiro deles, “assuntos políticos”,
refere-se a dois filmes realizados em 1946, “The Descendants of Taro Urashima” e
“Both You and I”, ambas comédias com pano de fundo dos novos tempos democráticos,
tal como preconizavam as diretrizes do SCAP. Em seguida, duas produções sobre
“educação sexual”, um longa, “Spring Awakens”, de 1947, e um curta (”Even Parting is
enjoyable”), incluído em um filme de episódios no mesmo ano.
O terceiro grupo consiste em quatro produções lançados em 1950, que Russell
chama de “etnografias sentimentais” da sociedade japonesa, onde se destacam “The
Angry Street” e “White Beast”. O quarto grupo, de 1951, relaciona quatro longas
baseados em obras literárias, como “Ginza Cosmetics”, e a primeira de suas obrasprimas do pós-guerra, “Vida de casado” (restaria uma produção de 1949, “Delinquent
Girl”, do qual não existem cópias disponíveis).
O Grito
Um ritmo de tirar o fôlego, sem dúvida. Assinada a rendição, Naruse não
titubeou, realizando na sequência dois longas leves e superficiais, ingênuos e bem
humorados, mas com recados políticos certeiros, como queriam os norte-americanos.
“The Descendants of Taro Urashima” narra a ascensão política de um ex-combatente
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que perdeu tudo na guerra e recusa-se a mergulhar no pessimismo. Enche os pulmões
e grita pelas ruas e parques, atraindo hordas de simpatizantes por esse desabafo
onomatopeico, inclusive uma jovem jornalista, vivida pela atriz favorita de Naruse,
Takamine Hideko. Igualmente atraídos estão representantes do “zaibatsu”, os grandes
conglomerados econômicos que lucraram com a guerra e agora procuravam a qualquer
preço refazer a imagem. O objetivo é transformar Urashima em um garoto propaganda
do seu partido político.
O diretor seguiu à risca a recomendação do SCAP feita em 1945, que por essa
época realmente planejava implodir esses grupos, influentes há séculos, consolidados
na era Meiji e instrumentais na construção do poderio bélico japonês. Sugimura Haruko,
outra formidável atriz, exerce a pedagogia democrática no seu papel de professora, e os
lobistas do “zaibatsu” são desmascarados.
Os conglomerados e a cosmética
O projeto “antitruste” dos norte-americanos foi paulatinamente abandonado na
medida em que os instintos conservadores do general MacArthur prevaleceram. A
Guerra Fria se aprofundava e a necessidade de apoio logístico e financeiro japonês,
sobretudo dos “zaibatsu”, era fundamental. Logo em seguida, ainda em 1946, Naruse
dirige “Both you and I”, comédia com dupla de atores populares do estilo “manzai”. A
tradição “manzai” no Japão contrapões sempre dois cômicos, um “certinho” e o outro
“desajeitado”, às voltas com situações de duplo sentido, desentendimentos burlescos e
gags verbais. No filme, a dupla é obrigada a divertir diariamente o patrão e seus
convidados, integrantes dos “zaibatsu” favorecidos durante a guerra. Mais uma vez
prevalece a orientação do SCAP e os princípios democráticos, consignados nos direitos
individuais dos assalariados, são reafirmados. Na sequência final os funcionários se
revoltam, liderados pela dupla “manzai”, e todas as verdades são ditas ao patrão.
O enredo sugere analogias com a situação de alguns executivos dos estúdios de
cinema, também beneficiados no período das hostilidades. Entre 1946 e 47 uma
comissão de vários segmentos da indústria cinematográfica elaborou, a pedido das
forças de ocupação, uma lista de 31 indivíduos acusados de “incitação à guerra” por
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meio de atividades ligadas ao cinema. A partir da guerra da Coreia, em junho de 1950, a
maioria foi reintegrada.
Quanto aos “zaibatsu”, logo desapareceriam as críticas, por determinação do
censor norte-americano. Mais tarde, foram criados os “keiretsu”, que na prática eram
os “zaibatsu” renomeados e impregnados de técnicas de administração dos EUA.
Naruse Mikio enveredou por outras searas igualmente caras às diretrizes do
SCAP, educação sexual e emancipação da mulher. “Spring awakens”, de 1947, é um
exercício quase didático sobre sexualidade entre adolescentes – e também o primeiro
beijo filmado pelo diretor.
Para romper com o patriarcalismo da era feudal, seria necessário emancipar as
mulheres (objeto da nova Constituição, promulgada em maio de 1947) e introduzir
novos parâmetros de comportamento que promovessem igualdade dos sexos. Nessa
linha foi feito, em 1950, “Ginza cosmetics”, filme notável. Tanaka Kinuyo, a atriz de
Mizoguchi, faz o papel de “hostess” de um pequeno bar em Ginza, centro do Tóquio,
cheio de lojas de departamentos e boemia. Seu temperamento é generoso: a narrativa
é um simples desdobrar do seu cotidiano, amargo, mas gratificante. Sua autoconfiança
domina o entorno. Um “plot” semelhante seria desenvolvido pelo autor em “Quando a
mulher sobe a escada”, de 1960.
Melodrama refinado
“Vida de casado”, também de 1950, revela um Naruse plenamente consciente
dos recursos do melodrama, entendido como expressão histórica das negociações
afetivo-emocionais da classe média, incluindo repressões à sexualidade e respectivas
sublimações. A definição é sumária, mas útil para situar o enfoque do diretor, que
naturalmente procurava corresponder aos anseios da plateia. De moto próprio e
auxiliado pelas diretrizes do SCAP, elegeu o ponto de vista feminino como dominante
em a “Vida de casado”. Opção mais do que feliz e acertada, pois contou com Hara
Setsuko, a atriz de Ozu, no papel principal de esposa crescentemente insatisfeita com o
casamento.
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Junto com Uehara Ken, outro excelente ator, Hara constrói um mundo um torno
de si, onde eventuais excessos – tempestades, risos histéricos ou breves sobressaltos na
trilha musical – parecem prevenir e impedir a satisfação feminina. Essa descrição da
economia libidinal da personagem, sugerida por Catherine Russell a partir de um
comentário de Laura Mulvey sobre Douglas Sirk, ajusta-se como uma luva ao universo
ficcional de “Vida de casado”: suave e áspera descrição das mazelas de um jovem casal
em uma vizinhança mediana de Osaka.
A temática feminina sempre esteve em evidência no cinema de Naruse. A
exemplo de Ozu, Mizoguchi e outros realizadores experientes, a ocupação proporcionou
novos estímulos ao diretor, que deslanchou definitivamente na década de 50.
Shimizu Hiroshi, Kinoshita Keisuke
Com uma pequna diferença de idade – Shimizu nasceu em 1903, Kinoshita em
1912 – esses dois diretores realizaram, no pós-guerra, dois filmes fabulosos, “Children
of the Beehive”, de 1948, dirigido por Shimizu, e “Morning for the Osone Family”, de
Kinoshita, em 1946. Malgrado os limites e restrições impostos pelos ocupantes, ambos
lograram veicular, cada um à sua maneira, duas histórias reveladoras das fraturas dos
desastres da guerra, uma espécie de retorno do trauma histórico recalcado dos anos
recentes.
Muitos creem que Shimizu ficou eclipsado pelo contemporâneo Ozu. Talvez a
afirmação seja mais válida para a década de 50, quando Ozu chegou a um domínio
impressionante da linguagem, e Shimizu não acompanhou. Nas décadas anteriores,
porém, a produção de ambos se equiparava. “Children of the Beehive” traz a marca
indelével do diretor. Um grupo de crianças órfãs vagueia pelo Japão detonado dos
ataques aéreos da guerra, até encontrar um soldado que as guia por entre os
escombros. Não se trata de moralismo ou pieguice: apenas crianças pragmáticas que
lutam para sobreviver, sem vilões ou heróis. Um dos locais visitados nesse “road movie”,
um dos estilos preferidos de Shimizu, é Hiroshima pós-bomba nuclear. Não há
discussões ou alusões à tragédia. Um personagem feminino se junta à errância dos
demais, compondo o painel.
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As crianças, órfãs também na vida real, foram reunidas por Shimizu, que montou
uma fundação de apoio de menores vítimas do conflito. Em 1952, realiza “Children of
the great Buddah”, também com órfãos da guerra, desta feita atuando como guias dos
belos templos de Nara, capital do Japão entre 710 e 794, época em que os japoneses
absorveram muito da cultura chinesa, da escrita ao budismo.
Silent night
Kinoshita Keisuke foi outro prolífico diretor, com 51 filmes em 45 anos. O novo
contexto político da ocupação favoreceu a esse autor inquieto, que escrevia seus
próprios roteiros, em geral sem parceiros. Trazer à tona contradições e disparates de
uma sociedade em transição, desde que ajustados ao programa civilizatório das forças
ocupantes, era para ele um estímulo a mais.
Em 1946 dirige “Morning for the Osone Family”, uma impiedosa revisão da
ideologia militarista ambientada durante a guerra, vista através de uma família liberal e
culturalmente aberta ao exterior. O filho mais velho é encarcerado por oposição ao
nacionalismo; o segundo, obrigado a alistar-se. A filha é impedida de casar-se com o
filho de um industrial, pois a família era considerada “subversiva”; e o caçula cai sob o
domínio do tio, militar ultranacionalista que acreditava, até o fim do conflito, no triunfo
nipônico. O contraponto é a mãe liberal e viúva, que não consegue opor-se ao cunhado.
Encerrada a guerra em 1945 e confrontado com sua hipocrisia, o militar friamente alega
ter apenas “seguido ordens”. “Morning for the Osone Family” abre na noite de Natal,
com a família Osone cantando “Silent Night”, a tradicional canção do cristianismo
ocidental.
Encerrada a ocupação dos EUA, em 1952, a censura passaria definitivamente
para a “Eiren”, acrônimo pelo qual é conhecida a entidade criada pela indústria
cinematográfica local. Já em 1949 a “Eiren” havia copiado o modelo da “Motion Pictures
Association of America” de autorregulação, que classificava os filmes de acordo com as
faixas etárias. Uma nova era se iniciava: como disse Donald Richie, finalmente os
japoneses poderiam falar de si mesmos.
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Capítulo 3
Anos 50 e além: os Clássicos
Os dados da “Eiren”, a associação da indústria cinematográfica no Japão, são
retumbantes: entre 1955 e 60, foram vendidas anualmente cerca de 1 bilhão e trinta
milhões de entradas de cinema. Na grande maioria das vezes, esse filme era japonês –
72 % do mercado a cada ano, em média, era ocupado pelo produto local. As estatísticas
começaram a ser feitas de forma sistemática a partir de 1955, e são, como de hábito no
país-arquipélago, meticulosamente precisas. Em 1958, recorde absoluto: foram
vendidas 1 bilhão, 127 milhões e 452 mil entradas, em 7.067 salas de cinema. Foram
lançados 673 filmes, dos quais 504 japoneses.
Os números impressionam. O cinema dava muito dinheiro. Os grandes estúdios
- Toho, Daiei, Shochiku, Nikkatsu, e Toei – beneficiavam-se ainda da verticalização no
setor, em que controlavam produção, distribuição e exibição. Com isso era possível
manter sob contrato diretores, atores e técnicos. Malgrado os sobressaltos
experimentados no século 20, é desnecessário repetir, a indústria tinha resistido: nos
tempos duros, como no caso da Segunda Guerra Mundial, as fusões de estúdios
estimuladas pelo governo viabilizaram a sobrevivência. Mesmo no pós-guerra,
enquanto a economia lutava para reerguer-se, o setor faturava initerruptamente – era
talvez o entretenimento mais acessível à população, além de contar com estímulo das
forças norte-americanas, que viam nele um instrumento eficaz de difusão dos novos
valores. Só em 1953 foi feita a primeira transmissão de televisão, futuro concorrente
das salas, pela NHK.
O fim da ocupação abriu novos horizontes temáticos aos produtores. O mercado
expandiu-se. “Godzilla”, lançado em 1954, vendeu 9,6 milhões de entradas, a terceira
maior bilheteria daquele ano. O filme funcionou como uma espécie de somatização
coletiva do flagelo nuclear de poucos anos antes, em Hiroshima e Nagasaki. O “monstro”
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– despertado pelos testes da bomba de hidrogênio no Pacífico – materializou uma
ansiedade latente na sociedade, ao mesmo tempo que confirmou a aliança do Japão
com o Ocidente, sinalizando a capacidade do audiovisual japonês de entregar produtos
de alcance global.
A longevidade da marca “Godzilla”, 30 filmes em 60 anos, mais todos os
subprodutos decorrentes, o comprovam. A franquia representa, para a cultura pop, o
que “Rashmon” significa para o “cinema de arte” dos anos 50 (curiosamente Kurosawa
e Honda Ishiro, diretor de “Godzilla”, eram amigos próximos).
No século 21, com a fragmentação dos “outputs” audiovisuais, o cenário mudou.
Em 2014 foram vendidos pouco mais de 161 milhões de ingressos, em 3.364 salas, com
58,3 % de ocupação dos filmes japoneses. Esses números representam uma média
aproximada dos últimos quatorze anos. O número de filmes japoneses lançados era 282
no ano 2000; em 2014, alcançou 615. A maior parte dessa produção foi realizada em
conjunto com a televisão. Hoje a audiência é majoritariamente eletrônica. As salas de
cinema representam uma pequena fração do consumo audiovisual, uma espécie de
vitrine na cronologia desse consumo, pulverizado entre vários “outlets” (do game ao
celular, da “smart TV” ao tablet).
Strip-tease Inocente
Se algum consenso existe entre os (muitos) apreciadores do cinema japonês, é
que a década de 50 representa o que há de melhor na produção do arquipélago. Uma
série de razões embasam essa afirmação: em primeiro lugar, obviamente, é a vitalidade
mesma da atividade cinematográfica no país, desde os anos 20. O “drive” competitivo
da indústria e do pessoal envolvido – atores, técnicos, criação, produtores – é
impressionante.
Outro aspecto é que as experimentações, o “cinema de arte”, eram levadas a
cabo dentro do próprio sistema - de natureza puramente comercial – e em permanente
diálogo com a audiência. Uma indústria verticalizada como a japonesa, como era no
período clássico, tende a inibir produções independentes. A depuração que Ozu e
Mizoguchi chegaram em suas respectivas linguagens audiovisuais foi obtida nesse
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contexto. Mesmo após a decadência das empresas produtoras, nos anos 60, e a
fragmentação do público em função dos novos suportes de consumo, o diálogo
continua: destacados diretores do século 21, como Kurosawa Kiyoshi e Aoyama Shinji,
atuaram no “V-Cinema” dos anos 80 e 90 (filmes distribuídos diretamente em vídeo).
No Japão, a relação intensa com o mercado molda a mão do diretor.
Kinoshita Keisuke não foi exceção. Durante a década de 50, realizou filmes bem
sucedidos na bilheteria, e não hesitou em expandir seu vocabulário cinematográfico
quando era possível. Foi dele a primeira película colorida feita no Japão, “Carmen comes
home”, filmado em 1951 e lançado em 1952. A comédia musical traz Takamine Hideko,
um dos mais belos sorrisos do cinema, no papel de “stripper” em visita seu vilarejo natal.
O choque e a repulsa inicial dos seus conterrâneos só foram superados quando Carmen
– o próprio nome, ao evocar um mito feminino ocidental, já é uma ironia – resolve apoiar
uma escola local. Sublinhe-se que a profissão de “stripper”, tal como se apresenta no
imaginário masculino do século 20, foi incutida no cenário nipônico sobretudo durante
a ocupação norte-americana. Não que os japoneses fossem ingênuos ou avessos a
assuntos dessa ordem: simplesmente a fetichização do corpo feminino, da forma como
era praticada na indústria de entretenimento ocidental, não era difundida no Japão.
Puro Amor
Diante do sucesso da fita, Kinoshita não pensa duas vezes e lança a sequência no
mesmo ano, 1952: “Carmen’s innocent love”, também conhecido como “Carmen falls
in love” ou “Carmen pure love”. De volta a Tóquio, circulando entre Asakusa e Ginza,
distritos boêmios da capital, Carmen, a “stripper” ingênua – ela considera seu ofício uma
“arte” - apaixona-se por um artista “moderno”, que por sua vez está comprometido com
a filha de uma controversa mulher envolvida com política. Não sobra praticamente nada
dessa sátira devastadora: a pureza das jovens japonesas, os tradicionalistas, os recémconvertidos à religião de consumo americana, e mesmo o flagelo nuclear. Higashiyama
Chieko, a atriz que faz o papel da mãe idosa em “Era uma vez em Tóquio”, realizado em
1953 por Ozu, tem no filme de Kinoshita o papel de governanta obsessiva com a bomba
atômica (até a janela que não abre é culpa da bomba).
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No plano formal, o diretor optou pelo preto-e-branco e, na composição visual,
pelos famosos “ângulos holandeses”, pequena inclinação da câmera que gerava uma
imagem enviesada - recurso muito em voga à época pelo sucesso de “O Terceiro
Homem”, de Carol Reed, com atuação inesquecível de Orson Welles. No final da nova
aventura, Carmen se despede com a promessa de mais um episódio, afinal não
realizado.
Kinoshita trabalhou praticamente por toda a vida no estúdio Shochiku, a
exemplo de Ozu. Ao contrário deste, que construiu sua trajetória no cinema como um
constante aperfeiçoamento da mesma temática, Kinoshita foi mais flexível, alternando
estilos. Mesmo variando na forma, sua obra tem um traço comum: personagens que
perdem a inocência diante da dureza da vida, obrigados que são a encontrar saídas a
partir das próprias capacidades. Durante a ocupação, seus filmes muitas vezes adotavam
tom satírico. À medida em que ficava para trás esse período, contudo, sua produção
voltou-se para o drama.
Uma tragédia japonesa
Logo em 1953 Kinoshita lança “Uma tragédia japonesa”, filme que mescla vidas
amargas com trechos de cinejornais da época da guerra e do pós-guerra – uma
homenagem, voluntária ou não, ao documentário homônimo de Kamei Fumio
interditado pelos censores norte-americanos em 1946. A montagem é decididamente
experimental: o material de arquivo de cinejornais, produzido para um consumo “de
atualidades”, como se dizia, adquire uma dimensão especial, ultrapassando o status de
mero registro jornalístico. Greves, passeatas, bombardeios, sofrimentos, euforias –
todas essas imagens que supostamente carregam uma autenticidade, imagens que
consideramos “reais”, passam a ter, pela insistência com que são intercaladas na
narrativa ficcional, uma aura de inconsciente coletivo. Um inconsciente de dupla face –
guerra e ocupação – que foi recalcado e que retorna no fluxo da ficção.
Duas tramas familiares se alternam na história. A principal é centralizada por
uma mãe viúva, obrigada a viver longe dos filhos para sustentá-los, e trabalhando como
“hostess” de uma casa noturna. Algo como uma gueixa dos tempos modernos, sem os
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rigores da tradição e a um passo da prostituição. Sua função era a de anfitriã de homens
de negócio e “salarymen”, um ambiente comum no Japão. Os clientes pagam por uma
companhia, alguém que os entretenha e os divirta, sem necessariamente levar ao sexo.
Os filhos não aceitam e se envergonham, apesar da afeição exagerada da mãe. A
filha, traumatizada por ter sido estuprada pelo primo, termina fugindo com seu
professor de inglês, ele mesmo vivendo um fim de casamento conturbado (trama
secundária). O filho torna-se médico e se casa com a filha do dono da clínica onde
trabalha, afastando-se da mãe. Além dos cinejornais, as imagens traumáticas pessoais,
da mãe e dos filhos, também insistem em retornar, repetidas na montagem de
Kinoshita. O fim é uma não-saída.
No end story
A pesquisadora Catherine Russell dedicou-se a estudar as premissas do cinema
clássico japonês dos anos 50. Para ela, uma das principais distinções entre a produção
do arquipélago e a hollywoodiana é o fim em aberto da maioria dos filmes japoneses,
assertiva válida também para o período clássico. Nas produções norte-americanas a
necessidade de um fim fechado, seja implicando um juízo moralista, seja no “happy
ending” tranquilizador, cristalizou-se como dispositivo de linguagem a partir dos
fundamentos conservadores da sociedade norte-americana, assimiladas pela indústria
cultural. Os japoneses, que prezam o “mono no aware” como ideal estético – a doce
melancolia, a empatia para com as coisas efêmeras, a consciência da inevitabilidade da
morte – tendem a deixar espaço para divagações do espectador.
Claro, em ambas as cinematografias existem exceções à regra. Russell lembra
que durante a ocupação os censores americanos insistiam no “final fechado”,
influenciando alguns realizadores. Em geral, contudo, este foi um traço diferenciador do
“classicismo modernista” desenvolvido pela cinematografia no arquipélago.
24 eyes
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O filme mais popular de Kinoshita, no Japão e no mercado internacional, é
certamente “Sublime dedicação”, de 1955 – também conhecido pelo título em inglês
“24 eyes”. Como definiu Donald Richie, é uma mistura de “crítica e compaixão”.
Takamine Hideko (a Carmen “stripper”) desta feita é uma professora na ilha de
Shodoshima, a segunda maior no Mar Interior japonês, um corredor marítimo na parte
ocidental do país, abrigando cerca de três mil ilhas.
A história começa em 1928 com a chegada da professora à escola, em um vilarejo
rural, e acompanha a escalada do militarismo em meio às vivências de seus doze alunos,
meninos e meninas. As turbulências do período interagem com a pequena comunidade,
mediadas pela visão pacifista da personagem de Takamine. Em choque com a ideologia
prevalecente no Estado japonês nos anos 30, ela abandona a escola. Chega a guerra e a
professora perde o marido, além de alguns alunos: ultrapassado o conflito e combalida
como o restante da população, retoma o cargo de professora. Um filme anti-guerra que
se aproxima do estilo “shimpa”, carregado de tonalidades dramáticas que encontram,
de alguma maneira, a virtude na adversidade. Uma exorcização dolorosa da aventura
guerreira, que termina em aberto, deixando no espectador uma sensação de
transitoriedade fugaz e melancólica.
De Kinoshita Keisuke, a talentosa Takamine Hideko também atuaria em “O
Inesquecível”, de 1961, história que igualmente atravessa gerações: violentada pelo
filho do dono das terras onde sua família trabalhava, é obrigada a casar-se com ele e a
viver um inferno conjugal, superando ao final a crueldade do marido e tornando-se ela
mesma fria e implacável. Em “O Murmúrio do Rio Fuefuki”, de 1960, testemunhamos a
trajetória de cinco gerações de uma família de agricultores pobres. E no último filme
relevante do diretor, “Flor e Incenso”, de 1964, assistimos à tumultuada relação entre
mãe e filha, ambas prostitutas, do começo do século (guerra russo-japonesa) até os anos
60.
Kinoshita cada vez mais ampliava o escopo do tempo em suas narrativas,
preocupação que Imamura Shoei, diretor da “nouvelle vague” japonesa, também
perseguiria. Kinoshita e Imamura têm em comum, embora com leituras distintas, a
adaptação para as telas de um mesmo livro, “A Balada de Narayama”, publicado em
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1956. O primeiro, de Kinoshita, estilizado como uma peça “kabuki”, realizado em 1958:
e o segundo, de Imamura, filmado com um olhar mais realista, em 1983.
A Rua da Vergonha
Em 1950, respondendo a uma entrevista radiofônica sobre a razão de serem a
maioria de seus filmes sobre mulheres, Mizoguchi Kenji, lacônico (e irônico), respondeu:
foi uma decisão puramente comercial. No início de sua carreira, Mizoguchi tinha como
“irmão mais velho” Murata Minoru, um dos grandes diretores do cinema japonês.
Raciocinaram os produtores: Murata fazia filmes sobre homens, logo ele faria filmes
sobre mulheres. “Não era essa a minha intenção”, concluiu o diretor: simplesmente
seguiu ordens. A citação (curta) está logo no começo do documentário de 1975 que
Shindo Kaneto, outro grande diretor e assistente de Mizoguchi, fez sobre seu mentor.
Nos 150 minutos de filme, é o único momento em que se ouve a voz de Mizoguchi.
“A Rua da Vergonha”, de 1956, foi a última realização de Mizoguchi. A história,
baseado na obra de Shibaki Yoshiko, se passa no bordel “Dreamland”, situado próximo
a Yoshiwara, a área urbana segregada de prostituição desde o tempo dos xoguns
Tokugawa. Os altos e baixos de seis prostitutas convivem, no tempo diegético do filme,
com a expectativa da aprovação de legislação banindo a prostituição (a lei foi sancionada
pouco depois da conclusão das filmagens). “A Rua da Vergonha” é um painel de
vitimização das mulheres, que se sacrificam por homens incapazes e fracos, maridos,
pais ou filhos. Prostradas no chão (imagem favorita de Mizoguchi, de acordo com
comentário um tanto perverso de Ian Buruma), elas assimilam o golpe, extraindo forças
não se sabe de onde para encarar o fardo da vida (e dos homens).
Pouco depois de finalizar o filme, Mizoguchi é diagnosticado com leucemia, vindo
a morrer com 58 anos, em 1956. Sua viúva, internada com distúrbios mentais desde
1941, faleceu em 1975. Rumores sugerem que Mizoguchi sentia-se culpado por ter
transmitido sífilis à esposa, causando-lhe a loucura.
Culpa e desejo
59
Dizer que Mizoguchi era dono de uma personalidade complexa é simplista e
redutor. Kurosawa, mesmo elogiando o colega como o “verdadeiro criador” do cinema
japonês, assinala sua “obsessão com a própria imagem”. Ian Buruma, autor do brilhante
ensaio “A Japanese mirror: heroes and villains of Japanese culture”, afirma que o
diretor tinha uma “veia religiosa profunda”, carregando sempre uma imagem do monge
budista Nichiren nos festivais internacionais que comparecia. Suas personagens, como
em “A Rua da Vergonha”, possuem uma sensibilidade trágica inspirada na resignação
budista diante do sofrimento inevitável da vida, gerador de um alento melancólico
compatível com a idealização exaltada da beleza. Não obstante, a atitude pessoal de
Mizoguchi em relação às mulheres teria sido ambivalente e arbitrária, oscilando entre
culpa e desejo de humilhá-las. Outro dos rumores que circulam sobre ele dão conta
sobre sua irrupção repentina em uma clínica de doenças venéreas, suplicando perdão
às prostitutas e repetindo que “tudo aquilo” era sua culpa. O evento teria sido pouco
tempo antes de rodar “Mulheres da noite”, em 1948.
Sato Tadao, sublinhe-se, menciona a visita à clínica como parte de pesquisa de
campo para a realização do filme. Álcool e prostitutas sem dúvida tiveram uma presença
importante na vida do realizador. Obviamente isso não explica seu extraordinário
talento para organizar a fluidez da linguagem cinematográfica. Mas é útil para a
compreensão desse universo, à primeira vista decadente e irrecuperável, mas carregado
de uma visão purista e absoluta de justiça.
Oharu
O belíssimo “A Vida de Oharu”, de 1952, rodado em condições difíceis, em um
galpão sem isolamento acústico, sedimentou a confiança do diretor em lidar com uma
tal contradição: ser capaz de produzir uma narrativa que transcendesse o plano
imediato da prostituição como danação. Com este filme ganhou seu primeiro prêmio
importante na cena internacional, melhor diretor no Festival de Veneza de 1952.
A fonte inspiradora de “A Vida de Oharu” não poderia ter sido melhor: o
inacreditável escritor do século 16, Ihara Saikaku, conhecido pelo primeiro nome,
Saikaku, cujos personagens, homens e mulheres, atravessam situações improváveis,
60
sofrimentos incontáveis, e provações fulminantes – mas retornam com toda a energia
para a vida erótica, para o “mundo flutuante”.
O fiel roteirista de Mizoguchi, Yoda Yoshikata, condensou trechos de “A vida de
uma mulher amorosa”, de Saikaku, composta de 24 histórias curtas, narradas em
primeira pessoa, onde a heroína (no texto, anônima) experimenta diferentes profissões
e retorna sempre à prostituição. Yoda, que penava refazendo inúmeras vezes os roteiros
a pedido do diretor, mudou o tratamento leve e brejeiro do original, agregando uma
tonalidade sombria que traz maior realismo ao “mundo flutuante”. Mifune Toshiro faz
o primeiro amor proibido, um jovem samurai que ousa desejar uma ajudante da cozinha
imperial e é executado. Tanaka Kinuyo vive magistralmente as aventuras de Oharu,
capaz de expressar com um “sorriso malicioso a dignidade de uma prostituta
desprezada”, nas palavras de Sato Tadao.
Amor Platônico
Tanaka havia se tornado nessa altura um obscuro objeto de desejo de Mizoguchi.
Depois de estrelar quinze de seus filmes, era público e notório o amor platônico a ela
dedicado pelo diretor. Ao que parece, jamais declarado, segundo depoimento da atriz,
que admitiu apenas um “casamento cinematográfico” entre os dois. Em 1954, ano de
intensa produtividade de Mizoguchi – “Intendente Sansho”, “A mulher infame” e “Os
amantes crucificados” – só não atuou no último.
Também é público e notório que Mizoguchi negou uma recomendação ao
“Directors Guild of Japan” para que a Nikkatsu contratasse Tanaka como diretora – ela
conseguiu por outros caminhos, vindo a ser a segunda diretora japonesa a realizar
longas-metragens, seis ao todo, com roteiros de Ozu e Kinoshita, entre outros. O
perspicaz crítico inglês Tony Rayns insinua que a recusa da recomendação deixou Tanaka
magoada e Mizoguchi amargo e indiferente, estado que deixou transparecer enquanto
dirigia “Os amantes crucificados”, conforme relato de Yoda Yoshikata.
Em função dessa circunstância (e outras menos relevantes), criou-se uma aura
algo depreciativa em torno desse filme, em particular no Ocidente. Seja o que for, não
resiste a um exame mais atento: trata-se, sem dúvida, de um dos produtos mais sutis e
61
bem realizados de Mizoguchi, cujo ponto focal, aliás, parte de um amor platônico.
Inspirado nos textos para teatro de bonecos de Chikamatsu Monzaemon, ao qual foram
adicionados temperos picantes de seu contemporâneo Saikaku, “Os amantes
crucificados” – admiravelmente fotografado e cenografado – relata as desventuras do
talentoso e desafortunado Mohei, apaixonado platonicamente pela esposa do patrão,
um avaro e melífluo editor de calendários dos senhores feudais.
Dupla execução
Chikamatsu é conhecido pelos duplos suicídios que suas histórias, doces e
trágicas, podem acarretar. Mohei, por sua vez, é personificado pelo extraordinário ator
Hasegawa Kazuo, proveniente do teatro kabuki e bastante popular à época junto ao
público adolescente do cinema “matiné”.
As tensões entre ator e diretor no set de filmagens afloraram, contribuindo
paradoxalmente para a qualidade da representação. Na virada da história, após a
confissão amorosa de Mohei à patroa, em uma canoa, Hasegawa, por imposição do
diretor, transforma seu personagem: de condescendente e submisso, torna-se um
corajoso e destemido herói. Um perfil que não era o seu habitual de ator “matiné”. A
cena, também por exigência de Mizoguchi, reproduz o visual etéreo das pinturas
chinesas da dinastia Song, séculos XII e XII. Na sequência, uma impressionante
aceleração em direção ao fim trágico, como sugere o título em português.
Talvez o estilo de interpretação de Hasegawa Kazuo, despido de contornos viris
mais pronunciados, tenha intrigado espectadores ocidentais. As reviravoltas e surpresas
da narrativa, típicas da literatura setecentista japonesa, também têm sua parte. A
genialidade de Mizoguchi em atualizar tais enredos para o cinema, contudo, é
assombrosa. O auge dessa vertente é “Contos da lua vaga”, realizado em 1953, um dos
mais admirados filmes da história do cinema.
Assalariados e fantasmas Nô
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O aspecto “exótico” da cultura japonesa teve, naturalmente, um impacto nada
desprezível na adesão da audiência ocidental ao cinema japonês, sobretudo em relação
a Mizoguchi e Kurosawa, os grandes vencedores de Festivais. Os estúdios sabiam disso:
o mercado internacional nos anos 50 tinha se tornado estratégico. Não teria sido
possível a Mizoguchi rodar três produções caras e complexas em 1954 sem uma
estrutura sólida de estúdio por trás, incluindo capacidade financeira e atores e técnicos
sob contrato.
Para os dramas classe média, a história era diferente. Donald Richie conta como
foi difícil convencer a Shochiku liberar os filmes de Ozu Yasujiro para o Festival de Berlim,
em 1963 – a primeira retrospectiva significativa do autor fora do Japão – justamente
porque os responsáveis pela exportação daquele estúdio achavam que “os ocidentais só
se interessam por samurais e gueixas”. Os personagens de Ozu são, em sua grande
maioria, donas de casa, maridos assalariados de terno e gravata e filhas à espera do
casamento. Nada a ver com o gênero “jidaigeki”.
Além da dupla Mizoguchi-Kurosawa, Kinugasa Teinosuke (o “onnagata” que
tornou-se diretor e realizou “Uma página de loucura”) ganhou a Palma de Ouro do
Festival de Cannes em 1954, com “Portal do Inferno”, ápice do “jidaigeki”. Não
obstante, ele mesmo reconheceria, em entrevista a Ian Buruma, que o prêmio em
Cannes “era ridículo”, fruto do “apelo exótico” do cinema japonês. Representado em
estilo kabuki adaptado ao cinema de grande produção, com um colorido vibrante e
ostensivo, “Portal do Inferno” tem Hasegawa Kezuo como samurai no papel principal
(Kinugasa e Hasegawa eram amigos próximos).
A despeito de seus méritos, o longa de Kinugasa estava muito aquém da
densidade dramática de “Contos da lua vaga”, também conhecido pelo nome original
“Ugetsu” – e mais ainda da incrível perícia de Mizoguchi e seu roteirista Yoda em reciclar
clássicos da literatura, desta feita de Ueda Akinari, um erudito do século 16 que agregou
fantasmas em suas histórias. E mais: as tramas de Ueda foram entrelaçadas com
elementos de um conto do arguto escritor francês Guy de Maupassant, “Décoré !”. Uma
verdadeira “antropofagia cultural” de fontes literárias.
63
O “rolo” (emaki) cinematográfico
O interesse de Mizoguchi em relação ao passado não visava, de nenhuma
maneira, encontrar um “modelo perdido de serenidade”, como assinala o crítico Philip
Lopate. Seria exatamente o oposto: em uma nota ao roteirista de “Contos da lua vaga”,
insiste que “o sentimento dos tempos de guerra deve estar aparente nas atitudes de
todos os personagens”, sobretudo o “sofrimento físico e moral” das pessoas comuns.
Dois casais conduzem a história, passada no século 16, em meio à guerra entre
clãs, a “guerra civil” dos tempos feudais: um oleiro (magnificamente interpretado por
Mori Masayuki) e sua esposa (Tanaka Kinuyo, sempre excelente), e seu vizinho
candidato a samurai, com perfil psicológico inspirado em Maupassant, e sua mulher. Os
incidentes mirabolantes incluem uma fantástica sequência de fantasmas no estilo do
teatro Nô, saques e estupros cruéis, seguidos de um arremedo igualmente
fantasmagórico. Mizoguchi, revelou seu fotógrafo, pediu um tratamento visual análogo
a um “emaki” cinematográfico, ou seja, um “rolo” pictórico com indicações textuais,
desenrolando situações para leitura horizontal.
Não haveria melhor descrição. Segundo o fotógrafo, Miyagawa Kazuo, cerca de
70 % de “Contos da lua vaga” foi filmado com grua, vertical e horizontal: um constante
deslizar do registro fotográfico, às vezes imperceptível, mas sempre em movimento,
entre o mundo fantasmático e o mundo real, entre a vida e a morte. É o melhor
Mizoguchi. Sua técnica narrativa, a famosa “uma cena-uma tomada”, atinge aqui o
apogeu. Closes não são necessários, o espectador tenderá a fixar sua atenção levado
pela flutuação da imagem, cuja composição privilegia a movimentação dos atores no
centro do plano, a tensão entre eles e o restante do cenário. A célebre sequência final
do retorno do oleiro à sua casa, à procura da esposa, perfaz uma volta de 360 graus da
choupana, um verdadeiro “emaki” cinematográfico. Momento celebratório do cinema.
O coração das coisas
Mesmo ancorado no passado, o filme de Mizoguchi sintonizava com a ansiedade
recente experimentada pela população de seu país – a longa e penosa guerra. O trauma
violento do conflito passou a ser objeto, em muitos dos filmes japoneses pós-liberação,
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de uma verdadeira obsessão. Os realizadores promoviam o retorno do recalcado,
explícita ou implicitamente, cicatrizando a ferida psíquica da população. Ichikawa Kon,
autor de uma extensa e eclética obra, é tido por Donald Richie como o “melhor exemplo
de diretor socialmente consciente disposto a expor problemas”. Seu “Fogo na planície”,
de 1959, revelou sem rodeios o desespero dos soldados japoneses no final da guerra
nas Filipinas, premidos pela fome e levados a situações-limite, como canibalismo.
Dirigindo longas-metragens a partir de 1946, Ichikawa transitou por vários
estilos, de comédias satíricas a rebeldia juvenil. Com “Kokoro”, de 1955 – “Heart of
things”, na tradução sugerida por Tony Rayns – dá um salto qualitativo: baseado na
prestigiada obra homônima de Soseki Natsume, publicada em 1914, o filme exibe um
retrato pessimista da condição humana condizente com o clima existencialista no pósguerra dos anos 40 e 50. Uma tragédia da era Meiji que remete, por uma intermitente
linha do tempo, à voracidade abissal da história japonesa do tumultuado século 20, na
era Showa.
A novela de Soseki ocupa um lugar quase ritualístico na literatura japonesa (a
efígie do escritor estava na série de notas de mil ienes impressa em 1984). Utilizada em
manuais escolares, é uma referência para o período de transição em que valores
ocidentais e modernizantes foram introduzidos, abrupta e irremediavelmente, na
sociedade nipônica. Uma referência de conotação identitária para os japoneses, com
todas as imprecisões que a noção de identidade possa ter.
A história descreve a relação entre um devotado aluno e seu mestre, um sensei
atormentado que termina se suicidando. Entre as razões, duas se sobressaem: uma
culpa pelo suicídio, durante a juventude, de seu melhor amigo; e a aderência leal (e
patológica) ao suicídio do General Nogi, destacado comandante militar da era Meiji, que
se matou um dia após a morte do Imperador Meiji, em 1912. Às duas mortes de cunho
“paterno” – o Imperador, “pai da nação”, e o General, que era o tutor do futuro
Imperador Hiroíto – adicione-se, no livro e no filme, a morte (de causa natural) do pai
do estudante-pupilo.
Ichikawa Kon criou uma atmosfera cinematográfica à altura da intensidade do
enredo. Trata-se de um filme onde as performances dos atores preenchem a mise-en65
scèn. Closes, muitas vezes diretamente para a câmera, sustentam a inquietação
subjacente dos personagens, amplificando a expressão psicológica de medos e anseios.
Ademais dos papéis masculinos, releve-se também a esposa agoniada do intelectual,
vivida pela incrível Aratama Michiyo.
General Nogi
No filme desenvolve-se uma atração homossexual entre o sensei e o estudante,
ausente no livro. A tragédia pessoal do professor era contemporânea à sociedade
patriarcal moldada na era Meiji, infundida de preceitos morais confucionistas e códigos
religiosos xintoístas. O General Nogi já havia anunciado seu suicídio pelos menos duas
vezes: por ter perdido a bandeira do Imperador durante uma rebelião de samurais
descontentes, em 1877; e por conta das inúmeras baixas, inclusive de um filho, pelas
quais se atribuía a culpa, na tomada de Port Arthur, durante a guerra russo-japonesa em
1904, quando exercia cargo de comando. Nas duas ocasiões, solicitou ao Imperador
permissão para se matar, ambas negadas. Com a morte do líder-pai, concluiu o
“seppuku”, o ritual do suicídio, junto com a mulher, que também se suicidou.
Sua casa, uma frugal moradia de campanha militar estilo francês, tornou-se
ponto de peregrinação em Tóquio. No local, instalou-se um templo xintoísta. Uma vez
por ano é possível entrar e constatar manchas de sangue intactas nas roupas do casal,
expostas como se nunca tivessem sido tocadas. No filme de Ichikawa, o sensei caminha
pelas ruas como um sonâmbulo determinado, segurando o jornal que anuncia a morte
de Nogi. Exibe-o à esposa, que se angustia. Pouco depois, na ausência da mulher,
suicida-se – o filme, entretanto, não mostra a cena.
“Kokoro”, à época, não obteve maiores repercussões, talvez em função da
notoriedade do livro e a ousadia de um diretor jovem (tinha 30 anos) em transpô-lo para
as telas. Hoje é um clássico.
A harpa da reconciliação
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Na próxima produção, “Não Deixarei os Mortos (A Harpa Birmana)”, de 1956,
logrou obter o reconhecimento de público e crítica, além de distribuição internacional.
Tornou-se um diretor “sério”. O mergulho místico nas planícies quentes e pedregosas
da Birmânia - hoje Myanmar - de um soldado que aprendeu a tocar harpa em plena
guerra era uma receita infalível para redimir os pecados do Japão. A guerra chega ao
final e o soldado-monge isola-se em uma itinerância redentora, ao melhor estilo do
imaginário budista. Os companheiros são repatriados, e ele, monge solitário, fica
zelando pelos “cadáveres japoneses”.
Com o tempo, surgiram críticas sobre o artificialismo das situações: um
destacamento militar onde o capitão é um dedicado maestro do coro vocal formado por
comportados soldados é algo, no mínimo, insólito. A principal ressalva é a invisibilidade
das vítimas locais da violenta repressão do exército japonês. Na década de 50, não
obstante, é indiscutível que o filme cumpriu a função reconciliadora com o passado a
que se propunha, sobretudo para os próprios japoneses.
O passado podia ser também fonte de conflitos. “Enjo – O templo do pavilhão
dourado”, dirigido por Ichikawa em 1958, foi inspirado em “O Pavilhão Dourado”, texto
do polêmico Mishima Yukio. A história narra a saga de um (iconoclasta) candidato a
sacerdote budista, gago e de pé chato.
O Pavilhão Dourado e o Pavilhão Prateado
Por alguma razão a cidade de Quioto, berço de inúmeros tesouros nacionais
japoneses, foi poupada de bombardeios mais severos durante a Segunda Grande
Guerra. A ideia de preservar um patrimônio cultural de alto valor simbólico sensibilizou
os norte-americanos. Os templos zen, entre eles os fulgurantes Pavilhão Dourado e
Pavilhão Prateado – construídos durante o xogunato Ashikaga, no século 16 –
atravessaram o conflito sob uma inevitável pressão, como era de se esperar, mas saíram
incólumes. Logo se tornariam polos de atração turística, começando por soldados e
oficiais do exército ocupante, tal como aparece em ‘Enjo – O templo do pavilhão
dourado”.
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Ichikawa, seguindo a trilha de Mishima, revela como as turbulências que
chegavam a Quioto internalizaram-se na mente perturbada do noviço budista,
transtornando a relação com o mundo à sua volta, em si restrita a poucos contatos e
cheia de vieses. Delírios persecutórios e um obtuso comportamento convivem entre a
rotina do templo e fragmentos da vida urbana da cidade histórica. Incendiar o sublime
pavilhão é mais que um parricídio, é matar a alma da nação.
A novela de Mishima foi inspirada em fatos reais, ocorridos em 1950, que
obviamente chocaram o Japão: o templo foi incendiado por um suposto
“desequilibrado”. Mishima, por sua vez, alcançou notoriedade mundial depois do seu
espetacular “seppuku”, cometido em 1970 em pleno QG do Exército, em Tóquio. Seu
livro é brilhante e inconclusivo, mas lido à luz de sua história pessoal, pode sugerir uma
sublimação literária de um gesto fanático, um gesto pela pureza perdida da tradição
japonesa, materializada no belíssimo templo.
Mas esta pode ser uma leitura precipitada. Ichikawa, de sua parte, disse não
acreditar em uma tal excepcionalidade do Pavilhão Dourado, pois “uma grande e bela
estrutura não é suficiente para assegurar a felicidade e o bem estar dos que estão à sua
volta”. Seu filme sintoniza com o grau zero da metafísica oriental, alheia aos bens
materiais (o templo, aliás, foi restaurado à perfeição, e voltou a receber visitantes em
1955). ‘Enjo – O templo do pavilhão dourado” é um trabalho excepcional.
Ichikawa Kon teria ainda uma longa carreira pela frente: dirigiu seu último filme
em 2006, com 90 anos (faleceu em 2008). Em 1965 fez o documentário sobre as
Olimpíadas de Tóquio, até hoje referência do tema. E, em 1963, uma das melhores
adaptações kabuki já feitas para o cinema, “A vingança do ator”, com Hasegawa Kazuo
perfeito como órfão vingativo e “onnogata” - papel que ele mesmo tinha representado,
na versão de 1935 do mesmo texto, dirigida por Kinugasa Teinosuke.
Salto econômico
Em retrospecto, o ano de 1955 trouxe momentos de virada importantes na
história econômica e política do país. O PLD, partido liberal democrático, resultado da
fusão de dois partidos conservadores, alcançou o poder onde se manteve com breves
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interrupções desde então. No plano econômico, beneficiando-se dos aportes norteamericanos durante a guerra do Coreia e com o pacto selado entre os conglomerados
de negócios e o novo governo, o Japão completou sua reintegração à comunidade
internacional com o acesso ao GATT (precursor da atual OMC, Organização Mundial do
Comércio).
Com um aditivo extra: os Estados Unidos, por razões geopolíticas motivadas pela
Guerra Fria, abriu seu mercado aos produtos japoneses, sem contrapartida imediata,
garantindo crescimento rápido e sustentável à economia do país. Em pouco tempo o
arquipélago se tornaria uma das potências do planeta.
Uchida Tomu
Uchida, realizador de primeira grandeza, retornou ao Japão em 1954, depois de
nove anos na China, inicialmente preso e em seguida prestando assistência técnica a
produções locais. Em 1943 tinha se lançado em uma produção na Manchúria, afinal não
finalizada. Começou a dirigir filmes nos anos 20 depois de atuar como ator, influenciado
pelo expressionismo alemão e filmes de gangster americanos. Na década de 30, evoluiu,
a exemplo de diversos colegas, para o comentário social de esquerda, os chamados
“filmes de tendência”. Isso não o impediu de realizar filmes na linha do militarismo
ascendente, inclusive uma premonitória e futurista fantasia de um ataque aéreo ao
Japão, em 1929, ano do “crash” econômico que abalou o mundo.
Muito pouco dessa produção sobreviveu. Um deles, “Police”, de 1933, é
considerado pelo crítico inglês Noel Burch, em seu instigante livro “To the Distant
Observer: Form and Meaning in the Japanese Cinema”, como um “pastiche perfeito” e
precursor dos filmes policiais hollywoodianos do pós-guerra. Em 1955, ano que seu país
engatava a ascensão econômica, Uchida realiza três filmes, o primeiro deles um
“jidaigeki” de peso, “A Lança ensanguentada”. Um retorno triunfal.
Apoiado por velhos amigos dos tempos do cinema antes da guerra – Ito Daisuke,
fecundo realizador de filmes de samurai, e Ozu Yasujiro – o diretor realizou uma suave
e inteligente incursão no gênero. Quem está no foco da história não é o samurai,
chegado à bebida e meio sonso: é o seu lanceiro leal e honesto, portador de uma
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crescente consciência de classe. Sua carreira cinematográfica foi relançada, com
sucesso.
A cidade que não dorme: Yoshiwara
Um dos melhores estudos antropológicos feitos em língua inglesa sobre o Japão
é o minucioso “The Nightless City: Or the History of the Yoshiwara Yukwaku”, escrito
por um inglês, J. E. De Becker, que chegou ao país em plena era Meiji e lá ficou. Graças
a Becker, que veio a ser um advogado de renome (tradutor do Código Civil japonês),
dispomos de um inventário completo de nomes, funções, cores, hierarquias, cheiros,
corpos, rostos, arquitetura e tudo mais que fosse possível registrar sobre o perímetro
licenciado para prostituição em Tóquio – o famoso Yoshiwara. Criado em 1617, no
começo da era Tokugawa, o “cordão sanitário” atravessou guerras e sublevações,
inspirou poetas e artistas, e serviu de espaço dramático para inúmeras peças kabuki e
buraku, além do cinema.
Fechada em 1957, a área abriga hoje comércio e residências, e também casas de
massagem conhecidas como “soap land”, ou simplesmente “sopu” (no estilo
“japanglish”), aparentemente operadas pela yakusa. Em 1960, Uchida realiza “Tragédia
em Yoshiwara”, adaptado, é claro, do kabuki.
Em a cores exuberantes, “Tragédia em Yoshiwara” segue as desventuras de um
bem sucedido mercador de tecidos, louco para casar mas recusado por todas as
donzelas, a despeito de sua fortuna e de seu caráter exemplar. A razão é uma mancha
de nascença em seu rosto, pequena mas suficiente para destacar-se na esfuziante paleta
de cores do filme, provocando repulsas convulsivas até mesmo nas cortesãs de
Yoshiwara. Roteirizado pelo colaborador de Mizoguchi, Yoda Yoshikata, a fita é um
primor de continuidade e leveza, encantando a audiência ao mesmo tempo em que o
herói se encanta por uma prostituta sem polimento, recém chegada do campo.
Leitores de J. E. Becker reconhecerão a textura dos quimonos e maquiagens
como signos idealizados de sedução, graças à excelência de cenografia e figurinos. Um
prazer visual, como preconiza a estética kabuki, que termina repentinamente em traição
e tragédia (também como no kabuki).
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Consciência culpada
“Soap land” foi um nome adotado em 1984, após um concurso nacional.
Anteriormente, de acordo com o prolífico escritor e jornalista Boyé Lafayette De Mente,
autor de dezenas de livros sobre o Japão, as casas de massagem eram conhecidas como
“turkish bath”, ou “toruko-buro” (em “japanglish”). O cônsul turco à época teria
protestado, e um historiador, Nusret Sancakl, liderou uma campanha pela mudança do
nome, finalmente adotado depois da consulta popular.
Uchida Tomu – o nome Tomu é uma corruptela do inglês “Tom”, escrita com
“kanjis” que significam “cuspir sonhos” – é normalmente associado ao “cinema de
gêneros”, característica dos diretores cuja habilidade de mise-en-scène permite circular
entre gêneros diferentes, como Anthony Mann ou John Ford. Malgrado as óbvias
incongruências, um filme como “The outsiders”, realizado por Uchida em 1958 sobre a
minoria Ainu, remete a esse tipo de comparação.
Os personagens de “Condenado pela consciência”, de 1965, transitam
inabaláveis entre a boa índole e a depravação moral. É talvez seu melhor filme.
Alternando entre o policial e psicológico, a história começa em Hokkaido, a grande ilha
ao norte do Japão, e anos mais tarde aterrissa em Tóquio, provocando uma reviravolta
inesperada. Descrito por Donald Richie como “realização do carma”, “Condenado pela
consciência” circula em um “loop” temporal entre a culpa do personagem e seu acerto
de contas (que pode ser o do próprio Japão) com o passado. Uchida também acertou
suas contas: completado o “carma”, expurgou o trauma. Um realizador incontornável.
Epifanias do cotidiano
“Shomingeki” é um tipo de cinema que lida com a classe média assalariada no
Japão, termo utilizado por críticos ocidentais (os japoneses preferem “shoshimin-eiga”).
Naruse Mikio e Ozu Yasujiro são os dois destaques maiores do gênero. Adicione-se, em
ambos, a filiação ao “gendaigeki”, o drama moderno (em contraste com o “jidaigeki”).
71
O cinema de Naruse, a despeito de ser incluído nessas categorias, é, acima de
tudo, um cinema materialista. A vida é uma sucessão de choques e desapontamentos,
estamos imersos em um mundo de desilusões, não existe espaço para ilusões. O
dinheiro e sua circulação são presença constante e definidora nesse universo, não há
transcendência possível, seja religiosa, estética ou mesmo através do suicídio, uma fuga
radical. O que predomina é uma existência corpórea sujeita a coações sociais e
econômicas. Seja por infelicidade conjugal, solidão ou frustração, as mulheres, em sua
maioria infelizes – Naruse, sobretudo nos anos 50, elegeu os papéis femininos como
protagonistas de seus filmes – atravessam as histórias lutando para realização de
desejos, quase sempre inconclusos e insatisfeitos.
Perturbações da natureza - trovões, chuvas, calor, mudança de estação – agem
como prolongamento da instabilidade emocional de seus personagens, estejam eles no
espaço público ou na intimidade dos recintos privados. Tudo se passa como se discretas
epifanias, tão caras aos japoneses, interviessem no fluxo diário dos hábitos e
convivências, relançando a narrativa em torno dos acontecimentos capitais, como
mortes, separações, retornos, traições, alianças e rupturas. E reorganizando o ritmo da
vida, sobretudo dos sofrimentos que atravessam as existências individuais.
A torrente e o lago
A partir de 1949, Kawabata Yasunari publicou em capítulos a novela “O som da
montanha”, concluída em 1954. Seu ilustre tradutor para o inglês, Edward
Seidensticker, dizia que sua prosa era tão concisa que se aproximava do haicai – uma
bela definição desse formidável escritor, vencedor do Prêmio Nobel de literatura em
1968. Vários de seus livros foram adaptados para as telas, ele mesmo circulou pelo meio
de cinema, ainda nos anos 20 (a exemplo de outro grande escritor, Tanizaki Junichiro).
Um de seus melhores textos, “O país das neves”, foi levado às telas de forma luminar
por Toyoda Shiro, em 1957.
No ano que Kawabata finalizava seu livro, em 1954, Naruse dirige a adaptação,
que levou o mesmo nome, “O som da montanha”. A dupla de atores - Hara Setsuko e
Uehara Ken – é a mesma que havia trabalhado no seu “Vida de casado”, de 1950.
72
Mesmo “casting” principal, mesmo enredo – a “malaise” da família moderna –
desta feita, em 1954, concluindo com a ruptura do casal. O marido arranja uma amante
(no filme anterior hesita) e a compara à esposa. A amante é uma torrente, a esposa um
lago. A sequência final, um encontro entre a esposa decidida pela separação e o sogro
desgostoso, sobretudo pela estima que tem por ela, foi rodada no Parque de Shinjuku,
em Tóquio – um jardim inglês com amplos gramados e pouca densidade de árvores,
cenário pouco usual nas cidades japonesas. É um dos grandes momentos do cinema
japonês. Como disse o crítico francês Jean Narboni, que escreveu um livro sobre Naruse,
nessas imagens tudo se mistura: “a fadiga, a tristeza das separações, o frio da noite que
chega, o estremecimento dos rostos, as lágrimas mal contidas de Kikuko (Hara Setsuko),
os olhares perdidos...tudo isso faz vibrar a cena de mil impressões fugidias”. “O som da
montanha” é um dos melhores Naruse.
Seu estilo estava cada vez mais fluido, deslizante. Mesmo com a sua conhecida
parcimônia – vários dos seus atores regulares se queixavam de que Naruse dava pouca
ou nenhuma instrução sobre o que queria – os personagens parecem entranhados na
história, ou melhor, parecem entranhados nesse mundo imaginário e circular
engendrado pelas narrativas naruseanas. Tudo era uma questão de tempo, de
manipulação do tempo: Kurosawa Akira, que trabalhou brevemente como assistente de
Naruse nos anos 30, nota como o diretor costumava “empilhar” tomadas curtas para
dar a impressão de um “long take”. Tamai Masao, o fotógrafo, chama a atenção para
cenas exteriores, quando um personagem caminha e olha para trás, por cima do ombro,
para outro personagem, que se move, por sua vez. Esses planos, apesar de filmados com
câmara fixa, criam a sensação de fluidez e movimento entre as cenas. E são muitas vezes
complementados pelos famosos “travellings”, que acompanham, com tomada em
diagonal, os diálogos das figuras humanas que dão vida às narrativas.
O passado condena
A década de 50 e as mutações experimentadas pelo país foram altamente
produtivas para Naruse. O país enriqueceu, a classe média estabilizou-se, e novas
contradições apareceram. Segundo Catherine Russell, o cinema de Naruse é o “cinema
73
das oportunidades perdidas, dos olhares desviados, dos casamentos e famílias
frustrados, mas também é, como bom melodrama, um cinema sobre ‘pessoas
ordinárias’ com problemas ordinários”. Suas personagens femininas não inspiram nem
piedade nem desprezo, nunca reclamam da sua condição, combinando cinismo realista
com tenacidade. Takamine Hideko personifica muitas dessas heroínas, representando
para Naruse o que Hara Setsuko era para Ozu. Seus trabalhos desse período, enfim,
oferecem um excelente painel sobre a formação da subjetividade feminina do Japão
moderno.
Em 1955 realiza mais um extraordinário filme, “Nuvens flutuantes”, que
contemplou, ao seu modo, o acerto de contas com o passado recente. Takamine é uma
jovem datilógrafa que vai trabalhar no Vietnam ocupado pelos japoneses, em 1943,
onde conhece um engenheiro florestal, casado, com a mulher morando em Tóquio.
Vivem um caso tórrido. A narrativa transcorre no Japão precário depois de 1945,
alternando flashbacks, penúrias econômicas e penosas indecisões amorosas. Mori
Masayuki encarna o marido, que finalmente aceita a antiga amante como sua mulher (a
esposa faleceu). Tarde demais, em pouco tempo ela adoece e morre. Impotência afetiva
(dele) e submissão tenaz (dela) sinalizam a falência das relações amorosas nos moldes
patriarcais, pré-guerra. Um ciclo se fecha, mas o futuro é vago.
Quando a mulher sobe a escada
Naruse Mikio foi um típico diretor dos grandes estúdios, tal como seus
contemporâneos. Os produtores gostavam dele, sempre produtivo e disciplinado com
orçamentos. Na década de 60 esse sistema iria implodir, como ocorreu nos Estados
Unidos, afetando diretores como Naruse. Exatamente em 1960 realiza um de seus
melhores filmes, “Quando a mulher sobe a escada”, com a luzente Takamine Hideko,
que tinha 36 anos à época da produção, no papel de uma viúva e experiente “hostess”
de bar noturno em Ginza – a “mama-san”, como é chamada pelas mais jovens.
Subir a escada e entrar no bar é aceder ao mundo masculinizado, dos códigos
que opõem o homem (ativo) à mulher (passiva). Uma transição diária e árdua, que a
personagem percorre pela necessidade básica de sobreviver, mas que cobra um custo:
74
recusando-se a casar com o pretendente rico, que lhe possibilitaria recursos para
investir em um bar próprio, cede ao cliente casado (Mori Masayuki, em outra grande
atuação) e termina decepcionando-se. Talvez seja este filme o melhor exemplo do “rio
profundo com uma superfície plácida, dissimulando nas suas profundezas as correntes
furiosas” de que falava Kurosawa sobre Naruse: montagem “invisível” e “rítmica”,
fluidez absoluta de movimentos na superfície, desejos e emoções se chocando no fundo.
Ao final, resta subir novamente a escada. Naruse faleceu em 1969. Seu último
filme, “Nuvens dispersas”, foi completado em 1967. No final da vida, já doente, disse a
sua atriz preferida, Takamine Hideko, que gostaria de filmar um drama em estado puro,
apenas com personagens e um fundo branco. Muito já se especulou sobre esse último
desejo do diretor, um minimalismo tardio, ele que sempre preencheu sobejamente
todos os espaços e brechas que o espaço e tempo cinematográfico proporcionaram.
Talvez seja essa a compulsão que o animou em todo seu percurso, filmar o drama, pura
e simplesmente.
Guerra congelada
Kobayashi Masaki estudou filosofia e estética oriental, em pleno Japão
militarista. Como muitos intelectuais humanistas de esquerda, procurou no cinema um
refúgio diante do ambiente opressivo daqueles tempos. Em 1941, entrou para a
Shochiku, o estúdio que produzia Ozu, Kinoshita e Naruse, famosos pelos dramas de
classe média. Pouco depois, no entanto, foi convocado para o exército, na Manchúria,
logo ele, pacifista convicto. Estacionado perto de Harbin, ao norte da China,
especializou-se em metralhadoras pesadas, treinando arduamente “a fim de disciplinar
o corpo, como Kaji foi obrigado a fazer, para sobreviver”. Não vivenciou combates: os
japoneses esperaram anos pelo temido ataque soviético, que acabou acontecendo só
nos últimos dias da guerra, quando Kobayashi já tinha sido transferido para Okinawa.
Stalin receava uma ofensiva japonesa, e demorou um longo tempo para convencer-se
dos preciosos informes que o espião Richard Sorge mandava de Tóquio, de que não
haveria tal ofensiva.
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Aquela região fronteiriça viveu uma guerra “congelada”. Mas que acarretou, não
obstante, uma pervasiva suspensão do tempo nas zonas ocupadas, onde a população
civil chinesa sofria enquanto o conflito era decidido em outras latitudes. “A condição
humana”, o poderoso tríptico que Kobayashi dirigiu entre 1959 e 61, com três episódios
e quase dez horas de duração, está repleto dessas paisagens de ocupação, em geral
extensas pradarias no interior da China. Kaji é o personagem principal desse épico sobre
a consciência humana, vivido por Nakadai Tatsuya.
Entre paredes espessas
A guerra terminou e o soldado Kobayashi ficou preso em Okinawa. Em 1946
voltou para a Shochiku, como assistente de Kinoshita. Começa a dirigir no início da
década, e em 1953 finaliza seu terceiro longa-metragem, um explosivo acerto de contas
com o conflituado passado recente do país, “The Thick-Walled Room”. Concebido e
realizado com raro espírito aberto, sobretudo para uma cultura como a japonesa,
descreve situações extremas de prisioneiros de guerra classe “B” e “C”, detidos pelos
norte-americanos. O roteiro foi baseado em diários reais de soldados: todos os crimes
de que eram acusados eram procedentes de ordens superiores dos criminosos classe
“A”. Embora não apresente a segurança da mise-en-scène que exibiria em seus filmes
posteriores, Kobayashi aplicou em sua direção, neste ambiente claustrofóbico, um
realismo bruto e ríspido, focado na dilapidação da consciência dos reclusos.
O resultado foi uma devassa na responsabilidade dos crimes de guerra, feita a
partir do microcosmo da cela do presídio. O estúdio hesitou em lançar o filme, temendo
que os norte-americanos, que aparecem como carcereiros, pudessem reagir mal,
mesmo com a ocupação encerrada. A fita só foi para as salas de cinema em 1956.
Acuado pelos produtores, Kobayashi não se fez de rogado e realizou, a seguir,
um filme atrás do outro, mais preocupados com o entretenimento: a virulenta crítica
política que ensaiou em “The Thick-Walled Room” ficou de fora. Em 1957, sintonizado
com a produção do estúdio rival Nikkatsu, orientada para a juventude urbana, dirige
“Black river”, crônica do entorno fora-da-lei de uma base norte-americana no Japão
recém-conquistado. Prostitutas, mercado negro, yakuza e desocupados em geral
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circulam nesse espaço. Fotografia estilo “noir”, um “free jazz” arrebatador logo na
abertura e uma intriga mesclando crime e melodrama compõem o cenário, assegurando
o prestígio de Kobayashi como realizador versátil. “Black river” influenciou diretores da
“nouvelle vague”, como Imamura Shohei em “Todos porcos”, de 1961.
Gansos voadores
As premissas estavam dadas para o voo mais ambicioso de “A condição
humana”. Uma ambição, a propósito, comparável à ambição da economia japonesa em
ascensão na virada da década de 50 para 60. De fato, costuma-se associar o chamado
“milagre” econômico japonês a esse período, quando ocorreu a rápida expansão da
manufatura pesada, como carros, aço, estaleiros, químicos e eletrônicos, aliado a uma
crescente sofisticação do setor de serviços, sobretudo telecomunicações e informática,
em especial computadores avançados. Tóquio passou a abrigar um centro financeiro
vital para a economia mundial: o país tornou-se o quarto PIB do planeta no final da
década de 60.
Nessa época consolida-se o famoso “modelo dos gansos voadores”, que supõe
uma divisão internacional do trabalho para o Leste Asiático baseado na teoria das
vantagens comparativas. Muito em voga nos anos 60, estava baseado no paradigma de
que a produção de “commodities” transferir-se-ia dos países mais avançados para os
menos avançados. O “ganso líder” era o Japão, seguido do grupo formado pela Coreia,
Taiwan, Hong Kong e Cingapura, em seguida Filipinas, Indonésia, Tailândia e Malásia e,
finalmente, China.
O “ganso líder” estaria sempre na vanguarda no que toca a tecnologia e interação
com o Ocidente, inclusive no campo cultural, além de ser o polo financeiro da região.
Naturalmente, a proteção conferida pelos Estados Unidos ao Japão entrava nessa conta,
facilitando a acumulação de capital no arquipélago. O modelo era uma evolução do
“pan-asiatismo” dos anos 30 e 40, onde a expansão dos interesses nipônicos vinha
lastreada pela agressão militar. A diferença, agora, era o pacifismo do Japão, inscrito na
Constituição. Esta era a nova conjuntura em que Kobayashi Masaki produziu seu
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ambicioso projeto, cujo fim último era a exposição da consciência liberal oprimida pelo
militarismo e a guerra.
A condição humana
Em 1931 o Japão invadiu a Manchúria, sob um pretexto espúrio. Em um incrível
exercício de pantomima política, chegou a instalar um governante real, o “último
imperador”, Pu Yi, imortalizado no filme de Bernardo Bertolucci. Milhares de japoneses
foram residir na “colônia”, entre soldados, burocratas, agricultores e oportunistas. O
livro no qual Kobayashi se baseou, relato autobiográfico em seis partes de Gomikawa
Junpei, narra o drama de um pacifista (com tendências de esquerda, inevitavelmente)
que foi para a Manchúria para trabalhar como inspetor de trabalhadores chineses em
uma mina. Choques com a temível Kempeitai, a polícia militar japonesa, terminaram
forçando sua convocação para o exército.
A integração nesse novo regime foi obviamente difícil, mas disciplina física e
cálculo frio permitiram sua sobrevivência, em meio a hostilidades e estupidez.
Permitiram também a ele permanecer vivo após a eclosão dos combates, na invasão
russa em 8 de agosto de 1945, dias antes da rendição japonesa. Preso pelos soviéticos,
decepciona-se com o tratamento dos “vermelhos”, é enganado pela corja de
prisioneiros conterrâneos e termina fugindo em pleno inverno, sem deixar traços. Sua
única referência nessa longa trajetória de lenta anulação da humanidade era a esposa
(Aratama Michiyo, ótima), que esteve com ele até a convocação – mas que ressoa sem
parar em sua consciência.
Trata-se de um trabalho excepcional, poderoso e completo mergulho no
passado. A princípio, a Shochiku não queria produzir o épico: Kobayashi ameaçou
demitir-se, os produtores voltaram atrás. Rodado em Panavision com “frame” 2.35:1,
para reforçar a horizontalidade das imagens, o filme – se é que é possível resumir densas
9 horas e 47 minutos - é uma projeção mental de Kaji, o burocrata pacifista. A escala,
que reproduz a imensidão dos cenários chineses, intensifica a interrogação políticoexistencial do personagem, e termina permeando a percepção do espectador. Tudo é
descomunal nessa trama: os territórios conquistados e perdidos, os impasses
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ideológicos, as angústias de separação e a sensação de ruína e fracasso civilizatório que
as guerras provocam. A violência e os equívocos desumanos, em suma.
Repatriação e sofrimento
John Dower, em seu “Embracing defeat”, informa que estimados 1,6 e 1,7
milhão de soldados e civis japoneses caíram nas mãos dos soviéticos após a guerra. A
repatriação foi retardada inúmeras vezes, com os soviéticos tratando de aproveitar a
mão de obra dos prisioneiros para reconstruir a infraestrutura do leste do país. A
desinformação, que agoniava as famílias no arquipélago, entrou pela década de 50
aguçada pela Guerra Fria. O número de vítimas fatais japoneses em campos de
concentração no pós-guerra oscila entre 55 e 113 mil. Não se sabe quantos, mas
inúmeros criminosos de guerra foram executados pelos chineses. Muitos civis ficaram
na China, vários inclusive para juntar-se às forças comunistas de Mao Tse-Tung.
A guerra acabara com a emissão radiofônica do Imperador no dia 15 de agosto
de 1945, conclamando seus súditos a “suportar o insuportável”. Mas muitos sequer
voltaram: milhões de pessoas pereceram, lares foram destruídos, famílias
desintegradas. A morte, como dizia o filósofo grego Epicuro, não é infortúnio para quem
morre, mas para quem fica. O Japão continuou a pagar caro por todas as tragédias
provocadas por sua agressão militar.
Kobayashi realizou ainda dois notáveis filmes de samurai, “Harakiri”, em 1962, e
“Rebelião”, em 1967, este último com Mifune Toshiro – que estava “desconcentrado”
durante as filmagens, em razão de problemas financeiros de sua produtora, conforme o
diretor revelou (com bom humor) a Shinoda Masahiro. Concentrado ou não, estava
soberbo. Kobayashi cita ainda as espadas “verdadeiras e pesadas” usadas no filme, que
anulam o espetáculo coreográfico habitual do gênero, mas agregam realismo aos
combates.
Em 1964 adaptou os deliciosos contos fantasmagóricos coligidos por Lafcadio
Hearn, “As quatro faces do medo”. Um de seus últimos projetos foi o documentário
“Tokyo trial”, de 1983, sobre o julgamento dos criminosos de guerra no Japão.
79
Positivo e negativo
Kurosawa Akira deve muito de sua formação, conforme revelou em sua
autobiografia, ao irmão Heigo, quatro anos mais velho. Sugestões de livros e filmes,
além de uma visita aos escombros da capital japonesa após o terrível terremoto de
Kanto, em 1923, fazem parte dessa memória. Kurosawa tinha treze anos quando foi
(quase) obrigado pelo irmão a testemunhar a tragédia, episódio que o marcou
profundamente. Através de Heigo fez contato com a “Liga de Artistas Proletários”, não
apenas para circular suas pinturas, mas também para atividades clandestinas (acabou
decepcionando-se).
Heigo tinha se tornado um “benshi”, narrador de filmes mudos. Em 1933, comete
suicídio. Os filmes sonoros esvaziaram a função de narrador, certamente isso teve
influência, mas não era tudo. Testemunhos dão conta de suas tendências depressivas.
Anos mais tarde, já trabalhando como assistente no estúdio que se tornaria o poderoso
Toho, um antigo colega comenta com Kurosawa: você e seu irmão são parecidos, mas
ele era o negativo, você é o positivo.
Energia
Uma energia formidável, sem dúvida. Masumura Yasuzo, o brilhante diretor que
faria seu primeiro longa em 1957, escreveu um importante artigo sobre Kurosawa na
“Kinema Jumpo”. Sua principal qualidade, sublinhou, era a capacidade de produzir
composições visuais compactas, utilizando-se da montagem, evitando assim cair em
narrativas que exaltassem conformismo e comiseração. Na construção dos
personagens, também se destacava a não-resignação: a despeito da opressão e do
sofrimento, eles sempre lutavam, ao contrário da tradição de paciência e submissão – a
doce melancolia do “mono no aware”.
“Kinema Jumpo” é a mais antiga e respeitada revista de cinema no Japão, a
mesma que em 1999 elegeu “Os sete samurais”, de 1954, como o melhor filme japonês
de todos os tempos. Descontados os excessos, a afirmativa tem raízes inegáveis: “Os
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sete samurais” resgatou e atualizou o estilo “jidaigeki” para uma dimensão mundial. Da
mesma forma como os norte-americanos impuseram ao mundo a mitologia épica do
“far west”, os japoneses lograram difundir suas próprias narrativas míticas às audiências
estrangeiras, cinematografadas à perfeição. Dos diretores modernos, Kuro-san, como
era conhecido entre seus amigos, foi o mais contundente nessa tarefa.
Viver
Depois do premiado “Rashmon”, Kurosawa realizou em 1951 “O idiota”,
baseado na obra de Dostoievski, de quem era um leitor fiel. A Shichiku julgou a
metragem prevista, 265 minutos em duas partes, demasiadamente longa. O filme foi
exibido com 166 minutos. Segundo Donald Richie, não restam cópias da versão original,
mesmo sendo um filme de Kurosawa com três atores de primeira linha – Mifune Toshiro,
Hara Setsuko e Mori Masayuki.
Em seguida, dirige o pungente “Viver”, de 1952, sobre um funcionário público
com câncer terminal, uma das mais devastadoras críticas à burocracia já feita no cinema.
Burocracia, ressalte-se, entendida como sistema organizacional cuja única verdade é
reproduzir-se – um labirinto infinito de inércia e respostas evasivas.
A história gira em torno de uma petição popular pela construção de um parque
urbano, no local onde se encontra um pântano. Perdida nos escaninhos, por desleixo ou
má vontade, a petição é resgatada pelo burocrata Watanabe, encarnado por um dos
atores mais identificados com Kurosawa, Shimura Takashi. Sua decisão de levar adiante
a construção do parque – tomada após receber a notícia do câncer - gera ondas de
perplexidade entre seus colegas de escritório e acelera o ritmo do filme. A montagem
muda do meio para o final, a fim de sinalizar a não-resignação do personagem. Estilo e
moral se mesclam, marca registrada do diretor.
Template
Fazer um template cinematográfico não é fácil, ainda mais vindo de um canto
“exótico” do mundo. “Os sete samurais” demorou um ano para ser produzido, e
81
resultou em um dos mais bem sucedidos filmes da história. A numerologia do título que
estrutura a narrativa foi copiada inúmeras vezes. A câmera lenta, que exacerba a
violência da cena, foi importada pelo cinema norte-americano, assim como o uso das
teleobjetivas para cobrir o espaço, inclusive com a famosa edição “no eixo da câmera”,
como aponta David Bordwell. Os planos com “long lens”, editados em uma montagem
rápida com sutis dissonâncias, calibram a expectativa de choque na mente do
espectador, construindo implícitamente a tensão no ato de olhar.
Kurosawa apreciava muito os filmes “jidaigeki” de Mizoguchi, mas dizia que se
ele tivesse dirigido as cenas de combate, seriam melhores ainda. Bordwell destaca, na
sequência da batalha final de “Os sete samurais”, as flechadas do samurai-líder e o lapso
de tempo entre o alvo atingido e a queda da vítima. O quadro vazio que aparece por
átimos de segundo aguça a expectativa do espectador por mais um bandido abatido, ao
mesmo tempo que redobra a potência que se atribui ao arqueiro. Uma montagem digna
da arte cavalheiresca de um arqueiro zen.
Outro estratagema genial foi a composição do personagem de Mifune Toshiro.
Na economia de gestos e expressões corporais, Mifune ocupou um lugar reservado ao
excesso, com um corpo que não se submete aos ditames da hierarquia social e que reage
de modo compulsivo e histriônico. Destoando dos demais, o personagem estilo rufião é
um candidato a samurai que se integra, aos trancos e barrancos, à coesão espiritual do
grupo. Corajoso e destemido, termina alçado ao panteão dos heróis mortos em
combate. Sua performance tem algo do humor das pinturas dos monges zen, assim
como da errância dos personagens desgarrados, ao gosto dos japoneses. Morre ao final
com um tiro de escopeta – objeto raro naquela época no Japão, trazida pelos
portugueses ao mesmo tempo que São Francisco Xavier percorreu o país, em meados
do século 16. “Os sete samurais” é um desses filmes eternos.
Nos próximos anos, a simbiose entre diretor e ator iria estreitar-se de uma forma
poucas vezes vista no cinema. Destaque para os “jidaigeki”: “Trono manchado de
sangue”, de 1957, inspirado em “Macbeth” de Shakespeare; “Ralé”, do mesmo ano,
tirado de Gorky; “A fortaleza escondida”, de 1958, que influenciou George Lucas;
“Yojimbo – o guarda-costas”, de 1961; e “Sanjuro”, 1962, que podem ser apreciados
como formidáveis paródias do gênero; e o extraordinário “Barba ruiva”, de 1965, último
82
filme da dupla. E também nos “gendaigeki”, os dramas contemporâneos: “Céu e
inferno”, de 1963, traz um clima de suspense construído em cima das fraturas sociais
do Japão moderno.
Samurai espaguete e Medicina social
Uma série impressionante. Apoiado por um modelo de produção mais flexível –
a partir de “Rashmon”, criou sua própria produtora, com o estúdio Toho como maior
acionista – Kuro-san pôde dispor de uma autonomia compatível com seu talento e sua
personalidade. “Yojimbo – o guarda-costas”, de 1961, funciona como uma versão pósmoderna dos filmes de samurai, um filme que traz embutida uma metalinguagem crítica
e irônica. Em cenário de “bang bang”, um vilarejo em pé de guerra fratricida entre dois
clãs corruptos, Mifune, samurai desempregado (um “ronin”), aparece como justiceiro
desinteressado e esperto. Habilmente engana um e outro, até a implosão definitiva de
ambos os contendores e a pacificação da aldeia. “Yojimbo” é mais um template: Sergio
Leone utilizou suas linhas básicas para realizar o “western spaghetti” inaugural, o
clássico “Por um punhado de dólares”, com Clint Eastwood, de 1964. Em 1966, Sergio
Corbucci, sorvendo da mesma tradição, filma “Django”.
Miike Takashi, certamente o mais antropofágico diretor em atividade no Japão,
realiza em 2007 “Sukiyaki Western Django”, uma reverência irreverente à série que
começa com “Yojimbo”. Neste caldeirão de referências que é o filme de Takashi, onde
homenagens e caricaturas se misturam, entra em cena Quentin Tarantino, em um papel
descrito pelo “press-release” da produção da seguinte forma: “um sujeito misterioso
chamado Ringo que duela com um oponente desconhecido japonês, que por sua vez é
amante da assassina disfarçada de habitante do vilarejo”.
De Kurosawa a Miike Takashi, para ficarmos na genealogia japonesa, ou de
Kurosawa a Tarantino, para extrapolarmos uma cadeia de transmissão global,
“Yojimbo” pode ser visto como uma metáfora do modo de produção globalizado que o
Japão ingressava, com todos seus recursos industriais e tecnológicos.
Recorde-se a proposição de Eric Cazdin, em “The flash of capital: film and
geopolitics in Japan”: a globalização seria o terceiro estágio expressivo do cinema
83
japonês, depois de colonialismo (até 1945, Japão militarista) e Guerra Fria (de 1945 até
o final dos anos 50).
Os gigantes se separam
Os grandes Mifune e Kurosawa acabaram se desentendendo, por razões nunca
totalmente esclarecidas. Donald Richie insinua que o aperto financeiro que o ator teve
de enfrentar em seus negócios provocou choques irrecuperáveis, pois não podia ficar
disponível eternamente à espera da próxima produção de seu mentor. Kuro-san, por
sua vez, revelou a Richie sua decepção com o papel que Mifune aceitou fazer na série
televisiva americana “Xogum”, de 1980. Fizeram 16 filmes juntos.
O último, “Barba ruiva”, de 1965, é uma obra-prima: é também um filme que
encerra um ciclo de Kurosawa, que, aos 56 anos, decidiu explorar novos métodos de
produção. Mifune faz o papel de um diretor de hospital público no século 19, ainda na
era Tokugawa. Médico experiente, domina a cena com seu olhar penetrante e quase
hipnótico, apesar de manter distância respeitosa com os pacientes. O olhar da câmera
reproduz a ambivalência do olhar do personagem. Justiça social e sensibilidade guiam a
ação, com direito a pancadaria em uma zona de prostituição, estilo Yoshiwara, mas
despida do glamour. Um filme áspero e emotivo, um dos melhores.
O “imbróglio” confuso e desgastante de “Tora! Tora! Tora!” (1970),
superprodução nipo-americana gestada no final dos anos 60 sobre o ataque a Pearl
Harbor, contribuiu para a interrupção por cinco anos de seu trabalho como diretor.
Kurosawa esteve envolvido inicialmente no projeto, mas acabou abandonando,
aborrecido. Três amigos e diretores de prestígio - Kinoshita Keisuke, Kobayashi Masaki
e Ichikawa Kon – criaram com ele, em 1969, uma produtora de nome bombástico,
“Clube dos Quatro Cavaleiros”. Apenas um projeto veio à luz, o deslumbrante
“Dodeskaden - O Caminho da Vida”, em 1970.
O fazedor de tofu
84
Os filmes de Ozu Yasujiro são diametralmente opostos ao de Kurosawa. Durante
muito tempo essa discussão animou críticos e admiradores: qual deles seria mais
“japonês”, mais representativo de uma suposta essência “japonesa” ? O (falso) debate
tendia a qualificar Kuro-san como o mais “ocidental” dos realizadores japoneses, em
função das fontes literárias que eventualmente utilizava - insinuação que o diretor
repudiava e que descartou em sua autobiografia. Por outro lado, Ian Buruma lembra a
influência de Hollywood sobre Ozu, sobretudo no início, nas comédias (Ernst Lubitsch
era seu diretor favorito).
Muitos no Japão talvez ainda considerem Ozu como de difícil compreensão para
espectadores ocidentais, justamente por ser muito “japonês”. Seria sua simplicidade
“minimalista”, enfim, um traço de identidade cultural ? A famosa auto-definição de Ozu
– “sou um fazedor de tofu, assado, cozido ou frito, outros fazem coisas mais
caprichadas” – foi mais um golpe de mestre nessa direção, a um só tempo signo de
modéstia e (auto) promocional.
No mundo de hoje, globalizado e transnacional, posições rígidas e preconcebidas
sobre identidades culturais parecem cada vez mais ameaçadas de diluição. Ambos os
diretores obviamente estão imersos na cultura de seu país, mas tiveram o enorme
mérito de transcendê-la e produzir um discurso universal. Ambos eram, como bons
japoneses, pragmáticos. Kurosawa conta como Ozu foi importantíssimo na aprovação
de seu primeiro filme, em plena guerra, ao apoiá-lo na comissão que julgava se os
roteiros estavam afinados com a política militarista e a “essência da cultura japonesa”
(pelo menos do que era considerado “essência” naquele tempo conturbado).
Perguntado pelos censores se o roteiro de Kurosawa estava adequado, Ozu não
titubeou: estava 120 % adequado!
Prestígio
O prestígio internacional de Ozu cresceu muito nas últimas décadas. Em 2012,
seu “Era uma vez em Tóquio”, de 1953, classificou-se em terceiro lugar entre os
melhores filmes de todos os tempos, na renomada lista da revista inglesa “Sight and
Sound”. A enquete é realizada de 10 em 10 anos desde 1962 —em 2002, o filme de Ozu
85
estava em quinto lugar, e em 1962 em 32º. A lista é resultado de ampla consulta a
críticos, profissionais e estudiosos de cinema, 846 pessoas de 73 países. Ainda em 2012,
“Pai e filha” ficou em 15º; “Os sete samurais” e “Rashmon”, em 17º e 24º,
respectivamente.
Nesta última edição da lista, a fita de Ozu perdeu para “Um corpo que cai”, de
Alfred Hitchcock, e “Cidadão Kane”, de Orson Welles. Note-se ainda que, em 1962,
“Contos da lua vaga”, de Mizoguchi, estava em quinto lugar; em 2012, em 50º.
Descontada a tradicional margem de erro, dadas as premissas com que foi elaborada a
relação – por exemplo, apenas um latino-americano entre 250 filmes arrolados,
“Memórias do subdesenvolvimento”, do cubano Tomas Gutierrez Alea, em 174º lugar
- não resta dúvida de que é um indicativo claro da sintonia entre mise-en-scène de Ozu
e a sensibilidade contemporânea.
A mencionada revista publica também, desde 1992, listagem dos melhores
filmes escolhidos exclusivamente por diretores de cinema. Em 2012, “Era uma vez em
Tóquio” foi o primeiro colocado.
Gramática cinematográfica
Mark Schilling, outro crítico norte-americano que vive no Japão, salienta a
diligência e o entusiasmo de Ozu em discutir cinema com seus pares, desde o começo
de sua vida profissional. A coleção de seus diários, onde estão registrados seus
pensamentos sobre o ofício, alcança 800 páginas. Um fazedor de tofu sofisticado.
Sobre gramática cinematográfica, por exemplo: para ele, todo filme que se
destaca cria sua própria gramática, não existem regras a priori. Situações óbvias de
transbordamento emocional, como casamentos e funerais, são melhores quando
evitadas: as emoções, lembra Ozu, estão nos pequenos detalhes, nos diálogos (e
monólogos) íntimos. “Fade in” e “fade out”, pontuações clássicas, são como páginas em
branco inseridas em um livro, desnecessárias, portanto. Cinemascope, nem pensar: para
Ozu, lembra um rolo de papel higiênico.
86
E a ruptura do código campo-contracampo ? Ao ignorar a regra da “linha do
olhar” entre dois personagens que se falam, o procedimento cria uma ansiedade latente
no espectador, de não reencontrar o interlocutor na sequência do filme e perder o fio
da conversa, conforme sugeriu François Truffaut. Sutil sabotagem das convenções da
narrativa clássica.
Quando lançou seu primeiro longa-metragem falado, “Filho único”, de 1936, Ozu
foi criticado pelos colegas da Shochiku, entre outros por Inagaki Hiroshi (diretor do
fabuloso “O Homem do riquixá”, de 1958, com Mifune Toshiro e Takamine Hideko), pela
técnica inusitada de filmar diálogos. “Foi apenas no começo da projeção, depois ele não
se importou mais”, escreveu em seu diário. Admitiu, entretanto, que “provavelmente
era a única pessoa no mundo a filmar desse jeito”.
O objetivo desses dispositivos é captar, nos mínimos detalhes, banais e
corriqueiros, a respiração e o fluxo vital das histórias privadas, aquelas que contam para
a maioria da espécie humana e que permanecem perdidas na poeira do tempo. Para
Ozu, as histórias de vida e morte, rancores e decepções, as transições e emoções que
interferem na vida de todos nós, não são banais. São decisivas e marcantes, mas estão
condenadas a habitar o círculo íntimo e indevassável das existências individuais. Trazer
à tona essas minúsculas expressões e vivências é uma tarefa que somente poucos
artistas iluminados logram realizar. Ozu é um deles, e o uso que fez dos recursos da
linguagem cinematográfica é exemplar do seu rigor.
Tokyo story
Em 1953, Ozu fazia os seguintes comentários sobre o filme “Era uma vez em
Tóquio” (transcritos por Donald Richie): “esta é uma das minhas mais melodramáticas
realizações”, pois “através do envelhecimento de pais e filhos descrevi como o sistema
familiar japonês começou a desfazer-se”. Tais palavras foram ditas ao receber o prêmio
de segundo melhor filme do ano da revista “Kinema Jumpo” (o vencedor naquele ano,
1953, foi “Nigorie - An Inlet of Muddy Water”, do competente diretor Imai Tadashi,
conhecido por sua inclinação de esquerda: também disputava o prêmio “Contos da lua
vaga”, de Mizoguchi).
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“Era uma vez em Tóquio” narra a viagem de um casal de idosos do interior para
a capital, a fim de visitar filhos e filhas, deparando-se com pequenas inércias e
desajustes, que terminam por precipitar um retorno ao interior e o desfecho da história.
A dissolução da família tradicional japonesa — lenta, quase imperceptível, no contexto
traumático pós-guerra — é revelada muito mais pelos efeitos que as pequenas
turbulências provocam, como diz Richie, do que pela exacerbada exposição de suas
causas. Pequenos incidentes e confrontos sutis entre pais e filhos, seguidos ou não de
conciliações, denunciam a natureza dos personagens, mostrando como eles agem e
reagem.
Nesse ponto, a palavra, isto é, o roteiro, tem um valor insubstituível: resultado
do rigor depuratório da construção dos diálogos, as falas são absolutamente sintéticas
e objetivas, integrando-se de forma indelével na fluidez da linguagem, na respiração do
filme. As palavras estão imantadas no espaço-tempo audiovisual, sentimos seu
significado aflorar como se fossem imediatas, sem mediações. Em uma atmosfera de
austera simetria formal, com uso dominante de planos médios, a imersão da audiência
nos diálogos e na trama é (quase) integral, sem pausa ou tempo morto. Não há
momentos de distensão, a narrativa é ocupada somente por acontecimentos e reações
dos personagens. Um filme magnífico.
Flor do Equinócio
A esposa de Noda Kogu, velho amigo e co-roteirista de inúmeros filmes de Ozu,
revelou a rotina de trabalho da dupla, nas montanhas de Nagano, em Tateshina.
Escrever até tarde da noite, com saquê à vontade; acordar e, no café da manhã, tomar
um ou dois copos de saquê; voltar a dormir por uma ou duas horas; depois, almoço
tardio e, no fim da tarde, escrever o roteiro. O progresso dos trabalhos media-se pelo
número de garrafas de saquê, cuidadosamente guardadas após o consumo.
O resultado é impressionante: antes de “Era uma vez em Tóquio” (1953), a dupla
produziu os roteiros de “Pai e filha” (1949), “As irmãs Munekata” (1950), “Também
fomos felizes” (1951) e “O sabor do chá verde sobre o arroz” (1952). E depois: “Começo
de Primavera” (1956), “Crepúsculo em Tóquio” (1957), “Flor do Equinócio” (1958),
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“Bom dia” e “Ervas flutuantes” (1959), remake do seu premiado filme homônimo de
1934. E ainda: “Dia de outono” (1960), “Fim de verão” (1961) e “A rotina tem seu
encanto” (1962).
Muitos dos títulos remetem a estações do ano, a intervalos particulares das
estações. Combinado ao uso regular dos mesmos atores (Hara Setsuko e Ryū Chishū, os
mais frequentes) Ozu terminou por configurar uma espécie de microcosmo onde
personagens e ambientes se comunicavam, interpenetravam e complementavam.
Nomes se repetem, os bares são os mesmos, o “charme” dos neons ocidentais também,
mas tudo muda. Os filmes começavam a ser gestados através das falas dos personagens,
posteriormente se encaixava o “plot” – a causalidade tênue que comandava as ações –
e os ambientes. Donald Richie compara Ozu ao genial Morandi, autor de uma obra
pictórica com uma brevíssima variação de temas – garrafas, tigelas – mas dotada de uma
incrível riqueza de percepções.
Naquele tempo circulava uma anedota nos estúdios da Shochiku sobre o título
do novo filme de Ozu: seria “A próxima primavera”, onde todos finalmente se
encontrariam. O próprio diretor se encarregou de divulgar a piada. Não é para menos.
Vistos em conjunto, os filmes passam a sensação de que tudo acontece, mas não saímos
da mesma fase, da mesma onda. O filme acaba mas parece continuar, em outro lugar
que já estivemos. A ideia fixa em balizar a interação entre os personagens com as
estações fornece um marco temporal que subsidia superficialmente comportamentos e
humores: é a senha que permite deflagrar o diálogo entre pais e filhos, chefe e
funcionário(a), “bar tender” e fregueses, amigos e amigas. Nesses cruzamentos o drama
(conflito) se revela, por camadas.
Em “A Flor do equinócio”, de 1958, primeiro filme colorido de Ozu, o pai se
aborrece com o desejo de independência da filha. Ela quer escolher seu marido, sem
consulta-lo: para os amigos, entretanto, mantem postura aberta e progressista, a favor
dos casamentos livremente acertados. Um conflito geracional que o chefe de família
internaliza sem se dar conta. A esposa (Tanaka Kinuye) administra a transição entre as
duas polaridades, ela que se casou mediante arranjo acertado por seus pais. Sua
temperança mitiga as arestas.
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Uma tarde de outono
Ozu Yasujiro nunca se casou, morava com a mãe. Em fevereiro de 1962,
enquanto trabalhava no roteiro de “A rotina tem seu encanto”, com Noda, recebeu a
notícia: a neuralgia que a atingiu tinha piorado. Preferiu não voltar a Kamakura, convicto
que ela iria falecer com 88 anos, que seriam completados em maio. A mãe morreu logo
depois, em fevereiro mesmo. O diretor escreveu em seu diário: “as flores estão
melancólicas, e o gosto do saquê, amargo”.
“A rotina tem seu encanto”, lançado em novembro de 1962, foi seu último filme.
Hara Setsuko não atuou, mas Ryū Chishū estava ótimo, ao lado de velhos conhecidos.
Seu personagem é um oficial da Marinha, que provavelmente perdeu a mulher nos
bombardeios de 1944 e 45 na capital japonesa. Encontra-se com os amigos de colégio
para beber, declamar poesia tradicional e falar do casamento da filha. Acaba aceitando
que ela se case, depois de convencido pelos confrades. Mais tarde, no bar, depara-se
com um antigo subordinado, e juntos cantam “A marcha do encouraçado”, canção
patriótica que louva os feitos da Marinha Imperial. Ao final, vai para casa, bêbado e só.
Sem rancores, o espírito leve.
O outono estava no final, o inverno se aproximava, podia começar no dia
seguinte. A simetria das imagens ficou mais austera com as cores vistosas e contidas.
Um filme com ar de maturidade jovial, quase embriagada: tudo em seu lugar, mas o
tempo passa. O saquê encarrega-se de fazer os ajustes. Em março de 1963 apareceram
os primeiros sinais, e, em abril, o diagnóstico do câncer na garganta. Depois o entra e
sai do hospital: Ozu veio a falecer no dia 12 de dezembro, data do seu aniversário, com
60 anos. Shiro Kido, seu produtor na Shochiku, ouviu dele nos últimos dias: “bem, parece
que tudo isso é mesmo um drama familiar”.
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Capítulo 4
Anos 60 e antes: Rebeldia e Nouvelle Vague
Em 1950 o Japão produziu pouco mais de 31 mil carros. Em 1970, 5,3 milhões; e
em 1990, 13,5 milhões, primeiro lugar mundial naquele ano. Em 1953, um engenheiro
da Toyota criou um sistema revolucionário, focado na redução de desperdícios no
processo produtivo. Três anos depois, beneficiando-se das condições comerciais
especialmente favoráveis em função da Guerra Fria, o primeiro carro japonês é vendido
no mercado norte-americano. Foram 942 unidades exportadas em 1960. Em 1980,
quase dois milhões.
Em 1952, o governo japonês financiou a aquisição dos direitos da tecnologia do
transistor, gestada no laboratório Bell, em Nova Jersey. Em 1955, a recém-criada Sony
lançou receptores de rádio “do tamanho do seu bolso”, que logo em seguida seriam
exportados, com sucesso, para os EUA. O valor agregado japonês, neste caso, foi a
miniaturização do aparelho, que ampliou espetacularmente a base de consumo do
produto.
As histórias de sucesso do “milagre econômico japonês” são incontáveis. Em
poucos anos, o Japão tornou-se um dos países mais ricos do planeta. Os “milagres,
entretanto, têm raízes culturais: uma das inspirações dos japoneses para a inovação do
“rádio de bolso” teria sua origem, de acordo com pesquisas feitas com empresários, no
popular clássico da literatura chinesa “Jornada para o oeste”, escrito no século 16. O
relato segue as aventuras mirabolantes de um monge budista que vai da China para a
Índia em busca de escrituras sagradas, acompanhado de três discípulos, entre eles o
fantástico (e infantil) “Rei Macaco”, dotado de poderes sobrenaturais oriundos de
fontes taoístas. Miniaturizar seres e objetos era um desses poderes, utilizado para
ludibriar oponentes e ganhar posições. Lido por leitores de todas as idades, “Jornada
para o oeste” está inscrito no imaginário oriental de matriz budista, e ganhou sobrevida,
no mundo digital contemporâneo, através do videogame.
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Cinema político e cinema de entediados
Os personagens de Ozu, sobretudo nos últimos filmes na virada da década de 50
para 60, pareciam mover-se em um ambiente estável, imune a desequilíbrios financeiros
e crises sociais. Não era bem o caso, pelo menos na arena política: os anos 50 foram
carregados de turbulências e manifestações de rua, como era de se esperar. A guerra
recém terminada, na escala que foi, seguida da derrocada do regime imperial
autoritário, obviamente impactaram. A Constituição de 1947 liberou forças políticas
estancadas. Sindicatos e estudantes se politizaram: as tratativas em torno do “Tratado
de Cooperação Mútua e Segurança entre o Japão e os Estados Unidos”, conhecido no
Japão como ANPO – que deu aos americanos direito de manter bases no arquipélago
em nome da manutenção da paz – galvanizaram boa parte da população. O temor de
ser arrastado para um novo conflito global e nuclear, eventualmente alavancado pela
guerra da Coreia e, mais tarde, do Vietnam, inquietava os japoneses.
No dia 1º de maio de 1952 ocorreram fortes manifestações, com mortos e
feridos. No final da década, a revisão do ANPO gerou uma onda de protestos que
começou em novembro de 1959 e terminou em junho de 1960. Estima-se que 16
milhões de pessoas foram às ruas no centro de Tóquio ao longo desse período, debaixo
de vigorosa repressão policial. Nos meses de maio e junho os protestos eram diários. O
Presidente Eisenhower cancelou visita ao país, e o Primeiro-Ministro Kishi Nobosuke,
político bastante ativo antes e durante a guerra, renunciou, no dia 23 de junho de 1960
– mas o ANPO revisto já havia sido ratificado pelo Parlamento dois dias antes.
Os americanos mantém até hoje oito bases no Japão, com cerca de 50 mil
militares. Apenas na ilha de Okinawa ainda ocorrem manifestações (a maior parte do
contingente está lá). Pesquisas de opinião, porém, indicam que em torno de 70 % da
população apoia a presença norte-americana. Os gastos com segurança do Japão
continuam pequenos, menos de 1 % do PIB, muito abaixo da média dos países
industrializados. Do ponto de vista econômico, a aliança continua vantajosa: os recursos
que iriam para a defesa podem ser alocados em outras áreas, como ciência & tecnologia.
Em 2014, o Presidente Obama evocou o Tratado para declarar que as ilhas Senkaku, no
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mar da China, estavam na jurisdição do acordo. Japão e China disputam o território. O
anúncio reassegurou os japoneses da proteção dos EUA.
A tribo do Sol
As turbulências das décadas de 50 e 60 praticamente inexistem hoje em dia. Na
época, a onda de protestos em relação ao ANPO, por um lado, e a pujança econômica
materializada na reurbanização e introdução de novos hábitos de consumo, por outro,
influenciaram fortemente o cinema japonês. A televisão, inclemente, dispersava
rapidamente o monopólio audiovisual do cinema. O brilhante (e polêmico) Oshima
Nagisa e a “nouvelle vague” surgiram nessa virada histórica, que propiciou um novo
ativismo político e contestador. Um ambiente, em suma, que contribuiu para propostas
disruptivas de mise-en-scène e do próprio modo de produção cinematográfico, com o
esvaziamento dos grandes estúdios.
Antes, porém, um novo estilo de filmar destacou-se no mercado, sintonizado
com a juventude moderna e (até certo ponto) americanizada. Produzidos e distribuídos
por uma das companhias mais antigas no Japão, Nikkatsu, tais filmes proporcionaram
uma “atualização simbólica”, como dizem os antropólogos, a uma seção significativa da
audiência das salas de cinema. Os jovens puderam reconhecer-se nas telas.
O historiador Igarashi Yoshikuni escreveu um belo livro cujo título é intrigante:
“Corpos da memória - narrativas do pós-guerra na cultura japonesa (1945-1970)”.
Sugere ele que o sentimento nacional japonês sobreviveu à destruição da guerra muito
mais pelas representações populares do corpo como memória de perda e devastação,
do que pelo discurso político e nacionalista. O escopo é amplo: monstros como
“Godzilla”, luta livre, sequelas da bomba atômica, políticas higienistas durante a
ocupação norte-americana, Olimpíadas de Tóquio em 1964 e o espetacular suicídio de
Mishima Yukio, em 1970, entram na relação. O corpo e suas representações funcionam
como um depositário de experiências históricas: o cinema, naturalmente, é o registro
dessas mutações. Os filmes da Nikkatsu atualizaram a expressão corporal dos
personagens, extrapolando o universo de samurais e gueixas para uma nova vivência
urbana.
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O projeto era explorar um novo nicho de mercado em um cenário altamente
competitivo como o mercado de cinema no Japão. Os estúdios tradicionais estavam
entrincheirados com seus circuitos de distribuição e exibição. Novos entrantes, como o
Toei, apelaram para programas duplos, os famosos filmes “A” e filmes “B, dificultando
mais ainda a briga - para competir, os outros estúdios tinham de produzir mais filmes (a
média do país na década era 500 por ano). Logo em seguida vieram os programas triplos.
Para fazer frente a essa ofensiva, a Nikkatsu apostou em um escritor bem sucedido,
Ishihara Shintaro, especialista em personagens desiludidos e entediados, à procura de
diversão (sexo e lazer), com ou sem dinheiro, adeptos de sol e mar. Tudo isso resultava
em ondas de choque na conservadora sociedade japonesa.
Juventude e Paixão
O sucesso de Ishihara sinalizou uma nova demanda de entretenimento no pósguerra. Na mesma tacada, dois resíduos históricos ficaram sob ataque: os valores
tradicionais, como o código “bushido” dos samurais, e a submissão da velha elite à
influência dos americanos. Em paralelo, um entorno de reprodução midiática,
sobretudo revistas semanais, multiplicou a circulação desses novos comportamentos.
Paradoxalmente, Ishihara, esnobado pelos literatos - um dos poucos que falava com ele
era Mishima – evoluiu para se tornar um político dado a declarações controversas e
xenófobas, sobretudo na época que foi governador de Tóquio, de 1999 a 2012. Além de
escritor, era roteirista e ator. Dois de seus livros publicados na primeira metade dos anos
50, “Juventude rebelde” e “Paixão juvenil”, roteirizados por ele, viraram filmes
bastante populares da Nikkatsu, ambos em 1956.
Em ambos, seu irmão mais jovem, Ishihara Yujiro, teve um papel coadjuvante,
mas suficiente para se fazer notar pela audiência, inclusive como cantor e compositor.
Nos anos que se seguiram, transformou-se na personalidade mais celebrada da cultura
pop japonesa.
Os espectadores ocidentais admiravam a intensidade nipônica de Mifune
Toshiro, mas os jovens no Japão preferiam o visual ocidentalizado e “cool” de Ishihara
Yujiro (mais tarde, os dois produziram e estrelaram filmes juntos, entre eles um
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“jidaigeki” de Inagaki Hiroshi, “Emboscada”, de 1970, com samurais para todos os
gostos). Ishihara era o epítome do individualismo – em um país que primava pelo
coletivismo.
Crazed Fruit
“Paixão juvenil”, exibido em 1956, é um marco. Sobre ele, disse Oshima: “no
som da saia da moça sendo rasgada, as pessoas sensíveis poderão ouvir as lamurias da
gaivota anunciando a nova era do cinema japonês”. Dirigido por Nakahira Ko – dono de
uma carreira de 34 realizações – o filme ecoa ao máximo o clima “taiyozoku”
(literalmente, tribo do sol) explorado pelo livro. O estilo de montagem privilegia
movimentos que se combinam graficamente em detrimento da (esperada) causalidade
lógica espaço-temporal. As cenas de esqui aquático, um dos ápices do ócio preconizado
pelos personagens, caíram como uma luva nesse estilo. Desse modo, a narrativa clássica
baseada nos dispositivos tradicionais de montagem, como plano e contra-plano, perde
a proeminência.
Os desdobramentos da história, sobretudo quando relacionados à sexualidade,
adquirem uma relevância inusitada. Os corpos se soltam, algo quase inimaginável, se
pensarmos que o primeiro beijo na boca do cinema japonês ocorreu dez anos antes, em
1946. François Truffaut louvou o “instinto primitivo” que moldou a direção do filme, em
crítica publicada no “Cahiers du Cinema”, em maio de 1958.
Sem fronteiras, sem limites
Mark Schilling escreveu um sápido texto sobre a Nikkatsu, intitulado “No border,
no limits”. Segundo ele, os filmes da produtora evocam um “mundo cinemático que não
é nem estrangeiro, nem japonês, mas um mix dos dois”. Os “durões” que povoam esses
filmes têm a afetação, os movimentos e as longas pernas dos heróis de Hollywood, mas
são japoneses. Já os cenários em que os personagens se movem eram poucos: ruas de
Tóquio e docas de Yokohama, praias de Kamakura e planícies de Hokkaido, todos
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imbuídos de uma “aura exótica”. E sem fronteiras: a história poderia acontecer em
qualquer lugar.
“Nikkatsu Action”, como se vendia o estúdio, está longe do cinema de Ozu e
Mizoguchi, ou mesmo, embora com algumas afinidades, da “nouvelle vague” de
Oshima, Shinoda e Imamura. A “action” tem como premissa um estado de insatisfação
da juventude, que trilha seu caminho pelas dificuldades da vida com uma (aparente)
facilidade e um certo desprezo pelo que acontece em volta.
Um dos diretores mais identificados com esse estilo de realização
cinematográfica foi o exímio Kurahara Koreyoshi. Logo em 1957, estreia com um
petardo: “Desertores da vida”, com roteiro de Ishihara Shintaro e o irmão Yujiro no
papel principal. O astro faz um boxeador frustrado que encontra uma cantora de cabaré
a beira do suicídio (vivida por Kitahara Mie, ótima atriz, presente também em “Paixão
juvenil”). Gângsters cercam os protagonistas cobrando compromissos, contribuindo
para uma aproximação amorosa, naturalmente. Ele sonha em partir para o Brasil e
juntar-se ao irmão: esperança infundada, pois o irmão foi assassinado antes de partir.
Emulando enquadramentos e iluminação do cinema “noir” americano, a exemplo do
que Godard e seus amigos fariam na França, o filme esmera-se pelas cenas rodadas em
ambiente portuário, com neblinas, alto contraste na fotografia e ceticismo sobre a vida.
Mesclado com o romantismo das duas estrelas, acertou em cheio, foi um sucesso de
bilheteria.
Kitahara Mie e Ishihara Yujiro se casariam em 1960, ficando juntos até a morte
prematura do ator, em 1987, vítima de câncer no fígado. O fato gerou uma verdadeira
comoção nacional: Ishihara atuou em cerca de 90 filmes, e trabalhou bastante na
televisão. A referência ao Brasil no filme não é casual, liga-se à história da migração
japonesa (um pouco antes, em 1955, o personagem de “Anatomia do Medo”, de
Kurosawa Akira, já especulava sobre uma possível evasão para o Brasil).
Mise-en-scène bebop
A câmera de Kurahara Koreyoshi tinha a vocação da ousadia. Apresentado por
Honda Ishiro (de “Godzilla”), tornou-se assistente de Yamamoto Kajiro, o mentor de
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Kurosawa, na Shochiku, no começo dos 50. Passou para a Nikkatsu em 1954, quando o
velho estúdio procurava se reerguer e encontrar um nicho de mercado. A opção de
assimilar a estética do filme “noir”, incluindo a construção psicológica dos personagens,
tinha também um viés comercial. Tratava-se de atingir o público do cinema importado,
jovens urbanos impacientes e ansiosos. “Juventude transviada”, de Nicholas Ray,
passou no Japão em 1955 e foi um êxito. James Dean com seu perfil nauseado e
insolente tornou-se referência. A sintonia com os europeus, como Julien Duvivier e
Federico Fellini, também estava presente. Em 1960, Kurahara realiza seu melhor
projeto: “The warped ones”, narrativa jazzística ao ritmo do “bebop”.
Correndo por fora das convenções de estúdio vigentes no Japão, o filme associa
de maneira frenética a aceleração da trilha jazzística com o compasso da montagem, os
ângulos da tomada e a composição das imagens. E com a câmera na mão, claro, sem
receio de tremer, reproduzindo compulsivamente os olhares dos personagens na selva
urbana. O resultado é surpreendente e poderoso: a narrativa flui acoplada às escalas
harmônicas do “bebop”, que por sua vez parecem impregnar-se no personagem
principal. Enquanto marca o tempo da bateria e emite juízos sobre jazz, ele pensa como
matar o tédio: sexo, comida, praia, roubo, carro e vingança. O motivo que se baseia sua
errância é vingar-se de um jornalista que o denunciou em um bar. Estupra a noiva deste
e, em uma inversão inusitada, deixa-se perseguir pela própria vítima. Um herói
sociopata, um rebelde sem causa, um corpo animado de uma pulsão permanente de
transgressão.
O sol negro
A veia jazzística continuaria em “Black sun”, de 1964, que contrapõe o mesmo
personagem de “The warped ones” a um GI negro em fuga, ferido na perna depois de
ter matado alguém a rajadas de metralhadora. A trilha sonora foi executada pelo
quarteto do imbatível Max Roach, o baterista do “bebop”. Tudo é alegoria nesse filme:
a exaltação do jazz como base de reconciliação entre vencedores e vencidos; o espaço
da Igreja cristã semidestruída pelos bombardeios, onde vive o rebelde sem causa
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japonês; a caracterização de palhaço a que se submete o GI, em sua rota de fuga; e o
crucifixo que carrega, suposto símbolo de uma civilização.
Kurahara dirigiu vários sucessos para a Nikkatsu, até “Thirst for love”, de 1967,
baseado no livro homônimo de Mishima. Realização impecável, com a intensidade que
o texto pedia, narra o desejo reprimido de uma viúva pelo jardineiro da mansão em que
vivia, com o sogro e família. Os produtores acharam o projeto muito “artístico” e
atrasaram a distribuição, além de demitir o diretor.
Transformado em “free-lancer”, tal como ocorreu com a maioria dos diretores
contratados por estúdios, consolidou-se como campeão de bilheteria com “Antártica”,
de 1983. Inspirado em eventos reais - cachorros deixados no inverno do polo sul por
uma expedição japonesa - conta a história do posterior resgate por uma dupla de
cientistas. Sua última assinatura foi a codireção do drama para TV, “Hiroshima”, com
três horas de duração, que alterna documentário e ficção. Deu a volta ao mundo e
retornou ao país natal: a guerra.
Masoquismo e silicone
A joia da coroa da Nikkatsu no frenesi da produção dos 50 e 60 foi sem dúvida
Suzuki Seijun. Realizou 40 filmes ente 1956 e 67, a maioria filmes “B” para compor o
programa duplo do estúdio – orçamentos baixos, roteiros sofríveis, produção rápida, era
difícil diferenciar-se do resto dos diretores. Em 1963, Suzuki consegue finalmente sair
do “template” e emplacar: seu “Youth of the beast” traz uma série de inovações formais
que realçam seu estilo dentro do gênero policial, no Japão associado aos yakuzas. A
partir daí sentiu-se confiante para experimentar e refinar a linguagem, introduzindo
pausas, cortes, ângulos e, sobretudo, mise-en-scènes inesperadas e contundentes.
O formato comercial foi esticado e subvertido ao máximo em “A marca do
assassino”, de 1967. A corda roeu e Suzuki foi demitido, ficando quase dez anos sem
filmar. À época, a classe se mobilizou em protestos, com repercussão. Entre outros,
Oshima e Shinoda participaram dos atos públicos. O estúdio estava mesmo em péssima
situação financeira, e o sistema que vinha dos anos 50, implodindo – em 1971, a
Nikkatsu partiria para a produção de eróticos “soft-core”, batizados de “roman porno”.
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Sato Tadao, o crítico perspicaz, sugere uma leitura penetrante de Suzuki: o
humor estilizado do diretor tem um parentesco com a literatura cômica do período Edo
(1603-1867), a era dos xoguns Tokugawa. Por essa via, ele foi capaz de incorporar a
tradição pictórica popular, como a fantástica série dos “retratos do mundo flutuante”,
“ukiyo-e”, um dos ancestrais do mangá, e ultrapassar a dimensão literária estrita. Bemvindo ao mundo do cinema.
E mais: a experiência da guerra – convocado em 1943, mal saído da escola,
naufragou duas vezes e passou pelas Filipinas e Taiwan – fixou nele uma “doutrina de
mutabilidade”, única forma de conviver com a erosão de realidade à sua volta. Na
tradição dos cartunistas do Edo, Suzuki distanciou-se de si mesmo e passou a ver o
mundo patética e ironicamente, extraindo um humor masoquista das experiências
“anormais”. Nada melhor do que o cinema para dar vazão a esse desejo.
Para arrematar, Suzuki encontrou um parceiro ideal: Jô Shishido, o ator que não
hesitou em agregar 23 gramas de “organogen” em suas bochechas, a fim de adquirir um
ar de “tough guy” dos filmes americanos. “Organogen”, explicou Shishido a Mark
Schilling, “não é silicone, é feita de gasolina, coisa desagradável”. A prótese funciona
também como memória inscrita no corpo, uma narrativa que se agrega à representação
popular da perda e devastação, como sugeriu Igarashi Yoshikuni.
Portal da carne
A guerra já tinha acabado há quase vinte anos mas as arestas resistiam. Os
tumultos de 1960 atualizaram o sentimento hostil contra os EUA, à direita e à esquerda
do espectro político. Em 1964, a Nikkatsu pede a Suzuki para adaptar o best-seller de
Tamuta Taijiro, publicado em 1947, sobre as prostitutas no caótico centro de Tóquio do
pós-guerra, as “pan-pan”.
“Gate of flesh”, filmado em cores fortes, tem no epicentro desse espaço exíguo
ruínas onde vivem cinco mulheres, ciosas do seu território, que vendem seu corpo para
sobreviver. Na vizinhança, uma base americana provê um fluxo regular de clientes, aos
quais se juntam os locais. Na paisagem social que circula nas ruelas e aleias sempre
cheias, de prostitutas ao mercado negro, sobressaem as forças ocupantes. Os GIs são
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figurantes que se destacam na multidão: são também cúmplices do mafioso da área, e
eventualmente saco de pancadas para um soldado japonês que retornou do front,
encarnado por Jô Shishido. Uma pequena vingança.
A “feminização” do Japão é um dos fetiches que a ocupação norte-americana
resgatou, e que perdura até hoje. O imaginário ocidental em boa medida associa a
mulher japonesa ao comportamento da gueixa, um estereótipo que traz embutida a
submissão dos vencidos. Ora, no filme de Suzuki as coisas se passam de outra maneira:
as prostitutas são assertivas, lutam pela sobrevivência. Tem um humor cáustico, e são
conscientes que o país tornou-se mais “democrático” com a derrota. Cultivam um
código cruel: aquela que não cobra pelos serviços, que cedeu a uma paixão amorosa, é
impiedosamente torturada e excluída. Mas se prestam a submeter-se ao “retornado”, o
atlético soldado que se refugia naquele abrigo. A masculinidade nipônica é restaurada.
Nesse filme – assim como em “Story of a prostitute”, de 1965, passada na
Manchúria ocupada pelo japoneses – o que parece estar em jogo para o diretor são as
relações entre sexo e história, entre as relações que se estabelecem através da
sexualidade em tempos de aflição e infortúnio. Morte e sadismo compõem esse
universo, prenúncio de um cinema erótico moderno (a nudez de “Gate of flesh” é
pioneira pela ousadia entre as produções feitas pelos estúdios). A jovem e bela Nogawa
Yumiko é a estrela de ambos os filmes, ambientados em diferentes tempo e espaço. Em
a “Story of a prostitute” é uma “comfort woman” do exército japonês – situação que o
diretor conheceu de perto durante a guerra – que se apaixona por um suboficial. A
história também parte de um livro de Tamuta Taijiro. A guerra foi uma experiência
brutal, disse Suzuki, mas extremamente cômica e absurda.
O solitário de Tóquio
O viés político e antimilitarista de Suzuki iria ficar ainda mais explícito com
“Fighting elegy”, de 1966. A ação cobre a educação ideológica (e sentimental) de Kiroku
nos anos 30, estudante de uma escola média, celeiro de fanáticos nacionalistas. Com
roteiro de Shindo Kaneto, a história articula repressão sexual com atos de agressão. Na
galeria de personagens proto-fascistas aparece o escritor e militante Kita Ikki, que mais
100
tarde seria executado por conta do golpe de 26 de fevereiro de 1936, quando 1.400
rebeldes assassinaram o Ministro das Finanças e o Inspetor de Educação Militar, e
exigiram, face à corrupção do governo, a restauração da obediência cega ao Imperador
(o tiro saiu pela culatra: a ordem de reprimir o levante partiu do próprio Hiroíto). O
Primeiro-Ministro Okada, que tinha fama de moderado, só escapou porque os rebeldes
o tomaram pelo cunhado, este sim, assassinado.
“Fighting elegy” foi lançado em um momento onde o culto ao “patriotismo” de
Kita experimentava um recrudescimento, liderado por escritores como Mishima Yukio e
Ishihara Shintaro. O humor amargo que permeia o filme torna as situações abstrusas,
incômodas.
No mesmo ano, 1966, o diretor realiza “Tóquio violenta”, um primoroso
exercício do cinema de gênero “yakuzas”. Mark Schilling assinala, em “The Yakuza
Movie Book: A Guide to Japanese Gangster Films”, que o longa de 1948 de Kurosawa
Akira, “O Anjo embriagado”, foi o pioneiro no tratamento moderno sobre yakuzas, mas
foi Suzuki um dos principais diretores a consolidar o estilo nos anos 60.
A explosão de narrativas sobre o crime organizado, para além da importação dos
clichês do cinema americano, reflete o novo momento histórico no Japão, onde o
dinheiro trocava de mãos rapidamente: a era do “milagre econômico”. Os clãs yakuza
resgatam códigos de honra enterrados no passado e os reciclam para o panorama
urbano da modernidade, configurando uma paródia inevitável do comportamento
cerimonioso dos filmes históricos, os “jidaigeki”. Kitano Takeshi é hoje o realizador/ator
mais representativo do gênero. “Tóquio violenta” é um ilustre antecessor do “yakuza
existencialista” de Kitano. Mas Suzuki queria mais.
A demissão
Queria, enfim, a desconstrução do gênero. Sua aposta em “A marca do
assassino”, concluído em 1967, pode ser vista hoje como um projeto de ruptura com o
sistema de produção da Nikkatsu. Uma ruptura dolorosamente calculada para o nível do
simbólico, na essência do produto audiovisual. As inovações de linguagem introduzidas
por Suzuki desnudaram por completo as normas do gênero, até revelarem sua
101
“constituição atômica”, como sugeriram Tom Mes e Jasper Sharp em “The midnight eye
guide to the new Japanese cinema”. Ao fim e ao cabo, proporcionaram a reconstrução
de algo que pode ser descrito como “puro cinema”.
Jô Shishido é um matador em busca do status de “number one” no mundo do
crime. Alterna assassinatos com sexo, excitando-se com o aroma de arroz recémcozinhado, até que cruza com a misteriosa Misako, vivida pela atriz japonesa de origem
hindu, Annu Mari. Um deslocamento que desequilibra o herói, em uma narrativa onde
a lógica desinforma.
Sair dos clichês e lugares comuns não era fácil. Suzuki testou em diálogo
constante com o mercado, durante anos, diferentes técnicas de realização. O nível de
abstração que atinge em “A marca do assassino” traz um verdadeiro salto
epistemológico de soluções cinematográficas. Cada posição que os personagens
ocupam no plano, cada junção de tempo e espaço que desorienta a certeza sensível do
espectador - tudo parece confluir para uma estetização das imagens e da enunciação
das falas, que passam a valer mais pelo efeito estético do que pelo conteúdo que
emanam.
O presidente da Nikkatsu, Hori Kyusaku, não entendeu nada e ficou perplexo. Por
telefone, Suzuki foi informado de sua demissão.
Para se virar, realizou séries de TV, converteu-se em ator, e foi até crítico de
cinema. Em 1971, ganhou a causa trabalhista contra o estúdio. Mas só voltaria a filmar
em 1977. Entre outros, em 1991 rodou “Yumeji”, sobre um pintor e poeta da era Taisho,
e, em 2001, “Pistol Opera”, remake de “A marca do assassino”, com uma mulher no
papel de matadora. Continuou de bom humor. Jô Shishido, por sua vez, removeu o
“organogen” das suas bochechas após a onda dos filmes “action”, e foi trabalhar na
televisão.
Eficiência
O diretor mais eficiente na Nikkatsu, do ponto de vista da produção, foi Masuda
Toshio. Entre 1958 e 68 dirigiu a assombrosa cifra de 52 filmes, 25 dos quais com o astro
102
Ishihara Yujiro no papel principal (o primeiro foi “O Punhal da Vingança”, de 1958).
Embora sem o brilho de Kurahara e Suzuki, foi um dos que melhor assimilou a linguagem
dos filmes “noir”. Antes de ir para a Nikkatsu, foi assistente de Naruse Mikio e do
também fecundo Inoue Umetsugu. Com Naruse, compartilhou a assistência com Ishii
Teruo, mais tarde um original (e maldito) diretor de bizarros filmes “pink”.
A genealogia entre diretores e assistentes permitia a transmissão do
conhecimento do ofício de “metteur-en-scène” nos próprios estúdio. Com a implosão
do sistema, na década de 60, essa cadeia de transmissão foi descontinuada (Kurosawa
e vários outros sempre se queixaram amargamente desse fato). Quando a produtora
lançou-se no gênero “roman porno”, em 1968, Masuda saiu da Nikkatsu. Independente,
continuou colecionando sucessos e filmes com grande orçamento. Foi ele o principal
diretor pelo lado japonês da caríssima produção “Tora! Tora! Tora!”, em 1970.
Paixão e excesso
Trabalhando por longos anos para o estúdio Daiei, mas também rompendo
estilisticamente com o classicismo vigente do cinema japonês, um nome se destaca: o
extraordinário Masumura Yasuzo, o realizador da “paixão e do excesso”, como nota o
crítico Tom Mês, retomando uma definição de cinema do próprio Masumura. De 1957
a 1982 dirigiu 58 filmes, quase todos para o Daiei, onde trabalhou inicialmente como
assistente de grandes diretores, como Mizoguchi e Ichikawa.
Culto, Masumura era aberto aos influxos culturais do Ocidente: estudou filosofia,
conhecia os liberais ingleses (Hume e Locke) e Kierkegaard, sobre quem escreveu a tese
de graduação. Passou dois anos em Roma, no “Centro Spirimentale Cinematografico”,
onde conheceu Fellini, Visconti e Antonioni. Deste último, foi mais próximo: Antonioni
ajudou a organizar uma retrospectiva de seus filmes na Itália, após a morte de
Masumura, em 1986. A vivência na capital italiana foi fundamental para consolidar sua
concepção mais ampla de um cinema “cultural”, uma atividade que não é somente uma
forma de entretenimento e evasão, mas conectada à história e aos temas
contemporâneos demandados pela sociedade.
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Além de fazer filmes, Masumura escreveu muito sobre cinema. Em geral, é
situado nas cronologias do cinema japonês como uma ponte entre os clássicos dos anos
50 e a “nouvelle vague” dos 60. Seu primeiro filme, “Kisses”, de 1957, entusiasmou a
nova geração de diretores, começando pela sequência da motocicleta, quando os
protagonistas vão à praia. Segundo Oshima, com esse filme “uma poderosa e irresistível
força chegou no cinema japonês”.
Vitalidade contra resignação
Em 1958, Masumura produziu um longo artigo para rebater críticas
conservadoras que acusavam seu longa “Giants and Toys” de artificial, exageradamente
cômico e desprovido de sentimento. Para ele, “sentimento”, tal como expressado nos
filmes japoneses clássicos, significava contenção, harmonia, resignação, derrota e
escape: seus filmes, ao contrário, buscavam vitalidade, conflito, luta, prazer e
obstinação. O que interessava a ele era o “conflito entre expressões de desejos explícitos
que não podem ser mitigados pelo ambiente que os cerca”. Em resumo, paixão e
excesso.
Uma crítica aguda, que toca no âmago da tradicional atitude de contenção
confucionista assimilada pelo Japão. Sua linguagem cinematográfica foi concebida
nesses parâmetros, de forma brilhante. Provocou resistências, à direita e à esquerda:
mesmo Oshima mudou sua posição e passou, depois de “Giants and Toys”, a criticar os
personagens de Masumura como “desprovidos de subjetividade política”, taxando-o de
realizador que filma “com um olho aberto e outro fechado” - ou seja, faz a crítica social
mas é incapaz de dotar os personagens de “consciência histórica” (típico comentário
datado). Vistos hoje, os filmes de Masumura continuam fortes e expressivos, cada vez
mais.
O falso estudante
Oshima Nagisa – que escrevia compulsivamente, desde o início da carreira reforçou sua crítica depois de “O falso estudante”, de 1960, filme de Masumura que
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narra as desventuras de um jovem reprovado no vestibular e resolve frequentar de
qualquer jeito a universidade. Tragado pelo movimento estudantil que se avolumava,
termina passando por delator para os colegas e ativista político para a polícia. Embora
não faça alusão direta, é evidente que o filme se reporta aos protestos contra o ANPO –
foi lançado poucas semanas depois dos tumultos que levaram à queda do PrimeiroMinistro Kishi.
Na crítica que escreveu, Oshima disse que a proposta era dialeticamente
insuficiente, pois não sinalizava com clareza o lugar do personagem na história e na
sociedade. Tinha provavelmente duas razões para fazer essa (severa) observação: a
primeira é que o tema da revolta estudantil iria ser explorado também em seu longa
“Noite e neblina no Japão”, do mesmo ano, 1960; e a segunda é pelo seu passado de
ativista estudantil em Quioto, razão pela qual se atribuía autoridade para falar sobre o
assunto.
Corte no pico dramático
O que talvez tenha escapado ao diretor da “nouvelle vague” é que a revolução
de Masumura acontecia em outro lugar: na linguagem cinematográfica. Donald Richie
salienta a dívida do realizador com Yoshimura Kozaburo, outro relevante diretor da
Daiei, praticante da montagem telescópica. Na contramão do estilo habitual de edição
dos anos 50, Yoshimura passou a fazer o corte no exato instante do pico dramático da
cena, ao invés de deixar a ação arrefecer para cortar. Na próxima imagem, a ação
também está no pico, produzindo assim o chamado efeito telescópico, isto é, um clímax
dramático empilhado sobre o antecedente.
Masumura, que reconheceu em Yoshimura sua fonte inspiradora, radicalizou o
método e o transformou em uma espécie de trincheira autoral. Enquanto o cinema
clássico, lento e privilegiando atmosferas, suprimia a personalidade individual,
submetendo-a ao coletivo – conforme a tradição literária japonesa – seus filmes, através
do corte rápido e quase ofegante, sufocavam a atmosfera da narrativa e achatavam o
perfil psicológico dos personagens. Com isso crescia o interesse do espectador pela
105
história, agora mais energética e vigorosa. A ação frenética compensava o risco da
superficialidade em função da velocidade dos cortes das imagens.
O melhor exemplo dessa estratégia é “Giants and Toys”, de 1958: um filme em
alta voltagem, diálogos disparados como tiros de metralhadora e uma mise-en-scène
vertiginosa. O enredo trata da competição selvagem entre empresas produtoras de
doces caramelos e os respectivos departamentos de marketing. Um retrato da
acumulação e reprodução do capital, em um momento onde a economia japonesa
expandia-se com velocidade espantosa – sociedade de consumo a todo vapor. O frenesi
da linguagem reproduz o frisson dos personagens de uma maneira exagerada, quase
caricatural, que acabou levando à diferentes apreciações. Enquanto era incluído na
prestigiada lista dos “Top ten” da revista “Kinema Jumpo”, “Giants and Toys” não
emplacou na bilheteria e foi rechaçado pelos críticos mais conservadores.
Exibido no Festival de Veneza de 1958, foi igualmente repudiado pelos analistas
italianos, que descartaram a fita como “cinema Coca-Cola”. Com a distância histórica,
entretanto, a técnica de montagem proposta por Masumura exibe uma incrível
aderência à época em que foi produzido, marcada pelo “boom” econômico do paísarquipélago.
Com esse filme Masumura firmou-se com um dos principais diretores da Daiei.
Para o bem e para o mal, logrou impor seu estilo. Ficou na Daiei até 1971, ano em que
o estúdio faliu. Durante a década de 60 realizou trabalhos excepcionais, destacando-se
a presença da belíssima Wakao Ayako como sua atriz principal.
O anjo vermelho
Além do mérito intrínseco – é difícil singularizar um destaque nessa filmografia
tão diversa – o conjunto da obra do diretor denota uma visão precisa das mazelas da
sociedade japonesa. No magnífico “Red Angel”, de 1966, a guerra contra os chineses
retorna com crueldade explícita. Ambientada em hospitais militares na linha de frente,
a história segue as peripécias afetivo-sexuais de uma enfermeira, a um só tempo
imbuída de sua missão e vulnerável emocionalmente. Começa suas aventuras com um
mutilado, onde adquire a consciência do drama da guerra, para em seguida tornar-se
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amante do médico (viciado em morfina) de campanha. A crueza do encontro é patética:
ela se apieda de um soldado ferido, cuja única e remota chance de sobreviver era a
amputação de uma perna. Implora ao médico para fazê-lo: este, com uma frieza
inesperada, retruca; farei, se você for ao meu quarto à noite. Com essa senha, inicia-se
a relação.
Uma filme com uma mise-en-scène radical, disse Hasumi Shigehiko a Jonathan
Rosenbaum. E o crítico japonês complementa: à época, no Japão, “Red Angel” foi
considerado um filme (quase) pornográfico. A introdução de um ato sexual da ordem do
estupro em uma situação limite de carnificina gráfica, com a sala cheia de soldados
gravemente feridos, pegou a audiência desprevenida. Sexo e violência não era uma
associação desconhecida, mas ambientado em um local onde supostamente prevalecia
a ética médica, era inusitado. A guerra, afinal, ainda latejava em boa parte da população.
“Red Angel” partiu de um romance de Yoriyoshi Arima, roteirista de Masumura
em mais dois filmes: “The hoodlum soldier”, de 1965, sobre um ex-yakuza que se tornou
soldado no front chinês, e “Hoodlum soldier: rebel in the army”, de 1972, uma das
sequências em cima do mesmo personagem (foram nove no total, o restante realizado
por diretores diversos).
1964, ano produtivo
O fato de romper com a visão “literária” prevalecente no cinema clássico japonês
não implicou no abandono das fontes literárias. Masumura foi um fecundo adaptador
de grandes obras, de Kawabata a Tanizaki. Inspirados em três provocativas obras deste
último, realizou alguns de seus filmes mais representativos. “Tatoo”, de 1964, narra a
cruzada vingativa de uma mulher raptada e forçada a prostituir-se. Em suas costas, uma
tatuagem de aranha com face humana comanda a virulência, tomando espiritualmente
a personagem e dotando-a de uma energia (feminina) inesgotável.
Em “Manji”, também de 1964, Wakao Ayako faz uma demiurga erótica que
invade um lar burguês, seduz a esposa e o marido, e arrasta ambos ao (triplo) suicídio.
A mera descrição sinóptica já é de tirar o fôlego; com a montagem excitada de
Masumura, mais ainda, pois o ritmo mantem-se no pico durante toda a ação. E o
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surpreendente “Love for an idiot”, de 1967, talvez o retrato mais próximo da realidade
que já se fez no cinema sobre a submissão (consciente) masculina a uma mulher. O
termo “masoquismo”, considerado do ponto de vista psicanalítico, é insatisfatório para
explicar a motivação do personagem. Uma sátira genial.
Foi em um filme de Masumura que o seu ex-colega na faculdade de direito, o
escritor Mishima Yukio, protagonizou seu primeiro papel: “Afraid to die”, de 1960.
Outro colaborador destacado de Masumura foi Shindo Kaneto, roteirista de “Tatoo” e
“The Wife of Seishu Hanaoka”, de 1967. Kaneto, que morreu com 100 anos em 2012,
escreveu cerca de 150 roteiros e dirigiu mais de 60 filmes, entre eles o fantástico
“Onibaba, o sexo diabólico”, de 1964 – uma história ambientada em um cenário
claustrofóbico durante as guerras intestinas do século 16, carregada de forte erotismo,
sexo e nudez. Natural de Hiroshima, realizou “Filhos de Hiroshima”, em 1952, logo após
o fim da ocupação norte-americana.
Ainda em 1964, a produção japonesa que alcançou maior exposição
internacional foi o impressionante “A mulher de areia”, de Teshigahara Hiroshi,
igualmente claustrofóbica e sensual. Dedicado às artes florais (“ikebana”), Teshigahara
foi um diretor bissexto, com poucos filmes: dois documentários sobre um boxeador
porto-riquenho, Jose Torres, e “O rosto da maldade”, de 1967, se destacam.
Política e desejo no cinema
Ian Buruma sugere que é digno de nota como os japoneses radicais tendem à
pornografia. E como a pornografia no Japão tende à crueldade e à violência. A conexão
entre política e violência sexual é algo a explorar, conclui. E prossegue: os escritos de
Oshima Nagisa - ex-ativista estudantil, “bad boy” da “nouvelle vague” japonesa, diretor
de “O império dos sentidos”, dandy e personalidade da TV – fornecem um bom começo.
É público e notório que os anos 60 trouxeram um germe revolucionário que
varreu o mundo, pelo menos o ocidental ou aqueles sob influência do Ocidente. Sexo e
política foram componentes indispensáveis dessa varredura. O Japão pós-ocupação
norte-americana era um cenário receptivo a esses ventos. Por um lado, um discurso de
esquerda fervilhava nas universidades e meio artístico; por outro, os assuntos ligados à
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sexualidade, a despeito do moralismo conservador, definitivamente não carregavam o
fardo judaico-cristão que obscurece mentes e corações nos países ocidentais. O cinema
“pink” desvelou o transbordamento da sexualidade nas telas, captando uma audiência
crescente.
Faltava alguém para vocalizar esse novo momento, que explicitasse o conflito e
os limites impostos pela sociedade. Afinal o Japão, país-insular tão orgulhoso da sua
esplêndida herança cultural - e tão suscetível de aderir sem rodeios aos desígnios mais
extremos - tinha encarado uma guerra contra meio mundo poucos anos antes. Essa
personalidade foi Oshima Nagisa.
Rebelde com causa
Claro, não era somente ele a rebelar-se. Mas sua capacidade de amplificar as
intervenções, sua raiva contra convenções, moralismos e estigmas sociais, eram, para
usar um adjetivo exagerado (mas pertinente), vulcânicas. Um dos objetos dessa
verdadeira ira era o cinema japonês dos anos 50, feito para aplacar os conflitos, para
neutralizar as contradições; o Japão, dizia, não era nada daquilo. A rebelião de Oshima
tinha como alvo não apenas os filmes de Ozu, Naruse e Mizoguchi, mas as tradições que
eles representavam. Na forma e no conteúdo: os planos fixos, as expressões não-ditas;
a composição meticulosa das imagens; e os olhares femininos baixando a vista com
submissão e resignação. Retratos de uma geração frustrada e impotente, enfim. Oshima
queria dar um sentido político à energia deflagrada pela juventude urbana do pósguerra, que não se sentia culpada pelas atrocidades do conflito.
O pai de Nagisa morreu quando ele tinha seis anos, deixando a família
empobrecida. Funcionário público descendente de samurais, deixou também uma
biblioteca atilada, com Marx e Freud, entre outros. Estudante de direito na prestigiada
universidade de Quioto, Oshima entrou para o cinema como assistente de direção na
Shochiku (a produtora de Ozu), onde trabalhou com Kobayashi Masaki. Destacou-se por
um curta promocional de sete minutos (espertamente oportuno) que realizou sobre
jovens atores e atrizes em ascensão. Ao mesmo tempo, exalava críticas ferinas na revista
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de cinema “Eiga hihyo” (“Crítica de filmes”), onde escreviam Yoshida Kiju, Hani Susumu
(nomes associados à “nouvelle vague”) e o crítico Sato Tadao.
Em 1959, com apenas 27 anos – cedo para os padrões dos estúdios – dirige seu
primeiro longa, “A town of love and hope”, sobre um adolescente pobre que vende um
pombo para sustentar a mãe doente (o pombo, treinado, sempre retornava). Em 1960,
realiza três filmes, todos marcantes: um prodígio.
Negação de si
“Juventude desenfreada”, o primeiro deles, a cores, foi bem na bilheteria. Uma
jovem disposta a aventuras encontra um parceiro às vezes cínico, às vezes áspero, que
a seduz em um depósito aquático de madeiras, na orla do mar. A sequência é carregada
de um erotismo contundente. Momentos antes, o par testemunhou demonstrações de
rua contra o ANPO (o rapaz cumprimentou de passagem um conhecido que protestava).
Uma versão politizada do cinema “tribo do sol”, com a turbulência de afetos e desafetos
característica, e o final trágico. A velocidade dos cortes e a câmera na mão garantiram a
adrenalina da história. A motocicleta, elogiada por Oshima no filme de Masumura
(“Kisses”), aparece e sobressai. Um plano rápido da parelha (ela já grávida) sentada na
beira do cais remete à icônica imagem do casal idoso no filme de Ozu, “Era uma vez em
Tóquio”. Uma citação consciente, que marca a proposta antitética do diretor em relação
aos seus antecessores no cinema japonês.
A compulsão pelo negativo que distinguia a agressividade crítica de Oshima –
não somente em relação ao cinema, mas ao capitalismo injusto, ao dogmatismo político,
à xenofobia e ao humanismo hipócrita – se voltava também para seu próprio trabalho.
Lucia Nagib, em seu estudo “Nascido das cinzas: autor e sujeito nos filmes de Oshima”,
ressalta o método do diretor, chamado por ele de “negação de si”. Cada novo filme é
uma espécie de antítese do anterior: repisar um modelo significa tornar o método da
direção rígido e impessoal, diluindo irremediavelmente a perspectiva autoral do
trabalho.
Em o “O túmulo do sol”, ainda em 1960, dá um salto e localiza a ação na agitada
periferia de Osaka, onde prevalece uma economia baseada na compra e venda de
110
sangue. Além da representação brutal de um estado primitivo de sobrevivência, há o
sexo, os jovens, e a delinquência. Oshima mais tarde lembraria a excitação sexual exibida
no set de filmagem pela principal estrela, Honoo Kayoko (pouco antes, conta o diretor,
a atriz envolveu-se em uma tentativa frustrada de duplo suicídio, com um parceiro um
ano mais jovem).
Noite e neblina no Japão
O detalhe sobre Honoo foi descrito por Oshima anos mais tarde, em 1976,
durante a controvérsia sobre a cena de sexo explícito de “O império dos sentidos”,
censurado no Japão. No mesmo texto – incluído na coletânea “Cinema, Censorship and
the State: Oshima“ - o diretor narra encontro com Glauber Rocha na porta de um hotel
no Quartier Latin, em Paris. Glauber contou-lhe sobre as dificuldades na censura
brasileira para liberação de “O túmulo do sol”, afinal exibido e apreciado, “sem
subtítulos”, pelos jovens fãs de Oshima no Brasil.
No próximo, “Noite e neblina no Japão”, também em 1960, a colisão com a
Shochiku era inevitável. Quatro dias depois do lançamento, o estúdio tirou o filme de
cartaz, e, poucos meses depois, Oshima se demitiu e tornou-se um pioneiro produtor
independente.
Antes de começar a rodar, amigos aconselharam-no a postergar a produção, mas
ele recusou. Uma das razões alegadas para tirar o filme dos cinemas foi o temor por
agitações devido ao assassinato, dias antes, de um líder socialista por um extremista
nacionalista, durante debate transmitido ao vivo pela TV. “Noite e neblina no Japão”,
acerto de contas entre a velha e a nova esquerda (conflito que o diretor conhecia com
detalhes dos seus tempos de ativista estudantil), se passa em uma festa de casamento
interrompida: brigas, ciúmes, expurgos stalinistas, protestos contra o ANPO,
ressentimentos e até um suicídio são dramatizados, em cores e cinemascope. Tudo isso
em planos longos, com poucos cortes. O crítico inglês Tony Rayns, observador arguto,
sugere que nem Godard tinha pensado em uma linguagem como essa, que iria utilizar
no seu “A gaia ciência”, de 1969. No Japão, o filme de Oshima abre e fecha no nevoeiro.
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Um samurai entre lavradores
Imamura Shohei, o formidável realizador contemporâneo de Oshima, dizia: “Eu
sou um lavrador, Oshima é um samurai”. Orgulhoso e lutador, certamente Oshima era.
Sua conversão em produtor independente causou-lhe muita angústia, confessou em
seus escritos, mas contribuiu para deslanchar uma impetuosidade impressionante. Em
1961 dirige “The catch”, sobre a detenção e execução de um soldado americano negro
no final da guerra, em um vilarejo rural; em 1962, “The rebel”, sobre a revolta de
camponeses contra o xogunato, no século 16, liderada pelo cristão Amakusa Shiro.
Neste mesmo ano engata uma carreira de documentarista para televisão – até 1977
participaria de 22 produções, como roteirista, narrador e montador.
Sua metralhadora inquisitiva girou em todas as direções: “The Pacific war”, de
1968; “Mao and the cultural revolution”, de 1969; “The forgotten imperial army”, de
1963, sobre os coreanos que lutaram pelo Japão na guerra, continuaram residindo no
arquipélago e não obtiveram nenhum reconhecimento, nem mesmo pensão; e “Diary
of Yunbogi”, de 1965, em que juntou trechos do diário de um garoto coreano de seis
anos abandonado pela mãe com fotos, tiradas por ele mesmo, de menores de rua em
Seul.
As viagens que fez à Coreia, em 1964 – país que foi ocupado e colonizado pelos
japoneses, de 1910 até o fim da guerra em 1945 – e ao Vietnam (1965, em pleno
conflito) tiveram forte impacto no diretor. O primeiro atravessava uma grave crise
política; e o segundo, uma longa guerra anticolonial. Em ambos, opressão e revolta,
situações limite e dramas. A prática da linguagem televisiva, necessária para
sobrevivência profissional, também influenciou o diretor. A exemplo de Jean-Luc
Godard, não é possível pensar as transformações de sua carreira desvinculadas desse
enorme e fragmentado fluxo de imagens que é a televisão, consolidada no Japão e no
mundo ao mesmo tempo em que ambos, Godard e Oshima, progrediam como
realizadores. Produzir uma imagem passou a significar muito mais do que reproduzir ou
criticar fórmulas convencionais da tradição cinematográfica. A imagem, agora, era
estruturada e veiculada ininterruptamente, de fontes e interesses diversos. Inserir-se
criticamente nesse circuito era entrar em um território absolutamente desconhecido.
112
Produtividade
A volta à ficção foi um rolo compressor. Começando em 1965, com “The
pleasures of the flesh” – uma fábula sobre a fantasia sexual de um tutor levada ao
paroxismo – até “Dear summer sister”, de 1972, ambientada na abstrusa situação de
Okinawa, uma colônia “contemporânea” do Japão, foram uma dúzia de produções. O
período mais produtivo do diretor.
Os coreanos foram convocados. O magistral “O enforcamento”, de 1968, foca na
execução seguidamente frustrada e adiada de um coreano, acusado de assassinar uma
estudante japonesa (episódio real, ocorrido em 1958). O desenrolar do filme é a
descosedura do sistema legal que impera no país e provê legitimidade à pena de morte.
“O garoto Toshio”, de 1969, também inspirado em um “fait divers”, acompanha uma
família disfuncional que sobrevive forjando acidentes de carro. “Diary of a Shinjuku
thief”, ainda em 1969, assemelha-se aos filmes de Godard – livros e citações, grupos
discutindo sexualidade – mas com cenas de sexo mais ousadas e explícitas do que as do
diretor franco-suíço. “Man who left his will on film”, de 1970, é um inapelável exercício
de metalinguagem, um filme sobre uma câmera roubada e o ladrão suicida. E o
devastador e elegante “The cerimony”, de 1971, traça 25 anos na vida de um clã
incestuoso, filmando apenas casamentos e funerais, os ritos de passagem.
Em meados dos 70, Oshima mudou. Exaurido das condições de produção do
cinema japonês – mas não da temática e contradições japonesas – partiu para o
financiamento internacional, beneficiando-se da acolhida que seus filmes obtiveram em
vários mercados, sobretudo na França. Produz menos títulos, mas torna-se um
realizador global. “Império dos sentidos”, de 1976, é a primeira e escandalosa parada
dessa jornada.
A mulher inseto
A afirmação de Imamura sobre Oshima sugere uma autoimagem prosaica como
realizador. Na verdade, Imamura é absolutamente fundamental na construção do
113
cinema moderno japonês. Aos dezoito anos ouviu a voz do Imperador Hiroíto no rádio
– precisamente às 12 horas do dia 15 de agosto de 1945 - reconhecendo a derrota na
guerra e conclamando os súditos a “superar o insuperável”. Imamura sentiu-se
imediatamente liberado do sistema imperial opressor. “Foi fantástico, de repente tudo
estava liberado, até sexo”, declarou.
Filho de médico e estudante na respeitada universidade de Waseda, o futuro
diretor passou alguns anos vivendo do mercado negro – comprava produtos com os GIs
americanos e os revendia à população. Ganhava bem, dizia, mas gastava tudo em
bebida. Frequentou o chamado submundo e conheceu a galeria de personagens que iria
povoar seus filmes, os representantes do Japão “real”, como dizia.
É conhecida sua assertiva sobre as heroínas de Naruse e Mizoguchi, pródigas em
auto-sacrifício: “essas mulheres simplesmente não existem”, vociferou. Preferiu
apostar, em seus projetos, nas mulheres que lutam pela sobrevivência, sejam
camponesas, prostitutas, esposas, mães ou filhas. Sempre filmando com um olhar
observador, sem apelar para nenhum tipo de consciência histórica ou outro atributo
político. Seus filmes parecem um exercício de entomologia, ou antropologia, como
ressaltam os críticos. Um olhar que disseca. Os extraordinários “A Mulher Inseto ou
Tratado Entomológico do Japão”, de 1963, e “Introdução à antropologia”, de 1966 –
também conhecido como “Os pornógrafos” – comprovam a vocação científica do
diretor.
A estética que resulta dessa opção estilística passa por um registro documental,
certamente, sem prejuízo da elaboração de uma dramaturgia densa que sustenta o
interesse na história. E, em geral, cobrindo grandes extensões de tempo: com a ressalva
de que a montagem, nos filmes de Imamura, raramente força manipulações a fim de
estimular sobressaltos emocionais no espectador. Situações violentas, por exemplo, são
registradas na continuidade da observação “científica” dos personagens, sem
artificialismos dramáticos. O produto final é uma narrativa que convida à imersão ao
mesmo tempo que mantém o distanciamento crítico. Solução extremamente original.
Formação
114
Imamura Shohei, a despeito de sua reação feroz aos realizadores do período
clássico, foi um privilegiado. Trabalhou como assistente em três filmes de Ozu, entre
eles “Era uma vez em Tóquio”. Assim como Oshima, via nessas produções a expressão
de um viés oficialista da cultura japonesa, sempre afeita à reconciliação e abafando os
conflitos, portanto falsa. Com o passar dos anos, naturalmente, reconciliou-se com a
experiência de assistente e acedeu a uma leitura mais elaborada do grande diretor.
Conta, por exemplo, como foi penoso voltar do funeral de sua mãe e encontrar Ozu no
estúdio, dublando a cena onde a personagem idosa de “Era uma vez em Tóquio” morre
de hemorragia cerebral – exatamente como sua mãe tinha morrido.
As sucessivas repetições da cena, obsessão de Ozu, exasperaram Imamura:
afastou-se e foi ao banheiro urinar. Lá, pouco depois, aparece Ozu, que pergunta:
”Senhor Imamura, é assim que acontece uma hemorragia cerebral ? será que consegui
o tom certo ?”
A princípio, achou a pergunta cruel. Posteriormente, reconheceu que aquele
comportamento era o correto, a despeito da frieza. Foi o mesmo em relação ao método
de direção. Malgrado as resistências, paulatinamente passou a admitir a importância de
Ozu em seu próprio trabalho, sobretudo nos elementos mais básicos da direção.
A distância entre as linguagens cinematográficas de Ozu e Imamura é
incomensurável. Mas a transmissão do saber, indispensável, foi consumada. Imamura
iria mais tarde fundar uma escola de cinema, em 1975, que funciona até hoje.
Porcos e encouraçados
A passagem pela Shochiku durou até 1954, quando Imamura transferiu-se para
a Nikkatsu. Junto com ele estava um dos espíritos mais originais do cinema japonês,
Kawashima Yuzo, de quem Imamura foi assistente e co-roteirista – em 1969, seis anos
após a morte de Kawashima, escreveria uma biografia sobre o amigo. E, em 1981, faria
o remake do seu maior sucesso, “Sun in the last days of the shogunate”, de 1957, do
qual foi um dos roteiristas.
115
Os dois compartilhavam o desejo de incluir, no universo cinematográfico
japonês, as chamadas classes periféricas, vulgares, despidas do polimento da tradição
estética e cultural do arquipélago. “Suzaki Paradise: Akashingo”, de 1956, talvez o
melhor filme de Kawashima, tem o clima que Imamura iria refinar em suas produções:
crítica social com sexualidade bruta, desejo e violência. Esse compartilhamento e
companheirismo implicava em um inevitável hedonismo, sobretudo bebidas. A saúde
mais frágil do amigo iria cobrar seu preço. Kawashima morreu com quarenta e poucos
anos.
Embora contratado pela Nikkatsu, Imamura pouco a pouco fugiu da cartilha
comercial estilo “tribo do sol” do estúdio. Sua quarta realização, “My second brother”,
de 1959, foi baseado no diário de uma menina nipo-coreana de dez anos. A temática
étnica era praticamente inexistente nas telas japonesas, desnecessário ressaltar.
A quinta, “Todos porcos”, de 1961, foi a consagração: o filme passou em Nova
York e Paris, ganhou prêmios no Japão e sedimentou a confiança no realizador para
explorar seu estilo - crítica social com sexualidade bruta. Ambientado durante a
ocupação em Yokozuka, sede da maior base naval norte-americana no Japão, perto de
Tóquio, a produção mesclou habilmente filmagens em estúdio e tomadas externas para
veicular uma sátira arrasadora dos vícios e malefícios da cidade.
Rodado em preto e branco contrastado, tem a gramática narrativa estruturada
por gruas, teleobjetivas, travellings e enquadramentos, ousados e originais. O
diferencial de Imamura - seu zelo sociológico em realizar pesquisa de campo com
yakuzas e a cadeia de prestadores de serviços para marinheiros americanos – agrega um
inesperado valor à trama. Movimentado, frenético, do filme emana a percepção do
tecido social esgarçado do pós-guerra. A sequência clímax – quatrocentos porcos
adentrando a passarela dos cabarés de Yokozuka – é apoteótica.
Animais e humanos
Animais juntos com humanos tornou-se outra das marcas recorrentes dos filmes
de Imamura. Definindo-se como “antropólogo cultural”, proferiu sua conhecida
sentença: “estou interessado na relação entre a parte de baixo do corpo humano e a
116
parte de baixo da estrutura social, sobre a qual a realidade da vida diária no Japão se
sustenta”. Qual a diferença, prosseguiu, entre humanos e animais ? Fazer filmes era
procurar por essa resposta. “A Mulher Inseto ou Tratado Entomológico do Japão”, de
1963, responde, com todos os méritos, a essa questão. Trata-se de um épico formidável
sobre a trajetória de uma mulher totalmente comum, com ou sem caráter, da parte de
baixo da estrutura social e dotada de uma incrível capacidade de superação. Atravessa
guerras e dá à luz, migra do campo para a cidade, prostitui-se e deixa-se seduzir, tornase “mama-san” e completa o círculo, retornando ao vilarejo natal.
As pontuações históricas estão presentes. A conquista de Cingapura pelo
exército imperial em 1942; o pronunciamento no rádio do Imperador em 1945; o
anúncio da reforma agrária pelo general MacArthur durante a ocupação; e até o
casamento do príncipe herdeiro em 1959. Um tempo que se desdobra
vertiginosamente, mas que se mantem ancorado no instinto de sobrevivência da
heroína, magnificamente interpretada por Hidari Sachiko.
Imamura conta que percebeu a motivação da personagem olhando para um
inseto esforçando-se para superar obstáculos: apesar dos pequenos contratempos, não
desiste nunca, prossegue.
Ficção e documentário
Donald Richie, que escreveu um livro sobre Imamura – “Notes for a study on
Shohei Imamura” – faz uma curiosa ilação sobre a “natureza primitiva” detectável em
certos personagens do diretor e o tom documental que seus filmes podem assumir. Em
“Introdução à antropologia”, de 1966, o protagonista sente-se compelido a distribuir
pornografia para suprir algo que a civilização tinha suprimido: o desejo. Para descrever
o pornógrafo em seu trabalho “artesanal”, Imamura usa um estilo documental.
Em 1968, esse dispositivo atinge o ápice. “The profound desire of the Gods” é
um mergulho no Japão profundo, onde superstição e sexualidade desprovida de
constrangimentos são a tônica. Rodado na ilha de Ishigakijima, perto de Okinawa, no
extremo sul do Japão – dezoito meses de uma difícil locação – foi o primeiro filme a
cores do diretor, luxuriantes como o cenário tropical. Fauna e flora transbordantes,
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pulsões primitivas, incestos, sal e cana de açúcar: são quase três horas de filme, boa
parte delas dedicada a captar a natureza, incluindo a pequena comunidade local e sua
“naturalidade”. O choque vem de Tóquio e materializa-se no engenheiro e seu projeto
de construir um aeroporto. A modernidade e o turismo chegam para ficar: a camada
primitiva, entretanto, subjaz. Este é o Japão, segundo Imamura.
Para o diretor, de fato, superstição e uma espécie de panteísmo – a natureza, em
suas variadas manifestações – dominam o ethos nacional. Os animais, como sempre,
comparecem: logo no início um enorme porco pula do bote em que viajava com alguns
dos personagens do filme e é imediatamente devorado por um tubarão. Um signo e um
presságio, dois eixos estruturantes da narrativa. Certa vez Imamura disse a Audie Bock:
os japoneses são os mesmos há mil anos, a distância entre o país feudal e o moderno é
menor do que gostariam de admitir.
Ficção e documentário
Um ano antes, em 1967, Imamura havia realizado um notável experimento, “A
man vanishes”. O estatuto da verdade do discurso cinematográfico, a opacidade e a
transparência da imagem, são os temas da fita, que oscila entre verdade e mentira sem
o menor pudor. Partindo de uma situação real, um homem de 30 anos que
simplesmente desaparece, o filme fornece pistas e despista ao mesmo tempo,
entrevistando o entorno e “construindo” o personagem. A esposa do trânsfuga,
dedicada (e paga) por um ano para acompanhar a investigação, é filmada por todos os
lados, inclusive por câmaras ocultas – procedimento no limite da ética, que levou o
diretor a reconhecer exageros. Ao final, o próprio Imamura admitiu: é tudo ficção.
O esforço de produção para completar “The profound desire of the Gods”, não
obstante, foi demasiado. Os próximos nove anos seriam devotados ao documentário,
com equipes pequenas e produção facilitada. Os documentários para Imamura, vale
frisar, estão sempre nesse limiar da verdade: podem ser lidos como uma metalinguagem
de si mesmos.
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Nouvelle vague
É comum associar-se a “nouvelle vague” japonesa a três realizadores: Oshima
Nagasi, Shinoda Masahiro e Yoshida Yoshishige (ou Yoshida Kiju, como utilizado
frequentemente). Com a distância histórica (e geográfica), criou-se uma mitologia em
torno do grupo, como se os três diretores comungassem dos mesmos pressupostos
políticos e estéticos, e, ato contínuo, partissem para uma ruptura contra o sistema
anterior de produção. A referência era a “nouvelle vague” francesa, de Godard, Truffaut,
Rivette, Chabrol e companhia, e outros movimentos, como o cinema novo brasileiro.
Nada mais longe da verdade. Trata-se de um slogan inventado pelo estúdio
Shochiku, onde os três atuavam, para aproximar-se do novo e jovem público. Segundo
revelou mais tarde Yoshida, com Oshima tinha proximidade, afinal escreveram na
mesma revista de cinema: mas à medida em que começaram a dirigir filmes, se
afastaram. Yoshida alega que recusou todos os convites posteriores para encontros
públicos em torno da “nouvelle vague”. Sobre Shinoda, a quem encontrou poucas vezes
em situações formais, mal conhecia. As declarações de Oshima, cujo mau humor sobre
o assunto era notório, são inconclusivas. Shinoda, por sua vez, parece indiferente.
Claro, o que eles tinham em comum eram as inquietações da época, das rápidas
transformações socioeconômicas às turbulências políticas. O sistema de produção
verticalizado dos estúdios estava no limite, os custos cresciam, o público tinha outras
opções (televisão) e a demanda por dramas e emoções ficava cada vez mais complexa.
O típico produto dos estúdios, o cinema de gênero – que permitia organizar a produção
em série – parecia esgotar-se e agradava cada vez menos. Projetos concebidos com
maior autonomia e inovação teriam mais chances, embora com maior risco. Essa nova
geração de realizadores efetuou a transição e mudou o modo de produção do cinema
japonês.
O Imperador não é Deus
Se Imamura sentiu-se livre após o pronunciamento no rádio do Imperador, em
agosto de 1945, Shinoda, por sua vez, tentou se matar, em setembro do mesmo ano. O
119
motivo foi a publicação, naquele mês, do decreto que obrigou Hiroíto a abdicar do status
divino, exigência dos americanos. Tinha 15 anos de idade.
A derrota na guerra provocou nele uma brutal decepção com o sistema imperial
e suas ramificações na cultura e educação, a exemplo de muitos outros compatriotas.
Nos anos que se seguiram completou sua formação com um inevitável espírito crítico.
Mais tarde diria que a “característica do Japão é a imposição sobre o povo de um poder
e autoridade absolutos, sem direito de questionar e debater”.
Shinoda Masahiro entrou para Shochiku em 1953, e foi assistente Ozu em
“Crepúsculo em Tóquio”, de 1957. Certamente, não era radical como Oshima,
tampouco satírico como Imamura; mas era um diretor talentoso e versátil. Dirigiu um
filme atrás do outro, dos temas mais variados, a partir de 1960. O primeiro, “One way
ticket”, tem como personagens um saxofonista, uma jovem com ânsias de suicídio e um
cantor classificado de “Elvis Presley do Japão”. “Dry lake”, também de 1960, conta as
aventuras de um infeliz revolucionário dos anos 60, contra o ANPO. “Killers on Parade”,
de 1961, narra uma absurda farsa policial em cores saturadas.
Esses dois últimos tiveram roteiro de Terayama Shuji, que mais tarde viria a ser
um famoso diretor teatral de vanguarda no Japão, também com incursões no cinema
(“Emperor Tomato Ketchup”, curta mais tarde editado em longa, e “Throw Away Your
Books, Rally in the Streets”, ambos de 1971, além de “Fruits of passion”, de 1981, entre
outros).
Flor Seca
Antes de Shinoda realizar “Flor seca”, de 1964, belíssimo e original filme sobre
yakuzas, foram nove longas-metragens. Enquadrado em um cinema de gênero, “Flor
seca” conseguiu a proeza de ultrapassar os clichés e explorar zonas desconhecidas – o
expressionismo das imagens e a trilha sonora, de autoria de Takemitsu Toru, ajudaram.
Mas o ponto fulcral foi o casting, que opôs um yakuza de meia idade e entediado – vivido
por Ikebe Ryu, figura frequente no gênero – à resplandecente Kaga Mariko, à época com
apenas 19 anos e sobrando na tela.
120
A surpresa, habilmente insinuada pelo argumento de Ishihara Shintaro, o
popular escritor e roteirista da Nikkatsu, é o vazio existencial da personagem feminina,
mais radical e limítrofe do que seu parceiro masculino. Enquanto o yakuza se escora no
seu saber empírico de jogador e “gang member”, ela aposta tudo, movida por um
insaciável desejo de risco, verdadeira pulsão de morte. O jogo de cartas, aliás, é a matriz
visual do filme: é o local onde os personagens apresentam-se hipnotizados. Shinoda
disse que o poema de Baudelaire, “Fleurs du mal”, atravessa a narrativa do filme.
No mesmo ano, 1964, outra obra-prima: “Assassination”, passado nos agitados
tempos de transição do xogunato para a era Meiji, em torno de 1860. Um “jidaigeki” de
samurais, mas samurais complexos e contraditórios.
Gun diplomacy
Kiyokawa Hachiro é o (real) personagem desse filme de ação, espadas e sangue,
e também de escaramuças, traições e ambições políticas. Intelectual confuciano e
exímio espadachim, Kiyokawa encarnou, por suas qualidades e hesitações, o paroxismo
das abruptas mudanças experimentadas pelo Japão em 1854, na segunda visita do
Comodoro Mathew Perry e seus “barcos negros”. A “gun diplomacy” norte-americana
abriu o mercado japonês, e desestabilizou definitivamente o xogunato Tokugawa. No
caos que se seguiu, Kiyokawa liderou ronins contra o xogum; pregou lealdade absoluta
ao Imperador e ódio aos bárbaros estrangeiros; mudou de opinião no meio do caminho,
surpreendendo seguidores; e terminou assassinado por milícias do xogunato, em 1864.
Uma das razões desse “imbróglio” era a atitude ambivalente do Imperador,
depois de séculos reduzido a mera decoração pelo xogunato Tokugawa. Enfrentar o
poderio norte-americano e europeu era impossível, a abertura era inadiável. Mas
igualmente difícil, senão impossível, era extrair uma posição intermediaria dessa
confusão.
Um dos poucos foi Sakamoto Ryoma, o “ronin” que também lutou contra o
xogunato, tinha uma incrível visão estratégica para o futuro do país e foi morto em uma
emboscada, em 1867. Em “Assassination”, Sakamoto entra em cena pescando,
tranquilamente, a beira-mar. Este é um daqueles filmes em que uma informação
121
histórica extra pode ajudar o espectador. A força da linguagem, porém, é marcante.
Como dizia Shinoda, suas produções falavam do passado para retratar o presente. Um
filme eminentemente político.
O duplo suicídio
“Japan unmasked: the character & culture of the Japanese”, de Boyé Lafayette
De Mente, é um livro singular: escrito para “desmascarar” a cultura japonesa, mirando
leitores estrangeiros interessados em fazer negócios no Japão, termina se revelando um
pequeno dicionário da cultura e das idiossincrasias de um povo. Algumas delas: a
obsessão com a forma e a harmonia, presente nas interações sociais e na própria escrita;
a construção rigorosa dos objetos estéticos, mediadores da realidade, como no teatro
(kabuki, Nô e bunraku/bonecos); e os excessos recalcitrantes, para o bem e para o mal,
que caracterizam a especificidade cultural que é o Japão.
Shinoda Masahiro operou de forma admirável a atualização dessa especificidade
para o cinema dos anos 60. Politicamente mais conservador que Oshima, seus filmes
trazem um desencanto niilista que os torna universais e abertos a novas leituras. “With
beauty and sorrow”, de 1965, é uma adaptação imaculável de uma daquelas histórias
passionais e estranhas de Kawabata Yasunuri, filmada em tons pastéis fortes e com Kaga
Mariko em mais um papel abismal. Para vingar sua amante, seduzida e abandonada
quando jovem por um homem casado, conquista o sedutor original e seu filho. Não há
limites para sua sexualidade. O estilo minimalista da direção dos atores abafa a escalada
da tensão, culminando na extraordinária sequência do lago Biwa, perto de Quioto.
No mesmo ano, 1965, Shinoda roda “Samurai Spy”. Alain Silver, autor do
insubstituível estudo “The samurai film”, exalta a câmera estática do diretor, capaz de
registrar com sutileza os momentos que antecedem à erupção de violência, sem prejuízo
da estilização marcial tão cara à audiência. A narrativa segue um samurai à deriva,
infiltrado na tumultuada época que resultou na vitória do clã Tokugawa, no início do
século 16, como se fora um observador distanciado e cético diante da incerteza moral
dos conflitos. Elaborado em cima da linha tênue entre verdade e falsidade, o
personagem luta e atua, mas não deixa traços, deixando o espectador sem referências.
122
Posteriormente, Shinoda descreveu o filme como uma alegoria sobre a posição japonesa
na Guerra Fria.
Duplo suicídio
Seu trabalho mais celebrado é “Duplo suicídio”, baseado na peça “The Love
Suicides at Amijima”, escrita em 1721 pelo insuperável Monzaemon Chikamatsu, o
“Shakeaspeare” japonês. Nesse filme, de 1969, o que está em cena é uma geologia da
tradição teatral no Japão: são camadas de estilos de representação, do Nô ao kabuki,
passando pelo distanciamento crítico moderno. O filme abre com uma figura de retórica
brechtiana, uma discussão por telefone sobre locações de filmagem e seus possíveis
efeitos em termos de realismo dramático. Discussão, a propósito, que remete às origens
do próprio cinema japonês, oscilante entre a representação estilizada do kabuki e o
realismo de estética ocidental. A visualização explícita dos “kurokos” (ou “koken”),
contrarregras em princípio “invisíveis” que organizam os objetos em cena despercebidos
pelos atores, é uma ênfase sobre a tradição e sua “geologia”.
“Duplo Suicídio”, realizado em pleno anos 60, logrou atualizar o patrimônio do
teatro japonês clássico no bojo de uma década fervilhante de experimentação no
audiovisual. Uma obra-prima.
Shinoda manteve uma produção estável ao longo da carreira, mesmo depois de
sair da Shochiku em 1965. Falar do presente filmando o passado foi uma preocupação
constante. “As escandalosas aventuras de Buraikan”, de 1970, é uma farsa sobre as
(puritanas) reformas de costumes no final do período Edo, na segunda metade do século
19; “Silence”, de 1971, baseado no livro de Endo Shusaku, fala das perseguições e
martírios sofridos por cristão japoneses e jesuítas europeus no início da era Tokugawa,
no século 16; “MacArthur Children”, de 1984, explora a ocupação americana; e “Spy
Sorge”, seu último filme, de 2003, foca no enigmático espião Richard Sorge.
Eros Massacre
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A década de 60, indubitavelmente, marcou a irrupção da sexualidade no cinema
japonês. O (hoje) obscuro Takechi Tetsuji foi um de seus pioneiros, talvez o principal.
Crítico e diretor de teatro, Takechi ficou inicialmente conhecido por ideias inovadoras,
sobretudo em relação ao kabuki, mas também Nô e teatro moderno. Na televisão,
dirigiu teledramas e contribuiu para a popularização da cultura teatral. Por alguma
razão, resolveu dedicar-se, a partir de 1960, à produção de filmes eróticos. “Daydream”,
de 1964, o primeiro filme “pink” distribuído por um dos grandes estúdios - Shochiku,
aquele de Ozu, Kinoshita, Naruse, Shinoda e outros – inovou com cenas de nu frontal e
breve exposição de pelos pubianos.
Para permitir a exibição do filme, foi necessário ao comitê de ética da associação
de produtores japoneses (“Eirin”) inventar o método “fogging” de censura:
obscurecimento dos pontos na tela julgados obscenos, até hoje em vigor em relação às
produções pornográficas, geralmente com a técnica do “mosaico”. O filme descreve
delírios sexuais em um consultório de dentista (a “Japan Dental Association” protestou).
“Daydream” deu boa bilheteria e foi exportado para os EUA, onde lhe foram agregadas
cenas adicionais dirigidas por Joseph Green, produtor do “cult” de 1962, “The Brain That
Wouldn't Die”.
Definindo-se um “nacionalista étnico”, Takechi adotou linha mais explícita ainda
em seu segundo filme, “Black snow”, de 1965. A história se passa perto da base aérea
norte-americana de Yokota, onde a mãe do protagonista atua como prostituta:
impotente e ressentido, assiste secretamente cenas de sexo entre ela e um GI negro, só
conseguindo ter ereção ao acariciar uma arma carregada. Termina assassinando o GI e
é morto em seguida pelos americanos. A proximidade com os protestos contra o ANPO
permitiu a Takechi incorporar uma dimensão política (e racista) ao filme.
David Desser, autor do abrangente “Eros Plus Massacre: An Introduction to the
Japanese New Wave Cinema”, considera “Black snow” como a primeira produção
“pink” que fala de política. Takechi Tetsuji terminou sendo preso por indecência, cópias
de seus filmes foram confiscadas da produtora Nikkatsu e de sua própria casa. Um arco
de intelectuais mobilizou-se a seu favor, de Oshima a Suzuki, no cinema, e Mishima a
Kobo Abe, na literatura. Foi a primeira vez, no pós-guerra, que o governo interveio na
indústria do entretenimento. Dois censores da “Eirin”, que tinham aprovado a exibição
124
do filme, também foram processados. No final, Takechi ganhou a ação e o cinema “pink”
explodiu.
Nesse filão surgiu Wakamatsu Koji, transgressor e prolífico realizador, exemplo
privilegiado de conexão entre o “eroduction” (produções eróticas) e o cinema enquanto
instrumento de revolução política. Estima-se que, no final dos anos 70, metade da
produção cinematográfica no Japão era “pink eiga”. Foi uma guinada radical.
Eros sublimado
Os filmes de Yoshida Kiju talvez sejam, dentre os diretores associados à “nouvelle
vague” japonesa, os menos difundidos no Ocidente. A exceção é a França, onde tem
muitos admiradores. Yoshida é o mais francófono dos realizadores nascidos no Japão:
estudou língua e literatura francesas na Universidade de Tóquio, e sua tese de
graduação foi sobre Jean-Paul Sartre. Na época, o existencialismo como corrente
filosófica tinha um alto poder de atração entre os intelectuais, ainda mais para os nativos
de um dos principais países instigadores do conflito. A francofonia de Yoshida estendese à cinefilia, não apenas em relação ao cinema francês, mas a autores caros à “nouvelle
vague” original, a francesa, como o sueco Bergman e o italiano Antonioni, além de
Renoir e Rossellini.
Muito bem equipado culturalmente, Yoshida escreveu sobre cinema - livros
sobre Antonioni, de quem foi amigo pessoal, e Ozu, com o qual ganhou prêmio na
França. Suas produções, em especial durante a década de 60, refletem esses
engajamentos. Para ele, o que importava não era a “história” que o filme contava, mas
a “imagem real” do ser humano, ou a “existência”, no sentido sartreano.
Yoshida entrou para a Shochiku em 1955, para trabalhar como assistente de
direção. A exemplo de Oshima e Shinoda, começou a dirigir em 1960, com filmes
produzidos para o público juvenil urbano, de acordo com a estratégia do estúdio de
conquistar novas audiências.
Realismo abstrato
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“Volúpia perigosa”, de 1960, foi o primeiro: rapazes entediados importunando
a secretária do pai de um deles. Rapidamente, desviou-se do padrão. “Escape from
Japan”, de 1964, um filme de ação “inerentemente triste”, como disse o diretor, não
agradou os produtores, que esperavam mais adrenalina. Yoshida casou (com sua atrizfetiche, Okada Mariko), foi para a lua de mel, e acabou rompendo com a Shochiku no
dia em que voltou, no próprio aeroporto de Haneda. Independente, pôde dar vazão a
preocupações formais – crescente abstração da imagem através do descentramento da
composição do plano – e dramáticas, com ênfase nas personagens femininos carregadas
de uma “intensidade emocional destrutiva”, em especial ao (produtivo) período da
década de 60.
Dotado de um olhar sofisticado, Yoshida construiu um percurso original,
eventualmente chamado de “realismo abstrato”. Inspirado em Kawabata, “Woman of
the lake”, de 1966, narra as peripécias de uma mulher casada (e infeliz), que se deixa
fotografar nua pelo amante: a chantagem subsequente é inevitável. Ângulos e
profundidades de campo reforçam a tensão interior dos personagens. Em “Flame and
women”, de 1967, o marido estéril aprova inseminação artificial na mulher. Ela se
apaixona pelo provedor, a trama se complica, mas a frieza da câmera não esmorece.
“The affair”, também de 1967, faz a sensualidade da protagonista feminina,
interpretada por Okada Mariko, revelar-se e transbordar na tela. Reproduzindo
antecedentes maternos, ela tem um “affair” com um operário, paralelo à vida de casada
e à proximidade com um escultor, ex-amante da mãe. Talvez o melhor filme do
realizador.
Eros e política
“Eros + Massacre”, de 1969, é o seu projeto mais ambicioso. Duas histórias se
alternam em mais de três horas de duração (seriam mais de quatro na primeira versão).
A primeira, inspirada em fatos reais, se passa logo após o grande terremoto de Kanto,
em 1923, quando o anarquista Osugi Sakae, que considerava Bakunin como seu
antepassado, foi assassinado – temia-se que ele se aproveitasse do caos para fazer a
revolução. A segunda história é contemporânea (anos 60): um casal de estudantes
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pesquisando sobre Osugi. Ambas narrativas são não-lineares, característica do diretor.
Personagens na beirada dos enquadramentos, transições entre passado e presente
propositalmente embaraçadas e borradas.
Em 1973, novamente um tema político. “Coup d’état” conta os últimos
momentos de Kita Ikki, influente filósofo e ativista junto à extrema direita japonesa, que
terminou executado por cumplicidade no golpe dos jovens oficiais em 1936, o conhecido
“incidente de 26 de fevereiro”.
Yoshida Kiju só voltou a dirigir em 1986. Sua última realização, em 2003, integrou
o coletivo organizado por Leon Cakoff sobre São Paulo: um curta de pouco mais de onze
minutos, que registra a entrevista de uma garçonete nissei da Liberdade, concedida a
Okada Mariko.
Do mundo yakuza ao cinema
Wakamatsu Koji tinha dezessete anos quando chegou em Tóquio, início da
década de 50, depois de desentender-se com seu pai, modesto criador de cavalos na
província de Miyagi, norte da capital. Impaciente, largou a escola, e encarou os mais
variados empregos até que foi recrutado pela yakuza, para ajudar em “pequenos
serviços”. Acabou pegando seis meses de cadeia. Na volta, trabalhou como olheiro de
produções que usavam territórios da yakuza para locação. Gostou e foi trabalhar na
televisão. Em seguida, migrou para uma pequena produtora, fora do sistema dos
estúdios.
Estreou em 1963, com três filmes, todos perdidos. Em 1965, o oitavo, “Chronicle
of an Affair”, foi um sucesso, embora restrito a um circuito limitado. A história começa
com uma brutal agressão de uma jovem recém chegada do campo, em um cenário
estufado de neve. No fim ela amadurece e torna-se, na sequência: operária, prostituta,
amante do chefão e suspeita de assassinato.
O background de Wakamatsu teria impedido voos mais altos (os diretores das
grandes produtoras em geral tinham diploma universitário). Mas o acaso favoreceu-o:
“Secret behind the wall”, também de 1965, foi comprado por um alemão que
127
perambulava pelo Japão e inscrito no prestigiado Festival de Berlim, à revelia da
comissão da “Eiren” que selecionava os filmes para competições internacionais.
Rodado em cenários claustrofóbicos, como sugere o título, a trama se desenrola
nos conjuntos habitacionais construídos no pós-guerra. Logo na abertura, um casal se
acaricia e dialoga em tom “político-existencial”, com planos de detalhe dos corpos no
estilo de “Hiroshima, meu amor”, de Alain Resnais. Nas costas do protagonista, uma
espaçosa e horrenda cicatriz, fruto da exposição à bomba em Hiroshima; e na parede,
ao fundo, um retrato de Stalin. A exibição em Berlim, contra tudo e contra todos –
poucos elogiaram a fita, entre eles Oshima, para quem Wakamatsu era a novidade que
o cinema japonês precisava – deu um impulso em sua carreira e permitiu abrir sua
própria produtora, a “Wakamatsu Pro”.
O embrião caça em segredo
Um novo mercado externo abria-se para filmes feitos no arquipélago, eivados de
um olhar estranho e incomum. Koji foi um dos primeiros a explorá-lo. Não tinha nada a
ver com samurais e gueixas de Mizoguchi e Kurosawa, nem tampouco com os dramas
classe média de Ozu e Naruse: os temas eram histeria sexual, assassinatos, tortura física
e servidão psicológica, com pano de fundo de alegoria política. “The Embryo Hunts in
Secret”, de 1966, radicaliza as experiências claustrofóbica e sádica, temperada pelo
roteiro de Adachi Masao, parceiro e conselheiro de Wakamatsu nos próximos
empreendimentos, todos com orçamentos mínimos. Toda a ação se passa no
apartamento do próprio Wakamatsu, especialmente pintado de branco. Durante uma
semana, tempo das filmagens, ninguém saiu de casa (somente uma rápida cena de
chuva).
“Violated Angels”, também de 1966, mostra um serial killer invadindo um quarto
de enfermeiras e liquidando uma a uma. “Season of terror”, de 1969, segue dois policiais
“voyeurs” que monitoram, através de microfones ocultos, um ex-ativista estudantil
bígamo; e “Go, Go, Second Time Virgin”, de 1969, se passa no topo de um prédio,
começa com um estupro e termina em uma rotatória de assassinatos. Entre 1965 e 69
128
foram espantosas 35 produções. Nesses filmes o crime, assim como o sexo, foi praticado
em série, e não tinha “nome jurídico”: era pura expressão do desejo.
Adachi Masao, roteirista e colaborador próximo de Wakamatsu, estudou cinema
na universidade Nihon, e combinava projetos experimentais com ativismo político.
Integrava um coletivo que registrou os protestos contra o ANPO, em 1960. Em 1963
dirige “Closed vagina”, uma metáfora do impasse político à luz do fracasso dos
protestos, com cenas de sexo solenes e ritualizadas. Em 1969, a comédia erótica
“Female student guerrilla”, sobre cinco estudantes que resolvem fazer a revolução nas
montanhas após as manifestações de rua contra o ANPO. Escreveu muitos roteiros,
inclusive para Oshima Nagisa (“Diary of a Shinjuku thief”), foi ator (“O enforcado”, do
mesmo Oshima) e, nas horas vagas, teorizava sobre cinema.
129
Capítulo 5
Anos 70 e 80: “Pinku Eiga” e Política
Tanaka Kakuei foi um dos mais vibrantes e impetuosos Premiês que o Japão já
teve. Exerceu o cargo entre 1972 e 74, tendo imprimido ritmo febril de obras públicas,
muitas de custo elevado. A imprensa rapidamente apelidou-o de “escavadeira humana”
e “shadow shogun”. Antes de chegar ao topo, ocupou vários pastas ministeriais
importantes, relacionadas a infraestrutura, economia e comércio. Líder de uma das
principais facções do Partido Liberal Democrata, o poderoso PLD, Tanaka foi ousado
também na política externa – visitou a China em 1972 e encontrou-se com Mao TseTung e Zhou En-Lai, na mesma época que Richard Nixon e Henry Kissinger faziam a
histórica aproximação com Pequim.
Em 1973, teve que administrar o choque do petróleo provocado pela OPEP, que
provocou alta inflacionária e evidenciou a vulnerabilidade de seu país, forte dependente
da importação de combustível. Mas também resistiu às pressões norte-americanas para
restringir voluntariamente exportações japonesas: o crescente déficit na balança
comercial entre os dois países assustava Washington.
Ao mesmo tempo, o Japão seguia debaixo da proteção dos EUA no teatro
asiático, economizando gastos com defesa. Em 1974, entretanto, Tanaka foi obrigado a
renunciar, em função de propinas recebidas por seu grupo político provenientes da
Lockheed, fabricante de aviões americana. Foi condenado dois anos mais tarde por duas
cortes inferiores. Ficou preso por cerca de um mês, em 1976.
Tanaka foi um político representativo da emergência do Japão como potência
econômica mundial: arrojo e capacidade de realização impressionantes, combinado a
uma estrutura de poder fundada em práticas antiquadas. O ex-Premiê é creditado pela
criação do sistema “triângulo de ferro”, que articulava o PLD, burocracia estatal e
grandes empresas (sobretudo empreiteiras) em uma unidade de corrupção quase
inviolável, calçada em um clientelismo regional capilarizado. A economia nipônica, não
obstante, seguia firme. Um dos marcos da ascensão japonesa foi a Exposição Universal
130
de Osaka em 1970, prodigioso exercício de marketing global de um país fora do eixo
América do Norte/Europa, a exemplo do que haviam sido as Olimpíadas de 1964, em
Tóquio.
Seppuku midiático
Foi também em 1970 que o escritor Mishima Yukio entrou no QG do Exército no
centro de Tóquio, vestido como militar e acompanhado de companheiros milicianos,
para cometer um “seppuku” público.
Mishima iniciou o suicídio por esventramento, na presença do General tomado
como refém, cortando o ventre da esquerda para a direita: com o ritual inconcluso,
como ocorre na maioria das vezes, foi decapitado pelo auxiliar (e amante). Estava
acompanhado de membros da milícia que fundou em 1968, a “Sociedade do Escudo”.
Antes, falou para uma plateia de soldados, no balcão do quartel. A TV filmou tudo. O
discurso apelava para um aliança com os militares em prol da revolução purificadora. O
“seppuku” foi no gabinete, sem câmeras e na presença do comandante. Tinha 45 anos.
Patriotismo
Mishima Yukio, para muitos no arquipélago o melhor escritor de sua geração,
deu uma guinada para a extrema direita a partir da onda de protestos contra o ANPO,
em 1960. Tornou-se um nacionalista peculiar, radical e arraigado. De formação
intelectual extremamente sofisticada, cultivava também o físico – Donald Richie, que
era seu amigo, conta como Mishima apreciava ser reconhecido como “bodybuilder”.
Escreveu peças de teatro, romances, ensaios. Casado, com filha e filho, alternava entre
vida familiar e relações homossexuais. Paradoxalmente, sua casa era decorada no estilo
ocidental, com mobília francesa século 16 e uma estátua clássica do deus Apolo.
Em 1960 escreveu um conto sobre um tenente que comete “seppuku” junto com
a esposa, na margem da revolta frustrada dos oficiais (excessivamente) leais ao
Imperador, em fevereiro de 1936. O conto virou um média-metragem de 27 minutos,
em 1965, intitulado “Rito de amor e morte”, com o próprio Mishima dirigindo e fazendo
131
o protagonista. Rodado em dois dias, não tem diálogos. A trilha resume-se a trechos de
“Tristão e Isolda”, de Richard Wagner (sugerida por Richie). O cenário combina palco Nô
e jardim zen. Exibido inicialmente na França, circulou nas salas no Japão em 1966 e
atraiu bom público.
Cenas com “hara-kiri” (termo mais comum que designa suicídio ritualizado) são
frequentes no cinema japonês. Para Mishima foi diferente: a estetização da morte
violenta, sua relação com o (homo) erotismo, a descrição gráfica do ato – todos os
detalhes sugerem que seu filme foi um ensaio do próprio “seppuku”, poucos anos mais
tarde. Antes do ato espetacular, atuou em “Hitokiri - o Castigo”, de Hideo Gosha, de
1969, onde protagonizou mais um ensaio suicida. Também posava para fotos artísticas,
com temática sadomasoquista e exibicionismo do corpo. Em 1965, deu uma entrevista
à BBC, em inglês fluente, quando disse que o “hara-kiri” é um modo “positivo e
imponente” de morrer: não tem nada a ver com o conceito ocidental de suicídio, ligado
a derrota e ao fracasso. O “hara-kiri”, completou, “pode fazer com que você vença”.
Depois de sua morte, a viúva, controladora do espólio artístico, vetou a difusão
de “Rito de amor e morte”. Somente em 2006, quando ela faleceu, o filme voltou a
circular.
O retorno
Kurosawa Akira, a despeito da incrível capacidade de realização, ficou cinco anos
sem filmar, entre 1965 e 70. O frustrado projeto de “Tora! Tora! Tora!” abateu-o. Sua
fama de irritadiço no set de filmagem, acrescido dos gastos excessivos de produção e a
lentidão em entregar o produto final fizeram com que os americanos perdessem a
paciência. A saída, com a ajuda do “Clube dos Quatro Cavaleiros”, a cooperativa entre
amigos para produzir filmes, foi “Dodeskaden – o caminho da vida”, de 1970.
Foi seu primeiro trabalho a cores. O instigador dessa experiência foi o incansável
diretor da Cinemateca Francesa, Henri Langlois, que convenceu o amigo projetando o
magnífico “Ivan o terrível”, último filme de Sergei Eisenstein. Kurosawa ficou fascinado
com a diversidade de estados mentais que as sutis combinações de temperaturas das
cores poderiam proporcionar.
132
Em “Dodeskaden” os motivos cromáticos orientam personagens, definem
contornos dramáticos, preenchem o drama. O filme, entretanto, não conseguiu boa
recepção na crítica e foi relativamente mal de público. Novamente abalado, com
problemas de saúde, Kurosawa tentou o suicídio, em dezembro de 1971.
O prestígio internacional de Kuro-san, ainda hoje insuperável entre os
realizadores de seu país, despertava ciúmes, daí a cobrança. “Dodeskaden” não tem
heróis, alinha histórias cruzadas de personagens esdrúxulos em uma favela, espaço
dramático pouco habitual para os japoneses. Em pleno milagre econômico, era um
anátema. Filmado em apenas um mês, rapidíssimo para os padrões do diretor, não tem
apelos épicos - até no formato do quadro cinematográfico o diretor optou por retornar
ao standard 1.33:1 dos anos 40 e começo do 50, em vez das telas largas estilo
cinemascope. O resultado final, não obstante, é esplêndido: um “expressionismo
social”, uma reinvenção de estilo que o diretor operou valendo-se de toda sua
habilidade de conjugar humor e tragédia, agora reforçados com o olho treinado de
pintor que cultivou desde a juventude.
Artista proletário
Desenhar croquis dos planos que iria rodar sempre foi uma das atividades que
Kurosawa mais prezava no cinema. Quando começou a filmar em cores, o prazer
redobrou: foi um regresso aos seus tempos de “pintor proletário”, na liga em que
circulava na juventude, influenciado pelo irmão. Depois de “Dodeskaden”, seus filmes
passaram a incorporar uma dimensão onírica calçada na manipulação especulativa das
cores, das texturas e das vibrações óticas. Além de ocupar o tempo vago entre suas
produções, cada vez mais longos, o ato de pintar tornou-se para ele (e seus filmes) uma
reserva tática para expressar-se no conturbado mundo do audiovisual.
A produção seguinte, “Dersu Uzala”, de 1975, foi um êxito. Depois de cinco anos
sem filmar um longa-metragem, Kurosawa consegue produzir, com apoio da Mosfilm da
antiga URSS, mais um grande sucesso global. A história é inspirada no relato de um
militar russo inspecionando a fronteira com a Manchúria. Kuro-san conhecia o livro há
décadas, tinha ficado impressionado com Dersu, um caçador mongol que sobrevivia nas
133
estepes, autônomo e isolado. A luz siberiana inunda o espaço cinematográfico e convida
o espectador a uma irresistível imersão na natureza, mediada pelos sentidos afiados de
Dersu, sempre consciente de seus limites e sem gestos grandiloquentes. O personagem
foi construído sem os atributos fantasiosos que a civilização urbana contemporânea
costuma projetar nos povos ditos “primitivos”.
“Dersu Uzala” acertou em cheio: em plena Guerra Fria, ganhou o Festival de
Cinema de Moscou e o Oscar de melhor filme estrangeiro. Só mesmo Kuro-san para
fazer uma ponte dessas.
O sósia
“A fortaleza escondida”, de 1958, pertence à época mais produtiva do
realizador, e traz Mifune Toshiro em mais uma atuação exuberante. Dentre os
aficionados, George Lucas se destacou: confessadamente, seu “Star Wars”, de 1977,
absorveu influências do filme, sobretudo nas doses de humor entre personagens
secundários, que funcionam como narradores dentro da história (no caso de Lucas, os
robôs).
O agradecimento veio rápido. Surpreso pela dificuldade do diretor japonês em
alavancar recursos para novos projetos, em função dos altos custos e do “tempo”
próprio de produção de Kurosawa, o poderoso realizador norte-americano foi à MGM e
convenceu o estúdio a associar-se ao projeto “Kagemusha”. Nessa altura, Francis Ford
Coppola juntou-se a Lucas. O martelo foi batido em um encontro em São Francisco, em
julho de 1978.
O filme ficou pronto no começo de 1980, com Nakadai Tatsuya no duplo papel
de “daimiô” (senhor feudal) e seu sósia, um ladrão errante no Japão medieval. A paleta
de Kuro-san atingiu neste filme um verdadeiro ápice. A longa espera pelas condições
ideais de produção permitiu ao diretor exercitar-se com afinco na produção de desenhos
e pinturas, utilizados para composição das imagens em “Kagemusha”. Cada plano é um
exercício pleno de cores, movimentos, volumes, atmosferas, ventos, intempéries –
quase extrapolando os limites bidimensionais da tela. Não faltam cenas de ação: o
“timing” da montagem, entretanto, obedeceu a um ritmo mais lento e contemplativo,
134
uma necessidade que Kurosawa identificou e implementou. O esforço foi reconhecido,
com a Palma de Ouro no Festival de Cannes, em 1980.
Sonhos
Em “Ran”, seu próximo longa, de 1985, a inclinação reflexiva (e pessimista) foi
ainda mais aguçada. Filmado em topografias íngremes, transmite a vertigem histórica
da sucessão tumultuada de mais um “daimiô”, idoso e sanguinário (de novo Nakadai
Tatsuya, em atuação marcante). O desdobramento dos acontecimentos começa com
um piquenique ritualizado pós-caça de javalis, com o senhor feudal, filhos e dois exinimigos transformados em vassalos. A aparente harmonia começa a ser rompida pela
decisão do líder de atribuir ao filho mais velho a condução do clã. Com a participação de
Serge Silberman, o produtor francês de Luis Buñuel, o filme teve uma carreira
internacional digna de um épico dirigido por Kurosawa. Uma obra-prima.
Seria sua última realização com grande orçamento. Dirigiu ainda mais três
preciosidades, com produções mais simples e menos onerosas. “Sonhos”, de 1990,
coletânea de oito narrativas oníricas registradas pelo realizador, puro e prazeroso
exercício cromático. “Rapsódias de agosto”, de 1991, que revisita o tema da bomba
atômica, em Nagasaki; e “Madadyo”, de 1993, sobre um professor aposentado de
literatura alemã. Dentre os vários roteiros que deixou e foram filmados por outros
diretores destaca-se “Sob o Olhar do Mar”, de 2002, realizado pelo notável Kumai Kei.
Faleceu em 1998.
Pancadaria em Narita
Ogawa Shinsuke dedicou sua vida ao documentário, ao cinema como
instrumento de registro e mobilização de movimento sociais. Nos anos 60 criou um
coletivo que passou anos filmando a revolta dos pequenos proprietários de terras
adjacentes ao futuro aeroporto internacional de Narita, perto de Tóquio. Foram sete
documentários, que captaram a resistência dos moradores aos avanços da
135
modernização capitalista, auxiliados por estudantes, ativistas anti-EUA, radicais de
esquerda e o próprio grupo liderado por Ogawa, todos contra a polícia.
Em um dos filmes, “Narita: peasants of the second fortress”, de 1971, o cenário
é uma zona de guerra: vinte mil rebeldes, armados de coquetéis molotov, pedaços de
pau, pedras e o que estivesse à mão, contra trinta mil policiais. Os insatisfeitos locais
cavaram túneis e erigiram pequenas fortalezas. A tensão começou a escalar quando o
governo anunciou planos de construir o aeroporto em Narita, em 1966, sem haver
prevenido os proprietários que suas terras seriam desapropriadas.
A despeito da intensidade dos protestos, o aeroporto foi construído. Ficou
pronto em 1972, mas os moradores do entorno conseguiram impedir sua inauguração
por anos. Em 1978, quando finalmente ia começar a operar, um grupo invadiu a torre
de controle e destruiu boa parte do equipamento. No dia mesmo em que abriu ao
público, a polícia teve de bloquear energicamente manifestantes que tentavam invadir
as novas instalações. Do outro lado da cidade, em um centro de controle aéreo a 30
quilômetros de Tóquio, ativistas conseguiram cortar o fornecimento de eletricidade que
deixou o tráfego aéreo na região da capital parado. O movimento só foi regularizado
algumas horas depois.
Decidido a eliminar o distanciamento entre sujeito e objeto na realização de
documentários, Ogawa e seu grupo mudaram-se para a província de Yamagata. O ano
era 1974. Passaram os próximos treze anos filmando a vida rural e cultivando arroz para
sobreviver. Em 1981, Oshima visitou o coletivo - na época envolvido com as filmagens
de “A Japanese village - Furuyashikimura” – e entabulou longa conversação com
Ogawa, deixando um inestimável registro dessa singular experiência.
Abe Sada
Oshima Nagasi encontrou o produtor Anatole Dauman em Paris no início dos
anos 70 e a conversa foi produtiva. Dauman, habituado a trabalhar com Godard, Chris
Marker e Resnais, propôs sem titubear, segundo conta Oshima: vamos fazer um filme
pornô! (Dauman mais tarde negou a versão).
136
O diretor, excitado com a ideia e a possibilidade de dar um salto internacional na
carreira, aceitou na hora. Voltou para casa e enviou duas propostas. Uma sobre a
história de Abe Sada, protagonista de um caso célebre de mutilação genital, em 1936, e
outra, inspirada em um conto do extraordinário Nagai Kafu, escritor das licenciosas
aventuras de cortesãs no Japão do início do século 20. Dauman escolheu a primeira,
entusiasmado, também segundo Oshima. Entre o acerto dos dois e o início das
filmagens passaram-se exatos três anos.
Foram anos de um impasse subjetivo, como definiu o realizador: nada a ver com
condições externas de produção. À época, completou alguns trabalhos para televisão,
mas seu foco estava em como encontrar o ponto certo da mise-en-scène do ato sexual,
como dramatizar uma cena em que os protagonistas se entregam sexualmente e a
narrativa não fique diluída na mera contemplação onanista. O exercício do sexo implica
um nível básico de expressão emocional, onde o espectador percebe o filme com o
corpo, uma leitura corporal, por assim dizer. O objetivo era captar essa leitura e dar um
sentido político ao ato.
Algo que ia além dos filmes “pink” ou das produções “roman porno” da Nikkatsu,
que inundavam as telas japonesas com um estilo “soft-core” que atiçava as massas, mas
esgotavam-se em si mesmas. Surpreendentemente modesto, Oshima conta que viajou
a Kawasaki para ver as fitas “pink” de Murakawa Toru e Tatsumi Kumashiro. Eles são
ótimos, concluiu, mas não “tinha sentido imita-los”. Teria que encontrar um método
próprio de composição física.
O método foi encontrado: a premissa era o sexo explícito, e a consequência era
um estado que poderia ser descrito como sublimação crítica. “Império dos sentidos”,
filmado em 1975 e lançado (fora do Japão) em 1976, é um dos produtos mais bem
sucedidos do cinema japonês, em todos os tempos.
Amor Louco
A história de Abe Sada transformou-se em um mito contemporâneo de
fortíssima repercussão na indústria cultural japonesa - livros, filmes, biografias, teatro,
música, performance. Em todos esses meios sua peripécia foi reproduzida e encenada.
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O filme de Oshima ocupa o topo da pirâmide, pela excelência artística, mas sem dúvida
dialoga com todas essas narrativas, assim como dialoga com os contornos do mito, sua
recepção e deglutição na cultura popular.
Nascida em 1905, em plena era Meiji, Sada foi a caçula mimada de uma família
de produtores de tatame. Dispersiva nos estudos, foi estuprada por colegas da escola
aos 14 anos e posteriormente enviada pelo pai a uma casa de gueixas, em Yokohama.
Sua incapacidade em atingir o status artístico das gueixas levou-a à prostituição
intermitente e aos amantes erráticos, entre Osaka e Tóquio.
Em 1934 cuidou do pai enfermo, nos seus últimos dias de vida. Chegou a ser
presa logo depois em um bordel, mas conseguiu sair graças a um amante. Passou por
Nagoya e voltou para a capital, onde arranjou emprego no restaurante de Ishida Kichizo.
A atração mútua foi fulminante, o sexo praticado à exaustão e o fim revelou-se trágico.
Em 18 de maio de 1936, depois de dias isolados em um pequeno cômodo, Ishida deixouse asfixiar na busca pelo prazer, falecendo no ato. Em seguida, Sada cortou seu membro
fálico, embrulhou-o em uma capa de revista, e foi ao cinema. Ficou três dias
perambulando com o pacote e terminou sendo presa. Uma foto publicada nos jornais
do dia 20, tirada na delegacia de Takanawa, em Tóquio, mostra Abe Sada sorridente, ao
lados de policiais igualmente sorridentes. A mídia explorou o caso ao máximo.
Naquele ano os ânimos estavam acirrados. Em fevereiro, no dia 26, havia
ocorrido o famoso incidente que inspirou Mishima Yukio em “Rito de amor e morte”. O
movimento foi debelado no dia 29. Foram executados 19 conspiradores, entre eles o
ideólogo Kita Ikki, personagem do filme de Yoshida Kiju, “Coup d’état”. A partir desse
momento, consolidou-se o poder militar e esvaziou-se a política civil. A guerra foi um
corolário.
Corpo e excesso
Dois corpos isolados em um recinto, unidos carnalmente até o último suspiro. A
tentação primeira é pensar o filme de Oshima como uma alegoria da exclusão social, em
uma época marcada pela escalada militarista que levou à guerra do Pacífico, o excesso
dos excessos. Como dirigir dois corpos embalados nesse frenesi ? O casting dos atores,
138
conta Oshima, já era direção. Muitas candidatas para o papel feminino - a eleita,
Matsuda Eika, de pele macia e olhar obsessivo, vinha da trupe de teatro de Terayama
Shuji – e poucos para o masculino. O ator escolhido foi obra de Wakamatsu Koji, a
devastadora personalidade que Oshima, em um lampejo de gênio, chamou para diretor
de produção. Fuji Tatsuya, uma das estrelas da Nikkatsu, aceitou o papel depois de várias
rodadas alcóolicas com Wakamatsu.
Segundo Oshima, Fuji destacava-se por não ter ansiedades em relação à sua
capacidade viril. A orientação básica que recebeu para compor seu personagem foi
simples e objetiva: pense sempre, em relação à sua contraparte, que você “fará tudo
por ela”. Isto é, entrega total do próprio corpo, para consumo hedonista da parceira.
Ela, por seu turno, representaria o corpo no estado absoluto do desejo – pura pulsão de
preenchimento da falta.
As falas de Abe Sada vieram dos depoimentos recolhidos pela polícia e textos da
própria, de quem Oshima teria obtido autorização. As de Ishida Kichizo, inventadas (a
combinação resultou estupenda). A direção de atores, meticulosa e milimétrica,
extrapolou os limites do realismo e inaugurou, no cinema “mainstream” e “artístico”, a
prática do sexo explícito (ainda é referência, mesmo com o caudaloso consumo de sexo
via internet).
E a sacada mais brilhante de Oshima: as cenas de sexo são conduzidas pela
protagonista feminina, que chega a instruir seu parceiro a ter relações com terceiras
para seu prazer escopófilo. Ao contrário da maioria das narrativas cinematográficas,
pornográficas ou não, onde o olhar masculino comanda o espetáculo, no filme de
Oshima quem mandou foi a mulher.
Pânico no bar
Foram trinta dias de filmagens no estúdio da Daiei, em Quioto, com pósprodução e laboratório na França, não somente pela parceria com Dauman, mas pelo
receio dos negativos serem confiscados pela polícia japonesa. A difusão da pornografia
em território francês, obedecidos os parâmetros restritivos conhecidos, foi liberada em
1975. Oshima registrou o fato com alegria.
139
Na sequência, realizou “O império da paixão”, em 1978, ambientado no Japão
rural de fins do século 19, também produzido por Anatole Dauman e com o obstinado
Fuji Tatsuya no papel principal (mais tarde ele se tornaria uma personalidade da TV).
Neste filme, em vez de sexo explícito, o diretor optou por traição, morte e fantasmas.
Em seu país, Oshima era processado por obscenidade pelo livro que organizou
para divulgação de “Império dos sentidos”, com fotos e roteiro. Foi absolvido em 1982,
depois de demandar ao tribunal qual seria a definição de “obsceno”. Ninguém soube
responder. Já o filme demorou para ser aprovado no Japão: mesmo hoje, só pode ser
exibido com “fogging” ou mosaico nos órgãos genitais.
Matsuda Eika fez mais alguns “pink” - um deles de Wakamatsu, “Eros eterna”,
de 1977 - mas logo mudou-se para a Europa, com a carreira eclipsada. Abe Sada, por seu
turno, ficou cinco anos na prisão, atravessou a guerra e terminou fazendo shows em um
pequeno estabelecimento no centro de Tóquio. Donald Richie conta que Sada
despontava no alto da escada espiral do bar para, faca nos dentes, aterrorizar a clientela
masculina: em seguida circulava com desenvoltura, distribuindo bebidas. Em 1969 deu
um depoimento para Ishii Teruo, incluído no visceral “Love and crime”. Desapareceu da
cena pública em 1970.
Merry Christmas, Mr. Lawrence
Em 1983, Oshima dirige “Furyo, em nome da honra”, com um “casting”
ambicioso. David Bowie, pop star global, que viu atuar na Broadway em “Elephant man”;
Ryuichi Sakamoto, compositor e tecladista, ídolo no Japão; e Kitano “Beat” Takeshi
(listado apenas Takeshi no letreiro), que viria a ser nos anos 90 o nome mais conhecido
do cinema japonês.
Passada em um campo de concentração das forças japonesas na ilha de Java, a
história, baseada em relato autobiográfico de prisioneiro sul-africano, lida com as
ambiguidades e sentimentos cruzados de quatro personagens, dois japoneses e dois
ocidentais – um microcosmo do conflito maior, a Segunda Grande Guerra. O ano de
1942, a propósito, é quando o Japão promove com mais empenho (e crueldade) a
expansão militar no sudeste asiático.
140
Os personagens de Bowie (Celliers, líder carismático dos presos) e Sakamoto
(Yonoi, comandante do campo) desenvolvem uma atração física (quase) patológica,
pautada por uma gestualidade militar. Uma alegoria imprevista de uma improvável
reconciliação pós-guerra, carregada de contradições – afinal, este é um filme de Oshima
– mas contundente em si mesma. Perto do fim, Celliers é enterrado no chão apenas
com a cabeça à mostra, condenado a morrer pelo novo comandante que substituiu o
“sentimental” Yonoi. Cai por terra o código samurai de Yonoi, depois do famoso beijo
de Celliers: no ápice do sadomasoquismo, resta apenas o roubo de uma mecha dos
cabelos de oficial inglês.
Duas grandes atuações, Bowie e Sakamoto, ilustram o filme, assim como a
estreia de Takeshi Kitano, porta-voz do refrão “Merry Christmas, Mr. Lawrence”. Oshima
Nagisa ainda faria mais dois filmes antes de falecer, em 2013, depois de mais de uma
década sem sair de casa, abatido por derrames: “Max, mon amour”, de 1986, com
Charlotte Rampling, e o belo “Tabu”, de 1999, sobre um samurai homossexual em uma
milícia no final da era Meiji. Em 1993, compartilhou com Kurosawa Akira duas horas de
diálogo para a TV. Nesse encontro de insignes, um ciclo se fecha no cinema japonês.
Lábios úmidos
A perspectiva eurocêntrica do Ocidente tende a enfatizar no resto do mundo
alguns excessos comportamentais, sobretudo aqueles ligados à sexualidade. O Japão
não escapou dessa pecha: o arquipélago seria a terra do sexo livre, vigente sobretudo
nos tempos anteriores à abertura da era Meiji, sem culpas ou castrações. Ninguém se
importava com o que o outro fazia em termos de sexo, uma atitude que de alguma
maneira perduraria até hoje.
No final do século 19, as coisas mudaram. Em 1868, no início da era Meiji, o país
abriu os portos para o mundo, reforçou os códigos confucianos e importou um certo
moralismo vitoriano, associado à modernidade (tudo o que vinha das potências
europeias nas primeiras décadas do novo momento histórico era tido como
“moderno”). O objetivo era tornar-se uma nação “civilizada”. A escalada militarista
consolidou essa tendência. Posteriormente, depois da guerra do Pacífico, em 1947, a
141
ocupação norte-americana impingiu uma constituição liberal, cheia de preceitos morais,
ao mesmo tempo que trouxe hábitos, fantasias e interdições relacionadas à vida sexual
– todos de matriz judaico-cristã, ou seja, sem relação direta com a cultura japonesa.
Como sempre, a incrível capacidade de adaptação japonesa aplainou o terreno.
Até hoje vigora no país o Artigo 175 do Código Criminal, de 1905, que proíbe a
distribuição de “objetos obscenos”. Na interpretação contemporânea do artigo,
utilizada para os produtos audiovisuais, isso significa a necessidade de inserir um
“mosaico” ou qualquer outro truque ótico na imagem para bloquear a visão da genitália.
O questionamento de Oshima sobre a noção de “obsceno” tocou em uma
complicada discussão jurídica, pontuada, entre outros, pela decisão de 1962 do Tribunal
Distrital de Tóquio sobre a tradução do lascivo livro do Marques de Sade, “L'Histoire de
Juliette; ou Les Prosperités du Vice”. Embora pelo menos quatorze passagens do texto
fossem consideradas ofensivas e violadoras do decoro público, o editor e tradutor – réus
da ação – foram inocentados, com base em que tais passagens eram “brutais e irreais,
não apelando efetivamente à paixão sexual e portanto não poderiam ser consideradas
obscenas”. A arte mitigaria o conteúdo perturbador das descrições gráficas da
pornografia. Baseados nessa premissa, pouquíssimos filmes sofreram cortes, inclusive
os “pink”, desde que estivessem conformados ao “mosaico”.
Kumashiro Tatsumi, contratado pela Nikkatsu, era considerado o “rei do roman
porno” – uma espécie de subseção do cinema “pink”, com produções mais cuidadas e
associado ao poderoso estúdio, que também atuava na distribuição e exibição. Somente
entre 1972 e 75 realizou dezesseis filmes, entre eles “Wet lips”, de 1972, elogiado por
Oshima, e “Woods are Wet: Woman Hell”, de 1973, inspirado em “Justine ou les
malheurs de la vertu”, do infalível Marques de Sade, com sexo, sodomia, violência,
sadismo e masoquismo. A fita foi exibida sem problemas, mas com tarjas pretas
cobrindo órgãos sexuais e pelos púbicos.
Os infortúnios da virtude
Sade tinha leitores e admiradores no Japão. Mishima escreveu em 1965 uma
curiosa peça sobre o Marques, a partir do ponto de vista da esposa, “A Senhora de
142
Sade”. Kumashiro Tatsumi não tinha o refinamento de Mishima, mas era dotado de uma
enérgica compulsão de filmar, que se ajustava à perfeição aos ditames de produção dos
“roman porno”: tempos curtos e limitados para filmagens; flexibilidade de estilo,
cenários fechados, ou exteriores abertos; rua e cidades pequenas, sem conexões visíveis
entre interno e externo; poucos closes, muita câmera na mão; iluminação simplificada;
problemas de sincronia de falas resolvidos na dublagem; músicas como comentários, e
intertítulos como organizadores da narrativa; o máximo possível de sequencias filmadas
na beira do mar ou rio; e cenas de sexo, muitas, de dez em dez minutos, integradas,
naturalmente, a uma variedade de situações - cômicas, patéticas, satíricas e até
literárias (seu “The world of geisha”, de 1973, um dos melhores da safra, apoiou-se em
texto do escritor Nagai Kafu).
A lista acima ilustra também os princípios gerais do cinema “pink”. Kumashiro
entrou na Nikkatsu em 1955, mas só conseguiu dirigir um longa em 1968, quando já
tinha 41 anos. A partir de 1971, quando o estúdio resolveu dedicar-se exclusivamente
ao “roman porno”, Kumashiro explodiu. Sua técnica de direção flagra os personagens
em curtos períodos de tempo, suficiente para cruzar seus olhares com algum objeto de
desejo ou simplesmente deixá-los possuídos por uma subjetividade desejante. Invade a
cena, quase sempre, uma indisfarçável onda de libido, que parece contagiar mesmo os
mais renitentes. O clima é de luxúria e paródia.
Logo em 1972, com “Sayuri Ichijō: Wet Lust”, Kumashiro agradou público e
crítica. Sayuri Ichijō era uma famosa “stripper” e representa a si mesma, em sua rotina
atribulada. Em 1999, a fita foi incluída entre os 100 melhores filmes japoneses de todos
os tempos pela revista “Kinema Jumpo”. Logo depois, “Lovers are wet”, de 1973, segue
um empregado de um cinema “pink” carregando latas de filmes na bicicleta. Munido de
uma insolência preguiçosa, ele circula pela narrativa como quem pula carniça
(literalmente mostrada na sequência final do “ménage à trois”). Em “The woman of red
hair”, de 1979, a heroína pega carona de um motorista de caminhão e acaba entrando
em uma rotina intensa de sexo, até que o marido reaparece. Atores com gestos rudes e
uma chuva torrencial abafando o ambiente construíram um realismo sensual e
embrutecido.
143
Em 1982 Wakamatsu Koji articulou uma produção alemã para Kumashiro, “The
woman with red hat”. A história, com pretensões artísticas à altura de “Império dos
sentidos”, segue um japonês na Alemanha e seu obsessivo relacionamento sexual com
uma alemã, na época da ascensão de Hitler. Não funcionou. Sua saúde foi sempre
oscilante, dirigiu seus últimos filmes com um tubo de oxigênio. Shirakawa Kasuko,
grande atriz do “pink” (e também do cinema dito “sério’, em filmes de Imamura Shohei
e Koreeda Hirokazu) disse que graças a essa condição física Kumashiro foi capaz de
retratar a “fragilidade da existência humana”. O “rei do roman porno” faleceu em 1995.
Extreme Private Pink
Em 1971 foram vendidas apenas 216 milhões de entradas de cinema no Japão,
menos de 20 % do que foi vendido em 1958, ano do pico (mais de 1 bilhão e 127 milhões
de tickets). A penetração da TV mudou os hábitos (e demandas) da audiência, os
estúdios se esfacelaram, o circuito cinematográfico nunca mais seria o mesmo. O modo
“pink” de fazer cinema foi uma alternativa eficiente para conter essa erosão. Ocupou
um nicho cada vez maior da exibição, sobretudo pela maior abertura para cenas de sexo,
eventualmente associadas à violência, à política, à história, ou a qualquer recurso
dramático julgado oportuno. Provavelmente foi o “pink”, em seus variados estilos, que
segurou a decrescente frequência das salas de cinema ao longo das décadas de 70 e 80
– em 1980, venderam-se cerca de 164 milhões de entradas; em 1990, 146 milhões.
Os especialistas opinam que entre 40 e 50 % do total de produções japonesas
nesse período, anos 70 sobretudo, era do gênero “pink” (entre 1970 e 79 foram
produzidos em média no Japão 367 filmes por ano). Note-se também que, durante os
mesmos anos 70, o produto estrangeiro (quase sempre americano) tinha em geral
percentual inferior em relação ao nacional no mercado cinematográfico. A partir de 80,
entretanto, caiu o número de filmes produzidos no Japão, e os importados
prevaleceram. Uma das razões foi a redução da produção “pink” diante da devastadora
concorrência do “adult video” nos anos 80. O sexo explícito passou a ser gravado em
série, em vídeo e a custos baixíssimos, para consumo privado.
144
Eros jidaigeki
Como equacionar custos de produção em 35 milímetros, com toda a parafernália
de laboratórios e equipamentos, com a simplicidade da gravação no VHS ? Gravar cenas
de sexo em vídeo tornou-se uma opção atrativa para produtores e consumidores. A
qualidade técnica, naturalmente, não era a prioridade. Não obstante, enquanto essa
questão não se colocou de forma cabal de 1980 em diante, afetando duramente a
indústria cinematográfica, os realizadores extrapolaram e o “pink” reinou. Fitas como
“Sex and fury”, de Suzuki Noribumi, lançada em 1973, e “Lady snowblood – Vingança
na neve”, de Fujita Toshio, no mesmo ano, atualizaram o “pink” erótico com os
“jidaigeki” de ação, inovando com a ênfase nos personagens femininos vigorosos.
Ambos são apreciados por Quentin Tarantino, como se pode conferir em “Kill
Bill”, povoado de mulheres com sede de vingança. “Sex and fury”, produzido pela Toei,
tem uma sequência impagável da heroína combatendo uma corja de inimigos,
inteiramente nua e no meio de uma (doce) tempestade de neve. Já o filme de Fujita,
“Lady snowblood”, produção independente distribuído pela Toho, tem seu roteiro
baseado em um mangá do fecundo Koike Kazuo. Os dois alcançaram excelente público.
Mangá e violent pink
Já em 1972, três produções dirigidas por Misumi Kenji e inspiradas no
popularíssimo “Lone Wolf and Cub”, também de Koike, haviam sido lançadas. O herói é
um carrasco proscrito do xogunato, convertido em assassino. A franquia “Lone Wolf and
Cub” rendeu seis filmes, recurso que iria se tornar recorrente no cinema japonês.
O exemplo mais espetacular é a série baseada no andarilho simpático e familiar
Tora-san, eterno caixeiro-viajante, que se desdobrou em inacreditáveis 48 longasmetragens. Dirigidos por Yamada Yoji, alcançaram impressionantes 80 milhões de
espectadores durante 25 anos, a partir de 1969 (Yamada ganhou prêmios pelos dois
primeiros, “It's Tough Being a Man” e “Tora-san's Cherished Mother”).
O “pink”, por seu turno, adentrou pouco a pouco em territórios novos e
desconhecidos: a violência sexual, praticada privadamente e alegorizada em
145
instrumento de prazer. O “violent pink” surgiu para dar vazão às expectativas mais
extremadas da plateia.
Diretores como Nishimura Shogoro e o prolífico Yamamoto Shinya são
representativos de produções temperadas de sexo, sadismo, mutilações genitais e
tortura. Do primeiro sobressai “Rope cosmetology”, de 1978, com a insuperável Tani
Naomi: do segundo, obsessivo e incansável realizador de 57 filmes somente na década
de 70, destaca-se o infame “Cruel History of Prisoners”, de 1976, inspirado na antologia
de contos de terror organizada por Lafcadio Hearn, “Kwaidan”, a mesma utilizada por
Kobayashi alguns anos antes.
Em uma linha mais focada na violência do estupro aparece Hasebe Yasuharu, exassistente da Suzuki Seijun. Entrou na Nikkatsu em 1958, e em 1966 dirigiu seu primeiro
longa, “Black Tight Tigers”, influenciado pelo estilo do mentor. Entre 1970 e 71 lança
cinco filmes da série “Stray cat rock”, estrelados por Kaji Meiko, um dos ícones dos anos
70 no Japão. Entre 1976 e 78 foram quatro “violent pink” em torno de estupros,
salientando-se “Rape! 13 hour”, com derivações homossexuais e grande sucesso de
bilheteria. Excelente diretor de atores, Hasebe tornou-se em 1980 “free lancer”,
trabalhando para TV e, mais tarde, no “V-Cinema” (produções realizadas diretamente
para o mercado de vídeo).
A rainha do S&M
Uma ampla e excelente introdução à produção “pink” em língua inglesa é o
compêndio “Behind the Pink Curtain: The Complete History of Japanese Sex Cinema”,
de Jasper Sharp, publicado em 2008. Na capa, a bela Tani Naomi, a rainha do sado &
masoquismo, em sua posição habitual: nua, cuidadosamente amarrada por cordas, um
belo quimono caindo pelo ombro esquerdo, e um delicado par de meias brancas curtas
nos pés. Seu ligeiro peso extra garante que a força das cordas realce a pressão sobre a
pele, fornecendo uma sutil impressão de contenção forçada, de repressão nivelada com
a superfície do corpo. Completam o quadro generosas medidas do tórax, indispensáveis
para o tipo de papel que a atriz iria se identificar.
146
A beleza e o sorriso de Tani encantaram a audiência. Começou no início dos anos
60 nos “pink” de orçamento barato, adotando o nome em homenagem ao escritor
Junichiro Tanizaki, um dos grandes da literatura japonesa. Entre muitíssimos outros, foi
dirigida pelo pertinaz Yamamoto Shinya, em “A degenerate”, de 1967, “Memoirs of
Modern Love: Curious Age”, também de 67, e “Season For Rapists”, de 1968. Seu
primeiro papel explicitamente sado & masoquista foi com Sakao Masanao, em “Cruel
Map of Women's Bodies”, em 1967. Foi então que estabeleceu uma legendária parceria
com um dos mais curiosos literatos japoneses, Dan Oniroku, pioneiro autor de uma obra
infindável e monotemática em torno do S&M.
Após alguns anos de assédio por parte da Nikkatsu, que iniciava em 1971 a
produção de “roman porno”, Tani Naomi finalmente aceitou a oferta, estreando em
“Flower and Snake”, de 1974, também dirigido por Sakao Masanao e roteirizado pelo
amigo escritor. Em 1972, a própria Tani já havia dirigido dois longas inspirados em textos
de Dan, “Sex Killer” e “Starved Sex Beast”, oportunidade em que acentuou, conforme
revelou, as “cenas de tortura e servidão”.
O sacrifício da esposa
Atuar na Nikkatsu aumentou consideravelmente a fama da atriz, dado que a
produtora dispunha de rede de exibição no país inteiro. A próxima produção, “Wife to
be sacrificed”, lançada em outubro de 1974, também de Sakao Masanao, é um dos
maiores sucessos de bilheteria de todos os tempos da Nikkatsu. O enredo é de uma
simplicidade digna do Marques de Sade. Tani, abandonada pelo marido, começa o filme
vestida com um belo quimono tradicional, gesticulando de maneira contida e respeitosa,
e dando aulas de “ikebana”, a conhecida arte japonesa de arranjos florais.
Uma sucessão de acasos faz com que o casal reencontre-se durante visita ao
túmulo de sua mãe, recém-falecida. Levada contra a vontade para o refúgio do ímpio
ex-cônjuge, no meio de uma floresta, Tani é submetida a um calvário de humilhações e
proezas sexuais, sem conseguir esconder, entretanto, um crescente prazer na provação.
A conversão é inevitável: logo, torna-se ela mesma uma sacerdotisa de rituais sádicos,
habilidade que exercita em um casal resgatado da vizinhança depois de tentativa de
147
duplo suicídio. A estreante (e estonteante) Azuma Terumi fazia a “suicida”, iniciando
neste filme uma carreira exitosa no “pink”.
Com variações, aqui e ali, esta foi a coluna vertebral do perfil artístico de Tani
Naomi e dos filmes em que atuava.
Sempre, é bom salientar, dentro dos cânones do “soft-core”. Simulação é a
palavra de ordem: uma espécie de pacto entre artistas e público garante que tudo não
passa de pantomima, uma situação ficcional e portanto artificial. Talvez em função disso
é que não se registraram no Japão, em paralelo aos filmes “pink”, surtos extraordinários
de crimes envolvendo tortura sexual e correlatos. O que interessa, afinal, é o puro
artifício.
Sequestros no ar
Os primeiros anos da década de 70 foram marcados por uma radicalização de
facções vindas do movimento estudantil. Em 31 de março de 1970, um avião da “Japan
Airlines”, que ia de Tóquio a Fukuoka com 122 passageiros, foi desviado para Seul e, ato
contínuo, para Pionguiangue, na Coreia do Norte. Os nove sequestradores, integrantes
de um grupo precursor do “Japanese Red Army”, obtiveram asilo do governo nortecoreano. O projeto era utilizar o país como base de operações para futuras atividades
revolucionárias.
Em 1973, foi sequestrado um Boeing 747, da “Japan Airlines”, que ia de
Amsterdam para Tóquio. Em 1977, um DC-8 da mesma empresa, que ia de Paris para
Tóquio, foi parar em Dhacca, Bangladesh.
Sem dúvida o episódio mais sangrento, no entanto, foi o incidente do aeroporto
de Lod, em Tel Aviv, que chocou a opinião pública e projetou o “Japanese Red Army” na
imprensa global. Em 30 de maio de 1972, três cidadãos japoneses desembarcaram no
aeroporto, retiraram metralhadoras e granadas de suas bagagens, antes de passar pela
imigração, e fuzilaram quem estivesse pela frente. Morreram 26 pessoas, 17 dos quais
turistas cristãos de Porto Rico, que vinham conhecer a Terra Santa, e foram feridas
outras 80. Dois dos agressores caíram em ação: o primeiro explodiu uma granada, o
148
outro foi alvejado na cabeça. Apenas um, Okamoto Kozo, sobreviveu, aparentemente
por falha do dispositivo de sua granada.
Em 2007, Adachi Masao realizou “The prisioner”, inspirado na vida de Okamoto.
Condenado à prisão perpétua em Israel, Okamoto acabou beneficiando-se, depois de 13
anos em prisão solitária, de troca entre palestinos e israelenses, em 1985. Foi para a
Líbia, depois Síria e finalmente Líbano, onde conseguiu asilo político. O governo japonês
vem solicitando seguidamente sua extradição, sem sucesso. A operação no aeroporto
de Lod foi planejada pela “Frente popular de libertação da Palestina”. Utilizar cidadãos
japoneses foi o recurso encontrado para surpreender a segurança israelense.
Sobrevivência
Fukasaku Kinji tinha quinze anos quando foi convocado para trabalhar em uma
fábrica de munições, no final de Segunda Guerra Mundial, em 1945. Obviamente, o local
era alvo prioritário de bombardeios, quase que diários. Fukasaku conseguiu sobreviver
esgueirando-se por debaixo dos cadáveres dos companheiros, todos jovens como ele. O
que importava era a sobrevivência individual: o ideal coletivo preconizado pela política
oficial como substrato da alma japonesa simplesmente evaporou-se. A experiência,
claro, foi marcante. Anos mais tarde, depois de dirigir as cenas de combate aéreo em
“Tora! Tora! Tora!”, diria: se os que comandavam a guerra fossem tão cavalheiros como
mostram os filmes americanos, não teria havido guerra, seria impossível.
Estudante de cinema na Universidade Nihon, a mesma de Adachi Masao,
Fukasaku entrou para a Toei na década de 50, começando a dirigir a partir de 1961.
Dentre as produções iniciais, a maioria no formato característico do estúdio – filmes de
gangues e detetives – pelo menos duas se destacaram, ambas de 1968. A primeira é
“Black Lizard”, em cima de uma peça de Mishima Yukio, por sua vez adaptação de um
livro escrito por Edogawa Rampo (estimado escritor de mistérios e crimes, cujo
pseudônimo foi tirado da pronunciação japonesa de Edgar Allan Poe). O papel principal,
tal como no teatro, coube ao cantor e ator travesti Maruyama Akihiro, próximo de
Mishima.
149
O segundo é “The Green Slime”, bizarra ficção científica filmada no Japão com
roteiro e atores norte-americanos – uma alegoria involuntária da parceria nipoamericana em segurança formalizada no tratado bilateral ANPO, que provocou ondas
seguidas de protestos, também quando da renovação do acordo, em 1970.
Batalhas sem honra e humanidade
A afirmação do diretor viria na década de 70. Lançado em 1973, “Battles Without
Honor and Humanity” foi um sucesso de público e crítica que rendeu mais sete
sequências. Baseado em relato jornalístico extraído de texto de um membro da yakuza,
o filme combinou precisão documental com uma admirável estética de ação, com planos
rápidos e câmera (nervosa) na mão. Com direito à assinatura de Fukasaku: imagens
congeladas no pico da ação, para situar o espectador na trama e dar uma guinada na
narrativa.
Cobrindo um tempo diegético de dez anos, a história acompanha a guerra entre
“famílias” rivais em Hiroshima, tendo no pano de fundo a ascensão do país nas ruínas
do pós-1945 até o surto de aceleração econômica, em meados dos anos 50.
Ficção na forma, realidade no conteúdo. Ao longo do filme, depreende-se a
sensação iminente de algo está por ser revelado, em meio às convenções narrativas
próprias do gênero yakuza (palavra derivada da junção de Ya-Ku-Za, ou seja, 8-9-3, a pior
mão no Blackjack japonês). A sintonia com a atmosfera psicossocial no Japão da década
de 70, de prosperidade e corrupção política, bateu em cheio.
Debaixo da bandeira do sol nascente
Fukasaku, é inevitável, ficou conhecido sobretudo pelos filmes sobre yakuza.
Foram inúmeros, dos mais variados ângulos e enfoques, até que em 1976 realizou o
soberbo “Yakuza graveyard”, com o contumaz Watari Tetsuya no papel de um policial
ambíguo, solitário e atormentado. Culpado de ter matado um yakuza no leito da
amante-prostituta, torna-se por sua vez protetor e amante da “viúva”. Isso não impede
a atração pela esposa de outro yakuza, que cumpre pena por 15 anos – no papel desta,
150
a bela Kaji Meiko, estrela da série “Stray cat rock”, de “Lady snowblood”, e do torpe
“Female Convict 701: Scorpion”, de 1972, dirigido por Ito Shunya (Kaji foi a cantora das
músicas-temas dos dois últimos, incluídas por Tarantino em “Kill Bill”).
Já Watari Tetsuya era contratado da Nikkatsu, onde atuou em “Tóquio violenta”,
de Suzuki Seijun, mas largou o emprego quando o estúdio partiu para o “roman porno”
em 1971. Com Fukasaku teve talvez seu melhor papel, de policial que se afasta do
sistema corrupto e firma pacto de irmandade com um dos chefões yakuza, de sangue
coreano. Exprimir essa contradição em linguagem corporal é tarefa dificílima para
qualquer ator. Watari saiu-se muito bem.
Mas não eram só filmes de yakuza: a versatilidade de Fukasaku ficou manifesta
em “Under the Flag of the Rising Sun”, eminente produção de 1972 que revisita o
trauma da guerra com acurácia cirúrgica, rodado com produção independente. Uma
viúva (a excepcional Hidari Sachiki, atriz de Imamura em “A Mulher Inseto ou Tratado
Entomológico do Japão”) procura desesperadamente conhecer as circunstâncias da
morte de seu marido, sargento do exército imperial em Nova Guiné, em agosto de 1945.
A reconstituição dos acontecimentos, marcada pelo silêncio oficial e depoimentos
cruzados de oficiais superiores e subordinados, é agoniante. Um triste retrato, enfim,
das condições subumanas a que estavam submetidos os soldados naqueles que seriam
os últimos suspiros de um dos maiores delírios bélicos da história. O filme é um dos mais
contundentes sobre o trauma da guerra já feitos no Japão.
Batalha Real
Em 1978, o primeiro “jidageki” de Fukasaku. Com produção da Toei, que
celebrava o primeiro aniversário do seu parque temático em Quioto, “A Conspiração do
Clã Yagyu” é um épico passado no século 16, quando o clã Tokugawa consolidava sua
esfera de poder. Mesmo sob forte pressão comercial do estúdio, que apostava na fita
como instrumento de promoção do parque, Fukasaku consegue ultrapassar os limites
habituais do gênero – lutas e mais lutas, espadas e sangue jorrando – para introduzir
traições e opressão social na história. O personagem do popular ator Shinichi "Sonny"
Chiba é o agente desse clamor.
151
Fukasaku manteve ritmo acelerado ao longo dos anos 80, diminuindo na década
seguinte. Apoiado pela nova produtora do Japão, Kadokawa – braço cinematográfico do
poderoso grupo editorial homônimo, hoje presente em todos os setores da mídia e
entretenimento – o realizador aventurou-se nas produções de alto custo, algumas bem
sucedidas, outras nem tanto. Os destaques: a futurologia do horror em “Vírus”, de 1980;
as histórias fantásticas dos samurais cristãos reencarnados, em “Portal do inferno”, de
1981, transformado posteriormente em videogame; o “jidaigeki” fantasioso e cheio de
imagens sintéticas, em “A lenda dos oito samurais”, de 1983; e o feminismo pioneiro
das mulheres poetas, em “A Chaos of flowers”, de 1988.
Seu último trabalho, “Batalha real”, feito na virada do milênio (ano 2000),
antecipa a espetacularização da crueldade que os “reality shows” materializaram no
novo século. Colegiais são levados para uma ilha e só um (ou uma) poderá sobreviver:
coordena o jogo o professor do grupo (Kitano Takeshi, excelente). O filme teve forte
repercussão no seu país e projetou o nome de Fukasaku no circuito global. O diretor
faleceu pouco depois, no começo de 2003.
A história do pós-guerra no Japão contada por uma dona de bar
Imamura Shohei não escondia sua irritação com atores e atrizes, depois da
produção longa e complicada de “The profound desires of the Gods”, concluído em
1968. Decidiu dedicar-se ao documentário, não apenas por questões financeiras, mas
também para escapar da relação conflituosa com egos de artistas. A guinada deu vazão
a uma série de brilhantes filmes, em que a noção mesma de documentário – algo que
pressupõe, como nas ciências sociais, a existência de um sólido sujeito do
conhecimento, voltado à busca da verdade objetiva - é colocada em cheque e
relativizada. Como já experimentado em “A man vanishes”, de 1967, a verdade é
oscilante, sujeito e objeto se misturam e se contaminam.
Em 1970, vem à tona o estupendo “History of postwar Japan as told by a bar
hostess”. Onboro-san, valente dona de um pequeno bar em Yokosuka (onde
estacionava a Sétima Frota norte-americana), senta-se em uma cabine de projeção com
o diretor e assiste a uma sequência de cinejornais, começando com a bomba atômica
152
em Hiroshima e terminando com a diversidade de protestos de rua no Japão dos anos
60. Baixa, aguerrida, com penteado coque e a blusa ligeiramente aberta, Onboro-san
discorre sobre sua atribuladíssima vida – pobreza na infância, inserção no mundo
masculino do trabalho, luta pela sobrevivência, amantes e entretenimentos travessos –
ao tempo em que emite comentários sobre os acontecimentos que testemunhou. Uma
verdadeira “mulher-inseto”, incansável na batalha diária, bem humorada e assertiva.
Neste filme, o que interessa não são os artifícios de montagem, o uso virtuoso
da câmera ou o roteiro inspirado: é o tema, ou ainda, a narrativa do tema, em toda sua
materialidade. A história do país narrada de forma absolutamente improvável. O
profundo desejo de Imamura foi desvelar, com uma só tacada, o fosso entre a verdade
oficial e o discurso dos marginais. Profunda ironia.
Soldados e prostitutas que não voltam
À procura de narrativas: munido da câmera e do gravador, Imamura sai em busca
dos remanescentes da política pan-asiática japonesa, delírio expansionista que deixou
cicatrizes indeléveis. Em 1970 e 71 realizou “In search of the unreturned soldiers in
Malaysia” e “In search of the unreturned soldiers in Thailand”, ambos feitos para
televisão. No primeiro encontra um soldado que se converteu ao Islã. A conversa acabou
chegando ao massacre de Sook Ching, ocorrido entre fevereiro e março de 1942 em
Cingapura, quando tropas japonesas massacraram milhares de chineses, indianos e
malásios.
A expressão Sook Ching vem do chinês e significa "purificação através da
limpeza". O soldado, denominado “A-Kim”, não acredita mais no Imperador:
“muçulmanos seguem apenas um Deus. Se for um rei ou imperador, muçulmanos não
seguirão. Todo ser humano tem dois lados no coração: justiça e ganância. Os japoneses
foram tentados pela ganância. Por isso a guerra começou”.
Na Tailândia, foram três soldados, que discutem entre si. Imamura, a exemplo
dos outros filmes, mantém uma presença editorial. Um deles, Fujita, resolve voltar para
o Japão em 1973, com 55 anos. Imamura realiza outro documentário, “Outlaw-Matsu
returns Home”, mais seco ainda. Fujita tinha desertado, e quando volta não é bem
153
recebido pela família (o irmão aparentemente tinha se beneficiado de uma pensão pela
suposta morte de Fujita). Sujeito (Imamura) e objeto (Fujita) interagem nos mínimos
detalhes. As contradições do personagem conturbado vêm à superfície. Posteriormente,
o diretor revelou que Fujita havia pedido a ele para comprar um cutelo de açougueiro,
pois queria matar o irmão. Conseguiu dissuadi-lo, mas ficou com a impressão, enquanto
realizador, de ter tocado em delicados limites éticos.
“Karayuki-San, the making of a prostitute”, de 1975, resgata a trajetória de uma
“comfort woman” japonesa, que foi levada à Malásia no início do século 20 para “prestar
serviços” ao Japão e acabou em um bordel. Kikuyo (seu nome) não voltou à terra natal
e construiu família, a despeito das provações por que passou.
Um comovente drama com história análoga é “Sandokan n. 8”, feito em 1974
por Kumai Kei, com Tanaka Kinuyo (excelente, seu último grande papel) como a idosa
“comfort woman” que rememora sua experiência para uma escritora. O assunto é
controverso e polarizado no Japão: em setores mais conservadores, paira certa
tendência a minimizar ou até mesmo ignorar esses fatos.
A vingança é minha
À procura de personagens: o “break” documental permitiu a Imamura Shohei
reinventar sua concepção dos filmes de ficção. “Minha vingança”, de 1978, foi o
resultado desse esforço. Durante anos, o diretor dedicou-se a pesquisar as
circunstâncias que levaram um destemido “serial killer” a assassinar cinco pessoas em
um périplo de norte a sul no Japão, durante 78 dias. Os fatos reais ocorreram na década
de 60. Um livro foi lançado depois da execução do criminoso, em 1970, que serviu de
base para a elaboração do roteiro. A longa e detalhada pesquisa, entretanto, foi além:
confluiu para a construção de um patológico personagem, oriundo de família católica,
sujeito portanto a um imaginário religioso estranho e pouco habitual na sociedade
japonesa.
O estranhamento é relevante porque sua infância coincide com o militarismo
pré-guerra, que impunha a religião xintoísta e excluía tudo o que fosse “ocidental”.
Vigarista e impulsivo, Enokizu Iwao (magnificamente interpretado por Ogata Ken, ator
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do círculo íntimo de Imamura) trafega de golpe em golpe acumulando assassinatos. Logo
sua foto aparece em toda parte, inclusive no cinejornal que assiste com a amante, no
cinema. Pouco depois é ela quem é sacrificada.
Herança cristã
O cristianismo foi proscrito durante séculos no Japão, depois da Rebelião de
Shimabara, entre 1637 e 1638, durante o xogunato de Tokugawa Iemitsu. Desde a
chegada de São Francisco Xavier ao Japão, em 1549, a epopeia dos católicos alternou
momentos de grande brutalidade com tolerância e até estímulo ao batismo, por parte
de alguns senhores feudais, que se converteram ao catolicismo. Depois da rebelião, foi
varrido do mapa. Inúmeros japoneses martirizados, das maneiras mais cruéis, foram
canonizados pelo Vaticano. Estima-se que o contingente de católicos tenha chegado, no
seu ápice, a 300 mil pessoas.
Em 1865, quando a era Tokugawa aproximava-se do fim, um padre francês
calculou em 60 mil o número de praticantes clandestinos. Herdeiros de famílias que
durante quase 250 anos mantiveram o culto em cavernas e qualquer outro local
recôndito, esses descendentes arriscaram a vida pela fé. O pai de Enozuki era um deles.
No filme de Imamura, memórias e iconografia cristã acompanham (e atormentam) o
personagem, de crucifixos a canções que seu pai cantarolava. Em estado psicótico,
abandona a esposa (que passa a desejar o pai, quase-viúvo e culpado) e inicia o surto
matador.
A manipulação do tempo, as elipses da narrativa e a alternância entre cidades e
ambientes em que circula Enozuki são magníficas. Todos os espaços cinematográficos
aparecem impregnados de vivência e carregados de tensão. Uma tensão que não é a
habitual dos “thrillers” de ação, que constroem um suspense artificial na mente do
espectador. No filme de Imamura, a tensão é subjacente, inscrita no olhar do
personagem que conduz a narrativa, mas nunca submissa a efeitos mirabolantes: ela
simplesmente está lá, entranhada nos ambientes e nas roupas, infiltrada na alma das
vítimas de Enozuki.
155
Carnaval e Chuva Atômica
O retorno ao cinema de ficção consolidou-se ao longo dos anos 80. Logo em
1981, Imamura realiza “Eejanaika – Aconteceu no fim da era Tokugawa”, pantagruélica
descrição do fim do período Edo, em 1868. Retornando ao Japão depois de uma
temporada acidental de seis anos nos Estados Unidos, um pequeno agricultor
reencontra a esposa transfigurada em bem sucedida “entertainer” no distrito de
Ryogoku, palco de libertinagem e bizarrices na capital. É quando ocorre a explosão
popular e espontânea que dá nome ao filme, “eejanaika”, cuja tradução seria algo como
“por que não ?” ou “que diabos é isso ?”. Hordas de desfavorecidos invadiram a capital
gritando “eejanaika” e jogando notas de dinheiro para o alto, atônitas com o surto
inflacionário e o caos no país. O ano era 1867, poucos meses antes da queda do
feudalismo e a restauração Meiji.
Logo depois, em 1983, Imamura realiza, “A Balada de Narayama”, remake do
filme com o mesmo título de Kinoshita Keisuke, de 1958. Ambos foram baseados no livro
de Fukazawa Shichiro, mas utilizam tratamentos distintos. A opção de Imamura foi mais
realista, mas dentro das coordenadas que lhe são caras: contrapor ao Japão moderno à
brutalidade dos “primitivos”, suas superstições e a força da natureza. Ganhou a Palma
de Ouro no Festival de Cannes, em 1983.
“Zegen”, de 1987, é o grotesco elevado aos píncaros da história. Baseado em
uma autobiografia, a narrativa segue as aventuras de um patriota convulsivo que decide
expandir seu negócio de prostituição pelo sudeste asiático, no início do século 20. A
expectativa era angariar clientela não apenas entre caixeiros-viajantes, mas também de
futuras tropas invasoras nipônicas, além, naturalmente, de locais afortunados. Com o
tempo, decide ele mesmo tornar-se um reprodutor privilegiado junto ao seu harém, a
fim de assegurar a disseminação da raça japonesa. Com Ogata Ken no papel principal, a
o filme flui pelas décadas, sempre irônico e carregado de histeria. Em 1941, instalado
em Kuala Lumpur, a decepção: o verdadeiro exército imperial invasor simplesmente
ignora o nacionalista precursor. Inacreditável, mas verdadeiro.
A última produção dessa proveitosa década foi o comovedor “Black Rain – a
coragem de uma raça”, de 1989, rodado em preto & branco com uma linguagem que
156
remete ao período “clássico” do cinema japonês, a década de 50. Combinando cenas
extremamente fortes do dia da bomba em Hiroshima e um drama familiar ocorrido cinco
anos depois, a história acompanha uma sobrevivente que hesita em se casar, ao estilo
de Ozu – só que dessa vez a hesitação baseia-se nas possíveis sequelas em virtude da
exposição à radiação atômica. O doloroso trauma da guerra emerge na superfície
plácida da narrativa clássica. Imamura, finalmente, apaziguou a herança de seu antigo
mentor da Shochiku, o grande Ozu.
Extreme Private Life
Em 1989 termina a era Showa, com a morte do Imperador Hiroíto. A era havia
começado em 1926: ele foi o 124º imperador do Japão, tendo liderado seu país,
desnecessário ressaltar, em um conturbadíssimo período – embora “showa” signifique,
literalmente, "período iluminado de paz & harmonia”. Na história (e mitologia) imperial,
foi Hiroíto quem abriu mão do status divino, em setembro de 1945, por imposição dos
norte-americanos. Sucedeu-o o filho primogênito Akihito, cuja era chama-se Heisei. Sua
visão de mundo é conciliadora e pacífica, mas também algo cética. Enquanto era
príncipe, Akihito chegou a comparar o papel da realeza japonesa aos robôs e expressou
sua vontade e esperança de trazer a família imperial mais perto do povo japonês.
Hara Kazuo é um dos documentaristas mais viscerais que o cinema já produziu.
Para ele, a câmera pode ameaçar o objeto do documentário revelando suas
vulnerabilidades. Mas pode também expor suas (do realizador) próprias fraquezas, na
mise-en-scène ou na montagem, na forma mesma como capta o objeto. A câmera,
resume, é um dispositivo por onde transitam as vulnerabilidades de sujeito e objeto:
uma maneira melhor de compreende-los, um instrumento de descoberta (e
autodescoberta).
Assistente de câmera do Imamura Shohei, Hara alçou voo próprio e completou,
em 1974, o documentário em longa-metragem “Extreme private eros: love song 1974”.
Abandonado pela mulher Miyuki, que partiu para Okinawa com o filho, o enciumado
Hara Kazuo resolve ir atrás e filmar tudo – primeiro é um caso dela com a “room mate”,
Sugako. Em seguida, uma atração por Paul, um soldado afrodescendente estacionado
157
na ilha. Miyuki volta a Tóquio a fim de dar à luz ao filho do soldado, parto devidamente
filmado por Hara e sua nova namorada. Ao cabo, Miyuki larga tudo e junta-se a uma
comunidade de mulheres, para criar os filhos fora dos cânones da família tradicional.
Visto em perspectiva, o documentário de Hara Kazuo é um negativo da onda “pink” que
grassava no cinema de seu país. Uma pequena obra-prima.
O exército desnudado do Imperador
Os anos se passam e um dia Hara recebe um telefonema de Imamura Shohei,
sugerindo que ele entre em contato com um ex-soldado que serviu no Pacífico sul
durante a guerra, Okuzaki Kenzo. Foi no início dos anos 80. Em 1987, é lançado “The
Emperor’s Naked Army Marches On”, considerado por muitos o melhor documentário
já feito no Japão.
Okuzaki, lá pelo fim dos anos 50, tomou a si a tarefa de culpabilizar o Imperador
pela tragédia da aventura bélica, e passou à ação. Primeiro arremessou um punhado de
bolinhas de “pachinko” no supremo líder, diante do palácio imperial: pegou 18 meses
de cadeia (já tinha passado dez anos preso pelo assassinato de um corretor de imóveis).
Depois, fabricou bilhetes de dinheiro com imagens pornográficas do Imperador (14
meses de reclusão). Também foi flagrado planejando o assassinato de um ex-Premiê.
Em 1982 começaram as filmagens, encerradas em 1985.
O irascível Okuzaki, imbuído ao máximo de sua função justiceira por ter se
tornado, enfim, objeto de um filme, arrasta a equipe em uma busca compulsiva para
encontrar ex-companheiros. Sua obsessão era comprovar as atrocidades da guerra que
denunciava, das execuções ao canibalismo no exército imperial. Nessa sofreguidão, não
hesita em agredir um deles, doente e fragilizado, que se recusava aderir à sua cruzada.
O processo psicótico do personagem contaminou a linguagem documental, confessou
Hara. Segundo ele, Okuzaki chegou a pedir seu auxílio para matar um dos ex-soldados –
naquele instante percebeu um olhar diabólico no seu entrevistado, que seria, pensou, a
essência mesma do filme que rodava. No final, o inevitável: Okuzaki se irrita com Hara,
sujeito e objeto se separam.
158
Nansensu
Passear em Asakusa, na região baixa de Tóquio, na beira do rio Sumida, era o
passatempo predileto de Edogawa Rampo. Sede do templo budista Sensoji, construído
no ano de 628 depois que pescadores acharam uma imagem do Buda no local, Asakusa
era o local de peregrinação oficial do clã Tokugawa até que a restauração Meiji, no final
do século 19, transformou parte da área em local de lazer – circo de marionetes de cera,
sumô feminino, acrobacia feminina sobre bolas, homem-aranha, “peep shows”,
aquários e também cinemas.
Rampo não residia em Tóquio na época do terrível terremoto de Kanto, em 1923.
O estrago em Asakusa foi enorme, derrubando inclusive a famosa Torre Ryounkaku, o
pioneiro arranha-céu do Japão. Adepto do estilo “ero guru nansensu” – corruptela do
inglês “erotic, grotesque, non-sense” – o escritor chegou na capital em 1926 e
ambientou nesse labirinto pós-tragédia várias de suas narrativas de crime e horror.
Ishii Teruo utilizou pelo menos quatro histórias de Edogawa Rampo para escrever
o roteiro do seu longa de 1969, “O Horror dos homens deformados”. Leitor ávido das
aventuras “assustadoras mas excitantes” do autor, serializadas na revista “Shonen
Club”, Ishii não titubeou: quando obteve o sinal verde da Toei para a adaptação,
agarrou-se à oportunidade e resolveu incluir na produção o “máximo possível de
histórias”, pois a ocasião poderia não se repetir. Além da novela que dá nome ao filme,
entraram “The Human Chair”, “The Stroller in the Attic” e “The Twins”. Todas foram
amalgamadas em torno de um personagem-guia, um amnésico médico em busca do pai,
por sua vez insularmente isolado há décadas.
Popular e erudito
A razão do isolamento: obcecado com a desfiguração da esposa, o pai-cientistalouco constrói um mundo “ideal” onde híbridos de bestas e humanos circulam como
experimentos ambulantes, contracenando com irmãs siamesas e mulheres pintadas,
dançando de forma grotesca. Nascia um filme “cult”.
159
A escolha da âncora narrativa desse frenesi gótico foi uma tacada de gênio:
ninguém outro que Hijikata Tatsumi, o extraordinário inventor do butô, a radical
performance corporal do Japão pós-guerra. Hijikata, que encarna o misterioso pai,
atravessa o filme deslizando pelas pedras à beira-mar como um caranguejo arquejante,
com olhar insano e entonação gutural nas falas. O corpo, para ele, não é fixável em
categorias ou figuras definidas, está sempre sujeito à deterioração, à transitoriedade e
à metamorfose.
Um excelente mergulho nessa demência produtiva é o livro de Christine Greiner,
“Leituras do corpo no Japão e suas diásporas cognitivas”. A genealogia (ou pornologia)
do butô passa também por uma sofisticada interface com a poesia francesa (Genet e
Artaud). A convergência de Hijikata com o popular Ishii Teruo é um desses fenômenos
que só a plasticidade da cultura nipônica, onde a alta e baixa cultura se misturam
despudoradamente, pode explicar.
A maldição da mulher cega
Ishii Teruo nasceu em Asakusa, o movimentado bairro de Tóquio. Durante a
Guerra do Pacífico esteve na Manchúria, no serviço de reconhecimento aéreo. Voltou e
foi trabalhar no cinema, na Shintoho, onde foi assistente de Naruse – a despeito da
radical diferença de estilos, Teruo sempre referiu-se com extremo respeito ao mentor.
Começa a dirigir em 1957. Em 1961 passa para a Toei, e quatro anos depois, em 65, já
tinha completado a espantosa cifra de 35 filmes, dos mais diversos gêneros: yakuza com
estilo “noir” e câmera semidocumental; rainhas-abelha com insinuações eróticas; e até
um super-herói poliglota, capaz de voar e detectar radiações.
Com o sucesso de “Abashiri Prison”, em 1965, consolidou o estrelato de
Takakura Ken e dirigiu dez das dezoito sequências da série. Em 1968, inicia mais duas
franquias, cujos títulos são autoexplicativos: “Hot springs geisha”, da qual dirigiu apenas
o primeiro; e “Shogun’s joys of torture”, pensada como um “catálogo da história da
tortura no Japão”, que fez questão de assinar os oito episódios da série.
Uma verdadeira prodigalidade. Ishii não perdia tempo, engatava um filme no
outro, uma mise-en-scène na outra e, sobretudo, uma narrativa na outra. É como se
160
personagens, situações e objetos circulassem em torno da obra, quase toda produzida
a custos baixos e destinada a alimentar uma audiência voraz por situações extremas. Em
“Love and crime”, de 1969, são quatro episódios de mulheres assassinas e um “serial
killer”. A organização assimétrica da duração e do estilo para cada um dos episódios
sugere a remissão a um núcleo dramático onde sexo e tortura animam indefinidamente
os personagens. Alguns são reais, como Abe Sada, uma das homenageadas, e Takahashi
Oden, a última mulher a ser punida com decapitação no arquipélago, em 1879 (o algoz
é o obsedante Hijikata).
Um prodígio
O performer butô também atua em “Blind woman’s curse”, de 1970, que traz a
bela Kaji Meiko. A história alinha um desvario nômade de mulheres esfoladas vivas pelas
tatuagens e a vingança da cega (Kaji leu o roteiro e só aceitou o papel depois que suas
falas grosseiras foram suprimidas). “Female Yakuza Tale: Inquisition and Torture”, de
1973, acompanha uma brutal guerra de gangues de mulheres-yakuza, em geral
despidas. Uma obra insaciável.
Em “Boachi Bushido: Code of the Forgotten Eight”, também de 1973, Ishii
apoiou-se em mais um “mangá” de Koike Kazuo. Um ronin tenta o suicídio, mas é salvo
no último instante por duas lúbricas agentes da malta “Boachi”. Ali reina um código
inteiramente avesso ao bushido dos samurais, ou seja, reina a perfídia: honra, lealdade
e outros atributos foram descartados. O protagonista é o fabuloso Tamba Tetsuro, raro
ator que consegue exprimir um tédio interior totalmente estranho à ação desenfreada
ao seu redor. Um “jidaigeki” virado ao avesso, povoado de mulheres-voadoras.
A partir de 1979 Ishii Teruo cansou-se desse ritmo frenético, e dedicou-se a
produções para televisão. Na década de 90, entretanto, não resistiu: voltou a Toei para
dirigir “V-Cinema”. Em 1999 realizou “Japanese hell”, inspirado no julgamento da
famosa seita “Aum Shinrikyo”, que em 1995 perpetrou um ataque terrorista com gás
sarin, no metrô de Tóquio. Seu último filme foi “Blind Beast vs. Dwarf”, em 2001,
adaptação de dois textos do indefectível Edogawa Rampo. Lançado em 2004, o filme
deu ótima bilheteria: uma das atrizes (que aparece seminua) veio a eleger-se, entre a
161
produção e o lançamento, deputada pelo PLD. Foi a última tacada de Teruo, que faleceu
em 2005. Ao todo, 83 filmes, um prodígio.
Guerra industrial
A década de 70 testemunhou o início de um evento decisivo para a indústria
cinematográfica: a guerra dos formatos de fitas cassete, entre o Betamax da Sony e o
VHS da Matsushita (a partir de 2008 conhecida como Panasonic). O consumo audiovisual
mudou para sempre, não apenas no Japão, berço da tecnologia, mas no mundo todo. A
possibilidade de gravar, comprar e colecionar filmes para fruição caseira acrescentou
uma nova esfera à rentabilidade das produções, presentes e passadas.
Em 1974 a Sony tentou emplacar o formato Betamax como standard junto aos
demais fabricantes de produtos eletrônicos. Dentre os concorrentes, a Matsushita
estava desenvolvendo o “vídeo home system”, o VHS, que se revelaria mais barato e
com maior tempo para gravação, 120 e logo 240 minutos. O mercado norte-americano
tornou-se um ávido comprador, seguido da Europa e resto do mundo. Embora o produto
da Sony tivesse melhor qualidade de imagem, tal fator era praticamente irrelevante para
os consumidores: o que importava era custo e tempo de fita para gravar. A luta, porém,
foi dura. Depois de inúmeros aperfeiçoamentos e redução de preço, a Sony jogou a
toalha e passou ela mesma a produzir aparelhos VHS, em 1998.
A venda de Betamax sobreviveu em mercados isolados até 2002. Por trinta anos,
até a consolidação do DVD, a JVC (Panasonic) dominou a cena com o VHS e os formatos
semiprofissionais, o SUPER VHS e o VHS-Compact, arrecadando uma fortuna em
royalties.
Além do alargamento do mercado, a ruptura da introdução do VHS no consumo
gerou uma acessibilidade ao patrimônio cinematográfico absolutamente inédita. O
consumidor (e cinéfilo) passou a ter uma nova relação com o produto audiovisual. A
rápida evolução da tecnologia digital vem, naturalmente, ampliando cada vez mais esse
acesso.
162
Guerra de libertação na Palestina
Os anos 70 foram igualmente produtivos para Wakamatsu Koji. Dirigiu 35 filmes,
sempre pela seara “pink”, mas também experimentando rotas políticas, sobretudo no
início da década. Entre 1980 e 89 o ritmo foi outro, apenas seis filmes. O esgotamento
da fórmula e o desejo de ingressar no “mainstream” explicam, em boa parte, a guinada.
O caso de Wakamatsu ilustra também a transição do cinema japonês, reflexo da chegada
do vídeo na produção, sobretudo para filmes eróticos, mas também a “comoditização”
que a cultura do país como um todo passou a ostentar. Na sociedade de consumo, o
cinema passou a ser uma “commodity” a mais.
Essa leitura é frequente entre os críticos mais exigentes, céticos em relação ao
futuro criativo da arte cinematográfica no arquipélago. A prosperidade econômica do
Japão diluiu anseios libertários e propostas mais agudas. Alguns diretores que haviam
se destacado pela militância no fértil período da década de 60 (e, em menor grau, de
70), como Oshima e Wakamatsu, lograram posicionar-se na nova (e concentrada)
estrutura de produção. Para outros as opções de trabalho restringiram-se à televisão,
com possibilidades cerceadas pelo comercialismo das redes, ou ao nascente “VCinema”, cujo circuito de consumo era incerto e limitado.
Adachi Masao, por sua vez, radicalizou. Em 1974 partiu para o Líbano, para
juntar-se ao “Japanese United Army” e à “Frente popular de Libertação da Palestina”,
onde ficou por longos 28 anos. Os registros da epopeia de Adachi são ralos e duvidosos:
envolveu-se na produção de filmes para propaganda da causa, e teve (supostas) relações
com atividades terroristas. Teria tido alguma ligação com a Stasi, a polícia secreta da
Alemanha Oriental, a exemplo de Shigenobu Fusako, a famosa guerrilheira japonesa dos
anos 70, acusada de participar em várias ações espetaculares, inclusive do incidente do
aeroporto de Lod, em Israel. O material audiovisual que produziu foi destruído por
bombardeios, sobretudo durante a invasão israelense no Líbano, em 1982. Adachi
sintetizou essa experiência em uma conhecida sentença: “em vez de trocar a câmera
pela espingarda, por que não segurar uma em cada mão ?”
Teoria da paisagem
163
Antes desse “tour de force” existencial, o realizador foi o autor de uma também
radical reflexão de inspiração marxista sobre a prática cinematográfica, chamada de
“teoria da paisagem”. Para ele, a paisagem à nossa volta, nos seus aspectos mais banais
e simplórios, é a expressão do poder político dominante e autoritário. Em 1969 realiza
“A.K.A. Serial Killer” como ilustração do projeto teórico. O ponto de partida foi
Nagayama Norio, de 19 anos, que assassinou quatro pessoas sem motivos aparentes,
em 1968. Adachi mesclou sequências despojadas dos trajetos urbanos que Nagayama
costumava frequentar com uma sóbria “voice-over”, narrada por ele mesmo, pontuada
por uma abrasiva trilha free jazz.
Em 1971, chega no limite do “pink” com o longa “Gushing prayer”, vertiginosa
meditação sobre sexo, existência e prostituição, feita por adolescentes saindo da
puberdade.
Foi também em 1971 que Adachi e o parceiro Wakamatsu integraram a
delegação liderada por Oshima no Festival de Cannes, onde exibiram “Sex jack” na
“Quinzena dos realizadores” (evento paralelo no festival proposto por Jean-Luc Godard
dois anos antes). Finalizado em 1970, dirigido por Wakamatsu e roteirizado por Adachi,
“Sex jack” narra o começo do fim do idealismo no ativismo político. Um grupo de
estudantes, uma mulher e cinco homens, se refugia em um pequeno cômodo na
periferia, faz sexo por revezamento, e planeja ações: traições e mortes encerram o ciclo.
Acabado o festival, ambos decidem passar pelo Líbano a fim de filmar a
resistência palestina. Os contatos em Beirute foram feitos por Shigenobu Fusako, e o
resultado foi o documentário-manifesto “Red Army/PFLP: Declaration of World War”,
com cenas de campos de refugiados, treinamento de “freedom-fighters” e muita
retórica revolucionária. O filme foi finalizado em 1971, no Japão. Três anos mais tarde,
Adachi voltaria para o Líbano.
Declaração de Guerra Mundial
Na mesma época, em 1971, Godard e o Grupo Dziga Vertov também foram ao
Oriente Médio filmar a causa revolucionária palestina. O franco-suíço fechou o projeto
cinco anos depois, com “Aqui e em qualquer lugar”, em que cenas de famílias palestina
164
e francesa foram montadas alternadamente. Na produção japonesa, Adachi articulou
suas proposições da “teoria da paisagem” com mensagens revolucionárias. Não há
autorias definidas. Além da dupla, participou também o crítico (e anarquista político)
Matsuda Masao. De acordo com o próprio Wakamatsu, partiu de Adachi a orientação
essencial que moldou o filme.
Além do impacto em seus realizadores, bastante impressionados pelo choque de
realidade da luta palestina, virtualmente desconhecida em seu país – e fortemente
contrastada com a sociedade japonesa do milagre econômico – o documentáriopanfletário teve desdobramentos inesperados. A produtora de Wakamatsu adquiriu um
pequeno veículo, conhecido como “ônibus vermelho”, para viajar pelo país e exibir o
filme em universidades e sindicatos. Na ilha de Kyushu, no sul do arquipélago, o contato
era Okamoto Kozo, estudante de agronomia e irmão de um dos sequestradores do avião
da “Japan Airlines” que foi para a Coreia do Norte em 1970 (onde acabou ficando).
Foi a partir da sessão do cineclube universitário que Okamoto aproximou-se da
causa palestina, envolvendo-se com o grupo de Shigenobu Fusako e participando da
violenta ação no aeroporto de Lod, em Tel Aviv, em 30 de maio de 1972.
Êxtase dos anjos
Wakamatsu Koji preparava-se para lançar “Ecstasy of the angels”, em 1972,
quando acontece o evento mais dramático e impactante, do ponto de vista midiático,
da luta armada propugnada pelo ativismo estudantil: o incidente Asama-Sanso, ocorrido
nos chalés do monte Asama, na província de Nagano. Cinco membros do “United Red
Army” tomaram como refém a esposa de um funcionário do condomínio por cerca de
dez horas. A televisão cobriu boa parte ao vivo, batendo todos os recordes de audiência
(50 % em média, 90 % no pico). Ao final, os policiais entraram à força (dois morreram no
ataque) e os perpetradores presos. Tudo isso entre 19 e 28 de fevereiro de 1972.
“Ecstasy of the angels” é uma áspera e hermética descrição das contradições
que se entranharam no movimento estudantil e no ímpeto revolucionário que o
animava (o roteiro, escrito em 1969, é de Adachi). Grupos e subgrupos têm codinomes
associados a dias de semana e estações do ano. O sexo entra como manifesto
165
antiautoritário, mas também como signo de ruptura do equilíbrio tênue entre as
facções. O filme reiterou a tendência do diretor em afastar-se dos temas mais engajados
politicamente.
A produtora de Wakamatsu, depois da distribuição de “Red Army/PFLP:
Declaration of World War”, passou a ser vigiada pela polícia. “Ecstasy of the angels”
também teve problemas para ser exibido, a despeito do apoio da ATG (“Art Theatre
Guild”), coprodutora do filme e prestigiada entidade cultural em Tóquio. Ao fim e ao
cabo, Adachi Masao foi para o Líbano e Wakamatsu Koji voltou às origens.
United Red Army
Dentre as dezenas de produções que realizou a seguir, algumas – “Black Beast
of Lust”, de 1972, “Contemporary History of Rape in Japan”, também de 1972, “100
Years of Torture: The History”, de 1975, “Contemporary sexual tortures”, de 1976, “100
Years of Banned Torture”, de 1977, e “Serial Rapist”, de 1978 – dão ideia da linha sadosexista novamente privilegiada pelo diretor, com a breve interrupção para atuar como
produtor-executivo de “O Império dos sentidos”, de Oshima, em 1976. Em 1982 dirige
“A pool without water”, produção mais caprichada e bem recebida pela crítica no Japão.
A história segue um anônimo no metrô, que interrompe um estupro: na sequência, ligase à vítima e preenche suas fantasias invadindo apartamentos de mulheres solteiras,
anestesiando-as com clorofórmio e fazendo sexo com elas. Um personagem paradoxal,
(quase) uma desconstrução da virilidade masculina.
“Erotic liaisons”, de 1992, rodado em Paris, foi um passo (não tão bem sucedido)
de aproximar-se do “mainstream” e alargar seu público, apostando no “casting” estelar,
com Takeshi Kitano e Rie Miyazawa (modelo desde os 11 anos, filha da atriz Miyazawa
Mitsuko, de “A mulher de areia”, e de pai holandês, era a sensação midiática do
arquipélago no início dos anos 90).
O grande filme-testamento de Wakamatsu, porém, viria em 2007, com “United
Red Army”, implacável reconstituição do incidente Asama-Sanso. Além do evento em si,
o filme relata o sangrento episódio que antecedeu o ataque, a purgação interna que
atingiu 12 membros do grupo “incapazes de fazer a autocrítica”, submetidos a tortura e
166
finalmente assassinados. Na introdução, uma montagem ágil de material de arquivo,
contendo as principais referências às atividades do movimento estudantil entre 1960 e
72, contextualiza o episódio. Um filme incontornável.
Wakamatsu Koji morreu em 2012, pelas sequelas após ter sido atingido por um
táxi à noite, em Shinjuku, Tóquio. Tinha 76 anos. Completou três filmes em 2011, entre
eles “11.25 The Day He Chose His Own Fate”, sobre os últimos quatro dias da vida de
Mishima Yukio.
The Family game
Os anos 80 foram extremamente prósperos no Japão, que, em 1990, tornou-se
o país com a maior renda per capita do mundo. Malgrado um moderado suspiro no meio
da década, entre 1985 e 89 o crescimento do PIB bateu em 5 %, com recordes de salários
e emprego. O “boom” foi em grande medida sustentado pela demanda interna,
sobretudo das indústrias de construção e siderúrgica, ao contrários dos anos anteriores,
baseados na exportação. O mercado de bens de alta tecnologia, aquecido pelos novos
padrões de consumo, lazer, saúde e habitação, acompanhou a velocidade do
crescimento. O superaquecimento da economia, não obstante, despontava no
horizonte: o Japão vivia a euforia da “bolha” e não sabia.
O ano de 1985 é um marco na animação. Foi criado o famoso “Studio Ghibli”,
reunindo Miyazaki Hayao, Takahata Isao e Suzuki Toshio, a partir do sucesso de
“Nausicaä do Vale do Vento”, dirigido por Miyazaki em 1984. Em 1988, “Túmulo dos
Vagalumes” e “Meu Amigo Totoro”, respectivamente de Takahata e Miyazaki, foram
exibidos em programa duplo. A indústria dos “anime” estourou no período,
impulsionada pela tradição do “mangá” e pelos novos mercados de “home video”. A
Nintendo, empresa que logrou articular produção de conteúdo com tecnologia de
ponta, inundou o mercado mundial de “games” com “Donkey Kong” e “Super Mario
Bros.”. O desenvolvimento da plataforma “Family computer”, também conhecida como
“Famicom”, foi fundamental – o produto foi lançado em 1983 no Japão e, dois anos
depois, nos Estados Unidos.
167
Para alguns observadores mais céticos, entretanto, a década de 80 sinalizou o
início da “era da repetição”. Se nos 60 e 70 imperou a “era da mudança”, agora o
sentimento era que nada era realmente diferente, a despeito de todas variações
possíveis. Esse novo ambiente de certa forma autorizou um novo discurso artístico, que
se compraz em manipular variações sob o signo da repetição.
Pós-modernismo
O ambiente agora era pós-moderno, a exemplo do que se convencionou afirmar
em relação a outros países desenvolvidos. Um dos filmes que melhor representa esse
momento é “Jogos familiares”, realizado em 1983 por Morita Yoshimitsu. O cenário é
uma família e sua engrenagem mimética de inserção na realidade: emprego, cuidado do
lar e escola. As ações se sucedem como se fossem um loop, sempre reinvestidas dos
mesmos significados, até que o filho caçula começa a destoar e ratear nos estudos. Um
tutor, um demiurgo, adentra o universo familiar com poderes desestabilizadores (vivido
pelo então popular Matsuda Yusaku, perito em filmes de ação). A estrutura que anima
os jogos familiares balança.
Em tom de sátira, a sequência final – a família e o tutor jantando em casa, todos
de frente para a câmera – é a apoteose. O desregramento implica transformar tédio em
diversão. Sucesso de público e crítica.
Ainda no registro pós-moderno, “Fire festival”, de 1985, mostra, em uma
narrativa desdramatizada, conflitos entre tradições milenares e o projeto
contemporâneo de um parque marinho. Dirigido por Yanagimachi Mitsuo, traz uma
opaca e perturbadora neutralidade de mise-en-scène, ausência de momentos
catárticos, mescla de transgressão e retribuição. Pouco visto à época, é uma referência
para a estética “cool” dos anos 2000.
Tampopo
Um dos atores de “Jogos familiares” é o excelente Itami Juzo, filho de um diretor
de “jidaigekis” cômicos no pré-guerra, Itami Mansaku. Depois de inúmeros trabalhos
168
como ator, inclusive em produções internacionais (“55 dias em Pequim”, de Nicholas
Ray, em 1963), realiza o primeiro longa-metragem com 50 anos de idade: “The funeral”,
de 1984, inteligente e irônica crônica das práticas funerárias no Japão. Um vídeo serve
de orientação para a família do falecido, dividida em “gaps” geracionais.
No ano seguinte, lança o hilário “Tampopo - Os Brutos Também Comem
Spaghetti”, talvez o filme japonês de maior circulação global na década, paródia do
bangue-bangue “Os Brutos Também amam”, de George Stevens, de 1953. Em vez do
velho oeste, o “Shane” japonês é um caminhoneiro que resolve, depois de algumas
entreveros, ajudar a dona de um pequeno restaurante a levantar o business. Em
segundo grau, uma paródia também dos “western spaguetti”. Sutil toque pós-moderno.
Em 1992, Itami realiza “Yakuza - A Arte da Extorsão”, ação e farsa combinadas,
que teriam gerado desgosto nos yakuzas reais. Logo depois da estreia, na vida real, foi
atacado a facadas, mas sobreviveu. A temporada no hospital rendeu nova sátira, desta
feita sobre o sistema de saúde japonês: "The last dance”, de 1993.
Em fins de 1997 o diretor/ator foi encontrado quase morto em frente ao seu
apartamento, onde deixara uma nota de suicídio, atribuindo a decisão a um caso
extramarital (noticiado pouco antes por um tabloide). Faleceu pouco depois. Em 2005,
veio à tona revelação de um (anônimo) yakuza, suposto assassino que teria invadido a
casa do diretor e perguntado: “você prefere se jogar ou que eu estoure seus miolos” ?
Por enquanto, permanece a versão do suicídio.
169
Capítulo 6
Anos 90 e 2000: “Bolha econômica” e século 21
Entre 1986 e 91 ocorreu no Japão a formação de uma “bolha econômica”,
caracterizada pela rápida aceleração dos preços de ativos econômicos e das ações
negociadas em bolsa. Com a economia superaquecida, em função do excesso de
confiança dos agentes econômicos e da especulação desenfreada, o governo - através
do banco central, o “Banco do Japão” - acabou perdendo o controle da política
monetária e permitiu uma rápida expansão do crédito. Os preços de ativos e ações
triplicaram ao longo dos anos 80. Logo veio a inadimplência e seus impactos danosos no
sistema financeiro.
Uma verdadeira encruzilhada. Quando o Banco do Japão se deu conta do risco
da inflação, passou a aumentar as taxas de empréstimo interbancário, a partir de 1989.
A ideia era esfriar a economia. Diversas empresas endividadas tinham dificuldades de
honrar seus compromissos, os bancos ficaram expostos a elevado risco. Em 1991, pouco
depois desse aperto, a “bolha” estourou: os preços caíram abruptamente e a economia
estagnou, com crescimento praticamente zerado durante a década – logo nomeada de
“a década perdida” (alguns consideram que a “década” prolongou-se no século 21).
Os economistas sugerem que o Japão acabou caindo em uma “armadilha de
liquidez”, situação em que a política monetária fica virtualmente imobilizada, pois os
juros estão próximos ou iguais a zero. Com a estagnação, não havia margem para o
governo diminuir a taxa de juros e estimular a economia. Fatores como a concorrência
acirrada por mercados internacionais de países asiáticos (China e Coreia do Sul), a
redução precoce da população economicamente ativa, e a maior dívida pública do
mundo – mais do dobro do PIB – agravaram ainda mais o quadro.
A despeito disso tudo, o Japão continua sendo uma poderosa economia –
passado um quarto de século, é a terceira do planeta, depois de EUA e China. Como
170
explicar esse aparente paradoxo ? Taxas baixas de inflação e desemprego, além de
empresas globalizadas e competitivas, garantiram os fundamentos econômicos. Uma
população socialmente homogênea e altamente educada forneceu os alicerces para a
manutenção do status quo. Em termos tecnológicos, o país talvez tenha perdido
algumas posições, mas certamente continua um “player” central.
Cinema na encruzilhada
Coincidência ou não, 1991 foi o ano mais fraco no que toca ao número de filmes
japoneses produzidos, o pior resultado desde que começaram a ser feitas as estatísticas,
em 1955: apenas 230. O pessimismo na indústria grassava. Dois entre os seis principais
estúdios, Daiei e Shintoho, haviam fechado as portas, os demais pelejavam para manterse de pé. A trajetória já era de queda. Em 1960, foram 547 filmes: em 70, 423; e, em 80,
apenas 320. Menos filmes produzidos significava menor geração de emprego e renda.
O número de salas de exibição também caiu. Eram quase 7.500 em 1960, pouco mais de
3.200 em 70 e 2.600 em 80, para chegar a somente 1.734 em 1993, o menor da série
histórica.
Não era apenas o contágio com o ambiente negativo puxado pelo estouro da
‘bolha”. O setor audiovisual como um todo experimentou, nesse período, drásticas
mudanças. As salas de cinema, em particular, tiveram perdas crescentes de receita. A
televisão à cabo começou nos anos 80 nas regiões montanhosas e remotas, para no final
da década entrar de vez nos grandes mercados urbanos, a começar por Tóquio. A
transmissão de TV por satélite em alta definição foi inaugurada pela emissora pública
NHK em 1989, e dois anos mais tarde por grupo privado.
Ao mesmo tempo, foram lançados os famosos conjuntos integrados “home
theater”, com gravadores de videocassete, monitores de TV cada vez maiores e sistemas
acústicos de qualidade. Sair de casa para ir ao cinema era cada dia mais improvável. A
concorrência com a (competitiva) cadeia de produção dos eletrônicos era muito
agressiva, sobretudo no caso da indústria japonesa, pioneira no lançamento de
inúmeros produtos do setor.
171
Os grandes estúdios, acostumados ao controle vertical da indústria – produção,
distribuição e exibição – perderam espaço. Foi necessário uma paulatina reorganização
do sistema – filmes independentes, parceria com televisões – para o número de
produções locais voltar a crescer. Após uma média inferior a 300 filmes por ano entre
1990 e 2003, a cifra chegou a 417 filmes em 2006, mantendo-se em patamar igual ou
superior nos anos que se seguiram.
Em outubro de 2014, Kitano Takeshi declarou no Festival Internacional de
Tóquio que o “cinema japonês estava caminhando para a ruína”. Naquele mesmo ano,
o total de produções japonesas bateu o recorde da década: 615 filmes. As palavras de
Kitano, contudo, revelam insatisfação com a qualidade dos produtos contemporâneos,
diante da excelência da tradição do cinema no Japão.
O “anime” e a retomada
Os investimentos em novas salas de cinema só foram retomados no final da
década de 90, com as novas tecnologias de exibição. Nessa época também cresceu a
quantidade de salas de cinema de arte, bem menores, mas com público fiel. No ano
2000 os dados da “Eirin” já indicavam 2.524 salas; em 2015, 3.437. O número de filmes
produzidos no Japão acompanhou esse crescimento. No ano 2000, foram 282; em 2015,
581. A despeito do aspecto inflado da cifra – muitos dos filmes são produções de baixo
custo, boa parte no gênero “erótico” e feitas para o mercado de vídeo, ou então
coproduções com a TV comercial, de valor artístico relativo – não há dúvida que o
audiovisual reagiu.
O destaque absoluto dessa reação são os “anime”, em especial as realizações do
Studio Ghibli, primeiro lugar nas bilheterias no Japão com “O Serviço de Entregas da
Kiki”, em 1989. O feito se repetiria em 1991, com “Only Yesterday”; em 92, com “Porco
Rosso: O Último Herói Romântico”; em 94, com “PomPoko: A Grande Batalha dos
Guaxinins”; e em 97, com o fenômeno “Princesa Mononoke”, o maior público de todos
os tempos nas salas de cinema japonesas, até perder para “Titanic”.
Em 2001, o espetacular “A Viagem de Chihiro” bateu a todos, inclusive “Titanic”.
A despeito de eventuais discrepâncias de cálculo na aferição das bilheterias, as
172
animações de Myazaki e companhia tiveram uma performance impressionante no
mercado japonês, assim como no internacional.
Na declaração durante o Festival de Tóquio, Kitano confessou que não gostava
de “anime” e dos filmes de Miyazaki. Admitiu, no entanto, que eles “dão dinheiro”.
Kitano Takeshi
Em 1997, o cinema japonês voltou à ribalta internacional. “A enguia”, de
Imamura Shohei, ganhou a Palma de Ouro no Festival de Cannes (dividido com “Gosto
de cereja”, de Abbas Kiarostami). “Suzaku”, da estreante Kawase Naomi, obteve o
“Caméra d’or” da prestigiada mostra paralela do mesmo Festival, a “Quinzena dos
realizadores”. Também em 1997 Kitano Takeshi foi laureado com o principal prêmio do
Festival de Veneza, o Leão de Ouro, com seu “Hana-Bi - Fogos de Artifício”.
Foi a consagração. Kitano, enfim, passou a ser considerado um diretor “sério”,
sobretudo em seu próprio país. Alguns consideram que ele se tornou um “salvador” do
prestígio internacional do cinema japonês, à luz da aceitação que seus filmes tiveram
em vários países, em especial no circuito dos filmes de arte. Nascido em 1947, Kitano
Takeshi começou a estudar engenharia na universidade Meiji e largou o curso, indo
trabalhar de ascensorista na casa de strip-tease “France-za”, em Asakusa. Queria ser
comediante.
Conseguiu um padrinho e logo engrenou um “manzai”, dueto de humor em que
um “bonzinho” e um “perverso” (Kitano era o mau, com queda para o politicamente
incorreto) dialogam a toda velocidade. Ficaram conhecidos como “Two Beat” e a fama
ultrapassou Asakusa. Acabou dissolvendo a dupla, partindo em seguida para carreira
solo no rádio e TV, onde estrelou como âncora de um show de jogos, desafios variados
e humor kitsch, o popular “Takeshi´s castle” (mais tarde o show virou videogame).
Nascia o “Beat Kitano”, ou “Bito Kitano”, em “japanglish”.
Violent Cop
173
Kitano tem presença constante na TV japonesa, várias vezes por semana, nos
mais variados formatos. Entre eles: talk-shows com políticos; debates sobre arte e faitdivers; a versão japonesa de “Acredite, se quiser”; e o bizarro “The world exposed”,
onde é o host do programa vestindo roupas inusitadas e apresentando vídeos
excêntricos. Tornou-se uma das principais personalidades televisivas de seu país, uma
peça importante na engrenagem do “business”.
Foi Oshima Nagisa quem revelou Kitano para o público ocidental, ao escalar o
ator para um papel coadjuvante em “Furyo, em nome da honra”, de 1983. Torturador
e violento, mas enigmático e emocional, seu personagem se destacou na galeria de
japoneses sádicos. Em 1989, veio a oportunidade para dirigir. Arrolado para o papel
principal em “Policial violento”, que seria realizado por Fukasaku Kinji, na última hora
conflitos da agenda com Kitano levaram o experiente diretor a sair do filme.
O produtor escalou Kitano para a direção. Reescreveu o roteiro, introduziu as
famosas pausas contemplativas nas cenas de pancadaria e tiros, e aproximou-se do que
seria posteriormente identificado como sua marca autoral - estetização crítica da
violência.
Mais tarde, no ano 2000, já mundialmente famoso, trabalharia com Fukasaku em
“Batalha real” – uma retribuição amigável. Sem ele, o filme não teria tido a repercussão
que teve, como reconheceu o próprio Fukasaku.
Ponto de fervura
Nada poderia ser mais antagônico do que a “persona” construída por Kitano em
seus filmes – nos quais, além de protagonista, é roteirista, diretor e montador – e a
figura pública a qual os telespectadores japoneses acostumaram-se a assistir na
televisão. Uma verdadeira esquizofrenia artística: no cinema, uma combinação de
niilismo com humor negro, gerando um clima de melancolia, de dissabor pela vida; na
televisão, cortadas lancinantes e sarcásticas em cima dos políticos, ou um humor de
bufão histriônico, na linha do grupo inglês “Monty Python”. Para o público internacional,
naturalmente, sobressai o lado exposto nos filmes.
174
“Boiling point”, de 1990, foi o primeiro longa que dirigiu e escreveu o roteiro.
Basebol e yakuzas compõem o enredo, com controle (quase) absoluto de Kitano.
Prevalecem diálogos mínimos, violência súbita, poucos movimentos de câmera e longos
planos, onde nada parece acontecer. Seu personagem, um psicótico yakuza em busca
de vingança, organiza a narrativa. Se não emplacou um sucesso, aperfeiçoou a técnica
da “inexpressividade” da representação.
No próximo, “O mar mais silencioso daquele verão”, lançado em 1991, avança
no registro romântico, sem abrir mão das eventuais suspensões da narrativa. Um
surfista mudo e uma jovem igualmente muda se enamoram. Foi o primeiro filme que o
competente compositor Joe Hisaishi, conhecido pelas trilhas que compôs para Miyazaki,
colaborou com Kitano (a parceria seria desfeita em 2002).
Acidente de lambreta
“Adrenalina Máxima”, de 1993, estourou no mercado internacional - no Japão a
audiência seguia fria, incomodada com yakuzas evasivos e angustiados. Kitano fez de
tudo, do papel principal à edição. Encarregado de interromper uma guerra de gangues
em Okinawa, alterna banho de sol e rajadas de metralhadoras. Gângsters divertem-se
infantilmente na praia, até serem aniquilados. E o personagem de Kitano suicida-se com
um tiro na cabeça, dentro do carro, perto do mar. Em 1995, uma exceção. “Getting
Any?” é uma comédia pastelão-escatológica que remete ao Kitano da TV, satirista nonsense e sempre disponível para uma “gag”. Paródias para todos os gostos, farpadas em
todas direções, nada escapa à ironia devastadora do realizador, inclusive ele mesmo. A
recepção em seu país, porém, foi morna.
Em agosto de 1994, com “Getting Any?” pronto mas ainda não lançado, sofreu
um sério acidente de lambreta. Foram meses de cirurgia e fisioterapia. Ficou com o lado
direito do rosto semiparalisado, e começou a pintar quadros por essa época. Segundo
ele, o acidente foi uma tentativa inconsciente de suicídio.
Um ano depois atuou no incisivo “Gonin”, de Ishii Takashi, usando uma venda no
olho direito, em função dos ferimentos. Incorporou a sequela em sua persona bipartida
175
e produziu “De Volta às Aulas”, em 1996: e, em 1997, seu filme mais celebrado, “HanaBi - Fogos de Artifício”.
Aspereza e objetividade
“Você não vai entender meus filmes, salvo se você é familiar com o trabalho de
Godard”, escreveu certa vez na revista “Weekly Post”. A aspereza das situações
godardianas e o corte “faux raccord”, utilizados em filmes como “Viver a vida”, de 1962,
e “Alphaville”, de 1965, são referências para o realizador japonês. Em especial, no
primeiro, a cena final em que a personagem de Anna Karina é morta impiedosamente;
e no segundo, o uso de armas e tiroteios filmados, digamos, de forma insólita. Durante
as filmagens, “Adrenalina Máxima” teve como título provisório “Pierrot Okinawa” homenagem ao longa de Godard, “Pierrot le fou” (no título original).
Claro, a conexão entre os dois diretores não funciona para o discurso
explicitamente político que os filmes de Godard assumiram após os eventos turbulentos
de maio de 68. Mas vale para outras propostas, como a ideia de construir a linguagem
como um jogo, ou um agregado de jogos que, em última análise, desconstrói o próprio
filme. “Hana-Bi - Fogos de Artifício” segue um policial que sai do sistema, endivida-se
com um agiota da yakuza, viaja pelo país com a esposa doente terminal e termina
praticando um duplo suicídio. Uma narrativa pontuada por “jump cuts” e “staccatos”,
com súbitas mudanças de tonalidades cromática e ambientes sonoros, contribui para
sugerir um personagem angustiado à flor da pele, confinado nas suspensões de tempo
que brotam ao longo da história. Relaxar e relacionar-se com o mundo à volta é jogar,
qualquer jogo, trapaças incluídas: jogos de cartas, espelhos; jogos entre tempos,
memórias e fantasias dos personagens; jogos, enfim, entre “flashes back” e imagens
subjetivas, que as pinturas de seu ex-companheiro ferido e paraplégico exprimem (o
autor de fato é Kitano). Ao final, o vazio, e a morte.
Los Angeles
176
“Brother - a máfia japonesa Yakuza em Los Angeles”, lançado no ano 2000, foi
uma tentativa que não agradou Kitano. Jurou nunca mais filmar fora do arquipélago.
Dois anos depois dirige o sombrio “Dolls”, três histórias inspiradas no teatro bunraku de
Chikamatsu Monzaemon.
Seu maior sucesso de público no Japão, “Zatoichi”, de 2003, é a retomada de um
“jidaigeki” cujo personagem central é um invencível espadachim cego e massagista nas
horas vagas. Entre 1962 e 89, foram 26 filmes e episódios para TV, todos com o popular
ator Katsu Shintaro. Para Kitano, foi um filme de “encomenda”, que dirigiu a pedido de
Chieko Saito, conhecida proprietária de clubes de “strip-tease” e “hostess bar”, além de
protetora de Katsu. O resultado foi muita ação, sangue jorrando (graças aos efeitos de
computador) e decupagem tradicional, sem as pausas e introspecções que caracterizam
o diretor. Ganhou o Leão de Prata em Veneza.
Entre 2005 e 2008 realizou uma trilogia pessoal, uma autoanálise fílmica sem
precedentes: o primeiro foi “Takeshis'”, bifurcação de sua própria personalidade, “Beat
Takeshi”, pobre coitado aspirante a ator, e “Kitano Takeshi”, poderoso homem de TV.
Em seguida, “Glória ao Cineasta!”, de 2007, que acabou virando nome de prêmio
especial do Festival de Veneza (ele foi o primeiro a ganhar). Por último “Achilles and the
Tortoise”, de 2008, definido por Mark Schilling como “um destroço esquizoide à procura
de uma identidade”.
Em 2015, roda “Ryuzo and the Seven Henchmen”, sobre yakuzas aposentados
que gostam de corrida de cavalos. Puro humor.
A enguia e o doutor
O ator Yakusho Koji atingiu o pico de popularidade na década de 90. Entre outros,
atuou no campeão de bilheteria “Dança Comigo?”, em 1996, de Suo Masayuki, que
vendeu bem no mercado norte-americano e gerou um remake hollywoodiano. No
Japão, brilhou no drama “Lost paradise”, de 1997, dirigido por Morita Yoshimitsu, onde
protagonizou com a bela Kuroki Hitomi um duplo suicídio a um só tempo doce e
contundente.
177
Nesse mesmo ano fez o papel principal em “A enguia”, de Imamura Shohei, uma
tortuosa comédia que começa com um brutal assassinato por ciúmes. Passados oito
anos, egresso da prisão, o “salaryman” criminoso retoma a vida tutelado pelo sacerdote
dono de templo, e torna-se barbeiro em uma comunidade isolada a beira de igarapés.
Pescar é sua atividade compulsiva: e o interlocutor predileto, uma enguia, igualmente
egressa da prisão, onde fazia companhia ao condenado.
Nesse pequeno mundo de personagens “ratés”, a esposa volta encarnada em
uma (fisicamente parecidíssima) suicida cheia de problemas com o ex-amante. Afeiçoase ao barbeiro e vira sua ajudante. Um ex-companheiro de penitenciária também
reaparece, incômodo e invejoso, apenas para lembra-lo do crime cometido. Depois de
anos sem filmar (a última produção foi em 1989), Imamura acertou a mão, ganhou em
Cannes e entrou novamente no jogo. Mais contido na montagem e movimentos de
câmara, conduz a convergência desses improváveis destinos, observados pela atenta
enguia, e chega ao final feliz. O animal é devolvido ao habitat natural, com o dever
cumprido, e substituído pelo filho que se avizinha na barriga da amorosa ajudante.
Acelerado
Imamura não perdeu tempo. Aos 72 anos, dirige o formidável “Dr. Akagi”, em
1998, sobre um acelerado médico em uma pequena ilha do mar interior japonês, nos
momentos finais da Guerra do Pacífico, em 1945. Sempre às pressas para atender seus
pacientes, insiste em um único diagnóstico: hepatite. Os militares não gostam dele, é
ostracisado. Abriga meio por acaso um prisioneiro de guerra que o auxilia a montar um
microscópio. Em seu entorno próximo, nessa vertigem histórica, convivem um monge
que gosta de saquê, um cirurgião viciado em morfina e uma jovem ninfomaníaca. Não
deu para curar o mundo. Na cena final, em um barco com a jovem, assiste à explosão da
bomba atômica de Hiroshima, na linha do horizonte de um dia ensolarado. A fumaça
espessa lembra um fígado atormentado.
Em 2001, realiza “Água quente sob uma ponte vermelha”, com uma heroína
propensa a ejaculações caudalosas. Competiu em Cannes, mas desta feita não levou o
prêmio. Em 2002 participa do longa “11 de Setembro” com mais dez diretores, cada um
178
com pouco mais de 11 minutos para dar seu depoimento sobre a ataque às Torres
Gêmeas em Nova York. Sua história segue o retorno de um soldado para casa, em estado
de choque pós-bombardeios. Sucessivas ausências psíquicas acabam metamorfoseando
o personagem em serpente, que mergulha na água e some. Foi seu último trabalho.
Faleceu em 2006.
Fora de foco
O DVD, abreviatura de “Digital Versatile Disc”, criado em 1995, foi uma
revolução: maior capacidade de armazenamento de dados e padrões melhorados de
compressão de imagem relançaram o mercado de “home video”. Mais uma vez,
empresas japonesas lideraram o processo - Toshiba, Panasonic, Hitachi, Mitsubishi,
Pioneer, Sony e JVC – juntos com a francesa Thomson, a holandesa Philips e as
americanas IBM e Time-Warner. Em 1997 foi iniciada a comercialização de DVDs no
Japão (nos EUA em 1998, na Europa em 1999). Foi uma década de vendas exponenciais
e lucros elevados. A rápida transformação das tecnologias digitais, porém, apressou a
queda do mercado de DVDs.
A passagem do analógico para o digital na captação de imagens e fabricação de
câmeras também foi capitaneada por companhias japonesas, praticamente as mesmas
que lucraram com os royalties do DVD (mais a Canon). Hoje o mundo inteiro consome
esses produtos, sejam cinegrafistas amadores, profissionais ou redes de TV. Em plena
estagnação econômica provocada pelo fim da “bolha”, é incrível a competitividade
tecnológica por parte desses grupos empresariais e seus engenheiros.
Do outro lado da cidade, porém, uma produção japonesa independente de baixo
orçamento lançada em 1996 – “Focus”, de Isaka Satoshi – nada contra a maré e produz
uma desconfortável devassa dos pressupostos que orientam uma pequena equipe de
reportagem para TV.
Rodado como se fora gravação em formato “TV News”, o filme acompanha o
insistente repórter atrás de seu entrevistado – um tímido “nerd” que passa o tempo
interceptando conversas entre rádios e telefones celulares. Uma delas, entre
presumíveis criminosos, sugere algo estranho, uma arma escondida. A partir daí tudo
179
vira ao avesso, do “nerd”, que passa do patético ao trágico, ao repórter, que perde de
vez qualquer escrúpulo profissional. Logo irrompem eflúvios assustadores, que vem de
dentro dos personagens, e não de situações externas. Sexo e violência irrompem como
se estivessem submersos. Resta, ao final do filme, um mal estar difuso, uma náusea
voyeurística.
Cyberpunk cinema
Em 1989 a Toei iniciou formalmente as produções “V-Cinema”, filmadas em
película, geralmente em 16mm ou Super 16mm, e comercializadas diretamente no
mercado de vídeo. Logo inúmeras pequenas produtoras aderiram ao novo mercado: o
termo “V-Cinema” tornou-se genérico. Em alguns anos o 16mm ficou caro e o vídeo
digital passou a ser técnica e economicamente viável para alavancar as produções.
Diretores entre os mais destacados no cenário contemporâneo do Japão, como
Kurosawa Kiyoshi, Aoyama Shinji e Miike Takashi, exercitaram sua técnica de mise-enscène nas produções de “V-Cinema”. Yakuzas, horror e erótico eram os gêneros mais
frequentes, além de nichos de mercado, como filmes ambientados nas casas de
“pachinko”, populares máquinas de azar espalhadas por todo o país. A transição do VHS
para o DVD ampliou ainda mais a base de consumo dessas produções.
Foi nessa época que despontou Tsukamoto Shinya e o cinema-metaleiro. Nascido
em 1960, no bairro pop de Tóquio, Shibuya, o futuro diretor deglutiu na infância a onda
de filmes “kaiju” (literalmente “bestas estranhas”) que vicejou no Japão pós-guerra. Na
virada digital do audiovisual, com a introdução das novas tecnologias de captação,
edição e difusão, Tsukamoto optou pelos “monstros” analógicos. Introjetou esses
dispositivos de representação no próprio corpo e produziu um dos marcos que
inaugurou a estética “cyborg” no cinema, em “Tetsuo: o homem de ferro”, de 1989.
O diretor rodou experimentos em Super-8 antes de comprar uma câmera 16mm
de segunda mão. A seguir, ficou dois anos filmando com seu grupo de teatro de rua e
produzindo efeitos especiais artesanais na base do “stop motion”, de olho no longametragem. Filmou em 16mm p/b, em alto contraste e granulado, com o personagem
180
principal exibindo um corpo perfurado e devassado por metais de toda ordem, restos
metalúrgicos e lineares (não-digital).
Um casal atropela o “metaleiro fetichista”. A vingança deste é a progressiva
metamorfose da dupla em rebotalhos metálicos. Um instrumento pontiagudo e
giratório substitui o sexo masculino, a mulher é britada até a morte, e os remanescentes,
homem e metaleiro, fundem-se em um acumulado de metal, com duas cabeças e uma
gigantesca broca fálica. “Full metal Japan”.
Game over
Metamorfosear nesse mundo é uma “no end story”. O clássico letreiro final do
cinema, “the end”, foi substituído na fita de Tsukamoto pelo “game over” dos jogos. O
parentesco com a “cultura gamificada” é explícito. E também com os “mangás”, claro: a
compulsão erótica embutida nos personagens parece escorrer por um ralo alquímico,
desenhado no canto do quadro, onde a mutação carne-metal ocorre. Tsukamoto
arriscou mais duas empreitadas nesse veio, “Tetsuo II: Body Hammer”, de 1992, e
“Tetsuo: O Homem Bala”, de 2009, ambos com atmosferas pesadas, mas sem o clima
de nostalgia esquizoide que emana do primeiro produto da série.
Abstraindo dos metais, o diretor não abdica, entretanto, de um estilo “punk” de
filmar, áspero, abrupto e enclausurado. “Tokyo Porrada”, de 1995, circula em uma
trama triangular e emburacada, ciúmes e boxe. O irmão de Tsukamoto faz o “boxeur”
semiprofissional, ele mesmo ex-praticante do esporte, que abandonou na primeira luta
profissional após sofrer sérios ferimentos. “A Snake of June”, de 2002, é um singular
exercício voyeurístico de um chantagista em cima de uma atendente de central de ajuda
para suicidas, cujo marido, obcecado pela assepsia caseira, revela-se também um
pervertido. Cortes rápidos e ângulos insuspeitos da selva urbana fornecem o pano de
fundo de onde se destacam os personagens.
Narrador de comerciais para a TV japonesa, de onde tira seu sustento,
Tsukamoto é também um versátil ator, não apenas nas suas produções, mas também
nos filmes dos amigos. Dentre eles, “Ichi - O Assassino”, em 2001, e “Dead or Alive 2:
Tôbôsha”, no ano 2000, ambos do impressionante e devastador Miike Takashi.
181
Agitator
“Excesso” é a palavra comumente utilizada para definir o cinema de Miike
Takashi. Excesso que pode ocorrer nos mais diferentes domínios: na sexualidade; no
terror; na escatologia; na diversidade étnica; na violência; na incrível capacidade de
produção; enfim, na facilidade de usar o dispositivo cinematográfico para narrar as
histórias, uma após a outra, boas ou más.
Nos primeiros onze anos de carreira, de 1991 a 2002, foram 50 filmes, três séries
de TV, dois vídeos musicais, um documentário e um comercial. Sua produtividade, assim
como o pendor para pôr em cheque padrões estabelecidos de bom gosto, tornaram-se
um mito. Alguns dos seus trabalhos sofreram cortes, em diferentes mercados, em
função de cenas potencialmente ofensivas. Samurais, imigrantes, yakuzas, marginais,
prostitutas, crianças, família, assalariados, estrangeiros, sádicos e masoquistas
participam desse festim diabólico com desenvoltura. “Mangás” e a tradição pictórica
japonesa são invocados, ao lado de um visual corroído e apocalíptico, cheio de cores
fortes, neons, claros e escuros. Um excesso que configura, nos altos e baixos da obra,
uma inevitável sensação de contemporaneidade.
Nascido também em 1960, Miike queria ser corredor de motocicleta, mas
acabou entrando na escola de cinema de Imamura Shohei, em Yokohama. Logo
abandonou as aulas para colocar a mão na massa, indo trabalhar na TV. Foi assistente
entre outros do próprio Imamura, até receber proposta para dirigir no roldão do “VCinema”, em 1991. O primeiro foi “Lady killer”, sobre uma ex-militar imbatível e
ligeiramente atormentada, no melhor estilo Chuck Norris, seguido de “Eyecatch
junction”, aventuras de quatro policiais que se sentem relegadas pelos colegas
masculinos. Realizou 12 filmes para o mercado de vídeo, de gêneros variados, alguns
claramente inspirados em fontes externas, sem preocupações senão a de manter o
pique da produção. Puro pragmatismo.
O samba mandou me chamar
182
Em 2006 Tom Mes escreveu o primeiro livro em língua inglesa sobre o diretor,
“Agitator, the cinema of Takashi Miike”, com um descritivo pormenorizado da
filmografia. Em 2013 coligiu o impetuoso “Re-Agitator – A Decade of Writing on Takashi
Miike“, apanhado de fotos, textos e ensaios de diversos autores, veiculados pela
internet ou não, um verdadeiro mergulho no mundo cinematográfico japonês.
Foi em 1995 que Miike dirigiu seu primeiro longa produzido para salas de cinema,
“Shinjuku Triad Society”. Policiais corruptos e violentos interagem com grupos rivais de
chineses e homossexuais, ambientado em Kabukicho, enclave situado no bairro de
Shinjuku devotado ao prazer, jogos, bordéis, pequenos restaurantes, bares de todos os
tipos e motéis. Ser japonês nesse universo é transitar em fragmentos de identidade –
um dos policiais é filho de mãe chinesa e pai japonês, um “órfão da guerra”, resquício
do colonialismo nipônico do século 20. Fluxo permanente de transeuntes e explosão
cromática de neons, filmados nervosamente, fazem o contraponto. Junto com “Rainy
dog”, de 1997, e “Ley lines”, de 1999, o filme forma a “Black triad trilogy”, primeiro
recorte temático-temporal da obra do diretor.
“Ley lines” é especial: a trama desenrola-se no espaço cultural de chineses e seus
descendentes, encravados na sociedade japonesa supostamente homogênea.
Aspirantes a yakuzas, três jovens e uma prostituta de Xangai encaram uma gangue
comandada por um nostálgico e cruel agiota também oriundo do continente.
Esplêndidos contrastes de cores estouradas, sobretudo verde e vermelho, iluminam
esse percurso delirante. Depois de um roubo quixotesco do caixa do agiota, o próximo
passo é a evasão, para um não-lugar o mais longe possível: o país do samba, o Brasil.
Uma breve pausa nesse tornado cinematográfico é “The Bird People in China”,
de 1998, rodado na China, parábola relativamente calma entre modernidade e tradição.
Não faltam yakuzas, mas contidos. O diretor ganhou pontos com os produtores pela
rapidez em filmar no estrangeiro.
Almas perdidas
Personagens desenraizados povoam os filmes de Miike, nesse final de milênio e
começo do século 21. A estagnação econômica pós-bolha gerou situações inéditas no
183
Japão, entre elas a necessidade de imigrantes para recompor a força de trabalho nos
empregos de baixa escolaridade. Umas das origens dessa mão de obra foram
descendentes de emigrantes japoneses na América do Sul, do Brasil (em maior escala) e
do Peru. O herói de “The City of Lost Souls”, produção do ano 2000, é um brasileiro
chamado Mario, mais um ser híbrido (o ator é peruano) que enfrenta poderosos yakuzas
e anseia em fugir com a namorada, desta vez para a Austrália. Futuro e passado
atravessam o fluxo da narrativa em “jump cuts”, incluindo um vilarejo brasileiro (terra
natal de Mario) que parece cenário de western spaguetti, no comentário de Tom Mes.
A comunidade de imigrantes do Brasil e Peru circula na periferia de Tóquio e tem até
um canal de televisão, TV Piranha.
Condensar a narrativa, apelar para um sincretismo linguístico e acertar a mão em
todos os filmes não é fácil. Entre 1999 e 2001 foram 20 produções, com diferentes
colaboradores, produtores e gêneros: da quantidade vem a qualidade. “Morrer ou
viver”, de 1999, deu certo, com direção firme e acurada. Um policial japonês e um
mafioso chinês combatem o mesmo grupo de yakuzas e acabam convergindo para um
duelo. No meio da pancadaria, o irmão do chinês assiste aula sobre marxismo na
universidade. Miike dirigiu duas sequências com “plots” e personagens diferentes,
conectados pela dupla de atores principais, Aikawa Shô e Takeuchi Riki, e pela estrutura
bifurcada que estrutura os três filmes. No último, “Dead or Alive: Final”, de 2002, o
cenário é de ficção científica. Yokohama torna-se uma cidade-estado totalitária, no ano
de 2346. Filmado em Hong Kong e falado em cantonês, japonês e inglês, opõe polícia e
androides, chamados de replicantes em homenagem a “Blade runner”, de Riddley Scot.
Em 2002 Miike faz um remake em cima de “Graveyard of honor”, o fabuloso
thriller que Fukasaku Kinji realizou em 1975, cujo título em português é “Alugados Pelo
Inferno”. Ambos são baseados na ascensão e queda de um yakuza da vida real, após a
Segunda Guerra. No filme de Miike Takashi, entretanto, a ação é atualizada para antes
e depois do estouro da “bolha econômica”. A sofreguidão do protagonista é nivelada
pelo excesso de consumo dos anos 80 e retração da década seguinte. Sempre com os
nervos à flor da pele.
184
J-horror
O grego Lafcadio Hearn foi um notável cronista e observador das idiossincrasias
japonesas. Chegou em 1891 como correspondente de jornal e acabou ficando até sua
morte, em 1904. Coletou várias peças do folclore sobre fantasmas e assombrações,
popularíssimas no Japão. Kobayashi Masaki adaptou algumas em “As quatro faces do
medo”, de 1964. No refluxo da “bolha econômica” do fim do século, a audiência queria
algo que liberasse a ansiedade latente dos tempos de crise, tal como Lafcadio fizera no
incício do século 20. “O Chamado”, de 1998, mais conhecido pelo seu onomatopeico
título japonês “Ringu”, de Nakata Hideo, preencheu a demanda e acertou no milhar.
Adotando roteiro e decupagem triviais de personagens e situações urbanas, o
filme de Nakata recupera a tradicional inclinação vingativa dos fantasmas japoneses
através de um singelo vídeo. Quem o assiste, cai na ira da criança brutalmente
assassinada há trinta anos. O que seria um argumento pouco original – a tela de vídeo
como plataforma de acesso sobrenatural – ganha uma inesperada espessura com a
minimalista edição de som orquestrada por Nakata. Cada grunhido hertziano da pobre
criança por meio do tubo catódico provoca uma sensação quase tátil no espectador.
Bem-vindo ao “J-horror cinema”, franquia que gerou produtos e subprodutos à
exaustão, inclusive remakes hollywoodianos.
Outros filmes adensaram o gênero à época, como “Shikoku”, de Nagasaki
Shunichi, de 1999, e “Tomie”, de Oikawa Ataru, do mesmo ano, este último assistente
de um dos melhores diretores que também comutou no “J-horror”, Kurosawa Kiyoshi.
Para Miike Takashi, que já tinha 35 títulos no currículo quando dirigiu “Audição”,
igualmente em 1999, seu filme não tinha nada a ver com o cinema de horror.
Solidão e desengano
Murakami Ryu é um fecundo escritor, jornalista, editor, músico e diretor de
cinema. Em 1992 realizou “Tokyo em Decadência”, parábola nua e crua sobre uma
garota de programa que se submete a humilhantes sessões de sado & masoquismo. Em
1997 publicou “Audition”, novela sobre um viúvo que resolve, a partir de sugestão do
filho, casar-se novamente. Para escolher a noiva, opina um amigo, nada melhor do que
185
uma audição para atrizes, como se fora um projeto de longa-metragem (afinal de contas,
Aoyama, o solitário, trabalha no ramo da produção de vídeo). Asami, a eleita, é pueril,
esguia e contida, mesmo para os padrões japoneses. Paixão à primeira vista.
A primeira hora de “Audição”, no filme de Miike, é construída para assegurar ao
espectador de que não haverá pulsão fora do lugar. A estratégia, detalhada no roteiro
do talentoso Tengan Daisuke (filho de Imamura), coloca o protagonista masculino no
comando das ações, tentando refazer sua estrutura afetiva abalada com a perda da
esposa. Do seu comportamento esvai uma sutil misoginia. Em dez anos de viuvez teve
apenas um breve encontro com a secretária, após uma noite de bebedeira. Prevalece a
sinceridade do desejo de casar, confirmado pela harmonia do ambiente caseiro, entre
ele, o filho, a doméstica e o cachorro. “Você já viu algum filme do Tarkovski ?”, pergunta
o amigo a uma das candidatas, durante a audição. Dramaturgia, velocidade dos cortes e
fotografia estão refreadas e calmas nessa primeira hora, irreconhecíveis em se tratando
de Miike Takashi. Entra em cena a disruptiva Asami.
Pequenos truques começam a desestabilizar a audiência. Com intervalo de
quinze minutos, dois jantares no mesmo restaurante entre os dois personagens são
filmados com ângulos e iluminação distintos, deslocando a percepção do espaço. Nos
45 minutos finais, a aflição evolui em espiral e muita gente sai da sala. Seringas, agulhas
e um arrasador fio de aço são os instrumentos que Asami utiliza no corpo de Aoyama,
vivido na tela pelo ex-cantor de rock Ishibashi Ryo. Em entrevista posterior, a “vítima”
revelou que Miike “divertiu-se dirigindo a cena”. Nessa altura, a edição é em tempo real.
O último corte é do casal trocando olhares ternos.
Desenraizados
“Audição” lançou Miike no circuito internacional, rendeu mais em Nova York do
que no Japão. Zeze Takahisa, outro bom diretor da mesma geração de Miike - mais afeito
ao gênero “pink” atualizado para o século 21, como o penetrante “Tokyo x Erotica”, de
2001 – nota que o trabalho do colega é definido pela “ausência de centro, pela errância
e pelo sangue mestiço”. Um desenraizamento, que vai da construção dos personagens
à composição dos planos, configurando no limite uma mise-en-scène desenraizada. Os
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traços reveladores: histórias envolvendo sentimentos nostálgicos pela família e origem,
que nunca se completam e terminam em tragédia; existências agoniadas e fugas
frustradas, dissolvidas em banho de sangue; sociopatas e psicopatas puxando a ação;
ritmos frenéticos de câmera e edição, mas também longos “takes”, onde personagens
perambulam ou simplesmente cruzam distâncias. Em uma palavra, inclassificável.
Em 2001, Miike lançou sete longas, entre eles “The Happiness of the Katakuris”,
“family movie” mesclado de musical e horror; “Visitor Q”, crônica de uma família
disfuncional feito em vídeo para integrar pacote especialmente produzido por um
pequeno cinema em Tóquio; e o assolador “Ichi, o assassino”, tirado do “mangá” de
Yamamoto Hideo, sobre a saga de um yakuza sadomasoquista contra um matador
inimaginavelmente cruel e infantilmente solitário. Ambientado em Kabukicho, este é um
filme em que a “representação”, entendida como suporte da narrativa ficcional, é
esgarçada ao extremo, metafórica e fisicamente. Corpos são perfurados e pendurados,
mas também retalhados e despejados. A voltagem é tão alta que alguns críticos
enxergam no filme uma metáfora da fragmentação do “corpo nacional” mítico do Japão,
aquele que pressupõe uma homogeneidade racial e cultural.
O fluxo abundante de produção, apesar das eventuais oscilações, continua. “Izo”,
de 2004, faz uma tábula rasa desse universo fragmentado. Tomando como guia um
samurai matador do século 19, Miike montou uma absurda narrativa de confrontos e
decepamentos, saltando a esmo no tempo e espaço, em um filme experimental de
grande orçamento (entre outros no “cast”, Kitano Takeshi). O sangue nesse mundo que
desafia a lógica é puro excesso cromático. Em um dos saltos temporais, o samurai
aparece no meio de uma sala de aula moderna, com figurino de época rasgado e
ensanguentado. As crianças declamam, a pedido da professora, definições de “amor”
(algo com “palavra carregada de sentido artificial”) e “nação” (“conceito ilusório
daqueles que querem o poder”). Radical extremo.
Nos anos de 2010 e 11 o diretor realizou dois excelentes “jidaigeki”,
homenageando Kurosawa Akira e Kobayashi Masaki. O primeiro foi “13 Assassinos”,
remake do filme homônimo de Kudo Eiichi, de 1963, com adaptações que remetem a
“Os sete samurais” de Kuro-san. O segundo, “Hara-Kiri: death of a samurai”, um
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elegante remake do original de Kobayashi. Em ambos, pontifica a presença de Yakusho
Koji.
O Premiê que gostava de Elvis Presley
Koizumi Junichiro foi um dos mais longevos Primeiro-Ministro do Japão
moderno, governando entre 2001 a 2006. Político independente do PLD, desafiou os
caciques do partido e promoveu difíceis reformas em uma economia ainda
relativamente estagnada. Arriscou algumas políticas ambientais, investiu em um
populismo midiático e alcançou significativos índices de popularidade junto ao
eleitorado jovem urbano. Sua cabeleira grisalha foi comparada à exibida pelo ator
Richard Gere. Quando deputado, patrocinou junto com o irmão a instalação de uma
escultura de Elvis Presley, em Harajuko, na área pop de Tóquio. Em seguida, fez a
curadoria de um cd com canções melosas do ídolo, que aparece na capa a seu lado em
fotos psicografadas. Também editou uma coletânea de Ennio Moricone.
Em 2006 fez peregrinação a Graceland, território sagrado do pioneiro do rock,
acompanhado de George Bush, que o convencera a mandar tropas ao Iraque. A questão
era controversa: depois do desastre da Guerra do Pacífico, o Japão renunciou ao
militarismo, reduzindo drasticamente investimentos na área militar e mantendo apenas
forças defensivas. Os norte-americanos garantem a proteção, com a base fortemente
equipada em Okinawa, mas resolveram dividir a conta na (desastrada) aventura no
Oriente Médio. Os soldados japoneses no Iraque não eram supostos entrar em combate,
apenas prestar suporte logístico. Koizumi afeiçoou-se à agenda conservadora e visitou
seis vezes durante seu mandato o templo xintoísta de Yasukuni, onde estão
entronizados os criminosos de guerra, deflagrando reações iradas nos vizinhos China e
Coreia do Sul.
As tensões com a península coreana são renitentes. Entre o final da década de
70 e o começo da seguinte, dezessete japoneses e japonesas foram sequestrados e
levados para a Coreia do Norte, aparentemente para ensinar a língua materna a futuros
espiões. Em 2002, Koizumi realizou uma espetacular visita surpresa a Pionguiangue,
onde encontrou-se com o então líder Kim Jong-Il. Conseguiu extrair pedido de desculpas
188
e reconhecimento de treze sequestros. Depois de longa negociação, alguns retornaram
ao arquipélago e foram devolvidas as cinzas dos que já tinham morrido. Testes
controversos de DNA feitos na Universidade Teikyo, em Tóquio, sugeriram que o
material enviado era uma mistura indiscernível, impossibilitando qualquer identificação.
A opinião pública mobilizou-se em função dos sequestros, tidos como exemplos
flagrantes de violação de direitos humanos.
Entre 1910 e 1945, a Coreia (de norte a sul) foi anexada pelo Japão. A dureza da
ocupação aumentou em proporções diretamente relacionadas à escalada dos conflitos
na região, que levaram à guerra com os Estados Unidos a partir de dezembro de 1941.
Enormes contingentes da população coreana foram obrigados a trabalhos forçados, a
pegar em armas e a servir de “confort women” às tropas imperiais. Memória e
esquecimento.
Além da vida
A formação de Koreeda Hirokazu no cinema seguiu caminho peculiar - nascido
em 1962, estudou literatura na Universidade Waseda e trabalhou em uma produtora
independente de documentários, “TV Man Union”. Depois de quatro anos como
assistente, conseguiu gravar às escondidas material para seu primeiro filme, “Lessons
from a calf”, em 1991, sobre estudantes de nível básico criando uma vaca leiteira. O
produtor gostou da espontaneidade das crianças, e promoveu-o a diretor.
No mesmo ano realizou “However...”, sobre o “desastre de Minamata”,
envenenamento de centenas de pessoas por mercúrio provocados por dejetos
industriais, no sul do país. A “doença de Minamata” é uma síndrome neurológica cujos
sintomas incluem distúrbios sensoriais nas mãos e pés, danos à visão e audição, fraqueza
e, em casos extremos, paralisia e morte. Para abordar um assunto de tamanha
sensibilidade, Koreeda pinçou dois personagens que tomaram parte nos
acontecimentos. Ambos cometeram suicídio: um funcionário da agência ambiental do
governo, frustrado diante da dificuldade burocrática para agilizar pagamentos de
compensação; e uma vítima, que teve a indenização suspensa. Tal como o anterior, o
trabalho foi exibido na TV Fuji.
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Em 1994, dirigiu “August without him”, sobre o primeiro homossexual japonês
a assumir publicamente ter contraído aids por meio do contato sexual. Koreeda
acompanhou durante meses seu entrevistado, sua rotina e seu estoicismo. Narrado pelo
diretor, o documentário desconstrói com sutileza e emoção o estatuto de objetividade
da linguagem documental.
“Depois da vida”, seu segundo longa-metragem de ficção, lançado em 1998, é
um magnífico exercício que articula estilo jornalístico a uma fantasiosa narrativa, vida
após a morte. Recém-falecidos são entrevistados para elegerem os momentos mais
gratificantes de suas vidas, aqueles em que realizaram seus desejos. Em seguida, o
precioso instante é recriado em estúdio, devidamente cenografado, iluminado e
interpretado. Memória e deleite.
Apocalipse e afeto
Em uma quitinete em Shibuya, o acupunturista Asahara Shoko funda, em 1984,
a seita “Aum Shinrikyo”. Cinco anos mais tarde recebeu status legal de organização
religiosa, concedido pelo governo. Um improvável sincretismo – budismo, hinduísmo,
escatologia cristã e Nostradamus – não impediu o fundador de autoproclamar-se
“Cristo”, em 1992. Atraiu admiradores, escreveu livros e deu palestras em
universidades, além de ganhou fama de extorquir pupilos hesitantes.
Em 1995, membros da seita perpetraram ataque com gás sarin em cinco estações
de metrô da capital do país, matando 13 pessoas e atingindo centenas de passageiros.
Asahara foi preso em maio, acusado de pelo menos 23 mortes, inclusive assassinatos de
ex-seguidores, e condenado à pena capital (ainda aguarda a execução). No mesmo dia
de sua prisão, uma carta-bomba chegou no gabinete do governador de Tóquio,
explodindo e extirpando os dedos da secretária. Em 2011, a polícia estimava em cerca
de 1.500 os seguidores do culto, dos quais um terço viveria em comunidades.
Um tal evento não poderia deixar de impactar o audiovisual, sobretudo pelo
apelo “apocalíptico” tão ao gosto das grandes produções. Na contramão do espetáculo
escatológico, Koreeda Hirokazu construiu em “Distance”, de 2001, um microcosmo que
reverbera a patologia social que assustou o Japão. Três homens e uma mulher, ligados
190
afetivamente a membros de um culto similar ao “Aum Shinrikyo”, encontram-se para
um memorial “in loco” onde pereceram seus entes queridos. Um pequeno incidente
obriga o grupo a passar a noite naquele local isolado. Poucas pistas são fornecidas, além
do sobrevivente evasivo que aparece e dialoga. O projeto era inserir um vírus letal no
abastecimento de água de Tóquio O filme revolve em torno das memórias e
perplexidades dos personagens, sem saídas ou ilusões: o absoluto é um vazio. Ao fim,
novo encontro foi marcado para o próximo ano.
Ninguém pode saber
Em 1988, a sociedade japonesa chocou-se com a revelação do abandono de cinco
filhos pela própria mãe, na capital do país. Largadas em um pequeno apartamento, as
crianças tiveram que se virar sozinhas. Durante quinze anos, Koreeda pensou e escreveu
sobre o drama, até emplacar com “Ninguém pode saber”, em 2004, um dos filmes mais
contundentes sobre a implosão da família nuclear no Japão.
A família, o grande filão do cinema clássico japonês, de Ozu Yasujiro e Naruse
Mikio: Donald Richie é um dos críticos que escreveu belas páginas nesse diapasão (e não
é coincidência seu apreço pela obra de Koreeda). Inspirado nos fatos, o roteiro de
“Ninguém pode saber” derivou para situações ficcionais, mantendo a estrutura básica
dos personagens, mãe e quatro filhos de pais diferentes. O principal mérito é a miseen-scène. Centrada nas crianças, alinha falas e gestos improvisados dentro do ambiente
claustrofóbico do lar, sugerindo uma estranha familiaridade com o que se passa em seu
interior. No “casting”, outro achado: a cantora pop You, escolha inesperada para o difícil
papel da mãe. E o filho mais velho, intérprete não-profissional como as demais crianças,
ganhou o prêmio de melhor ator no Festival de Cannes de 2004.
“Andando”, de 2008, é quase um remake de “Era uma vez em Tóquio”,
atualizado para o século 21. Filhos e netos visitam os pais idosos em Yokohama, para
lembrar a data da morte por afogamento do primogênito. Não há “pillow shots” e
tomadas com baixa altura da câmera como nos filmes de Ozu, mas a densidade
dramática é comparável. A rede de tensões que subjaz na estrutura familiar, amortecida
nas entrelinhas no clássico de 1953, aparece no filme de 2008 com um tom mais alto,
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como se os personagens tivessem esquecido o código de mesuras que balizava o
comportamento interfamiliar no Japão. Um dos melhores do realizador.
Koreeda Hirokazu é dos poucos diretores contemporâneos japoneses que logrou
obter um segmento cativo no mercado internacional. A célula familiar japonesa - e as
forças centrífugas que a ameaçam - consolidou-se como seu assunto favorito. Em 2011
é lançado “O que eu mais desejo”, comédia que investe na bifurcação da família. Na
separação, são dois meninos, um que fica com a mãe, e outro com o pai. “Pais e filhos”,
de 2013, lida com a inesperada decisão a que se vê confrontado um homem de negócios
bem sucedido, ao constatar que seu filho biológico fora encaminhado por engano a
outra família (menos abastada e mais “informal”) na maternidade. “Nossa irmã mais
nova”, de 2015, narra a chegada de uma meia-irmã ao convívio de três irmãs mais
velhas, a partir da morte do pai comum.
Cahiers du Cinema Japan
A despeito de ser um dos países mais beneficiados com a globalização acelerada
dos últimos decênios, restam paradoxos no Japão atual que o cinema se encarrega de
captar. Personagens à procura de alguma identidade, que parecem não pertencer a
lugar nenhum; histórias que, voluntariamente ou não, mostram o país fisicamente
fechado, difícil de sair ou entrar; e entraves na interação entre diferentes grupos sociais
e étnicos. Nos anos 60 e 70, de transformação e mudanças, um diretor ativo como
Oshima Nagisa praticava um humanismo de esquerda eivado de projetos políticos. Na
virada do milênio, a certeza de que um tal posicionamento permitiria a comunicação
com o "outro" - étnico, social ou cultural – esmaeceu. Um dos diretores mais vocais
nessa recusa foi Aoyama Shinji, sobretudo nos artigos que escreveu nos anos 90 para a
revista “Cahiers du Cinema Japan”.
Para Aoyama, a “verdadeira nouvelle vague” do cinema japonês dever ser
aquela que reconheça a incomunicabilidade do “outro”. As primeiras realizações de
Kitano Takeshi, que lidam com personagens esvaziados, ou de Kurosawa Kiyoshi, que
não disfarçam ambiguidades de comportamento em suas narrativas, estariam
sintonizadas com essa premissa. “All Under the Moon”, feito em 1993 por Yoichi Sai,
192
mostra a rotina e os anseios amorosos de um imigrante norte-coreano que dirige um
táxi de propriedade de outro imigrante coreano cujo sonho é construir um campo de
golfe: discriminado, apaixona-se por uma filipina que fala japonês. A descrição de um
microcosmo como esse é conduzida de modo a sugerir a aceitação da opacidade do
“outro”, sem complacências ou consciência culpada.
Estudante da Universidade Rikkyo, Aoyama Shinji frequentou aulas do crítico
Hasumi Shigehiko, influência marcante nos diretores da geração que começou a filmar
nos anos 80 e 90. Kurosawa Kiyoshi, talvez o mais próximo de Hasumi, visitou certa vez
o cineclube que o futuro realizador programava com amigos, deu uma palestra e ligouse ao grupo.
Versatilidade
De acordo com Aoyama, o estalo que confirmou sua conexão com cinema foi o
sentimento de que suas experimentações em Super-8 lembravam o pique de
improvisação dos filmes de Godard. Trabalhou como assistente de Kurosawa Kiyoshi e
Zeze Takahisa até estrear com no “V-Cinema” em 1995, com uma pornochanchada
colegial, “It’s not in the textbook!”, desautorizada por ele alegando interferências na
pós-produção. Um ano depois, em “Helpless”, brutal e críptica incursão no mundo
yakuza na ilha de Kyushu, sua terra natal no sul do país, acertou a mão. Contribuiu para
isso sua lucidez em convocar Tamura Masaki para a fotografia (antigo colaborador do
documentarista Ogawa Shinsuke) e o ator Asano Tadanobu, futuro “star” internacional,
em seu primeiro papel como protagonista. Ambos repetiram a colaboração em
produções ulteriores.
“Cinema de gênero” nunca intimidou o diretor, sejam filmes sobre “jovens
desorientados”, como em “Two punks”, de 1996; sobre “yakuzas”, com “Wild life”, de
1997, incursão godardiana sobre “ex-boxeurs”, bandidos e chantagistas; “romance”,
com “Shady grove”, de 1999; e “terror”, em “EM Embalming”, também de 1999, sutil
paródia do “J-horror” pontuada por atores afetados, autópsias e um cenário exótico.
Versatilidade em alta voltagem.
193
Nessa época, Aoyama alternava filmes para salas de exibição e o “V-Cinema”.
Seu “A cop, a bitch and a killer”, feito para o mercado de vídeo em 1996, entrega o que
o título insinua: pura ação.
Eureka !
“Eureka”, lançado no ano 2000, é o melhor trabalho do diretor. Filmado em
cinemascope e tom sépia por Tamura Masaki no desolado visual de Kyushu, narra a
deriva existencial e geográfica de um pequeno e improvável grupo: “road movie” com
doses de mistério psicológico. Em três horas e quarenta de duração, Aoyama deixa
correr os planos longos e consegue enaltecer seres que não se comunicam entre si, dois
irmãos adolescentes e um atônito motorista (Yakusho Koji, magistral). Os três abrem o
filme testemunhando um violento sequestro do ônibus pilotado por Koji, que termina
em matança. Logo depois, para piorar a vida das crianças, a mãe abandona a família e o
pai morre em um acidente de carro, em provável suicídio. Largada, a parelha recebe a
solidariedade do motorista, que se muda para a casa dos órfãos, sem ter sido convidado.
Pegar a estrada é a solução.
O longa “Sad vacation”, exibido em 2007, é um intrigante exercício de encontros
e desencontros familiares, liderados por um circunspecto personagem (Asano
Tadanobu, mais tarimbado) junto com um entorno de “loosers”, mãe ausente/presente
e máfia chinesa dedicada ao tráfico de imigrantes ilegais. “The Backwater”, de 2013, é
um drama que vira thriller no momento preciso, roteirizado por um remanescente do
“roman porno” da Nikkatsu. A diferença com o popular estilo “soft-core” da produtora,
segundo revelação do diretor a Mark Schilling, é o final: “no meu filme, vencem as
mulheres”.
Aoyama produz igualmente para a TV e é um escritor contumaz. Escreve livros
de ficção e ensaios sobre cinema. Suas histórias transitam entre a palavra e a imagem.
“Helpless” virou livro em 2002; “Eureka” em 2000, logo depois da produção; e “Sad
vacation”, publicado em 2006, foi levado às telas posteriormente. Sobre cinema
escreveu, entre outros, um volume sobre Wim Wenders e uma coletânea de ensaios,
“Cinema 21”. Literatura e cinefilia.
194
Cinema e pragmatismo
Em 2013, durante o Festival de Locarno, Kurosawa Kiyoshi e Aoyama Shinji se
juntaram para falar sobre produção de cinema no Japão. A fronteira entre o filme dito
“comercial” e aquele catalogado de “independente” parece não ter muita relevância.
“Faço o filme que posso fazer, não entendo a diferença entre comercial e
independente”, asseverou Aoyama. Para Kurosawa, não há separação, trabalha em
ambos, estúdio e “indie”. Claro, tais afirmações não pretendem dar conta da
complexidade do imenso mercado audiovisual japonês. Sinalizam, entretanto, um
pragmatismo autoral distinto do que pensa o senso comum ocidental sobre a noção de
“autor”.
David Bordwell chama a atenção para o (aparente) contraste entre “A Partida”,
produção japonesa dirigida por Takita Yojiro que ganhou o Oscar de melhor filme
estrangeiro em 2008, e as realizações pregressas do mesmo diretor. “A Partida”
inscreve-se na linhagem do cinema de “lágrimas e humor leve”, como os produzidos
pela Shochiku, onde labutavam Ozu e Naruse. A sensibilidade dos personagens é
modulada por uma visão de mundo resignada e recheada de suavidades. Pois o mesmo
realizador aprendeu seu ofício, nota o crítico, dirigindo uma infame série sobre homens
assediando mulheres nos trens e metrôs: entre 1981 e 86 foram vinte filmes, de títulos
autoexplicativos como “Molester and the Female Teacher”, o primeiro da série;
“Molester's Train: Hunting In A Full Crowd“, de 1982; “Serial rape”, de 1983; e
“Molester's Train: One Shot Per Train”, de 1985. Todos no melhor estilo “pink” e
produzidos para o mercado de “V-Cinema”.
O trânsito entre gêneros e estilos flui sem problemas no audiovisual do
arquipélago. As audiências podem mudar, mas o que importa é entregar o produto.
Pragmatismo e produtividade.
Suicide club
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Estações e trens são um notório espaço dramático na vida japonesa, como
sabiam muito bem Ozu e Naruse. Já Sono Sion, que além de diretor é poeta e
“perfomer”, radicalizou: seu “Suicide club”, de 2001, abre com uma sequência filmada
na estação mais movimentada do mundo, Shinjuku, mostrando nada mais nada menos
do que um suicídio coletivo de 54 estudantes femininas ainda adolescentes.
Sono acumula uma inusitada carteira de atividades, da poesia experimental a
vídeos pornográficos gay, passando por uma extensa lista de produções
cinematográficas, com circulação também em festivais internacionais. “Cold fish”, de
2010, narra as desventuras de um simplório comerciante de peixes tropicais e sua
família, arrastados para um frenesi de sangue e tortura por um colega de profissão (e
“serial killer” alucinado nas horas vagas). Na metade do filme um preciso ponto de virada
desvela a violência, como se uma nova trama começasse, na mais absoluta normalidade.
Tokyo trash baby
Igualmente pragmático e produtivo, Hiroki Ryuichi excedeu-se no “V-cinema” e
no “pink” (soft e hard-core). Em 1983 dirige três filmes do gênero homoerótico, “Our
Season”, “Our Generation” e “Our Moment”, em torno de atribulações de casais gays.
Em 1984, “Teacher, Don't Turn Me On!”, sobre um tutor e suas alunas. Usando um
pseudônimo, explora a seguir personagens e situações sado & masoquistas,
descambando para o “adult video”, com doses de humor e escatologia. Na década de
90 montou uma produtora com amigos e lançou em 1993, na onda do “J-horror”, o
experimento psicossexual “Sadistic city”: Tóquio metamorfoseada em perversidade e
paranoia, uma ante-sala dos filmes de Takashi Miike.
Em 1994, Hiroki finalmente começa a ampliar a audiência e a aventurar-se fora
do “pink”, com “800 Two Lap Runners”, drama romântico em torno de atletas
corredores. No ano 2000, realiza uma delicada e áspera incursão na sensibilidade
feminina urbana: “Tokyo trash baby”, crônica dos infortúnios de uma garçonete
apaixonada pelo vizinho do andar superior, guitarrista de uma (obscura) banda de rock.
O objeto do desejo é construído através dos dejetos do eleito obsessivamente coletados
em assaltos diários à lixeira. Cigarros, restos de comida, shampoo e preservativos são
196
catalogados, à espera do encontro redentor. A mise-en-scène é (quase) um afago na
personagem.
Vibrador
Hiroki Ryuichi nasceu em 1954, e frequentou aulas de cinema no “Athenée
Français”, em Tóquio, entre outros de Terayama Shinji, o conhecido diretor vanguardista
de teatro e cinema. “Sleep”, o experimento de Andy Warhol, era um dos temas dos
debates. Logo entrou como assistente no universo “pink” de produção.
Para ele, não interessam os rótulos, cinema “mainstream” ou “pink”: o problema
deste último é somente o circuito limitado e segregado de exibição. O que importa “é
fazer o filme que quero fazer”, e atingir o maior público possível. No mesmo ano 2000,
produz um híbrido revelador, “I am a S&M writer”, sobre um escritor de peripécias
sadomasoquistas que contrata modelos para inspirar-se científica e objetivamente.
Baseado em livro (autobiográfico) do celebrado Dan Oniroku, o amigo de Tani Naomi, o
filme acaba derivando para uma crise conjugal anunciada, em clima que lembra John
Cassavetes, conforme insinuou o diretor. Foi lançado na mesma semana de “Tokyo trash
baby”.
Em 2003, obtém o reconhecimento internacional com “Vibrator”, um “road
movie” rodado em vídeo digital nas estradas do Japão. Luz e som como se fossem
naturais (e expressivos) embalam a viagem existencial a partir do encontro fortuito
entre uma escritora, solitária e frágil, e um caminhoneiro. O tempo do filme, sempre na
estrada, é a suspensão do tempo dela, quebra imprevista da rotina. O ponto de vista
feminino vai prevalecer também no extraordinário “It’s only talk”, de 2005, com a
mesma atriz de “Vibrator”, a excelente Terajima Shinobu. Seu papel é o de uma mulher
de 35 anos com transtornos maníaco-depressivos, que negocia a vida afetiva entre
sujeitos pervertidos e sujeitos idôneos. Uma pequena obra-prima.
“Kabukicho Love Hotel”, de 2014, é uma história de amor entre uma aspirante a
cantora e um gerente de “love hotel” (cognome dos motéis de encontros amorosos no
Japão). Tudo isso em pleno Kabukicho, o perímetro da transgressão em Tóquio. Ela
197
acaba cedendo às investidas de um produtor musical e torna-se cliente do hotel. “Pink”
e afeto.
Cinema de gênero
Os personagens de Kurosawa Kiyoshi, sobretudo a partir do estupendo “Cure”,
de 1997, parecem pertencer a um mundo de solitários em busca de alteridades.
Inseridos nas estações de trabalho ou no ambiente caseiro, esbarram com fantasmas e
duplos, tangíveis e intangíveis. Entram em contato com os “outros” e se transformam.
Em termos de economia narrativa, os filmes passam de arranjos mais ou menos
convencionais de tempo e espaço para um embaralhamento de ações e situações. O
espectador despede-se transtornado e recarregado.
Kurosawa – sem parentesco com o ilustre antecessor homônimo – é um dos
realizadores mais inteligentes de seu país e dos mais atilados da cena internacional.
Nascido em 1955 em Kobe, foi estudar sociologia na capital e acabou fisgado pelas aulas
de Hasumi Shigehiko, crítico erudito, um dos pioneiros na divulgação de Foucault e
Deleuze no Japão. Familiarizou-se, entre outros, com a geometria dos enquadramentos
de Hitchcock e as soluções de Ozu para descrever os ambientes internos das casas
japonesas. Em seguida passaria ele mesmo a dar aulas, atividade que mantém até hoje.
“Barren illusions”, de 1999, é um filme de baixo orçamento com estudantes no elenco
e na produção (apenas um ator profissional).
Para ele, em primeiro lugar vem o “gênero”. No seu caso, o “gênero” mais
invocado é o “horror”, sem prejuízo de outras opções (“Sonata de Tóquio”, de 2008, é
um “family movie”). Não se trata de escolher um tópico filosófico ou humanista e depois
escrever o roteiro: o “cinema de gênero” é mais fácil para a audiência entender, e a
partir dele os temas aparecem e se desdobram. O elemento ficcional é sempre
necessário para contar a história, mas o cinema é também o meio de captar a realidade
circundante, no ato mesmo de filmar. “Você começa com o gênero, que é ficção, e
gradualmente se move em direção à realidade”, assinalou. No meio do caminho, em
algum lugar, descobre o filme.
198
Depuração da linguagem
Não faltou exercício prático em paralelo à elaboração da base teórica. A carreira
de Kurosawa, produtiva como a média dos seus colegas no Japão, beneficiou-se dessa
reflexão refinada. Em 2013, em entrevista a Tom Mes - focada nos anos em que atuava
no mercado de vídeo - revelou que aprendeu o que era um “filme de ação” dirigindo
initerruptamente, sobretudo nos anos 90. Depois desse “tour de force”, encontrou sua
linguagem.
Kurosawa começou pelo Super-8, ainda na universidade, e profissionalizou-se no
“pink”. “Kandagawa pervert wars”, de 1983, gira em torno de duas “voyeuses”
sexualmente energizadas bisbilhotando vidas alheias (e incestuosas) em um conjunto
habitacional. O próximo, “The excitement of the do-re-mi-fa girl”, lembra os primeiros
trabalhos de Godard e foi considerado “insuficientemente erótico” pela Nikkatsu, que
se recusou a distribuir o filme. A versão final, lançada em 1985, teve cenas refilmadas e
foi reeditado. Em 1989 foi contratado por Juzo Itami e realizou sua primeira incursão no
“horror”, com a superprodução “Sweet home”. Uma equipe de TV visita a mansão vazia
de um famoso artista e é perseguido pelo fantasma de sua esposa. Efeitos especiais de
técnico hollywoodiano e game lançado ao mesmo tempo completaram o pacote.
Não obstante, Kurosawa discordou da edição feita para TV e processou o
produtor. “Sweet home” não tem nada a ver com suas produções posteriores. Não ficou
bem visto pelo “establishment” cinematográfico, acabou indo trabalhar na televisão
(também no segmento “horror”) e logo no “V-Cinema”.
Foi na série “Suit yourself or shoot yourself” – seis filmes realizados em dois
anos, 1995 e 96 – que acertou seu pique de mise-en-scène. O título é a tradução
japonesa de “À bout de souffle”, o disruptivo longa que Jean-Luc Godard fez em 1960
(“Acossado”, em português). As histórias circulam em torno de dois yakuzas
desajeitados e de ranking inferior. Emocionado, Kurosawa disse a um entrevistador
francês que aqueles eram os verdadeiros filmes da sua carreira. As premissas eram
irredutíveis: baixo orçamento, rapidez de produção, liberdade para experimentar e
entrega de resultados. Ainda no “V-Cinema”, “The revenge” rendeu apenas dois filmes,
199
em 1996. “Serpent's path” e “Eyes of the spider”, vendidos como “back-to-back”, dois
por um, foram completados em 1997, no mesmo ano de “Cure”. Fim do ciclo.
Alteridades
“Cure” é a depuração da linguagem, não somente dos procedimentos de
filmagem, mas também em relação ao posicionamento do diretor no mercado, inclusive
o internacional. Um investigador policial (Yakusho Koji, ator recorrente de Kurosawa)
fica intrigado com uma sequência de crimes violentos e aparentemente desmotivados.
O possível culpado é um amnésico estudante de psicologia adepto do mesmerismo, a
técnica hipnótica desenvolvida por Mesmer no século 16, entre Viena e Paris. Os
assassinos cometem os crimes e se esquecem, como se tomados por um “outro”
malévolo. Ao fim, o próprio detetive sucumbe à alteridade. O tempo-espaço estável
organizado pelo protagonista desorganiza-se a olhos vistos. O “eu” se divide, e o filme
termina em suspenso.
Mesmo uma comédia como “License to live”, de 1998, conecta-se com alguma
externalidade: no caso, os dez anos que o personagem passou em coma, uma morte
temporária. “Seance”, de 2000, introduz o “outro” personalizado no fantasma infantil.
E “Pulse”, de maior orçamento e lançado um ano depois, atualiza o mundo espectral
para o ambiente virtual da internet.
Os fantasmas japoneses definitivamente não são agressivos, como são os de
Hollywood. Estão mais para atormentados e sofredores, o que não exclui a vingança. Os
que habitam a esfera de “Pulse” são até “inativos”, como definiu Kurosawa. Em
“Doppelganger”, de 2003, o fantasma não é um morto que retorna, mas o próprio duplo
do personagem, que atazana sem parar o corpo-matriz. “Loft” e “Vítima de uma
alucinação”, de 2005 e 2006, privilegiam o espectro feminino, conforme a tradição
literária fantasmática do período Edo (1600-1868). Mulheres oprimidas em vida
empoderam-se após a morte e reaparecem no mundo dos vivos para assombrar os
faltosos. Retorno do recalcado.
200
Clair de lune
A chegada do fantasma em “Vítima de uma alucinação” é sempre anunciada por
um tremor de terra, desses que ocorrem com frequência no arquipélago,
desestabilizando o espaço cênico por frações de segundos. Kobe, a cidade onde nasceu
Kurosawa, sofreu em 1995 um terremoto devastador. O esplêndido “Sonata de Tóquio”,
de 2008, foge do gênero horror e incorpora o “drama familiar” no repertório do diretor,
na melhor escola de Naruse. A crise financeira que afetou os países ricos à época bateu
no Japão e ameaçou o emprego de assalariados antes estáveis. O personagem de
Kurosawa perde o seu e não conta à esposa, andando em círculos até que a crise instalase no recinto do lar.
Ao final de “Sonata de Tóquio”, a sonata é “Clair de lune”, de Debussy, inspirada
no poema de Verlaine – e executada primorosamente pelo piano do caçula da família,
cujo pai tornou-se faxineiro de shopping center.
“Para o Outro Lado”, de 2015, combina gêneros e traz o fantasma-marido (Asano
Tadanobu) de volta ao lar: ato contínuo, viaja com a esposa para cicatrizar traumas,
restaurar alegrias e decifrar decepções. Luto e melancolia, mas também superação.
Family movies
Debussy também modula o enredo de “Tudo Sobre Lily”, de 2001, drama e
violência entre adolescentes dirigido pelo talentoso Iwai Shunji – no roteiro, apoiou-se
em “inputs” de redes sociais para construir os personagens. Uma delas, a virtuose
pianista, é cruelmente perseguida pelas colegas. No mesmo universo de adolescentes
às voltas com assédios na escola, mas com enfoque distinto, aparece “The machine girl”,
realizado em 2008 por Iguchi Noboru. A simpática heroína, que teve o braço amputado
pelo yakuza cujo filho matou seu irmão, instala como prótese corretiva uma
metralhadora, e torna-se um “demônio”. O clima é “action shock/gore cinema”,
segmento lucrativo para os exportadores japoneses de audiovisual. A tela funciona
como suporte para uma “action painting” de pigmentos sanguíneos.
201
Kawase Naomi, exímia diretora, sempre trabalhou com adolescentes,
protagonistas frequentes em seus filmes. O tom, entretanto é outro: sua mise-en-scène
faz nascer uma imediaticidade com o fluxo de emoções dos personagens e os detalhes
do entorno. A audiência parece integrar-se na história, como se o mundo diegético lhe
fosse familiar. Não se trata de um olhar documental. Ao contrário, é um olhar interior,
registro internalizado dos acontecimentos, impregnados da subjetividade de quem
organiza o olhar. O belíssimo “Suzaku”, seu longa de estreia em 1997, capitalizou essa
atmosfera e ganhou o “Caméra d’or”, o cobiçado prêmio de estreantes no Festival de
Cannes. Uma proeza.
Em um país de pouquíssimas diretoras, dada a forte competição entre talentos e
a notória tradição masculinizante na sociedade, Kawase Naomi é um desafogo. Tanaka
Kinuyo, a formidável atriz, é uma rara e ilustre antecessora, com seis longas a seu
crédito. Naomi começou a filmar intensamente em Super-8 a partir de 1988: filmes de
família filmados de dentro.
Separação e abandono
Nascida em 1969, em Nara, a antiga capital do Japão, a realizadora encontrou no
Super-8 um veículo para expressar seu entorno íntimo. O cinema como ferramenta de
comunicação e abertura para o “outro”.
Foram vários curtas, até o pungente “Em seus braços”, de 1992, auto-retrato
sem rodeios, um retorno à infância abandonada pelos pais divorciados e acolhida pela
avó. Com 40 minutos de duração, foi ampliado para 16mm e exibido em salas de cinema.
Cortes secos, planos de detalhe de interior, nuvens formando-se no céu, som natural –
de um material bruto como esse resulta a cicatrização da memória infantil. No final,
Naomi finalmente telefona para seu pai. Dois anos mais tarde observa a avó em
“Caracol”, construindo um espaço cinematográfico com câmera na mão, olhar afetuoso
e o total esvaziamento da suposta objetividade documental.
O trabalho de Kawase começou a atrair a atenção no Festival de documentários
de Yamagata. Em 1995 corresponde-se em Super-8 com Koreeda Hirozaku, a essa altura
um nome conhecido pelos seus trabalhos para televisão. “This world (winter)”, de 1996,
202
é o registro dessa troca. No mesmo festival encontra um produtor e um fotógrafo, o
brilhante Tamura Masaki, colaborador de Aoyama Shinji e Ogawa Shinsuke. Juntos
rodam em 35mm “Suzaku”, áspera incursão sobre desintegração familiar nas
montanhas perto de Nara. A não-construção de um túnel prometido, no plano
econômico, e o súbito desaparecimento do pai protetor, no psicológico, desestruturam
o lar. O único ator profissional é o chefe da família. O ponto de vista narrativo é da caçula
adolescente.
Céu, Vento, Fogo, Água, Terra
Alternando estilos, mas atrelada às raízes, Naomi dirige “Firefly”, de 2000 desventuras de uma “stripper” cuja mãe suicidou-se quando era criança. Logo em
seguida, “Céu, Vento, Fogo, Água, Terra”, de 2001, financiado pelo canal Arte francoalemão, auto-investigação audiovisual na linha dos filmes Super-8. Desta feita o foco é
o luto pela morte do pai - o ausente que nunca sequer telefonou. Deixa-se tatuar
(superficialmente), à semelhança das costas paternas, e corre nua pelo campo. Em 2003,
o magnífico “Shara”, narração desdramatizada sobre uma família abalada pelo sumiço
inexplicável de um dos filhos gêmeos. O tom vitalista é realçado pelas sequências finais:
desfile comunitário de expurgação, com direito à chuva que lava a tela, e o parto
restaurador do novo irmão.
A construção do espaço de intimidade prossegue no perturbador “Nascimento e
maternidade”, de 2006. De início, uma inquirição surpreendente sobre sua infância leva
a avó de 90 anos às lágrimas: reconciliam-se, mas logo somos informados do
falecimento da anciã. Segue-se o registro filmado da própria diretora dando à luz. Morte
e vida em loop.
A morte, afinal, é liberação da alma. Kawase Naomi parece ter se recongraçado
consigo mesma, sem perder a coerência de sua linguagem. “Floresta dos Lamentos”, de
2007, acompanha uma enfermeira em luto pela perda do filho, perdida na floresta com
seu paciente. Com este filme, Naomi ganhou o “Grand Prix” do Júri do Festival de
Cannes. “Hanezu”, de 2011, foi rodado em 16mm e precedido de longa imersão dos
atores na locação em Nara. Não houve ensaios e as filmagens foram curtas e objetivas,
203
no estilo “uma cena-uma tomada”, um Mizoguchi atualizado para produção
independente no século 21. E o belo “O segredo das águas”, de 2014, encontro de
adolescentes à beira-mar pontuado de morte e mistério.
“Sabor da vida”, lançado em 2015, faz a crônica delicada de uma amizade
improvável. Uma realizadora fundamental.
204
Pósfacio
Em um famoso texto de 1929, típico da inquietude intelectual de uma das mais
importantes personalidades do cinema, Sergei Eisenstein especula sobre a montagem
cinematográfica a partir da composição visual dos ideogramas da escrita japonesa.
Choques de volumes e formas geram sínteses visuais no espectador/leitor, produzindo
um resultado linguístico comparável à “montagem intelectual”. A formação do
ideograma traz um agenciamento visual que de certa forma guarda um paralelo
construtivo com essa noção tão cara ao diretor russo. Até mesmo no lacônico haicai
Eisenstein identifica “frases de montagem, registros de tomadas”, algo que combina
“dois ou três detalhes pertencentes a um determinado gênero de dados que produz
uma representação perfeitamente consumada de outro gênero - psicológico”.
A fertilidade desse encontro – de um lado, um dos mais instigantes protagonistas
da arte nascente que era o cinema, embalado em um cenário revolucionário na forma e
no sentido, o realizador Sergei Eisenstein, e do outro, uma cultura pujante e imagética,
a japonesa – vai além da mera notação histórica. Certo, a erudição de Eisenstein excele
em derivações provocativas, mas o que interessa aqui é enfatizar a confluência histórica
entre a aparição do cinema (da máquina-cinema, diria Deleuze) e a emergência do
“outro” japonês, esse país-arquipélago que tanto seduziu os ocidentais antenados.
Explorar a sincronia histórica entre a invenção do cinema e a reinvenção do Japão
moderno, utilizando a produção cinematográfica como eixo e espelho, essa a ambição
do presente texto.
A janela cinematográfica, não obstante, tem duas vias: o dentro e o fora perdem
a distinção, tornam-se indiscerníveis. O mito da exclusão histórica que o Japão se impôs,
nos 265 anos da era Tokugawa, funciona também como polo de desejo para o olhar
ocidental. Nesse período, instalou-se no Japão um feudalismo dotado de narrativa épica
singular, moldada pelo território, pelo oceano, montanhas, lagos, tudo o que conforma
uma farta matéria cinematográfica, que os grandes autores souberam explorar e
consagrar no mundo inteiro, a exemplo que os norte-americanos fizeram com o “velho
oeste”. Tais traços são tão fortes que não é raro associar-se situações contemporâneas
205
de comportamento a características presentes nos heróis e vilões do passado, nos
samurais e nas gueixas, como se a tradição sobrevivesse na interioridade psicológica dos
personagens e se projetasse de alguma forma na exterioridade das imagens.
Sergei Eisenstein, que criticava o cinema japonês de seu tempo, talvez por
desconhecimento, atirou no que viu e acertou no que não viu. O cinema desliza no país
do ideograma. No Japão, o cinema estourou, tornou-se uma referência mundial. Os
japoneses têm uma extrema facilidade de transitar pelas imagens – o país é uma
verdadeira “image factory”, como dizia Donald Richie. A escrita nipônica e sua matriz
chinesa, imagética ou icônica, são dotadas de um senso visual acurado e azeitado,
enquanto as escritas fundamentadas nos símbolos convencionais sem relação imagética
com o referente, as fonéticas, partem da abstração para chegar à imagem. Os japoneses
teriam a partir daí uma aderência especial à imagem, às cesuras e suturas que operamos
rotineiramente em nossos hábitos visuais, transplantando-as para a composição e a
montagem, para o cinema, enfim. Não importa o suporte – película, vídeo, digital - os
realizadores seguem vorazmente deglutindo e reconfigurando a tradição visual, do
mangá ao kabuki, sempre sintonizados com a vertigem tecnológica.
Mas falar do Japão é adentrar numa seara mitológica. Outra crença que rondou
a leitura ocidental do Japão é a da capacidade de copiar os segredos industriais do
Ocidente, que teria começado com a escopeta dos portugueses, com a chegada dos
missionários cristãos no século 16 - até o famoso caça Zero da Segunda Guerra, que seria
cópia de aeronave inglesa. O salto industrializante japonês, nessa linha, teria sido feito
em cima da contrafação (hoje a acusação é deslocada para a China). Se pensarmos com
um pouco mais de cuidado, entretanto, não será difícil concluir que os japoneses são na
verdade dotados de uma notável capacidade de assimilação, da qual a inovação é um
dos produtos, essa inovação que tanto se fala nos dias de hoje como diferencial de
desenvolvimento econômico. Saber assimilar é inovar.
No caso do cinema, da assimilação da linguagem cinematográfica, essa qualidade
é claríssima, desde o testemunho do Ozu sobre o êxtase que experimentou assistindo
um filme americano em 1910 (“Civilization” de Thomas Ince) até a incorporação, na
linguagem cinematográfica, das tradições culturais do teatro (kabuki e nô), da imagem
(ukiyo-ê), da poesia (haikai). Tudo é assimilação e inovação nesse fluxo de imagens.
206
Livros consultados
BURCH, Noel
- To the Distant Observer: Form and Meaning in the Japanese Cinema, University of
California Press, 1979
BURUMA, Ian
- A Japanese mirror, heroes and villains of Japanese culture, Penguim Books, 1985
- Inventing Japan, The Modern Library, 2004
CAZDIN, Eric
- The flash of capital: film and geopolitics in Japan, Duke University, 2002
De BECKER, J.E.
- The Nightless City: Or the History of the Yoshiwara Yukwaku, ICG Muse, Inc, 2000
DE MENTE, Boyé Lafayette
- Japan unmasked, Tutle Publishing, 2005
DESSER David
- Eros plus Massacre: An Introduction to the Japanese New Wave Cinema, Indiana
University Press, 1988
DOWER, John
- Embracing defeat: Japan in the aftermath of World War II, Penguim Books, 1999
GREINER, Christine
- Leituras do corpo no Japão — e suas diásporas cognitivas, n-1, 2015
HEARN, Lafcadio
- Kwaidan: stories and Studies of Strange Things, Stone Books, 2006
HIGH, Peter
- The Imperial screen: Japanese film culture in the Fifteen Years’ war, 1931-1945, The
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HIRANO, Kyoko
- Mr. Smith Goes to Tokyo: Japanese Cinema under the American Occupation, 19451952, Smithsonian Institution Press, 1992
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MES, Tom, and SHARP, Jasper
- The Midnight Eye guide to New Japanese film, Stone Bridge Press, 2005
MES, Tom and POSSE, Paul
- Agitator: the cinema of Takashi Miike, FAB Press, 2006
MES, Tom, and STORMS, Christian
- Re-Agitator: A Decade of Writing on Takashi Miike, FAB Press, 2013
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- Patriotism, New Directions Books, 1995
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- Nascido das Cinzas: Autor e Sujeito nos Filmes de Oshima, Edusp, 1995
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- Cinema, Censorship and the State, The MIT Press, 1992
PHILLIPS, Alastair, and STRINGER, Julian (org)
- Japanese Cinema: texts and contexts, Routledge, 2007
RICHIE, Donald
- A hundred years of Japanese Cinema, Kodansha International, 2005
- Ozu, University of California press, 1974
- Japanese Portraits, Tutle Publishing, 2005
RUSSELL, Catherine
- The cinema of Naruse Mikio, Duke University Press, 2008
SATO, Tadao
- Kenji Mizoguchi and the art of Japanese Cinema, BERG, 2008
SCHILLING, Mark
- No Borders, No Limits: Nikkatsu Action Cinema, FAB Press, 2007
- The Yakuza Movie Book: A Guide to Japanese Gangster Films, Stone Bridge Press,
2004
SHARP, Jasper
- Historical Dictionary of Japanese cinema, The Scarecrow Press, 2011
208
- Behind the Pink Curtain: The Complete History of Japanese Sex Cinema, FAB Press,
2008
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- The samurai film, Overlook Press, 1983
YOSHIKUNI, Igarashi
- Bodies of memory in postwar Japanese culture, 1945-1970, Princeton University
Press
209
Glossário
Anime, animê filmes de animação de gêneros e conteúdos variados
ANPO sigla referente ao “Tratado de Cooperação Mútua e Segurança entre o Japão e
os Estados Unidos”, assinado em 1952 e reciclado em 1960
Benshi artistas-narradores de filmes do cinema silencioso, japoneses ou estrangeiros
Bunraku teatro de bonecos japonês, muito popular no século 18
Bushido o “caminho do guerreiro”, código de ética dos samurais
Eirin associação japonesa de produtores cinematográficos
e-maki pintura ou desenho em rolo e pergaminho
Geidomono artes tradicionais
Gendaigeki gênero cinematográfico para dramas sobre a vida contemporânea
Gueixa japonesa treinada desde jovem nas artes da dança, do canto e da conversação
Hara-kiri forma pela qual é mais conhecido, no Ocidente, o ritual suicida reservado à
classe guerreira
Jidaigeki gênero cinematográfico para dramas históricos, de época
Kabuki um das formas clássicas do teatro japonês, muito estilizado e popular no século
18, apreciado até hoje
Mangá história em quadrinhos, um hábito nacional
Meiji era do Imperador Meiji (1967-1912)
mono no aware doce melancolia, a empatia para com as coisas efêmeras
Nô a principal forma teatral clássica do Japão, surgida no século 14, adotada pela
aristocracia e encenada até hoje
Onnogata, onnagata atores masculinos em papéis femininos no kabuki
Pinku eiga “cinema pink”, erótico soft-core, muito em voga nos anos 60 e 70
Ronin samurai sem mestre, desempregado, errante
SCAP abreviação de “Supreme Commander of the Allied Powers”, a autoridade norteamericana que exerceu o poder no Japão do pós-guerra, de 1945 a 52
Sensei mestre, “aquele que nasceu antes”
Seppuku ritual suicida reservado à classe guerreira, principalmente samurai
210
Shimpa forma teatral moderna, mesclando kabuki com teatro ocidental, assimilada
pelo cinema
Shomingeki filmes que lidam com a classe média assalariada
Showa era do Imperador Hiroíto (1926-1989)
Taisho era do Imperador Taisho (1912-1926)
ukiyo-ye “retratos do mundo flutuante”, gravuras do período Edo
Xogum título e distinção militar usado no Japão antes da era Meiji
Yakuza termo genérico para mafiosos japoneses
Yoshiwara área em Tóquio segregada para prostituição pelo xogunato Tokugawa
Zaibatsu poderosos conglomerados industriais e financeiros, consolidados na era
Meiji
211
FILMES E DIRETORES JAPONESES CITADOS
Adachi Masao
“Closed vagina” (1963, “Vagina fechada”) – pag. 129
“Female student guerrilla” (1969, “Estudantes fêmeas guerrilheiras”) – pag. 129
“The prisioner” (2007, “O prisioneiro”) – pag. 149
“A.K.A. Serial Killer” (1969) – pag. 164
“Gushing prayer” (1973, “Jorrando oração”) – pag. 164
“Red Army/PFLP: Declaration of World War” (1971, “Red Army/PFLP: Declaração de
guerra mundial”) – pags. 164, 166
Aoyama Shinji
“It’s not in the textbook!” (1995, “Não está no livro didático!”) – pag. 193
“Helpless” (1996, “Desamparado”) – pag. 193, 194
“Two punks” (1996, “Dois punks”); “Wild life” (1997, “Vida selvagem”); “Shady grove”
(1999, “Arvoredo na sombra”; “EM Embalming” (1999, “EM Embalsamando”) – pag. 193
“A cop, a bitch and a killer” (1996, “Um tira, uma cadela e um matador”) – pag. 193
“Eureka!” (2004) – pag. 194
“Sad vacation” (2007, “Férias melancólicas”) – pag. 194
“The Backwater” (2013, “A ressaca”) – pag. 194
Fujita Toshio
“Lady snowblood – Vingança na neve” (1973) – pag. 145
Fukasaku Kinji
“Black Lizard” (1968, “Lagarto negro) – pag. 149
“The Green Slime” (1968, “O lodo verde”) – pag. 150
“Battles without Honor and Humanity” (1973, “Batalhas sem honra e humanidade) –
pag. 150
“Yakuza graveyard” (1976, “Cemitério de yakuza”) – pags. 150, 151
212
“Under the Flag of the Rising Sun” (1972, “Sob a bandeira do Sol Nascente”) – pag. 151
“A Conspiração do Clã Yagyu” (1978) – pag. 151
“Vírus” (1980); “Portal do inferno” (1981); “A lenda dos oito samurais”1(983); “A Chaos
of flowers” (1988, “Um caos de flores”) – pag. 152
“Batalha real” (2000) – pag. 152, 174
“Alugados Pelo Inferno” (1975) – pag. 184
Furukawa Takumi
“Juventude Rebelde” (1956) – pag. 94
Fushimizu Osamu
“China nights” (1940, ”Noites da China”) – pag. 18
Gosho Heinosuke
“The Neighbor's Wife and Mine” (1931, “A esposa do vizinho e a minha”) – pag. 9
Hara Kazuo
“Extreme private eros: love song 1974” (1974, “Eros privado extremo: canção de amor
1974) – pag. 157, 158
“The Emperor’s Naked Army Marches On” (1987, “O exército desnudado do Imperador
segue em frente”) – pag. 158
Hasebe Yasuharu
“Black Tight Tigers” (1966, “Tigres negros apertados”) – pag. 146
“Stray cat rock” (1970, “Gata desgarrada do rock”) – pag. 146
“Rape! 13 hour” (1977, “Estupro! 13ª hora”) – pag. 146
Hideo Gosha
“Hitokiri - o Castigo” (1969) – pag. 132
213
Hiroki Ryuichi
“Our Season”, (1983, “Nossa temporada”); “Our Generation” (1983, “Nossa geração”);
“Our Moment” (1983, “Nosso momento”); “Teacher, Don't Turn Me On!” (1984,
“Professor, não me provoque!”) – pag. 196
“Sadistic city” (1993, “Cidade sádica”) – pag. 196
“800 Two Lap Runners” (1994, “Dois Corredores de 800) – pag. 196
“Tokyo trash baby” (2000, “Gata do lixo de Tóquio) – pag. 196, 197
“I am a S&M writer” (2000, “Eu sou um escritor S&M) – pag. 197
“Vibrator” (2003, “Vibrador”) – pag. 197
“It’s only talk” (2005, “É só conversa”) – pag. 197
“Kabukicho Love Hotel” (2014, “Motel em Kabukicho”) – pag. 197
Honda Ishiro
“Godzilla” (1954) – pags. 53, 54, 93
Ichikawa Kon
“Fogo na planície” (1959) – pag. 64, 65
“Kokoro” (1955, “Kokoro – o coração das coisas”) – pags. 65, 66
“Não Deixarei os Mortos (A Harpa Birmana)” (1956) – pag. 66, 67
“Enjo – O templo do pavilhão dourado” (1958) – pags. 67, 68
“A vingança do ator” (1963) – pag. 68
Iguchi Noboru
“The machine girl” (2008, “A garota-máquina”) – pag. 201
Imai Tadashi
“Nigorie - An Inlet of Muddy Water” (1953, “Nigorie - Uma entrada de água
lamaçenta”) – pag. 87
Imamura Shohei
214
“A Mulher Inseto ou Tratado Entomológico do Japão”, de (1963) – pag. 114, 116, 151
“Introdução à antropologia” (1966) – pag. 114, 117
“My second brother” (1959, “Meu segundo irmão”) – pags 116
“Todos porcos” (1961) – pag. 116
“The profound desire of the Gods” (1968, “O profundo desejo dos deuses”) – pags.
117, 118, 152
“A man vanishes” (1967, “Um homem desaparece”) – pag. 118
“History of postwar Japan as told by a bar hostess” (1970, “A história do pós-guerra do
Japão contada por uma dona de bar”) – pags. 152, 153
“In search of the unreturned soldiers in Malaysia” (1970, “À procura dos soldados que
não retornaram da Malásia”); “In search of the unreturned soldiers in Thailand” (1971,
À procura dos soldados que não retornaram da Tailândia”) – pag. 153
“Outlaw-Matsu returns Home” (1973, “O fora-da-lei Matsu volta para casa”) – pags.
153, 154
“Karayuki-San, the making of a prostitute” (1975, “Karayuki-San, a criação de uma
prostituta”) – pag. 154
“Minha vingança” (1978) – pag. 154, 155
“Eejanaika – Aconteceu no fim da era Tokugawa” (1981) – pag. 156
“A Balada de Narayama” (1983) – pag. 156
“Zegen” (1987) – pag. 156
“Black Rain – a coragem de uma raça” (1989) – pag. 156, 157
“A enguia” (1997) – pags. 173, 177, 178
“Dr. Akagi” (1998) – pag. 178
“Água quente sob uma ponte vermelha” (2001) – pag. 178
Inagaki Hiroshi
“O Homem do riquixá” (1958) – pag. 86
“Emboscada” (1970) – pag. 95
Isaka Satoshi
“Focus” (1996) – pags. 179, 180
215
Ishii Takashi
“Gonin” (1995) – pag. 175
Ishii Teruo
“Love and crime” (1969, “Amor e crime”) – pags. 140, 161
“O Horror dos homens deformados” (1969) – pags. 159, 160
“Abashiri Prison” (1965, “Prisão de Abashiri”) - pag. 160
“Hot springs geisha” (1968, “A nascente quente das gueixas”) – pag. 160
“Shogun’s joys of torture” (1968, “Alegrias de tortura do xogum”) – pag. 160
“Blind woman’s curse” (1970, “A maldição da mulher cega”) – pag. 161
Boachi Bushido: Code of the Forgotten Eight” (1973, “Boachi Bushido: Código dos Oito
Esquecidos”) – pag. 161
“Japanese hell” (1999, “Inferno japonês”) – pag. 161
“Blind Beast vs. Dwarf” (2001, “Fera cega vs. anão) – pags. 161, 162
Itami Juzo
The funeral” (1984, “O funeral”) – pag. 169
“Tampopo - Os Brutos Também Comem Spaghetti” (1985) – pag. 169
“Yakuza - A Arte da Extorsão” (1992) – pag. 169
"The last dance” (1993, “A última dança”) – pag. 169
Ito Daisuke
“A Diary of Chuji's Travels” (1927, “Diário das viagens de Chuji”) – pag. 14
Ito Shunya
“Female Convict 701: Scorpion” (1972, “Fêmea cativa 701: Escorpião”), pag. 151
Iwai Shunji
“Tudo Sobre Lily” (2001) – pag. 201
216
Kamei Fumio
“The Japanese Tragedy” (1946, “A tragédia japonesa”) – pags. 28, 44-46
“Shanghai” (1937) – pag. 44
“Soldiers at the front” (1938, “Soldados no fronte”) – pag. 44
Kawase Naomi
“Suzaku” (1997) – pags. 173, 201, 202
“Em seus braços” (1992) – pag. 202
“Caracol” (2004) – pag. 202
“This world (winter)” (1996, “Este mundo (inverno)”) – pag. 202
“Firefly” (2000, “Vaga-lume”) – pag. 203
“Céu, Vento, Fogo, Água, Terra” (2001) – pag. 203
“Nascimento e maternidade” (2006) – pag. 203
“Floresta dos Lamentos” (2007) – pag. 203
“Hanezu” (2011) – pag. 203
“O segredo das águas” (2014) – pag. 203
“Sabor da vida” (2015) – pag. 213
Kawashima Yuzo
“Sun in the last days of the shogunate” (1957, “Sol nos últimos dias do xogunato”) –
pag. 115
“Suzaki Paradise: Akashingo” (1956, “Paraíso Suzaki: Akashingo”) – pag. 114, 115
Kinoshita Keisuke
“Army” (1943, “Exército”) – pag. 20
“Port of Flowers” (1943, “Porto das Flores”) – pag. 20
“Morning for the Osone Family” (1946, “Luto pela família Osone”) – pag. 51
“Carmen comes home” (1951, “Carmen volta para casa”) – pag.55
“Carmen’s innocent love” (1952, “O amor inocente de Carmen”) – pag. 55, 56
217
“Uma tragédia japonesa” (1953) – pags. 56, 57
“Sublime dedicação” (1955) – pags. 57, 58
“O Inesquecível” (1961) – pag 58
“O Murmúrio do Rio Fuefuki” (1960) – pag. 58
“Flor e Incenso” (1964) – pag. 58
A Balada de Narayama” (1958) – pag. 58
Kinugasa Teinosuke
“Uma página de loucura” (1926) – pag. 10
“Encruzilhada” (1928) – pag. 10
“Portal do Inferno” (1954) – pag. 62
Kitano Takeshi
“Hana-Bi - Fogos de Artifício” (1997) – pags. 173, 175, 176
“Policial violento” (1989) – pag. 174
“Boiling point” (1990, “Ponto de fervura”) pags. 174, 175
“O mar mais silencioso daquele verão” (1991) – pag. 175
“Adrenalina Máxima” (1993) – pag. 175, 176
“Getting Any?” (1995, “Conseguindo algo?”) – pag. 175
“De Volta às Aulas” (1996) – pag. 175
“Brother - a máfia japonesa Yakuza em Los Angeles” (2000) – pag. 176
“Dolls” (2002) – pag. 176
“Zatoichi” (2003) – pag. 177
“Takeshis'” (2005) – pag. 177
“Glória ao Cineasta!” (2007) – pag. 177
“Achilles and the Tortoise” (2008, “Aquiles e a tartaruga”) – pag. 177
“Ryuzo and the Seven Henchmen” (2015, “Ryuzo e os sete capangas”) – pag. 177
Kobayashi Masaki
218
“A condição humana” (1959-61) – pags. 75, 76-78
“The Thick-Walled Room” (1953, “A cela de paredes espessas”) – pag. 76
“Black river” (1957, “Rio negro”) – pag. 76
“Harakiri” (1962) – pag. 79, 187
“Rebelião” (1967) – pag. 79
“As quatro faces do medo” (1964) – pag. 79, 184
“Tokyo trial” (1983, “O julgamento de Tóquio”) – pag. 79
Koreeda Hirokazu
“Lessons from a calf” (1991, “Lições de uma vitela”) – pag. 189
“However...” (1991, “Entretanto...”) – pag. 189
“August without him” (1994, “Agosto sem ele”) – pag. 189, 190
“Depois da vida” (1998) – pag. 190
“Distance” (2001, “Distância) – pag. 190, 191
“Ninguém pode saber” (2004) – pag. 191
“Andando” (2008) – pag. 191
“O que eu mais desejo” (2011) – pag. 192
“Pais e filhos” (2013) – pag. 192
“Nossa irmã mais nova” (2015) – pag. 192
Kumai Kei
“Sob o Olhar do Mar” (2002) – pag. 135
“Sandokan n. 8” (1974) – pag. 154
Kumashiro Tatsumi
Wet lips” (1972, “Lábios úmidos”) – pag. 142
“Woods are Wet: Woman Hell” (1973, “Os paus estão úmidos: Inferno da mulher”) –
pag. 142
“The world of geisha” (1973, “O mundo da gueixa”) – pag. 143
“Sayuri Ichijō: Wet Lust” (1972, “Sayuri Ichijō: luxúria úmida”) – pag. 143
219
“Lovers are wet” (1973, “Amantes estão úmidos”) – pag. 143
“The woman of red hair” (1979, “A mulher do cabelo vermelho”) – pag. 143
“The woman with red hat” (1982, “A mulher com chapéu vermelho”) – pag. 144
Kurahara Koreyoshi
“Desertores da vida” (1957) – pag. 96
“The warped ones” (1960, “Os deformados”) – pag. 97
“Black sun” (1964, “Sol negro”) – pag. 97
“Thirst for love” (1967, “Sede de amor”) – pag. 98
“Antártica” (1983) – pag. 98
“Hiroshima” (1995) – pag. 98
Kurosawa Akira
“A saga do judô” (1943); “A mais bela” (1944); “A saga do judô II” (1945) – pag. 23
“Os Homens que pisaram na cauda do tigre” (1945) – pags. 23, 29
“Rashmon” (1950) – pags. 29, 32-34, 83, 85
“Não lamento minha juventude” (1946) – pags. 30, 31
“O anjo embriagado” (1948) – pags. 31, 32, 101
“O Barba ruiva” (1965) – pags. 32, 82, 84
“Duelo Silencioso” (1949); “Cão Danado” (1949); “O Escândalo” (1950) – pag. 32
“Os sete samurais” (1954) – pags. 80-82, 85, 187
“O idiota” (1951) – pag. 81
“Viver” (1952) – pag. 81
“Trono manchado de sangue” (1957); “Ralé” (1957); “Céu e inferno” (1963) – pag. 82
“A fortaleza escondida” (1958) – pags. 82, 134
“Yojimbo – o guarda-costas”, de (1961) – pags. 82, 83
“Dodeskaden” (1970) – pags. 84, 132, 133
“Anatomia do Medo” (1955) – pag. 96
“Dersu Uzala” (1975) – pags. 133, 134
220
“Kagemusha” (1980) – pags. 134, 135
“Ran” (1985) – pag. 135
“Sonhos” (1990) – pag. 135
“Rapsódias de agosto” (1991) – pag. 135
“Madadyo” (1993) – pag. 135
Kurosawa Kiyoshi
“Cure” (1997) – pags. 198, 200
“Barren illusions” (1999, “Ilusões estéreis”) – pag. 198
“Sonata de Tóquio” (2008) – pags 198, 200, 201
“Kandagawa pervert wars” (1983, “Guerras perversas de Kandagawa) – pag. 199
“The excitement of the do-re-mi-fa girl” (1985, “A excitação da garota dó-ré-mi-fá) –
pag. 199
“Sweet home” (1989) – pag. 199
“Suit yourself or shoot yourself” (1995-96, “Ajeite-se ou se mate”) – pag. 199
“The revenge” (1996) – pag. 199
“Serpent's path” (1997, “Caminho da serpent”); “Eyes of the spider” (1997, “Olhos da
aranha”) – pag. 199
“License to live” (1998, “Licença para viver”) – pag. 200
“Seance” (2000, “Sessão”) – pag. 200
“Pulse” (2001, “Pulso”) – pag. 200
“Doppelganger” (2003) – pag. 200
“Loft” (2005, “Sótão”); “Vítima de uma alucinação” (2006) – pag. 200
“Para o Outro Lado” (2015) – pag. 201
Masuda Toshio
“Tora! Tora! Tora!” (1970, co-dirigido por Richard Fleischer e Fukasaku Kinji) – pags.
84, 132, 149
“O Punhal da Vingança” (1958) – pag. 102
221
Masumura Yasuzo
“Kisses” (1957, “Beijos”) – pag. 104, 110
“Giants and Toys” (1958, “Gigantes e brinquedos”) – pag. 104, 106
“O falso estudante” (1960) – pag. 104, 105
“Red Angel” (1966, “Anjo vermelho”) – pag. 106, 107
“The hoodlum soldier” (1965, “O soldado vadio”) – pag. 107
“Hoodlum soldier: rebel in the army” (1972, “O soldado vadio: rebelde no exército) –
pag. 107
“Tatoo” (1964) – pag. 107
“Manji” (1964) – pag. 107
“Love for an idiot” (1967, “Amor para um idiota”) – pag. 107, 108
“Afraid to die”, de (1960, “Medo da morte”) – pag. 108
“The Wife of Seishu Hanaoka” (1967, “A esposa de Seishu Hanaoka”) – pag. 108
Miyazaki Hayao
“Nausicaä do Vale do Vento” (1984); “Meu Amigo Totoro” (1988) – pag. 167
O Serviço de Entregas da Kiki” (1989); Porco Rosso: O Último Herói Romântico (1992);
PomPoko: A Grande Batalha dos Guaxinins” (1994); “Princesa Mononoke” (1997); “A
Viagem de Chihiro” (2001) – pag. 172
Miike Takashi
“Sukiyaki Western Django” (2007) – pag. 83
“Ichi - O Assassino” (2001) – pag. 181, 187
“Dead or Alive 2: Tôbôsha” (2000, “Morrer ou viver 2: Tôbôsha) – pag. 181
“Lady killer” (1991, “Mulher matadora”); “Eyecatch junction” (1991, “Cruzamento que
chama a atenção”) – pag. 182
“Shinjuku Triad Society” (1995, “Sociedade Tríade Shinjuku”) – pag. 183
“Rainy dog” (1997, “Cachorro chuvoso”) – pag. 183
“Ley lines” (1999, ‘Linhas da lei”) – pag. 183
“The Bird People in China” (1998, “O povo pássaro da China”) – pag. 183
“The City of Lost Souls” (2000, “A cidade das almas perdidas”) – pags. 183, 184
222
“Morrer ou viver” (1999) – pag. 184
“Dead or Alive: Final” (2002, “Morrer ou viver: final”) – pag. 184
“Graveyard of honor” (2002, “Cemitério de honra”) – pag. 184
“Audição” (1999) – pags 185, 186
“The Happiness of the Katakuris” (2001, “A felicidade dos Katakuris”); “Visitor Q”
(2001) – pag. 187
“Izo” (2004) – pag. 187
“13 Assassinos” (2010) – pag. 187
“Hara-Kiri: death of a samurai” (2011, “Haea-kiri: morte de um samurai”) – pag. 187
Mishima Yukio
“Rito de amor e morte” (1965) – pag. 131, 132, 138
Misumi Kenji
“Lone Wolf and Cub’ (1972, “Lobo solitário e o filho”) – pag. 145
Mizoguchi Kenji
“Marcha de Tóquio” (1929) – pag. 8
“Feiticeira das águas” (1933) – pag. 15
“A Perdição de Osen”, (1935) – pag. 15, 16
“Elegia de Osaka” (1936) – pag. 16, 36
“As Irmãs de Gion” (1936) – pag. 16
“Crisântemos Tardios” (1939) – pag. 16
“The camp song” (1938, “A canção do acampamento”) – pag. 21
“A Vingança dos 47 Ronins” (1941) – pag. 21, 22
“A Espada Bijomaru” (1945) – pag. 22
“Mulheres da Noite” (1948) – pag. 34, 37, 60
“Utamaro e suas cinco mulheres” (1946) – pag. 34
“A vida de Oharu” (1952) – pags. 35, 60, 61
223
“Victory of Women” (1946, “Vitória das mulheres”) – pag. 35, 36
“The love of actress Sumako” (1947, “O amor da atriz Sumako”) – pags. 35, 36
“My love has been burning” (1949, “Meu amor estava em chamas”) – pag. 36
“A Rua da Vergonha” (1956) – pag. 59, 60
“Intendente Sansho” (1954) – pag. 61
“A mulher infame” (1954) – pag. 61
“Os amantes crucificados” (1954) – pag. 61, 62
“Contos da lua vaga” (1953) – pag. 62-64, 86, 87
Morita Yoshimitsu
“Jogos familiares” (1983) – pag. 168, 169
Lost paradise” (1997, “Paraíso perdido) – pag. 177
Murakami Ryu
“Tokyo em Decadência” (1992) – pag. 185
Murata Minoru
“Souls on the road”, (1921, “Almas na Estrada”) – pag. 8
Nagasaki Shunichi
“Shikoku” (1999) – pag. 185
Nakahira Ko
“Paixão juvenil” (1956) – pags. 94, 95
Nakata Hideo
“O Chamado” (1998) – pag. 185
Naruse Mikio
224
“Toda a família trabalha”(1939) – pag. 18, 19
“Wife! Be Like a Rose!” (1935, “Mulher ! Seja como uma rosa !”) – pag. 19
“A Tale of Archery at the Sanjusangendo” (1945, “Uma história de arco e flecha em
Sanjusangendo”) – pag. 22
“Until Victory Day” (1945, “Até o dia da vitória”) – pag. 22
“The Descendants of Taro Urashima” (1946, “Os descendentes de Taro Urashima”) –
pag. 48, 49
“Both You and I” (1946, “Ambos você e eu”) – pag. 48, 49
“Spring Awakens” (1947, “Despertar da fonte”) – pag. 48, 50
“The Angry Street” (1950, “A rua raivosa”) – pag. 48
“White Beast” (1950, “Fera branca”) – pag. 48
“Ginza Cosmetics” (1951, “Cosméticos de Ginza”) – pag. 48, 50
“Vida de casado” (1951) – pag. 48, 50, 51, 72
“Delinquent Girl” (1951, “Garota delinquente”) – pag. 48
“Quando a mulher sobe a escada” (1960) – pag. 50, 51, 74, 75
“O som da montanha” (1954) – pag. 72, 73
“Nuvens flutuantes” (1955) – pag. 74
“Nuvens dispersas” (1967) – pag. 75
Nishimura Shogoro
“Rope cosmetology” (1978, “Cosmetologia da corda”) – pag. 146
Ogawa Shinsuke
“Narita: peasants of the second fortress” (1971, “Narita: camponeses do segundo
forte”) – pag. 136
“A Japanese village - Furuyashikimura”
Furuyashikimura”), pag. 136
Oikawa Ataru
“Tomie” (1999) – pag. 185
225
(1981,
“Um
vilarejo
japonês
–
Okamoto Kihachi
“Japan´s longest day” (1967, “O dia mais longo do Japão”) – pag. 47
Oshima Nagisa
“Noite e neblina no Japão” (1960) – pag. 105, 111
“O império dos sentidos” (1976) – pag. 108, 113, 137-140
“A town of love and hope” (1959, “Uma cidade de amor e esperança”) – pag. 110
“Juventude desenfreada” (1960) – pag. 110
“O túmulo do sol” (1960) – pags 110, 111
“The catch” (1961, “A captura”) – pag. 111
“The rebel” (1962, ‘O rebelde”)
“The Pacific war” (1968, “A Guerra do Pacífico); “Mao and the cultural revolution”
(1969, “Mao e a revolução cultural”); “The forgotten imperial army” (1963, “O exército
imperial esquecido); “Diary of Yunbogi” (1965, “O diário de Yunogi”) – pag. 112
“The pleasures of the flesh” (1965, “Os prazeres da carne”) – pag. 113
“Dear summer sister” (1972, “Querida irmã de verão”) – pag. 113
“O enforcamento” (1968) – pag. 113, 129
“O garoto Toshio” (1969) –pag. 113
Diary of a Shinjuku thief” (1969, “Diário de um ladrão de Shinjuku”) – pag. 113, 129
“Man who left his will on film” (1970, “O homem que deixou sua vontade no filme”) –
pag. 113
“The cerimony” (1971, “A cerimônia”) – pag. 113
“O império da paixão” (1978) – pag. 140
“Furyo, em nome da honra” (1983) – pags. 140, 141, 174
“Max, mon amour” (1986) – pag. 141
“Tabu” (1999) – pag. 141
Ozu Yasujiro
“Filho único” (1936) – pag. 9, 13, 86
“Sword of Penitence” (1927, ‘Espada da penitência”) – pag. 12
226
“Meninos de Tóquio” (1932) – pag. 12, 13
“Passing fancy” (1933, “Moda passageira”) – pag. 12, 13
“Uma História de Ervas Flutuantes” (1934) – pag. 12, 13
“Uma Estalagem em Tóquio” (1935) – pag. 13
“Os Irmãos e Irmãs Toda” (1941) – pag. 19
“Era uma Vez um Pai” (1942) – pag. 19
“Pai e Filha” (1949) – pags. 28, 38, 41-43, 85
“Discurso de um proprietário” (1947) – pag. 39
“Uma Galinha no Vento” (1948) – pag. 40, 41
“Era uma vez em Tóquio” (1953) – pag. 85-88, 110, 115, 191
“As irmãs Munekata” (1950); “Também fomos felizes” (1951); “O sabor do chá verde
sobre o arroz” (1952); “Começo de Primavera” (1956); “Crepúsculo em Tóquio” (1957);
“Bom dia” (1959); “Ervas flutuantes” (1959); “Dia de outono” (1960); “Fim de verão”
(1961) – pag. 88
“A Flor do equinócio” (1958) – pag. 89
“A rotina tem seu encanto” (1962) – pags 89, 90
Sakao Masanao
“Cruel Map of Women's Bodies” (1967, “Mapa cruel dos corpos de mulheres”) – pag.
147
“Flower and Snake” (1974, “Flor e serpente) – pag. 147
“Wife to be sacrificed” (1974, “Esposa a ser sacrificada”) – pag. 147, 148
Shimizu Hiroshi
“Sr. Obrigado” (1936) – pag. 17
“Japanese Girls at the Harbor” (1933, “Garotas japonesas no porto”) – pag. 17
“Ornamental Hairpin” (1941, “Grampo de cabelo ornamental”) – pag. 17
“Children of the Beehive” (1948, “Crianças da colméia) – pag. 51
“Children of the great Buddah” (1952, ‘Crianças do grande Buda”) – pag. 52
Shindo Kaneto
227
“Onibaba, o sexo diabólico” (1964) – pag. 108
“Filhos de Hiroshima” (1952) – pag. 108
Shinoda Masahiro
“One way ticket” (1960, “Passagem de ida”) – pag. 120
“Dry lake” (1960, “Lago seco”) – pag. 120
Killers on Parade” (1961, “Matadores na parada”) – pag. 120
“Flor seca” (1964) – pags. 120, 121
“Assassination” (1964, “Assassinato”) – pag. 121
“With beauty and sorrow” (1965, “Com beleza e tristeza”) – pag. 122
“Samurai Spy” (1965, “Espião samurai”) – pag. 122
“Duplo suicídio” (1969) – pag. 123
“As escandalosas aventuras de Buraikan” (1970) – pag. 123
“Silence” (1971, “Silêncio) – pag. 123
“MacArthur Children” (1984, “Filhos de MacArthur) – pag. 123
“Spy Sorge” (2003, “Espião Sorge”) – pag. 123
Sono Sion
“Suicide club” (2001, “Clube do suicídio) – pag. 195, 196
“Cold fish” (2010, “Peixe frio”) – pag. 196
Suzuki Noribumi
“Sex and fury” (1973, “Sexo e fúria”) – pag. 145
Suzuki Seijun
“Youth of the beast” (1963, “Juventude da fera”) – pag. 98
“A marca do assassino” (1967) – pag. 98, 101, 102
“Gate of flesh” (1964, “Portal da carne”) – pags. 99, 100
“Story of a prostitute” (1965, “História de uma prostituta”) – pag. 100
228
“Fighting elegy” (1966, “Elegia da luta”) – pag. 100, 101
“Tóquio violenta” (1965) – pag. 101, 151
“Yumeji” (1991) – pag. 102
“Pistol Opera” (2001, “Pistola de ópera”) – pag. 102
Suo Masayuki
“Abnormal Family: My brother’s wife” (1983, “Família anormal: a esposa do meu
irmão”) – pag. 43
“Dança Comigo?” (1996) – pag. 177
Tani Naomi
“Sex Killer” (1972, “Matador sexual”) – pag. 147
“Starved Sex Beast” (1972, “Fera sexual esfomeada”) – pag. 147
Takahata Isao
“Túmulo dos Vagalumes” (1988) – pag. 167
“Only Yesterday” (1991, “Somente ontem”) – pag. 172
Takechi Tetsuji
“Daydream” (1964, “Sonho diurno”) – pag. 124
“Black snow” (1965, “Neve negra”) – pag. 124
Takita Yojiro
“A Partida” (2008) – pag. 195
“Molester and the Female Teacher” (1981, “Molestador e a professor fêmea”);
“Molester's Train: Hunting In a Full Crowd“ (1982, “Molestador do trem: caçando em
plena multidão”); “Serial rape”(1983, “Estupro em série”; “Molester's Train: One Shot
Per Train” (1985, “Molestador do trem: uma tacada por trem”) – pag. 195
Tasaka Tomotaka
“Navy” (1943, “Marinha”) – pag. 20
229
“Five scouts” (1938, “Cinco batedores”) – pag. 20
“Mud and Soldiers”, de (1939, “Lama e soldados”) – pag. 20
Terayama Shuji
“Emperor Tomato Ketchup” (1981, “Ketchup de tomate Imperador”); “Throw Away
Your Books, Rally in the Streets” (1971, “Jogue fora seus livros, proteste nas ruas”);
“Fruits of passion” (1981, “Frutos da paixão”) – pag. 120
Teshigahara Hiroshi
“A mulher de areia” (1964) – pag. 108, 166
“O rosto da maldade” (1967) – pag. 108
Tsukamoto Shinya
“Tetsuo: o homem de ferro” (1989) – pags. 180, 181
“Tetsuo II: Body Hammer” (1992, “Tetsuo II: Martelo corporal”) – pag. 181
“Tetsuo: O Homem Bala” (2009) – pag. 181
“Tokyo Porrada” (1995) – pag. 181
“A Snake of June” (2002, “Uma cobra de junho”) – pag. 181
Tsunekichi Shibata
“Maple viewing” (1899, “Vista do bordo”) – pag. 7
Uchida Tomu
“Police” (1933, “Polícia”) – pag. 69
“A Lança ensanguentada” (1955) – pag. 69
“Tragédia em Yoshiwara” (1960) – pag. 70
“The outsiders” (1958, “Os ) – pag. 71
“Condenado pela consciência” (1965) – pag. 71
Wakamatsu Koji
230
“Chronicle of an Affair” (1965, “Crônica de um affair”) – pag. 163
“Secret behind the wall” (1965, “Segredo atrás da parede”) – pag. 163, 164
“The Embryo Hunts in Secret” (1966, “O embrião caça em segredo”) – pag. 128
“Violated Angels” (1966, “Anjos violados”) – pag. 128
Season of terror” (1969, “Temporada de terror”) – pag. 128
“Go, Go, Second Time Virgin” (1969, “Vai, vai, virgem duas vezes”) – pag. 128
“Eros eterna” 1977) – pag. 140
“Sex jack” (1970, “Sexo operário”) – pag. 164
“Ecstasy of the angels” (1972, “Êxtase dos anjos”) – pag. 165, 166
Black Beast of Lust” (1972 “Fera negra da luxúria”); “Contemporary History of Rape in
Japan” (1972, “História contemporânea do estupro no Japão”); “100 Years of Torture:
The History” (1975, “Cem anos de tortura: a História); “Contemporary sexual tortures”
(1976, “Torturas sexuais contemporâneas”); “100 Years of Banned Torture” (1977, “100
anos de torturas banidas”); “Serial Rapist” (1978, “Estuprador em série”)
“A pool without water” (1982, “Piscina sem água”) – pag. 166
“Erotic liaisons” (1992, “Ligações eróticas”) – pag. 166
“United Red Army” (2007) – pag. 167
“11.25 The Day He Chose His Own Fate” (2011, “11.25 O dia em que ele escolheu seu
próprio destino) – pag. 167
Watanabe Kunio
“Toward the decisive battle in the sky” (1943, “Em direção à decisiva batalha nos céus”)
– pag. 20
Yamada Yoji
“It's Tough Being a Man” (1969, “É duro ser um homem) – pag. 145
“Tora-san's Cherished Mother” (1969, “A querida mãe de Tora-san”) – pag.145
Yamamoto Kajiro
“The War at Sea from Hawaii to Malaya” (1942, “A Guerra no mar, do Havaí à Malásia”)
– pag. 20
Kato’s falcon fighters” (1943, “Falcões guerreiros de Kato”) – pag. 20
231
Yamamoto Shinya
“Cruel History of Prisoners” (1976, “Cruel história de prisioneiros”) – pag. 146
A degenerate” (1967, “Uma degenerada”); “Memoirs of Modern Love: Curious Age”
(1967, “Memórias do amor modern: idade curiosa”); “Season For Rapists” (1968,
“Temporada de estupradores”) – pag. 147
Yamanaka Sadao
“Humanidade e Balões de Papel” (1937) – pag. 15
“The Million Ryo Pot” (1935, “O pote de um milhão de ryos”) – pag. 15
Yanagimachi Mitsuo
“Fire festival” (1985, “Festival de fogos”) – pag. 168
Yoichi Sai
“All Under the Moon” (1993, “Tudo sob a lua”) – pag. 192, 193
Yoshida Kiju
Volúpia perigosa” (1960) – pag. 125
“Escape from Japan” (1964, “Fuga do Japão”) – pag. 124
“Woman of the lake” (1966, “Mulher do lago”) – pag. 126
“Flame and women” (1967, “Chama e mulher”) – pag. 126
“The affair” (1967, ‘O caso”) – pag. 126
“Eros + Massacre” (1969) – pag. 126
“Coup d’état” (1973, “golpe de Estado”) – pags. 127, 138
Zeze Takahisa
Tokyo x Erotica” (2001) – pag. 186
232